sábado, 7 de novembro de 2015 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros em TXT 85 Historias de Arrepiar os Cabelos - Alfred Hitchkock etc

How To Be Popular
Meg Cabot
Como Ser Popular
POPULAR: adjetivo; Adorado, apreciado; estimado; adorado por conhecimentos; procurado para companhia.Popularidade.Nós todos queremos isso. Por quê? Porquê ser
popular quer dizer ser adorado. Todo mundo quer ser adorado.Infelizmente, porém, nem todos nós somos.O que as pessoas populares têm em comum que as fazem tão
popular?Todas elas têm:• Uma maneira amigável sobre elas mesmas;• Alguém para se meter e ajudar a ter o trabalho feito;• Um interesse em tudo o que acontece
no trabalho ou escola;• Um visual moderno e bonito.Essas não são coisas com as quais as pessoas populares nascem. É a cultivação dessas características que as
fazem serem tão populares......e você pode, também, seguindo as dicas deste livro!
Capítulo 1T-MENOS DOIS DIAS E CONTANDOSÁBADO, 26 DE AGOSTO, 19HEu devia saber, pela maneira como a mulher estava olhando para o crachá com o meu nome, o que
ela iria perguntar."Stephen Landry," disse ela quando retirou sua carteira. "Como eu sei esse nome?""Deus, senhora," eu disse. "Eu não sei." Sabendo que eu nunca
tinha visto esta mulher antes na minha vida, eu tinha uma pequena idéia de como ela poderia ter ouvido sobre mim."Eu sei," disse outra senhora, mexendo os dedos
e então apontando para mim. "Você está no time de futebol feminino da Bloomvile High School!""Não, senhora," disse para ela. "Não estou.""Você não estava na
quadra do Greene County Fair Queen, estava?"Mesmo que as palavras estivessem saindo da boca dela, ela sabia que estava errada de novo. Eu não tenho o cabelo da
rainha do Indiana County Fair - meu cabelo é curto, não longo; marrom, não loiro; e ondulado, não liso. Nem o corpo da rainha do Indiana County Fair - na verdade,
sou meio baixinha, e não faço exercícios regularmente, meu abdome meio que... se expande.Obviamente eu faço o que posso com o que Deus me deu, mas eu não estaria
no America's Next Top Model tão cedo, muito menos na quadra de alguma rainha de feira."Não, senhora," disse.O negócio é que eu realmente não queria me aprofundar
no assunto com ela. Quem iria querer?Mas ela não deixaria isso passar."Deus. Eu só sei que conheço seu nome de algum lugar," disse a mulher, me entregando seu
cartão de crédito para pagar por suas compras. "Tem certeza que eu não li sobre você no jornal?""Absoluta, senhora," eu disse. Deus, era só o que faltava. A coisa
toda ter que ser mostrada no jornal.Felizmente, pensei, eu não tenho estado no jornal desde o anúncio de meu nascimento. Por que estaria? Não sou particularmente
talentosa, musical ou o que quer que seja.E só estou na maioria das classes AP, não quer dizer que sou uma estudante de honra ou alguma coisa. Isso é só porque,
se você cresceu em Greene County sabendo que aquele limão Joy vai à lava-louça e não no chá gelado, você vai para a classe AP.Na realidade, é surpreendente a quantidade
de pessoas em Greene County que cometem esse erro. Com o limão Joy, quero dizer. De acordo com o pai de meu amigo Jason, que é médico do Hospital Bloomville."Provavelmente,"
eu disse para a mulher enquanto passava o cartão dela pelo scanner, "é porque meus pais são os donos dessa loja."Coisa que eu sei que não parece muito. Mas a Courthouse
Square Books é a única livraria independente de Bloomville. Isso se você não incluir Livros Adultos Doc Sawyer e Aids Sexual."Não," a mulher disse, balançando
a cabeça. "Também não é isso."Eu podia entender a frustração dela. O que é mais decepcionante sobre isso - se você pensar (o que eu tento não fazer, exceto como
coisas como essa acontecem) - é que Lauren e eu, até o fim da quinta série, éramos amigas. Não amigas próximas, talvez. É difícil ser próxima da garota mais popular
da escola, quando ela tem uma agenda social tão cheia.Mas certamente próxima o suficiente para que ela tenha ido à minha casa (certo, bem, uma vez. E ela não teve
exatamente bons tempos lá. Eu culpo meu pai, que estava cozinhando granola caseira naquela hora. O cheiro de cereal queimado ERA meio além da conta). E eu fui para
a dela (só uma vez... a mãe dela estava fora, fazendo as unhas, mas o pai dela estava em casa e tocou a porta do quarto de Lauren para dizer que o barulho das explosões
que eu estava fazendo durante o nosso jogo de Navy Seal Barbie estava um pouco alto demais. E que ele nunca tinha ouvido falar de Navy Seal Barbie, e queria saber
o que tinha de tão errado em jogar Quiet Nurse Enfermeira."Bem," eu disse para a cliente, "talvez eu só... você sabe. Tenha um daqueles nomes que soam familiares."É.
Imagine por quê. Lauren foi quem divulgou o termo "Não dê uma de Steph Landry." Sem retorno.É impressionante como isso se espalhou rápido. Agora se alguém na escola
faz algo remotamente estúpido ou desconcertante, as pessoas são todas, "Não dê uma de Steph!" ou "Isso foi tão Steph!" ou "Não seja Steph!"E eu sou a Steph de
quem eles estão falando.Ótimo."Talvez seja isso," a mulher disse duvidosa. "Deus, isso vai me incomodar a noite inteira. Eu simplesmente sei disso."O cartão
de crédito dela foi aprovado. Eu destaquei a nota para ela assinar e comecei a embalar suas compras. Talvez eu pudesse dizer a ela que a razão pela qual ela possivelmente
me conhecesse era por causa de meu avô. Por que não? Ele é atualmente uma dos mais falados - e ricos - homens no sul de Indiana, desde que ele vendeu algumas terras
que ele tinha e propôs a rota da nova I-69 ("conectando o México ao Canadá via um corredor" passando por Indiana, entre outros estados) para a construção de um Super
Sav-Mart, que foi inaugurado fim de semana passado.O que quer dizer que ele esteve muito no local, especialmente desde que gastou um punhado do seu dinheiro construindo
um observatório que ele pretende doar para a cidade.Porque toda pequena cidade no sul de Indiana precisa de um observatório.Não.Isso também quer dizer que
minha mãe não está falando com ele, por causa do Super Sav-Mart, que tem preços reduzidos, e vai provavelmente colocar todas as lojas da praça, incluindo a Courthouse
Square Books, fora de serviço.Mas eu sabia que a cliente não ia cair nessa. O sobrenome do meu avô não é nem o mesmo que o meu. Ele foi amaldiçoado no nascimento
com o horrível nome de Emile Kazoulis...mesmo assim, ele fez muito por si próprio, tirando essa desvantagem.Eu simplesmente ia ter que encarar o fato de que, igualzinho
o Super Big gulp vermelho, que não saiu da saia jeans branca D&G da Lauren - mesmo com o meu pai tentando. Ele usou Shout e tudo, e quando não funcionou, ele saiu
e comprou uma saia novinha em folha -o meu nome ficaria grudado na memória das pessoas para sempre.E não de uma forma boa."Bem" disse a mulher pegando sua sacola
e seu recibo. "Eu acho que deve ser uma dessas coisas.""Eu acho que sim," Eu disse para
ela. Não sem algum alívio. Porque ela estava indo embora. Finalmente.Mas
o meu alívio durou pouco. Porque um segundo depois o sino da porta da loja tocou, e Lauren Moffat em pessoa - usando as mesmas calças capris com cós baixo Lilly
Pulitzer que eu tinha experimentado no shopping no outro dia, mas que não pude comprar devido ao fato de que custava o equivalente há 25 horas trabalhando atrás
da caixa registradora na Courthouse Square Books - estava entrando na loja, segurando um Tasti D-Lite do Penguin e falando, "Mãe. Pode ir mais rápido? Eu estou te
esperando há, tipo, uma vida."E caiu a ficha de quem era a mulher com quem eu falava.Que seja. As pessoas não podem esperar que eu leia o nome em cada um dos
cartões de crédito que alguém me dá. Além do mais tem tipo uns cem Moffats aqui em Bloomville."Ah, Lauren, você vai saber," a Sra. Moffat disse para sua filha."Como
eu conheço o nome Steph Landry?""Um, talvez seja porque foi ela que derramou o Big Red Super Gulp na minha saia branca D&G na frente de todo mundo que estava no
refeitório aquele dia na 6ª série?" Lauren respondeu com um suspiro.E ela nunca me perdoou por isso. Muito menos deixou alguém esquecer.A sra. Moffat me deu
um olhar horroroso por cima do ombro de seu sweater Quaker Factory."Oh," ela disse. "Querida. Lauren, eu -"E foi quando a Lauren finalmente me notou, parada
atrás do caixa."Deus, mãe," ela disse rindo enquanto ela empurrava a porta para ir de volta para o ar do fim de tarde. "Bom jeito de dar uma de Steph Landry".
Vamos começar definindo o seu nível de popularidade ou falta dela:Pergunte a si mesmo como as outras pessoas no seu círculo social vêem você.Eles sabem quem
você é? Se sim, como te tratam?Eles fazem comentários maldosos sobre você, nas suas costas, ou na sua cara mesmo?Eles te ignoram?As outras pessoas te incluem
em saídas e atividades, te convidando para eventos sociais e ocasiões?Julgando pelo comportamento dos outros a sua volta você será capaz de dizer se você é adorado,
somente tolerado, ou completamente impopular.Se você é somente tolerado ou completamente impopular, é hora de entrar em ação.
Capítulo 2 AINDA T-MENOS DOIS DIAS E CONTANDOSÁBADO, 26 DE AGOSTOÉ assim que Jason tem me cumprimentado recentemente: "Yo, Crazytop!" E sim, é irritante.O
ruim é que ele parece não se importar quando eu falo isso para ele."Qual é o super plano criminoso essa noite, Crazytop?" Jason quis saber enquanto ele e Becca
caminhavam para dentro da loja uma hora depois que a Lauren e a Sra. Moffat saíram. Bom, a Becca caminhava. Jason se jogou para dentro. Ele passou por cima do balcão
e ajudou a si mesmo a pegar uma trufa Lindt do balcão de doces.Como se ele não achasse que isso não ia me deixar maluca nem nada."Você, coma isso e está me devendo
sessenta e nove centavos," Eu informei a ele.Ele pegou um dólar do bolso de seu jeans e colocou no balcão do caixa. "Fique com o troco", ele disse.Então ele
pegou outra trufa Lindt do balcão de doces e jogou para Becca.Que ficou tão surpresa quando a trufa de chocolate Lindt veio para ela vinda de lugar nenhum, que
ela não pensou em pegá-la, então ela bateu em sua clavícula, caiu no chão e rolou para baixo do balcão.Então Becca estava engatinhando no tapete de alfabeto e
falando:"Ei, tem bastante poeira aqui em baixo. Vocês nunca pensaram em passar o aspirador de pó?""Agora você me deve trinta e oito centavos," Eu disse à Jason."Eu
sou melhor que isso". Ele sempre diz isso. "Quanto tempo até você fechar essa caixa?"Ele sempre pergunta isso também. Mesmo quando ele sabe a resposta muito bem.
"A gente fecha as nove. Você sabe que a gente fecha as nove. A gente têm fechado as nove desde que esse lugar abriu, o que, eu devo adicionar, foi antes de eu
e você nascermos.""Se você diz, Crazytop."Então ele pegou mais uma trufa lindt.É realmente marcante como ele consegue comer sem ficar gordo. Eu como duas dessas
trufas por dia, e pelo fim do mês, o meu jeans não entra mais em mim. Jason consegue comer tipo vinte por dia e ainda tem muito espaço na (sem stretch) Levi's dele.Eu
acho que é uma coisa de garoto. Além disso, uma coisa de crescimento. Jason e eu tínhamos praticamente a mesma altura e peso durante todo o primário e o ginásio,
e na primeira parte do ensino médio, até. E enquanto ele ganhava de mim em chin-ups e qualquer coisa envolvendo jogar uma bola, eu freqüentemente arrasava com ele
em leg-wrestlig e Combate.Então no último verão ele foi para a Europa com a sua avó para ver todos os lugares do livro preferido dela, O Código da Vinci, e quando
ele voltou, ele estava 15 centímetros mais alto do que quando ele partiu. E, um pouco gostoso.Não gostoso tipo o Mark Finley, claro, sendo Mark Finley o cara mais
gostoso do Bloomville High. Mas mesmo assim. É uma coisa bem perturbadora de se perceber sobre seu melhor amigo, mesmo ele sendo um garoto - que ele ficou gostoso.Especialmente
porque ele ainda está tentando ganhar peso suficiente para acompanhar sua altura. (Eu sei. Ele tem que GANHAR peso.) A única coisa que eu posso bater nele agora
é leg-wrestling. Ele até mesmo consegue me bater em Stratego. E eu acho que a única razão que eu posso bater nele de leg-wrestling é só porque ficar sentando no
chão ao lado da garota o deixa um pouco pertubado.Eu tenho que adimitir, desde que ele voltou da Europa, ficar ao lado dele no chão - ou na grama no morro onde
nós vamos muito para olhar as estrelas - me deixa meio pertubada, também. Mas não bastante para fazer com que eu não consiga controlar a vontade de agarrá-lo.
É importante não deixar hormônios entrar no caminho de uma perfeitamente boa amizade. Também para manter sua mente focada."Pare de me chamar de Crazytop," Eu disse
a ele."Se o nome serviu," Jason disse."Carapuça," Eu disse. "A expressão é, 'se a carapuça...'"A fez Becca, tendo encontrado a perdida trufa da Lindt por fim,
aparecer e dizer, "Eu amo o nome Crazytop," toda ansiosa, enquanto tirava poeira do seu cabelo loiro ondulado. "Sim," Eu disse resmungando. "Bem, isso pode ser
seu apelido de agora, então". Mas lógico que Jason teve ser todo, "Desculpe-me, mas nem todos nós podemos ser um gênio criminal como Crazytop aqui.""Se você
quebrar esse vidro do mostruário," Eu alertei Jason, porque ele estava parado sentado no contador, balançando seus pés na frente do vidro abaixo dele, "eu farei
você levar todas essas bonecas para casa com você"Porque atras do vidro há cerca 30 bonecas Madame Alexander, a maioria delas são baseadas em personagens fictícios
de livros, como Marmee e Jo de "Mulherzinhas" e Heidi de "Heidi". Eu posso apontar que foi idéia minha colocar todas essas bonecas na semana dos colecionadores
de bonecas, depois que eu descobri que nós perdemos uma boneca na semana dos colecionadores de bonecas, de uma maneira vergonhosa, pela mão leve, fora a Madame Alexander,
que carrega uma grande bolsa - geralmente com gatos dentro - para passear nas lojas, como a nossa, com o propósito de aumentar sua coleção, sem se incomodar, com
o fato de que, na verdade ela tem de pagar pelas bonecas.O Jason diz que as bonecas o assustam. Ele diz que às vezes, ele tem pesadelos com elas vindo atrás dele
com seus pequenos dedos plásticos e seus brilhantes olhos azuis que não piscam.Jason parou de bater o pé."Meu Deus, eu não percebi que já era tão tarde ". Minha
mãe veio do escritório, seu estômago, normalmente guiando o caminho. Eu realmente acredito que meus pais estão indo para o livro dos recordes de produção de crianças.
Minha mãe está para ter seu sexto filho - meu filho-será-seu-pequeno-irmão-ou-irmã - em seis meses. Quando a última criança nascer, nós seremos a maior família da
cidade, não contando os Grubbs, que possuem oito filhos, mas com sua casa motorizada não é tecnicamente situada em Bloomville, é na divisa das cidades Greene e Bloomville.
Apesar de que atualmente eu acho que um dos jovens Grubbs foi levado embora depois que o serviço infantil descobriu que o seu pai estava fazendo limonada com garrafas
de limão Joy."Oi, Sra. Laundry." Jason e Becca disseram."Oh, oi, Jason, Becca." Minha mãe deu um sorriso brilhante para eles. Ela vem fazendo bastante isso ultimamente.
Brilhando, eu digo. Exceto quando o vovô está por perto, é claro. Então ela disse "E o que vocês crianças estão planejando fazer com o seu último sábado livre antes
das aulas começarem? Tem alguém dando uma festa?"Esse é o tipo de mundo de fantasia no qual a minha mãe vive. O tipo no qual eu e meus amigos somos convidados
para divertidas festas-de-volta-às-aulas. É como se ela nunca tivesse ouvido sobre o Super Big Red Gulp. Eu digo, ela estava LÁ quando aconteceu. Foi a culpa dela
que eu estava com Super Big Gulp, em primeiro lugar, porque ela sentiu pena por mim ter apertado a minha atadura e me presenteou com um Super Big Gulp para beber
no carro no caminho para a Bloomville Junior High. Que tipo de pais deixam uma menina de sexta série levar um Super Big Gulp pra escola? O que é mais uma evidência
para a minha teoria de que meus pais não tem a menor idéia do que eles estão fazendo. Eu sei que um monte de gente sente o mesmo sobre seus pais, mas no meu caso,
isso é realmente verdade. Eu percebi que era verdade na vez que a Mãe nos levou na viagem para a cidade de Nova York, e meus pais passaram a semana inteira alternando
entre ficarmos perdidos ou passando na frente dos carros, esperando que eles parem, porque as pessoas param para eles aqui em Bloomville.Em Nova York, não muito.Estaria
tudo bem se fossem só meus pais e eu. Mas nos tínhamos meu irmão Peter de cinco anos na época com a gente, e a minha pequena irmã Catie, que estava em um carrinho,
e meu irmão mais novo, Robbie, que ainda era só um bebê e ainda estava na barriga (a Sara ainda não tinha nascido). Não éramos só eu e meus pais. Tinham crianças
pequenas envolvidas!Depois da quinta vez que eles tentaram atravessar passando em frente do ônibus, eu percebi que meus pais eram insanos e não confiáveis sobre
quaisquer circunstâncias.E eu só tinha 7 anos. Esta descoberta foi concretizada quando eu entrei na puberdade e meus pais começaram a me dizer coisas como, "Olha,
nós nunca fomos pais de uma adolescente antes. Nós não sabemos se estamos fazendo a coisa certa, mas estamos fazendo o melhor que podemos". Isso não é algo que você
quer ouvir dos seus pais sobre nenhuma circunstância. Você quer sentir que os seus pais estão no controle, que eles sabem o que estão fazendo.É. Com os meus pais?
Não muito.O pior foi no verão entre a sexta e a sétima série, quando eles me mandaram para o Acampamento de Garotas. Tudo o que eu queria fazer era ficar em casa
e ajudar na loja. Eu não sou o que se pode chamar de grande fã da natureza, sendo basicamente uma humana que é um ímã para mosquitos. Então, para tornar as coisas
piores, eu descobri que Lauren Moffat iria ser minha colega de cabana. Quando eu muito calma e madura disse a instrutora chefe que não iria dar certo por causa do
extremo ódio da Lauren por mim, devido ao incidente do Super Big Gulp, a instrutora simplesmente disse "Oh, nós vamos ver sobre isso", e minha mãe se DESCULPOU por
mim dizendo que eu tinha dificuldade em fazer amigos."Nós mudaremos isso" disse a instrutora confidencialmente. E me fez ficar na cabana da Lauren.Até dois dias
depois quando eu não tinha comido nada -muito nauseda- ou ido ao banheiro - desde que toda a vez que eu tinha tentado, Lauren ou uma de suas amigas apareciam e diziam
do lado de fora da casa de banheiro "Hey... não de uma de Steph aí." Isso foi quando o instrutor me mudou para uma cabana com outros rejeitados como eu, e eu acabei
tendo um razoável divertimento. Obviamente, dada às condições - eu não estou incluindo o fato de que minha mãe sabe perto do nada sobre contadoria ou administração,
e ainda sim tem seu próprio negócio, ou meu pai pensa que é há um mercado enorme fora daqui, em algum lugar para sua série não publicada sobre o treinador de basquete
da escola Indiana que resolve crimes - meus pais não são para se ter confiança.Nem eles devem saber nada pessoal envolvendo minha vida, exceto o precisa-saber básico."Não,
nada de festa, senhora Landry", foi como Jason respondeu para a minha mãe sobre nossos planos para o fim-de-semana. Eu vinha intruindo o Jason a como conversar com
os meus pais porque a avó de Jason está se casando com o pai da minha mãe, o que faz ele primo de segundo grau dela. Eu acho. "Nós estávamos indo dirigir pela a
rua principal ".Ele disse isso como se não fosse nada de mais - Eu acho que nós estamos indo dirigir pela rua principal. Mas é longe de não ser nada de mais, porque
Jason é o primeiro de nós que ganhou seu próprio carro - ele economizou todo o verão para comprar o carro da governanta de sua avó, uma BMW 1974 2002tii- e esse
é o primeiro sábado à noite que ele o possuiu.Acontece de também ser o primeiro sábado à noite em nossas histórias combinadas que Jason, Beca e eu não vamos passar
deitados na grama observando as estrelas na colina, ou sentados na calçada do lado de fora do "Penguin", nos perguntando o que todo mundo na cidade- que tem acesso
a um carro - estão sentados no sábado à noite, assistindo crianças ricas (as quais ganharam seu próprio carro nos seus aniversários de 16 anos, o oposto de um e-book
como o resto de nós) cruzando em cima e em baixo da avenida principal, inteligentemente nomeada como dragão no centro comercial Bloomville.A avenida principal
começa no parque do riachinho de Bloomville - onde o observatório do vovô está quase terminando sua construção - e continua nesta linha com todas as lojas de rede,
que acaba deixando as pequenas lojas de roupas fora dos negócios (do mesmo jeito que minha mãe pensa que o Super "Sav-Mart", mercado econômico e seu grande desconto
nos departamento de livros irá nos fechar), até a corte judicial. A corte judicial - uma larga construção de calcário com uma abóboda branca que tem uma espiral
cravada de uma parte a outra do meio com um catavento em forma de peixe na parte mais alta, apesar de ninguém saber por que eles escolheram um peixe, visto que somos
um município fechado - é aonde todo mundo vira e desce para Bloomville Creek Park para outra volta."Oh". Mamãe olhou desapontada. Bem, e por que ela não deveria?
Que pai quer ouvir que sua filha está indo gastar sua última noite de sábado das férias de verão dirigindo para cima e para baixo? Ela não sabe o quanto isso é melhor
do que ficar lá sentado assistindo outras pessoas fazendo isso. Apesar de que a idéia de diversão da minha mãe é colocar as crianças na cama e assistir Law and
Order com uma grande tigela de Ben and Jerry's Vanilla Heath Bar Crunch. Então o julgamento dela obviamente tem de ser posto em questão. "Quanto tempo mais você
vai demorar, hein, Crazytop?" Jason perguntou.Eu estava puxando a gaveta do caixa, para começar a contagem do lucro do dia. Eu sabia que se eles não fossem iguais
ou maiores do que este dia do ano passado, minha mãe iria ter um enfarte."Eu queria que alguém me desse um apelido de gênio do crime" sugeriu Becca - não muito
sutilmente - com um suspiro."Desculpa, Bex" Jason disse "Você não tem uma característica facial marcante - como um grande queixo, ou um grande espaço entre os
olhos - isto mereceria o ganho de um nome de gênio do crime, como Lockjaw ou Walleye. Enquanto que Crazytop aqui... bom, olhe para ela. "Sessenta e sete, sessenta
e oito, sessenta e nove, setenta."Pelo menos eu posso deixar meu cabelo liso," Eu apontei " O que é mais do que eu posso dizer do seu nariz, Hawkface "."Stephanie!"
Minha mãe gritou, espantada com que eu fizesse graça do longo- ligeiramente-muito-grande nariz do Jason na cara dele."Está tudo bem, Sra. Landry" Jason disse com
um suspiro de desprezo "Eu sei que eu sou horrível. Desviem seus olhares, todos vocês." Eu revirei os meus olhos, porque Jason está muito longe de ser horrendo
- como eu sei, muito bem afinal - e suspendi a gaveta da maquina registradora, então andei para os fundos da loja para guardar aquilo na segurança do escritório
da minha mãe durante a noite. Eu não mencionei a ela que tinha 100 dólares a menos do que neste mesmo dia no ano passado, e felizmente, ela estava muito ocupada
perguntando porque eu tinha chamado Jason daquele jeito.Como se ela não tivesse ouvido ele me chamando de Crazytop aproximadamente 9 milhões de vezes. Ela acha
que é bonitinho.Minha mãe nunca conheceu Mark Finley, então é obvio que ela não sabe o quão bonitinho ele é.No caminho de volta, eu noticiei que Mr. Huff, um
dos nossos clientes assíduos, entrou para o último Guia para Mustangs. Seus três filhos, na qual ele fica com a custódia nos fins de semana, estavam ocupadas quebrando
os trilhos do trem Brio que nós colocamos na loja para crianças brincarem."Hey, crianças" eu disse para os pequenos Huffs, que estava arrancando a cabine do trem
e colocando roupas nas figuras de ação. "Nós temos que fechar agora, desculpe"As crianças resmungaram. O pai delas claramente não tinha brinquedos legais em casa
para brincar, assim como nós tínhamos na loja.O senhor Huff olhou para cima surpreso, "É realmente hora de fechar?" ele perguntou e olhou seu relógio "Oh, wow,
olhe para isso""Bom jeito de bancar Steph Landry, pai" disse Kevin Huff de apenas oito anos de idade com uma risada.Eu só fiquei lá, olhando para a criança assim
que ela resmungou isso. Estava claro que ele não tinha idéia nenhuma do que ele tinha dito. Ou em frente de quem ele havia dito isso.Está, na verdade, tudo certo.
Porque eu consegui o livro agora.E o livro vai me salvar.
Se você não é popular, é importante examinar as principais razões do porque:Elas podem ser muitas, é claro. • Você sofre de algum odor corporal?• Você tem
acne?• Você está particularmente fora - ou abaixo - do peso?• Você é o palhaço da sala (praticamente humor inapropiado?)Provavelmente não, desde que todas
acimas são facilmente remediadas através de produtos cosméticos, dietas, exercicios e auto-controle sobre si mesmo.Se você respondeu não para todas acima, então
seu caso de impopularidade é mais sério. Seu caso de impopularidade talvez seja algo que você trouxe sobre você.Supondo que uma vez você fez algo horrível, algo
que fez você impopular. O que você pode fazer sobre isso? Você pode fazer eles esquecerem isso?
Capítulo 3 AINDA T-MENOS: DOIS DIAS E CONTANDOSÁBADO, 36 DE AGOSTO, 22:20 Eu não sei por que eu não havia dito a Jason e Becca sobre O Livro, quero dizer, eu
não estou envergonhada sobre isso - bem, não muito, de qualquer jeito. E não é como se eu tivesse roubado ele, ou qualquer coisa. Eu totalmente perguntei para
a avó de Jason se eu podia pegar ele no dia que eu achei ele naquela caixa no sótão, que nós estávamos limpando para que Jason pudesse levar isso para a casa da
piscina estilo Ryan Atwood e Gred Bardy sofá do solteiro. (O que não faz, considerando ele ser filho único, nenhum sentido, exceto pelo fato de que foi fácil transformar
o sótão em seu novo quarto e retirar os pôsters de carros de corrida do seu quarto antigo)E ok, eu não tirei o livro da caixa e perguntei para Kitty - Sra. Hollenbach,
avó de Jason, que pediu para gente chamá-la pelo primeiro nome, para não confundirmos ela com a outra Sra. Hollenbach, sua nora, mãe de Jason - se eu podia tê-lo
em especificamente. Eu só perguntei se eu podia ficar com a CAIXA, que contem O Livro tão como algumas roupas antigas e um pouco de novelas românticas dos anos 80
- cujo, eu tenho que dizer, causou com que eu olhasse Kitty de um novo modo, considerando que a heroína de um deles gostava de ter sexo com um Turco, que no livro
não significa "enquanto veste uma roupa". Mas Kitty só olhou dentro da caixa e disse, "Oh, é claro querida, eu não consigo imaginar o que você quer com essas coisas
antigas"Se ela soubesse. De qualquer jeito, eu não tinha contado a eles. E eu não acho que eu vou. Porque, verdade?Eles iam rir. E eu não acho que eu poderia
suportar isso. Obrigado Lauren Moffat, eu tenho cinco anos de pessoas rindo de - não comigo - mim. Eu não acho que eu posso agüentar mais. De qualquer maneira,
isso com é dirigir pra cima e pra baixo na Rua Principal? Não é tão divertido quanto sentar por perto, assistindo pessoas descendo e subindo a rua Principal.E
rindo deles pelas costas enquanto eles fazem isso. Eu não posso acreditar que durante todo o verão, eu pude ficar desejando estar dentro de um carro invés de fora,
assistindo àquilo tudo na rua Principal. Quando você assisti de fora no Muro é muito melhor. Quero dizer, do Muro você pode ver Darlene Staggs abrir a porta do carona
de picape do namorado à noite, e vomitar toda a limonada que ela tinha tomado durante aquela tarde enquanto tomava sol.Do Muro você pode ouvir a voz esganiçada
de Bebe Johnson enquanto ela canta sozinha com Ashlee Simpson no rádio. Do Muro você pode ver Mark Finley ajustar o espelho para poder ver seu próprio reflexo
e ajeitar sua franja. Você não pode fazer nada dessas coisas sentada na traseira do novo carro de Jason. E eu tive que ir na trasseira porque Becca fica enjoada
quando senta no banco de trás. Então ela foi no carona, perto de Jason. O que significa que eu não podia ver muito, exceto a cabeça deles. Então quando Jason disse
"Wow, você viu aquilo? Alyssa Krueger caiu no meio da rua enquanto tentava passar com suas plataformas do SUV de Shane Mullen para o Jipe do Craig Wright." Eu perdi
a coisa toda. "Ela rasgou as calças?" Eu perguntei. Mas nem Jason nem Becca podiam confirmar se as calças dela tinham rasgado.Se nós estivéssemos sentando no
muro eu poderia ter visto a coisa toda.E ainda mais, eu entedi porque Jason está entusiasmado com o novo carro e a coisa toda. Eu acho que ele ficou um pouco cheio
com tudo. Agora, quando ele vê outra BMW, ele pratica aquilo que ele chama de Cortesia BMW, o que significa que quando ele vê outra BMW ele deixa ela passar em frente
a ele - especialmente se elas são da serie 7, a rainha de todas as BMW, ou o conversível 645Ci, que eu acho pessoalmente ridículo, porque é esse que Lauren Muffat
dirigi, levando em conta que seu pai é dono da concessionária BMW. "Oh não, você não acabou de fazer isso" Eu disse quando eu vi Jason deixa um cabelo loiro em
um conversível vermelho passar na nossa frente próximo do Hoosier Sweet Shoppe na Principal. "Por favor, me diga que você não deixou Lauren passar.""Cortesia BMW,
Crazytop" Jason disse "O que eu posso dizer? Quando ela dirige um modelo superior eu tenho que deixar ela ultrapassar. É um obrigação moral." Algumas vezes eu
acho que Jason deve ser o maior esquisitão do condado Greene. Maior que eu, até. Ou Becca. E isso dizendo algo, considerando que Becca passou o maior tempo da sua
vida em uma fazenda sem contato com crianças da sua idade, exceto na escola onde ninguém além de mim podia falar com ela levando em conta o fato de que ela sempre
caia no sono durante a quinta série porque ficava em casa trabalhando com macacões. As pessoas podiam, todas as vezes, tentar acordé-la, mas eu sempre dizia. "Deixe-a
em paz! Ela obviamente precisa de um cochilo"Eu sempre pensei que Becca devia ter uma casa bastante insatisfatória, eu achava isso só porque ela tinha que acordar
às 4:00 da madrugada para poder pegar o ônibus para a escola, já que ela vivia bem longe do condado.Isso levou uma delicada negociação para levar ela a dar um
chute na vida na fazenda. A dormida-durante-a-aula não apareceu mas desde ano passado, quando o governo comprou a fazenda dos pais dela para instalar Interestadual-69
, e os Taylors compraram a casa antiga dos Sydners na rua de baixo da nossa com o dinheiro da venda.Agora que Becca pode dormir até a sete, ela fica acordada durante
as aulas. Até mesmo nas aulas de Saúde, que nós não precisamos estar acordados para.Parecia que esses dois eram meus melhores amigos. Quero dizer, não que eu não
me sinta sortuda em ter os dois na minha vida (bem, okay, talvez não o Jason, com a maneira que ele vem agindo ultimamente). Porque nós tivemos boas risadas juntos.
E aquelas noite que nós estivemos deitados na colina, vendo o céu ficar rosa, depois roxo e finalmente azul escuro quando as estrelas vem uma à uma, enquanto nós
conversamos sobre o que fariamos se meteoros gigantes - como aqueles em Impacto Profundo - viessem para cima da gente à milhões de milhas por hora. (Becca: pedir
à Deus para perdoar seus pecados; Jason: Beijar a bunda dele de despedida; Eu: sair do caminho)Mas ainda, Becca e Jason não é aquilo que nós chamamos de normais.Tome
como exemplo o que nós estávamos ouvindo enquanto Jason dirigia se carro: uma coletânea do que Jason considerava as melhores músicas do anos 70, vendo que seu carro
era dessa época, ele trouxe as músicas no propósito de que nós as escutassem imaginando que estivéssemos naquela década. Aquela noite nós estávamos ouvindo seu ano
favorito 1977 - Sex Pistols com "God Save The Queen" e a trilha sonora completa de Star Wars, com a cena da Catrina. Sério, não há nada como cruzar a rua principal
ao som de uma banda do espaço. Isso foi quando nós estávamos parados sobre o posto em frente a loja de artes que eu vi Mark Finley parar na esquina da principal
com a Elm em seu roxo-e-branco 4x4 fazendo barulho. E meu coração, que sempre faz isso quando eu vejo Mark Finley, deu uma cambalhota em meu peito.Lauren, que
estava muito entusiasmada roncou os motores de volta e acenou pra ele. Não pra gente. Pra Mark. Foi difícil ver o que Mark fez de volta, porque Jason estava fazendo
gestos obcenos para ele... atrás do painel, para ter certeza que Mark não ia vê-los, levando em consideração que você não quer ser visto fazendo gestos obcenos pro
zagueiro da escola se você quiser sobreviver para ver o seu primeiro dia no 3ºano. "Olhe Steph," Jason disse. "é seu namorado" Isso fez com que Becca soltasse
um risinho. Ela estava tentando segurar isso, para não machucar meus sentimentos. Então tudo que veio pra fora foi um barulho bufado."Ele viu o seu novo e louco
penteado?" Jason quis saber "Eu posso apostar que quando ele ver, ele vai esquecer tudo sobre a pequena miss Muffat e cair aos seus pés, instantâneamente."Eu não
disse nada. Porque a verdade é, mesmo que Jason não soubesse do que ele estava falando, isso era exatamente o que ia acontecer. Mark Finley ia totalmente perceber
que eu e ele éramos feito um para o outro. Ele tinha que perceber.De qualquer jeito, andar pra cima e pra baixo na rua principal se tornou um porre. Não só pra
mim, por volta da terceira rodada, Jason disse, "Eu estou de saco cheio, quem quer um café?"Eu não queria, mas eu entendia o que ele queria dizer com de saco cheio.
Quero dizer, ficar dirigindo pra cima e pra baixo na rua principal - mesmo sendo uma rua que todas as pessoas que você conhece estão praticamente dirigindo pra cima
e pra baixo - é chato. E o lado bom do Pot Café, é que se você pegar um lugar no balcão no andar de cima, você ainda pode ver o que está acontecendo na rua principal,
por que é exatamente onde o Pot esta localizado. Está do outro lado da rua perto do muro, por detrás da onde o Góticos e os Pixadores se juntam para chutar os seus
sacos de areia feitos de couro na luz avermelhada de seus cigarros de cravo-da-índia.Assim que nós sentamos no balcão, Jason me deu uma cotovelada e apontou para
depois da grade."Alerta Ken e Barbie, às duas horas" ele disse. Eu olhei para baixo e vi Lauren Moffat e seu par, Mark Finley, se pegando debaixo do outdoor.
Era inaceitável para mim que alguém legal como Mark podia estar com alguém tão má como Lauren. Quero dizer, Mark é adorado universalmente (exceto por Jason, que
sustenta um irracional desdém por todo mundo menos pelo seu melhor amigo, Stuckey, que pode ser possivelmente um dos seres humanos mais chatos da face da terra;
Becca; e eu - quando não estamos brigando, de qualquer jeito). Mark vem sendo votado presidente da turma desde, hm... desde sempre, por causa do seu jeito legal,
enquanto Lauren -Bem, vamos por isso desse jeito; Mark só pode gosta de Lauren por causa do seu visual. Duas pessoas muito bonitas - por que claro, Mark não é
só legal ele é maravilhoso que nem o Brad Pitt, também - tem que ficar juntos. Eu acho. Mesmo que um deles for um enviado de satã. E Mark e Lauren - eles estavam
sem dúvidas juntos. O braço de Mark estava envolta dos ombros de Lauren e seus dedos estavam deslizando sobre eles. Os dois estavam totalmente se pegando, obviamente
desligados do fato de ter pessoas perto deles que não queriam necessariamente vê-los se beijando. Embora, obviamente, a única que achava que a visão de Mark e Lauren
se beijando era como uma espada fincada no coração. Becca e Jason não gostam de ver pessoas colocando a língua na boca de outras pessoas, eles acham nojento."Urgh"
Becca disse, desviando o seu olhar. "Eu estou cego agora" Jason declarou. "Eles me cegaram com sua nojenta afeição."Eu estiquei meu pescoço para poder ver depois
da avenida. Mas os dois havia se abaixado para que Mark pudesse usar o caixa eletrônico. Tudo que eu pude ver foi um pouco do cabelo de Lauren. "Porque eles tem
que fazer isso?" Jason quis saber. "Fazer isso em público? Eles querem esfregar na cara da gente que eles tem alguém especial e o resto de nós não? É isso que eles
estão tentando fazer?""Eu não acho que eles fazem isso de propósito" Becca disse. "Quero dizer, isso ainda é uma injustiça, mas eu acho que é só porque eles não
conseguem resistir um ao outro." "Viu, eu não acredito nisso" Jason disse "eu acho que eles fazem isso de propósito pra deixar o resto de nós se sentindo mal por
não ter achado nossa alma gêmea ainda. Como se o segundo grau fosse realmente o lugar que a maioria de nós quer encontrar nossa alma gêmea."."O que tem de errado
em achar sua alma gêmea no segundo grau?" Becca quis saber "Quero dizer, talvez essa seja a única chance que nós teremos para conhecer nossa alma gêmea. Se você
desperdiçar isso, só porque você não quer conhecer sua alma gêmea no segundo grau, você talvez nunca conheça sua alma gêmea, e vai ser sozinho como uma nuvem pro
resto da vida"."Eu não acredito que nós TEMOS só uma alma gêmea." Jason disse "Eu acho que nós estamos dando múltiplas chances para conhecer várias almas gêmeas.
Com certeza, você pode conhecer uma alma gêmea no segundo grau. Mas isso não significa que se você não se concentrar nisso, você não vai conhecer mais ninguém. Você
vai, só que num tempo mais conveniente para você" "O que é tão inconveniente em conhecer sua alma gêmea durante o segundo grau?" Becca perguntou."Deixe me ver"
Jason disse, coçando seu queixo como se ele tivesse que pensar em algo. "Que tal... você ainda mora com seus pais? Onde você e sua alma gêmea terão que ir, pra você
sabe, levar adiante?"Becca pensou sobre isso e disse "Seu carro.""Viu, isso B.S" Jaison disse, chamando-a apenas pelas iniciais "O que há de romântico nisso?
Esqueça.""Então você está dizendo que ninguém deve namorar durante o segundo grau?" Becca perguntou. "Porque não é romântico fazer isso em um carro?" "É claro
que você pode namorar." Jason disse "Vá à cinemas, de uns amassos e tals. Mas não, você sabe, se apaixone.""O quê?" Becca olhou horrorizada "Nunca?""Não por
alguém que você estuda junto" Jason disse "Quero dizer, qual é, você não quer babar onde você come. Quer?"Só ele não disse babar."Ew" Becca disse."Estou falando
sério" Jason disse "Você namora alguém da escola, o que vai acontecer quando vocês terminarem? Você vai ter que ver ele todos os dias, de qualquer jeito. Super tenso.
Quem precisa disso? Escola já é um saco sem isso, imagine se por mais ISSO!""Então você está dizendo" - Becca precisava de algum esclarecimento - "que nós nunca
deveremos pensar em sair - ou ter um queda - por ninguém na escola? Ninguém?""Exatamente" Jason disse "E eu nunca vou."Becca olhou como se ela não acreditasse
nele, mas eu sabia que ele estava dizendo a verdade - eu sabia por experiência própria, quando, na quinta-série uma nova professora que não sabia nada deixou a gente
se sentar perto um do outro durante a aula, e Jason começou a me beliscar, cutucar e implicar comigo até eu não conseguir mais agüentar isso. Quando eu contei ao
meu avô à respeito de como eu deveria agüentar a situação - se deveria beliscá-lo de volta ou contar à professora - vovô disse "Stephanie, quando garotos implicam
com garotas, é sempre porque eles tem uma quedinha por elas." Mas quando eu - tolamente, agora eu percebi - repti isso para o Jason (na próxima vez que ele fingiu
limpar a meleca na minha cadeira justamente antes de eu sentar nela), ele ficou tão bravo que ele não falou comigo pelo resto do ano. Sem mais G.I.Joe encontra Spelunker
Barbie. Sem mais jogos do Startego. Sem mais corridas de bicicleta. No lugar disso, ele começou a sair com seu amigo estúpido Stuckey, me fazendo ser amiga da Bela
Adormecida (Becca).Ele não falou comigo de novo antes da sexta série, depois do incidente do Super Big Gulp, quando a campanha de Lauren sobre o terror à mim alcançou
o seu auge, ele não pode ajudar mais sentiu pena de mim, sentada sozinha na cafeteria, e finalmente voltou a lanchar comigo de novo.Jason não acredita em um romance
dentro do colégio. De um GRANDE modo."Porque de outra maneira" ele começou, na mesa de café, "você será como aqueles dois retardados lá. Falando sobre isso, Carzytop?
Posso perguntar oque você está fazendo?"Eu parei de balançar os pacotes de açúcar e tornei a abri-los sobre os trilhos do balcão e olhei para Jason inocentemente.
"Nada.""Claramente" Jason disse, "você não está fazendo nada. Você está definitivamente fazendo alguma coisa. O que parece que você está fazendo é pondo pacotes
de açúcar na cabeça de Lauren Moffat's"."Shhh", eu disse. "Está nevando. Mas só em Lauren." Eu agitei mais açúcar para fora do pacote. "Feliz Natal, Mrs. Potter,"
eu falei para Lauren na minha melhor imitação do Jimmy Stewart "Feliz Natal, seu edifício velho e emprestado."Jason começou a fazer barulho, e eu tive que acalmá-lo
quando Becca viu o meu estoque de açúcar se acabando e me trouxe mais pacotes."Pare de rir tão alto" eu disse para o Jason. "Você irá arruinar esse lindo momento
para eles." Eu polvilhei mais açúcar do meu lado do balcão. "Feliz Natal para todos vocês, e para todos uma boa noite"."Ei!" a voz de Lauren Moffat, soando notavelmente
irritada, chegou até nós. "O que -ew! O que tem meu cabelo?"Nós três nos escondemos abaixo da nossa mesa então Lauren não poderia ver a gente quando percebesse
o que havia acontecido. Eu conseguia vê-la entre as réguas do balcão, mas eu sabia que ela não conseguia me ver. Ela estava chacoalhando o cabelo. Becca, agachada
atrás de mim, teve que colocar as suas mãos sobre a boca para segurar a risada. Jason parecia que ia fazer xixi nas calças, ele estava tentando fortemente não rir."Qual
é o problema, bebê?" Mark saiu de baixo do balcão, pondo sua carteira no bolso traseiro. "Há algo - areia ou algo assim - em meu cabelo," Lauren disse, enquanto
afofava o cabelo dela - que, você pode ter certeza, ela não queria fazer, já que ela tinha feito chapinha para deixá-lo todo esticado. Mark se aproximou mais para
examinar o cabelo de Lauren. "Seu cabelo parece bom pra mim ," ele disse. O qual só nos fez rir mais, até que lágrimas estavam fluindo fora dos cantos de nossos
olhos."Bem," Lauren disse com uma última balançada nos cabelos perfeitamente lisos, "eu acho que você tem razão. Venha. Vamos."Só quando eles tinham rodearam
a esquina indo para o Penguin, que nós finalmente sentamos, rindo semi-histéricos. "Oh meu Deus, você viu a cara dela?" Becca perguntou entre gargalhadas."'Olha,
há algo em meu cabelo! '". Disse ela imitando a voz de Lauren."Isso foi fantástico, Crazytop," o Jason disse, enquanto enxugava as lágrimas das risadas dos olhos
dele. "O melhor grande plano piloto."A não ser que não era. Não era o grande plano. Ele não tinha a mínima idéia."Eu posso pedir o de sempre para vocês?" Isso
era o que Kirsten, nossa garçonete, queria saber, enquanto esfregava abaixo de nossa mesa-aparentemente, ela tinha notado todo o açúcar que eu tinha derramado.Normalmente,
quando Kirsten é nossa garçonete, o Jason derruba o guardanapo dele ou algo com que faça com que ele tenha que rastejar ao redor para procurar isto. Porque ele sente
sobre Kirsten o mesmo que eu sinto sobre Mark: Ele pensa que ela é perfeita. E talvez ela seja. Quem sou eu para julgar? Kirsten, que veio da Suécia, está se virando
através das gorgetas dos colegiais que comem no Café Pot e ainda sim, consegue manter seus reflexos loiros, que é uma das muitas razões pela qual Jason tem gastado
suas noites deitado na colina compondo em sua homenagem.Ele compõe especialmente poesias sobre quando ela usa uma blusa masculina branca com um botão desabotoado
e com a ponta amarrada em cima de sua costela e sem sutiã.Pessoalmente, eu acho que a Kirsten é legal e tudo, mas eu não acho que ela é boa o bastante para o Jason.
Eu nunca admitiria isso para ELE, é claro. Mas eu tenho percebido que ela tem realmente uma pele seca em torno do cotovelo, ela deveria investir em algum creme.Mas
essa noite, por alguma razão, Jason não aparentou notar Kirsten. Ele estava muito ocupado perguntando como Segunda de manhã irá funcionar (não a parte como eu vou
mudar a estrutura social do colégio Bloomville com a ajuda do livro da sua avó - Jason e Becca não sabem sobre isso, obviamente). Nós estavamos discutindo que horas
iriamos sair de casa para ir para a escola agora que o Jason tem um carro- a gloriosa oito da manhã, para pegarmos o toque primeiro sinal, às oito e dez, o oposto
da odiosa sete e meia, que é quando o ônibus escolar aparece na nossa vizinhança."Vocês podem imaginar as caras quando nós chegarmos"? Becca estava dizendo quando
Kirsten veio pegar nosso pedido, " eu quero dizer, no estacionamento de estudandes?""Especialmente se estivermos ouvindo Andy Gibb" , eu apontei o fato"A Classe-A",
Jason disse, "pode me comer ""O que é Classe-A?" Kirsten perguntou "Você sabe" Becca explicou enquanto agitava mais adoçante dentro do seu descafeinado. Becca
ganhou peso, em conta de como quando ela vivia na fazenda, seus pais tinham que a levar de carro a todo lugar porque não tinha nada num caminho que se poderia andar
a pé aos redores da sua casa. Agora que ela vive na cidade, ainda continuando levando ela de carro a todos os lugares, porque eles querem mostar seu novo Cadillac,
o qual eles também compraram com o dinheiro do I-69. "As pessoas populares."Kristen pareceu confusa. "Vocês não são populares?"Isso causou uma risada inapropriada
da nossa parte. O que estava bem, porque nós podemos conversar abertamente sobre a nossa falta de popularidade dentro do Pot, porque somos as únicas pessoas da Bloomville
High que vai lá. É um tipo de lugar hippie, freqüentado por leitores de poesia e que pedem chás em gigantes copos de plástico.E além do mais, não tem muitos adolescentes
no Condado Greene que bebem café (mesmo sendo metade café, metade leite com muito açúcar, que nem eu bebo), eles preferem Blizzerds (dito desse jeito mesmo para
não ser processado pela Dairy Queen por violação de direitos autorias) lá do Penguin."Mas vocês são tão legais" Kristen disse quando nossa risada tinha baixado.
"Eu não entendo, não são as pessoas mais populares na sua escola aquelas que são mais legais? Porque era assim lá na minha escola, na Suécia".Sério, isso quase
trouxe lágrimas aos meus olhos. Eu nunca tinha escutado nada tão lindo. Suécia deve ser o melhor lugar para se viver, não são as pessoas mais populares na sua escola
aquelas que são mais legais?. Por que lá fora, no cruel Midwest, popularidade não tem nada haver com ser legal. Ao menos que você seja Mark Finley, é claro."Fala
sério, vocês estão zoando comigo" Kristen disse com um sorriso que revelou seu dente do meio torto - dente sobre qual Jason tem encerado particularmente e eloqüente
no seu haikais (poema japones curtinho). "Vocês são populares. Eu sei disso."Foi quando Jason parou de rir por tempo suficiente para dizer "Espera, espera... então,
Kristen, você está dizendo que nunca ouviu sobre Steph Landry?"Kristen piscou para mim com seus grandes olhos marrons "Mas essa é você. Você é famosa ou algo,
Steph?""Ou algo" eu disse, desconfortável. Esse é o ponto. Kristen deve ser a única pessoa no Condado Greene que nunca ouviu sobre mim.O bom é que eu tenho
Jason por perto para mantê-la por dentro.
Você pode viver com o erro que o fez impopular? SIM! É claro que você pode. O primeiro passo durante o caminho para a popularidade e honestamente admitir que
talvez haja áreas da sua personalidade, guarda-roupa, e "looks" que precisam de algumas melhorias. Ninguém é perfeito, e a maior de nós temos ao menos caprichos
que podem diminuir nossas chances de se encaixar no mundo popular. É só quando nós admitimos isso que nós podemos começar a à aprender Como Ser Popular.
Capítulo 4 T-MENOS UM DIA E CONTANDODOMINGO, AGOSTO, 12h15min.Eu devia odiá-lo. Mas eu não odeio. É difícil odiar alguém que fica tão bom sem os shorts.Eu
não acredito que eu pensei isso. Eu não acredito que eu estou sentada aqui FAZENDO isso, quando eu juro, eu não queria. Nunca mais.Bem, é culpa dele de qualquer
jeito, por não baixar suas cortinas.A coisa é, o que você supostamente tem que fazer quando você sabe que algo está errado, mas você não pode para de fazê-lo?É
claro, eu acho que eu poderia parar se eu realmente quisesse. Mas, hm... Eu não queria, obviamente.Sério, se você pensar sobre isso, é só você pesquisar. Em caras.
Meu interesse em ver Jason sem roupa é puramente cientifico. Que é porque d'eu estar usando os binóculos que eu mandei para Bazooka Joe quando eu tinha onze (sexto
bazooka papel de chiclete, mas noventa e cinco, para transporte e suporte. Eles atualmente funcionam. Um pouco). Quero dizer, alguém tem que observar garotos em
seu habitat natural e entender o que os faz bonitos. Especialmente quando eles estão pelados.Mas eu realmente me sinto culpada com isso. Ainda mais sobre os binóculos.Mas
não culpada o suficiente para parar.Mais, você sabe, se você me perguntar, ele meio que merece isso - especialmente ontem à noite, depois de contar para Kristen
a historia do Super Big Gulp. Como se ela necessitasse saber sobre isso.E depois ele teve a coragem de dizer "Hey, vamos para colina?" Como se eu fosse realmente
sair me divertindo por ai depois dele ter contado para a única pessoa na cidade que não sabia sobre dar uma de Steph Landry.Sem falar que eu não tive o meu desconto
comigo e eu não gosto de mentir na grama e estar comendo bichos-de-pé só para fazer um pedido para as estrelas cadentes. Quero dizer, é por isso que vovô está construindo
o observatório, pelo amor de Deus!Então a culpa? Não muita. Certamente não o suficiente para ir ao confessionário falar sobre isso ou algo.Até porque, mesmo
que eu vá ao confessionário falar sobre isso, Padre Chuck ia dizer algo a minha mãe - eu simplesmente sei isso. E ai ela ia dizer a Kitty. E Kitty ia contar para
seu filho, Dr. Hollenbach, que iria contar para Jason (ou na melhor das hipóteses, ele ia dizer para Jason abaixar as cortinas). E ai, eu não ia poder vê-lo mais.
Pelado, quero dizer.E isso ia ser totalmente uma droga.Além do mais, você não pode me dizer que o que eu estou fazendo é tudo ISSO de errado. Garotos vem fazendo
isso com garotas à cem - talvez mil - anos. Desde que pessoas trocam de roupas em frente às janelas - ou pessoas não abaixam as cortinas, de qualquer, jeito - há
outras pessoas olhando elas.É tempo de nós garotas terem isso de volta, é disso que eu estou falando.E mesmo que seja um fardo eu reportar isso, Jason estava
me dando uma boa, boa revanche. Eu não sei o que ele comeu quando ele estava na Europa, mas ele voltou tão gostoso! Ele não tinha esses bíceps antes de ir. E de
jeito maneira ele tinha esse abdômen.Ou talvez ele tivesse e eu nunca tenha notado.É claro, não é como, antes dele ir, eu não ficava olhando ele pelado regulamente.
Isso não acontecia até ele se mudar para o sótão, o que acontece é que agora ele tem uma janela em frente há basculante do banheiro do andar de cima, foi ai que
eu notei que eu podia ver ele.E pessoas na minha família se perguntaram o que eu fazia no banheiro por tanto tempo, como meu pequeno irmão Pete, que só bateu na
porta."O que você está fazendo ai?" ele quis saber. "você está ai à uma hora"Meu maior erro foi abrir a porta."O que você quer?" Eu perguntei "Porque você
não está na sua cama?""Porque eu preciso fazer xixi" Pete disse, passando por mim com violência e tirando aquilo rápido. "O que você acha que seria?""Ew" eu
disse. Eu seriamente duvido que Lauren Moffat tem que ver seus irmãos mais novos fazendo xixi na frente dela.É claro, Lauren provavelmente tem seu próprio banheiro."Eu
disse pra você que eu tinha que ir" Pete disse, claramente não ligando para as cicatrizes psicológicas que ele havia-me causado fazendo xixi em frente de mim. Ele
olhou em volta e disse "Hey, porque você está sentada aqui no escuro?""Eu não estou" Eu disse. Mesmo que a luz no banheiro estivesse apagada. Eu só podia vê-lo
pelo brilho da lua, entrando pela janela."Uh, yeah, você está." Pete terminou e corou. "Você é realmente estranha, você sabe disso, Steph?"Um. Duh. "Volte pra
cama imbecil""Quem é o imbecil?" Pete quis saber.Mas ele voltou para cama. E não tinha notado os binóculos. Graças a Deus.Eu acho que eu deveria tentar ser
um pouquinho mais compreensiva de como a vida dele - Pete - deve ser. Tendo a nada famosa Steph Landry como irmã mais velha, quero dizer. Obviamente, isso deve por
ele em uma severa desvantagem social, pelo menos nessa cidade.No entanto ele carregou-o notavelmente bem... os aborrecimentos, os vexames, as desagradável visitas
no parquinho.Da maneira que eu vejo isso, as coisas poderiam ser piores. Isso é, tinha uma garota na escola ano passado, Justine Yeager, que era realmente um gênio
- ela tinha uma média de notas realmente boas e tinha o recorde mais alto que você pode conseguir no SATs, mesmo na parte escrita. Mas ela tinha zero em habilidade
social - ela era esperta em LIVROS, mas não em PESSOAS. Isso significa, pior do que jogar acidentalmente um grande e vermelho Super Big Gulp na menina mais popular
do colégio. Ninguém sentava ao lado da Justine no lanche, nem mesmo os B-crowders, porque tudo sobre o que ela falava era de como ela era mais inteligente que todo
mundo.Então quando as coisas ficam realmente ruins - como elas estão agora, quando é a última noite de sábado das férias de verão e em vez de estar fora em um
encontro ou em uma festa ou no lago ou em qualquer lugar, eu estou sentada no banheiro espiando o meu melhor amigo enquanto ele se despe e se arruma para dormir
- eu penso sobre como eu poderia ter nascido igual a Justine Yeager, ao invés de você sabe... eu. E isso ajuda.Sorte minha.Pelo menos eu não estou sozinha. Em
não estar numa festa no lago, porque Jason está em casa também. E aparentando muito, muito bem.Tudo bem, isso é doentio. DOENTIO. Eu vou definitivamente pedir
a Deus para me perdoar disso durante a missa na igreja de amanhã. Desde que eu não posso pedir ao Padre Chuck. Talvez seja bom ir reto ao topo.Sem mais desculpas.
Isso foi oque o meu avô sempre avisou, de qualquer forma.Embora que é claro que meu avô não sabia quanto tempo eu passei espiando o corpo nu do meu futuro meio-qualquer-coisa-que-
Jason-será-meu quando o sua avó casar com o meu avô.Mas, que seja.
Qual é o segredo da popularidade? O que faz algumas pessoas serem tão amadas e outras não?Pessoas populares:•Sempre tem um sorriso pronto para qualquer um.•Apresenta
um interesse genuíno nos outros e no que eles tem a dizer.•Lembram dos nomes das pessoa e o mais doce e mais importante som para eles! Pessoas populares chamam
as pessoas pelos seus nomes, e fazem isso sempre.•São bons ouvintes que encorajam os outros a falar sobre eles próprios.•Fazem a pessoa com quem estão falando
se sentir mais importante - e fazem isso sinceramente. Eles sempre fazem a conversa ser sobre VOCÊ, não sobre eles!
Capítulo 5T-MENOS UM DIA E CONTANDO DOMINGODOMINGO, AGOSTO 27, MEIO-DIA.Eu me encontrei com o vovô no observatório onde todos os outros estavam tendo café e
rosquinhas no porão da igreja após a missa. Eu tinha que ter uma rosquinha e orelhas de elefante de qualquer forma, enquanto elas iam direto para a minha bunda.
Eu tive que andar de bicicleta ao redor da cidade por uma hora para trabalhar por causa de uma rosquinha. Isso totalmente não vale a pena. A menos que for um Krispy
Kremem quente, é claro.Meu avô disse que eu herdei essa tendência da sua primeira esposa, minha avó. Eu não saberia se isso é verdade ou não, desde que minha avó
morreu de câncer no pulmão antes de eu nascer, mesmo que ela não fumasse. Meu avô fumava, então, minha avó culpou ele por ter dado isso a ela. O câncer, eu quero
dizer. Eu não acho que era muito legal da parte dela, mesmo que fosse verdade. Você pode dizer que meu avô se sentiu muito culpado por isso.No entanto não mal
o bastante para parar.Até que ele começou a sair com Kitty, isso é. Tudo que ela dizia era, "Fumar é uma hábito imundo. Eu nunca consegui me imaginar com um homem
que fuma", e então meu avô parou. Bem assim.O que não encareceu Kitty e muito menos minha mãe, mais eu vou mostrar o poder do Livro."Ei," eu disse depois que
eu deixei o observatório, enquanto usava o código especial que o Vovô tinha me ensinado na fechadura eletrônica. O código é a data do aniversário de Kitty, o que
eu acho, é bem romântico. Não tão romântico quanto tendo o lugar construído e nomeado com o nome dela - Katherine T. Hollenbach Observatório - e doado isto então
para a cidade.Mas lá em cima minha mãe não pensa que é tão romântico, entretanto. Ela chama, o que o Vovô está gastando desde que ele adquiriu o dinheiro do EU-69,
de "consumo conspícuo", e diz que desde que o pai dela (Vovô) fez isso ela tem medo de mostrar a face dela nas sessões da Comunidade no Centro da Cidade.Exceto
por essa Comunidade no Centro da Cidade ser um pouco atiçada sobre o observatório, que é realmente avançado por ser do interior, apesar de que foi projetado na parte
externa para misturar-se com a arquitetura da Square´s 193 os WPA.Mas a mamãe diz que está recorrendo principalmente ao condomínio novo do Vovô no lago e ao
HYPERLINK "http://pt.wikipedia.org/wiki/Rolls_Royce" \t "_blank" Rolls-Royce amarelo-manteiga que ele comprou e ainda está esperando chegar, com coberturas especiais
para as rodas."Ei," o Vovô disse para mim, atrás da rotunda onde ele estava consertando ao redor com materiais, a coberta do observatório. Considerando que era
domingo, nenhum dos trabalhadores estava lá. Éramos só Vovô e eu. O lugar está praticamente terminado, de qualquer maneira. Há pouco existe uma pequena parede de
gesso que precisa ser construída no quarto de controle "Como vai isto?""Bom," eu disse, enquanto alcançando meu bolso da saia e escalava a coberta de observação.
"Eu tenho oitenta-sete dólares aqui para você.""Bem, obrigado," o Vovô disse. Ele levou o dinheiro, arrastou ele em uma pilha mais limpa, o dobrou, e pôs ele na
carteira dele. Ele não se deu ao trabalho de contar o dinheiro. Nós dois sabemos que eu nunca faço contas erradas.Então ele pegou um bloco de notas do bolso da
camisa dele e cuidadosamente escreveu um recibo e deu para mim."A taxa de juros diminuiu""Eu vi isso na Web esta manhã," eu disse, enquanto colocava distraidamente
o recibo em meu bolso.O vovô e eu sempre compartilhamos um afeto mútuo para...bem, dinheiro.Na realidade, eu nunca, realmente, tive vocação para a matemática,
até que um dia o Vovô sentou comigo, na sétima série e disse, enquanto olhava para o problema de matemática que me fazia chorar, "Não importa quantas maçãs que a
Sue tem. Digamos que a Sue está trabalhando em troca na livraria. Mas é uma noite de sábado, e o único modo que você poderia conseguir que ela trabalhasse era lhe
prometer oito e cinqüenta por hora, ao invés de sete e cinqüenta, porque ela queria sair para Sizzler para ver um filme com o namorado dela.Mas você não quer que
sua mãe saiba que você anda pagando fora de hora enquanto não está, de fato, a qualquer hora. Como você configura o cheque de pagamento da Sue para ela receber o
dinheiro dela, sem a mamãe saber?"Minha resposta foi instantânea: Sue ganha 68 dólares por trabalhar 8 horas, sendo 8,50 por hora. 68 dividido por 75 rodadas desceram
para 9. Então você pôs que Sue trabalhou 9 horas em vez de 8.E então procure por um empregado que não seja tão popular como Sue, daí você pode lhe dar o sábado
a noite de folga e não tem que remendar mais os números."Muito bem," Vovô disse.E assim foi o fim do meu problema com a matemática. Pensar sobre números nos
termos dos salários e das horas parou finalmente com as névoas da álgebra para mim, e atualmente fez isso compreensível. Agora eu sou a melhor da classe e cuido
da folha de pagamento da loja do vovô, desde que mamãecaiu com os meios do vovô significa que ele não é mais bem-vindo lá."Você fez bons negócios, em todo caso?
Vovô quis saber, se referindo ao que eu comprei com o dinheiro que eu tinha pedido a ele.Eu disparei para ele um olhar agravado."Vovô", eu disse. "O que você
acha? É sobre mim que você está falando.""Só para garantir" Vovô disse.Ele têm um ar-condicionado no observatório todo, o que era bom porque estava uns 90 milhões
de graus abaixo de zero lá fora, com a umidade tão alta quanto se poderia sem realmente chover. Em outras palavras, um dia típico de Agosto em Indiana."Você transferiu
todos aqueles fundos dos clientes como eu te disse?" Vovô quis saber."É claro.""Porque as dívidas são pagas todo começo de mês""Vovô , eu sei. Eu já cobri
isso."Vovô balançou sua cabeça. Ele é muito ativo para a sua idade, embora ele nunca vai admitir o fato de que ele nunca cresceu para ser mais alto que 1,57. Eu
falei para ele não se preocupar, desde que olhe a altura do Tom Cruise, e ele se saiu muito bem - financeiramente, em todo o caso. Continuo suspeitando que é daí
que eu herdei a minha falta de altura.Mas aos 69, Vovô consegue jogar 18 buracos de golfe e ainda permanecer acordado por 11 horas completas de notícias. Ele é
especialmente orgulhoso da sua cabeça cheia de cabelos (completamente brancos). Ele tem uma barba descentemente bonita, também. É bem branca. Todo o tempo que estava
crescendo, a sua barba era manchada de amarelo dos cigarros que ele fumou. Tudo antes de começar a sair com a Kitty, em todo caso. Agora é tão branca quanto a neve."Como
vai o trabalho de Darren?" Vovô queria saber. O estudante da universidade de Indiana que nós empregamos para os deslocamentos de noite e de domingo na loja. Ele
gosta de trabalhar na Courthouse Square Books desde que lá não tem quase nenhum cliente, e ele consegue fazer um monte de deveres de casa durante o seu trabalho.
"Legal", eu disse. "Ele reorganizou a prateleira dos produtos que são vendidos à prazo na outra noite e encontrou um o urso de Steiff que ninguém fez pagamentos
nele por um ano inteiro. Nós colocamos de volta sobre as prateleiras da loja." O Vovô estalou a sua língua e foi para trás com o seu telescópio de 60 polegadas.
Não que ele soubesse o que estava fazendo. O Vovô não tem NENHUM interesse em astronomia. Ele teve que empregar todos os professores da Universidade de Indiana para
ajudar-lhe a projetar o observatório, e estes estudantes estão pegando os créditos do colégio para fazê-lo funcionar. A única razão pela qual vovô decidiu construir
um observatório em primeiro lugar ofi porque ele sabe o quanto Jason ama ver as estrelas, e ele sabe como Kitty ama Jason. A coisa toda é basicamente puxando saco
até chegar na mulher que ele ama.Eu construiria um observatório para Mark Finley. Se, você sabe, ele gostasse de estrelas também."E como vai a sua mãe? Está
tudo certo?""Ela está bem" eu disse. "Outro mês que vai antes que ela dê a luz"."Como vai você estando fazendo funcionar a loja," vovô quis saber, " e fazendo
essa coisa da popularidade ao mesmo tempo, com a sua mãe fora do quadro por um tempo com essa pequena coisa nova?""Fácil", eu disse. Vovô é a única alma viva na
terra que eu havia dito sobre O Livro. E eu ainda mostrei a ele. Eu tinha que, afim de fazê-lo me adiantar dinheiro. Eu não tinha dito para ele aonde eu tinha conseguido
ele.Tudo que ele tinha a dizer sobre isso foi, "Porque você se importa com oque a filha de Sharon Moffat pensa sobre você? Aquela garota não conheceria uma bala-T
se uma viesse e acertasse ela."Mas eu expliquei a ele que isto era algo que eu simplesmente tive que fazer - do mesmo modo que ele tinha tido que construir um
observatório para a cidade, embora ninguém - com a possível exceção de Jason que tentou sem sucesso, começar um clube de astronomia todos os anos na escola desde
o terceiro grau quando ele viu "Encontros Íntimos do Terceiro Tipo" no filme de tarde de domingo e nunca totalmente superou isto - de fato quis um.Mas, como o
Vovô disse, a maioria das pessoas é muito estúpida para saber o que eles realmente querem, de qualquer maneira."Eu ainda não gosto disto," o Vovô disse.Ele tinha
feito o que para ele tinha sentido e era tão vitalmente importante para ser feita no observatório essa manhã, e começou a se encaminhar para a porta, pela qual eu
a pouco viria, logo atrás dele."Beijando até mesmo um pequeno repudiante que é nada mais que a prova para fazer sua vida miserável.""Eu não estarei beijando
até ela, Vô," eu disse. "Confie em mim. Além do mais, a coisa inteira foi minha culpa em primeiro lugar.""Isso o que?" o Vovô olhou para mim enquanto abria a porta
- deixando uma inundação de calor insuportável em cima de nós, como sopa derramada - parecendo aborrecido. "Você tropeçou! Isso é tudo! Alguém conseguiu passar o
resto da vida com os outros se divertindo as suas custas por tropeçar quando tinha doze anos? É ridículo."Eu sorri para ele tolerante. Vovô não tem nenhuma idéia
o que é gostar de ser uma menina adolescente. Quando a única criança dele - minha Mãe - estava crescendo, ele quase não tinha contato com ela, já que ele ficava
constantemente fora da fazendo.Me assistir passar por meu próprio péssimo momento na minha adolescência dolorosa foi a única experiência dele na Agressão Escondida
de Meninas Adolescentes e a Dor que pode Causar. "Ah, lá está sua mãe," o Vovô disse, enquanto acenava com a cabeça para as portas da igreja que você pode ver
dos degraus do observatório. Embora muitas pessoas estivessem saindo de St. o Charles naquele momento, não era difícil de sentir falta da minha família, principalmente
por causa do estômago enorme de minha mãe. Mas também por causa do barulho que meus irmãos e irmãs estavam fazendo, o qual você provavelmente poderia ter tido notícias
à milhas de distância.O vovô deixou de ir para a igreja depois que a vovó morreu, de acordo com minha mãe, que ainda é outro osso de contenção entre eles. Mas
o vovô diz que ele pode adorar a Deus bem no nono buraco de golfe da mesma maneira como ele pode na igreja - se não melhor, desde que ele é mais íntimo a natureza,
e então Deus, no campo de golfe que ele está em nosso banco da igreja, a Igreja Santo Charles.Eu rezo para a alma imortal dele, e tudo, mas eu penso se Deus realmente
está perdoando-todos, como o Pai Nosso sempre está nos falando, vovô será perdoado (e, considerando o que eu estava fazendo ontem à noite, assim eu também).Felizmente
para Vovô, Kitty não é exatamente a pessoa mais religiosa.Eles irão ter uma cerimônia civil, executada por um dos juízes de Greene Município, fora do clube rural
numa semana de hoje, em vez de um casamento na igreja."Direito," eu disse. "Eu iria melhor. Você não está nervoso?""Nervoso?" Vovô me lançou um olhar repreensivo.
"O que poderia ter para eu estar nervoso? Eu estou me casando com a moça mais bonita de Greene County.""Eu quero dizer sobre ter que se levantar em frente a todas
essas pessoas domingo que vem," eu disse secamente."Ciumentos," o Vovô disse decididamente. "Isso é o que todos eles são. Porque ela está se casando comigo e não
com eles."A melhor parte é, Vovô realmente acredita nisto. Ele pensa que o sol brilha sobre Katherine T. Hollenbach. O qual eu acredito é completamente devido
a ela ter seguido as instruções do Livro.Os dois - o Vovô e Kitty - eu soube, se conhecem desde que ELES foram para Escola secundária de Bloomville, nos anos cinquenta.
Vovô disse que Kitty nem mesmo sabia quem ele era, já que ela era tão bonita e popular e ele era tão pequeno e tímido.Ela nem mesmo reconhecia a existência dele
até ano passado, quando eles se encontraram na comunidade de condomínios exclusiva, ambos se mudaram para o lago: Vovô depois que ele adquiriu o dinheiro do EU-69,
Kitty depois de decidir que ela já tinha vivido tempo bastante na cidade."Qualquer sinal de debilitar da parte dela?" o Vovô perguntou com um aceno para minha
mãe. Mamãe está boicotando o casamento dele a princípio, não porque ela não gosta de Kitty - embora ela não seja exatamente a pessoa favorita dela no mundo. Minha
mãe não é a única pessoa que tem mostrado para Vovô que Kitty nunca olhou para ele antes dele ter adquirido a inesperada sorte financeira dele. Mas o Vovô não parece
se preocupar sobre isto - principalmente porque ela ainda está tão furiosa sobre a coisa toda de Sav-Super mercado.Ela está deixando o resto de nós ir embora...
O que é uma coisa boa, desde que eu sou a dama de honra de Kitty, Pete um dos melhores homens de Vovô (o Jason é o outro), e Catie e Robbie são a menina da flor
e portador de anel (a Sara foi julgada muito jovem para fazer qualquer coisa).Eu gosto muito de Kitty, e não só porque todo mundo gosta dela (excluindo minha mãe).
Mas também porque ela sempre guarda meu segredo mais vergonhoso - que não é aquele vergonhoso, porque agora eu percebo que aquilo era só parte do crescimento. Mas
na ocasião, foi a pior coisa que alguma vez tinha me acontecido. Eu tinha sido convidado por Jason a passar a noite em sua casa - anos atrás, no jardim da infância,
quando ainda era certo para as meninas e meninos terem festas do pijama juntos - enquanto os pais dele estavam viajando e a avó dele estava cuidando dele.Uma coisa
que eu sempre admirei sobre os pais de Jason é que eles foram inteligentes o bastante para parar em só uma criança - diferente de meus próprios pais que continuam
tendo cada vez mais - assim eles podem dispor de fazer coisas juntos, como passar férias românticas em Paris sem Jason, e instalar uma piscina no quintal deles (diferente
de nós, claro que, sempre que eu me queixo disto para minha mãe, ela sempre fala a mesma coisa, "Bem, qual das crianças você sugeriria que eu não devesse ter tido?"
o qual é uma pergunta má, por que eu amo todos os meus irmãos e irmãs).(Entretanto eu não penso que qualquer um sentiria muita falta de Pete.)De qualquer maneira,
tinha sido minha primeira visita de noite, e eu admito que tinha tido muito excitação - ou possivelmente foi a Coca-cola que Kitty tinha nos dado, e da qual eu tinha
bebido muito, nunca tido sido permitido ter Coca-cola antes, excluindo em ocasiões muito especiais como Ação de graças e Páscoa - e eu molharia minha calcinha, e
pelo o que eu pensava era tarde da noite (embora provavelmente só tivesse por volta de meia-noite).Eu me lembro lá mentindo em minhas calças molhadas, pensando,
"O que eu vou fazer agora?" Jason estava adormecido, mas mesmo se ele não estivesse, eu na teria contado a ele oque aconteceu. Eu estava convencida a nunca ouvir
o fim dessa história. "Molhar a cama como um bebê!" ele gritaria. Bem, conhecendo Jason, ele provavelmente não teria dito nada. Mas em meu cérebro de quatro anos,
eu estava convencida de que ele não iria mais querer ser meu amigo se ele soubesse que eu molhava as camas.Também, naturalmente, isso veria a tona toda a vez que
eu vencesse ele em alguma coisa: "Bem, tudo bem, talvez você é melhor em Candy Land, mas pelo menos eu não molho camas".Finalmente, em quanto meu pijama ficava
cada vez mais frio e frio em torno de mim, eu não consegui mais lidar com isso, e eu me levantei e me acomodei na cama máster, onde a avó de Jason estava dormindo.Ela
acordou no momento certo, embora ela estivesse um pouco cansada."Oh, Stephanie," ela disse quando ela percebeu que era eu. "Querida, não é hora de acordar ainda.
Veja, nessa casa, a gente acorda quanto o ponteiro grande está no 12, e o pequeno ponteiro no 8. Ou 9."Mas eu expliquei para ela eu não tinha realmente acordado.
Eu tive um acidente.Kitty foi ÓTIMA. Ela me tirou dos pijamas molhados e os jogou na máquina de lavar, sem acordar Jason.E então ela tentou me fazer voltar para
cama, e eu reclamei porque não tinha nenhuma calcinha (Sim. Olha o tipo de criança que eu era), ela pegou um par do Jason e me deu e disse que cuecas são tão boas
quanto calcinhas, e eu poderia usar por de baixo dos meus pijamas que Jason nunca iria saber.Eu estava, é claro, horrorizada. Quero dizer, uma cueca não é nada
parecida com uma calcinha - Tinha uma mosca! E ainda, a cueca do Jason tinha um Batman nela.Mas era melhor do que nada. Então eu voltei para cama com a cueca de
Batman do Jason, com a promessa de que, de manhã, minha calcinha teria voltado para mim, limpa e seca.Eu estava lá com o pensamento, "Eu estou vestido as GRANDES
CUECAS do Jason", porque isso era o que ele chamou quando nós dois estávamos trocando nossa calças do treino - ele tinha Grandes Cuecas e as minhas eram Grandes
Calcinhas.E a verdade é, eu senti um certo horror de vestir as cuecas de Jason. Eu era uma criança doentia, mesmo quando eu devolvesse elas.De manhã, enquanto
Jason estava no banheiro, Kitty colocou as minhas calcinhas de novo em mim, e eu lhe dei a Grandes Cueca do Jason - a qual eu tive sorte de ver ir. E ela nunca disse
uma palavra - nem para Jason, nem para os pais dele ou os meus, ninguém. Este dia, eu não sei se ela se lembra como ela me salvou ... mas eu nunca irei esquecer.E
eu estou contente que ela vai ser a minha avó, porque eu acho que ela é umas das avós mais legais que uma garota pode ter.É triste que a minha mãe não concorda.
Mas talvez é porque Kitty nunca A resgatou de uma vergonha mortal de calcinhas molhadas antes."Não," eu disse para o vovô, na pergunta sobre a mamãe. "Mas não
se preocupe. Ela virá".Eu particularmente não acredito nisso. É só uma coisa que eu digo para o vovô quando ele parece triste, como ele estava agora. Minha mãe é
uma pessoa muito determinada. Eu uma vez vi o seu físico jogando um garoto que ela suspeitava de ter levado algo para fora da loja sem pagar, só porque ele tinha
pendurado em torno do brinco uma cremalheira um pouco longa demais. Ele era de um certo modo maior que ela, mas isso não importou. O centro de gravidade da mamãe
é um pouco menor que o da maioria das pessoas, eu acho que é o motivo de ela ter dado a luz tantas vezes."Eu espero que você esteja certa Stephanie," Vovô disse,
seus olhos azuis se estreitaram como se ele tivesse começado a ver a mamãe sobre o lote do estacionamento da igreja. "Eu tenho certeza que sinto a falta dela."Eu
dei um tapinha de leve no seu braço. "Eu manterei você informado", eu lhe disse. "E espere a outra prestação do meu empréstimo semana que vem.""Eu irei manter
um olho nas taxas interessantes". Vovô me assegurou.Então eu lhe dei um beijo de despedida e corri até o Parque Bloomville Creek para aproveitar o resto da minha
família na minivan. Eles, como usual, não perguntaram aonde eu iria. Essa é uma das vantagens de ter 5 irmãos e irmãs.
Quais são alguns hábitos das pessoas populares?
Pessoas populares:•Fazem do jeito deles porque eles são a "coisa real". Eles são genuínos, verdadeiros com eles mesmos.•São totalmente consistentes no que acreditam
e em suas ações. Eles são as mesmas pessoas na vida privada assim como na vida pública.•Fazem oque eles tem querem fazer na vida. Eles curtem várias perseguições
e hobbies e vivem com um propósito.•São diretos e honestos, sendo sempre conscientes dos sentimentos dos outros.•Nunca são impostores ou falsos.Você consegue
honestamente dizer o mesmo sobre você?
Capítulo 6
AINDA T-MENOS UM DIA E CONTANDODOMINGO, AGOSTO 27, 3 DA TARDE,O Jason veio quando eu estava dispondo tudo o que eu ia precisar durante a próxima semana. Ele foi,
"O que você está fazendo?""O que se parece?" eu lhe perguntei."Eu não sei," o Jason disse. "Ordenando suas roupas?""Veja," eu disse. "Eles tinham razão para
o deixar ir para o segundo grau este ano, afinal de contas.""Engraçado," o Jason disse. Ele estava encarando todas as minhas roupas. "Elas são novas?""Elas são.""Onde
você conseguiu o dinheiro?"Eu olhei para ele. É um fato novo, esse que o Jason não pode controlar dinheiro. O único modo que ele pôde economizar bastante para
o carro dele era porque ele estava dando o dinheiro para mim. Ele devolveu isto seis meses depois com um retorno saudável.Eu não pensei que era necessário revelar
que, neste caso particular, eu tinha pedido emprestado de Vovô. Eu só tinha precisado pedir emprestado de Vovô porque todas minhas poupanças são investidas atualmente
em fundos mútuos."Bem," o Jason disse, enquanto, aparentemente percebia a estupidez da pergunta dele, "certo. Mas, como...desde quando você se preocupa com roupas?""Eu
sempre me preocupei com roupas," eu disse, genuinamente assustada pela pergunta "eu quero dizer, eu me preocupo como eu me vejo.""Oh, realmente, Crazytop?""Para
sua informação," eu disse, "este corte de cabelo é toda a raiva nas pistas de Paris."Bem, a versão endireitada disto, de qualquer maneira. Mas, de qualquer modo,
sou eu que vou ter toda a dificuldade para endireitar meu cabelo em um dia de non-escola."Paris, Texas, talvez," o Jason disse, enquanto se abaixava em meu chão,
no único lugar em meu quarto não coberto com os vários conjuntos que eu estava reunindo (porque o Livro disse muito claramente que você deveria escolher suas roupas,
inclusive roupas de baixo, com antecedência de qualquer evento que você está planejando os usar para evitar uma crise de moda de última hora)."Que seja," eu disse.
Ele estará cantando uma melodia diferente assim que ele ver a versão endireitada de meu corte de cabelo. Mais importantemente, assim vai Mark Finley."Você não
tem algo que deveria estar fazendo?""Sim," o Jason disse. "Eu estava pensando em levar O B ao lago." Isto é como o Jason chama o carro novo dele. Como "O B.""Quer
vir?"Tão tentadora quanto a idéia de ver o Jason sem camisa - e sem o beneficio dos binóculos Bazooka Joe - eu fui obrigada a recusar, levando em conta a tarde
ocupada que eu tive, catalogando meu guarda-roupa inteiro."Ah, qual é," Jason disse. "Quando você virou tão garota?"Eu encarei ele. "Obrigada.""Você sabe o
que eu quero dizer," ele disse, rolando por cima da cama e e olhando no stick-on constelação brilhantes-no-escuro que nós colocamos na minha cabeceira quando estávamos
na quarta. "Quero dizer, você não costumava se preocupar sobre roupas e seu cabelo- e o quão grande a sua bunda ficou.""Bom, nem todos nós podemos comer tudo o
que nós queremos e não engordar," eu falei. "Nem todos nós PRECISAMOS ganhar peso. Como certas pessoas que eu poderia mencionar."Jason se projetou em cima de um
cotovelo. "Isso é pelo Mark Finley?" ele mandou.Eu podia me sentir ficando vermelha. Não por que ele mencionou o Mark, mas porque quando ele se projetou em cima
de um cotovelo daquele jeito, eu pude ver o pelo de seu antebraço se projetando para fora da manga da sua camiseta, e aquilo me lembrou o pelo que eu tinha visto
em outras partes de seu corpo. Você sabe. Pela janela. Com os meus binóculos Bazooka Joe."Não," eu disse, mais alto do que queria. "Porque se fosse isso, eu estaria
implorando para ir com você, não estaria? Já que o lago é o lugar mais comum para os populares estarem hoje. O que implica na questão, por que você quer ir lá, considerando
o quanto que você odeia aqueles caras?"O Jason rolou em cima do meu HYPERLINK "http://www.naturalarearugs.com/images/resized/used/shag-cosmopolitan-choc.jpg"
\t "_blank" shag e fez uma careta. (Sim. eu tenho um shag azul. Meus pais estão renovando a casa lentamente, mas até meu pai de fato vende um dos mistérios que
ele está constantemente escrevendo, entre confundir grupos de granola caseiro, e comprar um shag azul, da cor do horizonte, que eu gostei)"Eu quero levar O B ao
lago," ele disse. "Ele nunca é visto. Pelo menos, não comigo. Mais, você sabe, terminar essas curvas do posto, eu quero experimentá-la fora.""Oh meu Deus," eu
disse. "E você me acusa de ser uma garota? Você é que é um garoto."Com isso, o Jason se levantou e disse, "Bom, eu irei sozinho.""Por que você não pergunta para
Becca? Ela provavelmente só está scrapbooking em casa, ou algo assim." Becca, agora que ela mora longe da fazenda, não é acostumada a ter tempo livre, e assim enche
os dias dela de projetos de arte, como fazer saias de fronhas, e encher álbuns de recortes de quadros de gatinhos adoráveis que ela corta no domingo na seção de
Desfiles. Se ela não fosse minha amiga, eu provavelmente não iria nem mesmo conversar com ela, baseado naquele fato."Ela fica enjoada a caminho do lago," o Jason
disse. "Se lembra?""Não se você a deixar sentar na frente.""Becca..." o Jason andou sem destino para a entrada do meu quarto, olhando...bem, estranho, é o único
modo como eu poderia definir."Becca está agindo estranha ultimamente comigo. Você não notou?""Não," eu disse. Porque eu não tinha.E também, se qualquer um
deveria estar agindo estranho com Jason, esse alguém sou eu. Eu quero dizer, fui eu que vi Jason sem calças, não Becca.E eu posso dizer que o que eu vi era muito
impressionante?Na verdade, não que eu tenho qualquer coisa para medir e comparar. Excluindo meus irmãos."Bem," o Jason disse, "Ela tem me importunando para lhe
dar um nome de inteligência dominante criminal. Aquela coisa toda de ontem à noite sobre achar sua alma-gêmea. Aquele tipo de coisa.""Venha, Jason," eu disse.
"Ela deseja estar dentro, se ajustar, fazer parte da gangue. Eu quero dizer, é duro para ela, enquanto está vivendo na cidade. Ela é acostumada a lidar com vacas
e materiais. Der uma folga para ela. Você não pode pensar em um nome de inteligência dominante criminal para ela?""Não," o Jason disse abruptamente. "Quer ir hoje
à noite para a Colina?""Não. Da vez passada eu tive que colocar um pouco de gasolina para eliminar todos os bichos-de-pé que ficaram em minha roupa íntima.""Nós
poderíamos ir para o observatório, então.""Por que? O Perseids terminou. E o Orionids não começa até Outubro.""Há outras coisas para se ver no céu além de chuva
de meteoros, você sabe, Steph," o Jason disse. "Eu quero dizer, há Antares. E Arcturus."Eu juro, eu quis dizer, "Veja, Jason! Isto é por que você não é popular.
Você poderia ser popular - você tem uma face decente, se você for olhar, como só eu sei muito bem, um assassino bod. Você tem um bom senso de humor e você é filho
único, assim seus pais podem lhe comprar as roupas certas. Você tem bons graus que são uma greve contra sua popularidade-sábia, claro que, mas você joga golfe, um
esporte cada vez mais popular entre adolescentes. Entretanto você tem que arruinar tudo falando sobre contemplar estrelas e Cortesia de BMW. O que tem de errado
com você?"Só que eu não falei. Porque isso seria muito mau.Ao invés disso eu disse, "é uma noite escolar, Jason. Eu não vou para o observatório.""Quem não
vai para o observatório?" meu pai perguntou, enquanto cutucava a cabeça dele ao redor do ombro de Jason."Oh, oi, Sr. Landry," o Jason disse, enquanto se virava.
"Steph e eu estávamos conversando""Eu posso ver," meu pai disse na voz de Eu-estou-falando-para-um-garoto-adolescente-de-pé-no-quarto-da-minha-jovem-filha. Excluindo,
claro que era só Jason. "Como vai o carro novo?""Temeroso," o Jason disse. "Esta manhã eu limpei os bolbos em minhas medidas de colisão. Agora eles estão lustrados,
como novos.""Bom para você," meu pai disse. E os dois entraram em uma conversa completamente fortuita sobre telegrafar areia.Deus. Meninos às vezes são tão bobos.
Examine eles em seu círculo social quem é mais popular que outros.Os estude.Veja onde eles vão.Observe o que eles fazem e como eles se comportam.Analise o
que eles usam.Escute sobre o que eles falam.Estas pessoas são seus modelos de papel. Sem estar "os copiando" (ninguém gosta de um imitador!), tente estar mais
como eles.
Capítulo 7 AINDA T-MENOS UM DIA E CONTANDODOMINGO, AGOSTO 27, 9 DA TARDE,Bem. É isto. Tudo está pronto. Eu tenho meus:1. Calças jeans de extensão de brim escuras
(não muito apertada, mas definitivamente não muito solta).2. Cordas de esbelto-ajuste em sombras múltiplas.3. Suéter de duas peças versátil em vários tons lisonjeiros.4.
Roupas esportivas (com casacos) nenhuma calça sacudindo, como fibras que "puxam" a atenção para seu meio.5. Jaquetas em belbutina e brim, entre à cintura para
revelar minha forma de ampulheta.6. Saias - lápis de comprimento no joelho, novamente em belbutina e brim (uma em cáqui); míni (mas nenhuma microminis...licença
para Darlene Staggs).7. Tops múltiplos (nenhuma com a barriga descoberta - uma menina deveria economizar ALGUNS segredos para a piscina, ou para aquele alguém
especial), inclusive pescoço de concha e balizas de franzidos; blusas com só uma sugestão de arrepie ao punho da manga, para maximizar a feminilidade.8. Dedo do
pé-redondo, calça como Mary Janes; botas com salto de sapato lisonjeiro; esbelto gatuno de ioga.9. Jaqueta baixa íntima-própria para excursões casuais, e coberta
com lisonjear (imitação) colarinho de pele para eventos mais formais; lenço de casimira emparelhando e luvas, durante o inverno.10. Vestidos (não com saia esclarecedora,
sim com cheia) em preto ou rosa para danças.Claro, eu tive que fugir um pouco de ALGUNS conselhos do Livro. Quero dizer, O Livro é consideravelmente velho. Eu
não acho que uma cinta ou alguma coisa chamada "calças três-quartos femininas" iria flutuar nos corredores do Colégio Bloomville.Para não mencionar o fato de que
se eu andasse com luvas brancas ao anoitecer ( "sem manchas, sem rasgado" ), eu não iria ganhar nenhum ponto fashion com Lauren e suas amigas.Então, obviamente,
eu tive que improvisar em grande parte com as roupas.Mas com a ajuda de uma dupla de revistas para adolescentes e o guarda-roupa para volta às aulas delas, eu
acho que o fiz consideravelmente bem. Obrigada Deus por T.J. Maxx, é tudo que eu tenho para dizer. Ah, e as lojas fora da "Dunes", onde a mãe e o pai de Becca levaram
a gente em um final-de-semana de Julho. Como mais eu poderia encontrar suéters Benetton por quinze doláres?De qualquer maneira, eu realmente acho que estou pronta.
Amanhã de manhã - e todas as manhãs do resto da minha vida, conforme as instruções do Livro - eu irei:1. Tomar banho - xampu e condicionador, esfoliante, raspar
pernas e debaixo do braço, e então umectação.2. Usar desodorante generosamente (claro, do tipo que seca rápido, para não deixar manchas feias de desodorante nas
blusas).3. Passar fio-dental e escovar os dentes (] HYPERLINK "http://www.whitekit.com/images/crest_premium.jpg" \t "_blank" Crest White Strips , para ser
usado por uma hora toda manhã e toda noite).4. Aplicar mousse, passar creme anti-frizz, secar o cabelo com secador e alisá-lo.5. Colocar roupas de baixo limpas,
incluindo sutiã que atualmente está adaptado (obrigada à vendedora da loja Maidenform que atualmente me mede corretamente, ao contrário da mamãe) e me faz parecer
um número maior do que o (errado) número de sutiã que eu costumava vestir.6. Ter sapatos brilhantes, limpos e andar sem arrastar o pé no chão.7. Ter certeza de
que as unhas estão limpas, lixadas, gloss claro aplicado, sem lascas, todas as cúticulas tiradas (checar a viabilidade de ir semanalmente nas manicures do shopping).8.
Usar uma perfeita base de maquiagem, aplicada levemente nas áreas com problemas e bem misturadas, com filtro fator 15 no mínimo; cobertura para qualquer acne explodindo
(que vai ser controlada com Retin-A, preescrita pelo pai do Jason, tão bom quanto uma boa rotina de lavagem, usando adstringente, e aplicando peroxide de benzoyl
antes de ir para a cama) em círculo abaixo dos olhos; um batom/gloss duradouro, somente discreto como malva (levemente aplicadas, sombra macia, como cinza e lavanda);
máscara preta impermeável.9. Ter certeza que as roupas estão limpas, sem enrugados, tudo combinando, sem exibições se não deveria ser exibido. SELECIONAR AS ROUPAS
DA NOITE ANTES!!!10. Escolher acessórios.- brincos (SOMENTE HYPERLINK "http://www.fordsjewelers.com/graphics/earrings.jpg" \t "_blank" small studs ou hoops);
não mais que um colar, se nenhum; estar atenta com munhequeira, braceletes (sem nenhum) ou outro; sem piercings, tornozeleira, HYPERLINK "http://www.moondancebellydance.com/belly
chainjw135.JPG
" \t "_blank" belly chains , tatuagens (como se eu fosse); mochila (pequena para média, nova, sem enrugados) preta ou marrom, bolsa pequena, designer
APENAS.Phew. É uma grande lista para uma manhã em que não parecerei eu mesma.Mas eu calculo que se eu começar às quinze para as sete, eu terei apenas tempo suficiente
para apanhar uma barra de cereal ou qualquer outra coisa para o café da manhã e encontrar Jason e Becca no The B oito horas para chegar no colégio no primeiro sinal,
às oito e dez. Eu posso pegar uma Coca Diet da máquina do ginásio para o meu choque de cafeína.Minha mãe há pouco gingou até o meu quarto e afundou na cama atrás
de mim."Como está, querida?" ela perguntou. "Tudo pronto para o colégio amanhã? É um grande dia... segundo ano. Não posso acreditar que meu bebê já é um junior!""Sim,
mãe" eu disse. "Está tudo ótimo. Não se preocupe comigo.""Você é a única com quem eu não preciso me preocupar" minha mãe disse, dando um tapinha em minha perna.
"Eu conheço a boa cabeça que você tem sobre os seus ombros."E então ela reparou a roupa que estava pendurada na porta do meu closet."Bem," ela disse após um
minuto. "Isso é novo."Ela não disse isso exatamente como se ela pensasse que era uma coisa boa, tampouco.Minha mãe é divertida deste modo. Quero dizer, eu tinha
tentado explicar a ela antes que Wrangler jeans não são o mesmo que Calvin Kleins. Eu tinha tentado falar a ela como "somente ignorar Lauren" na escola quando ela
começasse com "Não banque a Steph" realmente não funciona.Mas minha mãe - e pai, também - não conseguem entender isso! Eu acho que é pelo fato de que ela nunca
se preocupou em ser popular na escola. Tudo o que ela sempre fez foi ler livros. Esse sempre foi seu sonho: abrir e dirigir uma loja de livros, assim como sempre
foi o sonho de meu pai ser um escritor de mistério (um sonho que ainda não se tornou realidade).Eu havia tentado explicar a ela que ser popular não é o ponto -
as pessoas me darem uma chance para ser adorada, uma chance que Lauren consideravelmente arruinou aquele dia no sexto ano - é o que eu buscoMas ela não entende
por que eu me preocupo com ser adorada por pessoas parecidas com Lauren Moffat, quem ela considerada abaixo de mim intelectualmente.Esse é o porquê de eu não poder
dizer a ela sobre O Livro. Ela simplesmente nunca poderia entender."Eu suponho" mamãe disse ainda olhando para a roupa, "que você pegou o dinheiro emprestado para
isso com o seu avô.""Um," eu disse, supresa. "Sim."Minha mãe, vendo minha expressão de dúvida, encolheu os ombros"Bem, eu sei que você nunca iria gastar as
suas economias com roupas novas," mamãe explicou. "Isso não seria fiscalmente responsável."Eu me senti realmente triste então. Eu sei o quanto brava mamãe está
com seu pai."Eu tenho esperança, você não faz idéia," Eu disse. "Quer dizer, eu ainda falo com o vovô.""Oh, querida," Mamãe disse com o riso, inclinando-se por
cima para escovar minha franja para longe onde ela caia sobre meus olhos ( com um olhar de Christoffe, Cacho Acima e Tintura do principal estilo de cabelo, garantindo
me uma coisa mais quente.)"Você e seu avô são muito parecidos," Mamãe continuou. "Seria um crime manter vocês dois afastados.Eu gostei de ouvir aquilo. Ainda
que mamãe esteja brava com vovô, eu estou satisfeita por ela pensar que eu sou igual a ele. Eu quero ser como vovô. Exceto pelo bigode."Eu não consigo entender
por que vocês não podem se reconciliar," eu disse. "Eu sei que você ainda está nervosa por causa do Super Sav Mart. Mas não é como se Vovô estivesse usando o dinheiro
todo apenas para ele. Quero dizer, ele construiu o observatório e o doou para a cidade."Ele não fez isso para a cidade," mamãe disse. "Ele fez isso por ela."Ouch.
Eu acho que minha mãe realmente não gosta de Kitty.Ou talvez ela apenas não goste do fato de que Vovô parou de fumar por ela, mas não foi capaz de fazer isso por
sua esposa, ainda que ela estivesse morrendo de câncer.Contudo papai uma vez me confidenciou, pelas costas de mamãe, que vovó era do tipo "mulher briguenta", que
é o motivo de mamãe ter gastado tanto tempo lendo quando criança. Ela precisava se manter longe de sua mãe, constantemente tocando harpa e criticando.Entretanto,
mesmo que sua mãe fosse uma total insuportável, você não gostaria de ouvir seu pai por aí chamando uma outra mulher de "garota dos meus sonhos", como Vovô tem chamado
Kitty."O que essa cidade precisa é de um Centro de Recreação para as crianças," mamãe continuou, "então você não precisaria gastar as suas noites de sábado cruzando
a rua principal de cima a baixo, ou sentada naquele muro, ou deitada naquele morro com todos aqueles bichos-de-pé. Se Vovô realmente quisesse ser um humanista, é
o que ele deveria ter construído, não um planetário."Observatório," eu a corrigi. "E eu entendi o que você está dizendo. Mas você e papai realmente não vão ao
casamento?"O casamento de Gramps com Kitty será o evento do ano... metade da cidade foi convidada, e vovô já me confidenciou que isso custará cinquenta mil dólares.
Mas ele disse que o preço não importa... já que está se casando com a garota dos seus sonhos.Exceto é claro, sempre que ele diz isso, mamãe contrai os lábios ao
máximo. "Kitty Hollenbach nunca lhe deu um minuto de seu dia antes," eu ouvi secretamente uma vez mamãe lamentar-se com papai. "Agora ele é um milionário, e de repente
ela é toda dele como as penas em um passarinho"O que não é uma descrição muito agradável de Kitty que é de fato uma senhora muito fresca que sempre ordena que
vejam Manhattans quando o Vovô a leva para sair e a mim e Jason para jantar no clube rural. Vovó, pelo o que eu entendo, pensava que beber álcool era um pecado e
freqüentemente falava isso para o Vovô, que você não chamaria de tão abstêmio assim."Nós veremos," foi o que minha mãe disse em resposta a minha pergunta sobre
o andamento dela para o casamento.Entretanto, eu sei o que "nós veremos" significa. Na minha família significa "de nenhum modo na terra verde de Deus" - neste
caso, quer dizer que de nenhum modo minha mãe verá seu pai se casando.Eu posso ver por que ela está tão furiosa. Realmente fere os negócios pequenos, localizados
em lugares que possuem o Super Sav Mart - que vendem os mesmos produtos por muito menos, e tudo convenientemente localizado debaixo de um telhado - na cidade.Por
outro lado, o Super Sav Mart vai precisar de alguém para administrar a seção de livro da loja nova, e quem melhor que minha mãe?A não ser que minha Mãe diga que
prefere comer ela mesma do que usar um avental vermelho do Super Sav Mart."Bem, boa noite, querida," minha Mãe disse, enquanto se levantava com esforço de minha
cama e se dirigia a porta. "Te vejo pela manhã.""Vejo você," eu disse.Eu não disse o que eu queria dizer para ela, que era "Se você pedisse para o Vovô o dinheiro
para ampliar a loja no Hoosier Doce Shoppe abaixo, que fechou, assim nós poderíamos ter um café que é exatamente o que Courthouse Square Books precisa para concorrer
com Super Sav Mart, ele daria isto a você. E então você não precisaria se preocupar sobre ter que usar aquele avental vermelho."Porque eu sei que se ela levasse
o dinheiro, ela sentiria como se ela tivesse que ser agradável com Kitty.E isso a mataria, quase.
Espera! Seu cabelo e guarda-roupa podem estar perfeitos, mas seu makeover não está completo sem isto:A uma coisa que você pode usar em qualquer estação que sempre
vai estar na moda, é a confiança.Confiança em você é um acessório que ninguém pode dispor em casa.As pessoas são naturalmente líderes, e os líderes são esses
que têm confiança neles.
Capítulo 8 O-DIASEGUNDA, 28 de AGOSTO, 9 A.M."Bom dia, Crazyt - O que aconteceu com você ?" foi o que Jason disse quando eu subi no acento traseiro de O B, essa
manhã."Nada," eu disse inocentemente enquanto fechava a porta. Nós progredimos do CD mixado de 1977, eu percebi imediatamente quando assimilei os sons do Rolling
Stones. "Por que? Tem alguma coisa errada?""O que aconteceu com seu cabelo?" Jason queria saber. Na verdade, ele virou só redor do seu banco, no oposto, só para
olhar o meu reflexo no espelho retrovisor."Oh, isso?" eu puxei a minha franja para ter certeza que ela estava caindo sensualmente em cima de um olho, do jeito
que Christoffe disse que deveria ser. Ela estava. "Eu só usei uma chapinha, é isso.""Eu acho que parece bom," Becca disse indignadamente do banco da frente."Obrigada,
Becca," eu disse.Jason ainda estava virado para trás me encarando, do jeito que Mick Jagger lamenta o fato dela não conseguir nenhuma satisfação (A musica Satisfaction)."Que
tipo de MEIAS são essa?" Jason mandou."Três quartos," eu expliquei pacientemente.Embora por dentro, eu imaginava se tinha cometido um erro. Todas essas revistas
adolescentes tinham insistido que meias finas três-quartos eram OS tem-que-ter do outono.Mas julgando a cara do Jason, eu ficaria tão bem se usasse sapatos de
palhaço."Eu acho que parece legal," Becca disse."A sua saia está curta o suficiente?" Jason me perguntou, parecendo estranhamente vermelho no seu rosto. Especialmente
já que a minha saia era restritamente uma mini, não uma micro-mini. Eu imaginei se talvez a mãe do Jason tinha feito ele comer aveia quente de café da manha. Ele
fica sempre chateado quando ela faz isso, algumas vezes ela tenta todo ano no primeiro dia de aula. Algumas vezes ela coloca uva-passa também. Nada deixa o Jason
mais desconcertado que uva-passa - ele teve uma experiência desagradável envolvendo uma e seu nariz direto quando ele tinha três."Isso é style," eu disse, dando
de ombros."Desde quando você se importa com estilo?" Jason disse praticamente gritando."Ei, muito obrigada," eu disse, fingindo estar ofendida. "Eu não posso
tentar parecer bem no primeiro dia de escola, nem nada.""Eu acho que ela parece ótima," Becca disse.Mas Jason não estava caindo nessa."Isso é sobre o que,
Crazytop?" ele perguntou enquanto punha marcha no carro. "Qual é o plano?""Não há plano," eu insisti. "E você não pode me chamar de Crazytop mais, já que o meu
cabelo não está cacheado mais.""Eu vou te chamar de Crazytop qualquer maldita hora que eu quiser," Jason disse de forma bombástica. "Agora qual é a parada?"Não
importa o quanto eu assegure a ele que não há nada (mesmo que, claro, haja um), Jason não acreditou em mim.E quando nos entramos no estacionamento de estudantes
bem atrás de um conversível vermelho, e vimos Lauren Moffat sair dele, Jason parecia ter sido acertado por algo fervendo."Ela ta usando as mesmas meias!" ele berrou
- felizmente nos ainda estávamos dentro do carro, então Lauren não escutou.Eu olhei e vi com algum alivio que aquelas revistas adolescentes estavam certas... meias
finas três-quartos estavam na moda. Deviam estar já que Lauren Moffat estava usando elas.Só que as de Lauren, diferentes das minhas, que eram azuis marinho, eram
brancas.Isso era uma violação de um mandamento fashion restrito do 'O Livro', que é que meias brancas - mesmo as finas- são boas só se você é uma enfermeira, já
que cores claras tem a tendência de deixar as pernas parecerem mais largas do que realmente são.Isso era verdade, eu vi, em Lauren, com o celular colado na orelha,
atravessando apressadamente o estacionamento. As pernas normalmente bem torneadas pareciam tão grandes quanto às de um elefante. Bem, mais ou menos."O que está
acontecendo com o mundo?" Jason queria saber enquanto nos arrastávamos pela entrada de trás da Bloomville High (nossa primeira vez usando, já que nos anos anteriores
nós éramos deixados na frente pelo ônibus.). "Quando Steph Landry e Lauren Moffat estão vestidas iguais?""Nós dificilmente nos vestimos iguais," eu coloquei, empurrando
a maçaneta da porta."Quero dizer, ela está usando uma micro-mini, e a minha é só-"Mas eu não tive a chance de terminar , já que as minhas palavras foram imediatamente
tragadas pelo estrondo que nos recebeu dentro da escola. Combinado com barulhos de discagem. Portas batendo. Garotas que não tinham se visto desde que a escola tinha
acabado verão passado davam gritos agudos e se abraçavam. Garotos batiam as mãos no alto (high five) com outros garotos. Professores estavam de pé na porta de suas
salas, assoprando as fumaças de seus cafés e fofocando uns com os outros. A Vice Diretora Maura Wampler- ou Brejenta Wampler, como ela é comumente conhecida- estava
parada em frente ao escritório de administração, frustrantemente gritando, "Vão para as suas salas! Vão para as suas salas antes do ultimo sinal! Vocês não vão querer
pegar uma detenção no primeiro dia de aula, vão, pessoal?""Sentamos juntos na convocação de boas vinda?" Becca gritou pra mim acima do caos."Vejo vocês então,"
eu gritei de volta."Eu ainda não acabei com você, Crazytop," Jason me assegurou enquanto ele alcançava o seu armário, e eu tinha que continuar para alcançar o
meu. "Tem alguma coisa com você, e eu vou descobrir o que é!"Eu não podia evitar rir disso. "Boa Sorte," eu disse a ele, e me apressei sem resposta.Quando eu
cheguei perto do meu armário, as coisas pareciam ter ficado quietas. O que é, na verdade, impossível, porque o meu armário fica localizado em um ponto da escola
onde os dois corredores principais da escola se interceptam. Há o banheiro das meninas e um bebedouro perto do meu armário, para não mencionar a porta para a cafeteira
lá em baixo.Normalmente essa é a parte mais barulhenta da escola.Mas hoje, por alguma razão, o corredor parecia estranhamente quieto enquanto eu andava. E não,
como eu gostaria de pensar, porque eu estava maravilhosa no meu novo armário e corte de cabelo, que todo mundo ficou chocado e silencioso, como quando a Drew Barrymore
apareceu no baile na fantasia de anjo no filme 'Para Sempre Cinderela.'Na verdade, estava provavelmente tão barulhento quanto o normal. As coisas só PARECIAM estar
mais quietas.E isso era porque Mark Finley tinha entrado no meu campo de visão.O armário do Mark é do outro lado do corredor do meu. Ele estava parado lá conversando
com outros caras da equipe de futebol americano enquanto eu andava. Na sua jaqueta roxa-e-branca, ele parecia bronzeado e tranqüilo, o cabelo marrom claro dele manchado
de dourado em algumas partes por causa de todo o tempo que ele passou no lago no verão passado. Até seus olhos mel pareciam mais brilhosos contra suas bochechas
queimadas de sol.Eu, claro, não podia tirar meus olhos dele. Bom, que garota poderia?E com aquele tipo de visão parada na minha frente, era algumas surpresa
que eu ficasse desapontada ao ver que Lauren Moffate suas seguidoras Negras Ladies do Sith, Alyssa Krueger e Bebe Johnson, estavam paradas ao lado do bebedouro,
me encarando?"O que," Lauren disse, seu olhar indo do topo da minha cabeça até a os meus dedos na minha plataforma Mary Janes, "VOCÊ deveria ser?"Felizmente
na noite passada eu li a seção de O Livro sobre inveja, então eu sabia exatamente o que fazer."Oh, oi Lauren," eu disse, plastificando um sorriso brilhoso no meu
rosto. "Você teve um bom verão?"Lauren olhou incrédula da Alyssa para Bebe, depois de volta pra mim."Com licença?", ela disse."O seu verão." Eu espero que
elas não possam ter visto meus dedos tremendo enquanto eu virava a combinação do meu cadeado. "Como foi? Bom, eu espero. A sua mãe gostou dos livros?"O queixo
de Lauren caiu. Eu podia dizer que eu tinha acertado ela. Veja, a maioria das nossas interações anteriores - desde o incidente do Super Big Gulp, de qualquer forma
- tinham sido como o que nos tínhamos tido na noite de Sábado. Lauren diz alguma coisa maldosa para mim, e eu respondo dizendo... nada.O fato de essa vez eu ter
respondido - e a maneira que deixava claro que eu me recusaria a deixar ela me agredir - tinham feito seu plano mover-se para outra direção."Eu certamente espero
que sim," eu disse.Os olhos azuis de Lauren se estreitaram. "O que?" ela perguntou, parecendo irritada."Que a sua mãe tenha gostado dos livros que ela comprou
na nossa loja," eu disse.Naquele momento - Graças a Deus - o sino tocou. Eu fechei a porta do meu armário com uma batida, coloquei a minha nova bolsa de designer
no ombro, e disse, "Bom, te vejo na convocação," e desci o corredor...... bem do lado do Mark Finley.Quem, eu não pude deixar de noticiar, tinha ficado olhando
na minha direção, porque ele percebeu a minha interação com a sua namorada, ou - mesmo que eu saiba que isso é muito a se esperar... ainda, O Livro diz que otimismo
é crucial no sucesso de qualquer aventura social - ele estava olhando a minha meia-calça fina.Qualquer um, nossos olhares se encontraram quando eu passei.Eu
sorri e disse, "Oi Mark. Espero que tenha tido um bom verão."Essas eram as primeiras palavras que eu tinha dito a Mark Finley na minha vida.E eu acho que teve
o efeito desejado. Porque enquanto eu me afastava dele, eu ouvi ele dizer, "Quem era essa?" e ouvi Lauren murmurar, "Essa era Steph Landry, seu retardado."Oh yeah.
Eu dei uma de Steph, certo.E pela primeira vez na minha vida eu me senti ÓTIMA sobre isso.
Agora que as necessidades do seu armário foram solucionadas, é hora de trabalhar a sua personalidade.Você está namorando? Dois em um? Se não, você PODE se tornar
um.Como?Se envolvendo em clubes e atividades que você sinta entusiasmo.As pessoas estão destinadas para aqueles que têm as habilidades de deixá-los excitados
- quer seja lavar carros, fazer carne assada ou dar socos!Então se escreve agora no máximo possível de atividades escolares social que couberem no seu horário...
depois mostre o seu espírito escolar.Entusiasmo é contagioso, e logo VOCÊ será, também.
Capítulo 9 AINDA O-DIASEGUNDA, 28 DE AGOSTO, 11 DA MANHA"Isso é tão chato," Jason disse enquanto ia aos nossos lugares tradicionais na ultima fileira do auditório,
onde, ano passado, foi a minha idéia de deixar lotas de refrigerantes rolarem a baixo por toda a sala durante o discurso do presidente escolar. Já que o chão é de
cimento, elas fazem uma bagunça extremamente satisfatória.Ninguém nunca suspeitou de nós, porque somos tão bons alunos. Sra. Wampler gritou com uns caras totalmente
inocentes na fileira na nossa frente, porque eles eram alunos de horticultura (i.e., alunos sem limite). Ela daria detenção a eles, também, se não no exato momento
uma das minhas latas de Coca Diet tivessem escapado, tornando o rosto da Brejenta um vermelho brilhoso quando ela gritou, "QUEM ESTA FAZENDO ISSO?"Eu tive pontadas
por dentro de tanto rir."Eu tenho uma idéia," eu disse antes que o Jason sentasse em um lugar. "Vamos sentar mais perto."Entusiasmo é contagioso, tudo bem. A
Becca ficou tipo, "Oh meu Deus! Isso é parte do seu plano criminoso?""Hum," eu disse. "É.""Como eu vou deixar as minhas latas de Coca rolarem a baixo se nos
vamos sentar na frente?""Você não vai," eu expliquei, selecionando três lugares vazios a poucas fileiras do palco."Qualquer que seja o seu plano," Jason disse
quando ele viu o quão perto os lugares eram de onde Sra. Wampler e os outros administradores da escola era, "é melhor funcionar. Nós vamos ter que, tipo, prestar
atenção.""Exatamente," eu disse, e peguei um lugar no corredor."Eu não entendo," Jason disse, balançando a cabeça. "Primeiro o cabelo, depois as meias, agora
isso. Você sofreu uma contusão esse verão que eu não tenha ficado sabendo?""Shhh," eu disse, porque a Sra. Wampler estava começando a convocação. Que é como eles
chamam na Bloomville High quando todos nós juntos no auditório temos que escutar ex-drogados e pessoas que mataram seus amigos acidentes dirigindo bêbadas falarem
de suas experiências.Eles calaram a boca porque o Diretor Greer, que joga golfe, mantêm um clube no seu escritório que ele constantemente pratica jogadas - sem
olhar, dizem por ai, para ninguém que possa estar sentado no seu escritório na hora. Há um cara que trabalha no lava-carro que só tem um olho bom, e todos dizem
que o Dr. Greer que o deixou assim com o seu taco 5-iron no dia que ele foi mandado a sua sala por bater boca com a Brejenta Wampler.Dr, Greer começou seu discurso
de boas vindas - "Sejam bem-vindos estudantes, a outro ano escolar na Bloomville High" - e Jason afundou na sua cadeira do meu lado, e afundou mais ainda, colocando
seu Converse (all star) no alto de trás da cadeira em frente a ele e fazendo a pessoa na cadeira - Courtney Pierce, a bêbada da sala - virar e dar um olhar intenso,
que o Jason respondeu como, "O que? Eu não estou encostando em você," uma frase que na verdade ele aprendeu com o meu irmão Pete.Ao lado de Jason, Becca, claramente
entediada, pegou um lápis roxo que ela pôs na minha conta dos empregados da livraria ($1.12, 73 centavos com os meus 35% a menos) e começou a fazer pequenas estrelas
no parte branca do Tópico "Melhores" do Jason.E Jason, depois começou a lançar um olhar para mim (como se dissesse, "Você está vendo o que sua amiga insana está
fazendo?"), apenas sentado lá e deixando ela fazer aquilo. Como se ele estivesse com medo de que se ele se movesse, ela pudesse mergulhar o lápis no seu antebraço,
ou algo assim.Após o término do Dr. Gree com o discurso chato sobre como nós devemos usar nossas volta as aulas para realizar nosso melhor potencial veio a leitura
da Swampy dos destaques do código de conduta do estudante: não matar aula, sem violência, sem apelidos para qualquer criança, ou você será expulso e terá que ir
para a Academia Militar Culver ou uma escola alternativa. É difícil ver que poderia ser pior. Na Culver, você é forçado a levantar-se no alvorecer e executar brocas.
Numa escola alternativa, você seria forçado em pôr nas suas performances partes dos seus sentimentos a respeito da guerra. O que seria uma situação perdidade qualquer
forma. É obviamente melhor só manter-se sem violar o código de conduta estudantil do Bloomville High.Finalmente, depois que ela teve os olhares alternados para
os relógios ao invés dela e esperando pela hora do lanche, e roncando, Swampy virou o microfone para Mark Finley, que andou até o palco com um aplauso estrondoso
que fez algumas pessoas - como Jason, que acenou com a cabeça - para permanecermos em nossos lugares."Oh, man," o Jason disse olhando para baixo aos sapatos dele.
Além das estrelas, Becca tinha somado unicórnios minúsculos."Eles não são fofos?" Becca perguntou, claramente emocionada pela própria coragem artística."Oh,
man," o Jason disse novamente, enquanto não parecia tê-los achados bonitos.Mas eu não tive tempo para lidar com o drama dos sapatos de Jason.Porque o Mark tinha
começado a oração."Ei," o Mark disse, a voz funda e áspera dele - mas totalmente encantadora - no microfone que ele tinha tido que ajustar à própria altura dele,
depois que a Sra. Wampler diminuiu e pisou longe disto, para divertimento do corpo estudantil. "Assim, sim. Uh. É um calendário escolar novo, e vocês sabem que o
juniors daquele ano de meios...último, são agora os superiores em cargo, e-"Aqui ele foi cortado por mais aplauso, alegrando os superiores em seus cargos, que se
felicitaram por conseguir fazer isto pelo verão sem se matar em acidentes motorizados bêbados ou mergulhando de ponta-cabeça no fim raso da piscina (sem mencionar,
não bebendo em qualquer grupo de limonada da Alegria limão)."Um, sim," o Mark disse enquanto os superiores em cargo se estabeleceram novamente, enquanto sorria
um pequeno sorriso envergonhado dele. "Assim, vocês sabem o que isso significa. Nós temos que começar a economizar para nossa viagem sênior esta primavera. Com esses
meios nós ganhamos pouco dinheiro. Agora, eu sei que o último ano, classe sênior, conseguiram cinco mil dólares fazendo lavagens de carros de fim de semana. E eu
proponho que nós façamos a mesma coisa. A Lagosta Vermelha, centro comercial, diz que nós podemos usar o lote de estacionamento deles novamente, assim...o que vocês
dizem? Você estão prontos para uma lavagem de carros?"Mais aplausos, estes acompanhados de assobios e gritos de "Vá, peixe!" que conduziu inevitavelmente a risos
silenciosos sobre jogos de cartão de infância.Eu não sei, seriamente, como nossa escola foi aderiu o Peixe Lutador como seu mascote. Porque como vão mascotes,
chupada de peixe. Aparentemente tem algo a ver com o cata-vento de peixe em cima do palácio da justiça... que alguma pessoa suspeita ser um salmão, o peixe geralmente
é achado no lago. Assim eu imagino que as coisas poderiam ser piores. Nós poderíamos ser os Salmões Lutadores.O Mark deu uma olhada ao redor do quarto para ver
se alguma pessoa tinha qualquer coisa a mais para dizer, sem ser "Vá, Peixe!". Eu dei uma olhada, também.Mas a única pessoa que levantou a mão foi Gordon Wu, o
presidente de classe júnior (eleito unicamente devido a não ter oponente, sendo a minha classe - qual é o jeito legal de colocar isso? - levemente apática), que
levantou e perguntou, "Com licença, hum, Mark, mas eu estava imaginando se não tem outro método pelo qual nós podemos angariar fundos, outro que não o lava-jato?
Veja bem, alguns de nós prefeririam ter os sábados livres para, hum, trabalho de laboratório..."Este comentário foi seguido pelas vaias vindas dos estudantes e
por vários "Não seja tão Steph, Wu!"Eu não podia acreditar na minha boa sorte - quero dizer, que Gordon Wu, de todas as pessoas, tenha realmente deixado a porta
aberta pra que eu pudesse passar. O que eu fiz sem pensar duas vezes, antes que Mark pudesse dizer alguma coisa."Gordon ressaltou um ponto interessante," eu disse,
levantando da minha cadeira - tão repentinamente que Jason escorregou os dois do encosto da cadeira em frente a ele. Ele também não pareceu perceber o barulho que
eles fizeram ao atingir o chão de cimento do auditório. Em vez disso ele virou a cabeça para mim e murmurou, "O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO? SENTE!" enquanto Becca, com
um dedo na boca (ela é uma roedora de unhas), me encarou com uma expressão horrorisada no rosto.O silêncio tomou conta do auditório enquanto todos os rostos se
voltavam na minha direção. Eu podia sentir o calor do meu rosto ficando vermelho, mas eu tentei ignorar. Esse, eu sabia, era o momento. Minha grande chance de mostra
meu Espírito Escolar, depois de anos fazendo o que Jason estava fazendo um segundos atrás - cochilando - durante todos os eventos escolares aos quais eu era forçada
a comparecer, e simplesmente não aparecendo nos que não eram obrigatórios.Bem, não mais."Nós temos muitos talentos individuais nesse sala," eu continuei, feliz
por ninguém poder ver os meus joelhos de onde eu estava de pé (exceto Jason. Mas ele não estava olhando os meus joelhos), já que eles estavam tremendo tanto. "Parece
uma vergonha desperdiçá-los. Que é o porque de eu estar pensando que uma boa maneira de levantar fundos para a viajem da turma dos sêniors este ano seria um leilão
de talentos dos estudantes."A platéia, que estava congelada em silêncio até esse ponto, começor a zumbir. Eu vi Lauren Moffat, os olhos dela brilhando de alegria
ao ver o que eu estava fazendo (fazendo um espetáculo público de mim mesma... de novo), se inclinar na cadeira para sussurrar alguma coisa no ouvido de Alyssa Krueger."Deixe-me
explicar," eu disse urgentemente antes que o zumbido pudesse me amedrontar. "Estudantes como Gordon, por exemplo, que são muito bons com computadores, poderiam leiloar
algumas horas de progamação de computadores para um membro da comunidade."Os murmúrios começaram a aumentar. Eu podia sentir os estudantes se agitando. Logo, eu
sabia, os "Não seja tão Steph"s íam começar. Eu ainda não tinha ouvido-os ainda. Eu precisava fechar o negócio."Ou você, por exemplo, Mark," eu disse, olhando
para o palco e encontrando o olhar calmo, de olhos castanhos, de Mark. eu imagino se ele sabe o efeito eletrificante que se olhar tem na população feminina da escola
Bloomville High.É estranho o que vc pensa enquanto a sua vida está se esvaindo por seus olhos."Sendo o zagueiro da escola, Mark," eu continuei, "você poderia
leiloar um poco do seu tempo para participar de algum anúncio nas redes locais de televisão para algum negócio da
comunidade. Pessoas pagariam muito por esse dipo
de propaganda."Eu notei que, na mesa atrás do pódium onde Mark estava de pé, tanto a Sra. Wampler quanto o Dr. Greer estavam olhando para mim. Swampy chegou ao
ponte de se inclinar e dizer algo para o Dr. Greer, que, ainda olhando para mim, acenou positivamente com a cabeça. Eu imagino se ela sempre suspeitou de nós sobre
o incidente das Latas Rolando do ano passado e finalmente colocou dois mais dois. Eu tentei ignorá-los."É só que parece que nós temos tantas pessoas extraordináriamente
talentosas nessa escola," eu continuei. Essa era a parte perigosa. O Livro foi bastante explícito sobre não parecer um puxa-saco. Apesar de O Livro não chamar assim.
O Livro chama de 'curring favor'. Sob nenhuma circunstância você deve fazê-lo. Ainda assim, eu descobri, é difícil puxar-o-saco sem parecer que você está fazendo
isso."Seria uma vergonha não dar a eles a chance de brilhar fazendo as coisas nas quais eles são naturalmente bons," eu disse, "ao invés de forçar todos a trabalharem...
bem, em um lava-a-jato."Que foi quando uma foi disse, "Qual é o SEU talento, Steph?"Ao que outra respondeu, "Ah, certo. Super Big Gulp!"Eu não precisava olhar
na direção das vozes para saber que elas pertenciam à Alyssa e Lauren. Eu conhecia essas vozes muito bem."O que não quer dizer," eu continuei, consciente dos risinhos
daqueles que estavam perto o bastante para ouvir a pergunta de Alyssa e a resposta de Lauren, "que nós não devríamos ter um lava-a-jato para somar com o leilão de
talentos, para participação daquelas pessoas cujos talentos são menos marcantes que os outros."Eu quis acrescentar, "Ou para aqueles cujo único talento é algo
que vc possa ir para a cadeia se aceitar dinheiro por ele," enquando olhava diretamente para Lauren.Mas O Livro deixa bem claro que se você quer uma popularidade
duradoura, você não deve atingir seus inimigos em público. O que me faz pensar se a Lauren sabe quão limitado o tempo dela no topo do tótem da popularidade pode
acabar sendo."Mas," eu disse, "eu acho que nós deveríamos considerar um leilão de talentos também."E então eu me sentei.Uma coisa boa, já que meus joelhos
tinham finalmente desistido. Eu não poderia ter ficado de pé por mais um segundo. Eu fiquei sentada lá, meu coração martelando contra as minhas costelas, e olhei
para Jason e Becca. Os dois estavam me encarando, suas bocas silenciosamente abertas."Sobre o que," Jason perguntou suavemente, "era tudo AQUILO? Desde quando
você se importa..."Mas eu não consegui ouvir o que ele disse depois disso, já que Mark, batendo no microfone para chamar atenção depois que todos começaram a susurrar
entre eles mesmos, disse, "Hum, okay. Obrigada, hum, hum...""Steph Landry!" Lauren gritou do seu lugar, onde ela tinha se dissolvido numa poça de meias-altas-brancas
cheia de zombarias."Obrigado, Steph," Mark disse, ele olhos para o Dr. Greer e para a Sra. Wampler. Os dois, eu percebi, estavam acenando positivamente com as
cabeças.O que aquilo significa? Que eles gostaram da minha idéia?Ou que Mark deveria simplesmente me ignorar e seguir em frente?"Hum, eu acho que um, hum, leilão
de talentos," Mark disse, seus olhos castanhos olhando direto para mim - não, queimando através de mim - onde eu tinha derretido em minha própria cadeira... não
apenas pelos risos, mas também pela minha própria mortificação, "parece uma grande idéia.""O QUE?"A palavra - que tinha vindo de Lauren - atravessou o auditório
como a pistola de partida de uma corrida.Todos olharam para Lauren, cujo rosto era uma cômica face de ultraje.Ou pelo menos eu achei que foi cômica.Mark olhou
de Lauren para mim, a sua expressão de imcompreensão mostrando claramente que ele, Mark Finley, não fazia idéia de qual era o problema de sua namorada."Ótimo,"
Mark disse para mim. "Então, tudo bem se eu te colocar a cargo de inscrever as pessoas interessadas para isso, Steph? A, hum, coisa de talentos?""Claro", eu disse."Ótimo,"
Mark disse de novo. "Então o que todos nós precisamos em seguida é a Batida dos Peixes Lutadores de Bloomville..."E então Mark liderou a todos nós na batida da
nossa escola, uma coisa ridícula que você faz com os seus braços, betendo um contra o outro para fazer um som de palmas, como um rabo de peixe na água.Então o
sinal tocou.
Não fique surpreso se alguns colegas se ressentirem da sua nova confiança e tiverem tendência a subestimar seus esforços de auto-crescimento.Eles estão, sem dúvida,
com inveja e talvez preocupados com o próprio estatus social, em vista da sua ascensão meteórica à popularidade. Faça o seu melhor para afastar os medos deles e
deixe os antigos amigos saberem que sempre serão importantes para você - tão importantes quanto seus novos amigos.
Capítulo 10 AINDA DIA-DSEGUNDA, 28 DE AGOSTO, 1 DA TARDE.Todos saíram para almoçar.Todos, isso é, com exceção de mim.E Jason e Becca, porque eles estavam presos
na fileira de cadeiras, já que eu não estava me mechendo.Mas é claro, eu NÃO PODIA me mecher. Por que meus joelhos ainda estavam tremendo. Por causa do que acabou
de acontecer.E as coisas não melhoraram muito quando todo mundo estava passando pela gente, e pessoas como Gordon Wu pararam na nossa fileira para dizer coisas
como, "Grande idéia, Stephanie," e, "Você acha que eu posso leiloar aulas de desenho para criancinhas? Por que eu sei desenhar. Isso conta como talento?"Até o
Dr. Greer parou perto da minha cadeira no seu caminho para seu próximo jogo de golfe e disse, "Muito boa sugestão Tiffany. É bom ver vc participando de eventos escolares
para variar." Ele deu uma rápida olhada para Jason e Becca. "Seus amigos aqui poderiam seguir o seu exemplo.""É Stephanie," Jason disse enquanto Dr. Greer ía embora.
"O nome dela é Stephanie."Mas o Dr. Greer não pareceu ter ouvido.Não que importasse. Quem liga se o diretor sabe ou não o seu nome? Mark Finley sabia.E isso
é tudo que importa.Eu sei que Mark Finley sabia o meu nome por que enquanto ele vinha andando pelo corredor perto da minha cadeira, ele sorriu e acenou para mim."Idéia
legal, Steph," ele disse. "Te vejo por aí."E tudo bem, o braço dele estava nos ombras de Lauren Moffat enquanto ele dizia isso.Mas isso é só por que ela o colocou
lá. Eu VI ela fazendo isso. Ela ficou esperando Mark descer do palco e praticamente se jogou em cima dele no instante em que ele colocou os dois pés em chão sólido.E
claro, ela olhou para mim com cara de zombaria enquanto passava, mesmo que que o cara ao qual ela estava presa pelo quadril estivesse sorrindo para mim.Mas quem
liga? MARK FINLEY SORRIU PARA MIM!O que foi exatamente o que Becca disse depois que todos já tinham ido embora."Mark Finley sorriu para você." O tom dela era
de reverência. "Ele SORRIU. Para VOCÊ. De um jeito LEGAL.""Eu sei," eu disse. Eu podia sentir a força voltando lentamente às minhas pernas."Mark Finley," Becca
murmurou maravilhada. "Quero dizer, ele é tipo... ele é o cara mais popular de toda a escola.""Eu sei," eu disse de novo. Vazio, o auditório é um lugar totalmente
diferente de quando está cheio. Há algo quase calmente sobre o tamanho do seu eco."Mas que diabos," Jason, que até aquele momento tinha ficado estranhamente silencioso,
estourou, "é o seu problema, Steph? Alguém colocou crack no seu cereal esta manhã, ou algo assim?""O que?" Eu perguntei, tentando aparentar - e soar - como se
eu não soubesse do que ele estava falando. E não sobre o crack, também."Não faça isso," Jason disse, "você sabe exatamente O QUE. O que foi tudo aquilo? O que
é um leilão de talentos? E o que é isso de se oferecer para participar de um? O que é que há com você demonstrando ESPÍRITO ESCOLAR?"Mas nessa hora as minhas pernas
já tinham parado de tremer, e eu podia me levantar."Eu só queria ajudar," eu disse, "quero dizer, alguém fai fazer o mesmo quando for a nossa vez de ir para Kings
Island no ano que vem.""Você odeia Kings Island," Jason disse, se levantando. "Você vomitou na Barca e se recusou a ir em qualquer outro passeio.""E?" Eu disse
encolhendo os ombros. "Isso significa que eu não posso tentar ajudar outras pessoas a aproveitar algo, só por que eu não gosto de alturas?""Sim," disse Jason,
saindo atrás de mim enquanto eu ía pelo corredor em direção da saída para o resto do prédio. "Por que isso é perigosamente próximo de espírito escolar. E você não
tem espírito escolar.""Na verdade," eu disse, "Eu estive pensando muito sobre isso, e...""E daí?" Jason exigiu. "Ela é o inimigo - e eles são os amigos dela.
Portanto, eles são seus inimigos."Eu só fiquei lá e olhei para ele. Bem, não que eu tivesse muita escolha, já que ele estava bloqueando a porta."Você está sendo
realmente infantil quanto a tudo isso Jason," eu disse na minha voz mais razoável. "Não tem nada de errado em mostrar um pouco de espírito escolar tentando ajudar
outros que podem estar precisando. Nós só temos mais dois anos nesse lugar. Nós realmente deveríamos tentar aproveita o pouco tempo que nos resta."Pelo menos,
isso era o que dizia O Livro. Você sabe, sobre como você deveria tentar aproveitar os seus anos no segundo grau enquanto pode, por que eles você nunca os terá de
volta.Jason, obviamente, não tinha lido O Livro. Mas estava claro pela sua reação ao que eu tinha dito que, mesmo se ele tivesse lido, não teria feito muita diferença.Por
que o que ele fez em seguida foi se esticar e colocar a mão na minha testa, como se ele estivesse verificando se eu estava com febre."Ela parece quente para vc,
Becca?" ele perguntou. "Por que eu acho que ela pode estar ficando doente com alguma coisa. Febre de Lassa (um tipo de febre acompanhada de hemorragia interna) ou
talvez Febre Amarela. Ou isso ou ela foi sequestrada e trocada por um clone muito esperto. Clone!" Ele tirou a mão da minha testa e olhou nos meus olhos. "Me diga
qual jogo Steph Landry e eu jogávamos na grande pilha de sujeira que eles fizeram enquanto eles estavam construindo a piscina da minha família, quando nós dois tínhamos
sete anos, ou eu vou saber que vc é um clone alienígena e que você está mantendo a verdadeira Steph na sua nave mãe!"Eu o encarei. "G.I. Joe encontra Spelunker
(alguém que gosta de esplorar cavernas) Barbie," eu disse. "E pare de ser tão ridículo. Nós temos que ir. Nós vamos acabar na mesa ruim para o almoço."Finalmente
Becca se pronunciou."Eu pensei que nós íamos sair para almoçar," ela disse. "Você sabe, agora que Jason tem um carro.""Nós não podemos SAIR para almoçar," eu
expliquei para os dois. "Vocês não entendem? O almoço é a parte mais importante para interação social na escola."Tão cedo as palavras saíram da minha boca eu percebi
como elas tinham soado. Elas eram, é claro, uma citação d'O Livro.Mas Jason e Becca não sabem nada sobre O Livro. Então, naturalmente, eles ficaram perplexos,
como se não soasse como uma coisa que eu falo normalmente. Eu podia dizer que eles estavam confusos antes mesmo de eu terminar de falar."O que eu quis dizer é,
eu não posso simplesmente não aparecer por lá," eu expliquei no que eu pensava ser um tom de voz bastante razoável. "Eu tenho que estar disponível, para o caso de
alguém querer se inscrever. Vocês sabem, para o leilão. Vocês vêem o que eu quero dizer?""Oh," Jason disse, acenando. "Nós vemos o que você quer dizer, tudo bem.
E se isso não é parte de algum plano mestre diabólico - um que envolva convencer a escola a comprar algum terreno de pântanos, inexistente, na Flórida ou algo assim
- então nós estamos fora. Então. É?"Eu balancei a cameça. "É o que?""Parte de algum plano mestre diabólico para tirar o Mark Finley da presidência da classe
de sêniores e colocar a si mesma no lugar, ou algo assim?"Eu não sabia o que dizer. ERA parte de um plano mestre diabólico, é claro. Mas não do tipo que ele estava
esperando.Ele pareceu perceber isso sem que eu tivesse que dizer qualquer coisa. Virondo-se para Becca, ele disse, "Vamos."Becca se apressou para acompanhá-lo,
me olhando de forma preocupada o tempo todo como se eu fosse um cão raivoso, ou um bolinho Ana Maria frito, ou algo assim.Ainda assim, eu não parcebi. Não imediatamente.
Por que a verdade era horrível demais para a acreditar, eu acho.Eu estava tipo, "Legal." Eu até me senti aliviada. Eu realmente pensei que eles tinham entendido.
"Agora, nó só temos que ir lá pra baixo e ir perto das saladas ou o que for, e então sentar perto daquelas plantas que o clube de horticultura plantou, e se ninguém
vier até nós, nós vamos...""NÓS não vamos fazer nada," Jason disse, abrindo as portas e saindo com a Becca para o corredor."Bem," eu disse, seguindo-os, ainda
não entendendo. "Não, quero dizer, é claro que não, eu sei que isso é coisa minha, e tudo. Vocês não tem que me ajudar. Mas se - ei, onde vcs estão indo?"Por que,
ao invés de virar para a refeitório, eles viraram para o estacionamento dos estudantes."Nós estamos indo para o Pizza Hut," Jason disse. "Você é bem-vinda para
vir conosco, se você mudar de idéia."Eu só fiquei lá, encarando-os, sem entender o que estava acontecendo. Jason e eu SEMPRE almoçamos juntos. Quero dizer, exceto
durante aquela briga na quinta série... SEMPRE.E agora ele estava me abandonando? Só por que eu demonstrei um pouco de espírito escolar?"Ei, vocês," eu disse.
Eu acho que uma parte de mim achava que eles poderiam estar brincando, ou algo assim. "Vocês não podem estar falando sério. Quero dizer, fala sério. Nós não podemos
ser mal-humurados descontentes as nossas vidas inteiras. Nós temos que começar a participar das atividades escolares, ou as pessoas nunca vão nos conhecer e ver
o quão fantásticos nós somos. Eles vão ficar só, 'Não seja tão Steph' pelo resto de nossas vidas - Ei vocês? Ei vocês!"Mas era tarde demais. Por que eu estava
falando com um corredor vazio, já que eles tinham ido embora.
É tudo sobre empatia - se indentificar com os sentimentos das outras pessoas e ver as coisas pelo ponto de vista deles.Pessoas populares "se conectam" com os sentimentos
dos outros, fazendo com que eles pensem que são parte do todo. Eles não simplesmente acenam quando os outros contam seus problemas - eles realmente tentam imaginar
como eles mesmos se sentiriam ou reagiriam se estivessem na mesma situação.Sendo mais empático com os sentimentos dos outros, eles se sentirão mais "conectados"
com você, e a sua simpatia - e popularidade - irá crescer astronomicamente!
Capítulo 11 AINDA DIA-DSEGUNDA-FEIRA, AGOSTO 28, 2 DA TARDE,A lanchonete da Bloomville Escola Secundária é um lugar assustador, e não é só por causa da comida.
É muito igual à Rua Principal - o lugar para se ver e para ser visto - se você é um adolescente em Bloomville, Indiana. As mesas de lá são redondas e só ajustam
aproximadamente dez pessoas. Isto significa que se você, como eu, quer sentar em uma mesa cheia de pessoas populares, você tem que achar um espaço apertado deixado
para você por alguma pessoa.Mais importantemente, você tem que achar pessoas que se citam à vontade em DEIXAR você sentar apertada.Quando eu deixei a barra de
salada e estava de pé, enquanto inspecionando a paisagem lá antes de mim, eu vi que - da mesma maneira que eu tinha predito atrás no auditório ao Jason e Becca -
quase todos os assentos bons foram levados. Havia um assento ou dois na "cabeça" da mesa onde Lauren e Mark e a companhia deles, inclusive Alyssa Krueger e o resto
do time de futebol americano, estavam sentando.Enquanto isso, havia BASTANTE lugar vazio na mesa de Gordon Wu. Na realidade, me vendo estando lá de pé, Gordon
na verdade se levantou e acenou para mim, e então moveu a mochila dele para fora da cadeira que estava próxima a ele, como se ele tivesse guardando um lugar para
mim.O que era muito agradável da parte dele, e tudo.Mas se eu sentasse próximo a Gordon Wu, eu ainda seria nenhum adicional longe de lançar o meu ' Não dê uma
de Steph' , que eu tinha sido esta manhã.Que era quando eu notei ainda havia um espaço à mesa de Darlene Staggs, corrija próximo ao Mark e a mesa de Lauren. Normalmente
Darlene teria sentado na mesa deles.Mas desde que ela cultivou o que eu tenho que dizer que provavelmente é a mais impressionante competição de quem tem o maior
peito em Greene County durante parte do inverno do ano passado (algumas pessoas menos generosas, como Jason, dizem que os peitos de Darlene são silicone, mas eu
me recuso a acreditar que qualquer pai - até mesmo o meu - seria irresponsável o bastante para deixar a filha de dezesseis - anos deles arrumar um peito falso. Você
nem mesmo está com mais de dezesseis!), ela tem que se sentar em uma mesa só para ela, para acomodar os acompanhantes já-crescidos de admiradores masculinos dela.Darlene
Staggs é possivelmente a pessoa mais demente que eu já encontrei que não estava de fato em Ed Especial. Uma vez na oitava série, em biologia, ela finalmente entendeu
que o mel vem das abelhas, e assim ela compreendeu que o codimento favorito dela veio de "fora de um bicho", o que fez com que ela fosse enviada ao escritório da
enfermeira para ter uma compressa fresca aplicada à sua testa.Mas enquanto Deus estava dando troco a menos para Darlene no departamento de cérebros, ela foi abençoada
com um mar de beleza. Embora até mesmo antes da visita de Natal milagrosa da 'fada dos seios', você pudesse contar que Darlene era o tipo de menina que, em um par
de anos (depois que ela se tornasse à esposa de troféu de algum banqueiro e tivesse uma criança ou duas), ia experimentar o mesmo tipo de batalha com gravidade que
eu estou enfrentando no momento.Mas agora mesmo, ela é a menina mais bonita em nossa escola inteira e assim é constantemente rodeado por meninos que se reúnem
a ela na esperanças de poder algum dia afundar nela e em suas delicadas fragâncias.A outra coisa sobre Darlene é, quando ela, Lauren, Alyssa Krueger, e Bebe Johnson
estavam na linha de obter maldade de Deus, Darlene deve ter visto uma borboleta e deve ter ido correr atrás dela, ou algo assim, desde que ela não tem um osso bom
no corpo dela.Mas Lauren ainda deixa a Dralene andar com ela e com as outras Ladys Negras do Sith porque Darlene é muito bonita para não se manter por perto, no
caso de uma delas precisar lidar com a ralé. E foi por isso que, com um sorriso de desculpas para Gordon Wu, eu fiz um caminho em linha reta para a acdeira vazia
na mesa de almoço de Darlene, que era apenas alunos emtros de onde Lauren e Mark estavam sentados."Oi, Darlene," eu disse, colocando minha bandeja na frente da
dela. "Se importa se eu sentar aqui?"Todos os oito garotos que estavam na mesa de Darlene tiraram o olhar de seu peito e olharam para mim. Ou para a área logo
acima da linha composta pelos minhas meias 3/4, para ser mais exata."Oh, você é aquela garota da assembléia hoje," Darlene disse, amável. Porque é desse jeito
que ela faz tudo. "Claro, oi."Então eu sentei e comecei a comer meu frango cozido, cuidadodamente retirando a pele para evitar adcionar qualquer quantidade de
gordura insaturada que iria para a minha bunda."Gostei das meias," Todd Rubin disse para mim com um sorriso largo que eu só podia chamar de devasso.Ao invés
de ficar toda, "Nojento, saí daqui, e a propósito, só em seus sonhos" como eu teria feito antes de ler O Livro, eu sorri para Todd e disse com um olhar sonso, "Ora,
obrigada, Todd. Me diz, Todd. Você naõ está na minha classe de Trigonometria avançada?"Todd olhou com nervosismo para a direção de Darlene, como se alguém mencionar
seu poder com a matemática poderia diminuir suas chances de faturar alguém cuja a combinação de GPA era igual a quantidade de capitais que ela podia mencionar de
memória.O que, tendo em vista que eu estive em Civilização Mundial com ela no ano passado, eu sei que são duas."Yeah," Todd disse, com cautela."Talvez você
poderia se inscrever para o leilão de talentos, então," eu disse. "Há provavelmente toneladas de calouras bonitinhas que morreriam para ter você como seu tutor por
um dia. Não acha?" Todd, com outro relance a Darlene que estava o encarando sem expressão como ela lambiscou uma vara de cenoura, olhou menos alarmado, desde o
que eu há pouco tinha feito era lhe ter dado um elogio. Em frente à mulher dos seus sonhos."Bem," Todd disse. "Eu quero dizer, Ok. Eu quero dizer, com certeza.""Excelente,"
eu disse, e chicoteei a prancheta que eu tinha roubado do escritório central enquanto eu ia até o refeitório. "Sinal positivo para você, então. Emocione, nós faremos
uma fortuna , provavelmente, com isto - bastante para a classe sênior ir para a França, a esta taxa. Como você soube sobre os sujeitos? Qualquer pessoa te disse
sobre alguma oferta de meninas para você?"Cinco minutos depois, todos os sujeito à mesa tinham se inscrito, enquanto listando, debaixo do título dos TALENTOS,
habilidades tão variadas quanto: CORTAR GRAMA; GUIA DE TELEVISÃO; DUAS HORAS DE VIAGEM PARA PESCA EM GREENE LAKE; CARREGAR BOLSAS ENQUATO VOCÊ FIZER COMPRAS NO SHOPPING
DE BLOOMVILLE; e MOTORISTA DE CARRO QUASE PROFISSIONAL.Como outras pessoas notaram os sujeitos à mesa de Darlene, que falam tão animadamente, eles pararam para
ver em qual iam, e então se inscreveram. Até que o próximo sino de período tocasse, eu tive quase trinta voluntários - a maioria deles populares - incluindo a própria
Darlene, que mesmo com charminho perguntou, "Mas e vocês, meninos, o que tem a dizer sobre mim? Eu não tenho nenhum talento.""Claro que você tem, Darlene," eu
lhe falei na mesma voz animada que eu tinha estado usando com todos os outros sujeitos. Porque O Livro diz, são as pessoas populares as extrovertidas e de outros
tipos alegres. "Olha como você é bonita. Por que você não se oferece para dar a alguém um makeover?""Ooooh," Darlene disse empolgada. "Gosto de maquiagnes Lancôme...
pode ser no shopping?""Um," eu disse. "Sim." Então, vendo que ela não entendeu claramente, eu somei, "Só que você vai estar DANDO um makeover, não adquirindo um.
Você, provavelmente, teria que usar sua própria maquiagem para ganha isto.""Oh," Darlene disse, enquanto olhava desapontada. Você poderia contar que ela totalmente
tinha pensado que ela estaria usando maquiagem grátis de alguma maneira na coisa inteira.O qual, dado o fato de que Darlene está provavelmente dando cada minuto
livre do seu tempo, é compreensível. "Mas se ninguém me comprar?""Não se preocupe, Dar", Mike Sanders apressou-se para dizer, desde que nenhum humano pudesse estar
lá para ver Darlene olhar triste. "Eu irei oferecer minha mãe para você. Ela precisa totalmente de uma transformação". Darlene brilhou, "Sério, Mike?" ela perguntou.
"Você realmente faria?""Com certeza, Dar," Mike assegurou a ela. E todos os outros garotos da mesa se apressaram para lhe assegurar que as suas mães pareciam cachorros
que precisavam de uma transformação também.Era o que estava acontecendo quando o sinal tocou e todos começaram a se levantar para ir ... incluindo Mark Finley
e Lauren Moffat, que acabou andando atrás de mim quando eu estava anotando rapidamente os nomes de alguns manifestantes de última hora.Mesmo que Lauren tivesse
o braço de Mark envolvido outra vez em torno do seu pescoço, ele não parecia estar dando muita atenção a ela. Ele estava olhando para mim, de fato."Ei," ele disse
sorrindo para mim, assentindo para a minha prancheta. "Conseguiu um monte de nomes aí, huh?"Eu sorri para ele radiante, enquanto ao mesmo tempo evitava encontrar
o olhar zangado de Lauren."Nós conseguimos," eu disse alegremente. "As pessoas parecem realmente interessadas. Oque eu vou fazer a seguir é colocar um anúncio
na Gazeta Bloomville, deixando as pessoas da cidade saber sobre o leilão, então eles podem vir oferecer. Que noite você acha que nós devemos fazer isso? O leilão,
quero dizer?"."Quinta-feira? É tempo suficiente para colocar o anúncio?".Eu disse isso chegando mais perto, mas tendo cuidado."Ei, você quis, uh, dizer isso?
Mark quis saber, seus olhos cor de mel quase verdes nas luzes florescentes. "Aquela coisa que você disse no auditório, sobre as pessoas talvez oferecerem por mim
para fazer propaganda para negócios?""Absolutamente," eu disse. Eu lancei um olhar para Lauren para ver como ela estava tolerando isso, você sabe, sobre as circunstâncias.
As circunstâncias de o seu namorado estar falando comigo. Ela tinha seus olhos meio-tampados como os de um lagarto. Estava claro que ela estava desejando ela mesma
em qualquer lugar exceto lá." Você quer se inscrever?" Eu pedi a Mark, segurando a prancheta". Isso provavelmente irá conseguir muito mais pessoas, se você sabe,
virem o seu nome aqui."" Você acha?" Mark pediu. Mas ele já estava alcançando uma caneta e inscrevendo seu nome".O que eu deveria pôr como talento?" O sorriso
que ele armou para mim foi inclinado para o lado, uma charmosa mistura de incerteza e retração. "Eu não sei se 'modelo comunicativo' é o tom certo."" Eu irei botar
pessoa comunicativa," eu disse, sorrindo de volta para ele. E porque eu não queria ela pensasse que eu estava tentando á ignorar, ou qualquer coisa. Eu disse para
Lauren, "Você gostaria de se inscrever Lauren? Talvez você poderia se oferecer para ser motorista das pessoas em alguma das BMW do seu pai, você sabe, das muitas
que ele tem."O olhar que Lauren me deu foi glacial. "Obrigada," ela disse sarcasticamente. "Mas eu não irei dirigir como uma idiota durante o dia todo em um dos
carros novos do meu pai".E, só para enfatizar como foi pior do que qualquer idéia que ela pensou que fosse, Lauren falou para Alyssa, a qual quase se sufocou com
a sua soda diet, ela riu tanto quando Lauren adicionou, "Deus, ela conseguiria ser mais do que uma Steph?"Mark, no entanto, não pareceu ver nada de engraçado na
situação."Laur" ele disse, olhando para baixo em sua pequena cara de rato, envolvidos por seu braço e seu ombro." É para caridade. Bem, quero dizer, para a viagem
sênior. Porque você está sendo tão má com ela?"Agora Alyssa realmente se engasgou com a sua soda. Ela pulverizou uma boca cheia disso através da (agora quase vazia)
cafeteria.Lauren,para a sua parte, olho para Mark, e apertando sua cara de rato, disse, "Eu estava só brincando."Então ela arrancou a prancheta de mim, inscreveu
seu nome nele, e escreveu, QUALQUER COISA, no TALENTO.O que é provavelmente melhor, porque eu não acho que haveriam muitas pessoas que dariam uma oferta para ver
Lauren BEIJANDO A BUNDA DE MARK FINLEY, sendo que nós podemos ver isso de graça todo o dia.Eu fiz uma nota mentalmente para repetir isso ao Jason mais tarde, porque
eu sabia o quanto ele iria apreciar, de tão engraçado."Feliz?" Lauren perguntou, entregando a prancheta de volta para mim."Ótimo, muito obrigado," eu disse como
se fosse completamente óbvia a sua rudez . "Isso irá realmente fazer a diferença. Espere e veja."E então eu lhe dei um sorriso final e virei a cabeça para a minha
aula seguinte.
Você é uma garota popular? Você pode ser, fazendo oque as garotas populares fazem.Garotas populares:• São respeitosas e educadas como todos.• Se põe no lugar
dos outros e pensa no sentimentos dos outros primeiro.• São generosos com o seu tempo e talentos.• São alegres e gostam de sair.
Capítulo 12 AINDA DIA-D DE AGOSTOSEGUNDA-FEIRA, 4 HORAS DA TARDE.Jason e Becca estavam um pouco quietos comigo no caminho da escola para casa.Eu disse a mim
mesma que foi porque eu estava um pouco atrasada para encontrar eles pelo B. Isso foi porque em todo lugar que eu fui nos corredores, as pessoas estavam me parando
e me perguntando se eles poderiam se inscrever para o leilão de talentos. Eu tinha mais de cem voluntários. Isso é de certa forma mais do que eu havia previsto.
Isso é quase mais do que nós poderíamos razoavelmente por no leilão em uma noite.Jason e Becca não quiseram participar. Mesmo eu mostrando que os dois tinham muitos
talentos."Jason, você poderia dar lições de golfe. As pessoas iriam adorar," eu disse para ele no carro a caminho de casa. "Ou você poderia oferecer excursões
no observatório. E, Becca, você poderia prender seminários confidenciais do livro de recados".Mas Jason recusa qualquer coisa que pode talvez beneficiar Mark Finley.
E Becca só disse, "Oh, não mesmo. Eu não sou boa o bastante para isso. E eu não acho que os meus pais deixariam, você sabe. Ser leiloada.""Você não vai ser leiloada",
eu apontei pra ela. "O seu talento é que vai."Mas ela só balançou sua cabeça um pouco mais.Eu consigo entender Becca, que, quando não está ao nosso redor, é
muito tímida e tudo mais, não esperando fazer parte disso. Mas Jason é totalmente extrovertido... se é que você pode ser extrovertido e anti-social ao mesmo tempo.Eu
não tive chance de realmente incomodar ele no carro, mais felizmente eu recebi uma ligação em casa um pouco mais tarde de Kitty, deixando eu e Catie saber que nossos
vestidos estavam prontos - e os smokings do Pete e do Robbie também - para nosso ajuste final e perguntando se nós queríamos ir lá."Nós vamos ficar bem aqui,"
eu disse, quando peguei Catie - que ainda estava fazendo os deveres de casa, desde que a quarta série é o primeiro ano que eles dão isso no condado dos Greene, e
Catie, estava tão animada sobre isso, que ela não podia esperar (esse tipo de "nerdinismo" é típico de mim e do resto da minha família, então eu não fiquei alarmada)
- e Pete e Robbie, que estavam assistindo MTV2 na sala da família, configurando a senha da mamãe para a parental V-Chips outra vez.Depois, avisamos ao papai aonde
nós íamos e deixando a Sara na frente de Dora a Exploradora (então ele não percebeu que sabíamos sobre a senha), nós todos corremos através do gramado da casa de
Jason, onde a decoradora de casamento estava aguardando.E não me considero uma pessoa super fashion. Quero dizer, tirando as meias de perna alta, que eu troquei
depois de chegar em casa, eu não me visto muito melhor.Mas o vestido feminino de dama-de-honra que Kitty escolheu para nós é mesma alguma coisa especial. Uma manga
de um rosa delicado - mas em um jeito irritante de menina - cetim coberto com uma gaze de seda de um rosa ainda mais leve flutuando ao redor dele, toda coberta com
cristais transparentes de diferentes tamanhos que capturavam a luz e o brilho... mas não em jeito ridículo, de Barbie princesa. Eu poderia totalmente retirar a fixa
rosa e usar o vestido na formatura. Você sabe, no evento improvável onde ninguém vai me convidar para ir.E a melhor parte disso tudo era que meu avô estava pagando
por eles. Porque se tivesse isso deixado para a minha mãe, nós teriam que usar vestidos combinando das prateleiras da Sears ao invés desses lindos vetsidos feito
a mão pela costureira e desenhista da própria Kitty."Olá, crianças," Kitty disse quando nós entramos pela porta de trás da cozinha, que é a única que os Hollenbachs
usam. A casa deles, onde Kitty cresceu, é uma das casas mais velhas do quarteirão, uma grande casa de fazendo no estilo vitoriano (se bem que a parte da fazenda
foi vendida há muito tempo, para construir outras casas, como a minha) com um chique parquete na entrada que os Hollenbachs nunca usam. A casa tem um copa de mordomos
e uma quarto de empregada ( o quarto do sótão para o qual Jason tinha recentemente se mudado), e um botão debaixo da mesa de jantar que você pode apertar para chamar
a empregada para a cozinha, o qual Jason e eu costumávamso apertas tantas vezes quando eu era criança e ia brincar com ele que sua mãe teve que finalmente desconectá-lo."Vocês
gostariam de um pouco de limonada?" Kitty perguntou.O que é uma das razões pelas quais eu gostava tanto de ir para a casa de Jason quando eu era pequena. Por uma
coisa, era a única casa do quarteirão com ar condicionado central, então era sempre legal e gelada. Mas por outra coisa, sua mãe sempre tinha coisas como limonada
e suco de laranja fresco para servir. Na minha casa, a única coisa que see tem para beber, além do leite, é água. Da torneira. Meu pai diz que nós não podemos com
os custos de se ter suco, mesmo em polpa, já que é tão caro (e também, assim que algum acidentalmente aparece em nosso congelador, é imediatamente consumido pelo
Pete), e ele não vai nos deixar ter refrigerante ou Kool-Ais, porque todo esse açúcar não é bom para vocês.Jason pode ter o quanto de açúcar que ele quiser. Como
consequência, ele nunca quer. Nós bebemos quase dois galões de limonada (Pete bebeu particamente um galão sozinho) antes que Kitty pudesse finalmente nos convencer
a subir as escadas e provar as roupas.Mas quando nós fizemos isso, valeu totalmente a pena."Oh," Kitty disse quando Catie e eu saímos do velho quarto de Jason,
que tinha sido transformado em um um improvisado quarto de costura. Com papel de parede de carros de corrida. "Olhe para vocês! Como duas princesas!"Catie olhou
para si mesma em seu vestido feminino , que era exatamente como o meu, só que em miniatura, apenas um pouco menos decotado, e disse "Você realmente acha?" parecendo
extremamente contente consigo mesma."Eu definitivamente acho," a avô de Jason disse. Sra. Lee, a costureira de Kitty, nos estudou, então veio para mim e disse,
agarrando minhas axilas "Precisa ser diminuido um poco aqui.""Sim," Kitty disse, inclinando a cabeça. "Só um pouco."Pete, que estava puxando com desconforto
sua gravata borboleta - tingida do mesmo rosa que nosso vestidos- deixou escapar um ronco. Eu olhei para baixo e vi que a Sra. Lee estava falando sobre a área dos
meus peitos, onde o vestido estava um pouco solto. Isto é porque, quando ela tirou minhas medidas pela primeira vez, eu não estava usando o meu novo e correto sutiã,
então eu tinha estado por todo o lado. Agora estava na proporção correta - mas o vestido não."Cale a boca, Pete," eu disse. "Você vai conseguir terminar a tempo?!
eu perguntou para a Sra. Lee, preocupada."Oh, é claro, " Sra. Lee disse. "Posso fazer isso em um segundo." Para Catie, ela disse. "O seu está perfeito. Você pode
tirá-lo agora." Ela olhou para Pet e Robbie e disse numa voz menos amigável "Vocês também."Os meninos gritaram e começaram a tirar seus cintos e ternos, quase
antes de chegarem ao corredor para o banheiro, onde era a sala de vestir dos meninos para o dia.Mas Catie pareceu tão pronta para tirar aquele vestido como ela
estava para comer um sanduíche de sujeira."Como o SEU vestido irá ser, Mrs Hollenbach?" ela perguntou à avó de Jason."Me chame de Kitty, querida," Kitty disse
com uma risada. Ela pediu a todos nós para chamá-la por seu primeiro nome, especialmente agora que ela vai ser nossa avó. Mas as crianças menores têm esquecido."Não
é tão bonito quanto os seus," Kitty nos assegurou. "Mas eu acredito que Emile vai gostar dele.""Ele vai," Catie garantiu a ela. "Ele está entusiasmado com o seu
tipo""Catie!" eu choraminguei, chocada.Mas Kitty e Mrs. Lee estavam rindo."Bem," Catie disse, me olhando com uma expressão defensiva em seu rosto. "É o que
Jason disse. Eu o OUVI.""Falando em Jason," Kitty disse, "onde está aquele menino? Nós temos que ter certeza que seu smoking serve, também.""Aqui estou eu,
vó." Jason apareceu na entrada, colocando cereal em sua boca de uma bacia de salada. Não uma bacia que você colocaria uma única porção de salada dentro. Mas a própria
bacia de salada de madeira, em que tinha derramado uma caixa inteira de Nut Cheerios e aproximadamente um galão de leite, seu lanche usual após a escola."Oh, Jason,"
Kitty disse com um suspiro quando ela viu isso. "O que sua mãe irá dizer quando seu jantar estiver estragado?""Eu estarei faminto de novo para o jantar," Jason
disse encolhendo os ombros.Kitty, que compartilhou dos olhos azuis brilhantes e do frame delgado de Jason, mas não de sua altura ou longo cabelo preto - o dela
era cortado em um corte em que o comprimento médio tem as pontas enroladas para dentro e franja na testa, tão branco quanto o cabelo de vovô, que é porque fazem
um par tão fofo, apesar do que mamãe deva pensar - agitou sua cabeça."Deve ser bom, certo, Stephanie?" ela disse com uma piscada para mim. "Estar apto a comer
como um cavalo e nunca ganhar uma onça (medida de peso. Uma onça = 28,35 gramas).Eu não disse o que eu queria dizer, que era, "É, mas pelo menos nós não parecemos
com um cavalo," referindo a Jason.Mas eu não achei que sua avó iria apreciar essa pequena ironia. Embora teria servido à Jason por ter sido tão maldoso comigo
na escola todo o dia.Sra. Lee fez Jason ir para o banheiro para trocar seu smoking. Quando ele saiu, seguido de Pete e Robbie, que estavam de volta em suas roupas
normais, ele ainda estava comendo de sua bacia de salada.Mesmo assim, vê-lo num smoking me deu algo como um choque elétrico. Porque ele parecia tão lindo nele.
Como James Bond, ou alguém. Se James Bond já comeu cereal de uma bacia de salada."Cara," Pete estava dizendo, olhando acima de Jason, quem ele adorou por estar
a mais de seis pés de altura e possuindo seu próprio carro, "as 5 novas séries tem uma capacidade de cinco litros, dez cilindros, 383 libras. - ft. maximum torque
- é a BOMBA.""Eu sei," Jason disse, mastigando."Que tal seus pais, Stephanie?" Kitty perguntou, um pouco demasiado casual, com a Sra. Lee espalhafatosa ao redor
com o cinto de Jason. "Alguma chance de que eles estarão aproveitando conosco o Sábado depois de tudo?""Eu não acredito que estarão," eu disse, não encontrando
com o olhar dela. Eu realmente gostava da avó de Jason, e o comportamento de meus pais - principalmente a parte de minha mãe, desde que meu pai estava apenas fazendo
o que ela disse para ele fazer - me envergonhava. O casamento do vovô era mais importante do que qualquer abertura de uma superloja na cidade. Eu não sei porque
minha mãe não podia ver aquilo."Oh, bem," Kitty disse com um suspiro. Seu sorriso, como seus olhos, estavam ainda brilhando. "Nunca se sabe. Ainda há um tempo.
Eu estou guardando lugares para eles na recepcao, apenas para o caso. Jason, querido, você vai cortar seu cabelo antes do casamento, ou vai deixá-lo caindo em seus
olhos como agora?""Eu acredito que devo usá-lo como agora," Jason disse, penteando com os dedos as mechas por cima de seus olhos, fazendo-o parecer com o cachorro
dos Snyders. Pete e Robbie deram uma risadinha prazerosa por isso."Oh, Jason," Kitty disse suspirando. Mas você poderia dizer que ela amou a arrelia de seu neto.Foi
quando eu percebi que Robbie achou o gato de Jason, Mr. Softy, e estava tentando erguê-lo, e que Catie estava tantando tirar o gato dele."Catie, deixe o Mr. Softy
sozinho quando você estiver em seu vestido feminino de flor," eu disse, e Mrs. Lee e Kitty imediatamente entraram em ação, Mrs. Lee agarrando as duas mãos de Catie
e afastando-a do gato preto, conhecido por sua abundante queda de pelo, por ser um Persa, e Kitty distraindo Robbie - e Pete - perguntando se eles gostariam de descer
para sanduíches caseiros de sorvete.Eles o fizeram, deixando Jason e eu sozinhos no corredor, olhando um para o outro no inábil silencio que se seguiu. Depois
que ele sacudiu a parte de trás de seu cabelo, isto é, assim ele poderia olhar de novo. Era especialmente estranho desde que Jason e eu NÃO TEMOS silêncios inábeis.
Ordinariamente, nós temos tanto para nos dizer, é como uma corrida para ver quem pode por tudo para fora antes que o outro interrompa.Agora, entretanto... silêncio.Eu
não pensei que era devido a ele estar gostoso em um smocking, também. Eu não poderia ajudar, mas achava que nosso não ter qualquer coisa a dizer era devido ao Livro.Eu
não sei porque Jason não podia simplesmente estar feliz por mim. Eu quero dizer, que eu finalmente tenho pessoas para pensar sobre mim em algum outro jeito do que
a menina que derramou Big Red Super Big Guld na saia D&G de Lauren Moffat. Não era como se eu fosse esquecer ele e Becca desde que eu fosse popular. Eu planejei
inteiramente levar os dois junto para todas as festas que eu estava limitada a começar a ser convidada.Então com o que ele estava triste?Jason foi quem quebrou
o silêncio."Você viu o que ela fez?" ele requeriu irritadamente."Quem?" eu perguntei, achando que ele se referia a sua avó e imaginando o que ela poderia ter
feito."A sua amiga Becca," ele disse. E levantou o pé para me mostrar as solas dos seus 'tênis de cano-alto', aqueles nos quais Becca tinha desenhado durante a
assembléia."Nos melhores, cara!" Jason resmungou indignado. "Ela desenhou nos melhores!""E daí?" Eu não podia acreditar que isso é o que fez ele tão irritado.
"A sua língua está quebrada? Você podia ter pedido que ele parasse.""Eu não queria ferir os sentimentos dela," Jason disse. "Você sabe como ela é. Toda sensível.""Você
não está," eu disse, com uma mão levantada, "colocando a culpa disso em cima de mim.""Por que não?" Jason reclamou. "Ela é sua amiga!""Ela é sua amiga também,"
eu lembrei a ele. "Ou não foi ela que você levou para almoçar no Pizza Hut hoje?""Oh, como se aquilo não tivesse sido um pesadelo vivo. Eu estou te dizendo, tem
alguma coisa estranha acontecendo com aquela garota," ele disse. "Alguma coisa ainda mais estranha do que-"Ele parou. Eu o encarei."Continue.""Não," ele disse.
"nada. Olhe, eu tenho que...""O que?" Eu exigi. De repente, eu senti calor no meu vestido de dama-de-honra, apesar do ar-condicionado. "Só diga. Alguma coisa ainda
mais estranha do que o que está acontecendo comigo. Era isso que você ía dizer. Certo?""Bem." Jason estava girando a sua gravata, tentando desamarra-lá sem ter
que colocar a tigela de salada no chão. "Você é que está dizendo. Não eu. Mas, agora que você mencionou, é. O que aconteceu com você? O que foi tudo aqilo hoje?
Eu achei que você odiava aquele tipo de coisa.""Aqui," eu disse, sem conseguir aguentar assisti-lo girar a gravata por nem mais um segundo. "Deixe que eu faço
isso." Eu fui até ele e desfiz o laço. "Eu não vejo o que há de errado em dar uma chance a essa coisa de espírito escolar. Quero dizer, nem todos nós somos felizes
por sermos rejeitados sociais.""Eu achei que você amasse ser uma rejeitada social," Jason disse, olhando genuinamente surpreso. Ele ergueu seus dedos como se agitasse
um pacote de açúcar. "'Feliz Natal, Mr. Potter!' Lembra? Nós nos divertimos sendo rejeitados sociais."Eu sei," eu disse o mais gentil que pude. Eu estava tentando
me por no lugar dele, porque eu não queria ferir seus sentimentos. "Eu só.. eu estou cansada de ser a Steph, sabe?""Mas esse é o seu NOME," Jason me lembrou."Eu
sei, mas eu estou cansada daquela garota. Eu quero ser alguém diferente. E não," eu adicionei rapidamente, "Crazytop, chefe da criminalidade, também. Eu quero ser
Steph Landry... mas uma Steph Landry diferente. Uma Steph Landry que é... bem" - eu não podia olhar para ele nos olhos - "popular.""Popular?" Jason repetiu, como
se fosse francês ou algo assim. "POPULAR? Mas antes que ele tivesse a chance de dizer algo mais, Mrs. Lee saiu do quarto de convidados, olhando dolorosamente."Stephanie,"
ela disse. "Você acha que poderia vir aqui e convencer sua irmã de tirar o vestido? Parece que ela quer manter-se com ele até o casamento.""Claro," eu disse. E
eu entreguei a Jason sua gravata. "Falo com você depois, Jase.""Sim," ele disse, pegando-na de mim. Sua expressão, eu vi, era uma mistura de confusão e... bem,
não há outra palavra para isso: dor. "Tanto faz."Exceto que sobre o que ele tinha que sentir dor? Ele não era o que Lauren Moffat e suas odiável gang não permitiram
fazer xixi por dois dias durante o acampamento Girl Scout. Ele não era o que as meninas atacavam uma vez durante dodgeball e golpeavam com aquelas bolas vermelhas
estúpidas. Ninguém em nossa cidade jamais disse, "Não dê uma de Jason," ou, "Você é tão Jason". Ele era? Não. Ele não era. Estava tudo certo e bom para Jason para
dizer aquilo - "POPULAR?" - mas ele não sabia, sabia? Ele não sabia como era. Ele era um esquisito por OPÇÃO. Ele não TINHA que ser esquisito, com aquele corpo e
aqueles pais e aquela casa. Ele podia ser tão popular quanto Mark Finley, se ele quisesse.Ele simplesmente não queria.Algo que eu nunca, jamais, em um milhão
de anos, entenderia.
Garotas Populares...Nunca:• Ostentam sua aparência, talentos ou posses.• Permitem que os meninos sejam "frescos" com elas.• Fofocam ou falam coisas maldosas
sobre os outros• Provocam ou zombam outras garotas.
Capítulo 13 AINDA DIA DSEGUNDA, 28 DE AGOSTO, 19h00minO leilão de talentos estava definitivamente funcionando. E, para começar o ano na escola com a turma em
vantajem financeira, ele estava de pé para quinta-feira. Eu sabia por que recebi um e-mail de Mark Finley me dizendo isso.Sim. Eu, Stephanie Landry, recebi um
e-mail de Mark Finley.Eu não faço idéia de como ele pegou meu endereço de e-mail. Mas eu acho que se você é Mark Finley, zagueiro de Bloomville High, presidente
sênior de classe, e o namorado de Lauren Moffat, você pode ter o endereço de e-mail de qualquer pessoa que quiser. Eu quase morri quando chequei minha conta de
e-mail no computador da família, e lá estava - o nome de Mark Finley - na minha caixa de entrada. Não era exatamente uma carta de amor, ou qualquer coisa. Era
apenas de fatos, como a nota de trabalho para eu saber que ele reservou o ginásio - onde sentam mais pessoas que no auditório - para a proposta de sustentar o leilão
de talentos, às 19h. Quinta-feira à noite. Mas ainda era um e-mail de Mark Finley. Meu primeiro e-mail de uma pessoa popular. De todos os tempos.Mas aparentemente
não destinado a ser meu último, também. Porque o de Mark não era o único email que eu recebi. Um considerável numero de pessoas queriam inscrever seus talentos para
o leilão de talentos. Eu tinha ofertas tão variadas, passando por serviço de babás, indo à removedor de tocos e terminando em ajustes para acordeões em casa.Eu
não fazia idéia que os estudantes de Bloomville High fossem tão talentosos.E então eu percebi alguns e-mails que pareciam... Bem, não bem, certos. Porque seus
assuntos diziam "Vc = merda" e "Eu odeio vc". E mais, todos eles vinham de alguém cujo nome de usuário era SteffDeviaMorrer.Legal. Eles não podiam nem soletrar
meu nome direito. Eu sabia o que isso era. Eu também tinha uma boa idéia de quem eles vinham. Mas isso não fez ficar mais fácil. Não me fez ficar melhor quando
eu cliquei neles. Porque eu tinha que clicar neles, claro, mesmo que para deletá-los.POR QUE VOCE NÃO DESISTE E GRUDA EM SEUS AMIGOS PERDERORES, ESQUISITONA, uma
não-tão-amigável mensagem perguntava, não necessariamente gramaticamente correta.PARE DE CHORAR, NARIZ VERMELHO, ela me avisou, no próximo.E, é, tudo bem. Isso
machucou. Fez meu tórax apertar, aqueles e-mails. Como se eu não pudesse respirar. Quem poderia me odiar tanto para me fazer sentir tão mau? Especialmente quando
eu não havia feito nada para ninguém - bem, exceto espionar meu vizinho e polvilhar açúcar no cabelo de Lauren Moffat.Mas ela não sabia que era eu. E foi ela quem
começou, com a coisa de "Não dê uma de Steph".Eu vi filmes em que meninas recebem e-mails maldosos de seus colegas. Nos filmes, as meninas sempre piram e começam
a chorar, depois imprimem as mensagens e correm para falar para suas mães, que se queixam para o diretor da sua escola, que então faz como sua missão de vida encontrar
quem estava por trás das mensagens.Nos filmes, o diretor sempre encontra e suspende o responsável, que, no final do filme, desculpa-se para a vítima. E então eles
todos ficam amigos depois de perceberem que tudo era apenas um grande engano... Normalmente depois de algum professor bonito roteirista baseia-se em suas intervenções
ensinam a todos eles a se importarem mais com os outros. Eu posso apenas dizer que na vida real, isso nunca acontece? As pessoas que mandam os e-mails maldosos
sempre se livram disso, e as vitimas apenas tem que superar e supor para o resto de suas vidas quem poderia odiá-los tanto - sempre suspeitando, mas nunca tendo
certeza. Sempre querendo saber se eles tiveram feito ou dito algo só um pouco diferente, a pessoa fosse odiá-los menos... Mas nunca sabendo, desde que eles não têm
idéia do que eles fizeram para fazer a pessoa odiá-los em primeiro lugar. Bem, exceto que eles sou eu. Então eles têm uma boa idéia do que eles fizeram. Eles
apenas não sabem por que algo que aconteceu há tanto tempo - e foi um total acidente, aliás - tem que assombrá-los para o resto de suas vidas. Eu não comecei a
chorar. E eu não corri para minha mãe, também. Ao contrário, eu apenas DELETEI. Porque sério. Quem liga? Eu já tive coisas piores ditas na minha cara. Eu não estava
exatamente indo pirar porque alguém que nem tinha coragem de usar seu real nome estava me magoando.Além disso, O Livro inteiramente alertou que qualquer hora que
você tentar fazer uma mudança social, haverão aqueles que se sentirão ameaçados e/ou inseguros, e vão tentar parar você, tanto por intimidação como por ostracismo.Essas
pessoas, O Livro disse, eram para ser ignoradas. Não a nenhum outro jeito de lidar com elas, com seu medo de mudança da ordem social completamente irracional. Então
o que mais eu poderia fazer? Exceto deletar. Deletar. Deletar.Foi então que eu recebi um e-mail da BeccaScrpbooker90: Hey, sou eu. Então, você estava estranha
hoje. Eu acho, legal. Mas estranho. Eu posso pergunta pra você uma coisa, uma idéia? Não tem nada pra faze, você sabe. Na sua coisa do leilão.Minha mãe se recusa
as nos deixar usar contas de mensagens instantâneas, já que ela as considera buracos negros cerebrais que sugam o seu cérebro e deixam você passar horas basicamente
não fazendo nada (ela se sente do mesmo modo em relação a MTV, que é o porquê dela tem uma senha de proteção). Então eu tive que retornar o e-mail da Becca e só
torcer para que ela estivesse on-line e me respondesse logo. StephLandry(Eu sei. Esse é o nome da minha conta de e-mail. Minha mãe fez isso.): Claro, pergunte-me
qualquer coisa.Ela estava on-line. Um minuto depois, eu recebi o seguinte email:Scrpbooker90: Oh, oi. Está bem, eu me sinto realmente estúpida por estar pedindo
isto a você. Mas você pode me fazer um grande favor e descobrir se o Jason gosta de mim?Eu olhei fixamente para a tela. Eu li a mensagem umas dez vezes, e ainda,
não tinha entendido. Ou melhor, eu entendi... Mas eu achei que não podia significar o que eu pensei que significava. StephLandry: Claro que ele gosta de você.
Nós somos todos amigos, certo?Enquanto eu esperava a Becca responder, eu escutei Robbie discutindo com o meu pai, que estava fazendo lasanha pro jantar. Robbie
detesta lasanha - e toda comida vermelha, na verdade - em princípio e queria frango no lugar. Scrpbooker90: Sim, isso é só isso. Quero dizer, descubra se ele gosta
de mim mais do que uma amiga. Eu acho que ele gosta. Hoje, na Pizza Hut - bom, você não estava lá. Mas eu senti um clima. Um CLIMA? Sobre o que ela estava FALANDO?
Que tipo de clima o JASON podia estar passando? Exceto seu usual clima eu-estou-com-fome-e-eu-vou-comer. A menos que ela estivesse confundindo o clima Becca-está-agindo-muito-estra

nha com Becca-é-gostosa.StephLandry: Hum, Bex, você tem que estar enganada. Jason gosta da Kirsten, lembra?Na cozinha, Robbie estava perdendo a batalha da lasanha.
Ele teve que recorrer à sua maneira:"Certo. Então eu terei que comer apenas manteiga de amendoim e geléia." Argumentou.Scrpbooker90: Ele não gosta REALMENTE
da Kirsten. Bem, quero dizer, eu sei que ele gosta. Mas ela está na FACULDADE. Ela não está interessada NELE, de qualquer jeito. Mesmo que agora ele tenha um carro.
Eu penso seriamente que ele gosta de mim. Gosta, COMO gosta de mim. Você viu como ele me deixou tirar seus sapatos durante a convocação de hoje?Ah, meu Deus. Que
confusão.Porque é claro que não tem como Jason "gostar gostar" da Becca. Mesmo se ele não tivesse vindo e reclamado dela pra mim há apenas duas horas atrás, o
fato é... Bem, o tempo todo em que eu conheço o Jason - mesmo quando estivemos afastados na maternidade - ele nunca gostou de alguém que ele tenha chance de conquistar.
Sempre foi Xena, a guerreira, ou a Lara Croft, ou a mãe do Stuckey, Ou a Fergie do Black Eyed Peas. Ele nunca gostou de uma garota de nenhuma das nossas classes...
conforme eu o conheço muito bem, apesar da nossa briga na quinta série.Não, Jason provavelmente não está caído pela Becca. Mas como dizer a ela isso, sem ferir
seus sentimentos?Eu tenteiStephLandry: Becca, você não se lembra o que ele disse na outra noite, sobre como você não quer " cuspir " aonde você come e como namorar
no colegial é estúpido?Becca respondeu quase imediatamenteScrpbooker90: Ele disse encontrar sua alma gêmea no colegial é estúpido. Ele disse que ele era preferia
encontros - ir ao cinema e sair. E é tudo que eu quero. Por enquanto. Até ele, você sabe, perceber que eu sou "AQUELA""Aquela"? Ai meu Deus, isso está pior do
que eu pensei. StephLandry: Becca, não me entenda mal, ou alguma coisa, eu amo o Jason e tudo- como amigo, é claro - mas ele é longe de ser "AQUELE" pra você.
Eu realmente acho que não, quero dizer, Jason não consegue agüentar ficar recortando. Ele não tem um fio de criatividade em seu corpo, você não acha que " AQUELE
" deve, no mínimo - eu não sei - gostar de arte ao invés de golfe? Mas a Becca tinha resposta para isso, também. Scrpbooker90: Ele apenas odeia artes, porque
ele não foi exposto a isso o bastante StephLandry: Sua avó o levou para o Louvre no verão passado! E ele disse que iria detonar se instalassem um buraco-nove de
golfe lá. Scrpbooker90: Então o que você está tentando dizer, Steph? Que você pensa que o Jason não gosta de mim dessa maneira?Sim!! Eu queria escrever, "É EXATAMENTE
O QUE EU PENSO", mas isso seria muita maldade, apesar de verdade. Ao Invés, eu escrevi: Stephlandry: Eu só acho que você deveria se manter aberta para os outros
garotos e 'não colocar todos os seus ovos em uma única cesta'. Eu sabia que a Becca iria apreciar essa analogia, tendo crescido em uma fazenda e tal.Stephlandry:
Eu vou definitivamente perguntar ao Jason por você - você sabe, sutilmente. Mas eu acho que você deve se preparar emocionalmente para o caso do Jason estar guardando
seu coração para a Kirsten. Ou para outra garota que ele conheça no colégioBecca, pensei, perdeu a parte do aviso no meu e-mail e absorveu apenas a parte em que
eu disse que iria perguntar ao Jason se ele gosta dela. Scrpbooker90: Obrigada, Steph! Você é uma boa amiga, só por isso, eu decidi aceitar seu conselho e me permitir
ser leiloada. Eu acredito que você esteja certa e há um monte de pessoas que gostariam de aprender sobre recortes. Então eu leiloarei 3 horas ensinando recortes.
O que você acha disso?Eu acho que ninguém irá dar um lance em Becca, com exceção talvez de sua mãe, mas eu tentei ser entusiasmada igual a ela e agradecê-la. Foi
aí que eu desliguei, já que minha mãe ia vir para casa da loja, brava como costume, pelo baixo movimento que está ocorrendo." Quanto nós ganhamos nesse dia no
ano passado, Stephanie? " ela me perguntou enquanto apertava a sua bolsa e chaves do carro na presilha de dentro da porta do carro." Ai, Mãe" eu disse com um grunhido,
agindo como se eu pensasse que ela estava me 'arrastando'. Mas na verdade, é claro, eu sabia que se eu dissesse a ela, ela ficaria ainda mais chateada. Eu estava
certa. Ela me fez olhar pelo meu arquivo especial no Excel e nós ganhamos seis dólares menos que o ano passado. ""Mas seis dólares não é muito", eu tentei apontar
para ela." Talvez não tenha nada a haver com o Super Sav-Mart, pois poderia ser, você sabe, porque nós não vendemos uma boneca hoje, ou sei lá. ""Deus", minha
mãe disse, me ignorando, "Eu preciso de uma bebida"." Talvez você deva pensar sobre instalar aquele café como eu tenho falado ", Eu aconselhei. "Agora que o Hoosier
Sweet Shoppe fechou" " Fechou!" Minha mãe interrompeu, puxando seu não-tão-secreto armazenamento de 'Tootsie Rolls' do topo da estante de livros ( ela não se importa
se eu sei sobre eles, desde que eu nunca me empanturrei deles, tendo muito medo de mudar de tamanho, diferente dos meus irmãos e irmãs ) e se ajudando com a mão
cheia. "Eles ficaram de fora dos negócios por causa do Super Sav-Mart!" Bem, não exatamente. 'A Hoosier Sweet Shoppe' fechou ano passado, depois do acidente com
o cano de água que estorou no teto, destruindo todo o estoque, mas você não quer argumentar com uma mulher tão hormonal quanto a minha mãe." Não seria difícil
quebrar a parede da loja Hoosier Sweet Shoppe", eu disse, "já que é logo na próxima porta " " E aonde eu deveria arrumar dinheiro para isso, Stephanie?" Minha
mãe quis saber. Depois, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela disse "e NÃO DIGA do seu avô. Eu não me ajoelharei para esse homem, tentando pegar seu dinheiro.
Diferente do resto das pessoas nessa cidade, eu tenho alguma dignidade".Fale sobre sensibilidadeEu queria dizer a ela para não se preocupar - que tudo ficaria
bem. Porque eu tinha um plano que iria trazer toneladas de negócios para a loja. Mas eu não quis azarar, então fiquei com a minha boca fechada e fui fazer o Robbie
um sanduíche de manteiga de amendoim e geléia, então ele calou a boca sobre não estar comendo a lasanha do papai.
Então você acha que conheceu o garoto dos seus sonhos - mas ele não parece saber que você está viva? Sem problemas!!Um jeito infalível de conseguir atenção do
sexo oposto é com o SORRISOOperação Sorriso:O poder do sorriso é incrível e não pode ser ignorado. Um único deslumbrante sorriso na direção do seu paquera pode
fazer mais que qualquer outra coisa para chamar a sua atenção.Então escove suas pérolas brancas e comece a praticar.. aí na próxima vez que você passar por ele
no corredor, mostre sua covinhas!Você pode apostar que ele estará pedindo pelo seu número antes do fim da semana.
Capítulo 14 DIA DOIS DE POPULARIDADE. TERÇA, 29 DE AGOSTO, 13h00min Mark Finley falou comingo no almoço de novo hoje. Eu estava sentada, tentando atrair a
Darlene com alguns assuntos que ela parece saber tudo sobre - Maquiagem e filmes da Brittany Murphy ( eu tinha dito tudo que eu poderia dizer sobre o 8 mile, com
a ajuda de um dos pretendentes sortidos da Darlene, que voluntariamente disse que sua parte favorita foi na fábrica, quando Brittany lambeu sua mão )- quando um
dos caras disse, " Ah, Oi Mark" e eu olhei para o alto e vi Mark Finley apoiado sobre a minha cadeira."Oi", Mark disse e puxou a cadeira da mesa ao lado enquanto
ainda estava perto de mim e sentou de frente pro enconsto."Escute, ótimo folheto", Mark disse para mim Sim, Mark Finley veio na nossa mesa com o propósito de
falar comigo. COMIGO. Eu não posso não ter Jason e Becca sentados comigo no almoço - Jason, ainda excitado com o fato que, agora que ele tem um carro, ele pode sair
do campus para almoçar todo dia e insiste em fazê-lo, assim como a Becca, que devido a sua convicção que o Jason é AQUELE, o fica seguindo. Mesmo sabendo que Jason
convidou o amigo Stuckey para se juntar a eles e a Becca não o suporta, dando o seu costume de ficar incansavelmente relatando os momentos importantes dos jogos
de basquete colegial de Indiana.Claramente, eles não querem comer comigo. O que é só porque, a vinda para a escola essa manhã foi tortuosa. Se não fosse ruim o
suficiente, Jason se sentiu compelido a comentar sobre todos os artigos que eu estava usando e eu estava toda - "O que há de errado com essa saia? Porque é tão apertada?
Como você supõe que teremos que correr se o Gordon Wu explodir sua química no laboratório de novo e pegar fogo e todos nós teremos que evacuar?" - Há o fato de Becca
aparentemente não fala mais na companhia do Jason, contando que ela está muito tímida, desde que ele é AQUELE, então eu tenho que fazer toda a conversação.Eu posso
começar a pegar o ônibusMas Mark Finley não parece se importar em comer comigo. Não mesmo. "Ah", eu disse ficando imediamente vermelha. Porque, você sabe, mesmo
sabendo que ele me mandou um e-mail ontem à noite e tudo, falar com o Mark Finley em pessoa... Bem é totalmente diferente, porque seus olhos, estão mais verdes que
o normal, por alguma razão. "Bem, não foi nada", eu disseDefinitivamente, é claro que não, não tinha sido nada. O folheto - anunciando o leilão de Quinta à noite
- levou metade da noite para ser feito. Eu tinha que deixar minha lição de casa, mas valeu a pena, já que no final, acabou com um visual-semi profissional, o que
foi bom, já que eu tive que comprar um anúncio no jornal local, para fazer propaganda do evento e precisava de algo especial, que fosse chamativo.Eu poderia, eu
suponho, ter pedido a ajuda da minha mãe nisso, já que anúncios e arrumação de vitrines é a melhor coisa que ela faz - a única coisa, na verdade, a única coisa em
que ela é boa, considerando como ela está gerenciando a loja. Ela é ótima em imaginar o que vai vender como bolinhos na nossa cidade - biografam e bonecas Madame
Alexander - e o que não vai - tell-alls e Sanrio] - tão bem quanto em fazer vendas.Mas ela é péssima em cuidar dos livros e pagar salários... O que faz com que
seja bom ela me ter por perto, agora que ela deu o pontapé no vovô. Ainda assim, eu não estava super entusiasmada em deixar a minha mãe saber o que eu estava aprontando
ainda... Não que ela já não esteja suspeitando, especialmente hoje de manhã quando eu desci usando uma das minhas sais lápis [são aquelas justinhas] e ela ficou
toda, "E você está indo... aonde? Para a escola? Vestida assim?"Eu pude perceber que eu tinha vivido de jeans e camisetas por muito tempo."O anúncio deve ser
publicado amanhã," eu disse para Mark. "Eu enviei por faz logo cedo hoje de manhã. Esperamos ter muitas pessoas dando lances.""Oh, nós teremos," Mark disse com
aquele meio sorriso que fez o meu coração perder o compasso. Então eu olhei por cima do ombro dele e vi que Lauren estava fingindo estar profundamente envolvida
em uma animada discussão sobre a sua novela favorita, Paixões, com Alyssa Krueger.Mas o olhar dela continuava vindo nervosa mente na minha direção. E na de Mark."Vai
ser incrível," Mark disse. "As pessoas estão animadas. A cidade inteira está falando sobre isso.""Ótimo," eu disse. E mostrei a ele o meu mais deslumbrante sorriso.Infelizmente
, ele não pareceu ter notado - talvez porque no mesmo momento, Toddy disse, "Hei Mark, você vai ao 'racha na pedreira' na sexta, ou não?" "é claro que eu vou ",
Mark disse com seu sorriso forçado que é marca registrada " Nunca perdi um racha Todd Rubin´s volta às aulas antes, não é? ""Sexta?" Darlene olhou por cima da
detalha inspeção nas cutículas. "Era para chover na sexta"Nós olhos para Darlene, porque é tão diferente dela estar familiarizada com as notícias.O tempo, entretanto,
parece ser diferente das notícias, desde que a Darlene explicou, notando nossas caras de espanto, " Eu sempre checo o tempo de cinco dias, porque eu planejo minha
programação de bronzeamento no lago, no fim de semana".E é claro que explicou tudo"Não pode ter racha na chuva, cara", Jeremy Stuhl disse franzindo as sobrancelhasO
Todd pareceu preocupado "Eu irei descobrir um jeito", ele disse, não muito confidencialmenteQue foi quando Lauren apareceu de repente ao lado do Mark."Oh, Mark"
ela disse. "Você está com as chaves do seu carro com você? Eu acho que eu dexei meu Cd da Carrie Underwood dentro e a Alyssa quer emprestado" Aí, fingindo me notar
pela primeira vez, ela disse, " Ah, Oi Steph""Oi Lauren" eu disse e esperei os insultos começarem. O que seria dessa vez? "Lindo colar, não é de ouro de verdade,
certo? Deus, você é tão Steph",ou,"Eu a vi comendo a salada do chef, tá com medo que seus botões voem pela cantina? Dêem distância para puxar a Steph" Ela não
disse nada disso, ao invés ela disse, colocando suas duas mãos no bíceps do Mark, "Meu pai está realmente ansioso para o leilão. Adivinha quem ele irá comprar?"Mark
olhou prazerosamente desnorteado "Quem?""Você, bobo" Lauren disse, colocando sua cabeça para trás e rindo infectuosamente, ou pelo menos eu suponho que ela pensava
que era.Mark franzio as sombrancelhas e disse: "Mas eu posso trabalhar para o seu pai de graça, bebe""Não diga isso a ele" Lauren disse "Deus, ele teria você
no lote todo dia, você tem idéia de quando trabalho você traria, querido? Quero dizer, o zagueiro? especialmente se vocês ganharem o Estadual esse ano"As chances
do "Peixe lutador" ganhar o estadual são extremamente baixas e todos sabíamos - até, eu suspeito, o Mark. Mas todos fomos obrigados a dizer " Claro, totalmente"
como se realmente acreditássemos que iria acontecer."Ai meu deus, bebe" Mark disse "Será muito legal se o seu pai me comprar"Lauren sorriuEu não consegui deixar
de sentir um pouco de pena dela, porque não tem jeito na terra verde de Deus que o pai da Lauren compre o Mark Finley na quinta à noite. Não se eu e a carteira da
Emile Kazoulis não tivermos nada a dizer sobre isso.
Os olhos têm: Você pode não saber, mas seus olhos são as mais poderosas ferramentas para se cultivar a popularidadePessoas que fazem contato visual são consideradas
lideres naturaisEntão, na próximas vez que alguém olhar em seu olho, não seja tímido - olhe de voltaE cuide da maquiagem dos olhos para que sejam a sua características
mais notável (mas não maquie demais!) e cative as pessoas ao redor com suas hiponitizadoras "meninas dos olhos"
Capítulo 15 Ainda Dia Dois de PopularidadeTerça, 29 de agosto, 16:00.Eu acho que morri e fui para o céu.Isso não pareceu assim no inicio, é claro. Quando eu
fui para o estacionamento dos estudantes depois da escola e procurei por Jason, eu vi que o carro dele não estava lá. Depois eu notei Becca parada perto das bicicletas,
parecendo mais infeliz do que quando ela descobriu que Craig em Degrassi era bipolar."Onde está o Hawkface?" Eu perguntei pra ela.E as torneiras foram abertas."Ele
disse que tinha que enviar algumas importantes para a avó dele, para o casamento." Ela desmoronou, as lagrimas tremendo em suas pestanas. "E que ele sentia muito,
mas ele não tinha tempo para nos levar para casa primeiro e que nos só teríamos que pegar o ônibus! O ONIBUS! Como ele pode fazer isso conosco, Steph? Quero dizer,
o ONIBUS!"Eu achava que ela estava sendo um pouco dramática demais, mas eu entendia o que ela queria dizer. Uma vez que nos estávamos indo e vindo para a escola
de BMW, voltar de ônibus iria ser difícil.Mesmo se você esta começando a ficar um pouco cansada de Bee Gees."Não se preocupe com isso" Eu disse, batendo confortavelmente
nas costas delas. "As coisas estão loucas agora com o casamento, e tudo, e -""Eu acho que ele estava mentindo", Becca interrompeu, secando suas lagrimas com as
costas de uma mão. "Quero dizer, ele levou o Stuckey com ele. STUCKEY! Você sabe o que o Stuckey falou durante todo o lanche hoje? Vitória da Indiana no NCAA Final
Four de 1987. Ele nem estava VIVO em 1987. Mas ele sabia cada detalhe idiota. E não parou de falar sobre isso. E Jason o levou para enviar erratas em vez da gente.
Eu acho que ele só não quer andar com a gente, porque eu fico tão quieta perto dele, devido ao meu grande amor por ele, e você está tão - " Ela parou e mordeu os
seus lábios."Eu estou tão o que?" Eu perguntei. Mesmo já sabendo o que ela iria dizer."Você está agindo tão estranho!" Becca gritou. Quase como se fosse um alivio
finalmente dizer. "quero dizer, comendo com Darlene Staggs? Ela é uma vaca!""Hey, agora." Eu disse gentilmente. "A Darlene não é uma vaca. Só porque ela tem peitos
grandes - ""Eles são peitos-comprado!" Becca me lembrou."Eles podem ser," Eu disse. "Mas isso não é razão para julgar as pessoas. Darlene é muito legal. Você
saberia disso, se você tivesse sentado comigo."As pessoas não querem falar comigo," Becca disse, olhando para seus tênis. "Quero dizer, para eles eu ainda sou
aquela garota tonta da fazenda que costumava dormir durante toda a aula.""Bom, talvez dependa de você mostrar para eles que você não é mais aquela garota" eu sugeri.
"Agora, vem, vamos para nos podermos pegar o ônibus antes que ele - ".Então eu soltei uma "exclamação" sobre a qual eu teria que falar ao Padre Chuck na confissão
da próxima semana."Que?" Becca perguntou. "O que foi?"Eu estava olhando para o meu relógio. "Nós perdemos o ônibus" Eu disse firmemente.Becca repetiu a minha
"exclamação". "Agora o que nos vamos fazer?" Ela lamentou."Sem problema," eu disse. Estava quente no estacionamento. Eu estava começando a suar. Logo, eu sabia,
meu cabelo iria começar a frizar. "Eu só vou ligar pro meu pai. Ele virá nos pegar.""Ah, Deus," Becca gemeu. Pelo que eu entedia e era insultada. Não tem anda
pior do que ser pega no colégio por seu pai em uma minivan.Foi aí que um milagre ocorreu."Oh, ei, Steph," uma familiar - mas ainda uma emocionante voz - falou
das portas do colégio.Eu sabia quem era antes mesmo de eu me virar, por causa daqueles pontinhos de prazer que tinham surgido em meus braços."Oi, Mark" Eu disse
o mais normalmente que eu podia, conforme eu ia virando...E então eu vi, com uma ponta de desapontamento, que Lauren e Alyssa estavam com ele.Oh bem. O que eu
esperava? Ele é o garoto mais popular da escola. Eu realmente pensava que ele ia a algum lugar sozinho?Esta tudo bem ainda, até quando as coisas começaram a aparentar..."Qual
é o problema?" Mark perguntou, notando os dentes da Becca (era difícil de não se notar, mesmo com ela tentando esfregá-los). "Perderam a carona?""Mais ou menos
isso," eu disse com um sorriso que só o Mark retornou. Laren e Alyssa só olharam fixamente para mim cruelmente.Mas estava tudo bem. Graças ao Livro, eu sabia que
o mais apropriado modo de ação nessas circunstâncias era sorrir radiantemente para eles."Ah, que droga," Mark disse. Eu não conseguia ver seus olhos cor de mel,
porque eles estavam escondidas atrás da lentes do seu Ray-Ban. "Eu iria lhe oferecer uam carona, mas eu tenho que ficar aqui depois do colégio. Eu só estava acompanhando
a Lauren até o carro.""Ah, não se preocupe com a gente," eu disse alegremente. "Eu irei conseguir uma carona de alguma maneira.""Ah, sim, eu sei," Mark disse.E
eu sabia - eu sabia, talvez porque Mark fosse o AQUELE - o que ele ia dizer."Porque você não dá a elas uma carona, amor?" Mark pediu a Lauren.Mark deve ser AQUELE
dela também, já que ela parecia saber o que ele iria dizer e já tinha a resposta pronta. Ou pelo menos, pareceu isso, considerando quão rápido ela falou, "Oh, eu
gostaria de poder. Mas elas vivem na cidade, a você sabe que, é tão longe do meu caminho."E isso é realmente verdade. Lauren e a sua família vivem em uma das novas
mansões fora do Y, á três milhas de direção das casas antigas, que fica á alguns blocos da prefeitura, aonde eu e Becca moramos."Sim, mais você não vão parar no
centro de Benetton para pegar algo para vestir na 'racha na pedreira' de sexta-feira? Mark perguntou. "Eu pensei ter ouvido você dizerem algo assim".Lauren foi
apanhada, e ela sabia disso. Mark deixou claro como ele estava agradecido por minha brilhante idéia do leilão de talentos. Ela não ousou recusar na frente dele.
Não tinha nada que ela pudesse fazer a não ser sorrir firmimente e dizer, "Ah, é mesmo. Tinha me esquecido. Você querem uma carona?"Ao meu lado eu ouvi Becca engolir.
Mas eu disse, ainda soando alegremente (ou foi assim que eu esperava), "Ah, claro, Lauren. Isso seria ótimo.""Ótimo" Mark disse.E então, como super namorado
que ele é, ele nos acompanhou até o conversível vermelho da Lauren, que brilha no sol."Até mais tarde, querida" Mark disse, dando a Lauren um beijo de despedida,
depois de segurar o banco da frente para eu e a Becca passarmos para trás (Becca estava tão perplexa com o que estava acontecendo que ela nem se lembrou de usar
a sua voz para argumentar sobre como ela tinha que se sentar na frente devido a tendência que ela tinha a enjoar no carro), então ajudou a Lauren atrás da roda,
tão carinhosamente como se ela tivesse sido feita na China."Tenha um bom treino" Lauren disse, e bateu suas unhas francesinhas nele.E então ela dirigiu pra fora
do terreno.E desse jeito, Becca e eu? Nós estávamos sentadas no banco traseiro da MBW de Lauren Moffat.Uma parte de mim esperava que assim que nós virássemos
a esquina, aonde Mark não poderia mais ver a gente, Lauren ia empurrar a gente pra fora no meio da rua, com um escândalo publico, e obrigar a gente a SAIR com a
voz de um potergeist de Horror em Amityville.Mas ela não fez. Em vez disso, ela começou uma conversinha.LAUREN MOFFAT ESTAVA BATENDO UM PAPO COMIGO."Então,"
ela disse, "você meninas não vão geralmente com aquele cara? Aquele cara o Jason? O que aconteceu com ele?".Eu amo como Lauren estava se referindo a Jason "aquele
cara o Jason". Como se ela não tivesse sentado perto dele durante toda 2ª serie e atuado como Branca de Neve para o Príncipe Encantado dele durante peça da escola
(Eu fui escalada como Bruxa má, e sim, eu chorei quando peguei esse papel e não o de Branca de Neve, até vovô me dizer que sem a Bruxa Má, não teria história, e
essa era realmente a parte importante de tudo)"Ele teve que ir fazer um serviço na rua" Eu disse."Para a sua avó" Becca acrescentou. "A avó dele vai estar casando
com o avô de Steph esse fim de semana"Uou. Falando sobre o casamento. Eu enviei a Becca um olhar que legal isso. Mas ela estava muito longe. Ela estava falando
como Bloomville Creek."Steph é a dama de honra." Ela continuou. "E Jason é o padrinho""Isso não é incesto?" Lauren perguntou, olhando de relance para Alyssa
com um olhar divertido. Alyssa que estava tomando o que deveria ser sua sexta coca light do dia, reprimiu uma risada o quanto ela podia."Porque seria incesto?"
Becca perguntou."Bem, como, não estão Steph e aquele cara o Jason saindo?" Lauren quis saber."O que?!" Becca olhou como se tivesse levado um tapa na cara. "Não,
ele não estão saindo""Sério?" Lauren olhou pra mim pelo seu espelho retrovisor. "Eu sempre pensei que vocês dois estavam saindo. Quero dizer, você dois vem praticamente
andando juntos desdes, o que? Jardim de infância?"Eu olhei rapidamente para o reflexo dela no espelho. "Jason e eu somos amigos" Eu disso."Só amigos" Becca disse
"Eles são só amigos, Jason é solteiro""Oh" Lauren sei, mandando outro sorrisinho na direção de Alyssa. "Isso é um alívio""Sério?" Alyssa disse, colocando de
lado sua latinha de refrigerante vazia. "Quero dizer, isso me diz que ele ainda está disponível"Então as duas começaram com um riso semi-histerico.Eu olhei para
a parte de trás das cabeças delas. Jason deve ser tipo um esquisito. Mas ele é MEU esquisito. Como elas podiam rir dele?Eu não estava feliz com Becca também, como
ela não podia aprender a ser legal uma única vez?Lauren fingiu que não se lembrava onde eu morava, mesmo depois d'eu ter dito que ela já foi lá. Ela agiu como
se ela não tivesse nenhuma lembrança do mingau de aveia OU o acidente da Barbie marinheira naval.Não tem nada n'O Livro em dizendo pra ter amnésia seletiva em
afim de se tornar popular, mas é obviamente uma parte crucial do processo. Você tem que esquecer todas as coisas ruins que pessoas fizeram a você a fim de tornar
seu futuro mais agradável. Talvez quando tudo isso terminar, e eu for popular, eu irei escrever meu próprio livro.Ah, espera. Eu já SOU popular. Lauren Moffat
tinha me dado uma carona da escola.E ela não foi má comigo.Jason ia pirar e nunca mas iria recusar a dar caronas pra mim quando soubesse que isso foi a melhor
coisa que aconteceu comigo.
Planetas giram em torno do sol - pessoas giram em torno de pessoas iluminadas.Quem não ama estar perto de pessoas realmente alegres, pessoa alegre? Ninguém!É
por isso que é importante, se você quer ser popular, agir com entusiasmo e sinceridade em todas as situações!Não deixe tempestades transparecerem em sua vida!
Mantenha o céu limpo e o seu rosto feliz, e ai todos estarão girando em volta de seu brilho!
Capítulo 16 AINDA DIA DOIS DE POPULARIDADETERÇA, 29 DE AGOSTO, 23h00min.Nem todo mundo acha que Jason ignorar a gente é uma boa coisa.Scrpbooker90: Você conversou
com ele? Ele disse alguma coisa? Sobre mim, quero dizer.StephLandry: Como eu posso ter conversado com ele? Você sabe que eu não vejo ele desde a escola, que nem
você.Exceto que isso era mentira, eu tinha acabado de ver ele se despindo mais cedo à uma meia hora.Mas desde que isso não era algo que eu ia mencionar para
Padre Chuck, pra quem eu diria tudo (quase tudo), eu certamente não ia mencionar para Becca.Scrpbooker90: Bem, o que você acha que vai acontecer amanhã? Sabe,
a gente vai ter que pegar o ônibus?StephLandry: Eu acho que nós teremos que nos preparar psicologicamente para a possibilidade.Scrpbooker90: Eu NÃO quero fazer
isso. Eu NÃO vou fazer isso. Eu to perguntando pro meu pai se ele pode levar a gente. DEUS, porque Jason está fazendo isso com a gente? Você acha que talvez foi
porque ele percebeu os seus sentimentos por mim, e então não pode mais ficar por perto, achando que ele nunca poderá me ter, não sabendo que eu sinto o mesmo por
ele?Eu podia dizer que Becca estava lendo alguns dos romances de Kitty, que eu peguei emprestado dela. Eu espero que ela não tenha chegado à parte do Turco ainda.
Porque eu sabia que ela ia perguntar aos seus pais o que aquilo significava, e de alguma maneira, e então eu estaria em problemas.StephLandry: Hum, talvez.Scrpbooker90:
Bem, você vai PERGUNTAR a ele? - Ou você acha que ele vai vir me DIZER? Talvez eu devesse perguntar ao Stuckey para ele perguntar pra mim. Você acha que eu devo
perguntar Stuckey?StephLandry: Totalmente, você deveria totalmente perguntat ao Stuckey. Qualquer coisa pra tirar isso das minhas costas.Scrpbooker90: Eu vou
fazer isso. Eu vou perguntar ao Stuckey. Ele está nas minhas aulas de química. Eu vou perguntar pra ele amanhã. Ah, obrigado Steph. Você é a melhor!Mas Becca era
atualmente uma das poucas pessoas que pensavam isso de mim - que eu era a melhor, eu quero dizer, porque eu ainda estou recebendo e-mails de SteffTemQueMorrer.Legal.
Realmente Legal.Eu juro, se eu não tivesse a janela de Jason pra olhar toda a noite. Eu acho que eu teria ficado completamente louca no exato momento.E eu sei
que é errado ficar espiando ele desse jeito. EU SEIMas a vista dele - especialmente em sua cueca calção - me deixa com uma sensação interna calma desigual que eu
nunca sentia antes.Na verdade, é tipo a sensação que eu tive aquela noite que eu tive que usar as cuecas de Batman dele.Eu me perguntei o que aquilo significava,
se significasse algo?
Capítulo 17 DIA TRÊS DE POPULARIEDADEQUARTA, 30 DE AGOSTO, 9h30min.Na verdade Jason parou em frente a minha casa enquanto eu estava lá essa manhã, esperando
Mr. Taylor vir com Becca me pegar e levar-nos para escola.A janela do banco do carona se abaixou, e eu pude ouvir a os vocais de Roberta Flack."Belas calças"
Jason disse, aparentemente se referindo a minhas calças jeans de lavagem escura, na qual, eu não devia dizer isso de mim mesma, eu fico muito bonita."Obrigado"
eu disse."Bem" ele disse com um misto de impaciência um minuto depois. "você não vai entrar, ou o que? Onde está Bex?""O pai dela vai levar a gente pra escola
essa manhã" Eu disse "nós imaginamos depois de ontem, que você não estava mais interessado no cargo.""Que cargo?""De nosso chofer"Jason tirou alguns fios de
cabelo da sua face. Kitty estava certa. Ele PRECISA cortar o cabelo antes do casamento"Eu disse pra Becca" Ele disse com o que pareceu uma compostura forçada,
"que eu tinha algumas coisas pra fazer na rua. Isso não significa que eu nunca mais quero dar uma carona pra vocês, pra sempre. Eu só não podia fazer isso ontem
naquela tarde"."Aham" Eu disse, desconhecida, não convencida da resposta, e soou assim."Eu tive que pegar os cartões de lugar na gráfica de caligrafias e leva-los
para Vovó." Jason começou "Para as mesas na recepção"."Com certeza você o fez" Eu disse."E depois eu tive que ir pegar algumas coisas na impressora da outra
gráfica. E eu quero dizer, não é como se vocês não pudessem pegar o ônibus. Ele deixa você em frente de casa, praticamente.""É claro que ele nos deixa." Eu disse
"Quero dizer, se você tivesse dito a gente com antecipação, então nós teríamos esperado em frente à escola para pega-lo".Jason olhou para mim "Você perdeu o ônibus?"."Sim."
Eu disse "Mas tudo bem, nós conseguimos uma carona no carro de Lauren Moffat.".Jason empalideceu "Não no 645Ci""Esse mesmo"Jason deu um tapa com seu punho
em seu volante."O que está acontecendo?" ele praticamente gritou. Isso não foi muito legal, porque nós não vivemos numa rua barulhenta. Quero dizer, tem um monte
de idosos ricos na minha rua - mesmo que minha família não seja o que você pode deixar de idosos solitários. Eu pude ver um pedaço da cortina de babados da casa
da Sra. Hoadley se afastar um pouco e seus olhos tentando ver o que estava acontecendo em frente a casa dela (isso não estava sendo fácil pra ela, viver próximo
na mesma rua de uma família de sete pessoas... quase se tornando oito. De fato, no Hallowen, minha mãe manda a gente jogar fora qualquer coisa que ela dá pra gente,
achando que está provavelmente envenenado. Mas mesmo assim, pra uma pessoa rica, Sra. Hoadley é uma total pão-dura e só nos dá UMA bala, nós nunca reclamamos)"O
que aconteceu com você?" Jaoson gritou. "Por que você está agindo estranha?""Eu poderia te perguntar exatamente a mesma coisa" eu disse, calmamente."Eu não estou
agindo estranho" Jason gritou. "Você está. E Becca - ela não deveria ficar me seguindo por ai! É como ter um filhote maluco me seguindo por ai a porra do tempo todo!
E você - desde quando você pega carona com LAUREN MOFFAT?!"Nesse momento eu vi o cadillac dos Taylors estacionando bem ao lado d'O B. Por sorte todas as janelas
estavam fechadas, então dificilmente Becca tinha ouvido o que Jason tinha acabado de dizer sobre ela. Através da janela, eu vi o Sr. Taylor, olhando confuso e sonolento,
para o carro de Jason, parado no meio da rua, então apertou gentilmente a buzina."Essa é minha carona" eu disse para Jason "eu tenho que ir"Então eu me levei
a sentar no refrigerado banco traseiro do carro dos Taylors. Alguém lá dentro estava falando sobre não matar docemente uma canção, o que foi um alivio. Mr. Taylor
só ouve rádio de noticias."O que Jason estava fazendo aqui?" Becca perguntou toda entusiasmada. "Ele veio pra buscar a gente? A gente deveria ir com ele? Oh, gee,
desculpa, pai, mas -"."Espera" eu disse, assim que Becca colocou suas mãos na maçaneta do carro. "Não vá, só -""Mas se ele quer levar a gente, nós deveríamos
ir com ele -".Felizmente naquela hora Jason apertou o acelerador (no mesmo tempo da batida da sua musica favorita) e caiu fora."Ah" Becca disse, ainda com a
sua mão na maçaneta. "Ele se foi""Acredite em mim" Eu disse "Foi melhor desse jeito""Eu não entendo o que está acontecendo com vocês, meninas" Sr. Taylor disse
com sua voz calma e sonolenta "Mas eu posso levá-las pra escola pra que eu possa voltar pra casa e dormir?""Sim Sr." Eu disse "desculpe-me sobre isso, Jason só
está em uma fase ruim""Ele disse alguma coisa sobre mim?" Becca perguntou esperançosa."Hum" Eu disse. "Na verdade não."Becca escorregou para seu assento "Droga"Mas
eu sabia que a verdade teria desapontado ela ainda mais.
Reputação Reconstruida.Se você uma vez cometeu um erro social grave (ou um simples rumor de algo que você não fez), sem pânico. Sua reputação pode ser reparada.
Até mesmo a mais suja jóia pode ser polida e voltar a brilhar.A fim de fazer os outros esquecerem do seu passado sujo, é importante que você fique muito mais disposto
a ajudar e entusiasmado do que o normal. Saia do seu jeito para os outros algumas vezes. O que for que você tenha feito (ou o que o rumor tenha feito) isso ofende
o seu circulo social, é importante pedir desculpas.Acreditando ou não, pessoas IRÃO te perdoar e esquecer isso.Mas seja mais cuidadosa no futuro.
Capítulo 18 AINDA DIA TRÊS DE POPULARIDADEQUARTA-FEIRA, AGOSTO 30, 1 DA TARDE,Eu só consegui almoçar a tarde, já que eu estive correndo, recrutando a ajuda de
professores para o leilão de amanhã à noite - Sr. Schneck, o diretor de drama, concordou, de qualquer maneira, como leiloeiro que deveria emprestar a nota certa
de diversão do campy aos procedimentos... Na minha opinião, entretanto, provavelmente não a dele - assim eu tive uma surpresa agradável quando sentei em minha cadeira
na mesa de Darlene e vi que Becca estava sentada lá, enquanto parecia distintamente miserável.Ela se iluminou, entretanto, quando me viu."Oh, oi," ela disse.
"Eu posso sentar aqui? Eu quero dizer, tudo bem? Eu perguntei para estes sujeitos -" ela acenou com a cabeça para Darlene que estava comendo uma banana com êxtase
da companhia dela - "e eles disseram que era, mas -""Claro que pode!," eu disse, enquanto me sentava com minha bandeja de salada de atum. "Mas o que aconteceu
a respeito de almoçar fora com Jason?""Oh," Becca disse, enquanto cutucava o hambúrguer dela (Becca sempre esteve de regime) com o garfo dela e não olhando no
meu olho. "Eu falei com Stuckey."Eu sentia uma varredura de raiva assassina em cima de mim. Se Stuckey tivesse dito qualquer coisa que feriu os sentimentos dela
- o qual eu totalmente poderia o ver fazendo isso, desde que ele não sabe nada sobre qualquer coisa que não tenha a ver com basquetebol -ele era um homem morto."O
que ele disse?" eu perguntei, enquanto tentava soar tranqüila."Só que se eu quisesse que o Jason gostasse de mim, eu deveria ser menos disponível." Becca tomou
tristemente um gole da Coca-cola Diet dela. "Stuckey disse que o Jason é o tipo de cara que gosta de meninas que jogam duro."Todd Rubin bufou, embora nenhum de
nós estivesse falando com ele. "Não eu." ele disse. "Eu gosto de mulheres que conhecem o lugar delas." Ele indicou o lugar onde estava o toldo da pélvis dele, para
a diversão dos amigos dele."Oh, sério?" Darlene tinha terminado a banana dela, e agora ela se estirou, enquanto trazia todos os olhares da mesa para o busto dela.
"E que lugar seria esse, Todd?""Um," Todd disse, a boca dele estava ligeiramente entreaberta. "Qualquer lugar que você queira. Nada."Darlene apanhou a Coca-cola
Diet dela levantou e mexeu, enquanto indicava que estava vazio."Oh não. Todd! Você pode ser uma doçura e pode ir me trazer outra?"Todd tropeçou praticamente
em cima dos próprios pés dele na pressa dele para pegar outro refrigerante. Darlene olhou para Becca e para mim com um sorriso instruído. Era difícil de não rachar
em cima.E de repente eu percebi que Darlene não é tão boba quanto ela finge ser."Eu acho que Stuckey provavelmente falou a verdade," eu disse, enquanto me virava
para Becca."Eu sei," Becca disse com um suspiro. "Ele realmente era muito útil. Stuckey, eu quero dizer. Ele disse que ele não pensa que é sério entre o Jason
e Kirsten."Era minha própria hora para bufar. "Claro que não é sério," eu disse. "Porque não há nada ainda de fato entre eles. Exceto talvez na cabeça de Jason.
E até mesmo se havia, Kirsten não encorajou ele. Você alguma vez olhou os cotovelos dela?""Os cotovelos dela?" Becca ecoou."Sim. Eles são todos escamosos.""Eu
odeio isso," Darlene disse. "Isso é por que eu esfrego pura manteiga de cacau em meus cotovelos todas as noites." Ela retirou a manga dela para mostrar para nós.
Darlene realmente tem os cotovelos mais agradáveis que eu alguma vez tenha visto, um sentimento com que todo cara à mesa, inclusive Todd que devolveu com o refrigerante
de Darlene, teve.Eu vou ter que me lembrar daquele truque da manteiga de cacau."Bem, Stuckey disse que ele não pensa nem sequer que o Jason gosta de Kirsten
- você sabe, daquele modo," Becca foi. "Ele diz que ele pensa que o Jason finge gostar de Kirsten, assim as pessoas não desconfiaram de quem ele realmente gosta."Isto
estava me intrigando. Eu não tinha nenhuma idéia de que Stuckey era um observador agudo membro da raça humana."Bem?" eu disse. "Quem disse que Stuckey sabe de
quem o Jason realmente gosta?"Becca encolheu os ombros. "Isso é que é. Stuckey não sabe. Ele nunca diz se o Jason fala sobre aquele tipo de coisa - as meninas
- com ele. Mas eu não pude parar de pensar...bem, você pensa em quem é a menina de que Jason realmente gosta, se é, possivelmente, bem...eu?""Eu não sei," eu respondi
fianlmente. Porque eu realmente não sabia. Eu tive cuidado para não dizer, "Mas eu duvido disto, que seja você." Ao invés, eu perguntei, " O que mais disse Stuckey?"
Porque a idéia de Stuckey ter uma conversa com qualquer que não é envolvida com a Faculdade de Indiana de basquetebol estava me impressionando."Oh, vejamos." Becca
pensou durante um minuto, então disse. "Ele perguntou se eu queria ir em uma excursão para o Indiana Campus Universitário para o deixar saber, e ele me levaria de
carro ( dirigiria ) para lá e me mostraria o Corredor de Assembléia que é onde o Hoosiers jogam basquetebol."Isso pareceu mais o Stuckey que eu conhecia.O Mark
e Lauren escolheram aquele momento para fazer o que me parecia estar sendo desenvolvida uma espécie de visita diária a nossa mesa."Tudo certo para amanhã de noite,
Steph?" Mark perguntou enquanto Lauren colocou o seu braço envolta da cintura dele e por sorte teve ela em cima dele como se fosse um ponche. Como o usual, Alyssa
Krueger estava atrás deles... Como se fosse o Tinkerbell para Lauren Paris (Tinkerbell é o cachorrinho da Paris Hilton pra quem não sabe)"Parece estar tudo bem",
eu disse, abrindo a minha agenda ofical do leilão de talentos da Bloomville High."A propaganda deve estar no jornal de hoje. Nós tivemos mais de cem pessoas inscritas.
Dependendo de quantas pessoas aparecerem, nós poderemos ganhar mais do que qualquer lavação de carro jamais ganhou.""Ei," Mark disse, seus olhos mel brilhando.
"Isso é ótimo! Bom trabalho.""Obrigada," eu disse. Eu estava incapacitada, é claro, de não ficar vermelha. Algumas coisas você não consegue controlar.Como o
que aconteceu a seguir. Que quando Mark, Lauren, e Alyssa passaram, uma nota firmimente dobrada caiu, aparentemente do ar, e que causou o meu constrangimento.Ninguém
além de mim percebeu. Bem, ninguém além de mim e Becca, que olhou para mim curiosa depois de ter pegado a nota. Tinha as palavras PARA STEFF escritas fora em letras
de forma, indicando que era para mim ... ou ao menos para alguém chamada Steph, mas alguém que se fala com dois FF em vez de P-H. Eu comecei a me encolher.Eu só
precisei ver as primeiras poucas letras - VOCÊ VACA ESTÚPIDA, PORQUE VOCÊ NÃO TEM UMA VIDA - mas antes de eu ver o que era.E de quem isso veio.O vermelhinho
que estava nas minhas bochechas quando Mark me elogiou se tornou um monte de chamas.Meu rosto pareceu como se estivesse pegando fogo.Mas isso não me fez parar
de empurrar minha cadeira para trás e seguir Mark e Lauren, com o bilhete nas minhas mãos."Ei, vocês," eu disse, alcançando o casal - com a Alyssa - quando estavam
saindo da cafeteria, no pátio. "Um de vocês deixou cair isso. Diz que é pra alguém com o nome de Steff, mas não é assim que se escreve o meu nome, então deve ser
para outra pessoa."E eu dei o bilhete para o Mark.Alyssa imediatamente disse, "O que é isso? Eu não deixei isso cair. Eu nunca vi isso antes. E você, Lauren?"Mas
Lauren há pouco estava lá, enquanto me encarava.E eu a fitei. 'Nem pense em fazer isso comigo Lauren', eu tentei fazer meu olhar fixo dizer. Porque eu tenho O
Livro agora. E esses meios são BAIXOS que nem você, Lauren Moffat.A face de Mark, quando ele leu a nota - quem sabe o que dizia depois da primeira linha? Eu não
tinha nenhuma idéia, e eu não me preocupei de fato - mudou. Eu vi a mandíbula dele fixada, e as bochechas dele lentamente ficando com a mesma cor que a minha. Só
que nele era bonito.Ele olhou diretamente para Lauren. E ela virou para enfrentar Alyssa imediatamente."Deus, Al," ela disse. "Você poderia ser mais imatura?"A
mandíbula de Alyssa caiu. Eu podia ver, de fato, um pedaço de goma de mascar mastigada na boca dela."Lauren," ela chorou. "Era seu - como pôde -""Como pôde?"
Lauren arrancou o papel dos dedos de Mark e começou a rasgá-lo. "Por que você escreveria algo assim para a pobre Steph? Ela só está tentando arrecadar dinheiro
para a classe de Mark. O que há de errado com você?"Mark, enquanto encarava Alyssa com olhos estreitados, lentamente tremeu a cabeça dele."Isso é baixo, Alyssa,"
ele disse na voz funda dele. "Realmente baixo.""Mas eu não fiz isto!" Alyssa insistiu. "Bem, eu quero dizer, eu fiz, mas era -""Eu não quero ouvir mais nada,"
o Mark interrompeu, em um tom que deixava claro por que ele foi votado no último ano pela maioria dos jogadores e foi escolhido como quarterback deste ano. Ele não
toleraria nenhum desrespeito no time dele. "Eu gostaria que você fosse embora agora."Alyssa tinha começado a chorar."Partir... da es-escola?" ela perguntou."Não."
o Mark olhou sem paciência. "Não da escola. Da minha frente. Chega, fora daqui."Alyssa, com um finalmente, olhar penetrante na direção de Lauren, colocou uma mão
sobre a sua cara quando você esconde o rosto pra chorar, sabe? e correu, na direção do vestuário das meninas. Mark olhou sem interesse para a imagem de Alyssa, e
então olhou para Lauren."Porque ela faria algo como isso?" Ele perguntou para ela, parecendo realmente envergonhado com a situação."Eu não sei" Lauren disse,
dando os ombros inocentemente. "Talvez seja ciúmes? Você sabe, porque eu dei uma carona pra Steph noite passada? Talvez ela esteja preocupada com eu e Steph estarmos
nos tornando amigas e ela pode ser jogada de lado. Você sabe o quão insegura ela é."Meu queixo caiu. Eu nunca tinha ouvido tamanha mentira em toda a minha vida.Você
tem que saber isso sobre Lauren: Tanto faz o que você dizer sobre ela, ela é uma grande manipuladora."Eu acho melhor eu ir lá ver se ela está bem. Eu não quero
que ela faça algum dano em si mesma."Algum dano em si mesma?"Certo, certo" Mark disse, concordando com a cabeça. "Vai lá" E então, quando Lauren foi - com um
olhar Eu vou pegar você por causa disso na minha direção - ele pos a mão pra fora do bolso e gentilmente me tocou.No meu braço. Mark Finley. Me tocou."Hey" Ele
perguntou docemente "Você ta bem?".Eu não podia acreditar que Mark Finley tinha me tocado. E perguntando se eu estava bem."Eu to bem" Eu disse, balançando a
cabeça. De algum jeito, eu tive que descobrir como fazer para a minha boca voltar a se mexer de novo. "Não se preocupe comigo""Eu não posso acreditar que ela fez
isso" Mark disse. "Eu realmente peço desculpas. Eu espero que você não vá levar isso pro lado pessoal, ou algo assim."Levar aquilo pro lado pessoal? Eu vinha ouvindo
Alyssa Krueger - junto com a maioria da população de meninas abaixo de dezoito do Condado Greene - dizendo para as pessoas Não serem tão Steph Landry por cinco anos.
E aqui estava o cara mais popular da escola - um cara que nunca tiraram sarro na escola ou no dia-a-dia durante toda a vida dela - me dizendo para não levar aquilo
pro lado pessoal. Yeah, sem problemas, Mark. Tanto faz o que você dizer."Eu não vou" Eu disse, dando a ele um sorriso meio trêmulo... trêmulo porque eu estava
realmente com medo, no momento, de que eu poderia começar a chorar."Ótimo" Mark disse .E colocou um dedo na minha bochecha. Só um dedo.Mas isso foi tudo que
precisou. Tudo que precisou para eu saber com 100% de certeza de que ele era o Meu Aquele.Mesmo que ele ainda não soubesse.
Melhores AmigosMelhores amigos são ótimos. Mas se você for popular, você não pode se limitar - ou limitar seu tempo - a só uma pessoa.É importante ter tempo
para novos amigos - mas não se esqueça dos antigos!
Capítulo 19 AINDA DIA TRÊS DE POPULARIDADEQUARTA, 30 DE AGOSTO, 15h00min.A Gazeta de Bloomivelle é um jornal vespertino, então eu pude checar para ver como o
anuncio tinha ficado assim que eu chegasse a Courthouse Square Books, onde eu trabalho no turno de 15h às 21h toda quarta-feira.Antes de eu virar a sessão aonde
eu tinha posto o anúncio (perto das tirinhas e da coluna de Ann Landers - eu sei que todo mundo na cidade lê esse primeiro), eu percebi uma noticia com uma foto
do observatório na primeira pagina, com a manchete, CIDADÃO LOCAL DOA OBSERVATÓRIO - E O DEDICA A SUA FUTURA ESPOSA. Com uma foto de vovô dentro do observatório
seus braços abertos apontando para a cúpula, sorrindo.Eu liguei pra ele do telefone perto da maquina registradora mais próxima."Bela história" eu disse quando
ele atendeu."Kitty," Vovô disse, soando orgulhoso "está muito contente""Ela tinha que estar" eu disse "não são muitos caras que constroem algo em sua honra""Bem"
Vovô disse "Kitty merece isso.""Mas é claro que merece" Eu disse. E eu realmente acredito nisso."Não tenho falado com você a uns dias" Vovô disse "Como está
indo a história da popularidade?"Eu lembrei do jeito que Mark tinha posto o seu dedo na minha bochecha. Ele só ficou lá por um momento. Mas tinhas sido como o
momento mais longo da minha vida inteira."Excelente" eu disse."Sério?" Foi minha imaginação, ou vovô tinha soado supresso? "Muito bom, então. As coisas vão bem
para nós dois ao mesmo tempo, pelo menos. E como ta a sua mãe?"Eu tinha acabado de ver mamãe saindo apressada da loja, indo pra casa a pé. Ela já estava quase
no nono mês e seus tornozelos pareciam com as pernas de Lauren em suas meias 3/4 brancas."Ela ta bem" Eu disse "Mas nenhuma mudança, você sabe, sobre o casamento".Vovô
suspirou. "Não posso dizer que eu realmente esperava uma. Ela é a uma mulher teimosa, sua mãe. Mas como você, de um jeito.""Eu?" eu não podia acreditar naquilo
"Eu não sou teimosa".Vovô deu um longo assovio."Eu não sou" insisti.E foi quando o sino a porta da loja tocou, e Darren, meu colega de trabalho na tarde entrou
com dois Delicias D-Litgh do Pingüim para nós dois."Não ta quente o bastante lá fora?" Darren quis saber, segurando o meu sem-gordura, sem-calorias e muito sem-gosto
sorvete. "Pode se disser que é um verão de Indiana, ou o que?""Obrigado" eu disse "Eu só vou terminar essa ligação"Darren balançou o dedo pra mim para mostrar
que tinha entendido, e foi para as prateleiras de jóias para organizar os brincos, a seção favorita dele."Hum, vovô," eu disse. "Ei, me escute... Eu provavelmente
vou precisar emprestado um pouco mais de dinheiro. Como parte do plano. Mas isso é para ajudar a loja. Não minha vida social." Bem, não totalmente, pelo menos."Eu
vejo," vovô disse. "Bem, eu terei que dar uma olhada nesses interesses...""É compreensível," eu disse. Eu não fiquei insultada que o meu único avô tivesse interresse
nos meus empréstimos. Eu faria a mesma coisa se alguém pegasse dinheiro emprestado de mim. Pessoas na TV, como Judge Judy e minha ídola, Suze Orman, sempre dizem
que as pessoas da família não devem emprestar dinheiro para as outras pessoas família. Isso pode funcionar, se você for negociante sobre isso."Vovô", eu disse.
"Lembra quando você me contou que sempre gostou de Kitty, mesmo quando estavam no colégio? Mas ela gostava de outra pessoa?""Ronald Hollenbach," Vovô disse como
se o nome soasse estranho em sua boca."Certo, o avô de Jason. Bem, eu só estava pensando, como você... finalmente fez ela e afastar dele?Do Sr. Hollenbach eu digo.""Isso
foi fácil" vovô falou. "Ele resmungou"."Ah". Isso não foi de muita ajuda como eu esperaria ser, eu estava procurando por algum conselho sobre como eu poderia roubar
o Mark Finley da Lauren. Na qual eu não considero, na verdade, uma coisa errada de se fazer, porque a Lauren é muito maldosa e Mark é um garoto mais legal da cidade
e ele merece alguém melhor que ela. Mesmo, vc sabe, ele não sabendo disso."Receber todo o dinheiro das pessoas boas que compram no Super Sav-Mart não doeu muito
também" Vovô disse. "Kitty aprecia um bom filé no jantar do Clube Country desde antes e agora"."Certo", eu disse. Filé, checado."Mas, eu tenho certeza que você
jogou um charme para cima dela, certo? Como você fez isso?""Eu não posso te dizer", o vovô disse. "Sua mãe me mataria""Vovô, ela já quer te matar, quantos problemas
mais você pode ter com ela?""Verdade", ele disse. " Bem, o fato é, Steph, nós, os Kazoulises, nós somos apaixonados e nós sabemos como agradar uma mulher"Eu
engasguei com a boca cheia de 'Tast D-Lite'"Obrigado,Vovô" Eu disse assim que as palavras saíram. " Eu acho que eu peguei""Kitty é uma mulher com necessidades,
você sabe Stephanie e - ""Ah, eu sei isso, tudo bem," eu disse rapidamente. Quero dizer, eu podia muito bem imaginar o quão facilmente a cópia da Kitty de Mentiras
de Amor caiu aberta na cena do estilo-turco. Ela obviamente leu muito aquela parte. "Obrigada, vovô. Foi um conselho muito útil.""Eu sei que você é meio Laundry",
vovô disse. "Mas é também 50% Kazoulis. Então você não deve ter problemas na - ""Ah, olhe á, um cliente chegando," eu menti. "Tenho que ir, vovê, falo com você
mais tarde. Tchau."Eu fiquei olhando fixamente para o telefone depois de desligá-lo. Estava claro que, quando vovô me dava dicas financeira era bom, mais em matéria
do coração ... bem, eu estava sozinha. Eu teria que achar uma maneira de como ganhar o Mark da Lauren sem ajuda."Ah meu deus," Dauren disse, se apressando ao caixa
com o seu sorvete. "Você sabe oque Shelley no pingüim me disse? Que o ensino médio faria um leilão de escravos amanhã a noite.""Não é um leilão de escravos," eu
disse, mostrando a ele a propaganda do jornal. "É um leilão de talentos. As pessoas voluntariam seus talentos para a comunidade ofereça sobre ele. Não aquilo que
você está pensando.""Oh", Darren disse, parecendo um pouco desapontado. "Como você sabe tanto sobre isso?""Porque," eu disse. Eu tentei não parecer orgulhosa,
desde que ser orgulhosa é parecer arrogante, segundo o livro, e arrogância não é um tratamento de uma garota popular. "eu fui quem deu a idéia. E estava funcionando.Darren
pareceu chocado. "Você? Mas você é -"Ele parou si mesmo."Está tudo bem," eu disse. "Pode dizer isso.""Ah que bom," Darren disse. "É só que - querida, você
é tão Steph Laundry!""Mas eu não serei por muito tempo," eu estava aberta para contar isso a ele, com a maior confidência.
Quer uma maneira garantida de ganhar os corações e as mentes das pessoas?Seja criativa!Converse!E siga completamente!Não sente e deixe os outros decidirem
por você. Apareça com idéias/opiniões próprias... Depois deixe os outros animados sobre eles mesmos e então animados por você!Entusiasmo vence.E vencedores são
populares!
Capítulo 20 DIA QUATRO DE POPULARIDADEQUINTA, AGOSTO 31, 6 P.MEu estava enlouquecendo o dia todo para ficar pronta para o leilão adquirindo: inscrevendo pessoas
de última hora, então pegando os nomes/talentos deles para Mr. Schneck assim ele poderia praticar o seu discurso... Pegando os caras do clube de áudio-visual para
instalar o sistema de som no ginásio, dessa maneira qualquer pessoa poderia ouvir o leiloeiro... Pegando as pás de comando (leque-mãos eu arranjei no Dia do Necrotério
para contribuir. Mas eu tenho certeza que as pessoas não tem idéia. Eu penso, sobre se lembrar da existência de pessoas mortas no leilão.)Eram coisas tão malucas,
eu não arranjei almoço OU jantar. Eu nem mesmo fui pra casa depois da escola! Obrigada Deus, Becca ficou junto ao redor para ajudar... E, surpreendentemente, Darlene.
Dobrar Darlene é natural pegando pessoas para fazer parte mais importante. Se eu não a tivesse por perto toda a tarde, eu não sabia o que eu gostaria de ter feito.
Ela só tinha que abaixar os cílios dela e falar, "Ei, vocês, movam o pódio adiante" e pessoas - bem, okay, caras - praticamente inclinados sobre eles mesmos para
fazer isso por ela.Ela realmente não é tão burra como parece. Quando a Tv a cabo local apareceu, porque eles queriam filmar o leilão e mostrar para o público nesse
fim de semana, e eles não tinham os fios certos, Darlene ela pediu para Todd, "Todd, corre para o escritório e peça a Swampy se você pode pegar emprestado o cabo
coaxial da sala dos professores."E os caras da AV, todos olharam com imensa adoração, "Como você sabe que é chamado de cabo coaxial?"E Darlene percebeu que acidentalmente
deu seu show de inteligência, e ficou como, "Ah, eu disse isso? Eu não sei sobre oque estou falando."Mas depois, quando os garotos não estavam por perto, e eu
pedi a ela, "Como você sabia que tipo de cabo eles precisavam?" Darlene disse, "Bem, cara. Todo mundo sabe isso."O que fez Becca perguntar, "Você REALMENTE não
sabia que o mel vem das abelhas aquela vez na oitava série?"E Darlene riu e disse, "Bem, não. Mas a aula estava tão chata. Eu só queria levantar um pouco o astral.""Mas
agir como uma burra não faz as pessoas te olharam como inferior?" Becca quis saber. "Ah, não", Darlene disse. "Porque isso faz as pessoas fazerem mais coisas pra
mim, e assim eu tenho mais tempo para ver tv."O que realmente faz sentido. Sorte dela.Darlene e Becca não eram as únicas ajudando. Mark e o resto do seu time
veio depois do treino para ajudar a levantar o banner do PRIMEIRO LEILÃO DE TALENTOS ANUAL DE BLOOMVILLE HIGH que eu passei todo o meu período do lanche pintando,
com a ajuda de algumas garotas legais e - apesar de ela ter se oferecido - Lauren.Lauren apareceu depois da escola também, como Bebe Jonhson. Sua sombra usual,
Alyssa Krueger, tinha estado notavelmente ausente do lado da Lauren desde o incidente STEFF. Eu captei uma breve sombra dela na cafeteria quando eu parei para apanhar
um refrigerante antes de ir pintar o minha faixa, aparentemente esperando que ninguém fosse notá-la comprando um sanduíche e escapando para o mastro da bandeira
para comer sozinha, já que ela não é mais bem-vinda na mesa do Mark.Eu provavelmente deveria me sentir triunfante, vendo uma das lendária As Garotas da Bloomville
High fazendo a Caminhada da Vergonha através da cafeteria.Mas o fato é que, a visão me deixou um pouco triste. Eu não tenho nada contra Alussa Krueger. Muito.
Quero dizer, ela é um canhão de maldade, e tudo isso.Mas era a Lauren que eu queria ver caindo.E IRIA ver caindo. Hoje à noite. Se havia alguma justiça no mundo.Enquanto
nós estávamos pintando a faixa, uma das formandas acidentalmente fez um movimento brusco e derrubou tinta no chão do ginásio, e Lauren começou a rir."Deus, Cheryl,"
ela disse. "Bom jeito de dar uma de St-"Nós todos sabíamos o que ela iria dizer. Mas ela parou a si mesma no ultimo minuto.Eu olhei pra ela e levantei uma sobrancelha
(um truque que eu gastei varias horas em frente ao espelho - para a diversão do Jason - ensinando a mim mesma na quarta serie, depois de conhecer Nancy Drew, que
estava sempre por ai, levantando uma sobrancelha para as pessoas).Cheryl, que não notou a minha sobrancelha, disse, "Eu sei, eu sei. Bom jeito de bancar uma Steph
Landry. Alguém tem papel-toalha?"Quando ninguém disse nada, Cheryl olhou para cima e viu todo mundo - incluindo eu - encarando-a."O quê?" ela disse, genuinamente
sem saber."Eu sou Steph Landry," eu disse, tentando não demonstrar a minha raiva. Porque raiva não é uma emoção desejável de mostrar se você quer ser popular.Cheryl,
uma bonita ruiva membro do time de dança, os Fishnets (por Fighting Fich - Peixe Lutador), disse, "Certo. Engraçado. Sério, alguém tem papel toalha?""Eu estou
falando sério," eu disse.Cheryl, percebendo que eu estava dizendo a verdade, começou a ficar tão vermelha quanto a tinta que ela tinha derramado."Mas você é
- quero dizer, você é - e Steph é... ela é -" ela gaguejou. "Eu sei que seu nome é Steph, mas eu não achei que você fosse AQUELA Steph. Quero dizer, aquela Steph...
ela não, tipo, atirou em alguém?""Não," eu disse."Não, mas sério. Ela afundou um carro no Lago Greene ou alguma coisa. Eu sei.""Não," eu disse. "E eu deveria
saber. Porque eu sou Steph Landry. E eu não fiz nada dessas coisas. Tudo o que eu fiz foi derramar Big Red Super Big Gulp em uma pessoa uma vez."E eu lancei a
Lauren o que eu esperava ser um olhar malvado."Só isso?" Cheryl franziu seu pequeno nariz Fishnet. "Deus. Eu amo Big Red Super Big Gulps. Esse é, tipo, o melhor
sabor.""Certo," outra formanda disse. "Mas mancha loucamente. Eu derramei um no carpete branco da minha mãe, eu ainda ouço sobre isso algumas vezes quando ela
está brava comigo.""Totalmente," Cheryl disse. "Qual é, mas, sério, caras. Eu tenho que limpar esta tinta antes que seque. Ninguém tem um solvente ou alguma coisa
assim?"E foi isso. Lauren , com o rosto vermelho, voltou a pintar. E ninguém mais disse nada sobre isso.Depois de hoje a noite? Ninguém diria mais.
Tenha uma vida - uma vida extracurricular, é isso!Escola é importante, é verdade, como são as notas e estudar.Mas ninguém gosta de um sabe-tudo ou chato!Então
faça uma pausa entre livros de vez em quando e cultive interesses fora da escola.Não importa nem um pouco se o seu hobby é costurar, jardinar, cozinhar, colecionar
selos, ou andar a cavalo. Um interesse torna VOCÊ interessante aos outros... e podem te ajudar a cultivar talentos que você nem sabia que tinha!Então saia de casa
e se envolva!
Capítulo 21
Ainda o dia 4 de popularidade5º feira, 31 de agosto, 20:00 hsTá começandoE eu não acredito que eu vou me vangloriar, ao dizer que tá indo tudo BEM!E, tudo
bem, nós não temos as 7 mil pessoas que costumam ir aos jogos de basquete, mas nós temos umas 3 mil, eu acho. e isso é muito mais do que a gente iria conseguir com
o lava-carros.E as pessoas tão gastando dinheiro. Gordon Wu e as suas três horas de aulas de computação foram vendidos por 35 dólares. O cara com o amolador de
tocos? 58 dólares. Uma menina que diz que ensina a qualquer um a fazer um morango perfeito e uma torta de ruibarbo? 22 dólares.Mas o mais bem-vendido talento da
noite até agora tinha sido as aulas de maquiagem de Darlene. Todd e seus amigos davam lances um contra o outro- ostensivamente para suas mães - Toss ganhou - por
incríveis 67 dólares.Eu realmente espero que a sua mãe valorize isso!E, até agora, a única coisa com a qual eu estava preocupada - que alguém fosse chamado ao
palco e ninguém desse um lance por seu talento- não aconteceu. Até Courtney Pierce, a bajuladora da sala, conseguiu dinheiro com as suas aulas de espanhol.Então
eu não estava muito preocupada quando o sr. Schneck chamou o nome da proxima pessoa cujo talento iria ser leiloado, e era Becca Taylor. Eu quero dizer, recortes
e colagens é um hobbie popular na na cidade. Tem até uma loja dedicada a isso- Fazendo Recorte - no shopping. Becca não é popular ou qualquer coisa, as pessoas ainda
lembram dos dias que ela dormia nas aulas.Mas alguém iria comprar o seu talento!"E aqui nós temos a aluna do 1 ano, Becca Taylor" Sr. Schneck começou o seu discurso
de leiloeiro. Ele até usou gravata borboleta e suspensórios para o leilão. Ninguém podia acusar o sr. Schneck de não ser dedicado a sua profissao. "Becca está oferecendo
3 horas de aulas pra algum inciante em recorte e colagem aqui. Algum de vocês está interessado em recorte e colagem mas precisa de um empurrãozinho? Bom, Becca Taylor
é a sua garota então.""Ela vai até a sua casa e faz toda a arte com suas próprias tesouras, adesivos e pedaços de jornal e também dá idéias de layout e preenche
a sua página com figuras pra você fazer o seu próprio albúm. Vamos começar o leilão desse talento com um lance de 10 dólares."Eu olhei do meu lugar para a arquibancada
do fundo.A arquibancada do fundo - que é a mais perto do chão do ginásio - são é a que os populares sentam, porque eles são os que são chamados pra receber prêmios,
dançar ou qualquer outra coisa.E hoje eu estava sentada com eles! Não só com eles... Eu estava sentado realmente perto de Mark Finley!E, tudo bem, Lauren Moffat
estava do seu outro lado.Mas ele escolheu sentar ao meu lado - ele vinha caminhado pelo ginásio, me viu na primeira fileira, onde eu estava ocupanda destribuindo
os leques-da-mão do dia do necrotério, e sentou do meu lado.E todo o resto dos populares - com a exceção de Alyssia Krueger, que tinha sido relegada aos assentos
dos perdedores onde eu e Jason costumávamos sentar, nas poucas vezes que nós éramos forçados a comparecer a um evento no ginásio - sentaram com eles.E eu era um
deles. Eu era uma Ppopular, uma das bonitas, das pessoas Populares. Eu tinha conseguido.E todo mundo sabia disso. Eu podia sentir seus olhares em mim - Courtney
Pierce e Tiffany Cushing e todas as garotas que, eram no máximo um POUCO populares, ainda dizia a cada oportunidade "não dê uma de Steph Landry" pra eu ouvir. Elas
estavam com ciúmes. Mas elas não deveriam estar, eu lutei pra chegar à minha posição na primeira fileira. Eu tinha quebrado a minha cabeça.Quase literalmente.O
ginásio tava lotado de rostos familiares, nem todos pertencentes a estudantes da Bloomville High School.Eu podia ver os pais de Becca olhando na sua direção afetuosamente.
Eles estavam empolgados com a perspectiva da sua filha finalmente participar com alguma atividade da escola.Eles tinha me perguntado na porta, quando eles tavam
entrando, se os meus pais viriam, porque aí poderia sentar todo mundo junto.Eles ficaram um pouco desapontados quando eu disse que os meus pais estavam muito cansados
- mamãe com os cuidados com o bebê e papai com as outras crianças - para vir.Na verdade, eu não mencionei sobre o fato que eles nem mesmo sabem sobre isso. Bem,
eles sabiam - a cidade inteira sabia -, mas eles não sabiam que era eu quem tava organizando.E lá estava o dr. Greer, sentando com a sua esposa e um homem que
parecia o prefeito - o PREFEITO apareceu... Sozinho, já que ele e sua esposa estão no meio de um divórcio sórdido do qual nós temos notícias na Gazeta. Swampy Wampler
estava sentada com eles, parecendo reconhecível com um jeans e um suéter de algodão, o oposto dos seus rotineiros cinza ou preto terninhos. Ela permanceu olhando
para o prefeito Waicukowski e sacudindo seu cabelo marrom-cor-de-rato. Estava óbvio que ela estava flertando com ele.E também tava óbvio que ele não tava nem aí.E
no último minuto - antes do sr. Schnek começar o ritual da palma de peixe - eu vi a ultima pessoa que eu esperava ver num evento da escola no ginásio, passando pela
porta: Jason.Ele tava com seu amigo Stuckey - um tipo pesado que tradicionalmente veste camisas, da universidade de Indiana, apenas execessivamentes grandes e
calças-capri. Os dois subiram a arquibancada descoberta - não exatamente os assentos dos perdedores, mas perto - e se sentaram olhando ao redor. Eu senti o olhar
de Jason pousar sobre mim. Eu levantei a mão pra acenar pra ele. Depois de tudo, ele é quem aparentemente tem um problema comigo, eu não tenho nenhum problema com
ele. Bem, tirando o fato que ele ainda me chama de Crazytop. Jason não acenou de volta, e eu sei que ele me viu.Odeio dizer isso, mas azar o dele. Quer dizer,
ele que tá me ignorando. O que foi que eu fiz pra ele?Tirando pegar uma carona no 645Ci de Lauren.O que eu realmente não posso chamar de um cortesia de BMW's.
Ele tá me desprezando porque eu estive em outro 645Ci, eu acho.Mas tudo bem. Se ele quer ficar chateado comigo por causa disso, ele pode ficar. O que eu posso
fazer?É só que... Bem, vai ser um pouco estranho quando ele tiver que me acompanhar ao casamento de Vovô e a gente não estiver se falando.Mas, fazer o que?Eu
olhei pra Becca, que estava no palco, parecendo bonita na sua capri cáqui e com uma blusa floral rosa. Ela tá no time de Stuckey, na verdade. Ela só veste roupas
que realmente ficam bem nelas. Ela tava segurando um de seus álbuns de recortes e sorrindo para a multidão na arquibancada.A não ser... A não ser que tinha algo
errado com o jeito que Becca tava sorrindo. Seus lábios estavam curvados, e tal. Mas o sorriso não parecia se estender até os seus olhos azuis. Ele tava parado nas
suas bochechas.Foi quando eu notei que as pontas dos seus lábios tremiam.E que o sr. Schneck, o leiloeiro, tava dizendo "vamo lá, pessoal. Este é um serviço
que você não pode encontrar em qualquer lugar. Eu sei o quanto recorte e colagem é popular nessa comunidade, porque tem noites que eu não posso entrar no Sizzler
porque o clube de recorte e colagem tá se encontrando lá, e todas as mesas estão cheias. Entao eu vou ouvir 10 dólares pra os serviços desta garotinha? Alguém?"Foi
então que eu percebi, como um relâmpago:Ninguém tava dando lance em Becca.Era como um pesadelo virando realidade. Becca estava em pé lá, tentando sorrir bravamente
e não cair em lágrimas, enquanto os nós-dos-dedos da mão que tava segurando o álbum-de-recorte tavam ficando cada vez mais brancos."Nós temos um lance de 10 dólares"
disse sr. Schneck pra meu alívio. "eu ouvi 15? alguém dá 15 dólares?".Eu levantei do meu assento pra ver quem tinha dado o lance...E meu coração afundou, era
o sr. Taylor. O PAI de Becca que tava dando o lance.Isso é pior do que se ninguém tivesse dado um lance nela."algo errado, Steph?" eu ouvi uma voz profunda perguntar
ao meu lado.Eu virei a cabeça pro outro lado - e praticamente bati a cabeça na cabeça de Mark Finley, cujos olhos cor-de-mel me fitavam."você parece preocupada"
Mark disse. "tá tudo bem?"Estalando, eu apontei pra Becca"A-alguém precisa dar um lance por ela." Eu disse. "Alguém que não seja seu pai!"E antes que eu pudesse
dizer outra palavra, Mark levantou a mão."15 dólares!" Mr. Schneck disse, apontando para Mark. "Nós temos 15 dólares pela jovem moça que é um gênio em cadernos
de colagens. Será que eu ouvi 20?"Todo o ginásio tinha caído no silêncio desde que Mark tinha levantado sua mão. Era como se ninguém pudesse acreditar no que estava
vendo - o garoto mais popular do colégio dando lance nos serviços de recorte e colagem prestados por uma garota que costumava ficar dormindo no horário das aulas.
Você podia contar um monte de pessoas que estavam achando que ele tinha perdido a cabeça - Lauren entre elas, já que eu a ouvi dizer "Baby, você tá brincando comigo?"
sussurando.Mas Mark não ligava. Ele continuou com a sua mão levantada.E os lábios de Becca pararam de tremer."20 dólares, pessoal" sr. Schnek disse. "Alguém
gostaria de dar o lance de 20 dólares? Não? As aulas de recorte e colagem de Becca Taylor serão vendidas por 15 dólares. Dou uma. Dou duas. vendi.."Mas antes que
ele pudesse falar o "do", uma voz gritou pelo ginásio"162 dólares e cinquenta e oito centavos"Cada pescoço no ginásio virou a sua cabeça pra saber quem tinha
dado um lance tão alto por Becca.Eu não acho que eu era a única que tava totalmente atônita de ver Jason, com uma mão erguida e com sua bolsa - contendo toda a
quantia que ele acabava de ofertar - na outra."VENDIDO!" Sr. Schnek gritou. "pra pra pra aquele garoto ali por 162 dólares e 58 centavos"E o seu martelo bateu.
Popularidade pode ser comparada à uma casaTem paredes, uma boa estrutura e muitos cômodos.Quanto melhor é a estrutura, mais forte são as paredes e mais cômodos
podem ser acrescentados.Isso é porque, assim como não há nada como uma casa com muitos cômodos, não há nada como uma pessoa com muitos amigos.
Capítulo 22 Ainda dia 4 de popularidadeQuinta-feira, 31 de agosto, 22:00 hs.Eu tava feliz por Becca. De verdade. Quer dizer, foi legal o Jason ter comprado ela.
Eu realmente acho.Eu soh não acho que ele precisava gastar AQUELA grande quantia pra aquilo. Quer dizer, ele basicamente gastou 142 dólares pra nada, já que
ele podia ter comprado os serviços delas por 20.Mas, tanto faz. Eu acho que isso é legal. Eu acho mesmo.Mas não tão legal quanto o que aconteceu depois.E foi
quando Sr. Schnek - depois de Becca ter deixado o palco, olhando toda empolgada e feliz (E eu não tenho que ser uma gênia pra saber o porque: Ela deve tá achando
que se Jason estava disposto a gastar aquela quantia por ela, ela DEVIA ser a garota que Stuckey suspeita que Jason gosta secretamente. Ela vai ser IMPOSSÍVEL de
tratar depois dessa. Eu não sei o que Jason tá pensando. Eu não sei mesmo.) - limpou sua garganta, foi ao microfone e disse "e agora, Peixes de Bloomville, o momento
que eu sei que vocês estiveram esperando pra leiloar, o orador da classe sênior, capitão do time e zagueiro, o jogador mais importante do ano passado, e um bom garoto
para todos, MARK FINLEY!"Os gritos e aplausos depois desta afirmação quase derrubaram o telhado de aço abaixo. Mark se levantou, se esticando timidamente, e acenou
pra multidão enquanto ele fazia o seu caminho até o palco. Talvez, o maior grito de todos estivesse vindo da sua namorada, Lauren, que parecia não conseguir sentar
na sua cadeira, já que estava pulando pra cima e pra baixo tão empolgadamente.Quando Mark chegou no palco, ele acenou pra multidão do outro lado do ginásio tambem.
Então, ele virou a sua cabeça pro sr. Schnek que estava dizendo "Tudo bem pessoal, calma, calma. Nós sabemos que todos amam Mark. Agora tá na hora de ver o quanto
REALMENTE vocês o amam."Mark generosamente se ofereceu pra ser usado como uma espécie de garoto-propaganda - então vamos ver quem é o proprietário desse feliz
negócio. Vamos começar com um lance de..."A mão de Lauren levantou.E ela não era a única.Sr. Schnek parou e disse "Hum, Pessoal, eu ainda..""100 dólares!"
gritou Lauren.Ela estava, eu sei, só tentando imitar Jason, oferecendo um preço tão alto que ninguém iria cobrir o lance.Muito ruim pra ela já que outras 10
pessoas tiveram a mesma idéia."120 dólares" gritou o homem que eu reconheci como o done do Penguin."140 dólares", gritou Stan, o gerente da Courthouse Square
Diner,"160" disse Lauren de volta"180", o prefeito Waicukowski, que tinha uma firma de contabilidade na cidade - Waicukowski e Associados: Nós somos mais. Mais
que uma firma de contabilidade (apesar de ninguém parecer saber o que isso quer dizer) - gritou, levantando a sua mão."200 dólares" disse Lauren.Mark no palco
continuava sem graça - embora ele parecesse estar se sentindo, ao mesmo tempo."220" disse o prefeito do seu assento perto do dr. Greer.Lauren, realmente cansada
disso, levantou, abriu sua bolsa, olhou o seu talão de cheques e leu o total da sua conta:"532 dólares e 17 centavos"Então ela se sentou, olhando satifeita para
todas os murmúrios que o número causou - e pela cara feliz de Mark.Eu estava triste por ter que acabar com esse momento tão bonito deles. Mas, depis de tudo, eu
tinha um negócio a gerir também."1000 dólares" eu disse, me levantando.O número de murmúrios que eu causei, contra o número de murmúrios que Lauren causou, aumentou
exponencialmente."Peço o seu perdão Stephanie?" Até o sr. Schnek parecia chocado "você disse 1000 dólares?""Sim, tá certo" eu disse calmamente. "Courthouse Square
Diner dá um lance de 1000 dólares em Mark Finley"Agora todos os olhares tavam em mim, em vez de Mark - incluindo o de Mark. Sua expressão era uma mistura de confusão
e felicidade - felicidade pelo fato que alguem tava pagando tanto pelos seus serviços, eu acho, e confusão pelo fato que era eu, e não sua namorada, que estava fazendo
a compra."A pequena garota ali da frente ofertou 1000 dólares" sr. Schnek disse pegando o seu martelo "Eu ouço 1200? Alguém? Vendido por 1000 dólares então"Lauren
tava no celular, desesperadamente tentando convencer seu pai. Ela tava, eu não pude deixar de notar, já ke eu tava sentada perto dela, praticamente chorando."Mas
pai" ela disse "vc não entende...""dou uma" sr. Schnek disse."É realmente por uma boa causa e nunca mais...""Dou duas" Sr. Schnek disse."eu vou pedir mais
nada a vc, eu prometo, se vc só...""VENDIDO pra Stephanie Landry da livraia Courthouse Square Diner" sr. Schnek gritou.E Lauren jogou o seu celular através do
ginásio com tanta força que quando ele bateu na parede perto da porta, ele explodiu em 1000 pedacinhos.
Não existe popularidade imediata.Ninguém se torna popular de uma noite pra outra. Popularidade é uma coisa que se conquista pagando duras penas, como em um clube
social.Então, não cometa o erro de agir como se você fosse melhor que essas outras pessoas, que estão no jogo há mais tempo que você. Eles conquistaram suas popularidades
trabalhando duro e com compromisso e merecem o seu respeito.Uma vez que você ganhar a sua popularidade, eles vão pagar da mesma forma.
Capítulo 23 Quase acabando o 4º dia de popularidadequinta-feira, 31 de agosto, 23:30 hs.Eu realmente não entendo porque todo mundo ficou tão louco.Eu comprei
Mark Finley - bem, seus serviços como um garoto-propaganda para a livraria - pra loja, e isso poderia ser o fim.Eu não sei porque Stan tinha que ligar pra minha
mãe e contar a ela sobre isso, então a primeira coisa que aconteceu assim que eu botei os pés na porta, depois dos Sr e Sra. Taylor me deixarem, foi a minha mãe
gritando que eu era a piada da cidade.Primeiro, Eu vou ser quem estará rindo quando começar a contar todo o dinheiro que a campanha com a imagem de Mark em nossos
anúncios e prateleiras irá trazer.E segundo, Stan deveria cuidar da sua vida."ele disse que você comprou um garoto em algum leilão" minha mão seguia repetindo.
"como você pôde comprar um garoto Stephanie? Como você pôde?".Isso é o que dar assistir Law and Order e tomar muito sorvete. Eu tô falando sério. Isso prejudica
sua mente.Nem Lauren ficou tão louca. Uma vez que o seu choque inicial acabou, e tal. Ela e Mark vieram me dar os parabéns."sua participação vai realmente ajudar
o negócio a vir pra parte central da cidade" eu disse pra Mark. Você sabe, pra deixar claro que eu não comprei ele pra MIM, mas sim pra LOJA. "a abartura do Super
Sav-Mart realmente nos deu um golpe.""Vou ajudar em como eu puder" disse Mark, parecendo como se fosse verdade mesmo.E Lauren tava tipo "Oh Steph, eu não tinha
idéia que a pequena loja dos seus pais estava assim com tantos problemas. Eu vou falar pra todos os meus amigos comprarem lá agora.""Obrigada" eu disse.E eu
juro, que por uns momentos, eu realmente pensei que Lauren Moffat não fosse tão ruim como eu pensava.Mas eu não processei o pensamento porque Becca veio e queria
que eu analizasse porque Jason tinha comprado ela e o que eu achava que aquilo significava e se ela podia ligar pra ele (já que ele foi embora logo depois do sr.
Schneck ter me declarado ganhadora do Mark).Eu falei pra ela que é claro que ela podia ligar pra Jason, e que nada tava diferente - ele era amigo dela antes do
leilão, e continuaria a ser depois."Mas ele deve gostar de mim mais do que como amiga pra gastar todo aquele dinheiro só pra eu não me sentir mal sobre o fato
que mais ninguém, além do meu pai, estava dando lance em mim." Becca disse."Mark fez uma oferta em você" eu lembrei a ela."Ele só fez porque você mandou" Becca
disse praticamente. "Ninguém mandou Jason fazer o que ele fez. Ele deve ter feito isso porque ele acha que eu sou Aquela. Eu vou ligar pra ele assim que eu chegar
em casa. Talvez até dê uma passada e o veja."Eu lembrei que já passava das 10 e os Hollenbachs não iriam apreciar uma "passadinha" tão tarde em uma noite de escola.
Eu juro, às vezes eu acho que Becca foi criada por lobos.De qualquer forma, Mark irá pra livraria amanhã depois da escola pra posar pra algumas fotos de publicidade
e talvez distribuir cartazes no parque ou algo assim.E será uma ótima oportunidade pra ele me conhecer como pessoa, fora dos limites da escola.E fora dos limites
da sua namorada.Porque eu realmente acho, que se ele tiver um tempo pra me conhcer - REALMENTE me conhecer - ele poderia perceber o quanto eu sou mais legal que
Lauren - apesar do que a minha mão acha, que tipos de meninos como Mark só estão interessados em uma coisa, e agora que eu o comprei, ele vai pensar que eu estou
dispostar a dar essa coisa pra ele."Você sabe o porque dele estar saindo com essa orgulhosa da Lauren Moffat" minha mãe disse "Uma única razão: porque ela se abre."Eu
quase comecei a chorar, de tanto que isso foi fofo. Falando sério, me lembrou a pergunta de Kirsten "Mas as pessoas mais populares na sua escola não são as mais
legais?"Eu não acho que existam outras pessoas mais tão fora da real como Kirsten e mamãe.Porque se eu saísse com Mark, eu também me abriria totalmente. Até
o padre iria entender isso.
Cinderela não esperou pelo seu PríncipeUm dos maiores erros que as garotas podem cometer acerca da sua vida romântica é ficar sentada, esperando que o príncipe
as achem, ao invés de sair e procurar por ele elas mesmas.Não esqueça, Cinderela perseguiu o seu príncipe, se vestindo e indo ao baile.Verdade, ela teve a ajuda
de uma fada madrinha - mas ela desclumbrou o príncipe com o seu próprio charme.Então não espere o seu príncipe te achar - vai lá e mostre a ele o que você tem!
Capítulo 24 Sexta-feria, 1º de semtembro, 00:00Eu só estava sentada no balcão do banheiro, olhando para a janela de Jason com o meu binóculo, quando de repente
eu vi Becca - BECCA! - entrando no seu quarto.Dr. Hollenbach tinha que ter deixado ela entrar. Ele sempre teve sua cabeça nas nuvens, pensando sobre coisas de
médico, que nunca poderia ocorrer a ele não deixar uma garota que apareceu 23:30, procurando por seu filho, subir ao quarto de Jason.Eu sei que Becca não poderia
ter ligado antes, porque Jason estava deitado na cama e sem camisa, escrevendo alguma coisa - um poema japonês pra Kirsten, sem dúvida - quando a porta abriu e entrou
a última pessoa no mundo que eu esperava ver passando pela porta do quarto de Jason.Jason se levantou num ímpeto como se ele tivesse percebido que as suas calcinhas
estavam pegando fogo, e procurou por uma camisa.Então Becca começou a falar enquanto Jason estava olhando como se não pudesse acreditar no que estava acontecendo.
Depois de um tempo, ele disse alguma coisa - Eu não tenho idéia do que... Porque eu não fiz leitura labial ao invés de espanhol???? PORQUE???? - e Becca caiu na
sua cama, parecendo depressiva.E foi quando aconteceu. Jason sentou perto dela, botou seu braço ao redor do ombro dela...E ELES TAVAM SE BEIJANDO!Eu não tenho
idéia de quem começou. Eu só vi os seus rostos ficarem perto, perto e...BAM! E eles estavam com os lábios em cima um do outro.E claro, como se ainda não fosse
esquisitisse suficiente, Pete tinha que escolher aquele ótimo momento pra entrar no banheiro reclamando."o que você tá fazendo aqui sentada no escuro de novo?"
ele queria saber."Nada! Deus! Você nunca bate?" Eu gritei por sussurro."Não quando eu não vejo luz embaixo da porta" ele disse. Então, pro meu horror, ele disse
"Oh, espera, eu sei o que você tá fazendo! Você tá espiando o Hawkface""Eu não tô" eu praticamente gritei. Eu só tive que manter a minha voz baixa, pra não acordar
mamãe e papai. "E não conte pra ele!""Porque não? Você espia. Você tá espionando ele. Você tá segurando binóculos! E você pode ver logo no quarto dele --Hey. Aquela
é Becca deitada na cama dele?""SAIA DAQUI" eu queria matá-lo."O que Becca tá fazendo com Hawkface?""Nada. Eles não tão fazendo nada! Viu? Eles tão parados.Pete
e eu ficamos lá e vimos enquanto Jason - a parte de tras da sua cabeça pra janela - disse alguma coisa pra Becca, que pareceu acenar com a cabeça. Tava um pouco
difícil dizer o que tava acontecendo.Mas eu vi Becca se levantar da cama e sair."Uau" disse Pete "eu tenho uma coisa difícil a dizer sobre isso pra ELE no casamento!"Eu
me virei e o belisquei, tanto o suficiente pra fazê-lo latir."você não vai dizer a ele NADA sobre isso" eu sussurrei pra ele. "Porque ele nunca pode saber que
nós estávamos fazendo isso. Espiando ele desse jeito.""porque não?" Pete queria saber. "você começou""eu não estava o espiando" Eu insisti. "Eu tava... meditando""claro"
Pete disse. e saiu do banheiro "o que você disser, Crazytop"Ele gritou tão alto quando eu o belisquei por me chamar de Crazytop queele acordou papai, que perguntou
dormindo da sua cama, "o que tá acontecendo aí?""nada" eu respondi docemente "boa noite!"Eu posso acreditar nisso. Becca e Jason? Eu quero dizer, eu sei que
ela tem uma queda por ele, e tudo. Mas eu não tinha idéia que ele sentia a mesma coisa por ELA! Mas eu acho que eu devia saber, vendo como ele a comprou hoje a noite.Espere.
Jason e Becca?O mundo tá completamente insano!
Se tornando irresistível pra um homemComo você pode fazer isso? é simples: fazendo o que você ama.Pode parecer maluquice, mas é totalmente verdade: se você faz
o que você ama - se é pintar, dançar, ler ou colecionar selos - vc será feliz, e homens, como o resto da sociedade, não resistem a uma pessoa feliz.Não esqueça
- garotos também podem ser tímidos.E uma feliz, sorridente garota é mais fácil de se aproximar do que uma carrancuda ou distante.
Capítulo 25 Ainda dia 5 de popularidadeSexta-feira, 1 de setembro, 9:00 hs.Ela não disse uma palavra no carro sobre o que aconteceu.Uma simples palavra.Eu
não posso acreditar que ela e Jason têm um segredo do qual eu não sei. Eu quero dizer, que seria pra eu não saber.Isso significa alguma coisa? O fato que ela não
me contou sobre o beijo? Eu quero dizer, o fato de nós estarmos no Cadillac do pai dela de novo, e não na BMW de Jason, tem de significar algo. Se ela e Jason tão
tendo um rolo, ele não deveria oferecer carona a ela esta manhã?Tem que significar que foi só um beijo de compaixão. Becca provavelmente confessou seus verdadeiros
sentimentos por Jason, e ele disse a ela que seu coração ainda pertence a Kirsten. Ou ele deu a ele aquele discurso de alma-gêmea na escola de novo.Deve ser por
isso que ela não disse nada.A menos que signifique o OPOSTO. Que o bjo foi tão especial e secreto que Becca quer guardá-lo só pra ela - pertencendo só a ela, como
o meu segredo sobre ter vestido a cueca do batmam de Jason uma vez?E a razão que o seu pai está nos levando, e não Jason, é porque eles dois estão esperando a
hora certa pra me contar - a verdade sobre o seu caso de amor, eu quero dizer.A verdadeira questão é, Porque eu tô ligando? Eu não gosto de Jason. Desse jeito.
Becca pode ficar com ele. Meu Deus. EU TENHO MARK FINLEY POR UM DIA.Eu tenho que me acalmar.Claro, o fato de Mark ter me olhado de um jeito engraçado quando
eu tava fechando a minha gaveta essa manha nãp ajudou em nada. Ele tava tipo "Oi, Steph - o que aconteceu com seu cabelo?"Foi quando eu percebi que eu esqueci
de alisá-lo hoje de manha.Mas sério, tem tanto drama que uma garota pode carregar. Eu ainda tava em estado de choque sobre Jason e Becca. E não é uma maravilha
eu ter esquecido de alisar o meu cabelo e agora ele estar cacheando por todas as partes?Exceto que naturalmente eu não podia dizer isso a Mark. Eu não poderia
ficar tipo "Oh, eu acordei Crazytop porque noite passada enquanto eu tava espiando o meu vizinho eu vi os meus 2 melhores amigos se beijando"Então eu só disse
"Bem, tentando novo visual""Bem" Mark disse " Tá... Interessante. Entao beleza pra você se eu chegar na loja umas 18:00? Porque eu tenho que treinar depois da
escola."Totalmente" eu disse. "Perfeito. te vejo lá"Mark levantou suas sobrancelhas "Almoço. Te vejo no almoço""Isso!" eu disse "desculpe. Almoço""E, sobre
a noite de ontem"Ontem à noite? Como ELE sabe sobre ontem à noite? Ele também viu Jason e Becca se beijando?"O leilão" Mark disse, Eu acho que foi porque eu
olhei um pouco confusa."ah, claro" eu disse com uma risada. "O leilão. Isso!""Sim. Eu ouvi que a gente arrecadou 7 mil dólares."" 7.923,00" eu o corrigi. Isso
é como eu sou."Certo", Mark disse com o seu tradiconal olhar . "7.923. Eu só queria dizer obrigado. Eu quero dizer, é mais dinheiro que a classe sênior arrecadou
durante todo o ano passado, e nós só estamos na 1 semana de aula."Deus. Era verdade que era só a 1 semana de aula? Parecia que tinha SÉCULOS desde a primeira vez
que eu andei pelo corredor com as minhas meias três-quartos azuis e disse oi pra Mark como se eu fosse uma pessoa de verdade, não a escória social que eu costumava
ser."E eu devo tudo a você". Mark continuou. "realmente. Obrigado, Stphanie".Entao ele abaixou e me beijou na testa.Logo quando Alyssia Krueger passou correndo
pra o banheiro das garotas pra reparar a mancha embaixo dos seus olhos, já q ela parecia ter chorado..de novo.É engraçado, mas teve um tempo que eu pensei que
quando Mark Finley me beijasse - mesmo que na testa - eu poderia ter o meu coração explodido.Mas hoje quando de fato aconteceu, eu só tava tipo... Tanto faz.O
que tá acontecendo comigo?Eu imagino se Jason e Becca usaram a língua.
CUIDADOPreocupação demais em ser popular, pode te fazer impopular.Não esqueça - todo mundo quer tá na "classe dos populares". Mas a verdade é que se você passar
o tempo todo se preocupando em ser popular, ao invés de curtir a vida e seus amigos, você vai estar perdendo toda a alegria. Mais, ninguém quer sair com uma neurótica.Então
não se preocupe tanto em ser popular. É mais importante ser feliz.
Capítulo 26
AINDA DIA CINCO DE POPULARIDADESEXTA-FEIRA, 1 DE SETEMBRO, 1 DA TARDE,Bem. Aconteceu. Eles me advertiram, mas eu não acreditei neles.Eu não pude enfrentar o
almoço hoje. Eu não sei por que. Eu só... eu não pude fazer isto. Não era nada contra Darlene. Era mais... veja, eu tinha medo que se eu sentasse lá e Becca não
aparecesse,
eu saberia que ela estava com Jason e que era verdade, sobre eles serem um par agora.E que me fez sentir como se eu fosse vomitar, por alguma razão.Assim eu
agarrei uma barrinha de cereais e um pouco de refrigerante diet das máquinas pelo ginásio, e fui para a biblioteca, já que estava muito chuvoso para comer lá fora.
Além, eu pensei ninguém que eu conhecia era perdedor o bastante para estar comendo na biblioteca, assim eu estaria segura.Eu estava errada.Porque sentada lá,
onde eu tinha ido sentar, na mesa de estudos, na seção de biografias, onde ninguém vai, estava Alyssa Krueger.Eu ia saindo furtivamente quieta, mas ela me viu.E
abaixou a própria barrinha de cereais dela e disse, "Bem, se não é Steph Landry," em uma voz muito hostil.Ela nem mesmo teve a preocupação de sussurrar. Isso é
porque ninguém entra na Biblioteca de Bloomville, inclusive os bibliotecários, que sempre estão no escritório da parte de trás desde que eles nunca, na verdade,
têm qualquer cliente, ao menos um professor de inglês que precise aprender sobre o sistema decimal de Dewey, ou qualquer outra coisa."Olha, Alyssa," eu disse,
enquanto tentando me lembrar do conselho d' O Livro em como lidar com inimigos. Empatia. Estava em toda parte empatia. "Não há nada que me culpe pelo o que aconteceu
entre você e Lauren. Você não deveria ter escrito aquela nota sobre mim.""Lauren escreveu aquilo," Alyssa disse amargamente."Eu sei que foi Lauren que escreveu
aquilo," eu disse. "Você não deveria ter levado a culpa por isto. Você deveria ter contado para o Mark a verdade.""Oh, certo," Alyssa disse, parecendo incrédula.
"E então Lauren e eu poderíamos estar comendo aqui, em vez do refeitório."Eu tirei uma cadeira de uma mesa de estudos vizinha e me sentei."Em primeiro lugar,
se ela realmente fosse sua amiga," eu disse, "ela estaria agora aqui com você."Os olhos de Alyssa se encheram de lágrimas. "Eu sei," ela disse com um soluço. "Você
pensa que eu não sei disso? Ela é uma cadela." Alyssa jogou no chão a barrinha dela, incapaz de comer qualquer coisa mais. "O que eu estou lhe contando? Você sabe.
Você foi um recipiente diário do show de cadela dela no passado - quanto tempo faz agora agora? Desde que você derramou aquela bebida nela?""Quase cinco anos,"
eu disse."Certo. E agora olha para você."Eu olhei para mim. Eu estava usando um par de meus esbelto-ajuste e um jogo de suéteres, porque estava chovendo todo
o dia e coisas frescas são boas... só a tempo para Vovô e Kitty estarem se casando amanhã. Eu tinha conferido o Canal do Tempo de manhã e foi dito para que todos
ficassem
aliviados, pois estaria fazendo céu claro durante o sábado."Não o que você tem," Alyssa disse desdenhosamente. "Sua posição social. Eu quero dizer, eu vi Mark
Finley te beijar esta manhã."Eu levei uma mordida da minha própria barrinha. "Sim," eu disse. "Na testa. Grande coisa.""Ele gosta de você, entretanto," Alyssa
disse. "Seriamente. Ele contou para Lauren. Ele disse que você é boa."Ela disse isto como se isto fosse uma palavra suja."Eu sou agradável," eu disse. Então
eu me lembrei de todas as vezes que eu tinha assistido o Jason se despido por minha Bazooka Joe binóculos. E o açúcar que eu tinha borrifado no cabelo de Lauren.
"Bem, a maioria do tempo, de qualquer maneira.""Eu sei," Alyssa disse. "Isso é por que Lauren está caindo fora. Porque você está fazendo ela parecer ruim. Em frente
a Mark.""Lauren está se fazendo de ruim em frente a Mark," eu a corrigi."E então quando você fez aquela coisa ontem à noite, onde você deu o lance por ele -
eu quero dizer, o patrocínio dele, para sua livraria, de qualque maneira. Eu a ouvi depois, conversando com as meninas no quarto. Ela estava espumando pela a boca,
ela estava tão furiosa. Ela disse que ela vai ganhá-lo, você sabe."Eu dei outra mordida em minha barrinha de cereais. "Oh, certo," eu disse de boca cheia, embora
O Livro diga que modos ruins podem a impedir de ficar popular. "O que, possivelmente, ela pode fazer a mim que já não tenha feito?""Eu não sei," Alyssa disse,
os olhos dela estavam com as bordas vermelhas e imóveis. "Mas eu cairia fora se eu fosse você. Porque eu era a melhor amiga dela, e olha o que ela fez a mim.""Alyssa,"
eu disse. "Você só está nesta posição porque você a DEIXOU fazer isto com você. Se você se levantasse e lutasse com ela - se todo o mundo nesta escola só se levantasse
e lutasse contra ela -""Você está louca," Alyssa disse, enquanto enrolava os restos do almoço dela em uma pequena bola apertada, e se levantava. "Você sabe de
uma coisa, Steph? Ninguém resiste a Lauren Moffat. Nem mesmo você.""Com licença," eu disse, enquanto engolia. "O que você pensa que eu tenho feito toda a semana?""Isso
não está abalando ela," Alyssa disse. "Isso só está fazendo com que ela veja melhor o jogo. E você sabe do que mais? Você vai perder. Porque ela vai achar um modo
- alguma mancha vulnerável que nem você faz idéia de que tem - o pegar, e lhe fazer passar vergonha em frente a todos estes seus novos amigos. E então você vai voltar
em breve aonde você começou. Guarde minhas palavras."E com isso, Alyssa saiu.Eu pensei o tempo todo no que ela tinha dito, enquanto terminava minha barrinha
de cereais. Mas a verdade era, eu só não pude ver o que estava contecendo. Lauren achará algum modo de puxar o tapete da popularidade para debaixo de mim, eu quero
dizer. Porque não havia qualquer arma que ela pudesse usar contra mim. De qualquer forma, eu tinha a mão superior.Porque agora eu sabia que o Mark gostava de mim.E
Lauren estava chateada com isso.Eu estava me sentindo contente comigo mesma quando eu terminei meu almoço, me levantei e fui...Até que eu notei quem estava sentado
em uma terceira mesa de estudo, não dez pés longe de mim."O que você está fazendo aqui?" eu exigi."Tentando conseguir alguma paz e me aquietar," o Jason disse.
"E, escute, eu vim para o lugar errado.""Por que você não foi sentar em seu carro?" eu perguntei.Jason fez uma careta. "Porque todo o mundo sabe que eles podem
me achar lá."Eu tentei não me deixar pensar que por "todo o mundo" ele quis dizer Becca, e que ele estava a evitando. Em primeiro lugar porque eu não me preocupei.
E, por outro lado, porque não fazia absolutamente nenhum sentido que eu estivesse tão contente por ele estar tentando evitar Becca."Ela tem razão, você sabe,"
o Jason disse, enquanto acenando com a cabeça na direção que Alyssa tinham ido embora. "Sobre Lauren. Ela vai achar algum modo para se vingar de você por ter comprar
o namorado dela.""Oh, por favor," eu disse. "Como se eu estivesse assustada.""Você deveria está," o Jason disse. "Ela poderia fazer sua vida bem desagradável."Eu
só o encarei. "Jason, o que tem sido estes últimos cinco anos? O que, possivelmente, ela pode fazer a mim que ela já não tenha feito?""Isso é o que eu não entendo,"
o Jason disse, enquanto estendia um pouco de salgadinhos para mim (o qual eu recusei), "por que você quer ser como ela.""Eu não quero," eu disse.A careta de
Jason afundou. "Então o que está acontecendo? Toda esta... coisa esta semana?""Eu só quero ser popular," eu disse."Por que?"A parte engraçada era, ele perguntou
isto como se ele genuinamente não entendesse."Porque, Jason," eu disse, nem mesmo acreditando totalmente que eu tinha que explicar isto, "minha vida inteira -
bem, todo o sexto grau, de qualquer maneira - eu estive em baixo. E agora é minha vez de dar a volta por cima.""Sim, mas" - o Jason mastigou um Funyun - "o que
é tão bom sobre isso? Você nem pode ser você mesma.""Sim, eu posso," eu disse."Oh, certo. Porque faz isso regularmente com seu cabelo."Eu elevei uma sobrancelha
a ele, e ele disse, "Bem, certo, hoje você foi toda Crazytop. Mas eu quero dizer o resto desta semana - o que leva você, a perder meia hora diariamente para conseguir
isso? Por que você quer um grupo de amigos que só ficarão com você se estiver com o cabelo direito? O que há de tão errado com seus velhos amigos que a amavam do
modo que você era?""Nada," eu disse. Eu não pude acreditar que eu estava tendo esta conversa. "Mas o que há de tão errado com querer ter outros amigos além de
só você e Becca?""Nada," ele admitiu. "Mas Lauren Moffat? Ou é só o namorado dela que você está tentando roubar?""Eu não estou tentando roubá-lo," eu disse,
enquanto me sentindo corar."Oh, você não está? Você gastou mil dólares de seu duramente-ganho dinheiro nele, por nenhuma razão?""Não," eu disse, enquanto me
esquecendo de limitar minha entrada de gordura saturada e alcançando o pacote dele de salgadinhos, na sua escrivaninha. "Você sabe por que eu fiz isso. Trazer negócio
para a loja.""Oh, seguramente. E você não está encantado com ele.""Certo. Igual você está encantado com Becca."Até mesmo como as palavras estavam saindo de
minha boca, eu estava desejando colocá-las de volta. Mas já era muito tarde. Eles já estavam fora."Becca?" o Jason fez uma cara bem engraçada quando ele disse
o nome, para alguém que, só doze horas atrás, tinha a estado beijando. "Desde quando eu estou encantado com Becca?""Bem, você a comprou," eu mostrei. Considerando
que eu não podia mencionar que eu tinha visto o beijo."Claro que eu a comprei," o Jason disse. "Que mais eu poderia fazer? Desde que ela estava de pé lá em cima
e estava sendo humilhada, porque só o pai dela estava dando lances por ela? Eu não podia deixar Mark Finley a comprar.""O que há de errado com Mark Finley?" eu
exigi. "Ele é um sujeito realmente agradável.""Claro" Jason disse com desdenho "se você gosta de clones mentalmente deficientes que só fazem o que suas namoradas
- ou você - os manda fazer.""Mark não é assim. Ele...""Tanto faz, Steph" Jason disse, se levantando. "Você sabe, Alyssa é um ogro de burra, mas ela está certa
sobre uma coisa. A única coisa que você vai conseguir ficando perto dos tipos como Lauren Moffat e seus namorados de ouro é se queimar. E eu só espero que quando
isso acontecer, Eu esteja lá para ver isso"A pior parte disso tudo é, quando isso aconteceu?Ele estava lá.
Você é confiável?Pessoas gostam de pessoas com as quais elas possam contar.Você está lá para seus amigos quando eles precisam de uma mãozinha, ou talvez só um
ombro alheio para chorar?Você paga seus empréstimos no tempo certo (de preferência no dia seguinte)?Você honra todas as suas obrigações e promessas?Essas são
qualidades de uma pessoa popular.
Capítulo 27
Isso aconteceu logo após nós sairmos da biblioteca. Bem, não "nós" exatamente, desde que eu e Jason não estávamos saindo da biblioteca juntos. Ele estava bem na
frente, suas longas pernas facilmente me ultrapassavam.Mas ele viu quem estava esperando por mim perto da porta, então ele diminuiu o passo para assistir o show.Legal
da parte dele, não?Porque a gangue inteira estava lá. Lauren. Mark. Todd. Darlene. O cortejo de Darlene. Bebe. Todos menos Alyssa Krueger.Mas nada a se preocupar.
Eu vi ela perto do bebedouro, pretendendo reencher sua garrafa de água, mas realmente assistindo o que estava para acontecer."Ah, ai está ela." Lauren choramingou
assim que eu sai pelas portas da biblioteca, tentando entender o que estava acontecendo. "Deus Steph, a gente estava procurando você por toda a parte.""Yeah, porque
você não foi ao refeitório para o almoço?"Darlene quis saber. Ela, pelo menos parecia que realmente sentia minha falta."Uh, eu tinha que estudar umas coisas..."
Eu disse me lamentando "tenho prova de química daqui a pouco.""Que saco" Darlene disse simpática.Lauren foi a única que foi direto ao ponto "Essa cara aqui"
segurando a primeira pagina da Gazzeta de Bloomville "Ele não é o seu avô?"Eu olhei a foto de vovô com os braços abertos para a cúpula do observatório. Eu não
podia imaginar o que Lauren queria com aquilo."Hum" eu disse "Sim""Ele construiu isso?" Lauren perguntou, levantando outra foto que ficava dentro do artigo,
do lado de fora do observatório. "Certo?""Bem-" Eu disse "Sim, digo, ele construiu isso. Ele está doando para a cidade-""Mas ele ainda não o fez, ainda" Lauren
disse "não está aberto ao publico ainda, certo?""Certo" eu disse "não até semana que vem.""Então está vazio?" Lauren quis saber."Yeah" eu disse "quer dizer,
tem um trabalhador lá-""Durante o dia""Certo""Mas está vazio durante a noite""Sim" eu disse "Por quê?""Viram?" Lauren olhou triunfante para Mark "Eu te
disse. É perfeito""Perfeito para o que?" eu perguntei, logo que o sinal de termino do recreio havia batido."Para o racha de Todd hoje a noite" Lauren disse "Normalmente
a gente faz isso na pedreira, mas vai chover durante o dia inteiro e durante a noite. Ele ia cancelar isso, mas ai eu lembrei que seu avô era o cara que estava construindo
o novo observatório, e que não estava aberto ainda, então você poderia deixar a gente usar lá.""Você pode deixar, né?" Todd disse animado. "digo, eu sei que provavelmente
está trancado. Mas você tem a chave, o código ou sei lá o que certo?""Bem" eu disse "Digo, sim, mas-""Viu?" Lauren piscou para Mark. "Eu te disse! Steph você
é a melhor!""Mas" eu disse. Isso não estava acontecendo. Nenhuma maneira disso estar acontecendo. "De quantas pessoas vocês estão falando?""Só cem" Todd disse.
"Os tops, talvez uma dúzia a mais. Mas sério Steph, meus rachas são exclusivos - convidados apenas. Bem, a gente coloca alguém na entrada, e mantém um olho nos tiras,
esses tipo de trabalho. Vai provavelmente chover durante toda noite, então não vai ter gente na colina ou na Rua Principal, ou em lugar algum. Eu juro, ninguém vai
saber que nós estamos lá. Tudo que você precisa fazer é abrir a porta pra gente por volta dás 22h. Só isso."Eu pensei nas paredes brancas e no piso brilhante do
observatório. Eu pensei no pódio do telescópio principal e suas colunas em volta, no hall e no deck.Então eu pensei em todas as imagens de festas de adolescente
que eu já havia visto na TV e nos filmes (desde que eu nunca estive em uma).E com isso eu disse "Eu realmente acho que isso não-""Ah, fala sério Steph" Mark
disse olhando pra mim com seus olhos avelã "A gente será cuidadoso. Você não ira ser presa. E se você for, a gente paga sua fiança. Eu juro""Tudo bem" eu me ouvi
murmurrar."Yeah!" Todd disse, e ele e Mark fitaram um ao outro. Lauren parecia contente, e Darlene disse, "Espera, assim...isso significa que nós teremos aceso a
festa afinal de contas?""Festa é aqui , baby," Todd disse, e tentou pôr o braço dele ao redor da cintura de Darlene, mas ela pisou rapidamente fora, enquanto dizendo,
"Oh, bom, eu posso usar minhas novas calças de camurça.""Você é a melhor," Lauren disse a mim. "Eu sabia que nós poderíamos contar com você, Steph."Então o segundo
sino tocou, e todo mundo se foi.Todo mundo menos Jason, que dizer.Que olhou para mim e disse, "eu sabia que nós poderíamos contar com você, Steph."Mas em um
tom completamente diferente da voz em que Lauren tinha dito isto.E então foi embora.
As pessoas Populares sabem ganhar.O modo mais fácil para ganhar um argumento é evitar um, em primeiro lugar. Você pode fazer isto mostrando respeito pela opinião
dos outros, até mesmo se você pensa que eles estão errados. Nunca diga, "Você está errado." (E se acontecer de você está errado, admita depressa!)É melhor deixar
os outros falarem mais. Os deixe pensar que sua idéia era, de fato, deles.Os melhores negociadores tentam ver as coisas do ponto de vista de outras pessoas e expressar
honestamente suas idéias, opiniões e desejos.
Capítulo 28 AINDA DIA CINCO DE POPULARIDADESEXTA-FEIRA, 1 DE SETEMBRO, 4 DA TARDE,Eu não posso acreditar que isto está acontecendo.Seriamente. O que eu vou
fazer?Eu não os posso deixar fazerem isto. Terem o racha deles no observatório de Vovô, eu quero dizer. Porque se eu não fizer, eles vão me odiar. Tudo para o
que eu trabalhei, tudo o que eu planejei, toda minha nova popularidade - ir embora. Vai tudo desaparecer, simplesmente assim. Eu terei tirado o Steph Landry maior
na história de Greene County.Mas eu não os posso deixar arruinarem tudo para o que o Vovô trabalhou tão duro.Porque eles arruinarão isto. Eu não me preocupo
com o que o Todd disse. Aquele observatório está cheio de equipamentos super-sensíveis. Você não pode ter cem adolescentes dançando - sem mencionar um DJ - na coberta
de observação e não ter instrumentos delicados empurrados ou, até mesmo, destruídos.Eu não posso deixar eles fazerem isto. Eu não posso deixar eles desordenarem
o presente de casamento de Vovô para Kitty.Mas eu não posso bancar uma de Steph Landry.O QUE EU VOU FAZER?Mãmãe só perguntou, "o que é que há com você? Você
está assim desde que chegou aqui." Aqui é a loja. Considerando que eu estou vendo aqui o Mark tirar as fotos para os anúncios da loja, que ele concordou serem feitas
aqui dentro."Não é nada," eu disse. "Tudo bem."E se o Jason me denunciar?Eu lhe perguntei se ele ia fazer isso. Eu esperei por ele depois de escola, no lote
do estacionamento dos estudantes. Ele veio, correndo rapidamente, ele era praticamente um borrão. Eu não sei de quem ele estava se escondendo, mas eu não penso que
era de mim, porque quando eu chamei o nome dele, e ele se virou e viu que era eu, ele olhou aliviado.Embora o tempo inteiro em que nós estávamos conversando, o
olhar dele estava arremessando ao redor, como se ele estivesse procurando alguém."Isso o que?" ele disse de uma maneira totalmente não-amigável."Eu só preciso
saber," eu disse. "Você vai contar?" "Não é da minha conta," o Jason disse. "Eu não fui convidado, lembra "Eu sei," eu disse. Eu não o aborreci por ter lhe falado
que ele foi convidado. Ele não viria, de qualquer maneira. "Mas você vai tentar parar isto?""Você sabe do que, Steph?" o Jason disse. "Você fez isto muito claramente
esta última semana, que você toma suas próprias decisões, e não precisa da ajuda de ninguém - ou opiniões. Você tem ido tão bem sem mim. Assim, por que eu deveria
interferir agora?"Eu sentia um pequeno alívio em meu ombro esquerdo."Assim... você não vai contar?""Eu não vou contar," o Jason disse. "Eu vou confiar que você
tomará a decisão certa. Desde que conseguem te convencer assim facilmente, de qualquer maneira."Eu o encarei. "Se eu não deixo eles terem esta festa," eu disse,
"eles vão me odiar.""Sim," o Jason disse. "Eles vão.""Mas se eu os deixo ter esta festa," eu disse. "Você me odiará. Se já não me odeia.""Supondo isso" Jason
disse "Também supondo que você liga pros meu sentimentos em relação a você.""Eu ligo" Eu disse, replicando a acusação de que eu não me importava.Mas eu não acho
que Jason me ouviu, porque naquele momento ele viu algo por cima da minha cabeça que o deixou pálido, e ele disse "Te vejo."E então ele correu pro O B.Mas quando
eu virei para olhar, tudo que eu vi foi Becca e se amigo Stuckey saindo da escola."Não era Jason com quem você acabou de falar?" Becca quis saber quando ela me
alcançou."Yeah" eu disse. Claramente, o que quer que tenha acontecido entre ele noite passada, tudo não era vinho e flores hoje. Era obvio que Jason estava fazendo
tudo que ele podia pra evitar Becca.Só porque? Digo, porque, se ele a comprou - e a beijou?Mas eu não queria machucar o sentimentos dela. Então eu disse, "ele
tem uns negócios pra fazer. Para o casamento""Oh" Becca disse. "Stuckey está me dando uma carona para casa. Quer ir com a gente?"Eu disse que sim. Eu não estava
muito animada pra ouvir sobre os testes e os triunfos do Indiana Hoosiers time de basquete. Mas isso parecia melhor que ônibus.E surpreendentemente, Stuckey estava
apto a conversar sobre um ou mais assuntos que não fossem relacionados a basquete, incluindo recortes e colagens (claramente ele vem passando muito tempo com Becca)
e o racha no observatório do vovô hoje à noite."Você sabe que eles estão planejando fazer isso lá, Steph?" Stuckey quis saber. "Porque eu não posso imaginar que
você não saiba e não está, você sabe, tentando pará-los. Eu ouvi sobre os rachas de Todd. Ele vez um em uma das casas de um menino ano passado, enquanto os pais
do menino estavam em Aruba, e eles causaram dez mil dólares de danos. Alguém colocou fogo no carpete da sala de estar. Com gasolina. Eles escreveram os nomes deles
com chamas.""Oh, Steph nunca iria os deixar fazerem algo desse tipo com o observatório do avô dela." Becca disse conscientemente. "Você deve ter ouvindo errado,
John"É engraçado, mas eu nunca pude sequer imaginar que Stuckey TINHA um nome, nem imaginava que era John.Tanto faz.De qualquer jeito, só tem uma coisa que
eu posso fazer. Levou-me um tempo para eu descobrir como. Mas tem UM jeito de evitar essa festa E continuar minha popularidade.Infelizmente, isso não vai ser fácil.Mas
eu acho que eu já aprendi bastante d'O Livro pra por isso em pratica.É claro, boa parte disso depende de Mark...Mas isso está tudo certo. Porque Jason está totalmente
errado sobre ele.E Mark vai fazer tudo dar certo. Eu sei isso.
Uma pessoa popular pode mudar a mente de qualquer um sobre qualquer coisa.Logo abaixo como fazer isso:• Começando a elogiar as pessoas. Gente gosta de ouvir
coisas boas sobre elas.• Falar sobre seus próprios erros. Mencione que você sabe que ninguém é perfeito, nem mesmo você.• Com sutileza repare nos erros das pessoas.•
Dê a pessoa chance de explicar/salvar a cara dela.• Preze ele por reconhecer o erro. E então dê sugestões de como ele/ela pode fazer melhor na próxima vez, tendo
certeza que ele/ela é que terá a solução.• Encoraje. Faça o erro parecer fácil de corrigir.• Faça a pessoa se sentir feliz fazendo a coisa que você sugeriu.Problema
resolvido!
Capítulo 29 AINDA DIA 5 DE POPULARIDADESEXTA, 1 DE SETEMBRO, 20h00minMark apareceu às seis no ponto. Exatamente aonde ele disse que iria. Seu cabelo ainda estava
molhado por causa da chuveirada após o treino - e possivelmente por toda chuva que estava chovendo do lado de fora.Mas isso não importa. Ele está gostoso, como
sempre."Hey" ele disse quando eu sai de trás do balcão da máquina registradora. Ele estava pingando no carpete de borracha do alfabeto. Mas foi difícil reparar
nisso quando eu olhei para seus olhos castanho esverdeado. "Como isso está indo?""Ótimo" eu disse "Mark, essa é minha mãe"Minha mãe, que esperou bastante tempo
pra conhecer Mark, esqueceu o fato que seus joelhos estavam matando ela e papai tinha passado o dia inteiro fazendo o seu mundialmente famoso (bem, no condado Greene,
de qualquer jeito) chilli para o jantar, parou ao lado e cumprimentou Mark."Olá Mark, é bom conhecer você," Mamãe disse "Muito obrigado por concordar em fazer
isso. Você não sabe o quanto isso significa para Steph. Digo, para mim! Digo, para a loja!"Mark riu com minha mãe. Foi meio que gratificante saber que ele envergonhou
uma mulher de mais de 30 - até mesmo uma que estava grávida de oito meses do seu sexto filho - do mesmo jeito que ele fazia com sua filha de 16."É meu prazer."
Mark disse "bom te conhecer, também."Deixando eu fazer minha própria coisa - pela primeira vez - Mamãe pegou seu guarda-chuva e disse tchau."O tempo estando
desse jeito," ela disse, observando os pingos de chuva na janela "vocês não serão incomodados por muitos clientes. E Darren está nos fundos dando uma pausa. Só grite
se você precisar de alguma coisa"."Eu vou" Eu a assegurei. E não perdi o movimento dos seus lábios dizendo você está certa. Ele é realmente bonito quando ela saiu.Graças
a deus Mark estava olhando uma copia da Sports Ilustraded na prateleiras de revistas no momento, e não percebeu.Eu tinha a câmera digital da família pronta pra
bater, então eu não gastaria nenhum tempo dele. "Eu ia tirar as suas fotos do lado de fora, mas com a chuva e tudo, você se importar em só sentar nas cadeiras da
parte de ficção cientifica?" Eu perguntei.Mark disse "Sem problemas" e me seguiu.Eu tinha ele sentado no encosto da velha poltrona de couro segurando uma copia
do último livro de capa dura do John Grisham em suas mãos."Isso vai ficar bom" Eu disse "Vai ser tipo, 'quando ele não está liderando o Bloomville Fish para o
estadual, você pode encontrar Mark Finely relaxando na Courthouse Square Books"Mark sorriu modestamente. "Bem, se eu realmente puder liderar a gente até as finais,
você quer dizer.""Oh, você irá" Eu disse e comecei a tirar fotos "levante o seu queixo só um pouco. Ótimo. Você pode fazer qualquer coisa que vier a sua cabeça.
Você é esse tipo de pessoa.""Bem" Mark disse sorrindo um pouco mais de uma maneira geral "Eu não sei sobre isso""É verdade" eu disse "Você é realmente incrível.
Não só no campo, mas fora dele também.""Fala sério" Mark disse rolando seus olhos. Mas ainda sorrindo."Fala sério, você" Eu disse "Você sabe que é verdade. Eu
queria poder ser um pouco mais como você.""oh, não" Mark disse. "você também é mt boa. Ninguém mais em toda a história do colégio achou um modo de ganhar tanto
dinheiro como você em soh uma noite.""Oh, eu sou boa com coisas de dinheiro" Eu disse passando com a câmera."mas eu não sou tao boa com as pessoas. Sua namorada,
por exemplo. Ei, você poderia passar uma perna pelo braço da cadeira? Sim, tipo assim, chique e casual.""Lauren?" Mark tinha parado de sorrir."É, Lauren. Você
provavelmente não sabia disso, mas ela me odiou por anos"."Sem chance" Mark disse. Mark tava sorrindo de novo. "Lauren acha você legal. Ela até me falou que vocês
costumavam brincar de barbie quando vocês eram pequenas.""Ela te disse isso?" Eu esqueci de tirar fotos por um segundo. " Ela falou sobre o Super Big Gulp?""Eu
posso ter ouvido sobre isso uma ou duas vezes" Mark disse. Agora ele parecia um pouco desconfotável "Mas isso foi há muito tempo atrás, certo? Eu sei que Lauren
- e todo mundo - tá muito contente de você ter nos deixado fazer a festa na construção do seu avô"."É" eu disse. "Olhe, porque você não pega alguma coisa no balcão,
como se você tivesse comprando algo. Ok?""legal" Mark disse, e se levantou, me dando uma perfeita visão da sua bunda na sua calça desbotada e confortável."é
isso" eu disse engolindo em seco "sobre isso. A festa, eu quero dizer.""É tão legal você ter deixado a gente fazer a festa no observatório" Mark disse parando
no balcão com uma mão no queixo. Tava óbvio que com a sua desenvoltura em frente às cameras ela já tinha feito aquilo antes. A mão no queixo parecia uma coisa do
catálogo da Sears. Mas eu não queria falar nada."você realmente salvou as nossas cabeças, de novo.""Certo" eu disse. "Mas essa coisa com Lauren-""Que coisa
com Lauren?""Essa coisa entre ela e eu-""É o que eu continuo tentando te falar" Mark disse com uma risada. "Não tem nada. Eu quero dizer, não por Lauren. Ela
totalmente gosta de você, Steph. Você viu como ela rompeu com Alyssia porque ela tinha te mandado aquele bilhete. Se ela não gostasse de você, porque ela iria brigar
com a melhor amiga dela?"Para continuar com você, eu queria dizer. Mas invés disso, eu disse, "Eu acho que é um pouco mais complicado que isso. E eu estou com
medo que -""Espere" Mark congelou, um cotovelo na balcão, e uma mão nos quadris. "Eu sei sobre o que é isso."Eu olhei fixadamente para ele surpresa. "Você...
sabe?""Sim".E foi quando ele o fez. Ele alcançou e segurou a minha mão - a que eu não estava segurando a câmera - e me puxou até ele. E realmente não entendi
oque iria acontecer até que eu estava duas polegadas longe dele, e ele colocou seu dedo sobre meu queixo para levantar o meu rosto para que assim eu ficasse olhando
ele nos olhos."Você está com medo," Mark disse, sorrindo para mim - esse sorriso forçado que fez meu coração doer todas as vezes que eu havia olhado, "de que as
pessoas estraguem o lugar do seu avô hoje à noite.""Bem," eu disse. Graças a Deus. Ele finalmente percebeu. Sem que eu tivesse que falar para ele."Sim. Na verdade,
eu estava esperando que você talvez pudesse falar com a Lauren e com todos e ajudá-los a entender que eu realmente não posso -"."Deus, você é tão legal.""Hum,"
eu disse. Se só ele soubesse a verdade. "Não muito. Então você acha que talvez -"Mas antes que eu pudesse dizer outra palavra, Mark se inclinou para baixo e pôs
sua boca sobre a minha.Isso mesmo. Mark Finley estava me beijando.Na boca, dessa vez.Eu não tinha nenhuma idéia de não beijar também. Eu estava tão surpresa,
que não sabia o que fazer.Não é como se eu tivesse muita experiência em beijos, eu nunca fui beijada antes. Eu só fiquei lá, deixando ele me beijar, ciente do
som do trânsito e da chuva lá fora, e do gosto dos seus lábios - como ChapStick - e do calor do seu corpo.Mark Finley estava me beijando. Foi isso que ficou passando
na minha mente todo o tempo. Mark Finley está me beijando. Eu sei que quando você recebe um beijo, supostamente deveriam aparecer fogos de artifício, ou alguma coisa
dentro da sua cabeça. Você é supostamente para ouvir sinos dos anjos, e passarinhos cantando, como nos desenhos quando alguém é espancado na cabeça com uma panela
de fritar.Então eu mantive meus olhos fechados e realmente tentei ver fogos de artifício e ouvir o canto de passarinhos. Mark Finley estava me beijando. MARK FINLEY
ESTAVA ME BEIJANDO.E eu vi eles. E escutei eles. Eu sempre.Finalmente Mark levantou sua cabeça. Olhando para mim com seus olhos metade escondidos por seus cílios
marrons, ele disse com uma voz profunda, "Deus, você é fofa. Alguém já te falou sobre como você é fofa?"Eu chacoalhei minha cabeça. Eu não achei que eu conseguiria
falar se eu tentasse. Tudo que eu podia pensar era. Mark me beijou. Mark Finley acha que eu sou fofa.MARK FINLEY ACHA QUE EU SOU FOFA."Eu acho que não," ele disse,
acariciando gentilmente meus lábios tremendo com seu polegar. "Desculpe por isso." Ele quis dizer, ei sabia, sobre o beijo. "Você é tão fofa, eu simplismente não
consegui resistir. Me desculpa?"Desculpar ele? Por me beijar?Era tudo que eu podia fazer para não me ajoelhar e agradecer ele. Mark Finley me beijou. MARK FINLEY
ME BEIJOU."Eu não vou deixar nada acontecer com a propriedade do seu avô, Steph," ele disse com a mesma voz profunda, olhando intensamente nos meus olhos. "Não
se preocupe."Eu balancei minha cabeça. É claro que não iria me preocupar. Porque ele é ... bem, ele é Mark Finley. MARK FINLEY. E ele me beijou. E ele me acha
legal. E fofa."Você tem fotos suficientes até agora?"Mark me pediu suavemente, ainda segurando meu rosto."Sim," Eu me ouvi responder. Eu não sabia que meus lábios
eram capazes de formar palavras, eles ainda estavam tremendo do beijo."Então está bem se eu for agora?" Eu tenho que pegar o barril para hoje a noite.""Sim,"
eu me ouvi dizer de novo. Eu não conseguia descobrir o que havia de errado comigo. É como se eu estivesse fora do meu corpo, olhando uma garota com o nome Steph
numa cena de amor com um cara chamado Mark. Um cara chamado Mark que a beijou."Legal," Mark disse.E então me beijou novamente, dessa vez levemente, e só uma
vez, na testa."Vejo você ás dez," ele disse.E partiu.
A vida da festa é você!Fazer uma festa não deve ser difícil. Aqui tem algumas dicas em como fazer todos se divertirem ... mesmo os anfitriões!- Se um de seus convidados
aparecer por si próprio - alguém que você não convidou - receba ele graciosamente. Você sabe a velha frase - quanto mais, melhor!- Não se preocupe que a sua casa
não seja limpa - ou grande - o bastante para se divertir. Seus convidados estam lá para curtir as companhias, e não para fazer um tour na casa!-Músicas são boas
para qualquer ocasião! Tenha certeza que você tem algumas das melhores musicas das paradas do dia para tocar.- E curta você - nada arruína uma festa mais rápido
do que um anfitrião nervoso!
Capítulo 30 Ainda 5 dia de popularidadeSexta-feira, 1 de setembro, 22:00Darren veio da sala dos fundos na hora que Mark tava indo embora. Ela veio pra o registro
e disse "quem era AQUELE?""aquele" eu disse vendo Mark ir embora na sua 4x4 estacionada bem em frente a loja "era Mark Finley"."O Mark Finley?" Darren perguntou.
"os meus olhos me enganaram ou ele tava te BEIJANDO?""Sim" eu disse "é, ele tava me beijando""parabéns, namorada" Darren disse "viu? você não acreditou em mim,
eu disse que você ia conseguir um acompanhante pro baile dos estudantes"e com isso, eu fui forçada a voltar pra realidade."Não" eu disse infeliz. "ele já tem
uma namorada"Os pásssaros ke tavam cantando ao redor da minha cabeça caíram no silêncio. A sensação de dormência nos meus lábios desapareceu.Era isso. Mark finley
tinha uma namorada. O que ele TAVA pensando, me beijando, de qualquer maneira?Ele disse que eu era tão atraente que ele não conseguira resistir.Mas... Ele não
parecia ter nenhum problema pra resistir a mim antes disso.Eu era realmente suposta a acreditar que ele não conseguiu resistir a mim, levando em conta eu ser tão
fofa - o que era a outra coisa que ele disse? Ah é - "legal"?No entanto, eu acho que, depois de Lauren, "Legal" provavelmente é um tipo de estado de paz.Mas
eu nunca imaginei Lauren agindo má perto de Mark. Eu sei que ela não agiu.Ela responsabiliza sua maldade em outras pessoas. Pessoas como Alyssa Kruger.Que estava
certa. Lauren tinha criado uma maneira de me por de volta no meu lugar.É por causa de Lauren que eu estou sentada aqui agora, escutando a batida da chuva no grande,
escuro, e vazio observatório, esperando para colocar todos para dentro.Então eles podem destruir isso. Tudo que meu avô trabalhou tão duro nesse ano que passou.Porque
não importa oque o Mark prometeu, era isso que iria acontecer. Agora que a tremedeira por causa do seu beijo foi embora - e eu voltei para a realidade - eu sabia
isso. Eles iriam destruir o lugar. Eles iriam rasgar em pedaços.Mas e tudo para o que eu tinha lutado tanto? E eu? Eu digo, finalmente consegui fazer com que as
pessoas parassem de falar de mim de uma forma má -Não dê uma de Steph Landry!- e começassem a falar de mim de uma forma boa... Até me beijarem, se acontecessem delas
serem Mark Finley... E agora eu iria largar tudo isso por que era uma pessoa prudente demais -uma aberração- (iria largar tudo isso por que) eu não podia suportar
a idéia de uma bando de colegas meus terem o que, de acordo com todos os livro e filmes que já li e vi, é uma experiência juvenil comum?Eu era tão boazinha assim?Eu
não era. Eu sabia que não era. Eu digo, eu joguei latas de soda vazia no chão do auditório da escola. Eu borrifei açúcar no cabelo da Lauren Moffat. Eu espiei meu
futuro alguma-coisa enquanto ele estava nu. Eu não era boazinha. Eu NÃO era.Então por que eu não podia fazer isso?Eu TINHA que fazer isso. Quando eles batessem
na porta, eu iria abri-la. Eu TINHA que. Eu não iria decepcioná-los. Eu não iria deixar as coisas voltarem a ser o que eram. Eu não iria dar uma de Steph Landry.Vovô
iria entender. Eu tinha dinheiro suficiente guardado, eu provavelmente poderia pagar pela maior parte dos danos eu mesma. Desde que isso não fosse mais do que poucos
mil dólares, já que eu tenho pouco porque "comprei" o Mark para a loja.Mas Kitty. E Kitty? Ela iria ficar magoada.Mas ainda. Eu aposto que ela fazia coisas assim
quando ela tinha minha idade. Vovô nunca fez - ele estava muito ocupado trabalhando em zilhões de empregos para ajudar sua família imigrante.Mas Kitty iria entender.
Afinal, ela tinha lido O Livro. Ela SABIA. Ela SABIA quão difícil isso era.Jason, porém.Oh, agora por que eu tinha que pensar nele? Eu não iria pensar nele.
Eu NÃO IRIA.Eu sabia que nós podíamos contar com você, Steph.Isso foi o que a Lauren disse.E o que o Jason disse também. Só que ele pensava algo completamente
diferente da Lauren.Bom, por que eu ligava para o Jason afinal? Eu digo, ele era quem estava beijando Becca no quarto. Não que eu me importe que ele beije outras
garotas. Eu nem mesmo gosto dele desse jeito.Além do mais, eu beijei outros garotos. Bom, um outro garotoAinda. Por que Becca? Por que ele tinha que beijar ELA?
Por que ele tinha que ir na dela?Oh Meu deus! Aqui eu de novo.Por que eu me importo? Por que eu me incomodo tanto? Eu digo, eu deveria estar feliz por eles.
Se, na verdade, eles FOSSEM um casal.Se eles fossem um casal, eu iria vomitar, como naquela vez no Kings Island depois que eu fui na montanha russa aquática.Não,
eu não iria. Eu iria estar felizes por eles. Eles eram meus melhores amigos. Eles mereciam uma felicidade romântica.Mas por que Jason tinha que escolher Becca?O
que tinha de errado comigo? Por que eu não conseguia parar de pensar no Jason? Eu acabei de beijar MARK FINLEY. Na boca. Eu vi fogos de artifício! Eu ouvi um coro
angelical!Era só que...E se não fosse só os hormônios? Como eu me senti quando eu e Jason brincamos, eu digo. Ou porque eu não conseguia parar de pensar nele.
E se isto fosse mais do que só uma curiosidade adolescente sobre o sexo oposto?Isso não podia ser. Isso NÃO PODIA ser. EU AMAVA MARK FINLEY. EU AMAVA ELE. Eu...Eu
não amava ele. Oh, Deus. Eu não achava que eu nem GOSTAVA dele mais. Porque que tipo de garoto fazia isso? Beijava uma garota enquanto namorava outra? Isso não
era certo. Isso era meio nojento, na verdade. Era completamente falso. Isso era totalmente contrário do jeito que O Livro dizia que os garotos populares deviam agir.
Garotos populares não deviam ter olhos safados. Eles deviam ser leais as suas namoradas.Eles não deviam beijar garotas em público.Eles não deviam beijar garotas
só pra elas fazerem o que eles querem.Eles deveriam ser legais. Eles deveriam ser divertidos. Eles deveriam ser amigso verdadeiros.Como Jason.Oh, Deus. O que
estava acontecendo comigo?
Não popular: adj .Amplamente não querido ou não apreciado; não adorado pelos conhecidos; não procurado como companhia.
Capítulo 31 SEXTA, 1 DE SETEMBRO, 23h00minEu não podia fazer isso.Eu não podia abrir a porta.Eu queria. Eu realmente queria. Ou ao menos, uma parte de mim
queria.Especialmente quando eu ouvi a voz de Mark dizer "Steph? Hey, Steph, você está ai dentro? Sou eu, Mark. Abre ai, ok? Está chovendo realmente forte aqui
fora.".Mas então eu ouvi Lauren dizer "Ai meu Deus, meu cabelo. Steph! Steph, rápido! A gente está ficando ensopado".E depois eu ouvi Todd dizer "Cara, esse
barril pesa uma tonelada".Eu fiquei aonde eu estava perto da porta. Eu não me levantei para a abrir. Eu não me movi.Eu só chamei "Hm, vocês?"."Steph?" Mark
socou a porta com os punhos fechados "É você ai? Vai abrir não?"."Yeah, sobre isso" Eu respirei fundo "Não posso"."Não pode o que?" Mark disse. "Descobrir como
abrir a porta?""Não" eu disse. "Eu sei fazer isso. Eu não posso deixar vocês entrarem. Desculpa. Eu mudei de idéia. Vocês não podem fazer a festa aqui."Isso
foi respondido com um silêncio mortal.Então Todd gritou "Muito engraçado, Landry. Abre a porra da porta. Nós estamos encharcados aqui"."Eu não acho que você
entendeu" Eu gritei. "Eu não estou deixando você entrar. Você vai ter que levar sua festa para outro lugar."Mais um silêncio mortal.Então todo mundo começou
a bater na porta de uma só vez.Eles tentaram a fechadura. Eles começaram a chuta a porta (esse foi Lauren, tenho certeza.). Eles espancaram a porta.Mas eu não
me movi.Nem mesmo quando eu ouvi Mark gritar em uma voz nada amigável que eu nunca tinha ouvi ele usar antes "Steph! Steph, qual é! A brincadeira acabou! Abra
a porta!"Nem quando eu ouvi Lauren berrar "Steph Landry! Abra a porra da porta agora!"Eu fechei meus olhos vovô eu pensei aqui está o meu presente de casamento
para você. Eu não vou deixar meus novos amigos berrantes estragarem seu observatório. Parabéns.Como um presente, eu realizei que isso era um tipo de peso. Mas
era o melhor que eu podia fazer, em meio às circunstancias.E a verdade era, eu estava fazendo um enorme sacrifício em apoio de vovô e Kitty. Mesmo que eles não
soubessem isso.Depois de um tempo, quando eu não destranquei a porta, as batidas pararam. E eu ouvi Todd dizer "Ela está furando com a gente! Eu não posso acreditar
nisso. A vadia está furando com a gente!""Talvez algo aconteceu com ela" Essa tinha que ter sido Darlene "Steph? Você está bem?""Eu vou te dizer o que" Lauren
disse, soando furiosa "Algo vai acontecer com ela na segunda. Eu vou fazer ela desejar nunca ter nascido. Isso é o que vai acontecer."Então, você sabe. Eu tinha
isso pra me preocupar também.E Mark não disse uma palavra pra me defender. Nem um simples palavra.Não que eu realmente pensei que ele gostasse de mim em primeiro
lugar. Não era sobre isso que aquele beijo tinha sido. Aquele beijo - eu sei agora - não foi porque ele pensou que eu era tão boa e bonita que ele não podia resistir
a mim. Aquele beijo foi para eu fazer o que ele queria que eu fizesse.Que, no caso, era abrir a porta.Muito mal pra ele que isso não havia funcionado. Esse é
o problema com fogos de artifício. Eles falham bem rápido.E eles finalmente funcionaram depois de tudo, Lauren reclamando do que a chuva estava fazendo com o seu
cabelo e Mark dizendo algo sobre algum calouro que havia dito que seus pais estariam na França durante o final de semana, então talvez eles pudessem ir todos pra
lá...Eu imaginei o que Lauren ia fazer comigo na segunda.Oh sim. Isso realmente não importava. Não podia ser pior do que eu tinha sido.Foi então que uma voz
vinda do escuro - de DENTRO do observatório - disse meu nome.E eu gritei."Whoa" Jason disse, pisando fora da sombra do píer do telescópio. "É só eu.""O que
VOCÊ está fazendo aqui?" Eu gritei."Tendo certeza que você havia feito à decisão certa?""Você quer dizer -" Eu não podia acreditar nisso. Meu coração estava
batendo tão forte, que eu pensei que ele fosse pular pra fora do meu peito. Eu não sei o que havia me surpreendido mais - ele saindo do escuro daquele jeito, ou
o fato dele estar lá o tempo todo. "Você estava aqui o tempo todo?"Jason deus os ombros "Eu entrei antes de você sair do trabalho.""E você só sentou ali" Eu
disse, em um tom que eu só posso descrever como uma imensa raiva sobre ele "no escuro comigo o tempo todo, e não disse nada?""Isso era algo que você tinha que
trabalhar por conta própria" Jason disse "Além do que. Eu sabia que você ia fazer a coisa certa.""Oh, certo" Eu disse. Eu queria jogar algo nele. Eu realmente
queria. "E se eu não tivesse feito?"Agora Jason sacudiu algo que ele estava segurando por de trás das costas. "Eu imaginei que a Grade Bertha aqui teria dirigido
eles pra longe" ele disse.Por alguma razão, essa frase mandou toda a raiva que eu tinha para longe. Eu só não podia ficar brava com ele nunca mais depois de ter
visto estúpido clube de golfe.Isso também pareceu levar pra longe todo o peso que eu tinha sobre meu joelhos. Eu desmoronei pela parede, então escorreguei até
estar sentada no novíssimo carpete industrial - o carpete que eu havia protegido de ser queimado com gasolina - com as mãos sobre a cara.Eu ouvi, antes de ver,
Jason sentar no chão ao meu lado."Anime-se, Crazytop" ele disse depois de alguns minutos. "Você teve uma boa corrida""Todo esse trabalho" Eu disse pros meu joelhos.
Eu não estava chorando. Eu não estava. Okay. Eu estava. "Tanto trabalho. E tudo pra nada."Eu senti a mão de Jason nas minhas costas, dando tapinhas de conforto.
Não como do jeito que ele me confortou quando eu vomitei na lixeira após sair da montanha russa."Não foi por nada" Jason disse "Você foi a garota mais popular
da escola - bem, praticamente - por uma semana. Não é muita gente que pode dizer isso.""Foi uma total perda de tempo e energia." Eu disse, ainda não olhando pra
cima. Meus jeans estavam fazendo um ótimo trabalho absorvendo todas as lagrimas."Não, não foi" Jason disse "Porque isso te mostrou que tudo aquilo que você estava
perdendo não era assim tão legal. Digo. Era legal?""Eu não sei. Eu estava trabalhando tanto pra ficar popular - e então continuar - que eu não tive realmente a
chance de curtir isso." Eu levantei a minha cabeça e olhei pra ele, nem mesmo me importando mais que ele visse que eu estava chorando. "Eu nem mesmo sei. Eu nem
mesmo sei se eu tinha gostado disso ou não""Hey," o Jason disse suavemente, enquanto olhava um pouco alarmado para minhas lágrimas. "Hey. Não vale chorar por causa
deles. Eles não valem, de qualquer maneira.""Eu sei," eu disse, enquanto arrastava a parte de trás de meu pulso por meus olhos. Elas tinham deixado de fluir, a
maior parte. O que era um alívio. Eu apoiei minha cabeça atrás e descansei isto contra a parede atrás de nós. "Deus. Eu não posso acreditar que eles na verdade esperavam
que eu os deixasse terem um do rachas estúpido deles aqui.""Bem, você me enganou. Eu realmente pensei que você ia os deixar entrar.""Eu não pude fazer isso com
vovô," eu disse. "Ou Kitty.""Não teria sido um presente de casamento muito agradável," o Jason concordou.O que era engraçado. Desde que isso é exatamente o que
eu tinha estado pensando."Eu não posso acreditar que eu ajeitei os meus cabelos diariamente para eles," eu disse. "Por uma semana .""Você fica melhor com ele
ondulado, de qualquer maneira," o Jason disse.Ele só estava sendo gentil. Devido ao fato de eu ter estado estado chorando, e tudo. Eu sabia isso. Eu sabia que
ele só estava sendo legal. Ele não disse isto porque ele gostava de mim, ou qualquer coisa. Como qualquer coisa mais do que um amigo, de qualquer maneira.Mas ainda.
Algo - que eu não tenho nenhuma idéia do que seja - me fez perguntar, completamente fora do assunto, "Jason, você está apaixonado por Becca?"O Jason endireitou
as costas na parede como se ele tivesse sido eletrocutado."O que?" Ele piscou para mim na semi-escuridão. "De onde você tirou essa idéia?""Bem," eu disse, enquanto
percebendo, retardadamente, a sepultura que eu tinha cavado para mim. O que eu estava fazendo? O que eu estava fazendo? E por que na terra verde de Deus eu estava
fazendo isto?"Você a comprou-""Eu já contei a você por que eu fiz isso," o Jason disse. "Porque eu não queria que ela se sentisse ruim.""Certo."Eu estava
como se minha boca estivesse desconectada do resto do meu corpo, ou algo assim, e estivesse andando em sua própria louca missão por si só. "Porque você a ama.""Eu
tenho que lembrar o que ela fez a meus sapatos para você?" Ele sustentou um pé volumoso para eu ver que as solas de seus sapatos ainda estavam cobertas com estrelas
roxas e unicórnios.Eu os encarei. Jason derrubou o pé dele."Geesh," ele disse.Mas não fez nada de bom. Minha boca só se manteve em andamento, apesar de meu
cérebro - e coração - continuassem, Se cale. Se cale. Se cale."Se você não a ama, então por que" - Se cale. Se cale. Se cale - "você a beijou ontem à noite em
seu quarto"SE CALE. Oh meu Deus. Eu sou o ser humano mais estúpido na face Terra.A boca de Jason caiu aberta. "Como você -""Eu posso ver seu quarto de nosso
banheiro," eu disse rapidamente. De repente, meu cérebro ajuda minha boca. Melhor tarde do que nunca, eu adivinho. "Não que eu olhe. Realmente. Muito. É só que ontem
à noite, eu estava lá, e aconteceu de eu olhar para fora, e eu a vi - você - ambos, vocês dois. E você estava beijando ela."Jason fechou a boca dele. Ele não estava
sorrindo."Becca não lhe falou?" ele perguntou finalmente."Ela não disse uma palavra," eu disse. "E eu não quis expor isto. Porque -""Porque você não queria
que ela a acusasse de ser uma fofoqueira."Oh, Deus. Mas ele tinha razão. Ele tinha razão. Eu ia para confissão na segunda-feira. Eu ia contar para o padre tudo.E
não me importaria se ele falasse para minha mãe, porque o Jason já sabe, agora."Eu não estava espionando," eu disse. "Exatamente. Eu quero dizer, Pete viu, também
-""Oh, grande! Seu irmão sabe?"Eu estava começando a sentir um calor me incomodar. Eu não tinha nenhuma idéia por que. O observatório tem realmente um grande
ar condicionado."Sim, Pete sabe" Eu disse "Quero dizer, vocês dois estavam indo nisso bem lá, em frente à janela." Indo nisso era um termo errado para se usar.
Eu não tinha idéia da onde tinha vindo. "Se você tivesse se incomodado em fechar as cortinas -""Eu não tenho cortinas lá ainda," Jason disse "Mas você pode ter
certeza que eu vou tê-las agora. O que mais você me viu fazendo lá?"Se vestir, eu quis dizer. Essa hora, de qualquer forma, minha boca atualmente fazia o que meu
cérebro mandava fazer, e então instantaneamente eu disse. "Nada. Eu juro." Perdoa-me Padre, por eu ter pecado. Havia sido - quanto tempo desde a minha ultima confissão?
Bem, isso não importa, porque há essa coisa que eu não te disse, e isso vem acontecendo a poucos meses agora, e -Oh, tanto faz, Deus vai entender."Então qual
é" Porque meu peito estava apertado. Eu tinha que saber. Eu só tinha que "O que está acontecendo com você e Becca?""Aw, geez" Jason bateu contra a parede, seus
olhos fechados. "Nada, certo? Ela pegou a idéia errada - exatamente como você vez - sobre eu comprar suas estúpidas aulas de recortes e colagens. Ela veio - só apareceu
de repente - e meu pai deixou ela entrar, porque, bem, ele é meu pai. Eu só estava deitado lá, lendo, quando ela veio entrando, e ela estava toda... você sabe."Eu
olhei para seu perfil. Seu nariz parecia maior e mais torto do que sempre. E por alguma razão, eu queria abaixar e beijar isso.Eu tinha ficado louca. Lauren Moffat
e aquele pessoal tinham finalmente me levado à insanidade. Desde quando eu venho querendo beijar o nariz de Jason Hollenbach?"Não" eu disse "eu não sei, Becca
estava toda... o que?""Toda melosa..." Jason disse, finalmente virando sua cabeça para olhar pra mim "Ela acha - Jesus. Ela acha que eu sou O Aquele. Aquele dela.
A lama gêmea dela. E para tirar a prova ela me beijou. Não o do outro jeito. Eu tive que dizer a ela - bem, eu tive que dizer a ela que ela estava arrancando a arvore
errada. Eu não sou o cara pra ela. Não importa o que talvez ela ache."Eu senti uma onda de alivio levar de mim o que estava tão tenso, eu atualmente estava fisicamente
fraca sobre isso.Porque? Porque eu me senti aliviada ao ouvir Jason dizer que ele não era o cara pra Becca?Porque ouvir que ela havia beijado ele, e não do outro
jeito, fez aquele coro angelical, aquele que eu me esforcei para ouvir quando Mark Finley tinha me beijado, e que eu sabia agora que não tinha sido a coisa real...
não ao todo - repentinamente ganhou vida na minha cabeça?"Oh" eu me ouvi dizer, estava difícil me ouvir no meio de toda cantoria."Porque você acha que eu estava
me escondendo na biblioteca hoje?" Jason perguntou "eu estava tentando evitar ela.""Oh" eu disse de novo. Pequenos pássaros estavam cantando nas minha orelhas,
e ninguém estava ao menos me beijando. Isso era loucura. Mas isso era a verdade."É tudo culpa do Stuckey" Jason resmungou."Stuckey?""Yeah. Ele foi aquele que
ficou me enchendo pra comprar ela.""Stuckey?"Eu estava certa de que eu não havia ouvido ele certa, com todos aqueles pássaros e corais."Yeah. Ele teria comprado
ela por ele mesmo, mas ele não tinha nenhum dinheiro.""Stuckey gosta de Becca?" Eu perguntei. O coral no meio do refrão de Hallelujah. Especialmente quando eu
lembrei de Stuckey falando de recortes e colagens durante todo o caminho para casa hoje. E aquele tour pela Assembléia que ele tinha oferecido a Becca."Eu acho"
Jason disse "Como eu vou saber?"'Bem, ele não te disse?"Jason me atirou um olhar muito sarcástico. Ordinariamente, quando o Jason faz isso, eu o atiro outro
olhar muito sarcástico. Agora, tudo em que eu poderia pensar era em como eu quis beijar o nariz dele."Os garotos não falam entre si sobre Aquele tipo de coisa,"
ele me informou."Oh," eu disse."Além do que," o Jason disse, "você comprou Mark Finley. Isso significa que você está apaixonada por ele?""Obviamente não,"
eu disse. Eu não pensei que era necessário mencionar que o Mark e eu tínhamos nos beijado, da mesma maneira que o Jason e Becca tiveram. Também que eu teria beijado
bastante o Jason. "Eu quero dizer, você me viu não o deixando entrar agora mesmo, certo?""Bem," o Jason disse, "você poderia ter me enganado.""O que, supostamente,
isso significa?" O coro e os pássaros se calaram abruptamente."Só que, para alguém que reivindica não ter estado apaixonada por um cara, você deu uma imitação
muito boa disto."Eu pensei nisso. De fato, era uma declaração justa dada as circunstâncias. Os olhos ouro-verdes de Mark...a voz funda dele...o modo que os meus
olhos
fitaram as calças jeans dele. Estas eram todas imagens muito constrangedoras.Mas isso, eu percebi, de repente, é tudo que elas eram. Imagens. O que eu sabia de
Mark como pessoa? Nada. Nada excluindo o que o Jason tinha dito...que ele era um clone mentalmente deficiente que só faz o que suas namoradas - ou qualquer um -
os
manda fazer. Ele era tão bobo, ele nem mesmo sabia que Lauren é que havia me escrito aquela nota. Ele, na verdade, acreditou quando ela lhe falou que ela gostava
de mim. Ele não pôde ver que a própria namorada dele era a pessoa mais falsa do mundo inteiro.E a verdade era, ele era um pouco falso também. Eu quero dizer, enquanto
me beijava, ele me falou então que ele tinha feito isto porque ele não pode resistir a minha fofura atraente? Quando realmente ele tinha feito isto para conseguir
que eu abrisse a porta.Assim, por que eu alguma vez tinha pensado que eu gostava dele?Eu sabia por que. Eu sabia perfeitamente bem por que, e não era um pensamento
agradável.Porque ele era popular.Mas isso era antes, eu me falei. Antes de eu saber o que realmente significar ser popular. Pelo menos na Escola secundária de
Bloomville.E isso não é ser você mesmo."Você nunca pensou que você estava apaixonado por alguém, " eu pedi a Jason, " depois perceber que você estava errado?""Não",
Jason disse curtamente."Nunca? E sobre a Kristen?""Eu não amo Kirsten," Jason disse, olhando para os seus sapatos e não para mim."Vamos lá. Nem um pouquinho?
Está dizendo que todas as poesias em sua honra eram só para diversão?""Exatamente," Jason disse, levantando-se e esfregando ineficazmente um dos unicórnios com
o polegar (acho que é um dos desenhos do tenis dele!) "Olha, é melhor nós irmos. O casamento é amanhã, lembre-se. Nós temos que acordar cedo para nos arrumarmos.
"Mas eu pus uma mão para pará-lo antes que ele pudesse se levantar."Sério" Eu disse, levantando meu pescoço para olhar pra ele. "Você está dizendo que você nunca
amou? Ninguém?"Jason sentou contra a parede.Então, ainda não olhando para mim, ele disse, "Lembra da quinta série quando eu ficava provocando você, e coisas
assim, e você disse que seu avô disse que eu estava fazendo isso porque eu estava um pouco apaixonado por você?""Lembro," eu disse rindo. "Você não falou comigo
por quase um ano depois disso. Até a coisa do Super Big Gulp""Isso porque o seu avô estava errado.""Um, isso estava bem óbvio, dado todo o tratamento silencioso.""Eu
não estava UM POUCO apaixonado por você," Jason disse finalmente olhando para mim. E os olhos dele, eu notei, pela primeira vez aquela noite, estavam da mesma cor
dos de Sirius, o cachorro estrela (isso foi um elogio? Haha). "Eu estava MUITO apaixonado por você. E eu não sabia lidar com isso. Eu ainda não sei."Eu mal podia
ouvir ele por causa dos cantos e pássaros que começaram a aparecer de novo dentro da minha cabeça. Era como Handel's Messiah (?)e uma viagem para Six Flags Wild
Safári tudo em um só."Espera," eu ouvi eu mesma -fracamente - dizendo. "Você acabou de dizer-"E um milhão de pensamentos malucos rodaram a minha cabeça. Eu lembrei
daquele dia na quinta série, quando eu disse aquilo sobre ele estar um pouco apaixonado por mim, e como a cara dele ficou vermelha - por causa da raiva, eu tinha
pensado. Eu lembrei dele me ignorando e como eu tinha ficado sozinha e miserável durante esse tempo - até o dia em que eu espirei aquela estúpida bebida na Lauren,
e a Lauren e todas a suas amigas inventaram o Não banque a Steph e não se sentaram comigo na cafeteria, e faziam graça de qualquer um que sentasse. Então ninguém
sentou.Ninguém exceto Jason, que pôs as suas coisas perto de mim e começou a me falar sobre um episódio do The Simpsons que ele tinha visto na noite anterior,
como se tivesse havido briga entre nós em primeiro lugar, e como se as pessoas nos corredores não acusassem ele de bancar a Steph.Mas ele não se importava.Eu
lembrei todas aquelas noites no The Wall, um fazendo o outro rir até que eu molhei as minhas calças (de novo), zoando as pessoas populares e comendo Blizzerds. E
aquelas noites na The Hill, deitados na grama verde, olhando para cima o céu, Jason apontando as constelações e meditando sobre a possibilidade de vida em outros
planetas, e pensando no que o que faríamos se um daqueles meteoros fosse uma espaçonave e pousasse bem do nosso lado.E eu pensei sobre quantas noites eu tinha
dito boa noite para ele, depois de passarmos o dia inteiro juntos no lago ou cinemas, e então ir para dentro da minha casa, só para sentar no escuro e olhar ele
no seu quarto, como se eu não tivesse o suficiente. De Jason.Jason. Jason.Deus. Eu devo ser a garota mais estúpida de todo o planeta."Você realmente acabou
de me dizer que você está apaixonado por mim?" eu perguntei para ele, só para ter certeza. Porque eu estava com medo que tudo tivesse sido um sonho e que eu iria
acordar sozinha no meu quarto.Jason fechou a boca dele. Depois abriu ela de novo e disse, "Bom. Eu acho que sim."E foi quando eu beijei ele.
Evite popularidade se você quer ter paz "- Abraham Lincon
Capítulo 32 Sábado, 2 de setembro.Ele me ama.Ele me ama.Ele me ama.Ele disse que sempre me amou. Ele disse que todas as coisas que ele disse antes, sobre
não acreditar em alma gêmea e como as pessoas não deveriam se apaixonar no colegial, era só para tentar convencer a si mesmo a não me amar demais, porque ele achava
que eu não me sentia do mesmo jeito em relação a ele. Ele não tinha idéia nenhuma, que do mesmo jeito que ele sempre me amou, eu sempre amei ele.Mesmo que eu só
tivesse percebido a pouco tempo atrás.Oh, bom. Ninguém é perfeito.Mas está tudo bem. Eu compensei totalmente o tempo perdido. Nós nos beijando bastante, de fato,
meus lábios estão um pouco inchados. Mas de um bom jeito.Eu falei para ele tudo -e eu disse TUDO - sobre eu achar que ele era gostoso desde a viagem na Europa
(ele alegou que me achava gostosa desde a segunda série); sobre eu espioná-lo (Ele não ficou bravo. De fato, eu acho que ele estava meio que lisonjeado. Embora ele
tenha dito que pegará cortinas amanhã); sobre como eu estava com ciúmes quando eu achava que ele amava a Becca ("Becca?" ele disse chocado. "Oh, Deus!"); sobre como
eu estava com ciúmes quando eu achei que ele tinha uma queda pela Kirsten, até o ponto de que os cotovelos dela me enojavam ("Os cotovelos dela?" ele repetiu incrédulo);
Eu até disse para ele sobre quando eu usei a cueca do Batman dele. E como eu meio que gostei disso.Eu guardei O Livro por último. Nós rimos bastante desse."Espera,"
Jason disse. "Me deixe entender isso direito. Você achou um livro velho da minha avó, e você pensou que ele era seu ticket para a popularidade?""Bom" eu disse.
Nós ainda estamos no mesmo ligar onde nos beijamos pela primeira vez. Só que agora minha cabeça está descansando no peito dele. Eu me sentia muito bem ali, como
se o peito de Jason tivesse sido feito exatamente para o formado da minha cabeça. "Isso funcionou, não funcionou?"Quando eu folheei alguns dos capítulos escolhidos,
ele riu tanto de mim, pulando [gingando] para cima e para baixo, que eu tive que sentar."Você ri," eu disse. "Mas esse livro me ensinou muito.""Oh, certo," o
Jason disse. "Como agir como uma grande falsa e ser insana com todos os seus amigos.""Não," eu disse. "Como ser melhor do que eu pudesse ser""Você já era melhor
do que você pudesse ser," o Jason disse, enquanto me puxava contra ele. "Você não precisou de qualquer livro para a ajudar com isso.""Eu precisei," eu disse à
camisa dele. "Porque se não fosse pelo o livro, eu nunca teria tentado ser popular, e se eu nunca tivesse tentado ser popular, eu nunca teria percebido como eu realmente
me sinto sobre você." E eu nunca teria descoberto que eu sou a menina que Stuckey estava dizendo que o Jason sempre esteve secretamente apaixonado."Bem," o Jason
disse, enquanto embrulhando os braços dele ao redor de mim, mais firmemente que antes, "então nós melhoraremos o que livro conseguiu com tudo isso."Ele estava
brincando, mas na verdade eu penso que ele tem razão. Eu devo tudo àquele livro. Até mesmo se, no final das contas, eu não consegui ser popular de fato.Eu consegui
algo muito, muito melhor, ao invés disso.
"Tudo que é popular está errado."- Oscar Wilde
Capítulo 33 SÁBADO, 2 DE SETEMBRO, 9 DA MANHÃ, Eu acordei ao som de alguém gritando meu nome. Quando eu ergui minha cabeça, eu não tinha nenhuma idéia de onde
eu estava. Também por que meu pescoço estava tão duro. Então eu ergui meus olhos e vi o Jason, dormindo próximo à mim.Então eu sentei tão rápido, que meu pescoço
- duro de dormir no tapete industrial - fez um som como se estivesse rachando. "Jason," eu disse, enquanto o cutucava. "Jason, acorde. Eu penso que nós estamos
com um grande problema."Por causa do curso que as coisas tinham tomado, nós tínhamos ficado acordados falando - e beijando - até tarde, e nós tínhamos dormido.
No observatório. No chão da coberta de observação, debaixo da rotunda.Eu estava morta [encrencada]. Embora claro que nós não tivéssemos de fato terminado qualquer
coisa. Além do beijo. Mas quem ia acreditar nisso? Meu avô, pelo visto. Quando ele entrou, depois de um segundo, deu uma olhada em nós, e se ligou de volta em
cima do ombro dele, "Está tudo certo, Margaret. Eles estão aqui."A próxima coisa que o Jason e eu soubemos, foi que minha mãe e Vovô estavam se levantando em cima
de nós, os dois gritando ao mesmo tempo. "Como você pôde?" minha mãe estava gritando para mim. "Você tem qualquer idéia de como preocupados nós ficamos? Por que
você não ligou? E Jason - seu pai passou a noite toda conferindo a emergência dos hospitais por toda Indiana. Ele pensou que você tivesse se metido em um acidente!"
"Você realmente deveria ter telefonado," o Vovô disse. "O que vocês dois estavam fazendo aqui, na Sam Hill [Colina de Sam]?" "Eu penso que é bem óbvio o que
eles estavam fazendo aqui, Pai," mamãe disse amargamente. O que era totalmente injusto, considerando que nós dois ainda estávamos usando todas nossas roupas. "Nós
só dormimos," o Jason disse. "Honestamente. Nós estávamos conversando, e -" "Mas por que vocês não ligaram?" mamãe quis saber. "Vocês têm qualquer idéia de como
nossas mentes ficaram preocupadas com vocês?" "Nós só esquecemos," eu disse. Eu me sentia tremendamente culpada. Eu não podia acreditar que eu não tinha pensado
em ligar e chamá-los. Mas eu não poderia chegar lar e dizer, Nós estávamos muito ocupados para pensar em ligar para casa, mãe. "Bem, você mocinha, está de castigo,"
minha mãe anunciou, puxando me com uma força surpreendente para uma mulher em estágio avançado de gravidez. "Talvez isso a ensine a não se esquecer de nos chamar"."Seus
pais estão muito decepcionados com você, filho," era tudo que vovô tinha a dizer a Jason, que nunca é punido por qualquer coisa. Seus pais apenas estavam decepcionados
com ele. "Sua avó pobrezinha ficou acordada a noite toda, e é hoje seu dia do seu casamento!" Casamento do vovô e de Kitty! Eu havia esquecido totalmente! "Oh,
vovô," Eu disse. "Eu sou uma pessoa horrível. Nós apenas não esquecemos as horas." "Mas o que vocês faziam aqui?" minha mãe quis saber. Eu tranquei minha respiração,
preparada para confessar tudo. Bem, não a parte pelo qual passei a noite toda fora com Jason. Mas a parte sobre o Mark Finley e o racha. Porque, contanto que consegui
ficar bem com o Jason, ficarei bem o todos também. Mas antes que eu começasse a explicar, Jason passou na frente e disse "Nós estávamos olhando as estrelas. E
eu suponho que acabamos adormecendo." "As estrelas?" Minha mãe olhou totalmente confusa. Então pareceu lembrar que nós estávamos em um observatório. "Oh. Claro."
"Vê, Margaret?" Vovô disse. "Eu falei. Está tudo bem. Estavam apenas olhando as estrelas e adormeceram. Nenhum dano feito." Então, para minha surpresa, o vovô
enrolou um braço em volta dos ombros da mamãe. E o que era mais surpreendente foi ela deixou. "Eu disse que este observatório era uma idéia boa," Vovô disse.
"Dar as crianças nesta cidade algo para fazer na noite, em vez de criar problemas."Jason e eu trocamos olhares. O vovô não tinha nenhuma idéia como seu observatório
tinha vindo a colocar muito das crianças dessa cidade no problema. Minha mãe agitou sua cabeça, dedos então levantados tremendo no seu rosto. "Deus, como eu desejo
poder tomar uma bebida," disse a sua barriga."Bem, talvez na recepção do casamento, alguém deslize uma taça do champanhe," Vovô disse, dando lhe um aperto. Isto
era mais chocante que o fato de o ter deixado a abraçar. Minha mãe estava indo no seu casamento após tudo? Estavam se falando outra vez? Quando isto aconteceu? "Oh,
Papai," Minha mãe disse. Jogou-o um olhar irritado. Mas debaixo da irritação, eu vi um estímulo - apenas um estímulo- de afeição. Então o segundo seguinte, o
olhar foi indo, e ela estava encarando. Me encarando. "Bem, venha mocinha," disse. "Vamos para o carro, cuido de você em casa." "Certo," Eu disse, jogando a vovô
um olhar perplexo. Que estava acontecendo? Como ele conseguiu voltar a ficar bem com a mamãe? O vovô viu meu olhar. Eu sei que viu. Mas apenas piscou, em seguir
coloca seu braço em volta de Jason. "Hey, Garoto," eu ouvi-o dizer enquanto ele e Jason nos seguiram para fora do edifício. "Já andou em um Rolls antes?"
"Evite a popularidade; ela tem muitas armadilhas, e nenhum benefício real."- William Penn
Capítulo 34 SÁBADO, 2 SETEMBRO, 6 P.M.O casamento estava bonito. A chuva havia passado, assim estava realmente agradável de se estar ao ar livre para uma mudança.
O sol brilhava em um céu azul - a mesma cor dos olhos de Jason (e Kitty) -que fazia parecer ser um daqueles dias glorioso de verão atrasado, ou dias adiantado do
outono que é perfeito para a colheita de maçã ou um passeio de barco no lago. Ou se casar.A noiva certamente não parecia como uma mulher que não havia dormido
a noite toda preocupada sumiço de seu neto de casa. Apareceu em um lindo vestido de noite frisado do marfim, parecendo elegante e ainda relaxada ao mesmo tempo.
Vovô, vendo-a vestida de noiva, ficou com os olhos lacrimejados.Ele me disse mais tarde que era apenas algo que tinha em seu olho. Mas eu sei a verdade. Como
somente ele sabe a verdade sobre o que Jason e eu estavamos fazendo realmente no observatório. Bem, não a parte sobre o racha. Mas a parte sobre não olhar as estrelas.
Mas isso esta tranqüilo. Tudo mais foi ótimo. Mamãe e papai - para surpresa de todos - apareceram com Sara no colo. Kitty ficou tão feliz ao vê-los, começou a
chorar. Então minha mãe, vendo que a Kitty estava chorando, começou chorar também. Então as duas se abraçaram, chorando, que fizeram com que Sara chorasse, porque
ninguém estava lhe dando atenção.Entrentanto, Robbie não perdeu as alianças, e Jason me olhou increvelment bonito em seu smoking, eu pensei que iria começar a
chorar. Embora isso pudesse ter sido devido à falta do sono. Eu evitei mesmo uma conversa com Becca sobre o garoto por quem ela tinha uma queda agora ser MEU.
Isso é porque Becca tinha um novo amor ao seu lado para mantê-la ocupada. O Taylors não foram colocados na mesma mesa que os Stuckeys, mas Becca tinha obviamente
alterado um pouco de lugar os cartões da pré-recepção, o tempo todo que andei pelo salão de jantar, ela estava lá com e John, cochichando sobre o a salada. Eu
andei até a eles e disse, "Desculpe-me. Becca, podemos conversar?" Ela seguiu-me, corando, até à fonte de champagne. "Não é o que você esta pensando," ela me disse
imediatamente. "Como você sabe o que eu estou pensando?" Eu perguntei. Porque na verdade o que eu estava pensando era "Como eu vou lhe contar sobre Jason e eu?"
"Eu não estou no fundo do poço," Becca disse. "O que eu sinto pelo John é totalmente diferente do que eu achava que sentia por Jason. E não apenas porque John
gosta realmente de mim também. Ele é O Certo, Steph. Essa é a verdade.""Eu não estava indo acusá-lo de estar na fossa," Eu disse. "Eu apenas vim dizer que eu estou
feliz por você." "Oh." Então Becca sorriu pra mim. "Bem, obrigada. Eu desejo apenas que você encontre com Aquele também. Hey... eu sei você pode achar que estou
ficando louca, mas você nunca pensou em convidar o Jason para sair?" Eu apenas olhei fixamente para ela. "É sério," Becca falou. "Porque eu acho que ele gosta
de você. A outra noite -bem, eu não lhe isso antes porque é embaraçoso. Mas depois que ele me comprou -você sabe, no leilão -eu fui na casa dele... bem, eu disse
a ele que gostava dele. Não ria." "Eu não estou rindo," I disse. "Obrigada. Em todo o caso, isso foi antes percebi que realmente eu amo o Stuckey. Mas, em todo
o caso, Jason me disse que sentia muito, mas ele não se sentia da mesma maneira sobre mim. E eu perguntei-lhe se fosse por causa da coisa do não-acreditar-em-almas-gemeas,
e ele me disse que tinha mentido quando disse aquilo. Me disse que acha que tinha encontrado sua alma gêmea, porém ele não sabia se ela sentia o mesmo, porque estava
apaixonada por um menino... e, bem, me chame de louca, mas eu acho que talvez Jason estivesse falando sobre você." "Uau," Eu disse. E mesmo que eu já soubesse
que Becca está certa, que tinha sido de mim que Jason estava falando, eu senti uma onda de prazer, apenas por ter ouvido mais uma vez. Isso era o quão envolvida
eu estava. "Obrigada porme dizer. Eu pensarei seriamente em convidá-lo para sair." "Você deve," Becca disse. "Porque, você sabe, eu perguntei a John, ele disse
que é possível - apenas possível - que a pessoa por quem Jason esteja secretamente apaixonado seja você. E se fosse, nos poderíamos sair os quatro! Eu e John, e
você e Jason! Não que seria divertido?" Eu disse que eu não poderia pensar em qualquer coisa de mais divertidoApós todos os brindes, a noiva e o noivo dançaram
sua primeira dança ao som de ""I've Got a Crush on You," Musica de Frank Sinatra favorita do vovô-então dançaram com seus filhos, e finalmente seus netos. Isso
foi quando eu tive finalmente a possibilidade perguntar a vovô como ele tinha conseguido fazer a mamãe perdoá-lo sobre o Super Sav-Marte e vir ao seu casamento.
"Bem," disse-me e me moveu em torno do salão de dança ao som de 'Embraceable You', "é vergonhoso dizer que eu me aproveitei do fato de que ela é uma mulher vulnerável
no oitavo mês de grávidez, e estava preocupada com sua filha mais velha e sérios problemas financeiros e baixei a guarda. Eu lhe contei que comprei o Hoosier Sweet
Shoppe, e estou montando um café lá dentro, e derrubando a parede entre a livraria e o meu café e, ou ela concordou com isso ou vai ter que aprender a viver com
isso. Seu pai fez um belo trabalho convencendo-a a conviver com a idéia." "Vovô!" Eu sorri pra ele. "Isso é tão maravilhoso!" "Nós ainda temos que encontrar
maneiras de ir consertando as coisas," vovô disse, inclinando a cabeça no sentido de mamãe e Kitty, que ainda estavam conversando afastada. "Mas é um bom começo.""Com
o café novo," eu disse, "e os anúncios que nós estamos indo fazer, com Mark Finley, eu aposto que a livraria não deixará de vender por causa do Super Sav-Mart."
"Esse é o plano," vovô disse. "Agora porque você não me diz o que você e Jason estava realmente fazendo no observatório a noite passada. E não diga que vendo as
estrelas, mocinha, porque - embora sua mãe não recorde, eu lembro que choveu muito a noite toda. Vocês não poderiam ter visto uma coisa através desse telescópio."
Oops. Assim eu disse tudo ao vovô. Não sobre o racha. Mas sobre Jason e eu. Eu considerei que todos iriam descobrir mais cedo ou mais tarde de qualquer maneira.
Especialmente desde que Jason já tinha me pedido a dança seguinte, e nenhum de nós era um dançarino muito bom, assim que estava óbvio que estávamos apenas a fim
estar perto um do outro. Vovô me ouviu com os sobrancelhas levantadas. Ele gosta de Jason, assim eu não estava preocupada que ele fosse desaprovar. Mas eu queria
que ele ficasse feliz por mim - como eu estava feliz por ele. "Bem, bem, bem," foi tudo ele que disse, quando eu terminei. "E o que é ele o planeja estudar na
faculdade?" "Eu não sei, vovô," eu disse com um riso. "Nós ainda temos um longo caminho até a faculdade." "Apenas certificar-se que é astronomia," vovô disse.
"Eu não quero ter gastado todo esse dinheiro naquele edifício para nada." Eu assegurei ao vovô que eu faria o que eu poderia. Então mais tarde, quando eu fui
ao banheiro, eu encontrei Kitty lá, ele estava retocando sua maquiagem, que foi borrada por causa de todo o choro entre ela e a minha mãe. Eu sabia que ela sabia
- Jason e eu- no minuto que ela viu meu reflexão no espelho e girou para pegar minha mão. "Stephanie," disse exitada, "eu estou tão feliz por vocês. Eu sempre
quis... mas eu pensei que vocês já tinham sido amigos por muito tempo para que desse certo." "Oh, está dando certo," eu assegurrei a ela. E então, por ela ser minha
nova vovó - bem, vovó postiça -E u senti que eu poderia adicionar, "E, você sabe, isso só foi possível por causa seu livro." "Meu livro?" A Kitty me olhou. "Você
sabe, o livro você me deixou pegar," eu a lembrei. "Estava na caixa que eu encontrei em seu sótão, quando nós estávamos limpando para que Jason se mudasse pra lá?
O livro de como ser popular? E, hm. Eu tomei seus conselhos. Eu pensei que se funcionou para você, ele poderia funcionar para mim. As coisas não saíram completamente
da maneira que eu planejei-mas agora eu estou feliz. E é toda por causa de você. Bem, do seu livro." "Um livro de como ser popular?" A Kitty olhou perplexa por
um momento. Então sua cara iluminada. "Oh meu bem. Aquela coisa velha? Alguém me deu ele como brincadeira. Eu nunca o li realmente." Eu realmente não soube o que
dizer naquele momento. Assim eu disse a única coisa que eu poderia pensar em dizer. Qual era, "Oh." "Bom." A Kitty ajustou seu véu curto, chique. "Como eu estou?"
"Linda," eu disse verdadeiramente. "Obrigado, minha querida," Kitty disse. "Eu apenas penso a mesma coisa sobre você. Bem, eu tenho que voltar lá para fora.
Sua mãe e eu estamos começando finalmente a nos entender, e eu não quero deixá-la esperando." Ela apertou minha bochecha antes de sair, radiante.Jason estava me
esperando para voltar à pista de dança."Hey," ele disse. "Parece que as coisas estão se acertando por aqui. Eu poderia aproveitar e tomar uma xícara de café. O
que você acha?" "Ótima idéia," eu disse. "Mas eu estou de castigo, lembra-se?" "Eu não acho que sua mãe vai lembrar." Eu olhei no sentido que ele apontava. Minha
mãe e Kitty estavam conversando animadamente, enquanto meu pai estava sentado lá com Sara dormindo em seus braços, parecendo entediado. E quando eu fui até eles
e disse, "Um, hey. Tudo bem se eu for pegar um café com Jason? Eu juro que eu vou direto pra casa depois," Minha mãe disse apenas, "Avise se você for chegar após
dez," e voltou para sua conversa. Wow. É espantoso o que um pequeno casamento pode fazer para melhorar a alma.
"A popularidade é a coisa a mais fácil no mundo para se ganhar, e a coisa a mais dificil para manter." -Will Rogers
Capítulo 35 SÁBADO, 2 SETEMBRO, 11 P.M. Eu realmente me esqueci sobre a coisa toda do racha até que Jason e eu fomos ao Coffee Pot- nos sentido bem e feliz pelo
casamento e pelo amor que sentíamos um pelo outro- e encontramos justo Mark Finley e Lauren Moffat, dirigindo para o ATM. Alyssa Krueger estava com eles. Assim
como Sean de Marco, Todd Rubin, e Darlene Staggs. O grupo inteiro, junto outra vez. Só que ninguém pareceu muito feliz sobre isso. Pelo menos, não sobre me ver.
"Bem, bem, bem," Lauren disse com sarcastico. "Se não é Steph Landry, a maior afundadora de festa do mundo."E a felicidade que eu vinha sentido o dia inteiro,
por saber que Jason me ama, escureceu. Apenas um pouquinho. Isso é o que o veneno de Lauren Moffat pode fazer com uma garota. Mesmo uma Garota recentemente apaixonada.
"Qual é, Lauren," Jason disse. "Não pega no pé dela. Vocês teriam destruido o lugar, e você sabe disso.""Um, eu estava falando com você, nariz grande?" Lauren
perguntou.Foi como se algo de repente se quebrasse dentro de mim. Apenas isso. Como se de repente eu me transportasse de volta à escola média de Bloomville e Lauren
tenha me acusado primeira vez de bancar a Steph. Só que agora ao invés de ser cordial como aos 12 anos, que apenas se pôs de pé e saiu, eu estava mais forte, independente
de estar com dezesseis, e não iria deixa Lauren fazer seu drama. "Quer saber, Lauren?" Eu disse, indo em direção a ela. E eu acho que ela deve ter sentido que
algo tinha mudado, porque ela deu um passo rápido para trás, como se achasse que eu fosse bater nela, ou algo assim. Como se ela não soubesse o processo que o pai
dela colocaria em mim."Eu sou cheia de você," Eu disse, com minha cara acima da dela. "Eu cometi um erro - derramei uma bebida em você - no qual eu me desculpei
profundamente E lhe dei uma saia nova, e você ainda usa isso contra mim. Por CINCO anos. Não só vem usando isso contra mim, como certificou-se que todos na escola,
também. E agora você quer me jogar para baixo outra vez? Muito bem. Mas eu estou te avisando, se vai fazer dessa vez? Então faça melhor. Porque há muito mais Steph
Landrys no mundo- pessoas que fazem coisas estúpidas em público, pessoas que não tem o cabelo perfeitamente no lugar o tempo todo, pessoas que não tem pais ricos
para comprar um carro novo a cada ano - e que não estarão escravas da beleza como você. E se você não começar a se dar vem com nós, seu egoísmo levará você a ficar
muito, muito solitária."Eu estava olhando fixamente para os olhos de Lauren. E assim eu o vi. Esteve lá somente por um instante. Mas definitivamente esteve lá.
Uma cintilação do medo. Então balançou seu cabelo dourado longo e disse, "Deus, sai do meu pé. Se eu sou uma pessoa tão terrível, como é que eu estou aqui com
muitos amigos, enquanto você só está aqui com" - ela olhou para Jason fixamente de cima para baixo "aquilo?"Certo, agora eu iria bater nela. Pelo que ela tinha
dito sobre Jason.Mas antes que eu pudesse pular em seu pescoço, Darlene parou entre nós, e disse, "Na verdade, Steph, eu estou contente em nós encontrarmos aqui.
Há um novo filme de Brittany Murphy na cidade, e eu queria saber se você quer ir ver amanhã comigo."Eu olhei fixamente para Darlene. Assim como Lauren também olhou.
E Alyssa e Mark e Sean e Todd. Mas Todd sempre olha fixamente para Darlene, então isso não era particularmente incomum. "Um," Eu disse, totalmente confusa sobre
o que estava acontecendo. "Sim. Certo. Ficarei feliz em ir.""Darlene," Lauren disse em uma voz gelada. "O que você esta fazendo?""Fazendo planos para ir ver
um filme com uma amiga," Darlene respondeu. Não havia nada diferente em seu tom de voz. "Você se importa?" Os olhos cheio de maquiagem de Lauren se estreitaram.Mas
antes que Lauren pudesse dizer alguma coisa, Alyssa andou para longe dela, até ficar ao meu lado. "Hey," Alyssa disse. "Tudo bem se eu for com vocês também pessoal?"
Darlene me olhou. Eu olhei para Darlene. E percebi que isso não era sobre ir ver o filme. Bem, era. Mas não era só isso, ao mesmo tempo. "Claro," Eu disse
a Alyssa. "Você pode vir." Então, recordando o conselho do livro, adicionei, "Quanto mais melhor.""Ótimo," Alyssa disse. E sorriu para mim. Era o primeiro sorriso
que eu tinha visto em sua cara há dias. "Certo," Lauren disse, soando impaciente. "O que está acontecendo aqui? Você tem cheirado cola?" Darlene a ignorou. "O
que vocês vão fazer agora?" perguntou a mim e a Jason. "Um," Jason disse, apontando a porta do café. "Nós estávamos indo tomar um café....""Oh, yum," Darlene disse.
"Eu poderia aproveitar e tomar café. E você, Alyssa?""Eu amo café," Alyssa disse. "Tudo bem se nos juntarmos a vocês?" Jason me olhou com suas sobrancelhas
levantadas. Eu dei de ombros. "Hm," Jason disse. "Claro?""Ótimo!" Alyssa empurrou a porta do café Pot - estabelecimento que ela certamente nunca antes tinha
colocado os pés na vida - e entrou, Darlene entrou logo em seguida....Entretanto Darlene girou e olhou para trás, para Sean e para Todd."E vocês vem?" ela perguntou
a eles. "Ou não?"Todd olhou de Darlene para Mark, e então olhou outra vez. Então disse a Mark, encolhendo os ombros, "Desculpe, cara." Então ele e Sean seguiram
Darlene para dentro. Jason e eu nos olhamos. Então ele abriu a porta para mim e disse, "Depois de você."Eu entrei. Darlene e Alyssa e Sean e Todd tinham sentado
na mesa sobre a janela. Acenaram para nós - como se não poderiamos encontrá-los já que eram eram as únicas pessoas no lugar inteiro, além de Kirsten, que disse,
"Ah, oi! O de sempre?" a nós."O de sempre," Jason disse. E adicionou então, "e nós estamos com eles," e apontado para a mesa que Darlene estava sentada. Kirsten
levantou suas sobrancelhas. "Amigos novos?" perguntou, parecendo impressionada. "E você tentou me dizer que você não é popular!" Então passou por nós para fpegar
os pedidos. Apenas isso.Apenas isso, ela supôs que estávamos sendo modestos sobre não ser popular. Foi quando eu disse a Jason, "Espere um minuto." E voltei
para fora. "Hey," Eu disse a Lauren e a Mark, que estavam andando lentamente. Lauren virou. E eu vi que algo que eu nunca esperei ver em minha vida. Ela estava
chorando. "O que é?" perguntou. "Eu só" eu engoli. "Eu só queria saber se vocês não querem se juntar a nós." "É você é completamente retar-"Mas antes que
Lauren podesse terminar, Mark colocando um braço nela nos ombros dela e disse, "Obrigado, Steph. Nós adoraríamos.""Mas" Lauren ganiu. Mas eu acho que Mark a
tenha dado um aperto realmente bom, porque tudo que ela disse foi, "Que seja."E me seguiram para o Pot. Que apenas serve para mostrar - não importa o que qualquer
um diz - que os conselhos do livro? Realmente funcionam.
Capítulo 36 DOMINGO, 3 SETEMBRO , 12 A.M. Mais tarde naquela noite, eu entrei no banheiro e olhei pela da janela - completamente como força do hábito. Eu NÃO
estava espionando ele - para ver o que Jason estava fazendo.Ele tinha coberto suas janelas com gigantes tiras de papel-pardo. Mas tudo bem. Porque nelas, ele
tinha escrito com estrelas que brilham no escuro:Boa noite, Crazytop.
PEDRO IVO

CONTOS

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.



CONTOS

PEDRO IVO








BIBLIOTECA INICIAÇÃO LITERÁRIA
Volumes publicados:
1 - A CIDADE E AS SERRAS, por Eça de Queiroz.
2 e 3 -OS MAIAS (2 vols.), por Eça de Queiroz. 4 - A RELIQUIA, por Eça de Queiroz. 5 - O MANDARIM, por Eça de Queiroz.
6 - ROMANCES VELHOS EM PORTUGAL (Estudos sobre o Romanceiro Peninsular), por Carolina Michaëlis de Vasconcelos. 7 - EUSÉBIO MACÁRIO, por Camilo Castelo Branco. 8 - A CORJA, por Camilo Castelo Branco. 9 - A CORRESPONDÊNCIA DE FRADIQUE MENDES, por Eça de
Queiroz.
10 - O CRIME DO PADRE AMARO, por Eça de Queiroz. 11 -UMA CAMPANHA ALEGRE, por Eça de Queiroz.
12 e 13 - NOVELAS DO MINHO (2 vols.), por Camilo Castelo Branco. 14 - O PRIMO BASILIO, por Eça de Queiroz. 15 - A ILUSTRE CASA DE RAMIRES, por Eça de Queiroz. 16 -AMOR DE PERDIÇÃO, por Camilo Castelo Branco. 17 e 18 - PORTUGAL CONTEMPORÂNEO (2 vols.), por Oliveira Martins.
19 - A QUEDA DUM ANJO, por Camilo Castelo Branco. 20 - CONTOS, por Eça de Queiroz.
21 e 22 -UM ANO NA CORTE (2 vols.), por Andrade Corvo. 23 - A HOLANDA, por Ramalho Ortigão. 24 - O BRASILEIRO SOARES, por Luís de Magalhães. 25 - CONTOS, por Fialho de Almeida. 26 - O BALIO DE LEÇA, por Arnaldo Gama. 27 - VULCÕES DE LAMA, por Camilo Castelo Branco. 28 - LENDAS E NARRATIVAS, por Alexandre Herculano.
29 - AS MINAS DE SALOMÃO, por Rider Haggard, tradução revista
por Eça de Queiroz.
30 - O CONDE D'ABRANHOS, por Eça de Queiroz. 31 - MARIO, por A. Silva Gaio. 32 -ALVES & Ce, por Eça de Queiroz. 33 - LIRICA, por Almeida Garrett.
34 - O PRATO DE ARROZ DOCE, por Teixeira de Vasconcelos. 35 - CAMPO DE FLORES, por João de Deus. 36 - HOMENS E DATAS, por Alberto Pimentel. 37 - CONTOS, por Pedro Ivo.
A publicar:
SONETOS, por Antero de Quental.
TESOURO POÉTICO DA INFÂNCIA, por Antero de Quental.






PEDRO IVO
CONTOS
LELLO & IRMÃO - EDITORES
PORTO
A meu pai






-O MILAGRE
CORRE a manhã de um domingo de Novembro, frio, triste e chuvoso.
Na única rua da aldeia, formada por meia dúzia de casas térreas, -separadas umas das outras pelos muros de vedação de algumas hortas, onde raros pés de couve, queimados pelas geadas, se erguem de entre as ervas parasitas, não transita viva alma.
As únicas criaturas, que vagueiam fora de telhas, são um porco e um frango: o primeiro, na sua marcha tortuosa e indecisa, vai roçando com o focinho quanto encontra no chão, soltando o monótono grunhido que, em língua suína, deve exprimir: "Serve-me", "Não me serve", e o segundo, caminhando em passo presumido, vai vasculhando no lixo o pão de cada dia.
Não se ouve outro ruído, que não seja o das gotas da chuva, que caem das beiras dos telhados.



8
Aberta, apenas se vê uma porta.
Entremos.
Eis-nos na tenda do Sr. José... da Tenda.
Não sei se os leitores se têm, como eu, recolhido algumas vezes numa tenda de aldeia, à espera que a chuva passe.
Se têm, conhecem decerto o desconsolo que causa a vista daquele solo composto da lama acarretada pelos tamancos de quatro gerações, o aspecto do balcão negro e ensebado, suando imundície por todos os poros da madeira, com o bordo polido pelo roçar dos fregueses, fartos de escutar pela vigésima vez a história de dois cruzados-novos e três moedas de doze falsos, e pregados ao mesmo balcão, como prova da pureza de alma do tendeiro e da perversidade dos homens que não são tendeiros.
E a forma patibular das balanças, cujo fiel, no dizer dos fregueses, prova contra a consciência Ido tendeiro?
E a grade de ripas, fixas ao cabo do balcão, por detrás da qual se vêem dois ou três destes copinhos, vulgarmente chamados meios netos, e outros tantos cálices da capacidade dum dedal, flanqueados por duas botijas de genebra e uma garrafa branca, onde se lê: "Licor de canela"?
E o tendeiro?...
E os fregueses?...
Falemos destes e daquele.
Principiemos pelo dono da casa; mas sem gastarmos muito tempo.



9
Façamos uma espécie de passaporte.
Alto, magro, olhos pequenos, mas vivos, barbas em forma de presilhas, lábios finos, nariz adunco, e, a animar todas estas feições, um raio do que quer que seja, a que talvez se deva chamar alma, que lhe dá um ar de refinado velhaco.
Tem na cabeça um boné tão lustroso de sebo, que parece feito de algum bocado de madeira, arrancada ao já descrito balcão.
O resto do corpo esconde-o ele debaixo de farto capote de dois cabeções, cujo forro, num ou noutro sítio, começa a mostrar-se indiscreto.
Com o queixo fincado no peito e os braços cruzados debaixo do capote, passeia vagaroso de um para outro lado da loja, separados dos fregueses pelo balcão.
Destes estavam, àquela hora, na tenda, apenas quatro.
Três eram, inquestionavelmente, pedreiros, a avaliar pelo sentido da conversa.
O quarto, que também já pela quarta vez fizera encher o cálice de genebra, pertencia com certeza à classe ultimamente vulgar dos contratadores de gado, raça atlética, cujo brio consiste em beber uma canada -de vinho verde dum trago ou em quebrar os dentes de um cristão com um murro; fanfarrões de feira, que põem o passo travado ido seu garrano de jornada acima das virtudes domésticas da mulher; que preferem às carícias dos filhos as cruas ferezas dos seus cães de fila; que os amigos da taberna alcunham de



10
francos e alegres, e que as mulheres, em casa, consideram déspotas e rabugentos.
Estava ele erguendo o cálice, para o levar aos lábios, quando o que parecia mais velho dos três pedreiros disse, voltando-se para o dono da casa:
- Então com que, Sr. José, o Manuel da Maria Rita parece que está a acabar?
-Parece que sim -respondeu o tendeiro. - Pelo menos o Senhor Cura já hoje o foi ungir.
-Pois olhe que era bom rapaz-tornou o pedreiro.
- Lá isso era! - entoaram os outros em coro.
- E bom oficial da nossa arte!
-Lá isso era! -repetiu o coro.
- E homem capaz -continuou o velho.
O coro ia proferir pela terceira vez o seu: "Lá isso era!" quando o contratador, que estivera calado até então, bradou, rubro de cólera e dando um murro sobre o balcão:
-Lá isso é que não era!... É um tratante... um caloteiro! Teve dinheiro para se tratar a galinha e para mandar vir o endireita do Porto, em vez de ir para o hospital, e não teve dinheiro para me pagar seis meses do aluguel!... Mas deixa estar! - prosseguiu ele. - Eu vou lá, e ou me paga ou leva-os o Diabo a ele e à mulher!
E arremeteu pela porta fora, brandindo o pau argolado.
os três companheiros do doente curvaram a




11
cabeça, aterrados provavelmente pela ideia do que um dia lhes viria a acontecer, se, por causa de uma prancha podre, tivessem a infelicidade de cair de um terceiro andar, sem terem a compensação de morrerem imediatamente.
O tendeiro foi o único que falou, rosnando por entre dentes:
- Judeu!...
E tinha razão o Sr. José... da Tenda. Aquilo não fazia ele.
Agora fazia!... Olha quem!.. Ele, que, ainda oito dias antes, tinha tomado contado cordão de ouro da mulher do enfermo, só para não ter o desgosto de lhe não continuar a vender... fiado!
II
À hora em que se passava a cena que acabamos de descrever, outra muito diversa tinha lugar numa casinha um pouco distante - a casa do infeliz pedreiro.
O leitor, naturalmente, não tem sofrido privações, nem imagina, decerto, sequer o martírio de quem ama e vê descer, lentamente, para o túmulo, quem até então lhe fora protector e ganha-pão.
O leitor, que, quando Deus lhe chama de novo a si um ser estremecido, sente um santo e orgulhoso alívio em dizer: "Ao menos não lhe faltou nada!" acaso conceberá os dolorosos transes

12
porque passa a desgraçada mártir que, para ocorrer às despesas de uma longa doença, vai vendendo, uns atrás de outros e a vil preço, o cordão de ouro economizado nas férias que o honrado marido entregava intactas aos sábados, as arrecadas devidas ao produto da roca, dessa ímproba tarefa dos serões, o bragal que a santa da mãe lhe deu quando casou, o anel que o padrinho de casamento, que o fora também de baptismo, lhe meteu no dedo no dia de noivado!?
Compreenderá, porventura, o que ela deve sofrer, quando, lançando os olhos em roda para fazer o inventário do que ainda pode vender, encontra, além da roupa que traz, o catre onde agoniza o marido, e o Cristo que agoniza na cruz dentro do santuário, que, transmitido como herança de pai a filho, chegou ao seu poder!?...
Basta!... O leitor nunca pensou nisto, mas compreende-o agora.
A morte antecipara-se e a notícia, contra o costume das aldeias, ainda não tinha chegado à loja do tendeiro.
De costas na modesta enxerga, com as mãos cruzadas sobre o peito, jazia o cadáver, a quem a mãe, santo e venerando tipo de velha, acabava de cerrar os olhos, depois de lhe amarrar os queixos com um lenço.
No rosto rígido do infeliz lia-se que a alma se ausentara, mais atribulada pela incerteza da sorte dos que deixava na terra do que pelo receio do que a aguardava além da campa.


13
Do outro lado do leito, com as mãos convulsivamente enlaçadas, os lábios trémulos entreabertos, o olhar enxuto mas -desesperado, a esposa não retirava os olhos do rosto do cadáver, e balbuciava de vez em quando e como quem duvida:
- O meu Manuel!
Sentada num cepo, em que se rachava a lenha, estava uma vizinha ainda jovem, sustentando nos braços uma menina de três anos, ao passo que com o pé embalava uma canastra, berço improvisado, onde dormia uma criancinha ainda de peito.
A pobre jovem, contemplando o rosto risonho da criança que dormia a seus pés, apertava ainda mais carinhosamente ao seio a outra filhinha da vizinha, e sentia-se gelar de medo, só com lembrar-se ide que podia ser ela a viúva, de que podia ser órfão o seu próprio filho, travesso rapaz de dez anos, que, com a indiferença própria da idade, se indemnizava do silêncio forçado, recortando estampas e, colocando-as depois nos vidros da única janela do aposento.
A mãe acabou finalmente a sua piedosa tarefa.
Que tarefa!... a toilette dum morto!
Que de angústias, que de recordações de dias
felizes e tristes, de raios de sol e de tormentas!
Com que escrupuloso cuidado se examina,
peça por peça, o modesto linho do defunto! Não serve esta camisa por estar velha, aquela





14
por ter uma nódoa do ferro, estoutra porque ele em vida não gostava dela, e este escrúpulo, esta santa vaidade repete-se a cada uma das diferentes peças do vestuário, e tudo isto entrecortado por frases saídas da alma, por suspiros filhos da mais pungente dor!
-Meu rico filho!... - murmura a mãe. - Meu Manuel!... Quem diria que havias de ir antes de mim!... Essas meias não, Maria... São muito velhas... Deixa ver as que fizeste o Verão passado...
- Meu querido homem!... Não foi para isto que eu tas fiz!... Tome lá, minha mãe... É a última despesa que se faz com ele, que nos amparava a nós!...
E as lágrimas irrompem, e o peito estala, e o cabelo encanece, e vivem-se anos em minutos,
e os braços cingem-se em frenético abraço ao corpo inanimado, e a dor redobra, e os lábios ardentes de febre colam-se aos lábios sem vida de quem era metade da nossa alma!
Lança a velha por fim a ponta do lençol sobre o rosto do finado.
A criancinha no berço acorda, soltando um queixume. É o sofrimento do-amanhecer da vida a contrastar com a derradeira dor do ocaso da existência!
A pobre viúva ergue a fronte; lembra-se, pela primeira vez, que é mãe; corre ao berço, ergue
o filho, devora-o com beijos e acaba por oferecer-lhe o peito.



15
A criança, porém, não cessa de chorar, e a desgraçada, depois de lutar alguns instantes contra uma ideia horrível, empalidece e contempla o filho com olhos onde a demência transluz.
Pobre mulher!
A esposa tinha morto a mãe; a dor da viuvez secara-lhe no seio a sagrada fonte da vida; o leite transformara-se em pranto!
Não proferiu a triste uma palavra; a vizinha, porém, com o infalível tacto das mães, tudo adivinha, e, tirando-lhe dos braços com amorosa violência a criancinha, dá-lhe o peito, que ela já começava a pensar que estaria fazendo falta ao próprio filho, que ficara em casa, e diz apenas, com voz em que se revela a verdadeira fé:
-Maria, Deus é pai de misericórdia!
A pobre mãe cravou na amiga olhos em que a gratidão se ia de envolta com a inveja e, escondendo o rosto entre as mãos, balbuciou:
-Seja feita a sua vontade!
Ouvia-se apenas, naquele instante, no quarto,
o som da água benta, que o cura trouxera numa garrafa, a cair no copo, onde a velha a estava despejando, depois de lhe haver metido um ramo de alecrim.
E, como que a tornar mais carregado aquele quadro de dor, só se via indiferente e descuidado
E rapazito, que continuava a pregar estampas na janela.

16

III
Dez minutos teriam decorrido num silêncio apenas cortado pelo sussurro das orações da velha, a quem as agonias de uma vida de sessenta anos já haviam ensinado a só procurar auxílio em Deus, quando a pedra, que calçava a porta, veio saltar ao meio do quarto, e esta se abriu deixando aparecer o vulto espadaúdo e o rosto afogueado do contratador de gado.
A viúva nem sequer se moveu; a mãe do finado, porém, alçou a cabeça e ao reconhecer o implacável senhorio revelou, pelo tremor dos lábios, o medo que a dominava.
Só a vizinha, menos directamente ameaçada pelo perigo, cobrindo o peito e aconchegando o lenço ao rosto da criança, perguntou com voz mal segura:
- Vossemecê que quer, Sr. Joaquim?...
-Quero que me paguem! - bradou o energúmeno. - Deixemo-nos de choradeiras!... Quem deve paga e eu só peço o que me devem. Esse senhor, que aí está a fingir que dorme, que responda, pois eu com mulheres não me entendo!
A velha ergueu-se, como obedecendo a oculta mola, e, levantando a ponta do lençol, mostrou com o dedo a face gelada do cadáver.
-Deus decerto o está ouvindo a ele no Céu; mas ele... já nos não ouve a nós! -disse ela.




17
E, tornando a cobrir a cabeça do morto, sentou-se.
Que se passou nesse momento na alma do Sr. Joaquim?!... Assaltou-a o remorso?... Amoleceu-a a compaixão?...
Sentimos dizer que nenhum desses sentimentos a agitou.
E, note-se, não foi porque ele fosse mau e cruel.
Valha-nos Deus!... Não foi, porque o não era.
Recite o leitor uma poesia de Soares de Passos a qualquer que não tenha recebido instrução; conte uma acção do anónimo Y a um avarento; diga a um homem sanguíneo e vingativo que o Cristo manda oferecer a face esquerda a quem lhe esbofetear a direita... e nenhum destes o compreenderá.
A sensibilidade requer educação, como tudo o mais, e foi por isso que, quando a velha se calou e o Sr. Joaquim não pôde duvidar da morte do devedor, o seu primeiro movimento foi analisar a mesquinha mobília, derradeiro resto daquele naufrágio de uma vida inteira de trabalho, que veio despedaçar-se, impelida pelas vagas da desventura, nos cachopos fatais em que irremediavelmente vai a pique a barca do pobre, e que se chamam no mundo -miséria, doença e morte! - e no Céu - provações!
O olhar do Sr. Joaquim foi um verdadeiro balanço dos haveres do pobre pedreiro, e foi preciso um esforço sobrenatural para não exclamar: "Estou roubado!"
2







18


E o caso é que, no íntimo da consciência, se considerava roubado.
Depois de breve silêncio, o Sr. Joaquim, que não podia esquecer a que viera, disse:
- Bem!... Está morto... acabou-se!... Não se lhe dá volta; é rezar-lhe por alma... Agora o que importa é saber como hei-de receber... E nada de choradeiras!... - continuou ele, atalhando um gesto suplicante da mãe do pedreiro.
A viúva ergueu então pela primeira vez a fronte, e, pondo nele os olhos angustiados, murmurou:
- Ó Sr. Joaquim... Eu como lhe hei-de pagar?!... Vossemecê bem vê o que aqui há... Aquela caixa de ferramenta que ali vê, essa mesma!... já nos não pertence... Emprestou-me sobre ela uma moeda o tio Zé Pedro...
- Pois daqui não sainada e que leve o Diabo G Zé Pedro!... O aluguel é a primeira coisa que se paga, e você, tia Maria, -depois de amanhã despeje-me a casa! -retorquiu o terrível credor.
- Ó Sr. Joaquim... pelas suas alminhas!... Pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! -balbuciou a pobre vizinha, com os olhos rasos de água, imaginando que a sua intervenção seria bem aceite.
Bem depressa, porém, perdeu a ilusão, ouvindo o Sr. Joaquim gritar como um possesso:
-Quais chagas, nem meias chagas!... Nem que Jesus Cristo cá viesse pedir por eles!



19
Ainda bem não tinha proferido a blasfémia, quando o roxo -da cólera se lhe mudou no rosto em lividez do medo; os olhos dilataram-se-lhe; erriçaram-se-lhe os cabelos, e, caindo primeiro de joelhos e em seguida de rosto no chão, bradou com assombro de todos:
-Perdão, Senhor, perdão!
Assim esteve alguns minutos, ao cabo dos quais, erguendo-se e apontando para o leito, onde jazia o cadáver, exclamou quase desvairado:
- Estava ali... não viram?... Estava ali... Estava, que eu bem o vi!...
E, voltando-se para a viúva, prosseguiu com unz suplicante:
- Perdoe, Sr a Maria!... Pague-me quando quiser... ou não me pague nunca... É o mesmo!... Sabe que mais?... Em precisando de lenha, ou de um bocado de fumeiro, ou de quaisquer seis vinténs para uma necessidade, mande lá a casa... Tome lá para os seus arranjos... - continuou ele, metendo na mão da viúva algum dinheiro. - É para si; não o gaste em missas... Quem tem o Senhor a pedir por si não precisa de missas!
E saiu como louco, deixando os espectadores desta cena indecisos sobre a verdadeira causa de semelhante proceder.
Dias depois, indo o Sr. Joaquim falar com o padre, confessou-lhe que, mal desafiara Cristo a vir interceder pela família do pedreiro, lhe aparecera







20
a imagem do invocado sobre o peito do defunto.
O cura, conhecendo quanto este incidente, a que ele de si para si chamava visão do remorso, o podia auxiliar na difícil tarefa de reconduzir ao aprisco algumas ovelhas tresmalhadas, impôs-lhe, como penitência, publicar o ocorrido, sem ocultar circunstância alguma.
E assim se soube este milagre, que nós, mais vaidosos do que o cura e mais fiéis da aldeia, vamos explicar.
Lembram-se do rapazito da vizinha, que se distraía à janela recortando estampas e colocando-as nos vidros?
Como verdadeira criança, cansado do longo silêncio e já aborrecido do brinquedo, começou a esfaquear as estampas com uma pequena navalha.
Já apenas lhe restava uma-um exemplar grosseiramente colorido da cabeça do Redentor, representado, como no-lo pinta a tradição, quando Pilatos o mostrou ao povo, dizendo: Ecce
Homo!
O pequeno, vendo quase a acabar o divertimento, e inspirado pelo espírito de destruição, colou a estampa no vidro, e, em seguida, começou a golpear a imagem sistematicamente, isto é, seguiu com a ponta da navalha todas as linhas dos contornos; depois, requintando, arrancou-lhe o branco dos olhos, fendeu-lhe a boca, despegou-lhe o nariz das faces, e, prosseguindo





21
sempre, acabou por fabricar com mão inconsciente o que todos conhecemos sob o nome de
sombrinhas.
Ao terminar esta horrível mutilação, proferia o Sr. Joaquim a sua cruel blasfémia; mas o sol, que até ali se conservara encoberto, raiou de repente e só o tempo bastante para operar o milagre, e, coando por entre os golpes e claros que o pequeno praticara na estampa, veio reflectir sobre o peito do cadáver a resignada e austera cabeça do Redentor, fulminando o insolente que ousara reptar a Divindade.
Ainda hoje, em duas léguas ao redor da aldeia, chama o povo a isto - o milagre!
E o leitor como lhe chama?
Eu, desprezando - neste caso - a sua opinião, seja ela qual for, dir-lhe-ei que, atendendo a que Deus pode tomar a forma que mais lhe aprouver para se manifestar, também lhe chamo - MILAGRE!




A SENTENÇA DA TIA ANGÉLICA
I
QUEM quer ir comigo ao ribeiro?...
Venham daí, que não hão-de arrepender-se. A feia e a bonita, a filha do lavrador e a jornaleira, a velha e a moça-numa palavra... todas as mulheres da aldeia, reúnem-se ali.
As distinções terminam entre elas, desde que ajoelham, umas a par das outras, com as mangas arregaçadas, e as cabeças pendidas para a pedra lavrada, em que ensaboam a roupa.
Se a tenda é o club dos homens da aldeia, o ribeiro é, com certeza, a assembleia das mulheres do campo.
Vinde, pois, se quereis saber a razão por que o Manuel Tamanqueiro deu ontem à noite uma tareia na mulher; vinde, se desejais descobrir o nome da rapariga a quem o Senhor Abade se referia na última prática que fez, à missa do





24
dia, no domingo passado; vinde, finalmente, para ficardes ao facto das importantíssimas -questões que se discutem neste ponto do globo, nesta pequena aldeia, assente numa baixa e encurralada entre montanhas.
Segui-me, pois conheço um atalho por onde se encurta metade do caminho.
Vamos lá!
Saltamos este pequeno muro, seguimos o carreiro traçado entre o trigo, levantamos o ferrolho daquele portelo, atravessamos o pequeno pinhal além, galgamos outra parede - cuidado com as silvas! -e estamos no monte, que vamos descendo até à presa, formada pelo ribeiro, de onde nos chega já o som das vozes das lavadeiras!
Eis~nos ao pé delas... Estão poucas hoje!... Uma... duas... cinco apenas.
Duas andam a estender a roupa; outras duas, mulheres entre trinta e quarenta anos, acabam de esticar pela terceira vez um lençol, que vão torcer; a quinta é uma simpática figura de velha, rastejando pelos setenta, curvada sobre a pedra em que apoia a mão esquerda, enquanto com a direita agita um pano dentro da água.
A última, indiferente até então ao palrar das duas que estão torcendo o lençol, parece que lá lhe chegou, por fim, aos ouvidos palavra que a incomodou, porque as feições lhe traíram doloroso espanto, e a mão parou de agitar a peça de roupa.
Escutemos, como ela.

25
- Ó Maria!... Isso não pode ser... - diz uma delas.
-Acredita, Ana... Olha que é verdade!... Puseram-se de mal, e disse-me o António da Capela que o Sr. Joaquim já fora à vila falar com dois letrados!... -respondeu a outra.
- Vocês que estão aí a dizer, ó raparigas? - perguntou então a velha.
-Pois a tia Angélica não sabe?... Foi o Senhor Joaquim do Adro, que se arrenegou com o Sr. Manuel da Portela, por mor da água, e diz que ainda que gaste quanto tem, que há-de mostrar ao Sr. Manuel que ainda tem amigos...
- Ora veja a tia Angélica! - atalhou a outra. - Então aqueles, que eram amiguíssimos!... Para onde ia um, ia o outro; quando um tinha um filho, já se sabia quem eram os padrinhos... Estou varada!
- Isso não pode ser! - afirmou -a velha. - Não são homens que esqueçam que as mulheres são irmãs uma da outra! Nada; aí há coisa... Se aqueles dois se põem de mal, o que há-de ser da gente da terra?!... Os dois lavradores maiores... Tão amigos desde pequeninos... Nada; aí há coisa!...
E a velha, retirando a peça de roupa, torceu-a, acamou-a junta com outras dentro de um pequeno alguidar, ergueu-se, pô-lo à cabeça e retirou-se, dizendo às duas:
-Isso não pode ser... Aí há coisa!. Adeus, raparigas!

26
- Adeus, tia Angélica - responderam as outras.
Quando a velha ia já a distância de as não poder ouvir, disse a Sr.a Maria:
-Coitada! a tia Angélica não gostou da notícia...
- Se te parece... - observou a Sr.a Ana. - Se a pobre de Cristo deve tantas obrigações a ambos...
-Não que eles também, quer uns quer outros, tudo aquilo é boa gente!... - redarguiu a Sr.a Maria.
-E, então, esmoleres... até ali - respondeu a Sr.a Ana.
Neste momento foram as duas interrompidas pela voz fresca e vibrante de uma das raparigas -que andavam a estender a roupa, cantando para amenizar o trabalho:
O sabão as nódoas tira,
Tudo se lava com água...
Nem um nem outra me tiram, Me lavam a minha mágoa.
II
O leitor decerto já percebeu que um acontecimento de vulto tinha vindo afinal quebrar a monotonia daquele plácido viver da aldeia.
O sol desaparecera havia pouco, quando a tia Angélica chegou ao povo.




27
Os lavradores, entregues ao prazer da conversa, que corria em voz discreta, tão entretidos estavam, que só à segunda badalada das Ave-Marias é que tiraram os chapéus.
Agora, que eles se benzeram e trocaram os "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo", acerquemo-nos dos diferentes grupos.
Não tem que ver; não se fala de outra coisa.
Ninguém quer acreditar que os dois maiores da terra estejam de mal; e, coisa notável!... ninguém se pronuncia por este ou por aquele! Não se ouve a voz do ódio, que exulta; não sibila a frecha ervada da inveja; não se nota o miserável prazer do mexerico!
Pelo contrário: conhece-se uma sincera consternação, causada pela desavença dos dois lavradores; vê-se que é real o desejo de reconciliação; não se ouve citar um facto que deslustre qualquer dos dois amigos tornados inimigos, ao passo que se apontam dúzias de boas acções, praticadas por ambos, quer individualmente, quer em comum.
e era merecida a justiça que lhes faziam.
Nascidos no mesmo ano, Joaquim, do Adro, e Manuel, da Portela, tinham crescido juntos, ligados sempre por, até então, jamais quebrantada amizade.
Na escola, se um apanhava meia dúzia de bolos, já o outro sabia a conta que tinha a receber pouco depois, porque o crime de um era sempre o crime do outro: ou não sabiam a lição






28
por causa do mesmo ninho de melro, ou tinha cada um deles atirado a sua pedra tanto ao mesmo tempo e com tão igual certeza de pontaria, que -era impossível descobrir qual dos dois tinha quebrado as telhas do vizinho.
Mais tarde, no tempo das verduras de rapazes, bem precavido devia andar quem quisesse mal a qualquer deles, pois, quando apenas julgava encontrar um, achava com certeza dois marmeleiros, que consideravam a solidariedade como ponto de religião, tanto no ataque como na defesa.
O amor, finalmente, fez-se sentir em ambos ao mesmo tempo, e parece que Deus folgava com a aliança daquelas duas almas, porque de amigos, que eram, fez deles irmãos, guiando-lhes a escolha para duas irmãs, filhas de um abastado lavrador.
Igualmente honrados e ricos, sem segredos entre si, afeiçoados às cunhadas em quem viam irmãs, e aos sobrinhos, em quem, nos seus momentos de expansão, se compraziam a talhar futuros genros, que admira que a amizade da infância justificada pelo correr -dos anos, se transformasse em sentimento fraterno?
Bons e activos, eram eles a vida daquela aldeia; era a eles que os braços iam pedir trabalho e os corações conselho.
Não havia no povo quem lhes não devesse algum favor, e eram abençoadas as panelas daquelas duas casas, pois, por mais que fossem os




29
pobres, nunca elas tinham deixado de ter no fundo uma tigela de caldo!
Não ficará suficientemente explicada a consternação dos habitantes da aldeia?!
É tempo, porém, de contarmos o que deu lugar à quebra daquela amizade de tantos anos, e para isso basta dizer em poucas palavras o que Madalena, mulher dde Joaquim do Adro, e Rosa, esposa de Manuel da Portela, contaram por entre lágrimas, e cada qual por sua banda, à tia Angélica, quando esta -em separado as interrogou.
Corria um Julho ardente, como os velhos de setenta anos se não lembravam de ter sentido; a água escasseava por toda a parte, e o milho abrasado pelo sol mirrava, pendendo para a terra, que expelia o calor por um sem-número de fendas, abertas como outras tantas bocas sequiosas.
Entre os campos, que mais estavam sofrendo, sobressaía um: a melhor peça dos bens de Manuel da Portela, o seu orgulho de lavrador!
Regado até então por abundante manancial, ou Deus lho secara na origem, querendo assim ver como o lavrador receberia uma provação, ou proprietário, arriscado a igual desgraça, lha desviarado curso natural.
Manuel da Portela, prevendo a última hipótese, caminhara um dia inteiro ao longo da veia, que lhe trazia o sangue da sua terra, e só parara quando aquela findou aos pés de um outeiro, base de outro monte mais elevado.




30




Era ali, naquele monte, que nascia a sua água?...
Deus sabe os desejos que teve de revolver o seio do outeiro!
Quando regressou, vinha triste e pensativo, e, chegado que foi ao campo, pareceu-lhe que os pés do milho, como se lhe lessem no rosto a fatal sentença, se curvavam mais para o chão, e ficou-se ali a cismar!
De repente ergueu a fronte. O rosto revelava violenta luta...
Pouco tempo durou.
Chegou-se a um jornaleiro, que recolhia do trabalho, e disse-lhe bruscamente:
-Dá cá a enxada, ó Francisco,
O outro deu-lhe a enxada, e Manuel da Portela, caminhando para o lado oposto àquele por onde antigamente era regado o campo, entrou de cavar com ardor.
Horas depois, quem se lembrasse de atravessar o campo de Manuel da Portela, molhava com certeza os pés.
O lavrador acabava de cortar a água que ia fertilizar as terras do amigo.
Joaquim do Adro tinha o gozo daquela água por um número determinado de horas.
Vendo no dia seguinte que ela deixava de correr, estremeceu.
Fez o que o amigo fizera na véspera, com a diferença de não ter de ir tão longe.
Doeu-se do abuso e sobretudo da quebra de




31
lealdade do amigo, que, por um pejo natural em quem tem a consciência de não ter obrado bem, lhe não dissera nada.
-Por isso tu não foste lá ontem à noite! - murmurou ele.
O rosto tingiu-se-lhe com o rubor da cólera, e Joaquim, obedecendo ao primeiro impulso, voou a casa do amigo.
- Tu cortaste-me a água!...
Tal foi a primeira frase que soltou.
O outro quis -desculpar-se; Joaquim do Adro azedou-se e alteou a voz; Manuel da Portela lembrou-se de justificar a acção; mas o ofendido falou nos seus direitos, e o ofensor, tornado injusto pela fraqueza da causa, replicou que Deus quando dava a água, a dava para todos, e que, uma vez que ela lhe passava primeiro à porta, se utilizava do favor de Deus.
Chegadas as coisas a estes termos, a discussão tornou-se violenta, e Joaquim do Adro declarou que as leis decidiriam entre eles, mas que estava rota a amizade que os ligava.
Joaquim do Adro saiu furioso.
Chegando a casa, a primeira cena que viu foi a mulher repartindo com escrupulosa igualdade um enorme bolo pelos filhos e sobrinhos.
- Isso!... - bradou ele -colérico. - Dá-lhes o pão a eles, já que o pai nos rouba o dos nossos!... Já daqui para fora, canalha! -continuou ele, dirigindo-se aos sobrinhos.
As pobres crianças, só afeitas às carícias de

32
quem agora as maltratava, hesitaram, cravando no tio olhos de espanto e dúvida; mas, a um gesto expressivo dele, saíram às carreiras.
Pouco depois, ouvidas as explicações dadas pelo marido por entre impropérios contra o amigo, Madalena fazia o que Rosa não cessara de fazer desde o princípio da altercação - chorava!
No dia imediato, partiam para a vila, a horas desencontradas, e entravam em casa dos mesmos advogados Joaquim do Adro e Manuel da Portela.
Quem assistisse às consultas, pasmaria de ver que ambos tinham razão!
III
Nem os bons ofícios da tia Angélica, nem a transparente alusão, feita no domingo adiante pelo abade, que terminou por esperar que quem tinha obrigação de dar o exemplo de boa vizinhança o daria, nem as lágrimas das mulheres, e a tristeza dos filhos, privados dos companheiros de brinquedo, conseguiram abrandar a inimizade dos dois lavradores.
Pequenas misérias vieram ao contrário aumentá-la.
Ao sair da missa, por exemplo, vendo que o filho se aproximava sorrateiramente do primo, Joaquim do Adro exclamou com mau modo:
- Salta já para aqui, Manuel!




33
E Manuel da Portela, em acto contínuo, deu um cachaço no filho, dizendo:
-Quem te mandou sair de ao pé de mim?
Dois dias depois, quando os moços de Joaquim ido Adro iam roçar um carro de mato, acharam tapada uma servidão, que Manuel da Portela, havia muitos anos, concedera ao amigo.
Tudo anunciava trágico desfecho, e pouco tardou o pretexto que o ia motivando.
Uma tarde, pelo escurecer, voltava do campo Manuel da Portela, quando avistou ao longe o concunhado em companhia de um outro lavrador, e, como não quisesse encontrar-se com eles, para não ter de saudar o outro vizinho, honrado velho que -ele respeitava, coseu-se com um muro, a esperar que eles passassem.
O Diabo, porém, que é tendeiro, fez com que parassem exactamente ao pé do muro, e Manuel da Portela, que estava pelo lado oposto, teve de ouvir, a par dos sãos conselhos que o bom do velho dava a Joaquim do Adro, para o acalmar, os insultos que este proferia, quando se referia a ele, que o estava ouvindo, e quase se descobre, para lhe tomar contas, quando ele terminou, dizendo e repetindo:
- Não ma tornou a cortar e tem sido a redenção dele!... Se ma corta, racho-o!... racho-o -de meio a meio!...
Ora, Manuel da Portela, na visita que fizera ao campo, achara o milho tão seco, tão seco, que estivera quase... quase a cometer de novo o
34

delito por que ameaçavam rachá-lo de meio a meio.
Ouvindo a ameaça, o delito transformou-se em justo desagravo, e, dando uma volta, Manuel foi a correr cortar a água.
Joaquim do Adro, que levava a enxada ao ombro, viu, quando chegou ao campo, a repetição da repentina seca.
Agarrar a enxada pelo meio do cabo, correr perdido e louco e chegar arfando de furor e cansaço, pouco mais tempo lhe levou do que a mim a escrever isto.
A sua primeira ideia foi realizar a ameaça e rachar o outro de meio a meio; deteve-o... não sei o quê... a mulher, os filhos, o seu bom anjo, talvez!
Ficaram os dois frente a frente, mudos, separados pelo rego da água, Joaquim com os olhos brilhantes de cólera, Manuel com os dele animados por expressão de indomável azedume.
- Queres ou não queres pôr já essa pedra no seu lugar? - perguntou finalmente Joaquim, batendo com o olho da enxada na pedra, que o outro empregara, como dique, no rego que cavara.
- A pedra está bem onde está, e só vai para o seu lugar quando se acabar a rega. - respon-deu o outro em voz surda, mas firme.
- Põe a pedra, ou ponho-a eu... - bradou Joaquim.
- Nem tu, nem eu... - retorquiu Manuel.


35
Pois espera que vais ver... - disse Joaquim, por entre os dentes cerrados.
E impeliu a pedra com a enxada para a boca do rego aberto por Manuel.
Este, sem dizer palavra, repeliu, também, com a enxada a pedra, mas com tal força, que ela, saindo do lugar onde Joaquim a colocara, veio encravar-se no rego antigo.
Joaquim do Adro deu um passo à retaguarda; Manuel fez o mesmo, e os dois miraram-se com espantosa energia, apertando com as mãos convulsas os cabos dos instrumentos de paz, tornados armas de guerra.
Eles conheciam-se bem e sabiam que não havia melhor jogador de pau do que qualquer deles, por todos aqueles arredores.
por fim, as enxadas ergueram-se e cruzaram-se.
-Ó homens, que vos deitais a perder!... Olhai ao menos para os pés, já que não olhais para o Céu!... -bradou -de repente voz pouco distante.
Os dois pararam maquinalmente e olharam.
era a tia Angélica, que voltava do monte, gememdo sob o peso de um molho de rama de pinheiro.
-Olhai para os pés, desatinados - continuou ela, aproveitando habilmente a pausa dos dois contendores.
- Olhai, olhai!... Vede se não é mesmo Deus Nosso Senhor, que vos está dizendo o que haveis de fazer!... Mas olhai para os pés, homens!
Notando a insistência da velha, os dois olharam

36

e viram a água que, espraiando-se para ambos os lados, lhes estava molhando os pés.
A pedra, encravando-se no meio do rego primitivo, impedira a água de correr, e esta, não podendo vencer o obstáculo, crescera e trasbordara para os lados.
- Então?!... É por Deus ou não é?!... Não está Ele mesmo a dizer o -que haveis de fazer?... O que chega para um, bem repartido, chega para dois!... E isto não é novidade para nenhum de vós... Porque é que acabáveis sempre o serviço a tempo e horas?... Porque vos ajudáveis, toleirões! Quem criou a tua Joaquina, Manuel? Não foi a Madalena?... E quem passou quinze dias e quinze noites ao pé -da tua Madalena, sem se despir nem pregar olho, quando ela esteve com a febre maligna?... Não foi a Rosa, -dize, Joaquim? Apertem já essas mãos, seus mal-agradecidos!... Apertem, que é Deus quem manda!... Vós não vedes a água?!...
A pobre tia Angélica, que tinha atirado o molho ao chão, mostrava no rosto, nesse instante, uma expressão de tão irresistível autoridade, que os dois, não podendo afrontar-lhe a severidade do olhar, baixaram os olhos.
As palavras da tia Angélica, (que tão habilmente buscara o auxílio de Deus e fizera avivar a recordação dos recíprocos serviços, calaram finalmente no ânimo de ambos.
- É Deus quem manda... - disse finalmente Joaquim, estendendo a mão.





37
- Perdoa-me, Joaquim! - respondeu o outro, apertando-lha.
E, cedendo à comoção, lançaram-se nos braços um do outro.
-Ora até que afinal! -bradou a tia Angélica, chorando de prazer. - Safa!... Cuidei que não tornavam a ter juízo!... Sempre se podem gabar de que tinham Deus por si!...
- Ó tia Angélica! - exclamou Manuel da Portela. - Nós como lhe havemos de agradecer?
-Não há nada mais fácil!... Ajudem-me a pôr outra vez o molho às costas - respondeu ela.
- Não consinto!... - atalhou Joaquim. - O molho levo-o eu.
- Eu... -disse Manuel, desviando o amigo e pegando no molho.
-Bonito! -interveio a velha, rindo - vejam lá se pegam agora por mor de mim!...
E rindo e chorando de prazer, lá seguiram os três direitos à povoação.
IV
Não é possível descrever a expressão de jubiloso espanto que iluminou o rosto de Madalena, quando viu entrar os dois, seguidos pela tia Angélica.
O primeiro pensamento foi para Deus, o segundo para a irmã.

38
Apenas a emoção lhe consentiu falar, exclamou:
- Vai já chamar a tia Rosa, minha filha!... Corre, Joaquina!...
Imagine o leitor o quanto as duas irmãs choraram; o que disseram, as carícias que fizeram à tia Angélica!... Imagine, que eu não sei, não posso descrever-lho.
Passada a primeira explosão de sensibilidade, era encantador o quadro que formavam aquelas duas famílias.
As mulheres, sentadas uma defronte da outra, tinham trocado os filhos mais novos, e as pobres crianças, vendo-se novamente afagadas pelas -que consideravam segundas mães, brincavam agarradas ao pescoço das tias, cobrindo-lhes o rosto de beijos, que aquelas retribuíam com usura, mirando-as tão desvanecidas, que levavam a cegueira até quererem mutuamente convencer-se de que os sobrinhos haviam crescido sensivelmente, durante aquela separação de dias.
O filho mais velho de Joaquim brincava com a filhinha primogénita de Manuel, enquanto que os dois lavradores conversavam alegremente, e, dando de tempos a tempos uma palmada no ombro um do outro, diziam à porfia:
-Ora este Manuel!...
- Ora o diabo do Joaquim!...
E, sentada a um cantinho, contemplando-os a todos com o bondoso sorriso -de uma consciência



39
satisfeita, via-se a tia Angélica, prestando inquieta atenção à conversa dos dois.
Bem convencida, por fim, de que era sincera a reconciliação, voltou-se para a dona da casa e disse-lhe em tom galhofeiro:
- Ó Madalena! Dá vinho a estes homens, pois a estes é a água que lhes sobe à cabeça... não é o vinho!
Madalena saiu, e voltou logo com uma enorme caneca, que entregou ao cunhado, e este erguendo-a exclamou:
- A saúde de quem nos aconselhou melhor do que todos os letrados, e decidiu como nenhum juiz era capaz de decidir!... Viva a tia Angélica!
- Viva a tia Angélica! - bradaram todos em coro.
- Viva Deus! filhos... - emendou a velhinha. - Viva Deus, que vos refrescou a cabeça... molhando-vos os pés!...
No dia seguinte, no ribeiro, as lavadeiras não falavam de outra coisa, que não fosse a reconciliação.




A BONECA
DE quantos espectáculos gratuitos é dado gozar a um homem do Porto, não há nenhum mais da minha paixão do que o das feiras do S. Miguel e S. Lázaro!
Se os feirantes pudessem adivinhar o bem que lhes quero, e os votos que faço, para que Deus lhes conceda bom tempo, não havia um só que deixasse de me dar o S. Miguel e o S. Lázaro!... Era o homem mais presenteado deste mundo!
Gosto daquelas feiras!... Delicia-me aquele barulho, faz-me rir aquele originalíssimo concerto ou desconcerto de assobios, tambores, trombetas e rebecas, que, soando de todos os lados, ensurdecem a gente, e nos irritam os nervos.
Gosto daquelas duas feiras, repito! mas dou a preferência à do S. Miguel.
Há maior espaço, mais desafogo, mais para onde uma costureira ingénua ou criada inocente




42
se retire, para jurar em segredo ao namorado eterno amor, na esperança de lhe apanhar o S. Miguel.
O leitor acha talvez pueril o prazer que encontro naquele espectáculo...
É porque ainda não pensou no partido que dele pode tirar!
Dá margem a profundos estudos psicológicos!
Encoste-se a uma barraca, com sincera vontade de ver, de analisar, de estudar e verá como, ao cabo de meia hora, há-de saber muito segredo, muita aflição velada por um sorriso, muita lágrima represada, que uma palavra bastaria para fazer saltar dos olhos!
Imaginemos, por um pouco, que estamos numa barraca e analisemos.
Estudemos, por exemplo, este sujeito bem trajado, que contempla todas as quincalharias com olhos desanimados.
-Maldita seja a pequena!... Que diabo hei-de eu levar a uma criança daquela idade?!... Aquele serviço de chá?... São capazes de me levar um dinheirão por aquilo!... Se lhe desse uma boneca?... Ora adeus! Quando Deus quer, tem meia dúzia delas! E o pior não é isso!... O pior é ser preciso -dar-lhe alguma coisa... O pai ralhou-lhe; mas - afinal, quem meu filho beija, minha boca adoça... E é que não tenho remédio senão dar-lhe alguma coisa!... É o meu chefe!... Às vezes vê-se um pobre diabo preterido; quebra a cabeça para descobrir o motivo, e, afinal, prende


43
a coisa numa sensaboria destas!... Mas... que lhe hei-de eu levar?!... Vejamos noutra barraca...
E o homem bem trajado retira-se, mas... deixá-lo ir; já -deu o que tinha a dar.
- Então, Sr. Sousa... Olhe que nos há-de dar o S. Miguel! - diz uma travessa menina de dezoito anos, falando por si e por duas amigas da mesma idade.
-Oh! minhas senhoras... Com o maior prazer!... O que V. Ex.as quiserem... - responde o Sr. Sousa, rapazote de vinte e três anos, com um destes sorrisos a que vulgarmente se chama amarelos.
Não façam caso do que ele diz! Olhem-lhe para a cor do sorriso, pois é ali que está o segredo!
Aquele sorriso... chora!
- E eu que só trago quinhentos e vinte!... - eis o que diz o sorriso.
Deixemos o mancebo, e aproveitemos esta família.
Oh! que horrível pequeno!... Que berreiro!...
-Eu quero aquele tambor... Eu quero uma espingarda, papá!... Eu quero aquela espada... mamã!... Eu quero aquele cavalo!...
-Está bom!... cale-se... O menino escusa de chorar... Vá... cale-se!... O papá vai dar-lhe o S. Miguel-diz a mamã, vexada pela triste figura que o filho está fazendo.
- Compra-lhe alguma coisa, Augusto... -diz timidamente a esposa.



44
- Pronto!... vamos a isso!... - responde o papá, que não quer passar por avarento na opinião dos circunstantes.
O bom do homem compra uma espada; mas, como, feita a compra, o pequeno recomeça a ladainha dos queros, o chefe de família diz severamente: "O menino não tem querer!" e acrescenta em forma de satisfação às testemunhas daquela cena: "Isto de crianças é preciso não lhes fazer a vontade em tudo!"
Três passos adiante, -diz ele com mau modo à esposa:
- Aí está... Eu bem não queria -que trouxesses o pequeno!... Aí estão doze vinténs bem empregados!...
-Coitadinho!... - diz a mamã dando um beijo no filho. - Não querem que sejas criança...
- A senhora não sabe o que diz... -volve o marido impaciente.
A esposa fita-o indignada, leva em seguida o lenço aos olhos, trava da mão do filho e apressa o passo.
Ora Deus queira que aquela espada de lata não tenha dado o primeiro golpe no nó matrimonial!
Alto!... Isto é gente fina... Que perfeito cavaiheiro!... E a senhora?... e a menina?!...
Que elegância, que distinção de maneiras!... É pena que em tão aristocráticas feições se note tanta melancolia!
-Então, Júlia... escolhe!... Anda tu, filha...




45
Vá!... Comprem o que quiserem!... Eu estou portudo... - diz ele.
A filha eleva os olhos tristes e interrogadores para os da mãe... Que lhe responderam os desta?... Não sei!... Soltando um suspiro e lançando um derradeiro olhar de resignada mágoa para todas aquelas tentações, a pobre menina responde:
-Hoje... não, papá... Outro dia...
-Bem... Quando quiseres...
iE elas aí vão com aquele perfeito cavalheiro, quando fora de portas, déspota grosseiro e egoísta abjecto quando o mundo o não pode ver!
Psiu!... Escutemos!... Aquele estudante parece altercar com aquela costureira!
- Eu já disse ao Sr. Maia que não é verdade!... - diz a rapariga quase a chorar. - Aqui a Ana que diga... Ó Ana, até que horas trabalhamos nós ontem?...
- Até às oito e meia...
-Combinação... - rosna o estudante, voltando as costas e dirigindo-se a um grupo de rapazes.
No rosto contrariado, mas resoluto, do mancebo lê-se: "S. Miguel não abichas tu... Ainda me não saí mal!..."
Os olhos da jovem, exprimindo dúvida e ternura, dizem claramente: "Se eu tivesse a certeza que foi só para me não dares o S. Miguel!.. "
46


Como se lhe estivesse devassando a mente, exclama de repente a Ana, fazendo um gesto de desdém:
-Anda daí, tola... Teve medo que lhe pedisses cinco réis de anéis!
Aqui tem o leitor o que constitui, por assim dizer, para mim, o principal encanto das feiras de S. Miguel e S. Lázaro.
Deixe-me, agora, contar-lhe uma história - a história de uma boneca!
Não há muitos anos, mas ainda não era a Cordoaria o ameno jardim, onde a infância folga por entre maciços de flores e sob o sorriso do sol, sem que lhe enegreça o espírito a vista dos dois monumentos, que a meu ver simbolizam as duas mais horríveis calamidades que podem aniquilar um homem - o hospital e a cadeia! - ainda não há muitos anos, repito, estava eu, uma noite, encostado a uma barraca da feira, divertindo-me a meu modo.
Cansado das inúmeras figuras que tinha visto passar por aquela espécie de lanterna mágica, dispunha-me a dar por findo o espectáculo, quando novos personagens me chamaram a atenção.
Eram os meus vizinhos ricos.
Aqui é preciso uma rápida explicação.
Das famílias da minha vizinhança, só conheço três.
Uma vive na loja da casa que habito. É uma tribo de crianças, que fazem o martírio e a alegria


47
da pobre mãe, e tem por chefe um honrado sapateiro.
Alguns deles, se andassem limpos, seriam encantadores; assim, parecem anjos caídos do Céu sobre um monte de lama.
São os meus vizinhos pobres.
A segunda compõe-se de marido, mulher e filha, e ocupa a casa imediata.
É, como se costuma dizer, gente que vai muito bem com a sua vida.
A filha, que terá dez anos, tem destas faces rosadas, rijas e carnudas, cuja solidez a gente gosta de experimentar com o dedo, e que resistem à pressão.
São os meus vizinhos remediados.
A terceira é a dos meus vizinhos ricos.
Casa nobre, jardim espaçoso, cavalos, criados, nome inscrito nas listas dos accionistas de todos os bancos e no rol dos credores do Estado -nada falta àquela ditosa gente!
Compõe-se igualmente de marido, mulher e filha.
Que formosa criança!... Terá oito anos.
Franzina e pálida, com os cabelos negros, os olhos grandes e cismadores, nunca lhe contemplo as pequeninas mãos de dedos compridos e esguios, terminados por unhas de uma -cor de rosa transparente, que não sinta antecipada inveja do feliz namorado- provavelmente ainda a crescer-que há-de um dia ter o direito de lhas cobrir de beijos.

48
Qual destas três famílias será mais feliz?...
Pelo que tenho notado, não têm que invejar umas às outras.
São todas felizes; cada qual a seu modo.
Vi, pois, chegar os meus vizinhos ricos.
Parou o carro, o criado saltou da almofada e veio, de chapéu na mão e dorso ligeiramente curvado, abrir a portinhola; o meu vizinho saltou, tomou nos braços a filhinha e depô-la no chão, e oferecendo, em seguida, a mão à esposa, para a ajudar a apear, dirigiu-se com ela e com a menina para a barraca onde eu estava.
Não havia ali segredo -a surpreender.
Havia um homem, exemplar como marido, rico, doido pela filha, e que parecia agradecer àquela formosa criança a manifestação de qualquer desejo.
No fim de meia hora possuía a minha pequena vizinha com que fazer afelicidade de dez crianças menos abastadas.
Tinha o necessário para montar completamente a casa de uma boneca... rica.
Faltava apenas a dona da casa-a boneca.
Todo risos e atenções, o lojista apresentou o que tinha de melhor.
Depois de muita hesitação e de, já com os olhos, já com a voz, consultar a mamã, a gentil criança acabou por escolher uma magnífica boneca de dois palmos de altura, cabelo em bandeaux e olhos azuis.
Uma boneca como as outras: cabeça e colo




49
de massa, corpo de pelica recheada, braços e pernas de pau.
Feita a compra, o pai pagou, chamou o criado, e este mudou todas aquelas preciosidades de sobre o balcão da barraca para dentro do carro.
A boneca teve a honra de ser transportada pela aristocrática criança.
Saí -dali, logo que o trem rodou, e fui fazendo até casa veriadíssimas considerações, sugeridas pela quase indiferença com que aquela menina
recebera brinquedos, que representavam um par
de moedas.
Que contraste com os olhares de cobiça, com que outras raparigas da mesma idade namoravam uma destas bonecas de cabeça de pano, horrível artefacto português, em que os olhos são representados por dois pontos de linha azul, o nariz por um alinhavo de retrós cor-de-rosa, a boca por outro de fio vermelho, e os cabelos por flocos de lã preta!
Quando cheguei a casa, já na dos meus vizinhos remediados não havia luz.
Na dos meus vizinhos pobres, o pai batia a sola, cantando ao som de três assobios e duas campainhas de barro com que os anjos, por lavar, provocavam os ralhos da mãe.
Quando, no -dia seguinte, cheguei à janela, seriam onze horas da manhã.
Na rua agenciavam nova camada de imundície os filhos do sapateiro; na casa imediata não se via ninguém-estava a pequena na mestra;
4




50
no palácio, sentada num tapete estendido sobre a ampla pedra da varanda, divertia-se a minha pequena milionária fazendo rodar, com auxílio de uma linha, uma magnífica caleche descoberta, puxada por cavalos brancos.
Dentro da caleche pavoneava-se a boneca opulentamente vestida.
-Aí está a tua caricatura, minha feiticeira!... - disse eu de mim para mim. - Ensaias nas bonecas o que vês no mundo a que pertences!... Estás a aprender a copiar... Sempre este mundo!...
Retirei-me da janela.
Durante uma semana vi muitas vezes repetida a mesma cena.
A boneca ostentava todos os dias novas galas, e havia dia em que se vestia três e quatro vezes!
Ao que eu, porém, achava mais graça, era ao respeito com que a dona a tratava!
Chamava-lhe Sr D. Luísa; dava-lhe excelência; sustentava finalmente com a boneca um destes diálogos de senhoras da alta sociedade, em que se fala de tudo, sem se dizer coisa alguma.
Um dia-estava eu de costas voltadas para a janela dos meus vizinhos ricos - ouvi um grito de susto.
Era devido a um acidente, a que está sujeito quem anda de carro.
Voltara-se este, e a boneca caíra, ferindo a fronte na pedra da janela.




51
O primeiro movimento da pequena foi beijar e prantear a vítima; vendo, porém, que a ferida havia forçosamente de deixar cicatriz, e lembrando-se -de que só lhe bastava querer, para que lhe dessem outra nova, agarrou-a pelos pés e ia atirá-la com despeito à rua, quando mais perto de mim bradou voz tímida e suplicante:
-Não atire!... Dê-ma...
Era a minha pequena vizinha da casa pegada, de quem eu não dera fé até então.
Assim invocada, a menina rica franziu levemente as sobrancelhas e lançou um olhar de rainha para o sítio de onde vinha a súplica.
Vendo uma criança pouco mais ou menos da sua idade, serenou e, encolhendo os ombros, respondeu:
-Já não presta!... Está esmurrada!...
- É o mesmo!... Dá-ma?... -bradou a outra,
cujos olhos brilhavam de cobiça.
- Dou... - volveu a rica, encolhendo nova
mente os ombros.
E, caminhando para o canto da varanda, deixou cair a boneca nas mãos da vizinha, que tremia, receosa de que aquele tesouro fosse despedaçar-se nas lajes da rua.
Fugiram ambas as pequenas a um tempo: a rica para exigir nova boneca; a outra, para mostrar à mãe a que ela ainda não podia acreditar que fosse sua!
Por espaço de meses foi a boneca a principal ocupação da nova dona.



52
A pobre perdera na troca. Ia longe o tempo em que ela se vestia quatro vezes em quatro horas!... Já lhe não davam Ex.a! Chamavam-lhe Sr.a D. Ana; falavam-lhe de arranjos domésticos, do desmazelo da criada, da missa das almas, de coisas, finalmente, completamente estranhas para ela!
E a desgraçada perdia as cores; os olhos tornavam-se-lhe cada vez menos azuis; mas o que mais a desfigurava era a cicatriz, que de dia para dia se tornava mais escura: parecia uma nódoa, um estigma!
Nos primeiros tempos, enquanto durou o vestido que trouxera no corpo, ainda poderia enganar olhos pouco conhecedores.
Não tardou, porém, que arrebiques de mau gosto, fitas velhas, rendas amareladas, chapéus impossíveis viessem contrastar com a elegância do vestido. Dava ares de se ter equipado ao acaso, na loja de uma adeleira.
Mas o vestido foi-se tornando velho; desapareceu o brilho e, com ele, as ondulações do moire, até que, um belo dia, vi a boneca vestida de cassa -no Inverno! - xaile, e manta na cabeça.
Muito mal lhe ficava tudo aquilo!... Àquela boneca custava-lhe decerto o ver-se tão mal arranjada.
Eu retirei-me da janela soltando um suspiro, e balbuciei:
- É justo!... Cada qual segundo as suas posses.




53
Por esse tempo, entrei em relações com o meu vizinho sapateiro.
O honrado homem soubera que eu me queixara da bulha que os filhos faziam logo ao amanhecer, e aproveitara a primeira ocasião para me pedir desculpa.
Vendo-me conversar com o pai, tinham-se os filhos animado a aproximar-se de nós e, desde então, nunca saio de casa nem entro, sem grave risco de sofrer as consequências da sua travessa familiaridade.
Entre os filhos do sapateiro, porém, há uma pequenita de onze anos, com quem simpatizei logo à primeira vista.
Chama-se Maria.
Por um destes acasos da Providência, que parece às vezes comprazer-se em criar contrastes, Maria destaca no meio de todos os irmãos.
Acostumado às travessuras e desalinho dos outros filhos do sapateiro, fiquei deveras pasmado quando o pai ma apresentou.
É bem verdade que ele conhecia o valor daquela criança, porque havia verdadeiro orgulho no olhar do pobre homem quando me disse:
- Esta é a minha Maria!
E tinha razão!
Não podia ser mais discreta do que já nesse tempo era.
- É quem vale à mãe!... - acrescentou o velho. -Ali, onde a vê, faz o serviço de uma mulher!.. Há seis meses, quando a minha santa esteve



54
doente -bem pensei que não arribasse! - a pequena era quem cozinhava e olhava pelos irmãos!... E caridade como ela tem?!... Olhe que aquela pequena esteve três dias sem se deitar... ali... ao pé da mãe! Foi preciso eu obrigá-la, que ela não a queria deixar!...
E o desvanecido pai enxugou, com a manga da camisa, uma lágrima, que, havia muito, hesitava sobre se sim ou não se devia despenhar.
Fazia gosto ver aquela pequena com o seu vestidinho de chita escura e a cabeça coberta por um lenço branco.
Desde que o pai me deu tão boas informações da rapariga, nunca mais passei por defronte da porta da loja sem dar pelo menos os bons-dias à pequena.
Uma vez recolhia eu para jantar, quando vi a Mariquitas com uma boneca deitada nos joelhos.
- Eu conheço aquela boneca!... - disse eu de mim para mim.
E, não podendo resistir à curiosidade, bradei:
- Ó Maricas!... Quem te deu a boneca?...
-Foi ali a menina da vizinha! - respondeu a pequenita, corando -de prazer.
Era escusado dizer-mo.
Maria pegara na boneca, e voltara-a de face para mim. Não podia duvidar... Era ela; lá estava a mancha, o estigma cada vez mais visível na fronte.
De tempos a tempos, nas raras horas de descanso, Maria entretinha~se com ela.




55
-Quem te viu e quem te vê! -pensava eu.
Às vezes, se Maria se descuidava e os irmãos lha podiam apanhar, que tratos que sofria a desgraçada!
Roçada por aquelas mãos, -de que um carvoeiro se envergonharia, empregada como péla, submetida a torturas, era, aindaassim, singularíssimo o aspecto da triste!
Dava ares de uma duquesa que, por necessidade, houvesse sido levada a fraternizar com o povo.
A mísera mudara mais uma vez de nome!... De Sr.a D. Ana passara a ser Sr a Rosinha, e tratavam-na por vossemecê.
Trajava vestido de chita, capote velhode pano verde e lenço na cabeça.
Era um prazer para mim o escutar as conversas que Maria sustentava com a boneca.
Esta, umas vezes, representava o papel de mulher casada, e Maria, encarregando-se de perguntar e responder por ela, obrigava a pobre boneca a lastimar-se por estar tudo tão caro, por haver falta -de trabalho, por ter os filhos doentes, todos os assuntos, finalmente, que mais familiares eram á pequena.
Outras vezes passava a boneca a ser criada de servir. Repreendiam-na, mandavam-na buscar água à fonte, pagavam-lhe, regateando, a soldada, e acabavam por a despedir.
Já o leitor vê que, apesar da bondade de Maria, deixara de ser feliz.





56
Iam longe os bons tempos em que ela, rica, morava no palácio vizinho!
Desmaiada -de cores, quase perdido o cabelo, semiapagados os olhos, desfeito o carmim dos lábios, a boneca não prometia longa duração.
Foi este, pelo menos, o prognóstico que fiz a última vez que a vi, tentando em vão agradar à última dona, que o seu destino lhe dera.
Coitada!... Bem longe estava de lhe imaginar o fim!
Um dia - chovia a cântaros! - o enxurro, mal cabendo nas valetas da rua, espadanava em cachão para cima dos passeios, arrastando na passagem mil imundícies.
Eu estava à porta de casa, esperando que a chuva cessasse, e olhava melancolicamente para a água negra, que corria. Nisto, ouvi um grito, que partia da loja do sapateiro. Voltei maquinalmente o rosto... Um objecto, arremessado de dentro da loja, atravessou o espaço, voando, e foi cair no leito do enxurro...
Olhei... Era a boneca!...
A mísera, arrastada pela água, vogou rua abaixo até esbarrar numa pedra; mas o redemoinho envolveu-a e, depois de a fazer girar três ou quatro vezes, obrigou-a brigou-a a passar pelo estreito traçado entre a pedra e o passeio, e a triste seguiu no fio da corrente, até ir sumir-se nas profundezas da primeira boca-de-lobo que encontrou na passagem!
Será pieguice, será o que o leitor quiser; mas




57
confesso-lhe que me impressionou o fim da pobre boneca.
Mal passou a chuva, desci o degrau da porta e, chegado -à vidraça do sapateiro, perguntei com voz involuntariamente severa:
- Porque deitaste fora a boneca, Maricas?! -Não fui eu... -balbuciou a pequena, chorando. -Foi ali o Joaquim!...
- E porque fizeste tu aquilo, Joaquim?...
-Ora!... - respondeu o garoto com enfado. -Ora!... Estava velha... e feia!...
Curvei a cabeça ante aquela razão e segui o meu caminho. Dez passos adiante dei com os olhos numa mulher, pobremente vestida, e pareceu-me que escondia o rosto no cabeção do capote, como que receando que eu a conhecesse.
Não foi, porém, tão rápido aquele movimento, que não lhe pudesse, ainda que de fugida, distinguir as feições.
-Conheço esta mulher!... - pensei eu.
E, parando, voltei-me para a seguir com a vista.
Ao chegar à esquina, não resistiu a voltar-se para trás, provavelmente com medo de que a seguisse.
Vendo-a então de frente, estremeci!
. .
A história da boneca era a história daquela mulher!
Caíra... e descera!
E eu.. que a conhecera, festejada no seio da

58
opulência, e acabava de a ver passar, tentando encobrir nas dobras do capote o estigma que a vergonha lhe imprimira na fronte, cravei instintivamente os olhos na boca-de-lobo por onde vira desaparecer a boneca e murmurei, pensando na mulher:
- Velha e feia!...
Aquela... espera-a a vala comum!.. a boca-de-lobo em que se somem os pobres!...
-Pobre mulher!...
-Pobre boneca!._
.



A DOIDA DE TAGILDE
POUCAS serão, no Porto, as pessoas que não conheçam Vizela.
Disse mal... Poucas serão as que não tenham ido a Vizela; as que conhecem bem aquela formosa aldeia são raras.
Para a maior parte dos banhistas, Vizela é uma praça irregular, cercada de casas ainda mais irregulares, praça emendada numa outra, a que, por murada e cheia -de árvores, dão o nome de alameda os mais modestos, e de jardim os que tentam convencer-se de que é jardim aquele recinto, onde as galinhas ensinam as ninhadas a -dar os primeiros passos e a ganhar a vida, e onde o porco passeia sem vergonha e à vontade.
A tudo isto, dão indígenas e estrangeiros o nome -de Lameira e devem os porcos, que ali pascem, dar o de lameiro.
Dessa classe de banhistas, há um ou outro



60
mais ousado, que estende a sua sede de ver mundo até à igreja de S. Miguel, ou mesmo até à ponte.
Pois dificilmente se encontrará tanta beleza em tão limitado espaço!
Ao leitor que tiver arremessado para longe as muletas, com que lá foi este ano, e puder para o seguinte dar o seu passeio a pé, sem se incomodar, poder-lhe-ia eu apontar tantos passeios, quantos forem os dias que tiver de demorar-se a banhos!
Há, porém, pontos de vista, que o não dispenso de gozar, se é que falo a um homem inteligente, a quem canseiras e anos não roubaram de todo o entusiasmo, que desperta em nós a contemplação do belo.
Por noites bem claras e tépidas de Julho, se a sua boa sorte o levar à antiga ponte de pedra, detenha-se o leitor em meio e espraie a vista para ambos os lados.
Se se encostar ao parapeito que dá para a povoação, enxergará, à luz do tapete de pirilampos, que a lua estende sobre as águas verde-negras do rio, enxergará, repito, a fita agitada do Vizela a serpear por entre pequenas ilhas, cobertas de ervas e arbustos, e ao fundo, despenhando cristais e pratas polidas, o açude -do Pisão, flanqueado de um lado por decrépito moinho, assombrado do outro por anosas carvalheiras.
Se, depois de cinco minutos passados na contemplação daquele quadro, a que as sombras caprichosas



61
e fantásticas da noite dão um aspecto de selvagem e inexcedível poesia, o leitor não ouvir a voz da sua alma bradar-lhe: "É belo!.." então... vá para casa, que são horas de tomar banho.
Volvendo a vista para o lado oposto, a cena é totalmente diversa.
Sumindo-se silenciosamente e vencendo, sem esforço, as sinuosidades das margens, o Vizela escapa-se por entre choupos e salgueiros, cujas sombras vêm projectar-se no rio e encontrar-se no meio, reflectindo, num ou noutro ponto, a Lua, que parece respeitar aquele sossego.
Mais formoso do que o Vizela nesse espaço que se avista -da ponte, só o poético Mondego!
Se, estimulado por este espectáculo, quiser, no dia seguinte, subir ou descer o rio, juro-lhe que verá paga a fadiga.
Quer suba até à ponte velha, quer desça até à fábrica de papel, verá suceder o ameno ao selvagem, o horrível ao belo, mas sempre poético, sempre, deixe-me assim dizer, original.
Se subir pela margem direita, ao fim de um campo ou antes areal, encontrará uma descida, semeada de pedras brutas e informes até à beira do rio e poderá, caminhando por sobre as poldras, ir sentar-se junto à represa do moinho da Cascalheira.
O misantropo, o poeta que precise cerrar os ouvidos à voz do homem e procure a de Deus, que nos fala no sussurro do vento, no murmurar

62
da linfa, no ciciar das folhas, ou no bramir da torrente, todos os que, ou por feridos no coração ou por aspirarem mais alto, se sentem pouco à larga entre os homens, não poderão decerto ver a Cascalheira, sem invejarem a sorte do pobre moleiro, a quem as pancadas das rodas tornam surdo para tudo, se é que algum dia ouviu.
Basta!... Estou satisfeito; era à Cascalheira que eu queria que, ou por gosto ou por condescendência, o leitor me acompanhasse.
Seguindo, para lá chegar, o caminho que descrevi há pouco, haverá bons vinte anos vi eu pela primeira vez aquele pitoresco local. Era ainda mais belo, se é possível, porque, de então para cá, a mão do homem, que estraga tudo quanto a natureza cria, operou ali umas transformações, que só serão toleráveis quando a água do Vizela e o trabalho do tempo tiverem impresso no que é moderno o cunho de velhice que distingue o resto.
Nesse tempo, pois, era aquele formoso assunto de aprazível quadro ainda mais pitoresco do que hoje, e, no dia em que pela primeira vez o vi, animavam-no dois seres, que me ficaram para sempre gravados na memória.
Ia eu a pôr o pé na primeira poldra, para atravessar o rio, quando, da outra margem, me chegaram estas palavras, cantadas numa toada melancólica, que ouvia pela vez primeira e nunca mais tornei a ouvir:


63
Vagamos juntas no mundo, Que nada nos prende, nada! Eu guiada pela ovelha,
A ovelha por Deus guiada!...
Observando atentamente a margem fronteira, descobri, cerca de vinte passos abaixo do moinho, uma mulher sentada à beira do rio, e ao lado dela uma ovelha branca.
Era singular o aspecto daquela mulher, que se me apresentava acompanhada pela ovelha, como me prevenira a cantiga.
Teria trinta e cinco anos; a tez, que, a avaliar pelos olhos azuis, devia ter sido alva, estava queimada pelo sol e o tempo levara-lhe o viço, dando-lhe em troca uma ou outra ruga. O cabelo louro começava a branquear nas fontes.
O vestuário era pobre, mas atestava escrupulosa limpeza.
Ocupava-se naquele momento em introduzir por todas as costuras de um grosseiro chapéu de palha uma aluvião de flores silvestres, e parecia causar-lhe voluptuoso prazer a frescura da água, em que mergulhara os pés, provavelmente doridos de longa jornada.
Certo de que ela me não vira, retirei-me cautelosamente, e fui sentar-me um pouco mais longe.
Despertara-me a curiosidade aquela mulher.
Meia hora, seguramente, permaneceu ela ali,
entregue de alma e coração à sua tarefa, até que,
satisfeita provavelmente com o seu trabalho, mirou o chapéu
64

por todos os lados e pondo-o, finalmente
na cabeça retirou os pés do rio e, ajoelhando sobre a margem, contemplou atentamente
a própria imagem, reflectida na água.
Em seguida, erguendo-se, voltou-se para a ovelha, dizendo:
- Anda, Menina... vamos esperar o Francisco.
!






E a Menina, levantando-se, correu, naquele passo trémulo e pretensioso das ovelhas, a colocar-se diante da dona, e lá seguiram as duas, como a mulher de novo cantava - esta guiada pela ovelha, a ovelha por Deus guiada!
Mas quem era aquela doida-pois já se vê
que o era - que assim ia, acompanhada por uma ovelha, como por um cão, em procura desse a quem chamara Francisco?!...
II
Não imaginem os leitores que estou improvisando!... Não!... Quem tiver ido a Vizela, haverá vinte anos, deve ter visto aquela mulher mais do que uma vez.
Curioso de descobrir quem era a pobre doida, logo às primeiras perguntas tive quem me dissesse: "Ah! já sei!... É a doida de Tagilde, ou da ovelha, como lhe chamamos por aqui."
-E sabe a história da pobre mulher?... - perguntei eu.
- Se sei!... Todo o mundo a sabe! - respondeu-me




65
a minha senhoria, tia Miquelina, santa velha que morreu sem tomar um banho termal, por estar convencida de que aquela água, que assim jorrava, cheirando a enxofre, do seio da terra, era, como ela dizia - aquecida nas profundas do Inferno!
- Então, se sabe, conte-ma!...
- À noite... agora não; à noite!... -respondeu a boa da velha.
E o caso é que tive de esperar até à noite. Escusado é dizer que recolhi nessa noite mais cedo.
Se me não saíam da ideia a doida e a ovelha! Não nascera, infelizmente, a tia Miquelina, para contar casos.
Era uma ladainha monótona a narrativa, feita por ela, de forma que, sacrificando embora a cor local, tenho eu de contar a história a meu modo.
Dez anos antes da época a que me referi, isto é, haverá trinta anos, não havia em dez freguesias ao redor quem não conhecesse a formosa "loura de Tagilde" destinada mais tarde a ser a - doida de Tagilde.
Era uma destas criaturas perfeitas, encantadoras, sem senão, que Deus se compraz em soltar de sua mão, para justificar a mais alta lisonja feita pela tradição ao género humano: "Fez
Deus o homem à sua Imagem e semelhança! "
Seria impossível contar os jovens que se deixaram prender nos áureos fios daquelas bastas
tranças e aspiraram a ver raiar o sol da esperança
5





66

no céu azul daqueles lânguidos e apaixonados olhos!
E assim correram anos, sem que as tranças da jovem se deixassem agarrar pelos que as perseguiam, sem que do céu daqueles olhos baixasse um raio de sol a iluminar de preferência o coração de qualquer deles.
Lá veio um dia por fim - e tinha Maria os seus vinte e três anos -e que numa romaria se encontrou com um gentil paz de Santa Eulália de Barrosas, e sentiu, pela primeira vez, palpitar o coração com desusada força.
Era Francisco, o mais guapo moço, jovial cantador ao desafio, destemido jogador de pau, e habilidoso carpinteiro, de todas aquelas cercanias.
Só tinha um defeito... Era um mãos largas - vintém ganho, vintém gasto!
Se Maria deu pela primeira vez atenção a um rapaz, desconhecida emoção deu também a perceber a Francisco quão efémeros tinham sido todos os seus amores até então.
Finda a romaria, retirou-se a jovem no meio de um rancho de companheiras, debaixo da protecção dos marmeleiros dos parentes, e seguiu-a a distância Francisco com um bando de mancebos.
As raparigas riam e cochichavam, lançando de vez em quando olhos maliciosos para os rapazes, ao passo que estes pesavam os prós do folguedo com as raparigas, e os contras, que podiam




67
resultar da má vontade dos marmeleiros paternos.
De repente, uma cachopa morenita, de olhos negros e nariz arrebitado, a quem as goelas ardiam e a língua se perdia com cócegas, distribuiu dois murros pelas amigas que levava aos lados e que pareciam querer desviá-la de levar por diante uma resolução qualquer, arqueou os braços, fincou as mãos na cinta e cantou:
Quem nos segue, se é cão -ladre; Se homem é... então que fale! Se o cão que não ladra é falso Homem mudo é tal e quale!
Palmas e vivas das raparigas e dos guardiões
não havia no rancho quem, como o leitor, se escandalizasse por uma sílaba de mais - palmas e vivas, repito, acolheram o final da cantiga de Joana, que assim se chamava a azougada cantadeira.
- Ó Francisco!... Ó Francisco!... -instavam os rapazes. - Responde àquele diabo!... Olha que parece mal!...
- Esperai, homens!...
Seguiu-se profundo silêncio.
As jovens esperavam, curiosas, a réplica dos rapazes, ao passo que estes se impacientavam com a demora que Francisco punha na resposta.
Depois de visível esforço, cantou Francisco em voz trémula:


68
Ao ver-vos perdi a fala,
E perdi o coração; Perdi-o por uma loura,
Que me trata como um cão!
Estrondosos gritos de alegria saíram do grupo dos rapazes, ao passo que as raparigas pisavam com os cotovelos os braços de Maria, dizendo-lhe maliciosamente: "Apanha!... Aquilo é contigo!...Olha que foi o Francisco, de Barrosas!... Responde-lhe tu agora, anda!.. "
De cantiga em cantiga se foram os dois grupos familiarizando, a ponto de, na primeira venda que encontraram, enquanto Francisco se aproximava sorrateiramente das raparigas, que no meio do caminho riam alegremente, torcendo os lenços de renda, que são os leques da aldeia, fraternizaram os dois grupos de homens entre enormes copos de vinho, trocadas as sacramentais palavras:
- Vá a virar!..
- Está em boa mão...
- Para melhor vai.
-Então lá vai à saúde de vossemecê.
E leva-se o copo à boca, põese-se em meio, limpa-se o bordo do copo com a anga da camisa, antes de o passar para a mão do outro, e aí está como se trava na aldeia um conhecimento, e muitas vezes amizade eterna!
Esgotados os copos, e findo o duelo de bizarrias para ver quem havia de pagar a despesa, seguiram os grupos, rindo e folgando confundidos.





69
Mais do que um perdeu a liberdade do coração naquele passeio, e, entre esses, Francisco, que retirou doido de amor daquela primeira escaramuça, precursora de futuras e valentes batalhas.
Estava seriamente ferido, e, que o não estivesse, não era ele homem que deixasse em meio a disputada conquista do coração de Maria.
Domingos e dias santos, quantos vieram ao mundo, todos os passou ele em Tagilde desde então, e, mais -que uma vez por semana, ao despegar do trabalho, o levou lá o amor.
Correram dias e meses, e cada dia que passava não só enterrava mais fundo no coração do carpinteiro as raízes daquele afecto, mas também cada vez lho depurava mais.
Naquele coração volúvel, que até àquela data só conhecera do amor a parte vil, entraram de florescer respeitos e germinar escrúpulos, que lhe transformavam o peito em altar, onde sorria pura e imaculada a casta imagem da loura virgem de Tagilde.
Quanto ao que esta sentia, diz-se tudo dizendo-se que fora aquele o único homem que vira com os olhos da alma.
Bastante tempo correram aqueles amores, sem serem contrariados; lá veio, porém, um dia, em que o pai da jovem abriu os olhos e compreendeu a alegria da filha aos domingos, a contrastar com a tristeza que lhe anuviava o rosto pelo resto da semana adiante.


70
José Francisco era o que se chama um bom chefe de família, e um homem honrado.
Afligiu-o a descoberta dos amores da filha, porque o carpinteiro tinha adquirido fama de estroina e de gastador, defeitos apenas compensados pela virtude do trabalho e pela justiça feita à sua probidade.
Depois de muito ruminar, um domingo, em que Francisco lhe passava pela vigésima vez à porta, desesperado por não ter podido falar com Maria, a quem a presença do pai não permitia sair, bradou-lhe o velho:
- Olé!... ó Sê Francisco!...
O leitor imaginará a pressa com que este acudiu ao reclame.
- Vai para diante? - perguntou o lavrador, trocadas as boas-tardes.
-Vou, sim senhor... - respondeu o mancebo.
- Então, se dá licença... acompanho-o até além...
- Com muito gosto... - replicou Francisco.
Em coisas indiferentes foram os dois falando, até chegarem fora da povoação.
À beira -de um campo, encostou-se o lavrador a um portelo, fez com o pau uma mossa no chão, e, metendo a extremidade superior debaixo do sovaco, perguntou com aspecto grave:
- Fale-me sério e verdade, como se falasse ao confessor!... Ora diga-me... vossemecê anda atrás da minha cachopa?... É escusado fazer-se



71
vermelho, homem!... Nem sequer lhe progunto as suas tenções... Só lhe progunto uma coisa... Vossemecê sabe quantos filhos eu tenho?...
Francisco, de enleado, nem encontrou resposta.
-Tenho cinco; três -do primeiro casamento e dois do segundo. O que há pode-se dizer que é dos três mais velhos; os segundos nada e o que têm é a mesma coisa... Ora a cachopa é do segundo casamento... Já vê que nem tudo que luz é ouro!...
Francisco fez um gesto de abnegação e ia a falar; mas o velho interrompeu-o, dizendo:
-Bem sei, homem!... Bem sei o que me vai dizer!... Não é pelo dote?... Acredito... Mas eu é que sou pai... e progunto... Que posses tem vossemecê para manter mulher e filhos, se os vier a ter?.. Não olhe para os braços, homem!... São bons... bem sei... mas... braços quebra-os uma doença... e depois?... Numa palavra, Sê Francisco... Nem vossemecê nem ela têm; é preciso que cada qual arranje quem lho traga... Não servem um para o outro; e vossemecê, se é homem honrado, como me dizem que é, e eu acredito, vire as vistas para outra banda... Aquela não lhe serve.
Francisco ficou como fulminado. Mal pôde falar, o ardor da paixão tão eloquentemente o inspirou, que o lavrador chorava como uma criança, mas continuou a abanar a cabeça, dizendo com magoada voz:




72
-Não pode ser, homem!... Não pode ser!... Era uma desgraça para os dois!
E o coração do velho, embora rudemente abalado, permaneceu sujeito aos austeros ditames daquela razão, robustecida pela sua previdência de pai.
Dizer o que Francisco sofreu desde Tagilde até Barrosas, contar os projectos que formou na noite de insónia que se seguiu àquela conversa, seria inútil tentá-lo!
Quando o dia, coando pelas fendas da janela o convidou a erguer-se do leito, onde se deitara vestido, só um dos mil projectos, que formara, se conservara de pé.
Mas de que cruel execução ele era!
O Brasil prometia-lhe um futuro; mas o presente... o presente iluminado pelos meigos olhos de Maria... quem lho havia de pagar?!...
Como havia ele viver anos sem a ver, se semana que a não visse lhe parecia uma eternidade?!...
Bem procurou o pobre rapaz outro meio, menos custoso... Não o encontrou!
Dias depois, quem passasse ao cair da tarde na extrema da aldeia de Tagilde, veria o carpinteiro conversando com o pai de Maria, e, se parasse, ouviria estas palavras, que eram naturalmente o resumo de quando haviam dito antes:
E vossemecê promete-me não obrigar a filha a casar com outro, se ela quiser esperar



73
por mim?... -perguntava Francisco com pungente ansiedade.
-Prometo respondeu o velho em voz solene. - Vá, trabalhe, faça-se homem e, se ela quiser esperar por si.. não serei eu quem lhe negue o consentimento...
- Muito obrigado!... muito obrigado!... Deus Lhe pague tanta amizade, como a que vossemecê me mostra... Só tenho mais um pedido a fazer-lhe... - continuou Francisco, chorando. - Dá licença que me despeça dela?... Olhe que pode ser para sempre!...
Depois de breve hesitação, o velho respondeu em tom comovido:
-Vá lá!... Diga-lhe adeus!...
E o velho voltou o rosto para o lado, para encobrir as lágrimas.
-Venha daí!... -acrescentou o honrado lavrador.
Seguiu-o Francisco, cabisbaixo e com o coração golpeado.
-Que sina a minha! -pensava o pobre rapaz. - É a primeira vez que entro em casa dela, e talvez que seja a última!
Entraram os dois.
Maria, que já estava prevenida e havia muitos dias não fazia senão chorar, ao ver o rosto demudado do carpinteiro e a tristeza do pai, fez-se pálida como um cadáver e teve que se agarrar a uma cadeira para não cair.
-Maria... - disse o velho. - Está aqui o




74
Francisco, que te vem dizer adeus. Tomo a Deus por testemunha, filha, que sinto hoje não ter bastante de meu, para te deixar seguir a tua inclinação. Mas o tempo depressa passa - continuou ele, esforçando-se por parecer alegre. - Oh! se passa! Verás, cachopa!... A vontade que ele leva de ser homem, têmo-lo cá para o ano rico como um porco!... Ora andem lá... conversem, mas nada de afligir!... leve o Diabo paixões!
E o velho, já para fugir a uma contagiosa cena de lágrimas, já por um movimento de instintiva
delicadeza, -deixou-os sós.
Há cenas que se não descrevem. O leitor que tiver passado por tão solene transe, como é o de uma despedida, quando a volta é incerta, lembra-se, sem dúvida, -de quanto sofreu!
O coração estorce-se; a mente compraz-se em enegrecer o futuro, tornando eterna uma separação, que a voz sempre viva da esperança nos aponta como temporária; os olhos estudam amorosamente as feições do ser que vamos deixar, como querendo gravá-las ainda mais fundo no íntimo do coração; as mãos estreitam-se sem se poderem desunir; os lábios emudecem, receosos da fatal palavra - Adeus! - e os pés como que se pregam ao solo amado, onde nos fica tudo quanto nos tornava risonha e fácil a existência!
- Hás-de escrever... Francisco!... sempre!... e muito!... - dizia a jovem, comprimindo convulsivamente as mãos do mancebo.






75
- Sempre!... Maria... sempre! - respondia este soluçando.
- Para que te vi eu, Maria!... -continuou ele, estreitando nos braços a gentil menina.
!Estavam os dois assim, nos braços um do outro, e confundindo as lágrimas, quando soou, por detrás deles, comovi-da, a voz -do velho:
-Basta, filhos!... basta!... Então! é preciso
ter ânimo!.. Ora vá.. ora vá.. Então... Maria!... Vá... Francisco... Vá! Um homem é um homem!
o velho desuniu-os brandamente.
Francisco, doido de saudades, levou as mãos aos lábios e lançando à jovem um derradeiro beijo, bradou:
- Adeus! - e saiu desorientadamente.
- Francisco! -exclamou Maria num grito, que traduzia todas as dores que podem lacerar um coração de mulher.
O mancebo, porém, já a não ouviu, e a jovem, lançando os braços em volta do pescoço do pai, exclamou dolorosamente:
- Oh! meu pai!... vi-o pela última vez!
O velho empalideceu e não encontrou resposta, porque, como ele mais tarde confessava, pareceu-lhe ouvir dobrar afinados naquela frase angustiada da filha!
76

III
Partiu Francisco para o Brasil. Nesse tempo, o país dos sonhos ambiciosos desses que vão colher areias de ouro em rios de lágrimas, era bem mais cruel exílio do que hoje!
Nesse tempo, quando dois corações se separavam, só ao cabo de muitos meses de amarguras e preces vinha uma carta, trazida por navio de vela, minorar ou aumentar as dores da ausência.
E, nos longos serões da aldeia, quando os corações guiavam a conversa para o chorado ausente, o saudoso chefe de família erguia-se e ia buscar ao escaninho da arca, onde estava guardada, a carta do filho, já rota nas dobras e ensebada das mãos, abria-a e, nesse instante solene, a mãe tirava a roca da cinta, o fuso calava-se na mãoda jornaleira, os pequenos apuravam olhos e -ouvidos, e lia-se pela centésima vez, em voz alta, a preciosa carta, como se houvesse ainda alguém em casa que a não soubesse de cor!
E assim se enganava a fome de notícias!... e assim procurava a gente convencer-se de que, quem estava bom havia seis meses, decerto estava ainda de perfeita saúde!
Seis meses depois da partida de Francisco, chegavam a Tagilde as primeiras notícias do saudoso namorado.
O pobre rapaz encontrara facilmente que fa77

zer, e, como as suas aspirações não iam além do preciso para comprar uma casinha, um campo, e pôr em reserva uns centos de mil-réis - o fruto que ia colhendo fazia-lhe antever a realização dos seus desejos dentro do curto espaço de dois anos.
O que o resto, ou antes toda a carta, seria, pode o leitor imaginá-lo!
Dizia o pai de Maria que esta, mal a ouvira ler, logo entrara a ganhar as boas cores que a saudade lhe roubara.
- Não saber eu ler!... - dizia a pobre moça, cobrindo o papel de lágrimas e beijos.
E a abençoada carta andava numa dança para dentro e fora do seio!
- Ó pai!... só esta vez!...
E o velho tirava do bolso os óculos de aros de prata, e lia mais uma vez.
E a jovem, tomando à risca a única aritmética, que o coração lhe aceitava, para contar o tempo, pensava quase alegre: "Faltam só tantos meses! "
Passados dois, chegou nova carta, mais própria ainda para alimentar esperanças.
A terceira... A terceira não era de Francisco!
O velho lavrador ao recebê-la, e ao ver a obreia preta, tornou-se branco como a parede a que se encostara, e deixou cair a fúnebre missiva, murmurando em voz estrangulada: "Minha pobre Maria! "
- Ó pai!... há carta?... - exclamou Maria,


78

a quem a recoveira dissera que havia trazido uma.
O velho, vendo entrar a filha, quis apanhar do chão o fatal papel, mas a jovem, mais pronta do que ele, abaixou-se e ergueu-o.
- Deixa, filha!... Não é dele! -exclamou o velho.
Mas a jovem, se não sabia ler, sabia distinguir as cores e, vendo a obreia preta e as lágrimas do pai, tornou-se lívida, e com os olhos enxutos mas desvairados, os lábios brancos e trémulos, disse-lhe em voz que mal se ouvia:
- Leia!... leia!...
E com o corpo inclinado para diante e as mãos estendidas para o velho, que tremia mais do que ela, esperava que ele começasse.
O velho, lendo para si -a notícia da morte de Francisco, dada por um patrício dele, procurava traças para redigir o contrário do que lia, mas a filha, como se lhe fosse lendo no espírito o conteúdo, ia mostrando no rosto, e sobretudo no olhar, uma expressão horrível.
O pai, julgando-se certo do estratagema, ergueu os olhos e disse: "Ora ouve"; reparando, porém, na jovem, apertou-a nos braços, perguntando angustiado:
- Filha!... Maria!... tu que tens, minha filha?!...
Maria, desprendendo-se dos braços do pai, sacudiu as formosas tranças, e, voltando-se para ele com indescritível sorriso, tirou-lhe a carta da mão, dizendo:


79
-Dê cá, que eu leio...
E, sentando-se no chão, sem mais se lembrar do pai, a pobre moça entrou de decifrar no papel uns dizeres, que eram o eco das duas primeiras cartas, terminando pela notícia da chegada de Francisco no dia seguinte.
-Chega amanhã!... - exclamou ela de repente. -Vou esperá-lo!
E, erguendo-se precipitadamente, saiu, correndo, na direcção da estrada.
Maria, a "Loura de Tagilde", passara a ser a "Doida de Tagilde"!
Seguiu-a o pai e pôde a muito custo trazê-la para casa; mas a cada instante erguia a jovem a fronte, como se ouvisse passos, e fugia, repetindo: "Vou esperá-lo!"
Prenderam-na em casa, e ela tornou-se furiosa.
Alma caritativa e inteligente convenceu o velho a que a deixasse andar sozinha.
Foi então que começaram as longas correrias, na companhia da ovelha, da "Menina", como ela lhe chamava.
O meigo animal, acostumado a comer na mãodela, seguira-a na primeira ocasião em que achara a porta aberta.
E assim começaram a vagar as duas no mundo, sem nada que as prendesse, uma guiada pela -ovelha, a outra por Deus guiada, como rezava a cantiga que um estudante compusera para a doida, e que esta retivera na memória.




Terminou aqui a narrativa da tia Miquelina, e começaram as minhas perguntas.
- E tratam-na bem?...
- Se a tratam bem!... Pois quem havia de a tratar mal?!... Olhe... Ela, à noite, quando não dorme debaixo das árvores, entra em casa de qualquer lavrador, vai direita à cozinha e pede pão. O primeiro bocado é para a "Menina". Depois de comer, pega na primeira roca que acha à mão e fia... fia... até lhe dizerem que se vá deitar. Por lá dorme no palheiro, ou onde a mandam dormir, e pela manhã, por muito que a gente da casa madrugue, já ela vai longe!
- Vai esperar o Francisco! - pensei eu, avaliando os tesouros de amor que teriam cabido àquele homem, se Deus o não houvesse chamado a si!
Antes de deixar Vizela, em vão procurei a doida; não a encontrei!
Sabe -Deus para onde ela se deixara guiar pela ovelha, que era quase sempre quem marcava o itinerário!...
CONCLUSÃO
No ano seguinte voltei a Vizela.
- Que é feito da doida de Tagilde, tia Miquelina?... - perguntei eu.
-Coitadinha!... Morreu!... sempre tivemos todos uma pena dela!... Coitadinha!... Uma morte assim!...




81
Vou contar-lhes o triste fim de Maria. Fora rigoroso o Inverno.
A água dos córregos estava gelada, e os montes alvos de neve.
Por uma noite de Dezembro, uns pastores, que dormiam no monte, numa cabana de madeira, ouviram a espaços os balidos de uma ovelha, cujo som ora se afastava, ora se aproximava do sítio onde estavam.
Quem se levantaria por causa de uma ovelha tresmalhada, quando a neve caía silenciosa do céu e o vento sibiliva por entre as tábuas da cabana?
No dia seguinte, ao abrirem a porta, viram ao longe a ovelha, que se dirigia para eles, voltando a miúdo a cabeça para trás.
Chamaram-na -parou; caminharam para ela -começou a andar para donde viera, voltando-se como que convidando-os a segui-la.
Chegando a certa altura estacou, e começou a arredar a neve com o focinho.
Aproximaram-se...
De sob espessa camada de neve saía um braço; puxaram-no.
Era a doida de Tagilde!
Dera-lhe Deus ordem de recolher ao Céu, e surpreendera-a a morte sobre o monte, onde ela colhia as flores com que se adornava para agradar a Francisco, cobrindo-lhe o corpo com o lençol de neve, tecido nos céus, mortalha cândida como a alma dela!
6



82
- E a ovelha?... - perguntei eu, disfarçando mal as lágrimas.
- A ovelha... pobre bichinho! A ovelha andou três dias com três noites a balir em volta da igreja, sem se deixar agarrar por ninguém... Ao quarto dia encontraram-na morta, no adro da igreja! Há certos animais, que parece mesmo que têm alma! - concluiu a tia Miquelina.
-Quem sabe?!... -pensei eu.
A dedicada criatura fizera bem em morrer; a dona, que ela guiava, tinha chegado ao seu destino!... Tinha afinal encontrado o seu Francisco!




MEIGO
I
TINHA eu vinte anos e não tinha vinte réis no bolso, quando me aconteceu o que lhes vou contar.
Andava no ano cirúrgico, a tombos com a anatomia; tinha segura a subsistência de um mês, que pagara adiantado; possuía, fora do alcance dos meus condiscípulos, duas libras de tabaco e quinze livros de mortalhas; as solas do meu único par de botas prometiam longos dias de vida; o sol como que se obrigara para comigo a não causar embaraço à roda-viva em que andavam de mim para a lavadeira e da lavadeira para mim duas camisas, que me restavam; o chapéu não estava ruço de mais, nem o casaco demasiado no fio-vivia feliz e sem cuidados.
Não tinha dinheiro, nem comodidades, nem cavalos, nem luxo; mas tinha vinte anos, um coração alegre, trinta e dois dentes afiados como




84
navalhas de barba, um estômago que digeria os alimentos de... empreitada, que me forneciam pernas de ferro e saúde do mesmo metal... Que mais se pode querer aos vinte anos?
E, para cúmulo de felicidade, tinha a janela das águas-furtadas em que vivia, janela cujas portas já não sabiam fechar-se, porque os gonzos, por falta de exercício, tinham perdido o movimento.
Não sei se, mais tarde, alguém se lembrou de curar aquela paralisia dos gonzos; para mim seria isso impossível, pois nem três mesadas bastariam para comprar o azeite necessário a tal empresa.
Que mágica janela!
No Inverno, como que se alargava para deixar coar através dos vidros o luar das límpidas e formosas noites de Janeiro; no Verão, quando eu me esquecia de descer a vidraça, perfumava-me o quarto com os aromas do laranjal florido, que assombrava o jardim do palacete vizinho.
O dono do jardim, que não chegava à varanda e dormia com as janelas fechadas, estava convencido de que o jardim era realmente dele; eu, porém, que de dia lhe namorava as flores e à noite dormia com a janela aberta, para receber as saudades que elas me mandavam, entendia que o jardim era meu.
Que noites de Julho, passadas a essa janela, em mangas de camisa, com as costas obstinadamente voltadas para o candeeiro, que crepitava


85
censuras, e para o compêndio, que adormecera aberto, desesperando de me fazer dormir a mim!
Por uma dessas noites, encostado ao peitoril, e emendando, por assim dizer, os cigarros uns aos outros, deixava eu errar a vista pela floresta de chaminés, que se destacavam no ar, sobre os telhados das casas que dali se viam, e corria-me à rédea solta a vagabunda, a folle du logis - a imaginação, enfim.
Quem, depois de duas horas de meditação, poderá narrar por ordem todas as loucuras que lhe atravessaram o cérebro?
Ao cabo de longo cismar, os meus olhos começaram a contaras luzes, que brilhavam como pirilampos, no fundo negro das casas.
Pouco e pouco essas luzes foram-se extinguindo uma a uma, e ficaram apenas duas, em pontos diametralmente opostos, e a enorme distância uma da outra.
A quem alumiarão?
Traçado este ponto de interrogação no espírito, a vagabunda, que eu, por assim dizer, travara, deu um salto e partiu a toda a brida, talando em todas as direcções o campo infinito do ideal.
" Serão costureiras, que terminam algum vestido?... Pobres pequenas! Avaliarão ao menos as meninas, para quem trabalham, quanto custa àqueles dedos de fada essa tarefa, que tem por fim torná-las a elas formosas?



86
Será desgraçado poeta, tão alheio ao século, que ainda não descreu da ode ou mete ombros ao primeiro verso -da vigésima estrofe do sexto canto de épico poema?
Serão mães, que velam filhos enfermos; pobres velhas a braços com a asma; criminosos, a quem as trevas engrossam o remorso?"
-Serão... o que quiserem ser! -bradei eu de repente, agarrando a tresloucada, que parara a tomar fôlego para novas correrias.
Neste momento a luz do candeeiro começou a crepitar tão raivosa, que o pobre compêndio acordou e chamou-me.
- Não há remédio! -disse eu espreguiçando-me, e ia a retirar-me da janela, quando vi que uma das duas luzes se movia.
Soou a terceira das doze badaladas da meia-noite no relógio da Sé.
A luz continuou a mover-se e acabou por aparecer francamente à janela, a que assomara um vulto, que eu não podia distinguir se era de homem, se de mulher.
Lançando instintivamente os olhos para a outra janela, notei o mesmo manejo de luz e verifiquei a aparição de outro vulto!
Duas luzes, que brilham em face uma da outra e aparecem ao mesmo tempo à frente das janelas... meia-noite que soa...
Decididamente, aquelas duas janelas entendem-se!
Como se quisessem tirar-me de dúvidas, as



87
luzes entraram de fazer movimentos combinados; dir-se-ia que se cumprimentavam.
Estava eu estudando aquela telegrafia, quando um ligeiro ruído me chamou a atenção.
Investiguei o espaço e vi um ponto negro, que se dirigia para mim.
- É um morcego, que vem esbarrar-se contra os vidros -pensei eu, sem me lembrar que o voo -do morcego é silencioso.
Ora é preciso dizer-lhes que eu tenho um horror instintivo do morcego.
Eu odeio o rato, que me não deixa dormir, entregue à sua obra de destruição, em que prossegue, apesar da bota que arremesso para o sítio de onde vem o ruído, e gelo ao aspecto desse rato alado, que tem a consciência de não merecer que o solo alumie; aborto condenado às trevas, sacrílego vampiro, que esvoaça às noites por entre as colunas e recôncavos do templo, profanando a alâmpada e extinguindo a luz, que se espelha nas lágrimas de sangue que correm ao longo da face angustiada do Cristo.
Receoso do repelente contacto, recuei, mas o vulto negro, em vez de bater nos vidros da janela, entrou por ela, esbarrou-se contra a parede fronteira e caiu de chofre sobre a minha cama.
- É um mocho! - exclamei eu aterrado, ao ver que, pelo tamanho, não podia ser morcego.
Ora é preciso dizer-lhes que o mocho me merece especial antipatia.
Além de ser, como o morcego, um parasita



88
-de igreja, acho-lhe um certo ar refalsado, o que quer que é de beato fingido, de gato-pingado, com que embirro solenemente.
Se os outros animais são, como o homem, obrigados a exercer uma profissão, o mocho deve ter, com certeza, casa de prego e emprestar dinheiro a quatro e cinco leis.
Ora reparem bem nele, e verão que me não engano. Óculos enormes, nariz de cavalete, casaca arruçada pelo tempo, pernas curtas e fortes, unhas curvas e sujas -é um usurário chapado.
Eu detesto o mocho!
-Pois dou cabo dele! -disse eu, fechando a janela e agarrando a bengala.
Peguei no candeeiro, e erguendo o instrumento de morte, caminhei para o inimigo...
A luz espalhou-se sobre a cama, e a arma caiu-me da mão.
-Que lindo pombo preto!...
E era, realmente, um lindo pombo, destes que à luz do sol despedem do dorso reflexos metálicos, Ecambiantes.
E pobrezinho estava tão cansado, que se deixou agarrar sem reagir.
Pousei o candeeiro sobre a banca e pus-me a analisar a presa.
Nisto, os meus dedos, introduzindo-se por baixo de uma das asas, encontraram um corpo estranho; era um papel atado por uma linha.
O pombo defraudava a fazenda; era um carteiro de contrabando.


89
Apoderei-me do bilhete, apesar de duas picadelas que o fiel mensageiro me deu, em defesa do que ele, naturalmente, considerava depósito sagrado.
Soltei o pombo, que voou para a janela, onde se empoleirou, e abri o bilhete.
Eis o seu conteúdo:
"Elisa:
Foi mais um dia perdido!... Tudo se conspira contra nós, e começo a perder a esperança de conseguir o que tua mãe exige de mim, para consentir na nossa felicidade.
Que mais te hei-de eu dizer, se, no pouco que aí fica dito, te causo uma noite -de insónia e de lágrimas?!
Adeus!... O nosso confidente está quase a acabar a sua ração.
Adeus!... Amo-te.
Alberto."
-Quem será este Alberto?... E quem será aquela Elisa?... -perguntava eu, voltado para o pombo, que me mirava, espantado, com os seus grandes olhos orlados de encarnado. - Deixo partir o correio... não deixo... - comecei eu a dizer de mim para mim.
Acerquei-me da janela. Uma das luzes tinha desaparecido; a outra movia-se agitada por mão assustada e ansiosa.

90
- Compreendo - rosnei eu. - O Sr. Alberto escreveu aquela choradeira, botou-a ao correio, fechou a janela, apagou a luz e está já a dormir como um porco, enquanto que -a pobre da rapariga está ali a mirrar-se, agitando o farol, na esperança de atrair o pombo transviado. Nada! Isto é negócio de consciência, um atentado contra o direito das gentes! Soltemos o pombo!... Anda cá, amor - continuei, ameigando a voz para não assustar a íris. -Anda cá, tolinho... Tu gostarás de pão, lambareiro?...
E, abrindo um armário de pinho, tirei um bocado de pão, que esfarelei. Lembrei-me de lhe oferecer cognac ou de lhe manufacturar um grog, pois para isto tinha eu sempre o preciso no quarto, mas tive medo que ele aceitasse e calei-me.
Parece que o pão não era alimentodesconhecido para ele, porque o pombo voou imediatamente para cima da banca, onde eu o tinha colocado, e começou a cervir-se sem cerimónia.
-Ora já basta, amigo -disse eu ao cabo de alguns minutos.
E, agarrando o trânsfuga, amarrei-lhe de novo o bilhete debaixo da asa, abria janela e soltei-o.
Passados instantes, a luz retirava-se e desaparecia.
A mala tinha chegado ao seu destino.




91
II
Só muito para a madrugada consegui adormecer.
Quando acordei e vi o resto dos farelos de pão, saltei da cama e corri à janela; por mais que fiz, não pude dizer com certeza quais eram as casas em que vira brilhar as luzes.
Fiquei logo de mau humor. Vesti-me, almocei à pressa e fui às carreiras para a escola.
O lente chama-me, dou um estenderete formal e os condiscípulos cravaram em mim olhos de espanto, ouvindo-me dizer em tom raivoso:
-Leve o diabo o pombo!
Andei todo o dia de candeias às avessas.
À noite não saí, e pus-me à janela.
Parecia arte do Demónio!... Havia luz em todas as casas.
- Estes malvados não têm sono! -pensava eu, batendo de raiva com os pés no chão. - Ide deitar-vos, imbecis!... Olhai que são quase onze horas!.. Amanhã não há quem vos tire da cama!...
Afinal, como na véspera, as luzes foram-se sumindo uma a uma, mas muito mais vagarosamente, segundo me parecia, e ficaram apenas as duas.
-O pombo não vem... Foi um acaso, uma extravagância de pombo...-dizia eu por entre dentes, em resposta à voz secreta que me dizia


92
o contrário. -Qual vem, nem meio vem!.. Foi uma vez aCascais e nunca mais!... Adeus... Não me importa... Queria ver a continuação da comédia, mas... acabou-se... não tenho ferro...
E tirava o relógio a cada instante e tinha um ferro por aí além!
Ecoou, finalmente, a primeira badalada da meia-noite; as luzes repetiram -a dança da véspera...
- E o pombo não vem... -murmurava eu, com despeito.
E o caluniado, agitando as asas, entrava sem hesitação, e voava direito às migalhas.
Eu tanto não esperava que ele viesse, que até... já tinha esfarelado o pão sobre a banca.
Dizia assim a resposta de Elisa:
"Alberto:
Não imaginas os transes por que me fez passar o nosso confidente!... Levou-lhe meia hora a chegar!..
Queres que te diga?.. Tenho hoje receio de te escrever com a franqueza do costume, porque, já pela demora, já pela maneira diferente por que vinha amarrado o teu bilhete, desconfio que o pombo foi detido na passagem... (Oh! com a breca! -exclamei eu, vendo-me descoberto.)
Coragem, Alberto!... Não desanimes!... A exigência de minha mãe é fundada num louvável sentimento de previdência...






93
Pode levar tempo a realizar o nosso desejo; mas... não temos nós confiança bastante um no outro?... Valha-me Deus!... Se o pombo se desviasse outra vez... se alguém lesse isto...
Nem me atrevo a escrever mais...
Adeus! Amo-te!
Elisa."
Pobre rapariga!... compreendi o pudor daquela alma, ao saber-se devassada, mas... o mal estava feito.
Tornei a soltar o mensageiro.
No dia seguinte interceptei a seguinte carta:
"Elisa:
O pombo também na volta se demorou mais do que costuma.
Se é uma senhora quem se entrega ao mesquinho prazer de nos angustiar, espero que, ao ler estas linhas, se lembrará -de que despreza todos os ditames da delicadeza.
Se é um homem, dir-lhe-ei que é ridícula essa curiosidade, e criminosa, por ser satisfeita na sombra e com a certeza da impunidade.
Esta carta é mais para ser lida por quem interceptou as outras, do que escrita para ti.
Alberto. "
Pareceu-me quixotesca esta carta, o sangue tingiu-me as faces, a consciência aceitou a censura;

94
mas o amor-próprio assanhou-se, os meus vinte anos riram contrafeitos e eu tive a cruel coragem de escrever na mesma carta de Alberto as seguintes palavras:
" Ex.ma Sr a:
Não sei se V. Ex.a gosta de pombo com ervilhas...
É o meu prato favorito.
Ou V. Ex.a convence o Sr. Alberto a contar-me o começo destes amores, a instruir-me sobre a educação dos pombos e a comunicar-me a exigência, de cuja realização depende o consentimento de sua Ex.ma mãe, ou, na volta do correio, depois de amanhã, mando comprar as ervilhas.
Creia-m e de V. Ex.a o mais humilde e desconhecido venerador."
No dia seguinte, o mensageiro reconduzia a
carta de Alberto, em que eu escrevera o que
acima fica, sem um único comento da jovem. Elisa deixava a Alberto a decisão de tão momentoso assunto.
À noite recebia eu a seguinte carta do pobre
namorado:
"Senhor:
Juro-lhe que dava anos de vida para conhecer quem assim se atravessa entre duas almas que, receosas da terra e dos homens, se comunicam


95
por intermédio da inocência, e através dos espaços do céu.
OO senhor foi cruel!...
Eu fui talvez inconveniente; devia lembrar-me que quem tem a coragem de forçar um segredo, mal poderia sofrer a censura que por tal abuso lhe fizessem...
Andei mal; ando hoje pior em me mostrar independente, quando o amor e o sossego -de quem amo me aconselham o papel de suplicante.
Não posso!... Um sentimento, a que o senhor me parece alheio - a dignidade - não mo permite.
Quer conhecera história do meu amor... Vou contar-lha! Conto-lha para que, chegando ao fim, veja bem -o mal que me causa, e conheça - se há ainda um eco qualquer na sua consciência - que, embora o não confesse, são justas as minhas recriminações.
Leia.
Por uma amena tarde de Estio -haverá dois anos-estava eu no meu quarto, em convalescença de prolongada moléstia, quando pela janela entrou o pombo que o senhor conhece.
Aborrecido, e buscando, em vão distrair-me, atravessou-me uma ideia o cérebro.
Ergui-me, fechei a janela e escrevi numa folha de papel:
"Se na casa onde, a estas horas, choram talvez a tua ausência, há uma mulher jovem e bela,



96
leva-lhe os votos de ventura -de um coração que ainda não amou!"
Agarrei o pombo e confiei-lhe a... pieguice, que acaba de ler.
No dia seguinte, com espanto meu, entrava o pombo, como na véspera, portador desta resposta:
"Uma mulher jovem, a quem ainda ninguém disse se era bela, agradece a restituição de `Meigo, cuja ausência lamentava, e retribui os votos de ventura.
Assim se travou uma correspondência, que durou cerca -de dois meses, sem que a palavra "amor" fosse empregada de parte a parte.
Ao cabo de dois meses, pedi à minha incógnita correspondente que me dissesse onde podia vê-la.
Depois de muitas cartas trocadas, em que eu insistia -e ela recusava, veio uma, em que me marcava a missa das onze, nos Congregados, no domingo seguinte, e me dava sinais certos para a reconhecer.
Fui.
Não posso descrever a ansiedade, que me torturava!...
Se era feia?!...
Era... é uma formosura!
Que dulcíssimo prazer me arrebatava a alma, vendo-a ali, de joelhos, estudando ansiosa o rosto de todos os mancebos, sem me poder ver a mim, que a estava observando, -encoberto pelo reposteiro!




97
A missa acabou por fim; ela ergueu-se, e, ao passar junto de mim, murmurei em voz abafada: "Obrigado!..."
Elisa não pôde reter um pequeno grito; as faces tingiram-se-lhe com o rubor do pejo, e, lançando-me um olhar entre assustado e curioso, aconchegou-se à mãe, e saiu.
Escusado é dizer que a segui.
Começaram, desde então, a falar de amor as nossas cartas.
Eu era guarda-livros de uma casa respeitável e tinha um ordenado subido.
Entendi que não seria repelido, e encarreguei um amigo meu de pedir à mãe a mão de Elisa.
A mãe acolheu-me perfeitamente, e tratávamos já das mil pequeninas coisas, necessárias a quem põe casa, embora modesta, quando, haverá um ano, o negociante que eu servia morreu de repente.
Os herdeiros liquidaram o negócio, e eu fiquei... e estou desempregado.
No dia em que terminaram os meus trabalhos de liquidação, mandava a mãe retirar Elisa da sala em que estávamos reunidos e falava-me nestes termos:
"Alberto!... Sei que é um rapaz trabalhador e honrado, pois, se o não soubesse, não lhe daria minha filha.
Sabe que só à força de economia consigo sustentar a ela e a mim, com a modesta pensão que recebo do Estado?
7
98

Enquanto o Alberto não arranjar novo emprego, não é possível pensar em casamento... Procure!
E - continuou ela - perdoeme o mal que vou fazer-lhe, mas é preciso que o Alberto deixe de vir a minha casa.
Somos duas mulheres sós; o mundo é mau; pode este casamento não chegar a realizar-se... É preciso que deixe de vir aqui!"
Protestos, rogos, lágrimas, tudo tem sido baldado!
A mãe de Elisa é inabalável; eu bato em vão a todas as portas, e as minhas economias desapareceram, fazendo-me antever a miséria num futuro pouco distante.
Aí tem a minha história!
Faça -o que entender!
O pobre "Meigo" contraiu relações novas... Depende do senhor roubar a duas almas a única felicidade que lhes resta, fazendo desaparecer o único meio de comunicação que as liga.
Faça o que entender!
Não imploro, resigno-me; não torço, quebro; não vegeto, morro!
Alberto."
Não é possível explicar-lhes a vergonha que senti escaldar-me as faces, o remorso que me estorcia o coração!
Corri à banca e escrevi o seguinte:





99
"Ex.ma Sr.a:
Perdão para os meus vinte anos, para a minha leviandade de rapaz!...
Não sou mau, sou louco!... Creia-me, por quem é!...
Juro-lhe que "Meigo" entrará no meu quarto e sairá dele sem que a minha mão torne a roçar-lhe as penas!
Peça a Alberto que me perdoe, como eu peço a Deus que lhes conceda a ventura de que tão dignos parecem!..."
No dia seguinte "Meigo" entrava no quarto, trazendo dois bilhetes, amarrados por fora das asas.
Um deles dizia: "Para o desconhecido." Abri-o e li esta única palavra: "Obrigado!" No dia imediato, o pombo trazia igualmente
dois bilhetes, presos da mesma maneira. Peguei no que me era dirigido e li:
"O senhor é bom... Enganei-me... Perdoe-me! Alberto. "
E o pombo continuou a vir todos os dias ao pão.




100
III
Correram meses, sem que peripécia nenhuma viesse apressar ou retardar a chegada ou partida do correio.
Fiel à minha palavra, nunca mais tentei devassar os segredos confiados ao voo possante do "Meigo", e só de tempos a tempos a oferta de uma flor ou uma palavra de gratidão vinham pagar-me a discrição.
Permita agora, leitor, que lhe diga de mim duas palavras, que facilitem o desenvolvimento desta narrativa.
Quando, no princípio da nossa conversa, me apresentei sem um vintém no bolso, não tinha eu em vista dar-me por necessitado, pois, pelo contrário, se não -tivesse cinco irmãos, como ainda, felizmente, tenho, seria um rapaz rico.
Filho de um abastado lavrador do Douro, recebia de meu pai uma mesada, que, bem dividida, me permitiria viver modestamente, pondo ainda -de parte, no fim de cada mês, alguns tostões, quando mais não fosse; infelizmente, porém, eu tinha um verdadeiro culto pelas tradições da vida de estudante, e raro era o mês em que no dia 8 o meu dinheiro não estivesse no fim, e em que, aí pelo dia 25 ou 26, eu não fosse fazer uma visita ao Sr. Samuel Gibson, honrado negociante inglês, a quem meu pai vendia o vinho que colhia.




101
O velho inglês era deveras meu amigo, e se mais vezes me não aproveitava dos frequentes convites que me fazia, para ir jantar com ele e com Miss Alice, sua formosa filha, era porque o mau estado da minha roupa domingueira bradava alto contra o desregramento do meu viver.
Havia ainda outra razão, e era o receio de me enamorar seriamente de Miss Alice, que me honrava com uma amizade a que eu bem desejara poder dar outro nome.
No dia 25 de Outubro - lembra-me perfeitamente que era em Outubro-abria eu a porta, forrada de baeta verde, que separava o gabinete do Sr. Gibson do escritório onde trabalhavam os empregados, resolvido a fazer uma ligeira alteração no calendário, transformando 25 de outubro em 1 de Novembro, para receber a mesada.
O bom do velho, mal me viu entrar, disse-me com os olhos: "Já vejo a que vem... " e com os lábios: "Ora viva, senhor desertor!"
Balbuciei uma desculpa, falei na carestia das subsistências, no enorme custo dos livros, e acabei por pedir o adiantamento da mesada de Novembro.
Mr. Gibson ria maliciosamente, fazendo-me perder a tramontana, e, quando terminei o meu arrazoado, respondeu:
- Está servido... com uma condição. - E é?... -perguntei eu.
- Ir jantar amanhã comigo... É domingo... Ao domingo não se estuda.





102
-Com muito gosto - respondi.
- Pois, nesse caso, diga lá fora ao caixa que lhe dê o dinheiro -replicou ele.
Agradeci e ia retirar-me, quando, chamando-me, perguntou:
- Olhe lá... Você nunca viu um enterro protestante?
Como lhe respondesse negativamente, continuou:
-Pois, se quiser, pode vê-lo hoje à tarde... Às quatro horas enterra-se o guarda-livros dos Srs. Norris & C.a.
Disse-lhe que não perderia aquela ocasião, e saí.
É escusado dizer ao leitor que não fui ao enterro.
À noite, estava eu no meu quarto a ver qual era a menos velha de três gravatas pretas que tinha, e acabava de escovar o fatinho com que tencionava apresentar-me em casa do inglês, quando o pombo entrou.
Chovia se Deus a dava, e o pobre "Meigo", antes de dar a primeira bicada no pão, sacudiu as penas três vezes, e pareceu agradecer-me o carinho com que o enxuguei com uma toalha.
Quando, passados minutos, o obriguei a partir, e vi as duas luzes, que brilhavam separadas, não pude deixar de dizer:
-Quanto tempo durará ainda aquele penar?... Não virá um dia, em que baste uma luz para ambos?... Pobres crianças!

103

Nisto, ocorreu-me uma ideia, e, dando uma palmada na testa, exclamei:
-Oh! que lembrança!
E fui-me deitar, afagando a ideia que me desabrochara no espírito, e que ainda em sonhos continuou a sorrir-me.
Às 4 horas da tarde do dia seguinte, batia à porta do Sr. Gibson, que morava em Entre Quintas.
- O patrão está ali, em casa do vizinho; a menina anda no jardim - disse-me o criado.
Eu tinha com Miss Alice a familiaridade necessária para não ser tachado de importuno; dirigi-me, portanto, ao jardim.
A nossa conversa cifrava-se, quase sempre, num esgrimir de ironias, tendentes a demonstrar a vantagem que havia em ter nascido português ou inglês. Contanto que a discussão se não abalançasse a assuntos religiosos, era permitido procurar e atacar todos os pontos fracos.
O que, porém, era impossível encontrar em outra mulher era, a par da sólida e bem dirigida instrução, mais angélica pureza e mais subida elevação de sentimentos.
Apresentei-me a Miss Alice com desusada gravidade.
Notou-a ela, que era o que eu mais queria, pois contava com o seu auxílio para realizar a ideia que me ocorrera na véspera.
- O senhor que tem?... Tem hoje um aspecto

104
sério... quase inglês! -perguntou ela, convidando-me ao combate.
- Estou triste - respondi eu.
- Triste!... o senhor?!... Ora deixe-se disso, que me não convence! - redarguiu a jovem.
-V. Ex.a quer ouvir um idílio, um conto de amores, um verdadeiro assunto de balada inglesa, um lied alemão? - perguntei eu bruscamente, ao cabo de alguns minutos de silêncio.
Miss Alice fez-se vermelha como uma romã, e flutuou-lhe entre os lábios o shocking tradicional, com que uma inglesa fulmina o desgraçado convicto do crime de inconveniência.
- Quer ouvir?... - insisti eu. - Escute-me, e conhecerá a causa da minha tristeza.
Aqui é que uma nova camada de carmim veio estender-se sobre a que já enrubescia as faces -da formosa Miss, receosa de que eu me atrevesse a uma declaração de amor, sem mais "tir-te nem guar-te!
- Escute-me - prossegui eu. - Ajude-me numa boa acção!
Os olhos de Miss Alice, até ali obstinadamente cravados no chão, ergueram-se radiantes, os lábios abriram-se e murmuraram simplesmente:
-. Diga!
Contei-lhe tudo o que o leitor já sabe.
Eram para ver as mil impressões diferentes que o rosto ia espelhando alternativamente; as frases, que traduziam o íntimo pensar, saíam-lhe



105
espontâneas dos lábios, ora em inglês, ora em português, à medida que a narrativa se adiantava.
-Poor, dear, little thing!-dizia ela, referindo-se ao pombo. - Coitado! pobre rapaz!... Quem me dera conhecer Elisa!
Quando cheguei ao episódio do pombo com ervilhas, pensei que toda a poesia e acrisolada sensibilidade daquela alma de anjo, fundidas num gesto de suprema indignação, me condenavam a arrastar para todo o sempre o pesado grilhão do remorso, e valeu-me o meu procedimento posterior para não ficar perdido no conceito da encantadora jovem.
Quando terminei, Miss Alice chorava, mirando o céu, talvez na esperança de descobrir um pombo preto, que lhe trouxesse carta de algum anjo.
- Mas que quer agora fazer?... Em que posso auxiliá-lo?... Conte comigo! - disse ela por fim.
- Pode transformar dois infelizes em dois bem-aventurados!
- Como?... Fale! -replicou a inglesa, impaciente.
-Faça com que seu pai peça para Alberto o lugar do guarda-livros da casa Norris & C.a - respondi eu.
Oh! que feliz ideia! - exclamou Miss Alice, batendo as palmas com infantil alegria. - Vou já escrever a Betsy Norris! É uma das minhas melhores amigas... depois falarei a meu pai.



106
E partiu a correr, ligeira como uma gazela e alegre como uma criança.
- Já escrevi! - disse-me ela, voltando passado um quarto de hora.
Três dias depois, amarrava eu com inexplicável prazer à asa de "Meigo" um bilhete, concebido nestes termos:
"Pode o Sr. Alberto apresentar-se aos Srs. Norris & C.a, por quem será admitido como guarda-livros, se as informações, que dele se colherem, satisfizerem os mesmos senhores."
Tenho pena de não ter aqui à mão as cartas que recebi de Alberto e de Elisa.
Eu era o seu anjo-da-guarda, a sua Providência, o seu benfeitor.
A carta em que Alberto me participava que tinha sido finalmente provido no lugar, terminava assim:
"Graças a si, meu desconhecido amigo, antevejo um futuro de felicidades sem conta!... Escrevi à mãe -de Elisa, e a boa senhora permite que eu vá hoje à noite tomar chá com elas, e fixar o dia para o nosso enlace.
Sou completamente feliz, meu amigo!... Completamente não! Pois não hei-de conhecê-lo?! Não hei-de poder beijar a mão que me socorre?!... Seja bom em tudo... Diga-me o seu nome!"
Fui mostrar esta carta a Miss Alice, e consultá-la sobre o que devia fazer, "na certeza - disse eu - que, se ele me quiser agradecer, eu digo-lhe que venha entender-se com V. Ex.a,,,. ".




107
A minha gentil auxiliar era inglesa de lei, ou, por outra, possuía uma destas almas que encobrem nas dobras do mistério a modesta e fragrante flor da poesia.
Em toda a parte do mundo se chama a esta casta de mulheres - ser inteligente, poético, ideal, angélico! -Entre nós chama-se-lhes "românticas", o que, aplicado a uma senhora, importa o mesmo que chamar a um homem, que se estrema um pouco do vulgar, "visionário, mágico, habitante da Lua... finalmente - tolo! "
Proibiu-me que me desse a conhecer; agradava-lhe o mistério... Segui o conselho, e recusei satisfazer o justo desejo de Alberto e de Elisa.
Mr. Gibson, a pedido meu, proporcionou-me ocasião de ir ao escritório de Norris & C.a.
Perguntei pelo guarda-livros.
Era um moço elegante, uma fisionomia distinta e insinuante, um olhar inteligente e leal.
Retirei-me satisfeito com ele e comigo.
"Meigo", seja dito em louvor da gratidão dos dois namorados, afinal unidos, não deixou uma única noite de vir visitar-me, trazendo-me sempre palavras de reconhecimento.
Passado um ano, foi ele portador da seguinte carta:
"Meu bondoso protector:
Presenteou-nos Deus com uma filhinha, e eu fiz voto de que ficaria por baptizar, se o nosso



108
anjo-da-guarda se recusasse a servir-lhe de padrinho.
Quer deixar a inocentinha fora do grémio da Igreja?... Quer obrigar uma pobre mãe a gemer sob o peso desse remorso?... E não o sentirá também?... Responda!
Elisa. "
Tornei a ir consultar o meu advogado, a formosa inglesa.
- E agora!?... -perguntei eu, depois de ler
a carta.
- Agora... não há remédio! - respondeu ela. "Meigo" foi portador do meu consentimento. No dia seguinte apresentava-me em casa de
Alberto e de Elisa.
A modéstia ordena-ine que cale tudo quanto
a gratidão lhes inspirou para me agradecerem. Oito dias depois, na igreja da Sé, perguntava
o abade:
-Alice! Vis baptisare?... E eu, padrinho, respondia: - Volo
E a avó, madrinha, e a parteira, e a criada
da parteira, e o sacristão, esses respondiam:
-Bolo!
E está acabada a história.
P. S.-"Meigo" foi durante dois anos portador dos convites que me fazia o meu compadre para ir jantar com ele. Numa dessas correrias


109
chegou a casa atordoado, voou duas vezes à volta da sala e foi cair morto sobre o berço de Alice, penhor da felicidade dos pais, felicidade que só a ele era devida.
Até hoje, ainda aquela família não teve outro desgosto.






A QUINA DE ESPADAS
I
O filho das planícies que percorrer a montanhosa Trás-os-Montes, quando todos aqueles outeiros, sobrepondo-se uns aos outros, se apresentam vestidos dos pés à cabeça com a folhagem verde da vinha, deve conscienciosamente confessar que é bem mais imponente e pitoresca aquela paisagem, limitada ao fundo pelos colossos, que, em dias menos claros, se confundem com as nuvens, do que essas intermináveis extensões de terreno, em que a vista se perturba e perde, sem poder decidir onde finda a terra e principia o céu.
Se o acaso, porém, o lá conduzir quando a neve coroa o topo das montanhas, rasgadas de alto a baixo pelas torrentes do céu, quando as vinhas podadas de fresco erguem as varas negras e torcidas como esqueletos calcinados, quando as águas das nascentes, geladas em meio da







112
queda, pendem em estalactites das fendas de onde manam... no Inverno, finalmente, que anelos, que saudades devem então pungir o coração do filho das planícies!
Ante aquela cena de desolação, ante aquela luta da natureza, a mente deve reproduzir-lhe a viçosa relva dos prados, aljofarada de gotas de
1 orvalho, do seio de cada uma das quais se despede o brilho de um diamante, gerado pelos sorrisos do sol.
Era no Inverno. A chuva surpreendera-me a meio caminho; o chapéu, cedendo à água, deixara pouco e pouco pender as abas; o vasto capote, em que me embrulhava, pesava quintais; o vento frio dos montes cortava-me as faces, ferindo-me os olhos; o cavalo arquejava de cansaço e recebia as esporadas com a mansidão com que Job aceitava as provações; o arrieiro praguejava, e eu ia-me pouco e pouco persuadindo de que algum espírito travesso me triplicava a extensão das léguas.
Só quem tiver feito uma jornada em iguais condições, por caminhos a par dos quais os atalhos do Minho são estradas de primeira ordem, só esse poderá avaliar o prazer que eu senti ao avistar o primeiro casebre da povoação, onde me chamavam negócios.
Creiam que foi um dulcíssimo prazer!
Aquele miserável casebre era o oásis no deserto; era a roupa seca e perfumada ainda pelos aromas das flores do monte, onde estivera



113
a corar; era o lume crepitando alegremente na lareira; era o sangue a desgelar pouco e pouco; era o traço de lombo de porco, que nos tantaliza, enquanto gira no espeto por cima do fogo brando e igual do borralho de vides secas; era o copo de vinho, que nos reanima; era, finalmente, o leito de lençóis alvíssimos e coberta de damasco, em que nos enovelamos e adormecemos, ao cabo de tudo isso, respondendo com uma gargalhada de escárnio às insolências do tufão, que se morde de raiva por lhe termos escapado.
E, efectivamente, um pouco adiante do casebre, na residência do abade, onde fui hospedar-me, vi realizadas todas as promessas que me fizera o mesquinho pardieiro.
Seriam nove horas da noite, estava eu gozando em toda a sua plenitude o bem-estar que acompanha o trabalho de uma fácil digestão.
Sentado num largo banco de castanho, móvel, que se encontra em duplicado em todas as cozinhas de Trás-os-Montes, sob o nome de preguiceiro, e em que cabem à vontade doze pessoas, analisava eu, com os pés pousados sobre a pedra do lar, todas as caprichosas evoluções da chama, que se enroscava em torno do tronco quase inteiro de decrépita oliveira, e ouvia distraído as problemáticas proezas venatórias de um morgado das vizinhanças, que não deixou em toda a noite de ter um cigarro ao canto da boca e outro entre os dedos.



114
No outro preguiceiro, defronte de mim, o abade, velho de sessenta anos, com os cabelos e as sobrancelhas completamente brancos, olhos vivos, faces afogueadas, lábios grossos e entreabertos por um sorriso de benévola malícia, fingia, como eu, escutar o caçador.
Pouco e pouco enchera-se a cozinha de proprietários da freguesia, que, depois -de darem as boas-noites ao abade, se haviam sentado, uns nos preguiceiros, outros em pequenos escabelos, formando um círculo em volta do lar.
Reagindo contra a espécie de torpor que me enervava, retirei os pés da pedra do lar, aprumei-me, esfreguei os olhos, estendi os braços, e contemplei o quadro, de que eu próprio fazia parte.
Eram dignas do pincel de Rembrandt aquelas enérgicas cabeças de transmontanos.
As longas barbas negras, os rostos morenos e duros, os olhos escuros assombrados por espessas sobrancelhas, as frontes sulcadas de vincos fundos, davam àqueles homens a aparência de um bando de salteadores, em cujas mãos o abade e eu tivéssemos caído.
Já por mais de uma vez notara eu que o abade, sempre que se abria a porta, volvia para lá os olhos, que se retiravam com desconsolada expressão, depois de verem quem entrava.
Decididamente, esperava ou desejava alguém.
- O Augusto demora-se!...-disse ele por fim.
Como que por uma convenção tácita, pararam


115
todos de conversar, trocando entre si olhares de inteligência.
O abade esmagou com o tacão uma brasa, que veio saltar-lhe aos pés, e murmurou: - Maldito vício!...
No meio daquele silêncio, que de repente viera substituir a loquacidade transmontana, abriu-se a porta e entrou um mancebo, que atirou consigo para cima do preguiceiro, balbuciando em voz sombria:
-Boas noites, tio... boas noites, vizinhos.
O abade rosnou "boas noites", sem olhar para o sobrinho, e os outros responderam em coro:
-Boas noites, Sr. Augusto!
O mancebo, como disse, atirara consigo para cima do banco, e, firmando os cotovelos nos joelhos, escondera o rosto nas mãos.
Tinham sido tão rápidos todos aqueles movimentos, que mal pude analisá-lo naquele instante, e só quando ele mudou de posição o consegui.
Teria, quando muito, vinte e três anos. Alto, delgado, olhos rasgados e negros, fronte espaçosa, a tez levemente tostada, bigode e cabelos negros - eram estes os sinais que fariam dele um formoso rapaz, se um olhar entre arrogante e angustiado não lhe transtornasse a harmonia das feições.
Era singularíssimo o aspecto daquela fisiono
mia, que a cada instante mudava de expressão.
Umas vezes, contraídas as sobrancelhas, cerrados os lábios, ardentes os olhos, o rosto do

116


jovem exprimia a provocação, o desafio, um desejo veemente de lutar.
De repente distendiam-se-lhe os músculos, o olhar apagava-se, o lábio inferior caía, a expressão audaz transformava-se em mortal desalento, até que novo sentimento vinha agitar aquela inquieta alma, e então os olhos tornavam-se-lhe vagos e incertos, a fronte enrugava-se, e ao desalento sucedia um ar de terror e de aflição indescritíveis.
Depois da entrada do mancebo, parecia que uma involuntária tristeza se apoderara de todos.
As discussões haviam cessado, e só de espaço a espaço vinha quebrar o silêncio uma pergunta, que, as mais das vezes, ficava sem resposta.
- Ora diga-me, Senhor Abade. Passa por aqui uma vida muito monótona, não é verdade?... - perguntei eu, tentando reanimar a conversa.
Assim interpelado, o abade despertou do meditar a que se dera, e respondeu:
- Não, senhor... Já estou acostumado... De dia não me falta que fazer... À noite... À noite estes vizinhos têm a bondade de vir por aqui fazer-me companhia e... e assim se vai passando o tempo.
-Ainda assim... - insisti eu. - Por muito boa que seja a companhia, nem sempre há que dizer. Pensei que tivesse, pelo menos, a sua partida de voltarete ou...
- Nesta casa não entram cartas!... -acudiu o abade, não me deixando concluir a frase.



117
O bom do padre pronunciou aquelas palavras com tanta energia, que eu fiquei tão enleado, como se ele me tivesse dirigido uma censura.
Parece que não passou desapercebido para o abade o efeito que em mim produziu a resposta, porque continuou, dirigindo-se principalmente a mim:
- Não pense que me quero mostrar intolerante!... Não o sou nem o quero parecer... Sei que os jogos de vaza servem de entretenimento... Não os censuro. Se nesta casa não entram cartas, é por ser preciso dar o exemplo, para poder dar o conselho. O jogo é uma das causas da decadência e das misérias desta província!... Joga o rico e o pobre, o proprietário e o jornaleiro todo o mundo joga!... Não imagina quantas casas tenho visto ir por água abaixo, por causa do maldito jogo!... É uma praga!... E ainda se perdessem só as casas!... Mas não! Atrás do dinheiro a honra!... Depois de rico... pobre; depois de pobre... ladrão!...
A voz do padre tremia ao proferir estas palavras, e os olhos cheios de lágrimas procuraram maquinalmente o sobrinho.
Este, à medida que o tio se fora animando, tinha erguido pouco e pouco a cabeça. O rosto primeiro exprimia desdém, em seguida impaciência, finalmente quando o velho terminou com as palavras "depois de pobre... ladrão" os olhos despediram raios, e o mancebo ergueu-se de salto.








118
Os lábios trémulos chegaram a abrir-se, e bem receei -que deixassem escapar alguma frase desabrida; ele, porém, fazendo um violento esforço, passou a mão por entre os bastos cabelos negros e deixou-se de novo cair sobre o banco.
- É preciso não fazer as coisas mais feias do que elas são - observei eu, julgando deitar água na fervura.
- Tem razão - balbuciou o padre. - Às vezes as cartas roubam a vida em vez da honra.
- Bom!... Aí temos agora as cartas a matar... só me faltava esta!... -rosnou o mancebo em tom sarcástico.
Apesar de proferidas em voz sumida, ouviu o abade as palavras do sobrinho.
As faces tingiram-se=lhe com o rubor da cólera, e os olhos incendiaram-se-lhe de forma que logo compreendi não deverem as paixões ser menos fortes naquele coração de sessenta anos, do que no daquele rapaz de vinte.
Passados instantes de violenta luta, o abade serenou e, voltando-se para o sobrinho, disse-lhe singelamente:
-Vou contar-te a história de um homem morto por uma carta!... Talvez creias depois que as cartas podem matar!
Augusto encolheu os ombros e, encostando-se comodamente -ao espaldar do preguiceiro, cerrou os olhos, como que preparando-se para adormecer.


119
II
Oabade, depois de breve silêncio, principiou com voz comovida a narrativa:
-Os vizinhos -disse ele relanceando as vistas para os circunstantes -sabem que não sou destes sítios. Há cerca de vinte e cinco anos que me considero filho desta província, mas sou minhoto.
"Dosque aqui estão -continuou ele, dirigindo-se a um homem que mostrava ser o mais idoso dos ouvintes -só ali o Sr. Albuquerque se pode lembrar da minha chegada.
Vim eu primeiro; chegaram, cerca de dois anos depois, meu irmão, minha cunhada e ali o Augusto.
Lembras-te ainda de teus pais, Augusto?... - perguntou o abade ao sobrinho."
-De minha mãe mal me lembro... De meu pai... parece-me que o estou ainda a ver-respondeu o mancebo, endireitando-se.
Passados instantes continuou o abade:
- Ia-me afastando do assunto... Haverá trinta anos, frequentava eu as aulas do Porto, e faltava-me apenas um ano para tomar ordens.
"Vivia nesse tempo na Rua Chã e tinha por companheiros de casa um rapaz da minha aldeia e outro da terra da Feira.
Andava o primeiro, que tinha apenas vinte anos, no segundo ano da Escola; o outro... esse,

120
depois de se dedicar a todas as carreiras, sem perseverar em nenhuma, vivia ajoujado a estudantes, graças aos magros vinténs que a mãe lhe mandava às escondidas; e, sobretudo, aos minguados lucros que auferia do jogo.
Seria difícil encontrar duas criaturas mais diametralmente opostas, quer física, quer moralmente.
O primeiro, franzino, efeminado, formoso quase, talento pouco vulgar, alma nobilíssima, coração aberto a tudo quanto fosse elevado e puro -era inexorável em pontos de honra, e jogava a vida para se desafrontar.
O segundo, alto e encorpado, brutal, espírito e coração derrancados pela orgia, alma apenas susceptível de emoções à mesa de jogo, só conhecia uma lei - a da força.
Eu era, por assim dizer, o fiel da balança entre ambos.
O primeiro era o meu amigo, o meu confidente, o único ser, finalmente, que me falava da humilde casinha onde a minha família se sujeitava a privações, para fazer de mim... o que sou.
Ao segundo tolerava-o por uma espécie de compaixão e... francamente... também por medo.
quantas e quantas vezes consegui eu, com uma palavra, com um simples gesto, conter num a indignação, provocada pelo cinismo do outro!
Felizmente, até ao dia fatal, tinham corrido as coisas razoavelmente.
Uma noite... Foi a 23 de Fevereiro!... - balbuciou




121
o velho com voz trémula, e enxugando uma lágrima. "
Faz hoje anos... nesse caso!...-observei eu. O abade fez com a cabeça um sinal de assentimento e continuou:
- Faz hoje anos... A chuva caía em torrentes... como hoje! O meu patrício fingia estudar. Digo que fingia, pois contrariava-o demasiado a presença do Almeida - chamava-se assim o -da terra da Feira -que, nessa ocasião, tocava tambor nos vidros da janela.
"Eu também estava morto por o ver pelas costas, e já por mais de uma vez os meus olhos se tinham encontrado com os do meu patrício, exprimindo o desejo de que o Almeida nos deixasse em paz.
Nisto, ouvimos o ruído de pessoas que subiam a íngreme escada; a porta da sala abriu-se, e entraram turbulentamente quatro condiscípulos meus.
Eram destes rapazes de quem com razão se diz: -Má cabeça, mas bom coração. Depois de muita algazarra, tomou um deles
a palavra e exclamou com cómica indignação:
-Que pouca-vergonha é esta?!... Quando é que se viu alguém estudar em vésperas de feriado?!... Fecha-me já esse livro, ó meu sangrador, que Deus fará!... -prosseguiu ele, dirigindo-se a meu... ao meu patrício. - E tu, ó inocente minorista - continuou o endiabrado, voltando-se para mim - arruma-me já esse compêndio!...



122
Aqui ninguém mais estuda!... Há-de-se aqui fazer um barulho capaz de acordar todos os padres-mestres, e o próprio bispo! Vamos a isso, rapazes!...
Era tão franca, tão comunicativa a alegria daquele doido, que, depois de trocarmos um olhar, fechámos os livros e erguemo-nos.
Meia hora depois, a expensas de todos, estava uma ceia na mesa, corria o vinho nos copos, e fazia-se um barulho infernal.
Erguemo-nos da mesa quando o vinho acabou.
-Que se há-de agora fazer?... Vamos para a rua?...
- Está a chover... - observei eu, receoso do que poderiam fazer aquelas cabeças doidas, exaltadas pelo vinho.
- Se nós jogássemos?... - disse o Almeida.
- Não... isso não! - atalhei eu, que já nesse tempo professava o mesmo horror pelo jogo.
-Cala-te!... -bradou o mesmo rapaz que nos intimara para largarmos os livros. - Cala-te!... Tu aqui não mandas nada, porque estás em tua casa!... Não queres que joguemos?... Pois por isso mesmo é que se há-de jogar!... Venham as cartas e apareçam os cobres!...
- Eu não jogo - rosnei eu com mau modo.
-Nem eu -disse o meu patrício.
- Pois jogam os outros... Venham as cartas! Venham as cartas!... - insistiu o meu condiscípulo.







123
Saiu o Almeida da sala e voltou, pouco depois, com dois baralhos -de cartas. Sentaram-se todos e começaram a jogar o monte.
Descontente e inquieto, fui buscar uma luz e sentei-me a outra mesa a ler.
O meu patrício, de pé, via jogar os outros.
Haveria meia hora que o jogo começara, quando ouvi dizer a um dos jogadores:
-Que diabo estás tu aí a fazer -de pé, feito estafermo?!... Vê-se-te mesmo nos olhos que estás a morrer por jogar!... Anda, toleirão!... Senta-te!... senta-te e joga... Anda, que ali o padre-mestre dá licença... - concluiu o tentador, apontando para mim.
- O menino tem medo de se perder, porque é pecado jogar... - disse ironicamente o Almeida; e, vendo que o meu patrício não respondia, continuou: - Assim, rapaz!... Um moço bem-comportado não joga... Jogar!?... Credo!... Não que o dinheiro é sangue!
-Bem sabes que não é por causa do dinheiro... Não jogo porque... não entra nos meus princípios... não quero! -..respondeu o provocado, com forçada serenidade.
- Oh! oh!... pois não!... Os seus princípios!... Os princípios ali do senhor?!... Quem não conhece os princípios daquele respeitável cidadão?!... Trinta e cinco em Janeiro com um pataco em Fevereiro- total quatro menos cinco, poupados em dois meses... Eis os princípios deste austero varão!...



124
- Sai daí... dá cá as cartas -ouvi eu dizer ao meu patrício, com voz abafada pela cólera.
Ergui-me para o deter; era tarde!
Havia-se sentado- e batia as cartas com uma espécie de frenesi.
Aproximei-me da mesa e acompanhei com coração oprimido as peripécias do jogo.
-O meu pobre amigo sentara-se na esperança de perder; queria provar aos companheiros que não era o receio da perda que o continha.
A sorte, porém, como que teimava em o favorecer, e o brioso rapaz empalidecia e suava, porque lhe repugnava aquele dinheiro ganho contra vontade e por um modo que ele reprovava.
Vendo-o sentar-se à mesa, o Almeida começara, primeiro por bravata, depois por íntimo rancor, a apontar mais forte, e, à medida que perdia, o rosto tornava-se-lhe cada vez mais lívido, e os seus olhos injectados -de sangue cravavam-se no rosto do adversário com uma expressão satânica e sinistra.
Era, como já disse, o meu patrício quem fazia banca.
Estava na mesa uma quina e uma dama.
-O Almeida apontou à quina; o outro começou a tirar as cartas, até que apareceu uma dama.
De repente, fazendo com a mão voar as cartas, bradou o Almeida:
-És um ladrão!... Empalmaste uma quina!



125
E, correndo para o meio da sala, apanhou as cartas e, aproximando-se da luz, começou a procurar, até que, aparecendo a quina de espadas, arremessou-a para a mesa, repetindo:
- És um ladrão!... Empalmaste esta quina!...
Era tão manifesta a repetição da fábula do "lobo e do cordeiro", que soltámos todos um brado de indignação!
De repente o meu patrício, que ficara como idiota, exclamou: - Miserável! - e, agarrando no castiçal, ia a arremessar-lho à cabeça, quando o outro, dando um salto e lançando-lhe as robustas mãos, o deitou por terra, pondo-lhe o pé na face.
Voltando a nós da surpresa, agarrámos o Almeida e pusemo-lo fora da porta, apesar da sua enérgicaresistência.
Quando voltámos para junto do ofendido, o rosto deste causava dó e medo a um tempo.
Pálido como um cadáver, insensível aos meus rogos e carinhos, o desgraçado nãodizia palavra e não desviava os olhos da quina -de espadas, que ficara sobre a mesa.
De repente, o olhar desvairado reassumiu uma expressão de inteligência, brilhando com inexcedível fulgor, duas rugas profundas vieram cavar-se-lhe entre os sobrolhos, os lábios entreabriram-se-lhe num sorriso indescritível e, caminhando para a mesa, pegou na carta, meteu-a no bolso, aspirou o ar com força, e, voltando-se para nós, disse-nos serenamente:




126
- Vocês acreditam que eu empalmasse a carta?...
- Ora! - exclamámos todos, ofendidos pela pergunta.
- Basta!... Então não há que pasmar!.. O jogo tem destas coisas!... Adeus, rapazes!... Ide-vos deitar!... Adeus!
Depois de breve hesitação, saíram todos.
Apenas ficámos sós, corri para o abraçar e ia para abrir a boca, com tenção de lhe mitigar o sofrimento, que eu sabia ser cruel numa alma daquela têmpera, quando ele, detendo-me com um gesto, disse:
- Se és meu amigo, não me digas uma palavra sobre o que se passou aqui!
Calei-me."
E o velho, ao chegar a este ponto, calou-se, como que receoso de continuar. .
Possuía o abade a fundo a arte, ou antes o segredo, de prender às suas palavras a atenção dos ouvintes, de forma que, suspensas dos lábios dele, as nossas almas esperavam curiosas e trémulas o desfecho da narrativa.
Em nenhum, porém, pareciam produzir mais profunda impressão as palavras do velho do que em Augusto.
Desde que o tio apresentara os mancebos sentados à mesa do jogo, a atenção de Augusto tinha por assim dizer redobrado, e, quando o velho descreveu a acção do caluniador arremessando


127
a carta sobre a mesa, o jovem ergueu-se agitado e o seu rosto, pálido e contraído por indescritível expressão, revelava um misto de terror, angústia e ódio.
A mão direita dirigiu-se-lhe maquinalmente ao coração, como que a comprimi-lo, ao passo que a esquerda se erguia a vendar os olhos.
Quando Augusto, finalmente, se deixou de novo cair sobre o banco, havia eu de jurar que via filtrar as lágrimas por entre os dedos da mão, que se erguera talvez para as ocultar.
Após minutos de lúgubre silêncio, passou o abade os dedos por entre os raros cabelos e continuou em voz sombria e mal segura:
- O meu companheiro dormia numa alcova e eu fora, na sala. Apesar de separados por uma porta envidraçada, ouvia-lhe o ruído dos movimentos agitados.
"Que noite horrível aquela!... O pobre rapaz estorcia-se em paroxismos de raiva, e eu pedia a Deus que acalmasse os sofrimentos daquele desventurado.
Quando no dia seguinte o encarei, recuei aterrado!
Parecia ter envelhecido dez anos! Pálido, com os olhos encovados brilhando com um fogo sinistro, os lábios brancos, a fronte enrugada... era a imagem viva do demónio da vingança!
Não tive mão em mim, e, cingindo-o com os braços, bradei-lhe louco de terror:



128
- Jura-me por... por tua mãe, que não queres fazer uma desgraça!
Estremeceu, desprendeu-se de mim e sorrindo -que sorriso! -respondeu:
- Estás doido!... Que queres tu que eu faça?... Tens talvez medo que lhe bata?!... bem viste ontem que é ele o mais forte...
Havia tão dolorosa expressão de ironia na voz dele ao proferir as últimas palavras, que senti apertar-se-me ainda mais o coração, e balbuciei suplicante:
-Eu conheço-te... Tu não ficas assim!... Tu tens uma ideia diabólica a perseguir-te!... Faz-me o que te peço!... jura...
- Decididamente estás doido!... Quem te ouvir há-de imaginar-me uma fera!... - replicou ele, soltando uma gargalhada.
Era um rir de Demónio o dele!... ao ouvi-lo senti um frio de gelo, e prometi a mim próprio não o perder de vista.
Depois de almoçarmos em silêncio, o meu patrício ergueu=se, pôs o chapéu, pegou nos livros e disse-me serenamente:
-Adeus!... Vou para a Escola.
- Espera que vou contigo...
-Pois anda daí...
Fui com ele, e só o larguei depois de o ver entrar para a aula.
Como era feriado para mim, fui passear para a Cordoaria, à espera que saísse.
Apenas o avistei descendo as escadas da Escola,



129
fui ter com ele, e viemos juntos para casa.
Ao jantar foi ele quem provocou a conversa, zombando dos meus receios.
Era tão forçada a sua alegria, que lho fiz notar.
- Se te parece! - respondeu singelamente. - Tens razão!... É forçada a minha alegria, e é o teu estúpido receio que me causou o triste trabalho de me mostrar alegre. Que diabo tens tu?.. Chamaram-me ladrão e pisaram-me aos pés... Custa... não é verdade?... Mesmo a um cobarde?... Custa, sim... Sabe Deus o que sofro!... Mas que queres tu que eu faça agora?... Nestes casos, quando um homem não mata imediatamente, acto contínuo, ali, como um cão, quem assim o insultou... traga o insulto e... e fica com o triste desafogo de ranger os dentes, como eu sem querer estou agora fazendo!... É um espinho que me fica para sempre cravado aqui, no coração; mas... adeus! não há volta a dar-lhe!
- Ó filho!... Por amor de Deus, vê se podes esquecer!... Lembra-te que todos te fizeram justiça!...
- Adeus, meu amigo!... - retorquiu ele com impaciência. - Isso é muito bom para ti, que queres ser padre... É um espinho... é uma ferida que nunca mais se fecha!
-Mas tu, então, prometes-me... juras-me que não tens uma ideia reservada?!... -perguntei eu com ansiedade.




130
- Homem!... Pelo amor de Deus, não sejas asno!... Que lhe hei-de eu fazer agora, não me dirás? -respondeu ele com enfado.
Veio-me aos lábios a palavra vingança; mas retive-a, receoso de fazer brotar naquele espírito enfermo uma ideia, que talvez lá não tivesse ainda nascido.
Além disso, parecia-me tão verosímil aquela exposição, em que ele, ofendido, não ocultava o despeito de deixar impune o ofensor, que, apesar do conhecimento que tinha daquele carácter pundonoroso, sosseguei e apelei para o tempo, esse grande consolador das grandes mágoas, que infelizmente veio a ser para o meu pobre... amigo o implacável e incessante vingador de um grande crime!
Como o coração se esforça sempre por advogar o que deseja, entrei de convencer-me que a pendência ficaria por ali, e só iria além se qualquer circunstância imprevista, ou provocação acintosa, viesse exacerbar o ânimo dos dois inimigos, e esse perigo esperava eu poder evitá-lo, graças a tal ou qual influência que exercia sobre o Almeida.
Tanto me animaram os argumentos que a esperança me sugeria, que fiquei quase tranquilo, quando o meu patrício pegou no chapéu e saiu pretextando necessidade de falar com um condiscípulo.
Exausto pela insónia da noite anterior, deitei-me e adormeci.


131
Seriam sete horas da tarde, quando acordei e acendi a vela.
Ergui-me e tentei estudar. O bater das oito horas no relógio da Sé veio recordar-me que o meu amigo se ia demorando de mais para o seu costume.
Desde que esta ideia me luziu no cérebro, assaltaram-me de novo os cruéis terrores de uma catástrofe.
Que horríveis horas aquelas!
Com a fronte colada contra os vidros da janela, em vão tentava enxergar nas trevas, que envolviam a rua, quem ali me tinha em transes mortais!
Combatido por mil sentimentos diversos, umas vezes lembrava-me de sair em procura do ausente; mas retinha-me a ideia de me -desencontrar dele; outras vezes afigurava-se-me ouvir o ruído de temerosa luta, e, dissipada a ilusão, amaldiçoava aquela cruel perversão dos sentidos.
E assim ouvi bater nove, dez, onze horas! Seriam onze e meia ouvi o estampido de um tiro...
Juro-lhes que o senti em cheio no peito!...
- É ilusão!... é o meu louco terror!... - dizia eu trémulo e angustiado.
E assim permaneci, dementado por pavoroso pensamento, sem poder tomar uma resolução qualquer.
Meia hora depois, o som de passos precipitados
132
vinha arrancar-me daquele letargo, abria-se a porta com violência e entravam na sala os mesmos rapazes que tinham sido testemunhas da cena da véspera.
- Onde está ele?... - bradei eu.
Miraram-se os três, que vinham pálidos e aterrados.
Por fim um deles, fazendo um esforço, disse em voz trémula, depois de ir ver à porta que ninguém o podia ouvir:
-Mataram há pouco o Almeida!...
Durante o tempo que mediara entre a minha pergunta e esta notícia, havia-me eu preparado para o pior, e perguntei então, tentando parecer sossegado:
- Mataram?!... E como?... Alguma desordem?...
Era um santo rapaz o que se incumbira de falar.
Caminhando para mim de braços abertos, cingiu-me contra o peito, e, com o rosto banhado em pranto, fitou nos meus os seus olhos rasgados e leais e balbuciou:
-Não tenhas medo de nós!... Aqui não há traidores!...
E vendo que eu ia ainda tentar iludi-los, continuou:
-Sabes o que ali o Alberto viu na ferida quando lhe rasgámos a camisa, e que eu pude tirar e esconder sem ninguém dar por isso?!... esta quina de espadas!... - concluiu ele, tirando



133
do bolso a carta chamuscada e tinta de sangue.
Ao vê-la, caí sem acordo no chão."
. . . . . . . . . . . . . . . . .
O abade, cuja voz se tinha pouco e pouco tornado mais trémula e abafada, escondeu o rosto nas mãos ao proferir as últimas palavras.
Ouvia-se nesse instante apenas o crepitar de uma ou outra lasca saltando como um pirilampo, ao desprender-se do tronco carbonizado da vetusta oliveira, que, como uma brasa enorme, jazia no lar, tingindo de cor sangrenta o rosto dos ouvintes.
Destes, principiando por mim, não havia ali um que não sentisse, naquele momento, esse misto de curiosidade e terror, que se apossa de nós na infância, quando velha criada nos envenena o coração e o espírito com a narrativa de cenas sanguinolentas, as primeiras que vêm toldar-nos a paz dos inocentes sonhos, em meio dos quais nossas mães costumam vir colher-nos num beijo o sorriso que nos brinca -nos lábios.
Ao cabo de alguns minutos, ergueu o velho a cabeça e prosseguiu, voltando-se para o sobrinho:
- Já acreditas que as cartas possam matar?...
E o velho calou-se, como que desejoso de terminar assim a narrativa.
Augusto nada respondeu; eu, porém, é que não pude refrear a curiosidade, e não tive mão em mim que lhe não perguntasse, como as crianças:
- E depois?...
134

Passados poucos segundos, disse o abade com visível repugnância:
-Já vejo que é preciso contar-lhes tudo!... Se a recordação de tão dolorosas cenas já -de si me tortura, imaginem quanto me custará descrevê-las!...
"Como lhes disse, caí desmaiado ao ver a carta fatal...
Quando voltei a mim e me vi acompanhado pelos mesmos rapazes que me haviam trazido aquela horrível notícia, cheguei a imaginar que despertava de um destes sonhos horrorosos, que, ainda depois de dissipados, nos deixam sob a impressão do terror.
Não era sonho, não!... Volvendo os olhos, vi sobre uma cadeira a sinistra origem de um crime, a mísera quina de espadas que na véspera tentara roubar a honra a um homem, e acabava naquele dia de roubar a vida a um outro.
O meu espírito abrangeu então, de repente, todo o horror da situação, e a minha alma, assustada pelos perigos que esperavam o amigo estremecido, entrou de se reanimar para os combatér.
-Onde está ele?... -foi a minha primeira pergunta.
- Fugiu!...
- Fugiu... mas para onde?... Para onde fugiu?!... -exclamei, desesperado pelo receio de que o infeliz se tivesse lembrado de fugir para a nossa aldeia, o que seria a morte de... da santa





135
da mãe, que com tanto amor o criara para melhor destino.
Mal acabara de fazer a pergunta, ouvi rumor na escada, e a porta abriu-se impelida pelo peso do corpo de um homem, que veio cair de bruços no meio do aposento, onde ficou como morto.
Logo que a surpresa mo permitiu, corri para ele, e, ajudado pelos outros rapazes, ergui-o e deitei-osobre a minha cama.
Era... o meu amigo, a vítima de um pundonor inexcedível!
E meia hora permaneceu desmaiado!...
Receando a impressão que a presença de outras testemunhas devia produzir naquele espírito sobreexcitado, estendi as mãos aos meus condiscípulos, fitando-os suplicante.
Compreenderam-me eles o olhar, porque, depois de ter consultado o rosto dos outros companheiros, disse-me com voz grave e comovida o que primeiro me comunicara a horrível desgraça:
- Descansa!... Se a justiça o não descobrir, nenhum de nós dirá o nome do assassino!... Juro-to por mim e julgo poder jurá-lo por estes também... Se, porém, me enganar- acrescentou ele com inexcedível energia-também te juro, que, se houver um traidor, haverá mais um assassino!... Mato-o!
Não era uma vã ameaça aquela; quem a proferiu era um destes homens que não prometem debalde.

136

Saíram, finalmente.
Ninguém imagina - prosseguiu o abade - o que eu sofri diante daquele corpo inerte!
Enquanto lhe tirava a gravata e lhe desapertava o coleirinho, examinei-o atentamente por entre as lágrimas que me saltavam dos olhos.
Lívido como um cadáver, com os olhos semiabertos, o cabelo colado à fronte por um suor viscoso, os dentes cerrados, roxos os lábios tintos aos cantos por uma espuma sangrenta, o casaco enlameado, as calças gotas nos joelhos, resultado da queda durante a vertiginosa carreira -dir-se-ia, um homem fulminado na rua por uma apoplexia.
O único sinal de vida era uma ou outra crispação nervosa das faces, que vinha a espaços alterar a rigidez daquele rosto.
O que eu sofri!... o que eu pensei naquela meia hora!
Ao cabo -de torturar o espírito, sem encontrar remédio aos males que antevia, a minha alma acabou por desejar ardentemente, e como melhor solução, que o desgraçado não tornasse a sair daquele leito senão para o cemitério!
Como havia ele de ter a coragem de tornar a beijar a mão da mãe ou a estreitar a minha?! Aquela alma era demasiado nobre para poder escapar ao remorso... Que viver ia ser o seu?!...
E, ao pesar tudo isto, secreta voz bradava dentro -de mim: "Levai-o, meu Deus!... levai-o!"




137
De repente feriu-me o ouvido o ruído da sua respiração opressa e difícil.
Acerquei-me dele... Voltou a cabeça, e fitou em mim os olhos horrivelmente dilatados.
Levando em seguida a mão à fronte, afastou os cabelos, lançou os olhos em volta, como quem procura orientar-se e, firmando-se por fim nas mãos, ergueu-se e sentou-se na beira da cama, coçando a cabeça como que buscando recordar-se.
Apalpou o pescoço e, notando, naturalmente, que tinha o coleirinho desapertado, mirou-se então atentamente.
Examinou o casaco enlameado, levou as mãos aos joelhos para verificar que tinha rasgado a calça, e balbuciou por fim, fitando-me espantado:
- Eu caí?!...
Aterrara-me por tal forma aquela espécie -de ressurreição, que lhe segui todos aqueles movimentos com o coração apertado, e não pude responder-lhe à pergunta.
não recebendo resposta, ergueu-se e entrou a examinar os objectos que o cercavam.
Os seus olhos, porém, fixaram-se de repente, como que fascinados, sobre um objecto que eu não podia distinguir, até que, tapando o rosto com uma das mãos, apontou com a outra para uma cadeira e caiu de novo, bradando:
-A quina de espadas!
E era ela, era!... Lá estava tinta de sangue,





138
simbolizando o remorso do culpado e a vingança da vítima.
O meu primeiro cuidado, depois de deitar o infeliz de novo sobre a cama, foi queimar aquele terrível acusador à luz do candeeiro.
Sabe Deus a repugnância com que lhe toquei!... O cartão ardia lentamente, torcendo-se e enrolando-se sobre si, e a chama azulada estendia-se, mordendo a custo a parte intacta, e vinha lamber-me os dedos trémulos.
Parecia reagir contra a ideia que me levara a aniquilá-la, e, como último protesto, o rolo de cinza que aderia ainda ao bocado intacto que me restava entre os dedos, voou e foi pousar sobre o peito do criminoso!.. "
-Mistérios da Providência!... -balbuciou o abade, descansando a fronte entre as mãos.
Pouco depois, continuava ele:
-Que hei-de eu acrescentar?!... Por espaço de um mês esteve o desgraçado entre a vida e a morte, presa de horrível delírio.
"Imaginem o que eu sofreria vendo-o naquele estado, sem me atrever a chamar facultativo, com medo de que o enfermo, no meio do delírio, se traísse!
Foi Deus quem o curou!
Neste meio-tempo, em vão se esforçaram as autoridades por descobrir o culpado, e, quando este melhorou, já quase ninguém falava no crime.
Apenas o vi em circunstâncias de o poder




139
transportar, conduzi-o à nossa terra, onde a santa mãe, que Deus lhe -dera, morria pouco depois, abençoando o filho, que o seu instinto materno lhe dizia infeliz, mas que jamais o suspeitou criminoso.
Só muito depois é que eu soube dele as peripécias daquele horrível desfecho.
Quando saíra, ia abalado pelas razões que ele próprio me dera para não procurar a desforra.
Infelizmente, a fatalidade quis que encontrasse o ofensor, que, ao passar por ele, soltara uma gargalhada de escárnio.
Doido de raiva, o desgraçado retrocedeu e, aproveitando o sono, a que eu não pudera resistir, abriu cautelosamente o armário, onde tinha uma antiga pistola de cavalaria, carregou-a, e, inspirado pelo demónio da vingança, utilizou como bucha a carta que na véspera guardara no bolso.
Sabia ele que o Almeida costumava passar as noites numa casa de jogo no Largo da Sé, e foi emboscar-se numa das portadas da igreja.
Horas esqueci-das ali se conservou à espera, até que, vendo-o sair, lhe disparou tão à queima-roupa o tiro, que eu ouvira, que a bala e a bucha tinham entrado juntas no peito da vítima, que caiu sem um grito.
Fugindo, depois do crime, em direcção oposta à nossa casa, não podia ele dizer as ruas que percorrera, até vir cair sem acordo quase a meus pés; apenas se lembrava de ter visto o rio e ter-lhe


140
arremessado ao seio a pistola, que não largara da mão.
Nem sequer se lembrava de ter caído na rua! "
Calou-se o abade; mas eu, desejoso de ouvir o resto, perguntei:
-Ainda vive o desgraçado?!
- Morreu!... Morreu depois de uma vida de angústias e amarguras!... Causava dó vê-lo nos últimos tempos da sua vida!... Morreu ralado pelo remorso!... Era um cancro que o devorava!... Era a sua uma destas dores, que transformam o homem em autómato, que aniquilam os sentidos, que tornam quem as sofre insensível a tudo quanto não seja a causa que as alimenta!... E sabem-concluiu o abade-quais foram as últimas palavras do mísero?... Foram estas "Escondam-me aquela quina de espadas!... "
Depois de cinco minutos de profundo silêncio, ergueu-se o abade, dizendo com melancólico sorriso:
- O meu hóspede não deve levar boa ideia da hospedagem!.. Desculpem estas histórias de velhos, vizinhos!... E são horas! Vamo-nos deitar, que o meu hóspede deve estar cansado.
Pouco depois, via-me só no quarto que me fora destinado.



141
III
-Vou passar uma noite de rosas!-pensei eu, dando volta à chave.
E, na verdade, era de esperar que assim acontecesse, graças ao cansaço da jornada e à boa qualidade da cama.
Enganei-me!... Mal havia aconchegado a roupa, de forma a proteger a orelha exposta ao ar, comecei a ouvir o som de passos lentos e cadenciados.
- Não me faltava mais nada!... Estou por baixo do quarto do abade... O velho ficou impressionado pela história que nos contou e, como não pode dormir, passeia... Conheço aquele desabafo... Pode durar uma hora e pode durar toda a noite... Depende dos nervos do velho... O pior é eu não poder dormir!...
No meio destes meus raciocínios, ouvi estalar um fósforo e dissiparam-se as trevas em que jazia.
Voltei a cabeça e vi que a luz vinha da bandeira de uma porta lateral. Pouco depois, senti o cheiro do fumo de cigarro, e concluí que, se o velho passeava por não poder dormir, o sobrinho fumava pela mesma razão.
Ora, como eu sei o que é o cigarro como distracção, perdi logo as esperanças de dormir.
-Não tem que ver!... - pensava eu. - Ficas aí a acender os cigarros uns nos outros até

142
ser dia... Se tens fartura deles, não acabas enquanto não sentires a língua esfolada e a cabeça perdida... Decididamente, não durmo!
E, como sucede sempre que nos assalta o receio de uma noite de insónia, entrei de dar voltas na cama, e de fazer castelos no ar.
De repente, no pavimento superior, cessou o ruído dos passos e ouvi arrastar uma cadeira.
Pouco depois, a um som um pouco mais forte, dizia eu: "Lá tirou o velho uma bota..." e, como o ruído se repetisse, acrescentei: "Lá tirou a outra... O velho deita-se... Deus queira agora que o rapaz apague a luz!
Cerca de um quarto de hora depois, pareceu-me que ouvia passos no corredor; uma porta rangeu ao abrir-se e, como eu estava deitado de costas e com os olhos fitos na bandeira da porta, de onde vinha a luz, conheci, desenhada no tecto do quarto vizinho, a sombra do abade.
- Temos sermão de lágrimas!... - disse mentalmente. - Vem explicar ao rapaz a moral da história que lhe contou.
Curioso como um ponto de interrogação, impus silêncio ao bom senso que me ameaçava com uma pneumonia, e fui pé ante pé colar o ouvido à porta.
Depois de um expressivo: "psiu!" que provavelmente se referia a mim, que os podia ouvir, disse o abade em voz baixa e trémula:


143
-Ouviste bem a história que contei, Augusto?... Não te lembras de ter ouvido, há já muito tempo, as palavras: "Escondam-me aquela quina de espadas?!
Em vez de palavras, ouvi soluços abafados. O jovem respondia chorando!...
- Era teu pai, Augusto!... Era!... Perdoa-me a dor que te causo, filho!... Por muito que sofras, é nada a par do que eu tenho sofrido, vendo-te presa de um vício que causou a desgraça de teu pai! E teu pai apenas jogou uma vez! Ó meu Deus! - exclamou o velho elevando a voz, sem se lembrar de mim, e como que falando só para si. - Será isto uma expiação?!... Querereis punir o pai no filho?!... Querereis castigar-me a mim por não ter tido a coragem de arrancar o infeliz daquela mesa na noite fatal?!
E a estas palavras seguiu-se um silêncio, cortado apenas pelos gemidos do mancebo.
- É preciso que te conte o resto, filho!... - continuou o abade. - É preciso que te exponha todas as consequências daquele crime!
"Depois da morte de nossa mãe-um ano depois, pouco mais-alcancei esta abadia.
Por mais que fiz, não pude resolver teu pai a acompanhar-me.
Carícias, rogos, considerações materiais e necessidades do coração -nada pôde movê-lo. Queria morrer ali - dizia ele - ali, de onde nunca devera ter saído!



144
Como ele tinha abandonado os estudos em meio, e a nossa casa mal nos dava recursos para vivermos, aterrava-me o futuro!
Tremia por ele, por teu pai, a quem a infelicidade quebrara, por assim dizer, os braços, e perguntava a mim próprio que vida ia ser a daquele homem, incapaz de lutar e desapegado de todos os interesses da vida! Que havia de ser dele, faltando-lhe eu?!
Estive para renunciar a abadia, e só me deteve a esperança de me ser fácil arranjar uma troca que me aproximasse dali.
Depois de muito pensar, julguei ter encontrado um meio de lhe tornar menos sensível a minha falta.
Havia nas vizinhanças um honrado velho, antigo militar, que, com a modesta pensão da sua reforma, se sustenta a si e a uma filha.
É o homem que me convém! - pensei ao lembrar-me dele.
Fui procurá-lo e expus-lhe a minha aflição.
-Meu irmão - disse lhe eu -sofre, como V. S.a sabe, de uma melancolia incurável.
"Desgostos que o atribularam na sua carreira de estudante, e as consequências do ataque cerebral de que esteve a morrer, puseram-no naquele mísero estado...
Indiferente a tudo... ignorante das mais pequenas exigências da vida... incapaz quase de se governar, e sem forças para lutar... não sei o que há-de ser dele em lhe faltando eu!


145
A nossa separação não será longa, espero... Ainda assim, atormenta-me a ideia de o deixar entregue a si próprio, nesse muito ou pouco tempo que ela durar...
Lembrei-me do senhor!... De tempos a tempos... uma vez por semana... quando puder... dê uma chegada lá a casa... Veja se aquele desgraçado precisa de alguma coisa... Se conseguir captar-lhe a confiança... aconselhe-o... Verá que lhe obedece... O que ele quer é que o não obriguem a pensar!"
Tudo isto lho disse eu, chorando, e, quando concluí, corriam também as lágrimas quatro a quatro ao longo das faces do velho.
-Vá descansado, vizinho!... Vá descansado! -balbuciou o honrado homem, abraçando-me. - Há-de fazer-se o que se puder fazer!... Os homens nasceram para se ajudarem uns aos outros... Vá descansado.
Agradeci-lhe do fundo da alma aquela bondade e retirei-me mais sossegado. Dias depois parti para aqui.
Não posso dizer-te o que sofriao deixar aquele desgraçado!... Ele pouco parecia sofrer... Absorto na dor que o minava, para nenhuma outra parecia haver lugar naquele coração!
Às repetidas cartas que lhe escrevia, vinha de tempos a tempos uma resposta dele, revelar-me a nenhuma acção do tempo sobre as feridas da sua alma.
Cerca de seis meses depois da minha partida



146
recebi uma carta, em que pela primeira vez me falava com mostras de gratidão do nosso vizinho, que, pela sua parte, me escrevia a miúdo, lamentando-se pela inutilidade dos seus esforços.
Pareceu-me; aquilo um bom sinal!
Começaram as cartas de teu pai a amiudar-se, e julguei ver luzir um ténue raio de sol por entre as trevas, que ainda lhe enegreciam o estilo.
Exultei!
Foram chegando outras cada vez mais animadoras... Nesta participava-me que se resolvera a ir passar uma noite a casa do vizinho, onde se aborrecera menos do que receara; naquela fazia justiça ao bom senso do velho; noutra falava-me nas boas qualidades que descobria na filha do nosso velho amigo...
Finalmente... era um homem que ressuscitava, e eu de longe animava-o a distrair-se e chamava-lhe pouco e pouco o espírito para as alegrias -do mundo.
De repente o seu estilo mudou! Ora deixava voara imaginação por alturas impossíveis; ora parecia despenhar-se no antigo abismo, que o remorso lhe cavara na alma!
Nessas ocasiões enchia folhas e folhas de papel!... via-se que o dominava a febre de escrever!...
Em algumas cartas encadeavam-se mil preâmbulos, que faziam esperar uma confidência; mas, de repente, a chama ocultava-se debaixo de cinzas,



147
e meia dúzia de banalidades vinham brutalmente terminar a carta!
E eu lia e relia, na esperança de descobrir o verdadeiro estado daquele espírito, quando uma carta dele veio iluminar o meu.
Era um grito de desespero!
"Amo-a!... - dizia ele. - Amo-a e não me atrevo a dizer-lho, porque seria horrível ligar um anjo a um assassino!"
E mais adiante acrescentava: "Diz-me o coração que só ela seria capaz de me curar!... só as preces dela podem fazer calar os gritos do remorso!"
Teu pai amava a filha do nosso vizinho... Era mais uma desgraça com que eu não contava!
Três dias depois batia eu à porta da casa onde nascera, e caía nos braços de meu irmão.
Não imaginas que triste noite passámos juntos!... Nessa, era com certeza ele quem mais sofria!
- E ela... ama-te?... - perguntei-lhe eu depois de lhe ouvir as confidências. - Julgo que sim.
- E vocês já... já falaram de amor?... - Nunca!..
-Ó filho!... então por nossa mãe... por ti!... foge!... Vem comigo!
-Não posso!... -bradou o desgraçado torcendo as mãos.
-Pelo teu crime!... pela memória do...
- Cala-te! - exclamou ele, detendo-me nos

147

lábios a palavra assassinado. - Cala-te, ou... dou
cabo de mim! "
O abade calou-se, e os gemidos do jovem redobraram.
-No dia seguinte -prosseguiu o velho -fui procurar teu... teu avô.
"Depois de lhe exigir o juramento de jamais revelar o que ia dizer-lhe, contei-lhe tudo!
A cena da provocação, o crime e remorsos de teu pai, e finalmente o seu louco amor pela filha dele -tudo lhe contei, com as faces afogueadas de pejo e banhadas de pranto.
Ao contrário do que eu esperava, teu avô, militar e, por conseguinte, pundonoroso, depois de me ouvir atentamente, disse-me com gravidade:
-Seu irmão, Senhor Abade, fez o que eu faria... Se entre nós se usasse o duelo, seria ele o resultado natural de semelhante afronta... Como se não usa... o meio é aquele... Se alguém ainda hoje-prosseguiu energicamente o velho-me vier chamar ladrão, prego-lhe um tiro!... Tão certo como dois e dois serem quatro!... Não vejo na acção de seu irmão um crime... Acho-o lógico e naturalíssimo... E, se minha filha gostar dele, não serei eu quem lhe negue o meu consentimento.
Retirei-me atordoado!... Aquele modo de ver diferia tanto do meu; aquele culto da vingança contrastava tanto com as minhas doutrinas de



149
perdão, que o meu espírito perdia-se entre aqueles dois caminhos desiguais!
Chegando a casa contei fielmente a meu irmão o que se passara entre mim e o velho.
A paixão sugeriu-lhe um sem-número de argumentos, que me venciam sem me convencerem, até que, dominado pela amizade que lhe tributava, cedi com a condição de que faria uma confissão franca e leal do seu crime à escolhida do seu coração.
- Se ela te aceitar depois disso - concluí eu - não te porei mais objecção alguma!
-Sê bom até ao fim!... - disse-me ele. - Diz-lho tu, que eu não tenho coragem para o fazer!
Tive ainda de ceder!
Fui procurar a jovem e disse-lhe tudo!
A pobrezinha, pálida e trémula, ouviu-me até
ao fim com as lágrimas a bailarem-lhe nos olhos... Terminei, dizendo:
-Aqui tem a causa da melancolia de meu irmão... Pense... e peça a Deus que a ilumine!... Estude-se, e veja se tem a força de alma precisa para partilhar o futuro de um homem que o há-de ver sempre escurecido pelas sombras do passado!... Lembre-se que tem a pedir ao seu coração a eloquência necessária para fazer emudecer na consciência dele a acusação de um crime!... Olhe que não há lágrimas que possam lavar uma gota de sangue, quando esse sangue nos acusa!.. Eu, como sacerdote, creio na eficácia do arrependimento;






150
mas este, minha filha, se pode dar-nos a felicidade no outro mundo, não no-la pode dar neste!... Pense e... reze!... Pense bem! Bem basta que só ele seja infeliz!
Deixando fugir as lágrimas, que até então represara, respondeu-me a santa, que foi depois tua mãe:
-Já pensei, Senhor Abade... Pensei que esse desgraçado precisa de quem chore com ele, de quem lhe cure as feridas!... Não me disse que era bom, nobre e generoso?... Não me disse que é criminoso pôr excesso de brio?... Consinta que o meu amor lhe mitigue as torturas causadas pela falta cometida num momento em que o seu bom anjo o abandonou!... Seu irmão... para mim... não é um criminoso... é um desgraçado!... E... eu amo-o!... -terminou ela, apaixonadamente e debulhada em pranto.
A consciência, que me aplaudia por ter cumprido o meu dever, disse-me que tua mãe acabava de cumprir o dela.
Tive tentações de lhe cair aos pés!
Fitei-a, deixando correr livremente as lágrimas, e balbuciei:
- Deus a abençoe, minha querida irmã!... É uma santa!
Um mês depois estavam casados."
Após breve silêncio, continuou o venerando padre:
-Voltei para aqui.



151
"Nos primeiros tempos correu tudo bem. Teu pai e tua mãe escreviam-me alternadamente, e nada encontrava nas cartas deles que me sobressaltasse.
Morreu teu avô, e a tristeza, naturalmente produzida por essa causa, decerto influiu no ânimo de teu pai, pois recebi uma carta de tua mãe, em que me anunciava que ele se debatia de noite em sonhos horríveis, de que despertava como que idiota.
Repetiram-se essas noites medonhas em que tua pobre mãe sofria atrozmente, e, nesse tempo, nasceste tu.
As alegrias de pai varreram, por algum tempo, daquela alma as visões que a agitavam; pouco tardou, porém, que elas voltassem.
Informado por tua mãe, regressei ao Minho e, auxiliado pelo médico, que asseverou ser a mudança de ares absolutamente necessária para tua mãe, consegui que teu pai viesse passar algum tempo aqui, de onde nunca mais saiu.
Foi então que eu pude avaliar até onde pode chegar a angélica bondade de uma mulher!
Tua mãe pedira aos anjos o sorriso, e aprendera dos mártires o segredo de guardar no peito as lágrimas, que pouco e pouco lhe iam dissolvendo o coração!
Que noites, meu Deus!... Que noites!...
O bruxulear da lamparina, um bocado de cal que caísse do tecto, uma golfada de vento que abanasse as janelas, um cão uivando na vizinhança...






152
era o bastante para dementar o desgraçado!
E a pobre mártir erguia-se, acendia a vela, provava-lhe à evidência a verdadeira causa do ruído ou sombra, e, voltando para junto dele, passava-lhe a mão pela fronte e dizia-lhe como a uma criança: "Dorme!..." e o infeliz sorria e adormecia, para daí por um instante despertar a braços com novos terrores!
Era uma santa!
Presumira a triste de mais do vigor da sua alma, ou antes, não havia quem resistisse àquela luta de todos os instantes...
A vida foi-se-lhe finando entre aquelas agonias de quatro anos, até que me ficou nos braços... As suas últimas palavras foram para ti e para ele!...
-Meu querido filho!... Quem há-de olhar pelo pai!...
Os seus olhos, porém, encontraram os meus, e a expressão angustiada cedeu o lugar ao angélico sorriso com que aquela alma se foi apresentar a Deus.
Aquele sorriso queria dizer: "Achei um pai para meu filho... um enfermeiro para meu marido."
Ainda hoje - continuou o abade, depois de breve silêncio - ainda hoje me custa a conceber como teu pai resistiu àquela perda, e viveu ainda quatro anos, se se pode chamar aquilo viver!



153
Lembras-te dele, Augusto?... Daquele rosto cadavérico, daquele olhar sombrio?... Pobre irmão!
Tu viste-lhe a agonia, filho! Eras uma criança, mas não a esqueceste!
Não a esqueceste, não, que eu notei a im
pressão que te causou o ouvir-mo repetir as úl
ti mas palavras de teu pai: "Escondam-me aquela quina de espadas!""
. . . . . . . . . . . . . . . .
Se os dois choravam, eu posso asseverar que me corriam as lágrimas, ouvindo aquela triste narrativa, que me prendia ali, indiferente ao frio de uma noite de Fevereiro e ao cansaço da jornada.
Ergueu-se de novo a voz do velho; mas, desta vez, solene e austera como a -de um juiz:
-Compreendes o que eu devo ter sofrido, sabendo que jogas por vício, tu, filho de um homem criminoso, por se ter sentado uma única vez a uma mesa de jogo?!...
"Tu vais jurar-me pelo homem que morreu às mãos de teu pai!... por tua mãe, que sucumbiu ao peso da cruz que voluntariamente tomou!... por teu pai, que morreu ralado, idiota pelo remorso de um crime originado pelo jogo!... por mim, que te adoptei e que Deus fez resistir a tantos golpes, para te fazer parar a tempo!... por ti, finalmente, se és homem, se és filho, se és cristão!... vais jurar-me que não tornas a pegar numas cartas!..."




154
Completamente esquecido de mim, o jovem soltou um brado de angústia e exclamou:
- Meu Deus! meu Deus!... Tão miserável me crê, que ainda me pede que jure, depois do que ouvi!
- Perdoa, filho. Perdoa!... - ouvi então dizer ao abade.
Pouco depois retirava-se este do quarto e recolhia eu à cama, literalmente transido de frio.
No dia seguinte, quando me apresentei ao almoço, perguntou-me o abade, estudando-me ansiosamente o rosto:
-Então... deixaram-no dormir?!...
- Se lhe parece!... - respondi jovialmente. - Nem os sete dormentes dormiam melhor!
Nesse mesmo dia, despedi-me do abade. O sobrinho tinha saído.
IV
Anos depois, por um formoso -dia de Setembro, cavalgava eu direito a Vila Flor, e levava
por arrieiro um rapaz que tinha cara de esperto. -Tu de onde és, ó rapaz?... - Sou de... - (a terra do abade). - Diz-me uma coisa... O abade ainda é o Sr. F...?
- Saiba V. S.a que sim.
- E o sobrinho dele?... O Sr. Augusto?...
Também o conheces?...




155
- Ora, se conheço!... Como as minhas mãos!...
Aquilo é que saiu um rapaz às direitas! -Então ele que faz por lá?... - É administrador...
-Administrador -do concelho?... -perguntei eu com certo espanto.
-Saberá V. S.a que sim.
- E então... que tal?...
-Ainda lá não houve outro como ele!... serviçal até ali!... Seja rico, seja pobre-é amigo de todos... De todos, não... Há alguém a quem ele não perdoa...
- Então a quem é?!..
-É aos jogadores!... Em ele lhes podendo fazer a cama, estão prontos!.. Dantes todo o mundo jogava... Hoje é raro!...
Ouvindo isto, convenci.me de que ofilho não morre como o pai, pedindo que lhe escondam A QUINA DE ESPADAS.







A FIGA DE AZEVICHE
I
TOME fôlego, leitor!... Olhe que ainda temos a subir mais dois lanços de escada. Até que afinal!... Faça favor de entrar.
Não se canse; estãoà vista todas as riquezas do inquilino. Ora diga: não é verdade estar lá por dentro a perguntar: "Como Ese pode viver aqui?!.. "
Pois pode, sim senhor. Vive-se aqui; vive-se ainda em muito pior morada! A míngua que nota, seria o supérfluo para milhares de famílias.
Analisemos estas águas-furtadas.
Quatro paredes mal caiadas, tendo por únicos adornos uma imagem colorida da Senhora das Dores, a vera efígie do Senhor Jesus de Matosinhos e a patente que prova ser Maria Rosa da Silva irmã da Celestial Ordem Terceira da Santíssima Trindade-todas três em caixilhos de vinhático, com cantos de pau-preto. Além destes




158
caixilhos, não se vêem senão pregos, muitos pregos: são os guarda-roupas dos pobres. A um canto, uma cama de ferro; aos pés da cama uma cadeira; entre esta e o canto fronteiro um lavatório, também de ferro, com uma bacia rachada e um jarro esbeiçado. Daquele lado nada mais se vê, nem há espaço para mais coisa alguma.
Do lado oposto ocupa o centro uma cómoda, entre duas cadeiras. Depois de abertas as gavetas daquela cómoda, não há memória de terem elas consentido que as fechassem, sem oporem vigorosa resistência! Felizmente, as donas já lhes conhecem a balda, que não passa de rabugem da idade, e sabem que é preciso empurrá-las, primeiro de um lado e depois do outro. Praticando-se esta operação três ou quatro vezes, é raro não se deixarem convencer.
Junte-se a isto uma mesa de pinho, com uma gaveta que contém uma velha toalha de mesa, alguns garfos e facas, com os cabos amarelos e rachados, quatro ou cinco côdeas e muitas migalhas de broa; veja-se o que encerra aquele armário encravado na parede e caiado de branco -porém, quase que posso afirmar que encerra meia dúzia de pratos, dois ou três copos de quarteirão e duas canecas de quartilho - e está feito o inventário deste pequeno aposento, alumiado por um postigo que dá sobre o telhado, e pela luz que côa por entre as telhas, que, além da luz, dão passagem ao calor no Verão, às nortadas no Inverno, à água sempre que chove.



159
Não há mais nada?... vejamos bem... Decididamente, não há.
Passemos da morada aos moradores.
Ela aqui está, a Sr.a Maria Rosa da Silva, viúva de um honrado municipal vítima das consequências do serviço de patrulha, feito numa noite de Dezembro na Rua do Wellesley.
A Sr.a Maria tem uma destas caras que não enganam; é uma santa! Solteira-era o descanso dos pais e a segunda mãe dos irmãos; casada -era a confidente e a enfermeira do marido; viúva - é o anjo que vela pela filha. Pode escrever-se-lhe a vida em duas palavras: abnegação e sofrimento. A Sr." Maria, enquanto pôde, nunca consentiu que a filha fosse sozinha para casa da modista; infelizmente, há um ano, quebrou uma perna, tem dificuldade em andar e é isso hoje, talvez, o que mais a amofina. Não que ele, também, por esse mundo, há cada malvado mais atrevido!... E depois, a sua Rosa é... é tão bonita!
-Valha-me Deus!... - diz a pobre velha, quando pensa nisso.
E a Rosa?... Que é dela, a Rosa!... Escute...
Ela aí sobe a escada; ela aí está! - A sua bênção, minha mãe. - Deus te abençoe, filha.
Que formosa rapariga! Eu, por mim, não sou dos tais malvados atrevidos, mas confesso que por um olhar daquelas duas amostras do céu, era capaz de fazer asneiras como qualquer rapaz de vinte anos!




160
Não que eu nunca vi coisa assim! Se ela até aos doze anos nunca deixou de ir de anjinho em todas as procissões!...
Já se viu cabelo louro como aquele?... Onde há outros olhos como os dela?... E aquelas duas covinhas das faces, onde os risos e os amores jogam às escondidas?... E a cinta, capaz de fazer morrer de inveja a vespa mais espartilhada?!... E... Basta ou fico até amanhã a enumerar-lhe as perfeições.
A Rosa, porém, tem hoje um não sei quê, que a torna menos bonita. Que será?... Sigamos o olhar da mãe, que logo descobrirá o que é. É a ligeira ruga traçada entre as sobrancelhas; é uma vaga expressão de luta interna; é um certo ar de desassossego, que lhe não é próprio!
Rosa dobrou e pousou a capa sobre a cama; tirou a manta azul da cabeça; alisou o formoso cabelo diante de um mesquinho espelho, destes espelhos de papelão, forrado de papel encarnado, e sentou-se, deixando pender os braços com gesto de desânimo. A Sr.a Maria, depois de lhe interrogar debalde o rosto, aproximou-se dela, agarrou-lhe a cabeça com as mãos, e, cravando os olhos nos -de Rosa, perguntou-lhe com uma destas inflexões de voz, que são segredo privativo das mães:
- Tu que tens?... Tu andas doente?
-A mãe está a brincar! respondeu a filha, desviando os olhos. - Eu que hei-de ter?... A mim que me falta?








161
Havia tanta amargura envolta nesta última frase, e tão manifesta, apesar do sorriso que a acompanhou, que a velha não pôde reprimir um gesto de aflição.
- Não!... Tu tens alguma coisa que te aflige!... Ora diz-me o que tens, Rosa! -insistiu a pobre mãe, ajoelhando, para melhor ver o rosto da jovem.
- Olhem que cisma!... -respondeu esta, forçando os lábios a sorrir. -Eu que hei-de ter?... Se me calo cinco minutos, logo a mãe começa a imaginar que estou doente!... Não tenho nada... Acredite... - continuou ela.
- Bem... Não tens confiança em mim... Paciência! - replicou a mãe, erguendo-se.
- E a mãe a dar-lhe! - observou Rosa, com visível impaciência.
Aqui para nós, o maior defeito da rapariga era estar perdidinha com mimo. Mas, como não havia ela de o ter, se a mãe não tinha outra e ela... era tão bonita?!...
II
Duas horas depois, descia Rosa a Calçada dos Clérigos e dava lugar ao seguinte diálogo:
- Acredite, Senhor Conselheiro. V. Ex.a não tem estudado, como eu, o viver desta gente. São felizes, creia... Mais felizes do que eu, mais felizes do que V. Ex.a!... Ora veja aquela pequena





162
que ali vai... Veja que riso aquele, que alegria!... Uma manta, uma capa, um vestidinho de chita, uma botinha que lhe estreita o pé, um conversado... Aí tem o necessário para ela viver mais feliz, com oito vinténs por dia, do que a filha de V. Ex.a, a quem sobejam todas as comodidades da vida!... Não tenha pena desta gente, Senhor Conselheiro!... São felizes, creia!
Isto dizia um sujeito grave, que se penteia para ser deputado, a outro que já o foi, e que, julgando-se ainda na câmara, lamentava, da boca para fora, que se não pudesse melhorar o viver das camadas inferiores, bordão estafado de quase todas essas velhas raposas, que a indiferença dos eleitores parece mandar a cortes... justificar essa indiferença.
Se não causasse nojo, faria morrer de riso a filosofia rançosa destes vendedores de água chilra.
Então com que, é feliz aquela rapariga? Tem a manta, a capa, o vestido, os oito vinténs, o conversado talvez... logo é feliz?!... É feliz, hem?... Então ali não há aspirações, não há faculdade de comparar, não há inveja; há apenas a necessidade do pão de cada dia, o desejo de que hoje seja igual a ontem e amanhã igual a hoje?!... Valha-te Deus, homem!... Que círculo te escolherá para o representares?!...
Há tudo isso, míope! E como poderia deixar de haver? Como, se tu, homem grave por fora, mas corrupto por dentro, és o primeiro a dizer-lhe, quando ninguém te pode ouvir, que Deus



163
a talhou para duquesa, que não há pele mais fina, mão mais aristocrática, pé mais distinto, do que a pele, a mão e o pé que fazem o desespero de todas as outras mulheres?... Como, se, além de ti, lho dizem o janota, o estudante travesso, o sargento hiperbólico e - o mais perigoso de todos! -o caixeiro que lhe vende o retrós, esse Lovelace de chinelo de liga e pena na orelha, que lhe deslumbra a vista com um arco-íris de peças de seda e lhe ajuda a combinar a cor que melhor se aliaria ao preto ou ao louro dos cabelos, se ela pudesse trajar sedas?!...
Ora anda cá, psicologista de lareira... Fala-me sério!... Crês que entre essa aluvião de raparigas pobres, que trabalham para raparigas ricas, haverá uma tão indiferente à vaidade, tão despida de curiosidade, que, ao ver-se só entre as quatro paredes do seu quarto, depois de dar o último ponto num vestido de seda, tenha resistido à tentação de experimentar em si esse vestido?!... E, se a sua boa ou má sorte quis que ela fosse bela e o espelho lhe disser que, assim vestida, é mil vezes mais bonita, será para estranhar que a pobre criança diga: "Assim... quem não há-de ser amada, quem não há-de ser formosa?!" Custará a compreender que ao enfiar de novo o modesto vestido de chita, o suspiro, que não pode conter, seja a primeira manifestação de uma surda inveja, o gérmen de outras paixões más, produzidas por aquela?!... Valha-nos Deus! Compreende-se...




164
Mas... ainda eu agora reparo!... Eu estou pior do que o tal candidato a deputado!... Olha que maçada eu preguei ao leitor!
Perdão, amigo... Era preciso. Eu só tive em vista i-lo guiando, insensivelmente, para onde me convém. Sem este longo aranzel, ficávamos ambos como a Sr.a Maria, pasmados diante da Rosita, sem sabermos o mal de que ela sofre, e tentando em vão descobri-lo.
A Rosa sofria de - que nome tão feio! - sofria de... inveja!... Perdão! Não era bem inveja o mal dela; era um desejo irresistível de ir passear às tardes, reclinada nas almofadas de um landau, encadernada em moire e veludo, e ver, com os seus olhos, se o Teatro de S. João, mirado de um camarote da segunda ordem, produzia melhor efeito do que visto das varandas, de onde ela se lembrava vagamente de o ter visto, havia muito tempo, uma vez que o pai estava de guarda ao teatro, e a levara a ela e à mãe a ver "A Degolação dos Inocentes".
Este desejo, este aspirar ao impossível, não poderia ela explicar como germinara. Tinha aparecido espontaneamente, a contrastar com a candura e modéstia que lhe ornavam a alma, como estas parasitas que o zéfiro maldoso se compraz em deixar cair, na passagem, entre as mimosas plantas dos vergéis e que fazem raivar o horticultor.
O caso era que Rosa sentia em si o fermento de um mal, que tem feito tropeçar e cair milhares



165
de anjos cândidos e puros, como ela. Havia cerca de um mês, começara a perder as cores e a alegria, e visões, a um tempo tristes e risonhas, a perseguiam em sonhos, que lhe traziam aos lábios palavras sem nexo, em que o ouvido atento da mãe buscava em vão descobrir o segredo da filha.
A leitora, a quem a sua posição independente torna, por assim dizer, fácil a santa tarefa materna, e que, apesar disso, estremece ao notar a insistência com que qualquer mancebo lhe contempla as janelas e a segue, quando sai em companhia de uma filha jovem e formosa, compreende decerto as torturas da pobre mulher, obrigada a afastar de si e a entregar ao próprio arbítrio uma filha, diante da qual surgem, a cada passo, todas as tentações do luxo, todas as ciladas de um amor que o coração, aos dezassete anos, considera sempre puro e sincero.
Rosa, além das aspirações que já lhe conhecemos, tinha encontrado um tentador perigoso na pessoa do Sr. Augusto, caixeiro de uma loja de objectos da moda, mimoso alfenim dos arredores de Braga, proprietário de duas rosadas faces e senhor de luxuriante floresta de cabelos pretos, atravessada por um carreiro, aberto a pente, a começar na testa e a findar na cova-do-ladrão.
Não havia em toda a rua outro caixeiro, que lhe botasse água às mãos na meiguice do gesto, na elegância com que cortava uma peça de seda,



166
ameaçando cortar também os dedos mimosos da freguesa. No que ele então era inexcedível, era no rolar dos olhos e nas lisonjas alambicadas, a que o uso do v dava subido realce. Rosa - e mais uma dúzia de Rosas -era capaz de se esquecer horas inteiras a ouvi-lo, e posso asseverar que nenhum bem lhe vinha de tão agradável conversa.
No dia em que o leitor me acompanhou a casa da Sr.a Maria, não sei o que se tinha passado entre ela e o Sr. Augusto; o que sei é que a rapariga trazia o ânimo em rija peleja entre a indignação e a vontade de perdoar. Conhecia-se que lhe faltava o ar, que lhe tardava ver-se outra vez longe daquele ninho de amor materno, cujo sossego não convinha ao agitado espírito da rapariga. Engoliu o bocado à pressa, como se costuma dizer, pretextou umas compras de que a incumbira a mestra, e saiu deixando a pobre velha a braços com a incerteza e o receio.
III
São nove horas da noite. Rosa, sentada ao pé do pequeno postigo das águas-furtadas, com os formosos cabelos louros soltos em vagas pelas costas abaixo, contempla, cismando, a Lua e as estrelas. O vinco entre as sobrancelhas, de fundo que está, ~dá-lhe ao rosto uma expressão de desafio ao mundo, à sorte, ao Criador talvez, daqueles


167
mundos de luz que rolam no espaço; o peito arfa agitado; as asas do nariz fremem e dilatam-se; os lábios cerram-se teimosos, desenhando aos cantos duas rugas de supremo desdém e íntima amargura. Rosa sofre, escutando assustada
E ao mesmo tempo curiosa a voz irónica e incisiva do espírito do mal, que lhe está pintando em ridícula caricatura o porvir que a espera, sob a forma resignada e prosaica da santa da mãe, que vai erguendo preces a Deus e deixando cair as malhas da meia de algodão azul que está fazendo.
- Olha, olha para tua mãe - diz o delegado do Inferno. -Olha para ela!... Não procures a tua estrela no espaço,!... Os pobres não têm estrela; têm sina... Tira os olhos do céu, volve-mos para ali, que só ali acharás resposta à pergunta. Estuda bem tua mãe e ficarás conhecendo o futuro: miséria, um marido que talvez te maltrate, filhos que te peçam pão, Primavera sem flores, Verão sem fruto, Outono sem folhas, Inverno sem calor!... Trabalha, sofre, sacrifica-te
e morre!... Anda, rapariga!... A quem assim faz não recusa Deus, ao cabo de uma vida despida de alegrias, um lugar na vala comum e... talvez que um cantinho no Céu!..
E o monstro ria, revolvendo o coração da popre criança!
O calor, que tornava quase inabitável o aposento, o ruído das ruas que o vento lhe trazia,
e a luta íntima actuaram, finalmente, tão de chofre

168

nos nervos de Rosa, que as lágrimas saltaram-lhe, ardentes, dos olhos abrasados, e toda aquela ânsia do seio se exalou em soluços.
A Sr.a Maria, dando fé do estado da filha, interrompeu um padre-nosso, tirou apressadamente a linha do gancho, pousou a meia sem se dar ao trabalho de espetar as agulhas no novelo, e correu -coitada! nem correr podia! - para junto da filha.
-Rosa, Rosa! - dizia ela, sacudindo carinhosamente o braço da jovem. -Rosa, tu que tens?... Ora fala, anda!... diz-me o que tens! - insistia ela, que já então chorava tanto como a filha. - Diz-me o que sentes, Rosinha!... Ora não sejas ruim!... Fala, menina... Então?...
Rosa continuou a chorar sem proferir palavra. A mãe, reconhecendo a inutilidade -dos seus rogos, contemplava-a, chorando, com as mãos apertadas uma na outra, o olhar assustado, e a mente cheia de sinistras hipóteses.
Pouco a pouco a jovem foi -sossegando, e àquela intempestiva explosão de pranto sucedeu o enleio, filho da necessidade de a explicar à mãe.
- Estás melhor? - perguntou esta, vendo-a mais sossegada.
-Eu não sinto nada-balbuciou a jovem.
-Então porque choravas?
-Eu sei lá, minha mãe! -replicou a filha. -Acho que adormeci... e sonhei... e acordei a chorar...


169
- Havia de ser isso... Foi talvez o ar da noite... -disse a Sr.a Maria, fingindo acreditar a desculpa. - É melhor ires-te deitar... Vai-te deitar, vai... - continuou ela.
Rosa deu-lhe um beijo, despiu-se e deitou-se. A mãe, que se sentara denovo a trabalhar, ouviu-lhe ainda os suspiros por mais de uma hora, até que, chegando-se à cama, pé ante pé, conheceu que ela adormecera e veio sentar-se outra vez a fazer meia.
Nunca o padre-nosso foi rezado com mais unção, embora cortado pelas perguntas que aquele atribulado coração materno formulava mentalmente!
-Que terá ela?... Alguma zanga com a mestra?... Se fosse isso, tinha-mo dito... Algum mexerico das companheiras?... Também mo dizia... Andará a chocar alguma doença?... Mas ela não se queixa... Será namorico?
A esta última pergunta, a santa mulher ficou sem pinga de sangue.
-Pois não é outra coisa!... Mas com quem será?... Valha-me Deus!... E esta minha perna, que me não deixa sair!... Ó minha Mãe Santíssima! Pela vossa dor vos peço que não desampareis a minha rica filha!...
E a salve-rainha foi imediatamente recitada pela aflita velhinha. Ainda não tinha acabado a oração, quando ouviu palavras entrecortadas, proferidas em sonho pela filha. Ergueu-se, e, caminhando sem fazer barulho, sentou-se na beira



170
da cama com o ouvido atento e o coração a bater apressado.
Ao cabo de alguns instantes, a jovem mexeu os braços e murmurou:
-Cale-se, Sr. Augusto!... Não torne a dizer isso!... Se a minha mãe soubesse...
E calou-se. Pouco depois continuou:
-Não quero, não preciso dos seus favores!
Bem se demorou a mãe à espera de mais alguma revelação; Rosa, porém, nada mais proferiu. Não havia, contudo, que duvidar. Aquele Sr. Augusto, que dizia coisas que não eram para repetir e que uma mãe não devia saber... a recusa de favores oferecidos, e, sobretudo, a indignação com que palavras e obras eram repelidas pela jovem, eram indícios mais que suficientes.
A Sr.a Maria voltou para o seu lugar; mas, em vez de pegar na meia, escondeu o rosto nas mãos e entrou a chorar.
Lastimai-a, mães!... Lastimai-a vós que sabeis os cuidados que dá uma filha!
Largo espaço de tempo se conservou a boa mulher naquela posição, entregue a dolorosas meditações. Erguendo-se por fim, ajoelhou, pôs as mãos e cravou os olhos na imagem da Senhora das Dores, como que a pedir-lhe conselho. Parece que lho não recusou a Mãe de Deus, porque, quando a Sr.a Maria se ergueu do chão, lia-se-lhe no rosto que tomara uma resolução qualquer.

171
Caminhando nos bicos dos pés, dirigiu-se para a cómoda, abriu cautelosamente uma das gavetas pequenas e tirou de lá um objecto. Em seguida, erguendo a tampa de um cesto, tirou um novelo de cordão branco, do qual cortou um pedaço com uma tesoura. Enfiando o objecto, que tirara da gaveta, dirigiu-se para a cama, passou com mão subtil uma das pontas do cordão por baixo do pescoço da filha, deu um nó e assim deixou um ponto negro pousado sobre o colo alvíssimo de Rosa. O objecto era... uma figa de azeviche!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Quando Rosa acordou, ia alto o sol. Procurou a mãe com os olhos: não estava no quarto.
A Sr.a Maria não tinha querido presenciar o enleio da filha, ao descobrir a figa de azeviche, símbolo quase tão eficaz contra as tentações do inimigo, como o da cruz onde foi remida a cristandade.
Rosa levou finalmente a mão ao pescoço, e achou o milagroso esconjuro. Reconhecendo a égide, que, enquanto criança, nunca deixara de usar, sentou-se de salto na cama, com as faces rubras de pejo, e exclamou, desatando a chorar:
-Jesus, que vergonha!
A jovem compreendera a tácita censura e amorável previdência da mãe.
Ia-se fazendo tarde e a jovem não saía daquela posição, nem cessava de chorar. Afinal





172
assaltou-a o receio das observações maternas; ergueu-se, vestiu-se e saiu, sem ao menos se lembrar de almoçar.
Quando voltou para jantar, mãe e filha apenas trocariam meia dúzia de palavras. À noite Rosa não se atrevia a encontrar os olhos da mãe, ao passo que esta, aparentando indiferença, prestava os seus sete sentidos ao revesilho da meia azul. Opressa por aquele silêncio, a jovem levantou-se, deu um beijo na fronte da mãe e disse:
- Vou-me deitar.
-Pois vai, filha... Deus te abençoe! - respondeu a Sr.a Maria.
Rosa deitou-se, mas movimentos agitados e suspiros, provavam que chamava em vão o sono.
A Sr.a Maria, que mais de cem vezes volvera os olhos para a cama, levantou-se, e, acercando-se da filha, deu-lhe um beijo e murmurou-lhe ao ouvido:
-Dorme, filha... Lembra-te de mim e pede a Nossa Senhora que te dê juízo...
Rosa, cedendo a um impulso irresistível, voltou-se, e, lançando-lhe os braços em roda do pescoço, puxou para si a cabeça encanecida da santa que lhe dera o ser, e quedou-se assim a chorar. A mãe, não menos comovida, deixou passar aquela explosão de lágrimas, salutar aguaceiro que nos minora o sofrer da alma calcinada pela dor, desprendeu-se brandamente dos braços da filha, e, afagando-lhe o cabelo, murmurou:

173
- Está bem, está bem!... Reza e dorme... Dorme, filha!...
Rosa andou alguns dias triste e enleada, mas ganhou juízo. O Sr. Augusto perdeu a freguesa e só teve, em troca, as graçolas pesadas -dos companheiros.
Entre a mãe e a filha nunca houve a mínima alusão ao passado. Para que serviriam alusões, se, para aquela, era indício seguro da cura a alegria da filha, se esta tinha severo censor na figa de azeviche, que nunca mais deixou de trazer ao pescoço?...
A mãe, quando pensava em tal incidente, nunca deixava de volver olhos de gratidão para a Imagem da Senhora das Dores, e dizia mentalmente:
-Foste tu, minha Mãe Santíssima!...
A filha, quando se lembrava do -que sofrera,
levava a mão ao pescoço e murmurava: -Se não fosse a figa!...
E assim se dissipou a nuvem que ameaçava trazer consigo medonha tempestade.
IV
Haverá coisa de quinze dias, entrava eu na loja do Sr. Manuel Francisco, acreditado sapateiro desta cidade, para ver se, interpondo o seu valimento, conseguíamos chamar a uma conciliação - para evitarmos demandas - as botas,




174
que ele me fazia, e os calos que vão começando a apoquentar-me.
Tudo apoquenta os velhos!
O Sr. Manuel Francisco não estava em casa; guardava a loja naquele momento uma velhinha, muito velha, que me disse ser sogra dele. Neste momento entrou na loja, beijando um pequerrucho de dois anos, que trazia ao colo, uma formosa mocetona de vinte e cinco anos.
Sabem quem eram aquelas duas mulheres?... Eram as nossas conhecidas... a Sr.a Maria e a loura Rosa!
Esta parecia, se é possível, mais bonita e fresca do que quando pela primeira vez a vimos! As alegrias da maternidade fazem às vezes destes milagres!
Estava eu esperando pacientemente a vinda -do dono da casa, quando se abriu a porta envidraçada, ao fundo da loja, e apareceu uma linda rapariga de dezasseis anos, que trazia os olhos vermelhos de chorar.
-Até logo, Sr.a Rosa... Boas tardes, Sr.a Maria -disse ela e saiu.
-Até logo, Julita -responderam as duas.
- Tu ralhaste com a Julita? - perguntou a Sr.a Maria à filha, mal a gaspeadeira saiu.
-Ralhei -respondeu Rosa.
-Então ela que fez?-insistiu a velha.
-Não fez nada-retorquiu a jovem.
- Essa agora!... Não fez nada... e tu ralhaste-lhe?...



175
-Sabe o que é? -redarguiu Rosa, fazendo-se corada. - Precisa que a mãe lhe dê uma figa!... Aí tem o que é!
Eu abri olhos curiosos e perguntei pela causa de tão extravagante necessidade. Da explicação que a Sr.a Maria me deu, nasceu este conto.






O embarcadiço
I
QUEM tiver vivido algum tempo à beira-mar, -deve lembrar-se de uns tipos, que, de manhã cedo e sobretudo ao fim da tarde, são certos na praia, sós ou em grupos.
Antes de ir mais longe, seja-me permitido dizer duas palavras acerca do termo tipos, que empreguei.
Hoje quem diz tipo-diz tudo e... não diz nada.
De tempos a tempos, dá-se com certas expressões o mesmo que com certas músicas, que, pelo seu mimo ou incontestável merecimento, se tornam populares.
Estas... tocam-nas as bandas dos regimentos; estropiam-nas as meninas no piano; moem-nas os realejos; levam-nas os cegos consigo pelos caminhos da cidade às aldeias; assobiam-nas os garotos; trauteia-as, bem ou mal, toda a gente;




178
até que, por uma espécie de reacção, caem no desagrado de todos e fogem espavoridas mal soam as primeiras notas da moda ou cantiga que vem substitui-las, para cair mais tarde no mesmo esquecimento.
Da mesma maneira, de longe a longe, sai dos bancos das escolas ou da mesa de um botequim, um termo que tinha, no momento em que foi empregado, tal ou qual propriedade e, por conseguinte, razão de ser; passa de boca em boca; fere-nos o ouvido dúzias de vezes ao dia, a pretexto de tudo, tolamente, até que desaparece, depois de estafado, cedendo a vez a outro tão bom como ele.
Hoje o termo da moda é a palavra - tipo.
Tipo é -tudo!
Tipo é Fulano, é pronome, é o leitor, sou eu, é... tudo, já disse.
Desculpem-me este desabafo. Eu precisava de protestar contra o abuso daquela palavra.
O leitor deve, repito, ter visto aqueles tipos, e tem decerto notado que há neles, como nos padres e nos militares, um não sei quê que os distingue do comum dos homens, que os faz classificar por um nome genérico, e, com a sua natural perspicácia, já adivinhou que lhe estou a falar dos marítimos ou embarcadiços, como geralmente se diz.
Descrever um - é descrevê-los a todos.
Rosto queimado pelo sol de todas as latitudes - olhos cerrados por uma espécie de precaução,

179
que lhes faz poupar toda a sua faculdade visual para as grandes ocasiões -feições duras mas não repelentes -na testa um labirinto de rugas, cada uma das quais tem a sua história desconhecida.
A primeira... traçou-a o último beijo dado na esposa em vésperas de ser mãe, e que o não terá a seu lado para a animar, porque o dever o obriga a partir; outra representa uma noite de temporal, que rendeu uma vela ao Senhor de Matosinhos; a terceira abriu-lha na fronte o terrível grito "fogo a bordo", quando centos de vidas estavam confiadas ao seu cuidado; a quarta...
Basta! cada uma dessas rugas, repito, tem a sua história desconhecida.
Olhemos bem para eles... É o mesmo chapéu, embreado no Inverno, de palha no Verão; o mesmo casaco de pano piloto forrado de baeta; a mesma calça, que nunca passa abaixo do tornozelo para se não molhar quando se anda a lavar o convés.
Estudemos-lhes agora os modos. Porque será que em qualquer ponto da praia que escolham para passear, traçam maquinalmente duas linhas imaginárias, entre as quais passeiam, não as ultrapassando jamais?
Quem medir o espaço limitado por essas -duas linhas, achará o comprimento regular do convés de qualquer navio.
Pois pensam que esses homens estão a passear em terra?!...




180
Como se enganam!... Em espírito... estão a bordo!
Aproximemo-nos e escutemo-los...
Não notam a concisão das perguntas e o monossilábico das respostas?...
É o costume de dar ordens; se, para mandar ferrar uma vela, algum deles se lembrasse de fazer um discurso, quando este fosse em meio, há muito que a vela iria pelos ares.
Vejamos agora o moral, uma vez que lhes analisámos o físico...
Poucas ideias, mas essas bem claras - indomável energia - crenças firmes - muito senso prático e nenhuma instrução - uma filosofia especial para o grande problema de viver ou morrer - e, em geral, simplicidade infantil e infinita bondade, ocultas debaixo de uma capa de rudeza, que não engana quem os observar atentamente.
Como julgo que já disse, quem descreve um, descreve-os a todos; fico, portanto, dispensado de pintar o Sr. Matos, ex-capitão de longo curso, velho marinheiro, alma anfíbia fixa à terra pelo amor que tem à sua única filha, à sua Carolina, e ligada ao mar pelo passado, pela recordação da vida activa, pelos devaneios do quarto da madrugada, pelo próprio perigo, quem sabe!
Do que eu, porém, me não julgo dispensado é de dizer quatro coisas a respeito da vida dele.
Filho de marinheiro, quando o pai, no dia em que ele completou treze anos, lhe perguntou o

181
modo de vida que queria abraçar, arregalou os olhos como se não tivesse compreendido a pergunta, e, ao ouvi-la repetir, olhou para ele meio receoso de que o autor dos seus dias não estivesse em seu perfeito juízo.
E o caso é que tinha razão. Pois havia outra vida que não fosse a do mar, e outro modo de a levar que não fosse embarcado?!...
E, além disso, não estava ele ali, ao pé da porta, o mar; essa ama, cuja voz ouvia quando o embalavam no berço; esse companheiro dos seus brinquedos; essa providência, que fornecia à família o pão de cada dia; esse tentador, que lhe prometia aventuras; esse amigo, que se deixava rasgar quando ele se lembrava de ir arrancar-lhe a concha que luzia, ou a alga que vegetava em seu seio, e que, longe de punir o roubo, lhe oferecia o dorso para o reconduzir à praia?
É claro que a pergunta não tinha senso comum.
À vista disto, seria supérfluo dizer que embarcou como moço aos catorze anos e que, até vir a ser capitão, sofreu quanto se costuma sofrer antes de chegar a tais alturas.
No ano seguinte àquele em que houve quem lhe confiasse o comando de um navio, casou por amor com uma jovem, filha de um proprietário, que jurara mais de um milhão de vezes que antes a queria ver morta do que entregá-la a um embarcadiço, e que teve por fim de sujeitar-se à velha e sempre verdadeira máxima: "Casamento
182
e mortalha no Céu se talha", máxima em que a gramática é sacrificada à rima.
Quando começa a nossa história, havia dois anos que Deus lhe levara a esposa, e, desde então, para não deixar só a única filha que tinha, havia renunciado à vida do mar.
ora é chegada a ocasião de travarmos mais íntimas relações com o nosso honrado capitão.
Aproveitemos o tempo, enquanto ele não entra, para lhe analisarmos a sala de visitas.
Graças à situação da casa, a sala recebe a luz por duas rasgadas janelas -de peitoril, de onde se avista o oceano.
Em noite amena de Estio, quando a Lua brilha no céu, recamado de estrelas, e o acre perfume da maresia satura, por assim dizer, a atmosfera, devem ser horas de vago e dulcíssimo prazer as passadas a uma dessas janelas, quando o único som que se ouve é o das vagas, cuja vista nos guia insensivelmente a alma para um mundo de ideias vastas e elevadas.
Haverá aí quem não tenha passado uma hora dessas tão formosas noites, embevecido na contemplação do mar e do céu, essas, a meu ver, mais grandiosas manifestações da Omnipotência Divina, sem sentir que uma espécie de véu de melancolia lhe vem envolver o espírito, sem contudo lho entenebrecer?
Parece que a vista do mar faz, nesse instante, surgir desse outro oceano - o passado-todas, as formosas visões que no-lo fazem tão querido.

183
As cenas da vida passam-nos, então, diante dos olhos da alma, arrancando-nos agora uma lágrima de saudade, logo um suspiro de dor, já desenhando-nos de novo na fronte uma ruga, que a mão do tempo desfizera, para em seguida nos escaldar as faces com o fogo do pejo.
E o nobre e o vil, o prazer e a dor, a ilusão e o desengano, todas as cores, enfim, que misturámos na palheta da alma e com que pintámos a existência, vêem-se ali, como planos secundários ao fundo da tela, a contrastar no vigor e beleza com a aridez e completa ausência de cunho, que se nota no plano principal -do último quadro do homem - o presente!
porque o artista, ao contornar o presente, já não tem a ajudá-lo a inesgotável inspiração da juventude!
Apesar do encanto que descobrimos nessas janelas, raras vezes se vê a qualquer delas o vulto do capitão.
O seu lugar predilecto na sala, ei-lo ali indicado por aquela cadeira de bambu, encostada à mesa que ocupa o centro.
E não adivinham porquê? É porque dali vê o mar sem ver a praia, e o pobre homem, graças aos diferentes objectos que o rodeiam, chega às vezes a imaginar-se a bordo, na câmara do seu navio!
Esses momentos de ilusão, em que o espírito lhe foge da terra firme para o elemento querido, são hoje os mais felizes para ele.






184
Do lado da sala, fronteiro às janelas, vê-se um modesto sofá de palhinha, tendo aos pés o tapete de rigor, e a cada lado três cadeiras.
Por cima do sofá pende uma gravura representando a morte de Nelson, entre dois quadros bordados a canotilho pela filha do dono da casa. Um deles quer ser S. Joaquim, patrono do capitão; no outro, depois de aturada atenção, distingue-se um pintassilgo de todas as cores, pousado sobre um ramo cor de canela e verde, mostrando o bico aberto a uma borboleta preta com pintas brancas.
Lê-se em ambos o seguinte dístico:
CAROLINA MATOS
1854
No espaço de parede, que divide as duas janelas, vê-se: em cima, um caixilho de pau-preto com os cantos ornados por placas de metal amarelo, emoldurando um quadro em que se notam, pintados com as cores das diferentes nacionalidades, os pavilhões, sinais e galhardetes pertencentes a todos os povos do globo; logo por baixo, um mapa-múndi com o verniz estalado em diferentes pontos, e contra o qual encostam os bicos um tucano e um araçari empalhados, que pousam sobre uma pequena mesa de jogo, condenada a não sair do seu lugar por absoluta falta de equilíbrio.



185
Entre esses dois pássaros move-se a pêndula de um velho relógio de jaspe com colunatas de cristal. Das duas paredes laterais pendem - uma vista da cidade do Rio de Janeiro e outra da cidade da Baía de São Salvador.
Sobre a mesa do centro estão colocados, com rigorosa simetria, dois magníficos ramos de coral e cerca de duas dúzias de conchas de todos os feitios e tamanhos.
Juntem-se a isto as cadeiras necessárias, e está descrita a sala, cujas paredes bem caiadas e bem lavado soalho dizem claramente que é a limpeza o luxo principal daquela vivenda.
E não me ia esquecendo o adorno principal?!...
Suspensa por quatro cordões de seda vermelha, presos a um gancho, cravado no centro do tecto, veleira barca fende os ares, com galhardia igual àquela com que sulcava os mares o "Argonauta" em ponto grande, que ela em ponto pequeno representa.
É tempo, porém, de fazermos entrar em cena os actores.
Com aspecto carrancudo se nos apresenta o Sr. Matos.
A violência com que abriu a porta da sala - o gesto de impaciência, que não soube ou não quis reprimir, quando, aproximando-se da janela, olhou para a praia - o arremesso com que se sentou na sua cadeira favorita - a espécie de desabafo que parecia causar-lhe o estalar das articulações



186
dos dedos, tudo isso denunciava tal ou qual descontentamento.
Haveria cinco minutos que ali estava, quando a filha entrou.
Era uma formosa menina de dezoito anos, de estatura mais que mediana, com a tez levemente tostada pelas brisas do mar, lábios rosados, dentes alvíssimos, cabelo negro e um par destes olhos cheios de vida, a que Deus concede longas pestanas, só com o fim de lhes amortecer um pouco o fulgor.
Na ocasião em que a estamos analisando, há no olhar dela um misto de temor e de enleio, que lhe dá à fisionomia um certo ar de ansiedade.
Se não foi direita à janela quando entrou, lançou, como o pai, intencionalmente as vistas para a praia.
Em vez do descontentamento que este sentira, veio reflectir-se-lhe no rosto a expressão de íntimo prazer, logo substituído pelo rubor do pejo, ao ver que ele a estava observando atentamente.
Parece que o nosso honrado capitão não achou nas rápidas mudanças, que se iam operando no rosto da filha, motivo para grandes regozijos.
As rugas da testa, por efeito de violenta contracção, transformaram-se-lhe em profundos sulcos, as mãos desuniram-se-lhe e foram apoiar-se vigorosamente nos braços da cadeira.
Em seguida, erguendo-se, meteu a mão esquerda no bolso da calça, enquanto que a direita

187
torcia distraidamente a espessa barba grisalha, e começou a passear silencioso.
Na atitude composta e modesta da filha, que se sentara a abainhar um lenço, no vinco traçado entre as sobrancelhas, nos lábios colados um ao outro e, sobretudo, no afã com que trabalhava, lia-se o mal-estar de quem se prepara para resistir a uma agressão.
A situação, porém, começava a tornar-se intolerável para ambos.
O pai estava a tremer que, não podendo conter-se por mais tempo, se lhe expandisse a cólera numa daquelas rajadas com que dominava o sussurro do mar e fazia tremer a bordo uma tripulação de homens afeitos a lutar com o perigo; a filha, pelo contrário, conhecia, pelo arfar do seio e pelo temor de que se ia tomando, que a sua coragem estava por um fio e que, mau grado seu, as lágrimas, essa força e fraqueza da mulher, iam rebentar-lhe dos olhos.
O capitão pareceu ter, por fim, tomado uma resolução, porque, acercando-se da janela e contemplando a praia, voltou-se para a filha e perguntou com voz afectadamente serena:
- Quem diabo é aquele guarda-costas, que há meses não sai aqui destas águas?... Vê lá se o conheces, ó Carolina...
O nosso capitão, força é confessá-lo, era o mais inocente dos capitães.
Se ele queria fazer-se de novas, para que mudava de caminho todas as vezes que descobria
188
atrás de si, quando saía com a filha, o guarda-costas, que, como ele de si para si dizia, lhe andava sempre na esteira?...
Para que terminava de repente o passeio, e voltava para casa?...
Porque tratava ultimamente, de vez em quando, a filha por senhora, em lugar de a tratar por tu?...
Porque sorria com irónica amargura, quando ela lhe fazia alguma carícia?
E, sobretudo, porque tinha ele despedido na véspera a criada, depois de lhe ter quase arrancado uma carta que ela trazia à filha, não consentindo que lhe dissesse adeus, antes de ir embora?...
Ó inocente capitão! se tu fazias todas essas coisas, para que te fazias de novas?
Pois não era melhor falar francamente com a rapariga?!...
Pois não pensaste que o primeiro cuidado da criada foi ir contar o acontecido ao tal guarda-costas?!...
Valha-te Deus, capitão (
Carolina, vendo-se assim interpelada, fez-se
vermelha como uma romã e balbuciou um destes "não sei... " que nos vêm aos lábios quando
não queremos dizer o que sabemos.
- Não sabes?!... - continuou o Sr. Matos. Pois se tu nem sequer te deste ao trabalho de
ver quem é, como hás-de saber se o conheces ou
não?... Olha bem... É aquele mandrião que está

189
sentado, acolá, naquela pedra... Vê lá se o conheces...
A pobre rapariga, como se costuma dizer, já não sabia de que freguesia era.
O sangue tingia-lhe as faces, a garganta estreitava-se-lhe, até que as lágrimas irromperam por fim, apesar dos esforços que fazia para as reter.
O capitão, não recebendo resposta, fingiu que lhe não via o pranto, dirigiu-se para a porta da sala e, abrindo-a, acrescentou antes de sair:
- Bem... Uma vez que o não conheces, vou perguntar-lho a ele.
* saiu.
Carolina, que conhecia o génio irascível do velho, correu à janela e fez sinal ao tal mandrião para que se ausentasse.
No mesmo instante em que o Sr. Matos chegava à porta da rua para a abrir, alguém batia da parte de fora.
A chave girou na fechadura, e a jovem ouviu com inexplicável prazer a voz do pai, que dizia: -És tu, doutor!... Entra.
Mal sabia o velho doutor que um coração de dezoito anos lhe tributava, naquele momento, sentida gratidão!


190
II
O leitor está farto de saber que anda aqui história de amores, mal apreciados pelo nosso herói.
Efectivamente - anda.
Como estes amores começaram, não lho sei eu dizer, porque a própria Carolina já, por mais de uma vez, se tem consultado a tal respeito e não pode explicá-lo.
Há mais!... Se havia rapaz com quem ela embirrasse, antes -de conhecer que o amava, era aquele, o seu Eduardo!
Embirrava, sim; não o podia ver!...
Ora, expliquem lá isto!
E não era porque ele fosse feio...
Valha-nos Deus, não era; e a prova é que hoje, que ela o ama, bem vê que não há rapaz mais bonito do que ele.
Não -sabe; ela não sabe dizer porque era; mas não gostava dele!
Daqui para diante é que a memória lhe falha; só se lembra, que, uma noite em casa de uma prima dela, casada, e por ocasião de um baptizado, dançara com ele quatro vezes - ainda hoje a censuram as velhas! - e depois, no dia seguinte, que era um sábado, o vira na praia, e o tornara a ver todos os dias à mesma hora, até que, no domingo adiante, passara a tarde a chorar no seu quarto, por ele não ter aparecido, e



191
foi então que descobriu que já não antipatizava com ele.
Agora, duas palavras a respeito de Eduardo.
o leitor queria, talvez, que eu lhe fizesse do rapaz um artista distinto, um médico hábil, um advogado talentoso, ou, finalmente, um poeta inspirado...
Reconheço que o meu Eduardo seria mais interessante se fosse qualquer dessas coisas; tornaria até menos monótona esta narração, se pudesse apresentá-lo como o leitor deseja, mas... não é possível.
Eduardo era... o que não podia deixar de ser, tendo nascido à beira-mar; era embarcadiço como todos os seus patrícios, e no número dos mais felizes se devia ele contar, por ser capitão de navio aos vinte oito anos.
O leitor, se se quiser dar ao trabalho de pensar, há-de achar naturalíssimo que ele tivesse abraçado a vida marítima, porque nas pequenas povoações da beira-mar, onde vegetam - sabe Deus como! -um padre, um facultativo, um boticário-quando há botica!-um tendeiro, que acumula as funções de director do correio, e um mestre-escola, é impossível a concorrência, e as vistas, por conseguinte, forçadas a desviar-se da terra, voltam-se para o infinito dos mares e pedem-lhe o trabalho.
Eduardo ficara órfão de pai aos dez anos. Graças à previdência paterna, pôde educá-lo sem sacrifício a santa da mãe, cuja alma tinha




192
ido juntar-se, anos depois, à do marido, consolada pela certeza de deixar na terra um homem de bem e capaz de tornar ainda mais respeitável o nome limpo -e estimada, que herdara de seu pai.
O velho capitão sabia tudo isto e, mais do que uma vez, fizera a devida justiça ao seu jovem colega; infelizmente este lembrou-se de se lhe namorar da filha, e o velho começou a vê-lo com maus olhos, a ponto de fingir que o não conhecia, como há pouco vimos.
Eduardo adoecera durante a última viagem, e as prescrições do facultativo haviam-no obrigado a deixar partir o navio de seu comando confiado a outrem.
Aí tem o leitor a razão porque ele estava ali, feito mandrião, sentado na pedra da praia.
III
-És tu, doutor... Entra.
Isto disse o Sr. Matos, quando, ao abrir a porta, se achou cara a cara com a pessoa que vinha visitá-lo.
-Tu ias sair? -atalhou o visitante.
- Ia... mas já não saio - respondeu distraidamente o capitão, seguindo com os olhos o nosso Eduardo, que se ia afastando devagar.
- Que diabo tens tu?... Tu estás doente? - perguntou com sincero interesse o doutor, estendendo



193
instintivamente a mão para lhe tomar o pulso.
O capitão, ouvindo a pergunta, fez um esforço, desenrugou a fronte e retorquiu com amigável ironia:
-Sossega, que me não matas tão cedo. -Tu para cá virás... -redarguiu, rindo, o velho facultativo.
Não havia amizade mais leal do que a destes dois homens, que, educados juntos quando crianças, se tinham conservado fiéis um ao outro, apesar das longas ausências, da diversidade de temperamentos e desigualdade de instrução.
As tardes, quem fosse a casa de qualquer deles e o não encontrasse, podia ir procurá-lo a casa do outro, com a certeza de os achar reunidos.
A conversa era sempre um duelo de remoques, que tanto faziam rir o agressor como o agredido.
- Entras, ou não entras? - insistiu o capitão.
- Se te fosse isso indiferente - respondeu o doutor - íamos dar um passeio, e, de caminho, conversávamos, pois tenho assunto de importância a comunicar-te.
- Também eu tenho que te dizer... - replicou o marítimo, enrugando de novo a testa.Trago aqui-continuou ele, pondo a mão sobre o coração-coisa que me incomoda, e em que não tenho querido falar-te... Vamos lá... vamos passear!...



194
O doutor cravou no rosto do amigo os olhos, que, nesse instante, traíam tanta malícia como inteligência, e repetiu: "Vamos passear."
Foram os dois andando algum tempo em silêncio.
A testa do embarcadiço cada vez se anuviava mais, e nos olhares, que de tempos a tempos lhe deitava o doutor, redobrava a malícia.
O capitão por fim, depois de ter feito estalar os dedos duas ou três vezes, disse, sem olhar para o amigo:
- A Carolina tem um namoro...
- E então?... - perguntou o doutor sossegadamente.
- E então-retorquiu o outro, ferido pela aparente indiferença do amigo. - E então... não quero!
- Não queres o quê?!... - replicou o médico com afectado espanto.
-Não quero... não quero que ela namore!... -respondeu o capitão em tom desabrido.
- Ó Matos! diz-me uma coisa... Tu não terás pena de ser assim? - perguntou o doutor com cómica seriedade. - Não queres que a rapariga namore - continuou ele, atalhando a resposta do amigo. - Que diabo queres tu que ela faça aos dezoito anos?!... Aposto que -a queres para freira?
-Não sei para que a quero! -vociferou o embarcadiço tão desabridamente, que o doutor lançou os olhos em volta, receoso de que alguém




195
os pudesse ouvir. -Não quero que lhe chamem namoradeira... Aí tens!... -prosseguiu ele.
O doutor compreendeu a necessidade de não atacar de frente aquela enérgica natureza e, depois de dar alguns passos sem dizer palavra, reatou o diálogo:
- É justo - disse ele. - Compreendo a tua susceptibilidade, mas... Tu sabes que sou teu amigo?...
-Sei -respondeu o capitão.
-E sabes que talvez seja ainda mais amigo
da pequena do que de ti-continuou o doutor. - Não sei, mas... talvez sejas - replicou o
outro, comovido.
-Então hás-de confessar que teria tanto desgosto como tu, se um dia a tivessem na mesma conta em que são tidas muitas outras por aí... Confessas... Bem!... Mas... nota, meu velho. - continuou o doutor-nota... que uma coisa é namorar por namorar, e outra coisa é dar atenção a um homem que se ama deveras, e em quem se reconhecem as condições necessárias para fazer a felicidade de uma mulher... É verdade... - atalhou o doutor. - Tu ainda me não disseste quem é o rapaz...
- É o Eduardo, da "Veloz"- respondeu o capitão, juntando ao nome do namorado o nome do navio.
- E tu que tens que dizer ao Eduardo?... - perguntou o doutor, com pronunciado assombro.




196
- Que não quero... - redarguiu o velho marítimo, -com manifesta teimosia.
- O rapaz é honrado... é trabalhador... tem amigos... não se pode chamar pobre... foi bom filho... Que mais queres tu, ó Matos?!... - retorquiu o doutor com modo impaciente.
- E que te importa a ti o rapaz?... Para que estás tu a tomar as dores por ele?... - replicou o capitão encolerizado.
- O que me importa?!... Importa-me muito!... Sempre pensei que terias mais amizade à pequena do que eu; mas vejo que me enganei - respondeu o médico, igualmente irritado. - O que me importa?!... - continuou ele, erguendo gradualmente a voz. - Tu estás velho, tens uma filha nova e bonita, aparece-te uma ocasião de a arrumar bem, de a entregar a um rapaz honrado e trabalhador, e pões-te a cuspir, como se ele não prestasse?!... És um bruto, é o que és!... O que me importa!... Se me não importasse, não tinha prometido ao rapaz que me metia nisto!... - terminou o doutor, quase sem fôlego, deixando assim escapar o assunto importante que tinha a tratar com o capitão, quando o convidara para passear.
- Ah! ele é isso!... - exclamou o capitão. - Tu andas feito com ele?...
-Eu não ando feito com ninguém, Matos!... Não sejas injusto-bradou o doutor, ferido pela censura.
- Então, tu... pensas que eu... ando uma




197
vida inteira a educar uma filha... a única que me ficou... o retrato vivo da mãe... o sol que me aquece a alma e... agora... agora que ela me não dá canseira, agora que me está pagando o que eu fiz por ela, aparece um menino bonito que lhe mete quatro teias de aranha na cabeça, e eu... pego... e entrego-lha, assim, sem mais nem menos, como se lhe não tivesse amor, como se fosse uma coisa... Tu estás a ler!... Então, tu... não sabes... Não sabes, não... - prosseguiu o capitão com voz cheia de lágrimas. - Não sabes que, de cada vez que chegava a casa, e que, com o resto da soldada, comprava uma leira de terra ou uma inscrição, só pensava nela, pois cá eu... enquanto o mar tiver água, não me há-de faltar de comer e... quando chegar a minha hora, em eu tendo em regra o diário náutico - continuou o pobre pai, pondo a mão no peito para indicar a consciência -adeus... boa viagem!... acabou-se tudo?... Não lha dou; não ma rouba assim à má cara... -terminou ele, batendo com o pé no chão.
O doutor ficara mudo e atónito diante daquela explosão de santo e desculpável ciúme paterno.
A cólera dissipou-se no coração do velho médico, dando lugar a terna compaixão.
-Amigo... -disse ele, enfim, sinceramente comovido. - Conheço que é um sacrifício grande, mas... que queres?... Todos os pais passam por essas amarguras, e bem felizes são aqueles, que,




198
desapossando-se das filhas, as não vêem entregues a um miserável, que lhas torne desgraçadas... Não falemos, hoje, mais nisto... Dorme sobre o caso...
- Não tenho que pensar nem que dormir - redarguiu o capitão. - Não lha dou... nem a ele... nem a outro... Arrumou!
- Bem... Não falemos mais nisto, por hoje... Tu és bom pai, e não queres fazer sofrer a pequena... Olha que se não morre só de bexigas ou de uma febre; também se morre de amor... Pensa, pensa melhor e... Adeus! Até amanhã...
-Tu não vens até lá?... -perguntou o capitão.
-Não; hoje não... Tenho que fazer... - respondeu o doutor, que entendeu que seria melhor deixar o amigo entregue a si próprio.
- Então, adeus... - replicou o capitão.
- Adeus... - repetiu o outro - e... olha lá... não me faças chorar a rapariga...
- Eu, sim! - protestou o pobre pai, encolhendo os ombros.
Era noite quando o capitão chegou a casa.
O mau humor, que a reflexão dissipara, tinha-o de novo assaltado, por lhe parecer que vira afastar-se um vulto de ao pé da janela.
Entrou na sala.
Carolina trabalhava perto da mesa do centro, à luz -de um candeeiro de azeite.
Via-se que a pobre rapariga tinha levado a tarde a chorar.



199
IV
Não se enganara o nosso capitão, julgando perceber um vulto, que se ausentou de ao pé da janela, avistando-o ao longe.
Se, em vez de ir passear com o doutor se houvesse escondido em sítio de onde pudesse ouvir, teria escutado o seguinte diálogo:
- Sempre um susto assim!... Ó Eduardo!... E se não vem o doutor, e meu pai vai ter contigo?...
- Paciência!... - replicou o mancebo.
- Olha que era capaz de te fazer alguma desfeita!...
Como Eduardo nada respondesse a esta desagradável hipótese, Carolina prosseguiu com voz trémula:
- Ó Eduardo!... Por tudo quanto há, te peço que tenhas paciência, se ele te não tratar bem...
- Nem pensar nisso é bom!... -replicou o mancebo.-Pois eu esquecia lá a idade dele... e demais a mais sendo teu pai!... O que eu não posso levar avante é que ele me tenha tanta zanga, sem eu ter dado causa a isso!... Dou-te a minha palavra, que passo às vezes horas a cismar, a perguntar a mim mesmo se lhe fiz coisa que o desgostasse, ou se alguém lhe terá dito mal de mim...
- Valha-te Deus!... Não é nada disso... É uma






200
cisma... Aquilo passa-lhe... Verás!... Acredita que não há coração melhor do que o dele...
- Pois sim, sim... - balbuciou o mancebo - mas, enquanto a mania lhe não passa, traz-me aqui consumido e ralado, que nem eu te posso dizer como ando com este coração cá por dentro...
- Então eu... ando muito alegre e... não sofro nada?... - perguntou, com expressão de meiga censura, a nossa Carolina.
-Desculpa!... - respondeu carinhosamente Eduardo. - Desculpa!... sou um egoísta. Não penso senão em mim!... Mas tu que queres, se eu quase que perco o juízo, quando me lembro que este nosso penar ainda pode durar anos, pois nem tu és capaz de...
- Não, isso não!... - atalhou a jovem, não deixando concluir a frase. - Contra vontade dele não caso!... Isso não!...
- Não me deixaste acabar, filha!... Queria dizer que nem tu eras capaz de casar contra a vontade dele, nem eu consentiria nunca que alguém, vendo-me passar contigo, pudesse dizer que foste má filha!... Tudo, menos isso!...
- É assim, Eduardo!... É assim que eu gosto de te ouvir falar... Sabes do que nós precisávamos?... Bastava que meu pai ouvisse o que tu acabas de dizer.
- Ó Carolina!... E se o doutor... se o teu padrinho fazia o milagre de o convencer?!...
-Pois tu pediste ao padrinho?!...




201
-Pedi e prometeu-me que ainda hoje falava a teu pai...
- Jesus Senhor!... Pois tu pediste ao padrinho... e não me dizias nada?!... Devias ter-me prevenido!... Fizeste mal!...
-Olha, Carolina... Eu não to disse porque já esperava esses mesmos receios... Tem paciência! A carta está jogada; para trás é que já se não volta!... O que te digo é que, se o doutor o não convence, perco a esperança de todo!...
-Ora tu ires falar ao padrinho, sem me... Vai-te embora! Adeus! Adeus! Lá vem meu pai, além... Adeus! - disse precipitadamente a jovem, retirando-se da janela.
Foi neste momento que Eduardo se afastou; mas não tão depressa que, como notámos, não fosse visto pelo velho.
Os leitores, que têm passado pelo horrível martírio de esperar alguém, em cujo rosto haja a ler a palavra "esperança" ou a perda das mais queridas ilusões, devem compreender a ansiedade com que a nossa Carolina ficou aguardando a chegada do pai.
"Como virá ele?! ... Como receberia a intervenção do doutor?... Diria que sim?... Pediria espera?... Responderia terminantemente que não?... Ele respeita tanto o padrinho!... O padrinho sabe-o tão bem levar quando quer! ... mas aquela birra que ele ganhou ao Eduardo... E então porquê?!... sabe-o ele!... Também é de mais!... Tão bom rapaz... tão amigo de fazer





202
a vontade!... Pobre Eduardo!... Mas como virá o pai?!..."
No cérebro estas e mil outras perguntas; no coração uma ansiedade, um peso indescritíveltal era o estado da desconsolada rapariga, naquele momento.
O capitão recebeu com frieza o beijo que ela lhe deu na face.
Carolina, que para isso se erguera de onde estava, voltou para o seu lugar, e o capitão foi sentar-se no vão da janela.
A Lua brilhava majestosa e serena no espaço; o mar rolava, gemendo, essas vagas que se formam ao largo e que, depois de se erguerem ameaçadoras, perdem a força a meio caminho, e vêm morrer na praia, produzindo, ao retirar, um cicio cheio de mistérios; num ou noutro ponto mais culminante da vaga luzia, de vez em quando, o brilho prateado da fosforescência, e, na praia, projectavam as rochas gigantescas sombras.
O velho capitão mirou, durante alguns minutos, aquele quadro; depois, voltou a cabeça e contemplou a furto a filha.
Vendo que esta não erguia os olhos, e não podia portanto surpreendê-lo, esqueceu o céu, o mar, o mundo, tudo, e começou a estudar o ser estremecido, que era a sua vida.
Que mundo de ideias nascidas dessa contemplação!
Ali estava ela, a sua filha, a sua Carolina, o



203
sol - como ele dissera - que lhe aquecia o coração; estava ali... e tinha a alma longe dali!
Não era por ele, que a estava devorando com os olhos, que aquele coração batia!... Não era nele que aquele cérebro pensava, quando ele só dela cuidava!
Para ele... era o receio que a fizera chorar; era o vinco traçado entre as sobrancelhas; era a censura oculta no coração; a ideia de rebelião, que o amor contrariado lhe estava, talvez, sugerindo naquele instante!
Para cúmulo de martírio, vieram-lhe à mente as palavras do amigo: "Também se morre de amor! "
Morrer!... ela!...
O pobre pai estremeceu.
-Se ela morre... abre-se-me um rombo na alma e vou a pique!...-pensou ele.-Por mim... pouco se me dá... mas ela... uma criança!... tão linda!... tão meiga!...
E o velho ergueu-se, para repelir tão sinistra ideia, e começou a passear.
O sussurro do mar, a luz melancólica do candeeiro, o silêncio resignado da filha e o som monótono dos próprios passos, tudo contribuía para enegrecer o espírito do capitão.
Faltava-lhe o ar, entumecia-se-lhe o coração, parecia-lhe que sobre o peito lhe pesava a pedra de um túmulo, sentia uma horrível necessidade de chorar e tremia que as torturas da alma buscassem de repente a expansão num destes brados





204
de dor, grito de leoa ferida ou de mãe que perde um filho!...
Beijou a jovem na fronte e saiu da sala.
A filha ficou, em posição de quem escuta, a contar-lhe os passos e, mal ouviu o ruído da chave girando na fechadura do quarto do pai, ergueu-se, fechou as janelas, pegou no candeeiro, e saiu também.
Nem um nem outro tinham proferido uma palavra!
Depois da noite em que morrera a esposa do capitão, era aquela a de mais cruel agonia que pai e filha tinham passado juntos!
V
Apenas fechou a porta e se viu ali na solidão do seu quarto, longe dos olhos da filha, o ancião deu livre curso ao pranto.
Sentimentos opostos escolheram aquele magoado coração de pai para campo de batalha, rasgando-lho e esmagando-lho ao mesmo tempo.
O egoísmo predominou por fim, e o velho exclamou, como se alguém o estivesse interrogando: "Não consinto... É muito nova... Veremos... mais tarde... "
Tentou distrair-se, libertar-se daquele pesadelo.
Mexeu nuns papéis que tinha sobre a banca; colocou no seu lugar duas cadeiras, que estavam



205
no meio do aposento; deu duas voltas à roda do quarto e, chegando -ao pé da janela, abriu-a e consultou os astros; deu mais duas voltas e foi fechar a janela; entreteve-se algum tempo a espevitar o candeeiro; deu corda ao relógio de parede; desfez um óculo de alcance e limpou-lhe cuidadosamente os vidros um por um, mas esqueceu-se de atarraxar de novo as diferentes peças; pegando, em seguida, numas tesouras cortou duas unhas da mão esquerda e parou naquele trabalho, entregue à ideia fixa; sacudindo, finalmente, a cabeça, arremessou as tesouras, acabou de arranjar o óculo e foi pô-lo no seu lugar.
Feito isto, veio sentar-se à banca e entrou a morder as pontas da suíça. Passado tempo, ergueu-se da cadeira e deitou-se vestido sobre a cama, com os olhos fitos no tecto, e fazendo estalar ruidosamente os dedos das mãos, enlaçadas sobre o peito.
Erguendo-se por fim, sentou-se na beira da cama, coçou a cabeça, estirou -os braços, e, encolhendo os ombros, pôs-se de pé, despiu-se, deitou-se e apagou a luz. Horas depois, sonhando, dava o capitão um murro na parede e exclamava em tom irado: "Já te disse que é muito nova!... Não consinto!... Arrumou! "
Pobre pai!
Nessa mesma noite, quem tivesse ido a casa do doutor, teria ouvido o nosso amigo Eduardo, completamente cego para os bocejos que o médico




206
já não podia reprimir, e não menos surdo para os repetidos "homem, já te disse que não!..." proferidos pelo velho, tê-lo-ia ouvido, repito, perguntar pela milésima vez:
- Mas -então, doutor... Não lhe deu esperança nenhuma... nenhuma?...
- Homem, já te disse que não(...
-Mas então, doutor...
-Mas então, já te disse e tornei a dizer, que se não vai a Roma num dia!... Tem paciência, homem!... O velho é cabeçudo, mas bom como poucos. Aquilo é ouro mal lavrado, mas de lei... Vai-te com esta, que to digo eu, que o conheço! Como aquele... há poucos!
- Mas...
- E tu a dares-lhe!... sabes tu que mais?... Vai-te embora, que eu não estou namorado e estou a cair com sono.
Não teve Eduardo remédio senão retirar-se.
Por alta noite perguntava o pobre rapaz, pela centésima vez à consciência, que lhe não podia responder: "Mas porque embirra o Matos comigo? "
E Carolina?... Essa rezou mais nessa noite... do que as leitoras rezam numa semana!
Dos três, a sofrer pela mesma causa, era ela quem melhor bálsamo escolhia!



207
VI
Foram-se seguindo os dias sem que incidente algum viesse modificar o horrível constrangimento em que viviam os actores deste singelo drama de família.
Carolina passava o melhor do seu tempo a chorar e a rezar, enquanto que o pai se debatia na luta travada entre a consciência, que o acusava de egoísmo, e esse mesmo egoísmo, que o não deixava conformar-se com a ideia de ocupar o segundo lugar no coração da filha, e ter de separar-se dela.
Eram cruéis os sofrimentos de ambos!
Iam longe as horas de jovial expansão, e longe o encanto dos serões de Inverno, em que ao som das vagas que bramiam e vinham quebrar-se nas rochas; ao estalar da chuva nas vidraças quando impelida pelas lufadas do sul, que, na sua desesperada correria, encrespava -as águas do mar e rugia de furor, vendo-se detido na passagem; iam longe, dizia, essas noites, em que às vozes da natureza irritada respondia a alegre canção da jovem ou o franco riso do velho, celebrando os agudos ditos da filha.
Ia longe tudo isso!
Agora tudo estava mudado; as alegres horas da noite viam-nas eles aproximar-se com secreto receio.
Eu não conheço nada mais cruel do que a




208
convivência de dois corações -que se apreciam e respeitam, que se estremecem e sentem, por assim dizer, um pelo outro -quando, por acaso, um segredo, uma divergência, um nada os separa de repente; os põem a bater cada qual para seu lado, finalmente os desacorda, quando estavam acostumados a ser afinados pelo mesmo som.
Os leitores devem ter passado por estes transes.
Ao cabo de aturado silêncio, acontece às vezes que o coração recebe um choque eléctrico, freme, ferve e parece querer escapar-se do peito e voar para aquele de quem anda divorciado, bradando-lhe: "Crê-me!... sou o mesmo! sempre o mesmo!... sê injusto, esmaga-me, fere-me... mas crê-me! sou o mesmo!... Estimo-te... dedico-te o mesmo afecto!... Não queres o que eu quero?... Embora!... Não te feches quando me abro."
e, quantas vezes, esse choque eléctrico se faz sentir nos dois a um tempo!... Quantas vezes, vencido um falso pejo, um louco receio, se ambos se aproximassem seguindo o mesmo impulso... se ambos obedecessem ao som vibrado nas mesmas cordas... quantas vezes se diluiria o ponto negro nas dulcíssimas lágrimas da reconciliação!... quantas vezes o gelo da discórdia se fundiria ao calor do ósculo de paz!... quantas vezes a névoa, que os encobria, se dissiparia à luz do sorriso, esse arco-íris da alma, festivo núncio de bonança!
A filha, vendo o pai melancólico e pensativo;

209
não enxergando o terno sorriso, que, por assim dizer, a cobria como uma bênção; não sentindo na fronte o beijo, que era, para ela, o eco da própria consciência, que a aprovava; deserdada, enfim, de tudo o que até ali constituíra o alimento do seu coração-sentia quase remorsos daquele amor, que era, ainda assim, a compensação do que sofria.
O pai... coitado!... O pai, vendo-a ali perto dele, com a fronte pendida sobre a costura, enxugando à pressa alguma lágrima rebelde, insurgia-se, umas vezes contra o frenético desejo de a enlaçar nos braços, de a devorar com beijos, de lhe pedir perdão para o seu egoísmo, e sentia, outras vezes, satânicas tentações de destruir quem lhe roubara o coração, O amor daquela filha, que era tão dele, que lhe recordava a esposa que tanto amara; aquela filha que se tornara para ele o único pretexto para viver, o único ser, que, para ele, povoava o mundo.
O doutor, além da parte que tomava no sofrer daqueles dois entes, que se acostumara a considerar como família própria, tinha amarguras especiais.
Tinha a animar o pobre Eduardo, que ora se expandia em queixumes contra o pai de Carolina e contra a crueldade do destino, ora caía num desalento, numa atonia, que inspiravam ainda mais cuidado ao santo velho do que as violências da idade e do sentimento que lhes dava causa.








210
A "Veloz" chegara, e o infeliz namorado via-se, por necessidade e dever, obrigado a partir, sem levar consigo um raio de esperança para lhe iluminar as trevas da ausência.
E, infelizmente, o doutor, que entendia das moléstias de alma mais, talvez, do que das do corpo, sondara o coração do velho amigo, e conhecera que era cedo para poder extirpar o cancro que o roía.
Uma noite, tenebrosa e medonha, achavam-se pai e filha sós na sala que já conhecemos.
Nenhum deles se atrevia a quebrar o silêncio.
O velho ergueu-se por fim, aproximou-se da mesa, pegou no castiçal e ia a aproximar a vela da chama do candeeiro, a cuja luz a filha trabalhava, quando, de repente, o pousou e pôs-se como que a escutar algum ruído que vinha da praia.
Parece que a filha também algum ouvira, porque parou de trabalhar e imitou a acção do pai.
Pouco tardou que ouvissem gritos de socorro.
O capitão correu à janela e abriu-a.
A praia formigava de gente, brandindo archotes, e do centro da multidão erguiam-se, plangentes, os gritos aflitivos das mulheres.
Era uma noite horrenda! O vento soprava irado; o trovão estalava nos ares, como a gargalhada irónica e jubilosa do génio do mal, esperando breve a aniquilação do mundo; a luz alvacenta do raio, serpeando no espaço, iluminava o mar, transformado em montanhas de água e

211
abismos sem fundo e, ora despenhando-se do cimo dessas montanhas no fundo desses abismos, ora arremessado das profundezas destes para o topo daquelas, distinguia-se um casco de navio, troncados os mastros e perdido o leme, mísera péla daquele jogo de invisíveis Titãs!
E quando o vento amainava e o mar se retraía, como que suspendendo a respiração, para poder de novo resfolegar com mais força, ouvia-se ténue, como o chorar de uma criança, entre aqueles rumores dos elementos, o brado angustiado de vinte homens!
Carolina, -que seguira o pai à janela, retirou deslumbrada pelo raio, e caiu de joelhos, implorando a Deus a vida daqueles desgraçados.
O pai, ágil como se tivera vinte anos, pegou no chapéu e correu para a praia.
Era ainda mais horrível o quadro, quando o embarcadiço chegou junto da multidão, que se agitava condoída e aflita.
As mulheres gritavam e carpiam-se; os moços mordiam os lábios, tentando cerrar os ouvidos à voz íntima que os incitava ao perigo; os velhos abanavam a cabeça, como quem julgava inútil qualquer temeridade.
De repente, um relâmpago mais vivo iluminou os ares e o pélago, e ouviu-se uma voz enérgica bradar:
- Eia, filhos!... O casco -deu no banco!... Ainda é possível valer-lhes!...
Era o nosso velho amigo quem assim falava.




212
Nem uma voz respondeu ao convite!
À luz trémula e fantástica dos archotes, distinguiam-se, é verdade, ardentes olhares, que animavam rostos ainda jovens e se cruzavam, para logo se evitarem, como que receosos de se compreenderem.
Ainda assim ninguém falou, ou se alguém o fez, foi-lhe a voz abafada pelos brados de horror, vibrados por cem lábios de mulher, como um protesto contra a tentação oferecida aos maridos e aos filhos.
Não era o nosso capitão homem que se deixasse turbar por aqueles gritos, sobretudo agora, que havia uma probabilidade de resgatar a vida àqueles desgraçados.
Reforçando a voz e adaptando o gesto ao dizer, era realmente belo, naquele momento, o vulto do velho!
Com os olhos competindo em fulgores com os relâmpagos que rasgavam o céu; com o rosto, já de si rubro de indignação, incendiado pelo clarão avermelhado dos archotes, parecia que aquele ousado coração de marinheiro tentava comunicar o seu ardor aos corações que o cercavam, e dos quais raros se poderiam, com justiça, denominar cobardes!
-Já vejo -exclamou ele por fim com uma inflexão, em que a cólera e o desprezo iam de meias - já vejo que não há um homem!... Já não há marinheiros!... Os que existem... estão, como eu, desarvorados e metem água por todos





213
os lados!... Fomos os últimos marinheiros desta costa! ... Não há um que deixe um filho que saia a ele!...
Dando, em seguida, à voz a intonação do trovão e o acento de irresistível apelo, prosseguiu:
- Vamos nós a eles, meus velhos!... Anda daí, Pedro!... Anda tu, Francisco!... Piores as passaram vocês comigo, rapazes!... Vá, Manuel!... Vamos a -eles, meus velhos! Vamos mostrar a esses maricas o que eram os marinheiros do nosso tempo!...
Era para ver como aqueles rostos, sulcados de rugas e curtidos pela água de todos os mares, se transformavam pouco e pouco, deixando ver, em vez da expressão de resignado desalento, a luz do mal extinto fogo da juventude!
Todos aqueles lábios iam a descerrar-se, uníssonos, num brado de unânime assentimento, quando uma voz vibrante e varonil bradou de entre a turba:
-Alto! que isso é connosco!... Ainda aqui há gente!
E a multidão afastou-se cedendo passagem a um homem, que não tardou a achar-se em frente do capitão.
Era uma destas simpáticas figuras de marinheiro, como há tantas nas nossas povoações da costa.
Alto e robusto, com os crespos cabelos negros, sujeitos por uma carapuça vermelha, lia-se-lhe nos olhos a suprema audácia que dá a



214
consciência da própria força e que, no momento do perigo, transforma o homem em herói.
A camisa, alagada pela chuva, colava-se-lhe ao corpo, desenhando-lhe uns músculos que dariam que pensar a Hércules.
Ao chegar em frente -do nosso velho amigo, tirou a carapuça e exclamou em voz que se esforçava por tornar serena:
- Não é preciso chamar os velhos, Senhor Capitão!... graças a Deus ainda há rapazes, e aqui está um!... -prosseguiu ele, batendo com força no peito. - E como eu são todos!... Não é verdade, rapazes?... Vamos a eles, marinheiros!... Quem sabe?... Hoje por vós, amanhã por nós!... Vamos lá, rapazes!
- Vamos lá! -bradaram em coro vinte vozes fortes e entusiásticas.
O capitão cingiu nos braços o corpo do marinheiro, e exclamou:
- Bravo! rapazes!
Voltando-se em seguida para os jovens marítimos, continuou:
- À catraia, filhos!... à catraia!
E já se dirigia para o mar, quando o marinheiro que desafrontara os camaradas lhe travou do braço, dizendo:
- Alto!... Nós vamos, mas o Senhor Capitão fica.
O velho recuou e, cravando no mancebo olhos de desafio, perguntou:
-Quem diz que fico?




215
- Digo eu... - respondeu o outro com voz firme. - Connosco vai quem primeiro se ofereceu... ainda o navio não estava onde está... Connosco vai o capitão da "Veloz", que é rapaz também.
A semelhante resposta, o embarcadiço soltou uma imprecação de raiva suprema, e ia, talvez, arremessar-se num ímpeto de furor sobre o marinheiro, quando se sentiu cingir pelo pescoço, e ouviu a meiga voz da filha, que lhe dizia:
-Meu pai!
Este desligou-se dos braços da filha, quase sufocado pela cólera.
Ninguém imagina a luta que se lhe travara na alma! Sempre aquele homem!... sempre! No coração da filha, como no ânimo daqueles valentes, via-se suplantado por ele!
Enquanto o capitão se debatia, gritavam os voluntários daquela perigosa empresa:
-Ó da "Veloz"!... Ó Sr. Eduardo!
-Pronto! - exclamou ao longe uma voz.
E, pouco depois, chegava Eduardo arfando de cansaço e trazendo ao ombro um molho de cordas e croques de ferro.
Ao vê-lo assim carregado o velho sentiu-se corar de pejo. Eduardo não se esquecera de quanto era preciso para assegurar o êxito da empresa. O ancião era mais uma vez vencido pelo jovem - em prudência!
-Pronto, rapazes!... - exclamou de novo Eduardo.
De repente, porém, vendo Carolina trémula



216
e pálida agarrada ao braço do pai, o mancebo hesitou e fitou na pobre menina olhos de cruel angústia.
Só então conhecera a extensão do sacrifício que ia fazer!
Se a não tornava a ver?... Se a sua morte ia causar a morte dela?!...
O velho percebeu-lhe a hesitação, e, atravessando-lhe ao mesmo tempo o espírito o receio de que a filha não resistiria à morte do mancebo, desprendeu-se dela e dirigindo-se em voz suplicante -aos marinheiros, balbuciou:
-Perdoem, rapazes!... Eu não os quis desfeitear... Mal por mal, morra quem já para pouco serve... Vou eu com vocês, filhos!
Ouvindo estas palavras, Eduardo lançou um derradeiro olhar à jovem, e correu para a catraia, gritando:
- Vamos, rapazes!...
Os marinheiros seguiram-no e ia a imitá-los o velho, soltando uma blasfémia, quando ouviu bradar:
- Olha que matas a filha, desalmado!
O pobre pai estacou no meio da carreira e, voltando-se, viu a filha sem acordo nos braços do doutor.
Correndo para o grupo, o capitão respondeu ao amigo em voz de inexcedível aflição:
-Não sou eu que a mato, não!... É ele! - e, erguendo a filha nos braços, deitou a correr para casa.



217
A cena que o leitor acaba de ler, passou-se em menos tempo do que o preciso para lha narrar.
VII
São passadas vinte e quatro horas depois da cena aflitiva da praia.
É noite.
Num pequeno quarto forrado de papel, representando flores, com a janela resguardada por uma cortina de cassa branca, jaz sobre o leito a pobre Carolina, que parece nesse instante descansar.
O candeeiro derrama ténue luz, dando melancólico aspecto ao pequeno recinto, testemunha das passadas alegrias e recentes aflições da jovem.
Sentado numa cadeira ao pé do leito, com a face encostada à mão esquerda, ao passo que com a direita lhe consulta o pulso, vê-se o nosso doutor, vigilante enfermeiro da afilhada.
De pé, no vão da janela, e meio encoberto pelas cortinas, o angustiado pai espera que o doutor erga a cabeça, para lhe ler no rosto o estado da filha.
Levantando-se por fim, o doutor dirigiu-se nas pontas dos pés para o capitão e balbuciou:
- Está sossegadita... Isto vai bem... vai bem!...
E, levando o dedo aos lábios como que a recomendar-lhe



218
o máximo silêncio, o doutor fez sinal ao amigo para que o seguisse e, caminhando sempre cautelosamente, saíram os dois do quarto para -a sala próxima.
Deixando a porta entreaberta para poder ouvir o mínimo rumor que partisse do quarto da doente, o doutor sentou-se e, fazendo sinal ao amigo para que fizesse o mesmo, tirou a caixa de rapé e tomou uma extenssíssima pitada.
Ao cabo de alguns minutos, e vendo que o doutor se não resolvia a falar, perguntou-lhe o capitão em voz trémula:
- Então?... Estará livre de perigo?...
- Está... - respondeu, sem hesitar, o médico.
- Mas isto afinal que é?!... Tanto tempo sem sentidos!... -insistiu o pai.
-Foi uma crise nervosa... forte!...
- E isto voltará?... - perguntou o capitão a medo.
- Hum!... Havendo cautela... Não se afligindo... Nestas coisas o -que é preciso é sossego... muito sossego! Andando o espírito tranquilo... Não havendo coisa que a mortifique, que a traga sobressaltada... estou que não haverá novidade!... Que este ataque foi de respeito!... Poucos tenho visto assim!... - continuou o médico.
E, tirando o relógio, viu as horas que eram, entrou no quarto da doente, curvou-se para ela, e, reconhecendo que continuava a dormir sossegada, veio ter com o amigo e disse-lhe:

219
- Eu vou-me deitar na tua cama... Se for preciso alguma coisa, chama-me... Em todo o caso deixa-a dormir quanto ela quiser!...
O capitão fez um gesto de assentimento e, metendo a cabeça entre as mãos, ficou-se ali a cismar.
Passado tempo, parecendo-lhe que ouvira gemer a filha, foi pé ante pé verificar se ela dormia, e, vendo-a sossegada, sentou-se aos pés do leito, com os olhos rasos de água, fitos no rosto da jovem.
Tempo esquecido a esteve ele assim contemplando, até que ela, abrindo os olhos, os lançou em roda, e, vendo o pai, perguntou ansiosamente:
-O Eduardo?!...
O capitão levou as mãos ao peito, ergueu-se e, beijando a filha, fez um esforço e murmurou:
- Está salvo e bom... Dorme, filha... sossega, que está salvo!
Duas grossas lágrimas, saltando dos olhos do pai, caíram sobre o rosto da filha, e esta, conhecendo só então quem lhe dissipara o terror, balbuciou a palavra - perdão - e, voltando-se para a parede, escondeu o rosto nas dobras da roupa.
O ancião ergueu as mãos e os olhos para o céu com expressão de infindo reconhecimento por aquele indício das melhoras da filha, e tornou a sentar-se aos pés da cama.
Foi nessa posição que primeiro o dia e depois o doutor o vieram encontrar.





220
VIII
Quando o médico saiu de casa do capitão, a primeira pessoa que encontrou ao dobrar uma esquina, foi Eduardo.
Minto, não foi ele; foi, ao parecer, a sombra dele, tão desmaiado estava.
O mancebo trazia o braço esquerdo ao peito, mas não era isso, nem a fadiga da noite anterior àquela, que assim lhe havia desfeito o semblante e cavado os olhos.
Não!... O que lhe dava aquele aspecto era a horrível ansiedade que o minava, era a cruel incerteza em que vivia, do estado de Carolina.
A todas as hipóteses que lhe pululavam no cérebro febricitante, o mancebo só encontrava em si uma solução: "Se morre, mato-me!"
Desde que voltara da sua perigosa expedição e soubera da doença da jovem, Eduardo vivia alheio a tudo!
os louvores unânimes dos companheiros da empresa, as bênçãos dos náufragos, que à perícia dele deviam a vida, o respeito dos colegas e o conceito dos velhos, encontravam-no indiferente!
Trinta horas antes-arriscara a vida e partira um braço para salvar desconhecidos... Imagine-se, por isto, do que seria capaz para prolongar, por uma hora que fosse, a vida daquela para quem queria viver!



221
O doutor compreendeu imediatamente que Eduardo passara a noite a vigiar a casa do capitão e sentiu-se comovido.
Assoando-se ruidosamente, para encobrir com o lenço duas lágrimas de enternecimento, e engrossando a voz, aparentemente por irado, mas realmente para desfazer o nó que se lhe formara na garganta, o velho exclamou, dirigindo-se ao mancebo:
-Tu que andas por aqui a fazer, grandessíssimo pedaço-de-asno?!... Eu não te disse que não mexesses com esse braço, e que não saísses da cama?... Hem?...
-Não falemos nisso... - atalhou Eduardo, com um gesto de indiferença. - Diga-me... como está ela?...
-Falemos, sim... -disse o doutor.
Não prosseguiu, porém, porque o mancebo o interrompeu com voz de amolecer pedras:
-Fale-me dela, doutor!... Por quem é! ... Deixe-se do mais!... Diga-me como ela está!...
Era preciso ser mau para ficar surdo àquela voz, e o nosso doutor era a bondade em pessoa.
Dali até casa -de Eduardo, onde o doutor entrou e ficou até o ver despido e deitado na cama, teve o velho de repetir dúzias de vezes quanto se passara, os cuidados que o estado de Carolina lhe havia dado, o como estava livre de perigo, o tempo que seria preciso para completo restabelecimento e, sobretudo, a certeza de que o ataque se não repetiria!
222
Decididamente o doutor era o bode expiatório daqueles amores!
Arrostava os maus humores do amigo, sofria dos sofrimentos da afilhada e aturava, a pé firme, a chuva de perguntas e as confidências do namorado!
Pois acreditem os leitores... Eu quero ouvir, no Parlamento, um discurso de quatro horas acerca de finanças, bem recheado de dados estatísticos, e apimentado por lugares-comuns a respeito da necessidade da reforma das pautas, e não quero aturar dez minutos um namorado bem namorado, em ele entrando a enumerar as perfeições, e a exaltar a inteligência DELA!
Pois se ele tem com a gente a confiança precisa para apoiar as asserções com documentos, e tira do bolso o maço de cartas, que o não larga nunca?!...
Isso então é que são elas!... Atura um homem ali, a pé quedo, a leitura daquele volume inédito, interrompido, apenas, pelas anotações que o leitor julga precisas, para melhor compreensão de algum ponto menos claro, e que prende, quase sempre, com algum facto unicamente sabido dos interessados -atura-se tudo isso e... não é sequer permitido o desafogo de lhe dizer no fim: "Essa mulher é tola!" quando é isso o que, muitas vezes, se depreende da leitura!
Há, entre outros, três assuntos, dos quais eu peço sempre a Deus que me livre, e são: batalhas contadas por veterano que já se não lembra




223
delas -proezas de caçadores e, sobretudo -confidências de namorados.
Deixemos, porém, divagações mal cabidas.
Oito dias depois destes acontecimentos, exigia o doutor que Carolina se levantasse da cama para ensaiar forças, e obrigava o pai da doente a acompanhá-lo num curto passeio ao ar livre, que aquela reclusão forçada tornara necessário.
só depois de mil objecções, e de um sem-número de recomendações à criada para que nem um só instante abandonasse a doente, consentiu o capitão em fazer a vontade ao amigo.
O acaso, ou a malícia do doutor, fez com que eles seguissem exactamente o mesmo caminho que haviam tomado no dia em que o capitão manifestara terminantemente a sua oposição aos amores da filha.
O capitão, porém, é que não era o mesmo homem.
Aquela angustiosa noite em que ele julgara a filha perdida, as meditações profundas em que gastara as longas horas de vigília durante as noites seguintes, e o receio da repetição dos ataques, possível, no dizer do médico, se provocada por qualquer sofrimento moral, tudo isso tinha contribuído para acabrunhar aquela natureza de ferro.
O cabelo tinha-se-lhe quase todo embranquecido, o profundo vinco traçado entre os sobrolhos e que, em geral, exprime a força de vontade, estava quase desfeito, ao passo que as rugas horizontais,





224


cavadas, quase sempre, pelo trabalho do cérebro, quando pesa os prós e os contras de uma ideia e lhe procura a solução, se desenhavam fundas na testa.
Nas faces pendentes, na boca entreaberta e deprimida aos cantos, nos olhos amortecidos, no andar lento e incerto, em vão se procuraria o vigor e a vida que faziam do honrado marítimo
E tipo enérgico e dominador, que na horrível cena da praia achara em si o calor preciso para incendiar as almas de jovens e velhos que o ouviam, a ponto de os forçara desprezarem a morte.
Caminharam calados os dois amigos.
O capitão mirava a areia da praia, e o médico estudava-o a ele com aqueles olhinhos finos e maliciosos que lhe conhecemos.
Eram uns olhos como não há outros, os daquele doutor.
O marítimo a esconder o que lhe ia lá dentro,
e ele a ler tudo como em livro aberto!
O capitão a não querer começar o diálogo, e o médico, seguindo velha táctica, à espera que ele se pronunciasse!
Não era o primeiro para competir em malícia com o segundo... Cedeu.
- Então... decididamente... o ataque não se repete!...
- Homem... Quem sabe?!... - respondeu o doutor.
-Mas então... a ti parece-te?... - continuou
o marítimo.

225
-A mim não me parece nada... -acudiu o outro. - Aquilo às vezes é o diabo!... Volta quando menos se espera.
Estabeleceu-se de novo o silêncio entre os dois.
Passado tempo balbuciou o marítimo:
-Dizias tu o outro dia, doutor, que aquilo o que queria... era... descanso... sossego...
-De espírito -.acrescentou o médico, acentuando as sílabas, e fazendo com a cabeça um sinal de assentimento.
Houve novo intervalo, após o qual disse o capitão:
-É o diabo!... Sossego!... Uma zanga, uma aflição... qualquer nada as causa!... Vá lá a gente evitar uma destas!...
-Evita-se o mais que se pode-redarguiu o doutor, acentuando de novo as palavras.
- Evita-se!... Evita-se!... Lá vem um dia em que se não pode evitar! -respondeu o outro.
O doutor teve pena do amigo. Conheceu que se o não auxiliasse, nunca ele teria a coragem precisa para se abrir com ele; deteve-o pelo braço e, obrigando-o a fitá-lo em cheio, disse-lhe brandamente:
- Ora anda, Matos!... Desembucha, homem!... Diz para aí o que te está a ralar lá por dentro, senão digo eu!... Queres que diga?... Vá lá!... O que tu estás a pensar é que a pequena não sossega enquanto não casar com o Eduardo... Ora diz, não é isto?...
226
Por única resposta, o velho marinheiro abraçou-se no amigo e assim quedou, chorando, por largo espaço.
O médico, igualmente comovido a lágrimas, sentia-se presa de uma tosse seca, que o acometia sempre em semelhantes lances, e dizia apenas de tempos a tempos:
-. Então, Matos... então!... Está bem, homem!... Basta!... Então! casar não é morrer!
- Morro eu, Francisco!... - respondeu o marítimo, largando o amigo. -Morro eu, ali - continuou ele, apontando com a mão para a casa, que se avistava ao longe.-Ali... só... como um cão!...
-Mas para que hás-de tu ficar só, homem de Deus?!... Vai viver com eles!
- Nada!... Isso não!... Quem casa, quer casa... -replicou o velho, fiel às antigas usanças.
- É uma tolice!... -observou o médico, encolhendo os ombros.
-Será, mas isso... não!... Lá viver com eles... não! -insistiu o outro.
Calaram-se os dois e retrocederam para casa do capitão.
Eram bem diferentes, naquele momento, as ideias que povoavam a mente de cada um deles!
Se o marítimo proferisse o que ia pensando, ouvir-se-ia:
"Arrumou!... É preciso!... Os pais para que vêm a este mundo?... Para sofrerem pelos filhos!...

227
E para mais nada!... Anda a gente a criá-los... a enfeitá-los... a matar-se por eles e... lá vem um dia... e... adeus!... Passa por lá muito bem!... Se é rapaz... vai para o Brasil e por lá fica, ou... assenta praça e quando volta... está o pai na cova, ou casa e... não faz caso do pai!...
Se é rapariga... é o mesmo! Cuida um homem que tem quem o trate e lhe feche os olhos e... aparece um boneco... um diabo... um fraca-roupa, e leva-lha e... aí fica o pobre velho só!
Vá lá! ... Tem de ser... E enfim... podia escolher pior!... O rapaz é... um marinheiro às -direitas!... Arrumou!... Tem de ser... seja!... Não digo já ... mais tarde... daqui por um ano... ou dois... "
Pelo seu lado, o doutor regozijava-se, esperando que estavam vencidas as dificuldades, e ficou, portanto, de orelha baixa, quando, chegando à porta e perguntando ao amigo se podia dar esperanças ao rapaz, só recebeu em resposta um breve: "Por ora... não!"
IX
Já vimos em que disposição de espírito estava o capitão, entrando em casa. A muito rogar da filha, consentiu ele em ir descansar!... Coitado!
Prevendo que não poderia adormecer, sentou-se




228
à banca. Era uma destas secretárias antigas, cheias de gavetas e escaninhos.
Estavam ali arquivados todos os documentos precisos para escrever a história do laborioso e honrado marinheiro!
Recibos, títulos de dívida, velhos livros de carga, cartas de fretamento, carteiras de lembranças, conhecimentos, maços de cartas devidamente cotadas -tudo ali tinha o seu lugar reservado, especial.
O capitão percorreu com a vista todas essas velhas testemunhas do seu passado; puxou para si alguns papéis, que procurava, para de novo os afastar, e continuou a olhar indeciso, alheio a tudo, para todos aqueles objectos, sem se resolver a começar tarefa.
A mão, por fim, ergueu-se de novo, o dedo indicador carregou numa pequena mola de segredo e uma tabuinha, embutida entre duas gavetas, cedeu, deixando ver um falso cheio de papéis.
Era o segredo do capitão. A mão introduziu-se na cavidade e retirou-se, apertando entre os dedos um maço de cartas e uma caixinha de veludo encarnado.
O velho contemplou aqueles objectos com inexprimível melancolia, e duas grossas lágrimas, desprendendo-se, rolaram-lhe vagarosamente pelas faces e vieram esconder-se na espessa barba.
Depois de visível hesitação, abriu a caixa e, colocando-a sobre a secretária, encostou a cabeça à mão direita e permaneceu absorto a contemplar

229
as feições de uma miniatura pintada sobre marfim.
Era o retrato dela, da esposa que Deus lhe levara, da mãe dessa filha adorada que queria agora deixá-lo.
Ao cabo de longo espaço de tempo, a mão desatou a fita verde que ligava o maço das cartas, e, pegando numa destas, desdobrou-a.
O capitão leu-a, maquinalmente ao princípio, com visível interesse à medida que ia continuando.
Lida essa, passou a outra e em seguida ao resto.
Quando terminou tinha o rosto banhado em pranto.
- É sempre assim!... - murmurou ele, e, apoiando os cotovelos no bordo da secretária, enlaçou as mãos e descansou nelas a cabeça, povoada por mil ideias diversas.
Passado um quarto de hora, quando se arrancou àquele íntimo e doloroso meditar, lia-se-lhe no rosto uma resolução irrevogável.
Abriu uma pasta, de onde tirou uma folha de papel, em que escreveu apenas uma linha; em seguida dobrou-a e fechou-a junto com o maço de cartas, que de novo atara dentro de outra folha de papel almaço e lacrou o embrulho. . .
. Meia hora depois, quem colasse o ouvido à porta do quarto, onde já se não via luz, ouviria, de vez em quando, o som de um suspiro.



230 Feliz quem não conhece as torturas de uma noite de insónias, causada por horríveis tormentos morais.
O sol da manhã seguinte veio achar fora da cama o matinal embarcadiço.
À hora do almoço, -a filha, que pela primeira vez voltava à mesa, parou assustada, quando, ao entrar na sala, examinou -o rosto demudado do pai.
Pareceu-lhe que havia nos olhos deste tão desusada expressão de resignada dor, havia tanta ternura e bondade na voz do velho, quando lhe disse: "Deus te abençoe" que sentiu uma espécie de remorso, lembrando-se que era ela a causa dos sofrimentos do pai.
Ao levantar-se da mesa, o velho tirou do bolso o embrulho, que de véspera o vimos lacrar, e disse, entregando-o à filha:
-Manda isso ao padrinho.
Duas horas depois desta cena, batia este à porta.
Mal entrou, foi direito ao amigo e, abraçando-o, balbuciou com voz profundamente comovida:
-Tu tens uma nobre alma, filho!...
Depondo, em seguida, sobre a mesa as cartas que o capitão lhe mandara, tornou a sair, enxugando os olhos marejados de pranto.
As cartas que o capitão enviara ao doutor, eram as que recebera da esposa antes do seu casamento.




231
Leu-as o médico, e tudo compreendeu.
As primeiras eram alegres e descuidadas; a essas seguiam-se outras, que exprimiam o receio da oposição paterna; vinham por fim as últimas, acusando o pai de desamor e crueldade...
Quando chegara à última, o capitão ficara, como dissemos, entregue a profundas meditações, até que, tomando uma resolução, escrevera apenas ao amigo: "O rapaz que venha quando quiser... " e enviara o bilhete junto com as cartas da esposa, deixando à penetração do doutor o descobrir a causa da mudança do seu modo de pensar.
O pobre pai sujeitava-se a tudo, menos... às acusações da filha!
compreendera o império do amor, a justiça da sentença: "pelo escolhido do teu coração, deixarás pai e mãe", e por isso o ouvimos dizer: "É sempre assim!"
Quando o capitão desembrulhou as cartas, feriram-lhe a vista estas palavras que o doutor traçara num bocado de papel e juntara ao maço,
em forma de rótulo: "LIÇÕES DO PASSADO!"
X
Os leitores, casados, lembram-se da noite em que pela primeira vez lhes foi permitido apresentarem-se, como pretendentes, em casa da escolhida do seu coração?
Se se lembram hão-de confessar que não têm





232
tido outra !de tão intenso prazer, mas também de tão profundo enleio.
O coração a transbordar de amor, a mente a fantasiar futuros, os olhos a enxergarem tudo cor-de-rosa, os lábios retendo a custo tudo quanto desejariam dizer-lhe a ela, que está ali, de olhos baixos, com as faces rubras de pejo e o coração a arfar entre assustado e jubiloso e... a dois passos, o futuro sogro conversando com algum amigo em tom constrangido, que procura tornar natural, parecendo não ver nem ouvir coisa alguma, mas vendo e ouvindo tudo... Ora digam... Haverá coisa que possa tornar a posição de qualquer mais agradável e ao mesmo tempo mais incómoda?!...
Há novidade em casa -do Senhor Capitão Matos!...
As janelas traem desusado luxo de iluminação.
Se entrássemos!... Entremos!
Sentada no sofá a nossa simpática Carolina escuta, mirando o chão, e sem saber o uso que há-de fazer das mãos, as frases entrecortadas de Eduardo.
Este... vê-se que quer falar e não pode; mas, se os lábios perderam a eloquência, que verbosidade no olhar!
Animados e brilhantes os olhos de Eduardo riem, choram, pedem, prometem, juram e agradecem; os de Carolina permanecem baixos.

233
É um diálogo em que Eduardo pergunta com a vista, e em que as faces de Carolina respondem com sorrisos e rubores.
No vão de uma das janelas conversam, de costas para a praia, o capitão e o doutor.
O primeiro escuta distraído, o segundo fala com desusada volubilidade, recheando os dizeres de perguntas e argumentos, fatalmente terminados por um: "Percebes?"
Vê-se que o fim do doutor é chamar para si toda a atenção do amigo, e fazer persuadir os jovens de que ninguém dá fé do que eles estão dizendo.
Era um santo aquele doutor!
-Mas que diabo tens tu ido fazer á cidade? -perguntou o médico, agarrando um botão do casaco do velho marinheiro.
-Tinha umas voltas a dar... -respondeu este distraidamente.
E, tirando o relógio, acrescentou baixinho: -Olha que são onze horas!
-Ora adeus!... Não pode ser! Isso anda
adiantado por força!... Pergunta ali àqueles se
já pode ser tão tarde!
-Pois é por isso mesmo... -acrescentou o outro no mesmo tom.-Se lhes não lembrarem que são horas de retirar, ficam-se ali pasmados até amanhã... Dá tu o sinal, anda... - continuou ele por entre dentes.
O doutor murmurou: "Vá lá! ... " e, voltando-se para os dois, exclamou jovialmente:

234

- Olé! ó senhores namorados!... Não sei se sabem que já são onze horas!... Ora pois!... Deixem ficar alguma coisa para amanhã!... Lembrem-se que têm toda a vida adiante de si para conversar!...
Carolina ainda mais vermelha se tornou, e Eduardo, erguendo-se, respondeu com sincero espanto:
- Já onze horas!... Não pensei que fosse tão tarde!
-Nem eu... - disse Carolina timidamente.
O doutor, voltando-se então para o amigo, exclamou, soltando estrondosa gargalhada:
- Ouves, Matos?... Eu não -to disse?!... Vê lá se eles achavam tarde!
Minutos depois, despedia-se o doutor na companhia de Eduardo.
Desde casa do capitão até à do médico, teve este que responder mais de vinte vezes à seguinte pergunta do mancebo:
- Amanhã vamos mais cedinho, sim, doutor?!
E sabe o leitor o que Eduardo foi fazer depois que o médico fechou a porta e o deixou na rua?...
Voltou para defronte da casa de Carolina!
Parecia-lhe impossível que ela não tornasse a abrir a janela e, nessa doce esperança, vagueou inutilmente por aqueles sítios ainda mais de uma hora!
Decorreram quinze dias, ou antes quinze noites, pois os nossos namorados só consideravam




235
tempo útil, propriamente dito, as horas que passavam juntos.
Em particular, já por mais de uma vez quisera o doutor que o amigo pesasse com ele os prós e os contras de se efectuar o casamento antes ou depois da viagem da "Veloz", que pouco podia já demorar-se no porto; o capitão, porém, tinha-se sempre esquivado à resposta.
o pobre Eduardo é que vivia, por assim dizer, suspenso.
Atormentava-se com a ideia de adiar o casamento para depois da sua volta, e apertava-se-lhe o coração, lembrando-se que, logo dias depois de casado, se veria forçado a despedir-se da esposa.
Carolina não emitia opinião; ao primeiro alvitre... anuviava-se-lhe o rosto, ao segundo!... arrasavam-se-lhe os olhos de pranto.
Quanto ao doutor, era de voto que o casamento se realizasse depois da viagem.
No que todos concordavam era que Eduardo não podia, sem quebra do cumprimento dos seus deveres, deixar de ir no navio como capitão.
O nosso herói, o único capaz de cortar aquele nó górdio, esse não dizia palavra, o que mais delicada e crítica tornava a decisão.
Esta abstenção do velho marítimo tornou necessária uma conspiração entre os três.
Resolveu-se que, na presença dos dois interessados, fosse ele directamente interpelado pelo doutor e forçado a responder categoricamente.




236
Uma noite, pois, estando todos quatro reunidos, e tendo os três conspiradores trocado entre si um olhar de inteligência, perguntou o doutor, aparentando indiferença:
- É verdade, ó Eduardo... Quando sai a "Veloz?"
-Deve sair daqui por quinze dias... - respondeu o mancebo - Já!... Pensei que se demorasse mais...
E, voltando-se para o amigo, continuou:
-Ouves, ó Matos?... Vê lá, que é preciso decidir por uma vez quando hás-de amarrar estas duas crianças!
O velho retorceu a suíça, tirou o lenço do bolso, assoou-se e respondeu em voz que traía mal disfarçada emoção:
Pode-se tratar disso...
-Então vê lá!... Vê lá ... se há-de ser antes ou depois da viagem da "Veloz"... que a mim parece-me...
O velho não concluiu, porque pé de Eduardo, adiantando-se um pouco, foi ferir um calo, que era o martírio do infeliz senhorio de tão incómodo inquilino.
Eduardo sabia que o doutor opinava pelo adiamento.
Imagine-se, porém, o espanto de todos, quando o capitão, erguendo-se, respondeu sem hesitar:
- Há-de ser antes... Os papéis de Carolina estão prontos, e já arranjei dispensa dos banhos.
Depois de alguns instantes concedidos ao espanto


237
causado por tão inesperada revelação, o doutor ergueu-se igualmente e exclamou:
- Sim, senhor!... Aí está o que eu chamo um homem expedito!... Pão pão, queijo queijo!... Mas-continuou ele, pondo o calo fora do alcance do pé de Eduardo-não seria melhor deixar isso para depois... para a volta?... Não sei que me parece casarem eles, por exemplo, hoje, para se separarem logo no dia seguinte! Pensem bem!... -acrescentou o doutor, relanceando os olhos para os três.
-Neste mundo tudo se remedeia - observou filosoficamente o capitão, entrando a passear com as mãos atrás das costas.
Novo pasmo dos ouvintes! O médico, não sabendo que pensar de tão súbita resolução, sentia tentações de tomar o pulso ao amigo com receio de que este estivesse doente.
-Essa agora!... - disse o doutor, estendendo o lábio inferior e encolhendo os ombros, como quem não compreende. - Tu, decerto, não queres que a pequena vá de piloto?...
- Não, decerto... - respondeu o embarcadiço, que não pôde reprimir um sorriso.
- E não queres também, decerto, que o Eduardo torne a deixar sair o navio sem ir nele?-perguntou o doutor num tom de quem não esperava que o velho admitisse semelhante hipótese.
-Se isso partisse dele, não aprovava, mas... O caso é outro... A "Veloz" tem capitão novo.









238
Eduardo ergueu-se de um salto, como se fora mordido.
Com os olhos cintilantes e as faces rubras de indignação, o mancebo perguntou com mal contida explosão de cólera:
-Tem capitão novo?... Por que fui eu demitido sem ao menos mo dizerem?!... E... e... quem
vai de capitão?...
- Vou eu - respondeu singelamente o velho embarcadiço, sem interromper o passeio.
- Vai... vai o senhor?!... o senhor!... Ó meu pai! - exclamou Eduardo, abraçando o velho.
Não é possível descrever a cena que se seguiu.
Carolina, envergonhada do seu primeiro movimento, que foi de prazer egoísta, correu para o pai, formando com ele e Eduardo um grupo, em que sobressaía a cabeça grisalha do velho, mostrando no rosto a impaciência e comoção que lhe causava aquele duplo abraço.
Ouvindo a frase: " Ó meu pai! " proferida pelo mancebo num rapto de sentida gratidão, o dedicado marítimo sentira violenta luta dentro do peito.
O coração era-lhe, a um tempo, presa da má vontade, que ainda de todo não fora senhor de vencer, e de um sentimento de inexplicável prazer, causado pela certeza de que o mancebo lhe dedicava, naquele instante, verdadeiro amor de filho.
Quem, contudo, metia dó, era o doutor!
O bom do homem em vão se assoava ruidosamente,

239

e tentava livrar-se do maldito pigarro que o incomodava!... em vão!...
Os olhos davam-lhe lágrimas, que ele não queria, e os lábios negavam-lhe as palavras que ele procurava!
O santo homem bem desejava parecer mau, bem se esforçava para ralhar!
Vendo que não conseguia o seu intento, deixou correr as lágrimas, e, lançando os braços em volta do pescoço do companheiro de infância, balbuciou:
- Não pode ser, meu velho!... Não consinto!... Não pode ser!
- Cala-te, homem! - murmurou o capitão ao ouvido do doutor. - Cala-te!... É melhor assim!... Só o mar me pode minorar a falta da filha!... Deixa-me ir que é melhor!
O médico ainda quis protestar, Eduardo também tentou reagir, Carolina, chorosa e contristada, beijava as mãos do pai, balbuciando a custo:
-Isso não, meu pai!... Isso não!...
O capitão, porém, foi inabalável.
- Está decidido! - disse ele em tom que não admitia réplica. - O capitão da "Veloz" sou eu! ... Então vocês que querem?... sou um egoísta! ... Tinha saudades do mar... Andava com minhas cócegas de fazer uma viagem antes de dar à costa... Sozinha... não te deixava - continuou ele, dirigindo-se à filha.-Vais casar... não te faço falta... chegou a ocasião... mato as saudades!...
240
Ora aí está!... O capitão da "Veloz" sou eu!
-Então -perguntou o doutor-papéis... e dispensas de banhos... e substituição de capitão... era isso que te fazia ir tantas vezes à cidade?...
-Nem mais, meu velho! -exclamou quase alegremente o embarcadiço, erguendo o médico nos robustos braços e tornando a depô-lo no chão.
E o doutor, voltando o rosto para esconder as teimosas lágrimas, murmurava baixinho, apertando convulsivamente as mãos:
-Pobre pai!... pobre velho!...
A que vinham as lamentações do doutor?!... Não ouviu dizer ao capitão que era um egoísta... que andava morto por matar as saudades que tinha do mar?!...
Tudo aquilo era egoísmo!... Bem se conhecia e... bem o disse ele!...
Pobre pai!... pobre velho!
XI
Eu não quero obrigar os leitores a acompanhar-me, passo a passo, até à realização do casamento de Carolina e Eduardo.
Era um verdadeiro casamento de amor; faltavam-lhe portanto as ridículas e repugnantíssimas cenas, inseparáveis destas escrituras, em que






241
as partes contratantes se esquecem de que vão unir para todo o sempre a existência e se entrincheiram, cada qual sobre si, por detrás das argúcias e seguranças das leis.
Não havia nada disso!
Por parte de Carolina - havia o pai, que dava tudo quanto devia ao seu trabalho e quanto a esposa trouxera para o casal; por parte de Eduardo - entrava tudo quanto herdara de seus pais e quanto esperava auferir do trabalho.
Nada mais simples e que menos pudesse dar lugar a negociações.
Ao casamento assistiram apenas o embarcadiço e o doutor.
Quando, terminada a cerimónia, a filha lhe veio beijar a mão, o pai conservou-a estreitada contra o seio, por largo espaço de tempo, balbuciando a custo por entre lágrimas:
-Deus te abençoe!... Sê como esposa, o que tens sido como filha!
Apertando, em seguida, energicamente, a mão do genro, o velho disse-lhe em voz grave e solene:
- Lembre-se do que acaba de prometer!... Faça-a feliz!... Faça com que ela nunca tenha saudades da casa do pai!
Carolina acompanhou o marido; o capitão foi caminho de casa com o doutor; mas, chegando à porta, abraçou-se no amigo e exclamou, chorando como uma criança:
-Não posso! ... Não entro!... Não fico aqui só!... Não quero!...
242


- Ó homem! - observou o médico. - Não seja essa a dúvida!... Anda para minha casa... anda!... Anda daí, homem!
O capitão seguiu-o sem dizer palavra.
Até alta noite se conservaram os dois velhos amigos, juntos, no quarto de trabalho do médico.
Este fingia ler, fazendo esforços sobre-humanos para afugentar o sono, enquanto que o marítimo passeava cabisbaixo, torcendo, segundo o costume, a suíça espessa e grisalha.
Horas depois, antes de amanhecer, saía o capitão de casa do amigo sem o acordar e dirigia-se à cidade.
Seriam nove horas da manhã, diziam na praia os velhos embarcadiços depois de terem passado o óculo de mão em mão:
- Decididamente... aquela é a "Veloz"!...
A notícia correu de boca em boca, e, minutos depois, à janela da casa de Eduardo, via-se Carolina, ora agitando o lenço, ora enxugando a ele as lágrimas, com a fronte pousada sobre o ombro do marido, corresponder assim às ondulações de um outro lenço que lhe acenava do mar.
E, por detrás dos dois noivos, o nosso amigo doutor fazia prodígios para parecer zangado e murmurava:
- Enganou-me... a mim!... Pobre velho!... pobre Matos!
O capitão conseguira do armador que a "Veloz"
243
saísse três dias antes do anunciado para a partida.
Duvidara da sua coragem e conseguira assim furtar-se às cruelíssimas emoções da despedida.
Deixemos, por pouco, os felizes noivos, que têm, para lhes adoçar as agruras da saudade, o dulcíssimo mel da esplêndida lua que ilumina os primeiros tempos que se seguem ao casamento, e acompanhemos o nosso herói no seu voluntário exílio.
Quando a terra e as casas começaram a tornar-se pequenas, a ponto de mal se distinguirem; quando os olhos do capitão se negaram a reconhecer a modesta morada, onde vira raiar tantos dias de felicidade e desventura, o velho deixou-se cair sobre um banco com a fronte pendida sobre o peito.
Enquanto pudera ver o lenço branco da filha, voando nos ares como um mensageiro de saudades, concentrara no alvo e franzino retalho de cambraia todas as suas atenções.
Aquele (lenço era a casa paterna, que lhe dizia: "Espero-te!"; era a voz da filha, que lhe bradava: "Amo-te!"; era a pátria, que lhe gritava: "Volta!"; era tudo quanto o solitário velho amava, que lhe dizia: "Choramos-te!"
Afinal, o abençoado lenço confundira-se com o ar, a terra tornara-se névoa, e o ancião, investigando com o seu olhar de marinheiro o espaço, acabara por ver apenas o céu, onde o sol parecia rir das miseráveis dores dos homens, e o



244
mar, que repelia de si a chuva de diamantes, que o mesmo sol lhe atirava.
Ali ficaria o embarcadiço entregue às suas cogitações, se não viesse arrancá-lo a elas a voz submissa do piloto, que vinha reclamar as ordens do chefe.
Vexado por ter sido chamado ao cumprimento dos seus deveres, o capitão, sacudindo a fronte, como se pudesse arremessar do cérebro os pensamentos que o perseguiam, ergueu-se e, desde então, nunca mais pôde alguém ver nele outro que não fosse o verdadeiro homem do mar, o pai e juiz dos seus marinheiros, o amigo e protector dos passageiros entregues à sua prudência.
Se o vissem, porém, sozinho, fazendo o quarto da meia-noite, bem outro o -teriam visto!
Abraçando o céu com a vista, o velho perguntava às estrelas em qual delas os seus olhos se poderiam encontrar com os da filha!
Se o vento soprava do norte, lembrava-se o velho -de que talvez ele tivesse roçado, na passagem, os formosos cabelos da jovem, e talvez mesmo que a gota de água que lhe caíra na face, fosse uma lágrima bebida nos olhos da sua Carolina.
E, se o trovão bramia, se o raio rasgava o espaço, se o vento em furor fazia ranger os mastros e sibilava nos cabos, se o mar, galgando de salto a proa, se retirava de novo, fugindo por todas as saídas que encontrava, enquanto os passageiros oravam e os marinheiros se calavam,

245
um sorriso, quase alegre, vinha iluminar o rosto do embarcadiço, ao lembrar-se de que, nessas noites, era ele, e só ele, quem ocupava o coração e o espírito da filha!
Quem há aí que, tendo embarcado, não tenha passado uma noite no convés, com o coração todo saudades, a mente toda perguntas!? ...
"Que estarão eles a fazer a esta hora? ... Estarão a falar de mim?!... Minha mãe... essa está com certeza a pedir a Deus que me proteja!... A estas horas... que estarão eles a fazer? ... "
E as perguntas sucedem-se no espírito, e a memória começa a construir o viver íntimo, os hábitos do lar paterno, o emprego das horas passadas em família, tudo quanto nos é indiferente, quando o gozamos, e por que tanto choramos quando ausentes.
Aos leitores, que conhecem o exclusivismo daquele amor de pai, -de que por assim dizer vivia o capitão, escusado é dizer que eram estes os seus devaneios de todos os instantes.
Quando resolvera fazer aquela viagem, imaginara que seria apenas de ida e volta, e empreendera-a para se acostumar a não ver constantemente a filha; era, por assim dizer, um remédio heróico contra as saudades.
Infelizmente, porém, se o homem põe, Deus dispõe; e foi isso o que aconteceu.
Escrupuloso no cumprimento dos seus deveres, e julgando do seu brio e dignidade não ceder o comando do navio senão nas mãos do armador
246
e no porto de onde saíra, o capitão viu, por uma série de fretamentos sucessivos, prolongada por perto de três anos a ausência que êle sempre calculara de quatro ou, o máximo, de cinco meses.
Junte-se a isto a irregularidade e demora das notícias, e imagine-se o sofrimento do honrado marítimo.
Quando ele, porém, cuidou de endoidecer e esteve a ponto de transigir com a voz que o chamava de casa, foi quando recebeu em New York a notícia de que tinha mais um ser a amar, de que tinha um neto!
Ter um neto e não o conhecer, não o poder abraçar, beijar, estragar com mimos!... Haverá destino mais cruel?!...
Desde então tomaram novo rumo as ideias do capitão.
O embarcadiço encurtava as horas de quarto, talhando por mil formas o porvir do neto.
Um dia - dia feliz! - recebeu por fim o capitão ordem de carregar com direcção à pátria.
Nunca a viagem lhe pareceu tão longa!... Quando o vento, retesando as velas, ameaçava arrebatá-las, parecia-lhe a ele que estava em calmaria podre e mandava largar mais pano!
Surgiu, finalmente, a seus olhos a terra da promissão, e o pobre velho parecia doido de contente!
Lá estava ela... a sua casinha, com as janelas abertas.





247

- O óculo... venha o óculo depressa!... Ó coração, que te partes!... são eles!... E eles lá estão!... são eles!... Lá estão os lenços!... É o Eduardo!... É o doutor!... Mas ela!... a minha filha!... porque se retirou?... onde foi?... Ah! ela aí vem!... Foi buscar o filho... o meu neto!... o meu querido neto!
E o velho chorava, e corria a abraçar os passageiros, e volvia a fitar a casa, de onde tudo lhe sorria e o chamava!
Horas depois, gozava o maior prazer que é dado aos homens experimentar -apertava contra o peito os seres que amava.
Quando o velho, porém, cuidou morrer de alegria, foi quando, erguendo o neto, este lhe cingiu o pescoço com os bracinhos e lhe chamou "avô" entre dois beijos!
XII
São passados dois anos.
O sol tinge o céu de todas as cores do prisma, e o oceano parece dormir, sussurrando em sonhos promessas e ameaças.
Nos degraus da porta de uma modesta casinha, vê-se um grupo de pessoas. São todas conhecidas; estamos em terra de amigos!
Sentada na pedra, Carolina provoca o sorriso de uma menina de seis meses, roçando-lhe os lábios com o dedo.



248
No degrau abaixo Eduardo e o doutor, também sentados, conversam sorrindo e analisando o velho embarcadiço, que tenta reprimir a impaciência do neto; o pequeno não pode compreender que o avô precise de tanto tempo para acabar o escaler que está talhando.
- Ó Matos! - disse de repente o doutor. - Quantos botes tens tu feito já esta semana?!...
- Quatro! - gritou o pequeno, respondendo pelo avô.
- É isso, é!... são quatro- confirmou este. - Mas olha que este é o último!... vê lá se o quebras!
-Já faz hoje cinco anos que casámos!... - disse Carolina, sorrindo amorosamente para o marido.
- É verdade! - exclamaram todos - cinco anos!...
- Olhe lá... ó pai! - disse jovialmente Eduardo. - Nunca lho quis perguntar; mas... agora que estamos todos juntos, diga-me... porque embirrava o pai comigo?!...
O capitão corou e não respondeu.
- Digo-to eu! - exclamou, rindo, o doutor. - Embirrava contigo e ainda hoje embirraria, se não fosse aquele traquinas! - acrescentou ele, apontando para o pequeno, que estava experimentando o bote numa poça. - Teu sogro... tinha ciúmes!... e... para ciúmes de pai... só cegueiras de avô!

O CRUZEIRO DA VIA-SACRA
I
QUEM hoje percorrer Portugal, e muito especialmente a nossa província do Minho, poderá presenciar milhares de cenas idênticas à que vamos descrever, se bem que esta há bons vinte anos que se passava numa das aldeias vizinhas de Braga.
Então, como hoje, rara seria a família que não chorasse a ausência de um filho levado ao Brasil pela ambição, ou antes, pela vista dessas casas forradas de azulejos, que hoje se contam por centenas, já orlando as estradas do Minho, já olhando para elas -do alto de uma rua ensaibrada, coberta pela folha verde da viçosa parreira, através das grades de vistoso portão de ferro.
Então, como hoje, no Brasil, nesse país a um tempo Capitólio e Tarpeia, deserto e terra da promissão, mãe e madrasta de tantos felizes, e
250
ainda de maior número de infelizes, filhos desta velha terra portuguesa, então, como hoje, repito, grassava com cruelíssimo furor a febre-amarela, terrível nivelador, que não conhece jerarquias e vai ferindo às cegas.
Quem então, como hoje, nos serões de Inverno, colasse o ouvido à porta de qualquer das modestas casas em que se visse brilhar a mortiça luz da candeia, ouviria, depois da coroa, botada pela voz sonora do lavrador e rezada em coro pelo resto da família, uma enfiada de orações por vivos e falecidos, e por "tôdolos que andam por soblas águas do mar", e o que, com toda a certeza, havia de ouvir era a salve-rainha, que a voz do lavrador gradualmente tornada mais trémula oferecia "à Virgem Mãe Santíssima, para que pedisse ao seu divino e amado Filho que desse vida e saúde" ao Manuel, Pedro, Paulo, Sancho ou Martinho, por quem sangravam os corações ali reunidos. Deixemos, porém, estas divagações e descrevamos o quadro, tal qual nos lembrámos de o ter visto.
Estamos em casa de um modesto lavrador. A dona da casa, mulher dos seus quarenta anos, que os cuidados e trabalhos fazem parecer mais velha, tenta, agachada sobre o lar, acender um punhado de carqueja, e sopra inutilmente sobre algumas brasas quase extintas. A carqueja vai ardendo; mas, em vez de chama, apenas produz fumo, que obriga a pobre mulher a enxugar os olhos a miúdo.
251
Sentado no chão e quase nu, um pequenito de onze meses, que, se não tivesse a carita tão suja, faria lembrar os anjos louros e carnudos de Rubens, ri e baba-se de gosto, puxando os cabelos emaranhados de outro diabrete de nove anos, que, deitado de bruços no chão, em frente dele, lhe está fazendo cócegas nas pernas.
A um canto, numa cadeira, a que serraram os pés, metida entre uma arca enorme e a parede, vê-se uma pobre velha cega e surda. Se não fora um sorriso travesso, filho destes sonhos que iluminam de repente, como ténue raio de sol, o cérebro dos velhos e o das crianças, e vêem, de espaço a espaço, reflectir-se-lhes no rosto, julgá-la-ia morta.
Via-se que a dona da casa, em que já falámos, além da impaciência que lhe causava a má vontade -do lume, tinha alguma ideia que a afligia.
-Vai ver se teu pai vem, Joaquim-disse ela, erguendo a cabeça, ao ver por fim brotar a chama, e introduzir-se, brincando, por entre a carqueja.
-Já com esta faz quatro vezes! -rosnou o pequeno, levantando-se, pouco satisfeito, de ao pé do irmãozito.
Mal tinha, porém, transposto a porta, voltou-se para dentro, dizendo:
- Ele lá vem, minha mãe!
Viu-se que o primeiro impulso desta foi correr; de repente, porém, parou; em seguida caminhou
252
a passos lentos para a porta e encostou-se à umbreira.
Não é possível descrever as mil sensações que vinham espeolhar-se-lhe no rosto!... Esperança e medo, ansiedade e desânimo, tudo isso traíam à porfia os olhos, que brilhavam para logo se empanarem de lágrimas, as rugas que o medo traçara na fronte e que a esperança desfazia, os lábios, que ora tremiam, ora se cerravam, como que obedecendo a uma resolução tomada mentalmente. Apenas o marido chegou a alcance da voz, bradou-lhe ela:
- Não há nada?
Mas como ela disse aquilo! Não sabia a gente se era pergunta, se dúvida, se afirmativa. Havia de tudo isso na inflexão.
-Há, há, mulher! Descansa; não traz obreia preta! - respondeu-lhe o marido, dissipando desta forma o receio principal que havia tanto tempo os trazia com a morte na alma.
A pobre mãe levou primeiro as mãos ao peito, como que receosa de que o coração lhe estalasse; depois, erguendo-as e cravando no céu olhos de inexcedível gratidão, exclamou:
-Louvado seja o Senhor.
E as lágrimas, esse sangue destilado que mana de uma chaga sempre viva no coração das mães, rolavam-lhe quatro a quatro pelas faces, zombando da ponta do avental com -que ela tentava estancá-las.
A nossa gente do campo é, em geral, para
253
poucas expansões. Sentem bem, mas exprimem mal. Ainda assim, quando o marido chegou à porta, a mulher não teve mão em si que lhe não lançasse os braços em volta do pescoço, dando então livre curso ao pranto.
- Então que é isso... que é lá isso, mulher?... Tens-me andado sempre a animar, e hoje, que a obreia vermelha nos diz que o rapaz está fero e de saúde, pões-te para aí a chorar como uma criança!... Cara alegre, mulher!... Bota-me esse coração ao largo!... Jesus, Senhor!... - continuou ele, tirando-se dos braços da mulher. - Lembrar-me eu que meu pai-Deus te tenha lá! -me não mandou aprender a ler, e que, por isso, trago eu aqui uma carta de meu filho e tanto faz isso como nada, pois, se não fosse o bocadinho da hóstia vermelha, ainda agora estaria para saber se o meu António ,é vivo ou morto!... Anda cá, ó Joaquim, anda cá ler esta carta, meu homem!...
Lembrando-se, porém, de repente da ceguinha, chegou-se a ela, tirou o chapéu, e, beijando-lhe a mão, gritou-lhe ao ouvido:
- A sua bênção, minha mãe... Temos aqui uma carta do seu neto, do nosso António!...
-Está bem, está bem... -respondeu a velha, de cujo coração a esponja do tempo tinha apagado todas as imagens.
-Vamos a isto, Joaquim, vamos a isto!exclamou por fim o lavrador, febril de ansiedade.




254
II
Acabava o feliz pai de dizer isto, quando, do lado da porta, se ouviu uma voz que dizia:
-Ora louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo... Dá licença, vizinho?
O lavrador voltou-se, meio contrariado; reconhecendo, porém, o recém-chegado, reprimiu o gesto de impaciência e respondeu:
- É vossemecê, Sr. José? Pode entrar... Trouxe da cidade carta do nosso António, e íamos ver o que ele diz... E o seu Francisco?... Não escreveu?...
-Não - redarguiu o outro com voz sombria.
- Pois então... escute -disse o dono da casa, que compreendeu imediatamente os tormentos que ralavam, naquele instante, o coração do vizinho. - Escute... Os rapazes foram no mesmo navio e recomendados à mesma pessoa, e então... pode ser que o meu António fale no seu Francisco.
A cena que eu vou desenhar, faria a felicidade de um pintor!
No seu cantinho e indiferente a tudo, a cega; sentada numa rasa de medir o milho, curvada para diante, com as mãos apertadas entre os joelhos, toda ouvidos, toda lágrimas e risos, a mãe do ausente; sentada na arca, com as mãos fincadas nas costas de uma cadeira de pinho, pálida
255
de comoção, com os olhos cerrados para esconder o pranto, o lavrador; encostado à umbreira da porta, triste e sombrio, indiferente aos sentimentos dos outros, e quase que acusando o filho do lavrador por não falar do dele, que nem sequer pedira a alguém para lhe escrever, o vizinho; e, formando centro, alvo de todos os olhos, encanto de todos os ouvidos, senhor de distribuir o sol ou a chuva a todos aqueles corações, o pequeno, que, ora só sobre um pé, ora coçando a cabeça, lá vai silabando a preciosa mensageira de boas novas.
Dizia a carta... o que dizem todas as primeiras cartas de uma criança que se vê longe dos seus. Contava que tinha chegado a salvamento; que o Senhor Capitão o tratara muito bem; que tinha sido perfeitamente recebido ~e que o senhor da casa, onde estava, lhe tinha dito que ficava com ele. Acrescentava que estranhara muito as comidas; que não se podia acostumar a ver tantos pretos; e aqui começavam as letras apagadas a denunciar as lágrimas de quem as traçara, porque, logo em seguida, principiava o rosário das saudades e das recordações, os beijos para a mãe e para a avó, o pedido da bênção do pai, as recomendações ao Joaquim para não bater no Pastor, cão de guarda da casa, todas estas pequeninas coisas, em que o coração se deleita, quando a saudade o estorce. Afinal em "post-scriptum" lá vinha que o patrão não sabia como havia de arrumar o Francisco, por ele




256
não saber ler, e acrescentava que este lhe pedira para escrever por ele, mas que não tivera tempo para isso, e, portanto, que dissesse o pai ao Sr. José que o filho estava com saúde e lhe mandava muitas lembranças.
Quando se chegou a este período, o vizinho franziu o sobrolho e disse:
-Teve que fazer!... teve preguiça... é o que foi.
- Pode ser-retorquiu o lavrador, ferido no seu orgulho de pai. - Pode ser, mas... a culpa é sua, Sr. José. Se vossemecê tivesse feito como eu e mandasse o Francisco à lição, já ele não precisava do meu filho.
-Melhor sorte lhe dará Deus!... nem nós lá vamos tão depressa!... -respondeu o outro. -Lá porque o seu António sabe ler, não se segue que o meu Francisco venha a precisar das sopas dele! -insistiu o pai, despeitado, envenenando de propósito o sentido das palavras do vizinho. - E, demais - prosseguiu ele - as mãos não servem só para escrever!... Haja saúde e vontade de trabalhar, que aqui estamos nós, que temos ganho a nossa vida sem ter aprendido a ler!
- Não me torça o bico ao prego, Sr. José!... Vossemecê não seja ruim!... Ninguém lhe disse que o seu Francisco viesse a precisar das sopas do meu António!... Isso é vontade de pegar! - redarguiu o lavrador, reagindo contra a má interpretação do que dissera.
257
- Está bom, está bom! - atalhou a mulher, assustada pelo aspecto que a conversa ia tomando.
-Não é com essas! -insistiu o vizinho. - Eu bem sei onde vossemecê quer chegar... Tem graça!... Lá porque o menino sabe ler, já aí há-de vir para o ano, feito brasileiro, e, quando Deus quer, traz o meu Francisco como criado dele!... Tem graça!
- Bem, bem... Vossemecê tem desculpa... Não teve carta do rapaz... entende que o meu António tinha obrigação de escrever... não dá desconto às coisas... Acabou-se!... Pense lá o que quiser! - replicou o lavrador, encolhendo os ombros, mas visivelmente impaciente.
- Penso, sim senhor! - retorquiu o Sr. José, irritado pela afectada bonomia do vizinho. - Penso que a racha sai a acha!
- Vossemecê que quer dizer? -perguntou o lavrador, apertando convulsivamente a cadeira a que estava fincado.
-Quero dizer, que filho de peixe sabe nadar!
-Mas que quer dizer isso? - perguntou o
lavrador, saltando abaixo da arca.
- Quer dizer que, neste mundo, é preciso saber levar a água ao seu moinho... Ora o meu Francisco... não sabe... não sabe fazer mesuras; só sabe trabalhar... Aí está o que lhe faz falta... mais do que não saber ler nem escrever... Já ao pai lhe tem sucedido o mesmo... O António teve
258
melhor mestre... Lá isso teve! -acrescentou o Sr. José, dirigindo-se para a porta.
-Alto! - bradou o lavrador, estorvando-lhe a passagem. - Vossemecê não sai daqui sem explicar o que quer dizer na sua!
- Quero dizer - replicou o outro, dando largas à bílis - quero dizer que foi vossemecê quem, pela feira de Março, ficou com os bois que eu já tinha apalavrados!
-Sr. José, eu já lhe disse que não sabia que vossemecê queria os bois, e logo então lhos ofereci pelo custo! -exclamou o lavrador, dorido da injustiça.
-Nem que eles fossem de ouro!... - replicou -o Sr. José desdenhosamente. - Eu não preciso das migalhas de ninguém!... Mas é melhor calar-me... -continuou, dirigindo-se para a porta. - Ainda há mais do que isso...
- Então que mais há? - exclamou arrebatadamente o acusado.
-Quem traz hoje de renda o campo da Valeira?... E quem o trazia antes?... Não é vossemecê?... Não era eu? - perguntou, rubro de cólera, o acusador.
- Sr. José - redarguiu o lavrador, exasperado - vossemecê bem sabe que foi pelos dares e tomares que teve com o António da Quinta, que este lhe não tornou a arrendar o campo... Que mal havia em que eu o arrendasse, uma vez que lho não arrendavam a si?... Tenha vergonha!... Não seja invejoso!
/

259
-Pois não seja vossemecê intriguista! - replicou o outro violentamente.
- Vossemecê não me faça perder a cabeça! -vociferou o lavrador, agarrando maquinalmente a cadeira e mexendo-a com mão nervosa.
- Perder a cabeça, o quê?... - perguntou o Sr. José, entre irónico e ameaçador. - Esteja quedo com a cadeira, homem!... Olhe que eu nunca morri de medo, nem vossemecê é homem que me meta medo, louvado Deus!
- Saia! - exclamou o dono da casa, brandindo a cadeira.
A mulher agarrou-se-lhe ao braço, sem se importar com as vozes de "deixa-me, mulher! deixa- me!", a que ela respondia pedindo ao marido que se não deitasse a perder.
Neste meio-tempo o outro saíra, e desafiava o vizinho a que fosse, lá fora, dar-lhe com a cadeira. A mulher correu então à porta e fechou-a; mas ficou aterrada, por o vizinho rosnar, ao retirar-se:
-Deixa que tu paga-las todas juntas!
E assim se anuviaram tantas alegrias!
O lavrador passeava agitado, com a testa franzida e as mãos atrás -das costas; a mulher lidava nos arranjos do jantar, lançando de vez em quando olhares furtivos para o marido, enquanto que o pequeno, que lera a carta, calado e quieto, pela primeira vez na sua vida interrogava alternativamente o rosto do pai e o da mãe, perguntando a si próprio se teria por acaso




alguma culpa em tudo aquilo. E, alheios ao que se passava, o pequenito, com um dedo na boca, tentava pôr-se a pé, agarrando-se -com a mão livre à saia da cega, ao passo que esta continuava a perseguir em sonho uma recordação do passado ou visão do futuro, pois o presente nada lhe dizia já.
III
Ao leitor, bondoso e bem-intencionado, deve ter-lhe custado -a compreender que um homem -um pai! - angustiado pela incerteza, pelo receio do flagelo que semeara o luto no seio de tantas famílias, só encontrasse ironias, ouvindo ler uma carta que lhe retirava de sobre o peito o enorme peso da dúvida... Aí vai a explicação:
Se, quando ouvimos uma frase que nos ofende, pudéssemos ler no coração de quem a profere, veríamos muitas vezes lá dentro tanta amargura e tão intenso sofrer, lutas tão tremendas, chagas tão vivas e fundas, tão dolorosas contusões de amor-próprio e mal fechadas cicatrizes de reais ou supostos agravos, que, longe de repelirmos a frase com aspereza, talvez só encontrássemos em nós profunda e sincera compaixão pelo ofensor! E, demais, quem pode prever o alcance da primeira palavra que nos sai dos lábios?!... Haverá quem não conheça o efeito dessa embriaguez da palavra, embriaguez mais poderosa, exaltada
261
e terrível em seus efeitos do que a causada por outro qualquer agente?!... O som da própria voz é uma espécie de aguilhão, que nos excita, que nos arrasta, que nos aplaude, que nos grita aos ouvidos:
"Bem, muito bem! Continua! ... "
O mau é soltar a primeira palavra; solta ela, vem a necessidade da justificação, a recordação de todos os pecados velhos, a ânsia da desforra, o choque violento das más paixões, o obscurecimento da razão, e - vai-se sempre mais longe do que se queria ir.
~O Sr. José, mestre carpinteiro, não era o que vulgarmente se chama um homem de maus fígados. Não era! tinha apenas essas fumaças de valente, desgraçada mania da nossa gente do Minho, que tanto tem dado que fazer aos cirurgiões e sobretudo aos endireitas.
O pior defeito, porém, do mestre carpinteiro era o espírito de contradição, que quase se poderia dizer que se havia encarnado nele. Em alguém dizendo: "Acolá vai um gato branco", era contar que ele só via um gato preto! E era contar que o gato nunca mais se tornava a lavar e ficava preto para todo o sempre, pois ali estava ele, o Sr. José, pronto para sustentar a murro, a pau e a tiro, entre as paredes de uma cadeia ou pregado numa cruz, que era preto o gato e não branco, como toda a gente dizia. Este desgraçado vício tinha-lhe sido causa de um sem-número de desgostos, o mais severo dos




262
quais vamos contar, por prender directamente com esta narração.
António, o filho do lavrador, era cerca de um ano mais velho do que Francisco, filho do carpinteiro. Inteligente e estudioso, no fim de um ano de escola, não havia aí livro impresso, nem, o que mais era, sentença manuscrita, que o pequeno não lesse, como se costuma dizer, de fio a pavio. Uma noite em que o carpinteiro estava em casa do lavrador, este, com a santa e respeitável vaidade dos pais, chamou o filho e fê-lo ler meia dúzia de páginas do Catecismo, para o vizinho ouvir. Durante a leitura entrou o Francisco e foi sentar-se ao pé do pai. Quando o rapazito acabou de ler, virou-se o dono da casa para o vizinho e perguntou-lhe:
-Que lhe parece?... Olhe que, a não ser o Senhor Abade e o mestre-escola, não há aí quem leia melhor do que ele!
O Sr. José, por deferência para com a mania querida, esteve quase a dizer que o rapaz não sabia ler; conteve-se, porém, e rosnou um "lê bem" pouco animador. O lavrador, agarrando então uma das orelhas do filho do carpinteiro, perguntou-lhe, .gracejando:
- E tu, meu rapagão, não queres saber ler como o António?... Diz ao teu pai que te mande à lição, meu rapaz... Olha que candeia que vai adiante, alumia duas vezes, e, quanto mais depressa souberes, melhor será para ti.
Aqui entendeu o Sr. José que era chegada a
263
ocasião de satisfazer o seu gostinho, e declarou, portanto, que não havia doutorices, como ele chamava ao saber, que valessem um bom par de braços.
Como é fácil de prever, travou-se a discussão, e tanto se deixou ir o Sr. José atrás da paixão de contradizer que, depois de negar as vantagens da instrução, acabou por declarar que filho seu não aprendia a ler.
E se bem o disse, melhor o executou!...
Executou; mas, como não há argumentos de amor-próprio que destruam a rigorosa lógica da razão, que severa punição lhe era, agora que o filho estava longe, pensar que entre eles não poderia haver segredo em que não tivesse parte um terceiro, carícia que não fosse feita por mão de outrem, abraço que recebesse, a não ser por procuração!
Duro castigo!
Quando regressara da cidade sem carta do filho, todas estas ideias lhe haviam lanceado por tal forma o espírito, que, quando chegara a casa do vizinho, já ele mentalmente o tornava culpado do seu infortúnio, e, ao ouvir ler a carta, cujo post-scriptum afirmava que, por causa do signatário dela, ficava ele sem notícias mais íntimas do filho, operou-se-lhe no cérebro uma revolução singularíssima!
O egoísmo teve traças para o convencer de que em virtude da suposta culpa do pai, o filho do vizinho tinha obrigação de ler e escrever pelo
264



dele. Pertencia-lhe metade daquela aptidão; tinha direito a ela; não compreendia que António se recusasse a satisfazer o desejo de Francisco, sem o lesar na sua metade de saber!
Juntem a isto o caso dos bois, e o do campo, e aí está dada a explicação, que consumiu mais tempo e papel do que merecia.
IV
Tinham passado quinze dias depois da ruptura que se dera entre os dois vizinhos. O Sr. José, contra o seu costume, não tinha dado mostras de querer confiar ao marmeleiro, seu advogado usual, a vitória da sua causa, e a mulher do lavrador, a quem as últimas palavras do carpinteiro "deixa que tu paga-las" tinham feito perder o sono, começava a respirar mais livremente, confiando em Deus, que tudo faria pelo melhor.
Amanheceu afinal um dia formoso, e ela, que até ali, já com um pretexto, já com outro, pudera obrigar o homem a não se afastar da aldeia, não pôde achar razões convincentes para o impedir de ir à cidade. E lá foi ele, mas não sem prometer um bom centro de vezes que não voltaria de noite.
Só quem as tem sentido pode avaliar as angústias de quem espera, com a mente povoada de sinistros pressentimentos, a chegada de um

265
ser estremecido, quando paira sobre ele uma ameaça de perigo!
O assobio, que se ouve ao longe, é dele; os passos, que fazem estalar lá fora as folhas secas, são dele; o mocho que pia no campanário da aldeia, o cão da casa uivando dão-no em perigo!
E ninguém com quem desabafar! De um lado a cega imóvel e indiferente, do outro os filhos sorrindo sem preverem nem o perigo nem o alcance dele! E então vêm as razões com que procuramos conjurar o fantasma do terror, restituindo a tranquilidade à nossa alma:
"Teve que fazer na cidade... O carpinteiro é assomado, mas não é mau... Já lhe passou... A estas horas está ele a cear ou... talvez a dormir... "
E aí se vai à porta pela milésima vez; e a vista perturba-se, tentando penetrar as trevas, e começa a ver assassinos escondidos atrás de cada tronco de árvore; e os ouvidos, cansados da aturada atenção, entram -de obedecer à voz interior e distinguem o som de passos precipitados, vozes irritadas, chegando às vezes a inventar gritos de socorro!
Como sofre quem espera sob a influência do terror!
V
Serão oito horas da noite. O céu está recamado de estrelas, mas os corpos não projectam sombras, porque o luar só aparece às nove horas.





266
O sítio incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse, poder-se-iam contar as cruzes que a partir da capela, erecta no cimo do outeiro, se erguem pelo monte abaixo, numa distância de vinte passos de umas às outras.
Numa pequena elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por distinguir o vulto de um homem, sentado, como pau traçado sobre os joelhos. Era o mestre carpinteiro que esperava ali o vizinho, para lhe provar a justiça da sua causa.
Quem lhe pudesse ler no cérebro acharia isto:
"Muito mal... não... Quinze dias de cama é nada mais... Há-de levar a sua dose para não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!"
E tão certo estava de si, que continuava filosoficamente a fumar o cigarro, esperando o lavrador com a pachorra com que um pescador de profissão espera horas até que uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.
Por fim, lá lhe pareceu que ouvia ruído de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto, se achou defronte dele. O lavrador reconheceu-o imediatamente, mas não se deu

267
por achado, e perguntou com voz cuja afectada segurança traía o sobressalto interior: -Quem temos por aqui?
O outro, rindo sarcasticamente, respondeu: - Alguém que vem ver-se você é homem para outro!
- É vossemecê, Sr. José? -redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar saída àquele aperto.
-Um seu criado, para o servir com umas asas de pau!... Pode mandar dizer isto ao seu doutor, a ver o que ele de lá responde! - prosseguiu o carpinteiro.
-Ele que há-de dizer? -retorquiu o lavrador, tentando levá-lo pelo brio. - Há-de dizer que nunca pensou que o Sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e que nem sequer traz um pau, como esse, para se defender.
-Pois dirá... dirá, sim senhor, mas... enganou-se!... Não traz pau?... Faz mal, se bem que nessas mãos, de pouco valia!... Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não vim cá para conversar!
E, fincando um pé um pouco mais atrás, ergueu o pau. O lavrador compreendeu que não havia compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu um salto para diante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmeleiro, e estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou cair o pau, já agora inútil, e




268
arcou com o vizinho, murmurando apenas por entre -os dentes cerrados:
-Ah! cão, que me embaçaste!
Começou então uma luta horrível entre aqueles dois homens, ambos ainda jovens, ambos vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual deles subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que o fez cair de costas, arrastando na queda o seu contrário. Este, aproveitando a vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do inimigo, que espumava de furor, sem exalar um queixume. Não tardou, porém, que uma ideia horrível viesse paralisar o esforço do lavrador. Pareceu-lhe que o vencido tentava meter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe diante dos olhos a imagem da mulher e a orfandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.
Não se enganara. O carpinteiro lembrara-se, de repente, que trazia uma navalha no bolso, e, cego de furor, parecia-lhe ainda pequena vingança a morte daquele homem, que o estava ali estrangulando. Mal o lavrador largou a fugir, levantou-se também e correu atrás dele com a navalha aberta na mão.
Era horrível aquela corrida, a que um era estimulado pelo medo e o outro pelo ódio. O lavrador, porém, além de se ter ferido num joelho, quando rolara por terra abraçado com o carpinteiro, era também mais pesado do que este.
269

Ouvindo atrás de si os passos do inimigo e sentindo-se quase impossibilitado -de tomar fôlego, abandonou-o de todo a energia, e, correndo para o primeiro cruzeiro da via-sacra, abraçou-se com ele, e, voltando o rosto para trás, bradou:
- Pela cruz em que morreu Nosso Senhor, não me mate!
-Também nela morreu o mau ladrão, maroto!... -bramiu o carpinteiro, com os lábios quase colados ao ouvido do desgraçado, e comprimindo-o com a mão esquerda contra a cruz, ao passo que, com a direita, buscava cravar a navalha.
. .
A mão, que se dispunha a embeber o ferro, caiu inerte, e o lavrador, sentindo afrouxar a presa do contrário, deu um salto para o lado, viu-o dar um passo para trás, cambalear e cair de bruços no chão, como atordoado. Depois -de o contemplar um instante, como quem não compreende, lembrou-se da mulher e, como se tivesse criado novas forças, correu em direcção a casa, que ainda ficava a bons vinte minutos dali.
VI
Como o honrado lavrador o conta ainda hoje, nunca o caminho até casa lhe pareceu tão longo nem ele o andou em menos tempo! Quando chegou, ia por tal forma impressionado pelas diferentes

270

peripécias, mas sobretudo pelo desfecho da luta, que, mal entrou, fechou instintivamente a porta da rua à chave e deixou-se cair ofegante numa cadeira.
A mulher, pensando naturalmente que alguém o perseguia, esteve quase a gritar por socorro; deteve-a, porém, a reflexão, e ficou extática e trémula, toda curiosidade e medo, com os olhos cravados no marido, à espera que este se explicasse.
Dominada, por fim, a emoção, correu o lavrador para os filhos, beijando-os freneticamente, e, apertando em seguida a mulher contra o peito, num destes abraços mudos, que tanto dizem, que traem o receio de uma separação eterna, desfeito pelo prazer de tornarmos a ver quem já considerávamos perdido para nós, contou-lhe, afinal, o perigo de que se vira livre por modo tão sobrenatural.
-Olha que foi castigo do Senhor, por ele não respeitar a cruz, quando lhe pediste por ela!... Olha que foi, João!... - exclamou a mulher, ouvindo como o carpinteiro caíra fulminado.
-Foi, mulher... decerto foi... - concordou ele. - E louvado seja Ele, que se lembrou que eu tinha filhos para criar e uma santa, como tu, para me ajudar nesta tarefa!
A mulher, obrigando então o filho mais velho a ajoelhar diante do modesto crucifixo, aos pés do qual ardia a luz -de uma lamparina, elevou

271
a Deus uma destas preces, em acção de graças, mais imponentes na santa singeleza e mudez com que sobem do coração aos lábios, do que o pomposo "Te-Deum" com que a ostentação vaidosa dos grandes costuma julga retribuir qualquer benefício recebido.
Nessa noite, a não ser o pequeno, ninguém tocou na ceia; havia, contudo, o que quer que fosse que embargava a fala dos dois cônjuges e os não deixava erguer da mesa. Conhecia-se que tinham medo de se ir deitar. De tempos a tempos, os olhares de ambos encontravam-se, para logo se esquivarem, como receosos de traírem o que os corações sentiam. Aquele silêncio, porém, aquele constrangimento desusado entre eles, pesava-lhes!
Afinal, a mulher, dando a conhecer o pensamento secreto, balbuciou com voz trémula:
-Mas porque cairia ele?!... Ó João, e se ele está morto ou... para morrer?!...
o marido, fazendo um violento esforço para sair daquela espécie de adormecimento moral, ergueu-se e entrou de passear silencioso.
Após alguns instantes, a mulher, vencendo a natural timidez, perguntou, hesitando:
- Ó João, e... e se tu fosses pedir conselho ao Senhor Abade?... Ele é tão bom homem!...
-Tiveste a minha ideia, mulher!... Vou lá de caminho! - respondeu o lavrador.
E, pegando na espingarda que estava pendurada a um canto, fora do alcance dos filhos,



272
abriu cautelosamente a porta, sondou com a vista as vizinhanças da casa, e partiu, com pé ligeiro e coração pesado, em direcção ao passal.
Seriam dez horas, quando João bateu à porta da casa do abade. Já tudo dormia, de forma que teve de repetir a pancada.
Depois de alguns instantes de espera - os precisos para acender a vela e lançar um capote aos ombros - ergueu-se a meia vidraça da janela e apareceu a cabeça do padre, que perguntava em tom comovido:
- Quem é? Está alguém doente?
-Sou eu, Senhor Abade... e preciso muito falar-lhe... agora mesmo - respondeu o lavrador.
-Pois és tu, João!? -redarguiu o outro com manifesto espanto, reconhecendo a voz do freguês. - Que me queres, homem de Deus?!
-Abra, pelas almas, Senhor Abade! - insistiu João.
-Está bem, filho, está bem... Espera um instantinho que eu vou já abrir-disse o velho, que logo viu -que o assunto era grave.
A porta abriu-se e João entrou. Instantes depois sabia o abade tudo.
Bastava ver o padre uma vez, para se ficar com a certeza de que era um destes justos, que servem para afirmar a existência da virtude na terra, um destes sacerdotes que são uma espécie de bênção para o rebanho confiado ao seu cuidado; não admira, pois, que mulher e marido tivessem tido a mesma ideia. Aquele... era o
273

padre como eu o concebo, e como Deus decerto os ama - pai e juiz, cireneu e confidente.
-Foi a cruz, filho!... Não foi outra coisa! -exclamou ele.-Mas é preciso lá ir, João... Vamos lá ambos... - prosseguiu o velho, a quem assaltara a ideia de que o carpinteiro fora vítima de uma apoplexia causada pela excitação, senão filha da rude carícia da mão do lavrador, quando lhe cingira o pescoço. - Vamos lá, homem... - continuou ele. - Mas, primeiro, põe-me já ali a espingarda naquele canto... Não é precisa...
O abade acabou de vestir-se, e, apoiado a um cajado, pôs-se a caminho, precedido pelo lavrador, a quem entregara um lampião.
Cantavam os galos quando os dois chegaram ao pé do cruzeiro onde caíra -o infeliz adversário do lavrador. Aterrado, e vendando os olhos com a mão esquerda, João estendeu a dextra, que sustentava o lampião, para alumiar o sítio fatal, onde devia jazer o carpinteiro.
Oh! que alívio sentiu, quando o abade, depois de olhar, exclamou:
- Cá não está ninguém!... Tu sonhaste, João! Só então se atreveu este a retirar a mão dos olhos e a fitá-los no chão.
Não tardou que o abade, pegando no lampião para observar o solo, se convencesse de que o seu paroquiano não fora vítima de um sonho.
A primeira coisa que lhe feriu a vista, foi


274

uma poça de sangue coagulad, rente ao tosco
degrau que servia de base ao mal lavrado pedestal do cruzeiro. No meio do sangue jazia uma pedra.
O padre olhou atentamente para ela, e, erguendo em seguida o lampião, viu que o cruzeiro não era, então, mais do que um enorme T de pedra.
Baixando lentamente o braço, o sacerdote murmurou com voz contrita:
-O dedo de Deus!
E ficou por alguns instantes com a fronte pendida sobre o peito.
Saindo, afinal, daquele íntimo cogitar, voltou-se para o lavrador, dizendo:
- Vamos embora, João... Tu vais para casa, e eu, -de lá, vou ver se o infeliz precisa de mim.
- VII
Vejamos agora o que foi feito do carpinteiro.
Quando recuperou os sentidos, não poderia
dizer quanto tempo lhe durara o delíquo. O seu
primeiro movimento foi acudir com a mão à ca
beça e viu que estava ferido. Sentou-se por terra,
diante da cruz, e começou a coordenar as ideias.
Passaram-lhe então, diante dos olhos, todos os
episódios da briga até ao momento em que intervenção estranha o prostrara por terra. Ecoaram-lhe nos ouvidos as preces de piedade, soltas
275

com voz de indizível agonia pelo seu contendor, e acudiu-lhe à mente o cruel sarcasmo com que lhas abafara. Ao chegar a este ponto, ergueu-se, aterrado, e bradou:
-Foi a cruz!... Estou perdido!
Ninguém imagina os tormentos que abalaram então aquela robusta natureza, enérgica no bem como no mal, fiel na crença de Deus e de um mundo futuro, dividido em dois campos -Céu e Inferno!... E o desgraçado viu-se abismado no último pelo insulto feito ao símbolo que dá entrada no primeiro!... Quis rezar e não pôde! Perseguido por uma ideia fixa, com o cérebro enfraquecido pelo sangue que perdera, pôs-se a caminho para casa, mas uma singular coincidência veio reddbrar1lhe o martírio!
Ia alta a Lua a essa hora, de forma que ao longo do caminho que tinha a percorrer até vencer o outeiro da via-sacra, os seus olhos só encontravam cruzes!... Se os erguia... via-as a prumo de vinte em vinte passos; se os baixava... lá estavam traçadas na terra pela projecção da sombra!
O que faz essa outra mais pesada de todas as cruzes - a cruz do remorso!... Que via-sacra!... que horrível subida do Calvário!
Deixara ele, finalmente, atrás de si o outeiro, quando avistou ao longe o lampião dos dois que vinham procurá-lo. Escondeu-se atrás de uma árvore e esperou que passassem.
Que recrudescer de remorso!



276
o seu adversário, o homem que ele duas horas antes quisera matar, em vez de se fazer acompanhar pelo homem da lei, fora bater à porta do homem de Deus; em vez da vingança - o perdão; em vez do -castigo-a absolvição!
Quando chegou a casa e olhou para dentro de si, teve horror de si próprio e caiu de novo sem acordo. O padre, na volta, foi encontrá-lo a debater-se contra os fantasmas que a febre lhe criava e fazia surgir ante os olhos da alma.
VIII
Dois meses teriam decorrido, depois destes acontecimentos. O carpinteiro já se erguia da cama, mas ;ainda não saía à rua, e em casa do lavrador reinava a paz. Um domingo, depois da missa, quando João já ia a retirar-se -com a mulher e o filho, assomou o abade à porta da sacristia e disse com risonho semblante:
- Ó João!... Deixa ir a mulher, mas espera tu, pois preciso de te falar.
A mulher foi indo adiante e ele ficou. Saiu, por fim, o padre e, travando-lhe amigavelmente do braço, disse-lhe:
-Mal tu sabes onde eu te vou levar!
-Eu com o Senhor Abade vou até ao... fim do mundo! -respondeu o lavrador, que se conteve a tempo de não acompanhar o padre ao Inferno.

277


O ancião sorriu com bondosa malícia, por perceber a emenda, e continuou:
-Vá lá! Vou-to dizer!... Nós vamos em romaria à cruz da via-sacra!... Que dizes?
Ao lavrador arrasaram-se-lhe os olhos de água, e por única resposta, apesar da resistência do santo velho, beijou-lhe a mão.
E lá foram os dois.
Imagine, porém, o leitor qual seria a admiração do honrado homem, quando, ao chegar perto do cruzeiro, viu o seu inimigo, o Sr. José em pessoa, de chapéu na mão, contemplando melancolicamente o degrau da cruz onde batera com a cabeça?!...
O rosto pálido e emagrecido mostrava bem os sofrimentos que lhe haviam minado a alma, ainda mais do que o corpo, e o lenço vermelho, que lhe cingia a fronte, indicava que a cicatriz ainda não estava completamente fechada.
João, ao ver o carpinteiro, hesitou, mas a um olhar do padre continuou a andar. Chegados ao teatro da briga, os dois contendores miraram-se em silêncio: da parte do lavrador havia enleio, no carpinteiro percebia-se sincera comoção.
-Então, José!... -disse o padre, dirigindo-se ao último.-Foi para isto que me pediste que trouxesse cá o João?
-Esteja descansado, Senhor Abade... - respondeu o carpinteiro.
E, voltando-se em seguida para o lavrador, disse-lhe:


278
-Vizinho, vossemecê é melhor do que eu... Conheço-o, tenho certeza disso... Quem vai buscar este santo homem, em lugar de trazer o regedor, para levantar do chão quem o quis matar, não é capaz de negar a sua mão a quem lhe pede, por esta cruz que o salvou, que lhe perdoe!...
O lavrador precisou de respirar para poder responder, tanto a emoção lhe tolhia a voz. Apenas, porém, pôde falar, estendeu francamente a mão ao arrependido, dizendo-lhe:
-Não falemos mais nisso, vizinho... O que lá vai, lá vai... Está perdoado!... Se o merecia, bem castigado foi!... Não falemos mais nisso, se é meu amigo!
-Fui castigado e ainda o estou a ser!... - redarguiu o outro, que, entregando uma carta ao padre, continuou: - Senhor Abade, faça favor de ler essa carta do meu Francisco outra vez, mas alto...
Dizia a carta que ele, Francisco, tinha tido a febre-amarela, e que, se escapara, o devia aos cuidados do seu amigo António. Acrescentava ainda que este se recusara desta vez a escrever, dando como desculpa não querer fazer elogios a si próprio, sendo por isso escrita por outro companheiro, e terminava por anunciar ao pai que, como se fora pouco o que por ele fizera, o filho do lavrador o andava ensinando a ler.
Terminada a leitura, o carpinteiro, que se tinha sentado no degrau da cruz com o rosto metido



279

entre as mãos, ergueu-se e disse, com as faces húmidas de pranto:
-Já vê, Sr. João, que o castigo continua!... Cada benefício, que me vem de si ou dos seus, torna mais feia a minha má acção!
-Ainda podia ser pior! - interrompeu o padre.
E, apontando para a cruz derrocada, prosseguiu:
- Dá graças àquela, que não quis que tu fosses a esta hora um assassino!
Ix
O leitor está sentindo lá por dentro um malicioso prazer, imaginando que eu tenho andado a fugir à explicação do mistério-pois é, por enquanto, um mistério a intervenção da cruz na pendência; nem essa intervenção lhe parece ter explicação possível...
Ora enganou-se o leitor!... O verdadeiro, o real explica-se sempre, e este é um conto... que não é um conto: é um facto verdadeiro e acontecido, que o santo abade me explicou com toda a clareza, como vai ver.
A cruz, assente sobre o tosco pedestal, de que já falámos, era formada de três peças: a haste, os braços e o topo.
Em noite de medonho temporal, o fogo do céu baixara-quem sabe se já intencionalmente!...

280


-e, lanhando o resto, cortara o topo da cruz em duas metades desiguais, ficando uma destas inclinada para diante, segura apenas pelas garras de vigorosa hera. Quando o carpinteiro comprimia o inimigo contra a cruz e apontava o ferro para lho cravar, o lavrador, por um movimento convulsivo, puxou com as mãos os ramos da hera, e estes, crestados pelo raio e mortos, cederam, estalando e fazendo cair, uma para cada lado, ias duas metades da pedra que formava o topo da cruz. A metade que pendia amparada pelos ramos, como já anteriormente dissemos, veio então bater na cabeça do carpinteiro, quando este proferia ao ouvido do adversário a sua feroz ironia:
- Também nela morreu o mau ladrão!
. .
Eu estou -daqui a ver o leitor enleado por não saber dar um nome a esta intervenção da modesta cruz da via-sacra... Faça como o padre... e como eu... chame-lhe: O DEDO DE DEUS!


O BERÇO
QUEM é que, depois de quinze dias de chuva, deixa de aproveitar uma formosa manhã de sol?!...
Ninguém!
Ao cabo de uma semana de rigoroso Inverno, atormentava-me a necessidade de movimento, luz, ar, alegria e vida, e saí, por isso, para a rua, logo às primeiras negaças -que o sol se lembrou de me fazer.
O meu espírito - e, neste ponto, julgo-o de acordo com todos os espíritos -acompanha fielmente o barómetro.
Chove e faz frio?... Veste-sede negro, assume
um ar grave, que lhe não é natural, e torna-se
apto para afrontar os encargos mais fastidiosos.
Nessas disposições, não há tarefa árida que
lhe meta medo; folheia autos, digere o código
civil, executa com facilidade e exactidão as quatro operações aritméticas, e não o assusta a obrigação
282
de ler os papéis velhos, que enchem umas poucas de gavetas, até dar com o recibo de uma conta, que inocentemente se lembram de querer cobrar de mim pela segunda vez.
Sobe o barómetro, e ri o sol lá de cima?... Adeus!... Não há meio de me obrigar a prestar atenção a coisa alguma.
Um "sim" ou um "não", se me forçarem a reflectir para o pronunciar, é, naquele estado do meu espírito, a maior das dificuldades.
Eu sei lá se "sim" se "não"!... O que sei é... que o sol está lá fora à minha espera.
O tamanco da aldeã estalando na calçada, o assobio do garoto, o chilrear cínico do pardal -são outras tantas vozes que me chamam, que me anunciam o azul do céu e o calor do sol, e eu não sou homem que resista a tais convites, e saio, e rio, e salto como colegial em férias, e deixo-me guiar pelo acaso, sem destino, para onde as pernas me levam, e só recolho a casa quando o sol me dá as boas-noites -antes é que não!
Depois destas explicações, dizendo eu que andava na rua, já os leitores sabem como o tempo estava.
Era uma destas manhãs de Inverno em que o sol fulge radiante e esplêndido, depois de longa reclusão, como que para convencer os incrédulos de que é dele que nos vem o calor e a luz!
O que eu, porém, ainda não disse, é que apesar



283
de um sem-número de pirraças e traições, creio no sol como na morte!
Quando o feiticeiro me aparece, julgo impossível que me torne a fugir, entrego-me a ele com cega confiança, e, se razão mais prudente do que a minha me aconselha que leve um guarda-sol, indigno-me de que me suponham capaz de repelir um amigo!
O que me tem acontecido mil vezes, graças à minha delicadeza, é ver-me abandonado pelo amigo, quando menos o espero, e acossado pela chuva.
Ora foi isto o que mais uma vez me sucedeu nessa formosa manhã.
Saíra de casa alegre e sem receios e, em meio do caminho, o meu inconstante amigo despediu-se sem cerimónia, puxando para os olhos a gola de um espesso e negro capote de nuvens, e este, que vinha malhado de longa jornada, começou a escorrer sobre a terra.
Passava eu na Rua do Almada, perto do Campo de Santo Ovídio, quando as primeiras gotas começaram a cair.
Não ver o sol e ver a chuva -foi o bastante para se me virar o espírito do avesso.
"Pois apanho-a!... - concluí eu mentalmente. -Onde diabo me hei-de eu meter? ... "
Mandei os olhos adiante em procura de um portal cómodo, e eles, depois de correrem um pouco, estacaram diante de uma casa, a cuja janela flutuava uma bandeira vermelha com a inscrição em letras brancas: "LEILÃO."




284
Hesitei antes de entrar; mas entrei.
Vou agora dizer-lhes porque hesitei.
Hesitei, porque as peripécias de um leilão produzem em mim o mesmo efeito que produzem o cheiro da pólvora e o ardor da refrega no ânimo do recruta. À vista do combate, ou, para melhor dizer, teima dos licitantes, animo-me, impaciento-me, encarno-me num dos contendores, sofro e odeio com ele e estou numa tortura, se noto que o objecto da minha simpatia começa a fraquear!
Chegado a este ponto, se o meu homem cede, abafo um rugido de cólera e, lançando um olhar odiento ao que se julga senhor do campo, murmuro por entre dentes:
"Pois não a levas barata... Deixa estar que eu arranjo-te!..."
E aí começo eu então a fazer tolices, a debater-me como um furioso, até que o leiloeiro deixa cair o martelo e me pergunta com irónica amabilidade:
"O nome do senhor?..."
Dado este primeiro passo, se alguém, consciencioso, se lembra de me fazer notar a asneira, desnorteio, vou para diante e... é contar que, no dia seguinte, tenho em casa, por preço fabuloso, uma feira de objectos, a que não tenho destino a dar!
lá vêem que um homem assim organizado deve fugir de leilões.
Mas... a chuva caía... entrei, depois de exigir

285
de mim próprio a promessa de não comprar coisa alguma!
Subi.
O leilão ainda não tinha começado.
Não sei se o leitor terá assistido, unicamente como espectador, por não ter que fazer, a um leilão?...
Este, que eu presenciei, por assim dizer, contra vontade, era o da mobília de uma casa de gente rica.
Peguei num catálogo...
Era feito o leilão a requerimento dos credores à massa falida de um homem, que morrera, havia pouco, deixando os seus negócios num estado deplorável.
A casa estava atulhada de gente.
Havia de tudo naquela multidão!
No primeiro plano os adeleiros-raça mal
estudada e pouco conhecida-que farejam um
espólio, como os corvos, de longe, as exalações
do cadáver.
Palavreado cínico, olhos -de cobiça, dedos queimados pelo cigarro, com as unhas orladas de negro, uma espécie de instinto, que, à falta de conhecimentos, lhes faz descobrir o quadro de mestre e rejeitara cópia sem valor, o livro clássico entre os apreciáveis como papel de embrulho - eis, em geral, o adeleiro do Porto.
A par destes, via-se, afectando indiferença, o verdadeiro amador, o que, no fim de vinte anos de fadigas e decepções, encontra o que deseja e
286
vê em cada um dos circunstantes um adversário, um maníaco como ele.
Analisando miudamente, com escrúpulo, cruzavam-se os chefes de família, procurando um móvel que as esposas lhes pedem vai em dois anos, e folgavam com a ideia da agradável surpresa que lhes iam causar.
Consultando os magros haveres, mudando de cor a cada instante, noivo simpático, pássaro ansioso por perder a sua liberdade de solteiro, espera -pois está na quadra em que tudo é esperança! - espera que a sua estrela lhe fará ali encontrar parte do que precisa, para guarnecer um Linho digno dos seus amores.
Juntem a todos esses, e a quantos ali estavam para um ou outro fim, os que entraram para ver, por ócio, para fugir, como eu, da chuva, e farão os leitores ideia da gente que ali encontrei.
Em má hora subi!
Tristemente impressionado pela deserção do sol, o meu espírito enegrecera-se, e começara de analisar aquela gente com olhos de má vontade.
O que via... irritava-me, afligia-me, transtornava-me a harmonia dos nervos, obrigava-me a reparos e reflexões, que até então jamais me lembrara de fazer.
Pouco e pouco apoderou-se de mim profunda melancolia, e acabei por considerar aquela casa um templo e aqueles homens outros tantos profanadores!
E era um templo, era!...



287
e eram profanadores!...
É templo, sim, o lar doméstico, onde sob as vistas de Deus, respeitando o próximo, aplaudido pela sua consciência, o chefe de família com a alma cortada de amarguras, com a mente povoada de cuidados, encontra na virilidade do seu coração o sorriso aprovador, que diz ostensivamente à esposa: "És uma boa mãe!", que alenta os filhos na luta da vida; mas que serve, sobretudo, para encobrir uma prece: "Conservai-me, meu Deus, para esta gente, que só me tem a mim para os amparar!
E eram profanadores aqueles homens que calcavam as alcatifas; que pisavam e avaliavam num segundo o que o mísero juntara ao cabo de longos anos de trabalho!
A minha casa!... Quem há aí que não sinta um dulcíssimo prazer ao proferir estas palavras?!
A minha casa!... O cofre onde encerramos quanto nos torna aprazível a existência!
A minha casa!... O lugar onde, se somos solteiros, temos a certeza de encontrar o conselho de um pai, as carícias de nossa mãe, o ouvido de nossos irmãos atentos às nossas confidências, uns poucos de corações animados por um único desejo-a nossa felicidade!
A minha casa!... O reino onde, se casados, exercemos o poder absoluto, mas baseado no amor; onde a esposa nos exige a sua parte de dor em troca das alegrias que nos dá; onde os anjos louros, em que nos vemos renascer, nos



288
dão um pretexto para vivermos, e enchem, com a voz e com o riso, o lar doméstico de cânticos e luz!
A minha casa! - Não!... Esta frase não é vã para ninguém!
O homem que nunca teve família, o solteirão, vê na sua casa o único refúgio onde está à vontade; onde o seu desculpável egoísmo se sente bem; onde não vem procurá-lo o ruído dos males alheios, a ele que neste mundo só julga dignos de lástima os próprios males!
O solitário, o desgraçado que teve família e a viu desaparecer pouco e pouco, esse mesmo! -só está bem em sua casa!
Não há canto, móvel, livro, quadro, que lhe não conte uma história, que lhe não traga aos olhos uma lágrima, filha de um sorriso de outras eras!
Oh! sim!... Eram profanadores aqueles homens que atiravam a ponta -do -cigarro para cima dos tapetes da sala, onde a esposa sabia, com um sorriso, proibir ao marido que fumasse; que maculavam com os dedos sujos aquelas cortinas, que nunca a lavadeira conseguira trazer de forma a satisfazer a senhora; que faziam gemer as molas do sofá, até então escrupulosamente coberto pela sua capa de lona!
Revoltava-me sobretudo a linguagem deles!
Causavam-me asco os ditos cínicos, os olhares estupidamente maliciosos, inspirados pela vista de certos objectos; mas o que sobretudo






289
me repugnava, era a sua presença no quarto nupcial, onde o retrato da dona da casa, que se haviam esquecido de retirar, parecia contemplar com humilhado assombro toda aquela gente, que assim estava viciando a atmosfera, em que o ser, que representava, vivera até então ali, naquele santuário de virtudes domésticas!
Contristado por estas ideias, ia retirar-me, quando prolongado rumor e duas pancadas me anunciaram que ia começar o leilão.
-Vamos, meus senhores!... Vamos a isto!... Há poucas pechinchas destas!...
Senti uma dolorosa impressão, ouvindo esta primeira amostra do espírito brutal e soez do leiloeiro.
- Já era tempo!... Minha rica filha!... Vamos a ver como isto corre... -disse de repente alguém a meu lado.
Voltei-me.
Era uma mulher de cinquenta anos, aproximadamente.
Trajava de luto. O rosto emoldurado no lenço de seda preta, de sob o qual se escapavam dois ou três anéis de cabelos grisalhos, era uma destas fisionomias enérgicas, resolutas, de feições pronunciadas, que revelam uma alma rijamente temperada.
Há mais destas fisionomias entre as mulheres
do povo, e sobretudo do povo das aldeias, do
que entre as de outra qualquer posição social.
Almas tais, sejam quais forem as tormentas







290
que lhes agitam o oceano da vida, sobrenadam sempre à superfície.
Sustenta-as uma vontade superior, um fatalismo sublime que não é da terra, que é o fio invisível que as prende ao céu e que tem por divisa: "Deus o quer!... seja feita a sua vontade! ... "
Arde-lhes o lar?... Morre-lhes um filho?... Leva-lhes Deus o marido, o guia, o ganha-pão?...
Paciência!... Deus assim o quis!... Seja feita a sua vontade!... Era ele quem trabalhava para os filhos?... Trabalhará ela agora.
E o que se concebeu, assim, no meio da -dor, sem hesitar - põe-se em prática no dia seguinte, naturalmente, sem sacrifício, por devoção ainda mais do que por dever!
E os olhos que até ontem procuravam incertos e receosos os do marido, para saber o que se devia fazer, contemplam confiadamente o futuro e se, por acaso, uma nuvem negra surge no horizonte, cravam-se no céu e a consciência murmura, resignada e quase alegre: "Será o que Deus quiser!... seja feita a sua vontade!..."
Estas almas, repito, resistem a todas as tempestades, porque as escora a crença!
Hoje como ontem, amanhã como hoje, desde o berço até à campa, em tudo, por tudo e para tudo - Deus!
A boa mulher enxugava apressadamente os olhos, quando me voltei ao ouvir-lhe a voz.
- Vossemecê era cá de casa?... -perguntei eu.

291
-Era e sou... sou criada daquela santa!... - respondeu a velha, apontando para o retrato, e enxugando mais duas lágrimas.
Receoso de aumentar aquela comoção, calei-me.
- Cinco mil e seiscentos!... e seiscentos!... e seiscentos!... Vá, meus senhores!... Mais... vale a pedra!... - dizia nesse instante o leiloeiro.
- O que é que está agora, meu senhor?... - perguntou-me a criada, que em vão tentava, pondo-se em bicos de pés, ver o objecto em praça.
- É o lavatório... -disse eu, depois de verificar.
-Cinco mil e seiscentos!... O lavatório!... corja de tratantes!... - rosnou a velha, chorando.
- Um par de jarras, meus senhores! ... Quanto oferecem V. S.as por um par de jarras? ... Quanto oferecem? - bradou o leiloeiro.
- Ora espera... - acudiu a velha - sempre quero ver por quanto vão as jarras...
- Dez tostões!... - exclamou uma voz de entre a multidão.
- Grandessíssimo judeu!... Dez tostões!... - continuou a boa da criada.
-Dez tostões!... Dez tostões!... Há quem dê mais? Dez tostões!... Dez tostões - duas... Dez tostões!... três... Ali ao senhor... Como se chama V. S.a?... -perguntou o leiloeiro.
- Costa...
-Ali ao Sr. Costa!...




292
-Desalmados!... súcia de marotos!... - murmurou a mulher indignada. -Dez tostões por aquelas jarras!... Olhe que fui eu mesmo que as fui pagar ao João Pinto... Custaram sete mil e duzentos, meu senhor!... cega seja eu, se isto não é verdade!...
-Então... vossemecê que quer, minha santa?... - disse eu, na ideia de a consolar.
- O que quero?... Quero que esta gente tenha mais consciência!... Se assim continua, hão-de ser boas as sobras!... Minha querida senhora!... -atalhou a velha.
- Parece-me muito amiga dela... -observei.
-De quem?... Da minha senhora?... Quem lhe havia de querer mais do que eu, se fui eu que a criei, àquela rica filha!... exclamou a triste, indicando-me de novo o retrato.-Desde que ela nasceu, nunca mais a larguei... Não há duas como aquela!... E quem Deus levou... o Sr. Magalhães?... Aquilo é que era um santo!
- E ficaram filhos? - perguntei.
- Um, meu senhor!... Chama-se Zezinho... Meu rico anjinho! A estas horas já tens chamado mais de vinte vezes pela tua Rita!...
-Ah! vossemecê chama-se Rita?...
- Uma sua criada, meu senhor!... O senhor parece-me pessoa de bem; logo engracei com o senhor!... Tenho pena que não conheça o Sr. Zezinho!... Aquilo é que é mesmo uma feitiçaria!... Que, também, se V. S.a já o viu alguma vez, decerto se lembra dele!... Ele muito gordinho, com

293
os olhinhos muito azuis, a boquinha muito pequenina, o cabelo... E o cabelo!?... O cabelo muito lourinho, aqui... pelos ombros... todo aos caracóis... Eu nunca vi coisa assim!... E é que, de não estar acostumada a ver-me tanto tempo sem ele, parece-me que já não estou boa cá de dentro!
E os olhos daquela santa criatura choravam
E riam a um tempo, fazendo-me a descrição da criança, a quem ela respeitosamente chamava o Sr. Zezinho!
- E então... a sua senhora... o que faz agora?... ficou em más circunstâncias?... - perguntei eu.
-Coitadinha! ... Olhe, meu senhor... Ela, quando casou, pouco tinha de seu... Que o pai dela, o Sr. Morais - Deus te tenha lá! - teve sempre a sua casinha muito farta; mas... isto de empregados... V. S.a bem sabe... afinal, como
E outro que diz, se bem o ganham bem o gastam. Ora... - continuou -a velha - o Sr. Magalhães tinha bastante, e ia muito bem com a sua vida; mas... parece que lá uns amigos dele, do Brasil, quebraram... ou fugiram... Eu nunca entendi bem como aquilo foi... O que sei é que ele parece que perdeu muito dinheiro com eles, e foi isso que o matou!... Entrou a apaixonar-se muito... a secar, a secar, a secar... sempre triste
* por fim... acamou e... morreu!...
A voz da velha mal se ouvia ao proferir as últimas palavras.

294
- E onde está agora a viúva?... -indaguei com sentido interesse.
-Está com a irmã, meu senhor!... Mas... coitadinha!... A Sr.a D. Amelinha é muito amiga dela, mas... não pode!... O homem está estabelecido há pouco tempo, de maneira que... é muito... é muito peso para eles!... Vontade não lhes falta; mas... Coitados! não podem!... E é isso o que mais mortifica a minha rica filha!... Eles, vai em cinco meses que escreveram para o Brasil, ao Sr. Antoninho, e estamos todos os dias à espera da resposta... A resposta vem... Lá isso vem!... Ele era muito bom menino ... e muito, amigo das irmãs, de maneira que, qualquer dia, não deixa de vir por aí carta e mesmo dinheiro... Ah! Lá disso estou eu certa!
Neste meio-tempo fora continuando a venda, sem que a criada e eu lhe prestássemos atenção.
- Mas... vossemecê deve estar aqui a afligir-se muito - observei eu. -Há-de, com certeza, ter muita pena de ver ir tudo isto, uma coisa para cada lado?...
-Tenho, tenho, meu senhor!... -respondeu a Sr.a Rita, levando de novo o lenço aos olhos.
-Então, porque não vai para casa?... Olhe que, por estar aqui, não vão as coisas mais bem vendidas...
-Isso sei eu, meu senhor... Isso sei eu!... E olhe que tenho bem que fazer em casa... e está lá o Sr. Zezinho sem mim, que é o que mais




295
me custa... É o mesmo!... É mais meia hora!... Quero ver se levo a minha avante! É cá uma coisa... uma lembrança que eu tive...-acrescentou a velha, em resposta à curiosidade que me leu nos olhos.
- Basta!... Olhe que eu não quero saber os seus segredos! - acudi eu, sorrindo.
-Não é segredo... é uma lembrança! ... O senhor verá... se se demorar, há-de ver o que é...
"Não... embora já eu não vou, sem saber o que te prende aqui"-disse de mim para mim.
E esperei, ralado de impaciência, o momento de descobrir a intenção daquela santa criatura.
Mais de uma hora durou ainda aquele meu martírio.
A delicadeza dizia-me que não devia ser indiscreto, ao passo que a curiosidade me impelia a surpreender o segredo da criada.
Poucos objectos restavam já por vender, e, à medida que o leilão se aproximava do seu termo, os olhos da venda ora brilhavam febris de ansiedade, ora desmaiavam desalentados.
-Um berço de vinhático!... Está em praça o berço!... Quanto oferecem pelo berço?!... - bradou o leiloeiro.
-Ele não vale dez réis!... Está bom para o lume!... - disse uma voz.
-Pois estará... - continuou o leiloeiro. Mas quanto oferecem V. S.as pelo berço?... -Ponha lá... dois tostões... -exclamou um
adeleiro, depois de breve hesitação.

296

-Doze vinténs!... - gritou alguém a meu lado.
Era a velha!... O berço era a coisa... a lembrança inspirada pela sublime delicadeza daquele coração de mulher!
Ou porque embirrasse com a voz da criada, ou porque tivesse aplicação a dar ao berço, o adeleiro cobriu a oferta e, animando-se pouco e pouco, transformou o modesto berço em verdadeiro casus belli.
Eram tão francas e pronunciadas as impressões que a cada instante se desenhavam no rosto da boa mulher, que eu lia nela como em livro aberto.
Com a mão direita metida no bolso do vestido, os olhos ansiosos, os lábios trémulos, via-se que a triste contava, apalpando-o, o dinheiro que tinha reservado para aquela aplicação, ao passo que mentalmente dizia: "Está aqui... está a não chegar!... "
- Dezanove tostões!... - clamou o pregoeiro.
- E um vintém... - disse em voz trémula a Sr Rita.
- Mil novecentos e vinte!... - confirmou ele.
-Ponha lá... dois mil-réis!... - disse o adeleiro.
- E um vintém... -volveu a mulher.
-Meia libra!... - exclamou, irado, o contendor.
-Meia libra!... meia libra!... Olhe que está em meia libra, minha senhora!... - disse o leiloeiro.



297
- Meia libra!... uma; meia libra!... duas; meia libra!...
-Três mil-réis!... - exclamei. (Chegara-me o cheiro da pólvora.)
- Três mil-réis!... três mil-réis... Que diz, senhor?... Olhe que são três mil-réis... - insistiu o leiloeiro, voltando-se para o meu antagonista.
- Deixe-o ser!... Que o leve o diabo e leva um bom mono! - respondeu o adeleiro com mau modo.
A velha, apenas o lanço cobrira o valor da soma que trazia, havia-se deixado cair sobre uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.
- A quem devo lançar o berço?... - perguntou o escrevente do leiloeiro.
-Ali à Sr.a Rita!... - respondi.
Em vão tentei evitar os agradecimentos da boa mulher.
Ouvindo a minha resposta, ergueu-se de repente e procurou beijar-me as mãos à força.
-Não consinto, meu senhor!... Três mil-réis... é muito!... Eu sou uma pobre... e não me envergonho de receber uma esmola... mas... aceite o senhor a meia libra que eu trazia... bem basta o resto!... Ora receba, meu senhor!
-Deixe-se disso, Sr a Rita!... Deixe-se disso!... - atalhei comovido. - Guarde isso para um saiote!... Tem o berço, não tem?... Vá-se embora, santinha!... Vá-se embora!... Olhe que está o Sr. Zezinho à espera!...


298
-Está bem, meu senhor!... seja pelo divino amor de Deus!... Se V. S.a soubesse!... Aquele bercinho... antes de ser do menino... foi da senhora!... da minha rica filha!... Veja o senhor se eu lhe terei amor!...
E a velha, pondo o berço à cabeça, desceu rindo e chorando a escada daquela casa onde vivera feliz!
Desde então, escondo-me todas as vezes que a vejo, porque me incomodam os francos protestos do seu reconhecimento!
Possa o anjo louro, que hoje ocupa o principal lugar naquele coração, conservar eternamente as asas cândidas e abrigar debaixo delas os derradeiros dias da santa mulher, que o ama como filho!
FIM
ÍNDICE
Págs.
O Milagre 7
A Sentença da Tia Angélica 23
A Boneca 41
A Doida de Tagilde 59
Meigo 83
A Quina de Espadas 111
A Figa de Azeviche 157
O Embarcadiço 177
O Cruzeiro da Via-Sacra 249
O Berço 281

ERVING GOFFMAN
ESTIGMA - NOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA IDENTIDADE DETERIORADA
ZAHAR EDITORES
RIO DE JANEIRO
1975

Título original:
Stigma - Notes on the Management of Spoiled Identity, publicado
por Prentice-Hali, mc., Englewood Cliffs, Nova Jersey, EUA.
Copyright (c) 1963 by Prentice-Hali, me.
Capa de
É aiCO
1975
Direitos para a língua portuguesa adquiridos por
ZAHAR EDITORES
Caixa Postal 207, ZC-00, Rio
que se reservam a propriedade desta versão
Impresso no Brasil

ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL .
Noções Preliminares
O Igual e o "Informado"
A Carreira Moral
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL
O Desacreditado e o Desacreditável
A Informação Social
Visibilidade
A Identidade Pessoal
Biografia
Os Outros como Biógrafos
O Encobrimento
Técnicas de Controle de Informação
O Acobertamento
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu
Ambivalência
As Apresentações Profissionais
Alinhamentos Intragrupais
Alinhamentos Eccogncpais
A Política de Identidade
O Eu E SEU Ouwo
Desvios e Normas
O Desviante Normal
Estigma e Realidade
PREFÁCIO
Há mais de uma década vem sendo apresentada uma quantidade razoável de trabalhos sobre estigma - a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena.1 A este trabalho foram acrescentados, vez por outra, estudos clínicos úteis2 e seu quadro de referência aludiu, continuamente, a novas categorias de pessoas.3
Neste ensaio4 desejo rever alguns trabalhos sobre
o estigma, especialmente alguns trabalhos populares, para
ver o que. eles podem fornecer à sociologia. Será realizado um exercício no sentido de separar o material sobre
o estigma de fatos vizinhos, de mostrar como este mate-
rial pode ser descrito, de uma forma econômica no inte
Mais especialmente entre os sociólogos, E. Lemert; entre os psicólogos, K. Lewin, F. Heider, T. Dembo, R. Baker e B. Wright. Ver especialmente B. Wright, Phsica1 Disability - A Psychological Approach (Nova York, Harper & Row, 1960), que me forneceu várias indicações para citação e muitas referências úteis.
2 Por exemplo, F. Macgregor et ai., Facial De! ormitie and
Platic Surgery (Springfield, III.: Charles C. Thomas, 1953).
3 Por exemplo, C. Orbach, M. Bard e A. Sutherland, "Fears
nd Defensive Adaptations to the Loss of Anal Sphincter Control",
Psychoanalitical Review, XLIV (1957), 121-175.
Uma versão resumida pode ser encontrada em M. Greeablatt,
D. Levinson e R. Williams, The Patient and the Mental Hospital (Nova York: Free Press of Glencoe, 1957), pp. 507-510. Uma versão posterior foi apresentada na Maciver Lecture pronunciada na Southern Sociological Societ'y, Louisville, Kentucky, em 13 de abril de 1962. O auxílio para a versão atual foi recebido do Center for the Study of Law and Society, Universidade da Califórnia, Berkeley, sob a forma de um grant do Presideut's Committee ou Juvenile Delin-. uency.
8 ESTIGMA
nor de um único esquema conceptual, e de esclarecer a relação do estigma com a questão do desvio. Essa tarefa me permitirá utilizar um conjunto específico de conceitos: aqueles relacionados à "informação social", a informação que o indivíduo transmite diretamente sobre si.
Querida Senhorita Lonelyhearts : *
Tenho 16 anos e não sei como agir. Gostaria muito que a senhora me aconselhasse. Quando eu era criança não era muito ruim porque me acostumei com os meninos do quarteirão que caçoavam de mim, mas agora eu gostaria de ter namorados como as outras meninas e sair nas noites de sábado, mas nenhum rapaz sairá comigo porque nasci sem nariz - embora eu dance bem, tenha um tipo bonito e meu pai me compre lindas roupas.
Passo o dia inteiro sentada, me olhando e chorando. Tenho um grande buraco no meio do meu rosto que amedronta as pessoas e a mim mesma, e não posso, portanto, culpar os rapazes por não quererem sair comigo. Minha mãe me ama muito, mas chora muito quando olha para mim.
Que fiz eu para merecer um destino tão terrível? Mesmo que eu tivesse feito algumas coisas ruins, não as fiz antes de ter um ano de idade, e eu nasci assim. Perguntei a papai e ele disse que não sabe, mas que pode ser que eu tenha feito algo no outro mundo, antes de nascer, ou que eu esteja sendo punida pelos pecados dele. Não acredito nisto porque ele é um homem muito bom. Devo me suicidar?
Sinceramente,
Desesperada
(Extraído de Miss Lonelyhearts, de Nathanael West pp. 14-15. Copyright 1962 por New Directions. Reimpresso por permissão de New Directions, Publishers).
(*) N. do T. - Corações Solitários.

1. ESTIGMA e IDENTIDADE SOCIAL
Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor - uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. Mais tarde, na Era Cristã, dois níveis de metáfora foram acrescentados ao termo: o primeiro deles referia-se a sinais corporais de graça divina que tomavam a forma de flores em erupção sobre a pele; o segundo, uma alusão médica a essa alusão religiosa, referia-se a sinais corporais de distúrbio físico. Atualmente, o termo é amplamente usado de maneira um tanto semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal. Além disso, houve alterações nos tipos de desgraças que causam preocupação. Os estudiosos, entretanto, não fizeram muito esforço para descrever as precondições estruturais do estigma, ou mesmo para fornecer uma definição do próprio conceito. Parece necessário, portanto, tentar inicialmente resumir algumas afirmativas e definições muito gerais.
.7') oções Preliminares
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de
12 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SocIAl. 13
pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão particular. Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" - para usar um termo melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como "honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação".
Baseando-nos nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso.
Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas significam até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são preenchidas? nesse ponto, provavelmente, que percebemos que durante todo o tempo estivemos fazendo algumas afirmativas em relação ãquilo que o indivíduo que está à nossa frente deveria ser. Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais adequadamente denominadas de demandas feitas "efetivamente", e o caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em potencial - uma caracterização "efetiva", uma identidade social virtual. A categoria e- os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de sua identidade social real.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável - num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem - e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real. Observe-se que há outros tipos de discrepância entre a identidade social real e a virtual como, por exemplo, a que nos leva a reclassificar um indivíduo antes situado numa categoria socialmente prevista, colocando-o numa categoria dife rent
mas igualmente prevista e que nos faz alterar positivamente a nossa avaliação. Observe-se, também, que nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.
O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso. Por exemplo, alguns cargos na América obrigam os seus ocupantes que não tenham a educação universitária esperada a esconderem isso; outros cargos, entretanto, podem levar os que os ocupam e que possuem uma educação superior a manter isso em segredo para não serem considerados fracassados ou estranhos.,'De modo semelhante, um garoto de classe média pode não ter escrúpulos de ser visto entrando numa biblioteca; entretanto, um criminoso profissional escreve:
"Lembro-me de que, mais de uma vez, por exemplo, ao entrar numa biblioteca pública perto de onde eu morava, olhei em torno duas vezes antes de realmente entrar, para me certificar que nenhum de meus conhecidos estava me vendo." 1
Assim, também, um indivíduo que deseja lutar por seu país pode esconder um defeito físico por recear que o seu estado físico seja desacreditado. Posteriormente, ele mesmo, amargurado e tentando sair do Exército, pode conseguir admissão no hospital militar, onde se exporia ao descrédito se descobrissem que não tem realmente qualquer doença grave? 'Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, embora eu proponha a modificação desse conceito, em parte porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito.'
1 T. Parker e R. Alierton, The Courage of His Convietion.s (Londres, Hutchinson & Co., 1962), p. 109.
2 Em relação a esse ponto, ver a crítica feita por M. Meltzer, "Countermanipulation through Malingering", em A. Biderman e
H. Zimmer, eds., The Manipulation of Human Behaviour (Nova
York: John Wiley & Sons, 1961), pp. 277-304.
14 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAl.. 15
O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: Assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles? No_o prie meiro caso, está-se lidando com a condição do desacreditado, no segundo com a do clesacreditável. Esta é uma diferença importante, mesmo que um indivíduo estigmatizado em particular tenha, provavelmente, experimentado ambas as situações. Começarei com a situação do desacreditado e passarei, em seguida, à do desacreclitável, mas nem sempre separarei as duas.
Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. E p_rimeir lugar, há as abominações do corpo - as várias deformidades físicas. as culpas de caráter individual, percebidas corno - vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais. crenças falsas e rígidas,' desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e relijTào, jiie podéiii ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros da üma família.3 Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, inclusive aqueles que os gregos tinham em mente, encontram-se
as mesmas características sociológicas: um individuo gue poderia ter sido facilmente recebido fi reação social quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.possi gUg'n2a i,una característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim chamados de normais. .
As atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos que empreendemos em relação a ela são bem conhecidos na medida em que são ai
a Na história recente, especialmente na Inglaterra, o status de classe baixa funcionava como um importante estigma tribal. O pecado dos pais, ou pelo menos seu ambiente, eram pagos pela criança se ela ultrapassava, de maneira inadequada, a sua condição social inicial. A manipulação do estigma de classe é, naturalmente, um tema central do romance inglês.
respostas que a ação social benevolente tenta súavizar e melhorar. Por definição, é claro, acieditanosqua a1gu com um estigna não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos váriosti de discriminações, atravês das quais efétivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe socia1.'Utiliza- mos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.5
Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original 6 e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, freqüentemente de aspecto sobrenatural, tais como "sexto sentido" ou "percepção" :
"Alguns podem hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto que outros generalizam a deficiência de visão sob a forma de uma gestalt de incapacidade, de tal modo que o indivíduo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguê-lo como se ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão sujeitos a um tipo únco de avaliação, supondo nue o indivíduo cego recorre a canais específicos de informação não disponíveis para os outros." 8
Além disso podemos perceber a sua resposta defensiva a tal situação como uma expressão direta de seu defeito e, então, considerar os dois, defeito e resposta,
D. Riesman, "Some Observations Concerning Marginality", Phylon, Segundo Trimestre, 1951, 122.
O caso em relação aos pacientes mentais é apresentado por T. J. Scheff num trabalho a ser lançado.
6 Em relação aos cegos, ver E. Henrich e L. Kriegel, eds., Experime'nts in Survival (Nova York: Association for the Aid of Crippled Children, 1961), pp. 152 e 186; e H. Chevigny, My Eyes Have a Colci Nose (New Have, Conn.: Yale University Press, paperbound, 1962), p. 201.
Segundo uma mulher cega, "fui solicitada a examinar uns perfume, presumivelmente porque, sendo cega, meu olfato era super- aguçado". Ver T. Keitlen (com N. Lobsenz), Farewell te Fear (Nova
York: Avon, 1962), p. 10.
8 A. G. Gowman, The War Blind iii American Social Structu're (Nova York: American Foundation for the Blind, 1957), p. 198.
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 17
16
ESTIGMA
apenas como retribuição de algo que ele, seus pais ou sua tribo fizeram, e, conseqüentemente, uma justificativa da maneira como o tratamos.9
gora passemos do normal à pessoa em relação à qual ele é normal. Parece, em geral, verdade que os membros de uma categoria social podem dar muito apoio a um padrão de julgamento que, eles e outros concordam, não se aplica diretamente a eles. Assim, um homem de negócios pode exigir das mulheres um comportamento feminino ou um procedimento ascético por parte dos monges, e não conceber a si próprio como pessoa que devesse seguir qualquer um desses estilos de conduta. A distinção reside entre o cumprir uma norma e o simplesmente apoiá-la. A questão do estigma não surge aqui, mas só onde há alguma expectativa, de todos os lados, de que aqueles que se encontram numa certa categoria não deveriam apenas apoiar uma norma, mas também cumpri-la.
*Parece também possível que um indivíduo não consiga viver de acordo com o que foi efetivamente exigido dele e, ainda assim, permanecer relativamente indiferente ao seu fracasso; isolado por sua alienação, protegido por crenças de identidade próprias, ele sente que é um ser humano completamente normal e que nós é que não somos suficientemente humanos.4Ele carrega um estigma, mas não parece impressionado ou arrependido por fazê.lo. Essa possibilidade é celebrada em lendas exemplares sobre os menonitas, os ciganos, os canalhas impunes e os judeus muito ortodoxos.
Na América atual, entretanto, os sistemas de honra separados parecem estar decadentes. O indivíduo estigmatizado tende a ter as mesmas crenças sobre identidade que nós temos; isso é um fato central. Seus sentimentos mais profundos sobre o que ele é podem confundir a sua sensação de ser uma "pessoa normal", um ser humano como qualquer outro, uma criatura, portanto, que merece um destino agradável e uma oportunidade legítima. 1° (Na realidade, não obstante a forma em que se
9 Para exemplos, ver Macgregor e outros; op. cit., do começo ao fim.
lo A noção de "ser humano normal" pode ter sua origem
na abordagem médica da humanidade, ou nas tendências das organizações burocráticas em grande escala, como a Nação-Estado, de tratar todos os seus membros como iguais em alguns aspectos. Quaisquer que sejam suas origens, ela parece fornecer a repre expresse
ele baseia suas reivindicações não no que acredita seja devido a todas as pessoas, mas apenas a todas as pessoas de uma categoria social escolhida dentro da qual ele inquestionavelmente está incluído, como, por exemplo, qualquer indivíduo de sua idade, sexo, profissão etc.). Além disso ainda pode perceber geralmente de maneira bastante correta que, não importa o que os outros admitam, eles na verdade não o aceitam e não estão dispostos a manter com ele um contato em "bases iguais".'1 Ademais, os padrões que ele incorporou da sociedade maior tornam-no intimamente suscetível ao que os outros vêem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser. A vergonha se torna uma possibilidade central, que surge quando o indivíduo percebe que um de seus próprios atributos é impuro e pode imaginar-se como um não-portador dele.
A presença próxima de normais provavelmente reforçará a revisão entre auto-exigências e ego, mas na verdade o auto-ódio e a autodepreciação podem ocorrer quando somente ele e um espelho estão frente a frente:
"Quando finalmente me levantei ... e aprendi a caminhar novamente, apanhei um espelho e me dirigi a um outro maior, fixo, para me olhar, sozinha. Eu não queria que ninguém soubesse como me sentia ao me ver pela primeira vez. Mas não houve barulho nem choro; não gritei de raiva quando me vi. Simplesmente fiquei estarrecida. Aquela pessoa no espelho não pocleriu ser eu. Eu me sentia por dentro como uma pessoa comum, feliz, saudável - não como aquela que eu via! Ainda assim, quando virei o rosto para o espelho, lá estavam meus préprios olhos olhando para trás, ardentes de vergonha... quando não chorei nem tampouco fiz qualquer barulho, tornou-se impossível para mim falar sobre isto com alguém, e a confusão e o pânico provocados por minha descoberta foram trancados dentrõ de mim para encará-los sozinha, durante muito tempo ainda." 12
sentação básica por meio da qual os leigos usualmente se concebem. De maneira interessante, parece ter surgido uma convenção na literatura popular segundo a qual uma pessoa de reputação duvidosa proclama o seu direito de normalidade citando o fato de ter-se casado e ter filhos e, muito estranho, declarando ter passado o Natal e a Ação de Graças com eles.
11 Uma perspectiva de um criminoso sobre esta não-aceitação é apresentada em Parker e Allerton, op. cit., pp. 110-111.
12 K. B. Hathaway, The Little Locksmith (Nova York: CowardMcCann, 1943) p. 41, em Wright, op. cit., p. 157.
18 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 19
"Aos poucos esqueci o que havia visto no esp&ho. AquiI não podia penetrar no interior de minha mente e converter-me em parte integral de mim. Sentia-me como se não houvesse nada comigo; era apenas um disfarce. Mas não era o tipo de disfarce que é voluntariamente colocado pela pessoa que a usa com o objetivo de confundir os outros sobre sua identidade. Meu disfarce foi posto em mim sem o meu consentimento ou conhecimento, como ocorre nos contos de fadas e foi a mim mesma que ele confundiu quanto a minha própria identidade. Eu me olhava no espelho e era tomada de horror porque não me reconhecia. No lugar em que me encontrava, com aquela exaltação romântica persistente em mim, como se eu fosse uma pessoa favorecida e afortunada para quem tudo era possível, eu via uma figura estranha, pequena, lastimável, horrenda e um rosto que se tornava, quando eu o olhava fixamente, doloroso e vermelho de vergonha. Era só um disfarce mas estava em mim para o resto da vida. Estava lá, estava lá, era real. Cada um desses encontros era como uma espécie de explosão na cabeça. Eles deixavam-me sempre entorpecida, muda e insensível até que, aos poucos, obstinadamente, a forte ilusão de bem-estar e beleza pessoal voltava a me invadir: eu esquecia a irrelevante realidade e ficava despreparada e vulnerável novamente." i
A característica central da situação de vida do indivíduo estigmatizado pode, agora, ser explicada. uma questão do que é com freqüência, embora vagamente, chamado de "aceitação". Aqueles que têm relações com ele não conseguem lhe dar o respeito e a consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que ele havia previsto receber; ele faz eco a essa negativa descobrindo que alguns de seus atributos a garantem.
Como a pessoa estigmatizada responde a tal situação? Em alguns casos lhe seria possível tentar corrigir diretamente o que considera a base objetiva de seu defeito, tal como quando uma pessoa fisicamente deformada se submete a uma cirurgia plástica, uma pessoa cega a um tratamento ocular, um analfabeto corrige sua educação e um homossexual faz psicoterapia. (Onde tal conserto é possível, o que freqüentemente ocorre não é a aquisição de um status completamente normal, mas uma transformação do ego: alguém que tinha um defeito particular se transforma em alguém que tem provas de tê-lo corri' Ibid., pp. 46-47. Para tratamentos gerais dos sentimentos
de auto-rejeição, ver K. Lewin, Resolving Social Conflicte, parte III
(Nova York, Harper & Row, 1948); A. Kardiner e L. Ovesey
The Mark of Oppression: A Psychosocictl Study of the American
Negro (Nova York: W. W. Norton & C., 1951); e E. H. Erikson,
Childhood and Soei ety (Nova York, W. W. Nort,on & Co., 1950).
gido.) Aqui, deve-se mencionar a predisposição à "vitimização" como um resultado da exposiçao da pessoa estigmatizada a servidores que vendem meios para corri gir a fala, para clarear a cor da pele, para esticar o corpo, para restaurar a juventude (como no rejuvenescimento através do tratamento com gema de ovo fertilizada), curas pela fé e meios para se obter fluencia na conversação. Quer se trate de uma técnica prática ou de fraude, a pesquisa, freqüentemente secreta, dela resultante, revela, de maneira específica, os extremos a que os estigmatizados estão dispostos a chegar e, portanto, a angústia da situação que os leva a tais extremos. Pode-se citar um exemplo:
"Mias Peck (uma assistente social de Nova York, pioneira de trabalhos em benefício de pessoas com d.ficuldades auditivas) disse que outrora eram muitos os curandeiros e charlatães que, desejosos de enriquecer rapidamente, viam na Liga (para os que tinham dificuldades de audição) um frutífero campo de caça, ideal para promoção de gorros magnéticos, vibradores miraculosos, tímpanos artificiais, sopradores, inaladores, massageadores, óleos mágicos, bálsamos e outros remédios que curam tudo, garantidos, positivos, à prova de incêndio, e permanentes para a surdez incurável. Anúncios de tais artifícios (até a década de 20, quando a Associação Médica Americana d3cidiu promover uma campanha de investigação) atacavam os que tinham dificuldades de audição, pelas páginas da imprensa diária, inclusive revistas bem conceituadas." 14
O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu defeito. Isso é ilustrado pelo aleijado que aprende ou reaprende a nadar, montar, jogar tênis ou pilotar aviões, ou pelo cego que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas.' O aprendizado torturado pode estar associado, é claro, com o mau desempenho do que se aprendeu, como quando um indivíduo, confinado a uma cadeira de rodas, consegue levar uma jovem ao salão,
14 F. Warfield, Keep Listening (Nova York: The Viclcing Press.
1957), p. 76. Ver também H. von Hentig, The Criminal and His Victim (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1948), p. 101.
15 Keitlen, op. cit., Cap. 12, pp. 117-129 e Cap. 14, pp. 137-149. Ver também Chevigny, op. cit., pp. 85-86.
20 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE Soci 21
numa espécie de arremedo de dança.1° Finalmente, a pessoa com um atributo diferencial vergonhoso pode romper com aquilo que é chamado de realidade, e tentar obstinadamente empregar uma interpretação não convencional do caráter de sua identidade social.
A criatura estigmatizada usará, provavelmente, o seu estigma para "ganhos secundários", como desculpa pelo fracasso a que chegou por outras razões :
"Durante anos, a cicatriz, o lábio leporino ou o nariz disforme foram considerados como uma desvantagem, e sua importância nos ajustamentos social e emocional inconscientemente abarcava tudo. Essa desvantagem era o "cabide" no qual o paciente pendurava todas as insuficiências, todas as insatisfações, todas as protelações e todas as obrigações desagradáveis da vida social, e do qual veio a depender não somente como forma de libertação racional da competição mas ainda como forma de proteção contra a responsabilidade social.
"Quando esse fator é removido por cirurgia, o paciente perde a proteção emocional mais ou menos aceitável que ele oferecia e logo descobre, par.a sua surpresa e inquietação, que a vida não é fácil de ser levada, mesmo pelas pessoas que têm rostos "comuns", sem máculas. Ele está despreparado para lidar com essa situação sem o apoio de uma "desvantagem", e pode-se voltar para a proteção menos simples, mas semelhante, de padrões de comportamento de neurastenia, conversão histérica, hipocondria ou estados de ansiedade aguda." 17
O estigmatizado pode, também, ver as privações que sofreu como uma bênção secreta, especialmente devido à crença de que o sofrimento muito pode ensinar a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas:
"Mas agora, distante da experiência do hospital, posso avaliar o que aprendi. (Escreve uma mãe permanentemente inválida devido à poliomielite.) Porque aquilo não foi somente sofrimento: foi também um aprendizado através dele. Sei que a minha consciência das pessoas aumentou e se aprofundou, que todos os que estão perto de mim podem contar com minha mente, meu coração e minha atenção para os seus problemas. Eu não poderia ter descoberto isso correndo numa quadra de tênis." 18
16 Henrich e Kriegel, dp. cit., p. 49.
17 W. Y. Baker e L. H. Smith, "Facial Disfigurement and Personality", Journai of the American Medical Association, CXII (1939), 303. Macgregor et ai., op. cit., pp. 57 e segs., nos fornece um exemplo de um homem que usava como apoio seu grande nariz vermelho.
18 Henrich e Kriegel, op. cit., p. 19.
De maneira semelhante, ele pode vir a reafirmar as limitações dos normais, como sugere um esclerótico múltiplo:
"Tanto as mentes quanto os corpos saudáveis podem estar alei jados. O fato de que pessoas "normais" possam andar, ver e ouvir não significa que elas estejam realmente vendo ou ouvindo. Elas podem estar completamente cegas para as coisas que estragam sua felicidade, totalmente surdas aos apelos de bondade de outras pessoas; quando penso nelas não me sinto mais aleijado ou incapacitado do que elas. Talvez, num certo sentido, eu possa ser um meio de abrir os seus olhos para as belezas que estão à nossa volta: coisas como um aperto de mão afetuoso, uma voz que está ansiosa por conforto, uma brisa de primavera, certa música, uma saudação amistosa. Essas pessoas são importantes para mim e eu gosto de sentir que posso ajudá-las." 19
E um cego escreve:
, "Isso levaria imediatamente a se pensar que há muitos aconteci mento que podem diminuir a satisfação de viver de maneira muito mais efetiva do que a cegueira. Esse pensamento é inteiramente saudável. Desse ponto de vista, podemos perceber, por exemplo, que um defeito como a incapacidade de aceitar amor humano, que pode diminuir o prazer de viver até quase esgotá-lo, é muito mais trágico do que a cegueira. Mas é pouco comum que o homem com tal doença chegue a aperceber-se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo." 0
Escreve um aleijado:
À proporção que a vida continuava, eu soube de muitos, muitos tipos diferentes de desvantagens, não apenas físicas, e comecei a perceber que as palavras da garota aleijada no excerto acima (palavras de amargura) bem poderiam ter sido pronunciadas por jovens mulheres que se sentiam inferiores e diferentes por sua feiúra, incapacidade de ter filhos, impossibilidade de relacionamento com outras pessoas, ou muitas outras razões."
As respostas dos normais e dos estigmatizados que foram consideradas até aqui são as que podem ocorrer em períodos prolongados de tempo e quando não há um contato corrente entre eles.22 Este livro, entretanto,
19 Ibid., p. 35.
20 Chevigny, op. cit., p. 154.
21 F. Carling, And Yet We Are Humon (Londres: Chatto & Windus, 1962), pp. 23-24.
22 Para uma resenha, ver G. W. Allport, The Nature of Prejudice (Nova York: Anchor Books, 1958).
22 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 23
ocupa-se especificamente com a questão dos "contatos mistos" - os momentos em que os estigmatizados e os normais estão na mesma "situação social", ou seja, na presença física imediata um do outro, quer durante uma conversa, quer na mera presença simultânea em uma reunião informal.
A simples previsão de tais contatos pode, é claro, levar os normais e os estigmatizados a esquematizar a vida de forma a evitá-los. Presumivelmente, isso terá maiores conseaüências para os estigmatizados, à medida que uma esquematização maior de sua parte será sempre necessária:
"Antes de seu desfiguramento (amputação da metade inferior de seu nariz), Mrs. Dover, que vivia com uma de suas duas filhas casadas, era uma mulher independente, afetuosa e amável que gostava de viajar, fazer compras e visitar os seus vários parentes, O desfiguramento de seu rosto, entretanto, teve como resultado uma alteração definitiva de seu estilo de vida. Nos dois ou três pri meiros anos, ela raramente deixava a casa de sua filha, preferindo permanecer em seu quarto ou sentar-se no quintal. 'Eu estava infeliz', disse ela; 'não havia mais horizontes em minha vida.' "23
Faltando o feeclback saudável do intercâmbio social quotidiano com os outros, a pessoa que se auto-isola possivelmente torna-se desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa. Pode-se citar uma versão de Suilivan:
"Ter consciência da inferioridade significa que a pessoa não pode afastar do pensamento a formulação de uma espéce de sentimento crônico do pior tipo de insegurança que conduz à ansiedade e, talvez a algo ainda pior, no caso de se considerar a inveja como realmente pior do que a ansiedade. O medo de que os outros possam desrespeitá-la por algo que ela exiba significa que ela sempre se sente insegura em seu contat om os outros; essa insegurança surge, não de fontes misteriosas e um tanto desconhecidas como uma grande parte de nossas ansiedades, mas de algo que ela não pode determinar. Isso representa uma deficiência quase fatal do sistema do "eu" na medida em que este não consegue disfarçar ou afastar uma formulação definida que diz 'Eu sou inferior, portanto as pessoas não gostarão de mim e eu não poderei sentir-me seguro com elas'" '24
23 Macgregor et ai., op. cit., pp. 91-92.
24 De Clinical Stuciies in Psychiatry, H. S. Perry, M. L. Gawel e M. Gibbon, eds. (Nova York: W. W. Norton & Company, 1956), p. 145.
• Quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma.
O indivíduo estigmatizado pode descobrrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão.25 Pode-se citar um exemplo extraído de um pesquisador da incapacidade física:
"Para a pessoa inabilitada, a incerteza quanto ao sta,tus, somada à insegurança em re'ação ao emprego, prevalece sobre uma ampla gama de interações sociais. O cego, o doente, o surdo, o aleijado iunca podem estar seguros sobre qual será a atitude de um novo conhecido, se ele será receptivo ou não, até que se estabeleça o contato. É exatamente essa a posição do adolescente, do negro de pele clara, do imigrante de segunda geração, da pessoa em situação de mobilidade social e da mulher que entrou numa ocupação predominantemente masculina." 2.6
Essa incerteza é ocasionada não só porque o indivíduo não sabe em qual das várias categorias ele será colocado mas também, quando a colocação é favorável, pelo fato de que, intimamente, os outros possam defini-lo em termos de seu estigma:
"E eu sempre sinto isso em relação a pessoas direitas: embora elas sejam boas e gentis, para mim, realmente, no íntimo, o tempo todo, estão apenas me vendo como um criminoso e nada mais. Agora é muito tarde para que eu seja dferente do que sou, mas ainda sinto isso urofundamente: que esse é o seu único modo de se aproximar de mim e que eles são absolutameriAe incapazes de me aceitar como qua1quer outra coisa." 27
Assim, surge no estigmatizado a sensação de não saber aquilo que os outros estão "realmente" pensando dele.
25 R. Barker, "The Social Psychology of Physical Disability", Jowmal of Social Issues, IV (1948), 34, sugere que as pessoas estigmatizadas "vivem numa fronteira sociopsicológica", encarando constantemente novas situações. Ver também Macgregor et ei., op. cit., p. 87, onde se sugere que os mais visivelmente deformados precisam ter menos dúvidas sobre sua recepção na interação do que os menos visivelmente deformados.
26 Barker, op. cit., p. 33.
7 Parker e Alierton, op. cit., p. 111.
24 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 25
Além disso, durante os contatos mistos, é provável que o indivíduo estigmatizado sinta que está "em exibição", 28 e leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam.
Ele também pode sentir que o esquema usual que utilizava para a interpretação de acontecimentos diários está enfraquecido. Seus menores atos, ele sente, podem ser avaliados como sinais de capacidades notáveis e extraordinárias nessas circunstâncias. Um criminoso profissional fornece um exemplo:
"Sabe, é realmente impressionante que você leia livros como este, estou surpreso. Pensei que você lesse novelas em brochura, coisas com capas sensacionalistas, livros assim. E aí está você com Claude Cockburn, Hugh Klare, Simone de Beauvoir e Lawrence Durreil!"
Ele não achava que esta observação era um insulto: na verdade, acho que pensava que estava sendo honesto ao me dizer o quanto ele estava enganado. E é exatamente esse tipo de condescendência que se recebe de pessoas honestas quando se é um criminoso. 'Imagine só!', dizem elas. 'Em certos aspectos você é igual a um ser humano!' Não estou brincando, me dá vontade de acabar com elas." 29
Uma pessoa cega nos fornece um outro exemplo:
"Seus atos mais usuais de outrora - andar indiferentemente na rua, colocar ervilhas no prato, acender um cigarro - não são mais comuns. Ele torna-se uma pessoa diferente. Se ele os desempenha com destreza e segurança, provocam o mesmo tTpo de admiração inspirado por um mágico que tira coelhos de cartolas." 30
Ao mesmo tempo, erros menores ou enganos incidentais podem, sente ele, ser interpretados como uma expressão direta de seu atributo diferencial estigmatizado. Ex-pacientes mentais, por exemplo, às vezes receiam uma discussão acalorada com a esposa ou o empregador por medo da interoretação errônea de suas emoções. Pes. soas com deficiêpcias mentais enfrentam situações semelhantes:
8 Esse tipo' especial de autoconsciência é analisado em 5. Messinger et ai., "Life as Theater: Some Notes on the Dramaturgie Approach to Social Reality", Sociometry, XXV (1962), 98-110.
29 Parker e Alierton, op. cit., p. 111.
° Chevigny, op. cit., p. 140.
"Ocorre também que se uma pessoa de baixa capacdade intelectual tem algum tipo de problema, a dificuldade é mais ou menos automaticamente atribuída a um defeito mental", enquanto que se uma outra de "inteligência normal" tem dificuldade semelhante, esta não é considerada como sintoma de qualquer coisa particular." 31
Uma garota que só tinha uma perna, relembrando sua experiência nos esportes, fornece outros exemplos:
"Quando eu caía, uma grande quantidade de mulheres corria, cacarejando e se lamentando como um grupo de galinhas-mães (lesoladas. Era muita gentileza, e agora eu aprecio essa solicitude mas,. na época, eu ficava ressentida e muito embaraçada com tal interf erência. Por que elas partiam do pressuposto de que nenhum acontecimento rotineiro quando se anda de patins - um graveto ou uma pedra - teria se colocado entre as rodas dos meus. A conclusão era inevitável: Eu caía porque era uma pobre e impotente aleijada. 32
Nenhuma delas gritava com raiva "aquele perigoso cavalo selvagem a derrubou!" - o que, Deus o perdoe, era verdade. Foi como uma horrível visitação fantasmagórica aos meus velhos dias de patins. Todas as pessoas lamentavam em coro: 'Aquela pobre menina caiu!' "S3
Quando o defeito da pessoa estigmatizada pode ser percebido só ao se lhe dirigir a atenção (geralmente visual) - quando, em resumo, é uma pessoa desacreditada, e não desacreditável - é provável que ela sinta que estar presente entre normais a expõe cruamente a invasões de privacidade,34 mais agudamente experimentadas, talvez, quando crianças a observam fixamente.35 Esse desagrado em se expor pode ser aumentado por estranhos que se sentem livres para entabular conversas nas quais expressam o que ela considera uma curiosidade'
31 L. A. Dexter, "A social Theory of Mental Deficiency", American Jouimai of Mental Deficiency, LXII (1958), 923. Para outro estudo sobre a estigmatização de pessoas com defeitos mentais, ver 5. E. Perry, "Some Theoretical Problems of Mental Deficiency nnd Their Action Implications", Ps-ychiatry, XVII (1954),.
45-73.
32 Baker, Oul on a Limb (Nova York: McGraw-Hill Book Company, s/d), p. 22.
33 Ibid., p. 73.
Este tema é bem tratado em R. K. White, B. A. Wright e T. Dembo, "Studies in Adjustment to Visible Injuries: Evaluation of Curiosity by the Injured", Journal of Abnormal and Social Psycholo y, XLIII (1948), 13-28.
3 Por exemplo, Henrich e Kriegel, op. cit., p. 184.
26 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 27
mórbida sobre a sua condição, ou quando eles oferecem uma ajuda que não é necessária ou não é desejada.°6 Pode-se acrescentar que há certas fórmulas clássicas para esses tipos de conversas: "Minha querida, como você conseguiu seu aparelho de surdez"; "Meu tio-avô tinha um, então acho que sei tudo sobre o seu problema"; "Sabe, eu sempre disse que esses aparelhos são amigos excelentes e solícitos"; "Diga-me, como você consegue tomar banho com seu audiofone?" Por isso se infere que o indivíduo estigmatizado pode ser abordado à vontade por estranhos, desde que eles sejam simpáticos à sua situação.
Considerando o que pode enfrentar ao entrar numa situação social mista, o indivíduo estigmatizado pode responder antecipadamente através de uma capa defensiva. Isso pode ser ilustrado por um estudo antigo sobre alguns alemães desempregados durante a Depressão. Conta um pedreiro de 43 anos:
"Como é duro e humilhante carregar a fama de um homem desempregado! Quando saio, baixo os olhos porque me sinto totalmente inferior. Quando ando na rua, parece-me que não posso ser comparado .a um cidadão comum, que todo mundo está me apontando. Instintivamente evito encontrar qualquer pessoa. Conhecidos e amigos antigos de melhores épocas não são mais tão cordia:s. Quando nos encontramos, eles me saúdam com indiferença. Não me oferecem mais cigarros e seus olhos parecem dizer 'Você não tem valor, você não trabalha'." 37
Uma garota aleijada fornece uma análise ilustrativa:
"Quando ... comecei a andar sozinha nas ruas de nossa cidade
descobri que toda vez que passava por três ou quatro crianças juntas na calçada elas gritavam para mim, ... Algumas vezes elas chegavam mesmo a correr atrás de mim, gritando e zombando. Isto era algo que eu não sabia enfrentar, nem suportar
Por algum tempo esses encontros na rua me encheram coni um frio pavor de todas as crianças desconhecidas.
Um dia, subitamente, descobri que eu tinha tanta consciência de mim e tanto medo de todas as crianças desconhecidas que, como os animais, elas sabiam disso, de modo que mesmo a mais meiga e amável era levada ao escárnio por meu próprio retraimento e medo." 38
36 Ver Wright, op. cit., "The Problem of Sympathy", pp. 233-237.
37 5. Zawadski e P. Lazarsfeld, "The Psychological Consequences of Unemployment", Journai of Social Ps'ychology, VI (1935), 239.
38 Hathaway, op. cit., pp. 155-157, em S. Richardson, "The Social Psychological Consequences of Handicapping", trabalho não publicado, apresentado na Convenção da Associação Sociológica Americana em 1962, Washington, DC, 7-8.
- Em vez de se retrair, o indivíduo estigmatizado pode tentar aproximar-se de contatos mistos com agressividade, mas isso pode provocar nos outros uma série de respostas desagradáveis. Pode-se acrescentar que a pessoa estigmatizada algumas vezes vacila entre o retraimento e a agressividade, correndo de um para a outra, tornando manifesta, assim, uma modalidade fundamental na qual a interação face-to-face pode tornar-se muito violenta.
Sugiro, então, que o indivíduo estigmatizado - pelo menos o "visivelmente" estigmatizado - terá motivos especiais para sentir que as situações sociais mistas provam uma interação angustiada. Assim, deve-se suspeitar que nós, normais, também acharemos essas situações angustiantes. Sentiremos que o indivíduo estigmatizado ou é muito agressivo ou é muito tímido e que, em ambos os casos, está pronto a ler significados não intencionais em nossas ações. Nós próprios podemos sentir que, se mostramos sensibilidade e interesse diretos por sua situação, estamos nos excedendo, ou que se, na realidade, esquecemos que ele tem um defeito, far-lhe-emos, provavelmente, exigências impossíveis de serem cumpridas ou, inadvertidamente, depreciaremos seus companheiros de sofrimento.
Sentimos que o estigmatizado percebe cada fonte potencial de mal-estar na interação, que sabe que nós também a percebemos e, inclusive, que não ignoramos que ele a percebe. Estão dadas, portanto, as condições para o eterno retorno da consideração mútua que a psicologia social de Mead nos diz como começar mas
•não como terminar.
-. Uma vez que tanto o estigmatizado quanto nós, os ncrmais, nos introduzimos nas situações sociais mistas, é compreensível que nem todas as coisas caminhem suavemente. Provavelmente tentaremos proceder como se, de fato, esse indivíduo correspondesse inteiramente a um dos tipos de pessoas que nos são naturalmente acessíveis em tal situação. quer isso signifique tratá-lo como se el fosse alguém melhor do que achamos que seja, ou alguém pior do que achamos que ele provavelmente é. Se nenhuma dessas condutas for possível, tentaremos, então, agir como se ele fosse uma "não-pessoa" e não existisse, para nós, como um indivíduo digno de atenção ritual. Ele, por sua vez, provavelmente continuará com os mesmos artifícios, pelo menos no início.
28 ESTIGMA
Conseqüentemente, a atenção será furtivamente desviada de seus alvos obrigatórios, dando lugar à consciência do "eu" e à "consciência do outro", expressa na patologia da interação - inquietação.39 No caso dos indivíduos que têm deficiências físicas, ela pode ser expressa assim:
"Quer se reaja abertamente e sem tato ante a desvantagem como tal ou, o que é mais comum, não se faça referência explícita a ela, a condição básica de intensificação e limitação da percepção leva a interação a articular-se de forma demasiadamente exclusiva, em seus próprios termos. Isso, como o descrevem os meus informantes, é freqüentemente acompanhado por um ou mais dos sinais familiares de desconforto e embaraço: as referências cuidadosas, as palavras comuns da vida quotidiana que de repente se transformam em tabu, o olhar vago, a ligeireza artificial, a loquacidade compulsiva, a seriedade embaraçosa." 40
provável que, em situações sociais onde há um indivíduo cujo estigma conhecemos ou percebemos, empreguemos categorizações inadequadas e que tanto nós como ele nos sintamos pouco à vontade. Há, é claro, freqüentemente, mudanças significativas a partir dessa situação inicial. E, como a pessoa estigmatizada tem mais probabilidades do que nós de se defrontar com tais situações é provável que ela tenha mais habilidade para lidar com elas.
O Igual e o "Informado"
Sugeriu-se inicialmente que poderia haver uma discrepância entre a identidade virtual e a identidade real de um indivíduo. Quando conhecida ou manifesta, essa discrepância estraga a sua identidade social; ela tem como efeito afastar o indivíduo da sociedade e de si mesmo de tal modo que ele acaba por ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo não receptivo. Em alguns casos, como no do indivíduo que nasceu sem nariz, ele pode continuar, durante o resto da sua vida, a achar que é o único de
9 Para uma abordagem geral, ver E. Goffman, "Alienation from Interaction", Human Relations, X (1957), 47-60.
40 F. Davis, "Deviance Disavowal: The Management of Strained Interaction by the Visibly Handicapped", Social Problems, IX (1961), 123. Ver também White, Wright e Dembo, op. cit., pp. 26-27.
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 29
sua espécie e que o mundo inteiro está contra ele. Na maioria dos casos, entretanto, ele descobrirá que há pessoas compassivas, dispostas a adotar seu ponto de vista no mundo e a compartilhar o sentimento de que ele é humano e "essencialmente" normal apesar das aparências
•e a despeito de suas próprias dúvidas. Nesse caso, devem-se considerar duas categorias, O primeiro grupo de pessoas benévolas é, é claro, o daquelas que compartilham o seu estigma. Sabendo por experiência própria o que se sente quando se tem este estigma em particular, algumas delas podem instruí-lo quanto aos artifícios da relação e fornecer-lhe um círculo de lamentação no qual ele possa refugiar-se em busca de apoio moral e do conforto de sentir-se em sua casa, em seu ambiente, aceito como uma criatura que realmente é igual a qualquer outra normal. Pode-se citar um exemplo extraído de um estudo sobre analfabetos:
"A existência de um sistema de valores freqüentes entre estas
pessoas é evidenciado pelo caráter comunitário do comportamento dos
analfabetos entre si. Eles não só passam de indivíduos inexpressivos
e confusos, como freqüentemente aparecem na sociedade mais ampla,
a pessoas expressivas e inteligentes dentro de seu próprio grupo mas,
além disso, expressam-se em termos institucionais. Têm, entre si, um
uiriverso de respostas. Formam e reconhecem símbolos de prestígio
e desonra; avaliam situações relevantes em termos de suas próprias
normas e seu próprio idioma e, em suas relações mútuas, deixam cair
a máscara de ajuste acomodativo." 41
Outro exemplo, o daqueles que têm dificuldades de audição:
"Lembrava-me de como era tranqüilizador, na Escola Nitchie, estar com pessoas que admitiam a existência de dificuldades auditivas. Gostaria de conhecer pessoas que aceitassem os aparelhos de audição. Como gostaria de poder ajustar o controle de meu transmissor sem me preocupar com alguém que esteja me olhando. Poder deixar de pensar, por um momento, se o cordão que passa atrás de meu pescoço está à mostra. Que delícia gritar para alguém: 'Santo Deus, minha bateria está descarregada!"42
Entre seus iguais, o indivíduo estigmatizado pode ntilizar sua desvantagem como uma base para organizar
41 H. Freeman e G. Kasenbaum, "The Illiterate ia America", Social Forces, XXXIV (1956), p. 374.
42 Warfield, op. cit., p. 60.
w
30 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 3t1
sua vida, mas para consegui-lo deve-se resignar a viver num mundo incompleto. Neste, poderá desenvolver até o último ponto a triste história que relata a possessão do estigma. As explicações que os deficientes mentais dão para a sua entrada na instituição correspondente forne cem um exemplo:
(1) "Me misturei com uma quadrilha. Uma noite estávamos roubando um posto de gasolina e a polícia me apanhou. Não pertenço'
a este lugar." (2) "Olhe, eu não deveria estar aqui. Sou epiléptico,,
não tenho nada a ver com esta gente." (3) "Meus pais me odeiam
e me puseram aqui dentro." (4) "Dizem que sou louco. Não sou louco,
mas mesmo que o fosse não deveria estar aqui com estes subdotados."
Por outro lado, ele pode descobrir que os relatos de seus companheiros de sofrimento o aborrecem e tudo o que implique centrar-se em histórias de atrocidades, na superioridade do grupo, ou em histórias de embusteiros, em suma, no "problema", é um dos maiores castigos por ter um estigma. Por trás dessa focalização do problema há, é claro, uma perspectiva não muito diferente da dos normais à medida que está especializada em um setor:
"Todos parecemos propensos a identificar as pessoas com as características que para nós são importantes, ou que consideramos como de importância geral. Se se perguntar a alguém quem era Franklin D. Roosevelt, a resposta provavelmente será que ele foi o trigésimo segundo presidente dos Estados Unidos e não que ele era um homem que sofria de poliomielite, embora muitas pessoas, é claro, pudessem mencionar a poliomielite como informação suplementar, considerando interessante o fato de que ele tenha conseguido abrir caminho até a Casa Branca a despeito de sua desvantagem. O aleijado, entretanto provavelmente pensará na poliomielite do Sr. Roosevelt logo que ouvir o seu nome."
No estudo sociológico das pessoas estigmatizadas,
o interesse está geralmente voltado para o tipo de vida coletiva, quando esta existe, que levam aqueles que pertencem a uma categoria particular. Aqui, certamente, se
R. Edgerton e G. Sabagh, "From Mortification to Aggrandizement: Changing Self-Concepts in the Careers of Mentally Re-. tarded", Psychiatr'y, XXV (1962), 268. Para comentários adicionais sobre relatos tristes, ver E. Goffman, "The Moral Career of the Mental Patient", Psychiatry, XXII (1959), 133-134.
Carling, op. cit., pp. 18-19.
encontra um catálogo completo dos tipos de formação de grupo e de função de grupo. Há pessoas que possuem deficiências de fala cuja peculiaridade aparentemente desencoraja qualquer tentativa de formação grupal ou algo semelhante.45 Nos limites do desejo de se unir estão ex-pacientes mentais - apenas um número relativamente pequeno deles está, em geral, disposto a sustentar clubes de saúde, apesar dos rótulos inócuos que permitem que seus membros se agrupem sob um título comum.4° Além disso há os clubes de ajuda mútua para os divorciados, os velhos, os obesos, os que se encontram em situação de desvantagem física,47 os que sofreram uma ileostomia ou uma colostomia.48 Há clubes residenciais, subvencionados por contribuições voluntárias de diversos graus, formados para ex-alcoólatras e ex-viciados. Há associações nacionais como a AA* que fornecem a seus membros uma doutrina completa e quase que um estilo de vida. Essas associações são, quase sempre, o ponto máximo de anos. de esforço por parte de pes3as e grupos situados em diversas posições e constituem um objeto de estudo exemplar enquanto movimentos sociais.49 Existem redes de
45 E. Lemert, Social Pathology (Nova York, McGraw-HiIl Book Company), 1951, p. 151.
40 II. Wechsler nos fornece um exame geral, em "The Expatient
Organization: A Survey", Joumal of Social Issues, XVI, 1960,
47-53. Os títulos incluem: Recuperação Inc., Busca, Clube 103,
Fundação Casa da Fonte, Clube de Confraternização São Francisco,
Clube Central. Para um estudo de uns desses clubes, ver D. Landy
e S. Singer, "The Social Organization and Culture of a Club for
Former Mental Patients", Human Relations, XIV (1961), 31-41.
Ver também M. B. Palmer, "Social Rehabilitation for Mental
Patients", Mental Hygiene, XLII (1958), 24-28. 47 Ver Baker, op. cit., pp. 158-159.
48 D. R. White, "Tenho uma ileostomia.... Quisera não tê-la. Mas aprendi a Aceitá-la e Viver uma Vida Normal e Completa", American Journctl of Nursing, LXI (1961), 52: "Nesse momento existem clubes de ileostomia e colostomia em 16 estados e no Distrito de Colúmbia, assim como na Austrália, Canadá, Inglaterra e África do Sul".
(*) Alcoólatras Anônimos. (N. do T.)
Warfield, op. cit., pp. 135-136, descreve uma comemoração realizada em 1950, cm Nova York, pelo movimento das pessoas com dificuldades auditivas, no qual estavam presentes todas as gerações sucessivas de dirigentes, assim como representantes de cada uma das organizações originalmente separadas. Uma recapitulação completa da história do movimento pôde, assim, ser obtida. Para observações sobre a história internacional do movimento, ver
32 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 33
ajuda mútua formadas por ex-presidiários de um mesmo reformatório ou prisão, das quais um exemplo é a sociedade tácita de foragidos do sistema penal francês da Guiana Francesa que se diz existir na América do Sul; 50 mais tradicionalmente, há redes de relações, compostas de indivíduos que se conhecem (ou que estão indiretamente relacionados), a que parecem pertencer alguns criminosos e homossexuais. Há também meios urbanos que possuem um núcleo de instituições de serviço que fornecem base territorial para prostitutas, viciados, hornossexuais, alcoólatras e outros grupos desacreditados, sendo esses estabelecimentos, algumas vezes, compartiihados por várias classes de proscritos e, outras vezes, não. Finalmente, dentro da cidade, existem comunidades residenciais desenvolvidas, étnicas, raciais ou religiosas, com uma alta concentração de pessoas tribalmente estigmatizadas e (diferentemente de muitas outras formações de grupos entre os estigmatizados) tendo a família, e não o indivíduo, como unidade básica de organização.
Aqui, é claro, há uma confusão conceitual muito comum. O termo "categoria" é perfeitamente abstrato e pode ser aplicado a qualquer agregado, nesse caso a pessoas com um estigma particular. Grande parte daqueles que se incluem em determinada categoria de estigma podem-se referir à totalidade dos membros pelo termo "grupo" ou um equivalente, como "nós" ou "nossa gente". Da mesma forma, os que estão fora da categoria podem designar os que estão dentro dela em termos grupais. Em tais casos, entretanto, é muito comum que o conjunto total de membros não constitua parte de um único grupo em sentido estrito, já que não tem capacidade para a ação coletiva nem um padrão estável e totalizador de interação mútua. O que se sabe é que os membros de uma categoria de estigma particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos membros derivam todos da mesma categoria, estando esses próprios grupos sujeitos a uma organização que os engloba em maior ou menor medida. E observa-se também que quando ocorre que um membro da categoria entra em contato com
X. W. Hodgson, The Deaj cnd their Problems (Nova York: Philosophical Library, 1954), p. 352.
50 Relatado em F. Poli, Gentiemen Convicts (Londres: Rupert Eart-Davis, 1960).
outro, ambos podem dispor-se a modificar o seu trato
mútuo, devido à crença de que pertencem ao mesmo
"grupo". Além disso, fazendo parte da categoria um
indivíduo pode ter uma probabilidade cada vez maior de
entrar em contato com qualquer outro membro e, mesmo,
• de entrar em relação com ele, como resultado. Uma ca tegoria então, pode funcionar no sentido de favorecer
entre seus membros as relações e formação de grupo mas
sem que seu conjunto total de membros constitua um
grupo - sutileza conceitual que daqui em diante nem
sempre será observada neste livro.
Quer as pessoas que têm um estigma particular forneçam ou não a base de recrutamento para uma comunidade ecologicamente consolidada de alguma maneira, elas provavelmente subvencionarão agentes e agências que as apresentem. ( interessante que não tenhamos uma palavra para designar, de maneira precisa, os componentes, seguidores, partidários, subordinados ou defensores de tais representantes.) Os membros podem, por exemplo, ter um escritório ou uma antecâmara da qual promovem seus casos frente ao governo ou à imprensa; a diferença é estabelecida pelo indivíduo colocado à frente da mesma: uma pessoa igual a eles, um "nativo" que está realmente a par das coisas, como ocorre com os cegos, os surdos, os alcoólatras e os judeus, ou alguém que pertence ao outro lado, como fazem os presidiários ou os deficientes mentais.51 (Os grupos de ação que servem à mesma categoria de pessoas estigmatizadas podem, s vezes, estar em ligeira oposição uns em relação aos outros e essa oposição freqüentemente reflete uma diferença entre a direção a cargo dos "nativos" e a direção a cargo dos normais.) Uma tarefa característica desses representantes é convencer o público a usar um rótulo social mais flexível à categoria em questão:
"Atuando segundo essa crença, o corpo de membros da Liga (Liga Nova-lorquina para as Pessoas com Dificuldades de Audição) concordou em só usar certos termos, como pessoa com dificuldades de audição, com audição reduzida ou com perda de audição, e em eliminar a palavra surdo de suas conversas, correspondência e outros escritos, de seu trabalho de ensino e de seus discursos em público. O
51 Por exemplo, ver Chevigny, op. cit., Cap. 5, onde a situação é apresentada em referência aos cegos.
34 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 35
procedimento deu resultado. A cidade de Nova York em geral comaçou gradualmente a usar o novo vocabulário. Uma apreciação objetiva estava a caminho. 52
Outra de suas tarefas usuais é a de aparecerem como "oradores" perante diversas platéias de normais e estigmatizados; elas apresentam o caso em nome dos estigmatizados e, quando elas próprias são "nativas" do grupo, fornecem um modelo vivido de uma realização plenamente normal; são heróis da adaptação, sujeitos a recompensas públicas por provar que um indivíduo desse tipo pode ser uma boa pessoa.
Freqüentemente, as pessoas que têm um estigma particular patrocinam algum tipo de publicação que expressa sentimentos compartilhados, consolidando e estabilizando para o leitor a sensação da existência real de "seu" grupo e sua vinculação a ele. Nestas publicações a ideologia dos membros é formulada - suas queixas, suas aspirações, sua política. São citados os nomes de amigos e inimigos conhecidos do grupo, junto com informações que confirmam a bondade ou a maldade dessas pessoas. Publicam-se histórias de sucesso, lendas de heróis de assimilação que penetraram em novas áreas de aceitação dos normais. São recordados contos de horror, antigos e modernos, que mostram a que extremos podem chegar os abusos cometidos pelos normais. São publicados, como exemplo, histórias de fundo moral sob a forma de biografias ou autobiografias que ilustram um código desejável de conduta para os estigmatizados. A publicação serve ainda como um tribunal onde se apresentam opiniões divergentes quanto à maneira mais adequada de se manipular a situação dos estigmatizados. Se o defeito do indivíduo requer um equipamento especial, é aqui que ele é anunciado e analisado. Os leitores de tais publicações constituem um mercado para livros e panfletos que apresentam linha semelhante.
Ë importante enfatizar que, na América pelo menos, não importa se uma categoria particular de estigmatizados é pequena ou está em má situação: o ponto de vista de seus membros terá provavelmente algum tipo de representação pública. Pode-se, então, afirmar que os americanos estigmatizados tendem a viver num mundo
2 Warfield, op. ct., p. 78.
definido literariamente por menos cultos que sejam. Se eles não lêem livros sobre a situação de pessoas como eles próprios, pelo menos lêem revistas e vêem filmes; e, quando não podem fazê-lo, escutam os membros do grupo, porta-vozes do problema, em sua localidade. Uma versão intelectualmente elaborada de sua perspectiva é, assim, acessível à maioria das pessoas estigmatizadas.
Ë necessária aqui uma explicação sobre aqueles que vêm a atuar como representantes de uma categoria estigmatizada. São pessoas com estigma que têm, de início, um pouco mais de oportunidades de se expressar, são um pouco mais conhecidas ou mais relacionadas do que os seus companheiros de sofrimento e que, depois de um certo tempo, podem descobrir que o "movimento" absorve todo o seu dia e que se converteram em profissionais. Esse ponto é exemplificado por um indivíduo com dificuldade de audição:
"Em 1942 eu passava quase todos os dias na Liga. Às segundas-feiras eu costurava com a Unidade da Cruz Vermelha. Às terças. trabalhava no escritório, batendo à máquina e manipulando arquivo, operando a mesa telefônica quando necessário. Nas tardes de quarta-feira eu ajudava o médico na clínica de prevenção da surdez pertencente à Liga, no Hospital de Olhos e Ouvidos de Manhattan, uma tarefa que me agradava particularmente: tratava-se de escrever as histórias das crianças que, devido a resfriados, otites, infecções e doenças infantis - cujos efeitos posteriores eram potencialmente prejudiciais para a audição - obtinham benefícios de novos conhecimentos, novos remédios e novas técnicas otológicas, o que lhes permitiria provavelmente crescer sem algodões nos ouvidos. Nas tardes de quinta-feira, eu assistia às aulas de leitura labial para os adultos, e depois todos nós jogávamos baralho e tomávamos chá. Às sextasfeiras, eu trabalhava no Boletim. Aos sábados eu fazia chocolate e sanduíches de salada de ovo. Uma vez por mês eu assistia ao encontro das Senhoras Auxiliares, um grupo voluntário organizado em 1921 pela Senhora Wendell Phillips e outras esposas de otólogos interessados em arrecadar fundos, aumentar o número de sócios e representar a Liga socialmente. Organizava a Festa de Todos os Santos para as crianças de seis anos e ajudava a servir a ceia no Dia de Ação de Graças dos Veteranos. Na época de Natal redigia pedidos de contribuição, ajudava a sobrescritar os envelopes e a colar os selos. Colocava as cortinas novas e consertava a velha mesa de pingue-pongue; acompanhava os jovens ao baile de São Valentim e ficava encarregada de uma barraca de vendas durante a Feira da Páscoa."
Warfield, op. cit., pp. 73-74; ver também Cap. 9, pp. 129-158, onde aparece uma espécie de confissão relativa à vida profissional. Para a descrição da vida de um mutilado profissional, ver H. Russeil, Vzctory in My Hands (Nova York, Creative Age Press, 1949).
36 ESTIGMA
Pode-se acrescentar que desde que uma pessoa com um estigma particular alcança uma alta posição financeira, política ou ocupacional - dependendo a sua importância do grupo estigmatizado em questão - é possível que a ela seja confiada uma nova carreira: a de representar a sua categoria. Ela encontra-se numa posição muito eminente para evitar ser apresentada por seus iguais como um exemplo deles próprios. (A fraqueza de um estigma pode, assim, ser medida pela forma pela qual um membro da categoria, por mais importante que seja, consegue evitar estas pressões.)
Sobre esse tipo de profissionalização são, em geral, formuladas duas observações. Em primeiro lugar, ao fazer de seu estigma uma profissão, os líderes "nativos" são obrigados a lidar com representantes de outras categorias, descobrindo, assim, que estão rompendo o círculo fechado de seus iguais. Em vez de se apoiar em suas muletas, utilizam-nas para jogar golfe, deixando de ser, em termos de participação social, os agentes das pessoas que eles representam.e4
Em segundo lugar, os que apresentam profissional- mente a opinião de sua categoria podem introduzir certas parcialidades sistemáticas em sua exposição apenas porque estão demasiadamente envolvidos no problema para poderem escrever sobre ele. Embora qualquer categoria possa ter profissionais que seguem linhas diversas, e mesmo subvencionar publicações que defendem programas diferentes, há um acordo tácito uniforme de que a situação do indivíduo com esse estigma particular merece atenção. Quer um escritor leve um estigma muito a sério ou o considere não muito importante, deve defini-lo como algo sobre o que vale a pena escrever. Esse acordo mínimo, mesmo quando não há outros, serve para consolidar a crença no estigma como uma base para a autocompreensão. Nesse caso, novamente, os representantes não são representativos, porque a representação nunca vem dos que não dão atenção a seu estigma ou que são relativamente analfabetos.
5 Desde o início tais líderes podem ser recrutados entre os membros das categorias que ambicionam deixar de viver como seus iguais e que são relativamente capazes de fazê-lo, dando lugar ao que Lewin (ou. cit., pp. 195-196) chamou de "Liderança da Periferia".
ESTIGMA E IDENTIDADE Soci 37
Não pretendo sugerir com isso que os profissionais são o único recurso público que os estigmatizados têm para denunciar a sua situação de vida; há outros recursos. Cada vez que alguma pessoa que tem um estigma particular alcança notoriedade, seja por infringir a lei, ganhar um prêmio ou ser o primeiro em sua categoria, pode-se tornar o principal motivo de tagarelice de uma comunidade local; esses acontecimentos podem até mesmo ser notícia nos meios de comunicação da sociedade mais ampla. De qualquer forma, todos os que compartilham o estigma da pessoa em questão tornam-se subitamente acessíveis para os normais que estão mais imedia tamente próximos e tornam-se sujeitos a uma ligeira transferência de crédito ou descrédito. Dessa maneira, sua situação leva-os facilmente a viver num mundo de heróis e vilãos de sua própria espécie, sendo a sua relação com esse mundo sublinhada por pessoas próximas, normais ou não, que lhes trazem notícias do desempenho de indivíduos de sua categoria.
Considerei que há um conjunto de indivíduos dos quais o estigmatizado pode esperar algum apoio: aqueles que compartilham seu estigma e, em virtude disto, são definidos e se definem como seus iguais. O segundo conjunto é composto - tomando de empréstimo um termo utilizado por homossexuais - pelos "informados", ou seja, os que são normais mas cuja situação especial levou a privar intimamente da vida secreta do indivíduo estigmatizado e a simpatizar com ela, e que gozam, ao mesmo tempo, de uma certa aceitação, uma certa pertinência cortês ao clã. Os "informados" são os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem um defeito não precisa se envergonhar neni se autocontrolar, porque sabe que será considerado como uma pessoa comum. Pode-se citar um exemplo tomado do mundo das prostitutas:
"Embora despreze a respeitabilidade, a prostituta, particularmente a cail giri, é aUamente sensível à sociedade bem-educada e procura refugiar-se, em suas horas vagas, no seio de artistas, escritores, atores e pseudo-intelectuais boêmios, onde é aceita como uma personalidade não convencional, sem ser uma curiosidade." 55
5 J. Stearn, Sisters of the Night (Nova York: Popular Library, 1961), p. 181.
38 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SocIAL 39
Antes de adotar o ponto de vista daqueles que têm um estigma particular, a pessoa normal que está se convertendo em "informada" tem, primeiramente, que passar por uma experiência pessoal de arrependimento sobre a qual existem numerosos registros literários.56 E depois que o simpatizante normal coloca-se à disposição dos estigmatizados deverá aguardar, com certa freqüência, a sua validação como membro aceito. A pessoa não deve apenas se oferecer mas deve, também, ser aceita. Algumas vezes, é claro, a iniciativa do último passo parece ser tomada pelo normal; o que se segue é um exemplo deste ponto.
"Não sei se posso fazê-lo ou não, mas deixem-me contar um incidente. Certa vez fui admitido em um grupo de meninos negros que tinham aproximadamente a minha idade e com os quais eu costumava ir pescar. Quando comecei a sair com eles, o termo "negro' era cuidadosamente utilizado em minha presença. Aos poucos, na medi6la em que saíamos juntos para pescar com cada vez maior freqüência, eles começaram a brincar entre si e a chamar uns aos outros de "preto". * A mudança real estava na utilização que eles faziam da palavra "preto" quando brincavam, palavra que anteriormente nem sequer era mencionada.
Um dia, quando estávamos nadando, um menino me empurrou, fingindo violência e eu lhe disse: 'Não me venha com essa, papo de preto.' Ele respondeu: 'Filho da Mãe' com um grande sorriso. A partir desse momento, todos podíamos empregar a palavra "preto", mas as velhas categorias haviam mudado totalmente, Nunca esquc-cerei, enquanto viver, a sensação de meu estômago após haver usado a palavra "preto" sem qualquer restrição." 5
Um tipo de pessoa "informada" é aquele cuja informação vem de seu trabalho num lugar que cuida não só
6 N. Mailer, "The Homossexual Villain", em Advertisements for Myself (Nova York, Signet Book, 1960), pp. 200-205, nos dú um modelo de confissão detalhando o ciclo básico de intolerância, experiência esclarecedora e, finalmente, retratação do preconceito através da confissão pública. Ver também a introdução de Angus Wilson a Carling, op. cit., para uma história confessional da redefinição que Wilson faz dos inválidos.
* A diferenciação feita no original é entre "negro" e "nigger", que traduzi respectivamente por "negro" e "preto". Em inglês a palavra "nigger" tem um sentido altamente depreciativo quando usada por brancos em referência a negros, mas não tem necessariamente esse sentido quando usada entre negros. (N. do T.)
Ray Birdwhistell, em B. Schaffner, ed., Group Processes, Transactions of the Second (1955) Conference (Nova York: Josiah Macy, Jr. Foundation, 1956), p. 171.
das necessidades daqueles que têm um estigma particular quanto das ações empreendidas pela sociedade em relação a eles. Por exemplo, as enfermeiras e os terapeutas podem ser "informados"; eles podem vir a saber mais sobre um determinado tipo de equipamento de prótese do que o paciente que deve utilizá-lo para minimizar sua deformação. Os empregados atenciosos de lojas de doces e balas freqüentemente SãO "informados", assim como o são os garçons de bares de homossexuais e as empregadas das prostitutas de Mayfair.58 A polícia, devido ao fato de ter que lidar constantemente com criminosos, pode se tornar "informada" em relação a eles, levando um profissional a declarar que "... de fato os policiais são as únicas pessoas que, além de outros criminosos, o aceitam pelo que ele é".5°
Um segundo tipo de pessoa "informada" é o indivíduo que se relaciona com um indivíduo estigmatizado através da estrutura social - uma relação que leva a sociedade mais ampla a considerar ambos como uma só pessoa. Assim, a mulher fiel do paciente mental, a filha do ex-presidiário, o pai do aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco,6° todos estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se relacionam. Uma resposta a esse destino é abraçá-lo e viver dentro do mundo do familiar ou amigo do estigmatizado. Dever-se-ia acrescentar que as pessoas que adquirem desse modo um certo grau de estigma podem, por sua vez, relacionar-se com outras que adquirem algo da enfermidade de maneira indireta. Os problemas enfrentados por uma pessoa estigmatizada espalham-se em ondas de intensidade decrescente. Pode-se verificar isto por uma coluna de conselhos de um jornal:
"Querida Ana Landers:
Sou uma menina de 12 anos que é excluída de toda atividade social porque meu pai é um ex-presidiário. Tento ser amável e simpática com todo mundo mas não adianta. Minhas colegas de escola me disseram que suas mães não querem que elas andem comigo pois isso não seria bom para a sua reputação. Os jornais fizeram publici58 e. H. Rolph, ed., Women of the Streets (Londres, Secker
& Warburg, 1955), pp. 78-9.
59 Parker e ,Ailerton, op. cit., p. 150.
60 J. Atholl, The Reluctant Hangman (Londres: John Long
Ltd., 1956), p. 61.
40 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE Soc 41
dade negativa de meu pai e apesar de ele ter cumprido sua pena ninguém esquecerá do fato.
Há algo que eu possa fazer? Estou muito triste porque não gosto de estar sempre sozinha. Minha mãe procura fazer com que eu saia com ela, mas quero a companhia de pessoas da minha idade Por favor, dê-me algum conselho.
UMA PROSCRITA."Cl
Em geral, a tendência para a difusão de um estigma do indivíduo marcado para as suas relações mais próximas explica por que tais relações tendem a ser evitadas ou a terminar, caso já existam.
As pessoas que têm um estigma aceito fornecem um modelo de "normalização" 62 que mostra até que ponto podem chegar os normais quando tratam uma pessoa estigmatizada como se ela fosse um igual. (A normalização deve ser diferençada da "normificação", ou seja, o esforço, por parte de um indivíduo estigmatizado, em se apresentar como uma pessoa comum, ainda que não esconda necessariamente o seu defeito.) Além disso, pode ocorrer um culto do estigmatizado, sendo a resposta estigmafóbica dos normais neutralizada pela resposta estigmáfila dos "informados". As pessoas que têm um estigma aceito podem colocar tanto o estigmatizado quanto o normal numa posição desconfortável: estando sempre prontos a suportar a carga do que não é "realmente seu", podem colocar os demais frente a uma moralidade excessiva; tratando o estigma como uma questão neutra, que deve ser encarada diretamente e sem rodeios, expõem a si mesmos e aos estigmatizados a uma interpretação errônea, já que os normais podem notar uma certa agressividade neste comportamento.63
A relação entre o estigmatizado e seu aliado pode ser difícil. A pessoa que tem um defeito pode sentir que a qualquer momento pode haver uma volta ao estado anterior, sobretudo quando as defesas diminuem e a dependência aumenta. Nas palavras de uma prostituta:
6.1 Bei-keley Dctily Gazette, 12 de abril de 1961.
2 Esta idéia deriva de C. G. Schwartz, "Perspectives on Deviance Wives' Definjtjons of their Husbands' Mental Illness", Psychiatrij, XX (1957), 275-291.
63 Para um exemplo em relação aos cegos, ver A. Gowman, "Blindness and the Role of the Conanion", Social Problems, 1V (1956), 68-75.
"Bem, eu queria ver o que aconteceria se eu nis adiantasse aos fatos. Expliquei a ele que se estivéssemos casados e brigássemos, ele colocaria a culpa em mim. Ele disse que não, mas os homens são assim mesmo." 64
Por outro lado, o indivíduo que tem um estigma de cortesia pode descobrir que deve sofrer da taior parte das privações típicas do grupo que assumiu e, ainda. assim, que não pode desfrutar a auto-exaltação que é a defesa comum frente a tal tratamento. Além disso, de maneira semelhante à que ocorre com o estigmatizado em relação a ele, pode duvidar de que, em última anuse, seja realmente "aceito" pelo grupo.65
A Carreira Moral
As pessoas que têm um estigma particular tendem a ter experiências semelhantcs de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu - uma "carreira moral" semelhante, que. é não só causa como efeito do compromisso com uma seqüência semelhante de ajustamentos pessoais. (A história natural de uma categoria de pessoas com um estigma deve ser claramente diferençada da história natural do próprio estigma - a história das origens, difusão e de clínio da capacidade de um atributo servir como estigma numa sociedade particular, por exemplo, o divórcio na classe rndia alta da sociedade americana.) Uma das fases desse processo de socialização é aquela na qual a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação à identidade e uma idéia geral do que significa possuir um estigma particular. Uma outra fase é aquela na qual ela aprende que possui um estigma particular e, dessa vez detalhadamente, as conseqüências de possuí-lo. A sincronização e interação dessas duas fases iniciais da carreira moral formam modelos importantes, estabelecendo as bases para um desenvolvimento posterior, e fornecendo meios de distinguir entre
Stearn, op. çit., p. 99.
6 A gama de possibilidades é muito bem explorada em C. Brossard, "Plaint of a Gentile Inteilectual", em Brossard, ed., The Scene Bel ore You (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 195), pp. 87-91
42 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 43
as carreiras morais disponíveis para os estigmatizados. Podem-se mencionar quatro desses modelos.
Um deles envolve os que possuem um estigma congênito e que são socializados dentro de sua situação de desvantagem, mesmo quando estão aprendendo e incorporando os padrões frente aos quais fracassam.'36 Por exemplo, um órfão aprende que é natural e normal que as crianças tenham pais e aprende, ao mesmo tempo, o que significa não tê-lo. Depois de passar os primeiros 16 anos de sua vida na instituição ele pode sentir ainda, mais tarde, que sabe a significação de um pai para seu filho.
Um segundo modelo deriva da capacidade de uma família e, em menor grau, da vizinhança local,, em se constituir numa cápsula protetora para seu jovem membro. Dentro de tal cápsula, uma criança estigmatizada desde o seu nascimento pode ser cuidadosamente protegida pelo controle de informação. Nesse círculo encantado, impede-se que entrem definições que o diminuam, enquanto se dá amplo acesso a outras concepções da sociedade mais ampla, concepções que levam a criança encapsulada a se considerar um ser humano inteiramente qualificado que possui uma identidade normal quanto a questões básicas como sexo e idade.
O momento crítico na vida do indivíduo protegido, aquele em que o círculo doméstico não pode mais protegê-lo, varia segundo a classe social, lugar de residência e tipo de estigma mas, em cada caso, a sua aparição dará origem a uma experiência moral. Assim, freqüentemente se assinala o ingresso na escola pública como a ocasião para a aprendizagem do estigma, experiência que às vezes se produz de maneira bastante precipitada no primeiro dia de aula, com insultos, caçoadas, ostracismo e brigas.°'
interessante notar que, quanto maiores as "desvantagens" da criança, mais provável é que ela seja enviada para uma escola de pessoas de sua espécie e que conheça mais rapidamente a opinião que o público em geral tem
66 Para uma discussão deste modelo, ver A. R. Lindesmith e
A. L. Strauss, Social Psychologv, ed. revista (Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1956), pp. 180-183.
67 Pode-se encontrar um exemplo da experiência de uma pessoa cega em R. Criddle, Love Is Not Blind (Nova York: W. W. Norton & Co., 1953), p. 21; a experiência de uma pessoa anã é relatada em H. Viscardi, Jr., A Man'8 Stctture (Nova York, The John Day Co., 1952), pp. 1344.
dela. Dir-lhe-ão que junto a "seus iguais" se sentirá melhor, e assim aprenderá que aquilo que considerava como o universo de seus iguais estava errado e que o mundo que é realmente o seu é bem menor. Deve-se acrescentar que quando, na infância, o estigmatizado consegue atravessar seus anos de escola ainda com algumas ilusões, o estabelecimento de relações ou a procura de trabalho o colocarão, amiúde, frente ao momento da verdade. Em alguns casos, o que ocorre é uma crescente probabilidade de revelação incidental:
"Creio que a primeira vez que realmente me dei conta de minha situação e a primeira dor profunda que ela me causou foi num dia, casualmente, quando estava na praia com o meu grupo de amigos d, início da adolescência. Eu estava deitada na areia e acho qu os rapazes e moças pensaram que eu estivesse dormindo. Um deles disse, então: 'Gosto muito de Domenica, mas nunca sairia com uma garota cega.' Não conheço nenhum preconceito que rejeite uma pessoa de maneira tão absoluta." 68
Em outros casos, o que está envolvido é uma sistemática exposição ao perigo, como sugere uma vítima de paralisia cerebral:
"Com uma exceção extremamente dolorosa, durante o período em que estive sob a custódia protetora da vida familiar ou dos programas da Universidade e vivi sem exercer meus direitos como um cidadão adulto, as forças da sociedade foram cordiais e benévolas. Foi após ter saído da Universidade e da Escola de Comércio e depois de haver realizado um esforço incalculável como trabalhador voluntário em programas comunitários, que mergulhei nas superstições e preconceitos medievais do mundo dos negócios. Procurar trabalho era semelhante a estar frente a um pelotão de fuzilamento. Os empregadores ficavam chocados com meu descaramento em procurar emprego." 69
Um terceiro modelo de socialização é exemplificado pelos que se tornam estigmatizados numa fase avançada da vida ou aprendem muito tarde que sempre foram desacreditáveis - o primeiro caso não envolve uma reorganização radical da visão de seu passado, mas o segundo sim. Tais indivíduos ouviram tudo sobre normais e estigmatizados muito antes de serem obrigados a considerar a si próprios como deficientes. Ë provável que tenham um
68 Henrich e Kriegel, op. cit., p. 186.
69 Ibid., p. 156.
44 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 45
problema todo especial em identificar-se e uma grande facilidade para se autocensurarem:
"Antes da colostomia, todas as vezes em que eu percebia um cheiro no onibus ou no metrô, ficava muito aborrecido. Eu achava que as pessoas eram horríveis, que não tomavam banho ou que deveriam ter ido ao banheiro antes de viajar. Costumava pensar que a causa do jheiro estava nos alimentos que elas ingeriam e me sentia profundamente enojado. Para mim elas eram pessoas sujas, imundas. È lógico que na primeira oportunidade mudava de lugar ou, se isto não era possível, mostrava toda a minha repugnância. 1or isso, acredito que as pessoas mais jovens sintam em relação ao meu cheiro a mesma coisa que eu sentia." 70
Embora haja alguns casos de indivíduos que só na vida adulta descobrem que pertencem a um grupo tribal estigmatizado ou que seus pais possuem um defeito moral contagioso, o mais comum é o de desvantagens físicas. que "surgem inesperadamente" quando se é mais velho:
"Mas, de repente, acordei uma manhã e descobri que não conseguia ficar de pé. Eu tinha poliomielite e a poliomielite é simplesmente assim. Sentia-me como uma criança pequena que é jogada dentro de enorme poço negro, e a única coisa de que tinha certeza era que eu não poderia me levantar a não ser que alguém me ajudasse. Parece que a educação, as aulas e os ensinamentos de meus pais que recebi durante 24 anos não me tornaram uma pessoa capaz de ajudar-se a si mesma. Eu era uma pessoa igual a qualquer outra
- normal, combativa, alegre, cheia de projetos - e, de repente, aconteceu alguma coisa! Aconteceu e eu tornei-me um estranho. Muito mais estranho para mim mesmo do que para os demais. Nem meus sonhos me conheciam, não sabiam o que podiam me deixar fazer - quando contava que ia a festas ou bailes, havia sempre uma estranha condição ou limitação, sempre a mesma, não exnlicitada nem mencionada. Tive imediatamente o mesmo enorme conflito mental e emocional de uma mulher que leva vida dupla. Tudo isso era irreal e me deixava muito confuso mas eu não podia deixar de dar-lhe importância." 71
Nesse caso, é provável que os médicos sejam as pessoas mais indicadas para informar ao doente sobre sua situação futura.
Um quarto modelo é ilustrado por aqueles que, micialmente, são socializados numa comunidade diferente, dentro ou fora das fronteiras geográficas da sociedade
70 Orbach et ai., op. cit., p. 165.
71 N. Linduska, My Poiio Past (Chicago: Pellegrini & Cudahy,
1947), p. 177.
normal, e que devem, portanto, aprender uma segunda maneira de ser, ou melhor, aquela que as pessoas à sua volta consideram real e válida.
Deve-se acrescentar que quando um indivíduo adquire tarde um novo ego estigmatizado, as dificuldades que sente para estabelecer novas relações podem, aos poucos, estender-se às antigas. As pessoas com as quais ele passou a se relacionar depois do estigma podem vê-lo simplesmente como uma pessoa que tem um defeito; as amizades anteriores, à medida que estão ligadas a uma concepção do que ele foi, podem não conseguir tratá-lo, nem com um tato formal nem com uma aceitação familiar total:
"A minha tarefa (como escritor cego que entrevista futuros clientes de sua produção literária) consistia em fazer com que os homens que eu ia visitar se sentissem à vontade .- o inverso da situação habitual, O curioso é que eu achava esse procedimento muito mais fácil com homens que eu não havia conhecido antes. Talvez se devesse ao fato de que, com os estranhos, não havia recordações a ocultar antes de se tratar dos negócios e não havia, portanto, um desagradável contraste com o presente." 72
Sem considerar o modelo geral ilustrado pela carreira moral do indivíduo estigmatizado, é interessante considerar-se a fase de experiência durante a qual ele aprende que é portador de um estigma, porque é provável que nesse momento ele estabeleça uma nova relação com os outros estigmatizados.
Em alguns casos, o único contato que o indivíduo terá com os seus iguais é muito rápido, mas suficiente para mostrar-lhe que existem outras pessoas iguais a ele:
"Quando Tommy chegou na clínica pela primeira vez, havia ali dois meninos, ambos sem uma das orelhas por um defeto congênito. Quando Tommy os viu, levou vagarosamente a mão direita à sua orelha defeituosa e, com os olhos muito abertos, disse a seu pai:
Há outro menino com uma orelha igual à minha'." 3
No caso do indivíduo cuja desvantagem física é recente, seus companheiros de sofrimento que estão mais avançados do que ele na manipulação do defeito far-lhe-ão
72 Chevigny, op. cit., p. 136.
73 Macgregor et ai., op. cit., pp. 19-20.
46 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 47
provavelmente uma série de visitas para dar-lhe as boas vindas ao clube e para instruí-lo sobre o modo de adaptar-se física e psiquicamente:
"Na realidade, a primeira vez que tomei conhecimento de que há mecanismos de adaptação foi ao comparar dois companheiros meus, também pacientes do Hospital de Olhos e Ouvidos. Eles costumavam visitar-me quando estava deitado e cheguei a conhecê-los bastante bem. Ambos eram cegos há sete anos. Eles tinham mais ou menos a mesma idade - pouco mais de 30 anos - e haviam feito unversidade." 4
Nos muitos casos em que a estigmatização do indivíduo está associada com sua admissão a uma instituição de custódia, como uma prisão, um sanatório ou um orfanato, a maior parte do que ele aprende sobre o seu estigma ser-lhe-á transmitida durante o prolongado contato íntimo com aqueles que irão transformar-se em seus companheiros de infortúnio.
Como já se sugeriu, quando o indivíduo compreende pela primeira vez quem são aqueles que de agora em diante ele deve aceitar como seus iguais. ele sentirá, pelo menos, uma certa ambivalência porque estes não só serão pessoas nitidamente estigmatizadas e, portanto, diferentes da pessoa normal que ele acredita ser, mas também poderão ter outros atributos que, segundo a sua opinião, dificilmente podem ser associados ao seu caso. O que pode terminar como maçonaria, pode começar com um estremecimento. Uma garota que havia ficado cega recentemente, visita a Casa da Luz imediatamente após deixar o hospital:
"Minhas perguntas sobre um cachorro-guia foram polidamente deixadas de lado. Outro assistente social cego encarregou-se de me mostrar o lugar. Visitamos a biblioteca Brailie, as salas de aula, os saões do clube onde se reuniam os membros cegos dos grupos de música e teatro; a sala da recreação onde, em ocasiões festivas, os cegos dançavam, as quadras de jogos onde eles jogavam, o restaurante onde todos se reuniam para comer, as enormes oficinas onde trabalhavam para a subsistência fazendo panos de chão e escovas, tapetes, ou empalhando cadeiras. À medida que passávamos de um côm'-'do a outro, eu podia ouvir o barulho de pés que se arrastavam, vozes em surdina e toque-toque de bengalas. Aqui estava o mundo seguro e segregado dos que não enxergavam - um mundo comple tament
diferente, segundo me afirmou o assistente social, do que eu acabava de deixar...
Esperavam que eu integrasse esse mundo, que desistisse de minha profissão e ganhasse a vida fazendo panos de chão. A Casa da Luz ficaria muito feliz em me ensinar a fazê-los. Meu destino era passar o resto de minha vida fazendo panos de chão com outras pessoas cegas, comendo com outras pessoas cegas e dançando com outros cegos. Na medida em que esta imagem crescia em minha mente, o medo me dava ráuseas. Eu nunca havia deparado com uma segregação tão destrutiva." 75
Dada a ambivalência da vinculação do indivíduo com a sua categoria estigmatizada, é compreensível que ocorram oscilações no apoio, identificação e participação que tem entre seus iguais. Haverá "ciclos de incorporação" através dos quais ele vem a aceitar as oportunidades especiais de participação intragrupal ou a rejeitá-las depois de havê-las aceito anteriormente.76 Haverá oscilações correspondentes nas crenças sobre a natureza do- próprio grupo e sobre a natureza dos normais. Por exem p10, a adolescência (e o grupo de companheiros da escola secundária) pode acarretar um declínio acentuado da identificação intragrupal e um nítido aumento na identi ficação com os normais.77 As fases posteriores da carreira moral do indivíduo devem ser buscadas nessas mudanças de participação e crença. A relação do estigmatizado com a comunidade informal e as organizações formais a que ele pertence em função de seu estigma é, então, crucial. Essa relação, por exemplo, estabelecerá grande distância entre aqueles cuja diferença cria muito pouco de um novo "nós" e aqueles, como os membros de grupos minoritários, que se consideram parte de
Keitlen, op. cit., pp. 37-38. Liduska, op. cit., pp. 159-165, fornece uma descrição das primeiras vicissitudes da identificação que um paciente de poliomielite, hospitalizado, estabelece com outros aleijados. J. W. Johnson, em The Autobiography of an Er-Coloured Man (ed. rev., Nova York, Hili & Wang, American Century Series, 1960), pp. 22-23, oferece um relato, em forma de ficção, de uma reidentificação racial.
76 Pode-se encontrar um enunciado geral em dois trabalhos de
E. C. Hughes, "Social Change and Status Protest", Phylon, Primeiro
Trimestre, 1949, 58-65, e "Cycles and Turning Points", em Men and'
Their Work (Nova York: Free Prees of Glencoe, 1958).
77 M. Yarrow, "Personality Development and Minority Group Membership", em M. Sklare, The Jews (Nova York: Free Press of Glencoe, 1960), pp. 468-470.
74 op. cit., p. 35.
48 ESTIGMA
ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL 49
uma comunidade bem organizada com tradições estabelecidas - uma comunidade que formula consideráveis exigências de renda e lealdade, que define o membro como alguém que se deve orgulhar de sua doença e não buscar melhora. De qualquer forma, quer o grupo estigmatizado esteja ou não estabelecido, é, em grande parte, em relação a esse grupo-de-iguais que é possível discutir a história natural e a carreira moral do indivíduo estigmatizado.
Ao rever a sua própria carreira moral, o estigmatizado pode escolher e elaborar retrospectivamente as experiências que lhe permitem explicar a origem das crenças e práticas que ele agora adota em relação a seus iguais e aos normais. Um acontecimento em sua vida pode, assim, ter um duplo significado na carreira moral, em primeiro lugar-como causa objetiva imediata de uma crise real, e depois (e mais facilmente demonstrável), como meio para explicar uma posição comumente tomada. Uma ex •periênci selecionada quase sempre para esse último objetivo é aquela em que o indivíduo recentemente estigmatizado aprende que os membros mais antigos do grupo se parecem bastante com seres humanos comuns:
"Quando eu (uma jovem iniciante na prostitução e que ia se encontrar pela primeira vez com sua Madame) dobrei na Rua 4, tornei a perder a coragem e estava quase batendo em retirada quando Mamie sau de um restaurante, atravessou a rua e me cumprimentou afetuosamente, O porteiro, que veio abrir a porta quando tocamos a campainha, dsse que a Dona Laura estava em seu quarto e nos mostrou p caminho. Vi-me frente a uma mulher de boa aparência e de meia-idade que não tinha nada da criatura horrível que eu havia imaginado. Deu-me boas-vindas com uma voz suave e educada. Tudo nela evidenciava eloqüentemente as suas potencialidades para a maternidade que, instintivamente, procurei as crianças que deveriam estar penduradas em suas saias." 78
Outro exemplo é o de um homossexual que se refere .à sua mudança:
"Enconrtei um homem que havia sido meu colega de escola... Ele, é claro, era homossexual e tomou como certo que eu o era também. Eu estava surpreso e bastante impressionado. Ele não se parecia nem um pouco com a imagem popular de um homossexual,
78 Madeleine, an Autobiography (Nova York: Pyramid Books, ;1961), pp. 36-37.
pois era de boa compleição, viril e estava sobriamente vestido. Isso era algo de novo para mim. Embora eu estivesse perfeitamente preparado para admitir que poderia haver amor entre homens, sempre senti uma repulsa pelos homossexuais declarados que havia encontrado, devido à sua futilidade, sua maneira afetada e sua tagarelice sem fim. Compreendi, então, que esses formavam somente urna pequena parte do mundo homossexual, embora a mais fácil de ser percebida. . . "
Um aleijado nos fornece uma afirmação semelhante:
"Se eu tivesse de escolher um conjunto de experiências que finalniente me convenceram da importância desse problema (auto-imagem) e de que eu devia travar minhas próprias batalhas de identficação, esse conjunto englobaria os incidentes que me fizeram compreender profundamente que os aleijados podem ser identificados com outra características que não a sua desvantagem física. Dei-me conta de que os aleijados poderiam ser como qualquer outra pcssoa, de boa aparência, encantadores, feios, adoráveis, estúpidos, brilhantes, e descobri que eu poderia amar ou odiar um aleijado a despeito de sua &ficiência." 80
Deve-se acrescentar que ao refletir sobre o momento em que descobriu que as pessoas que têm o seu estigma são pessoas iguais a qualquer outra, o estigmatizado pode chegar a tolerar que os amigos que tinha antes do estigma considerem desumanos aqueles a quem ele aprendeu a ver como pessoas tão completas quanto ele. Assim, ao rever a sua experiência num circo, uma jovem percebe em primeiro lugar que ela aprendeu que seus companheiros de trabalho não são monstros e, em segundo lugar, que seus amigos anteriores ao circo tinham medo de que ela viajasse sozinha de ônibus junto com outros membros da troupe." 81
Uma outra crise - considerada retrospectivamente,
se não originalmente - é a experiência do isolamento
e da falta de habilitação, geralmente um período de hospitalização que mais tarde vem a ser considerado como
a época em que o indivíduo podia pensar em seu problema, aprender sobre si mesmo, adaptar-se à sua situa.
79 P. Wildeblood, Against the Lcew (Nova York: Julian Messner,
1959), pp. 23-24.
80 Carling, op. eit., p. 21.
81 C. Clausen, 1 Love You Honey But the Season's Over (Nova
York: Holt, Rineheart & Winston, 1961), p. 217.
ção e alcançar uma nova compreensão daquilo que È importante e merece ser buscado na vida.
Deve-se acrescentar que não só as experiências da pessoas são identificadas retrospectivamente com mo mentos decisivos, mas também as que já foram supe radas podem ser empregadas assim. Por exemplo, a lei tura da literatura do grupo pode dar uma e*periênci que é sentida e que se pretende que seja reorganizadora
"Não creio que seja muita pretensão dizer que Unelc Tom's CabiE era um panorama leal e verdadeiro da escravidão; seja como for esse livro abriu meus olhos em relação a quem e o que eu era E o que o meu país me considerava; na verdade, deu-me uma orien tação." 82
50
ESTIGMA
Johnson, op. cit., p. 42. A novela de Johnson, como outra novelas desse tipo, fornece um bom exemplo da elaboração de mitos organizando literariamente muitas das experiências morais cruciai e mudanças também cruciais a que estão sujeitos, retrospectivamente aqueles que estão numa categoria estigmatizada.
1-

2. CONTROLE DE INFORMAÇÃO e IDENTIDADE PESSOAL

O Desacreditado e o Desacreditável
Quando há uma discrepância entre a identidade social real de um indivíduo e sua identidade virtual, é possível que nós, normais, tenhamos conhecimento desse fato antes de entrarmos em contato com ele ou, então, que essa discrepância se torne evidente no momento em que ele nos é apresentados Esse indivíduo é uma pessoa desacreditada e foi dele, fundamentalmente, que me ocupei até agora. Como foi sugerido, é provável que não reconheçamos logo aquilo que o torna desacreditado e enquanto se mantém essa atitude de cuidadosa indiferença a situação pode-se tornar tensa, incerta e ambígua para todos os participantes, sobretudo a pessoa estigmatizada.
)' Uma possibilidade fundamental na vida da pessoa estigmatizada é a colaboração que presta aos normais no sentido de atuar como se a sua qualidade diferencial manifesta não tivesse importância nem merecesse atenção especial. Entretanto, quando a diferença não está imediatamente aparente e não se tem dela um conhecimento prévio (ou, pelo menos, ela não sabe que os outros a conhecem), quando, na verdade, ela é uma pessoa desacreditável, e não desacreditada, nesse momento é que aparece a segunda possibilidade fundamental em sua vida. A questão que se coloca não é a da manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais e. sim, da manipulação de informação sobre o seu defeito. Exibi-lo ou ocultá-lo; contá-lo ou não contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, para quem, como, quando e onde. Por exemplo, quando o paciente mental está no sanatório, e quando se encontra com mem -4
52 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 53
bros adultos de sua família ele é tratado com tato, como se fosse sadio quando, na realidade, há dúvidas sobre isso, mesmo que não de sua parte ou, então, ele é tratado como insano quando sabe que isso não é justo. Mas para o ex-paciente mental, o problema pode ser bem diferente; ao invés de encarar o preconceito contra si mesmo, ele deve considerar a sua aceitação involuntária pelos indivíduos que têm preconceitos contra o tipo de pessoa que ele pode revelar ser. Onde quer que ele vá, seu compor. tamento confirmará, falsamente, para as outras pessoas o fato de que eles estão em companhia do que eles na verdade esperam. Mas podem descobrir, na realidade, que isso não ocorre, ou seja, não se trata de uma pessoa mentalmente sadia como eles próprios. Deliberadamente ou não, o ex-paciente mental esconde informações sobre sua identidade social verdadeira, recebendo e aceitando um tratamento baseado em falsas suposições a seu respeito. A manipulação da informação oculta que desacredita o eu, ou seja, o "encobrimento", é o segundo problema geral que desejo focalizar nestas notas. Existe também o ocultamento de fatos positivos - encobrimento inverso - mas esse fato não é relevante para nós.1
A Informação Social
No estudo do estigma, a informação mais relevante tem determinadas propriedades. uma informação sobre um indivíduo, sobre suas características mais ou menos permanentes, em oposição a estados de espírito, sentimentos ou intenções que ele poderia ter num certo mo1 Para um exemplo de encobrimento invertido, ver "H. E. R.
Cules", "Ghost-Writer and Failure", em P. Toynbee, cd., Underdogs (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1961), Cap. 2, pp. 30-39. Ha muitos outros exemplos. Conheci uma médica que evitava usar sImbolos externos de seu statas, tal como plásticos de identificação no carro. O único lugar onde havia referência à sua profissão era num cartão de identificação que carregava em sua carteira. Quando se encontrava frente a um acidente na rua no qual a vítima já havia recebido socorro médico ou quando tal socorro era inútil, ela, depois de examinar a vítima a distância, do meio do círculo de pessoas que a rodeavam, seguia tranqüilamente o seu caminho sem mencionar a sua condição. Nessas situações ela era o que se pode chamar de uma "personificadora".
mento.2 Essa informação, assim como o signo que a transmite, é reflexiva e corporificada, ou seja, é transmitida pela própria pessoa a quem se refere, através da expressao corporal na presença imediata daqueles que a recebem. Aqui, chamarei de "social" à informação que possui todas essas propriedades. Alguns signos que transmicem informação social podem ser acessíveis de forma freqüente e regular, e buscados e recebidos habitualmente; esses signos podem ser chamados de "simbolos".
> A informação social transmitida por qualquer símbolo particular pode simplesmente confirmar aquilo que outros signos nos dizem sobre o indivíduo, completando a imagem que temos dele de forma redundante e segura.' Exemplos disso são os distintivos na lapela que atestam a participação em um clube social e, em alguns contextos, a aliança que um homem tem em sua mão. Entretanto, a informação social transmitida por um símbolo pode estabelecer uma pretensão especial a prestígio, honra ou posição de classe desejável - uma pretensão que não poderia ter sido apresentada de outra maneira ou, caso o fosse, não poderia ser logo aceita. Tal signo é popularmente chamado de "símbolo de status", embora a expressão "símbolo de prestígio" possa ser mais exata, já que o primeiro termo é empregado de modo mais adequado quando o referente é uma determinada posição social bem organizada. Símbolos de prestígio podem ser contrapostos a simbolos de estigma, ou seja, signos que são especialmente efetivos para despertar a atenção sobre uma degradante discrepância de identidade que quebra o que poderia, de outra forma, ser um retrato global coerente, com uma redução conseqüente em nossa valorização do indivíduo. A cabeça raspada das colaboracionistas na Segunda Guerra Mundial, assim como certos solecismos usuais, através dos quais uma pessoa que quer imitar as maneiras e as roupas da classe média repete erradamente uma palavra ou a pronuncia várias vezes de maneirra incorreta, são exemplos disto.
2 A diferença entre informação relativa a estados de espírito e outros tipos de informação é tratada em G. Stone, "Appearance and the Self", em A. Rose, Human Behavior and Social Processes (Boston: Houghton Mifflin, 1962), pp. 86-118. Ver também E. Goffman, The Presentation of Sei! in Ever'yday Lif e (Nova York: Doubleday & Co., Anchor Books, 1959), pp. 24-25.
54 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTmADE PESSOAL 55
Além dos simbolos de prestígio e dos simbolos de estigma, pode-se achar uma outra possibilidade, ou seja, um signo que tende - real ou ilusoriamente - a quebrar uma imagem, de outra forma coerente, mas nesse caso numa direção positiva desejada pelo ator, buscando não só estabelecer uma nova pretensão mas lançar sérias dúvidas sobre a validade da identidade virtual. Referir-me-ei aqui aos desidentificaclores. Um exemplo é o 'inglês correto' de um educado negro do Norte que visita o Sul; outro é o turbante e o bigode, usados por alguns negros de classe baixa urbana.4 Um estudo sobre analfabetos nos dá outro exemplo:
"Portanto, quando as metas têm uma orientação pronunciada ou imperativa e existe uma grande probabilidade de que ser definido como analfabeto constitui uma barreira para a consecução do objetivo, é provável que o analfabeto tente "passar por" alfabetizado * ... A popularidade que gozavam no grupo estudado de lentes de vidro com pesadas armações de osso (os chamados "bop glasses") pode ser considerada como uma tentativa de se igualar ao estereótipo do homem de negócios, professor, jovem intelectual e, especialmente, o músico de jazz de alto statu&"
Um especialista nova-iorquino nas artes da vadiagem nos dá outro exemplo:
"Para ler uni livro depois das sete e meia da noite no Grand Central ou na Penn Station urna pessoa deve usar óculos com armações de osso ou então aparentar ser excepcionalmente próspera. Caso contrário, estará sujeita a ser espreitada. Por outro lado, os leitores de jornal nunca parecem chamar a atenção e, mesmo o mais maltrapilho vagabundo pode sentar-se no Grand Central durante a noite inteira sem ser molestado se continuar a ler um jornal."
Deve-se observar que nessa discussão sobre símbolos de prestígio, símbolos de estigma e desidentificadores, foram considerados os signos que comumente transmitem
3 G.J.Fleming, "My Most I{umiliating Jim Crow Experience", Negro Digest (junho, 1954), 67-68.
4 B. Wolfe, "Ecstatic in Blackface", Modern Review, III (1950),
204.
* Em inglês try to "pass" as literate. Daí passing ser a palavra em inglês para o que traduzimos por "encobrimento". (N. do T.)
° Freeman e Kasenbaum, op. eU., p. 372.
O E. Love, Subways Are for Sleeping (Nova York: Harcourt, Brace & World, 1957), p. 28.
informação social. Esses símbolos devem ser diferençados dos símbolos efêmeros que não foram institucionalizados como canais de informação. Quando tais signos são reivindicações de prestígio, eles podem ser chamados "pontos"; quando desacreditam reivindicações tácitas ,"errros".
Alguns signos que trazem informação social, cuja presença, inicialmente, se deve a outras razões, têm apenas uma função informativa superficial. Há simbolos de estigma que nos dão exemplos desse ponto: as marcas no pulso que revelam que um indivíduo tentou o suicídio; as marcas no braço do viciado em drogas; os punhos algemados dos prisioneiros em trânsito; ou mulheres que aparecem em público com um olho roxo como o sugere um autor que escreve sobre prostituição:
"Fora daqui (da prisão em que ela está atualmente), me vi em apuros. Sabe como é, a polícia vê uma garota com o olho roxo e imagina que eia está tramando alguma coisa, que está, provavelmente, ra 'vida, O próximo passo é segui-la. Aí, então, talvez, 'cana' de novo." 8
Outros sinais, como a insígnia da patente militar, são destinados ao único objetivo de transmitir informação social. Deve-se acrescentar que o significado da base de um signo pode, ao longo do tempo, ser reduzido, tornando-se, finalmente, só um vestígio, mesmo quando a função de informação da atividade permaneça constante ou cresça em importância. Além disso, um signo que parece existir por motivos não informativos pode, algumas vezes, ser fabricado premeditadamente apenas devido sua função informativa, como ocorria quando as cicatrizgs de um duelo eram cuidadosamente planejadas e
infligidas.
Os signos que transmitem a informação social variam em função de serem, ou não, congênitos e, se não o são, em função de, uma vez empregados, tornarem-se, ou não, uma parte permanente. (A cor da pele é congênita; a marca de uma queimadura ou mutilação é permanente mas não congênita; a cabeça raspada de um presidiário não é nem uma coisa nem outra.) Mais importante ainda,
7 A. Heckstall-Smith, Eighteen Months (Londres: Allan Wingate, 1954), p. 43.
8 T. Rubin, In the Life (Nova York: The Macmillan Company,
1961), p. 69.
56 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 57
deve-se assinalar que os signos não permanentes, usados apenas para transmitir informação social, podem ou não ser empregados contra a vontade do informante; quando o são, tendem a ser símbolos de estigma.9 Mais tarde será necessário considerar os simbolos de estigma voluntariamente empregados.
possível que haja signos cujo significado varie de um grupo para outro, ou seja, que a mesma categoria seja diferentemente caracterizada. Por exemplo, as ombreiras que os funcionários da prisão exigem que os presidiários que desconfiam que tendem a fugir usem ' podem ter um significado, em geral negativo, para os guardas e, ao mesmo tempo, serem para o portador um sinal de orgulho frente a seus companheiros de prisão.
O uniforme pode ser motivo de brio para um oficial, para ser usado em toda ocasião possível; para outros,
Na obra Anerican Notes escrita com base na sua viagem de 1842, Dickens registra em seu capítulo sobre escravidão alguns exemplos de jornais locais que informavam sobre escravos perdidos e encontrados. As identificações contidas nesses anúncios fornecem uma gama completa de signos de identificação. Em primeiro lugar, há características relativamente estáveis do corpo que, no contexto, podem, conseqüentemente, fornecer uma identificação positiva parcial ou completa: idade, sexo e cicatrizes (resultantes de ferimentos a bala ou a faca, de acidentes e de açoite). Também se dá o nome reconhecido pelo escravo, embora geralmente, é claro, só o primeiro nome. Por fim, são freqüentemente citados símbolos de estigma, notadamente as iniciais gravadas a fogo e a falta de orelhas. Esses símbolos comunicam a identidade social do escravo mas, ao contrário dos grilhões de ferro em torno do pescoço ou da perna, comunicam, também, algo mais que isso, ou seja, a posse por um senhor em especial. As autoridades têm, então, duas preocupações em relação a um negro apreendido: saber se ele era ou não um escravo fugido e, se o fosse, saber a quem pertencia.
10 Ver O. Dendrickson e F. Thomas, The Truth About Dartmoor (Londres: Victor Gollancz, 1954), p. 55, e F. Norman, Bang te Rights (Londres: Secker & Warburg, 1958), p. 125. O uso desse tipo de símbolo está bem colocado em E. Kogon, The Theo'ry and' Practice of Heli (Nova York: Berkley Publishing Corp., s/d), pp. 41-2, onde ele especifica as marcas usadas nos campos de concentração para identificar diferencialmente prisioneiros políticos, transgressores secundários, criminosos, Testemunhas de Jeová, "elewentos inúteis", ciganos, judeus, "profanadores da raça", estrangeiros (segundo a nação), débeis mentais, e assim por diante. Os escravos no mercado romano de escravos também eram freqüentemente marcados segundo a sua nacionalidade; ver M. Gordon, "The Nationality of Slaves Under the Early Roman Empire", em M. 1. Finley, ed., Slavery in Clctssicat Antiquity (Cambridge: Heffer, 1960), p. 171.
entretanto, os fins de semana podem representar o momento de pôr em prItica as suas preferências e usar trajes paisana, passando por civis. De maneira semelhante, embora a obrigação de usar a boina da escola
quando estão na cidade possa ser considerada por alguns rapazes como um privilégio, assim como o seria para alguns soldados a obrigação de usar o uniforme quando em licença, outros sentem que a informação social transmitida dessa forma é um meio de garantir a disciplina e o controle sobre eles quando estão fora do serviço ou fora da escola.'1 Assim, também, durante o século XIX na Califórnia, a ausência da trança num homem chinês significava, para os ocjdentais, um certo grau de aculturação enquanto os outros chineses levantavam uma dúvida no que se refere à sua respeitabilidade - em termos específicos, se o indivíduo em questão tinha ou não passado algum tempo na prisão, onde o corte da trança era obrigatório, motivo por que, durante um certo tempo, houve alguma resistência ao seu corte.'2
Os signos portadores de informação social variam, é claro, no que se refere à sua confiabilidade. Vasos capilares dilatados no rosto e no nariz, algumas vezes chamados de "estigmas venosos" com maior propriedade do que se acredita, podem ser, e o são, tomados como indicadores de excessos alcoólicos. Entretanto, os abstêmios também podem exibir o mesmo símbolo por outras razões fisiológicas dando, assim, lugar a suspeitas injustificadas sobre si mesmos mas que, apesar disso, eles devem enfrentar.
Deve ser levantado um último ponto no que se refere à informação social, ponto esse que se refere ao caráter informativo que tem o relacionamento "com" alguém em nossa sociedade. Estar "com" alguém é chegar em alguma ocasião social em sua companhia, caminhar com ele na rua, fazer parte de sua mesa em um restaurante, e assim por diante. A questão é que, em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem o individu& está acompanhado pode ser usada como fonte de informação sobre a sua própria identidade social, supondo-se
11 T. H. Pear, Personality, Áppearance and Speech (Londres:
George Alien and Unwin, 1957), p. 58.
12 A. MacLeod. Pigtails and Gold Dust (Caldwell, Idaho:
Caxton Printers, 1947), p. 28. Às vezes o uso da trança também'
tinha um significado histórico-religioso; ver ibid., p. 204.
'38 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 59
que ele é o que os outros são. O caso extremo, talvez, seja a situação em círculos de criminosos: uma pessoa 'com ordem de prisão pode contaminar legalmente qualquer um que seja visto em sua companhia, expondo-o à prisão como suspeito. (Diz-se, então, de uma pessoa que está com ordem de prisão que "ela está com varíola" 'e que sua doença criminosa "pega".)13 De qualquer for •ma uma análise da manipulação que as pessoas fazem 'sobre as informações transmitidas sobre si próprias terá de considerar a maneira através da qual elas enfrentam as contingências de serem vistas na companhia de outros em particular.
Visibilidade
Tradicionalmente, a questão do encobrimento levantou o problema da "visibilidade" de um estigma particular, ou seja, até que ponto o estigma está adaptado para fornecer meios de comunicar que um individuo o possui. Por exemplo, ex-pacientes mentais e pais solteiros que esperam um filho compartilham um defeito que 'não é imediatamente visível; os cegos, entretanto, são facilmente notados. A visibilidade é, obviamente, um fator crucial. O que pode ser dito sobre a identidade social de um indivíduo em sua rotina diária e por todas as pessoas que ele encontra nela será de grande importância para ele. As conseqüências de uma apresentação compulsória em público serão pequenas em contatos particulares, mas em cada contato haverá algumas conseqüências que, tomadas em conjunto, podem ser imensas. Além 'disso, a informação quotidiana disponível sobre ele é a base da qual ele deve partir ao decidir qual o plano de ação a empreender quanto ao estigma que possui. Assim, qualquer mudança na maneira em que deve se apresentar sempre e em toda a parte terá, por esses mesmos motivos, resultados fatais - foi isto, possivelmente, que originou, entre os gregos, a idéia de estigma.
Já que é através de nossa visão que o estigma dos outros se torna evidente com maior freqüência, talvez o termo visibilidade não crie muita distorção. Na ver-
13 Ver D. Maurer, The Big Con (Nova York: Pocket Books,
1949), p. 298.
dade, o termo mais geral "perceptibilidade" seria mais preciso, e "evidenciabilidade" mais preciso ainda. Além disso, a gagueira é um defeito muito "visível" mas, em princípio, porque é ouvido e não visto. Antes que o conceito de visibilidade possa ser usado com segurança mesmo nessa versão correta, entretanto, ele deve ser diferençado de três outras noções que são, com freqüência, con'fundidas com ele.
Em primeiro lugar, a visibilidade de um estigma deve er diferençada de sua "possibilidade de ser conhecido". Quando um estigma de um indivíduo é muito visível, o simples fato de que ele entre em contato com outros 'evará o seu estigma a ser conhecido. Mas se outras pessoas conhecem ou não o estigma de um indivíduo depende de um outro fator além de sua visibilidade cor- 'rente, ou seja, de que elas conheçam, ou não, previa- mente o indivíduo estigmatizado - e esse conhecimento pode estar baseado em mexericos sobre ele ou num contato anterior com ele durante o qual o estigma mostrou-se visível.
Em segundo lugar, a visibilidade deve ser diferençada de outra de suas bases específicas, a saber, a intrusibilidade. Quando um estigma é imediatamente perceptível, permanece a questão de se saber até que ponto ele interfere com o fluxo da interação. Por exemplo, numa reunião de negócios ninguém que estela sentado numa cadeira de rodas passará despercebido. Ao redor da mesa de conferência, entretanto, seu defeito pode ser relativamente ignorado, Por outro lado, um participante que tenha dificuldades de fala, o que, de um certo modo, é uma situação muito menos desvantajosa do que a de uma pessoa presa a uma cadeira de rodas, dificilmente poderá abrir a boca sem destruir a indiferença que seu defeito poderia suscitar e, toda a vez que o fizer, causará um certo mal-estar nos demais. A simples mecânica de encontros verbais redirige constantemente a atenção para o defeito, exigindo, a todo o momento, mensagens claras e rápidas, o que não pode ser cumprido. Pode-se acrescentar que o mesmo defeito pode ter diferentes exrressões, cada urna delas com um grau diferente de intrusibiliriade. Por exemplo, uma pessoa cega com uma bengala branca dá uma prova bastante visível de que é cega; mas esse símbolo de estigma, uma vez notado, pode algumas vezes ser ignorado, junto com o que significa. Mas
60 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 61
o fato de que a pessoa cega não consiga voltar o rosto para os olhos dos co-participantes é um acontecimento que repetidamente viola a etiqueta da comunicação, e repetidamente desorganiza os mecanismos de realimentação da interação falada.
Em terceiro lugar, a visibilidade de um estigma (assim como a sua intrusibilidade) deve ser dissociada de certas contingências do que pode ser chamado de seu "foco de percepção". Nós, normais, desenvolvemos concepções, fundamentadas objetivamente ou não, referentes à esfera de atividade vital, que desqualificam primeiro o portador de um determinado estigma. A feiúra, por exemplo, tem seu efeito primário e inicial durante situações sociais, ameaçando o prazer que, de outra forma, poderíamos ter em companhia da pessoa que possui esse atributo. Percebemos, entretanto, que sua condição não deve ter efeitos sobre a sua competência para realizar tarefas solitárias embora, é claro, só possamos discriminá-la devido ao que sentimos quando olhamos para ela. A feiúra, então, é um estigma que é focalizado em situações sociais. Outros estigmas, como o fato de ser diabético,'4 parecem não ter nenhum efeito inicial sobre as qualificações para a interação face-a-face; esses estigmas nos levam, em primeiro- lugar, à discriminação em questões como a designação para empregos, e afetam a interação social imediata somente, por exemplo, porque o indivíduo estigmatizado pode ter tentado manter o seu atributo diferencial em segredo e sente-se inseguro sobre a sua capacidade de fazê-lo, ou porque as outras pessoas presentes conhecem a sua condição e tentam penosamente não fazer alusão a ela. Muitos outros estigmas encontram-se, no que se refere ao foco, entre esses dois extremos, e são percebidos como tendo um amplo efeito inicial em muitas áreas diferentes de vida. Por exemplo, uma pessoa que sofre de paralisia cerebral pode não só ser vista como incômoda numa situacão face-a-face mas também induzir a sensação de que ela não é eficiente ao desempenhar tarefas solitárias.
A questão da visibilidade, então, deve ser diferençada de alguns outros pontos: a "possibilidade de conhecimento" de um atributo, sua "intrusibilidade" e seu "foco de
14 "A Reluctant Pensioner", "Unemployed Diabetic", em Toynbee,
op. cit., Cap. 9, pp. 132-146.
percepção". Isso ainda deixa de lado a afirmativa tácita de que, de alguma forma, o público em geral está comprometido com aquilo que ele observa. Mas, como veremos, também os especialistas em revelar a identidade podem estar envolvidos, e o seu treinamento pode lhes permitir a descoberta imediata de algo invisível para os leigos. Um médico que encontra na rua um homem que apresenta manchas de um vermelho apagado na córnea e dentes angulosos e irregulares está encontrando alguém que exibe claramente dois signos de mal de Hutchinson e que provavelmente sofre de sífilis. Entretanto, outros observadores, não verão nada de mal no indivíduo. Em geral, então, antes que se possa falar de graus de visibilidade, deve-se especificar a capacidade decodificadora da audiência.
A Identidade Pessoal
Para que se possa considerar de maneira sistemática a situação da pessoa desacreditável e o seu problema de ocultamento e revelação, foi necessário, em primeiro lugar, examinar o caráter da informação social e da visibilidade. Antes de continuar, será preciso considerar seriamente um outro fator, a identificação, no sentido criminológico e não psicológico.
Até aqui, a análise da interação social entre os estigmatizados e os normais não exigiu que os indivíduos envolvidos no contato misto se conhecessem "pessoal- mente" antes de a interação se iniciar. Isso parece ra zoável. A manipulação do estigma é uma ramificação de algo básico na sociedade, ou seja, a estereotipia ou o "perfil" de nossas expectativas normativas em relação à conduta e ao caráter; a estereotipia está classicamente reservada para fregueses, orientais e motoristas, ou seja, pessoas que caem em categorias muito amplas e que podem ser estranhas para nós. Há uma idéia popular de que embora contatos impessoais entre estranhos estejam particularmente sujeitos a respostas estereotípicas, na medida em que as pessoas relacionam-se mais intima- mente essa aproximação categórica cede, pouco a pouco, à simpatia, compreensão e à avaliação realística de qualidades pessoais.'5 Embora um defeito como a desfiguração
15 Uma apresentação tradicional deste tema pode ser encontrada em N. S. Shaler, The Neighbo,- (Boston: Houghton Mifflin, 1904).
62 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 63
racial possa repelir um estranho, as pessoas íntimas presumivelmente não seriam afastadas por tal motivo. A área de manipulação do estigma, então, pode ser considerada como algo que pertence fundamentalmente à vida pública, ao contato entre estranhos ou simples conhecidos, colocando-se no extremo de um continuum cujo pólo oposto é a intimidade.
A idéia de tal continuum, sem dúvida, tem alguma validade. Por exemplo, demonstrou-se que, além das técnicas que utilizam para lidar com estranhos, as pessoas que possuem desvantagens físicas podem desenvolver métodos especiais para eliminar a distância e o tratamento cauteloso que provavelmente receberão; elas podem tentar chegar a um plano mais "pessoal" onde, de fato, o seu defeito deixará de ser um fator crucial - um processo árduo que Fred Davis chama de "abrir caminho".' 5 Além disso, aqueles que têm um estigma corporal contam que, dentro de certos limites, as pessoas normais com as quais têm uma relação freqüente aos poucos chegarão a ser menos evasivas em relação à sua incapacidade, de tal maneira que algo semelhante a uma rotina diária de normalização pode-se desenvolver. Pode-se citar como exemplo a vida quotidiana de uma pessoa cega:
"Há atualmente barbearias onde sou recebido com a mesma tranqüilidade de antigamente, é claro, e hotéis, restaurantes e edifícios públicos onde posso entrar sem provocar a sensação de que algo está para acontecer; alguns motorneiros, e motoristas de ônibus, agora, simplesmente me dão bom dia quando subo com o meu cachorro e alguns garçons que conheço me servem com tradicional indiferença. Naturalmente, o círculo imediato de minha família há muito tempo deixou de se preocupar comigo sem necessidade e o mesmo ocorreu com meus amigos íntimos. Neste ponto, abri uma brecha na educação do mundo."17
É provável que categorias inteiras de estigmatizados achem uma proteção semelhante: as lojas algumas vezes localizadas próximo de hospitais psiquiátricos podem-se transformar em lugares onde as condutas psicóticas são muito toleradas. As vizinhanças de alguns hospitais desenvolvem uma capacidade para tratar com calma pessoas desfiguradas na face que estão se submetendo a enxertos
16 Davis, op. cit., pp. 127-128.
' Chevigny, op. cit., pp. 75-76.
cutâneos; a cidade que tem uma escola de treinamento de cegos aprende a olhar com aprovação os estudantes que seguram um arreio atado a um instrutor humano enquanto dirigem a este palavras de estímulo semelhantes. às que se costuma empregar para um CO.l8
A despeito dessas provas de crenças diárias sobre o estigma e a familiaridade, deve-se continuar a ver que a familiaridade não reduz necessariamente o menosprezo.' 9 Por exemplo, as pessoas normais que vivem. próximo de colônias constituídas de grupos tribalmente estigmatizados conseguem, com bastante habilidade, man ter os seus preconceitos. É mais importante aqui, entretanto, ver que as várias conseqüências de uma ordenação completa de suposições virtuais sobre um indivíduo podem estar nitidamente presentes em nosso trato com pessoas com as quais mantivemos uma relação duradoura, íntima e exclusiva. Em nossa sociedade, falar de uma mulher como esposa de alguém é colocar essa pessoa numa categoria que não pode ter mais que um membro; entretanto,. há toda uma categoria implícita da qual ela é somente um membro. É provável que características singulares, historicamente imbricadas, tinjam as margens de nossa relação com essa pessoa; ainda assim, há no âmago um ordenamento completo de previsões socialmente padronizadas que temos quanto à sua conduta e natureza como um modelo da categoria "esposa", por exemplo, de que ela cuidará da casa, receberá nossos amigos e terá filhos. Ela será uma boa ou má esposa, sendo isto colocado relativamente a expectativas padronizadas que outros maridos de nosso grupo têm, também, em relação a suas esposas. (Sem dúvida é escandaloso falar de casamento como uma relação particularizada.) Assim, quer esteja-. mos em interação com pessoas íntimas ou com estranhos, acabaremos por descobrir que as marcas da sociedade ficam claramente impressas nesses contatos, colocando-nos, mesmo nesse caso, em nosso lugar.
Haverá, sem dúvida, casos em que os que não são solicitados a compartilhar o estigma de um indivíduo ou a passar grande parte do tempo usando de tato e
18 Keitlen, op. cit., p. 85.
9 Para uma prova de que as crianças normais numa colônia de férias não aceitam mais facilmente, no decorrer do tempo, os seus. companheiros fisicamente incapacitados, ver Richardson, op. cit., p. 7.
'64 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 65
cuidado em relação a ele podem achar mais fácil aceitá-lo, precisamente por isso, do que aqueles que são obrigados a ter com ele um contato de tempo integral.
Quando passamos de uma consideração sobre pessoas desacreditadas para uma outra sobre pessoas desacreditáveis, encontramos muitas provas adicionais de que não só as pessoas íntimas daquele indivíduo como os estranhos serão afastados por seu estigma. Em primeiro lugar, as pessoas íntimas podem-se tornar aquelas em relação às quais ele mais se preocupa em esconder algo vergonhoso; a situação dos homossexuais nos fornece um exemplo:
Embora seja comum que um homossexual declare que seu desvio não é urna doença, é interessante o fato de que, quando resolve consultar alguém, a pessoa escolhida quase sempre seja um médico. Mas é pouco provável que este seja o médico de sua família. A maioria das pessoas cem quem conversamos desejavam ardentemente esconder o homossexualismo de sua família. Mesmo alguns daqueles que procediam em público de maneira bastante aberta, eram bastante cuida.. dosos no sentido de evitar que se levantassem suspeitas no círculo familiar." 20
Além disso, quando, numa família, um dos pais pode compartilhar um segredo profundo sobre, e com, o outro, podem-se considerar as crianças da casa não só como perigosos receptáculos da informação mas, também, como tendo uma natureza tão frágil que tal conneci mento poderia afetá-lo seriamente. O caso de pais hospi• talizados por doenças mentais é um exemplo disto:
"Quando têm que contar a doença do pai para as crianças, quase
todas as mães escolhem o caminho do encobrimento. Diz-se à criança ou que seu pai está no hospital (sem maiores explicações) ou que ele está no hospital por ter uma doença física (dor de dentes, um problema nas pernas, dor de barriga ou dor de cabeça) " 21
(A mulher de um doente mental" "vivo presa de terror - verdadeiro terror - de que alguém possa contar tudo a Jim (o
filho) 22
20 G. Westwood, A Minority (Londres: Longmans, Green & Company, 1960), p. 40.
22 M. R. Yarrow, J. A. Clausen e P. R. Robbins, "The Social Meaning of Mental Illness", Journa.l of Social Issues, XI (1955),
40-41. Esse trabalho fornece uns material muito útil sobre a manipulação do estigma.
22 Ibid., p. 34.
Pode-se acrescentar que há certos estigmas tão fáceis de esconder que raramente figuram na relação do indivíduo com estranhos ou simples conhecidos, tendo efeito principalmente com pessoas íntimas - frigidez, impotência e esterilidade são alguns exemplos desse tipo. Assim, ao tentar explicar por que o alcoolismo não parece desqualificar um homem para o casamento, um estudioso sugere que:
"É possível também que as circunstâncias do namoro ou os padrões sobre a bebida diminuam tanto a visibilidade do alcoolismo que ele não seja um fator importante na escolha do parceiro. A interação mais íntima do casamento pode, então, trazer à tona o prob ema de uma forma reconhecível para a esposa."
Por outro lado, as pessoas íntimas podem vir a desempenhar um papel especial na manipulação de situações sociais por parte do desacreditável, de tal maneira que quando a sua aceitação dela não for influenciada por seu estigma, as suas obrigações o serão.
Ao invés, então, de pensar num continuum de re lações, com o tratamento categórico e encobridor num extremo da escala e o tratamento particularístico e aberto no outro, talvez seja melhor pensar em várias estruturas nas quais os contatos se produzem e se estabilizam - rua com pessoas estranhas, as relações de serviço superficiais, o lugar de trabalho, a vizinhança, o cenário doméstico - e ver que, em cada caso, é provável que ocorram discrepâncias características entre a identidade social virtual e a identidade social real, e que se realizem esforços, também característicos, para manipular a situação.
Entretanto, todo o problema da manipulação do estigma é influenciado pelo fato de conhecermos, ou não, pessoalmente o indivíduo estigmatizado. Tentar descrever exatamente o que significa essa influência exige, entretanto, a formulação clara de um conceito adicional, o de identidade pessoal.24
23 E. Lemert, "The Ocurrence and Sequence of Events in the Adjustment of Families to Alcoholism", Quarterly Journal o! Studies on Alcohol, XXI (1960), 683.
24 Uma distinção entre as identidades pessoal e de papel está claramente apresentada em R. Sommer, H. Osmond e L. Pancyr, "Problems of Recognition and Identity", Interncttional Journal of Parapsychology, II (1960), 99-119, onde se coloca o problema de
66 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IfENTIDADE PESSOAL 67
Acredita-se que em círculos sociais pequenos e exis tentes há certo tempo, cada membro venha a ser conhecido pelos outros como uma pessoa "única", O termo "único" é sujeito a pressões de cientistas sociais amadores que gostariam de lhe dar um conteúdo mais caloroso e criativo, algo que não o fizesse correr o risco de ser derrubado, pelo menos por sociólogos; não obstante, o termo envolve algumas idéias relevantes.
Uma idéia implícita na noção de "unicidade" de um- indivíduo é a de "marca positiva" ou "apoio de identidade", por exemplo, a imagem fotográfica do indivíduo na mente dos outros ou o conhecimento de seu lugar específico em determinada rede de parentesco. Um caso comparativo interessante é o dos Tuareg da África Ocidental, onde os homens cobrem o rosto deixando apenas um pequeno pedaço de fora por meio do qual podem enxergar; aqui, aparentemente, o rosto como um apoio para a identificação pessoal é substituído pela aparência do corpo e pelo estilo físico.25 Somente uma pessoa de cada vez pode encaixar-se na imagem que discuto aqui, e aquela que preencheu os requisitos no passado é a mesma que os preenche no presente e os preencherá no futuro. Observe-se que itens, como impressão digital, que são os meios mais eficazes de tornar os indivíduos diferentes mediante a identificação são também itens em função dos quais estes mesmos indivíduos são essencial- mente similares.
Uma segunda idéia é de que, embora muitos fatos particulares sobre um indivíduo sejam também verdadeiros para outros, o conjunto completo de fatos conhecidos sobre uma pessoa íntima não se encontra combinado em nenhuma outra pessoa no mundo, sendo este um recurso adicional para diferençá-la positivamente de qualquer
como se demonstra ou refuta uma ou outra. Ver também Goffman, The Presentation of Self in Everyday Lif e, op. cit., p. 60. A idéia de identidade pessoal também é usada em C. Rolph, Personal Identity (Londres: Michael Joseph, 1957), e por E. Schachtel, "On Alienated Concepts of Identity", American Journal of Prychoanalysis, XXI (1961), 120-121, sob o rótulo de "identidade de papel". O conceito de identidade legal ou jural corresponde intimamente ao de identidade pessoal, exceto pelo fato de que (como me informou Harvey Sacks) há algumas situações, como em adoções, em que a identidade lega! de um indivíduo pode ser mudada.
25 Agradeço aqui a Robert Murphy por seu trabalho ainda não publicado "On Social Distance and the Veil".
outra pessoa. Algumas vezes esse complexo de informações está vinculado ao nome da pessoa, como ocorre no dossiê policial; outras vezes está vinculado ao corpo, como quando chegamos a conhecer os padrões de conduta de uma pessoa que conhecemos de vista mas cujo nome ignoramos; freqüentemente essa informação está vinculada tanto ao nome quanto ao corpo.
Uma terceira idéia implícita na noção de "unicidade" é a que diferencia um indivíduo de todos os outros na essência de seu ser, um aspecto geral e central dele, que o torna bem diferente, não só no que se refere à sua identificação, daqueles que são muito parecidos com ele.
Ao usar o termo "identidade pessoal" pretendo referir-me somente às duas primeiras idéias - marcas positivas ou apoio de identidade e a combinação única de itens da história de vida que são incorporados ao indivíduo com o auxílio desses apoios para a sua identidade. A identidade pessoal, então, está relacionada com a pressuposição de que ele pode ser diferençado de todos os outros e que, em torno desses meios de diferenciação, podem-se apegar e entrelaçar, como açúcar cristalizado, criando uma história contínua e única de fatos sociais que se torna, então, a substância pegajosa à qual vêm-se agregar outros fatos biográficos. O que é difícil de perceber é que a identidade pessoal pode desempenhar, e desempenha, um papel estruturado, rotineiro e padronizado na organização social justamente devido à sua uni- cidade.
O processo de identificação pessoal pode ser observado claramente em ação se se toma como ponto de referência não um pequeno grupo, mas uma grande organização impessoal, como o governo de um Estado. atualmente uma prática organizacional padronizada que se registrem de maneira oficial todos os elementos que servem para identificação positiva do indivíduo, ou seja, utiliza-se um conjunto de marcas para diferençar a pessoa assim marcada de todos os outros indivíduos. Como se sugeriu, a escolha da marca é, em si mesma, bastante padronizada: atributos biológicos imutáveis, como a caligrafia ou a aparência fotograficamente comprovada; itens que são registrados de maneira permanente, como certidão de nascimento, nome e número da carteira de identidade. Recentemente, através da utilização da análise de
68 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 69
computadores, foi feito um grande progresso experimental no uso das qualificações da caligrafia ou da fala como apoios de identidade, explorando assim uma característica expressiva menor de comportamento, semelhante à dos especialistas em "autenticação" de quadros. Mais impor. tante ainda, o Social Security Act * de 1935 nos Estados Unidos garante praticamente a todos os empregados um único número de registro ao qual pode ser anexada toda a história de vida empregatícia do indivíduo, um esquema de identificação que colocou em apuros consideráveis as nossas classes criminosas. De qualquer forma, uma vez que um apoio de identidade tenha sido preparado, materializado, e se torne disponível, podemos nos agarrar a ele; pode-se desenvolver um dossiê que normalmente fique contido e arquivado numa pasta de papéis manilha. Pode-se esperar que cresça a identificação pessoal dos cidadãos pelo Estado à medida que se refinam os dispositivos que tornam a história de um indivíduo particular mais acessível a pessoas autorizadas e ainda mais inclusiva de fatos sociais referentes a ele, como, por exemplo, recibos de pagamento de dividendos.
Há um interesse popular considerável nos esforços de pessoas perseguidas em adquirir uma identidade pessoal que não seja a "sua" ou em se desvincular de sua identidade original, como nos esforços em marcar com cicatrizes as pontas dos dedos ou em destruir certidões de nascimento. Em casos reais, procura-se mudar o nome próprio porque, de todos os apoios de identidade, este parece ser geralmente o mais empregado e, de certo modo, o mais fácil de ser alterado. A maneira respeitável e legalmente apropriada de se trocar de nome é através de um ato documentado cujo registro fica disponível num arquivo público. Uma continuidade singular fica assim preservada, a despeito da aparente diversidade.26 Ë o que ocorre quando, por exemplo, uma mulher troca seu último nome devido ao casamento. No mundo das diversões, é comum que um artista troque seu nome mas aqui, novamente, é possível o acesso ao registro de seu nome verdadeiro que, inclusive pode ser amplamente conhecido, como ocorre com autores que utilizam pseudônimo. Ocupações onde pode ocorrer uma mudança de nome que
* Lei de Segurança Social (N. do T.).
26 Ver Rolph, Personal Identity, op. cit., pp. 14-16.
não esteja oficialmente registrada, como as de prostituta, criminoso e revolucionário não são ocupações "legítimas". Um caso residual é o das ordens religiosas católicas. Sempre que uma ocupação traga em seu bojo uma mudança no nome, registrada ou não, pode-se ficar certo de que nela está implícita uma importante ruptura entre o indivíduo e seu velho mundo.
Deve-se assinalar que algumas mudanças de nome, como a de desertores do serviço militar e hóspedes de motéis, estão orientadas especificamente para os aspectos legais de identificação pessoal, enquanto outras, como as que ocorrem por motivos étnicos, estão orientadas para a questão da identidade social. Um autor que estudou a questão assinala que certos tipos de artistas profissionais têm como característica encontrarem-se em ambas as situações:
"A corista típica muda de nome quase tão freqüentemente quanto de penteado para estar em dia com a popularidade teatral corrente, com as superstições do mundo dos espetáculos ou, em alguns casos, para evitar o pagamento de impostos." 27
Posso acrescentar que os criminosos profissionais utilizam dois tipos especiais de nomes falsos: apelidos, usados temporariamente, embora repetidos com freqüência, para evitar a identificação pessoal; alcunhas, recebidas na comunidade criminal e conservadas por toda a vida, mas usadas apenas pelos e para os membros da comunidade ou pelos "informados".
Um nome, então, é um modo muito comum mas não muito confiável de fixar a identidade. Quando num tribunal de justiça se encontra uma pessoa que, por muitos motivos, esconde sua identidade, é compreensível que se procurem outras marcas positivas. Pode-se citar o caso inglês:
a identidade pessoal é provada em tribunais de justiça nao pela referência a nomes e nem sequer por testemunhos diretos, mas "presumivelniente" por provas de semelhanças e diferenças nas características pessoais." 28
27 A. Hartman, "Criminal Aliases: A Psychological Study", Journal of Psijchologij, XXXII (1951), 53.
28 Rolph, Personal Identity, op. eit., p. 18.
70 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 71
A questão da informação social deve ser levantada agora novamente. Os sinais corporificados já considerados, quer de prestígio ou de estigma, pertencem à identidade social. Ë claro que todos eles devem ser diferençados da documentação que os indivíduos trazem consigo com o objetivo de estabelecer a sua identidade pessoal. Esses documentos vieram a ser largamente empregados na Inglaterra e nos Estados Unidos tanto por nativos quanto por estrangeiros. Carteiras de identidade e carteiras de motorista (que contêm impressões digitais, assinaturas e, algumas vezes, fotografias) são consideradas necessárias?9 Junto com essas identificações pessoais, a pessoa pode trazer documentação de idade (no caso de jovens que desejam freqüentar casas de jogo ou estabelecimentos que servem bebidas alcoólicas), uma permissão para empregar-se em atividades protegidas ou perigosas, permissão para estar fora do quartel, e assim por diante. Freqüentemente essa informação é completada por retratos familiares, prova de quitação com o serviço militar, e mesmo cópias fotostáticas de certificados escolares. Recentemente, surgiram os documentos que informam sobre o estado de saúde do portador, e o seu uso geral é defendido:
"Os cartões de identidade médica estão sendo estudados pelo Ministério da Saúde. A recomendação seria de que as pessoas os trouxessem sempre consigo.
O cartão conteria detalhes como vacinas tomadas, grupo sangüíneo e informações sobre qualquer doença, como a hemofilia, que deveria ser imediatamente conhecida em caso de acidente.
Um dos objetivos do cartão é facilitar o tratamento rápido em caso de emergência e evitar o perigo de injetar vacinas em determipadas pessoas, às quais elas poderiam ser alérgicas." 30
Deve-se acrescentar que parece haver um número cada vez maior de estabelecimentos que exigem que os seus empregados usem ou tenham à mão um cartão de identificação pessoal com fotografia.
29 Atualmente, na Inglaterra, os cidadãos não são obrigados a trazer consigo documentos de identificação, embora estrangeiros e motoristas o sejam; em certas circunstâncias, também, os cidadãos britânicos podem-se negar a revelar a sua identidade aos policiais. Ver ibid., pp. 12-13.
30 Relatado em The San Francisco Chronicle, 14 de abril de
1963, e atribuído ao The London Times.
O ponto comum desses vários recursos de identificaçao é, obviamente, que eles não permitem equívocos inocentes ou qualquer ambigüidade, transformando o que seria simplesmente um uso duvidoso de simbolos de informação social em falsificação evidente ou posse ilegal; portanto, o termo documento de identidade deveria ser mais preciso do que símbolo de identidade. (Compare-se, por exemplo, a base relativamente fraca de identificação da identidade dos judeus através da aparência, gestos ou voz.)31 Incidentalmente, essa documentação e os fatos sociais ligados a ela são quase sempre apresentados apenas em situações especiais a pessoas particularmente autorizadas a controlar a identidade, ao contrário do que ocorre com símbolos de prestígio e de estigma, que estão mais amiúde ao alcance do público em geral.
Como a informação sobre a identidade pessoal é em geral de um tipo que pode ser estritamente documentado, ela pode ser usada como proteção contra falsificações potenciais da identidade social. Assim, pode-se exigir que o pessoal do exército traga consigo documentos de identidade que validem o seu uniforme e a sua insígnia, potencialmente falsos. A identificação pessoal do estu. dante pode garantir ao bibliotecário que ele tem o direito de apanhar livros emprestados na biblioteca ou de entrar nas salas de leitura, e a carteira de motorista pode comprovar que o indivíduo tem idade legal para beber em estabelecimentos comerciais. Assim, também, os cartões de crédito atestam superficialmente a identidade pessoal, útil na decisão de se dar ou não crédito ao indivíduo, mas, além disso, atestam que ele pertence a uma categoria social que garante tal crédito. Um homem prova que é o Dr. Hiram Smith para confirmar que é um médico, mas raramente confirma que é um médico para provar que é o doutor Hiram Smith. De maneira semelhante, indivíduos rejeitados em determinados hotéis por razões étnicas podem ter sido etnicamente identificados devido a seus nomes, de tal modo que, também aqui, é explorado um item da biografia pessoal por motivos categóricos.
Em geral, então, a biografia ligada à identidade documentada pode colocar nítidas limitações à maneira que
- 31 L. Savitz e R. Tomasson, "The Identifiability of Jews", American Journol o! Sociology, LXIV (1959), 468-475.
72 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 73
um indivíduo pode escolher para se apresentar; a situação de alguns ex-pacientes mentais ingleses que não são aceitos como aspirantes a tarefas ordinárias na Bolsa de Trabalho porque seus cartões da Segurança Nacional têm espaços sem selo, é um exemplo do que acabei de expor.32 Posso acrescentar que o ato de escolher a identidade pessoal pode encerrar implicações referentes à categoria social: os óculos escuros que as celebridades usam para esconder sua identidade pessoal presumivelmente revelam, ou revelaram durante algum tempo, uma categorização social de alguém que deseja ficar incógnito e que, de outra forma, seria reconhecido.
Uma vez que a diferença entre os símbolos sociais e os documentos de identidade é percebida, pode-se passar ao exame da posição específica de declarações orais que atestam lingüisticamente, e não só expressivamente, a identidade social e pessoal. Quando o indivíduo possui uma documentação insuficiente para receber um serviço desejado, pode-se ver que ele tenta empregar, em substituição, alegações orais. Os grupos e sociedades diferem, é claro, no que se refere a suas crenças sobre a quantidade de informação de identidade considerada conveniente em situações sociais aproximadamente equivalentes. Assim, sugere um escritor indiano:
"Em nossa sociedade, um homem é sempre aquilo que a sua designação indica, por isso somos muito meticulosos ao fornecê-la. Em Deli vi que, em algumas reuniões, certas pessoas diziam, elas mesmas, seus títulos, quando os encarregados de apresentá-las os omiarn. Um dia na casa de um diplomata estrangeiro em Deli, um rapaz me foi apresentado sem que sua posição oficial fos mencionada. Imediatamente ele me saudou e acrescentou: "Do Ministério X. E você, a que Departamento pertence?" Quando respondi que não pertencia a nenhum, ele pareceu bastante surpreendido tanto pelo fato de que eu tivesse siclo convidado para a reunião quanto porque eu não tinha nenhum título." 33
Biografia
Quer a linha biográfica de um indivíduo esteja registrada nas mentes de seus amigos íntimos ou nos arqui32 E. Milis, Living with Mcntal Illness: A Study in East London
(Londres: Routledge and Kegan Paul Ltd., 1962), p. 112.
33 C. Chaudhuri, A Passage to England (Londres: Macmillan & Company, 1959), p. 92.
vos de pessoal de uma organização, e quer ele porte a documentação sobre sua identidade pessoal ou esta documentação esteja armazenada em arquivos, ele é uma entidade sobre a qual se pode estruturar uma história - há um caderno a sua espera pronto para ser preenchido. Ele é, certamente, um objeto para biografia.34
Embora a biografia tenha sido empregada por cientistas sociais, sobretudo sob a forma de uma história de vida profissional, pouca atenção foi dispensada às propriedades gerais do conceito, exceto para observar que as biografias estão muito sujeitas à construção retrospectiva. O papel social como um conceito e um elemento formal da organização social foi amplamente examinado,, o que não ocorreu com a biografia.
O primeiro ponto a ser considerado no que se refere a biografias é que assumimos que um indivíduo só pode realmente, ter uma, o que é garantido muito mais pelas leis da física do que da sociedade. Entende-se que tudo o que alguém fez e pode, realmente, fazer, é passível de ser incluído em sua biografia como o ilustra o tema relativo a Jekyll e Hyde, mesmo que tenhamos que contratar os serviços de um especialista em biografias ou um detetive particular, para completar os fatos que estão faltando e fazer as relações entre os que já foram desco bertos. Por mais patife que seja um homem, por mais falsa, clandestina ou desarticulada que seja a sua existência, por mais que esta seja governada por adaptações, impulsos e reviravoltas, os verdadeiros fatos de sua atividade não podem ser contraditórios ou desarticulados. Note-se que essa unicidade inclusiva da linha de vida está em flagrante contraste com a multiplicidade de "eus" que se descobrem no indivíduo ao encará-lo sob a perspectiva do papel social onde, no caso de a segregação entre papel e audiência estar bem manipulada, ele poderá sustentar com bastante facilidade egos bem diversos e, até certo ponto, pretender que não é mais algo que já foi.
Dadas essas pressuposições sobre a natureza da identidade pessoal, surge um fator que será relevante para este relatório: grau de "conexão informacional". Considerando os fatos sociais importantes sobre uma pessoa, o tipo de fatos relatados em seu necrológio, qual o grau
34 Agradeço muito a Harold Garfinkel, que me mostrou o termo "biografia" no sentido em que é utilizado neste livro.
74 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 75
de proximidade ou distância que há entre dois fatos quaisquer, se medido pela freqüência com a qual aqueles que conhecem um dos fatos podem também conhecer o outro? Falando de maneira mais geral, dado o número de importantes fatos sociais sobre o indivíduo, em que medida aqueles que conhecem alguns deles conhecem muitos?
A falsa informação social deve ser diferençada da falsa informação pessoal. Um homem de negócios da classe média alta que sai por um fim de semana de seu local de trabalho vestido com roupas de uma classe inferior à sua e que escolhe um local de veraneio barato está se representando falsamente no que se refere à informação social; quando ele se registra num motel com o nome de Mr. Smith, ele está se apresentando falsamente no segundo sentido. E quer esteja envolvida a identidade social ou a identidade pessoal, pode-se diferençar a representação que tem como objetivo provar que uma pessoa é o que não é, da representação que objetiva provar que uma pessoa não é o que é.
Em geral, as normas relativas à identidade social, como já ficou implícito, referem-se aos tipos de repertórios de papéis ou perfis que consideramos que qualquer indivíduo pode sustentar - "personalidade social", como costumava dizer Lloyd Warner.35 Não esperamos que um jogador de bilhar seja nem uma mulher nem um classicista, mas não ficamos surpresos nem embaraçados pelo fato de que ele seja um operário italiano ou um negro urbano. Normas relativas à identidade pessoal, entretanto, pertencem não a esferas de combinações permissíveis de fatos sociais mas ao tipo de controle de informação que o indivíduo pode exercer com propriedade. Para uma pessoa, ter tido o que se chama de um passado sombrio é uma questão relativa à sua identidade social; a maneira pela qual ele manipula a informação sobre esse passado é uma questão de identificação pessoal. A posse de um passado estranho (não estranho em si, é claro, mas estranho para alguém que pertence à identidade social presente do indivíduo) é um tipo de impropriedade; para o possuidor, viver toda uma vida diante daqueles que ignoram esse passado e não estão
35 W. L. Warner, "The Society, the Individual and His Mental Disorder", Americcin Journal of Psijchiatr-y, XCIV (1937), 278-279.
informados sobre ele pode ser um tipo muito diferente 'ie impropriedade. A primeira refere-se a nossas rer relativas à identidade social, a segunda às regras relativas à identidade pessoal.
Aparentemente, nos círculos atuais de classe média, quanto mais um indivíduo se desvia, de uma maneira indesejável, do que na verdade se espera dele, mais obrigado fica a dar voluntariamente informações sobre si mesmo mesmo quando o preço que deve pagar por sua sinceridade possa ter crescido proporcionalmente. (Por outro lado, o encobrimento por parte de um indivíduo de algo que ele deveria ter revelado sobre si não nos dá o direito de lhe perguntar o tipo de questão que o forçará a divulgar os fatos ou a dizer, habilmente, uma mentira. Quando fazemos tal pergunta, o resultado é um duplo embaraço, nosso por termos sido sem tato, e dele pelo que ocultou. Ele também pode sentir-se mal por nos ter colocado numa posição em que nos sentimos culpados por havê-lo embaraçado.) Nesse ponto, o direito à discrição parece ter sido ganho somente por não se ter nada a esconder.36 Parece também que com o objetivo de manipular a sua identidade pessoal será necessário que o indivíduo saiba a quem ele deve muita informação e a quem ele deve pouca - mesmo que em todos esses casos ele deva abster-se de contar uma mentira direta. Isso implica que também será necessário que ele tenha
-uma "memória", ou seja, nesse caso, uma avaliação precisa e imediata dos fatos de seu passado e de seu presente que ele deve dar aos demais.37
Devemos agora considerar a relação entre a identificação pessoal e a identificação social, e proceder à elucidação de alguns de seus entrelaçamentos mais aparentes.
É evidente que para construir uma identificação pessoal de um indivíduo utilizamos aspectos de sua identi 36 Para um marcante contraste, comparar o código no velho Oeste, onde aparentemente o passado de alguém e seu nome original
eram definidos como direito privado de propriedade. Ver, por exemplo, R. Adams, The Olci-Time Cowboy (Nova York, The Maemillan Company, 1961), p. 60.
3 Sobre o quadro de referência social da memória em geral, ver F. C. Bartlett, Remembering (Cambridge: Cambridge University Press, 1961).
76 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 77
dade social - junto com tudo o mais que possa estar associado a ele. Ë claro ainda que o fato de ser capaz de identificar pessoalmente um indivíduo nos dá um recurso de memória para organizar e consolidar a informação referente à sua identidade social - um processo que pode alterar sutilmente o significado das características sociais que lhe imputamos.
Pode-se supor que a posse de um defeito secreto desacreditável adquire um significado mais profundo quando as pessoas para quem o indivíduo ainda não se revelou não são estranhas para ele, mas sim suas amigas. A descoberta prejudica não só a situação social corrente mas ainda as relações sociais estabelecidas; não apenas a imagem corrente que as outras pessoas têm dele mas também a que terão no futuro; não só as aparências, mas ainda a reputação. O estigma e o esforço para escondê-lo ou consertá-lo fixam-se como parte da identidade pessoal. Daí o crescente desejo de um comportamento inadequado quando se usa uma máscara,38 ou quando se está longe de casa; daí a vontade que algumas pessoas têm de publicar um material revelador de maneira anônima ou de aparecer publicamente diante de uma audiência privada, já que a suposição subjacente é de que
o público em geral não estabelecerá uma relação entre eles e o que se tenha feito. Um exemplo instrutivo sobre este último ponto foi relatado recentemente e refere-se à Sociedade Mattachine, uma organização que se dedica a apresentar e melhorar a situação de homossexuais e que, como parte desta tarefa, publica um jornal. Aparentemente, urna sucursal de escritório num edifício comercial pode-se ocupar com esforços orientados para o público enquanto, por outro lado, os empregados se conduzem de tal forma que o resto dos inquilinos ignora o que se faz lá e quem o faz.9
38 Não são apenas os bandidos e os membros da Klu Klux Klan que usam máscaras para evitar que sejam reconhecidos. Recentemente, durante as audiências de uma investigação criminal no Estado de Washington, foi permitido que ex-viciados em drogas prestassem declarações com a cabeça coberta por um lençol, não só para evitar uma identificação pública, mas também para evitar retaliações.
39 J. Stearn, The Sixth Man (Nova York: McFadden Books,.
1962), pp. 154-155.
Os Outros como Biógrafos
A identidade pessoal, assim como a identidade social, estabelece uma separação, para o indivíduo, no mundo individual das outras pessoas. A divisão ocorre, em primeiro lugar, entre os que conhecem e os que não conhecem. Os que conhecem são aqueles que têm urna identificação pessoal do indivíduo; eles só precisam vê-lo ou ouvir o seu nome para trazer à cena essa informação. Os que não conhecem são aqueles para quem o indivíduo um perfeito estranho, alguém cuja biografia pessoal não foi iniciada.
O indivíduo que é conhecido por outros pode ter ou não conhecimento desse fato; as pessoas que o conhecem, por sua vez, podem saber ou não que o indivíduo conhece ou ignora tal fato. Por outro lado, entretanto, embora acredite que os outros não o conhecem, ele nunca tem absoluta certeza disto. Além disso, sabendo que o conhecem, ele deve, pelo menos até certo ponto, conhecer algo sobre eles; mas em caso contrário poderá ou não conhecê-los em relação a outros aspectos.
Deixando de lado quanto se sabe ou se ignora, tudo isso é relevante, na medida em que o problema do indivíduo, no que se refere à manipulação de sua identidade pessoal e social, variará muito segundo o conhecimento ou desconhecimento que as pessoas em sua presença têm dele e, em caso positivo, segundo o seu próprio conhecimento do fato.
Quando um indivíduo está entre pessoas para as quais ele é um estranho completo e só é significativo em termos de sua identidade social aparente imediata, uma grande possibilidade com a qual ele deve se defrontar de que essas pessoas comecem ou não a elaborar uma identificação pessoal para ele (pelo menos a recordação de tê-lo visto em certo contexto conduzindo-se de uma determinada forma) ou de que elas abstenham-se total. mente de organizar e estocar o conhecimento sobre ele em torno de uma identificação pessoal, sendo esse último ponto uma característica da situação completam Dnte anônima. Observe-se que, embora as ruas das grandes cidades forneçam situações anônimas para os que se comportam de maneira correta, essa anonimidade é biográfica; é difícil encontrar algo semelhante ao anonimato
78 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTmADE PESSOAL 79
completo que se aplique à identidade social. Pode-se acrescentar que todas as vezes qüe um indivíduo entra numa organização ou numa comunidade, ocorre mudança marcada na estrutura do conhecimento sobre ele - sua distribuição e seu caráter - e, portanto, mudança nas contingências do controle de informação.40 Por exemplo, todo ex-doente mental deve encarar a situação de ter que cumprimentar, fora do hospital, alguém que conheceu lá dentro, dando margem a que uma terceira pessoa pergunte, "Quem era ele?". Talvez mais importante ainda seja o fato de ter que enfrentar o desconhecimento sobre o que as outras pessoas conhecem dele, isto é, pessoas que podem identificá-lo pessoalmente e que, sem que ele o saiba, saberão que ele "realmente" é um ex-doente mental.
Usando o termo reconhecimento cognitivo referir-
-me-ei ao ato perceptual de "colocar" um indivíduo ou como possuidor de uma identidade social particular ou de uma identidade pessoal particular. O reconhecimento de identidades sociais é uma conhecida função de porteiro que muitos servidores cumprem. É menos conhecido o fato de que o reconhecimento de identidades pessoais é uma função formal em algumas organizações. Em bancos, por exemplo, espera-se que os caixas adquiram esse tipo de capacidade em relação aos clientes. Nos círculos criminais ingleses há, aparentemente, uma ocupação chamada de "homem de esquina", cujo ocupante escolhe um posto na rua próxima à entrada de um negócio ilícito e, na medida em que conhece a identidade pessoal de quase todas as pessoas que passam, pode avisar a aproximação de alguém suspeito.4'
Dentro do círculo de pessoas que têm uma informação biográfica sobre alguém - que sabem coisas sobre ele - haverá um círculo menor daqueles que mantêm com ele um vínculo "social", quer superficial ou íntimo, e quer como igual ou não. Conforme dissemos, eles não só sabem "de" ou "sobre" ele, como também o conhe 40 Para um estudo de caso sobre o controle de informação do eu, ver J. Henry, "The Formal Structure of a Psychiatric Hospital", Ps-ychiatry, XVII (1954), 139-152, especialmente 149-150.
41 Uma descrição das funções do "homem de esquina" pode ser encontrada em J. Phelan, The Underworld (Londres: George G. Harrap & Company, 1953), Cap. 16, pp. 175-186.
cem "pessoalmente". Eles terão o direito e a obrigação de trocar um cumprimento, uma saudação e "bater um papo" com ele quando se encontram na mesma situação social, e isso constitui o reconhecimento social. É claro que haverá épocas em que um indivíduo estenderá o reconhecimento social a, ou o receberá de, um outro que ele não conhece pessoalmente. De qualquer forma, deve ficar claro que o reconhecimento cognitivo é apenas um. ato de percepção, enquanto que o reconhecimento social. é a parte desempenhada por um indivíduo numa cerimônia de comunicação.
A relação social ou o conhecimento pessoal é, necessariamente, recíproca, embora, é claro, uma ou mesmo ambas as pessoas que estão na relação possam temporariamente esquecer que são conhecidas, assim como uma delas ou mesmo ambas podem estar cônscias dessa relação mas ter esquecido, temporariamente, tudo sobre a identidade pessoal da outra.42
Para o indivíduo que leva uma existência típica de aldeia, quer numa pequena ou numa grande cidade, haverá poucas pessoas que só o conhecem de nome; aqueles. que sabem coisas sobre ele talvez o conhecerão pessoal- mente. De maneira contrastante, com o termo "fama" parece que nos referimos à possibilidade de que o círculo de pessoas que sabe coisas sobre um determinado indivíduo, em especial referentes a uma conquista ou posse desejada e rara, se torne muito amplo e, ao mesmo tempo,. muito mais amplo do que o círculo daqueles que o conhecem pessoalmente.
O tratamento que é dispensado a alguém tendo como base a sua identidade social freqüentemente é dado com deferência e indulgência adicionais a uma pessoa famosa em virtude da sua identidade pessoal. Como um residente de cidade pequena, ele sempre estará fazendo compras onde é conhecido. O simples fato de ser cognitivamentereconhecido em lugares públicos por estranhos também. pode ser uma fonte de satisfação, como o sugere um. jovem ator:
42 Maiores observações sobre as relações e tipos de reconhecimento podem ser encontradas em Ervirig Goffman, Behaviour in Publie Places (Nova York: Free Press of Glencoe, 1963), Cap. 7,. pp. 112-123.
ESTIGMA
"Quando comecei a adquirir urna certa notoriedade e tinha dias ern quë nie sentia depriniiuo, d za a mim mesmo: 'Bem, acho que vou dar urna volta e ser reconhecido'."
Esse tipo de aclamação secundárria e indiscriminada é, presumivelmente, um dos motivos pelos quais a fama é procurada e sugere também porque a fama, uma vez obtida, é escondida. A questão não é apenas o aborrecimento de ser perseguido por repórteres, caçadores de autógrafos e fãs, mas também o fato de que são cada vez mais numerosos os atos assimiláveis à biografia como acontecimentos dignos de atenção. Para uma pessoa famosa, "fugir" para um lugar onde ela possa "ser ela mesma" pode significar, talvez, encontrar uma comunidade onde não exista uma biografia sua; aqui, a sua conduta, refletida só em sua identidade social, pode, talvez, não interessar a ninguém. Inversamente, um dos aspectos de estar "comprometido" é conduzir-se de maneira destinada a controlar as implicações sobre a biografia, mas em áreas de vida que, em geral, não são criadoras de biografia.
Na vida quotidiana de uma pessoa média, haverá longos espaços de tempo nos quais ela será protagonista de acontecimentos que não têm interesse para ninguém e que serão uma parte técnica, mas não ativa, de sua biografia. Só um acidente pessoal sério ou o fato de testemunhar um assassinato criarão, durante esses períodos mortos, momentos que terão um lugar nas retrospectivas que ela e outras virão a fazer de seu passado. (Um "alibi", na verdade, é uma parte da biografia que é apresentada e que, comumente não viria, em absoluto, a fazer r)arte da biografia ativa de alguém.) Por outro lado, ce1ebridades que vieram a ter suas biografias extensa- mente documentadas, em especial os membros da realeza que se sabe que terão essa sorte desde o seu nascimento, descobrirão que, ao longo de sua vida, experimentaram poucos momentos mortos, ou seja, inativos do ponto de vista de sua biografia.
Ao se considerar a fama, pode ser útil e conveniente considerar a má reputação ou infâmia que surgem quando há um círculo de pessoas que têm um mau conceito do indivíduo sem conhecê-lo pessoalmente. A função óbvia
43 Anthony Perkins, em L. Ross, "The Player - III", The New Yorker (4 de novembro de 1961), p. 88.
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 81
da má reputação é a de controle social, do qual devem ser mencionadas duas possibilidades distintas:
A primeira delas é o controle social formal. Há funcionários e círculos de funcionários cuja ocupação é examinar com cuidado vários tipos de público em busca da presença de individuos identificáveis cujos antecedentes e reputação o tornaram suspeito, ou mesmo "procurado" pela justiça. Por exemplo, durante um estudo num hospital de doentes mentais, conheci um paciente que estava em "liberdade vigiada" e do qual havia informações de haver molestado muitas meninas. Sempre que ele entrava em qualquer cinema da localidade, o gerente o procurava com a lanterna acesa e o obrigava a retirar-se. Em resumo, ele tinha uma reputação muito ruim para poder ir aos cinemas próximos. Criminosos famosos também têm o mesmo problema mas numa proporção muito maior do que aquela que gerentes de casas de espetáculo poderiam causar.
É aqui que lidamos com mais exemplos de ocupação de fazer identificações pessoais. Chefes de seções de venda em grandes lojas, por exemplo, algumas vezes têm extensas informações sobre a aparência de ladrões de loja profissionais em combinação com o apoio de identidade chamado de moclus operandi. A produção da identificação pessoal pode, de fato, ter uma oportunidade social própria, como nas investigações policiais. Dickens, ao descrever a mistura social de prisioneiros e visitantes numa cadeia da Inglaterra, nos dá outro exemplo, chamado de "posando para retrato", por meio do qual um novo prisioneiro era obrigado a sentar numa cadeira enquanto os guardas se reuniam e o observavam, gravando a sua imagem em suas mentes com o objetivo de poder identificá-lo depois
Funcionários cuja tarefa é controlar a possível presença de pessoas de má reputação podem operar no meio do público em geral em vez de atuar em estabelecimentos sociais particulares, como é o caso de detetives de polícia que se espalham por toda a cidade mas não constituem, em si mesmos, público. É-se levado a considerar um segundo tipo de controle social baseado na má reputação mas, que, dessa vez, têm características informais que envolvem o público em geral; e, nesse ponto, tanto a
Pickwic* Papers, vol. III, Cap. 2.
82 ESTIGMA
pessoa que tem boa reputação quanto a que tem má podem ser consideradas em posição muito semelhante.
É possível que o círculo daqueles que conhecem um indivíduo (mas que não são conhecidos por ele) inclua o público em geral e não apenas as pessoas cuja ocupação é fazer identificações. (Na verdade, os termos "fama" e "má reputação" implicam que a massa de cidadãos deve possuir uma imagem do indivíduo). Não há dúvida de que os meios de comunicação de massa desempenham, aqui, um papel central, tornando possível que uma pessoa "privada" seja transformada em figura "pública".
Parece que a imagem pública de um indivíduo, ou seja, a sua imagem disponível para aqueles que não o conhecem pessoalmente, será, necessariamente, um tanto diversa da imagem que ele projeta através do trato direto com aqueles que o conhecem pessoalmente. Quando o indivíduo tem uma imagem pública, ela parece estar constituída a partir de uma pequena seleção de fatos sobre ele que podem ser verdadeiros e que se expandem até adquirir uma aparência dramática e digna de atenção, sendo, posteriormente, usados como um retrato global. Como conseqüência, pode ocorrer um tipo especial de estigmatização. A figura que o indivíduo apresenta na vida diária perante aqueles com quem ele tem relações habituais será, provavelmente, reduzida e estragada por demandas virtuais (quer favoráveis ou desfavoráveis), criadas por sua imagem pública. Isso parece ocorrer sobretudo quando não se está mais engajado em acontecimentos que mereçam atenção e deve encarar, em todos os lugares, o fato de ser recebido como alguém que não é mais o que era; parece ainda provável que ocorra isso quando a notoriedade é alcançada devido a um acontecimento acidental, rápido e não característico que expõe a pessoa à identificação pública sem lhe dar nenhum direito que compense os atributos desejados.45
Uma das implicações dessas observações é que o indivíduo famoso e o de má reputação parecem ter muito mais coisas em comum entre si do que com o que os "maitres" e colunistas sociais chamam de "joão-ninguém",
Para a lei, os esforços de um indivíduo para continuar sendo um cidadão privado ou para retomar tal status vieram a formar parte do problema da privacidade. Uma resenha útil pode ser encontrada em M. Ernst e A. Schwartz, Privacy: The Right to Be Let Alone (Nova York: The Macmillan Company, 1962).
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 83
porque quando uma multidão deseja mostrar amor ou ódio por alguém pode ocorrer um tipo semelhante de desorganização de seus movimentos habituais. (Esse tipo de falta de anonimidade deve ser contrastado com o que é baseado na identidade social, como no caso do indivíduo que tem uma deformidade física e que sente que está sendo constantemente observado.) Verdugos infames e atores famosos descobriram a conveniência de subir no trem na estação anterior ou de usar um disfarce;46 os indivíduos podem mesmo se descobrir utilizando estratagemas para fugir da atenção hostil do público, ardis que eles também empregaram em épocas anteriores de sua história para fugir de uma atenção aduladora. De qualquer forma, a informação prontamente disponível sobre a manipulação da identidade pessoal deve ser buscada nas biografias e autobiografias de pessoas famosas ou de má reputação.
Um indivíduo, portanto, pode ser considerado como o ponto central numa distribuição de pessoas que ou só o conhecem de nome ou o conhecem pessoalmente, podendo todas essas pessoas ter um conjunto um pouco diferente de informações sobre ele. Repito que embora o indivíduo, em seus contatos diários, seja, rotineiramente posto em contato com outros que o conhecem diferentemente, essas diferenças em geral não serão incompativeis; na verdade, algum tipo de estrutura biográfica única será mantido. A relação de um homem com o seu chefe, e sua relação com seu filho podem ser radicalmente diversas, de tal forma que ele não poderá desempenhar com facilidade o papel de empregado ao mesmo tempo em que desempenha o papel de pai, mas se esse homem, quando passeia com o seu filho, encontra com seu chefe, é possível haver um cumprimento e uma apresentação sem que nem a criança nem o chefe reorganizem a sua identificação pessoal do homem - tendo ambos conhecimento da existência e do papel do outro. A etiqueta da "apresentação da cortesia", de fato, assume que a pessoa com quem temos uma relação de papel tenha, de ma Ve J. Atholl, op. cit., Cap. 5, "The Public and the Press". Sobre as pessoas famosas que evitam contatos, ver J. Bainbridge, Garbo (Nova York: Deli, 1961), especialmente pp. 205-6. Sobre uma técnica corrente - o uso de perucas por estrelas de cinema que têm seu próprio cabelo - ver L. Lieber, "Hollywood's Going Wig Wacky", Thi8 Week, 18 de fevereiro de 1962.
84 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTmADE PESSOAL 85
neira adequada, com outros tipos de pessoas, outros tipos de relações. Dou por estabelecido, então, que os contatos aparentemente casuais da vida quotidiana podem, ainda assim, constituir algum tipo de estrutura que prende o indivíduo a uma biografia, e isso a despeito da multiplicidade de "eus" que o papel e a segregação de audiências lhe permitem.
O Encobrimento
evidente que se ninguém conhece a existência de um mal estigmatizante que aflige um indivíduo, ou nem ele mesmo, como ocorre, digamos, com a lepra não diagnosticada ou de ataques de petit mal não reconhecidos, o sociólogo não tem interesse nele, exceto como um recurso de controle para aprender as implicações "primárias" ou objetivas do estigma. Onde o estigma é escrupulosamente invisível e conhecido só pela pessoa que o possui, que não conta nada sobre ele a ninguém, esta é, outra vez, uma questão de importância menor para o estudo do encobrimento. A extensão em que essas duas possibilidades existem é, logicamente, difícil de ser determinada.
De maneira semelhante, deve ficar claro que se um estigma fosse sempre aparente de imediato para qualquer uma das pessoas com as quais um indivíduo tem contato, então o interesse por ele também seria limitado, embora houvesse algum interesse na questão de até que ponto uma pessoa pode-se isolar de contato e, mesmo assim, funcionar livremente na sociedade, na questão do tato e de sua quebra, e na questão do autodesprezo.
Evidentemente, entretanto, esses dois extremos, onde ninguém conhece o estigma e onde todos o conhecem, não conseguem abranger uma amplitude de casos muito grande. Em primeiro lugar, há estigmas importantes, como o das prostitutas, homossexuais, mendigos e viciados em drogas, que exigem que o indivíduo seja cuidadosamente reservado em relação a seu defeito com uma classe de pessoas, a polícia, ao mesmo tempo em que se expõe sistematicamente a outras classes, ou seja, clien N sentido introduzido por Lemert, Social Pathologj, op. cit., pp. 75 e segs.
tes, cúmplices, contatos, receptadores de objetos roubados, etc.45 Assim, não importa o papel que as vagabundas assumam na presença da polícia, elas freqüentemente têm que se revelar às donas-de-casa com o objetivo de obter uma refeição de graça e podem até mesmo ter que expor seu status aos transeuntes, uma vez que são servidas, nas portas dos fundos, daquilo que elas compreensivelmente chamam de "refeições de exibição".49
Em segundo lugar, mesmo quando alguém pode manter em segredo um estigma, ele descobrirá que as relações íntimas com outras pessoas, ratificadas em nossa sociedade pela confissão mútua de defeitos invisíveis, levá-lo-ão ou a admitir a sua situação perante a pessoa íntima, ou a se sentir culpado por não fazê-lo. De qualquer maneira, quase todas as questões muito secretas são, mesmo assim, conhecidas por alguém e, portanto, lançam sombras sobre o indivíduo.
De modo semelhante, há muitos casos em que parece que o estigma de um indivíduo sempre será aparente mas em que isso não ocorre; se fizermos um exame, descobriremos que, ocasionalmente, ele terá que optar por ocultar informações cruciais sobre sua pessoa. Por exemplo, embora um rapaz coxo possa parecer que vai sempre se apresentar como tal, pessoas estranhas podem supor, de repente, que ele está temporariamente incapacitado devido a um acidente,5° assim como uma pessoa cega que entra num táxi escuro com alguém pode descobrir que, por um momento, lhe foi atribuída a capacidade de ver,5' ou um homem cego, de óculos escuros, sentado num bar escuro, pode ser tomado, por um recém-chegado, por alguém que enxerga,52 ou um homem, cujas duas mãos foram amputadas e substituídas por ganchos, que assiste a um filme pode levar uma mulher sexualmente ousada que esteja sentada a seu lado a gritar de pavor pelo que
48 Ver T. Hirshi, "The Professional Prostitute", Berkeley Journal of Sociology, VII (1962), 36.
E. Kane, "The Jargon of the Underworld, Dutlect Notes, V (1927), 445.
5° F. Davis, "Polio in the Family: A Study in Crisis and Family Process", Dissertação de Doutorado em Filosofia (Ph.D.), Universidade de Chicago, 1958, p. 236.
1 Davis, "Deviance Disavowal", op. cit., p. 124.
52 S. Rigman, Second Sight (Nova York: David McKay, 1959),
p. 101.
86 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 87
sua mão encontrou de repente. De maneira semelhante, negros de pele muito escura que nunca passaram publicamente despercebidos, podem-se encontrar projetando, por telefone ou por carta, uma imagem de sua pessoa que está sujeita a um descrédito posterior.
Dadas essas várias possibilidades encontradas entre os extremos de completo segredo, por um lado, e informação completa, por outro, parece que os problemas daqueles que fazem esforços conjuntos e organizados para passar despercebidos são os problemas que um grande número de pessoas enfrentará mais cedo ou mais tarde. Devido às grandes gratificações trazidas pelo fato de ser normal, quase todos os que estão numa posição em que o encobrimento é necessário, tentarão fazê-lo em alguma ocasião. Mais ainda, o estigma do indivíduo pode estar relacionado a questões que não convém divulgar a estranhos. Um ex-przidiário, por exemplo, só pode revelar amplamente o seu estigma, prevalecendo-se de maneira imprópria de meros conhecidos, contando-lhes fatos pessoais que vão além do que a relação realmente justifica. Um conflito entre a sinceridade e o decoro será, quase sempre, resolvido em favor desse último. Finalmente, quando o estigma está relacionado a partes do corpo que os normais devem esconder em público, o encobrimento é inevitável, quer desejado ou não. Uma mulher que tenha sofrido uma mastectomia ou um delinqüente sexual norueguês cuja pena tenha sido a castração estão obrigados a apresentar-se falsamente em quase todas as situações, devendo esconder seus segredos não convencionais porque os demais ocultam os convencionais.
Quando uma pessoa, efetiva ou intencionalmente, consegue realizar o encobrimento, é possível que haja um descrédito em virtude do que se torna aparente sobre ele, aparente mesmo para os que só o identificam social- mente com base no que está acessível a qualquer estranho naquela situação social. (Assim surge uma grande variedade daquilo que é chamado de "um incidente embaraçoso".) Mas esse tipo de ameaça à identidade social virtual não é, com certeza, o único tipo. Além do fato de que as ações habituais de um indivíduo podem desacreditar suas pretensões habituais, uma das contingências básicas do encobrimento é de que ele será desco bert
por todos os que podem identificá-lo pessoalmente e que incluem entre seus antecedentes biográficos fatos não manifestos e que são incompatíveis com suas pretensões atuais.  então, incidentalmente, que a identificação pessoal relaciona-se estreitamente com a identidade social.
E esta, por conseguinte, a base das variedades de chantagens. Há a trama, que consiste em engendrar, agora, um acontecimento que poderá, em breve, ser usado como base para uma chantagem. (A trama deve ser diferençada da cilada, um artifício empregado pelos detetíves para levar os criminosos a revelarem suas práticas criminais comuns e, assim, sua identidade criminal.) Há a "pré-chantagem", onde a vítima é forçada a continuar num determinado curso de ação devido a um aviso do chantagista de que qualquer mudança o levará a revelar fatos que tornarão a mudança insustentável. W. 1. Thomas cita um caso real no qual um policial força uma prostituta a permanecer em sua lucrativa profissão, desacreditando sistematicamente suas tentativas para obter um emprego como uma jovem de boa reputação. Existe a "chantagem de autoconservação", talvez o mais importante tipo, onde o chantagista, intencional ou efetivamente, evita o pagamento de uma sanção recebida porque obrigá-lo a isso resultaria no descrédito do credor.
"A 'presunção de inocência até que a culpa seja provada' dá menos proteção à mãe solteira do que ao pai solteiro. A culpa da mãe é evidenciada por um perfil protuberante - evidência difícil de ser escondida. Ele (o pai) não exibe nenhum sinal exterior, e seu papel acessório deve ser provado. Mas para fornecer tal prova, quando o Estado não assume a iniciativa de estabelecer a paternidade, a mãe solteira deve revelar sua identidade e seu mau comportamento sexual perante uma audiência numerosa. Sua relútância em fazê-lo torna fácil a seu cúmplice a manutenção de seu anonimato e de sua inocência ostensiva, se ele assim o desejar." 5
Finalmente, há a chantagem "completa", ou clássica, na qual o ehantagsta recebe dinheiro através da ameaça de revelar fatos sobre o passado ou o presente do indivíduo que poderiam desacreditar por completo a identii4 Thc Unacljusted Giri (Boston: Little, Brown & Company,
1923), pp. 144-5.
5 E. Clark, Unmcirriect Mothers (Nova York: Free Press of Glencoe, 1961), p. 4.
Russeil, op. cit., p. 124.
88 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 89'
dade que ele sustenta no momento. Deve-se observar que toda a chantagem completa inclui o tipo que chamamos de "chantagem de autoconservação", já que o chantagista bem sucedido, além de obter o que desejava, evita também a penalidade imposta à chantagem.
Falando em termos sociológicos, a chantagem, em si, pode não ser tão importante;° é mais importante considerar os tipos de relações que uma pessoa pode ter com aqueles que poderiam, se quisessem, chantageá-la. Ë aqui que se observa que uma pessoa que tenta encobrir coisas leva uma vida dupla e que o encadeamento lógico informacional da biografia pode dar lugar a diferentes formas de vida dupla.
Quando o fato desacreditável da vida de um indivíduo ocorreu em seu passado, ele ficará preocupado não tanto com as fontes originais de prova e informação, mas com as pessoas que podem retransmitir o que já recolheram. Quando o fato desacreditável é parte da vida atual, nesse caso então, ele deverá prevenir-se contra algo mais que a informação transmitida; ele deve prevenir-se para não ser apanhado em flagrante, como o sugere uma cail giri:
"Era possível expor-se sem perigo de prisão, mas isso não deixava de ser igualmente embaraçoso. 'Quando vou a uma festa sempre dou uma olhada no ambiente' - disse ela. - 'Nunca se sabe. Uma vez dei de cara com dois primos. Eles estavam com duas ca,ll girl e nem me cumprimentaram. Fiquei lá - esperando que eles estivessem muito ocupados pensando em si mesmos para se preocuparem comigo. Sempre pensei no que faria se desse de cara com meu pai, já que ele estava acostumado a andar por esses lugares." 57
Se há algo de desacreditável sobre o passado de um indivíduo, ou sobre o seu presente, a precariedade de sua posição parece variar diretamente em função do número de pessoas que sabem do segredo; quanto mais numero-
56 Dada a profusão de coisas que as pessoas costumam ocultar, é uma surpresa que a chantagem completa não seja mais freqüente. A sanção legal, é claro, é alta, o que torna a prática, em alguns casos, pouco competitiva, mas ainda assim deve-se explicar por que a sanção legal é tão alta. Talvez o excepcional do ato e a forte sanção contra ele sejam, ambos, expressão do desgosto que sentimos pelo trabalho que nos obriga a enfrentar outras pessoas com fatos que as desacreditam enormemente, servindo esse conhecimento de pressão contra os seus interesses.
Stearn, Si8ters of the Night, op. cit., pp. 96-97.
sos os que conhecerem o seu lado obscuro, mais incerta é a sua situação. Para um caixa de banco, é mais seguro flertar com a amiga de sua mulher do que ir à corrida de cavalos.
Quer as pessoas que saibam sejam poucas ou muitas, há, aqui, uma vida dupla simples, que abrange aqueles que pensam que conhecem aquele homem totalmente e aqueles que "realmente" o conhecem. Essa possibilidade deve ser contrastada com a situação do indivíduo que vive uma dupla vida dupla, movendo-se em dois círculos, cada um dos quais desconhece a existência do outro e possui a sua própria biografia do indivíduo. Um homem que tem um caso, que é, talvez, conhecido por um pequeno número de indivíduos que podem, inclusive, estar relacionados com o casal ilícito, está levando uma vida dupla simples. Entretanto, se o casal ilícito começa a fazer amigos que ignoram que ele não é realmente um casal, começa a emergir uma dupla vida dupla. O perigo no primeiro tipo de vida dupla é o da chantagem ou revelação maliciosa; o perigo no segundo tipo, talvez o maior, é o da revelação inadvertida, já que nenhuma das pessoas que conhece o casal está orientada no sentido de manter o segredo que não conhecem como tal.
Considerei até aqui uma existência sem descontinuidades que é ameaçada pelo que outras pessoas sabem sobre o passado do indivíduo ou sobre partes obscuras de seu presente. Agora devemos considerar uma outra perspectiva sobre a vida dupla.
Quando um indivíduo deixa uma comunidade após haver residido nela por alguns anos, ele deixa atrás de si uma identificação pessoal, não raro presa a uma biografia bem circunstanciada que inclui suposições sobre como ele provavelmente "acabará". Em sua comunidade atual, o indivíduo dará margem, também, a que outros componham uma biografia sua, um retrato completo que inclui uma versão do tipo de pessoa que ele era e do meio ambiente do qual ele saiu. Evidentemente podem surgir discrepâncias entre esses dois conjuntos de conhecimentos sobre ele; pode-se desenvolver algo semelhante a uma dupla biografia, à medida que aqueles que o conheceram e os que o conhecem agora pensam conhecer o homem em sua totalidade.
Freqüentemente, essa descontinuidade biográfica é superada quando o indivíduo fornece uma informação'
90 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 91
precisa e adequada sobre o seu passado àqueles que compõem seu mundo atual e quando todos os que o conheceram no passado atualizam as biografias que fizeram dele através de notícias e mexericos. Essa superação é facilitada quando o indivíduo se converteu em alguém que não desacredita sua vida anterior e quando o que le foi não desacredita muito aquilo em que se transfor.mou, o que, é claro, ocorre na maioria dos casos. Em resumo, haverá descontinuidades em sua biografia, mas elas não serão desacreditadoras.
Embora os estudiosos tenham prestado bastante atenção aos efeitos de um passado censurável sobre a vida atual de alguém, não se deu muito apreço aos €feitos de um presente censurável sobre os primeiros biógrafos. Não se tem apreciado suficientemente a importância que tem para um indivíduo a preservação de uma boa recordação de si por parte daquelas pessoas com as quais já não vive mais, embora esse fato se encaixe perfeitamente dentro do que é chamado de "teoria dos grupos de referência". Aqui, o caso clássico é o da prostituta que, embora ajustada ao meio urbano e aos contatos rotineiros que tem nele, receia "topar" com um homem de sua cidade natal que, é claro, poderá perceber seus atributos sociais presentes e levar essa notícia quando retornar à sua cidade.55 Nesse caso, o seu closet é .tão .grande quanto o seu campo de ação e ela própria é o esqueleto que mora nele.* Essa preocupação sentimental com aqueles com quem não temos mais um contato efetivo nos mostra um dos castigos que merece uma ocupação imoral, ilustrado no comentário de Park de que são os malandros, e não os banqueiros, que não querem ter
Ver, por exemplo, Street-Walker (Nova York: Deli, 1961), pp. 194-6. Embora haja muito material de ficção e mesmo histórias reais, sobre prostitutas, há muito pouco material de qualquer tipo sobre os gigolôs. (Mas ver, por exemplo, C. Maclnnes, Mr. Love ctnd .Justice (Londres: The New English Library, 1962); e J. Murtagh e
5. Harris, CasL Lhe Pirst Stone [Nova York: Pocket Books, 1958}, Caps. 8 e 9). Isto é lamentável, na medida em que talvez não exista uma ocupação masculina em que os membros sejam tão esquivos. A rotina diária do gigolô deve estar cheia de artifícios encobridores ainda não registrados. Mais ainda, é com a maior dificuldade que 'os gigolôs podem ouvir frente a frente em que consiste a sua ocupação. Essa é uma boa oportunidade, então, para se colher material sobre a situação tanto dos desacreditados quantos dos desacreditáveis.
* Expressão coloquial "Hctve skeletons in one's closet" - 7er algo & esconder. Ter segredos, etc. (N. do T.)
suas fotografias no jornal, modéstia que se deve ao medo de ser reconhecido por alguém de sua terra natal.
Há, na literatura, algumas indicações referentes a um ciclo natural do encobrimento.5 O ciclo pode começar com um encobrimento inconsciente que o interessado pode não descobrir nunca; daí, passa-se a um encobrimento involuntário que o encobridor percebe, com surpresa, no meio do caminho; em seguida, há o encobrimento "de brincadeira"; o encobrimento em momentos não rotineiros da vida social, como férias em viagens; a seguir, vem o encobrimento em ocasiões rotineiras da vida diária, como no trabalho e em instituições de serviço; finalmente, há o desaparecimento - o encobrimento completo em todas as áreas de vida, segredo que só é conhecido pelo encobridor. Observe-se que quando se tenta o encobrimento quase completo, o indivíduo algumas vezes, conscientemente, organiza seu próprio rito de passagem indo para outra cidade, escondendo-se num quarto por alguns dias com roupas e cosméticos previa- mente escolhidos e trazidos por ele, e então, como uma borboleta, emergindo para provar suas novas asas.60 Em qualquer fase, é, claro, pode haver uma quebra no ciclo e um retorno ao invólucro.
Já que ainda não podemos falar de tal ciclo com alguma segurança e, se necessário, sugerir que certos atributos desacreditáveis impedem o desenvolvimento de suas fases finais, é, pelo menos, possível, procurar vários pontos de estabilidade na penetração do encobrimento; é, certamente, exeqüível observar que a extensão do encobrimento pode variar, de um encobrimento involuntário e momentâneo, num extremo, ao clássico tipo de encobrimento total, no outro.
Anteriormente foram sugeridas duas fases no processo de aprendizagem da pessoa estigmatizada: a aprendizagem do ponto de vista dos normais e a aprendizagem de que, segundo ele, ela está desqualificada. Presume-se que a próxima fase consista na aprendizagem de como
9 VerH. Cayton e S. Drake, Bktck Metropolis (Londres: Jonathan Cape, 1946), "A Rose by Any Other Name", pp. 159-171. Agradeço aqui a um trabalho não publicado de Gary Marx.
0 Sobre o negro que se faz passar por branco, ver R. Lee, 1 Passed for White (Nova York: David McKay, 1955), pp. 89-92; sobre o branco que se faz passar por negro, ver J. H. Griffin, Black Like Me (Boston: Houghton Mifflin, 1960), pp. 6-13.
92 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 93
lidar com o tratamento que os outros dão ao tipo de pessoas que ele demonstra ser. Minha preocupação, agora, é com uma fase mais posterior, ou seja, a aprendizagem do encobrimento.
Quando um atributo diferencial é relativamente imperceptível, o indivíduo deve aprender que, na verdade, pode ser discreto, O ponto de vista que outros observadores têm sobre ele deve ser cuidadosamente registrado e não sustentado com uma ansiedade maior que a dos próprios observadores. Começando com um sentimento de que tudo o que é conhecido por ele é conhecido pelos outros, freqüentemente elabora uma apreciação realística de que não é isso o que ocorre. Por exemplo, conta-se que os fumadores de marijuana aprendem lentamente que podem atuar sob seus efeitos na presença de pessoas que os conhecem bem sem que elas percebam nada de anormal - uma aprendizagem que aparentemente ajuda a transformar um fumante ocasional em fumante regular.°' De maneira semelhante, há registros de moças que, logo que perdem a virgindade, examinam-se no espelho para ver se o estigma se apresenta, e só aos poucos começam a acreditar que sua aparência atual não é diferente da anterior.62 Pode-se dar um exemplo paralelo de um homem após sua primeira experiência homossexual:
"(Sua primeira experiência homossexual) lhe trouxe algum transtorno posteriormente?", perguntei.
"Oh! Não. Só fiquei preocupado de alguém descobrir. Tinha medo de que minha mãe e meu pai pudessem dizê-lo só de me olhar. Mas eles agiram como de costume e comecei a me sentir confiante e seguro novamente." 63
Pode-se indicar que, devido à identidade social, o indivíduo que tem um atributo diferencial secreto encontrar-se-á durante a rotina diária e semanal em três tipos possíveis de lugar. Haverá lugares proibidos ou inacessíveis, onde pessoas de seu tipo estão proibidas de ir, e onde a exposição significa expulsão - uma eventualidade freqüentemente tão desagradável para ambas as partes que se estabelece, às vezes, uma cooperação tácita para
61 H. Becker, "Marihuana Use and Social Control", Social Problems, III (1955), p. 40.
62 H. M. Hughes, ed., The Fanta.stic Lodge (Boston: Houghton Mifflin, 1961), p. 40.
Stearn, The Sixth Man, op. cit., p 150.
evitá-la; o intruso usa um disfarce e a pessoa que tem direito a estar presente o aceita, embora ambos tenham conhecimento da intromissão. Há lugares públicos nos quais pessoas desse tipo são tratadas cuidadosamente e, às vezes, penosamente, como se não estivessem desqualificadas para uma aceitação rotineira quando, na verdade, de uma certa maneira, o estão. Finalmente, há lugares retirados onde pessoas desse tipo podem-se expor e perceber que não precisam esconder o seu estigma e nem se preocupar com tentativas feitas cooperativamente para não prestar atenção a ele. Em alguns casos, essa liberdade de ação é conseqüência da escolha da companhia de pessoas que têm estigmas iguais ou semelhantes. Por exemplo, diz-se que o carnaval fornece às pessoas com deficiências físicas uma ocasião na qual o seu estigma é uma questão relativamente pequena.64 Em outros casos, o lugar retirado pode ser involuntariamente criado como resultado do agrupamento administrativo de indivíduos, contra a sua vontade, em função de um estigma comum. Pode-se acrescentar que mesmo que alguém entre num lugar retirado voluntária ou involuntariamente, é provável que ali se lhe ofereça uma atmosfera de sabor especial. O indivíduo estará à vontade entre seus companheiros e também descobrirá que pessoas conhecidas, que ele não considerava suas iguais, na verdade o são. Entretanto, como indica a citação seguinte, ele correrá ainda o risco de ser facilmente desacreditado se uma pessoa normal que ele conheceu em outro lugar entrar aí.
"Um rapaz de 17 anos, de origem mexicana, foi enviado, por ser considerado pelo tribunal como doente mental, a um sanatório. Ele rejeitou violentamente essa definição, sustentando que não havia nada de errado com ele e que ele desejava ir para um centro de detenção de delinqüentes juvenis mais respeitável. No domingo pela manhã, ilguns dias após haver chegado ao hospital, foi levado à igreja junto com outros pacientes. Por uma infeliz circunstância, sua namorada veio ao sanatório naquela manhã com uma amiga cujo irmão menor estava internado, e se encaminhou em sua direção. Quando ele a viu, ela ainda não o havia notado, e ele desejou evitá-lo. Deu meia volta e fugiu, tão depressa quanto podia, até que foi alcançado pelos empregados que pensaram que ele havia enlouquecido. Quando foi interrogado por seu comportamento, explicou que sua namorada não sabia que ele estava "nesse lugar para patetas" e que ele não conseguiria suportar a humilhação de ser visto no hospital como paciente." 65
- H.Viscardi, Jr., A Laughter in the Lonely Night (Nova York: Paul S. Eriksson, mc., 1961), p. 309.
65 Edgerton e Sabagh, op. cit., p. 267.
94 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTiDADE PESSOAL 95
A ronda de uma prostituta constitui, para ela, o mesmo tipo de ameaça:
"Foi esse aspecto de tal situação social que experimentei quando visitei as alamedas de carruagem do Hyde Park (afirma uma pesquisadora social). A aparência deserta dos caminhos e a intenção aparente de qualquer mulher que por ali caminhasse não só eram suficientes para anunciar meu propósito ao público, mas também obrigaram-me a considerar de que essa área estava reservada a. prostitutas - era um lugar delimitado para elas e que emprestava seu colorido a qualquer pessoa que resolvesse entrar ali.. "6
Essa divisão do mundo do indivíduo em lugares públicos, proibidos, e lugares retirados, estabelece o preço que se paga pela revelação ou pelo ocultamento e o significado que tem o fato de o estigma ser conhecido ou não, quaisquer que sejam as estratégias de informação escolhidas.
Assim como o mundo de alguém está espacialmente dividido por sua identidade social, ele também está por sua identidade pessoal. Há lugares em que, como se diz, ele é conhecido pessoalmente, quer por alguns dos presentes, quer pelo indivíduo encarregado da área (hospedeiro, "maitre", taberneiro, etc.); tanto uns como outros asseguram que sua presença no local poderá ser demonstrada posteriormente. Em segundo lugar, há lugares onde ele pode ter certeza de que não "dará de cara" com ninguém que o conheça pessoalmente, e onde (excetuando-se as contingências especiais com que se defrontam as pessoas famosas ou de má reputação, a quem muitas pessoas conhecem de nome sem nunca terem visto pessoalmente) poderá permanecer no anonimato, sem despertar a atenção de ninguém. O fato de ser ou não embaraçoso para sua identidade pessoal estar num lugar em que, por incidente, ele é pessoalmente conhecido, é algo que irá variar, é claro, segundo as circunstâncias, sobretudo segundo a pessoa que o acompanha.
Considerando o fato de que o mundo espacial do indivíduo estará dividido em várias regiões, segundo as contingências nelas contidas para a manipulação da identidade social e pessoal, pode-se continuar a considerar alguns dos problemas e conseqüências do encobrimento. Essa consideração coincidirá, em parte, com a sabedoria
popular; os relatos que advertem sobre as contingências do encobrimento são parte da moralidade que empregamos para manter as pessoas em seus lugares.
O indivíduo que se encobre tem necessidades não previstas que o obrigam a dar uma informação que o desacredita; é o que ocorre, por exemplo, quando a mulher de um doente mental tenta receber o seguro de desemprego de seu marido, ou quando um homossexual "casado" tentar fazer um seguro de sua casa e percebe. que tem que explicar a escolha singular de seu beneficiário. 67 Ele sofre também de "aprofundamento de pressão", ou seja, pressão para elaborar mentiras, uma atrás da outra, para evitar uma revelação.68 Suas técnicas adaptativas podem, elas próprias, ferir sentimentos e dar lugar a mal-entendidos por parte de outras pessoas.69 Seus esforços para esconder certas incapacidades o levam a. revelar outras ou a dar a impressão de fazê-lo: relaxamento, como quando uma pessoa quase cega que finge ver tropeça num banquinho ou derrama bebida na camisa; falta de atenção, teimosia, acanhamento, ou distância, como quando uma pessoa que não escuta não responde a alguma observação feita por alguém que ignora a sua deficiência; sonolência, como quando um professor atribui um ataque epiléptico de petit mal num aluno a um devaneio momentâneo.7 Embriaguez, como quando um homem que sofre de paralisia cerebral descobre que sua maneira de andar é sempre mal interpretada.7' Mais ainda, aquele que se encobre está sempre atento para ouvir o que os outros "realmente" pensam sobre o tipo de pessoas a que ele pertence, tanto que quando os que ignoram estar em contato com alguém dessa espécie começam a relação sem sab&lo, mudam nitidamente a sua conversa assim que tomam conhecimento do fato. Não saber até que ponto vai a informação que os outros têm de si constitui um problema sempre que o seu chefe ou
Sugerido por Evelyn Hooker numa conversa.
68 Em relação ao ocultamento da internação da esposa, ver Yarrow, Clausen e Robbins, op. cit., p. 42.
9 Sobre a falta de tato e o esnobismo inconsciente do surdo. ver R. G. Barker et ai., Adjustment to Physicai Hand7cap and Illness (Nova York: Social Science Research Council Bulletin, a.° 55, revisto, 1953), pp. 193-4.
70 S. Livingston, Liuing with Epileptic Seizures (Springfield:
Charles C. Thomas, W63), p. 32.
' Henrich e Kriegel, op. cit., p. 101; ver também página 157
Rolph, Women o! the Streets, op. it., pp. 56-7.
96 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTmADE PESSOAL 97
professor está devidamente informado de seu estigma mas os outros não. Como foi sugerido ele pode-se tornar sujeito a vários tipos de chantagem por parte de quem conhece o seu segredo e não tem nenhum bom motivo para guardar silêncio sobre ele.
O indivíduo que se encobre pode também sofrer a experiência clássica e fundamental de ter que se expor durante uma interação face-a-face, traído pela própria fraqueza que ele tenta esconder, pelos outros presentes ou por circunstâncias impessoais. A situação do gago é um exemplo:
"Nós, que somos gagos, falamos somente quando necessário. Escondemos nosso defeito, às vezes tão bem, que as pessoas íntimas se surpreendem quando, num momento de descuido, uma palavra nos escapa da língua e falamos bruscamente, gritamos, fazemos careta e ficamos asfixiados, até que finalmente o espasmo termina e abrimos nossos olhos para observar o desastre." 72
O epiléptico sujeito a ataques do graná mal é um caso mais extremo; quando recobra a consciência, pode descobrir que está deitado na rua, com incontinência, gemendo e sacudindo-se convulsivamente - um descrédito para a sanidade mental que só é atenuado pelo fato de ele não estar consciente durante parte do episódio.73 Devo acrescentar que cada grupo de estigmatizados parece ter seu repertório próprio de relatos de advertência sobre uma exibição embaraçosa e que a maior parte de seus membros pode dar exemplos de sua própria experiência.
Finalmente, a pessoa que se encobre pode ser forçada a se revelar a outras que acabaram por descobrir
o seu segredo e devem colocá-la frente ao fato de haver
mentido. Essa possibilidade pode mesmo ser formalmente
instituída, como em interrogatórios sobre saúde mental
e no que se segue:
"Doreen, uma garota de Mayfair, diz que o comparecimento ao tribunal 'é a pior parte' de tudo (i.e., da prostituição). Quando se entra por aquela porta todo mundo está esperando por você e observa. Fico de cabeça baixa e nunca olho para os lados. Em seguida eles dizem aquelas palavras horríveis: "Tratando-se de uma prostituta
72 C. Van Riper, Do You Sttter? (Nova York: Harper & Row,
1939), p. 601, em von Hentig, op. cit., p. 100.
73 Livingston, op. cit., pp. 30 e segs.
vulgar. . ." e a gente sente-se muito mal, sem saber durante todo aquele tempo quem está observando da parte de trás do tribunal. Diz-se 'culpada' e sai-se tão depressa quanto se pode." "
A presença de companheiros de sofrimento (ou de 'informados") introduz um conjunto especial de contingências relativas ao encobrimento, já que as mesmas técnicas usadas para esconder estigmas podem revelar o segredo a alguém que esteja familiarizado com as manhas do ofício, supondo-se que basta uma pessoa (ou seu círculo mais chegado) para reconhecer o estigma:
"Por que você não tenta com um quiroprático?", me perguntou uma mulher a quem conheci casualmente, enquanto mastigava carne enlatada, sem perceber que estava prestes a fazer n'eu mundo ruir. "O Dr. Fletcher me disse que está curando a surdez de um de seus pacientes ".
Meu coração, em pânico, bateu contra as minhas costelas. Que queria ela dizer com isso?
"Meu pai é surdo", acrescentou. "Posso perceber uma pessoa surda em qualquer lugar. Esta sua voz tão suave... E seu truque de deixar as frases se arrastarem sem terminá-las. Papai faz isto o tempo todo." 75
Essas contingências ajudam a explicar a ambivalêneia, já mencionada, que o indivíduo pode sentir quando confrontado com pessoas de seu tipo. Como sugere
Wright:
"... uma pessoa que deseje esconder sua incapacidade notará em outras traços reveladores de uma incapacidade. Além dsso, é provável que ela se ressinta desses traços que revelam a incapacidade porque, querendo esconder a sua deficiência, quer também que as outras pessoas escondam as suas. Assim, o indivíduo qu tem dificuldades de audição e luta para esconder esse defeito sente-se incomodado pela velha mulher que coloca as mãos em concha atrás da orelha. A ostentação da incapacidade é, para ele, uma ameaça porque leva à culpa por haver desdenhado a sua própria pertinência ao grupo, assim como à possibilidade de sua própria revelacão. Ele pode preferir descobrir sub-repticiamente o segredo da outra pessoa e manter um acordo de cavalheiros segundo o qual ambos devem desempenhar seus papéis fictícios antes que o outro desaf:e a sua pretensão e lhe confie o seu próprio segredo." 76
74 Rolph, Women of the Streets, op. cit., p. 24. Para uma colocação geral, ver H. Garfinkel, "Conditions of Successful Degradation Ceremonies", American Journcil o! Sociology, LXI (1956), 420-424.
7 F. Warfield, Cotton in My Ears (Nova York: The Viking Press, 1948), p. 44, em Wright, op. cit., p. 215.
7 Wright, op. cit., p. 41.
98 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 99
O controle da informação sobre a identidade tem um significado especial nas relações. Estas podem exigir que as pessoas passem algum tempo juntas, e quanto mais tempo um indivíduo passa com outro, mais chance haverá de que este adquira, sobre o primeiro, informações que o desacreditam. Mais do que isso, como já foi sugerido, toda a relação obriga as pessoas nela envolvidas a trocar informações sobre uma certa quantidade de fatos íntimos sobre si mesmas como prova de confiança e de compromisso mútuo. As relações íntimas que o indivíduo tinha antes de ter algo a esconder, ficam, portanto, comprometidas, carentes de informação compartilhada. Relações recentemente formadas ou "pós-estigma" com toda a certeza levarão a pessoa desacreditável além do ponto em que sente como honroso o fato de haver-lhes ocultado os fatos. E, em alguns casos, mesmo relações muito passageiras podem constituir um perigo, já que a pequena conversa entre estranhos, adequada ao início de uma conversação pode tocar em defeitos secretos, como quando a mulher de um homem impotente deve responder a perguntas relativas ao número de filhos que tem e, no caso de não tê-los, por quê.77
O fenômeno do encobrimento sempre levantou questões referentes ao estado psíquico da pessoa que se encobre. Em primeiro lugar, supõe-se que ela deve necessariamente pagar um alto preço psicológico, um nível muito alto de ansiedade, por viver uma vida que pode entrar em colapso a qualquer momento. As palavras da mulher de um doente mental ilustram este ponto:
e suponha que depois que George saia do hospital tudo esteja correndo bem e alguém resolva jogar isso em sua cara. Tudo estaria arruinado. Vivo aterrorizada - completamente aterrorizada
- de que isso possa acontecer." 78
Acho que o estudo cuidadoso de pessoas que se encobrem mostraria que nem sempre há esta ansiedade e que, nesse ponto, nossas concepções tradicionais sobre a natureza humana podem nos enganar seriamente.
Em segundo lugar, supõe-se com freoüência, e há provas disso, que a pessoa que se encobre sentir-se-á dividida entre duas lealdades. Ela sentir-se-á um pouco
"Vera Vaughan", em Toynbee, op. cit., p. 126.
78 Yarrow, Clausen e Robbins, op. cit., p. 34.
alienada de seu novo "grupo" porque provavelmente não se identificará de maneira completa com a sua atitude em relação aos membros da categoria a que pertencia.79 E talvez se sentirá desleal e desprezível por não poder responder às observações feitas por membros da categoria dentro da qual ela se encobre contra a categoria à que pertencia - sobretudo quando ela própria considera perigoso não aderir a esse aviltamento. Como sugerem
pessoas desacreditáveis:
"Quando se faziam piadas sobre "bichas' eu tinha que rir com as outras pessoas, e quando se falava sobre muiheres eu tinha que inventar minhas próprias conquistas. Eu me odiava em tas momentos, mas aparentemente não havia outra coisa que eu pudesse fazer. Toda a minha vida se converteu numa mentira." 80
"O tom de voz às vezes usado (por amigos) para se referir a solteironas me chocava porque eu sentia que estava sendo uma impostora: embora tivess o status aparente de uma mulher casada, meu verdadeiro estado era aquele que as pessoas casadas encaram com desprezo. Também me sentia um pouco desonesta com as minhas amigas solteiras, que não conversavam comigo sobre esses assuntos mas que me olhavam com alguma inveja e curiosidade por ter uma experiência que, na verdade, eu não desfrutava." 81
Em terceiro lugar, considera-se estabelecido, o que aparentemente é correto, que a pessoa que se encobre deverá estar atenta a aspectos da situação social que Outras pessoas tratam como não computados ou inesperados. Aquilo que para os normais é um ato rotineiro pode, para os desacreditáveis, ser um problema de manipulação. 82 Esses problemas nem sempre podem ser manejados pela experiência passada, já que sempre surgem novas contingências que tornam inadequados os artifícios de ocultamento anteriores. A pessoa que tem um defeito secreto deve estar atenta para a situação social, esquadrinhando possibilidades e, assim, provavelmente se sentirá alienada do mundo mais simples em que aparente mente vivem as pessoas à sua volta. O que para eles é a base, para ela é a imagem. Um rapaz quase cego nos dá outro exemplo:
Riesman, op. cit., p. 114.
80 Wildeblood, op. cit., p. 32.
8 "Vera Vaughan", em Toynbee, op. cit., p. 122.
82 Aqui, novamente, agradeço a Harold Garfinkel.
100 ESTIGMA
"Dei um jeito de evitar que Mary soubesse que minha vida não era boa durante duas dúzias de sodas e três filmes. Usava todos os artifícios que havia aprendido. Prestava uma atenção especial todas as manhãs à cor de seu vestido e então ficava com olhos, ouvidos e sexto sentido alertas para qualquer pessoa que pudesse ser Mary. Não corria nenhum risco. Se não tivesse certcza, cumprimentava com familiaridade todas as pessoas que se aproximavam. Provavelmente elas pensavam que eu estava louco, mas eu não me importava. Sempre segurava a sua mão quando íamos para o cinema à noite, e quando voltávamos e ela me guiava sem o saber; dessa forma, não tinha que me preocupar com o meio-fio e com degraus."
Um menino com uma "constrição" que o impedia de urinar em presença de outras pessoas, desejando manter esse atributo diferencial em segredo, descobre que tem de fazer planos e ser cuidadoso, quando os outros simplesmente têm que ser meninos:
"Quando fui para o colégio interno com 10 anos surgiram novas dificuldades e tive que encontrar novos recursos para enfrentá-las. Em termos gerais, não era uma questão de urinar quando tivesse vontade mas sim quando pudesse. Achei que era necessário manter com os outros meninos segredo sobre a minha incapacidade, já que a pior coisa que pode ocorrer a um menino na escola é ser, de uma certa maneira, 'diferente; assim, ia com eles ao banheiro, embora lá não acontecesse nada além da inveja que eu sentia da liberdade que meus companheiros tinham para se comportar com naturalidade e mesmo desafiar uns aos outros para ver quem alcançava o ponto mais alto na parede. (Gostaria de competr com eles, mas se alguém me desafiava eu sempre respondia que "já tinha terminado".) Eu utilizava vários estratagemas. Um deles era pedir permissão para ir ao banheiro durante as aulas, quando ele estava deserto. Outro era ficar acordado durante a noite para usar o recipiente que ficava sob a minha cama qundo os outros ocupantes do quarto estavam dormindo ou, pelo menos, quando estava escuro e eu não podia ser visto." 84
De maneira semelhante, podemos ficar a par do cuidado constante dos gagos:
"Temos vários truques bem estudados para disfarçar ou minimizar nossos b.oqueios. Prestamos atenção a sons e palavras "Jonas", * assim chamados porque são desafortunados e invejamos a facilidade
83 Criddle, op. cit., p. 79.
84 "N. O. Goe", em Toynbee, op. cit., p. 150.
* Desafortunado, agourento. Alusão ao profeta hebreu Jonas. Num navio, a caminho de Nínive, houve uma grande tempestade. Os marinheiros lançaram sortes para ver de quem era a culpa e esta caiu sobre Jonas que, jogado ao mar para acalmar a tempestade, foi engolido por uma baleia. Após uma oração de Jonas a Deus,
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IIENTIDADE PESSOAL
101
da baleia para expulsá-los. Evitamos palavras "Jonas" sempre que podemos, substituindo-as por outras inócuas ou modificando apressadamente o nosso pensamento até que a continuidade de nosso discurso se torne tão emaranhada quanto um prato de espaguete."
E da esposa de um doente mental:
"Muitas vezes o encobrimento é incômodo. Assim, para impedir que os vizinhos soubessem em que hospital estava o marido (já que ela havia dito que ele estava no hospital com suspeita de cãncer), Mrs. G. deve correr para seu apartamento a fim de apanhar a correspondência antes que eles o façam, como era costume. Ela teve de renunciar ao café da manhã no drugstore com suas vizinhas, para evitar suas perguntas. Antes de permitir a entrada de qualquer pessoa no apartamento ela devia recolher todo e qualquer material que identificasse o sanatório e assim por diante." 86
E de um homossexual:
"A tensão provocada pelo fato de enganar mnha família e meus amigos era quase sempre intolerável. Tinha necessidade de controlar minhas palavras e gestos para não me denunciar." 87
Entre os colostomizados há algo semelhante:
"Nunca vou a cinemas próximos. Se vou ao cinema, escolho uma casa grande, como o Radio City, onde posso escolher uma poltrona bem atrás de onde posso correr ao banheiro assim que tenho gases."
"Quando entro num ônibus, escolho o lugar com cuidado. Sento num dos bancos de trás ou perto da porta." 89
Em todos esses casos, é necessário um controle de tempo especial. Assim, há a prática de "viver atado a uma corda" - a síndrome de Cinderela - por meio da qual a pessoa desacreditável permanece próxima ao lugar onde pode retocar seu disfarce ou abandoná-lo momentaneamente; ela só abandona a oficina até uma distância que lhe permita voltar sem perder o controle da informação sobre a sua pessoa:
glorificando-o, este falou à baleia e ela devolveu Jonas à terra (cf. A Bíblia Sagrada, Antigo Testamento, Livro de Jonas, Sociedade Bíblica do Brasil, Rio de Janeiro, s/d, p. 901). (N. do T.)
85 Riper, op. cit., p. 601, em von Hentig, op. cit., p. 100.
86 Yarrow, Clausen e Robbins, op. cit., p. 42.
Wildeblood, op. cit., p. 32.
88 Orbach et ai., op. cit., p. 164.
89 Ibid.
102 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 103
"Como a irrigação é a defesa primária contra o derramamento e, ao mesmo tempo uma atividade reparadora de grand signife2d') emocional, pessoas que sofreram uma colostomia freqüentemente programam viagens e contatos sociais em relação ao tempo e à eficácia da irrigação. As viagens geralmente se restringem a distâncias que podem ser vencidas no intervalo entre as irrigaçõ s que são feitas na cidade de origem, e os contatos sociais são limitados a períodos entre as irrigações que permitem a máxima proteção contra o derramamento ou gases. Pode-se considerar, então, que os pacientes vivem atados por uma corda cujo comprimento é igual ao intervalo de tempo entre as irrigações." 90
Há uma questão final que deve ser considerada. Como já foi sugerido, uma criança que tem um estigma pode-se encobrir de um modo especial. Os pais, sabendo da condição estigmática da criança, podem encapsulá-la na aceitação doméstica e na ignorância daquilo em que ela irá transformar-se. Quando se aventura fora de casa, ela o faz, portanto, como alguém que inconscientemente se encobre, pelo menos até onde o seu estigma não é logo perceptível. Nesse ponto, seus pais se defrontam com um dilema básico referente à manipulação de informação, recorrendo algumas vezes a médicos em busca de estratégias. 01 Se a criança recebe a informação sobre o seu estigma ao chegar à idade escolar, é possível que ela não seja bastante forte psicologicamente para suportar a notícia e que, além disso, exponha indiscretamente esses fatos a pessoas que não necessitam conhecê-los. Por outro lado, se ela é mantida por muito tempo na ignorância, não estará preparada para o que lhe pode acontecer e, mais ainda, pode ser informada sobre a sua condição por estranhos que não têm nenhum motivo para usar o tempo e o cuidado necessários para apresentar os fatos de uma forma construtiva e confiante.
Técnicas de Controle de Informação
Sugeriu-se que a identidade social de um indivíduo divide o seu mundo de pessoas e lugares, o que o faz também a sua identidade pessoal, embora de maneira
9° Orbach et ai., op. cit., p. 159.
91 Para uma versão médica da epilepsia infantil como um problema no controle de informação, ver Livingston, op. clt., "Should Epilepsy be Publicized?", pp. 201-210.
diferente. São esses quadros de referência que devem ser aplicados ao estudo da rotina diária de uma pessoa estigmatizada em particular, como quando ela vai e volta de seu trabalho, de sua casa, das compras e de lugares de diversão. Um conceito-chave aqui é o de rotina diária porque é ela que o vincula às diversas situações sociais de que ela participa. E estuda-se a rotina diária tendo-se em mente uma perspectiva especial: se o indivíduo é uma pessoa desacreditada, procuramos o ciclo quotidiano de restrições que ele enfrenta quanto à aceitação social; 'se ele é uma pessoa desacreditável, buscamos as contingências com que se depara na manipulação da informação sobre sua pessoa. Por exemplo, um indivíduo que tem uma deformação no rosto pode esperar, como foi sugerido, que pouco a pouco deixe de ser uma surpresa chocante para os seus vizinhos e que possa obter entre eles alguma aceitação; ao mesmo tempo, as indumentárias usadas para esconder parte de sua deformidade terão, na sua vizinhança, menos efeito do que em partes da cidade em que ele é desconhecido e, portanto, menos bem tratado.
Podem-se considerar agora algumas das técnicas usuais utilizadas por aquele que tem um defeito secreto, a fim de manipular a informação crucial sobre si.
É óbvio que uma das estratégias é esconder ou eliminar signos que se tornaram símbolos de estigma. A mudança de nome é um exemplo conhecido.02 Os viciados em drogas nos fornecem um outro exemplo:
"(Sobre um movimento contra drogas em Nova Orleans) : Os policiais começaram a parar viciados na rua em busca de marcas de injeção em seus braços. Se encontravam alguma, pressionavam o viciado a assinar uma declaração admitindo a sua condição de tal modo que ele poderia ser acusado sob a "lei de viciados em drogas'. Prometiam aos viciados que eles teriam uma sentença suspensa se se declarassem culpados, e acionavam a nova lei. Os viciados passaram a procurar no corpo outras veias fora da área do braço. Se não fossem encontradas marcas num homem, em geral ele era libertado. Se elas fossem descobertas, em geral ele ficava preso durante 72 horas e tentavam fazê-lo assinar uma declaração." 93
9 Ver L. Broom, H. P. Beem, e V. Harris, "Characteristics of
1,107 Petitioners for Change of Name", American Socioiogicai Review,
XX (1955), 33-39.
W. Lee, Jankie (Nova York: Ace Books, 1953), p. 91.
104 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 105
Deve-se acrescentar que já que o equipamento físico empregado para mitigar os prejuízos "primários" de algumas desvantagens torna-se, compreensivelmente, um símbolo de estigma, haverá um desejo de recusar o seu uso. Um exemplo disso é o do indivíduo que está perdendo a visão e que evita usar óculos bifocais porque eles poderiam indicar velhice. Mas é claro que essa estratégia pode impedir medidas compensatórias. Por conseeguinte, tornar esse equipamento corretivo invisível terá uma dupla função. As pessoas com dificuldades auditivas nos dão uma ilustração do emprego desses equipamentos corretivos invisíveis:
"A tia Mary (urna parenta que tinha dificuldades de audição' sabia tudo sobre os primeiros audiofones, variações inumeráveis de cometas acústicas. Ela tinha ilustrações que mostravam como tais receptores eram construídos em chapéus, pentes de prender cabelo, cantis, bengalas, vasos de flores para a mesa da sala de jantar e até nas barbas dos homens."
Uma ilustração mais comum são as "lentes de graduação invisível" - bifocais que não mostram uma "linha divisória".
O ocultamento de símbolos de estigma algumas vezes ocorre ao mesmo tempo que um processo relacionado, o uso de desidentificadores, como pode ser ilustrado pelos hábitos de James Berry, o primeiro verdugo profissional da Inglaterra:
"Não há certeza de que a violência contra Berry fosse realmente planejada, mas a sua acolhida nas ruas era tal que e'e, sempre que podia, usava todos os meios para não ser reconhecido. Contou ele numa entrevista, que em várias ocasiões, quando viajava para a Irlanda, esconda suas correias e cordas dentro da roupa para não ser denunciado pela mala que era uma marca profissional semelhante à pequena maleta preta do médico vitoriano. Seu sentido de isolamento e de desprezo por parte das outras pessoas talvez explique o extraordinário episódio de quando sua mulher e seu pequeno filho o acompanharam à Irlanda para uma execução, apesar da explicação por ele oferecida de que o objetivo disto era esconder a sua identidade, já que ninguém imaginaria que um homem que leva pela mão um menino de 10 anos era um verdugo a caminho do enforcamento de um assassino."
Warfield, Keep Listening, op. cit., p. 41.
95 Atholl, op. cit., pp. 88-89.
Aqui estamos tratando do que os livros de espionagem chamam de uma "capa", e do que outro tipo de literatura descreve como um auxílio conjugal quando um homossexual do sexo masculino e uma mulher homossexual reprimem suas inclinações e casam-se um com o outro.
Quando o estigma de um indivíduo se instaura nele durante a sua estadia numa instituição, e quando a instituição conserva sobre ele uma influência desacreditadora durante algum tempo após a sua saída, pode-se esperar
o surgimento de um ciclo específico de encobrimento. Por exemplo, num hospital de doentes i9° descobriu-se que os pacientes que reingressavam na comunidade freqüentemente planejavam encobrir-se até um certo ponto. Pacientes que eram obrigados a contar com o funcionário da reabilitação, o funcionário do serviço social ou com as agências de emprego para encontrar um trabalho, quase sempre discutiam com seus companheiros as contingências que teriam que enfrentar e a estratégia- padrão para lidar com elas. Para o primeiro emprego, o ingresso oficial exigia que o empregador, e às vezes o chefe de pessoal, conhecesse o seu estigma, mas havia sempre a possibilidade de que os níveis mais baixos da organização e os companheiros de trabalho fossem conservados numa certa ignorância do fato. Como foi sugerido, isso poderia implicar um certo grau de insegurança porque não se saberia com certeza quem "conhecia" e quem "desconhecia" o fato, e até quando duraria a ignorância dos que não o conheciam. Os pacientes expressavam o sentimento de que, após permanecer nesse tipo de emprego durante seis meses, tempo suficiente para juntar algum dinheiro e livrar-se das agências do hospital, eles deixariam o trabalho e, com o antecedente desses seis meses de trabalho, procurariam emprego em algum outro lugar, achando que dessa vez todas as pessoas poderiam ignorar a sua presença num hospital de doentes mentais.97
°° Vero estudo do autor sobre o St. Elizabeths Hospital, Washington, D . C., parcialmente incluído em Asylums (Nova York: Doubleday & Co., Anchor Books, 1961).
97 Para dados sobre a freqüência de ex-pacientes que atravessaram tal ciclo de encobrimento, ver M. Linder e D. Landy, "PosDischarge Experience and Vocational Rehabilitation Needs of Psychiatric Patients", Mental Hygiene, XLII (1958), 39.
106 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 107
Uma outra estratégia de encobrimento é apresentar os signos de seu estigma como signos de um outro atributo que seja um estigma menos significativo. Os retardados mentais, por exemplo, aparentemente tentam passar por doentes mentais já que dos dois males sociais esse é o menor.°8 De maneira semelhante, uma pessoa que tem dificuldades auditivas pode, intencionalmente, burilar a sua conduta para dar aos outros a impressão de ser uma sonhadora, uma pessoa distraída, indiferente,
•que fica facilmente enfastiada - ou mesmo de alguém que se sente deprimido, ou que ronca e que, portanto, não pode responder a perguntas em voz baixa já que está, evidentemente, adormecido. Esses traços de caráter dão conta da falta de audição sem imputá-la à surdez.99
Uma estratégia amplamente empregada pelo sujeito desacreditável é manusear os riscos, dividindo o mundo em um grande grupo ao qual ele não diz nada e um pequeno grupo ao qual ele diz tudo e sobre o qual, então, ele se apóia; ele co-opta para exibir sua máscara precisamente àqueles indivíduos que, em geral, constituiriam o maior perigo. No caso de relações próximas que ele já tinha na época em que adquiriu o seu estigma, pode imediatamente "pôr a relação em dia" por meio de uma calma conversa confidencial; posteriormente ele poderá ser rejeitado, mas conserva a postura de alguém que se relaciona de maneira honrada. É interessante observar que esse tipo de manipulação de informação é recomendado amiúde por médicos, em especial quando têm que ser as primeiras pessoas a informar ao indivíduo sobre
o seu estigma. Assim, os médicos que descobrem um caso de lepra podem sugerir que o novo segredo fique entre os médicos, o paciente e os familiares mais próximos,' 1° propondo, talvez, esse tipo de discrição para garantir uma continuação da cooperação do paciente. No caso de relações pós-estigma que passaram do ponto em que o indivíduo deveria ter contado, ele pode montar um palco confessional com espalhafato emocional que exige a deslealdade de seu silêncio passado e, portanto,
98 Edgerton e Sabagh, op. cit., p. 268.
° Warfield, Cotton in My Ears, op. cit., pp. 21, 29-30, em Wright, op. cit., pp. 23-24. Lemert, Social Pathology, op. cit., p. 95, nos proporciona um enfoque geral, sob o título de "counterfeit roles".
100 B. Roueché, "A Lonely Road", Eleven Blue Men (Nova
York: Berkley Publishing Corp., 1953), p. 122.
lançar-se à piedade dos outros como alguém que se expôs duplamente, primeiro devido ao seu atributo diferencial e, segundo, devido à sua desonestidade e falta de confiabilidade. Existem registros excelentes dessas cenas tocantes e é necessárrio compreender o enorme caudal de esquecer-e-perdoar que elas provocam. Não se pode dúvidar que um dos fatores do sucesso dessas confissões é a tendência de que se encobre para sondar o outro com o objetivo de se assegurar de que a revelação não trará uma ruptura completa da relação. Note-se que o indivíduo estigmatizado está quase predestinado a essas cenas; as novas relações podem, facilmente, ser desencorajadas antes de se consolidarem, tornando a honestidade imediata necessariamente custosa e, portanto, quase sempre
•evitada.
Como já foi assinalado, uma pessoa que se encontre numa posição que lhe permite fazer chantagem pode, com freqüência, ajudar o indivíduo que se censura a manter o seu segredo; além disso, é provável que ela tenha muitos motivos para fazê-lo. Assim, os gerentes de locais de diversão contratam, com freqüência, policiais particulares para proteger os maridos que, às vezes, se demoram ou jogam nesses lugares. Os gigolôs algumas vezes também têm um cuidado semelhante:
"Os homens (gigolôs) alugavam quartos em hotéis respeitáveis, no primeiro andar acima do vestíbulo, para que seus clientes pudessem usar a escada sem serem vistos pelos ascensoristas ou recepcionistas." 102
Suas colegas também são igualmente cuidadosas:
"Sseus clientes são pessoas importantes, as moças não os identificam facilmente ou mencionam seus nomes em conversas, mesmo entre elas." 103
101 Para uma cena entre a prostituta grávida e o homem desconhecido que quer casar com ela, ver Thomas, op. cit., p. 134; para uma cena de ficção entre um negro que se encobre e uma moça com a qual ele quer casar, ver Johnson, op. cit., pp. 204-205.
102 Stearn, Sisters of the Night, op. cit., p. 13.
103 H. Greenwald, The Cali Giri (Nova York: Baliantine Books,
1958), p. 24.
108 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÀO E IDENTIDADE PESSOAL 109
De maneira semelhante, tomamos conhecimento do papel de um cabeleireiro empregado pelas moças de um prostíbulo de "primeira classe":
"Na verdade, ele era mais do que um artista; ele era una amigo sincero de todas as moças da casa, e "Charlie" ouvia confidências que raramente eram feitas a outras pessoas e dava muitos conselhos de senso comum. Além disso, em sua própria casa, na Michigan Avenue, ele recebia a correspondência das moças que mantinham sua profissão em segredo para a família e para os amigos, e era ali, ainda, o lugar onde as moças podiam encontrar os seus parentes que vinham inesperadamente a Chicago." 108
Outros exemplos são fornecidos por casais nos quais um dos membros pertence a uma categoria estigmatizada. enquanto o outro tenta manter as aparências. Por exemplo, sugere-se que o companheiro de um alcoólatra o ajudará a esconder o seu defeito. A mulher de um homem que havia sofrido uma colostomia o ajudará a assegurar-se de que ele não cheira mal 105 e, mais ainda, talvez
"(. . .) postar-se em casa para interceptar telefonemas e campainhas para que não seja necessára uma intervenção na irrigação. .
O marido de uma mulher que aparentava ouvir de maneira normal a ajudava da seguinte maneira:
"Ele próprio era um homem extremamente delicado, e, a partir do momento em que se apaixonou, instintivamente aprendeu como me ajudar a completar minhas lacunas e a compensar meus erros. Ele tinha uma voz clara e sonora. Nunca parecia levantá-la mas eu sempre ouvia o que ele dizia; pelo menos ele deixava-me pensar que o fazia. Quando estávamos com outras pessoas ele prestava atenção para ver como me saía e quando me via em dificuldades na conversa me dava, imperceptivelmente, chaves para que eu me pudesse manter a par do desenrolar da conversa." 107
Deve-se acrescentar que as pessoas íntimas não só ajudam a pessoa desacreditável em sua simulação mas também levam essa função além do que suspeita o bene104 Madeleine, op. cit., p. 71.
105 Orbach et a2., op. cit., p. 163.
106 Ibid., p. 153.
107 Warfield, Keep Lí.stening, op. cit., p. 21.
ficiario; elas podem, de fato, servir como um círculo protetor que lhe permite pensar que é mais amplamente aceito como uma pessoa normal do que ocorre na realiclade. Portanto, elas estarão mais atentas à sua qualidade diferencial e seus problemas do que ele próprio. Aqui, certamente, a noção de que a manipulação do estigma atinge exclusivamente o individuo estigmatizado e os estranhos é inadequada.
É interessante observar que aqueles que compartilham um estigma particular podem freqüentemente confiar na ajuda mútua para o encobrimento, o que torna evidente o fato de que todos os que podem ser mais ameaçadores são aqueles que podem dar maior assistência. Por exemplo, quando um homossexual aborda outro, a ação pode ser empreendida de tal forma que os normais não notarão a ocorrrência de nada fora do comum:
"Se observarmos com bastante cuidado e soubermos o que observar num bar de homossexuais, começamos a notar que certos indivíduos parecem comunicar-se entre si sem trocar palavras. utilzando apenas a troca de olhares - mas não aquele tipo de olhar rápido que os homens trocam freqüentemente." 108
Pode-se encontrar o mesmo tipo de cooperação num círculo de pessoas estigmatizadas que se conhecem pessoalmente. Por exemplo, ex-pacientes mentais, que se conheceram na instituição, podem manter um controle tácito sobre esse fato no mundo exterior. Em alguns casos, como quando um deles está com pessoas normais, ambos podem-se ignorar, passando um pelo outro como se não se conhecessem. Quando ocorre um cumprimento, pode ser discreto; o contexto do conhecimento inicial não é explicitado, e o indivíduo cuja situação é a mais delicada tem o direito de regular o conhecimento e o intercâmbio social posterior ao encontro. Aqui, é claro, ex-pacientes mentais não estão sozinhos:
"A eall giri profissional tem um código que regulamenta as suas relações com o cliente. Por exemplo, é comum que lunca demonstre
1
108 E. Hooker, "The Homosexual Community", trabalho não publicado lido no XIV Congresso Internacional de Psicologia Aplicada, Copenhague, 14 de agosto de 1961, p. 8. A estrutura desse encontro de olhares é complexa, envolvendo um reconhecimento cognitive da identidade social (aras não da pessoal); também implca uma intenção sexual e, algumas vezes, um contato tácito.
110 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 111
reconhecer um cliente quando o vê na rua, a não ser que ele a cum-primente antes." 109
Quando esse tipo de discrição não ocorre, pode-se esperar, algumas vezes, que o indivíduo desacreditado empreenda uma ação disciplinar ativa, como ilustra Reiss em seu trabalho sobre adolescentes e jovens que estabelecem uma relação com homossexuais:
"Estava andando na rua com minha namorada quando me apareceu uma "bicha" com quem havia cstado antes urna vez, qua assoviou para mim e disse: 'Olá, queridinho... Fiquei louco. .. fui até onde estavam os rapazes, o derrubamos e batemos nele até que- ele tivesse vontade de nunca mais voltar. . . não vou aceitar isso de um veado." 110
Pode-se esperar que essa manutenção voluntária de vários tipos de distância será estrategicamente empregada por aqueles que se encobrem, com o desacreditável utilizando, aqui, quase as mesmas estratégias que os desacre-ditados, mas por motivos ligeiramente diversos. Recusando ou evitando brechas de intimidade, o indivíduo pode evitar a obrigação conseqüente de divulgar informação. Ao manter relações distantes, ele assegura que não terá que passar muito tempo com as pessoas porque, como já foi dito, quanto mais tempo se passa com alguém,. maior é a possibilidade da ocorrência de fatos não previstos que revelam segredos. Podem-se citar exemplos do' trabalho de manipulação de estigma feito por mulheres de pacientes mentais:
"Porém cortei comunicação com todos os nossos outros amigos (após citar os cinco que conheciam o problema.) Não lhes disse que estava deixando o apartamento, e desliguei o telefone sem comunicar nada a ninguém, e assim eles não sabem como entrar em contato comigo." 111
"Não fiquei demasiadamente amiga de ninguém no escritório porque não quero que as pessoas saibam onde etá meu marido. Achei que se ficasse muito amiga delas, começariam a me perguntar coisas, eu poderia começar a falar, e acho que é melhor que o menor número possível de pessoas saiba o que aconteceu a Joe." 112
109 Greenwald, op. cit., p. 24.
110 A. J. Reiss, Jr., "The Social Integration of Queers and Peers", Social Problems, IX (1961), 118.
111 Yarrow, Clausen e Robbins, op. cit., p. 36.
112 Ibid.
Ao manter a distância física, o indivíduo também pode restringir a tendência de outras pessoas para construir uma identificação pessoal de si próprio. Ao morar numa região com população móvel, ele pode limitar a intensidade de experiência contínua que os outros têm. com ele. Ao morar numa região isolada de outra que freqüenta com regularidade, ele pode produzir uma desconexão em sua biografia: quer intencionalmente, como é o caso da mulher solteira que está grávida e sai de seu estado para ter a criança, ou de homossexuais de cidades pequenas que vão para Nova York, Los Angeles ou Paris em busca de uma atividade relativamente anônima; quer não intencionalmente, como é o caso do paciente mental que sente-se agradecido por descobrir que o lugar de seu internamento está fora de sua cidade e, portanto, bem isolado de seus contatos habituais. Ao permanecer dentro de casa e não responder ao telefone ou a quem bate na porta, o indivíduo desacreditável pode-se afastar da maior parte daqueles contatos em que a sua desgraça pode ser incluída como parte de sua biografia. 113
Deve-se considerar, agora, uma possibilidade final,. que permite ao indivíduo antecipar-se a todas as outras. Ele pode voluntariamente revelar-se, transformando, portanto, radicalmente a situação de um indivíduo que tem informações a manipular na de alguém que deve manipular situações sociais difíceis, transformando a situação- de uma pessoa desacreditável na de uma pessoa desacreditada. Uma vez que a pessoa que tem um estigma secreto dá informações sobre si, pode-se entregar a qualquer uma das ações, anteriormente citadas, ao alcance de estigmatizados conhecidos como tais, podendo isso explicar, em parte, a sua política de auto-revelação.
Um dos métodos de revelação é o uso voluntário, por um indivíduo, de um símbolo de estigma, um signo extremamente visível que revela o seu defeito onde quer que ele vá. Há, por exemplo, pessoas que têm dificuldades auditivas e que usam auxiliares auditivos desprovidos de bateria;114 as pessoas parcialmente cegas que usam uma
- 113 Um exemplo de ocultamento de gravidez ilegítima é dado em H. M. Hughes, op. cit., pp. 53 e segs.
114 Barker et ai., Adjustment to Physicai Handicap and Iiiness,, op. cit., p. 241.
112 ESTIGMA
bengala branca desmontável; judeus que usam um cordão com a estrela de Davi. Deve-se acrescentar que alguns desses símbolos de estigma, como o distintivo dos Cavaleiros de Colombo que indicam que o portador é católico, não são claramente apresentados como reveladores de estigma mas, ao contrário, têm como finalidade atestar a pertinência do indivíduo a organizações que não têm, pretensamente, em si mesmas, tal significado. Deve-se acrescentar também que os programas militantes de todos os tipos podem utilizar esse recurso, porque o indivíduo que se auto-simboliza, garante o seu afastamento da sociedade de normais. A maneira pela qual uma seita de judeus de Nova York se apresenta é um exemplo:
"Obgehitene Yiden, "Judeus Guardiães", incluem os chamados judeus ortodoxos que não só observam o Shulhan Aruch nos mínimos detalhes mas também são muito meticulosos e cuidadosos na sua observância. Desempenham todos os mandamentos prescritos e todos os preceitos com o maior cuidado. Essas pessoas são abertamente identificadas como judias. Usam barbas e/ou vestimentas tradicio-. nais com o único objetivo de serem externamente identificadas como judias: barbas para que a imagem de Deus se reflita em seus rostos, roupas tradicionais para que se abstenham de qualquer pecado possível.' 116
Os símbolos de estigma caracterizam-se por estarem continuamente expostos à percepção. Alguns meios menos rígidos de revelação também são usados. Provas transitórias podem ser dadas - digamos, deslizes intencionais - como quando uma pessoa cega comete voluntariamente um ato desajeitado na presença de recém- chegados com o objetivo de informá-los sobre o seu estigma.11° Há também a "revelação devida à etiqueta", uma fórmula por meio da qual o indivíduo admite o seu próprio defeito como uma questão de fato, baseando-se na suposição de que os presentes estão acima de tais preocupações ao mesmo tempo que os impede de cair numa armadilha mostrando que não o estão. Assim, o "bom" judeu ou o doente mental esperam por "uma oca •siã apropriada" na conversa com estranhos e dizem calmamente: "Bem, ser judeu me faz pensar que. . ." ou "Por ter tido uma experiência direta como doente mental, posso. .
115 S. Poll, The Hasidic Community of Willictmsburg (Nova
York: Free Press of Glencoe, me., 1962), pp. 25-26.
116 Bigman, op. cit., p. 143.
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 113
Já foi sugerido que a aprendizagem do encobrimento constitui uma fase da socialização da pessoa estigmatizada e um ponto crítico na sua carreira moral. Sugiro agora que o indivíduo estigmatizado pode vir a sentir que deveria estar acima do encobrimento, que se se aceita e se respeita não haverá necessidade de esconder o seu defeito. Depois de um trabalhoso aprendizado de ocultamento, então, o indivíduo pode começar a desaprendê-lo. É aqui que a revelação voluntária encaixa-se na carreira moral como uma de suas fases. Deve-se acrescentar que nas autobiografias publicadas de indivíduos estigmatiza. dos, essa fase da carreira moral é tipicamente descrita como a fase final, madura e bem ajustada - um estado de graça que tentarei considerar mais adiante.
O Acobertamento
Deve-se estabelecer uma nítida distinção entre a situação da pessoa desacreditada que deve manipular a tensão e a situação da pessoa desacreditável que deve manipular a informação. Os estigmatizados empregam uma técnica adaptativa, entretanto, que exige que o investigador considere essas duas possibilidades. A diferença entre a visibilidade e a obstrução estão implícitas neste ponto.
Sabe-se que as pessoas que estão prontas a admitir que têm um estigma (em muitos casos porque ele conhecido ou imediatamente visível) podem, não obstante, fazer grandes esforços para que ele não apareça muito. O objetivo do indivíduo é reduzir a tensão, ou seja, tornar mais fácil para si mesmo e para os outros uma redução dissimulada ao estigma, e manter um envolvimento espontâneo no conteúdo público da interação. Entretanto os meios empregados para isso são muito semelhantes aos empregados no encobrimento - e, em alguns casos, idênticos, já que aquilo que esconde um estigma de pessoas desconhecidas também pode facilitar as coisas frente a quem o conhece. É assim que uma moça que anda melhor com sua perna de pau utiliza muletas ou uma perna mecânica nitidamente artificial quando em companhia de outras pessoas.1'7 Esse processo será chamado de acobertamento. Muitas pessoas que raramente tentam encobrir-se tentam, em geral, se acobertar.
117 Baker, op. cit., p. 193.
1
1
114 ESTIGMA
CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL 115
Um tipo de acobertamento envolve o indivíduo numa preocupação com os modelos incidentalmente associados com seu estigma. Assim, os cegos, que algumas vezes têm o rosto desfigurado na região dos olhos, diferenciam-se entre si em função desse fato. Os óculos escuros, algumas vezes usados para oferecer voluntariamente uma prova de cegueira podem, ao mesmo tempo, ser usados para acobertar a existência de uma desfiguração facial
- nesse caso revela-se a cegueira, ao mesmo tempo em que se oculta a deformidade:
"Os cegos, seguramente, proclamam bastante a sua condição sem acrescentar a ela nenhum fato cosmético. Não vejo nada que possa aumentar tanto a tragédia da posição de um homem cego do que o sentimento de que, na luta nara recuperar a vsio, ele não só foi derrotado como perdeu também o aspecto saudável de sua aparência."115
De maneira semelhante, já que a cegueira pode levar à impressão de falta de cuidado, pode haver um esforço especial para reaprender a propriedade motora, "um desembaraço, graça e competência em todos os movimentos que o mundo das pessoas que enxergam encara como 'normais' ".'
Um tipo de acobertamento relacionado com o anterior implica um esforço para restringir a exibição dos defeitos mais centralmente identificados com o estigma. Por exemplo, uma pessoa quase cega que sabe que as outras pessoas presentes conhecem o seu defeito pode hesitar em ler alguma coisa porque para isso teria que trazer o livro a poucos centímetros de seus olhos o que, segundo ela, expressa muito flagrantemente as qualidades da cegueira.12° Esse tipo de acobertamento, deve-se acrescentar, é um aspecto importante das técnicas "assimilativas" empregadas por membros de grupos étnicos minoritários; as intenções que informam recursos como a troca de nome e a operação plástica do nariz não são só o encobrimento mas também a restrição da forma pela qual um atributo conhecido se coloca no centro das atenções, porque essa colocação aumenta as dificuldades de se desviar a atenção do estigma.
118 Chevigny, op. cit., pp. 40-41.
119 Ihid., p. 123.
120 Criddle, op. cit., p. 47.
A expressão mais interessante do acobertamento é, talvez, a associada à organização de situações sociais. Como já foi sugerido, qualquer coisa que interfira diretamente na etiqueta e na mecânica da comunicação interfere constantemente na interação, e é difícil deixar, com sinceridade, de prestar atenção a ela. Portanto, os indivíduos que têm um estigma, sobretudo os que têm um defeito físico, podem precisar aprender a estrutura da interação para conhecer as linhas ao longo das quais devem reconstituir a sua conduta se desejam minimizar a intromissão de seu estigma. A partir de seus esforços, portanto, podem-se conhecer características da interação que, de outra forma, seriam consideradas demasiadamente óbvias para merecerem atenção.
Por exemplo, as pessoas que têm dificuldades auditivas aprendem a falar no tom que os ouvintes consideram apropriado para a situação, e também a enfrentar logo os momentos críticos durante a interação que exigem especificamente uma boa audição se se deseja manter as boas maneiras:
"Frances imaginava técnicas elaboradas para fazer frente ao bate-papos de jantar, intervalos de concertos, jogos de futebol, bailes, e assim por diante, para proteger o seu segredo. Mas elas só serviam para torná-la mais insegura e, conseqüentemente, mais cuidadosa e, por sua vez, novamente, mais insegura. Assim, Frances sabia de cor que num jantar deveria (1) sentar perto de alguém que tivesse uma voz forte; (2) engasgar, tossir ou ter soluços se alguém lhe fizesse perguntas diretas; (3) agarrar-se, ela própria, à conversa, pedindo a alguém que lhe conte uma história que ela já ouviu, fazendo perguntas das quais ela já sabe a resposta."1'
Da mesma forma, as pessoas cegas algumas vezes aprendem a olhar diretamente para o seu interlocutor, ainda que seu olhar não signifique visão, porque assim evita fixar o olhar no espaço, ou inclinar a cabeça ou, ainda, violar, sem saber, o código relativo aos sinais de atenção por meio dos quais se organiza a interação verbal.1
121 Condensado de Warfield, Cotton in My Ears, op. cit., p. 36, em Wright, op. cit., p. 49.
' Chevigny, op. cit., p. 51.

3. ALINHAMENTO GRUPAL e IDENTIDADE DOEU

Neste ensaio foi feita uma tentativa para estabelecer uma diferença entre a identidade social e a identidade pessoal. Ambos os tipos de identidade podem ser mais bem compreendidos se considerados em conjunto e contrastados com o que Erikson e outros chamaram de identidade do "eu" ou identidade "experimentada",* ou seja, o sentido subjetivo de sua própria situação e sua própria continuidade e caráter que um indivíduo vem a obter como resultado de suas várias experiências sociais.'
As identidades social e pessoal são parte, antes de mais nada, dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo, cuja identidade está em questão. No caso da identidade pessoal, esses interesses e definições podem surgir antes mesmo de o indivíduo nascer e continuam depois dele haver sido enterrado, existindo, então, em épocas em que o próprio indivíduo não pode ter nenhuma sensação inclusive as sensações de identidade. Por outro lado, a identidade do eu é, sobretudo, uma questão subjetiva e reflexiva que deve necessariamente ser experimentada pelo indivíduo cuja identidade está em jogo.2 Assim, quando um criminoso usa um pseu Em inglês "ego identity" e "felt identity". (N. do T.)
' O termo "auto-identidade" (N. do T. - em inglês "seu identity") seria adequado aqui, mas a sua extensão, o termo "auto-
-identificação", é comumente usada em referência a alguma coisa mais, ou seja, o indivíduo estabelecendo, ele próprio, a sua identidade pessoal através de documentação ou testamento.
2 A tipologia tripla de identidade empregada neste artigo deixa aem especificar a frase "identificar-se com" (N. do T. - em inglês "to identify with") que tem, ela própria, dois significados comuns:
participar como substitutcj na situação de alguém cuja condição
dônimo, está-se afastando totalmente de sua identidade pessoal; quando mantém as iniciais originais ou algum outro aspecto de seu nome original, está, ao mesmo tempo, favorecendo um sentido de sua identidade do eu.3 É claro que o indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo materialdo qual as outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social, mas ele tem uma considerável liberdade em relação àquilo que elabora.4
O conceito de identidade social nos permitiu considerar a estigmatização. O de identidade pessoal nos permitiu considerar o papel do controle de informação na manipulação do estigma. A idéia de identidade do eu nos permite considerar o que o indivíduo pode experimentar a respeito do estigma e sua manipulação, e nos leva a dar atenção especial à informação que ele recebe quanto a essas questões.
Ambivalência
Uma vez que em nossa sociedade o indivíduo estigmatizado adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo a despeito da impossibilidade de se conformar a eles, é inevitável que sinta alguma ambivalência em relação a seu próprio eu. Algumas expressões dessa ambivalência já foram descritas junto com as oscilações de identificação e associação que a pessoa mostra em relação a seus companheiros de estigma. Outras expressões podem ser citadas.
O indivíduo estigmatizado tem uma tendência a estratificar seus "pares" conforme o grau de visibilidade e imposição de seus estigmas. Ele pode, então, tomar em relação àqueles que são mais evidentemente estigmatizados do que ele as atitudes que os normais tomam em
atrai a nossa simpatia; incorporar aspectos de outrem na formação da própria identidade do eu. A frase "identificar-se com" pode ter esses significados psicológicos mas, além disso, se referir à
categoria social de pessoas cuja caráter suposto é atribuído a alguém como parte de sua própria identidade.
Hartman, op. cit., pp. 54-55.
4 Há, por exemplo, uma conhecida tendência das pessoas para atribuir à sua ocupação maior prestígio do que o fazem pessoas que estão empregadas em outras ocupações.
118 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 119
relação a ele. Assim, as pessoas que têm dificuldades auditivas não se vêem absolutamente como pessoas surdas, e as que têm deficiência de visão não se consideram, de maneira alguma, cegas.5 É em sua associação com, ou separação de, seus companheiros mais visivelmente estigmatizados, que a oscilação da identificação do indivíduo é mais fortemente marcada.
Ligada a esse tipo de estratificação auto-evidente, está a questão das alianças sociais, ou seja, se a escolha que o indivíduo faz de amigos, namoradas e esposa ocorrerão dentro de seu próprio grupo ou "do outro lado da linha". Uma garota cega expressa o problema:
"Uma vez - há alguns anos - pensei que preferia sair com um homem que enxergasse do que com um homem cego. Mas eu dê vez em quando saía com rapazes e aos poucos meus sentimentos foram mudando. Valorizo o sentimento que o cego tem em relação a outro cego e posso, agora, respeitar um homem cego por suas próprias qualidades e sentir-me feliz com a compreensão que ele pode me dar." 6
"Alguns de meus amigos são cegos, outros, não. Isto, de um certo modo, me parece ser o caminho correto - não posso compreender que as re'ações humanas sejam governadas por uma dessas possibilidades."7
É provável que quanto mais o indivíduo se alie aos normais, mais se considerará em termos não estigmáticos, embora haja contextos em que o oposto parece verdade.
Quer mantenha uma aliança íntima com seus iguais ou não, o indivíduo estigmatizado pode mostrar uma ambivalência de identidade quando vê de perto que eles comportam-se de um modo estereotipado, exibindo de maneira extravagante ou desprezível os atributos negativos que lhes são imputados. Essa visão pode afastá-lo, já que, apesar de tudo, ele apóia as normas da sociedade mais ampla, mas a sua identificação social e psicológica com esses transgressores o mantém unido ao que repele, transformando a repulsa em vergonha e, posteriormente, convertendo a própria vergonha em algo de que se sente envergonhado. Em resumo, ele não pode nem aceitar o seu grupo nem abandoná-lo.8 (A expressão "preocupação
Por exemplo, ver Criddle, op. cit., pp. 44-47.
6 Henrich e Kriegel, op. eit., p. 187.
7 Ibid., p. 188.
8 Ver J.-P. Sartre, Anti-Semite and Jew (Nova York: Grove Press, 1960), pp. 102 e segs.
com a purificação intragrupal" é usada para descrever os esforços de pessoas estigmatizadas não só para "normificar" o seu próprio grupo mas também para limpar totalmente a conduta de outras pessoas do grupo.)9 A ambivalência parece encontrar-se de maneira mais aguda no processo de "aproximação", ou seja, quando o indivíduo se aproxima a uma distância indesejável de seus iguais enquanto está "com" um normal.'°
Deve-se esperar, apenas, que essa ambivalência de identidade receba uma expressão organizada em materiais escritos, orais, representados ou apresentados de outra forma qualquer por representantes do grupo. Assim, no humor dos estigmatizados - publicado e representado - encontramos um tipo especial de ironia. Caricaturas, piadas e lendas populares revelam de maneira pouco séria as fraquezas de um membro estereotípico da categoria, mesmo quando esse meio-herói demonstre ingenuamente ser mais esperto do que um normal de status destacado.1' As apresentações sérias dos representantes podem exibir uma ambivalência semelhante, mostrando uma auto-alienação semelhante.
Às Apresentações Profissionais
Sugeriu-se que o indivíduo estigmatizado se define como não-diferente de qualquer outro ser humano, embora ao mesmo tempo ele e as pessoas próximas o definam como alguém marginalizado. Dada essa autocontradição básica do indivíduo estigmatizado, é compreensível que ele se esforce para descobrir uma doutrina que forneça um sentido consistente à sua situação. Na sociedade contemporânea, isso significa que o indivíduo não só tentará, por conta própria, elaborar tal código mas que, como já foi sugerido, os profissionais o ajudarão - algumas vezes com o pretexto de fazê-lo contar sua história de vida ou de contar como se saíram de uma situação difícil.
9 M. Seeman, "The Inteilectual and the Language of Minorities", American Journal of Sociology, LXIV (1958), 29.
10 Um episódio interessante, no qual um jovem quase cego encontra uma moça cega numa feira de caridade e tem respostas mistas, é citado em Criddle, op. cit., pp. 7144.
11 Ver, por exemplo, J. Burma, "Humor as a Technique in Race Conflict", American Sociological Review, XI (1946), 710-715.
120 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu l21
Os códigos apresentados ao indivíduo estigmatizado, quer explícita ou implicitamente, tendem a cobrir certas questões-padrão. Um modelo desejável de revelação e ocultamento é proposto. (Por exemplo, no caso de ex- paciente mental algumas vezes recomenda-se que ele esconda devidamente o seu estigma simples conhecido mas que se sinta bastante seguro sobre a natureza médica e não moral de seus defeitos passados para revelar-se à sua esposa, seus amigos mais chegados e seu empregador.) Outras questões-padrão são: fórmulas para se sair de situações delicadas, o apoio que ele deveria dar a seus iguais; o tipo de confraternização que deveria ser mantido com os normais; os tipos de preconceitos contra seus iguais que ele deveria ignorar e os tipos que ele deveria atacar abertamente; até que ponto deveria apresentar-se como uma pessoa tão normal quanto qualquer outra e até que ponto deveria aceitar um tratamento ligeiramente diverso; os fatos sobre seus iguais de que se deveria orgulhar; o fato de ter que se defrontar com seu próprio atributo diferencial.
Embora os códigos ou as linhas apresentados às pessoas que têm um estigma particular difiram entre si, há alguns argumentos que, apesar de contraditórios, gozam, em geral, de grande aceitação. A pessoa estigmatizada é quase sempre prevenida contra uma tentativa de encobrimento completo. (Apesar de tudo, a não ser pelo confessor anônimo, pode ser difícil que uma pessoa defenda essa posição publicamente na imprensa.) Em geral, também, ela é prevenida contra o fato de aceitar completamente como suas as atitudes negativas que outros têm para com ela. É provável que ela seja prevenida contra a "menestrelização",* 12 por meio da qual a pessoa estigmatizada deseja conquistar as graças dos normais exibindo o repertório completo de qualidades negativas imputadas a seus iguais, consolidando, assim, uma situação vital dentro de um papel ridículo:
* Em inglês "minstrelization". A palavra vem de minstrel:
intérprete (em geral de cor branca) de música ou peça de negros (cf. nota 12 abaixo). (N. do T.)
12 termo vem de A. Broyard, "Portrait of the Inauthentie Negro", Complementary, X (1950), 59-60. Existe um esforço consciente para representar plenamente o papel, algumas vezes denominado de "personificação". Sobre negros personificando negros, ver Wolfe, op. cit., p. 203.
"Aprendi também que o aleijado deve ter cuidado em não agir de maneira diferente da expectativa das pessoas. Acima de tudo, eles esperam que o aleijado seja aleijado; seja incapacitado e indefeso:
inferior a eles e, assim, têm desconfiança e sentem-se inseguros se os aleijados não correspondem a essas expectativas. É bastante estranho, mas o aleijado tem de desempenhar o papel de aleijado, assim como as mulheres têm que ser o que os homens esperam delas, ou seja, simplesmente mulheres; e os negros freqüentemente têm que agir como palhaços frente à raça branca "superior", de tal modo que o homem branco não fique amedrontado por seu irmão negro.
Certa vez conheci uma anã que era urna exemplo patético do que estou dizendo. Era muito pequena, tinha cerca de um metro de altura e extremamente bem educada. Na frente de outras pessoas, entretanto, tinha muito cuidado em não ser outra coisa que não "a anã", e desempenhava o papel de boba com o mesmo riso de mofa e os mesmos mo. vimentos rápidos e engraçados que caracterizaram os bufões desde as cortes da Idade Média. Quando estava com amigos, ela podia tirar o gorro, os sinos e atrever-se a ser a mulher que realmente era: inteligente, triste e muito solitária."13
E, ao inverso, freqüentemente a pessoa estigmati- zada está prevenida contra a "normificação" ou "des- menestrelização "; 14 ela é encorajada a sentir repugnância por aqueles seus companheiros que, sem chegar a realmente manter um segredo sobre seu estigma, adotam um acobertamento cuidadoso, se preocupando muito em mostrar que, a despeito das aparências, são muito sadios, muito generosos, muito sóbrios, muito masculinos e capazes de realizar pesados trabalhos físicos e esportes que exigem um grande esforço, em resumo, que são, apesar da reputação de que gozam as pessoas de seu tipo, "desviantes cavalheiros", pessoas tão gentis como nós mesmos.'5
Deveria estar claro que esses códigos de conduta defendidos fornecem ao indivíduo estigmatizado não só uma plataforma e uma política e não só instruções sobre como tratar os outros, mas também receitas para uma atitude apropriada em relação a seu "eu". Não conseguir
13 Carling, op. cit., pp. 54-55.
14 Lewin, op. cit., pp. 192-193, usa o termo "chauvinismo negativo" para referir-se a esse caso; Eroyard, op. cit., p. 62, usa a expressão "inversão de papéis". Ver também Sartre, op. c,t., pp. 102 e segs.
15 Sobre judeus, ver Sartre, op. cit., pp. 95-96; sobre negros, ver Broyard, op. cit.; sobre intelectuais, ver M. Seenian, op. cit.; sobre japoneses, ver M. Grodzins, "Malcing Un-Americans", American Jour-nal of Sociology, LX (1955), 570-582.
'122 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 123
aderir ao código significa estar-se iludindo, ser uma pessoa desencaminhada; ser bem sucedido significa ser uma pessoa real e digna, duas qualidades espirituais que se combinam para produzir o que é chamado de "autenticidade "1
Neste ponto devem ser mencionadas duas implica •çõe da defesa desses códigos. Em primeiro lugar, o conselho sobre a conduta pessoal algi.imas vezes estimula o indivíduo estigmatizado a tornar-se um crítico da cena social, um observador das relações humanas. Ele pode ser levado a colocar entre parênteses um conjunto de interações sociais casuais para examinar o que elas contêm em matéria de temas gerais. Ele pode tornar-se "consciente da situação" enquanto os normais presentes estão espontaneamente envolvidos na situação, constituindo a própria situação para esses normais um pano de fundo de questões abertas. Essa extensão da consciência pelas pessoas estigmatizadas é reforçada, como já foi sugerido, por sua sensibilidade especial às contingências da aceitação e da revelação, contingências às quais os normais serão menos sensíveis.17
Em segundo lugar, os conselhos ao estigmatizado freqüentemente se referem com bastante singeleza à parte de sua vida da qual ele mais se envergonha e que consi •der a mais privada; suas feridas mais profundamente
10 Deve-se acrescentar que embora a literatura sobre autenticidade se preocupe com a maneira como o indivíduo deve comportar-se, sendo, portanto, moralística, ela é, ao mesmo tempo, apresentada sob o disfarce de uma análise neutra e desapaixonada, já ue se supõe que a autenticidade implica uma orientação realística para a realidade; e, na verdade, atualmente, essa literatura é a melhor fonte de análise neutra das questões de identidade. Para comentários críticos, ver 1. D. Rinder e D. T. Campbell. "Varieties of Inauthenticity", Phijlon, Quarto Trimestre, 1952, 270-275.
17 Este é simplesmente um aspecto da tendência geral dos ïndivíduos estigmatizados para enfrentar uma ampla revisão e encapsulamento de sua vida onde um normal não precisaria fazê-lo. Assim, diz-se, freqüentemente, que uma pessoa estigmatizada que consegue uma família e um trabalho "fez algo de sua vida". De maneira semelhante, diz-se de alguém que casou com uma pessoa estigmatizada "jogou a vida fora". Tudo isso é reforçado, em nlguns casos, quando o indivíduo transforma-se num "caso" para assistentes sociais ou outros funcionários das agências de bem-estar social e se mantém no status de caso por toda a sua vida. Sobre u atitude de uma pessoa cega em relação a isso, ver Chevigny, op. cit., p. 100.
escondidas são tocadas e examinadas clinicamente tal como na moda literária atual.'8 Discussões intensas sobre as posições pessoais podem ser apresentadas em forma de ficção, junto com profundas crises de consciência. São embrulhadas e colocadas à sua disposição fantasias de humilhação e triunfo sobre os normais. Nesse ponto, o mais privado e embaraçoso é o mais coletivo, porque os sentimentos mais profundos do indivíduo estigmatizado são feitos do mesmo material que os membros de sua categoria apresentam numa versão escrita ou oral bastante fluente. E já que aquilo que está ao alcance do estigmatizado está necessariamente ao nosso alcance, é difícil que esse tipo de apresentações evite o surgimento da questão da exposição e da revelação involuntária, embora o seu efeito último seja, provavelmente, útil à situação do estigmatizado.
Alinhamentos Intragru pais
Embora essas filosofias de vida propostas, essas receitas de ser, sejam apresentadas como resultantes do ponto de vista pessoal do indivíduo estigmatizado, a análise mostra que algo mais as informa. Esse algo mais são os grupos, no sentido amplo de 'pessoas situadas numa posição semelhante, e isso é a única coisa que se pode esperar, já que o que um indivíduo é, ou poderia ser, deriva do lugar que ocupam os seus iguais na estrutura social.
Um desses grupos é o agregado formado pelos companheiros de sofrimento do indivíduo. Os arautos desse grupo sustentam que o grupo real do indivíduo, o grupo a que ele pertence naturalmente, é esse.19 Todas as outras categorias e grupos aos quais o indivíduo também per18 Os escritos recentes de James Baldwin nos fornecem muito
material desse tipo referente aos negros. O trabalho de Chevigny, My Eyes Have a Cold Nose, é um bom exemplo no que se refere aos cegos.
19 Daí, por exemplo, que Le'win, op. cit., possa discutir o fenômeno que ele chama de ódio por si mesmo (self-hate) e não criar nenhuma confusão mesmo que, com o termo, ele esteja querendo referir-se não ao ódio que o indivíduo tem por si mesmo (que Lewin vê como um resultado freqüente do auto-ódio), mas ódio pelo grupo ao qual o estigma o consigna.
124 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 125
tence necessariamente são, de modo implícito, considerados como não verdadeiros; ele, na realidade, não é um deles4,p seu grupo real, então, é o agregado de pessoas que provavelmente terão de sofrer as mesmas privações que ele sofreu porque têm o mesmo estigma; seu "grupo" real, na verdade, é a categoria que pode servir para o seu descrédito.
O caráter que esses porta-vozes permitem ao indivíduo é gerado pela relação que ele tem com seus iguais. Se ele volta-se para o seu grupo, é leal e autêntico; se se afasta dele, é covarde e insensato?0 Aqui, certamente, encontramos um exemplo claro de um tema sociológico básico: a natureza de uma pessoa, tal como ela mesma e nós a imputamos, é gerada pela natureza de suas filiações grupais.
Como é de se esperar, os profissionais que tomam uma perspectiva intragrupal podem defender uma linha
20 Também os cientistas sociais profissionais recomendam que o indivíduo estigmatizado seja leal a seu grupo. Riesman, por exemplo, em "Marginality, Confornrity and Insight", Phylon, Terceiro Trimestre, 1953, 251-252, ao descrever como um sociólogo, ou um americano, ou um professor podem, cada um deles, ser seduzidos para aceitar elogios pessoais que são um insulto a seu grupo. conta esta história:
"Eu mesmo me lembro de haver dito uma vez a uma advogada que ela não era tão estridente e agressiva como outras Pórcia que eu havia conhecido e sinto que ela tenha tomado isto como um cumprimento, consentindo em trair suas colegas de tribunal do sexo feminino."
Deveria ficar sociologicamente claro que ao se descobrir em diferentes situações sociais o indivíduo ver-se-á frente a diferentes exigências em relação a qual é o seu grupo verdadeiro. Outras questões estão menos claras. Por que, por exemplo, se pede aos indivíduos que já pagaram um preço considerável por seu estigma para não se encobrir; talvez devido à regra de que quanto menos você tem, menos você deve tentar obter? E se é ruim agora e será ruim no futuro a depreciação daqueles que têm um estigma particular, por que deveriam aqueles que têm o estigma, mais do que aqueles que não o têm, arcar com a responsabilidade de apresentar e reforçar uma postura imparcial e de melhorar a sorte da categoria como um todo? Uma resposta, é claro, é que as pessoas que têm um estigma deveriam "conhecer melhor", assumindo, assim, uma relação interessante entre conhecimento e moralidade. Uma resposta melhor, talvez, é a de que aqueles que têm um estigma particular são considerados amiúde por si mesmos e pelos normais como ligados, no espaço e no tempo, numa comuni- dade única que deveria ser sustentada por seus membros.
militante - mesmo até o ponto de apoiar uma ideologia separatista. Conduzindo-se assim em contatos mistos, o estigmatizado elogiará os valores e as contribuições especiais assumidos de sua classe. Ele pode ostentar alguns atributos estereotípicos que poderiam ser facilmente acobertados; assim, podemos encontrar um judeu de segunda geração que intercala em seus discursos, agressivamente, expressões e sotaque de judeu, e o homossexual miii. tante que é acintosamente escandaloso em lugares públicos, O estigmatizado pode, também, questionar abertamente a desaprovação semi-oculta com a qual ele é tratado pelos normais, e esperar até apanhar o "informado", que se autodesignou como tal, "em falta", isto é, continuar a examinar as ações e as palavras dos outros até obter um sinal fugaz de que as suas demonstrações de aceitação do estigmatizado são apenas a aparência.2'
Os problemas associados com a militância são bem conhecidos. Quando o objetivo político último é retirar
o estigma do atributo diferencial, o indivíduo pode descobrir que os seus esforços podem politizar toda a sua vida, tornando-a ainda mais diferente da vida normal que lhe foi inicialmente negada - mesmo que a próxima geração de companheiros tire um bom proveito desses esforços, obtendo maior aceitação. Mais do que isso, ao chamar a atenção para a situação de seus iguais ele está, de uma certa forma, consolidando uma imagem pública de sua diferença como uma coisa real e de seus companheiros estigmatizados como constituindo um grupo real. Por outro lado, se ele procura algum tipo de separação, e não de assimilação, pode descobrir que está necessariamente apresentando os seus esforços militantes na linguagem e no estilo de seus inimigos. Além disso, os argumentos que apresenta, a situação que examina, as estratégias que defende são parte de um idioma de expressão e sentimento que pertence a toda a sociedade. Seu desdém por uma sociedade que o rejeita só pode ser entendido em termos da concepção que aquela sociedade tem de orgulho, dignidade e independência. Em resumo, a não ser que exista alguma cultura de natureza
21 Sobre a resposta militante de alguns pacientes com deformidades faciais, ver Macgregor et ai., op. cit., p. 84. Ver também
C. Greenberg, "Self-Hatred and Jewish Chauvinism", Commentary,
X (1950), 426-433.
126 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 127
diferente na qual ele possa refugiar-se, quanto mais ele, estruturalmente, se separa dos normais, mais parecido com eles ele se tornará nos aspectos culturais.
Alinhamentos Exogrupais
O grupo de "iguais" do indivíduo pode, então, informar o código de conduta que os profissionais defendem em seu nome. Pede-se, também, que o indivíduo estigmatizado se veja da perspectiva de um segundo grupo: os normais e a sociedade mais ampla que eles constituem. Quero considerar com alguma profundidade a imagem projetada por essa segunda perspectiva.
A linguagem dessa posição inspirada pelos normais não é tanto política, como no caso anterior, como psiquiátrica - sendo as representações da higiene mental empregadas como fonte de retórica. O indivíduo que adere à linha defendida é considerado como pessoa madura e bem ajustada; quem não adere é considerado uma pessoa fraca, rígida, defensiva, com recursos internos inadequados. Em que implica essa defesa?
Recomenda-se ao indivíduo que se veja corno um ser humano completo como qualquer outro, alguém que,. na pior das hipóteses, é excluído daquilo que, em última análise, é apenas uma área da vida social. Ele não é um tipo ou uma categoria, mas um ser humano:
"Quem disse que os aleijados são infelizes? Eles OU Vocês? Só porque eles não podem dançar? Toda música pára, em algum momento. Só porque eles não podem jogar tênis? Muitas vezes o sol está muito quente! 56 porque têm que ser ajudados a subir e descer escadas? Você preferia fazer outra coisa? A poliomielite não é triste
- ela é só um grande inconveniente, o que significa que você não pode ter acessos de mau humor e correr para dentro do quarto e bater a porta com um pontapé. Aleijados é uma palavra horrível. Eia especifica! Coloca de lado! É muito íntima! Condescendente! Me dá vontade de vomitar como uma criatura que serpenteia para fora do casulo. "22
Já que o seu mal não é nada em si mesmo, ele não deveria envergonhar-se dele ou de outros que o têm; nem se comprometer ao tentar ocultá-lo. Por outro lado, por meio de um esforço árduo e de um autotreinamento
Linduska, op. cit., pp. 164-165.
persistente, ele deveria preencher os padrões comuns tãc completamente quanto possível, detendo-se apenas quando surge a questão da normificação; ou seja, quando os seus esforços podem dar a impressão de que ele está querendo negar a sua diferença. (Essa linha de separação muito tênue é traçada de modo diferente, é claro, por diferentes profissionais mas, devido a essa ambigüidade, mais necessária se torna a apresentação profissional.) E porque os normais também têm seus problemas, o indivíduo estigmatizado não deveria sentir mais amargura, ressentimento ou autopiedade. Ao contrário, deveria cultivar um modo de ser alegre e espontâneo.
Disso se segue, logicamente, uma fórmula para tratar com os normais. As habilidades que o indivíduo estigma-. tizado adquire ao lidar com uma situação social mista deveriam ajudar aos outros que se encontram nela.
Os normais não têm, na realidade, nenhuma intenção maldosa; quando o fazem porque não conhecem bem a situação. Deveriam, portanto, ser ajudados, com tato, a agir delicadamente. Observações indelicadas de menosprezo e de desdém não devem ser respondidas na mesma moeda. O indivíduo estigmatizado deve não prestar atenção a elas ou, então, fazer um esforço no sentido de uma reeducação complacente do normal, mostrando-lhe, ponto por ponto, suavernente, com delicadeza, que, a despeito das aparências, é, no fundo, um ser humano completo. (O indivíduo deriva da sociedade de maneira tão completa que eia pode confiar naqueles que são os menos aceitos corno membros normais, os menos gratificados pelos prazeres do fácil intercrnbio social com outros, para proporcionar um enunciado, uma clarificação e um tributo ao ser interior de cada homem. Quanto mais o estigmatizado se desvia da norma, mais admiravelmente deverá expressar a posse do eu subjetivo-padrão se quiser convencer os outros de que o possui, e mais estes exigirão que ele lhes forneça um modelo daquilo que se supõe que uma pessoa comum deve sentir a respeito dele.)
Quando descobre que os normais têm dificuldade em ignorar seu defeito, a pessoa estigmatizada deve tentar ajudá-los e à situação social fazendo esforços conscientes para reduzir a tensão.23 Nessas circunstâncias, o indivi Um tentativa de fornecer uma análise geral deste tipo de tensão e de sua redução está em E. Goffman, "Fun in Game", em Encounters (Nova York: Bobbs-Merrill, 1961), pp. 48-5 5.
128 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu
129
duo estigmatizado pode, por exemplo, tentar "quebrar o gelo", referindo-se explicitamente ao seu defeito de um modo que mostre que ele está livre, que pode vencer suas dificuldades facilmente. Além da trivialidade, recomenda-se, também, a frivolidade:
"Então houve a brincadeira do cigarro. Esta, invariavelmente, era boa para risos. Quando eu entrava num restaurante, num bar ou numa festa, tirava um maço de cigarros, abria-o com ostentação, tomava um, acendia-o e me sentava tranqüilamente para fumá-lo. Isto quase sempre chamava a atenção. As pessoas olhavam-me fixamente e eu quase podia ouvi-las dizendo: 'Nossa! Não é maravilhoso o que ele pode fazer com um par de garras?' Quando alguém fazia algum comentário sobre a proeza eu sorria e dizia: 'Há uma coisa com a qual nunca tenho que me preocupar: queimar os dedos.' Sei que isto é um pouco bobo, mas é infalível para quebrar o gelo. " 24
24 Russeli, op. cit., p. 167, em Wright, op. cit., p. 177; ver também Russeli, op. cit., p. 151. Deve-se observar que a pessoa que tenta quebrar o gelo pode ser considerada, é claro, como alguém que explora a situação pelo que pode tirar dela, como o mostraram os novelistas. 1. Levin, A Kiss Before Dping (Nova
York: Simon & Schuster, 1953), pp. 178-179, nos dá um exemplo:
"Oh, sim", disse Kingship. "Ele é pobre, está certo. Esforçou-se por mencioná-lo exatamente três vezes na noite passada. E aquela anedota que ele contou, sem mais nem menos, sobre a mulher para quem sua mãe costurava".
"Que mal há em sua mãe costurar para fora?"
"Nada, Ma,rion, nada. É a maneira de ele contar, casual, muito casual. Sabe quem ele me lembrou? Há um homem no clube com uma perna defeituosa e que manca um pouco. Toda vez que jogamos golfe ele diz, '0K, rapazes, andem na frente. Este velho perna-de-pau vai alcançá-los. Então todo mundo anda mais lenta- mente ainda e você se sente um miserável se ganha dele."
E, ao poder quebrar o gelo, ele pode estar demonstrando a si próprio que ele tem um controle superior da situação (Henrich e Kriegel, op. cit., p. 145)
"Acho que não é responsabilidade da sociedade tentar compreender a pessoa que sofre de paralisia cerebral, mas, ao contrário, é nossa obrigação tolerar a sociedade e, em nome do cavalhvirismo, perdoá-la e nos divertirmos com suas loucuras. Esta é uma virtude dúbia, mas desafiadora e divertida. Colocar à vontade pessoas que obviamente estão perturbadas ou curiosas antes que elas tenham uma chance para complicar uma situação, coloca a que está em .desvantagem num papel superior ao dos agitadores, e colabora com a comédia humana. Mas isso é algo que custa muito a. aprender."
'Uma paciente um tanto sofisticada que tinha o rosto coberto de cicatrizes devido a um tratamento de beleza achava eficaz dizer, de maneira engraçada, ao entrar num lugar cheio de pessoas, "Desculpem, por favor, este caso de lepra."25
Sugere-se, também, que o indivíduo estigmatizado que se encontra em companhia mista pode achar útil referir-se à sua incapacidade e a seu grupo na linguagem que ele emprega entre seus iguais, e a que empregam os normais entre si para se referir a ele - oferecendo, assim, aos normais presentes, um status temporário de "informados". Em outros momentos, pode considerar adequado conformar-se à "etiqueta de revelação" e introduzir o seu defeito como um tópico de conversação séria, esperando, assim, reduzir o seu significado como um tópico de interesse reprimido:
"O sentimento do homem defeituoso, de que, como uma pessoa, ele ião é compreendido, combinado com o embaraço da pessoa não defeituosa em sua presença, produz uma relação tensa, desconfortável que, depois, serve para separá-los. Para aliviar essa tensão social e ser mais bem aceito, ele pode não só desejar satisfazer a curiosidade expressa de pessoas não defeituosas... mas pode também, ele próprio, iniciar a discussão sobre o defeito".
Muitos meios de ajudar os outros a terem tato com ele são também recomendados, como, no caso dos desfiguramentos faciais, fazer uma pausa no limiar de um encontro para que os participantes tenham tempo para elaborar as suas respostas.
"Um homem de 37 anos, cujo rosto era totalmente desfigurado, e que tinha negócios imobiliárias, assinala: "Quando tenho um encontro com um novo contato, dou um jeito de ficar parado a uma certa distância, em frente da porta, de tal forma que a pessoa que entra tenha mais tempo para me ver e acostumar-se à minha aparência antes de começarmos a conversar."2
O estigmatizado também é aconselhado a agir como se os esforços dos normais para facilitar-lhe as coisas fossem efetivos e apreciados. Oferecimentos não solicitados de interesse, simpatia e ajuda, embora quase sempre
25 Macgregor et ai., op. cit., p. 85.
26 White, Wright e Dembo, op. cit., pp. 16-17.
27 Macgregor et ai., op. cit., p. 85.
130 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu
percebidos pelo estigmatizado como uma intromissão em sua intimidade e uma demonstração de presunção, devem ser aceitos com tato:
"Não obstante, a ajuda não é um problema para aqueles que a oferecem. Se o aleijado deseja quebrar o gelo, ele deve admitir o seu valor e permitir que as pessoas o auxiliem, Várias vezes observei o receio e o espanto nos olhos das pessoas desaparecerem quando eu estendia a mão em busca de ajuda, e senti a vida e o calor humano que irradiavam das que se estendiam para me ajudar. Nem sempre temos consciência da ajuda que podemos dar ao aceitar um auxílio, consciência de que, dessa forma, podemos estabelecer uma base para o contato."28
Um escritor que sofre de poliomielite aborda um tema semelhante:
"Quando meus vizinhos batem à porta num dia de neve para me perguntar se preciso de alguma coisa do armazém, mesmo que eu esteja preparado para o mau tempo, tento pensar em algum item ao invés de rejeitar um oferecimento generoso. É mais gentil aceitar ajuda do que recusá-la num esforço para provar independência. "29
E, de maneira semelhante, um amputado:
"Muitos amputados de certo modo dão aos outros o gosto de que se sintam bem ao fazer algo por você. Isto não incomoda as pessoas como incomodaria se você ainda estivesse de pé"30
Embora a aceitação tácita dos esforços desajeitados de outras pessoas para ajudá-lo seja um fardo para o estigmatizado, exige-se mais dele. Diz-se que, se realmente se sente à vontade com o seu atributo diferencial, essa aceitação terá um efeito imediato sobre os normais, tornando-se-lhes mais fácil ficarem à vontade com ele em situações sociais.LEm resumo, o individuo estigmatizado é aconselhado a se aceitar como pessoa normal, pois os outros podem ganhar com isso, e ele também, na interação face-a-face.
Por conseguinte, a linha inspirada pelos normais obriga o indivíduo estigmatizado a protegê-los de várias
28 Carling, op. cit., pp. 67-68.
29 Henrich e Kriegel, op. cit., p. 185.
30 G. Ladieu, E. Hanfmann e T. Dembo, "Evaluation of Help by the Injured", Journal of Abnormal anel Social Psychology, XLII (1947), 182.
131
formas. Um aspecto importante dessa proteção, que foi simplesmente mencionado anteriormente, será agora reconsiderado.
Considerando o fato de que os normais em muitas situações têm para com a pessoa estigmatizada a gentileza de tratar o seu defeito como se não fosse importante, e o fato de que, provavelmente, o estigmatizado sente que, apesar de tudo, é um ser humano normal como qualquer outro, pode-se esperar que este algumas vezes se permita enganar-se e acreditar-se mais aceito do que realmente é. Tentará, então, participar socialmente, de áreas de contato que os outros não consideram como seu lugar adequado. Assim, um escritor cego descreve a consternação que causou numa barbearia do hotel:
"A loja foi ficando silenciosa e solene na medida em que eu era Ántroduzido nela, e eu fui virtualmente levantado por um empregado uniformizado para me sentar na cadeira. Tentei fazer uma piada, aquela habitual, de cortar o cabelo a cada três meses ainda que não precisasse. Foi um erro, O silêncio me indicou que eu não era um homem que deveria fazer piadas - -. nem mesmo boas piadas."3'
Igualmente no que se refere a dança:
"As pessoas pareciam uni pouco chocadas em ouvir-me. Eu tinha passado uma tarde no chá dançante no Savoy Plaza. Eles não podiam explicar por que se sentiam assim e quando eu disse que havia adorado e que tencionava repeti-lo na primeira oportunidade, pareceu piorar as coisas. Era algo que um homem cego não deveria fazer. A situação tinha o sabor genérico da falta do respeito devido a um período de luto." 32
Um aleijado acrescenta outro exemplo:
"Porém as pessoas esperam não só que você desempenhe o eu apel mas que também conheça o seu lugar. Lembro-me, por exemplo, de um homem num restaurante ao ar livre em Oslo. Era muito aleijado e havia deixado a sua cadeira de rodas para subir uma escada bastante alta que levava ao terraço onde se encontravam as mesas. Como não podia usar as suas pernas, ele tinha de arrastar-se sobre os joelhos e quando começou a subir os degraus desta maneira pouco convencional os garçons correram para ele, não para ajudá-lo, mas para lhe dizer que não poderiam servir a um homem de seu tipo no
31 Chevigny, op. cit., p. 68.
32 [bid., p. 130.
132 ESTIGMA
restaurante, já que as pessoas iam ali para se divertir e não para se sentir deprimidas com a presença de aleijados." 3
'1 O fato de que o estigmatizado pode estar enganado ao levar muito a sério a aceitação diplomática de sua pessoa indica que essa aceitação é condicional. Ela depende de que os normais não sejam pressionados além do ponto em que podem facilmente dar aceitação ou, na pior das hipóteses, oferecê-la com dificuldade. Espe. ra-se que os estigmatizados ajam cavalheirescamente e não forcem as circunstâncias; eles não devem testar os limites da aceitação que lhes é mostrada, nem fazê-la de base para exigências ainda maiores. A tolerância, é claro, é quase sempre parte de uma barganha.
Fica, agora, evidente, a natureza do "bom ajustamento". Ele exige que o estigmatizado se aceite, alegre e inconscientemente, como igual aos normais enquanto, ao mesmo tempo, se retire voluntariamente daquelas situações em que os normais considerariam difícil manter uma aceitação semelhante.
Já que uma linha de bom ajustamento é apresentada por aqueles que tomam a perspectiva da sociedade mais ampla, deve-se perguntar o que significa para os normais o fato de que o estigmatizado siga essa linha. Significa que a injustiça e a dor de ter que carregar um estigma nunca se apresentarão a eles; significa que os normais não terão de admitir para si mesmos quão limitadas são a sua discrição e a sua tolerância; e significa que os normais podem continuar relativamente não contaminados pelo contato íntimo com o estigmatizado, relativamente não ameaçados em suas crenças referentes à identidade. É precisamente desses significados, na verdade, que derivam as especificações de um bom ajustamento.
Quando uma pessoa estigmatizada adota essa posição de bom ajuste diz-se, com freqüência, que ela tem um caráter forte e uma profunda filosofia de vida, talvez porque, no fundo, nós, normais, desejamos encontrar uma explicação para a sua força de vontade e a sua habilidade em agir assim. Podem-se citar as declarações de uma pessoa cega:
"É tão comum encontrar pessoas que não acreditam que o desejo de continuar pode ser motivado por coisas bastante comuns que, como
33 Carling, op. cit., p. 56.
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 133
defesa contra essa atitude, devemos desenvolver quase automaticamente uma racionalização para explicar a nossa conduta. Desenvolvemos uma filosofia. Parece que as pessoas insistem em que se tenha uma, e elas pensam que estamos blefando quando dizemos que não temos nenhuma. Assim, fazemos todo o possível para agradar e damos a nossa pequena mostra aos estranhos que encontramos em trens, restaurantes ou no metrô e que desejam saber por que nos mantemos de pé. Um homem de grande discernimento é o que descobre que a sua filosofia raramente é uma invenção pessoal, mas um reflexo da noção que o mundo tem da cegueira."34
A fórmula geral é evidente. Exige-se do indivíduo estigmatizado que ele se comporte de maneira tal que ião signifique nem que sua carga é pesada, e nem que carregá-la tornou-o diferente de nós; ao mesmo tempo, ele deve-se manter a uma distância tal que nos assegure que podemos confirmar, de forma indolor, essa crença sobre ele. Em outras palavras, ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando com naturalidade a si mesmo e aos outros, uma aceitação de si mesmo que nós não fomos os primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação-fantasma forneça a base para uma normalidade-fantasma. Deve ele aceitar tão profundamente a atitude do eu que é definida como normal em nossa sociedade e deve ser parte dessa definição a tal ponto que isso lhe permita representar esse eu de um modo irre preensível para uma audiência impaciente que fica em semiprontidão à espera de uma outra exibição. Ele pode até mesmo ser levado a unir-se com os normais ao sugerir aos seus iguais que estão descontentes que o desprezo de que se sentem alvo é imaginário - o que, é claro, é provável em alguns momentos, porque em muitas fronteiras sociais as linhas são tão tênues que permitem a qualquer pessoa proceder como se fosse completamente aceita, e isso significa que será realístico orientar-se para signos mínimos, talvez não intencionais.
A ironia dessas recomendações não é o fato de se pedir ao estigmatizado que ele seja, pacientemente, frente aos outros, o que não lhe deixam ser, mas que essa expropriação de sua resposta possa ser a sua melhor recompensa. Se, de fato, ele deseja viver tanto quanto
Chevigny, op. cit., pp. 141-142. O escritor sugere que esta filosofia pode ser exigida até mesmo de pessoas que nasceram cegas e, portanto, numa posição não muito boa para aprender aquilo que os compensou com tanto sucesso.
134 ESTIGMA
ALINHAMENTO GRUPAL E IDENTIDADE DO Eu 135
possível "como qualquer outra pessoa", e ser aceito "pelo que realmente é", então, em muitos casos, a posição mais inteligente a tomar é a de que tem um fundo falso, já que, em muitos casos, o grau de aceitação da pessoa estigmatizada pelos normais pode ser maximizado se ela atuar com absoluta espontaneidade e naturalidade como se a aceitação condicional de si mesma, que ela procura não superar, fosse a aceitação total. Mas é claro que o que é um bom ajustamento para o indivíduo é ainda melhor para a sociedade. Pode-se acrescentar que a confusão dos limites é uma característica básica da organização social; o que, até certo ponto, se pede que muitos aceitem é a manutenção da aceitação-fantasma. Qualquer ajustamento mútuo e aprovação mútua entre os dois indivíduos podem ser perturbados se um dos parceiros aceita totalmente o oferecimento que o outro parece fazer; toda a relação "positiva" é feita sob promessas de consideração e ajuda tais que a relação fique prejudicada quando esses créditos são cobrados.
A Política de Identidade
Conseqüentemente, tanto o intragrupo quanto o exogrupo apresentam uma identidade do eu para o indivíduo estigmatizado, o primeiro com uma fraseologia predominantemente política, o segundo com uma fraseologia psiquiátrica. Diz-se-lhe que se ele adotar uma linha correta (linha essa que depende da pessoa que fala) ele terá boas relações consigo e será um homem completo, um adulto com dignidade e auto-respeito.
E, na verdade, ele terá aceito um eu para si mesmo; mas esse eu é, como deve necessariamente ser, um habitante estranho, uma voz do grupo que fala por e através dele.
Mas todos nós, como afirma às vezes a sociologia, falamos do ponto de vista de um grupo. A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro do grupo mais amplo, o que significa
é um ser humano normal, mas também que ele é, até certo ponto, "diferente", e que seria absurdo negar essa diferença.A diferença, em si, deriva da sociedade, porque, em gerT, antes que uma diferença seja importante ela deve ser coletivamente conceptualizada pela sociedade como um todo. Isso pode ser claramente obser vad
no caso de estigmas instituidos há pouco tempo, como sugere uma pessoa que sofre de um deles:
"Como resultado de uma lesão no centro de controle do cérebro, nasci com uma paralisia cerebral do tipo atetóide, e não tinha consciência de minha classificação complexa e assustadora até que o termo tornou-se popular, e a sociedade insistiu em que eu admitisse meus desvios assim rotulados. Era algo parecido com pertencer aos Alcoólatras Anônimos. Você não pode ser honesto consigo mesmo até descobrir quem realmente é e, talvez, considerar o que a sociedade pensa que você é ou deveria ser.
Isso fica ainda mais evidente no caso da epilepsia. Desde os tempos de Hipócrates, aqueles que descobriam que sofriam desse tipo de doença tinham assegurado um eu fortemente estigmatizado pelas operações definicionais da sociedade. Essas operações ainda continuam mesmo que o dano físico causado pela doença seja insignificante e mesmo que muitos especialistas empreguem atualmente o termo para referir-se somente a acessos para os quais não se descobre uma causa médica específica (e que são, portanto, menos estigmatizadores) 36 Nesse caso, o ponto no qual a ciência médica deve retratar-se é o ponto em que a sociedade pode agir de maneira mais determinativa.
Assim, mesmo que se diga ao indivíduo estigmatizado que ele é um ser humano como outro qualquer, diz-se a ele que não seria sensato tentar encobrir-se ou abandonar "seu" grupo. Em resumo, diz-se-lhe que ele é igual a qualquer outra pessoa e que ele não o é - embora os porta-vozes concordem pouco entre si em relação a até que ponto ele deveria pretender ser um ou outro. Essa contradição e essa pilhéria constituem a sua sorte e seu destino. Elas desafiam constantemente aqueles que representam o estigmatizado, obrigando esses profissionais a apresentar uma política coerente de identidade, permitindo-lhes que percebam logo os aspectos "inautênticos" de outros programas recomendados, mas, ao mesmo tempo com muita lentidão, que não pode haver nenhuma solução "autêntica".
_O indivíduo estigmatizado, assim, se vê numa arena de argumentos e discussões detalhados referentes ao que
Henrich e Kriegel, op. cit., p. 155.
36 Livingston, op. cit., pp. 5 e 291-304.
ela deveria pensar de si mesma, ou seja, à identidad de seu eu. A seus outros problemas, ela deve acrescenta] o de ser simultaneamente empurrada em várias direçõe por profissionais que lhe dizem o que deveria fazer pensar sobre o que ela é e não é, e tudo isso, pretensa mente, em seu próprio benefício. Escrever ou fazer dis cursos defendendo qualquer uma dessas saídas é, em si uma solução interessante mas que, infelizmente, é negad à maior parte dos que simplesmente lêem e escutam.
136
ESTIGMA

4. O EU e SEU OUTRO
Este ensaio se ocupa com a situação da pessoa. estigmatizada e com a resposta à situação em que ela se encontra. Para colocar o quadro de referência resultante no contexto conceptual conveniente será útil considerar o conceito de desvio a partir de diferentes ângulos, constituindo-se este numa ponte que liga o estudo do estigma ao do resto do mundo social.
Desvios e Normas
É possível pensar nos defeitos raros e dramáticos como os mais adequados para a análise aqui empregada. Entretanto parece que a diferença exótica é mais útil apenas como um meio de se tomar consciência de suposições de identidade tão completamente satisfeitas que escapam a essa conscientização. É possível, também, pensar que grupos minoritários estabelecidos, como negros e judeus, podem ser os melhores objetos para esse tipo de análise. Isso poderia levar facilmente a um desequilíbrio no tratamento. Em termos sociológicos, a questão central referente a esses grupos é o seu lugar na estrutura social; as contingências que essas pessoas encontram na interação face-a-face é só uma parte do problema, e algo que não pode, em si mesmo, ser completamente compreendido sem uma referência à história, ao desenvolvimento político e às estratégias correntes do grupo.
É possível, também, restringir a análise àqueles que possuem um defeito que dificulta quase todas as suas situações sociais, levando-os a elaborar uma grande parte de sua autoconoepção em termos relativos, em termos de
138 ESTIGMA
O Eu E SEU Ouiio 139
sua resposta a essa situação.1 Este relatório tem argumentos diversos. É provável que o mais afortunado dos normais tenha o seu defeito semi-escondido, e para cada pequeno defeito há sempre uma ocasião social em que ele aparecerá com toda a força, criando uma brecha vergonhosa entre a identidade social virtual e a identidade social real. Portanto, o ocasionalmente precário e o constantemente precário formam um continuum único, sendo a sua situação de vida passível de ser analisada dentro do mesmo quadro de referência. (Daí porque as pessoas que só têm uma pequena diferença acham que entendem a estrutura da situação em que se encontram os completamente estigmatizados - quase sempre atribuindo essa simpatia à profundidade de sua natureza humana e não ao isomorfismo das situações humanas. As pessoas completa e visivelmente estigmatizadas, por sua vez, devem sofrer do insulto especial de saber que demon tram abertamente a sua situação, que quase todo mundo pode ver o cerne de seus problemas.)! Está, então, implícito, que não é para o diferente que se deve olhar em busca da compreensão da diferença, mas sim para o comum. A questão das normas sociais é, certamente, central, mas devemos nos preocupar menos com os des •vio pouco habituais que se afastam do comum do que com os desvios habituais que se afastam do comum.
Pode-se tomar como estabelecido que uma condição necessária para a vida social é que todos os participantes compartilhem um único conjunto de expectativas normativas, sendo as normas sustentadas, em parte, porque foram incorporadas. Quando uma regra é quebrada, surgem medidas restauradoras; o dano termina e o prejuízo é reparado, quer por agências de controle, quer pelo próprio culpado.
Entretanto, as normas com que lida esse trabalho referem-se à identidade ou ao ser, e são, portanto, de um tipo especial. O fracasso ou o sucesso em manter tais normas têm um efeito muito direto sobre a integridade psicológica do indivíduo. Ao mesmo tempo, o simples desejo de permanecer fiel à norma - a simples boa vontade - não é o bastante, porque em muitos casos o indivíduo não tem controle imediato sobre o nível em
1 O que Lemert, Social Pathology, op. cit., pp. 75 e segs., denonnnou de "desvio secundário".
que apóia a norma. Essa é uma questão da condição do indivíduo, e não de sua vontade; é uma questão de conformidade e não de aquiescência. Somente se for introduzida a suposição de que o indivíduo deveria conhecer o seu lugar nele permanecer, é que se pode encontrar, para a sua condição social, um equivalente completo na ação voluntária.
Além disso, embora algumas dessas normas, como a visão e a alfabetização, devam ser, em geral, sustentadas com total adequação pela maior parte das pessoas da sociedade, há outras normas, como as associadas com a beleza física, que tomam a forma de ideais e constituem modelos perante os quais quase todo mundo fracassa em algum período de sua vida. E mesmo quando estão implícitas normas amplamente realizadas, a sua multiplicidade tem o efeito de desqualificar muitas pessoas. Por exemplo, num sentido importante há só um tipo de homem que não tem nada do que se envergonhar: um homem jovem, casado, pai de família, branco, urbano, do Norte, heterossexual, protestante, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos esportes. Todo homem americano tende a encarar o mundo sob essa perspectiva, constituindo-se isso, num certo sentido, em que se pode falar de um sistema de valores comuns na América. Qualquer homem que não consegue preencher um desses requisitos ver-se-á, provavelmente - pelo menos em alguns momentos - como indigno, incompleto e inferior; em alguns momentos, provavelmente, ele se encobrirá e em outros é possível que perceba que está sendo apologético e agressivo quanto a aspectos conhecidos de si próprio que sabe serem, provavelmente, considerados indesejáveis. Os valores de identidade gerais de uma sociedade podem não estar firmemente estabelecidos em lugar algum, e ainda assim podem projetar algo sobre os encontros que se produzem em todo lugar na vida quotidiana.
Além disso, há mais coisas envolvidas do que as normas referentes a atributos de status um tanto estáticos. Não se trata apenas da visibilidade mas da intrusibilidade; isso significa que o fracasso em sustentar as muitas normas menores importantes na etiqueta da comunicacão facea-face pode ter um efeito bastante difundido na aceitação do culpado em situações sociais.
140 ESTIGMA
O Eu E SEU Ouiio 141
Portanto não é muito útil tabular os números de pessoas que sofrem das dificuldades humanas delineadas neste livro. Como sugeriu Lemert, o número seria tão alto quanto se desejasse;2 e quando a ele se acrescentam aqueles que têm um estigma de cortesia e os que, alguma vez, experimentaram esse tipo de situação ou estão destinados a experimentá-la, mesmo que devido ao envelhecimento progressivo, o problema já não é saber se uma pessoa tem experiência com seu próprio estigma, porque ela a tem, mas sim saber quantas são as variedades dessa experiência.
Pode-se dizer, então, que as normas de identidade engendram tanto desvios como conformidade. Duas soluções gerais para essa situação normativa já foram citadas. Uma delas era que uma categoria de pessoas sustentasse a norma mas que fosse definida por si mesma e pelos outros como não sendo a categoria relevante para encarregar-se dela e colocá-la em prática. Uma segunda solução dirigia-se ao indivíduo que não pode manter uma norma de identidade para separar-se da comunidade que sustenta a norma ou abster-se de desenvolver, em primeiro lugar, um vínculo com a comunidadejEssa é, obviamente, uma solução custosa tanto para a sociedade quanto para o indivíduo, mesmo que se produza sempre em pequenas quantidades.
Os processos aqui descritos constituem, em conjunto, uma terceira solução principal para o problema de normas não sustentadas. Através deles, a base comum das normas pode ser levada além do círculo dos que as realizam totalmente; essa é, logicamente, uma afirmativa, sobre a função social desses processos, e não sobre suas causas ou sua desejabilidade. O encobrimento e o acobertamento estão implícitos, dando ao pesquisador a oportunidade de aplicar as artes da manipulação da impressão, as artes, básicas na vida social, através das quais o indivíduo exerce controle estratégico sobre a imagem de si mesmo e os frutos que os outros recolhem dele.( Também está implícita uma forma de cooperação tácita entre os normais e os estigmatizados: aquele que se desvia pode continuar preso à norma porque os outros mantêm cuidadosamente
2 E. Lemert, "Some Aspects of a General Theory of Sociopathic Behaviour", Proceedings of the Pacific Sociological Society, State Coilege of Washington, XVI (1948), 23-24.
o seu segredo, fingem ignorar sua revelação, ou não prestam atenção às provas, o que impede que o segredo seja revelado; esses outros, em troca, podem permitir-se ampliar seus cuidados porque o estigmatizado irá, voluntariamente, se abster de exigir uma aceitação que ultrapasse os limites que os normais consideram cômodos.
O Desvicinte Normal
Deve-se ver, então, que a manipulação do estigma é uma característica geral da sociedade, um processo que ocorre sempre que há normas de identidade. As mesmas características estão implícitas quer esteja em questão uma diferença importante do tipo tradicionalmente definido como estigmático, quer uma diferença insignificante, da qual a pessoa envergonhada tem vergonha de se envergonhar. Pode-se, portanto, suspeitar de que o papel dos normais e o papel dos estigmatizados são parte do mesmo complexo, recortes do mesmo tecido-padrão. É óbvio que os estudantes orientados para a psiquiatria freqüentemente mostraram a conseqüência patológica da autodepreciação, assim como argumentaram que o preconceito contra um grupo estigmatizado pode ser uma forma de doença. Esses extremos, entretanto, não nos interessam, porque os padrões de resposta e adaptação considerados neste ensaio parecem poder ser completamente compreendidos dentro do quadro de referência da psicologia normal. Pode-se considerar estabelecido, em primeiro lugar, que as pessoas que têm estigmas diferentes estão numa situação apreciavelmente bastante semelhante e respondem a ela de uma forma também bastante semelhante. O farmacêutico do bairro pode conversar com toda a vizinhança, mas as farmácias do bairro são sempre evitadas por pessoas que procuram todos os tipos de equipamento e medicação - pessoas extremamente diversas que não têm nada em comum a não ser uma necessidade de controlar a informação. E, em segundo lugar, pode-se dar por estabelecido que o estigmatizado e o normal têm a mesma caracterização mental e que esta é, necessariamente, a caracterização-padrão de nossa sociedade; a pessoa que pode desempenhar um desses papéis, então, tem exatamente o equipamento necessário para desempenhar o outro e, na verdade, em
142 ESTIGMA
O Eu E SEU Ou-no l43
relação a um ou outro estigma, é provável que ela tenha adquirido uma certa experiência para fazê-lo. Mais importante ainda, a simples noção de diferenças vergonhosas assume uma certa semelhança quanto a crenças cruciais, as crenças referentes à identidade. Mesmo quando um indivíduo tem sentimentos e crenças bastante anormais, é provável que ele tenha preocupações normais e utilize estratégias bem normais ao tentar esconder essas anormalidades de outras pessoas, como o sugere a situação de ex-pacientes mentais:
"Uma das dificuldades está centrada em torno do significado de "emprego razoável". Os pacientes algumas vezes não conseguem, mas outras vezes não desejam explicar por que um determinado emprego "não é razoável" ou é impossível para eles. Um homem de meia-idade não conseguia explicar que por ter tanto medo de escuro insistia em dividir o seu quarto com uma tia e que, provavelmente, não poderia trabalhar num lugar de onde fosse obrigado a voltar para casa so- zinho nas noites de inverno. Ele tenta superar o seu medo, mas fica reduzido a um estado de colapso físico se deixado só à noite. Em tal exemplo - e havia muitos outros - o receio que o ex-paciente tinha do ridículo, ao desprezo ou à severidade torna difícil para ele explicar o motivo da recusa ou do abandono dos empregos que lhe eram oferecidos. Ele pode, então, facilmente ser rotulado de poucc afeito ao trabalho ou não-empregável, o que financeiramente pode ser desastroso."3
De maneira semelhante, quando uma pessoa de idade descobre que não consegue lembrar dos nomes de alguns de seus amigos mais chegados, ela provavelmente evitaré ir a lugares onde possa encontrá-los, ilustrando, assim uma perturbação e um plano que exigem capacidades humanas que não têm relação alguma com a velhice.
Se, então, a pessoa estigmatizada deve ser chamada de desviante, seria melhor que ela fosse denominada desviante normal, pelo menos até o ponto em que a sua situação é analisada dentro do quadro de referência aqui apresentado.
Há ma prova direta dessa unidade eu-outro, normalestigmatizado. Por exemplo, parece que as pessoas que repentin'rn'nte se descobrem livres de um estigma, como nas op 'e'i phsticas bem sucedidas, podem ser rapidarnen c rn''adas por si mesmas e pelos outros como pessoas que alteraram a sua personalidade, uma alteração
em direção ao aceitável,4 assim como as que de repente adquiriram um defeito podem experimentar relativamente rápido uma mudança na personalidade aparente.5 Essas mudanças percebidas parecem ser o resultado do fato de o indivíduo estar colocado numa nova relação com as contingências da aceitação na interação face-a-face, comuma utilização conseqüente de novas estratégias de adaptação. Uma prova adicional importante vem de experiências sociais nas quais os sujeitos assumem consciente- mente uma deficiência (temporariamente, é claro) como uma surdez parcial e se descobrem manifestando espontaneamente as reações, e empregando os artifícios encontrados entre os que realmente têm aquele defeito.°
Deve-se mencionar, ainda, outro fato. Como a mudança do status de estigmatizado para o status de normal é feita, presumivelmente, numa direção desejada, é compreensível que a mudança, quando ocorre, possa ser psicologicamente sustentada pelo indivíduo.,IMas é muito difícil compreender como aqueles que sustentam uma transformação súbita de sua vida de pessoa normal para pessoa estigmatizada podem sobreviver, em termos psicológicos a essa mudança; ainda assim, isso ocorre com muita freqüência. O fato de que ambos os tipos de transformação possam ser sustentados - mas especialmente o último tipo - sugere que as capacidades e treinamentopadrão nos dão meios para manipular ambas as possibilidades. E uma vez que essas possibilidades são aprendidas, o resto, infelizmente, vem com facilidade. Aprender que está além dos limites, ou não mais além dos limites depois de haver estado, não é, então, nada complicado, mas apenas um novo alinhamento dentro de um velho quadro de referência e uma assunção detalhada para si do que ele antes pensava que residia nos outros.t O doloroso de uma estigmatização repentina, então, pode ser resultado não da confusão do indivíduo sobre a sua identidade, mas do fato de ele conhecer suficientemente a sua nova situacão.
Tomado, rois, através do tempo, o indivíduo pode desempenhar ambos os papéis do drama normal-desviante.
Mcoregor, et ai., op. cit., pp. 126-129.
Ibid., pp. 110-114.
0 L. Meyerson, "Experimental Injury: An Approach to the Dy- namies of Physical Disability", Journal of Social Issues, IV (1948),,
68-71. Ver também Griffin, op. cit.
3 Mills, op. cit., p. 105.
' 44 ESTIGMA
O Eu E SEU Ouiio 145
Mas deve-se ver que mesmo encaixado num rápido momento social, o indivíduo pode fazer ambas as ecibições, mostrando não só uma capacidade geral para desempenhar ambos os papéis, mas também o aprendizado e domínio necessários para executar de modo corrente o comportamento de papel que lhe é exigido. Isso é facilitado, é claro, pelo fato de que os papéis de estigmatizado e normal não são simplesmente complementares mas exibem ainda paralelos e semelhanças surpreendentes. Aqueles que desempenham cada um dos papéis podem evitar o contato com o outro como um meio de ajustamento; cada um deles pode sentir que não é completa. mente aceito pelo outro e que sua própria conduta está sendo cuidadosamente observada - no que pode ter razão. Cada um pode ficar com seus "iguais" só para não ter que enfrentar o problema. lAlém disso, as assimetrias 'de diferenças entre os papéis que existem são quase sempre mantidas dentro de tais limites, conforme será favorecido pela tarefa comum e crucial de manter a situação social em marcha. A sensibilidade ao papel do outro deve ser suficiente para que quando empregadas certas táticas 'adaptativas por um dos componentes do par normal-estigmatizado, o outro saiba como se introduzir e assumir v papel. Por exemplo, se a pessoa estigmatizada não conseguir apresentar o seu defeito de modo realista, o normal pode assumir a tarefa. E quando os normais tentam, com tato, ajudar a pessoa estigmatizada a sair de suas dificuldades, ela pode cerrar os dentes e aceitar dignamente a ajuda, sem considerar a boa vontade do esforço.
As provas do desempenho desse papel bicéfalo estão amplamente disponíveis. Por exemplo, quer por brincadeira ou seriamente, as pessoas se encobrem, e isso em ambas as direções, dentro ou fora da categoria estigmatizada. Outra fonte de provas é o psicodrama. Essa "terapia" assume que o paciente mental e outras pessoas que ultrapassaram os limites podem, quando no palco, trocar os papéis e desempenhar o papel de normal para alguém que agora está representando o seu papel para ele; e, na verdade, eles podem encenar essa peça sem muitas deixas e com razoável competência. Uma terceira fonte de prova de oue o indivíduo pode manter simultaneamente o domínio sobre os papéis do normal e do estigmatizado nos chega através de brincadeiras atrás das cortinas. As pes soa
normais, quando estão entre si, "imitam" um tipo de estigmatizados. Em iguais circunstâncias, os estigmatizados imitam os normais como a si próprios. Em tom de brincadeira, representam cenas de degradação, com um de seus pares desempenhando o papel do mais grosseiro dos normais, enquanto ele interpreta momentaneamente o papel complementar, para explodir numa rebelião substitutiva. Como parte desse triste prazer, haverá o emprego não sério de termos de referência de estigma que são, com freqüência, tabu na sociedade "mista".7 Deve-se repetir que esse tipo de brincadeira por parte dos estigmatizados não demonstra tanto nenhuma espécie de distância crônica do indivíduo em relação a si mesmo como demonstra o fato mais importante de que um estigmatizado é, sobretudo, igual a qualquer outro, treinado, em primeiro lugar, nas opiniões de que os outros têm de pessoas como ele e diferindo deles, acima de tudo, por ter uma razão especial para resistir ao descrédito
Á do estigma quando em sua presença, e uma liberdade
especial em expressá-lo quando em sua ausência.
Um caso especial do emprego superficial de uma
linguagem e um estilo auto-abusivo é fornecido pelos
representantes profissionais do grupo. Quando represen tand seu grupo perante os normais, podem incorporar,
de maneira exemplar, as idéias desses últimos, tendo sido
escolhidos, em parte, por poderem agir assim. Entretanto,
quando tratando de negócios sociais entre seus iguais,
podem sentir uma obrigação especial de mostrar que não
esqueceram as formas de ação do grupo ou seu próprio
lugar, e no palco podem empregar o dialeto, expressões
e gestos nativos, numa caricatura humorística de sua
identidade. (A audiência pode, então, se dissociar daquilo
que ainda tem um pouco, e identificar-se com o que
ainda não se tornou.) Essas representações, entretanto,
têm amiúde um aspecto ajustado, cultivado; alguma coisa
7 Por exemplo, em relação aos negros, ver Johnson, op. cit.,
p. 92. Sobre o uso de "maluco" por pacientes mentais, ver, por
exemplo, 1. Belknap, Htman Problems o! a State Mental Hospital (Nova York: McGraw Hili Book Company, 1956), p. 196; e J. Kerkhoff, How Tkin the Veil (Nova York: Greenberg, 1952), p. 152. Davis, "Deviance Disavowal", op. cit., pp. 130-131, dá exemplos relativos aos fisicamente incapacitados, assinalando que o emprego iesses termos com os normais seria uma prova de que os normais são informados.
146 ESTIGMA
O Eu E SEU Ou'rio 147
foi nitidamente colocada entre parênteses e elevada à categoria de arte. De qualquer forma, pode-se descobrir com regularidade no mesmo representante a capacidade de ser mais "normal" do que a maior parte dos membros de sua categoria que se orientam nessa direção, embora ao mesmo tempo ele possa dominar o seu idioma nativo com muito mais firmeza do que as pessoas de sua categoria orientadas para essa direção. E quando um representante não tem essa capacidade de manipular as duas faces, ver-se-á forçado a desenvolvê-la.
Estigma e Realidade
Até agora argumentou-se que se deveria dar um des- taque central às discrepâncias entre as identidades social real e social virtual. As manipulações de tensão e de informação foram enfatizadas - como o indivíduo estigmatizado pode apresentar a outras pessoas um eu precário, sujeito ao insulto e ao descrédito. Mas parar aqui criaria uma visão unilateral, dando sólida realidade ao que é muito mais frágil do que aquilo. O estigmatizado e o normal são pa'rte um do outro; se alguém se pode mostrar vulnerável, outros também o podem. Porque ao imputar identidades aos indivíduos, desacreditéveis ou não, o conjunto social mais amplo e seus habitantes, de uma certa forma, se comprometeram, mostrando-se como tolos.
Tudo isso estava implícito na colocação de que o encobrimento às vezes é realizado porque é considerado divertido. A pessoa que se encobre ocasionalmente quase sempre conta o incidente a seus companheiros para mostrar como os normais são bobos e como todos os seus argumentos sobre a sua diferença são meras racionalizações. 8 Esses erros de identificação provocam o riso e o regozijo daquele que se encobre e os de seus companheiros. De forma semelhante, descobre-se que os que, naquele momento, costumam esconder a sua identidade pessoal ou ocupacional podem sentir prazer em tentar o diabo, ao conduzir a conversação com normais que não suspeitam de nada até o ponto em que estes, sem o saber, passam por tolos ao expressar noções que
a presença da pessoa que se encobre desacredita completamente. Em tais casos, o que se mostrou falso não foi a pessoa com uma diferença mas qualquer outra e todos os que, por acaso, participavam da situação e que tentaram manter os padrões convencionais de tratamento.
Mas há, é claro, exemplos ainda mais diretos da ameaça 'a situação e não à pessoa. Os indivíduos fisicamente incapacitados, ao precisarem receber demonstrações de simpatia e curiosidade por parte de estranhos, podem, algumas vezes, proteger a sua privacidade empregando outros recursos que não o tato. Assim, uma menina que só tinha uma perna, vítima de freqüentes interrogatórios de como havia perdido a perna, desenvolveu um jogo que denominou de "Presunto e Pernas,* no qual a brincadeira era responder a um interrogatório com uma explicação dramaticamente grotesca.9 Uma outra moça na mesma situação, conta uma estratégia semelhante:
"As perguntas relativas a como havia perdido minha perna costumavam me aborrecer, entéo inventei uma resposta-padrão que irnpedia que as pessoas continuassem a perguntar: "Pedi dinheiro a uma companhia de empréstimos e eles ficaram com minha perna como garantia! "10
Respostas breves que põem fim a um encontro indesejado também são citadas:
"Minha pobre menina! Vejo que perdeu a sua perna!"
E esta é a oportunidade para o touché: "Que falta de cuidado a n'unha! "11
Além disso, há o artifício muito menos gentil de "enganar o outro", por meio do qual os membros militantes de grupos em posição desvantajosa, em ocasiões sociais, elaboram uma história, sobre si mesmos e sobre seus sentimentos, para os normais que muito desajeitadamente lhe expressam simpatia, até um ponto em que fica patente que a história foi construída para mostrar que é pura invenção.
* Em inglês "ham and legs". Joga com "ham and eggs" - ovos com presunto, prato típico americano. (N. do T.)
9 Baker, op. cit., pp. 92-94.
10 Henrich e Kriegel, op. cit., p. 50.
11 Baker, op. cit., em Wright, op. cit., p. 212.
8 Ver Goffman, Asijlurns, op. cit., p. 112.
148 ESTIGMA
O Eu E SEU Oui-io 149
É possível que um olhar frio termine com um encontro antes que se inicie, conforme ilustrado pelas memórias de um anão agressivo:
"Lá estavam os insensíveis, que olhavam como montanheses que haviam vindo ao povoado para assistir a um espetáculo ambulante. Lá estavam os disfarçados, de tipo furtivo que se afastariam enrubescidos se alguém os apanhasse. Havia os compassivos, cujos estalos da língua podiam quase ser ouvidos quando eles já se tinham afastado. Mas, pior ainda, havia os tagarelas, cujas observações podiam ser assim resumidas: "Como vai, pobre garoto?' Diziam isso com os clhos, os gestos e o tom de voz.
Eu tinha uma defesa-padrão - um olhar frio. Assim, anestesiado contra meus semelhantes, poderia lutar com o problema básico - entrar e sair vivo do metrô."12
A partir daqui não há mais do que um passo para que as crianças aleijadas, que algumas vezes conseguem bater em quem as agride, ou que pessoas, excluídas de maneira polida mas categórica, de certos ambientes, entrem polida e categoricamente nesses ambientes com grande determinação .
A realidade social sustentada pelo membro dócil de uma categoria estigmatizada particular e pelo normal polido tem, ela, própria, uma história. Quando, como no caso do divórcio ou da etnicidade irlandesa, um atributo perde grande parte de sua força como um estigma, ter-se-á presenciado um momento em que a definição prévia da situação é cada vez mais atacada, em primeiro lugar, talvez, nos palcos teatrais e, mais tarde, durante o contato misto em lugares públicos, até que pare de exercer controle não só sobre o que é facilmente perceptível como sobre o que deve ser mantido como segredo ou ser penosamente ignorado.
Como conclusão, posso repetir que o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de normais, quanto um processo social de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida. O nor1 Viscardi, A Man's Stature, p. 70, em Wright, op. cit., p. 214.
Sobre técnicas semelhantes empregadas por um homem que tinha garras, ver Russeli, op. cit., pp. 122-123.
13 Uma experiência referente a esses casos está registrada em
M. Kohn e R. Williams, Jr., "Situational Patterning in Intergroup Relations", American Sociological Review, XXI (1956), 164-174.
mal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro. Os atributos duradouros de um indivíduo em particular podem convertê-lo em alguém que é escalado para representar um determinado tipo de papel; ele pode ter de desempenhar o papel de estigmatizado em quase todas as suas situações sociais, tornando natural a referência a ele, como eu o fiz, como uma pessoa estigmatizada cuja situação de vida o coloca em oposição aos normais. Entretanto, os seus atributos estigmatizadores específicos não determinam a natureza dos dois papéis, o normal e o estigmatizado, mas simplesmente a freqüência com que ele desempenha cada um deles. E já que aquilo que está envolvido são os papéis em interação e não os indivíduos concretos, não deveria causar surpresa o fato de que, em muitos casos, aquele que é estigmatizado num determinado aspecto exibe todos os preconceitos normais contra os que são estigmatizados' em outro aspecto.
Agora, parece, por certo, que a interação face-a-face,, pelo menos na sociedade americana, é construída de forma tal que se torna propensa ao tipo de problema considerado neste ensaio. Parece também que as discrepâncias entre as identidades virtual e real sempre ocorrerão e sempre criarão a necessidade de manipulação de, tensão (em relação ao desacreditado) e controle de informação (em relação ao desacreditável). E quando os estigmas são muito visíveis ou intrusivos - ou são transmissíveis ao longo das descendências familiares - as instabilidades resultantes na interação podem ter um efeito muito profundo sobre os que recebem o papel de estigmatizado. Entretanto, a indesejabilidade percebida de uma propriedade pessoal particular,/ e sua capacidade para acionar esses processos de normalidade e estigmatização têm a sua própria história, uma história que é regularmente mudada por uma ação social intencional. E embora se possa argumentar que os processos de estigmatização parecem ter uma função social geral - a de recrutar apoio para a sociedade entre aqueles que não são apoiados por ela - e, presumivelmente, nesse nível, são resistentes à mudança, deve-se ver que parecem estar implícitas aí funções adicionais que variam muito marcantemente segundo o tipo de estigma. A estigmatização daqueles que
150 ESTIGMA
têm maus antecedentes morais pode, nitidamente, funci nar como um meio de controle social formal; a estigm tização de membros de certos grupos raciais, religiosi ou étnicos tem funcionado, aparentemente, como um me:
de afastar essas minorias de diversas vias de competiçã e a desvalorização daqueles que têm desfigurações fisic pode, talvez, ser interpretada como uma contribuição necessidade de restrição à escolha do par.'4 14 Agradeço, por essa última sugestão, a David Matza.

5. DESVIOS e COMPORTAMENTO DESVIANTE
Uma vez que a dinâmica da diferença vergonhosa é considerada uma característica geral da vida social, pode-se passar a encarar a relação entre o seu estudo e o estudo de assuntos próximos associados ao termo 4'comportamento desvíante" - uma expressão atualmente em moda que foi, de um certo modo, evitada aqui até agora, apesar da conveniência do rótulo?
Começando com a noção muito geral de um grupo de indivíduos que compartilham alguns valores e aderem a um conjunto de normas sociais referentes à conduta e a atributos pessoais, pode-se chamar "destoante" a qualquer membro individual que não adere às normas, e denominar "desvio" a sua peculiaridade. Não acredito que todos os destoantes tenham em comum coisas suficientes que assegurem uma análise especial; eles diferem entre si muito mais do que se parecem, em parte devido à diferença geral de tamanho dos grupos onde podem ocorrer desvios. Pode-se, entretanto, subdividir a área em pequenos lotes, alguns dos quais vale a pena cultivar.
Sabe-se que uma posição alta ratificada em alguns grupos pequenos muito unidos pode estar associada a uma liberdade para desviar e, portanto, para ser um destoante. A relação de tal destoante com o grupo e a concepção que os membros fazem dele são tais que im1 É notável que aqueles que se ocupam das ciências sociais tenham-se habituado com tanta facilidade ao uso do termo "desviante", como se aqueles a quens o termo é aplicado tivessem em comum tantas coisas significativas que eles poderiam ser considerados como um todo. Assim como há distúrbios iatrogênicos causados pelo trabalho que realizam os médicos (o que, então, lhes dá mais trabalho), há também categorias de pessoas que são criadas pelos estudiosos da sociedade e, então, por eles estudadas.
152 ESTIGMA
DEsvios E COMPORTAMENTO DESvIrE 153z
pedem a reestruturação em virtude do desvio. (Quando o grupo é grande, entretanto, o membro proeminente considerará que eles devem concordar completamente de todas as maneiras visíveis.) O membro que é definido como fisicamente doente está, de um certo modo, na mesma situação; se ele manipula corretamente o seu. status de doente, pode desviar-se dos padrões de clesempenho sem que isso seja considerado como uma crítica dele ou de sua relação com o grupo. O membro proeminente e o doente podem estar livres, então, para serem destoantes precisamente porque seu desvio pode ser aceito, já que não implica uma reidentificação; sua situação especial demonstra que eles não são mais que desviantes (cleviants) - no sentidó comum do termo.2
Em vários grupos e comunidades muito unidos, h exemplos de um membro que se desvia, quer em atos, quer em atributos que possui, ou em ambos e, em conseqüência, passa a desempenhar um papel especial, tornando-se um símbolo do grupo e alguém que desempenha certas funções cômicas, ao mesmo tempo que lhe é negado o respeito que merecem outros membros maduros.5 Caracteristicamente, esse indivíduo deixa de praticar o jogo da distância social, aproximando-se dos demais e permitindo que eles se aproximem dele. Ele é freqüentemente o centro da atenção que reúne os outros num círculo participante à sua volta, mesmo que isso o despoje do status de ser um participante. Ele serve como mascote para o grupo embora sendo, em alguns aspectos, qualificado como um membro normal. O idiota da aldeia, o bêbado da cidade pequena e o palhaço do pelotão são exemplos tradicionais desse ponto; o gordo fraternal é outro. Pode-se esperar encontrar apenas uma pessoa desse tipo em cada grupo, já que somente uma lhe é necessária; mais exemplos só aumentaríam o peso do fardo da comunidade. Ele poderia ser chamado de /clesviante intragrupaZ para recordar que se desvia de um grupo concreto e nãe só de normas, e que sua inclusão intensiva, embora ambi2 A relação complexa de um destoante com seu' grupo foi recentemente reconsiderada por L. Coser, "Some Fuctions of Deviant Behavior and Normative Flexibility", American Jouraal of Sociology', LXVIII (1962), 172-181.
Sobre estas e outras funções do desviante, ver R. Dentier o
K. Erickson, "The Functions of Deviance in Groups!', Social Pro- blems, VII (1959), 98-107.
valente, no grupo o distingue de outro tipo conhecido de destoante - o isolado do grupo que está, constanteniente, em situações sociais com o grupo mas que não faz parte dele. (Quando o desviante intragrupal é atacado por estranhos, o grupo pode correr em sua ajuda; quando o isolado do grupo é atacado, o mais provável é que tenha que lutar sozinho.) Observe-se que todos os tipos de destoantes considerados aqui estão fixados no interior de um círculo no qual a informação biográfica extensiva sobre eles - uma identificação pessoal completa.
- é difundida.
Sugeriu-se que em grupos menores o desviante intra-. grupal pode ser diferençado de outros destoantes porque,. à diferença desses, ele encontra-se numa relação destor-cida com a vida moral que é sustentada, em geral, pelos outros membros.) Na verdade, se alguém quisesse considerar outros papéis sociais junto com o de desviante intragrupal, poderia ser útil voltar-se para aqueles papéis desempenhados por indívíduos que não seguem o ritmo da moralidade corrente, embora não sejam conhecidos. como destoantes. Se se desloca o "sistema de referência" de grupos pequenos de tipo familiar para grupos que podem sustentar uma especialização maior de papéis,, duas funções se evidenciam. Uma delas, que são moralmente mal-alinhadas, é o de pastor ou padre, sendo aquele que a desempenha obrigado a simbolizar a vida correta e a vivê-la além do normal; a outra é a de oficial de justiça e o indivíduo que a exerce é obrigado a fazer um inventário diário completo das infrações visíveis de outras pessoas.4 Quando o "sistema de referência" é deslocado de uma comunidade local de contatos face-a-face para o mundo mais amplo dos aglomerados metropolitanos (e suas áreas conexas, de recursos e residenciais), verifica-se um deslocamento correspondente na variedade e no significado dos desvios.
Um desses tipos de desvio é importante para nós aqui: seja, o desvio apresentado pelos indivíduos que voluntária e abertamente se recusam a aceitar o lugar- social que lhes é destinado e que agem de maneira irreguiar e, sob um certo aspecto, rebelde, no que se refere a nossas instituições básicas 5/ - a família, o sistema de
4 Este tema é desenvolvido em H. Becker, Out.sider8 (Nova York Free Press of Glencoe, 196), pp. 145-163.
Um aspecto geral que me foi sugerido por Dorothy Smith.
154 ESTIGMA
DESVIOS E COMPORTAMENTO DESVIANTE 155
classificação por idade, a divisão de papéis estereotipada entre os sexos, o emprego legítimo em tempo integral que implica a manutenção de uma identidade pessoal única ratificada governamentalmente, e a segregação por classe e por raça. Esses são os "desafiliados". Os que seguem esse caminho a título individual e por conta própria podem ser chamados de "excêntricos" ou "originais". Aqueles cuja atividade é coletiva e centrada em algum edifício ou lugar (e freqüentemente numa atividade espe. cífica) podem ser chamados de cultistas. Os que se agrupam numa subcomunidade ou meio podem ser denomi-. nados de desviantes sociais e a sua vida corporada pode ser chamada de comunidade desviante.6 Eles constituem um tipo especial, mas somente um tipo, de destoante.
Se deve haver um campo de investigação chamado de "comportamento desviante" são os seus desviantes sociais, conforme aqui definidos, que deveriam, presumivelmente, constituir o seu cerne. As prostitutas, os viciados em drogas, os delinqüentes, os criminosos, os músicos de jazz, os boêmios, os ciganos, os parasitas, os vagabundos, os gigolôs, os artistas de show, os jogadores, os malandros das praias, os homossexuais,7 e o mendigo
6 O termo "comunidade desviante" não é inteiramente satisfatório porque obscurece duas questões: se a comunidade é ou não peculiar segundo padrões estruturais derivados de uma análise da caracterização das comunidades comuns; e se os membros da comunidade são ou não desviantes sociais. Um posto militar unissexual num território despovoado é uma comunidade desviante no primeiro sentido, mas não necessariamente uma comunidade de desviantes sociais.
7 O termo "homossexual" é, geralmente, usado em referência a alguém que se engaja em práticas homossexuais abertas com um membro de seu mesmo sexo, sendo essa prática chamada de "homossexualismo". Esse emprego parece estar baseado num quadro de referência médico e legal e nos dá uma categorização muito ampla e heterogênea para ser usada aqui. Refiro-me, somente, a indivíduos que participam de uma comunidade específica de entendimento dentro da qual os membros do mesmo sexo são definidos como os objetos sexuais mais desejáveis, e a sociabilidade está energeticamente organizada ao redor da busca e conservação desses objetos. Segundo essa concepção, há quatro variedades básicas de vida homossexual:
o tipo masculino e o feminino encontrados em instituições de custódia e os círculos de "informados" masculinos e femininos encontrados nos centros urbanos. (Para esse último caso, ver Hooker, op. cit.) - Observe-se que um indivíduo pode conservar a filiação no mundo homossexual sem se engajar em práticas homossexuais, assim como pode explorar o homossexual pela venda de favores sexuais sem
impenitente da cidade seriam incluídos. São essas as pessoas consideradas engajadas numa espécie de negação coletiva da ordem social. lElas são percebidas como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para o progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade; mostram um desrespeito evidente por seus superiores; falta-lhes moralidade; elas representam defeitos nos esquemas motivacionais da sociedade.
Uma vez estabelecido o núcleo do desvio social, pode-se passar para exemplos periféricos: os radicais políticos que têm base na comunidade, que não só votam de maneira divergente mas passam mais tempo com seus pares do que o politicamente necessário; o rico viajante, que não é governado pela semana de trabalho dos executivos e que passa o seu tempo perambulando de um lugar de veraneio para outro; expatriados, empregados ou não, que geralmente vagueiam nas proximidades dos PX * e do American Express; os apóstatas da assimilação étnica, educados ao mesmo tempo no mundo da sociedade-mãe e da sociedade de seus pais, e que resolutamente se afastam dos caminhos de mobilidade convencionais que lhes são abertos, revestindo a sua socialização de escolha pública com aquilo que muitos normais vêem como uma capa grotesca de ortodoxia religiosa; o homem metropolitano solteiro ou o casado que não aproveitam uma oportunidade para constituir família, e, ao invés disso, apóiam uma sociedade vaga que está se rebelando, embora em termos moderados e por pouco tempo, contra o sistema familiar. Na maior parte desses casos, há alguma mostra de desafiliação, semelhante à de excêntrikos e cultistas, proporcionando, assim, uma fina linha que pode ser desenhada entre eles e os destoantes que se encontram no outro extremo, ou seja, os desafiliados pacíficos - os que praticam um hobby e são tão interessados nele que lhes sobra uma pequena casca de
1 - participar social e espiritualmente da comunidade. (Sobre esse último
exemplo, ver Reiss, op. cit.). Se o termo homossexual é usado em
referência a alguém que se engaja num tipo particúlar de ato sexual,
então é necessário um termo como "homossexualista" para designar
alguém que participa de um tipo particular de comunidade desviante.
* Tipo de supermercado americano, que é encontrado no ex terior (N. do T.)
156 ESTIGMA
DEsvIos E COMPORTAMENTO DESVIANTE 157
vínculos civis, como é o caso de alguns colecionadores de selo, jogadores de tênis e fanáticos por carros esporte.
Os desviantes sociais, conforme definidos, ostentam sua recusa em aceitar o seu lugar e são temporariamente tolerados nessa rebeldia, desde que ela se restrinja às fronteiras ecológicas de sua comunidade. Como os guetos étnicos e raciais, essas comunidades constituem um paraíso de autodefesa e um lugar onde o indivíduo deslocado considera abertamente a linha em que se encontra como tão boa quanto qualquer outra. Mas, além disso, os desviantes sociais sentem amiúde que não são simplesmente iguais a, mas melhores do que os normais, e que a vida que levam é melhor do que a vivida pelas outras pessoas que, de outra forma, eles seriam. Os desviantes sociais também fornecem modelos de vida para os normais inquietos, obtendo não só a sua simpatia mas também adeptos. (Os cultistas também adquirem convertidos, é claro, mas o foco está em programas de ação, e ão em estilos de vida.) Os interessados podem converter-se em companheiros de viagem.
Teoricamente, uma comunidade desviante poderia vir a desempenhar para a sociedade em geral algumas das mesmas funções desempenhadas por um desviante intragrupal para o seu grupo, mas embora isso possa ocorrer, ninguém ainda parece tê-lo demonstrado. O problema é que a ampla área de onde são recrutados os indivíduos para uma comunidade desviante não tem, em si mesma, a nitidez de um sistema, uma entidade com necessidades e funções, como ocorre com um pequeno grupo de contato face-a.face.
Dois tipos de destoantes foram aqui considerados:
os desviantes intragrupais e os sociais. Dois tipos próximos de categorias sociais devem ser mencionados. Em primeiro lugar, os grupos minoritários étnicos e raciais : indivíduos que têm uma história e uma cultura comuns (e, com freqüência, uma origem nacional comum), que transmitem sua filiação ao longo de linhas de descendência, numa posição que lhes permite exigir sinais de lealdade de alguns dos membros, e numa posição relativamente desvantajosa na sociedade. Em segundo lugar, há
8 Para um tratamentG analítico recente, ver E. Glass, "Insiders Outsiders The Position of Minorities", New Lei t Reiiew, XVII (Inverno, 1962), 34-35.
os membros da classe baixa que, de forma bastante perceptível, trazem a marca de seu status na linguagem, aparência e gestos, e que, em referência às instituições públicas de nossa sociedade, descobrem que são cidadãos de
segunda classe. -
Fica bem claro, então, que os desviantes intragrupais, os desviantes sociais, os membros de minorias e as pessoas de classe baixa algumas vezes, provavelmente, se verão funcionando como indivíduos estigmatizados, inseguros sobre a recepção que os espera na interação face-aface, e profundamente envolvidos nas várias respostas a essa situação. Isso ocorrerá pelo simples fato de que quase todos os adultos são obrigados a manter relações com organizações de serviço, não só públicas como comerciais, onde se supõe que prevaleça um tratamento cortês, uniforme, com base limitada apenas à cidadania, mas onde surgirão oportunidades para uma preocupação com as valorações expressivas hostis baseadas num ideal virtual de classe média.
Deveria ficar claro, também, entretanto, que uma consideração completa de qualquer uma dessas quatro categorias nos leva além e nos afasta do que é necessário considerar na análise do estigma. Por exemplo, h comurddades desviantes cujos membros, sobretudo quando longe de seu meio, não estão particularmente preocupados com sua aceitação social e, portanto, são difíceis de serem analisados em referência à manipulação do estigma; um exemplo disso poderia ser certos meios nas praias da América onde podem ser encontrados os jovens envelhecidos que não estão dispostos a se contaminar pelo trabalho e que se entregam, espontaneamente, a várias formas de cavalgar sobre as ondas. Nem se deve esquecer que além das quatro categorias mencionadas, há algumas pessoas incapacitadas que não são absolutamente estigmatizadas, por exemplo, a pessoa casada com um alguém mesquinho e egoísta, ou alguém que ainda não desfruta uma posição cômoda e deve criar quatro filhos,9 ou o indivíduo cuja desvantagem física (por exemplo, uma ligeira deficiência auditiva) interferiu em sua vida, embora todo mundo, inclusive ele próprio, não tenha consciência dessa sua incapacidade.10
9 Toynbee, op. cit., Caps. 15 e 17.
10 Encontra-se um exemplo em Henrich e Kriegel, op. cit., p. 178-180.
158 ESTIGMA
i Argumentei que as pessoas estigmatizadas têm muito em comum entre si o que permite classificá-las em conjunto para fins de análise.j Foi feita, assim, uma extração nos campos tradicionais dos problemas sociais, raça e relações étnicas, desorganização social, criminologia, patologia social e desvio - uma extração de algo que todos eles têm em comum. Essas características usuais podem ser organizadas tendo como base alguns poucos supostos sobre a natureza humana. O que permanece em cada um dos campos tradicionais poderia, então, ser reexaininado pelo que realmente é específico nele, trazendo, portanto, uma coerência analítica ao que, no momento, é uma unidade histórica e fortuita. Sabendo o que os campos como as relações raciais, o envelhecimento e a saúde mental têm em comum, podemos então ver, analiticamente, em que reside a sua diferença. Talvez, em cada caso, a alternativa fosse manter as velhas áreas substantivas, mas pelo menos ficaria mais claro que cada uma delas é simplesmente uma área à qual se devem aplicar várias perspectivas, e que o desenvolvimento de qualquer uma dessas perspectivas analíticas coerentes não virá provavelmente, daqueles que restringem o seu interess@ exclusivamente a uma área substantiva.
r
XMPOSPO E fMp1uj
RSTABELCTMENV,S GRÁFICOS
BORSOI S.A., JNDÚsT E co- MÉRCIO, NA RUA FRANCISYJ
MANUEL, 51/55, DE JANEIRO, GD, EM JANEIRO DE
MIL NOVC]J5 E SETENTA E CINE" PARA
ZAJ{AR EDITORES


O Bestiário - Mauro Gonçalves Rueda



O Bestiário
Mauro Gonçalves Rueda

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Documento do Autor
maurorueda5@hotmail.com
maurorueda@uchoanet.com

Capa:
Diane chasseresse
Escola de Fontainebleau
Meados do século XVI
Fonte Digital:
Museu do Louvre

(c) 2003 - Mauro Gonçalves Rueda




Índice
Prefácio
1 - O Capeta Com Todo o Prazer.
2 - O Homenzinho Que Não Era Deus.
3 - A Consciência. Malaquias! A Consciência!
4 - A Rita.
5 - Sebastian: A Lenda.
6 - Narciso No Espelho.
7 - Um Bagulho Bota Pra Derreter.
8 - Na Corda Bamba.
9 - O Diário.
10 - Wall & Delbut.
11 - Os Sócios São Ratos.
12 - Asas Partidas.
13 - O Fugitivo.
14 - Humilhação.
15 - Phelóphidas.
16 - Fragmentos Cotidianos.
17 - Mero Acaso?
18 - Aversão.
19 - Góia.
20 - Metrópoles.




O B E S T I Á R I O
(Diário De Uma Besta)
-Contos-
MAURO GONÇALVES RUEDA
São José do Rio Preto - 1.998





Para Joyce e Maricy
Julio Cortazár pelo seu livro de Contos "Bestiário"
Meus irmãos, Moisés e Maurício






PREFÁCIO

Qualquer metrópole que se preze, apesar de suas anomalias e visível
decadência, tende a ser uma loucura em todos os sentidos. A violência, o medo,
o exagero, as novidades, o velho, o novo e a miscelânea inenarrável. Assim é e
assim retratam as paisagens em concreto, asfalto, espigões de cimento,
favelas, viadutos e passarelas. O luxo e a miséria se contrastam no mesmo
quadro quase fantasmagórico em sombras mal delineadas. É o fantástico
engendrado na realidade. A necessidade do surrealismo superando a fragilidade
das Instituições. A nostalgia e as tendências evolutivas. O dia, a noite, a
sempiterna valsa dos loucos corações e mentes que jamais encontraram limites
para suas realizações. A fumaça estagnada no ar, os cafés e casas noturnas com
músicas ao vivo. O som do tráfego que rima com o tráfico e os disparos de
armas com projéteis perdidos, incrustados nalguma parede ou em algum corpo
estirado na calçada e coberto por manchetes de jornais. Contudo, ainda brotam
flores em meio ao concreto e náusea, como diria Drummond.
Na calada da noite, madrugada formada e encorpada, rolam as maiores
aventuras. Como o corpo que despenca do décimo andar para pairar - por um
átimo -, sair na foto, e espatifar-se no cimento rústico. Da mesma forma que o
corpo que vai perdendo suas fibras e os músculos se degenerando. E apesar do
silicone e das cirurgias, os jovens também acabam se mumificando um dia. Nas
mãos calejadas do operário; nas bagas de suor que encardem os colarinhos dos
engravatados; na maquilagem das pequenas prostitutas de agências de modelos;
dos jovens acompanhantes com seus corpos másculos; dos casais que saem a
procura de um travesti; dos punks e suas tribos; das bichas velhas
desencantadas a mirarem-se no espelho da decadência; do engraxate que sonha
vencer (n) a vida; do trombadinha cheirando cola e fumando crack; das
ratazanas correndo pelos becos ensujecidos da existência; dos humilhados
dormindo nas filas da previdência e os corpos largados pelos bancos das
praças.
Em meio a todo esse festival retratado em mural antigo, o contemporâneo
rasga o pano do palco e ganha o seu espaço na eternidade do ontem. A poesia
também se constitui de deformações e anomalias. Aberrações da natureza destes
seres e suas mentes caóticas. A grande poesia costuma se refazer nas dores e
nas tragédias. A poesia concreta, crua, dura e real da metrópole muito doida
que não respira, arfa asmaticamente. Se lhe devemos uma Ode? Na realidade, o
fadário quase nos obriga. Devemos muito mais. Por sua frieza e seu sarcasmo.
Por sua indiferença e melancolia. Por sua prole de desesperados e angustiados.
Por seus malucos e loucos. Enfim, por tudo o que se encolhe e se esconde nas
sombras e porões. Nos esgotos e bolsões de lixo e miséria. Nós devemos mais
que uma simples ode à essa deusa denominada metrópole. Palco do último
espetáculo. Onde todos são atores, atrizes e diretores. Onde todos são autores
e artistas anônimos. Onde todos são doentiamente pirados! Ou não! Afinal, "de
perto" nem todos são normais.




O CAPETA COM TODO O PRAZER

Sentado na praça, matava o tempo e se deixava enfarado a coçar o saco e
olhando para "porranenhuma". A cidade era assim: cocozinho de mosca. Havia um
surto epidêmico de raiva. Cães e gatos malucos, às centenas. As pessoas
cagavam-se com medo de serem atacadas. Trancafiavam-se dentro de casa. "Ele"
ria e tomava conta da cidade vazia. Que se fodessem os cães, gatos e os
habitantes! Aliás, os habitantes eram mais nocivos do que qualquer epidemia de
raiva ou loucura. Era o que pensava.
Quando anoitecia, ficava contando as crianças que brotavam dos canteiros
da praça. De quando em vez, algum falecido saía de seu túmulo para passear
pelas ruas vazias da cidadezinha decadente. Certa noite, apanhara um velho
touro que passava sobrevoando muito baixo, pachorrento e descuidado. Segurando
pelo rabo, rodopiou o pobre animal por sobre a cabeça dando-lhe piparotes no
meio dos cornos e enfiando-lhe o dedo no cu. Logo, cansado daquela brincadeira
tola, apiedou-se do indefeso ruminante e acabou liberando-o. O bicho saiu
manso, pairando por sobre a torre da matriz local indo desaparecer na linha do
horizonte, para lá de onde as vistas podiam alcançar. Não tinha certeza se a
população conhecia ou fingia desconhecer tais fatos. Era-lhe indiferente.
Em outra ocasião, apanhara uma mula sem cabeça pastando no jardim da
praça. Não havia nada de anormal com o bicho. Exceto a cabeça. Ou melhor, a
falta dela. No mais, ao seu ver, não passava de uma simples mula que, havia
perdido a porra da cabeça, sabia-se lá o motivo!
De um "nadaquefazer", no inspecionar as qualidades do quadrúpede, pensou
em traçar a mula. Não havia barranco por perto e, "comer mula sem encostá-la
em barranco não era "quenêm...". De forma que, o ruminante acabou
escafedendo-se da situação "vexante" ileso. Sua vida era mais ou menos essa
repetitividade, o enfaro, o desconexo...Vivia por ali, criando calos nas
popas, sentado pelos bancos, numa pasmaceira sem tino. Com isso, acabara se
aborrecendo.
Tanto se aborrecera que, emputecido da vida, juntou uma jararaca pelo
rabo e deu-lhe uma porrada de nós. Passou o resto da noite lá, naquela peleja.
Cada vez que a tinhosa conseguia livrar-se dos nós, apanhava a vítima e
tornava a aplicar-lhe vários outros nós: cego, de marinheiro, boiadeiro e
alguns que acabara inventando na hora. Cansado, meteu um bicudo no rabo da
cobra e voltou para casa andando e mijando. Mijando e andando pela Avenida
Pedro de Toledo.
Mês de agosto sempre fora mês de cachorro louco. Já, na quaresma, era mês
de lobisomem. Havia dito para o senhor Desidério, que a cidade estava
empestada de lobisomens desmunhecados. Que não passavam de umas bichonas que
adoravam piroca. O homem não gostou da brincadeira. Era sério, sisudo. Cerrou
os cenhos e com a carantonha fechada, deixou-o falando com a própria sombra. A
cidade o considerava impertinente, débil mental, cria perdida em beira de
estrada. Apesar dessas e outras, nem se dava ao trabalho de argumentar. No
mais, infernizava a quem pudesse. Comentavam-se à socapa que, o pároco da
cidade, não se sabia ao certo, mas costumava deitar olhos perniciosos sobre
seus fiéis..
Padreco miúdo, italiano e espaventado. Santíssima castidade! Durante os
sermões e serviços clericais aos domingos, sujeito enrolava sua litania em
linguajar que findava numa mistureba que somente ele entendia. Os fiéis ouviam
bocejando, enfarados, fingindo entender tudo. Quem deseja passar por burro?
Mas ele, o desgrenhado não:
- Vai entender que porra esse padreco discorreu. Vai ver, mandou todo o
mundo tomarnocu e os palhaços: "Amém!".
Comentava com os poucos fiéis que ainda fomentavam a coragem em saírem
para as ruas. Parolava e esbodegava-se de rir. Ria, gargalhava e mijava-se
todo. Tinha bexiga solta. Aliás, diziam que ele tinha era tudo solto. A
bexiga, os intestinos, a língua e, sobretudo, os parafusos e porcas das
moleiras.
Zanzava pelas ruas espiando pelos buracos das fechaduras; pelas gretas
das portas e janelas. Arisco, ligeiro, de natureza rapace e desconjuntado das
cadeiras e colunas 'causo da capoeira' que lutava e gingava girando feito
carrapeta, metia medo em todos. Dava pulo do macaco que traumatizava o
adversário e currupiava emitindo uns gritinhos feito Bruce Lee. Cismarenta, a
polícia deixava de lado. Bicho doido que carecia de internação em hospício.
Pegar que jeito? Se se fosse parar para analisar, a população bem que
agradecia à Deus aquelas pestes de gatos e cachorros babando e escumando pelos
cantos da boca. Pelo menos, tinham lá seus motivos para manterem-se
trancafiados e trancafiar os filhos e as filhas donzelas. Mesmo porque, o tal
não era de pouco bico e já lá estava convencendo que era gostoso e coisa e
tal, puxando pelo braço, metendo os cinco dedos, alisando, desviando pralguma
moita ou lugarzinho ermo e no mais, lá se ia uma virgindade para o beleléu.
- Frente e verso que é prámode a bichinha viciá e procurá de retro! -
destrambelhava a falar sem papas naquelas conversas indelicadas e
depreciativas das honras alheias.
Coisa besta! Satanás é quem vai de retro escarvando o chão, quando
acoitado nos conformes das mandingas e conhecimento de que, os cornos nem
sempre significam que o bicho é a besta. Haja vista que, até clube dos que
ostentavam cornos, já por aquelas paragens, havia sido fundado e registrado
nos livros como entidade prestadora de serviços públicos. Pareciam sentir
orgulho em serem mansos, conformados, ufanos e dadivosos das galhadas sem dor.
Mesmo porque, brotavam e nem se tinha tento. Era-se o último a saber mesmo e,
quando se descobria, já estava com ninho de passarinhada chocando. O lesado
lá, algures, deveras, mais do que sorridente e feliz - feito um corno mesmo.
Quem ousaria dizer que um sujeito alimentando tais pensamentos tão análogos
com a filosofia, era maluco de babar-se e comer a merda que acabara de fazer?
Louco era o cacete!
Que nem cacete aquilo já nem era mais. Não é que égua no cio, recostada
em porteira, trancava o fiofó e saía escoiceando e bufando feito o demo,
possessa! E não?! O danado do malquisto, para espalhar-se ainda mais os
"tereretetês", era dos bem servidos. Que o dissesse a bicha velha, a "titia"
da cidade, que teve que costurar o canal do esgoto. Quis, a corajosa da
bichona e foi toda-toda. Berrou, bufou, escarvou o chão e naquele "vem cá
neguinha maluca", empurrou. No que voltou, parecia saca-rolhas: trouxe
hemorróidas e pregas e varizes e se não acodem em tempo, hemorragia na certa.
- Ô Bicho dos infernos! - imprecavam os pais e maridos, mais atormentados
e torturados que condenados nos umbrais, divisando padecimentos futuros.
Mas quem poderia dizer? Desgosto? Cansaço? Tédio? Desaparecera do dia
para a noite. A cidade suspirou aliviada. Algumas pessoas, no entanto,
quedavam saudosas. A população pagou novena, trezena e despacho em
encruzilhada, num fuzuê descomedido que, só se presenciando a barafunda para
contar nos pormenores e somenos. O filhodaputa desaparecera, afinal! Foi então
que, não se sabe que pacto ou desarranjo, os gatos e cães voltaram ao normal.
E a população resolveu sair para as ruas "desaflita", tentando esquecer tantos
estragos, reconstituir-se e restabelecer os bons costumes e a moral. Como se
tais princípios realmente fincara raízes algum dia, por aquelas paragens.
Mas fora um verdadeiro inferno: todos sentiam-se coniventes, desconfiados
e com a cabeça abarrotada de caraminholas, pesando mais do que deveria.
- O filhodaputa! - rezingavam estapafúrdios, cara no chão tanto vexame e,
sequer sabiam o nome do capeta, filho do cão! Tinhoso e debochado no que
concerne às tradições da família e às coisas do Alto, lá de Deus que, no
mínimo, diziam, deveria ter tirado férias por aquelas ocasiões sinistras e
tempos idos, imemoráveis!...




O HOMENZINHO QUE NÃO ERA DEUS

Somente observando atentamente o cara, poder-se-ia chegar a conclusão
que, seguramente, havia ultrapassado o limite delineador entre a sanidade e a
loucura. Por um segundo, o investigador tivera uma estranha sensação
desconfortável: "aquele homenzinho algemado, cabelos emplastados, os olhos
vazados pela insônia, a tez pálida e inconfundível dos noctívagos, ainda que
parecesse um farrapo humano, à qualquer momento, poderia realmente
transformar-se nalgum tipo de psicótico - maníaco - homicida" - Sentiu o
calafrio percorrendo-lhe as entranhas quando seus olhos mergulharam naquele
olhar abissal, de gente desvariada. Então pensou ainda: "creio que deveríamos
tê-lo algemado com as mãos para trás, às costas. E não daquela forma: com as
duas mãos à frente do corpo, prontas para uma bordoada no primeiro ao seu
alcance" - concluiu cismando de si para consigo, bastante preocupado por não
ter tomado maiores precauções.
O homenzinho foi literalmente atarracado por dois fortes policiais
visivelmente nervosos e conduzido ao gabinete do delegado. As instalações eram
acanhadas. Tratava-se de uma saleta abafada, recendendo à catinga de suor e
fumaça de cigarros. Havia um ventilador agarrado ao teto girando moroso, meio
que a contragosto. A poeira e o mofo haviam-se tornado visíveis sobre os
livros inúteis na estante de madeira, atrás da mesa do delegado que parecia
absorto com aquele monturo de papéis encardidos. Fora empurrado para uma
cadeira frente à mesinha. Acomodou-se mal, como pôde e permaneceu à espera.
Sentado frente daquele homem gordo, de terno surrado e gravata com
bolinhas ridículas, seu olhar ultrapassava os limites e linhas de tempo e
espaço para ir se distanciar, buscando milhares de anos luz do local onde se
encontrava à mercê daqueles que o haviam feito prisioneiro sem qualquer reação
da sua parte. Era contra o uso da violência. Sempre fora, conforme seus
princípios.
- Podem se retirar - disse o delegado aos investigadores.
- Mas, doutor... - ensaiou o investigador baixinho, de bigodinhos de pó
de café encimando os finos lábios.
- Eu disse que está tudo bem. - assegurou o delegado com extremada frieza
e indiferença para com o "maluco" cabisbaixo na sua frente.
Os investigadores se entreolharam incrédulos, matutando sobre qual dos
dois seria o mais demente? O homenzinho ou o balofo do superior a apaticamente
emitir-lhes aquelas ordens que deixavam margens à questão em voga. Finalmente
saíram sem mais. Haviam cumprido com seus deveres. Se o homem dava uma ordem,
então?
O delegado esperou que os dois se retirassem. Somente então, passou a mão
pelo queixo redondo, sentindo a pele oleosa. Em seguida, cravou um olhar
penetrante no homenzinho ali, inerte, com seu jeito insosso e amorfo. O outro
permaneceu deliberada e vagamente mirando através do que não existia. O
barulho estridente de uma sirene cortou os ares. "O parvo sequer piscara.
Teria mesmo ficado biruta?". Pensava o delegado, absorto em acender um
cigarro. Aspirou profundamente a fumaça, mexeu-se incomodado na cadeira. A
modorra e o calor daquele dia pareciam acentuar-se à cada segundo. Finalmente
o delegado dirigiu-se ao sujeito passivo e entranhado em seu mundo.
- Ei cara!, você saberia, por acaso, me explicar como se faz para
torturar uma formiga? Era uma pergunta absurda, sem qualquer propósito.
Esperou a reação do outro que havia captado a questão e notadamente, esboçava
um sorriso sádico, porém abatido e visivelmente enfarado. O silêncio tomou
conta da saleta. A mosca zumbiu pelo ar emitindo aquele som irritante.
- Muito bem, pode me explicar, hã? - voltou à carga o delegado, a
acompanhar o vôo do inseto com seu olhar mórbido. O homenzinho penetrou-lhe as
retinas e respondeu:
- O senhor deve saber, doutor. É especialista, estudado... - retrucou o
algemado.
O gordo pensou com seus botões que, "aquele tipinho não passava de uma
besta". Concluíra que adorava um desafio. Às vezes, um bastardo daqueles era
uma boa oportunidade de se livrar da monotonia do expediente. Permaneceu
calmo, fincou os cotovelos no tampo da mesa e expeliu a fumaça em direção ao
desafiante enquanto emitia a frase com denodo:
- Uma barata, digamos?. Se você estivesse sozinho num quarto com uma
barata, o que faria? Aquela era outra pergunta aparentemente sem propósito. O
homenzinho percebeu a filosofia da acareação e respondeu apático:
- Eu jamais gostei delas. - Uma resposta evasiva com pitada de escárnio.
Um interessante jogo psicológico.
- Muito bem! Muito bem! - Concordou o delegado emprestando ênfase à voz
forjada. Bateu a cinza do cigarro e em seguida bufou:
- E um rato?
- O quê? - perguntou o outro.
- Um rato, cacete!. Faria o quê com um rato? - rosnou o delegado querendo
impor sua autoridade através da voz que, levemente alterada, subira alguns
decibéis no volume.
- Sei não, doutor. Os ratos são nocivos, acho...
- O.k. Nocivos, não é? - O sorriso brotou dos lábios da autoridade com
ares de perceptível malícia. Talvez houvesse chegado à conclusão, naquele
instante, que havia faturado um ponto em sua guerrilha psicológica. Aparentava
uns cinqüenta anos, pouco mais com seus cabelos nevados, olhar inquiridor e a
paciência adquirida com o tempo de serviço. O homenzinho o achara
interessante. Parecia bastante inteligente e, à princípio, polido. Divagava
com seus pensamentos quando foi abalroado pela nova pergunta desconexa:
- O ser humano?
- Hã? - indagou numa espécie de muxoxo, o homenzinho que acabara de
regressar de sua viagem de divagações.
- Você acredita que o ser humano seja nocivo... às vezes? - ironizou,
acrescentando o "às vezes". Em seguida, acendeu outro cigarro. O cinzeiro
encontrava-se abarrotado. Havia uma garrafa térmica com café sobre a mesa.
Papéis e canetas. Um copo descartável ainda intato. O delegado apanhou o copo,
derramou café o suficiente para o "bico de pito", sem oferecer para o
depoente. Apenas aguardava em silêncio, do alto de sua mal disfarçada empáfia.
- Nocivo?.. - O homenzinho havia perdido o fio da meada. Não sabia o que
responder. Permaneceu em silêncio, aquiescendo sem resposta. O delegado sorveu
o café, observando atenta e profundamente o meliante para enfatizar em
seguida:
- Digamos que você seja um traste, entende?
O outro anuiu com um gesto de cabeça e o delegado continuou:
- Um traste, um pária, um monte de bosta, como dizemos por aqui!...
- O que tem? - Retalhou o outro.
- O que têm, porra!? - Explodiu o delegado, voltando ao embate:
- Você é um pária, um monte de bosta e por isso, acredita que o resto da
humanidade, seja igualzinha a você. O que faria? - Finalizou a questão
enfático.
- Bem doutor, eu não sou Deus, sabe?
- Não? Você acredita mesmo que não seja Deus? - atacou o delegado com
ironia e perspicácia. A coisa ia começar a esquentar, pensava.
- Acredito sim, doutor. Não sou Deus. - respondeu.
- E porquê tanta convicção?
- Bem, é que às vezes, eu nem sei responder a uma perguntazinha simples
ou, o que fazer mediante determinadas situações constrangedoras.. - respondeu
com propriedade o algemado a estampar ar de cansaço. Para ele havia uma
eternidade que encontrava-se ali, sentado frente àquele sujeito "meio goiaba,
obtuso". O joguinho já não parecia tão interessante. As peças do quebra -
cabeças eram inconsistentes. Cartas marcadas sobre o fundo falso. O delegado
também parecia sentir o fastio. Era como se ambos já houvessem vivido aquela
cena patética.
- As pessoas pensam que você é louco, sabia? - advertiu a autoridade com
a pergunta maçante.
- Às vezes. - confirmou o outro, desinteressado do papo.
- Às vezes o quê?! - explodiu o gordo, quase perdendo o controle da
situação, sem atinar-se que já havia perdido a parada há algumas perguntas
atrás. Ocorreu-lhe que aquela espécie de gente, por incrível que pudesse
parecer, era astuta, perspicaz e com um nível elevado de capacidade mental. O
abatido homenzinho, desta vez não perdera o fio da meada e respondeu sem
afetações:
- Às vezes, eu até acredito no que dizem por aí... Essas coisas de eu ser
louco, perigoso, doente mental.. Umas conclusões difíceis de serem concebidas.
- Aquilo sim, era resposta, pensou o suarento delegado. Mais um arrocho e o
sujeito entregava-se de bandeja. Gato acuado. Afinal, a psicologia jamais
falhara, enquanto tortura.
- Então, se você não é louco, homicida, doente mental, pária, bosta e o
que dizem por aí, o que é então? - arrematou o delegado como quem houvesse
bradado o velho jargão, "Heureca!". Havia pego seu oponente com as calças nas
mãos. Colocara-o, com destreza, em cheque. O suor brotava-lhe em bagas junto
às banhas do pescoço apertado pelo nó da gravata e o colarinho sebentos.
O detido permaneceu em silêncio, refletindo. Parecia fechado, na
defensiva ante o "xeque" do seu verdugo. Na realidade, tratava-se de uma única
questão: "ficar respondendo essas baboseiras para quê? Nem conheço essa besta,
metido a espertinho". A conclusão do homenzinho acorrera-lhe à mente de forma
inapelável, decisiva e concludente. Seus olhos pareciam vidrados; os músculos
das faces deixaram-se trair pelo ríctus perceptível e seus lábios fremiam
levemente quando respondeu:
- Sabe, doutor?.. - indagou, realizando uma pausa proposital,
estratégica, para continuar em seguida:
- Eu sempre tive muita paciência com baratas, ratos, loucos, homicidas,
doentes mentais, párias e até mesmo bosta. (Acentuara a palavra que o próprio
delegado havia usado para denegrir sua imagem. Julgara justo, afinal).... É,
sempre tive. - Continuou como se estivesse muito distante, discorrendo sobre
outra pessoa que não ele, o assassino -. Por isso, eu acho que já deu para
perceber que não sou louco e muito menos, fraco das moleiras. Deu sim! O
senhor também não é nada burro e sabe muito bem porque matei aquela gente.. -
deixou no ar. Pausa longa. O delegado que concluísse.
- Eu gostaria de saber, realmente... - resmungou o delegado como quem não
conseguisse compreender o que estava se passando.
O homenzinho levantou-se lentamente, deixando o incrédulo delegado
boquiaberto, observando e sentindo a urina escorrer-lhe pelas pernas. O outro
sorriu para ele e enfatizou:
- Sabe sim, doutor. O senhor sabe muito bem que não sou Deus.
Não, aquele homenzinho que havia assassinado quatro pessoas da própria
família, não era Deus. Não poderia. Contudo, também não era louco. Apenas um
homenzinho. Uma porra de um homenzinho! Uma titica! Um monte de bos...
O delegado pensava e sentia a bexiga se afrouxando, aliviando-se sem
nenhum controle. O homenzinho deu a volta em torno da mesa, encaixou os braços
pelo pescoço empapado de suor do representante da Lei e passou a apertar,
sufocando-o lentamente. As únicas reações foram aqueles sons repugnantes, um
leve esbater-se para, ato contínuo, o corpo todo tremer e relaxar. Com as duas
mãos, embora algemado, aparou a cabeça grisalha do gordo e torceu. Como se
destroncasse uma ave indefesa. procurou as chaves, retirou as algemas e, em
seguida, saiu caminhando para a porta e ganhou a rua. O sol bufava furioso e
derretia o asfalto. Não deveria ser mais que duas horas da tarde. É, não
passavam das duas...
- Ah, se eu fosse Deus!... - rezingou o homenzinho para si próprio e,
alçou vôo por sobre os prédios, desaparecendo em meio às nuvens claras e sem
nenhum presságio de chuva.




A CONSCIÊNCIA. MALAQUIAS! A CONSCIÊNCIA

Saco cheio, Malaquias? Estressado, hã?! O lotação sacolejando e esse
maldito fedor de suor infestando o ar! Comprimido entre dois sovacos,
Malaquias sentia-se muito "junkie". Ou seria "Punk"? Vontade de dar um
vomitão. A mulher engravidara: trigêmeos! Falta de porra, não fora. Também,
mandou "amarrar as trompas da égua velha". Putaquepariu! Morava num barraco e
o governo dizia que era casa. C.D.H.U. Um ano após o casamento, Deus mandou
logo três. Tudo menina. Uma mais linda que a outra. Bem, não dava para
diferençar muito não. Justiça seja feita: cara de uma, o "cú" da outra.
Lembrou-se que Cu não tinha acento. Ou melhor, não levava acento. Sabia disso
porque era meio poeta, meio boêmio, meio compositor e filhodaputa por inteiro,
além de odiar o patrão. Odiava, mas, cobiçava a gostosa que ele, o patrão
desalmado, traçava após o expediente. Cara cuzudo! Nasceu virado pra lua!
Malaquias?.. Quem era Malaquias, mesmo? Um bosta com três garotinhas para
criar e uma porcona pesando quase duzentos quilos para suportar. Sim, quase
duzentos após a droga da cirurgia. Castrada. Tão bonitinha no altar. Tinha o
álbum do casamento: a mulher, um verdadeiro monumento escultural, torneado e
lapidado por mãos angelicais. Ultimamente? Velha pachorrenta, fedendo à
perfume barato. De puta, aliás. Com toda aquela banha esparramada sobre a cama
e, ainda tinha a arrogância de manter uma empregadinha que, nem mesmo os
cachorros teriam coragem de acasalar.
Embriagado, Malaquias? Embriagado, o caralho! Só umas no bar da esquina
para suportar o segundo tempo dessa contenda. "Ondejáseviu?". Levantar às
cinco, enfrentar a burocracia de um escritório de merda; voltar para casa às
sete e ter saco para desviar de merda, brinquedos, roupas, sapatos, choros,
ranho, banha e reclamações?! Não paciência que agüente! Eu já estou
"porraqui"! Estafa não dá somente em rico fresco. Pobre também sofre,
desgasta. Acha que não?
Dizem as más línguas que Malaquias tá broxado. Logo, logo, tá queimando o
anel de couro. Malaquias está com umas olheiras profundas que fazem dó! Deu de
rezingar feito velho de uns tempos para cá. Falar sozinho feito uma mula,
sabe? Anda que é só trapo, o infeliz! Vai saber se não, doença ruim? Levou
duas advertências em uma semana. Um pé na firma, outro na fila do desemprego.
No olho da rua. Já imaginou? Com três pequerruchas para criar! Deve ser a
merda da cachaça! Acaba com o cara de um dia para o outro. Também, chegar em
casa e ter que trepar numa jararaca daquelas! Jararaca? Aquilo parece um
hipopótamo! Eu, hein!...
- Licença? - pediu educadamente Malaquias para o sovaco sobre seu nariz.
Saiu espremido, comprimindo-se sob sovacos e saltou na primeira parada do
bairro. Frente ao boteco. Como resistir? Não era de ferro.
A mesinha no canto, vazia. Sentou-se aliviado.
- O de sempre! - pediu para o homem atrás do balcão. Quebra gelo e, uma
loiríssima, estupidamente. O primeiro trago é sempre uma foda com ph! Desce
arranhando, rasgando, embucetando. Malaquias um "beise" de marijuana? Mas a
maconha para Malaquias era uma merda: "Fico xarope, saca? Viajando mais que o
presidente da República". E ficava mesmo. Quem o conhecia sabia disso. Um
homem aos quarenta anos fumando maconha é... É o que, Malaquias?
Contracultura, porra!
- A montanha deve estar me esperando. Se a montanha pudesse vir à Maomé,
eu tava fudido! Graças às banhas e pelancas, ela não se move nem para peidar,
a ingrata.
- Quéisso, Malaquias?! Só mais umazinha, bem gelada, hã? A saideira nunca
fez mal `a ninguém, pelo que eu saiba.
- À ninguém que leve uma vida normal. A minha saideira é pior que
sentença de morte. Cada minuto de atraso, é um trauma psicológico. E já meio
que recomposto, de pé recostado ao balcão, acabava tomando a saideira.
Malaquias caminhando em direção à sua casa. Financiada em vinte e cinco
anos. Na cabeça uma parafernália de pensamentos intrínsecos. Cara vivido,
casar chegando aos quarenta. Titubeio irreversível! Mais uns três, quatro
anos, arrumava uma puta e amigava sem compromissos.
A consciência: Malaquias bundão! Filosofia diarreica. Fazer o quê, agora?
Mato a baleia com o machado? Picoto a bicha e salgo feito carne de sol. Daria
para alimentar as três princezinhas durante uns dois anos, no mínimo! Emitiu
uma risadinha amorfa com a idéia. Achava-se genial. Empanturrava as meninas
com toucinho. Ou seria toicinho? Não, era toucinho mesmo. Daria uma olhada no
dicionário. Antes, lia jornal, ouvia música, tocava bandolim.. E agora? Aquele
banheirico de nada. Nem cocô se podia fazer em paz e lá vinha uma: "vai pai,
tá na portinha!". Não, não era bem assim porque, nem falar as meninas sabiam,
direito. Pobrezinhas! E dormir? Dormir, era um inferno. A bicha roncava,
peidava, bufava e, qualquer dia, Malaquias ia amanhecer achatado feito uma
lagartixa que um caminhão passara por cima. Aquele mastodonte dos infernos!
Era vida para um homem decente?
Vai, Malaquias! Mete uma bala no cocuruto! Faz as malas e desaparece no
mundo. Vai dar a bunda. Tomar porres monumentais! Tantas xoxotas no planeta e
você aí, na mão?! Trepar com aquele trambolho que jeito? Aquilo nem tem buceta
mais. Além disso, o cheiro de mijo.. Vai pelo cheirinho, Malaquias. Quando
pensa que tá dentro, falta metro e meio para chegar na portinha. Goza como se
cagasse, filhodaputa! Mata a vaca e presenteia o cunhado com as três gatinhas!
Vai, Malaquias. Seu bunda - mole!
- Acho que tô variando! - resmungou Malaquias em seu caminhar trôpego, a
passos comedidos, indecisos, com medo de chegar à reta final. O sol havia-se
deitado há muito. Demorara mais do que costumava e aquilo seria, com toda a
certeza, garantia de disparatada discussão infindável com a mulher. Além do
mais, teria que preparar, ele mesmo, sua própria janta. Sem contar que, as
três meninas já ensaiando as primeiras palavras, enrolando, tropeçando no
linguajar, mal pisasse porta adentro, viriam pedindo, implorando coisas que
ele, com aquele salário de proletário, jamais teria condições de. Pior do que
falar era entender e pressentir que algo não estava certo. Vida fora dos
eixos!
- Que merda! - choramingou Malaquias mirando as estrelas que despontavam
no céu. E chorou. É, Malaquias chorando pela primeira vez após o casamento.
Após o quebra gelo, após as lourinhas geladas, após o cheiro de sovacos no
lotação, após o porra do patrão o ter advertido verbal e pessoalmente, após
ponderações, considerações, aquele sentimento de impotência e perdição. Somou
uns etecéteras e tais que seus sentimentos resolveram escarafunchar no coração
passarinho ferido e magoado; asinha quebrada, sem poder voar. Um dó sem
tamanho. Autocomiseração do catso! Último dos que esperam a vida inteira no
final da fila e, chegada a vez, descobre que já não há mais nada. Levaram
tudo. Nem migalhas. Malaquias enxugou com o braço o risco de lágrimas doridas.
Vontade de morrer. De morrer ou matar que, tanto fazia àquela altura do
campeonato.
- To ficando troncho! Deve ser isso... - murmurava aporrinhado e
espezinhado pela consciência. Acinte. Aviltante situação. Acabar num hospício.
"Vai virar pra sentir a sensação de estar cagando para dentro. Vai virar
assassino e parar na cadeira elétrica. Vai virar o caralho! Vai se foder!".
- Vou, vou mesmo! - concluiu, desta vez berrando para a sua própria
consciência.
Avistou o portão. Madeira mesmo. Faltava recurso orçamentário para a
compra de tijolos e portão decente. Adentrou o quintal após um safanão no
velho portão emperrado e um bicudo no cachorro viralata. "Meu Deus, para que
cachorro se mal conseguia sustentar a própria família?!". A porta somente
encostada. Algazarra das meninas e o barulho do aparelho de TV. misturando-se
pelos ares. Entrou murcho. As três interromperam a balbúrdia e correram ao seu
encontro como se ele, Malaquias, fosse o Deus delas. O Deus dos abandonados e
aflitos. Correram e foram se aninhando em seu colo, após acirrada disputa pelo
melhor espaço. Disputavam o primeiro beijo e os primeiros afagos. Ele se
entregava, tentando disfarçar o efeito do álcool ingerido. Na sala, a mulher
dava início à intolerável ladainha:
- São horas, seu merda?!
- Problemas com condução, benzinho. Muita gente. Perdi os dois
primeiros....
Espalhou as três pequenas pelo chão, dirigindo-se para a sala. Abaixou-se
e beijou a bochecha da mulher gorda e suarenta que, sequer desviou o olhar da
tela do televisor. Novela interminável. Insuportável. Clonando sonhos de graça
para a desgraça da família desunida. Gorda, beliscando doces com avareza de
esfomeada. Indiferente para com o mundo ao seu redor. Ele esperou pelo esporro
que não aconteceu. Restou meio perdido.
- Foi a droga do lotação. - murmurou baixinho, resignado. Muito mais para
a sua consciência do que para a mulher e, com o olhar marejado, dirigiu-se
para a cozinha onde as três pequenas esperavam por ele para, de forma
resoluta, saciarem a fome que começava a incomodar suas barriguinhas estufadas
pelas flora e fauna intestinais...




A RITA

Modorrento domingo estampado na camiseta e no calção com o sol "frigindo"
a tarde. Transpirando a cervejinha super gelada, consumida aos tragos
comedidos. Dera Deus fosse poeta maior: caderno e caneta sobre a mesa.
Cigarros, isqueiro e moscas. O olhar de soslaio, miramirando enternecido o vai
e vêm dos anjinhos. Cigarro aceso entrededos e o estômago fraquinho, enjoado,
a forçar o que tragado para fora. Segurava-se, não dar vexame.
Na mesa em frente, quatro papoulas desabrochando em flor. Mais chamava a
atenção, já no pilequinho da cerveja, o frutinho amadurecendo temporão. O
olhinho vesgo beliscava coxinhas cruzadas; tostadinhas pelo iluminado sol.
JesusCristinho, nada tinha a ver com tanta carência e desafeto. Desafeto de
poeta não poder sugar mamãozinhos adocicados, em calda postos. Dois gominhos
de tangerina, azedinhos na ponta da língua indomável.
- Porção filezinho? - O garção solícito, indagando.
- Hunhum! - Lambia os beiços que, lábios nem eram mais.
Na dobra do papel, letrinhas miúdas:
Ana Rita, laços de fita
Tranças nos cabelos
Corpinho coberto de chita.
Amor à primeira fisgadela. Paixão imberbe, adolescente. No encontro dos
olhares, Rita sorria. Relia os versinhos, airosa. Ele, confuso, já não sabia
se, fumava a porção, derramava o sal na cerveja ou se usava o cigarro aceso e
no cinzeiro esquecido, para escrever. Tanta aflição!
O contorno do quadril e as perninhas cruzadas. Coxa sobre coxa. Oferenda
em dádivas doidivanas sob a mini-saia. Cabelos encaracolados. Em meio ao
desatino, perdeu conta das cervejas. No cruza, descruza, tantos pelinhos
doirados! Oxigenados? Treze, quinze aninhos? A safadinha flertando, no
pressuposto das entrelinhas, o que tinha para oferecer. Descruzou, abriu um
tiquinho assim, ó! Somente por maldade. Judiação!
Diamante bruto. Lapidamento moroso com arestazinhas aqui e acolá. Mais de
quinze? Nem isso! Tão rolinha! Viçosa! Mais um tiquinho e o olhar fingido da
ingrata no olhar cobiçoso do tarado. Filezinho acebolado, sal e limão
derretendo na ponta da língua tresvariada. Oh, perdição! Pecado necessário e
cometido visando o reino do céu. Na brancura, guardando o Éden suplicado!
Suplício dos sentimentos e padecimentos. Desejos gozosos:
- Abre mais um pouquinho, anjo!
Lia os pensamentos clamorosos, ardentes, febris, tostando o coração
dentro do peito lacerado. Tanto sorria, quanto abria outro tantico. Assim,
como quem nem...
- Ai, que morro! - Sussurrou não, pensou com a dor lancinante
magoando-lhe tanto e a bandidinha sorria. Estratégia milimetricamente
planejada. A perninha esquerda mais acima da direita. De forma que...
- Te pego, parto ao meio! Ai quem dera! - Nas faces, misto de dor e
prazer contorcendo-se a rogar:
- Ai, seu louco! Ingrato! Me esgana, esfola todinha!
E a língua procurando, garimpando rubi escondido nas grutinhas. As duas
mãozinhas delicadas, empurrando a cabeça em desassossego encosta abaixo:
- Mais! Desce mais, meu colibri! Assimmmm!.
Mergulhado no fundo do poço, morrendo afogado, esbaforido tanto líquido
ingerido, o puto afoito, desesperado.
Necessário tanta tortura? Bendita adolescência de anjo safado a
provar-lhe que o mapa verdadeiro. Porém, dúvida crudelíssima: teria acesso ao
tesouro?! Maldita depressão, insegurança. Começara a sentir-se um rato.
Ratinho indefeso no destino fadado à prisão da ratoeira mortal. Tudo por causa
daquele naco de queijo!
Todos os sábados e domingos, a mesmíssima coisa: bulindo sem bulir.
Matando sem querer matar. Descobrindo que o que conta nesse tipo de dor, é a
própria dor martirizante das flechas no corpo em chagas. Ela tão criança ainda
e, já tão abusadamente mulher?!... Ah!, ingrata! Onde fostes perder a
inocência ainda estampada? Não sabias que eu viria resgatar-te?
De forma que, sentia-se não somente um tarado mas, lobo faminto, feroz,
atroz, diante da caça acuada, fragilzinha, entregue às delícias das torturas.
O prazer da dor no gozo urgente. Paixão não escolhe suas vítimas. Nem idade.
Arde em chamas e pronto. E as olheiras do sono perdido, naquela servidão?
Homem amanhecido, vira besta - fera! Azedume no trato com o próximo. Efêmero
sentimento da cobiça impossível e inarredável. Espicaçara mil vezes aquele
desejo e a sanha do colibri envelhecendo, carente do néctar, do pólen, da
seiva, do mel... Derrotado, entregara-se de vez!
No baile do clube, as primeiras frases redescobertas. Primeiros toques
tímidos na premência de encontrar a mina, olho d'água brotando. Ternura
soterrada em desejos reprimidos. Um mês depois, cupim roendo as bordas, já não
suportava mais. Bicho, animal sedento, atacou a presa. Vítima indefesa.
Mergulhara até o fundo do lago sereno, buscar pedrinhas coloridas. Menino sem
saber nadar, braçadas à esmo, em busca da margem do outro lado.
- Quem me salva?! Amparai-me que cometo loucura!
O anjinho fechava os olhinhos contritos, sempre esganada, pedindo mais.
Necessário escafandro para chegar até o fundo. Em busca de pérola na conchinha
aberta, vertendo seiva e sussurros na sangria desatada dos sentidos.
- Dói!
Na dor, o prazer. Pensou, voltando a mergulhar. Desta feita, mais fundo.
Quase rancoroso, tanta espera para chegar ali. Quantas vezes? Até esvair-se,
sem forças, sem fôlego para voltar à tona. Bandida!
- Ai, violência!. - Os lábios entreabertos, a saliva na pontinha da
língua, no céu da boca. Louca. Vadia. Safada. Cadelinha! Emendava o
vocabulário farto, tanta sede.
Liqüidificador em alta rotação, a gostosinha. Mais chamas, labaredas,
fogo que o próprio inferno! Derretia chumbo, alianças de ouro, estanho, cobre
e ferro maciço em busca da pedra filosofal. Bruxa escandalosa!
Enfeitiçado, babava-se todo. Ela fez xixizinho?! Fez sim que, ele sentiu
a vagabunda forçando a bexiga e gozando delírio de tara inconcebível para
florinha tão delicada e mimosa. Gata no cio, dragava-lhe as entranhas. Ela:
cravava-lhe as unhas nas costas de lobo peludo, nas nádegas de escafandrista.
Todo marcado, ferido de tirar sangue. Uma marca escandalosamente roxa no
pescoço, onde ela sugara, a vampira! Sanguessuga ferina! Insaciável. Ele
quarenta e quatro. Ela, somente muito tempo revelara os dezesseis, a vampira
debochada!.
Dera para debochar dele que já não agüentava mais de quatro, cinco,
seis... Queria vinte vezes numa única noite? Decerto! Até sangrar. Até restar
poça de suor e gozo sobre o linho branco do lençol. Ah, bandidinha safada!
Muito amor requentado no fogo brando dos quarenta passados. Ela, doidivanas.
Tirou-lhe tudo. Fugiu com outro. Ele descobriu, sem graça. Desejo de
morte. Passarinho sem ninho. Aflito. Mortinho de saudade da pombinha branca da
paz perdida. Porquê fora confiar em colibri sem asas?! Pombinha sem alma!
Sábado e domingo no mesmo bar. Desesperançado. Bêbado, caindo pelas
sarjetas, destronado o rei sem reino. Chorinho miúdo por nada. Nem lhe toque
naquele nome, já rolam lágrimas. Nunca mais que ela apareceu? Não. Nem vai. E
a saudade que nunca desfeita? As cicatrizes tantas. Noites que se
transformaram em eternidades! Definhando, definhando e, solto, cambaleante
pelas ruas, cantarolando a canção do Chico:
- "A Rita levou meu sorriso. No sorriso dela o meu assunto ....A Rita
matou nosso amor de vingança...".
Da herança não poderia reclamar que, isso ela deixara. Ah, Ana Rita!
Ajoelhado frente à imagem de São Francisco, ouvindo disco de Noel, meteu uma
bala na cabeça e, saiu por aí, em busca da Rita:
- Anjinho de Deus!...




SEBASTIAN: A LENDA

Apontara a arma sim, mas não para matar. Acidente. Fora um fatídico
acidente. Contratempo. A bala ricocheteara e, por infelicidade, descaso do
destino, alojara-se na nuca do homem, penetrando-lhe a caixa craniana.
Sebastian desejava apenas provisões: arroz, feijão, enlatados, cigarros..
Talvez, um litro de uísque. Nada saíra como planejado. Nada. De forma que,
acabou realizando um verdadeiro assalto. Caixas e caixas foram carregadas das
prateleiras do supermercado. Aí sim, encontrava-se naquela situação inusitada.
Como não ir até o fim? Mesmo porque, sabia que em breve, estariam atrás dele.
Não havia outro sujeito na ação. Sebastian era o sujeito e encontrava-se
atolado até o pescoço.
- Porra!, não pretendia ferir ninguém. Somente umas coisinhas para uma
semana, no máximo, duas. Merda! - Sussurrava, carregando o furgão pela
traseira. Era uma droga de um furgão que não poderia levá-lo tão distante dali
que, a polícia, em breve não o encontrasse e fizesse dele, uma "peneira".
Atira-se primeiro para ler os direitos em seguida. Nada mais que fazer!
Sobrecarregou o furgão, principalmente ou, prioritariamente, com
enlatados, cigarros, fósforos, pilhas para lanterna, lampião, enquanto sua
mente turbilhonava, doía-lhe a cabeça latejando-lhe as têmporas. Apanhou a
doze com a caixa de balas. Talvez necessitasse. Possuía um trinta e oito e
duas caixas de munição. Duas facas para caça, uma velha mochila, um cobertor
surrado e uma manta de couro.
Dinheiro não lhe serviria para nada. Não a partir daquele trágico
momento. Preferiu caixas com flocos, cevada, café, açúcar, sal, cerveja,
álcool, querosene em lata, outras miudezas e porcarias com as quais ia
entulhando o velho e decrépito furgão. Observou o homem caído atrás do balcão,
já sem vida e sentiu as lágrimas brotarem. Saiu dali cantando os pneus
bastante surrados.
Por sorte, não havia alarme no supermercado. Percorreu vias secundárias,
tomou a interestadual e, chegando a altura da região desértica, saiu pelas
trilhas. Havia um abismo e pretendia atirar o furgão pela encosta abaixo.
Talvez o dessem por morto. Dirigia em velocidade frenética. Contou quase
trinta horas sem parar, sem pregar olhos e chegou ao "Vale das Sombras".
Estranho nome para um local deserto, sol causticante e com temperatura
elevadíssima. Encontrava-se fatigado, mais morto do que vivo. Lá embaixo, um
precipício e à sua direita, montanhas, cavernas e locais onde bem poderia
esconder-se.
Parou para meditar, tomando generosos tragos de uísque. Era tudo que
necessitava naquele momento. Parar. Dar um tempo. Pensar. Havia levado consigo
o rádio e pilhas. Farolete? Sim. Eram algumas de suas esperanças. Começou, ou
melhor, deu início a uma busca que terminaria quando o sol estivesse se pondo.
Encontrara uma caverna incrustada em meio às rochas. Era profunda, não muito
larga, escura, não perceptível - quase - e, por algum milagre da natureza e
reparo de um destino tão desastrado, havia uma pequena, diminuta bica de água
interna que brotava em meio à duas rochas e mal corria, morrendo a poucos
metros após a nascente.
- Deus! Oh, Deus!, era tudo de que eu necessitava! - exclamou
euforicamente, descarregando as mercadorias para dentro da caverna. E tanto
trabalhou que, suas pernas pareciam de borracha e seus membros endureceram já
não mais comandados por sua vontade leonina. Caiu exausto ao lado do furgão.
Permaneceu longo tempo aspirando e expirando o ar febricitante dos moribundos
sob o sol escaldante do deserto.
Não havia sol e as estrelas brilhavam no céu quando despertou. Apanhou o
galão de combustível e dirigiu quatro quilômetros em linha reta, afastando-se
do local. Era necessário o sacrifício. Não conseguia manter-se sobre as
pernas, mas o fez.
- Tudo certo! Tudo! Agora falta muito pouco. - disse à si próprio e parou
à beira do precipício. Espargiu gasolina por várias partes do furgão,
desengatou-o e o forçou a rolar precipício abaixo. Pensou que, talvez,
houvesse necessidade de usar a arma para causar o incêndio e a explosão.
Contudo, não fora necessário. O furgão mergulhou no espaço e passou a
ricochetear pelas arestas do rochedo em seu caminho e, antes mesmo de chegar
ao seu destino explodiu em chamas. Sebastian sentiu-se aliviado. Ou quase.
Teria que retornar. Era uma longa caminhada e o frio e o vento sibilante
roubavam-lhe as forças em sua exaustão. Passou a caminhar feito um moribundo
embriagado. Havia uma galhada em meio ao caminho. A partir dali, pretendia
revolver as areias com a galhada ressequida e apagar os rastros do furgão,
além de suas próprias pegadas que pareciam afundar cada vez mais, à cada passo
arrastado com sacrifício e suor.
Amanheceu febril, à boca da caverna e com a galhada fortemente presa em
uma das mãos. Sentia-se doentio e incapaz de sussurrar uma única palavra. Sua
garganta encontrava-se ressequida e o corpo estilhaçado pelos tombos que havia
levado durante a noite. Um helicóptero podia ser ouvido ao longe.
Uniu o que lhe restava de forças e arrastou-se, carregando atrás de si,
os galhos ressequidos. Enfiou-se caverna adentro e, a galhada, como que
providencial, tapou a entrada, enroscada em meio à greta das duas rochas. Caiu
e deixou-se rolar até a bica de água. Era pouca. Por horas permaneceu ali,
buscando saciar a sede imensurável que o fustigava. Ouviu, mais uma vez, o
ronco do helicóptero passeando lá fora, no alto e, desmaiou.
Recobrou a consciência muito tempo depois, com as gotas de água
respingando-lhe pelo rosto. Por alguns segundos teve a sensação de que havia
sonhado. Contudo, o ronco de um monomotor, o ladrar de cães e o vozerio de
homens fizeram-no recobrar a consciência de vez.
- Tô ferrado. - pensou. Sentiu na boca, o gosto amargo dos derrotados e
tomou uma decisão radical.
Preferia morrer a ser conduzido a um tribunal. Então saltou, apanhou o
revólver, a doze e as caixas de munição. Arrastou-se lentamente até a entrada
e pode observar os homens afastando-se. Havia pelo menos uma dúzia deles, com
cães e fortemente armados. Uma verdadeira caçada.
O próprio vento havia incumbido-se de apagar as pegadas e soprara os
resquícios do olor humano. Por isso, talvez, os cães não houvesse conseguido
farejá-lo. O monomotor voltou a roncar em altitude baixa e desapareceu. Os
homens caminhavam lentamente com seus cães farejadores. Sebastian sentia as
mãos trêmulas apertando a doze. Teria realmente a coragem para atirar em algum
daqueles homens? Pensava nisso naquele momento e não havia resposta de
imediato. Apenas que, sentia-se aliviado. Talvez voltassem. Não uma ou duas.
Mas várias vezes. Novas buscas. Até...
Retornou para seu vezo arrastando-se, apanhou um litro de uísque e
serviu-se demoradamente no gargalo. Em seguida, com a faca de caça, abriu seis
latas de cerveja e, estrategicamente, colocou-as de forma que, cada gota de
água não fosse perdida. Em breve sentiria sede.
O tempo parecia deslizar moroso. Arriscou: apanhou o rádio, conectou o
fone de ouvidos e passou a girar o dial lentamente, em busca de notícias.
Conseguiu sintonizar uma boa estação, abriu uma lata de feijão e passou a se
alimentar, mastigando com prazer e sofreguidão. Uma hora depois, ouviu um
boletim informativo. O xerife do condado declarara à imprensa que as pistas
tornavam-se evidentes e que o assassino (aquela palavra chocou-o), seguramente
teria morrido carbonizado.
- Está blefando, o filho da mãe! Não há indícios ou corpos que provem que
havia alguém dentro do furgão. É um jogo, eu sei! - concluiu irritado,
Sebastian.
Lá fora, anoitecera. Encontrava-se abalado e precisava repousar. Esfriava
consideravelmente. Se a temperatura despencava ao longo da madrugada, durante
o dia, seria capaz de fritar um ovo sobre alguma pedra. De forma que,
ajeitou-se como pode. Não acenderia nada: nem fogo, lampião ou lanterna. Não
por enquanto. Havia o perigo de cobras e outros animais peçonhentos mas teria
que correr o risco. Adormeceu rapidamente e sonhou.
Sonhou com a mãe que jamais conhecera. O pai que o açoitava com cordas
molhadas e vivia embriagado. Sonhou com o homem e seu olhar vazio, absurdo,
quando a bala estourou-lhe a nuca. Então passou a caminhar pelo longo corredor
da morte. Havia um soldado de cada lado e um padre que não parava de rezar e
quanto mais rezava, mais Sebastian se deixava convencer que aquele era o
destino de todos: a morte. De uma forma ou de outra, todos têm o seu dia. Era
estranho o capacete na cabeça, pés e mãos imobilizados. Iriam ligar aquela
"porra" e ele iria se debater por alguns segundos e tudo estaria terminado.
Não era tão ruim, afinal...
Sebastian era um osso duro de roer. Sua aparência era selvagem e
zombeteira. Contudo, seu coração se esvaia em prantos. Com isso, .passou a
noite rolando de um lado para outro e, por um momento, pensou haver emitido um
berro descomunal que espalhou-se por toda a planície e pelo deserto. Apesar do
frio, estava transpirando em bagas. Consultou o relógio de pulso com ponteiros
fluorescentes. Marcavam cinco horas.
Seu primeiro pensamento fora que, poderia estar em sua casa, ou melhor
"naquele buraco". Sem ter o que comer, o que fumar; sendo escorraçado de um
lado para outro. No entanto livre. Sem a alma de um infeliz a lhe atormentar
todo o tempo. É, poderia...
Permaneceu quieto. Ouvia os pingos em ritmo metódico da água caindo
dentro de uma das latas, o vento sibilante soprando lá fora as areias finas.
Não havia ladrar de cães, ronco de motor ou vozerio. Somente o sussurro
intermitente da solidão. Arrastou-se, até a boca da caverna. Somente então,
percebera que as duas enormes rochas quase impediam que um homem pudesse
passar por ali. Afastou um pouco os galhos e viu a imensidão do deserto e
sentiu-se ainda mais solitário e vazio.
Passou a anotar em uma caixa de flocos, os dias do mês e da semana.
Talvez houvesse uma margem de erro de dois ou três dias, mas acertaria com o
rádio. Começou a trabalhar de forma a racionar alimentos e água. Distribuiu
enlatados e perecíveis. Acabou descobrindo que, com a faca, conseguira algo
maravilhosamente necessário: abrir um pouco mais a bica no grotão e, ao invés
de gotas metódicas, um pequeno veio brotou manso e límpido. Festejou aquilo
com meia lata de água fresca. Em outra lata, colocou café solúvel, água e
açúcar. No entanto, não ousava arriscar a acender o fogo. Tomou alguns tragos
e percebeu o quanto era terrivelmente ruim. Fumou dois cigarros e voltou a
rastejar até a boca da caverna. Parecia mais uma fenda em meio às rochas.
Passou longo tempo observando o vazio e o vento carregando o que conseguia
arrastar. Seus olhos começaram a arder e então, resolveu tomar um trago e
ligar o rádio em busca de novas notícias sobre o caso. Passou a tarde ouvindo
músicas e embriagando-se. Nada de notícias. Retirou o fone dos ouvidos,
desligou o aparelho porque, considerou que, necessitava economizar pilhas e
resolveu comer alguma coisa. Feijão e ervilhas.
No décimo quinto dia, não suportava mais aquela maldita rotina e, além
disso, suas juntas, pareciam pesar feito chumbo. Precisava sair dali e
caminhar um pouco. Então o faria pelas cinco horas da manhã ou, ao anoitecer.
É, seria melhor ao anoitecer. Correria menos riscos e não iria distante para
não se perder e para que, no dia seguinte, o vento houvesse apagado suas
pegadas nas areias. Quinze dias e nenhuma notícia. Teriam dado por encerrado?
E suas provisões?
No décimo sétimo dia, chegara à conclusão que se pegava muito mais
arrastando o corpo exaurido do que propriamente caminhando. Até onde era
possível divisar somente areia, dunas delas, rochedos e uma ou outra touceira
de uma espécie de sarça, mato ressequido que insistia em lutar contra o sol e
a falta de água, feito os cactos. Não havia conseguido encetar mais que dez
passos. Voltou para seu recôndito quase que de quatro, feito um animal. Suas
barbas e cabelos começavam a se emaranhar e crescer de forma desmesurada.
Havia perdido vários quilos e nas últimas noites, já não conseguia pregar
olhos. Tomou a resolução de praticar alguns pequenos exercícios todos os dias.
Não o fez.
Vigésimo primeiro dia e dentro da caverna havia um amontoado de caixas,
latas vazias, um engradado que servia de mesinha, além de seis ou sete latas
contendo almôndegas e feijão. Um pacote de biscoitos e mais nada. A solidão e
o medo tomaram proporções alarmantes.
No trigésimo dia, atirou em pequenos camundongos e lagartos. Acendeu uma
pequena e discreta fogueira e deliciou-se com uma comedida refeição para uma
fome sem tamanho. Não havia outro jeito. Tivera que arriscar quanto ao tiro.
Conseguiu fazer um arco e algumas flechas não muito eficazes para caçar
lagartos e cobras. Talvez houvesse algum animal de maior porte do outro lado
daquela vastidão. Seu estômago doía e ele próprio sabia sobre suas condições
frágeis e seu corpo cada vez mais debilitado e caquético.
No trigésimo oitavo dia, sentia os efeitos de um jejum forçado. Três dias
sem ter com o que se alimentar. Havia tentado uma espécie de verme parecido
com minhoca, mas sinceramente, o estômago não aceitara. Água. Havia percebido
quando o pássaro pousara sobre uma enorme rocha a pouca distância dali.
Resolvera não arriscar e saiu arrastando-se em direção a ave e quase fraturou
a clavícula com o coice da doze. Contudo acertara, o que fora de suma
importância. Sentiu os olhos marejarem. Será que alguém ouvira o tiro? A carne
não era tão ruim. Não de todo. Mesmo com aquela aparência asquerosa.
Provavelmente um terrível e repugnante abutre devorador de carniça. Vomitou os
primeiros pedaços, em seguida, forçou-se a devorar aquela coisa e mantê-la em
seu organismo. Havia salgado-a o bastante para sentir aquele horrível gosto
adocicado que o fizera colocar para fora os pedaços ingeridos.
Pelas anotações efetuadas, havia chegado ao quadragésimo quinto dia.
Havia passado três noites espreitando o pequeno bando. Ou melhor, matilha.
Seriam cães? Coiotes? Hienas? Já não conseguia discernir. Na quarta noite,
finalmente, abatera um deles. Achou que deveria ser algum cão selvagem. Cortou
em tiras, salgou a carne e racionou de forma metódica, minuciosa, enquanto
caçava ratos e lagartos com flechas e sua pontaria que melhorara em muito nas
últimas semanas.
No final do terceiro mês, conseguira devorar um cacto. Por sorte não era
venenoso. E sequer havia pensado em tal questão. A polpa não tinha gosto
algum. Talvez servisse para saciar a sede. O efeito foi terrível porque o
estômago permanecera em chamas por vários dias, apesar da água ingerida a cada
meia hora, bem marcada.
Parou de anotar os dias. Com certeza passara dos cem. Sentia-se
macilento. Os lábios gretados sob os bigodes. Sua aparência retratava as
penúrias pelas quais vinha passando. Deixara o rádio de lado. Resoluto passou
a caminhar à esmo, percorrendo quilômetros com o revólver, a doze e a faca.
Não havia nada mais do que deserto. Quilômetros e quilômetros de areia e
rochas e pedras e arbustos ressequidos. Seu aspecto animalesco impregnado pela
paisagem rústica o aprisionava feito uma pintura nalgum quadro de parede. Um
animal doentio. Desses que, às vezes, o próprio veterinário resolve sacrificar
para colocar termo aos sofrimentos incompreensíveis e enlouquecedores.
Sebastian, por fim, passara a variar. A ter visões anômalas e patéticas.
Havia perdido a conta dos dias. Sua memória falhava ou resolvera traí-lo.
Restara-lhe uma bala. Uma única bala no tambor do revólver. Seus pés
arrastavam-se desgovernados sobre as areias escaldantes. Se conseguisse chegar
a algum lugar, um vilarejo qualquer, talvez pudesse voltar a ser um homem
novamente. Simples e esquecido. Talvez. Delirava. Caso não conseguisse, bem,
ainda havia uma bala no revólver.....




NARCISO NO ESPELHO

Invocar a loucura. Ou, mais precisamente, fazê-la explodir. Diante do
espelho. Os olhos congestionados e o rosto por completo, sendo redesenhado.
Não um bosquejo à lápis. Ou uma pintura a óleo, através de finos pincéis. Mas
sim, à forma dos que, por hábito, já não conseguem evitar as avarias do álcool
e do sono. E, consequentemente, parecem estar inchados todo o tempo.
Hábito ou vício, não importa! Quando os tanques de guerra começaram a
tomar as ruas e as pessoas debandaram apavoradas ele avaliou, ponderou e
acabou dando de ombros.. Bem, o exército realizava manobras e acrobacias com
seus mananciais bélicos. Um cachorro aproximou-se de um enorme tanque com suas
lagartas, a fumaça do óleo expulsa de suas entranhas, bufando feito um
hipopótamo e o cachorro cheirou-o de forma indiferente, ergueu a pata traseira
e urinou naquele monte de ferro e engrenagens ameaçadores.
Do outro lado da rua, a garota de jeans e tênis, cabelos soltos e longos,
levou a lata de refrigerante aos lábios e sorveu, tranqüila. Fazia calor.
Sempre fizera calor. Jamais percebera. E apesar do sol escaldante, do mormaço,
a praça e lanchonetes foram ficando vazias. Feito o próprio domingo dentro da
alma. Dia sem pé nem cabeça.
Outro tanque surgiu no fim da rua, ferruginoso, bufando e estacou,
girando aquele cano de descarga no alto e apontando para um ponto qualquer que
não dava para precisar muito bem. Talvez a manobra fosse somente para
impressionar. Os militares sempre foram exibicionistas, meio palhaços...
Então, eles perfilaram-se ao longo da rua junto à praça da matriz. Como
se fosse uma parada militar e, em seguida, silenciaram. Eram muitos. Toda
aquela movimentação demonstrativa do poderio de força, já não se parecia ou,
em nada lembrava uma parada militar. Muito pelo contrário. Na realidade, não
dava para se chegar à conclusão alguma. Essa era a realidade.
Logo em seguida, se assentaram as tropas com seus carros blindados,
canhões, bazucas, lançadores de morteiros, metralhadoras, fuzis, barracas e,
de repente, a praça foi transformada em um verdadeiro quartel do exército com
sua cavalaria blindada. O sol esturricava a merda dos cavalos que pastavam
receosos.
Havia ou fez-se, um silêncio espectral que tomou conta de tudo. Não se
ouvia uma única palavra. O próprio vento negava-se a passar por aquele quadro
patético e bizarro. Somente uma mosca ousou zumbir de forma zombeteira e
desapareceu ao longe.
O homem que tinha o rosto inchado e os olhos congestionados e que,
mirava-se no espelho todos os dias, despertara de ressaca. Ele apanhou um
litro de uísque, tragou no gargalo, abriu um pouco - quase nada - sua janela
que dava para a praça e ficou observando aquele cenário inaudito e achando
hilário. Feito invocar a loucura e fazê-la explodir em mil estilhaços de
granadas.
Não havia tumulto, constatou. Nem greve, atentado ou outro perigo
eminente de invasões ou revolução. Não havia sequer, possíveis inimigos. Não
que soubesse. Contudo, quatro caças da força aérea efetuaram vôos rascantes,
quase acrobáticos. Dois helicópteros munidos de metralhadoras, sobrevoaram a
praça. Ninguém conseguia entender o que estava ocorrendo. Não havia guerrilhas
ou levantes.
A praça tomada e sitiada preocupava o povo que, de paz com a vida,
começou a questionar se, por acaso haviam-se cometido alguma infração para que
fossem tomadas medidas tão drásticas. Ás quatorze horas, do outro lado da rua,
uma mulher emitiu uns gritinhos de êxtase e prazer. Acabara de atingir o
orgasmo. O marido, após baixar as portas do estabelecimento comercial,
resolvera matar o tempo ao invés de ficar observando aquela "palhaçada
inexplicável", por uma fresta da janela. Dissera à mulher:
- Vão se fodeire! - com seu sotaque aportuguesado.
Por volta das quatorze e vinte, três garotos se armaram em trincheira
numa água-furtada de uma das residências e prepararam suas munições: bolas de
saibro, bolinhas de aço, e estilingues com borracha de câmara de ar de
bicicleta. Para eles, que o exército desse o primeiro tiro. Então, teriam
motivos o suficiente para responderem ao fogo.
Um velho senhor já meio aborrecido, apanhou sua espingarda e o que
restara da munição para caça, indo prostrar-se junto à janela, alerta, na
tocaia. Sua arma era apenas uma "pica-pau", de carregar pelo cano.
Às quinze horas precisamente, quando o relógio da matriz começou a
badalar, por pouco um soldado não apertou um botão. A situação tornara-se
tensa e, parecia inevitável que não viesse ocorrer uma catástrofe
incompreensível, transformando-se numa verdadeira carnificina.
Nas emissoras de rádio e TV, a programação era normal. O homem da cara
inchada acabara de descobrir que seus pés também haviam inchado
consideravelmente. Deu de ombros e voltou a deitar-se. Em poucos segundos
estava sonhando com um alambique.
A situação era inusitada. O cachorro urinou em mais um dos tanques e em
meio aquele campo de batalha psicológico, encontrou-se, por acaso, com uma
cadelinha no cio. Os dois se cheiraram; deram umas lambidas e em acordo mútuo,
transaram ali mesmo, até que, cada um resolveu sair para o seu lado. Era tarde
e necessariamente, permaneceram dando voltas, esperando impacientes que o
processo ocorresse e eles pudessem desvencilhar-se da famigerada engatada.
Ninguém ria ou enxotava os animais. Somente um soldado pensou na namorado
e recostou-se no companheiro da frente. Era a tensão. A solidão. A carência
afetiva. Ou talvez, fosse segundas intenções mesmo. Não importava, afinal.
Poderiam morrer à qualquer momento.
As beatas que limpavam o interior da matriz, se ajoelharam diante do
altar e puseram-se a rezar de forma contrita. Os helicópteros saíram de cena.
Um bando de abutres entrou em cena. Sobrevoava em círculos concêntricos e
largos sobre a praça. A situação tornara-se insuportável.
Eram o silêncio, a expectativa, o tiquetaquear das horas nos relógios de
pulsos e até mesmo as batidas cardíacas arritmicas. Tensão intolerável. Aos
poucos os cães, pássaros, borboletas e até mesmo os abutres haviam
desaparecido. E o quartel general ali, desconexo, silencioso, sem um piscar de
olhos. Bagas de suor brotando à socapa e molhando as fardas. Respirar era o
limite.
A noite descerrou seu manto de forma morosa, apática, inconvincente. Como
quem protestasse contra os abusos do poder. As pessoas, animais de terra e ar,
haviam deixado o fato hediondo de lado. Porque alguém considerara tudo aquilo
como um fato hediondo. Embora, não soubessem dizer o que significasse
"hediondo".
Finalmente a noite fez-se clara. A lua alvíssima. Um manto sarapintado
pelas estrelas luzidias. Eram tantas quantas as que o general usava. Ou mais.
Fora o mesmo general do Comando Maior quem ordenara para que toda a energia
elétrica fosse suprimida e sobretudo, que nenhuma besta, quadrúpede, ousasse
ligar uma lanterna, um farolete, lampião ou mesmo, palito de fósforo.
Os grilos calaram-se, amiúde. Sapos não coaxavam mais. De somenos
importância. Tudo aquilo era ridículo, mas ninguém dizia. Ninguém ousava. A
lenta agonia das horas. Às vinte e duas, o homem inchado que invocava a
loucura e mirava-se no espelho, bocejou. Houve uma certa expectativa lá fora.
O Narciso tinha os olhos congestionados e encontrava-se convicto de que
tudo era uma merda. Suas roupas puídas e amarrotadas. As botas rotas até que
lhe caíam bem. Achava. Necessitava sim, de uma bebida forte. Estava com
problemas de gases. Sorriu frente ao espelho já com aquela decisão resoluta,
inadiável. Por fim, saiu para a rua e viu o exército inteiro à postos. Não
havia armas ensarilhadas. Todas encontravam-se em guarda, devidamente
municiadas nas mãos trêmulas dos atiradores. Por algum tempo ficou observando
o quadro. Não sabia se emitia uma gargalhada ou se tornava para dentro da
casa. Pensou: "posso sair do meu quarto e caminhar. Afinal, sou um cidadão
livre".
E, acreditou em seus próprios pensamentos e deu os primeiros passos. Em
algum lugar do mundo, deveria haver pelo menos um barzinho aberto.
Saiu caminhando meio hesitante. Passou pelos primeiros tanques, as
primeiras metralhadoras, trincheiras, baterias antiaéreas. Olhares
acompanhavam seus passos de forma irritadiça; nervosos, tensos. No entanto,
ele já havia alcançado metade do percurso quando, de rosto e pés inchados, sem
alguma perspectiva de vida, foi sutilmente traído.
As veias do pescoço saltaram num esforço vão de conter o inevitável.
Então ele pensou: "Foda-se!", emitindo sonoro peido. Foi o mesmo que lançar
uma granada em meio àquele formigueiro bélico. A primeira rajada, cortou-o
pela metade, junto ao ventre e a saraivada continuou a pipocar de forma
furiosa, ininterrupta. Ninguém sabia mais em quem atirar, mas todos atiravam.
Nas casas, para o alto, nos vultos, sombras, escombros, nos próprios
companheiros e aquilo durou toda a noite, até que, finalmente, amanhecera.
O Narciso já não necessitaria de seu velho espelho.
Um projétil de canhão havia mandado pelos ares, o seu quarto. Estilhaços
do que fora o espelho, jaziam espalhados. Contudo, em algum pedaço minúsculo
do vidro espelhado, alguém poderia jurar que um olho inchado e entristecido,
vertia sangue. Como se chorasse. Como se, simplesmente, chorasse sua lágrima
de sangue.




UM BAGULHO BOTA PARA DERRETER

O sol ardia febril, derretendo o asfalto e o homem sobre o andaime da
construção pensava que a continuar daquele jeito, acabaria com os miolos
cozidos. Há mais de um mês, todas a noites, sentia uma terrível e implacável
dor. Dissera à mulher que ia acabar nalgum hospício. Começou a sentir
vertigens e transpirava aos cântaros, deveras. Por isso, parou por alguns
instantes.
- Mão na massa aí, negrão! - berrou o engenheiro de obras, fiscalizando
tudo.
- À putaqueopariu! - sussurrou o negrão, vendo aquela meleca preta,
encardida, escorrendo pelo furo da botina. Estava derretendo.
Lá embaixo (olhava para baixo e sentia-se despencando), as moças que
passavam do outro lado da calçada também começavam a derreter. Então ele viu
os seios enormes da mulher murchando, as pelancas do ventre, coxas e a
gostosona caminhava e ia se desmanchando toda sob o sol escaldante. Ficava
aquele rasto decomposto, sapatos, saia, sutiã, calcinha.
Uns pêlos misturados com cabelos e dentes espalhados pela calçada. Um
executivo passara com uma pastinha sob o braço e a pasta permaneceu grudada no
chão. O negrão ria e achava tudo aquilo muitíssimo engraçado. Acontecia, às
vezes, nos últimos tempos. É, vinha acontecendo coisas estranhas e ele somente
fazia por emitir aquela gargalhada estrondosamente debochada.
O fiscal da obra tirara o capacete para enxugar a testa e quando passou o
lenço, as peles soltaram-se e ao invés de suor, havia sangue no lenço
empapado.
- Bem feito, filhodaputa! - pensou o negrão, sentindo a orelha pingando
feito uma bica. Piche escorrendo. Caiu sobre a tábua do andaime e permaneceu
ali. Era engraçado. Mas também, era nojento.
O sol não dava tréguas. Queria que uma nuvem permanecesse por alguns
minutos a escondê-lo. Contudo, o céu encontrava-se límpido, muito claro. Por
um momento, o operário pensou que tudo não passasse de imaginação, devaneio,
delírio. Havia tomado umas a mais na noite anterior, durante a partida de
futebol. Era um clássico: Fla X Flu, no Maracanã. De forma que. Inevitável...
- O desgrenhado do Romário me perde um pênalti, o bunda-mole! Até eu
convertia! Continuava "pensamentando" com a caçamba ao lado e a colher de
pedreiro na mão. A unha de um dos dedões da mão esquerda havia caído. O dedão
começara a derreter. Lembrou-se do que dissera à mulher de que estaria ficando
troncho das moleiras. E estava mesmo. Agora dera de ver coisas!
Emitiu um risinho sacana. Meio insano. E quando riu, sua dentadura
despencou lá do alto. Mas nem se deu conta de que seu lábio inferior havia
derretido. Dizia à si próprio:
- Quem precisa de uma merda daquelas? Toda frouxa, ferindo a gengiva.
Ora, foda-se! - disse de uma forma estranha, sibilante. Contudo, não estava
importando-se com nada daquilo porque tinha certeza de que havia ficado lelé
da cuca.
- Tô matusquelo! Eu disse à porra da minha nega que eu ia acabar ficando
groselha. Ela disse que eu estava ficando frouxo. Nem agüentava dar umazinha
direito. Tentei explicar mas ela nem deu pelota. Ficou zoando com a minha
broxada. Tô acabado e xarope da cabeça. Eu sei porque dói pra cacete aqui
dentro. Dói tudo. Fico cego na hora. Não vejo mais nada na frente. Ou melhor,
começo a ver coisas. Como pessoas derretendo, virando uma meleca pegajosa e
nojenta. Tem hora que meu pinto parece um pedaço de chouriço todo flácido...
(flácido é uma palavra e tanto. legal mesmo!).. Então, eu pego nele e parece
que vai derreter entre os meus dedos. Tento enfiá-lo na boceta da nega, mas
aquilo lá é chavasca, por acaso? Aquela beiçada mole, morta, começando a
derreter também!...
Acabara esquecendo-se do trabalho. Divagava sem remorsos. Não queria
matar o tempo ou cozinhar o galo como a maioria dos funcionários da obra
fazia, não. Era uma coisa lá, muito particular. Somente dele. Não se importava
em ter que trabalhar. Mas, também não dava a mínima em ficar à sombra, coçando
o saco. Continuou:
- Queria ver aquele veado do departamento de pessoal com aquela putinha
que passa todo o tempo rebolando de um lado para outro...Ah, ia ser o maior
barato! Os dois atarracados feito cachorros no cio e derretendo. Ele dentro
dela. Ela engolindo ele e o chefão, o bonzão da boca, chegando sorrateiro.
Putz!
No que emitiu aquele "Putz", o queixo do negrão derreteu até às orelhas e
ficou parecendo que ele estava rindo o tempo todo e para tudo e todos. Mas
voltou a pensar:
- É só fruto da imaginação! - tirara de letra aquela frase concludente
que ouvira não sabia muito bem onde e quando. Mas era "ducacete". Se era! E
nem percebera que suas orelhas escorriam morosas, como se fossem apenas suor.
Não conseguia lembrar se havia ou não, dado um tapa numa mufa e por isso,
estava viajando no efeito. Achava graça um cara fumar um "beise" e ficar vendo
aquelas coisas todas. Mas, sinceramente, não conseguia se lembrar.
Talvez tivesse até fumado. Às vezes, dava uns tapas e metia na cabeça que
ia botar pra ferrar no trampo. Depois, passado o efeito, vinha aquela maldita
depressão. Vontade de comer doce. Deitar e dormir até o próximo século.
Efeitos colaterais. Alguém dissera isso também, de efeitos colaterais e nunca
mais esquecera daquelas palavras. Gostava de frases bem feitas, diferentes e
as ouvia procurando decorar de forma que, na primeira oportunidade, fazia uso
das mesmas de forma acentuada, sentindo-se o bamba. Contudo, não passava
mesmo, era de um pé sujo. Contudo, se conseguia lembrar de palavras e frases,
presumira que estava legal dos miolos. Ou pirado de vez porque, já estava meio
confuso e parecia uma porra de uma salada tudo o que pensava e ficava
chamuscando-lhe a cachola e os miolos.
A mão esquerda, a que segurava o tijolo, foi junto com a argamassa. Ficou
uma coisa estranha. Parecia que ele havia massacrado um gato preto com o
tijolo e a massa e então, começava a ficar vermelho, brotando sangue. Feito a
virgem que chorava sangue. Pensou o quanto seria complexo uma virgem chorando
sangue. No entanto, preferiu deixar de lado que, nesse tipo de assunto não era
de bulir. De forma que, passara a trabalhar somente com a mão direita e, sem
as duas orelhas e os lábios.
Os dedos dos pés também haviam derretido e pingava aquele treco escuro lá
embaixo. "O palhaço que olhar para cima, vai levar colírio no zóião!". Pensou.
Pensou e, quando olhou para baixo, viu somente o capacete do mestre de obras e
um amontoado encardido num macacão azul de brim.
- Um fresco a menos para torrar a paciência! - concluiu satisfeito com o
resultado. O sol desceu mais um pouco e o próprio edifício parecia um pudim.
Um amontoado de porra ou manteiga.
Isso era uma coisa que o negrão não conseguira definir de forma exata.
Sabia que estava derretendo. Sentiu que não tinha mais os pés, nem as mãos e
parou de trabalhar em definitivo.
Afinal, como poderia trabalhar, assentar tijolos sem as mãos? Sentou-se
no andaime e ficou observando as coisas derretendo: carros, mulheres, homens,
edifícios, caralhos, pererecas, asfalto, tijolos, operários, lotações, o morro
lá distante, muito distante....
- Será que a minha nega também tá virando papa?
Emitiu uma gargalhada sonora e gostosa. Foi então que, as duas pernas
soltaram-se frouxamente. Ficou somente com a bunda preta se equilibrando no
andaime porque os dois braços, também começavam a virar manteiga, derretendo
lentamente. Sabão preto. Ria feito um palhaço. Riu tanto, mas tanto que,
acabou despencando lá do alto.
Desceu os andares ainda rindo. Esborrachou-se no meio dos entulhos e
restos da obra. Permaneceu ali: mortinho da silva. Chamaram ambulância, a
mulher do cara, os parentes.
- Falei pro desgraçado não fumar aquela porra! - choramingava um
mulatinho com dois olhos esbugalhados e vermelhos feito tição de fogo, rindo
de se cagar e rolando pelo chão.
Ninguém conseguia entender patavina. Uma tragédia daquelas e o cara lá,
falando merda e rindo feito uma besta, sem nenhuma consideração pelo falecido
e os parentes ali à sua volta. O mulato continuava a gargalhar, rolando sobre
a areia misturada com cimento e cal. Então percebeu que todas as atenções
encontravam-se voltadas para ele. Olhou para aquele ajuntamento de gente e
para o companheiro morto e disse:
- Eu falei! Avisei que ia dar merda, mas ele quis!
E, em seguida, começou a derreter, com o sol trincando, às duas e meia de
uma tarde de segunda-feira.....




NA CORDA BAMBA

Contou os dez andares do edifício, calculou, realizou contas e projeções
mentais um tanto complexas. Não que estivesse ou pretendesse subir ao décimo
andar. Encontrava-se num pequeno apartamento do décimo e, enquanto
deliciava-se com um copo de uísque puro, sem gelo - noite fria - observava
junto ao parapeito, a rua lá embaixo. Caía uma garoa fina e o vento soprava,
conforme sua concepção, "insinuante e sibilinamente".
Talvez fosse o tédio da metrópole, a pressão, a insegurança, o
estresse... Do outro lado da rua, o edifício em frente. Subiu contando os
andares com o olhar e parou no décimo. Havia uma luz tênue por detrás das
cortinas e pode perceber uma silhueta que passara várias vezes de um lado para
outro do que deveria ser a sala. Ou seria o quarto?
Poderia ser tanto um, quanto outro. Pensava, retornando ao barzinho da
estante onde serviu-se generosamente. Sem gelo. Permaneceu debruçado ao
parapeito, a mente divagando. Pensamentos inconclusos, atabalhoados.
- Ei, você aí! - gritou para a silhueta do décimo, do outro lado da rua.
Poderia gritar porque ninguém ouviria mesmo. Então, continuou:
- Sabia que esta cidade encontra-se infestada, empestada de gente maluca?
Isso aqui parece uma manicômio! - Berrou e em seguida sorveu mais um trago do
uísque e acendeu um cigarro. Voltou a concentrar-se em seu objetivo.:
- Às vezes, as pessoas atiram-se de seus apartamentos e espatifam-se no
asfalto lá embaixo! Depressão. Acho que deve ser isso. Brigam com namorados,
com a esposa, o patrão. São maníacas, suicidas. Elas acham, ou acreditam que,
essa loucura possa ser a solução para os problemas: a morte....
Caminhou pela sala pensando, meditando.. Havia uma trena, arco e flecha
em um armário. Não conseguia lembrar-se da corda. Disporia de uma corda
resistente? Um cabo de aço? Calculou quantos metros do seu apartamento ao
outro, do lado de lá da rua. Tornou ao parapeito. Não havia sacada. Não
gostava. Uma criança brincando, correndo... Essas coisas ocorrem, às vezes.
Preferia os parapeitos. Eram mais seguros. Mentalmente esticou a corda da sua
janela até a janela do outro prédio. Quem poderia morar num lugar daqueles? As
pessoas estão se tornando cada vez mais estranhas.
Não queria pensar. Contudo, pensava. Não queria sentir a solidão.
Contudo, sentia. Talvez um filme? Música? Era um sujeito de bem com a vida. No
mais possuía seu próprio apartamento e a firma de corretora. Um bom carro.
Poderia apanhar o carro e procurar uma mulher se desejasse. Ou dar umas
voltas. Tinha cartão de crédito, dinheiro na conta bancária, algumas ações e
não era feio ou complexado. O que mais poderia desejar?
Chegara à conclusão (um tanto confusa àquela altura. Não do andar do
edifício, mas sim, de seus próprios pensamentos), que talvez não tivesse o
direito de desejar coisíssima alguma. Tratava-se de justiça. Não desejava
autoprivilégio. Da mesma forma, não possuía nenhum sentimento de
autocomiseração. Era um homem como qualquer outro em meio àquele amontoado de
espigões, antenas, paranóicos, pirados, pingentes, infelizes, atabalhoados.
Era um qualquer e pronto. Era o que era.
De forma que, após estirada a corda (em pensamento), caminharia sobre
ela. Na corda bamba. Feito nos circos quando em criança no Interior. Alguns
detalhes: sem a rede lá embaixo e a altura. Era um risco. Garoava e ventava de
forma ininterrupta. Ao invés de guarda-chuva, para o eventual equilíbrio,
usaria o copo até à borda. Iria tomando aos goles, até chegar do outro lado.
Mas, e se falhasse?
Bem, bem.. Se falhasse, seria somente mais um doido espatifado no
asfalto. Um rosto (se é que sobrasse um), ou melhor, um corpo
anônimatologicamente sem vida. Existe tal palavra? Anonimatologicamente..
Pronunciou de forma lenta, compassada. Não sabia e nem iria procurar no
dicionário. Detalhe de somenos importância para os fatos. Então, a idéia
tomara forma, contornos delineados, corpo, vida própria.
Rebuscou no armário. Arco, flecha, a trena forte com suas garras
precisas. A corda? Poderia jurar que havia uma. Sempre há uma corda para uma
hora de necessidade. Enforcar-se no banheiro, por exemplo. Riu da idéia. No
entanto, sabia que não estava tão errado assim e a corda existia, realmente.
- Há sempre uma corda quando se é precavido. - observou já um tanto
quanto "alto". Voltou ao parapeito. A silhueta do outro lado caminhou:
"Continua viva. Talvez a minha espera". Voltou a rir e o copo escapou-lhe por
entre os dedos estilhaçando-se no chão. Apanhou outro, deixou a bebida
transbordar, mas não bebeu. Colocou os objetos na sacola, abriu a porta e
desceu pelo elevador de serviço.
Já na calçada, lembrou-se de que havia esquecido da blusa. Fazia um frio
enjoado, penetrante. Atravessou a rua e preparou-se, psicologicamente, para
colocar em prática o seu plano. O porteiro do prédio cochilava com uma revista
nas mãos, de forma que, fora mais fácil do que esperava. Subiu pelas escadas.
No quinto andar, sentiu o quanto encontrava-se fora de forma. Parou para
respirar, tomar fôlego. Transpirava. Voltou a subir. Chegou ao décimo andar
cansado. Deu um tempo. Não seria fácil convencer fosse lá quem fosse, a
colaborar com o seu projeto. Apertou a cigarra e esperou.
- Quem é? - perguntou uma voz suavemente delicada do outro lado.
Seu coração disparou. Pensou consigo "a mulher deve ser graciosamente
bela com esta voz dócil, sussurrada e insinuante.". E era, constataria em
seguida.
- Por favor.. Eu preciso conversar com a senhorita. Eu resido do outro
lado da rua, eis o meu cartão. - Enfiou o cartão por baixo da folha da porta.
- O que o Sr. deseja e como posso ter certeza de que o Sr. é realmente
quem diz ser?
- Sou proprietário de corretora como a senhorita leu aí no cartão e eu
gostaria de dar uma olhada no edifício em frente ao seu. Sabe como são os
negócios.. Visto por outro ângulo. Fregueses exigentes...
- Não sei.. - respondeu a moça do outro lado da porta.
- Olha, vou enfiar a minha carteira de identidade. A senhorita poderá
constatar através do "olho mágico". Às vezes, costumo sair num ou outro
jornal. Coluna social. - corrigiu, abaixando-se e passando a identidade por
baixo. A moça apanhou, conferiu.
- Prometo não demorar mais que alguns segundos. É importante. - disse o
homem de fora. Era ele mesmo. Cartão, identidade. Não havia dúvida, já o havia
visto, talvez...
Abriu lentamente a porta, espiando desconfiada pelo vão, com o trinco de
segurança. Ele sorriu e disse boa noite. Pediu mil desculpas pela
inconveniência do horário e, foi entrando. A moça era, realmente, um "bom
pedaço". Pelo jeito, morava só. Dissera que era funcionária da agência perto
da Cásper Líbero. Ah, Caixa Econômica Federal. Tocou de leve a mão dela.
Sentiu uma certa atração.
- Permite-me? - perguntou apontando para a janela.
-Ah, sim! - respondeu a moça de forma polida. Chamava-se Lígia. Ele
Dagoberto. Haviam apresentado-se um ao outro? Não conseguia lembrar-se. Dali,
observou a sua sala no edifício em frente, décimo andar. Perfeito.
- Perfeito! Excelente! - disse ele com satisfação acentuada.
- Então tá. - respondeu a moça sem nenhuma ênfase, indiferente.
Chegara à parte mais complexa do plano. Mil invencionices. Talvez não,
seguramente ela não consentiria. Começou a explicar-se. Mentia. Dizia que era
para a cena de um filme publicitário. Na realidade, estaria preso por um cabo
invisível. Chegou até a porta e apanhou a sacola, retirou seus apetrechos.
- Está vendo? Esta parte eu afixo aqui, no parapeito. É seguro e não há
com o que se preocupar. Em seguida, atiro " armou a flecha no arco com a corda
atada - a flecha ao meu apartamento. Largo! Acertou na primeira tentativa.
- Meu senhor, não posso concordar com uma loucura dessas! O senhor há de
convir comigo que se, digamos, venha ocorrer uma fatalidade? Eu serei
cúmplice. Serei presa por partilhar, consentir, ser conivente. O senhor
entende?
Ele sentiu a firmeza da trena e voltou-se para Lígia:
- Sei, sei! A senhorita tem toda razão em demonstrar preocupação.
Todavia, posso afirmar-lhe que é mais seguro do que se possa imaginar e, no
momento exato em que os holofotes estrategicamente forem ligados e o
helicóptero pairar sobre os dois prédios, a senhorita poderá sentir-se
completamente aliviada e isenta de qualquer preocupação. Eu lhe asseguro de
forma veemente. - disse Dagoberto como se estivesse discursando para uma
platéia lá embaixo.
- Moço, por favor! - tentou em vão, Lígia.
- Não se preocupe. Basta não tocar na trena, por favor. - respondeu
saindo apressadamente. A moça permaneceu estática, petrificada. Não sabia o
que fazer. O cara não parecia louco. Ou parecia? Às vezes, os malucos enganam
a gente e são muito, terrivelmente inteligentes. Arquitetam planos com
minúcias e nuanças que, nenhum outro ser comum o faria. Pensou em discar para
a polícia. O corpo de bombeiros. O resgate. Aquele homem estava tentando
suicidar-se. Sequer havia levado sua carteira de identidade. Era mais uma
prova de sua conivência para com o ato suicida.
- O que faço, Deus?! - perqueriu caminhando de um lado para outro e
estacou perplexa. Pasmada de horror. Sentiu que iria vomitar. O homem estava
de pé, do outro lado, com um copo - sim era um copo e, acenava para ela.
Talvez fosse tarde. E, se ele estivesse contando a verdade? As pessoas
fazem de tudo para venderem uma boa imagem aos telespectadores. Era um homem
bem sucedido. Ele havia dado três ou quatro passos, equilibrando-se
precariamente. Parecia embriagado. Levemente bêbedo. Sorria com o copo na mão.
Tomou um trago rapidamente e, voltou a equilibrar-se. Ela fechou os olhos.
O homem havia dado mais três passos curtos e arrastados, equilibrando-se
na corda. O vento não era forte, mas poderia fazê-lo perder o equilíbrio. Além
disso, chuviscava. Ou melhor, garoava. Não havia porra de holofote algum.
Sequer helicóptero. O sujeito era maluco mesmo. Com o copo na mão..
Quase perdeu o equilíbrio e por pouco, não despencou lá do alto. Uma
rajada mais consistente daquele vento gélido e adeus comercial. Ela correu
para o telefone e discou para a polícia que acionou o corpo de bombeiros que,
acionou o Destacamento de resgates, a Defesa Civil, o Hospital mais próximo
que acionou a sirene e a imprensa e dezenas, centenas de pessoas, se
acotovelando lá embaixo, apreciando o espetáculo.
Holofotes, sirenas, helicópteros, escada "magirus"... O homem havia
chegado quase que na metade do percurso e continuava rindo, gargalhando, firme
em seu propósito quando, o tempo parou: estaca fincada no coração do vampiro
desgraçado. Eles pensam que são imortais. Os vampiros e alguns malucos das
grandes metrópoles. Eles sempre pensam que são imortais, concluiu Lígia,
tentando conter as lágrimas e a histeria...
- Pensam que são imortais!...




O DIÁRIO

Eu havia adquirido o hábito de escrever da mesma forma que o havia feito
quanto ao hábito de ler. Das longas noites insones, em conseqüência das
violentas crises asmáticas, muita coisa eu havia adquirido. Em contrapartida,
outras, havia irrecuperavelmente perdido. A poeira adentrando o velho casarão,
penetrando pelos poros, refocilando os vezos das memórias encafuadas por
tantos quartos e cômodos meus conhecimentos numéricos pudessem contar. Na
realidade, "O Diário" passara a ser escrito por essa época remota e recendendo
a mofo e poeira ancestral. Mesmo porque, após quase meia centena de anos, lá
estava eu, escarafunchando baús antigos abarrotados de roupas, pérolas, jóias,
chapéus, calçados, em antiquados guarda-roupas e outros móveis empilhados
pelos cantos da estranha casa.
Nos primeiros dias, eu apenas reportava-me a contar algumas
reminiscências nostálgicas de uma infância remotamente amarfanhada pelo tempo.
Anotava à guisa de não perder de todo, em meio a tantos lapsos, os encantos do
menino mirrado e doentio que eu fora - primogênito dos nove irmãos. Juntava
cacos. Colava fatos. Recortes. Feito minha mãe, minhas tias e sobretudo minha
avó, costurava com a mesma paciência, os retalhos da existência já corroída
pelas traças e sofrimentos. Não que tudo houvesse saído às avessas, contudo,
não era bem o que eu esperava ou sonhara um dia. Encontrava-me casado, tinha
uma filha, uma casa que ia pagando com dificuldade e exercia a profissão de
jornalista. Muito mais pela subsistência do que por amor à profissão. Gostaria
de poder viver da literatura. Escrever. Compor canções e não mais que isso.
(Desperto porque acabo de fugir de um pesadelo antigo. A sinfonia de
violinos adentra-me os ouvidos e espalha-se pelo enorme salão em que o corpo
jaz dentro de um caixão de segunda. Apenas os violinos e o corpo dentro do
ataúde. Penso em quem estará dentro daquela coisa de madeira no meio do salão
que foi meticulosamente encerado e logrado daquela poeira fina de eras que
havia pelos cantos e paredes recobertas pelas teias das aranhas. Tenho medo,
confesso. Talvez, ao me aproximar o suficiente, eu consiga ver o meu próprio
corpo. Além disso, odeio esse olor nauseabundo de flores. Não vou mergulhar no
poço. Permaneço intato, parado junto ao umbral, observando de soslaio a
cena.).
Então, vieram-me casos. Narrava-os em estilo simples, feito uma "besta"
porque, saudosista como todo descendente de espanhóis, em minhas veias o
sangue cigano empurrava-me de volta pelo mesmo caminho traçado. Em incontáveis
noites, despertava desesperadamente atônito e alarmado com a realidade dos
sonhos. De forma que, corria a escrever para apascentar os fantasmas antigos
que me acompanhavam desde a infância.
Julguei por bem que "O Diário de Uma Besta", viria a calhar quanto às
anotações por sua natureza e conteúdo, embora outros contos fizessem parte do
conjunto. Mesmo porque o escritor argentino Cortazár havia escrito o seu
"Bestiário", se não me falha a memória, editado como livro de estréia. Eu não
havia estreado aos 43 anos e já começara a tornar-me impaciente. Talvez, um
tanto quanto enfarado com tanto escrever e meter pelas gavetas. Aliás, como o
fizera com todos e tantos sonhos ao longo dos anos vividos. Até que, de alguma
forma, descobri que já não havia necessidade de deitar-me para sonhar e
despertar com algum novo fato na memória. Eu estava vivendo entre o "Diário" e
a realidade do cotidiano no qual sentia-me cativo e desgostoso dado o
relacionamento com a sociedade. Sobretudo em função de ter que,
necessariamente, reportar todas as áreas dentro do jornalismo. A política me
fascinava e ao mesmo tempo punha-me asco nas entranhas. Viscerais eram minhas
batalhas internas contra o regime vigente. Distante da cidade da minha
infância. Dos meus mortos e das minhas saudades e lembranças.
(Não consigo criar coragem para ultrapassar os liames do que me resta ao
nível consciente. Por isso, permaneço macambúzio frente ao caixão sobre os
cavaletes no meio do salão. O enorme cristo, a cabeça pendente de lado, com
sua dor inenarrável parece ofuscar o meu medo. Talvez desejasse dizer-me que
todos sofremos. Inevitavelmente, a vida é somente uma passagem pela qual,
sofremos muito mais do que possamos aquilatar. Mesmo quando idealizamos uma
existência fornida por momentos de felicidade e contentamento. Nunca fui
contente. Não há necessidade de dizer porque Ele sabe; está sentindo com sua
dor e seus espinhos. Contudo, permaneço empacado feito uma velha mula. Não
arredo pé.).
Então passei a conviver com eles: os fantasmas. Passeavam pela casa com a
naturalidade daqueles que, com o passar dos anos, adquiriram seus direitos
inalienáveis. Eram parte de meus sonhos e realidade. Vivíamos bem e, não
obstante tais visões e fatos mudarem gradativamente minha rotina, talvez eu
houvesse vivido com eles para sempre, como uma velha família de ciganos:
peregrinando de um cômodo para outro; de uma cidade à outra; de um sonho de
somenos importância para as vicissitudes da realidade.
Às vezes pegava-me a palrar longamente com os velhos mortos sentados em
suas cadeiras de palhinha a tricotar; a mascar nacos de fumo para cusparar na
areia vermelha do terreiro ou, a ouvir-lhes as infindas histórias de tempos
ignotos e rebuscados com uma riqueza em detalhes e nuanças que, eu mesmo
acabava confuso quando interrompido por alguém, enquanto respondia a algum
ausente de corpo, mas presente em espírito.
Em uma noite abafada, estressado e acossado por problemas financeiros -
dívidas que me fustigavam e desafiavam a capacidade há doze anos,
aproximadamente -, deitei-me com dez edições de jornais mal iniciadas e
encalhadas no winchester do computador. Eu já não suportava mais escrever
crônicas, editoriais, mentiras político-administrativas e publicá-las sabendo
que o povo conhecia e aquilatava o volume de mentiras e verdades em cada lauda
ou cada página do periódico do qual eu era editor e uma espécie de "faz de
tudo", que acabava nada fazendo tanto nojo causava-me então o jornal.
(Às vezes, me sinto confuso com tudo isso. Estou diante do teclado e ao
mesmo tempo, junto ao batente da enorme porta de gonzos rangentes. Então, sei
que algo vai acontecer. Mesmo porque, é necessário - mister que algo ocorra de
forma urgente. Caso contrário, talvez eu jamais volte a recuperar a sanidade.
Ou o muito pouco que ainda me resta do que julgo ser sanidade. O Cristo sorri
um sorriso triste, melancólico. Uma baga de suor escorre-lhe pela fronte
ferida e cai-lhe no olho, está ardendo porque ele o fecha e é como se chorasse
por um único olho. O olho da dor e do medo em segredos guardados. Acho que nos
conhecemos. Ainda assim, não ouso arredar pé de onde me encontro e penso estar
seguro de não sofrer um colapso fatal..).
Deitei-me e já lá estava à caminho da velha casa. Era sempre o mesmo
caminho ao longo dos anos e jamais mudara. Percorria-o a passos arrastados,
inseguro, com medo de perder-me e não conseguir encontrar meus fantasmas.
Quando menos esperava quedava-me diante deles, a discutir problemas
corriqueiros. De terno, gravata e sapatos brilhantes. Enfim, impecavelmente
vestido, discutia com meu falecido pai uma nova distribuição dos aposentos.
Não que houvesse algo errado com eles, mas o salão, o enorme salão que mais
parecia ter sido projetado para conferências, poderia muito bem ter sido
dividido em dois ou três quartos. Afinal, a família é consideravelmente
numerosa e estamos um tanto quanto apertados pelos quartos minúsculos e mal
distribuídos.
Minhas irmãs - estas vivas e morando a alguns quilômetros de onde eu
resido atualmente - participavam do sonho com a velha e acirrada baderna da
infância que sempre acabavam nos causando problemas. Desandavam os fatos em
verdadeira parafernália de tempos idos e soterrados pelos anos com os
problemas do ontem ou que eu teria que enfrentar no dia seguinte. Despertava
frente ao teclado já com boa parte de um texto digitado, bastando tão somente
salvá-lo em "meus documentos" ou em disquete, como se fora um sonâmbulo que
desperta no alto do telhado quando o perigo parece eminente e a situação
torna-se preocupante e assustadora.
Lia, relia. De forma que, com o passar dos dias - ou das madrugadas -, já
não havia necessidade de uma revisão quanto à fidelidade dos fatos sonhados
com o que encontrava escrito no micro. Tudo isso, começou a causar-me
problemas seríssimos e relevantes quanto ao relacionamento com minha esposa e
filha e, mesmo com as pessoas pelas ruas ou, em algum departamento público.
Mesmo porque, às vezes, sem que eu percebesse, estava a discutir com o meu avô
e, quando dava por mim, as pessoas pareciam atônitas, abismadas a
perscrutarem-me com seus olhares inquiridores de lunáticos. Não poderiam
entender. Eu não conseguia compreender o que se passava, portanto, não poderia
esperar que eles compreendessem ou viessem a entender.
(Fico observando o quadro e já não me importo com as flores e as velas. O
morto talvez, este sim causa-me um certo repúdio. Mesmo que aquele corpo lá,
um dia, tenha me pertencido e doravante, seu destino seja o mesmo reservado
para todos nós, simples mortais enquanto encarnados. Ora, que se dane! Ninguém
aparece para velar o morto. Nem mesmo os velhos fantasmas que eu tanto
esperava encontrar tão logo deixasse esta existência e o corpo físico. Nem
mesmo meu avô com quem tudo aprendi sobre reencarnação!).
Há alguns anos atrás, eu passara por graves problemas espirituais,
avaliados como caso para psiquiatria. Os pesadelos, a insônia, as visões,
ouvia e sentia a presença dos mortos com o pavor do garotinho que buscava no
colo do avô, a segurança para seus pesadelos e medos daqueles estranhos seres
que assombravam a casa em que morávamos então. Da mesma forma que me
acostumara com os mortos que caminhavam pela casa; sobre o telhado; batiam nas
paredes ou apareciam onde menos eu esperava, acostumei "após a idade madura",
a dividir meu espaço com eles, a tratá-los como meus iguais e, as coisas
melhoraram, de forma que, se não nos entendíamos plenamente, dava para que nos
suportássemos de um jeito ou de outro.
Nos últimos três ou quatro anos, não posso afirmar com precisão, senti
que algo rompia-se aqui dentro, em meu cérebro, quase me levando às raias da
insanidade. Sem que eu percebesse, caía em depressão; sentia-me estressado;
com a patética síndrome do medo; a paranóia tão comentada nos últimos tempos;
o pânico das ruas; das pessoas. Pegava-me com tremores nas mãos; perdendo a
coordenação motora; a mente embotada; a insegurança; o medo de tudo -
agorafobia? - o que me causava crises horríveis; suores e calafrios. A
hipersensibilidade auditiva e até mesmo o olfato se me haviam sido alterados
então. Acontecera de repente, em uma tarde de julho ou agosto, quando eu me
sentara ao meio-fio para chorar de forma copiosa sem saber o que fazer da vida
e o que vinha ocorrendo comigo e à minha volta. Sentia-me excluído do processo
social; marginalizado pelos próprios companheiros; encarcerado numa espécie de
trama maquiavélica que armavam para acabar de vez com todos os meus sonhos e
esperanças. A minha vida havia sido transformado em um verdadeiro caos.
Nascia então, a idéia do diário com datas e nuanças, o que eu sempre
considerara como coisa de adolescente. Deixei de lado e passei a escrever
alguns contos de forma aleatória, pensando em como escrever "O Diário de Uma
Besta". Não o animal, mas o bobo da corte. O "Bestiário", as aberrações, o
surrealismo, o realismo fantástico, qualquer coisa parecida ou que se
acercasse disso. Saiu-me um livro impressionante: "A Cidade Morta das
Varejeiras". Talvez o melhor livro que eu já havia escrito. De forma que este
"O Diário de Uma Besta", acabou sendo relegado a segundo plano, embora não
descartasse a idéia de escrevê-lo. Sobretudo nos últimos meses em que, por
mais que eu tente evitá-lo, os meus fantasmas me impedem de fazê-lo com meus
sonhos, aparições, sugestões e outras tentativas - que acabam funcionando -,
em chamar a minha atenção.
(De repente sinto que algo tenta empurrar-me em direção ao caixão.
Concentro minhas parcas energias em evitar que tal fato ocorra. O medo começa
a dominar minha capacidade de raciocínio e autodomínio. Sei que o corpo dentro
do ataúde não é outro senão o meu próprio corpo e a última coisa que desejo
neste momento é ver o que restou do que um dia eu fora. Não vou. Ainda não me
sinto preparado para a fatalidade. Começo a sentir o pânico tomando conta de
todo o meu ser).
Quando passei a ver os urubus carregando os bois macérrimos pelo céu em
busca das nuvens; crianças criando asas e sobrevoando por sobre os telhados
das casas; legiões de mortos em procissão pelas ruas nas madrugadas; vermes
brotando das paredes; uma enorme varejeira copulando com seres humanos e a
reunião do prefeito (encarnado) com os desencarnados, na praça matriz, em
muitas madrugadas, então deixei com que as coisas fruíssem de forma natural,
como se tudo fosse algo que realmente fizesse parte deste quadro bizarro que
meus olhos fitam no escuro de minha mente embotada e entregue às ruminações
das parvoíces dos seres humanos desta cidadezinha de merda.
A maioria dos fatos são reais, diga-se de passagem. O teor de muitas
recordações daria para colocar qualquer semovente preocupado com as
conseqüências em deixar acontecer à sorrelfa, tantos embaraços e
entrelaçamentos sem procurar um modo - ainda que através da medicina -, de
evitar possíveis danos mentais. Contudo, agrilhoado, observo alguns algozes -
atrozes; outros bons e luminescentes desencarnados que acompanham meus passos
ou descansam ao meu lado na modorra das madrugadas abafadas deste verão
incandescente.
(Quando a mulher suicidou-se dentro da banheira do casarão eu ainda não
morava nesta cidade. Foi por isso que em muitas noites eu podia ouvi-la ou
visualizar seu espectro sombrio, quase macabro, em agonia pelos cômodos do
casario da praça onde morei por alguns anos. Da mesma forma que, em criança,
vinham sentar-se ao pé da cama, sussurrando coisas que me atormentavam e me
apavoravam de tal forma que, jamais pude esquecê-los. Deste fadário de
excentricidades - não direi anomalias -, é que refaço; colo cacos; vou
cerzindo estas linhas ancestrais e que me põem as paredes da alma a criar
musgos, ranhuras, poeira e bolor).
Esta madrugada, após conturbadas horas de sono, despertei disposto a
colocar termo nesta narrativa. Mesmo porque, sinto que ela possa trazer
engendrada em seu âmago, muito pouco de literatura. Há em sua constituição,
algo que desaprovo em se tratando de classificá-la como um conto ou algo no
gênero literário. Não obstante tais considerações, o desejo de terminar o
livro, é o que me impulsiona. Além disso, sinto que venho perdendo o controle
sobre "O Diário", com sua forma excêntrica e desigual. Outros contos são
fragmentos do cotidiano que, uma vez retocados, podem buscar salvação na
literatura. Entretanto, em nada me agradam esses estilhaços mal delineados e
inconjuntos do diário. Por mais que eu tente dar sentido ou melhorá-los
emprestando-lhes forma conjunta, literariamente passível de alguma espécie de
classificação, não consigo sequer conceber tais escritas como sendo de minha
autoria. Isso também me põe deveras intrigado e, amiúde, estudo-lhes as
formas, o conteúdo e busco razões para levar a termo e mantê-lo em meio aos
contos como parte do conjunto da obra. Nada consegue convencer-me. Tenho me
sentido um mero objeto em mãos hábeis que, brincam em fazer aparecer e
desaparecer moedas e bolas das mangas de um paletó velho, surrado e puído.
Começo a ficar enfarado e aborrecido com o que venho escrevendo. Sinto ímpetos
de selecionar todo o texto e "deletá-lo", varrendo-o da memória e da tela. Não
sei também, mas o considero o pior de todos. O menos aceitável, não chegando
sequer a ser razoável como a maioria dos outros contos que também não
considero grande coisa. Contudo, permaneço como que atado frente ao inusitado.
Como a esperar o desfecho de toda essa acrobacia mental que os dedos digitam
nervosos e impacientes tanto quanto minha própria mente consciente.
(Por incrível que possa parecer, embora de forma inusitada, de repente,
sinto-me compelido a observar o repugnante e assustador ataúde que se mantêm
passivamente à espera. Permaneço aterrado ante a possibilidade daquilo com que
terei que me confrontar se deixar que esse impulso me leve a dar os primeiros
passos em direção aos arranjos mortuários. O enorme salão impregnado pelo olor
de flores e velas, acaba me deixando ainda mais apreensivo e melancólico.
Sinto que sou compelido a ceder a essa tentação maluca de seguir em frente -
passo-à-passo -, até tocar a madeira e olhar as faces; os olhos semicerrados;
os lábios e a tez amarelada e sem vida que ali jaz..).
Quando fui internado pela primeira vez, somente tomei ciência de que me
encontrava em uma casa de cuidados destinada à doentes mentais, duas semanas
após a crise pela qual fui acometido tornando-me violento e auto-destrutivo,
conforme comentavam-se então. Não eram os fantasmas o que me levavam à
loucura, mas sim, os vivos. Os calhordas e biltres com os quais eu vinha
convivendo diariamente em meu trabalho jornalístico. Contudo, me fora
impossível explicar aos médicos e à sociedade. Muito menos convencê-los de que
meus sonhos, muito provavelmente, fossem minha única salvação. O único
antídoto contra a loucura real.
Somente senti que havia algo de terrivelmente grave em toda aquela
desfaçatez ao perceber que, vinham me dopando de forma violenta e metódica,
como se procurassem me roubar as réstias de lucidez que teimavam em vicejar
entre a realidade e o fantástico mundo no qual não conseguiam penetrar com
suas terapias e investidas atrozes. Sentia-me uma verdadeira cobaia e, em
dados momentos, zombava não somente deles, mas de minha própria sorte ou falta
desta. Mesmo porque, eu sempre tivera em mente escrever um projeto para cinema
intitulado "O Poeta Na Porta do Hospício". Eu que sempre mantivera-me
estritamente ligado à loucura através da imaginação um tanto conturbada, à
cada ano sentia que esses laços estreitavam-se cada vez mais e, absurdamente
me encontrava a perambular em meio a quadros mal delineados de dois mundos que
se entrelaçavam e se rompiam a todo momento, o que, seguramente, metia-me um
pavor a corroer-me as entranhas da alma. A loucura que tanto me fascinara,
vivia a aterrar-me de forma sagaz e metódica. Por isso arquitetei minha fuga.
Por isso, recusava-me a aceitar as visitas de consolo, piedade e compaixão que
não me devolveriam o que eu poderia ter perdido ou estava por perder.
Na realidade, não sei determinar ao certo há quanto era cativo e o que
planejavam quanto a minha "interessante maluquice". Minha insanidade que eu
jamais considerara senão, uma forma de defesa contra a insanidade deles.
Afinal, vivemos circundados por "malucos de pedra" (e este não é um termo que
se faça uso porque é incorreto), o tempo todo e em todos os lugares. É o que
se costumam dizer por aí. E eu, simplesmente concordo com essa quase teoria.
Somos todos malucos em derradeira instância. E, em muitas e nas mais variadas
situações, tal diagnóstico poupou a vida de muita gente ou tirou, o que dá no
mesmo.
Esta noite tive outro sonho, apesar da alta dosagem de drogas as mais
variadas e de cunho e sais específicos da psiquiatria. À bem da verdade, em
momento algum trataram-me com seus antiquados métodos deploráveis que acabam
levando o paciente a uma espécie de vida vegetal. Não obstante, acredito que
tenham exagerado todo o tempo nas doses e nos sais medicados. São fortes o
suficiente para levarem à lona o mais feroz dos animais irracionais. O sonho
veio, como sempre: me acorrentando e me tragando para as profundezas de seus
abissais segredos e horrores.
(Enquanto volvia à velha casa de fazenda, sempre pelo mesmo caminho - já
me referi a tal fato -, sentia que aos poucos ia perdendo algo de meu ser de
forma lenta e inevitável. Eu sempre tive medo de perder tudo o que amei na
vida. Por isso, o que parecia que eu sempre estivera a perder, era justamente
o que eu mais amava. Minha companheira, minha filha, meus irmãos, pais,
amigos... Jesus!, mesmo em sonhos, uma presa medíocre e amedrontada! Acabei
perdendo a direção, o rumo. Caminhei a esmo o tempo todo, talvez em sentido
contrário ao que deveria. No entanto, sabia que, naturalmente, havia deixado o
hospício para trás. Eu simplesmente caminhara o tempo todo para distante
daquela casa de malucos e, quando dei por mim, estava aqui, à porta do salão,
envolto pelo quadro dos portais de duas folhas da entrada, observando aquele
ataúde e esperando os serviços de exéquias. Por isso também, observo
demoradamente o rosto envolto pela dor e perdão do Cristo. Enquanto meus pés
deslizam pelo salão. Finalmente transponho a barreira do medo. Não há nada à
perder. Às vezes, não temos mais nada que perder e somente nos resta o último
e desesperado ato. A meio trajeto volto a pensar nas circunstâncias. Tudo não
passa de um pesadelo. Sobremaneira, no entanto, sinto a realidade com todo o
seu fascínio aterrador. Acerco-me finalmente do caixão. Conquanto não consiga
fitar o que há dentro dele, penso em meu corpo estirado. Mórbido. Horripilante
e doentio!)..
Quando finalmente crio coragem e volvo meu olhar moroso em direção ao
interior daquela derradeira morada, sobressaltado constato que não há nada ali
dentro. Ninguém. Nenhum corpo. Atônito e aliviado ergo o olhar ao Cristo que
me fita com sua imensurável complacência. Ele me sorri e, lentamente, sinto
que todo seu corpo começa a criar vida. Suas mãos feridas soltam os cravos que
o mantinham preso. Não quebraram-lhe os joelhos e os pés que se apoiavam na
cravelha do madeiro, assentam-se com graça e naturalidade, sem ferimento
algum. As lágrimas são quentes, posso senti-las brotando e correndo-me pelas
faces. Ele desce da cruz e caminha para a saída com sua cintura cingida pelo
manto branco que lhe cobre as partes pudendas. Meu Cristo! Sinto ímpeto de
seguí-lo e adorá-lo. Perco o medo da perda de repente. Sei que já não há mais
necessidade daquele medo constante de perder tudo o que mais amo na vida
porque acabo de ganhar, de encontrar. Sorrio.
Observo o caixão vazio e sei porque ele ainda continua vazio. A cruz de
madeira rústica vazia à cabeceira. Sei porque o caixão está vazio. Digo:
- É somente porque continuo aqui, de pé, ao lado dele. Somente por isso.
Pensei que encontraria meu corpo dentro dele, mas ele está vazio. Nada
mais que isso. E eu tenho a convicção de que continuará vazio enquanto eu
mantiver o que me resta fora dele. Enquanto eu estiver aqui fora, ao seu lado,
mirando-o, ele continuará vazio. É somente um ataúde vazio, nada mais! E eu
continuo aqui, parado, ao seu lado, esperando. Sei disso porque, passamos a
vida eternamente esperando, esperando, esperando. É tudo o que me resta:
esperar......




WALL & DELBUT
"Para Teotonio Simões, porque sonhar, às vezes, é necessário"

Tropeço em que o avesso da manhã estiolando a paciência, enfarava Wall.
Mesmo porque, para ele, tudo não passara de mera persistência do destino. De
qualquer forma, era madrugada lá fora. Macambúzio, Wall deixava-se recostado
junto a porta da cabana a mirar as estrelas. Em sua mente embotada, havia tão
somente espaço para a noite e os astros; o silêncio quase abissal entrecortado
vez ou outra pelo ciciar do vento carregando as folhas e farfalhando na relva
dos canteiros. Não conseguia compreender porque havia tornado-se tão distante
dos seres e, consequentemente incompreendido.
"Excesso de informação", dissera-lhe certa feita, Delbut, velho
companheiro das madrugadas.
"Excesso? - questionara abismado para responder em seguida -, jamais
houve excesso em desejar saber e acumular conhecimentos, meu caro parceiro.
Eis a realidade".
"Ou o que para você possa parecer realidade e, no entanto, para o resto
do mundo à sua volta, não passar de pura maluquice", retrucara Delbut,
acendendo o toco de cigarro que retirara de um dos bolsos do velho, surrado e
puído paletó.
"Talvez seja. É possível que sim, contudo, o que posso fazer quanto a
isso?". - Indagara Wall, sorrindo complacente.
O pequeno Delbut aspirou a fumaça pensativo, meditabundo. Sabia de
antemão que não encontraria resposta para aquela pergunta. Não uma resposta
que satisfizesse o companheiro. Conhecia-o de forma suficientemente a fundo
para chegar a conclusão que, por mais que tentasse, não encontraria argumentos
para convencê-lo de que eram pessoas diferentes das outras. Talvez de todo o
resto da humanidade. Não sabia ao certo.
"Bem, bem, não sabe o que eu poderia fazer, não é mesmo, Delbut?".
"Não. Sinceramente, não sei, Wall. E ainda que eu supusesse sabê-lo, não
faria a mínima diferença, não é mesmo?".
"Sofismas! Falácia!... Deixemos tudo isso de lado, Delbut. Afinal, não há
importância real em encontrarmos respostas para certas perguntas, concorda?"
"Plenamente" -, respondera na ocasião, Delbut com ar de enfado.
Sentia-se incomodado com a lembrança que o fustigava. "Delbut, o pequeno
grande sábio", como costumava tratá-lo na maioria das vezes, havia deixado
esta existência há alguns anos atrás e legara-lhe somente boas, excelentes
recordações. Amara-o qual um irmão, ainda que jamais necessitasse confessar
tal sentimento. E não o faria, seguramente. Wall sempre fora bastante
desajeitado para com seus próprios sentimentos da mesma forma que o era com o
seu corpo. Todo ele, descomunal, mal-arranjado, desconjuntado e
desproporcional se comparado com as pessoas de estatura comum. Wall chegava a
ser quase um gigante perto do companheiro. Não que Delbut fosse realmente
"pequeno", mas sim, porque Wall havia ultrapassado um pouco os limites em sua
fase de crescimento. Juntamente com o seu tamanho desproporcional,
desenvolvera a genialidade e a bondade. Dentro do peito ancho, o coração não
menos largo e espaçoso abarcara o sentimento da raça humana e todo o universo
caberia dentro dele, em seu coração de menino disfarçado de gigante com seus
dois metros e um centímetro de altura.
Conhecera Delbut durante o percurso entre a França e a Espanha. Dali,
rumaram para a Itália, sempre caminhando lado a lado, a palrar sobre
filosofia, poesia, música, teologia, entre outros assuntos. Se por acaso
sentiam-se enfarados com o rumo das conversações, quedavam-se emudecidos por
longo período, ruminando cada qual suas próprias idéias sem que um
interferisse no silêncio do outro. Respeitavam-se de forma mútua e camarada.
Da Europa, partiram para a o Continente Asiático, não sem antes
prometerem que, volveriam ao Ocidente e então chegariam a América do Sul,
passando antes pela América Central. E desta forma, levariam à termo seus
propósitos, apesar dos contratempos e a saúde debilitada de Delbut. Não que
Wall permanecesse o tempo todo isento das moléstias e outros males que
fustigavam as demais pessoas expostas a vidas tão irregulares e desregradas.
Não possuía nenhuma grande reserva de energias ou saúde além da que herdara
dos pais e desenvolvera ao longo dos anos com suas caminhadas e abstinência de
quaisquer tipos de vícios, exceto do tabaco. Contudo, jamais ousara desprender
grandes esforços físicos além das longas e infindas jornadas. Sobretudo em se
tratando de trabalhos. Jamais trabalhava. A menos que fosse veementemente
necessário realizar uma ou outra tarefa leve com o intuito de ganhar o
suficiente para alimentar-se ou comprar algum livro ou um vidro de aspirinas.
Durante sua estada na Índia, Wall, sempre acompanhado pelo amigo Delbut,
caminhara vários dias atrás de um grupo de hindus que perambulava sem destino
de um canto para outro, como se tivessem - eles, os hindus -, por objetivo ou
meta, ficar girando em volta de si próprios, em círculos, buscando o elo para
colocarem termo àquilo que denominavam ciclo. Porque consideravam os círculos,
algo vicioso e que faziam parte do ciclo da existência. Uma vez encontrado o
elo e rompido de vez, sairiam fora do círculo vicioso e teriam cumprido sua
missão, já que não haveria mais o ciclo. Algo mais ou menos assim, segundo
entendera Delbut e, por dias seguidos, debatera com Wall a teoria dos círculos
e ciclo da existência.
Se Wall poderia ser considerado um erudito, Delbut "o Pequeno", não
deveria ser menosprezado ou comparado com a maioria dos homens que não costuma
raciocinar ou ainda, que raciocinando, não consegue chegar a lugar algum senão
ao ponto de partida. Delbut, na realidade, à seu modo, tornara-se um
verdadeiro sábio ao longo dos anos e peregrinações. O que mais o encantara
fora a cultura tibetana, embora desaprovasse de forma irritada a adoção de
castas o que, para ele, tornava os seres desiguais. Alguns mais poderosos que
outros e, portanto, propensos a cometerem injustiças contra seus iguais. Na
Índia também deixara-se irritar com a miséria de famílias numerosas que,
morriam a míngua mas não abatiam uma vaca para saciarem a fome. Achava tudo
aquilo um absurdo. Apesar que, tinha como princípio, o respeito pelos costumes
e religiões de outros povos. Delbut era descendente de índios da América
Central e Wall, que não sabia explicar o porque de seu nome, era descendente
de franceses. Embora, afirmasse possuir nas veias o sangue dos espanhóis. Na
realidade, acabava sempre caindo em contradições quanto à sua descendência e
chegara a afirmar, certa ocasião, que tivera parentes mouros e conquistadores,
provenientes de um continente desconhecido e que continuava inexplorado por
outras raças e resguardado das civilizações corrompidas dos tempos modernos.
Se Wall inventava e reinventava com o mais desinteressado desplante,
Delbut mantinha-se fiel às suas origens e primeiras afirmativas. Jamais
voltava atrás em questões tais como descendência, crença, filosofia,
princípios e, tinha na sinceridade e honestidade, valores insofismáveis e
inerentes ao ser humano. De forma que, um parecia parte do outro e de tal que,
pareciam complementar-se como parte de um quebra-cabeças que fosse encaixado e
uma vez tendo sido realizado, não se deveria mexer em tais peças para que não
fosse destruído todo um trabalho árduo e secular. Por longos anos, os dois
peregrinaram por searas e conheceram os homens e seus costumes através dos
mais diversos, longínquos e estranhos rincões e paragens.
Ao longo de tantos anos e estradas, acabaram consolidando uma amizade
imortal e imaculada. Proveniente do respeito, da sinceridade, da honestidade,
do carinho e das mais fatigantes provações. Jamais um deixou que o outro
tivesse que enfrentar qualquer adversidade sozinho. Foram companheiros e
serviram-se; apoiaram-se e defenderam-se todo o tempo frente a tudo e a todos.
Dessa forma, cresceram espiritual, moral e intelectualmente, acumulando
conhecimentos, somando às suas bagagens, os aprendizados mais profundos e
valorosos que os seres podem adquirir durante suas passagens pelo planeta.
Mais do que companheiros, acabaram transformando-se em cúmplices porque o
sucesso de um, passara a depender do outro. Se um conseguisse crescer
interiormente, não o faria de forma egoísta ou solitária. Dividiam nas
conversações, contendas e buscas de respostas e compreensão, os frutos do
crescimento como almas imortais e ligadas de forma tão profunda que, às vezes,
chegavam a confundir-se. Seus pés tornaram-se bolhas de água e, da carne viva,
as mesmas feridas doíam e importunavam a ambos. Da mesma forma que a fome, o
frio, o sol escaldante, fustigavam aqueles dois parceiros inseparáveis em suas
buscas inexplicáveis e jamais reveladas. Mesmo porque, nem Delbut, nem Wall
saberia responder o que buscavam em suas peregrinações ou porque o faziam.
Contudo, faziam e buscavam. Como se algo, da mesma forma que os ligava
tornando-os inseparáveis, os empurrasse sempre adiante. De forma incessante e
determinada. A amizade, talvez fosse um dos maiores sustentáculos de toda a
aventura dos peregrinos Delbut e Wall.
O pequeno Delbut, ao longo do percurso pela América do Sul, como qualquer
ser humano que, com o passar dos anos, desgasta-se e passa a emitir sinais de
uma fadiga incontrolável, à exemplo de quando estivera em N.Y., quedara-se
enfermo e, por longos meses, tiveram que interromper a jornada, mantendo-se em
um país frio, junto à Cordilheiras famosas e largamente conhecidas em todo o
Continente. Viviam entre pastores e descendentes de índios. Mascavam folhas
alucinógenas e palravam acerca da natureza de suas existências e o que haviam
realizado afinal, durante todos aqueles anos que começavam a parecerem-lhes
séculos, milênios ou algo intemporal.
Enquanto Delbut parecia seguir por algum caminho desconhecido e mantido
em segredo, Wall, lentamente adquirira os hábitos do lugarejo e seu povoado.
Eram bons seres. Muito calmos e pacatos; simpáticos e místicos. Aprendera com
eles, o idioma latino. Conhecera a história de seus ancestrais. Lera seus
grandes poetas e prosadores. Apreciara prazeroso as canções harmoniosas e de
cunho melancólico, com seus versos que continham na cerne, o sofrimento, as
lutas e guerrilhas; regimes militares e cruéis que espalhavam e fomentavam a
miséria, o sofrimento e a injustiça. Ao mesmo tempo, esse mesmo regime, nutria
esperanças de liberdade e igualdade. Mesmo porque, sua gente vivia de forma
fraternal. Pelo menos aqueles poucos descendentes de uma cultura secular que
havia conhecido nas montanhas e ermos mais afastados das cidades de grandes
portes.
Seu companheiro Delbut, contraíra várias moléstias ao mesmo tempo e,
perdera de forma definitiva, o interesse pela cultura do povo ou de toda a
existência, à medida em que sentia, tornar-se cada vez mais impossível
readquirir suas energias e saúde. Entregue ao leito em uma choça, passava o
tempo a mascar as folhas, a ter visões e acirradas conversações com os
espíritos ancestrais daquelas paragens e de outros rincões desconhecidos. Wall
apenas o ouvia sem jamais interferir em suas "pelejanças" e contendas com seus
fantasmas. Mesmo quando este encontrava-se em estado de êxtase, mergulhado no
torpor alucinógeno das drogas que vinha consumindo cada vez em maior
quantidade porque serviam-lhe de sedativo e apascentavam-lhe as dores e os
humores alterados, Wall permanecia à beira de seu catre a observar e ouvir
suas divagações. Delbut mergulhava em mundos fantásticos e tão contraditórios
dada a natureza com que costumava descrevê-los - algumas vezes, tão
primitivos, para de imediato, torná-los tão futuristas e avançados para o
tempo em que viviam que, aquela barafunda acabava tornando-se uma espécie de
romance épico; algo novelesco com diversos fundamentos. Talvez tudo não
passasse da miscelânea fornecida por seus conhecimentos adquiridos durante
suas peregrinações. Por vezes, Wall chegava a pensar em ficção científica.
Seres extraterrestres, deuses mitológicos e espíritos errantes do mundo das
sombras.
Por longo tempo, ambos viveram ali daquela forma. Para Delbut, eram seus
últimos meses de vida. Já para Wall, a doença e a degeneração de seu amigo,
passaram a pesar-lhes sobre os ombros e o coração sem medidas. De forma que,
pressentindo a gravidade da situação, Wall acabara tornando-se um tanto
casmurro e ensimesmado. Já havia discutido com alguns nativos que forneciam as
folhas ao amigo e pareciam apreciar em Delbut, os efeitos que desencadeavam em
alucinações e histórias fantásticas, embora tivessem consciência do que
realmente estava ocorrendo. Uma espécie de Xamã de tribo distante dali, viera
visitar Delbut e permanecera por longos e friorentos dias ao lado do catre do
"Pequeno Espírito Morada". Era assim chamado pelo velho e caquético índio que
gozava de prestígio e respeito entre os moradores da região por ser uma
espécie de guru e feiticeiro poderoso.
Observando o velho índio de soslaio, Wall acompanhava seus rituais
estranhos junto ao amigo que parecia corresponder às expectativas das
pesquisas e buscas do Xamã que jamais demonstrava cansaço nas suas madrugadas
e dias de vigília. Wall queria que todos deixassem seu companheiro em paz e,
parassem de fornecer-lhes as folhas alucinógenas que, se pareciam reanimar e
aliviar as dores de Delbut, aos poucos, roubavam-lhe cada vez mais a sanidade
e a capacidade de raciocínio. Por isso, andou botando para correr vários
fornecedores ávidos e interessados no pequeno homem que, Delbut ficara sabendo
tempos depois, "possuía o conhecimento de muitas encarnações e fizera-se
morada de incontáveis espíritos de variadas naturezas".
"Hijos de una putana!" -, vociferara certa feita o enfurecido e
desconjuntado Wall, prestes a arrebentar alguns ossos daqueles pequenos
homenzinhos de tez morena que possuíam no olhar, uma melancolia abissal e
comovedora. Apesar das constantes ameaças, os índios não deram-lhe a mínima
importância e uma nativa de cabelos negros feito as noites sem luar,
achegara-se a ele e tomando-lhe as enormes mãos vermelhas, passara a beijá-las
e acariciá-las com uma ternura de esposa dedicada. Chamava-se Inara e possuía
a beleza de uma jovenzinha à flor de seus dezessete anos, enquanto ele, Wall,
lembrava-se estar desembocando no vale do meio século de sua estranha
existência de humano.
Aquele gesto inesperado e carinhoso tocara-lhe de forma tão profunda o
coração que o gigante Wall, passara a sentir as entranhas sendo queimadas e
consumidas pelas chamas abrasivas da paixão por uma fêmea. Sentimento até
então, desconhecido por ele. Tomou-a nos braços e carregou-a para um lugar
afastado e sem saber ao certo como proceder, acabara magoando-a com seu pênis
desproporcional para o órgão virginal e imaculado da menina que o adoraria
pelo resto de sua existência sobre a face da terra.
Enquanto Delbut labutava contra o estranho mal que o consumia, mesmo
sabendo-se perdido, Wall passava seu tempo aprendendo a lidar com a terra,
plantando e colhendo. Pastoreava as ovelhas tosquiando-as ao lado de Inara que
vivia a sorrir-lhe como se possuísse, todo o tempo no olhar, o viço da eterna
juventude e o brilho imaculado das estrelas que sarapintavam o céu com seus
fulgores. Seu ventre crescia e Wall acabara descobrindo que havia plantado sua
semente. À princípio permanecera chocado e incrédulo por alguns dias de
estranha angustia. Após consultar uma velha índia, à custo, conseguira
entender o significado do que se passava. Por fim, convicto de que, em alguns
meses, assistiria a vinda ao mundo, o seu rebento, seu coração de gigante
tornara-se feito um lago de águas profundas e serenas dentro do peito ancho.
Certa manhã, Delbut dissera adeus à esta vida abarrotada de tribulações e
partira para outros prados que, segundo o Xamã, ele - Delbut -, havia descrito
como uma miragem de excelentes fluídos, com muito verde e fartura em todos os
sentidos. Embora - dissera ainda -, lá não houvesse necessidade dos seres
buscarem junto à natureza os alimentos, uma vez que não sentiam desejos,
prazeres ou sofrimentos. Eram seres etéreos e nutriam-se do Princípio
Universal do Todo. Uma espécie de fluído que, aspiravam como quem necessita do
ar para viver na face do planeta Terra. O velho índio conduziu a excêntrica
cerimônia de suas exéquias e seu corpo foi cremado em enorme fogueira e suas
cinzas espalhadas pelos ventos que uivavam pelos montes andinos.
Então Wall, naquela noite, deixara-se recostado junto à sua cabana a
mirar as estrelas e a pensar em duas coisas ao mesmo tempo: na morte de
Delbut, seu companheiro de jornada e no nascimento de Delbut II, seu pequeno
filho que o Xamã e os habitantes do lugarejo diziam ser a volta do espírito
que mal havia deixado o corpo físico um dia antes do nascimento do pequeno
fruto do ventre de Inara. Portanto, na realidade, havia-se realizado tão
somente uma espécie de transição: Delbut deixara o instrumento já fatigado,
esgotado e sem o sopro da vida para renascer em um corpo recém formado,
abarrotado de vigor e energia, concebido pelo amor entre Inara e seu melhor
amigo, com o intuito de completar o velho ciclo das encarnações.
Mirava as estrelas e compreendia. Ou assim chegara a conclusão, uma vez
que, tão logo seu filho nascera e ele, Wall, o chamara aos prantos pelo nome,
o bebê parecera-lhe entrar numa espécie de transe e observá-lo como que a
penetrar-lhe os recônditos da alma e despertando aquela estranha sensação de
que há muito, muito tempo, ambos se conheciam. Por isso Wall mirava as
estrelas e dizia à si próprio, somos inseparáveis. Sempre fomos e seremos. E
permaneceu ali recostado a meditar e a sentir a presença do velho companheiro
até que a última das estrelas fosse recolhida do manto do céu e seu filho
começasse a chorar lá dentro, deitado e aquecido junto ao corpo da mãe. Os
primeiros galos cantaram forte criando uma sinfonia que estendia-se pelos
vales e montanhas andinos. Wall sorriu para o primeiro raio de sol e
sussurrando o nome "Delbut II", adentrou sua choça de forma desengonçada com
seu corpanzil que chegara a meio século de existência com a serenidade e a paz
de quem conhecia os dois lados da existência pela qual, todos nós nos
esforçamos por passar com serenidade e sabedoria para que ela não nos seja vã.




OS SÓCIOS SÃO RATOS

Era um homem alto e forte. Suas faces desenhadas de forma acentuada
ressaltavam dois enormes olhos melancólicos feito aposentos à luz de velas.
Além disso, os lábios eram grossos, carnudos, carregando um eterno sorriso um
tanto quanto enigmático. Às vezes, patético. Cabelos aparados com um corte
estranhamente desleixado, deixando cair sobre as vastas sobrancelhas, pequenas
mechas desiguais com aquela cor mal definida. Eram como se, por nascença,
fossem castanhos e mais recentemente, aos 28 anos, começassem a cair e
embranquecer.
Suas mãos eram enormes, fortes, portentosas feito duas tenazes.
Seguramente seria capaz de, sem desprender o mínimo esforço, esmagar a cabeça
de um homem. Da mesma forma, tudo o mais em seu corpo medindo algo mais que
dois metros, era visivelmente quase que anômalo.
Somente algo parecia destoar do resto do conjunto e não fazer parte
daquela enorme montanha de músculos mal distribuída. Contrastava com o
corpanzil saudável, a pobreza mental aparente à primeira vista. A incapacidade
em articular palavras e o raciocínio infantilizado de uma criança sem idade
definida, comprovavam tal teoria. Nunca sabia-se ao certo qual seria o seu
comportamento frente ao mais simplório e corriqueiro problema que viesse a
desafiar-lhe a capacidade de raciocínio.
De forma que, quando viera ao mundo, fora imediatamente adotado por um
casal sem filhos. Primeiro porque, sequer a mãe sabia "quem havia sido o
bastardo do pai de seu filho não menos bastardo". E, segundo, ao dar à luz
aquela criança descomunal e forte, fragilizada e bastante adoentada em
decorrência dos excessos cometidos em sua vida desregrada e mundana, viera a
perecer, descansando e livrando-se de tantas tribulações que a acompanharam
desde a adolescência tornando-a tão frágil quanto uma garotinha de quinze
anos, embora não somasse mais que vinte quando da realização do parto. O casal
que se propusera a adotar o pequeno e desconjuntado gigante de fraldas não era
nada novo e contava com seus razoáveis 50 anos, mais ou menos.
Por longo período, o casal havia realizado tudo o que fora possível e por
fim, desistira quando descobrira que o menino tinha algumas "pequenas
deficiências", conforme vinham atestando os médicos consultados regularmente.
Pequenas deficiências que o impediam de assimilar as aulas ministradas desde o
grupo escolar. Contudo, tais deficiências, não o invalidavam para o trabalho.
A mãe adotiva, Srª Margareth, mimara-o aos extremos, tratando o filho como se
fora o eterno bebezinho indefeso e problemático. O pai, Sr. Herbert, fora
aposentado pela Cia de Carvão Costa & Costa Ltda com problemas pulmonares.
Tinha seus dias contados e não os perderia com algo mais que não fosse o
merecido repouso.
A indenização do aposentado rendera-lhe uma pequena e humilde casa de
madeiramento bom e um terreno que constituía um quintal espaçoso o suficiente
para que "Coyote", futuramente viesse a instalar ali, o seu futuro negócio. O
velho falecera pouco tempo depois e nunca soubera que o filho adotivo, possuía
inteligência e perícia descomunal para consertos de automóveis em geral.
Todavia, "Coyote", conseguira um sócio e ambos convenceram "a velha mãe" a
financiar a construção do barracão nos fundos do quintal, bem como a compra de
ferramentas e licença da firma para poderem dar início aos negócios.
Seu sócio, Peter, era conhecido por onde andara pela alcunha de "Ratão" e
possuía uma extensa e considerável lista de infrações contra a lei. Contudo,
jamais conseguiram apanhá-lo com "a mão na massa". O que "Coyote" possuía a
mais em tamanho, faltava em "Ratão" que, era miúdo, esperto e senhor da
retórica. Seria capaz de convencer um freguês a gastar o dobro do que pagaria
por uma peça da melhor marca, por uma de qualidade inferior, somente para
mantê-lo à vista, com pequenos e lucrativos reparos.
Estava, desta forma, constituída a sociedade: "MECÂNICA E FUNILARIA ON
THE ROAD", de propriedade de Luck, Peter e Margareth. E a primeira medida que
Peter tomou, fora para que, Margareth, realizasse seu seguro de vida e
assinasse vários documentos, incluindo cláusulas, parágrafos e incisos
obscuros quanto ao testamento. Esperteza não lhe faltava: se Peter possuía o
aspecto de quem viveria um século, a velha sócia, seguramente não passaria de
dois ou três anos. De forma que os dois dividiriam tudo: inclusive a casa da
frente.
- E seremos felizes para sempre com nossa casinha onde morar; nossa
oficina para faturarmos o necessário e termos uma vida generosa para com nosso
futuro de pobres sofredores neste mundo ingrato. - O discurso do pequeno Peter
quase levou o gigante Luck às lágrimas. Contudo, acrescentou:
- Com a mãe, né? - Sua expressão parecia carregada de apreensão naquele
momento.
- Evidente que sim, sócio. Não deixaríamos a boa "mama" de fora em
hipótese alguma.
- Tão tá. Assim, todos assinamos. - Respondeu Coyote com um sorriso
basbaque nos lábios.
Percebia-se a sua ingenuidade ao rabiscar o nome nos documentos da mesma
forma que a mãe. Ambos mal sabiam assinar o próprio nome e, menos ainda, ler.
E o sujeitinho do Cartório local, levou "unzinho por fora". Naquela noite,
inauguraram o evento com várias latas de cerveja e embriagaram-se e
abraçaram-se diante da mãe tartamuda e desconfiada que sorria quando a pegavam
no colo e a beijavam com seus lábios de hálito quente e recendendo a álcool. A
pobre senhora temia pela sorte do filho e, algo lhe sussurrava à consciência
alerta que aquele "merdinha falador" seria capaz de vender a própria mãe pelo
dinheiro. No entanto, pediu a Deus para que jamais abandonasse sua "ovelhinha
indefesa", caso ela, mãe, viesse faltar um dia.
A festança durara até tarde da noite, adentrando a madrugada e, somente
não amanhecera porque "Coyote", ao contrário de "Ratão", esparramou-se no
primeiro canto disponível e roncou feito um touro. Então observou a oficina,
ferramentas, macaco hidráulico, máquina de solda elétrica, lixadeira,
furadeira de bancada, morsa, entre outros. No canto, em vermelho sangue, o
aspirador e o valioso calibrador de ar já instalados e funcionando. Haviam
gasto uma pequena fortuna e valeria a pena. Provavelmente fossem da região, a
oficina mais bem equipada que já se montara por aquelas paragens. Faltava a
ele, Ratão, aprender a lidar com aquela geringonça toda. Já deitado,
considerou: " É, no caso de Luck sofrer um acidente qualquer ou coisa assim,
terei que superar a situação. Aprenderei de forma rápida e eficiente. Além
disso...". Não terminara o pensamento, caindo em sono profundo e passou a
sonhar com suas urdiduras um tanto maquiavélicas e irreveláveis.
No primeiro dia de trabalho, ajeitaram o quadro de ferramentas;
lubrificaram bombas e chaves; afiaram a talhadeira; conferiram o ar do
compressor; testaram o carregador de baterias; a firmeza dos cavaletes;
procuraram por quase um quarto de hora o punção e o martelo de bola de ferro
maciço e, ao anoitecer, voltaram a tomar mais algumas cervejas. Jantaram com a
mãe e assistiram o noticiário no velho aparelho de TV. Afinal, fora o primeiro
dia e se não aparecera um freguês sequer para conferir o óleo ou verificar a
água do radiador é porque ainda não fora espalhada de forma devida, a notícia.
Resolveram afixar uma placa no cruzamento da rodovia interestadual, a um
quilômetro dali.
- E outra junto à lanchonete, hã? -, arriscou Coyote querendo colaborar
naquela parte em tomar decisões.
- Não há necessidade. A lanchonete fica a 100 metros do cruzamento. -,
retrucou Ratão com um sorriso de falsa complacência.
- Pensei que ajudasse. -, observou Coyote acabrunhado e algo infeliz,
como se pedisse desculpas.
- Pensou bem mas, não há necessidade. -, respondeu o outro com certa
astúcia e delicadeza.
- Sei desmontar um motor e remontar inteirinho, sem sobrar um parafuso.
Sei sim! Nisso eu sou muito bom. Tenho boa memória e já olho para o carro e
sei onde está o problema! -, discursou eufórico, Coyote, carente em demonstrar
sua eficiência na recente sociedade.
- Bem... (Ratão fez uma pausa mais ou menos breve, de efeito e em seguida
prosseguiu)... a mãe fica com a parte da bóia, do rango e isso é importante
porque, nenhum homem consegue trabalhar com o estômago vazio. Você - disse
apontando para Coyote -, será o nosso homem da ação. Ninguém mais do que você
para mostrar aos fregueses porque a firma é a melhor de todas ao longo desta
rodovia. (Coyote abriu um sorriso abestalhado de contentamento). Eu, você
sabe, tenho certo tino para o comércio, as negociações. Papelada, preços,
orçamentos, compras, reposição do material, essas coisas, entende?
O grandalhão concordou aquiescendo e balançando muito a cabeça. A mãe
permaneceu com seu silêncio inquebrantável. Olhar miúdo, desconfiado. Então,
Ratão resolveu acrescentar.
- Claro, evidente que, os lucros deverão ser divididos em três partes
iguais, tirante as despesas, aquisição de material e a conta bancária em nome
da empresa, o que dá no mesmo porque nós três estamos aplicando no mercado
financeiro, correto?..
... A conta sendo da empresa, consequentemente é dos três, certo?
- Correto. -, concordou Coyote apressadamente. Em seguida, dirigiu o
olhar em busca da aquiescência da velha mãe, mas ela já havia se levantado e
se dirigia para o quarto como se fosse um corpo estranho; alheia a tudo o que
se discutia ali. Ratão matutou e concluiu que a velha poderia pôr tudo a
perder caso virasse a cabeça oca do filhinho contra ele. Afinal, não
precisavam dele e, sem dúvida, poderiam arranjar-se muito bem. Não haviam
vivido juntos sem o velho por um bom tempo? E bem! Levavam uma vida acima da
média. Era um detalhe de suma importância, aquele da velha. Se era!
- Quero ver aquele pátio abarrotado de camionetas e furgões e carros e
motores para serem abertos e fechados. Trocar muitas peças e cardãs! -, disse
num repente o sócio Coyote.
- Nós veremos, sócio. Em breve veremos. Pode ter certeza do que estou lhe
dizendo. -, respondeu Ratão meio distante. Os dois permaneceram absortos por
algum tempo como se sonhassem. Então Coyote quebrou o silêncio:
- Vou descansar. Acho que amanhã teremos um longo dia pela frente.
- Está bem, sócio. Vou assistir ao jornal e já me recolho também.
- Boa noite, então. -, disse Coyote.
- Bons sonhos! -, respondeu Ratão com um sorriso malicioso nos lábios.
Iam para o terceiro dia e Coyote sentia-se desanimado. Ratão não dera-se
por vencido. Não tinha nada à perder, afinal. Às dez horas a mãe anunciou o
almoço. Apesar de não terem trabalhado, comiam feito animais. Encontravam-se
empanturrando seus estômagos quando ouviram uma buzina. Entreolharam-se e
Coyote, surpreendentemente uivou de contentamento. Saiu correndo.
- O primeiro freguês! O primeirão!
- Esse panaca vai acabar atrapalhando-me nos negócios com sua euforia
besta. Capaz de trabalhar de graça para esses filhos de uma cadela.
- Boa tarde! -, cumprimentou o homem bem vestido de dentro do Ford que,
visivelmente encontrava-se com o pneu traseiro do lado direito furado.
- Boa tarde, senhor! é o pneu, não é? -, perguntou Coyote.
- É.. e por descuido, não tenho um macaco comigo. Espero que possam
atender-me nesse horário tão impróprio -, disse o homem ao ver Ratão com uma
coxa de galinha pela metade.
- Fique tranqüilo, meu caro. Meu sócio cuidará do seu Ford. Venha, vamos
tomar algo em nosso escritório.
Enquanto Coyote levantava a traseira da camioneta, desaparafusava,
ajeitava, buscava chaves e transpirava feito um animal, Ratão oferecia uma
cachaça de engenho ao primeiro freguês. Havia uma mesinha, duas cadeiras, um
velho cofre e um pequeno armário no que fora destinado a ser o escritório. O
alvará de licença destacava-se na parede, emoldurado num quadro estravagante.
- A gente sempre acaba se esquecendo de alguma coisa. -, disse o homem
estalando a língua após tragar a cachaça.
- Essa vida atribulada.. -, observou Ratão estudando minuciosamente cada
detalhe do freguês: roupas, falas, gestos. Parecia-lhe tratar-se de alguém que
poderia ter uma boa grana na carteira. Encetaram um bom papo e Ratão não
deixava, cuidadoso que era, o copo do homem esvaziar-se.
Vinte minutos depois, o serviço estava pronto. Coyote assomou à porta e
anunciou:
- Está pronto, Sr. ...
- Walter. Prazer.
- Prazer. Mas, como eu dizia, o pneu está em perfeitas condições. Dei uma
calibrada nos outros três. Verifiquei água, óleo e aproveitei para limpar o
pára-brisa.
- Ora, ora, não havia necessidade de tantas atenções. Todavia, fico-lhe
muito grato, meu jovem. -, disse o homem com um sorriso de satisfação
estampado nos lábios.
- Ah.., Luck, retire o carro para este senhor enquanto acertamos.
- Está bem, sócio! -, respondeu prontamente Coyote, achando engraçado que
Ratão o tivesse chamado pelo nome e não pelo apelido.
O malandro Ratão aproveitou para "sangrar" o primeiro freguês. O homem
estava meio alegre tanto pela bebida quanto pelos serviços prestados. Achou
meio puxado mas pagou. Apertou a mão de Ratão e saiu.
- Boa viajem Sr... Sr....
- Walter, meu filho. Ah, e muito obrigado pela atenção. -, disse
dirigindo ao desconjuntado Coyote que alisava as mãos no macacão nervoso e
contente com o seu desempenho.
- Ora, não foi nada! Nada mesmo! -, respondeu Coyote.
Os sócios permaneceram parados, observando o Ford tomar a rodovia e
desaparecer. Então Coyote disse:
- Lá se vai mundo fora o nosso primeiro trabalho, hein sócio?
- Você esteve realmente ótimo, meu caro! Ah como trabalhou direitinho! -,
disse Ratão pondo-se a rir satisfeito. Havia cobrado três vezes mais do que
qualquer outro cobraria pelo serviço prestado e, tinha um verdadeiro panaca,
idiota, que ainda colaborara checando o óleo, a água; calibrando o ar dos
pneus. Ganhara pelo dia de trabalho e pelos dias parados.
- Bem, bem, que tal arrumar aquela confusão? Recolocar as chaves em seus
devidos lugares enquanto eu faço o lançamento do dinheiro no livro caixa, hein
Coyote? Afinal, não queremos desleixo por aqui, não é mesmo?
- Éééé.. sócio! Faz parte dos negócios. Nada de desleixo. Vou limpar as
ferramentas e recolocar tudo nos lugares, certo?
- É isso aí sócio. E, parabéns pelo trabalho. -, elogiou Ratão.
- Coisinha de nada. -, respondeu Coyote voltando ao trabalho.
- Coisinha de nada. -, imitou Ratão com sarcasmo. Riu, tirou o dinheiro
do bolso. Separou algumas notas e enfiou no bolso traseiro da calça. A metade
lançou no livro caixa. Sonhava acordado, fazendo planos e nem percebeu que
Coyote encontrava-se ali, à sua frente.
- Quanto cobrou do homem? -, indagou Coyote.
- Coisa miúda, sócio. Sabe como são os negócios. O primeiro freguês atrai
o segundo e, além do mais, foi um serviço pequeno. Concorda?
- Claro, claro. -, respondeu Coyote em sua simplicidade.
- Então - continuou Ratão -, cobrei trinta dólares.
- Mas isso é muito! O serviço não ficaria em quinze, sócio! -, exclamou
Coyote que sabia o que argumentava.
- O importante é que deixamos o freguês satisfeito, Coyote. Entende? Um
homem satisfeito, pagaria até mais.
- Bem, isso é lá verdade. É sim.. -, respondeu Coyote saindo e dando de
ombros. Ia em direção a casa contar minuciosamente à mãe como fora. Ratão ria
com trinta dólares na caixa e mais quinze no bolso. Por fim emitiu baixinho:
- Porra!, sangrei o infeliz até a última gota de sangue. Desse jeito, em
breve não teremos um freguês sequer. Preciso controlar-me. - Em seguida, puxou
a porta do escritório e dirigiu-se para a casa com muita sede. Tomaria uma boa
cerveja, era o que tinha em mente.
- Trinta dólares em caixa. O primeiro freguês, mãe! -, dizia eufórico o
grandalhão Coyote à sua velha mãe. A mãe, por sua vez, não tocou naquele
assunto e foi taxativa:
- Sobrou um pouco do almoço, termine de comer.
- É o que vou fazer, mãe. Porquê você não almoça mais um pouco sócio? -,
perguntou a Ratão que acompanhava a conversa.
- Estou satisfeito em todos os sentidos. Preciso de uma boa cerveja para
comemorar o início da nossa prosperidade. -, disse abrindo a velha geladeira e
retirando uma lata de cerveja. Antes nunca havia cerveja naquela geladeira.
Não que a mãe soubesse e agora, até mesmo seu Luck começara a adquirir maus
hábitos e vícios.
Os negócios começaram a render. Os fregueses apareciam. Coyote parecia um
animal para trabalhar e Ratão, para roubar. A mãe andava macambúzia, havia
contraído uma forte gripe. Sempre novos fregueses. Os que já haviam passado
por ali, jamais retornavam. Ratão cobrava até a água no radiador.
- A mãe não está bem. Acho que precisa de um médico. -, disse Coyote
preocupado.
- Isso não é nada. Apenas um resfriado passageiro. Coisinha que um bom
chá, aspirinas e repouso sanarão. Confie em mim. -, respondeu Ratão com o
livro caixa na mão.
Seguramente não estava dando a mínima importância ao que pudesse ocorrer
com a velha. Aliás, percebera o quanto a "querida mama" andava desconfiada e
com os humores alterados, sempre observando-o de soslaio e rezingando pela
casa. Ratão prontificou-se a preparar o chá enquanto Coyote colocava a oficina
e as ferramentas em ordem. Algo que acabava reforçando a imagem do Rato para o
sentimental Coyote. Uma preocupação com a mãe era algo, amiúde comovedor. Se
era! E, seguramente, Ratão faria qualquer coisa pela "querida mãezinha". Esse
era um fato do qual ninguém deveria duvidar. Nem mesmo o mais céptico dos
seres. Quanto ao sócio - o grandalhão e prestativo Coyote -, Ratão sabia que
teria que cuidar muito bem dele a partir do momento em que a querida mama
partisse dessa para "a melhor".
Por algum tempo, Coyote continuaria sendo peça fundamental aos planos de
Ratão, portanto......




ASAS PARTIDAS

Que a cidade agonizava seu caos não restava dúvidas. Matava-se por
prazer. Já não se tratava de vingança, queima de arquivo, defesa da honra, do
território. Já não bastavam o tráfico, o tráfego louco(muito louco), psicótico
atirando do alto do edifício nas pessoas que passavam lá embaixo, nas
calçadas. Não, não bastava somente a paranóica violência dos corações e mentes
empedernidos. Havia ultrapassado todos os limites se é que havia limite na
loucura.
Sentado sobre a mala de couro surrado, observava toda aquela loucura
desenfreada e isso, mal saíra da estação ferroviária - Estação da Luz - Que
nome! Bobeasse roubavam-lhe as calças. Na sola do pé, incomodando a meia, o
dinheiro parco dentro do sapato. Vão ter que cafungar o chulé da vítima. Se
vão!
Mãe dissera "não vai que aquilo lá é um horror". "Coisa ruim dos
infernos! Não sabia colocar-se em seu devido lugar, não? Filhodeumaégua!".
Berrara o pai alucinado. Vai dar com os cornos pelo mundo que ele é vasto e
profundo. Muito mais que vasto ou profundo, o mundo não é para qualquer, não.
A vida, aquela vida de cidade grande é para cabra sem preceito que, sem amor
pela própria carne, não se importa com bala perdida, violência de bandido e
polícia. Coisa séria. Mas não se falava mais no caso. Punha termo e pronto.
Ia. Benção. Tô indo. Fui. E da janelinha do trem, moroso, apitando na curva,
ia deixando para trás a cidadezinha acanhada, a praça e seus bancos antigos, a
igreja matriz acenando o crucifixo lá na torre. Casas amontoadas, paupérrimas,
ruas de terra, pastos, canaviais, gado pastando, burro, cavalo, galinha,
porcos, as meninas, os manos, as manas. Mãe acenou chorosa, lamentando a
partida, o filho perdido para a vida e o mundo de Deus. Pai turrão, casmurro,
fechou o cenho e rangeu os dentes vencido. Filho é filho. Dessas coisas que
partem em mil cacos o coração dentro. "Adeus, seu bicho arretado da gota.
Caipira sonhador do cacete!".
O pai excomungando lá parado, olhar querendo marejar e ele firme. Um
cigarro pós outro. E o filho mais velho, primogênito se indo e adeus. Escreve?
Manda notícias? Vai ficar onde naquele inferno? Não havia parentes,
conhecidos, nada em que se encostar. Ia fazer o que naquela desgrameira de
cidade ruim? Tentar a vida? Que vida? Fugir do cabo da enxada, do cafezal, do
algodão, da foice, do canavial, do mangueirão dos porcos? Estudar não quis.
Nem havia como. Ia fazer o quê sem diploma num lugar onde lixeiro e padeiro
vivem com canudos enfiados no rabo se exibindo e esbanjando conhecimentos e
cultura? Por fim vai! Vai pros quintos dos infernos de uma vez. Para o raio
que o parta!
O pai foi ao botequim da esquina e encheu a carcaça de pinga do engenho.
Da amarela, curtida na sicupira. Ah, sujeitinho cabeça dura! O desgrenhado mal
sai dos cueiros e vai dando no pé, se esquecendo que um dia já habitou bem
aqui, ó! Aqui sim! Fazia gesto obsceno mostrando para a mulher e os outros
filhos. Três meninas, quatro meninos. A mãe de terço nas mãos, desfiando
rosário de aflição pelo filho e pelo velho que, pouco mais, acabava tendo um
troço ali, caindo durinho, estorcendo-se todo, babando e revirando os olhos
feito um lunático. Valei-me minha santa!
O trem apitando. Mãe - a mão cuidada, meio caminho, nem no alto, nem no
baixo amarfanhando a barra do vestido remendado - Olhos são para ver e chorar
filhos nascendo e um dia, sem mais porque, partindo. Vida parva! Tinha o que
carecia ter, não? Comida quente, roupa lavada, botina, cama e teto. Queria
mais o quê? Fosse então com sua ambição e segredos. A cidade era aquela coisa
amorfa. Sofria de artrite, reumática, poça de água estagnada, apodrecendo. O
rato roía na despensa. Havia muito era rato, barata, gambá, cobra, lagarto,
poeira, fofocas, peleja e futuro algum de um nada. Então vai!
O português do armazém, "vai se fodeire! Cá prá nós, capiau, baguá tem
mais é que se fodeire mesmo!". Portuga de uma figa. Língua de trapo, com filha
embuchando sem saber quem o pai do filho se formando nas entranhas. Mal de
língua comprida do pai. Castigo vem à cavalo. No fofocar cotidiano, as
comadres de muro e cercas de quintais nos tititis e coisas de somenos, pau na
vida dos outros. Um pé de pau nos próprios olhos a ser retirado para dar com a
língua no olho do outro. Não dissera Jesus um dia lá? Então? Povo mesquinho
que vivia de intriga, fofoca e inveja. Invejavam o menino? Se ele queria ir
para cidade grande, tentar ser alguém, que fosse. Mais maldade e esculhambação
porque não tinham mais o que fazer. Decerto tinham filhos e filhas santos.
Plêiade do Senhor. Bando de pardal esvoaçante. Mariposas desgovernadas em
volta do bico de luz. Lamparinas ardendo com o fogo no rabo. Tinham nada a ver
com vida alheia! Não tinham, contudo, falavam. Isso lá é que era ignorância e
pestilência untadas pela maldade. Maledicências!
Mãe se deixou - pobrezinha -, definhar por uns tempos. Inconformada, na
cama. O bom filho à casa torna. Não torna? Não conhecia a história do filho
pródigo? Fé de mãe desafia toda e qualquer perdição. Deu de variar naqueles
pensamentos aziagos, atormentando-se, encafuada em seu vezo secreto na alma de
passarinho ferido.
Será que cometera alguma danura? Fugia sem que se soubesse motivo? Idéia
mais besta se lhe vinha assim, assim, seu! Arreda, tentação dos quintos! Não
conhecia o filho, decerto? O menino sempre fora bom. Sabia porque o criara nas
entranhas e o trouxera à luz. Então desconheceria a índole do próprio rebento?
Decerto! Tinha seus repentes, mas juízo não faltava porque fora criado no
cortado, rédeas curtas na brabeza do pai e na psicologia da mãe. Então, não
tinha nada à ver com joio. Separado, modéstia parte, havia trigo e dos bons
naquele lar humilde mas de muita honestidade e trabalho.
De qualquer forma, o pai ia pra roça, mãe tornava ao leito, abatida.
Desejo de viver desatino? Ingratidão de filho é o que cala fundo e abre chagas
que cicatrizam mais não. Perdoar já havia, claro. Mas restava aquele
ressentimento dorido, inclemente. Pai voltava da roça, mãe no fogão
disfarçando a dor e aquele mal de agouro. Sonho transformando-se em pesadelo.
Desespero de querer o filho de volta. O tempo sem tempo indo. Feito a
eternidade do para sempre. O nunca mais. Me acode, Jesus!
De lá pensava; me acode minha mãe! Os olhos irritadiços a mirar o vai e
vem desenfreado do gado sem abôio. Os automóveis, a fumaça, as ruas sem fim,
tanta gente, tanta! Ia fazer o que ali? Não arredava a bunda de riba da mala,
sem coragem para um passo sequer.
Havia chegado amanhecendo o dia. Pelas quinze horas, as pernas bambas, a
fome se acumulando, remoendo dentro em roncos o estômago. Frágil feito
pintassilgo, ousou dirigir-se à primeira pastelaria que avistara. Se
arrastamdo lento, moroso, à medo, desconfiando de tudo e de todos. Pão,
manteiga, leite e café. Pavor em tirar o dinheiro de dentro do sapato.
Disfarçando, transpirando vergonha e aflição.
Pagou, meteu o troco no bolso sem conferir, apanhou a mala e saiu para a
rua apinhada de gente. Aquela gente estranhamente movida pela pressa, como se
fugisse de boi na invernada. Dobrou uma esquina, olhando os prédios, os
carros, o sem fim e sem tino que era tudo aquilo. Deu de topo, encontroada com
um poste parado. Ou o poste viera ao seu encontro de propósito? Pura maldade.
Viu estrelas debaixo do sol mirrado, labutando contra nuvens e fumaça.
Respirou fundo - óleo diesel -, tossiu. Por sorte, a mala aos seus pés.
Apanhou e voltou a caminhar a esmo.
A mãe sentia um aperto dentro do peito. Coração apequenando. Saudade
amofinando. Um mês e cadê notícias? Não ficara de escrever tão logo chegasse
na capital? Esquecera decerto. O que poderia impedir se sabia - é verdade, mal
e mal -, escrever algumas frases? Acontecera coisa ruim? Não. Tinha proteção.
Mãe desfiava contas cerzindo um manto de preces sem fim. Então, proteção é o
que não poderia faltar ao filho. Não somente não faltava como carecia e de
sobra que mãe sabia muito bem o quanto.
Por sorte, aos tropeços, acabara enfiado em uma pensão barata. Na
argamassa, tijolos, cavadeira, coisinhas que lhe moíam o corpo esfalfado e a
mente aparvalhada. Alma, nem se lhe conto! Sentia saudade do interior. Quanto
dói! A família, a mãe, o pai, os manos e as manas. Deu de sentir saudade até
mesmo dos cachorros e dos porcos e galinhas pelo terreiro da casa estorvando.
De fato, pai tinha tento em que decisão não se toma assim: mão na frente e
outra atrás. Somente porque se quer e pronto. Aprendera. Ia tocando.
De uma pensão vagabunda para outra pior. Dormia em barraco. Findava uma
obra, saía atrás de outra. Dava duro. Pegava no pesado até o corpo esmorecer,
fatigado, já sem força sequer para manter-se nas pernas. Mas ia levando. Não
escrevia. Havia um branco, um torpor mental misturado com aquela mágoa de
desilusão ferindo. Não ia escrever mentindo que estava bem se estava mais era
à beira de um colapso. Então? Jamais contara uma mentira sequer para os seus,
não seria depois de homem já feito e lá no longe, um mundo de distância.
Continuaria pelejando até que melhorasse e ia conseguir porque, capiau quando
bota na cabeça que rabo de porco serve de saca-rolhas, não há adversidade ou
contratempo que se lhe dobre a conclusão. Apesar da refrega que a vida lhe
dava. Era aquilatar os solavancos e continuar tocando em frente sempre. Fazer
mais o quê? Dia mais, dia menos, a sorte decerto lhe sorriria. Ilusão!
Esquecera, malsinado o destino, que a sorte é traiçoeira e que tanto fez
quanto faz para a vida se se vive por assim viver. Deu no que deu e garrou a
tragar umas cachaças no fim do expediente. Certa manhã de ressaca, do barraco
dividido com mais três companheiros, sequer ousou pôr pés para fora. Ficara
rolando atormentado a segunda-feira toda no catre enquanto lá fora tudo
emergente, desesperado gado, formigueiro e rebuliço desgovernado. Noite
caindo, criou coragem ao botequim sanar ressaca que era coisa ruim demais.
Se juntou com os malandros. Não havia moleza no ambiente. Se cuidavam os
safardanas com trezoitão na cinta, navalha e punhal. Jeito simplório, criando
massa muscular em conformidade com seus vinte anos pouco vividos, o menino
topou uma parada e acabaram metendo uma bala no coração de um frentista de
posto de gasolina somente para arrebanharem uns poucos reais e um carro na
hora da fuga. Ia, chapado pela maconha, rindo feito besta dentro do carro em
alta velocidade. Quanto mais o carro se sacudia, mais ele ria com o trabuco na
mão. Mostrara firmeza na hora de atirar. Era o que tinha que ser feito.
Fizera. Conseguiram escafeder-se pelas favelas e morros. Havia selado sua
sorte. Não recebera grande monta, mas ficara com a arma, quatro ou cinco
baseados para fumar e um troco para uma loira gelada no bar.
Descobria que a vida era pura safadeza. Então de sofrer, acabou ruim.
Secando dentro o coração aflito. Com a polícia atrás, no seu rastro. Fugindo
feito cão doido e enraivecido. Matando para não morrer. Aprendendo a ser mais
rápido que o inimigo. Feito as fitas das salas de cinemas. Numa agência
bancária, a câmara flagrando sua proeza de cabra ruim. Sangue fervendo, trocou
tiros com os homens fardados da patrulha que passava pelo local. Fugira mais
uma vez. Desta feita com os bolsos recheados. Sobraria mais, já que um dos
seus ficara lá, no meio do asfalto com o corpo estirado e recheado. Passou a
cheirar. Fumaça já não dava barato. Tomou conta de ponto no morro, com fama
firmada, respeito imposto à bala. Que se danasse a vida. A vidinha comedida e
o bom comportamento! Fodesse o mundo e os sonhos que perdera pelo caminho.
Dera por si que, não somente havia perdido sonhos. Ele próprio já
desconhecia quem era e quem poderia vir a ser dali tocando em frente. Valente
com duas armas nove milímetros, procurado pela lei e jurado por tantos
desacatos e fanfarronice. Afora a maldade, sentia prazer em torturar e matar.
Coisa adquirida com o pó que dilatava suas narinas. Bicho ruim. Cabra safado.
Sem preceito ou dignidade. Sem respeito ou amor pela vida. Matava por matar.
Ficara assim. Mãe e pai nem sequer sonhavam. Quem na frente do noticiário da
TV? Nem havia por aquelas bandas. Jornal não chegava lá tão fácil. Seu
paradeiro e nome verdadeiros quem saberia? Havia fotos. Retrato falado. A
filmagem durante a ação na agência bancária. Depois vieram os seqüestros que
andavam em voga e aquilo sim é que era ganhar dinheiro fácil. Quem pegava um
cão tinhoso feito ele? Que polícia que nada!
Em dois anos, o estrago era tamanho que, já não havia milagre que desse
jeito em tantos males. Cinco assassinatos; três seqüestros; três assaltos a
agências bancárias; jurado de morte pela polícia e outras gangues. Enfim, sua
folha corrida tornara-se tão longa quanto as contas sem conta do fio de
rosário que a mãe desfiava.
Sequer percebeu a metamorfose. Sua fisionomia bastaria como prova.
Envelhecia, estropiado e malquisto. O corpo fechado em terreiro, tinha
adquirido marcas e cicatrizes causadas pelas contendas e fugas. Mas o que mais
impressionava era sua carantonha. Feição do Tinhoso. Alcunhado, "Capeta".
Um santo não pode ter seus direitos assim, vilipendiados, caçados e
roubados! De Santo a Capeta, quem se daria ao desplante? O menino era bom, não
era? Mãe sabia que sim. Pai ainda sentia os tremores nas mãos e os calafrios.
Mas era coisa da cachaça. Afirmavam, não era o menino deles. Jamais seria.
Aquela coisa ruim, rosto disforme, talhado por navalha? Qual o quê?! A polícia
dizia que era. Mãe e pai que não e fim.
O menino havia desaparecido ia para mais de oito anos. Nunca mais uma
notícia e vinham com coisa e loisa? Conversa mais besta aquela! Coisa lá do
sargento mais o cabo do destacamento da cidade. Permaneceram na varandinha da
casa por umas duas horas questionando o pai. O velho ia respondendo nos
conformes. Sabia de nada não. Foto não tinha. Documentos, menos ainda. O filho
nunca escrevera. Notícia alguma. Ia respondendo e ficando enfarado com tudo
aquilo. Conversa sem tino e sem fim...
A mãe já perdia a conta daquele poço sem fundo de contas querendo
solucionar a situação de vez. Por isso que, resolvida, saiu lá de dentro,
mirou o sargento dentro dos olhos de peixe morto e boi sonso; tirou medidas
enquadrando o cabo em seu foco e puxando o pai para dentro da casa, deu com a
porta na cara dos dois de fardas, injuriada da vida e de tudo o mais.
- Ara, mas que conversa! Se tiver vivo, um dia aparece. Senão... - olhou
para o marido que quedava vencido, entregue -, se não ( por alguma tragédia
que Deus nos livre ), deixa a gente em paz que de padecimento, já pagamos por
nós e por ele! Vão cuidar das suas vidas, seus coisas ruins do governo
descarado!
A mãe desabafou, cerrou a tramela e deixou por conta de Deus. O dia se
foi, cedendo espaço para a noite porque quando o crepúsculo chega no interior,
já noite então e com o sol ido, bate na gente, uma melancolia que parece
nunca, jamais ter fim. Dor de anjo, passarinho com asas partidas. Parece até
que é a sina da gente. E não?!...




O FUGITIVO

Aquela determinação fixara-se em sua mente feito um enorme cartaz
colorido em uma parede caiada em branco: fugir, fugir, fugir.. Não importava
como o faria, conquanto, ao menos tentasse. Por isso, ele atirou-se ao chão e
passou a arrastar-se sobre os cotovelos, deixando o grupo de detentos que
erguia e baixava as enxadas no mato rasteiro que insistia em brotar feito
praga em meio às plantações de mandioca e feijão. Tratava-se de uma luta
desesperadora. Contudo, uma boa luta. Por isso, revigorou-se e continuou de
forma determinada e frenética em sua estratégia quase suicida.
Os guardas passaram a caminhar de um lado para outro. O ar havia se
tornado pesado. Alguns presos procuravam chamar a atenção dos vigias com
pedidos patéticos e absurdos como água, "aliviar as necessidades", uma
surucucu imaginária foi perseguida durante alguns minutos até que, o chefe em
comando, o sargento Gonzalez, alimentou sua arma fazendo-a rugir ferozmente
para o alto, berrando em seguida:
- Todos aos seus postos, seus filhos-da-mãe! - Possuía um senso aguçado e
pressentira o início de uma confusão e rebelião sem fundamentos ou motivos
aparentes. Era um homem truculento e, juntamente com mais cinco subordinados,
tomava conta de cerca de cinqüenta e quatro homens calejados pelo sofrimento e
malandragem dos cárceres da penitenciária estadual do condado de K..... Por
isso, cortou, pelo resto do período, as paradas para os detentos irem se
aliviar ou matar a sede. Algo parecia-lhe errado. Fora da naturalidade legal
das coisas e fatos.
O fugitivo Pietro, ouvira o disparo junto à cerca que limitava a vasta
área de plantação. Por um segundo pensou que havia sido descoberto. Aferrou-se
à terra e prendeu a respiração. Não ouviu passos ou cães ladrando. Então
voltou a vislumbrar a cerca de arame farpado. Arrastou-se por baixo e uma
ponta rasgou-lhe a camisa na altura do ombro.
- Droga! -, vociferou entredentes, avançando furioso.
Tomou a direção dos bosques, correndo sempre agachado e percebeu que
restava-lhe, a partir de então, correr e correr e... talvez, rezar. Passou por
uma parte do bosque atingindo as macegas de capim perto da rodovia. Ainda
teria uma oportunidade, caso não o estivessem esperando do outro lado, ao
longo da rodovia. Não, não estavam.
Naquele exato momento, o primeiro sargento alinhou os homens e deu-se o
início à chamada. Um guarda franzino bradava em alto e bom som o nome de cada
prisioneiro e o mesmo respondia prontamente.
- Pietro! - Houve um silêncio amargo, inquietante, absoluto. O guarda
voltou a berrar:
- Prisioneiro 1-2-7-5, Pietro. - Pela segunda vez o prisioneiro não
respondera. O sargento Gonzalez começou a contar mentalmente seus
prisioneiros, bufando, ruminando, para em seguida, bradar:
- Todos para o ônibus, rápido!
Apesar da ordem peremptória e enérgica, todos os presidiários pareciam
cansados, abatidos e lentos. E, enquanto cada pé arrastava-se em direção à
porta do ônibus mais conhecido por "Jaula"; e enquanto o sargento corria até
seu carro e tentava manter contato com a direção do presídio através do rádio,
Pietro atravessou a interestadual de mão dupla em direção aos pântanos.
O alarme soou dentro e espalhou-se pelas imediações da penitenciária. Ou
alguém fugira ou, fora apanhado com um tiro de doze nas costas e àquela altura
deveria estar correndo em direção ao céu, ou inferno. Esperaram e quando
ouviram os cães, então souberam que o fugitivo ainda estava vivo. O diretor
contatou o xerife e quinze homens com cinco cães tomavam rumo aos campos de
plantações.
As pernas avançaram pela terra seca, passaram pelas plantações de capim
alto e finalmente, Pietro chegou ao rio. Sem hesitar, atirou-se dentro das
águas turvas e deixou seu corpo seguir com a correnteza. Talvez fosse lógica
em demasia a sua fuga rio abaixo. Contudo, o que contava era o tempo de
vantagem. Em sua mente, sabia que o xerife, seus homens e cães já estavam em
seu encalço.
Os cães farejavam e avançavam rapidamente pelo campo de plantações até
atingirem o local em que Pietro havia-se arrastado por sob a cerca de arame
farpado. Eles farejavam e estavam na pista correta da fuga. O fugitivo poderia
ter atravessado o bosque, o matagal e conseguido carona na interestadual.
- Ele não seria tão estúpido. -, analisou o xerife Juan, ordenando que
seguissem adiante. Os cães insistiam em atravessar a pista e carregaram
consigo a patrulha de busca. O fugitivo, deixou-se arrastar pela corredeira,
conseguiu atingir a margem esquerda do rio e, agarrando-se ao mato ribeirinho,
forçou-se a sair de dentro da água. Sentia suas forças extinguindo-se
lentamente. Dali em diante sua jornada tornar-se-ia ainda mais incerta. O sol
caíra no poente e ele meteu os dois pés nas águas pútridas do pântano.
- O jogo da sorte! - Emitiu quando sentiu que a água escura já batia em
sua cintura.
Os cães continuavam arrastando os cinco homens que serviam de guia para
os outros dez e o xerife. Corriam direto para o local onde o fugitivo
atirara-se nas águas do rio. Enquanto isso, Pietro avançava de forma obstinada
pântano adentro. Ali, muitos corpos acabaram apodrecendo ao serem alvejados
durante as tentativas de fuga. Mas ele não! Pietro não pretendia ser mais um
número nas estatísticas, simplesmente riscado do mapa. Recobrou as forças e
avançou em meio aos troncos e juncos. Havia alcançado uma parte do pântano que
proporcionava-lhe vantagem considerável. Era mister aproveitar-se daquele
detalhe.
Os cães ladravam obstinados pela margem do rio. Alguns erguiam a cabeça
para o lado certo como se apontassem a direção; outros apenas farejavam o ar.
Somente então, o policial Pablo, treinador e adestrador dos cães percebeu que
o fugitivo usara a velha artimanha: havia espalhado pimenta moída pelo
caminho. Era uma explicação pouco ou nada convincente. Portanto, não fez
qualquer referência quanto aquela possibilidade para os demais e concluíra
que, por enquanto os cães, seguramente haviam perdido a pista porque o homem
atirara-se nas águas do rio. Em seguida acrescentou:
- Embora não seja possível um homem nadar contra a forte correnteza, esta
seria a lógica. No entanto, deve ter descido. É isso, desceu e em algum ponto,
vamos encontrar novas pistas.
- Tem certeza do que está afirmando, policial Pablo? -, indagou o xerife
de forma duvidosa e irritadiça.
- Somente um tolo tentaria nadar contra a força dessa água, xerife.
- Então vamos descer pela margem. -, ordenou o xerife.
- O caminho provável é o do pântano. -, observou o policial.
- Mas é praticamente impossível atravessar aquele maldito pântano. -,
rezingou o xerife.
- Talvez seja esta a intenção, xerife. Nunca ouvi dizer que alguém
houvesse conseguido tal intento. Ou foi alvejado ou afundou até os cornos
naquele lamaçal putrefato. Contudo, continuo acreditando que seja a lógica.
O manto negro da noite espalhou-se por todo o céu sarapintado por poucas
estrelas. Enormes e potentes lanternas foram acionadas. O xerife ordenou que o
policial Pablo prosseguisse nas buscas enquanto ele, Juan, retornaria dali
para comunicar-se com o diretor do presídio e pedir reforços. O cara tinha ido
longe demais para a sua parca paciência. Sob o comando do policial Pablo, ao
invés de procurarem pistas pelas margens, o grupo seguiu direto em direção ao
pântano.
A noite havia caído em definitivo e as estrelas salpicavam o céu. A lua
banhava o pântano juntamente com a luz emitida pelas lanternas. Pietro havia
vencido a primeira etapa. Conseguira sair do outro lado e, aquela façanha,
conferia-lhe, no mínimo, doze horas de vantagem sobre "os implacáveis
caçadores da justiça".
Distante, em meio ao emaranhado de vegetação aquática, tabôas e troncos
podres, Pietro avançava com o que restara-lhe de forças. Por volta da
meia-noite, sentiu seus pés tocando terra firme novamente, variando o traçado
quase que óbvio de sua rota de fuga. Desde então, suas pernas passaram a
acompanhar os pés feridos e petrificados pelo frio. Suas mãos, buscavam
avidamente pelas enormes sanguessugas que carregara consigo do pântano. Podia
senti-las e arrancá-las à força, não era o melhor método. No entanto, não
havia outra forma. A pequena estrada das muitas vicinais, ainda não fora
tomada pelos faróis dos carros da polícia e o fugitivo aproveitou para avançar
ainda mais.
Os policiais comandados por Pablo e seus cães tiveram que voltar. Nenhum
homem gozando a plenitude de sua sanidade mental ousaria adentrar naquela
fedentina em noite daquelas. A partir dali, ficaria por conta do xerife.
Certamente o apanhariam caminhando a esmo por alguma via secundária. Havia a
hipótese ainda, do pobre diabo já ter cavado sua própria sepultura no meio do
pântano.
Por volta da duas horas da madrugada, o fugitivo embrenhara-se por um
vasto campo cultivado com tenro milharal. Mesmo no escuro, apanhou uma espiga
e passou a mastigá-la. Sentiu que aquilo somente aumentava ainda mais a sede.
No entanto, a idéia das sanguessugas ainda prevalecia, além do frio que o
fazia tiritar de forma intermitente.
Às três da manhã, após passar várias mensagens pelo rádio e dizer - ou
melhor, berrar -, algumas poucas e boas para o policial Pablo e seu grupo, o
xerife Juan, escoltando vários homens e praguejando, saiu para as vias
secundárias e as vicinais da redondeza.
- Se aquele desgraçado conseguir escapar estamos fodidos! Vou comer o
fígado de cada um de vocês!
Logo os carros começaram a rodar. Os cães voltariam ao trabalho somente
quatro ou cinco horas depois. O fugitivo avistou o enorme estábulo e a casa da
fazenda. Não conseguia calcular o quanto percorrera em termos de distância. A
única certeza que possuía, era a de que não poderia continuar caminhando. Não
além do estábulo. Por isso, Pietro dirigiu-se exatamente para ele. Mesmo que o
xerife e sua manada de beócios estivessem à sua espera e gritassem:
- Surpresa!...
.... quando ele adentrasse o estábulo e, as luzes começassem a serem
acesas, ofuscando-lhes as vistas..
Sentiu um terrível tremor e o calafrio percorreu-lhe todo o corpo. Talvez
estivesse com febre. Não descartava a possibilidade de contrair malária ou
qualquer doença proveniente do pântano. Seus dentes batiam. Seu corpo
alquebrado tiritava. Contornou o velho estábulo com suas imensas portas
trancadas por cadeados e correntes. Havia uma tábua solta...
A polícia instalara-se estrategicamente em cada via com um carro e dois
policiais bem armados ao longo de todo o trecho que, "provavelmente o fugitivo
teria que passar"...
Havia uma tábua solta e Pietro arrastou-se para dentro da escuridão.
Recostou-se em um monte de feno e deixou que seus olhos se acostumassem com
aquela negritude quase indevassável. Ouviu um leve vagido. Tratava-se de um
bezerro. Percebeu ainda, duas vacas, um cavalo e, do outro lado, junto às
portas, um trator com seus aparatos de arar. Deslizou cuidadoso na escuridão
em direção aos cochos em comum. Havia um longo cocho para ração e outro para
água. Não percebeu a presença de galinhas ou cães, o que, seguramente, o
denunciaria. Enfiou a cabeça na água. Sorveu longos tragos a intervalos
curtos. Havia um certo regozijo entre o homem e os animais enquanto tragava da
mesma água que os quadrúpedes. Por isso, talvez houvesse brotado em sua
consciência um sentimento que o aproximava um pouco mais da natureza e do
próprio Criador. Ouviu os grunhidos dos porcos do outro lado. Deveriam ter
construído os chiqueiros na parte dos fundos, um pouco mais afastado da casa.
As coisas funcionavam desta forma, acreditava. Saciada a sede, voltou a
arrastar-se até o monte de feno. Havia vários fardos e ao lado, uma espécie de
silo improvisado para o milho. Enfiou-se o mais que pode por entre os fardos
de feno e.. apagou.....

II

O jovem Pietro acabara de completar vinte e cinco anos quando a Justiça o
enviara para o fundo de uma cela com uma sentença de três anos e meio de
reclusão. O rapaz havia furtado um vídeo, algumas latas de cerveja de uma
lanchonete e parcos trocados da caixa de um velho e decrépito açougue. A
família ignorara o fato, como quem se livrasse de um fardo demasiado dos
ombros.
Da cadeia local, o rapaz havia sido transferido para o Instituto Penal
Agrícola, após um ano de convivência com as pequenas sacanagens das celas
abarrotadas por toda espécie de malandros de segunda categoria. No entanto,
Pietro sentira-se abandonado e traído porque, em um ano e seis meses não
recebera uma única visita e sua namorada enviara-lhe uma carta simplesmente
rabiscada com um frio e desinteressado "adeus". Então, aos vinte e seis anos e
meio, o garoto rebelde, desaparecera do Instituto Penal.
Concomitantemente com sua fuga, a Juíza que cuidava do caso, havia
expedido o mandado de soltura que, por ironia do destino denominado xerife
Juan, fora parar em alguma gaveta do esquecimento. Seis meses após a fuga, o
xerife metera suas mãos sedentas sobre o garoto e, conseguira que o enviassem
para a penitenciária do condado. Incansável defensor da Lei e exímio
justiceiro quanto aos próprios interesses, Juan conseguiu acrescentar cinco
anos à sentença anterior do "merdinha fujão". A primavera voltara e Pietro
havia completado trinta anos com, praticamente cinco deles, trancafiados
nalgum cofre recendendo à podridão. Por isso, jamais desistira de fugir,
embora seu bom comportamento em nada influenciasse as autoridades
constituídas. Para elas, autoridades, o prisioneiro não passava de mais um
arquivo morto. Às vésperas de poder voltar a mirar o sol sem as barras de uma
grade ou muros fortemente vigiados por tiras armados, o diretor Lark e o
xerife Juan, armaram mais uma das suas, com a ajuda do primeiro sargento
Gonzalez.
O garoto fujão, havia se transformado em um homem alto, forte e
espadaúdo. Era, sem dúvida, inteligente e de têmperas lancinantes, providas
por um curto pavio, prestes a pegar fogo. No entanto, de forma
incompreensível, aquele animal que carpia, fazia faxina, rebentava pedras e
carregava enormes fardos em seus largos ombros, parecia ter adormecido o seu
lado irascível, de fera acuada. Havia se transformado num grandalhão forte e
manso demais para o gosto do xerife e do diretor penitenciário.
Na madrugada de 20 de setembro do ano da graça de l.99., o detento Ed - o
assassino -, impiedoso e com pena a cumprir pelo resto de sua existência sobre
a face da terra, caiu sobre Pietro - feito um animal -, empunhando uma faca
confeccionada dentro da própria cela, com uma colher. O temido Ed, acabou na
horizontal com o pescoço quebrado e sua própria faca cravada no abdome. Pietro
sofrera algumas escoriações leves e um corte na canela que ele usara para
acertar um de seus golpes na cabeça do seu agressor. Então, o garoto
encontrava-se novamente propenso a deixar de lado suas esperanças de ser
livre, passando de mero ladrãozinho a assassino de alta periculosidade.
- Vou te foder do primeiro ao quinto, meu camaradinha! -, disse-lhe o
primeiro sargento Gonzalez, aproveitando para esbofetear o prisioneiro quando
este parecera-lhe indefeso, algemado e fortemente amparado por dois policiais.
- Filhodaputa! -, bradou Pietro impulsionando o corpo para a frente e
soltando o pé direito que foi de encontro ao maxilar do sargento
arrebentando-lhe a mandíbula inferior e fazendo alguns bons dentes
afrouxarem-se junto ao osso do maxilar.
- Que tal dez, quinze ou uns trinta anos nesta pocilga, hein Pietro? Seu
bicha desgraçado! -, ironizou o primeiro sargento com uma barafunda de
aparelhos nos dentes e o maxilar inferior preso por gesso junto ao pescoço.
- O que acha que eu seria capaz de fazer com o seu pescoço cheio de papas
se eu o pegasse de jeito, hein, sargento corno? -, respondeu Pietro usando da
mesma ironia, embora não houvesse nenhuma graça naquilo tudo.
- Vou fazer com que apodreça nesta merda, seu filho-de-uma-cadela! -
vociferou o sargento Gonzalez, retirando-se em seguida, do local denominado
"fossa", pelos detentos.
O condenado pensou em redargüir, contudo, calou-se. Não conseguia
respirar direito e aquela maldita fedentina acabaria, literalmente, o matando.
Tratava-se de um buraco reforçado por cimento e com fezes até à cintura de um
homem. Acima, havia uma grade com barras de ferro maciço e um policial de
guarda dia e noite. O pão e a água eram servidos através de uma portinhola.
Por isso, Pietro acreditava que não desejavam vê-lo morto tão cedo. Mas sim,
apodrecendo aos poucos e, invariavelmente, transformando-se naquilo que
recendia a esgoto e que o fazia vomitar cada vez que metia algum naco de pão
mofado garganta adentro.
O infeliz saíra dali ( ou melhor, fora arrastado ), sem forças sequer
para continuar respirando. O sargento não gostou nada daquilo. Sua ira ainda o
martirizava. O "filhodamãe" não poderia morrer. Não por enquanto. E, com isso,
o levaram para a enfermaria após um interminável banho.

III

Amanhecia o dia e o fugitivo pode vislumbrar seus companheiros de sono
naquele celeiro que prometera jamais deixar-se esquecer. Mesmo porque, junto a
uma das paredes, econtrara pendurado um macacão de trabalho azul e desbotado;
um enorme chapéu de palha; duas botas surradas e salpicadas de merda; um par
de luvas e uma foice sem cabo.
Pietro vencera a fadiga com o que recobrara de energia após um sono
povoado por pesadelos e calafrios. Estava com febre e antes de apossar-se de
todos aqueles aparatos, retirou uma enorme sanguessuga que deleitara-se
durante toda a noite tragando o seu sangue quente e ávido de liberdade. Em
seguida, meteu-se pela fresta em que entrara e saiu dali à passos largos,
quase correndo.
O xerife Juan havia mobilizado toda a força disponível, além dos guardas
e do próprio sargento que conduzia, juntamente com o policial Pablo, novas
buscas com seus cães de faro aguçado. As estradas e vias haviam sido
bloqueadas e os matagais passaram a ser palmilhados em uma febricitante busca
como quem cavasse a terra com as próprias mãos na sede e febre do ouro nalguma
jazida recém descoberta.
O fugitivo encontrava-se a dez quilômetros daqueles farejadores
implacáveis. Em meio a plantação de milho, Pietro trocou de roupas, fez um
"bolo" com suas velhas vestimentas de presidiário, embrulhou-as num trapo que
surripiara do celeiro e voltou a concentrar-se em sua missão: fugir, fugir,
fugir...

IV

Durante o período em que se encontrava inconsciente num leito da
enfermaria do presídio, Pietro havia recebido não somente soro e vitaminas
mas, no mínimo, dois litros de sangue, tal a condição em que se encontrava.
Seu estado era deplorável e, segundo o xerife e o sargento Gonzalez, os
médicos deviam traze-lo de volta ao mundo real à qualquer custo. As
recomendações foram diretamente passadas ao médico e enfermeiros, com o aval
do diretor penitenciário. Ninguém queria que "o merdinha fujão, viesse alegar
futuramente, que não haviam lhe dado uma oportunidade de voltar à vida dos
normais".
O presidiário havia definhado e, não fosse sua estrutura "cavalar", o
médico já teria amputado suas pernas e, muito provavelmente, metade de seu
corpo. Contudo, Pietro era obstinado, mesmo à beira do abismo. Reagiu e
lentamente voltou a se recuperar. Procurava não demonstrá-lo. Passava o maior
tempo possível drogado e com ares enfermiços. Inegável que o médico soubesse
que ele já poderia voltar a andar - capengando, mas.. sinceramente...
Passou-lhe pela mente que, talvez o médico o estivesse poupando porque
sabia o que o esperava quando estivesse pronto para sair do leito. Então, o
próprio médico, num ato de caridade, deixou-o de cama por muito mais tempo que
o necessário, alegando que se o colocassem de pé, iria desmoronar e
inquestionavelmente, todo o trabalho que ele realizara, cairia por terra,
juntamente com o pobre infeliz.
O detento sabia que o cirurgião o observara realizando exercícios durante
aquelas quatro semanas, em meio às expectativas do sargento Gonzalez e do
próprio xerife. Apesar disso, de forma agradecida, passou a contar com a
colaboração daquele homem envelhecido que tinha as mãos e sobretudo, a alma
calejada por tantos sofrimentos e desgraças ali ocorridas. Quando o "chefe" -
como era conhecido -, emitiu seu parecer final com alta, prescreveu que o
doente teria, pelo resto de sua vida, problemas com as pernas e uma propensão
muito grande em adquirir doenças viróticas, em decorrência do tempo que
passara "na fossa".
O diagnóstico médico garantira-lhe, pelo menos mais três semanas atirado
em uma cela separada e com algumas comodidades. Ninguém desejava perdê-lo para
a morte. Queriam-no vivo e pronto para novas provações e humilhações. Enquanto
seus algozes procuravam mantê-lo nesta, Pietro preocupava-se em readquirir
suas energias e habilidades na calada das noites, com seus exercícios e golpes
de lutas marciais, misturados com brigas de ruas com as quais tanto estivera
em contato durante sua infância e início da juventude.
Certa manhã, o sargento, acompanhado por dois soldados, retiraram-no
brutalmente de sua cela.
- Terminou a mordomia, seu porco. Dê graças à Deus por não ter morrido.
O detento não emitiu uma única palavra. Sempre acompanhado por um guarda
particular, passara pela lavanderia; pelos "olhos-de-bois"; faxina no pátio;
nas celas e, quando chegava o momento de recolher-se, então, sentia que os
primeiros castigos impostos começavam a surgir: seu destino era a solitária.
Fugir, fugir, fugir... Antes que perdesse o juízo e acabasse com aquele
algoz patético e macilento com um único golpe. No início da plantação de
milho, Pietro fora posto, ao lado dos burros para arar as terras. Seus ombros
haviam criado calos e suas forças redobraram. Nem mesmo o sol, o cansaço e o
desmaio o impediam de alimentar sua obsessão: fugir. Acabou com isso, ganhando
a simpatia de vários detentos e, sua alimentação parca, fora redobrada:
- Em consideração. -, oferecia-lhe um dos detentos, o seu pedaço de pão.
- Continue assim, garoto. Enfie o pé no rabo desses lazarentos! -,
incentivava o velho Pancho com seus cinqüenta anos, roubando da cozinha um
belo bife e oferecendo-o ao mais novo ídolo da família dos exilados do mundo.
O "merdinha havia recuperado-se e, estava na hora de aprender novas e
inesquecíveis lições", segundo o sargento. Então, o inferno havia
recomeçado.....

V

Os jornais noticiaram, duas semanas após a fuga que, o detento Pietro,
havia sido dado como morto ao tentar atravessar o pântano. O diretor
penitenciário concedeu a entrevista fornecendo detalhes e emitindo seu parecer
final ao dar o caso por encerrado. O xerife concordou que as roupas - ou parte
delas -, segundo análises da perícia, pertenciam ao fugitivo e que, nenhum ser
humano seria capaz de atravessar o pântano sem deixar vestígios. O único que
encontrava-se em dúvida, era o sargento Gonzalez.
- Pois para mim, o desgraçado ainda está vivo por ai! - Vociferava para a
sua amante, Rosita.
- Ah, lá vem você com essas tolices! Esqueça. O infeliz está morto e
acabou. -, retrucava a amante.
- Eu não acredito em tal hipótese de forma alguma. Mesmo porque, o filho
da mãe era demasiado esperto.
- Não encontraram peças de seu vestuário e inclusive dois números de sua
camisa boiando na podridão fétida do pântano? Está morto e chega! - Redargüiu
a mulher de forma peremptória desta vez.
No entanto continuavam a discutir. Enquanto os dois palravam à sorrelfa,
e o diretor penitenciário dava o caso por encerrado e o xerife afrouxava a
vigilância nas estradas e rodovias, o fugitivo havia deixado barba e cabelos
crescerem e, perambulava feito um mendigo por lugares ermos de uma pacata
cidadezinha, à cinqüenta quilômetros dali. Transformara-se em uma sombra
vagando nas noites e dormindo em casas abandonadas, celeiros, obras
inacabadas, terrenos baldios, becos ensujecidos e até mesmo, em redes de
esgoto. No entanto, sua alma continuava alimentando e ruminando uma nova
centelha que diferia daquela antiga de fugir, fugir e fugir. Havia, finalmente
chegado a hora da vingança.

VI

Naquela manhã, Pietro havia vagado em círculos e, uma idéia acorreu-lhe à
mente. Retornou ao pântano e chafurdou nas águas pútridas e lamacentas suas
roupas de presidiário, após trocá-la com as que apanhara do celeiro. Cuidara,
então, em deixar alguns vestígios pouco antes de voltar a pisar terra firme.
Talvez não fosse uma excelente idéia perder tempo com aquele detalhe maluco,
no entanto, acabou deixando-se levar pela intuição e o fez. Havia,
aparentemente, dado certo. Era "pagar para ver". No momento considerara que,
talvez , ou muito provavelmente, aquela havia sido a melhor idéia que tivera
desde quando resolvera fugir. Fugir ou morrer. Porque nada mais importava,
então. E o fizera com exímia perfeição que até mesmo os peritos o haviam dado
por morto. Ou, quem sabe, tudo não passasse de blefe? Considerou que aquele
ponto já era carta fora do baralho. Nada mais teria importância.
Poderia considerar-se um homem livre. Porquê não? Sim, estaria livre, não
fosse a alma dilacerada e a mente revivendo os sofrimentos e humilhações
impingidos por seus algozes...
- Vamos lá burro manco! - Ironizava o sargento Gonzalez diante de todos e
da força que ele, Pietro, desprendia ao puxar o arado feito um animal,
sulcando a terra árida e ressequida feito sua própria alma.
Certa feita, desmaiara e tivera dois dias de enfermaria com um
diagnóstico de desidratação e anemia profunda. Sua tez havia sido queimada
pelo sol escaldante e sua constituição não parecia a de um homem que estivesse
com qualquer problema anêmico, embora seu abatimento fosse perceptível. Se o
médico diagnosticara, após uma bateria de exames.... Então resolveram deixá-lo
em paz por algum tempo. Foi obrigado a ingerir vitaminas e repousar o
suficiente para recuperar. Com certeza, "arrepender-se-ia de ter nascido".
Mesmo porque, o sargento havia jurado por todos os santos e demônios que o
vergastaria até abrir-lhe gretas no lombo, cobrindo-o com sal e merda para
tostá-lo de forma adequada. Fora a frase que ouvira então...
Então... então o inferno chegara à Pietro ao invés dele, Pietro, ir parar
no inferno. Se bem que... Bem, aquilo tudo não havia se transformado no
verdadeiro inferno? Ou poderia haver algo pior? O inferno não existia e jamais
existiria para aquele prisioneiro que envelhecera e transformara-se num homem
que não podia mais crer em Deus ou diabos; céu ou inferno; justiça ou..
Afinal, o que haviam feito com aquele rapaz de vinte e cinco anos?
Quando as tiras do couro curtido lanharam as costas largas e os ombros
espadaúdas do prisioneiro, todo o seu corpo contorceu-se num ríctus dorido,
enquanto seus dentes rasgavam-lhes as carnes dos lábios, contendo urros de dor
e ódio. O sangue brotara pelas feridas e escorrera pelo chão, enquanto os
demais prisioneiros eram obrigados a presenciar aquele espetáculo degradante.
- Vão acabar matando esse pobre desgrenhado! -, rezingara Alonso, um
grandalhão atroz que, um dia, tivera uma das pernas dilacerada e amputada
dentro do presídio.
- Não vão não, cara! Pode apostar como Pietro vai deixar todos esses
filhos da puta com o rabo entre as pernas. - Respondera Pancho, o maluco da
cela 75.
Os ferimentos causados pelos castigos levaram Pietro novamente para a
enfermaria. O sargento Gonzalez, apesar do ódio, sempre mantivera uma certa
cautela. A morte lenta e dolorida; humilhante; mesclada com o a insanidade e o
prazer mórbido, era a sua obsessão indisfarçável. Para o prisioneiro restava
uma única obsessão: fugir. Tão somente fugir.
Cada vez mais "ausente", "manso", "distante", em decorrência de tantos
castigos impingidos por seus algozes, o condenado que passava mais tempo na
enfermaria do que em qualquer outro lugar, acabou recebendo o apelido de
"Túnel do Tempo" - respeitável, apesar dos pesares e chacotas. O tempo:
implacável e sórdido daquele estranho rapaz doentiamente emudecido e incapaz
de qualquer tipo de reação contra a adversidade, o sofrimento e a ausência de
esperanças.. Bem, ali estava ele, em liberdade finalmente! No entanto, por
mais que planejasse sua vingança, faltava-lhe algo para levar adiante os
projetos arquitetados. Sim, o ódio havia morrido juntamente com seus anseios,
seus sonhos, suas esperanças. Havia tornado-se um homem maduro e rústico,
embora, algo estranho houvesse ocorrido em seu interior. Já não era o mesmo:
impetuoso, determinado e sagaz. Sua sede de vingança parecia-lhe algo tão
distante quanto sua juventude ou a estrela a brilhar no manto da noite eterna.
Por algum tempo pegou-se a rondar a casa do sargento e sua amante.
Seguia-lhe os passos, conhecera sua rotina e hábitos. Poderia ter dado cabo
daquele algoz empedernido que, de repente, parecera-lhe muito mais com um
pobre homem doentio, portador de insanidade mental e outras doenças muito
ruins como o ódio contra seus semelhantes e contra si próprio. Naquela noite,
por um átimo, pensou em torcer-lhe o pescoço suarento e consumar de vez todos
aqueles anos de espera. O homem parecera-lhe tão frágil em roupas de paisano.
Na realidade, não passava de um pobre monte de banhas e pelancas que ia
consumindo-se com suas viscerais crises de ódio e impotência em dar cabo da
humanidade.
O fugitivo observou-o por longo tempo durante o trajeto que o levava da
lanchonete até sua casa. Seus passos cansados, um tanto alto pelo excesso de
álcool consumido, o cigarro pendendo no canto dos lábios. Com um pouco mais de
atenção, o seu algoz revelava-se frágil e debilitado tanto quanto um canceroso
em estado terminal. Observou-o tentando enfiar a chave na fechadura. Não
passava de um homenzinho ridículo. Terrivelmente ridículo, patético e com os
pulmões carcomidos tanto quanto o fígado e as entranhas laceradas pelo ódio e
a cirrose.
O fugitivo, de longas barbas e óculos de armações redondas, metido em
roupas discretas de cavalheiro, baixou o olhar, antes mesmo que o gordo
sargento adentrasse a porta aberta e, dando meia volta, passou a caminhar na
direção oposta. Já não sentia ódio. Não alimentava o ranço da vingança.
Sentia-se um pouco triste. Mais envelhecido e um tanto cansado. Mirou
demoradamente as estrelas que luziam no alto. Encetou sua marcha sem destino
definido.. Somente então, sentiu que algo se havia rompido feito os grilhões e
ele continuou caminhando até desaparecer no fim da rua. O orvalho tornara-se
cristalino, límpido e abundante naquela madrugada que fora perdida para
sempre.....




HUMILHAÇÃO

O homenzinho permaneceu lá, estacado, transido, muito quieto,
transpirando à socapa e, sobretudo, esperando. Havia um século, uma eternidade
naquela espera desarrazoada. A vergonha encorpara, criara sombras em seus
pensamentos e momentaneamente ameaçavam-no feito as pessoas que observavam e
ao observarem-no, perscrutavam sua alma. Gente estranhamente curiosa. Às
vezes, não. Nem se importavam com sua presença destoando de tudo o mais, em
virtude de seu jeito de se vestir, todo mal ajambrado.. Os chinelos de dedos,
a calça puída, surrada, com um remendo tão inconveniente e disparatado quanto
a vida, às vezes.
O homem da caixa registradora havia notado sua presença. Contudo, não
havia como parar para atendê-lo. A fila infinda de carrinhos abarrotados
perdia-se de vista. "Um mundo de víveres, suprindo casas bem estruturadas".
Não saberia precisar de onde rebuscara tal pensamento. Refocilando o lamaçal
da memória de homem simples, humilde, olhos no chão?
Era freguês da mercearia. Não dos melhores. Atrasava uns dias, semana...
Na realidade chegara a atrasar mais de mês. Contudo, pagava. Era homem de
brios, honesto. Casado, mulher e filhos para sustentar. Não gostava de pedir
fiado. Vergonha corando as faces. Rosando a tez esquálida sob a barba por
fazer.
Ruminava os pensamentos. A conta havia aumentado de forma astronômica
naquele mês. Denotava preocupação. Perceptível seu embaraço. Em casa havia
somado, subtraído, tirando de um lado, acrescentando de outro. Não havia
jeito, nem como pagar. Situação quase deplorável: as despensas vazias. Nem
óleo, nem arroz ou feijão. O emprego escasso, raro. Nos últimos tempos vinha
mantendo a casa e a família através de bicos no mercado informal. Ia tocando,
como costumava dizer. Pedia emprestado. Agiota sabe que o caboclo está no
fundo do poço, tira proveito, põe juros lá nas alturas. Acaba de afundar o
infeliz. Caíra nas mãos de dois desses exploradores sem coração. Não conseguia
sair. Devia um ano de prestações da casa. Não possuía nada de valor para
vender. Aliás, coisa de valor acaba perdendo o valor na hora da venda. Sempre
a mesma coisa...
Além do mercado, havia a farmácia, o açougue, as prestações da casa, os
agiotas, água, luz.. Começara a passar noites insones. Qualquer hora, um
ataque cardíaco, um derrame.. Sabe-se lá! Ia fazer o quê? Fugir? Não. Se bem
conhecia sua natureza... Honra, honestidade e um pouco de dignidade que,
lentamente, os patrões e os credores iam roubando, massacrando, espezinhando..
Limpou o suor da testa com a costa da mão. Transpirava em bagas. Os
pensamentos à sorrelfa. Agitação incontrolável, devastadora. Não havia
escolhido hora ou dia apropriados para conversar com o proprietário da
mercearia. Pensou em sair, voltar quando o movimento houvesse diminuído. Não o
fez. Seria o mesmo que fugir. Não era homem de se esconder, fugir ou ficar
protelando. Sincero, dizia o que havia que. Angustia tomando corpo, num
crescendo imensurável. Tinha para receber do patrão, não tinha? Então?
Era como tratava o prefeito: de patrão. Prestara serviços para o
município ao longo de dezoito anos. O político quando não presta, não há o que
dê jeito. Situação deplorável. Uma cambada. Quadrilha! Gente roubando,
construindo, trocando de carro à cada seis meses e o homem - o tal patrão -,
reclamando da situação. Arrecadação ruim. Certamente que se tratava de uma
forma de discriminar, perseguir. Não puxava saco de patrão. Fosse por eles ( o
prefeito e seus assessores ), ele e a família morreriam à mingua. De fome. Por
vezes sentia-se cativo de seus algozes. Caso de reação, perderia os direitos.
Consultara os Códigos Civil e Penal: coisas antiquadas, ancestrais,
mumificadas no papel. A Justiça mais injusta que já se criara e sancionara com
a aprovação unânime de homens intelectualizados. Um país de atrasos é o que
era. "Ou é?". Ocorreu-lhe que vivia o momento nefando da história.
Os pensamentos baralhando: desconexos em sua diversidade ao medir
proporções de injustiças tantas contra os direitos do cidadão ultrajado,
vilipendiado. Não, não havia medidas. Somente mágoas aflorando, crescendo
dentro do peito e da mente. Gigantesca, enfarruscada, ferindo, matando,
enquanto o país mergulhado naquela orgíaca barafunda: recessão, desemprego,
falências, fome, doenças...
Hora e meia ali parado, esperando, ruminando pensamentos e mágoas.
Ressentimentos. Ilusões esmaecidas, frustrações. Em sua idade não era fácil
recomeçar. Não nos dias atuais. Além do que, havia o medo, a insegurança,
estresse, sindrome do pânico... Há quatro anos vinha tentando livrar-se
daqueles sintomas doentios. Vendesse a casa, não pagaria as dívidas. Não em
sua totalidade. Bola de neve. Forçou-se a concentrar no momento; em seu
propósito; necessidade momentânea: o básico para suprir as panelas, matar a
fome da família.
Se crescia a angustia, diminuía a auto estima, reduzia a coragem, a
decisão de expor a situação de forma honesta e direta. Sem rodeios ou
meias-palavras. Pensou em Deus. Fiar uma prece. Era de coração, do fundo da
alma, humilde, sincera, suplicante. Desesperada, diria! Havia sido atingido
pelas raias do desespero. Caixas de compras abarrotadas; carrinhos
superlotados desfilando diante de seus olhos. Pura humilhação. Necessidade e
temor.
Então, percebera que suas mãos tremiam, suas pernas estavam trêmulas.
Havia dentro do peito aquele sentimento de impotência; confrangimento que
feria. Podia sentir a dor. Deus sabia o quanto doía. Não o prefeito e seus
assessores nadando no que havia de fartura. Mergulhados em falcatruas e
corrupção. Então não percebiam os funcionários públicos que não encontravam-se
diretamente ligados a rede? Fornicadores impávidos da paciência humilde e sem
voz para retrucar. Muitas, faziam por instinto de maldade. A maldade
enfronhada, enraizada em seus corações empedernidos. Sequer davam importância
aos eleitores e a política se aproximando. Votariam na mesma corja e naquele
círculo vicioso criando vínculos sem fim. Havia um ciclo. Para tudo sempre há
um ciclo e, mais dia, menos dia, ele chega a seu termo. Fecha ou rompe o elo.
Não demoraria muito. Era nada o tempo. No entanto, para gente como ele, uma
eternidade em humilhações e disparates. Difícil suportar.
Pensou em quanto tempo passara ali esperando. A vida o ensinara a
enfrentar determinadas situações: filas, esperas infindas, sempre o último,
sempre a mesma humilhação de, chegada a sua vez, ter que voltar outro dia,
outra hora... Observou de soslaio, o movimento havia diminuído
consideravelmente. Na primeira oportunidade, falaria com o proprietário. Todas
as terças-feiras era a mesma coisa: percorria o comércio pedindo desculpas,
implorando crédito, confiança. Havia quem compreendesse a situação. Às vezes,
um ou outro, negava-se a um entendimento considerando que seria melhor perder
pouco do que deixar acumular. Não perdia. Fazia questão de pagar. No fundo,
entendia a atitude, a medida, por mais que soasse intransigente. Ia retrucar?
Ele devia. O farmacêutico ou o açougueiro tinham lá seus direitos e razões.
Vender fiado é arriscar-se se todos consideram a crise como forma de não
cumprir com seus compromissos. Pesava e ponderava prós e contra, como se ele,
o devedor, fosse o credor, o proprietário do mercado, da farmácia, do açougue.
Todos possuem direito ao teto, ao trabalho, a alimentação, aos programas de
saúde, a educação.... Mas e daí? Coisas que haviam inventado e escrito em
papel. Ficavam bem no papel. Transbordava a alma saber que todos possuíam
perante as Leis, os mesmos direitos e deveres. Nunca funcionara. Jamais
funcionaria e esta era a realidade.
O último freguês da fila preenchera a folha de cheque. Saíra. Ele
titubeou, indeciso por um instante. Em seguida retomou coragem, determinação e
foi se chegando, diminuindo feito um bicho acuado, escarafunchando no
antiquado baú da memória, as palavras e frases mofadas, fugidias e ranças com
as quais explicar-se. Faltava-lhe o início da fala na voz trêmula,
envergonhada, acabrunhada, macambúzia. Explicou-se o melhor que pôde. Sem
pedir nada.
- Semana que entra? -, perguntou o homem sisudo, enérgico, de olhar
esmagador a percorrer-lhe as entranhas da sinceridade.
- Já era para ter acertado, mas... -, deixou a frase incompleta,
fragmentada.
- Está bem. Seguro mais esta semana. -, resmungou o proprietário do alto
de seu poder de negociação. Não era um homem ruim. Não poderia classificá-lo,
de forma alguma.
O homenzinho abaixou o olhar. Por um segundo, rebuscou o que dizer. Havia
secado por dentro. Por fim, olhou para o credor e emitiu uma espécie de
muxoxo:
- Brigado, então.
Disse à seco. Foi saindo. Arrastando as sandálias. O mundo desmoronando.
Não tivera coragem o suficiente para pedir mais um "tiquinho". Coisa de nada:
arroz, óleo, feijão, farinha. Deixara-se acovardar, impotente. O outro não
respondera. Voltara a concentrar-se na caixa registradora. A tarde reclinara,
crepuscular. Sentiu o olhar marejando. Pensou na família. Pensou no patrão.
Foi caminhando lentamente: a rua sem fim e a decepção. Havia falhado. Algo
dentro dele também havia sido irremediavelmente partido, estilhaçado. O que
dizer à companheira que o esperava com os filhos famintos?
Quarenta e cinco anos. Um homem feito, caminhando à esmo, com o olhar
voltado para o chão, escondendo as lágrimas insistentes, frias feito aço de
ponta de faca, lápide. Frias feito a palavra não. Então pensou: teria coragem
um dia para, gritar até arrebentar os tímpanos da vida, do destino, dos
homens? Teria?........




PHELÓPHIDAS

Phelóphidas descobrira, desinteressado que, aquela madrugada
transformara-se numa espécie de eternidade. Delimitador algum entre sanidade
mental e loucura. Tão somente lassidão e desinteresse. Ao menos se lhe parecia
e, com certa acuidade, lhe concernia. Não que o jovem Phelóphidas fosse algum
débil mental, como costumavam julgá-lo, mas contrário a tais premissas, seu QI
-, não se pode necessariamente precisar porque, havia usado uma espécie de
catapulta e dado um salto fenomenal. Esse talvez, o motivo pelo qual ele se
parecesse muito mais com um ser de outro planeta do que com um jovem
adolescente comum.
- Talvez o sol nem volte a brilhar - Pensou.
Mas não havia importância. Que importância há nessas coisas todas,
afinal? Como se a vida pudesse, realmente, forjar algum significado através do
qual, um ser humano viesse emprestar-lhe o devido valor... Phelóphidas
apertava o pênis ereto, absorto. Respiração compassada. Excitado. O aparelho
de TV, sintonizado no especial da madrugada, exibia um filme amorfo.
No vídeo, por uma fração de segundos, uma mulher aparentando 30 anos,
aproximadamente, exibiu-lhe rechonchudas nádegas brancas. Phelóphidas estendeu
a mão tateando, sem desviar sua atenção da cena. Encontrou a lata de cerveja
que, levou aos lábios, sorvendo longa e sofregamente. Tudo parecia-lhe tão
apático, insosso e atemporal....
Lá fora, no quintal, um gato miou no cio. Ervas emaranhavam-se, atingindo
a cintura de um homem. Quase um metro de altura. Phelóphidas volveu o olhar
enervante para a avó que começara a desprender aquele odor nauseante,
enjoativo. A velha permanecia inerte na poltrona ao lado.
Mesmo com as flores que, esforçavam-se por atenuar o odor fétido, o ar
permanecia denso na pequena saleta que, à cada hora passada, tornava-se ainda
mais sufocante naquela penumbra mortiça. Havia no ar, algo de sórdido,
mórbido, maligno. Havia e Phelóphidas sabia disso. E este era o fato que mais
o irritava além de... Bem, bem... Ele sabia!...
No único castiçal, restara a cera remanescente do que fora uma vela que
ardera por tempo considerável. Phelóphidas sabia que algo acontecera. O tempo
havia estacado. Porquê a mulher na tela não virava-se de vez? Apertou os
colhões na expectativa.
O olhar opáceo, leitoso e aparvalhado da avó deixara-o constrangido. Não
muito. Mas, enfim, atrapalhava. De forma que, manuseava o pênis discretamente.
Por alguns instantes, observou as mãos ressequidas da velha. Suas faces
arderam febris. Procurou espantar - imediatamente -, aqueles pensamentos.
Aberração. Um quadro bizarro nas trevas de sua mente. Algo insano. Ergueu-se à
custo, molemente e, com um pano qualquer, cobriu o rosto apático e sem
expressão alguma da velha caquética e morta. Não sentira nada. Sequer uma
ponta de emoção. Nem medo, ou ansiedade em livrar-se dela. Afinal, nunca
importara-se com a velhota. Seguramente, não seria após a morte.
Sua mente turbilhonou. Um pipocar, matraquear de arma automática. Os
pensamentos o deixavam confuso. Por isso, preferia evitá-los de alguma forma.
Então, tornou a concentrar-se no vídeo da televisão e a esperar. Quanto tempo
se passara; havia transcorrido, afinal? Talvez uma semana, um mês? E a velha?
Movera-se, realmente?.
Impressão. Havia momentos em que poderia ouvir - ou juraria ser capaz
de.. -, aquele gorgulho roufenho, proveniente da garganta da velha agonizando.
Querendo expulsar de dentro de suas entranhas o ar e as palavras à um só
tempo.
- Groouuu!... - Era como alguém que estertora, agonizante. Como se
pedisse por socorro ou, lançasse qualquer espécie de maldição sobre alguém. A
velha deixara escapar aquele som proveniente de muito distante, para além do
compreensível ou imaginável. Algum fosso escuro, infindo que ia dar no....
.... Inferno! Vai para o inferno, acho... - Pensou observando o vulto
desgrenhado do expecto. Uma enorme mosca zumbiu por sobre sua cabeça,
violentando aquele silêncio que lhe parecia a própria eternidade. A débil luz
que emanava do vídeo sem nenhum som, esmaecia, em dados momentos, bruxuleando
até quase se extinguir.
- E se tudo escurecer? - Procurou fechar os olhos para saber como seria.
Mas não era o mesmo. As trevas. O silêncio e as trevas. Voltou a olhar para a
velha. Imóvel. O odor fétido adentrou-lhe as narinas e quase o fez vomitar
toda a cerveja que ingerira com aqueles dois pacotes de "chip's".
- Se decompondo! Fétida! Isso é nojento. Bastante nojento mesmo! - Sua
mente escarafunchou outros tempos, embriagada pela cerveja. As moscas
haviam-se multiplicado. Dezenas, centenas delas bailavam em torno da velha.
Pousavam, voltavam a alçar vôo, zumbindo como que a zombar dele, Phelóphidas.
A nona havia apodrecido. Tinha certeza de que ocorrera. Contudo, já era de se
esperar que aquilo viesse ocorrer mais cedo ou mais tarde. O que restara
acabaria emitindo gases, criando bichos e poluindo o ambiente com aquele
cheiro nauseante.
- Nojeira dos infernos! -, voltou a imprecar, tentando ao mesmo tempo
concentrar-se na TV. Sentiu o estômago revolver-se em ânsias. Tudo aquilo era,
na realidade, pior do que havia sentido antes. O pavor que tomara conta de seu
ser ao perceber que a velha não resistiria por muito tempo. Por isso ele mesmo
resolvera pôr termo aos sofrimentos da avó. Não suportava mais vê-la sofrer.
- A maldita coisa está morta. Morta e podre. E isso, isso é tudo, cara!
Vamos compor uma canção, escrever versos porque a maldita velha está podre e
continua rindo como se ainda pudesse esperar que algo mais ocorra nos próximos
anos. Ela apenas está morta ao meu lado e já não sofre mais. Isso é tudo,
ouviu? - Declinou exasperado como quem explicasse à própria consciência que
passara a incomodá-lo.
Sentiu o vento gélido adentrando por alguma frincha da sala e atingindo-o
diretamente na nuca. Virou-se sobressaltado. Pela primeira vez sentiu uma
ponta de medo. Se não aparecesse ninguém em mais dois ou três dias no máximo,
teria que sair para o quintal e cavar ele mesmo, uma cova para a velhota.: Um
buraco qualquer e pronto.
- Conquanto seja bem fundo! -, concluiu absorto.
Atirá-la dentro, cobrir com terra e algumas folhas secas e mato rasteiro.
Afinal, ela apodrecera. Observando atentamente, poderia jurar que, algo
começara a mover-se sob o pano.
- Vermes? Deve ser isso: vermes deslizando de um lado para outro. -,
concluiu.
No entanto, sentiu um frio formando um bolo em seu estômago. Um arrepio
danado percorrendo-lhe todo o corpo. Medo. Sem que se desse conta, o medo
absurdo começara a agigantar-se e tomar conta de todo o seu ser.
Espezinhava-o, fustigando sua mente e imaginação.
- Não, não posso deixar-me levar. A velha está morta e isso tudo não
passa de impressões ruins. Talvez o efeito da cerveja, este cheiro...
Um roçagar sob o manto que cobria o cadáver, colocou-o em alerta, tamanho
o susto.
- Foda-se! -, imprecou entredentes, encarando o cadáver da velha
decrépita, morta e recendendo a podridão e coisas ancestrais.
- É isso mesmo, sua velha porca! Dane-se, porra! -, repetiu, dessa vez
vociferando às paredes.
Mas a velha não respondia. Mesmo quando sua cabeça pendeu para o lado de
Phelóphidas, fixando-o com aquelas duas cavidades escuras onde, até alguns
dias atrás, dois olhos moribundos repousavam febricitantes.
Então, Phelóphidas saltou da poltrona e percebeu que a velha parecia
sorrir-lhe. Ocamente. A boca aberta num O de abissal terror. Ele voltou a
encolher-se em sua poltrona. Seu corpo todo tremia de forma incontrolável.
Desviara o olhar mas, sabia que aquela maldita noite, aquela macabra noite,
nunca, jamais chegaria ao fim.......




FRAGMENTOS COTIDIANOS

(Retalho número um)

Bia mirou-se no espelho procurando uma possível, ou melhor, provável
"erupção" na face direita. Apenas e tão somente uma diminuta e violácea mancha
se destacava em sua tez pálida, à despeito do uso ostensivo e desregrado da
maquilagem. Certamente a inflamação de uma espinha interna. Fora a conclusão a
que chegara, enquanto calçava os sapatos de saltos baixos para a lida
cotidiana.
Aos 25 anos, Bia tornara-se uma garota extremamente obcecada por sua
independência. Galgava, rápida e objetivamente, uma escadaria que a levaria,
inevitavelmente, aos mais altos e cobiçados escalões em sua carreira. À
qualquer custo. À qualquer preço.
Proveniente da constrangedora pobreza interiorana, Bia rapidamente se
esquecera da família miseravelmente fustigada e açulada pelo destino
impiedoso. Inconformada com as privações e a deselegância da modesta sociedade
com a qual vira-se obrigada a conviver por muitos anos, Bia decidira deixar
para sempre aquele lugar. Suas amigas, à princípio, apenas afastaram-se
indiferentes para, mais tarde, cultivarem uma espécie de asco e inveja pela
"putinha enrustida" que, visitando o pessoal durante as férias, demonstrava
com seu orgulho e fricotes, o quanto o ser humano é capaz de se deixar
transformar quando empenhado na busca da riqueza e da fama.
Quatro anos depois, aparecera com um "Monza", talão de cheques, cartões
de crédito, roupas ousadíssimas e caras, jóias e, segundo as velhas amigas,
"um jeitinho bem nojentinho e cocô de falar que, botava qualquer um de fígado
amargando".
Contudo, Bia ascendera a ponto de "mostrar para aquela gentinha, do que
era capaz". Até mesmo o ex-namorado que a deixara por uma daquelas babaquinhas
da classe média do lugar, levara " o seu devido choque" quando, caminhando
pela avenida principal da acanhada e modorrenta cidadezinha a vira passando
lentamente em seu incrementado carrão. O ex-namorado, os dois filhos e sua
"gata borralheira" com o bucho inchado esperando mais um daqueles "porquinhos"
que as mulheres dali, procriavam de forma abundante e inconseqüente.
Por fim, rodeada pelos destacados nomes da alta sociedade da metrópole e,
sobretudo, com sua agenda completamente tomada por compromissos relevantes,
esquecera-se de vez daquela gente toda. Inclusive, pais e irmãos.
A mancha ardia e quanto mais coçava-se, tanto mais o comichão aumentava.
E durante o sono, suas unhas esmaltadas, acabaram por ferir levemente o local
que, sangrara e, embora ardesse e tanto coçasse, verificara estupidificada que
não se tratava de uma simples acne inflamada. Mas sim, de um purulento e
asqueroso "vulcão" que tomava conta de boa parte do rosto, estendendo o seu
purpúreo círculo por toda a face, até a orelha e o queixo belamente desenhado.
Desesperada deixara o consultório médico. Nenhum dos especialistas em
Dermatologia, aos quais se expusera, pudera sanar aquele repugnante mal.
Trancafiada em seu apartamento há quinze dias, ao despertar de um sono
intranqüilo e povoado por terríveis e avassaladores pesadelos - desde então
constantes -, no auge do desespero, concluíra que a morte seria sua única
cúmplice naquela degradação lenta e aterradora. O tumor crescera de forma
desmesurada e rompera-se por toda a face, espalhando-se pelo pescoço e se
alongando pelo tórax num vergão sangüinolento, fazendo verdadeiro estrago em
torno de um dos montículos tão cobiçados de seus seios voluptuosos.
Embora houvesse ingerido exagerada dose de barbitúricos, e atirado-se na
cama com uma revista para a qual posara em todo o seu esplendor, beleza e
sensualidade, não deixara a vida que se lhe tornara por demais cruciante.
Apenas caíra em profundo e letárgico sono do qual despertaria ainda mais
deprimida e derrotada. Sua beleza e grandiosidade, foram reduzidas a uma
pústula que a tornara irreconhecível.
Todas as forças que lhe restavam, romperam suas cordas vocais e bailaram
estridentes e agonicas num berro inumano e monstruoso, enquanto o sol ardia
por sobre os espigões de concreto da grande cidade. Em seus olhos muito
abertos, o pavor retratava a sua total demência. Debilmente mirara-se pela
última vez no espelho partido ao meio, a refletir somente o lado direito de
seu corpo. O esquerdo, ainda intacto, não era retratado. Apenas um amontoado
de carnes putrefato fora fixado segundos antes do sol entrar por onde os
vidros haviam sido estilhaçados. As vidraças panorâmicas que davam para o
vazio entre o céu azul e claro e o negror desolado e zombeteiro do asfalto da
rua que ainda bocejava lá embaixo....

(Retalho número dois)

Às duas da madrugada, o cara ficou invocado. Levantou-se da cama de um
salto. Vestiu-se indiferente. Passou um café forte. Fumou dois cigarros
sentado à porta do casebre. A mulher e os cinco filhos ressonavam
inocentemente lá dentro. Apanhou o revólver, alimentando-o com cinco
projéteis, fechou a porta atrás de si e saiu caminhando à esmo pelas ruas
vazias. Fazia frio. As ruas eram longas, sem fim. A vida, o destino, o futuro,
tudo sem nexo. Foi caminhando à passos lentos.
Em alguma esquina, encontrou uma joalharia. Arrebentou com golpes firmes
e ruidosos a vitrina que, acabou se estilhaçando após alguma resistência. O
alarme soava invariavelmente. Um som estridente, monótono, tenso, desafiador.
Atirou duas vezes antes de ser atingido pelos disparos dos seguranças da
empresa.
Madrugada: os jornais rodavam enfurecidos suas manchetes em tinta e
sangue.

(Retalho número três)

Na realidade o rapazola não sabia bem o que estivera fazendo todo aquele
tempo. Era tão somente um garoto ainda. A mãe, precavida, prevenira toda a
família: "O menino me parece com um jeito estranho de uns tempos para cá que,
Deus me livre e guarde se não anda...". Calou-se. Melhor resguardar-se, às
vezes.
A menina, Sara - apenas nove, dez anos -, ela sim, poderia realmente ter
alguma noção do que era aquela coisa. Do que estava se passando em verdade.
Afinal, o pai e a mãe faziam ali, indiscriminadamente, bem à olhos vistos. E
bem que Sara, apesar da pouca idade, já estava se tornando uma mocinha,
encorpando.
O casebre dividido em dois cômodos, separados por um surrado e puído
cobertor, abrigava a família e mais o rapaz que era "meio pancada", filho do
Tião mais uma daquelas "piranhas" através das quais os homens costumam se
descobrir antes de firmar pé e tomar tento botando família.
"Castigo de Deus!"...
"Filho bastardo!"....
"Tinha que dar nisso aí!"....
Lincharam o infeliz do bobinho antes mesmo que a polícia chegasse e o pai
ficasse sabendo dos fatos. Apenas a mulher do Tião permaneceu por longo tempo,
estática, observando a cena: o garoto linchado e a menina Sara de olhos
esbugalhados, com as mãos crispadas, o corpo sem vida sobre o colchão
maltratado....
"Quase uma mocinha, já!"...

(Retalho número quatro)

Era uma ratazana. Dessa enormes e assustadoras. Lembro-me muito bem. Ela
veio se chegando arisca, escarafunchando e deslizando pelos cantos do quarto.
Estacava de repente erguendo a cabeça afilada, sentindo o ar com suas narinas
aguçadas. Tentei esboçar - eu juro -, uma reação qualquer. Tudo o que
consegui, foi permanecer imóvel e aterrorizado. Ela se aproximou sorrateira do
catre em que eu me deitara. Vinha, emitindo uns guinchos estridentes,
experimentando, impaciente, faminta. Não havia som quando berrei. Havia um
túnel liso, sem as cordas vocais, em minha garganta rasgada...
De forma que, por mais que minha mente emitisse o desesperado grito,
apenas um gorgolejar desesperado fruía pela cavidade antes mesmo de chegar aos
lábios. Quando a gorda e aterradora ratazana começou a mastigar minha orelha,
tudo o que pude fazer, foi agarrar-me à idéia que se me roçara pela mente
naquele momento de angustia: "Tudo não passa de um maldito pesadelo".
"Havia mesmo uma ratazana? Ou melhor, há essa ninhada que 'chia e
guincha' agora dentro de algum compartimento em meu corpo? Porquê não consigo
despertar de vez? E mais essa: todos ficam me observando. Dizem coisas que não
ouço, não consigo entender!...
"Quando ela, a maldita ratazana, passou a mastigar minhas narinas, em
seguida os lábios e finalmente os olhos, percebi que não havia dor. Por isso,
somente poderia ser um pesadelo... Senão, é claro que eu sentiria dores
horríveis... Então, deixei que continuasse o pesadelo quando vieram e me
enterraram. Ouvi a terra caindo sobre o caixão. Mas não importa, tudo não
passa de pesadelo e, daqui à pouco, terei que me levantar para o trabalho.
Provavelmente, alguém virá me despertar. É, provavelmente alguém terá que,
necessariamente, fazer isso porque eu mesmo, eu não consigo despertar deste
maldito pesadelo!"...

(Retalho número cinco)

Ora azuis, ora verdes. Às vezes, tendiam para o amarelo de forma
encantadora. Desbotando para um cinza muito claro o que acabava confundindo à
todos que ousavam fitá-lo demoradamente. Vivos, lépidos, sedutores e
sonhadores...
Logo que abrira os olhos - incrível, inacreditável mas, já viera ao mundo
com aquelas duas jóias! -, deixara a todos estarrecidos, boquiabertos. Como
era possível?! Tanto que, durante toda a sua infância, as titias, priminhas e
vizinhas, faziam-lhe a corte. O verdadeiro reizinho de França com sua beleza
embriagadora. Deus exilado do Olimpo. Tão logo atingira a idade para os
primeiros namoricos, Méphis fora inevitável e decididamente "abalroado" pelas
gatinhas. Os amigos afastavam-se dele ante a impossibilidade de uma
concorrência. As cocotas chegavam a se engalfinhar por sua causa.. Loucura!
À princípio, toda aquela balbúrdia não lhe parecera de todo tão má. A
mãe, possessiva, vigiava enciumada o seu tentador garanhão. Até mesmo Félix, o
delicado do bairro, enrustira-se para o seu lado, tornando-se obsessivo em seu
íntimo, a cultivar aquele amor impossível. Idolatria desconexa.
Se à princípio fora algo apreciável, não durou tanto para cansá-lo,
roubando-lhe a privacidade. As garotas todas o perseguindo todo o tempo, em
delírios e desejos mal disfarçados. Aos poucos sua beleza passara a incomodar.
Então fizera, de forma ininterrupta, o uso de óculos escuros. Lançara mão
daquele artifício todo o tempo possível. Contudo, embora procurasse permanecer
no anonimato, tentando camuflar o feitiço de seus olhos, não o conseguia. As
garotas pareciam adivinhá-los.
Tornara-se infeliz. Sentia-se perseguido por legiões de aladas deusas.
Ninfas sedentas e sedutoras tomavam-no de assalto, decididas a possuí-lo. Como
quem possui um bibelô, talvez. Já não conseguia dormir e muito menos, se
alimentar. Definhara em sua estrutura dionisíaca. Contudo, "os malditos olhos"
permaneciam sempre imutáveis, vivazes, seqüestrando as almas. Arrebatando as
tempestivas paixões.
Por incontáveis vezes, dizia à si mesmo que era preferível dar cabo à
vida. Faria qualquer coisa para possuir dois olhos comuns. Como todo o resto
do mundo. Um segundo de paz. Um, apenas. Aquilo tudo acabaria, certamente,
levando-o à total loucura....
Não, Méphis não possuía aqueles dois buracos negros, escavacados,
deformando-lhe as faces e quebrando aquela homogeneidade em sua beleza. Não,
não nascera privado dos globos oculares. Apenas cansado, arrancara "os
malditos" para que pudesse ser um homem comum. Quase igual aos demais.....

(Retalho número seis)

Nada mais o seduzia tanto quanto os carnudos e róseos lábios que,
delicadamente entreabria para, deliciado percorrer com sua ágil e potente
língua. Dali também, após mordiscadas e lépidos beijinhos, em verdadeiros
chupões, sugava o néctar embriagador. De preferência, as sedutoras e
provocantes ninfetas.
Desta forma, passara boa parte de seu tempo com a cara enfiada entre duas
pernas. Extasiava-o a idéia de poder esfregar ali todo o seu rosto e, se
possível fosse, penetrar até o mais profundo daqueles venturosos ninhos de
prazeres e deleites gozosos. Embora as ninfetas fossem, por suas liberdades e
libertinagem, as mais visadas, não dispensava - em hipótese alguma -, a
espécime já adulta e devidamente explorada.
Fora uma dessas. Um jeito provocativo, sensual, adúltero que o seduzira
de forma incontestável. A experiência e voluptuosidade proporcionaram-lhe
novos prazeres. Então rendeu-se aos caprichos da maturidade, afastando-se
definitivamente das pouco sensíveis e bem menos vorazes ninfetinhas.
Era aquele entreabrir; aquele envolver; agasalhar que, num jogo
minuciosamente engenhoso o arrebatara de vez, tornando-o um escravo possesso.
As primeiras sensações surgiam de forma morosa. Era como que um tubo de
sucção, o aspirando e comprimindo com suas paredes úmidas e quentes. À
princípio deixara-se deslizar somente cabeça e pescoço. Logo, ombros e
tórax....
Certa feita, no auge do prazer incontrolável, sentiu-se penetrando até o
mais profundo. Fora o mais louco mergulho. Ela mastigou-o em seu interior.
Degustou-o lenta e voluptuosamente. Ambos possuídos pelo mais contundente e
insaciável prazer. Sufocado procurou o ar. Percebeu que encontrava-se
aprisionado e, por mais que se debatesse, não conseguia retroceder um
milímetro sequer. Ela trancara seus lábios retendo-o em seu interior para
sempre, talvez....
Se encolheu para acertar-se numa posição menos incômoda enquanto pensava
em algo e, somente então, percebera que uma fina, tênue membrana, o envolvera
e que, sem notar, passara a boiar numa espécie de líqüido. Chutou forte,
tentando esboçar uma reação, um protesto qualquer. Em seguida acomodou-se
conformado e resignado..
Afinal, concluiu, o mundo lá fora não era tão seguro assim. Nem mesmo
aqueles lábios já lhe despertavam tanto prazer como presumira até então....

(Retalho número sete)

É absurdo! Contudo, procuro amiúde, lembrar-me do que aconteceu de fato.
Talvez eu tenha somente enlouquecido. A merda é que, por mais que eu procure
me lembrar, mais e mais me vejo terrivelmente inapto a chegar a uma conclusão
que aquiete em meu ser, este estado de desespero e angustia.
Recuo no tempo. Teço teias e fio conjecturas. Sempre, inevitavelmente
acabo me perdendo no embaraço obscuro de lembranças relapsas. Não consigo
definir de onde vim, o que faço e, por mais que eu tente me comunicar com as
pessoas, elas continuam passando sem que me percebam. Abordo-as desesperado e,
em vão, percebo que não podem me ouvir ou sequer, verem.
A única lembrança concreta que me fustiga a mente, é aquele quadro
horrível em que muitas pessoas choravam inconsoláveis à volta de um caixão
lacrado. Em seguida, tudo volta a tornar-se indistinto. Os rostos, as ruas, as
casas. E, de repente, quando começo a me sentir próximo de uma resposta, uma
explicação qualquer para este enigma, sinto algo romper. Ao mesmo tempo em que
mil cenas desfilam morosas por minha mente. Fragmentos da infância, coisas e
fatos desconhecidos, remotos, distantes... Por quanto tempo, afinal. Sim,
quanto tempo ainda?...

(Retalho número oito)

Penso como se houvesse apenas metade. É, meio pensamento. A outra metade,
ele adiava impreterivelmente, sem jamais importar-se com a situação. Na rua,
sorria metade. Metade da conversação, ele travava. De repente, saia deixando
as pessoas esperando. Sem conclusão alguma. No banheiro, driblava a outra
metade. As pessoas estranhavam. Principalmente quando passou a se trajar
conforme sua natureza.
Pensou metade naquela manhã. Metade sonolento, metade disposto, desperto.
Dormira pela metade. Metade dele, ingeriu meia xícara de café que era metade
palha e, meio apressado, meio tranqüilo, saiu para a rua que, para ele,
possuía apenas um lado. O que na realidade quase irreal em seu jeito meio sem
jeito, era somente metade da rua. Meio aceno. Meio cumprimento. Meia olhadela
numa das coxas que passara e não.
A vida toda, metade. A namorada meio impaciente, chamara-o de "meio
homem" e, pela primeira vez em sua meia vida, ficara meio zangado. No emprego,
apelidaram-no "meia foda". Ganhara meia promoção. Metade fora rebaixado no
cargo que exercia pela metade. Nunca dera metade da importância que pensavam
que ele pudesse dar às meias zombarias.
Na metade daquele dia, quando percebera finalmente que sua vida era uma
bosta, meio de saco cheio, colocou metade do corpo sobre os trilhos do trem. O
trem o matou? Nunca soubemos. A outra metade da sua história, jamais nos foi
confiada.....

(Retalho número nove)

Aderbal sentia ímpetos de gritar. Em virtude do pavor que tomava conta de
todo o seu ser. Sempre. Uma espécie de medo sem causas. Ou, no mínimo sem
diagnóstico. Afirmavam os médicos. O clínico geral, o psicólogo, o psiquiatra
e por fim, o parapsicólogo. Nem mesmo o "Pai de Santo" ou o "Médium
vidente"... Nenhum conseguira descobrir a natureza de seu medo. E Aderbal
continuou com o seu medo. Trancado dentro de casa. À sete chaves. Tremendo ao
menor ruído. Gritando frente às sombras. Cultivando pesadelos e,
incomunicável, sentia medo do próprio reflexo junto ao espelho.
Aderbal sentia ímpetos de gritar. Como sentia pavor do próprio grito, não
gritou. Acabou tendo um ataque cardíaco fulminante. Coitado, morreu de susto
por causa do medo. Ou, de sua sombra que fora projetada junto a janela quando,
à luz difusa e bruxuleante, adentrara o quarto para deitar-se.

(Retalho número dez)

Percebera que sua imobilidade era perenal. Ou melhor, por mais que
tentasse, não conseguia mover-se. Mesmo porque, seu corpo havia inchado,
dobrado em tamanho e peso. Sentiu que tornara-se uma figura descomunal.
Totalmente irreconhecível. Estranha. E algo, em algum lugar dentro dele,
começara a mover-se. Lentamente. Tentou concentrar-se para descobrir o que lhe
ocorria, mas sua lucidez, sua capacidade de raciocínio, deixavam muito a
desejar. A mente parecia embotada, anestesiada. Quando aquela sensação de que
algo, realmente se movera dentro dele voltou de forma lenta e pegajosa,
somente então, como que num clarão de lucidez, ocorrera-lhe que aquela coisa
ou, fosse o que fosse, movia-se em seu próprio cérebro. Ou seria o cérebro
quem se movia dentro da caixa craniana?
Relaxou durante alguns segundos, tentando em seguida, amiúde,
concentrar-se. certamente formar-se-ia em sua mentalização, a imagem daquilo
que movia-se dentro dele. Poderia ser que sim, afinal, não custava tentar.
Passara muito tempo concentrando-se. Desistia? Quase. Foi quando uma forma mal
delineada, uma imagem, à princípio amorfa, surgiu-lhe: "Oh Deus! Absurdo!".
Sussurrou entredentes, transpirando à socapa, em bicas, aterrorizado.
Contudo, por mais que parecesse absurdo, ilógico, a coisa passara a
mover-se de forma mais livre e ousada e, era exatamente em seu cérebro que ela
fora aninhar-se. Não, não podia crer naquilo. Quem acreditaria, afinal? O
enorme "bigato", arrastava-se deixando um sulco gosmento por onde passava.
Somente então conseguiu lembrar-se da salada. Alface. Não havia outra
explicação: as larvas! Quantos milhares daqueles bichos nojentos e gosmentos,
em breve, não estariam se multiplicando e passeando dentro de sua caixa
craniana, embotando seu cérebro, deslizando de um lado para outro? Quantos,
afinal?!...

(Retalho número onze)

A madrugada arrastava-se molemente, num fastio que impregnara-lhe a alma
e os pêlos. Deitado na cama, sem o menor movimento, ouvia o badalar das horas
no relógio da torre da igreja matriz local. "Uma bosta a matriz, o relógio,
essa cidade!". Imprecava e sorria feito um "aleijão mental". Heresia. Sequer
atinara que pensamento mais absurdo era aquele. Mas, enfim, era mesmo uma
porcaria. A cama se mexera, realmente?
Cravou o olhar céptico na parede branca à sua frente e, por uma fração de
segundos, pensou ter visto a parede se deslocando lentamente. Para o lado?
Como se de repente, adquirisse vida própria? "Que porra de idéia é essa?".
Melindre, deslize: "Estarei pirando?". Voltou a rir de suas conclusões. A
maneira como formulara a pergunta. Tinha seu jeito. Contudo, na realidade,
voltou a ter a mesma sensação: a parede se deslocara. A cama se mexera. Algo
parecia, seguramente, ceder. "Que merda! Deve ser o peso da feijoada".
Concluiu, tentando afastar aquela sensação intermediária entre o pesadelo e a
realidade.
De repente, era como se alguém lhe houvesse dito algo num sussurro.
Sentiu um arrepio percorrer-lhe todo o corpo, enquanto a cama começara a
flutuar. Lentamente. O que estaria se passando, afinal? Fechou os olhos
tentando livrar-se do medo que começava a tomar conta de sua mente de forma a
se avolumar. Contudo, os sussurros fizeram-no saltar, então já aterrado.
Permaneceu imóvel, transpirando; a respiração ofegante, o coração dentro
do peito aos saltos.. Sombras passaram a brincar em sua frente. Ia começar a
gritar quando o zumbido rompeu seus tímpanos e aquela mão bailou junto ao seu
rosto, suspensa no ar.
O grito restara congelado na garganta que ardia e seu corpo foi erguido
da cama que pousara suavemente após deslocar-se para o outro canto do quarto.
Lá fora, um cão ladrou longamente. Foi quando, sem perceber, ultrapassou o
telhado perdendo-se no espaço infinito e, adquirindo velocidade incalculável,
passou por antigos mundos e planetas e constelações. De forma incompreensível,
pôde perceber ainda que, voltara com a mesma rapidez com que saíra de seu
próprio corpo.
Antes de se perder completamente pelo vale sombrio que o atraía,
puxando-o de forma inapelável, sentiu que algo se rompera e era como se
começasse a cair nalgum vazio abissal. Continuava caindo sempre. Mesmo sem o
corpo. E não conseguia descobrir porque já não havia corpo: ele havia se
desvencilhado de suas sensações que também, lentamente, iam se esmaecendo...

(Retalho número doze)

- Que bosta! - Imprecou. E, segundos depois, não somente imprecou, como o
fez aos brados. Em alto e bom som.
- Bosta! Há uma semana estamos aqui e, até o momento, não parou de ventar
um segundo sequer. Vento e poeira. Terra, terra vermelha, pegajosa!.
Havia poeira por toda parte. Despertava tossindo; a garganta ressequida
tanto pó. As narinas, os olhos...
- Até a alma! Estamos chafurdados na poeira até os cornos! -, berrava
irado.
A mulher temia o vento. Limpava, limpava. E o vento assobiando, trazendo
a poeira vermelha, ancestral. Camadas e camadas acumulando-se dentro da casa.
Até que a situação tornara-se insuportável. Mesmo porque, não podiam abrir
portas ou janelas e, por isso, descobriram que estavam, definitivamente,
isolados do mundo. Do mundo?..
Um dia ele ficou muito danado da vida, apanhou seus tarecos, a mulher e,
enfrentando dunas que impediam as portas de serem abertas, resolveu sair dali
para sempre. Somente então, descobriram que a cidade havia sido recoberta pela
poeira. Era não mais que um deserto. Dunas e dunas que iam se perder distante,
onde nem pensavam em avistar os confins.
- Não te falava, mulher? Essa cidade é uma bosta! Sempre foi!.
A mulher que nunca abria a boca, concordou arrematando:
- Choveu bosta em pó e, babau, cidade!
Os dois iam caminhando. Um vento iracundo, intermitente soprava às suas
costas. Como se fosse o capeta rindo.




MERO ACASO?

Creio que seja feito um mergulho, entende? Quando a existência da gente
chega a um determinado ponto; quando não há mais nada que se possa fazer para
forjar novas circunstâncias que nos levem a continuar acreditando que, com um
pouco de sacrifício, talvez algo possa vir a ser mudado, então tudo o que nos
resta a fazer é o que costumamos usar como um chavão, lugar comum: "mergulhar
de cabeça e ver no que vai dar". E, sinceramente, estou prestes a fazê-lo. Não
há como evitar. Não se pode pensar duas vezes ou esperar e esperar que algo
ocorra. Porque tudo o que podemos vislumbrar, não passa de um beco sem saída.
É como caminhar por algum longo e lúgubre corredor, sabendo o que te espera.
No final deste corredor, bem, todos sabemos o que nos espera, não é
mesmo?
Eles te jogam sentado naquela merda como se você fosse algo diferente,
talvez importante. Prendem todo o seu corpo e te colocam uma coroa. Não é mais
ou menos assim? Uma bela coroa e um negro capuz. Na realidade, todos os reis
que nela tomam assento, não passam de vilões. Quando você realiza seu último
pedido, após o padre resmungar um monte de asneiras que em nada irá ajudá-lo,
então eles baixam a chave e a corrente chega até o seu cérebro. Dizem que dá
até mesmo para sentir o cheiro adocicado da carne. Churrasco mal passado. Mas
isso pode ser somente mais uma dessas piadas de mau gosto. Não pode ser outra
coisa senão uma terrível e patética piada!
Durante um longo período de reclusão, estive meditando sobre a
existência. Sabem essas coisas de família; esposa; filhos; amigos; parentes;
emprego; patrão?.. Você, de repente, sem que perceba, transformou aquele
pequeno apetrecho de passeio em um fardo muito, muito maior e mais pesado do
que você poderia imaginar ou, pensava que conseguiria arrastá-lo de um lado
para outro. Então a mente vai ficando pejada, embotada e começam os problemas.
Os verdadeiros problemas. Mas feito ratos, essas pequenas cobaias de
laboratórios, fomos condicionados: aprendemos a cultivar a paciência, a fé, a
esperança... Essas coisas que nos alimentam interiormente, espiritualmente,
entendem? Não violamos os direitos do próximo porque aprendemos muito cedo a
discernir o certo do errado. Então ouvimos a voz implacável da consciência:
não roubar, não matar, não trapacear, não mentir. E, no entanto, na maioria
das vezes, passamos o tempo todo mentindo para nós mesmos. É incrível como
mentimos quase que o tempo todo para nós mesmos com nossas atitudes, atos e
pensamentos. Protelamos porque mentimos e acreditamos em nossas próprias
mentiras. Vai dar tudo certo. No fim, as coisas acabam se ajeitando. Não há
motivo para desespero, afinal!.
Acreditamos em nosso "Bom Deus!". Como se pudéssemos classificá-lo de
bom, ruim, ou qualquer outro adjetivo. Vamos lá cara! É somente uma fase
difícil e as fases negras, por mais longas e empedernidas que sejam, também
passam. Acreditamos que após a tempestade, certamente virá a calmaria. A
recompensa vem após o esforço determinado, constante e ferrenho nesta labuta
interminável. Sempre damos um jeitinho de acreditar em recompensas e benesses
porque fomos condicionados. Estive meditando sobre essas coisas todas. E
muitas outras mais. Podem crer que sim, rapazes! Eu sempre estive meditando
sobre muitas coisas à minha volta, perceberam?...
Eu disse que, se existe algo para se passar uma existência meditando,
talvez seja sobre a Justiça e o propósito de nossas vidas. Mas as pessoas não
estão muito preocupadas com tais questões. Tudo é tão esdrúxulo, banal,
emergente! Não se chega à lugar algum quando se perde tempo em meditações ou
coisas assim... Ação! Tudo não passa de um átimo de tempo. Mesmo que, às
vezes, pensemos que tudo seja uma verdadeira eternidade em nossas existências
e à nossa volta.
Uma coisa que parece nos consolar é que, há sempre um infeliz pior do que
a gente a se estropiar pelo caminho tortuoso. Sinceramente, não sei até em que
ponto, tal comparação é válida. Se há alguém que esteja pior do que a gente, é
porque, sinceramente, amanhã talvez possamos estar piores do que hoje. Mas
refutamos tal idéia. Está tudo bem, camarada. Vamos lá, o importante é que
jamais abandonemos o barco e sigamos sempre em frente: mãos e braços fortes de
timoneiros.
Mas sempre nos esquecemos dos ratos nos porões e eles, lentamente, estão
fazendo seu trabalhinho sujo. Estão, aliados à ferrugem ou, o que quer que
seja, corroendo o casco do navio e o único propósito deles, é levar-nos à
pique. Falta pouco agora, berram os marujos decrépitos e aterrorizados com
nossa tripulação de fantasmas e sombras mortas recostadas pelos cantos da
embarcação de nossas almas dilaceradas. Contudo, conduziremos este navio até
ao cais mais próximo. Mesmo que estejamos mentindo o tempo todo. Ainda que nem
um de nós acredite mais nesse papo sem nexo. E todos sabemos que, apesar de
marinheiros, não encontraremos em toda a tripulação, uma única alma que saiba
nadar! Pura ironia, mas é a realidade.
Quando fiz referência a reclusão, não quis dizer, necessariamente que
encontrava-me à ferros. Parece estranho ou engraçado mas, somente então,
cheguei a conclusão que, desde criança, sempre fui um recluso. Sempre pelos
cantos, escarafunchando pelas gavetas do cérebro as explicações e o porquê da
vida. A fome, a doença, o medo, a insegurança, a humilhação, o caos.... Talvez
tais questões tenham tomado tempo demasiado importante de minha própria
existência e, por isso mesmo, eu tenha me afastado da convivência natural com
as pessoas e a sociedade. Contudo, é praticamente inútil lutar contra a
natureza das coisas e a nossa própria natureza como seres. De forma que,
acredito na reclusão mesmo estando-se em liberdade. Embora eu também tenha
minhas dúvidas quanto ao que denominam liberdade. Não consigo chegar a uma
explicação sensata quando penso em liberdade na sociedade em que vivemos. Se é
que podemos denominar esse conjunto de fatores e dias que se sucedem de viver.
Ainda que para a maioria de nós, o simples fato de se continuar respirando,
comendo, cagando e fodendo seja considerado viver.
Há exatos, 53 anos, venho pensando no que me refiro a "mergulho". Esta
obsessão incomoda-me de forma avassaladora. Além disso, não tenho conseguido
dormir em paz há muitos anos. As crises depressivas e o que me parece ser o
início de um problema grave de insanidade mental, estão se tornando cada vez
mais constantes. Provavelmente pela idade e um pouco desta vida sedentária
forjada pelas circunstâncias. Digo circunstâncias porque estes são tempos
ruins. Há recessão, desemprego e exploração. Um homem que, aos 53 anos não
conseguiu adaptar-se ao seu tempo e a vida comum, certamente possui problemas
graves. Na realidade, não sei bem ao certo.. Algumas pessoas afirmam. Talvez
estejam julgando o que desconhecem. Provavelmente, nunca tiveram tempo para
olhar em torno delas e perceber o que está se passando. Ou tenham percebido e
continuado com seus passos firmes, seguros, à larga. Com ouvidos moucos e
vistas grossas. Sempre foi mais cômodo encontrar defeitos em outras pessoas do
que alguma virtude. No mais, somos todos perfeitos e isso é o que nos
interessa. Mas eu discordo de tudo isso. Discordo, muitas vezes, de minhas
próprias conclusões. Da maioria delas, quero dizer. Acho que é isso. E isso, é
somente um dos tantos conflitos. Somente um deles.
Mas eu dizia, é necessário, quiçá, não se perder tanto tempo com coisas
fúteis, de somenos importância. Decidir de forma urgente e mergulhar. Ir até o
âmago, até o fundo de tudo e do nada já que, tanto faz quanto fez.. Sobretudo
e particularmente neste caso. Um caso, digamos, um tanto atípico.
Mas tudo isto não passa de um jogo! Um mero jogo, se é que me entendem?!
Talvez, se eu me explicasse melhor... Mas não hoje. Não há tempo para
explicações -, a vida é urgente, o mundo é urgente, tudo... Até mesmo a morte
e, eu não tenho tempo à perder. Vocês acreditam mesmo que o acaso exista? E
que eu esteja aqui por acaso, mera coincidência? Não, não! Todos erramos o
tempo todo, mesmo que acertemos boa parte deste mesmo tempo. Ainda assim.
Então, nada é por acaso e eu, bem, como eu já disse, não tenho mais tempo.
Eu estava dizendo.. Ou melhor, tentando transmitir à eles, parte da
situação. Que a festa que eu jamais fizera estava prestes a chegar ao seu
termo. Quanto mais eu tentava, menos compreendiam ou prestavam atenção ao que
eu precisava dizer-lhes. É engraçado como de repente, assim, sem mais nem
menos, todos tornam-se ocupados demais para perder alguns segundos com o
próximo! Puro egoísmo e, com isso, perdemos muitas coisas importantes. Pelo
simples fato de não termos disposição para lamúrias. Ou ainda, um segundo do
nosso precioso tempo para ofertá-lo a alguém. Por isso evitamos olhar para os
olhos das pessoas. Por isso, mudamos de calçada. Não queremos problemas. Não
temos paciência. Nos deixamos trancafiados em nossos parcos cubículos mentais
e esquecemos o resto do mundo à nossa volta. Nossos corações já não batem
mais! Vão aos trancos, solavancos; disparados e disparatados: como se fugissem
de dentro de nossos próprios peitos. Eu sei disso porque já cometi o mesmo
erro. E nos pegamos abandonados quando mais precisávamos de uma única
criatura...... Conseqüências! Tudo são conseqüências e não coincidências. Não
há tramóia alguma do destino como costumam afirmar algumas pessoas. Mesmo
porque, nós somos o que fazemos de nós. Nos tornamos nossos próprios fantasmas
ou anjos. Verdugos ou companheiros...
Se me permitem, já que consegui estender-me até este ponto, vou tentar
explicar melhor como tudo teve início. Como eu dizia, sempre busquei na
meditação, um ponto de referência que conciliasse o mundo conturbado em que
vivemos e o conturbado "por acaso" em minha mente. Não, não! Eu sinto muito
mas, já não há tempo suficiente para tanto. Estou prestes a mergulhar e não há
como voltar atrás. Se alguém prestar atenção, talvez acabe descobrindo o que
desejo realmente dizer. Talvez...
Não sei se tal mergulho fará com que as coisas se resolvam de vez. Ao
menos no meu caso. Não que eu seja egoísta. Contudo, trata-se de uma questão
de ir até o fim. De buscar um novo caminho, uma nova opção. Não há mais nada
que possa ser feito quanto a tal decisão. Nem careço que me estendam a mão
neste momento ou, venham a julgar este meu ato. Condenável ou não, não importa
mais. Se houvesse tempo!. Ah, se eu pudesse recomeçar e recomeçar e tentar e
tornar atrás!. Não importa. Salto, afinal. Ou melhor, inicio o mergulho e sei
que não existe o acaso. Começo a cair; inicio a jornada. Atroz, veloz, sem
tempo para meditar no que ora faço, deixo-me levar. Tão somente mergulho. Cada
vez mais e mais. Até o fundo. Até o fim. Sei que o poço é abissal. Que desde
tempos idos, ancestrais, de eras inescrutáveis, muitos já fizeram o mesmo...
Nunca soubemos o que, na realidade, ocorreu.
Tentam nos convencer, com algumas teorias e estudos estapafúrdios, que
ninguém consegue. Que tudo não passa de ilusão. Que as conseqüências são
catastróficas e malignas. No entanto, eu já não poderia mais ficar esperando e
dando ouvidos a teorias inconsistentes. Ou mergulhava ou continuaria o resto
de minha existência a rezingar macambúzio e incrédulo contra este mundo e suas
anomalias e percalços. Melhor dessa forma. Continuo mergulhando. Mergulhando,
mergulhando...
Há um momento em nossas vidas que, necessariamente, ou tomamos medidas
drásticas - ainda que choquem e sejam contra todos os princípios da sociedade
e humanidade -, ou jamais sairemos de dentro desta cela abarrotada de
conceitos e costumes preestabelecidos e frustrantes que tanto pregam,
preconizam e jamais são colocados em prática. Um momento em que, ou
mergulhamos ou continuamos acreditando no mero acaso.
É isso!... Por enquanto, apenas continuo caindo. Não sinto nada, para ser
sincero. Apenas meu corpo pede descanso e minha alma paz. Infelizmente, não
posso fazer nada. Sou somente um ser que acaba de mergulhar fundo e... Bem,
vocês sabem que não existe acaso!... E ainda que houvesse, já não há mais
importância alguma em tudo isso. Sinceramente, não há!... Vocês sabem disso...
Afinal, sou somente um homem desesperado em busca de paz e conforto para minha
mente e minha pobre alma malfadada a tantos percalços!.
Provavelmente o que vou relatar, poderá soar de forma irônica, contudo,
de repente, começo a perceber imagens, sons, fatos ocorridos e mal delineados
de quando eu era tão somente uma criança.. Como se.. Ora, como se isso tivesse
alguma importância diante das manchetes dos jornais: "DOENTE MENTAL PRATICA
CHACINA E SUICIDA-SE"... Como se algo mais realmente tivesse alguma
importância!...




AVERSÃO

Caminhava de um lado para outro da sala mortuária. Vez em quando estacava
e mirava o rosto da velha. Setenta anos, obesa, contudo, bastante forte para a
idade e alguns bons quilos a mais.. Botava tento nas feições da mulher e
pensava que, "a porra da dita cuja nem parece estar morta". Mas estava! Haviam
amarrado-lhe o queixo com um lenço para que mantivesse a boca fechada. "Nem
dentro do caixão a filha de uma cadela não consegue manter esse vaso sanitário
fechado!". Rezingou mentalmente. Os olhos não houve quem desse jeito: duas
bolas de vidro sem vida a mirarem o outro lado. Ou estariam zombando dele,
Regoberto?
- Velha caninana! Jararaca! Cafetina desgraçada! - Sempre alterado,
berrava para dentro. Em seu âmago e vezo atormentados.
- Você não presta, rapaz. Nunca prestou. Sabia disso desde o momento em
que botei os olhos em você, seu tipinho desqualificado! - Dizia-lhe a sogra,
durante os embates. Ele espumava de ódio. A filha e esposa Risoleta,
choramingava pelos cantos magoada, maltratada e prestes a um colapso.
- Ó velha linguaruda dos infernos!
- Biltre! Safardana! Inútil! -, retrucava a sogra.
Apesar das diferenças, da aversão acompanhada pelo palavrório picante,
terminavam cansando-se daqueles duelos acirrados que, iam amainando,
apascentando o ódio e recolocando os humores em seus devidos lugares. Somente
então, Risoleta deixava de chorar e fungando, corria para a cozinha passar um
café fresco para os dois. Ele fazia fita. Preferia se aquartelar, ofendido. A
velha nem se dava. Mais de um ano morando com a filha. Ou melhor, com o casal.
Esse negócio de casamento é uma porra delicada. E sogra, já viu, né:
encrenca na certa!-dizia-lhe Honório, o amigo e compadre.
- Fazer o quê? Mandar a velha para um asilo? Para alguma pensão de putas?
- questionava Regoberto irritado e na defensiva.
- Pois é.. A vida tem dessas e outras!.
Grande filósofo que tu és sua mula, seu semovente, ruminante! -,
destrambelhava Regoberto ofendendo e não, seu amigo e compadre Honório,
voltando a concentrar-se na garrafa de cerveja sobre o balcão
Permaneciam longo tempo naquele silêncio abissal. Terminavam uma, o
garção trazia outra, mesmo que não houvesse sido solicitado. Ia marcando na
conta. Os dois ruminando idéias, absortos e ensimesmados. Regoberto macambúzio
já nem se lembrava mais do velho companheiro ao seu lado: destrambelhava
destemperado pelas searas do padecimento. Cruz que carregaria até quando?
Somente Deus sabia! Velha danada de forte, boca de bueiro, fossa, palrava
pelos cotovelos, à sorrelfa. Dava baixaria por nada. Difícil chegar à bom
termo; sem esculhambações e um "vá-à-puta-que-a-pariu!". Se a porra da sonsa
da mulher nada mais fazia que chorar?
Nem de um lado, nem do outro. Mirradinha, aflita, se retorcendo num
canto: chorando e rezando; rezando e chorando. Certa feita, fizera xixi nas
calcinhas quando Regoberto, no auge da contenda, ameaçou transformar a velha
em peneira com uma faca de cozinha. Pobrezinha da mulher! Tinha culpa daquelas
desavenças? Nem tinha nada que.. Em verdade, tratava-se de uma santa.
Baixava na mesa, mais um "quebra-gelo", pura, branquinha. Em breve, os
dois sairiam dali escorando um no outro, indo baixar no bordel da cidade.
Risoleta sabia. Não se importava, conquanto que "tornasse ao lar, o seu
querido bem". A velha, muitos anos de padecimentos nas mãos do genro, percebia
odores e olores outros: cachaça e perfume de mariposas. Caía de pau em defesa
da filha. Tinha que meter a colher em sopa dos outros? Regoberto observou
atentamente as feições cadavéricas da falecida e sentiu um calafrio: "A
desgraçada está se rindo". Encanou com a idéia que fixou-lhe na mente.
"Não. Afinal os mortos não ficam rindo assim, assim... sem mais nem
menos". Procurava aquietar no peito, o coração aos solavancos. Velha tinhosa.
Megera indomada. Não era esse o nome da peça? Iam-se distantes os bons tempos!
De namoro. Conversa na sala. O sogro, "um gentleman". Cavalheiro. Pobre homem
transformado em gato e sapato por aquela desalmada! Certamente havia morrido
de desgosto em ter que viver ao lado da megera. Venenosa!
Dirigiu-se até à cozinha. Tragou dois cafés. A cachaça que havia
escondido já era. Fumava absorto lá fora. Solitário, observando a longa
alameda florida: Avenida da Saudade. "Que o raio a partisse!". No céu os
astros forravam o manto negro da noite morosa, dolente, capenga e
inesquecível. O sogro sofrera um enfarto fulminante. A porra da velha ficara
dando trabalho durante um ano com aquele maldito derrame. Coisa de maluca.
Toda mijada na cama. Cuidados especiais. Roendo a herança. Uma casa vendida
somente para o tratamento inútil. De bom mesmo, somente a enfermeira:
"gostosa, uma coisa de louco!". Deixava o compadre com água na boca. Passara
nos beiços, na beira da cama da velha moribunda. Somente pirraça, vingança.
Prazer mórbido. Valera a pena, afinal.
Poucas pessoas ressonavam nas cadeiras em torno do ataúde. Pronunciara
"ataide". Meio de pileque:
"a velha agourenta dentro do ataíde
olhos arregalados
queixada amarrada
o que é, Mané?
porra, é minha sogra
um monte de estrume e mais nada!".
Emitiu um sorriso irônico, sarcástico. Pura maldade. Que se fodesse a
alma da velha! Quem gosta de velha é asilo e cemitério mesmo...
O compadre Honório roncava num banco da saleta ao lado. Roncava, babava e
soltava gases. Muito mais que a velha apodrecendo dentro do caixão. O filho de
uma vaca tomara todas, chorara falsamente nos ombros do amigo e da comadre
Risoleta, bafo de cachaça difícil se suportar. Deu pêsames até para coveiros e
se abancou, escorregou no banco e adeus viola! Folgado. Era outro que carecia
de uns bons sopapos nas ventas.
Regoberto ruminava. Ruminava Regoberto. Quase toda a herança com remédios
e enfermeiras e consultas e os cambau! Sacrifício e desperdício inúteis!
Carecia, decerto? Salvavam a velha? Deixassem morrer logo. Cessavam os
sofrimentos e poupavam-lhe a dinheirama que enfiaram no cu daqueles médicos
lazarentos, larápios e salafrários dos quintos. Acendeu um cigarro no toco do
outro e continuou caminhando de uma lado para outro, mirando as estrelas
luzindo no céu. Não amanhecia nunca? Enterrar a velha, o passado, recomeçar.
Até depois de finada a desgrenhada continuava atazanando e apoquentando.
Paciência Regoberto! Paciência, meu filho!
Mas que paciência o cacete?! Saco cheio da vida, da defunta, do velório,
do compadre, da Risoleta e seu choro infindável, sem consolo que bastasse e
sem tréguas. A droga da velha era coisa remota. Recendia a mofo e poeira
ancestrais. Coisa de era idas. Então, chorar para quê?! Não sofrera com o
padecimento da mãe? Melhor tivesse ido mais cedo e poupado tantas dores para
todos. A vida é essa zorra mesmo e quem dá jeito em merda se, quanto mais se
fuça mais fede?
Fez meia volta. Estacou. Bateu continência para a capela com o cigarro
entre os dedos. Riu daquela palhaçada. Lembrou-se do serviço militar. Jovem,
muito jovem, Regoberto já era! Havia se desgastado com aquelas noitadas.
Maltratado e, inconcebível, mas já começava a broxar de tanto enfaro da vida.
Compadre Honório não se mancava não? Cinco filhos e o danado não saía da zona
do meretrício. Ele, Regoberto, cinco anos de casado e nada de filhos. No
médico: "falta de líquido espermático". Sinsenhor. Concordara com o médico.
Queria dizer: "que se foda o líquido, a porra e fui!". Fez o tratamento? Que
tratamento? Enjoasse daquela vida, adotava um molambento qualquer e jogava no
colo de Risoleta que, duvidasse acabava criando leite nas tetas. Mulher é
assim, um bicho estranho que, sabe-se lá em que pensava o criador na hora de
botar essa obra de arte num mundo tão atribulado?! Fez arremesso de bituca.
Consultou o relógio de pulso. Resolveu voltar para dentro, ver as coisas como
iam.
Caminhava lengando uns passos sem vontade alguma. Pensando vazio, sem
nexo, na morte da bezerra. "Da vaca velha". Reconsiderou. Sem mais, sentiu um
dó da pobre velha. Havia sofrido um tanto e mais. Talvez, até mesmo, viesse a
sentir saudade da jararaca. Afinal com quem mediria forças? Bateu um
sentimento de piedade, uma coisa estranha... Pensou: "Era o que me faltava,
acabar chorando por causa daquele amontoado de pelancas e veneno". Mas também
não era assim. A velha tinha lá suas razões. Não era nenhuma toupeira. Mulher
vivida e sagaz estava ali. Pena, estirada dentro de um caixão. Amanhecesse ia
para debaixo da terra comer capim pela raiz. Riu da tirada. Comer capim pela
raiz. Não conseguia se lembrar de onde ouvira aquela mas, tinha outra da mãe
do sujeito que, havia cometido suicídio. Mas como? Com cinco facadas nas
costas. Gargalhou. Aquela era ótima. Muito boa mesmo. Suicidou-se com cinco
facadas nas costas. Porra!, era o máximo. Resolveu protelar. Contornou o
canteiro e voltou a subir a alameda. Pensando besteiras.
Tornou a consultar o relógio. Talvez todos estivessem dormindo no
velório. Velório sem cachaça e piada fica uma coisa monótona, triste, sem
graça. Aí vai baixando aquele sono irresistível e não tem quem suporte. Vez em
quando um soluço, um suspiro dolente. Coisa mais maçante! E as horas, então?
Uma eternidade! Arre que, não voltava lá senão quando chegasse o momento de
baixar a sogra para a cova. No mais, quem iria se lembrar que ele existia numa
situação daquelas? E veio-lhe a lembrança da velha. Transformando-se em
imagem. Fantasma iracundo, furioso, bufando feito o demo com a desfeita.
Arrepiou-se todo.
Ponta de medo? Estaria sentindo uma fisgada de medo, realmente? Ia pela
metade da longa avenida já pensando em tornar ao velório. E se a porra do
fantasma da velha aparecesse naquele exato momento, ali, assim, sem mais nem
menos? Ainda mais com aquele funesto lenço amarrando-lhe a queixada, a boca
toda retorcida, contorcendo-se numa risada e imprecando contra seus
pensamentos e sentimentos ao mesmo tempo! Olhou para os lados, para trás. Vira
um vulto lá no alto, realmente? Esforçava-se para descartar tais pensamentos.
A mente embotada e abatida pregando-lhe peça às custas da falecida. Afinal, a
pobre velha não era lá tão má assim...
Era! O pior é que tinha a certeza absoluta que, se ela pudesse erguer-se
daquele caixão e sair atrás dele somente para pregar-lhe uma boa peça, ela o
faria sem remorsos. Decerto não conhecia a velha jararaca? Uma vez na vida,
duas na morte porque, com os mortos não se manga que é coisa séria. O capeta
atenta. Alma de coisa ruim, em anjo é que não se molda. Também, já estava com
o saco cheio daquela megera! Se aparecesse metia-lhe logo umas bordoadas e
capaz de se atracar com a alma da defunta e sair rolando alameda na maior
pancadaria da história. Velha ranheta dos quintos!.
E o vulto tornou a surgir lá no alto. Desta vez bem mais nítido com sua
saia longa e suas madeixas brancas. Ilusão. Mera ilusão. Concluiu sem
concluir, já com intenção de fazer meia volta e bater em retirada. Olhou para
trás, lá embaixo e.. lá estava o vulto. Ou melhor, a alma da velha bruxa. Foi
então que começou a bater o desespero e o sem saber o que fazer. Não iria se
borrar todo feito uma criança. Muito menos rezar para uma alma penada que, em
breve, estaria ardendo no fogo eterno. Que se danasse. Parou por ali mesmo.
Nem subindo, nem descendo. Nem mirando lá para o alto, nem lá para baixo. Com
o olhar meio que nos próprios sapatos. Bons sapatos, brilhantes. Acendeu outro
cigarro...Trêmulo e acuado.
Desviava pensamentos e atenção daquela imagem a refocilar as caraminholas
e os interiores de sua mente que o transia tanto o medo que crescera num
repente. Buscava puxar pela memória algum fio de descaso com aquele fato
absurdo. Cismava a divagar mirando estrelas que fugiam-lhe impiedosas. Coruja
piando em madeiro de cruz? Agouro de alma purgando, recendendo à enxofre e de
pauta com o Satanás a choramingar preces emergentes. "Velha desgrenhada!".
"Espectro das profundas!". Ia classificando a alma e a memória da sogra em
revolta e desespero ousando erguer a cabeça mirando alto e baixo. Foi então
que Regoberto travou de vez.
Travou porque, buscou experiência e coragem: ousava avançar dois passos
para cima, o fantasma da velha acompanhava seu malogro realizando movimento
contrário: dois passos para baixo, ao seu encontro. Inverteu o processo em
sentido à capela lá embaixo: a velha volitou dois passos em sua direção.
Pegou-se a rezar. Ou melhor, tentando articular com o resto de lucidez que lhe
restava, tal artimanha.
Cristão arrependido, murmurava sua prece trôpega sem atinar-se que,
quanto mais o fazia, mais distante se tornava a imagem do Senhor por quem
implorava contritamente aflito. Porquanto se esforçasse com fervor, a prece
diluía-se em frases incompletas, misturando o que aprendera em criança durante
as aulas de catecismo e as "palhaçadas" em adulto, à mesa de bar, cônscio e
senhor de si frechando o mundo invisível com suas tiradas irônicas. Afinal,
jamais acreditara em alma penada, assombração ou vida pós morte. Por fim,
questionava-se em seu descalabro: "Onde a misericórdia do Pai?!". Que levasse
a alma passarinha agourenta de vez, oras bolas!
Perdido. Balbuciou perdão torto, roto, sem consistência ou fé. Sem valia
o que não se crê. Tarde. Demasiado tardia a tentativa em enraizar crença em
cabeça de burro velho e empacado em sua casmurra teoria de que "banquete de
vermes não torra paciência dos vivos e muito menos vem emputecer a mente já
pejada tantos problemas cotidianos". Gritar não que, mesmo que tentasse, não
conseguiria. Sem cordas vocais. Correr então? Fora de cogitação que, "pernas
para que as quero, haviam sido roubadas". Desamparado e sem muletas de crença
alguma, deixou-se paralisado pelo pavor. Tardio arrependimento!
Tornou a ousar: erguia um olhar temeroso. Se uma já era por demais, duas
almas então? Fardo para centro de macumba. Osmose de mentalidade mediana e
imprecavida? Fosse lá que fenômeno estivesse ocorrendo - pensou em fotogênese
-, passara dos limites. Que porra aquilo cada vez mais se aproximando sem
tocar com os pés no cimento da alameda? Cerrou fortemente os olhos álacres. Há
poucos centímetros, a velha - ou o que fora um dia -, estendera-lhe a mão com
um sorriso de escárnio nos lábios gretados que, apesar de amarrados pelo
lenço, entreabriam-se o suficiente para exalar um sopro que pairava no ar
estagnado como se fosse uma espécie de som onomatopéico imitando o "Regoberto,
querido!".
Já não havia como fugir do contato gélido, encalacrado na mente e na mão
que, sem se dar conta, ele mesmo estendera. A alma da velha jararaca! Unidos,
as mãos coladas firmemente, a alma da velha já não se sentia tão só, a
conduzir seu parceiro de contendas pelas veredas da insanidade.
Ria, chorava, imprecava, gargalhava, babava-se e, soltando a bexiga
lentamente, Regoberto deixava-se conduzir pela alma que ninguém além dele,
poderia ver ou saciar......




GÓIA

Góia encontra-se sentada no canto do cômodo vazio. Está trajando somente
uma minúscula calcinha branca de rendas. No sorriso, reflete seu espírito
irônico. Espelho da alma. Seus olhos são negros e profundamente vivos feito
estrelas fulgindo em noite sem luar. Acompanho seus movimentos com as pernas.
O vai-e-vêm de suas coxas bem torneadas que se abrem e se fecham deixando
entrever o montículo de pêlos púbicos. Seu monte de Vênus. A deusa debochada
do mundo amorfo dos párias. Góia também me observa atenta. Meu corpo nu
contrasta com sua formosura. Sou todo decrépito e sem carnes. Apenas e tão
somente, peles recobrindo a ossatura raquítica.
- Você é tão apático.... Sei lá!... -, ela me diz de repente, sem mais
nem menos.
- É, acredito que sim. -, respondo com acentuada indiferença. Não dou a
mínima importância aos comentários tecidos por Góia. Ela sabe disso tanto
quanto eu.
- Talvez seja a morbidez...
- Não sei a que você está se referindo. -, respondo com a mesma
indiferença. Em seguida acrescento -, talvez seja a sua presença.
Ela abre as pernas estrategicamente. Posso ver melhor a abertura de sua
vagina por baixo do tecido. Ela sabe o que está fazendo. Adora provocar.
Disfarço. Se eu acabar perdendo a paciência, vamos terminar discutindo. Por
isso, forço-me a permanecer calado o máximo possível. Enquanto ela continua
com seu jogo de putinha provocadora, abre um sorriso sensual. Bela. Sua beleza
e suas formas são capazes de deixar qualquer sujeito, por mais indiferente que
seja, maluco. Sinto vontade de torcer-lhe o pescoço, morder-lhe os seios até
sangrar. Seus lábios carnudos, a língua que passeia de um lado para outro de
forma sensual... Tudo não passa de um jogo. Ela sempre encontra uma forma de
me provocar. Estou ficando excitado e irritado ao mesmo tempo e Góia sabe
disso, a filhadaputa!
- Você é um grande sacana, sabia? -, pergunta-me com ares de colegial.
- E você, uma verdadeira putinha. Uma cadelinha que sabe muito bem o que
fazer para encher o saco e torrar a paciência de alguém.
- Você gosta, sua bicha enrustida.
- Acho melhor você não começar com esse papo sacana de "bicha", "fresco"
e sei lá o que mais.. Sinceramente! Não consigo entender como você pode ser
tão hipócrita, minha freirazinha disfarçada de vaca. Qualquer dia desses, juro
que acabo torcendo seu lindo pescoço até transformá-lo em frangalhos. Sinto
não poder fazer isto agora. Não nas condições em que me encontro. Contudo,
você sabe muito bem que não pode me manter aqui assim por muito tempo.
Sua risada espalha-se pelo quarto. Permanece por alguns segundos pairando
pelos ares e desfaz-se em estilhaços. Góia é assim. Sempre foi terrivelmente
maquiavélica e pirada. Completamente doida. Sempre ultrapassando todos os
limites. Testando a porra da paciência da gente. Penso em matá-la. Talvez
fosse melhor. O amor é algo estranho, às vezes. Não sei!. Acredito que mais
dia, menos dia, acabo matando Góia e, direi que tudo não passou de uma prova
de amor. Deus!, como amo essa vagabunda, essa cadela endemoninhada!.
Certa feita - não sei porque, mas ocorreu-me recordar o fato justamente
neste momento em que tento não prestar atenção nos seus gestos provocativos -,
viajamos mais de setenta quilômetros de carona por uma rodovia interestadual
até chegarmos a uma cidadezinha encalacrada em algum buraco sem saída. Ela
simplesmente tomava uma decisão e eu a acompanhava feito um cachorrinho de
estimação. Durante a viagem, passara o tempo todo alugando o babaca que nos
apanhara na estrada. O sujeito estava puto com a minha presença e sabia que
não ia rolar nada. Absolutamente. Mesmo que eu saltasse do carro e os dois
fossem para algum ermo. Góia já havia traçado seu plano e durante toda a
viagem, era somente o que tinha em mente.
Adentramos aquele lugar estagnado e poeirento numa boa caminhada de três
quilômetros. Eu somente a seguia. Ela fumava um baseado e ria o tempo todo. Eu
me pegava profundamente irritado e comecei a sentir-me enfarado com tudo
aquilo. O centro da cidade não passava de uma praça, uma igreja velha caindo
aos pedaços e alguns casarões coloniais. "Mais uma roubada!". -, eu havia
pensado naquele dia, sob um sol escaldante e uma temperatura em torno de
quarenta graus. A casa que ela procurava ficava bem no centro. Mais dois
passos e sairíamos fora do mapa. Havia um sujeito alto, moreno, deitado em uma
rede somente com um calção largo, os bagos de fora. O sujeito ficava me
olhando o tempo todo e alisando os ovos. Não sabia qual era a dele mas ele
descobriu o que eu tinha para lhe dizer em pouco tempo. Eu estava usando
coturnos. Ergui-me da cadeira de palhinha e enfiei-lhe o bico do coturno bem
no meio do saco. O cara urrava e começou a rolar pelo chão. Saltei para a rua
e me mandei sem olhar para trás. Acredito que Góia tenha permanecido por lá
durante uma semana, lambendo o saco do cara e transando com ele. Era dessa
forma que ela agia e sempre agiu, a vagabunda.
- Sempre achei que você fosse uma bicha enrustida, cara. - Ela recomeça a
falar, tentando me provocar. Faço ouvidos moucos para seu papo. Não quero
conversa fiada. Então ela volta à carga:
- Sabe de uma coisa? Acho que todo poeta tem seu lado bicha. Coisa mal
resolvida, entende? Você sempre foi um desses tipos que jamais se definiram de
verdade. Por isso, nunca senti vontade de transar com você. Além disso, não
podia. Não ia conseguir. Sinceramente, você sempre foi o único amigo que tive
que jamais fez alguma coisa por mim sem pedir que eu abrisse as pernas logo em
seguida. O irmão que eu sempre sonhei....
- Vá te foder, Góia! Irmão o cacete! -, respondo com certo asco do papo
furado.
Ela se ergue morosa e, recostada na parede de cal branca, fica me
observando. Sei que ela está ruminando seu desprezo. Uma côdea de ódio e outra
de amor. Acho que estou ferrado. Olho à minha volta e me ocorre que,
simplesmente não há saída. Os caras que Góia contratou para cuidarem de mim
estão lá fora esperando. São sádicos, contudo, servis. Ela dirá o que fazer
quando achar que chegou o momento. E eles, bem, simplesmente obedecerão feito
dois cães de guarda.
De forma brusca, Góia precipita-se ao meu encontro. Seu tênis acerta meu
estômago. Tento me curvar pensando em amenizar a dor mas é impossível. Estou
com os dois braços algemados e os pés amarrados de forma a permanecer imóvel.
O suor começa a brotar em bagas por todo o meu corpo nu. Cerro os olhos
enquanto cravo os dentes nos lábios para não berrar. Ela emite uma gargalhada.
A única vaca que emite risadas de escárnio. Abro os olhos e ela está entre
minhas pernas. Descalça o tênis do pé direito e começa a alisar meu saco e
minha bunda. Não quero sentir nada. É inútil, eu sei. Góia também. Ela
controla a situação e meus sentimentos. Sabe de cor cada pensamento que se
passa por minha mente embotada pela dor. Seu pé desliza sobre meu corpo, ela
esfrega o dedão em minhas faces molhadas. Em seguida brinca com meus lábios.
Eu abro a boca. Não quero sentir dor. Estou farto da dor. Ela sabe disso e tem
certeza que não vou arrancar-lhe o dedo do pé com uma bela dentada, embora
fosse meu desejo. Em seguida posso presumir o que ela fará, a vagabunda.
Abrirá as pernas, afastará a calcinha e forçará a bexiga até se aliviar em
cima de meu corpo. Ela sempre faz isso. É seu jeito de me humilhar e sentir
prazer ao mesmo tempo. Eu preciso matá-la. Não sei como mas é a única solução.
Antes que ela resolva colocar um termo em toda essa palhaçada.
Naquela noite. Após deixá-la com o sujeito. Caí na estrada e voltei para
a casa de meus pais onde permaneci trancafiado durante quarenta e dois dias na
frente de uma máquina de escrever. Foi um processo doentio, patético, que
quase levou-me à insanidade. Eu somente escrevia e escrevia. Sem importar-me
com o que ou se tocaria fogo em tudo tão logo terminasse. Eu estava somente
varrendo os porões sombrios da mente e da alma. Se não o fizesse,
provavelmente acabaria me atirando do alto de algum prédio. Enquanto isso,
Góia cuidava do imbecil e seus bagos com a marca do meu coturno.
Continuo concentrado, forçando a mente no que aconteceu durante aquele
período porque a cadela está fazendo seu trabalho sujo sobre meu corpo neste
exato momento. Penso: se não estivesse imobilizado... Enquanto Góia continua
com seu sadismo e posso sentir o líquido quente em jatos esparsos me atingindo
o peito.
Pneumonia. Após todo aquele tempo ingerindo aquelas malditas anfetaminas
e alguns barbitúricos, pesando não mais que 45 quilos, sem dormir e sem me
alimentar, acabei despertando numa cama de hospital. Não consigo me lembrar
mas, creio que aquela fora a terceira vez que eu ficara doente em decorrência
de meus atos e reclusão doentios.
A enfermeira é uma mulher gorda, durona, de gestos decididos e sobretudo,
sem o menor sinal de quem deseja fazer amizade com seus pacientes esfarrapados
e implorando pela convalescência. Somos em três, eu, uma velha senhora e uma
jovem de cor que, passa mais tempo trancafiada no banheiro fumando às
escondidas do que, propriamente no leito. Ela carrega o frasco de soro e o
pendura em um gancho na janela. Nos preocupamos tanto com nossas doenças que,
fumamos as gimbas um do outro.
Todas as manhãs, a enfermeira volumosa aponta para uma balança no canto
do quarto. Confere meu peso e em seguida manda que eu sopre num cone inverso.
Não dá! O bocal é demasiadamente largo e tudo o que consigo é emitir um halo
sem forças. Ontem ela colheu sangue de alguma veia junto a virilha. Com tantos
lugares para se picar... A velha senhora - lembro-me de fragmentos que
continuam em minha mente -, naquela noite, permanecera muito quieta, imóvel.
Sem rezingar ou tossir de forma desesperada. Na calada da mesma noite, devo
ter cochilado e pela manhã, ao despertar, a velha já não se encontrava mais
lá. Perguntei por ela mas ninguém me deu uma resposta. Somente mais tarde
cheguei à conclusão que ela havia partido desta para a melhor.
Finalmente a maluca terminou o seu serviço e perdeu todo o interesse que
me dispensava. Sinto-me aliviado tanto quanto ela porque, de repente, ela vai
entrar em depressão e ficar esparramada num canto olhando para o imenso vazio
que é sua existência e o mundo à sua volta. O fato ocorre ao final de cada
sessão. A tresloucada não precisa viver desta forma. Os pais são ricos e, no
entanto, ela vive suas aventuras de "bicho grilo", hippie mal resolvida e
problemática. Chafurdando as narinas no pó, queimando erva ou tragando vinho
vagabundo em companhia de uns tipos inúteis e umas piranhas da barra pesada,
como se fosse, realmente, encontrar solução para seus conflitos interiores e
espantar seus fantasmas mentais mergulhada no inferno das drogas. E eu que
pensei, de alguma forma, com meu patético amor, pudesse tirá-la daquele beco
escuro, arrastando-a para alguma nesga de luz. A literatura e a música são
nossos elos. Da mesma forma que o teatro, o cinema e os movimentos artísticos
e culturais continuam nos prendendo com toda essa paranóia. Amor e ódio. O
medo subjugando nossos sentimentos mais simples e "amolecados".
- Você está fodido, cara! Eu juro que vou esmagá-lo como se faz com uma
pulga, entendeu? Está me ouvindo sua bicha?.
Neste momento tem início a sessão tortura, parte dois. Góia desbunda a
falar sem eira nem beira, como se fosse uma puta desesperada que não conseguiu
chegar ao orgasmo. Penso no descontrole emocional que um drogado pode chegar
em caso de não conseguir o maldito "barato". São tão dependentes e frágeis
escravos que matam por causa de um bagulho de bosta de vaca enrolado na palha.
Góia é mais ou menos medíocre quando neste estado. Ou melhor, talvez seja
muito mais do que isso: inteiramente ridícula e horrivelmente exposta.
- Não está prestando atenção no que estou tentando te dizer, cara! Está
se fazendo de desentendido e dando uma de besta para cima de quem, hein? Não
me olhe desta forma, está sacando? Você me causa asco quando me olha assim.
Você não consegue mais ficar de pau duro quando eu urino em você, seu viado,
seu puto? Não, não vai conseguir nunca mais porque, o medo já tomou conta da
tua cabecinha de ameba. Você não passa de um monte de merda sonhando em ser
poeta ou teatrólogo ou sei lá que porra que não se define. Deseja tudo ao
mesmo tempo - multívolo, não é? -, e não é nem uma coisa, nem outra. Eu saco
gente igual a você, seu puto. Mas eu vou te ferrar desta vez, cara. Ouça isto:
você vai se foder!
Permaneço calado e estático. Não vou irritá-la ou dar-lhe motivos para
que convoque seus cães de guarda para mais uma sessão de porradas. Talvez eu
nem suporte mais uma dessas demonstrações de quem é que manda. Com Góia é
sempre assim: "quem é que manda". Não importa se vai ter que rolar cartões de
crédito, folhas de cheque especiais do pai ou da mãe. Para ela, quando seu
ódio se sobressai, nada permanece inatingível ou irrealizável. Se Góia deseja,
então, nada pode ser considerado obstáculo em detrimento de seus desejos mais
absurdos. Continuar me mantendo cativo e a espera de algum fim inimaginável é,
possivelmente, o seu maior desejo nos últimos vinte dias. O que Góia não sabe
é que, após os dois últimos meses em que não nos vimos, ou seja, para ser mais
exato, o período que passei na casa de meus pais e no hospital, deixaram-me
terrivelmente debilitado e apto a uma recaída que, acredito, poderia ser fatal
dado meu estado. Estou numa pior e a filhadaputa não percebe que posso me
"mandar desta para outra estação à qualquer momento". Enquanto penso de olhos
fechados e transido pelo pavor que me abarca, Góia faz um sinal. Quando abro
os olhos, seus dois "jagunços" encontram-se de pé, ao meu lado.
Os meus olhos procuram os de Góia. Ela baixa a cabeça e vejo brotar um
sorriso de seus lábios. Talvez ela presencie pela última vez, a "terceira
parte da sessão quem manda". Foi o adjetivo que encontrei para qualificar esta
merda toda. Os caras parecem uns gorilas e adoram espancar, queimar com
cigarros, introduzir coisas, cuspir e, como se fossem adeptos da tara de Góia,
mijar sobre a gente. Sinto-me um verdadeiro cano de esgoto. Tento manter
contato com a vagabunda sem despertar a ira de seus cachorros. Mas ela
continua impassível. Permanece com aquele maldito sorriso sádico nos lábios e
me observa de soslaio, como se fosse mergulhar novamente em seu mundo de
delírios e ficar dando voltas em seus labirintos mentais.
- Góia, por favor! -, tento desesperado interromper o processo de transe
no qual ela vai se deixando adentrar. Contudo, ela seria a única a ouvir-me.
- Por favor!... -, volto a sussurrar quando o pontapé me atinge a altura
dos rins. Contorço-me e mesmo algemado e amarrado, o que resta de meu corpo
parece responder aos estímulos brutais. Um soco nos lábios abre um sulco por
onde o sangue brota de forma abundante. Finalmente, resolvo deixar. Vou deixar
que me chutem, me soquem e me arrebentem até que tudo se finde. Não posso mais
suportar essa situação. Góia já se encontra "do outro lado, perdida e
inatingível". Sei que ela não me ouviria e nem ouviria mais ninguém porque
encontra-se em verdadeiro transe. Outra personalidade - há várias que se
manifestam em Góia -, impede que qualquer ser humano mortal se aproxime de seu
estranho e atabalhoado mundo. Outro soco e, desta vez, sinto o impacto.
Deslizo por um cone escuro e vazio. É o mesmo que eu soprava durante minha
estada no hospital. "Não vou suportar, mais essa, Góia! E eu te amo. Como eu
sempre te amei, sua cadela!"...
É uma pena, mas não consigo encontrar Góia. Nem mesmo quando sussurro que
a amo. Ou quanto sinto a hemoptise rompendo todas as resistências de meu
organismo debilitado. Góia nunca esteve tão distante quanto neste momento.
Talvez a mais longa e inenarrável distância que ambos tenhamos colocado entre
nós. Feito este abismo que nos separa. Eu ainda sussurro e posso ouvir pela
última vez, enquanto deslizo: "Góia!".... Minha voz transforma-se na de uma
criança de cinco anos. Ouço meu próprio choro de menino abandonado. As
lágrimas rolam quentes e o sal delas mistura-se com o açúcar do sangue,
transformando-se em soro. Ele, este soro, de alguma forma, sanará as feridas
de meu corpo e de minha alma. Pena que eu não possa dizer isso à ela: Góia!...
Contudo, já não faz diferença. Góia sabe disso. Todos nós sabemos. Cada qual
palmilhando suas sendas, searas e ermos sombrios, todos nós - eu disse isso a
Góia numa noite de luar, sob as estrelas fulgentes -, não buscamos nada mais
do que a nossa própria essência. Mesmo que ela não seja exatamente aquilo que
sonhamos ou idealizamos um dia. Contudo, esta busca é inevitável e, às vezes,
catastrófica.... Terrivelmente!. Noutras, incrivelmente redentora, Góia. Por
mais que acreditemos que tudo o que fizemos durante todo o tempo, pela longa
jornada, não foi mais que perder e perder... Góia!...




METRÓPOLES
(Recortes)

Um:

A viela na semi escuridão, toda mal iluminada, o homem em pé, recostado
na parede suja do edifício em ruínas, caindo aos pedaços. Havia prazer e
ansiedade estampados em sua face macilenta. Trajava um terno meia-vida e,
recendia à perfume barato. Um vulto encontrava-se agachado a sua frente. Suas
mãos seguravam a cabeça do que parecia ser uma mulher, puxando-a de encontro
ao seu pélvis. Ele havia fechado os olhos e encontrava-se profundamente
concentrado naquele momento em que o estampido ecoou e o projétil entrou-lhe
por entre os olhos, no meio da testa.
Houve um momento de suspense valsando no ar. A mulher amparou o corpo
para que não caísse sobre o seu, enfiando a mão no bolso, retirando a
carteira. Era tudo o que lhe interessava. Mesmo que o homem houvesse tido uma
enorme ereção no momento em que a bala alojara-se em seu crânio e pelo buraco
jorrassem miolos, sangue e algo que não conseguia distinguir. Ela não olhou
para a fisionomia do homem. Odiava vê-los agonizantes. Contudo, ele, o homem,
sequer havia emitido um gemido ou algo assim no momento fatídico. Apenas
encontrara a ereção que negava-se a surgir. Demorava. A adrenalina forjava o
medo e o medo impedia-o de concretizar seu desejo. Tratava-se de um homem
comum em busca de algum prazer. Talvez fosse casado. Provavelmente. Seus olhos
permaneceram abertos. O sangue escorrendo pelo canto direito dos lábios, em
filete moroso.
Ela soltou o corpo que, literalmente, escorreu até o chão imundo. E
permaneceu lá, sem vida. Ela não olhou para trás, mas disse: "Merci". E
apressou os passos.
Seu companheiro a esperava a alguns metros, saindo das sombras.
Continuaram caminhando abraçados. Ela havia passado a carteira para o
cúmplice. Profissional. A bala penetrara na testa com precisão. Somente os
profissionais são capazes de façanhas como aquela. A frieza na hora de puxar o
gatilho e a pontaria. Uma única cápsula deflagrada. Um estampido breve na
madrugada.
Ela retirou as luvas de pano, alisou o tórax do amante com ternura. Já
não se lembrava do pobre homem que ficara lá atrás, estendido na calçada com
um ar de espanto e prazer estampados no rosto sem vida. Era somente uma
vítima. Fazia parte do grande jogo dela, vida. Alguns tinham que perder para
que outros pudessem ganhar. Lei do mais forte. Lei do Cão. Ninguém sobrevive
numa metrópole se cultivar sentimentos melosos, frouxos. Necessário a crueza e
o concreto dentro da alma e do coração empedernidos. A vida nas metrópoles
jamais fora ou seria fácil para ninguém. Ou era ele, o homenzinho, ou.
Bem, a vida não era grande coisa. Nunca fora. Havia o desemprego. A
recessão. A concorrência desleal. Essas coisas. Ou se mata ou se morre. Cada
um tem o seu dia. Não poderia ter feito nada. Não se deixa que o inimigo viva
para contar pormenores da batalha.
Ela sorriu para seu amante e cúmplice e ambos desapareceram no fim da
viela integrando-se ao anonimato da existência. Apesar da madrugada que
esfriara consideravelmente, ambos transpiravam e sentiam calor. Enquanto isso,
a vida continuava à mil.

Dois:

Às 21hs e 17ms, chegara ao barraco. Encontrava-se terrivelmente fatigado
e horrivelmente indisposto, além de irritadiço. Nervos à flor da pele. A mãe o
esperava. O pai não havia chegado ainda. Ou melhor, havia chegado sim, mas
deveria estar em algum boteco com os amigos, tragando a sua cachaça e jogando
palito.
Dirigiu-se ao banheiro - se é que aquilo pudesse ser assim denominado -,
entrou debaixo de uma torrente de água gelada. Fazia frio. Esfregou-se
rigorosamente como se desejasse tirar do corpo alguma doença de pele. Havia
sido o lotação. O odor de cecê. Aquilo era horrível e ele mesmo, quanto mais
irritado ficava, mais catinga exalava das axilas. Havia percorrido bom trecho
do percurso, naquela lata de sardinha, muito bem acoplado a uma morena de
corpo fenomenal, "da hora, mano". Sentira que ela comprimira suas nádegas
volumosas contra seu quadril. O sacolejar do lotação. Não havia assistido "A
Dama do Lotação", mas poderia descrever muito bem a sensação. Não suportava
mais. Transpirava aos cântaros. Gostaria de poder foder aquela potranca. À
ponto de chegar ao orgasmo. Desceu na última parada. Aquilo doía que era
"quenêm". Mal conseguia andar. Com os testículos doloridos e talvez inchados.
A morena continuara viajem. Porcarias e compensações, havia pensado. Agora
esfregava-se.
Aproveitou para aliviar a tensão; livrar-se da dor. Era solteiro. Andava
duro. Não poderia se dar ao luxo de procurar mulheres nas bocas. Acabou
ejaculando com um certo complexo de culpa e raiva. Terminou o banho. Lembrava
da vidinha pacata do interior. Da praça, da igreja, do coreto, dos burros
pastando pelos canteiros do jardim. Das meninas e das festas. Sobretudo, do
cineminha poeira. Saudade. Batia saudade. Desejava observar as estrelas como
fazia no interior, garotão. Sonhador. Não havia tempo para sonhar. Havia
perdido os sonhos e o tempo deles.
Sentado no degrau da porta do barraco ouviu a mãe desligando o aparelho.
Emitiu um boa-noite. Os chinelos arrastando-se para o quarto. O pai chegaria
em breve. Não, não conseguira mirar estrela alguma naquela "porra de céu
poluído". Fumou demoradamente mais dois ou três cigarros. Recolheu-se. Tinha
que pular muito cedo. Pensava na morena. Não queria, mas pensava. Talvez no
dia seguinte?.. Roncava com a boca escancarada, babando um pouco, sonhando com
a tal morena.
Às três horas da manhã foi que se ouviram os berros. Armou o maior
pandemônio na vizinhança e ele lá: sentado ao pé da porta, com um machado na
mão, sorrindo feito uma besta. Havia estraçalhado o velho pai com a arma, aos
berros de que a mãe o estaria traindo com aquele velho desgraçado. Levaram-no
para o manicômio e deixaram a mãe aos cuidados dos vizinhos e do Serviço
Social do município.
A morena procurou dentro do lotação. Procurou um, dois, três dias
seguidos e, por fim, desistiu. Talvez o cara não houvesse gostado..

Três:

Haviam chegado tarde. Ele cinqüentão, cabelos grisalhos, pasta de
executivo na mão. O outro jovem, traje esporte, alguns livros e um ar de
enfaro. Conheciam-se de vista. Afinal, residiam no mesmo condomínio.
Certamente esbarravam-se casualmente em meio a tantas idas e vindas. O senhor
era empresário bem sucedido, casado, proprietário de alguns imóveis e uma
fazenda no interior. A mulher encontrava-se de férias com os dois filhos.
Casal.
O jovem voltou a apertar o botão do elevador. Demora. Não havia
ascensorista naquele horário. Não havia necessidade. Somente o vigia na
portaria. Se bem que, do jeito que os índices de violência aumentavam à cada
dia.... Não importava. Havia violência o tempo todo em todos os lugares. Nas
ruas, no caminho para o trabalho, no sinal de trânsito. Nada garantia uma vida
e não seriam dois homens com armas no coldre e junto à porta de um elevador
que garantiriam o bem-estar. Voltou a concentrar-se no jovem ao lado.
Barba bem feita, cabelos aparados. Sem os cacoetes dessa juventude que
somente se expressa através de gírias. Descobriu logo o porque: medicina.
Ginecologia. Muito jovem, não? Até que sim. Até que não. E blablablá. Nada de
elevador que parecia adormecido em algum andar. Não saía do sexto e,
certamente, alguém o prendia. Estariam fazendo coisas? Essas maluquices que se
costumam fazer em elevadores após umas e outras?
O senhor apresentou-se. Não o havia feito até então. Voltava de uma longa
e cansativa reunião. O jovem anuiu com a cabeça. As reuniões eram maçantes.
Cacetes. Por fim ouviram o ruído do elevador. As luzes em contagem regressiva
a cada andar. As portas se abriram. Cerimônia. Quem entrava primeiro?
Educação, cavalheiros. Coisa difícil nesses tempos difíceis e de muita
violência e individualidade. Cada um vivendo para si. Entraram no assunto. A
vida tornando-se uma pua. Corroendo os sentimentos. A solidão em meio a
multidão.
Incrível como a gente se sente só mesmo estando rodeado por centenas de
pessoas! Concordavam plenamente. Sétimo andar. Nono. Pena. Poderiam tomar um
uísque. Bater um papo, ouvir uma música. Gostavam de música boa, mesmo sendo
popular. Tornaram ao assunto da solidão, da violação dos direitos e dos
sentimentos do homem. Daquela guerra de nervos. Da exploração massiva. Do
medo. Do tédio, do ódio, do tráfico, das notícias cada vez mais ricas em
detalhes mórbidos. Mentes estioladas. Coisa sórdida. O país havia se
transformado num verdadeiro puteiro político. Velhos e novos prostitutos da
velha e decadente política. E com tanto para se viver...
Veja como são as coisas. Passaram pelo sétimo e foram papeando até o
nono. A mesma cortesia na hora de deixarem o elevador. Morava no apartamento
tal, número tal. O jovem acabara aceitando o convite. Havia simpatia mútua.
Desligado o alarme, aberta a porta, entraram. A sala suntuosa. O homem atirou
a maleta sobre o conjunto estofado. Soltou o nó da gravata. Que ficasse à
vontade. Preferia com soda, com gelo, puro? O que gostaria de ouvir? Ouviram
João Gilberto. Vinícius. A medicina era um campo seguro. Ginecologia. Muitas
xoxotinhas e coisa e tal. Mas não era coisa para se comentar. Voltaram a
discutir política, economia, medicina, violência, futebol e estética.
Licença para uma ducha breve. Claro. Pediram pizza. Pizza sempre caía bem
à qualquer hora. Por um momento, o velho pensou. Mal conhecera o rapaz e ele
lá na sala, tragando o seu uísque. Fosse um psicótico, um maníaco, um tarado?
Saiu do banho com o roupão bordado com a iniciais no bolso. O rapaz havia
desabotoado a camisa, arregaçado as mangas. Mesmo com o ar condicionado
ligado, o uísque fazia o sangue ferver. A pizza havia chegado. Antes, porquê
não tomava uma ducha rapidinho. Foi. Voltou para a sala enrolado em uma
toalha. Mais nada por baixo. Entraram na pizza.
Duas e meia da manhã, Bach espalhava-se pela sala. O uísque começara a
dar aquela sonolência. Hora de uma cheiradinha. Coisa de nada. A mulher até
que nem se importava. Preocupava-se sim, com as crianças. Estimulava. Pode
cafungar que é da boa. Cheiraram. Os ânimos voltaram. Mas a solidão pairava
pelos ares. Passaram a se sentir afetados, ouvindo Maysa, na fossa. Uma coisa
louca, queimando por dentro. Ambos com olhares cúmplices. Não demoraria muito
estariam chorando um no ombro do outro.
O senhor entrou no quarto. Demorava um pouco. O rapaz passeou pela sala,
deixou cair a toalha. Nu e solto. Dirigiu-se ao quarto. Demoraram. Ouvia-se um
abrir e fechar de gavetas. Um riso abafado. Por fim, silêncio absoluto. O
aparelho repetiu o CD o resto da noite. Quando o dia amanheceu furioso com
suas centenas de apitos, buzinas e canos de descarga de automóveis pelas ruas
apinhadas, o rapaz despertou.
Gostava da cor vermelha. Coincidência. Ambos gostavam. Abrira exceção e
deixara o convidado à vontade. Vestira ligas, sutiã, calcinhas brancas. Haviam
dormido agarradinhos, juntinhos. Teriam feito de tudo para afastar o maldito
fantasma da solidão. Qualquer coisa.

Quatro:

Durante a "batida" policial, apesar de já haver completado dezoito anos,
faltavam-lhe alguns documentos. Sobretudo a Carteira de Trabalho com registro
do empregador. Camburão. Mas parara no bar apenas para comprar cigarros.
Voltava do Cursinho. Não estava com os livros e cadernos nas mãos? Bastava uma
ligação. Tinha direito, aliás. O pai viria apanhá-lo. Era gente de bem. Não
via porque era cego. Não queria? Tinha bronca de estudante? Que merda! Junto
com o rapaz, mais quatro sujeitos estranhos. Uns animais. Verdadeiros animais
com suas carantonhas, tatuagens, aqueles músculos de estivadores. Para onde o
estariam levando?
Dentro do camburão encolhia-se calado. Os outros quatro observavam seu
"jeitinho" de garotão da alta. Alguém sempre acaba se dando mal. A vida sempre
injusta. O mundo uma injustiça sem termo. Nada que explique. A viatura
sacolejava. Calor infernal. Um mulato dera com a cabeça em uma quina e emitira
uma avalanche de palavrões, metendo o pé na lataria do veículo policial.
Demorou um bocado para chegarem.
Não sabia onde se encontrava. Distrito policial. Não dera tempo de ler.
Os tiras já iam puxando, agarrando pelos fundilhos e colarinho, empurrando
para dentro. Sequer lavraram ocorrência ou ouviram os cinco. Meteram-no em uma
cela aperta e fétida. Passaram ferrolho e cadeado. O garoto berrou que tinha
direito. Um telefonema. Um dos detentos, cara lanhada por lâmina de navalha
mandou que ele se calasse e deixasse de frescura. Que estava parecendo um
viadinho chupador de pau. Calasse a boca logo ou acabava levando umas
porradas. Olhou para o "animal". Aliás, os quatro pareciam animais enjaulados.
E ele ali, bem vestido. Pensou que se tivesse sorte, sairia dali sem
traumatismo. Calou-se e recostou-se num canto. Muito encolhido. Quieto.
Ruminando pensamentos ruins, assustadores e inevitáveis.
Os outros esparramaram-se pela cela. Não diziam coisas. Observavam o
garoto. Os minutos passando lentos. As horas morosas, sem pressa alguma. Um
deles começara a emitir um ronco baixo que foi crescendo, avolumando-se. Levou
um cutucão do mulato tatuado. Refez-se e voltou a adormecer. Aquilo o
aborrecia. Se ao menos conversassem entre eles, poderia saber o que estariam
pensando. Lembrou-se de "Barrela" do Plínio Marcos. Sentiu a pontada funda do
medo revolvendo-lhe as entranhas. Porra!, não tinha nada que se lembrar
daquela peça. Não conseguia fechar os olhos. Não havia assistido "Lúcio
Flávio"? Então? Dormiu de touca, babau pregas. Um olho no peixe, outro no
gato. Não dormiria. Os outros se ajeitaram.
Haviam, na confusão, arrancado-lhe o relógio do pulso. Um dos policiais.
Não dava para precisar há quanto tempo encontrava-se naquela cela. Talvez
dessem por sua falta e por sorte, o encontrassem. Mas o pai dormia feito uma
pedra. A mãe. Talvez a mãe estivesse esperando ele chegar. Costumava cumprir
tal ritual, embora ele chegasse tarde. Não tinha nada que ter entrado naquele
boteco de ponta de vila para comprar cigarros. Que azarão!
Começou a sentir o sono chegando. Um silêncio abissal tomara conta de
tudo. Por onde andariam os tiras, afinal? Ninguém. Uma palavra sequer.
Sentia-se tenso. O medo o fazia transpirar, embora fizesse frio. Vez ou outra
podia ouvir algum veículo rodando pelas ruas lá fora. Passou a sentir fome e
sono. Não dava para estirar-se. Não havia como. Se havia algo que evitaria
naquela noite, seria deixar algum daqueles sujeitos irritado. Encolheu-se
ainda mais. Sua mente turbilhonava. Presa do medo e da ansiedade. Pela manhã
estaria na rua. Nada iria acontecer. Era preciso manter-se alerta e
silencioso. Como se não existisse. Não dar colher para o sono. Cuidar-se e
ficar na sua. Faria como planejara.
Despertou sobressaltado. Havia cochilado. Por pouco não havia estirado-se
naquele chão de cimento e deixado que seu corpo, vencido pelo sono, fosse
recostar-se em um daqueles brutamontes. Somente então percebeu que os quatro
fumavam. O cheiro impregnara a cela. Era maconha, com certeza. O grandalhão
ofereceu um "tapinha". Agradeceu à medo. Os outros tiraram onda e o chamaram
de "Mané".
Pelas tantas estavam altos. Curtindo o barato. O tatuado ficou invocado
falando coisas, resmungando, rezingando, xingando os tiras. O garoto pensou
que aquele cara ainda ia acabar arrumando problemas para todos eles. Mas aos
poucos os outros também começaram a participar da zorra. A balbúrdia aumentara
em muito. Passaram a berrar coisas sobre as mães dos tiras. Que tira era tudo
filho da puta. Umas coisas sem tino. Seu coração acelerado parecia prestes a
saltar pela boca. Não participava. Não queria se sujar com os tiras. Estava
tudo em paz. Não demoraria e o dia viria e pronto. Iria para casa. Um
contratempo. Lapso. equívoco e tudo bem. Ninguém o ameaçara.
A zoeira continuava. Porque a mãe não se sabia quem estava cobrando um
michê muito do fajuto e coisa e loisa. Até que os tiras apareceram. Abriram a
cela dando porrada. Os caras revidaram. Houve disparos. Dois detentos caíram
agonizantes. A merda estava feita. Algemaram os outros dois. Carregaram todos
para a viatura. Ele estava junto. Testemunha. Não era caso para ser
testemunhado. Acontecera o pior. Os safardanas, maconheiros! Os
pés-de-chinelos, vagabundos de terceira. Presuntos! Os dois bateram as botas
dentro do camburão em movimento. Os outros dois olhavam para o garoto e riam.
Diziam não ter mais jeito. Era o mundo escroto. Mundo cão. Estavam fodidos. Os
tiras nunca deixavam rastro. Quando faziam um serviço, limpavam tudo. Sem
testemunhas. O garoto começou a tremer e a choramingar. Um dos presos olhou
para ele e disse que seria assim, rápido. Sem dor. Sem traumas. Não era de
todo ruim. Mal dava tempo de dizer amém. Desova.
A viatura policial rodou por muito tempo. Uma eternidade. Até que parou.
Era só mato em volta. Desova. O rapaz começou a chorar quando os tiras abriram
a porta de trás e os retiraram de dentro daquela gaiola. Desova era assim
mesmo. Ainda pediram ajuda para os dois que estavam jurados para removerem os
corpos e jogá-los no mato. Em seguida, um que era cabo, mandou que ficassem de
joelhos. Parecia cena de filme. Um filme estranho. O garoto levou um tapa,
ajoelhou-se. Chorava. O mulato mandou que ele calasse a boca e fosse homem
pelo menos uma vez na vida. O garoto estava muito assustado, de joelhos,
olhando para os tiras sem rostos. Eram umas faces sem sinais de vida. Como se
não tivessem sentimentos. Viu quando sacaram armas. Não as que carregavam nos
coldres. Mas armas próprias para alguns serviços que, vez em quando, eram
obrigados a fazer. Então o rapaz pensou que faltava muito para amanhecer e que
jamais iria amanhecer. A boca cheia de formiga. Presunto. Um maço de cigarros.
Porque não fizera o que a mãe recomendara. Afinal, cigarro é uma merda. Era,
não era? "Filho o cigarro, um dia, mais cedo ou mais tarde, acaba te
matando!". - Dissera a mãe. Deveria ter deixado de fumar. Vício assassino!...

Cinco:

Quarenta e cinco. Quase meio século! Chegara, afinal, a uma idade
consideravelmente razoável. Acreditava, portanto, que se tivesse que morrer,
poderia fazê-lo de forma mais tranqüila a partir daquela data. Houve um tempo
em que encontrava-se convicto de que não passaria dos 33. Novo. Acreditava
piamente que aos 33 iria para a cidade dos desencarnados. E no entanto. Não
que houvesse realizado muito mais do que fizera até os trinta e três.
Provavelmente, segundo suas estatísticas, havia ocorrido sim, uma pequena
decadência.
Enfim, passara pelos trinta e três e nem se dera conta. Até que chegara a
quase meio século. As pessoas estão morrendo muito jovens nesses tempos ruins
e difíceis. Havia passado não somente pela idade que estipulara viver - como
se fosse senhor de seu tempo e seu destino sobre a face da terra -,
continuando a remar, ano após ano. Havia passado por muito mais do que
esperava. Passara pela fome; vergonha; perdera a dignidade em certas ocasiões;
fora humilhado; maltratado; os sentimentos espezinhados, aviltados, haviam
feito com que sofresse mais que o necessário... A vida sempre cheia de
mistérios e segredos!
Quem sabe, doravante, já que chegara até ali, porque não aos cinqüenta?
Não faria grandes coisas ou conquistaria o mundo, não. Certamente que não
esperava nada disso. Sequer realizaria projetos de monta. Contudo, daria para
passar uns cinco anos repletos de paz e tranqüilidade. Merecia. Não merecia?
Em pensar que perdera as contas em que chegara às raias da loucura! Um
colapso fulminante. Houve um tempo, ao longo da jornada, em que tudo o que
planejava acabava transformando-se em frustrações e desarranjos emocionais.
Empregos... Quantos? Perdera a conta. Nunca conseguia se acertar. Quando
pensava que teria um pouco de paz, o inferno desabava sobre sua cabeça e
ombros e, lá ia ele, começar tudo novamente.
Quem disse que se casaria? Nem pensar! Não daria certo mesmo. Pois casou.
Era necessário então, cuidar em não botar tudo à perder. Por pouco - tanta
cobiça e descuidos -, não somente perdia a companheira como cometia asneiras e
tragédias. No entanto, continuava firme: a mesma companheira, a eterna luta
lado à lado diariamente. Após casar-se, descartara a possibilidade dos filhos.
Não daria certo. Tanto que esperara cinco anos para, após vários tratamentos,
poder ouvir o balido estridente do primeiro filho. Aí vieram mais três. Como
sustentá-los em tempos tão complexos e com tanta insegurança e violência o
tempo todo à sua volta? Meio na marra foram dando um jeito. Ele e a
companheira.
Certo, passara por maus pedaços. Afinal, a vida não é um mar de rosas.
Mas também, vivia criando bicho-papão o tempo todo. Tenso, irritadiço,
doentio. A maldita ansiedade! Sempre sofrendo por antecipação. No final,
acabava dando tudo certo. Era uma questão de paciência, fé, esperança e muita,
muita persistência. Mas o importante era acreditar em si próprio e não se
deixar macambúzio, esmorecendo sem objetivo e objetividade.
Quarenta e cinco! Sentia vontade de derramar lágrimas. Ímpetos de berrar
e sair em disparada pelas ruas e praças a bendizer a porra da vida.
Conteve-se. Afinal, não era mais uma criança, um jovem. Necessário cuidar-se.
O coração, os pulmões. Soubesse teria deixado o maldito vício do tabaco.
Praticado exercícios regularmente. Não teria se entregado às noites de insônia
e aos humores avessos, aziagos. Ao fastio e aquele estado depressivo que
sempre o acompanharam ao longo de sua existência. Seguramente viveria mais
trinta, quarenta. Chegaria aos cem anos. Em pensar que cultivava aquela idéia
absurda de morrer aos trinta, trinta e três!
Caminhava apressado. Desejava chegar em casa. Dividir aquela alegria com
os familiares. Não era todo dia que se chegava a tal idade. Nem qualquer um.
As pessoas viviam menos. Cada vez menos à cada dia. Os tempos árduos,
violentos, de confrontos contínuos com o sistema e as dificuldades ao longo do
caminho. Tudo havia se transformado. Selva. Arena. O homem engolindo o
próximo. Pisando no pescoço. A concorrência desleal. A bala perdida, o câncer,
o coração fragilizado... Morria-se assim, assim... Feito um passarinho. Tantas
doenças e o organismo humano cada vez mais frágil a ponto de uma gripe
qualquer; um alimento estragado; alguns poucos fungos; uma injeção mal
aplicada...
Atravessou a avenida com passos largos e decididos. A pasta de trabalho
na mão. O jornal apertado no sovaco. Na outra mão um buque de flores. Era para
a mulher. Como se o aniversário fosse dela. Contrário ao egoísmo. Carecia
dividir sua felicidade extremada com os seus. As crianças. O cachorro, o gato,
os vizinhos. Ora, todos saberiam que ele acabara de completar 45 anos e,
sequer percebeu o sinal aberto, a freada brusca, o carro vinha aproveitando a
ladeira, daria tempo. Voou pelos ares e foi estatelar-se no asfalto, sob as
rodas do carro, por cima dos escarros, mirando sabe-se lá o quê?!...

Seis:

"Intragável aquele ar de arrogância em Lindaura. Lucrécia não que, viera
ao mundo com o rei de França nos ovários, a puta. E Marie, então? Deus nos
livre! Nome mais destoante e malsoante querendo ser francês com cara de
Interior. Lá dos cafundós. Dizia: "Mon Amour", "Merci", "Bonjour". Tudo com
biquinho de cu, somente para impressionar. Aquelas roupas, que mau gosto!
Parecia puta. "Petit", com T mudo, efeito sonoro. "Monsier". "Mademoisele".
Caralho, que escrotismo! Oxigenada. Vai ver, passava água oxigenada na xereca,
a vaca de presépio".
"E o corno do Alvares lá, com aquela cara de orgulho. Todo arrogante com
o bigodinho fino, afrescalhado. Parecia mais uma bichona envelhecendo. Passava
leve camada de pó-de-arroz. Maquilagem para recobrir a palidez de noctívago,
estróina, fanfarrão. Disputava Marie nas cartas. É o que dizem. Já viu coisa
assim? A casa com piscina, os convidados, gente da imprensa, os sociáveis.
Coisa de arromba! Um luxo, queridinha! Putaria à "finesse". Aí começavam a
surgir as bichas e sapatas. "Amiguinhas" do Luís e da Dorinha. Tem gente que
quando não quer, não enxerga mesmo!".
"Vê o Luizinho, que coisa mais louca? Puxou ao pai, a bichona. Chofer
particular: um baita de um garotão todo musculoso e vai ver, o maior papacu
das bocas. Já Dorinha dava cada baixaria nas "Boites", era assim que ela
escrevia? Pra mim buate é buate: igual a puteiro. Tudo uma merda só. Mas eu
dizia, baixaria de se pegar aos tabefes e bofetões com as sapatas todas
porque, cada dia tinha caso com uma".
"Acho que a gente deveria ter um pouco mais de respeito. Afinal, a menina
tá lá, estendida. Foi, foi e pronto, esquece. Morte mais besta. Esse caso
ainda vai dar em sururu! Se vai! Foi ooverdose, não foi? Coca?".
"Que coca, menina?! Morfina no duro. Quero dizer, na veia. Dose homérica.
Elefantíase! O quê? Mas é burrinha! A seringa tinha problema de elefantíase,
entende? Seringa usada para aplicar injeção em cavalos. Cheia. Dava para
deixar a cidade toda pirada. Aplicou tudo, de uma só tacada. Do jeito que
estava, foi encontrada. Agora sente o drama, a baixaria. O que vai feder! O
que vão descobrir de coisa podre por causa dessa asneira que Dorinha cometeu,
nem te conto".
"O Luizinho já vem sendo citado nas colunas sociais e policiais como
provável amante do motorista particular da família. O pai, parece estar tendo
um caso com um jovem da idade do filho, embora não tenham feito maiores
referências. E a mãe, a Marie do biquinho de cu de pato, uma fanchona das mais
concorridas de toda a história da cidade. A filha tinha à quem puxar. Filho de
peixe?! Eu, hein!".
"Bicha é foda mesmo! Falta de respeito, gente! Deixem a morta-suicidada
em paz, porra! Vem me dizer que vocês são santas?".
"Perto dessa gente, até que... Sei lá, acho que deveríamos era permanecer
na nossa, porque no fundo, no fundo, todas nós já pegamos um biquinho em
algumas festinhas deles. Vão me dizer que não, hã?".
"Cala-te boca! Quero mais é desaparecer por um bom tempo. Até que as
investigações sejam engavetadas ou algum pato entre de gaiato nessa
tragicômica palhaçada circense. Quem tem cu tem medo meninas."
"Eu não, estou limpa. Limpíssima! Não fico por aí dando sopa ao azar! Sei
me cuidar. Não vou em barca furada. Muito luxo para quem nunca teve nada,
acaba em trenzinho da alegria. E vocês sabem muito bem que quando o trem
descarrila, pobre das bichas. As primas pobres; a ralé dessa gente
desbundada!".
"Já viram velório mais 'Amaury' que este? Parece festa para entrega do
Oscar! Coisa de louco. Eu vou mais é aproveitar, tomar todas, cheirar umas,
arrumar algum bofe e derramar umas lágrimas de crocodilo no colo do
doidivanas!".
"Não disse, estava demorado para que a bicha soltasse a franga."
"Ah, deixa pra lá queridinha. Cada uma na sua. Ela que se foda."
"É mais o que ela deseja!".
"Lembram? Somente agora é que me veio à mente aquela história do
casamento. Manter as aparências da família. Caçaram aquela pobre coitada para
o Luizinho e, armaram a maior farsa da história. Lembram? A Lucinha?
Pobrezinha! Está entregue às favas até hoje, fazendo tratamento e tudo o mais.
Não diz coisa com coisa. Vive entupida de comprimidos. Levou até choque no
hospício.".
"Até eu, minha filha! Até eu teria entrado em estado de choque. Ela mal
havia casado, ainda em lua de mel - se é que houve e, um belo dia, ao entrar
no quarto, o Luizinho lá, de quatro, todo travestido com um crioulo desse
tamanho mandando ver. Eu, hein!".
"Não sei se é verdade, dizem. Na primeira noite, durante várias
tentativas, ele pediu para que Lucinha enfiasse um treco lá nele. Ela ficou
desconcertada. Não estava preparada para tanto. Umas coisas!".
"Eu só sei que, do jeito que ela abriu a porta, estacou e ficou. Precisou
ser carregada, babando, rindo um riso doido, dolente, sem nexo. Até hoje ela
ri de forma lunática. Nunca mais conseguiu recuperar a sanidade. Acho que a
cena fica se repetindo em seu cérebro... Essas coisas da psiquiatria. De
maluquice, sei lá!".
"Bem que esse puto merecia se foder pra deixar de ser enrustido. Não sei
o que essa gente pensa. Todos uns putos e viviam pegando no pé da Dorinha.
Acho que foi por isso que ela meteu bronca até ultrapassar todos os limites".
"Essa Marie, mulherzinha mais cadela! Gente, que nojo!".
"Para mim são todos uns filhos da puta! A Marie, o Luizinho e o Alvares,
bicha velha de bigodinho francês. Mania de francês, essa gente!".
"Sou mais a Dorinha que era toda escancarada, assumida e não tinha essas
frescuras de fazer biquinho não. Apesar de miudinha ia logo partindo pro pau e
não afinava pra fanchona nenhuma. Pelo menos que eu saiba, nunca deu moleza
pra ninguém. Era sapata mas era gente pra cacete!".
"Olha só o trio! Agora se abraçam, debruçam sobre o caixão, derramam
lágrimas. Desse jeito vão acabar envenenando a alma da falecida, os putos!".
"Coisa mais mórbida, sórdida... Estão é fazendo pose para foto de
revistas e jornais: família chora unida a perda de ente querido. Imaginem a
falsidade. Puta sacanagem!".
"Eu vou é me mandar desta merda. Não suporto essa baixaria. Povo mais
nojento, asqueroso. Vocês ficam? Então, adeus.".
"Vou ficar para ver no que vai dar. Coisa boa não sai daqui, podem ter
certeza."
"Vai lá bicha, vai. Aproveita e pede para o garção trazer mais umas taças
para nós. Afinal, somos filhas de Deus também. Não estamos velando a falecida?
Então? Acho que merecemos o mesmo tratamento que esses grã-finos de merda.
Vai, vai!".
"Não empurra, porra! Já estou indo! Já estou indo!".
"Aproveita e manda lembranças e condolências à falecida!".
"Ai, que coisa mais chiquérrima! Velório vira festa de gala!".
"Acho que vou trocar de sexo e virar puta rica!".
"Acho que quando morrermos, só vai ter cachaça e maconha. Pé-rapado,
veado e puta em nosso velório, queridinha. Portanto, pára de sonhar que está
virando delírio, ouviu!".
"Não fode, pô! Não fode a paciência sua bichinha esculhambada!"......

Sete:

Havia qualquer coisa de enigmático na moça. Seu semblante era fornido por
uma palidez mortal; os olhos circundados pelas negras e profundas olheiras; um
sorriso sempre à meio caminho e jamais de todo desenhado nos lábios. Sua voz
sumida, como se viesse de longe, muito distante. Na primeira noite, o primeiro
beijo e Altamirando sentira um certo arrepio percorrendo-lhe todo o corpo
quando constatara que a mulher parecia transmitir aquela sensação de coisa
morta, sem vida, gelada. Não lhe parecera quando a vira pela primeira vez.
Contudo, não conseguiria fugir. Não sem antes desvendar todo aquele mistério.
Vira a garota sentada na varanda de sua casa. Casa simples e muito bem
cuidada: com jardim, canteiros floridos e uns ares de nostalgia interiorana.
Das noites nas praças, dos coretos e bandinhas. A moça parecera-lhe bastante
solitária e melancólica. Olhando para "sabia-se lá onde". Ar meditativo e
tristonho. Altamirando sentiu o coração saltar-lhe dentro do peito quando seus
olhos cruzaram com os dela. Parecia mergulhar nalgum profundo poço de água
serenas que o envolvia com sua profundidade e segredos guardados a sete
chaves. Bateu paixão. Foi o que pensou. Tanto pensou que sequer conseguira
pregar olhos naquela e em muitas outras noites antes que fosse ter com a
garota um que de prosa, após enviar meia floricultura com vários cartões
melosos de apaixonado adolescente. Logo ele, com seus quase quarenta anos de
vida.
A garota, Marisa, demonstrara-se recatada e bastante acabrunhada com a
ousadia do conquistador. À maneira dos antigos romances de folhetins, aceitara
o convite para uma conversa amena, sem grandes formalidades ou um compromisso,
desde que a palração ocorresse em sua residência. Altamirando compareceu no
dia e horário marcados com uma precisão metódica. Levava uma caixa de bombons
e um buquê de rosas.
À convite, adentrou a sala da residência e, feito um cavalheiro,
sentou-se com uma postura que jamais esperava ter que adotar. Em poucos
minutos iniciavam uma conversação de conhecimentos. Uma senhora de
aproximadamente cinqüenta anos servira-lhes chá aromatizado e biscoitos.
Deveria ser a mãe. Não ousou perguntar. Sequer ela dissera de quem se tratava.
Naquela noite tudo não passara de conversa informal, sem o menor sinal de
prosperidade para Altamirando que, no máximo, conseguira apertar a mão da moça
na hora de se despedir.
Em casa, o quarentão assobiava valsinhas melódicas e emitia suspiros
feito um verdadeiro adolescente. O amor era capaz de tudo! Rolou de um lado
para outro a noite toda. Saltou da cama para o trabalho sem pregar olhos. Na
repartição pública, o solteirão parecia outra pessoa. Abrira um sorriso que
seus companheiros de trabalho desconheciam. Havia um ar de felicidade
estampado em seu rosto outrora lacerado pela dor da solidão e rejeição.
Trabalhara com afinco, apesar das olheiras e do cansaço. Ao término do
expediente, parecia renovado e desceu os sete andares pela escadaria. Não
desejava perder tempo com o elevador. Ganhou a rua a cantarolar baixinho. Era
outro homem. Alguém que, sequer ele mesmo conhecera até então.
Os encontros passaram a ocorrer de forma constante, já que, fora
convidado - no início -, a realizar uma visita somente no final da semana.
Ganhara mais duas visitas com direito a um jantar na casa "de sua doce amada".
Com vinte dias de um aparente namoro, Altamirando conseguira finalmente
beijar-lhe a face. Ambos pareceram petrificar-se naquele momento. Um mês
decorrido, e o primeiro beijo. Foi quando ele sentiu seu corpo arrepiar-se
todo e os lábios sem vida, gelados e parecendo mármore, colados aos seus,
sugeriam roubar-lhe uma dose considerável de suas energias, deixando-o de
pernas bambas. Despedira-se de forma embaraçada, com aquela sensação de que
havia acabado de beijar... Bem, foi o que pensou: parecia ter beijado os
lábios de um cadáver. Ou fora somente impressão? Talvez estivesse tão afobado
em sua imensurável e incontrolável paixão que, seus sentimentos o haviam
traído de forma tão grotesca.
Desde então, vinha esforçando-se para afastar aquela horrível impressão.
Contudo, a cada nova despedida, na hora do beijo, seu coração parecia gelar
dentro do peito tanto quanto os lábios de sua amada. Saía da casa com
pressentimentos os mais estranhos e mórbidos que se poderia conceber. Ganhava
a rua com a sensação de que se encontrava perdido e que, uma parte de seu ser,
de sua alma, havia deixado de existir a partir do beijo. Intrigado dirigia-se
a uma lanchonete e pedia uma dose cavalar de conhaque.
Apesar das perguntas sem respostas e daqueles sentimentos esdrúxulos,
Altamirando continuava a cultuar sua namorada com seus beijos gélidos e
abissais. Acostumara-se. Tanto que, resolvera mandar tudo o mais para o
inferno e curtir sua estranha paixão por sua não menos estranha Marisa.
Sem que percebesse, o apaixonado Altamirando, havia comprado alianças e
realizado formalmente, o pedido de noivado e casamento a um só tempo. Sua
enamorada aceitara o noivado com uma pequena ressalva e condição: de que ainda
era muito cedo para formalizarem um possível casamento.
Ainda sem que percebesse, Altamirando continuava se transformando. De
forma tão acentuada que, tornara-se pálido, esquálido, macambúzio, cismarento
e como comentavam os companheiros da repartição, " amorfo a ponto de parecer
mais com um zumbi do que o velho e maçante solteirão que conheciam há tempos
atrás".
Cansado de esperar por uma decisão que, à cada dia parecia-lhe ainda mais
distante e impossível de ocorrer, o amorfo noivo resolvera que aquela noite
seria decisiva. Ou sim, ou não. Marisa teria que emitir o seu parecer, tomar
uma decisão e já havia passado da hora.
O dia fora longo. Arrastara-se moroso. Altamirando conferia o relógio a
cada cinco minutos e, a cada dez ou quinze, levantava-se e dirigia-se ao
banheiro ou ao café. Não conseguia concentrar-se no trabalho. Sua mente era um
verdadeiro turbilhão de frases e pensamentos desencontrados. Ensaiava o que
dizer. Teria que, definitiva e necessariamente, demonstrar firmeza. Não era
possível continuarem daquela forma. Afinal, tinha um bom emprego; ganhava um
salário razoável e suficiente para viverem bem e confortavelmente. Não se
opunha quanto a companhia da velha senhora (incrível mas, não sabia quem era
na realidade), que deveria ser sua mãe. Poderiam continuar morando na casa
dela ou mudarem-se para o seu apartamento que, não era lá um palacete, mas
confortável e prático.
Passou da mera arquitetura mental das frases a sussurros entrecortados e
ininteligíveis. Os companheiros chegaram a conclusão que ele havia pirado.
Estava delirando. Aquela vida de solteiro... Bem, a solidão acaba deixando
qualquer um ruim das bolas. E o velho Altamirando passara, finalmente, a
delirar. Aliás, há um bom tempo vinha definhando. Chegaram a apostar que ele
estaria metido em alguma enrascada ou, o que poderia ser pior, talvez alguma
doença ruim. Incurável. Necessitava de ajuda, estava mais do que explícito em
seu jeito, sua aparência.
- Que situação! -, exclamava o chefe do departamento.
- Pois é! Decerto descobriu um câncer ou... - Sabe como são os solteirões
nesses dias em que o sexo tornou-se um risco mortal!.
Horário de almoço, o aflito não arredou pé de sua mesa de trabalho. Seu
estado era deplorável. Parecia encontrar-se à beira de um colapso, um enfarto.
Bem, o que se poderia fazer para ajudar um pobre diabo que, sua terrível
e decrépita aparência era o suficiente para manter as pessoas o mais distante
possível dele?
As horas continuaram se arrastando, moribundas. O aflito homenzinho
esquálido acercava-se do mesmo diagnóstico: um pobre moribundo tentando
sobreviver a uma desconhecida e tenebrosa batalha interior. Cogitava-se quanto
a necessidade da presença de um médico no local. Nunca se sabe o que pode
acontecer com um sujeito numa situação dessas....
Quando os cartões de ponto começaram a ser picados, o infeliz ergueu-se à
custa de esforço sobrenatural. Arrastou-se pelo corredor. Acabou descendo de
elevador. Solitário porque os amigos passaram a evitá-lo. Seus pés
arrastavam-no pela calçada em direção à casa de sua amada. Contudo, sua mente
embotada, já não articulava frases ou projetos. Era como se houvesse um vazio
imensurável em todo o seu ser, sua mente, sua existência.
Continuou caminhando a esmo. Passou frente a casa de Marisa. Não parou.
Não havia porque fazê-lo. Não conseguia se lembrar de nada. Não conseguia
conectar-se com a realidade, o mundo, a vida. Nada. Absolutamente nada.
Continuou caminhando sem olhar por onde pisava, sem saber porque e para onde
se dirigia. Apenas ia. Seguia sempre em frente.
Desapareceu no fim da rua. Foi indo, foi indo...
A noite caiu descerrando mansamente o manto sarapintado por estrelas que
teimavam em reluzir, apesar da fumaça negra da poluição da metrópole que
bocejava mas jamais dormia. Jamais dormia -, a velha sonâmbula.

Oito:

Todas as noites, sempre o mesmo. Não era possível de se distinguir se se
tratava de um grito gutural de algum animal ferido ou, um berro estranho e
macabro de alguma criança que possuía problemas mentais. Poder-se-ia arriscar
a afirmar que, tanto fazia ou, seria a mesma coisa tétrica e aterradora.
O bairro ficava afastado do centro da cidade; a casa velha e sombria,
quedava encravada em um terreno bastante irregular e aparentemente abandonado
se comparado com a vizinhança. Embora a própria vizinhança não fosse lá essas
coisas, com ruas não menos irregulares e casebres amontoando-se uns sobre os
outros o que acabava configurando-se naquele quadro de favela tão comum nas
grandes cidades.
No quintal, o mato crescia à olhos vistos; o muro pichado em toda a sua
extensão, havia se deteriorado e em alguns pontos, fora derrubado e usado como
passagem, formando uma trilha que ia dar em outra rua, nos fundos da
construção. Aquilo era uma intrínseca variação de infrações do Código da
construção civil, além do comprometimento administrativo.
O que se sabia é que, na velha casa, habitava um casal idoso o bastante
para se preocupar com algo mais que não fosse a própria vida -, se é que havia
vida em tudo aquilo. Se é que havia uma quase extinta réstia de vida que ainda
persistia feito um derradeiro hausto em seus ombros curvados sob o fardo
implacável do tempo e da própria existência. Por isso mesmo, jamais saíam de
dentro da casa e menos ainda, tomavam conhecimento se o muro estava caindo ou
se o mundo começara a desmoronar à sua volta.
A casa era uma construção antiga, destoando das demais construções
vizinhas. Tudo indicava que fora uma das primeiras construções a serem
erigidas no local que poderia ter sido, em tempos remotos, um bairro nobre.
Algumas pessoas ouviam os gritos e no entanto, julgavam melhor cuidarem de
suas próprias vidas a descobrirem o que poderiam ser aqueles sons que cortavam
o silêncio das noites feito foices afiadas. Diziam que o local era assombrado.
Sobretudo os namorados, os putos, os maconheiros e malandros que usavam o
local para realizar suas transações. Vez em quando, ouvia-se era tiroteio.
Feito filme de bang-bang do velho faroeste.
Como a extensão do terreno fosse bastante desproporcional se comparada
com os demais terrenos cortados, divididos e reduzidos em toda a vizinhança, o
Sr. Brasco e sua esposa Lucila que, residiam do outro lado da rua muito
estreita, na casa em frente, eram os que mais sentiam-se incomodados com
aqueles sons aterradores que soavam na calada da noite.
- Há algo de muito estranho nesses berros ou urros, sei lá que diabos! -,
reclamava Lucila ao marido que, apesar de sentir-se importunado, a última
coisa que faria seria adentrar aquele lugar durante a noite. Uma bala perdida,
um "desgraçado de um traficante"...
- A polícia é quem deveria solucionar a questão e no entanto, encontra-se
fora de cogitação. Não seremos nós, portanto.... -, replicava Brasco à esposa,
deixando reticências em tudo o que dizia.
O casal conhecera os velhos de outros tempos. Idosos o bastante para
criarem alguma espécie de animal que emitisse aqueles sons horríveis. Além do
mais, pelo que sabiam, jamais tinham visto crianças com eles. Portanto,
possuíam tão somente a si próprios, além da casa, do terreno e, provavelmente
de seus proventos. Suas compras eram entregues por uma rapazola que deixava os
dois - sempre dois -, pacotes do mercado na área dos fundos e saía dali como
quem tivesse dado de frente com o capeta.
Estranhavam o fato daqueles sons, de alguma forma, terem surgido de
repente, de uns quinze ou vinte dias. Não se poderia afirmar com precisão.
Talvez, ninguém houvesse prestado atenção e o problema passasse desapercebido.
Não eram aparelhos de TV. ou rádios, eram os tiroteios e os gritos comuns com
sirena de polícia, carros em alta velocidade com motores envenenados... De
forma que, somente de uns poucos tempos para cá haviam dado conta que, ocorria
algo de anômalo naquele local assustador. Além do mais, apesar dos pesares,
aqueles perdidos viviam se reunindo no local, fumando maconha, craque, ou
bosta de cavalo. Talvez fosse algum imbecil que, após cheirar algumas
carreiras, se invocasse com a porra da vida e passasse a uivar e berrar feito
um débil mental, pensando ter se transformado em algum lobisomem.
Corriam boatos ainda que, o local poderia ter sido, em tempos remotos, um
cemitério. Coisa macabra. Local de desova poderia ser. Mas, se alguém parasse
para analisar, local de desova não acabava se transformando em cemitério? Umas
coisas de maluco. O fato é que, ninguém ali estava disposto a perder tempo em
descobrir o que havia de verdade ou mentira por detrás de tantas histórias e
boatos. Apenas e tão somente, que às vezes, no cu da madrugada, Brasco
despertava com o mulher agarrada em seu corpo a tremer enquanto os berros
enchiam a noite de um lamento angustiante e tenebroso. Aquilo, aos poucos, ia
minando com a paciência de Brasco que ponderou e chegou a conclusão que se não
se colocassem termo naquela coisa funesta, a sua mulher acabaria ruim das
moleiras, a dar-lhe trabalho. Voltava a dormir, prometendo que no dia seguinte
daria início a um abaixo-assinado entre os moradores da redondeza, dirigindo o
documento à prefeitura e à delegacia de polícia mais próxima. No dia seguinte
acabava, estiolado e alquebrado, esquecendo-se da promessa que realizara à
mulher naquela mesma noite.
Dessa forma as coisas continuavam e, tudo indicava que deveriam
permanecer para todo o sempre. Pois ninguém tomava a iniciativa em descobrir o
que poderia estar ocorrendo e naturalmente, colocar termo à tudo aquilo.
Certa madrugada, Brasco despertou ouvindo o chinfrim que vinha lá de
fora. Abriu um pouco o vitrô da sala e viu o ajuntamento das pessoas e os
carros da polícia. Calçou apressadamente os chinelos e foi espiar o que
ocorria, na esperança que o caso houvesse, finalmente, sido solucionado.
Decepcionado olhou os dois corpos estendidos na calçada, junto ao muro.
Haviam trocado tiros com os policiais da velha "Rota" do Batalhão "Tobias de
Aguiar" e acabaram virando presunto. Além disso, parecera-lhe que "aquela
porra resolvera não gritar naquela noite".
Nem naquela noite, nem em nenhuma madrugada dali em diante. Estranhamente
os berros haviam cessado. As madrugadas se sucediam tranqüilas, silenciosas.
Desde então, havia patrulha constante e ostensiva na rua. A presença dos
policiais havia rechaçado com os bandidos e os vândalos. De forma que os
moradores do local já podiam dormir aliviados e em paz.
Ao despertar certa manhã para trabalhar, Brasco estranhara as máquinas da
prefeitura que começavam a derrubar o que restara do muro; avançavam terreno
adentro e, certamente, iam deitar por terra a velha casa. Pensou nos
velhinhos. Provavelmente houvessem recolhido o casal, abrigando-o em alguma
Instituição. Era para isso -, exatamente para esses casos que havia o Serviço
Social, afinal. Não era? Pois, então!
Dois dias depois, já não havia mais nada e o terreno passava pelos
serviços de terraplanagem. Brasco, desligado, não assistira ao noticiário e
sequer lera os jornais. A polícia havia encontrado o casal em estado de
decomposição e, no porão da velha casa, um garoto - ou o que parecera haver
sido um dia, um garoto -, morto e acorrentado.
A nota jornalística frisava que havia perecido dado o seu estado de
desnutrição. Inanição. Supunha-se que, na ausência dos velhos que tratavam
dele, as madrugadas haviam sido povoadas pelos berros tétricos e pavorosos.
Berros animalizados e bestiais. Nada mais que pedidos de socorro. Somente
isso.
- Que coisa horrível! -, concluiu Brasco quando finalmente soube do caso.
Pensou então, acho que de agora em diante, vamos poder dormir tranqüilos...

Nove:

Sabe, ficava aqui pensando com meus botões? O que será que esses caras
pensam? Nem sei se pensam, na realidade. Mas suponhamos que o façam... Olhem
para o estado em que me encontro dentro destas roupas puídas, rotas,
miseráveis. Os cabelos, as barbas, todo mal acabado, chegando aos cinqüenta e
estirado pelas sarjetas e parques. Durante o dia perambulando pelas ruas desta
metrópole, sem destino. Mendigando uma côdea de pão. Perturbando os
transeuntes que passam apressados com o jornal debaixo do braço, a pastinha de
executivo, em direção aos seus empregos. O que pensam de um sujeito assim, no
estado em que me encontro?
Vagabundo! Pensam isso, provavelmente. Mendigo, safado. Ainda em
condições de trabalhar e por aí, dando trabalho. É claro que pensam.
Documentos? Não possuo nem identidade mais. Tudo roubado. Carteira de
Trabalho, CIC, RG, Certificado de Prestação do Serviço Militar - fui cabo -,
título de eleitor. Mas acreditam? Vão acreditar o que? Tava fumando maconha,
hein seu velho safado? Bebendo por aí, perturbando a paz, violando a lei,
violentando os direitos das pessoas, prejudicando o trânsito, roubando. Devia
estar roubando. Com essa cara de pilantra. Adianta explicar alguma coisa?
Dizer que não fuma maconha porra nenhuma? Que não queria perturbar ninguém e
muito menos infringir leis?
Logo comigo querem tirar onda com esse papo furado de leis? Conheço boa
parte dos Códigos Civil, Penal, Defesa do Consumidor, essas coisas. Tenho um
pouco de estudo. Não tenho diploma, é verdade. Não consegui estudar, mas e
daí? Hoje em dia até gari estuda. Vim lá do Interior. Prestei vestibular e
entrei em três Faculdades. Não dava. Quem consegue estudar após uma jornada de
trabalho que parece mais um regime de escravidão? Sem tempo para nada. Nem
roupas; nem calçados; nem dinheiro para condução? Não são desculpas, mas eu
não conseguia manter os olhos abertos dentro da sala de aula. Discutia com o
professor de Literatura. Filosofia, História, Economia. Porra, eu poderia ter
me formado em Direito, Letras, Comunicação com especialização em Jornalismo.
Não dava.
Teve uma hora que mandei tudo para o inferno. Fiquei meio perdido. Está
certo, sempre fui meio confuso ao tomar decisões na vida. Meio precipitado.
Dando com "os burros n'agua". Mas a úlcera me corroía as entranhas. Como eu
poderia me concentrar nas aulas? Sentado lá no fundo, sem tomar banho, com
aquela maldita marmita fedendo; todo cheio de complexos, sem amizades? Saía da
faculdade tarde, tinha que caminhar um estirão sem fim. A dor corroendo,
matando. Chegava a chorar. Nem dinheiro para um copo de leite, um cafezinho,
um maço de cigarros. Trabalhava feito um burro no campo. E daí?
Devem olhar para mim e concluir: "Que merda! Que lixo! Entulho social!
Pária!". Conheço bem esses tipos. São todos arrogantes. Uns palhaços de
fardas. Pensam que são os donos do mundo e da verdade. Lá no Interior é a
mesma bosta. Tudo uns safardanas de uns beócios acéfalos pensando com o rei na
barriga e merda na cabeça. São uns corruptos. Os políticos são todos uns
filhos da puta! Pensam somente na grana, no poder. Acreditam que podem se
perpetuar no poder. Uns tipos de chapéu no cabeção vazio. Q.I. de alface.
Ostra em coma! Falando "nóis fumo; nóis vortemo; seje isso; seje aquilo" e se
achando os maiorais. Fui revisor de jornal. Conheço esses caras. Depois,
quando deixei a faculdade, fui trabalhar em jornais. Fui revisor, redator,
repórter, diretor, editor. Fiz de tudo um pouco e para quê? Olha as condições
em que me encontro!
O policial me aborda pedindo documentos. Documentos o cacete! Aí, já vira
malandro. Andarilho. Os andarilhos andam. São perigosos. Larápios. Tinhosos. O
delegado olha com desprezo. Manda para algum buraco por aí. Não vão querer
enfiar um traste desse em uma das celas, vão? O filho de uma cadela está é a
fim de pegar uma bóia, um lugar quente para dormir. Joga no Tietê. Joga lá no
cu do mundo. Põe num trem lá para a casa do caralho a quatro e foda-se. Não
queremos sujar essa porra dessa cidade que já anda um lixo, um esgoto.
São palavras que um delegado deva usar? O cara estudou para quê? Ficar
berrando o tempo todo essas frases recheadas de palavrões? Exemplo aos
subordinados. São todos uns animais. Violentos, brutos, sem escrúpulos! Até
entendo essa revolta. Uns caras que não chegaram a terminar o colegial. Ganham
uma porcaria para enfrentar bandidos melhor armados do que eles. Não conseguem
sustentar os filhos. Aceitam subornos. Arriscam suas vidas por uma sociedade
descriminadora, egoísta. Os filhinhos de papais com os rachas nas madrugadas.
Fumando maconha, cheirando cocaína. Vão lá, prendem, autuam, vêm os pais,
advogados, soltam. A Justiça sempre lerda e cega. O processo é arcaico. Pensei
nos tempos de estudante, quando me engajei, militante da esquerda, do Partido
Comunista, fazendo panfletos e saindo pelas ruas, sonhando que iria mudar o
país. Um país socialista, cheio de igualdades, sem essas injustiças para com
os pobres, os trabalhadores. Estava errado. Continuamos cometendo os mesmos
erros há séculos e nunca aprendemos.
Fiquei com o saco cheio daquela vidinha de merda. Entrevistando políticos
corruptos e tendo que redigir mentiras e mais mentiras. Nunca consegui sair da
merda porque quem é honesto neste país, não vai para lugar nenhum. Ficava
observando os caras dividindo propinas nas redes públicas da Saúde, do Ensino.
Do caralho a quatro. Fui assessor de imprensa da Câmara. Dava nojo. Assessor
de gabinete de vereador. O puto ia comigo até a agência bancária, eu sacava o
dinheiro na caixa e ele levava o melhor, a nata do bolo e eu ficava com aquela
mingua que não dava para pagar condução. Pensam que não conheço o esquema! Mas
olhem só para o meu estado! Farrapo humano. Réstias de consciência!
Vão meter os pés em meus fundilhos e me pôr para correr. Volto para as
ruas. Dormir nos bancos de praças. Como dizia Belchior: "Os humilhados dos
parques com os seus jornais". Conheço música. Conheço Vandré, Caetano, Gil,
Torquato, Capinam, Elomar. Conheço literatura: Drummond, Cecília Meireles,
Ignácio de Loyola, Maiakowisk, Dostoiévski, Traikov, Franz Kafka, João Ubaldo
Ribeiro, António Callado, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Cacilda Beker, João
Guimarães Rosa, Leminsk, Oiticica, Patrícia Galvão, Alberto Dines, João Cabral
de Melo Neto, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, Taiguara, Lula, João
Amazonino, Getúlio Vargas, Tche Guevara, Fidel Castro, a putinha da esquina da
rua em que eu morava, Guarnieri, Plínio Marcos. Esses caras pensam que sou
algum panaca. Catador de papel. Fuçador de lixo. Pedidor de esmolas.
Entrevistei Gonzaguinha, Luiz Vieira, aqueles putos do Don e Ravel naquela
época estranha. Fiz teatro. Escrevi. Participei de festivais. Tive músicas
gravadas. Não decolei, foi essa a porcaria. Não conseguia escrever a merda que
eles gostam de ler. A maioria do povo brasileiro gosta de porcaria. Harold
Hobins, Og Mandino. Preferem Paulo Coelho, a Gilberto Freyre. Preferem Sabrina
e Gugu Liberato a Oswald de Andrade São patéticos. Marimbondos de Fogo. Que
coisa mais escrota! Daqui uns dias imortalizam o homem que preferia o cheiro
das estrebarias a ter que suportar o cheiro do povo que o sustentava. São
todos iguais. Mas olhem para o meu estado. Vê se vão acreditar. Vamos discutir
literatura, música, cinema, teatro. Falar sobre fusa, semifusa, colcheia,
semicolcheia, acidente da nota, pauta, clave de fá e clave de sol. Vamos
discutir Gabeira e sua teoria verde. Que tal o Tropicalismo? Antropofagia?
Derrubaram o muro da vergonha. Tivemos aquelas diretas meio que indiretamente.
Pintaram as caras sem saber o que faziam. Lavagem cerebral diziam os mais
antigos. Os bem antigos, aliás. A Bethe Mendes foi na porra da cidade em que
eu morava no Interior. O lula, o Zé Dirceu. Conversava com essas figuras da
política nacional. Conheci o Pimenta da Veiga em noite de autógrafo. Conhecem
Dinorath do Valle, por acaso? Claro, evidente que não conhecem. Uma das
melhores escritoras deste país cego, sem o hábito da leitura, da boa música.
Até que gosto do Zeca Pagodinho. É uma figura. Prefiro ele do que aquele
baiano metido a besta - o do Olodum, aquele tal de Carlinhos Brão. Vai tomar
no cu com aquele papo de viado. O Tom Zé é um cabeça. E nem por isso fica com
aquele papo de viado. O Jorge Amado, o Dorival Caymmi. Mas vou discutir o quê
com esses caras? Essa geração de gênios dos bytes e megabytes!
Em pensar que nasci em Santo André! Tomei ojeriza pelo povo do Interior.
Quero dizer, parte daquela gente. Com aqueles chapéus, aquelas botas e
presidentes de Legislativos. Pode? Os caras mal entendiam de bosta de vaca e
lá administrando, criando leis, projetos, indicações... Porra!, dá para ficar
revoltado, indignado. A gente vai se sentindo aviltado, violado e violentado
em todos os direitos que possuímos e não ao mesmo tempo. Esses Direitos! Essa
Constituição! A gente lá, discutindo "Os Pensadores", fazendo boca de urna,
fazendo recital em porão de teatro e os lazarentos descendo o pau na moçada.
Não tem lógica. Não tem como entender esse país, esse povo, essa política,
essa polícia, essa justiça! E eu aqui...Não sei como não algemaram. É porque
sou franzino, raquítico. Mal sabem que pratiquei karatê a vida toda! Fiquei
ruim das vistas de tanto ler. De que adiantou? Sérgio Ricardo quebrando o
violão e jogando na platéia que uivava. Não entendiam nada. Se naquele tempo
não eram capazes de entender, imaginem agora, esses viadinhos tiradores de
meleca e navegadores da Internet sem destino algum?! Que merda! Estou me
sentindo um rato de esgoto. Fome. Sono. O que mais sinto é sono. Estou o tempo
todo cansado. Deve ser anemia. Ou a idade. Caralho como sinto sono. Necessito
de doze horas de sono por dia. Não agüento mais ficar acordado a noite toda
lendo. Meus óculos já não colaboram.
Eu estou parecendo Vicente Celestino com aqueles dramalhões circenses. Já
cantei em circo. Mas não sou cantor. Tenho pavor a microfones. Fui trabalhar
na construção civil e não deu. Não tenho forças. Sou meio desnutrido. Já nasci
cansado. Gosto de ficar parado, pensando, observando as coisas, as pessoas. As
pessoas são neuróticas. Estão pirando, com tiques, manias. Perdendo o juízo,
cada dia mais violentas, interiorizadas, vivendo somente para si, o momento
imediato, urgentíssimo. Não podem perder tempo para uma conversa, uma mesura,
um cinema. Hoje estão todos trancados na frente do micro. DVD. Com medo das
ruas, das praças, da esquina. Elas têm medo dos bandidos que tomaram conta das
cidades e dos morros e sentem medo da polícia porque não sabem de onde virão
os tiros. A realidade virou jargão. Ou seria o contrário? Eu não suporto
noticiário de televisão. Somente desgraças e violência. Novelas e programas de
auditórios. Acho que vão me enquadrar por vadiagem. Mas eu apanho papelão,
coisas por aí e vendo. Como um sanduíche de pão com mortadela e compro livros
usados, nos sebos. Se me botarem numa cela com uns caras malucos? Digo que
estou doente, que estou com o vírus. Capaz de dizerem: "Ótimo, nós também.
Estamos em família e em jejum". Aí o bicho vai pegar. Melhor me deixarem
solto. Vou continuar caminhando por aí pelas ruas, pelas cidades, estados. Se
der, cruzo a fronteira, vou para outros países. Dou a volta ao mundo em
oitenta encarnações. Preciso conhecer o Tibet. A Índia de Ghandi. A França de
Binochet. Eu lá quero saber de François Miterrand ou De Gaulle? Quero saber
dos Kenned's? Quero mais é ver a Andie MacDowell de perto. A Júlia Robert, a
Demi Moore. Tô cagando para esses políticos encarniçados com suas operações
cirúrgicas e escândalos de esperma em saia de secretária. Que se fodam eles!
Mas será que não vão me liberar nunca? Há quanto tempo estou aqui esperando a
boa vontade desses mequetrefes? Vou me levantar, sair e adeus. Tô com o saco
cheio dessa merda.
Não tenho família. Já tive, não tenho. Sou um andarilho. Não tenho
documentos. Não sou um número em disquete ou memória de computador. Não voto.
Não pago impostos. Não compro a prestação. Não tenho posses. Não tenho que me
preocupar com a Receita Federal. Não como ninguém. Não dou. Não roubo. Não
mato. Não brigo e nem discuto. Vou por aí, caminhando e vendo as coisas.
Apenas conservei o hábito de fazer uma prece na hora de dormir e isso é tudo.
E é muito porque, muita prece o santo acaba enfarado, com o saco cheio dessa
raça de safardanas. Mas eu dizia, um dia como, dois fico em jejum, dormindo,
lendo, vendo as pessoas que passam. Se me dão um naco de pão, aceito. Se me
negam, não me importo. Não tenho chatos ou piolhos. Tomo banho sempre que
posso. Se consigo roupas troco. Verdade que nem roupas velhas estão dando ou
jogando fora mais. Reciclam tudo. Até merda estão reciclando. E eu rio dessas
coisas. Rio porque vão acabar reciclando peido, gases. É isso aí, acho que vou
sair de fininho por aquela porta e eles nem vão perceber a minha presença ou a
minha ausência. Sou um presente ausente. Decerto que um dia desses qualquer,
vão se dar conta de que já não me encontro mais aqui, sentado neste banco
duro, esperando a vontade deles. Estou indo. Como dizia um amigo meu lá do
Interior, o Márcio Jacovani: "Fui!". Ah, vão tomar, vão! Acho que tenho meus
direitos, afinal....

Dez:

Hora do banho. A enfermeira pensou, "no mínimo sujou toda a roupa de cama
outra vez". Havia adquirido uma certa ojeriza pelo trabalho. Enfermeira
particular de um velho gagá que se borrava o tempo todo. E ainda lia para ele.
"Médico de Homens e de Almas", da Taylor Caldwell. A história de Lucano - São
Lucas -, o único dos Apóstolos que mesmo sem chegar a conhecer Jesus, havia
escrito o seu Evangelho.
São Lucas era médico e revoltado contra Deus porque não aceitava o
sofrimento humano, as doenças, a miséria. Por isso lutava contra os princípios
do Senhor, combatendo a dor e o sofrimento do ser humano, praticando a
Medicina de graça, levando alívio aos pobres que jamais poderiam pagar. Com
isso, ficara evidente que, seu desafio tornara-se uma forma de praticar a
caridade. O livro enlevava. A enfermeira lera a volumosa obra cinco vezes.
Fazia-o pela sexta, com o sexto paciente.
O pobre homem perdera, após o derrame, todo o controle da bacia para
baixo. Mal e mal, movia os braços, o velhote sacana. Deixava deslizar a mão
para os joelhos da enfermeira. Uma graça de moçoila aos 21 anos,
aproximadamente. Corpo muito bem estruturado e distribuído; beleza
inenarrável. Duvidava que poeta ou pintor pudesse retratar tanta beleza. O
velho balbuciava Lucin.. Lucin... E a língua travava-se-lhe e o pensamento
fugia por alguma frincha do cérebro embotado. De forma que, ficava naquela
ladainha, babando pelo canto da boca, querendo, desejando e nada dizendo.
A família abastada, remunerava e bem. Trabalho nojento aquele. Não
conseguiam compreender como uma moça que tinha tudo para desfilar pelas
passarelas pudesse optar por profissão tão, tão... Não encontravam adjetivos.
O filho, o neto, a nora, a neta. Na realidade, talvez viessem a se sentir
aliviados se o velho deixasse tanto padecimento e fosse falar com seus
fantasmas lá do outro lado. Enfim, a vida apronta cada uma!
A enfermeira passara a transpirar e aos poucos começou a sentir-se
incomodada com tanto trabalho e tanta imundície. O velhinho havia realizado
uma verdadeira balbúrdia. Quanta porcaria, Jesus! Limpava-o com a paciência de
Jó. São Lucas de saias. Realizou o serviço miserável e estafante. Recolheu as
roupas sujas, enfiou-as no enorme saco plástico. Para a lavanderia. O quarto
arejado já não recendia à merda e o tubo de bom ar quedava sobre a mesinha da
cabeceira, ao lado da cama. Ajeitou o espectro humano com os travesseiros de
forma que pudesse ministrar-lhe a refeição. Sopinha. Olha o aviãozinho! Abra a
boca! O velho ia obedecendo. Chegava a esboçar um sorriso. Patético. Se muito,
sessenta anos. Não, talvez nem isso e, Deus!, que situação deplorável. Sentia
vergonha e não. Mesmo porque, a moça o limpava com uma naturalidade tão
profissional que, seguramente acabava restituindo um pouco da dignidade que a
doença havia roubado ao paciente. Anjo de saias! Santa disfarçada em moça de
carne e ossos. Observava o busto, a cintura, os tornozelos. Escultural. Uma
obra divina! O velho ainda conseguia discernir. O cérebro continuava, entre
lapsos, tão lúcido quanto a certeza de que seus familiares sentiam asco do que
ele havia se transformado. O filho, a nora, os netos. Todos evitavam adentrar
o quarto em que jazia esquecido, não fossem a faxineira e a Lucinda, sua
enfermeira. Uma santa, a menina!
A moça ajeitou-o, sentou-se na cadeira ao lado da cama. Hora da leitura.
Os olhos do ancião acompanhavam os lábios tenros, úmidos. A face e os
trejeitos que cada página emprestavam à enfermeira. Praticamente não
acompanhava a leitura com atenção devida. Seus pensamentos atabalhoados
encontravam-se mergulhados naquele profundo poço de solidão e melancolia;
agonia e aflição em busca da juventude perdida. Fosse jovem a tomaria em
casamento. Tão linda! Adormecia sonhando. Um que de lamento. Outro de paixão e
adoração pela companheira que continuava lendo e somente muito tempo depois,
vinha a perceber que o velho já havia mergulhado em sua lagoa azul de sonhos.
Deixava o livro sobre o colo. Permanecia algum tempo observando o velho.
Pobrezinho! Que sofrimento. Quanta vergonha não estaria passando?! Certamente
que sim. Sabia que o velho não somente pensava - apesar da dificuldade -, mas
sentia. Isso era o pior. O sentimento ferido do velho leão vencido pela doença
implacável. Pena, comiseração. Um dó de romper no peito as fibras da bondade.
Enfim, se lhe tomava razão e sentimentos, aquela revolta implacável. Odiava.
Com o mesmo amor e piedade, por sua vez, o ódio crescia, tomava forma, ganhava
corpo, impregnava o quarto com seus fluídos maléficos. Sentia gana de acabar
de vez com tudo aquilo. Não seria difícil. Poria fim a tanto sofrimento e
humilhação. Ele nem sentiria. Não chegaria a emitir sequer um suspiro. Tão
fácil.
Passou a caminhar de um lado para outro. Já havia permanecido junto dele,
paciente, demasiado tempo. Com os outros não fora daquela forma. Fizera o
serviço e pronto. Remira todos os pecados. Punha termo à dor, à humilhação.
Não era correto deixar uma alma presa a um corpo que era consumido lentamente
pela agonia. Estava em tempo. Uma dose. Sabia ministrar uma dose bem aplicada.
Quem iria pedir uma autópsia, mandar abrir aquele traste inútil? Todos
esperavam ansiosos pela partida do inválido. Com os outros cinco pacientes não
demorara tanto para terminar de ler o livro.
Apanhou o grosso volume. Não, não faltava muito. Mais duas noites, no
máximo três. Nunca lia enquanto o paciente dormia. Somente quando não
percebia, jamais intencionalmente. De forma que, teria que ter paciência.
Faltava pouco agora. Menos de l00 páginas. Voltou a recolocar o livro na
mesinha. Observou atentamente o homem que dormia. Um fio de baba corria pelo
canto da boca entreaberta. Apenas 100 páginas e adeus sofrimento. Dores e
humilhações. Limpou com um lenço o canto dos lábios do ancião. Cobriu-o com
cuidado e esmero. Uma última olhadela. Foi deitar-se na cama, do outro lado do
amplo quarto. Não mais que 100 páginas. Mais duas, no máximo três noites e....
O que importava? Cerrou os olhos, sentiu o sono tomando conta de seu corpo
fatigado e murmurou, 100 páginas. A noite caiu completamente sobre a metrópole
que, muito doida, parecia, lá do alto, uma procissão com muitas velas e luzes
de neon.....

FIM

Mauro Gonçalves Rueda.
São José do Rio Preto, 1.998.






(Para: Roberto Ferreira, Márcio Jacovani, Aluízio Canuto, Telma Catib Galvão,
Joscelino Soares, Márcia Martins, Daniel Firmino, Benê e Lori Ferreira,
Cesar Menegueti, Fernanda Sala Barrios, Érico Ferreira, Luiz Jardim,
Yonei Scotelari, Eliselma Cavenaghi, Paulo Casanova, Jayme de Souza Filho,
Zé Luiz, Sérgio Carvalho que cantou "Raimundo Rei", Andréa Ribeiro "Se Eu
Cantar" e para toda a cambada de malucos dos idos 70/80 de Rio Preto)






PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DA OBRA.
DIREITOS RESERVADOS PARA MARICY REGINA DE CASTRO RUEDA E JOYCE DE CASTRO
RUEDA.
REGISTRADO NO EDA DE ACORDO COM A LEI N.° 9.610/98.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. BY: MAURO GONÇALVES RUEDA.



(c)2003 - Mauro Gonçalves Rueda
maurorueda@uchoanet.com
maurorueda5@hotmail.com

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

__________________
Março 2003

A PORTA DAS SETE CHAVES

Edgar Wallace



Título original: The Door With the Seven Looks
Tradução: Harald Golnow
Copyright tradução © 1983 Editora Tecnoprint Ltda.
EDIOURO - Grupo Coquetel
Editora Tecnoprint Ltda.
As nossas edições reproduzem integralmente o texto original.
Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer
semelhança com pessoas ou fatos da vida real é coincidência.



CONTRA-CAPA

Que terrível segredo era aquele que desencadeou a morte, e coisas piores do que a morte, numa tranqüila região campestre da Inglaterra?
Lew Pheeney era conhecido, entre os seus colegas de ofício, como um arrombador de muito sangue-frio. Entretanto, quando ele se viu diante da porta das sete chaves e de seu sinistro guardião, fugiu aterrorizado.
E a morte violenta de Pheeney levou o menos ortodoxo dos detetives da Scotland Yard a empreender uma caçada repleta de perigos.
Pois atrás dele caminhava sempre a sombra da morte.

EDGAR WALLACE

Edgar Wallace é mundialmente considerado como talvez o mais importante escritor de livros clássicos de crime e mistério.

O seu gênio persiste até hoje, sendo seus livros publicados em todas as línguas vivas, dando também motivo para filmes e teatro.

Daí a famosa frase:
"É impossível não se viciar em Edgar Wallace."

Autor dos livros mais vendidos em todos os tempos, com uma produção fantasticamente prolífica, Edgar Wallace é talvez um dos fenômenos literários mais fantásticos do nosso século.

Seleções do Reader's Digest - Junho de 1959.

Este é mais um livro superbolso de alta qualidade produzido pela
EDIOURO



EDGAR WALLACE OU
DEZ QUASE-CONSTANTES DO AUTOR POLICIAL
Paulo Mendes Campos

As dez quase-constantes aqui sugeridas não são dogmáticas, mas só resultam de minha experiência no gênero. As dez podem ser modificadas ou acrescentadas pelos outros leitores. É um jogo que proponho. Há exceções evidentes. Mas acredito que os mais famosos novelistas policiais quase sempre sofrem as compulsões de certos fatores existenciais. Diziam os gregos: as coisas que acontecem são intrinsecamente semelhantes às pessoas às quais acontecem.
Este preceito luminoso nos serviria:
1) para penetrar no âmago da própria natureza das personagens duma intriga policial;
2) para penetrar no próprio karma do novelista policial.

Aqui vão as quase-constantes:
1 ) O novelista policial nasce em condições pobres ou adversas.
Edgar Wallace nasceu no esplendor da Londres vitoriana (1875) sob o signo de Áries. Mas o luxo britânico serviu-lhe apenas de contraste: era filho ilegítimo de atores e foi criado por um casal de comerciantes de peixe, que já possuía dez crianças. Depois de 12 anos de idade, o menino não se sentou mais em banco de escola, embora jamais largasse seu dicionário de bolso. Foi jornaleiro, tipógrafo, como Machado de Assis e Mark Twain, entregou leite, curvou-se aos pés de adultos numa loja de sapatos. Fugiu de casa, sobrevivendo com pães furtados.
2) O novelista policial desafia uma adolescência humilde com invulgar intrepidez.
Wallace meteu o bico em toda parte, foi sempre um quebra-galho, um desses donos do mundo de bolsos vazios.
3 ) O novelista policial faz de tudo, mas não se dá bem com qualquer profissão, permanecendo uma criatura na expectativa do estalo do destino.
Depois de múltiplas ocupações, Wallace sentou praça no exército e acabou na guerra dos bôeres, na África do Sul, onde passa pela ponte incontornável do jornalismo. Outra experiência inevitável: a literatura pra valer. E. W. publicou um livro de poemas, à Kipling, e alguns romances decerto mais ou menos dickensianos.
4 ) O novelista policial faz dá existência jovem um desafio de aventuras.
E. W. só, comporia sua imagem de maneira até certo ponto conspícua depois de escritor célebre.
5 ) O novelista policial tem uma capacidade microscópica de observação (como um entomologista) para os pormenores concretos, para as causas aparentemente mínimas que geram efeitos grandes ou confusos.
Este desvio da atenção, do macro para o micro, induz o autor policial a uma fria isenção ou «moralismo. Para ele, o importante não é a letra da lei, a sociedade agredida pelo crime, a punição do criminoso. O essencial é a inteligência do criminoso e a inteligência do detetive.
O Ulisses de Homero é o primeiro romance policial.
O encanto, culposo e delicioso, da novela policial reside nesta encruzilhada o leitor é mantido imantado ao enredo pela ação de duas fantasias chocantes. Uma: "Eu, se me fosse necessário matar ninguém descobriria!"' Como contrapartida moral, reflete o mesmo leitor "Eu, se fosse detetive, seria capaz de descobrir os crimes mais misteriosos!"
E. W. sabe apelar bem para esta encantadora ambivalência do leitor.
6 ) O novelista policial tem uma imaginação de sangria desatada.
Não poderia ser diferente. De todas as faculdades criadoras a mais imperfeitamente cartografada pelos críticos é a imaginação, Nos autores policiais ou de aventuras, trata-se de terra incógnita, de mar tenebroso. Essa qualidade é que faz E. W. universal: ele foi traduzido para 15 idiomas, inclusive para as linguagens pictóricas do Extremo Oriente.
7 ) O novelista policial tem pela lógica um escrúpulo de matemática, mas cultiva simultaneamente a intuição de que lodo sistema racional pode sofrer de repente a intervenção do sobrenatural, do inexplicável, surgindo então em cena o que os trágicos gregos denominavam peripécias, ou seja, as incríveis reviravoltas do destino.
E. W. foi um mestre do suspense, atmosfera adequada às reviravoltas humanas.
8 ) O novelista policial é capaz de suportar trabalhos de escravos, e de executá-los em prazos de tempo inacreditáveis.
E. W. ditou uma vez uma novela completa entre a noite duma sexta-feira e a manhã do domingo, O autor sempre ofereceu 1,000 libras de prêmio a quem provasse que ele se utilizava de auxiliares na composição de suas histórias: nunca apareceu candidato à nota.
9 ) O novelista policial tem faro para dinheiro, isto é, pelo assunto que compra o entusiasmo popular
Fora disso seu faro comercial é zero ou quase zero. E. W. por volta de 1928 ganhava 50.000 libras por ano! Escreveu 150 novelas em 27 anos! Diz-se que, em certa época, um de quatro livros ingleses vendidos era de sua autoria.
10 ) O novelista policial tem admirável capacidade de não praticar a sabedoria da poupança.
E. W., excelente pai de família, era excessivamente chegado às cercas dos prados de cavalinhos e à mesa do pôquer. Ao morrer de pneumonia dupla (1932), deixou dívidas! Dois anos depois, entretanto, gordos direitos autorais reaprumavam os herdeiros.

Apêndice A - O novelista policial adora escrever autobiografia.
E. W. escreveu People.

Apêndice B - O novelista policial não recusa a sedução da tela e do palco.
E. W. teve peças encenadas e morreu em Hollywood, onde, entre outros, escreveu o roteiro do filme King Kong.

Prova dos Nove - Uma novela policial tem de prender, da primeira à ultima página, qualquer leitor que não goste do gênero, caso o mesmo seja apanhado, sem outra leitura, em ônibus, avião ou casa de campo.
E. W. sempre passou neste teste definitivo.



A PORTA DAS SETE CHAVES

Capitulo 1

No seu último dia de serviço como agente de Scotland Yard, o detetive Dick Martin prendeu Lew Pheeney no interior de um pequeno café de bairro, no momento em que o ladrão, que vinha sendo procurado por toda a polícia londrina por suspeita de participação no grande assalto ao Banco de Helborough, tomava tranqüilamente seu modesto café.
Ao receber voz de prisão, Lew mostrou-se surpreso.
- Deve ser algum engano. Acaso cometi alguma falta? Qual é a queixa?
- Quem se queixa é o Banco de Helborough... da falta disto... - replicou Dick, fazendo o gesto de contar dinheiro.
- Não tenho nada com essa história - protestou o outro - Faz muito tempo que não me meto mais em assaltos a bancos.
- Será? Então me diga, o que estava fazendo terça-feira à noite?
Um largo sorriso encrespou os cantos da boca do assaltante.
- Se eu lhe contar, vai morrer de rir.
- Não custa experimentar - volveu Dick, com ar divertido.
Lew não respondeu de imediato. Em pensamentos avaliou os perigos de uma franqueza exagerada.
- Fiz um serviço sobre o qual prefiro não falar - disse finalmente - Um serviço imundo... nenhum crime - apressou-se a acrescentar.
- E foi bem pago? - perguntou Dick, incrédulo.
- Regiamente. Recebi um adiantamento de cento e cinqüenta libras. E, agora arregala os olhos, meu prezado senhor detetive, mas é a pura verdade. Quiseram que eu arrombasse algumas fechaduras. Como sabe, é essa a minha verdadeira especialidade; no entanto, as danadas das fechaduras resistiram a toda a minha habilidade. A propósito, o local ao qual fui levado é um lugar horripilante. Não voltaria lá nem por um baú cheio de ouro, mas devo a essa circunstância um álibi inabalável. Posso provar que passei a noite de terça-feira no "Hotel dos Correios", em Chichester, que lá jantei por volta das oito horas e que fui dormir às onze. Lamento muito, senhor Martin, mas deve procurar o autor do assalto em outro lugar.
Trancafiaram Lew numa cela por uma noite e o telégrafo e os telefones entraram em ação. Ficou logo provado que o gatuno dissera a verdade: até registrara pelo próprio punho o seu nome no livro de hóspedes do hotel de Chichester. Diante disso não restava às autoridades policiais outra alternativa senão soltá-lo ao alvorecer do dia seguinte. Dick convidou-o a tomar o desjejum com ele, pois não existia nenhuma animosidade real entre aquele ladrão profissional e seu captor, e o subinspetor Dick Martin era tão benquisto no mundo do crime quanto nas dependências de Scotland Yard.
- Não, senhor Martin, não posso satisfazer a sua curiosidade - disse Lew obstinadamente, - Pode me xingar de mentiroso, não ficarei aborrecido por isso. Pagaram-me de fato cento e cinqüenta libras em dinheiro vivo e teria ganho oitocentos e cinqüenta mais, em caso de êxito. Quanto ao resto, não adianta insistir; terá de adivinhar, mas duvido que o consiga.
Dick observara-o com olhar especulativo.
- Lew, eu noto que, intimamente, você tem vontade de contar tudo. Por que não desabafa de uma vez?
Ele encarou-o bem de frente com olhar esperançoso, mas Lew sacudiu a cabeça.
- Dizendo-lhe tudo, eu comprometeria um cidadão asqueroso, o qual espero não encontrar nunca mais; porém, em toda a minha vida jamais traí alguém que tivesse de alguma forma confiado em mim.
Dick fez um gesto de impaciência.
- Não precisa mencionar nomes, apenas conte-me o que houve, sem entrar em pormenores - insistiu.
Lew virou a xícara e bebeu o café quente em largos tragos. Limpou a boca com as costas da mão.
- Eu não conhecia o sujeito que me engajou... isso é, não pessoalmente, mas já havia ouvido falar nele. Ele já esteve por alguns meses na cadeia. Certa noite veio me procurar e me levou à casa dele. Brrr! Uma cova horrível! - Lew arrepiou-se tudo só de se lembrar - Martin, um ladrão é de certo modo um marginal honesto, ele pratica um jogo limpo com a polícia. Arrisca a sua liberdade e, se perde, muito bem, ele não fica por isso com ódio de ninguém e cumpre a sua pena. Mas existem criminosos que vivem impunes, pois sabem como agir sem se enredar nas malhas da lei... Sujeiras que até enojam um ladrão comum. Quando o homem explicou o que pretendia, a princípio pensei que estava gracejando, mas ao perceber que falava seriamente, o meu primeiro impulso foi ir-me embora o mais depressa possível. Contudo, como sou muito curioso por natureza, concordei após alguns momentos de reflexão. Por favor, lembre-se de que não se tratava de uma incumbência criminosa. O sujeito era movido por curiosidade, queria descobrir algo, e para isso precisava dos serviços de um experimentado arrombador. Bem, ele não vai conseguir nada, pois ninguém será capaz de abrir aquelas fechaduras.
- Fechaduras? Que fechaduras? - perguntou Dick, interessado.
Mas Pheeney sacudiu a cabeça e mudou de assunto. Falou de seus planos; iria começar vida nova. Seu irmão, arquiteto nos Estados Unidos, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar uma ocupação honesta.
Dick despediu-se dele e retornou a Scotland Yard para o seu último despacho com seu superior imediato.
O inspetor Sneed, que de tão gordo quase não cabia na sua ampla cadeira giratória, fitou-o com uma ponta de censura nos olhos.
- Então é verdade! Você vai dar as costas à mais nobre das profissões, vai comprar uma bela casa de campo e levar duquesas para bailes e festas! Que existência mais ignóbil para um homem da sua idade!
Dick Martin sorriu com tristeza. No íntimo já se arrependera de haver apresentado seu pedido de demissão.
- É curioso como a posse de dinheiro corrompe o caráter - filosofou o Capitão Sneed com ar melancólico - Se eu, por exemplo, herdasse uma quantia de seis zeros, passaria o resto dos meus dias num "dolce far niente".
- Mas isso você já vem fazendo há muito tempo sem precisar de herança. A sua preguiça é mais que notória - observou Dick, irreverente
- Isso beira a insubordinação! - resmungou Sneed, enfezado. - Por enquanto você ainda faz parte do quadro de agentes de Scotland Yard, portanto exijo mais respeito. E não esqueça que deve tratar-me de "senhor". - Fez uma pausa e depois acrescentou, meio ressentido: - Aliás, eu não sou preguiçoso, sou letárgico. A letargia é uma doença, da mesma forma como o é a obesidade.
- Você é obeso porque é preguiçoso, e preguiçoso porque é obeso - insistiu Martin com a arrogância própria da juventude, pois ele era musculoso e esguio como uma vara de salgueiro.
O Capitão Sneed coçou o queixo com ar meditativo. Ele tinha ombros de boxeador, corpanzil de granadeiro e a energia de uma anaconda superalimentada. Suspirando, remexeu numa gaveta e retirou dela um formulário azul.
- Não se regozije cedo demais, hoje você ainda é o meu escravo. Portanto, vá agora à Biblioteca Bellingham e investigue esta queixa a respeito de um livro roubado.
O subinspetor Martin deixou escapar um cômico gemido.
- Concorde que não é uma incumbência própria para colher louros - disse seu chefe com uma risada. - Investigar casos de cleptomania é para um detetive o que para uma dona-de-casa é espanar pó. Mas isso lhe sirva de lição, para que, quando viver no mundo do ócio, se lembre que milhares dos seus colegas menos afortunados são obrigados todos os dias a gastar as solas dos seus sapatos em diligências deste tipo.
Dick (também chamado "Slick" pois como se sabe, todos os detetives têm seu apelido) atravessou, de cabeça baixa, os compridos corredores do prédio de Scotland Yard, consciente de que, por decisão dele mesmo, a sua carreira policial, curta mas brilhante, estava por terminar. Ele era especialista em roubos e furtos, o melhor "caçador de gatunos" que Scotland Yard lá tivera. Sneed afirmava abertamente que Martin tinha uma secreta inclinação para exercer, ele próprio, a profissão de larápio, e considerava isso um elogio. De fato, certa ocasião Dick, para ganhar uma aposta, esvaziara os bolsos de um Secretário de Estado, e até os colegas mais atentos e experimentados não puderam dizer quando e de que jeito ele executara a proeza.
Dick Martin nascera no Canadá, onde seu pai fora superintendente de presídio. Não se preocupava ele muito com o filho, e tampouco com seus presos Desde os tenros anos, Dick considerava o pátio da prisão o seu "play-ground", e muito antes de dominar as regras de álgebra, já conseguia desprender um alfinete de gravata sem que a vítima desse por isso. Peter du Bois, um condenado à prisão perpétua, ensinara-lhe a arte de abrir qualquer porta com um simples grampo de cabelo recurvado. Lew Andrewski, um hóspede freqüente do Fort Stuart, que cortava as capas dos livros de orações para transformá-las em minúsculos baralhos, iniciara o menino na técnica de roubar no jogo de cartas. Muito cedo aprendera como ocultar três cartas em cada mão. Se ele não possuísse aquela intrínseca honestidade que confere imunidade a influências nocivas, ele, provavelmente, teria levado um triste fim.
- Dick tem o coração no lugar certo; não faz mal que aprenda o ofício dos gatunos - dizia o indolente Coronel Martin quando seus parentes o criticavam por deixar o menino, órfão de mãe, exposto à perniciosidade da penitenciária. - Os presos adoram-no. Espero que ele mais tarde siga a carreira policial, e, neste caso, o ensino que aqui lhe é ministrado de graça, lhe será de grande valia.
Ereto como um pinheiro, de olhos azuis, sadio de corpo e alma, Dick correspondera plenamente à confiança do pai. A guerra o levara à Inglaterra, depois Scotland Yard reclamara seus serviços, e como viera precedido de excelente reputação, isentaram-no do costumeiro período de experiência.
- Olá, Martin... É verdade que vai nos deixar? - O terceiro-comissário alcançou Dick no topo da escadaria. - Que pena. A que vai dedicar-se daqui em diante?
Dick encolheu os ombros. Ele mesmo o ignorava. O outro, fitando-o com súbito interesse, pousou-lhe a mão no braço.
- Eu tenho uma idéia de como poderá preencher seu tempo livre. Conhece o advogado Havelock?
Dick abanou a cabeça negativamente.
- Ele é considerado um causídico brilhante. Você encontrará seu endereço no catálogo telefônico. Creio que seu escritório fica nas imediações de Lincoln's Inn Field. Ele, outro dia, perguntou-me se eu não conhecia algum detetive de confiança. Respondi que gente assim só existia na imaginação dos autores de romances e roteiros cinematográficos... mas agora que o vejo à minha frente. Dick, já sei quem poderei recomendar ao senhor Havelock.
- Por que precisa ele dos serviços de um detetive? - quis saber Dick, demonstrando pouco entusiasmo
- Não sei. Não precisa aceitar se não gostar da proposta que ele acaso lhe fizer, mas pelo menos não deixe de procurá-lo. Havelock é uma pessoa bastante aprazível e eu lhe prometi arranjar alguém. Tenho a impressão de que se trata de vigiar um cliente que, de alguma forma, lhe causa preocupações. Você me faria um grande favor, Martin, se fosse falar com ele.
A última coisa que Martin desejava era continuar a exercer a profissão de detetive, e ainda por cima em caráter não-oficial. Entretanto, em várias ocasiões o terceiro-comissário lhe havia dado provas de afeição e amizade, e por isso não podia ignorar o seu pedido sem passar por ingrato. De qualquer forma, uma simples visita ao advogado não o obrigaria a nada. For conseguinte, concordou.
- Ótimo - elogiou o comissário. Vou avisar o senhor Havelock. Tenho a certeza de que você lhe poderá ser muito útil.
- Espero que sim - disse Dick, sem convicção. Ele, na verdade, tinha outros planos para o futuro.
Capítulo
Bellingham, o erudito fundador da biblioteca do mesmo nome, conhecida apenas por um pequeno e seleto número de pessoas em Londres, estatuíra no documento de fundação que duas criaturas inteligentes do sexo feminino, vivendo em condições modestas, deveriam ser admitidas na qualidade de bibliotecárias, e foi à presença de uma delas que Dick foi conduzido a sua chegada.
Numa sala alta e estreita, com estantes que se erguiam ate o teto, num ambiente impregnado de um leve cheiro de mofo e couro velho, uma jovem, sentada a uma mesa, preenchia fichas.
- Sou de Scotland Yard - apresentou-se Dick. - Vim por causa de uma queixa referente ao roubo de um livro que teria ocorrido aqui.
Enquanto pronunciava estas palavras, deixou vaguear os olhos pelos milhares de livros que se alinhavam nas prateleiras das estantes, sem prestar maior atenção na "criatura de sexo feminino" à sua frente; só reparou vagamente que ela trazia um vestido preto e que tinha cabelos castanho-dourados penteados de um jeito que parecia ser a última moda entre as mocinhas que trabalhavam em escritórios.
- É - confirmou ela. - Um livro sumiu desta sala na minha ausência. Uma obra de Haeckel: Morfologia Geral".
Abrindo um arquivo, retirou uma das fichas e entregou-a ao detetive. Este se pôs a estudar as anotações constantes da ficha sem entendê-las muito bem.
- Quem a substituiu na sua ausência? - indagou.
- A senhorita Helder, minha assistente.
- E neste tempo veio alguém trocar livros ou fazer consultas?
- Vieram algumas pessoas, sim... mas todas estão acima de qualquer suspeita. Tomei nota dos nomes. São todos leitores cadastrados, com exceção de um, de nome Staletti, um médico italiano, que veio pedir esclarecimentos quanto ao nosso regulamento sobre a inscrição de novos leitores.
- Ele mesmo revelou sua identidade? - quis saber Dick.
- Não - disse a bibliotecária - A senhorita Helder reconheceu-o, pois já tinha visto o retrato dele nos jornais. O senhor não o conhece?
- Por que havia eu de conhecê-lo, benzinho? - perguntou Dick, um tanto irritado.
- E por que não, meu caro senhor? - volveu ela, petulante. Só neste momento Dick Martin, pela primeira vez, olhou com atenção para a moça, que começou a projetar-se plasticamente do fundo para se transformar numa personalidade nítida, distinta. Os olhos dela, ligeiramente amendoados, eram cinzentos, o nariz reto e pequeno, a boca um pouco larga e, de fato, os cabelos eram castanho-dourados.
- Desculpe - riu ele. - Confesso que estou pouco interessado neste ladrão de livros - Dick, às vezes, mostrava uma sinceridade invulgar e surpreendente. - Acontece que hoje é meu último dia de serviço. Amanhã vou me desligar de Scotland Yard encerrando esta ingrata profissão.
- Haverá então grande júbilo no mundo do crime - comentou ela em tom grave, mas com um brilho travesso nos olhos, que logo lhe conquistou o coração.
Ele puxou uma cadeira para perto da mesa e sentou-se sem esperar por um convite.
- Bem... quem é esse Staletti?
Ela mediu-o com olhar sério, mas um leve sorriso brincou-lhe nos lábios.
- E o senhor é o que chamam de detetive? Uma dessas criaturas quase sobrenaturais, que vigiam nosso sono?
Dick riu muito.
- Chega! Eu me rendo! - ergueu os braços. - Mas agora, por favor, responda à minha pergunta: quem é esse Staletti?
- Realmente não sabe? Segundo a minha assistente ele é um velho conhecido da polícia. Quer ver a obra dele?
- Ele escreveu algum livro? - perguntou Dick com surpresa.
- Escreveu. Vou buscá-lo.
Ela levantou-se e deixou a sala. Instantes depois ela voltou trazendo nas mãos um calhamaço empoeirado.
Ele pegou-o e leu o título. "Novas Idéias sobre a Biologia Construtiva. De Antonio Staletti." Depois correu as folhas cheias de diagramas e tabelas.
- E por causa deste alfarrábio ele teve aborrecimentos com a polícia? É a primeira vez que ouço que escrever livros constitui um delito
- Mas é claro que é crime; infelizmente, porém, não costuma ser devidamente punido - brincou ela.
- Mas não foi por causa do livro que pegou cadeia. Foi por outra coisa, bem mais horrível. Vivissecção, eu acho.
- De que trata este livro? - ele devolveu-o à moça, que o largou sobre a mesa.
- De seres bípedes, como o senhor e eu - respondeu ela com voz solene - Segundo ele, a humanidade seria bem mais feliz se nós, em vez de aprendermos latim e álgebra, nos alimentássemos de raízes e nozes e vivêssemos no mato, livres e nus em pêlo.
Dick endireitou o corpo, alçou as sobrancelhas:
- E onde mora este esquisitão ?
Ela abriu o livro e leu a nota constante da parte inferior da página do prefácio.
- Em Sussex, no "Átrio do Patíbulo". Céus, que nome macabro!
- Quem mais esteve aqui no dia do roubo, além de Staletti?
Ela mostrou-lhe uma lista com quatro nomes.
- Creio que nenhum destes pode ser considerado suspeito; são todos historiadores que dificilmente estariam interessados em biologia. Na minha presença tal coisa jamais teria acontecido - acrescentou, aborrecida. - Eu costumo ficar atenta aos movimentos dos leitores e não ia...
Ela parou no meio da frase, olhando para a mesa.
- O senhor pegou o livro de Staletti? - perguntou com a surpresa estampada no rosto.
- Acaso viu quando eu o peguei? - replicou ele
- Não, eu não vi, mas posso jurar que um instante atrás o livro ainda estava em cima da mesa.
Ele tirou-o do bolso do casaco e devolveu-o à moça.
- É raro encontrar gente que realmente está sempre atenta—observou.
- Mas como fez isso? - exclamou ela, perplexa.
- Eu estava com a mão pousada sobre o livro e só arredei os olhos por um segundo.
- Qualquer dia destes eu volto para lhe mostrar o truque - prometeu ele, bem-humorado.
Ao deixar o prédio, lembrou-se que esquecera de perguntar pelo nome da moça.

Sybil Lansdown correu à janela de onde se descortinava a praça e seguiu com os olhos o jovem policial que se distanciava, até desaparecer na esquina da rua. Um sorriso encrespou-lhe os lábios e nos seus olhos reluzia um brilho singular. No primeiro momento achara-o antipático, pois ela detestava homens presunçosos; depois, porém, teve uma impressão melhor. Será que algum dia tornaria a vê-lo? Era raro encontrar indivíduos divertidos, e o sub-inspetor Dick Martin (ela pegou o cartão de visitas e leu o nome em voz baixa) era uma dessas poucas pessoas cuja presença aquecia o coração da gente.



Capitulo 3

Faltava pouco para meio-dia quando Dick estacionou o carro em frente do decrépito muro e do pesado portão de gonzos enferrujados de "Átrio do Patíbulo".
Atrás de uma curva repentina do sinuoso caminho, em muitos trechos tomado por ervas daninhas, erguia-se, em lugar ermo, uma casa de fachada despretensiosa. Não encontrando puxador de campainha, bateu com o punho várias vezes na madeira da velha porta principal. Ouviu o tinir metálico de correntes, e a porta rangeu devagarinho, mas não se abriu mais do que dois centímetros.
Pela estreita fresta Dick divisou um rosto alongado, macilento, vincado de rugas como uma maçã murcha e onde crescia uma abundante barba preta que descia até a altura do estômago. Um par de olhos negros, nos quais reluzia uma luz malévola, o fitava desconfiado.
- Doutor Staletti?
- Sou eu - soou uma voz áspera e com sotaque estrangeiro. - O senhor quer falar comigo? Mas isso é fenomenal, pois não tenho o hábito de receber visitas!
Ele parecia vacilar por um momento, depois virou a cabeça e falou com alguém que estava atrás dele. O detetive, seguindo-lhe o olhar, viu por um instante o vulto de um homem ainda moço, de rosto rosado, elegantemente trajado, que apressadamente deu um passo para trás.
- Bom dia. Tommy - cumprimentou-o Dick Martin com polidez. - Que prazer inesperado.
Era realmente um prazer contemplar Tommy Cawler. A sua gravata era impecável, a sua camisa de finíssima qualidade, o seu terno o produto de um alfaiate de primeira categoria.
- Bom dia, senhor Martin - Tommy não se perturbava facilmente. - Estou aqui por acaso, para dizer "alô" ao meu velho amigo Staletti.
Dick fitou-o com admiração.
- Sim, senhor! Está se vendo que prosperou muito! Em que ramo de negócios está metido atualmente?
Tommy baixou os olhos com ar resignado.
- Não se preocupe, não me meto mais em encrencas. Exerço agora uma profissão honesta que dá para meu sustento. Bem, então até breve, Staletti
Apertou a mão do homem barbudo com exagerada cordialidade e fez menção de descer os degraus da escadaria.
Dick deteve-o com um gesto.
- Espere, Tommy. Quer fazer o favor de aguardar um momento? Preciso falar-lhe,
Tommy Cawler hesitou e relanceou um olhar furtivo para o rosto do doutor Staletti, como quem procura conselho.
- Pois não - resmungou, aborrecido. - Mas não tenho muito tempo. Mais uma vez muito obrigado pelo remédio, doutor.
Entretanto, Dick entendeu a manobra imediatamente e um sorriso zombeteiro crispou-lhe os lábios. Ele seguiu Staletti até o vestíbulo.
- O senhor é da polícia, não é? - perguntou-lhe aquele homem estranho, antes que Dick pudesse mostrar-lhe sua identidade. - Isso é fenomenal! Há muito tempo tive este prazer de uma visita policial. Foi por causa de um cachorrinho sacrificado aos interesses da ciência. Tanto alvoroço em torno de um animal irracional! E de que se trata desta vez?
Dick apressou-se a explicar-lhe em poucas palavras o motivo da sua vinda. Para surpresa sua Staletti admitiu prontamente o furto do livro.
- O livro estava em cima da mesa. Ele me interessava, por isso apanhei-o e levei-o comigo
- Mas, doutor - exclamou Dick com incontido espanto. - Como se atreve a se apossar de um livro que não lhe pertence, somente porque ele o interessa?
- E por que não? Aquilo é uma biblioteca pública, cuja única finalidade é emprestar livros às pessoas interessadas, e, assim sendo, tomei-o por empréstimo. Não o fiz furtivamente, longe disso. Meti o livro debaixo do braço, à vista de todos, cumprimentei a "signorina" sentada à mesa, e saí. Já terminei o livro e ele pode voltar para seu lugar. Haeckel é um idiota. As suas conclusões são absurdas, embora suas teorias sejam fenomenais. Ao senhor certamente pareceriam enfadonhas, mas eu... - interrompeu-se, deu de ombros e emitiu um grasnido que para ele provavelmente era uma risada.
O detetive fez-lhe uma breve preleção sobre os regulamentos das bibliotecas públicas, em seguida sobraçou o livro e saiu. Agora tinha o pretexto para uma segunda visita à biblioteca, o que o deixava muito contente.
Tommy Cawler esperava-o junto do portão. Dick dirigiu-se para ele.
- E agora, Tommy, chegou a sua vez - disse sem rodeios, com voz autoritária. - Staletti é amigo seu?
- É meu médico - redargüiu Tommy Cawler, sem vacilar.
Os seus olhos tinham uma expressão alegre. Dick dava-se bem com ele, que havia sido um famigerado ladrão de automóveis, por sinal um mestre nesse ofício, que sem-cerimônia se apoderava de qualquer carro não vigiado. Duas das suas condenações tinham sido obra de Dick e o resultado de cansativas diligências, mas mesmo assim não existia ressentimento.
- Eu agora tenho emprego fixo - orgulhou-se Tommy. - Sou chofer do senhor Bertram Cody. Depois da minha última detenção abandonei o mau caminho.
- Onde mora este senhor Cody? - inquiriu Dick, um tanto incrédulo
- Weald House. Fica pertinho daqui. Se quiser, pode vir comigo e perguntar.
- O senhor Cody sabe do seu glorioso passado? - perguntou Dick delicadamente.
- Sabe, sim Não lhe ocultei nada. Ainda assim me considera o melhor chofer que já teve em toda a sua vida - retrucou o outro com jactância.
Dick mediu o rapaz demoradamente.
- E é esta roupa o uniforme que seu patrão lhe
Fornece?
- É minha roupa particular. Hoje é meu dia de folga - respondeu Cawler - O meu patrão é muito liberal no que respeita às folgas. Eis o meu endereço.
Tirou do bolso um envelope sobrescrito a ele mesmo: Tommy Cawler. a/c do sr. Bertram Cody, Weald House, South Weald, Sussex.
Martin ofereceu-lhe um lugar no seu carro, mas como o outro recusasse o convite, voltou sozinho para Londres. Ficou decepcionado quando, ao chegar à biblioteca, não encontrou mais sua amiguinha desconhecida, que encerrara o expediente meia hora antes.
Ele guardou o automóvel numa garagem e tomou o rumo de sua residência. De repente ouviu passos atrás de si e uma voz ofegante que o chamava. Virou-se e avistou a figura do homem que fora preso por ele no dia anterior e posto em liberdade naquela manhã.
Quando Lew Pheeney o alcançou, tremia da cabeça aos pés. Articulou algumas palavras ininteligíveis.
- Posso lhe falar, Slick? - perguntou, depois de se refazer um pouco.
- Sim, é claro. O que aconteceu?
Lew Pheeney, muito apreensivo, olhou para trás por cima dos ombros.
- Alguém está me seguindo - disse entre os dentes.
- Não é a polícia, posso lhe garantir isso - tranqüilizou-o Dick e recomeçou a andar.
- A polícia? Oxalá fosse ela! Não, é aquele homem sinistro de que lhe falei, que contratou meus serviços na terça-feira passada. Eu não lhe contei tudo, Slick. Enquanto eu procurava forçar aquelas fechaduras, pude notar que o sujeito tirava uma pistola do bolso da calça, passando-a para o bolso do casaco. O tempo todo ficou com a mão enfiada naquele bolso, e de repente compreendi que, uma vez a porta aberta, ele me liqüidaria. Aleguei então uma necessidade fisiológica, e depois de me afastar alguns passos parti a correr. Mas algo vinha atrás de mim. Não sei o que era; uma coisa estranha... meio homem, meio animal. E eu estava desarmado.
Enquanto conversavam, os dois atravessaram o vestíbulo e subiram para o apartamento de Slick. Sem esperar por um convite, o assaltante entrou também. O detetive levou-o ao seu gabinete de trabalho.
- Lew, agora quero saber toda a verdade! O que foi que você tentou arrombar terça-feira à noite?
Lew, com expressão atarantada, olhou para todos os lados.
- Um sepulcro - sussurrou.
Capitulo 4
Por uns instantes fez-se um profundo silêncio. Dick, com os olhos muito abertos, inclinou-se e encarou o homem fixamente, julgando que não tinha ouvido direito.
- Um sepulcro? - perguntou, incrédulo. - Lew, agora me faça o favor de sentar-se, e diga-me tudo, tintim por tintim!
- Não posso. Estou com medo - foi a resposta.
- Aquele sujeito é o Demo em pessoa.
- Quem é ele?
- Não posso dizer-lhe - teimou Lew Pheeney. - Mas talvez eu ainda resolva fazer uma confissão por escrito, para que exista uma prova no caso de me acontecer alguma coisa.
Percebia-se que ele tentava disfarçar seu nervosismo, e Dick, que sempre o julgara um indivíduo calmo e ponderado, quase não o reconhecia.
Lew recusou o jantar que a criada de Dick serviu, contentando-se com um uísque-soda. Dick Martin absteve-se de fazer outras perguntas, mas sugeriu:
- Fique a noite aqui no meu apartamento e escreva um relatório completo. Ninguém o perturbará e estará em segurança
Esta idéia parecia ter já ocorrido ao próprio Lew, pois ele não levantou objeções; mas quando Dick se dispunha a combinar os detalhes com ele, o telefone tocou.
- É o senhor Martin?
Era uma voz desconhecida.
- É - respondeu Dick.
- Quem está falando aqui é Havelock. O comissário me falou a seu respeito e me disse que o senhor viria procurar-me ainda hoje no meu escritório. Esperei em vão. É possível vir ainda esta noite? É um assunto urgente - havia medo e súplica na voz.
- Está bem - replicou Dick. - Qual é o endereço?
- Fica perto. Acácia Road, número 907, St. John's Wood.
- Estarei aí dentro de poucos minutos - prometeu Dick.
Neste momento lembrou-se de Lew Pheeney, mas não podia desfazer o compromisso, pois Havelock já tinha desligado. Talvez fosse até melhor deixar Lew Pheeney a sós. Chamou, pois, a criada e disse-lhe que não precisava mais dela naquela noite e que ela podia sair se quisesse. Lew Pheeney concordou com tudo; a perspectiva de poder redigir a sua confissão sem ninguém por perto até parecia agradar-lhe.
Dick pôs-se a caminho e poucos minutos mais tarde tocou a campainha de uma casa imponente que se erguia num terreno ajardinado da melhor área de St. John's Wood. Um velho criado tirou-lhe o agasalho e conduziu-o a uma sala estreita e comprida, mobiliada com gosto apurado.
Havelock era um homem de cinqüenta e tantos anos, alto e magro. Tinha a testa e o queixo de um lutador e suas grossas costeletas grisalhas davam à sua fisionomia uma aparência circunspecta e até um tanto carrancuda. Apesar disso Dick simpatizou com ele, pois os olhos por detrás dos óculos irradiavam inteligência e afabilidade.
- Senhor Martin, não é verdade? - estendeu-lhe sua mão fina e longa. - Sente-se, por favor. Fique à vontade, como se estivesse em sua própria casa. O que toma? Posso recomendar-lhe meu velho vinho do Porto, artigo de primeira. Walter, sirva um copo ao senhor Martin.
Recostando-se na cadeira, franziu os lábios e contemplou o moço com olhar penetrante.
- Então é detetive? Hum...
Esta pergunta era parecida com outra que Dick ouvira na parte da manhã de lábios mais bonitos e suaves, e ele sorriu consigo mesmo ao se lembrar.
O advogado continuou:
- O comissário me disse que pretende deixar Scotland Yard amanhã e que talvez estivesse interessado em encontrar uma ocupação com que preencher o seu tempo livre. Se é isso, talvez eu saiba algo para o senhor - ele fez sinal ao criado. - Walter, pode ir. E desligue o telefone. Não estarei para ninguém.
Depois que a porta se fechara atrás do criado. Havelock levantou-se da poltrona e começou a caminhar de um lado para o outro na sala. Ele tinha um modo rápido e brusco de falar, como se arremessasse acusações contra um adversário invisível.
- Eu sou advogado; talvez já tenha ouvido falar em meu nome. Na realidade, pouco tenho a ver com tribunais. A minha atividade é mais de caráter consultivo. Sou procurador de várias associações, e além disso curador dos bens de raiz da família Selford.
Ao dizer isso, aprumou-se. Calou-se por um instante, depois suspirou:
- Antes esse cálice tivesse passado de mim. O velho Lord Selford... quer dizer, "velho", na verdadeira acepção desta palavra, ele não ficou... O número dos seus vícios e pecados superou em muito o dos seus anos... Bem, como eu estava dizendo, o falecido Lord Selford fez-me o único testamenteiro da sua fortuna e nomeou-me o tutor do seu filho. Selford era um sujeito antipático e ranzinza, meio louco, como a maioria dos Selfords há muitas gerações. Acaso conhece o solar deles?
Dick sorriu.
- Ontem ainda não o conhecia, mas hoje, por pura coincidência, passei de carro pela estrada que passa ao longo da propriedade. Então é lá que mora o atual Lord Selford?
- Não, senhor - retrucou Havelock, e seus olhos atrás dos óculos faiscaram de raiva. - Ele não mora em lugar algum. Quer dizer, não mora em lugar algum por mais de dois ou três dias. Ele é o rei dos nômades. O pai dele era a mesma coisa na sua mocidade. Pierce... é este o seu nome, ele não faz uso do título... Pierce passou os últimos dez anos viajando. Só volta à Inglaterra em grandes intervalos. Eu mesmo não o vejo há quatro anos. Quando Selford morreu, Pierce tinha seis anos. Cresceu sem mãe, sem irmãos, sem parentes próximos. Seu pai também havia sido filho único, de sorte que não existiam tios com quem eu pudesse dividir as minhas responsabilidades. O menino era franzino, gozava pouca saúde, não podia freqüentar regularmente uma escola pública. Arranjei-lhe um preceptor que fez o que era possível, mas ele tinha dificuldades em aprender e não conseguiu entrar para a universidade. Por isso, achei que ele deveria viajar, conhecer o mundo, para completar a sua educação. Hoje me arrependo daquela idéia infeliz, pois desde então ele não pára mais em lugar nenhum. Transformou-se num eterno andarilho sem pousada fixa. Quatro anos atrás voltou a Londres e me fez uma visita; estava a caminho dos Estados Unidos. Falou-me da sua intenção de concretizar seu sonho de escrever um livro sobre as suas aventuras nos cinco continentes e se mostrava mais irrequieto do que nunca. Eu estou ficando cada vez mais preocupado. De vez em quando ele me telegrafa pedindo dinheiro, e eu lhe remeto somas consideráveis. É verdade que ele tem direito ao dinheiro, pois já é maior de idade.
- A situação financeira dele... - começou Dick
- E sólida - interrompeu-o Havelock. - Não é isto o que me causa preocupações. O que imagino são outras coisas ruins que lhe possam ter acontecido. É possível, por exemplo, que esteja sendo explorado por gente inescrupulosa.
Ele hesitou por um momento, depois prosseguiu:
- Eu preciso entrar em contato com ele; não diretamente, mas por intermédio de outra pessoa. Por isso lhe peço que embarque para os Estados Unidos o quanto antes e procure travar conhecimento com Lord Selford, que usa o nome de John Pierce. Confesso que isso pode constituir-se numa empresa difícil. Em todos os lugares pelos quais passa, ele costuma demorar-se muito pouco O senhor precisará ficar atento às suas constantes mudanças, porque eu não sei se poderei mantê-lo sempre informado a esse respeito; não deve recorrer, em hipótese alguma, à polícia americana, seja para que for. Tudo o que empreender deverá ser feito sem dar na vista e sem molestá-lo. Antes de mais nada é indispensável apurar três coisas. Primeiro, ele convive com gente duvidosa? Segundo: ainda é dono de sua vontade? Terceiro, o dinheiro que lhe mando está sendo aplicado em seu benefício? Ele escreveu-me há algum tempo que havia adquirido uma série de ações de várias empresas industriais; algumas dessas ações ele até confiou à minha guarda, mas a maior parte está nas mãos dele, e a uma pergunta minha a respeito dessas outras ações ele respondeu que as tinha depositado num banco sul-americano. Isso é tudo que eu lhe posso dizer. O que acha desta incumbência?
Dick riu.
- Parece-me que o senhor está me oferecendo uma excelente oportunidade para uma viagem de férias gratuita. - Depois, mais sério, acrescentou: - Quanto tempo levaria esta missão?
- Não sei. Dependerá das circunstâncias e, sobretudo, do que vai constar dos seus relatórios. Não me escasseiam recursos, e além de arcar com todas as despesas, proponho-me a remunerar seus serviços generosamente.
Ele mencionou uma quantia elevada e Dick bateu as pálpebras, espantado.
- Quando devo partir? - perguntou após pequena pausa.
O advogado pegou um caderno de notas e consultou a folhinha.
- Hoje é quarta-feira. Digamos, dentro de oito dias. No momento Pierce se encontra em Boston, colhendo dados sobre a guerra da Independência da América, dos quais necessita para o seu livro. Entretanto, ele comunicou-me que em breve irá para Nova Iorque e se hospedará no Hotel Commodore.
- Mais outra pergunta - disse Dick, levantando-se. - O senhor tem algum motivo para suspeitar de que o jovem Lord Selford contraiu uma aliança indesejável? Em outras palavras, que casou com mulher de nível inferior?
Havelock fez um gesto vago.
- Nenhum outro motivo além do meu coração desconfiado - respondeu, meneando a cabeça. Continuou: - Depois de conquistar a confiança dele, que certamente conseguirá logo, deve convencê-lo de que é seu dever de cidadão inglês regressar à Inglaterra. É uma lástima e um desdouro abandonar aos ratos uma propriedade histórica como o castelo Selford... Quer queira, quer não, algum dia terá de voltar mesmo, a fim de ser enterrado lá - acrescentou com um sarcasmo mordaz, cuja significação oculta Dick só descobriria oito meses mais tarde.
Tratava-se de uma incumbência "fenomenal", para usar a palavra predileta do Dr. Staletti; uma viagem de férias em grande estilo. Não era de estranhar, pois, que a melancolia que Dick sentia por deixar Scotland Yard se desvanecesse um pouco diante de tão agradável perspectiva.
Um vento gélido fustigava-lhe o rosto enquanto voltava apressadamente peias ruas desertas rumo ao seu apartamento. Nenhum táxi apareceu dentro da noite, de modo que teve de fazer todo o percurso a pé.
Ao abrir a porta do apartamento encontrou todas as peças vazias e às escuras. Com surpresa verificou que Pheeney tinha ido embora. Em cima da mesa estavam algumas folhas de papel em branco e uma caneta-tinteiro, dando a impressão de que Lew se ausentara apenas por pouco tempo: na certa retornaria ainda na mesma noite.
Todavia, não voltou. Esperando até duas horas da madrugada que Lew desse sinal de si, Dick finalmente foi-se deitar.
De manhã bem cedo se dirigiu para a Biblioteca Bellingham, onde entregou o livro à sua amiguinha, que o cumprimentou com um sorriso.
- Bom dia, senhor Martin. Confesso que estou muito impressionada com a sua eficiência. O próprio Sherlock Holmes não poderia ter feito melhor. Como foi que o recuperou? - ela apontou para o livro.
- Foi muito simples - riu ele. - Falei com o sujeito de quem suspeitávamos, e ele admitiu tudo. Ele tem umas idéias extravagantes sobre a função das bibliotecas públicas.
Não havia mais nenhum pretexto para continuar ali na biblioteca, mas Dick, com muita habilidade, estendeu a conversa por mais algum tempo, até que finalmente ela lhe disse que aquilo era hora de expediente e que ela precisava trabalhar.
- Em breve deixarei a Inglaterra por alguns meses - comentou ele. - E nem sei exatamente para onde vou.
- Viagem de recreio? - indagou ela.
- Depende do ponto de vista - disse ele em tom casual. - Será antes uma aventura nos moldes das fitas cinematográficas.
Ela encarou-o com uma interrogação nos olhos.
- Será que o senhor é o detetive que o senhor Havelock contratou para achar meu parente? - inquiriu.
Agora era a vez dele de mostrar espanto.
- Seu parente? Lord Selford é parente seu? - perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
- Um primo afastado. O nosso parentesco só se torna visível através de uma lente de aumento. Minha mãe e eu estivemos anteontem na casa do senhor Havelock e ele contou-nos que, preocupado com a prolongada ausência de Lord Selford, pensava em contratar um investigador.
- Conhece pessoalmente este seu primo?
Ela sacudiu a cabeça.
- Não, mas minha mãe o conheceu quando ele era menino. Dizem que o pai dele foi um sujeito insuportável. Então irá atrás de Lord Selford?
Dick anuiu.
- É esta a triste notícia que eu pretendia transmitir-lhe com muito tato - acrescentou em tom brincalhão.
Neste momento a conversa dos dois foi interrompida. Chegavam os primeiros leitores e Dick, embora ansioso por ficar mais um pouco, não teve outra alternativa senão despedir-se e tomar o rumo de Scotland Yard, a fim de fazer ao Capitão Sneed, a quem telefonara pela manhã, um relato sucinto do que acontecera.
- É uma história muito esquisita - disse o capitão. - Não posso compreender por que Pheeney foi embora se estava disposto a confessar tudo. E quem estaria interessado em segui-lo? Você notou alguma coisa suspeita?
- Absolutamente nada, mas ele tremia como varas verdes quando me chamou na rua, e seu medo era genuíno.
Sneed pressionou um botão de campainha e esperou a chegada do sargento de plantão.
- Escute, eu quero que alguém saia em procura de Lew Pheeney. Preciso falar com ele. É urgente.
Mas quando o sargento já ia fechar a porta atrás de si, chamou-o de volta.
- O inspetor Martin conhece todos os esconderijos onde Pheeney costuma se meter. É melhor ir ele mesmo.
- O meu serviço termina hoje às doze horas - protestou Dick.
- Às doze horas da noite - respondeu Sneed laconicamente. - Até lá muita água ainda vai passar por baixo das pontes de Londres.
Resmungando, Dick pôs-se a caminho.
Lew Pheeney morava havia muitos anos na Great Queen Street, mas a sua senhoria não sabia onde se encontrava no momento.
- Saiu a passear ontem por volta das cinco horas e não voltou mais - informou.
Um dos locais favoritos de Pheeney era um famigerado clube cujo quadro de sócios se compunha principalmente de antigos e futuros presidiários. Era ali que comumente tomava o seu desjejum. No entanto, lá também não estava, nem esteve.
Dick regressou para seu apartamento, desapontado. Dirigiu-se ao quarto de dormir e tirou o casaco para vestir uma roupa mais leve e confortável, como era do seu hábito quando estava em casa. Quando abriu a porta do pesado guarda-roupa de mogno que ocupava quase toda a largura do quarto, o corpo de um homem caiu para a frente e rolou aos seus pés com um baque surdo.
Dick deu um pulo para trás, os olhos esgazeados.
Era Lew Pheeney, e estava inerte, rígido, morto.



Capitulo 5

A perícia aguardava na sala de jantar o resultado do exame cadavérico. Todo mundo só conversava em voz baixa, como é praxe num momento destes.
Finalmente o médico disse:
- Pelo que pude constatar, a morte ocorreu há muitas horas e foi causada por violenta fratura do pescoço.
Dick sentiu um arrepio correr-lhe pela espinha. Ele dormira naquele quarto, sem saber que a porta envernizada do seu guarda-roupa ocultava tão apavorante mistério.
- Não encontrou sinais de luta? - perguntou-lhe Sneed, que também estava presente.
- Não, nada - redargüiu Dick. - Acho que ele foi atacado pelas costas - balançou a cabeça, perplexo. - Não compreendo como o assassino conseguiu entrar no apartamento.
O elevador do prédio era operado por uma moça que, ouvida pela polícia, declarou não ter visto ninguém
Todo o apartamento foi meticulosamente revistado em busca de pistas que pudessem lançar luz sobre o crime, mas nada foi encontrado.
- Só havia uma via de acesso para o invasor - opinou Sneed. - Pela cozinha.
A porta da cozinha dava para uma pequena sacada, ao lado da qual existia um ascensor externo para o transporte de mercadorias que funcionava mediante uma espécie de sarilho.
- Esta porta estava trancada por dentro? - quis saber o capitão.
Dick não se lembrava, mas a criada, que chorava baixinho e enxugava as lágrimas na fralda do avental, afirmou que encontrara a porta aberta pela manhã.
Dick foi à sacada e olhou para o pátio interno do prédio O apartamento ficava no terceiro andar e seria necessária a habilidade de um artista de circo para subir pelo cabo do ascensor até aquela altura.
- Ele nunca deu a entender, de alguma forma, de quem tinha medo? - perguntou Sneed.
Dick sacudiu a cabeça.
- Ele não tinha coragem de contar, mas posso jurar que falou a verdade. Estou plenamente convencido de que realmente foi contratado para uma profanação de sepulcro e que o desconhecido que o recrutara tinha a intenção de matá-lo depois.
No dia seguinte Dick dirigiu-se ao escritório do advogado. Havelock já lera as notícias do homicídio nos jornais.
- Receio que tenhamos de adiar a sua partida - comentou. - Duvido que Scotland Yard vá permitir agora que se ausente do país.
Concluído o inquérito policial, as autoridades decidiram não impedir a viagem de Dick, desde que ele se comprometesse a permanecer em contato com Scotland Yard. a fim de que, em caso de necessidade, pudesse regressar imediatamente para testemunhar.
Ao meio-dia de sábado Dick Martin deixou a Inglaterra.



Capitulo 6

Todos os jornais deram ampla publicidade ao assassinato de Lew Pheeney. Também Dick refletiu muito sobre o caso, mas a viagem inundou-o de tantas emoções novas que a lembrança do crime foi aos poucos se desvanecendo. Outra recordação, todavia, se tornava mais e mais luminosa, à medida que se afastava da Inglaterra. Mentalmente via, a todas as horas do dia, um lindo rostinho e o brilho de um par de olhos cinzentos, e escutava o som de uma voz suave e alegre.
Repreendia-se a si próprio por não ter indagado do nome dela, pois se o tivesse feito poderia lhe escrever. Nos dias que precederam a sua partida, os acontecimentos haviam-se precipitado e não lhe tinha sido possível procurá-la mais uma vez. Uma carta endereçada "à linda moça de olhos cinzentos na Biblioteca Bellingham" talvez chegasse ao seu destino, mas era possível que outra jovem daquela instituição possuísse as mesmas características.
Em Chicago teve finalmente uma idéia brilhante. Enviou uma carta à biblioteca, solicitando admissão no seu círculo de leitores. Nutria a esperança de que talvez o nome dela constasse da resposta. Somente depois de jogar a carta na caixa do correio lembrou-se que a resposta, provavelmente, não mais o alcançaria.
A sua única fonte de informações eram os jornais ingleses. De acordo com eles, a polícia ainda não conseguira agarrar o culpado. Aos poucos o interesse do público em torno do caso Pheeney foi diminuindo e os relatos de várias colunas dos primeiros dias encolheram até se transformarem em brevíssimas notícias.
Dick passou por Buenos Aires e de lá viajou para a Cidade do Cabo, onde também não chegou a alcançar o homem que procurava, pois este partira daquela cidade alguns dias antes. Entretanto, ele teve a grata surpresa de receber um telegrama de Havelock ordenando-lhe que regressasse sem demora. Contente, embarcou no primeiro navio.
Ele seguira o jovem lorde de vida errante em torno do globo terrestre e seu entusiasmo inicial arrefecera muito. A viagem até a Ilha da Madeira levou treze dias, pois o barco fez escala em vários portos. Foi para Dick o período mais enfadonho e monótono da sua vida.
Mas quando o navio atracou na ilha paia embarcar carvão, aconteceu o milagre. Minutos antes da partida uma lancha encostou, meia dúzia de passageiros subiu a escada...
Dick sentiu pular o coração, pensou que estava sonhando,..
Era ela! Não havia dúvida. Ele a teria reconhecido entre milhares de pessoas.
Ela pisou no convés a poucos passos de onde ele se encontrava, mas não o viu, e ele não se adiantou, nem acenou. Agora que ela estava tão perto dele, que se lhe oferecia uma oportunidade de aproximação como não havia considerado possível nem nos seus sonhos, mais ousados; reteve-o uma estranha timidez.
Somente no último dia de viagem, dando de rosto com ela, resolveu dirigir-lhe a palavra. Ela mediu-o de alto a baixo.
- Sim, eu sabia que o senhor estava a bordo. Vi seu nome na lista de passageiros - disse.
Ele não notou o sorriso divertido que brilhou nos olhos dela.
- Então por que fez como se eu não existisse? - quis saber.
- Pensei que o cavalheiro viajava incógnito - respondeu ela. - Além do mais, creio que nos encontraremos freqüentemente daqui em diante, já que agora é portador de um cartão de leitor e consulente da nossa biblioteca
- É verdade, eu tenho um - concordou Dick com ar encabulado.
- Eu sei, pois fui eu mesma quem expediu o cartão - retrucou ela prontamente.
- Oh! então você é... - esperou que ela completasse
- A pessoa que expediu seu cartão - disse ela em tom sério.
Ele não se conteve mais e perguntou abertamente:
- E como se chama, por favor?
- Sybil Lansdown.
- Ah, é! Agora me lembro.
- O senhor viu minha assinatura no cartão?
Ele fez que sim com a cabeça.
- Engraçado. Como se explica então o fato de que ele nos foi devolvido mais tarde pelo correio sob a alegação de que o destinatário tinha mudado de endereço?
Aí ambos soltaram uma gargalhada e o contato estava restabelecido.
À noite tornaram a conversar Trevas e solidão os cercavam. De tempos a tempos a luz de um farol longínquo riscava a escuridão.
- Vai continuar a viajar? - perguntou ela.
- Não. Vou ficar em Londres, e muito me alegro com isso. Tenho um pequeno, mas confortável apartamento em Clargate Gardens. Quem se planta no centro da sala e estende os braços para ambos os lados, toca nas paredes, mas eu gosto dele. Não sou muito exigente.
- O que não diria se visse o tamanho do nosso na Coram Street!
- Que número? - perguntou ele depressa.
- Um entre muitos - sorriu-lhe ela. - Mas já é hora de descer. Está ficando tarde. Boa noite, senhor Martin.
Ele não a acompanhou à escada que conduzia aos camarotes, mas seguiu-a com a vista até ela desaparecer na escuridão.
Por que teria Sybil Lansdown viajado à Ilha da Madeira? Evidentemente ela não pertencia àquele pequeno círculo de afortunados que todos os anos trocavam o nevoeiro londrino pelo sol de regiões mais amenas. Ela estava mais bonita do que nunca. Era esbelta sem ser magra, tinha uma beleza pálida, quase oriental. Talvez fosse a ligeira obliqüidade dos olhos cinzentos que lembravam o Oriente.
Na manhã seguinte, depois de desembarcar, Dick arranjou as coisas de tal modo que acabou viajando no mesmo vagão.
- Está contente por voltar a Londres? - perguntou.
Ela soltou um suspiro.
- Estou contente por poder falar novamente a minha língua. Não é fácil fazer-se entender em português.
Admirado, ele arqueou uma sobrancelha.
- Mas em todos os hotéis se fala o inglês - disse.
- Sim, isso é. Mas eu não me hospedei em nenhum hotel, e sim numa pequena pensão nas montanhas, onde só entendem o português. Seja como for, parece que minha viagem foi inútil.
- Então podemos nos dar as mãos - replicou ele. - Eu também dei com os burros na água, por assim dizer.
Ela sorriu.
- Mesmo assim, não estou voltando de mãos completamente vazias.
Ela tirou uma caixinha da bolsa e ergueu a tampa.
A caixa continha uma chave chata de formato singular, com ambos os lados denteados.
- Que chave esquisita! - exclamou ele. - E foi por causa dela que viajou para a Ilha da Madeira?
Ela fez um aceno afirmativo com a cabeça.
- Entretanto, esperava outro resultado da minha viagem. É uma história curiosa que tem relação com Lord Selford. A propósito, com quem se parece meu primo?
- Com o imperador da China. O que quero dizer é que não conheço nem um, nem outro. Não cheguei a encontrar seu primo.
Ela fez-lhe muitas perguntas sobre as inúmeras peripécias da sua viagem em busca de Lord Selford: só depois lhe contou a sua própria aventura.
- Meu pai, durante certo tempo, empregava um jardineiro português de nome Silva, que mais tarde recomendou a Lord Selford. Depois da morte do velho lorde, esse Silva mudou-se para a Ilha da Madeira. Há pouco mais de três meses minha mãe recebeu uma carta de um padre que nos comunicava que Silva tinha falecido na ilha. Ainda na hora da morte o atormentava o mal que ele, conforme afirmava, nos tinha causado. Implorando o perdão dos seus pecados, confiou seus pertences ao padre para que este os entregasse pessoalmente a um membro de nossa família. Nem eu nem minha mãe podíamos pensar em viajar para Madeira: para isso faltavam-nos os recursos. Entretanto, logo em seguida chegou uma segunda carta, postada em Londres. O envelope continha cem libras esterlinas e uma passagem de navio para a Ilha da Madeira.
- Conhecia o remetente? - indagou Dick depressa.
- Não sei, não constava da carta, mas eu resolvi fazer a viagem. O velho padre ficou muito contente com a minha chegada. No curso do último mês a sua casa tinha sido assaltada três vezes, e ele achava que havia alguma relação entre os assaltos e o pequeno embrulho que recebera do falecido jardineiro. Eu, é claro, esperara algo muito mais precioso, algo que valesse a pena de uma longa viagem marítima, ainda mais porque os vizinhos do senhor Silva diziam que ele tinha sido um homem muito rico. Entretanto, só encontrei esta chave. Pode imaginar como fiquei desapontada.
Dick revirou a chave entre os dedos com ar pensativo.
- Silva foi jardineiro de Lord Selford, foi o que disse? Curioso. De onde provinha então a sua riqueza? Ele deixou alguma coisa por escrito?
Ela fez sinal que não.
- Mas preste atenção, a minha história ainda não acabou. Eu meti a chave no bolso do meu casaco e deixei o casaco pendurado no cabide do meu quarto. Foi a minha sorte, pois mal chegara à rua, um homem se precipitou sobre mim e arrebatou-me a bolsa das mãos. Gritei por socorro, juntou gente, mas ele já tinha desaparecido. A bolsa não continha nada de valor, pois meu dinheiro e passaporte estavam depositados no cofre da pensão. Então me lembrei dos assaltos à casa do padre, e daquele momento em diante não tive mais sossego. Assim que subi a bordo do navio, confiei a chave ao comissário.
- E deixaram-na em paz?
Ela riu baixinho.
- Por duas vezes alguém revistou minhas malas, e uma vez até chegaram a virar o colchão. Mas estou grata por não ter-me acontecido coisa pior.
Dick tornou a examinar a chave, depois perguntou em tom casual.
- Coram Street, número... ?
Eia mencionou o número, e só depois se lembrou de que não pretendia revelar-lhe seu endereço.
Ele devolveu-lhe a caixinha. Ela perguntou:
- Tem alguma idéia do que significa tudo isso?
Ele encolheu os ombros.
- Não - confessou. - Eu precisava descobrir primeiro a fechadura para esta chave.
O trem diminuiu a marcha e entrou na estação de Waterloo.
Ela ficou um pouco sentida quando Dick se despediu dela apressadamente e, dando-lhe as costas, desapareceu no torvelinho de passageiros.
Sybil levou algum tempo para retirar a bagagem. Um empregado da estação arranjou-lhe um táxi. Mal tirara a carteira de dinheiro, um homem roçou nela, enquanto outro lhe deu um esbarro. A carteira escapuliu-lhe das mãos, e antes que ela pudesse se abaixar para apanhá-la, um terceiro sujeito já a tinha recolhido e passado para um cúmplice que estava atrás dele. O ladrão virou-se para fugir, mas neste moimento foi agarrado por uma mão musculosa, e quando estrebuchou para se defender, recebeu violento soco no maxilar que o derrubou ao chão.
- Espere, patife, que eu lhe ensino como se comportar! - exclamou Dick Martin.



Capitulo 7

Eram dez horas de uma linda manhã de abril quando Dick Martin entrou no escritório de Havelock.
O advogado, fazendo-lhe um aceno amável, ofereceu-lhe uma cadeira e terminou de ditar uma carta à secretária. Depois da saída da secretária, levantou-se e encheu o cachimbo.
- Então não encontrou Lord Selford? - perguntou.
- Infelizmente não. Passei os dias todos em trens ou automóveis, mas parece que ele viajava sempre mais depressa do que eu. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, ele tinha deixado o Rio pela manhã. Na Cidade do Cabo ele tinha uma dianteira de três dias. Talvez o alcançasse em Beira, mas ai chegou o seu telegrama chamando-me de volta.
Havelock tirou uma baforada e balançou a cabeça com ar circunspecto. Depois apertou o botão da campainha, e a secretária reapareceu.
- A última pasta relativa a Selford, por favor - disse, e esperou calado. Ela voltou após alguns instantes e entregou-lhe uma pasta azul. Ele abriu-a e estendeu-a ao detetive. Dick viu, arquivado, um telegrama expedido na Cidade do Cabo, que dizia:
"Havelock Londres. Proíbo terminantemente ridícula perseguição por detetive. Procuração a caminho. Chego Londres agosto.
Pierce"
O telegrama fora expedido três dias antes da chegada de Dick à Cidade do Cabo.
- Como está vendo, não tive outra alternativa senão ordenar seu regresso - disse Havelock, dando de ombros. - Conseguiu apurar algumas coisas sobre ele?
Dick riu.
- Não, ele nunca se demorou o suficiente em lugar nenhum. Conversei com porteiros de hotel, camareiros, garçons e outros, mas ninguém notou nada de anormal. - Depois de ligeira hesitação, acrescentou: - Ele se encontrava na Cidade do Cabo no dia em que chegou o novo Governador Geral.
- Hum... - fez Havelock. - E daí?
- Daí nada - replicou Dick. - Acontece que me lembrei deste detalhe. - Ele fez uma pausa e depois recomeçou: - O que o senhor acha de todo esse comportamento meio misterioso? O que há por trás de tudo isso?
Havelock contraiu os lábios.
- Nada de especial, creio. Na pior das hipóteses, uma esposa que ele não pode apresentar à sociedade inglesa.
Dick passou a mão pelo queixo, com ar pensativo.
- Recebeu cartas dele?
Havelock fez que sim com a cabeça.
- Posso vê-las?
- Pois não - redarguiu Havelock, e com um aceno de cabeça indicou a pasta que Dick ainda tinha nas mãos.
Dick pôs-se a folheá-la.
Havia telegramas de todos os cantos do mundo, documentos, instruções, cartas compridas e cartas sucintas, algumas escritas a mão, outras datilografadas.
- É a correspondência do último ano - esclareceu o advogado.
- E o senhor reconhece a letra dele em cada uma destas cartas?
- Sim... Quanto a isso, nunca tive qualquer dúvida.
Dick devolveu-lhe a pasta.
- Sinto muito não ter tido melhor êxito, senhor Havelock. Acho que é mais fácil apanhar uma andorinha voando do que esse jovem lorde. Posso assegurar-lhe, porém, que não há mulher envolvida nisso. Ele esteve sozinho em Nova Iorque e sozinho em São Francisco. Desembarcou sem acompanhamento feminino em Xangai, e em toda a Índia não foi visto com nenhuma mulher. - Depois de um momento de silêncio, acrescentou: - Se for possível, por favor, apresente-me a ele em agosto.
- Pois não, com muito prazer - sorriu Havelock. - Isto é, se eu puder retê-lo aqui o tempo suficiente.
Dick despediu-se e voltou para casa, revolvendo na cabeça um problema que muito o preocupava. Chegado ao apartamento, sentou-se à escrivaninha com um ar de quem procura resolver uma questão matemática. Vez por outra passava nervosamente os dedos no cabelo. Depois de meia hora de intensas meditações, o seu penteado assemelhava-se à cabeleira de um aborígine da Papua, mas o problema continuava sem solução.
Ele esvaziara todas as suas malas com exceção de uma, que agora abriu e emborcou, derramando sobre a mesa o seu conteúdo que consistia em uma profusão de papéis: apontamentos, recibos, contas de hotéis, recortes de jornal, e até uma folha de mata-borrão que ele agora ergueu com ambas as mãos e inspecionou contra a luz. Via-se nitidamente a impressão de um endereço: Sr. Bertram Cody, Weald House, South Weald, Sussex.
Tratava-se de uma folha de mata-borrão encontrada por Dick na escrivaninha do quarto de hotel ocupado pelo jovem lorde quarenta e oito horas antes da chegada do detetive a Buenos Aires.
Dick guardou a folha numa gaveta, dirigiu-se ao quarto de dormir e postou-se em frente ao espelho.
- E você pretende ser um detetive. Dick Martin? - perguntou à sua imagem refletida. - Um pedaço de asno, é isso o que você é!
Passou o resto do dia praticando um velho truque de cartas que consistia em fazer desaparecer a primeira carta e transformá-la na nona carta do baralho. Com um cronômetro mediu o tempo necessário para a execução do truque, e só se deu por satisfeito quando conseguiu reduzi-lo a um quinto de segundo.
Levantou-se e foi apanhar o carro na garagem.



Capítulo 8

- Faça-o entrar - disse Bertram Cody.
Ele era um homem baixo e calvo, com uma voz macia.
Cerimoniosamente colocou os óculos com aros de ouro no nariz e deitou um olhar ao cartão que trazia o nome do visitante:
John Rendle, Collins Street 194, Melbourne.
O nome nada lhe dizia. Ele conhecera um senhor Rendle no passado, um honrado comerciante de chá, mas o encontro fora tão rápido e superficial que não acreditava tratar-se da mesma pessoa.
Estivera sentado à mesa, a folhear um pequeno caderno de notas, quando o informaram da visita. O caderno tinha uma capa de couro de marroquim vermelho e continha, além das folhas de papel para apontamentos, uma divisão para selos e outra maior para cédulas de dinheiro.
Quando o desconhecido cruzou o limiar da porta, Cody meteu o caderninho mais que depressa debaixo da pilha de papéis.
- O senhor Rendle - anunciou a voz estridente de uma mulher, e da penumbra surgiu um homem moço ainda, alto e espadaúdo, que não tinha a menor semelhança com o comerciante de chá.
- Sente-se, por favor - convidou Bertram Cody com civilidade. - E queira desculpar esta semi-escuridão em que eu vivo. Luz forte fere os meus olhos. A claridade desta lâmpada de mesa com quebra-luz é suficiente para mim, embora às vezes as pessoas que me vêm visitar reclamem.
John Rendle, meio tateando, puxou uma cadeira e sentou-se.
- Sinto incomodá-lo a uma hora tão tarde, mas acabo de chegar da Austrália e amanhã tornarei a embarcar.
- E o que deseja?
- Vou já explicar. Eu sou dono de uma pequena fazenda nos arredores de Ten Miles Station. - Fez uma pausa e prosseguiu lentamente: - O senhor é meu vizinho mais próximo.
Cody acenou afirmativamente. Investira todo o seu capital em terras de outros continentes.
- Eu tenho motivos para acreditar que um filão de ouro se estende por nossas terras - continuou Rendle. - Fiz esta descoberta há um ano aproximadamente, mas evitei tornar este fato público enquanto não tivesse certeza total.
Ele passou a tecer considerações sobre composições mineralógicas. Cody escutava-o com atenção e de vez em quando balançava a cabeça, concordando. Ao fim ambos se debruçaram sobre um mapa que o moço estendera em cima da mesa.
Depois que ele encerrou a sua exposição, Cody disse:
- Eu já sabia da existência de ouro, senhor... hum!... senhor Rendle, por intermédio do meu corretor. Existe um veio aurífero, sim, mas, infelizmente, não é comercialmente explorável, pois não contém ouro em quantidade suficiente para compensar as despesas da sua extração. Os jornais exageraram. O senhor não leu as notícias? Ah, sim... Provavelmente o senhor estava navegando no meio do oceano quando foram publicadas. Mas seja como for, fico-lhe muito agradecido. A sua amabilidade e honestidade me comovem.
- O senhor comprou suas terras de Lord Selford, não foi? - perguntou o visitante.
Bertram Cody pestanejou, como repentinamente ofuscado por um forte raio de luz.
- Não dele diretamente - respondeu tossindo - mas do seu... bem, como direi... do seu agente, uma firma de advocacia em Londres. No momento não me ocorre o nome. O lorde está sempre viajando... muito difícil de ser encontrado. Escorregadio como uma enguia - fez um gesto com as mãos como se procurasse agarrar um fantasma. - Ele é um apaixonado por ferrovias e transatlânticos. Um dia chegam notícias dele do interior da África; a carta seguinte vem... hum... dos pampas argentinos. Eles enviam-lhe dinheiro para a China, para o Pólo Sul, Deus sabe para onde. Ele leva uma vida divertida, mas certamente muito enervante para os seus parentes... se tem parentes, o que não sei.
Ele meneou a cabeça com tristeza. Logo endireitou o corpo como se de repente se lembrasse que as suas observações tinham como ouvinte uma pessoa estranha. No mesmo momento estendeu o braço para a despedida.
- Agradeço-lhe por ter vindo me procurar - disse, e tomando a mão do outro, apertou-a com delicadeza entre as suas. - A monotonia da vida se ilumina quando nos deparamos com tanto altruísmo e abnegação.
O visitante, cujos pensamentos ainda giravam em torno do jovem lorde, retirou a mão devagarinho.
- O senhor ainda tem contato com ele? - inquiriu.
- Com quem? Ah!... com Lord Selford? Absolutamente. Decerto ele nem sabe que eu existo.
E segurando-lhe o braço, acompanhou-o à porta.
- O senhor veio de carro? Ótimo. Parece que vamos ter chuva, e já é tarde. Dez e meia, não é? Bem, muito boa noite.
De pé na varanda coberta, seguiu o automóvel com a vista até que as luzes traseiras sumiram atrás de um grupo de arbustos de rododendros. Depois retornou ao vestíbulo.
A mulher vestida de seda preta, que Rendle tomara pela governanta de Cody, veio ao encontro do marido. As suas feições grosseiras revelavam dureza e insensibilidade. Juntos voltaram à sala.
- Quem era? - perguntou aborrecida, com voz esganiçada.
Bertram Cody, tornando a sentar-se à sua escrivaninha de mogno, largou uma risadinha ao refestelar-se na poltrona estofada.
- Quem era? Ora... Dick Martin. Um oficial de Scotland Yard.
A senhora Cody fez-se pálida.
- E você está me dizendo isso com essa calma, Bertie? - exclamou, alarmada, pondo a mão espalmada sobre o peito. - O que ele queria?
- O que queria? Meter o nariz, é isso o que ele queria - replicou Cody. - Ele é muito esperto, mas não conseguiu nada. Reconheci-o imediatamente. Tenho pelo menos três fotografias dele. O que estará tramando? É... Que será?
Meteu a mão por baixo dos papéis, procurando o pequeno caderno de notas que havia escondido ali. Subitamente uma lividez cadavérica espalhou-se pelo seu rosto.
- Sumiu - gritou. - O caderno sumiu! E a chave! Meu Deus... a chave!
Ele pôs-se de pé, cambaleando como um bêbado, o horror estampado nos olhos esbugalhados.
- Deve ter acontecido quando me mostrou o mapa - gaguejou, rouco de emoção. - Eu tinha esquecido que ele pode rivalizar com os melhores punguistas. Diabo, feche a porta, mulher! Preciso telefonar!



Capítulo 9

Embora Dick tivesse ligado o limpador de pára-brisa, a água da chuva torrencial escorria pela vidraça e ele teve de baixar o vidro da janela do seu lado para poder enxergar a estrada. A chuva escachoava na capota sem cessar, os faróis lutavam contra a escuridão, e de vez em quando um relâmpago riscava o negrume da noite, seguido de uma trovoada estrepitosa.
- Coram Street 107 - ocorreu-lhe. No momento seguinte surgiu em seus pensamentos a imagem da moça.
Por que se lembrou de repente de Sybil Lansdown, se momentos antes estava pensando em Bertram Cody?
Tendo por hábito analisar seus pensamentos, ficou a refletir, e subitamente a sua mão esquerda, metida no bolso do paletó, apalpou um pequeno caderno de notas. Um objeto duro que ele continha, e cujos contornos se realçavam através da capa de couro, havia ligado o caderno a Sybil Lansdown, em sua mente.
Ele pisou no freio tão bruscamente que o carro derrapou no asfalto molhado e quase tombou na vala que beirava a estrada, mas no último instante deu uma guinada e restabeleceu o equilíbrio. Desligou o motor e acendeu a luz para examinar o "achado" Abrindo-o, já adivinhava o que iria encontrar, e não se enganou.
Fitando a chave na palma da sua mão, admirou-se do seu tamanho e formato. Era uma cópia quase exata da chave que Sybil Lansdown lhe mostrara no trem e que a esta hora se encontrava bem guardada num cofre de banco.
Dick deu um assobio baixinho, recolocou o caderno no bolso e escondeu a chave debaixo do capacho de borracha aos seus pés. O bando inescrupuloso que por vários meios havia tentado apoderar-se da chave de Sybil certamente não iria hesitar em interceptar seu carro, e neste caso a sua pessoa não constituía um bom esconderijo.
O respeito de Dick por essa misteriosa confraria de "chaveiros" aumentava e ele previa peripécias bem mais empolgantes do que as vividas durante a sua viagem em volta do mundo. Ele tornou a apagar a luz e pôs o carro em movimento. Enquanto pisava no acelerador, refletia sobre a sua descoberta.
Cody havia negado qualquer tipo de relação com Lord Selford. Só podia ser mentira. E qual era o mistério da chave? Ela devia ler uma grande importância para Cody, pois ele observara como este ocultou o caderno de notas apressada e furtivamente à sua chegada. Por curiosidade ou mera diabrura aproveitara a primeira oportunidade que se lhe oferecera para escamoteá-lo. Agora ele já tinha duas dessas chaves estranhas em seu poder, e a descoberta das fechaduras às quais pertenciam e daquilo que estas ocultavam tornava-se uma tarefa cada vez mais urgente.
Ele buzinou, irritado. Um enorme caminhão, debaixo de cujas rodas o chão da estrada estremecia, quase o empurrara para dentro da vala ao ultrapassá-lo.
Não, ele não podia distrair-se. Precisava concentrar toda a sua atenção na estrada.
Mal tinha tomado essa decisão, três luzinhas vermelhas emergiram da noite chuvosa e de péssima visibilidade. Isso só podia significar que a estrada estava impedida por causa de obras na pista. Entretanto, ele havia passado por esse mesmo trecho pela manhã e não se lembrava de obras: além do mais, o caminhão devia ter passado por ali havia pouco.
Ele meteu a cabeça para fora e vislumbrou, à luz dos faróis, ao lado da estrada, um muro meio desmoronado, coberto de musgo e limo. Numa parte do muro existia uma brecha. Ali havia evidentemente um portão. Os olhos de Dick voltaram para as três lanternas de luz vermelha. Ele apagou os faróis, sacou o revólver e saltou.
Nada se ouvia além do ruído monótono da chuva e o esfuziar do vento. Mantendo-se cautelosamente no meio da estrada, caminhou os poucos passos até os lampiões sem ser molestado. Ergueu um deles e pôs-se a examiná-lo atentamente. Era velho e enferrujado e seus vidros haviam sido pintados de maneira desigual com tinta vermelha; o segundo lampião era de formato diferente, mas seus vidros também tinham sido pintados recentemente; o mesmo sucedera ao terceiro.
Com violento pontapé Dick afastou o lampião do meio, que mais lhe estorvava a passagem. Retornou apressadamente para o carro, bateu a porta e deu partida. O arranque pegou, mas o motor não se mexia. Dick tornou a saltar e fez a volta do carro. Depois deitou um olhar ao medidor da gasolina, e este lhe revelou o motivo do enguiço. O ponteiro indicava falta de combustível!
- Então é isso! - murmurou Dick, estupefato. Ele enchera o tanque antes de deixar Londres e não podia ter gasto toda a gasolina. Contudo, quando bateu no tanque, ele produziu um som cavo.
Uma súbita lutada de vento quase lhe cortou a respiração. De repente sentiu o cheiro de gasolina no ar. Ele acendeu sua lanterna de bolso e iluminou o chão. A luz refletiu-se no asfalto, irisando. Agora entendeu tudo: alguém havia esvaziado o tanque enquanto ele, mais à frente, examinava os lampiões. Admirou-se, pois não escutara nenhum ruído. Fosse como fosse, ele não tinha gasolina de reserva, e se ninguém nas redondezas lhe acudisse, teria de passar a noite naquele lugar ermo da estrada. Só faltava esta!
À luz da lanterna de bolso foi até o muro e examinou o portão arruinado pelo tempo, que pendia inclinado dos gonzos, como um bêbado encostado numa árvore. Até aquele momento Dick não tivera idéia de onde se encontrava, mas neste instante reconheceu repentinamente o lugar: o muro confinava o terreno do "Átrio do Patíbulo", do lado da estrada.
Mantendo a lanterna sempre acesa, subiu a alameda. De ambos os lados a escuridão e a vegetação cerrada impediam distinguir o resto do parque. Choupos frondosos formavam um dossel sobre sua cabeça.
Subitamente o feixe de luz da sua lanterna foi absorvido pelas trevas de uma escavação no chão de cerca de seis pés de profundidade e do comprimento de um corpo humano. "Meu Deus, parece uma cova recém-aberta!" pensou, e suas carnes se arrepiaram. Ele dobrou o passo até avistar à sua frente a construção cúbica e feiosa da casa. Iluminou a parede e só agora notou como estava carcomida. Em muitos lugares havia caído o reboco revelando os tijolos que lembravam a carne viva de uma ferida.
O prédio jazia num silêncio sepulcral: nenhum cachorro latia e por trás das vidraças das janelas reinava uma escuridão maior do que fora.
Dick aguardou uns segundos antes de subir a escadaria que conduzia à porta principal. Ele deu algumas pancadas com a grossa aldrava de cobre e um eco cavernoso rolou pela casa. Estava ela vazia? Bateu de novo e tornou a esperar, e de repente escutou o ruído de pés arrastando-se pelo vestíbulo, o rangido de uma chave enferrujada e o tinir de uma corrente. A porta entreabriu-se com um chiado e apareceu a cara amarelenta e a barba negra do doutor Staletti.
Embora Dick já o tivesse visto uma vez, agora ele lhe parecia tão repelente e asqueroso que quase deixou cair a lanterna de susto.
- Quem é? O que deseja? - perguntou a voz agastada do velho. - Gasolina?... Ah, o seu tanque vazou? Deve ser uma boa geringonça, seu carro. Sim, posso arranjar-lhe gasolina; é claro, mediante pagamento. Nos tempos que correm não se pode dar nada de graça.
Ele não fez nenhum gesto de reconhecimento, nem quando abriu a porta um pouco mais e deixou Dick entrar no vestíbulo. Ele vestia uma espécie de guarda-pó preto, amarrado na cintura e manchado de cima a baixo. Calçava um par de botas de cano, também de cor preta, já bastante usadas, que lhe chegavam à meia perna. Pelo jeito não havia tomado banho desde seu outro encontro com Dick, alguns meses atrás. As suas mãos grandes e musculosas estavam sujas e as unhas tinham crescido e se transformado quase em garras. Do vestíbulo Dick pôde ver o salão cuja suntuosa decoração contrastava singularmente com seu dono e a fachada deteriorada do prédio. Um espesso tapete recobria o soalho, os reposteiros eram de veludo, as cadeiras e as poltronas de madeira dourada e forradas de damasco branco. Um candelabro de prata com uma dúzia de lâmpadas pendia do teto e espalhava uma claridade feérica. Quando Dick pisou no tapete, ergueu-se uma pequena nuvem de poeira.
- Aguarde aqui. Vou buscar a gasolina: um galão por um xelim e dez pence.
Quando o ruído dos passos de Staletti se perdeu na distância, Dick pôs-se a examinar a sala ligeiramente, mas não encontrou nada que pudesse fornecer-lhe alguma pista quanto ao caráter e à ocupação daquele homem sinistro.
De repente escutou o estrépito de latas de gasolina, Staletti voltou. Ele depôs dois vasilhames no chão e limpou a poeira das mãos.
- Quatro galões da melhor qualidade.
Dick relanceou-lhe um olhar desconfiado. Será que ele ainda não o reconhecera?
Como se tivesse adivinhado a suspeita do outro, Staletti pigarreou e inquiriu, fitando Dick mais de perto:
- Parece-me que já nos encontramos antes. O senhor é o detetive que me privou do livro "Morfologia Geral", não é verdade? Eu sou o professor Staletti.
- É isso mesmo, professor, eu sou aquele detetive - redargüiu Dick. Experimentava uma sensação de perigo e não tirava a vista do homem barbudo.
- Com certeza já ouviu o meu nome antes. Eu gozo de ótimo conceito nos círculos médicos - vangloriou-se Staletti. - Mas agora queira pagar, por favor. Estou caindo de sono.
Dick Martin deu-lhe dez xelins.
- Pode guardar o troco - disse com magnanimidade.
Para surpresa sua, Staletti realmente meteu o dinheiro no bolso, sorrindo satisfeito. Pelo jeito, o seu orgulho não era de molde a impedir-lhe de tirar proveito do pequeno favor que acabava de prestar.
Doutor Staletti acompanhou Dick até a porta da entrada. Ele abriu a boca como se quisesse ainda dizer alguma coisa, mas pensou melhor e fechou a porta ruidosamente atrás do detetive.
O eco do estrépito da porta ainda não se extinguira de todo, quando no interior da casa, por trás das vidraças empoeiradas, ressoou de repente um grito horripilante, um grito tão impregnado de sofrimento e pavor que Dick sentiu um calafrio na espinha. O grito cresceu durante um momento, depois foi diminuindo e, finalmente, terminou em soluços de cortar o coração. Dick, petrificado, sentiu o suor brotar-lhe na testa. Cerrando os punhos, teve ímpetos de derrubar a porta e exigir explicações, mas logo compreendeu a futilidade de semelhante ato. Abaixou-se, pegou as duas latas de gasolina e a toda pressa desceu a alameda.
No momento em que se aproximava do buraco no chão, sentiu um leve movimento às suas costas, um crepitar de raminhos, um farfalhar de folhas secas, mas quando se virou, só viu o muro escuro dentro da noite chuvosa.
De súbito notou, porém, que um vulto se esgueirava por entre os arbustos. Imediatamente se deu conta do perigo. Largou os vasilhames e sua mão procurou o revólver, mas antes que pudesse sacar a arma recebeu violento golpe por cima do braço e algo frio, viscoso e animalesco cingiu-o pelo peito e cortou-lhe a respiração.
Braços gigantescos encordoados de músculos tentaram deslocar-lhe o ombro, uma pesada mão tapou-lhe a cara, Dick martelou com os punhos um peito desnudo, que mais parecia uma couraça. No auge do desespero lembrou-se de um golpe de jiu-jitsu, agarrou com ambas as mãos o braço nu do outro que lhe apertava o rosto, revirou-o com um movimento súbito e arremessou o seu misterioso atacante ao chão. Um corpo pesado tombou com um baque surdo, soltando um ganido de dor, um soluço infantil de lamento. Depois se seguiu um silêncio total.
Dick puxou o revólver com uma das mãos, na outra ainda segurando a lanterna de mão. Seus dedos apertaram o botão. Uma luz branca jorrou e alumiou o chão. Não havia ninguém. Fez o clarão deslizar num semicírculo. O seu agressor tinha sumido. Céus, estaria ele agora as suas costas? Dick virou-se rápido e dirigiu a luz na direção da casa. Neste instante viu um vulto com aspecto de gigante, nu da cintura para cima, desaparecer entre os arbustos com os braços pendentes.
Dick Martin permaneceu por alguns momentos como que paralisado, depois pegou as latas e correu até alcançar a estrada. Encheu o tanque e, respirando aliviado, pôs o carro em movimento, rumo a Londres.
Durante todo o trajeto, a cova à beira da alameda, ao lado da sebe, não lhe saía da cabeça. Tinha quase certeza agora de que aquela escavação destinara-se a receber o seu cadáver e que, se o monstruoso plano do doutor Staletti tivesse tido êxito, ele teria sumido do mapa sem que ninguém soubesse que estava morto.



Capítulo 10

Naquela mesma noite fria e chuvosa, Bertram Cody, que era um homem medroso por natureza e não gostava de andar a pé, acordou seu chofer e lhe ordenou que o levasse de carro ao "Átrio do Patíbulo", que distava seis milhas dali. Tommy Cawler fez cara feia, mas teve de obedecer.
A cerca de cem metros do portão da propriedade de Staletti, Cody mandou parar.
- Apague todas as luzes e não se mexa daqui até eu voltar.
Faltavam poucos minutos para uma hora da madrugada e a escuridão era total. Cody caminhou ao longo do muro, tateando com as mãos, até chegar ao portão; em seguida enveredou com cuidado pela alameda, sempre tateando o caminho. A certa altura quase despencou num buraco no chão, mas o instinto reteve-o a tempo. Ele respirou fundo quando chegou à casa; mas em vez de bater na porta, deu três pancadas numa janela escura. Depois voltou à entrada principal. Encontrou a porta já aberta e Staletti esperando-o no limiar.
- Ah! É o senhor. Está atrasado, meu caro amigo. E para que saiba logo: não tivemos sorte.
- Ele escapou? - perguntou Cody, e sua voz tremia de medo.
Doutor Staletti deu de ombros e com a mão alisou a longa barba.
- "Kismet"! - disse com placidez. - Se dependesse de mim, ele, a estas horas, estaria numa cova fria da qual nunca mais se levantaria. Logo depois do seu telefonema mandei colocar os lampiões na estrada e pessoalmente esvaziei o tanque de gasolina. Em seguida voltei rapidamente e abri-lhe a porta quando chegou. Foi fenomenal! Mas a corrente tinha um elo fraco e assim ele conseguiu rebentá-la.
Nervoso, Cody relanceou os olhos pelo vestíbulo. Não podia dissimular seu medo. O suor inundava-lhe a fronte.
- O que acontecerá agora? - perguntou num sussurro.
Staletti fitou-o com desprezo.
- "Per Dio", o que havia de acontecer? Toda Scotland Yard vai aparecer por aqui e revirar a casa. E o que encontrará? Ratos!
- O senhor...? - balbuciou Cody, completando a frase com um olhar.
- Sim, pus alguém no encalço dele, mas este alguém se portou feito idiota. Acontece que só é possível desenvolver os músculos às expensas da substância cerebral. Mas por que ficamos parados aqui fora? Não quer entrar?
Ele levou Cody ao seu gabinete de trabalho. A escrivaninha estava parcialmente coberta de cartas enodoadas de um baralho. Staletti estivera entretido com um jogo de paciência quando as pancadas o interromperam.
- E agora me conte. Quem é afinal esse jovem que o senhor parece temer tanto? Aliás, ele já esteve aqui uma vez. Veio por causa de um livro que a Biblioteca Bellingham me tinha emprestado. Foi naquele dia em que o seu motorista veio procurar-me pela primeira vez.
Cody concordou com um sinal de cabeça. O seu rosto estava pálido, seus lábios secos e rachados. De vez em quando os lambia nervosamente.
- Ele é o detetive que o senhor Havelock enviou em volta do mundo para procurar Selford - ciciou; e as sobrancelhas de Staletti se alçaram.
- Não me diga! Mas isso é fenomenal! O detetive de Havelock? - ele estourou numa risada esganiçada que, ao extinguir-se, se assemelhava ao crepitar de pergaminho. - É uma piada formidável! Realmente, a vida tem coisas muito engraçadas. Só dando gargalhadas!
Cody mexeu-se nervosamente na cadeira. Staletti rindo era pior do que rogando pragas.
- Este Havelock! Este Havelock! - crocitou Staletti, torcendo a boca. - Um modelo de retidão, um exemplo de honradez! Mas conte-me, o nosso amigo, o detetive, conseguiu achar Sua Excelência, o lorde? Não? Que pena! Ele deveria ter usado um par de botas de sete léguas!
Atirou-se numa cadeira e com seus dedos sujos tamborilou na mesa uma canção napolitana.
- Sinto que o senhor está querendo me dizer alguma coisa - disse subitamente, fixando Bertram Cody com olhar penetrante.
- Preciso de dinheiro - resmungou o outro, em tom queixoso.
Staletti encarou Cody por um instante, depois se abaixou sem dizer palavra, abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou dela um cofrezinho, abriu-o e estendeu a Cody um grosso maço de notas.
- Como agora o tamanho do nosso grupo diminuiu, a sua cota aumentou - disse. - Se eu algum dia vou desta para melhor, o senhor também vai lucrar novamente; no entanto, se o senhor...
- Por que falar em coisas tão desagradáveis? - queixou-se Cody. - Devíamos regozijar-nos por estarmos vivos e gozando boa saúde. Já nos desviamos demais dos nossos planos originais. Lembre-se das palavras da Bíblia: "Quem derramar sangue.."
- Eu acaso derramei sangue?
- Não matou? - perguntou o homenzinho e ficou esperando
Staletti franziu os lábios ironicamente.
- Era uma vez um sujeito de nome Lew Pheeney - falou com voz pausada. - Ele morreu de morte violenta, mas já que o assassino nunca foi apanhado, ele deve ter cometido suicídio.
E riu-se à socapa. Em seguida observou:
- Eu não suporto pessoas que correm para abrir seus corações às altas autoridades. Isso prejudica os negócios, pois a polícia não possui nem um pingo de imaginação, nem tem quaisquer noções de biologia. Também ignora que vale mais uma simples teia de aranha do que uma mosca que nela estrebucha. Tampouco sabe...
Ele se interrompeu de repente e colocou o dedo nos lábios em sinal de silêncio. Cody não tinha escutado nada, porém ao ouvido apurado de Staletti não escapara o leve chiar da janela.
- Há alguém lá fora - cochichou.
- Giaco? - ciciou Cody, aterrorizado.
- Não, não é Giaco. Fique aqui, que eu vou ver.
Saiu da sala nas pontas dos pés. Cody ainda escutou o fraco ranger da porta que se abria. Depois nada. Apenas o vento que sibilava em torno da casa.
Daí a pouco Staletti voltou, piscando, como se tivesse de acostumar os olhos à claridade, mas Cody já o vira antes com a mesma expressão no rosto e sabia que Staletti estava muito agitado.
Depôs em cima da mesa um objeto que parecia ser o auscultador de um aparelho telefônico, preso a um fio de borracha.
- Alguém junto da janela procurou ouvir nossa conversa, e eu desconfio quem foi. O senhor veio de carro? Agiu contrário do que combinamos?
- Vim a pé - mentiu Bertram Cody.
- O senhor tem um motorista excelente, mas muito curioso.
- Já lhe disse, vim a pé... e sozinho.
- Quem sabe se ele não o seguiu. - Staletti tirou do bolso um boné amassado. - Já viu alguma vez este boné?
Cody fez que não com a cabeça.
- Ele o tirou para poder encostar o ouvido no auscultador. Infelizmente não pude encontrar o microfone, mas tenho a certeza de que ele ouviu tudo o que falamos.
- No entanto, não pode ter sido Cawler - teimou Cody. - Por que iria ele nos espiar? Ele é sobrinho da minha esposa.
- E a adora como se ela fosse sua própria mãe - ironizou Staletti. Ele virou o boné pelo avesso e leu o nome do fabricante. - Um espião dentro da sua casa... Isso pode acabar mal. Convém trazê-lo de olho. Ele é um conhecido ladrão de automóveis e seu retrato enfeita os álbuns de todas as delegacias. Não há policial que não o conheça. Quando esse Martini... não, Martin... quando esse Martin veio aqui pela primeira vez, ele reconheceu Cawler imediatamente e eu fiquei comprometido.
- Cawler está por demais envolvido e não pode dar-se ao luxo de denunciar-nos - observou Cody.
Ele inclinou-se sobre a mesa e, baixando a voz, falou por longo tempo. Nos olhos de Staletti cresceu o interesse. Por várias vezes, deleitado, bateu na mesa com a palma da mão.
- Que pena que Giaco não estivesse no jardim! Neste caso não haveria mais dúvidas.
Ele acompanhou Cody à porta.
Cody encontrou o automóvel estacionado no mesmo lugar. O motorista dormitava ao volante. Esfregou os olhos quando Cody lhe sacudiu o braço.
- Tommy - perguntou Cody, e a voz saiu-lhe rouca. - Você fez o que lhe mandei? Ou você me seguiu?
- Com este tempo horroroso? Acaso sou louco?
Ele virou a chave e ligou os faróis. Cody não se moveu. Olhava o chofer fixamente. Ele estava sem boné.
Cody tremeu de raiva.
- Cawler, onde está seu boné?
- Voou com o vento! - retrucou Tommy sem se abalar e sem nenhum sinal de constrangimento.
- Olhe, estou avisando... Não tente pregar-me uma partida, nem faça pouco de mim, senão vai se arrepender.
- Entre logo e pare de dizer bobagens - resmungou Tommy Cawler indelicadamente.
Durante toda a viagem de volta Cody viu à sua frente o perfil anguloso de Tommy. Afundou-se no assento. Planos de represálias e de castigo formavam-se no seu cérebro, mas intimamente sabia que jamais poderia executá-los, porquanto Cawler já o tinha demasiadamente nas suas mãos.



Capítulo 11

Mal o senhor Havelock tinha posto os pés no seu escritório na manhã seguinte, anunciaram-lhe a presença de Dick. As espessas sobrancelhas do advogado alçaram-se ao avistar o visitante.
- Sinto importuná-lo a uma hora tão cedo, mas vim fazer-lhe uma confissão - principiou Dick.
- Pelo jeito deve ser coisa muito grave - gracejou Havelock, piscando para ele. Mas o semblante de Dick continuava sério.
- Mais grave do que pensa, senhor Havelock. Eu, ontem, ocultei-lhe algo que agora faço questão absoluta de lhe dizer.
Falou-lhe do mata-borrão com o endereço de Cody, que tinha encontrado no hotel de Buenos Aires.
- Aparentemente Lord Selford se corresponde com ele. Achei do meu dever seguir esta pista.
- Bertram Cody? - indagou Havelock, franzindo a testa. - Este nome não me é estranho.
- Foi ele quem comprou algumas glebas da família Selford na Austrália.
O rosto de Havelock aclarou-se.
- Ah, agora estou lembrado. A história até deu em complicações. Uma vez consumada a venda, foi encontrado naquelas terras um veio aurífero. O caso foi até aos jornais. O "Times" chegou a publicar uma nota sobre o assunto. Cody, claro! Como pude esquecê-lo! Entretanto, não acredito que ele conheça Lord Selford pessoalmente.
- Por que, então, Lord Selford lhe escreveria cartas?
- Sei lá... Talvez em resposta a uma carta de Cody pedindo alguma informação - especulou o advogado, agora visivelmente preocupado.
- Cody negou com firmeza ter conhecido ou ter se correspondido com Lord Selford, e foi justamente isso que despertou a minha atenção, ainda mais porque logo depois fiz uma descoberta que prova que ele estava mentindo.
Ele puxou do bolso o caderno de notas de Cody. Ao abri-lo, a chave caiu em cima da mesa. O senhor Havelock apanhou-a e examinou-a com grande interes se.
- Que coisa curiosa... Uma chave, não é? E foi Cody quem lha deu?
- Bem, não foi bem isso: seria mais perto da verdade dizer que ele a deixou sobre a mesa. Mas veja este caderno de notas. Está cheio de anotações referentes às viagens de Lord Selford. Eis a data da sua chegada a Buenos Aires e o endereço ao hotel em que se hospedou. Aqui, o dia da sua partida de São Francisco, ali o desembarque em Xangai. Não falta o nome de nenhum navio, não falta nenhuma data. O próprio Lord Selford não poderia ter sido mais meticuloso.
Havelock virou as folhas do caderno devagarinho.
- É, muito estranho - conveio.
Dick inclinou-se para a frente.
- Por falar nisso, acaso conhece um sujeito de nome Staletti? Ele mora em Sussex, na Estrada de Brighton.
Ele notou a surpresa de Havelock.
- Staletti? Sim, este eu conheço. Ele arrendou uma casa de Lord Selford. Toda aquela região pertence à família Selford. Aliás, o próprio Cody deve ser um dos nossos arrendatários. Recordo-me muito bem do arrendamento do "Átrio do Patíbulo", pois justamente naquela época os jornais ocupavam-se de Staletti. Ele era acusado de praticar a vivissecção e foi condenado por isso, creio. Um sujeito sebento que faz a gente pensar num hipnotizador de circo.
- O senhor caracterizou-o muito bem - elogiou Dick. - Hipnotizador! Esta palavra lhe assenta como uma luva!
- Mas por que mencionou Staletti? Estávamos falando de Cody.
- Vou-lhe contar. Escute bem!
Enquanto falava com voz pausada, os pensamentos de Dick tomaram rumo bem diverso. A cortina, por trás da qual o destino do jovem Lord Selford se desenrolara até agora, rasgara-se, de chofre, de alto a baixo, e ele enxergava o palco dos acontecimentos como se o visse por um par de binóculos invertidos: a grande distância e em tamanho reduzido, mas infinitamente claro e nítido. Via os atores que nele se movimentavam... marionetes cujos cordões eram manipulados por poucas mãos. O seu coração começou a martelar como uma máquina superaquecida, o cérebro lhe fervia febrilmente.
Quando terminou de relatar os acontecimentos terrificantes da noite anterior, o advogado quis saber se ele tinha dado queixa à polícia. Dick sacudiu a cabeça.
- Ainda não, mas acho que vou falar com Sneed.
- Quem é Sneed? - inquiriu Havelock.
- Um inspetor de Scotland Yard, excelente na elucidação dos mais profundos mistérios! Um gênio na decifração de enigmas! E por falar em enigmas: de que vive o doutor Staletti? Qual a sua fonte de rendimentos?
- Não faço a menor idéia - replicou o advogado. - Pelo que sei, trata-se de um famoso biólogo, porém excêntrico e de idéias muito arrojadas. Espere! Ocorre-me neste momento que, se estou bem lembrado, foi Cody quem nos recomendou esse Staletti. Posso verificar isso já, consultando a correspondência daquela época.
Saiu apressadamente e pouco mais tarde voltou com um classificador nas mãos.
- Não me enganei. Um mês depois de comprar as terras na Austrália, Cody nos apresentou Staletti. Na ocasião o "Átrio do Patíbulo" se encontrava vazio - ele sorriu. - O nome mete medo. Dizem que antigamente lá se erguia um cadafalso, uns cem anos atrás.
- Neste caso ele foi removido cem anos mais cedo do que devia. Parece que por aqueles lados moram uns bandalhos bem perigosos - comentou Dick.
Ele agora sabia tudo o que precisava saber e até mais, de maneira que tratou de despedir-se de Havelock. Voltou para seu apartamento, onde fez apressadamente suas duas malas. Deu licença de quatro semanas à criada, que antes teve de jurar que não entraria no apartamento durante todo o tempo da sua ausência. Ao porteiro do prédio deu instruções no sentido de encaminhar toda a sua correspondência ao setor de Roubos e Furtos, de Scotland Yard.
Não revelou seus planos a ninguém, pois achou melhor guardar segredo.



Capítulo 12

A senhora Lansdown era uma dama mimosa, de rara beleza. Nem sempre tivera de conformar-se com um apartamento de dois quartos e sala. Houve tempos em que passava por uma das mulheres mais ricas da Inglaterra. O marido possuíra grande extensão de terras férteis em Berkshire, vastas propriedades em Norfolk onde realizava caçadas, outras na Escócia onde promovia pescarias, um prédio de apartamentos no bairro mais elegante de Londres, uma criação de cavalos de corrida e uma lancha de luxo. Entretanto, tudo isso acabara numa única noite. Ele tinha sido um dos diretores de uma empresa cujo presidente um dia se viu forçado a uma viagem apressada, que mais tarde terminou na cadeia. A empresa foi à falência. A justiça mandara confiscar os bens dos diretores para compensar os incalculáveis prejuízos dos acionistas. Gregory Lansdown fora o único cujos bens estavam registrados em seu próprio nome, e assim este homem íntegro tivera de responder sozinho pela enorme dívida.
Dessa terrível ruína os Lansdowns conseguiram salvar apenas o prédio de apartamentos onde agora moravam no apartamento mais modesto. Aqui a senhora Lansdown reunira o que sobrara da bela mobília de outrora. As feridas que o destino lhe havia causado foram sarando aos poucos. A sua felicidade agora se resumia na filha Sybil, que representava o sentido da sua vida.
Comumente as duas passavam as horas da noite juntas naquele apartamento, contentes e alegres. Às vezes Sybil lia algo em voz alta, outras vezes ficava a escrever na pequena escrivaninha empurrada contra a parede num canto da sala. A mãe, ocupada então com alguma costura ou bordado, de quando em quando olhava para a filha com expressão carinhosa.
Raramente recebiam visitas. Por isso a senhora Lansdown assustou-se um pouco e seus olhos se abriram espantados quando numa noite o som da campainha da porta cortou o silêncio que reinava no apartamento. Quem seria?
Sybil foi abrir e ficou surpresa ao dar de rosto com Dick Martin.
- Sinto não ser o lendário tio rico que volta da América, mas apenas Dick Martin - desculpou-se ele.
Ela riu e o convidou para entrar,
Quando Dick, meio sem jeito, surgiu no limiar da sala, a mãe de Sybil examinou-o com um olhar demorado e penetrante. Finalmente a sua fisionomia adquiriu uma expressão amável e ela estendeu ao detetive a sua mão fina e delicada.
- Alegro-me de conhecê-lo, senhor Martin – ela o cumprimentou. - Assim propicia-me a oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente o cavalheirismo que demonstrou para com minha filha,
- Não foi nada - disse Dick, encabulado. Com os olhos procurou um lugar para sentar-se e, para o desespero de Sybil, escolheu justamente a cadeira mais frágil. Entretanto, esta delicada peça de mobília, que havia sobrevivido à ruína da família, também resistiu ao peso de Dick Martin - Eu previra aquele assalto na rua e só lamento ainda não ter conseguido prender o mandante.
- Não tem importância - comentou Sybil, sorrindo. - Não perdi a bolsa, apenas a chave sumiu, como num passe de mágica.
Ela teve a impressão de que Dick intimamente se divertia com isso, de maneira que estacou e inquiriu, desconfiada:
- Por acaso foi o senhor o mágico?
Ele assentiu com a cabeça, abrindo a boca num largo sorriso.
- No trem, antes de lhe devolver a caixinha, tirei e guardei a chave.
- Mas como é que não percebi nada? Não tirei os olhos da caixinha.
Ele sorriu com uma ponta de orgulho.
- Pois é nisso que reside a arte da prestidigitação: tudo é feito diante dos olhos de todos! Aliás, a chave está em segurança, no meu cofre no banco, e se alguém a incomodar por causa dessa chave, não deixe de me avisar.
A senhora Lansdown empalideceu um pouco.
- Então acha que ainda não deixarão a minha filha em paz?
- Não sei - respondeu Dick. - Vim hoje aqui para discutir este assunto. Antes de mais nada quero fazer-lhe uma pergunta importante. Lord Selford tem outros parentes, além da senhora e sua filha?
- Nenhum, salvo se casou entrementes - respondeu Sybil em lugar da mãe.
Dick fitou-a demoradamente. Seus olhos estreitaram-se, os lábios endureceram, os músculos da face debaixo da pele enrijeceram.
- Foi o que eu temia - disse afinal. Relanceou um olhar para o aparelho telefônico. Acrescentou uma observação aparentemente desconexa: - Têm telefone! Ainda bem! Assim poderão ser alcançadas em caso de emergência.
Mãe e filha dirigiram-lhe olhares inquisitivos.
- Têm amigos fora de Londres? - perguntou Dick.
A senhora Lansdown fez que sim com a cabeça. Dick respirou aliviado.
- Isso me deixa um pouco mais tranqüilo. Eu vim para pedir-lhes que deixassem a cidade ainda hoje, mas agora acho que uma partida tão precipitada ainda não é necessária.
A senhora Lansdown inclinou-se para a frente.
- O senhor poderia explicar melhor por que... - começou com os lábios exangues e olhar apreensivo para o detetive.
Dick sacudiu a cabeça,
- Ainda não posso explicar nada - disse. - Estou ainda tateando no escuro, mas sinto que já está se fazendo alguma luz. Aqui e lá percebo uns detalhes, mas só Deus sabe o que ainda está para surgir da escuridão.
- Mas, apesar de tudo, acha que existe perigo para mim e minha filha? É o que deduzo das suas palavras.
- É verdade - admitiu Dick, e repentinamente encarou a senhora Lansdown bem de frente. - É melhor que fiquem de sobreaviso. Eu pressinto perigo, embora não para já. E tudo isso por causa de uma chavezinha - acrescentou com ar sério. E dirigindo-se novamente à mãe de Sybil: - A senhora conhecia o falecido Lord Selford? Que tipo de homem era ele ?
- Certamente não se pode dizer que era o que se chama um bom sujeito - informou a senhora Lansdown, e, recordando o passado, a sua fisionomia turvou-se - Ele bebia, e quando estava com raiva batia nos empregados. Corriam muitos rumores desabonadores a respeito dele. Mas, afinal de contas, todos os Selfords foram sempre personagens discutíveis. O que erigiu o castelo, por exemplo, levou uma vida tão escandalosa que acabou sendo excomungado pelo Papa. Foi ele também quem mandou construir a cripta da família. Nunca ouviu falar nos túmulos dos Selfords?
Ele fez que não com a cabeça. Eles não o interessavam. Mas subitamente as palavras "cripta" e "túmulos" ecoaram dentro dele, como se elas tivessem uma significação especial. Surgiram na sua lembrança as imagens do seu quarto de dormir e do cadáver de Lew Pheeney no guarda-roupa, fitando-o com olhos espectrais. Não havia ele tentado arrombar um sepulcro, e não fora isso o motivo do seu triste fim? De repente Dick sentiu o sangue pulsar mais forte. Ele estava diante de uma pista e teve de fazer uni grande esforço para não se trair. Contudo, a senhora Lansdown percebera o súbito brilho nos seus olhos. Levantou-se e tirou um velho e amarelecido volume de pergaminho da estante.
- É uma crônica da família, do ano 1584 - explicou. - Todas as ações reprováveis dos Selfords estão aqui perpetuadas. Leia o que diz sobre a cripta.
Ele pegou o livro e leu:
"E Sir Hugh, excommungado por decreto papal, e destarte privado dos bens espirituais da Santa Madre Igreja e da administração dos Sacramentos, resolveu e mandou cavar ao pé de hum penhasco huma krypta funda e forte com vinte e huma camaras, para que naquelle lugar fosse elle sepultado como merece hum fidalgo christão ao ser chamado para a vida eterna por Deos nosso Senhor, e da mesma forma fossem ali sepultados os seus filhos, e filhos destes. E chamou gente de outras terras para a construção de dita krypta, que o Capellão Ehrn Marcus abendiçoou, homem piedoso e virtuoso, que de tão devoto ao seu amo e bemfeitor não fez caso da excommunhào. E as camaras forão fermosamente ornadas de Anjos e Santos talhados na mui dura rocha."
Dick não tirava os olhos daquelas linhas. Visualizava uma escada escorregadia descendo abruptamente para as profundezas da terra, viu altos-relevos, ataúdes de pedra em nichos estreitos, nos quais pairava o gélido ar da morte.
- Onde fica a cripta? - inquiriu.
- Numa das extremidades do parque do castelo dos Selfords. Completamente isolado, no topo de uma elevação cercada por sombrios arvoredos. O lugar mete medo. Raramente se pode ouvir ali um passarinho cantar nas copas das árvores. Segundo a crendice popular é um lugar amaldiçoado, mas a causa é provavelmente a aridez do solo.
- Quem reside atualmente no solar? - perguntou Dick, cujo interesse aumentava de minuto em minuto.
- Apenas o administrador. Aliás, aquela propriedade é uma herdade feudal, inalienável, caso contrário o atual Lord Selford já a teria vendido.
- Alguma vez viu o jovem lorde ?
- Apenas uma vez, quando o pai dele ainda estava vivo. Ele me escrevia de vez em quando, mas nos últimos anos apenas duas vezes. O senhor quer ver as cartas dele?
- Quero - respondeu Dick imediatamente.
Ela deixou a sala e voltou com uma caixa de ébano que continha uma porção de cartas numa tremenda desordem. Pôs-se a arrumá-las e finalmente depositou nas mãos do moço uma que trazia o endereço de um hotel em Berlim.
A carta dizia:
"Faz tanto tempo que deixei de lhe enviar notícias minhas que agora até me sinto envergonhado de escrever-lhe. Porém nunca é tarde demais para reparar os erros cometidos, e como sei que você coleciona objetos antigos de porcelana, despachei hoje, endereçado a você, um bonito jarro alemão do século quinze, que descobri numa loja de antigüidades daqui. Espero que ele me assegure o seu perdão por todas as minhas faltas. Cordialmente, seu Pierce."
Dick reconheceu a caligrafia; sem dúvida era a mesma das cartas dirigidas a Havelock.
- Aqui a outra carta - disse a senhora Lansdown.
Esta trazia uma data do ano anterior e o carimbo de uma agência postal da cidade de Colombo.
"Sinto muitíssimo a irreparável perda que sofreu Posso fazer algo por você? Estou à sua inteira disposição. Faça-me o favor de procurar Havelock e mostre-lhe esta carta. Ele já está a par e tem instruções de auxiliá-la de todas as formas e de fornecer-lhe qualquer importância de que você porventura necessitar.
"Quanto a mim, estou bem. Desde que tomei a decisão de escrever um livro, eu vivo mais intensamente, e as viagens me proporcionam um prazer dobrado."
Dick Martin não perguntou que tipo de perda a senhora Lansdown sofrera; era fácil adivinhar. Ela ainda se vestia de preto, chorando a morte do marido.
- Eu não fiz uso da oferta de Lord Selford, embora recebesse uma carta de Havelock em que amavelmente me oferecia sua ajuda. Não sei... - a senhora Lansdown hesitou. - Eu sentia, dentro de mim, sempre uma espécie de alarme ao ouvir o nome Selford. Foi com a maior relutância que deixei Sybil fazer a viagem à Ilha da Madeira, e só porque representava uma distração merecida na vida dela.
Houve um silêncio. Dick remordia os lábios. A senhora Lansdown observava-o atentamente.
- Poderia dar-me agora uma explicação9 - perguntou afinal.
Dick continuou calado.
Sybil levantou-se e pôs a mão sobre o ombro da mãe.
- Acho que devemos confiar no senhor Martin, mesmo sem explicações - fitou-o com olhar franco. - Senhor Martin, minha mãe e eu estamos prontas a deixar Londres assim que o senhor o determinar.
- Eu lhes agradeço muito - respondeu ele em voz baixa.
Já estava indo embora quando se lembrou de algo mais.
- Conhece um tal de Staletti?
A senhora Lansdown meneou a cabeça negativamente.
- Mas talvez um senhor Cody?
A senhora Lansdown franziu as sobrancelhas, refletindo.
- Ouço este nome pela primeira vez - disse finalmente, com convicção.



Capítulo 13

Chegando à rua, Dick pensou por alguns momentos, depois caminhou em direção a Belford Square. Enquanto andava, foi tomado por uma sensação estranha. Cautelosamente voltou a cabeça. Na calçada oposta, um desconhecido marchava no mesmo ritmo. Um segundo seguia a pouca distância. Na esquina da praça um táxi vazio aguardava fregueses; o motorista pôs-se a fazer veementes acenos para ele, o que era tão contrário à habitual indiferença dos choferes de táxi de Londres que Dick logo desconfiou. Fingiu não perceber o convite. Na rua ainda podia defender-se contra vários agressores, mas não num automóvel fechado.
Neste momento aproximou-se outro carro de praça desocupado. Dick deteve-o e mandou o motorista levá-lo ao Hotel da Estação. Pelo vidro de trás observou que o outro táxi o seguia a pequena distância.
Quando apeou em frente do hotel e pagou a corrida, o outro carro de praça estacionou um pouco mais atrás. Dois homens saltaram. Dick entrou no hotel, pediu um quarto e subiu pelo elevador. Atravessou um corredor e desceu lépido por uma escada lateral que conduzia diretamente às plataformas da estrada de ferro. Alcançou um trem que começava a mover-se, pôs-se a correr ao lado dele, agarrou o trinco de uma das portas e pulou em cima do estribo.
Não tinha a menor idéia para onde o acaso o levava. Tanto podia estar no trem expresso para a Escócia, sem paradas até a fronteira, como num trem de subúrbio. Logo verificou que tinha tomado um trem parador, de modo que pôde saltar em Willesden, de onde voltou pelo trem subterrâneo.
Apenas uma hora depois da sua despedida de Sybil e sua mãe, já se encontrava novamente no centro de Londres. O sargento na entrada de Scotland Yard reconheceu-o imediatamente, e disse:
- Se quiser falar com o inspetor Sneed, ele ainda está no seu gabinete.
Como de costume, Sneed estava sentado na sua enorme cadeira de braços, por trás da escrivaninha. Um fogo fraco bruxuleava na lareira. Um charuto apagado pendia-lhe dos lábios. Sua cabeça balouçava no sono como uma fragata em mar encapelado. Só se encontrava ainda àquela hora tardia em Scotland Yard porque não tivera a energia para levantar-se e dirigir-se para a sua casa. Tal coisa acontecia em média cinco vezes por semana.
Ele abriu os olhos, estremunhado.
- Estou ocupadíssimo, não disponho de um minuto sequer - rosnou, como sempre, ainda meio adormecido.
Dick, dando uma gargalhada, puxou uma cadeira confortável.
- Não preciso mais de alguns segundos - disse, e fez menção de começar impiedosamente a sua longa narrativa, mas antes de completar a primeira frase, os olhos de Sneed ficaram animados, e quando chegou ao meio do seu relato, toda a sua fisionomia demonstrava invulgar interesse.
- Tal qual como nos contos policiais - exclamou com seu vozeirão. - Está repetindo o último romance de Conan Doyle.
Mas Dick não se deixou interromper. Ao terminar, Sneed, com expressão séria, premiu o botão da campainha. Instantes depois entrou um subordinado.
- Sargento - disse-lhe Sneed - a partir de amanhã o prédio situado na Coram Street 107 receberá segurança policial. Quero-o vigiado as vinte e quatro horas do dia. E um dos nossos melhores detetives deve colocar-se à disposição do senhor Martin: o acompanhará durante o dia sem dar na vista e passará as noites no apartamento do senhor Martin.
O sargento tomou notas das instruções.
- E amanhã cedo telefone para o chefe de polícia de Sussex. Diga-lhe que eu tenho motivos para suspeitar que no lugar onde reside o médico Staletti, no assim chamado "Átrio do Patíbulo", estejam ocorrendo certas transgressões da lei e que pessoalmente estarei lá com meu pessoal às onze e quinze da noite para revistar a casa. Deixo, porém, ao critério dele se quer participar da diligência.
O sargento saiu e Sneed ergueu-se da cadeira, gemendo com o esforço.

- Acho melhor irmos para casa agora. Vamos, Martin, eu o acompanho até seu apartamento.
- Nada disso - protestou Dick. - Não devemos ser vistos juntos; isso pode estragar tudo. Não se esqueça de que todo mundo o conhece... você é quase que um cartaz ambulante da Scotland Yard. Sejam quem forem os meus inimigos, eles não devem saber que estou me precavendo.
- Está bem, como quiser, Martin. Mas voltando mais uma vez à vaca-fria: o sujeito que o atacou estava realmente nu?
- Não totalmente. Usava uma tanga.
- Staletti - refletiu o inspetor. - Tinha de ser Staletti! Indivíduo sórdido, perigoso! Será que esse pilantra recomeçou suas velhas tolices? Uma vez já lhe arrumei três meses de cadeia.
- E que tolices foram essas? - perguntou Dick
Sneed soltou uma baforada de fumaça em direção ao teto.
- A criação de uma nova raça humana.
- E desde quando isso é crime?
- Não se esqueça - retrucou Sneed - que tudo depende de como as coisas são feitas. Staletti acredita que uma criança criada no mato, como um animal, acaba se tornando um ente que, embora não saiba falar nem pensar logicamente, constitui um membro mais perfeito da espécie humana, devido ao seu desenvolvimento físico superior. Ele afirma que os seres humanos atingiriam uma altura de dez pés e conseguiriam a força de gigantes pré-históricos se toda a energia vital, que hoje é absorvida pelo cérebro, se concentrasse na formação dos músculos e ossos. Naquela época se contentava em experimentar com animais. Parece que agora passou a usar material mais nobre. Mas eu juro que desta vez irá para a cadeia pelo resto da vida se eu encontrar na sua casa uma pessoa adulta que não saiba recitar o a-bê-cê.

Dick saiu de Scotland Yard pela porta que dava para Whitehall. Deteve um táxi e saltou no Regent Park. Deu algumas voltas para despistar possíveis seguidores. Chegando ao prédio onde morava, evitou a entrada da frente, embora sabendo que a estas horas o porteiro já estava dormindo. Penetrou no prédio pela porta dos fundos, passando pela garagem. Subiu a escada depressa, abriu a porta do apartamento sem fazer barulho e trancou-a por dentro. Em seguida percorreu todos os aposentos, acendendo as luzes e examinando todos os cantos. Não encontrou nada suspeito. Tudo estava como o havia deixado horas antes. À tarde, antes de sair, ele tivera o cuidado de correr cuidadosamente as pesadas cortinas das janelas e de fechar também a janela de duas folhas da cozinha, a fim de impedir que a luz acesa no interior pudesse ser notada do lado de fora. Ainda que alguém na rua estivesse vigiando, nada lhe revelaria a presença do proprietário do apartamento.
Ao abrir as portas do guarda-roupa para pendurar o casaco, a súbita lembrança de que naquele espaço exíguo Lew Pheeney exalara o seu ultimo suspiro arrepiou-lhe a pele. Que teria ele visto nos túmulos dos Selfords, qual dos ataúdes teria ele tentado violar naquela cripta sinistra onde tanto os pecados, as paixões e taras dos Selfords como os seus sonhos e suas ambições tinham virado cinzas?
Dick preparou um café e levou para a mesa no centro da sala um dos volumes da coleção de jornais antigos que lhe havia sido entregue a tarde. A "Gazeta de Londres" podia não ser tão variada e divertida como as revistas modernas, mas ele achou aquelas páginas, abarrotadas de notícias sobre crimes e processos, tão instrutivas que só se levantou quando o relógio bateu as duas horas.
Dirigiu-se ao quarto de dormir, apagou a luz, afastou as cortinas, abriu a janela um pouco e espiou para fora. A lua em quarto minguante boiava num céu sem nuvens. Uma aragem soprava e agitou a cortina, e a claridade da lua penetrou no aposento, projetando na parede oposta um desenho de luzes e sombras que variava conforme as ondulações da cortina.
Dick, respirando fundo, afundou a cabeça no travesseiro e adormeceu.
Vagarosamente o luar deslizava através das paredes até atingir a porta laqueada de branco. Neste momento Dick acordou com um sobressalto. Que o despertara? A lua? O movimento da cortina? Ele não tinha certeza, mas o seu instinto o avisava de um perigo oculto nas trevas da noite. Estava deitado com o rosto voltado para o lado da porta e viu nitidamente a maçaneta de metal que brilhava à luz pálida da lua, e essa maçaneta... não, não era uma alucinação do cérebro ainda estonteado de sono, mas aterradora realidade... movia-se em sua direção.
Com os olhos muito abertos fixou a porta, que, subitamente, de uma inanimada tábua de madeira se transformara num objeto vivo. Nesse momento apareceu no seu campo de visão uma grande mão humana, terrivelmente distinta na claridade baça da lua. Apenas uma mão, mas de feitio arrepiante cujos dedos compridos e musculosos avançavam como se fossem tentáculos de um polvo.
Dick pulou da cama e atirou-se ao chão. No mesmo instante uma criatura agigantada saltou em cima do leito, soltando um grito gutural, que nada tinha de humano.
O detetive, no momento em que bateu no assoalho, levantou a mão esquerda para apanhar o revólver que estava debaixo do travesseiro. Nisso, seu antebraço, por um breve instante, roçou no dorso intumescido daquela mão e uma sensação de náusea quase o sufocou. Cerrando os dentes, voltou a cabeça para o inimigo invisível, esticou o braço para trás e arrancou a cortina com violento puxão. No mesmo momento a claridade da lua inundou todo o quarto. Não havia ninguém.
A porta estava totalmente aberta. Dick tateou em busca do interruptor e acendeu a luz. Alguém escancarara também a porta da cozinha, e pela janela da cozinha penetrava a brisa noturna. Ele correu para a sacada e inclinou-se sobre o parapeito. Ainda viu o seu agressor, um vulto disforme, descender precipitadamente por uma escada de cordas presa no gradil da sacada. Ele ergueu o revólver, mas a escuridão do pátio interno do prédio engolira o invasor.
Dick quedou-se imóvel, perscrutando com os olhos os cantos do pátio e o corredor da garagem, mas tudo jazia tranqüilo e silencioso. Nenhuma sombra suspeita, nenhum vulto estranho. Mas enquanto ainda espiava, ouviu de repente da rua o zumbido de um motor de automóvel que cresceu por alguns segundos e depois se perdeu na distância.
Dick voltou para o seu gabinete de trabalho e olhou o relógio. Eram quatro horas e vinte. Ao leste as primeiras luzes da manhã já clareavam o céu.
Quem teria sido o assassino mal sucedido? Agora ele compreendia como Lew Pheeney tinha morrido. De uma coisa ele tinha certeza: o seu atacante no "Átrio do Patíbulo" e esse visitante noturno eram a mesma pessoa.
Retornou à sacada e puxou a escada de cordas. Aparentemente ela fora feita à mão, pois eram muito irregulares as distâncias entre os degraus de cânhamo torcido, fixos nas cordas verticais. Procurando explicar como a escada de cordas fora içada à sacada, chegou à conclusão de que, provavelmente, tinham atirado um laço sobre o parapeito saliente e em seguida puxado a escada para cima com a ajuda desse laço. Essa suposição confirmou-se quando desceu para o pátio e achou uma catapulta, um barbante enrolado num pequeno dardo de ferro e a corda amarrada no barbante, O enigma da morte de Lew Pheeney estava finalmente solucionado. O assassino penetrara no apartamento subindo pela escada de cordas!
Caindo de sono. Dick atirou-se sobre a cama, meio vestido ainda, e mergulhou num sono pesado.



Capitulo 14

Dick acordou com o som estridente do telefone. Relutantemente se virou na cama e levou o fone ao ouvido. A sua fisionomia porém mudou ao reconhecer a voz.
- Alô, que bela surpresa! É gostoso saber que ainda se lembra de mim.
Na outra extremidade do fio alguém riu baixinho.
- Como sabe quem está falando? Eu não lhe disse meu nome!
- Ora... a sua voz é inconfundível, minha cara senhorita Lansdown.
Seguiu-se uma pausa embaraçosa.
- Há alguma razão especial para este telefonema? - perguntou Dick, preocupado. De repente lembrava-se dos fatos acontecidos nessa mesma noite e sentiu medo pela segurança da moça da qual estava enamorado.
- Não, não é bem isso - respondeu Sybil. - É que eu gostaria de conversar com o senhor sobre um assunto que não pode ser tratado por telefone.
- Pode vir logo, se quiser - disse Dick. - Vou avisar o porteiro imediatamente.
Sybil desligou. Ela não entendia bem o que o porteiro tinha com isso, pois não podia adivinhar que, para lodos os efeitos, Dick se encontrava ausente, a viajar, desde a véspera.
Apressado, Dick tentou executar três coisas diferentes ao mesmo tempo: tomar banho, fazer a barba e fritar dois ovos.
Soou a campainha. Dick enfiou depressa o roupão e correu para o corredor. Com um puxão violento abriu a porta e começou imediatamente a pedir desculpas: uma vez que tinha dado licença à criada, era ele mesmo quem tinha de cuidar da casa e...
A moça franziu as narinas.
- Alguma coisa está queimando - disse, desconfiada
Dick bateu com a mão na testa e correu para a cozinha. Sybil seguiu-o. Da frigideira erguia-se um vapor azulado e os ovos protestavam contra a maneira de tratá-los.
- Para fritar ovos é preciso pôr gordura na frigideira - observou Sybil em tom de censura e dissolveu uma colherada de manteiga numa tentativa de salvar o que talvez pudesse ser salvo.
Ela relanceou um olhar pela cozinha e notou a escada de cordas a um canto, formando um montículo.
- O que é aquilo? - perguntou com curiosidade.
- É minha escada de incêndio - mentiu Dick - Conservo-a sempre à mão.
Sybil, neste momento, estava demasiadamente ocupada com os ovos, de maneira que não deu pela fragilidade da explicação.
- É uma vergonha tomar o desjejum ao meio-dia
- criticou. - Acho até que foi o meu telefonema que o tirou da cama.
Dick admitiu isso, baixando os olhos com ar de culpado, e Sybil meneou a cabeça. Ela mesma encarregou-se de pôr a mesa. Deitou o café na xícara e cortou o pão. Ele acompanhou seus movimentos com olhares de admiração, mas o motivo da visita ela só explicou quando ele acabou com os ovos, o pão e o último gole de café.
A biblioteca não abria neste dia, em homenagem ao aniversário da sua fundação, e Sybil pretendia aproveitar o feriado para mostrar a Dick o lugar dos túmulos dos Selfords. Havelock estava a par e até se oferecera para acompanhá-los. A pedido da mãe ela havia procurado o advogado de manhã cedo para fazer-lhe um relato da sua viagem à Ilha da Madeira. Havelock tinha ficado muito alarmado, pensando até em requerer segurança policial para mãe e filha, mas Sybil dissuadira-o desse propósito, dizendo-lhe que deixasse tudo por conta de Dick Martin.
Como Dick já tinha pensado em visitar as sepulturas dos Selfords nesse mesmo dia, concordou imediatamente com os planos da jovem. Quando Sybil se despediu, ele sentiu que ela via nele seu protetor natural, o companheiro enviado pelo destino, e o seu coração pulsou com mais força.
Dirigindo-se, sem demora, ao seu banco, apanhou as chaves que havia depositado no cofre. Por volta das duas horas parou o carro em frente da casa de Sybil.
- Trouxe as chaves? - ela perguntou depressa, antes mesmo que ele tivesse tempo de cumprimentá-la. Ele tranqüilizou-a e a tensão nervosa dela abrandou.
Fazia um lindo dia primaveril e notava-se que o passeio a deleitava. Um quarto de hora mais tarde, em Lincoln's Inn Fields, Havelock juntou-se a eles.
- A senhorita Lansdown já lhe revelou seu segredo? - perguntou. Dick arregalou os olhos para Sybil, mas ela meneou a cabeça negativamente.
- Bem, nesse caso não direi nada - sorriu Havelock. - Mas verá que a senhorita Lansdown formulou uma teoria que pode constituir uma pista valiosa.
- Uma teoria que poderá ser confirmada pelos túmulos? - quis saber Dick, guiando o carro habilmente em ziguezague por entre um enorme ônibus e um calhambeque antediluviano.
- Talvez - Havelock recostou-se comodamente no assento. - Mas queira refrear a sua impaciência, meu prezado senhor detetive! Amadores, às vezes, também sabem como tirar alguma surpresa da manga do paletó, e não somente os senhores de Scotland Yard.
Dick dirigiu a Sybil outro olhar. Ela olhava fixamente para a frente, um sorriso brilhando-lhe nos olhos. Tivesse ela adivinhado o que a esperava nos túmulos dos Selfords, ela, no mesmo momento, teria renunciado à revelação do seu segredo
Assim que o carro passou por Horsham, o horizonte começou a escurecer, e duas horas mais tarde, quando parou diante da casa do vigia, à entrada de automóvel para o parque do solar dos Selfords, nuvens negras se aproximavam de todos os lados; contudo, ao sudoeste, o sol ainda brilhava num céu límpido e sereno.
Ao som da buzina, uma mulher, vestida com simplicidade, saiu apressadamente da casinha, fez uma cortesia diante de Havelock e abriu o portão.
Dick ficou bem impressionado com o que via.
O caminho de cascalho estava bem cuidado. O parque todo em frente do casarão testemunhava o zelo de um jardineiro cumpridor dos seus deveres.
- Mantemos tudo em perfeita ordem - comentou Havelock, com uma ponta de orgulho. - O herdeiro pode vir e tomar posse na hora que quiser. Só falta uma criadagem disciplinada, mas isso se resolve facilmente.
- Quer dizer que não há criados no castelo?
- É, exceto o administrador e sua mulher - respondeu Havelock. - Mas o administrador entende de jardinagem e cuida também do parque. Além disso, de tempos a tempos, providenciamos uma limpeza geral do castelo, de maneira que ele se encontra em perfeitas condições. Uma pena que esteja desocupado - Por algum tempo ficou em silêncio, depois prosseguiu animadamente: - A propósito, Selford tornou a escrever-me para avisar de que, infelizmente, se vê obrigado a adiar a sua volta à Inglaterra até o inverno. Isso quer dizer que dificilmente chegará antes da próxima primavera.
- Por onde anda Lord Selford atualmente? - inquiriu Dick, enquanto pisava no pedal do freio.
Havelock deu de ombros.
- Essa pergunta é daquelas que não têm resposta. Recentemente se encontrava no Cairo, a estas horas, provavelmente, já está em Damasco. Se dependesse de mim, ele estaria em Marte e eu na lua! - resmungou.
O automóvel parou. No meio de um extenso gramado erguia-se o vulto do castelo, uma edificação oblonga de tijolos, com cumeeiras e chaminés, construído no estilo da época dos Tudors. O administrador, alertado pelo ruído do carro, saiu do casarão. Era um homem de meia-idade, com a honestidade estampada no rosto. Trocou algumas palavras com Havelock, dando-lhe conhecimento de uma cerca danificada e um carvalho desenraizado.
- Vamos, companheiros! - exclamou Havelock, que foi o primeiro a saltar do carro. - Temos à nossa frente uma caminhada de meia hora e precisamos andar depressa se quisermos voltar sem apanhar chuva!
Erguendo a bengala, apontou para o céu, onde, neste instante, o sol desaparecia por trás de densas nuvens negras prenunciando um temporal.
Puseram-se a caminho. Atravessaram um campo ceifado, enveredaram por um pomar e atingiram um sítio que, tirando meia dúzia de galinhas cacarejantes e um cachorro sonolento que piscava os olhos, parecia desabitado. Por trás do sítio desdobrava-se o parque. Uma íngreme elevação, que protegia a casa senhorial dos ventos rijos do nordeste, constituía o atrativo mais marcante da propriedade, que se estendia num amplo semicírculo em volta do pequeno monte. Os espaços livres dos prados revezavam com pitorescas moitas. Uma floresta escura debruava um vale plano.
Quando galgaram a encosta, no topo da qual começava a mata cerrada e de poucas veredas, Dick estranhou o profundo silêncio que os cercava. Nenhum pássaro chilreava, nenhuma folha se mexia. As árvores pareciam mortas, e no céu havia uma nuvem cinzenta que se abalofava mais e mais, ameaçando estourar e despejar um aguaceiro a qualquer momento.
Uma estreita trilha serpeava pela floresta, sempre subindo, e galhos e vergônteas salientes da mata emaranhada que margeava o caminho pareciam querer deter o avanço dos intrusos. Uma luminosidade cinzenta, difusa, fluía entre os troncos das árvores, e numa volta súbita da trilha depararam inesperadamente com uma clareira, no meio da qual se erguia um penhasco.
- Eis a cripta dos Selfords - disse o advogado. Estendeu o braço e com a bengala indicou a grande rocha isolada. - A entrada para os túmulos fica do outro lado.
Eles saíram para a clareira e rodearam o penhasco. Na grande abertura oval cortada na pedra reinava noite tenebrosa. Uma pesada grade de ferro, já meio carcomida pela ferrugem, impedia o acesso à galeria subterrânea.
Havelock enfiou a mão no bolso e retirou uma chave de formato antiquado. O portão abriu-se com um rangido dissonante.
Atrás do portão, uma lanterna pendia da parede rochosa. Havelock acendeu-a. A pálida luz oscilante alumiou uma escada escorregadia.
- Irei na frente! - anunciou o advogado.
Abaixou-se e desceu os degraus cautelosamente, bem devagar. Um gélido cheiro de bolor subiu-lhes às narinas. Os degraus estavam cobertos de musgo. Dick contou-os, eram doze ao todo. Desembocavam numa pequena antecâmara abobadada, fechada também por grade, esta de material mais leve. A chave que abrira o portão de ferro, também serviu para esta segunda porta. Encontravam-se agora num corredor estreito, ao longo do qual, dos dois lados, viam-se as portas para as câmaras mortuárias, dez de cada lado, enquanto a vigésima primeira constituía o fim do túnel. Pesadas portas de carvalho conduziam para os túmulos. Os nomes dos ali sepultados haviam sido talhados em madeira e alguns já estavam indecifráveis. A mão do tempo passara por cima deles e os apagara.
- Venha ver aqui, é este o segredo de Sybil Lansdown! - disse Havelock, erguendo a lanterna.
A luz fraca iluminou a vigésima primeira porta, no extremo da galeria. Ela não era de madeira. A superfície parecia-se com granito.
Dick olhou fixamente para a porta como se ela lhe revelasse todos os mistérios dos Selfords numa única confissão geral.
A porta linha sete fechaduras!
Sete redondas placas de metal com estreitas fendas, dispostas verticalmente, uma abaixo da outra. Ele achara o fio da meada! Encontrava-se diante da câmara mortuária que nem a habilidade de Lew Pheeney conseguira arrombar. Nesta catacumba horripilante, ele havia trabalhado com uma gratificação de mil libras e a morte inevitável diante dos olhos.
Uma fantástica representação de caveiras moldurava a porta e dois esqueletos de pedra, de um realismo arrepiante, formavam os pilares.
Dick deu três pancadas à porta: a falta de sonoridade e repercussão indicava que ela devia ter peso e grossura enormes.
- Pode dizer-me quem está sepultado nesta tumba? - perguntou.
Sem dizer palavra, Havelock apontou para a lápide tumular:
SIR HUGH SELFORD, GRANDE PECADOR, QUE DA CASA SELFORD FOI O FUNDADOR, AQUI JAZ ATÉ A SUA RESSURREIÇÃO DA MORTE. AS SETE CHAVES E A PORTA FORTE LHE GUARDAM A PAZ.
- Quem está sepultado aqui é Sir Hugh, mas o epitáfio é de data recente; quem o colocou foi o penúltimo Lord Selford - explicou Havelock. - Ele mandou derrubar a porta anterior, que também tinha sete chaves, e colocar no lugar dela esta de aço e concreto. Antes de fazê-lo, revistou a câmara toda minuciosamente, mas nada encontrou além de uma urna de pedra, vazia. E é só o que a gente consegue ver quando olha dentro da cela.
- Olhar dentro da cela? - perguntou Sybil, admirada. - Mas não existe nenhuma fresta!
- Existe, sim - sorriu Havelock, e com uma ligeira pressão da mão contra a lápide, fez deslizar esta para o lado, revelando uma estreita abertura. - Eu devia ter trazido uma lanterna de bolso - lamentou-se.
Dick tinha uma. Erguendo-a até a altura dos olhos, correu o pequeno facho de luz por todo o interior da câmara.
Do outro lado da porta havia um recinto que formava um quadrado de cerca de seis pés de cada lado. As paredes, esverdeadas, pareciam úmidas, o chão de pedra estava coberto de uma grossa camada de poeira. No centro, uma urna funerária repousava sobre um rústico cadafalso.
- Curioso - murmurou Dick. - Para abrigar um corpo, a urna é pequena demais, e naquela época ainda não existia a cremação. Talvez ela contenha jóias?
Havelock abanou a cabeça negativamente.
- Lord Selford... - começou, mas parou no meio da frase. Uma súbita chama azulada faiscou no corredor. Assustada, Sybil agarrou o braço de Dick.
- Um raio - disse Havelock. - O temporal desabou.
Logo em seguida o ribombo de um trovão ecoou dentro da caverna, acompanhado de outro relâmpago, que iluminou as portas espectrais das câmaras mortuárias. Sybil empalideceu, vacilou, e escondeu o rosto no ombro de Dick.
- Se há um lugar onde estamos seguros, é aqui, debaixo da terra - disse o detetive, acalmando-a. - Além do mais, um temporal não tem nada de terrível; é até uma bela manifestação da natureza. Desde os tempos em...
Novo relâmpago cortou-lhe a palavra. Mais forte do que os anteriores, aclarou as fisionomias pálidas e terminou numa violenta explosão que fez tremer o chão. Seguiu-se um fragor, como se toda uma pedreira desabasse. O trovão reboou e lentamente se extinguiu.
No mesmo momento ouviu-se um barulho metálico, como que dois ferros se entrechocando
Dick largou Sybil e partiu em vertiginosa corrida em direção à antecâmara, precipitando-se dali escada acima. Um raio ofuscou-o, o estrondo do trovão tolheu-lhe os passos. Então, petrificado, viu o que temera: alguém fechara a grade de ferro. O chão de barro molhado mostrava as impressões de pés descalços de tamanho sobrenatural.



Capítulo 15

Havelock e Sybil emergiram da escuridão da galeria subterrânea, ofegantes. Os olhos de Sybil tinham uma expressão atarantada e a cara de Havelock estava coberta por uma lividez cadavérica. A sua mão tremia convulsivamente, quando ele se pôs a sacudir os varões da grade.
- Quem será o desgraçado que fez esta brincadeira conosco? - perguntou, zangado, em meio da fúria do temporal, numa voz trêmula que, por efeito do medo, lhe saía estridente.
Dick não respondeu. Com os lábios apertados, olhava fixamente em direção da mata espessa. Em poucos minutos a claridade do dia se transformara num negrume aterrador. A água da chuva torrencial martelava o chão com grande estrépito, ricocheteava e respingava-lhe no rosto. Mas na hora do perigo os seus olhos adquiriram uma acuidade invulgar. Ele viu nitidamente que algo se movia por trás dos arbustos de rododendros. Vislumbrou uma perna desnuda. Rapidamente ergueu a pistola e atirou duas vezes. Já ia premer o gatilho pela terceira vez, quando Sybil, soluçando, agarrou-se ao seu braço.
- Por favor, não atire - implorou com voz sumida. - Ainda não sabemos se temos o direito de ferir alguém.
Encostou a cabecinha no ombro dele, e Dick, com um sorriso, baixou a arma.
- Dê-me a sua chave - virou-se para Havelock.
Como só existisse uma fechadura do lado de fora, ele meteu o braço por entre as barras de ferro da grade para introduzir a chave. Com um giro da mão abriu o portão. Voltando-se para os companheiros, disse:
- Façam o favor de irem na frente. Eu já vou também - e em segundos desapareceu na floresta.
Não precisou ir longe: com sua vista de lince distinguiu um objeto amarelo entre as sarças. Abaixou-se e deu com um garrafão de aço, em cuja superfície lisa achou algumas manchas de sangue, prova de que seus disparos tinham acertado o alvo. O recipiente de aço media cerca de quatro pés e era tão pesado que Dick teve de fazer força para levantá-lo. Do cano de saída pendia um tubo de borracha. Poucos passos mais adiante achou um segundo garrafão idêntico ao primeiro, mas que trazia uma etiqueta vermelha, redonda, que havia sido raspada do primeiro recipiente. Apesar da chuva, que ameaçava tornar as letras quase ilegíveis, ainda era possível decifrá-las. Elas diziam: "Cloro! Cuidado! Veneno!"
Lentamente se endireitou. Alguém planejara asfixiá-los com gás cloro. Teria sido suficiente o conteúdo de apenas uma destas garrafas para impedir que eles deixassem com vida aquela cripta. Cautelosamente afastou os galhos das moitas próximas, mas o sinistro gigante desaparecera como que tragado peio chão: as suas pegadas o aguaceiro já apagara.
Caminhando a passos largos, Dick alcançou Sybil e o advogado em poucos minutos.
A chuva caía em bátegas, relampejava a todo instante, e as trovoadas sucediam-se sem cessar, o vento curvava as copas das árvores. Sybil andava aos tropeços naquele terreno acidentado, quase desfalecendo. Galhos molhados açoitavam-lhe o rosto e desalinhavam-lhe os cabelos. Sem dizer nada, Dick caminhou na frente.
- Que foi que o senhor viu? Em quem atirou? - perguntou Havelock, com voz rouca.
- Num fantasma da minha imaginação - retrucou Dick calmamente.
A floresta clareava. Todos respiraram fundo se bem que agora estivessem ao céu aberto, totalmente à mercê da chuva. Dick acompanhou Sybil até a casa senhorial mas declinou o convite para entrar e tomar uma chávena de chá para aquecer-se. O mais importante ainda estava por fazer.
Esperou até que a porta se fechasse atrás de Sybil, depois voltou pelo mesmo caminho. Diminuiu o passo ao penetrar na floresta. Relanceava olhares para todos os lados. Chegou são e salvo à cripta, que encontrou como a havia deixado.
Tirou algemas do bolso do casaco e passou-as em volta da fechadura do portão, impedindo assim que alguém o pudesse prender no interior da galeria subterrânea. Em seguida desceu os degraus e iluminou com a luz forte da sua lanterna de bolso as sete fechaduras da vigésima primeira porta. Escondidas num dos bolsinhos do colete, ele trazia as duas chaves misteriosas. Tirou-as e experimentou-as nas fechaduras. Uma delas servia para a quarta, a outra entrava na última fechadura. Ele girou ambas, as lingüetas estalaram, mas a porta não se deixou mover, continuando pendurada imóvel nas dobradiças. Era óbvio que somente poderia ser aberta se ele conseguisse todas as sete chaves.
Ele deslocou o postigo e contemplou a câmara pela estreita fresta. Reparou num nicho, talhado na parede lateral da rocha que, em outros tempos, provavelmente abrigara o féretro com os restos mortais do grande pecador. Devido à umidade da cripta, o caixão se desfizera aos poucos, e agora o nicho estava vazio; apenas uma camada de pó cobria o chão.
Dick tornou a guardar as duas chaves no bolso do colete e, pensativo, voltou para a antecâmara. Subiu os degraus molhados e estremeceu.
A poucos passos da entrada para as catacumbas estava o garrafão que antes descobrira entre as ervas das brenhas da mata. Isso significava que o perseguidor implacável continuava à espreita entre as moitas, tal qual uma pantera, que é capaz de rondar a sua vítima durante horas, antes de dar o salto modal.
Dick, embora destemido por natureza, foi, neste momento, tomado por uma sensação de temor. Fazendo um grande esforço, ergueu o pesado garrafão e carregou-o até onde começava a mata; lá jogou-o no chão.
Ficou alguns instantes parado, olhando fixamente para as moitas. Todos os seus instintos impeliam-no a fugir; nem assim se mexeu. Dominando os nervos, pôs-se a varejar as moitas mais próximas, e só depois de certificar-se de que seu invisível inimigo não se ocultava ali, tomou o rumo da casa senhorial, caminhando lenta e tranqüilamente. Não virava a cabeça para trás, mas, apertando os maxilares e cerrando os punhos, concentrava toda a sua atenção e energia para que não lhe passasse desapercebido qualquer estrepitar estranho na floresta. Finalmente, com uma sensação de alívio, avistou à sua frente o castelo e achou-o quase uma construção formosa, a despeito da rigidez do seu estilo arquitetônico.
A fria perversidade do seu temível adversário, a obstinação com que o perseguia apesar do ferimento que sofrera, a sua vontade firme de matar, colocavam-no fora da esfera humana. Devia ser um demônio, um louco, um indivíduo que não sabia distinguir o bem do mal. O passeio à cripta, a descoberta da porta das sete fechaduras que cerrava um recinto contendo apenas pó, por um triz não custara a vida a Dick Martin.
Tudo parecia mais um sonho confuso do que realidade. Dick tinha a sensação de que a qualquer momento iria acordar e então rir dos desvarios da sua mente.
Apenas uma vez na vida ele tivera um encontro com crimes incomuns. em Toronto, onde uma série de catástrofes inexplicáveis abalaram a cidade até os alicerces. Naquela ocasião se defrontara com o criminoso do tipo inteligente que, perverso por natureza, se deleita com a sua própria perversidade. Dick nunca teria conseguido agarrá-lo se o próprio criminoso, enfastiado de tudo, não se tivesse traído finalmente.
O criminoso comum é brutal ou astucioso, desprovido de nervos e sentimentos. O desejo de luxo e prazeres leva-o ao crime. Indolente ou obtuso demais para conquistar a vida regalada que almeja por meio de talento e aplicação, incapaz de um esforço contínuo, ele vive como parasita do trabalho de outros. É rápido em seus movimentos, talvez também na avaliação da situação, mas sem imaginação.
O criminoso diabólico, porém, que não cobiça as comodidades da vida, que comete crimes por mero prazer, ou que ambiciona o poder, ou é impelido por ódio à humanidade, se distingue por uma imaginação elevada. Ele não só adivinha o raciocínio dos seus captores, como também se antecipa às manobras deles. Amiúde os seus crimes se situam além de todas as leis ou numa linha que extrapola os limites da experiência.
Dick sabia agora que lutava contra adversários equivalentes, que ele não conseguiria vencer pelos meios comuns. Não obstante, confiava na justiça do destino que mais cedo ou mais tarde pune todo elemento nocivo.
Chegou ao castelo molhado até os ossos. A água escorria-lhe pelo corpo. Apesar disso não queria se demorar mais, e Sybil teve de se conformar.
- Procurou pelo misterioso fantasma da floresta? Acho que ele não passa de um ente da sua imaginação - disse Havelock, que reencontrara a sua fleuma.
- Eu não diria isso - retrucou Dick. - Não achei o fantasma, mas vi suas pegadas.
- Ele está ferido? - perguntou Sybil, condoída.
- Gravemente não, disso tenho certeza - tranqüilizou-a Dick. - As balas não devem ter-lhe causado grandes estragos.
- O que é uma pena - observou Havelock, subitamente com raiva. - Se tivesse morrido, seria um mau elemento a menos no mundo.
Ele tinha pedido emprestado ao administrador uma capa de chuva; sentado num canto do carro, abotoado até o pescoço, fechou os olhos, cansado, e só acordou quando o automóvel parou diante da sua casa.
O temporal se dissipara, mas a temperatura tinha caído O ar estava frio e desagradável.
Sybil desculpou-se com ele por tê-lo induzido a participar de um passeio tão desastroso. Ele fez um gesto conciliatório.
- Olhe para o senhor Martin - disse. - Está todo ensopado. Eu com esta capa, pelo menos não senti frio. Além do mais, foi bom eu ter podido certificar-me com meus próprios olhos das intrigas que parecem estar sendo urdidas, não sei com que propósito. Apenas receio que aquilo que observamos não seja nada em comparação com o que continua oculto.
- Meu Deus - murmurou Sybil. - Estou com medo.
Havelock sacudiu a cabeça
- Não é a minha intenção intranqüilizá-la, senhorita Lansdown, mas se não estou muito enganado, o nosso jovem amigo aqui - e ele voltou a cabeça para Dick, que mantinha as mãos pousadas sobre o volante - conseguiu fazer uma descoberta bastante perigosa.
Com um amável aceno de cabeça estendeu as mãos para ela, apeou e, a passos largos, dirigiu-se para a sua casa.
Dick estava ocupado em fazer a volta com o carro no meio da rua, o que, em vista do asfalto molhado, não era tarefa fácil, e Sybil reprimiu a pergunta que lhe queimava os lábios.
Na Coram Street separaram-se. Ele teve de prometer à moça que, ao chegar em casa, tomaria imediatamente um banho quente e trocaria de roupa. Era o que ele mesmo mais desejava. Um mergulho na banheira se lhe afigurava naquele momento uma delícia divina.
Mal tinha saído do banho, telefonou para o inspetor Sneed.
- Sinto muito se o tirei de um dos seus cochilos, mas peço-lhe que venha imediatamente à minha casa. Tenho uma porção de novidades para você.
Sneed grunhiu aborrecido, mas após alguns instantes concordou, e pouco depois tocou a campainha do apartamento de Dick. Cansado, cambaleou pelo corredor até o gabinete de trabalho e com um profundo suspiro deixou-se cair na primeira poltrona de couro com que deparou.
- Já estou com o mandato de busca contra Staletti. A coisa vai acontecer hoje às dez horas da noite.
- Mas você não combinou com a polícia de Sussex que chegaria às onze e quinze? - perguntou Dick, surpreso.
- Meu Deus, sim. O que quer que eu faça para evitar que a polícia local me estrague tudo? "Panela em que muitos mexem, ou sai insossa ou salgada". Mas agora vai falando. Você tem uma mania esquisita de viver todo dia um novo capítulo do seu excitante romance.
Ele escutou com os olhos fechados, descerrando-os apenas uma vez, quando Dick mencionou a escada de cordas que descobrira no parapeito da sacada.
- Lew Pheeney! - comentou em tom breve.
Dick assentiu com a cabeça e prosseguiu, falando agora sobre a visita à cripta senhorial dos Selfords. Aí Sneed se endireitou, resoluto.
- Mais alguém tem uma chave para o portão da cripta - observou. - Como também uma das chaves para o vigésimo primeiro túmulo - acrescentou.
Passou a mão pelo rosto.
- Sete fechaduras, sete chaves - refletiu. - Você tem duas Quem terá as cinco restantes? Se nós pudéssemos reunir todas as chaves em nossas mãos, o enigma ficaria solucionado... Mais simples, porém, seria usar dinamite.
Dick revirou o cigarro na piteira de espuma-do-
mar.
- Para isso precisaríamos da permissão de Lord Selford, e este dificilmente a dará enquanto não souber os nossos motivos.
Sneed franziu as sobrancelhas.
— Talvez se possa arrombar as fechaduras?
Dick sacudiu a cabeça.
- Impossível! Lew Pheeney já tentou isso.
Sneed arrepiou-se.
- Lew Pheeney... É, tem razão. Ele descobriu o mistério das sete chaves e pagou-o com a vida. Sete chaves... sete vítimas. Silva e Lew Pheeney estão mortos... Quem será o terceiro na fila7
Olhando fixamente para a frente, ficou a pensar. Subitamente levantou os olhos;
- Por favor, mostre-me essas chaves!
Dick colocou-as na palma da sua mão estendida. A luz refletia-se na superfície lisa e nas pontas curiosamente denteadas.
Sneed balançou a cabeça e as devolveu a Dick
- E quanto ao gigante seminu, do qual me falou... Pode dar-me uma descrição mais precisa?
Dick acenou negativamente.
- As minhas mãos o conhecem melhor do que os meus olhos - disse. - Além da sua força descomunal, ele é ágil e escorregadio como uma enguia. Creio, porém, que posso assegurar-lhe uma coisa: ele segue ordens de outrem!
Nos olhos entrecerrados do inspetor reluziu um súbito interesse.
- Ah! De Staletti, não é? Ele se serve das vítimas das suas experiências!
Dick fez um aceno afirmativo com a cabeça. Houve uma pausa demorada, prenhe de palavras não pronunciadas e de revolta interior.
Com ar circunspecto, o inspetor tirou as conclusões finais:
- Obviamente, os garrafões de aço já se encontravam lá. Já o esperavam há mais tempo, Martin. Provavelmente não reconheceram Havelock de imediato e julgavam que você abrira o portão principal com uma gazua. Só assim se explica por que vocês foram encerrados na galeria. Usar gazua leva tempo, sobretudo neste caso, onde a fechadura só é acessível do lado de fora. Antes de conseguirem sair de lá, todos teriam morrido de asfixia. Aí surgiu Havelock ao seu lado e foi provavelmente reconhecido. A presença dele, com que não tinham contado, afugentou os sujeitos. E claro, isso são apenas suposições, mas acredito que elas não estão muito longe da verdade.
Ergueu-se com uma careta como se isso fosse um enorme esforço.
- E agora ao encontro de Staletti! Espero apanhar a aranha em sua teia!



Capitulo 16

A porta foi aberta de repelão. Um contingente de policiais à paisana derramou-se pela casa toda. Outros, uniformizados, vigiavam as portas e janelas do lado de fora.
Staletti lançou um olhar na direção dos agentes de Scotland Yard postados junto da escada. Um sorriso encrespou-lhe levemente os cantos da boca. O seu rosto era mais amarelento e sujo do que nunca, as faces pareciam mais chupadas, a barba mais desgrenhada. Ele vestia um comprido roupão e calçava chinelos de feltro esgarçado.
Sneed explicou-lhe em breves palavras o motivo da sua visita noturna e exibiu-lhe o mandato de busca e sua identificação.
Staletti fez um gesto magnânimo. -
- Lembro-me muito bem do senhor, inspetor. Permita-me que eu acrescente "infelizmente" - alongou o olhar para Dick. - Ah!... e ali remos também o cavalheiro que recentemente bateu à minha porta em busca de gasolina! Entrem, por favor! Não façam cerimônia!
Inclinou-se numa mesura exagerada e conduziu seus visitantes ao vestíbulo, que inundou de luz acendendo todas as lâmpadas.
- O que querem que lhes mostre, cavalheiros? O salão? Ou talvez a sala de jantar?
- O laboratório - retrucou, com uma ruga na testa, o inspetor Sneed, pois sentia o insultuoso escárnio do outro.
- Ah! Compreendo. É o templo da ciência que excita a sua curiosidade. A minha modesta casa está à sua inteira disposição.
Ele escancarou a porta para o laboratório. Sneed lançou um olhar desconfiado em direção à escrivaninha, coberta de folhas soltas, livros e revistas. Nada que pudesse suscitar suspeitas se oferecia aos olhos do inspetor.
- Deve haver outro laboratório - disse Sneed rudemente. - Pelo que sei, fica no andar superior. Leve-nos até lá.
Staletti deu de ombros.
- Como quiser. Também lá só encontrará provas de pesquisas e estudos sérios e inofensivos.
Voltou ao vestíbulo e indicou a escada. Havia três portas no corredor de cima. A primeira conduzia a um quarto cuja mobília, extremamente pobre, contrastava consideravelmente com a decoração do vestíbulo. Um lavatório sujo, um catre e uma poltrona puída, atendiam, bem ou mal, às necessidades do seu ocupante.
- A clausura de um homem dedicado à ciência - disse Staletti, em tom irônico.
À esquerda uma porta dava para outro aposento juncado de móveis de mau gosto que não combinavam entre si. Parecia o depósito de uma casa de penhores. A desordem reinante naquele cômodo era indescritível.
Num dos cantos havia um armário de aço com uma porção de gavetas.
Staletti, sempre observando Sneed pelo canto dos olhos, notou a curiosidade do inspetor. Acenou em direção ao armário.
- Querem saber o que há naquele armário? Vejam por si mesmos - disse, puxando uma das gavetas. Ela continha uma coleção de besouros exóticos. - Meu museu histórico-natural. É de aço por causa do perigo de incêndio.
Sneed contemplou superficialmente o brilho colorido das asinhas irisadas. Espiou nos cantos, mas não achou nada que lhe desse algum motivo para tomar medidas contra Staletti.
Com expressão soturna empurrou a porta do terceiro cômodo, um pequeno quarto que continha apenas dois colchões e alguns cobertores.
- O meu depósito de cacarecos - respondeu Staletti ao olhar inquisitivo do inspetor.
- Bem... e agora vamos ao segundo laboratório - insistiu Sneed.
Staletti anuiu com um aceno de cabeça. Subiram mais alguns degraus e, solícito, o médico italiano conduziu seus dois acompanhantes para outra porta, mais alta que as anteriores. Por trás dela ficava o laboratório que aparentemente fora acrescentado ao prédio em época mais recente. Duas janelinhas sobre o telhado forneciam a iluminação. Uma enorme estante cobria as duas paredes, em cujas prateleiras se alinhavam vidros de toda a espécie. Uma cômoda, sobre a qual havia um aparelho de esterilização, continha um amontoado de instrumentos cirúrgicos. No centro do laboratório estava uma mesa estreita e comprida, e sobre ela, numa confusão medonha, via-se um rato meio seccionado, com as quatro patinhas espetadas no tampo da mesa, além de um grande e valioso microscópio, alguns instrumentos de medida, uma porção de provetas, uma balança de precisão e uma garrafa cheia de um líquido vermelho tapada com um chumaço de algodão.
Sneed debruçou-se imediatamente sobre o rato. Staletti torceu a boca e as suas mãos crisparam-se como numa contração de raiva.
- É, inspetor falou com voz untuosa. - Aqui pode observar em primeira mão como um cientista passa as suas horas de lazer. O senhor freqüenta teatros de revista, os seus olhos deleitam-se com o espetáculo de lindas pernas de mulher. O cientista não, ele contempla os intestinos de um rato; o olhar dele vê nas dobras intestinais do bicho o mais belo sentido da vida. Não, não se preocupe... O rato já estava morto quando eu o cortei! - acrescentou depressa quando Sneed começou a tocar com as pontas dos dedos no corpinho do roedor, com ar desconfiado - As leis inglesas são mais fortes do que eu. Já não vivissecciono mais. Com o coração sangrando, eu desisti de palmilhar o elevado caminho do saber, porque o seu país assim o quer.
- Está muito loquaz hoje, senhor Staletti - observou Sneed numa voz rancorosa.
- É a alegria que me deixa assim, inspetor. A alegria de reencontrar gente. Passo semanas a fio sozinho nesta casa. Não ouço nada além do frêmito do vento pelas folhas das árvores e, de vez em quando, o ruído distante de um automóvel na estrada. E fico triste. Penso nos homenzinhos de peito chato que estão dirigindo os carros e cujos cérebros só servem para negócios enfadonhos; penso nas mulheres pintadas que só sabem flertar, fumar e jogar tênis. Como são todos escravos das suas insignificantes preocupações e míseros desejos! Eu não sou escravo de coisa alguma. Não preciso sequer de cozinheira, pois como carne crua, como o quis meu Criador quando me fez um ente carnívoro. Porém o senhor, inspetor, é diferente daquelas pulgas de estrada que me irritam com seu fedor de gasolina. E alto e é forte! Aproxima-se do meu ideal e é uma interrupção bem-vinda na minha solidão! É por isso que não paro de tagarelar... para ter o prazer de poder admirá-lo o maior tempo possível!
Sneed pôs fim ao palavrório com um gesto impaciente dos braços.
- Quem derme naqueles dois colchões no outro quarto? - perguntou, irritado.
- Ninguém - Staletti meneou a cabeça, admirado. - Eu já lhe disse, aquilo é meu depósito de cacarecos. Os colchões são colchões velhos, que não uso mais.
Subitamente os seus olhos acenderam-se de repentino brilho.
- Ah!... Agora compreendo! O senhor esperava encontrar aqui comigo alguns "pensionistas"! Certamente pensou: "Veja só, esse Staletti mora sozinho naquela casa isolada: deve existir alguma razão para isso. Pelo jeito, os três meses de cadeia não o curaram. Na sua cozinha de bruxo esse patife está novamente trabalhando para transformar miseráveis criaturas da degeneração humana em gigantes pré-históricos." Mas não é nada disso, inspetor. Coisas horripilantes assim podem soar muito bem em teoria, mas na prática...
- O senhor Martin escutou um grito horrível quando aqui esteve à procura de gasolina - Sneed cortou a interminável verborragia do médico.
- É verdade? Então ele não deve estar passando muito bem de saúde. Aliás, eu bem notei nele uma sobre-excitação nervosa.
- Ele foi atacado dentro do seu parque por um selvagem seminu. Chama isso de sobre-excitação nervosa?
- Mas naturalmente. O senhor não sabe como uma mente nervosa é passível de receber as mais estranhas impressões.
Sneed encarou Staletti bem dentro dos olhos, como se quisesse penetrar nos mistérios mais ocultos da sua alma. Staletti enfrentou o olhar com uma expressão zombeteira e sem pestanejar.
Sneed virou-lhe as costas sem proferir palavra e deixou a casa, acompanhado do séqüito de auxiliares. Staletti, da janela do seu quarto, seguiu com a vista a fila de viaturas policiais que lentamente se distanciava. Esfregando as mãos de contente, dirigiu-se ao laboratório contíguo. Fechou a gaveta... aliás a única que se podia abrir... e apertou um botão. Toda a parte anterior do armário girou, e na escuridão do fundo dois olhos piscavam, ofuscados pela luz repentina.



Capitulo 17

Na manhã seguinte, quando Dick entrou apressadamente no escritório de Havelock, encontrou este preocupado, com uma carta na mão, que havia chegado horas antes pelo correio
- Espero que meu telefonema não tenha sido inoportuno, senhor Martin - desculpou-se o advogado. - Não o teria incomodado por causa desta carta se os acontecimentos destes últimos dias não me tivessem deixado com a pulga atrás da orelha.
Estendeu a Dick a missiva de Lord Selford, escrita numa folha de papel que trazia o nome do hotel em Cairo onde Selford se hospedara.
Dick leu:
"Prezado Sr. Havelock: "Recebi o seu telegrama fazendo indagações a respeito do Dr. Cody e apresso-me a confirmar-lhe que, efetivamente, conheço Dr. Cody pessoalmente. Encontrei-o certa ocasião no estrangeiro e, por algum tempo, mantivemos uma animada troca de correspondência. Não compreendo por que ele nega conhecer-me, mas é possível que ainda esteja zangado comigo. Tempos atrás ele escreveu-me a fim de pedir um vultuoso empréstimo, alegando que na Inglaterra se sentia ameaçado por algum inimigo desconhecido e que tinha motivos para temer pela sua vida. Eu, porém, não acreditei. Achava que suas apreensões não passavam de um expediente e que ele apenas visava a induzir-me a fornecer-lhe a quantia solicitada. Em suma, recusei, e desde então nunca mais tive notícias dele,
"Aproveito a oportunidade para avisá-lo de que preciso, com urgência, de 25.000 libras. Envie este valor em moeda francesa, como encomenda com valor declarado, para o Hotel Pêra Palace, em Constantinopla. Logo após o recebimento deste dinheiro pretendo partir para a Romênia. Segundo ouvi dizer, pode-se adquirir lá extensas e valiosas propriedades a preço vil."
A carta terminava com algumas expressões de cortesia e trazia a assinatura "Pierce".
- Vai atender ao pedido? - perguntou Dick.
- Não tenho escolha.
Dick meneou a cabeça.
- É uma grande responsabilidade!
Havelock mordeu nervosamente os beiços.
- O que posso fazer7 Ele é maior de idade e meu cliente. Não tenho o direito de lhe negar o que quer que seja - deu de ombros, num gesto de impotência.
- Situação desagradável - observou Dick,
- É, sim Às vezes sinto vontade de largar tudo, O meu chefe de escritório, cujo critério muito respeito, já me aconselhou nesse sentido. Entretanto, é uma decisão que precisa ser estudada com cuidado, já que a administração dos bens rende anualmente cerca de cinco mil libras.
Dick embasbacou ao ouvir essa soma.
- A fortuna é tão grande assim?
- É uma das maiores da Inglaterra, e todo ano cresce mais um pouco.
- Sim, senhor! Então o jovem lorde deve levar uma vida bem mais folgada do que todos os seus colegas aristocráticos na Câmara dos Pares. Acaso seu pai descobriu algum tesouro?
Havelock sorriu.
- Sei que a sua pergunta é irônica, mas acontece que acertou em cheio. De fato, ele descobriu um tesouro, um tesouro inesgotável de diamantes negros. As suas minas de carvão em Yorkshire e Northumberland transformaram-se nas últimas duas décadas em verdadeiros filões de ouro. As suas terras na África do Sul e na Austrália valem hoje cem vezes o que ele pagou por elas. Mas vejo pela expressão do seu rosto que o senhor pensou num outro tipo de tesouro... moedas de ouro enterradas por trás das sete chaves, ou coisa que o valha. Não, senhor Martin, seja qual for o segredo que a porta oculta, tenho a certeza de que não será nada que possa ser transformado em dinheiro.
- O jovem lorde nunca teve vontade de abrir aquela porta?
- Não que eu saiba. John é um moço prático, que vive na realidade. Eu também nunca me interessei pela porta, e somente por causa dos incidentes de ontem ela agora me aparece numa luz meio sinistra. Mas como abri-la? Não temos as chaves, e Lord Selford jamais permitiria a sua demolição por explosivos. Ele respeita demais seus ancestrais para fazer uma coisa dessas. Entretanto, ouvi dizer que o senhor é muito hábil em abrir fechaduras. Que tal se usasse a sua arte para tentar abrir a vigésima primeira câmara mortuária?
- Impossível! Eu conheço minha capacidade e seus limites.
Havelock, concordando com a cabeça, pegou novamente a carta, com ar pensativo.
- E se o senhor fosse levar o dinheiro para Constantinopla? Dessa maneira não poderia deixar de se encontrar com Lord Selford!
Dick sacudiu a cabeça energicamente.
- Agradeço penhoradamente! Já chega de viagens.
- É. Lamento sua recusa, mas posso compreendê-la. Acho que é mais fácil apanhar o homem na lua do que Pierce.
Agora foi a vez de Dick de examinar a carta.
- Não seria possível tratar-se de uma contrafação?
- Absolutamente! Conheço a caligrafia de John e suas particularidades de estilo melhor do que... Bem, quase eu disse "melhor do que as minhas". Além do mais, uma vez ele escreveu uma carta na minha presença, diante dos meus olhos, e é a mesma letra.
- Existe também a possibilidade de que o senhor esteja sendo tapeado por algum sósia.
- Não, senhor Martin. O rosto estreito dele, os cabelos cor de areia, seus olhos com expressão absorta, a sua voz ciciosa, tudo isso junto não existe duas vezes. De mais a mais, ele tem um sinal de nascença no rosto, abaixo da orelha direita. Ainda que as outras coisas pudessem enganar a gente, este sinal seria um indicio seguro. Eu mesmo já pensei na possibilidade de um sósia, mas abandonei essa idéia por completo - Ele sacudiu a cabeça e acrescentou: - Ora, por que quebrar a cabeça por causa de Lord Selford? Perguntamo-nos se ele estaria sendo explorado por chantagistas: se está representando alguma comédia, por motivos desconhecidos; qual a explicação de tudo. Bem, o que eu acho é que o jovem fidalgo é apenas um inglês excêntrico com a ambição de gastar solas de sapatos e pneus.
Dick concordou com uma inclinação da cabeça. O seu olhar cravou-se mais uma vez na folha de papel com o emblema do hotel de Shepherd.
- Excêntrico ele é, sem dúvida - comentou com voz pausada, levantando os olhos. - Por exemplo, escreveu a carta com tinta verde...

Sybil Lansdown tinha dormido mal, Sentia-se nervosa, inquieta, muito agitada. Compreendia que entre ela e Dick se estabelecera um novo tipo de relacionamento e não sabia se devia alegrar-se com isso. Meio envergonhada, lembrou-se do momento em que repousara a cabeça no peito dele. Exprobrava a sua fraqueza de caráter, que era algo que não condizia com seu feitio moral. Como é que uma moça de educação moderna podia apavorar-se tanto por causa do simples estrondo de uma descarga elétrica, a ponto de perder seu pundonor e sentimento de respeitabilidade? Fosse como fosse, acontecera, e toda a sabedoria extraída dos livros da biblioteca não lhe fornecia nenhuma explicação razoável do seu comportamento. E subitamente, com o coração a pular, perguntou de si para si: era realmente necessária uma explicação científica para seu caso?
Era perto de meio-dia. Já não havia mais ninguém na sala de leitura. Os livros estavam todos nos seus lugares nas prateleiras. Tornara-se um hábito de Sybil aproveitar o sossego da hora do almoço para arrumar novamente as fileiras de livros.
Neste momento uma mulher magra atravessou a porta, espalhando um perfume ativo, que sobrepujava o acre odor das encadernações em couro. Do pescoço pendia-lhe um "lorgnon", preso numa corrente de ouro.
- Estou falando com a senhorita Lansdown? - perguntou com voz estridente.
Sybil fez que sim com a cabeça e levantou-se da cadeira.
- Vim aqui para tratar de um assunto muito delicado - explicou a mulher e aboletou-se cerimoniosamente numa cadeira. - Eu conhecia seu pai, senhorita Lansdown.
Descalçou as luvas, o que lhe deu ensejo para fazer faiscar os brilhantes dos seus anéis.
Sybil fitou a mulher com olhar perscrutador. Já à primeira vista achava-a antipática. Sentia que ela provinha de um meio inferior e que lhe faltava o gosto de desfrutar a sua riqueza de uma maneira distinta. Os dedos repletos de anéis, o perfume penetrante, a corrente por demais suntuosa, bastavam para imprimir-lhe o cunho da vulgaridade; as feições grosseiras e a boca ordinária eram apenas indícios adicionais.
Enquanto isso, a mulher palreava sem parar.
- Seu pai foi um homem excelente, minha filha, mas confiava demais nas pessoas. Falsos amigos se aproveitaram da sua ingenuidade e o abandonaram quando a canoa furou. Quantas vezes meu marido me disse: "Elisabeth, marque as minhas palavras, isso vai acabar mal!" E quando aconteceu o pior, o orgulho de seu pai não permitiu que ele procurasse seus verdadeiros amigos. Nós teríamos tido muito prazer em ajudar-lhe.
Sybil continuava fixando a mulher, cuja garrulice a incomodava.
- Não estou entendendo. Afinal, quem é a senhora? Que deseja de mim? Por que não se explica de uma vez?
- A sua felicidade, é o que desejo! Eu sou a senhora Cody - replicou a desconhecida.
Cody... Cody... Esse nome não lhe era estranho. Sybil enrugou a testa, mas não conseguiu se lembrar direito.
- Como já disse, estou aqui em seu próprio interesse - recomeçou a senhora Cody com ar meio ofendido. - Meu marido, naquele tempo, estava envolvido nos negócios de seu pai e também sofreu prejuízos. Agora acabou de receber certas informações que talvez possam servir de ponto de partida para a recuperação de uma parte da sua fortuna. - E batendo com o "lorgnon" na mesa - Foi uma grande injustiça, minha filha, deixar que seu pai respondesse sozinho pelas perdas da sociedade, Houve falcatruas, trapaças, de arrepiar os cabelos. Meu marido juntou provas, lemos a certeza de que, fundamentados nelas, existem boas chances para conseguir uma indenização.
Sybil sentiu-se tonta. Teve de sentar-se. Era verdade tudo aquilo? Era realmente possível que fosse verdade? E por que não? Durante os últimos anos da sua vida, particularmente depois da ruína da empresa, seu pai tinha lidado com gente muito estranha. Talvez Cody tivesse sido um dos prejudicados e efetivamente houvesse feito uma descoberta importante. Em todo caso devia ouvi-lo, sobretudo no interesse da mãe, que intimamente ainda lamentava a perda da fortuna, embora jamais se queixasse. Rapidamente tomou uma decisão.
- Não poderia eu falar pessoalmente com seu marido? - perguntou à mulher.
Era o que a outra esperara.
- Mas naturalmente, minha filha! E por isso que estou aqui, para convidá-la a tomar chá conosco. Meu marido faz questão de falar-lhe ainda hoje. "Elisabeth", ele disse, "pegue o carro, vá à Biblioteca Bellingham, e procure convencer a senhorita Lansdown a nos dar o prazer de sua visita. O assunto que precisamos discutir exige um lugar reservado." É por isso que vim. Asseguro-lhe que não foi fácil localizá-la. Mas o que a gente não faz quando se trata da filha de um velho colega!
- Fica longe onde moram? - inquiriu Sybil, interrompendo o novo fluxo de palavras.
- O que quer dizer longe quando se vai de automóvel! E não num fordeco qualquer, nada disso, mas num Rolls-Royce! - Ela rolou esta palavra na língua com uma expressão de gozo intenso. - Nós moramos em Sussex, à margem da Estrada de Londres. Chegaremos lá num instante.
Svbil lembrou-se que rodara na mesma estrada no dia anterior, em companhia de Dick Martin e do senhor Havelock.
- Está bem - disse. - Eu irei. Mas nós só fechamos às quatro horas. Não posso abandonar a biblioteca antes disso.
- Não tem importância, minha filha – apressou-se a senhora Cody a responder. - Farei algumas compras e a espero depois em frente da saída.
E despediu-se. A fragrância do seu perfume seguiu-a como um rabo de cometa.
Por alguns momentos Sybil quedou-se imóvel. A visita da senhora Cody evocara a figura do pai, a tristeza daqueles meses que antecederam à sua morte. Ela estava emocionadíssima. A monstruosa injustiça que seu pai sofrera ainda a abalava, Muitíssimo mais do que a fortuna perdida a magoava o infortúnio do pai.
Ela telefonou para a mãe a fim de comunicar-lhe à novidade. Ninguém atendeu. Lembrou-se então de que a mãe lhe dissera que pretendia passar o dia com uma amiga, e desligou. Em seguida discou o número de Dick Martin. Relutava em admitir de si para si que intimamente estava insegura e ansiava ouvir a voz vigorosa e confiante dele. Entretanto, também esta ligação não deu resultado.
Às quatro horas em ponto deixou a biblioteca. O carro já a esperava junto ao meio-fio da calçada, O chofer era um moço de libré. Ele cumprimentou-a com um sorriso, e diante desse sorriso franco e amável se dissiparam as suas últimas dúvidas.
Tom Cawler pôs o carro em movimento. O magnífico automóvel deslizava pela estrada suavemente, como que transportado por asas, a excelente suspensão de mola absorvendo todos os solavancos.
- Chegou a avisar sua mãe? - perguntou a senhora Cody, estendendo um cobertor de moiré sobre os joelhos da moça.
Sybil balançou a cabeça negativamente.
- Ela não estava em casa - respondeu com simplicidade.
- Suponho que neste caso disse a outra pessoa aonde iria, para que sua mãe não fique preocupada com sua ausência.
- Oh! - disse Sybil. - Não tem importância. Minha mãe está acostumada. Ela sabe que às vezes me encontro com amigas e me demoro.
A senhora Cody não falou mais nada. Sorriu interiormente, satisfeita.



Capítulo 18

- Então você é a filha do meu velho amigo! - Com estas palavras paternais Cody cumprimentou
a moça quando o carro parou em frente da varanda da sua casa.
Sybil fitou-o atentamente, procurando lembrar-se. Ela tinha quase certeza de que nunca antes tinha visto esse homenzinho careca.
- Não consegue se lembrar de mim? - perguntou ele.
Svbil sacudiu a cabeça negativamente, sorrindo como para pedir desculpas.
- Bem... - observou Cody. - Na verdade, não é de estranhar. Quando a vi pela última vez estava começando a ensaiar seus primeiros passinhos.
Ofereceu o braço à moça e conduziu-a para o interior da casa. A senhora Cody cravou-lhe um olhar irritado e ameaçador, mas ele preferiu não tomar conhecimento da carranca dela.
Na sala de estar deu a Sybil a poltrona mais confortável, e apesar dos alegres protestos dela colocou-lhe uma almofada macia atrás das costas.
A mesa estava posta e convidativa.
- O chá será servido já, já, filhinha. Deve sentir-se cansada depois de um dia de trabalho e mais essa viagem - fitou-a nos olhos.
Subitamente apareceu a senhora Cody à frente dos dois, como que emergida do chão. Cody, que naquele exato momento se inclinara sobre a moça, recuou, meio encabulado.
- Bertram - disse ela - posso falar-lhe por um instante? - E acrescentou com um sorriso adocicado para Sybil: - Dá licença?
Sybil, que adivinhava o que se passava com ela, quase não pôde suster o riso. Contentou-se em fazer um gesto cortês e conciliador.
Entretanto. Cody não tinha a menor vontade de ouvir um sermão. Fuzilou a esposa com um olhar irado.
- Seja o que for, creio que isso pode muito bem ficar para mais tarde - disse com frieza.
O rosto dela tornou-se apoplético. Ela tentou castigar o marido com um olhar aniquilante, e como não o conseguia, precipitou-se para fora da sala. Só restou dela o cheiro de flores murchas.
Imediatamente Cody ofereceu à visita um cigarro, e em breve a fumaça encobriu o odor do perfume.
No vestíbulo estava o chofer, ambas as mãos nos bolsos da calça, fazendo tilintar um punhado de moedas e assobiando baixinho. Quando a senhora Cody saiu furibunda da sala, ele girou nos calcanhares.
- Tia, quem é a moça? Por que o tio dança em volta dela como uma galinha em torno dos pintinhos? É tão ridículo!
Ela azedou-se.
- Você não tem nada com isso - retrucou com aspereza. - A sua curiosidade não está me agradando!
Ele fingiu não ter entendido a repreensão e insistiu.
- Ela tem uma cara bonitinha. Admira-me que você os deixa sozinhos.
- E melhor você ficar calado e guardar o carro
na garagem. E tenho outras instruções para você.
Tom Cawler encolheu os ombros.
- Para que toda essa pressa? Um provérbio de que eu gosto muito dia: "Devagar se vai ao longe". O que é que o velho está querendo dela? - com o polegar indicou a sala de estar.
- Como vou saber? - gritou a senhora Cody, e sua voz denotava uma raiva prestes a explodir.
Tom deu um longo assobio. Então era essa a situação. A raposa lá dentro caçava passarinhos por conta própria.
- Ela está com a chave? - perguntou, espaçando as palavras.
A senhora Cody encarou-o fixamente. Seus olhos se dilataram.
- O que é que você sabe a respeito das chaves?
Toni Cawler balançou a cabeça. Tornou a enfiar a mão nos bolsos, fingindo não ter escutado a pergunta.
- Não há ninguém nesta casa hoje - observou. - Pelo jeito, eu mesmo vou ter de preparar meu chá. A governanta e a cozinheira estão de licença, a arrumadeira está doente no hospital. Muito esquisito tudo isso, E que casal esquisito são vocês...!
Sem outro olhar para a tia, caminhou em direção à porta. Pousou a mão no trinco... mas subitamente voltou-se. A testa esticada para a frente, o queixo recolhido, perguntou:
- O que vocês estão tramando, tia?
A senhora Cody perdeu o controle que durante toda a conversa mantivera a muito custo.
- Cale a boca, Tom! Estou avisando, cale essa boca! - gritou com voz estridente. - E daqui em diante não sou mais a sua tia, ouviu? Sou a senhora Cody! Entendeu, patife? Você pode...
Calou-se abruptamente.
Tom Cawler virou-lhe as costas e saiu para levar o carro à garagem.
Havia sete anos que morava com a tia. Tinha um bom salário. Suas obrigações eram poucas. Muita gente o invejava. Desfrutava essa posição excepcional por saber de certos detalhes da vida dela, de fatos anteriores ao seu casamento com Cody Portanto, por que arriscar-se? Tinha já assistido a muitas coisas estranhas e sempre fizera vista grossa. Por que não agir da mesma forma agora? Mas ele não se sentia muito à vontade com essa maneira de pensar.
Ele tentou aparentar indiferença enquanto descia os degraus da escadaria. Subitamente, porém, estacou.
Ele tinha sido um ladrão, mesmo agora não respeitava lá muito as coisas alheias, porém não era um canalha. Entretanto, não se tornaria ele um canalha se cruzasse os braços, se permitisse a realização de uma canalhice?
O sangue subiu-lhe à cabeça, o coração pulsou-lhe mais depressa. Voltou a galgar a escadaria, correndo. Encontrou a tia na cozinha.
- A que horas a moça volta à cidade? - perguntou em tom belicoso.
A senhora Cody, de costas para ele, retrucou mal humorada:
- Ela vai ficar.
Tom mordeu os beiços; sem querer, os seus punhos se cerraram.
- É a vontade dela? - inquiriu, mudando para um tom ameaçador.
- Por que pergunta? Ela não é nem sua irmã, nem sua namorada.
- Fui eu quem a trouxe aqui - redargüiu ele, teimoso - e vou levá-la de volta. Não pense que eu me presto a tudo.. Até um ladrão tem uma noção de honra. Prefiro que me cortem a mão do que deixar que maltratem uma pobre moça indefesa. Dentro de uma hora eu vou tirar o carro e levar a garota para casa.
E saiu, batendo a porta com violência.
A senhora Cody despejou a água fervente no bule de chá. A sua mão tremia, seus lábios se crisparam, as veias se lhe ressaltaram nas fontes.
Passado algum tempo, levou o chá à sala de jantar, e logo se retirou.
Sybil ainda não desconfiava de nada. Ela acreditava que a senhora Cody se mantinha à distância por discrição. Até esse momento tudo que o seu anfitrião lhe dissera não passara de generalidades; ele só repetia coisas que Sybil já sabia. Ela começava a ficar impaciente, e finalmente fez uma pergunta mais direta.
Cody levantou-se, foi ao aposento contíguo e retornou com uma pasta azul, bastante volumosa. Bateu com o dedo indicador na capa.
- O resultado de muitos meses de investigações - disse. - Pode acreditar, filhinha, você não tem amigo melhor no mundo do que Bertram Cody. - Ele procurou os óculos e, como por acaso, reparou no relógio: - Meu Deus, já são seis e meia! É muito tarde para começarmos a examinar toda essa papelada.
Esfregou a testa. De repente teve uma idéia.
- Que tal se pernoitasse aqui?
- Não posso deixar minha mãe sozinha - retrucou Sybil secamente.
- Oh, nesse caso podemos convidar sua mãe também. Eu mando-lhe o carro; ela, decerto, estará muito interessada em tomar conhecimento das provas.
- Por que o senhor não se comunicou com minha mãe em primeiro lugar? - perguntou Sybil. De súbito começou a desconfiar que Cody talvez não passasse de um farsante.
- Eu sabia que até hoje sua mãe não se conformou com a morte do marido. Achei, por isso, que eu não deveria incomodá-la em sua grande dor com assuntos de negócio. Compreendo agora que foi talvez um erro excluí-la da nossa conversa. Mas isso posso remediar facilmente. Qual é o número do seu telefone?
- Nós íamos ao teatro esta noite - ponderou Sybil.
- Talvez seja possível devolver os ingressos e conseguir a restituição do dinheiro. Permita-me que, pelo menos, faça tal sugestão à sua mãe.
Sybil concordou com uma inclinação da cabeça. Podia dar seu consentimento sem perigo, pois sua mãe dificilmente estaria em casa antes das oito horas.
Cody desapareceu atrás do reposteiro. Decorridos cinco minutos, voltou radiante, esfregando as mãos de contente.
- Está tudo arranjado. O carro já está a caminho. Sua mãe concordou. Ela vai trocar os ingressos para outra apresentação.
Sybil fitou-o com espanto e franziu os lábios com frio desprezo, pois sabia que era mentira. Os ingressos para o teatro não existiam, eles tinham sido uma súbita idéia, um mero produto da sua imaginação, para terminar o mais rápido possível uma visita que absolutamente não lhe agradava. Ele, todavia, acreditara piamente na sua mentirinha de emergência. Obviamente, não houve telefonema nenhum. Era uma mentira descarada. A ligeira aversão que desde o começo sentira no subconsciente, subitamente se transformou em asco.
Mas por que a haviam atraído para este lugar, por que a retinham?
De repente o medo gelou-lhe o sangue. Perigo! uma voz interior a alertava. Perigo!
Sybil descontrolou-se apenas por um breve instante. Por alguns segundos seu coração pulsou descompassadamente, mas quando Cody tornou a olhá-la, ela já readquirira o controle.
- Fico muito contente por poder ficar - disse, admirada de conseguir falar com voz natural. - O senhor tem uma casa muito confortável.
- É, não é das piores - disse ele, com ar satisfeito, sentando-se junto dela. - É uma antiga propriedade feudal que ainda hoje pertence ao seu parente. Lord Selford. Eu a arrendei por intermédio do senhor Havelock.
- Conhece o senhor Havelock? - perguntou Sybil depressa.
- Não pessoalmente. Tratei do arrendamento e de outros negócios com o chefe de escritório dele. E você... você o conhece?
Sybil abanou a cabeça afirmativamente e disse algumas coisas elogiosas a respeito de Havelock. Em sua mente procurava febrilmente uma solução, uma saída. E se ela lhe pedisse que lhe mostrasse o parque? Uma vez fora da casa, poderia confiar na agilidade dos seus pés. Correria em direção à estrada principal e ao povoado mais próximo, que não podia ficar muito distante. Ainda ontem ela tinha passado pelo vilarejo.
O olhar dela cravou-se na janela.
- Que bonita vista! - sorriu e, reunindo forças para sustentar-se em pé, levantou-se e chegou até a janela, em frente da qual se estendia um canteiro de narcisos. - O senhor precisa mostrar-me seu belo jardim, senhor Cody. Eu sou uma apaixonada por jardins bem cuidados.
Cody sacudiu a cabeça.
- Está molhado, por causa da chuva. Os caminhos estão enlameados.
- Não faz mal - disse ela rindo, e aos seus próprios ouvidos o riso soava falso. - É justamente após uma chuva que eu adoro passear ao ar livre; quando tudo cheira a terra úmida e folhas frescas.
- Muito bem, se faz questão, vamos dar uma volta pelo parque. Mas antes eu gostaria de tomar mais um pouquinho de chá.
Despejou o chá na xícara. Depois, espiando dentro da xícara dela, exclamou:
- Mais você não tomou quase nada! Seu chá deve estar frio. Espere, vou lhe servir uma xícara quentinha.
- Não muito agradecida; não quero mais, realmente - recusou Sybil. Tornou para a poltrona. Quase não se agüentava em pé, e ela precisava de todas as suas forças para mais tarde.
Como fora ingênua de confiar nas palavras de uma mulher desconhecida! Sim, tudo soara tão convincente, mas não lhe tinham acontecido, nas últimas semanas, muitas coisas que deveriam ter-lhe servido de alerta?
Sentia a boca seca, seus pensamentos se embaralhavam. Novamente o senhor Cody lhe serviu chá. Desta vez ela não vacilou em aceitá-lo. Dominou seu nervosismo para evitar o tremor da mão, e levou a xícara à boca.
O chá tinha um sabor metálico. "É requentado", pensou, e depois de um gole descansou a xícara sobre a mesa. Talvez fosse a terrível tensão do momento que tornava seu paladar tão sensível.
- Aguarde um momento, só vou buscar o boné - disse Cody, erguendo-se. Sorriu e passou a mão pela cabeça. - Com esta careca, neste tempo úmido, estou sujeito a pegar um resfriado!
Sybil, emudecida, concordou com um aceno de cabeça. Uma sensação de náuseas paralisava-lhe a língua.
A porta, Cody virou-se mais uma vez.
O rosto de Sybil estava lívido; com olhar vítreo, agarrava-se à borda da mesa.
- Meu Deus, que está sentindo? - exclamou Cody.
Ela deslizou ao chão, desfalecida.
Arrastando-a e carregando-a, ele transportou a moça até o sofá, colocou uma almofada sob sua cabeça e contemplou-a com ar de triunfo. Em seguida deixou a sala nas pontas dos pés e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.



Capítulo 19

Cody encontrou o chofer na varanda. Sentado sobre o peitoril, bamboleando as pernas, fumava calmamente um cigarro; nem se deu ao trabalho de mudar essa posição displicente quando seu patrão se aproximou.
- Onde está minha mulher? - indagou Cody com voz irritada, rubro de indignação: mas não ousava dizer a Tom Cawler como desaprovava seus maus modos e sua falta de respeito.
- Não faço a menor idéia. Provavelmente no quarto dela.
- Suba e avise-a de que preciso falar com ela.
- Vá você mesmo, ora - retrucou Cawler de mau humor. Tirou o cigarro da boca e esmagou-o sob o calcanhar.
Somente a muito custo Cody conseguiu controlar sua raiva.
- Então dê um pulo até o povoado e traga-me uns selos postais. Tenho correspondência urgente.
- Nada feito. Vou ficar aqui mesmo e vigiar ai porta. Onde está a moça?
- Foi deitar-se. Ela teve um forte acesso de enxaqueca.
- Engraçado. Parecia muito bem disposta ao chegar Quando volta à cidade?
- Acho que somente amanhã, Tom. Enquanto isso, ela será nossa hóspede; um acesso como esse que ela teve pode durar até vinte e quatro horas. Eu vim para pedir à minha mulher para mudar a roupa de cama no quarto de hóspedes.
Tom Cawler não respondeu, mas seus olhos irradiavam uma ameaça. Debaixo desse olhar Cody se encolheu, e com o estardalhaço dos poltrões, gritou:
- Afinal, o que está fazendo aqui na varanda? Apanhando moscas? Vá para a cozinha, que lá é seu lugar! Não casei com você, casei com sua tia!
Tom Cawler enfiou as mãos nos bolsos. Jogando a cabeça para trás, soltou uma gargalhada.
- É verdade, e com isso fez uma grande tolice, teria feito melhor negócio desposando a avó do diabo!
Cody bufava de raiva.
- Como se atreve a falar desse jeito da sua única parenta próxima? Perdeu todo o respeito?
Cawler franziu os lábios e esticou o queixo para a frente.
- Oh, sim, sinto muito respeito... pela torpeza da sua mulher. Nunca em toda a minha vida encontrei alguém tão desumano e infame. Não me interrompa, Cody! Durante sete anos fiquei calado, mas agora chega! Minha tia e eu não descendemos de nenhuma família da qual pudéssemos nos orgulhar. Corre sangue muito ruim em nossas veias. Contudo, não obstante toda sua fortuna, eu não trocaria com a senhora Cody. Ela é avarenta como um dragão que na sua cova choca os seus tesouros. Nas suas mãos sujas o dinheiro gruda como piche. Ela é capaz de vender a alma ao diabo por um xelim. O que não faria em troca de uma fortuna!
Ele cerrou os olhos. Em seguida tornou a abri-los, e Cody recuou assustado ante o ódio que lhe reluzia no olhar.
- Ela acha que eu lhe devo gratidão. Gratidão por quê? Foi com fome e pancadas que ela me criou - ele riu feroz e estridentemente. - Você alguma vez ouviu falar no meu irmão gêmeo Johnny? Outra noite sonhei com ele, e desde então a imagem dele não me sai da cabeça. Ele era um garotinho de sete anos quando sumiu sem deixar vestígio.
- Quando morreu - corrigiu Cody à meia-voz.
- Será que morreu mesmo? A tia o afirma, mas eu não assisti à morte dele.
A sua respiração se tornara ofegante, uma ruga se lhe cravara na testa. Cody recuou até a porta e já levantava a mão para o trinco, quando Cawler deu um pulo e lhe obstruiu o caminho da retirada.
- Fique onde está e escute o que tenho para lhe dizer! Com meus próprios olhos eu vi a surra que ela deu no menino, sem motivo algum, até ele perder a consciência! Ele caiu ao chão como um saco de farinha. E você acha que morreu de morte natural? A sua mulher deve saber por que morreu, e o dia virá em que terá de responder por isso! Se ela fosse homem, eu saberia o que fazer: quebrava-lhe todos os ossos! Seria o ajuste de contas pelo o qual anseio há anos! E agora vou buscar o carro. Tome muito cuidado, Cody!
Bertram Cody seguiu-o com olhar fixo. O seu rosto estava pálido, os joelhos lhe tremiam, o medo aniquilara-lhe qualquer idéia de resistência. Parando no vestíbulo, enxugou o suor da testa. Em seguida subiu a escada para o primeiro andar e entrou, ofegante, no quarto da esposa. A porta fechou-se com estrondo atrás dele. Duas vozes começaram a discutir, uma esganiçada, a outra grossa e rouca. Algum objeto pesado caiu ao chão. A voz de mulher subiu de tom até tornar-se estridente e finalmente terminou em soluços. Seguiu-se um prolongado silêncio.
Decorrido algum tempo, a senhora Cody saiu do aposento. Os seus olhos estavam inchados de tanto chorar, suas feições desfiguradas, seus lábios apertados. Ela desceu silenciosamente a escada, e, detendo-se diante da sala de estar, reteve a respiração e aplicou o ouvido. Devagarinho, girou a maçaneta.
Sybil, sentada no sofá, apertava a cabeça entre as mãos e gemia baixinho. Os seus olhos tinham uma expressão vazia; era um olhar parado, apático. Ela parecia não estar bem consciente do que se passava à sua volta.
Sem dizer palavra, a senhora Cody agarrou-a no braço e puxou-a. Pôs uma das mãos debaixo da axila e com a outra foi empurrando a moça para a frente. Levou muito tempo para conseguir subir a escada até o andar superior, e mais ainda para galgar os degraus para o sótão.
Parando diante de uma porta tosca, empurrou-a com o pé. Largou Sybil em cima de um catre encostado à parede do cômodo, debaixo do telhado inclinado.
Sybil, de olhos cerrados, não deu acordo de si enquanto a senhora Cody passeava pelo pequeno quarto, mexendo aqui e ali A noite já descera quando esta deu volta à chave do lado de fora. O ruído dos seus passos perdeu-se nos fundos da casa.
Sybil não conseguiu lembrar-se de nada quando finalmente voltou a si, com a cabeça a estourar. As suas veias nas fontes e na testa latejavam de dor. Com um gemido sentou-se. Junto ao leito de ferro havia uma mesinha-de-cabeceira, e sobre ela um abajur que espalhava uma luminosidade mortiça. Ao lado do abajur estava um copo com água. Ela pegou o copo sofregamente e, descobrindo um vidrinho com alguns comprimidos de aspirina, instintivamente pôs dois na boca e tragou-os com um gole de água.
Depois ficou novamente deitada por algum tempo sem se mexer, sentindo o pulsar do sangue que ameaçava rebentar-lhe as veias. Aos poucos a intensidade das pulsações e do zumbido nos ouvidos diminuiu e de súbito dissipou-se a névoa que lhe turvara o cérebro. No espaço de um segundo lembrou-se de tudo que lhe sucedera. O medo apertou-lhe o coração ao se dar conta da sua situação desesperadora. Devagarinho aprumou-se. Entretanto, os seus olhos ainda não tinham readquirido plenamente a faculdade perceptiva, os ângulos entrecruzavam-se. Sucumbindo a uma sensação de vertigem, perdeu de novo os sentidos.
Entretanto, também isso passou. As distorções corrigiram-se, os objetos tornaram-se distinguíveis, e ela viu que se encontrava numa água-furtada. Um armário pesado de cor marrom, ocupava completamente uma das paredes. Havia uma jarra e uma bacia de louça sobre uma mesinha, além da cadeira junto do leito. Um velho tapete cobria o soalho.
Fazendo um esforço, Sybil saltou para o chão e, cambaleante, dirigiu-se para a porta cuja borda inferior terminava alguns centímetros acima do chão. Sacudiu o trinco; a porta estava trancada. Ela levantou os olhos para a janelinha no forro, que ficava tão alta que da teve de trepar na cadeira para tocá-la. Erguendo o abajur, iluminou a vidraça suja de poeira.
Levou muito tempo para abri-la. Quando finalmente o conseguiu, suas esperanças de encontrar uma via de fuga ficaram frustradas. Uma grade de ferro protegia o postigo do lado de fora, com barras tão apertadas que não dava nem para passar a cabeça por ali, portanto, não era possível sair.
De súbito parecia-lhe ouvir o ruído de pés subindo a escada. Apressadamente fechou a janela, pulou da cadeira e recolocou-a junto da cama. Do lado de fora alguém fez deslizar o ferrolho, enfiou a chave na fechadura e deu duas voltas.
Entrou Cody, trazendo nas mãos uma pasta de cartolina. A sua fisionomia denotava preocupação.
- Mas, filhinha - principiou a atravessar o umbral - Que susto nos deu! Esses seus acessos são freqüentes?
Ela encarou-o fixamente. Num relâmpago compreendeu as intenções dele.
- Acessos? Que acessos? - perguntou devagar.
- Bem... para não usar uma palavra mais rude - replicou, agora com alguma frieza na voz. - Eu não estou querendo culpá-la, absolutamente! Os filhos sempre pagam pelos pecados dos pais. Por acaso é hereditária a epilepsia em sua família?
O descaramento descomunal do obsequioso homenzinho a revoltou. Ela não respondeu.
- Naturalmente não posso afirmar tratar-se de convulsões epilépticas - prosseguiu Cody. - Para julgar isso, faltam-me os conhecimentos psiquiátricos. Contudo, acho que é epilepsia: senão como explicar as contorções e gritos sem qualquer motivo exterior?
Sybil fez força para dominar-se. Teve ganas de estrangular esse patife. "Calma, calma!" pensou consigo. Devia tomar cuidado para não piorar ainda mais a sua situação.
- Não me lembro absolutamente de contorções e gritos - disse, num fio de voz.
Cody descansou a pasta sobre a mesa e retirou dela uma folha de papel, balançando a cabeça com tristeza, como um mandarim chinês.
- Já esperava por isso... perda parcial da memória! Primeira fase da epilepsia, depois sobrevirão os acessos de fúria.
Sybil cerrou as mãos com tanto ódio que as unhas chegaram a ferir-lhe as palmas das mãos. Ela aprumou o corpo.
- Saia do meu caminho! - disse. - Quero ir-me embora daqui.
Cody postou-se diante da porta.
- Calma, minha jovem. Antes há algumas formalidades a preencher.
Sacando uma caneta-tinteiro do bolso do colete, pôs-se a desatarraxar cerimoniosamente a tampa. Em seguida alisou com a mão uma folha de papel.
- Ficará livre se assinar isto - disse, apontando o dedo para a folha sobre a mesa.
Ela estendeu a mão para o papel, mas ele rapidamente o recolheu.
- Espero que compreenda: - disse em tom professoral, sem encarar a moça de frente - que com a sua histeria me deixou numa situação embaraçosa e sumamente desagradável. Eu a convido para uma discussão importante, e logo às primeiras palavras você entra em convulsões e começa a gritar e a rolar no sofá. Eu carrego-a nos meus braços até este quarto e fecho a porta para protegê-la de si mesma. Uma mãe não poderia fazer mais pela própria filha. Até aí, tudo bem... mas minha mulher, com toda a razão, acha que mocinhas histéricas às vezes sofrem de estranhas alucinações. "Quem sabe" disse ela, "se a senhorita Lansdown não vai alegar que pusemos veneno no seu chá e que a retivemos aqui contra a sua vontade. Como poderíamos mais tarde nos defender contra semelhantes acusações? Talvez não acreditassem em nós!" Por via de regra os promotores têm a mania de esperar sempre o pior dos seus concidadãos. Peço-lhe, pois, que não me leve a mal se procuro prevenir-me contra tais possibilidades. Por isso redigi uma declaração que nos defenderá contra eventuais calúnias posteriores. Aponha-lhe sua assinatura, e meu carro a levará para casa imediatamente
- Mas o senhor não disse que minha mãe já vinha para cá? - perguntou Sybil, não podendo reprimir a vontade de desfechar-lhe essa bordoada. Mas Cody estava preparado para essa observação.
- Tornei a telefonar e pedi-lhe que não viesse mais - contestou habilmente. - O carro ainda não voltou, mas deve chegar a qualquer momento.
- Posso ler o documento? - perguntou ela.
- Para quê? É pura perda de tempo. Tenho pressa. Assine!
- Mandar que eu mesma ateste a minha insanidade mental, é exigir muito! - replicou ela, dando um passo para trás.
- Absolutamente não se trata disso. Só quero um documento assinado pelo seu punho declarando que não lhe foi causado nenhum mal; que, ao contrário, foi bem tratada durante a sua permanência nesta casa.
- Sendo assim, por que não posso lê-lo?
- Simplesmente porque nenhuma mulher consegue entender direito a fraseologia jurídica. Você não compreenderia uma porção de coisas, o que motivaria mal-entendidos e exigiria demoradas explicações. Vamos com isso, tenho o que fazer! Não posso ficar aqui esperando pelo resto da minha vida! Você já me causou muitos aborrecimentos. Minha mulher ficou tão nervosa que teve de se recolher ao leito. Preciso ir ao povoado e chamar o médico.
Com um gesto de impaciência estendeu a caneta para Sybil.
Ela aproximou-se da mesa e viu que era um documento extenso, datilografado. Ao notar a curiosidade dela, Cody, mais que depressa, cobriu o texto com a mão; com a outra indicou o lugar onde ela deveria assinar: Já se aprestava ela para fazê-lo, movida pelo desejo de obter a liberdade, fosse qual fosse o preço a pagar, quando conseguiu ler, entre os dedos da mão espalmada, a seguinte linha:
"Caso a referida Sybil Lansdown venha a falecer antes do referido Bertram Cody, a..."
- Não - disse, com calma e firmeza. - Eu tenho por princípio não assinar nada que eu não tenha antes lido e examinado.
Diante dessa resposta, caiu a máscara do seu anfitrião. O seu maxilar inferior mexeu-se sob a pele encarquilhada, seus beiços entreabriram-se, deixando à mostra os dentes amarelados, os olhos entrecerraram-se. Já não era mais aquele senhor jovial e bem-falante de horas antes; agora se transformara no malfeitor contumaz e incorrigível que não recua diante de nenhuma torpeza, por mais infame que ela seja.
- Assine, ou vai se arrepender! - gritou, fulo de raiva.
- Não assino. Não adianta insistir – respondeu-lhe ela com frieza.
Ele pegou a folha de papel e recolocou-a na pasta com um gesto irado.
Era o momento pelo qual ela esperara. Com um pulo alcançou a porta. A sua mão já tocava o trinco, mas neste momento ele agarrou-lhe o pulso e arremessou-a para trás, com tanta violência que ela se estatelou no chão.
Fitando-a com ar zombeteiro, ele já não se dava mais ao trabalho de fingir.
- Vai ficar aqui até amansar, benzinho. Posso esperar. Se você também o pode, é outro problema. Se a sua inteligência não lhe indica o único meio para salvar-se, a fome certamente o fará!
E fechando a porta atrás de si, deu volta à chave. O rumor dos seus passos esmoreceu à distância. Sybil estava sozinha.
Durante algum tempo sentia-se tonta e não conseguia refletir com clareza. Depois, controlando os nervos, tentou avaliar a situação. A esperança dela era Dick Martin. Ele era o único com quem podia contar. Ele, com toda a certeza, iria encontrá-la antes que a fome lhe minasse a resistência.
O mais importante no momento era inventar um meio para impedir Cody de penetrar no quarto enquanto ela dormia.
Ela tentou empurrar o armário contra a porta, mas achou-o pesado demais. Empurrou então a mesa e colocou em cima dela a jarra, bem debaixo do trinco que, desta maneira, não podia ser movido. Feito isso, exausta, no limite das suas forças, jogou-se sobre o colchão. O sono rodeava-a como uma pantera. Ela fez tudo para resistir. Desesperada, ela se pôs a relembrar poesias, o alfabeto, as quatro operações, sem sucesso. No meio de uma multiplicação, os seus pensamentos se confundiam e tudo se dissolveu num grande vácuo.
Ela acordou com um sobressalto, o coração batendo furiosamente. Apesar do sono profundo, o seu ouvido, seu fiel guardião, percebera um ruído de passos do lado de fora e o transmitira ao cérebro. Seria Cody novamente, para torturá-la, para insistir com ela? Bem, ela estava preparada; enfrentá-lo-ia com a cadeira. Venderia cara a sua vida. Entretanto, o ruído cessou. Por longo tempo tudo ficou em silêncio. De repente, porém, ressoou pela casa um baque surdo, como se um corpo tivesse tombado ao chão. Um homem começou a berrar, duas três vezes. Parecia que móveis estavam sendo desmantelados. Ela aplicou o ouvido, os nervos tensos, a mão apertada contra o peito, o sangue pulsando forte.
Agora outro grito, alto e pungente, como o de uma besta selvagem aterrorizada... um grito que gelava o sangue de quem o ouvia. E outro, mais baixo e gutural, impregnado de sofrimento e dor.
Sybil agarrou-se com ambas as mãos à barra da cabeceira da armação de ferro da cama, tão horrorizada que durante um momento quase desmaiou. Sentiu o seu coração se confranger e a testa gotejar de suor frio. Mas como os gritos não se repetiram mais, as suas pulsações voltaram lentamente ao normal.
Acercou-se novamente da porta para escutar melhor. Chegavam-lhe aos ouvidos, de longe, fracos soluços; depois tudo ficou em silêncio durante uns dez minutos, que lhe pareceram os momentos mais angustiantes passados naquela casa de terror.
Subitamente ouviu de novo o rumor de passos na escada e em seguida no corredor, bem em frente à porta. Coisa estranha... tratava-se de alguém que andava descalço. Agora os pés estacaram. Sybil escorregou devagarinho da cama, agarrou a cadeira com ambas as mãos e recuou até a parede oposta à porta. Cerrou os dentes para reprimir o grito prestes a irromper-lhe da garganta.
Do lado de fora, uma mão pousou no trinco e tentou abaixá-lo, o que não conseguiu graças às precauções tomadas por Sybil. Seguiu-se outro momento de silêncio, só quebrado pela respiração alterada da moça. Depois duas mãos martelaram a porta, que estremeceu, mas não cedeu. Fosse quem fosse que tentava invadir o quarto, ele não possuía outra ferramenta senão os próprios punhos.
Ela ouviu um barulho à altura do chão e baixou os olhos com um sobressalto. No momento seguinte, com os olhos espavoridos, levantou a mão à boca para sufocar um grito de pavor. Entre a porta e o soalho apareceu o dedão deformado de um pé de gigante. Em seguida surgiram três dedos de uma mão ensangüentada, e depois duas mãos assassinas agarraram a porta por baixo no intuito de arrancá-la das dobradiças. Diante disso, toda a idéia de resistência parecia inútil a Sybil. A sua boca abriu-se num prolongado grito de desespero. Era preciso fugir! Fugir!
Pulou em cima da cadeira. Neste momento de pânico só a dominava um pensamento confuso: saltar pelo postigo que dava para o telhado. Esquecera-se da grade que vedava a passagem. Mas assim que seus dedos tocaram a tranqueta, recuou e apertou as mãos contra a boca, apavorada. Por trás das barras de ferro apareceu um rosto desfigurado que a espreitava... um rosto lívido, reluzente de suor.



Capítulo 20

O inspetor Sneed, que compartilhava a opinião de Dick Martin de que os inimigos desconhecidos do detetive não ousariam levar a cabo outro atentado depois do malogro da primeira tentativa, retirou o policial que havia destacado para guardar o apartamento de Dick, de modo que este, ao voltar tarde da noite, achou seus aposentos estranhamente vazios. Durante a tarde estivera na biblioteca, supostamente como leitor, na verdade, porém, porque sentira saudade de Sybil. Ficara muito desapontado quando a colega de Sybil lhe dissera que uma senhora tinha vindo buscá-la de automóvel.
Ele pegou um livro e pôs-se a ler, mas não conseguia concentrar-se na leitura. As letras se embaralhavam diante dos seus olhos formando o nome "Sybil", e seus pensamentos giravam em volta do mistério das sete chaves em que ela estava de alguma forma envolvida.
Finalmente sentiu sono. Levou o telefone para o quarto e foi-se deitar. Durante alguns minutos lembrou-se do monstro que por pouco não o estrangulara na cama e um arrepio percorreu-lhe a espinha.
Ele fechou os olhos e ficou meio acordado, meio adormecido, num estado de semi-consciência.
Sentou-se na cama com um sobressalto. O telefone tilintava com insistência, bem junto do seu ouvido. Ele pegou o receptor, e com a outra mão acendeu a luz.
- Alô - falou.
- Interurbano. Queira aguardar - respondeu uma voz de mulher.
Ele ouviu alguns estalos na linha, depois tudo ficou em silêncio. Mas, de repente...
- So... cor... ro! As... sas... sino! So... cor... ro! - gritava alguém, e novamente: - So... cor... ro! Querem me matar!
A mão de Dick que segurava o fone, começou a tremer. Alguém precisava da sua ajuda. Mas aqui estava ele sem poder fazer nada, a grande distância do lugar onde alguma coisa terrível estava acontecendo.
- Quem está falando? - perguntou com voz rouca.
Ninguém respondeu.
- Quem fala? – ele elevou a voz. - Pelo amor de Deus, responda! Senão, como posso ajudar-lhe?
A resposta foi um grito, uma pancada surda, um longo gemido.
- Quem é? - gritou Dick, sacudido pela emoção. - Quem é? De onde está telefonando?
Subitamente voltou a voz. Ela balbuciou uma palavra. A palavra transformou-se num grito de angústia mortal, que se extinguiu em soluços.
Depois a voz se distanciava, como que sendo afastada do aparelho à força, e só chegava aos ouvidos de Dick muito enfraquecida:
- Não me toquem! Tenho relações... com a polícia! Eu denuncio vocês! So.. cor... ro! So... cor... ro!
Um estampido interrompeu os gritos.
Dick deu pancadinhas na forquilha do aparelho. Após alguns segundos, que lhe pareceram uma eternidade, respondeu a voz da telefonista interurbana.
- A senhorita pode verificar de quem foi a chamada?
- Creio que veio de Sussex. O senhor tem alguma razão especial para pedir uma verificação?
- Uma razão especialíssima. Foi um pedido de socorro. Alguém, que me conhece, está sendo atacado e parece encontrar-se em perigo de vida.
- O seu nome, por favor.
- Dick Martin, de Scotland Yard.
- Seu número de telefone?
Dick forneceu o número.
— Obrigada. Queira desligar agora. Nós voltaremos a chamá-lo.
Dick Martin descansou o fone e saltou da cama. Ele sabia distinguir a mentira da verdade e tinha plena certeza de que, neste caso, a pessoa que lhe havia telefonado estava ameaçada de morrer. Se bem que a voz não lhe parecesse de todo estranha, não conseguia identificá-la. Quando calçava os sapatos, o telefone tornou a tocar.
- Aqui o serviço interurbano. O chamado veio de South Weald, Sussex.
Dick ficou um momento como que petrificado. Letras acenderam-se à sua frente como num anúncio luminoso, formando a palavra "Cody".
Cody era o arrendatário de South Weald House e tivera uma conversa com ele. Decerto esperara que as suas relações com o temido detetive pudessem deter os assassinos, mas essa esperança frustrara-se. O seu grito de morte testemunhara isso de um modo sinistro.

Dick precisou de alguns segundos para acalmar-se; depois deu à telefonista do serviço interurbano as necessárias explicações e pediu-lhe que informasse o posto policial mais próximo de South Weald House do que estava ocorrendo.
Em seguida discou o número do inspetor Sneed. Ele podia ajudar. A questão era tirá-lo do sono. O tilintar da campainha de telefone talvez não fosse bastante alto para acordá-lo.
Para seu espanto, Sneed atendeu imediatamente.
- É você, Martin? Mas será possível? Está interrompendo a minha melhor partida de bridge. Estou "limpando" alguns colegas do quartel-general. Eles são verdadeiros bebês... - ergueram-se, ao fundo, algumas vozes de protesto. - Que é que há, vocês acham que entendem mais de bridge do que uma criancinha de chupeta?
Dick perdeu a paciência.
- Pare com essas bobagens, Sneed. Trata-se de um assunto urgente. Cody me telefonou. Ele estava sendo atacado. Há assassinos na casa dele!
E explicou como ficou sabendo disso.
- Isso não está me cheirando bem - disse Sneed, subitamente sério. - Vamos até lá! Vou chamar um táxi.
- Não, eu vou buscá-lo. Com meu carro será mais rápido.
- Está bem. Martin. Nós vamos ao seu encontro. Espere por nós debaixo do viaduto. O inspetor Elbert e o sargento Staynes irão comigo.
- Ótimo. Vamos precisar de gente, receio.
Dick desligou, satisfeito com a ajuda que acabava de conseguir. Apanhou a capa e precipitou-se para a porta. Quando a abriu, recuou, espantado. Uma mulher de rosto pálido estava erguendo a mão para o botão da campainha.
- Senhora Lansdown! - exclamou Dick. Sybil! Sentiu um frio correr-lhe pelo corpo.
- Não sei mais o que fazer - queixou-se ela. Minha filha desapareceu.
- Faça o favor de entrar - disse Dick, com o coração batendo descompassadamente. - Conte-me o que aconteceu, com todos os detalhes. Cada pormenor pode ter importância.
A senhora Lansdown não tinha muito para relatar. Ao chegar em casa, por volta das oito horas, Sybil não estava. Até as dez ela não se preocupara com isso. Então resolvera telefonar para a amiga que Sybil às vezes visitava depois do expediente. Esta não a tinha visto havia dias. Um segundo e um terceiro telefonema, para outras conhecidas, também não deram resultado. Mais tarde conseguira falar com a colega de trabalho de Sybil. Esta lhe fornecera finalmente uma pista. Uma mulher desconhecida convidara Sybil para um passeio de automóvel. Quem era essa mulher? A mãe não conseguia atinar. A meia-noite Sybil continuava sumida.
Dick escutou com toda a atenção, procurando disfarçar a sua aflição.
- Essa colega forneceu-lhe uma descrição da mulher?
A senhora Lansdown acenou afirmativamente e deu-lhe algumas indicações. Antes de terminar, o coração de Dick quase parou. Ele conhecia essa senhora ossuda, perfumada, que a princípio tomara por uma governanta simplória. Era a senhora Cody.
- Meu Deus, o senhor sabe alguma coisa?
- Dentro de duas horas saberemos de tudo - respondeu Dick, fingindo calma. - Quer esperar aqui mesmo, até eu lhe telefonar?
- Não, não! Acho melhor voltar para casa. Afinal, é possível que o desaparecimento de minha filha fique explicado de um momento para outro. Ela pode chegar em casa e ficaria muito assustada se não encontrasse ninguém. Mas vá, senhor Martin, vá! Não se preocupe comigo. Eu me arranjo sozinha, meu carro está me esperando em frente do prédio.
Não havia um minuto a perder. Dick seguiu-lhe o conselho e desceu a escada antes dela. Abriu a porta da garagem, pulou dentro do carro e partiu. Sentiu-se um pouco melhor ao escutar o ruído do motor e as rodas rolarem pelo asfalto. Cada segundo o aproximava agora do local dos acontecimentos.
Debaixo do viaduto da estrada de ferro três vultos agasalhados o esperavam.
- Entrem, depressa! - gritou-lhes Dick.
Sneed sentou-se ao lado dele.
Dick ficou de olhos fixos na rua deserta, iluminada pelos faróis.
- A senhorita Lansdown desapareceu - disse entre os dentes. - Eu receio...
Calou-se por um momento para fazer uma curva fechada.
Com a pista novamente livre à sua frente, expressou em palavras secas os seus terríveis temores. Em seguida permaneceu calado por algum tempo, com os lábios apertados.
- A esta altura a polícia de Sussex já deve estar em South Weald - comentou afinal, e a sua voz exprimia ao mesmo tempo esperança e dúvida
Sneed sacudiu a cabeça.
- Se eu fosse você, não contava com isso, Martin. Você nem imagina como é atrasada a organização policial nos distritos rurais. É bem possível que o posto mais próximo nem possua telefone, ou, se possuir, que o aparelho esteja quebrado; ou então, que o posto local de serviços telefônicos não esteja funcionando a esta hora, porque fecha às dez. Mesmo admitindo que a polícia recebeu a comunicação, é pouco provável que o policial do povoado vá saltar da cama e tomar providências. Ele cinge-se rigorosamente ao regulamento e só vai agir se o pedido de socorro for formalmente confirmado. Nem nós sabemos ao certo se Cody falou a verdade. Quem sabe, talvez queiram apenas armar-lhe uma cilada?
Dick não pôde responder imediatamente, pois um pesado caminhão vinha em direção contrária.
- Não - comentou afinal. - Não foi uma farsa. Não foram gritos simulados.
Durante o quarto de hora seguinte guardaram silêncio.
- Não estamos aqui perto do tal "Átrio do Patíbulo"? - indagou Sneed subitamente, pondo a cabeça para fora do carro.
- A esquerda - confirmou Dick.
O muro em ruínas surgiu da escuridão, iluminado pela luz crua dos faróis. O portão pendia dos gonzos mais torto do que nunca. As árvores erguiam-se contra o céu, recortadas pela lua. Logo a seguir tudo isso afundou novamente no abismo da noite, o carro continuou avançando em alta velocidade.
- Um fantasma, uma sombra, toda essa história Selford - observou Sneed, com ar meditativo. - Quando a gente pensa que vai agarrar alguma coisa, a mão se fecha num vácuo. - E após pequena pausa acrescentou; - Gostaria de saber se ele tem culpas no cartório.
- Ele! quem? - perguntou Dick.
- Ora, o lorde! Por que ele viaja sem parar em torno do globo terrestre, como um segundo judeu errante? Para escrever um livro? Para conhecer povos e países? Não me venha com essa! Todo jovem par do Reino tem o desejo natural de brilhar, antes de tudo, na própria Inglaterra. Se ele fosse um inofensivo "globetrotter", que interesse poderia ter ele de evitar qualquer investigação a seu respeito mediante constantes mudanças de endereço? Lembre-se que você foi atrás dele durante oito meses e nunca conseguiu vê-lo cara a cara.
- Ele não, é verdade, mas seu retrato, sim.
Sneed teve um sobressalto. A luz do painel Dick notou-lhe o olhar cintilante.
- Mil raios! E só agora me diz isso?
Dick continuou impassível.
- Que valor tem um simples retrato?
- Não diga uma coisa dessas! Tendo o retrato, a gente tem a pista do criminoso, e metade do trabalho está feito.
- No caso presente, se realmente se trata de um criminoso, ele pertence à mais alta nobreza da Inglaterra.
Com um gesto, Sneed deu a entender que pouco se importava com isso.
- Conte-me - insistiu. - Como foi que conseguiu o retrato? Foi Havelock quem lhe deu a foto?
- Não - replicou Dick. - Foi graças a um feliz acaso. Lord Selford encontrava-se na Cidade do Cabo quando o novo Governador Geral chegou para tomar posse. Por curiosidade ele foi à sacada do seu quarto de hotel, justamente no momento em que um fotógrafo de jornal bateu a chapa. Quando, três dias mais tarde, pedi ao porteiro do hotel que me fornecesse uma descrição de Lord Selford, ele me mostrou a foto publicada no jornal. Eu me dirigi imediatamente à redação, pedi o negativo emprestado e mandei fazer uma ampliação.
- E que tal ele? - perguntou Sneed, retendo a respiração.
- Uma cara comum - foi a resposta insatisfatória de Dick. - Acontece, porém, que tive a impressão de já tê-la visto antes em algum lugar.
Calou-se, concentrando-se no volante. Tinham chegado ao povoado de South Weald. As pacatas casinhas à margem da larga estrada que atravessava o bucólico lugar dormiam no silêncio da noite. O luar refletia-se nas vidraças das janelas escuras. Vez por outra um cão latia.
O automóvel deteve-se diante do prédio da polícia local que, atrás de uma janela com grades, abrigava uma minúscula cela para presos. Pancadas na porta e muitos gritos, e finalmente a cabeça desgrenhada de uma mulher, ainda meio tonta de sono, assomou à janelinha da água-furtada.
Não, ela não sabia de nenhum chamado de socorro. O marido havia saído ao meio-dia com o guarda florestal, em busca de caçadores clandestinos. O posto não possuía aparelho telefônico. Para quê? Desde tempos imemoráveis nunca tinha acontecido nada que pudesse justificar a despesa de semelhante invenção. Mas ela teria muito prazer em transmitir ao marido qualquer recado que lhe dessem.
Aparentemente os agentes da polícia londrina não a impressionavam muito.
Sneed encarou Dick com ar de triunfo, pois mais uma vez tivera razão. Fez comentários que se perderam no ruído do carro que arrancou e correu velozmente pela estrada, freando bruscamente diante da entrada de automóveis de South Weald House.
Dick pôs-se a premer a buzina em intervalos regulares, mas ninguém apareceu. Finalmente apeou e examinou o portão. Só estava fechado por um velho ferrolho corrediço. Dick empurrou-o e o portão abriu-se devagarinho. Ele enganchou as duas batentes e voltou ao volante. As rodas do carro crepitavam no saibro do caminho. Subitamente surgiu diante deles a fachada de casa com a escadaria e o pórtico.
O automóvel parou. Quatro pares de olhos perscrutaram a fachada.
Nenhuma das janelas estava iluminada. Um silêncio total envolvia o prédio.
Dick puxou a campainha, cujos sons alegres retiniram no interior. Esperou um minuto. Tocou pela segunda e terceira vez, sempre com o mesmo resultado negativo. O seu ouvido apurado não escutava um só ruído.
Em seguida todos juntos martelaram a porta com os punhos, e depois se puseram a atirar pedrinhas contra as janelas do andar de cima. Mesmo assim, nada se mexeu.
- Se não querem abrir, vamos ter de quebrar alguma vidraça - disse Sneed, relanceando o olhar pela fachada. As janelas do andar térreo estavam todas guarnecidas de grades.
Dick apontou para duas janelinhas decorativas sem grades, que ladeavam o portal de ambos os lados.
Sneed fez um aceno negativo com a cabeça.
- Quem conseguiria passar por ali?
- Eu - retrucou Dick laconicamente.
- Você? - o inspetor mediu-o da cabeça aos pés. - Se fosse um garotinho de cinco anos, eu ainda admitia essa possibilidade, mas assim... ?
- Quer apostar? - perguntou Dick.
Voltou correndo para o automóvel e mexeu na caixa de ferramentas. Tornou com uma chave de fenda. Raspando a tinta do caixilho, desaparafusou este. Decorridos uns cinco minutos, conseguiu retirar a vidraça incólume. Ajudado por Elbert e Staynes, enfiou o corpo pela abertura. Contorcendo-se como uma cobra, contraiu os ombros, e ao sentir o chão debaixo dos pés, recolheu a cabeça com cuidado. Afora um arranhão na orelha, não sofrera nenhum dano.
Sneed assistira a tudo de boca aberta.
Uma vez dentro da casa, Dick endireitou o corpo e levantou os olhos, procurando perscrutar a escuridão. Ouvia-se o tique-taque cadenciado de algum relógio de parede. Era como o coração batendo ainda num corpo já sem vida. Dick dominou o terror que o assaltava das negras trevas da casa como uma fera e pôs-se a avançar lentamente, tateando o caminho.
De repente teve um momento de recuo. Um cheiro peculiar ferira-lhe o apuradíssimo olfato. Ele sacou e acendeu a lanterna de bolso. Uma corrente e dois ferrolhos fechavam a porta. Ele abriu-a, tirando a corrente e empurrando os ferrolhos.
Trocando um olhar com Sneed, disse:
- Os facínoras já fizeram seu trabalho aqui. A casa toda cheira a sangue!
- A sangue? - perguntou Sneed, aspirando o ar pelas narinas. - Não sinto cheiro nenhum!
Fitou com ar desamparado os colegas, que relanceavam olhares apavorados em torno. Entrementes, Dick tateava em busca de um interruptor. Acabou descobrindo uma chave geral e abaixou a alavanca. Uma lâmpada acendeu no vestíbulo, outra iluminou o patamar da escada. Onde ficavam as demais lâmpadas ligadas à chave ainda não se sabia.
Os olhos dos homens vasculharam o vestíbulo e a escada que conduzia ao primeiro andar. Abruptamente. o inspetor Sneed agarrou o braço de Dick.
- Quem... quem... - gaguejou, olhando fixamente para cima.
Quando Dick seguiu-lhe o olhar, pôde distinguir, agachado por trás do corrimão da escada, a sombra de um vulto humano que, com os braços apoiados nos joelhos, os espreitava, sem se mexer. No primeiro momento Dick não tinha nenhuma explicação para aquela aparição sobrenatural e seus olhos se arregalaram: mas a compreensão veio logo, e ele sacou o revólver. A lâmpada do primeiro patamar estava afixada na parede a pouca altura do chão e se achava às costas do vulto acocorado, de modo que sua sombra se projetava em tamanho normal e sem distorção sobre a parede oposta.
Dick subiu a escada correndo. A sua sombra o acompanhava, sumiu por um instante e reapareceu nitidamente ao lado do vulto imóvel.
A sua voz soou fraca e apertada:
- Venha até aqui, Sneed.
O inspetor subiu um pouco mais devagar. Ao atingir o primeiro patamar, voltou-se. Outra série de degraus conduzia à escuridão do andar superior. Todavia, ele não deu mais nenhum passo. Ficou parado como que petrificado.
Lá de cima, uma cara branca com as pupilas horrivelmente reviradas o encarava fixamente. Era o rosto ossudo de uma mulher envelhecida, vestida de preto. Nas suas feições havia a expressão de um pavor tão intenso, como se ela tivesse visto a máscara de Medusa.



Capitulo 21

- Morta, não é? perguntou Sneed ao amigo, subindo com passos pesados os últimos degraus.
Dick acenou a cabeça afirmativamente. Sneed inclinou-se e descobriu o que mantinha o corpo da mulher tão ereto. Ela estava ajoelhada sobre uma arca acolchoada encostada ao corrimão e premera o corpo contra a balaustrada de modo que o afrouxamento dos músculos não alterara a posição dos membros; apenas a cabeça derreara sobre o peito.
Com cuidado deitaram a mulher no chão e a examinaram. Em lugar algum encontraram sinais de violência, mas todo o calor já lhe fugira das veias.
- Ataque cardíaco - concluiu Sneed. - Por susto, provavelmente. Já vi outros casos destes. A mulher deve ter ouvido ou visto alguma coisa horripilante.
- O que é isso que ela tem na mão? - perguntou Dick subitamente, e separou os dedos da morta.
Um objeto duro caiu ao chão com um leve som metálico. Dick apanhou-o.
- Sneed! - exclamou, erguendo algo prateado na meia claridade da luz.
Sneed olhou fixamente para sua mão.
- A terceira chave para a porta subterrânea - disse Dick baixinho, sua voz tremendo de excitação
Sem dizer nada, os dois trocaram um olhar. Estavam eles diante da solução, ou era aquilo apenas mais uma etapa ?
Dick enfiou a chave no bolso. Notando que Sneed examinava a parede em busca de fios, perguntou:
- Está querendo descobrir onde se encontra o telefone? Eu sei, pois eu o vi quando aqui estive pela primeira vez. Está na biblioteca, pegado à sala de estar.
Nenhum dos dois tinha a coragem de pronunciar o nome Cody.
Dick já fazia menção de descer novamente a escada, quando sua mão, que deslizava pelo corrimão, de repente se contraiu.
- Meu Deus, veja ali!
Apontou para a passadeira cinza-escura que forrava os degraus. No círculo luminoso da lâmpada via-se uma mancha sinistra.
O que era aquilo?
A impressão vermelha de um pé descalço!
Dick inclinou-se e tocou a mancha com o dedo.
- Sangue - disse, com voz rouca. - Meu olfato não me enganou, afinal. O pé deve ter pisado numa poça de sangue. A passadeira está ensopada.
Eles encontraram outras pegadas iguais nos degraus inferiores, e quanto mais perto chegavam do pé da escada, mais nítidas elas se tornavam.
- Ele subiu a escada de dois em dois degraus, às vezes até de três em três - concluiu Dick. - Se olharmos bem, vamos encontrar a trilha também no vestíbulo.
O assoalho do vestíbulo consistia em tábuas lisas envernizadas, cobertas de tapetes da Pérsia de tonalidade vermelha-escura, sobre os quais se tornava difícil distinguir manchas. Contudo, procedendo a um exame minucioso, acharam também aqui as pegadas sinistras. Elas conduziam para uma porta cujo trinco não conseguiram mover.
- Uma fechadura de mola - explicou Sneed. Engata automaticamente quando a porta é fechada.
- O que haverá no aposento do lado oposto?
Foi fácil abrir aquela porta. Uma claridade ofuscante fez os homens pestanejarem. Desconfiado, Dick contraiu as sobrancelhas, mas logo se lembrou de que ele mesmo havia ligado todas as luzes da casa ao mexer na chave geral.
A peça servia, obviamente, como sala de jantar. A mesa de refeições estava vazia, as cadeiras alinhadas. Um telefone estava sobre o aparador.
Retornaram para a porta fechada. Era ela que revelaria o mistério.
Dick levava no carro, entre outras ferramentas, um macaco. Este resolveu o problema, depois que falhara também o pé-de-cabra. Colocando-o sobre a mesa comprida do vestíbulo, enfiou a alavanca, e a porta foi arrombada.
Dick viu à sua frente a biblioteca aonde a senhora Cody o conduzira por ocasião da sua primeira visita. Também aqui as lâmpadas do teto estavam acesas. O olhar de Dick dirigiu-se para a escrivaninha. O fone pendurava do fio, encostado ao chão. Com dois pulos Dick penetrou no aposento. Sneed seguiu-o mais devagar.
Neste momento todas as luzes se apagaram. Novamente viram-se rodeados de trevas.
- Alguém mexeu na chave? - gritou Sneed em direção ao vestíbulo.
- Não. senhor - respondeu a voz respeitosa do sargento Staynes, que montava guarda junto da porta.
Dick premeu o botão da sua lâmpada de bolso e dirigiu o feixe de luz para o chão. No centro da peça estava, colocado obliquamente, um enorme sofá de couro. Contornando-o, a luz da pequena lâmpada incidiu sobre uma figura humana encolhida que não se movia mais.
Era Bertram Cody, e a morte havia-o alcançado de maneira horrenda. Estava deitado com os joelhos dobrados e a espinha curvada. A sua cabeça pousava numa poça de sangue coagulado. A abóbada craniana havia sido completamente esmagada por meio de violentos golpes.
Puseram-se a procurar a arma com que os golpes tinham sido desfechados e encontraram um pesado tiçoeiro junto da lareira, manchado de sangue.
Todas as gavetas da escrivaninha estavam abertas e vazias. O assassino não deixara nenhum papel. As portas dos armários de livros estavam escancaradas, os livros espalhados no chão. Também aqui alguém, obviamente, procurara documentos comprometedores.
Sneed calçou um par de luvas brancas, de algodão, que sempre trazia consigo, levantou com curiosidade o tiçoeiro e depositou-o sobre a escrivaninha. Depois confabulou com o inspetor Elbert, que em seguida se dirigiu à sala de jantar para telefonar.
- Ele está falando com a Scotland Yard - esclareceu Sneed ao amigo. - As impressões digitais no tiçoeiro devem ser fotografadas sem demora. Além disso, precisamos da assistência da polícia local, o caso é muito mais grave e complicado do que eu imaginava.
Com a ajuda da lâmpada de bolso eles esquadrinharam todas as paredes e acharam finalmente uma porta que dava para uma arejada copa. Aqui, pelo jeito, servia-se o desjejum, pois em cima de um delicado aparador havia um aparelho para esquentar comida e uma torradeira.
- Uma coisa está certa - Dick resumiu o resultado das suas investigações. - Cody telefonou-me no momento em que se viu atacado. A senhora Cody atraiu Sybil Lansdown sob qualquer pretexto, e a senhorita Lansdown é a única da qual nada sabemos ainda. Sneed, temos de fazer tudo que estiver ao nosso alcance para encontrá-la.
O medo que sentia por Sybil apertava-lhe a garganta e debaixo da sua voz aparentemente calma ocultava-se uma dúvida torturante.
- Se pelo menos conseguíssemos agarrar o assassino - disse Sneed em tom rancoroso. - Ele deve estar em algum lugar nas proximidades; a luz não se apagou por acaso.
O inspetor Elbert voltou.
- O telefonema foi subitamente interrompido. Alguém cortou os fios telefônicos.
Sneed encarou Dick com olhar significativo; em seguida voltou-se para o colega.
- Como sabe que os fios foram cortados?
- A Central de Scotland Yard já havia atendido. Eu até estava falando com o senhor Élmer. De repente ouviu-se um estalo e a linha emudeceu. Tentei nova ligação, mas não consegui nem sequer falar com a telefonista do posto de serviço.
- Mande vigiar todo o andar térreo, Sneed - pediu Dick. - Eu, nesse meio tempo, vou revistar o andar de cima.
Ele tornou a subir a escada, evitando espiar o rosto da mulher rigidamente estirada no patamar. Examinou todos os aposentos. Em toda parte reinava a mais perfeita ordem e em lugar nenhum encontrou qualquer indício de Sybil. No corredor descobriu novamente rastros de sangue e, seguindo-os, chegou a una escada estreita. As pegadas foram ficando menos distintas e finalmente sumiram por completo, afora alguns respingos isolados aqui e ali. Depois encontrou uma mancha irregular a meia altura da parede caiada. Aparentemente alguém, ferido, roçara na parede. A altura da mancha permitia adivinhar o local do ferimento.
Alguns passos mais adiante Dick deparou com uns panos ensangüentados que provavelmente tinham servido de ataduras. Então entendeu o que acontecera: o assassino de Lew Pheeney, o seu agressor no parque Staletti, o sujeito que invadira duas vezes seu apartamento com intenção homicida, também cometera este crime! Cody procurara defender-se contra ele até o último momento e nisso as ataduras saíram do lugar e a ferida reabrira.
Com expressão sorumbática, Dick galgou a escada de poucos degraus e viu-se num corredor estreito de uma água-furtada com três portas. Ele abriu a primeira e tornou a fechá-la, desapontado. Por trás dela havia um recinto que só continha uma banheira de ferro. A segunda porta conduzia para um depósito de móveis descartados, e uma camada de poeira testemunhava que havia meses ninguém tinha pisado lá. Chegando à terceira porta, na extremidade do corredor, percebeu de imediato: a essa porta sucedera algo fora do comum. Ela pendia frouxamente das dobradiças. Havia um enorme buraco na almofada da porta. A fechadura havia sido destroçada com violência, um único parafuso apenas mantinha-a presa à porta. Dentro do aposento os móveis estavam numa tremenda desordem: uma cadeira virada, uma jarra de louça quebrada, os lençóis rasgados. E ali, no chão... sua mão crispou-se em torno da lanterna... um lencinho rendado, ensangüentado.
Durante um instante ficou como petrificado. O coração tornou-se uma pedra de gelo em seu peito e os seus joelhos dobraram-se. Depois, dominando-se, abaixou-se e apanhou o lenço. Examinou-o em busca de um monograma.
Com olhar fixo olhou para as iniciais entrelaçadas: S.L.
O lenço de Sybil Lansdown!



Capítulo 22

Acudindo ao seu chamado, Sneed subiu a escada correndo. Juntos puseram-se a revistar o cômodo.
- Toda a porta está manchada de sangue, você viu? Até lá embaixo - Sneed fez deslizar a luz da sua lâmpada pela banda inferior da porta. - E também lá no canto - abaixou-se com um gemido - Impressões digitais muito nítidas. Alguém agarrou a porta por baixo para arrancá-la das dobradiças. Uma façanha para um atleta! Santo Deus, que patas tem esse homem! Martin, deve ser o mesmo sujeito que o anda perseguindo!
Dick assentiu com a cabeça. Imaginando o vulto do gigante, agora que sabia que ele também perseguia Sybil, o medo quase o sufocava.
Sneed endireitou-se penosamente. Seu olhar descobriu o pórtico no teto.
- Isso me parece um caso de fuga e perseguição. Suba e veja, Martin. Eu sou pesado demais para isso.
Dick colocou a cadeira debaixo da janelinha. Subiu e, com os dedos, tateou em busca de um apoio. Depois de encontrá-lo, puxou o corpo para cima e esgueirou-se para o telhado. Encontrava-se numa calha de cimento de cerca de três pés de largura. Um parapeito de pouca altura limitava-a de um lado, do outro o telhado subia até a cumeeira.
Dick projetou a luz da lanterna sobre a calha e de repente avistou a topo de uma escada encostada no parapeito. Ele relatou a sua descoberta ao inspetor, e acrescentou:
- Alguém de fora veio em socorro da senhorita Lansdown. Decerto ela fugiu por aqui.
Sneed mediu com os olhos a distância até o alçapão.
- Por favor, ajude-me a subir - disse com ar decidido.
A princípio Dick achou o pedido grotesco, mas logo ficou demonstrado que debaixo da camada de gordura. Sneed dispunha de uma força descomunal. Para o espanto de Dick, a única assistência de que ele necessitava consistia em algumas palavras de estímulo e alguns elogios. Em poucos instantes lá estava ele sentado sobre a calha, bamboleando as pernas e relanceando o olhar pelo telhado.
Subitamente mordeu o lábio inferior e apontou com a mão.
- O assassino também esteve aqui; está vendo a mancha escura? Ali ele se apoiou sobre as telhas. Depois segurou a escada com as suas mãos ensangüentadas. O primeiro degrau está sujo de sangue, e o terceiro também.
A luz da sua lanterna confirmou suas observações.
Dick trincou os dentes. A leve chama de esperança que o animara desde a descoberta da escada, apagou-se totalmente.
- Eu vou segurar a escada e você desce e vasculha o parque em busca de rastros - propôs Sneed. Premendo os pés contra o parapeito, agarrou o degrau superior da escada firmemente com ambas as mãos, enquanto Dick descia para a escuridão lá embaixo.
Ao saltar da escada, ele notou que se encontrava numa horta. De ambos os lados do estreito caminho de cascalho ele distinguia as fileiras de repolho, tão certinhas como soldados em formatura.
- Segure a escada! - gritou-lhe Sneed de repente. - Vou descer também. É melhor não nos separarmos.
Apesar das suas aflições, Dick teve de sorrir ante aquela prova de coragem. Ele assegurou a firmeza da escada com o peso do seu corpo enquanto Sneed dava outra exibição da sua agilidade.
Juntos deram uma busca no parque.
- Daqui ela não podia alcançar o portão de entrada. Aquela sebe lá impede a passagem. Ela deve ter andado em linha reta - observou Sneed. - Pelo que dá para distinguir nesta escuridão, ali atrás se estende um pomar. Entretanto, como conseguiria escapar do pomar? - acrescentou, coçando a orelha. - Mas vamos adiante!
Porém, mal deu o primeiro passo... tiros pipocaram!
- Atire-se ao chão e apague a luz! - sibilou o inspetor, e na fração de um segundo os dois se encontravam estendidos, lado a lado, na grama molhada pelo orvalho da noite. No mesmo momento irrompeu um "staccato" ininterrupto de disparos que encheu toda a horta de zunidos, estouros e estalos.
Tão repentinamente como a fuzilaria tinha começado, ela também terminou. Os dois homens, com os nervos tensos, permaneceram deitados, retendo a respiração e aplicando o ouvido. Durante alguns minutos reinou um silêncio sepulcral, depois o ouvido apurado de Dick percebeu um leve farfalhar, como se a roupa do atirador invisível tivesse roçado nos ramos de moitas próximas. Dick atirou na direção do rumor, mas a bala perdeu-se sem atingir ninguém, pois não se ergueu nenhum grito de dor, não se ouvia nenhum estrépito de pés em fuga.
- Eu gostaria muito de saber quem se esconde por trás dos repolhos - disse Sneed num sussurro. - Um regimento inteiro de soldados? Um exército inimigo?
- Apenas um homem com duas pistolas automáticas - respondeu Dick. - Não consegui contar os disparos, tudo se passou rápido demais; contudo, foram pelo menos vinte.
Ficaram por mais alguns minutos naquela posição incomoda. Finalmente Sneed observou.
- Acho que podemos levantar-nos agora. O perigo já passou.
Dick disse apenas, meio indeciso:
- Será? - mas foi o primeiro a avançar de gatinhas, o que não foi nada fácil. Numa das mãos empunhava a pesada pistola; os músculos distendidos do pescoço doíam-lhe, os saibros pontudos retalhavam-lhe as calças na altura dos joelhos e escoriavam-lhe as mãos.
Finalmente ele chegou ao fim do caminho de cascalho que atravessava a horta e sentiu terreno argiloso debaixo do corpo. Erguendo os olhos para o alto, distinguiu as copas das árvores frutíferas. Uma pétala soprada pela brisa pousou sobre a sua testa.
Ficou algum tempo à escuta, depois pôs-se de pé e voltou-se.
- Pode vir - chamou. - Está tudo em ordem.
Mal pronunciara estas palavras, fez-se ouvir a detonação de uma arma de fogo. Alguém oculto em lugar próximo atirara contra ele.



Capítulo 23

A bala passou rente à sua cabeça sem feri-lo, mas o deslocamento do ar e a proximidade da explosão estontearam-no por um instante e suas pernas se vergaram. Quando se recuperou, ouviu o rumor de pés que se afastavam correndo. Isso o inflamou, ele se endireitou novamente e iniciou a perseguição, mas logo tropeçou sobre um arame e estatelou-se no chão. Quando se levantou, todo doido, encontrou Sneed ao seu lado.
- Ele escapou? - perguntou o inspetor, esbaforido.
- Acho que sim - disse Dick, furioso.
Eles puseram-se a examinar o local à luz das lanternas de bolso e encontraram uma porção de arames estendidos entre as árvores do pomar. O assassino preparara a sua fuga com muito cuidado.
Chegando à extremidade do pomar, verificaram que apenas um valado pouco fundo o separava de um campo de centeio. Não valia a pena continuar. Daquele campo se abriam mil caminhos para a fuga.
Desapontados e desanimados, eles retornaram à casa. Lá, uma surpresa agradável os esperava: todas as luzes brilhavam novamente. O sargento Staynes descobrira que a porta de aço do transformador da linha de energia interurbana fora arrombada e a corrente desligada. Bastara-lhe um simples giro da chave para restabelecer o fornecimento de luz. Em seguida ele se pusera a procurar o fio telefônico cortado e achara as duas extremidades no parque, bem abaixo da janela da biblioteca. Ele acabara de efetuar o conserto.
Dentro do prédio, o inspetor Elbert iniciara uma investigação sistemática. Martin e Sneed juntaram-se a ele, sem fazer qualquer descoberta importante. Quando se dirigiam ao quarto de dormir da senhora Cody, chegou um pesado caminhão que transportava toda a tropa da polícia de Chichester para o local do crime.
Pelo visto, a Scotland Yard ouvira o suficiente para interpretar corretamente o telefonema interrompido e dera ordens à policia de Sussex no sentido de mobilizar toda a sua força.
Escondida debaixo da cama da senhora Cody, o inspetor Sneed foi encontrar uma caixinha indiana com belos entalhes. Ela continha cartas, velhas contas, programas de teatro amarelentos e outras coisas desse tipo. Até um buquezinho se encontrava em meio daquilo.
- Veja só, por mais ressequido que seja, um coração de mulher sempre conservará uma centelha romântica.
E estendeu um maço de cartas a Dick Martin.
- Tome. Eu vejo o resto.
Dick soltou a fita que prendia as cartas. As primeiras duas a lhe caírem nas mãos, escritas numa caligrafia infantil, traziam a assinatura: "Teu sobrinho Johnny".
- E eu pensava que ela não tinha outro sobrinho além de Tom Cawler.
Continuou examinando a correspondência da morta.
- Aqui estou vendo uma carta em que também é mencionado Tom Cawler. Pelo visto, o chofer tem um irmão.
- Gostaria de saber onde este Tom Cawler está metido a estas horas - refletiu Sneed, de testa enrugada, - A criadagem restante foi, decerto deliberadamente, afastada; mas enganar Cawler deve ser bem mais difícil. Eu vou mandar revistar a casa toda. Ele pode estar escondido em algum canto, quem sabe. Ainda não estou inteiramente convencido de que ele nada tem a ver com o assassinato.
- Tom Cawler, um assassino? - perguntou Dick, incrédulo. - Será que você conhece tão pouco a natureza humana? Eu não confiaria a Tommy um anel de brilhantes ou uma colher de prata, mas não hesitaria um segundo para confiar-lhe a minha segurança.
Sneed continuava cético. Balançou a cabeça com ar descrente:
- "Qui vivra, verra."
Dick já não prestava atenção ao que ele dizia. Fizera uma descoberta que o interessava sobremaneira: uma carta escrita numa letra floreada. Ela dizia: "Prezada Sra. Cawler: "Acabo de falar com Staletti. Muito agitado, ele contou-me que Lord Selford se encontra gravemente enfermo. Por favor, não deixe de me informar como ele está passando. Afinal de contas, ninguém o sabe melhor do que a senhora. Tremo de impaciência quando penso quanto depende para nós dos próximos dias. Aguardo suas notícias! Escreva-me sem demora!
Seu fiel amigo H. Bertram"
Dick mostrou a carta ao inspetor, comentando:
- É a letra de Cody. Eu a conheço bem, pois examinei seu caderno de notas. Por que naquela época ele se chamava Bertram, e hoje Cody? Deve haver alguma razão para isso. - E depois de uma pausa: - Quer dizer que todos se conheciam... Cody, a senhora Cody, Staletti, o velho Lord Selford. Algum mistério os unia, embora Cody o negasse.
- O que é natural, pois ele vivia num constante medo da forca - disse Sneed, irritado.
Dick leu todas as cartas, mas nenhuma trouxe alguma luz nova. Mas quando a caixa já estava quase vazia deu com outro papel importante: a certidão de casamento da senhora Cody.
- Hum... - fez, estudando esse documento oficial. - Ela casou oito meses depois do falecimento de Lord Selford. Staletti foi uma das testemunhas William Brown foi a outra. Que diabo! Quem será esse William Brown?
- Não vá querer procurá-lo no catálogo telefônico - aconselhou o inspetor, gracejando - caso contrário continuará debruçado sobre o catálogo ainda no ano que vem. Existe mais gente com este nome em Londres do que há cabelos na minha cabeça.
A caixinha estava vazia, ela não encerrava outros segredos. Dick, pálido e exausto, recostou-se numa poltrona, com os olhos fitos no teto.
- O que faremos agora? - perguntou Sneed, deitando-lhe um olhar preocupado.
- Francamente, não sei - replicou Dick com ar perdido. Distraidamente meteu a mão no bolso. Sentiu o metal frio da chave e tirou-a.
- Número três - disse entre os dentes. - Quando forem sete, alguém vai pagar caro por tudo que houve esta noite.
- O que faremos agora? - perguntou Sneed de novo.
Dick tornou a guardar a chave. De repente a sua atitude mudou. A máscula energia sobrepôs-se às preocupações e angústias. Puxou o relógio de bolso. Já tinha passado das duas horas da madrugada.
- Vamos daqui para o castelo dos Selfords - resolveu. - Você ainda não conhece a cripta. É nos túmulos dos Selfords que se encontra a solução do mistério.
Levantando-se de um salto, desceu a escadaria correndo. Chegou ao seu carro muito antes de Sneed. Entretanto, quando pôs o automóvel em marcha, este não se portou como um corcel fogoso, mas antes como um pato. Deu uns pulinhos e parecia bêbado. Dick freiou e saltou.
Algum patife tinha recortado todos os quatro pneus, num louco acesso de destruição.



Capitulo 24

Há momentos na vida que a gente nunca mais esquece. Eles podem submergir abaixo do limiar da consciência, mas em noites de insônia, em horas de febre, eles voltam à tona e enchem a alma de aflição e agonia.
Foi um momento destes que Sybil viveu quando viu o rosto de Tom Cawler fixando-a através da janelinha no teto do quarto, enquanto às suas costas ouvia a respiração anelante da criatura desconhecida que ameaçava desmantelar a porta com suas mãos gigantescas.
O rosto desapareceu por uns instantes. A porta estremeceu, estalando nas dobradiças. De cima vinha um chiado. A grade moveu-se nas charneiras. A janela abriu-se e um braço estendeu-se em sua direção. Sybil lançou um último olhar para a porta, cuja madeira rachou neste momento. Na abertura surgiu um punho enorme, manchado de sangue. Sem hesitar mais tempo, ela saltou em cima da cadeira e agarrou a mão, que a içou para cima.
- Segure-se bem, senão eu não agüento! - articulou Cawler, respirando pesadamente.
Ela apertou os dedos em volta do seu pulso. No mesmo instante a porta cedeu, a jarra de louça espatifou-se no chão.
- Suba! suba! senão é tarde demais! - gritou o chofer. Ajoelhado, inclinou-se, agarrou-a por baixo dos braços e com toda a força puxou-a para cima.
Olhando em torno, ela notou que se encontrava em cima de uma calha. Cawler, erguendo uma lanterna que espalhava uma luz difusa, iluminou o topo de uma escada de madeira, cujos últimos degraus ficavam acima do nível do parapeito do telhado. Sybil entendeu, saltou ligeiro sobre o parapeito, trepou na escada e desceu agilmente para o chão, como tantas vezes fizera em seu tempo de menina. Cawler seguiu-a sem perda de tempo.
Ambos dirigiram um ultimo olhar para o telhado. A lua escondera-se por trás de uma nuvem, mas o reflexo da claridade do céu era bastante para reconhecer a silhueta do corpo gigantesco de um homem agachado sobre as telhas que naquele exato momento agarrava a escada. Era tarde demais para retirá-la; só lhes restava a fuga precipitada.
Cawler puxou a moça pelo braço. Atravessaram a horta correndo e saltaram a vala. Nenhuma luz além da lua alumiava-lhes o caminho.
- É uma pena não podermos ir para a garagem; aquele Golias temível nos interceptaria. Mas venha comigo, eu conheço um esconderijo.
Diante deles estendia-se um campo de centeio de inverno cujos colmos já tinham atingido boa altura. Atravessaram-no com alguma dificuldade e finalmente conseguiram alcançar o portão de ferro, que felizmente estava apenas engatado. Os ouvidos zunindo, a vista escurecendo, as pernas tremendo depois da louca corrida, relancearam um olhar para trás. Não vendo sinal do seu perseguidor, respiraram aliviados.
Encontravam-se agora numa estrada que corria ao longo de um alto muro.
- O parque do castelo Selford - disse Cawler, em tom seco.
Sybil olhou-o assustada.
- O parque do castelo?
Consternação e temor transpareciam-lhe na voz. Nunca imaginara que a propriedade de Cody confinasse com as terras da casa senhorial. De todos os lados a rodeava o terrível mistério cuja origem se encontrava em Selford.
- Eu sei de uma brecha no muro, mais adiante, que ninguém conhece. Passando por ali, estaremos a salvo. Em primeiro lugar devemos cuidar de que ele perca a nossa pista. Caso contrário, estaremos perdidos.
- Afinal, quem é ele? Por que nos persegue? De quem foi aquele grito horrendo? Parecia que alguém estava sendo degolado.
- Eu também ouvi aqueles gritos - disse Cawler em voz baixa. - Eu até temia que o velho estivesse matando você. À tarde, eu o tinha advertido energicamente por sua causa. Quando você não reapareceu mais até a noite, a uma pergunta minha, ele respondeu que você tinha ido para o castelo, mas eu não acreditei. Eu suspeitava que ele, por alguma razão qualquer, a mantivesse presa, e disse-lhe isso na cara. Ele mostrou-me todos os aposentos, menos os três cômodos do sótão. Eu não disse nada, pois já havia resolvido investigar por conta própria. Fiquei passeando no jardim. Não queria empreender nada antes que o velho e a velha tivessem ido dormir. De repente escutei uma tremenda algazarra e gritos prolongados. Fui buscar a escada correndo e encostei-a ao telhado. As minhas suspeitas se confirmaram. Você realmente se encontrava presa na água-furtada.
Durante algum tempo caminharam em silêncio.
- Mas quem é a criatura que quis penetrar no meu quarto?
- Não sei - disse Cawler. - Já a vi uma vez anteriormente, de longe. Jamais vou esquecer o grande susto que levei. Um monstro desses a gente não vê nem no circo. Além da aparência horrível, ainda anda meio nu; só usa uma calça curta de couro presa na cintura por um pedaço de corda. De uma coisa tenho certeza: onde esse sujeito pisa, a grama não cresce mais. Desconfio que esta noite fez uma chacina na casa de Cody.
Com um arrepio Sybil fechou a gola do vestido com ambas as mãos, mas não disse nada.
Seu companheiro deteve-se de repente. Naquele lugar o muro todo estava coberto de rododendros. Quando Cawler apartou os ramos, apareceu a brecha. Inclinando-se, passaram para o outro lado, primeiro Sybil, depois Tom. Ao se endireitar, ela viu à sua frente, banhado de luar, um campo ondulado que se perdia ao longe.
Tom Cawler contou-lhe que ali costumavam pastar os famosos carneiros merinos do velho lorde, antes da sua morte. Ele esforçava-se por manter a conversa acesa. Queria distrair a moça para que ela esquecesse seu temível perseguidor. Finalmente, para grande surpresa dela, confessou-lhe que ele era sobrinho da senhora Cody.
- Eu e meu irmão Johnny fomos morar com ela porque éramos órfãos. Teria sido melhor se nos tivessem recolhido a um orfanato.
- Ela os tratou tão mal assim?
- "Mal" é dizer pouco. A comida era escassa e ruim. E ela gostava de nos surrar. Pode acreditar, há realmente gente que sente prazer em surrar os outros, e muitas vezes as vítimas são crianças indefesas.
- Você teve uma infância difícil - disse Sybil, sentindo pena.
- É verdade - replicou Cawler entre os dentes. - Quando meu irmão morreu, tive inveja dele.
- E desde aquele tempo sempre viveu em companhia de sua tia? - perguntou Sybil.
Cawler riu com desdém.
- Nada disso. Fugi, com onze anos. Vendia jornais, cigarros, carregava malas, fui menino de recados e dormia nos bancos das praças públicas. Era melhor do que morar com aquela tarântula.
- Neste caso, por que voltou?
- Oh! - disse Cawler com um sorriso enigmático. - Na segunda vez vim para me vingar. Eu tinha-a nas minhas mãos... E por que eu não havia de tirar proveito da boa sorte dela? - acrescentou em tom de revolta, já que Sybil não se manifestava. - Ela estava muito bem de vida, graças à sua astúcia e dissimulação, enquanto eu levava uma vida de cachorro. Por que fingir? Não me importa que você o saiba... Até sete anos atrás eu não passava de um ladrão profissional. Sofri dezesseis condenações.
- A culpa é da sua tia...
- Pois é... Era o que eu também achava - disse Cawler, aliviado. - Na última vez que me levaram à presença do juiz, em Old Bailey, este me avisou de que, em caso de reincidência, me enviaria à penitenciária, e por muitos anos. Resolvi então mudar de vida. A quem podia eu recorrer? À tia Cody, foi meu primeiro pensamento. O reencontro não foi um acontecimento agradável, pode crer... Mas ela não teve coragem de me mandar embora. Fiquei morando com ela durante sete anos. Nada me faltava, e eu conservava a boca fechada. Mas hoje... - ele respirou fundo, enchendo o peito - hoje eu disse a verdade aos dois! Lavei a sujeira de sete anos da minha alma e não me arrependo!
Imobilizou-se de repente, pôs o dedo nos lábios e ficou escutando, com a cabeça inclinada.
Sybil olhou em torno. A sua frente erguia-se um rochedo alongado de contornos parecidos com o dorso serreado de um dinossauro.
Cawler notou o olhar dela.
- É a pedreira - explicou em voz baixa. - Uma estrada passa por ali, muito íngreme e perigosa. Durante a noite não pode ser utilizada. Temos de manter-nos à esquerda.
Calou-se. Novamente ficou à escuta, olhando para trás. De repente atirou-se ao chão e encostou o ouvido à grama.
Depois ergueu o corpo apoiando-se sobre os joelhos.
- Vá depressa nessa direção - disse num quase imperceptível sussurro, apontando para a frente. - Espere naquela mata por mim. Não vou demorar.
Ela encarou-o com os olhos arregalados.
- Não, não! - gritou, desesperada. - Não quero que corra perigo por minha causa!
- Quem está falando em perigo? - retrucou ele, impaciente E como ela vacilasse, bateu com o punho no chão: - Corra, meu Deus! Corra! Não fique aí parada! Só está me atrapalhando.
Ela pôs-se a correr no rumo indicado. Depois de algum tempo olhou para trás. Ele voltara a estender-se ao comprido entre a grama alta e não podia ser visto. Neste momento as nuvens aglomeravam-se em frente da face da lua e toda a paisagem mergulhou em trevas. Um terror pânico apoderou-se dela naquela solidão.
Cosido ao chão, Cawler esperava pelo gigante, cujos passos pesados seu ouvido apurado percebera à distância. Ele sabia que de nada lhes valeria procurar fugir, pois não escapariam, e ele estava decidido de salvar a moça a qualquer preço... mesmo ao preço da sua própria vida. Tom Cawler desconhecia o medo. Sagacidade e a insolência própria dos garotos abandonados que se criam na rua uniam-se nele à galhardia. Ele era forte, ágil e rápido no aproveitamento das suas vantagens. Tudo isso o aparelhava para o terrível encontro que o aguardava. Seus dedos curvaram-se à volta do cabo da chave de parafuso, a única arma que trazia no bolso, e mal o gigante surgiu no seu campo de visão, saltou-lhe em cima num tremendo pulo.
Ao ouvir ao longe o uivo animalesco do monstro, Sybil estremeceu e começou a suar por todos os poros. Ela tinha alcançado a mata e apoiou-se num tronco de árvore. Uma voz dentro dela gritava: depois de matar Tom Cawler, ele virá atrás de mim! As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces, sem que ela se desse conta de que chorava. Adentrando-se mais na floresta, tropeçava, se erguia, continuava cambaleando.
Os rumores da luta longínqua cessaram. Finalmente ela chegou à outra extremidade da mata. A sua frente estendia-se um terreno cultivado. Os seus pés pisaram tenras plantinhas, depois ela atravessou algumas colinas e deparou-se com outra mata. Desesperada, achou que talvez tivesse andado em círculos e voltado ao lugar de onde partira. Seria um desastre... Sentiu-se melhor quando se viu novamente rodeada pela confortadora escuridão da floresta. Com as mãos tateava de árvore em árvore. Ela se arranhava nos galhos, espinhos lhe dilaceravam o vestido. Avante!
De repente chegou a uma clareira. A lua ressurgiu entre as nuvens e o luar iluminou o topo de um penhasco alvacento, cuja parte inferior mergulhava num abismo de trevas: os túmulos dos Selfords!
Com um grito, Sybil caiu de joelhos. Diante dos seus olhos, as imagens se confundiam e se duplicavam. Ela cerrou os punhos até sentir as unhas, trincou os lábios, retesou os músculos e empregou toda a sua força de vontade para não desfalecer. Finalmente se levantou, vacilando nas pernas, e acercou-se da entrada para a cripta.
A chave estava na fechadura enferrujada. Um cheiro de mofo vinha do fundo da caverna e refrescou-lhe a testa febril. Ainda estava espiando através da grade para o interior quando, vindo da direção do mato, lhe chegou ao ouvido um ruído que lhe gelou o sangue. O homem-animal decerto assassinara Tom Cawler e agora vinha para fazer o mesmo com ela. Apavorada, agarrou os varões da grade... e o portão se abriu! Esgueirando-se para o interior, ela puxou o portão, que se fechou com grande estrondo. Metendo a mão por entre as barras, girou a chave e recolheu-a.
Respirou mais aliviada, julgando-se a salvo. Esperou alguns minutos. Tudo estava em silêncio.
Ela desceu os degraus, procurando com as mãos apoio nas paredes limosas e escorregadias. Chegou à pequena antecâmara, onde uma segunda grade vedava a passagem para as tumbas.
Ela parou, escutando, o olhar dirigido para cima. Passados alguns momentos, ouviu o arrastar de pés, e um choro baixinho que a apavorou terrivelmente, pois era um homem que choramingava. De novo o medo quase a sufocou e o coração recomeçou a bater loucamente. Ela não duvidava de que o gigante era também capaz de arrombar o portão principal da cripta, e nesse caso ela estaria totalmente à mercê dele. Rompendo em soluços aflitivos, sacudiu a grade. Para surpresa sua, ela cedeu. A porta estava aberta. Ela levantou a mão na escuridão para tatear o caminho, enquanto mantinha o olhar voltado para cima, para o lugar onde sabia que se encontrava seu perseguidor.
Subitamente soltou um grito agudo. Sentiu a mão presa por uma garra, que do fundo das sepulturas se estendia contra ela para arrastá-la irresistivelmente, às profundezas que pertenciam aos mortos.



Capítulo 25

A boca escancarada, os olhos esgazeados, alucinada, Sybil começou a golpear com a outra mão quem estava à sua frente, usando a chave como arma; nisso emaranhou-se numa barba espessa, desgrenhada.
- Quieta! - sibilou uma voz na escuridão sepulcral. - Pare de gritar! Não vou machucá-la. Quem é você? O que está fazendo aqui?
Era uma voz humana. Recobrando-se do susto, largou a barba. A mão invisível soltou-a.
- Sou Sybil Lansdown - balbuciou. - Estou sendo seguida. Não sabia para onde ir e refugiei-me aqui.
- Sybil Lansdown? - perguntou a voz, denotando grande espanto. - Mas isso é fenomenal! Agora procure acalmar-se.
Um fósforo tremeluziu. Sybil distinguiu mãos compridas, macilentas, com unhas sujas. A chama do fósforo foi transportada para uma lamparina a querosene e depois protegida pela pantalha [quebra-luz]. Diante dela estava um homem magro com cara rugosa como couro velho, na qual dois olhos lúgubres ardiam em órbitas cavas. Uma comprida barba negra ocultava-lhe o formato da boca e lhe caía sobre o peito. A casaca antiquada e enodoada, as calças amarrotadas, o pequeno e velho gorro que lhe cobria a parte posterior da cabeça, denotavam total desleixo e falta de asseio. Parecia o bruxo-mor da noite das feiticeiras; mas apesar da sua horrível aparência, ela não se amedrontou. Debaixo do olhar penetrante do homem, as pulsações do seu coração foram-se acalmando aos poucos.
Ela observou que o sujeito tinha tentado arrombar a porta das sete chaves, pois havia uma bolsa de ferramentas no chão e uma broca enfiada na segunda fechadura.
- Disse que estava sendo seguida? - perguntou ele, encarando-a fixamente.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Quem a segue? - perguntou de novo.
- Um homem... horrível - balbuciou ela. - Um... um gigante.
- Gigante?
A sua barba se mexeu; recoberta por ela, a sua boca se torceu num sorriso.
- E por que ele a persegue? Às três horas da madrugada? Acaso está apaixonado por você?
Sybil estremeceu. O olhar dele agia sobre ela como um soporífero. De repente ela não conseguia mais lembrar-se de coisa alguma. Não sabia por que estava sendo perseguida, não se recordava de onde estivera. Somente via a profundeza negra daqueles olhos flamejantes que refletiam a luz da lamparina.
- Sente-se - mandou ele em tom peremptório. - Não gosto de falar com pessoas mais altas do que eu.
Ele indicou uma pedra, e ela obedeceu à ordem, sem sentir a friagem da rocha.
O desconhecido pôs-se a caminhar no estreito túnel de um lado para o outro, sem largar a lamparina. A sua sombra grotesca acompanhava todos os seus movimentos. Com uma ruga cavada entre as sobrancelhas, ele murmurava palavras ininteligíveis.
O seu olhar deparou com a broca. Depositando a lamparina no chão, ele tirou a ferramenta da fechadura, colocou-a na bolsa e fechou esta com cuidado. Depois continuou parado, fixando a porta com expressão soturna. De chofre se virou.
- Qual é a sua idade, Sybil Lansdown?
- Vinte e dois anos - respondeu ela, como em sonho
- Tarde demais, tarde demais - ele deplorou. - É demasiadamente velha para as minhas experiências. Se eu a tivesse apanhado quinze anos mais cedo... - ele passou a mão pela testa. - Também não devia ser mulher. Que valor pode ter para mim uma mulher? - e fez um gesto desdenhoso, como se afastasse um cisco da manga da casaca. - Isso!
Reencetou sua caminhada irrequieta e seus olhos vaguearam pelas pesadas portas entalhadas, por trás das quais, em nichos úmidos, se decompunham os mortos da casa Selford.
- Mulheres são material muito frágil para experiências científicas - recomeçou. - Elas não reagem de maneira normal. Uma experiência mais ousada pode levá-las à sepultura e anos de trabalho construtivo e longas pesquisas ficam perdidas!
De repente deteve-se diante da terceira câmara mortuária à esquerda e encostou o ouvido à porta. Depois ergueu a lamparina alumiando a moça. Uma expressão totalmente diferente tomou conta do seu rosto. Com as feições tensas, perguntou:
- O homem que a persegue mete-lhe medo, não é verdade?
Sybil anuiu.
Ele baixou a lamparina. Com a outra mão alisou a barba.
- Medo e pavor podem ser anestesiados - murmurou, como num monólogo. - Isso não pode constituir um obstáculo, quando se trata de um objetivo tão elevado. "Per Dio!", isso seria uma solução! Seria a coroação da obra! Se ele apenas não fosse tão desajeitado! Com sua força bruta ele quebra tudo que toma nas mãos. Não é possível criar matéria possante e, ao mesmo tempo, delicada. É preciso que, em vista da imperfeição da natureza, a gente decida por uma coisa ou outra. Quem já viu um cérebro rude reger uma mão fina?
E balançou a cabeça, aborrecido.
- Mas ao trabalho, ao trabalho!
Apalpando os bolsos do colete meio desabotoado, tirou um tubinho de vidro. Tornou a descansar a lamparina no chão, extraiu a rolha com os dentes e deixou cair dois comprimidos na palma da sua mão.
- Aqui, engula isso! Vai se sentir melhor! - cacarejou uma risada, e naquela horripilante caverna o riso ecoou como uma gargalhada do demônio.
Obediente, ela estendeu a mão. Ele inclinou-se e apanhou a lamparina, murmurando:
- O que será, destino ou livre vontade? Onde termina uma coisa e começa a outra? Mistério sobre mistério!
E meteu a mão no bolso da casaca, retirando um molho de chaves. Escolheu uma chave que, ato contínuo, enfiou na fechadura da porta da terceira câmara mortuária.
- Se todas as portas desta maldita cripta fossem tão fáceis, quanta desgraça e confusão podiam ter sido evitadas.
Subitamente se voltou para Sybil.
- Estou acostumado a ser obedecido - disse com severidade. - Você ainda não tomou os comprimidos.
As pequenas bolinhas vermelhas reluziam na mãozinha branca da moça como os dois olhos malignos de um réptil.
Faça o que lhe mandei! - repetiu ele, com voz tonitroante.
Submissa, ela levou a mão aos lábios, mas o cheiro singular dos comprimidos repugnava-lhe. Ela meteu-os na boca sem os engolir, o que Staletti, devido à fraca luz da lamparina, não pôde notar. Acreditando que ela havia atendido à sua ordem, ele virou-lhe as costas para abrir a porta da terceira câmara mortuária.
No mesmo instante Sybil sentiu a pressão diminuir e ela cuspiu fora os comprimidos.
Staletti empurrou a porta, que cedeu rangendo. Entrou no cubículo sem outro olhar para Sybil. A porta fechou-se atrás dele. Foi o seu azar... e a salvação para Sybil, pois mal ele desaparecera, desfez-se a insidiosa influência, e a lucidez da sua própria vontade irrompeu através da escuridão da mente.
Como que impelida por mola, levantou-se e desabalou pelo corredor e escada acima. Ainda segurava a chave entre os dedos. Mecanicamente meteu a mão pelas grades e volteou em busca da fechadura. Achou-a imediatamente. A disposição singular em que ela se encontrava dava-lhe uma segurança maravilhosa. Abriu a porta empurrando-a com toda a sua força, mas ao tentar fechá-la de novo, ouviu do fundo da cripta um ruído de passos que se aproximavam, de sorte que largou a porta aberta e atirou a chave na grama. Como num sonho, os pés a carregaram para longe do lugar. Os seus olhos não olhavam para a direita, nem para a esquerda. Um instinto infalível dizia-lhe que o terrível mistério em que se achava envolvida estava prestes a se revelar. Isso lhe conferiu asas e lhe deu a segurança de uma sonâmbula, de modo que encontrou a vereda através da floresta e a descida pela colina sem se perder uma única vez.
Quando já tinha a floresta atrás de si, ergueu os olhos e viu ao leste uma claridade rósea. O sol despontava e tingia o céu com as primeiras luzes da manhã. "Oh, que rompa logo o dia!" rezou com o coração a pulsar forte.
O mesmo caminho ela percorrera dois dias antes em companhia de Dick Martin e do senhor Havelock. Dick Martin! Ela parou por um instante e uma irresistível saudade a fez estremecer. Se ela não tivesse faltado ao que prometera a ele, não teria caído na armadilha da senhora Cody: se ela tivesse seguido o conselho dele de não empreender nada sem pedir antes seu conselho, ela não teria passado por essa noite de horrores. Oh, ela já não pensava mais em manter uma aparência de orgulho, tudo o que desejava humildemente era o apoio de um braço forte!
Nesse meio tempo chegara ao sítio. O cachorro, preso pela corrente, começou a latir alvoroçado, arreganhando os dentes. No primeiro momento ela assustou-se, mas logo depois seus nervos relaxaram. Os sons familiares de um mundo real restituíram-lhe a coragem e a confiança. Ela parou, assobiou e pôs-se a falar baixinho ao cão como a um velho conhecido. Depois se acercou da casinha do cachorro sem medo. Os latidos cessaram. O cão dilatou as narinas, aspirando o ar. Ela estendeu a mão para que ele sentisse seu cheiro e reconhecesse nela uma pessoa amiga. Quando se pôs a falar novamente com ele, o animal esfregou mansamente a cabeça nos joelhos dela. Ela alisou-lhe carinhosamente os pêlos espessos e sentiu que ele estremecia prazerosamente sob a sua mão. Provavelmente não estava acostumado a muitos carinhos. Ela soltou a corrente e ficou segurando-o pela coleira. Ele, feliz com a inopinada liberdade, abanava o rabo e puxou-a atrás de si, através da grama, rumo à casa senhorial.
Ao chegar perto do castelo, desviou-se do caminho pavimentado com lajes de cimento, e passou a caminhar pela beira dos canteiros, a fim de não fazer barulho. O cachorro, vez por outra, farejando com curiosidade, enterrava o focinho na terra fofa. Mas, de repente, levantou a cabeça e inspirou o ar, desconfiado. Em seguida rosnou e mostrou os dentes. Os seus olhos cintilaram, seu focinho, numa atitude ameaçadora, se dirigiu contra o casarão, as orelhas em pé.
No mesmo instante iluminou-se uma janela na ala lateral do pavimento térreo. Sybil segurou a coleira do cachorro mais firmemente.
- Quietinho - murmurou, com olhar imperativo. Atravessando o canteiro que se estendia até o casarão, foi espiar pela janela que não tinha cortinas.
Ela avistou uma sala alta, revestida de lambris de madeira até o teto, em cujo centro estava uma pesada mesa de carvalho. E sobre a mesa... A sua mão voou à boca para sufocar o grito de assombro, ardia a mesma lamparina a querosene cuja tíbia luz, havia pouco, iluminara a cripta dos Selfords.
A princípio parecia não haver ninguém na sala, mas depois notou que algo se movia perto da lareira de mármore, e subitamente um ente da aparência de um homem das cavernas dos tempos primitivos saiu do fundo da sala e penetrou no círculo luminoso da lamparina. Ele tinha uma altura sobre-humana, mas a sua constituição era de uma simetria perfeita; debaixo da sua pele cor de bronze mexiam-se os músculos, que ressaltavam nos braços como cordas. Longos cabelos trigueiros caíam-lhe sobre os ombros como uma juba e uma espessa barba loura cobria-lhe o queixo. Ele trajava um par de calças de linho claro que terminavam em cima dos joelhos. Acercando-se agora da mesa, ergueu a lamparina para iluminar toda a peça, e neste momento ela pôde ver-lhe o rosto. Apesar do seu tamanho incomum, possuía feições quase nobres, porém os olhos azuis tinham uma expressão parva e vazia como a de um retardado mental, e a repulsa que Sybil sentira no primeiro momento transformou-se em profunda compaixão.
Era esse o gigante de quem fugira? Coitado! Ele não passava de um idiota inofensivo. Uma palavra amiga decerto o teria amansado.
O cão rosnou baixinho e ela tapou-lhe o focinho para não trair a sua presença. Mas já um olhar triste daqueles olhos vazios a fixava através da vidraça. O gigante se sobressaltou e rapidamente soprou a chama da lamparina. Toda a sala mergulhou numa escuridão imperscrutável.
Sybil recuou até o caminho. Deveria ela acordar o administrador? Não, melhor seria correr para a casinha do vigia, e dali até o povoado. Entretanto, mal enveredara pela alameda que conduzia ao portão principal do parque, sentiu um rumor de vozes que se aproximavam. Dois vultos escuros vinham em sua direção.
- Quem é que está aí? Se não responder, solto o cachorro! - ameaçou com voz vacilante.
- Deus do céu! É Sybil Lansdown! - exclamou uma voz vibrante, e no momento seguinte ela atirou-se ao pescoço de Dick Martin, a soluçar, enquanto o cão saltava em torno deles, alegremente.



Capitulo 26

- Calma, meu bem, calma - murmurou Dick,quando ela tentou falar e as palavras não articulavam. - Não quero ouvir nada por enquanto. Antes de mais nada você precisa descansar. Há quanto tempo está sem se alimentar?
- Desde o meio-dia de ontem - confessou Sybil, deprimida.
- Está vendo! Foi o que eu imaginava. Agora venha! Vamos acordar o administrador, para que ele lhe sirva o que o Solar Selford tem a oferecer a visitas tão inesperadas.
Passou o braço em redor dos ombros dela, sem se incomodar com Sneed, que os seguiu discretamente. Sybil, porém, apertou a mão de Dick com ar aflito.
- Pelo amor de Deus, não entrem no castelo! - havia uma ponta de histeria em sua voz. - Há poucos minutos espiei por uma das janelas e vi lá dentro um homem terrível, disforme, um gigante! Deve ser algum louco!
Calou-se, emocionada. Lembrava-se de tudo que lhe sucedera desde o seu encontro com Cody.
- Um gigante? - perguntou Dick, vivamente interessado. Ele e Sneed olharam-se um instante, sem falar. O inspetor meneou imperceptivelmente a cabeça
Dick pediu à moça uma descrição do gigante. Ao ouvi-la, ele fez um esforço para não deixar transparecer no rosto a sua consternação.
- Provavelmente algum vagabundo, um daqueles santos esquisitos que se vestem como São João Batista e se alimentam de gafanhotos. Já vi muitos sujeitos assim no Hyde Park. Não se preocupe, Sybil, nós somos dois homens fortes e bem armados. Não nos assustamos com o seu Sansão
Ela acompanhou-os, obediente.
- Havia alguma janela aberta? - perguntou Dick, após uma pausa de reflexão.
Sybil sacudiu a cabeça.
- Não vi nenhuma janela aberta.
- Talvez algum amigo do administrador - observou Dick, a fim de tranqüilizá-la. - Vamos tirar isso logo a limpo.
E puxou a campainha.
Dick afagou a mão gelada de Sybil, e ao sentir quanto ela tremia, apertou-a contra si.
Depois a soltou. No interior da casa alguém se aproximava, arrastando os pés. Uma voz agastada perguntou:
- Quem é? E que quer?
- Faça o favor de abrir - falou Dick, que reconhecera a voz do administrador. - Sou Dick Martin.
Correntes tiniram, a fechadura estalou, e a porta abriu-se chiando. O administrador, que por cima da camisola vestira apressadamente uma calça que ele mal abotoara, apareceu no limiar, piscando de sono e protegendo com a mão em concha a chama bruxuleante de uma vela.
- Meu Deus - disse - que vieram fazer aqui? Aconteceu alguma coisa?
- O bastante para encher todos os jornais matutinos - replicou Dick. - Mas antes de mais nada, diga-me se tem alguma visita.
Ele e Sybil entraram no vestíbulo, seguidos de Sneed.
- Visita? - perguntou o administrador, espantado. - Não, senhor, não há ninguém... só eu e minha mulher.
Ele trepou numa cadeira e mexeu no candeeiro a gás que, uma vez aceso, espalhou odores fétidos por todo o ambiente.
- A senhorita Lansdown viu uma pessoa muito estranha em uma das salas do pavimento térreo - disse Dick ao administrador.
Este desceu da cadeira e fitou Sybil com os olhos muito abertos. Sacudiu a cabeça.
- Impossível! De que maneira teria conseguido penetrar na casa? As portas e janelas estão bem fechadas e todas as noites eu costumo percorrer todo o castelo antes de me deitar.
- O senhor poderia mostrar-nos os aposentos?
O administrador anuiu, solícito. Eles atravessaram duas salas, e em ambas o administrador acendeu com muita circunspecção os candeeiros, dizendo, voltado para Sybil:
- Aqui não esteve ninguém!
Finalmente, ao abrir a porta da terceira sala, ela teve um sobressalto. Trocou um olhar com Dick. "Foi aqui!" diziam seus olhos.
Momentos depois o candeeiro derramava uma claridade tíbia pela sala:
Era um aposento de teto alto. Estava completamente vazio. Não havia nenhum sinal do intruso e a lamparina a querosene não estava mais sobre a mesa.
Sybil já se perguntava se a aparição do gigante não havia sido apenas uma imaginação dos seus nervos super-excitados, quando Dick, de repente, assobiou baixinho. Ele descobrira uma bengala tosca encostada no canto formado pela lareira e a parede.
Erguendo-a, examinou-a de todos os lados,
- É sua? - perguntou ao administrador.
- Não - disse o outro, sacudindo a cabeça, perplexo. - E não tenho a menor idéia de como isso veio parar aqui. Ontem à noite ainda não estava, tenho certeza.
- Talvez apenas não a tenha notado - ponderou Dick.
- Impossível. Minha mulher encerou o chão de mármore ainda ontem, por causa de algumas manchas.
- Curioso - disse Dick, espaçando as palavras. - Sempre pensei que já não existiam mais feiticeiros no século vinte, mas, quem sabe... - com os nós dos dedos deu algumas pancadinhas nos lambris. - Estas paredes porventura são ocas? Ou existe por trás delas alguma passagem secreta? Nos romances a gente lê a toda hora sobre coisas desse tipo.
Fora apenas uma observação irônica, mas para a sua estupefação o administrador respondeu com ar misterioso:
- Se as paredes são ocas, bem... isso eu não sei. Mas realmente existe algum segredo. A antiga governanta me afiançou isso, e ela, por sua vez, soube-o do falecido Lord Selford.
Dick inclinou-se sem responder e com sua lanterna de bolso iluminou o interior da lareira. Havia degraus por dentro da chaminé, cimentados em intervalos regulares. Por ali, em tempos passados, costumavam subir os limpadores de chaminé, mas para o corpanzil de um gigante o vão era estreito demais.
Pegando mais uma vez a bengala, examinou a sua ponta de ferro. Havia nela um grânulo de terra fresca e úmida.
- O que acha disso? - perguntou-lhe Sneed.
Dick encolheu os ombros:
- Não faço a menor idéia.
Nesse momento reparou em Sybil. Ela estava encostada à lareira, pálida, e batia o queixo como se sentisse frio intenso. Imediatamente deitou a bengala sobre a mesa, pondo fim à inspeção. Carinhosamente conduziu a moça para a sala de estar, na qual, graças à mão habilidosa do administrador, em pouquíssimo tempo começava a arder um fogo alegre que espalhava um calor agradável. Em seguida dirigiu-se com o administrador à cozinha para preparar um café e algumas fatias de pão torrado. Somente depois que Sybil bebeu e comeu, Dick pediu-lhe que contasse a sua história.
Os dois homens tinham empurrado o confortável sofá para junto da lareira; sentada entre eles, os pés estendidos em direção ao fogo para aquecê-los, o rostinho iluminado pelas chamas, ela contou-lhes sua aventura que agora lhe parecia alucinação de um sonho febril. Era quase inacreditável que ela mesma tinha sido a protagonista de todos aqueles horrores.
Ao narrar como Tom Cawler ficara atrás para enfrentar o monstro, ela apertou o braço de Dick com fervor.
- Oh, Dick, por favor, faça tudo que puder para saber o que aconteceu com ele. Não suporto a idéia de que ele possa ter morrido por minha causa.
As lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Pouco a pouco se tranqüilizou e pôde continuar:
- Só não entendo o que Cody pretendia de mim - concluiu.
Dick não respondeu. Achava melhor não levantar, por enquanto, o véu que envolvia os mistérios de Cody.
Sybil olhava fixamente para a lareira onde queimavam gravetos de pinheiro.
- Os gritos foram horríveis - murmurou com um arrepio.
Ninguém ousava revelar-lhe a tragédia daqueles gritos.
Dick levantou-se devagar e foi espiar o céu. Assim que a claridade do dia o permitisse, partiria à procura de Cawler. Era o mínimo que podia fazer por Tom.
Entretanto, mal tinha se acercado da janela, recuou bruscamente. Pela alameda aproximava-se um automóvel.
Antes que o motorista pudesse frear completamente o carro coberto de poeira, já se abria a portinhola. Dick avistou a cara pálida e os olhos transtornados de Havelock. Avisando os outros, dirigiu-se apressadamente para o portal, a fim de cumprimentar o advogado.
Havelock vinha correndo, com as abas da casaca voando.
- Onde está a senhorita Lansdown? Senhor Martin, onde está a senhorita Lansdown? - bufava, agarrando Dick pelas lapelas.
- Está aqui conosco - acalmou-o Dick. - Mas quem foi que lhe disse que ela poderia ser encontrada no castelo?
- Eu já... lhe conto... - arquejou Havelock. - Meu Deus, que noite! Por favor, dê-me seu braço.
Ele apoiou-se pesadamente em Dick, que o conduziu ao interior com cuidado.
Ao avistar a moça, Havelock correu para ela e apertou-lhe a mão com força.
Dick apresentou o advogado ao inspetor Sneed, e notou que as sobrancelhas de Havelock se arquearam numa expressão de leve espanto. Depois, visivelmente abalado, deixou-se cair no sofá e enfiou a mão no bolso em busca de uma carta, que passou às mãos de Dick sem uma palavra. Somente agora recuperava a respiração normal.
Dick examinou a carta atentamente Ela trazia o emblema do Ritz-Carlton Hotel. A letra era idêntica à das cartas anteriores de Lord Selford. Ele teve a impressão, contudo, de que era mais descuidada do que de costume.
Lord Selford escrevia:
"Meu caro Havelock
Rogo-lhe encarecidamente que se dirija sem demora para o Solar Selford e providencie uma busca em todo o parque. Não poupe esforços, nem despesas. A minha prima Sybil Lansdown encontra-se no momento nos arredores do castelo, em perigo de vida. O mesmo perigo ameaça todas as pessoas ligadas a ela... inclusive o senhor. Eu bem sei, esta minha carta parecer-lhe-á enigmática, mas mesmo assim, não vacile. Estão em jogo elevados interesses. Tão logo encontre Sybil Lansdown, convide-a para ficar, por enquanto, morando no solar até que eu chegue. Só lá estará em segurança, só lá meu braço poderá assegurar-lhe proteção, a ela e a todos aqueles a que devo e agradeço a firme defesa dos meus interesses. Chegarei ao castelo amanhã, às sete horas da manhã, e terei então oportunidade para esclarecer satisfatoriamente todos os mistérios que no momento os intrigam.
Selford"
- Quando recebeu esta carta? - indagou Dick.
- Foi por volta de uma hora da madrugada - redargüiu o advogado. - Eu estava justamente me preparando para ir dormir, pois havia estado a estudar, durante horas, a documentação relativa à Casa Selford. De repente alguém tocou insistentemente a campainha da porta da rua. Levei alguns minutos para descer. Não havia mais ninguém, mas encontrei a carta na caixa. Li-a ainda no corredor e fiquei terrivelmente assustado. "Lord Selford perdeu completamente o juízo?" pensei comigo. Nesse momento, o telefone tocou. Corri para atender, era o próprio Selford. Eu julgara-o no Cairo, mas ele estava telefonando de um aparelho de Londres. Perguntou-me depressa se eu tinha recebido sua mensagem. Eu disse-lhe que sim, e antes que eu pudesse acrescentar mais alguma coisa, ele insistiu em que eu cumprisse imediatamente as suas instruções! Ainda tentei fazer algumas perguntas e oferecer-lhe a minha assistência, mas não obtive resposta. Ele já tinha desligado.
Havelock silenciou exausto.
Sem fazer comentários, Dick estendeu a carta ao inspetor.
— Então me ocorreu a idéia de telefonar para a senhora Lansdown — recomeçou Havelock, um pouco mais calmo agora. — Ela estava muito aflita. Disse-me que a filha andava sumida desde as primeiras horas da tarde. É fácil imaginar como fiquei alarmado. Peguei o carro e vim para cá a toda pressa. Não há palavras para exprimir como me sinto feliz por encontrá-los todos são e salvos.
Recostou-se, respirando aliviado.
Dick ergueu-se e, com um olhar para Sybil, que se mantinha isolada a um canto, observou:
— Acho melhor deixarmos a senhorita Lansdown agora entregue a um sono reparador. O senhor Havelock e o administrador tratarão disso, enquanto eu dou uma busca no parque. O sol já está nascendo.
Todos voltaram o olhar para a janela e viram a claridade rósea entre as copas das árvores do parque.
- E eu, o que faço? — perguntou o inspetor Sneed com ar descontente, conquanto se sentisse muitíssimo bem na sua confortável poltrona.
— Ficará aqui mesmo e tomará todos nós sob suas asas protetoras — disse Dick sorrindo, — Caso eu não esteja de volta até as sete horas, mande alguém à agência dos correios no povoado para telefonar à senhora Lansdown, que deverá ser informada do paradeiro de sua filha o quanto antes.
Dick confiou Sybil aos cuidados da mulher do administrador, que acudiu solícita, e saiu para o jardim, onde foi saudado por um alegre gorjeio dos passarinhos. Em algum lugar um pintarroxo trinava sua canção matinal.
Em menos de meia hora Dick alcançou a cripta funerária dos Selfords. O portão estava fechado. Ele abaixou-se e procurou no capinzal, mas não encontrou a chave que Sybil alegara haver atirado no chão. Decerto Staletti a tinha recolhido e levado consigo.
Ele prosseguiu na sua caminhada. Urgia agora encontrar o lugar onde Tom Cawler aguardara o inimigo desconhecido. Qualquer luta sobre grama raramente deixa vestígios. As gramináceas pisadas pelos pés se ergueriam de novo no orvalho matutino. Apesar disso teve a sorte de deparar com o local da luta depois de demorada busca. Descobriu aqui um tufo de grama arrancado do chão, ali a marca de um salto de borracha, mas em lugar nenhum o solo estava revolvido, nem encontrou qualquer indício de que alguém tivesse arrastado algum corpo pesado através do gramado. Se Tom Cawler perdera a luta corpo-a-corpo com o gigante... e Dick não duvidava disso nem por um segundo... o vencedor devia ter carregado o corpo dali nas costas.
Pensativo, Dick regressou à casa senhorial. Ele teria dado tudo para saber o destino de Tom Cawler, mas ao mesmo tempo temia uma descoberta que viesse confirmar seus maus pressentimentos.
Ao entrar novamente na sala de jantar, Dick interrompeu uma conversação animada.
— Falei ao senhor Havelock do estranho visitante que a senhorita Lansdown viu esta noite nesta casa — explicou Sneed. — O senhor Havelock receia que ele ainda possa estar escondido em algum canto do castelo. O que acha você, Martin?
Dick, em vez de externar sua opinião a respeito, perguntou por sua vez:
— Onde fica a passagem secreta?
Todavia, Havelock garantiu que tal passagem era mera fantasia. Um arquiteto, que havia supervisionado alguns consertos no castelo, tinha-lhe demonstrado, com a planta do prédio na mão, que as paredes não eram suficientemente grossas para esconder vãos e passagens secretas.
— Não — concluiu Havelock. — O solar é um prédio totalmente prosaico e não contém nada de medieval.
— O que faremos agora? — quis saber o inspetor, dirigindo-se a Dick Martin.
— Bem... vou ter de deixá-los agora a fim de acompanhar a senhorita Lansdown, que deve regressar para Londres.
— Regressar para Londres? — protestou Havelock, pondo a mão em concha atrás da orelha, como se não tivesse escutado bem. — Mas... o senhor já esqueceu a carta de Lord Selford?
— A carta de Lord Selford! O senhor toma-a tão a sério?
— Muito a sério — retrucou Havelock com grave ênfase — e peço-lhe que reflita bem se a advertência de Lord Selford não merece toda a nossa atenção. Quanto a mim, eu me repreendo agora por ter dado tão pouca importância às excentricidades e manias de Lord Selford durante todos esses anos! Considerando a sua constante ausência à luz dos últimos acontecimentos, tenho a impressão de que reside nisso a chave de um grande segredo.
Dick balançou a cabeça afirmativamente. Nem com um leve pestanejar revelou que já conhecia o segredo dessa constante ausência.
- Eu compreendo que o senhor não costuma levar muito em conta a opinião de um leigo - continuou Havelock. - Porém, talvez respeite a opinião de um perito no assunto, o inspetor Sneed acabou de me dizer que aceitava a hospitalidade oferecida por Lord Selford.
- É verdade - admitiu Sneed com franqueza. - Não nego que gostaria de ficar aqui, ainda mais porque é meu dever não me afastar por enquanto desta região.
Dick entendia-o perfeitamente. O inspetor desejava continuar perto do local do crime. O assassinato de Cody ainda reclamava solução e o solar de Selford constituía um centro ideal para as diligências policiais. E a casa de Staletti também ficava próxima.
- Está bem - disse. - Já que sou minoria, só me resta concordar. Se a senhorita Lansdown está de acordo, ficaremos. É claro que, nesse caso, devemos convidar também a mãe dela.
- Quanto a isso - atalhou Havelock depressa - não precisa se preocupar. Eu mesmo irei apanhar a senhora Lansdown de carro. Aliás, de qualquer maneira preciso voltar a Londres para resolver alguns assuntos inadiáveis dos quais não me lembrei na afobação da partida. Aqui não lhes faltará nada, meus senhores. O castelo de Selford lhe oferecerá todas as comodidades, e no povoado encontraremos criadagem suficiente. - E voltando-se para Sneed: - Apenas, em seu lugar trataria de convocar um contingente de policiais para vigiar o castelo. Temo que os acontecimentos desta noite possam precipitar a crise.



Capítulo 27

Mil o inspetor Sneed tinha tomado o seu desjejum, ouviu-se o som de uma buzina. Era o chefe de polícia de Sussex em pessoa, trazendo no bolso um mandato de prisão contra o doutor Staletti.
Juntos os dois se dirigiram para o "Átrio do Patíbulo", mas encontraram o ninho vazio; o passarinho tinha batido as asas.
Um operário que morava perto numa cabana e vez por outra cuidava do jardim da casa de Staletti em troca de uma gratificação modesta, declarou que o médico italiano o acordara de madrugada para entregar-lhe as chaves da casa e pedir-lhe que zelasse por ela e pelo jardim até seu regresso.
A revista dos aposentos da casa não produziu quaisquer indícios novos. A cama de Staletti estava arrumada. Ele, obviamente, não dormira nela nessa noite.
Desapontados, os dois policiais rumaram em seguida para Weald House, onde falaram com o médico. Sneed não se enganara, a senhora Cody falecera de um ataque cardíaco, provavelmente causado por grande susto. O inspetor Wilson, que chefiava as diligências, havia recolhido no pomar dezoito cápsulas detonadas, coisa que não sabia como explicar. Sneed cortou-lhe sobre o tiroteio da noite anterior, solucionando assim o enigma.
Cody, ou melhor Bertram, não era nenhum desconhecido da polícia. Ele fora um dos primeiros da Inglaterra a dar aulas por correspondência, afirmando poder ensinar a arte do hipnotismo a qualquer um que lhe enviasse uma libra esterlina. Há sempre incautos que se deixam facilmente ludibriar. Em pouco tempo conseguira ganhar milhares de libras, sem que um aluno sequer tivesse aprendido o hipnotismo. Finalmente o promotor público achara que devia tomar providências. O cúmplice dele, com quem ele havia dividido o lucro, livrara-se da prisão por meio de uma fuga apressada. Esse cúmplice havia sido... Staletti.
- Veja só... Staletti! - exclamou Sneed, interessado.
- O senhor se lembra que mais tarde o pegamos praticando vivissecção? - lembrou Wilson. - Aliás, Cody e Staletti mantinham relações cordiais até recentemente. Interroguei os criados. Todos viram Staletti em várias ocasiões. Ordinariamente vinha no meio da noite.
- Por que os criados não estiveram em casa ontem?
- Uma das raparigas está doente, a outra se encontrava de folga. Desconfio que Cody planejava algum crime e acabou sendo assassinado na tentativa de executar esse crime.
Eles atravessaram o jardim.
- Há pouco esteve aqui um senhor Martin - observou o inspetor Wilson. - Ele vinha dirigindo um carro com os pneumáticos furados e ia para Horsham a fim de arranjar pneus novos. Ele pediu-me para lhe dizer que esperasse por ele aqui.
Sneed agradeceu e foi até a estrada. Uma nuvem de poeira aproximava-se depressa. Era Dick com o carro.
- Entre, eu o levo para o solar - gritou. - Pegaram Staletti? - perguntou, depois que Sneed tomou assento ao seu lado. O inspetor sacudiu a cabeça com ar aborrecido.
- Foi o que imaginava - observou Dick. - Ele já sabia ontem à noite que tudo estava perdido. Por isso fez uma última tentativa para abrir a porta do túmulo. Ah, se eu tivesse a chave dele!
- Nada lhe adiantaria - grunhiu Sneed secamente. - Seria apenas a quarta.
- Apenas a quarta, é verdade, mas espero estar de posse das outras três amanhã de manhã.
- Por que amanhã de manhã? Não entendo.
- Amanhã às sete horas chega Lord Selford. Até lá, ou temos todas as chaves, ou não estaremos mais entre os vivos.
O inspetor voltou a cabeça para o lado, fitando Dick com olhar penetrante.
- Você está escondendo alguma coisa - queixou-se.
Dick preferiu ficar calado. Fez como se precisasse concentrar-se no volante. Primeiro teve de se desviar de uma carroça, e em seguida teve de ultrapassar um Packard que, à sua frente, levantava muita poeira. Poucos minutos depois enveredou pela entrada do parque.
Novas obrigações esperavam Sneed na casa senhorial.
A primeira pergunta de Dick foi a respeito da senhora Lansdown. Ela tinha chegado com Havelock meia hora antes e agora estava no quarto da filha.
Dick encontrou o advogado na sala de estar, visivelmente preocupado.
Ao avistar Dick, empertigou-se.
- Sabe das últimas? - perguntou em tom grave. Dick encarou-o interessado. Havelock achegou-se e segurou-o pelo braço.
- Lord Selford não está hospedado no Ritz-Carlton Hotel! Lá não o conhecem nem de nome!
Foi postar-se junto da janela, tentando dominar sua agitação. Depois de uma pausa, virou-se:
- Pedi um exame dos antigos livros de hóspedes do hotel para verificar se alguma vez no passado Lord Selford esteve lá hospedado. Ainda espero que os empregados do hotel apenas estejam esquecidos, pois do contrário... - interrompeu-se, ajeitando com dedos nervosos o nó da gravata - do contrário terei de recorrer à polícia.
Dick ofereceu-lhe um cigarro. Ele agradeceu e enfiou-o entre os lábios, mas, distraído como estava esqueceu de acendê-lo
- Não precisa de fogo? - perguntou Dick, com um leve sorriso lhe torcendo os cantos da boca.
Havelock sobressaltou-se, depois aproximou a ponta do cigarro à chama que Dick lhe oferecia. Tirou umas tragadas e sua agitação abrandou.
- Eu estive na agência de viagens Cook - continuou a relatar. - Quis verificar se realmente Lord Selford já podia estar em Londres. Pois bem, constatei que, efetivamente, ele podia chegar a tempo e me telefonar àquela hora da madrugada se ele aproveitou todas as conexões mais vantajosas das linhas aéreas. Mas como conseguiu saber de tudo que estava acontecendo com Sybil Lansdown na meia hora entre a sua chegada à Inglaterra e o telefonema? Já vi muitas coisas nesta minha atribulada vida de advogado, mas jamais tal amontoado de improbabilidades.
A porta abriu-se e a senhora Lansdown espiou para dentro da sala. Ela estava muito emocionada quando cumprimentou Dick Martin. A angústia da última noite transparecia no seu rosto.
- Sybil me mandou - disse, depois de se acalmar um pouco. - Ela está aflita para saber se Tom Cawler foi encontrado.
- Ainda não - informou Dick, sentindo pena.
- Pode ter-lhe acontecido algo sério? - inquiriu a senhora Lansdown, preocupada.
- Não sei. Tom Cawler é um rapaz inteligente. Ele já conseguiu safar-se de situações muito mais difíceis - disse Dick em tom tranqüilizador, se bem que ele mesmo não alimentasse muitas esperanças.
A senhora Lansdown respirou algo aliviada,
- Deus queira que apareça logo, são e salvo. Quero apertar-lhe a mão.
No decorrer da tarde chegaram novas notícias sobre Staletti. Um guarda do povoado, que ia de bicicleta pela estrada, o vira debruçado sobre o motor do seu automóvel, mexendo nas peças. Quando, mais tarde, o guarda voltou a cabeça, o carro sumia numa nuvem de poeira. Provavelmente Staletti estava fugindo para Londres. Já na parte da manhã, todos os postos policiais haviam recebido uma descrição dele, que à noite também seria divulgada pelas estações de rádio, para conhecimento da população.
Após dormir profundamente por algumas horas, Dick levou a cabo uma revista minuciosa de toda a casa. Os antigos aposentos do falecido Lord Selford situavam-se na ala lateral esquerda. Uma escada particular levava ao pavimento térreo. Na ala direita achavam-se os cômodos da criadagem. Morava ali também o administrador. Do lado oposto à escadaria principal, uma grossa porta talhada abria-se para o faustoso quarto de dormir do castelo. Durante séculos os Selfords tinham conduzido para lá as suas noivas após as cerimônias de casamento, e no amplo leito, que ocupava o centro da peça, todos os seus filhos tinham vindo ao mundo.
Era este o quarto que havia sido destinado a Sybil; ali ela aguardava a chegada do último descendente dos Selfords!



Capítulo 28

Dick correu os reposteiros de veludo. Notou então que as duas janelas, pelas quais se filtrava a luz do entardecer, tinham grossas grades de ferro. Ele chamou o administrador e soube que as grades haviam sido instaladas no tempo do falecido Lord Selford, depois de uma atrevida tentativa de assalto. O quarto era o aposento mais luxuoso de toda a casa. Os lambris e os gobelines valiam uma fortuna.
Dick abriu as janelas e sacudiu os varões da grade. Eles estavam tão bem cimentados na alvenaria que teriam sido necessários preparativos de muitos dias para removê-los.
Finalmente pediu ao administrador que lhe mostrasse os porões. Uma íngreme escada descia da cozinha para a espaçosa adega, que continha vinhos de muitas safras famosas. Contrário às adegas da maioria das casas senhoriais, o teto desta não era abobadado. Pesadas traves e pranchas de carvalho sustentavam o teto baixo.
- Muito arriscado em caso de incêndio - observou Dick, voltando-se para o administrador.
Os demais compartimentos contíguos à adega estavam completamente vazios, com exceção de um único, que ficava por baixo do corpo central da casa. Armazenados ali havia três enormes barris de cerveja.
- Bem, pelo que vejo, líquido é que não falta por aqui! - comentou Dick. - Se Lord Selford quiser, poderá embriagar um regimento inteiro.
Mais tarde dispensou o administrador. Fingiu deixar a adega; todavia, mal seu acompanhante desaparecera de vista, entrou furtivamente na cozinha, onde foi apanhar um abridor de caixote, com que retornou aos barris. Em poucos minutos fez um furo num deles.
Vapores estonteantes ergueram-se. Antes de saber do conteúdo já o adivinhara. Embatocou cuidadosamente com tocos de madeira o orifício que tinha feito.
Satisfeito com o resultado da sua investigação, foi até o pátio pegar o carro. Ninguém reparou na sua partida. Dirigiu o automóvel até o portão de entrada, onde o escondeu entre as árvores. Em seguida voltou lentamente a pé para a casa senhorial.
A hora de crise estava próxima. Ele sentia que a atmosfera estava carregada de eletricidade e na sua mente já via rasgar-se a cortina por trás da qual se ocultava Lord Selford.

No relvado diante da casa encontrou-se com Sybil da qual soube que havia chegado reforço policial de Londres. Os homens estavam sendo distribuídos pelos corredores do castelo, orientados pelo inspetor Sneed e pelo senhor Havelock.
- Você conseguiu dormir? - perguntou ele carinhosamente.
- Sim, muito bem até. Obrigada. Já me refiz e estou calma agora.
- Coitadinha - murmurou Dick.
- Não deve ter pena de mim. Eu mesma sou culpada de tudo que me aconteceu. Não pode imaginar como estou furiosa comigo mesma, por sua causa.
- Por minha causa? Como assim?
- Sei que a sua preocupação pela minha segurança o deixou muito aflito. O senhor Sneed me contou.
- Ele não devia ter feito isso.
- Ao contrário, sou muito grata ao inspetor por isso. Nunca mais farei o que quer que seja sem pedir sua opinião antes.
Dick tomou-lhe a mão e apertou-a com força, sem dizer nada.
- Se pelo menos já fosse amanhã. Eu estou muito preocupada com o senhor Havelock - continuou ela. - Seu acabrunhamento cresce à medida que o tempo passa e a noite se aproxima. Ele tem medo de ser a próxima vítima,
- A vítima de quem?
- De Staletti - ela teve um arrepio ao pronunciar este nome.
- Medo de Staletti? - perguntou Dick, admirado.
- É, e mais ainda. Ele acha que Lord Selford pode estar sob a influência hipnótica de Staletti, fazendo somente o que este lhe ordena.
- Ele mesmo lhe confessou isso?
- Bem, - sorriu ela com uma ponta de convencimento ingênuo - ele confia em mim. Ele sente que eu o compreendo. Um homem talvez o desprezasse se ele lhe revelasse que está com medo.
- O nosso amigo Havelock é um "homme à femmes" - constatou Dick com um sorriso. Entretanto Sybil, absorta em pensamentos, não reparou na sua observação.
- Eu não consigo compreender Lord Selford - disse ela, com ar meditativo. - Durante anos não se preocupou nem um pouco conosco. Por que agora esse súbito interesse no meu bem-estar?
- Isso eu lhe posso explicar. Você é a sua legitima herdeira.
Sybil estacou, sobressaltada.
- O que quer dizer com isso? Afinal, ele é moço ainda, pode ter muitos filhos. Quem sabe, talvez até seja casado. Uma vez Havelock deu a entender essa possibilidade.
- Se você admite, como faz Havelock, que o lorde talvez esteja debaixo da influência de outras pessoas, então pode haver gente interessada na questão da herança e da sucessão. Lord Selford, por esta ou aquela razão, deixava-se explorar facilmente. Você talvez não se preste a tal papel. Está vendo agora por que Selford ou seus manipuladores têm um justificado interesse em você?
- Meu Deus, mas isso é terrível! - exclamou ela.
- O perigo que a gente conhece deixa de ser terrível - respondeu Dick com uma calma imperturbável - Você tem muitos amigos para protegê-la contra quaisquer ameaças.
Ela deitou-lhe um olhar de gratidão.
- Cody já fez uma tentativa contra você e acabou perdendo a vida - continuou Dick após alguns momentos de reflexão. - O que ele lhe deu para assinar foi, sem dúvida, um documento de doação ou até mesmo um testamento. Ele pretendia se apoderar, desse modo, de um trunfo em relação aos demais cúmplices. Talvez ele já se sentisse ameaçado e acreditasse na possibilidade de salvar sua vida mediante a posse de semelhante documento. Entretanto, outros o impediram de levar adiante esse projeto e o castigaram horrivelmente.
Sybil, que agora já sabia do triste fim do senhor Cody, ficou calada. Encarou depois Dick com olhos que refletiam terríveis pressentimentos.
— Mas onde está Lord Selford? - perguntou em voz baixa.
- Não sei - respondeu ele com simplicidade - Tenho esperanças e tenho temores.
Sybil deteve-se e segurou-lhe o braço.
- Você acha que... que ele pode estar morto? - balbuciou.
Dick desviou os olhos.
- Será melhor para ele, se estiver morto - disse entre os dentes.
Neste momento o senhor Havelock assomou no portal. Devagarinho Sybil tirou a mão do braço do detetive e foi ao encontro dele.
O rosto do advogado mostrava uma palidez impressionante.
- Algo de novo sobre Staletti? - perguntou.
- Nada - replicou Dick. - Mas fique calmo. Ele não escapará. A rede está se fechando inexoravelmente em volta dele e já está bem mais apertada do que ele imagina.
O administrador serviu o jantar na biblioteca. Foi uma refeição silenciosa. Todos estavam absortos em pensamentos.
Enquanto Havelock e Sneed se acomodaram num canto para fumar, Dick voltou com Sybil para o jardim. Passado algum tempo, ela retornou sozinha e pediu à mãe que a acompanhasse. Depois de animada conversa das duas com Dick Martin, elas deram boa-noite ao detetive e recolheram-se aos seus respectivos quartos.
Dick voltou à biblioteca. Ficou junto da janela, espiando o céu. O crepúsculo descia lentamente sobre as copas das árvores. Dentro de uma hora seria noite escura.
- Alguém me acompanha num passeio aos túmulos? - perguntou.
Havelock consultou o relógio, nervoso.
—É muito tarde para isso. Além do mais, não fica bem deixarmos a senhora e a senhorita Lansdown sozinhas na casa.
- Elas já foram deitar-se - retrucou Dick - e os vinte policiais distribuídos pelo castelo garantem sua segurança. Eu preciso que me sirva de guia, Havelock.
- Está bem, senhor Martin. Mas não gosto da idéia.
- Ora, ora, não será necessário descermos à cripta. Estou mais interessado em conhecer os cantos do parque que ainda não tive oportunidade de ver.
Os dois puseram-se a caminho. Chegando ao vale, um silêncio sepulcral os rodeava. Momentos antes um grilo soltara o seu canto estridente, agora também isso cessara.
- O senhor acaso tem alguma teoria por que Lew Pheeney teve de morrer? - perguntou Dick ao advogado
- Lew Pheeney? - Havelock fitou-o admirado. Fez um esforço para se lembrar de quem era esse sujeito Pheeney.
Dick revelou-lhe então o segredo que fora a causa da sua morte violenta. Havelock ficou muito surpreso e visivelmente desnorteado.
- É uma pena que somente agora fico sabendo dessa história - disse afinal. - Talvez já então eu tivesse adivinhado em que túmulo ele tentara aplicar a sua habilidade. Lew Pheeney chegou a dizer o nome do homem que o contratara para arrombar as fechaduras?
- Lew Pheeney não era um denunciante. Mas quem poderia ser, senão...
- Staletti? - atalhou Havelock mais que depressa.
Dick anuiu.
Havelock tirou o chapéu e enxugou a testa.
- Pelo jeito, quem se associa com Staletti faz bem em fazer seu testamento.
Galgaram a colina. Dick estacou.
- O que é aquilo? - apontou para uma área branca ao longe, no meio da planície escura.
- São as pedreiras de Selford - informou o advogado. - Estão há muito tempo desativadas. Há uma estrada passando por ali, mas está impedida, pois oferece muito perigo, até para quem anda a pé.
Atravessaram a floresta e chegaram à clareira. O penhasco que se alçava sobre os túmulos repousava numa quietude total.
Era visível o alívio de Havelock quando encetaram o caminho de volta para a casa senhorial.
Dois policiais montavam guarda junto do portal. Eles informaram que a senhora Lansdown, havia algum tempo, abrira sua janela e lhes pedira para acordá-la às sete horas da manhã.
- Vamos entrar - propôs o advogado. - As nossas vozes poderão acordá-la.
Foram novamente para a biblioteca, onde Havelock abriu uma garrafa de champanhe. A sua mão tremia ao erguer o cálice para um brinde:
- Ao feliz regresso de Lord Selford!
Dick e o inspetor trocaram um olhar cético.
- Se Lord Selford realmente cumprir sua promessa, a primeira coisa que farei será devolver-lhe a administração de seus bens - disse Havelock ao depor o copo vazio. - Os cocos que ele me dá para quebrar são duros demais - esboçou um sorriso depois desta tentativa de gracejar. - Só espero que ele efetivamente apareça! - acrescentou, mais sério.
- A propósito, onde é que o senhor vai dormir?
- inquiriu Dick. - Gostaria de saber onde encontrá-lo em caso de uma emergência.
- Vou dormir na ala residencial do falecido Lord Selford. É muito confortável lá, embora o meu quarto fique um pouco afastado. Mas o que pode me acontecer? Um policial vai ficar no corredor vigiando a minha porta durante toda a noite.
Sneed deixou o champanhe escorrer pela garganta.
- Eta, vinho bom! - exclamou, estalando a língua.
- Que tal abrirmos outra garrafa? - sugeriu Havelock.
Depois da segunda garrafa o advogado recuperou sua fleuma.
- Não me considero nenhum bobo - comentou. - Mas por mais que eu examine os fatos acontecidos, continuo não entendendo nada. Como é que Lord Selford foi-se meter com esse Cody, e o que esse aventureiro italiano Staletti foi procurar nos túmulos dos Selfords?
Dick, apoiando os braços sobre a mesa, inclinou-se para a frente:
- A estas perguntas posso responder. Alguma vez ouviu o nome "Bertram"?
- Bertram? - Havelock enrugou a testa com ar meditativo. - Se estou bem lembrado foi este o nome do diretor da escola particular que Lord Selford freqüentava durante a sua infância, após a morte do pai.
- Então! - exclamou Dick, satisfeito - Agora já temos a explicação. Depois que Bertram deu motivos para se envergonhar do nome que tinha herdado do pai, transformou-o em primeiro nome e acrescentou o nome Cody.
O advogado recostou-se na cadeira.
- Bertram e Cody são a mesma pessoa? Mas isso é impossível!
- Ainda vamos ter outras surpresas, senhor Havelock. O administrador mencionou hoje uma antiga governanta que cuidava do garoto no tempo em que Lord Selford ainda vivia. O senhor se lembra do nome dela?
O advogado fez um esforço de memória.
- Não muito bem; mas guardo no ouvido o som do nome dela. Era algo como Crawther.
- Não teria sido Cawler? - perguntou Dick.
- Cawler? - o advogado refletiu. - Sim, pode ser. O nome não me é estranho. Ah, agora me lembro! O chofer de Cody... ele não se chamava Cawler?... Tom Cawler?.. O senhor mencionou este nome várias vezes.
- Exatamente. A senhora Cawler era a tia dele e a mulher de Cody!
Fez-se um profundo silêncio.
- Tem certeza disso? - perguntou Havelock finalmente.
- Toda. É verdade que os assassinos de Cody tiveram o cuidado de retirar todos os documentos da escrivaninha, mas passou-lhes despercebido um cofrezinho que a senhora Cody guardava debaixo da cama. Nele encontrei sua certidão de casamento, que revelou três coisas importantes. Primeiro: que casou com Cody três meses após as exéquias do seu amo, o velho Lord Selford. Segundo: que, quando casou, ainda era governanta no castelo. Terceiro: que já naquela época conhecia Staletti, pois foi ele uma das testemunhas de casamento. A propósito, o senhor alguma vez chegou a ver o senhor Cody?
Havelock fez que não com a cabeça.
- Todas as negociações concernentes à venda de terras na Austrália e ao arrendamento de Weald House foram conduzidas pelo meu chefe de escritório. Eu, naquela ocasião, não me encontrava na Inglaterra, pois estava fazendo uma estação de águas em Karlsbad.
- O senhor sabia que Staletti freqüentava a casa de Lord Selford e provavelmente até prestava assistência médica ao lorde7 - perguntou Dick.
- Estou estupefato! - o advogado conseguiu finalmente gaguejar. - Afinal de contas, o médico de Lord Selford era Sir John Finston. Asseguro-lhe que Lord Selford jamais pronunciou o nome Staletti em minha presença.



- Não obstante, Staletti estava perfeitamente a par do seu estado - redargüiu Dick com ênfase especial.
Havelock deitou-lhe um olhar desconfiado
- Quer me parecer que uma intriga bem engendrada se passou debaixo dos meus olhos, com Lord Selford como ator principal - disse com voz vacilante.
- Perfeitamente - conveio Dick. - É o que parece Por favor, leia esta carta
E fez um sinal para Sneed. O inspetor sacou a carteira, retirou dela a carta que o senhor Cody escrevera à senhora Cawler e empurrou-a com a mão através da mesa.
- Esta carta também foi encontrada no cofrezinho - explicou Dick.
Havelock debruçou-se sobre a carta e leu-a, sem tocar nela.
- Não estou entendendo mais nada - comentou, levantando os olhos. - Pelo visto, fui totalmente enganado. Entretanto, confesso que, quanto mais claras ficam algumas coisas, mais confusa se torna a história toda.
- Amanhã de manhã deve chegar Lord Selford - consolou-o Dick. - Ele, sem dúvida, vai poder explicar tudo. - Consultou o relógio: - Já é tarde. Vamos dormir. Quem sabe o que ainda nos espera!
Sneed tornou a guardar a carta. Em seguida apoiou-se sobre a mesa com ambas as mãos e ergueu-se da cadeira, gemendo. Mas quando avistou a confortável poltrona junto da lareira acesa, encaminhou-se depressa para ela. Como um saco de batatas afundou entre as almofadas macias.
- É aqui que armo a minha rede! - anunciou com um suspiro feliz. - Louvado seja o inventor das poltronas!



Capítulo 29

Um quarto de hora depois Dick abriu silenciosamente a porta do seu quarto, cumprimentou com um aceno de mão o policial que montava guarda no corredor, girou a chave do lado de fora e meteu-a no bolso. Desceu a escada nas pontas dos pés e foi até Sneed, que já estava dormindo na poltrona.
- Está na hora - disse baixinho.
Sneed acordou com um sobressalto, suprimiu um gemido e seguiu seu jovem amigo para a sala onde Sybil tinha visto o misterioso monstro. A luz da lanterna de bolso mostrava apenas quatro paredes nuas.
- Você ficará esperando à frente da porta, Sneed, e não se mexa! Eu estarei observando esta sala através da janela. Pode demorar muito, mas tenho a certeza de que não foi a primeira vez que o gigante veio aqui, nem terá sido a última!
Deixando o inspetor junto da porta, ele saiu da casa e foi postar-se exatamente no mesmo lugar onde o chão ainda mostrava as pegadas de Sybil,
O tempo foi passando mais devagar do que de costume, porque estava carregado de tensão. Gradualmente os olhos de Dick foram-se ajustando à escuridão. Mais e mais objetos em derredor ganhavam contornos e formas. A lua surgiu e projetou as sombras dás árvores sobre o relvado, Quando a brisa noturna movia as folhas, parecia que lúgubres fantasmas estavam se dando as mãos para uma dança misteriosa.
Através do silêncio soaram doze badaladas do relógio da torre. Depois passou-se outra eternidade. Dick já sentia um formigueiro nervoso nos pés e os músculos da perna começavam a doer-lhe.
De repente o aposento à sua frente se iluminou parcialmente. Um feixe de luz refletiu-se no tampo da mesa. Ele procedia do lugar da lareira. Dick ergueu-se nas pontas dos pés. O raio luminoso ampliou-se. A lareira girou sobre um espigão e revelou um buraco no chão. Apareceu uma mão segurando uma lamparina... a mesma lamparina que Dick já conhecia do relato feito por Sybil.
A mão seguiu-se uma cabeça emoldurada por cachos de cabelos dourados, a cabeça de um deus mitológico... se ela não fosse totalmente destituída de vida e expressão. O único sentimento humano que o rosto neste momento refletia era um sorriso infantil, que contrastava comoventemente com a força dos membros e a exuberância dos músculos.


O gigante adiantou-se e depositou a lamparina sobre a mesa. Em seguida virou-se e enfiou a mão no poço escuro. Alguém a segurou, e com horror indescritível Dick viu surgir outro vulto igual ao primeiro. Este segundo gigante tinha cabelos cortados curtos e uma fisionomia lisa, sem barba. Os seus olhos possuíam o olhar apático dos escravos, mas não eram totalmente sem expressão. Naquele rosto, de zigomas bem marcados e nariz saliente, lia-se certa ferocidade... uma selvageria agora apenas abrandada pela boa índole e alegria antecipada do companheiro. Ambas as criaturas estavam nuas da cintura para cima; vestiam apenas calças curtas rasgadas que mal lhes cobriam as coxas. Com passos furtivos aproximaram-se da parede. O de barba empurrou os lambris, que se deslocaram, deixando à mostra um armário embutido.
Mas no mesmo momento moveu-se o trinco da porta. Os gigantes assustaram-se, e o sem barba, como um relâmpago, precipitou-se para a mesa e apagou a chama da lamparina.
Dick, lançando pragas entre os dentes, saltou por cima do canteiro e entrou correndo no vestíbulo.
Junto ã porta entreaberta encontrou Sneed que, a mão sobre o trinco, olhava fixamente para a frente, como que petrificado.
- Eu não lhe disse para não se mexer! - sibilou Dick furioso, passando por ele e entrando na sala. Ela estava vazia. Quando acendeu o candeeiro a gás, ele viu que a lareira havia sido recolocada na sua posição normal e que a lamparina sobre a mesa desaparecera.
- Tive a impressão de que você me tinha chamado - desculpou-se Sneed - Alguma coisa se movia aqui dentro. Abri a porta e vi... - ele estremeceu.
Dick não se dignou a responder. Raiva e desapontamento o dominavam neste momento. Estivera tão perto da solução do mistério, e agora tudo tinha ido a pique!
Acercou-se do armário, que continuava aberto. Os seus olhos se arregalaram. Preparado para uma descoberta terrível, deparou-se com... brinquedos, uma porção de brinquedos para crianças: uma ferrovia, mas sem a locomotiva; bichos de pelúcia e de madeira, uma caixa com soldadinhos de chumbo, bolas coloridas, alguns piões, balizas de boliche infantil, um teatrinho de bonecos...
Dick não perdeu uma palavra sobre esta descoberta, nem tampouco olhou para o inspetor. Nunca na sua vida sentira tanta tristeza e tamanha impotência. Voltando para a lareira, tentou movê-la, mas seus esforços foram inúteis.
Levantando os olhos, disse:
- Por baixo disto aqui existe um corredor que conduz para uma das câmaras mortuárias da cripta. Fique aqui; enquanto isso vou correr para os túmulos.
Sneed tentou dissuadi-lo, mas Dick não quis saber de discussões. A passos largos atravessou o gramado e sumiu entre as sombras do parque. O caminho parecia interminável. Chegando à clareira, abruptamente estacou. Escutava vozes de gargantas adultas, mas que soavam infantis. Cautelosamente avançou.
O portão para a cripta estava aberto. À frente dele banhados pelo luar, os dois gigantes, segurando-se nas mãos como crianças, dançavam dois passos para a direita, dois passos para a esquerda, enquanto cantavam: "Jimmy por que choras, por que choras tanto assim?"
Entre eles estava um rapaz em culotes e casaco apertado. Ao lado dos dois titãs parecia um anão. A princípio Dick não conseguiu reconhecê-lo porque ele estava sempre meio encoberto pelos corpos dos dois gigantes. Mas de repente pôde vê-lo nitidamente.
Dick agarrou os galhos dos arbustos mais próximos para suster-se e dominar sua emoção. Era Tom Cawler.
Cansados da grotesca dança de roda, as duas crianças gigantes puxaram Tom Cawler pelo braço. Depois apanharam alguma coisa do chão: uma corneta infantil e a locomotiva que faltara no armário de brinquedos. Eles acocoraram-se na grama e mostraram a Tom orgulhosamente os seus tesouros. Tom fingiu que nunca tinha visto coisas tão bonitas, e depois deu corda à locomotiva e deixou-a correr sobre o gramado. Os dois gigantes olhavam de olhos arregalados e bateram palmas entusiasticamente. Um deles soprou a corneta, que emitiu um som estridente que mais parecia um grasnado.
Cawler virou o rosto para o lado, como se não suportasse mais aquele espetáculo patético, e Dick percebeu que ele estava a ponto de chorar. Crispava o rosto e com os dentes mordia o lábio superior, para não irromper em soluços. Neste momento conquistou a afeição de Dick, que tinha vontade de estender-lhe os braços num gesto de amizade.
De repente soou um assobio agudo na floresta, e imediatamente se operou uma terrível mudança nas duas criaturas gigantes.
Eles se abaixaram, ficando de cócoras, numa atitude submissa. Tom Cawler deitou-lhes um olhar aflito, depois se ocultou nas sombras do penhasco. Um segundo assobio riscou o silêncio da noite. Os gigantes levantaram-se num pulo e ficaram de pé, de braços pendurados, soltando gemidos de pavor. Staletti, minúsculo ao lado dos seus pupilos, desprendeu-se da escuridão da mata, empunhando uma pistola engatilhada.
- Ah, é aí que vocês estão, meus filhinhos! Por que tentam se esconder? Não adianta, eu sempre volto a achá-los! - exclamou. - Sempre! - repetiu em tom duro e enfático.
Postou-se diante deles de braços cruzados, confiante na força do seu olhar penetrante que os fazia tremer de medo.
- Venham comigo! - ordenou, em tom simultaneamente insinuante e ameaçador. - Terão doces e carne suculenta!
Virou-lhes as costas sem temor e desapareceu na floresta. Os dois gigantes puseram-se a trotar atrás dele como dois cachorrinhos obedientes.
Mal tinham eles sumido entre as árvores, Cawler saltou do seu esconderijo. Os galhos das árvores fecharam-se atrás dele. Dick, tateando, seguiu-o.
Apesar de atento a tudo que se passava, ele se sentia estonteado, como se estivesse num espaço além da realidade, num mundo onde se chocava o cotidiano com o mitológico. Aquele homem que à sua frente pulava da proteção de um tronco para a proteção de outro tronco a fim de ocultar-se, era ele realmente Tom Cawler, chofer de profissão? Ou era ele um dos espíritos de vingança que perseguiam os assassinos da Antiguidade e não descansavam até alcançá-los e estrangulá-los?
Dick não tinha idéia para onde a perseguição o estava levando. Quando as árvores começaram a rarear, parecia lhe encontrar-se à frente do vale, mas depois se deparou de repente com uma estrada desconhecida.
Subitamente ouviu o ronco abafado de um motor. Precipitou-se para a frente, mas chegou tarde. Staletti já tinha alcançado seu automóvel e fugia com suas duas vítimas. Entretanto, outro tinha sido mais rápido do que Dick: Tom Cawler! Ele se pendurara no carro e ia nele como passageiro clandestino.
O carro subia um declive íngreme. Dick, que era um excelente corredor de longas distâncias, tornou a avistar o automóvel que, devido à sua pesada carga, só avançava lentamente. Neste momento viu Cawler deslizar através da capota.
O carro já desaparecera por trás da elevação, quando Dick escutou uma exclamação de terror, que se transformou num grito de dor. Ofegante, atingiu o topo da encosta. À sua frente, do lado esquerdo, ficava o fundo da antiga pedreira, agora transformado num lago de água barrenta. Na estrada, que margeava um abismo, o automóvel, sem ninguém na direção, derrapava, e no instante seguinte as rodas dianteiras ficaram penduradas no vazio. Os gritos no interior do carro se multiplicaram. Um segundo de silêncio sepulcral separou os gritos e o fragor da catástrofe. O automóvel despencou, virando no espaço durante a queda. Depois bateu com grande estrondo na água, desaparecendo no lago subitamente agitado que, momentos antes, se estendera tranqüilo à claridade da lua cheia.



Capitulo 30

Com saltos arrojados. Dick desceu a encosta em direção do automóvel acidentado. Quando, escorregando e tropeçando, finalmente alcançou uma saliência rochosa próxima ao nível da água, viu um vulto nadar para a margem. Dick reconheceu-o imediatamente.
- Tom! - chamou.
Cawler, o rosto contorcido, o peito arfando, soluçava. Dick agarrou-lhe no braço.
- Cawler, por que chora? Não está contente por ter saído com vida deste terrível acidente?
Mas Cawler gritava:
- Ele morreu! Ele morreu! Meu pobre irmão Johnny. Oh, senhor Martin... faça alguma coisa! O carro virou na água e ele está preso por debaixo dele!
Dick não perdeu tempo. Tirando o casaco, atirou-se na água.


O automóvel encontrava-se a poucos centímetros debaixo da superfície da água, mas foi impossível movê-lo. Afundado na lama, entalado entre duas rochas salientes, teriam sido necessárias forças sobre-humanas para mudar sua posição.
Dick voltou à margem, exausto e triste Quando Tom Cawler compreendeu que não havia mais esperança, rolou pelo chão, arrancando a grama e soluçando.
- Por que... não matei... esse canalha... ontem! Oh, meu Deus! Por que não fiz isso logo, quando reconheci meu irmão!
- Seu irmão?
- Sim, senhor Martin, meu infeliz irmão! Eu vi-o se aproximar. Um monstro, e eu sabia que ele vinha para me matar. Mas ignorava que era meu irmão... isso eu não sabia! Agarrei a chave de parafusos com mais força e saltei-lhe nas costas. E aí... - Tom Cawler fez uma pausa, soluços cortavam-lhe a voz... - Aí senti um pequeno apêndice de pele na orelha dele, que ele já tinha em criança e sobre o qual muitas vezes havíamos gracejado. Então o reconheci! "Johnny!" gritei... e ele parou... como que imobilizado por aquele grito. Larguei a chave de parafusos e escorreguei para o chão, olhei-o bem nos olhos e gritei mais uma vez o nome dele. Ele caiu de joelhos, atirou-se na grama, uivando... como um animal ferido. Meu Deus... meu Deus! Era mesmo meu irmão Johnny! Staletti o havia transformado num monstro, num escravo que cumpria todas as suas ordens!
Tom Cawler, louco de dor, martelava o chão com os punhos.
- Oh, esse demônio, esse Staletti! Há muito tempo eu desconfiava dele. Dias atrás escutei, sem que me vissem, uma conversa entre ele e Cody no seu gabinete de estudos. O sem-vergonha jactava-se do assassinato de Lew Pheeney. Para executar esse crime servira-se também do seu escravo. "Oh, seus cachorros!" eu disse comigo, "Vou acabar com isso! Em breve terei vocês todos em minhas mãos." Idiota que fui! Eu devia ter dado um tiro através da janela, bem no meio da testa desse sujeito!
Soergueu-se e sacudiu o punho em direção do lago:
- Satanás! Satanás!
Sa... ta... nás! Sa... ta... nás! - ribombou o eco distante.
Cawler abriu o punho, olhando fixamente para sua mão. Uma louca gargalhada de triunfo rompeu-lhe da garganta.
- Uma ação boa esta mão de gatuno finalmente praticou! - exclamou com feroz satisfação. - Esfacelei a cabeça desse vilão! Ouviu seu grito, senhor Martin? Matei-o com a chave de parafusos, da mesma maneira como ele mandou meu irmão matar Cody!
- Quem dos dois gigantes era seu irmão?
- Aquele sem barba. Staletti lubrificava a pele dele com óleo quando o mandava matar alguém... para que ficasse escorregadio e ágil como uma enguia.
- E quem era o outro? Parece que Staletti mantinha-o sempre escondido.
- O outro? Então o senhor não sabe?
- Apenas desconfio - respondeu Dick com voz vacilante.
- Staletti tinha bons motivos para mantê-lo escondido - disse Tom Cawler, cerrando os punhos. - Era Lord Selford - acrescentou, quase aos gritos.
E novamente o lúgubre eco respondia: Sel...ford! Sel...ford!
A gargalhada insane de Tom Cawler abafou o eco.
- Lord Selford... Castelão... Latifundiário... Multimilionário... e tudo que possuía não passava de alguns farrapos sobre o corpo e um armário cheio de velhos brinquedos.
Dick não disse nada. Com a palma da mão cobria os olhos. Que valor tem herança... árvore genealógica... aristocracia...? pensava. O último descendente de uma grande linhagem, apesar da exuberância dos seus músculos, acabara como um pobre e infeliz idiota!
Outra horrível gargalhada de Tom Cawler fez com que Dick voltasse à realidade, inclinando-se para o rapaz estendido no chão, agarrou-o firmemente nos ombros e sacudiu-o.
- Homem, domine-se! - disse em tom imperativo - Naturalmente entendo a sua dor, mas nós devemos nos conformar com o que não pode ser remediado. Suportar tudo com um mínimo de dignidade é um dos privilégios do homem. Lamentos e ódios não vão ressuscitar seu irmão. A nossa obrigação agora é buscar ajuda para que ele possa ter um enterro condigno.
Cawler, porém, não quis deixar o local da tragédia.
Calado agora e teimoso, respondeu às bem-intencionadas exortações de Dick Martin com acenos negativos da cabeça. Finalmente Dick teve de desistir.
Com muita dificuldade, sempre escorregando, ele galgou a encosta, e quando lançou um último olhar para trás, Tom Cawler continuava sentado junto da margem, olhando fixamente para a água.
Apressando o passo, Dick iniciou a longa caminhada em direção do castelo. Quando finalmente avistou as árvores do parque, ouviu apitos e o som de sirenas. Um clarão vermelho tingia o céu. Toda a casa senhorial, dos alicerces até o sótão, era um mar de chamas. Vidraças partiam, explosões estouravam sucessivamente no centro do inferno fumegante, e de todas as portas e janelas saíam línguas de fogo.
A polícia estendera um cordão de isolamento em volta do prédio. Um vulto esquisito, com os cabelos esvoaçando, corria feito louco pelo gramado. Eta Havelock, que vestira depressa uma capa sobre o pijama. Com o braço apontava em direção às janelas sobre o portal central, agora encobertas por uma impenetrável cortina de fumaça. Ele agarrou a manga do casaco do inspetor Snecd, que apaticamente fumava seu cachimbo e de olhar fixo contemplava o espetáculo d? casa em chamas
- Como pode ficar aí parado como se a vida das duas mulheres lhe fosse indiferente? Mande seus homens serrar as barras da grade! Eu prometo uma gratificação a quem tiver a coragem de penetrar naqueles quartos.
Sneed, todavia, apenas meneou a cabeça, com ar indeciso.
Havelock se dirigiu a um dos policiais:
- Escute, eu ofereço um prêmio de quinhentas libras a quem pelo menos fizer uma tentativa de salvar as mulheres desse inferno!
Repentinamente Dick surgiu ao seu lado e pôs a mão sobre seu braço.
- Não precisa ficar tão aflito! - disse - Nem a senhora Lansdown, nem sua filha se encontram na casa.
- - Não se encontram na casa? O que quer dizer com isso? - gaguejou Havelock.


- Eu já previa este incêndio ontem à tarde, e por isso mandei que voltassem para seu apartamento em Londres, no meu carro. Isso aconteceu enquanto nós dois passeávamos pelo parque, ontem à noite, de modo que o senhor não podia sabê-lo.
Por baixo da sua mão o braço de Havelock estremeceu, mas Dick prendeu-o com guante de ferro.
- O senhor teve um momento infeliz na sua vida, senhor Havelock. Foi quando caiu nas mãos de Staletti. Desde então cometeu uma série de crimes e foi-se aproximando cada vez mais da beira do inferno. Depois do meu regresso, o senhor sentia que o laço se estreitava em volta do seu pescoço, e no desespero teve a idéia de acabar com todos os seus inimigos, queimando-nos vivos num incêndio provocado. Mas eu descobri os seus barris de petróleo no porão, de modo que pude pôr de sobreaviso todos que estavam ameaçados por suas intenções diabólicas!
Havelock empalidecera. Os seus lábios se moviam, mas ele não conseguia articular palavras.
Sneed sentiu que havia chegado o momento psicológico para a sua intervenção. Tirando o cachimbo da boca, pousou a mão direita com ligeira pressão sobre o ombro de Havelock e advertiu com solene gravidade:
- Arthur Elwood Havelock, o senhor está preso sob a acusação de ser mandante de crime de homicídio, de tentativa de homicídio, de malversação de dinheiros pupilares e de incêndio premeditado. Fica avisado de que tudo que daqui em diante disser poderá ser usado como material de acusação.
Havelock nada respondeu. Cerrou os olhos, e antes que Sneed terminasse, perdeu os sentidos.
Foi carregado para a casinha do vigia e minuciosamente revistado. Do pescoço pendurava-lhe uma correntinha de ouro que prendia duas chaves de formato singular, denteadas dos dois lados e com entalhes e ranhuras no palhetão. Dick recolheu-as.
Fizeram Havelock engolir alguns goles de conhaque e ele voltou a si. Ele relanceou um olhar em volta e fitou Dick. Empertigou-se:
- O senhor levantou graves acusações contra a minha pessoa - disse com firmeza. - Queira, por favor, apresentar suas provas.
Dick olhou para Sneed, que assentiu com um sinal de cabeça. Dando um passo à frente, disse:
- Talvez o senhor se lembre de que uma vez mencionei que Lord Selford, na Cidade do Cabo, assistiu à chegada do novo Governador Geral?
Ele fez uma pausa, mas Havelock não disse nem sim, nem não: limitou-se a encarar Dick fixamente, em silêncio. Trincava os dentes e a linha brutal do seu queixo se acentuara ainda mais.
- Muito bem - prosseguiu Dick impassivelmente. - Esse pequeno fato foi minha sorte e seu azar, pois nessa ocasião Lord Selford foi fotografado na sacada do seu quarto de hotel. Ele era um velho conhecido meu, um mestre na arte de furtar, já várias vezes condenado Tom Cawler!
O inspetor Sneed deixou escapar um "Ah!" de surpresa. Havelock mordeu os beiços.
- Desde aquele dia passei a investigar Lord Selford por conta própria, sem tomar em consideração as suas instruções. Confesso que admiro a sua astúcia, senhor Havelock. A fim de demonstrar a sua boa fé, o senhor pôs um detetive no encalço do seu ex-pupilo, mas ao mesmo tempo cuidava para que os dois nunca se encontrassem. Com grande habilidade organizou uma viagem em volta do mundo. Entretanto, no hotel de Buenos Aires encontrei aquela folha de mata-borrão, Cody ficou comprometido, e o atentado contra a minha vida falhou. Então o senhor tomou uma decisão extrema. Cody, que tinha começado a pescar em águas turvas sem avisar ninguém, tornou-se um cúmplice indesejável dos seus crimes, pois o senhor não o julgava capaz de firmeza em circunstâncias adversas. Por isso teve de ser eliminado, e com ele também a mulher. Mas também nessa ocasião as coisas não correram bem. Eu recebi o chamado de socorro de Cody. Aí, para cobrir a sua fuga, o senhor atirou contra mim e contra o inspetor Sneed. Nenhum dos seus disparos atingiu o alvo, embora atirasse simultaneamente com duas pistolas automáticas. Depois restava eliminar mais duas pessoas: a herdeira de Lord Selford e o sujeito que já adivinhava demais. Estou me referindo a mim mesmo. Se tivesse conseguido isso, a próxima vítima teria sido Selford. Em seguida o senhor teria entregue ao tribunal um testamento nomeando-o herdeiro universal dele. Não preciso dizer que esse testamento mostraria a mesma letra que todas as demais cartas de Lord Selford em seu poder: a sua própria letra, senhor Havelock!
Movendo os lábios pela primeira vez, o preso disse em tom de desprezo:
- Conjeturas! Nada que conjeturas!
- Os grafólogos dirão se trata-se apenas de conjeturas ou não. Eu, porém, não preciso de provas. Houve um detalhe que não me passou despercebido: seus dedos manchados de verde, anteontem, quando me exibiu a carta de Selford, do Cairo, que alegadamente acabara de chegar. Que coincidência estranha, senhor Havelock. A carta de Selford fora escrita com tinta verde!
Havelock umedeceu os lábios ressequidos. Dick notou como ele comprimia os polegares nas mãos cerradas. Ele sabia que seu pescoço estava ameaçado.
- Eu admito - disse com voz arrastada, pesando cada palavra - que as aparências são contra mim, mas nem sempre os indícios têm razão. O senhor ainda não conversou com Lord Selford. Ele derrubará toda a construção da sua acusação com uma única palavra!
- Não espere por isso - replicou Dick, com ar sério. - Lord Selford está morto!
Ao ouvir estas palavras. Havelock levantou-se num pulo, esquecendo-se das mãos dos policiais que o seguravam com firmeza.
- Está...? - gaguejou, não conseguindo concluir.
- Sim, está morto! - trovejou Dick Martin com olhar chamejante. - E eu sei o que fizeram com ele! O senhor entregou-o a esse demônio Staletti para suas horríveis experiências, e só isso já chega para levá-lo à forca!
Havelock cambaleou, o seu rosto cobriu-se de uma lividez cadavérica: instintivamente levou a mão ao pescoço. Nisso percebeu que as chaves tinham desaparecido. Dick ergueu o braço com as chaves penduradas entre os dedos. Havelock fez um movimento brusco para arrancá-las da mão do detetive, mas os policiais não o largaram.
A cabeça pendeu-lhe para trás. Todas as veias ressaltaram-lhe no pescoço, seus membros ficaram rígidos. Sua respiração tornou-se sibilante. Tudo isso durou apenas um momento. Em seguida endireitou o corpo, juntou as mãos e disse, com os olhos apagados:
- Podem me algemar. Perdi o jogo!
Os seus lábios cerraram-se e Dick, que o encarava atentamente, sentia que elas não revelariam mais nada até o final amargo, mas justo.



Capitulo 31

- Sete chaves... sete fechaduras - murmurou Dick com ar pensativo ao visitar os túmulos dos Selfords pela manhã, em companhia do Capitão Sneed. Cody possuía uma, a senhora Cody outra, o jardineiro Silva a terceira e Havelock e Staletti, como cabeças da conspiração, tinham as quatro restantes. Assim que tirarem Staletti da água, poderemos abrir a porta da vigésima primeira câmara mortuária.
Tiveram de esperar uma hora; então a turma de salvamento voltou da pedreira carregando três macas cobertas por lençóis. Tom Cawler acompanhava o corpo do irmão, de cabeça baixa.
Dick deteve-o por um instante e disse-lhe baixinho:
- Venha visitar-me um dia destes, Cawler. A senhorita Lansdown faz questão de agradecer-lhe pessoalmente pelo que você fez por ela. E não se preocupe com o futuro. Tudo se arranjará!
Tom Cawler apertou a mão de Dick com firmeza e desapareceu entre as árvores. Além de Dick, ninguém sabia da sua confissão de que Staletti fora morto por ele antes da queda no abismo e nunca ninguém ficaria sabendo desse fato.
Um dos rapazes que tinham ajudado na retirada de Staletti das águas do lago da pedreira trouxe duas chaves molhadas, que Dick recolheu.

Ele foi o primeiro a descer a íngreme escada da cripta. A porta da terceira câmara mortuária estava escancarada. Dick alumiou-a. Havia um grande buraco retangular no chão.
- Aquilo é uma passagem secreta que, passando por baixo da colina, leva diretamente à casa senhorial e termina debaixo da lareira da sala de jantar. Aquela sala era o único aposento que o infeliz Lord Selford visitava de vez em quando. Mesmo assim, somente durante a noite, quando todos dormiam. Dessa maneira Staletti procurava satisfazer, em parte, a saudade que ele tinha do castelo, do lar da sua infância. Como Selford continuava uma criança mesmo depois de crescido, essas horas no castelo constituíam a única alegria na sua triste existência. Quando Staletti descobriu que a senhorita Lansdown tinha fugido da casa de Cody, o seu pupilo achava-se na casa senhorial. Naquele momento Staletti não teve tempo de se preocupar com suas duas criaturas, pois era mais urgente era pôr-se a salvo primeiro e destruir todos os papéis comprometedores em sua residência. As duas indefesas crianças de idade adulta ocultaram-se, juntamente com Tom Cawler, nesta câmara mortuária. Tom deve ter ficado de guarda aqui, enquanto os outros dois foram às escondidas, para o castelo a fim de buscar os brinquedos de Selford.
Dick e o Inspetor Sneed abandonaram a câmara e dirigiram-se para o fim do corredor. Iluminando a vigésima primeira porta, Dick enfiou todas as chaves nas respectivas fechaduras, uma por uma, e deu volta às mesmas.
Depois de girar a sétima chave, a porta abriu-se devagarinho, silenciosamente. Um ar gelado com cheiro de mofo bateu-lhes no rosto. Dick acercou-se imediatamente da urna de pedra e ergueu a tampa. Dentro da urna achou um pequeno cofre de aço. Afora isso, a câmara estava vazia. Eles carregaram o cofre para fora da cripta, fecharam o portão e atravessaram o parque. Ficaram alguns momentos parados diante dos escombros fumegantes do que à véspera ainda havia sido a casa senhorial. Os bombeiros estavam ocupados com a ação de rescaldo. Dali se dirigiram para a casinha do vigia, onde tentaram abrir o cofre. Levaram um bom tempo nesta tarefa. Quando finalmente conseguiram arrombar a tampa, encontraram apenas um rolo de papel. Desdobrando-o, viram tratar-se de um caderno de colégio, como é usado pelas crianças nas escolas para os deveres de composição. As suas folhas estavam cobertas de uma letra floreada. Ambos os homens reconheceram prontamente a caligrafia de Cody.
- Leia em voz alta - pediu Sneed. - Você sabe melhor decifrar letras.
Dick abriu o caderno na primeira página e começou a ler a estranha história da porta das sete chaves.


Capitulo 32
"O presente registro é feito por Henry Colston Bertram, também chamado Bertram Cody, com conhecimento e aprovação de todas as pessoas que apuseram suas assinaturas ao fim deste documento. Ficou assim resolvido por todos a fim de impedir que, na hipótese da detenção de um dos signatários, os demais pudessem eximir-se de culpa, às expensas do detento.
Gregory, Visconde de Selford, faleceu em novembro, há três anos. Tinha sido um indivíduo fora do comum a vida toda, mas no decorrer dos últimos anos anteriores à sua morte as suas manias e extravagâncias tinham assumido formas assustadoras. Um dia concebeu a idéia de transformar todas as suas propriedades em dinheiro vivo e ocultar a soma apurada na câmara mortuária ocupada pelo fundador da linhagem dos Selfords e onde também ele desejava ser sepultado quando chegasse a sua hora. Com esse intento mandou demolir a porta antiga da respectiva câmara mortuária, que dificilmente teria resistido a uma possível tentativa de arrombamento, substituindo-a por outra porta de aspecto idêntico, mas fabricada de concreto e aço pela firma italiana Rizini, de Milão. Também esta porta foi provida de sete fechaduras, cujas sete chaves seriam distribuídas entre os sete testamenteiros que, conforme a vontade de Lord Selford, deveriam entregá-las ao seu filho por ocasião da data do seu vigésimo quinto aniversário. Desta forma esperava ele proteger seu herdeiro ao mesmo tempo contra estelionatários e contra estroinice juvenil. Ele deu conhecimento do seu plano ao senhor Havelock, seu advogado, bem como ao médico italiano Dr. Staletti, que costumava ser um hóspede assíduo do Solar Selford. E embora o Sr. Havelock lhe comunicasse que suas intenções infringiam a legislação vigente que regula as heranças e sucessões, ele não se deixou demover.
Lord Selford era alcoólatra e três semanas antes do seu falecimento sofreu um violento ataque de "delirium tremens". Mal o ataque tinha passado, chegou o Sr. Havelock e confessou-lhe que ele lançara mão de depósitos de clientes seus para especular na bolsa e que sofrera tão grandes prejuízos que estava à beira da falência. Admitindo que Lord Selford se encontrava entre os clientes prejudicados, disse que suplicava seu perdão e que esperava poder contar com a sua proteção em caso da ocorrência de uma ação judicial.
Embora a soma envolvida fosse relativamente pequena, bem inferior à renda anual de Lord Selford, este não se dispôs a aceitar as desculpas do advogado e por cima ainda ameaçou denunciá-lo. Contudo, a agitada discussão abalou ainda mais o corpo já enfraquecido pelo ataque anterior, e Lord Selford teve um derrame cerebral. Foi transportado para o leito pelo advogado, que foi ajudado pela governanta Elisabeth Cawler e um jardineiro português de nome Silva. O Dr. Staletti foi incontinenti chamado à cabeceira, e graças ao seu empenho Lord Selford voltou mais uma vez a si. Em tom veemente reiterou as suas acusações contra o Sr Havelock, de modo que mais três pessoas ficaram inteiradas das irregularidades praticadas pelo Sr. Havelock.
Pouco depois sobreveio um segundo derrame, ao qual Lord Selford não resistiu. Totalmente paralisado, veio a falecer na noite de 14 de novembro, na presença do Sr. Staletti, da Sra. Cawler e do Sr. Havelock. Uma vez que Lord Selford não tivera mais tempo para mudar o texto do seu testamento, o Sr. Havelock, consoante as disposições anteriores, se tornou o único testamenteiro e o tutor do seu filho de seis anos de idade, na ocasião.
O Dr. Staletti propôs à Sra. Cawler e ao jardineiro Silva que silenciassem sobre as acusações do falecido amo contra o Sr. Havelock. Este, em troca do silêncio, deveria dividir entre as quatro testemunhas das acusações os futuros rendimentos das propriedades de Lord Selford. Todos aceitaram a sugestão, inclusive o jardineiro Silva, que a princípio vacilara, mas que, além de ser um homem pobre, odiava Lord Selford por este o ter chicoteado certa ocasião por uma falta diminuta.
Inicialmente, a intenção do grupo consistia em se apoderar apenas dos juros da fortuna, mas sem mexer no capital, até que o jovem lorde atingisse a maioridade. Caberia ao Sr. Havelock exercer a administração dos bens neste sentido e de tal modo que fosse de todo impossível descobrir o que se passava, de maneira que ninguém, em tempo algum, precisasse temer uma acusação ou até mesmo um processo. Entretanto, tornava-se cada vez mais patente que o jovem lorde sofria de infantilismo, o que, conforme o Sr. Havelock passou a explicar aos demais, poderia implicar uma ameaça aos novos beneficiários da fortuna de Selford, pois se a doença do menino chegasse ao conhecimento do tribunal de tutelas, este certamente nomearia para a criança um tutor oficial e incumbiria uma junta da administração dos bens.
Em vista dessas circunstâncias, ficou combinado entre todos que o menino deveria ser colocado numa escola particular cujo diretor teria de assumir o compromisso de silenciar sobre o estado mental da criança. A escolha recaiu sobre o infra-assinado Bertram Cody, autor destas linhas, que tivera o infortúnio de cumprir pena por causa de uma insignificante transgressão. Pouco depois de sair da prisão, o Sr. Cody recebeu do Sr. Havelock a proposta de dirigir uma escola com o jovem Lord Selford como único aluno. O Sr. Cody concordou, recebendo em troca uma excelente remuneração.
Foi assim que o Sr. Cody assumiu a educação do menino, mas ficou logo manifesto que a debilidade mental da criança tornaria inútil qualquer tentativa de ensino. Às inibições psíquicas juntaram-se complicações físicas, o que deixava prever uma morte prematura do pequeno lorde. Nessa situação desesperadora, o Dr. Staletti, surgindo como salvador, declarou que tinha desenvolvido um preparado que, com o sacrifício das funções cerebrais, beneficiava extraordinariamente o desenvolvimento físico. O erudito médico já havia feito experiências bem-sucedidas com ratos, coelhos e cães recém-nascidos. Contudo, em se tratando de seres humanos, o tratamento teria de ser acompanhado por ele dia e noite, a fim de que o paciente tratado com esse preparado não se tornasse uma criatura perigosa devido ao desenvolvimento descomunal do corpo. Afirmava o Dr. Staletti que a identidade de uma pessoa podia ser facilmente destruída e substituída por uma obediência automática por meio de sugestão e hipnose, desde que o processo fosse iniciado ainda na infância. A mais ardente ambição do Dr. Staletti era criar uma raça de homens fisicamente perfeitos, dotados de imensa força muscular, que pudessem ser dirigidos como máquinas por um único cérebro. Era isso que o Dr. Staletti se propunha a fazer com o jovem Lord Selford: transformá-lo num servo, forte e obediente, que só conhecesse uma única vontade... a daquele a quem servir.
As suas idéias tiveram a aprovação do Sr. Bertram Cody e dos demais, com exceção do Dr. Havelock, que não estava convencido do êxito de semelhante experiência, nem desejava expor o seu pupilo a um tratamento que talvez oferecesse perigo de vida. Ocorreu então à Sra. Cawler a idéia de pôr à disposição do Dr. Staletti, para uma experiência idêntica, o seu sobrinho, que após a morte do irmão havia sido confiado aos cuidados dela. O Dr. Staletti afiançou ao Sr. Havelock que ele iria ver com os próprios olhos que suas teorias não eram fantasias e, com efeito, no curso de poucas semanas obteve resultados surpreendentes. O menino, franzino de corpo e de temperamento teimoso, depois de oito dias de tratamento já obedecia submissamente às ordens recebidas e desenvolvera-se fisicamente de uma maneira extraordinária, ao passo que sua inteligência declinara perceptivelmente. Diante disso, as objeções do Sr. Havelock deixaram de existir.
No mesmo tempo em que estes fatos ocorreram, o Sr. Bertram Cody sugeriu que os eventos que tinham conduzido a esta situação fossem registrados por escrito, em ordem cronológica, a fim de que nenhum dos co-responsáveis pudesse, mais tarde, tentar negar a sua participação. O documento deveria ser assinado por todos e depositado em lugar seguro, ao qual todos tivessem acesso, mas só conjuntamente. Esse lugar já existia. Onde poderia o segredo ficar mais bem guardado do que atrás da porta das sete chaves?
Uma vez que a nova porta ainda não havia sido entregue até o dia da morte do velho lorde, o seu caixão fora depositado no nicho da câmara mortuária de número seis. Nesse ínterim, porém, a porta já tinha sido colocada, e as chaves se encontravam em poder do Sr. Havelock. Foram agora distribuídas entre os sete signatários do presente documento, que será depositado na urna de pedra.
Atualmente Lord Selford encontra-se sob a guarda do Dr. Staletti. Fisicamente progrediu muito, mas ele não se lembra do seu nome e se diverte com folguedos infantis. Ambos os meninos executam todas as ordens do Dr. Staletti e são tão robustos que, mesmo no inverno, brincam no parque quase nus, sem se queixarem do frio.
Atendendo a uma sugestão do Dr. Staletti, e de acordo com o desejo do Sr. Havelock, o Sr. Bertram Cody consorciou-se com a Sra. Cawler, conquanto..
(O que se seguia havia sido riscado com tinta várias vezes, mas mesmo assim foi possível distinguir as palavras "tivesse planos diferentes para o futuro".)
Os signatários não temem a descoberta do conluio. O único parente vivo de Lord Selford é um primo distante, que já durante a vida de Lord Selford rompera todas as relações com a casa Selford.
O Sr. Havelock pretende divulgar, em época oportuna, que Lord Selford se encontra no estrangeiro, em viagens de estudos.
Em sinal da verdade do acima declarado, subscrevemos..."
Seguiam-se as assinaturas de todos os implicados.
Ao anoitecer Dick retornou ao seu apartamento em Londres. Devagarinho abriu a porta espelhada do seu guarda-roupa. Nas sombras do interior do armário parecia formar-se um rosto pálido; olhos tristes encaravam-no, numa queixa trágica.
- Você foi vingado, Lew Pheeney - disse Dick baixinho.
E foi postar-se à janela, os olhos fixos na escuridão. Linhas duras se cavaram, do seu nariz para os cantos da boca. Ele odiava Staletti sobretudo por causa deste homicídio. Quanto aos demais crimes por ele praticados, com o tempo ele os esqueceria... mas esta ferida não cicatrizaria nunca. Jamais ele esqueceria o ladrão Lew Pheeney.
Uma hora mais tarde um carro de praça parou em frente do prédio número 107 da Coram Street. Dick apeou e pagou a corrida, depois levantou os olhos para as janelas que agora já lhe eram familiares.
Com passos vagarosos entrou.
Sybil veio recebê-lo à porta. A expressão de alivio que assomou no rosto da moça quando ela o avistou, recompensou-o por todos os contratempos que havia sofrido por causa dela.
- É você, graças a Deus! - disse ela baixinho, com um frêmito de alegria. - Tive muito medo, mas agora está tudo bem. Estou tão contente, embora... - Ela fez uma pausa, depois recomeçou: - Todas essas coisas horríveis que aconteceram ainda me atormentam e angustiam. Mas, por favor, entre. Apesar de estar sozinha, não posso deixá-lo parado na soleira da porta.
E levou-o para a sala de estar.
- É verdade que Havelock se encontra preso? Foi o que noticiaram os jornais.
Ele confirmou com um aceno de cabeça e acrescentou lentamente.
- Também já sabe que é propriedade sua tudo aquilo que o incêndio destruiu?
- Propriedade minha? Como assim? - ela fitou-o, meio aturdida.
- Lord Selford está morto - disse Dick em tom grave. - Você é sua legítima herdeira.
Em seguida contou-lhe o que acontecera, pois muitas coisas a imprensa ainda ignorava.
Quando ele lhe relatou a vida trágica de Lord Selford, ela cobriu os olhos com a mão. Por algum tempo ficaram em silêncio. Depois ele tomou-lhe a mão carinhosamente.
- Agora você é rica. Poderá até reconstruir o castelo. Oh, Sybil...
Ele baixou o olhar, passando nervosamente os dedos no cabelo.
- O que é, Dick? - perguntou ela, inclinando-se para a frente.
- Tudo isso não vai mudar as coisas?
- Mudar? Que coisas? Não entendo.
- Daqui em diante todas as portas lhe estarão abertas. Um futuro cheio de belas promessas a espera. Isso não vai afetar seus sentimentos?
- Ora, o que sabe sobre meus sentimentos? - perguntou ela com ar travesso.
Um sorriso indeciso encrespou os cantos da boca enérgica de Dick Martin.
- Muito... e pouco - disse, encabulado.
- Praticamente nada! - retrucou Sybil.
- É verdade, praticamente nada - concordou ele, fitando o chão. Mas logo se endireitou, seus olhos brilharam: - Entretanto, sei tudo sobre os meus próprios sentimentos. Você me dá licença para lhe dizer algumas coisas a respeito deles?
Ela aproximou-se devagarinho e sentou-se no braço da poltrona ocupada por ele.
- Sim! Vá falando! - sussurrou junto do ouvido dele, com uma expressão de expectativa.

Fim

HORA ZERO
AGATHA CHRISTIE




http://groups-beta.google.com/group/digitalsource















HORA ZERO
Neste momento, algum
drama, algum assassinato estava sendo
planejado. Se eu estivesse
escrevendo uma dessas interessantes histórias
de crime e sangue, começaria com
um velho senhor abrindo sua correspondência
em frente à lareira, indo
irremediavelmente de encontro à hora zero.
COLEÇÃO AGATHA CHRISTIE.

Agatha Christie
HORA ZERO
Tradução de
ELIANE FONTENELLE
5.a edição









EDITORA
NOVA
FRONTEIRA



























Título original em inglês
TOWARDS ZERO


Copyright © 1944 by Agatha Christie Mallowan


Capa:
ROLF GUNTHER BRAUN


Revisão:
REINALDO GAIO DE OLIVEIRA



Direitos adquiridos somente para o Brasil pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A
Rua Maria Angélica, 168 - Lagoa - CEP.: 22.461 - Tel.: 246-8066
Endereço Telegráfico: NEOFRONT Rio de Janeiro — RJ


Proibida exportação para Portugal ou províncias ultramarinas
e países africanos de língua portuguesa.


Esta obra foi impressa na Monsanto, para a Editora Nova
Fronteira, em agosto de 1980.

Índice





Personagens
Prólogo
Abra a Porta. Eis as pessoas
Branca de Neve e rosa vermelha
Um toque de mestre
Hora Zero

Personagens
Sr.Treves — Um maduro e experiente advogado de 80 anos, cuja excelente memória de crimes anteriores causou sua morte.
Andrew MacWhirter — Um homem completamente arruinado, salvo a contra gosto de uma tentativa de suicídio, estava por acaso no mesmo local, alguns meses depois, para prestar o mesmo serviço a uma moça em desespero.
Superintendente Battle — Um detetive de fisionomia impassível, da Scotland Yard, cujo sistema metódico de investigações fazia com que sempre estivesse em atividade, mesmo durante suas férias.
Srta. Amphrey — Uma bem sucedida diretora de um Colégio de Moças; um ótimo exemplo do perigo de teorias psicológicas imaturas na cabeça de um amador.
Sylvia Battle — A jovem filha do Superintendente. Sua dolorosa experiência no internato ajudou o pai a salvar uma vítima inocente.
Nevile Strange — Um verdadeiro Apolo; tinha tudo que um homem poderia desejar, inclusive uma excelente reputação como atleta, uma grande conta bancária e duas lindas esposas. Entretanto, não era feliz.
Kay Strange — Jovem e de natureza vibrante, com um temperamento que se equiparava a seus inigualáveis cabelos ruivos. Definitivamente não era o tipo de mulher para ficar em segundo plano em relação à primeira esposa de Nevile.
Lady Camilla Tressilian — Uma autocrata inválida que gostava imensamente de receber, mas que impôs um limite quando Gull's Point se transformou num "Ménage à trois".
Mary Aldin — Abnegada e devotada dama de companhia da idosa Lady Camilla; apreciava sua posição de mediadora numa casa repleta de hóspedes tensos, até isso se tornar demasiado, mesmo para sua enorme paciência.
Audrey Strange — Sua beleza apagada e sem muito colorido tomou conta de Gull's Point, perturbando Nevile Strange e enfurecendo sua atual esposa.
Thomas Royde — Conhecido como "Fiel Thomas" por causa de sua irmã adotiva, Audrey, escondia um coração apaixonado sob sua aparente fleumática indiferença.
Ted Latimer — O atraente jovem, amigo de Kay Strange, que sempre aparecia inesperadamente onde ela estivesse.
Inspetor James Leach — Sobrinho de Battle. Novo em sua profissão, e uma vez designado para tratar do caso de assassinato em Gull's Point, aceitou a ajuda do tio, com quem aprendeu inúmeras lições úteis.


Prólogo
19 de novembro

O grupo, em volta da lareira, era quase todo de advogados ou pessoas interessadas em Direito. Ali estavam Martindale, o solicitador, Lorde Rufus, K. C., o jovem Daniels que se tornou famoso com o caso Carstairs e outros advogados; o Sr. Justice Cleaver, da Lewis e Lewis e ainda, o velho Sr. Treves. Este, com os seus quase 80 anos de experiência, era o mais importante membro de um famoso escritório de advocacia. Havia solucionado vários casos difíceis no tribunal, e era tido, mais do que qualquer outro homem no país, como um profundo conhecedor "dos bastidores" da História da Inglaterra, além de ser um grande criminalista.
Os imprudentes achavam que o Sr. Treves deveria escrever suas Memórias, mas ele não o faria, pois estava certo de que sabia demais.
Apesar de estar há muito tempo aposentado, não havia na Inglaterra homem nenhum cuja opinião fosse tão acatada pelos colegas de profissão. Sempre que sua voz pequena e precisa se levantava, havia um silêncio respeitoso.
A conversa girava em torno de um caso muito comentado que tinha sido resolvido naquele dia, no Old Bailey. Era um caso de assassinato e o acusado havia sido dado como inocente. Os presentes estavam ocupados reexaminando o caso e fazendo críticas do ponto de vista jurídico.
A acusação cometera um erro em confiar numa de suas testemunhas; o velho Depleach deveria ter percebido a oportunidade que estava dando à defesa. O jovem Arthur explorou ao máximo o depoimento da criada. Bentmore, em sua alegação final, situou o assunto em sua perspectiva correta, mas já então o dano estava feito: os jurados acreditaram na moça.
Os jurados são engraçados! Nunca se sabe no que estão acreditando. No entanto, no momento em que colocam uma idéia na cabeça, ninguém consegue tirá-la. Admitiram que a moça estava falando a verdade sobre a alavanca, e "ponto final".
O laudo médico havia sido muito complicado para que os jurados pudessem entendê-lo. Todas aquelas expressões técnicas, o palavreado científico, as péssimas testemunhas, aqueles "cientistazinhos" sempre hesitando ao falar, não sabendo dizer sim ou não a uma pergunta simples, sempre "sob certas circunstâncias que poderiam ter ocorrido", e assim por diante!
À medida que discutiam e as observações se tornavam tumultuadas e contraditórias, crescia uma sensação de que alguma coisa estava faltando. Uma após outra, as cabeças se viraram na direção do Sr. Treves, já que ainda não havia emitido a sua opinião. Aos poucos sentiu-se claramente que todos ali esperavam a palavra final de seu mais conceituado colega.
O Sr. Treves, recostado na cadeira, limpava os óculos distraidamente. Alguma coisa no silêncio fez com que levantasse a cabeça e olhasse com atenção.
— Hein? — disse ele. — O que foi? Alguém perguntou alguma coisa?
O jovem Lewis falou:
— Estávamos comentando o caso Lamorne.
E parou em atitude de expectativa.
— Sim, sim — disse o Sr. Treves. — Estava mesmo pensando sobre isto...
Fez-se um silêncio respeitoso.
— Mas receio — continuou o Sr. Treves, limpando os óculos — que eu estava imaginando coisas a respeito. Sim, fantasiando. Creio que é conseqüência da velhice. Na minha idade podemos ter o privilégio de ser imaginativos, se quisermos, é claro.
— Realmente senhor — comentou o jovem Lewis parecendo confuso.
— Estava pensando — falou o Sr. Treves — não apenas nos vários pormenores da lei, apesar de terem sido interessantes... muito interessantes! Se o veredito tivesse sido outro, teriam bons motivos para apelação... creio eu. Mas não quero discutir isso agora. Estava apenas pensando, como disse, não nos pormenores da lei, mas, nas... bem, nas pessoas envolvidas no caso.
Todos olharam um tanto espantados. Tinham considerado essas pessoas apenas no que dizia respeito à veracidade do que falaram ou então, como simples testemunhas. Nenhum deles, sequer, arriscou uma especulação sobre se o réu era culpado ou inocente, como o tribunal havia pronunciado.
— Seres humanos, como sabem — continuou o Sr. Treves, pensativo —, seres humanos de todo tipo, espécie, tamanho e forma. Alguns inteligentes, outros não. Vindos de todos os lugares, Lancashire ou Escócia, como aquele proprietário de um restaurante na Itália e aquela professora de algum lugar do Middle West. Todos apanhados, envolvidos no caso e finalmente levados juntos, num dia cinzento de novembro ao tribunal em Londres. Cada qual contribuindo com uma pequena parte. E tudo culminando num julgamento por crime de assassinato.
Parou e bateu levemente no joelho.
— Gosto de um bom romance policial, mas como se sabe, sempre começam do ponto errado! Começam do assassinato. Entretanto, o assassinato é o final. A história começa muito antes disso: algumas vezes anos antes, com todos os motivos e fatos que trazem certas pessoas a certos lugares, numa certa hora e num certo dia. Veja o testemunho da jovem criada: se a cozinheira não tivesse roubado seu namorado, ela não teria se descontrolado, e num acesso de raiva, ido à casa dos Lamornes tornando-se assim a principal testemunha da defesa. O tal Giuseppe Antonelli chegara para ficar no lugar do irmão por um mês. O irmão que é cego como um morcego, não teria visto o que os olhos aguçados de Giuseppe viram. Se o guarda não tivesse namoricado a cozinheira do n° 48, não teria se atrasado em sua ronda...
Balançou a cabeça levemente.
— Todos se dirigindo para um determinado lugar... E então, quando chegar a hora: o clímax! Hora zero. Sim, todos convergindo para a hora zero... Hora zero — repetiu ele.
Teve então um pequeno estremecimento.
— O senhor está com frio. Chegue mais perto da lareira.
— Não, não — disse o Sr. Treves. — É como se alguém estivesse andando sobre meu túmulo. Bem, preciso ir para casa.
Com um ligeiro e afável cumprimento, saiu da sala vagarosamente e com firmeza.
Houve um vago silêncio. Em seguida Rufus, Lorde, K. C., observou que o pobre Sr. Treves estava envelhecendo.
O Sr. Willian Cleaver comentou:
— É um cérebro muito perspicaz... realmente muito perspicaz.
— Seu coração já está fraco — disse o Lorde. — Pode morrer a qualquer momento.
— Mas ele sabe se cuidar — ressaltou o jovem Lewis. Naquele momento, o Sr. Treves entrava cuidadosamente em seu confortável Daimler, que o levaria até o quarteirão sossegado onde ficava sua casa. Um solícito mordomo ajudou-o a tirar o casaco.
Entrou em sua biblioteca onde a lareira ardia. Seu quarto ficava no mesmo andar pois seu coração o impedia de subir escadas. Sentou-se em frente ao fogo e apanhou as cartas. Seu pensamento ainda divagava na fantasia que esboçara no Clube.
Neste momento, algum drama, algum assassinato futuro estava sendo planejado. Se eu estivesse escrevendo uma destas interessantes histórias de crime e sangue, começaria com um velho senhor abrindo sua correspondência em frente à lareira, indo irremediavelmente de encontro à hora zero.
Abriu o envelope e olhou distraidamente para a folha de papel que tinha nas mãos. De repente sua expressão mudou. Saiu da fantasia para a realidade.
— Meu Deus! — disse o Sr. Treves. — Que aborrecimento! Realmente muito desagradável! Depois de tantos anos! Isto vai alterar os meus planos.

Abra a Porta. Eis as pessoas
11 de janeiro

O homem deitado na cama do hospital moveu-se soltando um gemido. A enfermeira de serviço, levantando de sua mesa, dirigiu-se até ele. Arrumando os travesseiros, colocou-o numa posição mais confortável.
Andrew MacWhirter apenas resmungou um agradecimento. Estava num estado de profunda revolta e amargura.
A esta hora tudo já deveria ter acabado. Deveria estar livre de tudo! Maldita árvore crescendo no penhasco! Malditos namoradinhos intrometidos que enfrentaram a noite fria de inverno para comparecer ao encontro na beira do penhasco. Não fossem eles e aquela árvore, e tudo teria terminado num mergulho na profunda água gelada. Talvez, uma rápida tentativa de luta para sobreviver, e então o esquecimento: o fim de uma vida mal vivida, inútil e vazia.
E agora, onde estava ele? Deitado ridiculamente numa cama de hospital, com o ombro quebrado e na expectativa de ser levado pela polícia ao tribunal, por crime de tentativa de suicídio.
Maldição! Era a sua própria vida, não?
Se seu intento tivesse sido bem sucedido, o teriam enterrado piedosamente como um doente mental.
Maluco? Nunca estivera tão lúcido! O suicídio era a atitude mais lógica e sensata para um homem naquela situação.
Completamente arruinado financeiramente, com a saúde afetada para sempre, com uma esposa que o deixara por outro homem, sem emprego, sem carinho, sem dinheiro, saúde ou esperança, certamente acabar com tudo seria a única solução possível.
E agora estava numa situação ridícula. Breve seria admoestado, por um juiz santarrão, por haver feito a única coisa ajuizada com aquilo que somente a ele pertencia: a sua vida!
Bufou de raiva. Uma onda de febre o invadiu.
A enfermeira estava novamente a seu lado. Era jovem, ruiva, um rosto bondoso com um ar distraído.
— Está sentindo muita dor?
— Não, não estou.
— Vou lhe dar alguma coisa para dormir.
— Você não vai fazer nada disso.
— Mas...
— Acha que não posso suportar um pouco de dor e insônia?
Ela sorriu, gentilmente, de maneira um tanto superior.
— O médico disse que você poderia tomar alguma coisa.
— Não me importa o que disse o médico.
Ela ajeitou as cobertas e colocou o copo de limonada mais perto do doente. Envergonhado de si mesmo, ele falou:
— Desculpe. Fui grosseiro.
— Não. Está tudo bem.
O fato de ela permanecer completamente impassível a seu mau humor o perturbava. Nada penetraria sua couraça de indulgente indiferença. Ele era um paciente e não um homem.
— Maldita interferência. Toda aquela maldita interferência... — disse ele.
Com ar de reprovação ela retrucou:
— Ora, ora, isto não foi muito gentil.
— Gentil? — exclamou ele. — Gentil? Meu Deus!
— Você se sentirá melhor pela manhã — respondeu, engolindo em seco.
— Vocês enfermeiras. Enfermeiras! São desumanas, isto é o que são!
— Sabemos o que é melhor para vocês.
— Isto é o que mais me enfurece. Você, o hospital, o mundo. A contínua interferência, sabendo sempre o que é melhor para as pessoas. Tentei me matar. Você sabe disso, não sabe?
Ela concordou com a cabeça.
— Era uma problema só meu me atirar ou não daquele penhasco. Para mim a vida terminara. Estava completamente arruinado.
A enfermeira estalou a língua num gesto de simpatia. Ele era um enfermo e ela o acalmava, deixando-o desabafar.
— Por que não devo me matar, se esta é minha vontade? — perguntou.
— Porque é errado — respondeu ela com seriedade.
— Errado por quê?
Ela o olhou indecisa. Não por falta de convicção, mas por não ter facilidade para se expressar.
— Bem, quero dizer, não é certo a pessoa se matar. Você tem que continuar vivendo, quer queira, quer não.
— Por quê?
— Bem, existem outras pessoas a considerar, não existem?
— Não no meu caso. Não há uma só pessoa no mundo que sentiria minha morte.
— Não tem parentes? Mãe, irmãs ou mais alguém?
— Não. Tinha uma esposa mas ela me abandonou. E estava certa! Viu que eu não servia para nada.
— Mas você tem amigos, não é certo?
— Não, não tenho. Não sou do tipo sociável. Olha aqui enfermeira, vou lhe contar uma coisa. Já fui um sujeito feliz. Tinha um bom emprego e uma mulher bonita. Houve um acidente de carro. Meu patrão estava dirigindo e eu estava com ele. Ele queria que eu dissesse que na hora do acidente estava dirigindo a menos de 50 quilômetros. Mas não estava. Estávamos a quase 80. Ninguém morreu, ou coisa parecida. Ele apenas queria estar com a razão para poder receber o seguro. Bem, não disse o que ele queria. Era uma mentira. E eu não minto!
— Bem, acho que você estava absolutamente certo. Realmente certo — disse ela.
— Você acha, não? Pois esta minha teimosia me valeu o emprego. Meu patrão foi perverso. Providenciou para que não conseguisse outro emprego. Minha mulher se cansou de me ver perambulando, incapaz de conseguir trabalho. E então foi embora em companhia de um amigo meu que estava progredindo e melhorando na vida. Vagueei, descendo sempre. Comecei a beber e isto não me ajudou a manter os empregos. Finalmente fui arrastado para baixo. Minha saúde ficou abalada, irremediavelmente abalada, como disse o médico. E a esta altura já não havia mais motivo para viver. O caminho mais fácil e mais honesto era desaparecer. Minha vida não tinha o menor valor, nem para mim, nem para os outros.
— Você não pode estar certo disso — retrucou a jovem enfermeira.
Ele riu. Já estava mais bem-humorado. Sua teimosia o divertia.
— Minha querida, para que é que eu sirvo?
— Nunca se sabe. Você pode algum dia...
— Algum dia? Não vai haver "algum dia". Na próxima vez, não vou falhar.
A enfermeira balançou a cabeça, resoluta.
— Ah não! — disse. — Vocês nunca tentam a segunda vez!
— Por que não?
— Vocês nunca tentam!
Então ele a encarou. "Vocês nunca tentam!"... Agora pertencia à classe dos futuros suicidas. Ao abrir a boca para protestar energicamente, sua honestidade inata o fez parar.
Tentaria de novo? Tinha realmente a intenção de fazê-lo?
De repente soube que não tentaria. Por nenhum motivo especial. Talvez o motivo exato fosse aquele dado por ela. Suicidas não tentam outra vez.
Além do mais ele se sentia decidido a forçar uma revelação do ponto de vista ético, por parte dela.
— De qualquer maneira tenho o direito de fazer o que quiser com a minha própria vida.
— Não. Você não tem.
— Mas por que minha querida?
Ela corou. Brincando com a pequena cruz de ouro pendurada em seu pescoço, falou:
— Você não compreende? Deus pode precisar de você.
Ele a encarou surpreso. Não queria perturbar sua fé infantil. Disse zombando:
— Suponho que um dia eu pare um cavalo fugitivo e salve da morte uma criança de cabelos dourados, hein? É isto?
Ela balançou a cabeça. Tentando expressar o que estava tão vivido em sua mente e tão hesitante em sua fala, disse com veemência:
— Pode ser apenas por estar em algum lugar, não por fazer alguma coisa, só por estar num determinado lugar numa determinada hora. Oh! não consigo dizer o que penso; entanto você pode estar simplesmente andando por uma rua algum dia, e só em fazer isto, realizar algo terrivelmente importante. Talvez nem mesmo sabendo que o fez.
A jovem e ruiva enfermeira era natural da costa ocidental da Escócia e parte de sua família tinha "visões".
Talvez ela tenha visto vagamente a imagem de um homem andando por uma estrada numa noite de setembro e salvando um ser humano de uma morte terrível.
14 de fevereiro

Havia uma única pessoa na sala e o único barulho que se ouvia era o da caneta rabiscando palavra por palavra no papel.
Não havia ninguém para ler o que estava sendo escrito. Se houvesse, dificilmente acreditaria no que estava vendo, porque estava sendo traçado um claro e detalhado plano de assassinato.
Há momentos em que o corpo tem consciência de que a mente o controla. É quando se curva obediente àquele algo estranho que comanda as ações. Há outros momentos em que a mente está consciente de possuir e controlar um corpo, e de realizar seu propósito ao usá-lo.
Era neste último estado que se encontrava a pessoa que escrevia.
Era uma inteligência fria e controlada. Esta cabeça tinha apenas um pensamento e um propósito: a destruição de um outro ser humano.
A fim de alcançar o propósito, o plano estava sendo cuidadosamente traçado no papel. Cada possibilidade e cada eventualidade estavam sendo consideradas. Tinha que ser absolutamente seguro. O esquema, como todo bom esquema, não estava completamente estabelecido. Sempre existiriam certas alternativas de ações em determinadas circunstâncias. Além disso, sendo inteligente, compreendia que era preciso estar preparado para os imprevistos. Contudo, as partes principais estavam claras e haviam sido cuidadosamente testadas. A hora... o lugar... a maneira... a vítima...
Levantou a cabeça. Apanhou as folhas de papel e leu cuidadosamente. Sim. Estava tudo claro como cristal.
Apareceu um sorriso em seu rosto sério. Não era um sorriso completamente são. Respirou fundo. Da mesma forma que o homem foi feito à imagem de seu Criador, ali estava agora um que era uma terrível caricatura da alegria de um criador.
Sim. Estava tudo planejado. Todas as reações previstas e levadas em consideração: o bem e o mal de cada um, explorados e harmonizados com um intento diabólico.
Faltava porém um detalhe...
Com um sorriso, marcou uma data. Uma data em setembro...
Então, com um riso, rasgou o papel, pegou os pedaços, atravessou a sala, e jogou-os no fogo reluzente. Não haveria descuido. Cada pedacinho foi consumido e destruído. Agora o plano existia somente na cabeça de seu criador.
18 de março

O Superintendente Battle estava sentado à mesa do café. Com o maxilar cerrado lia devagar e com atenção a carta que sua esposa lhe entregara chorosa. Não havia em seu rosto nenhuma expressão. Como sempre, nada denunciava. Tinha o aspecto de um rosto esculpido em madeira. Sólido, durável e de certa forma impressionante.
O Superintendente nunca sugeria brilhantismo; definitivamente não era um homem brilhante. Tinha, porém, outras qualidades difíceis de se definir, embora fossem poderosas.
— Não posso acreditar — disse a Sra. Battle soluçando. — Sylvia!
Sylvia era a mais nova dos cinco filhos do casal. Tinha 16 anos, e estava num colégio perto de Maidstone.
A carta era da Srta. Amphrey, diretora do colégio. Estava escrita de uma forma gentil, precisa e com muito tato: Expunha uma série de pequenos roubos que durante algum tempo haviam intrigado as autoridades escolares, e que finalmente haviam sido esclarecidos, uma vez que Sylvia Battle os havia confessado. A Srta. Amphrey gostaria ainda de ver o Sr. e a Sra. Battle na primeira oportunidade para que o problema fosse discutido.
O Superintendente Battle dobrou a carta. Colocando-a no bolso falou:
— Deixe isto comigo, Mary.
Levantou-se, deu a volta à mesa, fez um carinho no queixo da Sra. Battle e disse:
— Não se preocupe querida. Vai dar tudo certo.
Saiu da sala, deixando atrás de si o conforto e a segurança.
Naquela tarde, na moderna sala de visitas privativa da Srta. Amphrey, o Superintendente, sentado ereto, com suas grandes e rudes mãos pousadas nos joelhos, encarava a diretora, conseguindo parecer muito mais do que habitualmente, um policial em cada milímetro.
A Srta. Amphrey era uma diretora bem sucedida. Tinha personalidade, uma grande dose de personalidade. Era esclarecida e atualizada. Associava disciplina com avançadas idéias de autodeterminação. Sua sala traduzia o espírito de Meadway. Era tudo em cor creme, com grandes jarras de narcisos e taças de tulipas e jacintos. Na parede uma ou duas boas reproduções do grego antigo, duas esculturas modernas, dois primitivos italianos. Em meio a isto, ela própria vestida de azul escuro, com um rosto ansioso que fazia lembrar um galgo e com seus olhos azuis-claros observando com seriedade através de grossas lentes.
— O mais importante — dizia ela com sua voz clara e bem modulada — é que o assunto seja conduzido de forma correta. Devemos em primeiro lugar nos preocupar com a menina, Sr. Battle. Com a pessoa de Sylvia! É importante, muito importante, que sua vida não seja afetada de modo algum. Ela não deve ser forçada a assumir a responsabilidade do furto. No caso de ser julgada, a atitude dela deve ser encarada com indulgência. Devemos descobrir o que existe por trás desses pequenos roubos. Será talvez um complexo de inferioridade? Como o senhor sabe, ela não se sai bem nos esportes. Ou quem sabe tenha um desejo oculto de se sobressair noutro setor? Ou ainda um desejo de afirmação? Por essa razão quis falar-lhe a sós em primeiro lugar para aconselhá-lo a ser cauteloso ao tratar com Sylvia. Repito que é muito importante compreender o que há por trás disto.
— É por este motivo, Srta. Amphrey, que estou aqui — disse o Superintendente Battle.
Sua voz estava calma, o rosto imperturbável, examinando e avaliando a diretora.
— Tenho sido muito compreensiva com ela — afirmou.
— Meus parabéns minha senhora — retrucou ele lacônico.
— O senhor sabe, realmente amo e compreendo estas meninas.
Battle não respondeu a isto. Apenas comentou:
— Se não se importa, gostaria de ver minha filha agora.
Novamente, com ênfase, a Srta. Amphrey o advertiu para ser cuidadoso, falar com tato, não contrariar uma menina que está se tornando mulher.
O Superintendente não mostrava sinais de impaciência. Seu rosto estava inexpressivo.
Finalmente ela o levou para o gabinete. Depararam com uma ou duas meninas no caminho que permaneceram de pé, educadamente, mas com os olhos cheios de curiosidade. Depois de introduzir Battle na pequena sala que não refletia tanta personalidade como a do andar de baixo, a Srta. Amphrey retirou-se dizendo que iria buscar Sylvia.
No momento em que ia saindo, Battle a deteve.
— Espere um instante. Como a senhorita descobriu que era Sylvia a responsável por estes desaparecimentos?
— Usei meus métodos psicológicos, Sr. Battle — falou a diretora com dignidade.
— Psicológicos? Hum!... E quanto às evidências, Srta. Amphrey?
— Já sabia que seria esta a sua reação, Superintendente. É efeito de sua profissão. No entanto a psicologia está começando a ser reconhecida dentro da Criminologia. Posso lhe assegurar que não houve erro. Sylvia admitiu tudo espontaneamente.
Battle balançou a cabeça.
— Sim, eu já sei disto. Estava apenas perguntando como a senhorita veio a desconfiar dela.
— Bem, Sr. Battle, o número de coisas desaparecidas do vestiário aumentava. Reuni então as alunas e expus os fatos, enquanto estudava discretamente suas fisionomias. A expressão de Sylvia chamou-me atenção imediatamente. Trazia a culpa estampada no rosto! Naquele instante descobri quem era a culpada. Não queria forçá-la a confessar, mas sim fazê-la admitir o erro por si mesma. Preparei um pequeno teste para ela: um teste de associação de palavras,
Ele balançou a cabeça para mostrar que estava compreendendo. .
— E finalmente a menina confessou tudo.
— Entendo — disse o pai.
A diretora hesitou por um momento e então saiu.
Battle estava olhando pela janela, quando a porta se abriu novamente. Voltou-se e olhou para a filha.
Sylvia estava parada perto da porta que acabara de fechar. Era alta, morena e angulosa. Seu rosto estava sombrio e trazia vestígios de lágrimas. Falou de um modo mais tímido do que desafiante:
— Bem, aqui estou eu.
Battle olhou-a atentamente por um minuto ou dois e suspirou:
— Nunca deveria tê-la mandado para este lugar — comentou ele. — Aquela mulher é uma tola.
Sylvia, completamente surpresa, esqueceu-se até de seu problema.
— A Srta. Amphrey? Mas ela é maravilhosa! Todas nós achamos.
— Hum! Então não deve ser assim tão tola, uma vez que consegue ser tão bem aceita. De qualquer maneira este não era o lugar apropriado para você, embora tudo isto pudesse ter acontecido em qualquer outro lugar.
Sylvia torceu as mãos. Olhou para baixo e disse:
— Sinto muito, papai. Estou realmente arrependida.
— Pois deveria estar mesmo — retrucou abruptamente. — Venha cá.
Ela se encaminhou devagar e de má vontade até o pai; este, segurando-lhe o queixo com sua mão forte, a encarou:
— Você tem passado por maus momentos, não — é? — perguntou carinhosamente.
Vieram lágrimas aos olhos de Sylvia.
— Olhe, Sylvia, sempre soube que havia "algo" com você. A maioria das pessoas apresenta uma ou outra forma de fraqueza. Normalmente é uma coisa banal. Pode-se observar quando a criança é egoísta, tem mau gênio ou é briguenta. Você foi uma criança boa, muito sossegada, de temperamento dócil, e que não criou nenhum problema; o que me preocupou algumas vezes. Quando existe algum defeito que não podemos perceber, este defeito, por vezes, arruina totalmente o indivíduo no momento em que ele é posto à prova.
— Assim como eu? — perguntou Sylvia.
— Sim, como você. Você desmoronou sob tensão, e também de uma forma muito estranha. De maneira tão esquisita como nunca vi antes.
— Sempre pensei que você encontrasse ladrões com bastante freqüência — concluiu ela repentinamente e com ironia.
— Ah sim! Eu os conheço bem. E é por isso, minha querida, e não por ser seu pai (os pais pouco sabem a respeito dos filhos), mas sim um policial, que me leva a ter certeza de que você não é uma ladra. Você nunca tirou nada deste lugar. Há dois tipos de ladrão: o tipo que se entrega a súbita e irresistível tentação (e isto acontece muito raramente. E impressionante o número de tentações a que um ser humano comum, normal e honesto pode resistir), e o tipo que simplesmente se apossa do que não lhe pertence como se isto fosse um fato natural. Você não pertence a nenhum dos dois tipos. Você não é uma ladra, mas sim um tipo raro de mentirosa.
— Mas... — Sylvia começou a falar.
Ele continuou, num impulso:
— Você admitiu tudo? Sim, eu sei. Existia uma santa que destribuía pão para os pobres. Seu marido não aprovava. Aproximou-se dela e perguntou o que havia na cesta. Ela perdeu a calma e disse que eram rosas. Ele abriu a cesta com violência e lá estavam as rosas: um milagre! Se você tivesse sido Santa Isabel e saísse com uma cesta de rosas, e seu marido chegasse e perguntasse o que você estava carregando você perderia a calma e diria:
— Pão.
Fez uma pausa e depois disse carinhosamente:
— Foi assim que aconteceu, não foi?
Houve um silêncio ainda maior, e repentinamente Sylvia baixou a cabeça. Seu pai pediu:
— Conte-me filha. O que aconteceu exatamente?
— Ela nos reuniu. Fez um discurso. Vi seus olhos fixos em mim, e senti que eles me achavam culpada. Senti-me enrubescer, e notei que algumas garotas olhavam para mim. Foi horrível. Então as outras começaram a me olhar e a cochichar. Sabia o que pensavam. Assim, certa noite a Amp nos trouxe, a mim e as outras meninas, aqui para cima, e fizemos um certo tipo de jogo de palavras: ela dizia algumas palavras e nós dávamos respostas...
Battle resmungou aborrecido.
— Compreendi o que aquilo significava e fiquei de certo modo bloqueada. Tentei não dizer a palavra errada, tentei pensar em coisas diferentes, como esquilos e flores. Enquanto isso a Amp me olhava com olhos penetrantes que mais pareciam brocas. O senhor sabe, como se estivessem me penetrando. Tudo isso foi piorando dia após dia, até que certa vez a Amp falou comigo tão carinhosamente, tão compreensiva, que não resisti mais, confessando que tinha feito aquilo. Foi um alívio, papai!
Battle passava a mão no queixo.
— Entendo.
— Entende mesmo?
— Não Sylvia, não compreendo, porque não sou assim. Se alguém tentasse me fazer confessar alguma coisa que eu não tivesse feito, teria vontade de lhe dar um soco no queixo. Mas posso ver o que aconteceu no seu caso. Esta tal de Amp dos olhos penetrantes teve diante do nariz um ótimo exemplo de psicologia, exatamente como qualquer amador de novas teorias poderia desejar. Agora o importante é esclarecer esta confusão. Onde está a Srta. Amphrey?
A Srta. Amphrey estava discretamente por perto. O sorriso simpático desapareceu do seu rosto quando o Superintendente Battle disse bruscamente:
— Para fazer justiça a minha filha devo pedir que a senhorita chame a polícia.
— Mas, Sr. Battle, a própria Sylvia...
— Ela nunca tocou em nada aqui que não lhe pertencesse.
— Posso entender que o senhor como pai...
— Não estou falando como pai, mas sim como policia! Chame a polícia para ajudá-la neste caso. Serão discretos. Acharão os objetos escondidos em algum lugar, e espero que encontrem também as impressões digitais. Ladrões iniciantes não se lembram de usar luvas. Vou levar minha filha comigo. Se a polícia encontrar provas, provas reais, para ligá-la aos furtos estou preparado para levá-la ao tribunal e suportar o que lhe acontecer. Mas não estou receoso.
Cinco minutos mais tarde, ao atravessar o portão ao lado de Sylvia, perguntou:
— Quem é aquela garota de cabelo louro, ligeiramente crespo, as faces muito rosadas, um sinal no queixo e olhos azuis bem separados? Cruzamos com ela na passagem.
— Deve ser a Olive Parsons.
— Bem, não ficaria surpreso se fosse ela a culpada.
— Ela parecia assustada?
— Não. Parecia dissimulada. Uma aparência tão calma e tão dissimulada como as que tenho visto centenas de vezes no tribunal de polícia. Aposto bom dinheiro como ela é a ladra. Você não a verá confessar. Jamais!
Sylvia disse com um suspiro:
— É como sair de um pesadelo. Oh, papai, sinto muito! Sinto muito! Estou realmente arrependida! Como pude ser tão boba, completamente tola? Sinto-me horrível com tudo isso.
O Superintendente Battle tirou a mão do volante, acariciou o braço da filha e, para consolá-la, emitiu uma de suas frases usuais de carimbo:
— Ora, não se preocupe. Estas coisas acontecem só para nos atormentar. Sim, é isso. Pelo menos, é o que suponho. Não vejo outra razão para que sucedam.
19 de abril

O sol brilhava na casa de Nevile Strange, em Hindhead. Era um desses dias de abril, como acontece pelo menos uma vez durante o mês, mais quente que os dias de junho os quais ainda estavam para chegar.
Nevile desceu as escadas usando calça branca e com quatro raquetes de tênis debaixo do braço.
Se tivessem que escolher um homem entre outros ingleses, como um homem de sorte e com tudo aquilo que alguém possa desejar, a Comissão de Seleção bem que poderia escolher Nevile Strange. Era um homem popular, excelente jogador de tênis e um desportista versátil. Apesar de nunca ter chegado às finais em Wimbledon, havia ganho várias partidas nos torneios de abertura, e nas duplas mistas por duas vezes chegara às semifinais.
Era talvez, um desportista versátil demais para ser campeão de tênis. Jogava golfe, era bom nadador e havia feito escaladas nos Alpes. Tinha 33 anos, ótima saúde, boa aparência, muito dinheiro, uma linda mulher com quem se casara recentemente, e, ao que tudo indicava, nenhum problema ou preocupação.
Entretanto, naquela bela manha, quando desceu as escadas uma sombra o acompanhou. Uma sombra que só seus olhos perceberam. Estava consciente disto, e sua testa enrugada o fazia ficar com uma expressão perturbada e indecisa.
Atravessou o hall, ajeitando os ombros como que para livrar-se definitivamente de alguma carga. Passou pela sala de visitas indo até a varanda envidraçada, onde sua mulher estava enroscada em almofadas, bebendo um suco de laranja.
Kay Strange tinha 23 anos e era de uma beleza extraordinária. Era esbelta, mas o corpo possuía formas delicadamente exuberantes, cabelo ruivo escuro, a pele tão perfeita que para realçá-la usava pouquíssima maquilagem, olhos e sobrancelhas escuras que raramente combinam com cabelos ruivos mas que quando isto acontece são tão devastadores.
Seu marido disse alegremente:
— Olá beleza! O que temos para o café da manhã?
— Para você, horríveis rins sangrentos, cogumelos e bacon.
— Parece bom! — exclamou Nevile.
Serviu-se das carnes e de uma xícara de café. Houve um silêncio amistoso por alguns minutos.
— Oh! — disse Kay balançando sensualmente os pés de unhas vermelhas. — O sol não está lindo? Até que a Inglaterra não é tão desagradável.
Tinham acabado de chegar do Sul da França.
Depois de ler apenas as manchetes dos jornais, Nevile passou à seção de esporte e comentou simplesmente:
— Hum!...
Deixando de lado o jornal, pegou uma torrada com geléia e em seguida abriu a correspondência. Havia muitas cartas, mas ele rasgou a maioria delas e jogou fora. Circulares, Propagandas e impressos.
— Não gosto do colorido da sala de visitas. Posso reformá-la? — perguntou Kay.
— Como quiser, beleza.
— Azul-pavão — disse Kay sonhadora — e almofadas de cetim branco.
— Você terá que colocar um macaco — retrucou Nevile.
— Você pode ser o macaco — disse Kay.
Nevile abriu outra carta.
— A propósito — falou Kay. — Shirty nos convidou para um cruzeiro de iate até Norway, no final de junho. É pena que não possamos ir.
Ela olhou cautelosamente para ele e acrescentou, ansiosa:
— Adoraria ir.
Alguma coisa como uma nuvem, uma dúvida, pairou no semblante de Nevile.
Kay perguntou revoltada:
— Temos mesmo que ir à casa lúgubre da velha Camilla?
Nevile franziu as sobrancelhas.
— Claro que temos. Olhe aqui Kay, já discutimos isto antes. Sir Matthew foi meu tutor. Ele e Camilla tomaram conta de mim. Gull's Point é meu lar mais do que qualquer outro lugar.
— Está bem, está bem — disse ela. — Afinal de contas quando ela morrer ficaremos com todo aquele dinheiro. Por isso, suponho que tenhamos que bajulá-la.
Nevile respondeu zangado:
— Não é uma questão de bajular! Ela não tem controle sobre o dinheiro. Sir Matthew deixou-o em usufruto. Depois ficará para mim e para minha esposa. É uma questão de amizade. Por que você não consegue entender isso?
Depois de uma pausa, Kay disse:
— Sim, entendo. Estou fazendo uma cena porque sei que lá sou tolerada apenas por ser sua esposa. Elas me detestam! Sim, esta é a verdade! Lady Tressilian, com aquele seu nariz comprido, me olha com ar de superioridade, e Mary Aldin não me encara quando fala comigo. Para você está tudo ótimo. Você não vê o que se passa.
— Sempre me pareceram muito gentis com você. Bem sabe que não admitiria o contrário.
Por debaixo de seus cílios escuros, Kay lançou-lhe um olhar estranho.
— São suficientemente educadas, mas sabem muito bem me atingir. Para elas sou uma intrusa.
— Bem, afinal de contas, é uma reação natural, não é? — disse Nevile.
Sua voz havia mudado um pouco. Levantou-se, e de costas para ela, ficou olhando a paisagem.
— Ah! Sim! Eu diria que é natural. Eram tão devotas de Audrey, não eram? — sua voz tremeu um pouco. — A querida, a bem nascida, a tranqüila e insípida Audrey! Camilla nunca me perdoou por ter tomado o lugar dela.
Nevile não se virou. Sua voz estava velada e sem vida quando falou:
— Afinal de contas, Camilla é idosa. Já passou dos setenta. Sua geração não aceita bem o divórcio. Acho até que ela reagiu muito bem à situação, considerando o quanto ela gostava de... de Audrey.
Sua voz mudou um pouco ao pronunciar seu nome.
— Elas acham que você a tratou muito mal.
— E tratei mesmo — sussurrou Nevile. Mas Kay ouviu.
— Ora Nevile, não seja tão tolo. Só porque ela resolveu fazer drama.
— Ela não faz dramas. Audrey nunca age assim.
— Bem, você sabe a que estou me referindo. Ela foi embora, ficou doente, demonstrando sofrimento o tempo todo. É isto que chamo de drama! Audrey não é uma boa perdedora. No meu ponto de vista, se uma mulher não consegue prender o marido, deve abrir mão dele sem criar problemas! Vocês nada tinham em comum. Ela nunca praticava esporte, era anêmica e desanimada como um trapo. Não havia nela nenhuma vida ou energia. Se realmente gostava de você, deveria em primeiro lugar pensar na sua felicidade, e ficar satisfeita por você poder ser feliz com alguém com quem tivesse mais afinidade.
Nevile voltou-se e com um sorriso levemente sarcástico nos lábios, falou:
— Quanta sabedoria! Como você entende do jogo do amor e do matrimônio!
Kay riu e corou.
Bem, talvez eu tenha exagerado um pouco. De qualquer maneira, uma vez acontecido, não há mais jeito. É preciso saber aceitar os fatos.
E Audrey aceitou. Ela se divorciou para que pudéssemos casar.
— Sim, eu sei... — disse Kay hesitante.
— Você nunca entendeu Audrey.
— Não, nunca. De certa forma, ela me dá arrepios. Não sei o que há com ela. Nunca se sabe no que está pensando. Ela... ela é um pouco assustadora.
— Que bobagem, Kay!
— Bem, ela me assusta. Talvez por ser inteligente.
— Sua linda bobinha!
Kay riu.
— Você sempre me chama assim.
— Porque é isto que você é.
Sorriram um para o outro. Nevile indo até ela, se abaixou e beijou-lhe a nuca.
— Linda, linda Kay — murmurou ele.
— E também muito boazinha — disse ela. — Desisti da maravilhosa viagem de iate para ir visitar e ser tratada friamente pelos vitorianos parentes empertigados do meu marido.
Nevile voltou e sentou-se à mesa.
— Sabe, já que você deseja tanto ir, não vejo por que não fazermos essa viagem com Shirty.
Kay ficou atônita.
— E quanto a Saltcreek e Gull's Point?
Com a voz um tanto artificial, Nevile respondeu:
— Não vejo por que não irmos lá no começo de setembro.
— Mas, Nevile, certamente... — ela parou.
— Não podemos ir em julho nem em agosto por causa do torneio — disse Nevile. — O encerramento, porém, será na última semana de agosto em St. Loo, e de lá poderemos ir diretamente a Saltcreek.
— Assim seria perfeito. Mas pensei... bem, ela sempre vai lá em setembro, não vai?
— Você se refere a Audrey?
— Sim. Suponho que poderiam transferir a visita dela, mas...
— Mas por que iriam fazer isso?
Kay olhou-o indecisa.
— Você quer dizer que ficaríamos lá na mesma época? Que idéia mais estranha.
Nevile disse irritado:
— Não há nada de estranho nisto. Hoje em dia, muitas pessoas agem assim. Por que não devemos ser todos amigos? Simplificaria tudo! Ora, você mesma disse isto outro dia!
— Eu disse?
— Disse. Não se lembra? Estávamos falando sobre os Howes. Você comentou que era uma forma sensata e civilizada de encarar os fatos, e que a ex-esposa de Leonard e a atual eram ótimas amigas.
— Bem, eu não me incomodaria. Acho realmente uma atitude sensata, mas não creio que Audrey pense da mesma forma.
— Bobagem sua.
— Não é bobagem. Você sabe, Nevile, Audrey gostava imensamente de você... Não creio que suportasse esta situação nem por um minuto.
— Você está enganada, Kay. Audrey acha uma ótima idéia.
— O que você quer dizer com "Audrey acha"? Como sabe o que ela pensa?
Nevile ficou um pouco embaraçado. Pigarreou constrangido.
— Na verdade, encontrei-a ontem por acaso, quando estava em Londres.
— Você não me contou.
— Estou contando agora — disse Nevile irritado. — Foi uma simples coincidência. Estava andando pelo parque quando ela veio em minha direção. Você não iria querer que eu fugisse dela, não é?
— Não, claro que não — disse Kay encarando-o. — Continue.
— Eu... nós... bem, paramos, é claro, e começamos a caminhar juntos. Eu... eu achei que era o mínimo que poderia fazer.
— Continue.
— Depois nos sentamos e conversamos. Ela foi muito amável... muito mesmo.
— Ótimo para você.
— Continuamos a conversar sobre uma coisa e outra... Ela estava espontânea e natural.
— Maravilhoso!
— Ela perguntou por você.
— Muito amável da parte dela!
— Falamos um pouco a seu respeito. Acredite, Kay ela não poderia ter sido mais gentil.
— A querida Audrey!
— E então me ocorreu como seria bom se vocês duas fossem amigas, se pudéssemos nos reunir. Pensei que talvez fosse possível neste verão em Gull's Point. O tipo do lugar onde isto poderia acontecer com naturalidade.
— Esta idéia foi sua?
— Eu... bem, sim é claro. Foi toda minha.
— Você nunca me falou sobre esta hipótese.
— Na verdade, só me ocorreu naquela hora.
— Entendo. De qualquer maneira, você sugeriu e Audrey concordou achando uma brilhante idéia.
Só então Nevile percebeu alguma coisa diferente na maneira de Kay.
— Alguma coisa errada, beleza? — ele perguntou.
— Ah! não é nada. Nada mesmo! Vocês não se preocuparam com o que eu iria achar dessa idéia?
Nevile olhou-a nos olhos.
— Mas por que você haveria de se importar?
Kay mordeu o lábio.
— Você mesma disse, no outro dia... — prosseguiu ele.
— Ah, não vamos discutir isto novamente! Estava me referindo a outras pessoas, e não a nós.
— Mas, em parte, foi isto que me levou a pensar no assunto.
— Está querendo me fazer de boba?
Nevile a olhava espantado:
— Mas, Kay, por que você se aborreceria? Não há razão para isso.
— Não há?
— Bem, quero dizer, ciúme ou coisa assim deveria partir dela — fez uma pausa, e sua voz mudou. — Entenda Kay, nós tratamos Audrey terrivelmente mal. Não, não é isso que eu quero dizer. Você não tem culpa alguma. Eu é que a tratei muito mal. Não adianta nada dizer apenas que não pude evitar o que aconteceu. Se minha idéia desse certo, me sentiria muito melhor. Ficaria bem mais feliz.
— Então você não tem sido feliz? — disse Kay lentamente.
— Minha querida idiota, o que está dizendo? É claro que tenho sido feliz, extremamente feliz. Mas...
Kay o interrompeu.
— "Mas", é isto! Sempre houve um "mas" nesta casa. Uma sombra maldita rastejando pelo local. A sombra de Audrey.
Nevile a encarou.
— Não me diga que tem ciúmes de Audrey!
— Não tenho ciúme. Tenho medo. Nevile, você não conhece Audrey.
— Como não a conheço, se estive casado com ela por mais de 8 anos?
— Você não a conhece — repetiu Kay.
30 de abril.

— Um absurdo — disse Lady Tressilian. Ajeitou-se nas almofadas e olhou furiosamente em torno da sala. — Um absurdo completo! Nevile deve estar maluco.
— Parece realmente um tanto estranho — concluiu Mary Aldin.
Lady Tressilian tinha um perfil marcante, o nariz comprido e afilado, de tal forma que quando se inclinava ganhava uma aparência impressionante. Apesar de já ter passado dos 70 anos e de ter uma saúde frágil, sua energia mental não fora de modo algum afetada. É verdade que tinha longos períodos de abstração quando ficava deitada com os olhos semicerrados, mas saía destas letargias com todas as suas faculdades aguçadas ao máximo, e com uma língua mordaz. Numa cama larga em um dos cantos do quarto, apoiada nos travesseiros, dominava sua corte como se fosse uma Rainha da França.
Mary Aldin, uma prima afastada e que também morava ali, cuidava dela. As duas mulheres se davam maravilhosamente bem. Mary tinha 36 anos, com um desses rostos perenes que pouco mudam com o passar dos anos. Poderia ter tanto 30, como 45 anos. Tinha boa aparência e classe. O cabelo escuro, com uma mecha branca na frente, dava-lhe um ar de personalidade. Houve época em que a mecha estivera na moda, mas a de Mary era natural, uma vez que a possuía desde bem jovem. Ela olhava pensativa a carta de Nevile Strange que Lady Tressilian lhe entregara.
— Sim — disse ela. — Parece muito estranho.
— Não posso acreditar que seja idéia de Nevile! Alguém a colocou em sua cabeça. Provavelmente foi aquela sua nova mulher.
— Kay? A senhora acha que partiu dela?
— Seria bem próprio dela. Jovem e vulgar. Se o marido e mulher, porventura, têm que anunciar seus problemas e recorrer ao divórcio, deveriam pelo menos fazê-lo com decência. Acho revoltante que ambas se tornem amigas. Hoje em dia ninguém mais tem padrões morais.
— Deve ser o costume atual — disse Mary.
— Em minha casa não vou admitir tal coisa — afirmou Lady Tressilian. — Acho que já fiz muito, recebendo aquela criatura de unhas vermelhas aqui.
— Ela é a esposa de Nevile.
— Exatamente. Por isso, achei que Matthew gostaria que eu a recebesse. Era dedicado ao menino e sempre desejou que ele considerasse esta casa como seu próprio lar. Recusar recebê-la seria o rompimento de nossa amizade. Por este motivo, cedi e a convidei. Não gosto dela. É a esposa errada para Nevile: nem berço, nem raízes.
— Ela é bem nascida — apaziguou Mary.
— Péssima origem — retrucou Lady Tressilian. — O pai, como já lhe contei, foi expulso de todos os clubes depois daquele problema com jogos de cartas. Felizmente morreu logo em seguida. A mãe era famosa na Riviera. Que educação para uma menina! Morava sempre em hotéis... e com aquela mãe...! Depois conheceu Nevile nas quadras de tênis, passou a atacá-lo com tal determinação que não descansou enquanto ele não abandonou a mulher, de quem gostava muito. Ela é a culpada de tudo!
Mary sorriu timidamente. Lady Tressilian tinha a característica antiquada de sempre culpar a mulher e de ser indulgente com o homem.
— Para ser justa, devo dizer que acredito que Nevile tenha sido igualmente culpado — sugeriu Mary.
— Nevile teve muita culpa — concordou Lady Tressilian. — Tinha uma esposa encantadora, sempre dedicada, devotada até demais. Entretanto, se não fosse pela insistência dessa moça, estou convencida de que ele teria sido mais racional. Contudo, ela estava decidida a se casar com ele. Sim, minha simpatia é toda de Audrey. Gosto muito dela.
— Tudo tem sido muito difícil — suspirou Mary.
— Sim, realmente. Qualquer um fica desorientado, sem saber como agir em tais circunstâncias. Matthew e eu gostávamos de Audrey, e não se pode negar que era uma ótima esposa para Nevile. Pena não ser do tipo esportivo para ter participado mais das atividades do marido. Foi tudo muito penoso. Quando eu era jovem, estas coisas não aconteciam. É verdade que os homens tinham seus casos, mas não se admitia a hipótese de se dissolver um casamento.
— Bem, agora é diferente — enfatizou Mary bruscamente.
— Certo. Você tem bom senso querida. De nada adianta lembrar dias passados. Hoje estas coisas acontecem, e moças assim como Kay Mortimer roubam os maridos de outras mulheres, sem que ninguém pense o pior delas!
— Exceto pessoas como você, Camilla.
— Minha opinião não pesa. Aquela criatura não está se importando se eu a aprovo ou não. Está muito ocupada se divertindo. Nevile pode trazê-la quando vier, e estou mesmo disposta a receber seus amigos, apesar de não gostar muito daquele jovem com ar teatral que está sempre com ela. Qual é o nome dele?
— Ted Latimer?
— É este mesmo. Um amigo de seus dias de Riviera. Gostaria muito de saber como ele consegue viver daquela maneira.
— De sua esperteza.
— Isto seria perdoável. Acredito porém que viva de sua aparência. Não é um amigo adequado à esposa de Nevile. Não gostei quando, no último verão, ele se hospedou no Hotel Easterhead Bay durante a estada dos Nevile aqui.
Mary olhou pela janela. A casa de Lady Tressilian ficava num penhasco íngreme, projetando-se sobre o rio Tern. Do outro lado do rio havia o recém-construído balneário de Easterhead Bay com uma vasta praia, um conjunto de modernos bangalôs e um grande hotel no alto de um morro, com vista para o mar. Saltcreek era uma isolada e pitoresca vila de pesca, situada na encosta de uma colina. Era uma vila antiga, conservadora, e com um profundo desprezo por Eastterhad Bay e seus veranistas.
O Hotel Easterhead Bay ficava praticamente de frente para a casa de Lady Tressilian e Mary olhava através da estreita faixa de água para o espalhafatoso balneário.
— Fico satisfeita — comentou Lady Tressilian fechando os olhos — que Matthew não tenha chegado a ver esta construção vulgar. Na sua época, o litoral ainda não estava estragado.
Sir Matthew e Lady Tressilian haviam chegado a Gull's Point há 30 anos. Passaram-se 10 anos desde que ele, um entusiasta navegador, havia se afogado na presença de sua esposa quando seu bote virou.
Todos esperavam que Lady Tressilian vendesse Gull's Point e deixasse Saltcreek, todavia ela não o fez. Sua única reação foi vender todos os barcos e acabar com a casa dos barcos. Não haviam em Gull's Point barcos disponíveis para os hóspedes, assim tinham que caminhar até o ancoradouro, e alugá-los em um dos vários barqueiros existentes.
— Devo, então, escrever a Nevile e contar-lhe que seu propósito não vem de encontro aos seus planos? — perguntou Mary hesitante.
— Certamente nem sonho em interferir na visita de Audrey. Ela sempre vem em setembro e não pedirei que mude seus planos.
— Nevile diz aqui que Audrey aprova a idéia, e está disposta a se encontrar com Kay — comentou Mary olhando a carta.
— Simplesmente não acredito. Nevile, como todos os homens, acredita no que quer.
Mary insistiu:
— Ele diz que conversou com ela sobre o assunto.
— Que coisa mais estranha! Não. Talvez no fundo não seja.
Mary olhou-a esperando uma explicação.
— Tal qual Henrique VIII — disse Lady Tressilian.
Mary olhou-a intrigada.
Lady Tressilian explicou a observação:
— Problema de consciência! Henrique VIII estava sempre tentando fazer com que Catarina concordasse com o divórcio. Nevile sabe que agiu mal e quer sentir-se menos culpado. Está então tentando forçar Audrey a dizer que virá encontrar Kay e que nada a perturba.
— Estava pensando... — falou Mary pausadamente.
— Em que estava pensando minha querida?
— Estava pensando... — ela parou e depois prosseguiu — esta carta nem parece de Nevile. Você acha que por algum motivo especial Audrey possa desejar este encontro?
— Por que haveria? — perguntou Lady Tressilian categoricamente. — Depois que Nevile a abandonou, ela foi para casa da tia, a Sra. Royde, na Reitoria, onde teve um colapso nervoso. Ficou uma sombra do que era. È evidente que foi terrivelmente atingida. Ela é dessas pessoas calmas, controladas mas que sentem as coisas intensamente.
Mary mexeu-se inquieta.
— Sim. Ela é extremamente sensível. Uma moça estranha sob vários aspectos...
— Ela sofreu muito... Veio o divórcio, Nevile casou-se com a outra, e, aos poucos, Audrey começou a se recuperar. Atualmente ela está quase aquilo que era. Não me venha dizer que agora ela quer remexer em velhas recordações.
Mary respondeu com teimosia.
— É o que Nevile diz.
A velha senhora olhou-a com curiosidade:
— Você está excessivamente obstinada em relação a este assunto, Mary. Por quê? Você está querendo que isto aconteça?
Mary Aldin corou.
— Não,. claro que não.
Lady Tressilian disse rispidamente:
— Foi você quem fez esta sugestão a Nevile?
— Como pode pensar tamanho absurdo?
— Bem, nem por um segundo acreditei ser idéia de Nevile. Não é próprio dele — fez uma pausa e depois seu rosto se iluminou. — Amanhã é 1° de maio, não é? Bem, dia 3 Audrey virá para a casa dos Darlingtons em Esbank. Fica a menos de 40 quilômetros daqui. Escreva e convide-a para almoçar conosco.
5 de maio.

— A Sra. Strange está aqui.
Audrey Strange entrou no amplo quarto indo até a cama. Abaixou-se, beijou a velha senhora e sentou-se na cadeira que lhe fora destinada.
— Prazer em vê-la, minha querida — disse Lady Tressilian.
— A satisfação é minha — respondeu ela.
Havia algo de inatingível em Audrey Strange. Era pálida, feições delicadas e proporcionais ao rosto ovalado. Os olhos eram de um cinza-claro e bem separados. Os cabelos, louro-acinzentados. Tinha mãos e pés pequenos. Com tal colorido, com um rosto bonito, mas não lindo, tinha, entretanto, alguma coisa que não poderia ser ignorada e que fazia com que não lhe desviassem o olhar. Lembrava um fantasma, mas ao mesmo tempo sentia-se que neste fantasma havia algo mais real do que em qualquer ser humano vivo... Sua voz era excepcionalmente bonita, suave e límpida como um pequeno sino de prata.
Durante alguns minutos falaram sobre amigos comuns e acontecimentos em geral. Em seguida Lady Tressilian disse:
— Além do prazer de revê-la, minha querida, eu a convidei aqui porque recebi de Nevile uma carta um tanto curiosa.
Audrey encarou-a, seus olhos estavam serenos e calmos. Falou:
— Ah, sim!
— Sugere, uma sugestão absurda, eu diria, que ele e Kay venham para cá em setembro. Deseja que você e ela se tornem amigas, e que você mesma achou isto uma ótima idéia.
Fez uma pausa. Em seguida, Audrey, com sua voz tranqüila, perguntou:
— Acha a idéia assim tão absurda?
— Minha querida, você quer mesmo que isto aconteça?
Novamente Audrey calou-se por um ou dois minutos. Então, gentilmente, confessou:
— Sabe, acho que poderia ser uma boa coisa.
— Quer mesmo encontrar com esta... encontrar Kay?
— Creio, Camilla, que poderia simplificar as coisas.
— Simplificar! — repetiu Lady Tressilian com desânimo.
— Querida Camilla, você tem sido tão boa. Se Nevile deseja que... — Audrey falou suavemente.
— Pouco importa o que Nevile deseja! — reagiu Lady Tressilian bruscamente. — O problema é saber se é realmente isto o que você quer.
Audrey enrubesceu. Seu rosto ganhou o brilho delicado de uma concha.
— Sim. É o que eu quero.
— Bem, então...
Fêz-se uma pausa.
— Mas é claro que você e quem resolve — disse Audrey. — A casa é sua e...
Lady Tressilian fechou os olhos.
— Estou velha — enfatizou. — Não consigo entender mais nada.
— Mas é claro que... posso vir em outra época... quando você achar melhor.
— Você virá em setembro como todos os anos — disse repentinamente Lady Tressilian. — Nevile e Kay também virão. Posso ser velha, mas creio que consigo adaptar-me tanto quanto qualquer outra pessoa às mudanças da vida moderna. Chega de conversa, já está resolvido.
Fechou novamente os olhos. Pouco depois, com as pálpebras semicerradas, olhou para a jovem sentada ao seu lado, e perguntou:
— Então, conseguiu o que queria?
Audrey sobressaltou-se.
— Ah! sim, sim. Obrigada.
— Minha querida — falou Lady Tressilian com tom de preocupação —, tem- certeza de que esta situação não vai magoá-la? Você gostava muito de Nevile. Pode reabrir velhas feridas.
Audrey olhava para as mãos. Lady Tressilian notou que uma delas agarrava com força o lado da cama. Audrey levantou a cabeça. Seus olhos estavam calmos e imperturbáveis.
— Tudo já passou. Acabou completamente.
Lady Tressilian recostou-se com mais força nos travesseiros.
— Bem, você é quem sabe. Estou cansada... você deve ir agora, querida. Mary a espera lá embaixo. Peça a Barrett que suba.
Barrett era sua mais antiga e devotada criada. Encontrou a patroa recostada, com os olhos fechados.
— Quanto mais cedo me vá deste mundo, melhor, Barrett. Não compreendo as pessoas, nem mais nada que acontece.
— Não diga isto. A senhora está apenas cansada.
— Sim, estou cansada. Tire este edredão dos meus pés e me dê uma dose do meu tônico.
— Foi a vinda da Sra. Strange que a perturbou. É uma senhora agradável, mas eu diria que um pouco de tônico lhe faria bem. Ela não é saudável. Parece estar sempre vendo coisas que ninguém mais vê. Mas tem personalidade marcante e muita presença.
— Isto é verdade, Barrett — disse Lady Tressilian. — Sim, é a pura verdade. E é também o tipo de pessoa de quem não se esquece facilmente. Sempre imagino se, às vezes, o Sr. Nevile não pensa nela. A nova Sra. Strange é muito bonita, realmente bonita, mas a Srta. Audrey se faz lembrar na sua ausência.
Lady Tressilian ressaltou num rompante:
— Nevile é um tolo em querer aproximar estas duas mulheres. Será o primeiro a se arrepender.
29 de maio

Fumando cachimbo, Thomas Royde inspecionava o garoto malaio que arrumava as malas com muita agilidade. De vez em quando, seu olhar se dirigia até a plantação. Durante uns 6 meses, não veria aquela paisagem que nos últimos sete anos lhe fora tão familiar. Seria estranho retornar à Inglaterra.
Allen Drake, seu companheiro, apareceu na porta.
— Oi, Thomas, como vão as coisas?
— Já está tudo pronto.
— Venha tomar um drinque, seu sortudo. Estou me consumindo de inveja.
Thomas Royde saiu vagarosamente do quarto e foi ao encontro do amigo. Permaneceu calado, pois era um homem singularmente lacônico. Seus amigos aprenderam a julgar suas reações pelo tipo de seu silêncio. Tinha uma figura um pouco atarracada, um rosto honesto e grave, com olhos observadores e pensativos. Seu andar era meio de lado como o de um caranguejo. Isso era o resultado do esmagamento que sofrera, por uma porta, durante um terremoto, e que mais tarde viria a contribuir para o apelido de "Caranguejo Solitário". O braço e o ombro, que haviam ficado parcialmente paralíticos, além de um andar afetado, levavam as pessoas a acreditar que ele se sentia tímido e embaraçado, o que na verdade raramente acontecia.
Allen Drake preparou as bebidas.
— Bem — disse ele —, boa caçada.
Royde resmungou alguma coisa que soou como "hum, hum".
Drake olhou-o curioso.
— Fleumático como sempre — comentou. — Não sei como consegue ser assim. Há quanto tempo você está fora de casa?
— Sete anos. Quase oito.
— É muito tempo. Fico pensando se você já não se transformou inteiramente em um nativo.
— É. Talvez isso tenha acontecido.
— Você sempre pertenceu mais ao grupo animal do que ao humano. Por acaso planejou esta viagem?
— Bem... sim, em parte.
Seu rosto duro e impassível de repente se tingiu de vermelho profundo.
Allen Drake comentou muito surpreso:
— Acredito que existe uma garota nesta história. Credo, você está ruborizado!
— Não seja tolo — disse Thomas Royde um tanto ríspido, segurando com mais força seu velho cachimbo.
Batendo todos os recordes anteriores, continuou a conversa:
— Certamente encontrarei tudo um pouco mudado.
Allen Drake perguntou curioso:
— Nunca entendi por que da última vez você desistiu de ir para casa. E bem em cima da hora.
Royde encolheu os ombros.
— Achei que aquela caçada poderia ser mais interessante. E já havia, então, recebido más notícias de casa.
— Mas é claro, tinha me esquecido. Seu irmão morreu naquele acidente de automóvel.
Thomas Royde concordou com a cabeça.
Drake refletiu e achou que de qualquer maneira era um motivo estranho para se cancelar uma viagem de volta para casa. Havia a mãe e parece que também uma irmã. Certamente numa hora destas... Lembrou-se, então, de alguma coisa. Thomas havia cancelado a passagem antes de chegar a notícia do falecimento do irmão.
Allen olhou intrigado para o amigo. Seria o velho Thomas, um desconhecido?
Depois de passados três anos, podia agora perguntar:
— Você e seu irmão eram muito amigos?
— Adrian e eu? Não em especial. Cada um tinha sua vida. Ele era advogado.
Sim — pensou Drake —, uma vida muito diferente. Escritório em Londres, festas; ganhando a vida pela sagacidade da palavra. Concluiu que Adrian Royde tinha sido um sujeito muito diferente do velho e silencioso Thomas.
— Sua mãe ainda está viúva?
— Mamãe? Sim, está.
— Você também tem uma irmã, não?
Thomas balançou a cabeça.
— Ah, pensei que tivesse. Naquela fotografia...
— Não é minha irmã. É uma prima distante ou coisa parecida. Era órfã e foi criada conosco — Royde murmurou.
Mais uma vez uma leve cor apareceu em seu rosto bronzeado.
Drake perguntou curioso:
— Ela é casada?
— Ela foi casada com o tal de Nevile Strange.
— Aquele jogador de tênis, etc?
— Sim. Agora estão divorciados.
E você vai até lá tentar sua sorte com ela — pensou Drake.
Felizmente a conversa tomou outro rumo.
— Vai pescar ou caçar?
— Primeiro vou para casa. Depois pretendo velejar em Saltcreek.
— Conheço o lugar. Encantador. E tem um bom hotel antigo, porém bastante agradável.
— Sim, o Balmoral Court. Talvez fique lá, ou me hospede na casa de uns amigos.
— Parece-me ótimo.
— Saltcreek é um lugar muito sossegado. Ninguém para nos perturbar.
— Eu sei — comentou Drake. — O tipo de lugar onde nada acontece.
16 de junho

— É realmente irritante — disse o velho Sr. Treves. — Há 25 anos que me hospedo no Hotel Marine, em Leahead; e agora parece incrível, estão reformando todo o lugar. Estão ampliando a parte da frente e fazendo mais outras obras absurdas Por que será que não deixam em paz esses lugares no litoral? Leahead sempre teve um fascínio peculiar: o estilo regência, puro regência.
Sir Rufus disse querendo consolar:
— Mas suponho que existam outros lugares onde se hospedar, não?
— Na realidade, não vejo como ir a Leahead. No Marine, a Sra. Mackay compreendia perfeitamente minhas necessidades. Todos os anos eu ficava no mesmo quarto, e raramente havia mudanças no serviço do hotel. A comida era excelente, realmente excelente.
— E que tal ir a Saltcreek? Existe lá um hotel antigo e simpático: O Balmoral Court. O hotel está sob a gerência do casal Rogers. A Sra. Rogers foi cozinheira do velho Lorde Mounthead; ele dava os melhores jantares de Londres. Ela se casou com o mordomo e agora os dois administram esse hotel. Parece-me o lugar ideal para você: sossegado, sem orquestras de jazz, cozinha e serviço de primeira.
— É uma idéia, certamente uma idéia. Tem terraço coberto?
— Sim. Uma varanda coberta e também um terraço. Pode escolher a sombra ou o sol, conforme sua preferência. Se quiser, posso lhe dar urna carta de apresentação para aquela redondeza, Existe também a velha Lady Tressilian, que mora bem próximo. Tem uma bonita casa, sendo que ela própria é uma mulher encantadora, apesar de estar praticamente inválida.
— Refere-se à viúva do juiz?
— Sim, a ela mesma.
— Eu conheci Matthew Tressilian e acho que cheguei a conhecê-la. Uma mulher encantadora, mas é claro que isto foi há muito tempo. Saltcreek é perto de St. Loo, não é? Tenho vários amigos por lá. Sabe, acho Saltcreek uma ótima idéia. Vou escrever pedindo maiores detalhes. Pretendo ir em meados de agosto, e ficar até meados de setembro. Suponho que tenha garagem e lugar para o meu motorista, não?
— Sim. É inteiramente moderno.
— Pois como você sabe, tenho que ser cuidadoso com a subida de escadas. Prefiro um quarto no andar térreo, apesar de acreditar que haja elevador.
— Sim. Possui todas essas coisas.
— Parece que resolveria perfeitamente o meu problema; e apreciaria muito reencontrar Lady Tressilian.
28 de julho

Kay Strange, de short e casaquinho amarelo, estava debruçada assistindo à partida de tênis. Era a semifinal do torneio, a individual masculina, onde Nevile jogava com o jovem Merrick, considerado o futuro campeão de tênis. Sua habilidade era inegável, e alguns de seus saques irrebatíveis. Entretanto, às vezes perdia a calma, quando a experiência e a técnica do jogador mais velho conseguiam vencê-lo.
Deslizando, Ted Latimer sentou-se na cadeira vizinha à de Kay. Comentou com a voz vagarosa e irônica:
— A esposa devotada assiste ao marido abrir caminho para a vitória!
Kay sobressaltou-se:
— Como você me assustou! Não sabia que estava aí.
— Sempre estou. A esta altura você já deveria saber.
Ted Latimer tinha 25 anos e era extremamente bonito, apesar de velhos coronéis costumarem fazer comentários maldosos contra ele:
— "O toque latino".
Era moreno, com um lindo bronzeado, além de ótimo dançarino. Seus olhos escuros eram muito expressivos, e controlava a voz com a segurança de um ator. Kay o conhecia desde os quinze anos. Juntos, em Juan-les-Pins, haviam tomado banho de sol, dançado e jogado. Além de amigos, tinham sido aliados.
O jovem Merrick estava sacando do lado esquerdo da quadra. A devolução de Nevile foi irrebatível: uma magnífica jogada para o fundo da quadra.
— O seu golpe de esquerda é bom — comentou Ted. — É melhor do que o de direita. Ele sabe que o fraco de Merrick é o golpe de esquerda. Vai jogar tudo o que sabe.
Terminou a partida: "4x3". Nevile estava na liderança e continuou a levar vantagem na outra partida. O jovem Merrick jogava furiosamente.
— "5x3".
— Vantagem para Nevile — falou Latimer.
Em seguida o rapaz recuperou a calma. Suas jogadas tornaram-se cautelosas, modificando o compasso de seus lances.
— Ele tem cabeça — disse Ted. — E seu trabalho de pés é de primeira classe. Vai ser uma disputa para valer!
Aos poucos, Merrick conseguiu empatar: "5x5". Chegou a "7", e finalmente ganhou a partida com "9x7".
Nevile aproximou-se da rede. Sorrindo e balançando a cabeça, cumprimentou o adversário.
— A mocidade falou mais alto — disse Ted Latimer — 19 a 33. Mas posso lhe dizer, Kay, porque Nevile nunca chegou a campeão. É bom perdedor.
— Que bobagem!
— Não é não. O maldito Nevile comporta-se sempre como um perfeito desportista. Nunca o vi zangado por perder uma partida.
— É claro que não — falou Kay. — Os jogadores costumam agir como Nevile.
— Ah! Não costumam mesmo. Todos nós já vimos grandes tenistas ficarem nervosos, mas nunca Nevile. Deixa que o melhor deles vença; e tudo o mais.
Kay virou a cabeça.
— Não acha que está sendo muito maldoso?
— Sim, completamente felino!
— Preferiria que não demonstrasse tão claramente que não gosta de Nevile.
— E por que haveria de gostar? Ele roubou minha garota.
Ted olhou-a demoradamente.
— Eu não era sua garota. As circunstâncias impediam.
— Certamente. Não se pode esquecer o fato dele ter mais dinheiro.
— Cale esta boca. Apaixonei-me por Nevile e me casei com ele...
— E ele é um ótimo rapaz... é o que todos acham, não?
— Está tentando me aborrecer?
Ao fazer a pergunta, Kay virou a cabeça. Ele sorriu e imediatamente ela correspondeu ao sorriso.
— Como vai indo a temporada de verão, Kay?
Mais ou menos. Fiz uma linda viagem de iate. Já estou bastante cansada deste negócio de tênis.
— Por quanto tempo ainda vai ter que agüentar isto? Mais um mês?
— Sim. Depois, em setembro, iremos a Gull's Point por quinze dias.
— Estarei no Hotel Easterhead — disse Ted. — Já reservei um quarto.
— Vai ser um belo acontecimento! — exclamou Kay. — Nevile, eu, sua ex-esposa, e um fazendeiro da Malásia que vem para casa de férias.
— Perece muito divertido.
— E também, é claro, a prima desajeitada, sempre serviçal, em volta daquela velha desagradável, o que de nada adianta pois o dinheiro será meu e de Nevile.
— Talvez ela não saiba disto.
— E até que seria bem engraçado — disse Kay, falando distraidamente.
Olhou para a raquete que estava rodando nas mãos. De repente prendeu a respiração.
— Ah, Ted!
— O que há, meu bem?
— Não sei. Às vezes perco a coragem. Sinto-me estranha e com medo.
— Nem parece você, Kay.
— Não pareço, não é? De qualquer maneira você estará no Hotel Easterhead Bay.
— Conforme os planos.
Quando Kay encontrou Nevile na saída do vestiário, ele comentou:
— Vejo que seu amiguinho chegou.
— Ted?
— Sim, o cão fiel, ou talvez fosse mais apropriado dizer um lagarto.
— Você não gosta dele, não é?
— Ah! Ele não me preocupa. Se você se diverte em andar com ele pela coleira.
Nevile encolheu os ombros em sinal de indiferença.
— Acho que você está com ciúmes — disse Kay.
— De Latimer? — sua surpresa era verdadeira.
— Ted é considerado muito atraente.
— Tenho certeza de que sim. Tem aquele charme latino.
— Você está com ciúmes! — exclamou Kay.
Nevile apertou com carinho o braço de Kay.
— Não, não estou, beleza. Você pode ter seus admiradores Uma corte inteira deles, se quiser. Eu tenho a posse e, pela lei, o direito é meu.
— Você está muito seguro de si — contestou Kay chateada.
— Claro que estou. Você e eu fomos predestinados. O destino nos uniu. Lembra-se do nosso encontro em Cannes: eu estava a caminho do Estoril e, de repente, quando cheguei lá, a primeira pessoa que vi foi a linda Kay. Soube então que era o destino, e que não poderia escapar.
— Não foi exatamente o destino — esclareceu ela. — Fui eu!
— O que você quer dizer com "fui eu"?
— Porque fui eu! Ouvi você dizer no hotel que ia para o Estoril, e então insisti e convenci minha mãe. Por essa razão, a primeira pessoa que você encontrou lá foi a Kay.
Nevile olhou-a com uma expressão curiosa.
Falou devagar:
— Você nunca me contou isso antes.
— Não, porque não teria sido bom para você. Poderia torná-lo convencido. Sempre fui boa em planejar coisas. Nada acontece sem que preparemos o acontecimento. Às vezes você me chama de tola, mas a meu modo sou até bem esperta. Faço com que as coisas aconteçam. Algumas vezes planejo com bastante antecedência.
— É. O trabalho intelectual deve ser intenso.
— Pode zombar se quiser, Nevile — disse com uma estranha e repentina amargura.
— Será que só agora estou conhecendo a mulher com quem me casei? Em lugar de destino, leia-se Kay!
— Você não está zangado, está? — perguntou ela.
Seu marido disse um tanto distraído:
— Não, é claro que não. Só estava pensando...
10 de agosto

— E lá se foram minhas férias! — exclamou o Superintendente Battle aborrecido.
A Sra. Battle estava desapontada, mas os longos anos como esposa de um policial haviam-na preparado para aceitar com resignação esses contratempos.
— Bem, não podemos fazer nada — ressaltou ela. — Espero que pelo menos seja um caso interessante.
— Não é o que me parece — disse o Superintendente Battle. — O Ministério das Relações Exteriores está na maior confusão: todos aqueles jovens altos e esbeltos movimentando-se de um lado para o outro, dizendo: Calma! calma! No final tudo se resolverá satisfatoriamente e solucionaremos o problema de todos. Entretanto, não é o tipo de caso que colocaria em minhas Memórias, se algum dia fosse tolo o bastante para escrevê-las.
— Creio que podemos adiar nossas férias... — começou a Sra. Battle indecisa, quando o marido a interrompeu com firmeza.
— De forma alguma. Você e as garotas vão para Britlington. Os quartos estão reservados desde março e seria uma pena não aproveitá-los. Sabe o que vou fazer quando isto tudo acabar? Irei passar uma semana com Jim.
Jim era sobrinho do Superintendente Battle, inspetor James Leach.
— Saltington é bem perto da baía de Easterhead e Saltcreek — prosseguiu ele. — Posso respirar um pouco de ar puro e tomar banho de mar.
A Sra. Battle torceu o nariz.
— O mais provável é que ele o convença em ajudá-lo a resolver algum caso.
— Nesta época do ano, nada acontece, a não ser que uma mulher roube coisas de pouco valor de Woolworth. De qualquer maneira, Jim está muito bem, e não precisa que o orientem.
— Ah, bem! — disse a Sra. Battle. — Acredito que tudo isso dê certo, porém, mesmo assim foi uma decepção.
— Estas coisas acontecem para nos atormentar — afirmou o Superintendente Battle.



Branca de Neve e rosa vermelha
I
Ao descer do trem em Saltington, Thomas Royde encontrou Mary Aldin esperando-o na plataforma.
Guardava dela apenas uma vaga lembrança, e agora, revendo-a, ficou agradavelmente surpreso com sua maneira ativa de lidar com as coisas.
Ela o chamava pelo primeiro nome.
— Que prazer em revê-lo depois de todos estes anos, Thomas.
— Obrigado por me hospedar. Espero não incomodar.
— Nem um pouco. Você é especialmente bem-vindo. Aquele é o carregador? Diga-lhe para trazer a bagagem por aqui. O carro está estacionado logo adiante.
As malas foram guardadas no Ford. Mary sentou-se à direção e Royde a seu lado. Partiram. Thomas notou que ela era uma boa motorista, ágil, cuidadosa no trânsito, além de segura quando calculava a distância e o espaço entre os carros.
Saltington ficava a 11 quilômetros de Saltcreek. Logo que saíram do pequeno centro comercial da cidade e pegaram a estrada, Mary Aldin voltou ao assunto de sua visita.
— Na verdade, Thomas, sua vinda neste momento será como uma dádiva de Deus. Tudo está um pouco complicado e precisamos de um estranho, ou seja, alguém que não esteja realmente envolvido, para ajudar-nos.
— Qual é o problema?
Como sempre, seu jeito era indiferente e quase indolente. Deu a impressão de estar perguntando mais por delicadeza do que por interesse na resposta. Sua maneira acalmara Mary. Ela precisava urgentemente falar com alguém, entretanto, preferia que esse alguém fosse imparcial.
Ela disse:
— Bem, estamos numa situação bem delicada. Como deve saber, Audrey está aqui.
Ela parou interrogativa, e Thomas concordou com a cabeça.
— Nevile e a esposa também.
Thomas Royde ergueu as sobrancelhas. Depois de um instante, murmurou:
— Um tanto embaraçoso...
— Sim, é. Foi tudo idéia de Nevile.
Ela fez uma pausa. Royde não falou, mas sentiu que uma corrente de dúvida vinha da parte dela. Mary repetiu, afirmando:
— Foi realmente idéia de Nevile.
— Por quê?
Por um momento ela tirou as mãos do volante, levantando-as.
— Ah, alguma atitude moderna! Todos juntos, amigos e sensatos. Esta é a idéia. Mas não creio que esteja dando muito certo.
— Provavelmente não dará. Que tal é a nova esposa? — acrescentou ele.
— Kay? Bonita, é claro. Realmente muito bonita e bem jovem.
— E Nevile está apaixonado?
— Sim. Mas também, estão casados há apenas um ano e meio!
Thomas Royde virou a cabeça para olhá-la, dando um pequeno sorriso. Mary apressou-se.
— Não foi exatamente isto que eu quis dizer.
— Ora Mary. Acho que você quis sim.
— Bem, não se pode deixar de notar que eles têm muito pouco em comum. Os amigos, por exemplo... — Ela parou.
— Ele a conheceu na Riviera, não foi? — perguntou Royde. — Não estou bem a par do que aconteceu. Sei apenas de poucos fatos que minha mãe me contou quando me escreveu.
— Sim. Encontraram-se pela primeira vez em Cannes. Nevile sentiu-se atraído por ela. Acredito que isto já tenha acontecido antes, mas como sempre, de uma forma inofensiva. Continuo achando que se ela não tivesse insistido, não teria dado em nada. Como você sabe, ele gostava muito de Audrey.
Thomas concordou com a cabeça.
— Não creio que ele tivesse a intenção de se separar — prosseguiu Mary — Estou até certa disto. Kay estava, porém, terminantemente decidida. Não descansou enquanto não o fez abandonar a esposa. E como se sente um homem em tais circunstâncias? Naturalmente que fica lisonjeado.
— Ela estava muito apaixonada por ele?
— É. Talvez tenha sido isto.
Havia dúvida no tom de voz de Mary. O olhar de indagação de Royde fê-la corar.
— Estou sendo malévola! Há sempre por perto um velho amigo dela, um jovem bonitão, com tipo de gigolô. Às vezes, não se pode deixar de pensar se o fato de Nevile ter uma boa situação financeira e prestígio nada teve a ver com isto... Afinal, ela não tinha um tostão.
Fez uma pausa parecendo envergonhada. Thomas Royde apenas exclamou:
— Hum! hum!
— Entretanto — continuou Mary —, devo estar sendo muito maldosa. A moça é o que se pode chamar de deslumbrante, e isto, provavelmente, faz com que meus instintos felinos de solteirona venham à tona.
Royde olhou-a pensativo, porém em seu rosto impassível, não se via nenhuma reação. Pouco depois, ele perguntou:
— Exatamente, qual é o problema que está havendo?
— Na verdade, não tenho a menor idéia. É isto que é muito estranho. É lógico que primeiramente consultamos Audrey, porém ela não se mostrou contra o encontro com Kay. Foi encantadora em relação a tudo. E continua sendo. Ninguém poderia ter sido mais simpática. Aliás, é sempre correta em tudo que faz. Seu comportamento para com o casal é perfeito. Como você sabe, ela é muito reservada. Nunca se tem idéia do que realmente está sentindo ou pensando, mas sinceramente não acredito que esta situação não a perturbe.
— Não vejo por que haveria de perturbá-la — disse Thomas. — Afinal, já se passaram três anos — acrescentou ele depois de algum tempo.
— Será que pessoas como Audrey esquecem? Ela gostava muito de Nevile.
Thomas mexeu-se no banco.
— Ela tem apenas 32 anos. Há uma vida inteira pela frente.
— Ah! eu sei. Mas sofreu muito. Como você sabe, teve um colapso nervoso.
— Eu sei. Minha mãe me escreveu contando.
— De certa maneira — disse Mary —, ter que cuidar de Audrey foi até bom para a sua mãe. Distraiu-a de seu próprio sofrimento: a morte de seu irmão. Sentimos muito o que aconteceu
— Eu sei. Pobre Adrian. Sempre dirigiu em alta velocidade.
Ficaram calados. Mary fez sinal com o braço para avisar que iria tomar o caminho para Saltcreek.
Enquanto passavam pela estrada estreita e cheia de curvas, ela perguntou:
— Thomas, você conhece bem Audrey?
— Mais ou menos. Não a tenho visto muito nestes últimos dez anos.
— Eu sei. Mas você a conheceu em criança. Ela era como uma irmã para você e Adrian, não?
Ele concordou com a cabeça.
— Ela tinha... tinha alguma forma de desequilíbrio? Ah, não é bem isto que quero dizer. Mas sinto que atualmente há algo de muito errado com ela. É completamente desligada de tudo, e seu equilíbrio tão perfeito não é natural. Às vezes fico imaginando o que se passa por traz da sua fisionomia impassível. Uma vez ou outra, sinto que existe uma emoção forte. Mas não sei bem qual é. Sei apenas que ela não é normal. Há algo estranho, e isto me preocupa. Alguma coisa no ambiente daquela casa afeta as pessoas. Estamos todos nervosos e sobressaltados. Mas não sei o porquê. Algumas vezes, Thomas, sinto medo.
— Medo?
O tom de surpresa na sua voz a fez recobrar a calma e soltar um riso nervoso.
— Parece absurdo... Mas o que quero dizer é que sua chegada será boa para nós, trará uma mudança no ambiente. Olhe, chegamos.
Haviam dobrado a última curva. Gull's Point ficava num planalto de pedra com vista para o rio. Havia penhascos nos dois lados. Os jardins e a quadra de tênis ficavam do outro lado, perto da estrada.
— Vou guardar o carro e já volto. Hurstall cuidará de você — disse Mary.
Hurstall o velho mordomo, cumprimentou Thomas com o prazer de um velho amigo.
— Fico feliz em vê-lo, Sr. Royde, depois destes anos todos. Lady Tressilian também ficará. O senhor dormirá no quarto leste. Creio que encontrará todos no jardim, a não ser que prefira ir primeiro para o seu quarto.
Thomas balançou a cabeça. Atravessou a sala de visitas e abriu a janela que dava para o terraço. Ficou observando sem ser visto.
Duas mulheres eram as únicas ocupantes do terraço. Uma delas estava sentada na balaustrada, olhando o rio. A outra a observava.
A primeira era Audrey... a outra deveria ser Kay Strange, que por sua vez, não sabendo que estava sendo observada, não se preocupou em disfarçar a expressão do rosto. Talvez Thomas Royde não conhecesse bem as mulheres, mas não poderia deixar de notar que Kay Strange odiava Audrey Strange.
Audrey olhava o rio parecendo inconsciente ou indiferente à presença da outra.
Haviam passado mais de sete anos desde que Thomas vira Audrey pela última vez. Examinou-a cuidadosamente. Teria ela mudado, e se assim fosse, de que maneira?
Sim, havia uma mudança — concluiu ele. Estava mais magra, mais pálida, com uma aparência mais etérea. Porém havia mais alguma coisa, que não conseguiu definir bem. Era como se ela controlasse cada um de seus movimentos, mantendo-se presa a uma coleira, entretanto, sempre muito atenta a tudo que acontecia a sua volta. Parecia uma pessoa com um segredo a esconder. No entanto, que segredo? Ele tinha conhecimento de alguns fatos ocorridos com ela nestes últimos anos. Estava preparado para ouvir lamentações, porém o que estava vendo agora era algo diferente do que esperava. Ela parecia uma criança que por segurar com força um tesouro, chamava atenção para aquilo que queria esconder.
Em seguida ele olhou para a outra mulher: a atual esposa de Nevile Strange. Linda. Mary Aldin tinha razão. E também perigosa. Pensou: "Não a deixaria perto de Audrey se estivesse com uma faca na mão".
Contudo, por que haveria ela de odiar a primeira mulher de Nevile? Tudo já terminara. Atualmente, Audrey nada tinha a ver com a vida dos dois.
Passos ressoaram no terraço. Parecendo cordial, Nevile se aproximou com uma revista nas mãos.
— Eis a Illustrated Review — disse ele. — Não encontrei a outra...
Aconteceram então duas coisas ao mesmo tempo.
— Ótimo, me dá aqui — pediu Kay. E Audrey, sem. virar o rosto, estendeu a mão distraída.
Nevile estava parado entre as duas. Ficou embaraçado. Antes que pudesse falar, Kay exclamou com uma voz ligeiramente histérica:
— Eu quero a revista. Dê para mim, Nevile!
Audrey Strange sobressaltou-se, abaixou a mão, e murmurou um tanto confusa:
— Ah, desculpe. Pensei que estivesse falando comigo, Nevile.
Thomas Royde notou que Nevile Strange ficara ruborizado. Deu três passos à frente e entregou a revista à Audrey, que cada vez mais embaraçada, hesitando, continuou:
— Ah, mas...
Kay empurrou a cadeira com um movimento brusco. Levantou-se e saiu em direção à sala de visitas. Esbarrou em Royde antes que ele tivesse tempo de se mexer.
O choque fê-la recuar e olhá-lo, enquanto ele se desculpava. Só então percebeu por que ela não o tinha enxergado: seus olhos estavam cheios de lágrimas... lágrimas de raiva, supôs ele.
— Olá — disse ela. — Quem é você? Ah, mas é claro, o homem da Malásia.
— Sim — disse Thomas. — Sou o homem da Malásia.
— Agradeceria a Deus se eu estivesse agora na Malásia! Qualquer outro lugar, menos isto aqui. Detesto esta casa nojenta. Detesto todo mundo que está dentro dela!
Cenas nervosas sempre assustaram Thomas. Olhou para Kay receoso e murmurou nervoso:
— Hum!
— Se não tomarem cuidado — observou ela —, vou acabar matando alguém: ou Nevile ou aquela gata pálida lá fora!
Saiu apressadamente batendo a porta.
Thomas Royde continuou parado. Não tinha muita certeza do que faria em seguida, mas estava satisfeito que a jovem Sra. Strange tivesse ido embora. Ficou olhando para a porta que ela batera com violência. A nova Sra. Strange lembrava um gato selvagem.
Nevile surgiu, parando entre as duas portas. Estava ofegante.
Cumprimentou Thomas:
— Alô Royde, não sabia que já tinha chegado. Por sinal, viu a minha mulher?
— Ela passou por aqui há um minuto — respondeu.
Nevile saiu da sala, parecendo aborrecido.
Thomas Royde se encaminhou para o terraço. Seus passos eram leves, e somente quando estava a poucos metros de Audrey, é que ela virou a cabeça.
Então ele viu seus olhos arregalados e a sua boca entreaberta. Ela desceu de onde estava, vindo em sua direção com os braços estendidos.
— Thomas! — disse ela. — Meu querido Thomas! Que bom que você está aqui.
No momento em que ele se curvou e segurou as mãos de Audrey, Mary Aldin apareceu na janela. Ao ver os dois no terraço, parou e ficou observando-os por alguns minutos. Em seguida, voltou para dentro.
II
Lá em cima, Nevile encontrara Kay no quarto. O único quarto de casal que havia na casa era o de Lady Tressilian. Os casais ficavam sempre com os dois quartos, no lado oeste da casa, que tinha uma porta de comunicação, além de um pequeno banheiro. Era uma pequena e isolada suíte.
Nevile passou pelo seu quarto indo direto ao de sua mulher. Kay tinha se jogado sobre a cama. Levantou o rosto marcado de lágrimas, e gritou:
— Ah, você está aí! Já não era sem tempo!
— Por que esta confusão toda? Você ficou maluca, Kay?
Nevile falou calmamente, mas no canto de suas narinas havia vestígios de raiva.
Por que você deu a Illustrated Review para ela e não para mim?
— Ora, Kay, você está sendo infantil. Todo este drama por causa de uma revista?
— Você entregou a revista para ela e não para mim — repetiu Kay com obstinação.
— Bem, e por que não? Que importância tem isso?
— Para mim tem muita.
— Não entendo o que está havendo com você. Não pode ter esse comportamento histérico na casa dos outros. Será que não sabe se comportar em público?
— Por que você deu a revista para Audrey?
— Porque ela queria.
— Eu também queria. E além do mais sou sua mulher.
— Mais um motivo para dá-la a uma mulher mais velha, e que oficialmente não é parente.
— Ela se desforrou. Era o que queria, e conseguiu. Você estava do lado dela!
— Você está falando como uma criança idiota e ciumenta. Pelo amor de Deus, controle-se e procure se comportar corretamente em público.
— Como Audrey, não é?
Nevile falou com frieza:
— De qualquer modo, ela é uma dama. Não faz papel ridículo.
— Ela está jogando você contra mim. Me odeia e está conseguindo se vingar.
— Olhe aqui, Kay, chega de ser boba e melodramática. Já estou farto!
— Então vamos embora daqui. Amanhã mesmo. Detesto este lugar!
— Só estamos aqui há quatro dias.
— E já é o bastante! Por favor, vamos embora Nevile.
— Olhe aqui, Kay, já aturei o bastante. Viemos para ficar 15 dias e ficaremos.
— Se ficarmos — disse ela — você vai se arrepender. Você e a sua Audrey! Você a acha maravilhosa.
— Não acho Audrey maravilhosa, mas sim uma pessoa extremamente boa e gentil, a quem tratei muito mal e que foi generosa me perdoando.
— É aí que você se engana — falou. Levantou-se da cama. Tinha se acalmado. Falou seriamente, quase solene:
— Audrey não o perdoou, Nevile. Eu a tenho observado quando olha para você. Não sei dizer no que fica penando mas há alguma coisa... Ela é do tipo que não deixa ninguém saber em que está pensando.
— É pena — disse Nevile — que a maioria não seja assim.
Kay ficou muito pálida.
— Você está se referindo a mim? — Havia em sua voz uma ponta de ameaça.
— Bem... você não tem sido muito discreta, tem? Você demonstra claramente todo seu rancor e mau humor. Cria uma situação ridícula para você e para mim.
— Ainda tem alguma coisa para dizer?
Sua voz estava gelada.
Ele respondeu num tom igualmente frio:
— Sinto muito se você acha que fui injusto. Mas esta é a pura verdade. Você tem menos autocontrole do que uma criança.
— Você nunca perde a calma, não é? É sempre o senhor superior, de maneiras encantadoras e controladas. Acho que você não tem sentimentos. Nem parece que tem sangue nas veias! Por que você não se descontrai? Por que você não grita, não amaldiçoa, não me manda para o inferno?
Nevile suspirou e encolheu os ombros.
— Oh Deus — suspirou ele.
Virou-se e saiu do quarto.
III
— Você está com a mesma aparência que tinha aos 17 anos, Thomas Royde — comentou Lady Tressilian. — O mesmo jeitão de coruja. E continua calado como antes. Por quê?
Thomas disse vagamente:
— Não sei. Nunca tive o dom da palavra.
— Tão diferente de Adrian. Seu irmão era um conversador espirituoso e esperto.
— Talvez seja esse o motivo. Sempre deixei a conversa a cargo dele.
— Pobre Adrian. Tinha um futuro tão promissor.
Thomas concordou com a cabeça.
Lady Tressilian mudou de assunto. Estava concedendo uma audiência a Thomas. Normalmente ela preferia receber uma visita de cada vez. Desta forma não se cansava e podia dar maior atenção às pessoas.
— Você já está aqui há 24 horas — comentou ela. — O que está achando da situação?
— Situação?
— Não fique com esta cara de bobo. Você faz isto propositadamente. Sabe muito bem a que me refiro: ao triângulo amoroso que se instalou aqui em minha casa.
Thomas respondeu com cautela:
— Parece haver um pouco de conflito.
Lady Tressilian sorriu maliciosa.
— Devo lhe confessar, Thomas, que estou me divertindo. Esta situação aconteceu contra minha vontade: na verdade fiz o possível para evitá-la. Todavia, Nevile estava obstinado. Insistiu em reunir estas duas mulheres e agora está colhendo o que plantou!
Thomas Royde mexeu-se na cadeira.
— Perece-me estranho — falou ele.
— O que quer dizer com isto?
— Não pensei que Strange fosse desse tipo de sujeito.
— É interessante que você pense assim, porque foi o que também me ocorreu. Não é próprio dele. Nevile, como a maioria dos homens, preocupa-se em evitar qualquer problema ou possível aborrecimento. Desconfiei de que a idéia não tivesse partido dele, mas se não o foi, não posso imaginar de quem possa ter sido.
Ela fez uma pequena pausa, e com uma pequena inflexão na voz, perguntou:
— Não teria sido idéia de Audrey?
Thomas respondeu de imediato:
— Não, Audrey nunca!
— E também não posso acreditar que tenha sido idéia daquela jovem infeliz, a Kay. A não ser que seja uma atriz notável. Saiba que ultimamente sinto quase pena dela.
— A senhora não gosta muito dela, não é?
— Não. Ela parece uma cabeça oca, e sem nenhum equilíbrio emocional. Mas como lhe disse, começo a sentir pena. Tem se comportado de modo desajeitado e desnorteado. Não sabe que armas usar. Mau humor, péssimas maneiras, grosserias infantis, e tudo que tem o pior efeito sobre um homem como Nevile.
Thomas concluiu calmamente:
— Acho que Audrey é quem está numa situação difícil.
Lady Tressilian lançou-lhe um olhar penetrante.
Você sempre esteve apaixonado por Audrey, não é verdade Thomas?
— Acredito que sim — respondeu imperturbável. — Praticamente desde o tempo em que eram crianças, não é?
Ele concordou com a cabeça.
— E então Nevile apareceu, e a levou bem debaixo do seu nariz.
Ele se mexeu, inquieto, na cadeira.
— Bem... sempre soube que não tinha a menor chance.
— Derrotista! — disse Lady Tressilian.
— Sempre fui um estúpido.
— Pacato demais!
— Thomas, o bonzinho! É isto que Audrey pensa de mim.
— Fiel Thomas — lembrou Lady Tressilian. -— Era este o seu apelido, não era?
Ele sorriu pois estas palavras traziam lembranças de sua infância.
— Engraçado! Não ouço isto há muito tempo.
— Pode ser que agora isto lhe traga vantagem.
Ela respondeu ao seu olhar, segura e pensativa.
— Fidelidade — disse ela — é uma condição que qualquer pessoa, que tenha passado pela experiência que Audrey passou, deve apreciar. A devoção de uma vida inteira, Thomas, às vezes, é recompensada.
Royde olhou para baixo, desajeitado com seu cachimbo.
— Vim para cá com essa esperança — falou ele.
IV
— E aqui estamos todos — disse Mary Aldin.
Hurstall, o velho mordomo, enxugou a testa. Quando entrou na cozinha, a Sra. Spicer, a cozinheira, comentou sua expressão.
— A verdade é que não posso estar bem — afirmou ele. — Tenho a impressão de que, atualmente, tudo que é dito e feito nesta casa tem um significado diferente do que aparenta: será que você compreende?
A Sra. Spicer parecia não entender, e Hurstall prosseguiu:
— Agora mesmo, quando todos sentaram para jantar, a Srta. Aldin disse: "E aqui estamos todos." Isto me assustou. Fez-me pensar em um treinador preso numa jaula com as portas fechadas, com um bando de animais selvagens. De repente, tive a impressão de termos caído numa armadilha.
— Ora, Sr. Hurstall! — impacientou-se a Sra. Spicer. — O senhor deve ter comido alguma coisa que não lhe fez bem.
— Não é problema de digestão. É a maneira como todos estão nervosos. Ainda há pouco, a porta da frente bateu e a nossa Sra. Strange, a Srta. Audrey, sobressaltou-se como se tivesse levado um tiro. Existem ainda os silêncios, que são muito estranhos. Ê como se de repente todos tivessem medo de falar. Logo em seguida, começam a tagarelar todos ao mesmo tempo, dizendo a primeira coisa que lhes vem à cabeça.
— Realmente, é o bastante para deixar qualquer pessoa embaraçada — concordou a Sra. Spicer. — Duas Sras. Strange na mesma casa. Não acho decente.
Agora, a sala de jantar, estava num daqueles silêncios a que Hurstall tinha se referido.
Foi com muito esforço que Mary Aldin se dirigiu a Kay e disse:
— Convidei seu amigo, o Sr. Latimer, para jantar aqui amanhã.
— Ótimo! — disse Kay. Nevile perguntou:
— Latimer está aqui?
— Está hospedado no Hotel Easterhead Bay — respondeu Kay.
— Podemos ir jantar lá uma noite destas. Até que horas a barca funciona? — indagou Nevile.
— Até uma e meia — respondeu-lhe Mary.
— Imagino que dancem lá todas as noites, não?
— Lá, a maioria das pessoas tem cem anos! — exclamou Kay.
— Não deve ser muito divertido para o seu amigo — disse Nevile a ela.
Mary retrucou prontamente.
— Poderemos ir nadar um desses dias na baía de Easterhead. Ainda está calor e a praia é linda.
Em voz baixa, Thomas sussurrou a Audrey.
— Pensei em velejar amanhã. Gostaria de ir?
— Gostaria sim.
— Podemos ir todos — afirmou Nevile.
— Pensei que você havia dito que ia jogar golfe — lembrou Kay.
— Realmente pensei em ir ao campo de golfe. Outro dia joguei bastante mal.
— Que tragédia! — exclamou sua esposa.
Nevile respondeu, bem humorado:
— Golfe é um jogo trágico.
Mary perguntou a Kay se ela jogava.
— Sim. Jogo mais ou menos.
Nevile ressaltou:
— Ela seria uma boa jogadora se levasse o jogo mais a sério.
Kay perguntou a Audrey:
— Você não pratica nenhum esporte, não é?
— Na realidade não. Jogava um pouco de tênis, mas sou inteiramente desajeitada.
— Você ainda toca piano, Audrey? — perguntou Thomas.
— Atualmente não.
— Você costumava tocar muito bem — enfatizou Nevile.
— Pensei que não apreciasse música, Nevile — retrucou Kay.
— Não entendo muito de música — disse ele vagamente. — Nunca compreendi como Audrey, tendo as mãos tão pequenas, conseguia dar uma oitava.
Ele a estava olhando, quando Audrey pousou os talheres.
Ela corou um pouco e disse apressada:
— Meu dedo mínimo é muito comprido. Creio que isto ajuda.
— Você então deve ser egoísta — comentou Kay. — Senão seu dedo mínimo seria curto.
— Isto é verdade? — perguntou Mary Aldin. — Então devo ser altruísta. Olhe, meus dedos mínimos são bem curtos.
— Acho você muito generosa — falou Thomas Royde, olhando-a pensativamente.
Ela ficou vermelha, porém continuou prontamente:
— Quem será o menos egoísta de nós? Vamos comparar os dedos mínimos. O meu é mais curto que o seu, Kay. Mas, acho que Thomas ganha.
— Eu ganho de vocês dois — apressou-se Nevile. — Olhe! — e esticou a mão.
— Mas só em uma das mãos — lembrou Kay. — O dedo mínimo de sua mão esquerda é curto mas o da mão direita é comprido. E sua mão esquerda é o que nasce com você, e a direita é o resultado do que você faz de sua vida; o que significa que você nasceu egoísta, mas foi se tornando altruísta à medida que o tempo passou.
— Você pode ler o futuro, Kay? — perguntou Mary Aldin, estendendo-lhe a mão, com a palma virada para cima. — Uma quiromante me disse que eu ia ter dois maridos e três filhos. Vou ter que me apressar!
Kay corrigiu:
— Estas pequenas cruzes não significam crianças, e sim viagens. Você fará três viagens por mar.
— Isto também parece improvável — enfatizou Mary.
— Você já viajou muito? — perguntou Thomas Royde.
— Não.
Notando uma tristeza oculta em sua voz, continuou:
— Você gostaria de viajar?
— Mais do que qualquer outra coisa.
Ele refletiu sobre o tipo de vida que Mary levava. Sempre a serviço de uma mulher velha. Calma, diplomática, uma excelente administradora. Em seguida, perguntou curioso:
— Você mora com Lady Tressilian há muito tempo?
— Há quase quinze anos. Vim para cá logo depois da morte de meu pai, que já estava inválido há alguns anos antes de morrer.
Depois, respondeu à pergunta que ele estava querendo fazer:
— Tenho trinta e seis anos. Era isto que você queria saber, não?
— Eu estava imaginando — ele admitiu. — Você poderia ter qualquer idade, percebe?
— Este é um comentário que pode ter duplo sentido.
— É, imagino que sim.
Seu olhar pensativo e sombrio não se afastava do rosto de Mary. Ela porém não se sentia constrangida, pois havia ele um interesse genuíno e atencioso, despido de crítica. Vendo-o observar seus cabelos, ela passou a mão na mecha branca, e disse:
— Tenho esta mecha desde muito jovem.
— Gosto dela — comentou Thomas simplesmente.
Ele continuou a olhá-la. Finalmente, num tom ligeiramente divertido ela perguntou:
— Bem, qual é o veredicto?
Sob o rosto bronzeado, ele corou:
— Ah! acho que é indelicado ficar lhe encarando. Estava curioso a seu respeito; queria saber como você é realmente.
— Por favor — ela disse precipitadamente, levantando-se da mesa. Ao entrar na sala de visitas, segurando Audrey pelo braço, falou:
— O velho Sr. Treves também vem jantar amanhã.
— Quem é ele? — perguntou Nevile.
— Ele trouxe uma carta de apresentação de Lorde Rufus. É um senhor encantador. Está hospedado no Balmoral Court. Sofre do coração e tem uma aparência frágil, mas suas faculdades mentais estão perfeitas e ele conheceu muitas pessoas interessantes. Não me lembro se é advogado ou solicitador.
— Todos aqui são tão velhos! — exclamou Kay descontente.
Ela estava parada bem debaixo da luz, na mesma direção que Thomas olhava. Olhou-a com o pouco interesse que sempre dava a tudo que estava diretamente diante de seus olhos.
De repente foi fulminado pela beleza intensa e ardente de Kay. Uma beleza de muito colorido, repleta de vitalidade. Dirigiu então o olhar para Audrey, apagada e sem colorido, com seu vestido prateado.
Ele sorriu para si mesmo e murmurou:
— Rosa vermelha e Branca de Neve.
— O quê? — era Mary Aldin perguntando ao seu lado.
Ele repetiu as palavras:
— Como aquele velho conto popular, você sabe...
Mary disse:
— É uma ótima comparação...
V
O Sr. Treves bebia seu vinho com prazer. O vinho estava ótimo e o jantar muito bem servido. Era evidente que Lady Tressilian não tinha problemas com seus empregados. A casa também era bem administrada, apesar de sua dona ser uma inválida.
Pena que as senhoras não tenham se retirado da sala de jantar quando o vinho do porto foi servido. Ele preferia o costume antigo, porém os jovens têm hábitos diferentes.
Seus olhos pousaram pensativos na radiante beleza da jovem mulher: a atual esposa de Nevile Strange.
Hoje, a noite era de Kay. Sua resplandecente beleza brilhava à luz das velas. Ao seu lado. Ted Latimer com os cabelos escuros e brilhantes bajulava-a, fazendo-a se sentir triunfante e segura de si mesma.
A simples visão de tamanha e tão radiante vitalidade deixava o Sr. Treves animado.
Juventude! realmente, nada como a juventude! — pensou.
Não era de se admirar que o marido tivesse perdido a cabeça e deixado a primeira mulher. Audrey estava sentada perto dele. Uma criatura encantadora e também uma dama. Porém, segundo a experiência do Sr. Treves, ela era o tipo de mulher que é abandonada invariavelmente.
Ela estava com a cabeça abaixada olhando para o prato. Sua completa imobilidade chamou a atenção do Sr. Treves, que a observou mais atentamente. Ficou imaginando no que ela estaria pensando. Achou encantadora a maneira como o cabelo caía sobre sua pequenina orelha...
Ao notar que alguma coisa estava acontecendo, o Sr. Treves, com um pequeno sobressalto, voltou a si. Num movimento rápido ficou de pé.
Na sala de visitas, Kay Strange foi até a vitrola e colocou um disco para se dançar.
Mary Aldin desculpou-se com o Sr. Treves:
— Estou certa de que o senhor detesta jazz.
— De forma alguma — disse ele educadamente, apesar de não estar sendo sincero.
— Talvez mais tarde possamos jogar bridge — sugeriu ela. — Mas não começaremos uma partida agora, pois sei que Lady Tressilian o aguarda para conversarem.
— Está bem, com muito prazer! Lady Tressilian nunca desce para jantar?
— Não. Antes ela costumava descer numa cadeira de rodas. Por isto instalamos um elevador. No entanto, atualmente ela prefere ficar no seu quarto. Lá ela pode receber apenas quem desejar, convocando numa espécie de Comando Real.
— Muito bem expressado, Srta. Aldin. Estou ciente do toque real nas maneiras de Lady Tressilian.
No centro da sala, Kay ensaiava uns passos de dança.
— Tire esta mesa do caminho, Nevile — pediu ela.
Sua voz era autoritária e segura. Seus olhos brilhavam e sua boca estava entreaberta.
Obedientemente, Nevile empurrou a mesa. Ela caminhou em sua direção, mas deliberadamente, virou-se para Ted Latimer.
— Venha, Ted, vamos dançar.
Ted imediatamente passou o braço em torno dela. Dançavam, movendo-se, balançando, os passos perfeitamente coordenados. Era um lindo espetáculo.
O Sr. Treves murmurou:
— Ah! bastante profissional.
Mary Aldin estremeceu ligeiramente ao ouvir a palavra. Entretanto, o Sr. Treves falara apenas por simples admiração. Olhando para seu rosto sagaz, notou uma expressão distraída, como se ele estivesse perdido em seus próprios pensamentos.
Nevile hesitou por um momento, indo depois até Audrey que estava parada perto da janela.
— Quer dançar, Audrey?
Seu tom era formal, quase frio. Dir-se-ia que seu pedido fora por simples delicadeza. Audrey Strange hesitou um pouco antes de aceitar e dar um passo em direção a ele.
Mary fez alguns comentários banais, aos quais o Sr. Treves não respondeu. Até então ele não havia mostrado sinais de surdez e sua educação era perfeita. Ela concluiu que ele deveria estar absorto em alguma coisa; e era este o motivo de sua distração. Ela não pôde descobrir se ele observava os casais dançando, ou Thomas Royde parado, sozinho, do outro lado.
Com um pequeno sobressalto, o Sr. Treves perguntou:
— Desculpe-me, minha senhora, o que estava falando?
— Nada. Apenas comentava que não é normal, agora em setembro, termos um tempo tão bom, como estamos tendo.
— Sim, realmente. No hotel disseram-me que está precisando chover urgentemente.
— Espero que o senhor esteja bem instalado.
— Ah, sim! apesar de ter-me aborrecido ao chegar e encontrar...
O Sr. Treves parou.
Audrey tinha se soltado dos braços de Nevile. Com um sorriso, ela se desculpou:
— Está muito quente para dançar.
E saiu para o terraço.
— Vá atrás dela, seu tolo — murmurou Mary. Ela pretendia falar baixo, porém foi alto o bastante para o Sr. Treves virar-se e olhá-la surpreso.
Ela ficou encabulada e riu embaraçada.
— Estou pensando muito alto — comentou ela triste. — Mas ele me irrita tanto. É tão parado!
— O Sr. Strange?
— Oh, não, não o Nevile. Thomas Royde.
Enquanto Thomas fazia um gesto para sair, Nevile, depois de uma pequena pausa, já havia seguido Audrey.
Por um momento, o Sr. Treves olhou pensativo para a porta, e depois sua atenção voltou-se para os dançarinos.
— Um ótimo dançarino, o jovem Sr.... Latimer, é este o seu nome?
— Sim. Edward Latimer.
— Ah, Edward Latimer. Um velho amigo da Sra. Strange, não é?
— Sim.
— E o que este jovem tão decorativo faz para ganhar a vida?
— Bem, na verdade, eu não sei.
— Realmente! — disse o Sr. Treves, conseguindo colocar uma grande dose de compreensão numa palavra tão inofensiva.
Mary prosseguiu:
— Ele está hospedado no Hotel Easterhead Bay.
— Uma situação muito agradável — comentou o Sr. Treves.
Depois de um ou dois minutos, ele acrescentou, divagando:
— Tem um formato de cabeça muito interessante: um curioso ângulo da cabeça ao pescoço, que é disfarçado pelo seu corte de cabelo. Mas é realmente fora do comum.
Depois de outra pausa, continuou, ainda, a divagar:
— O último homem que vi, com este formato de cabeça, pegou dez anos de cadeia por uma brutal agressão a um velho joalheiro.
— Certamente, o senhor não quer dizer!... — exclamou Mary.
— Não, claro que não — disse o Sr. Treves. — A senhora não compreendeu. Não estou querendo fazer uma comparação injuriosa com um convidado seu. Estava apenas mostrando que um criminoso brutal pode estar escondido por trás de um jovem encantador e atraente. Parece estranho, mas é a pura verdade.
Ele sorriu amavelmente. Mary disse-lhe:
— Sabe, Sr. Treves, acho que estou com medo do senhor.
— Que bobagem, minha senhora.
— Mas estou. O senhor é um observador muito perspicaz.
— Meus olhos — explicou o Sr. Treves complacente — continuam perfeitos. — Fez uma pausa e depois prosseguiu: — Se isto é bom ou ruim, no momento não consigo saber.
— Como poderia ser ruim?
O Sr. Treves indeciso balançou a cabeça.
— Às vezes, nos encontramos numa posição de responsabilidade. A atitude certa a se tomar, nem sempre é fácil de se decidir.
Hurstall entrou, carregando a bandeja de café.
Depois de servir Mary e o velho advogado, foi até o canto da sala onde estava Thomas Royde. Em seguida, seguindo instruções de Mary, pousou a bandeja na mesa baixa e saiu da sala.
— Vamos acabar de dançar esta música — falou Kay por cima do ombro de Ted.
— Vou levar o de Audrey lá fora — disse Mary, saindo pela porta, com a xícara na mão. O Sr. Treves a acompanhou. Quando ela parou na soleira da porta, ele olhou-a por cima do ombro.
Audrey estava sentada na beira da balaustrada. À luz da lua, sua beleza ganhava vida: uma beleza feita de contornos, e não de colorido. Uma linha perfeita do maxilar à orelha, queixo e boca delicadamente modelados, os ossos da cabeça realmente bonitos e um nariz pequeno e reto. Esta beleza se conservaria até quando Audrey Strange se tornasse uma mulher velha, pois nada tinha a ver com a sua pele, os seus ossos é que eram bonitos. O vestido brilhante que usava acentuava o efeito do luar. Ela estava sentada, parada, enquanto Nevile a olhava.
Ele se aproximou:
— Audrey — disse ele —, você...
Ela mudou de posição, levantou-se repentinamente colocando a mão na orelha:
— Ah! meu brinco... devo tê-lo deixado cair.
— Onde? Deixe que eu procuro...
Ambos se abaixaram, desajeitados e embaraçados, esbarrando um no outro. Audrey recuou, e Nevile exclamou:
— Espere um minuto... minha abotoadura... prendeu em seu cabelo. Fique parada.
Ela ficou parada enquanto ele manuseava desastradamente a abotoadura.
— Oh, você está puxando o meu cabelo! Como você é desajeitado Nevile. Acabe logo com isso.
— Sinto muito. Sou mesmo desajeitado.
O luar estava bastante claro para que os dois espectadores vissem o que Audrey não podia ver: o tremor das mãos de Nevile ao tentar soltar os fios do cabelo bonito e acinzentado. Entretanto, Audrey também tremia, como se de repente sentisse frio.
Mary Aldin assustou-se quando uma voz calma, atrás dela, falou:
— Com licença... — pediu Thomas Royde se aproximando. — Posso ajudar, Strange?
Nevile levantou, afastando-se de Audrey.
— Está tudo bem. Já consegui.
O rosto de Nevile estava bastante branco.
— Você está com frio — comentou Thomas com Audrey. — Entre e tome seu café.
Ela voltou com ele, enquanto Nevile virou-se, encaminhando-se para o mar.
— Trouxe o seu café aqui para fora — disse Mary. — Mas talvez seja melhor você entrar.
— Sim — respondeu Audrey. — Tem razão. É melhor entrar.
Todos voltaram para a sala de visitas. Ted e Kay tinham parado de dançar.
A porta abriu, quando uma mulher magra e alta, vestida de preto, entrou e falou respeitosamente:
— Minha senhora manda os seus cumprimentos e gostaria de ver o Sr. Treves.
VI
Lady Tressilian recebeu o Sr. Treves com evidente prazer. Logo depois estavam mergulhados em agradáveis recordações, também lembrando amigos comuns.
Meia hora depois, ela deu um profundo suspiro de satisfação.
— Ah! — exclamou — passei bons momentos. Não há nada como ficar a par das novidades e relembrar velhos escândalos.
— Um pouco de malícia dá certo sabor à vida — concordou o Sr. Treves.
— A propósito — disse Lady Tressilian —, o que o senhor achou do nosso triângulo amoroso?
O Sr. Treves ficou discretamente inexpressivo.
— Hum... que triângulo?
— Não me diga que não notou? Nevile e suas duas esposas,
— Ah, isto? A atual Sra. Strange é uma jovem extremamente atraente.
— Audrey também o é — afirmou Lady Tressilian.
— Sim, ela tem encanto — o Sr. Treves admitiu.
— O senhor quer dizer que compreende que um homem possa deixar Audrey, que é uma pessoa de rara qualidade, por... por uma Kay? — perguntou Lady Tressilian.
— Perfeitamente. Acontece com freqüência — replicou o Sr. Treves com calma.
— É revoltante. Se eu fosse homem, logo me cansaria de Kay e desejaria nunca ter feito tamanha besteira!
— Isto também acontece com freqüência. Estas grandes e súbitas paixões — comentou o Sr. Treves, parecendo impassível e preciso — raramente têm longa duração.
— E o que costuma acontecer depois? — perguntou ela.
— Normalmente — explicou o Sr. Treves — eles se ajustam. Muitas vezes há um segundo divórcio. O homem se casa com uma terceira pessoa, alguém de bom gênio.
— Absurdo! Nevile não é um Mormon, como alguns de seus clientes possam ser.
— Às vezes, acontece, o antigo casal torna a se unir.
Lady Tressilian balançou a cabeça.
— Isto nunca! Audrey é muito orgulhosa.
— A senhora acha?
— Tenho certeza. Não balance a cabeça desta forma irônica.
— Falo por experiência — concluiu o Sr. Treves — que as mulheres têm pouco ou nenhum orgulho em questões de amor. Orgulho é uma palavra muito comum em suas bocas, entretanto não aparece em suas ações.
— O senhor não entende Audrey. Ela amava profundamente Nevile... Talvez em demasia. Depois que ele a abandonou por aquela moça, apesar de não culpá-lo inteiramente (a moça o perseguia por toda parte, e o senhor sabe como são os homens), ela nunca mais quis vê-lo.
O Sr. Treves tossiu levemente.
— Entretanto — disse ele — ela está aqui!
— Bem — retrucou Lady Tressilian aborrecida —, não digo que compreenda essas idéias modernas. Imagino que Audrey esteja aqui apenas para mostrar que não se importa, e que tudo já passou,
— Pode ser — duvidou o Sr. Treves, esfregando o queixo.
— Certamente que para si mesma, ela possa colocar o assunto nestes termos.
— Quer dizer — falou ela — que o senhor pensa que Audrey ainda continua ansiosa atrás de Nevile e que... ah, não! Não posso acreditar em tal coisa.
— Mas pode ser — opinou o Sr. Treves.
— Pois eu não aceito — disse Lady Tressilian. — Não em minha casa.
— A senhora já está confusa, não está? — perguntou ele astutamente. — Existe tensão. Senti no ambiente.
— Então o senhor também sentiu? — perguntou ela abruptamente.
— Sim. E devo confessar que estou intrigado. Os verdadeiros sentimentos do grupo permanecem obscuros. Mas na minha opinião, o pavio está aceso. A explosão pode vir a qualquer hora.
— Pare de falar como Guy Fawkes, e diga-me o que fazer — pediu Lady Tressilian.
O Sr. Treves levantou as mãos.
— Na verdade, não sei o que sugerir. Tenho certeza de existe um foco. Se pudéssemos isolá-lo... mas há tanta coisa que permanece obscura...
— Não tenho intenção de pedir à Audrey que se vá embora — disse Lady Tressilian. — Até onde pude observar, ela tem se comportado de maneira correta, numa situação muito difícil. Tem sido educada, mas mantendo distância dele. Considero sua conduta irrepreensível.
— Sim — concordou ele. — Bastante. Mas, mesmo assim, está tendo um efeito muito marcante sobre o jovem Nevile Strange.
— Nevile — disse Lady Tressilian — não está se comportando bem. Falarei com ele sobre isso. Porém, não posso nem pensar em mandá-lo embora desta casa. Matthew o considerava praticamente como um filho adotivo.
— Eu sei.
Lady Tressilian, suspirando, perguntou em voz baixa:
— O senhor sabe que Matthew morreu afogado aqui em Gull's Point?
— Sim, eu soube.
— Muitas pessoas ficaram surpresas por eu ainda permanecer neste lugar, o que eu considero pura ignorância. Aqui sempre senti Matthew perto de mim. A casa inteira está cheia da presença dele. Sentir-me-ia solitária e estranha em qualquer outro lugar. — Fez uma pausa e prosseguiu: — No começo, tive a esperança de que não demoraria a me juntar a ele, principalmente quando minha saúde começou a fraquejar. Mas parece que sou um destes inválidos perpétuos que não morrem nunca — zangada, deu uma pancada no travesseiro. — É horrível! Sempre desejei que quando chegasse minha hora, fosse tudo rápido. Que encontrasse a morte cara a cara, e que não a sentisse rastejando ao meu lado, gradativamente me forçando a sucumbir de uma humilhação a outra, por força da doença. Aumentando o meu desespero, e minha dependência para com as outras pessoas.
— Entretanto, tenho certeza de que são pessoas muito devotadas. A senhora tem uma criada fiel, não tem?
— Barrett? A que acompanhou o senhor até aqui em cima? É o conforto da minha vida. Uma velha severa e briguenta que está comigo há anos.
— E a senhora tem sorte em ter a Srta. Aldin.
— O senhor tem razão. Tenho sorte em ter Mary comigo.
— Ela é sua parenta?
— É uma prima distante. Uma dessas criaturas altruístas cuja vida é continuamente sacrificada em benefício de outros. Ela tomou conta do pai, um homem inteligente, mas de difícil relacionamento. Quando ele morreu, pedi que ela viesse morar comigo, e abençôo o dia em que veio. O senhor não tem idéia de como são terríveis, na maioria, as damas de companhia. Criaturas enfadonhas e fúteis. Chego a me exasperar com a inatividade delas. São damas de companhia só porque não servem para outra coisa melhor. É maravilhoso poder ter Mary, uma mulher inteligente e culta. Possui realmente um cérebro de primeira classe: um cérebro de homem. Ela leu muito aprofundadamente, não havendo o que não possa discutir. É esperta tanto no ponto de vista doméstico, como no intelectual. Dirige a casa com perfeição, e mantém os empregados contentes. Acaba com todas as discussões e ciúmes. Não sei como ela consegue isso, todavia creio que usa apenas de diplomacia.
— Mary está com a senhora há muito tempo?
— Há 12 anos. Não, mais do que isto. Uns treze ou quatorze anos. Uma coisa assim. Tem sido um grande conforto para mim.
O Sr. Treves concordou com a cabeça.
Lady Tressilian, observando-o com as pálpebras semicerradas, perguntou de repente:
— O que há? O senhor está preocupado com alguma coisa?
— É algo sem muita importância. Uma bobagem. A senhora é muito observadora — ressaltou o Sr. Treves.
— Gosto de estudar as pessoas — disse ela. — Sempre sabia o que se passava pela cabeça de Matthew — ela suspirou e recostou-se nos travesseiros. — Agora preciso descansar — era a palavra de uma rainha, embora não houvesse nisso nenhuma descortesia. — Estou muito cansada. Mas foi um grande prazer. Espero que volte logo.
— Pode estar certa de que voltarei. Só espero não ter falado demais.
— Não. É o meu cansaço que vem de repente. Antes de sair, toque a campainha para mim, por favor.
O Sr: Treves puxou energicamente um antiquado cordão com uma enorme borla na ponta.
— Uma relíquia e tanto — comentou ele.
— Minha campainha? Não gosto de coisas modernas. Na maior parte do tempo estão quebradas, fazendo as pessoas tocarem inutilmente, por um longo tempo. Esta nunca falha. Toca lá em cima no quarto de Barrett. Já que fica em cima de sua cama, ela nunca demora a responder. Se por acaso demora, eu chamo logo em seguida.
Ao sair do quarto, o Sr. Treves ouviu a campainha tocar pela segunda vez, ressoando em algum lugar do andar de cima. Olhou e viu os fios estendidos no teto. Barrett, que desceu correndo as escadas, passou por ele indo atender a patroa.
O Sr. Treves desceu vagarosamente sem se preocupar com o pequeno elevador. Em seu rosto havia uma expressão carrancuda de incerteza.
Encontrou o grupo todo reunido na sala de visitas, quando Mary Aldin, de pronto, sugeriu que jogassem bridge, o que o Sr. Treves recusou polidamente, alegando que em breve deveria ir embora.
— Meu hotel é antiquado — disse ele. — Eles não esperam que ninguém fique fora depois de meia-noite.
— Ainda falta muito para isso. São apenas dez e meia — observou Nevile. — Espero que não tranquem o senhor do lado de fora.
— Na verdade, acredito que nunca tranquem a porta. Às nove horas ela é fechada, mas basta girar o trinco e entrar. As pessoas aqui são muito displicentes, contudo suponho que tenham motivos para confiar na honestidade do povo local.
— Certamente. Aqui, durante o dia, ninguém tranca a porta — comentou Mary. — A nossa fica aberta o dia todo, entretanto é fechada à noite.
— Que tal é o Hotel Balmoral Court? — perguntou Ted Latimer. — Parece uma estranha monstruosidade vitoriana.
— Faz jus ao nome — observou o Sr. Treves —, tendo o bom e sólido conforto vitoriano. Boa cama, boa comida, armários espaçosos e banheiros imensos com móveis de mogno.
— O senhor não comentou que ficara aborrecido com alguma coisa? — perguntou Mary.
— Sim. Tinha cuidadosamente reservado, por carta, dois aposentos no andar térreo. Como sabe, por ter um coração fraco, as escadas estão proibidas para mim. Quando cheguei fiquei irritado ao saber que não estavam disponíveis. Ao contrário, deram-me dois aposentos, muito agradáveis, devo admitir, no andar de cima. Protestei, mas parece que um antigo hóspede que costuma ir à Escócia em setembro, ficou doente e não pôde desocupar o quarto.
— A Sra. Lucan, suponho? — perguntou Mary.
— Acho que é este o nome. Nestas circunstâncias, tive que me acomodar da melhor maneira possível; felizmente há um bom elevador. Assim sendo, na verdade, não há nenhum inconveniente.
— Ted, por que você não se muda para o Balmoral Court? Ficaria mais accessível — sugeriu Kay.
— Ah, não creio que se adapte ao meu gosto.
— Tem razão, Sr. Latimer — disse o Sr. Treves. — Não estaria de acordo com o seu estilo de vida.
Por algum motivo Ted Latimer corou.
— Não entendi o que o senhor quis dizer com isso — afirmou ele.
Mary, percebendo o ambiente constrangedor, fez rapidamente um comentário sobre um caso que saíra no jornal.
— Li que o homem do caso da mala de Kentish Town foi detido.
— É o segundo homem que prendem — comentou Nevile. — Espero que desta vez seja o certo.
— Mesmo que seja, talvez não possam retê-lo — explicou o Sr. Treves.
— Insuficiência de provas? — perguntou Royde.
— Sim.
— Contudo — disse Kay —, suponho que no final sempre se consigam as provas.
— Nem sempre, Sra. Strange. A senhora ficaria surpresa se soubesse quantos criminosos andam livres por este país, e sem serem molestados.
— O senhor quer dizer por que nunca foram descobertos, não é?
— Não é apenas isto. Há um homem, e cito um famoso caso ocorrido há dois anos, que a polícia sabe que matou aquelas duas crianças (sabem sem a menor sombra de dúvida), entretanto, nada pode fazer. Duas pessoas forneceram alibi, e embora fosse falso, não havia como prová-lo. Assim, o assassino continua livre até hoje.
— Que coisa horrível! — exclamou Mary.
— Isto vem confirmar o que sempre achei: há ocasiões que é admissível fazer justiça com as próprias mãos — disse Thomas Royde com sua voz calma e pensativa, esvaziando o cachimbo.
— O que quer dizer, Sr. Royde?
Thomas começou a encher o cachimbo. Olhava pensativo para as mãos, enquanto falava aos trancos:
— Suponha que o senhor soubesse de um trabalho sujo, soubesse ainda que o responsável não pode ser acusado perante às leis, e que está imune à punição. Nesse caso, mantendo meu ponto de vista, admito que se faça justiça pelas próprias mãos.
O Sr. Treves explicou cordialmente:
— Uma doutrina muito perniciosa. Sr. Royde! Tal atitude não se justificaria.
— Não vejo o porquê. Estou falando na hipótese de fatos provados.
— Ainda assim, uma atitude pessoal não seria permitida.
Thomas sorriu; um sorriso muito gentil.
— Não concordo — disse ele. — Se o homem merece ter o pescoço torcido, não me incomodaria de tomar o encargo de torcê-lo.
— E por sua vez, o senhor ficaria sujeito às penalidades da lei.
— Eu teria que ser cuidadoso, é claro... De fato, acho que teria que usar de muita astúcia... — continuou Thomas sorrindo.
Com sua voz clara, Audrey falou:
— Você seria descoberto, Thomas.
— Para falar a verdade, não creio que o fosse.
— Houve um caso, certa vez — começou o Sr. Treves, mas parou. Desculpando-se continuou: — Criminologia é uma espécie de hobby para mim.
— Por favor, continue — disse Kay.
— Tenho tido uma vasta experiência em casos de crimes. Poucos deles foram realmente interessantes. A maioria dos assassinos é de grande inexpressividade e de pouca visão. Entretanto, poderia contar um caso interessante.
— Ah, conte — pediu Kay. — Adoro assassinatos.
O Sr. Treves falava devagar, parecendo escolher as palavras com muito cuidado e ponderação.
— É o caso de uma criança. Não mencionarei nem a idade, nem o sexo. Os fatos foram os seguintes: duas crianças brincavam de arco e flecha. Uma delas atirou a flecha, que atingindo um ponto vital, causou, assim, a morte da outra. Houve um inquérito, a criança sobrevivente ficou completamente perturbada; o acidente foi lamentado e demonstraram compaixão pelo autor do acontecimento.
Fez-se uma pausa.
— Isto é tudo? — perguntou Ted Latimer.
— Sim, um triste acidente. Mas há outro lado da história: algum tempo antes do ocorrido, um fazendeiro, passando por acaso por um atalho da floresta, viu quando uma criança praticava arco e flecha, numa pequena clareira.
Fez-se outra pausa para que sentissem o que ele queria dizer.
— Quer dizer — perguntou Mary Aldin incrédula — que não foi um acidente? Foi intencional?
— Não sei — disse o Sr. Treves. — Nunca soube. Mas foi declarado, no inquérito, que, por não saberem usar arco e flecha, as crianças atiravam as flechas de uma forma desordenada.
— E não era verdade?
— Em relação a uma criança, certamente que não!
— O que fez o fazendeiro? — perguntou Audrey ansiosa.
— Não fez nada. Até hoje não sei se ele agiu certo ou pão. Era o futuro de uma criança que estava em jogo. Ele talvez tenha achado que se deveria dar o benefício da dúvida a tal criança.
— Mas o senhor mesmo nunca teve dúvida do que aconteceu? — falou Audrey.
O Sr. Treves respondeu sério:
— Pessoalmente, sou da opinião de que foi um crime muito engenhoso... um crime planejado com antecedência em seus mínimos detalhes.
— Havia um motivo? — perguntou Ted.
— Sim, havia um motivo. Implicâncias infantis e palavras más, o bastante para gerar ódio. As crianças odeiam com facilidade...
— Mas houve premeditação de tudo! — chocou-se Mary.
O Sr. Treves balançou a cabeça.
— Sim, a premeditação é que foi um mal. Uma criança, guardando uma intenção assassina no coração, praticando escondida dia após dia, e finalmente a consumação do seu plano: a estranha flechada... a catástrofe... a simulação da dor e do desespero. Foi tudo incrível, tão incrível que provavelmente ninguém acreditaria no tribunal.
— E o que aconteceu com as crianças? — perguntou Kay curiosa.
— Creio que seu nome foi trocado — explicou o Sr. — Depois da publicidade do inquérito, isto foi considerado conveniente. Aquela criança é, hoje, uma pessoa adulta, em algum lugar deste mundo. A questão é saber se ela ainda tem um coração assassino... Apesar de já ter-se passado muito tempo, reconheceria o pequeno assassino em qualquer lugar — acrescentou pensativo.
— Mas isso é impossível — objetou Royde.
— Não é não. Há uma certa peculiaridade física... Bem, não vou me estender no assunto. Não é um assunto muito agradável. Agora, tenho que ir embora — e levantou-se.
— O senhor não aceita uma bebida, antes de ir? — perguntou Mary.
As bebidas estavam numa mesa do outro lado da sala. Thomas Royde, que estava mais perto, aproximou-se e tirou a tampa da garrafa de uísque.
— Uísque com soda, Sr. Treves? Latimer, e você?
Nevile disse à ex-esposa em voz baixa:
— Está uma noite linda. Vamos lá fora um pouco?
Audrey estava parada perto da porta, olhando o terraço enluarado. Ele passou por ela e já do lado de fora, esperava-a. Ela voltou para a sala, balançando a cabeça e muito nervosa.
— Não, estou cansada... Eu... eu acho que vou dormir.
Atravessou a sala e saiu. Kay bocejou.
— Também estou com sono. E você Mary?
— Acho que também estou. Boa noite, Sr. Treves. Thomas, cuide bem dele.
— Boa noite, Srta. Aldin. Boa noite, Sra. Strange.
— Iremos almoçar com você amanhã, Ted — disse Kay. — Poderemos tomar banho de mar, se o tempo ainda estiver bom.
— Certo. Estarei esperando por você. Boa noite, Srta Aldin.
As duas mulheres deixaram a sala.
Ted Latimer disse com amabilidade para o Sr. Treves:
— Vamos pelo mesmo caminho. Porque vou pegar a barca, tenho que passar pelo seu hotel.
— Obrigado, Sr. Latimer. Ficarei satisfeito com a sua companhia.
Apesar de ter declarado sua intenção de partir, o Sr. Treves não parecia estar com pressa. Saboreava sua bebida com prazer e calma, e entregava-se à tarefa de extrair de Thomas Royde informações sobre as condições de vida na Malásia.
Royde era monossilábico em suas respostas. Os mais simples detalhes da vida do dia-a-dia pareciam segredos de estado, pela dificuldade com que eram arrancados. Ele parecia estar perdido em algum pensamento, do qual não era fácil sair para responder a seu interlocutor.
Ted Latimer estava inquieto. Parecia impaciente, entediado e ansioso para ir embora. De repente, interrompendo a conversa, exclamou:
— Ia quase me esquecendo! Trouxe os discos que Kay queria. Vou pegá-los lá no hall. Você fala com ela amanhã, Royde?
O outro concordou com a cabeça. Ted deixou a sala.
— Este jovem tem uma natureza inquieta — murmurou o Sr. Treves.
Royde resmungou alguma coisa, sem responder.
— É amigo da Sra. Strange, não é? — prosseguiu o velho advogado.
— De Kay Strange — disse Thomas.
O Sr. Treves sorriu.
— Sim. Foi isto que quis dizer. Dificilmente seria amigo da... primeira mulher de Nevile.
— Dificilmente — enfatizou Royde. Em seguida, notando o olhar zombeteiro do outro, falou corando um pouco: — O que quis dizer é que...
— Ah, compreendi muito bem o que quis dizer, Sr. Royde. O senhor é amigo da Sra. Audrey Strange, não é?
Thomas Royde enchia, vagarosamente, o cachimbo de tabaco. Seus olhos se abaixaram ao ouvir a pergunta. Concordou, ou melhor, murmurou:
— S... Sim. Mais ou menos. Fomos criados juntos.
— Ela deve ter sido uma moça muito bonita.
Thomas Royde murmurou alguma coisa parecida com "hum, hum".
— É esquisito ter duas Sras. Strange na mesma casa.
— Sim... sim, bastante!
— Uma situação difícil para o Sr. Strange.
— Extremamente difícil — Thomas corou.
O Sr. Treves se inclinou. Sua pergunta saiu num rompante:
— Por que ela veio, Sr. Royde?
— Bem... acho que... — sua voz estava confusa —, ela... não tinha como recusar.
— Recusar a quem?
Royde mexeu-se desajeitadamente.
— Bem, na verdade, creio que ela sempre vem nesta época do ano, no começo de setembro.
— E Lady Tressilian convidou Nevile e sua nova esposa para virem na mesma época? — na voz do velho senhor havia uma nota de incredulidade.
— Quanto a isso, creio que foi o próprio Nevile quem se convidou.
— Então ele estava ansioso por este... encontro.
— Creio que sim — mexendo-se inquieto, Royde respondeu, evitando encará-lo.
— É estranho! — disse o Sr. Treves.
— Uma idéia idiota! — exclamou Thomas numa fala mais demorada.
— Um tanto embaraçoso, eu diria — retrucou o Sr. Treves.
— Ah, é. Porém, hoje em dia há pessoas que agem dessa maneira.
— Fico pensando — comentou o Sr. Treves —, se não teria sido idéia de outra pessoa.
— De quem mais poderia ser? — encarou-o Royde.
O Sr. Treves suspirou.
— Há no mundo tantos amigos bem intencionados, sempre ansiosos em resolver os problemas alheios, nem sempre sugerindo o melhor.
Parou de falar assim que Nevile entrou pela porta do terraço. Neste exato momento, Ted Latimer entrava pela porta que dava para o hall.
— Olá, Ted, o que você tem aí? — perguntou Nevile.
— São os discos que Kay pediu para eu trazer.
— Ah, pediu? Ela não me contou nada.
Houve um rápido instante de constrangimento entre os dois. No entanto, Nevile se dirigiu à bandeja com as bebidas e se serviu de uísque com soda. Parecia nervoso e infeliz, e respirava ofegante.
O Sr. Treves já ouvira alguém se referir a Nevile como "aquele sujeito sortudo, o Strange, tem tudo que alguém poderia desejar neste mundo". Entretanto, neste momento, não parecia nada feliz.
Thomas, com a volta de Nevile, pareceu achar que suas obrigações como anfitrião haviam terminado. Saiu da sala sem mesmo se despedir. Seu andar estava mais ligeiro que o habitual. Era quase que uma fuga.
— Foi uma noite muito agradável — afirmou o Sr. Treves gentilmente ao posar o copo. — Muito... ah... instrutiva.
— Instrutiva? — Nevile ergueu ligeiramente as sobrancelhas.
— Informações sobre a Malásia — lembrou Ted, sorrindo. — Teve um trabalho enorme para arrancar respostas do Thomas Taciturno.
— É um sujeito singular, este Royde — enfatizou Nevile. — Creio que foi sempre assim. Fumando aquele seu velho e horrível cachimbo, ouvindo a conversa, ocasionalmente dizendo "hum!" e "ah!", e parecendo inteligente como uma coruja.
— É bem possível que ele esteja pensando a maior parte do tempo — disse o Sr. Treves. — E agora, preciso mesmo me retirar.
— Venha visitar Lady Tressilian brevemente — pediu Nevile ao acompanhar os dois homens ao hall. — O senhor a distrai muito. Atualmente tem pouquíssimo contato com o mundo lá fora. Ela é maravilhosa, não é?
— Sim, realmente. E tem uma conversa muito estimulante.
O Sr. Treves vestiu cuidadosamente o casaco e o cachecol, e depois de renovadas despedidas, partiu acompanhado por Ted Latimer.
O Balmoral Court ficava apenas a pouco mais de cem metros de distância, na curva da estrada. Erguia-se majestoso e misterioso, completamente à parte da cidade.
A barca, para onde Ted ia, ficava a cerca de 200 ou 300 metros adiante, no local onde o rio era mais estreito.
O Sr. Treves parou à porta do Balmoral Court e estendeu a mão.
— Boa noite, Sr. Latimer. Vai ficar aqui por muito tempo?
— Isto depende, Sr. Treves. Ainda não tive tempo para me sentir entediado — Ted sorriu mostrando dentes muito brancos.
— Estou certo disto. Imagino que, como a maioria dos jovens de hoje, o que você mais receia é o tédio. Entretanto, posso lhe assegurar que existem coisas muito piores.
— Como o quê, por exemplo?
A voz de Ted Latimer estava suave e agradável, mas havia nele um significado oculto, algo difícil de se definir.
— Ah! deixo à sua imaginação, Sr. Latimer. Saiba que eu jamais teria a pretensão de lhe dar conselhos. Conselhos de pessoas antiquadas são sempre tratados com desdém. E talvez tenham razão, quem sabe? Todavia, sujeitos velhos como eu gostam de pensar que a experiência nos ensinou algo, uma vez que observaram muito durante a vida inteira.
Uma nuvem cobriu a lua; o caminho estava muito escuro. Saindo da escuridão, subindo o monte, a figura de um homem vinha na direção deles.
Era Thomas Royde.
— Fui até as barcas para caminhar um pouco — comentou ele indistintamente, porque tinha o cachimbo preso entre os dentes.
— Esta é a sua taberna? — perguntou ao Sr. Treves. — Parece que o senhor ficou preso do lado de fora.
— Não creio.
Virou a grande maçaneta de metal, e a porta se abriu.
— Levaremos o senhor lá dentro — sugeriu Royde.
Os três entraram no hall, que estava pouco iluminado com apenas uma lâmpada elétrica. Não havia ninguém, e o odor do jantar, do veludo um tanto empoeirado, do verniz da mobília entrou em suas narinas.
De repente o Sr. Treves soltou uma exclamação de aborrecimento. À sua frente, na porta do elevador, havia um aviso: "PARADO".
— Meu Deus, que chateação! Terei que subir as escadas.
— Que azar — opinou Royde. — Não tem um elevador de serviço para bagagens e tudo mais?
— Receio que não. Este é usado para todos os propósitos. Bem, só terei que subir devagar, e isto é tudo. Boa noite.
Começou a subir vagarosamente as largas escadas. Royde e Latimer se despediram, saindo para a rua escura. Por um momento ficaram calados, quando Royde abruptamente disse:
— Bem, boa noite.
— Boa noite. Vejo-o amanhã.
— Sim.
Ted Latimer desceu o morro a passos largos, em direção à barca. Thomas ficou parado por uns minutos observando-o. Em seguida, caminhou vagarosamente na direção oposta, se dirigindo para Gull's Point.
A lua saiu de trás da nuvem e Saltcreek ficou novamente banhada de radiosa luz prateada.
VII
— Parece até um dia de verão — murmurou Mary Aldin.
Ela e Audrey estavam sentadas na praia do imponente prédio do Hotel Easterhead Bay. Audrey usava uma roupa de banho branca e parecia uma delicada estatueta de marfim. Mary não tomara banho de mar. Logo adiante, Kay estava deitada de bruços, com seu corpo bronzeado exposto ao sol.
— Uh! — disse ela sentando. — A água está terrivelmente fria.
— Bem, estamos em setembro — lembrou Mary.
— Faz sempre frio na Inglaterra — resmungou Kay descontente. — Como gostaria de estar no Sul da França. Lá sim, faz calor.
— Este sol, não é sol de verdade — murmurou Ted Latimer.
— Não vai entrar n'água, Sr. Latimer? — perguntou Mary..
Kay riu:
— Ted nunca entra n'água. Fica apenas tomando sol, que nem um lagarto.
Esticando o pé, ela o cutucou. Ele levantou-se num pulo.
— Vamos andar um pouco, Kay. Estou com frio.
Saíram andando pela praia.
— Lagarto? Uma comparação infeliz — murmurou Mary Aldin, acompanhando-os com o olhar.
— É isto que você pensa dele? — perguntou Audrey.
Mary Aldin franziu as sobrancelhas.
— Não. Um lagarto sugere alguma coisa domesticável, porém não creio que ele seja manso.
— Não — disse Audrey pensativa. — Eu também não acho.
— Formam um lindo par — comentou Mary, enquanto olhava os dois se afastarem. — Parecem combinar, não é?
— Acho que sim.
— Gostam das mesmas coisas — continuou Mary. — Têm as mesmas opiniões e falam a mesma língua. Que pena que...
Ela parou.
— Que o quê? — indagou Audrey abruptamente.
— Acho que ia dizer que foi uma pena ela e Nevile terem se conhecido.
Audrey ficou rígida. O que Mary chamava de "expressão gélica de Audrey" imediatamente surgiu em seu rosto. Mary desculpou-se apressada:
— Sinto muito Audrey. Eu não deveria ter dito isto.
— Se não se importa, eu preferiria não falar neste assunto.
— É claro. Foi estupidez minha. Eu... eu esperava que você já tivesse superado tudo.
Audrey virou a cabeça devagar, e com o rosto calmo e inexpressivo, afirmou:
— Posso lhe assegurar que não há nada a superar. Eu... eu não tenho nenhum sentimento a este respeito. Desejo... desejo de todo o coração, que Kay e Nevile sejam muito felizes juntos.
— Bem, é muita bondade de sua parte, Audrey.
— Não é bondade. É... apenas a verdade. E acho perda de tempo relembrar o passado: "é pena que isto aconteceu". Agora tudo já passou. Por que ficar remoendo? Temos que viver do presente.
— Acho — comentou Mary — pessoas como Kay e Ted tão excitantes, porque... bem, são tão diferentes de tudo que já conheci.
— Sim, suponho que sejam.
— Até você — lembrou Mary com repentina amargura — viveu e teve experiências as quais eu, provavelmente, nunca terei. Sei que você tem sido infeliz, muito infeliz. Todavia, não posso deixar de pensar que- mesmo todos estes fatos são melhores do que nada... o vazio! — pronunciou a última palavra com raiva.
Audrey olhou-a, um pouco assustada.
— Nunca imaginei que você se sentisse assim.
— Nunca? — Mary Aldin riu, se desculpando. — Ah! foi só um acesso de descontentamento, minha querida. Não estava falando sério.
— Não deve ser muito divertido para você — continuou Audrey — morar aqui com Camilla, apesar dela ser maravilhosa... ler para ela... cuidar dos criados... e nunca ter viajado.
— Estou bem alimentada e abrigada — ressaltou Mary. — Milhares de mulheres nem isto têm. E na verdade, Audrey, estou bem satisfeita. Tenho — um pequeno sorriso apareceu em seus lábios — minhas distrações secretas.
— Vícios secretos? — perguntou Audrey também sorrindo.
— Ah! eu planejo coisas — confessou Mary vagamente. — Na minha mente é lógico. Algumas vezes, gosto de fazer experiências com as pessoas, só para ver se posso fazê-las reagir da maneira que pretendo, ao que digo.
— Você parece quase sádica, Mary. Como eu a conheço pouco!
— Ah, é tudo inofensivo. Só uma brincadeira infantil.
— Você fez a experiência comigo? — perguntou Audrey curiosa.
— Não. Você é a única pessoa que sempre achei imprevisível. Nunca sei o que está pensando.
— Talvez — disse Audrey gravemente — eu sinta o mesmo em relação a você.
Estremeceu, e Mary exclamou:
— Você está com frio.
— Sim. Acho que vou me vestir. Afinal de contas é setembro!
Mary Aldin ficou sozinha, olhando o reflexo na água. O nível d'água estava baixando. Estirou-se na areia, fechando os olhos.
Todos haviam almoçado bem no hotel, que ainda estava repleto de pessoas dos mais variados tipos, apesar da temporada já ter terminado. Ah, bem, tinha sido um passeio! Algo para quebrar a monotonia do dia-a-dia. E, também, um alívio sair daquele clima de tensão, daquele ambiente sobressaltado que existia ultimamente em Gull's Point. Não tinha sido culpa de Audrey, mas Nevile...
Seus pensamentos foram interrompidos repentinamente, quando Ted Latimer sentou-se furioso a seu lado.
— O que houve com Kay? — perguntou Mary.
— Sua presença foi exigida pelo seu proprietário.
Alguma coisa, em seu tom de voz, impressionou Mary. Ela olhou para a faixa de areia dourada, por onde Nevile e Kay caminhavam. Em seguida, olhou também para o homem que estava ao seu lado.
Já havia pensado nele, como uma pessoa aproveitadora, esquisita e até mesmo perigosa. E agora, pela primeira vez, estava tendo a visão de um jovem ferido. Ela pensou:
"Ele amava Kay, amava realmente, e então Nevile chegou e a carregou"...
— Espero que esteja se divertindo aqui — disse ela amavelmente.
Eram palavras convencionais. Mary raramente usava palavras que não fossem as convencionais: era o seu modo de falar. Mas, pela primeira vez, seu tom era o de uma oferta de amizade. Ted Latimer respondeu:
— Tanto quanto em qualquer outro lugar.
— Sinto muito.
— Sente coisa nenhuma! Sou um estranho. E qual é a importância sobre o que um estranho sente ou pensa?
Ela voltou-se para poder olhar este jovem amargo e bonito, que, no entanto, retribuiu com um olhar desafiante.
Ela falou devagar, como alguém que faz uma descoberta:
— Entendo. Você não gosta de nós.
— Esperava que eu gostasse? — perguntou rindo.
— Sim, supus que sim. É claro que tomamos muita coisa como certa. Deveríamos ser mais humildes. Na verdade, nunca me ocorreu que você, porventura, pudesse não gostar de nós. Procuramos tratá-lo como um amigo de Kay.
— Sim... como amigo de Kay!
Fez o comentário com profundo rancor.
— Gostaria que dissesse, realmente, por que não lhe agradamos? O que lhe fizemos? O que há de errado conosco? — perguntou Mary, com uma sinceridade desconcertante.
— São todos afetados! — exclamou Ted Latimer, colocando toda a sua rudeza nesta palavra.
— Afetados? — perguntou Mary sem raiva, examinando a acusação.
— Sim — admitiu ela. — Acredito que possamos dar essa impressão.
— Vocês são assim! Tomam todas as boas coisas da vida como um direito. São felizes e superiores em seu pequeno mundo, isolado e fechado para as pessoas comuns. Gente que nem eu é considerada como um animal estranho!
— Sinto muito — desculpou-se Mary.
— Mas é a verdade, não é?
— Não, não é bem assim. Talvez sejamos pessoas tolas e sem imaginação, mas não somos mal intencionadas. Eu mesma sou convencional, superficial e diria que até um tanto afetada. Contudo, sou bastante humana. Neste momento, sinto muito que você esteja infeliz e gostaria até de poder fazer algo.
— Bem, se é assim, é muito gentil de sua parte.
Houve uma pausa, para que em seguida, Mary perguntasse afetuosamente:
— Você sempre esteve apaixonado por Kay?
— Sim, sempre.
— E ela?
— Pensei que sim. Até o dia em que Nevile apareceu.
— E você ainda está apaixonado por ela? — perguntou com delicadeza.
— Acho que isto está evidente, não está?
— Não seria melhor para você ir embora daqui? — perguntou ela amável.
— Por que seria?
— Porque você está se expondo a maiores tristezas.
Ele a olhou e riu.
— Você é uma boa pessoa, mas pouco sabe a respeito dos animais que podem rondar seu pequeno mundo fechado. Num futuro bem próximo, muitas coisas podem acontecer.
— Que tipo de coisas? — perguntou Mary ansiosa.
— Espere e verá — disse ele e riu.
VIII
Depois que Audrey trocou de roupa, andando pela praia, foi se encontrar com Thomas Royde. Sentado, fumava seu cachimbo, olhando para o outro lado do rio onde ficava Gull's Point, com toda sua brancura e serenidade.
Thomas apenas virou a cabeça com a chegada de Audrey. Ela sentou ao seu lado sem nada falar. Permaneceram calados, tornando o silêncio agradável, como o de duas pessoas que se conhecem muito bem.
— Parece tão perto! — exclamou finalmente Audrey, quebrando o silêncio.
Thomas olhou para Gull's Point.
— Poderíamos nadar até lá.
— Não com esta maré. Camilla tinha uma criada que gostava de nadar, e que costumava ir e voltar, sempre que a maré permitia. O problema é que quando há correnteza, você pode ser puxado para o fundo do rio. Certo dia, foi isto que aconteceu com ela. A sorte é que se salvou, conseguindo chegar em Easter Point, apenas muito exausta.
— Não há nada avisando que é perigoso.
— Mas não é deste lado. A corrente é do lado oposto, em frente aos penhascos. No ano passado houve uma tentativa de suicídio: um homem se jogou do Stark Head, ficando preso numa árvore no meio do penhasco, mas os guardas conseguiram salvá-lo.
— Pobre coitado! — exclamou Thomas. — Aposto que não ficou agradecido. Deve ser revoltante, ser salvo após a difícil decisão de se suicidar. Deve fazer com que o sujeito se sinta um tolo.
— Talvez agora ele esteja agradecido — sugeriu Audrey sonhadora.
— Duvido!
Thomas pitou seu cachimbo. Para olhar Audrey, bastava virar ligeiramente a cabeça. Notou que seu rosto estava sério e absorto enquanto ela olhava a água. Seus longos cílios escuros, a linha pura do rosto, a pequena orelha... Isto o fez lembrar de alguma coisa.
— Ah!, encontrei o seu brinco, aquele que você perdeu ontem à noite.
Ele procurou-o no bolso, ao mesmo tempo em que Audrey estendia a mão.
— Que bom! Onde o achou? No terraço?
— Não. Estava perto da escada. Você deve tê-lo perdido ao descer para jantar. Notei que no jantar você estava sem ele.
— Estou contente que o tenha encontrado.
Enquanto apanhava o brinco, Thomas observava como era grande e pesado para uma orelha tão pequena. Os que ela usava agora também eram grandes.
— Reparei que você usa brincos mesmo quando vem à praia. Não tem medo de perdê-los? — comentou ele.
— Não são de valor. Detesto ficar sem eles por causa disto, lembra?
Quando ela segurou a orelha esquerda, Thomas se lembrou.
— Sim. Aquela vez que o velho Bouncer lhe mordeu.
Audrey concordou com a cabeça.
Ficaram em silêncio, recordando um acontecimento da infância. Audrey Standish (como se chamava naquela época), uma criança de pernas compridas, cuidava da pata do velho Bouncer, quando ele lhe dera uma mordida traiçoeira. Ela tivera que dar uns pontos na orelha, o que atualmente se tornara quase que imperceptível, apenas uma pequena cicatriz.
— Minha querida — disse ele —, mal se vê a marca. Por que você se importa tanto?
Audrey fez uma pausa antes de responder com evidente sinceridade:
— É porque... porque simplesmente não suporto um defeito.
Thomas balançou a cabeça. Aquilo combinava com a idéia que tinha sobre Audrey e seu instinto de perfeição. E na realidade, ela própria era perfeita.
— Você é muito mais bonita que Kay — afirmou ele de repente.
— Ah, não Thomas! Kay... Kay é realmente linda — respondeu Audrey apressada.
— Apenas por fora.
— Você está se referindo à minha bela alma? — perguntou Audrey ligeiramente divertida.
Thomas jogou fora as cinzas do cachimbo.
— Não — ressaltou ele. — Acho que falava de seus ossos.
Audrey riu.
Thomas encheu novamente o cachimbo. Durante uns cinco minutos permaneceram calados. Olhou-a mais uma vez, porém de uma forma tão discreta que ela nem percebeu.
Finalmente, falou com muita calma:
— O que há de errado com você, Audrey?
— Errado? O que quer dizer com isso?
— Que há algo errado com você.
— Não há nada errado. Nada mesmo.
— Há alguma coisa sim.
Ela balançou a cabeça.
— Não vai me contar?
— Não há nada para contar.
— Creio que estou sendo insistente, mas eu tenho que lhe dizer... — e fez uma pausa. — Audrey, será que não pode esquecer? Tirar tudo de sua cabeça?
Nervosamente, ela fincou as pequenas mãos na pedra.
— Você não compreende... não pode compreender.
— Mas Audrey, minha querida, eu compreendo. É isto que quero lhe dizer. Eu sei de tudo.
Ela o olhou com o rosto pequeno cheio de dúvida.
— Sei exatamente tudo o que aconteceu. E... e o que deve ter significado para você.
Ela ficou pálida, muito pálida.
— Entendo — disse ela —, no entanto, não pensei que alguém soubesse...
— Bem, eu sei. Não vou mais tocar no assunto, porém gostaria de que você se convencesse que tudo já passou, que acabou para sempre!
— Certas coisas nunca passam — afirmou ela com a voz baixa.
— Olhe aqui, Audrey, de nada adianta ficar pensando e se atormentando. Você já sofreu demais. Não é saudável ficar remoendo um pensamento. Olhe para frente, e nunca para trás. Você ainda é bastante jovem. Tem a maior parte de sua vida para viver. Pense no futuro e não no passado.
Ela o olhou com os olhos muito abertos, tranqüilos e que ocultavam seus verdadeiros pensamentos.
— E se eu não puder fazer isto? — perguntou Audrey.
— Mas é preciso!
— Pensei que você não compreendesse. Acho... acho que não sou muito normal em... certas coisas.
Ele a interrompeu bruscamente:
— Tolice. Você...
— Eu o quê?
— Estava pensando em como você era quando menina, antes de se casar com Nevile. Por que se casou com ele?
Audrey sorriu.
— Porque me apaixonei.
— Sim. Sim, eu sei. Mas por que se apaixonou por ele? O que a atraiu tanto?
Franziu os olhos, tentando ver como se fosse a garota que já não existia.
— Acho que foi porque ele era tão positivo — ela observou. — Era o meu oposto. Sempre me senti sombria e irreal. Nevile tinha muita vida. Era tão feliz e seguro de si mesmo e tão... tudo o que eu não era; e também muito atraente, — acrescentou com um sorriso.
Thomas comentou com amargura:
— Sim, o homem ideal: bom nos esportes, sóbrio, atraente, sempre como um pequeno grande senhor conseguindo tudo que quer.
Audrey ajeitou-se encarando-o.
— Você o detesta — ela falou vagarosamente. — Você o detesta muito, não é?
Ele evitou olhá-la virando o rosto para acender o cachimbo que se apagara.
— Não seria nada surpreendente, seria? — falou baixinho. — Ele tem tudo que eu não tenho. Pratica esporte, dança, natação, e sabe conversar. E eu sou desajeitado, calado e com um braço aleijado. Ele sempre foi um homem brilhante e bem sucedido, enquanto eu sempre fui um indivíduo bronco. E além do mais, se casou com a única garota de quem gostei.
Ela soltou um som fraco. Thomas continuou cheio de ódio:
— Você sempre soube, não é? Sabia que desde que você tinha quinze anos, eu te amava. Sabe que ainda gosto...
Ela o interrompeu:
— Não. Atualmente não.
— O que quer dizer com... atualmente não?
Audrey levantou-se. Com a voz calma e pensativa, explicou:
— Porque agora... não sou mais a mesma.
— Não é mais a mesma como?
Ele ficou de pé, encarando-a. Audrey, com a voz muito excitada, falou apressada:
— Se você não sabe, não posso lhe dizer... Eu mesma não tenho certeza. Só sei que...
Calou. E, virando-se bruscamente, correu pelas pedras na direção do hotel.
No caminho, encontrou Nevile deitado, olhando atentamente para uma poça d'água. Ele levantou a cabeça e sorriu.
— Olá Audrey!
— Olá Nevile!
— Estou observando um caranguejo. O pobre coitado é terrivelmente ativo. Olhe, aqui está ele.
Ela se ajoelhou e olhou para onde ele apontava.
— Está vendo?
— Sim.
— Quer um cigarro?
Ele acendeu o cigarro que ela aceitara. Audrey permaneceu sem olhá-lo, e após algum tempo ele falou nervosamente:
— Escute Audrey?
— Sim. O que é?
— Está tudo bem, não está? Quero dizer... entre nós dois?
— Sim. Claro que está.
— Somos amigos, não somos?
— Sim, é claro que sim.
— Eu quero... que sejamos amigos.
Ele a olhou ansioso. Audrey sorriu nervosa.
— Foi um dia agradável, não foi? Bom tempo e tudo o mais — comentou ele.
— Ah, sim... foi.
— Está bastante quente para setembro, não acha?
— Sim. Demais.
Ficaram calados.
— Audrey..
Ela se levantou.
— Sua esposa está acenando para cá.
— Quem... Kay?
— Eu disse sua esposa.
Nevile levantou-se e olhando-a fixamente, falou em voz muito baixa:
— A minha esposa é você, Audrey...
Ela se virou e foi embora. Nevile correu pela areia ao encontro de Kay.
IX
Ao chegarem de volta a Gull's Point, Hurstall dirigiu-se a Mary.
— A senhorita poderia subir para ver Lady Tressilian? Ela está muito perturbada e gostaria de vê-la assim que chegasse.
Mary subiu imediatamente, encontrando-a pálida e trêmula.
— Querida Mary, ainda bem que chegou! Estou tão angustiada! O Sr. Treves está morto.
— Morto?
— Sim. Não é terrível? Foi tão repentino. Parece que nem chegou a trocar de roupa. Deve ter tido um colapso assim que chegou ao hotel.
— Oh, sinto muito!
— Sabíamos, é claro, que sua saúde estava abalada e seu coração fraco. Espero que, aqui, nada tenha acontecido que pudesse lhe causar uma tensão excessiva. Teve algum prato indigesto no jantar?
— Creio que não. Aliás, estou certa de que não. Parecia bem disposto e animado.
— Estou realmente desolada. Gostaria que fosse ao Balmoral Court e pedisse maiores informações à Sra. Rogers. Pergunte-lhe se não há nada que possamos fazer. Por causa de Matthew, gostaria de fazer alguma coisa, quanto ao funeral. Num hotel é tão desagradável.
— Querida Camilla, tente não se preocupar. Eu sei que foi um choque muito grande para a senhora — advertiu Mary.
— Sim. Realmente foi.
— Irei ao Balmoral Court agora mesmo, e lhe trarei notícias.
— Obrigada querida Mary. Você é sempre tão prática e compreensiva.
— Agora procure descansar. Um choque deste tipo não é bom para a senhora.
Mary Aldin saiu do quarto, desceu as escadas, e ao entrar na sala de visitas, exclamou:
— O velho Sr. Treves está morto! Morreu ontem à noite, no hotel.
— Coitado! — exclamou Nevile. — Como aconteceu?
— Foi o coração. Teve um colapso assim que chegou.
— Será que a escada o matou? — disse Thomas Royde pensativo.
— Escada? — Mary olhou-o sem compreender.
— Sim. Quando Latimer e eu o deixamos, ele estava começando a subir as escadas. Recomendamos que subisse devagar.
— Mas que estupidez não tomar o elevador! — exclamou Mary.
— Estava quebrado.
— Ah, entendo. Que falta de sorte! Pobre velho. Agora, vou até o hotel, pois Camilla quer saber se podemos fazer alguma coisa.
— Irei com você — disse Thomas.
Caminhando juntos até o Balmoral Court, Mary comentou:
— Será que ele tem algum parente que deva ser notificado?
— Ele não falou de ninguém.
— É, e normalmente as pessoas costumam mencionar. Dizem "minha sobrinha" ou "meu primo".
— Ele era casado?
— Creio que não.
Entraram no Balmoral Court. A Sra. Rogers, a proprietária, estava falando com um homem alto de meia-idade, que cumprimentou Mary cordialmente.
— Boa tarde, Srta. Aldin.
— Boa tarde, Dr. Lazenby. Este é o Sr. Royde. Viemos trazer um recado: Lady Tressilian se oferece para ajudar no que for preciso.
— É muita gentileza de sua parte, Srta. Aldin — comentou a proprietária do hotel. — Venha para a sala, por favor.
Todos entraram na pequena e confortável sala, quando o Dr. Lazenby perguntou:
— O Sr. Treves jantou ontem em sua casa, não foi?
— Sim.
— E como estava ele? Mostrava algum sinal de esgotamento?
— Não. Parecia bem disposto e alegre.
O médico balançou a cabeça.
— Isto é o pior de tudo nessas doenças cardíacas. A morte vem quase sempre repentinamente. Li sua prescrição médica, e ficou bem evidente que se encontrava em precário estado de saúde. É claro que me comunicarei com seu médico em Londres.
— Ele sempre se cuidava muito — afirmou a Sra. Rogers. — E posso lhe assegurar que aqui o tratávamos da melhor maneira possível.
— Estou certo disto, Sra. Rogers — afirmou o médico com delicadeza. — Não há dúvida que sua morte foi causada apenas por algum pequeno esforço a mais do que devia ter feito.
— Como subir escadas — sugeriu Mary.
— Sim, isto talvez fosse o suficiente. Na verdade, é quase certo que seria, isto é, se por ventura ele subisse os três lances da escada. Entretanto, não creio que o tenha feito.
— Nunca — espantou-se a Sra. Rogers. — Ele sempre usava o elevador. Era muito cauteloso.
— Quero dizer que... estando o elevador quebrado ontem à noite... — disse Mary.
A Sra. Rogers olhou-a surpresa.
— Mas, ontem, o elevador não estava quebrado, Srta. Aldin.
Thomas Royde tossiu.
— Desculpe-me — interrompeu ele — mas ontem à noite acompanhei o Sr. Treves até aqui, e havia um aviso no elevador escrito "PARADO".
A Sra. Rogers olhou-o atônita.
— Bem, isto é muito estranho! Afirmei que nada havia de errado com o elevador, e estou certa disto; caso contrário eu teria sabido. Não temos tido problemas com o elevador (bateu na madeira) há mais de oito meses. Pode acreditar!
— Talvez — sugeriu o médico — algum porteiro ou cabineiro tenha colocado o aviso, enquanto estava de folga.
— É um elevador automático. Não precisa de ninguém para manejá-lo.
— Sim, é mesmo! Já estava me esquecendo.
— Falarei com Joe — disse a Sra. Rogers. Saiu apressada da sala chamando-o: — Joe, Joe.
O Dr. Lazenby olhou curioso para Thomas.
— Perdoe-me, o senhor tem certeza, Sr.... er...
— Royde — interveio Mary.
— Absoluta! — assegurou Thomas.
A Sra. Rogers voltou acompanhada do porteiro. Joe foi enérgico ao declarar que, na noite anterior, nada havia de errado com o elevador. O tal aviso realmente existia, mas estava guardado na escrivaninha e não era usado há mais de um ano.
Todos se olharam e concordaram que era tudo muito misterioso. O médico sugeriu a hipótese de ter sido uma peça pregada por algum hóspede do hotel.
Em resposta às perguntas de Mary, o Dr. Lazenby explicou que o motorista do Sr. Treves havia fornecido o endereço do seu advogado, com quem ele iria se comunicar imediatamente, procurando Lady Tressilian para dizer-lhe como seria o funeral, logo em seguida.
Com pressa, o ativo e alegre médico despediu-se. Mary e Thomas voltaram lentamente a Gull's Point.
— Você tem certeza de que viu aquele aviso, Thomas? — perguntou Mary.
— Tanto eu como Latimer o vimos.
— Que coisa mais estranha! — exclamou Mary.
X
Era 12 de setembro.
— Faltam apenas mais dois dias — disse Mary Aldin e mordeu o lábio, enrubescendo.
Thomas olhou-a pensativo.
— É assim que se sente a esse respeito?
— Não sei o que está acontecendo comigo — explicou ela. — Em toda a minha vida, nunca fiquei tão ansiosa para que uma visita terminasse logo. Normalmente gostamos muito de receber Nevile aqui. E também a Audrey.
Thomas balançou a cabeça.
— Mas desta vez — prosseguiu Mary — sinto-me como se estivesse sentada em dinamite que poderá explodir a qualquer hora. Por isso, a primeira coisa em que pensei esta manhã é que faltam apenas mais dois dias. Audrey irá embora na quarta-feira, e Nevile e Kay na quinta.
— E eu irei na sexta-feira — disse Thomas.
— Ora, não o estou incluindo nisto. Você tem sido um forte apoio para mim. Não sei o que teria feito sem você.
— Uma espécie de pára-choque humano?
— Muito mais do que isto. Você tem sido tão paciente e tão... tão amável. Sei que estou parecendo ridícula, contudo é realmente isto que quero dizer.
Thomas parecia satisfeito, apesar de ligeiramente embaraçado.
— Não sei por que temos estado tão sobressaltados — comentou Mary pensativa. — Afinal de contas, se houvesse uma... uma explosão de sentimentos, seria desagradável e constrangedor. No entanto, nada mais além disto.
— Mas creio que você sente que ainda há alguma coisa por trás disso tudo.
— Sim, uma sensação de apreensão. E até os empregados sentem. Esta manhã, a copeira irrompeu em lágrimas e pediu demissão sem nenhum motivo. A cozinheira anda irritada, Hurstall tremendamente agitado e até Barrett, que habitualmente é calma e segura, tem mostrado sinais de nervosismo. E tudo porque Nevile teve a ridícula idéia de querer que suas duas esposas se tornassem amigas, para poder assim aliviar a sua consciência.
— O que foi um fracasso total — concluiu Thomas.
— Sim, realmente. Kay está começando a perder o controle. E eu não posso deixar de sentir pena dela. Você notou a maneira com que Nevile olhou para Audrey enquanto ela subia as escadas ontem à noite? Ele ainda gosta dela, Thomas. Foi tudo um terrível engano.
Thomas começou a encher o cachimbo.
— Ele deveria ter pensado nisto antes.
— Eu sei que isto seria o certo, embora não altere o fato de que tudo continue sendo uma tragédia. Sinto pena de Nevile.
— Pessoas como Nevile... — Thomas começou a falar.
— Sim?
— Pessoas como Nevile acham que podem ter tudo o que querem. Acho que até se deparar com este problema com Audrey, nunca tenha tido uma contrariedade na vida. Bem, agora ele levou a pior, não podendo ficar com Audrey. Ela está fora de seu alcance, e nada vai adiantar agir desta forma absurda. Terá que suportar a derrota!
— Imagino que você tenha razão, entretanto acho que está sendo muito severo. Andrey estava apaixonada por Nevile quando se casaram, e sempre se deram muito bem.
— Mas atualmente ela não o ama.
— Duvido muito — murmurou Mary baixinho.
Thomas prosseguiu:
— E lhe digo mais; é melhor Nevile tomar cuidado com Kay, pois é do tipo de moça perigosa, realmente muito perigosa. Se perder a calma, nada a deterá.
— Meu Deus! — Mary suspirou repetindo sua observação inicial. — Bem, faltam apenas mais dois dias.
Os últimos dias tinham sido difíceis. A morte do Sr. Treves causara um choque prejudicial à saúde de Lady Tressilian. O funeral, que tivera lugar em Londres, agradou Mary, pois faria Lady Tressilian esquecer mais depressa. Os empregados haviam estado nervosos e difíceis, e esta manhã Mary sentia-se cansada e deprimida.
— Em parte é culpa do tempo — disse Mary em voz alta. — Não está muito normal.
Realmente para o mês de setembro estava um calor fora do comum. Em certos dias, o termômetro chegara a marcar 40° à sombra.
Nevile aproximou-se no momento em que Mary falava.
— Culpando o tempo? — perguntou ele olhando o céu. — É mesmo incrível. Hoje está mais quente que nunca e não há vento. Deixa qualquer um nervoso, contudo creio que vai chover a qualquer momento, uma vez que está quente demais.
Thomas Royde, que se afastara com o seu andar calmo e incerto, desapareceu por trás da casa.
— A retirada do melancólico Thomas! — comentou Nevile. — Não se pode dizer que lhe agrade a minha companhia.
— Ele é um amor de pessoa — disse ela.
— Eu discordo. É o tipo de sujeito tacanho e cheio de preconceitos.
— Você acha isso porque sabe que ele desejou casar-se com Audrey, até que você apareceu e afastou-a dele.
— Ele levaria uns sete anos para se decidir a pedi-la em casamento. Será que ele queria que Audrey o esperasse até a morte?
— Agora talvez dê tudo certo — falou Mary deliberadamente.
Nevile olhou-a, levantando a sobrancelha.
— A recompensa do verdadeiro amor é isso? Audrey casar-se com aquele bolha? Ela é muito boa para isto. Não, não vejo Audrey casada com o melancólico Thomas.
— Acho que ela gosta muito dele, Nevile — afirmou Mary.
— Vocês mulheres são sempre umas casamenteiras! Por que não deixam Audrey aproveitar um pouco sua liberdade?
— Certamente. Mas será que está aproveitando?
— Você acha que ela não é feliz? — perguntou Nevile apressado.
— Não tenho a menor idéia.
— Nem eu — disse Nevile devagar. — Nunca se sabe o que Audrey está sentindo. — Ele fez uma pausa e depois acrescentou: — Na verdade, ela é perfeita! Tem classe... é correta...
Continuando, falou mais para si mesmo do que para Mary:
— Deus! Como tenho sido um completo idiota!
Mary entrou em casa um pouco preocupada. Pela terceira vez, repetiu as palavras que a confortavam:
— Apenas mais dois dias.
Nevile perambulou irrequieto pelo jardim e terraço.
Encontrou Audrey no fundo do jardim, sentada num muro, olhando para a água. A maré estava alta e o rio cheio.
Ela levantou-se imediatamente vindo em sua direção.
— Já ia voltar para casa, pois deve estar na hora do chá — falou nervosa e depressa, sem olhá-lo.
Calado, ele caminhou a seu lado. Somente quando chegaram ao terraço é que ele perguntou:
— Posso falar com você, Audrey?
— Acho melhor não — respondeu apressada, apertando com força a beira da balaustrada.
— Isto significa que você sabe o que tenho para lhe dizer.
Ela não respondeu.
— O que me diz, Audrey? Não podemos voltar ao que éramos? Esquecer tudo o que aconteceu?
— Inclusive Kay?
— Kay será sensata — afirmou ele.
— O que quer dizer com sensata?
— Simplesmente isto. Direi a verdade a Kay, e contarei com a sua generosidade. Direi que você é a única mulher a quem amei.
— Você amava Kay quando se casou com ela.
— Meu casamento com Kay foi o maior erro de minha vida. Eu...
Ele parou. Kay caminhava em sua direção, e havia tamanha fúria em seus olhos que Nevile se assustou um pouco.
— Sinto interromper esta cena tocante — ironizou ela. — Mas acho que já está na hora.
Audrey levantou-se. Seu rosto e a sua voz estavam totalmente sem expressão.
— Deixarei vocês sozinhos — falou se afastando.
— Pode ir. Você já causou todo dano que queria, não é? Mais tarde cuido de você. Agora prefiro me entender com Nevile.
— Olhe aqui, Kay, Audrey nada tem a ver com isto. Não é culpa dela. Pode me culpar, se quiser.
— E é o que vou fazer — respondeu Kay, com os olhos brilhando de raiva. — Que tipo de homem você é?
— Um pobre coitado — falou com amargura.
— Você deixa sua mulher, vem correndo atrás de mim como um obstinado e pede o divórcio. Num minuto está louco por mim e no outro já está cansado! Suponho que agora queira voltar para aquela choramingona, pálida, gata traidora...
— Pare com isto, Kay!
— Bem, o que você quer afinal?
Nevile estava muito pálido.
— Pode me chamar do que você quiser, mas de nada vai adiantar Kay. Não posso continuar com essa situação. Acho que sempre estive apaixonado por Audrey, e além do mais, meu amor por você foi uma espécie de loucura. Só sei que agora não conseguiria lhe fazer feliz por muito tempo. Acredite Kay, é melhor nos separarmos como amigos. Procure ser compreensiva.
— O que exatamente você está sugerindo? — perguntou Kay decepcionada.
Nevile não a encarou. Havia teimosia em seu rosto.
— Que nos divorciemos. Você pode alegar abandono de lar.
— Você terá que esperar algum tempo por isto.
— Não faz mal... eu espero — afirmou Nevile.
— E depois de três anos ou mais, você pedirá a querida e doce Audrey que se case novamente com você.
— Se ela aceitar...
— É claro que aceitará! — afirmou Kay maldosamente. — E como eu fico nesta história toda?
— Você ficará livre para encontrar um homem melhor do que eu. Naturalmente tratarei que fique bem financeiramente...
— Chega de conversa! — gritou ela se descontrolando. — Escute aqui, Nevile, você não pode fazer isto comigo. Não lhe darei o divórcio. Casei com você porque realmente o amava. Depois que lhe contei que o segui até o Estoril, é que você começou a ficar contra mim. Você preferiria acreditar que tudo não passava da obra do destino. Ao saber que fui eu e não o destino, a sua vaidade ficou abalada. Mas não estou envergonhada do que fiz! Você se apaixonou e se casou comigo, logo não vou deixar que volte para aquela gata dissimulada que o fisgou novamente. Eu juro que ela não vai conseguir o que quer! Antes disto mato você! Entendeu? Mato você e ela. Mato os dois. Eu...
Nevile segurou-lhe o braço, dizendo:
— Pelo amor de Deus, Kay. Cale a boca. Não vê que você não pode fazer este tipo de cena aqui?
— Não posso? Você verá. Eu...
Hurstall aproximou-se. Seu rosto estava impassível.
— O chá já está servido — anunciou ele.
Kay e Nevile se encaminharam lentamente para a sala de visitas.
Hurstall saiu do caminho, para deixá-los passar.
No céu, nuvens se agrupavam.
XI
A chuva começou a cair às 7 horas enquanto Nevile olhava pela janela de seu quarto. Ele e Kay não haviam conversado mais, evitando-se depois do chá.
Naquela noite, o jantar fora formal e penoso. Nevile estivera totalmente absorto em seus pensamentos; Kay se maquilara muito mais do que habitualmente; Audrey parecia um fantasma congelado; Mary Aldin, fazendo o possível para manter uma conversação, ficara um pouco aborrecida com Thomas Royde por ele não ter contracenado melhor com ela.
Hurstall estava muito nervoso e suas mãos tremiam ao servir a salada.
Quando a refeição estava quase por acabar, Nevile falou com estudada casualidade:
— Acho que depois do jantar irei ao Easterhead visitar Latimer. Lá poderemos jogar bilhar.
— Leve a chave para o caso de voltar tarde — ofereceu Mary.
— Obrigado. Levarei.
Foram para a sala de estar, onde o café foi servido. Ligaram o rádio, o que fez com que as notícias servissem para distrair o ambiente.
Kay, que estivera bocejando ostensivamente desde o jantar, declarou que estava com dor de cabeça e que ia dormir.
— Já tomou aspirina? — indagou Mary.
— Sim, obrigada — respondeu ela, saindo da sala.
Nevile mudou para um programa musical. Sentado no sofá, todo encolhido como um garoto infeliz, permaneceu calado por muito tempo, não olhando nem uma vez para Audrey. Apesar de ser contra sua vontade, Mary sentiu muita pena dele.
— Bem, é melhor eu ir agora — disse finalmente, levantando-se.
— Você vai de carro ou de barca?
— De barca. Não tem sentido dirigir 80 quilômetros. E depois, será bom andar um pouco.
— Sabe que está chovendo?
— Sei. Vou levar a capa. Boa noite.
No hall, Hurstall aproximou-se:
— Por favor, senhor. Lady Tressilian o chama. Gostaria de vê-lo imediatamente.
Nevile olhou o relógio. Eram quase 10 horas. Encolheu os ombros, e indo até o quarto de Lady Tressilian, bateu à porta. Enquanto esperava ordem para entrar, ouvia os demais se despedindo lá embaixo. Parecia que hoje todos iam dormir cedo.
— Entre — ordenou Lady Tressilian com sua voz clara.
Nevile entrou, fechando a porta atrás de si.
Ela estava preparada para dormir. Todas as lâmpadas estavam apagadas, exceto a da mesa de cabeceira. Tinha posto de lado o livro que lia. Olhou para Nevile por cima dos óculos, e foi de certa forma, um olhar terrível.
— Quero falar-lhe, Nevile.
Apesar de tudo, ele sorriu timidamente, e brincou:
— Sim, senhora diretora.
Lady Tressilian não retribuiu o sorriso.
— Há certas coisas que não permitirei em minha casa. Não tenho nenhuma intenção de ouvir as conversas particulares dos outros, mas desde que você e sua mulher resolveram gritar um com o outro bem debaixo da janela do meu quarto, dificilmente poderia deixar de ouvi-los. E pelo que entendi... você estava esboçando um plano, no qual Kay lhe daria o divórcio, e no tempo devido você se casaria outra vez com Audrey. Você não pode fazer isto. E não quero mais nem ouvir, nem saber que você ainda pensa nisso.
Nevile parecia estar se esforçando enormemente para se controlar.
— Peço desculpas pela cena, mas quanto ao resto, garanto que é problema unicamente meu!
— Não. Não é. Você usou a minha casa para se encontrar com Audrey, ou então foi ela quem usou...
— Ela não fez nada disto. Ela...
Lady Tressilian levantou a mão, fazendo-o calar.
— De qualquer maneira, você não pode fazer o que está pretendendo. Kay é sua esposa e tem certos direitos que você não pode lhe negar. Aliás, estou inteiramente do lado de Kay. Você tem que arcar com as conseqüências de todos os seus atos. Seu dever agora é com Kay e estou lhe dizendo claramente que...
Nevile deu um passo à frente. Elevou a voz:
— Este assunto não lhe diz respeito.
— E tem mais — continuou ela apesar de seu protesto. — Audrey deixará esta casa amanhã.
— Não pode fazer isto! Não permitirei.
— Não grite comigo, Nevile.
— Digo-lhe que não vou permitir...
Em algum lugar do corredor, uma porta se fechou...
XII
Alice Bentham, a empregada de olhar apatetado, aproximou-se meio perturbada da Sra. Spicer, a cozinheira.
— Não sei o que fazer, Sra. Spicer.
— O que há Alice?
— É a Srta. Barrett. Levei-lhe um xícara de chá há mais de uma hora. Porque ela estava dormindo profundamente, eu não quis acordá-la. Há cinco minutos, voltei novamente a seu quarto porque o chá de Lady Tressilian já estava pronto para ser levado, e ela ainda não tinha descido. Continua dormindo e não consigo acordá-la.
— Já tentou sacudi-la?
— Sim, Sra. Spicer. Sacudi a sua mão com força, mas ela continua deitada com uma cor horrível.
— Meu Deus! Ela não está morta, está?
— Oh, não! Posso ouvi-la respirar, apesar de ser uma respiração esquisita. Acho que está doente, ou qualquer coisa assim.
— Bem, irei vê-la. Agora leve o chá de Lady Tressilian. É melhor prepará-lo de novo. Ela deve estar preocupada sem saber o que aconteceu.
Enquanto a Sra. Spicer se dirigia para o segundo andar, Alice cumpria obedientemente as ordens.
Carregando a bandeja, Alice bateu na porta do quarto de Lady Tressilian. Depois de bater duas vezes sem conseguir resposta, resolveu entrar assim mesmo. Um segundo depois, ouviam-se o barulho de louça quebrada e vários gritos estridentes. Alice desceu correndo as escadas, quando encontrou Hurstall que se encaminhava para a sala de jantar.
— Sr. Hurstall, entraram ladrões e Lady Tressilian está morta, assassinada, com um grande buraco na cabeça e há sangue espalhado por todo lugar...
1
Um toque de mestre
I
O Superintendente Battle havia aproveitado bem suas férias. Ainda faltavam três dias para terminarem, entretanto a mudança de tempo e a chuva faziam-no ficar um pouco desapontado. Mas o que se poderia esperar na Inglaterra? Felizmente até agora, ele tinha tido muita sorte.
Estava tomando café com o Inspetor James Leach, seu sobrinho, quando o telefone tocou.
— Irei imediatamente — Jim desligou.
— Algum problema? — perguntou Battle, notando a expressão do rosto do sobrinho.
— Um caso de assassinato. Lady Tressilian, uma velha senhora inválida, muito conhecida aqui. É dona daquela casa, em Saltcreek, que fica em cima do penhasco.
Battle balançou a cabeça.
— Vou me encontrar com o velho (era assim, desrespeitosamente, que Leach se referia ao chefe de polícia). Ele era amigo dela. Vamos juntos ao local do crime.
Quando chegou perto da porta, pediu:
— O senhor vai me ajudar nisto, não vai tio? É o meu primeiro caso de assassinato.
— Enquanto estiver aqui, eu lhe ajudo. Foi um caso de furto e arrombamento?
— Ainda não sei.
II
Meia hora depois, o Major Robert Mitchell, Chefe de Polícia, falava com seriedade com o tio e o sobrinho.
— Ainda é cedo para afirmar, mas uma coisa é certa: não foi trabalho de estranhos. Nada foi roubado nem há sinais de arrombamento. Pela manhã todas as janelas e portas foram encontradas fechadas.
Ele olhou diretamente para Battle.
— Será que se eu pedisse à Scotland Yard, eles o colocariam no caso? O senhor já está aqui, e além do mais ainda existe o seu parentesco com Leach. Bem, só se o senhor estiver disposto, pois isto significa cortar o final de suas férias.
— Isso não é problema — afirmou Battle. — Quanto ao mais, terá que ser levado ao conhecimento do Sr. Edgar (Edgar Cotton era o Assistente do Comissário), mas creio que ele seja seu amigo, não?
Mitchell concordou com a cabeça.
— Sim, acho que posso me entender com Edgar. Então está resolvido! Vou tratar disso agora mesmo.
— Ligue-me com a Yard — falou ele ao telefone.
— O senhor acha que vai ser um caso importante? — indagou Battle.
— Vai ser um caso onde não poderá haver a possibilidade de um engano. É preciso estar absolutamente certo quanto ao nosso homem ou a nossa mulher.
Battle compreendeu claramente, que por trás daquelas palavras havia algo.
Ele pensa que sabe quem é o assassino — disse para si mesmo. — Apesar de não gostar de fazer prognósticos. É alguém conhecido e popular ou não me chamo Battle!
III
Battle e Leach estavam parados à porta do quarto bem mobiliado e, por sinal, muito bonito. No chão, em frente a eles, o oficial de polícia examinava cuidadosamente as impressões digitais que ficaram no cabo do taco de golfe... um pesado taco de golfe. A parte superior do taco estava cheia de sangue, tendo um ou dois fios de cabelo branco presos a ele.
Ao lado da cama, o Dr. Lazenby, o cirurgião da polícia local, estava debruçado sobre o corpo de Lady Tressilian.
Soltando um suspiro, ele se levantou.
— Foi um golpe direto. Ela foi atingida de frente, com uma força incrível. A primeira pancada, e que foi a fatal, esmagou o seu osso, mas por via das dúvidas o assassino golpeou-a uma segunda vez para ter plena certeza de que ela estaria morta. Não usarei termos complicados, e sim uma linguagem prática e de bom senso.
— Há quanto tempo ela está morta? — perguntou Leach.
— Eu diria... que deve ter sido entre as 10 horas e a meia-noite.
— Não poderia nos dar uma hora mais exata?
— Não. Há vários fatores a serem levados em consideração. Hoje em dia não condenamos ninguém baseados apenas em rigor mortis. Não foi nem antes das dez, nem depois da meia-noite.
— Ela foi atingida com este taco?
O médico olhou.
— Provavelmente! A sorte é que o assassino o esqueceu aqui. Porque pelo tipo de ferimento eu não poderia nunca chegar à conclusão do que teria sido usado como arma. Da forma como aconteceu, não foi a parte pontiaguda que atingiu a cabeça e sim o seu ângulo posterior.
— Isto não seria difícil de acontecer? — indagou Leach.
— Sim, se tivesse sido proposital — concordou o médico — mas suponho que tenha acontecido assim, por mera casualidade.
Leach levantou as mãos, tentando reconstruir o golpe.
— Estranho — comentou ele.
— Sim, é tudo muito estranho — disse o médico pensativo. — Ela recebeu o golpe no lado direito da cabeça. Mas seja lá quem o deu, deve ter ficado do lado direito da cama, exatamente em frente à cabeceira, porque, por ser o ângulo entre a parede e a cama muito pequeno, não há espaço à esquerda.
Leach aguçou os ouvidos.
— Seria canhoto? — perguntou ele.
— Eu não me arriscaria em afirmar isto — disse Lazenby. — Há sempre muitos imprevistos. É muito fácil a explicação de que o assassino seja canhoto. No entanto, existem vários outros fatos a se considerar: suponhamos, por exemplo, que a velha senhora tenha virado a cabeça ligeiramente para a esquerda na hora em que foi atingida; ou então que o criminoso tenha afastado a cama e ficado à sua esquerda, trazendo-a depois para sua posição anterior.
— Esta última hipótese não é muito provável.
— Talvez não. Mas poderia ter acontecido. Tenho alguma experiência neste assunto e posso lhe dizer que concluir que o golpe tenha sido dado por um canhoto pode ser muito perigoso.
O sargento-detetive Jones observou:
— Este é um taco destro de golfe.
Leach concordou com a cabeça.
— Contudo, poderia não pertencer ao homem que o usou. Foi um homem não foi, doutor?
— Não necessariamente. Se a arma do crime foi mesmo o taco, o assassino bem poderia ter sido uma mulher.
— Mas o senhor não pode afirmar que foi esta a arma, pode? — inquiriu Battle calmamente.
Lazenby olhou-o interessado.
— Não. Posso apenas dizer que a arma poderia ter sido o taco, e que provavelmente o tenha sido. Mandarei analisar o sangue para ver se é do mesmo tipo sangüíneo... e também os fios de cabelo.
— Sim, é sempre bom reunir todas as provas.
— O senhor também tem suas dúvidas em relação ao taco de golfe? — perguntou Lazenby curioso.
— Não, não. Sou apenas um homem simples que gosta de acreditar no que vê. Ela foi atingida com alguma coisa pesada... e isto é pesado. O sangue e cabelo nele fazem-nos presumir que sejam da vítima. Portanto... esta deve ter sido a arma usada.
— Ela estava acordada ou dormindo quando foi golpeada? — indagou Leach.
— Na minha opinião estava acordada, pela expressão de espanto que há em seu rosto. Acredito que ela não esperasse o que iria acontecer. Não há sinal nenhum de qualquer tentativa de luta... nem de horror ou medo em seu rosto. Direi sem compromisso que, ou ela tinha acabado de acordar e ainda meio confusa não entendeu o que acontecia, ou então que reconheceu, em seu assaltante, alguém que seria impossível lhe desejar algum mal.
— A única lâmpada acesa era a da mesa de cabeceira — comentou Leach pensativo.
— Sim, isto nos dá duas alternativas. Poderia tê-la ligado ao acordar, repentinamente, com alguém entrando em seu quarto, ou então poderia já estar ligada.
O sargento-detetive, levantando-se do chão, falou sorrindo:
— Lindas impressões digitais. Perfeitamente nítidas.
— Isto deve simplificar as coisas — disse Leach dando um profundo suspiro.
— Sujeito amável o criminoso. Deixou a arma... deixou as impressões digitais... é de se admirar que também não tenha deixado seu cartão de visita! — comentou o Dr. Lazenby.
— Pode ter perdido a cabeça. Às vezes isso acontece — observou o Superintendente Battle.
— É verdade — concordou o médico. — Agora devo ir cuidar de minha paciente.
— Que paciente? — Battle parecia interessado.
— Antes do crime ser descoberto, fui chamado pelo mordomo. Uma das empregadas de Lady Tressilian foi encontrada em estado de coma esta manhã.
— O que aconteceu com ela?
— Estava extremamente dopada com barbitúricos. Apesar de estar muito mal, é certo que se recuperará.
— A empregada?! — falou Battle. — Seu olhar se dirigiu para o cordão da campainha cuja borla estava pousada no travesseiro perto da mão da vítima.
Lazenby balançou a cabeça.
— Exatamente. A primeira coisa que Lady Tressilian faria caso se alarmasse, seria puxar a campainha chamando a empregada. Bem, mas neste caso, ela poderia puxar até cansar, pois a empregada não a ouviria jamais.
— O assassino tomou precauções quanto a isto, não acha? — perguntou Battle. — Mas você tem certeza de que ela não costumava tomar remédio para dormir?
— Tenho certeza absoluta. Não encontramos nada em seu quarto. E após algumas investigações, cheguei à conclusão de como foi usada a droga: colocaram-na no chá de cássia que ela costuma tomar todas as noites.
— Hum! — resmungou Battle, coçando o queixo. — Alguém conhece bem todos os hábitos desta casa. Sabe, doutor, este é um caso de assassinato muito estranho.
— Bem — disse Lazenby —, agora o problema é todo de vocês.
— Ele é um bom homem — afirmou Leach, depois que Lazenby saiu da sala.
Agora estavam sozinhos. Haviam sido tiradas fotografias e medidas. Os dois policiais já tinham todos os dados a respeito do aposento onde o crime havia sido cometido.
Battle concordou com a observação do sobrinho, mas parecia intrigado com alguma coisa.
— Você acha que alguém... de luvas.... poderia ter usado este taco... com impressões digitais anteriores?
— Não, e nem você acha. Não se poderia segurar nele sem apagar as impressões. E estão perfeitamente nítidas, como você mesmo viu — observou Leach.
Battle concordou.
— Agora pediremos educadamente a todos para que suas impressões digitais sejam tiradas... sem coação, é claro. Todos dirão que sim, o que acarretará em duas soluções: ou nenhuma das impressões digitais corresponderá a essas, ou então...
— Ou então teremos apanhado o nosso assassino.
— Suponho que sim. Ou quem sabe... uma assassina?
— Não, não foi uma mulher. As impressões no taco são grandes demais para serem de uma mulher. Além disso, não foi um crime com características femininas.
— Tem razão — consentiu Battle. — Realmente foi um crime tipicamente masculino. Brutal, másculo, um tanto atlético apesar de um. pouco idiota. Conhece alguém aqui que seja assim?
— Ainda não conheço ninguém nesta casa. Estão todos reunidos na sala de jantar.
— Vamos então conhecê-los — disse Battle dirigindo-se para a porta.
Olhando para a cama, balançou a cabeça, e comentou:
— Não gosto deste cordão de campainha.
— Por quê?
— Não se enquadra com o resto.
Acrescentou ao abrir a porta:
— Quem poderia querer matá-la? Há por aí uma porção de velhas rabugentas merecendo uma pancada na cabeça, mas ela não parecia ser deste tipo. Acredito que fosse uma pessoa querida. — Fez uma pausa, e em seguida perguntou: — Ela era rica, não? Quem ficará com o dinheiro?
— O senhor acertou no alvo! Isto esclarecerá tudo. É uma das primeiras coisas a se descobrir.
Enquanto desciam as escadas, Battle olhou a lista em sua mão, e leu alto:
— Srta. Aldin, Sr. Royde, Sr. Strange, Sra. Strange, Sra. Audrey Strange. Hum, parece que a família Strange é grande demais.
— São suas duas esposas.
— Um barba-azul... — murmurou Battle levantando as sobrancelhas.
A família estava reunida em torno da mesa, onde haviam tido um pretenso jantar.
O Superintendente Battle olhou aguçadamente para todos os rostos virados em sua direção. Ele os estava analisando de acordo com seus próprios métodos. Se soubessem... certamente ficariam surpresos com seu julgamento: era uma visão severa e cheia de preconceitos. Apesar da lei considerar a pessoa inocente até prova em contrário, o Superintendente Battle sempre considerava toda e qualquer pessoa envolvida num caso de homicídio como um assassino em potencial.
Olhou para Mary Aldin sentada ereta e pálida à cabeceira da mesa... para Audrey com uma xícara de café na mão direita e um cigarro na esquerda... para Nevile que parecia confuso e desnorteado tentando, com a mão trêmula, acender um cigarro... para Kay com os cotovelos apoiados na mesa e sua palidez aparecendo por debaixo da maquilagem.
Foram estes os pensamentos do Superintendente Battle:
"Aquela deve ser a Srta. Aldin. Diria que é uma pessoa calma, competente e dificilmente a pegaremos desprevenida. O homem a seu lado é imprevisível, tem uma fisionomia impassível, um braço defeituoso e provavelmente complexo de inferioridade. A outra (que deve ser uma das esposas) está morrendo de medo... sim, está mesmo muito assustada. Aquele é Strange (já o vi antes em algum lugar); está mesmo muito agitado... com os nervos em frangalhos. A ruiva é do tipo irritável, com um temperamento dos diabos. Contudo, parece ser muito esperta."
Enquanto os analisava, o Inspetor Leach fazia um pequeno discurso formal. Mary Aldin citou o nome dê cada um dos presentes.
— Foi um terrível choque para todos, mas estamos prontos para ajudar no que for preciso — finalizou ela.
— Para começar, alguém sabe alguma coisa sobre este taco de golfe? — indagou Leach.
— Que horrível! Foi isto que... — exclamou Kay chocada.
Nevile Strange levantando-se deu a volta à mesa.
— Parece um dos meus. O senhor me permite dar uma olhada?
— Agora não tem mais problema — falou o inspetor. — Pode segurá-lo.
A maneira significativa como o "agora" foi dito não pareceu produzir qualquer reação nos presentes. Nevile examinou o taco.
— Acho que é um dos meus. Se o senhor vier comigo, poderei confirmar com certeza.
Seguiram-no até um grande armário debaixo da escada. Ele abriu com violência a porta, e o armário estava repleto de raquetes de tênis.
Battle, lembrando-se de onde conhecia Nevile Strange, falou apressado:
— Já o vi jogar em Wimbledon.
— Ah, sim! — disse Nevile virando parcialmente o rosto.
Ele estava tirando algumas raquetes do armário. Encostados em um equipamento de pesca, estavam os dois sacos de golfe.
— Somente minha mulher e eu jogamos — explicou Nevile. — Este é um taco de homem... Sim... é meu.
Ele tinha apanhado o saco de golfe que continha pelo menos uns quatorze tacos.
Estes desportistas levam mesmo a coisa a sério. Não gostaria de ser seu caddy — pensou o Inspetor Leach.
— É um taco fabricado por Walter Hudson de St. Esbert.
— Obrigado, Sr. Strange. Com isso, uma parte, já está definida.
— O que me surpreende é que nada foi roubado, e além do mais a casa não parece ter sido assaltada — sua voz estava confusa, e também assustada.
Eles já andaram refletindo sobre o crime... — pensou Battle.
— Os empregados são completamente inofensivos — afirmou Nevile.
— Falarei com a Srta. Aldin sobre eles — explicou calmamente Leach. — Mas agora, gostaria de saber quais são os advogados de Lady Tressilian?
— Askwith & Trelawny — esclareceu de pronto Nevile.
— Obrigado, Sr. Strange. É preciso que nos informemos sobre os bens de Lady Tressilian.
— Para saber quem herdará seu dinheiro? — perguntou Nevile.
— Sim, é isso. Sobre o seu testamento e tudo o mais.
— Nada sei sobre o seu testamento, a não ser que ela pouco tinha para deixar. Entretanto posso informar-lhe sobre-a distribuição de seus bens.
— Sim, Sr. Strange?
— Ficarão para mim e para minha mulher, de acordo com o testamento do falecido Sir Matthew Tressilian. Sua esposa tinha os bens apenas em usufruto.
— Realmente! — o Inspetor Leach olhou para Nevile com o interesse de alguém que acaba de descobrir algo importante. Seu olhar fez Nevile estremecer. O inspetor prosseguiu:
— Não tem idéia do valor da fortuna, Sr. Strange?
— Não posso dizer com certeza, mas creio que seja por volta de 100.000 libras.
— Para cada um?
— Não. Para ser dividido entre nós dois.
— Entendo. É uma soma bastante considerável...
Nevile, sorrindo, falou com muita calma:
— Tenho bastante dinheiro para viver. Não preciso desejar desesperadamente uma herança.
Leach pareceu chocado, por serem tais idéias atribuídas a ele.
Voltaram à sala de jantar onde Leach fez outro pequeno discurso. Desta vez foi sobre as impressões digitais... uma simples questão de rotina, embora fossem excluídos os empregados que tivessem acesso ao quarto da vítima.
Todos expressaram desejo, quase ansiedade, para terem suas impressões digitais tiradas.
E com esta finalidade, foram para a biblioteca, onde o detetive Jones os esperava com seu equipamento.
O interrogatório começou pelos empregados.
Pouco tinham a dizer. Hurstall explicou seu sistema de trancar a casa e jurou que encontrara tudo conforme deixara na noite anterior: não havia nenhum sinal de arrombamento. A porta da frente, ele explicou, não fora trancada com o ferrolho, mas apenas com a chave, porque o Sr. Nevile tinha ido a Easterhead Bay e voltaria tarde.
— Sabe a que horas voltou?
— Sim, senhor, creio que foi por volta das duas e meia da madrugada. Acho que alguém veio com ele, pois ouvi vozes. Também ouvi um carro se afastando, a porta se fechando e, logo após, o Sr. Nevile subindo as escadas.
— A que horas ele foi para Easterhead Bay?
— Por volta das 10:20 horas. Ouvi quando fechou a porta.
Hurstall, por não ter muito mais a dizer, foi dispensado. Leach continuou entrevistando os outros criados. Todos pareciam nervosos e assustados, mas não mais do que seria natural nas circunstâncias.
O inspetor olhou inquisitivamente para seu tio quando a porta se fechou atrás da ligeiramente histérica ajudante de cozinha, a qual foi a última a ser interrogada.
— Traga a empregada de volta. Não a de olhar assustado, mas sim a alta e magra, e um tanto carrancuda. Ela sabe de alguma coisa.
Era evidente a inquietação de Emma Wales, que estava completamente alarmada, por agora estar sendo interrogada por aquele homem mais velho.
— Vou lhe dar um conselho, Srta. Wales — disse ele cordialmente —, não deve esconder nada da polícia. Pois, se o fizer, fará com que a senhorita mesma se comprometa... Se é que realmente compreende o que quero dizer...
Emma Wales protestou indignada e nervosa:
— Tenho certeza de que nunca...
— Agora chega! — ordenou Battle levantando sua grande mão. — Você viu ou ouviu alguma coisa. O que foi?
— Eu não ouvi exatamente... quero dizer... não pude deixar de ouvir. O Sr. Hurstall também ouviu. E acho que aquilo nada teve a ver com o assassinato.
— Provavelmente não, mas diga-nos apenas o que escutou.
— Bem, era pouco depois das dez e eu ia subir para dormir. No entanto, antes de me recolher, tinha que deixar o saco de água. quente que a Srta. Mary Aldin usa, seja no verão ou no inverno. Naturalmente para isso, eu teria que passar pela porta de Lady Tressilian.
— Continue — apressou Battle.
— Foi quando ouvi-a discutindo violentamente com o Sr. Nevile. As vozes estavam muito exaltadas e algumas vezes ele gritava. Oh, era uma discussão para valer!
— Lembra-se exatamente do que diziam?
— Bem, não estava propriamente prestando atenção.
— Eu sei. Mas mesmo assim deve ter ouvido pelo menos algumas palavras.
— Ela dizia que não ia admitir não sei bem o que em sua casa, e em seguida o Sr. Nevile respondia: "não ouse dizer nada contra ela". Ele parecia muito excitado.
Battle, com o rosto inexpressivo, tentou perguntar-lhe mais alguma coisa, porém não conseguindo mais nenhuma declaração, acabou por dispensá-la.
Ele e Jim se entreolharam. Em seguida, Leach falou:
— Jones a esta altura já deve ter alguma coisa para nos dizer sobre aquelas impressões digitais.
— Quem está revistando os quartos? — indagou Battle.
— Williams. Ele é muito eficiente, e não deixará escapar nada.
— Cada um dos ocupantes está sendo mantido afastado do seu quarto?
— Sim, até que Williams termine o seu trabalho.
A porta se abriu, e o jovem Williams apareceu.
— Venham ver o que encontrei no quarto do Sr. Nevile.
Seguiram-no até a suíte do lado oeste da casa. Williams apontou para um amontoado de roupa no chão. Um casaco azul-marinho, calças e colete.
— Onde encontrou isto? — perguntou Leach prontamente.
— Estavam jogados no fundo do armário. Agora, olhe isto aqui, senhor.
Apanhando o casaco azul-marinho, mostrou as manchas nos punhos.
— Estão vendo estas manchas escuras? Aposto que é sangue! E está espalhado por toda a manga.
— Hum! — resmungou Battle, evitando o olhar ansioso do outro. — Devo dizer que a situação parece feia para o jovem Nevile. Há algum outro terno no quarto?
— Sim, um terno cinza-escuro listrado jogado na cadeira. E tem ainda muita água no chão perto da bacia.
— Parece que ele tentou limpar o sangue com muita pressa. Contudo, não podemos afirmar nada, pois está perto da janela, e não se pode esquecer que choveu bastante.
— Não o bastante para fazer estas poças no chão, senhor. E ainda não secaram.
Battle ficou em silêncio. Uma imagem estava se formando diante de seus olhos: um homem com sangue nas mãos e nas mangas, tirando a roupa com violência e jogando-a suja no fundo do armário. Em seguida, lavando furiosamente suas mãos e braços.
Olhou para a porta da parede em frente.
— É o quarto da Sra. Strange, senhor. A porta está trancada — explicou Williams.
— Trancada? Deste lado?
— Não, do outro.
— Do lado da Sra. Strange, hem?
Battle ficou uns minutos pensativo. Finalmente falou:
— Vamos ver novamente aquele velho mordomo.
Hurstall estava nervoso, Leach perguntou-lhe enérgico:
— Por que não nos disse, Hurstall, que tinha ouvido uma discussão entre o Sr. Strange e Lady Tressilian ontem à noite?
O velho homem piscou nervoso.
— Não dei muita importância ao fato, senhor. Não creio que se possa chamar aquilo de discussão, mas sim de uma amigável divergência de opiniões.
Resistindo à tentação de dizer "amigável divergência de opiniões, uma ova!", Leach perguntou:
— Que terno o Sr. Strange usou ontem à noite no jantar?
Hurstall hesitou. Battle falou com calma:
— Era azul-marinho ou cinza listrado? Certamente se o senhor não se lembra outra pessoa poderá nos responder.
— Ah, estou me lembrando agora. Era um terno azul-marinho. Durante os meses de verão — continuou ansioso, para não perder o prestígio — a família não tem o hábito de usar traje a rigor. Freqüentemente saem após o jantar, indo algumas vezes para o jardim, ou então até o ancoradouro .
Battle dispensou Hurstall, que ao sair, encontrou Jones parecendo agitado.
— Vai ser uma barbada! Tirei as impressões digitais de todos. E apenas uma combina com as anteriores. Por enquanto, só pude fazer uma comparação grosseira, mas posso apostar que são estas mesmo.
— Então? — indagou Battle.
— As impressões digitais no taco são do Sr. Nevile Strange.
— Bem — disse Battle recostando-se na cadeira —, parece que isto resolve tudo, não é?
IV
Três homens de rostos graves e preocupados estavam no gabinete do Chefe de Polícia...
— Bem, acho que não há nada a fazer, a não ser prendê-lo — afirmou o Major Mitchell com um suspiro.
— É ó que parece, senhor — respondeu Leach.
Mitchell olhou o Superintendente Battle.
— Ânimo, Battle — disse gentilmente. — O seu melhor amigo não morreu.
— Isto não está me agradando — suspirou Battle.
— Não creio que esteja agradando a nenhum de nós, mas já temos evidências suficientes para que um mandado de prisão seja feito — afirmou Mitchell.
— Sim. Mais do que o suficiente — confirmou Battle.
— O fato é que, se não emitirmos uma ordem de prisão, perguntarão por que diabo isto não foi feito.
Battle balançou a cabeça insatisfeito.
— Vamos recapitular tudo — disse o Chefe de Polícia.
— Temos o motivo: com a morte de Lady Tressilian, Strange e sua mulher receberão uma considerável soma de dinheiro. Pelo que sabemos, foi a última pessoa a vê-la com vida, e também o ouviram discutindo com ela. O terno que ele usou naquela noite tinha manchas de sangue, as quais são do mesmo tipo sangüíneo do da vítima. E o que veio agravar a situação é que suas impressões digitais foram encontradas na arma do crime... e as de mais ninguém.
— Ainda assim, isto também não está lhe agradando — comentou Battle.
— Pode estar certo que não!
— O senhor não está gostando exatamente do quê?
O Major Mitchell esfregou o nariz.
— Tudo isso faz com que o criminoso pareça um pouco tolo demais, não acha? — perguntou.
— É. Mas, às vezes, eles se comportam como verdadeiros tolos.
— Ah! eu sei... eu sei. Onde estaríamos se não fosse assim?
— E você Jim, o que não gosta nisto tudo? — perguntou Battle a Leach.
— Sempre simpatizei com o Sr. Strange. Durante anos o tenho visto por aqui. Ele é um cavalheiro muito educado e um desportista excelente.
— Não? vejo por que um bom jogador de tênis não possa ser também um assassino. Não há nada que o impeça — Battle fez uma pausa. — Só não gosto é do taco de golfe.
— O taco de golfe? — indagou Mitchell, ligeiramente intrigado.
— Sim, e também a campainha. Ou um... ou outro... mas nunca os dois...
Ele continuou com calma e cautela.
— O que acha que realmente aconteceu? O Sr. Strange foi até o quarto dela, onde tiveram uma forte discussão. Perdendo a calma, golpeou-a na cabeça? Se não tivesse sido premeditado, por que razão estaria ele com um taco de golfe exatamente naquela hora? Não é o tipo de coisa que se carregue por aí durante a noite.
— Ele poderia ter estado praticando umas jogadas, ou algo assim, quem sabe?
— É, talvez, mas ninguém o viu fazê-lo. A última vez que foi visto com um taco na mão foi na semana passada, quando praticava umas tacadas na areia. Na minha opinião há duas possibilidades. Ou houve uma discussão e ele perdeu a cabeça... mas lembre-se de que o vi em um torneio de tênis, onde os jogadores ficam excitados e uma pilha de nervos, e pude notar que se descontrolam facilmente. Nunca vi o Sr. Strange perturbar-se. Dir-se-ia que tem um grande controle de si mesmo, muito maior do que a maioria das pessoas. E aqui estamos nós, sugerindo que ele tenha freneticamente atingido, na cabeça, uma frágil senhora.
— Há ainda uma outra alternativa, Battle — disse o Chefe de Polícia.
— Eu sei: é a teoria de que houve premeditação, por estar ele querendo o dinheiro. Isto se enquadra com a campainha o com a empregada narcotizada, mas nunca com o taco nem com a discussão. Se ele tivesse decidido matá-la, teria tido muito cuidado para que não discutissem, e teria poupado a empregada. O que teria feito é ter entrado furtivamente no quarto de Lady Tressilian, matando-a... simulado um pequeno roubo, e por fim, ter limpado o taco de tênis, guardando-o de volta em seu lugar. Porém, está tudo errado! Há mistura de uma fria premeditação com uma violência não premeditada... que simplesmente não combina!
— Está certo no que diz, Battle. Mas então, qual é a alternativa?
— É o taco que me intriga, senhor.
— É mais do que certo de que ninguém poderia usá-lo, sem que as impressões digitais do Sr. Nevile fossem apagadas.
— Neste caso — afirmou o Superintendente Battle — ela foi atingida na cabeça por algum outro objeto.
— É uma hipótese um tanto absurda, não acha?
— É uma questão de bom senso, senhor. Ou foi Strange quem golpeou-a com o taco ou mais ninguém. Meu voto é por ninguém. Neste caso o taco foi deliberadamente colocado no quarto, com sangue e fios de cabelos espalhados nele. O Dr. Lazenby também não está muito satisfeito em aceitar o taco como a arma do crime, mas teve que fazê-lo por não ter nada que o contradissesse.
O Major Mitchell recostou-se na cadeira.
— Continue, Battle. Estou lhe dando carta branca. Qual é o próximo passo?
— Deixando de lado o taco — prosseguiu Battle —, o que resta? Primeiro, o motivo. Tinha Nevile Strange realmente um motivo para matar Lady Tressilian? Ele herdaria o dinheiro. Mas na minha opinião, tudo depende se ele realmente necessita desse dinheiro. Ele afirma que não. Sugiro que o estado de suas finanças seja verificado. Se for constatado que está em aperto financeiro e precisando do dinheiro, então as suspeitas aumentarão. Se, por outro lado, estiver falando a verdade, e estiver bem de finanças, por que então...?
— Então?
— Então teremos que investigar os motivos de todas as outras pessoas.
— Acha que tentaram incriminar Nevile?
O Superintendente Battle apertou os olhos.
— Há uma frase que li em algum lugar, que ativa minha imaginação. Alguma coisa sobre um toque de mestre. É... é isto que acredito ver neste caso. Ostensivamente foi um crime brutal e direto, mas entrevejo alguma coisa mais... um verdadeiro toque de mestre por trás disso tudo.
Durante uma longa pausa, o Chefe de Polícia ficou encarando o Superintendente Battle.
— Talvez tenha razão. Raio! há algo esquisito nesta história! Como pretende agir agora?
— Bem, senhor, sou sempre a favor de agir de uma forma clara. Foi tudo preparado para suspeitarmos do Sr. Nevile Strange. Desse modo, continuaremos a suspeitar dele. Não precisaremos chegar ao ponto de prendê-lo, mas poderemos intimidá-lo, interrogá-lo, fazê-lo ficar com medo, e observar a reação de todos. Verificaremos seus depoimentos, e analisaremos cuidadosamente cada movimento da noite do crime. Colocaremos as cartas na mesa.
— Bastante maquiavélico — comentou o Major Mitchell com uma piscadela. — A imitação de um desastrado policial, pelo grande ator Battle.
O Superintendente Battle sorriu.
— Sempre gosto de fazer o que esperam de mim. Desta vez pretendo ir com muita calma... e não me apressar. Quero bisbilhotar um pouco; e suspeitar do Sr. Strange é uma boa desculpa para isto. Tenho a impressão de que alguma coisa muito estranha está acontecendo naquela casa.
— Quem sabe se não é uma incriminação passional?
— Se o senhor quer botar tudo sob este ângulo!
— Trabalhe à sua maneira, Battle. Deixo o assunto em suas mãos e nas de Leach.
— Então ficaremos de olho nestes três — afirmou Battle.
— Você é um sujeito desconfiado, não é? — disse Mitchell parecendo divertido.
— É bom não nos impressionarmos com 50.000 libras — observou Battle impassível. — Já foram cometidos muitos outros homicídios por muito menos do que 50 libras. Depende de quanto se queira o dinheiro. Barrett ganhou sua parte na herança, e quem sabe, tenha tomado a precaução de se dopar para evitar suspeitas?
— Mas quase morreu, e lembre-se de que Lazenby ainda não nos deixou interrogá-la.
— Talvez, por ignorância, ela tenha exagerado na dose. Hurstall também pode ter precisado, desesperadamente, de dinheiro. E Mary Aldin, que não tem dinheiro próprio, pode ter-se imaginado vivendo de renda própria, antes de ficar velha demais para poder se aproveitar disto.
O Chefe de Polícia pareceu ficar na dúvida.
— Bem — disse ele —, deixo o assunto em suas mãos. Continuem o trabalho.
V
Ao chegarem de volta a Gull's Point, os dois policiais receberam o relatório de Williams.
Nada de natureza significativa ou suspeita fora encontrado nos quartos. Os empregados pediam autorização para continuar com o trabalho doméstico.
— Pode dá-la — disse Battle. — Antes, porém, eu mesmo vou dar uma olhada lá em cima. Os quartos frequentemente revelam alguma coisa característica de seus donos.
Jones pousou na mesa uma pequena caixa de papelão.
— Isto estava no casaco azul-marinho do Sr. Nevile Strange — explicou. — Os cabelos ruivos estavam no punho, e os louros no lado de dentro do colarinho e no ombro direito.
Battle olhou os dois longos fios de cabelo ruivo, e meia dúzia de fios louros.
— Muito conveniente — comentou Battle, com leve brilho nos olhos. — Temos nesta casa uma loura, uma ruiva e uma morena. Sendo assim, saberemos de imediato o que queremos. O Sr. Nevile tem um pouco do Barba Azul. Seu braço em torno de uma das esposas, e a outra com a cabeça apoiada no seu ombro.
— O sangue da camisa já foi mandado para análise, senhor. E assim que tiverem o resultado, nos telefonarão.
— E quanto aos criados?
— Segui suas instruções, senhor. Chequei os empregados, e verifiquei que nenhum deles fora mandado embora, ou mesmo guarda rancor contra a velha senhora. Ela era severa, mas muito querida. De qualquer maneira, Mary Aldin é quem controla os empregados; e parece ser muito benquista entre eles.
— No momento em que botei os olhos nela, vi que era uma mulher eficiente — comentou Battle. — Se ela for a assassina, não será fácil enforcá-la.
— Mas aquelas impressões digitais no taco eram... — falou Leach espantado.
— Sei... sei — disse Battle. — Do excepcionalmente amável Sr. Strange. Há uma crença geral de que os atletas não são lá muito inteligentes (o que aliás, nem sempre é verdade), mas não acredito que Nevile Strange seja um completo débil mental. Mudando de assunto, o que apuraram sobre o chá de cássia?
— Fica sempre no armário do banheiro de empregada, no segundo andar. Ela costuma colocá-lo de molho ao meio-dia, ficando lá até a hora em que ela vai dormir.
— Sendo assim, qualquer pessoa teria acesso a ele, ou melhor, qualquer pessoa de dentro da casa.
— Não há dúvida de que foi um trabalho interno! — afirmou Leach com convicção.
— Sim, acho que sim. Não que este seja um daqueles crimes de poucos suspeitos. Qualquer um que tivesse a chave poderia abrir a porta da frente e entrar. Ontem à noite, Nevile tinha esta chave. Mas poderia ser uma simples questão de mandar-se fazer uma, ou alguém, com alguma experiência, poderia abri-la com um pedaço de arame. Entretanto não vejo como um estranho pudesse saber sobre a campainha e sobre o chá de cássia que Barrett tomava todas as noites. Só as pessoas da casa poderiam ter conhecimento disto! Venha Jim, vamos subir e ver o banheiro e todo o resto.
Chegaram ao andar superior. Em primeiro lugar olharam um pequeno quarto cheio de mobílias quebradas e sucata de todo o tipo.
— Não examinei este quarto, senhor. Não sabia que...
— Procurar o que aqui? Tem razão. É apenas perda de tempo. Pela poeira que há no chão, ninguém vem aqui há pelo menos seis meses.
Todos os quartos dos empregados ficavam neste andar, como também dois aposentos desocupados e um banheiro. Battle inspecionou cada quarto, notando que Alice, a empregada de olhos esbugalhados, dormia com a janela fechada; que Emma, a magra, tinha muitos parentes, cujas fotografias estavam agrupadas no fundo da gaveta, e que Hurstall tinha uma ou duas peças boas de porcelana de Dresden & Crown, apesar de lascadas.
O quarto da cozinheira era rigorosamente limpo e o de sua ajudante, caoticamente desarrumado. Em seguida foram até o banheiro que era o aposento mais próximo da escada. Williams apontou para a comprida prateleira em cima da pia, onde havia escovas, copos, vários ungüentos, vidros de sais e loção para cabelo. Em um dos cantos, um pacote de cássia estava aberto.
— Você não encontrou nenhuma impressão digital no copo ou no pacote?
— Somente as da própria empregada.
— É realmente seria... seria o suficiente jogar-se a droga dentro do copo, sem que para isto fosse preciso segurá-lo.
Battle, acompanhado de Leach, começou a descer. No topo da escada havia uma janela um tanto mal situada e perto dela uma vara com um gancho na ponta.
— Com ela se abre a parte de cima da janela — explicou Leach. — Entretanto o fecho de segurança só permite abrir até um determinado ponto, que é demasiado estreito para que alguém possa entrar.
— Não estava pensando que alguém tivesse entrado por aí — disse Battle meditando.
Entraram no quarto de Audrey Strange. Era arrumado, arejado, com escovas de marfim em cima da penteadeira. Não havia nenhuma roupa espalhada. No armário havia dois casacos e saias bem simples, alguns vestidos de noite, um ou dois trajes de verão. Estes eram vestidos baratos, embora houvesse também algumas roupas bem talhadas e caras, apesar de não serem novas.
Battle ficou algum tempo brincando com a caneta que estava perto do mata-borrão.
— Não encontrei nada que me interessasse, nem no mata-borrão nem na cesta de papel.
— Sua palavra é o bastante — afirmou Battle. — Podemos então passar para o outro quarto.
O de Thomas Royde era desarrumado, com roupas espalhadas, cachimbos e cinzas por todos os móveis e inclusive ao lado da cama, onde havia um exemplar de Kim, de Kipling.
— Bem se vê que está acostumado a ter o serviço dos nativos para limpar tudo — concluiu Battle. — Gosta de, ler velhos clássicos. Eu o chamaria de conservador.
O quarto de Mary Aldin era pequeno, mas muito confortável. Battle notou que as prateleiras estavam com livros de viagens, e escovas de prata antigas. A decoração1 era bem mais moderna do que a do resto da casa.
— Essa já não é tão conservadora, não acha? — observou Battle. — Nem há fotografias! Não é do tipo de pessoa que viva no passado.
Ainda viram três ou quatro aposentos desocupados, apesar de limpos e arrumados, prontos para serem usados. Adiante, estava o amplo quarto de casal de Lady Tressilian. A seguir, subindo-se três pequenos degraus, ficava a suíte dos Strange.
Battle não gastou muito tempo no quarto de Nevile. Olhou pela janela as pedras que caíam abruptamente em direção do mar. A vista dava para o lado oeste, onde Stark Head se erguia selvagem e misteriosa.
— Bate sol aqui à tarde — murmurou ele. — Entretanto, pela manhã, a vista é assustadora: aquele cabo tem uma aparência horrível. Não me admira que atraia suicidas.
Entrou no quarto de Kay, onde reinava a maior confusão. As roupas estavam completamente amontoadas: meias finas, roupas de baixo, blusas, modelos de verão jogados na cadeira. Battle viu o armário cheio de peles, vestidos a rigor, shorts, roupa de tênis, trajes esportivos.
Fechou a porta quase que com reverência, e comentou:
— Ela tem gostos dispendiosos. Tudo isso deve sair muito caro para seu marido.
— Talvez por isso que... — disse Leach sombriamente.
— Que precisasse das cem... ou melhor 50.000 libras? Quem sabe? Acho melhor vermos o que ele tem a nos dizer.
Desceram até a biblioteca. Williams ficou encarregado de avisar aos empregados que já podiam voltar aos seus habituais afazeres domésticos, e que os ocupantes poderiam voltar aos quartos se assim o desejassem. Deveria avisar ainda que o Inspetor Leach gostaria de entrevistar cada uma das pessoas separadamente, sendo que o Sr. Nevile deveria ser o primeiro.
Quando Williams saiu da sala, Battle e Leach se acomodaram atrás de uma pesada mesa vitoriana. Um jovem policial, com um bloco de anotação, sentou-se sério em um dos cantos da sala.
— Você cuida desta parte, Jim. Seja incisivo.
Leach concordou com a cabeça e Battle esfregou o queixo, franzindo a testa:
— Gostaria de saber por que não consigo tirar Hercule Poirot de minha cabeça?
— Você está se referindo àquele sujeitinho engraçado... o belga?
— Engraçado coisa nenhuma! Quando se faz passar por charlatão... é tão perigoso quanto uma cobra ou um leopardo! Gostaria que estivesse aqui agora, porque este caso se enquadra perfeitamente em sua especialidade.
— Mas de que maneira? — perguntou Leach.
— Psicologia — respondeu Battle. — Psicologia verdadeira e não estas tolices apresentadas por pessoas inexperientes, que nada sabem sobre o assunto — sua memória voltou-se ressentida para a Srta. Amphrey e sua filha, Sylvia. — Para ele, a verdadeira compreensão da matéria é saber exatamente o que faz as engrenagens funcionarem. Uma de suas normas é manter o assassino falando, pois diz que, com isto, mais cedo ou mais tarde, o criminoso acaba contando a verdade. Para todos é mais fácil contar tudo do que continuar inventando mentiras. Assim, um deslize cometido, mesmo que pareça sem importância, é o suficiente para que o peguemos.
— É assim que pretende agir com Nevile?
Distraído, Battle concordou. Depois prosseguiu um tanto surpreso e aborrecido:
— O que realmente me preocupa é saber por que me lembrei de Hercule Poirot. Acho que foi alguma coisa que devo ter visto lá em cima. O que teria sido?
A conversa terminou com a chegada de Nevile.
Estava pálido e preocupado, porém muito menos nervoso do que pela manhã. Battle estudou-o com atenção. Era incrível como um homem capaz de algum raciocínio, ciente de que as suas impressões digitais tinham sido reconhecidas pela polícia, não demonstrasse um intenso nervosismo, ou enfrentasse a situação de uma forma descarada. Contudo Nevile parecia bastante natural: chocado, preocupado, aflito, apenas aparentando um pouco de nervosismo saudável.
Jim Leach falava com o seu agradável sotaque do oeste.
— Gostaríamos, Sr. Nevile, que respondesse algumas perguntas relativas aos seus atos de ontem à noite e, também, outros dados particulares. Devo entretanto avisá-lo de que não é obrigado a responder a estas perguntas, sem a presença do seu advogado, se preferir fazê-lo dessa maneira.
Leach recostou-se para ver o efeito que esta observação lhe causara. Nevile parecia meio confuso.
Ou ele não tem a menor idéia do que pretendemos, ou então é um ótimo ator — pensou Leach. E como ele continuasse calado, o Inspetor insistiu:
— E então, Sr. Strange?
— Estou pronto para responder o que quiser saber.
— Compreenda bem que tudo o que disser aqui poderá ser usado como prova contra o senhor, no tribunal.
Um lampejo de raiva apareceu no rosto de Strange.
— Isto é uma ameaça?
— Não, não, Sr. Strange. Estou apenas lhe prevenindo.
Nevile encolheu os ombros, mostrando indiferença.
— Já que isto faz parte da sua rotina pode começar.
— O senhor está pronto para fazer uma declaração?
— Se é assim que vocês chamam!
— Para iniciar, o senhor nos contará o que fez ontem à noite, a partir da hora do jantar.
— É lógico. Depois do jantar fomos todos para a sala de visitas onde tomamos café e ouvimos rádio. Então resolvi ir até o Hotel Easterhead Bay para visitar um amigo que está hospedado lá.
— Qual é o nome dele?
— Latimer. Edward Latimer.
— Ele é seu amigo íntimo?
— Mais ou menos. Temos nos encontrado com bastante freqüência. Tanto ele tem vindo almoçar e jantar conosco, quanto nós também já estivemos lá.
— Um tanto tarde para ir até Easterhead Bay, não acha?
— Ora! É um lugar bastante animado. Fica aberto a noite toda.
— Neste caso, os empregados tiveram que ficar acordados para esperá-lo, não foi?
— Não. Eu levei a chave.
— Sua esposa não quis acompanhá-lo?
— Não. Ela estava com dor de cabeça e já tinha ido se deitar — respondeu Nevile com a voz um pouco dura.
— Prossiga, Sr. Strange.
— Ia subir para trocar de roupa, quando...
— Desculpe-me, Sr. Strange, mas trocar como? Vestir ou tirar a roupa a rigor?
— Nem uma coisa, nem outra. Estava usando um terno azul-marinho, aliás, o meu melhor terno. No entanto estava chovendo um pouco; e como eu pretendesse ir de barca até lá, teria que caminhar forçosamente até o hotel. Assim, vesti uma roupa mais velha, um terno cinza listrado. Já que todos os detalhes são importantes, espero estar lhe ajudando.
— Gostamos de tudo bem esclarecido, Sr. Nevile — explicou Leach humildemente. — Por favor, continue.
— Como estava dizendo, ia subir para trocar de roupa quando Hurstall aproximou-se dizendo que Lady Tressilian queria falar comigo. Fui até o seu quarto e conversei um pouco com ela.
— O senhor foi a última pessoa a vê-la com vida, não foi?
Nevile corou.
— Sim, sim. Suponho que sim. Na ocasião ela estava muito bem.
— Durante quanto tempo ficou com ela?
— Cerca de uns 20 minutos ou meia hora no máximo. Logo depois, fui para o meu quarto trocar de roupa. E quando saí, levei a chave da porta da frente comigo.
— A que horas foi isso?
— Acho que foi por volta das 10:30 horas. Apressei-me e peguei a barca que já estava de saída. Encontrei Latimer no hotel, onde bebemos um pouco, e jogamos bilhar. O tempo passou tão depressa que quando vi, já tinha perdido a última barca, a que sai à 1:30. Sendo assim, Latimer, muito amável, se ofereceu para trazer-me de carro. Como você sabe, isto significa dar toda volta por Saltington... 25 quilômetros mais precisamente. Saímos do hotel às 2 horas e diria que chegamos meia hora depois. Agradeci a Ted Latimer, e convidei-o para um drinque, o que ele recusou. Dessa maneira, entrei em casa indo direto para a cama. Não vi, nem ouvi nada de anormal. A casa parecia sossegada e tranqüila. Só esta manhã é que ouvi... aquela moça gritando e...
Leach o interrompeu.
— Esta bem! Esta bem!Vamos voltar a sua conversa com Lady Tressilian. Ela parecia bem?
— Ah, certamente.
— Sobre o que conversaram?
— Futilidades!
— Amigavelmente?
— Lógico! — exclamou Nevile corando.
— Por acaso, vocês tiveram uma discussão violenta?
Nevile não respondeu. Entretanto Leach insistiu:
— É melhor dizer a verdade, porque, por acaso, a sua conversa foi ouvida.
— Realmente houve um pequeno desentendimento, mas nada tão importante.
— E qual foi o motivo desse desentendimento, Sr. Strange? — perguntou Leach.
Com esforço Nevile recobrou a calma, e sorriu:
— Para lhe falar francamente, ela me passou um sermão, o que acontecia com freqüência. Sabia demonstrar sua raiva quando discordava de alguém. Era uma pessoa antiquada e contra todas as idéias modernas, assim como o divórcio. Tivemos uma pequena discussão e, talvez, eu tenha me exaltado um pouco, mas nos despedimos em termos amigáveis apesar dos nossos pontos de vista divergirem. — Nevile acrescentou um tanto inflamado: — Certamente não golpeei sua cabeça só porque perdi a calma numa discussão, se é isto. que está imaginando!
Leach olhou para Battle que, debruçando-se na mesa, disse:
— Esta manhã o senhor identificou o taco de golfe como seu. Tem alguma explicação para o fato de terem encontrado nele as suas impressões digitais?
— Eu... mas é claro que sim... o taco é meu, e eu o uso com freqüência.
— As impressões provam que o senhor foi a última pessoa a usá-lo. Existe alguma explicação para isso?
Nevile estava imóvel, e o colorido sumira de seu rosto.
— Isto não é verdade — disse finalmente. — Não pode ser. Alguém usou-o depois de mim... alguém que estivesse usando luvas.
— Não, Sr. Strange. Ninguém podê-lo-ia ter usado. Não da maneira que o senhor pensa, isto é, levantando-o para o: golpe. Para isso, as suas impressões estariam confusas.
Houve um silêncio... um silêncio muito longo.
— Ah, Deus! — exclamou Nevile estremecendo. Colocou as mãos sobre os olhos. Os dois policiais observavam-no.
Tirando as mãos dos olhos, sentou-se rígido.
— Não é verdade — afirmou calmamente. — Simplesmente não é verdade. Os senhores pensam que eu a matei, mas juro que não fui eu. Está havendo um terrível engano.
— Nesse caso, o senhor pode nos explicar aquelas impressões no taco?
— Como é que eu posso? Estou completamente aturdido.
— Tem alguma explicação para o fato das mangas e dos punhos de seu terno azul-marinho estarem manchados de sangue?
— Sangue? Não pode ser! — exclamou perplexo.
— O senhor, por acaso, não se cortou?
— Não, claro que não!
Nevile Strange, com a testa enrugada, parecia estar pensando. Finalmente, levantou os olhos, onde medo e pânico estavam estampados.
— É fantástico! Simplesmente fantástico! Nada disto é verdade.
— Os fatos estão bastante claros — contestou o Superintendente Battle.
— Mas por que eu faria tal coisa? É totalmente inconcebível... inacreditável. Sempre fui amigo de Camilla.
O senhor mesmo nos disse que com a morte de Lady Tressilian herdaria muito dinheiro.
— Acha que por isso eu... mas eu não quero dinheiro! Não preciso.
— Isto — comentou Leach, com um pigarro — é o que o senhor nos diz, Sr. Strange.
Nevile levantou-se repentinamente.
— Olhe aqui: isto é algo que posso lhes provar! É só me deixarem telefonar para o gerente do banco, e o senhor mesmo poderá falar com ele.
Em poucos minutos, a ligação para Londres foi completada. Nevile falou:
— É você, Ronaldson? Aqui quem fala é Nevile Strange. Você conhece minha voz. Quero que informe à polícia... é. Estão aqui agora... tudo que quiserem saber sobre minha situação financeira... sim, sim... por favor.
Leach pegou o telefone. Falava calmamente, fazendo perguntas e dando respostas. Por fim, acabou desligando.
— E então? — perguntou Nevile ansioso.
— O senhor tem um grande saldo bancário; e o banco, que é encarregado de todos os seus investimentos, declara que estão todos em ótima condição.
— O que prova que eu disse a verdade!
— É o que parece. Mas ainda há a hipótese de que o senhor tenha compromissos, dívidas, pagamento de extorsão, ou qualquer outra razão desconhecida, para precisar do dinheiro.
— Mas não tenho nada a esconder! Garanto-lhe que não vai encontrar nada deste tipo.
O Superintendente Battle falou em um tom amigável:
— O senhor deve concordar, Sr. Nevile, que temos provas suficientes para lhe darmos um mandado de prisão. Contudo, ainda não o fizemos, porque estamos lhe dando o benefício da dúvida.
— Quer dizer com isto que o senhor já decidiu que realmente fui eu quem a matou, mas que é preciso descobrir o motivo, para que o caso possa ser encerrado, não é isso? — perguntou Nevile amargamente.
Battle permaneceu calado, e Leach olhando para o teto.
— Parece até um pesadelo! Não há nada que eu possa dizer ou fazer. É como estar preso numa armadilha, sem se poder sair — desesperou-se Nevile.
O Superintendente mexeu-se agitado. Um brilho inteligente apareceu em seus olhos semicerrados.
— Muito bem pensado — comentou. — Realmente muito bem pensado. Isto me dá uma idéia...
VI
Para que marido e mulher não se encontrassem, o sargento Jones, astutamente, fez com que Nevile se retirasse pela sala de jantar, e com que Kay entrasse pela porta do terraço.
— Mas mesmo assim, é inevitável que ele se encontre com os outros — observou Leach.
— Não tem problema — esclareceu Battle. — Ela é a única pessoa que faço questão de entrevistar antes que saiba de alguma coisa.
Com o vento cortante, o dia tornara-se sombrio. Kay usava uma saia de lã, suéter roxo e seu cabelo tinha a aparência de uma brilhante auréola de cobre. Parecia um tanto assustada e excitada. Sua beleza e vitalidade resplandeciam no escuro e pesado cenário vitoriano.
Com bastante facilidade, Leach conseguiu com que ela fizesse um relatório da sua noite anterior.
Por causa de uma dor de cabeça, ela se recolhera cedo: mais ou menos por volta das 9:15 horas. Tinha dormido profundamente. Nada ouvira de anormal, até ser acordada com alguém gritando de manhã.
Battle passou a interrogá-la.
— Seu marido não foi vê-la antes de sair?
— Não.
— A senhora não o viu desde a hora em que ele deixou a sala de visitas até a manhã seguinte, está correto?
Kay concordou com a cabeça.
— Sra. Strange, a porta de comunicação entre o seu quarto e o de seu marido estava trancada. Quem a trancou?
— Fui eu.
Battle nada disse... esperou... como um gato experiente que espera o rato sair do buraco que está vigiando.
O seu silêncio teve o efeito que suas perguntas talvez não conseguissem ter. Descontrolando-se Kay falou:
— Oh, acho que o senhor terá que saber de tudo! Aquele velho decrépito do Hurstall deve ter-nos ouvido, e eu sei que acabará lhe contando tudo, se é que já não contou. Nevile e eu tivemos uma briga, uma briga feia! Eu estava furiosa com ele! Subi e fechei a porta de comunicação, porque continuava com uma raiva danada!
— Entendo... entendo — disse Battle complacente. — E qual foi o motivo da briga?
— E isto tem alguma importância? Ora, não me incomodo mesmo de contar. Nevile vem se comportando como um perfeito idiota, e é tudo culpa daquela mulher.
— Que mulher?
— Sua primeira esposa. Para começar, ela o persuadiu a vir até aqui.
— Quer dizer... encontrá-la?
— Sim. Nevile pensa que foi tudo idéia dele... pobre inocente! Mas sei que não foi. Ele nunca pensou em tal coisa, até encontrá-la certo dia num parque, quando ela tentou persuadi-lo com esta idéia, fazendo-o acreditar que fosse sua. Ele pensa realmente que foi idéia dele, mas posso ver a mão de Audrey por trás disto tudo.
— Por que ela faria tal coisa? — indagou Battle.
— Porque ela queria fisgá-lo novamente — Kay falava apressada e sua respiração estava ofegante. — Ela nunca o perdoou por tê-la abandonado, e esta é sua vingança. Fez com que ele providenciasse para que todos nos reuníssemos aqui, e desde então vem provocando-o. Tem feito isto desde que chegou. Ela é esperta: sabe como parecer patética e misteriosa. Há também outro homem na história, o Thomas Royde, um cachorro fiel, que sempre esteve apaixonado por ela. Pois bem, ela providenciou tudo para que ele também viesse para cá, e ao fingir que ia se casar com Thomas, deixou Nevile louco.
Parou ofegante de raiva.
— Creio que ele deveria ficar satisfeito ao saber que ela encontrará a felicidade com um velho amigo — aparteou Battle.
— Satisfeito? Ele está é morrendo de ciúme!
— Sendo assim, ele deve gostar muito dela.
— Sim, ele gosta! — disse Kay amargamente. — Ela se encarregou disso!
Battle continuava a passar a mão no queixo, em dúvida.
— A senhora poderia ter-se negado a vir para cá.
— Como poderia? Teria dado a impressão de que estava com ciúme.
— Bem, afinal de contas, a senhora estava, não estava?
Kay ficou ruborizada.
— Sim, sempre tive ciúme de Audrey. Desde o começo... ou melhor, quase desde o começo. Costumava sentir sua presença por toda a casa, como se esta fosse dela e não minha. Mudei toda a decoração, mas de nada adiantou. Continuei a sentir como se houvesse um fantasma triste sempre rastejando à nossa volta. Eu sabia que Nevile sempre se preocupou achando que a havíamos tratado muito mal. Não conseguia esquecê-la... ela estava sempre lá... como um sentimento de reprovação no fundo de sua mente. Há pessoas assim, que parecem apagadas e insignificantes, mas que fazem com que sintamos sua presença.
Battle balançou a cabeça, pensativo.
— Bem, muito obrigado, Sra. Strange. Por enquanto é só. Tivemos que lhe fazer todas essas perguntas, especialmente por ter seu marido herdado tanto dinheiro de Lady Tressilian... 50.000 libras...
— Tudo isso? Receberemos pelo testamento do velho Sir Matthew, não é?
— A senhora sabe tudo sobre a herança?
— Ah, sim! O que ele deixou deverá ser dividido entre Nevile e sua esposa. Não que eu esteja contente com a morte da velha, pelo contrário, não estou. É verdade que não gostava muito dela, provavelmente porque não gostava muito de mim, contudo é horrível imaginar que um ladrão tenha entrado e esmagado a sua cabeça.
Acabando de falar, se retirou. Battle olhou para Leach.
— O que você achou dela? Eu direi que é um bocado bonita. O tipo de mulher que faz qualquer homem perder a cabeça.
Leach concordou.
— Entretanto não me parece ser uma dama — duvidou ele.
— Não há muitas delas hoje em dia — afirmou Battle. — Vamos ver agora a número 1? Não, acho melhor que a próxima seja a Srta. Aldin. Assim poderemos ter um ponto de vista imparcial quanto a esse problema matrimonial.
Mary Aldin entrou muito tranqüila. Por baixo de sua aparente calma via-se que seus olhos estavam preocupados.
Respondeu às perguntas de Leach com bastante clareza, confirmando o depoimento de Nevile. Tinha ido para a cama por volta das 10 horas.
— O Sr. Strange estava então com Lady Tressilian? — perguntou Leach.
— Sim. Pude ouvi-los falando.
— Falando, Srta. Aldin, ou discutindo?
Ela corou, mas respondeu calmamente:
— Lady Tressilian apreciava uma discussão. Muitas vezes ela parecia mordaz, enquanto na realidade não era nada disto. Tinha tendência, também, a ser autoritária e dominadora, e há de convir que um homem não aceita isso com a mesma facilidade com que uma mulher o faz.
Da mesma maneira que você! — pensou Battle.
Ele olhou para o seu rosto inteligente. Foi ela quem quebrou o silêncio.
— Não quero bancar a tola, mas me parece inacreditável... realmente inacreditável, que o senhor suspeite de alguém desta casa. Por que não poderia ser obra de um estranho?
— Por várias razões, Srta. Aldin. Uma delas é que nada foi roubado, e nenhuma entrada forçada. Não preciso lembrar-lhe a disposição da casa e do terreno. Do lado oeste há o penhasco íngreme em direção do mar; ao sul fica o terreno com o muro e o mar lá embaixo; a leste, os jardins dão para a praia, mas são cercados por muros altos. As duas únicas saídas são uma pequena porta que dá para a estrada, mas que foi encontrada fechada pelo lado de dentro como de costume, e a porta principal da casa. Não nego que se pudesse ter entrado com uma chave falsa, mas na minha opinião não foi isso que aconteceu. Seja lá quem for o criminoso, sabia que Barrett costumava tomar chá de cássia todas as noites, o que significa que só pode ser alguém desta casa. O taco de golfe foi tirado do armário que fica debaixo das escadas. Tenho certeza de que não foi um estranho, Srta. Aldin!
— Não foi Nevile! Estou certa de que não foi ele!
— Por que está tão certa?
Desanimada, ela levantou as mãos.
— Porque ele nunca mataria uma velha indefesa. Não o Nevile!
— É. Não parece muito plausível — ponderou Battle. — A senhorita entretanto ficaria surpresa com o que as pessoas são capazes de fazer quando aparece um bom motivo. O Sr. Strange pode ter precisado desesperadamente de dinheiro.
— Tenho certeza de que não. Ele não é uma pessoa extravagante. Nunca o foi.
— Mas a sua esposa o é.
— Kay? — e após alguns minutos de reflexão. — Sim, talvez... mas isso é ridículo. Garanto que ultimamente a última coisa em que Nevile pensa é dinheiro.
O Superintendente Battle pigarreou.
— Tinha outras preocupações, não é mesmo?
— Kay lhe contou? Tudo tem sido muito embaraçoso porém nada tem a ver com este terrível acontecimento.
— Provavelmente não. Mesmo assim, gostaria de ouvir a sua versão sobre o caso, Srta. Aldin.
— Bem, como eu dizia, criou-se uma situação delicada. Seja lá de quem foi a idéia de...
Ele a interrompeu astutamente.
— Pelo que sei, a idéia foi do Sr. Nevile.
— É o que ele diz.
— Mas a senhorita não acredita — afirmou Battle.
— Eu... não... não me parece próprio de Nevile. Sempre achei que alguém impingiu-lhe esta idéia.
— Talvez a Sra. Audrey Strange?
— É incrível acharmos que Audrey tenha feito tal coisa.
— Neste caso quem mais poderia ser? — perguntou Battle.
Mary levantou os ombros desarmada.
— Eu não sei. É apenas... estranho.
— Estranho — repetiu Battle pensativo. — Também acho muito estranho!
— Tudo tem sido estranho. Tenho uma sensação... não sei bem descrevê-la. É alguma coisa no ar. Uma ameaça!
— Todos tensos e nervosos?.
— Sim. É isso. E todos nós sofremos as conseqüências. Até o Sr. Latimer...
— Eu já ia lhe perguntar sobre ele. O que sabe a respeito do Sr. Latimer, Srta. Aldin?
— Bem, na verdade, pouco sei a respeito dele. É um amigo de Kay
— Então, é amigo da Sra. Strange? Os dois se conhecem há muito tempo?
— Sim, ela o conheceu antes de se casar.
— O Sr. Strange gosta dele?
— Creio que bastante.
— Então não há nenhum problema? — perguntou sutilmente Battle.
— Certamente que não — respondeu Mary rápida e enfática.
— Lady Tressilian gostava do Sr. Latimer?
— Não muito.
Battle notou o tom de indiferença em sua voz e mudou de assunto.
— E Jane Barrett, a empregada, é digna de confiança?
— Sim! Completamente. Era muito dedicada a Lady Tressilian.
— Poderia considerar a possibilidade de Barrett assassinar sua patroa e dopar-se só para evitar que suspeitássemos dela?
— É claro que não. Por que faria isso? — espantou-se Mary.
— Como sabe, foi beneficiada com a herança.
— E eu também — disse Mary Aldin encarando-o.
— Sim, eu sei. Sabe quanto vai receber?
— O Sr. Trelawny, que chegou agora, acabou de me informar.
— A senhorita não o sabia de antemão?
— Não. É claro que supunha que ela me deixaria alguma coisa. Como sabe, não tenho dinheiro o suficiente para poder viver sem trabalhar. Achava que Lady Tressilian me deixaria uma renda de pelo menos 100 libras por ano, entretanto por ela ter alguns primos, não estava certa de como tencionava dispor do seu dinheiro. É evidente que eu sabia que a fortuna de Sir Matthew ficaria para Nevile e Audrey.
— Então ela não sabia quanto Lady Tressilian ia deixar para ela? — comentou Leach quando Mary Aldin se retirou. — Pelo menos é o que ela diz!
— É o que ela diz — repetiu Battle. — E agora interroguemos a primeira mulher do Barba Azul.
VII
Audrey usava um conjunto de lã cinza-claro, que a deixava com o mesmo aspecto do fantasma que Kay descrevera: "um fantasma triste rondando pela casa".
Ela respondeu às perguntas com naturalidade e sem nenhum sinal de emoção.
Tinha ido se deitar às 10 horas, a mesma hora que Mary Aldin. Não ouvira nada durante toda a noite.
— Desculpe-me pela intromissão em sua vida particular, mas poderia me explicar a razão da sua vinda a Gull's Point?
— Sempre venho nesta época. Este ano meu... meu ex-marido queria vir nesta mesma época, e por isto me perguntou se me incomodaria.
— Foi sugestão dele?
— Sim.
— Não foi sua?
— Não — respondeu categoricamente Audrey.
— Mas a senhora não concordou?
— Sim, concordei... não vi maneira de recusar.
— Por que não, Sra. Strange?
— Não gosto de ser descortês.
— A senhora foi a parte injuriada? — perguntou Battle.
— Como disse?
— Foi a senhora quem pediu o divórcio?
— Sim.
— Sente pelo seu ex-marido algum rancor?
— Não. Nem um pouco.
— É muito generosa, Sra. Strange.
Ela não respondeu. Ele tentou o silêncio, mas Audrey não era Kay para ser levada a falar. Poderia permanecer calada sem o menor sinal de inquietação. Battle considerou-se derrotado.
— Tem certeza de que a idéia deste... deste encontro não foi sua?
— Absoluta.
— Mantém relações amigáveis com a atual Sra. Strange?
— Acho que ela não gosta muito de mim.
— E a senhora? Gosta dela?
— Sim. Acho-a muito bonita.
— Bem, obrigado. Acho que por enquanto é só. Levantando-se, ela dirigiu-se para a porta. Logo depois, hesitando... voltou.
— Gostaria apenas de dizer... — falava nervosamente e depressa. — Os senhores acham que Nevile é o culpado... que a matou por causa do dinheiro. Tenho certeza de que não foi ele. Estivemos casados por 8 anos, e sei como ele nunca ligou para dinheiro. Não posso imaginá-lo matando alguém por esse motivo! Sei que o que estou dizendo não tem muito valor... mas gostaria que me acreditassem.
Virou-se e saiu da sala.
— O que achou dela? — perguntou Leach. — Nunca vi ninguém tão... tão despida de emoção.
— Ela não demonstrou nenhuma, mas garanto que existe alguma por debaixo daquela capa. Uma emoção muito forte, mas não sei qual é...
VIII
O último a ser interrogado foi Thomas Royde. Estava sério e formal, piscando um pouco como uma coruja.
Tinha vindo para casa, depois de 8 anos na Malásia. Desde menino tinha o hábito de se hospedar em Gull's Point. A Sra. Audrey Strange era uma prima distante e havia sido criada por sua família desde a idade de 9 anos. Na noite anterior, tinha ido se deitar um pouco antes das onze. Ouvira Nevile sair por volta das 10:20 ou talvez um pouco mais tarde; e não escutara nada de estranho durante a noite. Já tinha se levantado e estava no jardim, quando descobriram o corpo de Lady Tressilian. Ele era um madrugador.
Houve uma pausa.
— A Srta. Aldin nos disse que havia um clima de tensão na casa. O senhor também notou?
— Não, acho que não. Não sou muito observador — respondeu Thomas.
Está mentindo — pensou Battle. — Você observa tudo, diria até que muito mais do que os outros.
Não. Ele não achava que Nevile estivesse com problemas de dinheiro. Certamente não era o que parecia, apesar de pouco saber sobre os negócios do Sr. Strange.
— Conhece bem a segunda Sra. Strange?
— Conheci-a somente agora.
Battle deu sua última cartada:
— Como já deve saber, Sr. Royde, encontramos não só as impressões digitais do Sr. Nevile na arma do crime, como também sangue na manga do paletó que usou ontem à noite.
— Sim. Ele estava nos contando — murmurou Royde.
— Vou lhe perguntar francamente: acha que foi ele quem a matou?
Thomas Royde, que não gostava de ser apressado, esperou um pouco antes de responder.
— Não vejo por que está me perguntando isso. Isso não é problema meu, e sim seu. Porém acho muito improvável .
— Existe alguém que lhe pareça mais provável?
— A única pessoa que considero plausível, não poderia tê-lo feito. Assim, o assunto está encerrado.
— E quem é essa pessoa? — indagou Battle.
— Não direi, pois é apenas minha opinião particular — afirmou Royde, decidido.
— É seu dever auxiliar a polícia.
— Sim, mas só com fatos concretos. Isso não é um fato, e sim uma idéia. E de qualquer modo teria sido impossível .
— Não conseguimos arrancar muita coisa dele — comentou Leach, depois da saída de Royde.
— É. Realmente não conseguimos. Ele tem algo em mente; alguma coisa bem definida, que eu gostaria de saber o que é. Este é um crime muito peculiar, Jim.
Antes que Leach pudesse responder, o telefone tocou. Depois de ficar alguns minutos ouvindo, ele exclamou: "ótimo", e desligou.
— O sangue no paletó é do mesmo grupo sangüíneo que o de Lady Tressilian — informou ele. — Parece que Nevile está em maus lençóis.
Battle tinha ido até a janela e olhava para fora, com bastante interesse.
— Lá fora tem um jovem muito bonito — observou ele — e diria também que bastante perigoso. É pena que o Sr. Latimer tenha estado em Easterhead Bay ontem à noite. Ele é o tipo de pessoa que esmagaria a cabeça da própria avó, se soubesse que com isso poderia tirar algum proveito.
— Bem. Não lhe cabe nenhuma parte da herança. A morte de Lady Tressilian não o beneficia de forma alguma.
O telefone tocou de novo.
— Droga de telefone! O que será agora? — impacientou-se Leach indo atendê-lo.
— Alô. Ah!... é o senhor, doutor?...O quê?... Ela se recuperou?... O quê?... O quê?!
— Tio! Venha só ouvir isto.
Battle pegou o telefone e, como sempre, não havia nenhuma expressão em seu rosto.
— Chame o Sr. Strange, Jim.
Quando Nevile entrou, Battle estava acabando de colocar o fone no gancho.
Pálido e exausto, ele olhava curioso para o Superintendente da Scotland Yard, tentando adivinhar o que estava se passando por trás daquele rosto inexpressivo.
— Sr. Strange, conhece alguém que não goste do senhor? Nevile negou com a cabeça.
— Tem certeza? — Battle foi incisivo. — Quero dizer, alguém que realmente não goste do senhor, alguém que o deteste?
— Não. É claro que1 não — sobressaltou-se Nevile.
— Pense, por favor. Não existe alguém que, de alguma forma, tenha sido ofendido pelo senhor?
Nevile ruborizou-se.
— Há apenas uma pessoa a quem eu magoei, mas ela não é do tipo de guardar rancor. A minha primeira esposa ficou muito magoada quando a deixei por outra mulher. Entretanto posso garantir-lhe que ela não me odeia. Ela... ela tem sido um anjo.
O Superintendente debruçou-se na mesa.
— É um homem de sorte, Sr. Nevile. Não digo que me agradassem as provas que o incriminavam, mas elas existiam. E, a não ser que os jurados gostassem muito da sua pessoa, elas seriam o suficiente para condená-lo.
— O senhor fala como se tudo já pertencesse ao passado.
— E assim o é! O senhor foi inocentado por pura sorte.
Nevile continuava a olhá-lo, sem entender nada.
— Depois que o senhor saiu do quarto de Lady Tressilian, ela tocou a campainha chamando a empregada. — Battle observava a maneira com que Nevile assimilava o que tinha sido dito.
— Depois... então Barrett a viu... — surpreendeu-se Nevile.
— Sim — afirmou o Superintendente. — Ela estava viva. E antes que fosse atender a sua patroa, ela o viu deixando a casa.
— Mas o taco... e minhas impressões digitais?...
— Ela não foi morta por aquele taco. Na ocasião, notei que o Dr. Lazenby não queria aceitá-lo como a arma do crime. Ela foi atingida por algum outro objeto. O taco foi colocado, deliberadamente, lá, para que as suspeitas recaíssem sobre o senhor. Deve ter sido alguém que ouviu a sua discussão e que o escolheu como a vítima perfeita. Ou então, pode ter sido porque...
Parou e repetiu a pergunta:
— Quem o detesta nesta casa, Sr. Nevile?
IX
— Tenho uma pergunta a lhe fazer, doutor — disse Battle.
Estavam agora na casa do médico, depois de terem ido ao hospital, onde tinham tido uma pequena entrevista com Jane Barrett.
Apesar de fraca e exausta, ela foi bem clara em seu depoimento; já ia se deitar, depois de tomar o seu chá de cássia, quando ouviu a campainha tocar. Quando olhou o relógio, eram 10:25 horas. Vestiu o roupão e desceu. Ao ouvir barulho no hall, debruçou-se no corrimão com curiosidade .
— Era o Sr. Nevile preparando-se para sair. Estava pegando a sua capa no cabide.
— Que terno ele estava usando?
— Um cinza listrado. Parecia muito preocupado e insatisfeito. Vestiu a capa de qualquer maneira, como se isto fosse o menos importante; saindo, batendo a porta logo em seguida. Entrei no quarto de Lady Tressilian. Coitada, estava muito sonolenta, e não conseguia se lembrar por que me havia chamado, o que já acontecera outras vezes. Mas, mesmo assim, ajeitei seus travesseiros, colocando-a em uma posição confortável.
— Ela parecia perturbada ou com medo de alguma coisa?
— Não. Apenas cansada. Eu também estava cansada, bocejando o tempo todo. Subi e fui direto para a cama.
Esta era a história de Barrett. Era impossível duvidar-se da sua genuína tristeza e horror diante da notícia da morte da sua patroa.
Foram para a casa de Lazenby, onde Battle comunicou que tinha uma pergunta a fazer.
— Pode fazê-la — consentiu Lazenby.
— A que horas acha que Lady Tressilian morreu?
— Já lhe disse. Entre as 10 horas e meia-noite.
— Eu sei. Mas o que estou querendo ouvir é a sua opinião pessoal.
— Quer uma opinião extra-oficial?
— Sim — respondeu Battle categoricamente.
— Bem! Meus cálculos são de que foi por volta das 11 horas.
— É isso que eu queria saber.
— Por quê? — intrigou-se Lazenby.
— Nunca fiquei satisfeito com a idéia dela ter sido assassinada antes das 10:20. Veja bem: a esta hora os barbitúricos ainda não teriam feito efeito em Barrett. Isto prova que o crime estava preparado para ser cometido bem mais tarde. Eu ainda prefiro acreditar que foi à meia-noite.
— Pode ser. Onze horas é apenas uma suposição.
— Mas, definitivamente, não poderia ter sido depois da meia-noite? — insistiu Battle.
— Não.
— E depois das 2:30?
— Não! Isso nunca!
— Bem, sendo assim, parece que desta vez o Strange fica livre. Só me resta verificar os seus atos após a sua saída da casa. Se estiver falando a verdade, estará limpo, e teremos que procurar o criminoso entre os outros suspeitos.
— Entre os herdeiros? — sugeriu Leach.
— Talvez. Mas de alguma forma, não creio que seja isso. Estou procurando uma pessoa com alguma anomalia.
— Anomalia?
— Sim. Uma anomalia sórdida — explicou Battle.
Ao saírem da casa do médico, foram até o local das barcas, que eram operadas por dois irmãos, Will e George Barnes. Os irmãos Barnes conheciam de vista todas as pessoas de Saltcreek, e a maior parte dos que vinham de Easterhead Bay. George afirmou de imediato que, na noite anterior, o Sr. Strange de Gull's Point tinha atravessado na barca das dez e meia. Não. Ele não trouxera o Sr. Strange de volta. A última barca saíra de Easterhead à uma e meia, e o Sr. Strange não estava nela.
Battle perguntou se ele conhecia o Sr. Latimer.
— Latimer? Latimer? Um jovem alto, bonitão, que costuma vir do hotel para Gull's Point? Sim, eu o conheço. Ontem à noite, entretanto, não o vi. Esta manhã ele atravessou conosco para Gull's Point, só voltando agora na última viagem.
Chegando ao Hotel Easterhead Bay, encontraram Latimer que acabara de regressar. Estava muito ansioso para ajudar no que pudesse.
— Sim, o velho Nevile veio aqui ontem à noite, e parecia muito deprimido. Contou-me que tivera uma briga com a velha senhora. Soube depois que ele e Kay discutiram, mas isso, é claro, ele não me contou. De qualquer modo, ele estava bem desanimado, e parecia satisfeito em ter a minha companhia.
— Fui informado de que foi meio difícil para o Sr. Nevile encontrá-lo.
— Não entendo por que, se eu estava na sala de estar — explicou Latimer. — Strange disse que me procurou mas que não me viu. A verdade é que ele estava perturbado demais para se concentrar, ou eu mesmo posso ter saído por uns cinco minutos, para dar uma volta pelo jardim. Saio sempre que posso, pois há um cheiro muito desagradável neste hotel. Notei isso ontem à noite no bar. Acho que é o esgoto. Nevile também sentiu o mesmo cheiro repulsivo. Pode ser até um rato morto debaixo do chão da sala de bilhar.
— Vocês jogaram bilhar, e depois?
— Conversamos e bebemos mais um pouco, até que Nevile percebeu que tinha perdido a última barca. Foi aí que eu me ofereci para levá-lo em meu carro, e se estou certo, chegamos a Gull's Point por volta das duas e meia.
— E o Sr. Strange esteve em sua companhia durante toda a noite?
— Mas é claro! Pode perguntar a qualquer pessoa.
— Obrigado, Sr. Latimer. Temos que ser muito cuidadoso.
Assim que deixaram o controlado e sorridente jovem, Leach perguntou:
— Onde está querendo chegar, com todas estas minuciosas investigações a respeito do Sr. Nevile?
Battle sorriu, e de repente Leach compreendeu tudo.
— Ora veja, é o outro que você está inspecionando. Então é essa a idéia!
— Ainda é cedo para se ter idéias — afirmou Battle. — Tenho apenas que saber exatamente onde o Sr. Latimer esteve ontem à noite. Só sabemos que das onze e quinze à meia-noite ele estava com Nevile Strange. Mas onde esteve ele antes disso, fazendo com que o Sr. Nevile não o pudesse encontrar?
Continuaram a entrevistar com insistência os barmen, garçons, ascensoristas. Entre nove e dez horas, Latimer tinha sido visto na sala de estar, e estivera no bar às dez e quinze. Mas entre aquela hora e onze e vinte, ele estivera singularmente desaparecido. Por fim, encontraram uma empregada que declarou que o Sr. Latimer tinha estado em um dos pequenos escritórios com a Sra. Beddoes, uma gorda senhora do norte do país.
Pressionada quanto à hora, ela disse que deveria ter sido por volta das onze horas.
— Bem, isto resolve tudo — concluiu Battle tristemente. — Ele estava mesmo aqui. Apenas não queria atrair atenção para sua gorda e, sem dúvida, rica amiga. Isto nos leva de volta aos outros: os criados, Kay Strange, Audrey Strange, Mary Aldin e Thomas Royde. É mais do que certo que uma dessas pessoas tenha matado a velha senhora, mas quem? Se pudéssemos descobrir a verdadeira arma do crime...
Ele parou, e em seguida bateu com força na perna.
— Achei, Jim! Agora sei o que me fez lembrar de Hercule Poirot. Vamos almoçar rapidamente e voltar a Gull's Point, onde tenho algo a lhe mostrar.
X
Mary Aldin estava inquieta, entrando e saindo da casa; colhendo uma dália aqui e outra ali; arrumando os jarros de flores quase que mecanicamente.
Da biblioteca vinha um vago murmúrio de vozes. O Sr. Trelawny estava lá com Nevile, enquanto Kay e Audrey não se encontravam por perto.
Mary retornou ao jardim. E vendo Thomas Royde fumar tranqüilamente, foi se juntar a ele.
— Oh, meu Deus! — suspirou aturdida, sentando-se a seu lado.
— Algum problema? — perguntou Thomas.
Mary riu. Havia uma ponta de histeria em seu riso.
— Só mesmo você diria uma coisa desta. Com um assassinato em casa e você apenas pergunta "algum problema?".
Parecendo um pouco surpreso, Thomas disse:
— Estava me referindo a alguma novidade especial.
— Ah, eu sei o que você estava querendo dizer. É realmente um grande alívio encontrar alguém tão magnificamente imperturbável como você!
— Não adianta ficar nervoso, adianta?
— Não. Não. Você é profundamente sensato. O que me intriga é saber como consegue ser assim.
— Bem, suponho que seja, porque sou um estranho.
— Bem isto é verdade, é claro. Você não pode sentir o alívio que nós sentimos, depois que soubemos que Nevile foi inocentado.
— Mas mesmo assim, é claro que estou satisfeito — falou Royde.
— Ele esteve por um fio. Se Camilla não tivesse tocado a campainha para chamar Barrett depois que Nevile saiu...
Thomas terminou a frase que ela deixara incompleta.
— Nevile estaria perdido! — isto foi dito com uma certa satisfação, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça com um pequeno sorriso ao notar o olhar reprovador de Mary. — Não pense que sou cruel, mas agora que a situação de Nevile foi esclarecida, não posso deixar de sentir um certo prazer por saber que ele se abalou com tudo isso. Ele sempre foi tão presunçoso.
— Ele não é nada disso, Thomas — disse Mary.
— É. Talvez seja por causa do seu jeito. De qualquer maneira, ele parecia um bocado assustado hoje de manhã.
— Que maldade, Thomas! — irritou-se ela.
— Bem. Agora não há mais perigo. Sabe, Mary, até mesmo neste caso Nevile teve uma sorte danada. Qualquer outro sujeito que tivesse contra ele todas aquelas provas acumuladas não teria tido nenhuma chance.
— Não diga isto. Gosto de pensar que os inocentes são... protegidos.
— Você gosta, minha querida? — sua voz era amável.
— Thomas, estou muito preocupada. Preocupada e assustada.
— Com o quê?
— É a respeito do Sr. Treves.
Thomas deixou cair o cachimbo nas pedras. Sua voz mudou quando abaixou-se para apanhá-lo.
— Sobre o que você está falando?
— Lembra aquela noite que ele veio aqui... e aquela história que contou sobre um pequeno assassino? Estive pensando, Thomas... será que era apenas uma história, ou ele a contou de propósito?
— Você está querendo me dizer que ele visava um dos presentes?
— Sim — murmurou Mary.
— Eu também estive pensando — comentou Thomas calmamente. — Na realidade, estava pensando sobre isto agora mesmo, quando você chegou.
— Estive tentando me lembrar... ele contou a história tão deliberadamente. Foi como se estivesse forçando o assunto na conversa. Disse ainda que reconheceria a pessoa em qualquer lugar. Ele salientou bem esta parte, como se já a tivesse reconhecido.
— Hum... já pensei nisto tudo — disse Thomas.
— Mas por que ele faria isto? Qual seria o seu objetivo?
— Imagino que tenha sido como uma espécie de advertência, e não como alguma forma de experiência.
— Acha que o Sr, Treves sabia que Camilla iria ser assassinada? — espantou-se Mary.
— Não. Isto seria fantástico demais. Pode ter sido apenas uma advertência geral.
— Acha que eu deveria contar isto à polícia?
— Acho que não — respondeu Thomas finalmente, depois de refletir bastante. — Não me parece importante. Não é como se o Sr. Treves estivesse vivo e pudesse informar-lhes alguma coisa.
— Não. Ele está morto! — afirmou Mary estremecendo. — A maneira como ele morreu, Thomas, foi tão estranha.
— Foi um ataque do coração. Ele tinha problemas cardíacos.
— Refiro-me ao fato curioso do elevador estar quebrado. Não gostei nada daquilo.
— Eu também não — reforçou Thomas Royde.
XI
O Superintendente Battle olhou em torno do quarto. A única coisa que mudara era a cama que tinha sido feita. No mais, continuava tão arrumado como antes.
— É isto — disse o Superintendente Battle, apontando para a antiquada grade da lareira. — Vê alguma coisa de estranho naquela grade?
— Está precisando de limpeza — observou Jim Leach. — Está bem conservada. Não vejo nada de anormal, exceto... Sim! A esfera da extremidade esquerda está mais brilhante do que a da direita.
— Foi isto que me fez lembrar Hercule Poirot — explicou Battle. — Você conhece a sua mania pelas coisas que não estão em perfeita simetria. Acho que, inconscientemente, eu pensei: "isto teria chamado a atenção do velho Poirot", e então comecei a falar sobre ele. Trouxe seu equipamento de impressões digitais, Jones? Vamos dar uma olhada nessas esferas.
— Há impressões na esfera do lado direito, senhor, mas nenhuma na do lado esquerdo.
— Então é a esfera esquerda que queremos. Aquelas outras impressões são da empregada, quando ela fez a limpeza pela última vez. A esfera da esquerda já havia sido limpa.
— Encontrei na cesta de lixo alguns papéis amassados — informou Jones. — Não pensei que pudessem ter qualquer importância.
— É porque na ocasião você não sabia o que estava procurando. Entretanto aposto como, neste momento, o que você mais gostaria é de desatarrachar esta esfera... sim, foi o que pensei.
Jones segurou a esfera.
— É bem pesada — falou ele, avaliando o peso com as mãos.
— Tá algo escuro no parafuso — disse Leach olhando com atenção.
— Provavelmente é sangue — disse Battle. — A pessoa limpou a esfera cuidadosamente, entretanto não notou esta pequena mancha no parafuso. Aposto o que você quiser, como esta foi a arma que esmagou a cabeça de Lady Tressilian. Contudo, ainda há muito mais a se descobrir. Você, Jones, fica encarregado de dar uma nova busca pela casa. Só que, desta vez, você saberá exatamente o que procura.
Deu mais algumas instruções detalhadas, e foi olhar na janela.
— Há alguma coisa amarela presa nas plantas. Aquilo pode ser mais uma peça do quebra-cabeça. E é provável que seja.
XII
Ao atravessar o hall, o Superintendente Battle foi interpelado por Mary Aldin.
— Poderia falar-lhe um minuto, Superintendente?
— Mas é claro, Srta. Aldin. Entremos aqui — e abriu a porta da sala de jantar.
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta. Certamente o senhor não continua a acreditar que este... este crime horrível tenha sido cometido por um de nós. Só pode ter sido um estranho! Um maníaco!
— Neste ponto, a senhorita não deve estar enganada, pois creio que esta é a melhor palavra para descrever o criminoso. Mas a verdade é que o crime não foi cometido por um estranho.
— Quer dizer que alguém nesta casa é... é louco? — perguntou ela com os olhos arregalados.
— Se a senhorita está pensando em alguém com a boca espumante e olhos revirados, não é bem isso. Alguns dos mais perigosos criminosos parecem tão sadios quanto qualquer um de nós. Normalmente trata-se de uma obsessão, como se fosse uma idéia que ficasse remoendo no pensamento, e que aos poucos o vai corrompendo. Pessoas patéticas e racionais vêm a nós, para nos contar como estão sendo perseguidas e como os seus atos e movimentos são espionados. Algumas vezes chegamos até a acreditar que é tudo verdade.
— Asseguro-lhe que aqui ninguém tem mania de perseguição.
— Citei apenas um exemplo. Há no entanto outras formas de insanidade. Minha opinião é de que quem cometeu este crime estava totalmente dominado por uma idéia fixa. Uma idéia que foi se desenvolvendo até ter a máxima importância.
Mary estremeceu, e disse:
— Creio que há algo que o senhor deveria saber.
Ela contou, de um modo claro e sucinto, a visita do Sr. Treves e a história que ele havia contado. O Superintendente Battle mostrava-se profundamente interessado.
— Ele reconheceu essa pessoa? Por acaso... era homem ou mulher?
— Eu achei que a história era sobre um menino, mas a verdade é que ele não afirmou nada... aliás estou me lembrando agora de que ele falou claramente que não iria especificar nem o sexo, nem a idade.
— É mesmo? Isto é muito significativo. E disse também que havia uma peculiaridade física, que faria com que ele reconhecesse esta criança em qualquer lugar?
— Sim — respondeu ela.
— Talvez uma cicatriz. Porventura, alguém aqui tem alguma cicatriz? — indagou Battle.
Ele percebeu a hesitação de Mary Aldin antes que respondesse:
— Não que eu tenha notado.
— Ora, Srta. Aldin — ele sorriu —, é evidente que a senhorita notou. É muita ingenuidade sua achar que eu não serei capaz de notá-la também, não acha?
— O senhor está enganado!
Ele pôde observar o quanto ela estava assustada. Obviamente as suas palavras tinham produzido uma desagradável sucessão de pensamentos. Ele desejaria saber qual era, mas a sua experiência lhe deixava ciente de que pressioná-la, naquele momento, não levaria a nada.
Ele voltou ao assunto do velho Sr. Treves. Mary narrou o fato trágico ocorrido naquela noite.
Battle interrogou-a detalhadamente. Ao terminar, comentou:
— Isto é novo para mim. Nunca me deparei com nada igual.
— O que quer dizer?
— Nunca tomei conhecimento de um assassinato cometido pelo simples ato de se pendurar um aviso na porta do elevador.
— O senhor não acha realmente que... — ela falou horrorizada.
— Que foi assassinato? É claro que foi! Um crime rápido e ligeiro. É lógico que poderia ter falhado... mas isto não aconteceu.
— Apenas porque o Sr. Treves sabia...
— Sim. Ele poderia fazer com que a nossa atenção se voltasse para um dos ocupantes da casa. Do jeito que aconteceu, começamos no escuro. No entanto já temos um vislumbre de luz, e a cada minuto que passa o caso se esclarece mais e mais. Digo-lhe uma coisa, Srta. Aldin, este crime foi cuidadosamente planejado em seus mínimos detalhes. Quero alertá-la para uma coisa: não deixe ninguém saber o que me contou. Isto é muito importante. Por favor, não comente com ninguém.
Apesar de meio confusa, Mary Aldin concordou com a cabeça.
O Superintendente Battle saiu da sala e encaminhou-se para fazer o que deveria ter feito, se não fosse a interrupção de Mary. Era um homem metódico e que desejava certas informações. Uma nova e promissora pista, por mais tentadora que pudesse ser, não o distrairia do cumprimento ordenado de suas obrigações. Bateu na porta da biblioteca, e Nevile Strange respondeu:
— Entre.
Battle foi apresentado ao Sr. Trelawny, um homem alto, de aparência distinta e de olhos penetrantes.
— Desculpe-me se os estou interrompendo — justificou-se o Superintendente Battle —, porém há uma coisa que ainda não está esclarecida: o senhor, Sr. Strange, herdará a metade da fortuna do falecido Sir Matthew. Quem receberá a outra metade?
Nevile pareceu surpreso.
— Eu já lhe disse. É a minha esposa.
— Sim. Mas qual delas, Sr. Strange?
— Ah, entendo. Desculpe-me se me expressei mal. O dinheiro vai para Audrey, porque na ocasião em que o testamento foi feito era ela a minha esposa. Está correto, Sr. Trelawny?
O advogado concordou.
— O testamento é bem claro. A herança é para ser dividida entre o tutelado de Sir Matthew, Nevile Henry Strange, e sua esposa, Audrey Elizabeth Strange, nascida Standish. O divórcio não altera em nada.
— Bem, agora está esclarecido. A Sra. Audrey Strange já está ciente destes fatos?
— Mas é óbvio — assegurou o Sr. Trelawny.
— E quanto à atual Sra. Strange?
— Kay? — Nevile parecia ligeiramente surpreso. — Suponho que sim! Pelo menos... nunca falamos muito sobre este assunto.
— Então houve um mal-entendido — disse Battle. — A Sra. Kay pensa que, com a morte de Lady Tressilian, o dinheiro ficará para o senhor e para ela, por ser a sua atual esposa. Pelo menos, foi isto que ela deu a entender esta manhã. Sendo assim, resolvi vir aqui para descobrir qual é a verdadeira situação.
— É incrível! — comentou Nevile. — Entretanto, imagino que isto possa ter acontecido facilmente. Pensando bem, agora me lembro dela ter dito uma ou duas vezes: "quando Camilla morrer, receberemos aquele dinheiro", mas naturalmente imaginava que ela se referia a nós dois, só levando em conta a minha parte na herança.
— É espantoso — afirmou Battle — o número de mal-entendidos que pode existir, mesmo entre duas pessoas que discutam um certo assunto com bastante freqüência: cada uma delas entende o que melhor lhe convém, sem que o outro desconfie de qualquer disparidade de pensamento.
— É. Suponho que sim — disse Nevile não parecendo muito interessado. — De qualquer forma, neste caso, isto não tem muita importância, porque nós realmente não precisamos de dinheiro. Fico muito satisfeito por Audrey. Ela tem passado por dificuldades e este testamento fará uma grande diferença para ela.
— Mas é certo que, ao ser discutido o divórcio, uma pensão tenha sido estabelecida, não?
Nevile, ruborizando-se, falou com a voz constrangida:
— Existe uma coisa chamada orgulho, Superintendente. Audrey sempre se recusou a tocar em um centavo da pensão que lhe enviava.
— Uma pensão muito generosa — acrescentou o senhor Trelawny. — Mas mesmo assim, a Sra. Audrey Strange sempre devolvia o dinheiro.
— Muito interessante — comentou Battle, retirando-se antes que pudessem lhe pedir qualquer explicação sobre o seu comentário.
Foi ao encontro de seu sobrinho.
— Aparentemente — comentou ele —, cada uma das pessoas envolvidas neste caso tem um bom motivo monetário: Nevile e Audrey Strange receberão 50.000 libras cada um; Kay Strange pensa que tem direito a 50.000; Mary Aldin ficará com uma renda que lhe possibilitará viver sem nunca mais ter que trabalhar. Quanto a Thomas Royde, sou obrigado a confessar que é o único que nada ganhará. Entretanto, podemos incluir Hurstall e até mesmo Barrett, se admitirmos a hipótese de que ela tenha se arriscado a morrer para evitar suspeitas. Sim, como eu já disse, não faltam motivos levados pelo dinheiro; apesar de achar que ele nada tem a ver com este crime. Este é um típico assassinato movido por puro ódio. E se não aparecer ninguém para atrapalhar o meu trabalho, vou pegar a pessoa culpada!
Mais tarde, ele ficou imaginando por que teria colocado aquela frase em sua cabeça.
Andrew MacWhirter havia chegado em Easterhead Bay no sábado anterior.
XIII
Andrew MacWhirter estava sentado no terraço do Hotel Easterhead Bay, olhando fixamente para o outro lado do rio onde ficava a sombria elevação do Stark Head. No momento, estava ocupado fazendo um cuidadoso levantamento de seus pensamentos e emoções.
Aqui, sete meses atrás, ele tentara contra a própria vida. O acaso, apenas o acaso, tinha intervido. Estaria ele grato a tudo isto?
Ele decidiu, orgulhosamente, que não. Era verdade que no momento presente não sentia a menor vontade de se matar. Esta fase tinha acabado para sempre. Agora estava disposto a cumprir a tarefa de viver, não com entusiasmo ou mesmo prazer, mas apenas com o metódico espírito do dia-a-dia. Ninguém pode, isto ele admitia, tirar a própria vida a sangue frio. Terá que haver um estímulo extra como o desespero, a tristeza, ou a paixão. Não se pode cometer suicídio meramente por sentir-se que a vida é uma triste sucessão de acontecimentos desinteressantes.
Ele supunha que agora poderia ser considerado um homem de bastante sorte. O destino, depois de ter-se mostrado adverso, agora sorria-lhe. Ele porém não estava com ânimo para sorrir em retribuição. Seu senso de humor foi revitalizado com a lembrança da entrevista para a qual havia sido convocado por aquele rico e excêntrico nobre, Lorde Cornelly.
— Você é o MacWhirter? Era você quem estava com Herbert Clay, não? Clay teve sua carteira de motorista apreendida porque você se negou a dizer que ele estava dirigindo a 40 quilômetros por hora. Certa noite, quando nos contou sobre todos os fatos, ele estava lívido. "Maldito escocês teimoso!", disse-nos ele. E aí eu pensei comigo mesmo que era este o tipo de sujeito que eu queria: um homem que não se deixa subornar. Comigo, você não terá que dizer mentiras, porque não é assim que trabalho. Eu vivo à cata de homens honestos... e como existem poucos por aí!
O nobre soltara uma gargalhada, e seu rosto astuto ganhara um aspecto alegre e jovial. MacWhirter permanecera indiferente, não se divertindo nem um pouco.
Porém havia conseguido um trabalho, um bom trabalho, e seu futuro estava assegurado. Dentro de uma semana ele deixaria a Inglaterra rumo à América do Sul.
Não sabia bem por que escolhera aquele lugar para passar seus últimos dias de lazer. Só sabia que alguma coisa o arrastara até ali. Talvez o desejo de se pôr à prova, de ver se em seu coração ainda havia algum vestígio do antigo desespero.
Mona? Atualmente ele pouco se importava. Ela estava casada com outro homem. Certo dia haviam se cruzado na rua, sem que ele sentisse qualquer emoção. Ainda podia lembrar sua tristeza e amargura quando ela o abandonara, mas agora isto tudo pertencia ao passado.
Ele foi despertado de seus pensamentos pelo impacto de um cachorro molhado e a agitação de sua nova amiga de 13 anos, Diana Brinton.
— Ah, saia daí, Don. Venha! Não é horrível? Ele se esfregou lá na praia, em algum peixe ou coisa parecida. E pelo jeito o peixe estava podre.
O nariz de MacWhirter confirmou esta hipótese.
— O peixe estava preso entre as pedras — explicou a menina Brinton. — Levei Don até o mar e tentei lavá-lo, mas parece que não adiantou nada.
MacWhirter concordou. Don, um terrier pêlo-de-arame, de temperamento amigo e amoroso, parecia magoado com a atitude de seus amigos, em mantê-lo preso aos braços.
— A água do mar não serve para isto. A única coisa que resolve é água quente e sabão — observou MacWhirter.
— Eu sei. Porém em um hotel isto não é lá muito fácil. Não temos banheiro privativo.
Levando Don pela coleira, MacWhirter e Diana acabaram entrando, sorrateiramente, pela porta lateral, conduzindo-o clandestinamente para o banheiro de MacWhirter. Fizeram uma limpeza completa. Tanto ele como a menina ficaram muito molhados. Quando tudo terminou, Don estava muito triste.
Outra vez este cheiro horrível de sabonete... e logo agora que ele encontrara um perfume realmente agradável, capaz de fazer inveja a qualquer pessoa. Bem, era sempre a mesma coisa com os humanos... eles não tinham o sentido do olfato aguçado.
Este pequeno incidente deixara MacWhirter mais animado. Pegou o ônibus para Saltington, onde havia deixado um terno na lavanderia.
A moça encarregada da Lavanderia 24-Horas olhou-o com uma expressão vazia.
— MacWhirter, o senhor disse? Receio que a roupa não esteja pronta.
Mas já deveria estar. Haviam-no prometido para ontem e, mesmo assim, já se teriam passado 48 horas e não 24. Uma mulher teria dito tudo isto, entretanto ele apenas franziu a testa.
— Ainda não houve tempo para ficar pronta — disse a moça, sorrindo com indiferença.
— Conversa fiada!
A moça parou de sorrir e falou com rispidez:
— Seja lá como for, não está pronta!
— Então vou levar agora mesmo, do jeito que estiver — retrucou MacWhirter.
— Ainda nem começamos o serviço — preveniu-o a garota.
— Vou levar assim mesmo.
— Talvez possa ficar pronto amanhã... como favor especial.
— Não tenho o hábito de pedir favores especiais. Só quero que me entregue o terno, por favor.
Lançando-lhe um olhar mal-humorado, a moça dirigiu-se à sala dos fundos. Voltou com um embrulho mal feito que empurrou para o outro lado do balcão.
MacWhirter, pegando-o, saiu.
Ele se sentiu, apesar de ridiculamente, como se tivesse conseguido uma vitória. Na verdade isso apenas significava que ele teria que mandar o terno para outro lugar!
Chegando ao hotel, jogou o embrulho em cima da cama, extremamente aborrecido. Talvez pudesse ser lavado e passado lá mesmo. Na verdade, não estava muito sujo... quem sabe nem precisasse ser lavado?
Ao desfazer o embrulho, apareceu em seu rosto uma expressão de aborrecimento. Realmente, a Lavanderia 24-Horas era ineficiente demais para ser descrita. Este não era o seu terno. Não era nem da mesma cor! O dele era azul-marinho. O serviço era confuso e ineficaz!
Olhou irritado para a etiqueta que tinha o nome de MacWhirter. Seria um outro MacWhirter ou alguma estúpida troca de etiquetas?
Olhando contrariado para o amontoado de roupas amassadas, sentiu, repentinamente, um odor estranho. Certamente ele conhecia aquele cheiro, um cheiro desagradável... ligado de alguma forma a um cachorro. Sim, era isto! Diana e seu cachorro. Era sem dúvida o mau cheiro do peixe podre.
Curvando-se, ele examinou o terno. No ombro do paletó» havia um pequeno pedaço de pano desbotado. No ombro...
Isto — pensou MacWhirter — é realmente muito curioso...
De qualquer modo, no dia seguinte, ele iria ter uma conversa com a moça da lavanderia, que por sinal tinha uma péssima administração.
XIV
Depois do jantar, ele saiu do hotel e andou até as barcas. Era uma noite clara, apesar de fria, com um vento cortante, antecipando o inverno. O verão acabara.
MacWhirter atravessou de barca até a margem de Saltcreek. Esta era a segunda vez que voltava a Stark Head, e mesmo assim, o lugar exercia uma espécie de fascínio sobre ele. Subiu vagarosamente o morro, passando pelo Hotel Balmoral Court. Adiante, viu uma grande casa na beira de um penhasco, onde leu um nome no portão: Gull's Point.
É claro! Fora ali que a velha senhora havia sido assassinada. No hotel comentaram muito sobre o caso: a camareira insistia em lhe contar tudo que sabia, e os jornais haviam dado muito destaque ao assunto, o que tinha lhe desagradado, pois preferia ler notícias de interesse geral e não sobre crimes,
Prosseguiu seu caminho. Descendo novamente o morro, dirigiu-se até a margem de uma pequena praia, onde havia algumas cabanas antigas, as quais tinham sido modernizadas. Em seguida tornou a subir até o final do caminho e, exausto, tomou o atalho que o levaria a Stark Head.
Stark Head era sombrio e misterioso. MacWhirter ficou parado à beira do penhasco olhando para o mar. Fora desta mesma forma que ele ficara naquela outra noite. Tentou relembrar alguns dos sentimentos que tivera então: o desespero, a raiva, a exaustão, o desejo de se ver livre de tudo. No entanto, não havia mais nada para ser relembrado. Agora, tudo aquilo pertencia ao passado. Ficara apenas uma raiva profunda: preso naquela árvore, salvo pelos guardas, tratado no hospital como uma criança malcriada e uma série de indignidades e afrontas. Por que não o haviam deixado sozinho? Ele teria preferido mil vezes ficar livre de tudo; e ainda pensava assim. A única coisa que perdera fora a impetuosidade necessária.
Naquela época, como lhe doía pensar em Mona! Atualmente, porém, conseguia se lembrar dela com muita tranqüilidade. Ela sempre fora muito tola: era facilmente envolvida por qualquer pessoa que soubesse lhe adular e cortejar. Era muito bonita, realmente muito bonita, mas nada inteligente. Não era o tipo de mulher com quem ele sonhara algum dia.
Mas aquilo era a beleza, é claro... A imagem vaga e fantasiosa de uma mulher, com sua roupa branca esvoaçante, correndo através da noite... algo como a figura de um navio, porém não tão bravia... nem tão sólida...
E então, mais que de repente, o incrível aconteceu! Dentro da noite, surgiu uma figura correndo. Por um momento, ela não estava lá... e no momento seguinte, lá estava ela... uma figura branca correndo... correndo em direção à beira do penhasco. Uma figura bonita e desesperada, sendo levada à destruição, perseguida pelas Fúrias! Correndo num desespero terrível... ele conhecia aquele desespero. Ele sabia o que significava...
Com um salto brusco, ele saiu das sombras e conseguiu segurá-la no exato momento em que ela ia pular!
— Não! Você não vai fazer isso... — condenou-a com firmeza.
Era como se ele estivesse segurando um pássaro. Ela se debateu... se debateu silenciosamente, e então, novamente como um pássaro, ficou completamente imóvel.
MacWhirter exclamou ansioso:
— Não se mate! Nada Tale isto. Nada! Mesmo que você esteja desesperadamente infeliz...
Ela emitiu um som. Era talvez como o riso de um fantasma distante.
— Você não é infeliz? Então qual é o seu problema? — perguntou bruscamente.
Ela respondeu de imediato, com um sussurro:
— Medo!
— Medo? — ele ficou tão atônita que a soltou, dando um passo para trás a fim de que pudesse vê:la melhor.
Compreendeu então a veracidade de suas palavras. Foi o medo que tinha colocado aquela premência em seus passos. Era o medo que fazia com que seu pequeno e inteligente rosto branco estivesse vazio e aparvalhado. Era o medo que arregalava aqueles olhos.
— De que você tem medo? — perguntou ele incrédulo.
Ela lhe respondeu tão baixo que ele mal pôde ouvir.
— Tenho medo de ser enforcada...
Sim. Fora isto mesmo que ela dissera. Ele ficou encarando-a fixamente e, em seguida, desviou o olhar para a beira do penhasco.
— Então é por isto?
— Sim. Uma morte rápida ao invés de... — ela fechou os olhos e estremeceu. Continuou a estremecer.
De uma forma lógica, MacWhirter juntava as peças em seu cérebro, como num jogo de quebra-cabeça. Finalmente ele falou:
— Lady Tressilian? A velha senhora que foi assassinada? — Em seguida, falou acusador: — A senhora deve ser a Sra. Strange... a primeira Sra. Strange.
Ainda tremendo, ela concordou com a cabeça.
Com a voz calma e cuidadosa, MacWhirter continuou. tentando se lembrar de tudo o que ouvira. Agora os rumores tomavam forma.
— Eles detiveram seu marido, não é verdade? Havia muitas provas contra ele, mas aí então descobriram que tinham sido forjadas por alguém que...
Calando-se, ele a encarou. Ela parara de tremer. Estava imóvel, olhando-o como uma criança dócil. MacWhirter achou a sua atitude profundamente comovente.
Ele continuou a falar:
— Eu entendo... sim, eu entendo o que aconteceu... Ele a abandonou por outra mulher, não foi?... e você estava apaixonada por ele... foi por isso... — e fez uma pausa. — Eu compreendo. Minha mulher também me deixou por outro homem.
Repentinamente ela estendeu os braços e começou a gaguejar desesperada:
— N... não é... n-n-nada disso. N... não é...
Com a voz firme e autoritária, ele a fez calar.
— Vá para casa. Não precisa mais ter medo, está me ouvindo? Cuidarei para que você não seja enforcada!
XV
Mary Aldin estava deitada no sofá da sala de visitas. Sentia-se completamente exausta, e a cabeça lhe doía.
O inquérito tivera lugar no dia anterior. E após as formalidades de identificação, ficara adiado por uma semana.
O funeral de Lady Tressilian seria no dia seguinte. Audrey e Kay tinham ido de carro a Saltington a fim de providenciar algumas roupas para o luto. Ted Latimer as acompanhara. Nevile e Thomas tinham ido dar uma volta. Sendo assim, à exceção dos empregados, Mary estava sozinha em casa.
O Superintendente Battle e o Inspetor Leach não haviam aparecido, o que também era um alívio. Parecia que, com a ausência deles, uma sombra sumira. Eles haviam sido bastante educados, e é verdade que até bem agradáveis. Contudo, as perguntas incessantes e todas aquelas investigações de cada fato eram o tipo de coisa que arrasaria com os nervos de qualquer um. Agora, o Superintendente de fisionomia indecifrável já deveria saber de cada incidente, cada palavra e até cada gesto dos últimos dez dias. Agora, com a sua ausência, havia paz. Assim, Mary deixou-se descansar. Ela iria esquecer tudo... tudo. Apenas recostar-se, sem pensar em nada.
— Perdão senhora... — interrompeu-lhe uma voz.
Era Hurstall, à porta, parecendo desculpar-se.
— O que é, Hurstall?
— Um cavalheiro deseja vê-la. Levei-o para o escritório.
Mary olhou-o surpresa e um tanto aborrecida.
— Quem é ele?
— Apresentou-se como MacWhirter, senhora.
— Não o conheço — estranhou ela.
— Não, senhora.
— Deve ser um repórter. Não deveria tê-lo deixado entrar, Hurstall.
— Não creio que seja um repórter, senhora. Acho que é um amigo da Sra. Audrey — pigarreou ele.
— Bem, assim é diferente.
Sentindo-se bastante cansada, Mary, ajeitando os cabelos, atravessou o hall em direção do pequeno escritório. Chegando lá, ficou um tanto perplexa quando o homem alto que estava parado à janela se virou, pois não parecia em nada com um amigo de Audrey.
Mesmo assim ela lhe falou amavelmente:
— Sinto muito, mas a Sra. Strange não está. O senhor queria vê-la?
— A senhorita deve ser a Srta. Aldin? — e examinou-a pensativo.
— Sim, sou eu.
— Acredito também que a senhorita possa me ajudar. Preciso ver se há alguma corda por aqui.
— Corda? — exclamou ela extremamente intrigada.
— Sim, uma corda! Tem idéia de onde possa estar guardada?
Mais tarde Mary concluiu que deveria estar semi-hipnotizada. Se aquele estranho homem tivesse dado qualquer explicação, talvez ela tivesse resistido. Entretanto, Andrew MacWhirter, incapaz de pensar em uma explicação plausível, limitou-se simplesmente a dizer o que queria.
Assim, ela se encontrava, semi-entorpecida, conduzindo-o à procura da tal corda.
— Que tipo de corda o senhor está procurando? — perguntou ela.
— Serve qualquer uma — respondeu ele.
— Talvez lá no depósito...
— Vamos até lá? — pediu MacWhirter.
Ela o conduziu ao local. Lá, encontraram não só um pedaço de corda trançada, mas também um tipo de barbante, mais grosso. No entanto, isto não lhe agradou. O que ele queria era uma corda... um bom pedaço de corda...
— Há um outro pequeno depósito lá em cima no sótão — disse Mary hesitante.
— É! Talvez esteja lá!
Entraram na casa e subiram as escadas. Mary abriu a porta do depósito e MacWhirter, olhando para dentro, soltou um curioso suspiro de contentamento.
— Lá está ela! — exclamou ele.
Em um baú, junto com um velho equipamento de pesca e algumas almofadas comidas por traças, estava um grande rolo de corda. Segurou o braço de Mary, impelindo-a gentilmente para frente, de modo que pudessem ver melhor a corda. Pegando-a MacWhirter disse:
— Quero que guarde isto muito bem na sua memória. A senhorita pode observar que o depósito inteiro está coberto de poeira... tudo... menos esta corda. Pode até segurar para comprovar.
— Está um pouco úmida — comentou ela admirada.
— É isto mesmo — confirmou ele.
Andrew se virou para sair.
— Mas, e a corda? Pensei que a quisesse? — surpreendeu-se Mary.
— Eu só queria ter certeza de que estava aqui — e sorriu. — Apenas isto. A senhorita se incomodaria de trancar a porta e tirar a chave? Obrigado. Eu ficaria muito agradecido se a entregasse ao Superintendente Battle ou ao Inspetor Leach. Com eles, ela estaria mais bem guardada.
Enquanto desciam as escadas, Mary fez esforço para se recobrar. Ao chegarem ao hall principal, ela protestou:
— Mas realmente, eu não estou compreendendo nada...
— Não há necessidade disso — retrucou ele com firmeza. Segurou a mão dela, apertando-a amigavelmente. — Estou muito grato pela sua cooperação.
Acabando de falar, saiu apressadamente pela porta da frente. Mary ficou imaginando se não havia sonhado!
Nevile e Thomas chegaram logo em seguida, e pouco depois o carro voltava trazendo Kay e Ted. Mary Aldin sentiu inveja ao vê-los tão alegres. Estavam rindo e tagarelando. Afinal de contas, por que não? — pensou ela. Camilla Tressilian nada significava para Kay, e todo este acontecimento trágico era demasiado para uma jovem cheia de vida.
Tinham acabado de almoçar quando a polícia chegou. Hurstall parecia um tanto assustado ao anunciar que o Superintendente Battle e o Inspetor Leach estavam aguardando na sala de visitas.
Com bastante cordialidade o Superintendente os cumprimentou.
— Espero não estar incomodando — desculpou-se ele. — Porém preciso esclarecer um ou dois assuntos. Por exemplo: a quem pertence esta luva?
Mostrou uma pequena luva de camurça amarela e, dirigindo-se a Audrey, perguntou:
— E sua, Sra. Strange?
— Não... não é minha.
— Srta. Aldin?
— Acho que não. Não tenho nenhuma desta cor.
— Posso ver? — perguntou Kay estendendo a mão. — Não. Não é minha.
— Por favor, poderia calçá-la?
Kay tentou, mas a luva era muito pequena.
— Srta. Aldin?
Mary, por sua vez, também calçou a luva.
— Também é muito pequena para a senhorita — observou Battle. Então se voltou para Audrey. — Creio que ficará perfeita na senhora. Sua mão é menor do que as das duas outras senhoras presentes.
Audrey apanhou a luva e calçou-a em sua mão direita.
— Ela já disse, Superintendentes que não é dela — repreendeu Nevile com rispidez.
— Bem — explicou Battle. — Nesse caso, talvez ela tenha se enganado ou, até mesmo, se esquecido.
Audrey falou:
— É capaz de ser minha... as luvas são tão parecidas umas com as outras, não são?
— De qualquer forma, ela foi encontrada presa entre as plantas... com a outra luva, debaixo da sua janela, Sra. Strange.
Houve uma pausa. Audrey abriu a boca para falar, mas fechou-a em seguida. Diante do olhar fixo do Superintendente Battle, ela baixou os olhos.
Nevile levantou-se bruscamente.
— Olhe aqui, Superintendente...
— Poderia falar-lhe em particular, Sr. Strange? — perguntou Battle sério.
— Com todo o prazer. Vamos para a biblioteca. — Mostrou o caminho para os dois policiais, e assim que a porta se fechou, falou rispidamente. — Que história ridícula é essa a respeito das luvas debaixo da janela de minha esposa?
— Foram encontradas algumas coisas estranhas nesta casa, Sr. Strange — informou Battle calmamente.
— Estranhas? O que pretende dizer com isto?
— Vou lhe mostrar.
Em obediência a um gesto feito pelo tio, Leach saiu da sala e voltou trazendo um objeto muito esquisito.
Battle explicou:
— Isto, como o senhor pode ver, consiste de uma esfera de aço tirada de uma grade vitoriana... uma pesada esfera de aço. A raquete de tênis foi serrada e a pesada esfera foi presa a seu cabo. Creio que não há dúvida de que foi esta a arma que matou Lady Tressilian.
— Que horror! — exclamou Nevile estremecendo. — Mas como o senhor achou este... este pesadelo?
— A esfera foi limpa e recolocada na grade. O assassino entretanto, se descuidando, não limpou o parafuso, levando-nos a encontrar vestígios de sangue. Da mesma forma, as duas partes da raquete foram novamente fixadas com esparadrapo. Jogaram-na, então, displicentemente no armário debaixo das escadas, onde provavelmente passaria desapercebida entre outros objetos, se não fosse o caso de estarmos procurando por alguma coisa deste tipo.
— O senhor foi muito esperto, Superintendente.
— É apenas uma questão de rotina.
— Suponho que não tenham encontrado impressões digitais?
— Aquela raquete, que pelo peso pude concluir que pertença a Sra. Kay Strange, foi usada por ela e também pelo senhor, pois encontramos nela suas impressões. Entretanto, também há sinais indiscutíveis de que alguém calçando luvas tenha usado a raquete depois de vocês dois. Encontramos apenas mais uma impressão, deixada provavelmente por descuido, no esparadrapo usado para recompor a raquete. Por enquanto não direi de quem é. Antes tenho que tratar de outros detalhes.
Battle se calou por um momento, e pouco depois voltou a falar:
— Quero que se prepare para um choque, Sr. Strange. Primeiro tenho uma pergunta a lhe fazer. Está certo de que a idéia deste encontro aqui foi sua, e não da Sra. Audrey Strange?
— Audrey nada teve a ver com isto, Audrey...
A porta se abriu e Thomas Royde entrou.
— Desculpe-me pela intromissão — disse ele — mas creio que gostaria de participar da conversa.
Nevile olhou-o com uma expressão de aborrecimento.
— Sinto muito, meu velho, mas este é um assunto particular.
— Lamento! Mas não estou me importando com isto. Eu ouvi um nome entende?! O nome de Audrey.
— E que diabo você tem a ver com o nome de Audrey? — indagou Nevile perdendo a calma.
— Bem... e o que você teria a ver com isso? Ainda não disse nada de definitivo a ela, mas vim para cá com a intenção de pedi-la em casamento, o que acho que ela já sabe. E tem mais: pretendo me casar com ela.
O Superintendente Battle pigarreou. Nevile se dirigiu ao policial bruscamente.
— Perdão, Superintendente, esta interrupção...
— Eu não me importo, Sr. Strange. Tenho mais uma coisa a lhe perguntar. Aquele terno azul-marinho que o senhor usou durante o jantar, na noite do crime está com cabelos louros dentro do colarinho e nos ombros. Poderia me explicar como foram parar lá?
— Acho que são meus.
— Não. Não são seus. São cabelos de mulher, e há alguns fios de cabelos ruivo nas mangas.
— Suponho que estes sejam da minha mulher... Kay. Por acaso o senhor está insinuando que os outros são de Audrey?... É... parece-me bastante provável! Lembro-me de que uma noite no terraço prendi minha abotoadura nos seus cabelos.
— Neste caso — murmurou o Inspetor Leach — os cabelos louros deveriam estar na abotoadura.
— Que diabo está querendo insinuar com isto? — gritou Nevile.
— Também há vestígios de pó-de-arroz na parte de dentro do colarinho — observou Battle. — Primavera Naturelle N° 1: um pó-de-arroz caro e de aroma muito agradável. E não adianta querer me convencer que é o senhor quem o usa, Sr. Strange, porque não vou acreditar. A Sra. Kay Strange usa Orchid Sun Kiss, e a Sra. Audrey Strange usa Primavera Naturelle N° 1.
— O que está querendo insinuar com isto? — repetiu Nevile.
Battle se inclinou para a frente.
— Estou dizendo que a Sra. Audrey Strange usou aquele casaco em alguma ocasião. É a única explicação lógica para o fato de termos encontrado o pó nele. O senhor reparou aquela luva que eu mostrei ainda há pouco? É lógico que é dela. Aquela era a mão direita, aqui está a esquerda... — ele tirou uma luva do bolso, colocando-a em cima da mesa. Estava amassada e com manchas cor de ferrugem.
— O que é isto? — na voz de Nevile havia um quê de medo.
— Sangue, Sr. Strange — respondeu Battle com firmeza. — E repare: é a luva da mão esquerda. A Sra. Audrey Strange é canhota. Pude observar assim que a vi sentada à mesa com e xícara de café na mão direita e o cigarro na esquerda. E além do mais, o tinteiro em sua escrivaninha estava do lado esquerdo. Tudo se enquadra perfeitamente: a esfera da grade de seu quarto, as luvas debaixo da sua janela, o cabelo e o pó-de-arroz no paletó. Lady Tressilian foi atingida na têmpora direita, mas a posição da cama não permitiria que alguém ficasse do outro lado. Donde se conclui que golpear Lady Tressilian com a mão direita seria muito difícil, mas para uma pessoa canhota, esta seria a maneira normal.
Nevile riu com desdém.
— O senhor está insinuando que Audrey... Audrey seria capaz de todos esses elaborados preparativos para matar uma velha senhora com quem ela conviveu durante todos esses anos, só para colocar a mão naquele dinheiro?
Battle balançou a cabeça.
— Eu não estou insinuando nada. Sinto muito, Sr. Strange, mas o senhor precisa entender o que está se passando. Este crime foi desde o começo dirigido contra o senhor. Desde que foi abandonada, a Sra. Audrey vem alimentando o desejo de vingança. Acabou se tornando mentalmente desequilibrada. Talvez nunca tenha sido mentalmente muito forte. É possível que ela tenha pensado em matá-lo, mas isto não seria o suficiente. Finalmente teve a idéia de vê-lo enforcado por assassinato. Escolheu uma noite em que sabia que o senhor tinha discutido com Lady Tressilian. Pegou o paletó em seu quarto e usou-o ao golpear a vítima, para que assim ficasse manchado de sangue. Colocou seu taco de golfe no chão para que encontrássemos nele as suas impressões digitais, e espalhou sangue e cabelo na sua parte superior. Persuadiu-o sutilmente a vir aqui na mesma época que ela. O que o salvou foi a única coisa com que ela não podia contar... o fato de Lady Tressilian ter tocado a campainha chamando Barrett, que por acaso o viu sair de casa.
Nevile enterrou o rosto nas mãos.
— Não é verdade! Não pode ser verdade! Audrey nunca guardou rancor contra mim. O senhor compreendeu tudo errado. Ela é a pessoa mais correta, honesta... incapaz de qualquer maldade.
Battle suspirou.
— Não pretendo discutir com o senhor. Queria apenas preveni-lo. Devo pedir à Sra. Strange que me acompanhe. Tenho um mandado de prisão. É melhor arranjar-lhe um advogado.
— É um absurdo! Completamente absurdo!
— O amor se transforma em ódio muito mais facilmente
— Digo que é tudo um erro... um absurdo!
Thomas Royde o interrompeu. Sua voz era calma e agradável:
— Pare de repetir que é um absurdo, Nevile. Procure se controlar. Não vê que a única coisa que pode ajudar Audrey agora é você desistir de todas as suas idéias de cavalheirismo e dizer a verdade?
— A verdade? Você quer dizer... — gaguejou Nevile.
— A verdade sobre Audrey e Adrian — Royde voltou-se para os policiais. — Sabe, Superintendente, o senhor está equivocado. Nevile não abandonou Audrey... e sim ela é que o deixou. Fugiu com o meu irmão Adrian, que logo em seguida morreu em um acidente de automóvel. Nevile se comportou com o máximo de cavalheirismo para com ela. Combinou que se divorciariam, e que ele levaria a culpa.
— Eu não queria que o nome dela fosse arrastado na lama — murmurou Nevile mal-humorado. — Pensei que ninguém soubesse nada a este respeito.
— Adrian me escreveu contando — explicou Thomas. — Isto elimina o motivo, Superintendente. Audrey não tem por que odiar Nevile; pelo contrario, ela só tem razões para lhe ser agradecida. Ele tentou fazer com que ela aceitasse uma mesada, o que Audrey recusou. Naturalmente, quando ele quis que ela viesse e se encontrasse com Kay, ela não teve como recusar.
— O senhor está vendo? — acrescentou aflito Nevile. — Isto elimina o motivo. Thomas tem razão.
Battle continuava imperturbável.
— O motivo é apenas uma parte — disse ele. — Posso ter-me enganado, mas existem os fatos, e todos eles mostram que ela é a culpada.
— Há dois dias, todos os fatos mostravam que era eu o culpado! — afirmou Nevile de maneira significativa.
Battle pareceu um tanto hesitante.
— Bem, isto é verdade. Mas veja bem o que o senhor está me pedindo para acreditar. Está pedindo que eu acredite que existe alguém que detesta vocês dois... alguém que, se a trama armada contra o senhor falhasse, teria preparado uma trilha para nos levar até a Sra. Audrey. Pode pensar em alguém que deteste tanto o senhor quanto a sua antiga esposa?
Mais uma vez, Nevile afundou o rosto nas mãos.
— Da maneira como o senhor fala, tudo parece tão fantástico!
— Mas é fantástico! Tenho que me basear nos fatos. Se a Sra. Strange tiver alguma explicação a dar...
— Por acaso eu tive alguma explicação? — perguntou Nevile.
— Não adianta, Sr. Nevile. Eu tenho que cumprir o meu dever.
Battle levantou-se abruptamente. Ele e Leach foram os primeiros a se retirar, e logo atrás saíram Nevile e Royde. Atravessaram o hall indo para a sala de visitas. Chegando lá, pararam.
Audrey Strange levantou-se e foi até eles. Ela olhou diretamente para Battle, com os lábios entreabertos, quase num sorriso.
— É a mim que o senhor quer, não é?
Battle falou em tom muito profissional:
— Sra. Strange, tenho comigo a sua ordem de prisão pelo assassinato de Lady Tressilian, na última segunda-feira, no dia 12 de setembro. Devo preveni-la de que tudo o que disser será anotado, e poderá ser usado como prova no seu julgamento.
Audrey suspirou. Seu pequeno rosto estava calmo e puro como um camafeu.
— É quase um alívio. Estou contente que... que tudo tenha acabado!
Nevile deu um passo à frente.
— Audrey, não diga nada... nada mesmo.
— Por que não, Nevile? É tudo verdade... e estou tão cansada!
Leach suspirou fundo. Bem, o caso estava resolvido! Coisa de louco, é claro, mas pouparia um bocado de preocupação! Ele ficou imaginando o que teria acontecido com seu tio. O velho parecia ter visto um fantasma. Olhava fixamente para a pobre moça desequilibrada, como se não acreditasse no que estava vendo. Bem, tinha sido um caso interessante — pensou Leach satisfeito.
E então, num anticlímax quase grotesco, Hurstall abriu a porta e anunciou:
— O Sr. MacWhirter.
MacWhirter entrou resoluto, indo direto até Battle.
— O senhor é o policial encarregado do caso de Lady Tressilian?
— Sim, sou eu.
— Tenho uma importante declaração a fazer. Lamento não ter vindo antes, mas só agora percebi a importância do que eu vi, por acaso, na noite da última segunda-feira — ele lançou um rápido olhar em torno da sala. — Será que poderíamos conversar em algum outro lugar?
Battle dirigiu-se a Leach.
— Pode ficar aqui com a Sra. Strange?
— Sim, senhor — respondeu Leach.
Em seguida, ele se inclinou e cochichou alguma coisa no ouvido do tio:
— Venha por aqui. — disse Battle para MacWhirter, conduzindo-o até a biblioteca.
— Bem. E agora? O que significa tudo isto? Meu colega me falou que já o viu antes... no inverno passado?
— Correto — confirmou MacWhirter. — Tentativa de suicídio. Isto faz parte da minha história.
— Prossiga, Sr. MacWhirter.
— No último mês de janeiro tentei me matar, jogando-me do Stark Head. Entretanto, algo me impeliu agora, para que voltasse ao mesmo lugar. Na noite de segunda-feira subi até lá. Olhei para o mar, para Easterhead Bay e em seguida para a minha esquerda. O que significa que olhei na direção desta casa. Com o luar, eu pude ver com muita clareza.
— Continue — ordenou Battle.
— Somente hoje dei-me conta de que aquela noite tinha sido a do crime. — Inclinou-se para a frente. — Vou lhe contar o que vi.
XVI
Na realidade haviam-se passado apenas cinco minutos antes de Battle retornar à sala de visitas, entretanto, para os que lá estavam, pareceu uma eternidade.
Kay tinha, repentinamente, perdido o controle, e gritava para Audrey:
— Sabia que era você. Sempre soube que era você. Tinha certeza de que você estava tramando alguma coisa...
— Por favor, Kay — pediu Mary apressada.
— Cale a boca, Kay, pelo amor de Deus — disse Nevile rispidamente.
Ted Latimer foi até Kay, que começara a chorar.
— Procure se controlar — disse ele carinhosamente.
Virando-se para Nevile, falou com raiva:
— Parece que você não compreende que Kay tem estado sob enorme tensão! Por que não cuida dela um pouco, Strange?
— Eu estou bem — disse Kay.
— Por mim eu a levaria, agora mesmo, para longe deste bando — exclamou Ted.
O Inspetor Leach pigarreou. Como ele tão bem sabia, numa hora dessas, sempre se diziam muitos insultos. O mal é que, normalmente, depois de tudo terminado, sempre continuavam a ser lembrados.
Battle voltou para a sala. Seu rosto estava inexpressivo.
— Quer preparar algumas coisas para levar, Sra. Strange? Receio que o Inspetor Leach terá que acompanhá-la até lá em cima — informou ele.
— Eu também irei — informou Mary Aldin.
Assim que as duas mulheres se retiraram com o Inspetor, Nevile indagou aflito:
— Bem, o que desejava aquele sujeito?
— O Sr. MacWhirter contou uma história muito estranha.
— E vai servir para ajudar Audrey? O senhor continua decidido a prendê-la?
— Já lhe disse, Sr. Strange. Tenho que cumprir o meu dever.
Nevile virou-se. A ansiedade estava apagando-se do seu rosto.
— Creio que é melhor telefonar para. Trelawny.
— Isto pode esperar, Sr. Strange. Primeiro há uma certa experiência que eu quero fazer, por causa da declaração de MacWhirter. Só estou esperando que a Sra. Strange se vá.
Audrey vinha descendo as escadas, e ao seu lado estava o Inspetor Leach. Ainda havia em seu rosto aquela expressão tranqüila, distante e desligada.
Com as mãos estendidas, Nevile foi até ela.
— Audrey...
Ela, que estava com o olhar vazio, falou:
— Está tudo bem, Nevile. Eu não me importo. Não me importo com coisa alguma.
Perto da porta, estava Thomas Royde, como se fosse barrar a saída.
Um sorriso desmaiado apareceu nos lábios de Audrey. .
— O Fiel Thomas — sussurrou ela.
— Se há alguma coisa que eu possa fazer... — murmurou ele.
— Ninguém pode fazer nada — disse ela. E saiu de cabeça erguida.
Lá fora um carro da polícia e o sargento Jones aguardavam. Audrey e Leach entraram no carro.
— Linda saída! — comentou Ted Latimer.
Nevile partiu furioso para cima dele. O Superintendente Battle, habilmente, apartou-os com o corpo, e começou a falar com voz suave:
— Como eu disse, tenho uma experiência a fazer. O Sr. MacWhirter está nos esperando nas barcas. Devemos encontrá-lo daqui a dez minutos. Vamos sair numa lancha a motor. Sendo assim, é melhor que as senhoras se agasalhem bem. Em dez minutos, por favor!
Parecia um diretor de teatro, comandando o elenco no palco. Não tomou o menor conhecimento dos rostos intrigados.

Hora Zero
I
A água estava fria, fazendo com que Kay se aconchegasse mais a seu pequeno casaco de pele.
A lancha deslizava pelo rio abaixo, e mais adiante deu a volta entrando na pequena baía que dividia Gull's Point da massa sombria de Stark Head.
De quando em quando alguém esboçava uma pergunta, mas a cada vez que isso acontecia, o Superintendente Battle levantava sua grande mão, como um aviso de que a hora ainda não havia chegado. Assim, o silêncio só fora quebrado pelo ruído do motor da lancha,
Kay e Ted se encontravam de pé olhando para a água; Nevile estava afundado num canto, com as pernas para fora; Mary Aldin e Thomas Royde estavam sentados na proa. De vez em quando, todos olhavam curiosamente para a figura alta e desinteressada de MacWhirter perto da popa. Ele não olhava para ninguém, permanecendo virado de costas, com os ombros curvados.
Somente quando chegaram debaixo da pesada sombra de Stark Head é que Battle diminuiu a marcha da lancha e começou a falar.
Falava sem constrangimento e o seu tom de voz era acima de tudo ponderado.
— Este foi um caso muito curioso; um dos mais curiosos que eu já vi, e assim, gostaria de dizer-lhes algumas palavras sobre assassinatos em geral. Entretanto, o que vou dizer-lhes não é nada novo. Na realidade ouvi o jovem Daniels K.C. comentar alguma coisa a este respeito, e não ficaria surpreso se ele também já tivesse ouvido de uma outra pessoa... ele tem o costume de agir desta maneira!
— É o seguinte: quando os senhores lêem o relato de um assassinato, ou mesmo um romance baseado num assassinato, normalmente eles começam com o próprio crime. No entanto, está tudo errado. O crime começa muito antes. Ele é o ponto culminante de várias circunstâncias diferentes, todas convergindo para um determinado momento e para um determinado local. As pessoas são reunidas, vindas de todas as partes do mundo por motivos inesperados. O Sr. Royde, por exemplo, veio da Malásia; o Sr. MacWhirter está aqui porque desejava rever o local onde havia tentado o suicídio. O assassinato é o final da história, é a Hora Zero.
Fez-se uma pausa.
— Agora é a Hora Zero — repetiu Battle.
Cinco rostos se viraram em sua direção... apenas cinco, pois MacWhirter não moveu a cabeça. Cinco rostos intrigados.
Mary Aldin foi a primeira a falar:
— O senhor quer dizer que a morte de Lady Tressilian foi o clímax de uma longa série de acontecimentos?
— Não, Srta. Aldin, não estou me referindo ao assassinato de Lady Tressilian. Sua morte foi apenas uma conseqüência do principal objetivo do assassino. Estou falando sobre o assassinato de Audrey Strange.
Podia-se ouvir a respiração ofegante dos presentes. Battle ficou imaginando se, de repente, alguém estaria com medo...
— Este crime foi planejado há muito tempo... provavelmente no último inverno. Foi planejado em seus mínimos detalhes. Tinha um objetivo... um único objetivo: que Audrey Strange fosse pendurada pelo pescoço até morrer... Tudo foi astutamente arquitetado por alguém que se considerava muito esperto. Os assassinos costumam ser muito vaidosos. Primeiro foram todas aquelas provas insatisfatórias contra Nevile Strange, preparadas só para nos enganar. Depois de termos tantas provas forjadas, seria quase impossível considerarmos a hipótese de uma repetição de fatos. Entretanto, se observarmos bem, todas as provas contra Audrey Strange também poderiam ter sido forjadas. A arma tirada da lareira de seu quarto; suas luvas; a luva da mão esquerda salpicada de sangue e escondida entre as plantas debaixo de sua janela; o pó-de-arroz e também alguns fios de cabelo espalhados no colarinho do paletó; suas impressões digitais no esparadrapo, que foi tirado de seu quarto e até mesmo a natureza do golpe de canhota.
— E por último — prosseguiu Battle —, a evidência condenatória da própria Sra. Strange. Não creio que entre vocês exista alguém (exceto aquele que o sabe) que possa acreditar em sua inocência, depois da maneira como se comportou, quando a levamos presa. Naquela hora, ela praticamente admitiu a sua culpa. Talvez eu mesmo não tivesse acreditado em sua inocência se não tivesse tido minha experiência particular... Assim que a vi e a ouvi falar, fiquei muito impressionado, porque conheci uma garota que fez exatamente a mesma coisa, isto é, que se confessou culpada quando na verdade não o era. Naquele momento, Audrey Strange estava me olhando com os olhos daquela garota...
— Todavia, era preciso cumprir o meu dever. Eu sabia disto. Nós policiais temos que nos basear em evidências, e não no que pensamos ou sentimos. Entretanto posso lhes afirmar que, naquele exato momento, rezei por um milagre, porque sabia que só assim aquela pobre moça poderia se salvar. E eu consegui o milagre. Consegui-o na mesma hora! O Sr. MacWhirter, que aqui está, apareceu contando a sua história.
Fez-se uma nova pausa.
— Sr. MacWhirter, poderia repetir o que me contou?
MacWhirter se virou. Ele falou em frases curtas e precisas, cheias de convicção justamente por serem sucintas.
Fez um relato sobre o seu salvamento no penhasco em janeiro último e sobre a sua vontade de voltar ao local. E continuou falando.
— Fui até lá na noite de segunda-feira. Fiquei parado, perdido em meus pensamentos. Isto deve ter sido por volta das onze horas. Olhei em direção daquela casa naquele cabo... Gull's Point, como agora sei que se chama.
Ele fez uma pausa, e depois prosseguiu:
— Havia uma corda pendurada na janela, caindo no mar. Vi um homem subindo por ela...
Passou-se apenas um minuto para que percebessem o que ele havia dito.
Mary exclamou:
— Então foi mesmo um estranho?! Nada teve a ver com nenhum de nós. Foi um ladrão comum!
— Não se precipite — retrucou Battle. — Realmente foi alguém vindo do outro lado do rio, já que veio nadando. No entanto, era preciso que alguém de dentro da casa tivesse deixado a corda pronta para ser usada; donde se concluí que se trata realmente de alguém de Gull's Point.
— Sabemos de alguém que, naquela noite, estava do outro lado do rio — continuou Battle vagarosamente. — Alguém que não foi visto entre às 10:30 hs e 11:15 hs, e que poderia ter nadado ida e volta. Alguém que poderia ter um amigo nesta margem do rio.
— Eh, Sr. Latimer? — acrescentou ele.
Ted deu um passo para trás, gritando numa voz estridente:
— Mas eu não sei nadar! Todo mundo sabe que eu não sei nadar! Kay, diga a eles que eu não sei nadar.
— É claro que Ted não sabe nadar — gritou Kay.
— É verdade? — perguntou o Superintendente gentilmente.
Battle atravessou o barco no momento em que Ted se movia na sua direção. Houve algum movimento desajeito, e ouviu-se um barulho n'água.
— Meu Deus! — exclamou o Superintendente, preocupado. — O Sr. Latimer caiu n'água.
Battle segurou Nevile com as duas mãos, quando este se preparava para pular atrás de Ted.
— Não, não, Sr. Strange. Não há necessidade de se molhar. Dois dos meus homens estão pescando ali naquele bote. — Ele olhou para a água. — O Sr. Latimer estava falando a verdade. Realmente não sabe nadar. Agora está tudo bem. Já conseguiram pegá-lo. Peço desculpas, mas só existe uma maneira para se ter certeza absoluta de que uma pessoa não sabe nadar: é jogá-la n'água e ficar observando. Não gosto de cometer erros! Primeiro eu precisava eliminar o Sr. Latimer. O Sr. Royde tem um braço defeituoso e não poderia ter subido por aquela corda.
A voz de Battle tornou-se felina:
— Isso nos leva ao senhor, não é, Sr. Strange? Um ótimo atleta, alpinista, nadador e tudo o mais. Já foi confirmado que o senhor pegou a barca das 10:30 hs., entretanto, ninguém pode jurar que o tenha visto no Hotel Easterhead antes das 11:15 hs., apesar da sua versão de ter ficado durante este tempo todo à procura do Sr. Latimer.
Com um puxão, Nevile soltou o braço. Jogou a cabeça para trás e riu.
— Está sugerindo que eu atravessei o rio a nado e subi pela corda...
— Que o senhor já tinha deixado pendurada em sua janela — afirmou Battle.
— Matado Lady Tressilian e nadado de volta? Por que eu faria uma coisa tão fantástica? E quem preparou todas aquelas provas contra mim? Suponho que tenha sido eu mesmo!
— Exatamente — atestou Battle. — E a idéia não foi má.
— E por que eu haveria de querer matar Camilla Tressilian?
— O senhor não queria! Queria, no entanto, enforcar a mulher que o deixara por outro homem. O senhor é um tanto perturbado mentalmente. E assim o é desde criança... investiguei aquele velho caso do arco e flecha. Qualquer pessoa que o ofenda deve ser castigada, e a morte não era o suficiente para Audrey, a sua Audrey a quem amava tanto. Oh, sim! O senhor a amava antes de seu amor se transformar em ódio. Precisava pensar em algum tipo especial de morte: uma morte lenta e sofrida. E quando o senhor decidiu como ela seria, o fato de que seu plano incluiria o assassinato de uma mulher que tinha sido uma espécie de mãe para o senhor, não o preocupou nem um pouco...
Quando Nevile falou, sua voz parecia bastante calma.
— É tudo mentira. Tudo mentira. E eu não sou louco. Não sou louco.
Battle falou com desdém:
— Quando foi embora, deixando-o por outro homem, ela o atingiu profundamente, não foi? Feriu o seu orgulho. Era um absurdo pensar que ela seria capaz de abandonar uma pessoa como o senhor. Fingindo para o mundo todo que o senhor a havia abandonado, conseguiu salvar o seu orgulho. E para reforçar esta crença, ainda se casou com outra mulher. No entanto, durante este tempo todo o senhor esteve planejando o que faria contra Audrey. Não pôde pensar em nada pior do que vê-la enforcada. Realmente foi uma idéia bastante boa! Pena que não tenha tido cabeça para executá-la melhor!
Nevile mexeu os ombros, num movimento esquisito. Battle continuou:
— Infantil... toda aquela história do taco de golfe! Todas aquelas pistas grosseiras apontando para a sua pessoa. Audrey deveria saber o que o senhor estava tramando. Como ela deve ter rido ao pensar que eu não suspeitava do senhor. Vocês assassinos são uns sujeitos engraçados. Tão convencidos! Sempre achando que são muito espertos e habilidosos, quando, na verdade, são lamentavelmente infantis...
Um estranho e grotesco grito partiu de Nevile.
— Foi um plano excelente... realmente foi! O senhor nunca teria descoberto. Nunca! Se não fosse a interferência deste pretensioso e arrogante escocês idiota. Eu estudei cada detalhe... cada detalhe. Não pude evitar o que aconteceu. Como poderia saber que Royde tinha conhecimento da verdade a respeito de Audrey e Adrian? Audrey e Adrian... Maldita Audrey... Ela vai ser enforcada... o senhor tem que enforcá-la... quero que ela morra sentindo muito medo... que morra... morra. Eu a odeio. Quero que ela morra.
Sua voz alta e lamurienta se calou. Nevile se afundou em um canto e começou a chorar baixinho.
— Oh! meu Deus — disse Mary Aldin, que estava muito pálida.
Battle falou delicadamente:
— Sinto muito, mas tive que pressioná-lo. Havia poucas provas.
Nevile continuava a chorar. Seu choro parecia o de uma criança.
— Quero que ela seja enforcada. Quero que ela seja enforcada...
Mary estremeceu e se virou para Thomas Royde, que segurou suas mãos.
II
— Eu sempre senti medo — disse Audrey.
Audrey estava sentada no terraço, perto do Superintendente Battle, o qual havia retomado suas férias e se encontrava agora em Gull's Point na condição de amigo.
— Sempre tive medo... o tempo todo — repetiu Audrey.
Balançando a cabeça, Battle comentou:
— No primeiro momento em que a vi, soube que estava morta de medo. A senhora tinha aquele mesmo jeito apagado e reservado que as pessoas possuem quando estão reprimindo alguma emoção muito forte. Poderia ser amor ou ódio, mas na verdade, era medo, não era? Audrey concordou com a cabeça.
— Comecei a ter medo de Nevile pouco depois que nos casamos. Mas, sabe o que era terrível em tudo isso? É que eu não sabia o porquê. Comecei a pensar que estava ficando louca.
— Não, não era a senhora.
— Quando me casei com Nevile ele parecia tão sadio e normal, sempre maravilhosamente bem-humorado e gentil.
— Interessante — comentou Battle. — Ele desempenhava o papel de um bom desportista. É por isto que conseguia manter tão bem a calma nos jogos de tênis. Para ele, o papel de bom desportista era mais importante do que ganhar as partidas. Porém isto o mantinha sob constante tensão, o que sempre acontece quando se vive representando um papel. E assim, ele acabou se destruindo interiormente.
— O interior — murmurou Audrey com um tremor. — Sempre o interior. Nada em que se possa tocar. Às vezes havia uma palavra ou um olhar. Mas logo em seguida, eu ficava pensando que era tudo minha imaginação... Algo esquisito. E 2depois, como eu já disse, comecei a achar que eu é que deveria ser desequilibrada. E assim, continuei a me sentir cada vez mais amedrontada... um medo irracional que deixa qualquer um doente!
— Disse a mim mesma que estava ficando louca — continuou Audrey. — Mas eu não podia evitar o que estava acontecendo. Senti que faria qualquer coisa no mundo para poder fugir. Foi aí que Adrian apareceu dizendo que me amava, e eu achei que seria ótimo fugir com ele, porque assim eu ficaria a salvo... — ela fez uma pausa. — Sabe o que aconteceu? Fui ao encontro de Adrian... ele nunca apareceu... ele morreu... tive a sensação de que de alguma forma Nevile havia preparado aquilo...
— Talvez tenha — observou Battle.
Audrey olhou-o alarmada.
— Ah, o senhor acha?
— Nós nunca saberemos. Acidentes de carro podem ser preparados. Contudo não fique se afligindo com esta idéia, Sra. Strange. Provavelmente foi apenas um acidente.
— Eu... eu estava arrasada. Fui então para a Reitoria: a casa da mãe de Adrian. Íamos escrever-lhe contando tudo sobre nós, mas já que ela não chegara a saber, resolvi não lhe contar para evitar o seu sofrimento. Nevile foi até lá, logo em seguida. Foi muito amável e gentil, mas durante o tempo todo em que conversamos eu estava morrendo de medo. Ele disse que não havia necessidade de ninguém saber sabre Adrian, e que eu poderia me divorciar dele alegando os motivos que ele me indicaria mais tarde. Disse também que iria se casar novamente, logo em seguida. Fiquei muito grata por tudo aquilo. Sabia que ele achava Kay atraente. Eu esperava que tudo desse certo e que pudesse me livrar daquela estranha obsessão, pois continuava a pensar que era eu que não estava bem.
— Na verdade — prosseguiu Audrey —, nunca consegui me livrar completamente daquela sensação. Sempre achei que não escaparia. Então, certo dia encontrei Nevile no parque e ele me explicou que gostaria muito de que eu e Kay nos tornássemos amigas, e sugeriu que viéssemos todos para cá em setembro. Eu não pude recusar. Como poderia recusar, depois de tudo de bom que ele havia feito por mim?
— "Quer entrar em minha casa? Disse a aranha para a mosca" — observou Battle.
Audrey estremeceu.
— Sim, foi exatamente isso — confirmou ela.
— Ele foi muito esperto a este respeito — comentou Battle. — Protestou tão alto dizendo que a idéia tinha sido dele, que todos ficaram com a impressão de que não tinha sido.
— E então cheguei aqui... e foi como um pesadelo — disse Audrey. — Eu sabia que algo horrível iria acontecer... sabia que Nevile estava tramando alguma coisa... alguma coisa contra mim. Porém eu não sabia o quê. Acredite, eu quase fiquei louca de verdade. Estava paralisada de medo, como quando se está sonhando que algo vai acontecer e não se consegue se mover...
— Sempre achei — comentou o Superintendente — que gostaria de ver uma cobra hipnotizar um pássaro, para não deixá-lo voar. Agora, no entanto, eu já não tenho certeza se gostaria.
Audrey continuou falando:
— Mesmo quando Lady Tressilian foi assassinada, eu não compreendi o que aquilo significava. Estava confusa. Não suspeitei de Nevile. Sabia que ele não dava importância a dinheiro, e seria um absurdo pensar que ele a havia matado para herdar 50.000 libras.
— Pensei sem parar no Sr. Treves e na história que ele havia contado — disse ela. — Mesmo assim, não associei o Nevile ao caso. O Sr. Treves mencionara uma peculiaridade física que faria com que ele reconhecesse a criança da história, mesmo depois de passado tanto tempo. Eu tenho uma cicatriz na orelha, mas não pude notar nada de diferente em mais ninguém da casa.
Battle observou:
— A Srta. Aldin tem uma mecha branca. Thomas Royde tem um braço defeituoso, que poderia não ter sido apenas o resultado de um terremoto. O Sr. Ted Latimer tem um formato de cabeça bastante estranho. E Nevile Strange...
Ele se calou.
— Nevile não tem nenhuma peculiaridade física — afirmou Audrey.
— Oh, sim, tem. O dedo mínimo de sua mão esquerda é mais curto do que o da mão direita. Isto é muito raro, Sra. Strange... muito raro.
— Então era isto?
— Sim.
— E Nevile pendurou aquele cartaz na porta do elevador?
— Sim. Foi até lá e voltou rapidamente, enquanto Royde e Latimer serviam bebidas para o velho. Um golpe inteligente e simples. Tenho minhas dúvidas se conseguiríamos provar que aquilo foi um assassinato.
Mais uma vez Audrey estremeceu.
— Calma, calma — pediu Battle. — Agora tudo já acabou, minha querida. Continue falando.
— O senhor é muito esperto... há anos que não falo tanto!
— É! E este foi o seu erro. Quando foi que percebeu o jogo do Sr. Nevile?
— Eu não sei exatamente. Percebi tudo de repente. Ele havia sido inocentado, deixando assim nós todos como suspeitos. E então, subitamente, eu o vi olhando para mim... um olhar de satisfação maligna. E foi aí que compreendi! Foi então que...
Ela parou repentinamente.
— Foi então que o quê?
— Foi então que pensei que uma saída rápida seria o melhor — Audrey falou vagarosamente.
O Superintendente Battle balançou a cabeça.
— Nunca desista. Este é o meu lema.
— Oh, o senhor tem razão. Contudo, não sabe o que o medo pode fazer a uma pessoa. Fica-se paralisada... não se consegue pensar... não se pode planejar nada... fica-se apenas esperando que uma coisa terrível aconteça. E então quando acontece. — Audrey deu um sorriso rápido e inesperado. — O senhor ficaria surpreso com o alívio que se sente. Nada mais de esperas ou de medo. Acho que o senhor vai pensar que eu sou maluca, se eu lhe contar que quando veio me prender por assassinato eu não me importei nem um pouco. Nevile tinha conseguido o que queria, e agora estava tudo terminado. Senti-me tão segura indo embora em companhia do Inspetor Leach.
— Em parte, foi por este motivo que fizemos aquilo — explicou Battle. — Queria que a senhora ficasse fora do alcance daquele louco. E, além disso, se eu pretendia desmascará-lo era preciso poder contar com o choque da sua reação. E ele achando que seu plano dera certo, o choque seria muito maior.
— Se Nevile não tivesse perdido a calma, haveria alguma prova contra ele?
— Pouca coisa. Haveria o relato de MacWhirter sobre o homem que ele vira, ao luar, subindo pela corda. E para confirmar esta história, havia a própria corda, guardada no sótão, ainda ligeiramente úmida. Como sabe, estava chovendo naquela noite.
Calou-se e ficou encarando Audrey como se esperasse que ela fosse dizer alguma coisa. Já que ela permaneceu calada aparentando apenas interesse, ele prosseguiu:
— Havia também o terno listrado. Naquela noite, ele tinha se despido no escuro, na parte rochosa da margem da Easterhead Bay, enfiando o terno em um vão entre as pedras. Por acaso ele colocou o terno em cima de um pedaço de peixe deteriorado, que tinha sido levado pela maré dois dias antes. Com isto, o paletó ficou com uma mancha no ombro e com um cheiro muito forte. Descobri que houve uns rumores sobre algum problema com os esgotos no hotel. Foi o próprio Nevile quem se encarregou de espalhar o boato. Vestiu a capa de chuva por cima do terno, mas o cheiro era muito ativo. Mais tarde, viu-se atrapalhado com o terno e, na primeira oportunidade, levou-o para a lavanderia onde, muito tolamente, não deu o seu nome verdadeiro. Escolheu um nome a esmo, na realidade um que ele tinha visto no registro do hotel. E assim o terno foi parar nas mãos de seu amigo, que sendo inteligente, associou-o com o homem subindo pela corda. Você pisa num peixe deteriorado, mas não põe o ombro nele a não ser que tenha tirado a roupa para se banhar à noite; e ninguém iria se banhar por prazer numa noite chuvosa de setembro. O Sr. MacWhirter encaixou todas as peças. Ele é um homem muito engenhoso.
— Mais do que engenhoso — opinou Audrey.
— M-m, bem, talvez. Quer informações sobre ele? Posso lhe contar o que sei a seu respeito.
Audrey ouviu com atenção. Battle encontrou nela uma boa ouvinte.
— Devo muito a ele e ao senhor — disse ela.
— A senhora não me deve tanto assim — observou Battle. — Se não tivesse sido tão tolo, teria logo percebido a questão da campainha.
— Campainha? Que campainha?
— A campainha do quarto de Lady Tressilian. Sempre achei que havia algo de errado com ela. Quase decifrei tudo quando, ao descer as escadas, vi uma dessas varas usadas para abrir janelas.
Audrey ainda parecia confusa.
— Esta era toda a questão com a campainha, entende... dar a Nevile um alibi. Lady Tressilian não se lembrava por que tocara a campainha... é claro que não poderia se lembrar, pois não a tinha tocado! Fora Nevile que, com aquela vara comprida, tocara a campainha no corredor, encostando nos fios que ficavam ao longo do teto. Foi por isto que Barrett, ao descer, viu o Sr. Nevile Strange descendo as escadas e saindo, e encontrou Lady Tressilian viva e em perfeita saúde. Todo o caso da empregada era bastante suspeito. De que adiantaria dopá-la para um crime que iria ser cometido antes da meia-noite? Haveria poucas chances de que ela já estivesse convenientemente adormecida até então. Contudo, ficaria assim determinado que o assassinato fora um trabalho interno, dando algum tempo para Nevile desempenhar seu papel de principal suspeito. Em seguida Barrett dava seu testemunho e Nevile seria tão triunfalmente inocentado que ninguém se preocuparia em investigar, mais minuciosamente, a hora exata em que ele havia chegado ao hotel. Sabemos que ele não tinha atravessado de barca, e que nenhum barco fora roubado. Restava ainda a possibilidade de ter nadado. Ele é um excelente nadador, mas mesmo assim o tempo parecia pouco. Subindo pela corda que ele mesmo havia deixado pendurada, entrou em seu quarto deixando no chão uma considerável quantidade de água, como pudemos notar, mas infelizmente sem perceber o indício. Vestiu o terno azul-marinho, foi até o quarto de Lady Tressilian (não vamos entrar em detalhes aqui), o que não teria levado mais do que alguns minutos, uma vez que havia deixado previamente preparada a esfera de aço. Em seguida voltou ao seu quarto, tirou a roupa, desceu pela corda e voltou para Easterhead.
— E se Kay entrasse no quarto?
— Pode estar certa de que ela havia sido suavemente dopada. Contaram-me que logo após o jantar ela começou a bocejar. Além disso, ele tinha providenciado uma discussão com ela, para que assim ela trancasse a porta, impedindo a sua entrada.
— Estou tentando me lembrar se eu notei a falta da esfera na grade da lareira. Acho que não. Quando foi que ele a recolocou no lugar?
— Na manhã seguinte, quando a confusão começou. Depois de voltar no carro de Ted Latimer, teve toda a noite para se livrar das pistas, ajeitar tudo, reparar a raquete de tênis, etc... A propósito, ele matou a velha senhora com um golpe de esquerda. Foi por este motivo que se teve a impressão de que o crime havia sido cometido por uma pessoa canhota. Lembre-se de que, no tênis, o golpe de esquerda sempre foi o ponto forte de Nevile!
— Chega... chega... — Audrey levantou as mãos. — Não suporto mais.
Ele sorriu para ela.
— De qualquer maneira lhe fez bem desabafar. Posso ser impertinente e lhe dar um conselho, Sra. Strange?
— Sim, por favor.
— A senhora viveu durante oito anos com um criminoso lunático, e isto é o bastante para acabar com os nervos de qualquer mulher. Mas agora é preciso acordar, Sra. Strange, Não precisa mais ter medo. A senhora deve se convencer disto.
Audrey sorriu. A expressão gélida desaparecera de seu rosto. Neste momento ele era doce, um tanto tímido, mas confiante. Seus olhos estavam cheios de gratidão.
— Qual será a melhor maneira de se fazer isto?
O Superintendente Battle refletiu.
— Pense na coisa mais difícil que puder imaginar, e então comece a realizá-la imediatamente — aconselhou Battle.
III
Andrew MacWhirter estava fazendo as malas. Guardou cuidadosamente três camisas que havia se lembrado de apanhar na lavanderia. Dois ternos deixados por dois MacWhirters diferentes tinha sido demais para a balconista.
Uma batida na porta e ele gritou:
— Entre.
— Audrey entrou.
— Vim agradecer-lhe... está fazendo as malas?
— Sim. Vou-me embora hoje à noite. O navio parte depois de amanhã.
— Para a América do Sul?
— Para o Chile.
— Deixe que eu faço a mala para você — disse ela.
MacWhirter protestou, mas ela não lhe deu ouvidos. Ele a observava enquanto trabalhava ágil e metodicamente.
— Pronto — falou ela ao terminar.
— Você fez isso muito bem — observou MacWhirter.
Ficaram em silêncio. Foi Audrey quem falou.
— Você salvou minha vida. Se não tivesse visto o que viu...
Ela interrompeu o que estava dizendo, para logo depois perguntar-lhe.
— Você compreendeu de imediato, naquela noite no penhasco, quando você... você me impediu de pular... quando disse "Vá para casa, não deixarei que seja enforcada", foi naquele instante que você percebeu que tinha alguma prova importante?
— Não exatamente — respondeu MacWhirter. — Eu ainda precisava refletir.
— Então como pôde dizer o que disse?
MacWhirter sempre ficava aborrecido quando tinha que explicar a enorme simplicidade do curso de seu pensamento.
— Era exatamente aquilo o que eu queria dizer... que pretendia impedir que você fosse enforcada.
Audrey ficou ruborizada.
— E se eu fosse culpada.
— Isto não teria feito nenhuma diferença.
— Então você achava que eu era culpada?
— Eu não pensei muito no assunto. Estava inclinado a acreditar que você era inocente. Mas mesmo que não o fosse eu teria feito tudo da mesma maneira que fiz.
— Foi então naquela hora que você se lembrou do homem da corda?
MacWhirter permaneceu em silêncio por alguns minutos. Depois pigarreou.
— Suponho que é melhor que você saiba logo a verdade:eu não vi nenhum homem subindo por aquela corda. Na realidade eu não poderia ter visto, pois estive em Stark Head na noite de domingo e não na segunda-feira. Deduzi o que deveria ter acontecido pelas evidências do terno, e as minhas suposições foram confirmadas ao encontrar no sótão a corda ainda úmida.
De vermelha Audrey ficara branca. Ela perguntou incrédula:
— Toda a sua história era uma mentira?
— A polícia não teria dado crédito a uma simples dedução. Eu precisava afirmar que tinha visto o que acontecera.
— Mas... mas você poderia ter tido que jurar no tribunal.
— Eu sei.
— E você o teria feito?
— Sim.
Audrey gritou:
— E é você... você, o homem que perdeu o emprego e chegou ao ponto de se jogar de um penhasco por não querer adulterar a verdade!
— Eu tenho um grande respeito pela verdade. Entretanto, descobri que existem coisas mais importantes.
— Como o quê?
— Você — afirmou MacWhirter.
Audrey baixou os olhos. Ele pigarreou, embaraçado.
— Não precisa achar que me deve algum favor ou coisa parecida. Amanhã você não mais ouvirá falar em mim. Uma vez que Nevile confessou, a polícia não mais precisará do meu testemunho. Seja como for, ouvi dizer que ele está tão mal, que talvez não viva para comparecer ao julgamento.
— É melhor assim — comentou Audrey.
— Você já gostou muito dele, não é mesmo?
— Gostei do homem que eu pensei que ele fosse.
MacWhirter balançou a cabeça.
— Acho que todos nós já sentimos isto alguma vez na vida.
Ele continuou falando:
— Tudo terminou bem. O Superintendente Battle pôde conseguir o que queria usando a minha história...
Audrey o interrompeu, dizendo:
— Sim, ele usou realmente a sua história para conseguir o que queria. Entretanto não acredito que você tenha conseguido enganá-lo. Ele deliberadamente fechou os olhos.
— Por que está dizendo isto?
— Quando estávamos conversando, ele mencionou que tinha sido uma sorte você ter visto o que viu ao luar. Logo adiante, acrescentou algo sobre ter sido uma noite chuvosa.
MacWhirter ficou perplexo.
— Ele está certo. Duvido muito que na noite de segunda-feira eu pudesse ter visto qualquer coisa.
— Não tem importância — afirmou Audrey. — Ele sabia que o que você alegou ter visto era o que realmente tinha acontecido. Há, entretanto, uma explicação para o fato de ter provocado Nevile até desmascará-lo: no momento em que Thomas contou sobre mim e Adrian, ele suspeitou de Nevile. Sabia que tinha se fixado na pessoa errada, estando porém certo a respeito da natureza do crime. O que precisava era de alguma evidência para ser usada contra Nevile. Ele queria, como ele mesmo disse, um milagre... e você foi a resposta às preces do Superintendente Battle.
— Isto é uma coisa muito esquisita para ele dizer — falou MacWhirter secamente.
— Como você está vendo, você é um milagre. O meu milagre especial.
MacWhirter respondeu de modo grave:
— Eu não gostaria que você sentisse que me deve algum favor. Vou sair de sua vida...
— Isto é preciso? — indagou Audrey.
Ele a encarou, fazendo com que ficasse ruborizada.
— Por que não me leva com você? — pediu ela.
— Você não sabe o que está dizendo!
— Sim, sei. Estou fazendo algo muito difícil... mas algo que para mim tem mais importância do que a própria vida ou a morte. Sei que temos pouco tempo. A propósito, sou muito convencional e gostaria de me casar antes de partirmos.
— Naturalmente — disse MacWhirter, profundamente chocado. — Você não imaginou que eu fosse capaz de lhe propor uma coisa diferente.
— Estou certa de que não — assegurou Audrey.
— Eu não sou o seu tipo — observou MacWhirter. — Pensei que se casaria com aquele sujeito calado, que gosta de você há tanto tempo.
— Thomas? Querido e fiel Thomas! Ele é fiel demais. Manteve-se leal à imagem da garota que amou anos atrás. Porém a pessoa de quem ele realmente gosta é Mary Aldin, apesar dele ainda não saber disto.
MacWhirter aproximou-se dela, e falou gravemente:
— Você está falando sério?
— Sim. Quero ficar com você para sempre e nunca mais sair do seu lado. Se for embora, jamais encontrarei alguém como você, e meus dias futuros serão muito tristes.
MacWhirter respirou fundo. Pegou a carteira e examinou cuidadosamente o seu conteúdo.
— Uma licença especial de casamento custa caro. Amanhã cedo vou ter que ir ao banco.
— Eu poderia lhe emprestar algum dinheiro — murmurou Audrey.
— Você não vai fazer nada disto. Quando me casar, eu pago a licença de casamento. Compreendeu?
— Não precisa ficar tão sério — disse Audrey suavemente.
Chegando mais perto dela, MacWhirter falou carinhosamente:
— Na última vez em que a tive em meus braços, você parecia um pássaro, debatendo-se para fugir. Agora nunca mais a deixarei fugir...
















http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.
Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

??

??

??

??

Coleção Saraiva
As Tribulações de um Chinês na China
Júlio Verne
Resumo
O riquíssimo chinês Kin-Fo encontra-se subitamente arruinado. A vida, que até então lhe parecia insípida, torna-se insuportável. Ele faz um seguro de vida em favor da noiva Lé-u e do filósofo Wang, seu mentor e amigo a quem ele pede para matá-lo no prazo de dois meses, e entregando-lhe uma carta que o inocente do assassinato. Antes do prazo, Kin-Fo recupera sua fortuna. E não há mais nenhuma razão para ele renunciar à vida. Mas Wang desaparece com a carta e ele não é homem de quebrar uma promessa! Assim Kin-Fo é condenado à morte aos seus próprios cuidados! A solução é encontrar Wang. E Kin-Fo embarca em viagens em torno da China, na esperança de evitar ser assassinado antes de o contrato expirar.


Disponibilização: Marisa Helena, Digitalização: Marina, Revisão: Eudna, Formatação: Poiesis (Marília)







Título da edição francesa:
LES TRIBULATIONS D'UN CHINOIS EN CHINE
Tradução de AUGUSTO SOUSA
SARAIVA S. A. - LIVREIROS EDITORES - S. PAULO




Capítulo I
EM QUE A NATUREZA E NACIONALIDADE DOS PERSONAGENS POUCO A POUCO SE DESVELA

— Todavia, é forçoso confessar que a vida tem coisas boas! — exclamou um dos convivas, reclinado no braço da sua poltrona de espaldar de mármore, saboreando uma raiz de nenúfar polvilhada de açúcar.
— E também coisas más! — respondeu entre dois acessos de tosse um outro, a quem a aresta de uma delicada barbatana de tubarão ia quase engasgando.
— Sejamos filósofos! — interveio então um personagem mais idoso, cujo nariz suportava um vasto par de óculos de enormes vidros em armação de madeira. — De um momento para outro corremos o risco de ficar engasgados, e daí a pouco tudo passa como passam os goles suaves deste néctar. Assim é a vida!
E dizendo isso, o bem humorado epicurista enxugou um copo de excelente vinho tépido cujos finos vapores subiam lentamente de uma chaleira de metal.
— Na minha opinião — acrescentou um quarto conviva, — a existência afigura-se perfeitamente aceitável desde que nada se faça e disponhamos dos meios que nos permitam nada fazer!
— Engano! — replicou um quinto convidado. — A felicidade reside no estudo e no trabalho. Adquirir a maior soma possível de conhecimento é a melhor tentativa para ser feliz!
— Para chegar enfim à conclusão de que não se sabe nada!
— Não será esse o princípio da sabedoria?
— E qual é o fim?
— A sabedoria não tem fim! — respondeu filosòficamente o homem dos óculos. — Possuir o senso comum, eis a suprema satisfação!
Foi então que o primeiro conviva interpelou diretamente o anfitrião, que ocupava a cabeceira da mesa, ou seja o pior lugar, de acordo com as leis da cortesia. Indiferente e distraído, este ouvia em silêncio aquela dissertação inter pocula.
— Vamos a saber! Que pensa o nosso hóspede destas ociosas divagações? Que lhe parece a vida neste momento? Boa ou má?
O anfitrião, que mascava negligentemente algumas pevides de melancia, limitou-se, como única resposta, a distender desdenhosamente os lábios, como pessoa a quem nada interessasse.
— Pfff! — sibilou.
Esta é a atitude especial dos indiferentes. Diz tudo e não diz nada. Pertence a todas as línguas e devia figurar em todos os dicionários do globo. Dir-se-ia uma "careta" articulada.
Os cinco convidados do enfastiado homem deflagraram então os seus argumentos, cada qual em favor da sua tese. Queriam a opinião dele, que a princípio recusou manifestar-se, terminando por afirmar que a vida não é propriamente boa nem má. No seu entender, era apenas uma invenção insignificante e pouco divertida!
— Aí têm o nosso amigo!
— E fala assim, ele a quem sequer uma pétala de rosa perturbou jamais o bem-estar!
— Que é moço!
— Moço e cheio de saúde!
— Cheio de saúde e rico!
— Muito rico!
— Riquíssimo!
— Talvez rico demais!
Essas exclamações cruzavam-se como os petardos de um fogo de artifício, sem sequer atraírem um sorriso à impassível fisionomia do anfitrião, que se limitava a encolher ligeiramente os ombros como quem jamais se dera ao trabalho de folhear, por uma hora que fosse, o livro da própria vida, ou ao menos cortar-lhe as primeiras páginas.
Todavia, esse indiferente contava quando muito trinta e um anos, gozava de perfeita saúde, possuía uma grande fortuna, não era um espírito inculto, sua inteligência ultrapassava a média comum; dispunha, enfim, de tudo o que falta a muitos outros para ser um dos felizardos deste mundo.
E por que o não era? Por quê?
A voz grave do filósofo destacou-se então, falando como um corifeu de coro antigo:
— Amigo — disse ele, — se não te consideras feliz neste mundo, é porque até agora a tua felicidade tem sido apenas negativa. Dá-se com a felicidade o mesmo que com a saúde: para bem a apreciarmos necessitamos, uma vez ou outra, ficar privados dela. Ora, tu nunca estiveste doente... Quero dizer: nunca foste infeliz! É isso que te falta na vida. Como pode apreciar a felicidade aquele a quem jamais aflorou o sopro da desgraça?
Após essa observação cheia de sabedoria, o filósofo erguendo a taça espumante do mais fino Champanha, exclamou:
— Faço votos para que uma pouca de sombra venha toldar o sol do nosso hóspede, e algumas contrariedades lhe dificultem a vida!
E esgotou de um trago a taça cheia.
O anfitrião teve um gesto de aquiescência e recaiu na sua apatia habitual.
Onde se trocavam essas palavras? Em alguma sala de jantar européia, em Paris, em Londres, em Viena, em São Petersburgo? Discorriam estes seis comensais no salão de algum restaurante do velho ou do novo mundo? Que pessoas eram essas, desenvolvendo semelhante tema em meio a um banquete, sem terem bebido mais que o razoável?
Franceses não eram; com certeza, pois não se falara de política.
Os seis convivas achavam-se instalados numa sala de tamanho regular, luxuosamente mobiliada. Através dos caixilhos de vidros azuis ou alaranjados, coavam-se àquela hora os últimos raios do sol. Para além das janelas a brisa da tarde agitava grinaldas de flores naturais ou artificiais, e algumas lanternas multicores misturavam os seus pálidos reflexos à luz agonizante da tarde. Por sobre o vão das janelas ostentavam-se caprichosos arabescos, enriquecidos de esculturas variadas, representando belezas do céu e da terra, animais ou vegetais de uma fauna e de uma flora imaginárias.
Nas paredes da sala, forradas de seda, brilhavam largos espelhos de dupla faceta. No teto, uma punha agitando as asas de percal colorido, amenizava a temperatura ambiente.
A mesa era um vasto quadrilátero de laça preta, cuja superfície nua refletia as numerosas peças de prata e porcelana como se fosse uma lâmina do mais puro cristal. Não havia guardanapos, mas simples quadrados de papel ornados de figuras, dispostos ao lado de cada conviva em quantidade suficiente. Em redor da mesa estavam dispostas cadeiras com espaldar de mármore, bastante preferíveis, naquela latitude, aos encostos almofadados do mobiliário moderno.
O serviço era feito por graciosas jovens, cujos negros cabelos se entremeavam de lírios e crisântemos, com braceletes de ouro e de jade envolvendo-lhes ricamente os braços. Alegres e sorridentes serviam à mesa apenas com uma das mãos, enquanto com a outra agitavam elegantemente um grande leque que renovava as correntes de ar deslocadas pela punka do teto.
O banquete nada deixara a desejar, e seria impossível imaginar algo de mais delicado que aquela cozinha ao mesmo tempo douta e escrupulosa. O Bignon local, sabendo que trabalhava para entendedores, esmerara-se na confecção dos cento e cinqüenta pratos que compunham a lista do jantar.
No começo e como entradas figuravam doces, caviar, gafanhotos fritos, frutas secas e ostras de Ning-Po. Seguiram-se depois, a curtos intervalos, ovos escaldados de pata, de pomba e de pavoncino, ninhos de andorinha com ovos mexidos, guisados de ging-seng, guelras de esturjão em compota, nervos de baleia em molho açucarado, cadoses de água doce, caranguejos guisados, moelas de pardal e olhos de carneiro com um dente de alho, raviólis em leite de caroços de damasco, holotúrias à marinheira, rebentos de bambu em calda, salada de raízes com molho doce, etc. Ananases de Singapura, amendoim torrado, amêndoas salgadas, mangas saborosas, frutas do long-yen, de branca polpa, e do li-tchi de polpa amarelada, castanhas da Índia, laranjas de Cantão cristalizadas, constituíam a parte final de um banquete que já durava três horas, largamente regado a cerveja, champanha, vinho de Chao-Chigne, e de cuja sábia organização o inevitável arroz, levado à boca dos convivas com a ajuda dos pausinhos, ia ser o coroamento.
Chegou por fim a ocasião em que as gentis criadas trouxeram, não essas tigelinhas à moda européia contendo um líquido perfumado, mas guardanapos embebidos em água quente, que cada um dos convidados passa pelo rosto com a maior satisfação.
Mas isso era apenas um entreato do banquete, uma hora de folga que ia ser preenchida pela música.
Com efeito, um grupo de cantoras e músicos deu entrada na sala. As cantoras eram jovens, bonitas, de atitudes modestas e discretas. Mas que música e que métodos de cantar! Miados e cacarejos, sem medida e sem tonalidade, subindo em notas agudas até ao extremo limite de percepção dos órgãos auditivos. Os instrumentos, violinos cujas cordas se enredavam nos fios do arco, violões cobertos de pele de serpente, clarinetas esganiçadas, harmônicas parecendo pianinhos portáteis, eram dignos das canções e das cantoras, que eles acompanhavam com grande estardalhaço.
O regente da tumultuosa orquestra entregara ao entrar o programa do concerto, e a um gesto do anfitrião que lhe dera carta branca, os seus músicos romperam a tocar o Raminho de Dez Flores, peça então muito em moda e que fazia delirar a alta sociedade.
Em seguida o grupo cantante e executante, prévia e regiamente pago, retirou-se sob entusiásticos aplausos de que ia fazer ainda importante colheita nas salas vizinhas.
Os seis convivas deixaram então os seus lugares, mas só para passarem a outra mesa, o que fizeram depois de grandes vênias e cerimônias de toda a espécie.
Nesta segunda mesa cada qual encontrou uma pequena taça com tampa, adornada com o retrato de Bôdhidharama, o célebre monge budista, de pé na sua lendária jangada. Todos receberam assim uma pitada de chá que puseram de infusão, sem açúcar, na água a ferver que havia na taça, e que beberam quase imediatamente.
Que chá! Não havia receio de que a casa Gibb-Gibb & Cia., que o fornecera, o tivesse falsificado com a mistura indecorosa de folhas estrangeiras, ou que ele tivesse sofrido já uma primeira infusão e servisse apenas para proteger os tapetes da poeira das varreduras, ou que um preparador incompetente o tivesse tingido de amarelo com açafrão das Índias, ou de verde com o azul prussiano. Era o chá imperial em toda a sua pureza. Eram essas folhas preciosas semelhantes à própria flor, as folhas da primeira colheita do mês de março, que raramente se faz porque estiola a árvore, essas folhas, enfim, que apenas crianças de mãos cuidadosamente enluvadas têm o direito de colher.
Um europeu não encontraria interjeições suficientemente laudatórias para celebrar essa bebida que os seis convivas sorviam a pequenos goles e sem qualquer outra manifestação — conhecedores que eram e habituados como estavam a ela.
É que estes, devemos esclarecê-lo, já se não detinham a apreciar as delicadezas da excelente bebida. Pessoas da alta sociedade, envergando a rica han-chaol, uma leve camiseta, o ma-cual, uma breve túnica e a haol, comprida veste abotoada ao lado; tendo nos pés babuchas amarelas e meias acolchoadas, nas pernas calças de seda que um cinto de borlas sujeitava à cintura, e no peito o plastrão de seda finamente bordado, o leque à cinta, esses distintos personagens tinham nascido no mesmo país em que a árvore do chá oferece uma vez por ano a sua colheita de folhas odoríferas. Esse banquete em que figuravam ninhos de andorinhas, holotúrias, nervos de baleia, barbatanas de tubarão, tínhamos no saboreando como ele merecia pela delicadeza da sua confecção; mas o menu, que surpreenderia qualquer estrangeiro, não era coisa que os surpreendesse a eles.
O que, em todo o caso, ninguém esperava, foi a comunicação feita pelo anfitrião no momento em que iam por fim deixar a mesa. Ficaram então sabendo o motivo por que haviam sido convidados naquele dia.
As taças ainda estavam cheias. No instante de esvaziar a sua pela derradeira vez, o indiferente, recostando-se na mesa, com os olhos perdidos na distância, assim se exprimiu:
— Amigos, escutem-me mas com seriedade. A sorte está lançada. Vou introduzir na minha existência um elemento novo que talvez lhe quebre a monotonia. Farei bem? Farei mal? O futuro o dirá. Este jantar para que os convidei, é o jantar de despedida à minha vida de rapaz. Dentro de quinze dias estarei casado, e...
— E serás o mais feliz dos mortais! — exclamou o otimista. — Observa! Todos os prognósticos te são favoráveis!
Com efeito, enquanto as lanternas crepitavam lançando amortecidos clarões, as pegas chalravam por sobre os arabescos das janelas e as miúdas folhas de chá boiavam perpendicularmente nas chávenas. Tão felizes presságios não podiam iludir!
Todos se apressaram a felicitar o dono da casa, que recebeu os cumprimentos com a maior frieza. Mas como ele não nomeara a pessoa escolhida para desempenhar o papel de "elemento novo", nenhum deles teve a indiscrição de o interrogar a esse respeito.
O filósofo, contudo, abstivera-se de tomar parte no concerto geral das felicitações. Com os braços cruzados e os olhos semicerrados, um sorriso irônico nos lábios, não parecia aprovar as felicitações nem o felicitado.
Este ergueu-se então, poisou-lhe a mão no ombro, e num tom que se diria menos calmo do que era seu hábito, perguntou-lhe:
— Estarei porventura velho demais para me casar?
— Não.
— Novo demais?
— Também não.
— Achas que faço mal?
— Talvez!
— Aquela que escolhi, e que tu bem conheces, reúne todas as condições para me tornar feliz.
— Bem o sei.
— E então?
— Tu é que não possuis as condições para o ser! Aborrecer-se sozinha na vida é mau; mas aborrecer-se a dois é ainda pior!
— Não poderei então, jamais, ser feliz?
— Não, enquanto não tiveres conhecido a desventura.
— A desventura não pode alcançar-me!
— Tanto pior, porque então és incurável!
— Ah! Esses filósofos! — exclamou o mais novo dos convivas; — não lhes devemos dar ouvidos. São máquinas de teorias, fabricam-nas de todas as qualidades! Ninharias que para nada servem! Casa-te, casa-te, amigo! Eu faria a mesma coisa se não tivesse jurado não fazer coisa alguma! Casa-te, e como dizem os nossos poetas, que as duas fênix te apareçam sempre ternamente unidas! Meus amigos, bebo à felicidade do nosso anfitrião!
— E eu, — interveio o filósofo — bebo à próxima intervenção de alguma divindade protetora que, para o fazer feliz, o obrigue a passar pela prova da desgraça!
Àquele estranho brinde todos os convivas se ergueram, aproximando os punhos como fazem os jogadores de boxe no momento da luta; e depois de os terem sucessivamente baixado e erguido, com repetidas vênias se despediram uns dos outros.
Pela descrição da sala em que se realizou este banquete, pelas exóticas iguarias que o compunham, pelos trajes dos convivas, pelo modo de se exprimirem e talvez também pela singularidade das suas teorias, já o leitor adivinhou que se trata de chineses, não desses celestiais que parecem despregados de um biombo ou de algum fragmento de vaso da China, mas dos modernos habitantes do Celeste Império, já europeizados pelos estudos, pelas viagens, pela freqüente comunicação com os civilizados do Ocidente.
Com efeito, era na sala de um dos barcos-floridos do rio das Pérolas, em Cantão, que o rico Kin-Fo, acompanhado do inseparável Wang, o filósofo, acabara de convidar quatro dos melhores amigos da sua juventude, Pao-Shen, um mandarim de quarta classe de botão azul, Yin-Pang, rico negociante de sedas da rua dos Farmacêuticos, Tim, o incorrigível boêmio e Hual, o letrado. E passava-se isto no vigésimo sétimo dia da quarta lua, durante a primeira das cinco vigílias que tão poeticamente dividem as horas da noite chinesa.





Capítulo II
ONDE KIN-FO E O FILÓSOFO WANG SÃO APRESENTADOS DE UM MODO MAIS COMPLETO

Kin-Fo oferecera esse jantar de despedida aos seus amigos de Cantão, porque nessa capital da província de Kuang-Tung passara uma parte da sua adolescência. Dos numerosos camaradas que em geral possui um moço rico e generoso, os quatro convidados do barco-florido eram os únicos que lhe restavam nessa época. Quanto aos outros, dispersos aos caprichos da sorte, em vão tentaria reuni-los.
Kin-Fo morava então em Shangai, e para iludir o seu tédio viera passeá-lo alguns dias em Cantão. Mas nessa mesma noite devia embarcar no navio que faz escala pelos pontos principais da costa e regressar tranqüilamente ao seu yamen.
Wang acompanhara King-Fo, porque jamais esse filósofo abandonava o seu discípulo, ou perdia uma oportunidade de lhe ministrar alguma lição, aliás pouco proveitosa. Máximas e sentenças eram lançadas ao vento, mas a máquina de teorias, — como dissera o boêmio Tim, — nunca se cansava de as produzir.
Kin-Fo era o tipo representativo dos chineses do norte, cuja raça tende a transformar-se e que jamais se ligou aos tártaros. Não se encontraria outro nas províncias do sul, onde as classes alta e baixa se misturaram intimamente à raça manchu, pois, tanto por seu pai como por sua mãe, cujas famílias desde a conquista se conservavam afastadas, não tinha nas veias uma única gota de sangue tártaro. Alto, bem proporcionado, mais branco do que amarelo, as sobrancelhas retas, os olhos horizontalmente rasgados e mal se elevando nas têmporas, o nariz direito, a face não achatada, seria notado mesmo entre os mais belos exemplares das populações do Ocidente.
Com efeito, Kin-Fo apenas se identificava como chinês pelo crânio escrupulosamente rapado, a testa e o pescoço sem um pêlo, e o magnífico rabicho que do alto da cabeça lhe pendia sobre as costas como uma serpente de azeviche. Extremamente cuidadoso com a sua pessoa, usava um fino bigode que se lhe arqueava sobre o lábio superior, o qual, com a mosca recortada sob o inferior, sugeria perfeitamente o caldeirão da escrita musical. As unhas cresciam-lhe mais de um centímetro além dos dedos, prova de que ele pertencia à classe de gente rica que pode viver sem fazer nada. A indolência no andar e a altivez do porte também contribuíam bastante para esse ar de perfeita distinção que irradiava.
Além disso Kin-Fo nascera em Pequim, circunstância que muito envaidece os chineses. A quem o interrogasse, poderia responder orgulhosamente: "Sou Lá-de-Cima!"
Seu pai, Tchung-Héu, morava realmente em Pequim por ocasião do seu nascimento, e já o filho contava seis anos quando ele se veio fixar definitivamente em Shangai.
Esse digno chinês, oriundo de uma excelente família do norte do império, possuía, como os seus compatriotas, notáveis aptidões para o comércio. Durante os primeiros anos da sua carreira, tudo o que produz esse rico território tão povoado — papéis de Swatow, sedas de Su-Tchéu, açúcar-cande de Formosa, chás de Hankow e de Foochow, ferro do Honan, cobre vermelho ou amarelo da província de Yunan, — tudo foi para ele matéria de especulação e negócio. A matriz da sua casa era em Shangai, mas ele tinha filiais em Nanquim, Tien-Tsin, Macau e Hong-Kong. Muito relacionado com o comércio europeu, os navios ingleses transportavam-lhe as mercadorias, e o cabo submarino dava-lhe as cotações das sedas em Lyon e do ópio em Calcutá. Não era refratário a nenhum desses novos agentes do progresso, o vapor e a eletricidade, como sucede à maioria dos chineses que vivem sob a influência dos mandarins e do governo, a quem o progresso pouco a pouco vai diminuindo o prestígio.
Enfim, Tchung-Héu orientou tão sabiamente o seu comércio, tanto no interior do império como nas suas transações com as firmas portuguesas, francesas, inglesas ou americanas de Shangai, Macau e Hong-Kong, que quando Kin-Fo veio ao mundo a sua fortuna já ultrapassava quatrocentos mil dólares.
Nos anos que se seguiram esse capital ainda se multiplicou, graças à criação de um novo tráfico que se poderia chamar a remessa de cooltes para o Novo Mundo.
Sabe-se, com efeito, que a população da China é excessiva e desproporcionada com a extensão desse vasto território, diversamente e poeticamente chamado o Celeste Império, o Império do Meio, Império ou Terra das Flores. Calculam-na pelo menos em trezentos milhões de habitantes, o que equivale a um terço da população de toda a terra. Ora, por pouco que coma o chinês pobre, sempre come, e a China, mesmo com os seus numerosos arrozais, as imensas lavouras de milho e de trigo, não consegue bastar-se a si mesma. Daí um excedente procurando escapar por todos os meios através das brechas que os canhões ingleses e franceses abriram nas muralhas materiais e morais do Celeste Império.
É para a América do Norte e especialmente para o Estado da Califórnia que transborda esse excedente, e com tamanha impetuosidade que o Congresso resolveu tomar medidas restritivas contra a invasão, tão indelicadamente chamada a peste amarela. Como alguém observou, cinqüenta milhões de chineses que emigrassem para os Estados Unidos pouco enfraqueceriam a China, constituindo por outro lado a absorção da raça anglo-saxônia em benefício da raça mongólica.
De qualquer modo, porém, o êxodo verificou-se em vasta escala. Esses cooltes, que vivem facilmente de um punhado de arroz, uma chávena de chá e uma cachimbada, alastraram de repente o Lago Salgado, a Virgínia, no Oregon, e sobretudo o Estado da Califórnia, onde provocaram uma baixa considerável nos preços da mão-de-obra.
Organizaram-se então companhias para o transporte desses emigrantes tão baratos. Havia cinco operando o engajamento em cinco províncias do Celeste Império, e uma sexta com sede em São Francisco. Aquelas expediam e esta recebia a mercadoria. Uma agência anexa, a de Ting-Tong, cuidava da reexportação.
Isto reclama um esclarecimento.
Os chineses desejam expatriar-se e tentar fortuna entre os melicanos — que é como eles designam a população dos Estados Unidos, — com a condição, porém, de que seus cadáveres serão fielmente reconduzidos à terra natal e aí sepultados. Esta é uma das principais cláusulas do contrato, condição sine qua non, a que as companhias se obrigam e que de nenhum modo poderão iludir.
Assim, a Ting-Tong, também chamada a Agência dos Mortos, dispondo de fundos particulares, encarrega-se de fretar os navios para cadáveres, que regressam abarrotados de São Francisco para Shangai, Hong-Kong ou Tien-Tsin. Comércio novo, nova fonte de lucros. O hábil e empreendedor Tchung-Héu bem o percebeu, e por ocasião da sua morte, em 1866, era diretor da Companhia de Kuang-Than, na província desse nome, e subdiretor da Caixa de Fundos dos Mortos, em São Francisco.
Nesse dia Kin-Fo, órfão de pai e mãe, herdava uma fortuna avaliada em quatro milhões de francos, em ações do Banco Central da Califórnia que ele teve o bom senso de conservar.
Na ocasião em que perdeu o pai, com dezenove anos de idade, o jovem herdeiro encontrar-se-ia sozinho se não tivesse Wang, o inseparável Wang, para lhe servir de mentor e amigo.
Quem era, porém, este Wang? Desde os dezessete anos vivia no yamen de Shangai, onde fora comensal do pai antes de o ser do filho. Mas de onde vinha ele? Que passado era o seu? A estas obscuras perguntas só Tchung-Héu e Kin-Fo poderiam responder.
E se entendessem de o fazer — coisa pouco provável, — eis o que se teria sabido:
Ninguém ignora que a China é, por excelência, o país onde as insurreições podem durar muitos anos e sublevar centenas de milhares de homens. Ora, no século dezessete a célebre dinastia dos Ming, de origem chinesa, reinava havia trezentos anos na China, quando em 1644 o chefe dessa dinastia, sentindo-se muito fraco contra os rebeldes que ameaçavam a capital, pediu socorro a um rei tártaro.
O rei não se fez rogar, correu imediatamente, repeliu os insurretos, e aproveitou-se da situação para destronar aquele em cuja ajuda viera, proclamando imperador seu próprio filho Chun-Tché.
A partir de então a autoridade tártara substituiu a autoridade chinesa, e o trono foi ocupado por imperadores manchus.
Pouco a pouco, sobretudo nas classes inferiores da população, as duas raças se confundiram, mas nas famílias ricas do norte a separação entre chineses e tártaros manteve-se mais estritamente. Essa circunstância pode ser observada especialmente nas províncias setentrionais do Império, onde se isolaram os irredutíveis, fiéis à dinastia deposta.
O pai de Kin-Fo era destes últimos, não desmentindo as tradições de sua família, que recusara pactuar com os tártaros. Uma revolta contra a dominação estrangeira, mesmo após trezentos anos de governo, encontrá-lo-ia pronto para agir.
É ocioso acrescentar que seu filho Kin-Fo partilhava absolutamente as suas opiniões políticas.
Em 1860 reinava ainda o imperador S'Hiene-Fong, que declarou guerra à Inglaterra e à França — guerra que terminou pelo tratado de Pequim de 25 de outubro do mesmo ano.
Mas antes dessa época já uma formidável revolução ameaçava a dinastia reinante. Os Tchang-Mao ou Tai-ping, os rebeldes de cabelos compridos, tinham-se apoderado de Nanquim em 1853 e de Shangai em 1855. Morto S'Hiene-Fong, seu jovem filho viu-se em grandes dificuldades para repelir os Tai-ping. Sem a ajuda do vice-rei Li, do príncipe Kong e sobretudo do coronel inglês Gordon, talvez ele não conseguisse salvar o trono.
Os Tai-ping, inimigos declarados dos tártaros, fortemente organizados para a revolução, queriam substituir a dinastia dos Tsing pela dos Wang. Tinham-se dividido em quatro grupos diferentes: o primeiro, de pendão negro, encarregado de matar; o segundo, de pendão vermelho, encarregado de incendiar; o terceiro, de pendão amarelo, encarregado de pilhar, e o quarto, de pendão branco, encarregado de abastecer os outros três.
Verificaram-se importantes operações militares no Kiang-Su. Su-Tchéu e Kia-Hing, a cinco léguas de Shangai, caíram em poder dos revoltosos, e só com grandes dificuldades foram retomadas pelas tropas imperiais. Shangai, bastante ameaçada, foi mesmo alvo de um ataque em 18 de agosto de 1860, quando os generais Grante Montauban, comandantes do exército anglo-francês, bombardeavam os fortes de Péi-Ho.
Nessa época, Tchung-Héu, pai de Kin-Fo, morava perto de Shangai, não longe da magnífica ponte que os engenheiros chineses haviam construído sobre o rio Su-Tchéu, e não se poderia dizer que ele desaprovava a rebelião dos Tai-Ping, visto que ela se dirigia principalmente contra a dinastia tártara.
Sucedeu pois que na noite de 18 de agosto, tendo os rebeldes sido repelidos para fora de Shangai, a porta da morada de Tchung-Héu se abriu de repente.
Um fugitivo que conseguira despistar os seus perseguidores veio cair aos pés de Tchung-Héu. O desgraçado não tinha qualquer arma para se defender. Se esse a quem ele vinha pedir asilo o entregasse à soldadesca imperial, estava perdido.
Mas o pai de Kin-Fo não era homem para trair um Tai-Ping que buscava refúgio em sua casa. Fechou a porta e disse:
— Não sei, nem quero saber quem és, o que fazes e de onde vens! És meu hóspede, e por esse motivo estarás seguro em minha casa.
O fugitivo quis falar para exprimir o seu reconhecimento... mas quase lhe não restavam forças.
— Como de chamas? — perguntou-lhe Tchung-Héu.
— Wang.
Era realmente Wang, salvo pela generosidade de Tchung-Héu — generosidade que lhe custaria a vida se alguém suspeitasse que ele dava asilo a um rebelde. Mas Tchung-Héu era desses homens antigos para os quais um hóspede é coisa sagrada.
Alguns anos depois a sublevação foi completamente reprimida. Em 1864 o imperador Tai-Ping, sitiado em Nanquim envenenava-se para não cair nas mãos dos Imperiais.
Desde esse dia Wang permaneceu em casa de seu benfeitor. Nunca o interrogaram a respeito do seu passado, talvez com receio de ficarem sabendo demais. Dizia-se que as atrocidades cometidas pelos revoltosos tinham sido espantosas. Sob que pendão servira Wang? O amarelo, o vermelho, o preto ou o branco? Era preferível ignorá-lo, conservar a ilusão de que ele pertencera à coluna de abastecimentos.
Wang, aliás encantado com a sua sorte, ficou sendo hóspede daquela casa acolhedora. Após a morte de Tchung-Héu, o filho estava de tal modo afeito à presença desse amável companheiro que não consentiu em separar-se dele.
Mas na verdade, ao tempo em que começa esta história, quem jamais teria reconhecido um Tai-Ping, um massacrador, um salteador ou um incendiário — conforme quisesse, — naquele filósofo de cinqüenta e cinco anos, nesse moralista de óculos, puríssimo chinês de olhos obliquados para as têmporas, o bigode tradicional? Com a sua comprida veste de cor discreta, um começo de obesidade dando-lhe certa proeminência ao ventre, usando de acordo com o decreto imperial um chapéu felpudo de abas levantadas de onde pendiam borlas de fio vermelho, tinha o ar de um correto professor de filosofia, de um desses sábios que usam correntemente os oitenta mil caracteres da escrita chinesa, de um letrado do dialeto superior, de um primeiro laureado no exame dos doutores, com direito a passar sob a grande porta de Pequim, reservada ao Filho do Céu.
É possível que, esquecendo um passado cheio de horrores o rebelde se tivesse beneficiado do contacto com o honesto Tchung-Héu, deslizando suavemente para o caminho da filosofia especulativa, e eis porque nessa tarde Kin-Fo e Wang, que jamais se separavam, encontrando-se juntos em Cantão, após o jantar de despedida, se encaminhavam ambos para o cais em busca do navio que os devia levar rapidamente a Shangai.
Kin-Fo caminhava em silêncio, parecendo um tanto preocupado. Wang, olhando à direita e à esquerda, filosofando sobre a lua e as estrelas, passava sorrindo por baixo da porta da Eterna Pureza, que lhe não parecia demasiado alta para a sua estatura, sob a porta da Eterna Alegria, cujos batentes se lhe afiguravam abertos para a sua própria existência, vendo enfim perderem-se na sombra as torres do pagode das Quinhentas Divindades.
O navio Perma lá estava, de caldeiras acesas, e Kin-Fo e Wang instalaram-se nas duas cabinas previamente reservadas. A rápida corrente do rio das Pérolas, que diariamente arrasta misturados ao lodo das margens os corpos dos supliciados, imprimiu à embarcação uma grande velocidade. O barco passou como uma flecha entre as ruínas deixadas aqui e ali pelos canhões franceses, diante do pagode de nove andares de Haf-Way, pela ponta Jardyne, perto de Whampoa, onde ancoram os navios de grande calado, entre as ilhotas e paliçadas de bambus de ambas as margens.
Os cento e cinqüenta quilômetros, isto é os trezentos e setenta e cinco lis que separam Cantão da embocadura do rio, foram percorridos durante a noite.
Ao nascer do sol, o Perma ultrapassava a Goela do Tigre e em seguida as duas barras do estuário. O Victoria-Peak da ilha de Hong-Kong, de mil oitocentos e vinte e cinco pés de altura, surgiu um momento na bruma da manhã, e após a mais feliz das travessias, Kin-Fo e o filósofo, cortando as águas amareladas do rio Azul desembarcavam em Shangai, no litoral da província de Kiang-Nan.



Capítulo III
EM QUE O LEITOR PODERÁ, SEM FADIGA, LANÇAR UM GOLPE DE VISTA SOBRE A CIDADE DE SHANGAI

Diz um provérbio chinês:
"Quando os sabres estão enferrujados e as enxadas polidas;
"Quando as cadeias estão vazias e os celeiros cheios;
"Quando os degraus dos templos se gastam pelo pisar dos fiéis e os pátios dos tribunais se cobrem de erva;
"Quando os médicos andam a pé e os padeiros a cavalo,
"O Império é bem governado".
O provérbio é bom, e poderia aplicar-se com justeza a todas as nações do antigo e do novo mundo. Mas se alguma nação existe onde esse desideratum está ainda longe de se realizar, é precisamente o Celeste Império. Lá justamente reluzem os sabres e as enxadas enferrujam, as prisões regurgitam e os celeiros esvaziam-se. Os padeiros têm menos que fazer que os médicos, e se os pagodes atraem os fiéis, os tribunais em compensação abundam em réus e queixosos.
Aliás, um reino medindo cento e oitenta mil milhas quadradas, que de norte a sul tem mais de oitocentas léguas, e de leste a oeste mais de novecentas, que conta dezoito vastas províncias sem falar dos países tributários, a Mongólia, a Manchúria, o Tibé, o Tonquim, a Coréia, as ilhas Liu-Tchu, etc, só muito imperfeitamente pode ser administrado. Se os chineses conservam algumas dúvidas a respeito, os estrangeiros não têm sobre isso a menor ilusão. Só talvez o imperador, fechado no seu palácio cujas portas raramente transpõe, à sombra das muralhas de uma tripla cidade, só esse Filho do Céu, pai e mãe dos seus súditos, fazendo e desfazendo as leis conforme lhe apraz, tendo sobre todos o direito de vida e morte, e ao qual pertencem, por nascimento, as rendas do Império, só esse soberano perante quem as frontes se rojam na poeira — só ele pensa que tudo corre do melhor modo no melhor dos mundos. Nem valeria a pena tentar provar-lhe que ele está enganado; um Filho do Céu nunca se engana.
Teria Kin-Fo algumas razões para admitir que mais vale ser governado à européia do que à chinesa? Parece que sim, pois não residia propriamente em Shangai, mas fora da cidade, em certo ponto da concessão inglesa, que se mantém numa espécie de autonomia muito apreciada.
A cidade propriamente de Shangai está situada na margem esquerda do pequeno rio Huang-Pu que, unindo-se em ângulo reto com o Wusung, se vai lançar no Yang-The-Kiang ou rio Azul, daí se perdendo no mar Amarelo.
Tem a forma oval estendida de norte para sul, cercada de altas muralhas, cortada por cinco portas que abrem para os arrabaldes. Rede inextrincável de ruelas empedradas, em cuja limpeza se estragariam as varredoras mecânicas; lojas sombrias sem fachadas nem vitrinas, onde se movem indivíduos nus até à cintura; nenhuma carruagem, nenhum palanquim, apenas gente a cavalo; alguns templos indígenas ou capelas estrangeiras; por únicos passeios um jardim-chá e um campo de paradas bastante lamacento, aberto num aterro onde houvera antigos arrozais e sujeito a emanações paludosas; através dessas ruas, dentro dessas casas mesquinhas, uma população de duzentos mil habitantes — tal é essa cidade pouco invejável para se viver, mas que nem por isso, deixa de ter uma grande importância comercial.
Foi lá, com efeito, após o tratado de Nanquim, que os estrangeiros tiveram pela primeira vez o direito de abrir escritórios; foi, na China, a grande porta aberta ao comércio europeu; e também fora de Shangai e dos seus arrabaldes o governo concedeu, mediante uma renda anual, três porções de território aos franceses, ingleses e americanos, que são aproximadamente em número de dois mil.
Da concessão francesa pouco se tem a dizer. É a menos importante. Confina quase com a muralha norte da cidade e estende-se até à ribeira de Yang-King-Pang, que a separa da concessão inglesa. Aí se erguem as igrejas dos Lazaristas e dos Jesuítas, que também possuem, a quatro milhas de Shangai, o colégio de Tsikave, onde formam bacharéis chineses. Mas essa pequena colônia francesa não tem de modo algum a importância das vizinhas. Dentre as dez casas comerciais fundadas em 1861, apenas restam três, e o próprio Banco de Descontos preferiu mudar-se para a concessão inglesa. O território americano ocupa a parte em redor do Wusung, estando separado do inglês pelo Su-Tcheu-Creek, sobre o qual há uma ponte de madeira. Lá estão o hotel Astor e a igreja das Missões, bem como as docas instaladas para a reparação dos navios europeus.
Contudo, das três concessões, a mais florescente é sem dúvida alguma a concessão inglesa. Moradas suntuosas dando para o cais, casas com varandas e jardins, palácios dos ricaços do comércio, o Banco Oriental, o hong da célebre casa Dent com a sua razão social de Lao-Tchi-Tchang, as filiais dos Jardyne, dos Russel e de outros grandes negociantes, o clube inglês, o teatro, o jogo de pela, o parque, o campo de corridas, a biblioteca — eis o conjunto dessa esplêndida criação dos anglo-saxões, que com toda a justiça mereceu o nome de colônia modelo.
Nesse privilegiado território, sob o patrocínio de uma administração liberal, encontra-se como muito bem disse o senhor Léon Rousset, "uma cidade chinesa de tipo especial e que não tem similar em parte alguma".
Assim, pois, ao chegar àquele exíguo canto de terra, o estrangeiro que vem pelo caminho pitoresco do rio Azul, vê quatro bandeiras flutuando ao sopro da mesma brisa, a tricolor francesa e o yctcht do Reino Unido, as estrelas americanas e a cruz de Santo André, amarela sobre fundo verde, do Império das Flores.
Os arredores de Shangai, vasta planície sem uma árvore cortada de estreitos caminhos empedrados e de atalhos em ângulo reto, pontilhada de cisternas e de regatos que fornecem água a imensos arrozais, sulcada de canais onde vogam os juncos à maneira das chatas que atravessam os campos da Holanda, dir-se-iam uma espécie de imenso painel muito verde ao qual faltasse a moldura.
O Perma, ao chegar, atracara ao cais indígena, em frente ao bairro leste da cidade, onde Wang e Kin-Fo desembarcaram à tarde.
A animação no cais era enorme e o movimento do rio indescritível. Juncos às centenas, casas flutuantes, sampanas, espécie de gôndolas conduzidas à ginga, as canoas e outras embarcações de todos os tamanhos formavam como uma cidade flutuante, onde vivia uma população marítima nunca inferior a quarenta mil almas — gente mantida em situação inferior e cuja parte mais abastada não pode elevar-se até à classe dos letrados ou dos mandarins.
Os dois amigos saíram a passear pelo cais, entre a multidão heteróclita de mercadores de toda a espécie, vendedores de amendoim, de laranjas, de nozes de areca ou de pamplemussa; marinheiros de todas as nações, aguadeiros, ledores da buena-dicha, bonzos, lamas, padres católicos vestidos à chinesa com rabicho e leque, soldados indígenas, tipaos, polícias locais, e compradores, espécie de corretores dos negociantes europeus.
Kin-Fo, com o seu leque na mão percorria a turba com o olhar indiferente, completamente desinteressado do que em redor dele se passava. Nem o som metálico das piastras mexicanas, nem o dos taéis de prata, nem o das sapecas de cobre que vendedores e fregueses trocavam entre si com ruído conseguiam atraí-lo. Ele poderia comprar, pagando à vista, o bairro inteiro. Quanto a Wang, abrira o seu vasto guarda-sol amarelo, com monstros negros pintados, e sempre orientado como deve ser um chinês de raça, buscava por toda a parte alguma coisa para observar.
Ao passar diante da porta Leste, cravou os olhos, por acaso, numa dúzia de gaiolas de bambu ostentando esgazeadas cabeças de criminosos executados na véspera.
— Talvez houvesse coisa melhor a fazer do que decepar cabeças — disse ele. — Procurar torná-las mais sólidas!
Kin-Fo não ouviu decerto a reflexão de Wang, que o teria surpreendido provinda de um antigo Tai-ping.
Ambos prosseguiram pelo cais, contornando os muros da cidade chinesa. Na extremidade do arrabalde, no instante em que iam penetrar na concessão francesa, avistaram um indígena envergando uma longa túnica azul, que atraía a multidão ferindo estridentemente com um bastão um chifre de búfalo.
— Um sien-cheng — observou o filósofo.
— Que temos nós com isso? — respondeu Kin-Fo.
— Amigo — replicou Wang, — pede-lhe que te leia a sorte. É uma coisa oportuna, agora que vais casar!
Kin-Fo ia prosseguir a marcha, mas Wang deteve-o.
O sien-cheng é uma espécie de profeta popular que, por algumas sapecas, se ocupa a adivinhar o futuro. Como utensílios profissionais dispõe apenas de uma gaiola com um passarinho, presa a um dos botões da sua túnica, e um baralho de sessenta e quatro cartas com figuras de deuses, homens e animais. Os chineses de todas as categorias, geralmente supersticiosos, nunca desdenham as predições do sien-cheng — que talvez seja o único a não as tomar a sério.
A um sinal de Wang o sien-cheng estendeu no chão um tapete de algodão, pôs-lhe a gaiola em cima, puxou o seu baralho de cartas, misturou-as bem e foi-as dispondo sobre o tapete com as figuras voltadas para baixo.
Em seguida abriu a porta da gaiola, o passarinho saiu, escolheu uma das cartas e tornou a entrar, depois de ter recebido um grão de arroz como recompensa.
O sien-cheng virou a carta, que tinha uma figura de homem e uma frase escrita em kunan-runa, a língua mandarina do norte, língua oficial só usada pelas pessoas instruídas.
Então, dirigindo-se a King-Fo o leitor da buena-ãicha vaticinou-lhe o que os seus confrades de todos os países invariavelmente vaticinam sem se comprometer, isto é, que após um desgosto próximo gozaria dez mil anos de felicidade.
— Bem, que me suceda ao menos uma desgraça e ficarei satisfeito!
Em seguida atirou ao profeta um tael de prata, sobre o qual este se precipitou como um cão faminto se atira a um osso. Gorjetas daquelas não eram comuns.
Wang e o seu discípulo encaminharam-se depois para a concessão francesa, o primeiro meditando a predição que tão bem concordava com as suas teorias acerca da felicidade, o segundo inteiramente convencido de que nenhuma desgraça o poderia atingir.
Passaram diante do consulado de França, subiram até à pequena ponte lançada sobre Yang-King-Pang, atravessaram a ribeira, enviesaram através do território inglês de modo a alcançarem o cais do porto europeu.
Estava dando meio-dia. O movimento, bastante intenso durante a manhã, cessou como por encanto. O dia comercial estava por assim dizer terminado, e a calma ia suceder à agitação mesmo na cidade inglesa, que neste particular se achinesara.
Iam entrando no porto alguns navios estrangeiros, a maioria dos quais hasteando o pavilhão do Reino-Unido. Nove sobre dez, na certa, vinham carregados de ópio. Essa embrutecedora substância, esse veneno com que a Inglaterra inunda a China, representa um volume de negócios superior a duzentos e sessenta milhões de francos, dando um lucro de trezentos por cento. Debalde o governo chinês tem querido impedir a importação de ópio no Celeste Império. A guerra de 1841 e o tratado de Nanquim deram livre entrada à mercadoria inglesa e ganho de causa aos nababos do comércio. Deve-se aliás acrescentar que, se o governo de Pequim chegou até a decretar a pena de morte para todo o chinês que vendesse ópio, sempre é possível chegar a um acordo, mediante propinas, com os depositários da autoridade. Acredita-se mesmo que o mandarim governador de Shangai embolsa um milhão por ano, só com fazer vista grossa sobre as manobras dos seus administrados.
Escusado é dizer que nem Wang nem Kin-Fo se davam ao detestável vício de fumar ópio, que destrói todos os tecidos do organismo levando rapidamente à morte. E jamais uma onça de tal substância entrara na rica vivenda onde os dois amigos chegaram uma hora após o desembarque no cais de Shangai.
Wang — o que era ainda para admirar da parte de um Tai-Ping, — não pudera conter esta observação:
— Talvez houvesse coisa melhor a fazer do que importar o embrutecimento para todo um povo! O comércio é bom, mas a filosofia é melhor! Sejamos filósofos! Antes de mais nada sejamos filósofos!











Capítulo IV
EM QUE KIN-FO RECEBE, COM OITO DIAS DE ATRASO, UMA IMPORTANTE CARTA.

O yamen é um conjunto de construções variadas, paralelamente dispostas, que uma linha de quiosques e pavilhões corta em perpendicular. Geralmente o yamen serve de habitação aos mandarins da classe elevada, e pertence ao imperador; mas os ricos celestiais também podem possuir o seu yamen, e era num desses suntuosos palácios que morava o opulento Kin-Fo.
Wang e o seu discípulo detiveram-se à porta principal, aberta na vasta muralha que cercava as diversas construções do yamen, seus jardins e seus pátios.
Se, em vez da vivenda de um simples particular se tratasse da de um magistrado mandarim, haveria em destaque um grande tambor sob o alpendre recortado e pintalgado da porta, onde iriam bater noite e dia os seus administrados "para reclamar justiça. Mas em vez desse "tambor das queixas", enormes jarras de porcelana adornavam a entrada do yamen, contendo chá frio, incessantemente renovado graças aos cuidados do intendente. Estas jarras estavam à disposição dos transeuntes, generosidade que muito honrava Kin-Fo, tornando-o bem visto, como é costume dizer, "dos seus vizinhos de Este e do Oeste".
À chegada do senhor, toda a famulagem correu à porta para o receber. Criados de quarto, lacaios, porteiros, portadores de liteiras, palafreneiros, cocheiros, serventes, vigilantes noturnos, cozinheiros, toda essa multidão que compõe a criadagem chinesa se perfilou às ordens do intendente. Uma dezena de coolies, tomados ao mês para os serviços mais rudes, mantinha-se um pouco atrás.
O mordomo desejou as boas-vindas ao dono da casa, que fez apenas um leve aceno com a mão, perguntando:
— E Sun?
— Sun! — respondeu Wang sorrindo. — Se ele aqui estivesse não seria Sun!
— Onde está Sun? — insistiu Kin-Fo.
O mordomo teve de confessar que nem ele nem ninguém sabia o que fora feito de Sun.
Acontece que Sun era nada menos que o primeiro criado de quarto, especialmente destinado ao serviço de Kin-Fo, e sem o qual este de nenhum modo podia passar.
Era então um criado modelo? Absolutamente não. Seria impossível encontrar quem fizesse pior as suas obrigações. Descuidado, incoerente, desastrado nas mãos e na língua, extremamente guloso, levemente polirão — um verdadeiro chinês de biombo, — mas de uma fidelidade canina e o único homem capaz de impressionar o amo.
Kin-Fo tinha motivos para se zangar com ele vinte vezes ao dia, e se só o castigava dez era devido à sua costumeira indulgência e ao desejo de não querer irritar a bílis. Como se vê, um criado higiênico.
Aliás o excelente Sun, como sucede com a maioria dos criados chineses, e foi o primeiro a oferecer-se ao castigo toda a vez que julgava merecê-lo. E o amo não o poupava. Chovessem-lhe as bengaladas nas costas, isso pouco se lhe dava. Aquilo a que se mostrava infinitamente mais sensível era aos sucessivos cortes que Kin-Fo lhe praticava no rabicho, quando se tratava de alguma falta grave.
Ninguém ignora a importância que o chinês atribui a esse curioso apêndice. A perda do rabicho é o primeiro castigo que se aplica aos criminosos, é uma desonra para toda a vida! Por isso, o que mais temia o desgraçado Sun, era ser condenado a perder alguma parte dele. Quatro anos antes, quando entrara ao serviço de Kin-Fo, o seu rabicho — um dos mais belos do Celeste Império, — media um metro e vinte e cinco centímetros, e nesse momento já apenas lhe restavam cinqüenta e sete centímetros. Por esse andar, dentro de dois anos Sun estaria inteiramente calvo.
Entretanto, Wang e Kin-Fo respeitosamente seguidos pelo pessoal da casa, atravessaram o jardim, cujas árvores, na maioria plantadas em vasos de barro, e podadas de um modo surpreendente mas deplorável, afetavam linhas de animais fabulosos. Em seguida contornaram o lago, povoado de gouramis e de peixes vermelhos, cuja água límpida desaparecia sob as largas flores vermelho-pálidas do nelumbo, o mais belo dos nenufares, originário do Império Florido. Curvaram-se diante de um hieroglífico quadrúpede pintado em cores vivas num muro especialmente adequado, como um afresco simbólico, e chegaram por fim à porta do principal edifício do yamen.
Era uma vivenda composta de andar térreo e pavimento superior, erguida num terraço ao qual davam acesso seis degraus de mármore. Diante das portas e janelas havia gradis de bambus dispostos à maneira de guarda-ventos, destinados a tornar suportável a temperatura já excessiva, e para favorecer a ventilação interior. O teto raso contrastava com as fantasiosas cumeeiras dos outros pavilhões do yamen, cujas ameias, telhados multicores e tijolos recortados em finos arabescos, afagavam o olhar.
Lá dentro, com exceção dos quartos especialmente reservados a Wang e a Kin-Fo, tudo eram salões rodeados de gabinetes de divisões transparentes, com grinaldas de flores pintadas ou molduras com frases de sentido moral em que os chineses são férteis. Por toda a parte assentos de formas singulares, em barro ou porcelana, madeira ou mármore, sem esquecer dezenas de almofadas de atraente macieza; por toda a parte lâmpadas ou lanternas de formas variadas, de vidros de cores esbatidas, e mais enfeitadas de borlas, franjas e berloques do que uma mula espanhola; por toda a parte ainda essas pequenas mesas de chá denominadas tcha-ki, complemento indispensável do mobiliário chinês. Levar-se-iam horas, talvez não perdidas, para contar os objetos de marfim e madrepérola, os bronzes incrustados, os perfumadores, as laças filigranadas de ouro em relevo, os jades leitosos e verde-esmeralda, os vasos redondos ou prismáticos da dinastia dos Ming e dos Tsing, as porcelanas mais raras ainda da dinastia dos Yen, os esmaltes de motivos, cor-de-rosa e amarelo translúcido, cujo segredo está hoje desaparecido. Essa luxuosa morada oferecia toda a fantasia chinesa aliada ao conforto europeu.
Com efeito, Kin-Fo — como já o dissemos e seus gostos o provam, — era um homem de progresso. Nenhuma nova invenção dos ocidentais o encontrava refratária à sua aquisição. Pertencia ao número desses Filhos do Céu, ainda bastante raros, seduzidos pelas ciências físicas e químicas, e não era desses bárbaros que cortaram os primeiros fios elétricos que a casa Reynolds quis estender até Wusung, com o fim de tomar conhecimento mais rápido da chegada das malas inglesas e americanas, nem desses mandarins atrasados que, para evitar que o cabo submarino de Shangai a Hong-Kong tocasse em qualquer ponto do território, obrigaram os engenheiros a fixá-lo num barco flutuando em pleno rio.
Não! Kin-Fo fazia coro com os seus compatriotas que aplaudiam o governo por ter fundado os arsenais e estaleiros de Fu-Chao sob a direção de engenheiros franceses. Levado por um interesse meramente nacional comprara ações da companhia chinesa de navegação que faz o serviço entre Tien-Tsin e Shangai, e tinha interesses nos navios de grande velocidade que desde Singapura se adiantam três ou quatro dias à mala inglesa.
Dissemos que o progresso material penetrara em sua residência, e com efeito aparelhos telefônicos punham em comunicação os diversos pavilhões do seu yamen, campainhas elétricas ligavam os quartos que habitava, e durante a estação fria mandava acender fogo e aquecia-se sem constrangimento, mais sensato do que os seus concidadãos que tiritam diante da lareira apagada sob quatro ou cinco camadas de roupa. Dispunha de iluminação a gás como o inspetor geral das alfândegas de Pequim, ou como o riquíssimo senhor Yang, principal concessionário dos montepios do Império do Meio, e enfim, desdenhando o uso antiquado da escrita em sua correspondência íntima, o progressista Kin-Fo — como em seguida veremos, — adotara o fonógrafo, ultimamente elevado por Edison ao derradeiro grau de perfeição.
Deste modo, o discípulo do filósofo Wang tinha, tanto na parte material como na parte moral da sua vida, tudo quanto necessitava para ser feliz. E contudo não o era! Possuía Sun para lhe quebrar a apatia cotidiana, mas o próprio Sun se revelava incapaz de lhe dar a felicidade!
É verdade que, ao menos pelo momento, Sun que nunca estava onde devia estar, ainda não tinha aparecido! Devia sem dúvida considerar-se culpado de alguma falta grave, alguma grossa tolice praticada na ausência do amo; e como não receava pelas costelas, já habituadas à chibata doméstica, é de crer que temia principalmente pelo rabicho.
— Sun! — gritara Kin-Fo ao entrar no vestíbulo, para onde abriam os salões da direita e da esquerda, num tom de voz revelando mal contida impaciência.
— Sun! — repetira Wang, cujas repreensões e bons conselhos pouco efeito causavam no incorrigível criado.
— Procurem Sun e tragam-no aqui! — disse Kin-Fo ao mordomo que determinou uma busca geral do desaparecido.
Wang e Kin-Fo ficaram sozinhos.
— A sabedoria — comentou então o filósofo, — recomenda, ao viajante que regressa ao lar, um pouco de repouso.
— Pois sejamos sábios! — respondeu simplesmente o discípulo de Wang.
E tendo apertado a mão do filósofo retirou-se para os seus aposentos, enquanto Wang fazia outro tanto.
Kin-Fo, uma vez sozinho, estirou-se num desses macios divãs de fabricação européia, cujos confortáveis estofos jamais um tapeceiro chinês saberia dispor, e ali se quedou meditando. No seu enlace com a linda e gentil mulher que ia tornar-se a companheira da sua vida? Talvez; e não é coisa de admirar, pois estava nas vésperas de se ir reunir a ela. Com efeito, a graciosa criatura não morava em Shangai, vivia em Pequim, e Kin-Fo achou conveniente participar-lhe, ao mesmo tempo que o seu regresso a Shangai, a sua próxima chegada à capital do Celeste Império. Ainda que desse modo manifestasse um certo desejo, uma certa impaciência de a tornar a ver, isso não pareceria descabido. Sem dúvida experimentava por ela uma verdadeira afeição! Wang perfeitamente lho demonstrara de acordo com as mais indiscutíveis regras da lógica, e esse elemento novo introduzido em sua existência poderia talvez desvendar-lhe a incógnita... isto é, a felicidade... que... por meio da qual...
Kin-Fo divagava já de olhos fechados, e teria plàcidamente adormecido se não sentisse na mão direita uma espécie de cócega.
Instintivamente os seus dedos apertaram-se segurando um corpo cilíndrico levemente nodoso, de razoável grossura, que por certo estavam habituados a manejar.
Não podia haver engano: era a chibata que lhe estavam introduzindo na mão, ao mesmo tempo que se fizeram ouvir estas palavras, ditas num tom resignado:
— Quando meu amo quiser!
Kin-Fo endireitou-se, e num movimento natural brandiu a chibata justiceira.
Sun encontrava-se diante dele, meio dobrado, na atitude de uma paciente, apresentando as costas. Apoiando uma das mãos no tapete do quarto, estendia na outra uma carta.
— Ora até que enfim apareceste! — bradou Kin-Fo.
— Ai, ai ai! — respondeu Sun. — Eu só esperava o meu amo na terceira vigília! Quando meu amo quiser!
Kin-Fo jogou a chibata ao chão, e Sun, embora fosse amarelo conseguiu empalidecer.
— Se antes de qualquer explicação já vens aqui oferecer as costas — observou o patrão, — é porque mereces muito mais do que isso! Que aconteceu?
— Esta carta!
— Explica-te! — berrou Kin-Fo segurando a carta que lhe estendia Sun.
— Esqueci-me infelizmente de lha entregar antes da sua partida para Cantão!
— Oito dias de atraso, maroto!
— Fiz mal, meu amo.
— Vem aqui!
— Eu estou como um pobre caranguejo sem patas que não pode caminhar! Ai, ai, ai!
Este último grito era de desespero. Kin-Fo segurara Sun pelo rabicho, e com umas tesouras bem afiadas cortara-lhe a extremidade.
Devemos admitir que as patas do desventurado caranguejo funcionaram instantaneamente, pois ele abalou às pressas, não sem antes ter erguido do tapete o fragmento do seu precioso apêndice.
De cinqüenta e sete centímetros que media antes, o rabicho de Sun achava-se reduzido a cinqüenta e quatro.
Kin-Fo, readquirida a sua perfeita calma tornou a estirar-se no divã, e com todo o vagar ficou examinando a carta chegada oito dias antes. Não fora a demora na entrega, mas a negligência de Sun que o irritara. Que interesse poderia haver para ele numa carta qualquer? Apenas seria bem-vinda se lhe trouxesse uma emoção. Uma emoção! E olhava para ela, mas distraidamente.
O subscrito, em tela engomada, exibia em ambos os lados diversos selos cor de vinho e chocolate, que em retângulos por sob uma figura de homem tinham os dizeres dois e seis cents. Isto indicava que a carta provinha dos Estados Unidos da América.
— Bem! — disse Kin-Fo encolhendo os ombros; — é uma carta do meu procurador de São Francisco.
E atirou-a para um canto do divã.
Realmente, que poderia dizer-lhe o seu correspondente? Que as ações que constituíam quase toda a sua fortuna dormiam tranqüilamente na caixa-forte do Banco Central Californiano, que tinham valorizado vinte ou trinta por cento, que os dividendos a distribuir excederiam os do ano precedente, etc, etc. Alguns milhares de dólares a mais ou a menos não eram coisa que verdadeiramente o emocionasse.
Contudo, momentos depois Kin-Fo retomou a carta e rasgou-lhe maquinalmente o subscrito, mas em vez de a ler seus olhos buscaram em primeiro lugar a assinatura.
— É com efeito uma carta do meu procurador — disse ele, — e só pode tratar de negócios. Deixemos os negócios para amanhã!
E ia de novo abandonar a carta, quando de repente notou uma palavra várias vezes sublinhada na segunda página. Era a palavra passivo, para a qual o procurador de S. Francisco quisera evidentemente atrair a atenção do seu constituinte.
Kin-Fo recomeçou então a ler a carta, prosseguindo até à derradeira linha, com um sentimento de curiosidade muito para admirar da sua parte.
Franziu um instante o sobrolho, mas um leve sorriso desdenhoso lhe aflorou aos lábios quando terminou a leitura. Ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto, aproximou-se mesmo do tubo acústico que o punha em comunicação direta com Wang. Chegou a aproximar os lábios do bocal e esteve a ponto de dar o assobio de chamada, mas reconsiderando deixou cair a serpente de borracha e voltou a sentar-se no divã.
— Puf! — murmurou.
E todo o Kin-Fo estava nessa exclamação.
— E ela? — continuou em seguida. — Ela é realmente mais interessada do que eu em tudo isto!
Aproximou-se então de uma pequena mesa de laça sobre a qual poisava uma caixa oblonga, preciosamente lavrada. Ia abri-la mas deteve-se.
— Que me dizia ela em sua última carta? — murmurou. E em vez de levantar a tampa da caixa, apertou a mola que havia numa das extremidades.
Imediatamente se ouviu uma voz cheia de meiguice: "Meu irmãozinho mais velho! Já não sou para ti como a flor Mei-hua na primeira lua, como a flor do damasqueiro na segunda, como a flor do pessegueiro na terceira! Meu querido coração de pedra preciosa, desejo-te mil, dez mil dias de felicidade!..."
Era a voz de uma jovem, de que o fonógrafo repetia as doces palavras.
— Pobre irmãzinha mais nova! — disse Kin-Fo.
Em seguida, abrindo a caixa retirou do aparelho o papel sulcado de ranhuras que reproduzira todas as inflexões daquela voz distante, substituindo-o por um outro. O fonógrafo estava então aperfeiçoado a tal ponto, que bastava falar em voz alta para que a membrana fosse impressionada e o cilindro, movido por um mecanismo de relojoaria, registrasse as palavras no papel do aparelho.
Kin-Fo esteve falando aproximadamente um minuto. A sua voz, sempre calma, não revelava o estado de alegria ou tristeza em que formulava o seu pensamento.
Três ou quatro frases, quando muito, foi o que disse Kin-Fo. Depois deteve o movimento do fonógrafo o papel especial onde a agulha, acionada pela membrana, traçara as ranhuras oblíquas correspondentes às palavras pronunciadas; a seguir colocou esse papel num envelope que fechou, e no qual escreveu, da direita para a esquerda, o seguinte endereço:
Senhora LÉ-U
Avenida de Cha-Cua Pequim.
Uma campainha elétrica fez imediatamente surgir o criado encarregado da correspondência, que recebeu ordem de levar sem demora essa carta ao correio.
Uma hora depois Kin-Fo dormia tranqüilamente, apertando nos braços o seu tchêu-ju-jen, espécie de travesseiro de bambu trançado que mantém nas camas chinesas uma temperatura média, muito apreciável naquelas quentes latitudes.



Capítulo V
EM QUE LÉ-U RECEBE UMA CARTA QUE TERIA PREFERIDO NÃO RECEBER.

— Não tens ainda nenhuma carta para mim?
— Não, minha senhora!
— Como o tempo me parece longo, velha mãe!
Era assim que pela décima vez naquele dia falava a encantadora Lé-u, no boudoir da sua casa da avenida Cha-Cua, em Pequim. A velha mãe que lhe respondia, e à qual ela dava essa designação empregada na China com os criados de idade avançada, era a rabugenta e desagradável senhorita Nan.
Lé-u casara-se aos dezoito anos com um letrado de primeiro grau, colaborador do famoso Se-Khu-Tsuane-Chu,1 sábio que tinha o dobro da sua idade e faleceu três anos após essa desproporcionada união.
A jovem viúva achara-se então sozinha no mundo sem contar ainda vinte e um anos. Kin-Fo viu-a numa viagem que por essa época fez a Pequim, e Wang, que a conhecia, chamou para a encantadora criatura a atenção do seu indiferente discípulo. Kin-Fo abandonou-se lentamente à idéia de modificar as condições da sua vida, desposando a linda viúva. Lé-u não se mostrou insensível à proposta, e foi assim que o casamento, resolvido com grande satisfação do filósofo, devia celebrar-se quando Kin-Fo, tomadas em Shangai as necessárias disposições, voltasse a Pequim.
No Celeste Império não é costume casarem-se as viúvas — e não porque elas o não desejem tanto quanto as suas colegas ocidentais, mas porque há poucos partidários desse desejo. Se Kin-Fo fazia exceção à regra, é porque Kin-Fo, como se sabe, era um original. É verdade que tornando a casar, Lé-u perderia o direito de passar sob os paé-lus, arcos comemorativos que o imperador mandava de vez em quando erguer em honra das mulheres célebres pela fidelidade ao defunto marido, tais como a viúva Sung, que jamais quis abandonar o túmulo do esposo, ou a viúva Kung-Kiang, que cortou um braço, ou ainda a viúva Yen-Tchiang que se desfigurou para provar a sua dor conjugai. Mas Lé-u entendeu que podia empregar melhor os seus vinte anos. Preferia retomar essa vida de obediência, que é o papel da mulher na família chinesa, renunciar a tudo o que se passa fora da sua casa, conformar-se com os preceitos do livro Li-nun sobre os deveres domésticos, e do livro Nei-tso-pien sobre os deveres do casamento, readquirir enfim a consideração de que goza a esposa, que nas classes elevadas não é uma escrava, como geralmente se pensa. Inteligente e instruída, Lé-u compreendia também o lugar que iria desempenhar na vida do rico entediado, e sentindo-se atraída para ele pelo desejo de lhe provar que a felicidade existe neste mundo, estava pronta para a sua nova vida.
O sábio, ao morrer, deixara a jovem viúva numa situação econômica desafogada, embora medíocre. A casa da avenida Cha-Cua era modesta e a intolerável Nan resumia toda a criadagem, mas Lé-u acostumara-se aos seus modos desagradáveis, aliás pouco comuns aos servos do Império das Flores.
O boudoir era o aposento preferido da jovem senhora. O mobiliário seria considerado muito simples, não fossem os ricos presentes que havia dois meses chegavam de Shangai. Das paredes pendiam alguns quadros, entre outros uma obra-prima do velho pintor Huan-Tse-Nen,2 que chamaria a atenção dos entendedores, além de aquarelas muito chinesas, cavalos verdes, cães cor de violeta e árvores azuis, devidos a alguns artistas modernos locais. Sobre uma mesa de laça multiplicavam-se, como grandes borboletas de asas abertas, leques vindos da famosa escola de Swatow. De um vaso de porcelana suspenso pendiam elegantes festões dessas flores artificiais, tão admiravelmente fabricadas com o miolo da "Arábia papirífera" da Ilha Formosa, rivais dos brancos nenúfares, crisântemos amarelos e lírios vermelhos do Japão, que enchem as jardineiras de madeira finamente esculpida. As esteiras de bambu trançado apenas coam para aquele ambiente uma luz muito suave, quebrando, quase se poderia dizer debulhando os raios solares. Um magnífico painel, feito de grandes penas de gavião, cujas malhas, artisticamente dispostas, figuravam uma imensa peônia, — emblema da beleza no Império dos Flores —; dois viveiros em forma de pagode, verdadeiros calidoscópios das mais brilhantes aves da índia; alguns tiemaols éolios, cujas placas de vidro vibram ao vento, mil objetos enfim que recordam uma pessoa ausente, completavam a curiosa ornamentação daquele boudoir.
— Ainda não chegou carta, Nan?
— Não, senhora; ainda não.
Era uma encantadora mulher, esta Lé-u. Linda, mesmo para olhos europeus, branca e não amarela, tinha uns meigos olhos levemente inclinados para as têmporas, cabelos negros ornados de algumas flores de pessegueiro presas por alfinetes de jade verde, dentes miúdos e brancos, sobrancelhas com uma ligeira sombra de tinta da China. Não usava nas faces camadas de mel nem de branco de Espanha, como costumam as beldades do Celeste Império, nem rodela de carmim no lábio inferior, nem traço vertical entre os dois olhos, enfim nada dessas camadas de pintura em que as damas da corte imperial gastam anualmente dez milhões de sapecas. A jovem viúva não carecia desses ingredientes artificiais. Pouco saía da sua morada de Cha-Cua, podendo portanto dispensar essa máscara que toda a mulher chinesa usa fora de casa.
As roupas de Lé-u eram as mais simples e elegantes. Um longo vestido de quatro aberturas, guarnecido de uma larga faixa bordada; por sob o vestido uma saia pregueada, um peitilho ornado de sutaches em filigrana de ouro, calças presas na cinta e ajustando-se à meia de seda nanquim, lindas chinelas enfeitadas de pérolas; e se acrescentarmos que as suas mãos eram finas, e que ela mantinha as unhas compridas e rosadas, em pequenos dedais de prata cinzelados com um gosto minucioso, nada mais faltava à jovem viúva para ser encantadora.
E os pés? Tinha-os pequenos, sim, mas porque a natureza lhos dera assim, e não em conseqüência desse hábito de deformação bárbara que tende felizmente a desaparecer. Tal costume já dura há setecentos anos, e provavelmente deve-se a alguma princesa estropiada. Em sua aplicação mais simples, operando a flexão dos quatro artelhos sob a planta do pé, e deixando o calcâneo intacto, faz da perna uma espécie de cone truncado, embaraça completamente o andar, predispõe à anemia, e nem sequer tem razão de ser, como se poderia acreditar, no ciúme do marido. Felizmente, desde a conquista tártara que vai sendo abolido. Agora já não há três chinesas sobre dez que tenham sido submetidas desde tenra idade a essa seqüência de operações dolorosas que causam a deformação do pé.
— É impossível que hoje não venha carta! — observou outra vez Lé-u. — Vai verificar, velha mãe.
— Já disse que não veio! — respondeu Nan com insolência, retirando-se do quarto a resmungar.
Lé-u resolveu então trabalhar para se distrair um pouco. Era ainda um modo de pensar em Kin-Fo, pois estava bordando para ele um par de chinelas de estofo, produção quase exclusivamente reservada à mulher nos lares chineses, seja qual for a classe a que pertençam. Mas em breve o trabalho lhe caía das mãos. Ergueu-se, tomou de uma caixa duas ou três pastilhas que lhe estalaram nos dentes, e em seguida abriu um livro, o Nushum, código de preceitos que toda a esposa virtuosa deve ler continuamente.
"Assim como a primavera é a estação favorável para o trabalho, do mesmo modo a alvorada é a ocasião mais propícia do dia.
"Erguei-vos cedo, não vos deixeis vencer pelas delícias do sono.
"Tratai da amoreira e do cânhamo. "Fiai com zelo a seda e o algodão.
"A virtude das mulheres reside na atividade e na economia. "Os vizinhos vos elogiarão..."
O livro fechou-se, a meiga Lé-u já não prestava atenção ao que lia.
— Onde estará ele? — perguntava-se. — Deve ter ido a Cantão! Será que já regressou a Shangai? Quando chegará a Pequim? O mar ter-lhe-á sido propício? Que a deusa Koanina o proteja!
Tais eram os pensamentos da inquieta senhora, cujos olhos se fixaram distraidamente numa coberta de mesa, feita com arte de pequeninos retalhos, uma espécie de mosaico de pano à moda portuguesa em que se esboçavam o pato mandarim e sua família, símbolo da fidelidade. Por fim, acercou-se de uma jardineira e colheu uma flor ao acaso.
— Ah! — exclamou ela; — não é a flor do salgueiro verde, emblema da primavera, da juventude e da alegria! É o crisântemo amarelo que simboliza o outono e a tristeza!
Quis reagir contra a ansiedade que agora a invadia toda. Ali estava o seu lut.; seus dedos fizeram-lhe vibrar as cordas, seus lábios murmuraram as primeiras palavras da canção das Mãos-unidas, mas ela não pôde prosseguir.
— Dantes, — pensava ela — não havia atraso em suas cartas! Eu lia-as cheia de emoção! Ou então, em vez das linhas que só se destinavam aos meus olhos, era a sua própria voz que eu podia ouvir! Esse aparelho que ali está falava-me como se ele estivesse junto de mim!
Lé-u olhava o fonógrafo fixado sobre uma mesinha de laça, em tudo semelhante àquele de que Kin-Fo se servia em Shangai. Ambos podiam assim ouvir-se, ou melhor, ouvir as suas vozes, malgrado a distância que os separava... Mas também hoje, como já sucedia há alguns dias, o aparelho permanecia mudo sem nada revelar dos pensamentos do ausente.
Nesse instante surgiu à velha-mãe.
— Aqui está a carta! — disse ela.
E saiu após ter entregado a Lé-u um subscrito com o carimbo de Shangai.
Nos lábios da jovem nasceu um sorriso, houve um clarão mais vivo nos seus olhos, e ela rasgou o envelope sem se demorar a observá-lo como era seu costume...
Não era propriamente uma carta que continha o subscrito, mas um desses papéis de ranhuras oblíquas que, ajustados ao aparelho fonográfico, reproduzem todas as inflexões da voz humana.
— Ah! Prefiro isto! — exclamou alegremente Lé-u. — Ao menos poderei ouvi-lo!
O papel foi colocado no cilindro do fonógrafo, que um mecanismo de relojoaria logo pôs em movimento, e Lé-u aproximando o ouvido escutou uma voz bem conhecida que dizia:
"Irmãzinha mais nova, a ruína empolgou todas as minhas riquezas como o vento de leste arrebata as folhas amarelecidas do outono! Não quero tornar-te infeliz associando-te à minha miséria! Esquece aquele que dez mil desgraças fulminaram!
O TEU desesperado Kin-Fo!
Que provação para a jovem senhora! Uma vida mais amarga do que a amarga genciana a esperava agora. Sim, o vento da prosperidade roubava-lhe as últimas esperanças com a fortuna do seu amado! O amor que Kin-Fo lhe dedicava estaria então para sempre perdido? Seu amigo só acreditava na felicidade que dá a riqueza. Ah, pobre Lé-u! Dir-se-ia agora um papagaio cujo fio se parte, e cai ao chão espedaçado!
A um chamado seu, Na entrou no quarto, encolheu os ombros e transportou a ama para o seu ano, que embora fosse uma cama-fogão, artificialmente aquecida, pareceu bem fria à desventurada Lé-u. Como as cinco vigílias dessa noite de insônia custaram a passar!



Capítulo VI
QUE TALVEZ DESPERTE NO LEITOR O DESEJO DE FAZER UMA VISITA AOS ESCRITÓRIOS DE "A CENTENÁRIA".

No dia seguinte Syin-Fo, cujo desdém pelas coisas deste mundo se não desmentira um instante, saiu sozinho de casa. Com o seu andar inalterável desceu a margem direita do Creek. Ao chegar à ponte de madeira que liga a concessão inglesa à concessão americana, atravessou o rio e encaminhou-se para um edifício de excelente aparência, que se erguia entre a igreja das Missões e o consulado dos Estados Unidos.
No frontespício dessa casa havia uma larga placa de cobre, onde se via, em letras tumulares, a seguinte inscrição:
A CENTENÁRIA
Companhia de seguros de vida
Capital realizado: 20 milhões de dólares
Agente exclusivo: William J. Bidulph
Kin-Fo empurrou a porta, protegida por um segundo batente acolchoado, e achou-se num escritório dividido em duas partes por uma simples grade a meia altura. Alguns ficheiros de cartão, livros com feixos de níquel, um cofre americano de segredo que se defendia por si mesmo, duas ou três mesas onde trabalhavam os empregados da agência, uma complicada escrivaninha reservada ao honrado William J. Bidulph — tal era a mobília dessa sala mais apropriada a uma casa da Broadway do que a um prédio erigido às margens do Wusung.
William J. Bidulph era o agente geral, na China, da companhia de seguros de vida e contra incêndio cuja sede social se encontrava em Chicago. A Centenária — um bom título para atrair clientes, — a Centenária muito conhecida nos Estados Unidos, tinha sucursais e representantes nas cinco partes do mundo. Fazia negócios vultosos e excelentes graças aos seus estatutos ousada e liberalmente constituídos, que lhe permitiam segurar todos os riscos.
Os celestiais também já começavam a acompanhar a moderna corrente de idéias que abarrota os cofres das empresas desse gênero. Grande número de casas do Império do Meio estavam garantidas contra incêndio, e as apólices de seguro em caso de morte, com as suas múltiplas combinações, abundavam em assinaturas chinesas. A placa da Centenária enfeitava já o alto das portas de Shangai, e, entre outras, as pilastras do rico yamen de Kin-Fo. Não era pois para se garantir contra um incêndio, que o discípulo de Wang pretendia visitar o honrado William J. Bidulph.
— Está o senhor Bidulph? — perguntou ele ao entrar.
William J. Bidulph lá estava "em pessoa", como um fotógrafo que opera por si mesmo, sempre à disposição do público, — um homem de cinqüenta anos, gravemente vestido de preto, casaca, gravata branca, a barba toda mas sem bigode, um perfeito americano.
— A quem tenho a honra de falar? — perguntou William J. Bidulph.
— Ao senhor Kin-Fo, de Shangai.
— O senhor Kin-Fo!... um dos clientes da Centenária, apólice número vinte e sete mil e duzentos...
— Eu mesmo.
— Terei a sorte de lhe poder prestar algum serviço?
— Desejava falar-lhe em particular — respondeu Kin-Fo.
A conversa entre essas duas pessoas poderia realizar-se com toda a facilidade, visto que William J. Bidulph falava tão bem o chinês quanto Kin-Fo se exprimia em inglês.
O importante cliente foi pois introduzido com as deferências que lhe eram devidas, num gabinete forrado de tapeçarias, com portas duplas, onde se poderia maquinar a derrubada da dinastia dos Tsing, sem temor de ser ouvido pelos mais finos tipaos do Celeste Império.
— Senhor, — começou Kin-Fo tendo-se sentado numa cadeira de balanço, diante de um aquecedor a gás — eu desejava entrar em negócios com a sua companhia, e garantir pela minha morte o pagamento de uma importância cujo montante lhe darei em seguida.
— Pois meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph, — nada mais simples. Duas assinaturas, a sua e a minha, por baixo de uma apólice, e estará feito o seguro após algumas formalidades preliminares. Mas... queira permitir-me uma pergunta... o senhor deseja então morrer em idade bem avançada, o que de resto é bastante natural?
— Por quê? — perguntou Kin-Fo. — De um modo geral o seguro de vida indica, por parte do segurado, o receio de uma morte demasiado próxima...
— Oh, meu caro senhor! — exclamou William J. Bidulph com a maior seriedade; — esse receio nunca atinge os clientes da Centenária! Seu próprio nome o indica. Segurar-se conosco é adquirir um alvará de longa vida! Peço perdão, mas é raro que os nossos segurados não atinjam os cem anos... muito raro... raríssimo! No interesse deles deveríamos tirar-lhes a vida! Por isso fazemos esplêndidos negócios! Previno-o portanto, senhor, que segurar-se na Centenária é adquirir quase a certeza de se tornar por sua vez em centenário.
— Ah! — observou tranqüilamente Kin-Fo, cravando o seu olho frio em William J. Bidulph.
O agente geral, sério como um ministro, não tinha de nenhum modo o ar de quem estivesse gracejando.
— Seja como for — prosseguiu Kin-Fo, — desejo fazer um seguro de duzentos mil dólares.
— Digamos assegurar-se um capital de duzentos mil dólares — respondeu William J. Bidulph.
E escreveu num caderno essa quantia, cuja magnitude nem sequer o fez pestanejar.
— O senhor sabe, — acrescentou ele — que o seguro fica sem efeito, e todos os prêmios pagos, seja qual for o seu número, ficarão pertencendo à companhia, se a morte do segurado ocorrer por intervenção do beneficiário?
— Sei disso muito bem.
— E que riscos pretende o meu caro senhor assegurar?
— Todos.
— Os riscos de viagem por terra e por mar, e os ocorridos fora dos limites do Celeste Império?
— Justamente.
— Os riscos de condenação judiciária?
— Também.
— Os de duelo?
— Também.
— Os de serviço militar?
— Sem dúvida.
— Nesse caso os prêmios serão bem altos.
— Pagarei o que for.
— Perfeitamente.
— Mas — acrescentou Kin-Fo, — há um risco muito importante que o senhor ainda não mencionou.
— Qual?
— O de suicídio. Pensei que os estatutos da Centenária o autorizassem a segurar também o suicídio.
— Mas com certeza, senhor — respondeu William J. Bidulph esfregando as mãos. — Essa é mesmo uma das nossas grandes fontes de lucro! O senhor compreende que os nossos clientes são em geral pessoas apegadas à vida, e que aqueles que por um excesso de prudência desejam garantir-se contra o suicídio, nunca se matam.
— Não importa — objetou Kin-Fo. — Por motivos pessoais desejo segurar também esse risco.
— Como quiser, mas o prêmio vai ser considerável!
— Repito-lhe que pagarei o que for preciso.
— Está entendido. Digamos então — prosseguiu William J. Bidulph continuando a escrever no seu caderno, — riscos de mar, de viagem, de suicídio...
— E nessas condições — perguntou Kin-Fo, — qual será o montante do prêmio a pagar?
— Meu caro senhor — respondeu o agente geral, — os nossos prêmios foram calculados com exatidão matemática, uma exatidão que honra a companhia. Não são baseados, como sucedia outrora, nas tabelas de Duvillars... Conhece Duvillars?
— Não tenho essa honra.
— Um estatístico notável, mas já antigo... tão antigo mesmo, que já morreu. Na época em que ele elaborou as suas famosas tabelas, que servem ainda para a escala de prêmios da maior parte das companhias européias, muito atrasadas, a média de vida era inferior à de hoje, graças ao progresso geral. Nós tomamos por base uma média mais elevada, portanto mais favorável ao segurado, que paga menos dinheiro e vive mais tempo...
— Qual seria o montante do meu prêmio? — insistiu Kin-Fo querendo deter o verboso agente, que não perdia ocasião de exaltar as vantagens oferecidas pela Centenária.
— Senhor — respondeu William J. Bidulph, — poderei permitir-me a indiscrição de lhe perguntar que idade tem?
— Trinta e um anos.
— Muito bem; aos trinta e um anos, se se tratasse apenas de segurar os riscos ordinários, o senhor teria de pagar em qualquer companhia, dois e oitenta e três por cento. Mas na Centenária seriam apenas dois e setenta, o que representaria anualmente, para um capital de duzentos mil dólares, cinco mil e quatrocentos dólares.
— E nas condições que desejo?
— Segurando todos os riscos, inclusive o suicídio?
— Especialmente o suicídio.
— Meu caro senhor — respondeu num tom amável William J. Bidulph, após consultar uma tabela impressa na última página do seu caderno, — não podemos aceitar esse seguro a menos de vinte e cinco por cento.
— O que perfaz?
— Cinqüenta mil dólares.
— E como deve ser pago esse prêmio?
— De uma só vez ou em prestações mensais, à vontade do segurado.
— Quanto corresponderia aos dois primeiros meses?
— Oito mil trezentos e tanta e dois dólares que, sendo pagos hoje, 30 de abril, caro senhor, o cobririam até 30 de junho deste ano.
— Convêm-me essas condições — disse Kin-Fo — aqui está o prêmio correspondente aos dois primeiros meses.
E colocou sobre a mesa um alentado rolo de dólares-papel que tirou do bolso.
— Muito bem, senhor, perfeitamente! — tornou William J. Bidulph. — Mas antes de assinar a apólice há uma formalidade a cumprir.
— Qual?
— O senhor tem de submeter-me a uma visita do médico da companhia.
— Para que, essa visita?
— Para verificar se a sua constituição é sólida, se não padece de alguma doença orgânica capaz de lhe abreviar a vida, se oferece, enfim, garantias de uma longa existência.
— Mas para que, se eu seguro até o duelo e o suicídio — observou Kin-Fo.
— Ah! Meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph sorrindo sempre, — uma doença qualquer não revelada que o pudesse vitimar dentro de dois meses, custar-nos-ia nada menos de duzentos mil dólares!
— Mas o meu suicídio custar-lhes-ia a mesma coisa, creio eu!
— Bem — objetou o risonho agente geral, dando amistosas pancadinhas na mão de Kin-Fo, — já tive a honra de lhe dizer que muitos dos nossos clientes se seguram contra o suicídio, mas jamais se suicidam. De resto, não nos é proibido mandá-los vigiar... Oh! O mais discretamente possível, sem dúvida! E posso acrescentar — como uma observação inteiramente pessoal, — que de todos os clientes da Centenária, são precisamente esses que durante mais tempo pagam os seus prêmios. Aqui para nós, por exemplo, por que haveria o rico senhor Kin-Fo de suicidar-se?
— E por que haveria de segurar-se contra o suicídio o rico senhor Kin-Fo?
— Oh! — exclamou William J. Bidulph; — para ter a certeza de chegar até muito velho, na sua qualidade de cliente da Centenária!
Era inútil discutir por mais tempo com o agente geral da famosa companhia. Ele tinha tanta certeza do que dizia!
— E agora — tornou ele, — a favor de quem deve ser feito esse seguro de duzentos mil dólares? Quem será o beneficiário da apólice?
— Haverá dois beneficiários — respondeu Kin-Fo.
— Em partes iguais?
— Não; em partes desiguais. Um com cinqüenta mil dólares, outra com cento e cinqüenta mil.
— Digamos então cinqüenta mil dólares para o senhor...
— Wang.
— O filósofo Wang?
— Ele próprio.
— E os cento e cinqüenta mil dólares?
— Para a senhora Lé-u, de Pequim.
— De Pequim... — repetiu William J. Bidulph acabando de escrever os nomes dos interessados.
Em seguida acrescentou:
— Qual é a idade da senhora Lé-u?
— Vinte e um anos — respondeu Kin-Fo.
— Oh! — exclamou o agente; — eis aí uma senhora que já estará bem velha quando vier a receber o capital segurado!
— Por que razão, se faz favor?
— Por que o meu excelente senhor vai viver mais de cem anos. E a do filósofo Wang?
— Cinqüenta e cinco anos.
— Então esse honrado cavalheiro pode ficar certo de que não chegará a receber nada.
— É o que havemos de ver, senhor!
— Meu caro senhor — respondeu William J. Bidulph, — se eu aos cinqüenta e cinco anos fosse herdeiro de um homem de trinta e um, que ainda por cima vai morrer centenário, não teria a ingenuidade de contar com a sua herança!
— Um seu criado, senhor — atalhou Kin-Fo dirigindo-se para a porta do gabinete.
— Eu é que permaneço às suas ordens — respondeu William J. Bidulph, inclinando-se diante do novo cliente da Centenária.
No dia seguinte, o médico da companhia fez a Kin-Fo a visita regulamentar. "Corpo de ferro, músculos de aço, pulmões como foles de órgão" dizia o relatório. Nada obstava a que a companhia admitisse como seu segurado um homem tão robustamente constituído. A apólice foi portanto assinada nessa data, por parte de Kin-Fo em favor da jovem viúva e do filósofo Wang, e do outro lado por William J. Bidulph como representante da companhia. Nem Lé-u nem Wang, a não ser por alguma circunstância imprevista, deviam jamais saber o que Kin-Fo acabava de fazer por ambos, senão no dia em que a Centenária fosse obrigada a entregar-lhes esse capital, derradeira generosidade do ex-milionário.




Capítulo VII
QUE SERIA MUITO TRISTE SE NÃO SE TRATASSE DE USOS E COSTUMES PECULIARES AO CELESTE IMPÉRIO.

Fosse qual fosse a opinião do honrado William J. Bidulph, os fundos da Centenária estavam muito seriamente ameaçados. O fato é que o plano de Kin-Fo não era daqueles que, feitas as devidas reflexões, se adiam indefinidamente. Uma vez arruinado, o discípulo de Wang resolvera formalmente acabar com uma existência que, mesmo nos tempos da riqueza, só lhe proporcionara melancolias e enfados.
A carta vinda de S. Francisco, e que Sun só lhe entregara com oito dias de atraso, comunicava-lhe a suspensão dos pagamentos por parte do Banco Central Californiano. Ora, a fortuna de Kin-Fo, como sabemos, era constituída na sua quase totalidade de ações desse conhecido Banco, até então perfeitamente sólido. Não podia haver dúvida; por inverossímil que pareça tal notícia, era infelizmente verdadeira. A suspensão de pagamentos do Banco Central Californiano acabava de ser confirmada pelos jornais chegados a Shangai. Fora decretada a falência e Kin-Fo ficava completamente arruinado.
Na verdade, além das ações desse Banco, que lhe restava? Nada, ou quase nada. A residência de Shangai, cuja venda quase impraticável, lhe não forneceria recursos suficientes. Os oito mil dólares de prêmios pagos à Centenária, algumas ações da companhia de vapores de Tien-Tsin que, vendidas nesse mesmo dia, mal lhe permitiriam atender às últimas obrigações, eis agora toda a sua fortuna.
Um ocidental, um francês, um inglês, talvez encarasse filosòficamente essa nova existência e procurasse refazer a vida pelo trabalho. Um celestial achava-se no direito de pensar e agir de modo inteiramente diverso. Como autêntico chinês e com essa típica indiferença que caracteriza a raça amarela, Kin-Fo iria, sem qualquer abalo de consciência, escolher a morte voluntária como meio de resolver as suas dificuldades.
O chinês tem apenas a coragem passiva, mas essa possui-a no mais alto grau. O seu desdém pela morte é verdadeiramente extraordinário! Quando doente, vê-a aproximar-se sem temor. Condenado, já nas mãos do carrasco, encara-a sem a mínima fraqueza. As execuções públicas tão freqüentes, a vista dos horríveis suplícios que comporta a escala penal no Celeste Império, cedo familiarizam os filhos de Céu com a idéia de abandonar sem pena as coisas deste mundo.
Assim sendo, não é de admirar que em todas as famílias essa idéia da morte esteja na ordem do dia e seja o motivo de muitas palestras. Ela está presente nos atos mais comuns da vida. O culto dos ancestrais é mantido pela gente mais humilde. Não há uma só casa rica que não possua uma espécie de Santuário doméstico, uma cabana miserável onde um canto não tenha sido reservado para as relíquias dos avós, cuja festa se celebra no segundo mês. E eis porque se encontra no mesmo estabelecimento onde se adquirem berços de recém-nascidos e enxovais para casamento, um variado estoque de caixões, que formam um artigo corrente no comércio chinês.
A compra de um caixão é uma das constantes preocupações do celestial. O mobiliário estaria incompleto se o ataúde faltasse na casa paterna. O filho considera de seu dever oferecê-lo ao pai enquanto vivo, como uma tocante prova de afeição. Esse ataúde é colocado numa sala especial; enfeitam-no, conservam-no, e freqüentemente, depois de ter recebido os seus mortais despojos, é conservado por longos anos com piedosa deferência. Enfim, o respeito pelos mortos constitui a base da religião chinesa, contribuindo para tornar mais estreitos os laços da família.
Kin-Fo, portanto, mais do que qualquer outro, graças ao seu temperamento, devia encarar com perfeita tranqüilidade a idéia de pôr fim aos seus dias. Assegurara o futuro dos dois entes que mais afeição lhe mereciam. Que mais podia agora lastimar? Nada. O suicídio nem mesmo lhe causava remorsos. O que se considera um crime nos países civilizados do Ocidente, é por assim dizer um ato legítimo na extravagante civilização da Ásia oriental.
A resolução de Kin-Fo estava por isso tomada, e nenhuma influência conseguiria demovê-lo de a pôr em prática, nem mesmo a do filósofo Wang.
Aliás, este ignorava inteiramente as intenções do discípulo. Sun, por seu lado não sabia mais do que ele, tendo apenas notado que após o seu regresso, Kin-Fo se mostrava mais tolerante com as suas tolices cotidianas.
Decididamente Sun ia mudando de opinião; seria impossível encontrar patrão melhor, e agora o seu precioso rabicho saltitava-lhe nas costas com desusada segurança.
Diz um ditado chinês:
"Para ser feliz na terra, é preciso viver em Cantão e morrer em Liao-Tchéu".
Em Cantão, realmente, se encontram todas as grandezas da vida, e é em Liao-Tchéu que se fabricam os melhores caixões.
Kin-Fo não podia deixar de fazer a sua encomenda a uma boa casa, a fim de que o seu último leito de repouso chegasse a tempo. Estar corretamente deitado para dormir o sono eterno é a constante preocupação de todo o celestial que sabe viver.
Ao mesmo tempo Kin-Fo mandou comprar um galo branco, que tem, como é sabido, a propriedade de encarnar os espíritos flutuantes e que poderiam apoderar-se, de passagem, de algum dos sete elementos que compõem a alma chinesa.
Por aqui se vê que se o discípulo de Wang mostrava indiferença pelas coisas da vida, outro tanto não sucedia com as respeitantes à morte.
Tomadas essas providências, só lhe restava redigir o programa dos seus funerais, e portanto nesse mesmo dia, uma bela folha desse papel chamado de arroz, mas a cuja confecção o arroz é totalmente estranho, recebeu as derradeiras vontades de Kin-Fo. Tendo legado à jovem viúva a sua casa de Shangai, e a Wang um retrato do imperador Tai-ping, que o filósofo via sempre com agrado, — tudo isto sem prejuízo das somas garantidas pela Centenária, — Kin-Fo traçou com mão firme a ordem e a marcha das pessoas que deviam assistir às suas exéquias.
Em primeiro lugar, à falta de parentes que não possuía, uma parte dos amigos que ainda conservava deviam figurar à testa do cortejo, todos vestidos de branco, que é a cor do luto no Celeste Império. Ao comprido das ruas, e até ao túmulo erguido há muito no cemitério de Shangai, estender-se-ia uma dupla fileira de empregados fúnebres, carregando diferentes atributos, guarda-sóis azuis, alabardas, mãos de justiça, painéis de seda, letreiros com os detalhes da cerimônia, todos envergando uma túnica preta com cinto branco, chapéu preto de penacho vermelho. A seguir ao primeiro grupo de amigos caminharia um guia vestido de escarlate dos pés à cabeça, soando o gongo e precedendo o retrato do defunto, deitado numa espécie de esquife ricamente decorado. Viria depois um segundo grupo de amigos, os que devem desmaiar a intervalos regulares sobre almofadas previamente dispostas. Por fim, um último grupo de jovens, abrigados sob um dossel azul e ouro, semearia o trajeto de pedacinhos de papel branco furados no meio como sapecas, e destinados a distrair os maus espíritos tentados a participar do cortejo.
Surgiria então o catafalco, enorme palanquim armado em seda roxa, bordado de dragões de ouro, que cinqüenta criados levariam aos ombros entre uma dupla fila de bonzos. Os sacerdotes, com os seus paramentos cor de cinza, vermelhos e amarelos, recitando as últimas preces, alternariam com o trovão dos gongos, o assobio das flautas e a ruidosa fanfarra das compridas trompas de seis pés. Atrás de tudo os carros fúnebres, cobertos de panos brancos, fechariam o suntuoso préstito cujos gastos deviam absorver os recursos finais do opulento defunto.
Aliás, este programa nada tinha de extraordinário. Numerosos enterros desta classe circulam pelas ruas de Cantão, de Shangai ou de Pequim, e os celestiais apenas vêem neles a homenagem natural prestada a quem deixou de ser.
A 20 de outubro chegou uma caixa expedida de Liao-Tchéu e endereçada a Kin-Fo na sua residência de Shangai, contendo, devidamente acondicionado, o ataúde por ele encomendado. Nem Wang, nem Sun, nem qualquer dos criados do yamen tinha motivos para se admirar. Não há, como dissemos, chinês algum que não deseje possuir enquanto vivo o leito em que dormirá por toda a eternidade.
Este caixão, uma obra-prima do fabricante de Liao-Tchéu, foi colocado na "sala dos antepassados", onde, escovado, encerado, polido, aguardaria sem dúvida por longo tempo, o dia em que o discípulo do filósofo Wang o utilizasse para si mesmo... Mas assim não devia ser. Os dias de Kin-Fo estavam contados, estava próxima a hora que devia relegá-lo para a categoria dos ascendentes da família.
Era nessa mesma noite que Kin-Fo resolvera abandonar definitivamente a vida.
Chegou durante o dia uma carta da inconsolável Lé-u.
A jovem viúva punha à disposição de Kin-Fo o pouco que possuía. Não lhe importava a fortuna, poderia muito bem passar sem ela! Amava-o! Que mais queria ele? Não poderiam ambos ser felizes gozando uma situação mais modesta?
Mas esta carta, embora revelando o mais sincero afeto, não podia alterar as resoluções de Kin-Fo.
— Só a minha morte a pode enriquecer — pensou ele.
Restava decidir onde e como teria lugar esse ato supremo. Kin-Fo experimentava uma espécie de prazer em regular esses detalhes, confiado em que no derradeiro instante uma emoção, ainda que leve, lhe fizesse palpitar o coração!
No interior do yamen erguiam-se quatro lindos quiosques, adornados com toda a fantasia que distingue o talento dos decoradores chineses. Todos tinham nomes significativos: o pavilhão da "Felicidade", onde Kin-Fo nunca entrava; o pavilhão da "Fortuna", para o qual só olhava com o mais profundo desdém; o pavilhão do "Prazer", cujas portas há muito se tinham fechado para ele, e o pavilhão da "Longa Vida" que resolvera mandar demolir!
Foi este que o seu instinto escolheu, e onde resolveu fechar-se ao cair da noite. Lá o encontrariam no dia seguinte, já feliz na morte.
Resolvido este ponto, como morreria? Rasgando o ventre como um japonês, enforcando-se com a faixa de seda como um mandarim, abrindo as veias num banho perfumado como um epicurista da antiga Roma? Não. Qualquer desses meios teria o seu quê de brutal, de descortês para com seus amigos e servidores. Um ou dois grãos de ópio misturados a um veneno sutil bastariam para o fazer transitar deste para o outro mundo sem disso ter consciência, levado talvez num desses sonhos que transformam o sono passageiro em sono eterno.
O sol principiava já a descer no horizonte. Kin-Fo tinha apenas mais algumas horas de vida, e queria tornar a ver, num último passeio, os campos de Shangai e as margens do Huang-Pu pelas quais tanta vez distraíra o seu tédio. Sozinho, sem mesmo ter avistado Wang nesse dia, deixou o yamen para lá voltar ainda uma vez e depois nunca mais sair.
O território inglês, a pequena ponte lançada sobre o Creek e a concessão francesa foram por ele atravessados nesse passo indolente que nem naquela hora suprema sentiu desejos de apressar. Pelo cais que rodeia o porto indígena contornou a muralha de Shangai até à catedral católica-romana, cuja cúpula domina o bairro meridional. Aí voltou à direita e subiu tranqüilamente o caminho que leva ao pagode de Lung-Hao.
Era a vasta campina rasa, desdobrando-se até às ensombradas alturas que limitam o vale do Min, imensas planícies pantanosas, que a indústria agrícola transformou em arrozais. De vez em quando uma rede de canais que o mar alimentava, algumas aldeias miseráveis cujas choças de caniço eram vedadas por um lodo amarelado, dois ou três campos de trigo em plano mais alto para se protegerem das águas. Ao longo dos estreitos atalhos um grande número de cães, cabritos brancos, patos e patas que fugiam correndo ou voando quando algum transeunte lhes perturbava os folguedos.
Esse campo, sabiamente cultivado e cuja aparência nada surpreenderia um nativo, chamaria contudo a atenção e até talvez provocasse a repulsa de um estrangeiro. Por toda a parte se viam caixões às centenas. Sem falar dos montículos que indicavam os mortos definitivamente enterrados, só se viam pilhas de caixas oblongas, pirâmides de ataúdes dispostos como as madeiras num pátio de serraria. A planície chinesa, nos arredores das cidades, não passa de um vasto cemitério. Os mortos atravancam o território tanto quanto os vivos. Pretende-se que é proibido enterrar caixões enquanto a mesma dinastia ocupa o trono do Filho do Céu, e essas dinastias duram séculos! Seja ou não verdadeira essa proibição, o certo é que os cadáveres, deitados nos seus caixões, uns pintados de vivas cores, outros escuros e modestos, uns novos e ovantes, outros desfazendo-se em poeira, aguardam durante anos o dia da sepultura.
Kin-Fo não se surpreendia com esse estado de coisas, caminhando aliás como quem em nada repara em torno de si. Dois estrangeiros vestidos à européia, que o vinham seguindo desde a saída do yamen, também lhe não chamaram a atenção. Não os viu, embora eles parecessem não o querer perder de vista. Conservavam-se a alguma distância, seguindo Kin-Fo quando este caminhava, detendo-se quando ele parava. Trocavam por vezes entre si certos olhares, duas ou três palavras, e com certeza andavam ali para o vigiar. De estatura mediana, trinta anos quando muito, ágeis, bem proporcionados, dir-se-iam dois cães de fila de olhar vivo e pernas leves.
Depois de andar pelo campo mais ou menos uma légua, Kin-Fo voltou às margens do Huang-Pu. Os dois podengos também retrocederam logo.
Encontrando no regresso dois ou três mendigos do mais sórdido aspecto, Kin-Fo deu-lhes esmola. Mais adiante, algumas chinesas cristãs — dessas que foram iniciadas nos trabalhos piedosos pelas irmãs de caridade francesas, — atravessaram o caminho. Andavam de cesto às costas, levando para as creches os pobres seres abandonados. Chamavam-lhes muito justamente "trapeiras de crianças", e na verdade os pequeninos infelizes outra coisa não eram que trapos largados às esquinas.
Kin-Fo esvaziou a bolsa nas mãos das caridosas irmãs, enquanto os dois estrangeiros pareciam espantados com semelhante gesto de um celestial.
Descera a noite, e Kin-Fo voltando aos muros de Shangai retomou o caminho do cais. A população flutuante ainda não dormia, por toda a parte se ouviam gritos e cantares.
Kin-Fo escutava, gostando de saber o que diziam as últimas palavras que lhe seria dado ouvir. Uma jovem tankadeira, conduzindo o seu sampan através das escuras águas do Huang-Pu, assim cantava:
Meu barco de vivas cores,
Está pintado
Com grinaldas de mil flores.
Nele vem o meu amado!
Deve chegar amanhã!
Um deus azul o vigia
Vara o jazer regressar.
Possa ele a travessia Encurtar!
— Voltará amanhã! — pensava Kin-Fo abanando a cabeça. — E eu, onde estarei eu amanhã?
A jovem tankadeira prosseguiu:
Quão longe andou, facilmente
Se imagina!
Foi à Mancharia ridente,
Foi às muralhas da China,
Correu terras, correu mares.
Como o meu coração treme
Noite em fora, quando venta!
E ele dominando ao leme
A tormenta!
Kin-Fo dessa vez ouviu sem dizer nada e a tankadeira concluiu:
Por que perseguir assim
A riqueza?
Queres morrer longe de mim?
Antes juntos na pobreza!
Já se passaram três luas...
O bonzo está-nos chamando
Para unir as nossas vidas.
E as duas fênix aguardando3
Ser unidas!
— Sim! — murmurou Kin-Fo; — a riqueza talvez não seja tudo neste mundo; mas não vale a pena viver para adquirir a certeza!
Meia hora depois Kin-Fo entrava de novo em casa, e os dois estrangeiros que o haviam seguido até lá tiveram de parar. Kin-Fo dirigiu-se tranqüilamente para o quiosque da "Longa Vida", abriu a porta, tornou a fechá-la, e encontrou-se sozinho num pequeno aposento fracamente iluminado por uma lanterna de vidros baços.
Sobre uma mesa, feita de um só bloco de jade, estava um pequeno cofre contendo alguns grãos de ópio misturados com um veneno mortal, uma "oportunidade" que o entediado rico tinha sempre ao alcance da mão.
Kin-Fo tomou dois desses grãos, introduziu-os num desses cachimbos de barro vermelho habitualmente usados pelos fumadores de ópio, e preparou-se para o acender.
— Que é isto? — exclamou ele. — Então nem sequer uma emoção no momento de adormecer para sempre?
Hesitou um instante.
— Não! — gritou ele atirando o cachimbo que se quebrou no chão. — Quero essa emoção suprema, ainda que seja só a da expectativa!... Quero-a e hei de tê-la!
E abandonando o quiosque num passo mais vivo do que costumava, saiu em direção ao quarto de Wang.





Capítulo VIII
EM QUE KIN-FO FAZ A WANG UMA PROPOSTA SÉRIA QUE ESTE ACEITA COM NÃO MENOR SERIEDADE.

O filósofo não estava ainda deitado. Estendido num divã lia o último número da Gazeta de Pequim. Quando franzia o sobrolho era decerto porque o jornal fazia algum elogio à dinastia reinante dos Tsing.
Kin-Fo empurrou a porta, entrou no quarto, jogou-se numa poltrona e começou sem outro preâmbulo:
— Wang, quero pedir-te um favor.
— Dez mil favores que fossem! — respondeu o filósofo deixando cair o jornal. — Fala, meu filho; fala sem receio, e seja o que for está concedido!
— O favor que desejo — prosseguiu Kin-Fo, — é daqueles que um amigo só pode fazer uma vez. Depois dele, Wang, ficarás dispensado dos outros nove mil novecentos e noventa e nove, e acrescento que nem mesmo deves esperar um agradecimento da minha parte.
— O mais hábil explicador de coisas inexplicáveis não conseguiria entender-te. De que se trata?
— Wang — disse Kin-Fo, — estou arruinado.
— Ora, ora! — exclamou o filósofo no tom de quem recebe uma notícia boa em vez de má.
— A carta que recebi aqui à nossa chegada de Cantão — prosseguiu Kin-Fo, — comunicava-me a falência do Banco Central Californiano. Além deste yamen e de um milheiro de dólares que me permitirão viver um ou dois meses ainda, não possuo mais nada.
— De modo que — perguntou Wang fitando bem o discípulo, — já não é o rico Kin-Fo que me fala?
— É o pobre Kin-Fo, a quem aliás a pobreza não assusta.
— Muito bem respondido, meu filho — disse o filósofo erguendo-se. — Parece que não perdi o meu tempo e o meu trabalho a ensinar-te a sabedoria! Até hoje apenas tens vegetado sem gosto, sem paixões e sem lutas! Agora vais viver, o futuro mudou! Que importa! Disse Confúcio, e o Talmude depois dele, sucedem sempre menos desgraças do que se teme! Vamos enfim ganhar o nosso arroz de cada dia. O NunSchum lá o diz: "Na vida há altos e baixos! A roda da fortuna gira incessantemente e o vento da primavera é variável! Rico ou pobre, sabe cumprir o teu dever!" Vamos?
E realmente Wang, como filósofo prático, parecia pronto a deixar a suntuosa morada. Mas Kin-Fo deteve-o.
— Eu disse que a pobreza não me assusta — acrescentou ele, — mas devo esclarecer que não estou resolvido a suportá-la.
— Ah! — exclamou Wang — queres então...?
— Morrer.
— Morrer! — repetiu tranqüilamente o filósofo. — O homem que está decidido a pôr fim à vida não o diz a ninguém.
— E eu já o teria feito — continuou Kin-Fo, com uma calma que nada ficava a dever à do filósofo, — se não desejasse que a minha morte me traga ao menos uma primeira e última emoção. Ora, quando ia fumar um desses grãos de ópio que sabes, meu coração batia tão pouco que joguei fora o veneno e vim à tua procura!
— Queres então, amigo, que morramos juntos? — perguntou Wang sorrindo.
— Não — respondeu Kin-Fo — necessito que vivas!
— Para quê?
— Para me matares com as tuas próprias mãos!
Àquela proposta inesperada, Wang nem sequer estremeceu. Mas Kin-Fo, que o olhava bem de frente, viu brilhar-lhe nos olhos um clarão. Teria acordado o antigo Tai-ping? O encargo que lhe ia dar o seu discípulo não lhe provocaria alguma hesitação? Dezoito anos teriam passado sobre a sua cabeça sem lhe afogarem os sanguinários instintos da juventude? Não teria uma objeção a fazer nem mesmo ao filho daquele que o recolhera? Não, Wang, o filósofo, não trepidaria. Mas o clarão extinguiu-se quase imediatamente, e Wang recuperou a sua fisionomia ordinária de bom homem, talvez um pouco mais séria. Tornou a sentar-se e perguntou:
— É esse o favor que desejas?
— É, — respondeu Kin-Fo — e com esse favor pagarás tudo o que poderias imaginar dever a Tchung-Héu e a seu filho.
— Que devo então fazer? — perguntou simplesmente o filósofo.
— De hoje até 25 de junho, vigésimo oitavo dia da sexta lua, entendes bem, Wang, dia em que completarei os meus trinta e um anos — devo ter cessado de viver! Devo ser morto por ti, pela frente, por trás, de dia ou de noite, não importa onde nem como, de pé, sentado, deitado, dormindo, acordado, com ferro ou com veneno! É preciso que em cada um dos oitenta mil minutos de que se comporá a minha vida durante mais cinqüenta e cinco dias, eu tenha o pensamento, e, como espero, o temor de que a minha vida pode acabar de repente. Quero ter diante de mim essas oitenta mil emoções, de tal modo que quando se separarem os sete elementos da minha alma, eu possa exclamar: "Enfim, vivi!"
Kin-Fo, contra o seu costume, falara com uma certa animação. Deve notar-se também que ele fixara o limite extremo da sua existência para seis dias antes do vencimento da sua apólice de seguro. Era agir como homem prudente, pois à falta do pagamento de um novo prêmio, qualquer atraso privaria os interessados dos benefícios do seguro. O filósofo ouvira-o com gravidade, atirando furtivamente rápidos olhares ao retrato do rei Tai-ping, que adornava o seu quarto, retrato esse que deveria herdar — coisa que ainda ignorava.
— Não recuarás perante a obrigação que vais assumir de me matar? — perguntou-lhe Kin-Fo.
Com um gesto, Wang indicou-lhe estar muito longe disso; vira coisas muito piores quando se insurgira sob o pendão dos Tai-ping! Mas, como quem deseja esgotar todas as objeções antes de se comprometer, acrescentou:
— Renuncias então às probabilidades que o Verdadeiro Mestre te reservou de alcançar a extrema velhice?
— Renuncio.
— Sem arrependimento?
— Sem arrependimento! — respondeu Kin-Fo. — Chegar a velho! Parecer-me com qualquer pedaço de madeira que já se não pode esculpir! Não o desejaria sendo rico, quanto mais pobre!
— E a jovem viúva de Pequim? — lembrou Wang. — Esqueceste o provérbio: a flor com a flor, o salgueiro com o salgueiro! A união de dois corações faz cem anos de primavera!
— Contra trezentos anos de outono, de verão e de inverno! — respondeu Kin-Fo encolhendo os ombros. — Não! Lé-u, pobre, seria infeliz comigo! Ao contrário, a minha morte assegura-lhe uma fortuna.
— Cuidaste disso?
— Cuidei; e tu mesmo, Wang, tens cinqüenta mil dólares contra a minha cabeça.
— Ah! — exclamou simplesmente o filósofo. — Tens resposta para tudo.
— Para tudo, mesmo para uma objeção que ainda me não fizeste.
— Qual?
— Ora! O perigo que poderias correr, após a minha morte, de ser acusado de assassínio.
— Oh! — disse Wang, — só os tolos ou covardes se deixam apanhar! Aliás, que mérito teria eu em prestar-te este último serviço se não corresse risco nenhum?
— Não, Wang! Prefiro garantir-te a esse respeito. Ninguém pensará em incomodar-te!
E dizendo isto Kin-Fo acercou-se de uma mesa, apanhou uma folha de papel, e em caracteres claros traçou as seguintes linhas:
"Foi de livre vontade que me matei, por tédio e cansaço da vida.
KIN-FO".
Em seguida entregou o papel a Wang.
O filósofo leu-o primeiro em voz baixa, depois tornou-o a ler em voz alta. Feito isto dobrou-o cuidadosamente e meteu-o num livrinho de notas que sempre trazia consigo. Um novo clarão lhe iluminava o olhar.
— Tudo isto é sério da tua parte? — perguntou olhando fixamente o discípulo.
— Seriíssimo!
— Pois não o será menos para mim.
— Dá-me a tua palavra?
— Já a tens.
— Portanto, antes de 25 de junho, o mais tardar, terei vivido?
— Não sei se terás vivido no sentido que pensas — respondeu o filósofo com a maior gravidade, — mas não há dúvida nenhuma de que estarás morto!
— Então obrigado, e adeus, Wang!
— Adeus, Kin-Fo!
Após o que, Kin-Fo deixou tranqüilamente o quarto do filósofo.



Capítulo IX
CUJA CONCLUSÃO, POR SINGULAR QUE SEJA, TALVEZ NÃO SURPREENDA O LEITOR.

— E então, Craig-Fry? — perguntava no dia seguinte o honrado William J. Bidulph aos dois agentes especialmente encarregados de vigiar o novo cliente da Centenária.
— Então — respondeu Craig, — seguimo-lo ontem durante um longo passeio que deu pelos arredores de Shangai.
— E ele não tinha nada o ar de um homem que pensa em matar-se — acrescentou Fry.
— Caíra a noite e nós escoltamo-lo até à porta de casa...
— Onde infelizmente não pudemos entrar.
— E hoje de manhã? — perguntou William J. Bidulph.
— Soubemos que ele continua firme... — respondeu Craig.
— ...como a ponte de Palikao — acrescentou Fry.
Os agentes Craig e Fry, dois americanos puro sangue, dois primos ao serviço da Centenária, constituíam um ser em duas pessoas. Seria impossível estarem mais completamente identificados um ao outro, de tal modo que um terminava invariavelmente as frases que o outro começava, e reciprocamente. O mesmo cérebro, os mesmos pensamentos, o mesmo coração, o mesmo estômago, a mesma maneira de proceder em tudo. Quatro mãos, quatro braços, quatro pernas em dois corpos fundidos. Numa palavra, dois irmãos siameses, aos quais um audaz cirurgião tivesse cortado a sutura.
— De modo — perguntou William J. Bidulph, — que ainda não puderam entrar em casa dele!
— Ainda... — começou Craig.
— ...não — terminou Fry.
— Talvez seja difícil — tornou o agente geral, — mas é indispensável. Trata-se, para a Centenária, não apenas de ganhar um prêmio enorme, mas também de não perder duzentos mil dólares. Por conseqüência, dois meses de vigilância e talvez mais, se o nosso novo cliente renovar a sua apólice.
— Ele tem um criado... — sugeriu Craig.
— ...que talvez pudéssemos aliciar... — continuou Fry.
— ...a fim de saber o que se passa... — tornou Craig.
— ...na residência de Shangai! — terminou Fry.
— Hmmm! — rosnou William J. Bidulph. — Consigam-me esse criado. Comprem-no. Ele deve ser sensível ao toque dos taéis, e os taéis não lhes faltarão. Ainda que seja preciso esgotar as três mil fórmulas de civilidade que comporta a etiqueta chinesa esgotem-nas. E não perderão o seu tempo.
— Assim... — começou Craig.
— ...se fará — concluiu Fry.
E eis porque fortes razões Craig e Fry tentaram entrar em relações com Sun. Ora, Sun não era homem para resistir à sedutora atração dos taéis, e muito menos à delicada oferta de alguns cálices de licores americanos.
Craig e Fry não tardaram a saber por Sun tudo o que lhes oferecia interesse, e que pode resumir-se no seguinte:
Kin-Fo sofrerá alguma mudança no seu estilo de vida? Não, a não ser talvez que maltratava menos o seu fiel criado, que as tesouras dormiam com grande vantagem para o seu rabicho e que a chibata lhe freqüentava menos as costas. Kin-Fo tinha à sua disposição alguma arma perigosa? Não, pois não pertencia à respeitável categoria dos amadores desses instrumentos mortíferos. Que comia ele às refeições?
Alguns pratos preparados com grande simplicidade, que em nada lembravam a fantasiosa cozinha celestial. A que horas se levantava?
Pela quinta vigília, quando a alva, ao apelo dos gaios, começa a clarear o horizonte.
Deitava-se cedo?
Pela segunda vigília, conforme Sun se acostumara a vê-lo fazer.
Parecia triste, preocupado, aborrecido, cansado da vida?
Não era propriamente um homem alegre. Isso não! Contudo, desde alguns dias parecia ter tomado mais gosto pelas coisas deste mundo. Sim! Sun achava-o menos indiferente, como um homem que esperasse... o quê? Não o saberia dizer.
Enfim, seu amo possuía alguma substância venenosa de que pudesse fazer uso?
Já a não devia ter, porque ainda nessa manhã se lançara ao Huang-Pu, por sua ordem, uma dúzia, de pílulas que deviam ter propriedades maléficas.
Realmente, em tudo isso nada havia que pudesse alarmar o agente geral da Centenária. Não! Nunca o rico Kin-Fo, de quem aliás ninguém, excetuado Wang, conhecia a situação, parecera mais satisfeito da vida.
Em todo o caso, Craig e Fry tiveram de continuar a informar-se de tudo o que fazia o seu cliente, a segui-lo em seus passeios, pois era possível que não quisesse atentar contra a vida em sua própria casa.
Assim fizeram os dois inseparáveis e Sun também continuou a falar, com tanta maior confiança quanto só tinha a ganhar nas suas relações com tão generosas pessoas.
Seria talvez exagero dizer que o herói desta história se apegara mais à vida desde que resolvera abandoná-la. Mas, como ele havia imaginado, e pelo menos durante os primeiros dias, não lhe faltaram emoções. Ele pendurara sobre a cabeça uma espada de Dâmocles, e cedo ou tarde essa espada lhe cairia em cima. Seria hoje, amanhã, esta manhã ou esta noite? Completa incerteza a respeito, e daí ansiedades de coração que constituíam novidade para ele.
Além disso, após a conversa que haviam tido, Wang e ele encontravam-se pouco. Ou o filósofo saía de casa com mais freqüência do que antes, ou se fechava no quarto. Kin-Fo não ia lá procurá-lo — não era esse o seu papel, — e até ignorava como Wang passava o tempo. Talvez em preparar alguma cilada... Um antigo Tai-ping devia guardar em seu baú muitas maneiras de despachar um homem. Daí a curiosidade, e portanto novos elementos de interesse.
Enquanto isso, mestre e discípulo encontravam-se quase todos os dias à mesma mesa. Está claro que nenhuma alusão se fazia à comum situação futura de assassino e assassinado. Conversavam sobre as coisas mais variadas — de resto pouco. Wang, mais sério do que de costume, desviando os olhos que os vidros dos óculos mal conseguiam esconder, não podia dissimular uma constante preocupação. De tão bom humor que era, tornara-se calado e taciturno. Antes grande comedor, como todo o filósofo dotado de bom estômago, os delicados manjares não o tentavam mais e o vinho de Chao-Chigne deixava-o distraído.
Por seu lado, Kin-Fo deixava-o bem à vontade. Era o primeiro a provar todos os pratos e considerava-se na obrigação de não deixar recolher um só, sem ao menos lhe haver tocado. Daí resultava Kin-Fo comer mais do que era costume, que o seu paladar enfastiado redescobria algumas sensações, que jantava com excelente apetite e digeria esplendidamente. Sem dúvida alguma o veneno não seria a arma escolhida pelo antigo massacrador do rei dos rebeldes, mas sua vítima devia estar pronta para tudo.
Aliás, Wang dispunha de todas as facilidades para cumprir a sua missão. A porta do quarto de dormir de Kin-Fo ficava sempre aberta. O filósofo podia lá entrar de dia ou de noite, apunhalá-lo dormindo ou acordado. Kin-Fo pedia apenas uma coisa: que a sua mão fosse rápida e o atingisse no coração.
Mas Kin-Fo quedou-se apenas nas emoções, e mesmo após as primeiras noites de tal modo se acostumara a esperar o golpe fatal, que dormia o sono de um justo e acordava todas as manhãs forte e bem disposto. Aquilo não podia continuar.
Veio-lhe então a idéia de que talvez repugnasse a Wang assassiná-lo na casa em que fora tão hospitaleiramente recolhido — e resolveu deixá-lo ainda mais à vontade. Ei-lo pois correndo pelos campos, buscando os lugares isolados, demorando-se até à quarta vigília nos piores bairros de Shangai, autênticos valhacoitos onde os assassínios se verificam cotidianamente na mais perfeita segurança. Vagueava pelas ruas estreitas e sombrias, deparando com bêbados de todas as nacionalidades, sozinho durante as últimas horas da noite, quando o vendedor de biscoitos lançava o seu brado de Mantoú! mantoú!, fazendo retinir a sua campainha para avisar os fumadores retardados. Só recolhia a casa com os primeiros arvores da manhã, sempre são e salvo, bem vivo, sem mesmo ter avistado os dois inseparáveis Craig e Fry, que o seguiam obstinadamente, prontos a socorrê-lo.
Se as coisas continuassem assim, Kin-Fo terminaria por se acostumar a essa nova existência, e em breve o tédio tomaria de novo conta dele.
Quantas horas se passavam já, sem que lhe viesse a idéia de que estava condenado à morte!
Entretanto um dia, 12 de maio, o acaso proporcionou-lhe uma certa emoção. Penetrando devagar no quarto do filósofo, viu-o experimentar na polpa do dedo a ponta aguda do punhal, mergulhando-a em seguida num frasco de vidro azul de aparência suspeita.
Wang não dera pela entrada do discípulo, e segurando o punhal brandiu-o repetidamente, como para se assegurar de que tinha o pulso bem firme. Realmente a sua fisionomia não era tranqüilizadora, naquele momento o sangue parecia congestionar-lhe os olhos!
— Vai ser hoje! — disse consigo Kin-Fo.
E afastou-se discretamente, sem ter sido visto nem ouvido.
Kin-Fo conservou-se no quarto o dia inteiro... mas o filósofo não apareceu. Deitou-se, mas no dia seguinte teve de se levantar tão vivo quanto o pode ser um homem bem constituído.
Tantas emoções para nada! Aquilo ia-se tornando aborrecido.
E já tinham decorrido dez dias, embora Wang tivesse dois meses para se decidir!
— Positivamente, é um vadio! — pensou Kin-Fo. — Dei-lhe prazo demais!
E concordou que o antigo Tai-ping degenerara nas emolientes doçuras de Shangai.
A partir desse dia, contudo, Wang pareceu mais inquieto e agitado. Andava de um lado para outro no yamen, como homem que não pudesse parar. Kin-Fo observou até que o filósofo visitava reiteradamente a sala dos antepassados, onde estava o precioso ataúde vindo de Liau-Tchéu. Soube também por intermédio de Sun, e com algum interesse, que Wang mandara espanar, escovar e conservar bem limpo o referido móvel.
— Como meu amo ficará bem deitado lá dentro! — acrescentou mesmo o fiel criado. — Até dá vontade de experimentar!
Esta observação valeu a Sun um leve gesto de amizade.
Passaram os dias 13, 14 e 15 de maio, e nada de novo.
Tencionaria Wang esgotar o prazo combinado, e só pagar a sua dívida à maneira dos comerciantes, no dia do vencimento, sem qualquer antecipação? Mas então não haveria surpresa; então adeus, emoção!
Na manhã de quinze de maio, contudo, justamente por ocasião do mao-che, que é como quem diz pelas seis horas, Kin-Fo teve notícia de um fato significativo.
Kin-Fo passara mal a noite, e ao acordar estava ainda sob a impressão de um sonho deplorável. O príncipe Ien, supremo juiz do inferno chinês, condenara-o a não comparecer diante dele senão quando a duodécima centésima lua se erguesse no horizonte do Celeste Império. Ainda um século a viver, um século inteiro!
Kin-Fo estava assim de péssimo humor, convencido de que tudo conspirava contra ele.
Em tal disposição de espírito, facilmente se concebe a maneira como recebeu Sun, quando este veio, como era seu costume, ajudá-lo a vestir os trajes matinais!
— Vai para o diabo! — gritou. — Que dez mil pontapés sejam a tua soldada, animal!
— Mas, meu amo...
— Sai daqui, já disse!
— Pois não saio! — respondeu Sun; — pelo menos não saio antes de lhe dizer...
— O quê?
— Que o senhor Wang...
— Wang? Que há com Wang? — replicou vivamente Kin-Fo, segurando Sun pelo rabicho. — Que fez ele?
— Meu amo! — respondeu Sun estorcendo-se como um verme; — ele mandou-nos transportar o caixão do senhor para o pavilhão da Longa Vida, e...
— Ele fez isso? — gritou Kin-Fo com a face desanuviada. — Vai, Sun; vai, amigo. Toma! Aqui tens dez taéis para ti, e que sejam fielmente cumpridas todas as ordens de Wang!
Depois disto Sun retirou-se completamente aturdido, repetindo:
— Não há dúvida de que meu amo enlouqueceu, mas ao menos a loucura deu-lhe para ser generoso!
Agora Kin-Fo já não podia duvidar. O Tai-ping queria liquidá-lo nesse pavilhão da Longa Vida, onde ele próprio decidira morrer. Era como uma entrevista que ali lhe marcava. E não faltaria a ela! A catástrofe estava iminente.
Como o dia pareceu longo a Kin-Fo! A água das clepsidras não parecia correr com a velocidade normal! As agulhas vadeavam nos seus mostradores de mármore.
Enfim, a primeira vigília escondeu o sol no horizonte e a noite desceu pouco a pouco sobre o yamen.
Kin-Fo foi instalar-se no pavilhão, de onde não esperava mais sair vivo. Estendeu-se num macio divã que parecia feito para as longas sestas, e esperou.
Desfilaram-lhe então pela memória as recordações da sua existência inútil, o tédio, as contrariedades, tudo o que a riqueza não pudera evitar, tudo o que a pobreza agravaria ainda!
Apenas uma luz iluminava essa vida, que não tivera atrativos no período da opulência: a afeição que Kin-Fo experimentara pela jovem viúva. Esse sentimento agitava-lhe o coração, no instante em que ele ia deixar de bater. Mas, condenar a pobre Lé-u à desdita juntamente consigo, nunca!
A quarta vigília, que precede o romper da aurora, e durante a qual a vida do universo parece ficar suspensa, essa quarta vigília decorreu para Kin-Fo entre as mais vivas emoções. Aguçava o ouvido ansioso, seus olhos esquadrinhavam a sombra, tentava surpreender os menores ruídos. Mais de uma vez teve a impressão de ouvir gemer a porta, empurrada por mão prudente. Decerto Wang esperava encontrá-lo adormecido e matá-lo-ia durante o sono!
Teve então uma espécie de reação: temia e desejava ao mesmo tempo a terrível aparição do Tai-ping.
A aurora clareava as alturas do zênite com a quinta vigília. O dia despontava lentamente.
Súbito abriu-se a porta da sala.
Kin-Fo ergueu-se, tendo vivido mais nesse derradeiro segundo do que durante a sua vida inteira!...
Sun apareceu diante dele com uma carta na mão.
— Muito urgente! — disse apenas o criado.
Kin-Fo teve como um pressentimento. Recebeu a carta que trazia o carimbo de São Francisco, rasgou o subscrito, leu-a rapidamente e correu para fora do pavilhão da Longa Vida, gritando:
— Wang! Wang!
Num instante alcançou o quarto do filósofo, cuja porta abriu num ímpeto.
Wang já ali não estava. Wang não dormira em casa, e quando, aos brados de Kin-Fo, a criadagem vasculhou todo o yamen, tornou-se claro que Wang desaparecera sem deixar vestígios.



Capítulo X
NO QUAL CRAIG E FRY SAO OFICIALMENTE APRESENTADOS AO NOVO CLIENTE DA CENTENÁRIA

— Sim, senhor Bidulph, uma simples manobra de bolsa, à americana! — disse Kin-Fo ao agente geral da companhia de seguros.
O honrado William J. Bidulph sorriu como entendedor.
— Bem feita, realmente, pois todo o mundo foi apanhado — replicou ele.
— Até o meu procurador! — continuou Kin-Fo. — Falsa interrupção de pagamentos, meu caro senhor, falsa falência, falsa notícia! Oito dias depois pagavam de guichês escancarados. Estava pronta a manobra. As ações, depreciadas de oitenta por cento, tinham sido resgatadas à mais baixa cotação pelo Banco Central, e quando foram perguntar ao diretor quanto produziria a falência, ele respondeu amavelmente: "Cento e setenta e cinco por cento!" Eis o que me escreve o meu procurador nesta carta chegada hoje de manhã, quando eu, supondo-me absolutamente arruinado...
— O senhor ia atentar contra a vida? — exclamou William J. Bidulph.
— Não — respondeu Kin-Fo, — quando eu ia provavelmente ser assassinado!
— Assassinado?!
— Com minha autorização por escrito, assassinato combinado, jurado, que lhe iria custar...
— Duzentos mil dólares — atalhou William J. Bidulph, — visto que todas as modalidades de morte estavam previstas. Ah! Quanto o lamentaríamos, caro senhor...
— Pela magnitude da soma?
— E os juros!
William J. Bidulph tomou a mão do cliente e sacudiu-a cordialmente à americana.
— Mas eu não entendo... — acrescentou ele.
— Vai já entender — respondeu Kin-Fo.
E revelou a natureza dos compromissos tomados por um homem que lhe merecia toda a confiança. Citou mesmo os termos da carta que esse homem tinha na carteira, carta que o punha a salvo de qualquer perseguição e lhe garantia toda a impunidade. Mas, coisa muito grave, a promessa feita seria cumprida, a palavra dada seria mantida — a esse respeito não havia a menor dúvida.
— Esse homem é um amigo? — perguntou o agente geral.
— Um amigo — respondeu Kin-Fo.
— E então, por amizade...?
— Por amizade, e quem sabe? Talvez também por interesse! Destinei-lhe cinqüenta mil dólares do meu seguro.
— Cinqüenta mil dólares? — exclamou William J. Bidulph. — É então o senhor Wang?
— Ele próprio!
— Um filósofo! Ele jamais consentirá...
— Esse filósofo é um antigo Tai-ping. Durante metade da sua vida cometeu mais assassínios do que seriam necessários para arruinar a Centenária, se todas as vítimas fossem seus clientes! Há dezoito anos conseguiu reprimir os seus instintos ferozes; mas hoje que se lhe oferece uma ocasião, que me julga arruinado, disposto a morrer, e por outro lado sabedor de que a minha morte lhe renderá uma pequena fortuna, não hesitará...
Mas Kin-Fo não disse nada disto. Seria comprometer Wang, que William J. Bidulph não titubearia em denunciar ao governador da província como um Tai-ping remanescente. Isso talvez o salvasse, mas era perder o filósofo.
— Bem — continuou o agente da companhia de seguros — há uma coisa muito simples a fazer!
— Qual?
— Prevenir o senhor Wang de que está tudo sem efeito e reaver essa carta comprometedora que...
— É mais fácil de dizer que de fazer — replicou Kin-Fo. — Wang está desaparecido desde ontem e ninguém sabe onde ele foi.
— Hmmm! — resmungou o agente geral, cuja perplexidade esta interjeição denotava.
Fitou atentamente o seu cliente.
— E agora, caro senhor, já não tem desejo algum de morrer? — perguntou.
— Palavra que não! — respondeu Kin-Fo. — A manobra do Banco Central Californiano quase duplicou a minha fortuna, e eu vou muito simplesmente casar-me! Mas só o farei depois de ter encontrado Wang, ou quando o prazo tiver definitivamente expirado.
— E expira...?
— Em 25 de junho deste ano. Durante este lapso de tempo a Centenária corre riscos consideráveis. É pois de seu interesse tomar as medidas adequadas.
— E descobrir o filósofo! — acrescentou o honrado William J. Bidulph.
O agente passeou alguns instante com as mãos atrás das costas e prosseguiu:
— Bem, encontraremos esse amigo tão dedicado, ainda que ele esteja escondido nas entranhas do globo. Mas até lá o senhor será defendido contra toda a tentativa de assassinato, do mesmo modo como o tem sido contra toda a tentativa de suicídio!
— Que quer dizer?
— Que desde 30 de abril último, dia em que o senhor assinou a sua apólice de seguro, dois dos meus agentes lhe seguiram os passos, observaram as suas ações, espiaram as suas atitudes!
— Não percebi...
— Oh! São pessoas discretas! Peço licença para lhos apresentar, agora que já não terão de ocultar seus movimentos a não ser do senhor Wang.
— Com prazer — respondeu Kin-Fo.
— Craig-Fry devem andar por perto, visto que o senhor está aqui!
E William J. Bidulph gritou:
— Craig! Fry!
Craig e Fry estavam realmente atrás da porta do gabinete particular. Tinham "filado" o cliente da Centenária até à sua entrada no escritório, e aguardavam-no à saída.
— Craig-Fry — disse então o agente geral, — durante toda a vigência da sua apólice de seguro, os senhores não precisarão mais defender o nosso precioso cliente contra si mesmo, mas contra um dos seus melhores amigos, o filósofo Wang, que se comprometeu a assassiná-lo!
E os dois inseparáveis foram postos ao corrente da situação. Compreenderam-na e aceitaram-na. O rico Kin-Fo pertencia-lhes e não teria servos mais fiéis.
Agora, que partido tomar?
Havia dois, como observou o agente geral: ou fechar-se cuidadosamente na casa de Shangai, de modo que Wang lá não pudesse entrar sem ser visto por Craig-Fry, ou fazer toda a diligência por saber onde se encontrava o dito Wang, e apanhar-lhe a carta que devia ser considerada nula e de nenhum efeito.
— O primeiro alvitre nada vale — respondeu Kin-Fo. — Wang poderia perfeitamente aproximar-se de mim sem ser visto, dado que a minha casa é a sua. O que precisamos é encontrá-lo, custe o que custar.
— O senhor tem razão — respondeu William J. Bidulph. — O mais seguro é encontrar o dito Wang, e havemos de encontrá-lo!
— Morto... — começou Craig.
— ...ou vivo! — terminou Fry.
— Não! Vivo! — exclamou Kin-Fo. — Não quero que por culpa minha Wang corra um só momento de perigo!
— Craig e Fry — acrescentou William J. Bidulph, — os senhores responderão pelo nosso cliente durante mais quarenta e cinco dias. Até ao próximo dia 30 de junho este senhor vale para nós duzentos mil dólares.
Dito isto, o cliente e o agente geral da Centenária despediram-se um do outro. Dez minutos depois, Kin-Fo escoltado pelos seus dois guarda-costas, que não mais o largariam, entrava no seu yamen.
Quando Sun viu Craig e Fry oficialmente instalados na casa, não deixou de lamentar o fato. Não haveria mais perguntas, não haveria mais respostas e por conseqüência não haveria mais taéis! Além disso o seu amo, de novo apegado à vida, retomou a sua severidade para com o desastrado e preguiçoso criado. Infeliz Sun! Que diria ele se soubesse o que lhe reservava o futuro!
O primeiro cuidado de Kin-Fo foi fonografar para Pequim, avenida Cha-Cua, a mudança de fortuna que o tornava ainda mais rico do que antes. A jovem senhora ouviu a voz daquele que julgava para sempre perdido repetir-lhe as suas mais delicadas ternuras. Tornaria a ver a irmãzinha mais nova. A sétima lua não desapareceria antes dele correr junto dela para não mais a deixar. Mas, tendo recusado associá-la à sua pobreza, não queria arriscar-se a deixá-la viúva.
Lé-u não percebeu bem o que significava esta última frase; sabia apenas uma coisa, que o seu noivo ia voltar e que antes de dois meses estaria ao pé de si.
Nesse dia, em todo o Celeste Império não houve mulher mais feliz que a jovem viúva.
Com efeito, dera-se uma completa revolução nas idéias de Kin-Fo, agora quatro vezes milionário, graças à feliz especulação do Banco Central Californiano. Ele queria viver, e viver bem. Vinte dias de emoções tinham-no transformado. Nem o mandarim Pao-Shen, nem o comerciante Yin-Pang, nem Tim o boêmio, nem Hual o letrado teriam reconhecido nele o entediado anfitrião que deles se despedira num dos barcos-floridos do rio das Pérolas. Wang não acreditaria nos seus próprios olhos se ali estivesse. Mas desaparecera sem deixar qualquer vestígio, não tendo voltado à casa de Shangai — o que significava grandes preocupações para Kin-Fo e transes contínuos para os seus guarda-costas.
Oito dias mais tarde, a 24 de maio, não havia ainda nenhuma notícia do filósofo, e portanto nenhuma possibilidade de sair atrás dele. Em vão Kin-Fo, Craig e Fry tinham vasculhado os territórios das concessões, os bazares, os bairros suspeitos, os arredores de Shangai. Em vão os mais hábeis tipaos da polícia haviam sido postos em campo. O filósofo continuava desaparecido.
Entretanto Craig e Fry, cada vez mais inquietos, redobravam de precauções. Nem de dia nem de noite se separavam do seu cliente, comendo à sua mesa, dormindo no seu quarto. Tentaram mesmo convencê-lo a usar uma cota de malha, para se proteger contra uma punhalada, e a não comer senão ovos à la coque, que não podiam ser envenenados.
Kin-Fo, valha a verdade, mandou-os passear. Por que não o fechar durante dois meses no cofre-forte da Centenária, a pretexto de que ele valia duzentos mil dólares?
Então, William J. Bidulph, sempre prático, propôs ao seu cliente restituir-lhe o prêmio pago e rasgar a apólice de seguro.
— Sinto muito — declarou francamente Kin-Fo, — mas o negócio está feito e o senhor terá de suportar-lhe as conseqüências.
— De acordo — replicou o agente geral certo de que nada podia fazer; — de acordo! O senhor tem razão! Ninguém o guardará,melhor do que nós!
— Nem mais barato! — terminou Kin-Fo.



Capítulo XI
NO QUAL VEMOS KIN-FO TORNAR-SE O HOMEM MAIS CÉLEBRE DO IMPÉRIO DO MEIO

Wang continuava desaparecido. Kin-Fo começava a irritar-se por se ver reduzido à inação, não podendo sequer correr atrás do filósofo. Mas como o haveria de fazer se Wang desaparecera sem deixar qualquer indício?
Esta complicação também perturbava o agente geral da Centenária. Tendo primeiramente pensado que nada daquilo era sério, que Wang não cumpriria a sua promessa, que nem mesmo na excêntrica América poderiam ter lugar semelhantes fantasias, terminou convencido de que nada era impossível no estranho país que se chama o Celeste Império. Logo abundou na opinião de Kin-Fo, isto é: que se não conseguissem achar o filósofo, o filósofo manteria a palavra dada. A sua desaparição indicava mesmo o intuito de só agir no momento em que o seu discípulo menos esperasse, à maneira do raio, e de o ferir no coração com mão rápida e segura. Em seguida, colocando a carta sobre o corpo da vítima, apresentar-se-ia tranqüilamente nos escritórios da Centenária para reclamar a sua parte no seguro.
Era pois imprescindível avisar Wang, mas avisá-lo diretamente parecia impossível.
O honrado William J. Bidulph foi assim coagido a empregar os meios indiretos por via da imprensa. Em poucos dias foram mandados anúncios para os jornais chineses e telegramas ao jornais estrangeiros dos dois mundos.
O Tching-Pao, jornal oficial de Pequim, as folhas redigidas em chinês em Shangai e Hong-Kong, os jornais mais lidos na Europa e nas duas Américas reproduziram à saciedade a seguinte nota:
"Pede-se ao senhor Wang, de Shangai, considerar sem nenhum efeito a combinação havida entre o senhor Kin-Fo e ele, em 2 de maio último, tendo agora o senhor Kin-Fo um único desejo, que é o de morrer centenário".
Este singular anúncio em breve foi seguido de outro, sem dúvida muito mais prático:
"Dois mil dólares ou mil e trezentos taéis a quem der a conhecer ao senhor William J. Bidulph, agente geral da Centenária em Shangai, a residência atual do senhor Wang, da dita cidade".
Não era natural que o filósofo tivesse ido correr mundo durante o prazo de cinqüenta e cinco dias que lhe fora dado para cumprir a sua promessa. Era mais provável que estivesse escondido nos arredores de Shangai, de modo a aproveitar todas as ocasiões; mas o honrado William J. Bidulph não se julgava capaz de tomar todas as precauções.
Passaram-se vários dias e a situação não se modificou. Sucedeu porém que o anúncio, profusamente espalhado sob a forma familiar aos americanos: WANG! WANG! WANG!!! de um lado, e KIN-FO! KIN-FO! KIN-FO!!! do outro, acabou por atrair a atenção pública e provocar a hilaridade.
Era uma risota geral até ao fundo das províncias mais retiradas do Celeste Império.
— Onde está Wang?
— Quem viu Wang?
— Onde mora Wang?
— Que faz Wang?
— Wang! Wang! Wang! — gritavam os chinesinhos das ruas.
Estas perguntas correram logo em todas as bocas.
E Kin-Fo, o digno celestial "cujo único desejo era chegar a centenário", que pretendia competir em longevidade com o célebre elefante cujo vigésimo lustro decorria então no Palácio das Cavalariças de Pequim, não tardou a ficar completamente na moda.
— Então, a idade do senhor Kin-Fo vai aumentando?
— Como vai ele?
— Digere convenientemente?
— Vê-lo-emos envergar a túnica amarela dos velhos?4 Era com estes gracejos que se abordavam os mandarins civis ou militares, os negociantes da Bolsa, os mercadores nos seus balcões, a gente do povo no meio das ruas e das praças, os barqueiros nas suas cidades flutuantes!
Os chineses são muito alegres e cáusticos, e não se pode negar que havia certo motivo para a zombaria geral. Por conseqüência piadas de toda a espécie e até caricaturas que excediam os muros da vida particular.
Kin-Fo, grandemente contrariado, teve de suportar os inconvenientes dessa curiosa celebridade. Até o meterem numa canção com a música de Mantchiang-hung, o vento que sopra nos salgueiros! Surgiu também um libreto que o punha em cena: As Cinco Vigílias do Centenário! Que título aliciante e que saída teve ele a três sapecas o número!
Se Kin-Fo se aborrecia com todo esse barulho feito em torno do seu nome, William J. Bidulph, ao contrário, exultava. Mas nem por isso Wang permanecia menos oculto a todas as vistas.
As coisas foram-se de tal modo agravando, que dentro em pouco a posição de Kin-Fo tornou-se insustentável. Se porventura saía, um cortejo de chineses de todas as idades e sexos o acompanhava pelas ruas, no cais, mesmo através das concessões estrangeiras, mesmo no campo. Se entrava, uma turba de chasqueadores da pior espécie amontoava-se à porta do yamen.
Todas as manhãs era intimado a mostrar-se na sacada do seu quarto, a fim de provar que os seus criados o não tinham prematuramente deitado no caixão do quiosque da Longa Vida. Os jornais publicavam por troça um boletim humorístico da sua saúde, seguido de comentários irônicos, como se ele pertencesse à dinastia reinante dos Tsing. Em resumo, tornara-se perfeitamente ridículo.
Sucedeu pois que um dia, a 21 de maio, o vexadíssimo Kin-Fo foi procurar o honrado William J. Bidulph e comunicou-lhe a sua intenção de partir imediatamente. Estava farto de Shangai e dos shangaienses!
— Será correr perigos ainda maiores! — observou com prudência o agente geral.
— Pouco me importa! — respondeu Kin-Fo. — Tome as suas providências.
— Mas onde vai o senhor?
— Para a frente.
— E onde tenciona parar?
— Em parte alguma.
— E quando voltará?
— Nunca.
— E se eu receber notícias de Wang?
— Wang que vá para o diabo! Estúpida idéia a minha, dar-lhe essa absurda carta!
No íntimo, Kin-Fo sentia um furioso desejo de encontrar o filósofo! Irritava-o profundamente a idéia de que a sua vida estivesse nas mãos de um outro. Era já uma obsessão. Nunca se resignaria a esperar ainda mais de um mês naquelas condições! O cordeiro ia-se enfurecendo!
— Pois bem, parta — concordou William J. Bidulph; — Craig e Fry o seguirão por toda a parte onde vá!
— Como quiser — respondeu Kin-Fo; — mas previno-o de que eles terão de correr.
— Correrão, meu caro senhor, correrão; não são homens para poupar as pernas!
Kin-Fo regressou ao yamen, e sem perda de um minuto organizou a partida.
Sun, muito contra a vontade — detestava mudanças, — tinha de acompanhar o amo; mas não arriscou a menor observação, que certamente lhe teria custado um bom pedaço do rabicho.
Quanto a Fry-Craig, como bons americanos estavam sempre prontos a partir, ainda que fosse para o fim do mundo. Fizeram apenas uma pergunta:
— Aonde vai... — começou Craig.
— ...o senhor? — terminou Fry.
— Primeiro a Nanquim, depois ao inferno!
O mesmo sorriso apareceu simultaneamente nos lábios de Craig-Fry. Estavam ambos encantados! Ao inferno! Nada podia ser-lhes mais agradável. Queriam apenas o tempo de se despedir de William J. Bidulph, e também de envergar um traje chinês que chamaria menos a atenção sobre as suas pessoas durante essa viagem através do Celeste Império.
Uma hora depois, Craig e Fry, de sacola ao ombro e revólver, à cinta, voltavam ao yamen.
À boca da noite Kin-Fo e seus companheiros atravessavam discretamente a porta da concessão americana, e embarcavam num navio a vapor que faz o serviço de Shangai a Nanquim.
Essa viagem não é mais que um passeio. Em menos de doze horas, um barco aproveitando a vazante pode subir pelo rio Azul até à antiga capital da China meridional.
Durante essa curta travessia, Craig-Fry desvelaram-se em atenções com o seu precioso Kin-Fo, não sem antes passarem revista a todos os passageiros. Conheciam o filósofo — que habitante das três concessões não conhecia essa boa e simpática figura! — e queriam a certeza de que ele os não seguira a bordo. Tomada esta precaução, não havia cuidados que não tivessem a todo o instante como cliente da Centenária: experimentando a solidez dos balaústres a que se encostava, tateando com o pé as pontes onde por vezes se detinha, levando-o para longe da casa das máquinas, cujas caldeiras lhes pareciam suspeitas, impedindo-o de se expor à brisa cortante da tarde, de se resfriar no ar úmido da noite, velando para que as vigias da sua cabina estivessem hermèticamente fechadas, brigando com Sun, o negligente criado que nunca atendia quando o seu amo o chamava, substituindo-o quando era preciso para servir o chá e os biscoitos da primeira vigília, dormindo enfim à porta do camarote de Kin-Fo, vestidos, com o colete de salvação aos ombros, prontos a socorrê-lo em caso de abalroamento ou explosão que levasse o navio às profundezas do rio.
Mas nenhum acidente se verificou que pusesse à prova a ilimitada dedicação de Fry-Craig. O navio desceu rapidamente o curso do Wusung, desembocou no Yang-The-Kiang, ou rio Azul, costeou a ilha de Tsong-Ming, deixou para trás os faróis de U-Song e de Lang-Chang, subiu com a maré através da província de Kiang-Su, e em 22 de maio desembarcou os seus passageiros sãos e salvos no cais da antiga cidade imperial. Graças aos dois guarda-costas, o rabicho de Sun não diminuíra um centímetro durante a viagem. O preguiçoso não tinha nada de que se queixar.
Não era sem motivo que Kin-Fo, ao sair de Shangai, quisera logo em seguida parar em Nanquim. Ele supunha ter algumas probabilidades de aí encontrar o filósofo.
Wang, com efeito, poderia ter sido atraído pelas recordações que o ligavam àquela infeliz cidade, centro principal da rebelião dos Tchang-Mao. Não fora ela ocupada e defendida por esse simples mestre-escola, o temível Rong-Siéu-Tsien, que se tornou imperador dos Tai-ping e desafiou por tanto tempo a autoridade manchu? Não foi nessa cidade que ele proclamou a nova era da Grande Paz.5 Não foi lá que ele se envenenou em 1864 para não se entregar vivo aos seus inimigos? Não foi do antigo palácio dos reis que fugiu seu jovem filho, cuja cabeça os imperiais sem dúvida ceifariam? Não foi em meio às ruínas da cidade em chamas que os seus ossos foram tirados do sepulcro e dados a comer aos mais vis animais? Não foi enfim, nessa província, que cem mil dos antigos companheiros de Wang foram massacrados em três dias?
Não era portanto impossível que o filósofo, tomado de uma espécie de nostalgia desde que a sua vida mudara, corresse a refugiar-se nesses lugares tão cheios de recordações pessoais! De lá, em poucas horas podia regressar a Shangai, pronto a matar...
Era este o motivo por que Kin-Fo se dirigira primeiramente a Nanquim e queria deter-se nessa primeira etapa da sua viagem. Se lá encontrasse Wang estaria o caso resolvido, e terminaria essa absurda situação. Se Wang não aparecesse, continuaria as suas peregrinações através do Celeste Império, até ao dia em que, passado o prazo, nada mais tivesse a temer do seu antigo mestre e amigo.
Kin-Fo, acompanhado de Craig e de Fry, e seguido de Sun, dirigiu-se a um hotel, situado num desses bairros menos populosos em redor dos quais se estendem, como um deserto, três quartas partes da antiga capital.
— Eu viajo com o nome de Ki-Nan — limitou-se Kin-Fo a dizer aos companheiros, — e não quero que o meu verdadeiro nome seja jamais pronunciado, sob pretexto nenhum.
— Ki... — começou Craig.
— ...Nan — terminou Fry.
— Ki-Nan — repetiu Sun.
Facilmente se compreende que Kin-Fo, que fugia aos inconvenientes da celebridade de Shangai, não desejasse encontrá-los em seu caminho. Além do mais nada dissera a Fry-Craig sobre a possível presença do filósofo em Nanquim. Esses meticulosos agentes desenvolveriam um luxo de precauções justificado pelo valor pecuniário do seu cliente, mas que lhe seria extremamente desagradável. Com efeito, se eles tivessem de viajar através de um país suspeito com um milhão nos bolsos, não se teriam mostrado mais cautelosos. Mas em suma, não era um milhão que a Centenária confiara à sua guarda?
Passaram o dia inteiro visitando os bairros, as praças e as ruas de Nanquim; da porta do oeste à porta de leste, do norte ao sul, a cidade tão decaída do seu antigo esplendor foi inteiramente percorrida. Kin-Fo andava depressa, falando pouco, observando muito.
Não avistaram nenhum rosto conhecido, nem nos canais freqüentados pelo grosso da população, nem nas vielas empedradas, sumidas entre os escombros e já invadidas pelas ervas daninhas. Nenhum estranho foi visto vagueando sob os pórticos de mármore meio derruídos, os panos das muralhas calcinadas que marcam o lugar do Palácio Imperial, teatro dessa luta feroz onde Wang decerto resistira até ao momento final. Ninguém tentou esconder-se aos olhos dos visitantes, nem em redor do yamen dos missionários católicos, que os nanquinenses quiseram chacinar em 1870, nem nas proximidades da fábrica de armas, recentemente erguida com os indestrutíveis tijolos da célebre torre de porcelana com que os Tai-ping haviam juncado o solo.
Kin-Fo, sobre quem a fadiga não parecia ter efeito, caminhava sempre, arrastando os dois acólitos que não desanimavam, deixando atrás o infortunado Sun, pouco habituado a esse gênero de exercício, saiu pela porta leste e aventurou-se pelo campo deserto.
Uma infindável avenida, orlada de imensos animais de granito, abria-se a alguma distância da muralha de circunvalação.
Kin-Fo entrou por essa avenida num passo ainda mais rápido.
Um pequeno templo fechava-lhe a extremidade, e por trás erguia-se um tumulus, alto como uma colina. Sob esse outeiro repousava Rong-U, o bonzo que fora imperador, um desses audaciosos patriotas que, cinco séculos antes tinham lutado contra o domínio estrangeiro. Não teria o filósofo vindo retemperar-se nessas gloriosas memórias, sobre o próprio túmulo onde jazia o fundador da dinastia dos Ming?
O tumulus estava deserto e o templo abandonado. Nenhum guarda além desses colossos mal delineados em mármore, fantásticos animais que povoavam sozinhos a extensa avenida.
Por cima da porta do templo, contudo, Kin-Fo avistou emocionado alguns caracteres gravados à mão. Aproximou-se e pôde ver estas três letras:
W. K. F.
Wang! Kin-Fo! Não havia dúvida, o filósofo passara ali recentemente!
Kin-Fo, em silêncio, olhou, procurou... Ninguém.
À noite, Kin-Fo, Craig, Fry e Sun, que se vinha arrastando, regressaram ao hotel, e no dia seguinte pela manhã deixaram Nanquim.



Capítulo XII
NO QUAL KIN-FO, SEUS DOIS ACÓLITOS E SEU CRIADO, SE LANÇAM Ã AVENTURA.

Quem é o viajante que vemos correr pelas grandes rotas fluviais ou carroçáveis, pelos canais e rios do Celeste Império? Ele caminha, caminha sempre, nunca sabendo de véspera onde estará no dia seguinte. Atravessa as cidades sem as ver, detém-se nos hotéis e hospedadas apenas para dormir algumas horas, pára nas casas de pasto o tempo indispensável para engolir uma refeição sumária. O dinheiro não lhe interessa; prodigaliza-o, espalha-o a fim de apressar a sua marcha.
Contudo não é um mercador que vai tratar de negócios. Nem um mandarim a quem o ministro encarregou de alguma missão importante e premente. Também não é um artista em busca de belezas naturais. Nem um letrado, um sábio, cujas inclinações o levem à procura de antigos documentos guardados nos mosteiros budistas ou dos lamas da velha China. Nem um estudante que se dirige ao pagode dos Exames para conquistar os seus graus universitários, nem um sacerdote de Buda correndo o campo para inspecionar os pequenos altares campestres, erguidos entre as raízes do banyan sagrado, nem um peregrino que vai pagar alguma promessa a uma das cinco montanhas santas do Império do Meio.
É o falso Ki-Nan, acompanhado de Fry-Craig, sempre dispostos, seguido de Sun, cada vez mais fatigado. É Kin-Fo, nessa bizarra disposição de espírito que o leva ao mesmo tempo a fugir e a procurar o inencontrável Wang. É o cliente da Centenária que apenas busca nesse vaivém o esquecimento da sua situação, e talvez uma garantia contra os perigos invisíveis que o ameaçam. O melhor atirador tem alguma probabilidade de errar contra um alvo móvel, e Kin-Fo deseja ser esse alvo que nunca se imobiliza.
Os viajantes tinham outra vez tomado em Nanquim um desses rápidos navios americanos, vastos hotéis flutuantes que percorrem o rio Azul. Sessenta horas depois desembarcavam em Ran-Kéu, sem sequer ter admirado esse estranho rochedo, o "Pequeno Órfão", que se ergue em meio à corrente do Yang-Tse-Kiang, cujo cimo é tão audaciosamente coroado por um templo onde servem bonzos.
Em Ran-Keú, situada na confluência do rio Azul e do seu importante tributário o Ran-Kiang,6 o errante Kin-Fo mal se deteve meio dia. Também ali se encontravam em ruínas irreparáveis as recordações dos Tai-ping; mas nem nessa cidade mercantil, que não passa, a bem dizer, de um anexo da prefeitura de Ran-Yang-Fu, construído na margem direita do afluente, nem em U-Tchang-Fu, capital a província de Ru-Pé, edificada sobre a margem direita do rio, o misterioso Wang deixou vestígios da sua passagem. Sequer outras daquelas terríveis letras que Kin-Fo encontrara em Nanquim, no túmulo do bonzo coroado.
Se Craig e Fry tinham imaginado recolher daquela viagem à China alguma idéia dos costumes ou algum conhecimento das cidades, em breve se desenganaram. Nem mesmo tinham tempo para tomar notas, e as suas impressões ficariam reduzidas a alguns nomes de cidades e burgos e a algumas datas. Mas eles não eram curiosos nem palradores. Quase nunca se falavam. Para quê? O que Craig pensava também o pensava Fry, de modo que fariam apenas um monólogo. Assim, do mesmo modo que o seu cliente, não observavam essa dupla fisionomia comum à maioria das cidades chinesas, mortas no centro mas vivas nos arrabaldes. Em Ran-Kéu mal avistaram o bairro europeu, de ruas largas e retangulares, moradias elegantes, e o passeio sombreado de grandes árvores que corre ao longo da margem do rio Azul. Só tinham olhos para ver um homem, e esse homem permanecia invisível.
O navio, graças à enchente que erguera as águas do Ran-Kiang, ia poder subir esse afluente durante mais cento e trinta léguas, até Lao-Ro-Kéu.
Kin-Fo não era homem para abandonar esse gênero de locomoção, que lhe agradava. Ao contrário, tinha a intenção de seguir até ao ponto em que o Ran-Kiang deixasse de ser navegável. Daí por diante, pensaria. Quanto a Craig e Fry, outra coisa não desejavam senão que essa navegação durasse todo o tempo da viagem. A vigilância a bordo era mais fácil, os perigos menos iminentes. Mais tarde, nas estradas inseguras das províncias da China central, seria bem diferente.
A Sun também agradava aquela vida de navio. Não era preciso andar, pouco tinha que fazer, deixava o amo entregue aos cuidados de Craig-Fry, não pensava senão em dormir no seu canto, depois de ter almoçado, jantado e ceado conscienciosamente — e a cozinha não era má.
Foi até uma modificação sobrevinda na alimentação de bordo, alguns dias depois, que a quem o ignorasse poderia indicar uma mudança de latitude que acabava de se verificar na situação geográfica dos passageiros.
Com efeito, durante a refeição, o trigo substituiu bruscamente o arroz sob a forma de pães sem lêvedo, bastante agradáveis ao paladar quando eram comidos ao sair do forno.
Sun, como verdadeiro chinês do sul, lamentou a falta do seu costumeiro arroz. Ele manobrava tão habilmente os seus pauzinhos quando levava os grãos do prato até sua vasta boca e os absorvia em enormes proporções! Arroz e chá, que mais necessita um verdadeiro Filho do Céu?
O navio, subindo o curso do Ran-Kiang, acabava de entrar na região do trigo, onde o relevo das terras se acentuava melhor. No horizonte surgiram algumas montanhas coroadas de fortificações, construídas durante a antiga dinastia dos Ming. Os taludes artificiais que continham as águas do rio cederam lugar às margens baixas que alargavam o leito com sacrifício da profundidade. Avistou-se a prefeitura de Guan-Lo-Fu.
Kin-Fo nem mesmo desembarcou durante as poucas horas que o navio gasta a meter combustível diante dos armazéns da alfândega. Que iria ele fazer a uma cidade que tão pouco lhe interessava? Já que não encontrava vestígios do filósofo, tinha apenas um desejo: mergulhar cada vez mais profundamente na China central, onde, se não apanhasse Wang, Wang também o não apanharia.
A Guan-Lo-Fu seguiram-se duas cidades edificadas frente a frente, a cidade mercantil de Fan-Tcheng na margem esquerda, e a prefeitura de Siang-Yiang-Fu, na margem direita; a primeira, um burgo cheio de movimento da população e da agitação dos negócios; a segunda, residência das autoridades e mais morta que viva.
Depois de Fan-Tcheng, o Ran-Kiang subindo direito ao norte por um ângulo brusco, ainda é navegável até Lao-Ro-Keú. Mas por falta de água o navio não pôde prosseguir.
Deu-se então uma mudança completa. A partir desta última para as condições de viagem tiveram de ser modificadas. Tratava-se de abandonar os rios "esses caminhos que andam" e andar por si mesmo, ou pelo menos agüentar em vez do suave deslizar de um navio, as sacudidelas, saltos e encontrões dos lamentáveis veículos usados no Celeste Império. Desgraçado Sun! A série de balbúrdias, cansaços e reclamações ia começar de novo para ele!
Com efeito, quem acompanhasse Kin-Fo nessa inconcebível peregrinação, de província em província, de cidade em cidade, teria muito que fazer!
Às vezes viajava de carruagem, mas que carruagem! Uma caixa duramente fixada ao eixo de duas rodas por grossos pregos de ferro, arrastada por duas mulas teimosas, coberta por um simples toldo igualmente varado pelos fios de chuva e pelos raios de sol. Outras vezes viam-no estendido numa cadeira de braços, espécie de guarita suspensa entre dois compridos bambus, e sujeita a movimentos tão desencontrados e violentos que se fosse um barco se desmembraria em todo o seu arcabouço.
Craig e Fry montavam guarda às portinholas como ajudantes de campo, em dois burros ainda mais rebolantes e incômodos que a cadeira. Sun, nessas ocasiões em que a marcha era necessariamente um tanto rápida, seguia a pé, resmungando, praguejando, reconfortando-se mais de que convinha com freqüentes talagadas de aguardente de Kao-Liang. Em conseqüência também ele experimentava movimentos especiais de cambaleio, cuja causa entretanto não provinha das irregularidades do solo. Em uma palavra, o pequeno grupo não seria mais sacudido se navegasse num mar revolto.
Foi a cavalo — péssimos cavalos como se pode supor, — que Kin-Fo e os seus companheiros entraram em Si-Gnan-Fu, a antiga capital do Império do Meio, e onde residiam outrora os imperadores da dinastia dos Tang.
Mas, para alcançar a longínqua província do Chen-Si, para lhe atravessar as infindáveis planícies áridas e nuas, quantas fadigas a suportar e até perigos!
O sol de maio, numa latitude que corresponde à da Espanha meridional, projetava raios já insuportáveis, erguendo a fina poeira das estradas que jamais conheceram o conforto dos empedrados. Desses turbilhões amarelados, sujando o ar como uma fumaça maligna, saía-se imundo dos pés à cabeça. Eram as terras do loess, singular formação geológica peculiar ao norte da China "que já não é terra mas ainda não é rocha, ou, para melhor dizer, é uma pedra que ainda não teve tempo de se solidificar".7
Quanto aos perigos eram bem reais, numa região em que os homens da polícia nutrem verdadeiro pavor das facadas dos ladrões. Se nas cidades os tipaos deixam como livre os malfeitores, se nos bairros centrais os moradores quase não ousam sair à rua de noite, avalie-se o grau de segurança que oferecem as estradas! Várias vezes grupos suspeitos pararam à passagem dos viajantes, quando estes enveredavam pelos estreitos atalhos fundamente cavados entre as camadas do loess; mas a presença de Craig-Fry, os revólveres à cinta, tinham-se imposto até então aos batedores das estradas. Contudo os agentes da Centenária experimentaram em mais de uma ocasião sérios temores, não tanto por eles como pelo milhão vivo que escoltavam. Fosse Kin-Fo derrubado pelo punhal de Wang ou pela faca de um salteador, o resultado era o mesmo. A caixa da companhia é que receberia a facada.
Aliás, em tais circunstâncias, Kin-Fo não menos bem armado, também não deixaria de se defender. A vida importava-lhe mais do que nunca e, como diziam Craig e Fry "seria capaz de morrer para a conservar".
Em Si-Gnan-Fu não era provável que encontrassem algum vestígio do filósofo. Nunca um antigo Tai-ping pensaria em refugiar-se ali. É uma cidade de que os rebeldes não puderam transpor as muralhas no tempo da revolução, e sempre ocupada por uma numerosa guarnição manchu. A não ser que nutrisse um gosto muito especial pelas curiosidades arqueológicas, abundantes nessa cidade, e fosse versado nos mistérios da epigrafia, cujo museu, chamado "a floresta das tabuinhas", encerra incalculáveis riquezas, que iria Wang lá fazer?
Por isso, no dia seguinte ao da sua chegada, Kin-Fo abandonando essa cidade que é um importante centro de negócios entre a Ásia Central, o Tibé, a Mongólia e a China, retomou a estrada do norte.
Seguindo por Kao-Lin-Sien, por Sing-Tong-Sien, a estrada do vale do Uei-Ro, de águas tintas dos tons amarelados desse loess através do qual ele foi abrindo o seu leito, o pequeno grupo chegou a Rua-Tcheú, que foi palco de uma terrível insurreição muçulmana em 1860. Daí, utilizando barcos e cadeirinhas Kin-Fo e os seus companheiros atingiram, depois de grandes canseiras, a fortaleza de Tong-Kuan, situada na confluência do Uei-Ro e do Ruang-Ro.
O Ruang-Ro é o famoso rio Amarelo. Ele desce diretamente do norte para ir, através das províncias de leste, lançar-se no mar que tem o seu nome, sem ser mais amarelo do que o Mar Vermelho é vermelho, o Mar Branco, branco e o Mar Negro, negro. Oh! Rio célebre e de origem celeste, sem dúvida, visto que a sua cor é a dos imperadores Filhos do Céu, mas também "Desgraça da China", qualificação devida às suas terríveis inundações que em parte causaram a impraticabilidade atual do canal Imperial.
Em Tong-Kuan os viajantes podiam considerar-se em segurança, mesmo de noite. Não se trata mais de uma cidade mercantil, mas de uma cidade militar, habitada como domicílio fixo e não como acampamento provisório pelos tártaros man-chus que constituem a primeira categoria do exército chinês! Talvez Kin-Fo tivesse a intenção de aí repousar alguns dias.
Talvez fosse procurar num hotel confortável um bom quarto, uma boa mesa, uma boa cama — o que de nenhum modo desagradaria a Fry-Craig e muito menos a Sun!
Mas esse desastrado — e desta vez isso custou-lhe uma boa polegada de rabicho, — teve a imprudência de dar na alfândega, em vez do nome suposto, o verdadeiro nome de seu amo. Esqueceu que já não era a Kin-Fo, e sim a Ki-Nan, que tinha a honra de servir.
Que estupidez! Obrigou este último a deixar imediatamente a cidade. O nome produzira o seu efeito: o célebre Kin-Fo chegara a Tong-Kuan! Todos queriam ver o homem singular "cujo único e exclusivo desejo era chegar a centenário!"
O arrepiado viajante, seguido dos seus dois guardas e do criado, mal teve tempo de fugir através da multidão de curiosos que se reunira atrás dele. A pé, dessa vez a pé, subiu as margens do rio Amarelo, assim continuando até ao momento em que seus companheiros e ele próprio caíram de puro esgotamento num pequeno povoado, onde o seu incógnito lhe asseguraria algumas horas de tranqüilidade.
Sun, completamente desolado, não ousava mais dizer uma palavra. Por sua vez, com o ridículo rabinho de rato que lhe restava, era agora objeto dos gracejos mais desagradáveis! Os garotos corriam atrás dele e chamavam-lhe os nomes mais absurdos.
Também ele tinha pressa de chegar. Mas chegar aonde, se o seu amo — como tivera ocasião de dizer a William J. Bidulph, — tencionava e ia andando sempre para a frente?
Dessa vez, a vinte lis de Tong-Kuan, no modesto povoado onde Kin-Fo buscara refúgio, nem cavalos, nem burros, nem carruagens nem cadeiras. Nenhuma outra alternativa a não ser ficar ali ou continuar a pé pela estrada, circunstância que não contribuía para restituir o bom humor ao discípulo do filósofo Wang, que nesta ocasião mostrava pouca filosofia. Ele rompeu a acusar todo o mundo, quando só devia culpar-se a si mesmo. Ah! Que saudades do tempo em que só lhe era preciso deixar-se viver! Se para saborear a felicidade era preciso sofrer aborrecimentos, trabalhos e privações, como dizia Wang, já os conhecia agora, e bem grandes!
Depois, correndo assim, encontrara em seu caminho boa gente sem dinheiro, que todavia era feliz! Pudera observar as variadas formas de felicidade que dá o trabalho feito alegremente.
Aqui eram lavradores curvados sobre o rego do arado; ali operários que cantavam manejando as suas ferramentas. Não seria justamente a essa falta de trabalho que Kin-Fo devia a falta de aspirações, e portanto a ausência de felicidade neste mundo? Ah! A lição era perfeita, pelo menos assim o julgava!... Não, amigo Kin-Fo, não o era!
Contudo, vasculhando bem a aldeia, batendo a todas as portas, Craig e Fry acabaram por desencantar um veículo, mas apenas um! Poderia quando muito transportar uma pessoa, e, circunstância ainda mais grave, faltava o motor desse veículo.
Era um carrinho de mão, — o carrinho de Pascal — e talvez inventado antes dele por esses antigos inventores da pólvora, da escrita, da bússola e dos papagaios. Somente, na China, a roda desse aparelho, de diâmetro bastante grande, está colocada não na extremidade dos varais mas no meio deles, e gira através da própria caixa, como a roda central de certos navios a vapor. A caixa fica desse modo dividida em duas partes, conforme o eixo, numa das quais pode estender-se o viajante e sendo a outra destinada a levar as suas bagagens.
O motor desse veículo é e só pode ser um homem, que empurra o aparelho para a frente e não o arrasta. Fica assim instalado atrás do viajante, cuja vista não perturba, do mesmo modo que um cocheiro de cab inglês. Quando o vento é favorável, isto é, quando sopra de trás, o homem aproveita essa força natural que nada lhe custa; planta um mastro na frente da caixa e iça uma vela quadrada. E quando o vento é forte, em vez de empurrar o carrinho deixa-se levar por ele — às vezes mais depressa do que desejaria.
O veículo foi adquirido com todos os seus acessórios. Kin-Fo instalou-se, e como o vento era favorável a vela foi içada.
— Vamos, Sun! — disse Kin-Fo.
Sun estava-se muito simplesmente preparando para ocupar o segundo compartimento do cofre.
— Aos varais! — gritou-lhe o amo num tom que não admitia réplica.
— Meu amo... quer... que... — balbuciou o desgraçado cujas pernas se dobravam antecipadamente como as de um cavalo estafado.
— Não tens senão que te queixar de ti, da tua língua e da tua estupidez!
— Vamos, Sun! — gritaram Fry-Craig.
— Aos varais! — repetiu Kin-Fo olhando muito significativamente o que restava de rabicho ao desventurado servo. — Aos varais, animal, e não comeces a tropeçar, senão...
O médio e o indicador da mão direita de Kin-Fo dispostos à maneira de tesoura, completaram-lhe tão bem o pensamento, que Sun passou a correia pelos ombros e segurou os varais com ambas as mãos. Fry-Craig postaram-se aos dois lados do carrinho e, como a brisa favorecia, o pequeno grupo rompeu num ligeiro trote.
Renunciamos a pintar a raiva surda e impotente de Sun, reduzido à função de cavalo! E todavia, várias vezes Craig e Fry resolveram substituí-lo. Felizmente o vento do sul soprava-lhes uma ajuda constante, cabendo-lhe umas três quartas partes da tarefa. O carrinho estando bem equilibrado pela posição da roda central, o trabalho do homem dos varais é comparável ao do homem do leme a bordo de um navio, que apenas deve procurar manter-se em boa direção.
Nesta equipagem foi avistado Kin-Fo nas províncias setentrionais da China, caminhando quando sentia necessidade de desenferrujar as pernas, refestelado no carrinho quando ao contrário desejava descansar.
Desse modo, tendo evitado Huan-Fu e Cafong, subiu as margens do célebre canal Imperial, que ainda há vinte anos, antes que o rio Amarelo tivesse retomado o seu antigo leito, constituía uma excelente rota navegável desde Su-Tchéu, o país do chá, até Pequim, numa extensão de algumas centenas de léguas.
Assim atravessou Tsi-Nan, Ho-Kien, e penetrou na província de Pé-Tché-Li, onde se ergue Pequim, a quádrupla capital do Celeste Império.
Assim passou por Tien-Tsin, defendida por dois fortes e um muro de circunvalação, grande cidade de quatrocentos mil habitantes, cujo largo porto, formado pela junção do Pei-ho e do canal Imperial, recebendo algodões de Manchester, artigos de lã, cobre, ferro, fósforos alemães, madeira de sândalo, etc, e exportando jujuba, folhas de nenúfar, tabaco da Tartária, etc, movimenta em negócios cerca de setenta milhões. Mas Kin-Fo nem sequer pensou em visitar, na curiosa Tien-Tsin, o famoso pagode dos suplícios infernais; nem percorreu, no bairro de leste, as alegres ruas das Lanternas e das Roupas Velhas; nem almoçou no restaurante da "Harmonia e da Amizade", mantido pelo muçulmano Léu-Lao-Ki, cujos vinhos são celebrados, pense Maomé o que pensar; nem deixou o seu grande cartão vermelho — bem sabemos porque, — no palácio de Li-Tchong-Tang, vice-rei da província desde 1870, membro do Conselho Privado, membro do Conselho do Império, e que usa, além da túnica amarela, o título de Fi-Tzé-Chao-Pao.
Não! Kin-Fo sempre no seu carrinho, e Sun continuando a empurrá-lo, atravessaram o cais onde se acumulam montanhas de sacos de sal; passaram os bairros, as concessões inglesa e americana, o campo de corridas, as terras cobertas de sorgo, de cevada, de gergelim, de vinhas, de hortas-jardins, ricas em legumes e frutas, as planícies onde se erguem aos milhares as perdizes e codornizes, sulcadas por milhares de lebres, a que os falcões, esmerilhões e outras aves de rapina dão caça. Todos quatro seguiram a estrada macadamizada de vinte e quatro léguas que leva a Pequim, entre árvores de essências variadas e os grandes rosais do rio, chegando a Tong-Tchéu sãos e salvos, Kin-Fo valendo sempre duzentos mil dólares, Craig-Fry tão sólidos como no início da viagem, Sun esfalfado, mancando de ambas as pernas e não tendo no alto da cabeça mais de três polegadas de rabicho!
Estava-se em 19 de junho, o prazo concedido a Wang só terminava daí a sete dias!
— Onde estaria Wang?




Capítulo XIII
NO QUAL SE OUVE A CÉLEBRE COPLA DAS "CINCO VIGÍLIAS DO CENTENÁRIO".

— Senhores — disse Kin-Fo aos seus guarda-costas, quando o carrinho parou nos arrabaldes de Tong-Tchéu, — nós não estamos a mais de quarenta lis8 de Pequim, e a minha intenção é demorar-me aqui até ao momento em que a convenção havida entre mim e Wang cesse legalmente de existir. Nesta cidade de quatrocentas mil almas não me será difícil permanecer ignorado, se Sun não esquecer que está ao serviço de Ki-Nan, simples negociante da província de Chen-Si.
Não! Evidentemente Sun nunca o esqueceria! Sua tolice valera-lhe fazer durante esses últimos oito dias o ofício de cavalo, e ele esperava agora que o senhor Kin-Fo...
— Ki... — começou Craig.
— Nan! — terminou Fry.
...não tornasse a desviá-lo das suas funções habituais. E mais, considerando o estado de fadiga em que se achava, pedia licença ao senhor Kin-Fo...
— Ki... — atalhou Craig.
— ...Nan! — repetiu Fry.
...licença para dormir durante quarenta e oito horas pelo menos, sem parar, ou melhor, completamente "parado".
— Durante oito dias, se quiseres! — respondeu Kin-Fo. — Pelo menos terei a certeza de que dormindo não farás asneiras!
Kin-Fo e seus companheiros ocuparam-se então em procurar um hotel conveniente, coisa que não faltava em Tong-Tchéu. Esta vasta cidade não passa, a bem dizer, de um imenso arrabalde de Pequim. A estrada empedrada que a liga à capital é em toda a sua extensão orlada de vilas, residências, vivendas agrícolas, túmulos, pequenos pagodes, sebes verdejantes, e a circulação de carruagens, cavaleiros e pedestres é incessante.
Kin-Fo conhecia a cidade e fêz-se conduzir ao Taé-Uang-Miao, "o templo dos príncipes soberanos", que é simplesmente um mosteiro budista transformado em hotel, onde os viajantes podem alojar-se com suficiente conforto.
Kin-Fo, Craig e Fry instalaram-se logo, ficando os dois agentes num aposento contíguo ao do seu precioso cliente.
Quanto a Sun, desapareceu para ir dormir no canto que lhe foi designado e nunca mais foi visto.
Uma hora depois Kin-Fo e os seus vigias deixaram os quartos, almoçaram com apetite e trocaram impressões sobre o que deviam fazer.
— Convém — responderam Craig-Fry, — ler a Gazeta Oficial, a fim de ver se encontramos alguma coisa que nos interesse.
— Os senhores têm razão — respondeu Kin-Fo. — Talvez possamos saber o que é feito de Wang.
Saíram então todos três do hotel. Por precaução os dois acólitos caminhavam aos dois lados do seu cliente, observando os transeuntes e não se deixando aproximar por ninguém. Passaram assim pelas estreitas ruas da cidade até chegarem ao cais, onde compraram um número da Gazeta Oficial que foi lido avidamente.
Nada! Nada a não ser a promessa de dois mil dólares ou mil e trezentos taéis a quem revelasse a William J. Bidulph a residência atual do senhor Wang, de Shangai.
— Quer isto dizer — observou Kin-Fo, — que ele não apareceu.
— Portanto, não leu o anúncio que lhe diz respeito — respondeu Craig.
— De modo que se mantém nos termos do convênio — acrescentou Fry.
— O senhor Kin-Fo — perguntaram Craig-Fry, — considera mais ameaçado nestes últimos dias de prazo?
— Sem dúvida alguma — respondeu Kin-Fo. — Wang ignora as mudanças que sobrevieram na minha situação, e com toda a probabilidade não quererá subtrair-se ao dever de cumprir a sua promessa. Portanto, daqui a um dia, a dois, ou a três estarei mais ameaçado do que hoje, e daqui a seis muito mais ainda!
— E expirado o prazo?
— Nada mais terei a temer.
— Muito bem, senhor — tornaram Craig-Fry; — há apenas três meios de o subtrair a todo o perigo durante estes seis dias.
— Qual é o primeiro? — perguntou Kin-Fo.
— É voltar ao hotel — disse Craig, — e fechar-se no quarto, até que o prazo termine.
— E o segundo?
— É fazer-se prender como malfeitor — respondeu Fry, — ficando assim em segurança na cadeia de Tong-Tchéu!
— E o terceiro?
— É fingir-se de morto — responderam Craig-Fry, — e não ressuscitar senão quando já não houver nenhum perigo.
— Os senhores não conhecem Wang! — exclamou Kin-Fo. — Wang acharia meios de entrar no meu hotel, na minha prisão, no meu túmulo! Se ele não me matou até agora é porque não quis, é porque lhe pareceu preferível deixar-me o prazer ou as angústias da expectativa! Quem pode saber as razões que o moveram? De qualquer modo, prefiro esperar em liberdade.
— Esperemos!... Contudo!... — arriscou Craig.
— ...Parece-me que... — acrescentou Fry.
— Senhores — atalhou Kin-Fo num tom seco, — farei o que me parecer conveniente. Afinal de contas, se eu morrer antes de vinte e cinco deste mês, quanto perderá a vossa companhia?
— Duzentos mil dólares, — responderam Craig-Fry, — duzentos mil dólares que terão de ser pagos aos seus beneficiários!
— Pois eu perderei toda a minha fortuna, e ainda por cima a vida! Sou portanto o maior interessado neste negócio!
— É verdade!
— Uma grande verdade!
— Continuem portanto a velar por mim enquanto acharem conveniente, mas eu agirei como me parecer!
Nada havia a replicar.
Craig-Fry tiveram pois de se limitar a seguir cada vez mais de perto o seu cliente, redobrando de precauções. Mas não se iludiam sobre a gravidade da situação, que cada dia mais se acentuava.
Tong-Tchéu é uma das mais antigas cidades do Celeste Império. Edificada num braço canalizado do Pei-Ho, com a vantagem de um outro canal que a liga a Pequim, nela se concentra um grande movimento comercial. Seus bairros são extremamente animados pelo burburinho da população.
Kin-Fo e seus dois companheiros ainda mais se surpreenderam com essa viva agitação quando chegaram ao cais, aonde amarram os sampans e os juncos do comércio.
Considerando bem, Craig e Fry chegaram à conclusão de que se encontravam em maior segurança entre a multidão. A morte de seu cliente devia, pelo menos na aparência, ser devida ao suicídio. A carta que encontrariam com ele não deixaria dúvida a esse respeito. Wang não tinha portanto interesse em liquidá-lo a não ser em determinadas condições, que não podiam oferecer-se em meio a ruas freqüentadas ou na praça pública de uma cidade. Conseqüentemente, os guardas de Kin-Fo não tinham a recear um ataque imediato. Aquilo que unicamente os devia preocupar era saber se o Tai-ping, por um prodígio de habilidade, não os viria seguindo desde a partida de Shangai. Por isso, ninguém passava junto deles que não fosse minuciosamente observado.
De repente ouviu-se um nome que lhes pôs as orelhas em pé.
— Kin-Fo! Kin-Fo! — gritavam os chinezinhos, saltando e batendo palmas por entre a multidão.
Teria Kin-Fo sido identificado e o seu nome produzia o costumado efeito?
O herói parou surpreendido.
Craig-Fry aprontaram-se para o proteger com seus corpos, caso fosse preciso.
Mas não era a Kin-Fo que aqueles brados se dirigiam. Ninguém parecia suspeitar que ele estivesse ali. Ele deixou-se ficar imóvel, e curioso de saber a que propósito seu nome acabava de ser pronunciado, aguardou.
Um grupo de homens, mulheres e crianças tinha-se formado em torno de um cantor ambulante, que parecia muito apreciado por esse público das tuas. Todos gritavam, batiam palmas, aplaudiam de antemão.
O cantor, quando se viu em presença de um auditório suficiente, tirou da algibeira um maço de folhetos ilustrados com figuras coloridas, e com voz sonora gritou:
— As Cinco Vigílias do Centenário!
Era a famosa cançoneta que invadira o Celeste Império!
Craig-Fry quiseram levar dali o seu cliente, mas desta vez Kin-Fo teimou em ficar. Ninguém o conhecia, nunca ouvira a cançoneta que relatava seus atos e gestos, tinha vontade de ouvi-la!
O cantor começou deste modo:
"Na primeira vigília a lua ilumina o telhado pontiagudo da casa de Shangai. Kin-Fo é moço. Tem vinte anos. Parece um salgueiro cujas primeiras folhas mostram a pequena língua verde!
"Na segunda vigília, a lua ilumina o lado leste do rico yamen. Kin-Fo tem quarenta anos. Seus dez mil negócios progridem à maravilha. Os vizinhos fazem o seu elogio".
O cantor mudava de fisionomia e parecia ir envelhecendo a cada nova estrofe. Os aplausos cresciam.
Ele continuou:
"Na terceira vigília, a lua ilumina o espaço. Kin-Fo tem sessenta anos. Após as folhas verdes do verão, os amarelos crisântemos da estação do outono!
"Na quarta vigília a lua desceu para oeste. Kin-Fo tem oitenta anos! Seu corpo está encarquilhado como um camarão em água a ferver! Vai declinando, declinando como o astro da noite!
"Na quinta vigília os gaios saúdam a aurora nascente. Kin-Fo tem cem anos. Morre tendo realizado o seu maior desejo, mas o desdenhoso príncipe Ien recusa recebê-lo. O príncipe Ien não gosta de pessoas tão idosas, que iriam tresvariar para a sua corte! O velho Kin-Fo, sem poder repousar jamais, tem de vaguear por toda a eternidade!"
A multidão aplaudia e o cantor vendia às centenas o seu liberto a três sapecas o exemplar!
— Por que não haveria Kin-Fo de comprar também um?
Tirou uns miúdos do bolso, e com a mão cheia estendeu o braço por sobre as primeiras filas da multidão.
Mas de repente a mão abriu-se-lhe, as moedas rolaram pelo chão... Diante dele estava um homem cujos olhares se encontraram com os seus.
— Ah! — exclamou Kin-Fo não podendo conter essa interjeição, ao mesmo tempo interrogativa e exclamativa.
Fry-Craig tinham-no envolvido, julgando-o reconhecido, ameaçado, apunhalado, talvez morto!
— Wang! — gritou ele.
— Wang! — repetiram Craig-Fry.
Era Wang em pessoa! Acabava de avistar o seu antigo discípulo, mas em vez de correr para ele empurrou vigorosamente as últimas filas do bando, e largou a fugir a toda a velocidade que lhe permitiam as pernas, bem longas por sinal!
Kin-Fo não hesitou. Querendo libertar-se daquela situação intolerável saiu em perseguição de Wang, escoltado por Fry-Craig, que não queriam passar-lhe adiante nem deixá-lo para trás.
Também eles haviam reconhecido o inencontrável filósofo, e compreendido, pela surpresa que este manifestara, que ele esperava tanto ver Kin-Fo quanto Kin-Fo encontrá-lo a ele.
Mas afinal, por que fugia Wang?
Não era coisa fácil de explicar, o certo é que ele fugia como se tivesse nos calcanhares toda a polícia do Celeste Império.
Foi uma correria desvairada.
— Eu já não estou arruinado, Wang! Wang! Não estou mais arruinado! — berrava Kin-Fo.
— Está rico! Está rico! — repetiam Fry-Craig.
Mas Wang ia muito distanciado para ouvir essas palavras que deviam fazê-lo parar. Atravessou assim o cais, toda a extensão do canal, penetrando a seguir no bairro do oeste.
Os três perseguidores voavam-lhe no encalço mas não ganhavam distância. Ao contrário, o fugitivo ameaçava aumentar cada vez mais a diferença.
Meia dúzia de chineses tinham-se juntado a Kin-Fo, sem contar alguns tipaos que tomavam por algum malfeitor aquele homem que tão habilmente escapulia.
Curioso espetáculo o daquele grupo arquejante, gritando, uivando, acrescido a cada passo de novos aderentes! Em redor do cantor ouvira-se perfeitamente Kin-Fo pronunciar o nome de Wang. Felizmente o filósofo não respondera com o nome do discípulo, pois nesse caso toda a cidade desandaria a correr atrás de um homem tão célebre. Mas já o nome do filósofo, subitamente revelado, bastara. Wang! Era o misterioso personagem cuja descoberta valia uma enorme recompensa! Todos os sabiam. E se Kin-Fo corria atrás dos oitocentos mil dólares da sua fortuna, Craig-Fry atrás dos duzentos mil do seguro, os outros corriam atrás dos dois mil do prêmio prometido, e devemos concordar que toda aquela gente tinha motivo para dar às pernas.
— Wang! Wang! Eu estou mais rico do que antes! — continuava Kin-Fo a gritar, tanto quanto lhe permitia a rapidez da corrida.
— Já não está arruinado! Já não está arruinado! — repetiam Craig e Fry.
— Pare! Pare! — berrava a multidão dos perseguidores aumentando como uma bola de neve em carreira.
Wang nada ouvia. Com os cotovelos colados ao peito, não queria cansar-se a responder, nem perder a sua velocidade pelo prazer de voltar a cabeça.
Passado o arrabalde, Wang lançou-se na estrada de pedra que margina o canal. Nessa estrada, àquela hora quase deserta, tinha o campo livre. A velocidade da sua fuga aumentou, mas também, naturalmente, redobrou o esforço dos que o perseguiam.
Aquela corrida louca manteve-se por cerca de vinte minutos, e nada deixava prever qual fosse o seu resultado. Entretanto, pareceu que o fugitivo começava a enfraquecer um pouco. A distância que até então o separara dos outros corredores, tendia a diminuir. Então Wang sentindo isso mudou repentinamente de direção, desaparecendo atrás da sebe verde-jante de um pequeno pagode, à direita da estrada.
— Dez mil taéis a quem o agarrar! — gritou Kin-Fo.
— Dez mil taéis! — repetiram Craig-Fry.
— Ya! ya! ya! — ganiram os mais avançados do grupo. Todos tinham voltado à direita nas pegadas do filósofo e contornavam os muros do pagode.
Wang foi de novo avistado. Seguia por um exíguo atalho transversal, ao longo de um canal de irrigação, e para despistar os seus perseguidores deu uma nova guinada que o levou outra vez à estrada. Mas logo se tornou evidente que ele estava extenuado, pois voltou a cabeça em várias ocasiões. Kin-Fo, Craig e Fry continuavam firmes. Corriam, voavam, e nenhum dos velozes aspirantes aos taéis conseguia passar-lhes à frente.
O desenlace ia-se aproximando. Era apenas uma questão de tempo, e de tempo relativamente curto — alguns minutos quando muito.
Todos, Wang, Kin-Fo e seus companheiros tinham chegado ao lugar onde a grande estrada atravessa o rio sobre a célebre ponte de Palikao.
Dezoito anos antes, em 21 de setembro de 1860, não teriam tanta liberdade de movimentos nesse ponto da província de Pé-Tché-Li. A grande estrada estava então coberta de fugitivos de outra espécie. O exército do general San-Ko-Li-Tzin, tio do imperador, repelido pelos batalhões franceses, fizera alto nessa ponte do Palikao, magnífica obra de arte com balaústres de mármore branco, orlada de uma dupla fila de leões gigantescos. Ali os tártaros da Manchúria, tão incomparavelmente bravos no seu fatalismo, foram esmagados pelas balas dos canhões europeus.
Mas a ponte, que ainda conservava as marcas dessa batalha nas estátuas mutiladas, estava agora livre.
Wang, no limite da resistência, lançou-se através da estrada. Kin-Fo e os outros, aproximaram-se num esforço supremo. Logo vinte passos, depois quinze, depois dez, apenas os separavam. Não valia a pena tentar deter Wang com palavras inúteis, que ele não podia ou não queria ouvir. Era necessário alcançá-lo, agarrá-lo, amarrá-lo se tanto fosse preciso... Depois se dariam as explicações.
Wang percebeu que ia ser apanhado, e como, por uma teimosia inexplicável parecia temer encontrar-se frente a frente com o seu antigo discípulo, decidiu-se até a arriscar a vida para lhe escapar.
Bruscamente, de um salto, pulou por cima do balaústre da ponte e jogou-se ao Pei-ho.
Kin-Fo parou um momento e gritou:
— Wang! Wang!
Em seguida tomou impulso para saltar também:
— Hei-de agarrá-lo vivo! — gritou jogando-se igualmente ao rio.
— Craig? — interrogou Fry.
— Fry? — interpelou Craig.
E ambos, pulando a balaustrada se precipitaram em socorro do ruinoso cliente da Centenária.
Alguns dos voluntários fizeram o mesmo — e foi como um cacho de clowns em exercícios no trampolim.
Mas todo aquele zelo ia ser inútil. Kin-Fo, Fry-Craig e os outros seduzidos pela recompensa, em vão esquadrinharam o Pei-ho; Wang não pôde ser encontrado. Decerto, arrastado pela corrente o desgraçado filósofo fora pelo rio abaixo. Precipitando-se no rio, Wang quisera apenas escapar aos seus perseguidores, ou por alguma razão misteriosa resolvera pôr fim aos seus dias? Ninguém o poderia dizer.
Duas horas depois, Kin-Fo, Craig e Fry, desapontados mas bem secos e refeitos, e Sun acordado no melhor do seu sono e furioso como bem se pode imaginar, tinham tomado a estrada de Pequim.




Capítulo XIV
EM QUE O LEITOR PODERÁ, SEM FADIGA, PERCORRER QUATRO CIDADES NUMA SÓ.

Pé-Tché-Li, a mais setentrional das dezoito províncias da China, é dividido em nove departamentos. Um desses departamentos tem por capital Chun-Kin-Fo, o que quer dizer "cidade de primeira ordem obediente ao céu". Esta cidade é Pequim.
Figure o leitor um quebra-cabeças chinês, com a superfície de seis mil hectares, um perímetro de oito léguas, cujos fragmentos irregulares devem encher exatamente um retângulo, tal é essa misteriosa Kambalu, da qual Marco Pólo fez uma tão curiosa descrição no fim do século treze, tal é a capital do Celeste Império.
Na realidade Pequim compreende duas cidades distintas, separadas por uma vasta alameda e uma muralha fortificada; uma que é um paralelogramo retângulo, a cidade chinesa, outra um quadro quase perfeito, a cidade tártara; esta por sua vez encerra duas outras cidades: a cidade amarela, Hoang-Tching e Tsen-Kin-Tching, a cidade vermelha ou interdita. Outrora, o conjunto destas aglomerações somava mais de dois milhões de habitantes. Mas a emigração, provocada pela extrema miséria, reduziu esse número a um milhão quando muito. São tártaros e chineses, aos quais devemos acrescentar mais ou menos dez mil muçulmanos e ainda uma certa quantidade de mongóis e tibetanos que compõem a população flutuante.
A planta destas duas cidades superpostas representa com suficiente exatidão um baú, cuja tampa seria formada pela cidade chinesa e o bojo pela cidade tártara.
Seis léguas de um muro fortificado, alto e da largura de quarenta a cinqüenta pés, exteriormente revestido de tijolos, defendido de duzentos em duzentos metros por torres salientes, cercam a cidade tártara de um magnífico passeio de lajes, terminando em quatro imensos bastiões angulares cuja plataforma alberga corpos de guarda.
Como se vê o Imperador, Filho do Céu, está bem guardado!
No centro da cidade tártara, a cidade amarela, de uma superfície de seiscentos e sessenta hectares, servida por oito portas, existem uma montanha de carvão, de trezentos pés de altura, ponto culminante da capital, um soberbo canal, chamado "mar do Meio", atravessado por uma ponte de mármore, dois conventos de bonzos, um pagode dos Exames, o Pei-tha-sse mosteiro edificado numa península, que se diria suspenso sobre as águas claras do canal, o Peh-Tang, fundação dos missionários católicos, o pagode imperial, magnífico com a sua cobertura de alegres sinetas e de telhas azul-lápis, o grande templo dedicado aos ancestrais da dinastia reinante, o templo dos Espíritos, o templo do Gênio dos Ventos, o templo do Gênio do Raio, o templo do Inventor da Seda, o templo do Senhor do Céu, os cinco pavilhões dos Dragões, o mosteiro do "Repouso Eterno", etc.
No centro deste quadrilátero é que se esconde a cidade interdita, com uma superfície de oitenta hectares, cercada por uma fossa canalizada que sete pontes de mármore atravessam. Claro está que sendo manchu a dinastia reinante, a primeira destas três cidades é principalmente habitada por uma população da mesma raça. Os chineses foram relegados para fora, para a parte inferior do baú, na cidade anexa.
Penetra-se no interior dessa cidade Interdita, cercada de muros de tijolos vermelhos coroados por um capitel de telhas envernizadas de amarelo dourado, por uma porta ao sul, a "Porta da Grande Pureza", que só se abre para o imperador e as imperatrizes. Lá se erguem o templo dos Ancestrais da dinastia tártara, abrigado sob um duplo teto de telhas multi-cores; os templos Che e Tsi, consagrados aos espíritos celestes e terrestres; o palácio da "Soberana Concórdia", reservado às solenidades aparatosas e aos banquetes oficiais; o palácio da "Concórdia Média", onde se vêem os retratos dos antepassados do Filho do Céu; o palácio da "Concórdia Protetora", cuja sala central é ocupada pelo trono imperial; o pavilhão do Nei-Ko, onde se reúne o grande conselho do Império, presidido pelo príncipe Kong,9 ministro dos Negócios Estrangeiros, tio paterno do último soberano; o pavilhão das "Flores Literárias", onde o imperador vai uma vez por ano interpretar os livros sagrados; o pavilhão de Tchuane-Sin-Tien, no qual se fazem os sacrifícios em honra de Confúcio; a Biblioteca Imperial; a seção dos Historiógrafos; o Vu-Igne-Tien, onde se conservam as pranchas de cobre e de madeira destinadas à impressão de livros; as oficinas onde se confeccionam as roupas da corte; o palácio da "Pureza Celeste", ponto de deliberação dos negócios de família; o palácio do "Elemento Terrestre Superior", onde foi instalada a jovem imperatriz; o palácio da "Meditação", onde se recolhe o soberano quando fica doente; os três palácios onde são educados os filhos do imperador; o templo dos pais mortos; os quatro palácios reservados à viúva e às mulheres de Hien-Fong, falecido em 1861; o Tchu-Sieú-Kong, residência das esposas imperiais; o palácio da "Bondade Preferida", destinado às recepções oficiais das damas da corte; o palácio da "Tranqüilidade Geral", singular denominação para uma escola de filhos de oficiais superiores; o palácio da "Purificação e do Jejum"; o palácio da "Pureza de Jade", habitado pelos príncipes de sangue; o templo do "Deus protetor da cidade", de arquitetura tibetana; o armazém da coroa; a intendência da corte; o Lao-Kong-Tchu, morada dos eunucos, dos quais há pelo menos cinco mil na cidade vermelha; e enfim outros palácios que elevam a quarenta e oito o número dos que encerra a muralha imperial, sem contar o Tzen-Kuang-Ko, o pavilhão da "Luz Purpurina", situado à beira do lago da cidade amarela, onde em 19 de junho de 1873 foram admitidos à presença do imperador os cinco ministros dos Estados Unidos, da Rússia, da Holanda, da Inglaterra e da Prússia.
Que fórum antigo apresentou jamais uma tal aglomeração de edifícios tão variados de formas e tão ricos de objetos preciosos? Que cidade, que capital de estado europeu poderia oferecer-nos semelhante lista?
E a esta enumeração é necessário acrescentar ainda o Uane-Chéu-Chane, o palácio de Verão, situado a duas léguas de Pequim. Destruído em 1860, apenas se encontram em meio às ruínas, os seus jardins da "Claridade Perfeita" e da "Claridade Tranqüila", a sua colina da "Fonte de Jade" a sua montanha das "Dez Mil Longevidades!"
Em redor da cidade amarela fica a cidade tártara. Lá estão instaladas as legações francesa, inglesa e russa, o hospital das Missões de Londres, as missões católicas de leste e do norte, os antigos currais dos elefantes, que agora só contém um, zarolho e centenário. Lá se erguem a torre do Sino, de teto vermelho emoldurado de telhas verdes, o templo de Confúcio, o convento dos Mil Lamas, o templo de Faqua, o velho Observatório, com a sua grossa torre quadrada, o yamen dos Jesuítas, o yamen dos letrados onde se fazem os exames literários. Lá se erguem os arcos de triunfo do oeste e do leste. Lá correm o mar do norte e o mar dos Canaviais, cobertos de nelumbos e de nínfias azuis, e que vêm do palácio de Verão alimentar o canal da cidade amarela. Lá se vêem os palácios onde residem os príncipes de sangue, os ministros das finanças, dos ritos, da guerra, dos trabalhos públicos, das relações exteriores; lá estão o Tribunal de Contas, o Tribunal Astronômico e a Academia de Medicina. Tudo aparece misturado, em meio a ruas estreitas, cheias de poeira no verão, cobertas de água no inverno, na sua maioria compostas de casas miseráveis e baixas, entre as quais se ergue algum palácio de grande dignitário, à sombra de belas árvores. Depois, através de avenidas atravancadas circulam cães vadios, camelos mongóis carregados de carvão de pedra, palanquins de quatro e oito portadores, segundo a categoria do funcionário, liteiras, carros de mulas, carriolas, mendigos que, de acordo com o senhor Chutzé, constituem uma súcia independente de setenta mil maltrapilhos, e nessas ruas cobertas de uma "lama fétida e negra — como diz P. Arène, — ruas cortadas de charcos de água, onde a gente se enterra até ao meio da perna, não é raro que algum mendigo cego se afogue".
Em muitos pontos a cidade chinesa de Pequim, cujo nome é Vai-Tcheng, se parece com a cidade tártara, mas também em muitos outros se diferencia.
Dois templos célebres lhe ocupam a parte meridional, o templo do Céu e o da Agricultura, aos quais se devem acrescentar os templos da deusa Koanina, do gênio da Terra, da Purificação, do Dragão Negro, dos Espíritos do Céu e da Terra, os lagos dos Peixes de Ouro, o mosteiro de Fayuan-sse, os mercados, os teatros, etc.
Este paralelogramo retângulo está dividido, do norte ao sul, por uma importante artéria chamada Grande Avenida, que vai da porta de Hung-Ting ao sul, à porta de Tien, ao norte. Transversalmente é servido por uma outra artéria mais longa, que corta a primeira em ângulo direito, e vai da porta de Cha-Cua, a leste, à porta de Cuan-Tsu, a oeste. Chama-se avenida de Cha-Cua, e era a cem passos do seu ponto de interseção com a Grande Avenida que morava a futura senhora Kin-Fo.
Devemos lembrar-nos de que, alguns dias depois de ter recebido essa carta que lhe anunciava a sua ruína, a jovem viúva recebera uma segunda anulando a primeira, dizendo-lhe que a sétima lua não terminaria antes que o "seu irmãozinho mais novo" regressasse para junto dela.
Se Lé-u, a partir dessa data, 17 de maio, contara os dias e as horas, é coisa que não se discute. Mas Kin-Fo não dera mais notícias suas durante a insensata viagem de que não queria, sob pretexto nenhum, indicar o caprichoso itinerário. Lé-u escrevera para Shangai, mas as suas cartas tinham ficado sem resposta. Pode-se pois avaliar qual era a sua inquietação nesse dia 19 de junho em que nenhuma carta lhe tinha ainda chegado.
Durante esses longos dias a jovem senhora não deixara a sua casa da avenida Cha-Cua, sempre esperando, desassossegada. A desagradável Nan não contribuía para lhe amenizar a solidão. A "velha mãe" ia-se tornando mais rabugenta do que nunca, e merecia ser despedida cem vezes em cada lua.
Mas, que intermináveis e ansiosas horas ainda, antes que Kin-Fo chegasse a Pequim! Lé-u contava-as, e a conta parecia-lhe bem longa!
Se a religião de Lao-Tsé é a mais antiga da China, se a doutrina de Confúcio, promulgada pela mesma época (mais ou menos 500 anos antes de Cristo), é a seguida pelo imperador, os letrados e os altos mandarins, o budismo ou religião de Fo é a que conta maior número de fiéis — cerca de trezentos milhões, — à superfície do globo.
O budismo compreende duas seitas distintas, uma das quais tem por ministros os bonzos vestidos de cinzento e toucados de vermelho, e a outra, os lamas, vestidos e toucados ,de amarelo.
Lé-u era uma budista da primeira seita. Os bonzos viam-na freqüentemente no templo de Koan-Ti-Miao, consagrado à deusa Koanina. Lá ela orava pelo seu amigo, queimando pequenos bastões perfumados a fronte prosternada no chão do templo.
Nesse dia ela teve a idéia de ir outra vez orar à deusa Koanina, fazendo-lhe as mais ardentes preces. Um pressentimento lhe dizia que algum grave perigo ameaçava aquele que ela esperava com tão legítima impaciência.
Lé-u chamou então a "velha mãe" e ordenou-lhe que fosse buscar uma liteira à encruzilhada da Grande Avenida.
Nan encolheu os ombros, conforme seu detestável costume, e saiu para executar a ordem que recebera.
Enquanto isso, a jovem viúva, sozinha em seu boudoir, olhava tristemente o mudo aparelho que já lhe não fazia ouvir a distante voz do ausente.
— Ah! — dizia ela consigo, — ao menos é preciso que ele saiba que eu nunca deixei de pensar nele, e quero que em seu regresso a minha voz lho repita!
E Lé-u apertando a mola que punha em movimento o cilindro fonográfico, pronunciou em voz alta as frases mais doces que seu coração pôde inspirar-lhe.
Nan, entrando bruscamente, interrompeu esse terno monólogo. A liteira esperava a senhora "que poderia muito bem ficar em casa!"
Lé-u não lhe deu ouvidos e saiu imediatamente, deixando a "velha mãe" resmungar à vontade; ao instalar-se na cadeirinha deu ordem para que a conduzissem ao Koan-Ti-Miao.
O trajeto para lá chegar era simples, bastando "dobrar a avenida Cha-Cua no cruzamento, e subir a Grande Avenida até à porta de Tien.
Mas a cadeira avançava com dificuldade. Àquela hora ainda havia movimento no comércio e a aglomeração era sempre grande nesse bairro, um dos mais populosos da capital. As barracas dos vendedores ambulantes, espalhadas pela calçada davam à avenida a aparência de um recinto de feira com os seus mil ruídos e clamores. Oradores de rua, leitores públicos, adivinhos, fotógrafos, caricaturistas, com pouco respeito pela autoridade mandarim, gritavam emprestando o seu colorido à balbúrdia geral. Aqui passava um funeral de grande pompa, impedindo a circulação; ali um casamento, menos alegre talvez que o cortejo fúnebre, mas igualmente atravancador. Diante do yamen de um magistrado havia ajustamento. Um descontente vinha bater no "tambor das queixas" para reclamar a intervenção da justiça. Na pedra Léu-Ping estava ajoelhado um malfeitor que acabava de receber bastonadas, guardado por soldados da polícia com barrete manchu de borlas vermelhas, a curta lança e os dois sabres na mesma bainha. Mais além alguns chineses recalcitrantes, amarrados uns aos outros pelos rabichos, eram conduzidos ao posto policial. Um pouco adiante, um pobre diabo com a mão esquerda e o pé direito metidos nos dois buracos de uma prancha, caminhava aos solavancos como um estranho animal. Depois era um ladrão, encerrado numa caixa de madeira, com a cabeça passando pela tampa, abandonado à caridade pública; outros ladrões de canga ao pescoço, como bois curvados sob o jugo. Estes infelizes procuravam naturalmente os lugares freqüentados com a esperança de fazer melhor colheita, especulando com a caridade dos transeuntes, em detrimento dos mendigos de toda a espécie, maneias, coxos, paralíticos, filas de cegos conduzidos por um zarolho, e as mil variedades de enfermos, verdadeiros ou falsos, que pululam nas cidades do Império das Flores.
A cadeira avançava com lentidão por entre os estorvos que cresciam quanto mais ela se aproximava da alameda exterior. Por fim chegou, detendo-se no interior do bastião defendido pela porta, junto ao templo da deusa Koanina.
Lé-u desceu da cadeira, entrou no templo, começou por ajoelhar-se e em seguida prosternou-se diante da imagem da deusa. Depois encaminhou-se para um aparelho religioso que tem o nome de "moinho de orações".
Era uma espécie de dobadoira, na extremidade de cujos oito braços estão presas pequenas bandeirolas com sentenças sagradas.
Junto do aparelho um bonzo esperava gravemente os devotos e sobretudo o preço das devoções.
Lé-u entregou ao servo de Buda alguns taéis, destinados a prover as despesas do culto; depois, com a mão direita segurou a manivela da dobadoura e imprimiu-lhe um leve movimento de rotação, colocando ao mesmo tempo a mão esquerda sobre o coração. Decerto o moinho não estava girando com rapidez suficiente para que a prece fosse eficaz, porque o bonzo animou-a com um gesto:
— Mais depressa! — disse ele.
A jovem senhora deu mais velocidade ao moinho!
Durou isto cerca de um quarto de hora, findo o qual o bonzo garantiu que os votos da 'postulante seriam atendidos.
Lé-u prosternou-se outra vez diante da imagem da deusa Koanina, saiu do templo e reentrou na sua cadeira para fazer novamente o caminho de casa.
Mas quando iam entrar na Grande Avenida, os portadores tiveram de se desviar precipitadamente. Soldados afastavam com brutalidade o povo, as lojas eram intimadas a fechar e as ruas transversais eram vedadas com colgaduras azuis sob a guarda dos tipaos.
Um enorme cortejo ocupava uma parte da avenida e avançava ruidosamente.
Era o imperador Koang-Sin, cujo nome significa "Continuação da Glória", que regressava à sua boa cidade tártara, e diante do qual ia abrir-se a porta central.
Atrás das duas sentinelas da frente vinha um pelotão de batedores, seguido de um pelotão de picadores, dispostos em duas filas e trazendo um bastão a tiracolo.
Depois deles, um grupo de oficiais superiores empunhava o guarda-sol amarelo de folhos, ornado do dragão, que é o emblema do imperador como a fênix é o emblema da imperatriz.
O palanquim, cuja cortina de seda amarela estava erguida, surgiu em seguida transportado por dezesseis carregadores de túnicas vermelhas semeadas de rosáceas brancas e espécie de couraças de seda acolchoada. Príncipes de sangue e dignitários em cavalos ajaezados de seda amarela, indício de alta nobreza, escoltavam o veículo imperial.
No palanquim reclinava-se o Filho do Céu, primo do imperador Tong-Tche e sobrinho do príncipe Kong.
Depois do palanquim vinham os palafreneiros e os carregadores de reserva, e em breve todo o cortejo se sumiu através da porta de Tien, para gáudio dos transeuntes, mercadores e mendigos que puderam regressar aos seus afazeres.
A cadeira de Lé-u prosseguiu então em seu caminho, deixando-a em casa após uma ausência de duas horas.
Ah! Que surpresa a boa deusa Koanina reservara à jovem senhora!
No instante em que a cadeirinha parou, uma carruagem toda empoeirada com duas mulas aos varais encostava-se também junto à porta. Kin-Fo, seguido de Craig-Fry e de Sun descia na calçada!
— Tu! És tu! — gritou Lé-u sem poder acreditar no que via.
— Querida irmãzinha mais nova! — respondeu Kin-Fo; — não esperavas o meu regresso!...
Lé-u não respondeu. Segurou a mão do amigo e arrastou-o para o boudoir, diante do pequeno aparelho fonográfico que era o discreto confidente das suas penas.
— Não deixei um só momento de te esperar, querido coração bordado de flores de seda! — disse ela.
E desprendendo o cilindro, apertou a mola que o pôs em movimento.
— Volta, irmãozinho bem-amado! Volta para junto de mim! Que os nossos corações não fiquem mais separados como o estão as duas estrelas do Pastor e da Lira! Todos os meus pensamentos são pelo teu regresso...
O aparelho calou-se um segundo... nada mais que um segundo. Depois continuou, mas desta vez num tom esganiçado:
— Já não basta uma patroa, também é preciso haver um patrão em casa! Que o príncipe Ien os estrangule a ambos!
Esta segunda voz era fácil de reconhecer, pertencia a Nan. A desagradável "velha mãe" continuara a falar após a saída de Lé-u, enquanto o aparelho funcionando ainda, registrava, sem que ela o soubesse, as suas palavras imprudentes.
Criadas e criados, desconfiai dos fonógrafos!
Nesse mesmo dia Nan foi despedida, e para a porem na rua nem sequer se esperaram os derradeiros dias da sétima lua!

Capítulo XV
QUE COM CERTEZA RESERVA UMA SURPRESA A KIN-FO E TALVEZ AO LEITOR.

Nada se opunha mais ao casamento do rico Kin-Fo, de Shangai, com a amável Lé-u, de Pequim. Só daí a seis dias terminaria o prazo concedido a Wang para cumprir a sua promessa, mas o desventurado filósofo pagara com a vida a sua inexplicável fuga. De agora em diante nada mais havia a temer, o casamento podia celebrar-se. Foi decidido e marcado para esse vigésimo quinto dia de junho que Kin-Fo destinara para último dia da sua vida!
A jovem senhora soube então tudo o que se passara. Inteirou-se das diversas situações que atravessara aquele que, recusando em primeiro lugar associá-la à sua miséria, e uma segunda vez deixá-la viúva, lhe voltava livre enfim para a fazer feliz.
Mas Lé-u, ao saber da morte do filósofo não pôde conter algumas lágrimas. Conhecia-o, estimava-o, fora ele o primeiro confidente dos seus sentimentos por Kin-Fo.
— Pobre Wang! — disse ela. — Fará bastante falta em nosso casamento!
— Sim, pobre Wang! — respondeu Kin-Fo que também lamentava esse companheiro da juventude, esse amigo dos vinte anos. — Contudo — acrescentou, — ter-me-ia assassinado como jurara!
— Não, não! — protestou Lé-u sacudindo a linda cabeça. Para mim ele buscou a morte nas águas do Pei-ho justamente para não cumprir essa horrível promessa!
Ai! Era bem admissível essa hipótese de que Wang resolvera afogar-se para fugir à obrigação de realizar o seu mandato! Kin-Fo era da mesma opinião da jovem senhora, e sem dúvida ali estavam dois corações dos quais a imagem do filósofo jamais se apagaria.
Não é preciso dizer que em seguida à catástrofe da ponte de Palikao, os jornais chineses deixaram de reproduzir os ridículos anúncios do honrado William J. Bidulph, assim como se desvanecera com igual rapidez a incômoda celebridade de Kin-Fo.
E agora, que iriam fazer Craig-Fry? Tinham sido incumbidos de defender os interesses da Centenária até 30 de junho, isto é, durante mais dez dias, mas na verdade Kin-Fo já não necessitava dos seus serviços. Era de recear que Wang atentasse contra a sua pessoa? Não, visto que ele já não existia. Poderiam temer que o seu cliente erguesse contra si próprio a mão suicida? Também não. Kin-Fo o que queria era viver, viver bem e o máximo tempo possível.
Portanto, a contínua vigilância de Fry-Craig não tinha mais razão de ser.
Mas, afinal de contas, esses dois originais eram excelentes pessoas. Embora o seu devotamento visasse apenas o cliente da Centenária, nem por isso deixara de manifestar-se em todas as ocasiões. Kin-Fo convidou-os a assistir às festas do seu casamento, e eles aceitaram.
— Aliás — observou espirituosamente Fry a Craig, — um casamento é muitas vezes um suicídio!
— Dá-se a vida ficando-se com ela — respondeu Craig com um amável sorriso.
No dia seguinte Nan tinha sido substituída na casa da avenida Cha-Cua por um pessoal mais adequado. Uma tia da jovem senhora, Mma. Lutalu, esposa de um mandarim de quarta categoria, segunda classe e botão azul, antigo leitor imperial e membro da Academia dos Han-Lin, possuía todas as qualidades físicas e morais exigidas para preencher essas importantes funções.
Quanto a Kin-Fo, tencionava deixar Pequim depois do casamento, visto não pertencer ao número desses celestiais que gostam da vizinhança das cortes. Só se consideraria verdadeiramente feliz quando visse sua jovem esposa instada no rico yamen de Shangai.
Tivera, assim, de procurar um apartamento provisório, e descobrira o que lhe convinha em Tien-Fu-Tang, o "Templo da Felicidade Celeste", hotel e restaurante muito confortável, situado junto à alameda de Tien-Men, entre as cidades tártara e chinesa. Lá se hospedaram igualmente Craig e Fry, que, por força do hábito, não podiam resolver-se a abandonar o cliente. No que respeita a Sun, retomara o seu serviço, sempre resmungando, mas cuidando sempre de ver se não haveria por perto algum indiscreto fonógrafo. O episódio com Nan tornara-o desconfiado.
Kin-Fo tivera o prazer de encontrar em Pequim dois dos seus amigos de Cantão, o negociante Yin-Pang e o letrado Hual. Além disso conhecia alguns funcionários e comerciantes da capital, e todos se consideraram no dever do o assistir em tão excepcionais circunstâncias.
Era verdadeiramente feliz, agora, o indiferente de outrora, o impassível discípulo do filósofo Wang! Dois meses de cuidados, de inquietações, de barafundas, todo esse período acidentado da sua existência bastara para lhe fazer apreciar o que é, o que deve ser, o que pode ser a felicidade neste mundo. Sim! O sábio filósofo tinha razão! Pena era que não estivesse ali presente para constatar uma vez mais a excelência da sua doutrina!
Kin-Fo passava junto da futura esposa todo o tempo que não consagrava aos preparativos de cerimônia. Lé-u sentia-se feliz sempre que tinha o amigo junto de si. Que necessidade havia para ele de percorrer os mais suntuosos estabelecimentos da capital a fim de a cumular de presentes magníficos? Queria-o apenas a ele e não se cansava de repetir as sábias máximas da célebre Pan-Hoei-Pan:
"Se uma mulher tem um marido que lhe fala ao coração, é para toda a sua vida!
"A mulher deve ter um respeito sem limites por aquele cujo nome usa, e uma atenção contínua sobre si mesma.
"A mulher deve conservar-se em casa como uma pura sombra ou um simples eco.
"O esposo é o céu da esposa".
Enquanto isso, os preparativos dessa festa nupcial, que Kin-Fo desejava esplêndidos, avançavam.
Já os trinta pares de sapatinhos bordados que exige o enxoval de uma chinesa estavam alinhados na casa da avenida Cha-Cua. A doçaria da casa Sinuyane, bolos, frutas secas, amêndoas torradas, balas de cevada, compotas de abrunhos, laranjas, gengibre e pamplemussa, os ricos tecidos de seda, as jóias de pedras preciosas e de ouro finamente lavrado, anéis, braceletes, dedais para unhas, pregos de cabelo, etc, todas as deliciosas fantasias da ourivesaria pequinense se amontoavam no boudoir de Lé-u.
Nesse extraordinário Império do Meio, quando uma moça se casa não leva dote algum. Ela é verdadeiramente comprada pelos pais do marido ou pelo próprio marido, e à falta de irmãos ela só pode herdar uma parte da fortuna paterna quando seu pai assim expressamente o determina. Estas condições são em geral reguladas por intermediários a que chamam "mei-jin", e o casamento só se decide quando tudo está bem combinado a respeito.
A noiva é então apresentada aos pais do marido. Este não a vê, o que só se verifica quando ela chega em cadeirinha fechada à moradia conjugai. Nesse momento é entregue ao esposo a chave da casa, com a qual ele abre a porta. Se a noiva lhe agrada, ele estende-lhe a mão; se não lhe agrada fecha bruscamente a porta e tudo está desfeito desde que se concorde em deixar os bens dotais aos pais da moça.
Ora, nada disto podia acontecer no casamento de Kin-Fo. Ele conhecia a sua jovem prometida e não precisava comprá-la a ninguém — o que muito simplificava as coisas.
O dia 25 de junho chegou enfim. Estava tudo pronto.
Havia três dias, segundo o costume, que a casa de Lé-u permanecia iluminada em seu interior. Durante três noites a senhora Lutalu, que representava a família da nubente, tivera de abster-se de dormir, — um modo de patentear a sua tristeza no momento em que a noiva vai deixar a casa paterna. Se Kin-Fo ainda tivesse pais, sua própria casa igualmente se teria iluminado em sinal de luto, "porque o casamento do filho deve ser considerado como uma representação da morte do pai, a quem o filho então parece suceder", diz o Hao-Khiéu-Tchuen.
Mas se estes usos não podiam aplicar-se à união de dois esposos absolutamente livres, outros havia que não podiam ser ignorados.
Por exemplo, nenhuma das formalidades astrológicas fora esquecida. Os horóscopos, tirados com todas as regras, indicavam perfeita compatibilidade de destinos e temperamento. A época do ano e o período lunar mostravam-se favoráveis. Jamais um casamento se apresentara sob mais favoráveis auspícios.
A recepção da noiva devia ter lugar às oito horas da noite no hotel da "Felicidade Celeste", isto é, a esposa ia ser conduzida com toda a pompa ao domicílio do esposo. Na China é desnecessário comparecer diante de um magistrado civil, ou perante qualquer sacerdote, bonzo ou lama.
As sete horas, Kin-Fo, sempre acompanhado de Craig e Fry, que resplandeciam como as testemunhas de um casamento europeu, recebia os amigos à entrada do seu apartamento. Que batalha de amabilidades! Essas pessoas notáveis tinham recebido os seus convites em papel vermelho, com algumas linhas em caracteres microscópicos: "O Kin-Fo, de Shangai, cumprimenta humildemente o senhor... e roga-lhe ainda mais humildemente... assistir à humilde cerimônia"...etc, etc.
Tinham vindo todos para homenagear os mibentes, e participar do magnífico festim reservado aos homens, enquanto as senhoras se reuniam em mesa especial para elas expressamente preparada.
Lá estavam o negociante Yin-Pang e o letrado Hual. Viam-se também alguns mandarins com o seu chapéu oficial de borla vermelha, do tamanho de um ovo de pombo, que indicava pertencerem às três primeiras ordens. Outros, de categoria menor, usavam apenas o botão azul opaco ou branco fosco. A maior parte eram funcionários civis de origem chinesa, como era de esperar nos amigos de um shangaiense hostil à raça tártara. E todos ricamente vestidos, com trajes brilhantes e toucados de gala, formavam um maravilhoso cortejo. Kin-Fo, — assim o mandava a cortesia, — esperava-os à própria entrada do hotel. Ã medida que iam chegando acompanhava-os até à sala de recepção, convidando-os sempre duas vezes a passar à sua frente cada vez que os criados em grande libre escancaravam uma porta. Chamava-os pelo seu "nobre nome", informava-se da sua "nobre saúde", pedia notícias da sua "nobre família". Enfim, um meticuloso observador da civilidade pueril não descobriria em sua atitude a menor incorreção.
Craig e Fry admiravam aquelas delicadezas, sem contudo perder de vista o seu irrepreensível cliente.
Tinham tido ambos a mesma idéia. E se, embora isso fosse improvável, Wang não tivesse perecido, como se supunha, nas águas do rio? Se ele se insinuasse entre esses grupos de convidados? A vigésima quarta hora do vigésimo quinto dia de junho — o extremo limite do prazo, — ainda não tinha soado! A mão do Tai-ping não estava desarmada. Se no derradeiro momento...?
Não! Isso não era provável, mas enfim era possível. De modo que por um resto de prudência, Craig-Fry observavam com cuidado aquela gente... Mas não viram nenhuma cara suspeita.
Enquanto isso a noiva deixava a sua casa da avenida Cha-Cua, instalada num palanquim fechado.
Embora Kin-Fo não tivesse querido envergar a traje de mandarim a que todo o noivo tem direito, — em sinal de deferência pela instituição do casamento que os antigos legisladores tinham em grande conta, — Lé-u submetera-se aos regulamentos da alta sociedade e resplandecia no seu vestido vermelho, feito de um admirável tecido de seda bordada. O rosto desaparecia-lhe, por assim dizer, atrás de um véu de finas pérolas que pareciam gotejar do rico diadema cujo círculo de ouro lhe adornava a fronte; Pedrarias e flores artificiais do mais apurado gosto constelavam-lhe os cabelos e as longas trancas negras. Kin-Fo achá-la-ia mais encantadora do que nunca ao vê-la descer do palanquim aberto pela sua mão solícita.
O cortejo pôs-se em marcha, virando a esquina para entrar na Grande Avenida e seguir pela alameda de Tien-Men. Seria talvez mais aparatoso se em vez de um cortejo de núpcias se tratasse de um enterro, mas enfim merecia que os transeuntes parassem para o ver passar.
Amigas e colegas de Lé-u acompanhavam o palanquim, conduzindo em grande pompa as diferentes peças do enxoval. Cerca de vinte músicos marchavam à frente com grande ruído de instrumentos de cobre, entre os quais destacava o gongo sonoro. Em redor do palanquim agitava-se grande número de pessoas erguendo tochas e lanternas de mil cores. A futura esposa permanecia oculta aos olhos da multidão. De acordo com a etiqueta, o primeiro olhar a receber seria o do esposo.
Foi nessas circunstâncias e entre um ruidoso acompanhamento de populares, que o cortejo atingiu, pelas oito horas, o hotel da "Felicidade Celeste".
À entrada do hotel, ricamente decorada, Kin-Fo esperava a chegada do palanquim para lhe abrir a porta. Em seguida ajudaria a esposa a descer e acompanhá-la-ia ao aposento reservado onde ambos saudariam quatro vezes o céu. Depois compareceriam juntos ao banquete nupcial. A futura esposa faria quatro genuflexões diante do marido, que por sua vez lhe faria duas. Espalhariam algumas gotas de vinho à maneira de libações e ofereceriam alguns alimentos aos espíritos intermediários. Entregar-lhes-iam então dois copos cheios, que esvaziariam até à metade, e misturando o que restava num só copo beberiam um após o outro. A união estaria consagrada.
O palanquim chegou e Kin-Fo acercou-se. Um mestre de cerimônias entregou-lhe a chave. Ele recebeu-a, abriu a porta e estendeu a mão à linda Lé-u, toda emocionada. A futura esposa desceu agilmente e atravessou o grupo dos convidados, que se inclinaram respeitosamente levando as mãos à altura do peito.
No momento em que a jovem senhora ia atravessando a porta do hotel, foi dado um sinal. Enormes papagaios luminosos subiram aos ares, balançando ao sopro da brisa as suas imagens multicores de dragões, fênix e outros emblemas do casamento. Pompos eólios, tendo na cauda um pequeno aparelho sonoro voaram enchendo o espaço de uma celeste harmonia. Foguetes de mil cores partiam silvando, e da luminosa girândola desprendia-se uma chuva de ouro.
Bruscamente ouviu-se um ruído longínquo para os lados da alameda Tien-Men. Eram gritos aos quais se misturavam os sons vibrantes de um clarim. Houve um silêncio e daí a pouco o alarido recomeçou, parecendo aproximar-se. Não tardou a alcançar a rua onde o cortejo parará.
Kin-Fo prestava um ouvido atento, e os amigos indecisos esperavam que a noiva entrasse no hotel.
Mas quase imediatamente a rua foi tomada de singular agitação. Os toques de clarim redobraram nas proximidades.
— De que se trata? — perguntou Kin-Fo.
A fisionomia de Lé-u alterara-se, um secreto pressentimento lhe apressava as batidas do coração.
A multidão invadiu por fim a rua, cercando um arauto com a libre imperial cercado por diversos tipaos.
E em meio ao silêncio geral, o arauto soltou estas palavras a que respondeu um surdo murmúrio:
"Morte da Imperatriz viúva! Interdição! Interdição!"
Kin-Fo havia compreendido: era um golpe que o atingia diretamente. Não pôde conter um movimento de cólera!
Acabava de ser decretado o luto imperial pela morte da viúva do último imperador. Durante um prazo que a lei fixaria ficava proibido a quem quer que fosse rapar a cabeça, dar festas públicas e representações teatrais; os tribunais não podiam ministrar justiça, era proibido celebrar casamentos.
Lé-u, desolada mas corajosa, para não aumentar a dor do noivo disfarçou a decepção que a tomara. Segurou a mão do seu querido Kin-Fo e disse-lhe num tom de voz que mal lhe escondia o pesar:
— Esperemos!
E o palanquim tornou a levar a jovem para a sua casa da avenida Cha-Cua, suspenderam-se as manifestações de júbilo, as mesas foram desarmadas, os músicos despedidos, e os amigos do desolado Kin-Fo separaram-se depois de lhe manifestarem os seus sentimentos.
Não se devia tentar infringir aquele imperioso decreto de interdição!
Decididamente, a má sorte continuava a perseguir Kin-Fo. Mais uma ocasião se lhe oferecia para aproveitar as lições de filosofia que lhe dera o antigo mestre!
Kin-Fo ficara sozinho com Craig e Fry no deserto apartamento do hotel da "Felicidade Celeste", cujo nome lhe parecia agora um amargo sarcasmo. O prazo da interdição podia ser prolongado à vontade do Filho do Céu! E ele que tencionava regressar imediatamente a Shangai, para instalar a jovem esposa no rico yamen, tornado seu, e recomeçar uma vida nova nessas novas condições!
Decorrida uma hora surgiu um criado trazendo uma carta, entregue nesse mesmo instante por um mensageiro.
Kin-Fo ao reconhecer os caracteres do subscrito não pôde conter uma exclamação. A carta era de Wang e eis o que ela dizia:
"Amigo, não estou morto, mas quando receberes esta carta terei deixado de viver!
"Morro porque não tenho coragem para cumprir a minha promessa; mas fica tranqüilo porque eu providenciei tudo.
"Lao-Shen, um dos chefes Tai-ping, meu antigo companheiro, está de posse da tua carta. Ele terá a mão e o coração mais firmes do que eu para executar a horrível missão que me compeliste a aceitar. A ele pertencerá, pois, a parte do seguro que me reservaste, que lhe transferi e ele receberá quando tu já não existires!
"Adeus! Precedo-te na morte. Até breve, amigo, adeus!
"WANG".




Capítulo XVI
NO QUAL KIN-FO, SEMPRE CELIBATARIO, RECOMEÇA A CORRER CADA VEZ MAIS.

Tal era agora a situação que se criara para Kin-Fo, mil vezes mais grave do que nunca!
Assim pois, Wang, malgrado a palavra comprometida, sentira paralisar-se-lhe a vontade ao chegar o momento de matar o antigo discípulo! Wang, portanto, nada sabia da mudança que se dera na fortuna de Kin-Fo, visto que em sua carta nada dizia a respeito! Por isso encarregara um outro de cumprir a sua promessa, e logo que outro! Um Tai-ping temível entre todos, que nenhum escrúpulo teria em cometer um simples assassinato, pelo qual nem sequer poderia ser responsabilizado! A carta de Kin-Fo assegurava-lhe a impunidade, e a delegação de Wang, um capital de cinqüenta mil dólares.
— Ah! Isto já está passando dos limites! — exclamou Kin-Fo num primeiro assomo de cólera.
Craig e Fry haviam-se inteirado da carta de Wang.
— A sua carta — perguntaram eles, — não marca o dia 25 de junho como data extrema?
— Não! — respondeu Kin-Fo. — Wang só devia datá-la no dia da minha morte. Agora, esse Lao-Shen pode agir quando lhe parecer, sem limite de tempo.
— Oh! — disseram Craig-Fry, — o interesse dele é liquidar o assunto o mais breve possível.
— Por quê?
— Para não perder a sua parte no seguro com o vencimento da apólice!
O argumento era irrespondível.
— Sem dúvida — respondeu Kin-Fo. — Mais uma razão para não perder um minuto em reaver a minha carta, ainda que tenha de pagar a esse Lao-Shen os cinqüenta mil dólares que lhe cabem!
— É justo! — disse Craig.
— É verdade! — acrescentou Fry.
— Vou, portanto, partir! Deve-se saber onde está agora esse chefe Tai-ping; talvez seja mais encontrável do que Wang!
E assim falando, Kin-Fo mal se podia conter, andava de um lado para outro. Aquela sucessão de golpes de clava que sobre ele se abatiam, punham-no em um estado de invulgar excitação.
— Vou partir! — prosseguiu ele. — Vou à procura de Lao-Shen! Os senhores poderão fazer o que entenderem.
— Senhor — responderam Craig-Fry, — os interesses da Centenária estão agora mais ameaçados do que nunca! Abandoná-lo em tais circunstâncias seria faltar ao nosso dever. Não o deixaremos.
Não havia um momento a perder. Mas antes de tudo cumpria saber ao certo quem era esse Lao-Shen, e aproximadamente onde residia. Mas a sua notoriedade era tanta que nada disso foi difícil.
Com efeito, esse antigo companheiro de Wang no movimento insurrecional dos Mang-Tchao retirara-se para o norte da China, para além da Grande Muralha, próximo ao golfo de Leao-Tong, que é apenas um anexo do golfo de Pé-Tché-Li. Se o governo imperial não tratara ainda com ele, como fizera com alguns outros chefes rebeldes que não pudera submeter, deixava-o pelo menos operar tranqüilamente nos territórios situados além das fronteiras chinesas, onde Lao-Shen, resignado a um papel mais modesto, fazia o ofício de salteador de estradas. Ah! Wang escolhera bem o homem que precisava! Este não teria escrúpulos, e uma punhalada a mais ou a menos não era coisa que lhe perturbasse a consciência!
Kin-Fo e os dois agentes obtiveram assim completas informações sobre o Tai-ping, e souberam que ele havia sido assinalado ultimamente nas proximidades de Fu-Ning, pequeno porto no gôlío de Leao-Tong. Foi para lá que resolveram partir sem mais demora.
Imediatamente Lé-u foi informada do que acabava de passar-se. Mais um agravo para as suas angústias e seus belos olhos afogaram-se em lágrimas. Quis dissuadir Kin-Fo de partir, a pretexto de que ele corria ao encontro de um perigo inevitável. Não era preferível esperar, afastar-se, deixar o Celeste Império se tanto fosse preciso, refugiar-se em alguma parte do mundo onde o feroz Lao-Shen não pudesse alcançá-lo?
Mas Kin-Fo fez compreender à jovem senhora que, viver sob essa constante ameaça, à mercê de um tal bandido para quem a sua morte valia uma fortuna, era uma perspectiva que não podia tolerar. Não! Precisava acabar com aquilo de uma vez por todas. Kin-Fo e os seus fiéis acólitos partiriam nesse mesmo dia, procurariam o Tai-Ping e resgatariam a peso de ouro a deplorável carta, regressando a Pequim antes mesmo que o decreto de interdição tivesse sido revogado.
— Querida irmãzinha — disse Kin-Fo, — ainda bem que o nosso casamento teve de ser adiado por alguns dias. Se ele se tivesse realizado, que situação agora a tua!
— Se nos tivéssemos casado eu teria o direito de te seguir, e iria contigo!
— Não! — atalhou Kin-Fo. — Preferia mil mortes a expor-te a um só perigo! Adeus, Lé-u, adeus!...
E Kin-Fo, com os olhos úmidos, desprendeu-se dos braços da jovem senhora que o queria reter.
Nesse mesmo dia Kin-Fo, Craíg e Fry, acompanhados de Sun, ao qual a má sorte não deixava um instante de repouso, deixavam Pequim a caminho de Tong-Tchéu. Foi questão de uma hora.
Eis o que fora decidido:
A viagem por terra, através de uma província insegura, oferecia dificuldades muito sérias.
Se apenas se tratasse de alcançar a Grande Muralha ao norte da capital, quaisquer que fosse os perigos acumulados nesse percurso de cento e sessenta lis,10 valeria a pena enfrentá-los. Mas não era ao norte, e sim a leste, que se achava o porto de Fu-Ning. Indo por mar, lucravam tempo e segurança. Em quatro ou cinco dias, Kin-Fo e seus companheiros podiam lá chegar, e então resolveriam.
Encontrar-se-ia, porém, um navio de partida para Fu-Ning? Era o que convinha saber, antes de mais nada, com os agentes marítimos de Tong-Tchéu.
Dessa vez o acaso favoreceu Kin-Fo, que a má sorte acabrunhava sem descanso. Na embocadura do Pei-ho esperava um cargueiro para Fu-Ning.
Tomar uma dessas rápidas embarcações que percorrem o rio, descer no seu estuário e embarcar no tal navio — era o que tinham a fazer.
Craig e Fry pediram apenas uma hora para os seus preparativos, e essa hora gastaram-na em comprar todos os aparelhos de salvamento conhecidos, desde o primitivo cinto de cortiça até às roupas insubmersíveis do capitão Boyton. Kin-Fo continuava valendo duzentos mil dólares. A sua viagem por mar não o obrigava a prêmios suplementares, visto ter assegurado todos os riscos. Podia acontecer uma catástrofe, era preciso prever tudo, e realmente tudo foi previsto.
Assim, no dia 26 de junho, ao meio-dia, Kin-Fo, Craig-Fry e Sun embarcavam no Pei-tang e desciam o curso do Pei-ho. As curvas desse rio são tão caprichosas que o seu percurso representa justamente o dobro de uma linha reta que ligasse Tong-Tchéu à sua embocadura; mas é canalizado, e portanto navegável por embarcações de importante tonelagem. O movimento marítimo também é considerável, e muito mais intenso que o da larga estrada que quase paralelamente o acompanha.
O Pei-tang descia velozmente por entre as balisas do canal, fustigando com as pás das suas rodas as águas amareladas do rio, e agitando à passagem os numerosos canais de irrigação de ambas as margens. A alta torre de um pagode além de Tong-Tchéu logo se perdeu de vista, desaparecendo no ângulo de uma curva bastante brusca.
Nessa altura o Pei-ho ainda não era largo. Deslizava aqui entre dunas arenosas, ali por entre pequenos casais agrícolas, em meio a uma paisagem bastante arborizada, cortada de vergéis e sebes vivas. Surgiram vários povoados importantes, Matao, Hé-Si-Vu, Nane-Tsaé, Yang-Tsune, onde se fazem ainda sentir as marés.
Tien-Tsin apareceu logo em seguida, onde se perdeu algum tempo pois era necessário abrir a ponte de leste, que une as duas margens do rio, e circular, não sem dificuldade, por entre centenas de navios que juncam o porto. Isso não foi conseguido sem grandes clamores, e custou a mais de uma barcaça as amarras que a retinham contra a corrente, aliás cortadas sem a menor consideração pelo prejuízo que daí podia resultar. Em conseqüência, enorme confusão e embaraço de embarcações à deriva, que daria grande trabalho aos dirigentes do porto — se os houvessem em Tien-Tsin.
Durante toda a travessia, dizer que Craig e Fry, mais rigorosos que nunca, não se afastavam um passo do seu cliente, não seria em verdade dizer tudo.
Já não se tratava do filósofo Wang, com o qual se poderia entrar em entendimento se o pudessem prevenir, mas de Lao-Shen, o Tai-ping que não conheciam — o que o tornava muito mais temível. Como iam ao encontro dele, poderiam talvez considerar-se seguros; mas quem garantiria que ele já não se tivesse posto a caminho, em busca da sua vítima? E nesse caso como evitá-lo, como precaver-se? Craig e Fry viam um assassino em cada passageiro do Pei-tang: não comiam, não dormiam, não viviam!
Se Kin-Fo, Craig e Fry estavam seriamente inquietos, Sun, por seu lado andava numa horrível ansiedade. A simples idéia de ir viajar pelo mar já lhe causava enjôos, e empalidecia à medida que o Pei-tang se aproximava do golfo de Pé-Tché-Li.
O nariz franzia-se-lhe, contraía-se-lhe a boca, e no entanto as águas calmas do rio não sacudiam ainda a embarcação.
Que sucederia depois, quando Sun tivesse de suportar as curtas vagas de um mar pouco largo, essas vagas que tornam os balanços mais vivos e freqüentes?
— Tu nunca viajaste por mar? — perguntou-lhe Craig.
— Nunca.
— Não te sentes bem? — perguntou-lhe Fry.
— Não.
— Aconselho-te a levantar a cabeça — prosseguiu Craig.
— A cabeça?
— E a não abrir a boca... — acrescentou Fry.
— A boca?
Dito isto, Sun deu a entender aos dois agentes que preferia não continuar a falar, e foi instalar-se no centro do navio, lançando ao rio, já bem largo, as olhadelas melancólicas das pessoas predestinadas ao mal um tanto ridículo do enjôo.
A paisagem tinha-se então modificado no vale que acompanhava o rio. A margem direita contrastava pela escarpa mais alta que a da esquerda, cuja praia escumava sob uma pequena ressaca. Para além estendiam-se vastas plantações de sorgo, milho, trigo e painço. Do mesmo modo que em toda a China, — mãe de família que tem tantos milhões de filhos a sustentar — não havia um pedaço de terra cultivável que estivesse abandonada. Por toda a parte canais de irrigação ou aparelhos de bambu, espécie de noras rudimentares, tirando e espalhando a água em profusão. Aqui e ali, junto às aldeias de taipa amarelada viam-se alguns grupos de árvores, entre outras, velhas macieiras que não destoariam numa planície normanda. Nas praias movimentavam-se numerosos pescadores, aos quais os corvos marinhos serviam de cães de caça, ou melhor, de cães de pesca. Esses voláteis mergulhavam a um sinal do dono, e carreavam os peixes que não podiam engolir graças a um anel que quase lhes estrangulava o pescoço. Depois eram patos, gralhas, corvos, pegas e gaviões que os apitos do vapor faziam erguer de entre as altas ervas.
Se a larga estrada, ao longo do rio, se mostrava agora deserta, o movimento marítimo do Pei-ho não diminuía. Quantos barcos de toda a espécie lhe subiam e desciam o curso! Juncos de guerra com a sua bateria barbeta, cuja coberta formava uma curva muito côncava da proa à popa, manobrados por uma dupla ordem de remos ou por pás movidas à mão; juncos da alfândega a dois mastros, com velas de chalupa e vigas transversais, ornados à proa e à ré de cabeças e caudas de fantásticas quimeras; juncos comerciais, de grande tonelagem, enormes cascos que, pejados dos mais preciosos produtos do Celeste Império não temem afrontar os tufões dos mares vizinhos; juncos de passageiros, movidos a remo ou à sirga, conforme as horas da maré, excelentes para quem tem tempo a perder; juncos de mandarins, pequenos iates de recreio, rebocados pelas suas lanchas; sampans de todas as formas, com velas de esteiras de junco, dos quais os menores, dirigidos por moças de remo em punho e criança às costas, bem merecem o nome que têm e significa: três tábuas; e enfim comboios de madeira, verdadeiras aldeias flutuantes, com cabanas, vergéis arborizados, plantação de legumes, imensas jangadas feitas de alguma floresta da Mancharia que os lenhadores derrubaram por inteiro.
Mas as povoações iam-se tornando mais raras. Apenas se contam umas vinte entre Tien-Tsin e Taku, na embocadura do rio. Nas margens, grandes turbilhões de fumaça erguiam-se de algumas fábricas de tijolos, toldando os ares juntamente com o fumo do navio. A noite descia, precedida pelo crepúsculo de junho que se prolonga naquela latitude. Daí a pouco uma série de dunas brancas, simètricamente dispostas e de um relevo uniforme, diluíram-se na penumbra. Eram montes de sal extraídos das salinas próximas. Ali se abria entre terrenos áridos o estuário do Pei-ho, paisagem triste, como diz o senhor de Beauvoir, que é tudo areia, sal, poeira e cinza.
No dia seguinte, 27 de junho, antes do nascer do sol, o Pei-tang chegava ao porto de Taku, quase à entrada do rio.
Nesse ponto, em ambas as margens erguem-se os fortes do Norte e do Sul, agora desmantelados, que foram tomados pelo exército anglo-francês em 1860. Ali se verificou o glorioso ataque do general Collineau, em 24 de agosto do mesmo ano, e as canhoneiras forçaram a entrada do rio; ali se estende uma estreita faixa de terra, quase abandonada, que tem o nome de concessão francesa; e se vê ainda o monumento fúnebre sob o qual repousam os oficiais e soldados mortos nesses combates memoráveis.
O Pei-tang não passaria a barra, todos os passageiros tiveram de desembarcar em Taku. É já uma cidade de certa importância e cujo desenvolvimento seria considerável se os mandarins algum dia permitissem a construção de uma estrada de ferro que a ligasse a Tien-Tsin.
O navio de carga que ia para Fu-Ning devia fazer-se à vela nesse mesmo dia. Kin-Fo e seus companheiros não tinham uma hora a perder. Mandaram atracar um sampan, e daí a quinze minutos estavam a bordo do Sam-Yep.



Capítulo XVII
NO QUAL O VALOR MERCANTIL DE KIN-FO É MAIS UMA VEZ COMPROMETIDO.

Oito dias antes, um navio americano viera ancorar no porto de Taku. Fretado pela sexta companhia sino-californiana, carregara por conta da agência Fuk-Ting-Tong, que está instalada no cemitério de Laurel-Hill, de São Francisco.
É nesse cemitério que os celestiais mortos na América aguardam o dia do repatriamento, fiéis à sua religião que lhes determina repousarem na terra natal.
Esse navio, destinado a Cantão, trouxera, com autorização expressa da agência, um carregamento de duzentos e cinqüenta caixões, dos quais setenta e cinco deviam ser desembarcados em Taku e de lá redespachados para as províncias do norte.
O transbordo dessa parte da carga fizera-se do navio americano para o navio chinês, e nessa mesma manhã de 27 de junho este último aparelhava para o porto de Fu-Ning.
Era neste navio que Kin-Fo e seus companheiros tinham tomado passagem. Com certeza não o teriam escolhido, mas à falta de outros navios de partida para o golfo de Léao-Tong, tiveram de embarcar nele. Aliás, tratava-se de uma viagem de dois ou três dias quando muito, bastante fácil naquela época do ano.
O Sam-Yep era um junco do mar, com uma capacidade de mais ou menos trezentas toneladas.
Outros há de mil, e ainda de mais, com um calado de seis pés que lhes permite transpor a barra dos rios do Celeste Império. Muito largos em relação ao seu comprimento, com um vau igual a um quarto da quilha, andam pouco, a não ser ao cerrado da bolina, segundo parece, mas viram quase no mesmo lugar, rodando como um pião, o que lhes dá vantagens sobre navios de linhas mais finas. O safrão do seu enorme leme está cheio de buracos, sistema muito preconizado na China, mas cujo resultado parece bastante discutível. Seja como for, estas vastas embarcações afrontam vantajosamente os mares costeiros. Cita-se mesmo um desses juncos que, fretado por uma casa de Cantão, foi, sob o comando de um capitão americano, levar a São Francisco um carregamento de chá e porcelanas. Está assim provado que esses navios agüentam bem o mar, e os homens competentes estão de acordo em que os chineses são marinheiros excelentes.
O Sam-Yep, de construção moderna, quase reto da proa à popa, lembrava pelo seu gabarito a forma dos cascos europeus. Sem pregos nem cavilhas, feito de bambus unidos, calafetado de estopa e de resina de Cambodge, era de tal modo estanque que nem sequer possuía bomba de porão. Sua leveza fazia-o flutuar como um pedaço de cortiça. Uma âncora de madeira muito rija, cordagem de fibras de palmeira de notável flexibilidade, velas macias, manobráveis da coberta, fechando-se ou abrindo à maneira de leque, dois mastros dispostos como o mastro grande e o mastro de mezena de um Iugre, sem traquetes nem cutelos, tal era esse junco, bem adequado, em suma e bem apetrechado para as necessidades da pequena cabotagem. Sem dúvida ninguém, vendo o Sam-Yep, adivinharia que os seus fretadores o tinham transformado dessa vez num enorme carro fúnebre.
Com efeito as caixas de chá, os fardos de seda, os caixotes de perfumarias chinesas tinham sido substituídos pela carga que sabemos. Mas o junco nada perdera das suas vivas cores. Nas cabinas da proa e da ré drapejavam auriflamas e bodas multicoloridas. Na proa abria-se um grande olho flamejante que lhe dava a aparência de um gigantesco animal marinho. Na ponta dos mastros, a brisa fazia ondular a brilhante estamenha do pavilhão chinês. Duas caronadas erguiam por cima das trincheiras a sua goela luzidia, onde se refletiam como num espelho os raios solares, — instrumentos bem úteis nesses mares ainda infestados de piratas. Todo o conjunto era alegre, colorido, agradável à vista. Não seria porventura um repatriamento que operava o Sam-Yep, — um repatriamento de cadáveres, é verdade, mas de cadáveres contentes?
Nem Kin-Fo, nem Sun podiam experimentar a menor repugnância em viajar naquelas condições. Eram demasiado chineses para isso. Craig e Fry, que como os seus compatriotas americanos não gostam de transportar esse gênero de carga, teriam talvez preferido outro navio de comércio, mas não lhes era dado escolher.
Um capitão e seis homens compunham a tripulação do junco, suficientes para as manobras muito simples do velame. A bússola, ao que dizem, foi inventada na China; é possível, mas os navios costeiros jamais a utilizam e navegam a olho. Era o que ia fazer o capitão Yin, comandante do Sam-Yep, que de resto contava não perder de vista o litoral do golfo.
Esse capitão Yin, um homenzinho de cara risonha, vivo e loquaz, era a demonstração viva do insolúvel problema do movimento perpétuo. Não podia estar parado, gesticulando sempre. Seus braços, mãos e olhos falavam ainda mais do que a sua língua, que entretanto jamais repousava atrás dos dentes brancos. Empurrava os seus homens, interpelava-os, injuriava-os, mas enfim, marinheiro ótimo, muito prático daquelas costas, manobrava o seu junco como se o tivesse entre os dedos. O alto preço que Kin-Fo pagara por si e pelos seus companheiros, não era coisa que lhe alterasse o humor jovial.
Passageiros que acabavam de entregar cento e cinqüenta taéis para uma travessia de sessenta horas, eram uma sorte, especialmente se não se mostrassem mais exigentes, quanto a conforto e alimentação, do que os seus companheiros de viagem amontoados no porão!
Kin-Fo, Craig e Fry, tinham sido alojados, do melhor modo possível, na câmara da ré, e Sun na da proa.
Os dois agentes, sempre desconfiados, tinham começado por um exame minucioso dos tripulantes e do capitão, mas não acharam nada de suspeito na atitude dessa boa gente. Imaginar que eles estivessem de acordo com Lao-Shen era fora de toda a verossimilhança, pois só o acaso levara o seu cliente a encontrar aquele junco, e também era demais que o acaso fosse cúmplice do famosíssimo Tai-ping. A travessia, salvo os perigos do mar, devia interromper por alguns dias as suas cotidianas inquietações. De modo que deixaram Kin-Fo mais à vontade.
Este, aliás, não se aborreceu com isso. Trancou-se no seu camarote e pôs-se a "filosofar" livremente. Pobre homem que não soubera apreciar a sua felicidade, nem compreender quanto valia aquela existência livre de cuidados no yamen de Shangai, a que uma ocupação teria dado maiores encantos! Reentrasse ele na posse da sua carta e veriam como lhe aproveitara a lição, e se o louco não se tornaria sensato!
Mas ser-lhe-ia, enfim, restituída essa carta? Sim, sem nenhuma dúvida, pois estava pronto a pagar por ela o que fosse preciso. E para Lao-Shen era apenas uma questão de dinheiro. Contudo, era necessário vigiá-lo e não se deixar surpreender. Aí estava a grande dificuldade! Lao-Shen mantinha-se sem dúvida informado de tudo o que fazia Kin-Fo; Kin-Fo nada sabia do que fazia Lao-Shen. Portanto, perigo muito sério quando o cliente de Craig-Fry desembarcasse na província onde campeava o Tai-ping. Toda a questão estava nisto: antecipar-se-lhe. Evidentemente Lao-Shen preferiria receber cinqüenta mil dólares de Kin-Fo vivo, do que cinqüenta mil dólares de Kin-Fo morto. Isso lhe evitaria uma viagem a Shangai e uma visita aos escritórios da Centenária, que não deixariam de representar um certo perigo por grande que fosse a benevolência do governo a seu respeito.
Assim pensava o tão metamorfoseado Kin-Fo, e bem se pode acreditar que a gentil viúva de Pequim tinha um grande lugar nos seus projetos de futuro!
Enquanto isso, que pensava Sun?
Sun não pensava nada. Sun continuava estendido no camarote, pagando o seu tributo às divindades maléficas do golfo de Pé-Tché-Li. Só conseguia ordenar algumas idéias paia amaldiçoai o patrão, o filósofo Wang e o bandido Lao-Shen! Tinha o coração estúpido! Ai, ai, ai!, estúpidas as idéias, e os sentimentos estúpidos. Já não pensava no chá e no arroz! Ai, ai, ai! Que vento o levara ali, por engano? Errara mil, dez mil vezes ao entrar para o serviço de um homem que andava pelo mar! De bom grado daria o que lhe restava de cauda para não estar ali! Preferia rapar a cabeça, fazer-se bonzo! Um cão amarelo! Era um cão amarelo que lhe devorava o fígado e as entranhas! Ai, ai, ai!
Entretanto, sob o impulso de um lindo vento sul, o Sam-Yep percorria a três ou quatro milhas as baixas praias do litoral, que corria então de leste e oeste. Passou em frente a Peh-Tang, na embocadura do rio desse nome, não longe do ponto onde os exércitos europeus operaram o seu desembarque, e em seguida diante de Shan-Tung, de Tshiang-Ho, à entrada do Tau, e de Hhai-Vé-Tsé.
Esta parte do golfo começava a tornar-se deserta. O movimento marítimo, muito importante no estuário do Pei-ho, não irradiava a mais de vinte milhas. Alguns juncos mercantes que faziam a pequena cabotagem, uma dúzia de barcos de pesca explorando as águas piscosas da costa e as almadravas da margem, ao largo o horizonte absolutamente vazio, tal era o aspecto daquela parte do mar.
Craig e Fry observaram os barcos de pesca, mesmo aqueles cuja capacidade não ia além de cinco ou seis toneladas, estavam armados de um ou dois pequenos canhões.
Quando chamaram para isso a atenção do capitão Yin, este respondeu esfregando as mãos:
— É preciso assustar os piratas!
— Piratas, nesta parte do golfo de Pé-Tché-Li! — exclamou Craig um tanto surpreendido.
— Por que não — respondeu Yin. — Aqui e em toda a parte! Piratas é coisa que não falta nos mares da China!
E o digno capitão ria mostrando a dupla fila de dentes brilhantes.
— O senhor não parece temê-los muito — observou Fry.
— Então para que servem as minhas duas peças, duas atrevidas que falam alto quando alguém se aproxima demais?
— Estão carregadas? — perguntou Craig.
— Ordinariamente, sim.
— E agora?
— Agora, não.
— Por quê? — insistiu Fry.
— Porque eu não tenho pólvora a bordo — respondeu tranqüilamente o capitão Yin.
— Mas então de que valem as duas peças? — exclamaram Craig-Fry pouco satisfeitos com a resposta.
— De que valem? — berrou o capitão. — Ora essa! Para defender um carregamento, quando vale a pena, quando o meu junco está abarrotado até às escotilhas de chá ou de ópio! Mas agora, com essa carga!...
— E como é que os piratas vão saber se o seu junco vale ou não a pena de ser atacado? — perguntou Craig.
— Os senhores receiam muito a visita desses valentes? — tornou o capitão dando uma volta e encolhendo os ombros.
— É claro! — respondeu Fry.
— Mas os senhores não têm a bordo um simples embrulho!
— Pois sim, — acrescentou Craig — mas temos motivos particulares para não desejar a visita deles!
— Está bem; fiquem tranqüilos! — respondeu o capitão. — Os piratas, se os encontrarmos, não darão caça ao nosso junco.
— Mas por quê?
— Porque, quando nos avistarem logo conhecerão a natureza da sua carga.
E o capitão indicou uma bandeira branca que a brisa desenrolava a meio mastro do junco.
— Bandeira branca em funeral! Bandeira de luto! Esses valentes não se darão ao trabalho de pilhar um carregamento de caixões!
— Podem julgar que o senhor navega com bandeira de luto por esperteza — observou Craig, — e vir a bordo verificar...
— Se vierem nós os receberemos — respondeu o capitão Yin, — e depois de nos visitarem irão embora como vieram!
Craig-Fry não insistiram, mas só mediocremente partilharam do inalterável otimismo do capitão. A captura de um junco de trezentas toneladas, mesmo em lastro, oferecia bastante lucro aos "valentes" de que falava Yin para os levar a tentar o golpe. De qualquer modo tinham de resignar-se e fazer votos para que a travessia acabasse bem.
Aliás, o capitão nada esquecera para assegurar as oportunidades favoráveis. No momento de aparelhar, um galo fora sacrificado em honra das divindades marinhas. No mastro da mezena pendiam ainda as penas do infeliz galináceo. Algumas gotas do seu sangue espalhadas na coberta, um co-pinho de vinho jogado por cima da amurada tinham completado esse sacrifício propiciatório. Assim sacramentado, que podia temer o junco Sam-Yep sob o comando do digno capitão Yin ?
É de supor, contudo, que as caprichosas divindades não estivessem satisfeitas. Ou porque o galo fosse excessivamente magro, ou porque o vinho não proviesse dos melhores cerrados de Chao-Chigne, o fato é que uma terrível ventania desabou sobre o junco. Nada o fizera prever durante esse dia, limpo, claro, bem varrido por uma linda brisa. O mais perspicaz dos marinheiros não teria sentido que se preparava "alguma dança".
Pelas oito horas da noite, o Sam-Yep dispunha-se a dobrar o cabo que forma o litoral subindo para nordeste, e além do qual era o mar largo que muito favoreceria a sua marcha. O capitão Yin contava então, sem presumir excessivamente das suas forças, alcançar em vinte e quatro horas os ancoradouros de Fu-Ning.
Kin-Fo esperava a hora de ancorar com uma certa impaciência, e Sun com verdadeira fúria. Quanto a Craig-Fry raciocinavam deste modo: se dentro de três dias o seu cliente conseguisse reaver das mãos de Lao-Shen a carta que lhe comprometia a existência, seria justamente quando a Centenária deixaria de se incomodar com ele. Com efeito, a apólice só o cobria até 30 de junho à meia noite, desde que ele depositara apenas um prêmio correspondente a dois meses nas mãos do honrado William J. Bidulph. E então:
— All... — começou Fry.
— ...right! — acrescentou Craig.
Mais tarde, quando o junco chegava à entrada do golfo de Leao-Tong, o vento saltou bruscamente para nordeste; em seguida, passando pelo norte, duas horas depois soprava do noroeste.
Se o capitão Yin tivesse um barômetro a bordo, poderia constatar que a coluna mercurial acabava de descer quatro a cinco milímetros quase de repente. Ora, essa súbita rarefação do ar pressagiava um tufão11 pouco distante, cujo movimento já diminuía as camadas atmosféricas. Por outro lado, se o capitão Yin conhecesse as observações do inglês Paddington e do americano Maury, teria tentado mudar a sua direção e governar para nordeste, na esperança de alcançar uma área menos perigosa, fora do centro de atração da tempestade envolvente.
Mas o capitão Yin jamais usava barômetro e ignorava inteiramente a lei dos ciclones. Além disso não tinha ele sacrificado um galo, e esse sacrifício não o devia garantir contra toda a eventualidade?
Em todo o caso aquele supersticioso chinês era um bom marinheiro, e provou-o nessas circunstâncias. Por instinto, manobrou como o teria feito um capitão europeu.
Este tufão não passava de um pequeno ciclone, dotado por conseqüência de uma grande velocidade de rotação e de um movimento de translação que ultrapassava cem quilômetros à hora. Impeliu assim o Sam-Yep para leste, circunstância aliás feliz, pois que, correndo desse modo o junco afastava-se de uma costa que não oferecia nenhum abrigo, e na qual infalivelmente se perderia em pouco tempo.
Às onze horas da noite a tempestade alcançou o seu máximo de intensidade. O capitão Yin, bem auxiliado pela tripulação, manobrava como um verdadeiro homem do mar. Já não ria, mas conservava todo o seu sangue frio. Sua mão firmemente agarrada ao leme dirigia a leve embarcação que se erguia sobre as ondas como uma folha de malva.
Kin-Fo abandonara o camarote da ré. Segurando-se aos parapeitos olhava o céu com as suas nuvens difusas, despedaçadas pelo furacão e que arrastavam pelas águas os seus farrapos de vapor. Contemplava o mar, branco naquela noite negra, cujas águas o tufão, num sorvo gigantesco, erguia muito acima do nível habitual. O perigo não o surpreendia nem aterrava. Aquilo fazia parte da série de emoções que lhe reservava a má sorte, encarniçada contra ele. Uma travessia de sessenta horas, sem tempestade, em pleno verão, era coisa só para pessoas felizes, e ele já não pertencia ao número dos felizes!
Craig e Fry sentiam-se muito mais inquietos, sempre em razão do valor mercantil do seu cliente. Decerto, a vida deles valia a de Kin-Fo, e uma vez mortos com este não mais teriam de preocupar-se com os interesses da Centenária, Mas esses conscienciosos agentes esqueciam-se de si, apenas pensavam em cumprir o seu dever. Morrer, paciência! Com Kin-Fo, perfeitamente! Mas só depois da meia-noite de 30 de junho! Salvar um milhão, eis o que intentavam Fry-Craig, eis no que pensavam Craig-Fry!
Quanto a Sun, não tinha a menor dúvida de que o junco estava perdido, ou melhor, para ele, aventurar-se sobre o pérfido elemento, mesmo com o melhor tempo do mundo, era correr para morte certa. Ah! Os passageiros do porão é que não precisavam lastimar-se! Ai, ai, ai! Não sentiam balanços nem tonturas Ai, ai, ai! E o desgraçado Sun perguntava a si mesmo se no caso deles não acabaria enjoando!
Durante três horas o junco esteve em grande perigo. Um erro ao leme tê-lo-ia perdido, porque o mar rebentar-lhe-ia na coberta. Se, como um balde, não podia virar-se, podia pelo menos encher-se e afundar. Quanto a mantê-lo numa direção constante, em meio às ondas açoitadas pelo turbilhão do ciclone, nem pensar nisso! Calcular a rota percorrida e seguida, nem em sonhos!
Entretanto, um feliz acaso levou o Sam-Yep a alcançar, sem avarias graves, o centro do gigantesco disco atmosférico que cobria uma área de cem quilômetros, onde, numa extensão de duas ou três milhas havia mar calmo, vento apenas perceptível. Era como um lago tranqüilo em meio a um oceano em fúria.
Foi a salvação do junco, que o vendaval impelira para ali como um tronco de árvore. Pelas três horas da manhã a fúria do ciclone caía como por encanto, e as águas revoltas tendiam a acalmar em redor daquele pequeno lago central.
Mas quando o dia rompeu, em vão o Sam-Yep procuraria avistar terra. Costa alguma no horizonte. As águas do golfo, estendendo-se até à linha circular do horizonte, cercavam-no por todos os lados.


Capítulo XVIII
EM QUE CRAIG E FRY, LEVADOS PELA CURIOSIDADE, VISITAM O PORÃO DO "SAM-YEP".

— Onde estamos, capitão Yin? — perguntou Kin-Fo uma vez passado o perigo.
— Não posso sabê-lo ao certo — respondeu o capitão cuja fisionomia recuperara a jovialidade.
— No golfo do Pé-Tché-Li?
— Talvez.
— Ou no golfo de Leao-Tong?
— Também pode ser.
— Mas onde abordaremos?
— Onde o vento nos levar.
— E quando?
— Não o posso dizer.
— Um verdadeiro chinês anda sempre orientado, senhor capitão — replicou Kin-Fo de mau humor, citando um provérbio muito em moda no Império do Meio.
— Em terra, sim! — respondeu o capitão Yin. — No mar, não!
E a sua boca abriu-se até às orelhas.
— Não me parece caso para rir! — observou Kin-Fo.
— Nem para chorar — replicou o capitão.
A verdade é que, se a situação nada tinha de alarmante, era impossível ao capitão Yin dizer onde se achava o Sam-Yep. Como poderia ele determinar-lhe a direção sob a tempestade circular, sem bússola e com um vento espalhado pelos três quartos do quadrante? O junco, de velas ferradas e escapando quase inteiramente ao controle do leme, fora um brinquedo para o furacão. Não era, pois, sem motivo, que as respostas do capitão tinham sido tão vagas. O que ele poderia era tê-las dado com menos jovialidade.
Todavia, feitas bem as contas, quer tivesse sido arrastado para o golfo de Leao-Tong ou repelido para o golfo de Pé-Tché-Li, o Sam-Yep não podia hesitar em pôr a proa ao noroeste. A terra devia necessariamente encontrar-se naquela direção. Seria apenas questão de distância.
Mas não era.
Com efeito, calmaria podre em seguida ao tufão, nenhuma corrente nas camadas atmosféricas, nem um sopro de vento. Um mar sem rugas, apenas inflado pelas ondulações de um largo marulho, simples oscilar a que falta o movimento de translação. O junco erguia-se e abaixava sob o impulso de uma força regular que o não deslocava. Um vapor quente pesava sobre as águas, e o céu, tão profundamente revolto durante a noite, parecia agora impróprio para uma luta dos elementos.
Era uma dessas calmarias "brancas", cuja duração ninguém pode avaliar.
— Excelente! — disse Kin-Fo para si. — Após a tempestade que nos arrastou para o mar largo, a falta de vento que nos impede de voltar a terra!
E dirigindo-se ao capitão:
— Quanto tempo durará esta calmaria?
— Nesta época do ano, senhor, ninguém o pode prever — respondeu o capitão.
— Horas ou dias?
— Dias ou semanas! — tornou o capitão com um sorriso de perfeita resignação que ia enfurecendo o seu passageiro.
— Semanas! — berrou Kin-Fo. — E pensa o senhor que eu posso esperar semanas?
— Não haverá outro remédio, a não ser que arrastemos o nosso junco a reboque!
— Para o inferno o seu junco e todos quantos ele transporta, a começar por mim que tive a infeliz idéia de tomar passagem nele!
— Quer o senhor que eu lhe dê dois bons conselhos — perguntou o capitão Yin.
— Pode dar.
— O primeiro é ir dormir tranqüilamente, como eu vou fazer, coisa ajuizada depois de uma noite passada na coberta.
— E o segundo? — perguntou Kin-Fo a quem a calma do capitão exasperava tanto quanto a calma do mar.
— O segundo — respondeu Yin, — é imitar os meus passageiros do porão, que nunca se queixam e aceitam o tempo como ele vem.
Com essa observação filosófica, digna do próprio Wang, o capitão voltou ao seu camarote, deixando dois ou três homens da tripulação estendidos na coberta.
Durante um quarto de hora Kin-Fo passeou da proa à popa, de braços cruzados, os dedos tamborilando de impaciência. Depois, lançando um último olhar àquela sombria imensidade, cujo centro o navio ocupava, encolheu os ombros e retirou-se para o beliche, sem o mesmo ter dirigido a palavra a Fry-Craig.
Os dois agentes, contudo, ali estavam encostados à amurada, e conforme o hábito conversando sugestivamente, sem falar. Tinham ouvido as perguntas de Kin-Fo, as respostas do capitão, mas sem se intrometerem na conversa. De que lhes serviria intervir, e sobretudo porque haveriam de queixar-se desses atrasos que punham o seu cliente de tão mau humor?
Realmente, o que eles perdiam em tempo, ganhavam em segurança. Se Kin-Fo nenhum perigo corria a bordo e a mão de Lao-Shen o não podia alcançar ali, que mais poderiam desejar?
Além disso, aproximava-se o momento em que cessaria toda a responsabilidade de ambos. Mais quarenta horas, e ainda que todo o exército Tai-ping desabasse sobre o ex-cliente da Centenária, eles não mais arriscariam um cabelo para o defender. Muito práticos aqueles americanos! Devotados a Kin-Fo, enquanto ele valia duzentos mil dólares; absolutamente indiferentes ao que pudesse acontecer-lhe, quando não valesse mais uma sapeca!
Craig e Fry tendo assim raciocinado, almoçaram com o melhor apetite. As suas provisões eram de excelente qualidade. Comeram do mesmo prato e no mesmo assento, a mesma quantidade de bocados de pão e de pedaços de carne fria. Beberam o mesmo número de copos de um esplêndido vinho de Chao-Chigne à saúde do honrado William J. Bidulph. Fumaram a mesma meia dúzia de charutos, e provaram mais uma vez que se pode ser siamês de gostos e hábitos, mesmo não o sendo de nascença.
Valentes ianques, que imaginavam ter chegado ao fim das suas provações!
O dia correu sem incidentes, nem acidentes. Sempre a mesma calmaria atmosférica, o mesmo aspecto vaporoso do céu. Nada fazia prever qualquer mudança no estado meteorológico. As águas do mar tinham-se imobilizado como as de um lago.
Pelas quatro horas Sun tornou a aparecer na coberta, cambaleando, titubeando, parecendo um homem embriagado, embora em toda a sua vida nunca tivesse bebido menos do que nesses últimos dias.
Depois de ter sido roxa a princípio, em seguida azul violácia, depois azul, e por fim verde, sua face tendia agora a tornar-se amarela. Quando chegasse a terra e lhe voltasse a natural cor alaranjada, e algum ímpeto de cólera a tornasse vermelha, seu rosto teria passado sucessivamente e na ordem natural por toda a gama de cores do espetro solar.
Sun arrastou-se até aos dois agentes, de olhos semicerrados, sem ousar um golpe de vista para além da borda do Sam-Yep.
— Chegados? — perguntou ele.
— Não — respondeu Fry.
— Chegando?
— Não — respondeu Craig.
— Ai, ai, ai! — choramingou Sun.
E desesperado, não tendo forças para dizer mais nada foi estender-se ao pé do mastro grande, agitado por sobressaltos convulsivos que lhe faziam pular a trança já curta como o rabinho de um cão.
Entretanto e conforme as ordens do capitão Yin, tinham sido abertas as escotilhas da ponte a fim de arejar o porão. Boa precaução e de homem entendido. O sol depressa absorveria a umidade que duas ou três ondas, entradas durante o ciclone, tinham introduzido no interior do junco.
Craig e Fry, que passeavam na coberta, já haviam parado várias vezes diante da escotilha grande, e em breve a curiosidade os levou a visitar o fúnebre porão. Desceram então pelos pontaletes embutidos que lhe davam acesso.
O sol desenhava um grande trapézio de luz exatamente no prumo da escotilha maior, mas para a frente e para trás o porão continuava em profunda obscuridade. Todavia os olhos de Craig-Fry logo se acostumaram às trevas e ambos puderam apreciar a arrumação daquele especial carregamento do Sam-Yep.
O porão, ao contrário do que sucede na maioria dos juncos mercantes, não estava dividido por tabiques transversais. Era livre de extremo a extremo, inteiramente reservado à carga, fosse qual fosse, pois os beliches da coberta bastavam para alojar a tripulação.
De cada lado do porão, limpo como a antecâmara de um cenotáfio, amontoavam-se os setenta e cinco caixões destinados a Fu-Ning. Sòlidamente arrumados, não podiam deslocar-se com os solavancos nem comprometer de qualquer modo a segurança do junco.
Uma coxia aberta entre a dupla fila de ataúdes, permitia ir de um extremo a outro do porão, quer em plena luz com as duas escotilhas abertas, quer em relativa obscuridade.
Craig e Fry, mudos como se estivessem num mausoléu, foram entrando pela coxia.
Olhavam com certa curiosidade.
Ali se viam caixões de todas as formas e tamanhos, uns ricos e outros pobres. Daqueles emigrantes que as necessidades da vida tinham arrastado para além do Pacífico, bem poucos haviam enriquecido nos garimpos da Califórnia, nas minas da Nevada ou do Colorado! Os outros que tinham partido miseráveis, miseráveis regressavam. Mas todos voltavam ao país natal, iguais na morte. Uma dúzia de esquifes de madeira preciosa, adornados com toda a fantasia do luxo chinês, os outros simplesmente construídos de quatro tábuas, rudemente ajustadas e pintadas de amarelo, tal era a carga do navio. Rico ou pobre, cada caixão trazia um nome que Fry-Craig puderam ler ao passar: Lien-Fu de Yun-Ping-Fu, Nan-Loou de Fu-Ning, Shen-Kin de Lin-Kia, Luang de Ku-Li-Koa, etc. Não havia confusão possível. Cada morto, devidamente etiquetado seria enviado ao seu destino, e iria esperar nos vergéis, em meio aos campos, nas planícies, a hora do sepultamento definitivo.
— Bem feito! — observou Fry.
— Bem arrumado! — anuiu Craig.
Não teriam falado de outro modo dos armazéns de algum atacadista ou das docas de um consignatário de São Francisco ou Nova Iorque.
Craig e Fry, chegados à extremidade do porão, para o lado da proa, na parte mais escura, pararam e olhavam a coxia nitidamente aberta como uma alameda de cemitério.
Terminada a exploração dispunham-se a regressar à coberta quando se produziu um ligeiro ruído que lhes chamou a atenção.
— Algum rato! — disse Craig.
— Algum rato! — concordou Fry.
Má carga para esses roedores! Um carregamento de painço, arroz ou milho seria muito melhor para eles!
Mas o ruído continuava, provindo da altura de um homem, a estibordo, e portanto na camada superior dos caixões. Se não era um ranger de dentes, outra coisa não podia ser que um arranhar de garras ou de unhas.
— Frrr! Frrr! — fizeram Craig e Fry. O ruído não cessou.
Os dois agentes, aproximando-se, escutaram contendo a respiração. Não havia dúvida de que esse arranhar provinha do interior de um dos esquifes.
— Será que meteram numa destas caixas algum chinês em letargo? — perguntou Craig.
— Que estaria despertando após uma travessia de cinco semanas? — acrescentou Fry.
Os dois agentes poisaram a mão no esquife suspeito e constataram, sem engano possível, que havia algum movimento em seu interior.
— Diabo! — exclamou Craig.
— Diabo! — exclamou Fry.
Ambos tiveram naturalmente a mesma idéia de que algum perigo imediato ameaçava o seu cliente.
No mesmo instante, retirando pouco a pouco a mão, sentiram que a tampa do esquife se erguia com cautela.
Craig e Fry, como pessoas a quem nada consegue surpreender, ficaram imóveis, e como não podiam ver naquela profunda escuridão, passaram a ouvir com justa ansiedade.
— Estás aí, Couo? — disse uma voz contida por extrema prudência.
Quase ao mesmo tempo, de um dos caixões de bombordo, que se entreabriu, outra voz murmurou:
— És tu, Fa-Kien?
E trocaram-se rapidamente estas poucas palavras:
— É para esta noite?
— Para esta noite.
— Antes do erguer da lua?
— Na segunda vigília.
— E os nossos companheiros?
— Estão avisados.
— Trinta e seis horas de caixão, é demais!
— Já estou farto!
— Enfim, Lao-Shen assim o quis!
— Silêncio!
Ouvindo o nome do famoso Tai-ping, Craig-Fry por grande domínio que tivessem sobre si mesmo não puderam conter um ligeiro sobressalto.
Bruscamente as tampas desceram sobre as caixas oblongas e reinou um silêncio absoluto no porão do Sam-Yep.
Fry e Craig dobrando os joelhos tornaram ao ponto da coxia iluminado pela escotilha grande e subiram pelos entalhes do pontalete. Um momento depois achavam-se nas traseiras do camarote, onde ninguém os podia ouvir.
— Mortos que falam... — começou Craig.
— ...não estão mortos! — terminou Fry.
Aquele nome de Lao-Shen tudo esclarecera!
De modo que alguns companheiros do temível Tai-ping estavam escondidos a bordo! Podia-se duvidar da cumplicidade do capitão Yin, dos seus tripulantes, dos carregadores do porto de Taku, que tinham embarcado a sinistra carga? Não! Depois de terem sido desembarcados do navio americano que os trouxera de São Francisco, os caixões haviam ficado num pátio durante dois dias e duas noites. Dez, vinte, talvez mais desses piratas filiados ao bando de Lao-Shen, violando os caixões tinham-se substituído aos cadáveres. Mas, para tentarem esse golpe sob a inspiração do chefe, deviam estar informados de que Kin-Fo ia embarcar no Sam-Yep. Como o poderiam ter sabido?
Ponto inteiramente obscuro, e que de resto seria inoportuno querer esclarecer naquele momento.
O certo era que chineses da pior espécie se encontravam a bordo do junco desde a partida de Taku; que o nome de Lao-Shen acabava de ser pronunciado por um deles, e que a vida de Kin-Fo estava direta e pròximamente ameaçada!
Essa mesma noite, essa noite de 28 para 29 de junho ia custar duzentos mil dólares à Centenária, que cinqüenta e quatro horas mais tarde, não tendo sido renovada a apólice, nada mais teria a pagar aos beneficiários do seu ruinoso cliente!
Imaginar que eles perderam a cabeça em tão graves conjunturas, seria desconhecer Fry e Craig. Imediatamente tomaram a sua resolução: tinham de obrigar Kin-Fo a abandonar o junco antes da hora da segunda vigília, e fugir com ele.
Mas fugir como? Apoderar-se da única embarcação de bordo? Impossível. Era uma pesada piroga que exigia os esforços de toda a tripulação para ser içada da coberta e posta na água. Ora, o capitão Yin e os seus cúmplices não se prestariam a isso. Portanto, tornava-se necessário agir de outro modo, quaisquer que fossem os perigos a correr.
Eram então sete horas da tarde. O capitão, fechado no seu camarote não tornara a aparecer, esperando, sem dúvida, a hora combinada com os homens de Lao-Shen.
— Nem um instante a perder! — disseram Craig-Fry.
— Não, nem um! Os dois agentes não estariam mais ameaçados num brulote, levado para o largo, de morrão aceso.
O junco parecia então abandonado à deriva. Um único marinheiro dormia na proa.
Craig-Fry abriram a porta da câmara de ré e foram ao encontro de Kin-Fo.
Kin-Fo dormia.
Acordou com um toque de mão.
— Que querem? — perguntou ele.
Em poucas palavras ficou inteirado da situação, sem perder a coragem e o sangue frio.
— Atiremos ao mar todos esses falsos cadáveres! — exclamou ele.
Idéia arrojada mas absortamente impraticável, dada a cumplicidade do capitão e dos passageiros do porão.
— Nesse caso, que faremos? — perguntou ele.
— Vestir isto! — responderam Fry-Craig.
E assim dizendo abriram um dos pacotes trazidos de Tong-Tchéu, e apresentaram ao cliente um desses maravilhosos aparelhos náuticos inventados pelo capitão Boyton.
O pacote continha ainda outros três aparelhos com os diferentes utensílios que os completavam, tornando-os engenhos de salvamento de primeira ordem.
— Está bem — disse Kin-Fo. — Vão buscar Sun!
Instantes depois Fry trazia Sun completamente aparvalhado. Foi preciso vesti-lo. Deixou-os agir maquinalmente, só manifestando os seus pensamentos por ai! ai! ai!, que cortavam a alma!
Às oito horas, Kin-Fo e seus companheiros estavam prontos. Dir-se-iam quatro focas dos mares glaciais dispondo-se a dar um mergulho. Devemos acrescentar todavia que a foca Sun daria uma idéia pouca favorável da surpreendente agilidade desses mamíferos marinhos, tão mole e flácido se mostrava no seu equipamento insubmersível.
Já a noite vinha descendo de leste. O junco flutuava em meio a um absoluto silêncio à calma superfície das águas.
Craig e Fry abriram uma das portinholas que fechavam as janelas da câmara de ré, cujo vão dava para a parte superior do junco. Sun, erguido de qualquer maneira, foi enfiado através da portinhola e jogado ao mar. Kin-Fo seguiu-o imediatamente. Depois, Craig e Fry, recolhendo os utensílios que lhes eram necessários, precipitaram-se por sua vez.
Ninguém podia imaginar que os passageiros do Sam-Yep acabavam de deixar o navio!



Capítulo XIX
QUE NÃO ACABA BEM PARA O CAPITÃO YIN, COMANDANTE DO "SAM-YEP", NEM PARA A SUA TRIPULAÇÃO.

Os aparelhos do capitão Boyton consistem unicamente — num vestuário de borracha, compreendendo calças, jaqueta e capuz, tornando-se impermeáveis pela natureza mesma do tecido empregado. Contudo, impermeáveis à água não o seriam ao frio resultante de uma imersão prolongada. Assim, tais roupas são confeccionadas em dois tecidos justapostos, entre os quais se pode insuflar uma certa quantidade de ar.
Esse ar preenche duas finalidades: primeira, manter o aparelho suspensor à superfície da água; segunda, impedir pela sua interposição todo o contacto com o meio líquido, e conseqüentemente garantir contra o resfriamento. Vestido desse modo, um homem pode ficar indefenidamente submerso.
Inútil dizer-se que a vedação das costuras desses aparelhos é perfeita. As calças, cujas extremidades acabam em grossas solas, prendem-se a um cinto metálico, suficientemente largo para permitir alguma facilidade aos movimentos do corpo. A jaqueta, ligada a esse cinto, termina numa alta e sólida gola, à qual se adapta o capuz. Este, envolvendo a cabeça adere hermèticamente à testa, às faces e ao queixo por uma atadura elástica. Do rosto apenas se vêem o nariz, os olhos e a boca.
Vários tubos de borracha estão ligados à jaqueta, servindo para a introdução do ar e permitindo regulá-lo de acordo com o grau de densidade que se deseja obter. Pode-se pois, à vontade, ficar mergulhado até ao pescoço, ou até meio corpo, ou mesmo tomar a posição horizontal. Em resumo, completa liberdade de ação e de movimentos, segurança garantida e absoluta.
Tal é o aparelho que tão grande sucesso valeu ao seu audacioso inventor, e cuja utilidade prática é manifesta num certo número de acidentes do mar. Diversos acessórios o completam: um saco impermeável contendo alguns utensílios e que se põe a tiracolo; uma sólida vara que se fixa aos pés num encaixe e leva uma pequena vela cortada à maneira de cutelo; um leve pangaio que pode servir de remo ou de leme, conforme as circunstâncias.
Kin-Fo, Craig-Fry e Sun, assim equipados, flutuavam agora à superfície das águas. Sun, empurrado por um dos agentes deixava-se levar, e com algumas remadas todos quatro lograram afastar-se do junco.
A noite, ainda muito escura, facilitava a manobra. No caso do capitão Yin ou algum dos marinheiros subirem ao convés, não poderiam avistar os fugitivos. Ninguém, aliás, iria supor que eles tivessem fugido de bordo em tais condições. Os bandidos fechados no porão só o viriam a saber no último instante.
— Na segunda vigília — dissera o falso morto do segundo caixão, isto é, pela meia-noite.
Kin-Fo e seus companheiros dispunham assim de algumas horas de prazo para fugir, e durante esse tempo contavam afastar-se uma milha para sotavento do Sam-Yep. Com efeito uma aragem começava a enrugar o espelho das águas, mas ainda tão leve que não podiam prescindir do pangaio para se afastar do junco.
Em poucos minutos Kin-Fo, Craig e Fry tinham-se familiarizado de tal modo com o aparelho que manobravam instintivamente, sem nunca hesitar, quer sobre o movimento a conseguir, quer sobre a posição a tomar no líquido elemento. O próprio Sun logo recuperara o ânimo e se achava incomparavelmente mais à vontade na água do que a bordo do junco. O enjôo desaparecera de repente. E que, entre estar sujeito aos desencontrados balanços de um navio, ou suportar os embalos da vaga quando se está mergulhado a meio corpo, há muita diferença, e Sun constatava-o com grande satisfação.
Mas se o pobre Sun já não se sentia doente, estava horrivelmente assustado. Pensava que os tubarões talvez ainda não estivessem deitados, e instintivamente encolhia as pernas como se estivesse a ponto de ser abocanhado!... Francamente, uma certa inquietação não era de todo despropositada naquelas circunstâncias!
Assim iam deslizando Kin-Fo e os seus companheiros, que a má sorte continuava a jogar nas situações mais imprevistas.
Remando, mantinham-se quase horizontalmente. Quando queriam parar, tomavam a posição vertical.
Uma hora depois de o terem deixado, o Sam-Yep ficava-lhes meia milha a barlavento. Pararam então e seguraram-se aos seus pangaios, assentes na água, e reuniram conselho tendo o cuidado de só falar em voz baixa.
— E esse bandido do capitão! — exclamou Craig para entrar no assunto.
— E esse velhaco do Lao-Shen! — replicou Fry.
— Admiram-se? — interveio Kin-Fo no tom de um homem a quem nada mais pode surpreender.
— Claro! — respondeu Craig; — não posso compreender como esses miseráveis souberam que iríamos embarcar nesse junco!
— É realmente incompreensível! — acrescentou Fry.
— Isso pouco importa! — disse Kin-Fo; — eles souberam-no, mas nós conseguimos fugir!
— Fugir! — atalhou Craig. — Não! Enquanto o Sam-Yep estiver à vista não poderemos considerar-nos fora de perigo!
— E então, que fazer? — perguntou Kin-Fo.
— Restaurar as forças — respondeu Fry, — e afastar-mo-nos o suficiente para não sermos vistos ao romper do dia!
E Fry, soprando uma certa quantidade de ar no seu aparelho, subiu até ficar com meio corpo fora da água. Puxou então o seu saco para o peito, abriu-o, extraiu dele um frasco e um copo que encheu de uma aguardente reconfortante, estendendo-o ao seu cliente.
Kin-Fo não se fez rogar e esvaziou o copo até à última gota. Craig-Fry imitaram-no e Sun também não foi esquecido.
— E então? — perguntou-lhe Craig.
— Vai indo! — respondeu Sun depois de ter bebido. — Contanto que possamos comer alguma coisa!
— Amanhã — continuou Craig, — almoçaremos ao romper do dia, e algumas xícaras de chá...
— Frio! — atalhou Sun fazendo uma careta.
— Quente! — respondeu Craig.
— O senhor pensa acender fogo?
— Acenderei fogo.
— Então por que esperar até amanhã? — perguntou Sun.
— O senhor quer que o nosso fogo nos denuncie ao capitão Yin e aos seus cúmplices?
— Não, não!
— Nesse caso, amanhã!
Na verdade aqueles valentes conversavam ali como sé estivessem em casa. Apenas o leve marulho lhes imprimia um movimento de cima para baixo, que dava um resultado singularmente cômico. Subiam e desciam cada qual por sua vez, aos caprichos da ondulação, como os martelos de um teclado postos em ação pelas mãos de um pianista.
— A brisa começa a refrescar-se — notou Kin-Fo.
— Aparelhamos — responderam Craig-Fry.
E preparavam-se para subir a vara, a fim de desfraldarem a pequena vela, quando Sun teve uma exclamação de pavor.
— Não te calarás, imbecil? — disse-lhe o patrão. — Queres que nos descubram?
— Mas eu acho que vi... — murmurou Sun.
— O quê?
— Um imenso corpanzil... aproximando-se!... Algum tubarão!
— É engano, Sun! — declarou Craig depois de observar atentamente a superfície do mar.
— Mas... parece que senti!... — continuou Sun.
— Não te calarás, poltrão? — voltou Kin-Fo, poisando a mão no ombro do seu criado. — Ainda, que sintas abocanhar uma perna, proibo-te de gritar! Senão...
— Senão — acrescentou Fry, — daremos um golpe de faca no seu aparelho, e ele irá para o fundo onde poderá gritar à vontade!
Como se vê, o desgraçado Sun ainda não chegara ao termo das suas desventuras. O medo trabalhava-o, e lindamente, mas ele já não ousava balbuciar uma palavra. Se ainda não lamentava ter deixado o junco, o enjôo e os passageiros do porão, isso não tardaria.
Como notara Kin-Fo, a brisa tendia a afirmar-se, mas não passava de um desses fogosos pés-de-vento que na maioria dos casos morrem ao nascer do sol. Contudo, deviam aproveitá-lo para se afastar tanto quanto possível do Sam-Yep. Quando os companheiros de Lao-Shen não encontrassem mais Kin-Fo no camarote evidentemente sairiam a procurá-lo, e se ele estivesse à vista, a piroga lhes facilitaria os meios de o apanharem de novo. Assim, a todo o custo, era forçoso estarem longe antes do amanhecer.
A brisa soprava de leste. Quaisquer que fossem as paragens para onde o furacão impelira o junco, algum ponto do golfo de Leao-Tong, do golfo de Pé-Tché-Li ou mesmo do Mar Amarelo, avançar para oeste era sem dúvida aproximar-se do litoral. Uma vez ali, podiam encontrar um desses barcos mercantes que procuram a embocadura do Pei-ho. Barcos de pesca freqüentam noite e dia as proximidades da costa. As probabilidades de ser recolhidos aumentavam pois em grande proporção. Se ao contrário o vento viesse do oeste, e se o Sam-Yep tivesse sido levado para o sul, além do litoral da Coréia, Kin-Fo e seus companheiros não teriam nenhuma possibilidade de salvação. Diante deles se estenderia a imensidão do mar, e no caso em que a costa do Japão os acolhesse seria já no estado de cadáveres, flutuando na sua insubmersível bainha de borracha.
Mas, como dissemos, essa brisa devia provavelmente morrer ao levantar do sol, e necessitavam aproveitar-se dela para se colocarem prudentemente fora do alcance das vistas.
Eram mais ou menos dez horas. A lua devia surgir acima do horizonte um pouco antes da meia-noite. Não havia pois um momento a perder.
— À vela! — disseram Craig-Fry.
Aparelharam imediatamente, o que aliás era facílimo. Cada sola do pé direito do salva-vidas tinha uma espécie de curto tubo destinado a servir de carlinga à vara que por sua vez servia de mastro.
Kin-Fo, Sun e os dois agentes começaram por estender-se de costas; em seguida dobrando o joelho alcançaram o pé em cuja carlinga espetaram a vara, depois de terem previamente passado na outra extremidade a driça da pequena vela. Ao retomarem a posição horizontal, a vara, fazendo um ângulo reto com a linha do corpo, ergueu-se verticalmente.
— Iça! — disseram Fry-Craig.
E cada qual, pesando com a mão direita sobre a driça levou à extremidade do mastro o ângulo superior da vela, que era cortada em triângulo.
A driça foi amarrada ao cinto metálico, a escota segura na mão, e a brisa, enfunando os quatro cutelos arrastou para o meio de uma leve revessa a pequena flotilha de escafandros.
Esses "homens-barcos" não merecem o nome de escafandros com muito mais propriedade que os trabalhadores submarinos, aos quais é ordinária e impropriamente aplicado?
Dez minutos depois cada um deles manobrava com perfeita segurança e facilidade. Vogavam juntos, sem se afastar uns dos outros. Dir-se-ia um bando de enormes gaivotas que, de asas ao cento, deslizavam brandamente à superfície das águas.
Aquela navegação era, aliás, muito favorecida pelo estado do mar. Nenhuma onda perturbava a larga e calma ondulação da superfície, nem marulhos nem ressaca.
Apenas duas ou três vezes o desastrado Sun, esquecendo as recomendações de Fry-Craig, quis voltar a cabeça e engoliu uns goles do amargo líquido. Mas pagou-o com um ou dois vômitos. Também não era isso o que o inquietava, e sim o temor de encontrar um bando de ferozes esqualos! Fizeram-lhe entanto compreender que ele corria menos risco na posição horizontal do que na posição vertical. Realmente, a disposição das goelas do tubarão obrigam-no a voltar-se para abocanhar a presa, e tal movimento não lhe é fácil quando pretende agarrar alguma coisa que flutua horizontalmente. Além disso, já se verificou que se esses peixes vorazes se lançam sobre corpos inertes, hesitam diante dos que são dotados de movimento. Sun devia portanto cuidar de mexer-se continuamente, e bem podemos imaginar como ele se mexeu.
Os escafandros navegaram assim durante mais ou menos uma hora, exatamente o que necessitavam Kin-Fo e os seus companheiros. Menos, não os teria afastado suficientemente do junco. Mais, tê-los-ia fatigado, tanto pela tensão dada à pequenina vela, como pelo marulho bastante acentuado das águas.
Craig-Fry resolveram então parar. Largaram as escotas e a flotilha deteve-se.
— Cinco minutos de descanso, senhor? — disse Craig dirigindo-se a Kin-Fo.
— De bom grado.
Todos, à exceção de Sun que quis ficar estendido por prudência e continuava a pernear, retomaram a posição vertical.
— Mais um copinho de aguardente? — perguntou Fry.
— Com prazer — respondeu Kin-Fo.
Alguns goles do licor reconfortante e pelo momento nada mais necessitavam. A fome ainda os não invadira. Tinham jantado uma hora antes de deixar o junco e podiam esperar até à manhã seguinte. Quanto a aquecer-se era inútil. O colchão de ar interposto entre os seus corpos e a água, garantia-os contra a frialdade. A temperatura normal dos seus corpos não havia decerto baixado um grau desde a partida.
E o Sam-Yep ainda estaria à vista?
Craig e Fry voltaram-se. Fry tirou do saco um binóculo de teatro e percorreu com ele, minuciosamente, o horizonte leste.
Nada! Nenhuma das sombras apenas perceptíveis que os navios desenham contra o fundo escuro do céu. De resto, noite escura, um tanto enevoada, avara de estrelas. Os planetas apenas formavam uma espécie de nebulosa no firma-mento. Mas muito provavelmente, a lua que não tardaria a mostrar o seu semicírculo, dissiparia essas brumas pouco densas e limparia largamente o espaço.
— O junco está longe! — disse Fry.
— Os bandidos ainda dormem — respondeu Craig, — e não aproveitaram a brisa!
— Quando quiserem! — disse Kin-Fo repuxando a escota e abrindo outra vez a sua vela ao vento.
Os companheiros imitaram-no e todos voltaram à antiga direção sob o impulso da aragem um pouco mais viva.
Iam para oeste, de modo que a lua erguendo-se a leste, não lhes devia bater diretamente nos olhos; mas iluminaria com seus primeiros raios o horizonte oposto, e era esse horizonte que importava observar com cautela. Podia ser que em vez de uma linha circular nitidamente traçada entre o céu e a água, apresentasse um perfil acidentado, franjado pelos raios do luar. Os escafandros não se enganariam. Seria o litoral do Celeste Império, e em qualquer ponto onde acostassem era a salvação garantida. A costa era livre, a ressaca quase nula. Nenhum perigo devia oferecer a chegada a terra, e uma vez lá decidiriam o que convinha fazer depois.
Mais ou menos às onze e três quartos vagas claridades romperam as névoas do zênite. O quarto da lua começava a ultrapassar a linha de água.
Nem Kin-Fo nem nenhum dos seus companheiros se voltaram. A brisa que ia refrescando, enquanto se dissipavam os vapores altos, arrastava-os então com certa rapidez. Mas eles sentiram que o espaço se ia pouco a pouco iluminando. Ao mesmo tempo as constelações surgiram com mais nitidez. O vento que subia ia varrendo as brumas e uma esteira acentuada fremia à cabeça dos escafandristas.
O disco da lua, tendo passado do vermelho-cobre ao branco prateado, em breve iluminou todo o céu.
Subitamente uma boa praga, bem sugestiva e bem americana escapou da boca de Craig.
— O junco! — exclamou ele. Todos pararam. —Velas abaixo! — bradou Fry.
Num instante os quatro cutelos foram amainados e as varas retiradas dos seus encaixes.
Kin-Fo e seus companheiros, voltando à posição vertical, olharam atrás de si.
O Sam-Yep lá estava, a menos de uma milha, perfilado em preto contra o horizonte claro, as velas todas desfraldadas. Era com efeito o junco! Aparelhara e aproveitara agora a brisa. O capitão Yin, já decerto se apercebera da desaparição de Kin-Fo, sem poder explicar-se como ele conseguira fugir.
Com toda a probabilidade saíra em perseguição dele, de acordo com os seus cúmplices do porão, e antes de um quarto de hora, Kin-Fo, Craig e Fry estariam novamente em poder deles!
Mas teriam sido avistados em meio ao feixe luminoso com que os banhava a lua à superfície do mar? Talvez não!
— Abaixo as cabeças! — tornou Craig que se agarrara àquela esperança.
Todos compreenderam. Os tubos dos aparelhos deixaram fugir um pouco de ar, e os quatro escafandros mergulharam de modo a que só as cabeças encapuzadas emergissem.
Restava-lhes esperar em absoluto silêncio, sem ousar um movimento.
O junco aproximava-se com rapidez. Suas altas velas faziam largas sombras nas águas.
Cinco minutos depois o Sam-Yep não estava a mais de meia milha. Acima das bordas perpassavam marinheiros. À popa o capitão governava o leme.
Estaria manobrando para alcançar os fugitivos? Pretenderia apenas manter-se na esteira do vento? Não se sabia.
De repente ouviram-se gritos, uma avalanche de homens surgiu na coberta do Sam-Yep. Os clamores aumentaram.
Com certeza havia luta entre os fingidos mortos, ocultos no porão, e a tripulação do junco.
Mas por que essa luta? Então marinheiros e piratas não estavam todos de acordo?
Kin-Fo e seus companheiros ouviam bem claramente, de um lado horríveis vocifefações e do outro gritos de dor e desespero que em poucos minutos se extinguiram.
Em seguida, um violento revolver de água indicou que alguns corpos eram jogados ao mar.
Não! O capitão Yin e os seus tripulantes não eram cúmplices dos bandidos de Lao-Shen. Os pobres homens, ao contrário, tinham sido surpreendidos e massacrados. Os bandidos, que se haviam escondido a bordo — sem dúvida com o auxílio dos carregadores de Taku, — outra coisa não pretenderiam senão apoderar-se do junco por conta do Tai-ping, e decerto ignoravam que Kin-Fo fosse passageiro do Sam-Yep!
Portanto se os vissem, se os apanhassem, nenhum deles poderia esperar misericórdia de semelhantes miseráveis.
O junco prosseguia avançando. Alcançou-os, mas por uma sorte inesperada projetou sobre eles a sombra das suas velas.
Mergulharam um instante.
Quando voltaram a emergir o junco passara sem os ver e afastava-se deixando um rápido sulco.
Um cadáver flutuava à ré, e o redemoinho das águas aproximou-o pouco a pouco dos escafandros.
Era o corpo do capitão, com um punhal cravado na ilharga. As largas pregas da sua túnica ainda o sustinham sobre a água.
Mas logo mergulhou e desapareceu nas profundezas do mar.
Assim morreu o jovial capitão Yin, comandante do Sam-Yep.
Dois minutos depois o junco desaparecia no oeste, e Kin-Fo, Fry-Craig e Sun estavam de novo sozinhos na superfície do mar.



Capítulo XX
ONDE SE VERÁ AO QUE SE EXPÕEM AS PESSOAS QUE USAM OS APARELHOS DO CAPITÃO BOYTON.

Três horas depois os primeiros alvores da manhã insinuavam-se timidamente no horizonte. Não tardou a ser dia e o mar pôde ser observado em toda a sua extensão.
O junco já não se via; tinha-se logo distanciado dos escafandros, que não podiam competir em velocidade com ele. Estes haviam seguido a mesma rota, para oeste, sob o impulso da mesma aragem, mas o Sam-Yep devia encontrar-se agora mais de três léguas a sotavento. Portanto, nada havia a temer dos que o tripulavam.
Contudo, esse perigo evitado nem por isso melhorava muito a situação.
O mar estava absolutamente deserto. Nenhum navio, nenhum barco de pesca à vista. Nenhum indício de terra ao norte ou a leste. Nada que indicasse a proximidade de um litoral qualquer. Aquelas águas eram as do golfo de Pé-Tché-Li ou as do Mar Amarelo? Completa incerteza a respeito.
Entretanto, alguma aragem corria ainda à superfície das águas. Era preciso aproveitá-la. A direção seguida pelo junco demonstrava que a terra se ergueria — mais ou menos proximamente, — para oeste, e de qualquer modo era ali que convinha procurá-la.
Ficou então decidido que os escafandros prosseguiriam à vela, mas depois de terem restaurado as forças. Os estômagos reclamavam o que lhes era devido, e dez horas de travessia em tais condições tornavam-no imperioso.
— Almocemos — disse Craig.
— Copiosamente! — acrescentou Fry.
Kin-Fo teve um sinal de aquiescência e Sun remoeu as mandíbulas de um jeito que não deixava quaisquer dúvidas. Nesse instante o comilão não pensava mais em ser devorado, ao contrário só pensava em devorar.
O saco impermeável foi então aberto e Fry tirou de dentro dele vários comestíveis de boa qualidade, pão, conservas, alguns utensílios de mesa, enfim o indispensável para satisfazer a fome e a sede. Dos cem pratos que costumam figurar num jantar chinês faltavam talvez noventa e oito, mas havia com que satisfazer os quatro convivas e o momento não comportava exigências.
Todos almoçaram com excelente apetite. O saco continha provisões para dois dias — e, ou estariam em terra antes de dois dias, ou então nunca mais lá chegariam.
— Mas temos boas razões para esperar — disse Craig.
— Que boas razões são essas? — perguntou Kin-Fo com certa ironia.
— Porque a sorte está do nosso lado — respondeu Fry.
— Ah! Então acham?
— Sem dúvida — tornou Craig. — O perigo maior era o junco e nós conseguimos escapar-lhe.
— E nunca, desde que temos a honra de estar adidos à sua pessoa — acrescentou Fry, — o senhor esteve em maior segurança do que aqui!
— Nem todos os Tai-ping do mundo... — começou Craig.
— ...poderiam alcançá-lo! — prosseguiu Fry.
— E o senhor bóia lindamente... — tornou Craig.
— ...para um homem que pesa duzentos mil dólares! — concluiu Fry.
Kin-Fo não pôde deixar de sorrir.
— Se aqui estou flutuando — observou Kin-Fo, — devo-o aos senhores! Sem a ajuda de ambos estaria agora fazendo companhia ao pobre capitão Yin!
— E nós também! — replicaram Fry-Craig.
— E também eu! — interveio Sun esforçando-se por fazer passar um enorme pedaço de pão da boca para o esôfago.
— Não importa, — insistiu Kin-Fo — sei quanto lhes devo!
— O senhor nada nos deve — respondeu Fry, — pois é um cliente da Centenária...
— Companhia de seguros de vida...
— Capital realizado: vinte milhões de dólares...
— E temos a esperança...
— De que ela nada venha a dever-lhe!
No fundo, Kin-Fo estava muito reconhecido pelo devotamento de que os dois agentes lhe tinham dado prova, fosse qual fosse a sua origem. E não lhes ocultou o que pensava a respeito.
— Tornaremos a falar disso quando Lao-Shen me devolver a carta que Wang tão lamentavelmente lhe transferiu!
Craig e Fry olharam-se e um imperceptível sorriso lhes aflorou aos lábios. Ocorrera-lhes sem dúvida o mesmo pensamento.
— Sun! — chamou Kin-Fo.
— Meu amo! — respondeu este.
— O chá?
— Ei-lo aqui! — interveio Fry.
E Fry interveio a tempo, pois Sun teria respondido que fazer chá em tais circunstâncias seria absolutamente impossível.
Mas supor que os dois agentes se embaraçassem com tão pouco, seria não os conhecer.
Fry tirou logo do saco um pequeno utensílio, que é o complemento indispensável dos aparelhos Boyton. Com efeito, ele pode servir de farol durante a noite, de lareira quando faz frio e de fogareiro quando se quer obter alguma bebida quente.
Nada mais simples. Um tubo de cinco ou seis polegadas ligado a um recipiente metálico, munido de uma torneira superior e outra inferior — tudo encaixado num bloco de cortiça, à maneira desses termômetros flutuantes que se usam nas casas de banho, — tal é o utensílio em questão.
Fry poisou-o à superfície da água, que estava perfeitamente lisa.
Com uma das mãos abriu a torneira superior e com a outra a torneira inferior, adaptada ao recipiente imerso.
Imediatamente uma bela chama surgiu na extremidade, desprendendo um calor muito apreciável.
— Aqui está o fogareiro! — disse Fry. Sun não podia acreditar no que via.
— O senhor fez fogo com água! — exclamou ele.
— Com água e fosforeto de cálcio! — respondeu Craig.
Realmente o aparelho era construído de modo a utilizar uma singular propriedade do fosforeto de cálcio, esse composto do fósforo, que em contato com a água produz hidrogênio fosforado. Ora, este gás arde espontaneamente ao ar livre, e nem o vento, nem a chuva, nem o mar podem apagá-lo. E agora empregado para iluminar as bóias de salvamento aperfeiçoadas. A bóia ao cair põe a água em contato com o fosforeto de cálcio e imediatamente jorra uma longa chama, que permite, tanto ao homem caído ao mar encontrá-la de noite, como aos marinheiros virem diretamente socorrê-lo.12 Enquanto o hidrogênio ardia na ponta do tubo, Craig segurava-lhe em cima um bule cheio de água doce, tirada de um barrilzinho guardado no saco.
Em poucos minutos o líquido entrou em estado de ebulição. Craig passou-o para uma chaleira contendo algumas pitadas de um chá excelente, e dessa vez Kin-Fo e Sun beberam-no à americana — sem que isso lhes provocasse alguma reclamação.
Essa bebida quente terminou com decência aquele almoço servido à superfície do mar, a "tantos" graus de latitude e "tantos" de longitude. Só faltavam um sextante e um cronômetro para determinar a posição, com diferença de poucos segundos. Estes instrumentos completarão um dia o saco dos aparelhos Boyton, e os náufragos não mais correrão o perigo de se perderem no mar.
Kin-Fo e seus companheiros bem descansados, bem refeitos, desdobraram então as pequenas velas e retomaram a sua navegação para oeste, agradavelmente interrompida por essa refeição matinal.
A brisa manteve-se ainda durante doze horas e os escafandros fizeram boa rota, com vento favorável. Apenas de tempos a tempos precisavam retificá-la com um leve meneio do pangaio. Na posição horizontal, molemente e docemente levados, vinha-lhes uma certa vontade de dormir. Daí a necessidade de resistir ao sono, que seria muito importuno naquela ocasião.
Craig e Fry para não sucumbir tinham acendido um charuto, e fumavam como os banhistas elegantes no recinto de uma escola de natação.
Várias vezes, aliás, os escafandros foram perturbados pelas rabanadas de algum animal marinho, que causavam os maiores terrores ao desgraçado Sun.
Felizmente eram apenas inofensivos, golfinhos, esses clowns do mar que vinham simplesmente saber que estranhos seres eram aqueles invasores do seu elemento — mamíferos também mas de nenhum modo marinhos.
Curioso espetáculo! Os golfinhos aproximavam-se em bandos, rompendo como flechas e matizando as camadas líquidas com as suas cores de esmeralda; pulavam cinco e seis pés fora das ondas, numa espécie de salto mortal que atestava a agilidade e vigor dos seus músculos. Ah! Se os escafandros pudessem fender a água com aquela rapidez, superior à dos maiores navios, não tardariam a alcançar terra. Dava vontade de se amarrar a alguns daqueles peixes e fazer-se rebocar por eles. Mas que saltos e mergulhos! Não! Mais valia pedir ao vento um impulso que, embora mais lento, era infinitamente mais prático!
Contudo, cerca do meio-dia o vento caiu de todo. Terminou em lufadas caprichosas que inflavam um momento as velas para logo as deixar cair inertes. A escota já não puxava a mão que a segurava.
Já não se ouvia mais o murmurar do sulco aos pés e à cabeceira dos escafandros.
— Uma complicação... — começou Craig.
— ...grave! — terminou Fry.
Pararam um instante. Os mastros foram retirados, dobradas as velas, e cada qual retomando a posição vertical pôs-se a observar o horizonte.
O mar continuava deserto. Nenhuma vela à vista, nenhum fumo de navio esbatendo-se no céu. Um sol ardente absorvera todas as vaporações e como rarificara as correntes atmosféricas. A temperatura da água pareceria quente mesmo a pessoas que não estivessem envolvidas numa dupla camada de borracha.
Enquanto isso, por mais seguros que Craig-Fry dissessem estar a respeito do desenlace daquela aventura, não deixavam de experimentar uma certa inquietação. A distância mais ou menos percorrida nas últimas dezesseis horas não podia ser avaliada; mas, que coisa alguma indicasse a proximidade do litoral, navio mercante, ou barco de pesca, eis o que cada vez mais se ia tornando inexplicável.
Felizmente Kin-Fo, Craig e Fry não eram pessoas para desesperar antes da hora, se tal hora devesse soar algum dia para eles. Dispunham ainda de provisões para mais uma jornada, e nada indicava que o tempo viesse a piorar.
— Ao pangaio! — disse Kin-Fo.
Foi o sinal de partida, e ora de bruços, ore de costas, os escafandros retomaram o caminho do oeste.
Iam devagar. Essa manobra do pangaio logo fatigava os braços de quem não estava acostumado. Precisavam parar freqüentemente à espera de Sun, que ficava para trás e recomeçara as suas lamúrias.
O amo interpelava-o, injuriava-o, ameaçava-o; mas Sun já não temia pelo resto do seu rabicho, protegido pelo grosso capuz de borracha, e deixava-o falar. O receio de ser abandonado bastava, de resto, para o manter a curta distância.
Pelas duas horas surgiram algumas aves. Eram gaivotas. Mas esses rápidos voláteis aventuram-se a grandes distâncias no mar, e não se podia deduzir da sua presença que a costa estivesse próxima. Todavia, aquilo foi considerado um indício favorável.
Uma hora depois os escafandros caíam num emaranhado de sargaços de que lhes custou bastante ver-se livres. Enleavam-se neles como peixes nas malhas de uma rede. Foi preciso tomar as facas e retalhar aquele matagal marinho.
Perdeu-se mais de meia hora e gastaram-se forças que poderiam ser melhor aproveitadas.
As quatro horas o pequeno grupo flutuante parou outra vez bem fatigado. Uma aragem bastante fresca acabava de erguer-se, mas soprando agora do sul, o que era uma inquietadora circunstância. Realmente os escafandros não podiam ir pelo mar a fora, como um navio que a quilha agüenta contra a deriva. Se desfraldavam as velas, corriam o risco de ser arrastados para o norte, perdendo uma parte do que haviam ganho para oeste. Além disso a ondulação das vagas tornara-se mais acentuada. Um marulho fortíssimo encapelava as ondas, dificultando extremamente a situação.
A parada foi por isso bastante longa. Empregaram-na não só em descansar, como também em recuperar as forças, atacando outra vez as provisões. O jantar foi menos alegre que o almoço. A noite não tardaria a descer, o vento refrescava... Que fazer?
Kin-Fo apoiado ao seu pangaio, de sobrolho franzido, mais irritado ainda que temeroso desse encarniçamento da má sorte, não dizia uma palavra. Sun lamuriava sem descontinuar, espirrando já como um mortal ameaçado de terrível defluxo.
Craig e Fry sentiam-se mentalmente interrogados pelos outros dois companheiros, mas não sabiam o que responder.
Enfim, um acaso dos mais felizes propiciou-lhes uma resposta.
Pouco antes das cinco horas, Craig e Fry estendendo ao mesmo tempo a mão para o sul, gritaram:
— Vela!
Com efeito, três milhas a barlavento surgia uma embarcação a todo o pano. A continuar na direção em que vinha de vento em popa, passaria talvez a pequena distância do lugar onde Kin-Fo e seus companheiros haviam parado.
Uma só coisa, pois, havia a fazer: cortar o caminho à embarcação, dirigindo-se perpendicularmente ao seu encontro.
Imediatamente manobraram nesse sentido. Voltaram-lhes as forças. Agora que tinham, por assim dizer, o salvamento ao alcance das mãos, não o deixariam escapar.
A direção do vento não lhes permitia usar as pequenas velas, mas os pangaios deviam bastar, sendo a distância a percorrer relativamente curta.
A embarcação crescia rapidamente sob a brisa refrescante. Era um barco de pesca e a sua presença indicava sem dúvida que a terra não devia estar longe, pois os pescadores chineses raramente se aventuram ao mar largo.
— Força! Força! — gritaram Craig-Fry remando com vigor.
Mas não era preciso excitar o ardor dos companheiros. Kin-Fo, bem inclinado na água, fendia-a como um esquife de regata. Quanto a Sun excedia-se verdadeiramente correndo à frente de todos, tal o seu medo de ficar para trás.
Cerca de meia milha era o que tinham de fazer para alcançar mais ou menos as águas do barco. De resto era ainda dia claro, e se os escafandros não chegassem bastante perto para se fazer ver, sem dúvida lograriam fazer-se ouvir. Mas os pescadores não largariam a fugir à vista daqueles estranhos peixes que os interpelavam? Eis uma possibilidade bastante grave.
Como quer que fosse, era necessário não perder um instante. Por isso os braços estendiam-se, os pangaios fendiam rapidamente a crista das vagas, a distância diminuía a olhos vistos, quando Sun, sempre adiante, soltou um terrível grito de pavor.
— Um tubarão! Um tubarão!
E dessa vez Sun não se enganava.
A uma distância de cerca de vinte pés viam-se imergir dois apêndices.
Eram as barbatanas de um monstro voraz, peculiar a esses mares, o tubarão-tigre, bem digno desse nome porque a natureza lhe deu a dupla ferocidade do esqualo e da fera.
— Às facas! — gritaram Fry e Craig.
Eram as únicas armas de que podiam dispor, talvez insuficientes!
Sun, como é de imaginar, parará de repente e voltava às pressas para trás.
O monstro vira os escafandros e fendia em direção a eles. Um momento o seu enorme corpo surgiu na transparência das águas, rajado e mosqueado de verde. Mediria dezesseis a dezoito pés de comprimento. Um verdadeiro monstro!
Foi sobre Kin-Fo que primeiro se precipitou, voltando-se de lado para o abocanhar.
Kin-Fo não perdeu o sangue frio. No momento em que a fera ia atingi-lo, encostou-lhe o pangaio nas costas e dando-lhe um vigoroso empurrão afastou-se vivamente.
Craig e Fry tinham-se aproximado, prontos para o ataque e para a defesa.
O tubarão mergulhou um instante e voltou à tona de goela aberta, espécie de enorme tesoura eriçada de uma quádrupla fileira de dentes.
Kin-Fo pretendeu repetir a manobra que lhe resultará tão bem, mas o seu pangaio chocou-se com a mandíbula do animal que o cortou rente.
O tubarão, meio deitado de lado, atirou-se então à sua presa.
Nesse momento jorraram golfadas de sangue e o mar tingiu-se de vermelho.
Craig e Fry tinham vibrado no animal repetidos golpes, e ainda que a sua pele fosse bem dura, as facas americanas de compridas lâminas haviam logrado penetrá-la.
A goela do monstro abriu-se então e fechou-se com pavoroso estrondo, enquanto a barbatana da sua cauda fustigava raivosamente a água. Fry recebeu uma violenta pancada desse rabo, que o apanhou de flanco e jogou a dez pés de distância.
— Fry! — gritou Craig num tom de voz dilacerado como se ele próprio tivesse recebido a pancada.
— Hurra! — respondeu Fry voltando à carga.
Não estava ferido. A sua couraça de borracha amortecera a violência da rabanada.
O monstro foi então outra vez atacado e com verdadeiro furor. Virava-se e revirava-se. Kin-Fo lograra enterrar-lhe numa das órbitas a ponta esfarpada do seu pangaio, tentando, com risco de ser cortado em dois, mantê-lo imobilizado enquanto Fry e Craig procuravam atingi-lo no coração.
E parece que os dois agentes o conseguiram, porque o monstro, tendo-se debatido uma derradeira vez, mergulhou entre uma última golfada de sangue.
— Hurra! Hurra! Hurra! — bradaram Craig-Fry em uníssono agitando as suas facas.
— Obrigado! — disse simplesmente Kin-Fo.
— Não há de quê! — respondeu Craig. — Um acepipe de duzentos mil dólares para esse peixe!
— Nunca! — acrescentou Fry.
E Sun? Onde estaria Sun? Dessa vez à frente e já muito perto do barco de pesca que não distava trezentas braças. O poltrão raspara-se à força de pangaio mas ia-se saindo mal.
Com efeito os pescadores tinham-no avistado, mas não podiam imaginar que sob aquela aparência de cachorro marinho se ocultasse uma criatura humana. Prepararam-se então para o pescar, como se se tratasse de um golfinho ou uma foca; e quando o pretenso animal ficou ao alcance, jogaram de bordo uma comprida corda, munida de um forte anzol.
O anzol alcançou Sun pelo cinto do seu vestuário, e ao deslizar abriu-o das costas até à nuca.
Sun, passando apenas a manter-se pelo ar contido no duplo envoltório das calças, precipitou-se de cabeça para baixo e pernas para o ar.
Kin-Fo, Craig e Fry que iam chegando, tiveram a precaução de interpelar os pescadores em bom chinês.
Pavor extremo daquela boa gente! Focas que falavam! Iam desfraldar as velas e fugir quanto antes...
Mas Kin-Fo tranqüilizou-os, deu-se a conhecer pelo que eram ele e seus companheiros, isto é, por homens, e chineses como eles!
Momentos depois os três mamíferos terrestres estavam a bordo.
Faltava Sun. Puxaram-no com um croque, tiraram-lhe a cabeça fora da água. Um dos pescadores segurou-o pela ponta do rabicho e levantou-o...
O rabicho de Sun ficou-lhe todo na mão e o pobre diabo deu um novo mergulho.
Os pescadores enrolaram-no então numa corda e com alguma dificuldade lograram içá-lo para bordo.
Mal chegara à coberta e devolvera a água do mar que tinha engolido, Kin-Fo aproximou-se e perguntou-lhe num tom severo:
— Quer dizer que era fingido?
— Se assim não fosse — respondeu Sun, — acha que eu, conhecendo os seus hábitos, ficaria um só dia ao seu serviço?
E disse aquilo tão cômicamente que todos desandaram a rir.
Esses pescadores eram gente de Fu-Ning. A menos de duas léguas abria-se precisamente o porto que Kin-Fo desejava alcançar.
Nessa mesma noite, às oito horas, ele desembarcava com os seus companheiros, e despindo os aparelhos do capitão Boyton todos quatro readquiriam o aspecto de criaturas humanas.





Capítulo XXI
NO QUAL GRAIG E FRY VÊEM A LUA ERGUER-SE COM ENORME SATISFAÇÃO.

— E agora, ao Tai-ping!
Foram estas as primeiras palavras que Kin-Fo pronunciou na manhã seguinte, 30 de junho, após uma noite de repouso, bem merecida pelos heróis destas singulares aventuras.
Estavam enfim no teatro das façanhas de Lao-Shen. A luta ia travar-se definitivamente.
Kin-Fo sairia vencedor? Sim, com certeza, se pudesse surpreender o Tai-ping, pois pagaria pela carta o preço que Lao-Shen lhe exigisse. Não, com certeza, se se deixasse surpreender, se uma punhalada lhe varasse o peito antes de entrar em negociações com o feroz mandatário de Wang.
— Ao Tai-ping! — responderam Fry-Craig depois de se terem consultado com os olhos.
A chegada de Kin-Fo, de Fry-Craig e de Sun naquelas extraordinárias roupas, a maneira como os pescadores os tinham recolhido no mar, tudo era de molde a excitar a emoção no pequeno porto de Fu-Ning. Seria difícil escapar à curiosidade pública. De modo que tinham sido escoltados na véspera até à hospedaria, onde, graças ao dinheiro conservado no cinto de Kin-Fo e no saco de Fry-Craig, obtiveram roupas mais convenientes. Se Kin-Fo e seus companheiros estivessem menos cercados de gente quando se dirigiram à hospedaria, teriam notado um celestial que não se afastava deles uma só polegada. E a sua admiração ainda cresceria se o vissem toda a noite à espreita, à porta da hospedaria. E ficariam positivamente desconfiados quando na manhã seguinte o encontrassem no mesmo lugar.
Mas eles nada viram, de nada desconfiaram, não se admiraram mesmo quando o suspeito indivíduo lhes veio oferecer os seus serviços na qualidade de guia, quando iam saindo à rua.
Era homem de uns trinta anos, aliás de bom aspecto.
Contudo, algumas suspeitas acordaram no espírito de Craig-Fry, e por isso eles interrogaram o homem.
— Por que se oferece o senhor como guia e onde pretende guiar-nos? — perguntaram-lhe.
Nada mais natural do que esta dupla pergunta, mas também nada mais natural do que a resposta que lhes foi dada.
— Eu suponho — disse o guia, — que os senhores têm a intenção de visitar a Grande Muralha, como fazem todos os viajantes que chegam a Fu-Ning. Conheço a região e ofereço-me para os conduzir.
— Meu amigo — interveio Kin-Fo, — antes de tomar uma resolução gostaria de saber se a província é segura.
— Muito segura — respondeu o guia.
— Não se fala por aqui num certo Lao-Shen? — perguntou Kin-Fo.
— Lao-Shen, o Tai-ping?
— Esse mesmo.
— Fala-se — respondeu o guia, — mas não há nada a recear dele aquém da Grande Muralha. Ele não se aventuraria no território imperial. É do lado de lá que o seu bando percorre as províncias mongólicas.
— Sabe-se onde ele está atualmente? — insistiu Kin-Fo.
— Foi visto ultimamente nas proximidades de Tschin-Tang-Ro, a alguns lis apenas da Grande Muralha.
— E qual é a distância de Fu-Ning ao Tsching-Tang-Ro?
— Mais ou menos uns cinqüenta lis.13
— Bem, aceito os seus serviços.
— Para o levar até à Grande Muralha?
— Para me acompanhar até ao acampamento de Lao-Shen!
O guia não pôde conter um certo movimento de surpresa.
— Será bem pago! — acrescentou Kin-Fo.
O guia sacudiu a cabeça como homem a quem não agradava passar a fronteira, e em seguida declarou:
— Até à Grande Muralha, está certo! Para além, não, que é arriscar a vida.
— Diga o preço da sua! Pagarei.
— Está bem! — concordou o guia.
E voltando-se para os dois agentes, Kin-Fo acrescentou:
— Os senhores poderão acompanhar-me ou não, como quiserem!
— Para onde o senhor for... — começou Craig.
— ...nós iremos — terminou Fry.
O cliente da Centenária ainda continuava valendo para eles duzentos mil dólares!
De resto, após aquela conversa os dois agentes pareceram inteiramente satisfeitos com o guia. Mas a dar-lhe crédito, para além dessa barreira que os chineses ergueram contra as incursões das hordas mongólicas, podiam esperar-se as mais graves eventualidades.
Providenciaram-se logo os arranjos da partida. Nem se perguntou a Sun se a viagem lhe convinha ou não. Estava entendido.
Os meios de transporte, carruagens ou cadeirinhas faltavam completamente no pequeno burgo de Fu-Ning. Cavalos ou mulas também não havia. Mas havia um certo número desses camelos que servem os mercadores da Mongólia. Esses aventurosos traficantes vão em caravanas pela estrada de Pequim a Kiatcha, impelindo os seus inumeráveis rebanhos de carneiros de larga cauda, estabelecendo assim comunicação entre a Rússia Asiática e o Celeste Império. Todavia, não se arriscam através dessas longas estepes a não ser em grupos numerosos e bem armados. "São gente feroz e altiva — diz o senhor de Beauvoir, — para quem o chinês não passa de coisa desprezível".
Foram comprados cinco camelos com os seus arreios rudimentares. Carregaram-nos de provisões, adquiriram armas e partiram sob a direção do guia.
Mas esses preparativos tinham levado algum tempo, de modo que a partida só pôde efetuar-se à uma hora da tarde.
Apesar do atraso o guia pretendia chegar antes da meia--noite à Grande Muralha. Uma vez lá organizaria um acampamento, e se no dia seguinte Kin-Fo teimasse na sua imprudente resolução, passariam a fronteira.
A região, nas proximidades de Fu-Ning era acidentada. Nuvens de poeira amarela se desdobravam em espessas volutas acima das estradas que se abriam entre os campos cultivados. Conhecia-se ainda ali o fértil território do Celeste Império.
Os camelos marchavam a passo cadenciado, pouco veloz mas constante. O guia ia à frente de Kin-Fo, Sun, Craig e Fry, empoleirados entre as duas corcovas da montada. Sun aprovava bastante aquele modo de viajar, e em tais condições iria até ao fim do mundo.
Se o caminho não era fatigante o calor abrasava. Através das camadas atmosféricas mais aquecidas pela reverberação do sol, produziam-se os mais estranhos efeitos de miragem. Vastas planícies líquidas, grandes como um mar, surgiam no horizonte desvanecendo-se logo, com extrema satisfação de Sun que ainda se julgava ameaçado de alguma nova viagem marítima.
Embora essa província estivesse situada nos últimos limites da China, não devemos imaginar que ela fosse deserta. O Celeste Império, por imenso que seja, é ainda pequeno para a população que se acumula na sua superfície. De modo que os habitantes são numerosos mesmo na orla do deserto asiático.
Homens trabalhavam nos campos. Mulheres tártaras, identificáveis pelas cores rosa e azul dos seus vestuários, ocupavam-se dos serviços caseiros. Rebanhos de carneiros amarelos de longa cauda, — uma cauda que Sun observava com inveja! — pastavam aqui e ali sob o olhar da águia negra. Desgraçado do ruminante que se afastasse! São carnívoros temíveis essas aves de rapina, que fazem uma guerra implacável aos carneiros, argalis e antílopes novos, e servem até de cachorros de caça aos quirguizes das estepes da Ásia Central.
Nuvens de aves de caça erguiam-se de todos os lados. Uma espingarda não preguiçaria naquela parte do território, mas um verdadeiro caçador não veria com bons olhos as redes, laços e outras armadilhas destruidoras, dignas apenas de um caçador furtivo, que cobriam o chão entre os sulcos de trigo, de painço e de milho.
Entretanto, Kin-Fo e seus companheiros avançavam entre os turbilhões daquela poeira mongólica, sem parar nos pontos sombreados da estrada nem nas herdades solitárias da região, nem nas aldeias de quando em quando assinaladas pelas torres funerárias, erguidas à memória de alguns heróis da lenda búdica. Marchavam em fila, deixando-se levar pelos seus camelos habituados a ir assim uns atrás dos outros, e de que uma campainha vermelha, pendurada ao pescoço, marcava o passo regular.
Em tais condições era impossível conversar. O guia, pouco falador por índole, mantinha-se sempre à frente do pequeno grupo, observando o terreno num raio de que a grossa poeira diminuía consideravelmente a extensão. Nunca hesitava, aliás, sobre a direção a seguir, mesmo em certas encruzilhadas onde não havia poste indicador. Fry e Craig, que não mais desconfiavam dele, concentravam toda a sua vigilância no precioso cliente da Centenária, sentindo muito naturalmente crescer a sua inquietação à medida que se aproximavam da meta da viagem. Com efeito, a cada momento e sem mesmo o poderem evitar, podiam deparar com um homem que, num golpe bem aplicado lhes fizesse perder duzentos, mil dólares.
Quanto a Kin-Fo, encontrava-se nessa disposição de espírito em que as recordações do passado dominam as ansiedades do presente. Evocava tudo o que constituíra a sua vida nesses últimos seis meses. A persistência da má sorte não deixava de o inquietar muito seriamente. Desde o dia em que o procurador de São Francisco lhe enviara a notícia da sua pretensa ruína, não entrara num período de azar verdadeiramente extraordinário? Não se viria a estabelecer uma compensação entre a segunda e a primeira parte da sua existência, de que loucamente desdenhara as vantagens? Essa seqüência de contrariedades não terminaria com a recuperação da carta que se achava nas mãos de Lao-Shen, se conseguisse reavê-la sem violências A gentil Lé-u pela sua presença, pelos seus desvelos, pela sua ternura, pela sua tranqüila alegria não lograria conjurar os maus espíritos encarniçados contra a sua pessoa? Sim, todo esse passado lhe voltava à lembrança, o preocupava e inquietava! E Wang? Decerto não podia acusá-lo por ter querido manter um compromisso assumido; mas Wang, o filósofo, p hóspede assíduo do yamen de Shangai não mais lá estaria para lhe ensinar a sabedoria!
— O senhor vai cair! — gritou-lhe nesse momento o guia, cujo camelo acabava de esbarrar com o de Kin-Fo, arriscado a desabar em meio do seu sonho.
— Chegamos? — perguntou ele.
— São oito horas — respondeu o guia, — e sugiro uma parada para jantar.
— E depois?
— Depois, prosseguiremos.
— Será noite!
— Oh! Não tenha medo de se perder. A Grande Muralha não está a mais de vinte lis e convém dar um descanso aos animais!
— Está bem! — respondeu Kin-Fo.
Erguia-se ao lado da estrada um casebre abandonado, com um regato correndo perto num barranco sinuoso, onde os camelos puderam desalterar-se.
Durante esse tempo e enquanto a noite não se fechou completamente, Kin-Fo e seus companheiros instalaram-se no casebre, onde comeram como pessoas às quais uma longa caminhada aguçara o apetite.
A conversa, entretanto, não se animava. Uma ou duas vezes Kin-Fo aludiu a Lao-Shen, perguntando ao guia quem era esse Tai-ping e se o conhecia. Mas o guia abanou a cabeça como quem não se sente tranqüilo, e tanto quanto possível evitou responder.
— Ele vem de vez em quando a esta província? — perguntou Kin-Fo.
— Não! — respondeu o guia. — Mas Tai-pings do seu bando várias vezes atravessaram a Grande Muralha, e não era bom encontrá-los. Guarde-nos Buda dos Tai-pings!
A estas respostas, cuja importância para o seu interlocutor o guia não podia evidentemente alcançar, Craig e Fry olhavam-se franzindo o sobrolho, puxavam o relógio, consultavam-no e por fim sacudiam a cabeça.
— Por que não havemos de ficar aqui tranqüilamente até amanhã? — perguntaram eles.
— Aqui neste casebre? — exclamou o guia. — Prefiro antes o campo raso. É mais difícil ser surpreendido!
— Foi combinado alcançarmos esta noite a Grande Muralha — respondeu Kin-Fo. — Quero chegar lá e hei de chegar!
Aquilo foi dito num tom que não admitia réplica. Sun, já atormentado pelo medo, o próprio Sun não ousou protestar.
Terminada a refeição — eram cerca de nove horas, — o guia levantou-se e deu o sinal de partida.
Kin-Fo dirigiu-se à sua montada, Craig e Fry foram então ter com ele.
— O senhor — começaram eles, — está mesmo resolvido a entregar-se nas mãos de Lao-Shen?
— Absolutamente resolvido — respondeu Kin-Fo. — Quero reaver a minha carta, custe o que custar.
— Ir ao acampamento de Lao-Shen é arriscar uma parada muito grande! — continuaram eles.
— Eu não vim até aqui para recuar! — respondeu Kin-Fo.
— Os senhores não são obrigados a seguir-me.
O guia acendera uma pequena lanterna de bolso. Os dois agentes aproximaram-se e consultaram mais uma vez o relógio.
— Seria sem dúvida mais prudente esperar até amanhã — insistiram eles.
— Por quê? — replicou Kin-Fo. — Lao-Shen será tão perigoso amanhã ou depois, como hoje! A caminho!
— A caminho — repetiram Craig-Fry.
O guia ouvira este fragmento de conversa. Já várias vezes, durante a parada, quando os dois agentes tinham querido dissuadir Kin-Fo de ir mais longe, um certo descontentamento se lhe pintara no rosto. Nessa ocasião, quando os viu voltar à carga, não pôde conter um gesto de impaciência.
Isto não passara despercebido a Kin-Fo, bem decidido aliás a não recuar uma polegada. Mas enorme foi a sua surpresa quando, no momento em que o ajudava a trepar para o camelo, o guia inclinando-se para o seu ouvido lhe segredou estas palavras:
— Desconfie desses dois homens!
Kin-Fo ia pedir a explicação de tais palavras... O guia fêz-lhe sinal para se calar, comandou a partida e o pequeno grupo rompeu de novo através do campo.
Uma sombra de desconfiança penetrara no espírito do cliente de Fry-Craig. Poderiam as palavras do guia, absolutamente inesperadas e inexplicáveis, contrabalançar em seu ânimo os dois meses de devotamento que os dois agentes lhe tinham consagrado? Não, certamente! Contudo, Kin-Fo perguntava a si mesmo por que razão Fry-Craig o tinham aconselhado a adiar ou mesmo renunciar à visita ao acampamento do Tai-ping. Não era acaso para ir ao encontro de Lao-Shen que bruscamente tinham deixado Pequim? O próprio interesse dos dois agentes da Centenária não era que o seu cliente reentrasse na posse dessa absurda e comprometedora carta? Uma tal insistência era com efeito incompreensível.
Kin-Fo nada revelou dos sentimentos que o perturbavam. Retomou o seu lugar atrás do guia, seguido de Craig-Fry e caminhara assim durante duas compridas horas.
Devia ser bem perto da meia-noite quando o guia se deteve, apontando ao norte uma longa linha escura que vagamente se perfilava contra o fundo mais claro do céu. Para além dessa linha branqueavam algumas elevações, já iluminadas pelos primeiros raios da lua ainda escondida no horizonte.
— A Grande Muralha! — exclamou o guia.
— Poderemos atravessá-la ainda esta noite? — perguntou Kin-Fo.
— Poderemos, se o senhor o deseja absolutamente — respondeu o guia.
— É o que desejo!
Os camelos tinham parado.
— Vou fazer um reconhecimento — disse então o guia. — Fiquem aqui e esperem-me.
E afastou-se.
Nesse momento Craig e Fry aproximaram-se de Kin-Fo.
— Senhor! — começou Craig.
— Senhor! — prossegiu Fry. E ambos acrescentaram:
— O senhor está satisfeito com os nossos serviços, durante estes dois meses em que o honrado William J. Bidulph nos confiou a sua pessoa?
— Satisfeitíssimo!
— Consentiria o senhor em assinar-nos este papel para testemunhar que só tem a louvar-se dos nossos bons e leais serviços?
— Esse papel? — disse Kin-Fo surpreendido à vista de uma folha arrancada ao seu livro de notas, que lhe estendia Craig.
— Este certificado — acrescentou Fry, — talvez nos valha algum elogio do nosso diretor!
— E decerto também uma gratificação suplementar — continuou Craig.
— Aqui estão as minhas costas que poderão servir-lhe de escrivaninha — disse Fry curvando-se.
— E a necessária tinta para que o senhor possa dar-nos essa prova escrita da sua benevolência — tornou Craig.
Kin-Fo pôs-se a rir e assinou.
— E agora — perguntou ele, — para que toda esta cerimônia, neste lugar e a esta hora?
— Neste lugar — respondeu Fry, — porque é nossa intenção não o acompanharmos mais longe!
— A esta hora — acrescentou Craig, — porque dentro de poucos minutos será meia-noite!
— E que lhes importa a hora?
— Senhor! — tornou Craig, — o interesse que lhe atribuía a nossa companhia de seguros...
— ...terminará dentro de alguns instantes — prosseguiu Fry.
— E o senhor poderá matar-se...
— ...ou fazer-se matar...
— ...quando entender!
Kin-Fo olhava sem compreender os dois agentes que lhe falavam no tom mais cordial. Nesse momento a lua surgiu por cima do horizonte, a oriente, lançando até eles o seu primeiro raio.
— A lua! — exclamou Fry.
— E hoje, 30 de junho... — continuou Craig.
— ...ela ergue-se à meia-noite.
— E não tendo a sua apólice sido renovada...
— ...o senhor não é mais cliente da Centenária!
— Boa-noite, senhor Kin-Fo! — disse Craig.
— Senhor Kin-Fo, boa-noite! — disse Fry.
E os dois agentes, virando as cabeças das suas montadas, desapareceram logo deixando o cliente estupefato.
O passo dos camelos que conduziam aqueles dois americanos, talvez um pouco práticos demais, mal acabara de se ouvir quando um grupo de homens, conduzido pelo guia, se atirou a Kin-Fo que debalde tentou defender-se, e a Sun, que em vão tentou fugir.
Momentos depois amo e criado eram arrastados para o rés-do-chão de um dos bastiões abandonados da Grande Muralha, cuja porta foi cuidadosamente fechada sobre eles.








Capítulo XXII
QUE O PRÓPRIO LEITOR PODERIA ESCREVER, TAL É O SEU FIM INESPERADO!

Grande Muralha, — um biombo chinês de quatrocentas léguas de comprimento — construída no terceiro século pelo imperador Tisi-Chi-Huang-Ti, estende-se desde o golfo de Leao-Tong, no qual mergulha os seus dois molhes, até ao Kan-Su, onde se reduz às proporções de um simples muro. É uma sucessão ininterrupta de duplas muralhas, protegidas por baluartes e torres, com cinqüenta pés de altura e vinte de largura, granito na base, tijolos no revestimento superior, que seguem ousadamente o perfil das caprichosas montanhas da fronteira russo-chinesa.
Do lado do Celeste Império a muralha está bastante maltratada. Do lado da Manchúria apresenta-se com um aspecto mais tranqüilizador, e as suas ameias fazem-lhe ainda uma orla magnífica de pedras.
Defensores naquela extensa linha de fortificações, não há; canhões, também não. O russo, o tártaro, o quirguiz do mesmo modo que o filho do Céu, podem passar livremente através das suas portas. O biombo não preserva aquela fronteira setentrional do Império, nem mesmo da fina poeira mongólica que o vento do norte impele por vezes até à sua capital.
Foi sob a poterna de um desses bastiões desertos que Kin-Fo e Sun, após uma desagradável noite passada em cima de palha, tiveram de penetrar na manhã seguinte, escoltados por uma dúzia de homens que não podiam deixar de pertencer à quadrilha de Lao-Shen.
O guia desaparecera, mas Kin-Fo já não tinha ilusões. Não fora o acaso que pusera aquele traidor no seu caminho. O ex-cliente da Centenária havia evidentemente sido esperado por esse miserável. A sua hesitação em aventurar-se para além da Grande Muralha não passava de um ardil para desviar as suspeitas. O patife pertencia sem dúvida ao Tai-ping e procedera sob suas ordens.
E não lhe restaram mais dúvidas depois de ter interrogado um dos homens que parecia dirigir a escolta.
— Estou sendo levado ao acampamento de Lao-Shen, vosso chefe? — perguntou-lhe.
— Chegaremos lá dentro de uma hora — respondeu o homem.
Enfim, a quem viera procurar o discípulo de Wang? Ao mandatário do filósofo! Pois estavam-no levando aonde queria ir! Que fosse de vontade própria ou à força, não era caso para recriminações. Essas eram boas para Sun, cujos dentes batiam e que sentia a cabeça de polirão vacilar-lhe nos ombros.
Kin-Fo, portanto, sempre fleumático, resignava-se com o sucedido e deixava-se conduzir. Ia por fim tentar o resgate da sua carta com Lao-Shen. Era o que desejava, tudo corria bem.
Transposta a Grande Muralha, o pequeno bando seguiu não pela grande estrada da Mongólia mas por abruptos atalhos que enveredavam pela parte montanhosa da província. Caminharam assim durante uma hora, tão depressa quando o permitia o declive do solo. Kin-Fo e Sun, vigiados de perto não poderiam fugir, com o que de resto nem sonhavam.
Passada hora e meia guardas e prisioneiros avistaram na curva de um contraforte um edifício meio arruinado.
Era uma antiga bonzaria erguida num dos cabeços da montanha, curioso monumento da arquitetura budista. Mas naquele lugar perdido da fronteira russo-chinesa, em tão desertas paragens, era lícito perguntar que espécie de fiéis ousariam freqüentar o templo. Era de supor que tivessem de arriscar um tanto a vida, ao aventurar-se naqueles desfiladeiros, ótimos para assaltos e ciladas.
Se o Tai-ping Lao-Shen estabelecera o seu quartel-general naquele ponto acidentado da província, escolhera, devemos concordar, um lugar digno das suas façanhas.
Ora, a uma pergunta de Kin-Fo, o chefe da escolta respondeu que Lao-Shen residia efetivamente nessa bonzaria.
— Desejo falar-lhe sem demora — disse Kin-Fo.
— Imediatamente — respondeu o chefe.
Kin-Fo e Sun, que tinham sido previamente desarmados, foram introduzidos num largo vestíbulo formando o átrio do templo. Estavam ali uns vinte homens armados, muito pitorescos nos seus trajes de salteadores de estrada, e cuja aparência feroz nada tinha de tranqüilizadora.
Kin-Fo atravessou resolutamente a dupla fileira de Tai-pings, mas Sun teve de ser empurrado à viva força pelos ombros.
O vestíbulo abria ao fundo para uma escadaria cavada na grossa muralha e cujos degraus penetravam fundamente no maciço da montanha.
Aquilo indicava a existência de uma cripta sob o edifício principal da bonzaria, e seria muito difícil, para não dizer impossível lá chegar, a quem não possuísse o segredo daquelas sinuosidades subterrâneas.
Depois de ter descido uns trinta degraus, e avançado uma centena de passos, à luz fuliginosa de tochas levadas pelos homens da sua escolta, os dois prisioneiros chegaram ao meio de uma vasta sala meio alumiada pelo mesmo sistema.
Era com efeito uma cripta. Maciços pilares, ornados dessas horrendas cabeças de monstros que constituem a fauna grotesca da mitologia chinesa, sustentavam arcos abatidos cujas nervuras se encontravam no fecho das pesadas abóbadas.
Um surdo murmúrio se fez ouvir naquela sala subterrânea à chegada dos dois prisioneiros.
A sala não estava vazia, antes a enchia uma multidão até às suas mais sombrias profundezas.
Toda a quadrilha dos Tai-pings ali estava reunida para alguma cerimônia suspeita.
Ao fundo da cripta, num largo estrado de pedra, estava de pé um homem de grande estatura. Dir-se-ia o presidente de um tribunal secreto. Três ou quatro companheiros, imóveis junto dele, parecia servirem-lhe de acessores.
O homem fez um gesto e toda a multidão se fendeu imediatamente, abrindo passagem para os dois prisioneiros.
— Lao-Shen! — disse simplesmente o chefe da escolta, apontando o indivíduo que estava de pé.
Kin-Fo deu um passo na sua direção, e sem perda de tempo, como homem que está decidido a acabar, começou:
— Lao-Shen, tens em tuas mãos uma carta que te foi enviada pelo teu antigo companheiro Wang. Tendo-se modificado as razões que a determinaram, venho pedir-te que me devolvas.
Aquelas palavras, pronunciadas num tom firme, o Tai-ping nem sequer voltou a cabeça. Dir-se-ia uma estátua de bronze.
— Que exiges em troca dessa carta? — tornou Kin-Fo. Mas debalde esperou uma resposta.
— Lao-Shen, — insistiu Kin-Fo — dar-te-ei sobre o banqueiro que te convier e na cidade que escolheres, uma ordem que será paga integralmente, sem qualquer perigo para o homem que a mandares receber!
O mesmo silêncio glacial do sombrio Tai-ping, silêncio que não parecia de bom agouro.
Kin-Fo prosseguiu, acentuando as palavras:
— De que importância queres que eu faça essa ordem? Ofereço-te cinco mil taéis.
Nenhuma resposta.
— Dez mil taéis!
Lao-Shen e seus comparsas permaneciam tão mudos como as estátuas daquela estranha bonzaria.
Uma espécie de cólera impaciente se apoderou de Kin-Fo. Suas ofertas bem mereciam uma resposta, fosse qual fosse.
— Não me ouves? — perguntou ele ao Tai-ping. Lao-Shen dignou-se baixar a cabeça dessa vez, indicando que havia compreendido perfeitamente.
— Vinte mil taéis! Trinta mil taéis! — bradou Kin-Fo.
— Ofereço-te o que te pagaria a Centenária no caso de eu morrer. O dobro! O triplo! Fala! Achas suficiente?
Kin-Fo, a quem um tal mutismo enfurecia, aproximou-se daquele grupo taciturno e tornou a perguntar, cruzando os braços:
— A que preço queres então vender-me essa carta?
— A nenhum preço — respondeu por fim o Tai-ping.
— Tu ofendeste Buda desprezando a vida que ele te concedeu, e Buda quer ser vingado. Só diante da morte conhecerás quanto valia esse favor de estar no mundo, favor que por tanto tempo desconheceste!
Dito isso, e num tom que não admitia réplica, Lao-Shen fez um gesto. Kin-Fo, agarrado antes de poder tentar defender-se, foi ligado e arrastado. Poucos minutos depois estava metido numa espécie de gaiola que podia servir de cadeirinha e hermèticamente fechada.
Sun, o desventurado Sun, apesar dos seus gritos e das suas súplicas, teve de sofrer o mesmo tratamento.
— É a morte — disse consigo Kin-Fo. — Pois seja! Aquele que desprezou a vida, merece morrer!
Contudo essa morte, que lhe parecia inevitável, estava menos próxima do que ele supunha. Mas para que horríveis suplícios o reservaria o cruel Tai-ping, não o podia imaginar.
Passaram duas horas. Kin-Fo, naquela gaiola onde o tinham encerrado, teve a impressão de ser erguido e em seguida transportado para um veículo qualquer. Os solavancos da estrada, o ruído dos cavalos, o entrechocar das armas da sua escolta não lhe deixaram dúvida alguma. Levaram-no para Longe. Mas para onde? Em vão tentaria sabê-lo.
Sete a oito horas após o rapto Kin-Fo sentiu que a cadeirinha parava, que homens erguiam a braços a caixa onde estava encerrado, e em breve um balanço mais suave sucedeu aos solavancos de um, caminho terrestre.
— Estarei em algum navio? — pensou ele.
Movimentos característicos de um deslocar de navio e um estremecimento de hélice o confirmaram na idéia em que estava.
— A morte nas vagas! — pensou. — Que seja! Poupam-me assim a torturas piores! Obrigado, Lao-Shen!
Todavia, duas vezes vinte e quatro horas decorreram ainda. Duas vezes por dia algum alimento era introduzido na gaiola através de um postigo de correr, sem que o prisioneiro pudesse ver a mão que o trazia, ou qualquer resposta fosse dada às suas perguntas.
Ah! Kin-Fo, antes de deixar essa vida que o céu lhe tornava tão bela, buscara emoções! Não quisera que o seu coração deixasse de bater, sem ter palpitado ao menos uma vez! Pois bem! Tinham sido satisfeitos os seus desejos, e mais ainda do que ousara desejar!
Contudo, embora fazendo o sacrifício da vida, Kin-Fo desejava morrer em plena luz. A idéia de que aquela gaiola seria de um momento para outro atirada às águas, era-lhe insuportável. Morrer sem ver o dia ao menos uma vez, nem a pobre Lé-u cuja saudade vivamente o penetrava, era demais.
Enfim, após um lapso de tempo que não pôde avaliar, pareceu-lhe que a viagem findara de repente. Cessaram as trepidações da hélice, o navio que transportava a sua prisão detivera-se. Kin-Fo sentiu que sua gaiola era outra vez erguida.
Dessa vez chegara com certeza o momento supremo, só restava ao condenado pedir perdão dos erros da sua vida.
Decorreram alguns minutos — anos, séculos!
Com grande surpresa Kin-Fo principiou por constatar que a caixa repousava de novo em terreno sólido.
De repente a sua prisão abriu-se, outros braços o seguraram e uma larga venda lhe foi imediatamente aplicada aos olhos; bruscamente sentiu-se puxado para fora. Fortemente agarrado, Kin-Fo teve de dar alguns passos. Em seguida os guardas compeliram-no a parar.
— Se devo enfim morrer — exclamou ele, — não vos peço que me deixeis uma vida que não soube utilizar, mas concedei-me ao menos acabar à luz do dia, como quem não teme encarar a morte!
— Assim seja! — disse uma voz grave. — Faça-se como deseja o condenado!
E subitamente foi arrancada a venda que lhe cobria os olhos.
Kin-Fo lançou em torno de si um olhar ansioso...
Seria o joguete de um sonho? Ali estava uma mesa suntuosamente posta, e sentados a ela cinco convidados sorridentes pareciam esperar para dar início ao banquete. Dois lugares desocupados pareciam aguardar dois últimos convivas.
— Vós! Vós! Meus amigos, meus queridos amigos! Sereis realmente vós? — exclamou Kin-Fo num tom impossível de traduzir.
Mas não, não se enganava! Era Wang, o filósofo! Eram Yin-Pang, Hual, Pao-Shen e Tim, os seus amigos de Cantão, esses mesmos com quem estivera dois meses antes no barco florido do rio das Pérolas, seus companheiros da juventude, testemunhas da sua despedida da vida de solteiro!
Kin-Fo não podia acreditar no que via. Estava em sua casa, na sala de jantar do seu yamen de Shangai!
— Se és tu mesmo, — gritava ele dirigindo-se a Wang se não é a tua sombra, fala-me!
— Sou eu mesmo, amigo — respondeu o filósofo. — perdoarás ao teu velho mestre a última e um tanto rude lição de filosofia que ele entendeu dar-te?
— O quê? — exclamou Kin-Fo. — Foste então tu, Wang?
— Fui eu — respondeu Wang, — eu que me encarreguei da missão de te arrancar a vida, para que mais ninguém tomasse esse encargo! Eu que soube, mesmo antes de ti, que não estavas arruinado, e que chegaria o momento em que já não quisesses morrer! Meu velho companheiro Lao-Shen, que acaba de submeter-se e será de ora avante o mais firme sustentácuio do império, quis ajudar-me a fazer-te compreender, colocando-te em presença da morte, quanto vale a vida! Se te abandonei em meio a terríveis angústias, e o que é pior, te obriguei a correr, embora o meu coração sangrasse, além do que era humano fazê-lo, foi na convicção de que estavas correndo atrás da felicidade e havias finalmente de alcançá-la no caminho!
Kin-Fo estava nos braços de Wang, que o apertava fortemente ao coração.
— Meu pobre Wang — disse Kin-Fo emocionado, — se ao menos eu tivesse corrido sozinho! Mas que mal te causei! Quanto tiveste também de correr, e que banho te forcei a tomar na ponte de Palikao!
— Ah! Com efeito — respondeu Wang rindo, — esse banho fêz-me recear bastante pelos meus cinqüenta anos e pela minha filosofia! Eu tinha muito calor e a água estava muito fria! Mas, que diabo! Sempre me desembaracei! É pelos outros que se corre e nada melhor!
— Pelos outros! — repetiu Kin-Fo num tom grave. — Sim, é pelos outros que devemos saber fazer tudo! Nisso reside o segredo da felicidade!
Sun vinha entrando agora, pálido como um homem a quem o enjôo torturara durante quarenta e oito horas mortais. Do mesmo modo que o amo, o infeliz criado tivera de refazer toda a travessia de Fu-Ning a Shangai, e em que condições! Bem se podia avaliar pela sua aparência!
Kin-Fo, tendo-se arrancado aos braços de Wang, apertava as mãos dos amigos.
— Decididamente, prefiro isto! — disse ele. — Até hoje tenho sido um louco!...
— E podes tornar-te um sábio! — respondeu o filósofo.
— Hei de tentá-lo — concordou Kin-Fo, — e começarei por pôr ordem nos meus negócios. Correu pelo mundo um pequeno papel que foi para mim causa de grandes atribulações e de que não posso portanto esquecer-me. Que é feito dessa maldita carta que te entreguei, caro Wang? Saiu realmente das tuas mãos? Não me aborreceria nada tornar a vê-la, porque, enfim, pode tornar-se a perder! Se Lao-Shen ainda a conserva, não pode atribuir mais nenhuma importância a esse pedaço de papel, e seria desagradável que ele viesse a cair em outras mãos... pouco delicadas!
Ouvindo isto, todos largaram a rir.
— Amigos, — disse Wang — Kin-Fo com as suas desventuras, aprendeu definitivamente a ser um homem de ordem! Já não é o nosso indiferente de outrora! Pensa como homem prudente!
— Nada disso me devolve a minha carta — insistiu Kin-Fo, — essa minha absurda carta! Confesso sem constrangimento que não ficarei tranqüilo enquanto a não tiver queimado, e não lhe vir as cinzas dispersas a todos os ventos!
— Seriamente, dás mesmo grande importância a essa carta? — perguntou Wang?
— Sem dúvida — respondeu Kin-Fo. — Terás a crueldade de querer conservá-la como garantia contra algum novo acesso de loucura minha?
— Não.
— E então?
— Então, meu caro discípulo, contra o teu desejo há apenas uma objeção, que desgraçadamente não depende de mim. Nem Lao-Shen, nem eu temos mais a tua carta.
— Não a têm mais?
— Não.
— Destruíram-na?
— Não, infelizmente não!
— Cometeste acaso a imprudência de a confiar ainda a outras mãos?
— É verdade!
— Mas a quem? A quem? — disse vivamente Kin-Fo, cuja paciência se esgotara. — Sim, a quem?
— A alguém que a conserva e só a ti a quer entregar.
Nesse momento a encantadora Lé-u, que estava oculta atrás de um biombo e nada perdera dessa cena, apareceu trazendo a famosa carta na ponta dos finos dedos e agitando-a em sinal de desafio.
Kin-Fo abriu-lhe os braços.
— Ainda não! Mais um pouquinho de paciência, por favor! — disse a gentil mulher, fingindo retirar-se outra vez para trás do biombo. — Antes de tudo os negócios, meu sábio marido!
E aproximando-lhe a carta dos olhos:
— Meu irmãozinho mais novo reconhece a sua obra?
— Se reconheço! — exclamou Kin-Fo. — Quem, a não ser eu, poderia escrever uma carta tão estúpida?
— Muito bem! Então, primeiro que tudo — prosseguiu Lé-u, — e tal como há pouco testemunhou o mais legítimo desejo, rasgue, queime, destrua esta carta imprudente! Que nada mais reste do Kin-Fo que a escreveu!
— Seja, — disse Kin-Fo aproximando de uma chama o ligeiro papel, — mas agora, meu coraçãozinho querido, permite ao teu esposo beijar ternamente a sua mulher e suplicar-lhe que presida este bem-aventurado banquete. Sinto-me com disposição de lhe fazer grandes honras!
— E nós também — exclamaram os cinco convivas. — Não há senão a alegria para abrir o apetite!
Alguns dias depois, tendo sido levantada a interdição imperial, foi realizado o casamento.
Os dois esposos amavam-se! Amar-se-iam sempre! Mil e dez mil felicidades os esperavam na vida!
É preciso ir à China para ver isto!



FIM
1 Esta obra, começada em 1773, deve compreender cento e sessenta mil volumes, mas só estão ainda publicados setenta e oito mil setecentos e trinta e oito.
2 A fama dos grandes mestres transmitiu-se até nós por meio de tradições que, nem por serem anedóticas, merecem menos atenção. Conta-se, por exemplo, que no século terceiro o pintor Tsao-Puh-Ying tendo acabado um leque para o Imperador, divertiu-se a pintar-lhe em cima algumas moscas, e teve a satisfação de ver Sua Majestade tirar o lenço para as enxotar. Não menos célebre era Huan-Tse-Nen, que floresceu no ano mil. Encarregado das pinturas murais de uma das salas do palácio, decorou-as com muitos faisões. Chegaram então uns enviados estrangeiros com falcões de presente para o Imperador; introduzidos na sala, logo que as aves de rapina avistaram os faisões pintados na parede. Atiraram-se a eles com mais dano das suas cabeças do que satisfação dos seus instintos vorazes.
3 As duas fênix constituem o emblema do casamento no Celeste Império.
4 Todo o chinês que alcança oitenta anos tem o direito de usar uma túnica amarela. O amarelo é a cor da família imperial, o que constitui uma homenagem prestada à velhice.
5 Significado da palavra Tai-ping.
6 Na China meridional, os rios e ribeiras são indicados pela terminação "Kiang"; na China setentrional, pela terminação "Ro".
7 Leon Rousset.
8 Quatro léguas.
9 O senhor T. Choutzé, na sua viagem intitulada "Pequim e o norte da China" refere o seguinte fato a propósito do príncipe Kong, detalhe que é bom recordar: Era em 1870, durante a sangrenta guerra que devastava a França; o príncipe Kong estava visitando, não sei a que propósito, todos os representantes diplomáticos estrangeiros, e foi pela legação da França, a primeira que se achava em seu caminho, que começou esse giro. Acabava de ser conhecida a derrota de Sedan, e o senhor conde de Rochechouart, então encarregado dos negócios de França, teve oportunidade de a comunicar ao príncipe.
Este mandou chamar um dos oficiais do seu séquito:
— Enviai uma carta à legação da Prússia, dizendo que eu não posso passar por lá senão amanhã.
Em seguida, voltando-se para o conde de Rochechouart, acrescentou:
— No mesmo dia em que apresento condolências ao representante da França, não posso decentemente ir levar felicitações ao representante da Alemanha!
O príncipe Kong seria príncipe em toda a parte.
10 Quarenta léguas.
11 As tempestades girantes chamam-se "tornados" na costa O. da África, e "tufão" nos mares da China. Seu nome científico é "ciclones".
12 O sr. Seyferth e o sr. Silas, arquivistas da embaixada de França em Viena, são os inventores desta bóia de salvamento, usada em todos os navios de guerra.
13 Mais ou menos doze léguas.
A CONDESSA CEGA E A MÁQUINA DE


ESCREVER
CAREY WALLACE


UMA HISTÓRIA DA ITÁLIA DO SÉCULO XIX

Carolina não ouvia música desde que ficara cega, e o efeito era
surpreendente. Sua pele se arrepiava com os violinos. O coração
parecia bater no compasso do violoncelo e os instrumentos de sopro
a deixavam sem fôlego. Esquecendo-se de si mesma, ela cerrou os
olhos. Em sua mente, a colina sumiu de baixo de seus pés e os
músicos, as paredes da capela e os dançarinos imaginários, todos se
alçaram delicadamente para o céu negro, como se suspensos sobre
vidro nas alturas. Seria um sonho, ela se perguntou, ou alguma
outra coisa?

***
A jovem condessa Carolina Fantoni está ficando cega. Ninguém
acredita nela, no entanto: nem seus pais, tampouco seu noivo -o
solteiro mais cobiçado da cidade. O único que lhe dá ouvidos é seu
vizinho, Turri, o excêntrico inventor local.
Enquanto a escuridão pouco a pouco apaga o mundo a sua volta,
Carolina descobre um lugar no qual ainda consegue enxergar: os
sonhos. Sonhando, ela é capaz não só de ver como também de voar
e explorar novos mundos.
Quando está acordada, a perda da visão faz com que Carolina tenha
uma vida solitária. Até mesmo o ato de escrever cartas, com tinta e
caneta, se prova impossível. É quando Turri lhe dá de presente uma
engenhosa invenção: uma máquina de escrever, a primeira de que
se tem notícia no mundo inteiro, e que ela usará para se comunicar


com quem quiser, principalmente com ele. Este presente fomenta
uma história de amor apaixonada que irá marcar a vida dos dois.
Com base na história real da mulher que inspirou a invenção da
máquina de escrever, Carey Wallace tece um conto de fadas
atemporal que celebra a imaginação, a superação dos limites e o
amor, que é a maior das invenções.

***
CAREY WALLACE cresceu em uma cidade pequena em Michigan.
Trabalhou como garçonete, biógrafa e também como criada de uma
herdeira do ramo automotivo. Fundadora do Hillbilly The
Underground -um refúgio que atrai artistas internacionais para a
zona rural de Michigan -,vive em Brooklyn, Nova York. A condessa
cega e a máquina de escrever é o seu primeiro romance.

Carey Wallace

A CONDESSA CEGA E


A MÁQUINA DE ESCREVER


Uma história da Itália do século XIX

Tradução de Geni Hirata

À minha mãe:
Sua viagem á Itália



No dia em que a contessa Carolina Fantoni se casou, apenas uma
única pessoa sabia que ela estava ficando cega, e não era seu noivo.
E não foi por falta de aviso.
-Estou ficando cega -ela revelara subitamente à mãe, na oportuna
penumbra da carruagem da família, os olhos ainda brilhantes de
lágrimas do cáustico sol de inverno. Por esta época, ela já perdera a
visão periférica. Carolina pôde sentir a mãe segurar sua mão, mas
teve que se virar para ver o seu rosto. Ao fazê-lo, a mãe beijou-a, os
próprios olhos cheios de compaixão.
-Eu também já estive apaixonada -ela disse, desviando o olhar.

***

-Papai -Carolina dissera.
Seu pai pousou a lente de aumento sobre o mapa desenrolado à sua
frente. Um tristonho monstro marinho assomou por baixo da lente.
Embora estivessem no meio do dia, a cegueira velava as estantes
que se erguiam atrás de seu pai em uma falsa obscuridade. Somente
a ampla janela acima da cabeça dele e a própria escrivaninha ainda
podiam ser vistas com clareza.
-Vovó estava cega quando morreu -comentou Carolina. Seu pai
balançou a cabeça.
-E por muitos anos antes disso -ele disse. -Mas eu não acreditava
inteiramente nisso. Era como se ela tivesse outro par de olhos
escondido em uma caixa. Ela sabia de tudo.
-Ela alguma vez lhe contou como isso aconteceu? -perguntou
Carolina.
Seu pai meneou a cabeça.
-Eu era muito novo na época.
-Acho que talvez eu esteja ficando cega -disse-lhe Carolina.
Seu pai franziu a testa. Após considerar a informação por um
instante, abanou a mão diante do rosto. Quando os olhos dela
seguiram seu movimento, ele exibiu um amplo sorriso.
-Ah, mas ainda não ficou!



***


Ela contara a Pietro no jardim, quando a mãe os deixou a sós por
alguns instantes sob um céu cheio de estrelas, que Carolina podia
extinguir ou trazer de volta à existência com um simples
movimento da cabeça. Pietro rira sem parar.
-O que você vai me dizer em seguida? -ele lhe perguntara, entre
um beijo e outro. -Imagino que também pode voar, não? E se
transformar num gato?


-Há coisas que já não consigo ver -ela insistiu. -Nas bordas da
visão.
-Agora você vai me dizer que se esqueceu de como beijar -Pietro
disse, beijando-a outra vez.


***
Naqueles primeiros dias, Carolina media suas perdas pelo tamanho
de seu lago. Seu pai represara um trecho do pequeno rio que
serpeava pela propriedade como um presente para sua mãe no
quinto aniversário de casamento. Porém, amador nessas coisas, ele
conseguira apenas dragar desajeitadamente o pântano ao redor. A
massa de água resultante, de trinta passos de comprimento e
metade disso de largura, em nenhum ponto era suficientemente
funda para uma pessoa ficar de pé inteiramente submersa. Sua
jovem esposa, ainda saudosa do mar, andara lealmente pelo terreno
encharcado com ele no dia de seu quinto aniversário de casamento,
mas jamais retornara ali voluntariamente. Assim, quando Carolina
fez sete anos, seu pai espalhou bancos de pedra pelos gramados das
margens, encheu a superfície do lago de barcos iluminados com
lanternas e transformou-o em um novo presente para a filha.
Desta vez, foi recebido com gratidão, com uma apreciação que se
manifestava, no começo, como tirania: Carolina já desenvolvera
uma paixão pela solidão e, desde o dia de seu aniversário de sete
anos, exigiu permissão para visitar o lago, a oitocentos metros da
casa, através de pinheiros cobertos de trepadeiras, inteiramente


desacompanhada. Afinal, argumentou, o que mais poderia


significar ser dono de alguma coisa?
Completamente vencido por esse raciocínio, o pai concordou,
apesar dos receios da mãe que, após longos anos de descaso,
haviam finalmente caído por terra e começado a emergir novamente
como insónia, esquecimento e temores realmente terríveis.
Daí em diante, tornou-se um hábito diário de Carolina caminhar até


o lago, às vezes prateado com a chuva, às vezes negro, às vezes
cinzento, às vezes gelo sólido, transparente ou leitoso, dependendo
da rapidez com que o congelamento se dava. Quando tinha dez
anos, a chegada do inverno havia sido tanto rápida quanto brutal,
de modo que o lago conservou uma limpidez estranha que permitia
a Carolina ver até o fundo em determinados trechos, revelando os
mistérios de sua propriedade aquífera: os galhos afundados, as
ervas verdes, os redutos dos peixes, em forma de tigelas vazias, e o
canal mais profundo do leito original do rio represado. Com uma
vassoura emprestada da criada da cozinha para afastar a neve,
Carolina passava horas em sua inspeção, o rosto vermelho e os
lábios azuis quando chegava para o jantar naquele inverno.
Naquela primavera, sua mãe insistiu com seu pai para que
construísse alguma espécie de abrigo na margem, e ele ergueu uma
cabana de um único cômodo, de madeira sem pintura, tingida de
vermelho, a alguns passos da água. A luz penetrava na cabana
através das vidraças das janelas instaladas nas quatro paredes. Uma
coleção de tapetes gastos cobria o assoalho, a mobília era escassa:
um velho sofá recoberto com colchas de retalhos de veludo, uma
escrivaninha e uma cadeira. O cômodo era pequeno. Parado no
centro dele, com os braços estendidos, o pai de Carolina quase
podia tocar as duas paredes. Uma lareira aberta ao pé de uma fina
chaminé e protegida por uma tela ornamentada com sereias de
bronze, outro presente bem-intencionado, mas malsucedido, de seu

pai para sua mãe, que considerava todo lembrete do mar não um
conforto, mas um motivo de pesar.
Depois que a cabana foi construída, a casa grande perdeu
inteiramente o interesse para Carolina. Ela passava mais noites do
que restava de sua infância no sofá da cabana do que na própria
cama, enterrada como um rato do mato de olhos negros em pilhas
de veludo grosso, ou nua no calor do sol de verão deixado como
recordação depois do anoitecer. Nas noites quentes, ela escancarava
as janelas e pregava xales finos sobre elas para barrar os insetos. Do
lado de fora, as rãs e os pássaros cantavam suas bazófias,
esperanças e ameaças.
Por ter conhecido o lago pela primeira vez com os olhos de uma
criança, Carolina acreditou por algum tempo que o fato de já não
poder abarcar o lago inteiro com um único olhar fosse apenas mais
uma das muitas peças que seu corpo lhe pregara na misteriosa
operação de transformá-la em uma moça. A igreja, a distância até a
cidade e a grandiosa extensão antes infinita do salão de baile, tudo
havia encolhido conforme ela crescia. Por que haveria de ser
diferente com o lago?
Mas pouco depois de ter completado dezoito anos, mais ou menos
na época em que ela e Pietro ficaram noivos, o problema com o foco
nas bordas do seu campo de visão aumentou significativamente. Ela
já não conseguia reconhecer figuras em uma dança enquanto não se
voltasse diretamente para elas. Ao mesmo tempo, sua vista sofreu
uma contração, como se algum espírito invisível tivesse colocado as
mãos em concha de cada lado de sua cabeça, bloqueando sua visão
à direita e à esquerda. O resto se perdia na escuridão.

***

Turri, é claro, compreendeu imediatamente. Ele ergueu as mãos nos
dois lados do próprio rosto.
-Assim? -ele perguntou.
Carolina balançou a cabeça afirmativamente.



Por um instante, seus olhos azuis arregalaram-se de preocupação.
Então, mudaram. Ele continuou olhando diretamente para ela, mas

o foco de seu olhar estava em algo muito além dela, sua mente
percorrendo os livros de uma biblioteca invisível. Carolina
detestava aquela expressão: às vezes, passava em um instante, mas
geralmente significava que ela o perdera para seus pensamentos
pelo resto da tarde.
Por agora, entretanto, ele ainda reunia provas.
-Há quanto tempo? -ele quis saber.
-Meio ano -ela respondeu. -Desde antes do Natal. Além da seda
pregada nas janelas da casa do lago, um
pássaro de verão entoou algumas notas, em seguida recaiu em
silêncio.
-Já li sobre isto -comentou Turri. -A cegueira pode vir dos cantos
ou do centro.
-Do centro? -repetiu Carolina.
-Como um eclipse, no centro de sua visão. Mas é permanente. E a
escuridão se expande a partir daí.
-Mas no meu caso está vindo de fora -declarou ela.
-E o outro tipo.
Lágrimas assomaram aos olhos de Carolina. Ela deixou que
turvassem sua vista, grata por uma cegueira que podia limpar com
um movimento do pulso. Quando as lágrimas passaram, Turri
permaneceu sentado, fitando-a, como se ela fosse um novo
problema de matemática.
-Quanto tempo? -ela perguntou.
-Tenho certeza de que varia em cada caso. Quando ela não desviou
os olhos, ele abaixou os seus.
-Posso descobrir -disse Turri.
-Obrigada.
-Já contou a Pietro? -ele perguntou. Ela balançou a cabeça,
confirmando.



Turri analisou-a por mais um instante, em seguida deu uma risada
curta.
-Mas ele não sabe.
Ela meneou a cabeça, indicando que não. Turri tomou sua mão.
Desta vez, ela permitiu.


***

Carolina e Turri encontraram-se pela primeira vez quando ela era
uma menina de seis anos e ele tinha dezesseis. Sua mãe decidira
naquela primavera que Carolina já tinha idade suficiente para
comparecer ao baile da floração dos limoeiros de seu pai, que ele
realizava todos os anos quando seus arvoredos de folhas enceradas
explodiam em flores, para assinalar sua gratidão ao novo sol da
primavera, aos santos ou a quaisquer deuses que ainda pudessem
estar à espreita nas velhas colinas. Carolina tivera permissão de
escolher o tecido de seu próprio vestido: um brocado azul da cor do
ovo de um pintarroxo, enfeitado com renda branca da exótica e
inconcebivelmente distante Suíça. Ela passou uma dúzia de tardes
no ateliê da costureira, onde o ar era denso de partículas cintilantes
de poeira e do aroma de lírios e flores de manjericão que vinha do
aposento ao lado, onde as criadas arrumavam as flores que haviam
colhido no quintal. Enquanto Carolina observava, a velha e paciente
senhora cortou o tecido para o corpete e para a pequena saia em
forma de sino, depois alinhavou tudo, trazendo à vida o traje em
miniatura, a agulha em seus dedos tortuosos passando a linha pelas
dobras do tecido com tal rapidez que Carolina às vezes a perdia de
vista.
Quando o vestido ficou pronto, três dias antes da festa, Carolina
teve medo de morrer de alegria. A velha senhora pendurou-o em
seu armário, onde ele brilhava ao sol da manhã como um pedaço do
céu. Durante aquelas três noites, Carolina só conseguiu dormir
espasmodicamente. Frequentemente, deslizava da cama para se
certificar, pelo tato, de que o vestido ainda estava lá e que ela não


estava sendo enganada pelos seus sonhos, como tantas vezes
acontecia. Embora tivesse permanecido de pé por muitas horas sem
se queixar, enquanto o vestido era medido e ajustado, ela recusou-se
a experimentá-lo depois de terminado, em parte guardando a
ocasião como guardaria uma bala no bolso até o final do dia e em
parte aterrorizada com a desconhecida, mas sem dúvida profunda
mudança que se passaria com ela no instante em que o vestisse.
No entanto, apenas uma hora depois de iniciada a festa, ela se viu
imprensada contra a parede no salão de baile dos pais, esquecida. O
ar estava sufocante e enjoativo com o cheiro de milhares de flores de
limoeiro, ramos que os empregados do pai haviam podado naquele
dia para manter as velhas árvores saudáveis e forçá-las a produzir
mais frutos. Bem acima de sua cabeça, os amigos de seus pais
cacarejavam como galinhas, entre cumprimentos e mexericos.
Alguns, quando entraram, seguraram sua mão e observaram o
quanto ela estava bonita. Alguns chegaram até a ousar dar uns
tapinhas de afago em sua cabeça. Mas agora ela estava perdida no
meio de um mar pouco amistoso de saias e pernas sussurrantes.
Então, um par de pernas parou bem diante dela.
Carolina atirou a cabeça para trás.
Um garoto alto, de cabelos castanho-claros e olhos azuis luminosos,
examinou-a de cima a baixo por um instante. Então, para seu
assombro, sentou-se ao lado dela no assoalho de parque
extremamente lustrado sem tomar nenhum cuidado para proteger
suas elegantes calças pretas. Com ele sentado e ela de pé, seus
rostos ficaram aproximadamente no mesmo nível. O rapaz não lhe
dirigiu a palavra.
Carolina esforçou-se para pensar rápido.


-Está cansado de dançar? -perguntou-lhe após um instante.
-Não sou tão bom em dançar para ter me cansado -respondeu o
rapaz.



Seus modos pareciam suficientemente sinceros para satisfazer
Carolina, e a lógica do que ele dissera lhe agradou, apesar do fato
de achar sua compreensão difícil. Ela balançou a cabeça com ar
grave.
O rapaz olhou para a multidão girando vertiginosamente.
-O que acha desta festa? -perguntou ele.
Por um instante, Carolina vasculhou a mente em busca de uma
mentira expressiva, mas sua empolgação com a verdade logo a
dominou.
-Este é meu primeiro baile -confessou, observando-o atentamente
para ver a reação que um fato de tal peso exigia.
Não ficou decepcionada. Os olhos do jovem arregalaram-se. Ele
balançou a cabeça devagar, captando o significado de sua
declaração, como se ela, como suspeitava, mudasse tudo.
Então, um movimento na multidão chamou a atenção do rapaz.
Carolina seguiu a direção de seu olhar para cima, até o rosto de uma
jovem decidida, em um vestido lilás, abrindo caminho entre um
amontoado de convidados a alguns passos de distância de onde
estavam. Ela procurava alguma coisa. Isso não pareceu nada de
extraordinário para Carolina, mas assustou o rapaz. Ele encolheu-se
contra a parede. Como a parede atrás dele não cedeu, olhou para
Carolina em busca de ajuda. As sobrancelhas de Carolina uniram-se
enquanto ela devolvia o olhar, tentando compreender qual era o
problema dele, para que pudesse saber o que lhe oferecer.
Então, o rapaz pareceu recobrar o bom-senso. Desajeitadamente, ele
se levantou.
Carolina inclinou a cabeça para vê-lo em toda a sua altura.
Ele fez uma elegante reverência.
-Você está linda esta noite -disse a ela. -Como se tivesse acabado
de cair do céu. -Levantou sua pequena mão, inclinou-se para beijála
e desapareceu na multidão.
Carolina observou-o se afastar. A seguir, disparou pelo meio de
uma pequena floresta de pernas de calças envolta numa nuvem de


aromática fumaça de charuto e foi serpeando pela multidão junto ao
bufê de bolos e doces. Logo depois destes, a enorme tigela de cristal
de sua mãe presidia a cabeceira da mesa, cheia de limonada ácida.
Um punhado de fatias amarelas girava preguiçosamente em sua
superfície. Ali, ela avistou o jovem outra vez. A garota de vestido
lilás conduzia-o pela mão para a pista de dança.
Esquecendo seu vestido por um instante, Carolina agachou-se por
baixo das pesadas dobras de tecido da toalha que cobria a mesa.
Emergiu ao lado de Renato, um antigo criado com um nariz
parecendo um pedaço de marzipã derretido, que -ela também
descobrira recentemente -possuía o dom de trançar punhados de
trevos em coroas de flores.
-Renato -ela perguntou, apontando -, quem é aquele que está
sendo puxado como um cão malcriado?


Renato seguiu a linha de seu dedo fino. Então, riu com a leve
exasperação que os adultos geralmente reservam para uma criança
de quem não se pode esperar que saiba das coisas.
-E o jovem Turri -ele lhe disse.


***

A pequena barragem que seu pai havia construído para represar o
rio original ficava no outro extremo do lago de Carolina. Logo
depois da represa, o rio tornava-se um córrego límpido e pedregoso
que mergulhava na floresta e corria para as terras de Turri,
emergindo para se tornar a fita cintilante ao pé do quintal dos Turri.
A residência deles propriamente dita ficava fora de vista, do outro
lado da próxima colina, de frente para a mesma estrada de terra
dourada da casa do pai dela.
Isso fazia de Turri um dos vizinhos mais próximos de Carolina, e,
depois de seu primeiro encontro, ela às vezes o reconhecia na
estrada quando ele passava em frente à sua casa. Fora o lago, seu
lugar favorito era uma janela em forma de nicho no segundo andar
da casa de seu pai, de onde podia observar atentamente o tráfego da


vizinhança. Toda figura que passava pela estrada tinha um papel
em um complicado drama em andamento, que ela construía a partir
de quaisquer detalhes que conseguisse colher a respeito daquela
pessoa em determinado dia. Turri era um personagem preferido
nessas cenas dramáticas. Em absoluto contraste com o interminável
desfile de plácidas velhinhas carregando suas invariáveis cestas de
limões e ovos, ele observava as nuvens e tropeçava nas pedras. Ele
perseguia coisas voadoras com seu chapéu. Ele dava paradas
bruscas por nenhum motivo aparente. Além disso, invariavelmente
tinha consigo vários acessórios de palco para compor a cena: um par
de camundongos marrons em uma gaiola de arame; uma vela
grossa que soltava fagulhas e vapor, mas não se apagava na chuva;
um cesto de penas que o vento alcançou e espalhou no momento em
que ele desaparecia por cima de uma elevação, produzindo o efeito
de que algum encantamento o havia transformado em plumas
esvoaçantes.
Mas eles não conversaram outra vez até Carolina ter dez anos,
quando ela o descobriu parado sob o sol forte à margem dessa
mesma estrada, olhando fixamente para o que parecia ser um
amontoado de vestidos e gravetos, enfeitado aqui e ali por pedaços
do mesmo cordão que ela vira o jardineiro usar para amarrar os
galhos folhosos dos pés de ervilhas.
Naquele dia, Carolina estivera empenhada em suas próprias
explorações. Recentemente, havia percebido que a maior parte do
que os adultos lhe diziam sobre o mundo não era verdade. Sua mãe
raramente estava cansada, como alegava: apenas preferia passar os
dias em seus próprios aposentos a falar com Carolina ou com seu
pai. Esse fato levou Carolina a começar a testar outras alegações. Ela
deslanchou todo um fluxo de imprecações já ouvidas em uma
bancada de narcisos imprestáveis e descobriu que sua língua, na
verdade, não ficara preta. Ela dormiu com uma moeda que o pai lhe
dera embaixo do travesseiro por uma semana, em seguida levou-a
cuidadosamente até o lago e atirou-a na água, mas um barco em


forma de cisne não emergiu dos círculos concêntricos que se
espalharam pelas águas escuras, como o pedido que ela fizera.
Em consequência, Carolina resolvera testar os limites imediatos dos
arredores. Ela sabia que a estrada seguia por cima da colina até a
vila dos Turri, pela qual já passara centenas de vezes. Mas na
direção oposta a estrada bifurcava. Um caminho levava ao vilarejo
que às vezes visitava com a mãe para comprar livros ou tecido. O
outro penetrava na floresta do pai, mas a carruagem da família
nunca entrara por ali, na lembrança de Carolina. Da janela da
carruagem, ela pôde apenas vislumbrar as copas roçando uma
vereda sombria. Então, o caminho misterioso fazia uma curva
abrupta e desaparecia na floresta.
-Para onde vai? -Carolina perguntara havia algumas semanas,
afastando as grossas cortinas da carruagem.
-Para lugar nenhum, querida -sua mãe lhe dissera. -Pode ter
levado ao rio, um dia. Mas não há nada lá agora.
Essa resposta apenas atiçou as suspeitas de Carolina. Sua mãe
também lhe dissera que não havia nada no velho barracão do
jardineiro, mas, depois de uma investigação, Carolina descobrira
que o lugar estava abarrotado de tesouros: vasos cheios de vidro
colorido, pacotes de papel pardo decorados com desenhos de flores
e vegetais, aniagem suficiente para fazer um vestido de casamento,
além de teias de aranhas tão grandes que poderiam prender uma
criança.
Decidida a ver por si mesma aonde o caminho levava, Carolina
atravessou resolutamente o terreno gramado do pai e encetou com
passos firmes sua expedição para dentro da floresta que ocupava
aquela parte da propriedade, usando um sistema que havia
desenvolvido para não caminhar em círculos nos bosques, uma
sina, ela sabia, que acometia com frequência os viajantes menos
espertos. Muito simplesmente, ela ia de árvore em árvore, sempre
escolhendo uma ligeiramente para leste, que era por onde ela
julgava que a estrada devia passar. No entanto, apesar de seu novo


sistema e algum autocontrole admirável em resistir aos apelos de
inúmeras flores intrigantes que acenavam de fora de seu trajeto
escolhido, ela emergiu dos arbustos ainda com o seu próprio portão
à vista.
Sua decepção foi interrompida quase imediatamente pela visão de
Turri e sua máquina.
-O que ela faz? -gritou, escolhendo o caminho através dos talos de
mudas de árvores que haviam corajosamente fincado raízes na
grama ressecada entre a estrada e a floresta.
Turri ergueu os olhos para ela por um instante e depois retomou a
observação dos destroços.
-É uma armadilha para anjos -ele disse.
Antes que Carolina pudesse decidir se aquilo era uma piada, uma
mentira ou alguma nova categoria, a pilha de seda e gravetos
irrompeu em chamas.
Por um longo instante, um fogo azul-claro e dourado varreu as
dobras delicadas do tecido, acariciando-o sem consumi-lo. Em
seguida, os gravetos começaram a estalar e o emaranhado
contorceu-se e queimou.
Carolina saltou em cima da pilha, batendo os pés furiosamente.
Após apenas alguns passos de sua estranha dança, o fogo foi
extinto. Ela ficou parada sobre as ruínas da máquina, o fantasma do
fogo erguendo-se como uma leve fumaça ao redor de seus joelhos
nus, e olhou para Turri.
Ele devolveu o olhar com o interesse repentino e aguçado de um
cientista cujo espécime foi suficientemente insensato para revelar
alguma característica extraordinária: um pássaro repetindo o nome
que ele balbuciara durante o sono, um camundongo esforçando-se
para se levantar sobre duas patas, um peixe que se ilumina quando

o sol penetra no mar.
Perturbada com aquele olhar, Carolina saiu de cima dos destroços.
-Espero não ter quebrado nada -disse ela, refugiando-se na cortesia
daquele território completamente desconhecido.

Turri riu.
Os olhos de Carolina estreitaram-se. A risada inexplicável dos
adultos sempre a deixava furiosa.
Diante da mudança de sua expressão, Turri se recompôs
imediatamente.
-Não estou rindo de você -disse. -Eu não ousaria. Você seria capaz
de me fulminar com um raio.
Com isso, ele se ajoelhou e começou a enrolar o que restara de sua
experiência, fazendo uma trouxa da grossura de um homem e quase
da mesma altura. Quando ele se pôs de pé, puxou-a com ele,
sustentando-a em pé na estrada. O emaranhado de gravetos e
tecidos deu o efeito geral de um querido espantalho,
espalhafatosamente enfeitado para ser enterrado.


Pareceu ligeiramente surpreso em descobrir que Carolina não havia
desaparecido da cena.
-Eu sei o seu nome? -ele perguntou.
-Carolina -ela disse.
-Carolina -ele repetiu. Em seguida, inclinou a cabeça com toda a
dignidade de um adulto reconhecendo uma dívida com outro. Obrigado.
Carolina, por sua vez, inclinou a cabeça em resposta.
Quando Turri se virou para ir embora, ela entrou novamente na
sombra das árvores. Nada quebrava o silêncio da tarde luminosa,
exceto o ruído das botas de Turri. Uma tira de seda turquesa
escapou da trouxa e foi se arrastando pela estrada, levantando uma
leve pluma de poeira dourada em seu rastro.


***
Turri, quando chegou a época de se casar, era amplamente
considerado um marido inadequado pelas moças da sua idade.
Durante anos, ele as havia atormentado com suas perguntas,
brincadeiras e invenções. O caso mais famoso foi quando prendeu
duas beldades locais no alto de um plátano durante a maior parte


de um dia quando o primitivo elevador de roldana que estava
ajudando Turri a testar escangalhou sob o peso de dois robustos
rapazes que esperavam juntar-se a elas na reclusão das folhagens.
Conforme as jovens contaram, quase não sobreviveram ao suplício.
Enquanto Turri trabalhava febrilmente para substituir as tábuas
quebradas e consertar o mecanismo retorcido, a hora do almoço
passou. Agora zonzas de fome, as jovens haviam sobrevivido
apenas agarrando as maçãs silvestres e os lenços cheios de cerejas
que seus pretendentes heroicamente lhes atiravam nos galhos elevados.
Isso foi um assunto lendário, mas Turri também possuía uma fileira
de crimes menores em seu nome. Para o aniversário de quinze anos
de Loretta Ricci, ele havia criado estranhas velas negras que ardiam
com uma chama verde. Foram a sensação da noite, até começarem a
falhar e lançar fagulhas, chamuscando os cabelos e vestidos de meia
dúzia de moças antes de uma criada mais desembaraçada afogar as
velas restantes no ponche. Ele havia ensinado o pássaro da contessa
Santini a contar até cem, após o que a criatura ficou tão presunçosa
que se recusava a cantar. A condessa Santini, não aguentando mais
a permanente contagem de cada segundo de sua vida, finalmente
abriu a janela e sacudiu a pobre criatura para fora de sua gaiola,
condenando-a a uma liberdade em que, todos concordavam, não se
podia esperar que suas façanhas intelectuais a protegessem do
vento e da chuva. Pior ainda, Turri não tinha nenhuma ambição
discernível e só usava seus bons modos segundo seu estado de
espírito, tornando suas frequentes gafes sociais ainda mais
imperdoáveis.
Mas o amoroso coração das moças pode perdoar muito mais do que
palavras ásperas e, embora fossem essas as razões que as jovens
murmuravam entre si ou apresentavam a seus pais com os olhos
marejados de lágrimas, as raízes de sua relutância em se casar com
Turri advinham de uma centena de impressões menos significativas
que as próprias moças mal conseguiam exprimir, em parte porque


quase não valia a pena mencioná-las. As vezes, seus olhos se iluminavam
quando conversava com uma jovem, não por causa de uma
terna revelação ou uma expressão espirituosa, mas de uma
curiosidade sobre um cristal em suas jóias ou uma flor exótica em
um jarro próximo. Seu rosto geralmente permanecia inexpressivo
quando todos à sua volta desatavam a rir. Mais enervante ainda, ele
frequentemente parecia estar atento a cada palavra de uma jovem
para logo em seguida demonstrar, quando perguntado, não ter
ouvido nada do que ela dissera.
E, apesar de parecer não conseguir manter o fio de uma conversa na
sociedade educada, quando uma jovem, por pura coincidência,
tropeçava em um assunto do interesse dele, sua noite estava
acabada. Ele era capaz de arruinar todo um baile, conversando
durante horas sobre minas de sal, constelações, metalurgia, lagartos,
com a confiança inocente de uma criança convencida de que todas
as demais pessoas achavam o mundo tão estranho e fascinante
quanto ele.
Isso colocava um problema para os pais de Turri, mas não do tipo
que a família desconhecesse. A linha de sucessão dos Turri era
conhecida por produzir homens de dois tipos distintos. A maioria
era de diligentes administradores que haviam transformado as
terras da família em algumas das mais ricas da região por meio de
inovações criteriosas e de um excepcional talento para números. O
pai de Turri era um notável exemplo deste tipo: muito respeitado,
apesar de sua notória timidez, ele inspecionava pessoalmente suas
vastas plantações de grãos, em vez de deixar a tarefa nas mãos de
supervisores, e também foi responsável por melhorar e expandir o
sistema de irrigação meticulosamente planejado que seu avô havia
introduzido na propriedade meio século atrás.
Porém, em uma indefectível minoria de homens Turri, essa
tendência para a inovação produzia completos sonhadores do pior
tipo possível: aqueles com a energia, capacidade e intelecto para
infligir suas fantasias ao resto do mundo. Foram esses os ancestrais


Turri que haviam cortado quatrocentos metros de terraços em que a
residência dos Turri se erguia até o rio lá embaixo no sopé do monte
e que, em uma geração posterior, projetara o mais sofisticado
sistema de fornecimento de água que a região já vira, não para
irrigar nenhuma plantação, mas para tirar água do rio e levá-la até o
topo da colina, de modo que pudesse descer em cascata pelos
terraços até o rio outra vez. Foram esses sonhadores que destruíram
campos de trigo para plantar açafrão ou seringueiras, alojaram seus
cavalos lado a lado com pavões e lhamas, e até convenceram um
dos pacientes antepassados de Carolina a permitir que maçãs,
ameixas e até mesmo ramos floridos de roseiras fossem enxertados
em seus inocentes limoeiros. Mas Turri, filho único, era o pior caso
dessa doença que a linhagem Turri já produzira, e as famílias
próximas podiam ver isso.
Assim, seus pais foram forçados a fazer um acordo. Como Turri,
Sophia Conti vinha de uma boa família e era inegavelmente bonita.
Mas sua mãe era inválida desde quando Sophia era criança e não
havia como negar que ela se tornara uma jovem impetuosa e
desregrada. Antes mesmo de os rapazes de sua idade começarem a
prestar atenção nela, Sophia preferia a companhia dos homens,
pairando atrás da cadeira de seu pai enquanto ele e seus amigos
discutiam os méritos de seus cavalos preferidos ou se altercavam a
respeito de política. Embora seu pai ignorasse seus carinhos e os
pensamentos infantis que ela lhe sussurrava, ela descobriu que seu
belo sorriso rapidamente lhe angariava o afeto de muitos dos outros
homens, que a mimavam quando ela parava junto a seus joelhos.
Quando, por fim, desabrochou na adolescência, estava bem
familiarizada com a mente de um homem e como manipulá-la. Com
apenas catorze anos de idade, correu o boato de que fora ela o
motivo para o rompimento do noivado de Regina Mancini, quando
a família Mancini não pôde mais fingir ignorar as flagrantes
atenções públicas que o noivo de Regina prestava a Sophia. Não
havia nenhum modo de Sophia sair incólume do escândalo. Casar



se com o sujeito seria admitir que ela havia encorajado sua deserção
do noivado com Regina. Mas sua recusa às súplicas desesperadas
do rapaz a marcaram, mesmo a uma idade tão tema, como uma
criatura perigosa, isenta do respeito natural que uma jovem deveria
ter pelos laços sagrados do matrimônio.
Não que Sophia fizesse qualquer tentativa de corrigir essa
impressão. Na verdade, seu domínio sobre os homens tornou-se
ainda maior após o incidente. Eles se amontoavam ao seu redor nas
festas e brigavam quando se encontravam à sua porta para lhe
apresentar seus respeitos. Num dado momento, meia dúzia deles
clamava ser seu favorito, apresentando várias bugigangas como
prova de sua devoção: um lencinho de renda, uma flor amassada,
uma fita preta. Mas outras tantas histórias circulavam a respeito de
suas indiscrições. Ela desaparecia com homens em cima de telhados
e dentro de quartos de vestir. Ela emergia do meio das árvores com
eles, suas jóias tortas. Quando tinha dezessete anos, já havia
recebido nove propostas sinceras, mas nenhuma delas sobrevivera
ao escrutínio das famílias dos rapazes em questão.
Completamente inadequados um para o outro, Turri e Sophia eram
também a única esperança mútua para um casamento apropriado
em seu pequeno círculo. A união dos dois foi prática e repentina:
casaram-se em poucas semanas após as negociações de seus pais,
quando Turri tinha vinte e cinco anos e Sophia, vinte. Seu filho,
Antonio, nasceu menos de um ano depois, e a questão se ele seria
filho de Turri foi amplamente, e quase abertamente, discutida.
Mas não havia dúvidas quanto à devoção de Turri ao menino. Antes
mesmo de Antonio ter idade para andar, os vizinhos surpreendiam-
se de ver Turri carregando-o nos ombros pela margem da estrada
ou vagando pela margem do rio, explanando seriamente sobre
novos pensamentos em teologia ou controvérsias modernas sobre
estrelas.
-Ele queria trazer Antonio -Sophia brincou amarga¬mente em uma
festa no ano seguinte ao nascimento do filho. -Mas por enquanto


ele só lhe ensinou latim, não a dançar.
Como seria de se esperar, quando Antonio de fato começou a falar,
era uma criança estranha. A primeira palavra que pronunciou foi
romã; a segunda, telescópio; e, para desconsolo de sua mãe, ele só
pronunciou seu nome meses depois de ter começado a dizer papai,
uma palavra que aplicava indiscriminadamente a Turri, sua babá, o
jardineiro, o cavalariço e o ajudante do estábulo, bem como aos
enormes bandos de gralhas que de vez em quando pousavam nos
gramados que cercavam a vila Turri.

***
Carolina tinha dezesseis anos e Turri estava casado havia menos de
um ano quando ela saiu de sua casa no lago em uma fria manhã de
primavera e se deparou com ele parado à beira d'água. Estava de
costas para ela. No lago, nuvens de névoa que se ergueram da água
à noite elevavam-se acima de sua cabeça.
Descalça no degrau mais alto, Carolina enrolou ainda mais a colcha
de veludo ao redor dos ombros. A porta atrás dela fechou-se com
uma batida.
Turri girou nos calcanhares, os olhos brilhantes.
Ao vê-la, pareceu perder a firmeza. Cambaleou alguns passos pela
grama úmida até recuperar o equilíbrio. Quando o fez, ele ria.
-Achei que você fosse um urso -ele disse. -Minha ideia era esmagar
seu focinho com aquela pedra. -Apontou para uma pequena pedra

cinzenta na margem, lisa pelo desgaste e esquecida pelo rio.
-Não é muito grande -disse Carolina, de modo duvidoso.
-Os ursos têm o focinho extremamente sensível -disse-lhe Turri. -É


sua única fraqueza. Minha outra hipótese é que você fosse um
inseto gigantesco. Em algumas ilhas do Sul, há borboletas do
tamanho de águias.
-Mas estamos na Itália -retrucou Carolina.
-Tinha me esquecido disso -retorquiu Turri. -Estava tentando
pensar numa forma de capturá-la sem destruir suas asas.



-Mas onde você guardaria uma criatura desse tamanho?
-No meu laboratório -respondeu Turri, sem hesitação. -Em uma
moldura com uma tela de mosquito esticada sobre ela, pendurada
do teto.
Carolina considerou a resposta por um instante. Então, atacou outro
problema.
-O que as borboletas comem? -perguntou.
-Nunca chegaria a esse ponto -disse Turri. -Eu construiria a
moldura e a colocaria ali. Você se contorceria e bateria as asas,
infeliz. Eu subiria até você outra vez, lhe daria o braço para você
pousar nele e a levaria para a janela, onde a libertaria.
Carolina sentiu um aperto no estômago ao imaginar a longa queda
do andar mais alto da casa dos Turri, até suas asas imaginárias a
ampararem e carregarem para cima.
Turri encolheu os ombros.
-O mais provável, porém, é que elas não existam. Não se pode
acreditar em tudo que se lê. Os antigos beberrões que pela primeira
vez inspecionaram a América alegavam que os lagos da Virgínia
eram cheios de sereias.

Ao dizer isso, ele lançou um olhar para o lago com um ar
estranhamente esperançoso. A neblina branca pairava sobre a água,
impenetrável.
-Sinto muito -ele disse, quando voltou a olhar para ela. -Invadi
seus domínios. -A chama de sua história se extinguiu, ele pareceu
repentinamente muito mais novo para Carolina. Seu rosto estava
pálido, os olhos febris, a pele arroxeada abaixo deles, como um
homem que não dormira a noite toda. Uma onda de compaixão
percorreu-a.
-Meu pai diz que é impossível um vizinho invadir -disse ela,
gentilmente.
Turri observou as curvas de seu corpo e os ângulos de seus
cotovelos sob a colcha de veludo com algo mais do que o desejo que


ela começara a reconhecer nos olhos dos rapazes mais velhos. Ele
seguiu os contornos de sua figura como se ocultassem um segredo,
algum significado inscrito por mão invisível, que ele tentava
decifrar. Em seguida, seu olhar retornou aos olhos dela.
Carolina abaixou os olhos, confusa.
-É muita gentileza sua -ele disse.


***
Turri levou-a ao pé da letra. Daquele dia em diante, ele se tornou
um visitante habitual do lago. Mesmo quando seus caminhos não se
cruzavam, ele deixava vestígios. Muitas das vezes, Carolina
encontrava suas pegadas na lama das margens, mas em alguns dias
ela chegava às primeiras horas da manhã e encontrava carvão ainda
em brasa nas cinzas de sua lareira. Às vezes, ele havia mudado um
ou outro objeto de lugar: podia deixar várias canetas perfeitamente
alinhadas sobre a escrivaninha, todas as pontas afiadas voltadas
para oeste, ou empurrar uma boneca de porcelana nos braços de um
macaco de vidro, de modo que parecessem estar dançando. De vez
em quando, encontravam-se quando Turri caminhava a esmo no
final da tarde, ou a surpreendia dormindo no barco, flutuando à
deriva por uma tarde úmida.
Ele era curioso a respeito de tudo, e sua curiosidade era lisonjeira.
Carolina já havia descoberto que as pessoas raramente queriam
respostas às perguntas que faziam, mas por fim compreendeu que,
nos assuntos que o interessavam, Turri ouvia quase
indefinidamente, interrompendo apenas para fazer outra pergunta.
Ele queria saber a respeito de limões: quanto tempo as flores
duravam no galho; o tempo que um botão levava para se
transformar em fruto; qualquer forma estranha que o fruto pudesse
adquirir; e se ela havia visto essas anomalias ou apenas ouvira falar.
Tinha curiosidade sobre os peixes e os pássaros, que já estavam
quase domesticados por causa do hábito de Carolina de levar um
guardanapo cheio de migalhas de pão para espalhar quando


chegava. Os peixes, particularmente, eram pedintes. Sempre que
avistavam a sombra de um ser humano na água, aglomeravam-se
ao redor do ancoradouro e ficavam esperando o pão cair do céu.
-Olhe isso -disse Turri. -Será que seria possível treiná-los? -Atirou

o pedaço de uma folha na água. Ele caiu no centro de sua própria
sombra e balançou-se ali por um instante, antes que um dos peixes,
pequeno, mas rápido, se lançasse para reclamá-lo.
-A fazer o quê? -quis saber Carolina.
-Nadar em formação. Saltar em arcos.
A salvo sob a superfície, o peixe provava seu prêmio. Decepcionado,
soltou o pedacinho de folha. A folha desprezada caiu
lentamente através da água e desapareceu nas trevas que cobriam o
fundo do lago.
No fim daquele verão, Turri começou a cortejar um arrojado pardal
vermelho que, a julgar pela intensidade da cor de suas penas ainda
perfeitas, devia ser novo demais para saber das coisas. A técnica de
Turri era simples. Os pássaros já estavam acostumados a pegar
pedacinhos de pão dos pés de Carolina e, no decurso de um único
dia, acostumaram-se a Turri e seus pedacinhos de pão também.
Depois, Turri começou a sentar-se na grama à beira d'água,
espalhando as migalhas cada vez mais perto dele. Os pássaros mais
conservadores voavam para longe toda vez que as migalhas moviam-
se na direção de Turri, porém o mais esperto enfrentava o
desafio centímetro a centímetro, finalmente bicando uma casquinha
diretamente da palma da mão de Turri. Por volta de setembro, o
pardal pousava em sua mão e, quando Turri estava ausente,
Carolina às vezes acreditava avistar o pássaro pulando de galho em
galho, assoviando impacientemente, com toda a irritação magoada
de um amante que fora deixado esperando.
-Acha que ele vai se lembrar de nós no ano que vem? -perguntou
Carolina.
-Não sei -respondeu Turri. O pássaro estava pousado na inclinação

das costas de sua mão, bicando tentativamente um dos nós de seus

dedos.
-Presume-se que esta espécie seja impossível de domesticar.
De sua parte, Carolina tratava Turri mais ou menos como os peixes
e os pássaros: parte da paisagem do lago, perfeitamente familiar,
mas em permanente mudança. Se o encontrava na margem do lago
quando acordava, quase sempre o cumprimentava rapidamente e
em seguida retornava para dentro da casa para dormir ou ler por
mais uma hora. Ela às vezes subia em seu barco e saía para o lago
no meio de uma de suas histórias ou adormecia enquanto ele
explicava alguma coisa, como se sua voz não fosse muito mais do
que o som do vento nas folhas, agradável, mas sem importância.
Quando Turri desaparecia por alguns dias, Carolina se indagava a
seu respeito por um instante, mas não sentia sua falta, nem ele fazia
parte de seus sonhos.

***

Esses, no momento, estavam tomados por Pietro, o filho único de
uma família ilustre, cujas terras ficavam rio acima a partir do lago
de Carolina, limítrofes à propriedade de seu pai. A mãe de Pietro
morrera no parto de sua irmã mais nova, quando ele tinha apenas
cinco anos. Na época, os notórios períodos de longo silêncio de seu
pai tornaram-se permanentes, e os vizinhos teriam chegado com
satisfação ao diagnóstico de loucura devido à dor da perda se ele
não tivesse continuado a produzir vinhos de tão excelente
qualidade. Sua teimosa insistência em manter o controle de um
canto tão pequeno da realidade, ao mesmo tempo que parecia
mandar todo o resto correndo alegremente para o inferno, deixava
as pessoas agitadas. A ideia de uma mente sã trabalhando entre eles
em silêncio por anos a fio sem jamais se revelar assustava alguns e
enfurecia outros. Em represália, tanto tinham pena quanto
mimavam seu filho.


Pietro era convidado para toda festa infantil, todo casamento,
batizado e crisma, e mais tarde todo baile e a maior parte dos
jantares. Desde criança, sempre foi bonito: mais alto do que as
outras crianças em alguns centímetros e depois em uma cabeça
inteira, com cachos escuros sobre os olhos escuros e a boca bem
delineada, em geral estendida em um sorriso fácil. Tinha um fraco
por marzipã, de modo que as criadas eram solicitadas a fazer a
guloseima para as suas visitas, mesmo que não fosse Natal ou
Páscoa. Uma canção que ele gostasse seria pedida por alguém em
cada evento durante todo o resto da estação. Atingido tanto pelo
carisma de Pietro quanto pela competição geral entre os rapazes do
lugar para se superarem em agradá-lo, um de seus jovens amigos,
ao ganhar um magnífico potro de presente de aniversário, na
verdade insistiu que Pietro fosse o primeiro a dar uma volta com o
animal pelo pátio, em vez dele próprio.
O encantamento de Pietro com essas atenções era contagiante e sua
gratidão descomunal. Com absoluta sinceridade, dizia a toda
família da região que a criada deles sem dúvida fazia os melhores
doces num raio de muitos quilômetros. Após dar uma volta no
novo potro do amigo, declarou-o o mais belo animal de toda a Itália.
Todas as mães com quem ele conversava compreendiam-no melhor
do que ninguém, todos os rapazes que conhecia eram corajosos,
todas as jovens eram bonitas e todos os homens eram sábios. Com
seu charme e com uma displicência a respeito de sua própria pessoa
que advinha, talvez, da falta da mão acauteladora da mãe ou talvez
da negligência do pai, ele facilmente assumiu a liderança entre os
rapazes de sua idade. Era sempre o primeiro a subir em uma árvore,
espreitar através de uma janela, vadear o rio ou cavalgar uma égua
sequestrada do estábulo de um vizinho em determinada incursão.
Entre as moças, é claro, ele era um objeto de devoção mais
fervorosamente adorado do que qualquer uma das frias estátuas de
santos. Uma jovem podia viver semanas de um único olhar dele.
Seus pequenos elogios e comentários espontâneos formavam uma


nova escritura sagrada, e nas conversas ofegantes e noites solitárias,
inebriadas de sonhos, construíam teologias inteiras a partir dela.
Qualquer atenção verdadeira dedicada a uma jovem em particular duas
danças na noite, uma flor tirada de um arbusto para enfeitar
seu vestido -era capaz de provocar lágrimas ou um ciúme doentio
das outras. Em um caso específico, houve um desmaio, apesar de
Pietro parecer abençoadamente alheio à razão do tumulto, mesmo
quando o pai e o irmão da infeliz rapariga a carregaram da festa.
Com isso, ele revelava uma falta de consciência de seus próprios
poderes que só fazia aumentar o apreço que tanto as mulheres
quanto seus amigos tinham por ele.

Pietro tinha apenas dezessete anos quando seu pai foi encontrado
morto entre as longas fileiras de suas amadas videiras. Parentes
acolheram a irmã mais nova de Pietro e casaram-na alguns anos
depois com um militar pedante em uma cidade à beira-mar. Mas
Pietro, o herdeiro nomeado, mas muito jovem para herdar,
permaneceu na casa ancestral sob os cuidados de criados da família
que havia muito tempo já tinham desistido de qualquer pretensão
de desviá-lo de algum caminho que escolhesse. Obviamente, o
resultado natural foi uma série de conquistas entre as criadas locais
e filhas de pequenos fazendeiros. Mas Pietro nunca se aproveitou
das jovens das famílias melhores, com uma delicadeza de sentimento
de classe que seus pais só podiam encarar com aprovação.
Entre as jovens de seu próprio círculo, Pietro era um perfeito
cavalheiro, tão respeitoso que até exasperava as moças.

***

A fascinação de Carolina por Pietro, no começo, não passava de um
sintoma da idade. Aos dezesseis anos, sua ideia de amor era em
grande parte um sonho: segredos confidenciados na proteção de
jardins de rosas, cartas pregadas em árvores novas, resgate das
garras de assaltantes de beira de estrada. Para esse fim, a distância,
Pietro era a figura perfeita. Nenhum outro rapaz era tão alto quanto


ele, nem tão bonito. Ao contrário dos outros jovens, ele nunca
parecia indeciso, infantil ou preocupado que o cavalo que montava
pudesse fugir de seu comando e partir de volta para o estábulo. Nenhum
outro rapaz correra para o incêndio que consumira metade
do silo dos Rossi em uma gélida noite de inverno, ao invés de fugir
dele.
No verão em que Turri começou a visitar seu lago, quando Carolina
tinha dezesseis anos, ela não tinha nenhuma razão para acreditar
que fosse a preferida de Pietro. Mas tinha algumas parcas
esperanças. Pietro sabia seu nome. Ele a convidara para dançar em
uma festa no ano anterior e, várias festas depois, quando finalmente
a convidara outra vez, ainda se lembrava dela. Ele elogiara seu
vestido em um almoço ao ar livre. Na atual estação, ele aproveitara
a oportunidade em um batizado para perguntar a Carolina se ela
gostaria de um pouco de ponche. Quando respondeu que sim, ele
voltou com um copo e conversou com ela durante vários minutos
sobre suas opiniões a respeito de crianças, que ele acreditava serem
tanto anjos quanto demônios, presos juntos sob a mesma pele.
O coração jovem e inocente de Carolina não pôde resistir. Desse
momento em diante, passou a ser mais uma admiradora de Pietro:
nas festas, observava cada movimento seu e perdia o fôlego se seus
olhos se encontravam. A lembrança de um sorriso dele, guardada
com carinho, podia fazer seu coração disparar durante dias a fio. Ele
se erguia, altaneiro, no centro de todos os seus planos
fragmentários, retornando para ela de alguma guerra ainda não
declarada, cavalgando um cavalo negro por campos de neve
estrangeira; avançando a passos largos para ela por uma fileira de
videiras, um cacho de uvas pretas em cada mão; de pé ao seu lado
no limiar da porta de um majestoso salão de baile, sua mão na dele,
enquanto um criado anunciava seus nomes; um silêncio momentâneo
e a multidão curiosa virava-se em conjunto para fitá-los.
No entanto, apesar da pureza de sua devoção a Pietro, seus pais
franziam a testa às visitas de Turri ao lago. Um mês e pouco depois


do primeiro aparecimento de Turri por lá, o pai de Carolina
descobriu os dois parados lado a lado na margem do lago. Turri
testava uma teoria sua sobre o número de círculos concêntricos que
se formava na água parada, atirando-se seixos na superfície
espelhada enquanto Carolina contava para ele. O pai de Carolina
emergiu do meio das árvores a uns quinze passos de distância. Ao
vê-lo, Carolina virou-se e acenou para ele. Então, percebeu que
perdera a conta dos círculos negros e prateados.
-Sinto muito -disse ela a Turri. Ele ergueu os olhos, um seixo
branco entre dois dedos.
-Tudo bem. Temos mais pedras.
Seu pai atravessou o gramado entre a floresta e o lago com grandes
passadas.
-Oi, papai! -disse Carolina. Ela foi ao seu encontro, atirou os braços
ao redor de seu pescoço e beijou sua face acima da barba preta. Não
era uma surpresa para ela encontrá-lo ali. A cada duas ou três
semanas, ele visitava o lago no decurso de suas andanças a esmo,
talvez estimulado pela mesma inquietude que motivara Carolina a
atravessar a floresta desde criança; não a doença de um verdadeiro
explorador, mas a indolente curiosidade de um nobre, facilmente
contentado com uma volta pela propriedade que o confinava.


Seu pai também beijou-lhe o rosto. Então, ele olhou para Turri com
evidente desagrado.
-Turri -disse, à guisa de cumprimento.
Turri exibiu um largo sorriso, transferiu o punhado de seixos da
mão direita para a esquerda e estendeu a mão direita para
cumprimentá-lo.
-Que agradável surpresa -disse, prestando tão pouca atenção à
frieza do seu pai, que Carolina perguntou-se momentaneamente se
na verdade havia lhe passado despercebida.
Após uma pausa pronunciada, o pai de Carolina estendeu a mão.
Cumprimentaram-se.



-Bem-vindo à nossa humilde experiência -disse Turri.
-Estamos pesquisando dinâmica dos fluidos -explicou Carolina,
passando o braço pelo do seu pai. Ele encobriu sua mão
completamente com a dele.
-Uma pedra nunca faz mais do que uma dúzia de círculos, não
importa a força com que a atire -Carolina lhe disse. -Apenas vão se
alargando, alargando, até desaparecerem no meio dos juncos.
-E imagino que esta descoberta vai curar a cólera -seu pai disse.
Turri riu e balançou a cabeça, como se o homem mais velho tivesse
feito uma boa piada à sua custa.
Carolina apertou o braço do pai, protestando silenciosamente contra
sua frieza.
-Mas, se você observar mais um segundo -ela continuou -, às vezes
a onda ricocheteia da margem e todos os círculos começam a se
desfazer. -Esse pequeno mistério era sua parte favorita da
experiência do dia. -Mostre-lhe -ela disse a Turri.
Turri abriu a mão para selecionar um dos seixos brancos.
-Ah, não -disse o pai de Carolina. -Não sou um homem da ciência.
O sol se levanta e se põe. Não pergunto por quê.
Os dedos de Turri fecharam-se outra vez sobre os seixos, como uma
flor se fechando para a noite.
-Sua mãe está chamando você -o pai disse a Carolina. Isso não só
era uma mentira, mas tão improvável que Carolina olhou para ele
espantada.
Pela primeira vez, Turri pareceu constrangido.
-Por favor, não se prenda por minha causa -ele disse.
-Você compreende -o pai de Carolina disse, como se fosse uma
ordem.
Turri balançou a cabeça.
-Pode ficar até terminar a experiência -o pai de Carolina disse a
Turri, enquanto levava a filha dali.



Carolina e o pai caminharam em silêncio pela floresta entremeada
de sol. Quando chegaram à casa principal, ele soltou seu braço sem
mais nenhuma menção ao pedido de sua mãe. Mas naquela noite a
mãe enviou um criado para convocá-la à sua presença.
Os aposentos de sua mãe ficavam no segundo andar da casa, de
frente para a floresta que escondia o lago de Carolina. Como sempre
depois que anoitecia, velas reluziam em cada canto. Um candelabro
iluminava as páginas do romance que a mãe fechou quando
Carolina entrou. Meia dúzia de outras colunas escuras de cera
tremulava sobre o toucador, a estante de livros, a mesinha ao lado
da cama. A mãe de Carolina estava em seu lugar preferido, no divã
sob a janela.
Carolina parou na entrada, hesitante. Sua mãe raramente convidava
Carolina a seus aposentos e, por conseguinte, Carolina nunca vinha
por conta própria. Carolina geralmente pedia um embrulho de
queijo e pão à cozinheira antes de ir para o lago, e sua mãe preferia
fazer suas refeições sozinha, de modo que era possível que as duas
passassem dias sem se falar. Quando pequena, Carolina crivava sua
mãe de perguntas, já que esta raramente falava, a menos que lhe
dirigissem a palavra diretamente. Mas, à medida que Carolina
crescia, as perguntas que queria fazer tornaram-se mais difíceis de
serem colocadas em palavras, até que o problema de dizer o que
pretendia finalmente a frustrou, reduzindo-a ao silêncio. Agora, as
conversas entre elas eram assinaladas principalmente por longas
pausas pontuadas por observações sem importância. Para Carolina,
no entanto, a mãe ainda detinha a força de um oráculo e, quer
acreditasse nas declarações da mãe ou não, ela as remoía
mentalmente como se fossem um enigma divino.
Sua mãe deu umas palmadinhas na almofada ao seu lado.
Obedientemente, Carolina atravessou o aposento e se sentou. A
janela para a qual olhava agora era negra. Uma luz de vela
alaranjada tremeluzia na vidraça irregular.
A mãe endireitou-se.


-Como está o lago hoje? -perguntou.
-Bonito -respondeu Carolina. -Os choupos floresceram. O falso
algodão pendura-se da árvore como neve.
A mãe olhou para ela com ligeira impaciência. Carolina teve a
sensação familiar de que conseguira desapontá-la sem que jamais
lhe tivessem dado essa incumbência.
-Seu pai disse que encontrou Turri no lago hoje -comentou sua
mãe.
Carolina balançou a cabeça.
-Às vezes, ele aparece por lá.
-Você sabe que ele é um homem casado. Carolina balançou a cabeça
outra vez.
A mãe de Carolina inclinou-se para frente. Seu vestido farfalhava
como uma pilha de folhas secas.
-Você ainda não é casada. Até lá, tem que ter muito cuidado.
A nuca de Carolina se arrepiou de vergonha diante da implicação.
O rubor aflorou ao seu rosto.
-Não há nada -começou a dizer.
-Isso não importa -sua mãe disse. À luz fraca, seus olhos estavam
quase inteiramente consumidos pelo negro das pupilas. -Uma moça
não tem muitas escolhas. Esta é a mais importante. Não deve haver
nenhum boato contra seu nome até você se casar.
Carolina fitava-a como um animal fascinado.
-Depois que você se casar -sua mãe continuou -, muitas coisas
podem acontecer. Você não deverá falar sobre elas.


Nem seu marido, se for cavalheiro. -Ela olhou para fora da janela
escura. -Compreende? Carolina assentiu.
Sua mãe também balançou a cabeça, não para Carolina, mas como
se concordasse com palavras ditas por alguma outra voz, inaudível.
Reclinou-se para trás no divã.
-Poderia pedir ao Stefi para me trazer um pouco de leite morno
quando você sair? -perguntou.



-Claro -respondeu Carolina, levantando-se.
Parou à porta, mas a mãe já tinha atirado o braço sobre os olhos,
como se os protegesse de alguma luz insuportável no céu.


***

Carolina levantou-se na manhã seguinte quando ainda estava
escuro e esgueirou-se furtivamente pelas escadas, mais pelo tato do
corrimão do que pela visão. Dormira pouco, convulsivamente, e
quando estava cansada seus olhos agiam como prismas,
distorcendo algumas coisas, duplicando outras. Agora, acharam a
luz das estrelas no sereno tão ofuscante que todo o pátio ficou
embaçado. Na floresta, as árvores duplicavam-se e entortavam-se.
Ela piscou e elas ficaram retas outra vez. Ainda podia ver algumas
estrelas além das silhuetas indistintas dos galhos mais altos, mas
quando tentava focalizá-las elas se incendiavam em verdadeiros
sóis ou apagavam-se inteiramente. Apesar de tudo isso, alcançou a
casa, deixou-se afundar nas colchas de veludo amontoadas sobre o
sofá e entregou-se prazerosamente a um segundo sono.

Quando acordou, o sol da tarde infiltrava-se pelos xales nas janelas,
imprimindo traços muito leves de sua estampa onde a luz pousava.
O fantasma de um pavão espraiava-se nas pregas escuras de um
cobertor. Um lírio dissolvia-se em sua escrivaninha. Carolina
afastou as cobertas e levantou a ponta do xale azul simples
estendido em frente à janela. Turri estava deitado de costas na
margem, os olhos fechados, as mãos confortando-se uma à outra
sobre o peito. Ele lhe parecia tão familiar quanto as árvores que
sombreavam as margens opostas, e seu coração recebeu-o com o
mesmo prazer. O mundo ao redor dele estava límpido outra vez,
cada árvore em seu lugar, cada junco da forma como se lembrava.
Cada pedaço de algodão do choupo que flutuava acima do espelho
negro da água estava nítido e perfeito.
Ela soltou a ponta do xale e saiu ao seu encontro.

***


Durante muitos dias depois disso, Carolina imaginou os passos de
seu pai na grama, achou tê-lo ouvido quebrando gravetos na
floresta ou confundiu os lampejos luminosos de asas de pássaros
vislumbrados através das árvores com um recorte de seda no
pescoço dele. Mas, conforme os dias transformaram-se em semanas,
as semanas completaram uma estação e as folhas do final de verão
caíram de forma que ela podia ver com clareza através das árvores,
Carolina compreendeu que ele não voltaria a surpreendê-la. Na
realidade, até as visitas inocentes que ele costumava fazer em seus
passeios aleatórios haviam cessado. Era um padrão do qual ela se
lembrou, finalmente, de sua infância. Seu pai detestava castigá-la,
de modo que, quando a surpreendia no ato de alguma travessura,
esforçava-se ao máximo para não surpreendê-la outra vez. Se a
descobria alegremente enfiando pedaços de um limão mutilado
diretamente no açucareiro, ele a repreendia severamente, mas
depois evitava a cozinha como se não mais existisse, às vezes por
semanas a fio. O fato de seu mau comportamento causar uma
aflição tão óbvia ao pai sempre fizera Carolina padecer e querer se
comportar melhor. Mas agora, quando achava que ele a interpretara
mal de uma forma tão profunda, sua ausência simplesmente foi
recebida com alívio.
Assim como o lago esquecia o impacto de uma pedra ou o toque do
vento, Carolina e Turri retornaram aos seus hábitos familiares.
Naquele outono, ele fez um complicado conjunto de asas com
pequenos galhos e árvores novas, copiando do esqueleto de algum
passarinho que descobriu em uma de suas caminhadas pela floresta.
Carolina ajudou-o a forrar as estrutura com folhas caídas, que Turri
esperava tivessem propriedades semelhantes a penas. Após
semanas de trabalho, o próprio Turri testou-as com um salto do
telhado da casa de Carolina. Aterrissou com um tombo espetacular,
que não pareceu lhe causar nenhuma surpresa. Naquela noite, ele
retornou com o aparato agora inútil. Enquanto Carolina observava
da margem, ele subiu ao telhado outra vez, ateou fogo às asas


danificadas e lançou-as sobre os poucos passos de terra entre a casa
e o lago. A repentina explosão de fogo quando o ar se precipitou
pela estrutura em chamas deu um estranho e vacilante impulso às
asas por um rápido instante. Então, elas se lançaram em um voo
perigosamente rasante, cobrindo Carolina de fagulhas vermelhas
antes de se chocarem na água com uma enorme pancada e um som
sibilante. Uma nuvem de vapor ergueu-se na noite, tingida de
laranja pelo fogo remanescente. Alguns dos ossos do esqueleto
ainda brilhavam com um vermelho intenso enquanto afundavam
nas águas escuras.
Em meados de dezembro, houve uma queda brusca na temperatura,
fechando a última área de água aberta na superfície do lago, onde
os patos pretos nadaram em círculos melancólicos à medida que o
resto do lago se fechava para eles. Quando o frio não arrefeceu
depois de uma semana, Turri começou a coletar gelo das bordas do
lago pouco depois dos juncos, serrando mais de mil blocos de gelo
no tamanho de tijolos para construir um castelo no meio do lago:
quatro modestas paredes com um par de pequenas torres de frente
para a cabana na beira do lago. No dia anterior ao término da
construção, o tempo mudou. A temperatura subiu tanto que parecia
primavera, e choveu a manhã inteira na floresta conforme o gelo se
derretia dos galhos agradecidos e caía na lama espessa embaixo. As
paredes turvas do castelo começaram a brilhar à medida que as
ranhuras feitas pelo serrote de Turri se derretiam. Durante toda a
manhã, ele travou uma batalha perdida contra o sol, comprimindo
neve ao redor da base e arrumando e rearrumando grupos
insuficientes de lonas enceradas. Mas, quando a grossa camada de
gelo que cobria todo o lago começou a estalar e ranger no começo
da tarde, Carolina saiu de sua casa e insistiu para que ele voltasse
para a margem. Menos de uma hora depois, toda a estrutura
desmoronou dentro da água gelada, reemergindo como um
amontoado de icebergs denteados. Quando anoiteceu, os flutuantes


pedaços de gelo congelaram-se em uma ferida pontiaguda que
marcou a superfície lisa pelo resto do inverno.
No dia de Natal, Carolina dirigiu-se ao lago pela nova precipitação
de neve fofa no chão da floresta, levando uma caixa de marzipã e
laranjas. Ao chegar à sua casa, pôde ver a luz bruxuleante de um
fogo lá dentro, já lançando sombras azuis na neve do lado de fora.
Turri a aguardava ainda vestido com seu sobretudo, apesar de
obviamente já estar ali há tanto tempo que a cor viva que o frio
sempre fazia aflorar às suas faces já esmaecera. Na mesa ao seu
lado, via-se um pequeno elefante de laca azul, do tamanho do
polegar de Carolina, as pernas ligadas ao corpo em ângulos
estranhos. Uma roda como a que um capitão usaria para guiar um
navio destacava-se do lado direito da criatura.
Carolina colocou sua caixa sobre a mesa e levantou a tampa,
revelando as laranjas e os doces pintados à mão.
-Aceita um? -ela ofereceu. Turri sacudiu a cabeça.
-Acabo de perder um concurso de comer marzipã com Antonio ele
lhe disse.
Carolina selecionou um cacho de uvas glaçadas para si mesma e
fechou a caixa.
-Não sei por que os elefantes sempre parecem tão tristes -ela disse,
olhando para a pequena figura.


-Gire a roda para dar corda -orientou Turri. Carolina colocou a
criatura na palma da mão e ergueu-a
na altura dos olhos para que pudessem se ver olho no olho.
-A roda -disse Turri. -Gire-a.
Carolina obedeceu. Lentamente, os pés laqueados começaram a se
mover. Primeiro, as duas pernas direitas deram um passo, depois as
duas esquerdas.
Turri abriu um largo sorriso de orgulho.
Coloque-o sobre a mesa. Veja!
Carolina colocou o brinquedo sobre a mesa cuidado¬samente. O



elefante marchou heroicamente por um campo inteiro de papel de
carta e parou bem em frente à caixa de marzipã, observando-a com
todo o encantamento e respeito que um explorador demonstraria ao
confrontar uma nova montanha.
-Fiz para você -disse Turri, mal conseguindo conter seu
entusiasmo.
-Obrigada -Carolina disse, fitando o presente. Turri tomou sua
mão.
Surpresa, Carolina olhou para ele.
-Você sabe que eu a amo -ele declarou.
As palavras reverberaram em sua mente como um sinal de alarme.
-Eu sei -ela disse, retirando a mão.


***
Na primavera seguinte, quando Carolina tinha dezessete anos,
Pietro comemorou seu vigésimo quarto aniversário, o que
significava que ele estava apenas a um ano da maioridade que seu
pai estipulara em seu testamento. Mas, para que recebesse pleno
controle de suas terras e propriedade, seu pai também determinara
que ele deveria estar casado. Pietro confrontou essa exigência com
sua costumeira boa vontade.
-Acho que o velho sabia o que era melhor para mim! -disse em uma
festa após a outra, dando de ombros com um misto de malícia e
pesar que fazia as jovens estremecerem de esperança e seus pais
balançarem a cabeça em aprovação.
Carolina recebeu esta notícia com um terror tão meigo que mal
conseguia distingui-lo de empolgação. Era impossível que ele a
escolhesse, mas ele precisava escolher alguém. Como uma criança
com um bilhete de loteria, ela compreendeu a insignificância de
suas chances, mas até outro nome ser anunciado, enquanto o bilhete
de papel se desfazia no suor de sua mão, tinha tanto direito de
sonhar em ganhar o prêmio quanto qualquer outra. Suas fantasias
adquiriram foco e se tornaram simples. Ela guardou os piratas e a


tinta invisível de seus sonhos de menina nas caixas de acessórios de
cena em sua mente e começou a construir orações realistas: ele
poderia encontrá-la na estrada durante uma tempestade e lhe dar
uma carona até em casa. Seus olhos poderiam se encontrar através
de um salão apinhado de gente, e ele sorriria. Esses novos sonhos
eram tão modestos que nunca duravam mais do que um breve
instante. Carolina nunca sabia o que poderia acontecer quando ela
retribuísse o sorriso ou ele a erguesse para cima de sua égua.

Ninguém, nem mesmo Carolina nem talvez o próprio Prieto, nunca
soube por que ele começou a destacá-la mais ou menos em meados
daquela estação. Sua mãe era famosa pela beleza, o que levou o pai
de Carolina a escolhê-la entre as muitas jovens da região durante
suas férias de duas semanas a um balneário há tantos anos.
Carolina, apesar de um pouco mais alta do que a mãe, herdara seus
fartos cabelos escuros, a cintura fina e o rosto pálido e perfeito. Mas
seus olhos eram os de seu pai, escuros sob sobrancelhas marcantes,
em vez do azul delicado dos olhos da mãe. O efeito era tão
extraordinário que deixava muitos rapazes sem fala e fazia o resto
querer atormentá-la em vingança, um projeto em que embarcaram
tão cedo em sua lembrança que ela nunca pensou sequer em se
ressentir de suas provocações, mas simplesmente navegar por elas
como faria com qualquer característica de sua paisagem: um rio a
ser atravessado ou um buraco do qual se desviar.
Mas apenas sua beleza não era suficiente para explicar o interesse
de Pietro. Havia outras jovens lindas que não eram nem de longe
tão estranhas ou difíceis. Possuíam cabelos tão dourados e macios
como trigo, figuras mais curvilíneas, mãos pálidas que não haviam
ficado secas e rachadas de arrancar coisas na floresta. E naquela
primavera todos os encantos estavam em exibição, toda pedra
preciosa e toda flor ostentadas de forma a conquistar o coração de
Pietro. Carolina dificilmente poderia sobrepujar tudo isso.
Na verdade, deve ter sido seu terror que chamou a atenção dele


originalmente.

***


No começo de junho, após uma profusão de festas de primavera
durante as quais ninguém, nem mesmo aqueles que se
consideravam seus amigos mais próximos, foi capaz de penetrar no
mistério das intenções de Pietro, Carolina virou a cabeça enquanto
subia as escadas para o salão de baile dos Ricci e deparou-se com
Pietro no degrau ao seu lado. Da última vez que o vira, ele estava no
meio do enorme vestíbulo embaixo, onde os criados haviam
construído um frágil dossel de cordas trançadas do qual pendiam
mil velas votivas em vidros coloridos logo acima da cabeça dos
convidados. Carolina não estava realmente esperando dançar:
durante todas as dezenas de festas desde a abertura da estação,
Pietro não a convidara nem uma vez e, com toda a lealdade tola e
intransigente do primeiro amor, ela havia recusado todos os outros
convites. Seu plano era parar no patamar e olhar para baixo através
das luzes enquanto todas as outras pessoas erguiam os olhos para
elas, algo da maneira como Deus devia olhar para a Terra através
das estrelas.
Antes, porém, de alcançar o patamar, Pietro galgou os degraus atrás
dela de dois em dois. Não estava vindo em seu encalço -ele deixou
isso bem claro quando saltou mais dois degraus além dela antes de
parar no meio do próximo salto, talvez distraído de seu objetivo
pelo seu rosto bonito.
-Carolina!
Carolina sempre ficava um pouco desnorteada quando se
encontrava frente a frente com Pietro, que falava e agia de modo tão
diferente do Pietro de seus devaneios. Nesta emergência, ela só
conseguiu devolver o olhar fixo, emocionada, mas sem fala.
Pietro ergueu as sobrancelhas.
-Vão tocar uma monferrina depois -ele disse. -Guarda esta dança
para mim? -Ele riu, convicto de que estava oferecendo uma


proposta que agradaria a ambos.
O medo paralisou as mãos de Carolina, fechadas em punhos
cerrados, escondidas nas pregas do vestido. A monferrina era uma
complicada dança de salão, nova no vale naquele ano, e ela ainda
não sabia dançá-la. Não havia a menor possibilidade de dançá-la
tendo Pietro como par, com todos os olhos fixos nela. Abaixou os
olhos para o tapete azul, em seguida olhou por cima da balaustrada
de mármore, para o dossel de chamas em seus vidros coloridos.
-Não, obrigada -respondeu.
O sorriso de Pietro ampliou-se. Essa era uma tática com a qual ele já
estava familiarizado, e facilmente descartável. Ele colocou a mão no
peito, fingindo verdadeira angústia.
-Mas você vai partir meu coração! -ele disse.
Sua recusa em deixá-la partir dignamente provocou raiva em
Carolina, suficientemente inflamada para derreter o medo que
paralisava seus dedos. Ela juntou suas saias e subiu o degrau
seguinte.
-Não creio -ela disse, passando rapidamente por ele.

***
No topo das escadas, ela hesitou. Chegara a uma longa sacada que
dava para a imponente escadaria e para o vestíbulo embaixo.
Diretamente à sua frente, inúmeras portas abriam-se para o salão de
baile. A sua direita, no extremo oposto da sacada, havia uma janela
de pelo menos três vezes a sua altura, transformada em espelho
pela noite. Na outra extremidade da sacada, à sua esquerda, havia
uma porta. Ela apressou-se em sua direção, passando pelo meio dos
poucos convidados espalhados ao longo do caminho, sem sequer
um olhar ou um cumprimento. A maçaneta girou facilmente sob
sua mão. O aposento estava completamente às escuras, salvo por
vagos vestígios de estrelas distorcidos por altas janelas. Turri riu.
Sua figura destacou-se das sombras densas abaixo da janela mais
próxima. Um volume escuro sacudiu-se em sua mão.


-Estou lendo sobre máquinas a vapor apenas com o luar -ele disse.
-Só consigo entender metade do texto, portanto se tornou uma
espécie de experimento. Tudo que não consigo ver tenho que
inventar.
Reconfortada pelo som de sua voz, Carolina deu alguns passos
dentro da escuridão.
-Cuidado -ele disse. -Bati as canelas em meia dúzia de mesas de
canto no caminho até aqui.
Ela parou no escuro e estendeu os braços. Suas mãos descreveram o
diâmetro de um desajeitado semicírculo, mas não encontraram
nada.
-Na verdade, há apenas duas mesas -Turri corrigiu-se.
-E depois a estátua de uma menina, colocada no meio de outras
peças da mobília sobre um suporte baixo em vez de um pedestal, de
modo que um homem desavisado pode se ver de repente cara a cara
com ela.
Conforme os olhos de Carolina se adaptavam à pouca luz, estantes
altas começaram a surgir entre as janelas. Ela pôde distinguir os
contornos de duas mesas próximas, mas nenhuma pedra branca
cintilou na penumbra.
-Verdade? -ela disse.
-Você não a vê? -ele perguntou. Ouviu-se uma batida na porta.
Cuidadosamente, Carolina virou-se no escuro. A batida repetiu-se.
Ela abriu a porta. Um estreito triângulo de luz amarela dividiu o
aposento. Pietro estava parado ali, as mãos apertadas às costas
como uma criança contrariada.
-Carolina! -ele exclamou, com toda a emoção de um marinheiro de
um navio naufragado que mal podia acreditar que seus salvadores
tivessem chegado. Então, ele parou, tentando ler seu rosto. Após
um instante, desistiu e lançou-se à frente. -Enviaram alguns
músicos para o jardim com lanternas -ele disse. -Gostaria de me
acompanhar até lá?
Atrás de Carolina, um livro se fechou nas trevas. Carolina lançou


um olhar para trás, mas Turri permaneceu em silêncio, sua sombra
dissolvida no resto.
Pietro remexeu os pés, hesitante, toda a sua galhardia esquecida.
Pela primeira vez, ela teve compaixão dele.
-Obrigada -disse ela, tomando seu braço.


A conversa entre eles naquela noite não teve nenhum caráter
importante. Pietro identificou erroneamente várias constelações e
elogiou a qualidade do vinho, falando de uma maneira formal e
artificial, como se estivesse se esforçando para se lembrar da lição
que algum professor tentara lhe ensinar anos atrás, quando ele
ainda não via nenhuma razão para aprendê-la. Carolina começou a
respirar quase naturalmente após os primeiros quartetos. Ao final
da noite, ela havia lhe confidenciado que não estava convencida de
que realmente havia constelações: toda vez que olhava para o céu,
ele parecia ter mudado um pouco desde a última vez, embora ela
nunca pudesse identificar exatamente qual das milhares de luzes
havia se deslocado, a fim de provar seu caso.
-Todo mundo diz que as estrelas são fixas -ela lhe disse. -Mas
ninguém nunca diz o que as mantém lá.
-Mas como poderíamos saber isso? -Pietro perguntou, um pouco
queixoso.
No transcorrer da noite, foram interrompidos várias vezes pelos
cumprimentos de seus amigos, bem como por um fluxo permanente
de jovens senhoritas que se aproximavam do banco de jardim onde
estavam e falavam com Pietro como se ele estivesse sentado ali
sozinho. Mas Pietro não saiu do lado de Carolina. Finalmente, o
leve ruído das carruagens partindo começou a ultrapassar o muro
do jardim. Os músicos tocaram sua última peça, guardaram seus
instrumentos e partiram após uma pequena altercação quando o
violoncelo encalhou na escuridão em um canteiro de lírios.
-Carolina -Pietro disse. Seu tom de voz era urgente, o prelúdio de
uma confissão ou declaração. Mas, quando ela se voltou, ele parecia



estar buscando alguma resposta em seu semblante. Confusa, ela
abaixou os olhos.
-Já é muito tarde -ela disse. -Vão achar que fomos capturados por
ciganos.
Foi uma piada, mas Pietro sacudiu a cabeça energicamente.
-Eles jamais conseguiriam tirá-la de mim -prometeu.
Ele se levantou e ofereceu-lhe o braço. Carolina levantou-se e tomou
seu braço, deixando que ele a conduzisse através do jardim até a
casa, concentrando-se com todas as suas forças na difícil tarefa de
caminhar e respirar ao mesmo tempo.


***

Na semana seguinte, Pietro conseguiu convencer Carolina a se
deixar conduzir à pista de dança para uma série de números mais
familiares, e as outras jovens pararam de cumprimentá-la nos
corredores, como se ela tivesse se tornado invisível. Alguns dias
mais tarde, Pietro enviou um criado à casa de Carolina com um
enorme buquê de rosas que o mensageiro assegurou que o próprio
Pietro colhera no jardim, uma alegação nascida do fato de que o
maciço emaranhado de espinhos incluía o que pareciam ser galhos
inteiros de roseiras, decepados logo acima da raiz. Pietro ficaria
honrado, o velho criado acrescentou, se Carolina lhe concedesse o
prazer de fazer-lhe uma visita. Isso era inédito.
Uma ou outra vez, Pietro parecera ter favoritas entre as jovens
locais, escolhendo uma como seu par por uma longa série de danças
ou mesmo procurando uma determinada jovem no decurso de
vários eventos, até perder o interesse. Era capaz de fazer isso com
impunidade porque nunca envergonhava as moças nem suas
famílias dando sequer um mínimo passo nos domínios de um
namoro formal: visitas à tarde ou jantares em família. Carolina foi a
primeira jovem no vale a receber essa atenção.
Seu pai, um jardineiro esporádico, mas profundamente sentimental,
ficou chocado com a brutalidade de Pietro com suas roseiras e nem


um pouco impressionado com seu pedido para ver Carolina.
-Acho que devia mandar isto lá para fora e mandar plantá-las outra
vez -ele disse, olhando furiosamente para o monte de galhos e
botões que estremecia sobre a mesa do vestíbulo.
-Não, não! -protestou Carolina. Lançou as mãos entre as folhas
vermelho-esverdeadas, sufocou um grito quando os espinhos
espetaram os dedos e as palmas, e retirou-as abruptamente.
Diante da porta aberta, o criado esperava sob o forte sol de meio-
dia.
-Amanhã? -perguntou Carolina, suplicante.


Seu pai sacudiu a cabeça para o emaranhado de rosas. Em seguida,
assentiu.
Com o coração acelerado e a bravata muito bem encenada de uma
jovem rainha dirigindo-se a seus súditos pela primeira vez, Carolina
voltou-se para o mensageiro.
-Ele pode vir amanhã -disse-lhe.


***

Os limoeiros foram recebidos como herança pelo pai de Carolina,
mas seu amor por eles era real: quando menino, insistiu para que o
jardineiro plantasse meia dúzia de mudas no jardim da família, de
modo que, ao se tornar adulto, não tivesse que andar até a
plantação para pegar uma flor ou um fruto. Essas mudas agora
sombreavam todo o jardim dos Fantoni. Seu jardineiro
constantemente reclamava de ser o único no vale a ter que produzir
flores dos canteiros todo ano sem a ajuda da luz solar, ao que o pai
de Carolina invariavelmente respondia que grandes obstáculos
eram os professores de grandes homens.
No dia da primeira visita de Pietro, as flores da primavera haviam
caído dos galhos dos limoeiros, mas suas folhas eram novas e
viçosas, ainda não atingidas pelo calor que iria escurecê-las.
Carolina sentou-se sob elas sem ar, mas perfeitamente imóvel,
pronta para acreditar em qualquer coisa. Se fosse verdade, como seu


bilhete alegava, que Pietro chegaria a qualquer momento para
passar uma hora com ela no jardim, então muitas outras de suas
fantasias excêntricas também seriam possíveis. O céu poderia se
enrolar repentinamente, como o padre às vezes ameaçava,
revelando o outro mundo que os homens só conseguiam vislumbrar
agora em sombras e miragens, um mundo de cuja existência
Carolina suspeitara muito antes de sua aleatória introdução à teologia
por causa de um intermitente, mas profundo, sentimento de que
mesmo as coisas mais sólidas careciam de peso real, e que, se ela
soubesse o truque, seria simples conseguir ver através delas.
As sombras na grama nova oscilaram, mas não desapareceram.
-Carolina? -A voz de Pietro era tão desconhecida quanto a de um
estranho.
Carolina ficou paralisada como uma criatura assustada na floresta.
Antes de seu raciocínio realmente retornar, Pietro já a avistara
através das árvores. Dirigiu-se para ela em passos largos,
sorridente.
-Sua mãe disse que eu a encontraria aqui -ele disse, afastando os
galhos novos de sua frente. Então, parou acima dela, tão bonito que
ela simplesmente ficou olhando para ele, os olhos erguidos, todos os
seus pensamentos subjugados. -Ela disse que não consegue mantêla
dentro de casa, verão ou inverno -Pietro provocou-a.
-Gosto do lago e do jardim -Carolina disse-lhe, ouvindo a própria
voz com a mesma curiosidade com que ouviria às escondidas um
casal sussurrando ao seu lado durante uma dança, e com a mesma
incerteza sobre o que diria em seguida.

Pietro sentou-se a seu lado no banco. Ele estudou seu rosto
cuidadosamente por um instante. Depois, tomou sua mão. Ela se
surpreendeu com seu calor, como da primeira vez em que
dançaram, quando também ficou surpresa ao perceber que, como
outros homens, ele precisava respirar. Ele sorriu.


-Pensei em você a noite toda -ele lhe disse. -Só adormeci quando
amanhecia e quando acordei vim direto para cá.
-Às vezes, eu não consigo dormir -Carolina concordou.
-Mas eu sempre consigo dormir -Pietro disse ansiosamente e
continuou, contando-lhe sobre uma briga turbulenta, durante a qual
seus amigos estraçalharam uma cadeira e destroçaram duas janelas
e o nariz de um deles, enquanto ele dormia como uma criança em
um sofá no meio da confusão. Quando ela sorriu diante da história,
ele começou a contar outra, aparentemente seguindo o tema de
brigas, em que um amigo seu deu um tiro errático em outro e
acidentalmente matou um cavalo do lado de fora na rua, fato que
descobriram somente horas mais tarde, quando saíram e
encontraram o pobre animal morto, estendido na chuva.
Durante a semana seguinte, ele lhe contou inúmeras histórias e
segredos. As histórias sempre eram narradas como se ele falasse a
uma pequena plateia, mesmo quando Carolina era a única pessoa
presente: a voz um pouco alta demais, os gestos um pouco
espalhafatosos, desviando o olhar do rosto dela de vez em quando,
como se tentasse captar a atenção de outro par de olhos. Algumas
dessas histórias ela já conhecia, já que fazia muito tempo que
haviam passado ao lendário local: o incêndio nos Rossi, as festas de
marzipã, a noite em que ele pendurou Ricardo Bianchi, manietado,
da forquilha de uma figueira.
A história de seu estranho pesar com a morte de sua mãe também
era bem conhecida no vale: em vez de atirar o punhado de pétalas
sobre o caixão de sua mãe como fora instruído, Pietro, então com
cinco anos, saltou dentro da sepultura com ela e, quando se recusou
a segurar uma das muitas mãos estendidas para puxá-lo de volta
para cima, um cavalariço foi obrigado a descer e resgatá-lo. Cada
passo que o garoto ou o homem deram durante a luta reverberara
com um terrível eco no caixão de madeira, um som que nenhum
dos presentes conseguira esquecer. Mas agora Pietro confessou a
Carolina que o sofrimento pela sua perda não o deixou com o


dilúvio de lágrimas raivosas que ele chorou nas semanas seguintes
à morte de sua mãe: fora seu constante companheiro de infância. Na
realidade, seu jardineiro ainda tinha o hábito de manter suas pás
trancadas desde a sua infância, quando, à menor oportunidade,
Pietro entrava furtivamente no barracão do jardineiro para roubar
as pás e empreender um novo ataque à terra que cobria a sepultura
da mãe.
-Nunca contei isso a nenhuma outra garota -ele lhe disse, olhando
dentro de seus olhos com surpresa e uma certa expectativa curiosa,
como se esperasse que ela lhe explicasse por que a havia escolhido.
Mas isso era um mistério também para Carolina. Ela nunca pedira
para saber seus segredos, e não tinha certeza se queria ouvi-los.
Pareciam-lhe confissões, não as tolices agradáveis que ela achou que
um novo namorado confidenciaria. Ela sentiu seu peso e sua
própria incapacidade de curar ou absorver, e isso a assustou. Viu-se
ansiando pelo Pietro que seu coração havia construído durante os
anos anteriores: decidido, compreensivo e destemido, vindo
resgatá-la do próprio Pietro enquanto ele continuava a divagar a
seu lado. O anseio a deixava tonta.
No entanto, Pietro não parecia se cansar de suas conversas, ou dela.
A convite de sua mãe, ele voltou para jantar na noite de sua
primeira visita, e a partir dali estabeleceu-se o padrão. Todo dia ele
ia à casa de Carolina sob algum pretexto: levando um par de
coelhos sangrados que havia abatido naquela manhã porque o pai
dela admitira gostar de carne de coelho; levando uma garrafa do
melhor vinho de seu pai, que esperava que aliviasse a dor de cabeça
de que a mãe de Carolina se queixara no dia anterior; ou insistindo,
para deleite de seu pai, que a sombra no jardim de Carolina era
simplesmente muito mais agradável do que o sol forte no seu, de
modo que ele não podia deixar de preferir passar seu tempo ali.

***

Carolina viveu esses primeiros dias com Pietro em parte acreditando
que tudo não passava de um sonho do qual ela acordaria a qualquer


instante, e atravessou esses dias como se o mais leve som ou
movimento pudesse fazer o mundo inteiro se dissolver. Já era fim
de semana quando ela se lembrou de que havia dias não via seu
lago, o que só lhe ocorreu quando observava uma forte chuva de
verão açoitar o caminho de entrada da casa de seu pai, formando
filetes de água no cascalho. Era domingo. Na noite anterior, no baile
de gala dos Ro-setti, Pietro dançara mais da metade das danças com
ela, e passou a maior parte do resto do tempo ao seu lado sob um
dos enormes leques de penas de ganso que Silvia Rosetti mandara
afixar nas paredes do salão de baile, grandes o suficiente para,
numa emergência, poderem também servir de asas para um homem
adulto. Durante uma das valsas mais sentimentais, Pietro indicou
com um sinal da cabeça um homem com um casaco militar e repetiu
uma história que ele lhe contara havia apenas alguns dias:
-Quando eu era mais jovem -ele murmurou, com toda a premência
de um novo segredo -, meu maior sonho era morrer em combate.
Nunca imaginei que viveria até esta idade.
Carolina sentira o olhar de duas jovens do outro lado do aposento.
Quando seus olhos se encontraram, elas rapidamente desviaram o
olhar. Ela voltou a olhar para Pietro, esforçando-se para compor a
fisionomia em uma expressão de surpresa e solidariedade.
-Fico feliz de você ter se enganado -ela disse, como na primeira vez
em que ele lhe contou a história.
Com grande emoção, ele tomara-lhe a mão entre as suas.
Ainda não havia chegado nenhum recado dele hoje. A rápida
tormenta rapidamente se desfez. Quando os finos riachos do
caminho de entrada sossegaram, refletindo o céu branco, Carolina
se levantou e saiu.
Turri estava parado à beira d'água, completamente encharcado,
grandes áreas da camisa fina grudadas à pele.
-Você podia ter entrado -Carolina chamou.

Turri olhou para trás e sorriu para ela.


-Andou nadando? -ela perguntou ao alcançá-lo. Ele sacudiu a
cabeça.
-Estava estudando a chuva.
-E o que descobriu? -ela perguntou. O sol ainda estava oculto por
uma névoa fina que encobria todo o céu visível, porém a luz era
bastante forte para ela ver, mesmo de onde estava, a água em suas
têmporas brilhar.
-Eu estava dormindo na margem -ele disse. -Acordei quando
começou a chover. Comecei a ir para a casa, mas depois fiquei
pensando o que eu veria se simplesmente ficasse aqui, olhando para
cima.
-E o que viu?
-Chuva -ele disse, rindo outra vez. -Depois, ela entra nos seus
olhos e você não consegue ver mais nada.

***

Turri não perguntou sobre sua ausência e ela não mencionou Pietro
para ele, embora fosse impossível que ele não tivesse ouvido os
boatos. Em vez disso, viraram seu barco a remo para cima e
empurraram-no juntos para o lago. Carolina assumiu os remos e
Turri espraiou-se na proa. Suas roupas úmidas secaram conforme a
luz do sol consumia as nuvens remanescentes. Carolina deixou os
remos flutuarem livremente, hipnotizada pelas mil maneiras como a
floresta mudava toda vez que o barco balançava levemente para a
direita ou para a esquerda. Finalmente, o sol livrou-se
completamente das nuvens. Ao levantar a mão para encobrir os
olhos, ela percebeu que não tinha a menor ideia de quanto tempo se
passara. De repente, totalmente alerta de preocupação, remou a
pouca distância de volta a terra e, em seguida, a pedido de Turri,
empurrou-o de volta para a água outra vez.
Quando voltou para casa, uma criada lhe disse que Pietro já havia
chegado e que sua mãe o levara para a estufa. Seu pai construíra a
estrutura de vidro no gramado dos fundos quando Carolina tinha


sete anos, mais uma vez sob os protestos de seu exasperado
jardineiro, de modo que sua mãe sempre pudesse ter as flores do
Sul de que ela se lembrava de sua juventude. Hoje, os painéis de
vidro ainda estavam embaçados da chuva.
-Carolina! -Pietro exclamou, como se ela fosse um navio
retornando de uma viagem desconhecida.
-Onde você estava? -sua mãe perguntou, um tom de censura na
voz.
Carolina parou na entrada do recinto úmido. Em suas mesas de
madeira cobertas com uma fina película de umidade, lírios, frésias e
um bando de orquídeas ceráceas aguardavam sua resposta.
-Fui ao lago -ela disse. -Turri estava estudando a chuva.
-Turri? -Pietro perguntou, inespecificamente, como se ajudasse um
amigo a apresentar o auge de uma piada muito conhecida.
-São amigos desde quando Carolina era criança -a mãe de Carolina
acrescentou rapidamente.
-Eu também! -Pietro disse, ele próprio desbravando corajosamente
a piada, já que ninguém mais se oferecera para completá-la. -Ele
enchia o rio de bolhas de sabão quando éramos garotos. Todos os
juncos ficavam sufocados de espuma. Vi um passarinho vermelho
sair voando com um pouco de espuma pendurada do bico, como a
barba de um velho.
Ele parou, esperando ouvir risos, e pareceu surpreso, como tão
frequentemente acontecia, ao descobrir que o grupo para o qual
falava fora reduzido outra vez para apenas duas mulheres que
estavam com ele na sala quando começou. Quando nem Carolina
nem a mãe falaram, seu rosto se enuviou. Então, pareceu ocorrer-lhe
uma explicação. Ele adiantou-se, a passos largos e rápidos, através
das plantas, tomou a mão de Carolina e beijou-a.
-Quando você vai me levar ao seu lago? -perguntou. Como isso
nunca havia lhe ocorrido, Carolina não respondeu.
Após um instante, Pietro sorriu indulgentemente.


-Tudo bem -ele disse. -E melhor que os namorados guardem
alguns segredos.
***

No fim de semana seguinte, quando um pequeno coro de violinos
entoou em uníssono alguma grande decepção em seu passado
distante, Pietro beijou-a pela primeira vez. Estavam abrigados sob
uma grotta embaixo da varanda da casa dos Conti. Acima deles,
todos os seus vizinhos giravam em círculos sob tochas que
queimavam nas bordas da pista de dança improvisada.


Seu beijo foi delicado, mas urgente. Quando a soltou, ela deixou a
cabeça cair em seu peito, o rosto afogueado e a respiração acelerada.
Ninguém jamais a beijara, e nada do que tinha ouvido dizer ou
visto a preparara para o calor insistente que se espalhou pelo seu
corpo.
Ele riu, afagando seus cabelos cheios.
Carolina agarrava o casaco de Pietro com ambas as mãos cerradas,
esperando o calor passar. Ao invés disso, tornou-se mais forte,
ressoando mais alto do que os violinos. Ela ergueu o rosto.
-Outra vez -ela disse.
Um mês depois, quando as últimas flores de agosto começaram a
fenecer, Pietro abaixou-se sobre um dos joelhos enquanto o pai de
Carolina observava de seu posto junto à grade vazia da lareira e sua
mãe se empertigava no sofá onde descansava. Ele tirou um pequeno
pedaço de papel amarrotado do bolso e abriu-o, revelando o anel de
brilhante de sua mãe, que brilhava como um fragmento de gelo
quase derretido pelo sol da manhã.
Era impossível recusá-lo.


***

Carolina nunca soube ao certo quando a cegueira se instalou.
Olhando para trás, através dos armários turvos e apinhados de sua
mente, ela encontrou meia dúzia de dias, espalhados ao longo de
uma década: na ocasião em que, ainda criança, ela esfregara os


olhos com tanta força que o mundo ficara manchado por horas com
sombras verdes e vermelhas; a maneira como todas as demais
pessoas pareciam se acostumar à escuridão muito antes que seus
próprios olhos conseguissem divisar formas; o dia em que bateu a
cabeça ao cair de uma árvore e ao acordar encontrou um mundo à
deriva, oscilando tão suavemente quanto uma folha na superfície de
seu lago. Todas as peças que seus olhos haviam lhe pregado voltaram
à sua lembrança: pássaros que provavam ser apenas flores em
um galho; flores que de repente acordavam, abriam as asas e
provavam ser pássaros.
Mas foi no outono depois do pedido de casamento de Pietro,
quando tinha dezoito anos, que a cegueira tornou-se inegável. Mais
tarde, Carolina percebeu que devia ter começado pelas bordas de
sua visão e que se fechava para o centro como o crepúsculo: tão
devagar que nenhuma mudança era perceptível de um momento
para o outro, mas tão constante que, quando finalmente ela
reconheceu que a tarde caía, a verdadeira noite estava a um átimo
de distância. A medida que as árvores soltaram suas folhas, ela se
tornou irrequieta. Podia ouvir a ressonante pancada de um
mergulhão na água do lago, mas o canto de seu olho não capturava

o movimento. Esquilos caçoavam dela de cima das árvores, mas,
quando virava a cabeça para vê-los, haviam desaparecido.
Quando as últimas folhas da estação submergiram para o fundo do
lago, deixando a floresta nua, Carolina olhou para o outro lado das
águas negras, para a fileira de sete árvores que seu pai deixara de pé
quando pela primeira vez desmatou a terra: um velho e generoso
salgueiro, uma macieira silvestre, uma árvore não identificada com
a casca cinzenta e lisa, um carvalho, uma muda de carvalho e um
par de esbeltos vidoeiros entrelaçados como gêmeos ou amantes,
tão unidos que seus galhos roçavam ruidosamente ao vento. Contar
todas elas fora um passatempo favorito para Carolina quando
criança, e continuou sendo uma satisfação enquanto crescia. Mas
agora seu campo de visão não conseguia abranger todas elas. Podia

ver o salgueiro ou as gêmeas: nunca todas no mesmo olhar. Pela
primeira vez, ela compreendeu que estava ficando cega.
Essa percepção atingiu-a com toda a força de uma conversão. Como
uma nova crente, nunca mais conseguiria ver o mundo da mesma
forma outra vez, quer mantivesse ou perdesse sua fé. Mas a forma
do novo mundo, o ritmo de sua liturgia, as propriedades de seus
anjos e demônios ainda eram um mistério.
Durante a maior parte do inverno, Carolina testou sua cegueira. Por
exemplo: com que velocidade avançava? Talvez, tendo levado toda
a sua vida para chegar a este ponto, pudesse levar mais vinte anos
para se apoderar de outra fração de sua vista. Com uma precisão
científica que teria deixado Turri orgulhoso, ela desenhou as
árvores na margem oposta e assinalou o que podia ver quando as
encarava de frente do degrau mais alto de sua casa. Em novembro,
ela podia captar cinco árvores, limitadas pelo salgueiro e a muda de
carvalho. No Ano-Novo, a muda de carvalho havia desaparecido.
Quando a escuridão começou a engolir o salgueiro também, ela
tentou contar aos pais. Quando o salgueiro se extinguiu, ela contou
a Pietro.

A essa altura, Pietro já conhecia bem seus hábitos para reconhecer
que ela não era igual às outras jovens de seu círculo, e começou a
chamá-la de "minha estranha". Sua declaração pareceu-lhe ser
apenas mais um alegre contrassenso, como seu afeto pelo seu mal
concebido lago com suas margens lamacentas ou sua inexplicável
paciência com as experiências de Turri.
Seus pais há muito haviam esquecido suas tentativas de avisá-los. O
pai estava empenhado em uma guerra de atritos com o jardineiro, o
qual insistia que, se cortasse todas as flores que seu patrão exigia
para o casamento de Carolina, o próprio jardim, onde seria
realizada a recepção, teria todo o charme de um deserto -ao que o
pai da noiva retrucava que todos os gênios eram ridicularizados
pelos seus próprios criados. A mãe de Carolina raramente deixava


seus aposentos, mas um fluxo permanente de criados e mensageiros
agora ia e vinha, carregando frutas, chocolates, porcelanas,
pratarias, sedas, brocados e rendas e um desfile de presentes
enviados com antecedência pelas centenas de convidados.
Carolina sempre abria esses presentes na companhia da mãe, de
modo que, enquanto perdia a visão, ela pudesse manusear algumas
das peças mais lindas que já vira: uma caixa laqueada, azul da cor
do ovo do pintarroxo, ondeada como o tafetá chamalote, forrada de
veludo rosa-escuro; uma concha espiralada do tamanho de seu
punho fechado, com uma tampa de prata, para guardar sal; lençóis
bordados com flores de limoeiro e vinhas; uma tigela para doces, de
vidro, cor de sangue; uma bandeja de prata moldada no formato de
uma enorme folha de parreira, com um cacho em tamanho real de
frias uvas de prata, aconchegado sob a curva do cabo, e com um
pequeno pássaro empoleirado na borda oposta, fitando
ardentemente a fruta de metal.
No começo, Carolina tentou memorizar todos esses objetos. Iniciou
um cuidadoso catálogo em sua mente, fechava os olhos e testava a si
mesma. Mas rapidamente descobriu que, toda vez que evocava um
objeto em sua memória, ele se desfazia ou mudava. O pássaro na
bandeja, que parecera tão esperançoso quando o vira pela primeira
vez, tornou-se melancólico em sua mente e desenvolveu olhos de
contas: às vezes de ônix, às vezes de safira, de modo que, toda vez
que olhava novamente para a bandeja real, tinha a sensação de que
não era tão bonita quanto parecera ser. A caixa de laca abriu-se em
sua lembrança pouco confiável revelando ovos brancos salpicados
de marrom, pedras cinzentas, lisas pela ação do rio, diamantes
soltos. Por fim, ela desistiu do projeto de memorização, mas
continuou tentando absorver o máximo possível do mundo: a luz de
velas no quarto de sua mãe, aves aquáticas aterrissando em seu
lago, as dobras de seu vestido branco conforme a costureira o
ajustava, acrescentava cem metros de renda e o ajustava de novo. O
mundo tinha dificuldades em suportar seu olhar inquiridor. A


cegueira nos cantos de seu campo de visão e a água escura do seu
lago fundiam-se em uma densa sombra que ameaçava engolir o céu
e as árvores que ainda conseguia ver. A floresta parecia perder a
profundidade e achatar-se, como se fosse apenas pintada no pano
de fundo de uma companhia de teatro itinerante. Tudo dava a
impressão de estar em perigo de revelar qualquer horror ou
maravilha que o mundo visível agora obscurecia.
Mas a cegueira nunca dava trégua. Na semana anterior ao seu
casamento, ela perdeu o carvalho, restando apenas a árvore
desconhecida e a macieira silvestre, inteiramente florida de um dia
para o outro, como uma noiva emocionada, estremecendo de alegria
à mais leve brisa.
Foi então que ela contou a Turri.

***

Na primavera em que Carolina nasceu, sua mãe mandou plantar
fileiras e fileiras de roseiras brancas, em preparação para o dia do
casamento da filha. Hoje, seus galhos enfeitavam o arco da porta da
igreja, presos no lugar com drapeados de tecido fino, arrematados
aqui e ali por nuvens de flores brancas que a criada de Carolina
chamava de "luz das estrelas" ou por longos tufos de capim
verdejante das margens do rio. Uma infinidade de rosas cobria as
mesas que os criados arrumaram na noite anterior no gramado,
onde duas ajudantes de cozinha agora montavam guarda contra
novas tentativas de um robusto corvo ladrão. Ele já havia
habilmente roubado um par de garfos e uma faca reluzente nas
primeiras horas da manhã, antes de um cavalariço, defendendo sua
própria honra na questão, descobrir o verdadeiro larápio e assustar

o pássaro, fazendo-o largar a colher que teria completado seu
conjunto de talheres. Havia montanhas de rosas no toucador de
Carolina enquanto sua criada a ajudava a entrar no vestido e sua
mãe ajeitava seu cabelo. A cegueira havia avançado tanto que ela
agora via o mundo como se espreitasse através de uma folha de

papel enrolado -algumas frases em uma página, um único rosto.
Isso fazia toda a ideia do casamento com Pietro, que sempre lhe
parecera um estranho sonho do qual poderia acordar a qualquer
instante, parecer ainda mais irreal.
Na igreja, seus olhos cada vez mais fracos reduziram as flores que
se entrelaçavam acima da porta da igreja a uma névoa de branco e
verde, e os parentes e vizinhos reunidos a uma neblina sussurrante.
Ela desceu a nave da igreja de memória e adivinhação, dando
pequenos passos para evitar tropeçar em seus metros e metros de
renda e seda, reequiIibrando-se de vez em quando, ao pisar em uma
das infelizes rosas que haviam sido espalhadas em sua honra sobre
as pedras desgastadas do pavimento. Quase na metade da extensão
da nave, ela apreendeu o som de uma voz familiar e voltou-se para
ver Turri. Ele devolveu-lhe o olhar como se fosse mais um dia
comum e ele estivesse apenas esperando por uma resposta ou seu
próximo movimento em um jogo. Ao seu lado, Sophia ergueu os
olhos para ela com a astúcia desarrazoada, mas infalível de um
gato, absorvendo cada detalhe de seu vestido com avidez e
desconfiança.
Carolina, então, voltou os olhos novamente para o altar, onde cem
velas bruxuleavam pálidas na forte luz da tarde, gotejando cera
quente sobre as faces das conformadas ásteres e flores azuis
amontoadas a seus pés. Pietro aguardava ao lado do padre, a luz
defletindo ao seu redor: bonito, confiante, sorridente.

***
-Você parece um pássaro -queixou-se Pietro. -Fique quieta. O
oceano não vai fugir.
Carolina, que andara girando a cabeça rapidamente de um lado
para o outro na vã esperança de capturar a linha da costa inteira em
um único olhar, fez o que lhe foi pedido. A vasta expansão de areia
branca e a fita azul do oceano que se estendia além dela até o céu
desapareceram, substituídas pelo mar em camafeu, um fragmento


oval reluzente, pequeno o suficiente para ser pendurado no pescoço
de uma mulher, cercado de trevas.
Pietro virou seu rosto para ela e beijou-a.
-Você é tão linda -murmurou. -Acho que nunca poderei amá-la
mais do que agora.
Carolina nunca temera a escuridão, mas, durante os ofuscantes dias
de sua lua de mel à beira-mar, ela se tornou uma amiga. O oceano
cintilante era um verdadeiro tormento para ela, com toda a luz de
mil ondas fluindo para dentro de seus olhos limitados, mas, quando
a noite vinha, ela se sentia em igualdade de condições novamente: o
mundo inteiro também ficava cego. Na realidade, ela assumia uma
posição vantajosa. A cegueira a curara de superstições a respeito
das qualidades secretas da escuridão, o medo de que as coisas se
transformassem e se tornassem estranhas quando não governadas
por um olho humano. Através de uma longa associação, ela
aprendera que a escuridão não tinha nenhum poder de alterar o que
escondia. Sua escova de cabelo ou caneta podia ficar obscurecida
pela cegueira, mas, quando estendia a mão para pegá-las, eram as
mesmas de sempre. Em consequência, as sombras já não possuíam
nenhuma magia para ela. Sua confiança permanecia a mesma à
medida que o céu do crepúsculo passava de azul a negro. A noite,
movimentava-se com mais confiança até mesmo do que Pietro, cuja
dependência da luz do sol o tornava desajeitado no escuro. Assim,
era ela quem o conduzia pelos cantos não iluminados da cidade
litorânea depois que as lojas já haviam se fechado e os restaurantes
haviam se esvaziado, enquanto os garçons jogavam baldes de água
nas pedras do calçamento para apagar as provas das festas daquela
noite e a música cigana começava a fluir de algumas janelas abertas.
Pietro adorava essas perambulações, disposto a acatar os caprichos
de sua jovem esposa pela oportunidade que eles lhe ofereciam de
alcançar as curvas indistintas de seu corpo em fuga em um beco
escuro, ou de pressioná-la contra os muros de alguma ruela
secundária. Ele era um amante ardente, mas delicado, ainda mais


terno com ela quando livre da impossível tarefa de forçar seus
sentimentos mais profundos à superfície sob a forma de palavras.
Carolina estava, em parte, empolgada e, em parte, aterrorizada com
a maneira com que ele se transformava no escuro: chocada com os
lugares que as mãos dele buscavam e com a maneira como seu
próprio corpo despertava e ardia sob elas, espantada em descobrir
que o toque de suas próprias mãos podia fazê-lo encolher-se ou
gemer, mas, acima de tudo, grata por um mundo em que somente
gosto e tato, som e cheiro importavam, onde, mesmo se ela abrisse
os olhos, o horizonte se reduzira apenas ao que ainda podia captar:
os olhos de Pietro, sua nuca, seu dedo preso entre os dentes dele.
Cada dia, no entanto, era um novo mistério. Levantando-se de sua
cama de casal, vestiam-se rapidamente, como o primeiro homem e
mulher, agora nus e envergonhados. Suas refeições transcorriam em
longos silêncios, pontuados por amenidades parcialmente
lembradas. Confuso, Pietro retornava repetidamente ao tema da
beleza de Carolina, o que ele ardentemente acreditava que devia
agradar a ela tanto quanto agradava a ele.
-Acho que Deus estava praticando quando fez os anjos -ele dizia,
estendendo a mão para pegar um punhado de seus cabelos. -Para
criar esta linda cabeça.
Carolina não sabia o que dizer diante disso. Os anjos de seu
catecismo eram homens ameaçadores, e ela tinha pavor de falar de
Deus, no caso de ele se lembrar dela e acelerar a maldição que havia
escolhido. Além disso, Pietro não parecia querer ver seus elogios
respondidos. Nos primeiros dias de sua lua de mel, confusa com as
louvações, ela se restringira às regras básicas de etiqueta.
-Seus olhos também são bonitos -ela disse.
Por um instante, ele sorriu como uma criança mimada, mas
rapidamente a luz do orgulho perdeu-se em um ar carrancudo.

-A beleza é um guia cego em um homem -ele lhe disse,
provavelmente nos mesmos tons severos com que isso lhe fora dito.


-Sinto muito -ela arriscou.
-Não há por quê -ele disse, mais gentilmente.
Carolina não se lembrava desse comedimento nos meses de
namoro, mas os momentos que haviam passado sozinhos juntos
antes do casamento totalizavam apenas algumas poucas horas,
despendidas em breves períodos arquejantes atrás de moitas e em
corredores, trocando beijos ardentes, tateando cegamente em busca
do que pudesse estar escondido sob a renda em seu peito ou no
côncavo da mão dele. Fora isso, sob o olhar vigilante de sua família,
haviam apenas flertado e provocado um ao outro até o dia em que,
enquanto sua mãe chorava silenciosamente, Carolina o aceitara
como marido.
-Gostaria de ir dançar esta noite? -Pietro perguntou certa tarde,
unindo-se a Carolina na sacada do quarto. -Estão erguendo um
pavilhão na praia.
As extensões de gaze branca que bloqueavam a luz da manhã
esvoaçavam ao redor deles como fantasmas amarrados das brisas
do oceano. O sol acabara de desaparecer no horizonte e, no luscofusco
embaixo, as luzes começaram a aparecer, marcando o
caminho das ruas, as entradas dos restaurantes, os quiosques onde
vendedores noturnos ofereciam vinho e frutas aos amantes e jovens
famílias à beira-mar.
Quando ela não respondeu imediatamente, ele focinhou seu
pescoço como um cavalo favorito.


-Não temos que dançar -ele disse. -Você determina.
Carolina virou-se no círculo de seus braços e ergueu os olhos para
ele. Cercado pela escuridão, seu rosto bonito era tão franco e
esperançoso quanto o de uma criança.
No desespero, ela fechou os olhos.
Pietro beijou-os.


***

A propriedade de seu marido fazia fronteira com a de seu pai. Na


realidade, o rio que alimentava o lago de Carolina vinha das terras
de Pietro. Uma de suas curvas era visível da casa de Pietro, ao pé de
uma suave colina que descia até uma área de atracação onde dois
barcos velhos cochilavam ao sol.
Na primeira manhã depois de sua volta do oceano, Carolina
acordou e viu-se sozinha. Os lençóis de Pietro estavam afastados, já
frios. Ligeiramente zonza com a repentina liberdade de sua
constante companhia, ela vestiu-se, encontrou seu caminho até as
escadas e saiu pela porta da frente, andando na direção de seu lago
com a compulsão de um pássaro migratório que segue um mapa
profundamente gravado mais fundo em sua mente do que seus
próprios pensamentos. Ela passou o dia fitando as águas escuras.
Sua visão havia diminuído ao ponto de seu campo de visão ficar
quase completamente dominado pelas sombras, com dois minúsculos
pontos luminosos através dos quais ela ainda podia ver o
mundo, como se o fizesse através de janelas no lado oposto de um
aposento. Através deles, ela observou a névoa se evaporar e o lago
espelhar o céu branco. Nuvens refletidas vagavam pela superfície e
desapareciam nos juncos. Aves aquáticas aterrissavam com uma
revoada rítmica de asas, lançando o mundo inteiro no caos.
Quando a tarde caía, ela abriu caminho pelo mato, na altura da
cintura, que crescia ao longo do rio, de volta à casa de Pietro.
Ela o encontrou na cozinha, comendo frango frio.
-Onde você andou se escondendo? -ele perguntou.
-Onde você acha?
Essa resposta não foi uma piada, mas em outro dia qualquer ele
poderia tê-la tomado por uma e sorrido. Quando não o fez, Carolina
atravessou a cozinha até onde o marido estava sentado, inclinou-se
sobre ele e pressionou seu rosto contra o dele. Ele cheirava como se
tivesse acabado de voltar de uma cavalgada -vestígios de suor
recente e o cheiro empoeirado, adocicado, de forragem do celeiro.
-Onde você esteve? -ela perguntou.
Pietro plantou um beijo engordurado em seu rosto.


-Aposto que passou o dia inteiro lá fora sonhando sem comer nada
-ele disse. Levantou um pedaço de galinha da toalha da mesa. -E
então? Não está com fome?

***

Como não havia nenhuma trilha de sua nova casa até o lago,
Carolina fazia um caminho diferente a cada dia: pelo meio dos
pinheiros que davam para a casa de Pietro, logo depois do grande
gramado da frente, ou abrindo caminho com dificuldade pelo capim
da altura da cintura no terreno pantanoso ao longo do rio. Em seus
novos aposentos, os baús e as caixas de seus pertences,
cuidadosamente empacotados pelas criadas de sua mãe,
permaneceram intocados por ela até o dia em que duas criadas de
Pietro, já exasperadas, os abriram, penduraram seus vestidos nos
armários e arrumaram seus pentes e vasos de flores no toucador e
nas mesas, executando todas essas tarefas com precisão impecável
para ressaltar sua desaprovação com a falta de interesse de Carolina
tanto em seus próprios pertences quanto em sua nova casa.
Três dias após sua volta, Turri ainda não tinha aparecido.
Na manhã seguinte, Carolina abriu a janela para observar os filhos
dos criados no quintal ao lado da casa. Cada figura explodia
repentinamente das sombras de sua cegueira somente quando ela
olhava diretamente para ela, quase como se estivesse espionando
através de um vidro. Duas meninas alegremente atiravam ração a
um grupo de gansos brancos, como se seu objetivo fosse cegar em
vez de alimentar as aves, que continuavam imperturbavelmente
gananciosas, apesar da saraivada de grãos duros. Rapazes
carregavam baldes de agua do poço para a cozinha, gritando
brincadeiras e ameaças às meninas mais velhas, que continuavam a
pendurar as roupas lavadas no varal como se fossem surdas. A
única exceção era uma jovem alta, talvez treze ou catorze anos, que
deu a um dos garotos uma resposta bastante ríspida para paralisá-lo
no lugar por um longo instante antes de franzir a testa, confuso, e


sair correndo. As feições da jovem eram delicadas, emolduradas por


cabelos negros, longos e lustrosos.
De longe, ela poderia passar por um anjo de um artista, mas a fúria
em seus olhos era inquestionavelmente deste mundo.
Quando uma das criadas chegou com seu jarro de água matinal,
Carolina deu umas pancadinhas na vidraça.
-Quem é aquela? -perguntou, apontando para a jovem.
-Liza -respondeu a criada.
-Mande-a vir aqui, por favor -disse Carolina.
Poucos minutos depois, a menina estava no quarto de Carolina,
absorvendo todos os ricos detalhes com olhares furtivos e ávidos
que acreditava rápidos demais para Carolina perceber.
-Sabe onde é a casa de Turri? -perguntou Carolina.
-É a casa na colina, com os leões -respondeu a menina.
-Ótimo -disse Carolina, pressionando uma carta na mão da jovem.


***
Naquela tarde, Carolina cortou caminho diretamente pelo meio da
floresta de pinheiros. O sol que se filtrava pelos galhos fundia-se em
um halo luminoso nos limites de sua visão, emprestando às árvores
e ao lago o aspecto de uma pintura sacra.
Turri chegara antes dela. Estava parado na margem, perto de sua
casa, e ficou vendo-a se aproximar, vindo do outro lado do lago.
Quando Carolina chegou mais perto, sua visão partiu o rosto dele
em dois e interpôs lampejos de água escura. Desconcertada sob seu
olhar escrutinador, frustrada com sua própria visão, ela dirigiu-se
para a casa sem cumprimentá-lo. Ele a seguiu.
-Está igual? -ele perguntou, antes mesmo que ela se sentasse.
Ao ouvi-lo declarar a verdade em voz alta, depois de mantê-la em
silêncio por tanto tempo, Carolina foi tomada por uma necessidade
premente de negar tudo e recolher-se com seus pais e Pietro para o
refúgio da ilusão pelo tempo que ela os acolhesse. Mas o som da


voz de Turri também pareceu soltar alguma coisa: tirar um peso de
seus ombros, abrir uma janela de par em par no aposento.
Ela balançou a cabeça e deixou-se afundar no sofá.
-Igual -ela disse. -Talvez um pouco pior. É difícil avaliar. É pior
com a luz forte. À noite, é melhor.
-Será melhor para você se ficar longe da luz forte -recomendou
Turri, virando a cadeira de trás para frente e sentando-se como se
montasse a cavalo. Ele devia ter ido direto para lá ao receber seu
recado: ainda usava as calças de couro surradas e a camisa de
operário larga que vestia em seu laboratório.
-Não avançará tão depressa? -perguntou ela rapidamente. -Posso
fazê-la parar?
Turri sacudiu a cabeça.
-Será apenas mais cômodo -respondeu ele. Enquanto ela esteve
fora, alguma tempestade de verão
havia rasgado o xale de uma das janelas. Uma grande mariposa
marrom lutava para atravessar os fios violetas e cor-de-rosa
remanescentes. Conseguindo chegar ao estreito peitoril da janela,
ela começou a percorrer toda a extensão de madeira não
envernizada, carregando suas belas asas como um fardo incomum.
Quando Carolina virou a cabeça para vê-lo, Turri também fitava o
inseto.
-E você -perguntou Carolina, em parte por costume e em parte
como uma fuga para a segurança de sombras familiares -, o que tem
feito nas últimas semanas?
-Estou construindo uma nova máquina para Sophia -respondeu ele.
-O que ela faz?
-Cozinha um ovo. Ela só precisa acender uma vela que aquecerá a
água, depositar o ovo pelo tempo necessário e retirá-lo.
-Mas como a máquina sabe quanto tempo é necessário? -Carolina
perguntou.
-Passei a semana depois do seu casamento confeccionando velas
que queimam um tamanho idêntico a cada minuto.


Carolina riu.
-Por que você simplesmente não lhe dá um relógio? -perguntou ela.
-Ela própria não pode contar o tempo?
-Poderia -disse Turri. -Mas ela não gosta de ovos.
Talvez assustada pela risada de Carolina, a mariposa escolheu esse
momento para mergulhar de sua plataforma, acima da cabeça de
Carolina. Ela enterrou a cabeça nas almofadas. Quando a ergueu
novamente, a mariposa havia pousado no xale da janela oposta,
aberta, revelando olhos redondos, azul-claros, em cada asa.
-Não podemos matá-la -disse Carolina.


-Não -concordou Turri, levantando-se.
-Você vai ter que levá-la para fora.
-Eu sei. -Cuidadosamente, Turri tirou as tachas que prendiam o
xale e envolveu a mariposa nas dobras do tecido. Através da peça
fina, Carolina pôde ver suas majestosas asas adejarem. À porta,
Turri deixou o xale cair. A mariposa hesitou por um instante na
palma de sua mão, depois reuniu coragem e arremeteu-se para
longe.
-Quanto tempo eu tenho? -quis saber Carolina. Turri voltou-se
novamente para ela como uma sombra,
suas roupas e feições apagadas pela luz brilhante que passava por
ele, refletindo-se da superfície do lago.
-Você disse que era como olhar por um papel enrolado -ele disse,
tomando seu assento outra vez.
Ela balançou a cabeça.
-Como binóculos de ópera? -ele perguntou. -Ou menos, como um
telescópio?
-Como binóculos de ópera -disse ela. -Mas como se alguém
estivesse sempre os dobrando muito juntos, de modo que não se
possa realmente ver através deles.
Turri franziu a testa e abaixou os olhos para o tapete grosso ao lado
da cama.



-Turri...
Ela já não conseguia ver com clareza suficiente para saber se as
lágrimas que achou vislumbrar em seus olhos azuis eram reais.


-Por volta do Ano-Novo -disse ele. -O mais tardar.


***
Vários dias mais tarde, Liza saiu penosamente para a varanda, onde
Carolina estava reclinada dentro de uma fortaleza de telas que ela
erigira contra a luz, na esperança de ainda assim sentir a brisa da
tarde. Os braços finos da jovem estavam carregados com meia dúzia
de grandes volumes encadernados em couro. Pietro veio atrás dela:
-Foram mandados por Turri! -ele anunciou. -Nem é inverno ainda!
O que ele acha que queremos com livros?
Liza colocou sua carga cuidadosamente ao lado do sofá de Carolina
e endireitou-se.
-Devo trazer o resto? -ela perguntou.
-Claro! -Pietro disse, abanando a mão com impaciência. -Vá!
Carolina pegou o primeiro volume, depois se endireitou no sofá e
abriu-o aleatoriamente. Uma borboleta extraordinária, cinco vezes
seu tamanho natural, esparramava-se na página, pintada à mão em
azul e preto, com flocos dourados soltando-se das pontas das asas.
-Uma mariposa! -Pietro exclamou. -Caramba!
Carolina virou a página. Um par de borboletas equilibrava-se em
um galho. Uma crisálida pendurava-se abaixo delas. Dentro do
casulo translúcido, ela podia divisar os olhos grandes e as pernas
encolhidas do inseto modificado, as asas dobradas como pedaços de
brocado em suas costas. Os insetos adultos acima dela eram azul-
claros, mais pálidos do que o céu, as asas rendadas desbotando-se
para uma esplêndida cor creme, interrompida aqui e ali por
fragmentos irregulares de preto, como se seu criador tivesse
sacudido o pincel atrás deles enquanto fugiam.
Com uma expressão de capitulação, Pietro deixou-se cair ao lado de
Carolina e ergueu o próximo volume.


-Pássaros -ele disse. O seguinte:
-Trajes chineses. Carolina pegou outro.
-São gravuras da América -ela disse.
Liza saiu da casa estoicamente carregando mais sete volumes e
depositou-os aos pés de Carolina, com enorme delicadeza e
desconfiança, como se os livros fossem tanto extremamente frágeis
quanto cheios de explosivos.
-Liza -chamou Carolina quando a menina se retirava. Liza virou-
se, as mãos enfiadas nos bolsos de seu vestido cinza.
-Obrigada -disse Carolina. -Peça um chocolate na cozinha.
Sem responder ou agradecer, Liza virou-se outra vez.
-Estes são mapas -disse Pietro. -Mas são antigos demais para
serem precisos. -Riu. -Olhe só este! -Seus dedos fortes apontaram
para um cardume de sereias de seios nus divertindo-se em um mar
verde, alegremente alheias à proximidade do precipício de uma
grande cachoeira rotulada de Finisterra.
Pietro atirou os braços ao seu redor e beijou seu rosto, sua boca, seu
pescoço. Em seguida, levantou-se, sacudindo a cabeça.


-Turri é surpreendente!
-Ele é um mistério -Carolina disse.
***

A coleção de ilustrações de Turri era vasta e variada. Ela folheou as
vidas de santos, pesadamente iluminadas a ouro, azul e vermelho.
Aprendeu os tipos de plantas e legumes americanos, suas flores
apresentadas com precisão, as raízes perfeitamente livres de terra.
Traçou os cordames de cinquenta famosos navios espanhóis.
Observou a fantástica vida selvagem da África: leões, zebras e
girafas. Franziu a testa com produtos químicos e suas combinações,
e riu com as constelações.
A medida que as folhas se tornaram luminosas e caíram no lago, a
cegueira se intensificou. Agora, olhando para a superfície plácida
do lago, não conseguia ver nenhuma das margens, apenas um oval


cada vez mais fechado, contendo as faces brancas das últimas
ninfeias entre os centros avermelhados das folhas largas e planas,
fechando-se nas bordas por causa do frio. Mesmo em plena luz do
dia, ela agora se movia em perpétua escuridão. Ainda conseguia ver
ao longe em seu minguante campo de visão, mas de perto era como
se carregasse somente uma pequena lanterna, capaz apenas de revelar
o que estivesse diretamente à sua frente.
Quase cega, ela se tornou desajeitada, causando manchas roxas nas
pernas brancas ao bater na mobília pouco familiar de Pietro.

-Vão pensar que estou espancando você! -Pietro brincou, quando
descobriu uma nova mancha roxa. -Mas você é bonita demais para
isso.
Para não perder seu lago para a escuridão, Carolina pegou estacas
de plantar com o jardineiro para marcar o caminho mais seguro.
Durante vários dias, ela entrelaçou e prendeu grossos cordões de
trepadeiras entre elas para guiá-la ao longo do caminho, até suas
mãos macias ficarem cortadas e arranhadas.
-Até parece que você andou trabalhando na lavoura -Pietro disse.
Então, certa noite, Carolina derrubou um relógio de seu lugar
quando Pietro a conduzia da sala de jantar para as escadas.
O relógio estava em uma prateleira logo acima da altura de seu
cotovelo. O corredor era bastante largo para ela ter facilmente
evitado o acidente. Mas sua visão havia se contraído tanto que se
tornara impossível para ela ver todos os objetos de decoração
dispostos no corredor e ainda encontrar seu próprio caminho.
O relógio caiu com uma estridente clangor de carrilhões. Molas e
mecanismos espalharam-se por toda parte. O belo mostrador de
cerâmica branca com suas margaridas pintadas à mão parecia estar
inteiro até ela se ajoelhar para pegá-lo, quando se desfez em cacos
em suas mãos.
-Carolina! -Pietro exclamou. -Isso pertenceu à minha avó!
Não havia nenhuma raiva em sua voz, apenas surpresa e mágoa.


Quando ele se ajoelhou ao lado dela e começou a tatear
desamparadamente entre os estilhaços, evitou seus olhos. Ela
percebeu com uma dor aguda que ele acreditava que ela quebrara a
peça deliberadamente.
-Não, não! -ela disse, agarrando seu braço. Quase a contragosto,
seu corpo vigoroso cedeu e voltou-se para ela. Ambos agachados,
equilibrados nas pontas dos pés, impossibilitados de se ajoelhar em
meio aos fragmentos de vidro e metal. -Eu não consegui vê-lo,
Pietro -ela acrescentou, os olhos repentinamente cheios de
lágrimas. -Eu não consigo ver!
Esta era a primeira vez que ele a via chorar. O rio incontrolável de
seus pensamentos desviou-se por um instante deste novo galho
caído em seu caminho. Ele se levantou, erguendo-a com ele.
-Mas estava bem ali -ele disse, argumentando devagar. Carolina
ergueu as mãos ao lado do rosto.
-Não consigo ver minhas mãos. Não consigo enxergar além delas.
Está pior a cada semana.
-Você não consegue enxergar -repetiu Pietro.
-Eu lhe contei -disse ela, suplicante. -Eu lhe contei antes de nos
casarmos.
Após um instante, a verdade assomou aos seus olhos.
-Mas você estava brincando! -ele exclamou.
Quando ela se calou, ele envolveu-a nos braços, cobrindo seus olhos
com uma das mãos e pressionando seu rosto contra o peito.


***
Na manhã seguinte, ela acordou com ele debruçado sobre ela,
protegendo seus olhos da claridade do sol com a mão. Na noite
seguinte, ele pegou-a de sua cadeira e carregou-a no colo até o
andar de cima.
-Mas não há nada errado com meus pés! -ela insistia.
Por alguma razão, sua cegueira reacendeu nele um desejo que
começara a estremecer depois de sua volta do balneário. Ao invés


de se retirar para seus próprios aposentos toda noite, como vinha
fazendo, ele ficava com ela ou a carregava para o quarto dele.
-Quem é? -ele sussurrava, cobrindo os olhos dela com suas mãos,
como se ela tivesse que adivinhar. -Oh, mas eu sou cego! -ele
protestava, enrolado em suas roupas enquanto buscava sua carne.
Isso durou uma semana. Ao redor do lago, as árvores renunciaram
às suas últimas folhas. Quando seus galhos já estavam negros e
despidos, o ardor de Pietro começou a definhar. Ele ainda a
acompanhava quando se encontravam por acaso, mas raramente a
procurava.
Carolina, de sua parte, não sentia sua falta. Servir de plateia para
um homem criado por centenas de admiradores a deixava exausta.
Acalmar o desespero dele por causa de sua cegueira, enquanto a
escuridão avançava inexoravelmente em seus próprios olhos, estava
além de suas forças. O pensamento não declarado de que ele
pudesse estar encontrando consolo em outra parte era quase um
conforto para ela.

A própria noite se tornara sua companheira favorita, a única que
parecia compreender o que a cegueira significava. Ela já não acendia
lampiões ou velas para afastá-la: toda noite, abria seus botões e
presilhas em completa escuridão. Especialmente depois de quebrar

o relógio, ela não ousava vagar pela casa pouco familiar de Pietro,
mas nada a impedia de andar a esmo pelos limites de seu próprio
quarto, buscando novos mistérios: a renda de louça no vestido de
uma estatueta, as curvas lisas de uma tigela de conchas, os contornos
longos e escorregadios de seus armários gêmeos.
Quando, por fim, dirigia-se à sua cama, geralmente tirava os lençóis
e cobertores e os invertia, com os travesseiros nos pés da cama. Se
levantasse o queixo desta posição, o que lhe restava do céu noturno
enchia sua visão, as estrelas tão brilhantes quanto podia se lembrar,
as bordas da lua ainda intocadas por sua inexorável cegueira.
***

-Talvez você esteja errado quanto ao Ano-Novo -Carolina disse.


Fechou um dos olhos, depois o outro, tentando lembrar quais árvores
do lago haviam permanecido nos limites do seu campo de visão no
domingo anterior. -Acho que não mudou nada esta semana.
Turri fez outro disco pequeno e prateado saltar pela superfície
brilhante do lago. Carolina virou a cabeça rapidamente para não
perdê-lo de vista antes que ele desse um último salto e
desaparecesse nas profundezas do lago.


-O que são? -perguntou ela, estendendo a mão.
-São matrizes -respondeu ele, pressionando um disco na palma de
sua mão virada para cima. -Para a minha casa da moeda.
-Sua casa da moeda?
-No ano passado, eu inventei a minha própria moeda -disse-lhe ele,
um tom de escárnio na voz.
-Porque a nossa não estava funcionando?
-A moeda é a base de qualquer nova civilização -Turri disse, como
Carolina imaginava que um professor faria. -Isso ou um exército.
Mas moedas são mais fáceis de produzir em um laboratório.
-Posso ficar com ela? -perguntou.
Turri lançou outro disco no lago sem responder. Carolina abaixou a
cabeça para tentar enfiar a moeda não cunhada na abertura de cetim
vermelho na cintura de seu vestido. Em seguida, ergueu os olhos
novamente para inspecionar as árvores desguarnecidas nas
margens opostas. Seus reflexos estremeceram no rastro do jogo de
Turri.
-Ou talvez as árvores estejam se movendo -ela sugeriu.
-Não, não estão -disse ele, delicadamente.


***
Quando as noites de inverno se tornaram mais longas do que os
dias pálidos, Carolina desceu e deparou-se com o dr. Clementi,
parado sozinho no saguão de entrada, nervosamente acariciando o
couro desgastado de sua pasta de médico. Ela sempre gostara do
velho doutor: ao contrário dos outros médicos da cidade, ele tinha


uma forte consciência de sua própria impotência. Em alguns casos
agudos, quando já atingira os limites de seu conhecimento, dizia-se
que ele se recusava a fazer um diagnóstico ou prever um
tratamento, apesar das súplicas do paciente, enquanto seus colegas

o teriam alegremente torturado até a morte.
Pietro, que não a informara da consulta com antecedência, não foi
encontrado em nenhum lugar.
-Dr. Clementi -Carolina disse, cumprimentando-o do meio das
escadas.
O médico estreitou os olhos através de um par de óculos de aro de
metal. Quando a reconheceu, seu rosto abriu-se em um sorriso.
-Olá, minha filha.
-Não está aqui para ver Pietro -ela sugeriu, apeando do último
degrau.
Ele sacudiu a cabeça.
-Ele está com uma saúde de cavalo.
-Acho que ele é mais saudável do que alguns cavalos -Carolina
disse, indicando com um gesto que ele a seguisse ao jardim de
inverno.
Após alguma hesitação, o médico instalou-se em uma cadeira
formal de espaldar reto, forrada de brocado vermelho. Carolina
deixou-se afundar em um divã ao lado dele. O médico fitou-a,
visivelmente angustiado, sem saber como começar. Sua compaixão
causava mais sofrimento a Carolina do que seus próprios
pensamentos já haviam causado.
Quando se tornou evidente que ele não conseguia falar, ela disse:
-Estou ficando cega.
O médico balançou a cabeça, gratidão e tristeza lutando nas rugas
de seu rosto cansado.
Nesse instante, Pietro entrou intempestivamente.
-Doutor! -exclamou calorosamente. -Vejo que já encontrou minha
mulher. Obrigado por vir.



O médico resistiu bravamente enquanto Pietro batia em suas costas.
Em seguida, Pietro sentou-se ao lado de Carolina e tomou sua mão
sem olhar para ela.
-Carolina está com dificuldades -ele disse, em tom confidencial.
-Sei -o médico disse.
-Estou ficando cega -Carolina repetiu.
-Parece que a escuridão está se fechando -Pietro complementou. Ela
bate nas coisas.
O dr. Clementi olhou para Carolina com compaixão, sombras
ameaçando-o de todos os lados.
-Achamos que o senhor talvez tivesse algum remédio -disse Pietro,
tentando ajudá-lo. -Ou um aparelho.
O dr. Clementi sacudiu a cabeça.
-Não há nenhum remédio para isso.
-Ou ópio -insistiu Pietro. -Para a dor.
-Não há dor -informou Carolina, colocando a mão livre sobre a
dele.


-Mas há recursos para olhos fracos -retrucou Pietro. -Eu já vi.
O dr. Clementi, que agora reconhecia seu verdadeiro p ciente,
observou Pietro com pena.
-Sinto muito -disse, levantando-se. -Nenhum médico jamais
sustou o progresso da cegueira.
-Obrigada -disse Carolina. A porta, o médico parou.
-Já falou com os seus pais?
Carolina balançou a cabeça afirmativamente. Mesmo a distância, e
apesar de sua visão deficiente, ela pôde ver que ele sabia que ela
estava mentindo.
***
-Cara mia -seu pai disse. Ele olhou dentro de seus olhos por um
instante, depois desviou o olhar, como alguém o faria do corpo de
um pássaro caído na floresta. Carolina fechou os olhos no seu
abraço, consolada pelos cheiros familiares de limão e tabaco.


Quando a soltou, ele se virou para olhar pela enorme janela, pela
encosta da colina, onde as folhas lustrosas de seus arvoredos
brilhavam sob a poeira fina da primeira neve. Sua mãe observava-a
sem piscar.
Carolina soube no instante em que abriu o convite deles para jantar
que o velho doutor lhes fizera uma visita. Agora, ela retribuiu o
olhar de sua mãe, que parecia em risco de ser encoberta a qualquer
momento pelas nuvens escuras que a cercavam. Pela primeira vez,
ela viu os traços finos do rosto da mãe, a renda em seu pescoço, o
formato de seus olhos escuros, em vez de buscar uma resposta
neles.

Após um instante, sua mãe desviou o olhar.
-Afinal, não há muito a ser visto -ela disse.
***

-Consegue me ver? -sussurrou Pietro.
Grossas nuvens de inverno haviam escondido o sol o dia inteiro e
agora encobriam a lua e as estrelas. Como o céu noturno nublado
não tinha nada além de mais escuridão, Carolina fechara as cortinas
e se instalara na cama assim que a criada a arrumou, sem virar para
os pés da cama para poder ver as estrelas. A voz de Pietro veio da
porta, mas, sem a ajuda do luar, Carolina não podia distinguir sua
sombra da escuridão geral. Sua pergunta a acordara de um sonho:
uma casa pegara fogo na neve e o calor das chamas derretia o gelo
dos galhos das árvores próximas.
-Não -disse ela, em voz alta.
Pietro entrou no quarto, tateou em busca da beirada da cama e
sentou-se nela. Cegamente, sua mão encontrou a curva de seu
pescoço, roçou seu queixo e parou, aberta, em sua face. Assim
guiado, beijou-a apaixonadamente. Ele recendia a vinho.
Então, ele deitou a cabeça em seu peito, como uma criança.
-Eu sinto tanto -disse, a voz embargada de lágrimas, como se
confessasse ter feito algum mal contra ela.


Quando o Natal se aproximou, a cegueira avançou novamente,
apagando tudo além dos rostos de sua família e criados e o círculo
perfeito da lua cheia, minúscula com a distância. Seu lago ficou
reduzido a manchas luminosas de neve nas margens, um lampejo
prateado refletido na superfície negra, um emaranhado de galhos
sem raízes. Ela já não conseguia ver o suficiente do céu para saber
de vista como estava o tempo, e só conseguia encontrar seu
caminho de ida e volta do lago com a ajuda das estacas e da espécie
de corda que trançara e amarrara para guiá-la quando o outono
terminava.
-Temos uma chuva de granizo -Turri lhe disse, parado ao seu lado
nas margens do lago. Durante a noite, formara-se uma fina camada
de gelo transparente que rangia e estalava agora sob o sol fraco. -As
pedras de gelo são do tamanho de nozes.
Carolina riu.
-Acho que eu sentiria isso.
-Sim -concordou Turri. -Mas o que você não pode ver é que eu
erigi, com o silêncio de um gato, um firme abrigo sobre nossas
cabeças. Certamente, você pode ouvir a tempestade batendo. -Um
estrondoso rufar acompanhou suas palavras.
Carolina girou a cabeça de um lado para o outro, buscando uma
pista para a falsa tempestade conforme ela ecoava pela clareira. Viu

o tecido de sua jaqueta, uma janela de sua casa, capim pisoteado na
poça sob seus pés, mas ele foi rápido demais para ela surpreendê-lo.
Finalmente, seu olhar recaiu sobre algo que ela reconheceu: seus
olhos azuis, sorridentes, o céu branco no alto.

***
Ao se aproximar o dia da festa de Natal de seu pai, só restava a
Carolina fragmentos duvidosos do mundo. A escuridão havia
dominado inteiramente as bordas de sua visão. Agora, ela mal
conseguia divisar um rosto inteiro com um único olhar. Se olhasse
para seus olhos, perdia as tranças e pérolas nos cabelos das moças,


e, mesmo quando elas falavam, uma sombra passava por suas
feições, obscurecendo o nariz ou a boca. De vez em quando, um
olhar podia ser dolorosamente nítido: o reflexo de um pássaro,
voando acima do lago; o lampejo de uma esmeralda na mão de uma
senhora. Porém, mais frequentemente, as sombras se adensavam em
cenários até mais luminosos, de modo que agora Carolina vivia em
um permanente lusco-fusco que escurecia mais a cada dia.
Desde antes do nascimento de Carolina, a família de seu pai
realizava uma festa na semana entre o Natal e o Ano-Novo. Este
ano, como sempre, a casa estava apinhada de ramos de azevim,
pontilhados de limões e de flores vermelhas da estufa de sua mãe.
Guirlandas enfeitavam os consolos das lareiras, os batentes das
portas, o corrimão das escadas, com metros e metros de brilhantes
fitas douradas. Pavios flamejavam em cada candelabro e cada
lampião. As criadas circulavam pela multidão com enormes
bandejas de marzipã, na forma de limões, uvas, maçãs, rosas,
tomates, leões e cordeiros.


Carolina ficou parada contra a parede do salão de baile, captando
vislumbres de amigos e vizinhos conforme dançavam pelas nuvens
de fumaça preta.
-Já nos conhecemos? -perguntou Turri, aproveitando-se das
exigências sociais para beijar sua mão.
-Não sei -respondeu Carolina. -Talvez possa refrescar minha
memória.
-Foi pelo menos há cem anos -disse Turri. -Eu vagava pela floresta
havia dias. Você era, pelo que me lembro, um pequeno córrego que
não constava de nenhum mapa. Eu mesmo não a marquei no meu,
pensando em mantê-la como um segredo meu, mas, por outro lado,
nunca consegui achar meu caminho de volta.
-Não me lembro disso.
-Ou talvez eu fosse um marinheiro -continuou Turri. -No navio
que você pegou para a Espanha.



-Nunca estive na Espanha.
-Esteve, sim -retrucou Turri. -Você costumava se amarrar ao
mastro, para poder ver as tempestades. Era eu quem a desamarrava
toda manhã.
-Eu realmente gosto de tempestades -admitiu Carolina. O forte
cheiro de amêndoas misturava-se a toques de
uma dezena de perfumes: canela, gardênia, laranja e almíscar. As
pontas dos dedos de Turri pousaram de leve na cintura às suas
costas.
-Gostaria de dançar? -ele perguntou. Carolina olhou para ele.


-Só consigo ver seu rosto -disse-lhe ela. -Nenhuma pessoa que
esteja dançando, nenhum candelabro.
-Perfeito -disse Turri, pressionando a palma da mão aberta contra
suas costas para conduzi-la à pista de dança. Quando ela resistiu,
ele a soltou.
-Pietro -ela disse.
Por um instante, o rosto de Turri desapareceu, substituído pela
linha de sua orelha quando ele virou a cabeça. Na parede do outro
lado do salão, um lampião ardia, a luz interrompida pelas formas
dos dançarinos em seus vermelhos, turquesas e peles. Em seguida,
os olhos de Turri outra vez.
-Ele está dançando.
-Com quem? -ela quis saber.
Sem responder, ele a conduziu para o meio da pista.


***

Carolina seguiu a claridade da brasa conforme ela subiu para o céu
e explodiu, fagulhas brancas girando muito além das bordas de sua
visão.
-Você consegue ver isso? -seu pai perguntou ansiosamente. -Cara
mia?

Carolina balançou a cabeça para o céu.
-Sim? -o pai perguntou. -Isso é um sim?


-Sim -respondeu Carolina.
A meia-noite, todos os convidados mais afoitos haviam se reunido
nas margens de seu lago, onde, do lado oposto, dois ciganos
lançavam uma pequena fortuna em fogos de artifício que o
vendedor alegava ter vindo de tão longe quanto a China.
Outro foguete: azul, gotejando pelo céu em longos arcos como os
galhos de um salgueiro. Rojões vermelhos refletidos na superfície
negra de seu lago, que se balançava gentilmente com as ondulações
que algum convidado provocara, atirando uma pequena pedra ou
um último pedaço de marzipã. Explosões amarelas pareciam se
transformar em pepitas de ouro espalhadas pela neve embaixo.
Carolina só captava tudo isso em fragmentos, em parte vistos, em
parte imaginados.
-Está com frio? -perguntou Pietro. Antes que Carolina pudesse
responder, ele a envolveu nas dobras de seu próprio sobretudo, de
modo que ambos ficaram embrulhados na lã grossa. Presa em seus
braços, ela viu cada constelação temporária arder e se extinguir,
mesmo quando os outros convidados começaram a voltar para a
casa em busca de um pouco de calor ou outro copo de vinho.
Quando a última se apagou, ela continuou a olhar para cima, sua
visão temporariamente causticada pela lembrança das faíscas
cadentes, mesmo depois do céu noturno ter ficado escuro outra vez,
com a exceção das poucas estrelas remanescentes.

***

Como Turri dissera, o Ano-Novo lhe trouxe a escuridão completa.
Os poucos resquícios que fora capaz de ver -os olhos dos criados,
um pedacinho do horizonte além da janela -tudo definhou a pontos
de luz indiscerníveis. Então, em certa manhã, acordou e descobriu
que até aquelas luzes haviam se apagado.
No começo, achou que simplesmente havia acordado muito cedo e
teria que esperar o sol se levantar. Mas depois percebeu que a casa
estava animada com os sons diurnos: passos nas escadas e sons de


pés no telhado acima, talvez alguém removendo o produto de uma
forte nevasca, de modo que o telhado não cedesse sob o peso. Lá
fora, crianças riam e gritavam.
Onde estou?, ela pensou, repentinamente inundada de terror.
Imediatamente, suas mãos se fecharam em torno das cobertas
familiares de sua cama, dos travesseiros sob sua cabeça e, tateando
mais longe, da quina de sua mesinha de cabeceira, das pétalas
suaves de suas flores, dos afiados ornamentos dourados que
revestiam seu relógio.
Ela não pudera ver nada disso com clareza nas últimas semanas,
mas, com toda a luz agora ausente, esses objetos repentinamente
pareciam ser os únicos que haviam sido deixados para ela em uma
escuridão viva que podia muito bem ter consumido o resto do
mundo. Até onde sabia, ela podia estar flutuando entre estrelas
mortas muito acima de um mundo destruído por uma explosão, e
este poderia ser o último instante que seus dedos tocariam o verniz
liso da mesa antes que ela se afastasse para fora de seu alcance para
sem-Pre. Não ousou chamar alguém: se o fizesse, o que quer que
bvesse causado esta desgraça poderia voltar e terminar o trabalho,
exterminando-a.

Ela poderia ter ficado ali deitada durante dias a fio, as mãos
cerradas ao redor das dobras de veludo, até a fome ou o cansaço
arrastá-la para um sono diferente. Porém, instantes depois, ouviu
passos na escada. Eles pararam à porta, depois entraram sem bater.
Conforme o som dos passos se movia pelo quarto, formas familiares
começaram a emergir da escuridão. Houve um sussurro de seda ao
ser levantada do chão e guardada no armário. Frascos de cristal
lapidado de perfumes e cremes tilintaram delicadamente. Os
painéis de suas cortinas roçaram o assoalho quando elas foram
abertas. O vento soprou pela janela, trazendo com ele a lembrança
da longa encosta verde do pátio. O vento era frio e cortante; a mente


de Carolina instantaneamente desnudou as árvores de verão de
suas folhas e cobriu os jardins de neve.
Um jarro de cerâmica moveu-se rapidamente pelo assoalho. Folhas
e pétalas roçaram-se. Houve o barulho de água jogada no telhado
que ficava abaixo da janela aberta e uma água nova foi calmamente
entornada no jarro.
Então, os passos cessaram, a pouca distância da cama de Carolina.
O quarto ficou em silêncio. Na ausência de sons, a escuridão correu
para dentro outra vez e parou, fervilhando, na porta aberta. Sua
cama, seu relógio, suas roupas de seda familiares enfrentaram-na
com firmeza. Mas a outra figura no quarto era esquiva: um par de
chinelos de pano, um avental, uma única mão pálida, desfazendo-se
em nada onde a pessoa deveria estar.
-Quem é? -perguntou Carolina.

Os passos se viraram e saíram do quarto sem dar resposta.

***
-Vou carregá-la -disse Pietro. Carolina sacudiu a cabeça.
-Mas já faz semanas desde que você esteve no térreo.
-Não consigo ver nenhuma diferença.
-Acenderemos a lareira. Você sentirá o calor.
Carolina estava sentada na banqueta adamascada diante de sua
penteadeira, onde dois espelhos flanqueavam outro maior,
refletindo sua imagem perdida em ângulos infinitos. Durante dias podiam
ter sido semanas -ela navegara pelo pequeno quarto em
absoluta escuridão, recuperando seus elementos das sombras um a
um. Agora, podia sentar-se na cama sem primeiro tatear cegamente
para encontrá-la. Podia abrir a janela ou fechá-la. Podia estender a
mão para um perfume com a segurança de quem podia ver. Mas
ainda não estava disposta a descer ao térreo, onde tudo seria
estranho para ela, e aturar a compaixão de Pietro e a curiosidade
dos criados.

Seus olhos, embora não pudessem enxergar, ainda lhe obedeciam de


outras formas. Agora, ela os ergueu para o es¬pelho, para perto de
onde o reflexo de Pietro deveria estar.

Atrás dela, Pietro remexeu-se nervosamente.
-Gostaria de poder ajudá-la -disse ele.
Carolina levantou-se, atravessou o quarto pelos pés da cama e
virou-se com precisão para encontrá-lo junto à mesinha de
cabeceira. Tirou uma rosa do vaso de flores, encontrou sua mão e
dobrou seus dedos ao redor do cabo.
-Carolina -ele começou a dizer.
-Estou feliz por você ter vindo -ela disse.


***

Todos os dias, Liza vinha pentear os cabelos de Carolina e prendêlos
outra vez. Certa manhã, muito depois de Carolina ter perdido a
noção dos dias, ela perguntou à jovem:
-Você é necessária à tarde?
-A quem, senhora? -perguntou Liza. Carolina não sabia.
-Na cozinha ou... em outros aposentos.
-Isobel serve à noite -Liza lhe disse. -Geralmente, eu vou embora
ao meio-dia.
Uma volta, um grampo, uma volta, um prendedor. Liza separou
outra mecha do restante dos cabelos de Carolina e começou a
escová-la.
-Gostaria que você me trouxesse alguns livros -Carolina disse.
-Que livros?
-Aqueles que o Signor Turri trouxe.
Liza prendeu a última mecha no lugar, desnudando a nuca de
Carolina.
-E gostaria que você ficasse aqui com eles -acrescentou Carolina.
Quando Liza voltou à tarde, Carolina estava sentada em uma das
poltronas que ficavam junto à janela ao pé de sua cama. Ela havia
olhado por aquela mesma janela uma centena de vezes antes e
possuía inúmeras lembranças da fileira de pinheiros que limitava a



floresta ao longe. Mas, quando tentou evocá-las para substituírem a
visão perdida, as lembranças se alteraram e desbotaram. Os troncos
fortes de cada árvore desapareceram. As longas agulhas
desfizeram-se em uma névoa. Às vezes, um álamo, amarelo do
outono, surgia entre eles sem ser convidado. Às vezes, uma fileira
inteira de pinheiros era substituída pelas árvores que davam para a
propriedade de seu pai, que tiveram anos para se enraizarem em
sua lembrança antes de jamais ter visto as terras de Pietro. Quanto
mais se concentrava, mais rapidamente a floresta em sua mente se
alterava e se perdia.
-Eu trouxe os livros -ela disse.
-Obrigada -Carolina disse.
No vão da porta, Liza deu um passo atrás sob o olhar cego de
Carolina.
-Pode trazê-los aqui -Carolina lhe pediu.
Por um instante, fez-se um silêncio absoluto. Em seguida, Liza
atravessou o quarto e parou ao lado da poltrona em frente à de
Carolina.
-Por favor, sente-se -Carolina disse. Liza obedeceu.
-Quais você trouxe? -Carolina perguntou.
O couro roçou contra o tecido de encadernação e um livro se abriu.
-Mapas -Liza respondeu.
-Não -Carolina disse. -O que mais?


Ouviu-se a batida de um conjunto de páginas. Outro livro se abriu.
-Pássaros -Liza anunciou. Carolina sacudiu a cabeça.
-Flores e frutas estranhas -Liza disse.
-Da África -Carolina disse, citando o título de cor. -Flora e
vegetação. Abra esse.
-Há uma árvore que parece um monstro -Liza disse.
-Ótimo. O que mais você vê?
-Árvores com macacos.
-Que tipos de árvores?



-Têm folhas parecidas com leques, do tamanho do meu braço.
Brilham como verniz. Esta árvore cresce para cima e para baixo.
Possui cem troncos. Há um homem lá dentro, entre os troncos, de
pé, olhando para fora. Esta é uma flor.
-Como uma de nossas flores?
-Não -Liza disse. -Como um leão rugindo, com penas no lugar de
dentes. Mas seu rosto é vermelho e suas listras são brancas. Aqui
tem um lírio da altura de uma criança. E amarelo. A criança é
branca.
-O que há na página seguinte?
-Na seguinte, há um pássaro com cara de macaco. Isto era mentira.
O livro fora um dos favoritos de Carolina e não tinha tal criatura.
-Não -Carolina disse. -E uma árvore chamada jacarandá. E
prateada com flores roxas, e ladeia todas as ruas da cidade.
Liza ficou em silêncio.


-Continue -Carolina disse, após um instante.
-É uma fruta -Liza disse finalmente. -Com espinhos, como uma
rosa.


***
Naquelas primeiras semanas, a escuridão era completa. Mas depois
Carolina começou a ver outra vez, em seus sonhos.
No começo, os vislumbres eram tão exíguos que podiam não ser
mais do que recordações: o sol atravessando pelo meio das folhas
novas da primavera, que pareciam estar sob o risco de se
desintegrar em seus raios; uma caixa que sua mãe mantinha junto à
sua cama, tecido vermelho, bordado com um papagaio branco; uma
fruteira de prata cheia de limões. Em seguida, porém, as imagens
desgarradas começaram a se transformar em acontecimentos que
ela sabia que nunca tinham ocorrido. Seu pai levantou a tampa de
um cesto de ameixas e descobriu que estava guardado por uma
víbora branca de olhos cor-de-rosa. Pietro saltou pela porta da frente
e, com uma risada, subiu para o céu.


Carolina levou talvez uma semana para separar os fragmentos de
seu sono da memória e compreender que ela podia ver novamente
em seus sonhos. Assim que teve certeza, começou a fazer tentativas
de exercer sua vontade no mundo irreal. Pietro podia voar. Por que
ela não poderia? Mas a capacidade de voar não veio imediatamente.
Ela começou apenas se virando. Se por acaso se via subindo escadas
em um sonho, ela parava, fazia a volta e começava a descer. Às
vezes, se descobria no meio de um jogo, mas isso não significava
que tivesse que jogar. Enquanto os homens faziam rolar as bolas de
madeira, ela saía furtivamente e desaparecia na plantação de
limoeiros ou se perdia na floresta. Podia emergir das árvores outra
vez em uma estrada pavimentada de conchas ou descobrir um novo
oceano batendo do outro lado da plantação.
Nas festas de seus sonhos em casas desconhecidas, ela começava a
abrir portas, retroceder por elas e fechá-las atrás de si antes que
qualquer um dos demais convidados notasse. Uma porta a
conduziu para um aposento repleto de centenas de estátuas brancas
de figuras humanas, não maiores do que pombos, arrumadas em
pequenas estantes nas paredes altas. Outra se abriu para uma
clareira ao pé de uma árvore gigantesca com a pele lisa de um
elefante. Flores azul-claras haviam conseguido florir em sua casca
como se fossem musgo. Certa vez, ela retrocedeu não para um novo
aposento, mas para uma galáxia fria pela qual começou a cair
perpetuamente, o coração descompassado, os pulmões doendo de
medo, até que finalmente acordou, grata naquele instante de se ver
numa simples escuridão.

***

Alguém bateu em sua porta outra vez, tão impecavelmente quanto

o anjo da morte.
Carolina se desvencilhou dos braços do sono. Não fazia a menor
ideia das horas, nem mesmo da estação do ano. Puxou as cobertas
sobre o peito e sentou-se.

_ Sim? -disse. A porta se abriu.
-Seu pai está lá embaixo -disse Liza. -São três horas da tarde.
Carolina sacudiu a cabeça. Não via seu pai desde que perdera a
visão, e ele não enviara nenhum aviso de sua visita com
antecedência.
-Não estou vestida -Carolina disse.
-Estão esperando no jardim de inverno -acrescentou Liza.
Carolina abaixou a cabeça e pressionou a base das palmas de suas
mãos contra os olhos.
-Eu a ajudarei -Liza disse. Carolina assentiu e afastou as cobertas.
Em poucos minutos, elas haviam abotoado Carolina em um vestido
dourado pálido e Liza havia torcido e prendido os cabelos de
Carolina.
Um par de brincos de pérolas em forma de lágrima pendia de suas
orelhas e um cordão de pérolas assentava-se pesadamente ao redor
do pescoço.
-Pronto -disse Liza. Laca raspou sobre vidro quando ela colocou a
escova de cabelos na penteadeira.
Carolina levantou-se e atravessou o aposento até a porta, onde
parou por um instante, as duas mãos pressionadas, abertas, contra a
caixa torácica, como se a mantivesse fechada depois que um bando
de pássaros já houvesse escapado.
-Obrigada -ela disse.


Desceu rapidamente as escadas principais. A poucos degraus da
base das escadas, ela captou o som de vozes no jardim de inverno e
parou.
-É claro que você nunca poderia ter sabido -disse Pietro,
educadamente.
-Não -seu pai insistiu, a voz trêmula de lágrimas. -Deus não faria
isso sem um aviso. Houve alguma coisa que eu não vi.
Ao som do sofrimento do pai, Carolina se virou e correu de volta
escada acima. No primeiro patamar, colidiu com Liza. Carolina



agarrou a jovem pelo pulso e empurrou-a para o canto mais
afastado, onde não poderiam ser vistas.
-Diga-lhes que não conseguiu me acordar -Carolina sussurrou
ferozmente.
Então, reprimindo as próprias lágrimas, reuniu suas saias e deslizou
furtivamente de volta ao seu quarto.


***
Em seus sonhos, Carolina tentava fazer duas coisas: voar e
encontrar seu lago. O lago deveria ter sido fácil de alcançar,
especialmente de um terreno conhecido, como a casa de Pietro ou a
plantação de limoeiros de seu pai, onde seus sonhos sempre
começavam. Mas todas as vezes o lago havia desaparecido quando
ela chegava ao local, substituído por um campo de lírios cor-derosa,
uma colina verdejante, um bosque de árvores antigas. Sua casa
se tornava uma casca queimada pelo vento, a cabana de um
lenhador ou, certa vez, uma loja que vendia rendas e doces.
Ela tentou voar de centenas de maneiras diferentes: pulando do alto
de uma escada; atirando-se de telhados, janelas e árvores; batendo
os braços e as saias; correndo e saltando do monte de terra batida de
onde os filhos dos empregados faziam suas corridas. Mas
finalmente começou a voar quando não estava tentando. No meio
de uma floresta forrada de violetas negras, ela se viu erguendo-se
da trilha. Já estava a três metros do chão até acreditar no que estava
acontecendo e um andar mais alto até perceber que não conseguia
parar de subir. Agarrou os galhos de uma árvore para não continuar
subindo irremediavelmente para o espaço e veio descendo
cuidadosamente pelo tronco. Após alguns experimentos na
proteção do tronco, aprendeu o suficiente da nova mecânica para
navegar entre os troncos vigorosos em arrancadas e impulsos
repentinos, e a subir e mergulhar como quisesse.
Essas florestas eram reais. Ela as visitara muitas vezes quando
criança para colher flores e atirar dentro do seu lago de modo a ler


sua sorte pela maneira como flutuavam ou afundavam. Se seu
sonho procedesse, o lago deveria estar apenas a um voo curto de
distância. Tremendo, Carolina deixou-se subir entre os ramos até
sair acima das copas das árvores para o forte sol italiano. Ela
mergulhou para provar a si mesma que podia voltar ao solo,
arrancou uma das folhas altas e deixou-a cair por entre os dedos
enquanto se elevava ainda mais, dominando do alto uma extensa
vista dos campos e das casas em seu vale, mais ampla do que
qualquer outra que já tivesse visto.

A casa de seu pai estava onde deveria estar, telhas vermelhas e
estuque branco, lampejos de estátuas no jardim, arvoredos
descendo a encosta em fileiras regulares. A casa de Pietro também
estava lá, com a longa estrada ladeando os pinheiros. A casa de
Turri brilhava no alto da colina seguinte. Ela ergueu-se mais alto e
avistou o rio que alimentava seu lago. A fita prateada cortava um
caminho preciso entre as árvores, depois desaparecia exatamente
onde deveria ter se alargado na clareira.
Carolina planou mais baixo, lançando um olhar pela região, caso o
lago tivesse escorregado de seu lugar, como costumava acontecer
nos sonhos. Mas ele não estava espreitando de trás da colina
seguinte, nem perdido nas terras atrás da casa de Pietro. Ela deu um
volteio até o rio e deslizou pela superfície do córrego brilhante até
as árvores se fecharem acima de sua cabeça.
Ali, exatamente onde deveria estar, estava seu lago, escondido do
céu por um bosque de plátanos maciços que haviam lançado raízes
nas águas rasas. Entre elas, o rosto perdido nas trevas, estava um
homem. Com água até a cintura, ele brandiu um pesado machado
contra a base larga de uma das árvores.
No pátio, um estrondo e um grito, e ela acordou.

***

Eram altas horas da noite quando Carolina aventurou-se ao térreo
pela primeira vez desde que ficara cega. Ficou parada por um


tempo inestimável na porta aberta de seu quarto, buscando ouvir
qualquer sinal de que tudo que havia além não fora apagado pela
escuridão. Foram os arrulhos e arranhões dos pássaros no telhado
que lhe deram coragem para sair e pisar no tapete macio. Dali, ela
simplesmente virava-se e buscava, como fizera centenas de vezes
antes, o apoio liso da grossa balaustrada. Ela a guiou com segurança
pela ampla escadaria e depositou-a em outro carpete no corredor
central de Pietro. Ali, longe dos ruídos dos pássaros, seus próprios
passos abafados pela lã, o silêncio era tão profundo que a escuridão
invadiu-a, ameaçando consumi-la. Em vez de se acovardar,
estendeu a mão e agarrou a maçaneta da porta da frente. Diante
desta prova da existência do mundo, a escuridão recolheu-se. Ela
começou a tatear seu caminho pela casa.
Começou pelas bordas dos aposentos, os dedos percorrendo as
paredes lisas interrompidas por frias janelas. Ela espalmou as mãos
pelos estofados de brocado, tentando se lembrar se era verde ou
dourado. Esbarrou em vasos de palmeiras nos cantos. Os rostos
ásperos dos diversos retratos nada tinham a lhe dizer, mas suas
molduras eram tal sinfonia para as pontas de seus dedos que ela se
perguntou se o estilo rebuscado não tinha sido inventado, talvez,
por um artista desconhecido para sua esposa cega, agora há muito
esquecido.
Algumas coisas haviam mudado. Por toda a casa, novas velas foram
espalhadas para fazer frente à escuridão do inverno. Por alguma
razão desconhecida, Pierro mandara arrastar o piano para o meio
do jardim de inverno, com a tampa aberta, apesar de nenhum dos
dois tocar.
-O que você está fazendo aqui? -ela murmurou, tocando as teclas
silenciosas. Aqui e ali, ela encontrou estatuetas novas: um par de
minúsculos elefantes, um com a tromba relaxada, o outro
trombeteando; um novo globo com os continentes em alto-relevo;
uma peça pequena no console da lareira do salão, de cerâmica, cheia


de espigões e lugares lisos, que permaneceu um mistério, apesar de
repetidas visitas.
Toda noite, ela avançava mais um pouco. Por fim, começou a
arriscar-se pelo centro dos aposentos, navegando ao redor de
aparadores e carrinhos, sofás e mesas. Pietro não tinha uma
biblioteca propriamente dita, mas ela retirou livros de suas poucas
estantes e sentou-se com eles no colo, imaginando as páginas não
vistas, ora cheias de contos heroicos, ora de versos, ora de histórias
de cidades perdidas. Ela aprendeu a entrar na sala de jantar e
atravessá-la firmemente em direção à sua própria cadeira.
Encontrou o chocolate e a farinha da cozinheira, suas cebolas, seu
vinagre. Entrou no salão e abriu as cortinas de par em par para o
céu noturno, depo' as fechou novamente.

***
Durante semanas, suas explorações continuaram em perfei silêncio.
Então, certa noite, Carolina ouviu passos no aposento ao lado.
Ficou paralisada. Uma de suas mãos se fechou no pesado castiçal
que andara examinando. Os passos entraram no corredor principal.
Ela permaneceu no salão. Quando ficou imóvel, os passos também
pararam.
Carolina atravessou o amplo aposento e correu pelo corredor,
entrando no jardim de inverno. Um rápido toque revelou que o
piano não fora removido de seu novo lugar e que a tampa ainda
estava aberta, formando uma enorme sombra que a esconderia do
resto do aposento. Ela tomou posição do outro lado do piano e ficou
imóvel novamente, mas os passos não a seguiram. A casa respirava
normalmente. Em seguida, vários cômodos adiante, ouviu um
rangido e um baque surdo quando uma porta foi aberta e fechada.
Algumas noites depois, quando Carolina investigava as sempre
diferentes frutas e legumes na bancada da cozinha, ouviu o som de
passos novamente quando tropeçaram em uma cadeira na sala de
jantar. No mesmo instante, ela atravessou a porta de vaivém da


cozinha e abriu-a. Ficou parada na soleira entre os aposentos e
prendeu a respiração para não perder o mais leve som. Desta vez, a
fuga dos passos foi quase inaudível, exceto por um farfalhar de
papel amassado na despensa onde as meninas aparavam e
arranjavam as flores do jardim.
Na noite seguinte, os passos encontraram Carolina no jardim de
inverno onde ela estava junto à janela, manuseando o braço de um
violino despido de cordas. Imediatamente ela recolocou o
instrumento no estojo.
Os passos cessaram.

Carolina partiu a passos largos na direção do último som que
ouvira, desviando-se perfeitamente do piano, de um divã e de uma
mesinha baixa.
Os passos não tiveram tanta sorte. Em grande confusão, colidiram
com a porta, mergulharam por ela e, aos tropeções, entraram no
escritório de Pietro, um cômodo pequeno dominado por um par de
imponentes escrivaninhas, cujas superfícies eram totalmente
cobertas por cartas, contratos e circulares, pedaços de fumo, tocos
de lápis, tinteiros e penas rombudas.
Implacável, Carolina rodeou o pequeno espaço, as palmas abertas
roçando as paredes, as cadeiras, as frentes das escrivaninhas. No
entanto, por medo ou compaixão, não afastou as cadeiras para
tatear embaixo delas.
Em vez disso, ela esperou.
Os sombrios minutos transcorreram um após o outro. Então, sons
muito leves: um chiado, uma respiração. -Eu posso ouvir você disse
Carolina. Então, virou-se e saiu.

***

A primavera chegou pela água. A chuva tamborilava em suas
janelas e dava cambalhotas no telhado. O gelo derretia-se em
corredeiras que escorriam pela fachada da casa ou caíam em altas
quedas d'água do parapeito das janelas. O pátio, que estivera


silencioso durante todo o inverno, repentinamente se animara com
vozes. A cozinheira ralhava com a lavadeira, os meninos e os
gansos. Os rapazes cantavam canções obscenas que pareciam ter
centenas de versos. O jardineiro dava risinhos de satisfação às
tentativas desajeitadas das crianças de cometerem diabruras.
Através da janela, Carolina podia sentir o sol na pele e marcar seu
progresso conforme a luz subia do chão para sua cama, brincava
com seus dedos, roçava seu rosto e depois caía com todo o peso
sobre seu corpo, antes de desaparecer furtivamente, à tarde.
Durante todo o inverno, o sol fraco e a lua eram a mesma coisa para
ela. Nenhum dos dois era forte o suficiente para dispersar a
sensação de que ela sempre se movia pela mesma noite
interminável. Mas agora o sol dividia sua vida novamente em dias,
e o som constante de outras vozes humanas lhe provava
repetidamente que ela não era, como sua cegueira às vezes
insinuava, a primeira pessoa no mundo.
E seu coração, que ela podia acreditar ter sido apagado juntamente
com sua visão, começou a voltar à vida. Ainda petrificado com a
perda, retraía-se da ameaça do amor, recolhendo-se imediatamente
à ideia da voz de seu pai, do olhar inquiridor de Pietro ou das
visitas que ainda fazia ao seu quarto todos os dias. Ele chegava pela
manhã, às vezes trazendo sua bandeja do café da manhã, e ficava
tagarelando, contando mexericos ou pequenas emergências na casa,
até que sua limitada coleção de tópicos se esgotasse. Finalmente,
caía em silêncio enquanto Carolina buscava alguma coisa a acrescentar,
desalentada pelo fato de que ele podia estar olhando Para
suas mãos, seu rosto ou pela janela, e ela não tinha como saber.
Quase imediatamente, entretanto, essa inquietação seria dominada
pelo seu novo e constante temor -de que qual quer coisa que ela
não pudesse ouvir tivesse desaparecid O medo era tão grande que,
quando Pietro ficava em silêncio por muito tempo, ela o imaginava
engolido pelas mesmas sombras que haviam levado sua visão.
Nesses moment cheia de remorso, procurava-o com tal urgência que


apenas o confundia e perturbava. Amor, nessa escuridão sem
pontos de referência, era demais para pedir. Mas, sob o contato do
sol de primavera, seu coração realmente começou a ansiar por
antigos consolos.
Algumas semanas depois do começo da primavera, enquanto o
resto da casa dormia, ela desceu a escada e saiu silenciosamente
pela porta da frente. A noite se abateu sobre ela, carregada de
sereno e terra revirada, o aroma doce e pungente de tulipas e
jacintos, o peso de todo o céu escuro abaixado para beijar a curva da
terra.
Fechou a porta atrás de si e livrou-se dos chinelos. Em seguida,
pisou no passeio de lajes, um pé na pedra e outro na grama. Andou
assim por cerca de vinte passos, até o caminho terminar na estrada
que passava pela casa de Pietro, parando-a da floresta de pinheiros
do outro lado. Carolina ouviu atentamente por um instante, depois
atravessou a estrada correndo, parando quando suas saias roçaram
no capim alto do lado oposto. Estendeu a mão à procura da estaca
que deveria alcançar a altura de seu quadril, bem à mão: a primeira
das varas e corda que ela havia plantado naquele outono para
conduzi-la de volta ao seu lago.
Não estava lá.

Carolina sacudiu ligeiramente a cabeça e firmou o queixo. Em
seguida, ajoelhou-se no capim molhado, os braços varrendo a
vegetação nova e macia em grandes arcos, como uma criança
fazendo um anjo na neve.
Nada ainda. Arrastou-se um pouco mais para longe, os joelhos
marcados por gravetos e capim, a camisola e o robe molhados. Sem
sorte, levantou-se.
A seguir, começou a dar grandes passadas, as palmas das mãos
estendidas, para dentro da escuridão. Após alguns passos, seu pé
torceu-se em um pedaço de madeira. Quando se abaixou para pegálo,
sentiu a conhecida corda de jardineiro, amarrada com seu


próprio nó. Largou a estaca e enrolou a corda nos dedos. Outro
mourão, desamarrado, ergueu-se para sua mão sem resistência.
Lágrimas afloraram aos seus olhos. Avançou aos poucos, vacilante,
no solo irregular, guiada pela corda áspera. Uma terceira estaca
solta ergueu-se da terra, e uma quarta. Ambas estavam enlameadas,
com folhas úmidas grudadas. Até onde sabia, a guia de estacas e
corda que ela fizera podia ter sido arrastada para bem longe do
caminho que marcara. Mas, quando puxou o pedaço de corda
seguinte, ela não cedeu.
-Por favor, por favor -disse em voz alta enquanto prosseguia,
seguindo a corda. Terminou em uma quinta estaca, ainda fixa na
terra molhada. Carolina ajoelhou-se, cobriu a madeira úmida com
as duas mãos e apoiou a testa nas juntas dos dedos. Em seguida,
endireitou-se e seguiu a corda até ° próximo mourão, e o seguinte,
continuando assim floresta adentro.

A trilha que ela marcara estava desimpedida no outono, mas o
inverno e a primavera a entulharam de galhos quebrados e
transformaram trechos dela em ravinas rasas e outros em poças
fundas. Quando Carolina finalmente atravessou o bosque e
contornou o lago, suas mãos sangravam e os pés estavam
dormentes. Seu robe molhado grudava-se nas pernas e no ventre.
A corda terminou na última estaca que ela fincara, à beira d'água,
diretamente abaixo de sua cabana. Carolina largou a corda e desceu
a margem cuidadosamente, onde se agachou para lavar as mãos na
água gelada. Em seguida, levantou-se e, de memória, caminhou os
poucos passos até sua cabana.

***

Ela acordou com um toque delicado em sua face. Demorou-se ali
por um instante, depois começou a traçar a curva de seu rosto até o
canto do olho. Sorrindo, Carolina ergueu a mão para afastá-lo. Seus
dedos tatearam contra as pesadas asas de uma mariposa, que ficou
frenética de terror. Por um instante, o estranho corpo do inseto


bateu contra sua pálpebra, antes de recobrar os sentidos e voar para
longe do alcance. Tarde demais, Carolina escondeu o rosto nos
veludos, mas o medo escoou rapidamente de seu coração conforme

o aposento familiar tomou forma à sua volta mentalmente: a lareira,
ainda enegrecida com o fogo do Natal, a cadeira de madeira junto à
pequena mesa, o quadrado de luz que ela podia sentir claramente,
recaindo sobre seu ombro nu.
Se a mariposa havia entrado, no entanto, devia haver uma janela
quebrada.
Carolina ajoelhou-se, localizou o peitoril da janela -e viu sua
investigação interrompida por um de seus xales, que havia sido
perfeitamente pregado no lugar. Não apenas isso, mas a janela do
outro lado do pedaço de seda estava aberta: ela podia ouvir a
floresta sussurrar e respirar mais além, e sentir um vento leve, mais
um suspiro do que uma brisa. Era impossível que seu pai não
tivesse fechado a casa para o inverno. Quem a teria aberto?
Entretida com esse mistério, enfiou-se novamente entre as cobertas
de veludo. Ao pé do sofá, alguma coisa espatifou-se no chão: uma
tigela, talvez, cheia de bolas de gude ou conchas que se espalharam
pelo assoalho de madeira até os cantos mais distantes.
Lá fora, da margem do lago, uma voz impetuosa perguntou:
-Quem está aí?
Carolina deu uma risada. Em seguida, puxou a coberta para cima,
cobrindo o peito nu.
-Turri?
Instantes depois, passos ressoaram nos degraus da cabana. A porta
rangeu.
-Tem ficado aqui durante todo o inverno? -perguntou Carolina.

-Quem me dera -respondeu Turri.
Ele era a primeira pessoa com quem ela falava fora de sua casa
desde que perdera a visão. Por um instante, a timidez a paralisou.
Depois, ergueu os olhos para o que imaginava ser o rosto dele.



-Sou muito mais alto do que você imagina -disse-lhe Turri. -Este é

o terceiro botão da minha camisa.
Carolina ergueu mais os olhos.
-Meu nariz romano -ele disse. Ela sorriu e fez nova tentativa.
-Pronto -ele disse. E se calou.
Uma cadeira arrastou-se pelo assoalho.
-Então, a corda e as estacas eram para isso? -ele perguntou.
Ela confirmou, balançando a cabeça. Novamente, silêncio. Nada
podia lhe dizer se ele estaria fitando seus olhos cegos ou olhando
para o lago lá fora. Ela franziu a testa.
-Sua visão desapareceu? -perguntou ele, delicadamente.
-E como luz. Movendo-se do outro lado de uma cortina grossa.
Quando está escuro, nada.
-Foi o que pensei quando você não veio ao lago -disse Turri. A
cadeira estalava conforme ele se inclinava para frente ou para trás. Eu
queria lhe enviar alguma coisa, mas não sabia o que mandar.
-Liza tem me contado mentiras sobre as figuras em seus livros Carolina
contou-lhe.
-Isso é maravilhoso. Devia deixá-la contar tantas mentiras quantas
pudesse. Eu, por exemplo, estou construindo uma máquina de voar.
Para não alarmar nossos vizinhos, eu só a uso à noite. Desde que a
neve derreteu, tenho passado a noite em meia dúzia de árvores.
-Quisera pudesse me levar.
-Só tem lugar para um -retrucou Turri. Depois, se enterneceu. Mas
eu poderia ensiná-la a dirigi-la você mesma.
Carolina sacudiu a cabeça e espalmou as mãos no veludo macio.
Lá fora, talvez do outro lado do lago, alguém chamou seu nome.
Pietro. Ela percebeu de novo que estava nua. Turri já se levantara.
-Irei antes que ele me veja -ele disse, falando baixo.
Em seguida, silêncio. Nenhum passo nas escadas, nenhum estalido
da porta o denunciou, como se ele realmente tivesse subido através
do telhado, levado por uma máquina de voar.



-Carolina! -Pietro gritou novamente, agora mais perto. Passos
firmes, apressados, atravessaram a grama úmida
e subiram a escada. Pietro abriu a porta. Em um instante, seus
braços a envolveram, as mãos frias, o hálito quente, o peito e a testa
molhados. Quando a ergueu junto a si, algo macio e redondo
pressionou as costelas de Carolina. Carolina estendeu a mão e tocou
em cetim.
-Você deixou seus sapatos -disse ele, explicando-se. -Eu os trouxe
para você.
Sem soltá-la, ele deixou os chinelos caírem no chão ao lado da cama,
depois espalmou as mãos bem abertas sobre sua pele nua. Beijou
suas faces e pressionou o rosto dela contra seu pescoço.

-Uma criada os encontrou, mas eu mesmo vim buscá-la.
-Obrigada -murmurou Carolina.
A respiração dele desacelerou e se tornou profunda. Sua mão
fechou-se em seus cabelos. Ele beijou o lado de seu rosto, seus
ombros nus, a poeira e o sal na curva de seu pescoço, e a empurrou
para trás, sobre os travesseiros do sofá.
***

Antes mesmo de Carolina e Pietro emergirem dos pinheiros, ela
pôde ouvir que todos os criados haviam saído para o pátio da
frente. Crianças riam e soltavam gritinhos nas agonias de algum
jogo. As mulheres murmuravam umas com as outras. Os homens
davam ordens e outros as recusavam com a mesma força.
Quando os dois saíram da floresta, ouviu-se uma gritaria geral, e o
bando inteiro correu para mais perto. Mãozinhas puxavam seu robe
rasgado. Adultos tocavam seus braços, sua cintura, seu cotovelo.
Como um cavalo teimoso, Carolina estancou e virou o rosto contra o
peito de Pietro.
Pietro riu.
-Tudo bem -ele disse. -Para trás. Não há nada de errado. Estamos
voltando de uma caminhada.


A tagarelice das vozes ao redor deles elevou-se com perguntas e
protestos, mas as mãos a abandonaram, deixando apenas as de
Pietro. Ele praticamente a carregara por todo o percurso desde o
lago, já que seus pés maltratados não suportavam seu peso sem dor.
Agora, conduziu-a pelo gramado, pelo caminho de lajes de pedras e
para dentro de casa. A porta deixou do lado de fora os barulhos dos
criados e dos pássaros, e ficaram repentinamente em meio ao
silêncio. Pietro tomou sua mão e a colocou no corrimão.
-Sabe onde está? -ele perguntou. Ela balançou a cabeça.
Pietro ergueu sua mão outra vez, agora para beijá-la.
-Se você consegue andar pela floresta -disse ele racionalmente -,
descerá para o jantar de agora em diante.


***

-É outra borboleta -Liza disse. -Com asas como um tigre.
Durante a última hora, Liza tinha sido inflexivelmente fiel em suas
descrições. Carolina, esperando que ela desandasse a inventar,
vinha sendo igualmente inflexível em suas inquirições.
-E a página depois desta? -ela perguntou, outra vez. Uma hesitação
quase imperceptível.
Carolina prendeu a respiração, como costumava fazer quando
criança, perseguindo os coelhos semidomesticados do vale pelo
gramado.
-É uma mariposa gigante -Lisa disse, e esperou.
Era uma mentira. A página seguinte, Carolina tinha certeza,
continha ilustrações de um par de borboletas com manchas verdes
nas asas e abdómen azul-claro, de modo que eram igualmente
invisíveis pousadas em uma folha ou voando para o céu.


-Lembro-me dela -Carolina disse rapidamente.
-Está pousada no ombro de um homem. -Então, com um certo
orgulho de autoria: -E do tamanho da cabeça dele.
-De que cor é? -Carolina perguntou.



-Tem olhos brancos e pretos em cada asa. São puxados como os de
um gato. As pontas das asas são cor de laranja -acrescentou Lisa
com prazer.
-Essa era muito bonita -disse Carolina, fingindo melancolia. Como
se chama?
-Imperador gigante transparente -respondeu Liza com autoridade.
-E na página seguinte?
-E outro gigante -disse Liza, sua tendência para a falácia
momentaneamente superando sua imaginação. -Está carregando
uma maçã -continuou, recobrando-se. -Parece ter apanhado de
uma árvore.
-Creio que há uma seção inteira de gigantes aí -disse Carolina,
instigando-a.
-Há três deles -concordou Liza. -Estão pegando todo tipo de frutas
de um pomar. Limões, maçãs e ameixas. São todos azuis, mas um
deles é mais azul do que os outros.
-E na página seguinte?
-São borboletas do tamanho de pássaros. Estão pousando nas
estátuas de uma praça. Não se pode ver o chão por causa de suas
asas. Cada asa possui um olho, e todos estão me encarando.
-O que será que faríamos se elas pousassem em volta da casa?
-Derramaríamos óleo na grama e atearíamos fogo -respondeu Liza
de modo prático.


Carolina deixou essa imagem brincar em sua mente por um
instante, uma onda de borboletas gigantes erguendo-se de chamas
rasteiras.
-E nas páginas seguintes?
-É uma árvore numa floresta -disse Liza, olhando para uma página
que Carolina sabia conter uma ilustração de uma borboleta de olhos
bulbosos, cara de monstro, desenhada dez vezes maior do que seu
tamanho original, com os enormes motivos de suas asas vermelhas
e douradas espalhados como um papel de parede luxuoso por trás.



Mas não vejo nenhuma criatura. Não, aqui está. São muito
pequenas, cobrindo o tronco da árvore como musgo. Algumas delas
devem ter perdido as asas.
-E na página seguinte? -Carolina perguntou outra vez.


***
-Há fantasmas nesta casa? -perguntou Carolina.
Pietro riu. O fogo rugia na lareira do salão, mas uma das janelas
abria-se para a tarde de primavera. Cheiros de jacinto, chuva e
estrume entravam por ela. Atraído pelos estalidos do fogo, Pietro
viera investigar, descobrira sua mulher e sentara-se ao seu lado no
sofá que ficava em frente à boca larga da lareira. Ele segurava as
duas mãos dela em uma das suas e brincava com seus dedos em sua
perna.
-Talvez do cachorrinho que tive que matar depois que o cavalo lhe
deu um coice na cabeça -ele disse. -Eu só atingi seu pé da primeira
vez e tive que atirar nele de novo.
-Ouço passos à noite -disse ela.
-Os criados estão sempre trabalhando.
-Não é assim -insistiu Carolina. -Não respondem quando falo com
eles.
-Talvez você tenha pegado nosso ladrão -disse ele. -Alguém anda
roubando o licor de limão.
-Acho que não.
Pietro soltou suas mãos para poder envolvê-la nos braços. Puxou-a
para o seu colo e beijou-a.
-Você é tão linda -ele murmurou. -Quem se importa se pode ver
ou não?
***

-Ele lhe mandou um vestido -Liza anunciou da porta do quarto de
Carolina.
-Pietro? -perguntou Carolina. Virou-se no assento da penteadeira,
onde manuseava algumas de suas jóias: o esmaltado liso, o metal



frio, os picos irregulares dos diamantes e os aglomerados ásperos de
pedras preciosas em suas montagens.
Sem responder, Liza jogou o vestido sobre a cama em um grande
derrame de renda e tecido.
Carolina levantou-se e inclinou-se sobre a cama para pegar o
vestido. Era feito de tafetá fino e rígido, o corpete reforçado com
barbatanas. Renda circundava o decote e decorava as mangas
cavadas. A saia desdobrava-se em inúmeras camadas.
-Parece bonito -comentou Carolina. -De que cor é?
-Dourado -respondeu Liza. Em seguida, uma pequena pausa,
longa o suficiente para se arrepender da verdade ou de uma
mentira. -Não, estou enganada. É azul, com renda vermelha.
-Isso é tudo, obrigada.


***
-Você vai ver -disse Pietro. -Com a música e a dança, acho que
você vai ficar contente.
-O vestido é azul? -quis saber Carolina.
-É um vestido vermelho -disse-lhe o marido. -Vermelho como
vinho em um copo. Mas a renda é azul.
Carolina franziu a testa.
-Você queria um vestido azul? Isso é fácil de conseguir. Pode ter
dez deles, se quiser. Mas não sei por que a cor possa fazer diferença
para você.
Quando ela não respondeu, ele riu da própria piada. Em um grupo,
outros poderiam ter aderido por pena dele, mas eles eram os únicos
no quarto dela.
Quando o som de sua risada se desfez, ele tomou a mulher nos
braços e afagou sua cabeça:
-Ah, Carolina. Eu nunca sei o que fazer.
***

O baile foi realizado pela família Rossi, proprietários de uma das
vilas mais antigas do vale. Todo Rossi apressava-se em se gabar de


que aquelas lajes do chão haviam sido colocadas ou aquela parede
grossa fora erigida na época dos romanos, mas nunca pareciam
concordar sobre exatamente qual parede ou piso. Entretanto,
ninguém duvidava da antiguidade de sua casa porque o lugar era
uma mixórdia de experiências arquitetônicas. Imponentes colunas
de mármore em estilo clássico projetavam-se para o céu, sem
sustentar nada; belos trabalhos de cantaria eram empastelados com
estuque barato; um pequeno exército de recatadas ninfas acenava
por todo o trajeto do caminho de entrada, onde um par de tigres
ameaçadores, duas vezes o tamanho de um homem, olhava
severamente para os convidados que chegavam.
No topo de uma colina nos fundos da propriedade havia uma
capela gótica cujo telhado agora havia desmoronado e, nesta
geração, os Rossi desenvolveram o hábito de realizar suas festas ali.
O cenário proporcionava uma pista de dança espetacular, exposta
às estrelas, mas protegida pelas paredes remanescentes. Tochas
acesas para iluminar os dançarinos atingiam os fragmentos de
vitrais coloridos que haviam permanecido nas antigas janelas e os
faziam brilhar.
A meio caminho dos cem degraus de pedra que levavam às ruínas
da capela, Carolina tropeçou pela segunda vez.
-Tudo bem -Pietro disse, firmando-a com uma risada. -Talvez eu
devesse simplesmente carregá-la nas costas.
Carolina sacudiu a cabeça e recomeçou a subir apressadamente,
pisando descuidadamente nos degraus irregulares, seguindo a
música na escuridão.
Em um instante, a mão dele segurou seu braço outra vez.
-Mais devagar -ele disse. -Já estamos quase chegando. Carolina já
sabia disso pelo som dos instrumentos e pelo
volume das risadas. Podia sentir o cheiro de óleo queimando, vinho
e traços de uma dúzia de perfumes diferentes, juntamente com o
aroma denso de tulipas, que deviam, ela imaginou, estar
amontoadas às centenas na entrada.


-Carolina! -exclamou a contessa Rossi. -Querida! Nós não a vemos
há um ano!
-Não faz um ano -retrucou Carolina, abandonando sua mão ao
aperto da velha senhora.
As mãos frias, insistentes, da condessa Rossi pareceram verificar se
todos os dedos de Carolina ainda estavam intactos, depois a soltou.
Carolina sentiu alguma coisa passar diante de seu rosto uma vez, e
novamente.
-Ela não consegue ver nem isto? -a condessa disse a Pietro,
espantada.
-Minha mulher não é um brinquedo para você brincar -Pietro disse,
secamente.
-Imagino que ela não seja o brinquedo de ninguém, senão seu retorquiu
a condessa Rossi com um riso irônico.
-É uma bela noite -Pietro disse. -Somos muito gratos pelo seu
convite. -Fez uma breve mesura e conduziu Carolina para dentro.


***

-Você vai ficar bem, perto da música? -Pietro perguntou, a voz
ligeiramente elevada acima dos acordes do baile. Carolina balançou
a cabeça.
-Tem um lugar aqui. -Ele empurrou-a delicadamente alguns
passos para trás até as panturrilhas de Carolina encostarem em uma
cadeira. Carolina deixou-se afundar nela. Os braços delicados eram
forrados de brocado.
-De que cor é? -ela perguntou.
-O quê? -quis saber Pietro, confuso.


-A cadeira. De que cor é?
-E dourada. Com alguns fios negros.
-Obrigada.
Cadeiras semelhantes pareciam estar arranjadas de ambos os lados
de Carolina, ela descobriu, mas Pietro não se sentou em nenhuma
delas.



-Gostaria que eu lhe trouxesse alguma coisa? -ele perguntou.
Ela sacudiu a cabeça.

***
Pietro a deixara a poucos passos da pista de dança, com o pequeno
grupo de músicos tocando à sua esquerda. Carolina não ouvia
música desde que ficara cega, e o efeito era surpreendente. Sua pele
se arrepiava com os violinos. O coração parecia bater no compasso
do violoncelo e os instrumentos de sopro a deixavam sem fôlego.
Esquecendo-se de si mesma, ela cerrou os olhos. Em sua mente, a
colina sumiu de baixo de seus pés e os músicos, as paredes da
capela e os dançarinos imaginários, todos se alçaram delicadamente
para o céu negro, como se suspensos sobre vidro nas alturas. Seria
um sonho, ela se perguntou, ou alguma outra coisa?
-Carolina! -A voz de uma mulher: uma voz que ela já ouvira antes,
mas não reconheceu instantaneamente. -E Sophia. Não se esqueceu
de mim, não é?
Carolina abriu os olhos para cumprimentar a mulher de Turri,
adivinhando a localização do rosto de Sophia pela sua voz.
-Oh! -Sophia exclamou.

Carolina sorriu e manteve o olhar firme. A recuperação de Sophia
foi rápida.
-Eu tinha que vir cumprimentá-la por seu belo vestido -ela disse. Não
é linda a moda deste ano?
-Obrigada. Mas receio não ter sido eu quem escolheu.
-Oh, claro que não -Sophia disse. -Sinto muito. Que
insensibilidade da minha parte. -Um farfalhar de tecido fino e
renda assentou-se na cadeira ao lado de Carolina. Sophia tomou sua
mão. -Como é -ela perguntou com elaborada compaixão -se vestir
sem enxergar, não saber se algo lhe cai bem ou qual é a sua
aparência?
Carolina apertou sua mão e soltou-a.
-Meu marido me diz que estou bonita.


Sophia riu como se Carolina tivesse acabado de se revelar
surpreendentemente inteligente, para uma criança.
-Claro que ele deve dizer -ela disse. -Mas como você sabei
-Sophia, aí está você -Turri interrompeu-a. -A princesa Bianchi
está procurando por você.
-Mas acabei de falar com ela.
-A mulher está inflexível -disse Turri, um tom cortante na voz que
Carolina não reconheceu.
Sem dizer mais nada, Sophia levantou-se. Suas saias balançaram-se
soberbamente por alguns passos, depois se perderam no meio das
conversas e dos burburinhos da multidão.
Turri tomou a mão de Carolina e segurou-a por um instante. Em
seguida, beijou seus dedos e instalou-se na cadeira que sua mulher
havia deixado.


-Todo mundo está usando máscaras de gesso hoje -ele disse. -É a
última moda. Já não são apenas para o Carnaval. Admiro-me que
Pietro não tenha encomendado uma para você.
Carolina sorriu.
-Minha mulher, por exemplo -continuou ele -, está usando uma
cabeça de galinha que me custou dez mil liras.
-As cabeças de galinha são as mais chiques, então? -perguntou
Carolina.
-Não sou a pessoa certa para responder essa pergunta -disse Turri.
-Palhaços -ele acrescentou após um instante, como se observasse
um casal passando por eles. -Um gato.
Ao fundo, Carolina ouviu a voz de seu marido, aproximando-se. Ele
parou a vários passos de distância e riu, alto demais, como Carolina
sempre o ouvira rir quando na companhia de jovens bonitas. Então,
sua voz abaixou-se a um tom conspirador e desapareceu sob a
música.
-A condessa Rossi -Carolina disse. -Ela está usando a nova moda?
-A condessa Rossi -retrucou Turri -é um lobo faminto em um



vestido milanês.
A mão quente de alguém pousou em seu pescoço. Carolina
assustou-se e tentou livrar-se dela, mas sob o toque daquela mão
sua carne despertou, fremindo. Turri nunca a tocara assim antes e
ela não podia compreender por que o faria agora. Ela se esforçou
para se manter serena, enquanto o calor pulsava pelo seu corpo no
compasso da música.


Pietro riu. Instantaneamente, ela compreendeu: fora o toque da mão
dele, não de Turri.
-Turri -Pietro disse. Ele colocou sua mão na nuca de Carolina outra
vez. -Você não me denunciou.
-Creio que não -disse Turri.
-Você me tomou por um estranho? -Pietro perguntou a Carolina,
inclinando-se para beijar seu rosto.
-Creio que não -Turri repetiu baixinho, falando consigo mesmo.
Carolina percebeu outro fato: Turri sabia que ela havia confundido
os dois. Ele a vira tentar se livrar da mão que achava que fosse a
dele.
-Você me surpreendeu -Carolina disse ao marido, para encobrir as
palavras de Turri.
-Fui apresentado à princesa Bianchi -ele disse. -Está em visita, de
Florença.
-Ela é muito bonita -comentou Carolina.
-Como sabe disso? -perguntou Pietro, espantado. Turri riu e
levantou-se.
-Eu tinha acabado de convidar sua mulher para dançar -ele disse. Tem
alguma objeção se ela aceitar?
-Ela não consegue ver a mão diante do rosto -Pietro avisou-o.
Carolina também se levantou.
-Posso ouvir a música e seguir os passos -ela disse.



Talvez Turri tenha esperado por um sinal de concordância de
Pietro. Ela jamais saberia. Após um instante, Turri tocou sua
cintura, pelas costas, e guiou-a para a pista de dança.

***
-Eu aprendi a dançar com um urso -disse-lhe Turri.
Ela riu para o que achava que deviam ser seus olhos.
Ele apertou-a mais nos braços. Pressionou sua face contra a dela, os
lábios em seu ouvido.
-O que você vê? -sussurrou, ansioso, mas sem esperança, como se
suplicasse a um dos antigos deuses por um tipo de piedade que eles
nunca haviam demonstrado.
Sem ar, Carolina lutou para se desvencilhar.
-Está bem -ele disse, soltando-a. -Perdoe-me. A pele de Carolina
estava afogueada. O sangue latejava
em suas têmporas, mais forte do que a música, e ela se sentia
perigosamente sem peso, como se apenas as mãos de Turri a
impedissem de subir lentamente para a atmosfera.
-Carolina? -ele chamou.
Quando ela ergueu a cabeça para ele outra vez, seus olhos estavam
rasos d'água.
-Não, não -ele disse. -Eles já acham que sou um monstro. Não lhes
dê prova disso.
Ela riu e uma lágrima rolou pela sua face. Em um instante, ele já
havia apagado seu curso com o polegar.
-Você irá se encontrar comigo -ele disse. -No lago. Quando?
-Amanhã -ela sussurrou.
***
Do lado de fora, o barulho de sua carruagem desapareceu na
direção dos estábulos. Pietro demorou-se por um instante,
atrapalhando-se com alguma coisa à porta. Mas, quando Carolina
subiu os primeiros degraus, ele segurou sua mão.
-Gosta do vestido? -ele perguntou.


Carolina balançou a cabeça. Em seguida, percebendo que ele não
podia vê-la no escuro, respondeu:
-Sim.
Ele beijou a palma de sua mão e seu pulso. Seguindo a linha de seu
braço, ele subiu a escada até sua boca encontrar a renda onde o
vestido encontrava o seio. Com um suspiro e um estremecimento,
ele a ergueu nos braços e carregou-a para seu quarto.


***
Carolina acordou com o som de um passo do lado de fora da porta
fechada. Virou a cabeça e esperou, como tantas vezes fizera antes,
aguardando formas emergirem das trevas. Quando ninguém
surgiu, ela afastou os cabelos do rosto e ergueu-se sobre os
cotovelos. Silêncio.
Então, embora não ouvisse nenhum passo, uma tábua além da porta
rangeu: um gemido longo, como o de um bom soldado mortalmente
ferido dando seu último suspiro.
-Pietro! -Carolina sussurrou, muito baixinho, para não assustar o
visitante desconhecido. -Ouviu isso?
Pietro não se mexeu.
Alguém girou a maçaneta devagar, apenas com um leve ruído e o
ruído de metal sobre metal. Carolina percebeu com um calafrio que,
se ela já não estivesse acordada, os passos entrariam sem ser
detectados. Mas os passos não entraram. Em vez disso, aguardaram,
enquanto a porta se abria. Então, sem fazer nenhuma tentativa de se
esconder, se afastaram, sem pressa e confiantes.
Muito tempo depois de terem desaparecido, Carolina ainda se
mantinha imóvel como um animal acuado, os punhos cerrados de
raiva, como se ela fosse a intrusa em seu próprio quarto.
***
Quando acordou outra vez, Pietro já havia saído.
Lá fora, nenhum pássaro cantava e nenhum criado se queixava.


Carolina levantou-se imediatamente e dirigiu-se à sua penteadeira.
Nua na escuridão, ela remexeu em sua caixa de jóias até encontrar
os brincos de pérolas. Colocou-os, prendeu o colar que combinava
no pescoço e foi ao seu quarto de vestir.
Lá, escolheu um vestido de caça com renda de algodão nos
cotovelos e no corpete. Amarrou-o destramente, depois retornou à
sua penteadeira para prender os cabelos para trás em um coque
rápido. Suas botas de couro estavam ao lado de seu quarto de vestir.
Atirou uma capa curta sobre os ombros, segurou as botas nos
braços e desceu as escadas descalça. Quando chegou ao corredor
principal, sentou-se nos degraus mais baixos para calçar as botas e
amarrá-las. Em seguida, atravessou até a porta e segurou a
maçaneta.
Estava trancada.

Carolina girou e puxou, mas a porta não cedeu. Pressionou as
palmas das duas mãos abertas contra o verniz rachado, depois as
deslizou por toda a superfície, os ângulos e as almofadas dos
profundos retângulos que haviam sido entalhados na madeira
antiga. Percorreu as estreitas frestas onde a porta unia-se ao batente,
em busca de outro trinco ou uma chave esquecida.
Nada.
No pátio, um pombo arrulhou tentativamente. Outro respondeu.
Logo ambos discutiam, cada qual repetindo seus próprios
argumentos palavra por palavra em volume crescente. Após alguns
instantes, uma cotovia começou a repreendê-los. De repente, a
manhã inteira animou-se com o canto dos pássaros, obliterando uns
aos outros e os pensamentos de Carolina.
Nos fundos da casa, uma porta bateu com força. Carolina fez uma
última tentativa de abrir a porta. Ela não cedeu.
Sem errar o passo nem uma vez, Carolina voltou para as escadas.
Colocou a mão no corrimão com a certeza de que podia vê-lo


através da escuridão que começava a se dissipar, e subiu de volta
para seu quarto.
***

Quero uma caneta e tinta -Carolina disse naquela manhã enquanto
Liza fechava um cordão em sua nuca. Liza soltou o fecho
delicadamente sobre a pele de Carolina e afastou-se.

Carolina ouviu atentamente, para ver se reconhecia os passos, mas
Liza era como um gato: Carolina não captou nenhum som até a
jovem quase ter alcançado a porta, quando uma tábua a denunciou
com um leve rangido.
-Liza -Carolina disse.
Ela esperava avaliar a posição da jovem por sua resposta, mas Liza
não falou nada.
-Papel -Carolina acrescentou após um instante. -E cera e uma
chama.
Liza não deu nenhum sinal de assentimento, mas, após outro
instante, Carolina soube com certeza que ela havia saído, assim
como sabia com certeza quando a luz do dia dei xava um aposento.

***

Quando Liza retornou, Carolina já estava sentada à pequena
escrivaninha em que a mãe de Pietro um dia copiara os poemas e
compusera as frases de sua própria educação incompleta. A
escrivaninha ficava junto à janela, entre as duas poltronas em que
Liza e Carolina sentavam-se para ler.
Sem nenhuma cerimônia, Liza depositou os objetos s bre o grosso
papelão que protegia a preciosa madeira. Alg rolou: a caneta.
Carolina pegou-a antes que Liza o fizesse.
-A chama? -perguntou Carolina.
-Coloquei mais para trás -disse Liza. -Estenda a mão Com a mão
espalmada, os dedos abertos sobre a supe"
fície da escrivaninha, Carolina investigou até descobrir o fri prato
de metal com o cabo curvo, a haste da vela presa n centro com


firmeza. Liza a colocara no extremo oposto da escrivaninha, a
poucos centímetros da janela. Se fosse noite, a luz teria sido visível
por quilômetros.
-Pode fechar a porta quando sair.
Quando a porta fechou-se com um ruído surdo, Carolina cobriu a
coleção de objetos com as duas mãos. Colocou o bastão de cera no
topo do papelão, paralelo à linha da borda da escrivaninha, como
um garfo de sobremesa colocado horizontalmente acima de um
prato de jantar. Colocou o pequeno e pesado sinete logo acima dele.
O tinteiro de vidro, ela colocou à sua direita, ao lado da caneta.
Arrumou o papel à sua esquerda, em seguida colocou uma única
folha à sua frente. Levantou a tampa de vidro do tinteiro. Para não
perder sua localização, ajeitou-a na extensão de vidro que se
projetava da lateral do tinteiro para servir de suporte à caneta entre
um pensamento e outro, a fim de que a ponta molhada de tinta não
manchasse a página. A essa altura, ela já não se lembrava da posição
exata do papel. Para não esquecer, encontrou a borda superior da
página com os dedos indicadores e correu-os de leve para os cantos
e para baixo pelos lados da folha. Em seguida, pegou a caneta e
mergulhou-a na tinta.
Ao levantar a caneta para escrever, uma pesada gota caiu sobre a
escrivaninha. Carolina moveu a caneta para colocá-la de volta no
suporte do tinteiro, mas ele estava tampado. Em Vez disso, ela
colocou a ponta na borda do tinteiro, logo acima da poça funda de
tinta, o cabo da caneta projetando-se Para fora. Agora, podia apenas
imaginar onde a gota caíra. Ela fez os dedos de uma das mãos
caminharem como uma aranha por cima da escrivaninha até seu
polegar encontrar uma pequena poça. Com a outra mão, ela puxou
um lenço de seu corpete e limpou a gota. A seguir, pegou a caneta
outra vez, mas seu movimento foi impreciso. A caneta caiu dentro
do tinteiro, submergindo toda a ponta na tinta. Carolina tirou-a.
Depois, para evitar novos derramamentos, arrastou


cuidadosamente o tinteiro pela mesa, de modo que a pequena peça
de vidro ficasse na borda da carta ainda não escrita.
A manhã inteira, o coração de Carolina esteve abarrotado de frases
e pensamentos, confissões incompletas, pedidos de ajuda. Ela
começara uma centena de frases e acabara por vê-las se desfazerem
em uma inundação de sentimentos que sua mente jovem mal
conseguia distinguir uns dos outros: ternura ou desejo, raiva ou
medo, gratidão e amor. Mas, em sua luta com a caneta e o papel,
tudo isso desaparecera. Afogueada de vergonha, ela escreveu
apenas, em letras que sabia deveriam parecer infantis e rabiscadas,

"Sua Carolina".

Ligeiramente zonza do cheiro da tinta, esperou a carta secar. Em
seguida, dobrou o papel em três partes e pegou o bastão de cera do
lacre. Com uma das mãos, segurou a base da vela. Com a outra,
pressionou o pavio queimado da cera do lacre contra a curva lisa da
vela. Usando a vela como guia, levantou a cera até um pavio
encontrar o outro e a cera do lacre incendiou-se com um pequeno
silvo e uma minúscula rajada de vento.
Ela tateou outra vez em busca da aba erguida da carta, encontrou-a
e pressionou-a para baixo. Em seguida, inclinou a cera derretida
para lacrá-la.


Nenhuma gota caiu.
Carolina virou o bastão de cera para cima e contou outra vez,
esperando a cera escura se derreter e formar uma poça abaixo da
chama. Um instante depois, um calor causticante espalhou-se pelos
nós de seus dedos. Com um pequeno grito, ela largou o bastão e
começou a soprar freneticamente para apagar a chama invisível.
Momentos depois, seus dedos encontraram o toco de cera outra vez,


o pavio ainda quente, mas apagado. Salpicos de cera cobriam a
escrivaninha e pontilhavam o papel de carta.
Obstinadamente, Carolina repetiu o procedimento, acendeu a cera e
segurou-a acima da borda do papel. Desta vez, um fluxo de cera

líquida entornou-se uniformemente no local certo. Carolina apagou
com um sopro a segunda chama e colocou o bastão sobre a mesa.
Em seguida, pressionou seu próprio dedo na poça quente para
lacrar a carta.
Os nós de seus dedos ainda ardiam. Levantou-se, deixando ali a
desordem de cera e tinta, e atravessou o quarto para colocar a carta
na mesa ao lado de sua cama. Então, tocou a sineta para chamar
Liza.
Liza riu.
-Parece que você matou um gato -ela disse. -Um gato com tinta no
lugar de sangue.
-Pode levar tudo embora. Raspe a cera e traga-me outro apoio de
papelão. E chame um dos meninos do estábulo.
-Vai andar a cavalo? -quis saber Liza.


***
Quando o menino chegou, Carolina sentou-se na beira da cama, a
mão queimada submersa na jarra de água de sua mesinha de
cabeceira. Na outra, segurava a carta. O menino parou na entrada e
deixou-se ficar em um longo momento de silêncio, para observá-la,
para reorganizar seus pensamentos ou talvez porque fosse bastante
pequeno para acreditar que não pudesse ser ouvido enquanto não
falasse.
-Giovanni -ele anunciou finalmente, com a mímica
assustadoramente perfeita de uma criança imitando um homem.
Pelo timbre de sua voz, o menino não podia ter mais do que dez ou
onze anos, mas falava como um comandante de forças incontáveis.
-Giovanni -Carolina repetiu. -Obrigada por vir. Conhece a casa
dos Turri? Na colina, a caminho da cidade?
-Não tenho medo de leões -o menino declarou. -Nem de
cachorros.
Carolina estendeu-lhe a carta, o que o fez sentir a necessidade de
algum galanteio.


-Está muito bonita esta manhã -ele lhe disse.

-Com que rapidez você pode correr até lá? -ela perguntou.
***

Carolina manteve as mãos escondidas sob a toalha da mesa e Pietro
não as notou até a sobremesa. Quando o fez, ele riu.
-Parece que você andou extraindo a tinta de uma lula -ele disse. Sabe,
temos meninas que podem fazer isso para você.


Ele pegou sua mão e a levantou para examiná-la. O calor do fogo
ainda latejava em seus dedos, como acontecera o dia inteiro.
-O que é isto? -indagou Pietro, o espanto tornando sua voz
sombria. -Você se cortou?
-Não é um corte -disse Carolina, recolhendo a mão. -É uma
queimadura.
Prata tilintou em porcelana.
Ela esperou por outra farpa ou explosão, mas, em vez disso, ele
apenas ergueu sua mão e beijou-a, dedo por dedo.


***

-É um peixe na forma de uma estrela, com cinco olhos como
diamantes azuis -Liza floreou. Após semanas de longas tardes, ela
começou a perceber que eram suas mentiras, e não seus poderes de
observação, que eram solicitadas quando Carolina lhe pedia para
ler. Se pela aversão a outro trabalho ou pela alegria da criação, Lisa
começou a inventar desenfreadamente. Hoje, criava a partir de um
livro contendo espécimes dos tesouros aquáticos do oceano. -É uma
árvore prateada que se inclina de acordo com as correntes e solta
frutos no fundo do mar.
-A fruta era vermelha, não era? -Carolina disse, como se lembrasse.
-Não -Liza disse, com ciúme de autor. -Roxa como uma ameixa,
meio prateada, como a respiração na vidraça.
-Achei que havia um monstro ao lado -Carolina disse.

-É um monstro -Liza concedeu. -Tem duas caras, uma de um
homem e a outra de um cavalo, com o corpo de um peixe. -Isso era


bem elaborado, mesmo para ela, e foi apresentado como uma
espécie de presente. Liza continuou: -Há uma brida em sua boca e
uma sela nas costas.
-Quem você acha que o cavalga? -Carolina perguntou. Liza não
havia considerado essa implicação de sua invenção.
-Aqui não diz -respondeu.
-Não há pegadas se afastando, na areia no fundo? -Carolina
pressionou.
Liza se calou, depois decidiu solucionar esse novo problema
eliminando sua fonte.
-Você não pode ver o fundo -ela disse. -Não há nada além de água
verde, até ficar negra a distância.
Passos se aproximaram da porta do quarto de Carolina e pararam
no limiar.
-Quem é? -Carolina perguntou incisivamente.
Liza deixou as páginas do livro se fecharem com uma pancada, e
levantou-se.
-Provavelmente é Giovanni -ela disse. -Ele tem medo de bater.
-Abra a porta -Carolina ordenou. Liza atravessou o quarto
obedientemente. A porta se abriu.
-Giovanni -Liza disse. -É falta de educação ficar parado do lado de
fora de uma porta.
-Eu estava pensando -disse ele defensivamente.


-Você pode fazer isso no pátio -Liza disse.
-Há um homem no jardim de inverno para vê-la -Giovanni disse a
Carolina, e saiu correndo. Seus passos ressoaram com estrépito
escada abaixo.
-Ele acha que está apaixonado pela senhora -disse Liza. -Diz a
todos os outros garotos o quanto é bonita e, se concordam, ele luta
com eles.
-Obrigada -Carolina disse. -Pode ir.


***


A alguns degraus do fim da escada, Carolina parou. Tinha certeza
de que era Turri quem a esperava, e ela fora até ali com a ansiedade
de uma criança prestes a chegar em casa. Mas agora uma
campainha de alerta soou em sua mente, como se no último degrau
ela tivesse tropeçado no mundo dos espíritos e ouvido seus
mexericos. Não podia entender as palavras, mas o significado era
claro: se continuasse a descer as escadas, tudo mudaria tão
completamente como no dia em que perdera a visão. Por um
instante, a premonição a manteve parada no lugar. Em seguida, as
preocupações do mundo varreram-na com seus argumentos
convincentes. Estava parada como uma tola no meio da escada;
havia uma visita à espera. Rapidamente, desceu os últimos degraus
e entrou no jardim de inverno.
O silêncio a acolheu. Prestou atenção a uma respiração ou
movimento, mas não ouviu nada. Indecisa, seus dedos fecharam-se
nas pregas de seu vestido. Turri jamais a faria esperar tanto tempo.
-Quem é? -ela perguntou.
Em resposta, uma nota longa e baixa ecoou de dentro de um
violoncelo em algum lugar perto do piano. Quando desapareceu,
um homem riu.
-Você não me conhece -ele disse. -Mas talvez já tenha me ouvido
tocar. Seu marido pegou meu cartão na festa dos Rossi e me pediu
para vir em algumas tardes, no caso de gostar de música.
Sua voz era áspera: a voz de um homem idoso.
-Eu, de fato, gosto de música -afirmou Carolina. A surpresa a
deixara incerta a respeito de tudo. Estendeu as duas mãos e
encontrou os batentes da porta nos dois lados, onde sempre
estiveram. Marcando sua posição por eles, entrou no aposento e
sentou-se no canto do sofá mais próximo. -Sou Carolina -ela disse.
-Silvio -o homem disse. Um toque, outra nota, e uma canção
irrompeu: fogo devorando um único graveto antes que a pilha
explodisse em chamas, em seguida um momento passado perto de


águas escuras, antes que o tema de abertura irrompesse novamente
em variações tão inevitáveis e estranhas como a fala de anjos.
Quando se encerrou, ela pôde ouvir a ponta do arco descansar
delicadamente no assoalho.
-Outra? -perguntou o músico.
-Sim, por favor.


Nos sonhos, o telhado plano da casa dos Turri era recoberto de
conchas brancas, apesar do fato de Carolina nunca ter estado no
telhado dos Turri na vida real e de que o custo de importar tais
conchas do litoral teria sido imenso. Apesar de improvável, o efeito
era extraordinário. Por mais alto que ela subisse, a cruz branca
formada pelas quatro alas da casa destacava-se como um farol entre
as estradas douradas e as copas escuras das árvores. A figura
espectral era visível até mesmo à noite, iluminada pela lua, como
agora.
Carolina deu voltas pelo céu noturno, acima da casa e das terras dos
Turri. Apenas uma única luz ardia na casa, no segundo andar. Ela
voou mais baixo, sobre o jardim dos fundos, depois se ergueu até
ficar na mesma altura da janela iluminada na escuridão.
Dentro, havia um laboratório e uma oficina. Turri estava sentado à
escrivaninha, de frente para a janela, a cabeça inclinada sobre algum
tipo de mecanismo complicado. A sua direita, uma pequena sacada
projetava-se do aposento. Ela se comunicava com a casa por uma
estreita porta de vidro. Carolina pousou e experimentou a
maçaneta.
A porta se abriu tão silenciosamente que, por um instante aterrador,
ela se perguntou se teria ficado surda também. Então, ouviu o ruído
de metal contra metal e um ritmo de cliques e estalos conforme
Turri testava a máquina na mesa diante dele. Ele não ergueu os
olhos quando ela entrou e Carolina não o perturbou com um
cumprimento.



Em vez disso, ela deslizou silenciosamente por ele para explorar a
oficina. O espaço era amplo: apenas dez passos de largura, mas tão
fundo que a parede oposta perdia-se na escuridão. A área em que
Turri trabalhava era profusamente iluminada por minúsculos
artefatos a gás presos no teto a intervalos de alguns passos. A
esquerda, havia armários de vidro cheios de estojos contendo
espécimes de mariposas e insetos, bem como recipientes altos cheios
de penas cuidadosamente separadas por cor: pretas, azuis, marrons,
brancas, vermelhas e um pequeno feixe desamarrado de verdes.
Uma bancada de mármore preto, com veios de quartzo e salpicado
de mica brilhante, suportava uma pequena floresta de provetas
fervilhando misteriosamente, interligadas por tubos finos e
amarelos. Nuvens de vapor subiam de cada proveta, soltando
cheiros de anis, limão e iodo. Além da bancada, viam-se prateleiras
de vidros cheios de frutas estranhas, pedaços de raízes grossas, fetos
de animais, pássaros sem penas. Todos esses espécimes haviam
perdido suas cores verdadeiras e adquirido o tom azul-claro do
líquido espesso em que se mantinham suspensos.
Defronte dos vidros, havia livros. Pisando cuidadosamente, como se
temesse despertar Turri, Carolina atravessou a pequena distância de
lustrosas tábuas do assoalho para ler seus títulos: Máquinas de voar
bem-sucedidas; A nova química italiana; Uma história de lágrimas; Cinco
mil constelações com estrelas perdidas. No canto inferior da estante de
livros, faltavam mais de uma dúzia de volumes grandes -talvez os
que ele havia escolhido para lhe mandar. Nas sombras onde eles
deveriam estar, pequenas luzes cintilavam. Quando Carolina olhou
mais de perto, descobriu um globo: azul que parecia preto na luz
turva, marcado com linhas douradas que traçavam a forma das
constelações entre as falsas estrelas. De algum modo, as estrelas
brilhavam de dentro para fora, cercadas por halos de azul da meia-
noite, onde a luz iluminava a superfície escura. Quando o tocou, ela
percebeu que era feito de papel, bem esticado sobre uma estrutura
de arame, cada estrela cuidadosamente perfurada à mão. A parte de


trás do globo parecia derramar mais luz do que a frente, lançando
estranhas sombras nos recessos mais profundos da estante de livros.
Curiosa, Carolina virou a esfera delicadamente em seu suporte. Um
pequeno rasgo dividia o globo, do peito de um dragão aos chifres
de um touro. Dentro, ela pôde ver a forma vacilante de uma chama
nua.
Cuidadosamente, ela girou o globo para esconder o rasgo. Em
seguida, caminhou de volta para onde Turri ainda estava sentado.
Ele franziu o cenho ao pressionar uma alavanca de prata que
levantava um martelo e fazia soar um pequeno sino. As saias de
Carolina farfalharam, mas ele não deu nenhuma atenção. Carolina
ficou parada ao seu lado enquanto ele pressionava a alavanca outra
vez, praguejava baixinho, depois dava umas pancadinhas no
pequeno sino com o dedo. O sino repicou com um som abafado.
Com o sangue ressoando em seus ouvidos, ela colocou a mão em
seu ombro.
Antes que ele erguesse os olhos, ela acordou.

***
Durante dias, Carolina esperou por Turri a qualquer momento.
Qualquer som podia assinalar sua chegada: um passo do lado de
fora de seu quarto; o baque de um passarinho contra a sua janela.
Certa manhã, os pombos do telhado acordaram-na com seus
arrulhos e, por vários minutos, ainda no meio de um sonho quase
acordado, ela ficou convencida de que ele havia escalado até os
beirais do telhado e tentava se comunicar com ela em algum novo
código. Essas esperanças vinham involuntariamente, apesar de
todas as suas tentativas em contrário. Ela lembrava a si mesma de
suas experiências fracassadas, do escárnio que seu nome suscitava,
sua impre-visibilidade e suas tolices. Ela repetia as histórias que
ouvira de como um ligeiro vento pode extinguir o amor de um
homem. Não fez nenhuma diferença. Seu coração fora convencido
por alguma fórmula matemática secreta.
Pietro, na breve hora que passavam juntos durante o jantar todas as


noites, parecia não notar nada disso. Ele relatava o progresso dos
vinhedos e se queixava do viticultor. Até este verão, Pietro não
demonstrara absolutamente nenhum interesse pela vinícola de seu
pai, de modo que o velho homem acostumara-se a fazer sua magia
negra com absoluta liberdade. Agora, ele reagia à presença de Pietro
com desconfiança e às suas perguntas com exasperação. Após
algumas semanas circulando alegremente pelas fileiras de vinhas e
inspecionando as tinas de cobre onde o vinho novo se formava,
Pietro começara a oferecer sugestões. O velho viticultor ficava
mudo de raiva. Como o velho não parecia disposto a aquiescer,
Pietro tentou reeditar suas ideias como ordens. Tal atitude resultou
em uma completa interrupção das negociações, depois do que o
viticultor reagia a qualquer coisa que Pietro dissesse com uma única
palavra: impossível.
-Ele age como se todo o vinhedo estivesse plantado em pólvora -
Pietro disse a Carolina. -E se cortarmos o pé errado tudo vai
explodir pelos ares.
Enquanto isso, a porta da frente continuava trancada. No começo,
ela achou que fosse apenas um capricho passageiro que o levou a
trancar a porta e tirar a chave na noite da festa dos Rossi. Mas, à
medida que os dias se passaram, a maçaneta continuou a se recusar
a se mover, não apenas à noite, mas durante o dia também. Carolina
ouvia os solilóquios de Pietro durante o jantar com crescente
surpresa, tentando entender como este homem simples, simpático,
podia agir também como seu carcereiro.
Finalmente, ela perguntou:
-Eu quis ir ao lago hoje -ela disse certa noite, após uma longa
exposição sobre os méritos de diversas uvas que até mesmo
Carolina podia ver que Pietro havia irremediavelmente confundido.
-Mas a porta estava trancada.
-Sim -Pietro disse, sem se alterar.
Carolina colocou a faca junto ao prato e ergueu os olhos para o rosto
de Pietro.


-Acho que gostaria de ter uma chave -ela lhe disse. Sua mão cobriu
a dela sobre a toalha de mesa de renda grossa.


-Não é seguro para você ir sozinha -ele disse.
Quando ela não respondeu, ele ergueu a mão até seu rosto, traçou a
curva de seu queixo, inclinou-se para beijá-la e perguntou:
-O que importa onde você esteja, se não pode ver?


***

-Tem um homem aqui -Giovanni anunciou da porta do quarto de
Carolina com um ar de traição.
-Obrigada, Giovanni -ela disse, perguntando-se, enquanto se
levantava de sua poltrona, como o menino podia te concebido um
ciúme do velho violoncelista.
Ela parou quase no limiar da porta, porque não tinha ouvido os
passos dele se afastando. Como imaginara, Giovanni ainda
aguardava na entrada.
-Posso segurar seu braço para ajudá-la nas escadas ele sugeriu.
Carolina sorriu para ele com o que esperava que fos uma certa
precisão.
-Eu subo e desço as escadas todos os dias -ela disse.
-Mas, e se houver alguém escondido nelas? -ele per guntou. -Ou
um copo que caiu da bandeja?
-Tomarei muito cuidado -Carolina prometeu. -Obrigada,
Giovanni.
-Eu sou o garoto mais rápido dos estábulos -ele dec rou, para
encerrar. Em seguida, reforçou seu argumento cor uma descida
ruidosa, precipitada.
Após um instante, Carolina o seguiu.


-Seu jovem amigo não confia em mim -Turri disse quando ela
atingiu o primeiro patamar. -As crianças são excelentes julgadores
de caráter.
Por um instante, a imagem dele parado ao pé das escadas, os olhos
azuis tão brilhantes que pareciam iluminados de dentro, foi tão



forte que, quando o momento passou, ela ficou surpresa de ver que
ainda estava cega. A visão a fizera parar no meio do lance de
escadas. Ao longo das semanas, desde a festa dos Rossi, ela
imaginara mil vezes seu encontro com ele, sempre em uma névoa,
na qual o mundo inteiro se desfazia assim que ele tocava sua mão
ou pronunciava seu nome. Mas o som real de sua voz teve o efeito
contrário: em vez de conduzi-la a um sonho, a fez retornar para si
mesma. Seu espírito, que costumava perambular temerariamente
entre sombra e lembranças, assentou-se de novo no peito.
-Achei que você fosse um velho -ela disse, recomeçando a descer. Com
um violoncelo.
-Minhas preocupações me envelhecem todos os dias -Turri disse. Mas
até agora nenhuma delas resultou em música.


Carolina desceu o último degrau. Turri beijou-a na face. Algo
pontiagudo espetou o corpete de seu vestido. Ela se afastou. Turri
riu.
-Você descobriu seu presente -ele disse.
-Você me trouxe um pônei -Carolina tentou adivinhar.
-Um pônei bem pequeno -Turri admitiu. -Com pernas de pau. Se
você se sentar, eu o farei dançar.


Com passos regulares, Carolina conduziu-o ao jardim de inverno,
mas, quando se virou para se sentar no divã, ele tomou sua mão.
Durante alguns instantes, ele a segurou com força, como um
homem zonzo agarrando-se ao galho de uma árvore para recuperar


o equilíbrio. Então, soltou-a.
-Não -ele disse. -Sente-se naquela pequena escrivaninha.
Carolina atravessou o aposento até a escrivaninha. Turri seguiu-a
de perto. No instante em que a mão dela pousou no encosto da
cadeira, ele puxou-a para ela. Obedientemente, ela se sentou.
-Bem -disse Turri, a voz estranha de empolgação. -Um instante.
O tecido áspero de seu casaco roçou em seu braço nu quando ele
colocou alguma coisa sobre a mesa. Houve um ruído de papel e o

cheiro leve, penetrante, de carvão veio e se foi. Ele girou algum tipo
de mecanismo, como se desse corda em um relógio, e o papel
rangeu e estalou.
-Pronto -ele disse, dando um passo para trás.
-Devo cantar? -Carolina perguntou.
-Cantar? -Turri repetiu, surpreso.
-Como podemos dançar sem nenhuma música? Turri riu. Então,
inclinou-se sobre a cadeira dela, de modo que seus ombros
abrigassem os dela. Seus dedos roçaram pelos braços de Carolina,
até suas mãos, que ele pegou na sua e levantou. Quando soltou seus
dedos, eles pousaram nas teclas de uma nova máquina. Carolina
estremeceu.


-O que é? -sussurrou.
-É uma máquina de escrever -ele respondeu, a voz baixa e gentil,
como se não quisesse assustar um animal arredio. -Olhe.
Ele cobriu a mão direita de Carolina com a sua própria e pressionou
seu indicador para baixo. A tecla sob o dedo cedeu.
Ali perto, algo bateu no papel com uma pancada firme.
-Essa é uma letra -ele sussurrou.
-Que letra é? -ela sussurrou também.
-1 -ele respondeu. Ele espalhou seus dedos por duas fileiras de
teclas. -Há uma para cada letra. Vinte e uma ao todo -ele disse. Estão
na ordem do alfabeto.
Carolina retirou suas mãos das dele e correu os dedos pelas teclas
desconhecidas. Os braços de Turri ainda a envolviam por trás. Um
leve calor pulsava através de sua camisa fina e colete.
Ela pressionou outra.
-Esta é uma letra? -perguntou.
Turri balançou a cabeça. Seu queixo roçou sua face.
-Não me diga -ela disse. Deixando um dedo na tecla, ela contou
dali para trás, até o começo da fileira, e depois con¬tou de volta
outra vez. -G -falou.



-Funciona com duas folhas -Turri disse. -Uma é papel preto,
coberto de fuligem. A tecla faz uma impressão através dela para a
folha seguinte.
-Você esculpiu as letras em madeira? -Carolina perguntou.


-Não -Turri disse. -Eu as roubei de uma pequena prensa que meu
pai me deu há anos, quando ele ainda achava que eu poderia me
tornar alguma coisa.
-Então, se parece com um livro?
-Com uma página arrancada -Turri disse.
Após o G que ela já havia apertado, Carolina bateu nas teclas R e A
em rápida sucessão. Teve que procurar o Z por um instante,
seguido rapidamente pelo I e pelo E.
Então, virou-se para ele, agarrou-o pelo casaco e puxou-o. Com uma
pressa desajeitada, ele ajoelhou-se no chão ao seu lado. Por um
longo instante, o único som que ela podia ouvir era o da respiração
dele. Em seguida, delicadamente, ele virou seu queixo de modo que
os lábios dela pudessem encontrar os seus. Na mente de Carolina, o
teto acima de suas cabeças se abriu de par em par sobre uma
enorme dobradiça, expondo o aposento para o céu límpido.
Turri foi o primeiro a se afastar. Uma das mãos de Carolina fechou-
se na gola da camisa de Turri, a outra em seus cabelos na nuca.
-Não -ela disse.
-Carolina -Turri sussurrou. -Qualquer pessoa pode entrar aqui.
Isso parecia impossível a Carolina. O beijo soltara suas amarras. Era
mais fácil para ela acreditar que o aposento se fizera ao mar do que
imaginar que as operações diárias da casa continuavam ao redor
deles como sempre.
Mas, como para provar seu aviso, uma porta rangeu no fim do
corredor e passos se aproximaram.


Turri beijou seu rosto e se levantou.
-Escreva-me -ele disse. -Diga-me quando irá ao lago.



-Não posso sair -ela lhe disse. Com os olhos erguidos na escuridão
para um rosto que não podia ver, suas palavras soaram como uma
prece.
Os passos pararam na entrada.
-Bom-dia -Turri disse.
Som de um tecido sussurrando a si mesmo, quando alguém se
inclinou ou fez uma leve mesura.
-Quer que lhe traga alguma coisa, condessa? -uma mulher
perguntou. Carolina reconheceu a voz como a de Dolce, uma das
criadas que serviam seus jantares com Pietro.
-Oh, não -Turri disse. -Eu já estava de saída.
-Devo acompanhá-lo? -Dolce perguntou.
-Obrigado -Turri disse. Inclinou-se sobre Carolina e beijou sua
mão. -Escreva-me -falou outra vez. Em seguida, atravessou o
aposento.
No corredor, uma chave girou na fechadura. Turri e Dolce trocaram
agradecimentos e cumprimentos. Em seguida, a Porta se fechou e a
chave girou outra vez. Um instante depois, Dolce retornou a
Carolina.
-Mais alguma coisa? -ela perguntou.
-Não, obrigada, Dolce -Carolina disse.
Ela ficou ouvindo com atenção, mas Dolce não se retirou.
-O que é isso? -a velha criada perguntou após alguns instantes.


~ E uma máquina de escrever -Carolina respondeu.
-Uma máquina de escrever? -Dolce repetiu. Carolina balançou a
cabeça.
-O que ela faz? -Dolce perguntou.
-Ela escreve -Carolina disse.
-Só isso?
Carolina balançou a cabeça outra vez.
Dolce fez um ruído na garganta, tolerante, mas sem se deixar
impressionar, como se um dos meninos tivesse lhe trazido um cesto



de frutas caídas no solo, em vez de se dar ao trabalho de subir nos
galhos mais altos para pegar os melhores espécimes.
-O Santo Padre possui uma pedra filosofal -ela contrapôs. Transforma
água em ouro.


***

-Você consegue dormir com os olhos abertos? -Pietro perguntou.
Ele se empoleirou no braço curvo do divã do jardim de inverno
onde Carolina se aninhava. Ela não se movera do lugar desde que
Turri saíra, horas antes. Passara a tarde ao sabor das horas,
enlevada com a lembrança do beijo de Turri, que retornava à sua
mente cada vez com um novo sentimento: anseio, desejo, vergonha
e gratidão tão profundos que ela temia que seu coração pudesse
atrair a atenção de Deus por estar agradecendo quando deveria
estar se confessando. Na maioria das vezes, o momento parecia um
sonho. Quando começava a parecer real demais, a esperança a
paralisava ou o temor enchia seus pulmões.


-Não -ela respondeu. Pela primeira vez desde que ficara cega,
desejou poder ver os olhos do marido. Em vez disso, fechou os seus.
Pietro afagou seus cabelos.
-Mas por que -ele perguntou -, se a luz não pode mais acordá-la?
-Não sei -murmurou Carolina.
-É uma questão para a ciência -concluiu Pietro.
Ele beijou o topo de sua cabeça e dirigiu-se ao piano, onde tocou
algumas notas desconexas, terminando com um forte, mas
desgracioso acorde maior.
-Tentaram me ensinar música -ele disse, e riu. -Foi como ensinar
um cachorro a cantar. -Ele tocou os primeiros compassos de uma
valsa famosa, depois deixou a mão esquerda cair, mas continuou
tocando até o final da melodia. -Seu violinista é bom? -ele
perguntou, quando as últimas notas desapareceram.
A menção dessa pequena gentileza, o coração de Carolina deu uma
guinada, como um barco atingido por uma vaga gigante.



-Ele é maravilhoso -ela disse, sentando-se direito. -Obrigada.
-Ele é muito feio -disse-lhe Pietro. -Mas toca como se ninguém
pudesse vê-lo.
Enquanto falava, deixou o piano, passou pela prateleira de
mármore acima da lareira, depois parou à escrivaninha onde Turri
colocara sua máquina.
-O que é isto? -ele perguntou.
-O quê? -quis saber Carolina. Uma tecla chocalhou sem firmeza
contra o papel.
-Veja só! -exclamou Pietro. -Faz uma letra!
-É uma máquina de escrever -disse Carolina. Outra tecla bateu,
desta vez com mais força.
-Como você sabe qual é a letra? -indagou Pietro.
-Estão na ordem do alfabeto.
-Aha! -Pietro exclamou. Seguiu-se uma rajada de toques de tecla. Escrevi
seu nome -ele anunciou após um intervalo. -Com uma letra
extra: Casrolina. Onde arranjou isso?
-Turri. E uma de suas experiências.
-Turri -repetiu Pietro. -Assim posso escrever a meu pai. Ou
aos nossos amigos.
Tentei escrever antes, mas a tinta se espalhava por toda parte.
Outra rajada de toques de teclas. Então, Pietro empurrou a cadeira
para trás, atravessou o aposento para beijá-la e virou-se para sair.
Quando ele chegou à porta, ela não conseguiu mais se conter.
-O que você escreveu? -ela perguntou.
-Vai ter que adivinhar! -ele respondeu, e riu.


***
Quando Carolina acordou naquela noite, alguém se afastou
furtivamente do lado de sua cama. Mesmo com a surdez do sono
ainda desaparecendo de seus ouvidos, ela sabia o quanto a pessoa
estivera perto: tão perto que podia ser o toque d seus dedos que a
tivesse acordado. Ela atirou as cobertas para trás e saltou da cama,


mas os passos já estavam fora do quarto, parados no topo das
escadas. Quando Carolina atravessou a soleira de sua própria porta,
eles desceram correndo.
Ela apressou-se atrás deles ao longo da curva das escadas, pelo
corredor, até a sala de jantar. Quando alcançou a sala, os passos já
estavam na outra extremidade. Mais alguns passos e poderiam
facilmente tê-la despistado, entrando na cozinha ou na despensa.
Em vez disso, pareceram esperar até ela quase alcançá-los. Então,
abriram a porta do porão e mergulharam ali dentro.
Carolina hesitou no topo das escadas do porão, detida pelo antigo
temor das trevas, mas os meses passados em completa noite haviam
privado o medo de seu poder. Ela segurou no corrimão desgastado
e seguiu-o escada abaixo. No chão de terra batida do porão, os
passos já não rangiam e ressoavam. Foram reduzidos a um andar
compassado e uma raspagem ocasional, ainda inequívocos no
silêncio.
Na única vez que Carolina jamais abrira a porta do porão, a
cozinheira a afugentara, defendendo seu território com todo som e
fúria das aves que dominavam os cantos do pátio. Carolina
presumira que o espaço deveria ser um único aposento, talvez
espelhando a forma da cozinha, mas, conforme seguia os ruídos dos
passos, as câmaras sob a casa pareciam suceder-se
interminavelmente. Suas mãos roçaram paredes ásperas, uma fileira
de garrafas, uma mesa coberta de ferramentas espalhadas. Ela
tropeçou nas soleiras de pedra salientes de três cômodos pelo
menos.

Ela imaginava que tivessem atravessado por baixo da sala de jantar,
passado embaixo do escritório de Pietro e alcançado os recantos
externos da casa. Quando prosseguiram em frente, ela começou a se
perguntar se talvez já não tivessem ultrapassado os alicerces da
mansão e entrado em algum túnel secreto cavado por algum


ancestral de Pietro cem anos atrás para o contrabando de bens e o
encontro furtivo de amantes.
Então, os passos pararam. Um gemido inumano cortou a escuridão.
Carolina ficou paralisada, os punhos cerrados ao lado do corpo, a
mente obliterada de terror, até que uma suave brisa de verão tocou
seu rosto, carregando um leve traço de limão. Alguma parte do
porão abrira-se para o pátio.
Carolina deu uns passos à frente e estendeu as mãos. Seus dedos
alcançaram uma trepadeira. Seguindo a trilha da planta, foi levada a
subir alguns degraus rasos de pedra que davam no jardim dos
fundos. Os passos desapareceram na grama macia, sem deixar
nenhum indício se pretendiam que esta aventura noturna fosse uma
brincadeira de mau gosto ou uma fuga.
Foi um pouco de ambas. Pela primeira vez desde que descobrira a
porta da frente trancada, Carolina estava livre da casa -mas ela não
sabia se conseguiria encontrar seu caminho de volta através do
labirinto desconhecido do porão. A atração da liberdade a fez se
decidir. Primeiro ajoelhou-se para encontrar a porta do porão, que
ficava embutida no declive do jardim. Ela a levantou do meio das
flores sobre as quais caíra aberta. Com um breve rangido e uma
lamúria, caiu de volta no lugar. Ela deu um puxão na velha madeira
para se certificar de que a porta ainda iria abrir quando ela
retornasse. Abriu.
A noite era quente e no meio do jardim o aroma de limão deu lugar
ao forte perfume de lírios, o perfume mais fraco de rosas e um toque
de hortelã. Carolina deixou a cabeça cair para trás, lembrando-se
das estrelas.
Em seguida, voltou-se para a casa. Deu alguns passos erráticos pela
vegetação invisível até a base da edificação. Colocou a palma da
mão aberta contra o estuque áspero e, em seguida, usando a casa
como guia, começou a traçar seu contorno, seguindo as paredes a
partir do jardim dos fundos, através dos lilases antigos que
encobriam o jardim lateral, até o passeio da frente da casa. Ela o


seguiu até a estrada e atravessou correndo para o capim alto do
outro lado.
Era ali que deveriam estar as estacas de jardim que a levariam ao
lago, mas, apesar de encontrar a falha no capim onde ela havia
pisoteado e formado um caminho, não encontrou a corda, nem as
varas. Ela cobriu cerca de vinte passos, abaixou-se para tocar o
capim alto que marcava o caminho de cada lado, mas o capim foi
desaparecendo, deixando-a em uma clareira sem nenhuma pista de
qual direção tomar. Do outro lado da clareira, ficava a floresta de
pinheiros, bastante pequena para atravessar se ela soubesse o
caminho, mas grande o suficiente para ela desaparecer ali dentro
caso * Perdesse.
Atrás dela, ouviu-se o farfalhar de capim. Em seguida, novamente.
Mais uma vez, e os passos tornaram-se inconfundíveis.


Carolina girou nos calcanhares.
-Contessa! -Giovanni gritou, sua voz de menino aguda do esforço
para controlar o medo. -A senhora está bem?
Carolina riu.
Os passos pararam no capim.
-Eu não sabia que era a senhora -Giovanni disse, o orgulho ferido.
-Achei que fosse um fantasma, ou uma bruxa.
-Giovanni -Carolina disse. -O que está fazendo aqui fora a esta
hora?
A perspectiva de uma conversa privada com o objeto de seu afeto
infantil distraiu Giovanni de fazer-lhe a mesma pergunta.
-Gosto de correr à noite -ele disse. -Se eu correr durante o dia, eles
atiram coisas em mim, porque nenhum deles consegue me alcançar.
Carolina deu alguns passos tentativos em direção à voz. Giovanni
correu até ela, segurou seu cotovelo e ajudou-a a voltar à estrada no
topo da colina.


Então, você é realmente o garoto mais rápido daqui? -Carolina
perguntou.


-Foi o que eu lhe disse! -Giovanni exclamou, magoado com sua
dúvida.
-Sim, claro que sim -Carolina disse, e acrescentou para acalmá-lo: Eu
não chamo ninguém mais além de voce.
-Pode chamá-los -Giovanni disse, fingindo indiferença -, se não se
importar com quanto tempo a mensagem vai var para chegar.


Carolina atravessou a estrada escura e pisou novamente na borda
do gramado de Pietro.
-Até onde você corre? -ela perguntou.
-Não sei -Giovanni respondeu. -Até a estrada e de volta. Há
caminhos, na floresta.
Carolina colocou a mão em seu ombro magro e rijo.
-Como você volta para casa? -Carolina perguntou. Giovanni nem
sequer se aproximou da porta da frente.
Em vez disso, conduziu-a em diagonal pelo gramado até a entrada
da cozinha que dava para o pátio dos criados. A porta estava
destrancada. Ele a abriu com um movimento seguro e encaminhou-
a à cozinha, através da sala de jantar, até o pé das escadas. Ali, pela
primeira vez, ele hesitou.
Carolina apertou seu ombro, depois o soltou e procurou o corrimão.
-Obrigada, Giovanni -ela disse. -Posso ir sozinha daqui. Giovanni
soltou um suspiro agudo, involuntário.
-Foi uma noite tão linda -disse, enleado.


***

Na manhã seguinte, Carolina colocou uma única folha de papel na
máquina. Em seguida, levantou uma folha do papel Preto de Turri e
habilmente verificou os dois lados. Uma das faces do papel
extraordinariamente fino era lisa, mas a outra era coberta de
fuligem. Ela colocou o lado empoeirado para baixo, sobre a outra
folha na máquina, e posicionou as mãos sobre as teclas delicadas.
Meu querido pai, começou.
Quando terminou, retirou as folhas da máquina, deixou de lado a


folha preta e puxou a sineta que tocava nas dependências dos
criados. Em seguida, dobrou a carta em três partes e empurrou-a
pela escrivaninha até ela bater na base da vela que Liza lhe trouxera
anteriormente. Com a carta no lugar, Carolina pegou o bastão de
cera do lacre e passou-o pela haste da vela até que os pavios se
encontraram e a cera incendiou-se com uma pequena arfada. Ela
abaixou a cera bem perto da parte levantada da carta, apertou essa
parte para baixo e prestou atenção ao som das gotas de cera que
caíam. Depois que várias delas caíram, ela apagou o pavio com um
sopro, pegou o sinete e contou até dez antes de pressioná-lo na cera
morna.
-Sim? -Liza disse da porta do quarto de Carolina.
-Corte alguns dos lírios junto ao porão e das rosas perto da porta da
cozinha -ordenou Carolina. -E leve-as ao meu pai com isto. Estendeu-
lhe a carta.
Lisa pegou-a muito mais rápido do que Carolina achou que
pudesse, a julgar pela distância que Carolina estimara haver entre
elas.
-Devo mandar Giovanni? -quis saber Liza.
-Não -Carolina disse. -Mande Giovanni aqui.
Ela não ouviu nenhum som de Liza até a escada ranger em algum
ponto do primeiro lance.
Em seguida, Carolina virou-se novamente na cadeira, pegou outra
folha de papel, substituiu o papel preto e começou uma segunda
carta.

***

Carolina mal havia inalado o ar noturno quando Turri puxou-a para
as sombras das rosas brancas que quase encobriam a porta da
cozinha.
-Há uma luz acesa -ele sussurrou.
-Uma luz? -ela disse. -Onde?
Em resposta, ele a beijou. Uma reação de calor percorreu-a tão



rapidamente que a deixou tonta.
-Na frente da casa? -ela sussurrou quando ele a soltou. -É Pietro
em seu quarto.
-Não é um lampião -Turri disse. -Parece mais uma vela. Nos
fundos, na janela do canto.
Carolina pensou por um instante.
-Não sei -ela disse.
-Não consegui ficar esperando em casa, assim sentei-me à beira de
seu lago até a meia-noite -Turri lhe disse. -Você tem uma lua
perfeita na superfície e um par de mergulhões que a estraçalha toda
vez que alguma coisa os assusta.
Desta vez Carolina o beijou. Quando se afastou, ele emitiu um
pequeno som de reconhecimento no fundo da garganta/ como se
tivesse acabado de compreender os resultados de alguma
prolongada experiência.
-Leve-me até lá -ela lhe disse.


***

Turri conduziu-a rapidamente através do gramado de Pietro e pelo
meio dos pinheiros, segurando-a quando ela pisava em falso, suas
roupas e sua pele exalando o aroma de uma especiaria que ela não
reconhecia. Sob o toque de sua mão, os sonhos de Carolina
pareciam ultrapassar as fronteiras do sono. A floresta noturna ao
redor, que em geral vivia em sua mente como uma sombra negra
com retalhos de céu, tornara-se iluminada como o dia, os galhos
carregados de flores brancas em um momento, incandescente no
seguinte com chamas azuis e cor de laranja. As estrelas além dos
ramos das árvores lutavam para manter o equilíbrio, cambaleando
loucamente, algumas brilhando muito mais do que ela jamais vira,
outras se inflamando bruscamente.
-Você sabe o caminho? -ela perguntou, parando para recuperar o
fôlego.


Turri parou ao seu lado. Ele entrelaçou as mãos de ambos sobre o
estômago de Carolina e pressionou a face contra a dela.
-Já fiz este caminho umas cem vezes -ele disse. -Quando não
consigo dormir, fico parado na floresta, observando suas luzes.
-Mas eu não uso nenhuma luz -ela disse.
-Eu sei -disse Turri.
Quando chegaram ao chalé, ele colocou a mão de Carolina no
corrimão gasto pelo tempo e deixou que ela subisse a escada
sozinha. Dentro, o cheiro familiar do lago, um leve toque de fumaça
da lareira, a mistura de todos os perfumes que ela usara entre as
cobertas de veludo quando criança trouxeram lágrimas aos seus
olhos. Ela virou-se, repentinamente ansiando pela proximidade de
Turri. Mas ele havia parado em algum lugar e silenciado.
-Onde você está? -ela perguntou à escuridão.
Por um longo instante, ninguém respondeu. Então, a mão de Turri
ergueu seu rosto até o dele. Trêmulo como um galho sob a chuva,
ele beijou sua boca, sua orelha, seus olhos.

***

Quando acordou, Carolina soube imediatamente que estava na casa
do lago, mas não se lembrava de como havia chegado lá.
Lentamente, as primeiras horas da noite retornaram à sua
lembrança, mas embaralhadas aos seus sonhos e em fragmentos tão
indistintos pelo calor que não pareciam reais. Vendo-a se mexer,
Turri puxou a coberta sobre seus ombros nus. Ela encontrou sua
mão e dobrou-a sob seu queixo, como se fosse um bem favorito.
Então, seus olhos se arregalaram.
-Ainda está escuro? -ela perguntou. -Precisa me levar de volta
antes de amanhecer.
-Mas estamos aqui há dias -Turri disse. -Já há dois exércitos
acampados em nossa entrada.
Carolina ouviu com atenção: ainda nenhum pássaro, nenhum
gafanhoto militante. Sentou-se.



-Preciso voltar.
Turri enrolou os cabelos de Carolina nos dedos.
-E se não voltar? -ele disse. -Em vez disso, deixe-me levá-la para
uma ilha grega. Arranjaremos uma casa à beira-mar e viveremos de
figos.


Carolina sabia de qual livro ele havia escolhido esse sonho: uma
coletânea de gravuras do dia a dia de um mundo antigo, que era
um dos seus favoritos entre os livros que ele lhe mandara, por causa
do turquesa puro nos oceanos de aquarela. Por um instante, a
imagem da casa caiada de branco empoleirada em um penhasco se
formou, dolorosamente nítida, mas depois começou a perder os
contornos, como uma maquete de papel se desfazendo na chuva.
-Preciso ir -ela disse, afastando as cobertas de veludo.


***

-Ele diz que lhe trouxe um bálsamo -Liza leu. -Mas agora precisa
dele para suas experiências. Quer saber quando poderá devolvê-lo.
-Nada mais? -Carolina perguntou, sentando-se direito na cama.
Turri devia ter lhe escrito assim que chegou em casa. Ainda não era
nem meio-dia.
-Há algumas linhas de um poema -Liza disse.
Carolina refletiu. O trato não explicitado que as duas haviam feito
com relação às falhas de Liza em relatar o conteúdo dos livros de
Turri era um novo problema agora que Liza tinha uma carta de
Turri nas mãos. Liza não era tola. Ela sabia que não deveria torcer o
conteúdo principal. Mas Carolina não podia ter certeza absoluta do
que ela omitia ou floreava.
-Leia para mim -Carolina disse. Liza leu:

Um passarinho
Roubou meu coração
E pendurou-o em uma árvore


Carolina avaliou os versos e considerou-os genuínos.


-Obrigada -disse.
-Devo chamar Giovanni? -perguntou Liza.
-Sim. E deixe a carta comigo. -Ela estendeu a mão. Liza pareceu
deliberar por um instante, depois obedeceu.
Quando Carolina ouviu os passos leves de Liza lá fora na escada,
guardou a página dobrada em uma gaveta e voltou-se para a
máquina de escrever. Rapidamente, datilografou uma hora e local
de encontro. Giovanni galgava os degraus com grande estardalhaço
quando ela apagou o pavio do bastão do lacre. Ele chegou ao seu
quarto quando ela pressionava o sinete de metal na cera.
-Giovanni -ela disse, estendendo-lhe a nova carta. -Esta é para o
Signor Turri. Você sabe ler cartas?
-Sei cantar como um anjo! -ele respondeu.


***

E foi assim que se passaram as primeiras semanas do verão: noites
que começavam quando ela se encontrava com Turri no pátio dos
criados, dias amenos povoados de devaneios que se emendavam

e

imperceptivelmente em sonhos quando dormia novamente
voltavam a devaneios quando acordava. Turri começou a descobrir
os segredos de seu corpo com toda a Paixão de um grande
explorador. Sua curiosidade era insaciável e sua concentração
absoluta. Nada era omitido. Se ela deixasse, ele começava com um
beijo casual em sua nuca enquanto a guiava pela floresta e
terminava com os dois emaranhados nas agulhas de pinheiros ao
lado do caminho argiloso. Cada noite era uma experiência ímpar.
Ele abria um a um os botões de seu vestido, afastava-o de seus
ombros, mas se mantinha a um passo de distância, delineando seus
lábios, seu maxilar, seus seios, para ver onde ela respondia, quando
ela prendia a respiração. Quando estavam deitados, aconchegados
um no outro, ele cobria seu rosto com as mãos, estudando suas
feições pelo tato, como se o cego fosse ele. Ele retornava
incessantemente às mesmas curvas e recônditos, para ouvi-la fazer


os mesmos ruídos ou, virando a mão, descobrir alguma coisa que
havia perdido. O contato de Pietro a deixara confusa de excitação e
a surpreendera com prazer, mas ele nunca a estudara dessa forma.
O preço que ela pagou foi alto. Desde que a cegueira apagara seu
mundo, reconstruir os aposentos à sua volta na imaginação fora
uma luta constante. Agora, com seus dias e noites invertidos,
dormindo somente em acessos interrompidos, tornara-se
impossível. O sopro repentino de uma brisa parecia o hálito de
Turri em sua pele e de repente o piano, o divã, a escada que ela
havia tão cuidadosamente localizado eram levados por lembranças
que a deixavam na mais completa escuridão quando se apagavam.
Sem vigilância constante, ela se esquecia de onde estavam certos
objetos, que mesas havia pedido aos criados para mudar de lugar.
Jarros pareciam desaparecer sem deixar vestígios. Cadeiras
apareciam do nada. O mundo real tornou-se tão imprevisível
quanto seus sonhos haviam sido.
Seus próprios sonhos a abandonaram. Tinham sido seu único
refúgio da cegueira, mas agora sobrevinham apenas em retalhos e
fragmentos, como seu sono. Na melhor das hipóteses, duravam
apenas alguns instantes, e eram instantes de pesadelo. Em um dos
sonhos, estava parada em um longo corredor de estátuas: todas
também eram cegas e ela estava paralisada como as estátuas. Em
outro, ela ergueu-se em um voo, mas, assim que seus pés deixaram

o solo, a escuridão precipitou-se e engoliu todo o cenário. A perda
da liberdade que adquirira nos sonhos a deixou sem nada além de
lembranças desconexas para guarnecer os compartimentos de sua
mente e bloquear os temores e dúvidas que agora a seguiam como
um bando de pássaros vorazes.
Turri usava a palavra amor, e ela a devolvia a ele como uma aluna
repetindo uma lição em uma nova língua, mas, durante as horas do
dia, parecia-lhe uma palavra muito frágil para comportar todos os
seus significados: sua esperança juvenil em Pietro, os juramentos
que fizera ao padre, os tímidos dons de seu pai, a pele de Turri

sobre a dela e seus planos extravagantes. A única coisa que ela sabia
com certeza era que sua mente clareava e os temores se dissipavam
quando estava com Turri. Mas ela não sabia como lhe explicar nada
disso. De sua parte, Turri ainda estava sob o domínio do sonho no
qual entrara quando ela se virou pela primeira vez para beijá-lo,
disposta a correr todos os riscos, plena de louca ternura.
-Eu posso ver em meus sonhos -ela começou a dizer certa noite,
algumas semanas depois de quando ele lhe dera a máquina de
escrever.
Turri estivera traçando linhas em sua pele com uma longa pena de
ave, mas agora sua mão estava espalmada no meio de seu peito.
-O que você vê? -ele perguntou.
-O vale. Nossas casas. O lago.
-Você me vê? -Turri quis saber.
-Eu o vejo. Mas nós não nos encontramos.
-Você devia falar comigo. Tenho certeza de que sou muito mais
inteligente em seus sonhos. Eu devia lhe dar perguntas para você
me fazer em seu sono.
De alguma maneira, a conversa se desviara do que ela pretendia
dizer. A brincadeira de Turri a fez franzir a testa, frustrada.
Os nós dos dedos de Turri deslizaram delicadamente pela sua face,
como se tentasse desfazer a expressão.
-O que foi? -ele perguntou.
-Eu não sonho mais -Carolina disse-lhe, apressadamente. -Acordo
e não sei onde estou. -Sua voz se elevou enquanto falava,
dissolvendo-se em lágrimas. Surpresa com elas, Carolina escondeu


o rosto no ombro dele.
Turri afagou seus cabelos em silêncio. Carolina prendeu a
respiração, mas não conseguia impedir que as lágrimas se
derramassem na pele dele. Quando passaram, ela ergueu o rosto
para beijar seu pescoço.
-Bem, então você poderia estar em qualquer lugar -ele disse
delicadamente.

-Eu sei. E odeio isso.
-Não -protestou Turri. -O resto de nós não pode deixar de ver
onde está. Mas você pode estar onde quiser. Onde estamos agora?
-Na casa do lago -ela respondeu.
-Não -ele disse. -Onde você quer estar?
Ele virou a cabeça para beijar sua fronte. Carolina fechou os olhos.
Uma onda de sono inundou-a e retrocedeu, deixando para trás os
fragmentos de um sonho: um palácio abandonado no deserto, o
telhado agora apenas ruínas no piso de mármore, as colunas ainda
intactas. Os contornos memorizados da casa do lago que ela
construíra em sua mente estremeceram, depois desapareceram. Em
seu lugar, ergueram-se paredes de mármore desgastadas pelo
tempo. Alguém pendurara longos tecidos coloridos acima delas
para bloquear o implacável sol do deserto.
-Um palácio na areia -ela disse. -Com xales como teto.
-Pronto -disse Turri. -Viu só?


***

-Tem um homem subindo o caminho -anunciou Liza. A cadeira
que havia arrastado para o terraço do começo da tarde raspou nas
pedras quando ela se virou para ver melhor. Um
velho.

Carolina riu, imaginando o protesto de Turri quando ela lhe
contasse este insulto. Ela virou o rosto na direção da brecha na
fileira de carvalhos pela qual qualquer visitante tinha que passar
para chegar a casa.
-Agora ele parou -Liza anunciou. Carolina sorriu e acenou.
-Não devia fazer isso -Liza disse. -Ele parece ter visto um
fantasma.
O sorriso de Carolina se ampliou, satisfeita com o efeito de seu
truque, e abaixou a mão.
-Lá vem ele -Liza disse. -Ele lhe trouxe flores.
Um instante depois, pisadas leves ressoaram no cascalho, talvez a


uns doze metros de distância. Carolina reconheceu imediatamente
aquele modo de andar.
-Papai! -exclamou.
Os passos se detiveram outra vez.
-Ah -Liza disse baixinho, como se tivesse acabado de desatar
algum tipo de nó.
Carolina se levantou e deu vários passos na direção em que ouvira
as passadas pela última vez.
-Cara mia! -seu pai exclamou. Ele envolveu-a em seu abraço, o
casaco impregnado dos cheiros de tabaco e limão. As flores frescas
de um buquê pressionaram-se contra sua nuca, as hastes em
diagonal sobre seus ombros. Seu pai não se lembrou das flores até
Carolina começar a se desvencilhar delicadamente. Então, ele a
soltou e pressionou o buquê em suas mãos. -São amarelas e
vermelhas -ele disse. -As melhores que temos. Eu as escolhi pelo
perfume.

-São lindas -Carolina disse, por hábito. Liza tocou seu cotovelo e
Carolina entregou-lhe o ramalhete. Um instante depois, a porta da
casa se fechou com um baque surdo. -Quer se sentar? -perguntou
Carolina.
-Claro! -seu pai disse animadamente, tomando a cadeira antes
ocupada por Liza. Carolina se preocupou por um instante se a
cadeira da criada seria boa para o pai, depois percebeu que Liza
sem dúvida teria escolhido para si mesma a melhor cadeira que
pudesse encontrar. Carolina deixou-se afundar em seu divã,
preocupando-se com outro detalhe: seu pai não era um velho. Recebi
sua carta -acrescentou-lhe o pai.
-Fico contente.
-Onde foi que Pietro encontrou uma máquina tão maravilhosa para
você?
-Não foi Pietro -disse Carolina. -Turri a construiu para mim.
-Turri -o pai repetiu.


Carolina balançou a cabeça. Quando o pai não disse mais nada, ela
acrescentou:
-Acho que ele teve pena por eu não poder ver. Seu pai continuou
calado.
Um rubor da vergonha ergueu-se do coração de Carolina para seu
pescoço. Sentiu um aperto no peito. Esquadrinhou as sombras que
se amontoavam em sua mente, tentando pensar em outro tópico
para a conversa, mas não encontrou nada. Finalmente, apenas
estendeu-lhe a mão. Era um gesto temerário, mas o pai tomou-lhe a
mão e colocou-a entre as suas sobre o joelho.
-Deve sentir falta de seu lago -disse ele finalmente.
-Sim -assentiu Carolina.
-Quer que eu a leve lá?

***

Seu pai segurou sua mão como se ela ainda fosse uma criança, com
todos os dedos pressionados lado a lado como lápis de cor em uma
caixa. Ele avançou com passadas firmes pelo mato baixo ao lado da
trilha para que o caminho ficasse livre para ela. Ele tropeçou
algumas vezes, ou pareceu respirar com dificuldade, e Carolina
preocupou-se com o que Liza dissera: se a figura forte, corada, de
que ela se lembrava estava se tornando um velho. Mas não havia
nenhuma maneira de perguntar.
Em plena luz do dia, com um bom guia, chegar ao lago levava
apenas alguns minutos. Carolina sabia que já estavam perto pelo
ruído de rãs e gafanhotos, e pelo cheiro de água doce. Mas, quando
emergiram da sombra da floresta na terra desmaiada que cercava o
lago, seu pai parou.
-Sim, olhe só -ele murmurou.
-O quê? -ela perguntou.
-Olá! -Turri chamou da margem oposta. Um instante depois, com
menos entusiasmo, seguiu-se um segundo "Olá! I Uma voz de
criança: Antonio.


-Seu amigo está aqui -seu pai lhe disse.
-E o filho dele -ela acrescentou.
Seu pai dobrou o braço e ergueu sua mão. De braços dados, ele a
conduziu ao redor da margem sem falar.
-Criamos uma safra de girinos -Turri gritou quando se
aproximavam. -Cresceram em potes de vidros no parapeito das
janelas de Antonio, à base de aveia. Hoje, nós os soltamos.
A alguns passos da voz de Turri, o pai de Carolina parou. Estavam
próximos à floresta que dava para as terras de Turri, do outro lado
do lago, oposto à cabana.
-Já são quase rãs agora -explicou Antonio.
-Já os soltaram? -indagou Carolina.
-Sim -respondeu Antonio. -Os peixinhos se aproximaram para vêlos,
mas um de nossos girinos os expulsou.
-Onde estão agora? -perguntou o pai de Carolina, genuinamente
curioso.
Alguém deve ter apontado, porque o pai dela inclinou-se sobre a
água.
-Olhe só isso! -ele exclamou.
Carolina tentou retirar seu braço do dele, a fim de que ele pudesse
se mover mais livremente, mas o pai se endireitou e puxou-a para
mais perto.


-Você criou girinos muito corajosos -ele disse a Antonio com
grande seriedade.
-Aprenderam toda a bravura deles com Antonio -disse Turri.


-E seu pai construiu uma máquina de escrever para minha filha


acrescentou o pai de Carolina. -Você o ajudou?
-Eu vi a máquina -afirmou Antonio, sem parecer impressionado. Faço
cartas mais bonitas à mão.
Turri riu.
-E verdade -disse. -Antonio escreve com toda a elegância de uma
grande condessa.



-Bem -disse o pai de Carolina -, tenho que agradecer a você pelas
cartas de minha filha.
Fez-se um breve silêncio. Carolina esforçou-se para ouvir, mas não
conseguiu captar nenhuma pista do que se passava entre eles.
-Fico contente por isso -Turri disse, após um instante.
-Há flores na água -observou Antonio.
-As suas raízes ficam no fundo do lago -disse Turri. -Como uma
âncora para manter o navio no lugar.
-Ele gostaria de colher uma? -perguntou Carolina.
-Poderia levar uma para mamãe -sugeriu Antonio.
-Você é muito atencioso -comentou Carolina. Ouviu-se barulho de
água quando Antonio puxou um
dos lírios do meio do aglomerado de flores.
-É muito bonita -disse ele. -Acho que é a mais bonita de todas. Ele
pareceu preocupado. -Posso mesmo levá-la?
-Claro -respondeu Carolina. -Deve levar a melhor que puder
encontrar para a sua mãe.
-Você é amiga da mamãe? -perguntou o menino.
-Elas cresceram juntas -Turri disse, quando Carolina não
respondeu.
-Sua mãe era uma menina muito bonitinha -acrescentou o pai de
Carolina. -Ela costumava roubar meus limões e tentar dá-los de
comer aos cavalos. Já viu um cavalo comer limão?
Antonio ouviu em um silêncio arrebatado.
-No aniversário de dez anos de Carolina, sua mãe deu um limão
para um cavalo que estava esperando no pátio, e, quando ele
provou o limão, cuspiu-o tão longe que quebrou a janela de nossa
biblioteca.
Outro garoto teria rido, mas Antonio ficou esperando. O pai de
Carolina deu uma risadinha.
-Mas ninguém conseguia ficar zangado com ela -ele disse. -Era
bonita demais.
-Ela ainda é bonita -disse Antonio.



-É verdade -concordou Turri, como se seu filho tivesse olhado para
ele em busca de confirmação.
Carolina sentiu um aperto no coração. O espasmo de dor
reverberou pelo seu corpo. Esforçou-se para manter o rosto
impassível. Mas quase imediatamente Turri deve ter estendido sua
mão, porque seu pai inclinou-se para apertá-la.
-Nós certamente não pretendíamos interromper sua visita -disse
Turri. -Vamos voltar agora. Obrigado.
-Obrigado -repetiu Antonio.
-De nada -o pai de Carolina disse ao menino. -Venha explorar a
região sempre que quiser.
-Obrigado -tornou a dizer Antonio. -Contessa -falou Antonio,
despedindo-se.
Carolina fez um breve cumprimento com a cabeça. Seus passos
desapareceram na grama macia.
-Gostaria que eu a levasse à cabana? -seu pai perguntou.


Um forte temor inundou Carolina. Não tinha a menor ideia de como
Turri e ela haviam deixado a casa ou que evidências ela poderia
conter. Ela sacudiu a cabeça.
-Basta por hoje -disse.
Seu pai puxou-a para mais perto. A mão dele cobriu a sua.
-Há tão pouco que eu possa fazer por você -ele disse.
Lágrimas assomaram aos olhos de Carolina. Ela prendeu a
respiração, mas quando a soltou as lágrimas escorreram pelo seu
rosto.
-Não, não -disse-lhe o pai. Aconchegou-a em seus braços como se
ajeitasse a asa estendida de um pássaro assustado contra seu
próprio peito. -E agora eu a fiz chorar.


***
-Uma ilha -Carolina disse a Turri. -A areia é branca e a lua está no
céu.
À medida que transcorria o verão, Turri desenvolveu o hábito de


lhe perguntar onde eles estavam toda vez que se encontravam.
Diante da pergunta, uma visão sempre surgia em sua mente:
cachoeiras escondidas, novos jardins, praias desconhecidas. Talvez
embalados por essas fantasias, seus sonhos também começaram a
retornar. Ainda sobrevinham em fragmentos, mas não
desapareciam assim que começavam. Neles, portas antes trancadas
agora se abriam sob sua mão. Quando alçava voo, era sobre terras
conhecidas. O amontoado de medos e dúvidas ainda interferia em
seus pensamentos, mas ela aprendera a mantê-los a distância, nunca
se demorando muito tempo em certos tópicos. O resultado nao era
paz, mas uma trégua nervosa sob a qual ela era impedida de
inspecionar os cantos de seu coração por medo de que a escuridão
ressurgisse e a privasse de seus sonhos novamente.
A ilha era uma invenção, mas o luar era real. Desde que ficara cega,
suspeitava que pudesse sentir o leve peso do luar em sua pele nas
noites límpidas, e o sentia agora, caindo através da janela da casa do
lago.
-Posso sentir a lua em minha pele -ela disse a Turri. -Como a luz
do sol, porém mais leve.
-E é fria, quando o sol é quente? -ele brincou.
-Não -Carolina disse obstinadamente, colocando o dedo sobre seu
ombro. -Aqui, está vendo?
-Tem razão! -Turri disse, surpreso. -Tente outra vez.
-Cientista -Carolina disse, e tocou em sua barriga, no alto, logo
abaixo dos seios.
-Como sabe? -Turri perguntou.
-Posso sentir! -Carolina insistiu, tocando o ponto côncavo em sua
garganta onde os ossos que dão suporte aos ombros se encontram.
Dessa vez, Turri beijou-o.

***
-Sabe por que nos convidaram? -Pietro disse.
Carolina colocou na mesa o pesado papel de linho do convite, que
ele lhe havia entregue apesar do fato de não poder ler a mensagem,


e sacudiu a cabeça.
-Querem uma linha escrita em sua máquina -ele lhe disse. -Todas
as senhoras do vale a quem você enviou uma carta estão se
vangloriando para aquelas a quem você não enviou. Nesta estação,
estão valendo mais do que um vestido de Milão.
Nas últimas semanas, Carolina havia enviado um lote de cartas de
agradecimentos e cumprimentos como ditavam as normas de
cortesia, usando a máquina. Nenhuma delas lhe parecera
especialmente digna de nota.
-A quem eu mandei? -ela perguntou.
-A princesa Bianchi, por uma caixa de laranjas -Pietro começou. -
Alessa Puccini, lamentando o fato de você não poder se unir a ela
em uma cavalgada pelo campo. Ser Rossi, quando ele lhe ofereceu
um quarteto para a tarde.
-Eu já tenho o seu violoncelista -disse Carolina.
-Na verdade, a princesa Bianchi prendeu sua resposta em um
arranjo de hera no consolo da lareira -disse Pietro. -Ela acha que é
muito oriental.
Carolina nunca tinha ouvido nenhum vestígio de amargura em sua
voz antes, e isso não lhe caía bem. Ela se levantou e levou o convite
até ele. Ele ergueu o papel de sua mão. Ela lhe deu o braço e
recostou a cabeça em seu ombro. Planejara falar, mas, quando seu
rosto tocou o tecido de seu casaco, ela simplesmente fechou os
olhos.

***

-É verdade -Turri lhe disse mais tarde naquela noite. -das as casas
têm em exposição alguma carta ou bilhete que você tenha enviado.
É como se você fosse uma poetisa.


-É mesmo?
-Às vezes, eles o colocam bem em cima do consolo da lareira -ele
disse. -Os mais elegantes apenas os deixam espalhados pela casa
onde não podem deixar de ser vistos.



-Então, agora você é um herói? -Carolina perguntou.
-Claro que não -Turri disse. -A maioria já caiu de árvores em
minhas máquinas ou teve as sobrancelhas chamuscadas quando
éramos crianças. Eu teria que salvar uma vida para ser redimido. E
ainda assim seria: Ah, Turri, parece que ele se saiu bem, a despeito de si
mesmo. Mas Sophia já está clamando por uma máquina para ela.
-E?
-Eu a fiz lembrar que ela não é cega -ele disse.
-O que ela disse?
-Ela não se importa. Assim, eu lhe disse que esqueci como se faz a
máquina.
-Ela acreditou em você?
-Claro que não -Turri disse. -Mas talvez seja assim que possamos
fugir. Podemos ir para a cidade e eu construirei máquinas de
escrever.
Carolina permaneceu em silêncio. Ela detestava quando ele falava
do futuro. Suas piadas a respeito disso eram forçadas, suas
esperanças tão simples e impossíveis que a deixavam zonza. As
fantasias dele nunca suscitavam qualquer sonho em sua própria
mente. Ao invés disso, elas extinguiam qualquer paraíso que ela
tivesse imaginado para eles e até ameaçavam as paredes reais da
casa do lago.

-Você gostaria disso? -ele perguntou.
Para impedi-lo de continuar falando, Carolina o beijou.
***

-Este é o livro de palácios -disse Liza.
Há algumas semanas, Liza começara a correr um novo risco em sua
narrativa dos livros de Turri: não só inventara novas páginas, mas
todo um novo volume: Naufrágios famosos.
Na primeira vez, Carolina insistira em descrições detalhadas dos
desenhos de quarenta artistas dos desafortunados navios. Liza
alegremente condenou cada uma de suas novas invenções a um


final cruel: um encalhado em um banco de areia e destroçado por
um quente vento do sul; outro estraçalhado em rochas negras
quando três raios de assustadores trovões atingiram a costa; outro
emborcado pela tempestade que o afundou, de modo que ele bateu
no fundo com os mastros primeiro e ficou se equilibrando de cabeça
para baixo no leito do oceano para consternação dos monstros
marinhos que passavam; outro incendiado por piratas enquanto
navegava com as velas enfunadas, dando o efeito, conforme Liza
relatou com sua paixão por comparações, de um bolo de aniversário
afundando no mar; outro encapsulado pelo gelo de uma
tempestade do Ártico, todos os marinheiros congelados em seus
postos como estátuas de gelo. Outro, talvez o favorito, sofreu
apenas pequenos danos depois de raspar o fundo no pico de uma
montanha submersa, seguindo depois suavemente à deriva até seu
lugar de repouso final em um leito de areia branca, onde a corrente
puxou seus velames esfarrapados, empinando-os outra vez, como
se o navio ainda estivesse velejando alegremente através de um
vento verdadeiro.
Agora, depois de vários volumes inventados, Carolina se tornara
mais exigente: em geral, fazia Liza recitar fluentemente quatro ou
cinco opções antes de escolher uma.
-Não, esse não -Carolina dizia. -O que mais você tem aí? Liza, por
sua vez, também se tornara esperta. Carolina,
ela sabia, nunca escolhia o primeiro livro que ela oferecia, portanto,
se Liza naquele dia estivesse propensa a falar de selvas ou
formações de nuvens, ela os mencionava mais adiante em sua lista.
-Desenhos de relógios -ela disse. -Um pássaro salta para fora deste
aqui.
-Só isso?
-Tordos -Liza disse.
-Um livro inteiro sobre tordos? -Carolina perguntou.


-Não -Liza respondeu. -São pássaros diferentes, mas são todos
pretos.
-Hoje não -Carolina disse. -Mas talvez mais tarde esta semana.
Liza parou por um instante. Em seguida, tentando não deixar
transparecer seu próprio entusiasmo, ela disse:
-Desertos.
Era isso que Carolina estava esperando ouvir. De nada adiantava,
ela aprendera, pedir à jovem para inventar pássaros pretos se ela
não queria. Mas toda tarde Liza ia ao seu quarto com um novo
plano, guardando-o cuidadosamente como uma criada encarregada
da lareira guarda uma nova chama. Se Carolina pudesse identificálo
em meio aos outros, o tempo que passavam juntas se tornaria
muito mais gratificante.
-Sim -ela disse. -Esse está bom. O que há na primeira página?
-O deserto à noite. A areia é azul e o céu é negro. Há...
Ela silenciou quando passadas pesadas começaram a subir as
escadas no térreo. Um instante depois, alcançou o limiar da porta
aberta do quarto de Carolina.
-Cubra os olhos! -Pietro vociferou triunfante, depois riu de sua
própria piada.
Carolina virou-se para ele. Ela ouviu Liza remexer-se em sua
cadeira.
Pietro parou à porta, como se quisesse se orientar ou recuperar o
fôlego. Então, anunciou:
-Trouxe-lhe um presente!
-Obrigada -Carolina respondeu.
Pietro atravessou o quarto. Parou em frente à Carolina, ao lado da
cadeira onde Liza estava sentada.
-O que é isto? -perguntou. -O mesmo velho livro de mapas?
O livro fechou-se com um baque. Carolina disfarçou um sorriso.
-Pode ir -ela disse a Liza. As saias de Liza farfalharam quando ela
se levantou, depois o ruído perdeu-se pela porta.



O barulho de metal sobre madeira lustrosa fez-se ouvir quando
Pietro colocou algum objeto i\a mesa ao lado da cadeira de
Carolina. Houve um sussurro de tecido, depois estalou como uma
bandeira ao vento.
-Ei! -Pietro disse. -Não tenha medo.
-Por que deveria ter medo? -Carolina perguntou.
Agora ele assoviava: trechos de uma melodia que costumavam
cantar quando eram crianças e um jogo terminava, mas ainda faltava
alguém, escondido na floresta ou em algum canto da casa.
-Você já me achou -Carolina ressaltou.
-Shh! -ele disse.
Na interrupção da melodia de Pietro, a voz baixa de um pássaro
sonolento respondeu-lhe com uma espécie de resmungo
exasperado, como se perguntasse se o assunto de Pietro poderia ser
mais importante do que o sonho que ele interrompera.
-Pronto! -exclamou Pietro. -Viu? Diante dessa exclamação,
pássaro aparentemente deu alguma outra indicação de
descontentamento, porque Pietro imediatamente se desculpou com
ele, a voz repleta de verdadeiro remorso.
-Desculpe-me. Queira me perdoar.
O pássaro, inexorável, recusou-se a cantar outra vez.
-Talvez se você falar com ele -Pietro sussurrou a Carolina. -Acho
que ele me considera culpado por todos os solavancos que sofreu na
carruagem hoje.


-Creio que eles não cantam à noite -Carolina disse suavemente. Outros
pássaros não cantam.
-Cantam, sim! -insistiu Pietro. -Alguns cantam. Como é aquela
história... com a garota no palácio? O rapaz que ela ama vem à sua
janela à noite, mas o rei o transforma num rouxinol. Então, o
rouxinol canta -ele encerra, triunfalmente.
O medo encostou o dedo frio no coração de Carolina.
-Então, este é um rouxinol? -ela quis saber.



-Não -Pietro respondeu, adotando um tom professoral quando
começou a relatar os detalhes que havia colhido na compra. -Este
pássaro é da África. O capitão de um navio capturou duas dúzias
deles para si mesmo, mas quando retornou à Itália sua mulher o
havia arruinado com dívidas de uma vida descontrolada, de modo
que ele teve que vendê-los. Eles enchiam toda a sua cabina. Ele os
alimentava à mão todas as noites, mas nem todos cantavam.
-Ele tem um nome? -perguntou Carolina.
-Seu imediato não sabia. Ele os estava vendendo porque o capitão
não tinha coragem. Achei que seria um pouco de música para você,
quando o músico não está por perto. E os pássaros não têm que ser
pagos em ouro, hein? -disse Pietro, tornando-se afetuoso enquanto
tamborilava os dedos na gaiola. -Apenas um pouco de fruta e
sementes.
-Há apenas um? Ele não vai se sentir sozinho?
-Ele vai ter você.
Carolina estendeu a mão. Seus dedos roçaram em arame fino. Algo
se remexeu dentro da gaiola.
-Como ele é? -ela perguntou.

-Como um pardal, mas com faixas verdes nas asas -Pietro disse. Não
é muito bonito de se ver, mas era o melhor cantor. Eu o escolhi
com os olhos fechados.

***

-Um navio pirata? -perguntou Giovanni. A gaiola chocalhou
levemente quando ele deu umas pancadinhas no arame. Dentro, o
pássaro remexeu-se, ofendido.
-Não sei -Carolina disse. -Pode muito bem ter sido.
-Meu tio é um pirata -Giovanni alegou, deixando o pássaro para
trás para apoiar-se no braço da cadeira de Carolina. -Eu tenho seu
olho de vidro. Quando nasci, seu papagaio era maior do que eu. Foi
quando ele deu seu olho à minha mãe. Não precisava dele para ver.
-E mesmo? -Carolina perguntou.


-Não! -Giovanni disse enfaticamente. -Ele só o usava para
amedrontar as pessoas.
-Tenho certeza de que é assustador -Carolina disse.
-É verde -Giovanni disse. -Não tem nenhum branco como nossos
olhos. Dizem que parece... -ele parou para dar mais efeito -um
pedaço do mar.


Com isso, o pássaro desatou a cantar entusiasticamente, uma
celebração tão intensa que Giovanni afastou-se do lado de Carolina
para ir investigar.
-Qual é o nome dele? -ele perguntou quando o pássaro silenciou.
-O que você acha? -Carolina perguntou a ele.


***

-Babolo? -Liza repetiu. Ela levantou as duas tranças que acabara de
fazer da nuca de Carolina, enrolou-as habilmente e começou a
prendê-las no lugar.
-Parece que se trata do nome de um pirata cantor -Carolina disse.
-Giovanni sabe tanto sobre piratas quanto eu a respeito da
construção de uma catedral -Liza disse. Carolina sorriu.
Ultimamente, em suas páginas imaginárias, Liza andara
construindo toda uma sequência de fantasias arquitetônicas:
esparramadas mansões árabes, infetadas de minaretes; igrejas que
se arremessavam tão alto no céu que faziam os homens e mulheres
que atravessavam a soleira de suas portas parecerem pequenos
pontos lá embaixo.
O pássaro trinou com perfeita expectativa de obediência. Quando as
duas vozes se calaram, ele iniciou uma cantoria ascendente,
rouquenha, que mais parecia uma risada.
-Você era o rei? -Carolina perguntou-lhe. -De sua pequena cabina?
De todas as árvores?
Em resposta, o pássaro começou outra melodia. Sua voz era um
assobio límpido, como uma flauta, e seu catálogo parecia extenso:
fragmentos de música de funeral e lamentações lado a lado com



hinos triunfantes, marchas nupciais e fantasias de amantes, todos
interrompidos assim que ameaçavam se transformar em melodia.
-Carolina -Pietro disse. -Um cartão para você.


O canto do pássaro mascarara o som de seus passos quando ele
entrou no quarto. Surpresa, Liza deixou o colar que colocava no
pescoço de Carolina escorregar de suas mãos. Carolina prendeu a
respiração, depois a soltou lentamente enquanto Liza recuperava a
joia das dobras de seu vestido.
O pássaro fitou-os furiosamente por um instante, depois perdeu o
interesse.
-De quem é? -Carolina perguntou.
-Turri -Pietro disse.
Liza conseguiu prender o colar na segunda tentativa. Em seguida,
sem pedir licença, virou-se e caminhou para a porta. Ali, hesitou,
como se momentaneamente retida pelo problema de ter que se
desviar de Pietro. Então, seus passos leves desceram as escadas.
O medo latejou nas têmporas de Carolina.
-Leia-o para mim -ela disse.
-Ele diz que andou revendo os movimentos das estrelas. Houve
chuvas de meteoros à noite passada e ele espera vê-las novamente
esta noite, por volta de uma da manhã.
Carolina considerou aquilo uma falta de cuidado imperdoável.
-Por que ele me escreveria isso? -ela perguntou, genuinamente
aborrecida.
-E você nem pode vê-las -ele acrescentou.
Carolina sacudiu a cabeça para o espelho invisível e virou-se na
banqueta de sua penteadeira para ficar de frente Para o marido.


-Estou sorrindo -Pietro disse-lhe após um instante. -Você está tão
bonita.
Atravessou o aposento e inclinou-se para beijá-la, deslocando a joia
em seu pescoço.
-Turri é um louco -ele disse. -Não deixe que ele a perturbe.



***


-Por favor -Turri disse.
O forte aroma das rosas da cozinha no ar noturno dificultava o
raciocínio. Turri a alcançara assim que ela saíra pela porta. Agora,
ele a levantou do chão e arrastou-a com alguns passos instáveis na
direção da floresta.
-Não! -Carolina sussurrou. -Eu só vim porque era muito perigoso
ter você espreitando perto da casa a noite inteira, com os criados
sonâmbulos andando por aí e só Deus sabe o que mais fazendo suas
próprias patrulhas no pátio.
-Seus criados são sonâmbulos? -Turri perguntou, repentinamente
um cientista.
-Não sei! -Carolina disse. -Alguém caminha pela casa à noite.
-Um fantasma! -Turri exclamou.
-Achei que você fosse um homem de razão.
-A razão acredita na explicação mais óbvia -Turri disse. -Algo que
você não pode ver, vagando pela casa à noite: um fantasma,
obviamente.
-Mas eu sou cega -Carolina disse. -Outra pessoa talvez pudesse
vê-los.


-Não estou pronto a abrir mão dos fantasmas, nem mesmo para a
ciência -Turri disse. -Ainda tenho algumas coisas que quero
perguntar a eles. -Ele beijou sua testa, agarrou-a pela cintura com
mais força e a fez se desequilibrar, de modo que ela deu mais alguns
passos trôpegos na direção do lago.
-Não -Carolina disse. -É impossível. Não posso sair toda noite.
Alguém vai nos pegar.
-Então, eu teria que levá-la daqui -Turri disse. Carolina suspirou de
impaciência.
O beijo seguinte foi terno: um pedido de desculpas, ou uma
promessa.



Atrás deles, algo se espatifou no chão da cozinha. Os braços de
Turri apertaram-se como um torno ao seu redor e ela enterrou o
rosto em seu peito. Com a mesma rapidez, separaram-se.
-O que foi isso? -Turri quis saber. Afastou-a para o lado, para
passar por ela e entrar na casa.
-Não faça isso! -ela sussurrou ferozmente. Ela o empurrou de volta
ao pátio da cozinha, entrou, fechou a porta entre eles e trancou o
ferrolho, deixando-o na escuridão da noite. Ela ouviu seus pés
rasparem a pedra do lado de fora, mas, para seu alívio, ele não
bateu.
Ela atravessou o pequeno aposento da porta que levava ao pátio e
parou na entrada da cozinha. Ali, nada agora quebrava o silêncio da
noite. Carolina estendeu o pé e descreveu um pequeno arco logo
depois da soleira. A ponta de seu pé descalço tocou a textura de
grãos finos: açúcar ou sal. Ajoelhou-se.

Açúcar. Tirou o dedo da língua e passou as mãos de leve sobre o
piso descrevendo um círculo maior. Desta vez, suas mãos
alcançaram um caco de cerâmica: mais ou menos do tamanho de
sua mão, e afiado. Dependendo do tamanho do pote que se
quebrara, o chão entre ela e o resto da casa devia estar cheio de
dezenas de outros perigosos cacos espalhados. Ela voltou à porta
que dava para o pátio. Sabia que Turri ainda estava do outro lado:
ele era capaz de esperar ali mais uma hora inteira depois de ouvir o
último ruído que ela fizera. Mas, apesar do perigo à sua frente, a
perspectiva de Pietro descobrir Turri na casa àquela hora da noite
apavorava Carolina ainda mais. Ela respirou fundo,
silenciosamente, e virou-se novamente para a cozinha.
O açúcar parecia ter se espalhado a partir da esquerda, como se
alguém o tivesse arremessado ao chão em vez de simplesmente tê-lo
deixado cair. Para a sua direita, não havia tantos grãos espalhados.
Com os braços estendidos para manter o equilíbrio, ela atravessou
os aposentos com largas passadas, cuidadosamente explorando


cada novo passo antes de colocar seu peso nele. Se roçava na borda
áspera de um pedaço de cerâmica, ela rapidamente se desviava. Só
esperava não estar deixando uma trilha de pegadas ensanguentadas
por cortes feitos por cacos menores que ela não podia sentir.
No limiar da sala de jantar, ela parou, ouviu com atenção, e depois
continuou, movendo-se rápida e silenciosamente. Quando estava
prestes a alcançar o outro lado, ouviu o som de passos.
Carolina ficou paralisada.

Os passos avançaram para ela com determinação, vindos da sala de
estar ao lado, sem fazer nenhuma tentativa de dissimulação.
Pela primeira vez, Carolina fugiu dos passos. Agachou-se, entrou
no porão e fechou a porta atrás de si. Escondida nas escadas, ela
prendeu a respiração. Como temia, os passos entraram na sala de
jantar, onde pararam por um instante como se examinassem o
território. Em seguida, atravessaram para a cozinha, apressados:
perseguindo ou fugindo.
Assim que seus passos desapareceram, Carolina deslizou
furtivamente pela porta do porão outra vez, apressou-se com passos
leves pelo corredor principal e subiu correndo as escadas para seu
próprio quarto.

***

-Cinquenta rosas brancas, das roseiras perto da cozinha -Giovanni
anunciou. -O patrão deu a ordem, mas eu mesmo as colhi.
O coração de Carolina se apertou, depois disparou de medo.
-Que trabalheira deve ter dado! -ela disse, sentando-se direito na
cama. -Espero que os espinhos não tenham espetado suas mãos.
-Retirei todos os espinhos delas -Giovanni disse orgulhosamente. Está
vendo?
Quando ela virou a cabeça, ele roçou o buquê pelo seu rosto,
desajeitadamente, mas com grande ternura, como um menino ainda
aprendendo a beijar.


-Vou colocá-las em cima da mesa. Onde a senhora pode pegá-las.



-Obrigada -ela disse. Seu coração começou a desacelerar, mas
agora sua mente é que tentava correr à frente. -Já é um pouco
tarde? -ela perguntou. -Houve algum problema na cozinha?
-Alguém pegou o pote de açúcar da cozinheira -Giovanni disse,
encorajado pela intimidade. -Então, ela teve que abrir o saco que
havia separado para si mesma.
Carolina esboçou um sorriso diante do terrível dilema da velha
cozinheira. Em seguida, a razão se instalou outra vez e seu sorriso
desapareceu.
-A senhora não precisa contar ao patrão -Giovanni disse
ansiosamente. -Ela não rouba muito, só açúcar e chocolate, e
laranjas no inverno.
-Mas não o encontraram? -Carolina perguntou. -O açúcar
desapareceu?
-Alguém o levou -Giovanni repetiu. Quando ela permaneceu em
silêncio, ele confidenciou. -Acho que foi o fantasma.
Diante da palavra, o corpo de Carolina se enregelou.
-O fantasma? -ela forçou-se a murmurar.
-Não precisa ter medo -Giovanni disse. -Quando corro atrás dele,
ele sempre foge.


***

-Não vejo por que Carolina não iria gostar de sair de barco
-Pietro disse afavelmente. -Não é preciso ver para nadar.
-Ninguém disse nada sobre nadar -a condessa Rossi retrucou,


incapaz de controlar um tom arrogante, apesar do fato de ter ido ali
pedir um favor. Suas festas sempre marcavam a abertura e o
encerramento do verão. Este ano, quando o outono começou, ela
idealizou um evento final que transcorreria sobre a água. A ideia
era embarcar no ancoradouro de Pietro no rio e descer a corrente
com acepipes e música até o lago de Carolina. O pai de Carolina já
havia concordado com o uso de sua propriedade. Agora, a condessa



só precisava da bênção de Pietro -e da cooperação de Carolina para
a pièce de résistance: convites feitos na máquina de Turri.
-Não sei -Carolina disse. -Detesto usá-la com muita frequência.
-Bem, eu estive com Turri -a condessa disse. -Muitas de nós
estiveram. Perguntei qual era o preço dele, e ele pediu metade de
nossas terras ancestrais. Ele disse a Marta Scar-latti que precisaria
de seis pereiras vivas, cobertas de ouro. Sophia diz que é porque ele
não consegue se lembrar de como fazer outra máquina igual. Assim,
receio que a sua seja a única no vale.
-Quantos barcos temos? -Pietro interrompeu. Ele sentou-se ao lado
de Carolina no divã. Nesta tarde, em um gesto sem precedentes, ele
começara a alisar os cachos de Carolina que caíam sobre seus
ombros como uma brincadeira sem propósito. Com um afago, um
cacho ficava liso sob a palma de sua mão, até ele soltar a mecha e ela
enrolar-se novamente em uma onda escura. O gesto estranho
preocupou-a, mas o movimento também era calmante, como água
batendo na areia.


-Talvez uma dúzia -a condessa Rossi disse. -Os criados podem
remar de volta corrente acima depois que cada grupo desembarcar.
-Ótimo -Pietro disse. -Fornecerei o vinho. Todos os nossos criados
podem preparar e servir.
-Maravilhoso -disse a condessa Rossi. -E quanto aos convites,
minha cara, não quero lhe dar nenhum trabalho. Se você enviar a
máquina, tenho certeza de que eu mesma poderei aprender a usá-la.
Sua tentativa de se mostrar mais cordial era irritante, como uma
cantora tentando alcançar notas muito além do alcance de sua voz.
-Não será necessário -disse-lhe Carolina.


***

Carolina não gostava de vagar pela casa de Pietro em seus sonhos.
A réplica em sua mente era cheia de armadilhas e segredos: ela
atravessava a sala de jantar até a porta da cozinha, passava por ela e
se via de volta na sala de jantar outra vez, ou subia as escadas e


descobria que o segundo andar havia desaparecido e um bando de
pássaros agora descansava, em uma única fileira, nas estreitas
saliências formadas pelas paredes dos cômodos abaixo. Armários
eram repletos de nuvens de mariposas pretas. Velas eram capazes
de incendiar buquês de flores frescas. Maçanetas giravam e
giravam, mas nunca abriam uma fechadura. Havia até uma criança
que vagava, do mesmo modo que ela, de aposento em aposento:
uma menina tão pálida que às vezes seus lábios pareciam azuis, de
cabelos cheios e negros, caídos até abaixo do avental branco
amarrado à sua cintura. A menina estava sempre carregando
alguma coisa, uma xícara, um pequeno galho ou um livro, e, assim
que Carolina aparecia, ela sempre se apressava a sair do aposento.
Depois que Carolina aprendeu a voar, adquiriu o hábito de deixar a
casa o mais rápido possível quando se via lá dentro -geralmente
através da janela mais próxima. No sonho desta noite, a janela ao pé
de sua cama já estava aberta. Ela caminhou suavemente até o
parapeito baixo e agachou-se para saltar.
Amanhecia. As estrelas pálidas distribuíam-se em padrões
desconhecidos: as colheres e o caçador haviam desaparecido, mas
ela conseguiu ver um pássaro, as asas erguidas para pousar; um
barco com as velas enfunadas; um homem agachado.
Ela deu um passo para fora do telhado e planou acima do pátio.
Quando chegou à floresta, mergulhou no meio das copas das
árvores e pousou no topo de um pequeno monte que havia surgido
ao lado de seu lago.
Turri já estava lá, amarrando uma teia complicada de corda
vermelha que prendia uma filigrana de folhas largas de pergaminho
no formato geral de asas. As asas eram sustentadas por um
esqueleto de varetas que ele construíra de cada lado de um par de
cadeiras de braço comuns, presas a uma pequena plataforma de
madeira. Entre elas, na plataforma, via-se um balde de limões que
pareciam ter sido rolados em fuligem.


-O que você fez com esses pobres limões? -Carolina perguntou,
aproximando-se.
-Não toque neles -Turri disse. -Estão cheios de pólvora. Carolina
cruzou os braços.
Turri deu a volta à sua máquina, sacudindo o pergaminho,
verificando as varetas e apertando algumas cordas.
-Eles são o combustível -ele explicou quando surgiu novamente do
outro lado. -Está pronta?
Carolina balançou a cabeça, confirmando. Ele indicou uma das
cadeiras e ela sentou-se. Turri sentou-se ao seu lado, selecionou um
limão do balde prateado e largou-o dentro de um tubo preto com
um cheiro horrível, posicionado logo atrás de sua cadeira.
Com o barulho de um trovão distante, o aparelho arremeteu-se por
cerca de um metro acima do solo e ficou lá parado, estremecendo.
Turri olhou para ela encantado, depois selecionou outro par de
limões e lançou-os pelo tubo. Isso deu ao veículo a coragem que
precisava para romper com a gravidade. Ele os ergueu com firmeza
para o céu, assomando acima do topo das árvores no tempo que
Carolina levou para inspirar e expirar uma única vez. O vale se
espraiou abaixo deles, as sombras de todas as árvores e edificações
extremamente longas na primeira luz do dia.
-Olhe só pra isso! -Turri exclamou. -Já viu alguma coisa igual?
Antes que Carolina pudesse responder, o tubo escuro atrás deles
tossiu, depois engasgou. Turri rapidamente colocou outro limão lá
dentro, mas, um instante depois, a sofredora fruta amarela foi
lançada para fora outra vez, em chamas, furando um buraco do
tamanho do punho cerrado de um homem no infeliz pergaminho
arqueado acima. A pequena plataforma balançou violentamente
como um barco no mar encapelado. Turri virou-se para lançar outro
limão no tubo. A máquina rangeu, em seguida começou a zumbir
outra vez. A plataforma se estabilizou. Ele tomou sua mão.
Um enorme trovão explodiu acima deles, seguido do que pareceu
uma rajada de cascalhos caindo sobre as asas que os sustentavam no


ar. Então, fragmentos incandescentes de casca de limão começaram
a cair através do pergaminho, que se recolhia do calor das chamas à
medida que elas se tornavam mais fortes.
Quando caíam rapidamente em direção ao solo, Turri beijou-a,
muito delicadamente, como se não soubesse se devia acordá-la ou
não.


***

Turri beijou-a outra vez. Carolina abriu os olhos.
-Aí está ela -disse ele com ternura. -Sobre o que andou sonhando?
Carolina suspirou e virou a cabeça na curva do ombro dele.


-Que você construiu uma máquina de voar para mim -respondeu
ela.
-Sou uma pessoa cheia de habilidades em seus sonhos ~ Turri disse.
-Em nenhuma circunstância você jamais deve concordar em sair do
chão em qualquer coisa que eu tiver construído na vida real. Foi um
sucesso? Carolina hesitou apenas por um instante.
-Sim. Tinha a forma de um cisne, com uma plataforma e uma
cabina de capitão, e movia-se a limões.
Turri riu e beijou-lhe a face. Ele afagou seus cabelos.
-Não funcionou, não é? -ele perguntou.
-Não.


***

-Chegamos -Turri sussurrou quando alcançaram o jardim da
cozinha. -Esta é a porta.
-Eu sei -Carolina sussurrou em resposta.
-Não sabe, não -retrucou Turri. -Eu podia tê-la trazido ao portão
de algum palácio fantástico.
-Não -Carolina insistiu. -Posso sentir o perfume das rosas e a
maçaneta sempre range na minha mão. -A fechadura abriu-se com
um leve estalido. Ela se afastou de seu beijo de despedida e deslizou
para dentro da casa.


Como sempre fazia, parou a um passo da soleira, recostou-se contra
a porta e ouviu com atenção, como outra mulher teria esperado
para que seus olhos se acostumassem à escuridão. A casa estava em
silêncio. Os cheiros de alho e café do jantar ainda pairavam no ar.
Ela atravessou o pequeno aposento que dava para a cozinha.
Dali, desde que não entrasse em pânico, estava a salvo. Não havia
nenhuma razão para que ela, como dona da casa, não devesse ter
descido para comer um bolo ou beber alguma coisa. Firmou-se
contra o batente da porta e abaixou-se para remover seus
reveladores sapatos úmidos. Em seguida, deslizou rapidamente
pela cozinha e parou no limiar da sala de jantar.
Lá fora, no pátio, um pombo arrulhou sonolentamente, o que
significava que Turri estava errado ou mentira para ela sobre terem
ficado juntos quase até de manhã. Ela começou a atravessar a sala
de jantar, despreocupadamente afagando os encostos das cadeiras
que lhe indicavam o caminho, e entrou no corredor.
Na outra extremidade, junto à porta da frente, alguém deu um
passo e parou.
Carolina enfiou os sapatos nas pregas de sua saia e ficou imóvel.
-Carolina? -Pietro perguntou por um instante, espantado. -Você
está bem?
A mão de Carolina voou para a gola do vestido. Com alívio,
constatou que se lembrara de abotoá-la.
-Você me assustou! -ela disse. Pietro riu.
-Não precisa temer bandidos em nosso vale -ele disse. -Tudo que
poderiam roubar seriam livros e limões.
Devagar, sem nenhuma de sua costumeira confiança, Carolina
começou a descer o corredor na direção de Pietro. Cada passo que
dava parecia-lhe um risco, como se o som de sua voz tivesse aberto
buracos nas paredes invisíveis ou aberto fendas no assoalho.
Quando o alcançou, ele beijou seu rosto ternamente.

-Não conseguiu dormir?


Carolina se perguntou quanta luz teria atravessado as janelas altas e
estreitas que flanqueavam a porta, e se seria suficiente para revelar
seus pés descalços.
-Não importa quando eu durmo -ela lhe disse. -Às vezes, gosto de
andar pela casa quando ninguém pode me ver.
-Quer que eu a leve ao seu quarto? -ele perguntou.
-Obrigada -ela disse, o peito apertado de medo. -Sei onde fica.
Ao se virar, afastando-se, ela girou os sapatos pelas pregas do
vestido e pressionou-os com força contra o estômago, de modo que
suas costas esbeltas os bloqueasse da visão dele enquanto ela subia
as escadas. Somente quando fechou a porta de seu quarto atrás de si
é que percebeu que não havia perguntado a ele onde havia estado.

***

Naquela tarde, o violoncelo parecia estar sentindo falta do lar de
sua juventude. Foi eloquente sobre os longos dias passados
vagando por estradas amadas, pensou no modo como a luz se
refletia do rio que corria junto à sua casa e relembrou um coro de
vozes familiares. Depois, lamentou-se, buscando consolo pelas ruas
de uma nova cidade, sem encontrar nenhum.
Quando a melodia terminou, Carolina levantou a cabeça do divã.
Ela nunca conversara com o violoncelista antes, exceto para
agradecer ou pedir-lhe para continuar com outra música, mas
agora, repentinamente, ela queria conversar com ele como um
amigo. A vontade de colocar seus fardos aos pés de outra pessoa
surpreendeu-a com sua força.
Quase tão depressa, ela compreendeu o quanto ele era um completo
estranho para ela.
-Não sei de onde o senhor é -ela disse.
O velho músico permaneceu calado. O silêncio era tão profundo
que a escuridão na mente de Carolina começou a engolir as paredes
e janelas do aposento. Involuntariamente, ela estendeu as mãos,
buscando algo que provasse que essa visão era errada.


Quando ele viu isso, respondeu:
-Florença.
-Como os poetas -Carolina disse. Suas mãos haviam encontrado a
mesa de pequenos objetos que ficava ao lado do divã. Ela levantou
um soldado de metal, explorou os contornos vivos de seu uniforme
com os dedos e recolocou-o de volta em seu lugar. -Onde aprendeu
a tocar essas canções? -ela perguntou.
O velho músico não respondeu. Carolina descansou as mãos no colo
e voltou os olhos para ele, como um crente olhando cegamente
através da tela de um confessionário.
-Minha filha -ele disse -, eu não quero saber seus segredos.

***

-O rei está montado em um elefante -Liza disse. -É como uma vaca,


com a juba de um leão.
Ela narrava a vida de um Cesar anônimo, contada em ilustrações.
Liza era uma boa mentirosa, mas raramente incorreta, aferrando-se,
com o instinto de um mentiroso, a tópicos que conhecia bem ou
àqueles que ninguém poderia saber. Hoje, entretanto, ela estava
dando asas à imaginação.
-Que assustador -Carolina comentou. Ela achou ter sentido um
leve vestígio de um novo cheiro no quarto: lírio e almíscar, algum
tipo de perfume. Quando Liza virou a página seguinte, o perfume
chegou até Carolina outra vez.
-Agora, ele construiu uma enorme torre com gravetos e ateou fogo.
Está queimando com tal furor que as faíscas se transformam em
estrelas.
-Liza -Carolina interrompeu-a. -Você está usando um perfume?
O livro fechou-se com uma batida. Liza não disse nada. Carolina
riu, encantada.
-É um segredo! -ela disse. -Um presente de um namorado?
Um silêncio sepulcral foi sua resposta.
-Liza! -Carolina provocou-a. -Você está namorando alguém?



Ouviu-se o farfalhar de tecidos, soprando o aroma para Carolina
outra vez, quando Liza se levantou e largou o livro sobre a cadeira.
-Já terminamos? -Liza perguntou. -Precisam de mim na cozinha.

***
-Ele parece achar que construímos este lugar inteiro apenas para ele
-disse Pietro, perplexo.
Babolo gorjeou pedindo silêncio, depois esperou para se certificar
de que dispunha de toda a atenção de sua plateia antes de irromper
em uma canção que Carolina começara a reconhecer como sua
exultação do despertar. Era cheia de ostentação, histórias de guerras
e promessas impetuosas, e Babolo a reservava exclusivamente para
as manhãs ensolaradas. Nos dias cinzentos, ele costumava resvalar
para o devaneio, com oportunidades perdidas, praias longínquas e
amor não declarado como seus temas.
-Eu realmente acho que você me trouxe um reizinho -Carolina
disse. -Ou, ao menos, o cantor do rei.
Ao som de sua voz, Babolo parou abruptamente. Remexeu-se
acintosamente em seu poleiro, seus sentimentos extravagantemente
ofendidos.
-Oh, Babolo -Carolina disse. -Isso foi um elogio.
-Músicos são sensíveis -Pietro disse. Carolina riu.
Pietro lhe trouxera uma laranja no meio da manhã. Segurando
metade da laranja na palma de uma das mãos, ela traçou o contorno
de um único gomo, separou-o dos demais e estendeu-o a ele. O
toque de seus dedos era cálido em sua mão, que ficara fria com a
fruta gelada.
-E Liza! -ela disse. -Você a viu no pátio com algum dos garotos?

Ontem, eu brinquei com ela, perguntando se tinha um namorado, e
ela saiu marchando do quarto e se recusa a voltar.
Babolo trinou para cima e para baixo de duas escalas, para lembrá


los do que estavam perdendo.


-A cozinheira até mandou Giovanni subir com o café da manhã Carolina
disse. -Liza nunca o deixa trazer o café da manhã. Acho
que é porque ela rouba metade das frutas. Havia o dobro hoje de
manhã.
-Bem, as mulheres são um mistério -Pietro disse cautelosamente. Mesmo
quando são novas.
-Sim, mas você tem que observá-la para mim -Carolina disse. -Na
cozinha, ou no pátio. Ela mesma nunca me contará.
-Farei isso -Pietro prometeu.

***

-Onde estamos? -perguntou Turri.
Tinham parado assim que atravessaram a porta da casa do lago,
ligeiramente arquejantes da caminhada pela floresta. A cabeça de
Turri estava abaixada, de modo que sua testa tocava a dela. Suas
mãos brincavam com o fecho da capa em seu pescoço. Ela entendeu
a pergunta: um pedido para que ela inventasse outro lugar em seu
jogo contínuo.
Turri beijou-a. A casa do lago em sua mente ergueu-se suavemente
de seus alicerces e flutuou em direção aos céus. Por um instante, as
sombras os envolveram. Em seguida, paredes de pedra começaram
a emergir das trevas, lustrosas de sereno. Os dois permaneceram
parados em um passadiço entre lagoas de água verde, sob um teto
baixo, arqueado. A água era iluminada de baixo. Onde as luzes
brilhavam através da água, ela cintilava em dourado. A capa
deslizou de seus ombros.
-Uma gruta -ela disse. -Há luzes embaixo da água. Turri estivera
desabotoando os botões em sua nuca, os
dedos roçando a pele fina sobre sua espinha dorsal conforme
prosseguiam. Quando chegou à sua cintura, ele soltou a última
presilha. O vestido deslizou para o chão. Turri soltou o ar dos
pulmões numa arfada. Por um longo instante, ele não a tocou. Em
seguida, envolveu o rosto de Carolina em suas mãos e beijou-a


outra vez. Ela procurou a pele dele por baixo da camisa. Uma das
mãos dele espalmou-se em sua omoplata e puxou-a para si.
Lá fora, um ramo seco estalou na escuridão.
Os dois ficaram paralisados.
-Não foi nada -ele disse, falando baixo. -Algum animal. Ouça.
Desta vez não foi apenas um pequeno galho, mas folhas secas
farfalhando e estalando conforme alguém caminhava por elas, sem
fazer nenhum esforço para disfarçar sua presença.
-O fantasma -Carolina sussurrou.
-Não -Turri disse. -Um cachorro ou uma pequena corça. -Ele
afagou seus cabelos delicadamente, como se ela fosse uma criança
preocupada.
O ruído na mata parou. Turri ergueu seu queixo com ° polegar.
-Viu? -ele disse.


Um passo soou nas escadas da casa. Carolina encolheu-se contra
Turri, a pele nua fria de medo. O visitante hesitou por um instante,
depois subiu até a porta. Turri cruzou os braços por trás das costas
de Carolina, como se estivesse se preparando para enfrentar uma
ventania.
Uma voz de criança, aguda de pavor, perguntou:
-Papai?
No instante seguinte, Carolina ficou sozinha. A porta fechou-se com
um baque surdo e os passos de Turri soaram nas escadas lá fora.
-Antonio -ele disse, a própria voz alterada pelo medo. -O que foi?
Carolina agachou-se, procurando o vestido pelo chão empoeirado.
Quando encontrou um punhado de renda, puxou-o para si.
-Fui procurar mamãe -Antonio disse. -Mas ela desapareceu.
Carolina pôde ouvir as escadas rangerem quando Turri levantou
Antonio nos braços. Ainda agachada, ela entrou atabalhoadamente
no vestido. Conseguiu enfiar os braços nas mangas, mas, quando
tentou se levantar, descobriu que estava pisando na saia, o que a
forçou a inclinar-se.



-Você não estava na biblioteca, nem no laboratório -Antonio disse,
repassando as possibilidades com precisão científica.
-Então, você veio até aqui -Turri concluiu. -Você teve muita
coragem.


Diante desse elogio do pai, a coragem de Antonio finalmente
fraquejou.
-Fiquei com medo! -ele disse, a voz alteada e embargada de
lágrimas.
-Tudo bem -Turri disse. -Tudo bem. Vou levá-lo para casa.
Seus passos familiares, pesados com a carga de Antonio, desceram
as escadas.
Carolina desvencilhou-se de suas saias e se levantou. Por alguns
instantes, pôde ouvi-lo passando pela grama. Depois, até mesmo
esse som desapareceu.
Desajeitadamente, ela abotoou o máximo de botões do vestido que
conseguiu alcançar. Encontrou a capa e atirou-a nos ombros. As
trevas agitavam-se nas janelas e engoliam grandes faixas do lago em
sua mente, mas a perspectiva de ser descoberta ao alvorecer no
mesmo lugar era ainda mais assustadora.
Ela deslizou da casa para a margem do lago, onde sabia que
algumas das estacas que havia enterrado no verão anterior ainda
estavam de pé, a corda que amarrara agora frouxa entre elas.
Batendo loucamente nos juncos, ela conseguiu encontrar uma das
estacas que a conduziu ao longo de uma corda torcida, entremeada
de madeira quebrada, até outra estaca ainda de pé, a meio caminho
da margem. Com inúmeros falsos começos e passos equivocados,
seguiu sua trilha quase arruinada ao redor do lago e através da
floresta. Quando as cordas e estacas acabaram entre os pinheiros,
Carolina seguiu a subida da colina até a estrada, depois atravessou


o pátio, até alcançar a fachada de estuque da casa. Tateou pela
parede de volta à porta da cozinha e deslizou pela casa até seu quarto.
Com os dedos desajeitados do frio, desabotoou o vestido e

deixou-o cair no chão outra vez. Quando se enfiou na cama, a
escuridão consumiu tudo: o lago, a estrada, a casa, suas mãos,
parando apenas no limiar de seu coração. Pela primeira vez,
acolheu-a com gratidão, enquanto ela a tragava para um sono sem
sonhos.

***

-Não é bem uma carta -Liza disse, com certo desdém.
Sua batida na porta acordara Carolina havia apenas alguns
instantes. Carolina sentou-se na cama e afastou os cabelos do rosto.
O aposento à sua volta tomou forma em sua mente por um
momento, inundado da luz da manhã. Logo, porém, despedaçou-se,
sob um assalto de lembranças: árvores escuras, água negra, uma
criança assustada.
-Leia para mim, por favor -ela disse.
-Perdoe-me -Liza leu.
Um momento se passou. O coração de Carolina encheu-se de
lágrimas. Mordeu o lábio, reprimindo-as.
-Só isso? -perguntou.
-Há um número -Liza disse. -Sob o nome.
-Que número? -quis saber Carolina.
-Um -Liza respondeu.
Era a hora para se encontrarem, à uma da madrugada seguinte.
-Obrigada -Carolina disse.


No chão, Liza moveu o vestido descartado de Carolina com o pé ou
a mão.
-Isto tem que ser lavado -ela disse. -Quer que o leve?
-Por favor.


***

Carolina não escolheu faltar ao encontro com Turri. Ela simplesmente
soube, da mesma forma que sabia seu próprio nome ou
qualquer outro fato simples, que era impossível cumpri-lo. Uma
espécie de véu fora rasgado em sua mente durante a noite,


enchendo-a de uma luz ofuscante. Nela, o lago se tornou um
lampejo cáustico. Em suas margens, a figura de Turri tremeluzia,
fraca como uma chama soprada por uma corrente de ar.
Ela tentou passar a tarde imersa em sonhos, mas o sono pairava por
perto, porém fora de seu alcance, afugentado pelas ondas de
vergonha que inundavam seu coração e o medo que se enraizara em
seu peito. Lembranças de Turri que ela acalentava com carinho,
pequenas brincadeiras, certos toques, não funcionavam mais para
confortá-la. Ao mesmo tempo, não ousava se mover. Tinha a
sensação de que o que quer que houvesse rasgado o véu havia
também enfraquecido suas outras defesas, e que agora qualquer
movimento, por mais leve que fosse, poderia escancarar os quartos
trancados de sua mente, liberando criaturas que ela ainda tinha
medo de nomear.
As dez daquela noite, o sono começou a se avizinhar. Para não se
deixar levar pelo sono antes de Turri chegar, Carolina colocou o
relógio de mesa para soar a cada quarto de hora. Na primeira vez
que o fez, Babolo se assustou. Às onze, ele considerou o relógio um
inimigo. A meia-noite, exasperado com a falta de respeito do relógio
por seus protestos veementes, ele caiu em um sono nervoso,
determinado a não enaltecer a estranha máquina com mais atenção,
apesar de não poder se refrear de emitir algumas notas de
insatisfação toda vez que ele repicava.
Carolina permaneceu em sua cama conforme as horas passavam, a
respiração superficial com o peso do medo em sua caixa torácica.
Quando o relógio soou uma hora, seus olhos estavam abertos, as
mãos espalmadas no cobertor de veludo. Com o passar das horas,
ela captara o som de pássaros noturnos se refugindo nos beirais do
telhado, folhas sacudin-do-se ao vento, a casa rangendo à medida
que o calor do dia a abandonava em direção ao céu. Mas agora não
havia nenhuma perturbação do silêncio, nem dentro, nem fora da
casa. Em algum lugar, Turri esperava silenciosamente nas sombras.
Quando ela não apareceu, ele não fez nenhum alarde.


***


-Cor de lavanda -disse Liza. -Com renda verde.
Carolina sacudiu a cabeça. Faltava uma hora para a festa da
condessa Rossi e fazia uma semana que Turri a deixara no lago.
Todos os dias desde então ele enviara uma nova mensagem:
desculpas canhestramente codificadas, novos horários para se
encontrarem. Ela não respondeu nenhuma delas. Não era por um
novo bom-senso, por raiva ou vergonha: seu coração simplesmente
se retraiu à ideia de encontrá-lo da maneira como recolhemos a
mão, sem pensar, do calor de uma chama. Mas, conforme os dias se
passaram, a luz cáustica em sua mente se amenizou. A escuridão
familiar retomou seu lugar, trazendo seus sonhos com ela. Deixou-
se afundar neles com gratidão, mas com uma persistente sensação
de temor que a impedia de voar ou explorar. Seus desejos se
tornaram simples. Geralmente, acomodava-se em qualquer lugar
que estivesse em seu sonho, para observar as nuvens deslizarem
pela face da lua ou a água passar sob uma ponte, satisfeita de estar
onde quer que não fosse um pesadelo ou sua vida acordada.
Turri não aparecia em seus sonhos, mas durante o dia ela começou
a sentir sua falta, não com o desejo que a arrastara pela casa escura
em seus primeiros dias, mas da forma como uma criança cansada
sente falta de sua cama. Ela sabia que ele estaria entre os
convidados esta noite. Como sempre, ela não conseguia imaginar
um futuro com ele presente, nem mesmo onde poderiam se
encontrar esta noite ou o que qualquer um dos dois diria. Nessas
questões, sua mente era um perfeito vazio, como se tivesse se
aproximado de um muro branco que se estendia interminavelmente
em ambas as direções. Mas seu coração batia com força e sua pele
estava sensível com a expectativa.
-Azul-escuro -Liza disse. -Fitas pretas.
-Não -Carolina disse.
-Veludo vermelho, com enfeites azuis.


-Esse é um vestido de inverno.
Liza remexeu nas profundezas do armário.
-Seda azul-clara -ela disse.
Quando Carolina não respondeu, ela tentou novamente:
-Turquesa com debruns azul-marinho.
-São todos azuis? -Carolina perguntou, em parte por brincadeira,
em parte para ouvir a reação de Liza.
Para surpresa de Carolina, Liza não se deixou provocar.
-Renda branca -ela disse. -Com enfeites azul-claros.
-As mangas são curtas? -Carolina perguntou. -Com um pouco de
renda?
-E renda na gola -Liza disse. -Com o debrum azul em volta.
-Traga-o para mim -Carolina disse. Obedientemente, Liza estendeu


o vestido sobre os joelhos
de Carolina, o corpete em seu colo e as saias amplas derramando-se
pelo chão. Carolina tateou a renda engomada, seguindo sua curva
ao redor do corpete até os botões cobertos na nuca.
-Está bem -ela disse.
Liza ergueu o vestido de seu colo. Carolina levantou-se e deixou seu
robe cair sobre uma cadeira.
-Aqui -Liza disse. Ela farfalhou o vestido no chão em frente a
Carolina. Carolina marcou o lugar do vestido com o pé, depois
pisou na área de carpete exposta entre as dobras do tecido. Quando
Carolina já estava posicionada, Liza levantou o vestido e guiou as
mãos de Carolina pelas mangas. Em seguida, deu a volta para trás
de Carolina e começou a fechar a longa carreira de botões.
Carolina passou as mãos pelas pregas de seda que caíam de seus
quadris.
-Ainda cai perfeitamente -ela disse.
Liza não respondeu enquanto não fechou o último botão.
-Pronto -ela disse.



-Vou precisar de algumas flores para o cabelo -Carolina disse. Mas
não muitas. Eu mesma posso prendê-las.
-Há algumas à espera -Liza disse. -Giovanni colheu-as hoje de
manhã, mas a cozinheira não o deixou trazê-las aqui àquela hora.
-Mande-o vir, então -Carolina disse.
Ao invés de sair imediatamente com seu modo arrogante como
sempre fazia, Liza hesitou, demorando-se. A porta, Liza parou
outra vez.
-Precisa de mais alguma coisa?
-É só -Carolina disse lacónicamente, franzindo a testa, confusa.


***

Pietro esteve toda a tarde no lago, supervisionando os preparativos
para a festa da condessa Rossi, de modo que foi Giovanni quem
conduziu Carolina da casa, pela encosta da colina até lá embaixo, à
margem do rio. Já se ouviam dezenas de vozes: risos e
cumprimentos e ordens contraditórias sobre o melhor procedimento
para lançar os barcos cheios de convidados. Carolina esforçava-se
para ouvir, a pele carregada de eletricidade, mas não percebeu a
voz de Turri entre elas.


-Terei prazer em lhe fazer companhia -Giovanni disse, segurando
sua mão com ar de proprietário conforme desciam a ladeira pouco
íngreme. -Pode querer um copo de vinho ou precisar enviar um
recado.
-Obrigada, Giovanni -ela disse. -Creio que irão cuidar muito bem
de mim.
-Agora o patrão nos avistou -Giovanni disse, com um tom de
ressentimento. -Está vindo para cá.
As vozes perto da água silenciaram quando ela se aproximou, até
Carolina saber que estava apenas a alguns passos da aglomeração.
Ela parou.
-Você foi de grande ajuda -ela disse.
Giovanni apertou sua mão apaixonadamente antes de soltá-la.



-A senhora parece um anjo vindo do céu -ele conseguiu dizer,
como se revelasse um segredo militar sob algum tipo de ameaça.
-Carolina! -Pietro disse, beijando seu rosto. -Já estive em cada um
destes malditos barcos esta tarde. Sua mãe estava convencida de
que moramos muito para o interior para saber construir barcos que
não afundem.
-Algum deles afundou?
-Não, mas eu quase afoguei a cozinheira -Pietro disse.
-Já tivemos que lançar os músicos ao mar. Estavam atirando
salsichas neles em terra, como se fosse algum tipo de jogo.
-Ele notou a presença de Giovanni, ainda parado ali. -Muito bem,
então. Você já a entregou. Não precisa mais ficar parado aí.


-Obrigada -Carolina disse para os passos de Giovanni que se
afastavam.
-Vou colocá-la na fila de espera de um barco -Pietro disse. -Eu a
levaria para a frente da fila, mas você não ia querer nenhum dos
barcos que estamos carregando agora.
No meio do rio, os músicos começaram a afinar os instrumentos.
Retalhos de melodias irrompiam entusiasticamente e em seguida se
extinguiam outra vez, adoráveis, mas incongruentes, como um
mural visto à luz de uma única vela.
-Pronto, chegamos -Pietro disse, após alguns passos. -Quer que eu
lhe traga alguma coisa? Temos torta de limão e azeitonas. Não
temos mais salsichas.
-Carolina -Turri disse, tocando levemente seu braço. Um
estremecimento de medo percorreu seu corpo de
cima a baixo, logo seguido de uma onda de calor.
-Olá -ela disse.
-Turri! -Pietro disse, animadamente. -O que está achando de nossa
festinha? Valeu a pena eu ter encharcado meus pés?
-Estou gostando muito -respondeu Turri. -Os barcos na forma de
cisnes, as criadas com asas.



-Os barcos não têm a forma de cisnes -Pietro interrompeu-o. -Não
precisa zombar dela porque ela não pode ver.
-Tudo bem -Carolina disse, pressionando seu braço.
-Um barco para a condessa -o criado anunciou da água. -O senhor
também vem?
-Não -Pietro disse. -Só Deus sabe o que pode acontecer se eu
deixar estas criaturas sozinhas. Isto é um barco, não um cisne, Turri.
Acha que consegue levar minha mulher em segurança até o lago?
Se Turri deu uma resposta, não foi falada. Ele tomou o braço de
Carolina e conduziu-a pelo declive da margem.


***

Carolina recostou-se nas almofadas do barco. A água batia no casco
baixo.
Em benefício dos outros convidados no meio do rio, Turri iniciou
um modo amistoso de conversa.
-Este barco parece ter sido construído pelo filho adolescente do
jardineiro dos Rossi, baseado nas lembranças turvas que o vovô
Rossi tinha de Veneza -ele disse. -Mas não posso culpar o barco.
Até parece um pouco acanhado, como os cachorros quando as
meninas os vestem como crianças.
Carolina não fora capaz de imaginar este encontro, mas esperara
algo incontrolável: uma confusão, um desastre. Para sua surpresa,
sentiu-se como sempre se sentia nas milhares de vezes em que
conversaram.
-Nunca vi Veneza -ela disse.
-É uma cidade terrível -Turri lhe disse. Grunhiu de insatisfação
com seu desempenho nos remos. -Um pântano. Habitado pelos
ciganos mais teimosos do mundo.
Mais uma remada e o barco deslizou em frente.
-Não foi o que ouvi dizer -Carolina comentou.
-Não são todos ciganos -Turri se corrigiu. -Alguns deles são
ladrões.



Agora, os músicos haviam finalmente chegado a um acordo quanto
à melodia: uma popular música de dança da estação anterior. Podia
ser ouvida perfeitamente pela superfície da água, juntamente com
risos e imprecações dos outros barcos. Na água, Carolina já não
conseguia avaliar sua localização pelo som inconstante. Em um
momento, um barco parecia tão próximo que pudesse ser tocado, no
outro as mesmas vozes eram quase inaudíveis.
-Onde estamos? -Carolina perguntou.
-Confortavelmente no meio da correnteza -Turri disse. -O
verdadeiro perigo em uma tempestade, como sem dúvida você
sabe, não é enfrentar o mar aberto, mas ir bater na praia.
Próximo dali, a pá larga de algum remo bateu na água com grande
estardalhaço, e em seguida, encorajado pelos berros e gritinhos,
bateu outra vez.
-Carolina -Turri disse, a voz baixa e alterada. -Não durmo há
vários dias.
-Podem nos ouvir -Carolina lhe disse, tentando manter a própria
voz descontraída.
-Não estão ouvindo -ele insistiu. -Não posso sobreviver a isso.
Diga um lugar. Partiremos no mesmo instante.
-Pare -Carolina disse. Turri calou-se.
O coração de Carolina parecia ter dobrado de tamanho no peito.
Seus braços nus formigavam, como se ameaçassem se transformar
em asas.
-Está escuro? -ela perguntou.


-Há tochas aqui e ali -Turri disse, um tom de desespero na voz. Mas
apenas tornam as sombras imensas e a água como o fogo do
inferno.
Carolina inclinou-se para frente, estendendo as duas mãos. Quando
encontrou as dele, levou-as ao rosto e beijou-as.


***

-Turri -o pai de Carolina cumprimentou-o lacónicamente.


Os criados de sua família haviam arrastado móveis menos preciosos
pela floresta até a beira d'água para a ocasião. Carolina estava
enroscada no canto de um sofá desconfortável, enterrada em
grossos acolchoados. Pietro esparramava-se ao seu lado, um braço
atirado frouxamente por cima de seus ombros. Sua mãe e seu pai
ladeavam o sofá em cadeiras de braço, uma de cada lado. A clareira
era iluminada por tochas em estacas. Uma delas iluminava seu
pequeno círculo e aquecia a nuca de Carolina.
-Turri! -Pietro exclamou. -Onde andou se escondendo?
-Ele estava no lago, em um barco meio inundado, tentando me
atirar pela borda -Sophia disse. -Mas ele esqueceu que eu sei
nadar.
Pietro sacudiu-se com uma risadinha.
-Você dificilmente poderia se afogar neste laguinho -a mãe de
Carolina disse. -Uma criança pode ficar de pé na parte mais funda.
-Agora tem dois metros e setenta -o pai de Carolina disse em
defesa de sua criação. -Todo ano, o rio traz mais sedimentos. Eu
drago o lago toda primavera, quando o gelo derrete.
-É uma profundidade respeitável para qualquer lago -Turri disse.
-No primeiro ano, mandei começarem a escavar antes mesmo da
primavera -o pai de Carolina disse, encorajado.
-Eles estavam cortando tufos de capim congelado enquanto a neve
ainda caía. Eu fazia os homens se lavarem na estufa toda noite, para
minha mulher não saber o que se passava.
-Mas eu sabia -Carolina disse.
-Sabia? -seu pai perguntou, surpreso.
-Eu o seguia -Carolina disse. -E depois eu sabia voltar sozinha.
-Carolina -Sophia disse -, você precisa me deixar tomar
emprestada a máquina do meu marido. Todo mundo fala sobre isso,
mas eu nunca a vi.
-Nem eu -Carolina disse.
Turri riu, depois se deixou cair no silêncio geral. Na água, os
músicos começaram a tocar uma música espanhola.


-É um presente tão estranho -a mãe de Carolina disse.
-O que o fez pensar nisso?
-Devia lhe perguntar por que ele fez um balão com os lençóis do
meu enxoval -Sophia disse.
-E funcionou? -Pietro disse. -Eu sempre quis voar num balão.
-Ela se recusou a sequer colocar o pé nele -Turri disse.
-Eu enviei o Antonio este verão.
-O que ele viu? -Pietro perguntou.


-Não quis me contar -Turri disse.
-Bem, deixe-o responder minha pergunta -a mãe de Carolina disse.
-Por que uma máquina de escrever?
-Por que se inventa alguma coisa? -Turri perguntou-lhe.
-Sim, mas uma máquina de escrever -a mãe de Carolina insistiu. Era
de se imaginar que você construísse um aparelho que a fizesse
enxergar.
-Sou um cientista -Turri disse. -Não um santo.


***

-Lá vêm os músicos -disse Pietro. Inclinou-se para beijar Carolina,
depois se levantou. -Vou lá protegê-los de nossos amigos.
A música cessara e o vozerio dos convidados agora parecia estranho
e deslocado sob o céu noturno. Repiques de júbilo definharam para
risos contidos e os berros dos homens se reduziram a murmúrios
bêbados, como se todos de repente temessem se envergonhar diante
das estrelas vigilantes.
Depois que Pietro se foi, Carolina puxou a coberta sobre os ombros,
levantou-se e caminhou os poucos passos até a beira d'água.
-Eu não faria isso -Turri disse. -As verdadeiras jovens afogadas
não são tão bonitas como as que pintam nos quadros.
-Como você faria isso então? -perguntou Carolina.
-Eu poderia colocá-la no balão e cortar a corda -ele disse. -Você
poderia se perder no espaço ou até acabar na Lua.
-A festa estava bonita? -ela quis saber.



-Você precisava ter visto -ele disse. -Pietro equipou todos os
barcos com velas feitas das anáguas de suas criadas: turquesa,
violeta, verde e dourado. Depois, pendurou lanternas neles, de
modo que o lago parecia cheio de vaga-lumes tentando escapar de
sacos de papel colorido. Os músicos tocaram em uma plataforma
flutuante, dentro de uma tenda vermelha iluminada.
-Ele pensa em tudo -Carolina disse.
-E verdade -Turri disse.
-Lá está ele! -A voz de Sophia ressoou mais abaixo na margem do
lago.
Turri tomou a mão de Carolina e beijou-a, como mandava o
protocolo. A sensação de seus lábios em sua pele pareceu-lhe
dolorosamente familiar.
-É só dizer, Carolina -ele sussurrou. -Diga-me quando.


***

Carolina esperou quase uma hora depois de Pietro levá-la de volta
ao seu quarto naquela noite. Quando teve certeza de que a casa à
sua volta dormia, ela desceu silenciosamente as escadas e
atravessou o corredor principal. Na sala de jantar, achou um dos
candelabros, seguiu a linha de sua haste até a curva dos braços,
depois tocou as folhas douradas que se amontoavam na base de
cada vela. Deixou a mão cair no caminho de mesa de linho que
cobria toda a extensão do aparador e correu os dedos pelas vinhas
entres peras e cachos de uvas bordados.

Passou à sala de estar, onde vagou pelo meio da mobilia espalhada,
revisitou seus objetos de adorno favoritos, sentiu o brocado das
cortinas que ladeavam as janelas da frente. Atravessou o corredor
para o jardim de inverno, passou a mão por toda a extensão do divã
e tocou de leve as teclas do piano com uma canção da qual mal se
lembrava, sem realmente executá-la. Chegou até a caminhar
corajosamente de volta pelo corredor até a sala de jantar, onde abriu


a porta que dava para o porão e respirou varias vezes o ar abafado
antes de fechá-la outra vez.
De vez em quando, ela se revelava deliberadamente, com um passo
mais pesado ou o ruído de uma estatueta de porcelana na superfície
dura de alguma mesa. Toda vez ela parava para ouvir, mas nunca
captou sequer o som de um passo.

***

-Essa foi muito triste -Pietro disse, na tarde seguinte. Inusitadamente,
ele se juntara a Carolina na sala de música quando
ouviu o músico tocar. -Não tem algo mais alegre?
Em resposta, o velho músico lançou-se furiosamente em uma
composição que corria do topo do alcance de seu violoncelo até à
base, onde se virava e saltitava de leve pelos acordes para cima de
novo até uma grande altura. Demorava-se lá por um instante, como
se fizesse uma pausa para apreciar tudo que podia ver daquele
ponto privilegiado, depois descobria um caminho estreito entre as
altas rochas e vagueava ponderadamente por ele.

-Não sei bem se era isso que eu tinha em mente -Pietro murmurou,
remexendo-se desconfortavelmente no divã, ao lado de Carolina.
Ela estivera aconchegada na curva da única aba do divã antes de ele
chegar, de modo que todo o peso dele equilibrava-se precariamente
na ponta do sofá, onde Carolina deveria estender os pés. Nessa
parte do divã, o encosto desaparecia, não deixando nada onde
Pietro pudesse se recostar.
-Ele não gosta quando você diz que a música é triste -Carolina
sussurrou.
Quando a melodia terminou, Pietro se levantou, aplaudindo
entusiasticamente.
-Bravo! Bravo! -exclamou. -Lindo! Acho que chega por hoje.
Obrigado!
Carolina endireitou-se no divã, a testa franzida, e esperou pelo som
dos passos de Pietro deixando o aposento de modo que ela pudesse


dizer ao velho músico que continuasse. Mas Pietro permaneceu
enraizado ao lado do divã. Após um instante, a cadeira do músico
deslizou na madeira do assoalho. Seu instrumento bateu com um
som oco quando ele começou a guardá-lo.
-Mas ele só tocou duas músicas -protestou Carolina. -Eu fico
ouvindo durante horas.
Pietro não respondeu.
O medo fez a nuca de Carolina formigar. Ela cruzou as mãos no
colo.
O velho músico arrancou a partitura do suporte. O arco bateu
ruidosamente na tampa do estojo. Os trincos fecharam-se com
estalidos secos. Em seguida, ele começou a virar o estojo para cima.
-Ah, permita que eu -Pietro começou, alarmado. Em seguida: Ora,
veja só isso! -Ele riu. -Não podia imaginar que fosse capaz,
meu velho!
-Boa-tarde para ambos -o velho músico disse, empurrando seu
instrumento para fora da sala.
Pietro retomou sua desajeitada posição ao pé do divã e tomou a
mão de Carolina. Ele não falou.
O sangue correu de todas as partes do corpo de Carolina para seu
coração, que o enviou imediatamente de volta. Seu rosto e seu peito
ardiam. Suas mãos estavam congeladas.
-Pietro -ela começou.
-Não! -ele disse, a voz rouca com alguma emoção profunda.
Carolina mergulhou em silêncio.
Pietro tomou sua outra mão, juntou suas palmas e envolveu-as
delicadamente nas suas, como um garoto tentando levar uma
borboleta capturada para casa.
-Carolina -ele disse, tão serenamente como ela jamais o ouvira
falar. -Não tenho sido leal com você.
-Leal? -ela repetiu.



-Fiel -ele disse, a voz elevando-se ligeiramente, como se
surpreendido pelo som das palavras que tinha que usar para
confessar. -Eu... com Liza -ele terminou.
A mente de Carolina sobressaltou-se. Depois, a escuridão começou
a inundar o aposento através de cada janela, varrendo as mesas, os
tapetes, o piano. Ela retirou as mãos.


-Como ousa? -ela disse, a voz muito baixa.
-Achei que você soubesse -Pietro disse, como se tentasse resolver
um problema de matemática em voz alta. -Você me pegou no
corredor naquela noite. E me perguntou sobre o perfume que eu dei
a ela.
Quando Carolina se manteve em silêncio, ele apressou-se a
continuar.
-Ela é apenas uma menina -ele disse. -Uma tolinha.
-Sei que tipo de garota ela é! -Carolina disse, levantando-se.
Pietro abaixou a cabeça contra o estômago dela.
-Sinto muito -ele disse, a voz embargada. Carolina ergueu o rosto
de Pietro para que ele olhasse em
seus olhos cegos. Qualquer que tenha sido o efeito, ele o fez se calar.
-Você teria me contado isso se eu pudesse ver? -ela perguntou.
O queixo dele virou-se em sua mão. Ela manteve seu rosto imóvel.
-Sou sua mulher, não seu padre -ela disse. -Não quero sua
piedade!
Ela caminhou com precisão pelo meio da mobília e saiu da sala.


***

Lá em cima, não hesitou.
Tocou a sineta imediatamente, chamando um criado. Em seguida,
dirigiu-se à máquina de Turri e datilografou uma mensagem:
Partirei com você esta noite. Embaixo, indicou o lugar e a hora, duas
da manhã, na casa do lago.
-Estou aqui -apresentou-se Giovanni.
Carolina retirou o papel da máquina de escrever e dobrou-o.



-Leve isto ao Signor Turri imediatamente -ela disse, estendendo-lhe

o bilhete. -Se tiver outras tarefas, mande outra pessoa fazê-las.
-Estarei de volta antes que percebam que saí -Giovanni retrucou
prontamente.
-Ótimo -Carolina disse. -Obrigada. Ainda assim, Giovanni
hesitou.
-Mas a senhora não o lacrou -ele disse.
-Isso não importa agora -ela lhe disse.
***

Carolina esperou o dia passar em uma cadeira junto à janela, o
coração dormente e a mente imóvel, não por nenhum esforço
próprio, mas como uma máquina que parou depois de um choque.
Mesmo assim, seus demais sentidos funcionavam. Ela ouviu o
relógio de mesa marcar cada fração das horas e, quando tocou meia-
noite, encontrou sua capa e fechou-a na garganta.
Ao passar, roçou os dedos pelas fileiras duplas de teclas na máquina
de Turri. Eram frias ao toque, como se o luar na verdade retirasselhes
o calor, ao invés de aquecê-las como a luz do sol. A máquina
estava sem papel, mas ela acionou aleatoriamente algumas das
teclas familiares. A seguir, virou-se e saiu.
Os passos deviam estar à sua espera do outro lado de sua porta.
No meio das escadas, começaram a segui-la, de perto. Ao pé das
escadas, ao invés de atravessar até a porta, Carolina voltou atrás
pelo longo corredor. Os passos seguiram-na, juntamente com um
leve traço de perfume.
Carolina girou nos calcanhares.
-Liza -disse.
Os passos pararam.
Carolina lançou-se para frente e agarrou um braço fino e um
punhado de cabelos. Soltou os cabelos, agarrou o outro braço e
sacudiu a garota, com força.


-Você me segue como uma ladra desde que eu vim para esta casa ela
sussurrou furiosamente.
-Eu queria ver aonde você ia -disse Liza. Sua voz, elevada num
tom suplicante, soou como a de uma criança.
-Você me deixou lá fora no pátio sem meios de voltar para dentro.
-Você queria sair, mas a porta estava trancada -Liza disse. -Eu a vi
tentando abri-la.
-Então, você é apenas uma boa criada, de dia e de noite? -Carolina
perguntou.
-Não sei -Liza disse, a voz entrecortada. Carolina soltou-a e passou
por ela em direção à porta.
-Aonde você vai? -Liza sussurrou, assustada.


Carolina encontrou a maçaneta. Desta vez, ela girou sob sua mão.
Ela saiu para a escuridão.
***

Pela primeira vez desde que ficara cega, ela correu.
A paisagem ao redor se envergava em sua mente. Em um momento,
a casa e as árvores estavam exatamente onde sempre estiveram. No
seguinte, as estrelas brilhavam sob seus pés e estranhas montanhas
assomavam a distância. De algum modo, ela conseguiu descer a
encosta até a beira do rio. Usando o barulho da água como guia,
continuou ao longo da margem, agarrando-se aos juncos para
manter o equilíbrio. Este era o caminho mais longo, mas o único que
não a deixaria vagando em círculos pela floresta. Eles podiam
arrancar as estacas da trilha que ela fizera, mas não podiam mudar

o curso do rio até seu lago.
Depois do ancoradouro de Pietro, o capim da beira do rio subia até
sua cintura e açoitava suas mãos. Carolina enrolou as mãos
machucadas nas dobras da capa e seguiu em frente até o capim dar
lugar a arbustos espinhosos e árvores indomadas. Com a cabeça
abaixada, ela avançou atabalhoadamente, a capa prendendo-se e
rasgando-se nos galhos invisíveis. Finalmente, o mato cedeu lugar à

lama que começou a curvar-se em um longo arco. Ela chegara ao
lago.
Com as mãos estendidas, prosseguiu ao longo da margem oposta,
marcando seu progresso entre as árvores. Encontrou as gêmeas
através de um palpite certo, tomou uma direção com base na
maneira como os troncos se abriam em galhos e localizou a muda
de carvalho logo abaixo na margem, e depois dela o grosso
carvalho. A macieira conduziu-a em frente pelo cheiro adocicado
das frutas apodrecidas no solo, derrubadas pelos ventos de outono.
Dali, eram apenas alguns passos pelo meio dos galhos do salgueiro
que se inclinava sobre a ponte para o seu lado do lago. Um instante
depois, ela encontrara o corrimão, um tronco fino que a guiou acima
da ligeira elevação da barragem onde o rio murmurava baixinho,
conforme se recobrava após a queda do lago.
Agora, ela conhecia o caminho. Até quando criança, ela poderia ter
dado esses últimos passos com os olhos fechados. Seguiu os juncos
da beira d'água até encontrar o lugar onde seu pai os mandara
arrancar para criar um ancoradouro. Então, virou-se e galgou a
ligeira subida até sua casa. Seus cálculos inconscientes foram exatos:
ao estender a mão para o corrimão das escadas da cabana, ele estava
exatamente onde ela esperava.
Lá dentro, um soluço curto, furioso, escapou de seu peito. Deixou a
capa cair dos ombros e livrou-se dos sapatos. Suas saias ainda
estavam pesadas de lama e sereno, mas ela enrolou-se sob as
cobertas frias mesmo assim. A escuridão avançou e a submergiu
como uma onda.

***

Quando se ergueu acima das copas das árvores, as luzes das estrelas
esmaeceram, como se alguém tivesse estendido um véu sobre seu
rosto. Depois, se extinguiram. Carolina imaginou que tivesse voado
para dentro de uma nuvem noturna e elevou-se ainda mais. Ainda
assim, nenhuma estrela, nenhuma sombra.


Assustada, deixou-se cair de volta ao chão. A descida parecia
interminável e a escuridão absoluta. Sem fôlego, zonza, ela
espalmou as mãos na esperança de agarrar um galho ou uma folha.
Nada além de ar frio deslizava por entre seus dedos. Um novo
terror começou a se instalar: o de que agora ela pudesse estar cega
também em seus sonhos.
No instante em que esse pensamento penetrou em sua mente, ela
tocou um carpete macio. Quando conseguiu se equilibrar, estendeu
a mão à cata de pistas sobre o lugar em que estava. Tocou a borda
chanfrada de uma mesa familiar, encontrou o relógio de mesa
exatamente onde o deixara e abaixou-se para pegar as cobertas de
sua própria cama. Seguindo seu contorno, encontrou a janela e
abriu as cortinas.
Mas nesse sonho, assim como em seus dias, não conseguia ver nada
além de escuridão. Espalmou as mãos contra as vidraças, esperando
que o sonho terminasse e outro começasse, mas o chão permaneceu
firme sob seus pés. Deixou-se afundar em uma cadeira e abaixou a
cabeça, pressionando a base das mãos em seus olhos inúteis.
Um relâmpago verde estrondou na escuridão.
Carolina captou a luz e congelou-a em sua mente com uma mistura
feroz de lembrança e força de vontade. Ela havia ensinado a si
mesma a se mover livremente em seus sonhos, mas nunca tentara
mudar o sonho propriamente dito. Durante várias respirações
entrecortadas, ela manteve a imagem cativa. Em seguida, desviou o
olhar do raio para ver o que ele iluminava. Do lado de fora da
janela, um penhasco mergulhava em um oceano negro. Uma
espuma branca girava na base das rochas como fantasmas aflitos.
Ela soltou um longo suspiro. Um relâmpago faiscou e a cena
desapareceu.
-Não -Carolina disse. Levantou-se e começou a bater na janela, as
lágrimas escorrendo pelo rosto. Sua mente corria pela escuridão,
escancarando portas, derrubando móveis, buscando qualquer coisa


que se lembrasse de já ter visto. Então, o relâmpago cintilou outra
vez.
Carolina capturou-o antes que ele atingisse o solo, uma cicatriz
denteada de luz prateada suspensa acima das chaminés negras de
uma cidade adormecida. Ela estreitou os olhos para o raio
incompleto até ele estremecer e se quebrar. Com uma varredura do
olhar, ela lançou os fragmentos de luz pelo céu a leste como estrelas.
Trovões ribombaram em seus ouvidos e um relâmpago cortou o céu
novamente.
Suas estrelas mantiveram-se firmes sobre um deserto espectral.
Outro raio descarregou sua carga na noite, mas ela o pegou antes
que pudesse transformar areia em vidro, estilhaçou-o e iluminou o
oeste. Trovões rugiram ao longe. A quilômetros dali, uma duna
escura consumiu um raiozinho insignificante em perfeito silêncio.
Carolina fechou os olhos e apagou a areia ondulante. Pensou por
um instante e abriu-os no declive do pátio de Pietro e nas velhas
colinas das terras de Turri.

Então, decidiu que já era hora de amanhecer e os primeiros raios de
sol deslizaram pelo horizonte familiar.

***

Quando acordou novamente, era de manhã. Os pássaros comemoravam
nas árvores e uma abelha desorientada zumbia de
parede a parede dentro da casa.
Carolina franziu o cenho. Depois, achou que Turri devia estar lá
afinal de contas, observando-a dormir.
-Olá? -ela disse. Ele não respondeu.
Carolina afastou as cobertas e fez uma rápida investigação: o
pequeno tapete junto ao sofá, a escrivaninha atulhada com os livros
dele, a cadeira, tudo vazio. Ela saiu para o topo da escada.
Um pássaro deslanchou um chamado longo, espalhafatoso, seguido
imediatamente por um coro de zombarias e louvações que
desapareceu gradualmente na conversa geralmente educada da


floresta: pequenas notícias passadas entre vizinhos, saudações,
comentários fortuitos.
-Turri -ela disse.
A palavra ricocheteou pelo lago e morreu nos galhos na margem
distante.
Carolina voltou para dentro de casa e deixou a porta bater com
força atrás de si. Os cortes em suas mãos e braços, despertados pelo
movimento, começaram a doer. Deixou-se afundar no sofá.


Do lado de fora, passos cruzaram a grama molhada e subiram os
degraus. A porta abriu-se de par em par.
-Turri -Carolina disse, levantando-se.
-Não -respondeu Pietro.


***

A cozinheira, que se considerava muito mais valiosa do que uma
simples criada, sentia-se insultada por ter sido enviada para
empacotar os pertences de Carolina.
-Todos se parecem iguais para mim -ela disse. -Não sei o que
escolher.
-Sabe contar até sete? -Pietro perguntou-lhe. -Então, separe sete
deles. Enviaremos alguém depois para pegar o resto.
Ele não disse nem uma palavra a Carolina enquanto a guiava
através da floresta na longa caminhada de volta da casa do lago, e
não se dirigia a ela agora. Durante toda a tarde, ela ouvira berros e
confusão, conforme eram feitos os preparativos para algum tipo de
viagem. Era orgulhosa demais para perguntar à cozinheira a
respeito dos planos do marido. Mas agora ela viu sua oportunidade
de arrancar uma resposta dele na presença da criada.
-Vamos ficar fora mais de uma semana? -ela perguntou. A
cozinheira interrompeu seu constante farfalhar de tecidos e papéis
para ouvir.
Pietro colocou a mão no rosto de Carolina, tão delicadamente como
sempre o fizera. Isso assustou Carolina mais do que seu silêncio.


-Diga a ela se houver mais alguma coisa que você queira -ele disse.
-Nós não vamos mais voltar ao vale.
Ele beijou-lhe a testa e saiu. Carolina se preparou, esperando um
ataque de escuridão, mas os contornos de seu quarto permaneceram
bem distintos em sua mente, o pátio amplo e luminoso, o sol
radiante no céu.
A cozinheira retomou seu trabalho. Ela resmungava e murmurava,
empacotando braçadas de seda e tafetá no baú aberto.
-São treze -ela disse finalmente. -E ainda coloquei quatro pares de
sapatos, para o que quer que lhe sirvam.
-Obrigada -disse Carolina.
Babolo trinou, indicando sua irritação com a intrusa.
-O que é isto? -a cozinheira perguntou, como se tivesse acabado de
descobrir um camundongo no chão.
-O quê? -Carolina disse.
Uma voz de criança, que Carolina não conhecia, respondeu da
porta.
-Trouxe um recado -a menina disse. -Para a condessa. A
cozinheira bateu a tampa do baú e fechou os trincos.
-Precisa de mais alguma coisa? -ela perguntou com exagerada
cortesia.
-Não, obrigada -respondeu Carolina.
A cozinheira saiu batendo os pés, os passos carregados de
insatisfação.
-Desculpe-me -a menina disse, a voz falseando sob a descortesia da
mulher mais velha.
Carolina estendeu a mão.


-Não. Não se preocupe.
A menina colocou o envelope em sua mão.
-Você sabe ler? -Carolina perguntou-lhe.
-O senhor Turri me ensinou -disse a menina. -Quer que eu...
Carolina colocou a carta no colo e cobriu-a com as duas mãos. Ela



sacudiu a cabeça.
-Obrigada -disse. -É só isso.
Com passos leves como os de uma fada, a menina virou-se e deixou


o aposento. No meio das escadas, o som de seus passos desapareceu
completamente, como se houvesse alçado voo repentinamente.
Carolina virou o envelope na mão apenas uma vez, sem
curiosidade. O que quer que Turri prometesse ou explicasse, era
tarde demais para mudar qualquer coisa. A lembrança dele a
emocionava apenas levemente, como um sentimento de um sonho
que permanece ainda por alguns instantes depois que acordamos.
Mas, apesar do fato de estar bem acordada, elementos de seus
sonhos enchiam sua mente. As galáxias que havia criado na noite
anterior apareciam no céu da tarde, luzes brancas espalhadas pelo
azul homogêneo. Ela piscou, transformou a tarde em crepúsculo e
reordenou um punhado de estrelas em uma nova constelação. Em
seguida, fez todo o aposento desaparecer e substituiu-o pelas
margens familiares de seu lago. Não importava onde Pietro
planejava levá-la. Ela podia criar seu próprio mundo.
Colocou a carta ao seu lado na cama e dirigiu-se ao seu baú. Abriu
os trincos, tirou o vestido de cima e deixou-o cair no chão. Em
seguida, pegou a máquina de escrever e o maço de papel preto de
sua escrivaninha. Colocou a máquina em cima dos vestidos no baú
e cobriu-a novamente com o outro vestido.
Em seguida, desceu as escadas, deixando a carta fechada sobre a
cama.
***

Os cavalos remexiam-se, impacientes, ansiosos para partir.
-Muito bem -Pietro disse a Giovanni, que correra dos estábulos
para carregar a bagagem na carruagem. -Um dia você será um
excelente cocheiro.
-Posso correr mais rápido do que os cavalos velhos -Giovanni
disse, sem fôlego.



-Cuidado aí! -o cocheiro gritou.
Pietro saiu de perto de Carolina para resgatar alguma última peça
de bagagem de Giovanni. Um instante depois, foi acomodada no
teto da carruagem com uma pancada satisfatória.
-Pronto -Pietro disse. -Isso é tudo.
-Giovanni -Carolina chamou.
O menino apressou-se a se apresentar à sua frente.
-Deixei Babolo no meu quarto -ela disse. -Receio que ele vá se
sentir sozinho. Pode cuidar dele para mim?
Giovanni não respondeu.
-Tudo bem -Pietro disse, constrangido. -Não há necessidade de
lágrimas.


Carolina estendeu a mão e Giovanni apertou-a contra seu peito de
menino. Após um instante, ela se libertou delicadamente e se
afastou.
Pietro conduziu-a à carruagem e ajudou-a a entrar. Em seguida,
subiu, sentou-se ao seu lado e estendeu o braço para bater na porta.
A carruagem começou a andar.
Carolina pôde sentir a carruagem dar a volta no pátio, descer até a
linha de árvores e virar na estrada principal. Ela conhecia a descida
da colina e a subida da seguinte, de onde a casa de Turri
contemplava a plantação de seu pai. Ela passou pelos longos limites
da propriedade de Turri sem virar a cabeça, mas, quando a
carruagem atingiu o topo da colina seguinte, ela fechou os olhos e
olhou pela janela.
O mundo inteiro que carregava com ela desenrolou-se em sua
mente: as colinas douradas do vale, folhas escuras de limoeiros
refletindo o céu azul e, além deles, a neve caindo em areias desertas,
um barco singrando um oceano negro, homens marchando sobre
folhas de outono, crianças brigando por seus lugares em um desfile,
mulheres girando em uníssono em uma dança. Acima de tudo isso,



um pequeno pássaro dava voltas sob as estrelas que ela criara, tão
alto que ela sabia que mais ninguém no mundo podia vê-lo.

EPÍLOGO

-O que é? -o homem à escrivaninha perguntou. Seus cabelos
continuavam tão negros quanto haviam sido quando criança, mas
toda a juventude havia deixado seus olhos. A escrivaninha estava
atulhada de tabelas e contas, e de uma seleção de instrumentos
científicos que não fariam nenhum sentido para um cientista: um
decantador com o gargalo curvo como um cisne; um complicado
sextante; uma balança onde um lingote de ouro dividia o espaço em
uma difícil tolerância com um punhado de pedras pretas brutas que
brilhavam à luz da lareira.
O homem que o interrompera era um estranho e um criado, com
roupas urbanas.
-Signor Turri? -ele perguntou. -Pellegrino Turri?
-Era meu pai -o outro homem disse, levantando-se. -Sou Antonio.
-Prazer em conhecê-lo -disse o criado. -Tenho uma entrega para
seu pai. Um legado.
-Sinto muito, mas ele está morto -Antonio disse.
O criado ergueu as sobrancelhas, apenas levemente surpreso com os
caprichos do destino.


-Nesse caso, acho que deve ser entregue ao senhor -ele disse. -Tem
um irmão?
-Não -Antonio respondeu.
-O senhor pode assinar o recebimento? Antonio assentiu.



O criado atravessou o aposento e colocou o pacote sobre a
escrivaninha. Era do tamanho de uma pilha de quatro ou cinco
livros, enrolado em um pano sujo.
-Da Contessa Carolina Fantoni -ele disse no que sem dúvida era seu
tom oficial. -A ser devolvido a Pellegrino Turri após sua morte. Sua
voz adquiriu um tom de confidência. -Faz seis semanas. O
advogado demorou um pouco a encontrá-lo.
-Moro aqui a minha vida inteira -Antonio disse.
-Sabe como são os homens da cidade -o criado disse. -Acham que
qualquer coisa fora dos muros da cidade é território selvagem.
Enquanto falava, ele desatou alguns nós que prendiam o pano
encardido. Os trapos soltaram-se, revelando uma pequena máquina,
construída de delicados pinos com uma letra de metal na ponta,
manchada com digitais sujas de fuligem.
-O que acha que é? -o criado perguntou.
-É uma máquina de escrever -Antonio disse, sentando-se outra vez
para examiná-la melhor. -Meu pai a construiu.
O criado tocou uma das fileiras duplas de teclas. Um pino saltou
para frente. Ele retirou a mão abruptamente.
-Para quê? -perguntou.


-Para que uma mulher cega pudesse escrever cartas -Antonio
respondeu.
-A condessa! -o criado exclamou. Na emoção da descoberta,
estendeu a mão para a máquina outra vez.
-Tem algum recibo para eu assinar? -Antonio perguntou. O criado
retirou a mão para revirar os bolsos. Após um instante, apresentou
um papel amarrotado.
-Isso mesmo -ele disse, colocando-o sobre a mesa, ao lado da
máquina. Indicou o lugar com dois dedos. -Aqui -falou.
Antonio puxou o papel para ele, assinou-o sem floreios e devolveu-


o. Em seguida, abriu uma gaveta, encontrou uma moeda e
entregou-a ao criado. O homem abriu um sorriso e virou-se para ir

embora.
-Você a conheceu? -Antonio perguntou. O homem virou-se
novamente.
-Não exatamente, senhor, não -ele disse. -Mas a conhecia de vista.
Ela viveu na cidade toda a sua vida, desde que se casou. -Esses
eram sem dúvida os únicos fatos que ele sabia com certeza, mas ele
hesitou, talvez se perguntando se poderia ganhar alguma coisa
inventando outros mais.
-Obrigado -Antonio disse.
O criado lançou um último olhar à máquina, curiosidade
misturando-se a nostalgia. Então, tocou no chapéu e saiu.
Depois que a porta se fechou atrás dele, Antonio colocou as palmas
das mãos de cada lado da máquina, como se verificasse se não havia
um coração pulsando. Acionou algumas teclas aleatoriamente e as
varetas com pontas de impressão dançaram alegremente. Então,
levantou a máquina da mesa, virou-se para a lareira e deixou-a cair
no fogo.
Levou mais tempo do que ele imaginava para a madeira antiga
pegar fogo. Por longos instantes, a máquina permaneceu intacta
entre as chamas azuis e amarelas. Então, o fogo a encontrou e a
forma graciosa foi obscurecida por uma efusão de ouro. Depois que
a primeira explosão de fogo retrocedeu, as delicadas varetas de
impressão continuaram a queimar por vários minutos, até que a
madeira carbonizada cedeu e as brilhantes letras de metal caíram
através da grade e desapareceram em cinzas brancas.

***

Agradecimentos

Agradeço imensamente a Kate McKean por ter se apaixonado pelo
livro; a Pamela Dorman por dar a ele a chance de vir à luz e tanto a
ela quanto a Julie Miesionczek por seu discernimento no processo


de edição; a Roseanne Serra, Carla Bolte e Beena Kamlani e Sonya
Cheuse por todo o trabalho para tornar o livro uma realidade; a
Alexandra e Daniel Nayeri pela leitura cuidadosa; a Teju Cole por
dar à história sua primeira aparição pública; a Kate Barrette por
suas traduções do italiano; a Ian King por seu encorajamento; e a
Webb Younce por sua gentileza com uma estranha. E a meus
amigos e familiares, por tudo.


Visite nossos blogs:

http://www.manuloureiro.blogspot.com/
http://www.livros-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancesdeepoca-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/
http://www.loureiromania.blogspot.com/


FICHA BIBLIOGRÁFICA
tÍtulo: Histórias de Arrepiar os Cabelos
Título Original: This One Will Kill You
Autor: vários, coletado por Alfred Hitchkock
Local da Publicação: Rio de Janeiro - Brasil
Data da Publicação: 1971
Editora: Record
Gênero: Contos de terror - ficção
Classificação: Literatura norte-americana - século XX
Digitalização e correção: Maria Regina Melchert de Carvalho e Silva - janeiro 2005
Sobre a obra:
NestE livro, Alfred Hitchcock dá mais uma prova do seu extraordinário talento ao fazer uma excepcional seleção de contos de autoria de alguns dos mais famosos autores do gênero crime, mistério e terror. As histórias, extremamente variadas, têm um fator comum entre si: suspense da melhor qualidade, capaz de manter o mais tranqüilo dos leitores em alta tensão, na expectativa do que lhe pode reservar em surpresas a página seguinte.
No total, são 14 os contos deste livro, de Seis Caixões Estreitos a Vozes na Noite, em que o terror é uma constante. Em O Relógio é um Cuco, por exemplo, o autor faz o leitor viver com Martha as emoções do seu trabalho de voluntária no Serviço de Prevenção de Suicídios, tentando salvar a vida de uma mulher ainda jovem, mas não tardando em descobrir qual a vida que em verdade estava correndo sério perigo...
Em Plano 19, outro conto sensacional e outras emoções, o leitor participa de uma fuga de presidiários, numa história policial típica a que se alia uma boa dose de fino senso de humor.
E se sucedem as aventuras mais diferentes -melhor dizer aterrorizantes -em histórias que transportam o leitor a uma caverna em pleno deserto no México onde se encontra o anel de Montanez há tantos anos desaparecido, ou contam sobre o terrível Exterminador, que tem a "consideração" de enviar quadrinhos agourentos às suas vítimas, ou ainda sobre o Bandido Sussurrante, contra quem os mais argutos policiais pareciam impotentes.
Mas se o terror de alguma história deixá-lo de cabelos em pé, Hitchcock tranqüiliza: tudo o que está aqui é ficção, não poderia acontecer realmente, todos sabem que maldade não existe, está praticamente extinta hoje em dia, e isso de matar o semelhante é coisa de mau gosto, gente fina não a tolera... Ironias do mestre do suspense!
Este livro foi digitalizado sem fins comerciais para uso exclusivo de pessoas com deficiência que necessitem de leitores de tela para aceder ao seu conteúdo, não devendo ser distribuído com outra finalidade, ainda que de forma gratuita.
ALFRED
HITCHCOCK
APRESENTA:
HISTÓRIAS DE ARREPIAR OS CABELOS
ALFRED HITCHKOCK, APRESENTA:
HISTÓRIAS PARA LER NO ESCURO
HISTÓRIAS QUE NUNCA SERÃO REPETIDAS
COM AÇÚCAR E VENENO
13 HISTÓRIAS DE ARREPIAR
ENTERRO DE PRIMEIRA CLASSE
HISTÓRIAS PARA ASSUSTAR O MÃO BRANCA
HISTÓRIAS PARA LER À MEIA-NOITE
HISTÓRIAS PARA LER COM A PORTA TRANCADA
HISTÓRIAS PARA NOITES SEM LUAR
HISTÓRIAS PARA TIRAR O SONO
HISTÓRIAS QUE MAMÃE NUNCA ME CONTOU
HISTÓRIAS QUE NÃO ME DEIXARAM FAZER NA TV
HISTÓRIAS PARA LER NO CEMITÉRIO
QUEREM VER MINHA CAVEIRA
HISTÓRIAS DE ARREPIAR OS CABELOS
HISTÓRIAS PARA LER ÀS SEXTAS-FEIRAS
HISTÓRIAS ASSOMBROSAS
CARROSSEL DO CRIME
ALFRED
HITCHCOCK
APRESENTA:
HISTÓRIAS DE ARREPIAR
OS CABELOS
Tradução de ANA LÚCIA LIMA LATGÉ
EDITORA RRECORD
Titulo original norte-americano
THIS ONE WILL KILL YOU
Copyright © 1971 by H.S.D. Publications, Inc.
Publicado mediante acordo com Scott Meredith
Literary Agency, Inc., 845 Third Avenue,
New York, N.Y. 10022, U.S.A.
O contrato celebrado com o autor proíbe a exportação deste livro para Portugal.
Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa no Brasil
adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.
Rua Argentina 171 -20921 Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literária desta tradução
Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Introdução -Alfred Hítchcock 9
SEIS CAIXÕES ESTREITOS -Jonathan Craig 13
O RELÓGIO É UM CUCO -Richard Deming 26
PLANO 19 -Jack Ritchie 46
ÓDIO ÀS CRIANÇAS -James Holding 62
A SACUDIDELA EXATA -John Lutz 75
O ARTIGO -Henry Slesar 83
DISCURSO AO CAIR DO PANO -Ed Lacy 86
BRINCADEIRA ENTRE IRMÃOS -Richard Har-
dwick 97
A CASA ABANDONADA -Robert Edmond Alter 116
NÃO CHAME DE ASSASSINATO -C. B. Gilford.. 129
CONSOLO, EM TERRA DE ESTRANHOS -Michael
Brett 141
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR -Hal Ellson 147
VARIAÇÕES DE UM EPISÓDIO -Fletcher Flora 164
VOZES NA NOITE -Robert Colby 191
INTRODUÇÃO
Recentemente, visitando um amigo, encontrei-o despejando o conteúdo de várias cubas de gelo sobre um sofá. Disse-me que preparava-se para um cochilo. Muito sério, teimava que pretendia passar uma hora coberto de gelo.
Descobri, com algumas perguntas, que ele não havia ficado louco, como suspeitara. Ouvira falar em um processo, no qual se congelava uma pessoa, logo depois de morta, descongelando-se, mais tarde, quando os cientistas tivessem descoberto como trazê-la de volta à vida. Meu amigo, que pretendia tirar proveito deste processo, estava apenas pegando prática em dormir em uma cama úmida, e gelada.
Não duvido que, um dia, os cientistas vão descobrir um meio de ressuscitar os mortos. Afinal, já conseguiram um substituto razoavelmente saboroso para o creme chantilly; sendo assim, é óbvio que nada está além de suas capacidades. Mas será prudente até mesmo pensar em trazer de volta os mortos? Pense nisto. Você realmente gostaria de voltar? A adaptação aos novos tempos, digamos daqui a 50 ou 100 anos, pode ser muito difícil; um choque muito grande para valer a pena o sacrifício. Uma vez ressuscitado, você pode acabar descobrindo que preferia estar morto.
Uma coisa é certa, os preços vão estar muito mais altos. Você se surpreenderia ao descobrir que, daqui a
50 anos, uma bisnaga de pão subiu para 15 dólares? Quan-
9
do o aumento dos preços ocorre gradualmente, aceitamos sem dificuldades. Mas, como você reagiria se acordasse amanhã e descobrisse que o custo de vida subiu como um foguete? Vai, provavelmente, cair morto. E o efeito, depois de ficar 50 ou 100 anos congelado, é bem provável que seja o mesmo. Então, para quê?
Mesmo que você sobrevivesse ao choque de tamanha mudança, ainda haveria alguns aspectos práticos da questão a serem resolvidos. Como iria sustentar-se? Poderia ganhar dinheiro expondo-se como algo excêntrico. Existiriam pessoas descongeladas por toda parte, seria um fenômeno comum, habitual. Estaria desempregado e não teria tido um único dia de trabalho durante 50 ou 100 anos. Completamente sem salário. A perspectiva é de acordar não apenas sem dinheiro, mas cheio de dívidas. Quem estaria fazendo os pagamentos da hipoteca enquanto você está tirando uma soneca na catacumba? Alguma fada madrinha?
Vamos supor, no entanto, que você é do tipo decidido. Estar sem dinheiro e cheio de dívidas até o pescoço não o assusta. Você sabe que vai voltar a trabalhar e ficar de pé, não só financeiramente como literalmente. Tenho minhas dúvidas. Até lá, é provável que não haja muitas vagas no seu ramo de trabalho. É até mesmo provável que o seu ramo de trabalho nem mais exista. Não vai haver nenhuma demanda de treinadores de elefantes, jóqueis, equilibristas e engolidores de espadas. Até lá, os computadores farão este tipo de coisas.
Vai descobrir também que a forma física, que era comum quando você morreu, já se tornou obsoleta. É evidente que nem todos os cientistas vão ficar ressuscitando os mortos. Alguns vão empregar seu talento em reformas no corpo humano, adaptando-o às novas circunstâncias, modernizando-o.
Como, até lá, os computadores vão estar fazendo todo o trabalho, tanto físico como mental, e apenas um único dedo vai ser necessário para apertar o botão do computador, os seres humanos, sem dúvida, vão abolir os outros nove. Mas você estará lá, com todos os 10, sobressaindo-se como um aleijão.
O nariz, se já não tiver sido suprimido de vez, estará, pelo menos, em lugar mais seguro. Onde está agora, c
constantemente esmurrado, queimado pelo gol ou beliscado. Os cientistas vão colocá-lo em algum lugar fora de mão, onde estará seguro. Talvez atrás de uma das orelhas. Ou embaixo do braço. Possivelmente até em uma caixinha, de modo que possa ser rapidamente encoberto, quando passar por algumas áreas poluídas de Nova Jersey. Mas, seja como for, você, vindo dos mortos, ainda terá o nariz no mesmo lugar de sempre. E que respeitável jovem do futuro, com seu próprio nariz dentro de uma caixinha, vai querer ser vista em público ao seu lado?
O importante de tudo isso é que há certas horas em que o melhor é deixar os que dormem como estão. Sendo assim, se algum dos corpos nas histórias a seguir tentarem levantar-se e sair das páginas, por favor, faça-lhe um obséquio. Avise-o de que, provavelmente, vai arrepender-se.
s Alfred Hitchcock
11
Jonathan Craig
SEIS CAIXÕES ESTREITOS
Imagino que até mesmo os homens mais fortes têm alguma fraqueza -algo que eles não confessam a ninguém, nem mesmo a si próprios. No meu caso, é sentimento, especialmente quando se trata do amor; amor infeliz. Fico completamente bobo com uma história de amor IIIfeliz. Elas me destroem inteiramente.
Como, por exemplo, o que aconteceu com Eddie de Denver e Doce Alice. Esta história me deixou na fossa por uma semana. E o que é pior, custou-me algumas centenas de dólares, ou até mais. Nunca vou esquecer-me da noite na qual a ouvi. Bem que gostaria, mas não consigo.
Estava a caminho da reunião semanal do clube do exílio. Nós o chamamos assim. Acho que somos uns 25 aqui no Rio, e somos todos o que se pode chamar de deportados. Gostamos muito do Brasil, entende, mas, a maior parte de nós está aqui por problemas de saúde. Quer dizer, não é muito saudável em Leavenworth e Sing Sing e em lugares como estes, e menos ainda em câmaras de gás e cadeiras elétricas, que era para onde alguns de nós teríamos ido se tivéssemos ficado em evidência. De qualquer modo, formamos um tipo de clube e, uma vez por semana, reunimo-nos numa sala de jantar privativa em um hotel na Praia de Copacabana. A maioria das vezes, tomamos alguns drinques e trocamos histórias sobre o tempo em que ainda estávamos nos Estados Unidos.
Existem alguns rapazes agradáveis no nosso clube do exílio, e algumas moças interessantes também. Pessoas
13
como Lábios de Figo, Johnny Pancada, Charley Um e Charley Dois, Millie de Milwaukee e Sue Devagar, Willie Chorão, o Sumido, o índio e muitos outros. Sou chamado o Estudioso, porque completei quase dois anos no Colégio Hanley Miller.
Bem, como eu disse, achava-me a caminho de uma de nossas reuniõezinhas. Ainda não estava completamente escuro, e ia andando devagar, apreciando o ar fresco da noite. Então percebi aquela mulher em pé, sob a luz da rua, olhando-me tão fixamente, como se me estivesse analisando. Tinha cerca de 60 anos, supus, mas com 60 anos ou não, era a mulher mais linda que eu já tinha encontrado em minha vida. Primeiro, imaginei que fosse por causa da luz fraca, mas, quando me aproximei mais, vi que não. Era realmente muito bonita.
-Com licença, meu jovem -disse ela, quando me aproximei. -Posso falar com você um minuto? -Tinha uma voz muito bonita também, parecendo a voz de uma jovem, macia e suave.
-Pois não, dona -respondi e aguardei.
-Tenho que confiar a alguém algo muito importante -disse ela. Seus olhos brilhavam, como se ela tivesse chorado: -Você tem um rosto bom. Acho que posso confiar em você. Faria um favor a uma senhora?
-Depende -disse eu.
-Você só vai perder um minuto. Por favor, diga que sim.
-Qual é o favor? -perguntei.
Ela indicou com a cabeça para o outro lado da rua:
-Uma pessoa muito querida para mim está lá -disse. -Ele está morto. Vai ser enterrado pela manhã. -Fez uma pausa. -Está sendo velado. O caixão está aberto, e... quero colocar uma coisa dentro.
-A senhora quer dizer que quer colocar uma coisa para ser enterrada junto com o corpo?
-Sim. É uma coisa que pertence a ele. -Sua voz ficou ligeiramente trêmula. - Sei que tudo isso pode parecer-lhe um tanto estranho, mas isso tem que ser enterrado com ele. Tem que ser.
14
-E por que a senhora mesma não vai lá e põe?
-Tentei, quando... quando disse adeus a ele.
-Disse adeus?
-Quando fui olhá-lo pela última vez, há apenas alguns minutos. Mas sofro de artrite. Não pude mover meu braço o suficiente para conseguir.
-Entendo -falei, com reserva.
-Por favor, diga que vai fazer isso para mim. Voulhe ser grata para o resto da vida.
-É mesmo muito importante, não é?
-É a coisa mais importante no mundo para mim. For favor, por favor, diga que vai -implorou, melancólica.
-Apenas colocar dentro do caixão? É só isso?
-É. E certifique-se de que está bem no fundo, de modo que ninguém possa ver e retirar.
-E se alguém me pega fazendo isso? Pode dar confusão.
-Não há ninguém com o corpo. Não veio quase ninguém para vê-lo. Fui a única pessoa a entrar ou sair nos últimos vinte minutos.
-O que a senhora quer que eu ponha lá?
Seus olhos iluminaram-se, mas havia lágrimas neles também:
-Então você vai? -disse ela, enfiando a mão dentro da bolsa. -Deus o abençoe!
-Ainda estou pensando -retruquei. Por algum motivo, estava começando a sentir-me um pouco nervoso.
Ela pegou um objeto de metal, pequeno e redondo de dentro da bolsa e ficou olhando-o por algum tempo, como se estivesse relutante em entregá-lo. Depois, estendeu-o rapidamente a mim, desviando o olhar.
-Aqui -falou. -E, por favor. assegure-se de que ficou bem no fundo, de modo a não ser visto.
Girei o objeto entre os dedos. À luz fraca da rua, parecia ser de prata. Mas era muito pesado para ser prata: um estojo redondo e fino, mais ou menos do tamanho de um pó compacto, porém mais fino ainda, com a borda chanfrada, que parecia lacrada por toda a volta.
15
I
-O que é isso? -perguntei.
Ela apenas me olhou sorrindo e, então, comprimiu os lábios, como se estivesse fazendo um grande esforço para não chorar.
-Tudo bem -falei, encolhendo os ombros e enfiando o estojo (se é que aquilo era um estojo) no bolso. -Vou colocá-lo no caixão para a senhora.
-Deus o abençoe -disse ela.
-Não se preocupe -respondi e virei-me, atravessando a rua na direção da casa que ela indicara.
A mulher tinha razão quanto a não haver ninguém velando o corpo. A mísera sala de estar achava-se vazia, e a única luminosidade provinha de meia dúzia de velas grandes, postas ao redor do caixão. Coloquei-me de modo que o caixão ficasse entre a janela da frente e eu, para o caso de a mulher estar-me observando do outro lado da rua, e peguei o objeto de metal, examinando-o melhor.
Não era de prata; era de platina. Mesmo se vendido por um quarto de seu valor real a um receptador, o que uma pessoa na minha situação seria obrigada a fazer, daria, pelo menos, 200 dólares.
Reclinei-me sobre o caixão e olhei o rosto do morto. Tinha por volta dos 65 anos e, pelo seu aspecto, todos esses anos haviam sido bastante duros. Tinha algumas cicatrizes antigas na face direita e, algum dia, alguém lhe havia cortado a orelha direita fora.
Levantei a caixinha de platina para que brilhasse à luz das velas por alguns instantes, pois a mulher poderia estar-me observando do outro lado da rua e, depois, baixei o braço para dentro do caixão. Quando minha mão não podia mais ser vista, escondi o estojo na palma da mão e, logo depois, devolvi-o para o interior do meu bolso.
Como dizem por aí, 200 dólares são 200 dólares.
Quando saí da casa, a mulher havia sumido. Virei à direita e continuei em meu caminho para o hotel e a reunião do clube do exílio. Se antes a noite já estava tão agradável, agora, é evidente, mostrava-se melhor ainda.
Já tinha andado uns dois quarteirões quando um carro grande encostou no meio-fio e buzinou. Era o Gus de Newark, um dos mais antigos deportados no Rio.
16
-Entre aí, Estudioso -disse ele.
Entrei e ele saiu com o carro para o meio do trânsito de novo. Gus já fora o maior incendiário dos Estados Unidos, um desses tipos grandes e alegres, que estão sempre rindo ou prontos para começar a rir. Essa noite, no entanto, nem sequer sorria.
-Qual o problema, Gus? -perguntei. -Você parece estar desanimado.
-Vou-lhe contar uma coisa, Estudioso -disse ele. -É uma boa eu não acreditar em fantasmas; caso contrário, poderia jurar que tinha acabado de ver um.
-É? Onde?
Apontou com o polegar por sobre o ombro:
-Ali atrás -falou. -Passou tão perto que tive que desviar o carro.
-Fantasmas sempre agem assim.
-Não tem graça.
-E de quem era o fantasma? -perguntei.
-De uma garota que conheci há quarenta anos -disse Gus. -Ainda era um pivete naquele tempo, estava apenas iniciando. -Balançou a cabeça: -Mas não podia ser. Diabo, ninguém teve mais notícia dela por quarenta anos!
-Dela quem? De quem você está falando, Gus?
-Da Doce Alice. A ruiva mais deslumbrante sobre a face da terra.
-E você acha que a viu ali atrás?
-É Exatamente como ela estaria agora, se ainda estivesse viva. Tão velha quanto eu, mas ainda muito bonita. Vou-lhe contar, Estudioso, foi um choque tremendo. Ainda não me recuperei.
-Por que não parou o carro e tirou a dúvida?
-Acha que eu não fiz isso? Mas a hora que consegui um lugar para estacionar o carro e voltar para o lugar onde a tinha visto, ela já tinha ido. Deve ter pego um táxi ou qualquer coisa assim.
Gus parecia aborrecido e, de vez em quando, um canto de sua boca se contraía, como acontece quando alguém está pensando uma porção de coisas que preferia não pensar. 17
Nenhum de nós disse mais nada até que chegássemos ao hotel e subíssemos até a sala privativa onde nos reuníamos. É uma sala bem fora do comum, pois é circular e tem uma grande mesa redonda. Todos os outros já estavam lá -Johnny Pancada, os dois Charleys, Lábios de Figo, Sue Devagar, Millie de Milwaukee, o índio, o Sumido, George Três Vezes e todos os outros. A aglomeração era tão grande que algumas pessoas tiveram que se apertar para que Gus e eu pudéssemos entrar.
Não demorou muito para que as outras pessoas começassem a notar o quanto Gus estava abatido.
-Por que esta cara amarrada, Gus? -perguntou Frankie, o Fraco, do outro lado da mesa. -Parece deprimido... como se tivesse descoberto que botou fogo na loja errada.
-Se você fosse eu, também ia parecer deprimido -retrucou Gus, e começou a falar a todos a respeito de Doce Alice, do mesmo modo que me havia falado, durante o trajeto de carro.
-Essa Doce Alice deve ter sido uma senhora mulher, para você lembrar dela por todos estes anos -disse Charley Um.
-Você nunca viu ninguém tão deslumbrante -falou Gus. -Todo homem que a conhecia se apaixonava por ela. Eu mesmo me apaixonei. É o que se chama de fem... de fem...
-Femme fatale -completei.
-É -disse Gus. -Femme fatale. É o que ela era, isso mesmo... fatal. E existem cinco homens, mortos há quarenta anos, para provar. E de fato, se não fosse um acaso da sorte, eu estaria morto como eles. -Meneou a cabeça com tristeza. -E tudo por causa do amor. É uma coisa perigosa este tal de amor. Tudo que tenho a dizer é: não se meta com ele. O amor é mais forte do que qualquer pessoa.
-Você está querendo dizer que esta mulher deu cabo de cinco homens? -perguntou Millie de Milwaukee, admirada. -Matou cinco caras e ainda quase matou você?
-Não, não -respondeu Gus. -Não foi ela própria quem fez isso. Não pessoalmente. Quero dizer, ela foi a
18
causa de tudo. Ela e o modo pelo qual todo mundo se apaixonava por ela.
-E nunca mais se teve notícias dela nestes últimos quarenta anos? -perguntou Sue Devagar.
-Exatamente -respondeu Gus. -E nem de Eddie de Denver.
-Eddie de Denver? -disse Lábios de Figo. -Nunca ouvi falar de nenhum Eddie de Denver.
-Isto não é do seu tempo -falou Gus. -Afinal, quarenta anos são quarenta anos. Eddie era um homem que fazia sucesso e um especialista em bombas. As duas coisas funcionavam juntas, se você me entende. Um rapaz realmente bem-apanhado e nunca tinha sido pegado pelo tal do amor, até que encontrou a Doce Alice.
-Ele era um dos caras que foram mortos? -perguntou o Cavaleiro Silencioso.
-Não -respondeu Gus. -Mas talvez tivesse até sido melhor se fosse assim.
-Nunca ouvi nada tão romântico em toda a minha vida -falou Millie de Milwaukee. -Imagine só! Cinco caras liquidados, e todos por amor a uma mesma garota!
-Houve um cara que pulou de uma ponte por minha causa certa vez -disse Betty C. -Mas conseguiu sobreviver.
-Cala a boca, Betty C. -cortou Millie. -Gus, esta Doce Alice está-me interessando.
-É isso mesmo -disse Sue Devagar. -Vamos à história, Gus.
Este ficou parado por alguns instantes, muito sério, como se não tivesse certeza se queria contar a história ou não. Depois, encolheu os ombros, respirou fundo e começou.
-Poucos de vocês sabem como era duro há quarenta anos -disse. -Principalmente em Chicago. Eu fazia parte da gangue de Monk Homma naquele tempo. Éramos seis, incluindo Monk, e para um grupo assim pequeno até que conseguíamos muita coisa, levando em conta a competição.
-É sobre a Doce Alice que nós queremos saber, Gus -disse Millie.
19
i
-Bem, ela era a namorada de Monk Homma. Tinha até montado um apartamento bacana para ela e gastava uma nota com ela. Monk tinha amor por ela, tinha sim.
-Suspirou. -E um dia o que aconteceu? Monk descobre que ela não era sincera. Foi ao apartamento, numa tarde em que ela estava visitando a irmã em Detroit, e encontrou um alfinete de gravata no chão do quarto. Era um da meia dúzia que mandara fazer sob encomenda para dar de presente aos rapazes de sua gangue e para ele próprio. Monk tinha senso de humor, tinha sim. Mandara fazer o alfinete de um fio de outro grosso, na forma de caixões finos e compridos. Caixões estreitos era como nós chamávamos. E então, quando encontrou um deles no quarto da Doce Alice, descobriu que ela o estava enganando com um dos rapazes.
-Mas ele nem desconfiava com qual deles? -perguntou o índio.
-Não. Mas planejou de modo a descobrir. Mandou o mesmo telegrama para todos os cinco, assinado "Alice", dizendo a cada um que tinha voltado de Detroit e queria que viesse ao seu apartamento imediatamente para um assunto de vida ou de morte. Nenhum de nós deveria sequer supor que ele mantinha um apartamento para a Alice, entende? E muito menos onde era esse apartamento. Sendo assim, aquele que aparecesse seria o cara que o estava enganando com ela. Depois que mandou os telegramas, voltou ao apartamento, examinou sua arma para certificar-se de que o tambor estava cheio, e sentou-se para esperar quem ia morder a isca.
-E quem foi? -perguntou Willie Chorão. Gus suspirou:
-Eu -disse. -Quando entrei e vi Monk com aquele 38 na mão, descobri que me restavam apenas cinco segundos de vida, ou talvez menos.
-E o que aconteceu para que ele não o matasse?
-perguntou Charley Dois.
-Queria me passar um sabão primeiro -disse Gus.
-Foi isso que me salvou. Ainda estava na expectativa, quando a campainha da porta tocou de novo. E não é que era outro dos rapazes? Assim, Monk tinha agora dois para ouvir seu sermão em vez de um só. -Fez uma pausa. -Para encurtar a história, o que aconteceu foi que, nos
20
próximos dez minutos, todos os rapazes chegaram no apartamento da Doce Alice. Monk esperava pegar um cara com a sua armadilha, mas acabou pegando cinco.
-Poxa! -disse Millie de Milwaukee. -Que garota! Traindo o chefao com a gangue inteira! Que romântico, não? E o que aconteceu depois, Gus?
-Bem, por alguns minutos a questão era quem ia começar a atirar primeiro. Todo mundo estava tão danado com todo mundo que ninguém falava. Então, ao mesmo tempo, todos nós deixamos de ficar danados uns com os outros e começamos a ficar danados com Alice. Afinal, ela nos tinha feito, a todos, de bobos e ridículos.
-Os homens! -bufou Betty C. -É assim que eles são!
-Pode dizer-se que o que ela fez conosco parece que nos uniu -disse Gus. -Discutimos o assunto, quando finalmente conseguimos falar, e decidimos que a Doce Alice tinha que ser morta. Mas depois de discutirmos mais um pouco, concluímos que ainda melhor seria se estragássemos sua aparência. Isto é, pega-se uma mulher bonita como Alice e, digamos, corta-se uma das orelhas... bem, este é o tipo do castigo que dura a vida inteira.
-E foi então que chamamos Eddie de Denver, o rapaz bem-apanhado especialista em bombas, de quem eu estava falando. Contratamos Eddie para ir a Detroit e trazer uma das orelhas da Doce Alice.
-Meu Deus! -disse Sue Devagar. -É exatamente como aqueles romances de antigamente, naqueles países lá da Europa ou qualquer outro lugar.
-De qualquer forma -continuou Gus -sabíamos que Eddie de Denver não poderia passar a perna em nós... não que achássemos que ele ia tentar. Doce Alice tinha umas rosinhas bem pequenas tatuadas nas orelhas, entende? Vermelhas, muito bonitas, e acho que com pouco mais de meio centímetro. Verdadeiras obras de arte. Saberíamos com certeza se era ou não da Alice a orelha que Eddie trouxesse como prova de que ele tinha cumprido sua parte do trato.
-E esse Eddie já conhecia Alice? - perguntou Millie.
-Não. Partiu pra Detroit com sua navalha e uma daquelas bombinhas que sempre carregava consigo, só
21
para o caso de ser contratado de repente para explodir alguém. Depois que ele se foi, Monk e todos nós arranjamos uma caixa de bebida e pusemos mãos à obra, tentando esquecer o amor que tínhamos por Doce Alice.
-Oh, pobre menina -disse Millie com os olhos brilhando. -Oh, coitadinha dela.
-É, os homens são assim mesmo -disse Betty C. -Mandam um maníaco para cortar a orelha da garota p bebem até cair.
-Eddie de Denver estava com sorte quando chegou na casa da irmã de Alice -disse Gus -porque a irmã não estava em casa àquela hora.
Sue Devagar inclinou-se para a frente empolgada:
-E aí, Gus?
-Ele deu com os olhos na Doce Alice e foi o suficiente para Eddie de Denver. Ele ficou ali parado, com a navalha em um bolso e a bomba no outro. Só deu com os olhos nela e estava perdido. Isto mostra bem de que este tal de amor é capaz.
-Mas ele tinha que cortar a orelha dela, certo? -disse o Sumido. -E trato é trato. Se ele não cortasse, vocês iriam persegui-lo até a morte, certo?
-Isto mesmo -disse Gus, com um aceno de cabeça. -Mas ele simplesmente não podia fazê-lo. E não era só ele que sentia aquilo. O mesmo acontecia com Doce Alice. Bastou ela dar com os olhos nele também... amor à primeira vista, do mesmo modo que tinha acontecido com Denver.
Um garçom entrou na sala com uma bandeja de drinques e agarrei o que me pareceu ser um uísque duplo. Achei que ia precisar daquilo, porque a história de Gus começava a mostrar indícios de ser uma das mais tristes histórias de amor de todos os tempos. No começo eu disse o que acontece comigo e o sentimento, e como fico bobo com uma história de amor infeliz. É uma fraqueza terrível; gostaria de não ser assim, mas não posso fazer nada. Dei um gole grande no uísque e, a seguir, mais outro.
-Mas que hora de entrar! -disse o Cavaleiro Silencioso, depois que o gorçom saiu. -O que Denver fez? O que Alice fez?
-Eles entraram, sentaram-se e conversaram sobre tudo aquilo -disse Gus. -Denver lhe disse por que es-
22
tava ali e como sua vida não valia nada naquele momento, pois, se ele não voltasse com a orelha, eles iam persegui-lo e matá-lo. Não pretendia cortar a orelha delar entende? Apenas queria que ela tomasse conhecimento dos fatos. E então Alice, presa daquele amor repentino por Denver, disse-lhe para ir em frente e cortar-lhe a orelha, pois não queria que ele fosse morto.
-Que amor lindo! -falou Sue Devagar, inteiramente dominada pela emoção.
-Mas Denver disse que de modo algum -falou Gus. -Encontraria uma outra saída. Depois de algumas horas em que ficaram lá sentados e abraçados como duas criancinhas, ele teve a idéia mais fantástica que vocês já ouviram. Só um louco poderia até mesmo pensar nisto. Denver tinha umas orelhas muito pequenas para um homem, entende, e o que ele queria fazer era mandar tatuar uma rosinha igual à de Alice em uma delas e, depois, cortar a orelha e mandá-la para nós em Chicago.
-Lindo! -disse Sue Devagar. -Muito lindo! Oh, como ele devia amá-la!
-Ele amava realmente -continuou Gus. -E Alice sabia muito bem disto, sentada na sala do tatuador, enquanto o artista copiava uma de suas rosinhas na orelha de Eddie de Denver.
-É a história de amor mais adorável que existe! -falou Millie, esfregando os olhos.
Odeio ter que admitir isto, mas tinha vontade de fazer o mesmo. Ser sentimental pode mostrar-se embaraçoso, acreditem. Não gostaria de ter que dizer alguma coisa naquele instante, pois temia que minha voz saísse trêmula.
-Então, Denver põe Alice em um táxi e voltam correndo para o apartamento -continuou Gus. -Coloca-a sentada na sala e manda ela ficar quieta ali por um minuto, que ele tinha um negócio para resolver no quarto. Mas Alice sabe que tipo de negócio ele tem em mente e, no momento em que ele fecha a porta do quarto, corre para o banheiro e pega uma das antigas lâminas de barbear, daquelas usadas naquele tempo, e corta fora uma orelha, melhor do que qualquer um faria.
23
-Oh! -disse Sue Devagar. -Que amor! Que amor!
-Então Alice corre de volta para a sala e chama Denver para ver o que ela tinha feito -disse Gus. -Mas era tarde demais. Quando Denver entra, o sangue escorre-lhe pelo lado do rosto e tem uma de suas orelhas na mão.
-Oh, é demais! -falou Sue Devagar. -É lindo demais para mim.
-Foi demais para Alice e Denver também -disse Gus. -Quando viram o que um tinha feito pelo outro, e todo aquele sangue, e entenderam o quanto um amava o outro, desmaiaram. Os dois, assim mesmo. -Fez uma pausa. -Sei disso tudo porque eu, Monk e os outros rapazes invadimos o apartamento alguns segundos depois.
-Vocês o quê? -perguntou Frankie, o Fraco.
-Aparecemos lá -disse Gus. -Depois que acabamos aquela caixa de bebida, entende, arrependemo-nos de já ter mandado Denver para Detroit. Sabíamos que tínhamos cometido um erro. Nós todos ainda amávamos Alice e não queríamos que ela tivesse sua aparência estragada e, então, entramos no carro de Monk e nos mandamos para Detroit o mais rápido que pudemos. Mas, afinal, chegamos ao apartamento tarde demais.
Ninguém dizia nada. O silêncio era tão grande que quase se podia ouvir o gelo derretendo nos copos.
-E então? -alguém perguntou, finalmente.
-E então foi um inferno -continuou Gus. -Jogamos água fria em seus rostos para fazê-los voltar a si e usamos toalhas para estancar o sangue. Quando Eddie de Denver voltou a si, pensou que os rapazes estavam ali para matá-lo e deu um pulo, correu para o quarto e fechou a porta para que ninguém pudesse entrar. Acho que o choque de ter cortado sua própria orelha e de ver Alice com a sua também cortada soltou alguma coisa lá dentro do cérebro dele. De qualquer forma, foi isso o que ele fez. Quanto à Alice, quando acordou, agarrou a orelha de Denver e a sua também e correu para o saguão. Fui atrás dela. Alcancei-a logo depois da porta e, alguns
segundos depois, houve uma explosão na sala de onde acabáramos de sair. Fez um buraco na parede, a menos de um metro de onde estávamos.
24
-A bomba de Eddie de Denver? -perguntou George Três Vezes.
-Sim -respondeu Gus. -Denver perdeu completamente a cabeça. Ele abriu um pouquinho a porta do quarto e jogou a bomba na sala onde estavam Monk e os outros. -Balançou a cabeça. -Matou todos. É provável que o pessoal do necrotério tenha levado uma semana para juntar os pedaços.
-E o que aconteceu com o Denver, Gus? -perguntei.
-Desceu pela escada de incêndio e foi a última vez que alguém teve notícia dele.
-E Doce Alice?
-Tirei-a de lá rapidamente. Quando a polícia chegou, já estávamos a caminho de um conhecido meu, para cuidar da orelha dela. Ele deu uma anestesia local e costurou a orelha de volta no lugar, E, durante todo o tempo, ela ficou segurando a orelha de Denver. Não a largava por nada. Mais tarde, quando a levei para um hotel, ela me contou tudo que tinha acontecido entre ela e Denver. Falou que o encontraria de novo, não importa onde ele estivesse. E ficou com a orelha na mão o tempo todo; era de arrepiar. Fiz com que ela fosse para a cama e fui a uma farmácia comprar um remédio que ela tinha que colocar na orelha. Quando voltei ao hotel, ela já tinha ido. Isto foi há quarenta anos, e nunca mais ouvi falar nela.
Houve um grande silêncio, agora que víamos que Gus tinha terminado. Eu olhava para o meu copo. Agora, eu sabia o que havia naquele fino estojo de platina no meu bolso e quem tinha sido aquela bonita mulher que me pedira para colocar o estojo no caixão, onde estava o corpo do homem sem orelha.
Também sabia o que eu ia fazer com aquele estojo de platina. É claro que o corpo ainda estava sendo velado; não teria problema nenhum.
Não contei a ninguém o que ia fazer. Já é bastante ruim ser um idiota sentimental como eu sem que ninguém fique zombando disso.
Mas sabe de uma coisa? Quando olhei em volta da mesa, percebi que não era o único idiota sentimental no Rio àquela noite. É difícil de acreditar, mas não havia um único olho enxuto naquele aposento.
25
Richard Deming
O RELÓGIO É UM CUCO
O primeiro telefonema foi um pouco antes das 11 horas, numa fria noite de segunda-feira, em fevereiro. Quando o telefone tocou, Martha Pruett já estava de camisola, sentada em frente à lareira, onde as brasas já se apagavam, de roupão e com Ho Chi Minh no colo, enquanto bebia, aos poucos, seu copo de leite quente de todas as noites.
Ho Chi Minh protestou em siamês quando ela se levantou, expulsando-o de sua cama. Acompanhou-a até o quarto, ainda reclamando, quando ela foi atender o telefone. Martha sentou-se na beira da cama e colocou o copo sobre a mesinha de cabeceira. O gato fez um comentário final e esfregou-se na sua perna.
-Alô -disse Martha ao telefone, enquanto alisava Ho Chi Minh.
Uma voz feminina, agradavelmente rouca, disse, hesitante :
-Vi este número no jornal.
Martha Pruett já esperava que fosse um daqueles telefonemas, pois nenhum de seus amigos ligaria assim tão tarde. O anúncio classificado ao qual a outra pessoa se referia aparecia todos os dias e dizia: "SUICÍDIO prevenção. 24 horas de atendimento. Confidencial, grátis.
648-2414." O número não era o de Martha. Era apenas um número intermediário, do qual os telefonemas recebidos eram automaticamente transferidos para o número
26
particular do voluntário que estivesse de plantão. Martha respondeu numa voz amigável:
-Você está falando com a Prevenção de Suicídios. Posso ajudá-la?
Houve uma pausa antes que a mulher dissesse:
-Não sei bem por que telefonei. Eu não... quer dizer, não pretendo realmente me matar. Só estava na fossa e queria conversar com alguém.
Martha concluiu que estava falando com uma daquelas raras pessoas que não gostavam de admitir seus impulsos suicidas. A maioria dos suicidas em potencial não tinha este tipo de constrangimento. A antiga crença de que as pessoas que ameaçavam suicidar-se nunca o faziam já havia sido desmentida há muito tempo. Conhecia histórias de muitos suicidas que haviam ameaçado repetidas vezes de tirar a própria vida antes de fazê-lo realmente. No entanto, havia casos em que o suicida não dava nenhum aviso antecipado. O simples fato desta mulher'ter ligado para o número da Prevenção de Suicídios já indicava que a idéia lhe havia, pelo menos, passado pela cabeça. Martha disse:
-É por isso que estou aqui, para conversar com as pessoas. Por que você está na fossa?
-Oh, várias coisas -respondeu a mulher, vagamente. Houve outra pausa e então: -Vocês não localizam as chamadas nem fazem nada deste tipo, não é?
-Claro que não -disse Martha, sossegadamente. -As pessoas não nos telefonariam mais se fizéssemos isso. Gostamos de saber quem são os nossos interlocutores, mas não insistimos. Se quer ficar anônima, isto é com você. No entanto, se me disser o seu nome, será estritamente confidencial. Não se preocupe que não vou fazer nada como chamar a polícia para arrastá-la para um hospital. Estou aqui somente para ajudá-la e não vou comunicar-me com absolutamente ninguém em seu favor, sem o seu consentimento.
Houve outra pausa. Então, a mulher falou de repente:
-Você parece ser uma pessoa agradável. Quem é você?
Esta era uma pergunta que Martha tinha, com freqüência, que evitar. Os voluntários recebiam instruções
27
de nunca revelarem sua identidade àqueles que telefonavam, para evitar a possibilidade de que pessoas emocionalmente perturbadas tentassem fazer um contato pessoal. Dar seu nome indiscriminadamente para pessoas emocionalmente desequilibradas já não é prudente em nenhum caso, mas seria ainda mais insensato no caso de uma solteirona de 60 anos, pesando menos de 45 quilos e que morava sozinha com seu gato siamês. Ela respondeu:
-Sou apenas uma entre os muitos que trabalham voluntariamente neste serviço. O mais importante é quem é você.
-Você não tem um nome? -perguntou a mulher.
-Ah, tenho. É Martha.
Até aí era permitido, quando a pessoa tornava-se IIIsistente; mas, se continuasse insistindo, Martha teria qtie explicar-lhe, educadamente, porém com firmeza, que não era permitido aos voluntários darem seus sobrenomes. Felizmente, não houve insistência neste caso.
-Meu nome é Janet -disse a mulher espontaneamente.
Martha pensou em investigar qual seria o sobrenome, mas julgou que a pressa em consegui-lo apenas poderia atrapalhar o relacionamento entre elas. Em vez disso, falou:
-Prazer em conhecê-la, Janet. Sua voz parece de uma pessoa jovem. Você tem pouco mais de vinte anos?
-Oh, não. Tenho trinta e dois.
-Bem, comparando comigo, você ainda é bem jovem. É casada?
-Sou. Há quase dez anos.
-Seu marido está em casa agora? - perguntou Martha, casualmente. Era de praxe tentar descobrir quem estava em casa com a pessoa, se é que havia alguém. A mulher disse:
-Ele joga boliche às segundas, e não chega em casa antes da meia-noite.
-Entendo. Você tem filhos?
-Não. Tive alguns abortos. -Não havia pesar na voz. Era apenas a constatação de um fato.
28
-Então, está completamente sozinha em casa agora? -perguntou Martha.
-Estou.
Martha deixou que alguns segundos se passassem em silêncio antes de dizer com suavidade:
-Você não quer dizer-me o seu sobrenome agora, Janet?
Houve o mesmo intervalo de silêncio, antes que a voz rouca perguntasse com relutância:
-Eu tenho que dizer?
Suspeitando que a mulher estava a ponto de desligar, Martha falou rapidamente:
-Claro que não. -Deixou passarem mais alguns segundos e perguntou: -O que o seu marido faz?
-Ele é um profissional liberal.
Uma alteração quase imperceptível no tom de voz revelou aos ouvidos experientes de Martha que a mulher já estava alerta ao responder perguntas que pudessem revelar sua identidade. Martha imediatamente mudou o rumo da conversa:
-Foi algum problema com seu marido que a fez ligar para este número, Janet?
-Oh, não. Fred é um marido maravilhoso. Foram apenas algumas coisas em geral.
Martha, mentalmente, tomou nota do nome do marido. Logo a seguir veio outra informação inadvertida. Ao fundo Martha ouviu: "Cuco, cuco!", seguido por 11 badaladas de um carrilhão e de novo: "Cuco, cuco!"
Ruídos ao fundo sempre dão alguma pista sobre o Lugar da chamada. Sons provindos do exterior, como o barulho do trânsito ou de estrada de ferro, sempre eram mais úteis do que sons internos, mas um cuco, com carrilhão ainda por cima, era raro e, por isso, capaz de identificar uma casa ou apartamento se, através de outras pistas, fosse possível restringir sua localização a uma determinada vizinhança. Martha tinha o hábito de guardar mentalmente qualquer pequena informação que pudesse surgir numa dessas conversas.
-Que coisas são essas que estão aborrecendo você, Janet? -indagou.
29
-Já não me parecem tão importantes agora como quando resolvi ligar para você. Já estou começando a me sentir muto melhor só de conversar com você. Posso telefonar de novo, se ficar na fossa outra vez?
-Não será necessariamente eu, mas haverá sempre alguém à disposição o dia inteiro.
-Ah -a voz rouca tinha o tom de desapontamento. -Quando está de plantão? Quero conversar com você.
-Só às segundas e quartas, das oito da noite às oito da manhã seguinte.
-Bem, quem sabe eu posso dar um jeito de só ficar na fossa nas noites de segunda e quarta -disse a mulher, numa tentativa nervosa e desolada de fazer graça. -Obrigada por ter conversado comigo, Martha.
-Foi um prazer -respondeu Martha. -Tem certeza de que está bem agora?
-Estou bem -assegurou a mulher. -Ajudou-me muito. Mais uma vez, obrigada. -E desligou.
Martha constatou que seu leite tinha esfriado, enquanto estava no telefone. Derramou-o na tigela de Ho Chi Minh e foi para a cama.
O segundo telefonema foi à meia-noite da quartafeira seguinte. Martha já estava na cama há uma hora e foi despertada pelo telefone de um sono profundo.
Quando ligou a lâmpada da mesinha de cabeceira e colocou o fone no ouvido, ouviu, ao fundo, as badaladas do relógio marcando meia-noite. Esperou até o som final: "Cuco, cuco!", e falou:
-r Alô.
-Martha? -disse a rouca voz de mulher sem muita certeza.
-Sou eu, Janet.
-Ah, você reconheceu minha voz -disse a mulher num tom de surpresa. -Achei que, com tantos telefonemas que você deve receber, não se lembraria de mim.
-Eu me lembro de você, sim -disse Martha. -Está na fossa outra vez?
30
-Completamente. -Houve um suspiro abafado e a voz parecia desintegrar-se: -Eu... eu menti para você na segunda-feira, Martha.
-É? Sobre o quê?
-Quando disse que não estava pensando em me matar. Penso nisto o tempo todo. Não sei o que vou fazer.
-E o seu marido está aí hoje, Janet?
-Não, ele está fora da cidade, na Associação Nacional dos Den... -interrompeu e acrescentou. -Estou completamente sozinha.
Associação Nacional. Martha ficou pensando que tipo de associação poderia ser esta. Lembrou que até os escoteiros tinham este tipo de associação. Não podia esquecer-se disto.
-Você tem alguma amiga que more aí por perto e que possa querer ir até a sua casa e ficar com você por um tempo, Janet?
-Oh, eu nunca poderia contar a nenhuma de minhas amigas o meu problema -disse a mulher, com uma voz amedrontada.
-E qual é o seu problema? -perguntou Martha.
Depois de um período de silêncio absoluto, a mulher sussurrou:
-Nunca disse a ninguém, Martha. O meu problema é que sei que estou ficando louca.
-E por que você acha isso, Janet?
-Não acho que estou. Sei que estou. Amo meu marido, mas, de tempos em tempos, sinto esta necessidade horrível de matá-lo. -Seu tom de voz começava a tender para o desespero: -Na noite de domingo passado, tornou-se tão forte que saí da cama e fui até a cozinha para pegar um facão. Já estava voltando para o quarto, com a faca na mão, pronta para esfaquear o Fred enquanto dormia, quando voltei a mim. Foi isto que me fez telefonar para você na noite seguinte.
O coração de Martha começou a bater mais forte. Era a primeira vez que atendia um chamado de alguém que sofria mais do que de uma neurose aguda. Esta mulher era, obviamente, uma psicótica, e teria que ser tratada com extremo cuidado.
31
Martha Pruett tinha trabalhado como assistente social até o ano anterior, quando se aposentara com um pequeno provento mensal. Seu treinamento lhe tinha dado noções suficientes de psiquiatria para que soubesse que não era capacitada para psicanalisar ninguém, ainda mais através de um telefone. Sabia que não havia sentido em tentar dissuadir um psicótico de seus impulsos homicidas. A única coisa sensata a fazer era tentar convencê-la de submeter-se a um tratamento o mais rápido possível.
-Você nunca contou a ninguém sobre estes impulsos, Janet?
-Só a você -respondeu a mulher, com uma voz fraca.
-Seu marido nem ao menos suspeita que você tem esses pensamentos?
-Ele sabe que eu o amo -disse Janet, em desespero. -É por isto que, quando estou normal, quero matar-me. É melhor morrer do que matar o homem que amo.
-Não há necessidade de nenhum dos dois -disse Martha, com firmeza. -Você me ligou em busca de conselhos, presumo. Está preparada para recebê-los?
-O que É? -sussurrou a mulher.
-Você parece já estar consciente do fato de que está mentalmente doente e, segundo dizem os psicólogos, este é o primeiro passo para a cura. A pessoa com problemas mentais que pensa que não há nada de errado com ela é um grande problema para os psiquiatras.
-Não diga para eu ir consultar-me com o médico da família -disse a mulher em tom de cansaço. -Ele é meu cunhado, e não poderia contar-lhe o que disse a você.
-Não é necessário que seu médico ou o seu marido saibam que você procurou tratamento, Janet. Pode encontrar inúmeros psiquiatras no catálogo telefônico. Ou, se preferir, posso recomendar-lhe um.
Houve um período grande de silêncio, antes que a voz rouca dissesse com hesitação:
-E ele não contaria ao meu marido?
-Você deve saber que os médicos têm um código de ética que faz com que tudo que os pacientes lhes contam
32
seja absolutamente confidencial. Não estou dizendo que qualquer psiquiatra que você escolha não vai tentar convencê-la a confiar em seu marido, mas posso garantir-lhe que ele não vai fazer mexerico.
O tom de voz de Janet tornou-se esperançoso:
-Acha que este que você se ofereceu para recomendar pode ajudar-me?
-Estou certa que sim.
-Quem é?
-Dr. Albert Manners, no Centro Médico. Nunca fui cliente dele, mas o conheço muito bem, pois fazia parte da diretoria de uma agência de serviço social na qual trabalhei, e sei que tem uma ótima reputação como médico. Você tem lápis e papel à mão?
-Vou lembrar-me. Dr. Albert Manners, no Centro Médico.
-Vai ligar para ele logo de manhã? -perguntou Martha.
-Vou. Prometo que vou. Ah, muito obrigada, Martha.
-Quando seu marido vai voltar? -perguntou Martra. Mas o fone estava mudo. A mulher tinha desligado.
Martha teve que levantar-se e esquentar um copo de leite para beber antes de voltar a dormir, pois não estava nada satisfeita com seu próprio desempenho. Devia ter conseguido que a mulher lhe dissesse o seu sobrenome. Agora, se ela matasse o marido ou a si própria, Martha carregaria na consciência o fato de não ter evitado a tragédia, se tivesse sido mais eficiente, descobrindo a identidade da mulher e avisando o marido.
A terceira e última chamada foi na segunda-feira seguinte, à noite, poucos minutos antes das nove horas. Quando Martha atendeu o telefone, a princípio não reconheceu a voz grossa que dizia, quase que incompreensivelmente:
-Muito tarde. Nao podia esperar até amanhã. Muito tarde.
Então reconheceu o semitom rouco naquela voz grossa. Disse, rapidamente:
33
-Janet?
-Sim -disse a Voz. -Oi, Martha.
-Você tomou alguma coisa? -perguntou Martha.;
-Muito tarde. Não podia esperar.
-Esperar o quê, Janet?
-Consulta. Consulta Dr. Manners. Mataria esta noite, quando voltasse do boliche. Melhor assim.
-Janet! -disse Martha em voz alta. -O que você tomou?
-Diz ao Fred que fiz por ele? -disse a voz cada vez mais grossa. -Diz que o amo?
-Onde posso encontrá-lo, Janet? -perguntou Martha em desespero. -Onde ele está jogando?
-Confederação dos Alces. Diz a... diz... -a voz sumiu num silêncio de certa forma agourento.
Ai fundo ouviu-se, então: "Cuco, cuco!" E depois de nove badaladas novamente: "Cuco, cuco!"
-Janet! -Martha chamou, mas não obteve resposta.
Tentou mais algumas vezes acordar a mulher, mas sem sucesso. O telefone continuava ligado, no entanto, pois Martha não ouvia o sinal de linha. Martha sabia que mesmo se colocasse o fone no gancho, a ligação não seria interrompida, pois quem chamava é que tinha que desligar para cortar a ligação. Martha não sabia qual a causa eletrônica deste fenômeno, mas já tinha recebido chamadas anteriores, nas quais a outra pessoa, por qualquer razão, não tinha posto o fone de volta no gancho e tinha sido necessário que ela saísse e ligasse para a companhia telefônica de um outro aparelho, para poder voltar a usar o seu normalmente.
Poderia, então, bater no gancho na esperança de conseguir a ajuda da telefonista, sem correr o risco de cortar a ligação. Tentou e, na segunda vez que bateu no gancho, ouviu, horrorizada, o som de linha. Bem feito por se meter a conhecer o funcionamento de telefones, pensou desanimada. Agora tinha acabado com todas as possibilidades de descobrir de onde vinha a chamada.
Já tinha algumas pistas, no entanto. A mais valiosa era que o marido de Janet estava jogando na Confederação dos Alces.
34
Procurou o número do Clube dos Alces local e discou. O telefone chamou várias vezes e uma voz masculina atendeu.
-Existe alguém aí que conheça todos os membros da Confederação de Boliche dos Alces? - perguntou Martha.
-Hem? -disse o homem. -Eu não, minha senhora. Sou apenas garçom aqui no bar e o gerente já foi para casa.
-É uma emergência -disse-lhe Martha. -Não existe aí ninguém que conheça os jogadores?
-O administrador está aqui no bar. Vou chamá-lo para falar com a senhora.
Quando o administrador veio ao telefone, identificando-se como Edwin Shay, Martha disse-lhe seu nome e que era uma das voluntárias que trabalhavam no serviço de prevenção de suicídios.
-É essencial que eu entre em contato com um dos jogadores de boliche imediatamente -concluiu. -O problema é que tenho apenas o primeiro nome. É Fred.
-A confederação tem quatorze times, Srta. Pruett, com cinco homens em cada time. Assim de relance me lembro de três Freds.
-A mulher dele se chama Janet, Sr. Shay, e ele tem um irmão que é médico. Isto ajuda um pouco? Sabe quem é ele?
-Mas é claro! -disse o administrador. -É o Dr. Waters, É um dentista.
É isto, pensou Martha com satisfação, entendendo, de repente, a observação que Janet tinha feito na quartafeira. A moça tinha começado a dizer Convenção Nacional da Associação dos Dentistas, ou qualquer coisa assim, mas cortou a frase e só ficou Convenção Nacional.
-Onde a confederação está jogando? -perguntou.
-No Boliche Delmar. Por que tudo isto, afinal?
-Não tenho tempo para explicar agora -disse Martha. -Muito obrigada pela ajuda.
Desligou, procurou o número do Boliche Delmar no catálogo e discou. Levou alguns minutos para que o Dr.
35
Fred Waters chegasse até o aparelho, mas, finalmente, uma cordial voz masculina disse:
-Oi, Janet. O que é?
-Não é a sua esposa, Doutor -disse Martha. -Trabalho como voluntária no Serviço de Prevenção de Suicídios. Há cerca de quinze ou vinte minutos, recebi um telefonema de sua mulher. O senhor deve ir para casa imediatamente, pois ela tomou algum comprimido. Perdeu os sentidos enquanto falava comigo.
-O quê? -disse o Dr. Waters num misto de medo e surpresa. -Minha mulher tomou comprimidos?
-O senhor deve correr, doutor -disse Martha. -E, se o senhor está muito longe de casa, sugiro que chame antes uma ambulância.
-Certo -disse, apressadamente. -Quem você disse que é?
-Srta. Martha Pruett. Gostaria que o senhor anotasse o meu número para me ligar depois, dizendo o que aconteceu.
-Claro, Srta. Pruett. Qual é? Martha deu-lhe o número.
-Certo -falou o dentista. -Obrigado por ter ligado.
O tempo de espera foi interminável. O suspense era grande demais para que Martha conseguisse interessar-se pela televisão ou por um livro. Para ocupar-se, escovou Ho Chi Minh, escovou seu próprio cabelo, fez as unhas das mãos e, num desespero final, fez até as dos pés.
Conseguiu passar duas horas desse modo e, então, começou a matar o tempo com serviços domésticos. Estava pensando em tirar o pó da sala, já então imaculada, quando finalmente o telefone tocou às 11 e meia da noite.
O seu nervosismo há muito já havia desencorajado Ho Chi Minh da idéia de tirar um cochilo no seu colo e ele se tinha instalado no centro do tapete da sala de estar. Com isto, ficava exatamente entre a cadeira onde Martha estava e a porta do quarto, de modo que, ao correr para atender o telefone, Martha foi exatamente na direção do gato. Ho Chi Minh voou para a cozinha.
36
Agarrando o fone, Martha disse sem fôlego:
-Alô!
-Srta. Pruett? - perguntou uma voz masculina estranha.
-Ela mesma.
-Aqui é o Tenente Herman Abell da polícia, Srta. Pruett. O Dr. Waters pediu-me para ligar para a senhorita, porque não está em condições de falar. Pelo que entendi, a senhorita trabalha no Serviço de Prevenção de Suicídios e foi a senhorita que avisou-o de que sua mulher tinha tomado os comprimidos.
-Isto mesmo. Como está ela?
-Já não se pode fazer nada por ela. Morreu ao chegar ao hospital.
-Oh! Sinto muito, Tenente.
-As coisas são assim, Srta. Pruett. Até que a autópsia termine, não podemos saber quantas pílulas ela tomou, mas um vidro, que segundo o Dr. Waters tem três dúzias, estava vazio.
-Que horror! E ela só tinha trinta e dois anos.
-A senhorita a conhecia pessoalmente? -perguntou o policial, surpreso. -Pensei que os voluntários ficassem no anonimato, pelo menos com relação às pessoas que procuram sua ajuda.
-Ficamos, mas fiz o possível para conseguir bastante informações sobre ela. Nós nos falamos duas vezes pelo telefone antes desta noite, Tenente.
-É? Então esta não foi a primeira tentativa?
-Bem, não sei se já tinha tentado outras vezes, mas já tinha pensado nisto. Eu já teria entrado em contato com o marido antes, mas nunca consegui arrancar dela quem era, com exceção do primeiro nome. Nunca me disse nada, mesmo hoje. Descobri sua identidade por algumas pistas que ela tinha deixado escapar. Sinto-me muito mal por não ter conseguido fazer com que ela se identificasse antes. Poderia tê-la salvo.
-Bem, não foi culpa sua -disse o tenente. -Vamos precisar do seu depoimento de qualquer forma. Quando pode passar na delegacia?
37
-Quando o senhor quiser -disse Martha. -Estou aposentada, sendo assim, todo o meu tempo é disponível.
-ótimo. Estou no turno da noite e não vou entrar de serviço antes das quatro da tarde. Quatro horas lhe seria conveniente?
-Está certo, Tenente.
-Então espero-a na seção de homicídios às quatro horas. Pergunte apenas pelo Tenente Abell.
-Homicídios? -perguntou Martha com curiosidade.
-Não se impressione -disse o policial, sorrindo. -A Delegacia de Homicídios não se restringe a investigação de assassinatos. Temos mais uma meia dúzia de responsabilidades, e uma delas é o suicídio.
-Ah -disse Martha. -Está certo, Tenente. Vejo-o às quatro horas, amanhã.
Martha esperou que houvesse uma fotografia de Janet Waters no jornal da manhã, mas não havia. Havia apenas uma nota breve numa página interna, relatando sua morte por excesso de pílulas para dormir e comunicando que, até investigações posteriores, a polícia tinha dado a morte como sendo suicídio.
Martha chegou à seção de homicídios às quatro em ponto. O Tenente Herman Abell era um homem corpulento e sério, por volta dos 40 anos. O Dr. Fred Waters também estava lá e, de imediato, impressionou Martha. O dentista era um homem alto, magro e bonito, tinha os cabelos negros e ondulados e dentes muito brancos. Martha imaginou que estivesse por volta dos 35 anos.
Não era apenas bonito, mas extraordinariamente charmoso, concluiu Martha alguns minutos depois de lhe ter sido apresentada. Parte desta atração era devida ao seu instinto maternal latente, suspeitou, pois o rapaz estava evidentemente desolado. Parecia completamente atordoado com a notícia de que sua mulher tinha, por várias vezes, pensado em matá-lo. Sendo interrogado pelo Tenente Abell, admitiu que, ultimamente, ela sofria de ataques de depressão bastante fortes, mas que ele nunca suspeitara de psicose.
-Sempre agiu como se me amasse -dizia com uma insistência de dar pena.
38
-E era verdade -assegurou Martha. -Doutor, o senhor tem que aceitar o fato de que sua mulher era mentalmente perturbada.
-Isto ficou evidente -confirmou o Tenente Abell. —- Está pronta para prestar depoimento, Srta. Pruett?
Quando Martha disse que sim, ele pediu para que ela usasse um gravador, depois mandou datilografar para que ela assinasse. Martha contou tudo que lembrava sobre os três telefonemas que havia recebido e, também, da conversa que tinha tido com o administrador do Clube dos Alces.
Levou nisso menos de uma hora. Era um caso tão óbvio de suicídio que o tenente dava a impressão que a investigação não passava de mera rotina, mas Martha observou que, mesmo assim, estava sendo feita com todo cuidado. Por exemplo, ele telefonou para o consultório do psiquiatra Albert Manners para confirmar com a secretária se Janet Waters realmente havia marcado a consulta sobre a qual falara a Martha no seu último e Iincoerente telefonema.
A consulta fora marcada. Como a atendente do médico dissesse que o único contato com Janet Waters tinha sido feito através do telefone quando ligou para marcar a consulta, e que o Dr. Manners nem mesmo chegara a falar com ela, o Tenente Abell nem se interessou em falar com o próprio psiquiatra.
Quando apresentada ao Dr. Fred Waters, Martha murmurara algo simpático e recebera um amável muito obrigado em resposta. Quando se despediram, ela novamente lhe deu os pêsames e, desta vez, recebeu um sorriso tão grande de agradecimento, que ficou deslumbrada. Como seu dentista tinha-se aposentado recentemente e se mudado para a Flórida, pensou em ir ao Dr. Fred Waters, na próxima vez que precisasse fazer um exame.
Passaram-se três meses antes que Martha providenciasse seu exame semestral. Em maio, telefonou para o consultório do Dr. Waters. A moça que atendeu o telefone marcou uma consulta para Martha numa quinta-feira, às quatro e meia da tarde.
O consultório do Dr. Waters ficava a uns 11 quilômetros do apartamento de Martha. Não prevendo os problemas com o trânsito, chegou cinco minutos atrasada.
39
seu atraso seria ainda maior, se não tivesse encontrado uma vaga bem em frente ao prédio, onde colocou seu pequeno carro esporte. Como o consultório era no primeiro andar, não teve que perder tempo esperando o elevador. Já sem fôlego, entrou no consultório exatamente às 4:35.
A jovem recepcionista ruiva sorriu quando Martha se desculpou e também apresentou suas desculpas. O Dr. Waters estava atrasado com suas consultas e, provavelmente, não poderia atendê-la antes das cinco.
-Talvez eu tenha que sair antes que ele a atenda -a moça continuou desculpando-se. -Vou viajar este fim de semana e tenho que pegar o ônibus às seis horas. Se tiver que sair antes, dou-lhe o seu cartão e a senhora o entrega ao doutor quando ele a atender.
-Está certo -concordou Martha.
A recepcionista convidou-a a sentar-se.
Era uma sala de espera típica, razoavelmente bem mobiliada com cadeiras de couro confortáveis, um sofá e uma mesinha com uma porção de revistas antigas. Martha encontrou uma revista feminina que ainda não tinha lido e sentou-se para esperar. A recepcionista, atrás de um balcão que ocupava toda a extensão da parede, fazia o seu serviço.
Dez minutos depois da chegada de Martha, o silêncio foi quebrado por um único "Cuco!" seguido de três batidas de carrilhão e sucedido de um outro "Cuco!"
Martha olhou para o alto na direção do relógio de madeira a tempo de ver o passarinho aparecer para o segando "Cuco!" e desaparecer novamente. Pensou se este poderia ser o mesmo relógio que ouvira cada vez que Janet Waters lhe telefonara. O outro "fazia "Cuco!" duas vezes antes e duas depois de o carrilhão bater as horas, mas, talvez, este também fizesse e, nos quartos de hora, fizesse apenas uma vez.
Com um pigarro, Martha disse à recepcionista:
-Senhorita, sabe dizer-me se o Dr. Waters tem em casa um relógio igual a este?
A recepcionista respondeu, educadamente:
-Não conheço a casa do Dr. Waters. Trabalho com ele há apenas duas semanas.
40
-Ah -disse Martha, e ficou em silêncio.
Passados alguns minutos, a moça levantou novamente a cabeça:
-Talvez eles tenham um lá e por isso colocaram este aqui. Preferia que não o tivessem feito, pois este me deixa louca, batendo a cada quinze minutos.
Martha perguntou intrigada:
-O que quer dizer com eles colocaram este aqui?
-O Dr. e a Sra. Waters, quando se casaram.
-Mas eles se casaram há dez anos, não foi? -disse Martha, confusa.
A moça ruiva sorriu para ela:
-Estou-me referindo ao casamento atual, Srta. Pruett. Estão casados há apenas algumas semanas. É por isto que estou aqui; Joanne era a recepcionista anterior.
Martha estava ligeiramente chocada. Ele não tinha esperado um intervalo muito apropriado para o segundo casamento. Estes homens, suspirou para si mesma. Depois ãe toda aquela demonstração de desolação.
A ruiva dizia:
-Joanne tinha este relógio no apartamento dela e é claro que, quando se mudou de lá para a casa do Dr. Waters, não tinha onde colocar suas coisas, pois a casa dele já estava mobiliada. Vendeu quase tudo, mas trouxe algumas coisinhas menores para cá.
A moça voltou ao trabalho. Martha olhou para o relógio, enquanto pensamentos incríveis passavam por sua cabeça. Se todos aqueles telefonemas tinham sido feitos da casa da antiga recepcionista do Dr. Waters, e não da casa do próprio dentista, então era evidente que a pessoa com a qual Martha falara não era Janet Waters; e o fato de que esta mesma recepcionista havia-se tornado a segunda Sra. Waters, logo depois da morte da primeira, dava um ar sinistro ao caso.
Estes pensamentos assustavam tanto Martha, que nem percebeu há quanto tempo estava ali remoendo os acontecimentos, quando o relógio soou de novo. Neste momento, todas suas dúvidas se dissiparam, pois o cuco cantou duas vezes antes de bater as cinco badaladas e, depois, mais duas vezes.
41
Neste instante, a porta do consultório se abriu e o Dr. Fred Waters conduziu um paciente até a saída.
-Marque uma nova consulta para o Sr. Curtis na próxima semana, Ruby -disse para a recepcionista. -Depois, pode ir, pois sei que tem que tomar o ônibus. Eu fecho o consultório.
Virou-se para olhar para Martha e uma expressão de susto passou por seu rosto:
-Oh, olá -disse. -Não sabia que a senhora era meu último paciente. Ruby gosta de me fazer surpresas.
A observação provocou um olhar de curiosidade que a recepcionista lançou de Martha para o dentista, mas não fez nenhum comentário. Simplesmente entregou-lhe uma ficha grande e disse:
-Aqui está a ficha da Srta. Pruett, Doutor. Depois de dar uma rápida olhada no cartão, o Dr.
Waters disse a Martha:
-Sinto tê-la feito esperar, Srta. Pruett. Entre. Além de um aceno brusco com a cabeça, Martha não
tinha dado nenhuma resposta à saudação do dentista, mas ninguém pareceu notar. Levantou-se e, desajeitadamente, seguiu-o para dentro do consultório. Sentou-se na cadeira, permitiu que lhe colocasse um babador no pescoço e, obedientemente, abriu a boca.
-Hum -disse o dentista depois de um exame rápido. -Dentes excepcionalmente bons para a sua idade. -Sorriu para ela se desculpando e completou: -Quer dizer, para qualquer idade.
Começou a trabalhar com um raspador e um estilete. Felizmente, o tratamento dentário é do tipo que não permite conversas, pois Martha não seria capaz de pensar em nada para dizer a ele. O tempo passava em silêncio. Ela viu que 15 minutos tinham-se escoado, apesar de parecer muito mais, pois o relógio bateu o quarto de hora.
Apenas alguns segundos depois, no momento em que Martha se sentara ereta para lavar a boca, ouviu-se uma leve batida na porta que, imediatamente, se abriu, surgindo então uma loura, de uns 25 anos, que impressionava por sua beleza.
-Ah, meu bem, desculpe -disse com uma voz rouca. -Pensei que seu último paciente já tivesse saído.
42
Já ia fechando a porta de novo, quando Martha deixou escapar:
-Você deve ser Joanne.
A mulher parou para olhá-la com ar indagador. Pela expressão do Dr. Waters, ele estava em dúvida se devia apresentar as duas ou simplesmente pedir à loura que esperasse lá fora. A paciente tirou-lhe a decisão das mãos, declarando:
-Sou Martha. Lembra-se de mim, Joanne?
O rosto da loura perdeu toda a expressão. O Dr. Waters empalideceu. A mulher abriu completamente a porta de novo, observando Martha, com os lábios franzidos.
-A senhora fala como se já nos conhecêssemos antes -disse, assumindo um ar de perplexidade que, de modo algum, conseguiu enganar Martha. Podia dizer, pela expressão da mulher, que ela havia reconhecido a voz de Martha tão instantaneamente quanto Martha reconhecera a dela.
Martha disse com frieza:
-Só pelo telefone. Que plano de assassinato incrível! Vocês conseguiram demonstrar, através de uma testemunha totalmente desinteressada, que Janet era uma psicótica, que se tinha suicidado, quando, na verdade, ela era, provavelmente, uma pessoa normal. -Olhou para o dentista: -Como o senhor lhe deu as pílulas antes de ir jogar boliche, Doutor? Colocou no café?
Observou que todo esse seu desabafo não tinha sido prudente tarde demais, quando reparou no modo como os dois olhavam para ela. Descendo da cadeira, tirou o babador e jogou-o sobre o braço do móvel.
-Acho que tenho que ir -disse, nervosa.
A loura Joanne continuava no meio da porta. Numa voz desprovida de emoção, falou ao marido:
-Dar, acidentalmente, uma dose excessiva de anestésico a um paciente não vai melhorar muito a sua reputação profissional, mas não vai ser pior do que um julgamento por assassinato.
O dentista olhava da mulher para Martha com um ar desesperado.
43
Martha disse para a mulher que continuava na porta, num misto de medo e desafio:
-É melhor você sair da minha frente. Ignorando-a, Joanne disse ao Dr. Waters:
-Não tem escolha. Vai ser tomado como um acidente. Já aconteceu em outros consultórios, com outros dentistas.
O Dr. Waters tomou a decisão tão de repente que pegou Martha de surpresa. Agarrando o corpo frágil pelos ombros, jogou-a de volta à cadeira de dentista.
Apesar de sua idade e de seu tamanho, Martha era ágil como uma enguia, e agiu como se o fosse. Contorcia-se e chutava e, por duas vezes, quase conseguiu libertar-se do dentista, antes que este, finalmente, a dominasse, deitando-se sobre suas pernas e segurando seus ombros com ambas as mãos. Ela teve que desistir então, pois ele tinha o dobro do seu peso.
-Você já sabe como se usa o gás -disse o dentista para a mulher. -Ponha a máscara no rosto dela, enquanto eu a seguro.
Momentos depois, uma máscara cônica de borracha, desprendendo gás, foi afixada sobre o nariz e a boca de Martha. Balançando a cabeça de um lado para outro com violência, esta conseguiu livrar-se dela, mas logo Joanne segurou-a pelo queixo com uma das mãos, imobilizando-lhe a cabeça, enquanto assentava a máscara, firmemente, com a outra.
Martha prendeu a respiração. Podia sentir, nas faces, o gás gelado, sob pressão dentro da máscara, pressão esta causada por sua recusa em inspirá-lo. Também podia sentir a pressão contra seu rosto do polegar direito de Joanne ao lado da máscara.
Os pulmões de Martha já estavam a ponto de explodir e ela já ia desistir e inspirar profundamente, quando a recepcionista apareceu na porta e disse, com muita pressa:
-Deixei a passagem na minha mesa, Doutor. Tenho que correr... -Houve uma pausa e, então: -O que...
O susto foi tamanho que o Dr. Waters aliviou a pressão sobre os ombros de Martha e levantou-se um pouco de cima dela. Joanne também se assustou, não tanto quan-
44
to o marido, mas o suficiente para diminuir, momentaneamente, a pressão de ambas as mãos.
Martha virou a cabeça para o lado e usou os ótimos dentes, que o Dr. Waters tanto elogiara, para morder, com muita força, o polegar da mulher do dentista.
Com um grito de dor, a loura deixou cair a máscara e cambaleou para trás. Martha levantou os dois joelhos na altura do peito e livrou-se do dentista, empurrando-o pelo estômago com os pés. Ele cruzou a sala cambaleando e caiu sobre a mesa de instrumentos.
Martha pulou da cadeira e saiu correndo, passando pela ruiva que, muito espantada, continuava parada na porta.
Deu graças pelo consultório ser logo no primeiro andar, pois necessitava de muito ar puro para os pulmões cansados e, provavelmente, não resistiria, se ainda tivesse que descer £lguns lances de escada. No entanto, seu desespero dava-lhe forças para aquela pequena corrida. Antes que alguém surgisse em sua perseguição, já estava lá fora, no seu carro, com o motor ligado. Quando se afastava do meio-fio, viu, pelo retrovisor, o Dr. Waters que surgia na porta do edifício.
Martha seguiu, rapidamente, para a delegacia de polícia.
45
Tack Ritchie
PLANO 19
-Você sabe, é claro -disse o Diretor Brincker -que, além de ficar na solitária, vai perder o privilégio de assistir aos filmes durante seis meses?
-Ah, besteira -disse Big Duke. O Diretor Brincker suspirou:
-Afinal, Duke, você conseguiu fugir daqui e ficou livre por aí por quase um ano. Não é que eu queira fazer isso, mas regulamento é regulamento.
-Claro, claro -disse Duke. -Sem ressentimentos.
-Fico contente por você não ficar chateado -disse Brincker. -Quero que saiba que não é nada pessoal.
Big Duke olhava para o teto. O Diretor Brincker virou-se para mim por um momento:
-Poderia pegar a ficha de Duke para mim, Fred?
-Sim, senhor -disse.
Há 11 meses, Big Duke e quatro companheiros seus haviam fugido de nossa penitenciária. Big Duke era o único que tinha sido pego até então. Em São Francisco, cometera o erro de ser preso por assalto e agressão. Quando a polícia de lá, cumprindo a rotina, checou suas impressões digitais, a verdade foi descoberta e ele foi mandado de volta.
O interfone do diretor tocou:
-Pois não?
-O médico quer conversar com o senhor sobre algumas requisições -disse uma voz vinda de dentro da caixa.
46
-Estou ocupado agora -disse Brincker. Mas, pensando melhor: -Está certo, vou até lá.
Saiu do gabinete, deixando Big Duke, o guarda e eu sozinhos.
Big Duke examinou-me com os olhos:
-Posso jurar que esta roupa que você está usando foi feita sob medida.
Ajeitei alguns papéis sobre a minha mesa:
-Tenho alguns amigos na alfaiataria e, de vez em quando, eles me fazem alguns favores.
-Como você consegue mandar para lavanderia e, depois, receber de volta? Uma roupa assim tão bem feita corre um grande risco de ser perdida, por acidente, digamos.
Removi alguns restos de borracha da mesa para o chão:
-Tenho alguns amigos na lavanderia também.
-Sempre dá um jeito, hem? -disse Big Duke, rindo, -Vocês, veteranos, estão com tudo. Há quanto tempo está aqui?
-Vinte e dois anos -respondi.
-Quanto tempo ainda falta?
-Algum tempo ainda. Fui condenado a cento e noventa e nove anos.
-Nunca pensou em fugir?
Olhei para o guarda por um momento:
-Quem não pensa?
O Diretor Brincker voltou.
-Agora, Duke, queremos esclarecer algumas coisas para o relatório... como a sua fuga daqui.
Big Duke encolheu os ombros:
-Claro. !
-Aparentemente, foi tudo muito simples. Vocês, simplesmente, amarraram um gancho de ferro feito em casa na ponta de uma corda, lançaram-no por cima do muro e, então, todos os cinco subiram pela corda e pularam o muro?
47
-Foi assim mesmo -disse Big Duke. Brincker franziu as sobrancelhas:
-É claro que, depois que encontramos o gancho, nós recriamos todo o episódio. É verdade que existe um campo neutro, digamos, naquele ponto específico, de modo que os guardas nas duas torres mais próximas não conseguem enxergar a base do muro. No entanto, o topo do muro é inteiramente visto de ambas as torres e os guardas juram que não viram vocês cinco pulando.
-O senhor se esquece de que estava chovendo pra burro -disse Big Duke. Apalpou o bolso da camisa, provavelmente à procura de um cigarro, mas não havia nenhum. -E além do mais, seus guardas são humanos, não são?
-Bem... são.
-Então eles vão ficar lá, com os olhos girando cento e oitenta graus, de um lado pro outro, de um lado pro outro, o tempo todo? Não. Vão olhar numa direção por um tempo e, possivelmente, começar a sonhar acordados. Assim, esperamos que isto acontecesse e, então, jogamos a corda e pulamos para fora.
O diretor esfregou o pescoço:
-É claro que isto é possível e foi o que aconteceu, mas ainda acho que vocês tiveram sorte demais.
Big Duke arreganhou um sorriso:
-Isto é a vida, um monte de sorte.
Depois que Duke foi levado, o diretor suspirou:
-Acho que sou muito sensível, mas sempre tomo como algo pessoal quando um dos meus garotos foge. -Pegou um charuto na charuteira sobre a mesa: -Não tento fazê-los felizes, Fred?
-Sim, senhor -respondi. -Já recebeu tantos prêmios e condecorações em competições com seus colegas. E não recebeu o título de Doutor Honorário em Leis do Departamento de Agricultura e Mineração do Oeste do Colorado na semana passada?
-Sei disso. Mas acho que a medida exata do meu sucesso deveria ser estimada através do que os homens daqui sentem por mim.
-Todos nós o respeitamos, senhor -disse. -Sabemos que o senhor luta por nossos interesses.
48
Ele assentiu com a cabeça.
-Posso andar desarmado por onde quiser nesta prisão. Nem mesmo preciso que um guarda me acompanhe. Estou perfeitamente a salvo nas oficinas, no pátio e, até mesmo, na escuridão do cinema.
-Sim, senhor -falou. -Os rapazes reconhecem e lhe são gratos, pois o senhor só apresenta filmes de primeira aqui. O que teremos hoje à noite?
-Mary Poppins -disse Brincker. -A não ser pelo feijão.
Coloquei os papéis de Duke de volta no arquivo.
-Feijão? Que feijão, senhor?
-No teatro da penitenciária -disse Brincker. -Quando as luzes se apagam, alguém sempre joga um grão de feijão em mim. Sei que é um grão de feijão, porque, certa vez, não acertou na minha cabeça e bateu na cadeira bem na minha frente, caindo depois no meu colo. Fred. alguém por aí não gosta de mim.
-Há sempre uma ovelha negra em todo rebanho, senhor -disse.
Brincker concordou:
-Devemos reconhecer o fato de que o mundo não é perfeito.
Naquela noite no refeitório, o cardápio consistia em carne, tomates cozidos, pêssegos em lata, café e pão. Quando cheguei aqui, não ligava muito para tomates cozidos, mas agora já gosto bastante.
Depois que fomos trancados era nossas celas naquela noite, Hector, meu companheiro de cela, pendurou seu boné:
-Mais um dia, mais um dólar. -Ele usava uma xícara de plástico para regar o vaso de petúnias. Tirei os sapatos e calcei algo mais confortável.
-Big Duke voltou hoje. Diz que realmente pularam o muro, usando apenas aquele gancho.
Hector meneou a cabeça:
-Muito pouco científico.
-Nunca faremos nada assim tão rudimentar, quando chegar nossa hora -falei.
49
Ocupávamos uma das celas exteriores da fileira, e Hector olhou para o dia que escurecia lá fora.
-Está nevando de novo. j
-A primavera está demorando este ano. E
Hector olhou com inveja um bando de gansos que cruzava o céu:
-É a época do ano que mais me toca, quando vejo os gansos voando, livres e selvagens, em direção ao sul.
-Hector -falei -acho que na primavera eles vão para o norte.
-Bem, para onde quer que seja -disse Hector. -Quando os vejo, voando livres e selvagens, dirigindo seu próprio vôo, fico realmente deprimido. Por viver numa gaiola como esta, entende?
-Não se deixe abater, Hector -falei. -Estou certo de que, em breve, estaremos fora daqui.
-Você tem razão, Fred. -Fechou a pequena veneziana. -E acho que o plano n<? 18 é a solução.
-Estou certo que sim -concordei. -O problema dos outros dezessete é que dependiam demais de certas condições específicas. Tudo tinha que estar muito certo c não tivemos bastante sorte neste ponto.
-Isso mesmo -disse Hector. -Mas estou convencido de que, com o plano n<? 18, vamos finalmente atingir nosso objetivo. É direto e simples. Sem variáveis maliciosas.
No final de maio, Big Duke saiu da solitária, e o Diretor Brincker recebeu-o de novo em seu gabinete.
Brincker eliminou a escuridão e a dieta de pão e água da solitária. Agora, tem-se luz, recebe-se uma dieta equilibrada, mas sem sobremesa, e tem-se direito a dois livros da biblioteca e uma revista por semana. Alguns veteranos acham que a solitária já não é mais solitária, e que alguma coisa se foi com ela. Big Duke parecia estar bem e descansado.
-Como está, Duke? -perguntou Brincker.
-Novo em folha. Quando pego no meu trabalho na carpintaria de novo?
-Bem, agora, Duke -disse Brincker -temo que as coisas não vão ser assim tão simples. Há regras e regulamentos, como sabe. Primeiro, é claro, vai ter que passar
50
seis meses na lavanderia. É o procedimento padrão para todos os novatos e, como fugiu e voltou de novo, vai recair na categoria dos novatos.
-Claro, claro -disse Duke. -Seis meses na lavanderia. E, depois, volto para a carpintaria?
Brincker sorriu como que se desculpando:
-Existem prioridades e antigüidades a serem consideradas também, Duke. Depois do seu período de serviço na lavanderia, será colocado na Lista de Pendências. Em outras palavras, no mutirão. Isto quer dizer que o colocaremos onde quer que seus serviços sejam necessários, e estes lugares, sem dúvida, vão mudar de tempos em tempos. Só depois de dois anos na Lista de Pendências é que lhe será permitido escolher alguma coisa.
Duke não parecia nem um pouco satisfeito.
-Dois anos e meio no total?
-E mesmo então não posso garantir que haverá uma vaga- na carpintaria. Pelo que sei, a maioria dos rapazes que trabalham lá vai ficar por aqui por muito tempo ainda.
Brincker tinha os papéis de Big Duke sobre sua mesa e folheou algumas páginas.
-Para ser franco, Duke, não vejo por que você está tão ansioso por voltar a trabalhar na carpintaria.
-O que quer dizer com isto? -disse Duke, piscando os olhos.
-De acordo com os resultados do seu Teste de Aptidões Mecânicas e Gerais e a interpretação dada a eles pelo nosso novo computador, achamos que ficaria mais satisfeito na oficina de eletricidade.
O olhar de Duke dirigiu-se para a janela.
-Não me interessa o que essa máquina diz. Gosto da carpintaria.
Três semanas mais tarde, Duke voltou ao gabinete do diretor, desta vez sob a acusação de ter falsificado um passe e tentado entrar na carpintaria.
O Diretor Brincker estalou a língua:
-Francamente, Duke, estou um pouco desapontado com você. Falsificar um passe é uma coisa muito séria.
51
Duke não parecia muito arrependido.
-Eu só queria ver tudo aquilo de novo.
O interfone do diretor tocou e ele tirou o fone do gancho e ficou ouvindo. Voltou-se para mim:
-É da Seção do Pessoal. Quem foi que você recomendou para o serviço na biblioteca?
-Peterson, senhor.
-Tem certeza de que ele é capaz de fazer este tipo de serviço?
-Sim, senhor. É um bom trabalhador.
Brincker voltou à sua conversa com a Seção do Pessoal e concordou com a transferência de Peterson da tecelagem para a biblioteca. Quando Brincker desligou, olhou novamente para Duke:
-Sinto muito, Duke, mas acho que você vai ter que voltar para a solitária.
Isso não pareceu aborrecer muito Duke, ou, pelo menos, ele não demonstrou nada. Examinou-me por alguns segundos antes de se virar para acompanhar o guarda.
Ao final de junho, nossa temporada de beisebol começou com o jogo contra a Penitenciária Wickman. Hector e eu estávamos sentados em nossos lugares favoritos, ao longo da linha da primeira base, quando notei que Big Duke se levantava do seu lugar e se encaminhava em nossa direção. Sentou-se a meu lado e assistiu à jogada seguinte.
O batedor dos Wickmans fez a sua jogada. Leoni, nosso shortstop, agarrou a bola com habilidade e fez um arremesso longo para alcançar o runner em primeiro lugar.
Duke tirou o palito da boca:
-Bom lance.
-Leoni tem um bom braço e vai ficar conosco por algum tempo ainda, uma pena longa -falei.
-Você tem um bocado de influência por aqui, não é? -indagou Duke, fitando-me.
-Temos boa chance de continuar ganhando o campeonato por mais uns anos -falei -se conseguirmos manter este mesmo time reunido.
52
-O que foi preciso para que Peterson fosse transferido da tecelagem para a biblioteca?
-Peterson realmente merecia.- respondi. - E acho que o diretor respeita a minha opinião.
Duke usava o palito de novo:
-Qual é o preço? Quero dizer o que é necessário? Dinheiro?
Hector estava ouvindo:
-De qual Peterson ele está falando, Fred? Aquele que fez umas carteiras a mão, que você vendeu aos visitantes com uma comissão de sessenta por cento?
Duke sorriu:
-Não tenho dinheiro nenhum, e não tenho muito jeito para trabalhos em couro. Mas talvez tenha algo de que você goste, isto é, um modo de sair daqui.
-Eu e Fred estamos na mesma cela há quinze anos -disse Hector -e já desenvolvemos dezoito métodos seguros e absolutamente perfeitos de fugir.
Big Duke resmungou:
-Então, por que ainda estão por aqui?
-Bem, o problema é que, em primeiro lugar, temos que ter algumas condições precisas -disse Hector. -Como, por exemplo, em seis dos nossos planos tem que estar chovendo.
-E nunca choveu aqui? -perguntou Big Duke.
-Claro que sim -respondeu Hector. -Mas tem que chover à tarde. Em um feriado nacional.
Duke jogou fora o palito:
-Em quinze anos nunca choveu durante a tarde de um feriado nacional?
Hector fez que sim.
-Mas o feriado nacional tem que ser numa sextafeira, de modo que se tenha um fim de semana prolongado. Isto é muito importante, ou todo o plano vai por água abaixo. Uma vez choveu numa tarde de um feriado nacional, mas era quinta-feira. Foi o mais próximo que chegamos.
-Nenhum túnel nos seus planos? -indagou Big Duke, sorrindo.
53
-Temos dois -disse Hector. -Mas além de ter que cavá-los, teria que ser uma noite sem Lua e a temperatura...
-Chega, Hector -falei. -Não queremos entregar todos os nossos segredos.
Duke voltou sua atenção para mim:
-Posso tirá-los daqui e não vão precisar ficar esperando pela chuva ou feriados nacionais ou pela temperatura certa.
-Jogando um gancho por cima do muro? -Meneei a cabeça, sorrindo. -Não, não é para mim.
-Aos diabos com o gancho -disse Bíg Duke. -Aquilo era apenas fachada, só para desviar a atenção.
Examinei-o por alguns segundos e, então, virei-me para Hector:
-Estou com sede e vou até o bebedouro tomar um pouco de água. Fique de olho no jogo para me contar tudo que aconteceu quando eu voltar.
-Vá tranqüilo -disse Hector.
Fui andando ao longo das cadeiras até o corredor e desci da plataforma de madeira para chegar ao bebedouro. Big Duke me acompanhou. Bebi um pouco de água e fui para um ponto relativamente isolado, ao lado de uma das plataformas. Duke também bebeu e veio ao meu encontro. Vimos uma bola rebatida no centro do campo. Então, Duke falou:
-Nós cinco trabalhamos no túnel por seis meses, uma verdadeira obra de arte, com escoras por toda a extensão e até mesmo uma fileira de lâmpadas elétricas. Sentíamo-nos orgulhosos do nosso trabalho e isto nos levou a pensar: afinal, por que alguém mais teria que tomar conhecimento do túnel? Mesmo depois da nossa fuga? Suponha que fôssemos presos de novo e mandados de volta para cá? Por que não usar o mesmo túnel de noto para fugir? Então, antes da nossa fuga, arranjamos para que a corda com o gancho fosse colocada no muro para parecer que esta tinha sido a maneira pela qual havíamos fugido.
Pensei sobre o assunto.
-Suponho que o túnel comece em algum lugar na carpintaria?
54 ' :
Duke assentiu, com um aceno de cabeça.
-Você consegue minha transferência para lá, e nós dois damos o fora daqui.
Meus olhos acompanhavam o jogo.
-Sua transferência para a carpintaria vai dar um bocado de trabalho. Não acredito que possa dar um jeito em menos de um ano.
-Então, esqueça a transferência -disse Duke, ríspido.-Arranje-me um passe. Tudo que preciso são cinco minutos e estarei fora.
O túnel provavelmente começa no depósito de restos de madeira, pensei. Seria o local mais lógico. Duke parecia ler meus pensamentos:
-O túnel é na carpintaria, como disse, mas não tem nenhum sinal indicando o lugar exato. Sou a única pessoa aqui dentro que sabe exatamente onde é e como chegar até ele. Se alguém quiser usá-lo, vai ter que me levar junto.
-Não estou querendo monopolizar seu túnel -disse. -Quando eu for, você também vai. E vice-versa.
Duke ficou satisfeito:
-Certo. Quanto mais rápido você conseguir nosso passe, mais rápido sairemos daqui.
-Não tenha tanta pressa, Duke -falei. -Se vamos fugir, vamos fazer tudo da maneira certa. E a maneira certa vai levar pelo menos mais um mês, talvez até dois. Tenho que organizar as coisas.
-O que você tem para organizar? Temos apenas que atravessar o túnel.
-E sair correndo por aí com nossas roupinhas cinzas? -Sacudi a cabeça. -Você e os outros tiveram muita sorte quando fugiram da última vez vestidos -assim, mas não pretendo depender da sorte. Acho que vai ajudar consideravelmente, se estivermos usando roupas comuns quando sairmos daqui, e levando carteiras com papéis de identidade que pareçam verdadeiros.
Duke concordou, mas então se lembrou de mais uma coisa:
-Só você e eu vamos participar da fuga? Ninguém mais? -disse zombeteiramente.
55
-Vamos levar Hector também -falei. Duke apertou um pouco os olhos:
-Se você contar tudo isto a ele, em menos de uma semana, todos aqui dentro vão estar sabendo.
-Não pretendo dizer nada a ele -falei. -Até o último minuto.
Durante os próximos dias, mantive conversações com meus amigos da alfaiataria e da gráfica, que me prometeram ver o que podiam fazer.
Foi quase três meses depois, entretanto, que considerei tudo pronto para nossa fuga.
O Diretor Brincker saiu do seu gabinete à uma e meia da tarde. Tinha que assistir a uma conferência na cidade, e não voltaria antes do anoitecer.
Pela janela, observei seu carro atravessar os portões e, depois, fui até sua mesa. Fiz, então, um passe Classe A para mim, dois passes limitados para Hector e Big Duke e dois formulários de requisição. Com o passar dos anos, com a devida permissão de Brincker, assinava seu nome em todos os passes e outros papéis que necessitassem de uma assinatura, podendo ser até mesmo para o próprio Brincker.
Encontrei Hector na horta da penitenciária, cavando com uma enxada por entre os repolhos. O guarda responsável por ele nem se incomodou em examinar o meu passe, mas olhou para o formulário de requisição e, então, entreguei-lhe.
-Então o jardim particular do diretor precisa ser renovado e ele está requisitando um homem para fazer o serviço?
Assenti com um movimento da cabeça:
-Acho que Hector vai resolver.
Hector parecia agradecido quando fomos andando:
-Renovar o jardim do diretor é um trabalho muito importante.
Esperei até que virássemos uma esquina e parei.
-Hector, vamos sair daqui desta prisão agora mesmo.
56
Piscou, e sua boca se abriu devagar:
-Você quer dizer fugir?
-Isso mesmo, Hector. Finalmente, chegou a hora. Hector olhou para o céu, um pouco incerto:
-Bem, na verdade parece que vai chover e a temperatura está quase certa, mas não é um feriado...
-Não se preocupe com isto agora, Hector -falei. -Escute só. -Entreguei-lhe o passe. -Quero que você vá para a carpintaria. Use a entrada C. Ed Berger está de guarda lá. Mesmo se ele não perguntar, diga que vai procurar o superintendente civil, na seção de móveis, para falar sobre uma mesa do diretor e que, como isto fica no outro lado do prédio, você vai sair pela Rua D.
-Por que devo fazer isso, Fred?
-Para que Berger não vá procurá-lo, quando notar que você não voltou por onde ele está. Agora, Hector, quando estiver na carpintaria, descubra o depósito de restos de madeira e, quando não houver ninguém olhando, entre disfarçadamente, encontre um lugar onde se esconder, e espere.
-Certo, Fred. Vou fazer como você mandou -disse ele.
Estava começando a chuviscar. Hector puxou seu boné para cima da testa e foi-se afastando.
Não tive dificuldades para tirar Big Duke do seu serviço na lavanderia.
Passamos pela alfaitaria da prisão para apanhar os três embrulhos que Helmer Henning, o presidiário chefe dos alfaiates, havia guardado para nós. Continham nossas roupas civis, carteiras, papéis de identidade e até mesmo algum dinheiro.
Na carpintaria, Berger olhou para as caixas que carregávamos com muito pouco interesse:
-O que tem aí, Fred?
-Tecido para decoração -respondi. -A mulher do diretor mandou recobrir um sofá e algumas cadeiras.
Quando Duke e eu conseguimos entrar, sem que ninguém nos visse, no depósito de restos de madeira, Hector saiu do seu esconderijo.
57
Meus olhos percorreram a grande sala, cheia de pilhas de madeira.
-Suponho que seu túnel comece debaixo de uma destas pilhas de tábuas? -Indiquei com a cabeça. -Realmente, Duke, não sei como conseguiram escapar. É certo que qualquer inspeção de rotina poderia ter descoberto tudo.
Duke arreganhou um sorriso e subiu até o alto de uma das pilhas.
-O melhor lugar para se começar um túnel é no teto. -Pressionou com as pontas dos dedos duas placas, e uma placa retangular do teto moveu-se para trás.
Hector e eu não perdemos tempo, e nos juntamos a Duke no alto da pilha de madeira.
-Esta ala tem mais de cem anos -disse Duke -e as paredes são de tijolo e bem sólidas. Quando colocaram eletricidade e canos para ar quente, tiveram que passar os cabos e canos por fora. Para dar uma aparência melhor, cobriram aquilo tudo com um teto falso.
Duke subiu pelo buraco. Pegou os embrulhos que lhe entregamos e ajudou Hector e a mim a subir. Depois que estávamos todos juntos, recolocou a placa do teto no lugar. A escuridão foi total durante alguns momentos, até que Duke acendesse uma lâmpada elétrica.
Engatinhando, seguimo-lo até a grossa parede. Duke e seus companheiros haviam escavado a parede para baixo, como quem tira o miolo de uma maçã. Descemos até uma pequena câmara abaixo das fundações do prédio. Tinham usado o lugar como área de depósito para o material, e era este o local de onde começava o túnel propriamente dito. Com muito esmero, iam escavando o material, e levando-o para cima, para deixá-lo depositado no teto falso. Descansamos por alguns minutos nesta pequena câmara.
-O túnel segue sob as paredes e sai numa pequena sarjeta do lado de fora dos muros -disse Duke. -Assim que sairmos, basta seguir a sarjeta por uns cem metros até o bosque e, então, estamos livres.
Olhando para o buraco a nossa frente, deixei escapar alguns pressentimentos claustrofóbicos, mas Duke me tranqüilizou:
58
-Existe uma lâmpada a cada dez metros e, para um túnel, este é bastante espaçoso. Nem é preciso arrastar-se.
Duke ajoelhou-se novamente e, empurrando uma das caixas, desapareceu pelo buraco. Segui-o e Hector veio logo atrás de mim.
O tempo que passamos engatinhando pareceu-me IIIterminável, principalmente naqueles momentos em que o corpo de Duke encobria a luz que vinha da lâmpada que tínhamos à nossa frente, e o de Hector fazia o mesmo com a que estava às nossas costas.
Finalmente, senti o cheiro doce e fresco do ar chuvoso, e saí ao ar livre. Hector apareceu logo depois de mim. Estávamos, realmente, no que podia ser chamado de uma sarjeta, cuja beirada superior nos abrigava da vista dos guardas sobre o muro e da chuva fina. Duke cobriu de novo nossa saída com alguns galhos.
-Quem sabe, talvez um dia ainda voltemos a usar este túnel.
Quando terminou, Hector e eu o seguimos pelo fundo lamacento. No momento em que conseguimos alcançar o refúgio do bosque, já estava chovendo bastante.
Duke abrigou-se sob um grande pinheiro e rasgou a caixa que carregava.
-Espero que haja uma capa de chuva.
-Mas é claro -falei. -Pensei em tudo.
Duke conseguiu trocar de roupa em menos de dois ninutos.
Abaixou a aba do chapéu, levantou a gola da capa de chuva e arreganhou um sorriso:
-Tudo certo, rapazes, de agora em diante, cada um por si.
Acenou com a mão e desapareceu na chuva. Hector estava tendo problemas em abotoar a camisa:
-Tem certeza de que estas coisas servem na gente, Fred?
-Claro. Tiraram suas medidas, não foi? Enxugou o rosto com um lenço:
-Está chovendo.
59
-Claro que está chovendo -falei. -Estou vendo.
-Quero dizer que está frio.
-Está chovendo e está frio -disse eu, com rispidez. -Ponha o chapéu e a capa e pare de resmungar.
-Chovendo e frio -disse Hector. -E ventando. Ventando horrivelmente.
Eu estava pronto para ir:
-Tudo bem, Hector. Vamos andando.
Tinha dado uns doze passos, quando descobri que ele não me seguia. Voltei-me.
Hector encontrava-se no mesmo lugar onde o tinha deixado. O chapéu estava na cabeça, mas ainda segurava o boné de presidiário.
-Que droga, Hector -falei. -Venha logo.
Ele não se moveu. Voltei até onde ele estava e tentei tirar-lhe o boné das mãos, mas ele não largava. Olhava para frente, os olhos arregalados.
-Hector! -gritei. -Qual é o problema? Seus lábios se moveram:
-Hoje vai ter batata-doce no jantar, Fred. Sempre gostei de batata-doce. Não é sempre que tem.
O vento começou de repente, e virei-me de modo a pegá-lo de frente. Adiante, uma densa camada de chuva fria encobria o mundo que eu deixara há 22 anos. Como seria ele agora?
-Não há nada a temer aqui fora. -Sacudi Hector pelos ombros. -Nem leões. Nem tigres. Apenas pessoas. O que as pessoas lhe podem fazer?
-Tudo -disse ele, olhando para mim. -Tudo.
Depois do jantar no refeitório, Hector e eu marchamos em fila com os outros para o cinema. Sentamo-nos nos nossos lugares de sempre.
-Você acha que eles vão descobrir o túnel? -perguntou Hector.
-Não sei -respondi. -Mas eles ainda não sabem como Big Duke fugiu.
60
-Não vamos ter nenhum problema, vamos?
-Não. Vou dar um jeito de sermos encobertos. Tenho um pouco de influência aqui dentro.
-Talvez tenha até muita, Fred -disse Hector. -Você é um homem bem importante. Você pode resolver tudo, Fred
Sorri levemente. É verdade, aqui eu era um homem bastante importante. Lá fora não seria ninguém.
-A verdadeira razão pela qual resolvi voltar -disse Hector -é que aquilo não era direito. Estou-me referindo a usar o túnel de outra pessoa. E não um cavado por nós mesmos.
-Claro -falei. -Também penso assim.
-Acabei de pensar em outro plano - continuou Hector. -Vou chamá-lo de Plano 19.
-Um nome atraente -falei, mas sem malícia.
-É basicamente simples -disse Hector. -Muito simples. Mas vai requerer um pouco de trabalho.
As luzes se apagaram e começou o jornal.
Procurei por uma silhueta que me era bastante familiar e tirei o soprador de feijão do meu bolso. Coloquei um grão de feijão na boca e soprei.
-Conseguiu acertar nele? -perguntou Hector.
-Bem no alvo -respondi.
Afrouxei os cadarços dos sapatos e relaxei. Era bom estar de volta ao lugar ao qual pertencia.
<61
James Holding
ÓDIO AS CRIANÇAS
Não gosto de crianças. Você também não gostaria se estivesse no meu lugar, que, por acaso, é dentro de uma prisão.
Até meu serviço no South Side, eu era indiferente às crianças. Não tinha nada em particular contra elas. Por outro lado, não estava a ponto de chorar por não ter uma eu mesmo, principalmente não sendo casado.
Seja como for, crianças estavam muito longe do meu pensamento, quando, naquela noite, o Tenente Randall aproximou-se de mim na Taverna do Tasso, onde eu estava, sentado ao bar, ao lado de uma garota chamada Sally Ann.
É claro que naquele momento eu não sabia quem ele era. Vestia um terno azul-escuro, uma gravata listrada e uma camisa branca. Tinha também um modo suave e amigável, que não prometia nada além de bondade e compreensão. Ninguém podia pensar que era um tira.
No entanto, era. Descobri isto no momento em que ele me mostrou um distintivo e me disse seu nome.
-E você é Andrew Carmíchael, não é? -perguntou, educadamente.
-Sou -respondi, sem pensar.
Concordou com a cabeça. Seus estranhos olhos amarelos me fitaram com o que só podia ser definido comn uma suave simpatia.
62
-ótimo -falou. -Sendo assim, eu gostaria que você me acompanhasse até o centro para uma conversinha, Sr. Carmichael. Importa-se?
Importar-me? Quem não se importaria em tais circunstâncias? Estava no meio do segundo martíni; minha mão esquerda descansava amistosamente sobre a coxa de Sally sob o bar.
-Agora? -falei. Insperadamente, uma certa rouquidão tornou rude a minha voz. Limpei a garganta.
-Agora seria ótimo -disse Randall. Inclinou-se mais para a frente para olhar Sally Ann, que estava depois de mim: -Dá licença pra ele se ausentar por um tempo?
Sally Ann tirou minha mão de sua coxa e disse:
-Com prazer. Seja o que for que ele fez, não tenho nada a ver com isso. Só conheci este cara há uns quinze minutos.
Assim são as coisas. Um romance acaba logo quando aparece um tira.
-Quer acabar seu drinque? -falou Randall. Já tinha perdido o interesse pelo martíni.
-Não -respondi, levantando-me. Randall era muito mais alto, -Estou pronto, mas seria bom saber sobre o que quer falar comigo.
Randall sorriu. Era um sorriso alegre e infantil, apesar dos olhos amarelos que, logo acima, não piscavam.
-Não há razão para manter isso em segredo -disse e conduziu-me para fora da Taberna do Tasso até o carro da radiopatrulha, estacionado no meio-fio.
Randall abriu a porta traseira para eu entrar. Quando entrei, subiu a meu lado e acenou para o motorista uniformizado. O carro da. polícia afastou-se do meio-fio.
-O assunto sobre o qual queremos falar-lhe -disse Randall -tem algo a ver com falsificação, Sr. Carmichael.
Falsificação. Respirei fundo e disse:
-Pensei que falsificação fosse assunto federal. Tenente.
63
-E é. Mas neste caso há um certo aspecto local, que nós estamos resolvendo. Entende?
Não entendia, mas isto não tinha importância naquele momento. A capa de gelo que se formara sobre os meus centros nervosos, quando senti pela primeira vez a mão grande de Randall sobre meu braço, começava a derreter. Se era falsificação que Randall tinha em mente, eu estava fora. Fiquei descansado e vou-lhe explicar por quê.
Entendo um pouquinho de tudo. Meu cabedal de conhecimentos gerais é talvez maior do que a média, se quer saber a verdade, mas com relação a falsificação, não sou ninguém. Nem mesmo sei como se escreve.
Cédulas falsas e moedas nunca me atraíram nem um pouco. Na verdade, a idéia de falsificar dinheiro nunca me agradou. Gosto muito do verdadeiro para meter-me com substitutos baratos, Foi por isso que respirei novamente aliviado, quando o Tenente Randall mencionou a palavra falsificação. Logo, eu não era a pessoa que estavam procurando... por falsificação, não.
Se o tenente tivesse dito "assalto a mão armada", então já ficaria preocupado. Pois assalto a mão armada, principalmente a bancos, era algo de que eu realmente entendia. Já assaltara 18 agências bancárias nos últimos dois anos, sem que ninguém me pegasse, ou. mesmo que qualquer sombra de suspeita recaísse sobre mim.
Orgulhava-me do meu sucesso. Afinal, assalto a bancos é um tipo de serviço que exige muito. São necessários um plano cuidadoso, coragem, inteligência e uma boa percepção de tempo, além de um sistema de trabalho, é claro. Pois para trabalhar com bancos, é necessário um sistema de trabalho que leve em conta um milhão de pequeninas coisas, mas que seja simples e elementar ao mesmo tempo. Isso não é fácil; não quando se tem que pensar em vigilantes armados, alarmes silenciosos, patrulhas de polícia, caixas histéricas, e um montão de fatores imprevisíveis, como qual o caixa, no banco em questão, que vai ser mais fácil de intimidar; qual banco atacar, a que horas, em que dia; e até mesmo -isto pode parecer-lhe estranho -o quanto se quer levar.
Sim, isso é importante. Pelo menos, no meu sistema. Restrinjo-me a uma quantia relativamente modesta em
64
cada serviço. Apenas o conteúdo da gaveta de um único caixa, e é tudo, nem mais nem menos. É rápido, limpo, sem importância para os bancos e para as companhias de seguro. Algumas centenas de dólares roubados? Ou mesmo alguns milhares? Esqueça, Charlie. Ninharia. Só esteja bem certo de trancar a caixa forte esta noite, que é onde está guardada a grande bolada.
Entende o que quero dizer? Pode jogar uma porção de pedrinhas em um tanque sem fazer muito barulho, mas lance um matacão de duas toneladas com um grande estardalhaço e vai ser um inferno.
Meu sistema de trabalho, o que os tiras chamam MO, era bom, reconheço. A imprensa escrita e falada local já há dois anos me chamava de o Bandido Sussurrante, e instigava a polícia a fazer alguma coisa para me pegar, até então sem nenhum resultado, pois eu continuava a jogar minhas pedrinhas, as mesmas pequenas e freqüentes quantias. Isso me basta. Quem precisa de uma fortuna? Eu não. Algumas centenas por mês, além do meu salário honesto, mantinham-me confortavelmente abastecido com todos os martínis e Sally Anns que desejava.
Agora pode entender por que fiquei aliviado quando o Tenente Randall mencionou falsificação. Pode compreender, também, por que eu estava calmo e despreocupado, em frente à mesa gasta, na sombria sala da delegacia. Como tinha a consciência limpa, recostei-me em minha cadeira de madeira e esperei que ele começasse.
Ofereceu-me um cigarro. Quando recusei, acendeu um para si e abaixou-se ao lado da mesa para colocar o palito de fósforo na cesta de lixo. Disse então:
-É muito bom que o senhor esteja disposto a colaborar deste modo, Sr. Carmichael. Pode acreditar, estou muito satisfeito.
Encolhi os ombros:
-Estou cooperando ou estou preso? Está-me acusando de alguma coisa, Tenente?
Ele parecia ter ficado realmente chocado:
-Preso? Acusado de alguma coisa? Acho que o senhor me entendeu mal.
-O senhor disse que queria conversar comigo sobre falsificação, não foi?.
65
-Claro. -Soltou um pouco de fumaça. -E quero. -Tossiu. -Recebi um telefonema da Taberna do Tasso sobre este negócio de falsificação. Disseram-me que uma nota falsa tinha sido passada no bar; então, dei uma chegada até lá para averiguar. Estava certo, alguém tinha passado uma nota falsa para o barrnan do Tasso.
-Nada bom para o Tasso -falei. -Mas o que tenho a ver com isso? -Já estava ficando cheio com toda aquela bobagem.
-O senhor estava lá -disse ele com certa razão -não estava? Sentado no bar com aquela moça?
-Sabe que estava. Isto é desculpa para fazer eu perder minha noite desse jeito?
-Não estou "fazendo" o senhor perder sua noite. -A voz do tenente era de mágoa. -Perguntei-lhe, com educação, se se importava em me acompanhar para termos uma conversa, e o senhor logo concordou. Isso é coerção? Ou é cooperação voluntária?
-Certo, é cooperação, mas uma droga de perda de tempo de qualquer jeito.
-Estou contente por isto ter ficado esclarecido -disse Randall.
-Besteira -exaltei-me um pouco. -Faça-me um favor, sim? já que estou aqui, interrogue-me direta e rapidamente e acabe logo com isso, porque esta é a última cooperação que vai conseguir de mim, e é melhor que acredite mesmo nisto. O senhor não sabe que não pode ficar pegando cidadãos honestos por aí como se fossem criminosos?
-Tenho novidades para o senhor, Sr. Carmichael. -Randall sorriu. -Podemos pegar cidadãos honestos por aí o quanto quisermos. São os criminosos que devemos tratar com a máxima gentileza e respeito. Se não acredita em mim, pergunte à Suprema Corte. -Amassou o cigarro em um cinzeiro colorido, que estava sobre a mesa, e então ergueu os olhos para mim. -O barman da Taverna do Tasso me apontou o senhor como senão o freguês que passou a nota falsa.
Isso realmente me surpreendeu. Também me perturbou um pouco, e pensei de novo em meu encontro interrompido com Sally Ann, no bar do Tasso. Lembrava-me
66
de ter pago pelos drinques com uma nota de 50 bastante usada -o retrato do Presidente Grant já estava enrugado e sujo -e aquela nota só podia ter ido parar nas minhas mãos de uma única maneira. Disse para Randall, sem acreditar:
Fez que sim com a cabeça:
-O barman disse que foi a única nota de cinqüenta dólares que ele recebeu esta semana.
Agora sei que devia ter confirmado a posse dos 50 dólares; e devia ter dito a Randall que havia ganho a nota em um jogo de dados qualquer, ou numa pista de corridas, ou em qualquer outro lugar assim não localizável. Em vez disso, cometi um erro terrível. Assumi um ar misto de alívio e divertimento e disse:
-Uma nota de cinqüenta! Então o barman deve estar completamente enganado sobre quem lhe passou a nota. Nem mesmo cheguei a ver uma nota de cinqüenta dólares nos últimos dez anos, quanto mais gastar uma, Tenente! -Apelei para a verdade a fim de convencê-lo: -Trabalho como cozinheiro de comidas rápidas no Restaurante Mac-Dougal, no turno de meia-noite às oito. O senhor conhece muitos cozinheiros como eu com notas de cinqüenta dólares para esbanjar por aí?
-Não -murmurou Randall -não posso dizer que sim. No entanto, o homem do bar estava bem seguro de que foi o senhor quem deu a nota falsa a ele.
-O barman não seria capaz de lembrar-se nem se sua própria avó lhe tivesse dado, não no Tasso hoje à noite. Aquela espelunca estava uma loucura. O senhor mesmo viu. Havia três fileiras de pessoas ao longo do bar. O barman estava muito ocupado para lembrar-se de alguma coisa.
Randall encolheu os ombros, relutante:
-Pode ser -falou. -De qualquer forma, foi essa a razão pela qual chamei o senhor para uma conversa.
-Claro, Tenente. Sem ressentimentos, agora que o senhor esclareceu tudo. Se o senhor quiser, para completar seu relatório, paguei pelos quatro drinques, de Sally Ann e meus, com uma nota de cinco dólares e dei a metade do troco de gorjeta para o barman. -Isso foi dito com certa audácia; seria a palavra do barman contra a minha. Sally ficaria de fora. Quando bebia, não vai nada
67
além de sua própria imagem refletida no espelho do fundo do bar.
Randall baixou as pálpebras sobre os olhos de gato e suspirou. Acho que foi a primeira vez que o vi piscar. Seu rosto parecia completamente diferente com aqueles olhos amarelos encobertos.
-Bem, neste caso -disse ele -se o senhor não passou os cinqüenta, talvez ainda possa dar-me uma pequena ajuda, Sr. Carmichael.
-Posso tentar.
-Dê-me o nome de quaisquer outras pessoas, que o senhor conheça, e que estavam no Tasso esta noite. Alguém passou aquela nota falsa e tenho que descobrir quem foi. Se o senhor pudesse dar-me alguns nomes para começar... -interrompeu-se, esperançoso.
Meneei a cabeça:
-A única pessoa que conhecia lá era aquela Sally Ann, e ela nem mesmo chegou a me dizer seu sobrenome. Sabe como é. A gente vai a um bar tomar uns drinques e convida uma mina, apenas para ter companhia. Talvez o barman possa ajudá-lo.
Randall soltou um outro suspiro:
-Espero que sim.
-Tudo bem se eu me mandar agora? -falei, levantando-me. Acenou com a mão:
-Mas vou levá-lo de volta até lá. É o mínimo que posso fazer. -Olhou para o relógio. -Vou poder sair daqui a cinco minutos, se quiser esperar.
Não queria esperar. Queria ver-me livre dos olhos amarelos e da falsa cortesia de Randall o mais rápido possível; e é certo que não queria voltar para a Taverna do Tasso. Falei, então:
-Não faz mal, obrigado. Vou pegar um táxi.
-Como quiser -disse ele. Depois, num tom de voz diferente. -Estou realmente contando com aquela nota de cinqüenta dólares em particular, sabe, Sr. Carmichael.
-Contando com ela? -indaguei. -Pra quê?
-Pra me levar até o Bandido Sussurrante -disse Randall.
68
Meu corpo se enrijeceu todo. Por um segundo tive medo de virar a cabeça, temendo que rangesse.
-O Bandido Sussurrante? Refere-se ao assaltante de bancos de quem os jornais tanto falam? -As palavras saíam com dificuldade.
-Este mesmo -falou Randall. -Um ladrãozinho que teve uma sorte louca por dezoito vezes.
Sentei-me de novo na cadeira, com o rosto mostrando interesse e animação. Sem demonstrar nenhum vestígio do insulto à minha pessoa e ao meu sistema, perguntei casualmente:
-Como pode uma nota falsa de cinqüenta dólares levar a um assaltante de bancos, Tenente? Para mim não faz nenhum sentido.
-Ah, de certo modo faz, levando em conta um esquema que estamos testando agora. por desespero, pode-se dizer. -Cerrou os lábios e fixou os olhos num canto do teto coberto de teias de aranha. Esperei que ele continuasse, tentando não parecer ansioso. Finalmente, ele disse: -É um esquema infantil. Realmente infantil. É provável que nunca funcione. Como poderia? Em primeiro lugar foi concebido por um amador, que nem é um tira. Um leitor curioso mandou, por carta, a idéia para o presidente do último banco assaltado pelo Bandido Sussurrante.
Continuei quieto, sem respirar muito.
-Uma idéia boba -continuou Randall -mas eu estava disposto a tentar qualquer coisa para me ver livre dos jornais. -Lançou-me um olhar de dúvida. -Uma vez que o senhor foi incomodado, Sr. Carmichael, acho que talvez queira saber do que se trata... se estiver interessado.
-Estou interessado -disse. -Todo mundo na cidade está interessado no Bandido Sussurrante.
-E eu não sei! Bem, o negócio é o seguinte, aquela nota falsa de cinqüenta dólares encontrada no Tasso é uma espécie de armadilha.
Senti um calafrio na parte de trás do pescoço. Vireime para ver se a porta da sala, atrás de mim, estava aberta. Não estava.
69
-Uma armadilha? -perguntei.
Fez que sim com a cabeça:
-Tem que entender que já conhecemos muito bem o MO do Bandido Sussurrante.
-O que é um MO? -achei que devia perguntar.
-Método de Operação. Como, por exemplo, o fato de o Bandido Sussurrante falar sempre aos sussurros para disfarçar sua voz durante os assaltos. Ele sempre trabalha sozinho. Muda a aparência para cada serviço. Leva apenas o dinheiro da gaveta de um único caixa em cada assalto. Ataca durante a tarde, em pequenas e isoladas filiais bancárias, situadas em determinadas áreas suburbanas, que já estão bem definidas agora, depois de dezoito assaltos. Coisas assim, isto faz parte do seu MO. Está entendendo?
-Estou, mas não a relação com a nota de cinqüenta falsa.
-Vou chegar lá. Uma vez que conhecemos o MO habitual do Bandido Sussurrante, podemos, de certo modo, anteciparmo-nos um pouco a ele, não é? Fazemos uma suposição aproximada de quais bancos ele vai atacar a seguir e, o que é mais importante, para qual caixa ele vai provavelmente apontar seu revólver Woodsman e pedir o dinheiro.
-Está brincando -falei.
-Não, não estou. Tudo faz parte do seu padrão de comportamento. É sempre uma moça que ele assalta, nunca um homem, e é sempre a caixa mais bonita do banco.
Olhei para ele. Estava-me dizendo coisas sobre o meu sistema que eu mesmo não sabia.
-Então é a caixa mais bonita? -perguntei, fascinado.
Randall riu um pouco:
-O cara é, provavelmente, um psicopata, diverte-se assustando garotas bonitas com uma arma. Como sei disso? De qualquer forma, isto serviu de base para nossa armadilha do dinheiro falso.
-A caixa bonita?
-Isso e a lista de filiais bancárias que calculamos que fosse atacar a seguir. Veja, apenas escolhemos a cai-
70
xa mais bonita em cada uma das filiais bancárias possíveis; ou melhor, a caixa que o Bandido Sussurrante achasse a mais bonita, a partir da seleção feita por ele anteriormente. Então, separamos um pacote de dinheiro para que ela mantivesse em sua gaveta o tempo todo, separado do resto do dinheiro. Eram algumas notas verdadeiras de dez e vinte, com duas notas falsas de cinqüenta, que emprestamos dos rapazes da Tesouraria, misturadas no meio. Dinheiro usado, entende; dinheiro não cintado, solto dentro da gaveta, mas para nunca ser tocado, a não ser quando o Bandido Sussurrante aparecesse. Determinamos, também, a todas as caixas que, se o Bandido Sussurrante aparecesse alguma tarde, elas deveriam entregar-lhe todo o dinheiro de sua gaveta, imediatamente e sem discutir... principalmente o bolo onde estavam as duas notas falsas de cinqüenta. Começa a entender a trama, Sr. Carmichael?
-Claro -respondi já com a garganta seca. -Depois, suponho que tenham espalhado a notícia de que havia notas de cinqüenta falsas circulando pela cidade, e avisaram lojas e bares e todos os lugares para ficarem de olhos abertos. Certo?
-Certo.
-Bem.-tentei esboçar um sorriso. -Então foi por isso que o iarman do Tasso o chamou tão depressa esta noite.
-Sim. A nota que ele recebeu deu o alerta geral. Achei que tínhamos em nossas mãos o Bandido Sussurrante afinal, pois havia duas notas falsas de cinqüenta no dinheiro que levou há duas semanas da filial do Second National no South Side, e esta era uma delas. Não havia dúvida.
Eu me sentia mal. Duas notas falsas de 50; então a outra ainda estava sob o colchão, no meu quarto, no hotel onde morava. Tenho que sair daqui, pensei em pânico, tenho que voltar rápido para casa, tenho que queimar aquela nota desgraçada, tenho que sair da cidade...
O telefone tocou. Randall pegou o fone e, enquanto ouvia a voz metálica do outro lado, meneava a cabeça, de tempos em tempos, em sinal de assentimento. Quando desligou, disse:.
71
-Este telefonema interessa ao senhor, Sr. Carmíchael.
-A mim? -perguntei.
-Alguns de meus rapazes estiveram visitando seu quarto -seu tom de voz era quase de um pedido de desculpas -e acho que o barman do Tasso estava com a razão sobre quem passou a nota de cinqüenta, Sr. Carmichael.
Palavras de perdição! Ditas casualmente, mas arrasadoras do mesmo modo. Sacudi-me. Minha voz subiu de tom:
-Visitando meu quarto! -gritei. Randall ergueu a mão, num sinal conciliador:
-Tudo em perfeita ordem -disse ele. -Tinham um mandado de busca. Na verdade, tínhamos esse mandado preparado há meses, só faltava preencher com o seu nome. -Tossiu. —- O barman do Tasso forneceu-o quando telefonou avisando sobre a nota falsa. Parece que sabia seu nome, porque alguém o havia chamado ao telefone do bar uma vez e, quando perguntou se Andrew Carmichael estava na casa, o senhor atendeu ao chamado. Lembra-se disto?
Muito bem. A sensação de frio que eu sentia atrás do pescoço estendia-se para baixo, por entre as omoplatas. Tentei raciocinar. Randall não me deu muita chance. Continuou logo a seguir:
-Uma vez que tínhamos seu nome, não levamos mais do que cinco minutos para descobrir onde morava, completar o mandado e mandar os rapazes até o seu hotel. Então, fui até o Tasso.
-O senhor disse que eu não estava preso! -Minha voz soou estridente, até mesmo aos meus próprios ouvidos. -O senhor disse que eu não estava sendo acusado de nada.
-E não estava. Naquela hora, mas agora, está. Fiz o melhor que pude:
-O senhor me trouxe aqui sob falso pretexto, Tenente. Interrogou-me sem que meu advogado estivesse presente ou sem informar-me dos meus direitos. O senhor me negou meus direitos constit....
72
Randall fechou os olhos de novo. -Não fiz nada disso.
-Fez. O senhor me interrogou. O senhor me acusou, pelo menos implicitamente, de ser o Bandido Sussurrante. O senhor tentou persuadir-me a confessar.
-Ah, não. -Enfiou a mão em uma das gavetas da mesa e tirou um pequeno gravador. -Acho que esta fita pode confirmar que a maior parte do interrogatório foi feita pelo senhor mesmo, e que a maior parte da confissão, se é que houve uma, foi feita por mim, quando contei-lhe sobre nossa pequena armadilha para o Bandido Sussurrante.
Quando é que ele tinha ligado o gravador, aquele demônio? Quando abaixou-se para jogar o palito de fósforo na lixeira?
-O senhor me estava prendendo aqui deliberadamente, enquanto seus homens davam busca no meu quarto -tentei de novo.
-Isso, eu admito -disse ele, suavemente. -E não quer saber o que eles encontraram lá? -Não respondi e ele continuou. -Um: uma nota falsa de cinqüenta dólares escondida, junto com outras verdadeiras, sob o colchão e com número de série que a identifica como sendo uma das duas notas falsas roubadas, há duas semanas, da filial de South Side do Second National Bank. Dois: três pares de lentes de contato de cores variadas. Três: três perucas, três pares de sobrancelhas postiças, dois jogos de bigode e barbas postiças, de cores combinadas. Quatro: um revólver Woodsmam. Cinco: um arquivo completo de recortes de jornais, de mais de dois anos, contando as façanhas do Bandido Sussurrante. -Olhou-me
com certa tristeza, e estalou a língua. -Devo continuar,
Sr. Carmichael?
Neguei com a cabeça, desconsolado.
-Agora, pode arranjar um advogado -disse Randall. -Agora, estamos acusando-o de inúmeros assaltos a mão armada. Agora, o Supremo Tribunal lhe assegura
um tratamento carinhoso. Porque, agora, o senhor vai ficar por um tempinho no papel do Bandido Sussurrante.
73
Eu não tinha dúvidas quanto a isto.
-Muito inteligente, Tenente. Muito esperto. O senhor me pregou uma boa peça, admito.
-Não fui eu que preguei a peça. Já lhe disse isso. -Abriu a gaveta do centro da mesa, de modo ostensivo.
-Tenho aqui a carta original, sugerindo a idéia. -Retirou uma folha de papel. -Aqui está. O senhor tem interesse em ver?
Estendeu-a em minha direção. Peguei-a, automaticamente, e li as poucas linhas rabiscadas a lápis:
. Caro Sr. Presidente do banco,
Sei de um geito de enganar o Bandido Sussurrante. Quando ele assaltar o seu banco, o senhor pode dar para ele dinheiro de brincadeira em vez de dinheiro de verdade. Obrigado.
Richard Stevenson, 9 anos.
Joguei a carta em cima da mesa de Randall. Ele me olhava e sua expressão era difícil de ser decifrada.
-O presidente do banco abriu uma conta em nome do pequeno Richard Stevenson, no valor de cinco dólares
-disse ele. -Muito gentil, não?
-Grande! -falei. E comecei a rir. Acha que tenho culpa de não gostar de crianças?
74
Jôhn Lutz
A SACUDIDELA EXATA
Estavam na sala do comissário, na central de polícia. Snodman, bacharel em artes, o número um de sua classe na Academia de Polícia, líder do grupo de oratória e campeão regional de xadrez, ajeitou seus óculos de aro de osso com o dedo pequeno e olhou cõm atenção para a tira de papel, que o comissário lhe estendia:
Conheço bem minhas presas O bastante pra afirmar: Pego-os sempre de surpresa, Nunca a postos pra Exterminar.
-Grosseiro -disse Snodman. *-O que significa, senhor?
-Já os vi antes -disse o Comissário Moriarty. -São obra de um homem que o submundo chama de "Exterminador".
-Um assassino profissional, senhor? -perguntou Snodman, olhando para Moriarty cem seus olhos azuis e frios. Um fato que sempre havia intrigado Snodman era o de um homem chamado Moriarty ser designado pelo destino a ser um comissário de polícia, e se parecer tanto com o fictício Sherlock Holmes, com um nariz curvo de falcão, inteligentes olhos acinzentados, e até mesmo fumava um cachimbo, cujo cabo era, pelo menos, ligeiramente curvo.
-Possivelmente, o maior matador profissional que a polícia até hoje procurou -disse o comissário. -Cor-
75
rem boatos de que trabalha para o sindicato, não mais que uma vez por ano e recebe, pelo menos, cinqüenta mil dólares por serviço. Eu próprio sei de seis serviços que foram feitos por ele, em várias cidades.
Snodman, que também fumava cachimbo, colocou-o entre os lábios finos e apanhou a bolsa de fumo.
-Como pode estar tão certo de que foram todos obra deste... Exterminador, senhor? Modus operandi?
-É do seu M.O. que ele se orgulha. -O comissário sorriu. -Varia com o serviço. Em Chicago, com respeito aos planos para os jogos esportivos, foi uma bola de basquete explosiva; há dois anos, Hans Greiber, o falsificador de passaportes, foi encontrado afogado dentro de um desses pequenos carros alemães, cheio de água; e com certeza você se lembra quando Joe Besini, que iria depor como
principal testemunha contra o sindicato, foi encontrado asfixiado por uma pizza quente.
-Repulsivo -disse Snodman.
-Enchovas também. -O Comissário Moriarty balançou a cabeça, recordando-se. -O principal é que, em todos estes casos, a vítima sabia que estava marcada para morrer e tinha proteção policial. Em cada um desses casos, o Exterminador avisou a vítima com um destes poeminhas. Um senso altamente desenvolvido de jogo limpo, em minha opinião.
-Sim -concordou Snodman, mudando de posição em sua cadeira de couro, de modo a não amarrotar muito a calça. Era um dos detetives mais bem vestidos do setor, e se orgulhava disso. -Suponho que todos os esforços foram feitos para descobri-lo através de seus poemas.
O comissário assentiu:
-Como pode ver, são escritos a tinta, em papel barato. O papel é bastante comum para dizer alguma coisa, e a análise da caligrafia não pode dizer muito além de que é um indivíduo cuidadoso e meticuloso, o que eu mesmo poderia ter dito.
Snodman franziu a testa ainda jovem.
-Mas por que, afinal, ele manda os poemas? Não vê que isso apenas aumenta suas chances de ser descoberto?
76
O comissário recostou-se na mesa:
-Jogo limpo, Snodman. Os psicólogos dizem que ele é tão inteligente e tão seguro de si, que sua consciência o obriga a mandar um aviso às vítimas. Dizem que o Exterminador quer conservar-se anônimo e ao mesmo tempo gabar-se de suas proezas, por isso escreve poemas. Alguns deles são até bons.
Snodman, que se julgava um grande conhecedor de literatura, teve vontade de discordar de seu superior, mas mudou de idéia. Além do mais, estava curioso para descobrir por que o comissário lhe estava fornecendo informações sobre aquele assunto; sendo assim, deixou-se ficar sentado pacientemente, esperando que o chefe concluísse.
-O problema é o seguinte -disse Moriarty, mordendo o cabo curvo do cachimbo -um homem chamado Ralph Capastrani concordou em testemunhar, no próximo mês, frente a uma Subcomissão do Congresso, que está IIIvestigando o crime organizado. Achamos que é uma coisa secreta, mas vamos manter Capastrani sob proteção de qualquer forma. Então, esta manhã recebi este poema junto com a correspondência.
-Capastrani sabe alguma coisa sobre isso, senhor?
-Não. Não queremos que morra de preocupação antes das audiências. Estamos tomando todas as precauções para que O Exterminador não ganhe mais uma fortuna do sindicato. Capastrani está sob nossa guarda num apartamento do Hotel Paxton, a apenas duas quadras daqui. Providenciamos a mudança dele para lá esta manhã. -O comissário fez uma pausa para conseguir um efeito melhor, e pressionou as pontas dos dedos contra o tampo de vidro da mesa. -Começando dentro de dez minutos, sua tarefa vai ser guardá-lo.
-Estou honrado com a confiança que deposita em mim, senhor -disse Snodman, mas, na verdade, sentiase ofendido com o fato de o comissário pensar que frustrar o autor daquelas quadrinhas insignificantes seria uma tarefa árdua para ele.
O Comissário Moriarty esboçou o seu sorriso de Sherlock Holmes.
-Você é um dos homens mais instruídos de nossa força policial, Snodman, e, nos poucos anos que esteve aqui conosco, provou ser um policial eficiente e esforçado.
77
Foucos homens do seu calibre escolhem a profissão de policial, e sua dedicação é indiscutível. Não consigo pensar em mais ninguém na polícia que tivesse tanta possibilidade de desbancar O Exterminador.
Snodman recebeu este dilúvio de elogios com serenidade. O comissário pegou um abridor de cartas de prata e, com muito jeito, abriu uma das muitas cartas, que estavam sobre a mesa.
-Capastrani está no apartamento vinte e quatro, no terceiro andar -disse, como despedida. -Passarei; por lá mais tarde para ver como estão as coisas.
Snodman levantou-se e se retirou.
O apartamento 24 era pequeno e mobiliado com poucos móveis, mas de bom gosto. Persianas haviam sido colocadas nas janelas sem marquises do terceiro andar; os tubos de aquecimento e refrigeração haviam sido obstruídos e o conforto provido por eles estava sendo, inadequadamente, substituído por um ar-condicionado de janela, alugado; a alimentação era trazida três v.ezes por dia, por um garçom especial, que havia sido devidamente investigado, antes de ser admitido. Do lado de fora da porta que dava para o corredor, postava-se um patrulheiro armado; do lado de fora da porta que dava para o quarto, ficava Snodman; dentro do quarto, achava-se Capastrani, dormindo pacificamente. O apartamento 24 era invulnerável.
Snodman pensava em quanto o sindicato pagaria para que Capastrani fosse morto. Pensava no Comissário Moriarty e em seu conhecimento perfeito do Exterminador. O comissário havia até mesmo consultado um psicólogo da polícia. Snodman tinha visto um certo brilho nos olhos do comissário enquanto falava sobre o astuto assassino, e estava certo de que Moriarty se dedicava ao máximo em derrotar ou até capturar O Exterminador. Um sonho de policial, Snodman falou para si, sorrindo.
Foi um longo dia, mas sem novidades. O patrulheiro, que ficava do lado de fora, foi substituído quando terminou o turno das três horas. Capastrani saiu do quarto apenas para comer um café da manhã tardio e almoço, que devorou, voltando, logo depois, a deitar-se na cama, vestido mesmo como estava. Snodman já havia lido uma revista de turismo pela terceira vez. Bocejou e olhou para o relógio: cinco horas.
78
Às cinco e quarenta e cinco, encontrava-se ao telefone, falando nervosamente com o Comissário Moriarty.
-É melhor o senhor vir até aqui imediatamente com um técnico de laboratório, senhor. Acho que alguém tentou envenenar Capastrani.
Passados cinco minutos, a porta da suíte 24 abriu-se de repente. Snodman já havia tirado o revólver do coldre, rápido como um relâmpago. Mas relaxou, quando viu o comissário e um técnico de laboratório. Os dois olhavam surpresos para o revólver, enquanto o patrulheiro fechava a porta atrás deles.
-Tudo bem -disse o Comissário Moriarty. -Deveríamos ter batida antes de entrar.
Snodman enfiou o revólver no bolso do casaco.
-Dê uma olhada nisso -falou, apontando para a bandeja de comida, que tinha sido trazida com o jantar de Capastrani. E virando-se para o laboratorista. -Acho que há arsênico neste bife.
-Estou satisfeito por ter-me chamado pessoalmente -disse o Comissário Moriarty. -Fez muito bem.
Snodman sorriu:
-Sei que tem um interesse todo especial neste caso -disse. -Achei que o senhor gostaria de vir imediatamente.
O comissário, sombriamente, fez um sinal de assentimento com a cabeça:
-Foi por isso que escolhi um hotel a apenas duas quadras da central de polícia.
Os três debruçaram-se sobre a bandeja de comida.
-Não é possível ver bem agora -disse Snodman -mas havia vestigios de um pó branco na parte de baixo do bife quando o trouxeram. Está quase tudo dissolvido no molho agora.
O comissário ergueu o prato e cheirou-o.
-O que despertou sua suspeita? -perguntou, colocando o prato de volta no lugar.
Snodman encolheu os ombros:
-Um pressentimento. E achei que o bife tinha um cheiro esquisito.
79
-Verifique -ordenou o comissário ao laboratorista. Depois, levou Snodman até o sofá para conversarem. -Capastrani sabe alguma coisa sobre isto? -perguntou Moriarty.
Snodman negou com a cabeça:
-Ainda está dormindo. Eu ia acordá-lo quando o jantar chegasse.
-Hum -falou o comissário. -Não entendo como alguém poderia ter colocado arsênico naquela comida. Dei uma volta pela cozinha hoje pela manhã, fiscalizei os empregados eu mesmo. São todos de confiança, estão trabalhando aqui há muito tempo.
-Talvez alguém tenha sido comprado - sugeriu Snodman. -O Exterminador tem bastante dinheiro para isso.
-Sim -disse o comissário. -Capastrani come bife todas as noites?
-É o pedido de sempre, já previamente combinado com o serviço da copa. É o tipo de hábito do qual O Exterminador gosta de tirar proveito. O senhor disse que ele costuma estudar cuidadosamente suas vítimas antes de cada serviço.
-Eu não disse isto -falou o comissário. - Ele disse... naquele poema.
O técnico de laboratório, um jovem com cara de estudioso, aproximou-se deles:
-Há arsênico no bife -disse. -Verifiquei o sal, a pimenta, o ketchup, o café e até o creme para o café. Tudo na bandeja, com exceção do bife, está bom. -Então mostrou um pedaço de papel que tinha na mão direita. -Isto estava no fundo do prato do bife, senhor.
O comissário pegou o papel, desdobrando-o devagar, enquanto Snodman observava de perto. Estava escrito:
Estou certo de que o meu truque De seu pombo a voz calou, Pois com um pouco de arsênico Nenhuma alma muito tempo durou.
O comissária amassou o poema e colocou-o dentro do bolso. Então, voltou-se para o laboratorista:
80
-Quando sair, peça à copa para mandar um outro bife e, desta vez, fique de olho enquanto eles preparam.
-Certo -disse o labor ator ista e, muito ativo e eficiente, retirou-se da sala para cumprir as ordens.
-Não diga nada a Capastrani sobre isso -falou o comissário para Snodman. -Ele nem mesmo sabe que O Exterminador anda atrás dele. Não há razão para assustar a testemunha principal do Estado.
-Sim, senhor -concordou Snodman. O comissário esticou o corpo magro:
-Você já ficou preso aqui o dia inteiro -disse a Snodman. -Por que não sai um pouco e come alguma coisa e respira um pouco de ar puro? O patrulheiro está ali do lado de fora, e eu mesmo vou ficar aqui e dar uma olhada nas coisas até que você volte.
-Muito obrigado, senhor -falou Snodman, grato. -Para dizer a verdade, já estava quase pedindo este favorzinho ao senhor. Seria ótimo respirar um pouco de ar puro e mudar por algum tempo de ambiente. -Caminhou até a porta e parou. -Quer que traga algo para o senhor?
-Não, não, muito obrigado. -O comissário parecia quase que ansioso para que o outro saísse. -Tire uma hora se quiser, Snodman.
-Bem, obrigado, senhor. Saiu para o corredor, fechando a porta, suavemente, atrás de si.
Logo após a saída de Snodman, o garçom chegou, trazendo um novo bife para Capastrani. O comissário deixou-o entrar, examinou o bife, verificou se o patrulheiro no corredor estava alerta e, depois, entrou no quarto para acordar Capastrani.
Quando acordou, o homem baixo e atarracado assustou-se em ver o comissário. Então, piscou um pouco os olhos e reconheceu-o. Sem uma palavra, olhou o relógio e levantou-se do colchão para sair do quarto e jantar.
Com um sorrisinho satisfeito, o comissário sentou-se no sofá e pôs-se a observar Capastrani, que se sentou em frente à bandeja. Aparentemente, o homenzinho havia dormido profundamente e ignorava por completo os acontecimentos recentes. Capastrani espalhou sal em profusão sobre o bife e passou manteiga num pãozinho. Depois,
81
destampou o vidro de ketchup e virou-o. Como sempre, não saiu nada. Sacudiu o vidro algumas vezes, gentilmente, depois com mais força. Segurava-o de cabeça para baixo, olhando-o com curiosidade, quando a força da explosão derrubou toda a parede do lado oeste do terceiro andar.
Quando o som agourento da explosão chegou à central de polícia, a dois quarteirões dali, Snodman recostouse em sua cadeira, em sua salinha, e sorriu. Tirou o verdadeiro vidro de ketchup do coldre e colocou-o na última gaveta da mesa. Depois, pegou o pedaço de papel onde estava o poema que havia, compulsivamente, rascunhado, rasgou-o em pedacinhos, e deixou que os pedacinhos de papel flutuassem no ar, caindo na cesta de lixo. Com toda sua inteligência, a única coisa que não conseguia era escrever poesias. No entanto, mesmo muito ruins, durante sua vida, suas quadrinhas poderiam alcançar ainda uma certa fama.
82
Henry Slesarl
O ARTIGO
-Foi a coisa mais louca -disse a mulher deitada na maca. -Eu e meu marido Milton estávamos tomando café esta manhã, por volta das dez horas, porque aos sábados Milton gosta de dormir até mais tarde. E, como sempre, ele era metade homem, metade jornal; não vi sua cara horrorosa durante toda a refeição. Então, de repente, age como se uma bomba tivesse explodido. Pula da cadeira, rasga um artigo do jornal e mete dentro do bolso. Corre até o armário do hall, pega o chapéu e o casaco, e sai de casa como um foguete. Nem uma palavra, entende, nem uma única palavra sobre onde ou o quê. A próxima notícia que tive foi às onze e meia, quando ouvi a porta da frente se abrindo. "Milton?", falei, indo para o hall. Claro que é o Milton, e o que acha que ele fazia? Apontava uma arma para mim! Achei que estava brincando e fiquei muito surpresa quando puxou o gatilho e barn. Meu Deus, uma bala parece um tapa dado com muita força, sabia disso? Acho que nunca mais vou poder usar este vestido, não é?
-Acalme-se -disse o médico da polícia, rasgando as mangas de raiom. -A senhora perdeu um pouco de sangue, mas a bala só pegou a parte de carne do braço. É uma mulher de sorte, Sra. Hanley.
-Sorte? -bufou. -Com um marido como o meu? Voltou os melancólicos olhos cinza para o tenente.
Ele estava ao telefone, falando baixinho. Quando desligou e aproximou-se dela, parecia um diagnosticador que trazia más notícias.
83
-Sinto dizer-lhe isto -disse -mas um carro radiopatrulha localizou seu marido na Rua Grand e mandou que ele parasse. Infelizmente, não deu ouvidos. Temo que esteja morto.
Os músculos do rosto da Sra. Hanley moveram-se numa dança. Depois, relaxaram em sinal de alívio ou aceitação.
-Pobre Milton -disse ela. -Acho que quer saber alguma coisa sobre ele.
-Quero -disse o tenente.
-Bem, Milton era um cara bastante comum na maioria das coisas, mas nunca vi um homem tão difícil de soltar dinheiro. Acho que era esta a verdadeira causa dos nossos problemas. Quer dizer, Milton era tão avarento que não comprava um par de sapatos há seis anos, e o terno com o qual vou enterrá-lo tem, pelo menos, nove anos. Olhe, quer ver uma coisa incrível? Dê uma olhada no porão. Milton tem a maior quantidade de folhas de estanho que jamais viu. Tem caixas cheias de barbante e um engradado cheio de tampinhas de refrigerantes. Não me pergunte para que, talvez fosse forrar o telhado com elas. Nunca vi um homem tão econômico.
"De qualquer forma, há anos que brigávamos por causa de dinheiro. Eu tentava esticar o máximo que podia aquele salário miserável que ele ganhava. Sou a campeã nacional do aproveitamento de sobras. Mas, de vez em quando, era obrigada a gastar algum dinheiro comigo mesma. Quer dizer, uma mulher precisa de um chapéu ou um vestido novo de vez em quando ou não agüenta.
"Bem, as coisas achavam-se bem pretas nos últimos meses. Estávamos tendo verdadeiras lutas por causa de dinheiro, Milton e eu, e ele ficava cada dia mais pão-duro. Certa vez, depois de uma discussão violenta, saí e voltei com meia dúzia de embrulhos de uma loja feminina. Devo ter gasto uns cinqüenta dólares, só pra ele ficar chateado, e ele ficou tão. danado que chegava a espumar. Gostaria de jogar coisas em cima de mim, mas era muito econômico pra quebrar qualquer coisa.
"Acho que a briga que tivemos ontem foi a gota dágua. Nunca tive muita resistência a compras, e um vendedor de aspiradores de pó bateu na minha porta com uma conversa muito macia. Antes que eu visse o que es-
84
tava fazendo, já tinha assinado um pedido do modelo mais extravagante, com todos os acessórios. A compra era por volta de uns cento e sessenta dólares e, quando contei ao Milton, ele me olhou de um modo mais estranho e não disse nada. Nem uma palavra. Deveria ter visto que esta era a atitude mais estranha que ele podia tomar, e deveria ter-me preocupado. Em vez disso, não pensei mais no assunto. E veja o que aconteceu.
-Entendo -disse o tenente. -Mas o que quero saber é qual foi o artigo do jornal que seu marido levou? O que tornou-o tão agitado?
-Não sei -disse a Sra. Hanley. -Nem cheguei a ver. Deve ter sido uma coisa muito boa.
-O jornal ainda está na sua casa?
-Sim, mas está todo rasgado.
-Harry -falou o Tenente para um patrulheiro -procure o jornal no apartamento, e arranje-me um outro exemplar da mesma edição. Descubra qual o artigo que Hanley tirou.
-Sim, senhor -disse o patrulheiro. Conseguiram tudo uma hora depois.
-O que é? -perguntou, ansiosa, a Sra. Hanley.
-É um anúncio -disse o tenente. -Um anúncio de uma loja de artigos esportivos.
Dizia:
"LIQUIDAÇÃO DE ARMAS. De US$ 18,95 por USS 11,95."
85
Ed Lacy
DISCURSO AO CAIR DO PANO
O primeiro caso do detetive Jimmy Davis, como membro da Delegacia de Homicídios, foi a morte de uma senhora de 51 anos, Hanna Sands, por atropelamento. Jimmy contou tudo ao Tenente Wintino:
-Dave, pode parecer que quero transformar meu primeiro homicídio em "algo mais", mas este não foi um acidente qualquer, foi um caso de assassinato premeditado! À 1:08 da madrugada, uma testemunha viu a vítima atravessar a Avenida Carson, que tem seis faixas de trânsito e estava deserta àquela hora... poucos carros. A testemunha viu o sedã se aproximando rapidamente, na direção da Sra. Sands. Ela estava no meio da avenida, começou a correr para o outro lado. Agora, preste atenção, Dave, a testemunha afirma que o carro cruzou, deliberadamente, para as faixas em direção aos subúrbios... para derrubar a Sra. Sands... depois, virou para o lado que vai para o centro da cidade... fugiu!
-Podia ser um bêbado, um cara... ou uma mulher... que dormiu ao volante, e o carro foi para a contra-mão.:.
-Não, senhor, a testemunha tem certeza de que o carro seguiu a vítima para o outro lado da avenida!
-Essa testemunha de olhos de águia viu o motorista, pegou o número da placa do carro?
-Não exatamente, tudo aconteceu muito rápido. Mas tem certeza de que era um Buick último tipo e o
86
número da placa começa com K. Naturalmente, estou verificando tudo isto agora e...
-Onde se encontra esta testemunha tão alerta?
O Detetive Davis olhou para fora pela janela suja da sala da Delegacia, enquanto falava:
-Eu sou a testemunha, senhor. Saía da casa de minha mãe na noite passada, aproximava-me da Avenida Carson para pegar o ônibus, quando...
-Você é a testemunha? -gritou o Tenente Wintino. -Jimmy, acha que estamos brincando de políciae-ladrão aqui? Por que não me disse que você... ?
-Dave, sei que pode parecer encenação, meu primeiro caso, e eu ser a única testemunha, mas... ainda acho que foi um assassinato! Corri até a Sra. Sands... não pude fazer nada por ela... era apenas um corpo ensangüentado. Nenhum outro carro na avenida, de modo que não pude seguir o Buick...
-A não ser que seja provado o contrário, este é um simples caso de atropelamento! -falou, ríspido, o Tenente Wintino. -Lembre-se, nós também tentamos resolver estes casos!
-Senhor... Dave, não me trate como uma criança. Escute. Há algo suspeito em tudo isso. A Sra. Sands trabalhava numa confecção, recebia um bom salário. Morava num pequeno apartamento perto da Avenida Carson... separada do marido há muito tempo. O zelador do prédio contou-me que a Sra. Sands morava lá há mais de quinze anos, e ele nunca a via. Isto é o mais estranho: anteontem, um cara estava rondando por lá e perguntou ao zelador se a Sra. Sands tinha filhos, parentes próximos, marido... o cara disse que estava apenas verificando para uma companhia de seguros, onde a Sra. Sands pretendia fazer uma apólice. Agora, repetindo as próprias palavras do zelador, este cara parecia "um detetive de cinema! Alto, magro e de pernas longas; ombros largos, usava uma capa impermeável, o chapéu enfiado até os olhos, voz áspera". Verifiquei no emprego da Sra. Sands e ela jamais dissera algo sobre fazer uma apólice de seguro; já tinha o seguro do sindicato, não precisava de outro...
-Jimmy, não estou interessado na vida de nenhuma mina de cinqüenta e um anos de idade, nem mesmo
87
viva. Para que tudo isso? - perguntou Wintino, sem paciência.
-Eu chego lá, senhor. A expressão do zelador, "um detetive de cinema", não me sai da cabeça. Para uma verificação de rotina como esta, uma companhia de seguros, normalmente, manda um camarada velho, tipo aposentado. E mais: na noite passada, o zelador viu este mesmo cara da capa impermeável chamar a Sra. Sands, entraram no carro dele, um velho MG, e saíram. Algumas horas depois, a Sra. Sands estava morta.
-Agora começa a tomar uma certa forma... talvez. Um investigador de seguros não iria levá-la para dar uma volta de carro... Quem sabe um namorado?
-Então, por que todas aquelas perguntas ao zelador, na noite anterior, se ela tinha filhos, se tinha marido? -perguntou Jimmy.
-Um namorado cauteloso - retrucou Dave, sorrindo.
O Detetive Davis balançou o rosto sério.
-Não, senhor, isso também não encaixa. A Sra. Sands não era nenhuma beldade, apenas uma mulher de meia-idade, que vinha sempre direto do trabalho para casa, via TV, dormia cedo. Não era do tipo que sairia com um rapaz que tinha a metade da idade dela.
-Continue investigando. Procure encontrar o maridinho, o Sr. Sands... talvez ele se pareça com um detetive de cinema -disse-lhe Dave.
O Detetive Davis voltou ao escritório logo depois do almoço.
-Dave, encontrei o carro... abandonado a quase um quilômetro da cena do crime. Os faróis quebrados, sangue e cabelos da Sra. Sands e pedaços de sua roupa sobre o pára-choque. Todas as impressões digitais apagadas também. O carro foi roubado de um dentista, que mora a algumas ruas da Avenida Carson. O dentista tem certeza de que estacionou o carro em frente à sua casa às 22:30. É óbvio que este "detetive de cinema" de capa impermeável brigou com a Sra. Sands... ela pulou fora do MG, começou a voltar para casa. O da capa roubou o Buick, atropelou-a, largou o carro assassino e fugiu no seu carro esporte. Estive perguntando, onde o Buick rou-
88
bado foi encontrado... até agora não encontrei ninguém que tivesse visto um MG por lá. Eu...
-E o Sr. Sands?
Lendo na sua caderneta de notas, Jimmy disse:
-Ele deixou Hanna Sands há uns dezoito anos, morou na Ilha com uma enfermeira chamada Irene Parks. Harry Sands bebia e há seis anos o álcool atingiu-lhe o fígado... morreu. Conversei longamente com Irene Parks. Tem 44 anos, afirma que nunca viu a mulher legítima de Harry... a falecida... mas não a perdoa por não ter dado o divórcio ao marido. Quando Harry Sands morreu, determinou que tudo que tinha... um seguro de mil dólares... ficasse para a Srta. Parks. Mas Hanna Sands, que ainda era, por lei, a verdadeira esposa, ficou com a parte da viúva. Tudo isso, segundo Irene Parks, foi resolvido por advogados, as mulheres nunca se encontraram. Além do mais, ela tem um álibi perfeito: estava de plantão num hospital na noite do crime.
-O que o falecido Harry Sands fazia para ganhar a vida?
-A maior parte do tempo, nada; era um vagabundo intelectual, Era repórter quando se casou com Hanna Sands... escreveu um romance que deu algum dinheiro... há uns 25 anos. Conheceu Irene e largou a mulher. A enfermeira praticamente o sustentava... uma vez ou outra, Sands arranjava um emprego como redator em agências de publicidade. Em geral, cada emprego durava apenas algumas semanas, devido à bebida.
O Tenente Wintino suspirou:
-Nenhum motivo, nada além de um zero bem redondo como ponto de partida.
-Pelo menos, sabemos que é um assassinato! Uma senhora de meia-idade, trabalhadora, sai de carro com um estranho e...
-Não devia ser assim tão estranho, se ela saiu com ele no MG. Tudo que pode fazer agora é revirar a vida particular da vítima.
-É exatamente o que estou fazendo -disse Jimmy. -Não se preocupe, Dave, vou agarrar esse detetive de cinema!
89
No fim de semana, o Detetive Davis não tinha feito nenhum progresso para apresentar em seu relatório, por isso colocou o caso no Arquivo de Pendências, junto com outros crimes ainda não resolvidos.
Apesar de o Detetive Davis estar ocupado com outros casos, sempre voltava a examinar o relatório Sands nas horas vagas e, por estar trabalhando tanto neste caso, o Tenente Wintino disse-lhe um dia:
-Calma com esse negócio dos Sands, garoto. Nunca damos por encerrado um caso de homicídio antes que esteja resolvido... com o tempo, vamos encontrar uma brecha e...
-Sei disso, Dave, mas é que... bem, vi com meus próprios olhos, e não acredito em nenrrum crime perfeito, então...
-Nem eu, Jimmy. Mas não temos nenhum ponto de partida neste caso, nem sequer um vestígio de motivo. Vai ter que persistir nisso por conta própria, tudo bem, dou a maior força para as pessoas de iniciativa; eu mesmo já passei por isto. Mas se você vai preocupar-se com todos os crimes que não forem resolvidos, vai acabar usando uma camisa-de-força! Lembre-se, no final das contas, o tempo está do nosso lado, e não do deles.
Após uns 10 meses que Hanna Sands havia sido morta, Jimmy teve um dia muito duro, andando de um lado para o outro, indo de casa em casa, tentando descobrir alguém que tivesse escutado um tiro, num crime de uma gangue de delinqüentes. Ao anoitecer, estava quase dormindo em pé, enquanto esperava, com sua mulher, para assistir a um novo filme, que os críticos haviam coberto de elogios, dizendo ser a obra de um dos "jovens indignados" da América, e o "primeiro da nova safra de Hollywood". Quando finalmente conseguiram entrar, no meio da sessão, Jimmy cochilou por algumas vezes, não conseguindo pegar o fio da história. Quando estavam voltando para casa de ônibus, sua mulher falou:
-Este Marlon Smith vai ser melhor do que Orson Wells... que gênio! Nunca vi um enredo assim no cinema... a cada dia uma vida completamente nova para a garota... em sua mente, um novo começo a cada dia, como uma criança recém-nascida e, à noite, ela está na velhice. Poxa, no intervalo de uma semana vimos sete vidas diferentes e... Jimmy Davis, está-me ouvindo?
90
-Sim. Então era este o enredo... por isso que, cada vez que eu acordava, pensava que estava vendo um novo filme. Mas apareceu alguma coisa na tela que tocou uma campainha aqui em minha cabeça. Queria muito lembrar o que era.
-Estou contente de ter ficado na fila para assistir a esse filme... quer dizer, sinto-me como se tivesse entrado na história do cinema. Vilma Anders era uma figurante até agora... isto vai transformá-la em uma estrela da noite para o dia. E Marlon Smith... é puro talento! É acreditar muito em si mesmo... um ator desconhecido de filmes de cowboy... produzir, escrever e dirigir um filme de vanguarda como este com tão pouco dinheiro. Li que Smith é um perfeccionista, levou anos trabalhando nisso. Ele está na cidade para uma entrevista na TV sobre o seu modo... Está dormindo de novo, Jimmy?
-Não, amor, só pensando. Numa daquelas horas em que estava meio dormindo, apareceu essa tal coisa na tela...
-É perda de tempo sair com você quando está assim grogue.
-Principalmente a dois dólares e meio por cabeça.
-Se este filme algum dia vier para um dos cinemas na vizinhança, vamos ver de novo. Um filme em quatro dimensões, com um tema tão original que...
De repente, Jimmy ficou totalmente atento, agarrou a mão da mulher:
-Querida! Qundo passavam os letreiros na tela... eu estava fechando os olhos... mas não estava escrito que o filme era baseado num romance de Harry Sands?
-Acho que sim. Nunca presto muita atenção nos letreiros. Quem é...? Ah, não é o marido da mulher que foi atropelada por um carro?
Jimmy ficou em pé e tocou a campainha do ônibus:
-Querida, vá para casa. Quero falar com a namorada de Harry Sands.
-A essa hora?
-Ela deve estar de plantão no hospital. Logo estou em casa.
91
Vinte e cinco minutos depois, o Detetive Davis estava tomando café com a enfermeira Irene Parks na cozinha do hospital. Ela dizia:
-Estou tão feliz que finalmente Harry foi reconhecido... como gostaria que estivesse vivo para ver seu sucesso! Sempre me dizia que tinha posto o melhor de si naquele livro. Começou a beber, porque o livro não alcançara a fama que ele achava que merecia.
-Dizem que o filme está fazendo muito dinheiro. Quem vai ficar com a parte de Harry, Srta. Parks?
-Meu advogado viu isso para mim... ninguém. O livro caiu em domínio público... seja lá o que isso quer dizer... a reserva de direitos autorais terminou. No entanto, como a fita está fazendo sucesso, um grupo está pensando em reeditar o romance, em brochura, e vou ganhar dois mil dólares.
-Não seria Hanna Sands quem deveria ficar com o dinheiro?
-Por quê? Harry deixou tudo para mim e não para ela. Pela lógica, ou pela lei, ou sob qualquer ponto de vista, o dinheiro é meu... sustentei Harry a maior parte de sua vida. Não me estou queixando, eu o amava. Além disso, meu advogado disse que, como o livro caiu em domínio público, a editora não tem que pagar nem um centavo a ninguém. Estão-me pagando apenas para evitar o aborrecimento de um processo, e porque, com a minha assinatura... uma das herdeiras dé Harry... podem impedir que qualquer outro editor venha a publicar também o livro. Não acha justo que eu receba esse dinheiro?
-Acho que sim -disse Jimmy, terminando de beber o café.
Na manhã seguinte, ele foi ao escritório de um advogado especialista em direitos autorais. O advogado disse:
-Uma reserva de direito autoral vale por vinte e oito anos e deve ser renovada antes que o vigésimo oitavo ano se complete. Com o telefonema que dei para a Biblioteca do Congresso, descobri que a reserva de direito do romance de Sands não foi renovada, sendo assim à novela caiu em domínio público, para qualquer um...
-Ser renovado, por quem? Sands morreu há anos.
-A esposa, ou um filho, teriam herdado o direito autoral, poderiam ter feito a renovação. <
92
-E uma namorada? Sands poderia ter deixado os direitos autorais para ela, em vez da mulher?
-Como eles ainda estavam legalmente casados e não tinham filhos, só a Sra. Sands poderia fazer a renovação.
-A reserva de direitos terminou há dez meses?
-Não... há sete meses.
-E qualquer um poderia descobrir se os direitos foram renovados, apenas telefonando ou indo até à Biblioteca do Congresso?
O advogado fez que sim com a cabeça.
-Não entendo por que a polícia...
-Diga-me mais uma coisa -interrompeu Jimmy. -O filme foi lançado na semana passada. O senhor conhece essas coisas... quanto tempo leva entre o início das filmagens e o lançamento nas telas?
-Impossível dizer, algumas vezes, anos. Depende do produtor e do diretor. Disseram-me que Marlon Smith filmou todas as cenas num tempo recorde de doze dias. Se ele acelerou a produção das cópias, poderia ter o filme pronto para exibição em apenas alguns meses.
-Tem uma idéia de quanto Simth gastou para fazer o filme?
-Corre por aí o boato de que ele fez o filme por menos de sessenta mil dólares.
-Sendo Smith um simples extra em filmes de cowboy, onde acha que ele conseguiu esse dinheiro?
-Uma vez que tinha a distribuição garantida, os bancos iam até brigar para emprestar-lhe o dinheiro -disse o advogado, rindo. -Eu mesmo emprestaria com satisfação. Pela bagatela de sessenta mil dólares... um filme completo... o lucro é certo. Este filme vai fazer muitos milhões, mas mesmo que fosse um fracasso, ainda teria um lucro de pelo menos cem mil dólares, aqui e no exterior. Diga-me, por que a polícia está interessada nos negócios do cinema?
-Talvez o senhor veja o porquê nos jornais da noite -disse Jimmy.
Na sala da Delegacia de Homicídios, Jimmy disse ao Tenente Wintino:
93
-Sei que Marlon Stnith é uma celebridade e que, se eu estiver errado, vai ser a maior guerra, mas tenho certeza de que ele é o nosso homem! Lembra-se da descrição do zelador a respeito do homem que parecia um detetive de cinema? Smith é um ator perfeccionista, sendo assim, se estava fingindo ser um detetive, se caracterizaria segundo a versão cinematográfica de um detetive!
Dave acenou com a cabeça, em assentimento.
-Estou esperando um telefonema da polícia de Hollywood. Se disserem que Smith tinha um MG há dez meses, vamos prendê-lo como suspeito.
Uma hora depois, quando a polícia de Hollywood confirmou que Smith já tivera um MG, Jimmy Davis foi buscar o ator. Furioso, Smith recusava-se a dizer qualquer coisa, apenas reclamando o direito de chamar seu advogado.
Dave e Jimmy interrogaram-no, mas o ator apenas olhava-os, sem dizer uma única palavra. Wintino fez sinal para Jimmy segui-lo até o lado de fora da sala de interrogatório.
-Este cara é mais duro do que uma pedra -disse Jimmy. -Se ele chamar o advogado, vai sair logo daqui, e então vai tudo por água abaixo. Acho que o meti numa confusão, Dave.
-Talvez. Podemos retardar o telefonema para o advogado por mais uma meia hora, mas, a não ser que a gente consiga que ele admita algum envolvimento, teremos problema... o encarregado da publicidade dele vai adorar tudo isso, colocando nosso departamento nas manchetes. Vou tentar algo... pode ser chamado de um novo tipo de tortura. Arranjei uma câmara de TV na estação local... vamos ver quanto tempo um ator consegue ficar mudo em frente a uma câmara de TV. Se isso não funcionar, é melhor a gente começar a procurar emprego nos classificados o quanto antes.
Quando a câmara foi ligada, Smith foi colocado sentado em frente ao sinal vermelho que dizia NO AR, em cima da lente. O Tenente Wintino disse ao ator:
-Como é uma pessoa muito conhecida, e tudo isso em breve estará em todos os jornais, não vejo razão para ocultar nosso interrogatório. Este interrogatório está sen-
94
do televisionado... gravado... para mostrar ao público que não usamos de força. Pergunto de novo: Ainda afirma que nunca viu Hanna Sands? Que não conversou com ela na noite em que foi morta? Que não saiu com ela no seu MG? Que não visitou o zelador do edifício onde ela morava, na noite anterior ao crime, fingindo ser um IIIvestigador de companhia de seguros? Ele está vindo para cá neste momento.
Por longos segundos, Marlon Smith ficou ali, olhando para a câmara. Era quase como se o ator e a câmera estivessem um tentando derrubar o outro com o olhar.
Wintino já estava a ponto de desistir, quando o rosto bonito de Smith pareceu desmanchar-se em pedaços. O rapaz fechou os olhos, tornou a-abri-los, olhou de modo atrevido para as lentes: jogou a cabeça para trás... um rosto sensível, o retrato da tragédia. Em voz baixa e clara, dando uma entonação dramática, Marlon Smith disse:
-Sim, eu a matei... em legítima defesa! Perdi a cabeça, fiquei louco ao pensar que meu sonho de tantos anos podia terminar num pesadelo! Quis encenar a história de Harry Sands desde o dia em que a li numa revistinha literária, quando ainda estava no colégio. Eu... sozinho... vi que podia ser um filme perfeito. Anos depois escrevi ao Sr. Sands... perguntando se podia adquirir os direitos para fazer o filme. A revista já havia acabado há muito, minha carta foi devolvida pelo Correio. Em
1957 comecei a escrever o roteiro do filme, a distribuir os papéis, a tentar conseguir financiamento... meu Deus, trabalhei, quase morri de fome anos e anos! Então há uns onze meses, quando finalmente estava a ponto de conseguir os fundos necessários... estava em Washington, D.C., e fui registrar os direitos autorais do meu roteiro. Descobri que a reserva de direitos da revista tinha expirado o prazo, se é que havia alguma. Foi só então que soube que Sands também tinha desenvolvido a história em um romance, alguns anos depois que foi publicada na revista. Nunca soube que havia um livro... até aquele dia.
"A reserva de direitos do livro ainda tinha alguns meses de validade. Como sabia que Sands estava morto, tinha que descobrir se havia uma mulher, ou um filho, então bolei aquela história do investigador da seguradora. Fiz o que era certo... ofereci a Hanna Sands dez por cento do total pelos direitos cinematográficos. Ela recusou,
95
queria dez mil dólares em dinheiro. Pode ver a minha situação. Tinha explicado a ela sobre os direitos autorais... uma vez que ela os renovasse, eu ficaria todo atolado, tentando levantar os dez mil dólares para ela, e nunca conseguiria o empréstimo para o meu filme se soubessem que não tinha a devida autorização. Implorei-lhe que aceitasse uma percentagem, ofereci-me para fazer um acordo por escrito ali, naquela hora. Ofereci até vinte por cento, mas aquela cabeça-dura, aquela mulherzinha gananciosa, recusou. Depois, ela pulou fora do meu carro. Vi meu trabalho, minha vida, tudo caindo no esquecimento por causa de sua ganância! Eu... eu não sei o que fiz... Então. Lembro-me vagamente de ter encontrado um carro aberto... de ter atropelado alguém... como em um mau filme. Mas, entende, foi realmente em legítima defesa... da minha vida artística, do meu talento e integridade, dos meus sonhos! Um sonho pode ser mais importante do que a própria vida...
A voz de Smith foi enfraquecendo até um sussurro. Jimmy Davis estava pronto para aplaudir, e só caiu em si quando o Tenente Wintino disse em voz alta:
-Datilografe esta confissão, e faça-o assiná-la. O show já terminou.
96
Richard Hardwick
BRINCADEIRA ENTRE IRMÃOS
Por muitos anos a existência de Curt Pennington vinha sendo de profunda frustração. Estava desesperado agora. De qualquer forma, sua frustração persistia, porque seus problemas poderiam ser facilmente solucionados, se seu irmão Ethan cedesse um pouco.
Mas, como não havia a menor chance de isso acontecer, tinha que procurar sua irmã em busca de ajuda. Encontrou-a no lugar de sempre, na varanda leste da grandiosa e antiga casa dos Penningtons. Puxou uma cadeira de balanço de vime para o lado dela e sentou-se.
-Mana -começou, hesitante. -Mana, preciso de uns duzentos pra me arrumar. Pensei que talvez você pudesse me arranjar. Devolvo assim que puder.
Norma Pennington baixou o tricô para o colo e olhou para Curt. Tinha 31 anos, era dois anos mais nova do que Curt, mas tratava-o como se ele fosse uma criança. Em alguns pontos, Curt era exatamente isso. Fisicamente, era um rapaz alto e bonito, mas, mesmo agora, ainda tinha a expressão petulante de um garoto de seis anos, a quem alguém negou um sorvete. A analogia ia mais além, pois os sorvetes de Curt eram coisas como Benjie Nix, o book-maker, que não aceitaria mais nenhuma aposta de Curt até que ele pagasse o que lhe devia, e Curt tinha uma barbada para o segundo páreo, o Jamaica. Um outro era Charlene Norrell, que não considerava nenhuma forma grátis de divertimento como sendo divertimento de verdade. Havia outras coisas: roupas novas, um hi-fi, um
97
carro esporte, uma viagem a Las Vegas. Na verdade, na opinião de Curt, as melhores coisas da vida, definitivamente, não eram grátis.
-Você não andou jogando de novo, andou, Mano? -perguntou Norma de modo repreensivo. -Você sabe o que Ethan diz disso.
-Ao diabo com Ethan! -Chegou a cadeira um pouco mais para perto. -Você pode arrumar-me os duzentos, Mana? Juro que devolvo! Quando esse pangaré chegar lá, vou ficar numa boa... -Não tinha intenção de deixar escapar isso, e tentou emendar: -Na verdade, não vou apostar o dinheiro. Meu book-maker está-me pressionando e tenho que arranjar algum dinheiro ainda hoje, senão... -Deixou no ar, como um agouro, tentando medir a reação de Norma com o canto dos olhos.
-Senão o quê? -perguntou ela, tensa. Ele meneou a cabeça:
-Prefiro não falar nisso com você, Mana -disse, em tom grave. -De qualquer forma, a culpa é toda de Ethan. Sabe que não posso viver com uma mesada de cinqüenta dólares por semana.
-É para o seu próprio bem, Curt. Ethan só está pensando no seu benefício.
-Verdade? -disse com malícia. -E suponho que também estava pensando no seu bem quando deu o fora em Charlie OToole.
Um vislumbre de dor passou pelas feições singelas de Norma e em cada um de seus olhos formou-se uma lágrima, que rolou pelo rosto pálido. Rapidamente, Curt aproximou-se mais e segurou-lhe a mão:
-Desculpe, Mana. Foi horrível isso o que eu disse.
Mas fosse qual fosse o motivo que Norma tinha arranjado para justificar para si mesma a atitude de Ethan, ao mandar embora o único pretendente sério que ela tivera, para Curt fora por puro esnobismo. Os OTooles, mesmo sendo Charlie um ativo advogado criminal, simplesmente não eram do mesmo tipo de pessoas que os Penningtons, e o resultado disso é que a pobre Norma agora passava horas sentada na varanda ou no jardim, tricotando suéteres e meias, em vez de roupinhas para pequenos OTooles.
98
O incidente caracterizou bem Ethan Penington, para quem o nome Penington era realmente um talismã. A IIIdividualidade de um Penington era coisa sem importância, só existindo na medida do que pudesse acrescentar ou subtrair ao nome da família. Agora, não havia nenhum Penington em posição de destaque na sociedade; o último tinha sido um avô por parte de pai, que havia conseguido acumular uma fortuna considerável e que colocara a família entre as mais importantes do município de Carl e da cidade de Carlsburg. Infelizmente, através dos anos, houve alguns Penningtons que eram completamente o oposto, com tendências ao desperdício e à vida abastada. Ethan tomara para si o encargo de evitar esse tipo de coisa e manter o brasão da família sem mácula.
O primogênito de Traver e Elise Penington, Ethan, aos 41 anos, chegara ao ponto de internar o pai numa instituição, quando pareceu-lhe que os excessos do velho estavam pondo em perigo tanto a fortuna quanto o bom nome dos Peningtons. Nos 10 anos que se seguiram, Ethan, como único administrador, havia assumido o leme do navio dos Peningtons, guiando-o cautelosamente por entre os recifes e bancos de areia da vida.
A família agora se resumia nos três -Norma, Curt e Ethan. Curt era a ovelha negra. Norma, no choque inicial causado pelo caso OToole, havia perigosamente chegado perto do ponto de se voltar a favor das opiniões de Curt, mas os constantes lembretes de Ethan sobre o dever e a responsabilidade para com a família, finalmente, conseguiram prendê-la à cadeira de balanço e às agulhas de tricô.
-Talvez você deva fazer o que Ethan diz -continuou Norma -e arranjar um emprego na cidade. Assim, vai ter dinheiro para fazer o que quiser. -Era como se se achasse sentada nos joelhos de Ethan, e ele estivesse falando por ela.
-Já tentei explicar-lhe, Mana -disse Curt -que não tenho absolutamente nada contra o trabalho em si. O que não consigo entender é por que devo arranjar um trabalho nojento em um banco ou numa corretora, enquanto Ethan está sentado em cima de um monte de dinheiro que, por direito, é tanto meu quanto dele.
-O dinheiro nem estaria lá, se não fosse por Ethan -lembrou Norma.
99
Curt concordou com a cabeça:
-Sei muito bem disso. Mas quando Ethan nos fez assinar aquelas procurações, você deve admitir que ele fez tudo parecer bem diferente do que era na realidade. E, quando tinha tudo em suas mãos, a primeira coisa que fez foi colocá-la e a mim com uma mesada nojenta de cinqüenta dólares por semana.
-Vivo muito bem com a minha.
-Mas você não faz nada além de ficar aí sentada!
-Ele estava de pé, gesticulando com os braços. -Há um mundo lá fora, Norma! Um mundo vivo e vibrante, cheio de luzes, lugares para ir, coisas para fazer, e que Ethan...
-Ouvi meu nome? -As portas da varanda se abriram e um homem obeso e bem vestido saiu da casa e fixou em Curt os olhos de um verde pálido.
-É, ouviu! O pai me dava mil por mês, e você disse que eu teria ainda mais se ficasse do seu lado e o colocasse em uma... como é mesmo que você chamou?... uma casa de repouso!
Os lábios grossos de Ethan Pennington torceram-se num sorriso momentâneo:
-Espero que com isso tenha aprendido uma lição do mundo dos negócios, Curt. Um contrato verbal não tem nenhum valor.
-Pensei que aquilo fosse a sua palavra e não um contrato.
-Como o herdeiro mais velho e administrador do patrimônio, é meu dever proteger os bens e conservar nossa renda. Você vive aqui sem ter nenhuma despesa, e me parece que cinqüenta dólares por semana é uma boa quantia em dinheiro para se ter no bolso. Talvez -complementou enfatizando propositalmente -mais do que suficiente. É possível que sofra até uma redução para curá-lo dos seus vícios.
-O que você considera meus vícios -interrompeu Curt, irritado -considero... bem,.meus hobbies.
-Hobbies? -disse Ethan erguendo as sobrancelhas.
-Que eufemismo esquisito pára jogo, bebida, farra e andar com devassas! Fico sempre imaginando se o nome Pennington significa alguma coisa para você.
100
-Significaria muito mais, se eu pudesse assiná-lo em um cheque!
-Um cheque para aquele jogador, o Benjie Nix? -sugeriu Ethan. -Ou para aquela tal de Norrell? Não quero mais ouvir falar nisso!
Virou as costas e entrou cheio de arrogância. Curt acompanhou-o com os olhos, os dentes cerrados, impotente. Depois, sentou-se novamente, inclinando-se em direção a Norma:
-E então, Mana? Só duzentos, juro que pago logo.
Charlene Norrell era contemporânea de Norma Pennington, mas terminava aí o que tinham em comum. Charlene era alta, dominante e excepcionalmente bem arrumada. Dirigia uma pequena loja de roupas, chamada Bon Ton, que ficava na Rua Principal, em Carlsburg, ao lado de um bar, o Pump Room. Quando fechou as portas de sua loja, às seis horas naquela tarde, Charlene entrou na porta vizinha e sentou-se, a uma mesa, num canto escuro, onde Curt Penington estava sentado, melancolicamente, desde o meio da tarde, esperando por ela.
-Não teve sorte com Ethan, não é? -disse ela. Curt balançou a cabeça:
-Norma me arrumou uns duzentos. Dei metade ao Benjie por conta, e entreguei os outros cem, em tempo para ver meu cavalo chegar em último.
O barman trouxe a bebida de sempre para Charlene, um coquetel de champanha, e o colocou na frente da mulher. Esta deu um gole e bateu de leve na mão de Curt.
-Isso é muito mau, meu amor. Há um grupo subindo para as montanhas neste fim de semana. Ouvi dizer que a neve ainda está ótima. Esquiar vai ser uma boa.
Curt olhava para baixo, para seu copo de cerveja, cheio até a metade, como se pudesse achar ali algum prenuncio de boas notícias. Em seguida, fitou Charlene:
-Você vai?
-Claro que vou, meu bem! Sabe como adoro as montanhas!
101
-Eddie vai levá-la?
Ela fez que sim com a cabeça.
-Gostaria que fosse você, Curt. De verdade. Mas sem dinheiro, bem... a estada e a comida, e os drinques e tudo o mais...
-É, eu sei.
-Não sei por que você agüenta esse seu irmão pãoduro. Realmente, não dá para entender.
-E tenho outra escolha?
Ela deu um outro gole no champanha e, depois de uns minutos, disse:
-Estive pensando em algumas coisas que você me contou sobre ele. Acho que pode passar a perna nele, sem que ele desconfie.
Curt inclinou a cabeça, franzindo a testa:
-Como?
-Bem, suponhamos que você lhe diga que está metido numa grande enrascada, que tem que arranjar dez mil para se ver livre. Você disse que ele é fanático por manter a família longe de qualquer escândalo.
-Não dá certo. -Curt suspirou. -Já pensei nisso. Ethan percebeu logo tudo. Queria provas, e acabou com a encenação.
Charlene empurrou o copo para o lado e inclinou-se para ele, baixando a voz:
-Então, dê-lhe uma prova. -Fez uma pausa longa para lançar uma olhada furtiva pelo salão. -Vou fazer chantagem com você. É muito simples.
Curt esfregou o queixo, incerto. Este era um novo ângulo.
-Vai ter que ser bem convincente. Ethan pode ser um imbecil esnobe, mas não é bobo.
-Vamos tornar a coisa mais do que convincente, vamos torná-la real.
-Real? Mas não fiz nada para você fazer chantagem comigo.
Charlene terminou seu coquetel de champanha.
-Então, Juça alguma coisa! Sinceramente, Curt, há horas em que você é estúpido demais.
102
-Olhe aqui, Charlene, você não quer que eu saia por aí e... e mate alguém, ou assalte um banco, ou qualquer coisa desse tipo...
-Claro que não, seu bobo! Isso vai ser apenas entre nós dois. Por exemplo, não é segredo na cidade que você está sempre precisando de dinheiro, que Ethan não lhe dá o suficiente para viver. Então, suponha que você roube alguns cheques e falsifique uma assinatura neles?
-Cheques de quem?
-Será que tenho que ficar explicando os mínimos detalhes? -disse ela, impaciente. -Duvido que pareça muito estranho para Ethan que você pudesse botar as mãos no talão de cheques da Bon Ton, não é? Também poderia roubar alguns dos meus cheques liquidados e copiar minha assinatura. Eu poderia descobrir tudo e dizer a Ethan que queria dez mil dólares para evitar que você seja processado e, o mais importante para ele, para evitar que o nome dos Penningtons seja arrastado pelos tribunais, num julgamento por falsificação.
Curt sempre tivera uma vaga idéia de que Charlene não era apenas uma bela figura para se olhar, que, por baixo daquele penteado elegante, existia um verdadeiro cérebro, e agora tinha certeza disso.
-Sabe -pegou o copo e terminou a cerveja -vai funcionar. Isso mesmo!
Ela sorriu e levantou-se.
-Vou até o toalete, amor. -Com as unhas pintadas de vermelho, puxou a carteira por sobre a mesa. -Acontece que meu talão de cheques está aqui, e também o extrato do banco deste mês, com meus cheques liquidados.
Ela se afastou, rebolando graciosamente, e desapareceu pela porta onde estava escrito Damas. Curt olhou a bolsa por um momento, depois deixou o olhar vagar pelo salão. O harman estava de costas, lavando uns copos, e as pessoas na outra mesa achavam-se absorvidas na conversa. Ele esticou a mão devagar, abriu a carteira e enfiou a mão. Tirou vários cheques do final do talão e o cheque liquidado, com o qual Charlene havia pago a conta de luz do mês anterior, e meteu tudo no bolso interno do casaco.
103
': líliv
-Pete! -chamou ele o barman. -Traga um outro coquetel para Charlene e, para mim, uísque.
Ethan estava rígido, junto às altas janelas de seu escritório, as mãos cruzadas para trás com tanta força que as juntas chegavam a estar brancas, e olhava cegamente para o jardim cheio de sol.
-Muito bem, Curt, queira repetir tudo com detalhes, e então ajude-me, se você está tentando enganar-me, vou...
-Juro que não! -Curt estava no centro da sala sombria e cheia de livros, os braços caídos ao lado do corpo, como um aluno que tivesse cometido um erro, na presença do diretor da escola. -Nunca pensei que Charlene fosse fazer isso!
-Então você realmente falsificou o cheque e trocou por dinheiro?
-Foi.
Ethan suspirou e virou-se vagarosamente até que seus olhos encontraram os do irmão:
-Você trocou o cheque naquela... naquela espelunca?
-O Pump Room, Pete me conhece. Ele não duvidou do cheque na hora, mas mostrou-o a Charlene quando ela voltou de uma viagem de fim de semana. Bem, ela deu o dinheiro do cheque para ele, e veio falar comigo. Disse que queria dez mil dólares para me livrar da prisão por falsificação. -Levantou as mãos. -Nunca pensei que ela fosse fazer isso. Sabia que ia ficar furiosa quando descobrisse, mas... -Podia ver claramente no rosto de Ethan que o irmão não estava pensando na prisão, mas apenas no julgamento, nos jornais e na publicidade.
-Curt, como pôde meter-se num negócio como esse!
-Sempre lhe disse que precisava de mais dinheiro. Eu estava num aperto. Você nunca me deu ouvidos, e alguns boook-makers já estavam começando a ficar danados por causa de um dinheiro que eu lhes devia, então...
O suspiro que Ethan soltou ao voltar-se novamente para a janela era ao mesmo tempo de medo e irritação. Depois de um longo período em silêncio, ele disse:
104
-Diga à tal de Norrell que quero vê-la.
-Charlene? -De qualquer maneira, ele não esperava por isso. -Você quer falar com Charlene?
-O nome dela é Norrell, idiota! -gritou Ethan. -Pegue o telefone e chame-a agora mesmo! Diga-lhe que... -Ergueu o braço e olhou o relógio. -Diga-lhe para estar aqui dentro de uma hora, à uma hora em ponto! -Virou-se mais uma vez, os olhos brilhando de raiva. -Prefiro que você não fique aqui, Curt. Prefiro resolver isso sem a sua ajuda.
-Mas ela está fazendo chantagem comigo -disse Curt. -Ela pode achar suspeito, se eu disser que você quer falar com ela.
-Faça o que eu disse. Chame-a.
-Você não conhece Charlene, Ethan.
O irmão ergueu o braço, o dedo indicador tremendo na direção do telefone: -Já!
-Ela tem um gênio terrível...
O dedo começou a tremer violentamente, e Curt foi até a escrivaninha e agarrou o fone.
O relógio atrás do bar marcava uma e meia. Charlene estava com Ethan há 30 minutos, e Curt, nervoso, virou o resto da segunda garrafa de cerveja no copo, imaginando o que estaria acontecendo no interior da casa.
-Quer outra? -perguntou Pete, batendo um guardanapo apaticamente.
-Ainda não. -Tentou voltar sua atenção para a seção de corridas do jornal que estava em cima do bar.
Pete colocou o guardanapo de lado e bateu na página com o dedo gordo.
-Esse cavalo aqui, esse é um que se deve ficar de olho. Qualquer um que tenha alguns dólares no bolso faz bem em botá-los na cabeça, no terceiro páreo amanhã.
-Bay Rum?
-Esse mesmo, Bay Rum.
-Esse é um palpite idiota -disse uma figura pequena e magra, que veio sentadas, vagarosamente, no banco ao lado de Curt.
105
O barman fez um som de quem não estava satisfeito e afastou-se. O homenzinho bateu nas costas de Curt.
-Oi, garoto!
-Oi, Benjie.
-Então é assim que você arranja suas barbadas, com um jóquei de bar?
-Que diferença faz? -disse Curt, encolhendo os ombros.
O hook-maker soltou uma risada.
-Sabe de uma coisa, Curt? Se você tivesse dinheiro, eu poderia aposentar-me em dois anos.
-O que você quer dizer com isso?
-Apenas que você é o maior pato do meu livro de apostas. Gosto de você, garoto! Gosto de verdade!
Curt olhou de novo para o relógio. Um quarto para as duas. Por que estava demorando tanto?, pensou.
-Está dizendo que Bay Rum é um palpite idiota, Benjie? Por que nãó prova deixando eu ir nessa com vinte e cinco?
-Pra ganhar?
Curt fez que sim com a cabeça:
-Bem na cabeça.
Benjie deu uma olhada em volta furtivamente, depois tirou uma caderneta do bolso e fez uma anotação.
-Já está lá. -Colocou a caderneta novamente no bolso. -Ah, Curt. Tem um bom jogo de dados marcado para a próxima semana. Acha que pode arrumar algum dinheiro?
O telefone tocou dentro do bar, e Pete atendeu. Virou-se para Curt:
-É para você. Vai atender?
Devia ser Charlene... ou Ethan. Fez que sim com a cabeça, foi até a extremidade do bar e pegou o fone.
-Alô?
-Curt! -Era Ethan. -Venha para casa imediatamente!
106
-Qual é o problema?
-Não interessa! Venha! -O telefone bateu do outro lado.
Através da janela do escritório, Curt podia ver Norma vagando pelo jardim e, mesmo com seus próprios problemas, sentiu uma pontada de pena da irmã.
-Simplesmente não consigo entender como é que você, um Pennington, foi-se envolver com uma mulher como essa!
-O que aconteceu? -perguntou Curt.
-O que aconteceu! Ela simplesmente dobrou seu pedido exorbitante, só isso! Sentou-se ali mesmo na minha própria mesa, sorrindo como um gato que comeu um canário e disse a mim, Ethan Pennington -ele pareceu inchar ao som do próprio nome -que teria que lhe pagar vinte mil dólares, dentro de três dias, ou ela levaria o cheque à justiça!
-Tentei explicar-lhe, Ethan -disse Curt. -O problema é que você nunca ouve ninguém.
-Bem, eu não vou pagar! - Curt arrastava os pés pelo tapete.
-Não o culpo. Eu mereço o pior. Jogue-me aos lobos. Não sou uma boa pessoa, Ethan, nós dois sabemos disso.
-Aí está você, pensando só em si mesmo de novo. Você é um Pennington!
-Sou sim. -Curt meneava a cabeça com arrependimento. -Eu sou um Pennington!
-Penso que eu devia ter ouvido você. Acha que existe alguma chance de conseguir que aquela... aquela mulher concorde em receber a quantia original? -Era a primeira vez que Ethan admitia um erro seu, ou que Curt ou qualquer outra pessoa era capaz de fazer alguma coisa para corrigi-lo.
-Vou tentar, Ethan. -Endireitou o corpo e, com uma expressão séria, colocou a mão direita sobre o coração. -Pelo bom nome dos Penningtons.
107
Lá fora no jardim, viu Norma inclinar-se para cheirar um botão de rosa, depois do que suspirou profundamente e abriu a sacola de tricô.
-Você precisava ter visto! Estava espumando! -Curt dobrou o corpo por cima da mesa, rindo. Estava sentado em uma saleta escura num bar de estrada a vários quilômetros de Carlsburg, para que não fossem vistos juntos.
-Não me surpreende -tanto assim para ser motivo de tanta graça -disse Charlene, calmamente, -Na verdade, era essa a reação que eu esperava. Coloquei-o num beco sem saída, e ele sabe disso. Ele é do tipo que começa a espumar, quando não há mais nada que possa fazer.
A gargalhada de Curt foi diminuindo, passou a um sorriso, transformou-se numa expressão apreensiva e desapareceu completamente.
-Você... você quer dizer nós o colocamos num beco sem saída, não é?
Ela começou a polir as unhas e encolheu ligeiramente os ombros.
-Veja os fatos e diga o que você acha que eu quis dizer.
Fitou-a na penumbra, com o queixo caído. Viu um novo ângulo dela, que não era apenas inteligente e bonito -de um modo um tanto cruel -mas era completamente traiçoeiro.
-Então você planejou tudo assim, não foi? -disse ele, o som maçante da voz parecia caracterizar sua estupidez. -Realmente vai fazer chantagem com Ethan? Vai deixar-me de fora?
-Claro que não vou deixá-lo de fora, doçura! -disse como que ofendida por aquela sugestão. Examinou as unhas com cuidado, mesmo não podendo vê-las bem, devido à escuridão. -Claro que você não vai receber a mesma coisa.
-Quanto? -interrompeu Curt, fazendo força para se controlar.
-Cinco mil.
-Cinco? E você quinze? E se eu for contar tudo ao Ethan?
108
-Pra que, meu bem? O cheque está comigo, você sabe. E realmente o falsificou. Seria apenas a sua palavra contra a minha, sobre como tudo aconteceu.
A boca de Curt moveu-se em silêncio, como um peixe que foi arrancado de repente do seu meio ambiente e colocado sobre a terra.
-Mas você e eu fizemos um acordo... -Interrompeu-se, lembrando-se das palavras que ouvira do irmão recentemente, ditas com um apropriado sorriso malicioso, com relação à falta de valor dos contratos verbais.
-Vai ter seus cinco mil -disse ela. -Agora, vá até seu irmão e diga-lhe que esta conversa já terminou. Diga-lhe que é pagar ou... -Deu um sorriso triste e estendeu a mão por sobre a mesa. acariciando a mão de Curt.
Isso era um pouco demais, pensou Curt. Vinte mil, até Ethan vai recusar. Não... não, ele não faria isso. Provavelmente soltaria até mais do que isso, se visse um escândalo surgindo.
Curt voltou para casa e disse a Ethan que o preço não seria alterado. Como esperava, tal informação apenas aumentou ainda mais a raiva de Ethan.
Depois de algum tempo andando furioso de um lado para outro do escritório, enquanto Curt ficava respeitosamente parado ao lado, Ethan postou-se no centro da sala.
-É óbvio! -disse, com voz cansada. Estava com uma expressão estranha, como um fervilhar no fundo dos olhos, que Curt jamais tinha visto antes.
-O que é óbvio?
-Que essa mulher nunca mais vai parar com isso. Vai continuar, ad infinitum. -Olhava para o irmão mais novo com um sorriso estranho no rosto. -Curt, só há uma coisa a fazer nesse caso.
-Não sei se estou entendendo o que quer dizer -respondeu Curt, constrangido. Tudo aqui tinha começado de um modo tão simples, de um modo tão comum, como dois vem depois de um, ou como C vem depois de B. Mas tinha havido um desvio em algum lugar. Tudo o que Curt queria era provar um pouco de uma vida à qual achava que tinha direito. Não gostava nada daquele brilho no olhar de Ethan; não gostava nem um pouco.
109
-Então, ouça com cuidado - continuou Ethan, com um jeito de certa forma parecido com o de Norma, quando ela o admoestava com calma, explicando as coisas mais simples. -Essa Charlene Norrell só pretende ganhar a vida com esse seu erro estúpido. Nossa única alternativa é tornar a vida dela mais curta.
Levou uns minutos para que Curt entendesse e, então, deu um passo para trás e ergueu as mãos, com as palmas voltadas para o irmão.
-Espere um pouco! Você não está sugerindo que nós devemos matar Charlene, está?
Ethan balançou a cabeça:
-Não estou sugerindo que nós façamos nada disso. Estou sugerindo que você faça. Afinal, foi sua burrice que nos meteu nessa chantagem.
Era como um eco, ao contrário, do que Charlene dissera. Tudo aquilo era como uma bola de neve, descendo por um longo declive coberto de neve, crescendo cada vez mais. Curt jamais havia imaginado, mesmo em seus sonhos mais bárbaros, que aquilo pudesse chegar a tal ponto.
-Eu... eu nunca seria capaz de matar alguém, Ethan.
-Um Pennington nunca diz que não é capaz de fazer alguma coisa.
-Mas um assassinato?
Assim pronunciada em voz alta, a palavra parecia perder um pouco de sua crueldade. Afinal de contas, Charlene o havia traído da maneira mais vil. Merecia qualquer coisa que acontecesse a ela.
-Veja a coisa como legítima defesa, Curt -disse Ethan. -Essa mulher é uma ameaça para todos nós. É uma ameaça para os Penningtons!
Agora era Curt quem andava pela sala. Fez isso durante vários minutos. Depois parou, apertou os lábios e, olhando o irmão nos olhos, concordou:
-Você tem razão, Ethan. Não podemos permitir isso, podemos? -Pela janela, sob o sol fraco, no jardim, viu Norma sentada lendo um livro. -Não é só por minha causa, mas também por você e por Norma, não é?
110
Ethan sorriu com ar paternal.
-Esperava que você visse tudo isso sob este aspecto, Mano. Agora, podemos examinar os detalhes?
-Mas é claro.
-ótimo. Eu diria que o melhor modo é com um tiro.
-Parece razoável. Charlene mora fora da cidade, num lugar afastado, onde os vizinhos ficam bastante distantes, de modo que um tiro não deve ser ouvido por ninguém.
-É claro que vai precisar de uma arma.
-Naturalmente -disse Curt. -Acho que me lembro que Papai tinha um revólver. O que aconteceu com ele?
-Está guardado aqui no meu cofre -respondeu Ethan, esfregando o queixo. -Mas, não sei se seria prudente usar este.
-Seria mais prudente do que comprar um, e depois Charlene aparecer morta no dia seguinte.
-Acho que tem razão -admitiu Ethan. Deu a volta pela mesa, indo até o cofre, olhou por cima do ombro, certificando-se de que Curt estava longe o bastante para não poder ver os números da combinação, e então girou o disco. Tirou um revólver e uma caixa de balas, e fechou novamente o cofre. -É melhor você tentar atirar um pouco com ele antes de... bem, antes. Já faz muito tempo que não é usado.
Curt concordou, pegou a arma e colocou-a na cintura.
-E se alguma coisa sair errada, Ethan? Se a polícia suspeitar de mim? Um assassinato sujaria ainda mais o nome do que um caso de falsificação de cheques. Não devíamos arranjar algum álibi?
-Por quê? O que poderia sair errado?
-Não sei. Mas só no caso de acontecer.
-Bem, está certo. -Pensou por um momento. -Quando você quer fazer a coisa?
-Acho que pode ser hoje à noite mesmo.
-Então, vou ficar aqui no meu escritório a noite toda. Se tiver que explicar onde esteve, direi que você se encontrava aqui comigo, que estávamos examinando alguns negócios da família. O que você acha?
111
-Acho que está bom -disse Curt, coçando a cabeça.
-Então, tudo resolvido?
-Acho que eu deveria levar o dinheiro, Ethan. Suponha que ela tenha escondido o cheque em algum lugar e eu não consiga achar? Pode ser que eu tenha que lhe dar o dinheiro desta vez
Uma expressão de suspeita sombreou as feições dé Ethan.
-Não sei não.
-É o meu pescoço, Mano. Assassinato dá cadeira elétrica, você sabe.
-Mas vinte mil...
-Podemos depositar de volta no banco amanhã, Finalmente, Ethan concordou.
-Está bem. Espere aqui. Vou até a cidade pegar o dinheiro.
Curt foi para a cidade mais tarde. Tomou meia dúzia de cervejas no Pump Room, conversou com Benjie Nix por algum tempo, depois telefonou para Charlene e disselhe que Ethan estava arranjando o dinheiro.
-Ele quer que eu vá levar o dinheiro em sua casa hoje à noite. Às onze horas, está bom pra você?
-A hora que você quiser, querido. E Curt, por que não compra uma garrafa de champanha no caminho? Podemos celebrar.
-Claro. -Apalpou o revólver sob o paletó. -Até a noite.
Norma Pennington achava-se no jardim, tricotando um suéter para Curt, quando viu o carro subindo pela entrada da casa. Não conhecia o rapaz que estava ao volante, mas conhecia o velho Tom Coggins, que se encontrava ao lado. Tom era chefe de polícia em Carlsburg desde que ela podia lembrar-se. Ele desceu do carro e andou até onde a moça estava.
-Bom dia, Srta. Norma -disse, levando a mão ao boné. -Ethan está?
112
-Alguma... alguma coisa errada, Chefe Coggins? O policial tirou o boné e enxugou a testa com um
lenço:
-Temo que sim. Charlene Norrell foi morta ontem à noite.
-Charlene!
-Gostaria de dar uma palavrinha com Ethan, se possível.
-Eu... eu vou dizer-lhe que o senhor está aqui. -Começou a andar de costas, depois virou-se e correu para a casa.
Ethan estava no escritório, examinando uns papéis, quando ela rompeu dentro da sala.
-A polícia, Mano! -gaguejou. -Aquela... aquela mulher amiga de Curt... ela foi morta!
Ethan levantou-se devagar.
-Onde eles estão?
-Quem? Onde está quem?
-A polícia, sua boba!
Ela apontou vagamente e disse:
-Lá fora, no jardim. O Chefe Coggins e um outro.
-E onde está Curt?
-Ainda está dormindo, acho. Ouvi-o chegar lá pelas quatro e meia da manhã. Acho... acho que andou bebendo.
-Não há dúvida. Vá chamá-lo. Diga-lhe que venha até aqui já. Vou lá fora falar com o chefe.
A porta se abriu, e Coggins e o outro oficial mais novo entraram.
-Tomei a liberdade de ir entrando, Ethan -disse.
Ethan ficou evidentemente aborrecido, mas apenas acenou com a cabeça.
-Vá chamar o Curt, Norma -disse.
O chefe de polícia coçou o pescoço, na dúvida:
-Ela lhe disse por que estamos aqui?
-Alguma coisa sobre o fato daquela tal de Norrell ter sido morta. Acho que sabe que Curt não era o único homem com quem ela saía.
113
-Ouvi meu nome? -Curt entrou no escritório, vestindo um robe, e ainda com um ar de sono.
-Não precisa dizer nada -disse Ethan. Voltou-se para o chefe de polícia. -Curt e eu ficamos trabalhando toda a noite, aqui mesmo nesta sala, de nove horas até há uma hora e pouco atrás. Ele...
-Acho que isso não vai adiantar muito, Ethan -disse o chefe. Estendeu a mão para o colega, que tirou um revólver do bolso e entregou ao chefe. -Encontramos esta arma do lado de fora da casa dela. Parece que o assassino deixou cair. Está registrada em nome do seu pai, Traver Pennington, mas ele está jogado... quero dizer, ele está em um hospital há uns dez anos, não está?
-Esta é a arma que você guarda no cofre, Ethan! -exclamou Norma.
-Fique fora disso, Mana! -falou Ethan, rispidamente. Olhou aborrecido para o chefe. -Continuo afirmando o que disse. Meu irmão e eu ficamos aqui, nesta sala mesmo, a noite toda.
Curt deu um sorriso maldoso e balançou a cabeça:
-Gostaria de poder levar isso adiante, Ethan, mas temo não poder. Parece que o chefe me pegou ontem à noite, por volta das duas horas.
-Isso mesmo - interrompeu Coggins. -Demos uma batida num jogo de dados na casa de Benjie Nix e Curt foi um dos rapazes que encontramos lá. Eles estavam todos lá desde umas oito horas. O laudo médico diz que Charlene foi morta por volta da meia-noite.
-O dinheiro -murmurou o tira mais novo para o chefe.
-É. Ethan, você sacou uma quantia bem grande de dinheiro do banco ontem?
-Com os diabos, aonde vocês querem chegar? -bufou Ethan.
-Alguém pode confirmar seu paradeiro ontem à noite, uma hora antes e uma depois da meia-noite?
-Meu paradeiro?
O chefe de polícia encolheu os ombros.
-Sua arma, o dinheiro... talvez ela estivesse tentando fazer chantagem com você, Ethan.
114
Curt deu uns passos à frente e colocou-se entre o policial e o irmão.
-Nós, Penningtons, somos inseparáveis, Chefe Coggins. Conheço os direitos de Ethan, mesmo que ele próprio não os conheça. Não é obrigado a responder a essas perguntas, sem consultar um advogado. -Virou-se para o irmão e sorriu com audácia. -Anime-se, Ethan. Vou contratar para você o melhor advogado que o nosso dinheiro puder, pagar!
Depois, vendo Norma encolhendo-se perto da porta, pensou que este seria um ótimo caso para Charlie O'Toole.
115
Robert Edmond Alter
A CASA ABANDONADA
A casa abandonada de Yost era evitada por todos, e ficou no isolamento por quase 200 anos. Como uma coisa morta, largada ali desde o fim do Siluriano, e esperando miseravelmente pela eternidade, ficava no centro do emaranhado da floresta, não muito distante do Lago Oneida.
A superstição local sempre afirmou que é mal-assombrada, porém algumas mentes brincalhonas mas atualizadas referem-se a ela como uma "casa doente". De um modo ou de outro, quase ninguém chega ali perto, as crianças morrem de medo, e Hon Schuyler disse várias vezes que até as raposas e os coelhos evitam sua vizinhança.
Construída por Hans Yost em 1768, segue o estilo colonial, popular na época -o enorme teto pontudo com dois pavimentos e sótão sem janelas, a porta de entrada em estilo georgiano e as pilastras jônicas. Yost e sua família desfrutaram desta sólida casa por sete anos; depois, quando começou a Revolução, foram para a cidade de Albany, fugindo dos ataques dos índios. Jamais voltaram.
Dois anos depois, quando Sillinger liderou a ala direita dos soldados de Burgoyne num ataque contra o Vale Mohawk, seu intendente apropriou-se da mansão desabitada para usá-la como depósito de suprimentos. E foi isso que deu origem à lenda do Ouro de Sillinger.
Benedict Arnold derrotou o comandante britânico e sua tropa com uma manobra clássica, mandando-os embora em pânico. Partiram em histeria e com tanta pressa que deixaram para trás o intendente e seus homens e,
116 -
naquela mesma noite, um grupo de continentais bêbados e seus aliados índios da Tribo Seneca cercaram a casa de Yost e procederam ao massacre do grupo de bretões.
Foi um acontecimento muito triste. Os ingleses estavam desarmados e tentaram render-se, mas os selvagens queriam os escalpos e os continentais estavam bêbados demais para se importar com qualquer coisa. Ouça as histórias contadas pelas velhas senhoras dessa região e vai começar a acreditar que, em certas noites, quando sopra o vento noroeste, é possível ouvirem-se os gritos comoventes do intendente de Sillinger e de seus homens, suplicando por misericórdia na floresta solitária.
Mas velhas senhoras ou não, a lenda do Ouro de Sillinger é baseada em fatos bem sólidos. Todos sabiam que o Exército britânico, naquele tempo, viajava com esterlinas, que ficavam sob a guarda do intendente. É óbvio que nem ele nem nenhum de seus homens conseguiu escapar com o dinheiro, e os continentais e os índios, que os massacraram e tomaram seus suprimentos, não descobriram nenhum vestígio; então, o que aconteceu com o Ouro de Sillinger?
-Ainda está lá -dizem as velhas senhoras e os velhos e as criancinhas. -Ainda está lá na floresta da casa de Yost, guardado pelos homens assassinados de Sillinger. Escute! Está ouvindo? Ouve seus gritos no vento?
Quando eu era menino havia certas horas, durante a noite, em que podia jurar que ouvia os gritos. E certa vez, quando contava 11 anos, tive certeza de ter ouvido mais do que um grito fantasmagórico. Estava certo de ter ouvido o ruído do golpe de um machado de guerra dos índios. Isso foi no dia em que entrei pela primeira vez na velha e ameaçadora mansão.
O meu melhor camarada, Joe Turpin, sua irmã Gert e eu fomos pescar no córrego que corria ao longo da Floresta de Yost; mas os peixes não estavam mordendo naquele dia e não sabíamos o que fazer para passar o tempo até que Joe fez aquela sugestão louca:
-Vamos dar uma espiada na velha casa de Yost.
-Bem... -disse eu em dúvida.
Gert botou a mão na boca e olhou para nós com os olhos arregalados:
117
-Ah, a gente não deve! -falou ela, num sussurro afetado.
Deve ter sido sua presença que me instigou. Tinha 10 anos, cabelos cor de mel e um nariz arrebitado, e eu a achava bonita. Joe a considerava um tormento; por isso, nunca dissera a ele o que sentia por ela. Na verdade, não sabia o que sentia exatamente, mas estava absolutamente convencido de que tinha que me exibir na frente dela.
-Por que não? -falei. -Não dou a mínima para esses velhos fantasmas.
Então fomos. Eu seguia na frente do grupo, entrando pela floresta, num emaranhado de arbustos e trepadeiras e carvalhos gigantescos, pensando que estava parecendo com o destemido Henry Stanley, quando partiu à procura do Dr. Livingstone pela África selvagem.
De repente, tivemos nossa primeira visão completa da casa, através das velhas árvores contorcidas e entrelaçadas. A grama alta e o mato disforme e fantasmagórico cresciam no pátio abandonado e, subitamente, a singularidade mórbida daquela vegetação sinistra e a atmosfera lúgubre da casa em ruínas atingiram-nos como uma bofetada e paramos, paralisados, no meio do caminho.
-Por que você está parando? -perguntou Joe, nervosamente.
-E você?
-Bem, as velhas janelas estão todas fechadas com tábuas. Não podemos entrar.
Achava-me secretamente aliviado, mas sentia que devia mostrar a Gert indícios maiores de minha ousadia.
-Bem, aquele velho porão lá está aberto -falei. -Vamos lá, a fim de dar uma olhada.
As portas sobre as escadas que levavam ao porão há muito haviam caído, e ficamos parados no pátio coberto pelo mato, olhando pelo buraco escuro e silencioso.
-Aposto dez centavos como você não tem coragem de ir lá embaixo sozinho -disse Joe.
Eu não tinha dez centavos para apostar e nem os queria tanto assim, mas Gert ainda me olhava com os olhos arregalados e murmurava:
118
-Aí nào, Phil. Não vai, não. Então tive que ir.
-Está apostado -murmurei, e comecei a descer os velhos degraus de pedra cobertos de musgo, com os punhos cerrados e o coração batendo alto em meus ouvidos.
Era um lugar amplo e coberto de teias de aranha, iluminado apenas pelas pequenas vidraças quebradas das janelas à altura do nível do pátio acima, e cheio de um amontoado de escombros de baús em pedaços, de tábuas soltas de barris e outras coisas tais como rocas de fiar, as quais 20 décadas de depósito haviam transformado em formas monstruosas.
O ar frio e parado tinha um odor úmido e nocivo, e horríveis cogumelos pálidos cresciam no chão duro de terra. Centenas deles haviam apodrecido e se tornado ligeiramente fosforescentes, e brilhavam como fogo enfeitiçado, enquanto ao derredor, sobre a terra escura e úmida, havia um fungo de um esbranquiçado turvo.
Fiquei lá apenas por uns minutos, o suficiente para dar uma olhadela amedrontada pelo lugar. Então ouvi alguma coisa fazer tchok.
Era um pequeno ruído que ecoava e parecia vir de uma cavidade a distância, de dentro daquela horrível terra fria e úmida. Uns instantes depois, o mesmo som se repetiu: tchok, e só pude pensar naqueles antigos machados de guerra, partindo os crânios dos homens de Sillinger, que gritavam.
Então, eu também já estava longe, subi os degraus úmidos e saí pela porta para o ar livre, passei pelos meus dois amigos que me olhavam com cara de bobos e corri, corri a não mais poder, direto em direção à floresta, com Joe e Gert logo atrás de mim, Joe berrando e Gert soltando gritinhos ofegantes, e eu gritando para eles:
-Eu ouvi! Eu os ouvi dando machadadas uns nos outros!
Não paramos de correr enquanto não alcançamos o córrego, onde nos jogamos na praia coberta de seixos e ficamos ali para recuperar o fôlego. Foi então que uma arma fez barn em algum lugar rio abaixo.
119
-Efeve ser Hon Schuyler -falou Joe, ofegante.
E era. Em alguns minutos ele surgiu, caminhando ao longo do rio, com sua arma no ombro e um coelho morto pendurado no cinto. Naquele tempo, Hon tinha uns 24 anos, um sujeito alto e magro, queimado de sol, ativo, que não era muito letrado, porque nunca foi muito de ir à escola. Mas era um grande conhecedor da floresta, e seria um ótimo batedor índio, se ainda houvesse utilidade para tal anacronismo.
-Foram vocês, crianças, que eu ouvi gritando pela floresta? -perguntou, sorrindo para nós. -Vocês assustaram essa lebre bem para a minha direção.
-Phil viu os fantasmas na casa de Yost, Hon! -contou Gert.
-Eu não disse que vi -falei. -Mas escutei alguma coisa.
Hon disse-nos para esperar ali, e entrou pela floresta na direção da casa de Yost. Voltou dentro de uns 20 minutos e disse que só tinha visto ou ouvido ratos.
-É melhor que fiquem longe daquele velho depósito de entulho -advertiu-nos. -A maioria daquelas vigas e tábuas está tão podre, que é bem provável que despenque a qualquer momento. Sei que seu pai não vai gostar de saber que você estava andando por lá, Phil.
Isso era verdade. Meu pai era p xerife, e sempre dizia que o município devia pôr abaixo a casa de Yost, antes que alguma criança quebrasse o pescoço brincando por lá.
-Não pretendo dizer a ele -falei -se ninguém mais disser.
Hon sorriu para mim:
-Certo. Vamos manter este segredo entre nós quatro. Mas depois disso, procurem um lugar mais seguro para brincar.
Joe e eu nunca mais voltamos à casa de Yost antes dos 15 anos, e nem teríamos voltado então, se não fosse por causa do Harold Edmonds.
Era um garoto novo que se tinha mudado de Nova York e pensava que era grande coisa. Joe e eu não gostávamos muito dele. Estava sempre se gabando de que a cidade grande era um lugar maravilhoso, fazendo-nos sentir como dois caipiras grosseiros.
120
Então, certo dia, nós dissemos:
-Ah, mas não existe uma casa mal-assombrada de duzentos anos na cidade grande.
Isso o interessou e quis saber tudo sobre o assunto. Então, contamos-lhe a história do massacre e do ouro perdido de Sillinger. Harold zombou e disse que aquilo era só um conto de vovó para assustar criancinhas. Disse-me:
-Você não acredita realmente que ouviu um machado de guerra, acredita? Quero dizer de verdade?
-Bem -falei, na defensiva -não sei o que foi que ouvi. Tudo que sei foi que ouvi algo que estava em algum lugar no porão. Você que é tão corajoso, por que não vai lá e vê com seus próprios olhos?
-Claro. Eu quero ir. Mas vocês têm que me mostrar onde é, se tiverem coragem.
Bem, tivemos então que voltar lá, porque ele nos exigia isso. Levamos Harold pela floresta e atravessamos o pátio fantasmagórico coberto de mato e mostramos-lhe o buraco que levava ao porão:
-É lá embaixo.
Harold chutou um seixo solto, que desceu pelos degraus do porão, e sorriu:
-Vocês dois vão vir comigo ou vão ficar aqui em cima de mãos dadas?
Não olhei para o Joe, mas suponho que ele deve terse sentido do mesmo modo que eu. Estaria duplamente desgraçado, se deixasse aquele garoto esperto da cidade me rebaixar. Passei na frente dele e desci sem uma palavra.
Era ainda o mesmo porão úmido e frio com aqueles cogumelos repulsivos crescendo pelo chão sujo; no entanto, de algum modo, aquele obscuro ar de desolação não me pareceu tão sinistro quanto da primeira vez que estive lá. Há uma diferença enorme entre o modo mental de encarar uma situação quando se tem lie quando se tem
15 anos. Estar acompanhado de outras duas pessoas também fazia diferença.
Joe demonstrou um interesse botânico pelo crescimento dos cogumelos, os quais chamou de "mato defunto". Harold andou pelos cantos mais escuros do enorme porão, inspecionando tudo por conta própria. Eu ainda acredi-
121
tava um pouco no Ouro de Sillinger; sendo assim, metime por entre os destroços de baús, barris e mobílias quebradas, e cuidadosamente mexi nos bolos embolorados de velhas roupas apodrecidas e outras coisas disformes e pegajosas, que há muito tempo deviam ter sido jogadas no porão pela família Yost.
Eu vasculhava um velho baú que se desfazia e que tinha umas letras gravadas no lado, e esfreguei com a mão o bastante para tirar um pouco da sujeira e ler: St. Leg... quando Harold gritou:
-Ei, vocês dois, olhem aqui! Existe uma passagem secreta atrás dessas prateleiras.
Joe e eu fomos para o 1'ado norte do porão, onde Harold estava com um palito de fósforo aceso na mão. Uma estante alta, meio inclinada, afastava-se um pouco da parede de pedra e, bem atrás dela, havia uma abertura estreita com mais ou menos um metro e meio de altura. A chama trêmula do fósforo nos mostrava paredes de terra, reforçadas com grossos suportes de carvalho e vigas de madeira de lei..
-Deve ser o túnel de fuga -disse Joe.
-O que é isso? -perguntou Harold.
-Você não sabe nada? As pessoas construíam esses túneis embaixo das casas antigamente, para a eventualidade de ataque de índios. Se não conseguissem espantar os peles-vermelhas da casa, então usavam o túnel de fuga e saíam em algum lugar na floresta, bem longe dos índios, e se livravam com suas cabeças.
-Onde será que este vai dar? -disse Harold, espiando para dentro do escuro túnel, que inspirava claustrofobia. -Que tal se a gente seguisse por ele? Tenho muitos fósforos.
Joe e eu não sabíamos onde aquele buraco assombrado ia dar, e nem queríamos saber. De acordo com a lenda, alguns dos homens do intendente haviam tentado escapar pelo túnel na noite do massacre, mas os' continentais que cercaram a casa eram rapazes da região, que sabiam da existência daquela passagem secreta, e alguns deles estavam esperando na saída do túnel na floresta. E, usando suas baionetas, levaram os soldados ingleses pelo túnel, de volta aos machados de guerra dos índios bêbados que uivavam.
122
-Uh-uh -falei. -A maioria desses túneis antigos não é segura. As vigas estão podres e podem desmoronar.
Harold lançou-me aquele seu sorriso irritante.
-Com medo, nem? Vocês dois dariam uma boa dupla de meninas.
-Vá então, grande homem -disse-lhe com rispidez. -Vamos ver se você consegue atravessar.
-Acha que não? Então olhe.
Vimos Harold passar por trás da velha estante inclinada, abaixar-se e entrar pelo túnel apertado, o fósforo em sua mão emitindo uma espasmódica luz laranja sobre as paredes sujas e em ruínas. A luz foi-se afastando de nós, diminuindo, diminuindo, e depois desapareceu.
Joe e eu ficamos por ali pelo porão por mais uns 20 minutos, esperando que ele voltasse; mas ele não voltou, então resolvemos ir embora.
-Esse bobão da cidade deve estar pensando que nos está enganando -disse Joe. -Provavelmente está escondido na floresta para ver se assusta a gente. Vamos dar o fora daqui.
Eu estava disposto a isso. A poeira e as teias de aranha começavam a me fazer mal. Tinha a sensação de que minhas roupas e minha pele achavam-se pegajosas e de que me encontrava todo sujo.
Saímos e começamos a catar o Harold, andando pela floresta, procurando, chamando por seu nome, por três horas. Então, o crepúsculo começou a descer sobre as árvores, e voltamos para casa. Joe continuava insistindo que Harold nos havia pregado uma peça, que ele estava em casa naquele momento, rindo de nós, sabendo que estávamos dando voltas pela floresta, procurando por ele.
Eu não tinha tanta certeza disso. Achava-me com um pressentimento mórbido de que alguma coisa estava errada, e não sabia bem o que fazer. Telefonei para os pais de Harold assim que cheguei em casa. Eles já estavam ansiosos, e então tive que contar-lhes o que havia acontecido. Não lhes disse que a última vez que vimos Harold ele estava na casa de Yost; dei a entender que nos havíamos perdido dele na floresta.
Meu pai organizou um grupo de busca naquela noite, e um montão de homens e adolescentes começou a per-
123
correr a floresta com lanternas e holofotes. Fui com eles. Hon Schuyler era um de nós, é claro, pois conhecia aquela floresta como ninguém; por volta das nove horas tive oportunidade de falar com ele a sós, e contei-lhe que Harold tinha entrado pelo túnel de fuga.
-Vocês já não foram avisados tantas vezes para ficar bem longe daquela casa velha? -resmungou ele.
-Eu sei, Hon, mas ele insistiu. Acha que pode ter sido pego por um desmoronamento?
-Pode ser, mas não vale a pena aborrecer o resto do pessoal com isso antes de ter certeza. Vou dar uma escjapada e olhar por lá.
O dia seguinte era dia de aula, e os adultos nos mandaram, os mais novos, para casa à meia-noite. Foi quando encontrei Hon novamente. Levou-me para um canto e disse-me que havia atravessado o túnel, mas não encontrara Harold.
-Ele saiu para a floresta -disse Hon -porque vi as pegadas na saída do túnel. Mas sumiram nas folhas. De qualquer jeito, se eu fosse você e Joe ficava de bico calado sobre terem ido à casa de Yost. Vão ficar em apuros com o seu velho, se ele descobrir.
-Claro -falei. -Joe e eu não vamos dizer nada. Encontraram Harold Edmonds no dia seguinte. Quer
dizer, encontraram seu corpo. Estava dentro do rio e ele tinha sido afogado. Havia uma inchação na parte de cima da cabeça de Harold, mas o médico-legista falou que, provavelmente, tinha sido causada por um galho de árvore ou por uma pedra dentro dágua.
A década que se seguiu à morte de Harold Edmond passou voando para mim. Quando tinha 18 anos, ingressei na universidade e, depois disso, fui servir o Exército. Tinha acabado de completar meus 25 anos, quando finalmente voltei para casa.
Meu pai insistiu comigo para que eu entrasse para a procuradoria do município, de modo a começar minha própria carreira política. Apesar de não querer realmente aquele emprego, resolvi pegá-lo por algum tempo, pois me daria a oportunidade de fazer certos contatos e de entender melhor os aspectos legais, definidos de modo muito
124
ambíguo, que regiam um certo empreendimento privado que tinha em mente.
Já estava no cargo de procurador do distrito por quase um ano, quando uma segunda tragédia ocorreu em nossa cidade. Meu amigo de infância, Joe Turpin, foi assassinado.
Umas crianças encontraram o corpo na margem do córrego que corta a Floresta de Yost. Não tivemos nenhuma dúvida de que fora assassinato, pois Joe tinha um corte bem grande na garganta, e o ferimento quase o havia decapitado.
-Não foi uma facada -disse o médico-legista. -Foi feito com um instrumento de lâmina larga, e o golpe foi dado de maneira direta. Pode ter sido um machado ou até mesmo uma pá.
Fui ver a irmã de Joe, Gert. Ela se havia casado com um homem dali mesmo, e Joe, que não tinha arranjado ninguém para se casar, alugava um quarto na casa deles.
-Joe tinha algum inimigo que você soubesse, Gert?
-Não, claro que não. Todo mundo por aqui sempre gostou do Joe. Você sabe disso, Phil.
-Bem, tem alguma idéia do motivo que levou Joe até a floresta ontem? Tinha ido caçar, pescar ou qualquer outra coisa?
Gert olhou para as mãos cruzadas sobre o colo e tremeu.
-Parece horrível quando eu lembro disso agora; Joe falou que estava pensando em fazer uma caminhada pela Floresta de Yost e, brincando, eu disse a ele: "É melhor você não chegar perto da casa de Yost ou os machados de guerra vão pegá-lo." Ele riu e disse que bem que podia dar uma olhada por lá para ver se encontrava o Ouro de Sillinger.
Colocou um punho na boca e ficou assim, depois começou a chorar de mansinho, e coloquei meu braço em volta dela.
-E então -soluçou -e então aquela coisa horrível aconteceu a ele, a sua... como se realmente fosse...
-Tudo bem, Gert -falei, gentilmente. -Tente não pensar mais nisso agora. Deixe por nossa conta. Vamos descobrir tudo.
125
Achava que já estava bem próximo da verdade. Voltei ao escritório, peguei um revólver 38, coloquei-o com uma lanterna nos bolsos, e parti para a casa de Yost.
Nada ali parecia ter mudado. A porta desgastada pelo tempo, com sua bandeira quebrada e seu frontão carcomido, ainda estava de pé, guardando com firmeza seus velhos segredos criminosos. Atravessei o mato e desci pelos degraus do porão.
Iluminando com a lanterna o chão de terra embolorado, passei pelos restos apodrecidos de barris, baús e outras mobílias destruídas, e segui as pedras encharcadas da parede norte até a estante velha que escondia o túnel. Parei na abertura do túnel de fuga, que mais parecia uma cova, e fiquei escutando:
Tchok... tchok.
Ele estava lá dentro cavando, como esteve há anos. Sorri, pensando nas incontáveis horas que ele gastara, procurando por algo que não estava lá. Comprimi-me por trás das prateleiras, agachei-me e entrei pelo túnel movendo-me cega e cautelosamente, acendendo a lanterna raras vezes, temendo que ele visse a luz.
Era um lugar horripilante. Sentia-me como uma topeira escavando para dentro da terra infinitamente inescrutável. Os rápidos raios de luz, que fazia com minha lanterna, brilhavam lugubremente pelo túnel de marga solidificada que se estendia e curvava mais à frente, e me mostravam pequenas marcas rasas, por toda a extensão que ele estivera cavando.
Um repentino brilho forte iluminou uma das curvas do túnel bem à minha frente. Meti a lanterna no bolso e tirei o 38. Em seguida, avancei alguns centímetros e espiei depois da curva do túnel.
Uma lanterna brilhava no chão, e Hon Schuyler estava acocorado sobre ela, cavando o barro com uma pá de cabo curto. Fui até a luz:
-Tinha um pressentimento de que era você o tempo todo, Hon -falei.
Levantou rápido a cabeça e quase se meteu por umas das vigas baixas. A luz da lanterna lançava um brilho demoníaco sobre seu rosto furioso, enquanto se encontrava agachado ali na minha frente, segurando a pá como
126
quem segura um rifle. Passou a língua nos lábios antes de falar:
-É pena que você se tenha metido nisso, Phil.
-Quer dizer, porque agora você vai ter que me liquidar como fez com Harold Edmonds e Joe? Por que você não tentou fazer com que a morte de Joe também se parecesse com um acidente?
Hon sorriu.
-Porque com Joe não foi tão fácil como com o garoto dos Edmonds. -Fez com a pá um movimento significativo. -Tive que usar isso no Joe. Eu não queria, mas o que eu podia fazer? Ele me ouviu cavando e me pegou bem aqui. Passei muitos anos procurando pelo Ouro de Sillinger para depois ter que dividir com outro, Phil. E estou chegando perto agora, sabe? Eu sei que estou.
-Não -eu disse -não está.
-O que é isso, de que não estou! Tem que estar neste túnel. Já procurei pelo resto da casa dezenas de vezes e sei que não está lá. Os homens do intendente vieram por este túnel na noite do massacre, não foi? Mas quando viram que não iam conseguir fugir, devem ter escondido o ouro em algum lugar por aqui.
-Não, Hon. Não está mais aqui. Não está mais aqui há anos.
Um ar de loucura apareceu em seus olhos.
-Você está mentindo! Está tentando enganar-me! Quer ficar com o ouro!
Abri a boca para contar-lhe, mas não me deu chance. Deu uma pancada repentina com a pá no 38, que eu tinha na mão. Pulei para trás, batendo com a espinha e a cabeça, de modo surpreendente, numa viga e num suporte, e nem tive chance de levantar a arma, quando ele veio saltando em minha direção, com aquela terrível pá de lâmina quadrada apontada para cortar, com um golpe, a minha garganta. Atirei, sem pestanejar, com o revólver na altura dos quadris.
O 38 fez uma explosão que deve ter ecoado pelas entranhas da terra, e me encolhi de medo, esperando que o túnel desmoronasse. Começou a cair areia solta sobre as minhas costas curvadas, mas as velhas vigas agüenta-
127
ram e, quando a nuvem de poeira se desfez, vi Hon caído de costas, com a cabeça perto da lanterna. Não parecia perceber que tinha levado um tiro.
-Está... está aqui, sei que está -falou, ofegante. -Uma vez eu... eu até achei umas moedas de ouro bem aqui no túnel.
Agachei-me ao lado dele. Seus olhos tinham um estranho aspecto vítreo.
-Elas provavelmente caíram do baú de Sillinger, quando o arrastei por aqui há cerca de dez anos, Hon. Estava todo estragado e se desfazendo. Temia que você estivesse aí por fora, então quis usar o túnel para chegar à floresta; mas não tive coragem então para atravessar todo o túnel. Finalmente, arrastei-o pela escada para o pátio.
Hon tentava ver-me, mas seus olhos não conseguiam focalizar.
-Você... você...
-É. Tenho o ouro escondido na floresta desde os meus quinze anos. Não sabia o que fazer com ele, porque as leis que regem os tesouros perdidos são tão vagas que tive medo que metade dele fosse confiscado pelo Estado. Mas há uns meses descobri um homem que vai tirá-lo de minhas mãos por um preço justo, e sem perguntas.
-Mentindo... você está mentindo!
-É a verdade, Hon. Encontrei-o no porão no dia em que você matou o garoto dos Edmonds. Joe não percebeu nada, então fiquei de boca fechada e voltei no dia seguinte, enquanto todos estavam procurando pelo jovem Edmonds. Esteve bem ali no porão desde 1777, afundado no meio daquele montão de lixo. Tinha até o nome dele no baú.
-Não! -A voz de Hon estava baixa e áspera. -Eu... eu mexi em todo aquele entulho há anos. Não tinha nenhum baú com o nome de Sillinger. Só roupas velhas e...
-Você devia ter ficado mais tempo na escola, Hon. Aprendemos na oitava série que "Sillinger" é apenas abreviação do verdadeiro nome dele: Barry St. Legger.
Mas esta informação chegou tarde demais para Hon. Ele já não estava mais neste mundo.
128
G. B. Giltord
NÃO CHAME DE ASSASSINATO
Estavam sentados, muito quietos e silenciosos, na sala de estar do apartamento, a mulher e o amante, enquanto esperavam pelo marido.
Ela era pequena, tipo mignon, com uma perfeita pele de marfim, cabelos longos, pretos e brilhantes, e uns olhos verdes, pequenos e oblíquos. Estava usando um négligée, através do qual as formas arredondadas de seu corpo eram apercebidas.
No entanto, o homem nem prestava atenção. Ele era magro de rosto e de corpo, e bronzeado. Os cabelos castanhos eram da mesma cor dos olhos, e estavam úmidos e despenteados. Achava-se em mangas de camisa, o paletó e a gravata jogados em uma cadeira ao lado. Na mão direita, muito sem jeito, nervosamente, segurava uma arma, uma automática pequena, preta, calibre 32.
O pequeno relógio oriental dentro de sua caixa de jade, sobre a lareira, quebrou o silêncio, batendo como sininhos de prata.
-São nove horas -disse o homem. -Ele já não devia ter chegado a essa hora?
-Tony querido -lembrou êla -a chegada do avião não estava prevista para antes das oito e meia,' e são quarenta minutos do aeroporto até aqui. E você realmente não tem que ficar segurando esta arma o tempo todo.
-Não quero que ele chegue de repente e me pegue de surpresa -disse Tony.
129
-De qualquer jeito, vamos ter que ir para o quarto, quando ele chegar.
-Eu sei, eu sei. -Ele não olhava para ela, mas para o tapete.
-Ele nos deve encontrar na cama -continuou ela.
-Bruce pode chegar a qualquer momento agora. Acho que devemos ir para o quarto e ficar preparados.
Seguiu-a, obediente. Na quase escuridão do quarto, ela engatinhou pela cama, apoiou-se em um dos cotovelos, salientando a curva dos quadris. Mas Tony nem olhou para ela. Sentou-se na beirada da poltrona, os punhos sobre os joelhos, a arma balançando vacilante
-Você não parece muito disposto a usar essa arma
-censurou ela.
-Não me sinto muito disposto -disse ele. -Nunca matei ninguém antes.
-Quem matou?
-Não muitas pessoas mataram um homem a sangue-frio, e não gosto disso.
-Querido, quase não vai ser a sangue-frio. Bruce já anunciou, praticamente para o mundo inteiro, que vai matá-lo, se nos encontrar juntos outra vez. Isso transforma tudo em legítima defesa, acho. Se queremos ficar juntos, temos que matá-lo.
-Existem outras saídas. -Seu estado de espírito era de absoluto medo. Ela esperava que o avião de Bruce não atrasasse muito, que Tony pudesse agüentar-se até que Bruce chegasse. Ela também tinha medo, mas estava amparada pelo ódio, do qual Tony não partilhava. Por várias vezes sentira o peso das mãos de Bruce.
-Que outras saídas são essas? -perguntou.
Ele se recusou a responder, ou até mesmo a olhar para ela.
-Quer dizer que você poderia simplesmente sair daqui e me devolver ao Bruce como se nada tivesse acontecido?
Ele estava parado, olhando para a arma.
-Tony, é isso que prefere fazer?
A mulher olhou para o pequeno relógio sobre a mesinha de cabeceira. Se o avião de Bruce havia chegado na
130
hora, seu táxi estaria parando na porta da frente naquele exato momento.
-Tony, sabemos que existe um risco, de qualquer forma, um risco pequeno. Mas concordamos que se deve correr um risco por qualquer coisa que valha realmente a pena. Dezenas de pessoas sabem que Bruce o ameaçou. Também sabem que ele tem porte de arma, que ele sempre a carrega consigo, que ele até a leva em sua bagagem quando viaja. Sabem também que Bruce me deu esse 32 para minha própria proteção, quando ele está fora. E vão entender perfeitamente que um homem atire em sua defesa própria, se alguém está atirando nele. E isso é tudo o que vai fazer, defender-se. Quem vai saber que você atirou primeiro, que depois colocamos a arma de Bruce na mão dele e disparamos várias vezes?
Tony virou-se brutalmente para ela, e depois, com um movimento rápido, jogou a arma em cima da cama, bem ao lado dela.
-Se acha que a arma é o certo -provocou -use-a você.
Ela não tocou a coisa.
-Foi você que foi ameaçado, querido, e não eu. Seria em você que ele atiraria, então é você quem tem que defender-se.
Ele levantou-se da cadeira, cruzou o quarto até a janela, e olhou para fora.
-Nenhum sinal dele ainda -anunciou.
-Pegue a arma -disse ela. -É você quem vai usá-la.
Estava na frente dela, uma sombra alta na semi-escuridão. Parecia tão possível que ele a fosse atacar como o faria com a futura vítima dos dois.
-Existe uma coisa que você se esqueceu -disse ele.
-O que é, querido?
-Sabe quando seu marido vai chegar em casa. No entanto, continua com seu amante a essa hora. Vai parecer que você queria ser descoberta... queria que o tiro acontecesse...
Ela negou com a cabeça.
-Por que não? -perguntou ele.
131
-É claro que nós dois sabemos que ele vai chegar. Mas nos amamos muito. Então, esta noite, estávamo-nos despedindo, pelo menos temporariamente. Sendo assim, tão apaixonados um pelo outro, perdemos completamente a noção da hora. Você sabe como é a paixão, querido.
Afastou-se dela novamente, voltou ao seu posto à janela, O tempo passava devagar. Finalmente, ele disse:
-Há um táxi parando na frente do prédio.
-É melhor você pegar a arma -falou ela.
-Um homem está saindo do carro. Pode ser o Bruce. Está entrando no prédio.
-Agora você não tem escolha, Tony. Se não o matar, ele mata você.
Saiu da janela e foi até a beira da cama, assomando sobre ela:
-Sou um idiota -disse. Mas pegou a arma. Tinham deixado as luzes da sala acesas. Havia luz
também no corredor, mas o quarto permanecia escuro. Era assim que haviam planejado. Bruce teria que vir da claridade para a escuridão. O homem com a arma, escondido na escuridão, teria todas as vantagens.
Ela viu Tony indo para trás da poltrona e se agachando.
-Querido -murmurou, através das sombras -não hesite. Você sabe que Bruce não hesitaria.
Dentro de alguns segundos, ouviu-se um ruído na porta da frente. Ouviram a porta abrir-se, depois fechar-se novamente. Bruce estava hesitante, e hesitar não era uma característica dele. Ângela podia imaginá-lo. Seus ombros largos, todo o seu corpo atarracado estaria tenso, sua cara de buldogue, pensativa.
Mas Bruce fez o inesperado. Em vez de vir procurá-la, apenas chamou:
-Ângela!
Ela não sabia bem o que fazer. Mas não respondeu. Bruce tinha que ser atraído para lá. Não deve ser morto na sala.
-Ângela! -O chamado era mais brusco agora. Mas ela ainda se recusava a responder. -Ângela, sei que está aí. E está com aquele seu cara. Reconheci o carro na rua.
132
Ela quase gritou de raiva. Por que Tony tinha que ser tão estúpido? Ele queria avisar o Bruce, dar-lhe uma chance?
-Ângela -continuou Bruce, finalmente -não tenho muita vontade de assistir a essa cena horrorosa aí. Preferia que você viesse até aqui. De verdade, não precisa ter medo. Não estou nem ao menos surpreso, e não estou zangado. Simplesmente não me importo. Cheguei a esse ponto. Então, temos algumas coisas para conversar.
Bruce não estava enganando ninguém.- Aquilo, de alguma forma, era uma armadilha. Ele se importava sim. Era esperto, mas não era muito bom ator.
Nem, afinal, ele estava assim tão paciente. Veio, então, andando rápido, esquecido da possibilidade de uma emboscada. Quando virou o canto do corredor, eles o viram pela primeira vez. Ainda estava usando o chapéu e o casaco. Quando chegou na entrada do quarto, parou, seus ombros largos quase ocupando toda a largura da porta. Esticou a mão direita para dentro do quarto, tateando pelo interruptor. Era evidente que não trazia sua arma.
Por um segundo, enquanto o marido procurava pelo interruptor, Ângela quase entrou em pânico, com medo de que Tony tivesse perdido a coragem. Desejava agora ter ficado ao lado dele, de modo que, se necessário, ela própria pudesse pegar a arma.
Mas então, simultaneamente, quando Bruce encontrou o interruptor, a arma explodiu. A luz espalhou-se pelo quarto, ainda em tempo para que eles vissem o choque e a surpresa estampados no rosto de Bruce no momento em que a bala o atingiu. Fora um tiro certeiro, ou pelo menos de muita sorte. Ângela viu o pequeno buraco negro no peito direito do casaco. Então, todo o corpo caiu no chão.
Ela foi rapidamente até ele. Tinha caído com o rosto para o chão, mas ela conseguiu virá-lo um pouco. Não havia quase dúvida de que ele estava morto.
Olhou para Tony. Ele se achava de pé, imóvel, a arma ainda apontando para o local onde Bruce se encontrava antes de cair. Seu rosto estava completamente sem expressão, insensível.
Ela passou por cima do corpo com cuidado, correu para a sala. Bruce sempre levava sua arma na maleta
133
menor. Sabia exatamente onde, pois muitas vezes a tinha colocado ali para ele, sempre no mesmo lugar, bem no...
Então, quase soltou um grito. Não havia bagagem nenhuma. Olhou em volta desesperadamente. Depois, de modo irracional, atrás das cadeiras e do sofá. Nada! De novo teve vontade de gritar, mas espalmou a mão sobre a boca, para conter o grito.
Talvez a bagagem ainda estivesse no táxi, que esperava lá embaixo. No entanto, o que poderia dizer ao motorista do taxi para conseguir que ele lhe entregasse a maleta? Correu até a janela, espiou pela abertura entre as cortinas. Nenhum táxi. Nada lá fora. A rua estava escura e deserta, a atmosfera lúgubre. Foi andando, deliberadamente devagar, para o quarto.
-A arma não está aqui -informou.
Por um momento, Tony não pareceu compreender.
-O que quer dizer com não está aqui?
-Ele sempre a levava na maleta. Mas não trouxe nada de sua bagagem.
-Mas você disse...
-Você o viu saindo do carro -ela disse, ríspida. -Por que não me disse que ele não trazia nenhuma bagagem? Ele devia estar dizendo a verdade quando falou que não se importava mais. Ele não devia mais pretender ficar aqui nesta casa.
-Bem, onde está a bagagem?
-Ele tem que ter trazido com ele no avião, logo talvez ainda esteja no aeroporto.
-No aeroporto! Meu Deus!
-Podemos ir ate lá e pegar, se precisarmos. Bruee deve ter os tíquetes...
Tony não esperou que ela terminasse. Já estava debruçado sobre o corpo, vasculhando os bolsos. Chaves, dinheiro, lenço, tudo quanto é tipo de coisa saiu dali. Mas nenhum tíquete. Tony sentou-se no chão, respirando com dificuldade, o corpo inteiro tremendo visivelmente.
-Ele deve ter mandado a bagagem para um hotel -disse Angela, instantes depois. -Se não pretendia ficar aqui, tinha que ficar em algum outro lugar.
134
Tony voltou o rosto suado para ela, suplicante:
-Então podemos ir pegar -começou a dizer.
-Se soubéssemos' em qual hotel -disse ela. -Se fosse em Paris ou em Londres ou em qualquer outro lugar, eu saberia em qual hotel ele estaria. Mas ninguém fica em um hotel na cidade em que mora.
Olharam um para o outro, mas sem amor ou desejo dessa vez. Em vez disso, seus olhos compartilhavam uma expressão de terror, que tendia a uma focalização interna, e não externa, dirigida ao ser antes amado.
Tony estava ensopado de suor. A camisa, toda molhada. E ele tremia violentamente.
-O que vamos fazer? -Era uma lamúria, um gemido, provindo de um patife arrasado.
Ângela sentiu o desejo insano de ajoelhar-se ao lado de Bruce, para despertá-lo, para dizer-lhe que não o amava; que, apesar de ele ter batido nela, pelo menos, ele era um homem... precisava da proteção de um homem.
- Ângela -suplicava Tony -você tem que pensar em algo.
Estava repugnante. Não tinha inteligência, nem autocontrole. Jogava todo o seu peso sobre os ombros dela, para que ela arrastasse os dois. Mas o cérebro dela finalmente funcionou:
-Se Bruce não nos podia ter atacado com o revólver -disse ela, de repente -podia ter sido com qualquer outra coisa.
-Com o quê?
-Com as próprias mãos -sugeriu, com amargura. -Bruce era duas vezes mais forte do que você. Podia tê-lo matado sem qualquer arma.
O insulto não o incomodou.
-Podemos fazer parecer que nós lutamos? -perguntou Tony.
-Por que não? Bruce avançou para você. Podia tê-lo matado, mas você conseguiu pegar a arma e atirou nele. Temos que quebrar um pouco o quarto para parecer que houve uma luta...
Novamente, ele começou a seguir as instruções da mulher antes mesmo que ela terminasse de falar. Deixou
135
que ele fizesse tudo. Ia, furioso, pelo quarto como um maníaco destrutivo. Os abajures quebraram-se no chão. O mesmo aconteceu com as coisas que estavam sobre a penteadeira. As cadeiras foram viradas. As cortinas, fora dos trilhos pela metade, pendiam soltas nas janelas.
-Está bom? -Havia parado e olhava para ela como uma criancinha, esperando aprovação.
Ela tinha assistido a tudo, avaliando friamente. Agora, olhando para a cena de destruição, sabia, instintivamente, que não era suficiente.
-Então Bruce destruiu a quarto -disse ela. -Mas não há nenhuma marca em você...
Tony olhou para ela, primeiro com perplexidade, depois sem poder acreditar.
-Bruce atacou você e não o quarto.
-Mas como...
Ele ficou imóvel enquanto ela atravessou o quarto e pegou um dos abajures caídos. Suspendeu-o para desferir um golpe contra ele.
-Não -disse ele. -Não...
-É isso ou a cadeira elétrica -explicou ela.
Dirigiu o golpe para a cabeça dele. Por um segundo, ficou ali parado, uma vítima relutante. Então, no último instante, levantou o braço e desviou um pouco o golpe. Mesmo assim, a base do abajur arranhou-lhe o rosto e fez com que fosse cambaleando até bater na parede. Ficou encostado na parede, meio tonto, e um pouco de sangue escorria-lhe da boca.
Ela deixou o abajur cair e examinou-o. Será que agora a polícia acreditaria neles? Só um golpe? Só um pouquinho de sangue?
-Por que tentou esquivar-se? -perguntou, furiosa.
-Você podia ter-me matado -gemeu ele.
Mas ela não sentia pena.
-Temos que fazer parecer que Bruce podia tê-lo matado -disse ela. -E ainda não parece. Ura abajur não é uma arma suficientemente mortal, isso é tudo que pode fazer.
136
Saiu correndo do quarto, pisando no morto sem hesitação, e foi para a cozinha. Remexeu por entre as facas, escolhendo finalmente a maior delas. Voltou com a faca para o quarto.
Tony xingou-a quando viu o que ela tinha na mão. Ainda não se havia afastado da parede. Agora, encolhiase de medo contra a parede, os olhos pregados na faca.
-Bruce poderia tê-lo matado com isso -disse ela. -Ninguém pode duvidar de uma faca.
-O que você vai fazer?
-Você tem que sangrar, seu idiota -disse ela. -Tem que sangrar.
Foi andando na direção dele devagar, resolutamente. Mas viu que ele não ia sujeitar-se. Ia tentar desviar a faca, como tinha tentado livrar-se do abajur. Tudo bem, ia parecer mais autêntico desse modo.
-Bruce ia errar o alvo com a arma -argumentou ele em desespero. -Por que não podia errar o alvo com a faca também?
-Você é um covarde -satirizou ela. -Um covarde nojento.
Deu o primeiro bote. Ele tentou sair de lado e, ao mesmo tempo, pegá-la pelo pulso. Mas ela sabia que ele ia tentar fazer isso. Então, apontou a faca para o braço dele, não para o peito, como Bruce teria feito. A ponta atingiu-o bem embaixo do cotovelo. Depois, o próprio ato de lançar o braço para cima fez o resto do serviço para ela. A lâmina cortou-lhe o bíceps quase até o ombro.
Quando a faca saiu girando de sua mão, não tentou reavê-la. Apenas deu uns passos para trás calmamente, examinando o estrago. Tony também olhava, com pavor, fascinado. Era apenas um corte superficial, mas o sangue escorria em abundância pelo braço até os dedos, e ia pingando depois no tapete.
-Muito bem -disse ela. -Agora está melhor.
Muito devagar, ele tirou os olhos da ferida e dirigiu-os para ela. Seu rosto estava contorcido, numa expressão selvagem.
137
-Você gostou, hem? -perguntou.
-Gostei...
-Estou contente com isso, Ângela. -A mesma histeria da voz estava nos olhos. -Mas por que só eu tenho que ser punido? Por que Bruce atacou só a mim?
-Por que foi você que ele ameaçou de morte -lembrou ela, com aspereza. Ele negou com a cabeça.
-Mas quando Bruce entrasse e nos visse juntos, ficaria furioso. Não se lembraria que tinha ameaçado apenas a mim. Iria atrás de você também.
Foi então que ela viu o que ele pretendia.
-Bruce nunca tentaria machucar-me -mentiu.
-Mas compartilhamos desse assassinato, Ângela -insistiu. -Puxei o gatilho contra o caro Bruce, mas é o nosso crime, não apenas meu. Agora, acho que devemos dividir tudo.
Foi até onde a faca caíra e apanhou-a.
-Não! -Ela tentou não gritar.
-Queremos que tudo pareça certo, não é? -continuou, zombando dela, é claro.
-O que você vai fazer?
-Você tem que sangrar -disse ele, usando de novo as palavras dela.
A mulher não tinha para onde ir. Ele já estava entre ela e a porta. A faca estava na mão dele, suspensa de modo ameaçador.
Mas ele não faria isso. Disse a si própria que ele não faria. Ele amava demais sua pele macia para cortá-la com uma faca.
-Tony, por favor...
"'.' -Em partes iguais, querida.
Ele já estava sobre ela, empurrando-a contra a parede. O antebraço esquerdo apertava-lhe o pescoço e os ombros, seu corpo imprensando o dela. A mão direita estava livre com a faca.
-Meu rosto não, Tony!
Mas já não. era mais o seu Tony dócil e obediente. Estava louco... um cão ferido, sangrando.
138
-Não entende, querida? Bruce iria ressentir-se de sua beleza. Iria tentar estragá-la. Um bom toque, não acha?
Sentiu a dor no rosto. E foi talvez a dor... ou o pavor de ver seu rosto desfigurado. Mas seja o que for, deu a seu pequeno corpo uma força repentina, suficiente para empurrá-lo para longe dela.
Daí em diante, moveu-se inteiramente por instinto, sem nada ver, sem parar para descobrir as razões. O revólver estava no chão, por entre os cacos do que estava sobre a penteadeira. Com um mergulho, pegou-o. Mas não perdeu tempo tentando reequilibrar-se. Apenas virou-se e apontou a arma para Tony. E continuou apertando o gatilho até que apenas um estalido vazio fosse ouvido.
O quarto ainda ressoava com o eco dos tiros, quando ouviu um outro som. Alguém batia. Alguém batia com força na porta da frente. Mas seu cérebro não respondeu de imediato. Não conhecia ninguém que pudesse estar batendo à sua porta a essa hora da noite.
-Tony -disse, mecanicamente. E então lembrouse. Tony estava no mesmo lugar onde havia caído, atravessado na cama, e tinha uma mancha vermelha, franzida no lençol, escorrendo pelo lado da cama como uma cascata vagarosa. Ele não se movia nem lhe respondia.
Como posso explicar tudo isso?
O problema alarmava sua mente, tomando toda sua atenção, de modo que nada mais penetrava. Estava completamente só no seu próprio mundo com dois cadáveres. Pense... concentre-se...
Meu pobre rosto... Não, esqueça o rosto... Não, não, vai ter que ser explicado. Quem fez isso? Tony, isso mesmo... Suas impressões digitais já estão na faca... Mas, quem apunhalou Tony?... Bruce, é claro... Brube apunhalou todo mundo... Então, as impressões digitais de Bruce... Pegue a faca na mão de Tony e ponha na de Bruce... e ponha as impressões digitais dele... Mas, e a arma?... Quem atirou em Tony?... Ela não... Ela era apenas uma espectadora... A causa de tudo aquilo, porém apenas uma espectadora... Dê a arma a Tony... Ele atirou em Bruce... Mas quem atirou em Tony?...
139
As impressões de quem tinham que estar no revólver agora?
O problema era muito complicado. Quando a porta da frente foi arrombada, e logo depois um policial confuso ficou à porta do quarto, assistindo às suas manobras estranhas, a mulher virou-se para ele, pedindo ajuda.
-Devo tirar o revólver da mão de Tony? -perguntou. -Não... não... Deve parecer que eu atirei em alguém?... Mas não atirei.. Tony foi ferido e matou Bruce com um tiro. Devo tirar minhas impressões digitais e devolver a arma a Tony?... Meu rosto está horrível...
140
Michael Brett
CONSOLO. EM TERRA DE ESTRANHOS
De seu quarto em um hotel ordinário no meio da cidade, Vernon Dross olhou para baixo, para o interior de uma loja de fachada iluminada do outro lado da rua. Podia ver a quiromante trabalhando. A mulher de cabelos negros, usando um vestido de cores fortes e um decote baixo, acenou para um homem que passava. O homem parou, olhou em volta, na dúvida, depois, timidamente, entrou na loja e entregou seu dólar. Dross pensou que aquele era um homem que acreditava estar fazendo uma grande farra na cidade pecaminosa, só que não ia encontrar aquilo ali. O mais provável era que a mulher segurasse suas mãos e se aproximasse bastante enquanto lia a palma. Ele ficaria tão absorto que não veria a mão habilidosa, que sairia rapidamente de detrás das cortinas, nem sentiria o puxão suave quando a carteira lhe fosse tirada do bolso.
Era espantoso o pequeno número de vítimas que ia à polícia dar queixa. Provavelmente, as razões para essa relutância eram a vergonha de terem caído no golpe e o risco de que sua adoidice fosse revelada a suas esposas. Eram do tipo com o qual Vernon não simpatizava; idiotas procurando confusão. Eram pessoas vazias tentando preencher suas vidas vazias, buscando os prazeres do mundo e não sabendo como fazer para encontrá-los.
Virou-se e foi até o armário e olhou para a coleção de roupas com certo deleite. À direita, havia uma calça larga de cor cinza, pendurada com esmero, e camisas da mesma cor com o monograma da garagem, onde traba-
141
lhava como vigia no estacionamento. Uma capa de chuva separava os uniformes das outras roupas. Seus olhos passaram para os ternos caros, feitos sob medida. Escolheu um azul-escuro e colocou-o sobre a cama com cuidado, depois separou um par de finos sapatos ingleses. Foi até a cômoda para pegar uma camisa branca e uma gravata de seda, e colocou-as, cuidadosamente, ao lado do terno. Voltou até a cômoda.
Vernon Dross mirou-se no espelho prateado. Vernon Dross, um homem de 45 anos, sem importância, com um rosto totalmente desconhecido, um homem que ninguém, em muitos anos, havia realmente olhado, ou realmente visto. Os olhos sorriram de modo perceptível. Vernon Dross sabia quem realmente era.
Afastou-se do espelho, foi até a janela e levantou-a. A noite estava fria e escura, caía uma chuva fina e contínua. As nuvens encobriam a Lua. Era o tipo de noite na qual um homem poderia fazer muitas coisas. Poderia perder-se, ou, se quisesse, até mesmo encontrar um certo consolo. Estava lá fora, à espera.
Fechou a janela calmamente. Agora que se havia decidido a sair, mal podia esperar para deixar o quarto. Vestiu-se rapidamente e foi até a gaveta de cima da cômoda, onde apanhou um enorme anel de zircão, que colocou no dedinho da mão direita.
Depois, desceu três lances de uma escada estreita até o vestíbulo. O empregado do hotel era uma ave de rapina com um bico áspero e selvagem e 12 fios de cabelo empastados por cima da cabeça brilhante. Olhou de sua escrivaninha e sorriu.
-Vai sair de novo, Sr. Dross? Ela deve ser muito importante para o senhor arrumar-se todo assim. Por que não a traz por aqui, pra gente dar uma olhada?
Uma mulher estava em um canto escuro. Ela era um rosto com uma mecha de cabelo e usava uma mancha vermelha na face esquerda. Lançou um sorriso horrível para Dross.
-Como vai, bonitão? -disse.
-Não posso parar -respondeu Dross, sorrindo. -Tenho um serviço a fazer. -E continuou andando.
-Se precisar de alguma ajuda com ela, pode dizerme -gritou-lhe o empregado.
142
Vernon saiu na chuva e andou até o outro lado da cidade. Eram 11 e meia. Alguns teatros já estavam terminando suas seções. Uma multidão de pessoas desconhecidas invadiu a rua. Pedaços de conversas, risadas e o cheiro de perfume envolviam-no. Sentia as pessoas sufocando-o. Andou com passos largos, rápido e decidido, rumo a seu destino.
Era um bar com pouca luz, chão atapetado e sem televisão. Uma' divisória em nogueira, batendo na altura dos ombros e coberta com flores artificiais, separava o bar do restaurante. O bar estava cheio. O barman usava uma jaqueta vermelha, uma gravata borboleta preta e uma faixa indiana. Os fregueses eram bem vestidos.
Encontrou um lugar, e o barman aproximou-se e colocou um porta-copos à sua frente.
-Boa noite, senhor. -Sorriu. -O que vai querer?
Vernon fez seu pedido e foi servido de um conhaque de 25 anos. Bebeu um gole, apreciando o fino buquê. Não havia pressa. Sabia que encontraria o lugar certo para o seu propósito.
Depois de uma curta espera, houve uma troca de lugares no bar e, não inesperadamente, uma morena sentou-se a seu lado. Vernon moveu seu banco de modo a dar-lhe mais espaço, e ela sorriu e sussurrou:
-Obrigada, senhor. - Lançou-lhe um audacioso olhar de avaliação.
Sem querer, quase riu dela; uma garota de bar, que ficava ali para vender bebidas para a casa. Ela era tão evidente com seu vestido branco, justo e brilhante, enfeitado de pérolas. Seu cabelo dava a impressão de que ela acabara de sair do cabeleireiro.
Fingia esforçar-se para chamar a atenção do barman, mas ele, de maneira estudada, a evitava, concentrando-se em um outro freguês no outro lado do bar.
Vernon, casualmente, tamborilava sobre o bar com a mão do anel e, com o canto dos olhos, notava que os olhos dela estavam no zircão. Vernon disse amável:
-Está muito ocupado. -Tossiu, numa imitação de um homem ligeiramente embaraçado. Depois, disse: -Não me considere atrevido... gostaria de pagar-lhe um drinque.
143
A mulher lançou-lhe um sorriso repentino e totalmente ensaiado:
-Bem, muito obrigada.
Vernon estendeu a mão sem olhar para o barman e estalou os dedos. No mesmo instante, o homem se aproximou
-Pois não, senhor.
-O que gostaria de beber? -perguntou Vernon à morena. Ela deu um arisadinha,
-Vai arrepender-se de ter perguntado. Bebo champanha.
Vernon pediu o melhor da casa; e o barman trouxe vinho branco, cobrando de Vernon 250 por ele.
-Como é que está? -indagou Vernon à morena. -Boa safra?
-Excelente -respondeu a garota.
Apresentaram-se. Ela era Allegra e ele, Wallace Crawford, um negociante de diamantes.
-Imaginei isso mesmo -disse ela. -Nunca vi nada tão adorável quanto esse anel que está usando.
-Este é o meu capital de comércio -disse, com modéstia. Exibiu o anel. -Vale quinze mil dólares. -Soltou uma risada polida. -Você não esperava que um homem que negocia com diamantes usasse um anel barato.
-Acho que não. -Aproximou-se mais. -Os diamantes sempre me fascinaram -disse ela, olhando-o dentro dos olhos, com uma expressão cheia de promessas.
Vernon fitou-a. Ela sabia usar todas as artimanhas do prazer. Ela se vestia de falsas promessas. Dross a odiava, mas, ao mesmo tempo, sentia o ímpeto ficar mais forte.
O desapontamento dela foi enorme, quando ele lhe disse que tinha que retornar ao hotel do outro lado da cidade, de volta para sua mulher, que o esperava.
-O jantar foi muito pesado -disse ele. -Vou andar um pouco para fazer a digestão. Tenho que andar muito para voltar para casa.
A mulher fez uma pressão suave no braço dele.
-Não vá. É tão cedo. Podíamo-nos divertir muito,
Wally.
144
-Estou certo que sim. -Olhou para o relógio. -Amanhã vai ser um grande dia para mim. Tenho que acordar cedo.
Pagou-lhe mais um drinque e saiu pela noite, andando devagar pelas ruas escuras e vazias, à escuta. Não ouviu nada por dois quarteirões e, então, notou os passos atrás de si. Era um homem só. Sempre se podia saber. Um homem procurando uma vítima. A garota no bar havia mandado um caçador em seu encalço. O zircão havia funcionado.
Vernon suspirou. Talvez se alguém tivesse conversado com aquela garota há anos, antes dela ter-se decidido a iniciar aquela sua carreira barata, de segunda... Talvez se alguém tivesse avisado o homem que o.estava seguindo de que havia perigo na escuridão... Talvez se ele próprio, Vernon Dross, não soubesse o que era ficar completamente imóvel numa noite fria, escura e nevoenta, na Coréia, prestando atenção, realmente prestando atenção aos passos do inimigo, que avançava com cuidado... O negócio é que o inimigo nunca esperava que Vernon Dross estivesse ali, aguardando. Era o elemento surpresa que sempre fazia tudo.
Agora, os passos achavam-se mais próximos.
Vernon andou mais devagar, por causa de um homem que caminhava à frente. Quando o homem virou a esquina, Vernon começou a andar muito mais rápido. Havia o estacionamento ao ar livre perto da esquina, e Vernon sabia que não tinha vigia ali depois da meia-noite. Vernon ficou no estacionamento, esperando, agachado, em silêncio e encolhido atrás de um carro.
Isso levou-o de volta às noites longas e escuras na Coréia, quando saía em suas próprias missões de patrulha particulares, sem a aprovação ou permissão do comandante da companhia. Por alguma razão, seu corpo tremia. Procurou pela faca que trazia embaixo do cinto e segurou-a na mão direita. Era a mesma arma com que tinha matado três desatentos soldados inimigos, em suas desautorizadas patrulhas de busca e destruição.
Os passos na calçada molhada estavam bem próximos agora. A antecipação do homem virando a esquina dava uma dimensão agradável ao serviço.
145
A sombra entrou no estacionamento. O homem estava ereto. Era típico da confiança excessiva e da estupidez do assassino, que entrasse assim, com a luz da rua batendo sobre o seu ombro, delineando-o. Era um erro. Estava seguindo um rótulo, um homem bem vestido, de meiaidade, fraco, usando o que pensava ser um anel com diamante de 15.000 dólares. Não esperava que sua vítima resistisse.
Não podia ver Vernon até antes que fosse tarde demais. Vernon pulou de sua posição e enfiou a faca no estômago do homem.
Ouviu-se o som de uma inspiração aguda, seguido de um tilintar metálico, quando um tubo de ferro caiu das mãos do agressor. Este apertou a barriga e caiu, morrendo sobre o concreto. Vernon ajoelhou-se e tirou a carteira do homem. Sentiu, com uma satisfação ainda maior, o bolo de notas dentro dela e depois, sem contá-las, transferiu a carteira para o seu próprio bolso.
Vernon não viu ninguém, quando espiou para um lado e para o outro do quarteirão. Foi andando, sem pressa, em direção ao hotel. Vernon sentiu a mesma sensação de contentamento que sempre experimentava depois que tudo estava terminado. Viu pessoas andando de mãos dadas, rindo na chuva. Não olhavam para ele uma segunda vez. Sorriu e reiterou o que sempre soube toda a sua vida. Quando um homem é sozinho numa terra de estranhos, procura consolo onde quer que possa encontrar.
146
Hal Ellson
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR
Era domingo à tarde, mas o Gato Negro achava-se agitado, o bar e as mesas cheias, os fregueses fiéis estavam presentes; um grande dia, com mais quatro horas de comida e bebida, antes que o primeiro touro explodisse pela arena, nos subúrbios de Montes. Atrás do bar, Pancho bateu de leve em dois odres de vinho espanhol, tinto e branco.
-Para brindar os touros -riu.
-Como se precisássemos disso -replicou Fiala, erguendo sua tequila.
-Hoje deve ser bom. Um grande matador da Espanha e dois dos nossos melhores.
Fiala ergueu de novo o copo, e uma mão tocou seu braço.
-Ah, Domingo. Vai à arena conosco?
Domingo negou com a cabeça solenemente e estendeu a mão. Um anel de desenho original achava-se na palma de sua mão.
-Podemos conversar lá fora, Victor?
Um pedido estranho, mas Fiala encolheu os ombros, e ambos saíram para a calçada. O sol estava quente, a rua, deserta.
-Trabalho meu -disse Domingo, fazendo o anel pular na palma de sua mão. -Há vinte anos, vendi-o a Juan Montanez. Lembra-se dele? Segundo os boatos, fu-
147
giu com uma mulher. -O anel brilhava ao sol, agora que Domingo o levantava entre o polegar e o indicador. -Está interessado? -falou, olhando através do anel. Uma velha história já enterrada, deixe pra lá. Além disso, havia um bom espetáculo na arena hoje, e Fiala estava de folga.
-Talvez amanhã -começou a dizer, depois parou, vendo a dor no rosto de Domingo. -Tem certeza de que é o anel de Montanez?
-Não vou conhecer meu próprio trabalho, Victor?
-Está certo. Então você tem o anel que vendeu a Montanez, que desapareceu há vinte anos com uma mulher. Quer concluir alguma coisa com isso?
-Você poderia. Estranho, não é, que ninguém conheça a mulher que fugiu com Montanez, ou se ela existiu algum dia. E agora, vinte anos depois, o anel aparece?
Às quatro e meia, na praça de touros... Luis Sequra, Jesus Cordorva, Jaime Bravo... três grandes matadores... Fiala suspirou.
-Estranho -admitiu. -Como conseguiu o anel?
-Alvarez, o guia, trouxe na minha loja.
Fiala meneou a cabeça. O Sol estava quente demais ali fora, seus amigos divertiam-se atrás das grossas paredes do Gato Negro; o som de suas vozes e da música chegavam até ele.
-Vai procurar por Alvarez? -perguntou Domingo.
-Depois da tourada. Não quero perdê-la.
-Muito obrigado.
-Por quê?
-Montanez era meu amigo. Nunca acreditei naquela história da mulher. Talvez a gente descubra a verdade agora.
Vinte anos depois? Fiala encolheu os ombros:
-Minha bebida está esperando por mim.
-Aproveite. Olhe, você pode precisar disto. -Domingo entregou-lhe o anel, e começou a afastar-se.
-Qual é o problema, Victor? -perguntou Pancho, quando Fiala sentou-se de novo no bar.
148
-Por enquanto, nada.
-Ainda vai conosco?
-Eu não perderia a tourada por nada neste mundo.
Montanez desaparecido há 20 anos; estranho que seu anel apareça. O que significaria? Como Alvarez teria conseguido o anel? As respostas podiam esperar. Fez um aceno com a cabeça para o copo. Pancho o agraciara com a melhor tequila e uma Carta Blanca pequena para acompanhar.
Quatro e quinze; os ponteiros do relógio atrás do bar indicavam. Era hora de partir para a arena.
-Terminem suas bebidas -avisou Pancho. -Vou fechar as portas.
Os copos se esvaziaram rapidamente, cadeiras foram arrastadas; os carros se alinhavam ao longo do meio-fio, no lado de fora. Uma multidão alegre de bêbados entrou neles. Pancho trancou as portas da cantina e, com os odres amarrados sobre o ombro, andou com passos irregulares até o meio-fio, escorregando para o assento ao lado de Fiala. Seguiu-se uma louca viagem, através de ruas vazias, até a arena. A oeste, o Sol estava vermelhosangue, as arquibancadas, coloridas com o mesmo matiz violeta, a multidão entrando, a banda tocando. Pancho soltou os odres de vinho.
-Um brinde à banda!
Mãos firmes conduziam os vinhos espanhóis, tinto e branco, e bocas abertas recebiam os líquidos que jorravam.
-Sua vez, Victor.
Surdo, Fiala estava olhando para um homem que acabava de sair de um carro.
-Victor? -Pancho estendia o odre de vinho, mas Fiala deu-lhe as costas e afastou-se.
-Senor Alvarez.
-Ah, Victor. Um tíquete para a tourada?
-Já tenho o meu. -Fiala abriu a mão. O anelbrilhou na palma. -Vendeu este anel para Domingo?
-Sim. Algum problema?
-Talvez. Onde o conseguiu?
149
-Comprei-o de Francisco Marti por cem pesos.
-Barato para um anel como este.
-Ele precisava do dinheiro para a loteria. Estava desesperado.
-Onde posso encontrar Marti?
-Estava no escritório quando saí.
-Muito obrigado. -Fiala afastou-se. Seus amigos tinham-se dirigido aos lugares marcados nas arquibancadas. Só Pancho esperava no portão.
-Pensei que fosse pular fora, Victor.
-Está muito quente para pular. Vou andando. -Fiala pegou o odre de vinho, ergueu-o, e abriu a boca para um jato do tinto espanhol. -Bom! -Devolveu o odre e enxugou a boca. -Lembranças aos touros. Vejo-o à noite... talvez.
-Sabia que havia algum problema, mas pensei que estivesse de folga hoje.
-Também pensei -respondeu Fiala, e dirigiu-se para seu carro.
Rapidamente, estava no escritório central dos guias. Marti achava-se do lado de fora. Fiala cumprimentou-o e mostrou o anel.
-Vendeu isto a Alvarez?
-Vendi. Por quê?
-Gostaria de saber onde o conseguiu.
-Comprei-o por cinqüenta pesos.
-Alguém devia estar desesperado. Quem foi o vendedor?
-Três garotos engraxates na praça grande. Um deles conversou comigo, mas estavam todos na jogada. Roubaram o anel de alguém?
Fiala encolheu os ombros:
-Não sei. Acha que pode dizer-me quem são os garotos?
-Se estiverem por lá.
Uma pequena caminhada por uma rua estreita levou-os à praça. Marti indicou com a cabeça:
-Lá estão eles.
Bem em frente, à sombra de uma laranjeira, três garotos desocupados estavam agachados sobre suas caixas
150
de engraxate. Fiala agradeceu ao guia e continuou sozinho. Sua sombra atingiu os garotos antes que eles tomassem consciência de sua presença, e o anel refletiu-se-lhes nos rostos.
-Muito bem, onde conseguiram isto? -perguntou Fiala. -É melhor contar, ou vão ter problemas.
Rostos indígenas, escuros, viraram-se para ele, sem expressão.
-Você aí. -Fiala espetou um dedo na direção do garoto mais alto. -Vamos lá, pode ir falando.
Um par de olhos negros, no rosto redondo do menino, olhava fixo para Fiala. Inventando uma mentira, ou amedrontado demais para falar?
-A verdade, ou não trabalham mais aqui.
-Senor, achamos o anel. Fiala negou com a cabeça:
-A verdade.
Os três garotos trocaram olhares, não havia dúvida de que estavam amedrontados.
-Senor, achamos o anel -repetiu o menino.
-Onde?
-Na praça.
A resposta esperada, mas não a verdade; falou ríspido com os meninos:
-Vocês roubaram o anel. Venham à delegacia. Todos vocês.
A ameaça funcionou. O garoto menor encontrou a língua e falou que tinham achado o anel numa caverna.
-Ah, agora é uma caverna. Não me venha com essa.
-É verdade. Estávamos procurando pontas de flechas para vender aos turistas.
-E onde é a caverna, garotinho?
-No canyon do Falcão.
Uma explicaçãozinha limpa, mas por que a mentira inicial? E o que o anel estava fazendo na caverna? Fiala olhou para o relógio. Levaria meia hora para chegar até o canyon, bastante tempo antes que a noite caísse.
151
-Muito bem, vamos até a caverna.
Silêncio, os olhos negros arregalaram-se de medo, algum problema, ou pegara os três em mais uma mentira?
-Vamos lá, levantem-se.
Três relutantes garotos ergueram-se de suas caixas, pegaram-nas e foram para o carro de Fiala. Quando o detetive abriu a porta para eles, o menor virou-se de repente e fugiu. Deixe pra lá. Seus dois companheiros olharam para cima, e o maior disse:
-Ele correu, porque tem medo de ir à caverna.
-Por quê? Há alguma coisa lá?
-Um esqueleto, senor.
Uma estrada boa levou-os para fora da cidade. Vinte e sete minutos pelo deserto, e entraram no canyon. Lá, sob a luminosidade acinzentada e o silêncio, o caminho estreitou-se por entre precipícios desprotegidos e, depois, desapareceu. Fiala continuou pelo leito de um córrego seco. Logo, o canyon alargou-se de novo, e um pequeno bosque surgiu diante deles.
-É aqui o lugar, senor.
Dentro do bosque, a sombra era densa, nada se movia, o silêncio era lúgubre. Fiala saiu do carro. Os garotos seguiram-no; o maior apontou para uma rampa íngreme, coberta de arbustos, e Fiala estremeceu. Subir a escadaria de ferro da chefatura de polícia já era bem ruim, mas isso... Os dois garotos foram na frente, ágeis como cabritos, e ele seguiu, seus 50 anos pesando, mas em algum lugar lá em cima havia uma caverna e um esqueleto. Montanez?
A subida continuava. Suas pernas doíam. Olhou para cima e não viu nem sinal dos garotos. Será que eles o haviam enganado e fugido?
-Alô! -Sua voz ecoou pelo canyon. Então, logo acima dele, seus guias apareceram, fitando-o de olhos arregalados:
-Aqui, senor -disse o maior.
Pedras caíam com estrépito pela rampa, enquanto ele subia até onde estavam os meninos. Quando os alcançou, os dois garotos estavam olhando para a entrada da caverna. Então não tinham mentido. Fiala tirou uma
152
lanterna do bolso. A entrada da caverna tinha pouco mais de um metro de altura, e lá dentro, a escuridão. Haveria cobras? Por um momento, Fiala hesitou; depois, inclinou-se e entrou.
Deu 20 passos e parou, e lá sobre o chão da caverna, totalmente branco contra o calcário pálido, estava um esqueleto. Montanez? Alguma coisa brilhou sob a luz da lanterna. Abaixou-se, pegou, uma fivela de cinto e um par de dados. Nada mais. Balançou a cabeça, virou o raio de luz de novo em direção aos ossos extremamente brancos, depois retirou-se da caverna.
As sombras já desciam sobre a praça quando o carro chegou de volta a Montes. Fiala agradeceu aos garotos, dando a cada um uma nota de cinco pesos. Já era tarde demais para voltar à arena. Encolheu os ombros e colocou a mão no bolso. Tirou a fivela e os dados. As iniciais J. M. estavam na fivela; interessante. A seguir, examinou os dados e saiu com o carro.
O Gato Negro tinha reaberto; e vozes altas vinham de seu interior. Entrou pela porta lateral.
-Ah, Victor, você perdeu. O que aconteceu? Qual é o nome dela? Você nos decepcionou.
Indiferente àquele bombardeio verbal, Fiala foi até o bar, e Pancho balançou a cabeça:
-O melhor, e você tinha que dar o fora.
-Sinto muito, mas... -Fiala tirou os dados do bolso e entregou-os a Pancho. -Sua opinião sobre eles.
Pancho avaliou o peso deles, franziu a testa, rolou-os pelo bar. Deu sete. Um acidente, probabilidade, ou o quê? Pancho fez uma careta.
-Chumbados -disse. -E daí?
-Queria confirmar o que tinha pensado.
-Só isso?
-Deve ter tido uma tarde interessante.
-Muito.
-Vai beber o quê?
-Uma Carta Branca pequena. Estou com pressa.
-Vai morrer trabalhando -disse Pancho, abrindo uma garrafa.
153
Fiala ignorou o copo e esvaziou a pequena garrafa de um só gole. Um catálogo telefônico estava sobre a extremidade do bar. Pegou-o, procurou o endereço da casa de Domingo e dirigiu-se para a porta. Gritos de espanto, vindos das mesas, acompanharam-no até o lado de fora. Entrou em seu carro e partiu. Dez minutos depois, batia à porta dá casa de Domingo.
Após uma pequena espera, Domingo veio atender e convidou-o a entrar no pátio.
-Aceita alguma coisa para beber, Victor?
-Obrigado, mas não tenho tempo. Preciso de algumas informações da esposa de Montanez.
-Se é sobre o marido, não vai querer falar sobre ele. Mas talvez eu possa ajudar.
-Lembra-se de quando Montanez desapareceu?
-Sim. Almoçamos juntos naquele dia. Era uma quinta-feira. Na sexta, íamos ao Festival de San Marcos, uma coisa que ele nunca perderia, mas não apareceu. -Domingo encolheu os ombros. -Na noite seguinte, ouvi dizer que ele tinha fugido com uma mulher. Mentira, é claro.
-Por que pensa que é mentira?
-Por que eu saberia se ele estivesse envolvido com alguém até a esse ponto.
-Mas havia uma mutfier?
-Muitas, mas nenhuma delas significava coisa alguma para ele.
-Talvez tenha dito alguma coisa a uma delas, uma mulher ciumenta. Ela poderia ter...
-Não eram casos, Victor. As mulheres eram pagas, cada vez uma diferente, logo...
Fiala meneou a cabeça.
-Foi numa quinta a última vez que você o viu. Na sexta iam ao Festival de San Marcos. Por que ele nunca deixaria de ir?
-Uma semana inteira de jogos. Sempre esperava por isso.
Os dados encontrados jiaílo ao esqueleto... Fiala tocou o bolso onde eles estavam.
154
-Então Montanez gostava de jogar?
-Ah, gostava.
-E gostava de ganhar?
-Quem não gosta?
-Alguns gostam de ter certeza de que vão ganhar.
-Está sugerindo que Montanez roubava no jogo?
-Ele pode ter roubado.
-Se roubava, eu nunca soube.
-Há muitas coisas que nunca sabemos de nossos amigos.
-Aonde quer chegar?
-Se ele foi pegado roubando, podia ter havido uma discussão. A discussão pode ter acabado de modo bastante trágico.
Domingo estava quieto, muito pálido agora.
-Quinta-feira à noite -disse, finalmente. -Toda quinta, sem falta, o jogo de dados no rancho de Garcia.
-Ele foi para lá depois que se encontrou com você naquela última quinta-feira
-Não sei, mas podemos descobrir. Normalmente ia para lá com Justo Trevino. Vou telefonar para ele e...
-Não, eu mesmo vou procurar Trevino. Muito obrigado.
O filho de Justo Trevino abriu a porta para Fiala. Não, seu pai não estava em casa, mas talvez pudesse ser encontrado nos Três Reis, uma cantina próxima à prefeitura. Fiala a conhecia bem. Um buraco freqüentado por um pessoal louco, o lugar estava em algazarra, quando ele entrou. Trevino havia estado lá e saído com um grupo para o Seville.
Fiala foi até lá e entrou no restaurante. Era uma hora de pouco movimento, e apenas uma das mesas achava-se ocupada; quatro homens, bastante embriagados, estavam à mesa, e quatro músicos, em pé ao lado, tocavam Olhos Verdes, enquanto os comensais bêbados acompanhavam. Fiala esperou que terminassem, depois aproximou-se e perguntou por Trevino.
-Esteve aqui e saiu com um amigo -explicou um deles, -Era cabrito grelhado ou uma garota grelhada para ele. Preferiu a garota.
155
-Onde posso encontrá-lo?
-Na Senora Gongora. Conhece?
Fiala fez um aceno com a cabeça e dirigiu-se para a porta, enquanto atrás dele os músicos começavam a tocar o hino da cidade; música excitante, um grande dia, noite melhor ainda. Perdi a tourada, pensou. E a essa hora poderia estar no Gato Negro. Meu dia de folga. Uma piada. O que estou fazendo? Há vinte anos Montanez desapareceu. O esqueleto, o anel, a fivela e os dados dele? Um mulherengo. Será que uma garota ciumenta o liquidou... ou será que um par de dados chumbados o mandou para a eternidade?
-Senor.
Um homem alto, com um sombrero, saudou-o e abriu a porta da Senora Gongora. Havia lama do lado de fora, mas, dentro, uma decoração extravagante, um bom bar, saletas privativas com características sem igual para cavalheiros cansados; e garotas bonitas, é claro. Fiala lançou-lhes um olhar apressado e perguntou por Trevino. O barman acenou discretamente com a cabeça na direção de um homem bonito, de cabelos acinzentados. Fiala aproximou-se e apresentou-se. Sentia incomodar, mas precisava de algumas informações.
Bêbado, mas de boa vontade, Trevino saiu do recinto:
-E o que deseja saber, senor? -perguntou.
-Era amigo de Juan Montanez?
-Um grande amigo.
-Há vinte anos ele desapareceu, mas talvez se lembre dos jogos de dados no rancho de Garcia?
-Lembro-me.
-ótimo. A última vez que viu Montanez foi no rancho?
-Foi. Fomos para lá juntos.
-Naquela noite aconteceu alguma coisa, como uma discussão ou uma briga?
-Saí cedo, senor, mas não creio que tenha acontecido nada. Éramos todos grandes amigos, e...
-Quem mais estava no rancho naquela noite? Os nomes e onde moram.
156
-Basilio Mendez, Juan Espada, Gregorio Diaz. Sabe onde encontrar Garcia. Mendez mora em algum lugar em Rosário. Espada e Diaz? Perdi contato com eles.
-Muito obrigado. Vou encontrá-los. Divirta-se. Fiala voltou para o carro. Quatro nomes anotados em
sua caderneta, o anel, os dados e a fivela em seu bolso, o esqueleto na caverna... um bom dia de trabalho. Partiu, parou no Gato Negro, mudou de idéia quanto a entrar e foi para casa.
-Não mora mais aqui? -falou sua filha, rispidamente, quando abriu a porta.
-Um dia cheio -sorriu, e foi para o pátio, para sua cadeira favorita sob o abacateiro. Afundando na cadeira, olhou para cima. Aurora fitava-o. -Não, não estava no Gato Negro -sorriu. -E perdi a tourada. Estava trabalhando.
-No seu dia de folga?
-Apareceu algo importante.
-Não admira que pareça tão cansado. Deve estar com fome.
-Com sede. Pode trazer-me uma gelada.
-Era melhor ir para a cama.
-Uma idéia agradável, mas tenho que fazer uns planos para amanhã. E agora, se não se importa, a cerveja...
Duas cervejas geladas, e dormiu sob o abacateiro. Com as primeiras luzes da manhã, um pombo o acordou. A casa achava-se em silêncio. Saiu, parou para tomar um café em frente à chefatura de polícia. O Capitão Meza estava em sua sala. Fiala explicou rapidamente sobre o esqueleto e pediu dois homens e um jipe. Foram concedidos, e ele partiu para a horrível tarefa de guiar os policiais até a caverna. Deixando-os lá, voltou à chefatura.
O Chefe Lopez havia acabado de chegar e estava, como sempre, de mau humor, mas recuperou-se quando Fiala lhe contou o que havia descoberto.
-Um assassinato cometido há vinte anos. -Lopez meneou a cabeça. -Como você foi meter-se nessa?
A explicação de Fiala, as circunstâncias que levaram à descoberta do anel, sua identificação e a descoberta do esqueleto não eram suficientes para Lopez:
157
-Como sabe que Montanez foi assassinado? -perguntou. -E se foi, como espera agarrar o assassino depois de tanto tempo?
-Felizmente, sei onde Montanez se encontrava e o que estava fazendo na noite em que sumiu. Também sei com quem estava, e essas pessoas têm que explicar umas coisinhas.
Lopez sorriu e meneou a cabeça:
-Tudo que vão dizer é que não se lembram de nada e, depois de vinte anos, quem pode duvidar? Não, Victor, não vai conseguir provar nada.
-Se eles não lembrarem, mas tenho quase certeza de que se lembrarão. Se Montanez foi morto no rancho, vão ter uma história para encobri-los.
-Neste caso -Lopez encolheu os ombros -não vai poder agarrá-los.
-Com exceção do ás que tenho na manga.
-E o que é?
Fiala olhou rapidamente para o relógio:
-Mais tarde eu lhe conto. Agora, tenho que trabalhar. -Virou-se e saiu da sala, caminhando pelo corredor.
Garcia, Mendez, Espada, Diaz -os quatro homens que tinham visto Montanez por último; Garcia estava à mão, Mendez em Rosário. O Capitão Meza poderia mandar buscá-lo. Espada e Diaz eram os duvidosos. Fiala parou na mesa do Capitão e pediu que mandasse buscar Mendez, e que o mantivesse incomunicável.
-Voltarei com os outros suspeitos -complementou.
-Está agindo depressa. Qual é o caso?
-Mais tarde -respondeu Fiala e saiu apressado, indo para a loja de Domingo. O joalheiro forneceu-lhe as informações de que precisava. Espada havia morrido; Diaz tinha uma barbearia em frente ao Seville.
Fiala saiu, pegou Diaz e levou-o à chefatura de polícia. A seguir, veio Garcia, que insistia em saber por que estava sendo requisitado.
-Logo vai saber -respondeu Fiala, e levou-o para dentro.
158
O esqueleto, retirado da caverna no canyon, achavase no necrotério. Garcia e Diaz foram colocados em salas separadas. Alguns minutos depois do meio-dia, Mendess chegou de Rosário.
-Três homens e um esqueleto -disse o Capitão Meza. -Está pronto para o interrogatório, Victor?
-Depois que tomar um café.
-Ei, você antes estava com tanta pressa!
-Ainda estou, mas vamos deixar esses três roendo as unhas por uns instantes. Vai ajudar. -Fiala sorriu e foi para o Café Lua Azul.
Após meia hora, voltou e interrogou os três suspeitos, um de cada vez. Como Lopez havia previsto, suas memórias falharam. Não lembravam de nada.
Um mau começo? Talvez. Mas era o fim que importava neste caso, e Fiala já detectava uma nesga de luz na escuridão. Mendez parecia estar muito nervoso e inseguro, então Fiala resolveu repetir o interrogatório, começando, desta vez, por ele. Antes, chamou Lopez.
-Conseguiu alguma coisa? -perguntou o Chefe, ao chegar na sala onde Mendez estava.
-Ainda não, mas... -Fiala voltou-se para Mendez, que se havia levantado. Fiala fez-lhe um sinal para que se sentasse, depois acendeu um cigarro. -Agora, vamos começar de novo -disse. -Talvez se lembre da noite sobre a qual já conversamos. Não? Não aconteceu nada. Um jogo de dados amigo no rancho de Garcia e, depois, todos foram para a cama.
-Isso mesmo.
-Sendo assim, deve estar imaginando por que está sendo interrogado.
-Estou.
Fiala acenou com a cabeça, em assentimento.
-Se quiser acompanhar-me, por favor, vai saber por quê.
O esqueleto da caverna estava sobre a mesa fria do necrotério. Preocupado, Mendez fitou-o, depois, levantou os olhos.
159
-Reconhece-o? -perguntou Fiala. -Não? Bem, deixe-me informá-lo. Um velho amigo seu, Juan Montanez, ou o que resta dele, e a razão por que você está aqui.
-A razão da minha presença aqui?
-Ah, sua memória ainda não melhorou, senor. Montanez foi morto no rancho. Um jogo entre amigos que terminou em morte. Está-me olhando de modo estranho. Vejo que tenho que convencê-lo. Aqui, olhe isso, uma fivela de prata com as iniciais de Montanez. Segure-a, e isso também. -Fiala deixou um par de dados cair nas mãos de Mendez. -Agora se lembra? Eles foram a causa de tudo. Não? E que tal isso? -Fiala mostrou-lhe o anel que Domingo lhe dera. -Difícil esquecer um anel como este, não é? Pertencia a Montanez, que fugiu com uma mulher. Mas fugiu realmente? Homens assassinados não fogem, são carregados. Montanez foi carregado para o alto de uma rampa, no Canyon do Falcão, e escondido em uma caverna. Lembra-se da caverna?
Nem a fivela de prata, nem os dados, nem o anel, nem o próprio esqueleto, nada disso causou qualquer impressão em Garcia, quando confrontado com eles. Segundo Garcia, nada havia ocorrido no rancho. Diante dos mesmos objetos, Diaz também insistia em que nada havia acontecido.
Nada? Fiala reuniu os três homens na mesma sala agora. Apontou para Garcia e Diaz:
-Esses dois ainda têm a memória fraca -disse a Lopez -mas, felizmente, o Senor Mendez, depois que viu os restos de Montanez, recuperou a memória.
-Então alguma coisa aconteceu no rancho? -perguntou Lopez.
-Uma discussão. Montanez foi acusado de estar trapaceando com os dados e agrediu quem o estava acusando, que, por acaso, era o Senor Garcia. Os outros vieram em defesa de Garcia, seguiu-se uma luta violenta, que terminou com a morte de Montanez. Naturalmente, todos ficaram assustados, e o que fizeram então? Foram à polícia? Não, esconderam o corpo em uma caverna e espalharam o boato de que Garcia havia fugido com uma mulher.
160
Lopez meneou a cabeça e virou-se para Garcia:
-Isso é verdade? - perguntou. - Ou ainda afirma...
-É verdade -interrompeu Garcia, rapidamente.
-Entramos em pânico e resolvemos esconder o corpo, mas não matamos Montanez deliberadamente. Estávamos bebendo e Montanez ficou como um louco. Nós o dominamos, soltamos, ele tirou uma faca e...
-Você tirou outra -interrompeu Fiala -e essa faca acabou com ele. Claro, tinha que me defender. Mas foi sua a idéia de esconder o corpo. Convenceu os outros de que também eram responsáveis pelo crime.
-Não precisei convencer ninguém de nada, senor. Fiala não tomou conhecimento da observação e disse:
-As apostas eram altas naquela noite, e você estava com sorte nos dados. Então as coisas começaram a dar errado. Montanez começou a ganhar, e você o acusou de estar trapaceando.
-Ele mesmo admitiu que sim.
-E o acusou de estar fazendo o mesmo.
-Tinha que dizer algo para se desculpar.
-Isso não vai levar a nada -interrompeu Lopez. -Acho que tudo está esclarecido agora. Sabemos o que aconteceu no rancho.
-Uma morte acidental? -Fiala meneou a cabeça.
-Não. Montanez foi morto deliberadamente, e Garcia foi esperto o suficiente para persuadir os outros a ajudálo a esconder o corpo. Assim, sabia que eles não falariam nada. Também foi o responsável pelo boato da fuga de Montanez com uma mulher. Ele...
Lopez levantou a mão e interrompeu Fiala, depois inclinou a cabeça na direção da porta. Saíram para o corredor, e o chefe balançou a cabeça:
-Victor, pode ser que tenha razão quanto a Garcia, mas é apenas uma opinião. Um assassinato não premeditado, é tudo que vejo aí.
-E era tudo que eu também via até a noite passada, quando fiquei sabendo que o velho vigia do rancho de Garcia desapareceu na mesma noite que Montanez. Interessante, não é? Dois homens desapareceram do mes-
161
mo lugar, no mesmo dia, e ninguém pensa nada. Por que não? Porque o assassino trabalhou bem. Inventou o boato de que Montanez havia fugido com uma mulher e isso é aceito como verdade. Quanto ao vigia, era apenas um peão sem família, logo ninguém se preocupou com ele.
-Mas o que o faz pensar que foi morto? -perguntou Lopez. -Só porque desapareceu?
-Porque estava no rancho. Deve ter testemunhado o assassinato.
-Do mesmo modo que Mendez e Diaz -ressaltou Lopez.
-Estes eram mais do que simples testemunhas. Pelo menos, acreditavam que eram, e concordaram com o pacto de silêncio. Mas o vigia não tinha nenhuma razão para manter-se calado, e isso o tornava perigoso. Por esta razão, foi assassinado.
-Há vinte anos, se é que realmente aconteceu. Espera encontrar um outro esqueleto e, se encontrar, como vai poder provar que é do vigia e que ele foi assassinado?
Fiala encolheu os ombros e deu um sorriso torcido:
-Agora, onde estaria escondido o segundo esqueleto? Na mesma caverna? Por que não? Se estiver lá, não precisamos provar nada.
-Se estiver lá.
-Acho que está. Se não estiver, o assunto pode ser resolvido de modo bastante simples.
-Pode? -disse Lopez, levantando as sobrancelhas.
-Muito facilmente -respondeu Fiala sem explicar, dando uma olhada rápida no relógio. -Posso oferecer-lhe um café?
-Agora?
-Por que não? Acho que já temos tudo amarrado. Se o Capitão Meza cuidar dos detalhes...
Depois do café e de um cigarro no Lua Azul, Fiala e Lopez voltaram para a central.
-Tudo pronto? -perguntou Fiala a Meza.
-Tudo pronto.
-ótimo. Traga Mendez em primeiro lugar.
Mendez foi levado para uma sala pequena, ao lado do necrotério, interrogado e levado de volta. A seguir.
162
Diaz. Garcia veio por último, e Fiala apontou para o esqueleto sobre a mesa, um gesto desnecessário. Garcia já tinha visto; seu rosto estava ficando verde.
-Os restos de Ernesto Gonzalez -disse Fiala. -O vigia do seu rancho, que desapareceu na mesma noite em que você esfaqueou Montanez. Encontramos seu esqueleto na caverna. Devo continuar, senor, ou se está lembrando?
-Estou-me lembrando -sussurrou Garcia, rouco.
-Eu o matei, porque...
Fiala levantou a mão e disse ao Capitão Meza:
-Por favor, registre essa confissão.
-Pois não. Por aqui, senor. -Meza abriu a porta e levou Garcia.
-Você o enganou -falou Lopez, quando a porta foi fechada. -Mas não entendo. Onde arranjou o outro esqueleto?
-O outro? -disse Fiala de modo inocente. -Este é Montanez. Foi transferido para cá enquanto tomávamos café. Uma jogada, mas funcionou.
Lopez balançou a cabeça e sorriu:
-Inteligente. Você é demais para mim, Victor.
-Dê a César o que é de César! -respondeu Fiala.
-Se não fosse por Domingo que reconheceu aquele anel e, é claro, aqueles três garotos engraxates...
163
Fletcher Flora
VARIAÇÕES DE UM EPISÓDIO
-Este -disse Marcus -é extravagante.
Bobo Fuller, deliberadamente, afastou-se o máximo no assento do carro de polícia, e fitava, com ar triste, os edifícios pelos quais iam passando. O carro rodava por um trânsito livre, a pouca velocidade, e a sirene achava-se desligada. Isto, para Fuller, era uma transgressão do procedimento correto, quase uma ofensa à decência. Dois tiras indo para o local de um assassinato, na sua opinião, deveriam ir em alta velocidade, com a sirene uivando. Mas Marcus, infelizmente, achava que isso era para as ambulâncias e carros de bombeiros. Afinal, não havia muita pressa. A cena do crime estava sendo guardada no status quo por patrulheiros uniformizados, mandados desde cedo para lá, e era certo que o cadáver não ia a lugar nenhum. Altas velocidades deixavam-no nervoso, dizia Marcus, e a sirene causava-lhe dor de cabeça.
-Extravagante como? -perguntou Fuller.
-Pelo que sei -respondeu Marcus -este cara chamado Draper estava dormindo em sua cama esta manhã, e alguém entrou e o esfaqueou.
-Isso não me parece extravagante. Parece simples.
-Não quis dizer extravagante neste sentido. Aconteceu a um cara extravagante, que morava em um lugar extravagante. Foi isso que quis dizer.
-Obrigado. -Na voz de Fuller havia uma ponta de amargura, apenas o suficiente para indicar sua hosti-
164
lidade, enquanto mantinha a diplomacia. -É bom ser informado. Esse tal de Draper era casado?
-Era.
-Onde se encontrava a mulher enquanto ele era esfaqueado?
-Boa pergunta, Fuller. Vamos perguntar a ela na primeira oportunidade.
Seguiam agora por um largo bulevar, cortado ao meio por um canteiro, acima do nível da rua, plantado com grama e sempre-vivas, em uma área em que a maioria dos prédios era formada de edifícios de apartamentos e hotéis. Pararam na frente de um hotel, o Southworth, e desceram do carro. Apesar da placa de bronze com o nome do hotel e de um toldo que vinha da entrada até o meiofio, o lugar não era assim tão extravagante. O que Marcus quis dizer é que o Southworth era, sem dúvida, um lugar caro. E esta certeza não foi nem um pouco abalada pelo resplandecente porteiro que mantinha a porta aberta para que eles entrassem.
-É no quinto andar -disse Marcus, por sobre o ombro, enquanto cruzava o vestíbulo em direção ao elevador, para Fuller, que seguia logo atrás. -Vamos subir direto.
Saindo do elevador no quinto andar, seguiram pelo corredor e, virando uma quina, chegaram ao 519. Marcus abriu a porta, já ligeiramente entreaberta, e entrou por um pequeno corredor originado pela saliência de um banheiro, que ficava logo à sua direita. Alguns passos mais adiante, entrou no quarto de dormir de uma suíte de dois cômodos. Novamente à sua direita, com a cabeceira embutida na parede interior do banheiro, havia uma cama de casal. Ao lado da cama, olhando fixamente para baixo, como que estupefato com a morte e com a expectativa do céu, estava um homenzinho cinza, ressecado, com um estetoscópio pendurado no bolso do paletó. O estetoscópio era apenas um enfeite, um tipo de emblema profissional, junto do caduceu. O homenzinho cinza não havia precisado dele, pois o homem sobre a cama, o objeto do seu olhar estupefato, achava-se visivelmente morto, como provava a faca enterrada na base de sua garganta. Tinha sangrado muito, e o sangue ensopara a frente de seu pi-
165
jama branco de seda e se espalhara, numa grande mancha, sobre os lençóis brancos de algodão. O homenzinho cinza olhou para Marcus com uns curiosos olhos zangados
-Oi, Marcus -disse. -Você está atrasado.
Marcus deu a volta na cama e parou ao lado dela, no pequeno espaço entre a cama e a parede. Fuller postou-se do outro lado, atrás do médico-legista, e examinava o massacre com um ar forçado de desinteresse. O fato de sentir-se enjoado sempre que via e sentia cheiro de sangue era um segredo, do qual Fuller se envergonhava.
-Às vezes, isso acontece. -Marcus, retribuindo o olhar apático, resistiu ao desejo de fechar-lhe os olhos. -Ele sangrou de verdade, não é?
-É o que geralmente acontece quando se corta a garganta de alguém.
-Há quanto tempo ele morreu?
-Logo depois de ser esfaqueado.
-Quando foi esfaqueado?
-Há não muito tempo. Digamos por volta das nove horas. Um pouco antes, de ser encontrado.
-Quem o encontrou?
-Eu deveria saber? Apenas declaro que estão mortos, Marcus. Você é o tira.
-Certo. Ele estava dormindo quando tudo aconteceu, dormindo de costas. Como é que quem quer que tenha feito isso conseguiu entrar aqui? Essas portas de hotel trancam-se automaticamente quando são fechadas. Não se consegue abri-las por fora, sem que se tenha uma chave. Não se preocupe em responder, Doutor. O senhor já me disse que eu sou o tira.
Marcus, sacrificando um lenço, estendeu a mão, com uma sensação ligeiramente fastidiosa de revulsão, e extraiu a faca, tendo o cuidado de preservar, neste processo, as impressões digitais, as quais, achava-se convicto, não estariam ali.
A faca era uma comum de cozinha. De baixa qualidade, mas boa e afiada o suficiente para fazer tudo: descascar tomates, preparar bifes ou cortar uma garganta.
166
Poderia ser comprada, ou uma semelhante, em milhares de lojas de ferragens ou lojas de departamentos ou em qualquer loja de artigos baratos. Resumindo, era impossível descobrir seu dono ou identificá-la como propriedade de alguém. Havia facas como esta na cozinha do hotel? Em caso positivo, seria, pelo menos, um começo; mas Marcus, o eterno pessimista, podia jurar que não.
Estava ciente, o tempo todo, de vozes e movimento na sala atrás de si, o segundo cômodo da suíte. Agora, subitamente, levando a faca dentro do lenço, cruzou a porta de comunicação. Dois técnicos trabalhavam habilmente em seus artifícios científicos. Um dos dois patrulheiros, que haviam chegado ali em primeiro lugar, estava em pé perto da porta que dava para o corredor. Marcus, acenando com a mão para os técnicos, aproximou-se do patrulheiro. Este se identificou e, a pedido de Marcus, apresentou um relatório tão breve e metódico, que dava a impressão de estar pronto e revisado em sua cabeça de antemão, com o propósito de demonstrar uma grande eficiência. E o conseguiu de fato, e Marcus, mentalmente, tomou nota disso.
O patrulheiro e seu colega haviam recebido, às nove e vinte, a mensagem, pelo rádio, que os levou ao Southworth. Estavam por perto e chegaram ao hotel às nove e vinte e sete. Encontraram o gerente, um Sr. Clinton Garland, recém-saído da câmara de horrores, guardando, resoluto, a porta do quarto, pelo lado de fora, no corredor. O corpo fora descoberto por uma camareira, que havia entrado no quarto, cumprindo sua rotina de trabalho, para colocar toalhas limpas no banheiro. A camareira soltara um grito que, depois de algum tempo, conseguiu chegar até o escritório do gerente, e este foi para lá em seguida, em companhia do chefe dos mensageiros do hotel, que foi logo chamar a polícia. Os patrulheiros, ao chegarem, livraram o gerente da missão de guarda. Nada, depois disso, foi tocado, até a invasão dos investigadores.
-Onde -perguntou Marcus -está a mulher dele?
O patrulheiro parecia aflito, percebendo que havia, em seu relatório metódico e revisado, cometido uma omissão clamorosa:
167
-Mulher, senhor?
-É. Mulher. Ele tinha uma. Você sabe.
-Para falar a verdade, senhor, eu não sabia.
-Vejo, então, que ela não apareceu desde que você chegou aqui?
-Não, senhor. Nenhuma mulher.
-Não faz mal. Vamos descobri-la em tempo. Onde está o gerente agora?
-Esperando em seu escritório no térreo. Estava muito abalado. Pensei que não teria problema em deixá-lo sair daqui.
-Fez tudo muito bem. Agora, é melhor que você e seu companheiro voltem à patrulha.
Marcus virou-se na sala e colocou a faca, em seu ninho de algodão, sobre uma mesa perto de um técnico que, metodicamente, espalhava pó para colher impressões digitais.
-Pode examinar o cabo desta faca -disse Marcus -mas não vai encontrar nada. -Cruzou de novo a porta de comunicação para o quarto. O médico-legista já tinha ido, mas Fuller ainda estava ali.
-Dê uma olhada por aí, Fuller, e veja o que consegue descobrir. O mais provável é que não encontre nada que signifique alguma coisa, mas acho que devemos tentar. -Marcus, falando, alcançou a porta do corredor. -Vou até lá embaixo falar com o gerente. Volto logo.
Saiu, e Fuller ficou procurando por alguma coisa que significasse qualquer coisa.
Marcus, no entanto, não foi diretamente ao gerente. Foi detido, antes mesmo que começasse a se dirigir para lá. No corredor, foi pegado por um repentino som sibilante, como o aviso de uma cobra assustada, e notou que a porta do outro lado do corredor abriu-se o suficiente para deixar passar o que parecia ser a cabeça decapitada da avó de alguém. Tinha uns cabelos brancos, repartidos ao meio, e puxados para trás em um coque; um rostinho ávido, cheio de rugas, com uma boquinha firme, que mais se assemelhava a uma ruga com dentes; uns óculos sem aro escorregavam pelo nariz pontudo e, atrás deles, espiando por sobre os óculos, com um jeito malicio-
168
í
so, um par de olhos alertas e curiosos. Marcus pensou de imediato em uma cambaxirra malvada.
-A senhora fez psiu? -perguntou ele, com educação.
A velha bateu a cabeça vivamente e lançou um olhar de um lado para outro do corredor, parecendo, desse modo, estar convidando Marcus para alguma conspiração.
-É verdade? -sussurrou ela.
-Pode ser -respondeu Marcus. -Mais precisamente, é verdade o quê?
-Mark Draper está morto?
-Está.
-Assassinado?
-Infelizmente, sim.
A cabeça branca balançou de novo. Os olhos vivos brilharam sobre os óculos.
-Não é de admirar.
-Ah? Acha mesmo? Por quê?
-Algumas pessoas nascem para ser assassinadas. -O sussurro agora era apenas audível. -E outras, para assassinar.
-É uma teoria interessante. Gostaria que a senhora a desenvolvesse para mim.
-Sei de umas coisinhas. Sei mesmo.
-Não me admira.
-Tenho instinto. Sinto as coisas.
-Minha senhora, instinto não é reconhecido em um tribunal. No entanto, quando sustentado por provas adequadas, pode tornar-se útil em uma investigação. Posso entrar?
-Por favor. -Ela aumentou a abertura da porta apenas o suficiente para que ele passasse, depois, rapidamente e sem barulho, fechou a porta atrás dele. Aquela atmosfera de conspiração, pensou Marcus, estava-se tornando um pouco absurda.
-Permita que eu me apresente -disse ele. -Tenente Joseph Marcus.
169
-Eu sou Lucretia Bridges. Não quer sentar-se?
Olharam-se através de um metro e meio de tapete verde, numa sala que se revelava, pela presença de uma porção de coisinhas adicionais, como sendo um lugar de residência permanente. Estava claro que Lucretia não estava ali como hóspede transitória. Era um dos membros de uma sociedade, em expansão, de moradores de hotéis.
-A senhora tem uma teoria -disse Marcus. -E também um instinto. Estou interessado em ambos.
Ela curvou a cabeça branca e, novamente, Marcus lembrou-se, de imediato, de uma cambaxirra malvada.
-Mark Draper -disse ela -não era melhor do que deveria ter sido.
-A maioria de nós não é.
-Ele bebia e jogava, e chegava sempre muito tarde. Marcus, que também tinha a consciência pesada pelo
primeiro e pelo terceiro itens, apesar de pelo segundo não, cararejou de modo desaprovador:
-É mesmo?
-É. Além do mais, era um esbanjador, e não trabalhava.
O cacarejo de Marcus era de certo modo mais genuíno agora. Ele próprio não podia ser acusado de nada disso, sendo pobre demais para tal.
-Se não trabalhava, como podia manter residência fixa num lugar como este? Deve ser muito caro.
-E é. Ele tinha dinheiro. Herdou mais dinheiro do que seria capaz de gastar em toda a sua vida, mesmo sendo esbanjador como era. Por qual outro motivo acha que aquela espevitada maliciosa casou-se com ele?
-Espevitada? -Marcus fez uma rápida retificação mental. -Ah, sim. Sua mulher, é claro.
-Ela é muito mais nova do que ele, anos e anos. A disparidade de idade contribuiu para uma má situação. Chama confusão.
-Como assim?
-Nunca fui infiel ao Sr. Bridges. Nunca!
-Isso é muito louvável. Acha que a Sra. Draper era infiel?
170
- Sei o que sei.
-Instinto?
-Tenho olhos. Vejo o que acontece.
Marcus não duvidou. Testemunhas, no entanto, para terem algum valor, têm que ser mais específicas.
-O que a senhora viu? Quando a senhora viu?
-Idas e vindas. O Sr. Draper ficava fora quase o tempo todo, entende? Não trabalhava, mas achava-se sempre fora em algum lugar, e ela estava sempre recebendo visitas. Durante o dia, imagine. Sempre pensei que essas coisas são muito mais indecentes durante o dia, não acha?
Marcus não tinha preferências, de dia ou de noite, mas repetiu seu cacarejo conveniente:
-Muito flagrante -disse.
-Exatamente. Eu poderia citar alguns nomes que iriam surpreender muita gente. -Esperou Marcus dar a dica.
-Então me surpreenda.
-Aquele jovem Sr. Tiber, que mora no andar de cima, Jerome Tiber. Ele era o mais descarado de todos. Como disse, muito flagrante. Tenho certeza de que ela lhe deu uma chave.
-Do apartamento dela?
-Deve ter dado. Eu o via entrar, descaradamente, sem bater.
-Interessante. Realmente muito interessante.
-No entanto, ele não era o único. Há aqueles, digamos assim, que têm chave devido ao cargo que ocupam.
-Como, por exemplo?
-Bem, tenho certeza de que o Sr. Clinton Garland a visitava com muito mais freqüência do que o necessário.
-O gerente do hotel?
-Quer dizer, não há razão para que um gerente de hotel vá ao apartamento de um hóspede com tanta freqüência. E aquele chefe dos mensageiros, Lewis Varna. Podia-se pensar que Dolly Draper passava metade do tempo inventando um pretexto para chamá-lo a seu apartamento. '•-
171
-Ela tinha um gosto bastante liberal, se entendo suas conclusões.
-Acho que o mais exato é concluir que ela não tinha gosto algum.
-Incidentalmente, parece não estar por aí esta manhã. Por acaso sabe onde ela se encontra agora?
-Tenho certeza que não -disse Lucretia Bridges; depois, complementou com tamanha maldade que deixou Marcus sem fôlego: -Sou uma pessoa que só se preocupa com seus próprios problemas.
O choque causado fez com que ele se levantasse. Já tinha arranjado bastantes coisas em que pensar, até mesmo para sobrecarregar sua massa cinzenta. Olhou em volta e tentou imaginar uma saída elegante.
-Tem um apartamento agradável -disse ele. -Está aqui como hóspede permanente?
-Estou. Acho morar em hotel muito conveniente. Já estou aqui há quase dez anos, logo depois da morte do Sr. Bridges.
-Ele deve tê-la deixado muito bem.
-Realmente deixou. Winston era um homem maravilhoso, pobrezinho. Morreu tão de repente. Sem nenhum aviso. Estávamos começando a jantar, e ele caiu bem em cima do prato de sopa. Não deu tempo nem para buscar um médico.
-Bem, muito obrigado pela ajuda, Sra. Bridges. É possível que ainda queira falar com a senhora outra vez.
-Estou a seu inteiro dispor -disse Lucretia e seguiu Marcus até à porta, onde ele se despediu.
Enquanto o policial saía, ela conseguiu que fosse sua a última palavra, astúcia feminina:
-Quando encontrar Dolly Draper -falou -deve ficar alerta. Ela é bastante enganadora, e parece ser o que não é. Estou-lhe dizendo, ela é uma mulher má. É perniciosa.
O adjetivo antigo e funesto pareceu pairar no ar e se repetir em murmúrios. O corredor, enquanto Marcus ia andando em direção aos elevadores, parecia, repentinamente, mais frio e mais escuro do que era.
O Sr. Clinton Garland, cercado por um painel em nogueira, aguardava sentado à sua mesa também de noguei-
172
ra. Estava impecavelmente vestido, o cabelo bem penteado, e seu rosto apresentava uma expressão conveniente para uma ocasião trágica, era bonito o bastante para habilitá-lo a apresentador de um programa de perguntas e respostas na TV, apesar do nariz um pouco grande. Quando se levantou e lhe estendeu a mão de unhas feitas, Marcus pôde perceber que havia sofrido um abalo muito grande para os seus nervos. Depois das apresentações, Marcus disse:
-Isto tudo é muito ruim.
-Realmente é -falou Garland, retirando a mão depois do ligeiro contato. -Não vai ser nada bom para o Southworth, Tenente. Nada, nada.
-Não foi nada bom para Mark Draper também.
-É terrível. Simplesmente terrível. Quem poderia ter feito uma coisa assim tão monstruosa?
-Vamos tentar descobrir. Espero que você possa ajudar.
-Vou fazer o que posso, é claro, mas temo não ser muito.
-Talvez -disse Marcus -possa contar-me apenas sua própria participação no caso.
-Certamente. Estava bem aqui no meu escritório, discutindo vários assuntos de rotina com Lewis Varna, o chefe dos mensageiros. Quando a notícia chegou ao saguão, um dos mensageiros do hotel contou ao funcionário da recepção, e este trouxe-a imediatamente para mim.
-A que horas isso aconteceu?
-Não tenho certeza. Fiquei, naturalmente, tão perturbado com a notícia, que me esqueci de fazer as observações devidas. Era depois das nove. Antes de nove e meia, acho. Entre uma e outra.
-Não faz mal. Continue, por favor.
-Bem, Lewis e eu corremos lá para cima, é claro, e eu entrei no quarto e verifiquei que era tudo verdade. -Garland reprimiu um tremor. -Tanto sangue! Foi terrível. Simplesmente terrível.
-Em qual cômodo entrou?
-Qual cômodo? Bem, naquele onde o Sr. Draper tinha sido esfaqueado, é claro.
173
-Pensei que pudesse ter entrado pelo cômodo ao lado.
-Não, não, entrei diretamente do corredor no quarto.
-A porta estava fechada e trancada?
-Se estivesse fechada, estaria automaticamente trancada. Não estava. A coitada da Sra. Grimm, a camareira, correu para o corredor gritando e deixou a porta atrás dela aberta. Que experiência terrível para a coitada!
-Draper estava aparentemente dormindo quando foi esfaqueado. As suas camareiras costumam entrar nos quartos dos hóspedes quando eles estão dormindo?
-É claro que não. Entretanto, a Sra. Grimm tinha encontrado com a Sra. Draper no andar de baixo, e esta lhe tinha dito que o Sr. Draper ia dormir até mais tarde, mas que não teria problema, se ela entrasse em silêncio e trocasse as toalhas. Para dizer a verdade, o Sr. Draper sempre dormia até mais tarde, e já era sabido que a camareira podia entrar devagar no quarto quando necessário. Afinal, nossas empregadas precisam cumprir suas obrigações.
-Aonde ia a Sra. Draper quando encontrou com a camareira no outro andar? Sabe?
-Estava em companhia da Sra. Bryan Lancaster, que ocupa, com o marido, uma suíte naquele andar. A Sra. Draper e a Sra. Lancaster encontraram a camareira quando estavam descendo a escada. Ambas achavam-se na suíte da Sra. Draper e estavam descendo para a da Sra. Lancaster. A camareira viu quando entraram ali.
-O senhor parece ter um bom número de hóspedes permanentes no hotel.
-De fato. Temos o que lhes agrada. Nossos preços não são altos em relação ao conforto e aos serviços oferecidos.
-Naturalmente. De qualquer forma, estou satisfeito de ter finalmente descoberto a Sra. Draper. Estava achando-a um tanto evasiva.
-Evasiva? De modo algum. Esteve todo o tempo na suíte da Sra. Lancaster. Depois que soube o que aconteceu com o marido, ficou prostrada, é claro. Simplesmente prostrada. Que coisa terrível foi acontecer com a pobrezinha! A Sra. Lancaster está cuidando dela.
174
-Qual o número da suíte da Sra. Lancaster?
-Quatrocentos e vinte e um. Espero que, se vai ter que falar com a Sra. Draper, tenha consideração com ela.
-Sempre tenho -retrucou Marcus -consideração com todo mundo. -Procurou por um cigarro, encontrou um e acendeu. -O que fez depois de ver o corpo?
-Mandei Lewis Varna chamar a polícia, e fiquei no corredor do lado de fora da porta até que a polícia chegasse. Então, com a permissão deles, voltei para cá. Estava desnorteado. Simplesmente desnorteado!
-Sei. Foi uma experiência terrível. Onde está a camareira agora? Vou precisar falar com ela.
-Fiz com que ela esperasse por perto. Lewis Varna também. Tinha certeza de que ia querer vê-los.
-ótimo. Vou vê-los ao mesmo tempo. Sabe como é, dois coelhos de uma só cajadada.
Clinton Garland saiu da sala e voltou, em menos de dois minutos, com Lewis Varna e a Sra. Grimm. O primeiro era um rapaz magro, moreno, com os cabelos pretos e crespos, cortês mas não respeitoso, que, sem dúvida alguma, devia ser atraente às mulheres. A segunda era uma mulher pequena, quase graciosa, com um impecável uniforme de um branco refrescante. Seus cabelos estavam-se tornando grisalhos, mas seu rosto ainda guardava uma aparência de maciez e juventude, e o pescoço, na área vulnerável abaixo do queixo, ainda estava firme. Marcus ficou surpreso. De certa forma, esperava uma pessoa curvada para o lado, de carregar baldes.
Lewis Varna, a pedido de Marcus, falou primeiro. De modo conciso, repetiu, em todos os detalhes significativos, o que dissera Clinton Garland. O que poderia significar, observou Marcus com o cepticismo imparcial de seu ofício, que os dois haviam falado a verdade, cada um por si, ou que haviam, por outro lado, combinado suas histórias, no longo tempo que tiveram para isso. Marcus era invariavelmente céptico com relação a qualquer dupla que apresentasse, um para o outro, álibis assim tão bem construídos, em especial neste caso, em que os dois possuíam chaves mestras. Entretanto, o álibi não era invulnerável. Ainda havia, afinal, o tempo crucial antes de Garland e Varna se encontrarem no escritório para discutir os problemas do hotel.
175
-Vejamos -disse Marcus, casualmente. -Você e o Sr. Garland estavam bem aqui, juntos, quando receberam a notícia do assassinato. Por quanto tempo disse que estavam aqui?
Varna percebeu o que ele estava querendo. Garland também. Seus olhos se encontraram, soltaram faíscas, e desviaram-se, mas a expressão de Varna não se alterou. Ele continuava a perfeita figura da sinceridade, como alguém que estivesse pronto a aceitar as digressões de uma investigação policial, mas que reconhecia, contudo, o absurdo delas.
-É difícil dizer. Não estávamos, é claro, preocupados com o tempo. O que o senhor diria, Sr. Garland? Meia hora?
-Havia um grande número de assuntos na agenda
-disse Garland. -Meia hora seria uma estimativa moderada. Diria por cerca de quarenta minutos.
-Entendo. -Marcus voltou-se para a Sra. Grimm:
-Minha senhora, teve uma experiência penosa.
-Foi um choque. Um choque terrível.
-Já se sente recuperada o suficiente para falar sobre o assunto?
-Estou bem agora, obrigada.
E ela parecia, realmente, bem tranqüila. Achava-se de pé, ereta, com os pés unidos e as mãos cruzadas à frente. Seus olhos, com o respeito apropriado de uma criada na frente dos seus empregadores, estavam fixos em algum ponto imaginário acima da cabeça de Marcus.
-Entrou no quarto logo depois das nove, pelo que sei. Foi isso mesmo?
-Deve ter sido. Não tenho certeza.
-O médico-legista calcula que o Sr. Draper tenha morrido por volta das nove. A senhora quase presenciou uma cena ainda mais chocante do que aquela que viu.
-Tento não pensar naquilo, senhor.
-Certo. Não se ganha nada exaltando os horrores. Viu alguém perto da porta antes de entrar?
-Não, senhor.
-Absolutamente ninguém no corredor?
-Ninguém.
176
-Entrou para trocar as toalhas no banheiro, creio. Também ia trocar os lençóis da cama?
-Não, senhor. O Sr. Draper ainda estava dormindo. Eu tinha encontrado com a Sr a. Draper no andar de baixo, e ela me disse que não teria problemas, se eu entrasse devagar e em silêncio no banheiro.
-A senhora trocou realmente as toalhas?
A Sra. Grimm pensou por um momento, depois balançou a cabeça lentamente:
-Agora que perguntou, senhor, creio que não troquei. Foi o choque, sabe. Tenho a mente muito confusa sobre tudo isso.
-É compreensível. Apenas conte-me brevemente o que fez depois que viu o corpo do Sr. Draper.
-Gritei e corri para fora do quarto e pelo corredor. Devo ter gritado muitas vezes, e minha cabeça rodava. No elevador, corri para um mensageiro que estava subindo do saguão. Ele me levou até um quarto que estava vago e deitou-me lá na cama. O hóspede tinha deixado o hotel cedo, entende, e a porta achava-se aberta. Alguns minutos depois, quando já estava um pouco melhor, achei que deveria ir procurar o Sr. Garland de uma vez, mas, quando saí de novo no corredor, vi o Sr. Garland de guarda na porta do quarto do Sr. Draper. Não queria mais chegar perto daquela porta, então vim aqui para baixo e esperei. É tudo, senhor. É tudo que consigo lembrar-me.
-Muito bom. Obrigado, Sra. Grimm.
-Já terminou, Tenente? -perguntou Garland.
-Por enquanto, já.
Garland virou-se para o chefe dos mensageiros e para a camareira:
-Podem ir, agora.
Eles se retiraram, e Marcus, depois de se despedir educadamente do gerente, fez o mesmo.
Bateu levemente sob os números cromados: 421. Uma jóia mnemônica, o segundo número era a metade do primeiro, o terceiro a metade do segundo. Lembrando-se do primeiro, sabe-se os outros.
A jóia mnemônica afastou-se quando a porta foi aberta, revelando um jovem, usando um cardigã cinza. Tinha
177
cabelos castanhos, cheios e rebeldes, um nariz ligeiramente arqueado, e uma expressão, de um modo geral, excessivamente alegre para as circunstâncias.
-Sr. Lancaster? -indagou Marcus. O jovem sorriu e balançou a cabeça:
-Não tenho essa sorte. O velho Bryan está fora cumprindo sua tarefa diária. O nome é Tiber. Jerome Tiber.
-Ah! Sou o Tenente Marcus. Polícia. Estou procurando pela Sra. Mark Draper.
-Pode entrar. Vou trazê-la até o senhor.
Marcus entrou. Numa mesinha em frente ao sofá, encontrava-se um bule de prata, que emitia o aroma de café quente. Ao lado do bule, uma xícara, cheia pela metade, sobre o pires. Marcus sentou-se no sofá, sentiu o odor do café e desejou uma xícara. Jerome Tiber, na porta de comunicação, falava, alegre, para o outro cômodo:
-Dolly, minha querida, seus pecados a revelaram. É melhor sair e enfrentar as conseqüências.
Em resposta a este chamado alegre, duas jovens entraram na sala. Uma delas era bastante alta, com cabelos vermelhos e brilhantes, e tinha uma atitude firme de benevolência, de alguém que está determinado a dar ajuda e conforto a outra pessoa. Esta, Marcus advinhou sem errar, era a Sra. Bryan Lancaster.
A outra, então, era Dolly Draper. Marcus, levantando-se, ficou instantaneamente alerta de um sentimento ao qual já devia, na sua idade, ter adquirido imunidade há muito tempo. Ternura? Afinidade? A lânguida sereia cantando a Canção de Setembro? Digamos, em nome da decência, um carinho paternal. Quanto a Dolly Draper, que já devia ter por volta de 25 anos pelo menos, parecia não ter nem chegado aos 20. E era pequena; pequena e magra, com um corpo inocentemente sedutor, e vestia um suéter branco de cashmere e calça vermelha. Seus cabelos, de um amarelo suave como a cor de um campo de milho maduro, eram pouco mais compridos do que os de um cantor de música popular. Os olhos eram sérios e cinzas. Sentou-se na beira de uma cadeira e cruzou as mãos sobre os joelhos. Não parecia estar desesperada. Mostrava-se apenas infinitamente triste.
278
-Que droga, Jerry -disse a ruiva Sra. Lancaster. -Por favor, não fique assim tão alegre. É absolutamente indecente.
Tiber, não intimidado, acenou com a mão e inclinou a cabeça em sinal de reverência:
-A tristeza não leva a nada. "O Dedo de Deus escreve; e tendo escri..." Sabe o resto, querida. Estou dizendo: as pessoas devem tomar uma atitude filosófica. Além disso, devo acrescentar, alguém, por mais que seu método tenha sido censurável, fez-me um favor. Em resumo, eliminou a competição.
Durante este extraordinário discurso, Dolly Draper ficou sentada, quieta, com seus olhos cinzentos e sérios voltados para Tiber, e tinha nos lábios cor-de-rosa a sombra de um sorriso triste e carinhoso.
-Querido -disse ela. -Sei que não faz por mal, mas não deve dizer essas coisas. Não é correto.
-É indecente, é isso que é -disse a ruiva. -Jerry, tenha modos.
-O quê? Ah, claro. Tenho que fazer as apresentações. Sra. Draper, Sra. Lancaster, Tenente Marcus. O Tenente Marcus, como previmos, É da Polícia. Como as relações vão ser inteiramente amistosas neste caso, sugiro que abandonemos de uma vez por todas as formalidades. Se quiser, Tenente, pode chamar estas duas senhoras de Dolly e Lucy.
Marcus não quis:
-Sra. Draper -disse -este é um assunto triste, e compreendo que deve ser muito difícil para a senhora. Sinto muito.
-Estou bem melhor agora. -Sorriu de modo triste, olhando para as mãos cruzadas. -Acho que, agora que o choque já passou, não estou nem mesmo surpresa.
-Ah? O que quer dizer com isso?
-Bem, para dizer a verdade, o pobre Mark era um homem bastante desagradável, e estava sempre por aí, em todo o tipo de lugar e lidando com todo o tipo de pessoas indesejáveis.
-Que lugares? Que pessoas?
Dolly Draper levantou as mãos num pequeno gesto de desamparo e, imediatamente, cruzou-as de novo:
179
-Na verdade, não sei. Apenas lugares e pessoas.
-Ele nunca a levou?
-Ah, não. Não me interesso por esses lugares e essas pessoas.
-Sra. Draper, homens raramente são assassinados apenas por serem desagradáveis.
-Nessa estatística -disse Jerry Tiber -pode tomar Mark como uma exceção.
-Cale a boca, Jerry -falou Lucy Lancaster. -Tenente, por que fica assim olhando para o bule de café? Gostaria de tomar uma xícara?
-Não, obrigado -mentiu Marcus.
-Bobagem. Claro que quer. Posso ver pelo modo como suas narinas se contraem. Jerry, pegue uma xícara para o Tenente.
-Não há nenhuma limpa. Só mandaram três, e nós usamos todas.
-Bem, tenho certeza de que não é nenhuma dificuldade insuperável. Vá e lave uma xícara no banheiro.
Jerry foi, obediente, com razoável boa vontade, e Marcus, sentindo-se preocupado por não estar controlando a situação, voltou sua atenção novamente para Dolly Draper, trazendo à baila o caso em questão.
-Está sugerindo que alguém de fora entrou no hotel e matou seu marido?
-Talvez um hóspede. Um que se hospedasse por pouco tempo. Suspeito que já tenha deixado o hotel a essa hora.
-Isso é possível, é claro. Mas como entrou' no quarto?
-Acho que entrou pela porta. Não é essa a maneira pela qual as pessoas normalmente entram em um quarto?
-Normalmente. Neste caso, não vejo como. Sra. Draper, a porta do quarto estava trancada. A porta para o corredor do cômodo contíguo também. Como poderia um hóspede, sem ter uma chave, entrar em qualquer um dos cômodos da suíte?
-E isso é problema? Eu diria até mesmo que Mark deixou-o entrar.
-Seu marido estava dormindo quando foi esfaqueado.
180
-Estava? Como sabe?
Marcus ia responder e parou antes de proferir qualquer som, a boca aberta, numa expressão ridícula. O que era raro nele.
-Ele parecia estar dormindo -disse finalmente, e as palavras soaram estranhas a seus próprios ouvidos.
-Se quer minha opinião -disse Dolly Draper -o senhor está partindo de uma suposição que pode estar errada. Qualquer um pode arrumar um corpo em uma cama de modo a parecer que foi morto enquanto dormia.
-Sabe que ele foi esfaqueado na base da garganta e pela frente?
-Soube, sim. Foi uma coisa muito cruel que fizeram com o pobre Mark.
-Como, diabo, alguém poderia aproximar-se de seu marido com uma faca e metê-la exatamente num lugar como esse, com ele acordado e de pé e ciente do que estava acontecendo?
-Eu disse que ele estava de pé? Não creio. Quando Lucy e eu saíamos da minha suíte esta manhã, Mark estava com uma dor de cabeça terrível. Estava tão chato e irritado por causa disso, que se mostrava simplesmente insuportável. Fpi por isso que Lucy e eu resolvemos descer para cá. Antes de vir, no entanto, dei um sedativo a Mark e mandei-o de volta para a cama. Se alguém chegou lá logo depois que saímos, antes que o sedativo fizesse efeito, Mark o deixaria entrar, e depois, se fosse alguém que ele conhecesse bem, ele se deitaria de novo e fecharia os olhos. Sabe, é bem possível conversar-se com alguém, deitado de costas e com os olhos fechados. Para dizer a verdade, ele sempre fez isso comigo. Sempre tinha enxaquecas horríveis de manhã, muitas vezes de ressaca, e freqüentemente ficava assim deitado enquanto eu estava pelo quarto, e nós conversávamos, e ele ficava, o tempo todo, com os olhos fechados. É melhor para enxaquecas, é claro, se a pessoa evita a luz nos olhos.
Marcus, que já tinha experiência própria nisso, foi obrigado a concordar. Olhava para Dolly Draper com uma espécie de surpresa crescente:
-É uma explicação razoável -disse. -Tem alguma idéia de quem poderia ter visitado seu marido depois que saiu?
181
-Ah, não. É praticamente impossível saber quem poderia visitar Mark, ou quando, ou por quê.
-Devemos pelo menos concluir que o propósito dessa vez era o assassinato.
-Devemos? Talvez não. Talvez tenha sido algo provocado e feito num impulso repentino.
-Duvido. Duvido que alguém, a não ser que já tenha planos de usá-la, vá visitar alguém com uma faca comum de cozinha no bolso.
-Foi com isso que o pobre Mark foi morto? Imagine, Lucy, uma faca comum de cozinha.
Assim sumariamente requisitada, a imaginação de Lucy não revelou se estava à altura de tal ocasião. Neste momento, trazendo uma xícara lavada e um pires, Jerome Tiber voltou à sala. Colocou café na xícara e entregou-a a Marcus.
-Aqui está, Tenente. Com os cumprimentos da casa.
-Obrigado - agradeceu Marcus, depois, virou-se para Lucy. -Por que subiu para a suíte da Sra. Draper tão cedo esta manhã? -perguntou.
-- Não era tão cedo. Já era um pouco mais de oito horas. Acha que somos todos uns ricos ociosos ou o quê?
-Desculpe. Por que foi até lá?
-Porque Dolly telefonou para mim e me chamou para ir até lá, só por isso. Queria mostrar-me uma cigarreira de prata que comprou ontem à tarde. Toca Smoke Gets Into Your Eyes, quando se abre a tampa.
-Achei tão interessante -disse Dolly. -Cigarros e fumaça nos olhos e tudo o mais.
Marcus não se estava divertindo:
-E logo depois resolveram vir aqui para baixo?
-Fomos praticamente forçadas a isso - respondeu Dolly. -íamos tomar nosso café lá, mas Mark estava tão abominável, e ficou gritando com a gente para ficarmos quietas e coisa e tal, que nós saímos.
-Quando vinham para cá, pelo que sei, encontraram a camareira no corredor.
-Foi. A camareira que sempre arruma nossos quartos.
182
-E disse a ela que não haveria nenhum problema, se ela entrasse devagar e trocasse as toalhas no banheiro?
-Não achei que fosse atrapalhar o Mark. Ele havia tomado o sedativo, como disse, e eu tinha certeza de que ele já estaria dormindo de novo quando a camareira entrasse.
-Conversei com a camareira. Disse que não viu ninguém por perto do quarto. Se seu marido deixou que alguém entrasse no quarto, a pessoa já tinha saído antes de a empregada chegar lá.
-Bem, assassinos não costumam ficar por perto depois que cometem um crime, não é?
Marcus foi forçado a admitir que não. Resolveu também que já havia ficado ali o tempo necessário. Esvaziou a xícara, colocou-a de lado, e levantou-se.
-Muito obrigado -disse. -É tempo de ir ver umas outras coisas. Sinto muito a intromissão.
-Vai voltar lá para cima? -quis saber Jerome Tiber.
-Isso mesmo.
-Também vou para lá. Vou acompanhá-lo, se não se importa.
Marcus não se importava. Na verdade, até gostava de ter a chance de ficar por uns momentos a sós com o singular Jerome Tiber. Tendo-se despedido de Dolly e Lucy, saíram juntos.
-Pelo que sei -disse Marcus -o senhor e a Sra. Draper eram o que algumas pessoas poderiam chamar de bons amigos.
-Faço força para isso -retrucou Tiber, alegremente.
-Foi até mesmo sugerido que o senhor tem uma chave da porta.
-Uma chave? Absurdo. Por que precisaria de uma chave? Se a costa estava livre, como dizem nos livros de suspense baratos, Dolly sempre me dava um telefonema e fazia um convite. Nunca tive nenhuma vontade, pode acreditar, de dar de cara com o velho Mark com uma chave assim comprometedora nas mãos. -Parou e lançoulhe um olhar assustado: -Está por acaso sugerindo,
183
Tenente, que eu poderia ter entrado no quarto esta manhã e liquidado o velho Mark?
-Deve-se explorar todas as possibilidades.
-Bem, pode ter descoberto que não era exatamente um fã do velho Mark, mas, por outro lado, também não era seu inimigo mortal. Por mais querida que a pequena Dolly seja, ela não vale o risco. Foi sugerido por quem?
-O quê?
-Quem sugeriu que eu teria uma chave?
-Alguém que afirma tê-lo visto entrar sem bater na porta.
-Deixe pra lá. Deve ter sido aquela velha bruxa do outro lado do corredor. Quando Dolly me convidava a descer, muitas vezes deixava a porta ligeiramente entreaberta. Tornava as coisas mais fáceis.
-Entendo.
Haviam subido as escadas para o andar de cima, e agora paravam para uma pausa antes de Jerome Tiber continuar sua subida.
-Bem -disse o rapaz -acho que nos separamos aqui. Amigos, espero. Acho que não gostaria de me deixar acompanhá-lo para dar uma espiada na cena do crime?
-Não.
-Achei que não. Bem, não faz mal. É só porque tenho uma curiosidade mórbida. Boa investigação, Tenente.
Jerome Tiber foi subindo as escadas, e Marcus, retardando-se, ouviu-o assobiar baixinho, enquanto subia.
Fuller estava a uma janela, com a cabeça do lado de fora. Puxou-a para dentro e virou-se quando Marcus entrou. Este, entretanto, entrou no banheiro.
Viu ali que a memória da Sra. Grimm não havia falhado. As toalhas no banheiro estavam usadas, e não havia nenhuma toalha limpa no aposento.
Sobre a larga superfície, na qual a pia estava embutida, por entre uma grande variedade de potes e vidros, havia um recipiente de plástico transparente com cápsulas. Marcus, examinando-o, ficou satisfeito em ver que as cápsulas eram do sedativo que Mark Draper tomara, segundo o que dissera a esposa, depois foi para o quarto.
184
Fuller ainda estava de pé, próximo à janela. O rabecão havia chegado e ido embora, e o corpo de Mark Draper já não estava mais sobre a cama. Marcus, que não gostava muito de defuntos, ficou aliviado.
-Existe uma saliência estreita -disse Fuller. -Do lado de fora, uma saliência embaixo das janelas. Seria muito arriscado, mas é concebível que um homem venha andando devagarinho por ela. A janela não estava trancada.
-Ah -Marcus parecia abstraído. -Não concordo.
-Por que não?
-Como você mesmo disse, é muito arriscado. Não apenas de cair, mas de ser visto da rua. E, como poderia alguém, vindo por aí, saber que Mark Draper se achava na cama e dormindo às nove horas da manhã? Além disso, como poderia ter certeza de que a Sra. Draper não estava açui?
-Não disse que tinha todas as respostas. -A voz de Fuller estava áspera, quase rude. -É apenas algo para ser pensado.
-Ah, certo, Fuller. Alguma coisa da busca no quarto?
-Nada aparente.
-Parece estar faltando alguma coisa?
-Nada evidente. Devemos perguntar à Sra. Draper para termos certeza.
-Não acho que vá ser necessário. Draper não foi morto por nenhum ladrão. Isto é evidente.
-É? Admito que não pareça, mas como pode ter tanta certeza? A saliência não é assim tão estreita.
Marcus ainda conservava o mesmo ar de abstração. Estava ao lado da cama e beliscava o lábio inferior e olhava para o chão. Por um momento, pareceu que ele não ouvira.
-Tenho certeza -disse, após uns minutos -porque eu sei quem foi que o matou.
Fuller, treinado pela experiência a ter paciência, disse calmamente:
-Isso é muito interessante. Talvez não se incomode em me contar.
185
-Ainda não, Fuller, ainda não. -Marcus empertigou-se, como se estivesse apagando de sua mente todo aquele controvertido assunto. -Porque eu não sei o porquê. Por nada nesse mundo eu consigo descobrir o porque. -Virou-se, abruptamente, para a porta: -Vamos, Fuller. Temos que sair daqui. No momento, não há mais nada a fazer.
Na opinião de Fuller, pelo contrário, havia muito a ser feito. Havia, por exemplo, um assassino para prender. Isto é, se Marcus realmente sabia a identidade do assassino. Pessoalmente, Fuller duvidava. Falando de um modo ameno, Marcus estava tentando colocar-se à altura da imagem exagerada que fazia de si mesmo. Olhe o grande detetive! Para falar de uma forma menos amena e mais honesta, Marcus era um mentiroso.
Fuller não se atreveu a fazer a acusação, mas sua convicção foi confirmada pelo que aconteceu nos seis dias seguintes. Na verdade, até onde o próprio Fuller estava ciente, absolutamente nada aconteceu. Marcus, durante dois dias, ficou pela chefatura de polícia. Teve uma reunião com o chefe de polícia e outra com o chefe e o procurador da justiça juntos. Passou muito tempo ao telefone discutindo com uma pessoa algo que Fuller não teve o privilégio de tomar conhecimento, e não conseguiu localizar-se de modo a entender o que era dito. Depois, Marcus desapareceu. Simplesmente, sumiu de vista. Segundo tudo indica, Mark Draper fora considerado um caso sem importância. Seu assassinato, aparentemente, não provocava nenhum interesse.
Então, depois de quatro dias, Marcus reapareceu. Simplesmente, apareceu de novo. Fuller, invadindo sua sala na tarde do quarto dia, encontrou-o sentado atrás de sua mesa, olhando, em silêncio, para a Sra. Grimm, que estava sentada, ereta, em uma cadeira, segurando com força a bolsa que tinha no colo. As juntas das mãos estavam brancas. Seu rosto lembrava uma.pedra.
-Ah, Fuller, aí está você -disse Marcus. -Já perguntei por você.
-É muita consideração de sua parte -disse Fuller. -Por onde andou?
-Bem, estive por toda parte, Fuller. Fui a uma costa e a outra e voltei. No caso Draper, sabe. Por falar nis-
186
so, estou certo de que se lembra da Sra. Grimm. Ou nunca chegou a conhecê-la?
-Não cheguei.
-Sabe quem é ela, não sabe? Bem, conheça-a agora. Sra. Grimm, Sargento Fuller.
O policial fez um aceno com a cabeça em direção à Sra. Grimm. Esta não se mexeu, nem falou. Continuou imóvel.
-A Sra. Grimm -disse Marcus -é a assassina de Mark Draper.
Fuller inspirou fundo, prendeu a respiração até que seu peito doesse, e depois soltou-a num longo suspiro, quase impossível de ser ouvido. Dando um passo à frente, recostou-se pesadamente na mesa de Marcus.
-É mesmo? -falou.
-Infelizmente, é. Não é, Sra. Grimm?
A Sra. Grimm não respondeu. Não se moveu.
-Estou interessado em saber -disse Fuller, devagar -como você chegou a essa conclusão.
-Ah, estava bastante evidente, Fuller, desde o princípio. Você tinha razão, sabe, quando disse que este caso não parecia tão extravagante. Não era. A Sra. Grimm tinha uma chave mestra. O Sr. Draper havia tomado um sedativo e estava, presumivelmente, dormindo. A Sra. Grimm simplesmente entrou no quarto, esfaqueou o Sr. Draper na garganta e, então, depois de esperar um pouco para que o Sr. Draper estivesse bem morto, correu para o corredor anunciando aos berros o assassinato. -Sorriu com benevolência.
Fuller olhava espantado para a Sra. Grimm. Esta não se movia, nem falava nada.
-Como -perguntou Fuller -você soube?
Marcus suspirou e fez com os dedos uma pequena tenda sobre o estômago.
-A Sra. Grimm foi até o quarto, presume-se, para trocar as toalhas. Mas as toalhas não foram trocadas. A Sra. Grimm explicou o fato dizendo que ficara perturbada demais pelo que viu sobre a cama. Bastante razoável. Mas, o que faria a maioria das mulheres se, carregando uma porção de toalhas nos braços, desse de cara, de re-
187
pente, com o corpo de um homem assassinado? Suponho que jogasse as toalhas para cima, espalhando-as pelo aposento. De qualquer forma, enquanto corria e gritava, pelo menos, deixaria as toalhas caírem. Você viu alguma toalha no chão, Fuller?
-Não -respondeu o sargento. -Não vi.
-Deixe pra lá. Esse não era o ponto principal, de qualquer forma.
-O que -perguntou Fuller -era o principal?
-Você viu o quarto, Fuller. Tomou conhecimento de sua disposição. O banheiro é construído no canto, perto do corredor do hotel, deixando entre o banheiro e a parede em frente um pequeno corredor. No quarto, a cama estava colocada contra a parede interna do banheiro. Isto é, depois da quina. A Sra. Grimm não teria possibilidade de ver o corpo de Mark Draper, a não ser que ingressasse no quarto.
-É -disse Fuller -não teria.
-E não havia absolutamente nenhuma razão para que a Sra. Grimm fizesse isso. Ela ia apenas trocar as toalhas. Além do mais, tinha sido instruída para entrar e sair do quarto em silêncio, de modo a não perturbar Draper. Ao invés disso, entrou direto no quarto. Isso lhe parece sensato, Fuller?
-Não -respondeu Fuller. -Não parece.
-Nem a mim pareceu. Resolvi que a Sra. Grimm devia ser investigada.
Fuller olhava de novo com espanto para a Sra. Grimm. A mulher continuava imóvel e calada.
-Por quê? -indagou Fuller. -Por quê?
-Realmente, por quê? Como sempre, Fuller, você foi ao âmago da questão. A não ser que a Sra. Grimm fosse uma maníaca homicida, o que ela não é, deveria haver algum motivo razoável. Será que Draper havia em alguma ocasião feito mal a ela? Teria ele, por acaso, arruinado sua filha ou destruído seu marido? Fui levado, como vê, a todo tipo de especulação melodramática. Seja como for, é onde estive nos últimos dias, Fuller. Segui o rastro da Sra. Grimm, e descobri, devo confessar, alguns episódios bastante, ah, esclarecedores.
188
-Que episódios?
-Lá na Costa Oeste, há três anos, a Sra. Grimm, então chamada Sra. Foster, trabalhava como empregada na casa particular de um jovem casal abastado. Uma tarde, quando a mulher havia saído, o marido morreu com um tiro à queima-roupa, do seu próprio rifle. A Sra. Grimm, que estava presente, contou que ele se estava preparando para limpar a arma e atirou em si mesmo, por acidente. As circunstâncias levantaram alguma suspeita, mas o caso, por falta de provas, foi finalmente encerrado como morte acidental.
"Mas como sabe, Fuller, tenho uma boa cabeça. Havia um elemento neste caso, que me lembrava vagamente um outro caso sobre o qual havia lido e, depois de algum tempo, lembrei-me exatamente do que se tratava. Na Costa Leste, há uns seis anos, um marido jovem e rico foi apunhalado até a morte em sua casa, presumivelmente por um gatuno pegado de surpresa. A mulher estava passando a noite na casa de uma amiga, mas a empregada achava-se na casa e testemunhou o que havia acontecido, o gatuno e tudo o mais. Novamente foi levantada suspeita, mas as provas pareciam confirmar a história. Caso encerrado, e está tão certo quanto dois e dois são quatro, Fuller. A empregada, descobri, apesar de se chamar de Sra. Breen, e mais tarde de Sra. Foster, não era outra senão a mulher que agora se chama de Sra. Grimm.
Fosse qual fosse seu nome, ela estava petrificada. Se estava ouvindo, não dava sinal. O que quer que ela estivesse sentindo, não demonstrava.
-E ainda não vejo por quê -disse Fuller.
-Não vê, Fuller? Nem ninguém ligado a aqueles dois casos. Mas eu vejo. Vejo e compreendo, porque todos os três casos, aqueles e o nosso, têm um denominador comum. Em cada caso, a jovem mulher estava fora e tinha um álibi seguro. -Abruptamente, quase que irritado, como se quisesse de repente acabar com tudo aquilo o mais rápido possível, Marcus levantou-se e foi até a porta que dava para a sala ao lado. Abriu a porta e deu um passo para trás: -Entre, Sra. Draper -falou. -Sua mãe precisa da senhora.
-Mãe e filha, uma dupla de assassinas profissionais! -exclamou Fuller.
189
-Exatamente o que eram. A filha, muito atraente,. casa-se com um homem razoavelmente rico. A mãe, no
tempo devido, é contratada como empregada. Depois, morte do marido. A seguir, muito dinheiro herdado, e mais seguros. Depois ainda, mãe e filha voltam a se reunir em um outro lugar, bem longe. Uma vida de luxo, projetos de outros maridos, a mesma rotina se repete. Em nosso caso, houve uma pequena complicação. Draper insistia em morar em um hotel, logo a mãe teria que arranjar um emprego no hotel, e no andar certo. Ela deu um jeito. A mãe era esperta.
-Estavam fazendo disso uma carreira!
-Bem, não deixe isto abalá-lo muito, Fuller. Já foi feito antes por outros. A maioria deles usava veneno. Um deles, deve lembrar-se, era um marido inveterado, que sempre afogava suas mulheres na banheira. Desta vez, pelo menos, temos algumas variantes interessantes.
Fuller olhava para Marcus com um respeito misto de surpresa, se não de inveja. Era preciso, admitia, darlhe o devido valor.
-Diga-me uma coisa -disse Fuller. -Apenas a verdade?
-Nada além. É minha lei.
-Você suspeitou da Sra. Grimm desde o princípio. Isto é evidente. Também suspeitou de Dolly Draper?
-Suspeitei.
-Por quê?
-Porque ela é perniciosa.
-Ah, vamos lá. Como você poderia saber disso?
-Sabia, porque uma mulher chamada Lucretia Bridges me contou. Para todo mundo ela era a pobrezinha, a coitadinha, a Dolly queridinha. Não para a Sra. Bridges. Sabe por quê? Porque os semelhantes sempre agem da mesma forma, e um cachorro sempre sente o cheiro de outro.
-Se quer saber o que penso, acho tudo isso uma loucura.
-Mesmo assim -disse Marcus -eu pagaria para saber o que havia naquela sopa de velho Winwon.
190
vr
Robert Colbv
VOZES NA NOITE
O temporal já se repetia por duas noites seguidas, e como nunca parecia funcionar bem quando chovia, ele estava mal-humorado e tenso, violentamente preso dentro de si mesmo e da casa vazia. Empoleirada no alto de um morro, isolada por altos muros, em uma área de mais de um hectare, a casa era uma elegante construção de pedra e madeira, enclausurada no meio de árvores gigantescas.
Confinado ali, sorumbático, andava sem destino, de uma sala para outra, lendo ou vendo televisão (um aparelho em cada cômodo), ou, às vezes, tomava banho nas águas tépidas da piscina, que possuía uma cobertura de vidro. Apesar do ar gelado do ar-condicionado central, em funcionamento para evitar a densa umidade do fim do verão, durante a noite sofria na agitação da insônia. O ímpeto o dominava de novo e, agora, consumia até mesmo seu sono.
A noite de segunda-feira trouxe um céu límpido depois de um dia de Sol escaldante. Segunda-feira era um bom dia. As pessoas sossegavam depois do fim de semana e raramente programavam alguma coisa para a noite de segunda. Arrumou um jantar cedo, com os restos na geladeira, mas quase nem tocou na comida. Às seis e meia foi para o escritório, sentou-se à mesa e esfregou as mãos com alegria.
Colocou o posado catálogo telefônico à sua frente e abriu-o ao acaso. Seu dedo foi percorrendo uma coluna,
191
fez uma pausa, continuou devagar: Landrith, Landuj... Landrum! Ura nome bom e íntegro, Landrum. Em Landrum havia Albert, Bruce, Dewey, Edward... Ed Landrum? ótimo. Isso mesmo! Numa folha de papel, escreveu o nome, de maneira nítida; fechou o catálogo e abriu-o mais uma vez, despreocupadamente.
Seu dedo parou sobre o nome Henderson. Havia dúzias de Hendersons, quase três colunas. Quando em dúvida, comece do princípio. Pule Henderson Adrian C, esqueça Henderson Agnes B. Sra. Que tal Henderson Alice? Vamos ver se conseguimos alguma coisa com Alice. Anotou o número e depois discou.
Uma mulher atendeu o telefone. Parecia ter uns 80 anos, quase 90. A avó?
-Alô! Por favor, posso falar com a Alice?
-O quê?
Essa aí esqueceu a cometa acústica!
-Alice. Alice Henderson!
-Aqui é Alice que está falando.
-Desculpe, não é essa Alice. -Deixou o fone cair. Uma verdadeira mancada. Bem, não se pode querer acertar logo na primeira tentativa. Nunca tinha conseguido. De qualquer forma, a cada fracasso a excitação aumentava. A primeira sensação vinha com a busca. Agora, discou para uma Arline Henderson. Um homem rosnou ao telefone e ele desligou.
Barbara Henderson não estava em casa. Barbara sortuda! Ligou para Beatrice. Depois de um tempo, ela atendeu como se estivesse de saída. Tinha uma voz dura e atrevida.
-Bea? É você, Bea?
-Sim. É Bea. Quem está falando?
-Aposto que você não adivinha.
-Se quer brincar, vá jogar paciência!
-Bem, faz tanto tempo, Bea. Não quero bancar o esperto, só queria ver se você ainda...
-Eu devia ter visto logo -interrompeu ela. -É o Bernie! Certo?
192
Ele deu uma gargalhada:
-Está bem, confesso. É o Bernie. Sei que não estou dando muito tempo, Bea, mas pensei que talvez você pudesse...
-Ouça, Bernie -disse ela, em surdina -sabe o que você é? É um inseto. Não saio com insetos. Onde você está morando agora, Bernie? No zoológico? Qual o número de sua jaula, caso eu mude de idéia?
-Tem um ótimo senso de humor, Bea -bufou ele. -Pena que a gente não possa encontrar-se. Tinha programado uma grande noite para nós. -Desligou com o dedo.
As tipo Bea Henderson eram fogo. Para isso tinha que laçar uma que fosse afável e dócil e não muito inteligente. De um modo ou de outro as outras também foram um fiasco, mas continuou com o nome Henderson até chegar a Victoria.
-Vicky? É você, Vicky?
-É... é a Vicky. -Essa era jovem, 20 e tantos ou 30 anos, talvez.
-Já faz tanto tempo, Vicky.
-Bem, quem está falando? -disse ela. -Não... não consigo localizá-lo.
-Não consegue localizar-me? E pensar que há alguns anos você sempre me colocava em primeiro lugar, Vicky.
-Meu Deus! -Deu uma risadinha nervosa. -Está-me deixando em apuros.
-É divertido, não é?
-Pra você, talvez. Tenha dó. Quem é você... por favor...
Rapaz, essa é uma patinha. Pronta para servir.
-Ah, vamos lá, o que é isso? Você sempre teve espírito esportivo, Vicky. Vou dar uma dica. Sou Bill, Joe ou Dave. Escolha um dos três.
Não se importava. Se isso não funcionasse, ia bater o telefone e ligar para uma mais viva. Mais cedo ou mais tarde...
193
-Fala sério? Bill, Joe nu Davp?
-Sério.
-Hum, deixe-me ver. Conheço alguns Bills, mas não muito recentes. -Pausa. -Ei, você não é Walter Buckley, é?
Uau, que cérebro!
-Meu amor, não existe nenhum Walter," Bill, Jop ou Dave.
-Claro que não! -Com impertinência: -Ele só me veio à cabeça, só isso.
-Bem, admito que está chegando perto. Diga, o que aconteceu com o Walt?
-Walter? A última vez que ouvi falar dele, estava trabalhando numa firma de advocacia e andando por ai com aquela relaxada da Jane Vogel.
-Está brincando! Jane Vogel, hem? Nunca fui com a cara dela.
-Nem eu. Espero se tenham casado, um merece o outro. Você é casado?
-E estaria telefonando?
-Hum. Já foi casado?
-Era. Consegui o divórcio.
-Ótimo, bem-vindo ao clube! -Pausa longa. —Não conheço nenhum Joe e conheço um.... Ah, agora peguei. É Dave Mosby!
-Enfim! E que vergonha. Como pôde esquecer-se?
-Dave! É você mesmo, Dave?
-De verdade, Dave Mosby.
-Depois de todo esse tempo!
-Muitas águas rolaram, Vicky.
-Há quanto tempo... cinco anos?
-Diria seis.
-Você e Betty se divorciaram?
-Sim; você pode acreditar? Bem, essas coisas, são assim mesmo.
-Sabia que eu me divorciei do Clint?
-Ouvi qualquer coisa. Foi por isso que telefonei.
194
-Que amor! Cuidado com esse, garota; é perigoso.
-Então, o que aconteceu depois que você disse bye-bye ao Clint? Foi morar com uma amiga?
-Não. Aluguei meu próprio apartamentinho e voltei a trabalhar. É tudo que Clint está fazendo por mim. Você ainda vende seguros pra... como é o nome daquele equipamento?
Pense rápido!
-Tenho minha própria agência agora, Vicky. Faço parte dela. Grande agência. -Puxou a folha de papel para ele. -Um amigo meu, Ed Landrum, um cara que tem um bocado de grana, arrumou-me isso.
-Que maravilha!
-Quero que você conheça o Ed. A mulher dele e os filhos também.
-Seria ótimo.
-Estou morando com o Ed. Ele tem uma casa enorme, um negócio de cinema.
-Poxa! Onde fica a casa, Dave? -perguntou ela.
Quando elas perguntavam, não podia omitir a verdade. Era raro perguntarem e, de qualquer forma, principalmente quando moravam sozinhas, isso não tinha importância.
-Crestview Gardens -disse.
-Verdade? Ah, é o melhor lugar para se morar. Aposto que não se arruma uma casa aí por menos de setenta e cinco mil.
-Cem mil ou mais; quase sempre mais.
-E você está morando aí em Swankville?
-Só por uns tempos. Recuperando-me de um acidente.
-Ah, coitado!
-Custou-me uma perna quebrada... em três lugares,
-Que horrível para você.
-Não muito. Está calcificando muito bem, mas não vou poder sair por algum tempo. Muito chato. Solitário
195
também. Você vem visitar-me, Vicky? Conheça os Landrums, veja como a outra metade vive.
-Eu adoraria!
-Venha hoje à noite então. Ed ainda está aí na cidade, no escritório, cuidando de alguns papéis, e eu poderia pedir-lhe que fosse buscá-la.
-Esta noite? Bem, não sei. Moças trabalhadeiras não podem dispensar seu sono reparador.
-Apenas por uma hora ou duas. Está bem, Vicky? Pelos velhos tempos?
-Sinceramente, Dave, que negócio mais às pressas! Sinto como se não conhecesse mais você. Parece diferente de alguma forma. Mais maduro... mais velho.
-A gente nunca fica mais novo, Vicky.
-Com quantos anos você está agora? Vamos ver. você tinha...
-Parei de contar. Com quantos anos você está agora, Vicky?
-Acrescente uns cinco ou seis anos.
-Ah, você é tímida. Bem, deixe eu telefonar para o Ed, para ver se ele pode trazê-la. Ligo logo depois pra você, está bem?
-Não acha que ele vai incomodar-se?
-O Ed? Meu melhor amigo! Só me dê alguns minutos para resolver isso.
Desligou e esperou três minutos.
-Ed disse que está tudo bem -informou. -Mas você se importa de ir encontrá-lo no saguão do Winston Plaza? É perto do escritório. Ele vai mandar um táxi a seu apartamento às oito em ponto.
-Bem... ^ . •e -Sente-se perto da recepção no saguão, ób
-Como ele vai-me reconhecer?
-Fiz uma boa descrição para ele, mas é melhor me dizer o que vai estar usando para eu dizer-lhe.
-Nada extravagante?
-Do seu jeito, Vicky.
-Vou usar um vestido de seda verde com uma corrente dourada na cintura.
196
-O táxi vai apanhá-la às oito, então. Olhe, mal consigo esperar pra vê-la de novo, Vicky!
No instante em que colocou o fone no gancho, começou a rir em silêncio. Não conseguia parar.
Cinco minutos antes das oito, ele se achava esperando em um canto escuro, de onde podia ver a entrada e a mesa de recepção. Era um jogo louco. Algumas vezes pegava um verdadeiro bagulho, caso em que, não estando comprometido ainda como agora, podia deixá-la esperando sentada e começar tudo de novo outra noite.
Nunca ia buscá-las pessoalmente, nunca usava o mesmo ponto de encontro duas vezes, e sempre chamava o táxi por telefone. No entanto, havia um pouco de risco, o que lhe dava uma deliciosa sensação de excitamento.
Vicky Henderson, com seu vestido verde com uma corrente dourada na cintura, chegou às oito e dez. Ficou perto da recepção, mas, depois de uma olhadela rápida em volta, sentou-se, empertigada, e começou um exame minucioso da maquiagem, o pescoço esticado, enquanto se olhava no espelhinho do pó compacto.
Sua voz não havia enganado quanto a sua idade. A uma distância não muito grande, parecia ter 20 e poucos anos, mas, em todos os outros aspectos, não combinava com a concepção vaga que ele fizera. Ele a tinha imaginado alta e loura, enquanto ela era baixa e tinha cabelos escuros. Tinha as feições pequenas. A falta de queixo dava a impressão de que seu rosto estava inacabado. Seus olhos eram grandes e sérios, com cílios longos e postiços. Tinha uma boquinha graciosa, no entanto e, para alguém tão mignon, um corpo espantosamente bom.
Ele ficou satisfeito. Era melhor do que a maioria. Servia muito bem.
Então, dirigiu-se para ela e ficou em pé, olhando para a jovem, com seu sorrisinho esquisito, enquanto ela deixava o pó compacto cair dentro da bolsa e olhava para cima.
-Oi -disse ele. -Você deve ser Vicky, e eu sou Ed Landrum.
Apesar de ter-se recuperado rapidamente e lançado para ele um sorriso vacilante, ela se havia assusta-
197
do. Elas sempre ficavam, porque, conquanto um lado do seu rosto fosse até mesmo bonito, o outro lado simplesmente não combinava. Era quase como se fossem duas pessoas em um só rosto. Poucas coisas davam-lhe tamanha excitação quanto ver o choque que isso lhes causava, vê-las encolhendo-se, como se estivessem prontas a correr. Talvez até corressem mesmo, se não fossem seus modos educados, o terno caro e bem feito, e os Dave Moshys que esperavam.
-Estou tão contente em conhecê-lo, Ed -murmurou Vicky, exagerando um pouco para compensar sua reação inicial. Levantando-se, estendeu corajosamente a mão para ele. -Tão gentil de sua parte ter todo esse trabalho.
-De modo algum. Tudo pelo velho Dave. É o meu melhor amigo. Podemos ir?
Com uma leve pressão no cotovelo da moça, conduziu-a pelo saguão e pela rua, que agora tomava-se sombria, pois os últimos raios de luz desapareciam do céu. Ela era tão pequena que quase tinha que correr para acompanhá-lo.
O carro era um Bentley cinza-pérola brilhante. Enquanto ela se babava toda com o carro, ele ligou o motor, fechou as janelas e regulou o ar-condicionado. Saíram devagar.
-Está uma noite tão quente -disse ela, depois de um minuto. -Como é bom estar num carro tão adorável e fresquinho.
Ele sorriu com um dos lados do rosto, acelerou e enfiou-se rapidamente no meio do trânsito. Ela, nervosa, ficava puxando a saia e ajeitando os cabelos.
> -Conhece o Dave há muito tempo?
-Para mim é como se o conhecesse toda a minha vida. Na verdade, conheço-o há apenas alguns anos. -Podia dizer-lhes o que quisesse. As idiotas estavam loucas para acreditar.
-Conheceu a Betty, é claro.
-Conheci. Ah! Uma pena. Gostava muito da Betty, A Joyce também.
198
-Joyce?
-Minha mulher. Vai conhecè-la em brevp.
-Dave disse que vocês têm filhos.
-Bobby, com sete anos, e Glória, com nove.
-Sete e nove anos -disse, pensativa. -As crianças são muito engraçadinhas nessa idade.
-Encantadoras. -Ofereceu-lhe um cigarro, mas ela recusou, meneando a cabeça. Ele pressionou o isqueiro no painel.
-Perdi completamente o Dave de vista. Ele e Betty tiveram filhos?
-Não.
-Fico contente em saber.
-Fica? -Virou em uma larga avenida arborizada e ajeitou-se confortavelmente no assento. Já tinha planejado tudo.
-Bem, quero dizer, se duas pessoas não se dão bem, é sempre uma sorte quando não têm filhos.
-É verdade -disse ele, limpando um pouco de cinza de cigarro da calça. -Nunca pensei nisso. -Quase riu.
Ela recostou-se na porta e examinou-o, com a mão no queixo:
-Você parece ser uma pessoa muito boa, Ed.
-Acha mesmo?
-Importa-se se eu perguntar... como aconteceu?
-Como aconteceu o quê?
-Você sabe, seu rosto.
-A maioria das pessoas não toca neste assunto.
-Ah, eu o ofendi?
-Não, gosto de garotas que têm coragem suficiente para mencionar esse ponto.
-Então, conte-me.
-Vietnã. Eu era capitão, infantaria. Um fragmento de granada arrancou um pedaço de minha cabeça e pulverizou um lado do meu rosto.
-Fizeram um cirurgia plástica para...
-Claro, mas não sobrou muita coisa para eles trabalharem. Desde então, tenho sido muito popular. -Riu,
199
com amargura. -Principalmente com as garotas... até que encontrei Joyce.
-Ah, sabe, não acho que seja realmente assim tão ruim como to...
-Não me venha com isso, ouviu! Odeio pessoas falsas e mentirosas! Por que não diz logo que pareço um monstro ou então cale essa boca!
Ela falou, ofegante:
-Bem... eu... eu não queria... estava só tentando ser...
-É isso aí, estava só tentando ser... mas não conseguiu, não foi? -Fitou-a rapidamente. A pele sob um dos olhos caiu, dando-lhe uma aparência de uma malevolència terrível.
-Talvez seja melhor levar-me de volta para casa, Ed. Diga apenas a Dave: um outro dia. Está bem?
Ele não respondeu nada até que saiu da avenida larga e começou a subir os morros de Crestview Gardens.
-Sinto muito -disse ele; mas não sentia nem um pouco. -Torno-me insuportável uma vez ou outra, mas não quer dizer nada. Nada pessoal. Entende?
-Claro -respondeu, rígida. E animando-se depois de uns momentos: -Não foi sua culpa, foi minha. Sou uma idiota, é só.
-É, claro. -Você é bem idiota mesmo, garota, disse-lhe em pensamento.
Eles foram subindo e subindo e chegaram a um alto portão de madeira vermelha. Havia um dispositivo em um poste. Colocou um quadrado plástico na abertura e o portão abriu-se, fechando-se atrás deles.
-Que prático -disse ela.
Dali em diante o terreno subia suavemente, num vasto tapete de grama e arbustos, e árvores gigantescas e antigas encobriam tudo na escuridão. Fora dessa escuridão, no topo da subida, surgiu a longa silhueta da casa. As luzes, embaçadas pelas cortinas, cintilavam a distância através das árvores; tinha uma ligeira aparência de um navio na noite.
-Meu Deus! -exclamou Vicky. -Que lugar fantástico! Tão lindo e ao mesmo tempo tão.?, não consigo achar a palavra exata... solitário, acho. Quando se atra-
200
vessa o portão parece que se está entrando em um outro mundo.
Ele ouvia os gritos de seus próprios pensamentos e escutava-a a distância, como se de uma estação longínqua, mal sintonizada. Arremessou o grande carro pela subida, trouxe-o até a frente da casa e freou bruscamente, apagando as luzes e desligando o motor.
-Vamos -disse ele. -Dave está esperando.
Andando na frente, olhou a grande porta e ficou parado, sério, na soleira, até que ela entrasse. Depois, fechou a porta.
A sala de estar, esplêndida e cavernosa, tristemente iluminada, era fria como um porão fundo. Pesadas cortinas cobriam as janelas fechadas. Um silêncio, como de um segredo guardado, envolvia o lugar. Ele prestou atenção.
-Devem estar lá embaixo na sala de brinquedos com as crianças -disse. -Vendo televisão, acho. Vamos até lá ver.
Vicky sorriu pouco à vontade, depois seguiu-o em direção aos fundos da casa, pela cozinha enorme, até uma porta que estava aberta. Vinha luz lá de baixo, espalhando um brilho pálido por uma escada larga e atapetada, que descia, em curva, para um porão forrado com painéis alegres.
-Que agradável -disse ela, enquanto desciam. -Não parece nem um pouco com esses porões frios e tristes que a gente encontra em quase todas as casas.
-Joyce não gosta que as crianças fiquem correndo e berrando pela casa -explicou -então, construí esta sala de brinquedos à prova de sons e enchi desse material forte, que não suja nem estraga com facilidade.
-Como Dave se arranja com essas escadas e a perna quebrada? -perguntou ela, olhando para trás por sobre o ombro, com uma expressão preocupada.
-Não se arranja. Temos um elevador; vai de cima até embaixo.
-Muito bom para ele.
-Mas pensei que você poderia? hagüentar esta descidinha. -(Vê? tenho todas as respostas meu amor.) Rindo.
201
seguiu pelo corredor, parando em frente a uma porta, que abriu casualmente. Saiu luz pela porta aberta e o som estridente de uma televisão emitia vozes por sobre um fundo musical triste.
Ficou de lado, e ela entrou. A porta fechou-se atrás de ambos com um clique.
O chão era revestido com ladrilhos alegres. As paredes e o teto tinham desenhos juvenis, em cores vistosas. A sala vazia e sem janelas continha um sofá, coberto com um tecido de algodão aveludado, duas cadeiras de couro e dois abajures de pé. A televisão portátil, a pleno vapor, olhava a sala, de uma prateleira no canto.
Quando olhou em volta, Vicky abriu ligeiramente a boca e, em seus grandes olhos, com cílios longos e postiços, apareceu o primeiro sinal de medo.
-Ei, não há ninguém aí -falou. -Onde está todo mundo? Onde está Dave? -Virou-se. -Ed? Por que não responde? Isso é algum tipo de... Ouça, o que é isso? -berrou ela, histérica.
Ele recostou-se contra a porta e sorriu aquele seu sorrisinho esquisito, no qual apenas metade do seu rosto parecia tomar parte, e Vicky gritou.
Pouco depois das sete na noite seguinte, os detetives Linwood e Mallick estavam sentados no apartamento da Srta. Rena Whalen, que morava um andar acima de Vicky Henderson.
-Bem -disse Linwood -vamos começar tudo do comecinho, Srta. Whalen. Há quanto tempo conhece Vicky Henderson?
-Há uns três anos -disse Rena Whalen, uma loura gorda, com um rosto redondo, e lábios de amuo. -Trabalhamos no mesmo escritório e arrumei para Vicky um apartamento aqui, depois que ela se divorciou.
-E você a levava para o trabalho todas as manhãs e a trazia de volta todas as noites, certo? -perguntou Mallick, que tomava notas.
-Sim, isso mesmo. Ela não tem carro e nós dividimos a gasolina, a despesa, é isso. Essa manhã, desci à mesma hora de sempre e bati na porta, mas ela não res-
202
jondeu. Então, voltei para o meu apartamento e telefonei para ela. Pensei, sabe, que talvez ela estivesse no chuveiro ou qualquer coisa assim. Mas não consegui chamála pelo telefone também, e fui para o escritório.
"Fiquei telefonando para ela o dia inteiro e, então, no final da tarde, pedi ao zelador para abrir a porta para ver se ela estava doente ou qualquer coisa desse tipo. Tudo estava bem e no lugar, mas nada da Vicky. A cama nem estava desarrumada.
—• Não é comum ela passar a noite toda fora? -perguntou Linwood.
-Nem um pouco. Quer dizer, nunca aconteceu antes, nesse tempo todo que a conheço. Não é nem um pouco esse tipo de garota. Decente e de toda confiança, sabe.
-Mas -disse Mallick -sabia que ela tinha saído com esse, hum, Dave...
-Mosby -completou Rena. -Não ia exatamente sair com ele, ia visitá-lo. Ele não podia sair de casa por causa de uma perna quebrada em um acidente. Vicky disse que ele estava morando com um amigo rico, em Crestview Gardens.
-E como é que a Vicky contou-lhe isso? -perguntou Linwood.
-Bem, fui até o apartamento dela por volta... ah, era um pouco antes das oito... e ela me contou. Estava toda animada. Esse Dave era uma paixão antiga, e ele telefonou assim, de repente. Ela não tinha notícias dele há uns cinco ou seis anos.
Linwood disse:
-E qual era o nome do homem em cuja casa esse Dave devia estar morando? -indagou Linwood.
-Landrum. Ed Landrum. Não me lembrava do nome, mas Vicky tinha escrito no alto de uma revista, que estava ao lado do telefone. Então procurei no catálogo e é claro que tinha um Ed Landrum e eu liguei pra ele e perguntei: Cadê a Vicky? "Que Vicky?", disse ele, sem entender de verdade, sabe. Ele nunca nem mesmo tinha ouvido falar de Vicky Henderson. E ainda por cima, ele nem mora em Crestview Gardens; mora na zona sul, pm Dumpville.
203
Os dois detetives trocaram olhares, e Mallick disse:
-Bem, vamos até lá ter uma conversinha com o Sr. Ed Landrum. E, enquanto isso, vou mandar verificarem esse Dave Mosby. -Levantou-se. -Voltamos aqui de manhã, Srta. Whalen.
Rena concordou com a cabeça.
-Então, o que o senhor acha?
-Acho -disse Mallick -que é muito parecido com um caso que tivemos no verão passado; e quem sabe quantos outros mais, quando não havia ninguém como você por perto para nos dar a dica.
Rena molhou os lábios grossos:
-Um problema -disse Mallick -a garota marcou um encontro com um cara pelo telefone. Saiu para encontrar-se com ele e nunca mais voltou.
Ele estava no escritório, discando furiosamente. Via de regra, deixaria passar uma ou duas semanas, mas aquela ia ser a última noite e, até então, já havia ligado para dúzias, sem sucesso, percorrendo todo o catálogo, ao acaso. No momento, discava para Mildred Perry. Ela atendeu com uma voz sonora e ansiosa.
-Millie? É você, Millie? -Claro que é!
-Adivinha quem é? Millie, depois de tanto tempo você nem vai acreditar...
Logo depois das nove, os dois detetives estavam na chefatura de polícia, discutindo o caso.
-Isso é o fim -disse Mallick, que acabara de completar uma chamada para Chicago. -Um beco sem saída, como o outro no verão passado. Mosby não deve estar mentindo, ele e a mulher moram em Chicago há um ano e meio. Landrum e a mulher estavam recebendo convidados em casa, para um bridge, na noite passada, segundo nos disseram. E pode apostar até o seu último dólar como os convidados vão confirmar. Então, aonde tudo isso nos leva?
-Em algum lugar em Crestview Gardens -disse Linwood.
204
-Ah, pare com isso, Harry. O tipo de gente que mora em Crestview Gardens não faz jogos de morte pelo telefone com mulheres solitárias. Isso fazia parte da jogada, para adoçar um pouco a isca. Ele tirou essa da cartola.
-Bem, talvez -disse Linwood -apesar de que o dinheiro não compra a sanidade quando se é um maníaco. Mas eu mesmo também não acredito nesse negócio de Crestview. Não faz nenhum sentido. Esse cara está fazendo mistério, ele usa, provavelmente, um telefone público.
-Se ele fizesse isso o ano inteiro -disse Mallick -a gente ainda teria chance de agarrá-lo. Mas, é evidente, que ele espera pelo verão. Isso nos ajuda em algo?
-Claro -respondeu Linwood. -No inverno ele vai para o sul com o resto do bando de cucos.
Enquanto os detetives discutiam a questão, o objeto da conversa estava com Mildred Perry na entrada da silenciosa sala de estar, em Crestview Gardens.
-Silenciosa como um túmulo -disse ele. -Acho que foram lá para baixo, para a sala de brinquedos, com as crianças. Bem, então, Millie, vamos lá dar uma olhada...
Logo depois do amanhecer, ele limpou toda a casa Em seguida, desceu até a sala de brinquedos. Após lavar o chão de linóleo e deixar tudo bem limpo, fez um exame completo na sala, inspecionando os cantos, espiando por trás e por baixo da parca mobília. Uma coisa muito boa, também, pois encontrou, sob o sofá, o pó compacto dourado de Vicky Henderson. Estava quebrado e havia uma mancha de pó no chão. Limpou-a com um pano úmido e colocou o estojo no bolso.
Saiu da casa e pôs-se a subir pelo gramado extenso, que havia sido recentemente podado por um grupo de jardineiros sob sua supervisão. Para os lados de trás da casa, entrou pelo meio de um grupo denso de árvores, um bosque intato, deixado assim por seu valor decorativo. Entrou pelo bosque, atravessou uma ponte rústica sobre um riacho e continuou andando até chegar a um local, onde árvores altas achavam-se de tal forma entrela-
205
çadas que, mesmo sob o Sol de verão, era um lugar de muito pouca luz e grande sombra.
Começou a procurar pelo local até descobrir uma pedra, que lhe serviu como ponto de referência. A uns seis metros da pedra, parou e, depois de examinar cuidadosamente o chão, chutou para o lado algumas folhas e tirou uma espátula do bolso. Com um perverso senso de ordem, enterrou o estojo no local exato.
Recolocando as folhas no lugar, levantou-se e meteu a espátula no bolso.
-Aí está, Vicky -murmurou -caso o seu narizinho fique brilhoso.
Quando voltou do bosque, o Sol já estava firme no céu. Tomando uma outra direção, foi finalmente para a pequena casa do caseiro, perto do portão. Na casa, barbeou a metade esquerda do rosto, tomou um banho sem pressa e preparou seu café da manhã. A seguir, depois de dar uma olhada no relógio, vestiu um imaculado uniforme cinza, ajeitou ao espelho o quepe com viseira, lançou, à sua própria imagem, um contorcido meio-sorriso de desaprovação, e saiu.
Subiu devagar até a garagem com os quatro carros e tirou a longa limusine azul. Parte do tempo, caseiro, e chofer o tempo todo; bem, era um emprego, e no verão, quando a "família", com toda a criadagem, embarcava para a Europa, para a casa que possuíam na Riviera Francesa, havia alguns benefícios extras. Agora, o verão terminara; em algumas horas eles estariam de volta, e a rotina começaria de novo.
No portão, parou o carro e olhou para o bosque, atrás. Por um momento, jorrando como champanha, sentiu por dentro um curioso e borbulhante triunfo. Mas, à medida que se afastava, uma voz, em alguma parte distante e incoerente dele, começou a gritar dentro de sua cabeça.
Espero que eles me peguem, gritava a voz. Ó, Deus, espero que eles me peguem!
Este livro foi digitalizado e corrigido por M. Regina M. de Carvalho e Silva, para uso exclusivo de pessoas com deficiência que não podem ler publicações em formato tradicional.
São Paulo, 13 de janeiro de 2005
206





Mary Perkins Ryan
John Julian Ryan

AMOR E SEXO
Visão cristã do problema sexual


Edições Paulinas


Aos nossos filhos John, Thomas, Peter, Michael e
David




PREFÁCIO

Um grande pintor japonês, quase octogenário, fazia notar
que se lhe fosse dado viver e trabalhar ainda por algumas
décadas, poderia começar a aprender algo sobre pintura.
Embora não sejamos nós, como aquele pintor, tão hábeis na
arte do amor cristão, podemos, após longos anos de
tentativas, como indivíduos e na vida de matrimônio,
começar a compreender algo do que seja amar.
Procuramos, neste livro, indicar alguns obstáculos e
acentuar os meios mais promissores para uma vivência de
amor, segundo os dados de nossa experiência; assim,
nutrimos a esperança de podermos ajudar alguém a trilhar o
caminho do grande mandamento, sem hesitar tanto como
nós hesitamos, e sem se expor a tantos perigos de cometer
os erros que cometemos. Em outras palavras, procuramos
delinear algumas idéias a respeito da vida, do amor e do
sexo, que almejamos possibilitem a cada um fazer seu
ingresso na vida de adulto, na vida matrimonial e abraçar os
deveres da paternidade.
Foi sorte que nosso trabalho e nossos objetivos puseram-nos
em íntimo contato com os movimentos e a doutrina da
Igreja firmados pelo Vaticano II. Mais felizes ainda nos
sentimos constatando que nossos amigos — sacerdotes,
freiras, leigos casados e solteiros — são os que mais
oportunamente questionam esta matéria; as'soluções que nos
comunicaram através de sua amizade e experiência,
ajudaram-nos a compreender, pelo menos em parte, o papel
que desempenha o amor não só na vida matrimonial, como
em todas as formas de vida cristã. Vai aqui nosso irrestrito
reconhecimento a todos os nossos amigos, bem como aos
colegas que nos auxiliaram a concretizar e dar corpo às
nossas idéias. Desejamos manifestar nossa particular gratidão
a todos os que, com • encorajamentos e críticas,
persuadiram-nos não só a escrever como a reestruturar este
livro.
As idéias que aqui apresentamos não visam a constituir um
"manual sobre o matrimônio". Firmando-nos no contexto
informativo próprio dos manuais que versam sobre a vida de
matrimônio, procuramos, acima de tudo, sugerir linhas de
orientação aplicáveis a todos os que desejam aprender a
amar, não importa qual seja seu estado de vida cristã. Mas
nossa firme esperança é que estas orientações sejam
particularmente úteis aos casais, bem como a pessoas encar-
regadas de cursos em preparação ao matrimônio, ou
diretamente relacionadas com questões matrimoniais.
Tampouco foi nossa intenção redigir uma obra polêmica.
Fomos obrigados a nos empenhai ou pelo menos a entrar em
contato com a maior parte das questões que hoje em dia se
debatem, mais ou menos relacionadas com o sexo, o
matrimônio e a vida familiar. Mas não o fizemos com intuito
de suscitar ou dar continuidade a controvérsias sem sentido,
pelo simples gosto de discutir, mas visando promover um
consciencioso debate em torno da melhor maneira de
remover os obstáculos ao amor, e a fomentar os meios mais
favoráveis para incrementá-lo.
Como católicos, é natural que encaremos os problemas
atuais e suas possíveis soluções no contexto específico,
histórico e hodierno da doutrina e das teorias abraçadas pela
Igreja católica. Entretanto, sendo estes problemas, senão
idênticos, pelo menos análogos aos que se verificam em
outras esferas do Cristianismo, nutrimos a esperança de que
também a eles possa este livro oferecer alguma utilidade.
Mary Perkins Ryan John Julian Ryan


1. HUMANIDADE E SEXO

Desde a época dos Padres, até agora, exerceu notável influxo
sobre algumas correntes da doutrina cristã a idéia de que o
sexo constitui um aspecto negativo da natureza humana, só
restaurável mediante repressão ou abstendo-se de usá-lo. O
impulso original que levou a semelhante atitude parece
provir de doutrinas estranhas ao cristianismo, entre estas, as
correntes estóicas e outras categorias de pensadores
enfadados com a licenciosidade que imperava naqueles
tempos. O ensinamento cristão, porém, sempre proclamou
como realidades fundamentalmente boas e suscetíveis de
redenção, o corpo, o matrimônio, a procriação. Apesar
disso, certas praxes predominaram por longos séculos em
algumas camadas da Igreja. Na época imediatamente anterior
a Freud, a maioria dos pensadores e mestres cristãos
pareciam nutrir repugnância e temor em relação a todas as
manifestações do sexo. Isso ajuda a compreender por que o
Freudianismo, em sua acepção popular, criou um verdadeiro
impacto para a geração que nos precedeu, pois parecia
estender a "corrupção" do sexo a todas as esferas dos
sentimentos e das motivações humanas.
Nos Estados Unidos, o Victorianismo e certos ramos do
Puritanismo são os responsáveis imediatos pela mentalidade
que considera o "sexo" como coisa impura; mas o
Jansenismo, cuja influência é bem conhecida em certas
camadas do catolicismo irlandês, aliou-se a estas forças para
com elas formar a mentalidade de inúmeros católicos. Em
algumas correntes do pensamento católico infiltrou-se a
idéia de que o ideal humano consistiria em abster-se das
atividades sexuais. Certas devoções a Nossa Senhora, por
exemplo, dão a impressão de que o principal motivo de sua
glória consista na preservação de sua virgindade física, e não
porque fora ela um sublime exemplo de fidelidade: "ouviu a
palavra de Deus e a pôs em prática" (Lc 8,21). Não raro,
também, os santos são apresentados como pessoas
"angelicamente puras" desde a infância. A "literatura
popular" em torno da vocação encorajou a idéia de que o
celibato consagrado e a virgindade são estados de vida mais
"elevados" que o matrimônio principalmente porque envol-
vem a abstenção de qualquer contato sexual.
É provável que uns poucos Pastores protestantes ainda
fulminem do alto do púlpito a "luxúria". Talvez algumas
freiras ainda endossem em suas escolas as críticas suscitadas
por uma superiora encarregada de muitas centenas de jovens
alunas. Solicitada a adotar o livro de Von Hildebrand: "Em
Defesa da Pureza", uma das primeiras obras católicas
modernas que procuraram enfrentar a questão matrimonial
ressaltando os aspectos positivos do sexo e colocando-o em
relação com a virgindade consagrada, disse ela muito
desenvolta: "Nada sei sobre isso e nem quero saber". Nossos
pais e educadores estavam imbuídos desta mentalidade, que
provocou semelhantes fenômenos. Razão por que nós
também, por influxo deles, nascemos impregnados, até certo
ponto, nesse clima de negativismo. Por conseguinte, a maior
parte da nossa geração dificilmente consegue evitar o
pensamento, consciente ou não, de que para nós melhor
seria, moralmente falando, "não ter vida sexual", para
usarmos o título de um livro atual e muito útil, escrito por
Richard Hettlinger: Living with Sex: The Student's Dilemma
(New York: Seabury Press, 1966).

O mundo de hoje sofre uma verdadeira inundação "do sexo".
Os cartazes exploram cada vez mais clamorosamente a
atração sexual, fomentando a idéia de que o objetivo da vida
é aumentar o próprio poder de sedução usando o melhor
sabonete, o perfume mais suave ou o mais eficaz
desodorante. "A filosofia do playboy" propunha que a mais
fundamental característica do bem viver consiste no uso tão
freqüente quanto possível da própria capacidade sexual.
Estudos existem, como os de Kinsey e Masters, que analisam
cientificamente o comportamento sexual, normal e anormal,
cujas conclusões recebem a mais ampla divulgação. Revistas
e livros destinados a um público de classe média descrevem
e debatem a vida sexual no matrimônio e fora dele. Filmes,
artísticos ou pseudo-artísticos, encaram o problema com
desinibição cada vez maior. Não podemos fechar olhos e
ouvidos diante disso tudo, seja que nos consideremos
culpados, seja inocentes, no que diz respeito às nossas
reações perante estes multiformes estímulos.
Além disso, nesta época pós-freudiana, é difícil escapar do
influxo da hipótese atualmente em voga segundo a qual
ninguém pode gozar de boa saúde, ser verdadeiramente
homem, desenvolver-se e realizar-se plenamente, se
reprimir os próprios instintos sexuais. Na divulgação dos
princípios freudianos, que não raro foram alvo de equívocos
e de falsas interpretações, colocou-se a repressão das
atividades sexuais físicas no mesmo plano da repressão da
sexualidade como dimensão da pessoa humana, e as
demonstrações de Freud em torno da conexão entre as
dimensões da pessoa humana e as perturbações mentais
foram aplicadas a toda e qualquer abstenção das faculdades
sexuais.
Do mesmo modo, a palavra "sexo" deixou de significar
apenas "uma peculiaridade do macho ou da fêmea, ou coisas
que distinguem o macho da fêmea" e passou a incluir "todas
as coisas relacionadas com a satisfação ou reprodução sexual,
e em especial a atração que exerce um sexo sobre outro".
Mas este sentido assim ampliado já se tornou de novo
insuficiente, pois, em nossa cultura popular, a palavra "sexo"
significa em primeiro lugar o ato sexual (exemplo típico
disso é o recruta que escreveu a palavra "ocasionalmente"
em vez de "masculino" no espaço do formulário reservado à
referência do sexo). Por conseguinte, os aspectos físicos da
sexualidade humana adquiriram extraordinária importância,
e o sexo se tornou algo impessoal, uma espécie ds remédio
para certos psiquismos doentios e uma fonte de prazer para
indivíduos sadios. Insistem ainda os expoentes da cultura
moderna que o sexo, em sentido impessoal, é necessário
para a salvação terrena, ao passo que a religião e os
condicionamentos de outrora apresentam-no como um
perigo para a salvação eterna. Ninguém se admira que tais
contrastes suscitem problemas.
Estes problemas são ainda acrescidos pelas idéias confusas
referentes ao amor romântico, em voga na sociedade
moderna. O amor romântico parece assumir proporções
cósmicas, qual força impessoal fadada a subjugar o homem, a
ponto até mesmo de destruí-lo, como os heróis da lenda de
Tristão e Isolda. Tal conceito mantém-se muito vivo ainda
em nossa cultura, e para ele apelam todos os que se deixam
arrastar pelas paixões. O "amor" justifica tudo, e o povo
identifica "apaixonar-se" com uma grande variedade de
impulsos, inclinações e sentimentos. Estas idéias sobre o
"amor" aparecem entrelaçadas com outras referentes ao
sexo, sem atingir, porém, uma real integração. A famosa
caricatura Playboy, que descreve um casal em apaixonado
amplexo, e refere estas palavras do rapaz à jovem: "Por que
falar de amor em um momento como este?" Resume toda a
temática playboy, segundo a qual o amor romântico não é
absolutamente indispensável para a satisfação sexual, e que
somente um sentimentalismo sofisticado poderia sustentar
tal hipótese. Mas, ao mesmo tempo, canções populares,
filmes, e romances continuam a encorajar o "Jovem Sonho
de Amor". Destarte, não apenas nos debatemos entre duas
mentalidades opostas: "o sexo é um bem" e "o sexo é um
mal", mas entre duas idéias: "O amor é tudo", e o "amor é
uma desilusão sentimental".
As Igrejas procuram enfrentar esta situação, fazendo notar
que o verdadeiro amor não se confunde com
sentimentalismos românticos, e que o sexo é realmente um
bem quando retamente usado na vida matrimonial;
procuram também ajudar seus membros a compreender e a
pôr em prática esta doutrina. Nas últimas décadas, a Igreja
Católica tem se esforçado em dar mais ênfase à idéia de que
o sexo não é somente um bem, mas também uma coisa
santa, quando se faz reto uso de suas funções na vida
matrimonial para cooperar com a obra criadora de Deus,
dando vida a novos seres humanos. A tendência mais
recente é a de sugerir que o sexo alimenta o amor recíproco
do casal. Mas estes aspectos não oferecem soluções para o
problema sexual dos solteiros, dos separados e divorciados,
dos casais que julgam não terem mais condições para criar
outros filhos, assim como para os que não conseguiram
superar o próprio sentimento de culpa em relação ao prazer
sexual. Em verdade, a nova maneira de tratar a questão não
resolve todos os problemas.
O motivo deste insucesso não está em que tais ensinamentos
deixem de encorajar o sexo, na medida do possível, mas
explica-se pelo fato de assumirem a noção abstrata de sexo,
que predomina em nossa sociedade. Talvez esta atitude se
deva, em primeiro lugar, a uma apresentação terrena e
cabalmente pragmática do sexo como realidade física e
biológica, que "faz parte do plano divino". Eis um exemplo:
"visto que as criaturas humanas são preciosas para Deus, ele
deseja que um homem gere filhos. Visando garantir a
perpetuidade da raça humana, tornou prazeirosa a união
física entre homem e mulher no matrimônio. O corpo
feminino excita o homem. Eis o plano de Deus". Em
segundo lugar, pode ser fruto de uma apresentação do ato
sexual como realidade que se torna sublime e sobre-humana
no matrimônio. Eis outro exemplo: "Embora muitas vezes
repetida, a união sexual continua sendo, para um número
ilimitado de casais, o que foi desde o início: fonte
inextinguível de doçura e benção espiritual; nascente quase
milagrosa e sublime de prazer, que leva o casal a se
entrelaçar em mútuo amor". Estas citações de livros
publicados nos últimos anos representam as duas correntes
que caracterizam a maioria dos escritos e do ensinamento
popular católico em relação ao sexo e ao matrimônio. Seja
que o consideremos como realidade simplesmente biológica,
seja que o encaremos por um motivo de sublimação, o sexo
será sempre uma realidade inferior ou superior à esfera do
comportamento especificamente humano.
Mas a questão suscitada pela sociedade hodierna é
precisamente a de saber como humanizar o "sexo", como
elevá-lo ao nível da liberdade e da responsabilidade humana,
como atribuir-lhe função positiva em cada indivíduo, casado
ou solteiro. Várias influências interdependentes possibilitam
atingir este objetivo. Primeira, e talvez a mais importante, é
a que nos oferecem as teorias psicológicas. Inepta seria nossa
compreensão do Freudianismo, se o considerássemos como
uma teoria que reduz o amor erótico e afetivo à sexualidade
genital. A teoria psicológica moderna parece preferir afirmar
que a sexualidade é um impulso que atua não somente na
esfera genital, mas em todas as áreas do comportamento
humano, mesmo quando este se relaciona apenas
indiretamente com as funções sexuais. Tal campo carece
ainda de qualquer determinação, e não se conhece
claramente que sentido teriam as "funções sexuais" para a
pessoa humana, além da esfera biológica. Considera-se, en-
tretanto, esta esfera como um campo que abrange todo o
comportamento afetivo e toda conduta em busca do prazer,
incluindo, por conseguinte, uma verdadeira gama de atitudes
sexuais, desde as mais degradantes até as mais sublimes. Em
outras palavras, é uma força que constitui propriamente um
aspecto integral de todo impulso afetivo da pessoa humana,
possível, portanto, de ser humanizada e personalizada.
Além disso, o ideal do amor cortesão envolvia aquilo que
modernamente chamaríamos de "relações interpessoais"
entre dois que se amam, embora excluísse teoricamente a
relação sexual. Tal coisa foi se tornando, aos poucos,
familiarmente aceita qual desejável pressuposto ao
matrimônio, e influiu no desenvolvimento de idéias, sobre o
comportamento sexual e o matrimônio, mais centralizadas
na pessoa. A despeito da verdadeira obsessão pelo sexo, que
se apoderou da cultura moderna, ou talvez em razão da
intolerável opressão que ela exerce, parece estar em via de
desenvolvimento uma apreciação dos aspectos
verdadeiramente humanos da sexualidade. Os assim
chamados matrimônios "entre colegas" têm sido modelos
que encontram mais aceitação, particularmente entre jovens
de nível universitário, e as relações sexuais pré-matrimoniais
vão se centralizando cada vez mais na "pessoa humana".
Além disso, não constatamos apsnas uma inundação de
imagens "sexy", escritas ou filmadas; há um número
incontável de filmes e romances, que, mediante uma
neurótica idéia de "salvação pelo sexo", procuram encontrar
o sentimento da sexualidade humana e se esforçam por
integrá-la em esquemas mais amplos de valores. Tanto na
vida real quanto na esfera da imaginação, aquilo que muitos
críticos cristãos julgam simples revolta contra a moral
tradicional, em muitos casos não passa de sublimação contra
algo que se apresenta como uma moral vazia de conteúdo, e
uma busca sincera do sentido real da vida.
Considere-se ainda que os membros de muitas Igrejas estão
procurando, com o auxílio da psicologia moderna e de
outras ciências sociais, entender o verdadeiro alcance do
código de moral cristã no que diz respsito ao
comportamento sexual e suas aplicações na sociedade atual.
Entre os católicos, vão se multiplicando os debates em torno
da sexualidade, vista sob um prisma mais humano, sobretudo
quanto à limitação da prole, e, mais recentemente, quanto à
disciplina relativa ao celibato do clero. Muitos cônjuges
começaram a tomar parte nestes debates. Não resta dúvida
de que a tonalidade, ou pelo menos uma das cambiantes que
caracterizam os ensinamentos do Vaticano II, no que diz
respeito ao matrimônio e às relações sexuais no matrimônio,
são assaz diferentes e muito mais genuinamente humanas do
que o clima que impregna a Encíclica sobre o matrimônio
de 1930 e grande parte da literatura católica, mesmo atual.
Mas, além destas tendências que dizem direta relação com o
conceito de sexo como tal, o progresso que o Vaticano II
operou no pensamento cristão, fornece o contexto para
desenvolvermos nosso estudo acerca da doutrina atual da
Igreja referente ao sexo, como também para examinarmos as
suas conseqüências práticas. Pois, o principal obstáculo que
impede uma caminhada rápida em busca de uma
compreensão positiva da função do sexo no amor, e da
função do amor na vida humana, é a idéia impessoal e
isolada do sexo como se fosse uma conquista definitiva de
um vasto conjunto de outras atitudes que influenciaram o
pensamento cristão ao longo dos séculos. Se examinarmos
nosso próprio sentir em relação ao sexo. percebê-lo-emos
entrelaçado com idéias sobre a finalidade da vida, sobre o
pecado, assim como com idéias a respeito do amor, do
matrimônio, da função do homem e da mulher na vida
matrimonial e na sociedade. O mesmo acontece com os
ensinamentos que direta ou indiretamente influenciaram
nossas idéias e nossos sentimentos.

Devido a vários fatores históricos, próximos e remotos,
certas praxes cristãs pareciam inculcar que a finalidade da
vida era apenas a de conseguir a salvação no céu, em vez de
insistir na necessidade de compartilhar a obra de Cristo
destinada a reunir os homens em comunhão de amor e de
vida com Deus e com o próximo. Tais praxes talvez
salientassem que o pecado consiste primariamente em uma
transgressão material, mais ou menos séria, de mandamentos
arbitrários, em vez de ser a recusa do amor divino. Pareciam
afirmar que nosso corpo fosse a parte "inferior" ou "animal"
da natureza, perigo constante para a eterna felicidade de
nossas almas, e não um aspecto essencial do nosso "eu", que
possibilita nossa presença junto ao próximo e nos dá o poder
de comunicar-nos com ele. Neste contexto, era difícil des-
cobrir qualquer sentido ou escopo positivo na sexualidade
além da finalidade de gerar filhos e de garantir uma
comunidade familiar estável, propícia à educação da prole.
Todas as outras manifestações ou ressonâncias do sexo,
desde que reconhecidas como tais, apresentavam-se como
um embaraço, um tormento, um "mistério", ou tudo isso ao
mesmo tempo.
Mas os teólogos e os exegetas vêm trabalhando, há vários
anos, para libertar o povo cristão destas interpretações
simplicistas e unilateralmente enfáticas, fruto de influxos
culturais ou filosóficos. Este trabalho, corroborado pela força
do Espírito Santo no pensamento e na vida dos cristãos, já
propicia uma nova visão da vocação humana e cristã
centralizada no amor: o amor de Deus nos chama e nos
proporciona os meios de corresponder; tal resposta há de ser
dada por nós, não como "almas", « sim integralmente, como
"pessoas", amando-nos mutuamente, produzindo obras de
amor, construindo uma comunidade de amor.
Esta visão nos faz tomar uma atitude renovada perante a
sexualidade humana, encarando-a como um elemento da
natureza que contribui para a vocação do homem ao amor,
tanto do casado como do solteiro. Mas nesta visão urge
renovemos nossas atitudes, buscando suas implicações e
exigências. Pois, ocioso seria supor que poderíamos ensinar
os homens a saírem de si mesmos e a se amarem
reciprocamente sem provocar desgaste psíquico (e até
mesmo desastre social), se não lhes oferecermos alguma
compreensão do amor, de seus postulados e da função da se-
xualidade no amor. Na cultura moderna, as pessoas não
conseguem mais se amar como espíritos desencarnados;
devemos, pois, patentear-lhes que o único modo de
conseguirem o amor, em sentido cristão, é saber amar como
pessoas humanas completas, como pessoas providas de sexo.
Os autores deste livro estão, pois, convencidos da urgência
de refletir sobre a vocação cristã ao amor e a função da
sexualidade nesta vocação, sem esperar que teólogos e
sociólogos completem seus tratados que poderiam, talvez,
oferecer soluções abalizadas a esse respeito. O povo não
pode parar de viver e de amar, na expectativa destas
soluções — se é que um dia chegarão a ser formuladas em
sentido definitivo. O povo tem de enfrentar o dilema da vida
sexual no mundo de hoje, e este dilema só terá solução se
lhe anontarmos uma meta positiva para a própria sexua-
lidade. Parece, pois, um dever participarmos aos outros,
certas intuições que conseguimos, na esperança de que
sejam úteis e despertem ulteriores reflexões tanto por parte
dos leitores em busca de diretrizes para o amor, quanto por
parte dos peritos que procuram melhores soluções para os
problemas que trataremos.
Por isso, na primeira parte do livro, indicaremos
brevemente a harmonia que existe entre as intuições da
psicologia moderna em torno da fundamental importância
do fator afetivo na psique humana, e a visão cristã da posição
central do amor nos desígnios de Deus. Passaremos, em
seguida, a considerar as qualidades do amor maduro e
responsável, os aspectos do desejo de estar com o outro e de
viver pelo outro, de sair de si mesmo para ir ao encontro do
outro, de se engajar em obras de amor pelo bem do outro.
Neste ponto, esperamos demonstrar a identidade essencial
entre a tarefa humana de crescer como pessoa, dentro da
comunidade e através dela, e a tarefa cristã de amar o
próximo como Cristo nos amou.
Examinaremos, em seguida, a função da sexualidade no
amor, como pessoas dotadas de sexo, como homens e
mulheres, e o trabalho necessário para colocarmos nosso
sexualismo a serviço do amor. A esse respeito, sugeriremos
que a norma no comportamento sexual moral pode se
exprimir mais clara e persuasivamente em termos de amor
do que como "prazer deliberadamente admitido". Mais
adiante, considerando a pessoa humana como um todo
formado de corpo e espírito, e o papel do corpo nas relações
humanas, teremos talvez condições para demonstrar a
validade do ideal cristão que só permite o ato e as
intimidades sexuais no contexto matrimonial.
A segunda parte será dedicada, em primeiro lugar, ao debate
em torno da capacidade de agir por amor —
desenvolvimento de uma consciência cristã adulta cada vez
mais sensível aos valores humanos, consciência esta que há
de ser fomentada pelo agir conforme a lei do amor — e a
função da sabedoria humana, da Sagrada Escritura, da Igreja
e das suas leis na formação e no exercício da consciência.
Passaremos, depois, a considerar os aspectos complemen-
tares do crescimento no amor — o cultivo das atitudes e das
relações do amor — assim como as linhas de uma vida
afetiva cristã.
A terceira parte será dedicada à consideração dos três
principais estados da vida cristã — do solteiro, da pessoa
consagrada pela virgindade e pelo celibato, e dos casados —
à luz da vocação cristã: crescimento no amor, agir inspirado
pelo amor. Dedicaremos também nossa atenção às questões
controversas relativas ao celibato, à limitação da prole, ao
aborto, às leis e aos processos matrimoniais, à estrutura da
vida familiar. Finalmente, apresentaremos algumas soluções
para o urgente problema da "educação sexual".

2. AMOR E MATURIDADE

Se pudéssemos imaginar um computador capaz de registrar
nossas mais profundas preocupações, cônscias ou incônscias,
tal aparelho iria quase com certeza descobrir que nossas
preocupações mais profundas são aquelas que geralmente
chamamos de "amor" e "ação". "Sou amado e estimado"?
"Minhas relações com o próximo são aquelas que eu gostaria
de ter"? Ou ainda: "Estou conseguindo meus objetivos, estou
realizando alguma coisa?" Eis as principais questões que
colocamos para nós mesmos, em nosso subconsciente, e,
muitas vezes, na própria superfície de nossa consciência.
Na terminologia clássica do pensamento ocidental, estas
duas preocupações centrais da natureza humana recebiam o
nome de "concupiscível" e "irascível" e se concebiam como
forças a que estamos "sujeitos", isto é, que nos impulsionam
e tendem a subverter nossa razão e livre vontade, em vez de
constituírem forças positivas para o desenvolvimento da
atitude humana. Mas os psicólogos modernos falam de
impulsos "afetivos" e "agressivos", encarando-os como duas
formas de energia psíquica, colocadas à disposição da pessoa
humana em seu conjunto. Estes impulsos devem, realmente,
ser canalizados para uma saída aceitável e criativa, se a
pessoa quiser desenvolver sua potencialidade na vida social;
mas, se reprimidos ou sufocados, provocarão distorções
emocionais. Freud não notou nenhuma distinção marcante
entre esses dois impulsos; para ele, a força impulsora central,
a energia psíquica catalisadora da pessoa humana é a "libido",
o incitamento ao amor, à realização de si mesmo através do
amor (considerado, em certo sentido, como amor sexual). O
impulso agressivo ou executório seria apenas um aspecto
daquele impulso primordial.
Esta intuição corresponde substancialmente aos dados da
experiência. Agimos "agressivamente", no estrito sentido do
termo, para nos defender a nós mesmos, as pessoas, as
coisas, as idéias, e as causas que encarecemos. Somos
agressivos também quando tratamos de remover obstáculos
ao conseguimento de bens necessários para nós e para os
outros. A criança, que bate em outra para tomar-lhe o
brinquedo, ou para recuperar o seu, o soldado que combate
para defender seu país, o estudante que luta por uma nova
idéia, o engenheiro que resolve problemas técnicos, são
todos indivíduos que superam obstáculos para preservar ou
desenvolver a vida, em sentido lato. Em sentido mais amplo
ainda, são pessoas que procuram conquistar sempre mais
plenamente a vida para si mesmas e para os outros; o
obstáculo a superar é um impulso do aspecto executório, o
qual por sua vez, é um aspecto do amor para consigo e para
com os outros. Por isso, a psicologia moderna, iluminando a
nossa experiência, parece apontar-nos um caminho que nos
leva a conhecer a natureza humana cm termos mais
conformes com a Escritura do que a clássica distinção entre
corpo e alma, paixão e razão, que herdamos dos gregos, e
que, por longo tempo, tiveram grande influxo em nosso
pensamento. A S. Escritura considera o homem como um
todo formado de corpo e alma, fala do "coração" como do
centro de sua personalidade — a um tempo emoção,
vontade, mente, impulso vital de todo o seu ser psíquico e
físico. Na S. Escritura, é o nosso "coração" que deve se
converter a Deus, que há de se reformar de tal forma que
possamos amar a Deus e ao próximo de maneira humana,
com "coração de carne", e não com "coração de pedra" (Ez
36,26).
Diz-nos também a S. Escritura que Deus é amor e que Cristo
é a manifestação do amor de Deus entre nós. Jesus nos
ensina e nos torna capazes de amar a Deus e ao próximo
como ele nos amou. Lemos no Livro Sagrado que o impulso
vital e executório da vida e da ação cristã deveria ser o amor
de Deus e do homem, e que o Espírito Santo nos foi dado
para nos fazer amar como Cristo nos amou.
Se isso é verdade, não pode parecer estranho que Deus, ao
criar o homem, o tenha feito de tal forma que o amor — por
mais ambíguo que seja em sua concretização individual —
constitua o dinamismo central, a mola propulsora da
atividade humana. Se algo houver de falho na natureza do
homem, deverá ser atribuído à orientação e à qualidade
deste impulso amoroso, não ao impulso em si mesmo. Por
isso, o principal papel da vida cristã será o de organizar, di-
rigir e fortalecer este impulso, não de suprimi-lo; de permitir
que o amor, infundido pelo Espírito Santo em nossos
corações, permeie, dirija, revigore este impulso em todas as
suas manifestações, não de procurarmos nos livrar dele. Em
outras palavras, Deus não quer que evitemos ou
negligenciemos nossas preocupações centrais referentes ao
amor e à ação; muito pelo contário, deseja que amemos e
ajamos em plenitude, com eficiência: "a glória de Deus é o
homem que vive em plenitude" (S. Irineu).
Em certas camadas do cristianismo, pelo menos nas esferas
populares, tem-se a impressão de que Deus seja contrário ao
nosso ser plenamente humano. Deus parece interessado nas
"almas" e não na pessoa humana integral; parece preocupado
apenas em que obedeçamos às suas leis, e não em que ame-
mos a ele e aò próximo e utilizemos nossa vida para fazer o
bem. Ensinaram-nos que Jesus se fez homem e morreu para
pagar a dívida que contraímos com Deus por nossa
desobediência, que agora podemos receber a graça que nos
possibilita alcançarmos a felicidade perene no paraíso, que,
porém, nos encontramos sempre em perigo de perdê-la com
uma nova desobediência. Destarte, forjou-se a vida cristã
como sendo algo impessoal, destinado a evitar pecados me-
diante a omissão de obras pecaminosas, não uma realidade
voltada para a ação, em mútuo auxílio, visando obter a
plenitude da vida. Razão por que ninguém admira que ela se
tenha tornado sempre mais irrelevante para o homem
moderno. O homem moderno, hoje, mais do que em
qualquer época passada, vê com clareza que seu destino é o
amor e a ação.
Chegamos à conclusão de que este modo de mostrar a vida
cristã foi conseqüência de apreciações simplistas e
unilaterais. A tendência atual é apresentar a mensagem cristã
mais em harmonia com o Novo Testamento, cuja orientação
a serviço do amor e da ação podemos agora observar em
perspectivas cada vez mais profundas. Deus quer unir-nos a
ele e ao próximo em uma comunidade de amor e de vida.
Cristo veio "para que os homens possuíssem a vida, e a
possuíssem com abundância" (Jo 10,10). Ele veio para nos
tornar capazes de amar a Deus e ao próximo, para
desenvolvermos todas as nossas possibilidades humanas de
vida e de amor, e assim edificarmos o Reino de Deus.
O pecado consiste, portanto, na rejeição do amor de Deus e
do próximo, e se manifesta na recusa de agir por amor e na
vontade de agir sem amor. Cristo veio libertar-nos das
cadeias do nosso egocentrismo, da nossa incapacidade de
amar. Ele morreu e ressuscitou para elevar nossa natureza
humana de seu estado "carnal", isto é, fraco e pecaminoso,
até a presença de Deus, e fazer-nos participar da sua própria
plenitude de vida e amor. Nós o seguimos, e continuamos
sua obra, precisamente amando e vivendo de tal forma que
possibilite desenvolver a vida em nós e nos outros, e aeindo
para unir todos os homens com Deus e entre si através do
amor.
Causa ainda surpresa a muitos católicos, mesmo após o
Concílio Vaticano II, ouvir dizer que "aquilo que - a Igreja
ensina", ou ensinou, possa ser de qualquer forma imperfeito
e causa igualmente surpresa a muitos protestantes que haja
católicos dispostos a admitir semelhante asserção.
Naturalmente, "aquilo que o povo pensa que a Igreja
ensina", ou ensinou, em torno de certos tópicos, pode
incluir semi-heresias ou pias exagerações inculcadas outrora
por certos pais ou professores mal informados, como
também pode ser fruto de opiniões teológicas proclamadas
como se fossem Evangelho, pela imprensa ou do alto dos
púlpitos. Mas, à medida que tomamos consciência dos
efeitos da evolução da Igreja em seu contato com as culturas
de várias épocas e lugares, deveríamos acaso surpreender-
nos ao constatar que, em certas regiões, o pensamento
oficial das Igrejas em comunhão com o sentir comum dos
cristãos, tenha inconscientemente adaptado o Evangelho a
inúmeros preconceitos ideológicos e sociais? O racismo é o
exemplo mais atual e embaraçante: quantos católicos ou
protestantes de determinadas regiões tiveram até hoje
oportunidade de ouvir sermões sobre o pecado da discri-
minação racial? Por isso, assim como estamos agora
purificando e aperfeiçoando nossa compreensão das
exigências evangélicas neste campo, o mesmo podemos
fazer no que diz respeito a outras esferas do pensamento
cristão.
Tal afirmação não vem absolutamente negar a presença e a
inspiração do Espírito Santo na Igreja; significa apenas a
aceitação de um fato muitas vezes acentuado pela "Lúmen
Gentium": a Igreja é uma comunidade "peregrina",
constituída de século em século por homens possuidores de
uma visão do mundo que assume aspectos peculiares com o
passar dos tempos. Vivendo em ambiente diferenciado
cultural e socialmente, os cristãos não puderam deixar de re-
ceber a influência destes fatores quanto ao modo de
conceber e praticar a doutrina de Cristo. Verdade é que não
podemos jamais separar o Evangelho "genuíno" da maneira
humana de entendê-lo; entretanto, sempre nos é lícito
procurar compreender e exprimir o ensinamento e as
exigências de Cristo com mais clareza, iluminados pelo
Espírito Santo e pelos esclarecimentos que nos oferece o
progresso humano em matéria de auto-compreensão e de
cultura.
Este trabalho de repensar o Evangelho e de progredir em sua
compreensão, de apresentá-lo de maneira compreensível a
pessoas possuidoras das mais variadas culturas, foi sempre
uma preocupação da Igreja Católica Romana, assim como de
outras Igrejas cristãs. Mas parece que semelhante obra
tomou ritmo acelerado nas últimas décadas, talvez porque ti-
vesse parecido excessivamente lenta no passado, e também
porque o Concílio Vaticano Segundo, com toda a sua
publicidade e suas conseqüências, fez com que quase todos
tomassem consciência da necessidade de "renovação" e
percebessem o trabalho que a Igreja católica e outras Igrejas
cristãs estão empreendendo neste sentido.
Tal renovação, já formulada nos documentos conciliares,
imprime à vida católica orientação bem diferente daquela
geralmente tida como "católica" nos últimos séculos. Os
estudos em torno da educação católica passada e atual,
levados a termo por Greeley Rossi e pelo grupo de Notre
Dame, mostraram com clareza que o ponto axial do ensino
católico não fora o amor de Deus e do próximo ordenado
por Cristo. Os documentos conciliares restauram o amor no
centro dinâmico da vida cristã, que lhe é próprio, e
acentuam com veemência a ação que este amor requer na
sociedade.

Diz a "Gaudium et Spes":

"Relembrando as palavras do Senhor: 'nisto reconhecerão
todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros' (Jo 13,35), nada desejará mais ardentemente o cristão
do que servir ao homem do mundo atual com crescente
generosidade e eficácia. Por isso, aderindo fielmente ao
Evangelho, e beneficiando-se de suas riquezas, em união
com todos os que amam e praticam a justiça, os cristãos
assumiram uma tarefa gigantesca a ser executada nesta
terra... Nem todo o que diz 'Senhor, Senhor' entrará no
reino dos céus, mas os que fazem a vontade do Pai e lançam
mãos à obra com ardor. Ora, o Pai deseja que reconheçamos
Cristo, nosso irmão, em todos os homens e o amemos
realmente com palavras e fatos. Dando testemunho da ver-
dade, comunicaremos aos outros o mistério do amor do Pai
celeste".

Se aceitarmos o amor como o ponto axial da vida cristã, eis a
primeira pergunta que deveremos nos colocar: que é
"amor"? Os pensadores modernos, sugerindo respostas a essa
questão, refletem com tonalidades diferentes a doutrina da
Escritura segundo a qual o amor requer prontidão para agir
pelo bem alheio: um relacionamento só é verdadeiro amor
quando se transforma em comunicação de vida. "...Não
amemos com palavras ou discursos, mas com fatos e em
verdade" (1Jo 3,18), ou, como diz um velho ditado hebraico,
"o amor tudo conquista, mas amor com talharim é ainda
melhor".
Tanto a S. Escritura como o pensamento moderno indicam,
pois, como deveríamos procurar dirigir e desenvolver todo o
nosso impulso afetivo para amadurecermos como pessoas
humanas, incluindo não somente o aspecto "afetivo", mas
também o caráter "agressivo". Entretanto a definição
tradicional do amor em sentido cristão parecia excluir o
elemento "afetivo". Por isso, cumpre indagarmos se esta
exclusão é válida. Pois, se não o for, então o amor humano
não se difere do amor cristão; é o mesmo amor humano que
se aperfeiçoa até alcançar a plenitude do humanismo. E, se
isso é verdade, os cristãos, os judeus e os humanistas podem
se irmanar em um trabalho comum para ensinar o povo a
amar, e, assim fazendo, partirem em busca de soluções não
apenas para os urgentes problemas do "sexo", mas também
para as questões, igualmente urgentes, relativas ao uso da
agressividade humana no mundo atual, orientando-a não
para objetivos que destroem, mas para metas que constroem.

O amor trata o outro como pessoa

O conceito de Martin Buber da relação Eu-Tu como
verdadeira relação de amor entre pessoas, em contraposição
ao relacionamento Eu-Coisa, no qual uma pessoa trata outra
(ou ambas reciprocamente se tratam) como coisas, foi talvez
empregado sem a devida consciência de suas profundas
conseqüências para a moral cristã. Diz S. Agostinho que o
pecado consiste em usar aquilo de que deveríamos gozar, e
em gozar daquilo que deveríamos usar. A distinção de Buber
aplica este mesmo critério ao amor e ao uso das coisas no
serviço de Deus. Tratar o outro como "Tu", como pessoa,
significa respeitá-lo e aceitá-lo como ele é, prescindindo da
resposta atual ou virtual que ele possa dar; significa estar
preparado a se alegrar por sua individualidade atual e por
aquilo que Deus quer que ele seja; significa o desejo de
facilitar o desenvolvimento de seu ser e de favorecer o seu
caminho para a autenticidade. Tratar outra pessoa como
"coisa" é perguntar: "Como posso dela me servir para a
minha própria exaltação?" e depois partir para a ação
concreta.
Apliquemos esta norma às diversas situações humanas e
entenderemos sua validade. A mãe decidida a fazer sua filha
obter, na sociedade, aquele sucesso que ela nunca alcançou,
está tratando sua filha como coisa, como instrumento a
serviço de seu próprio egoísmo; não age como mãe amorosa,
muito embora esteja convencida de ser uma "serva" que se
sacrifica altruisticamente por sua filha. Um homem e uma
mulher, que se servem um do outro apenas para o prazer
sexual, estão se usando reciprocamente como coisa, ainda
que acreditem ser dois amantes. O benfeitor, que procurasse
dominar seus beneficiados, estaria servindo-se deles para
satisfazer seus próprios instintos.
O amor, ao contrário, procura libertar o outro, deixando-o
viver e se- desenvolver, ajudando-o a realizar o direito de se
tornar plenamente pessoa. É assim que Deus nos ama,
criando-nos como pessoas respeitando a vontade livre, que
nos deu com tanta plenitude, sem jamais violentá-la. Seu
amor não é escravidão, é liberdade. Convida cada um de nós
a uma relação pessoal com ele, na "gloriosa liberdade dos
filhos de Deus" (Rom 8,21). E é assim que devemos procurar
amar-nos uns aos outros.

Amor significa abertura em doar e receber:
generosidade e gratidão

Quem ama não só deseja doar e prestar serviços, mas
também, de qualquer modo, oferecer algo de si mesmo,
desenvolver a pessoa do outro, animá-la, ajudá-la a se tornar
mais autêntica. Todos os que se apaixonam, sentem o desejo
de dar tudo o que a pessoa amada deseja — flores, doces,
alimentos, bailes — mas, acima de tudo, almejam
comunicar-se com ela, pois a comunicação mediante
palavras, gestos e coisas não passa de um sinal da doação de
si mesmo. Quem já se apaixonou, conhece o irresistível
sentimento de gratidão que sentimos quando a pessoa amada
aceita nossas dádivas. Tudo isso se verifica, embora
atenuadamente, em todas as outras relações afetivas. Por
exemplo, pais que nutrem especial amor por seus filhos e
filhas adolescentes, conhecem profundamente este desejo,
tantas vezes contrariado e frustrado, de doar tudo que
podem a seus filhos, e experimentam uma viva gratidão
quando estes aceitam e correspondera
Verdade é também que quem ama mostra-se receptivo em
relação a tudo que o outro deseja dar, e grato pelo dom que
recebe. Diz S. Tomás que um dos aspectos da caridade cristã
é a aceitação do amor alheio; isto se verifica realmente em
todos os que amam. O desejo de dar e de nunca se pôr na
posição de quem recebe, é uma forma de prodigalidade
egoística, não de amor; ninguém gosta de ser amado assim.
Deus, que é amor, é generosidade infinita; tão generoso é
ele, que, através de Cristo, colocou-se na posição de quem
recebe. Podemos, realmente, doar a Cristo, servindo-o em
nosso próximo. Podemos colaborar com ele na realização de
seus planos de amor para a humanidade. Podemos doar-nos
a ele e constatar que lhe agrada nossa oferta.
Este duplo aspecto do amor corresponde àquilo que alguns
psicólogos denominam "cambiantes da vontade e do
impulso afetivo": domínio e submissão, dar e receber, ser
sujeito ativo e passivo da ação. Todos conhecemos pessoas
que se deliciam em mandar e tiranizar, e indivíduos que
gostam de servir; homens que desejam ser adorados e outros
cuja felicidade é adorar. Estes extremos pertencem à nossa
própria constituição; domínio e submissão, quando
oportunamente exercidos, desempenham um papel de
equilíbrio em todas as relações afetivas. No amor normal,
dar e receber são inseparavelmente recíprocos. Pouco
importa indagar quem é que dá ou recebe o beijo; quando
dois se beijam, cada um dá e recebe, sem pensar em
prioridade. Isto se verifica profundamente na relação sexual
quando realizada por amor, pois tanto o homem quanto a
mulher não procuram apenas o prazer recíproco, mas um
deseja ser causa do prazer do outro, dominar e ao mesmo
tempo ser dominado.


Amor é doação de vida

Naturalmente, em teoria, cada criança deveria ser "filho do
amor", no sentido próprio do termo: fruto de uma
verdadeira relação de amor entre os pais.
Mas nem sempre é assim. Nossa existência não depende,
necessariamente, de um amor, a não ser do amor de Deus,
que cria uma nova pessoa. Mas ele nos criou de tal forma
que, para crescer e desenvolvermos até o amadurecimento,
precisamos do afeto tanto quanto do amor divino. As
crianças se tornam doentias e morrem de inanição se não as
nutrirmos c não cuidarmos dc suas necessidades físicas.
Embora não existam ainda estudos sobre a função do amor
no desenvolvimento humano, a quotidiana experiência já
indica que o amor é indispensável para o crescimento
normal do homem. Daniel A. Prescott, depois de definir o
amor em termos de simpatia e de interesse de uma pessoa
por outra, propõe seis hipóteses que, na sua opinião, teriam
sido comprovadas pela pesquisa científica: "A sensação de
ser amado pode oferecer a toda criatura humana a base
daquela segurança de que tanto carecemos; possibilita
aprender a amar a si próprio e aos outros; ser amado e amar
torna mais fácil conseguir a formação de grupos; facilita a
identificação com os pais, parentes, professores e
companheiros; ajuda a pessoa a se adaptar em face de
circunstâncias que implicam emoções fortes e dolorosas".
O episódio de Bill Sands, o ex-presidiário que conta sua vida
em My Shadow Ran Fast é o mais comovente exemplo de
amor que vivifica e faz o indivíduo ressurgir de uma vida
emocionalmente morta. A mãe de Sands era sádica, e seu
pai, excessivamente alienado e tímido, não era capaz de
expressar amor. Por isso, chegou ele ao ponto de odiar a
sociedade e a si próprio. O afeto e a confiança que lhe
demonstrou o carcereiro foi o segredo que o fez sair de seu
estado de isolamento. Assim, começou ele o longo caminho
em busca de um genuíno e abnegado humanismo,
rledicando-se a uma obra que visava à recuperação dos
transviados e a impedir que outros descambassem para um
estado de vida sem amor, que transforma o homem em
criminoso.
Como diz o rabino Abraham Heschel: "O homem deve ser
responsivo antes de se tornar responsável". Esta necessidade
de ser amado antes de amar e agir por amor explica a
extrema importância de se exigir que os pais compreendam a
função vital do amor — do marido para com a mulher e de
ambos para com os filhos — no desenvolvimento emocional
da criança. Conselheiros, professores ou assistentes sociais
podem procurar assistir alguém que não recebeu dos pais o
devido amor, mas, só com grande dificuldade, conseguirão
ajudá-lo a sair de seu isolamento e a começar a amar. Ser
amado infunde-nos segurança e autoconfiança, valores
necessários para sairmos de nós mesmos e começarmos a
amar e a agir por amor. Tal amor oferece-nos sucedâneo
para nossa ação e, ao mesmo tempo, incentivo para operar
partindo deste ponto inicial. Isso se verifica especialmente
nas crises de auto-firmação da primeira infância, e se repete
na adolescência (como veremos mais detalhadamente nas
páginas seguintes). Mas, cm toda a nossa vida,
experimentamos alguns dos efeitos libertadores e criativos
do amor. Amar é ter consciência de ser amado pode levar a
uma nova criação do mundo. Em sentido menos dramático,
mas não menos real, cada vez que nos renovamos pelo
amor, parecemos descobrir um novo manancial dc vida, que
restaura nossa capacidade de amar e de agir.
Além disso, somente o amor de um outro por nós —
naturalmente, sem falar da graça do Espírito "que sopra para
onde quer" (Jo 3,8) — é que nos faz descobrir e reconhecer
o amor de Deus. No processo normal do desenvolvimento
religioso de uma criança, o fato de seus pais lhe falarem do
amor de Deus, vai despertando gradualmente nela a
consciência e a descoberta do "Tu" transcendente da pessoa
humana, bem como da necessidade de corresponder ao
"Tu", amando e agindo por amor. Entretanto, sem a expe-
riencia do amor humano — dos pais e dos outros — não
poderia a criança reconhecer o amor de Deus, nem
corresponder-lhe, embora possa ter recebido muita
instrução religiosa e moral. Com efeito, como já começam a
constatar sempre com mais clareza os educadores religiosos,
certa experiência de amor e de comunhão de amor entre
professor e aluno, e entre os próprios alunos, é base
indispensável de toda instrução religiosa efetiva que
pretenda atingir a mente e, ao mesmo tempo, o "coração".
Destarte, através de nossas relações de amor para com Deus
e para com nossos conhecidos é que iniciamos nossa vida de
amor, tornando-nos capazes de amar também os que não
conhecemos e de beneficiados com nosso agir amoroso. "O
bem é autodifusivo", diz o provérbio; assim também o amor.
Quem ama, procura remover obstáculos, libertar,
desenvolver, ajudar todos os seus semelhantes a
conseguirem a plenitude da vida através do trabalho, da ação
e dos desejos, e em todos os modos possíveis. Mas esta
atitude responsável deriva da correspondência ao amor di-
vino e humano que se comunica e se fortalece pela
familiaridade com os outros.

Amor humano e amor cristão

A maioria, porém, não recebemos educação suficiente para
chegarmos à idéia de que o amor, que por lei devemos a
Deus e ao próximo, há de ser plenamente humano, capaz de
englobar o afeto e a ação. O catecismo de Baltimore, por
exemplo, ensina-nos que "para amar a Deus, ao próximo e a
nós mesmos, devemos obedecer os mandamentos de Deus e
da Igreja e realizar obras de misericórdia espiritual e
corporal"; isto é, limita o amor apenas ao campo da ação c da
missão. Mais ainda: a caridade é definida como "a virtude
pela qual amamos a Deus acima de todas as coisas, por sua
majestade, e ao próximo, como a nós mesmos, por amor de
Deus". Assim definida, a caridade não tem a mínima
conotação com a vida afetiva; ao contrário, amar alguém
"por amor de Deus" parece pressupor que não amamos esse
alguém como pessoa, em razão daquilo que ele é.
A idéia de que a caridade, amor infundido em nossos
corações pelo Espírito, é uma realidade muito diferente do
amor humano, teve longa história no pensamento cristão.
Podemos notar uma das primeiras manifestações desta teoria
na Carta aos Romanos de S. Inácio de Antioquia: "Meu amor
terreno (eros) foi crucificado; em mim não há mais ardor
pelas coisas materiais; há, antes, uma água viva que murmura
no meu íntimo e me diz: 'vem para o Pai!' Não sinto mais
prazer em alimentos corruptíveis nem nas alegrias desta
vida: o que desejo é o pão de Deus, aquele pão que é a carne
de Jesus Cristo, o filho de Davi; como bebida, desejo seu
sangue, isto é, o amor incorruptível (ágape).
Esta distinção entre amor humano e ágape foi ulteriormente
acentuada por certos escritores protestantes modernos.
Anders Nygren, em seu famoso Ágape e Eros, sustenta que
amamos até a Deus egoís-tica e não cristãmente, se nos
fecharmos em nossa relação pessoal com ele, na oração e na
contemplação, em vez de nos dedicarmos ao serviço
desinteressado do próximo por amor de Deus. Uma das
principais asserções de Joseph Fletcher em sua obra
Situation Ethics é esta: "amor não é afeição".
"Em sentido específico, o amor cristão, literalmente falando,
é benevolência, boa vontade... O ágape comunica-se com o
próximo, não por amor de si, nem dos outros, mas por amor
de Deus. Podemos afirmar, com muita singeleza, que o amor
cristão é a arte de amar coisas não amáveis, isto é,
desagradáveis. . . Amizade, sentimento, auto-realização,
tudo isso é amor que requer reciprocidade. O ágape, porém,
não o é, pois só procura o bem de quem quer que seja, o
bem de todos".
Cumpre-nos, entretanto, rever esta distinção entre amor
cristão e amor humano, tanto em sua forma antiga quanto
em sua roupagem moderna.
À luz de nossa experiência do amor, de nossas noções de
psicologia, e mesmo do Antigo Testamento, faz-se cada vez
mais evidente que deveríamos, antes, distinguir entre o
amor egoístico, que procura a própria exaltação, e o amor
que considera os outros como pessoas, que ultrapassa as
fronteiras do próprio eu para afirmar e valorizar o ser alheio.
Não são as cambiantes do amor que colocamos em questão;
isto é, não queremos indagar se se trata de um amor quente,
apaixonado, ou não; mas questionamos se a sua orientação
fundamental volta-se para si mesmo ou para os outros.
Não negamos a necessidade da graça de Deus para o
verdadeiro amor.
"Por sua própria natureza, nenhum ser pode transcender-se
a si mesmo, valendo-se apenas de suas forças. Necessitará
sempre de energias que provêm de uma fonte externa. O ato
pelo aual o "ego" humano sai de si mesmo por amor de
outrem, dando igual ou até mesmo maior importância ao
outro do que a si próprio, até o ponto de oferecer, se
necessário, a própria vida pelo outro — a formação de
genuína comunidade — implica uma autotranscendência.
Na ordem atual das coisas, tal ato só é possível por um dom
proveniente de fonte externa, isto é, de Deus, dom que há
de ser considerado como realidade inteiramente gratuita
(pois ninguém tem "direito" de ser amado), e pode, com
toda razão, denominar-se "graça". Este dom, como tal, faz
parte do ato pelo qual Deus se doa às criaturas e em seu
próprio nível, (exceto a comunicação hipostática de Deus
com o homem em Cristo) e, por sua nobreza, é a forma
principal de doação divina".
Razão por que, o dom de Deus, a caridade, ou o ágape, em
vez de se opor ao amor humano, fá-lo capaz de se tornar
autêntico e de amadurecer. E todo aquele que, no ato de
amar, afirma este aspecto fundamental do ser e da
personalidade do outro, corresponde, conscientemente ou
não, à comunicação que Deus faz de si mesmo. Procurar o
bem do outro, ser pelo outro, constitui sem dúvida, como
vimos, o elemento mais importante do verdadeiro amor.
Não se pode falar aqui de qualquer contradição entre a dou-
trina cristã e as intuições dos psicólogos modernos que
consideram a capacidade de amar o outro, servindo ao bem
alheio, como ponto axial da maturidade afetiva. Cristo disse
ter vindo para que os homens pudessem receber a vida, e a
tivessem em abundância. Para amar como ele amou, cumpre
animar, nutrir e incrementar a vida removendo os
obstáculos ao amor, e auxiliar-se mutuamente em busca de
maior vivência. Devemos amar deste modo todos os nossos
semelhantes.
Mas, excluir a afetividãde do amor "cristão", não é
consentâneo com o espírito da Bíblia, e pode produzir vários
reveses psicológicos. Deus, na pessoa de Cristo, veio ao
mundo para se tornar humano com os homens e para os
homens. Ele convida-nos a todos para uma união pessoal
consigo. O amor cristão, portanto, inclui, propriamente, o
desejo de união, como lambem o esforço em se colocar a
serviço dos outros. Além disso, a Edição Anchor do
Evangelho de S. João afirma que o Evangelista parece
considerar os termos phile e ágape como possuindo,
praticamente, o mesmo sentido. Ainda que o termo phile
signifique um amor mais afetivo do que ágape, ambos os
verbos são usados para descrever o modo com o qual Jesus
amou. Sem dúvida, demonstrou Jesus caloroso afeto pelas
pessoas. Possuía aquilo que hoje denominamos relação
interpessoal, com os apóstolos, com Lázaro, Marta e Maria.
Permitiu que a mulher pecadora beijasse seus pés, e lhe disse
que seus pecados lhe haviam sido perdoados porque muito
amara (com um amor que era, certamente, "afetivo").
Além disso, um dos aspectos da boa-nova é exatamente o de
trazer calor humano para as relações entre os homens e
Deus, de tal forma que podemos chamar nosso Deus de Pai
em sentido pessoal. Com efeito, o Novo Testamento lança
mão de todas as relações humanas para descrever o
relacionamento entre Jesus e os seus, recorrendo aos termos
mãe, irmão, irmã, amigo, e à analogia do amor matrimonial
aparece em quase toda a Bíblia. Claro é, pois, que o ele-
mento afetivo não há de ser excluído do amor cristão, do
nosso amor para com o Pai, o Cristo e o próximo.
Como acima dissemos, só nos tornamos capazes de amar
com amor que procura o bem do outro, se formos também
objeto de calorosa relação pessoal de amor. A "relação de
ajuda" — do pai para o filho, do médico para o paciente, do
conselheiro para o dirigido — quando realizada na devida
maneira, é obviamente um dos meios de fazer bem aos
outros. Mas, esta relação deve incluir a aceitação do outro,
assim como ele é, e a vontade de se abrir para com ele como
também de aceitar suas confidências; em outras palavras, a
vontade de estabelecer uma relação pessoal. Devemos
mostrar nosso desejo de estar com o outro, se quisermos que
ele acredite que estamos realmente a seu serviço. Foi assim
que Deus agiu por nós mediante a Encarnação.
Naturalmente, é verdade que nosso dever cristão de amar
nossos vizinhos, nossos concidadãos, ou os imigrantes que
vieram à procura de trabalho, há de se concretizar votando
leis a favor deles, demonstrando-lhes nossa solidariedade, e
recorrendo a outros meios, que os ajudem a obter habitação
decente, oportunidade de trabalho e justo salário. Sem esses
esforços, as tentativas de estabelecer relações com eles
seriam ofensivas. Mas, o problema maior é o de aceitar-se
mútua e realmente como pessoas, isto é, o de estabelecer a
possibilidade de relações. Por isso, o amor afetivo e o amor
que procura o bem-estar do próximo interagem
mutuamente.

Temos necessidade de amar e de ser amados

Constitui obstáculo à validade do amor afetivo, conforme o
ponto de vista de Nygren, de Fletcher, e de muitos outros,
no passado e no presente, o fato de que ele é
necessariamente uma procura de si mesmo, ao passo que
amar como Deus e Cristo amam, significa procurar somente
o bem do outro. Entretanto, aqui também parece que se
criou uma distinção excessivamente simplista e falaz.
Devemos, sim, procurar a perfeição em nossa generosidade
para com o próximo, assim como perfeito é nosso Pai
celeste. Devemos procurar amar aquilo que não é amável,
assim como Cristo morreu por nós, quando éramos ainda
pecadores. Mas, a revelação de que "Deus é amor" não signi-
fica apenas que ele é infinitamente generoso para conosco
em Cristo; significa, também, que sua vida íntima é vida de
amor, de relação interpessoal entre o Pai e o Filho no
Espírito. Nossa capacidade humana de amar como Deus nos
ama não é, contudo, diminuída pelo fato de precisarmos
partir radicalmente para relações interpessoais no amor a fim
de nos tornarmos realmente autênticos. Só na relação
pessoal com Deus, em Cristo, que se tornou possível pelo
dom do seu Espírito, podemos conseguir a plenitude do
nosso ser; conseguimo-lo, também, nas relações pessoais
com as criaturas, quando nosso esforço é completado e
aperfeiçoado pelo mesmo Espírito. Pois, a consumação final
do plano de amor estabelecido por Deus em relação ao
gênero humano não consiste em uma multidão de almas que
vivem sozinhas com o único absoluto, mas cm uma
comunidade de pessoas reunidas, que formam um conjunto
de pessoas humanas, na comunidade das pessoas divinas.
Destarte, o fato de serem recíprocas as relações dc amor não
significa que se oponham ao amor entendido como
generosidade. Ao contrário, a maior necessidade do próximo
é exatamente a de ser amado, necessidade que o amor
generoso procurará satisfazer com a maior plenitude
possível. Se, como cristãos, somos chamados a ajudar-nos
mutuamente para conseguirmos a plenitude da vida, e a nos
interessarmos pelo bem-estar alheio, devemos dar aos outros
a oportunidade de nos amarem e de serem amados por nós
(muito embora isso redunde em nossa vantagem). Por isso, o
amor cristão deve contar, entre suas metas primordiais, a
busca de uma calorosa relação interpessoal, e o amor afetivo
do próximo.
Isso não significa que devemos estar sentimentalmente
apaixonados por todas as pessoas, nem que pretendamos
amar igualmente a todos, e forçá-los a nos amar. Significa
que deveríamos encarar com seriedade as nossas relações,
dispondo-nos a aceitar outras; significa, também, que o
cultivo destas relações não é extrínseco, mas pertence à
essência da vida cristã.

O amor humano é necessariamente exclusivo?

Eis outro motivo que não raro se aduz para distinguir o amor
cristão do afeto humano: o afeto humano é, por natureza,
exclusivo. Não podemos nutrir afeto por todas as pessoas, ao
passo que o cristão deve amar todos os seus semelhantes. As
relações do amor são necessariamente exclusivas,
consumam-se entre duas pessoas, ao passo que o amor
cristão deve ter por objeto o gênero humano.
Também esta distinção parece extremamente simplista.
Como vimos, só conseguimos nos tornar psicologicamente
capazes de ultrapassar os limites das relações pessoais no
amor e de amar o não-amável, quando somos amados e
aprendemos a amar através, das relações pessoais com Deus
e com os outros. Enfim, porque Deus ama a cada um de nós,
pessoalmente, em Cristo, é que podemos amar a Deus e ao
próximo com amor generoso.
Além disso, a verdadeira relação entre duas pessoas não é
exclusiva por natureza, nem é um "duplo egoísmo", mas um
foco radiante de amor e de vida. Toda tentativa de duas
pessoas, tanto no matrimônio como na amizade, de viver "só
e totalmente um pelo outro" terminará fatalmente em
falsificação e esterilidade.
É óbvio que só podemos cultivar profundas relações pessoais
com üm limitado número de pessoas. Mas as relações não se
dividem adequadamente em "superficiais" e "profundas"; há
uma infinita variedade de graduação e de implicações, e é
amando que cresce nossa capacidade de amar. Todos
conhecemos pelo menos uma ou duas pessoas que têm o
dom de estabelecer relações pessoais com todos os que
encontram, de fazer amizades com todos os tipos de indi-
víduos onde quer que estejam. Tal capacidade deveria ser
comum característica do cristão.
Finalmente, se cria uma verdadeira "comunidade" em um
grupo quando se formam muitas relações pessoais entre seus
membros, relações que se irradiam e se entrelaçam para
estabelecer um clima de afeto. Tal comunidade não é
exclusiva, mas por natureza é aberta a acolher outros. Por
isso, estabelecendo verdadeiras relações pessoais,
construímos uma "comunidade" autêntica e nos preparamos
para a vida do mundo que há de vir. Razão por que não seria
realista quem colocasse a exclusividade das relações pessoais
de amor em oposição com a abertura do amor cristão.
Também neste caso, o amor afetivo e o amor generoso são
interdependentes e se fundem.

Como podemos amar por preceito?

Enfim, não raro se acentua que o amor cristão acha-se
sujeito à vontade, ao passo que o amor afetivo se deixa levar
pelas emoções. Podemos forçar-nos a agir em benefício de
outrem, pois tal opção cai sob o controle de nossa livre
vontade, mas não podemos forçar-nos a sentir simpatia por
um outro, pois nossas emoções não podem ser comandadas
por nossa vontade. Por isso, se diz que o mandamento de
Cristo de amar-nos uns aos outros como ele nos amou, só
pode significar o amor de benevolência; outro sentido não
pode ter a ordem de amar.
É óbvio que não podemos provocar e forçar em nós um
profundo desejo de amizade para com alguém com o qual
nada temos em comum, para com alguém que nos repugna.
Menos ainda podemos forçar-nos diretamente a "nos
apaixonar" por alguém, em nenhum dos sentidos que esta
expressão encerra.
Nem podemos forçar alguém a ter amizade ou amor por nós.
Nossa liberdade psicológica, que nos move a agir por amor,
pelo bem do próximo, acha-se, porém, condicionada por um
grande número de fatores emotivos, de que às vezes nem
temos consciência. Um branco fanaticamente racista é
realmente livre de optar por um comportamento amigável
em relação aos negros? A não ser por milagre da graça, não
teria ele necessidade de um longo e penoso processo para se
libertar dos preconceitos e reeducar suas emoções antes de
poder agir com liberdade neste campo? Pode um
obsessionado amar livre e generosamente o objeto de sua
obsessão como qualquer outra pessoa?
Por outro lado, mediante um trabalho de compreensão, de
atento exame dos nossos impulsos e preconceitos, podemos
adquirir uma liberdade cada vez maior no amor, para
amarmos um número sempre maior de pessoas,
enriquecendo amplamente o círculo de nossas relações. Por
exemplo, um psiquiatra ou um diretor espiritual deve
estudar-se a si mesmo, examinar suas diferentes reações
perante vários tipos de pessoas, e aprender a superar a
própria tendência a rejeitar certos tipos, antes de poder
realmente ajudar seus clientes. O mesmo acontece em todas
as situações que exigem confronto imediato: "O subcons-
ciente falará à consciência mesmo que o submerja-mos com
nossos mais altos brados". Se nutrirmos antipatia por alguém,
este o perceberá, mesmo que multipliquemos as atenções a
seu respeito, a sua tendência será de rejeitar-nos a nós e ao
"bem" que procuramos fazer por ele. Se, realmente,
procurarmos trabalhar pelo bem do próximo, não podemos
deixar de lado nossas emoções. Cumpre-nos orientá--las e
colocá-las a serviço do amor generoso.

Amor e maturidade

Claro é que o mandamento de amarmos mutuamente, como
Cristo nos amou, exige o trabalho contínuo de colocarmos
nosso impulso afetivo, em todos os níveis, na linha do
verdadeiro amor humano, assim como o esforço de
aprendermos a maneira de escolher o que é melhor para o
próximo e de agirmos conforme esta opção. Se devemos,
como diz S. João, amar "com os fatos e em verdade", é
mister procuremos amar não só com nossa vontade, mas
com todo o nosso coração.
Isto significa aplicar as intuições modernas ao difícil e às
vezes laborioso processo exigido pela conquista da liberdade,
da maturidade e da responsabilidade da pessoa humana;
aplicá-las, também, ao ensinamento cristão em torno da
necessidade de perder a própria vida para lucrá-la. Fácil não
é tratar os outros como pessoa, amar cada indivíduo assim
como ele é, e se dispor tanto a dar quanto a receber. Temos
a tendência inata de agir como se fôssemos o centro do
universo e de arrastar os outros como se fossem satélites e
servidores. A criança é naturalmente egocêntrica; se for
amada e amadurecer normalmente, aprenderá, pouco a
pouco, a sair de si mesma e a tender para os outros. Mas
ninguém consegue atingir a plena maturidade, na doação de
si próprio. Aprender a amar requer toda uma existência de
esforços conscientes e contínuos para nos "convertermos"
plenamente e "reconvertermos" cada dia, quebrando as
cadeias do egocentrismo criadas pela falta de
amadurecimento.
Este trabalho exige que orientemos nosso impulso afetivo,
que nos impele tanto para a introversão quanto' para a
extroversão, envolvendo-nos em uma tensão confusa que
nos pode levar em ambas as direções. Os teólogos estão
chegando à conclusão de que o impulso central do nosso ser
constitui um dos sinais mais evidentes do pecado original,
não importa qual seja o sentido deste pecado. Nossa
"condição humana" é egocêntrica desde que nascemos, com
todos os múltiplos efeitos que isso acarreta sobre nós e nossa
sociedade; tais efeitos compreendem influxos herdados do
passado e outros peculiares de nossa época. A graça de Cristo
oferece-nos, pois, todos os meios para quebrarmos os
grilhões desta autoprisão, e orientarmos nosso impulso
afetivo para os outros ou para Deus.
Mas este trabalho de aprender a amar implica
necessariamente muitas "mortificações" mais ou menos
dolorosas e conscientes para se desapegar das garantias
coaretadoras do próprio egocentrismo. A criança deve
superar seu mundo infantil egoístico para penetrar no
mundo mais vasto das relações familiares. O adolescente
deve abandonar as garantias e os limites da infância para
tecer novas relações e amadurecer como adulto. Destarte,
todo crescimento para a maturidade implica uma espécie de
"morte" para uma condição mais limitada, egocêntrica e
aparentemente mais segura a fim de se projetar em uma vida
de amor mais ampla e verdadeira.
À medida que atingimos uma capacidade emocional
suficiente para trabalharmos com consciência em busca de
maior maturidade, torna-se mais evidente o grande paradoxo
do amor. Só no amor de Deus e do próximo podemos
alcançar a maturidade e realizar-nos. Porém, se procurarmos
primeiramente nossa auto-realização, nossa busca será
frustrada; voltando-nos para o "eu", só encontraremos a nós
mesmos. A experiência de cada um comprova este fato: à
medida que nos concentramos em nossos sentimentos e nos
benefícios que nos traz a relação de amor, seja ela de
amizade ou de namoro, de matrimônio ou de paternidade, a
corrente afetiva fica bloqueada, e a relação cessa de se
desenvolver. No amor, devemos realmente perder nossa
vida para ganhá-la; devemos nos esquecer de nós mesmos e
de nossa auto-realização, se quisermos encontrar nosso
verdadeiro ser e a plenitude do amor.
Aliás, as observações dos psicólogos modernos, segundo os
quais a maturidade humana consiste na capacidade de amar
sem ser egocêntrico, e que para conseguir tal maturidade,
faz-se necessário o espaço de uma vida inteira, são
ressonâncias da doutrina cristã segundo a qual só se
consegue o crescimento no amor mediante um longo
processo de auto-renúncia a fim de se tornar cada vez mais
solidário com o próximo e se pôr a seu serviço, conforme o
exemplo de Cristo. Aprender a amar como cristão significa
aprender a amar humanamente: processo difícil e às vezes
doloroso, mas o único caminho pelo qual podemos
encontrar a plenitude da vida e con-tribuir para vitalizar a
sociedade.
"Um código moral, mesmo quando aceito pelos melhores
motivos, tende necessariamente a ser mais negativo que
positivo, a se ocupar mais do "não farás" do que daquilo que
um indivíduo deveria dar a seus semelhantes. Interessa-nos
muito o inteiro conteúdo das relações humanas, o sentido
do "ama teu próximo" em toda a extensão e profundidade de
suas conseqüências. Amar não significa apenas fazer boas
obras; vai muito além do que dar de comer a quem tem
fome, e vestir os nus. Significa intimidade e calor humano,
coração aberto, e irresistível generosidade em obras e em
espírito. Significa um desejo de conhecer e uma corajosa
vontade de ser conhecido. Amar é comprometer-se com o
próximo, compartilhar sua vida, a custo de qualquer
sofrimento, seja que esta aflição provenha de sermos
repudiados por ele, ou identificados com ele, ou da própria
participação em sua vida. A vida e a sociedade pedem deses-
peradamente este contato caloroso e íntimo".
Por isso, a consciência de sermos chamados, como cristãos,
a um amor recíproco, não como espíritos desencarnados,
mas como pessoas integralmente humanas, demonstra o
alcance infinito de nossa vocação ao amor para a solução de
nossas necessidades e dos males que afligem o gênero
humano. Podemos, livre e conscientemente, orientar todo
nosso impulso afetivo para fora de nós mesmos, em vez de
procurarmos sufocá-lo ou suprimi-lo. Mas, tudo isso coloca
esta vocação em novas perspectivas, porque agora temos
condições para constatar que todo o nosso eu e nossa psique
devem se engajar no trabalho de aprender a amar "não só
com palavras, mas com os fatos e em verdade" (1 Jo 3,18).

3. AMOR E SEXO

Se devemos aprender a amar com todo o nosso eu, é óbvio
que não podemos fazê-lo como "almas" neutras. Temos de
amar, como homens e mulheres sexuados, outras pessoas
sexuadas, de maneira plenamente humana. O esforço em
amarmos como pessoas maduras deve também incluir o
trabalho de integrar nossa sexualidade (compreendida
naquele sentido biológico, que lhe atribuímos no primeiro
capítulo, como impulso operante em toda a esfera do
comportamento sexual, que compreende a conduta afetiva e
a procura do prazer) como elemento vital de todos os nossos
impulsos afetivos, a serviço do amor. Idéias, que por longo
tempo prevaleceram no cristianismo, olhavam com suspeita
o amor afetivo (com exceção do amor manifestado pelos
esposos regularmente unidos em matrimônio, e pelos pais),
pois viam nele o perigo de conduzir a uma conduta sexual
reprovável. Tal risco, entretanto, é inerente à condição
humana; é dever precaver-nos, mas isso não há de levar-nos
a abandonar o trabalho profundo de aprendermos a amar.
Neste capítulo, portanto, indicaremos, primeiramente, a
necessidade de nos reconhecermos a nós c aos outros como
seres sexuados e como pessoas. Indagaremos, em seguida, o
sentido da sexualidade humana qual elemento indispensável
para o amor humano, e sua função positiva não somente no
amor conjugal, mas em toda espécie de amor. Tal pesquisa
confirmará novamente a necessidade de reformular as
normas católicas atuais referentes à moral sexual, assim
como a necessidade de incentivar os cristãos a cultivarem
vários tipos de relações afetivas para se auxiliarem
reciprocamente em busca de um amadurecimento. Este
capítulo será completado pelo capítulo seguinte, em que
consideraremos a função do corpo nas relações humanas,
esclarecendo vários pontos de duplicidade relativos à moral
sexual, e, em especial, lançando luzes sobre o sentido
humano das intimidades sexuais físicas e do ato sexual.

Somos pessoas sexuadas

É interessante constatar que a mesma mentalidade
responsável pela idéia de sexo como coisa superior ou
inferior à realidade humana, considera as mulheres como
seres sobre-humanos ou infra-humanos. A concepção
herdada dos gregos, segundo a qual as mulheres não seriam
criaturas plenamente humanas, exerceu profunda influência
no pensamento cristão ao longo dos séculos, embora o
pensamento cristão tenha também sustentado e favorecido a
idéia da dignidade da mulher e seu direito a ser tratada como
pessoa. É relevante constatar que para os escritores
espirituais cristãos a "alma" é um elemento feminino;
tiveram eles, geralmente, alto conceito da alma e pouca
consideração pela mulher; mas, na concepção deles, nem a
alma, nem a mulher apareciam como seres humanos
completos.
Santo Tomás, por exemplo, considerava a mulher aual
"macho mutilado". Afirmações menos entusiásticas ainda
podemos colher nos escritos dos Padres da Igreja, segundo
os quais não só inexiste nas mulheres a plenitude humana do
homem, mas constituiriam estas uma contínua insídia à sua
racionalidade, liberdade e virtude. Ao mesmo tempo, outra
corrente muito aceita no pensamento cristão considerava as
mulheres como criaturas mais puras e "espirituais" que o
homem; inspiradoras de suas atitudes, tornam o homem
mais gentil, guiando-o para metas mais sublimes. Eis um
exemplo recente desta mentalidade; o P. Eugene C.
Kennedy, M.M., emérito diretor espiritual e psicólogo,
contribui mais para embaraçar do que para esclarecer o sexo
feminino quando assim se exprime falando das "mulheres
dinâmicas da Igreja atual": "A fonte genuína da afetividade
delas deriva do cumprimento de sua tarefa feminina, que é a
de ser fonte do Espírito Santo para os outros membros da
Igreja... As mulheres são chamadas a inspirar-nos, a
infundir-nos Espírito e vida". Neste sentido, abundante
literatura procura convencer as mulheres de que "a sua
vocação é a maternidade" — "física ou espiritual" — e que
só poderão realizar-se mergulhando na "feminilidade" a
própria personalidade.
Outra versão desta mesma mentalidade, na cultura do Sul
dos Estados Unidos, é a tendência a considerar todas as
mulheres brancas como "senhoras"; em outros ambientes,
são elas apelidadas de "fêmeas", empregando-se também
conceitos equivalentes que se aplicam à mulher não como
"pessoa", mas como encarnação de qualquer "feminilidade"
estereotipada, no sentido deterior da palavra, ou como
objeto de um desejo sexual impessoal. Talvez as mulheres
também nutram idéias semelhantes, ou piores ainda, a
respeito dos homens, qualificando-os com termos
convencionais: "brotos", "fustos", etc, ou como encarnação
de conceitos populares de masculinidade. Tudo isso influi
em nosso modo de julgar os outros e até mesmo no modo
de refletirmos sobre nós mesmos, levando-nos a procurar
imitar este ou aquele clichê ou a fugir de todos.
Se devemos aprender a amar-nos uns aos outros como
pessoas humanas, cumpre-nos, por conseguinte, procurar
superar todos estes tipos estereotipados, bem como todos os
modelos culturais e sociais que os inculcam, e esforçar-nos
por considerar cada indivíduo como uma pessoa que é
homem ou mulher.
Mas, no estado atual de nossos conhecimentos em torno da
sexualidade humana, ninguém pode definir adequadamente
o ponto essencial que diferencia psicológica, e muito menos
"espiritualmente" o homem e a mulher, a prescindir
daquelas diferenças que emergem no processo de
socialização desta ou daquela cultura. Afirma a biologia que,
seja no homem seja na mulher, existem hormônios
masculinos e femininos, embora em proporções diferentes.
Nossa experiência quotidiana atesta que até o homem mais
"viril" pode possuir as assim chamadas qualidades
"femininas" — ternura, atenção, intuição, praticida-de — e
que até as mulheres mais "femininas" podem possuir as
assim chamadas qualidades masculinas — iniciativa, energia,
habilidade administrativa, capacidade, pensamento abstrato
—. As pesquisas de Kinsey puseram em relevo as diferenças
entre as respostas do homem e da mulher no campo
especificamente sexual, mas ninguém é capaz de dizer com
segurança até que ponto estas diferenças podem ser
atribuídas a um comportamento adquirido, e não à essência
da masculinidade ou da feminilidade humana. Por exemplo,
as revistas que exibem sexo não têm, entre as moças,
aceitação equivalente à que recebem entre os rapazes, pois
as mulheres normalmente não se exaltam vendo o corpo do
homem, ao passo que este se excita ao ver o corpo feminino.
Cabe, porém, perguntar se isso pode ser tido como regra
geral em todas as culturas ou é apenas efeito de nossa própria
cultura. No ato sexual, onde se presume que o homem e a
mulher ajam com toda a plenitude da masculinidade e da
feminilidade, a mulher não é, teoricamente, apenas um
elemento passivo e submisso, e o homem, ativo e
dominador, mas ambos se comportam ao mesmo tempo
ativa e passivamente.
Por outro lado, a idéia bíblica e fenomenológica do ser
humano como um todo psicofísico, e não como alma à qual
se acrescenta um corpo, exige, como veremos mais
pormenorizadamente no capítulo seguinte, que nossos
corpos constituam parte essencial de nós mesmos, embora
não sejam tudo o que temos. Em outras palavras, não somos
feitos de almas sexuadas, e de corpos sexuados. É
interessante indagar até que ponto as pessoas educadas no
tradicional pensamento dicotômico, segundo o qual "o
homem é criatura composta de alma e corpo", julgam que as
almas tenham um gênero e chegam até a determiná-lo. As
crianças parecem imaginar a própria alma como algo dentro
delas semelhante a pequenos balões, uma coisa neutra.
Poderíamos dizer também que as mulheres, especialmente
se levarmos em conta que a piedade cristã classifica a alma
como entidade feminina, são naturalmente propensas a con-
siderar suas almas como uma realidade feminina. Talvez,
porém, muitas mulheres de cultura ocidental, desejando
fugir do tipo convencional para serem consideradas como
pessoas, encarnam a própria alma como algo que ultrapassa
as fronteiras do gênero. E que dizer dos homens,
particularmente dos clérigos, acostumados a se apropriar de
certa terminologia da piedade cristã. Não pensam eles na
própria alma como em algo feminino?
Em todo caso, para conseguirmos uma completa
autenticidade masculina ou feminina, útil será usarmos o
termo "alma" para significar a "pessoa humana", e educarmos
as crianças, habituando-as a pensar em si mesmas como em
um todo orgânico, formado de corpo e espírito, que
constitui a pessoa sexuada. Representa, realmente, uma
enorme diferença na estrutura psíquica de cada pessoa, o
fato de ser homem ou mulher, com todas as características
anatômicas e fisiológicas que isso implica, embora não
saibamos o conteúdo exato dessa diferença.
Por exemplo, pergunta-se, hoje, que há realmente de errado
no comportamento dos homossexuais: essa anomalia afeta
apenas o interessado? Tal maneira de agir é capaz de lhe
oferecer uma completa realização de suas aptidões? À luz
dos princípios já enunciados, deveríamos dizer que tal
procedimento não é "natural" porque implica, pelo menos
em um dos interessados, íntima contradição em sua
estrutura psíquica, que coloca a psique de certo modo em
contraste com o corpo, e contraria, portanto, o valor hu-
mano constituído pela integridade, pela plenitude,
proveniente do fato de alguém ser homem ou mulher. Uma
das razões, talvez, do aumento da homossexualidade em
nossos dias. além de outras geralmente apontadas, é que o
papel tanto do homem quanto da mulher acha-se,
atualmente, em estado de transição. Os indivíduos estão
divididos por enorme contraste: sentem o que "devem" ser
(e fazer como homens viris e mulheres autenticamente
femininas, conforme a figura convencional já pré-
estabelecida) em oposição àquilo que percebem que são e
que fazem na realidade. Tal. confusão pode levar a aceitar
mais facilmente o comportamento homossexual. Porém,
numa sociedade em que as funções do homem e da mulher
fossem claramente distintas e caracterizadas, ou em que
ninguém se afligisse por tais problemas, um indivíduo não
completamente seguro de sua identificação sexual, teria
menos razão de duvidar a esse respeito.
O conhecido antropólogo inglês Geoffrey Gorer,
comentando a obra de Konrad Lorenz "On Aggression",
descreve algumas pequenas sociedades primitivas, as quais,
amantes da gentileza, não fazem muita distinção entre
homens e mulheres e não inculcam o ideal da masculinidade
corajosa e agressiva. "Nenhuma criança ouvia sugestões
como estas: "O verdadeiro homem faz assim..." ou
"nenhuma verdadeira mulher se comporta assim..."; desta
forma não se criava nenhuma confusão quanto à identidade
sexual; por isso, não se registrou entre eles nenhum caso de
inversão sexual". O autor prossegue afirmando que a atual
"juventude sem fronteiras, os beats, os swingers, os provos e
os stilyagi", com seus cabelos compridos, suas vestes
indistintas, a procura da paz, "sentiram vagamente a
necessidade de redefinir os conceitos de 'homem
verdadeiro' c de 'mulher verdadeira', cumpre-nos aceitar
esta nova linha se não quisermos chegar à nossa
autodestruição".
Não raro se considera, hoje, o problema da confusão entre as
funções masculinas e femininas como sendo apenas um
problema para mulheres, ao passo que se trata realmente de
um problema que afeta ambos os sexos, embora de modo
diferente, como é natural. Muitas mulheres estão
procurando fugir dos esquemas convencionais, sequiosas de
serem consideradas, antes de tudo, como pessoas.
Certamente não desejam ser tratadas como homens ou
como seres neutros. Entretanto, visto que a personalidade
foi por longo tempo, identificada com a personalidade
masculina, muitas vezes dão elas a impressão de procurar ser
"em tudo igual aos homens", ou de ultrapassar os limites de
sua feminilidade, e chegam a perguntar se por acaso não
obtiveram sucesso até demais neste sentido.
Por outro lado, muitos homens sentem-se ameaçados por
mulheres que assumem, às vezes com muita eficiência,
aquilo que se convencionou classificar como tarefas do
homem, desenvolvendo trabalhos masculinos e
pretendendo receber tratamento igual aos homens. Além
disso, sentem-se eles muitas vezes confusos, sem saber que
atitude assumir perante suas colegas de trabalho, pois os
modelos familiares convencionais de comportamento são
evidentemente inadequados. Uma ilustre psicóloga social,
que é também freira, e traja ainda um enorme hábito
monástico, observava que o hábito parece constituir um
elemento positivo para deixar os homens, seus colegas, à
vontade nos debates em que tomam parte, pois sentem que
o hábito fá-la transcender a esfera habitual das relações entre
homens e mulheres. Mas, forçoso é também observar que
certas mulheres, embora desejem ser tratadas com igualdade
no que se refere ao trabalho, não hesitam em recorrer, na
própria vida profissional, às armas tradicionais da sedução
feminina, às lágrimas, ao "temperamento", reclamando
cortesias e privilégios tradicionalmente concedidos ao "sexo
frágil".
As dificuldades que tanto os homens quanto as mulheres
devem enfrentar, em virtude da atual confusão referente às
próprias prerrogativas, são realmente vastas e complexas,
especialmente na vida matrimonial, como amiúde se
observa. Quiçá a solução esteja em um novo conceito das
tarefas masculinas e femininas. Até agora, tais funções
basearam-se principalmente no que os homens e as
mulheres fazem, ou sempre fizeram em nossa sociedade. A
idéia daquilo que são, ou que deveriam ser, deriva de suas
ocupações. Os antropólogos ensinam-nos, porém, que tanto
homens quanto mulheres desempenharam tarefas fun-
damentais da vida humana, inseridos em uma determinada
cultura, de tal forma que a ocupação não constitui
fundamento indispensável em termos de identificação.
Talvez estejamos em época de transição para um conceito
das tarefas masculinas e femininas fundado numa
compreensão mais profunda das posições do homem e da
mulher perante a realidade. Se os homens e as mulheres
fizerem melhor tudo aquilo que pessoalmente podem
realizar, as profissões e ocupações, a arte e a ciência se
beneficiariam, muito mais que agora, do contributo de
pessoas que agem conforme a própria estrutura de homem e
mulher. Ninguém sabe ainda quanto enriquecimento
poderiam as mulheres oferecer, por exemplo, à medicina, à
arquitetura, à teologia especulativa, se se sentissem livres e
fossem incentivadas a ser plenamente mulheres na profissão
de médica, de arquiteta, de teóloga, em vez de serem mais
ou menos forçadas a assumir uma atitude masculina em seu
trabalho profissional.

Por isso, nossa tarefa cristã exige que trabalhemos neste
sentido, para rever nossos modelos dc pensamento e de
comportamento social; requer que façamos todo o possível
para colocar a personalidade em primeira linha, de tal forma
que o sexo seja considerado como elemento vital, não,
porém, como característica absolutamente determinante.
Embora assumindo, em muitas passagens, a posição
convencional da sociedade de seu tempo, dizia S. Paulo que,
em Cristo, "não há masculino ou feminino". Esta afirmação
deve ser entendida neste sentido: a feminilidade ou a
masculinidade há de ser, na vida cristã, submetida à
personalidade do indivíduo, nunca, porém, eliminada ou
minorada.

O sentido humano ao sexo

A palavra "sexo" deriva, provavelmente, da mesma raiz
latina do verbo "secare", que significa cortar. Em todo caso,
os mitos antigos apresentam o primeiro ser humano como
um ser originalmente bissexuado, que depois foi "cortado
em duas partes" para formar o primeiro homem e a primeira
mulher; desta forma, aquele é incompleto sem esta. O
Gênesis (2,18) contém a mesma idéia: homem e mulher ne-
cessitam um do outro para serem completos. "Não é bom
que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar
semelhante a ele". Destarte, o fato de sermos homens ou
mulheres indica que nenhuma pessoa é inteiramente auto-
suficiente. "Nenhum homem é uma ilha"; só no amor de
Deus e no amor recíproco podemos realizar-nos
plenamente. Estas profundas verdades estão escritas em todo
o nosso ser psicofísico porque somos, por natureza, pessoas
sexuadas.
A sexualidade é, portanto, a força da natureza humana
destinada a suscitar a necessidade e a urgência que'
impulsiona todo o nosso ser a procurar se realizar na única
direção capaz de satisfazê-lo: na união e comunhão com o
próximo. O sexo nos impele, física e psiquicamente, a
procurar completamento em um ser "oposto" ao nosso.
Nossa sexualidade coloca logo em evidência que não somos
auto-suficientes e nos impele a procurar realizar-nos fora de
nós mesmos.
Esta realização plena — isto é, a consecução de todos os
objetivos de nossa potencialidade, a perfeição e o uso
integral de nossas capacidades de amar e de agir por amor —
só pode ser conseguida no futuro transcendente, que Deus
propõe à nossa fé. Neste mundo, só podemos galgar metas
relativas de perfeição; conseguimo-las mediante o trabalho,
que satisfaz a necessidade de ação, desenvolvendo nossas
capacidades e talentos, assim como mediante as relações de
amor, que satisfazem, em medida mais ou menos ampla, o
anseio de amar e ser amado, porquanto desenvolvem a
capacidade de amor. O poder de agir pode se esgotar em um
determinado período de nossa vida. Mas a capacidade de
amar jamais se extingue: a amplitude da sexualidade, assim
como a urgência psicofísica do impulso afetivo, sempre
ultrapassam seus limites, impelindo-nos a sairmos de nós
mesmos em direção dos outros e a procurarmos que os
outros se abram para conosco.
Desta forma, o objetivo biológico da união sexual, que é um
dos aspectos da sexualidade humana, sugere-nos qual seja a
sua meta integral: impelir-nos para a união com o próximo e
com Deus, que é fonte da vida. A. urgência da sexualidade
em plano físico manifesta, apesar da ambigüidade própria de
nossa condição atual, toda a necessidade de recebermos e
darmos a vida por amor. As perspectivas abertas por
Teilhard de Chardin sugerem que a diferenciação do sexo no
processo evolutivo, e a necessidade de união sexual para
criar uma nova vida, podem ser consideradas como
preparação e antecipação da capacidade humana de amar e,
em sentido mais amplo, de comunicar a vida, poder este que
será aperfeiçoado na fase de "amorização".

O amor é a única força no mundo capaz de criar
personalidade através de um processo totalizador. Constitui,
portanto, o estádio mais alto daquela energia que Teilhard
denominava 'radial'. Só ele une as criaturas humanas de
forma a completá-las e realizá-las, pois só ele fá-las atingir o
mais profundo de si mesmas... Razão por que os homens,
para continuarem livremente o caminho em busca daquela
unidade de noosfera, que é o destino de cada um,
necessitam desenvolver gradualmente a própria capacidade
de amar até poderem abraçar toda a humanidade e a terra
inteira. Em outras palavras, aquilo que Teilhard chamava de
'planetização' (intensificação da temperatura psíquica da
noosfera em virtude de um estreitamento mais compacto
dos homens na su perfície da terra) deve se tornar
eventualmente uma 'amorização'. Costuma-se objetar contra
esta idéia, que a capacidade humana de amar não ultrapassa o
limite de um grupo de pessoas escolhidas; pretender amar
todo mundo é uma contradição, um passo errado, que, em
definitivo, não nos faz amar ninguém. A esta objeção res-
ponderia eu que, se o amor universal fosse impossível, como
pretendem os nossos argüidores, por que então
experimentamos em nossos corações aquele irresistível
instinto que nos conduz para a unidade toda vez que surgem
em nós as mais profundas emoções, não importa qual seria a
sua orientação? Um amor universal não é só
psicologicamente possível; é o único modo completo e
definitivo pelo qual podemos amar.

A sexualidade destina-se, pois, a caracterizar e a afetar toda a
pessoa do indivíduo em luta para adquirir uma completa
personalidade como ser humano, e assim fazendo, mediante
as relações e os atos de amor, visa ajudar os outros a
conquistar a própria personalidade. A sexualidade não é
elemento isolado, em nossa natureza, que deve ser
descartado à medida que o homem se torna menos "animal";
é força intrínseca de nossa humanidade integral. Com isso,
não pretendemos negar ou minorar o seu poder de destruir a
personalidade, quando desencaminhada, desumanizada. Ao
contrário, quanto mais clara for nossa visão do sexo como
força positiva entre os elementos da natureza humana, com
mais evidência perceberemos o desperdício e sentiremos
horror por seu abuso. Mas a força e a insaciabilidade do sexo
não constituem, por si mesmas, sinais da desordem da
natureza humana em sua condição "carnal", no sentido
paulino de fraqueza, de falta de integração, de alienação. São
antes, manifestação do dinamismo positivo da natureza
humana, da energia inerente à psique humana, que procura
seu complemento.
Esta visão do sexo concorda com o uso constante que faz a
Sagrada Escritura de imagens do amor e da união conjugal
para descrever as relações entre Deus e seu povo, entre
Cristo e a Igreja. O aspecto dinâmico do matrimônio —
mútuo auxílio entre marido e mulher a fim de obterem o
próprio completamento — ilustra, muito embora
imperfeitamente, a ação de Deus, que leva o gênero humano
à sua perfeição em Cristo. O matrimônio, como
completamento mútuo, reevoca, embora mais
imperfeitamente ainda, a idéia da realização integral da
pessoa humana, inclusive da sua sexualidade, além dos
limites daquilo que o coração humano pode conceber, e que
esperamos conseguir no dia da Ressurreição: a união
dinâmica perfeita na vida e no amor de Deus e do próximo.
Diz-nos a Escritura que, então, "não haverá nem casado,
nem solteiro" (Lc 20,30), justamente porque todo o anseio
humano de amor será perfeitamente satisfeito, e se atuará,
com toda perfeição, nossa capacidade de amor e de agir por
amor.
Tal idéia da sexualidade concorda também com nossos
conhecimentos a respeito do papel que ela desempenha nas
maiores crises de desenvolvimento emotivo e sexual. O
primeiro despertar da criança para o sexo — para a sua
própria sexualidade e para a de seus pais — acompanha o
primeiro despertar de sua consciência e de sua existência
como pessoa em relação aos outros, e principalmente em
relação a seus pais, cujas intimidades recíprocas começa a
perceber. A criança vai se inteirando de que ela não é o
centro do universo de seus pais, ao mesmo tempo que
começa a perceber a necessidade de ser por eles amada e a
diferenciá-los como homem e mulher. Desenvolvendo-se
normalmente, o menino se identifica, nesta fase, com seu
pai (a menina, com sua mãe), e quando se certifica do amor
de seus pais, começa a sair do egocentrismo infantil e a pro-
curar relacionamento com outras pessoas.
O despertar do adolescente para o sexo acontece durante a
segunda grande crise de procura da própria identidade. O
rapaz começa a perceber que ele "gosta das moças", que a
iovem completa, de qualquer forma, a sua personalidade
masculina, e sente, ao mesmo tempo, o desenvolver das
forças sexuais físicas que o capacitarão a ser um "outro" em
relação a uma mulher, no matrimônio e na paternidade. A
jovem percebe que ela "gosta dos rapazes", sem que isso
comporte, necessariamente, o despertar dos desejos sexuais
físicos, embora as mulheres atinjam a maturidade física antes
que os homens. Mas o rapaz e a jovem adquirem
consciência do próprio sexo, de modo diferente, quando
sentem necessidade de sair de si mesmos para estabelecer
novos relacionamentos e descobrir-se a si próprios em
relação aos outros e ao seu mundo interior.
A superação mais ou menos bem sucedida destas duas crises,
e a integração de seus elementos sexuais na descoberta de si
mesmos e dos outros, são condições necessárias para um
desenvolvimento emocional sadio. Tanto é verdade que
muitas pessoas competentes no assunto consideram o
bloqueio do processo normal de desenvolvimento em um
destes dois estágios como causa principal do
homossexualismo. Na primeira infância, ou na crise de auto-
identificação da adolescência, a criança não conseguiu
identificar-se com o pai ou com a mãe, e o impulso principal
de sua sexualidade desviou-se da procura de completamento
próprio no sexo "oposto". Razão por que alguns especialistas
acreditam que o homossexualismo, pelo fato de ser
problema preponderantemente psicológico, pode encontrar
na psicoterapia um grande instrumento para reconduzir o
homossexual à linha normal de conduta, se estes enfermos
se convencerem de que podem ser ajudados e buscarem
auxílio. Muitos outros problemas emocionais — por
exemplo, os problemas de psicopatia — podem também
remontar ao modo e às circunstâncias em que um
determinado indivíduo atravessou as duas crises de que
falamos, e são provocados pela deficiência em integrar o
sentido de auto-identificação com o sexo e com a capacidade
de se abrir para o outro mediante o amor.
Se a integração deste ou daquele aspecto da sexualidade na
vida emocional de cada um é tão relevante nestas duas
primeiras fases cruciais do crescimento, tal processo deve
continuar a ser essencial em nossa progressiva caminhada
para a maturidade, e no trabalho para conseguirmos o
amadurecimento no amor, que constitui nossa vocação
cristã. Se o sexo possui tarefa positiva no desenvolver da
criança para uma adolescência normal, e do adolescente para
um adulto normal, deve continuar a exercer papel positivo
em nosso desenvolvimento para a "estatura da maturidade
de Cristo". Na criança e no adolescente, o processo de
integração se desenrola, em grande parte, no subconsciente;
porém, quanto mais maduros nos tornamos, mais capazes
deveríamos ser de levarmos a termo esta tarefa com
consciência e com maior liberdade.

Todo amor é sexual, mas o amor é mais que
sexualidade

Cumpre reconhecer que todo amor é sexual, isto é, que
amamos como pessoas sexuadas, como homem ou mulher, e
que nosso amor se diferencia em cada uma das suas relações;
adquire determinadas modalidades quando se dirige para
uma pessoa do mesmo sexo, e outras, bem diferentes,
quando tem por objeto pessoa do sexo oposto. O amor do
pai não é igual ao da mãe; um pai não ama sua filha como
ama seu filho, nem a mãe ama o filho como ama a filha. O
afeto de alguém pelo irmão é muito diferente do afeto pela
irmã e vice-versa. A amizade entre mulheres é algo bem
diferente da amizade entre homens, e, obviamente, a
amizade homem-mulher muito difere das precedentes, e
toma características peculiares no homem e na mulher; o
amor conjugal não só se diferencia de todos os outros, mas
possui traços que divergem no esposo e na esposa.
Por isso, o sexo é elemento integrante do amor, mesmo
antes de se falar de qualquer orientação incipiente ou atual
para o amor conjugal ou para a união sexual física. Ele é
responsável pela variedade de matizes, de calor e de
urgência que especificam estas várias relações. Desempenha,
por conseguinte, uma tarefa positiva em todos os tipos de
afeto, embora não constitua o único conteúdo da relação
afetiva.
Isto é óbvio, também, no que diz respeito ao amor conjugal.
A sexualidade do marido e da mulher, e o ato sexual em que
este indivíduo realiza sua mais alta expressão, constituem
um aspecto essencial da relação entre os cônjuges, não a
totalidade desta relação. O sexo desempenha sua função na
vida conjugal impelindo marido e mulher a procurarem
aquela singular união entre ambos, de que é elemento rele-
vante a conjunção carnal. Verdade é também que a Igreja
sempre reconheceu a validade de um matrimônio não-
consumado em que marido e mulher concordam em não ter
relações sexuais. Tais matrimônios, contudo, são
considerados como passíveis de dissolução, exatamente
porque lhes falta o complemento que advém da união
sexual; e o casamento em que uma das partes se revela
incapaz de realizar o ato sexual é considerado inválido. A
experiência do mútuo prazer e do orgasmo peculiar ao ato
sexual pode abrir mais ainda as portas da personalidade dos
cônjuges, de maneira singular, persuasiva e determinante,
tornando-os capazes de se amarem reciprocamente com
maior profundidade, proporcionando-lhes uma vida
quotidiana mais plenamente comunitária. Mas eles não se
amam apenas no ato sexual, e devem aprender a colocar o
próprio sexo a serviço do amor, na conjunção carnal e em
todos os instantes da vida. se auiserem que seu amor seja
verdadeiramente conjugal.
A "satisfação sexual", no sentido geralmente aceito, parece
referir-se, em primeiro lugar, ao uso e à realização da própria
potencialidade sexual física, capaz de satisfazer o desejo de
conjunção carnal mediante a união com um "outro" através
do sexo. No caso da mulher, isso pode também implicar a
gravidez. Generaliza-se cada vez mais a idéia de que a
satisfação sexual, assim entendida, é necessária para a
realização da sexualidade em seu. mais amplo sentido psi-
cofísico e humano. Mas a união sexual física só é realizadora
quando favorece a união humana integral das duas pessoas
interessadas, seu crescimento no amor, o uso e o
desenvolvimento de todas as suas forças afetivas.
Como acabamos de observar, o prazer e o relaxamento
psicofísico que se experimenta no ato sexual consumado
como ato plenamente humano, é elemento vital para o
crescimento do amor conjugal assim como para viver a vida
matrimonial como vocação ao amor. Ninguém duvida
também de que é no matrimônio que a maioria das pessoas
encontrarão aquele grau relativo de perfeição humana
possível de se obter nesta vida. Todavia, sendo que o sexo
tem uma função em toda a espécie de amor, uma pessoa só
poderá ser completa sexual e humanamente, sem contrair
matrimônio e sem relações carnais, se atribuir à sexualidade
sua função específica no uso e no desenvolvimento da
própria capacidade de amar nos vários tipos de relações
interpessoais.
Em outras palavras, o sexo imprime seu dinamismo em todas
as relações de amor, e assim desempenha sua função
específica em nossa vida à medida em que o fizermos seguir
a corrente principal de todo nosso impulso afetivo, e
procurarmos orientar este impulso para o amor. Quanto mais
pusermos o sexo a serviço do amor, tanto mais seremos
"perfeitos no amor".
Tudo isso verificou-se, em grau supremo, na vida de Jesus,
assim como no-la descreve o Evangelho. Diz Hettlinger:
"O modo inteiramente natural das relações de Jesus com os
homens e as mulheres nos faz perceber que ele atingiu um
harmonioso controle de si e da sexualidade, que lhe
proporcionaram a liberdade necessária para cumprir sua
especial vocação de "servo de Deus". Poucos ousarão afirmar
que Jesus tenha manifestado sinais de desordem emocional
ou psíquica. A consciência de sua missão tornava
praticamente impossível que ele abraçasse a vida
matrimonial. Se devemos reconhecer que Jesus viveu uma
vida plenamente humana, forçoso é admitir, também, que
seu amor por seus amigos não foi assexuai. Nosso
conhecimento da função do sexo na infância e na
adolescência, como também a constatação de que todas as
relações entre o homem e a mulher contêm um elemento
sexual, tornam absurdo supor o contrário. Isso não deve,
contudo, dar asas a fantasias morbosas, que pretendem
descobrir ligações ilícitas entre Jesus e Maria Madalena. Os
padrões de comportamento sexual, no judaísmo de então,
eram rígidos, e tanto naquela época, como agora, os
políticos se apressariam em destruir a autoridade de um mes-
tre propagador de doutrina subversiva, se pudessem
vislumbrar em seus atos a menor sombra de comportamento
ilícito. Embora seja difícil, para o homem piedoso, tanto
quanto para o libertino, admitir esta constatação, parece
certo aue Jesus viveu uma vida de completa normalidade
sexual, não mostrando repugnância pelo corpo, nem se
sujeitando a nenhum trauma psíquico por efeito de qualquer
paixão estranha ao nosso mundo egocêntrico, ainda que
perceptível por alguém que saiba sair do próprio egoísmo".
Neste aspecto, como em todos os outros, Jesus é supremo
modelo da verdadeira humanidade; mas não é o único
exemplo. Muitos homens e mulheres, dentro e fora da vida
consagrada pelo celibato, não são, absolutamente, criaturas
frustradas ou não realizadas, mas pessoas que realmente
amam, homens e mulheres completos, capazes talvez de
mais intensas e numerosas relações de amor do que se
tivessem optado pelo matrimônio. E todos nós podemos,
pelo menos, procurar completar-nos, no casamento ou lora
dele, se aceitarmos a tarefa integral de aprender a amar
como um processo progressivo e sem limite, capaz de
utilizar e desenvolver todas as nossas energias psíquicas,
inclusive seus aspectos sexuais. (Isto não significa negar a
importância de encontrarmos saídas adequadas para nosso
instinto agressivo, aspecto da natureza humana que vem
sendo cada vez mais profundamente estudado sob vários
pontos de vista, como, por exemplo, nos comentários de
Gorer à supracitada obra de Lorenz). Como notamos no ca-
pítulo anterior, a agressividade parece um fenômeno
orientado a superar os obstáculos que se opõem ao
conseguimento dos objetivos do homem; razão porque há
de ser colocada a serviço do amor em sua atividade
restauradora e vital.
Além disso, deveria o cristão, consciente e espe-
rançosamente, perceber que o dinamismo da sexualidade,
assim como de todo o impulso afetivo, mediante as relações
humanas e além delas, é uma procura de Deus que "nos
amou por primeiro", e que nos torna capazes de amar a ele e
ao próximo. Pode o cristão esperar conseguir aquela
realização plena, que supera "tudo o que o coração humano
pode imaginar", por Deus prometida àqueles que procuram
amá-lo e se esforçam por amar o próximo?

Qual seria esse esforço?

O que dissemos não pretende, absolutamente, minorar as
dificuldades inerentes ao trabalho de colocar o sexo a
serviço do amor. nas relações matrimoniais e em todas as
outras. O sexo pode ser percebido pela consciência como
imperiosa necessidade física, psíquica, ou psicofísica, que
deve ser satisfeita a qualquer custo com outras pessoas; ou
como um apelo a nos doar por amor; ou ainda — e isso é
mais comum — como uma associação destas duas coisas.
Além disso, não nascemos nem crescemos dotados de
perfeita harmonia em todos os setores de nossa natureza, e
talvez menos ainda na esfera sexual. Pode, às vezes, surgir
um violento desejo físico, sem ser, em absoluto, provocado
por qualquer emoção, e muito menos ainda pela vontade;
podemos sentir desejos sexuais em relação a pessoas pelas
quais não nutrimos nenhum afeto e nem mesmo os
primeiros indícios do amor. Muitos, por outro lado, e em
particular as mulheres, podem amar com intensa sexualidade
emocional, sem experimentar nenhuma vibração física
extraordinária. Os homens, tanto quanto as mulheres, são
capazes de levar uma vida de fantasia erótica, que pode, ou
não, se relacionar com a realidade em que vivem, ou com a
sua capacidade atual cm matéria de sexo, cie afeto ou de
amor. O tratamento contra este desperdício de energia física
deve ser procurado em um sereno confronto com a
realidade. Por exemplo, um sábio diretor espiritual
aconselhava um seminarista, que se dirigia a ele muito
perturbado, porque tinha "maus pensamentos" quando via
mulheres bonitas, de tirar um dia de folga para ir à Nova
Iorque e passar o tempo olhando as mulheres como se
apresentavam na realidade quotidiana, caminhando pelas
ruas, sentadas no ônibus, fazendo compras nas lojas.
Admirou-se o seminarista constatando que as mulheres
eram muito menos sedutoras na realidade do que na sua
imaginação, e, desde aquele dia, deixou de ser perturbado
pelos pensamentos que o afligiam.

Diga-se mais, o fenômeno da atração sexual não parece
inteiramente previsível ou controlável. Verdade é que, em
nossa cultura mais ou menos padronizada, nota-se uma
multiplicidade de "sex appeal" em vários ambientes, que
mudam com a moda, e condicionam o comportamento de
muitos. Mas, mesmo que recorrêssemos a computadores
para descobrir "compatibilidades" entre os casais de
namorados, nunca teríamos certeza matemática de existir
entre eles atração sexual recíproca, seja em sentido
meramente físico, seja no sentido mais amplo de descoberta
do outro como sexo "oposto", capaz de completar e de ser
completado, coisa que todos julgam de vital importância.
"Apaixonar-se", conforme a definição comum, significa
descoberta do "oposto". Teoricamente, deveríamos "nos
apaixonar" só pela pessoa que — entre todas as que
poderíamos encontrar na vida — fosse a mais apta a nos
completar e a nos considerar como seu perfeito "oposto".
Pode certamente acontecer que tal descoberta recíproca do
"único no mundo para mim" venha o ser selada pela vida
conjugal, em que ambos continuam a se deleitar
reciprocamente e a crescer no amor, sem jamais pensarem
de ter errado em sua identificação original. É mais comum
acontecer que os cônjuges, cedo ou tarde, constatem que a
sua paixão inicial encerrava um grau mais ou menos
profundo de irrealismos; entretanto, a boa vontade, a
intenção sincera de viver um pelo outro no matrimônio, o
amor de que dispõem, tornam-nos capazes de se esforçarem
continuamente para aceitar o cônjuge assim como ele é
realmente.
Mas a maioria — seja ou não. em definitivo, feliz no
matrimônio — experimenta vários tipos de "paixão" em que
inconscientemente se ilude sobre a existência de uma real
complementariedade. Quiçá tenhamos considerado a atração
sexual como elemento determinante, e sobre ela fundamos a
existência de uma relação de amor. Além disso, certa
necessidade psíquica pode nos ter impelido a considerar
alguém como nosso "outro" ideal, sem que absolutamente o
conhecêssemos; e nos enfatuamos com nosso sonho. Uma
jovem pode, inconscientemente, procurar no homem a
imagem de seu pai, ou um jovem, a imagem da mãe, quando
a necessidade de apoio paterno ou materno não foi
adequadamente satisfeita na infância; chegará, assim, a "se
apaixonar por alguém que lhe faça as vezes do pai ou da mãe
sem se revestir propriamente das funções de marido ou
mulher".
Tais erros derivam do desconhecimento de nós mesmos e
das exigências das várias relações humanas; decorrem,
também da incapacidade de orientarmos nossa sexualidade,
em seus vários níveis, a serviço do amor. Ainda que tais
erros não nos conduzam a uma tragédia familiar (embora
isso também possa acontecer), quando percebemos o que
fizemos, experimentamos a sensação de termos traído a nós
mesmos, e um desgosto diferente daquele que sentiríamos
se amássemos alguém que não correspondesse a nosso amor.
Entretanto, erros como estes constituem, para a maioria, um
aspecto inevitável da condição humana, e podem ser
salutares se, através deles, aprendermos algo mais sobre nós
mesmos, e sobre a realidade do amor.

Cumpre-nos então, reconhecer todas estas possibilidades de
desajuste no que diz respeito ao realismo e ao controle de
nosso comportamento sexual, tanto em campo físico quanto
psíquico, sem permitir, todavia, que isso desanime nosso
trabalho de aprender a amar. A meta é tornar-nos mais
realistas e controlados, sem, porém, cessarmos de amar.
Nossa tarefa não é eliminar ou reprimir a sexualidade, mas
procurar organizá-la, orientá-la, de tal forma que possa
contribuir com todas as suas forças para o amor de Deus e do
próximo. O problema não deveria ser de "suportar o sexo",
mas, antes, de procurar viver mais plenamente possível,
como pessoas humanas sexuadas, em um esforço para
harmonizar e fazer progredir a vida, não para minorá-la.
A "sublimação", em sentido psicológico, é um processo
inteiramente incônscio, pelo qual uma pessoa canaliza seu
impulso sexual para outras formas de atividade. Um
professor celibatário, por exemplo, que se julga realizado em
seus 20 ou 30 anos de trabalho atuante a serviço da
juventude, se alarmaria e ficaria perturbado se lhe
disséssemos, à queima-roupa, que seu trabalho foi uma
forma de sublimação das energias sexuais. Em verdade, seu
trabalho poderá chegar até a ser improdutivo se não receber
devida assistência que o ajude a enfrentar essa nova des-
coberta; mas, se conseguir enfrentá-la, com ou sem ajuda,
ele se tornará bem mais maduro, emocionalmente, do que
antes. Assim, não podemos dedicar maior empenho a este
ou àquele trabalho, com o propósito explícito de desfrutar
nossa energia psíquica ou sublimar nosso impulso sexual, e
pretendermos sucesso neste sentido. Mas podemos,
conscienciosamente, procurar tornar-nos mais abertos ao
amor, cultivar relações de amor, fazer obras de amor nas
relações que estejam a nosso alcance, cônscios de que o sexo
é elemento fundamental em qualquer tipo de amor,
procurando controlá-lo e orientá-lo a serviço de nossos
afetos.

É de fato essencial cultivar muitas e variadas relações, se não
quisermos que apenas uma delas adquira peso excessivo,
revestindo-se de vator absoluto em detrimento do amor.
Isto se faz necessário também na vida de casado, embora as
relações matrimoniais possuam, por si mesmas, caráter de
singularidade e de relativo absolutismo; transformar o outro,
mesmo o próprio marido, ou a própria mulher, em ídolo,
significa obstaculizar o crescimento do amor, que aceita o
outro com seus limites e o ajuda a se abrir cada vez mais para
a amizade. Cultivar muitas relações é necessário também em
todas as formas de vida celibatária, pois, se o celibatário
procurar unir-se por amor a uma só pessoa, excluindo as
outras, será levado à busca da união sexual física e fazer da
pessoa que ama um "oposto", naquele sentido singular, que é
próprio da relação matrimonial.
O múltiplo esforço em amar plena e maturamente,
cultivando várias relações, é, portanto, o modo positivo de
agir para colocar o sexo a serviço do amor. Provavelmente,
jamais obteremos completo sucesso; mas de nós não se exige
pleno sucesso, e sim que procuremos, durante toda a vida,
amadurecer no amor.

Qual comportamento sexual é moralmente
bom?

Na edição revista do Catecismo de Baltimore, por exemplo,
define-se a castidade como "virtude moral que regula toda
manifestação voluntária do prazer sexual, no matrimônio, e
o exclui totalmente, fora do estado matrimonial". À luz de
nossa vocação ao amor, como pessoas humanas sexuadas,
parece que a castidade consiste, acima de tudo, em fazer que
nossas atitudes e comportamentos sejam ditados pelo amor,
e, por isso, em colocar nossa sexualidade a serviço do amor,
antes que servir-nos dela ou submeter-nos a ela como fonte
impessoal de prazer egoístico.
Em outras palavras, a norma de comportamento moral
sexual não deveria consistir em saber se consentimos,
deliberadamente, ou não, no prazer sexual fora do
matrimônio, ou se dele usamos de modo indébito no próprio
matrimônio, mas, em saber se estamos, ou não, procurando
profundamente tratar o outro (e nós mesmos) como pessoa,
sem nos servir dele como se fosse coisa, procurando agir por
seu bem total.
Sem dúvida, propendemos a tratar-nos, reciprocamente,
como coisa, e existe em nós uma inclinação a usufruirmos
do outro em muitos modos. Um dos mais importantes
aspectos do crescimento na compreensão de nós mesmos
consiste, precisamente, em vermos com clareza cada vez
maior, se estamos realizando este trabalho, e como o
fazemos. Mas qualquer pessoa capaz de opção moral pode
avaliar, pelo menos aproximadamente, os motivos que
definem sua atitude em relação à determinada pessoa: estou
procurando seu bem ou apenas o meu prazer? Pode também
estimar a motivação imediata de determinada ação: agindo
assim, estou procurando a mim mesmo, minha satisfação
pessoal, ou o bem do outro? Tal norma de amor não deve ser
interpretada como se não importasse o que fazemos, se a
intenção Cor boa. Agir por amor, como veremos mais
amplamente no próximo capítulo, significa ir em busca dc
valores humanos objetivos, valendo-se dos meios
apropriados para discernir o maior bem em jogo em
determinada decisão e pleitear aqueles valores que
constituem o maior bem de todos os interessados.
Naturalmente, no uso de qualquer norma referente à nossas
atitudes ou ações, podemos cair em engano, pelo
conhecimento insuficiente de nós mesmos, e por nossa
auto-ilusão. Mas a norma do amor, retamente entendida,
deveria levar ao conhecimento de nós mesmos e a uma
humildade mais intensa, ao passo que o esforço que certos
ambientes impuseram sobre gerações de cristãos, para
combater e eliminar todos os vestígios de "prazer sexual
deliberadamente consentido", levou-os à uma
escrupulosidade malsã, em vez de favorecer a verdadeira
pureza de coração. Além disso, ninguém pode dizer até que
ponto o prazer que sente por outra pessoa, por uma história,
por um filme, por uma música (embora isso seja "espiritual"),
por um lindo pôr de sol, ou até por uma oração, não seja
também "sexual", tão ínfimo é o poder do sexo em toda a
nossa vida afetiva. Podemos, entretanto, tomar cada vez
mais consciência de nossas atitudes e de nosso
comportamento para descobrir se se orientam, em linha
geral, ao amor ou ao não-amor, tornando-nos, assim, sem
escrúpulos, sempre mais sensíveis àquilo que mais se inspira
no amor, em nossas disposições e em nossa conduta.
Como procuraremos demonstrar nos capítulos V e VI,
adotar uma norma de amor não significa pôr de lado os dez
mandamentos, os ensinamentos da Igreja, ou as intuições
tradicionais da sabedoria humana e cristã: nem quer dizer
cair no subjetivismo sentimental ou numa desenfreada "ética
da situação". Significa esforço disciplinado para acrescer a
capacidade de discriminar os valores humanos, capacitando-
nos, destarte, a optar e agir conforme as exigências do
verdadeiro amor.
A lei do amor, porém, aplicada à moral sexual, não constitui
espécie de critério abstrato, destinado apenas a uma elite
espiritual. Será obviamente mais fácil aplicá-la quando toda a
formação religiosa seguir, desde a infância, suas linhas
orientadoras. Mas qualquer pessoa capaz de decisões morais
pode compreender a diferença que há entre tratar-se a si
mesmo e os outros como pessoas e tratá-los como coisas.
Exemplificando, o adolescente normal tem condições para
entender que a leitura de revistas pornográficas excita o
instinto sexual como fim a si próprio, e como fonte
impessoal de prazer; o mal não está no prazer, e sim na
intenção, que não é certamente inspirada pelo amor.
Este modo de apreciar o valor moral das atitudes sexuais
parece oferecer argumentos muito convincentes contra a
masturbação, que é um claro exemplo da procura de prazer
sexual egoístico, sem amor. Muitos especialistas, entretanto,
estão convencidos de que concentrar a atenção dos
adolescentes e incutir-lhes temor por esta forma de
comportamento é extremamente inoportuno. Tais autores
acreditam que a masturbação, como prática ocasional,
poderia constituir uma fase do amadurecimento sexual, e só
deveria despertar preocupação se se transformasse em hábito
persistente depois da adolescência. Neste caso, seria sintoma
de alguma perturbação psíquica a exigir uma tempestiva
assistência médica. (Atualmente, quase todos estão
convencidos de que os terríveis efeitos que se costumavam
alegar como argumento contra a masturbação, eram
inteiramente imaginários, confundiam-se com as suas
causas, ou resultavam de medo instilado pelo sentimento de
culpa). Eis um campo em que moralistas e psicólogos cris-
tãos devem, juntos, militar à procura de uma compreensão
mais profunda, e de soluções mais realistas; setor em que um
conselho adequado, que leve em consideração todos os
fatores implicados em cada caso particular, seria muito mais
vantajoso para a juventude.
Mas jovens e adultos deveriam admitir como óbvio que uma
pessoa não se comporta por amor em relação à outra quando
procura satisfação sexual em sentido meramente físico,
orgânico, sem a amorosa doação de si, que transforma a
intimidade física e o ato sexual em atos propriamente
humanos. Além disso, é óbvio qae uma pessoa se serve de
outra como coisa, como meio para satisfazer seus fins
egoísticos, quando recorre à atração sexual, ou a estra-
tagemas emocionais, para garantir-se determinada posição
social, segurança econômica, etc. É o que acontece, por
exemplo, quando uma jovem procura conquistar um rapaz
porque ele é o capitão do time de futebol, não porque deseja
o seu amor como tal. Em sentido mais amplo, toda ação de
"conquista" sexual, por parte seja do homem seja da mulher,
será amolamente iluminada se a analisarmos conforme a lei
do amor. Tentar conquistar outra pessoa para a própria
satisfação, para demonstrar valentia sexual, ou simplesmente
pelo gosto de mais uma conquista, não é, obviamente, uma
conduta de amor; o outro constituiria, no caso, simples
pedra de xadrez numa partida que se joga sozinho.
Além disso, recorrer à lei do amor ajudar-nos-ia a distinguir
entre enfatuação e amor verdadeiro, distinção de grande
relevo para o amadurecimento emocional, assim como para
uma ponderada decisão no que diz respeito ao matrimônio.
Pois, na enfatuação. o outro não é considerado como pessoa
que devemos conhecer e amar e que, por sua vez, nos deve
conhecer e amar, mas, antes, como encarnação do prazer de
que necessitamos: desejamos apenas mergulhar-nos na
satisfação que o outro nos dá, proporcionando-nos tudo
aquilo que julgamos não possuir.

Enfim, a lei do amor oferece orientação mais realística c útil
que a norma do "prazer deliberadamente consentido",
quando se trata de julgar, sob o aspecto moral, as intimidades
físicas fora do matrimônio — tanto as carícias muito
"reservadas" quanto o próprio ato sexual — toda vez que
exista realmente uma relação pessoal de amor. As "conces-
sões ao afeto" representam uma tendência cada vez mais
generalizada no comportamento sexual pré-matrimonial da
classe média. Isto constitui, sem dúvida, um grande
progresso em direção ao comportamento sexual por amor,
que supera a "licenciosidade sem afeto", e o sexo
despersonalizado, sem amor. Entretanto, não nos cumpre
apenas perguntar-nos: "Estou realmente apaixonado por tal
pessoa?", "desejo realmente doar-me a ela e ela a mim?", mas
também: "nosso comportamento está realmente promo-
vendo nosso bem em todas as circunstâncias em que nos
encentramos? Nossas ações miram ao melhor para ambos?
Não seria melhor para nós, nesta situação, abster-nos de
certas expressões de nosso amor?" A questão não é saber se
"nosso amor justifica o que estamos fazendo", mas, antes, "se
nos comportamos realmente por amor nestas circunstâncias
e neste preciso contexto".
No próximo capítulo procuraremos delinear a distinção, que
nos parece fundamental, entre as expressões físicas de afeto,
peculiares a todas as relações de amor, e aquelas que exigem
um contexto matrimonial para incrementá-lo. Esperamos
que esta distinção seja útil para estabelecer o que deveria, ou
não. constituir um comportamento amoroso em de-
terminada situação, por exemplo, quando um homem e uma
mulher desejam ansiosamente contrair núpcias em futuro
remoto ou próximo.
Entretanto, por mais difícil que possa permanecer a
aplicação da norma do amor em muitas situações concretas,
tal lei, retamente aplicada, pode ser entendida e respeitada
particularmente pela juvenlu de de hoje. Além disso, a
aplicação desta norma eliminaria os desastrosos efeitos que
provêm do fato de se considerar como culpa "o prazer
deliberadamente consentido" fora do matrimônio. Tal
concepção não somente causou inumeráveis danos a pessoas
solteiras, fomentando escrúpulos, mas também prejudicou
um incontável número de casais, impedindo-os de libertar-
se do sentimento de culpa ao experimentar o prazer sexual,
mesmo no matrimônio.

O recurso à lei do amor faz com que todas as questões que
procuravam definir o lícito e o ilícito, ou o mais certo e o
menos errado no comportamento sexual, saiam da esfera
obscura dos conceitos impessoais de "impuro" ou de "puro",
e passem à luz da realidade verdadeiramente humana,
pessoal e responsável. O comportamento sexual sem amor,
em todos os seus possíveis graus de advertência ou de inad-
vertência, não deve ser considerado pior, ou melhor, que o
comportamento sem amor em qualquer outra área da
conduta humana. Os erros a respeito dos elementos que
constituem, de fato, o comportamento sexual por amor, em
determinadas circunstâncias, não são piores, nem menos
freqüentes, em virtude da fraqueza humana, do que os erros
em torno daquilo que constitui bem para os outros ou para
nós em todos os outros tipos de decisões. Destarte, quem
age sem amor no comportamento sexual não é pior de quem
age sem amor em qualquer outra esfera da conduta humana.
Nem se torna, por isso, mais "audaz" e sua conduta não
constitui um desafio mais orgulhoso que outros a certos
tabus sem sentido. O comportamento que não é ditado pelo
bem-querer, opõe-se aos valores humanos; neste sentido,
será tanto mais desumano quanto mais carecer de amor. Mas
a tarefa de nos tornarmos plenamente humanos dura a vida
inteira.
A lei do amor convida-nos, portanto, a amadurecermos
como pessoas humanas, e a contribuirmos para nosso
crescimento recíproco. Entendida no contexto do amor de
Deus e da nossa vocação ao amor, esta norma não nos impõe
regra nova e rígida com a qual devemos medir nossa
conduta. Não é lícito perguntarmos "até onde posso chegar
para não faltar ao amor". Esta norma conduz-nos, antes, à
autoconsciência e à confiança no amor de Deus, sempre
pronto a perdoar nossos erros, como também nossas falhas
no amor, sempre pronto a nos ajudar mais uma vez a
superarmos nosso egoísmo e a caminharmos para o amor no
comportamento sexual e em todas as esferas da vida
humana.

"Olha como estes cristãos se amam!"

Com uma compreensão mais profunda das exigências do
amor e da função positiva da sexualidade em todas as esferas
do bem-querer, poderíamos começar a libertar-nos dos
temores que afligem muitos dentre nós quando iniciamos
uma relação de profunda amizade com pessoas de ambos os
sexos, adquirindo idéias mais claras e coração mais aberto.
O temor que inspiram as relações de amizade, entre homem
e mulher, fora do matrimônio, é profundamente inveterado
em muitos padrões éticos e sociais. Mas a vida moderna está
conduzindo a um irrealismo cada vez maior porque procura
evitar os riscos inerentes a estas amizades separando o mais
possível os homens das mulheres. Melhor seria reconhecer
estes riscos e procurar orientá-los de maneira equilibrada e
adulta, no contexto positivo de nossos esforços para crescer
no amor. Deveriam, pois, os cristãos deixar de se agarrarem
a modelos leigos, clericais ou religiosos da vida, que tornam
dilícil, quando não impossível, fomentar amizade entre
homens e mulheres; cumpre oferecer mais amplo apoio a
situações que possibilitam cultivar muitas espécies de
amizade. Além disso, necessitamos de amizade com pessoas
tanto do mesmo sexo quanto do sexo oposto para enriquecer
e elevar as nossas possibilidades, como homens ou
mulheres, na vida real. A "rivalidade do sexo" há de ser
entendida em termos de intercâmbio aprazível e estimulante
entre pessoas dotadas de sexo, que percebem o valor de sua
própria posição, e a necessidade de serem complementadas
pelo sexo oposto.
Felizmente, parece estar desaparecendo a segregação sexual
no curso secundário e superior. O sistema segregacionista,
que só permite o encontro com jovens de outro sexo em
condições que reevocavam o cultivo de flores em estufas,
não é útil à moralidade nem faz amadurecer a capacidade de
amar. Uma jovem de uma das melhores faculdades para
moças, constatou, em experiência pessoal, que as jovens se-
quiosas de entrelaçar relações de amizade, mais que de
namoro, com rapazes, podiam fazê-lo muito mais facilmente
com estudantes de uma universidade mista adjacente, do
que com os que estudavam na repartição masculina da
mesma faculdade. Os primeiros estavam acostumados à
companhia de mulheres no dia-a-dia e em situações alheias
às vicissitudes escolásticas, e eram, por conseguinte, muito
mais abertos aos vários tipos de relacionamento. Mas,
naturalmente, a posição da escola ou da faculdade não cons-
titui o único fator; as atitudes familiares e sociais são muito
mais importantes para encorajar ou desencorajar uma visão
mais ampla das relações entre rapaz e moça, entre homem e
mulher, de quanto não o sejam os assim chamados
"encontros".
Não é paradoxo, como poderia parecer, afirmar que numa
época na qual, segundo a opinião de muitos, o nível moral se
acha em declínio, e aumenta a imoraridade, deveríamos
preocupar-nos menos com as situações que favorecem um
comportamento sexual favorável, e promover situações
favoráveis ao florescimento da amizade. Criando clima
propício à amizade entre pessoas do mesmo sexo, ou de
sexos diferentes, proporcionaremos à grande número de
pessoas uma idéia mais realista das implicâncias morais do
comportamento sexual. Como não raro acontece, a
integração do sexo no verdadeiro amor humano tornou-se
mais difícil para jovens e adultos, do que deveria ser, pois
escasseiam os estímulos e as oportunidades de se criar novas
amizades visando a promover o impulso afetivo. Jovens e
adultos não reconhecem mais este impulso por aquilo que
realmente é, nem encontram nenhuma saída para a
afetividade e o sexo, a não ser em relações que constituem
intimidades carnais, ou para elas se encaminham. Destarte, a
moral cristã, como já dissemos, seria fortalecida e não
enfraquecida, se se criassem maiores oportunidades para se
entrelaçar amizade.
Promover clima favorável ao afeto humano poderia
constituir, também, uma das grandes contribuições do
cristianismo para resolver o fenômeno do homossexualismo,
em franca expansão. Tal anomalia parece,
fundamentalmente, um problema provocado por alguma
deficiência afetiva no ambiente familiar durante o período
crucial do desenvolvimento da personalidade; razão por que,
quanto mais ajudarmos os pais, a compreenderem o
processo da evolução psico-sexual e a se compenetrarem de
sua importante tarefa no que diz respeito à criação de um
clima de amor para seus filhos, tanto mais estaremos
reduzindo as causas do homossexualismo.
Os rapazes de colégios internos caem muitas vezes neste
vício, devido à impossibilidade de terem relações com
moças. Eliminando os inconvenientes destes internatos, e
encorajando a amizade entre rapazes e moças, estaríamos
contribuindo, em grande escala, para reduzir o número
daqueles que, na incerteza da própria identificação sexual,
são levados a um caminho errado, que corre o risco de se
tornar situação estável. Também o medo do
homossexualismo, que obsessionou a disciplina de tantas
ordens religiosas, de escolas e seminários, deve ser
enfrentado com o conhecimento que temos de suas causas
psicológicas, baseando-nos na certeza de que a falta de
relações normais com outras pessoas deve ser considerada
mais como causa do que como remédio para esta
anormalidade.
Enfim, um clima sadio de afeto cristão pode ser considerável
auxílio para um homossexual que deseja voltar à
normalidade; oferece uma saída para seu impulso afetivo
capaz de reduzir seu desejo de contato com homossexuais e
de incentivar a procura de auxílio psicológico. De um lado,
as leis contra o comportamento homossexual entre adultos
parecem mais prejudiciais do que úteis, de outro lado, maior
tolerância social em relação a esta prática poderia introduzir
tais enfermos a julgarem menos necessária a procura de
ajuda e de um possível tratamento. Mas, a aceitação
completa de um homossexual como pessoa constitui,
certamente, uma obra de amor cristão maior do que
qualquer outra.
Podemos resumir o que dissemos, repetindo que todos os
verdadeiros riscos ínsitos na tentativa de amarmos uns aos
outros como pessoas humanas completas — pessoas
sexuadas — são muito inferiores aos perigos que surgem da
falta de amor. Fomos feitos para amar, para procurar
continuamente realizar-nos de forma cada vez mais
completa (embora sempre relativa) libertando-nos da
escravidão do nosso egoísmo através do amor e do serviço
de Deus e do próximo. Nascemos e crescemos com impulso
afetivo e sexualidade desordenada; ambos, afeto e
sexualidade, tendem a arrastar os outros para a órbita de
nosso egocentrismo, ao mesmo tempo que nos impelem a
sairmos de nós mesmos e a procurarmos os outros. Como
cristãos, acreditamos que Cristo oferece às criaturas
humanas, que respondem ao dom divino do amor (não
importa como o reconheçam) a capacidade fundamental de
quebrar as correntes do próprio egoísmo para amar como ele
ama. Devemos optar muitas vezes em nossa vida por um
amor "com fatos e em verdade", mas só podemos aprender a
amar, amando e não reprimindo nosso desejo de amar.


4. A FUNÇÃO DO CORPO NAS RELAÇÕES
HUMANAS

Se quisermos que a afetividade e o sexo influam na vida e no
amor de cada um de nós não devemos pensar que somos
"criaturas compostas de alma e corpo", como se fossem duas
entidades separadas; cumpre-nos admitir que somos pessoas
psicofísicas e que o corpo constitui nosso ser, embora não
seja todo o nosso ser. Devemos compreender a função de
nosso corpo precisamente como realidade que nos possibi-
lita estarmos presentes e servirmos o próximo, qual
instrumento recíproco para amar e realizar as obras do amor.
Certas pessoas consideram esta atitude positiva como
inteiramente natural. Mas, para muitos, a sua conquista exige
longo processo até superar a desconfiança inconsciente e a
aversão pelo corpo e entender conscientemente o exato
comportamento a seguir. Pois, vários influxos culturais e
religiosos levaram-nos a desconfiar do sexo e formaram
também nossa opinião em torno de nosso corpo,
encaminhando-nos para uma concepção que o definia como
realidade separada e inferior à alma. De acordo com esta
mentalidade, o sexo é algo simplesmente corporal, e a
sexualidade é sempre um desejo sexual desordenado. Os
órgãos sexuais constituem a parte "má" de um conjunto
arruinado, parte que deve ser o mais possível ignorada, salvo
no que diz respeito aos esforços necessários para regular a
sua atividade. Um exemplo disso pode-se ver num texto do
primeiro catecismo, publicado em inglês e cm francês, em
uso até há poucos anos. Segundo aquele texto, eis uma
pergunta que a criança devia fazer, examinando sua
consciência: "Toquei a parte má do meu corpo?"
Ao inverso, na literatura católica sobre educação sexual,
nota-se também outra tendncia diametralmente oposta, que
considera os órgãos sexuais como partes peculiarmente
"sagradas" do corpo humano. Eis um exemplo: "Aos
adolescentes pode-se dar uma explicação em termos como
estes: são estas as partes santas, ou íntimas, ou sagradas do
corpo, porque Deus fez o menino de tal forma que, quando
crescer, possa tornar-se pai, se o Senhor assim o quiser".
Mas, estas e outras tendências semelhantes, que consideram
o ato sexual no matrimônio como coisa "santa" não mudam
muito as coisas, como poderia parecer. Os antropólogos e os
peritos em religiões comparadas dizem que o sentido de
"impuro" e de "sagrado" são muito afins. Ambos constituem
áreas "intocáveis", que devem ser mantidas separadas da vida
humana normal. Este dado da antropologia tem sua
confirmação: a mentalidade que suspeita como "impura" to-
da atividade sexual, também considera o sêmen humano
como coisa sagrada, embora a racionalização biológica desta
atitude — isto é, que o sêmen contenha potencialmente
uma criatura humana completa — já tenha sido de há muito
abandonada.
Demonstrou-se, claramente, que tal atitude não é
autenticamente cristã. Como dissemos acima, a Bíblia não
considera o homem como um "composto de alma e corpo",
duas entidades separadas, mas, antes, como um conjunto de
corpo e espírito, pois usa exatamente o termo "coração" em
sentido psicofísico. Nem a palavra "espírito", na Bíblia,
significa uma "realidade sem corpo", mas algo vivo e vital. A
palavra "espírito", em hebraico, assim como no grego e no
latim, vem de uma raiz que significa "respiro". O respirar de
uma criatura é sinal de que está viva; por isso, o respiro
passou a significar a verdadeira vida, a vitalidade de um ser
vivo, o seu "espírito". Assim, Deus é "Espírito" porque é o
supremo Vivente, que concede ao homem uma participação
de sua própria vida, a qual supera o grau de vida atingível
pelas criaturas, pois o homem é capaz de sair de si mesmo e
de se unir a Deus e ao próximo pelo conhecimento e pelo
amor.

Quando S. Paulo estabelece oposição entre "carne" e
"espírito", não tenciona descrever-nos um contraste entre
corpo e alma, mas a diferença entre o homem integral, em
sua "condição humana" de fragilidade, pecado, egoísmo, falta
de vitalidade e de capacidade para amar, e o homem que
possui realmente a vida e é capaz de sair de si mesmo pelo
amor, em virtude do Espírito de Deus. O "estado de graça" é
precisamente este dom de vida e de capacidade para amar.
Destarte, levar uma vida "espiritual" significa cooperar na
obra do Espírito com todo o nosso ser psico-físico, aprender
a amar e produzir obras de amor como pessoas humanas
completas. Devemos passar pela morte antes de sermos, à
semelhança de Cristo ressuscitado, totalmente
"espiritualizados" pelo Espírito; mas, em nossa condição
atual, devemos esforçar-nos por "caminhar no amor", como
diz S. Paulo, como todo o nosso ser.
A visão bíblica do homem não resolve todas as questões que
poderíamos suscitar em torno da corporeidade humana e da
morte. Mas nos demonstra que elevemos deixar de
considerar o homem como alma que habita em, um corpo,
ou como anjo que opera no corpo através de glândulas
(assim descrevia Maritain a concepção de Descartes): nosso
corpo é nossa própria realidade, embora sejamos algo mais
que simples cornos. A concepção, que faz do homem uma
justaposição de duas entidades separadas, contraria este
outro conceito mais fundamental, que considera nosso
corpo como "eu", embora não seja "todo o nosso eu". Cada
um de nós tem uma "imagem corpórea", como dizem os
psicólogos, que não é toda a "imagem do eu", mas faz parte
dela e exerce profunda influência em nossa imagem pessoal.
A perda de um dente ou de um cabelo pode levar alguém a
sentir que todo o seu ser esteja se decompondo. Pessoas que
perdem um olho experimentam profunda sensação de
detrimento em toda a própria personalidade, porque pensam
que já não são mais um ser completo. Sujeitando-se a uma
histeroctomia, muitas mulheres experimentam uma fase de
depressão em grande parte atribuível ao fato de julgarem ter
perdido algo de sua personalidade feminina, sentimento este
inteiramente injustificado. Por outro lado, como todos
experimentamos uma mudança para melhor em nossa
imagem corporal, pode operar maravilhas em nossa imagem
pessoal. Barbear-se pode restituir ao homem o sentimento,
antes vacilante, de auto-afirmação; o mesmo se diga da
mulher após um penteado. Um traje novo, que nos parece
realmente ornar, pode dar-nos a sensação de sermos mais
nós mesmos.
A visão bíblica da natureza humana corresponde, portanto, à
realidade psicológica. Além disso, esta concepção permite-
nos acolher sem temor todas as descobertas da ciência sobre
a interação entre espírito e corpo. Muito útil seria conhecer
com mais clareza, por exemplo, se as características
emocionais, que sabemos acompanham as doenças em geral,
são causa ou resultado destas enfermidades. E será também
interessante conhecer mais a fundo como uma vontade forte
pode. às vezes, obter bons resultados não obstante os
defeitos corporais. Clarence Day, por exemplo, autor da obra
Life with Father, continua a trabalhar e a mostrar alegria
apesar dos longos anos de penosa artrite. Certas pessoas,
fisicamente feias, parecem belas, graças a sua irradiante
personalidade. Interessa também saber se certos
psicotrópicos conseguem realmente colocar os indivíduos,
em determinadas circunstâncias, a contato direto com a
realidade fundamental, e como isso pode acontecer. Quanto
mais conhecermos esta matéria, mais condições teremos de
considerar nosso corpo cm sua exata realidade, isto é, como
sendo nós mesmos, embora não constitua todos nosso eu;
não um obstáculo ao amor, mas expressão e instrumento dos
nossos afetos.

Estamos com o próximo e o servimos graças
a nosso corpo

O modo de conceber a realidade corporal, de viver nela e
por ela, representa o ponto mais importante da especulação
de vários filósofos atuais quando enfrentam o problema da
função do corpo como instrumento indispensável para
compartilharmos a vida do próximo, em comunhão e amor
recíproco. Só podemos perceber a realidade sensória, e a
"extra-sensória", através dos instrumentos e meios que o
corpo coloca à nossa disposição. Destarte, é somente através
do corpo que podemos comunicar-nos com outras pessoas,
embora a pessoa seja algo mais que simples corpo, e as coisas
a serem comunicadas constituam realidades que ultrapassam
a esfera dos sons e das imagens. A "união dos espíritos"
jamais poderá se realizar se as pessoas não se encontrarem
mediante o próprio corpo.
Mais ainda, a presença física real parece necessária para uma
plena comunicabilidade entre pessoas. O engenho humano
tem inventado muitos meios de comunicação indireta e à
longa distância, que, em última análise, sempre exigem a
mediação do corpo; mas nenhum destes meios possui a
plena capacidade de comunicação, que oferece o encontro
face a face. Todos temos experiência das vantagens que
oferece o encontro com uma pessoa, com a qual nos
comunicávamos somente por carta ou por telefone, para
incrementar nossas relações com ela, embora seja realmente
difícil definir tais vantagens. Todos sabemos também o que
seja desejar ardentemente a presença física de alguém:
escrever, telefonar, e o próprio telefone-televisor, que
teremos em próximo futuro, não podem absolutamente
substituir o encontro pessoal. A verdadeira "companhia"
exige que a pessoa esteja corporalmente presente junto ao
outro.
Entretanto, esta presença física entre duas pessoas só produz
intercomunicação pessoal à medida que ambas desejarem c
forem capazes de se comunicarem mutuamente através de
seus corpos, de exprimir mediante olhar, tato, gestos, tom de
voz, e toda a própria atitude, sentimentos como estes: "estou
com você e sou para você; sou feliz em estar aqui com você
e para você; estou procurando dar-lhe algo de mim mesmo e
receber tudo o que você quiser me dar". Como bem
sabemos, podemos estar fisicamente presentes junto a
pessoas com as quais não temos nenhum interesse de nos
comunicar, por exemplo, em um ônibus. Podemos estar
fisicamente presentes junto a um indivíduo de quem não
gostamos, e criar entre ambos verdadeira barreira, que
impede a comunicabilidade; o mesmo podem os outros fazer
em relação a nós. Conhecemos, também, quanta frustração
nos causam certos encontros em que, pelo cansaço, pelas
circunstâncias do encontro, ou por nossa própria
incapacidade, parece que não conseguimos nos comunicar
com alguém que amamos, embora o tenhamos
profundamente desejado. Que imensa satisfação nos
proporciona o simples fato de estarmos com alguém que
amamos, comunicando-nos com ele só com nossa presença
e nossa atitude.
Nosso corpo é, pois, elemento essencial em todas as relações
e em todos os tipos de amor. Cumpre-nos, portanto, assumir
a tarefa de torná-lo instrumento apto e hábil não só para
realizar obras de amor, mas também para exprimir e
fomentar as relações de fato.
Esta exigência esclarece, outrossim, a questão da modéstia,
que levou certos cristãos a esforços às vezes tão ridículos,
como o de obrigar os índios de certas ilhas a se vestirem
como os europeus, a instituir as "Cruzadas Marianas", etc.
Conforme o pensamento dos Padres, a "nudez" culpável das
criaturas humanas, descrita no Gênesis como conseqüência
do pecado, é a carência daquela "veste", que é a graça de
Deus; é nossa falta de participação no esplendor da caridade
divina. Com efeito, S. Cirilo de Jerusalém, em um de seus
sermões aos neo-batizados, congratula-se com eles por
terem reconquistado aquela "veste", e com ela, e per ela, a
virtude de não se envergonharem da própria nudez, quando
emergiam da fonte batismal peíante os cristãos que tomavam
parte na cerimônia.
A modéstia cristã não pode, pois, consistir em escondermos
nossos corpos ou qualquer de suas parles como algo de que
deveríamos nos envergonhar. Antes, a modéstia é o inverso
do exibicionismo, que procura atrair a atenção sobre si para
sujeitar os outros aos próprios interesses. Ela é um dos
aspectos da atitude de amor para com os outros, que
equivale a este desejo: "Eu gostaria de entrar em relação com
você, se você o quisesse". Aliás, ela nos guia na escolha das
roupas, dos cosméticos, dos gestos e atitudes, que poderão
melhor capacitar nossos corpos a manifestar "discretamente
nossa personalidade às pessoas que vamos encontrar em
diferentes posições sociais e culturais, isto é, levando em
conta as expectativas, os preconceitos, as condições sócio-
culturais que lhe são próprias. Poder-se-ia, com efeito,
elaborar toda uma teologia das vestes, do penteado, dos
cosméticos, para demonstrar como tudo isso é bom, quando
orientado a facilitar nossa melhor apresentação perante os
outros, conforme as valias circunstâncias; e é mau, quando
se destina a projetar falsa aparência de nós mesmos para
enganar o próximo.
Todas as gamas de cortesia têm aqui sua aplicação, se
disserem respeito ao uso de nosso corpo para exprimir e
realizar o amor. Não é insólito encontrarmos pessoas cujas
maneiras rudes e cujo comportamento grosseiro fazem
fracassar seu desejo de amor. Percebemos a "boa intenção"
de que são dotadas, mas preferiríamos que não nos
procurassem. Conhecemos, também, pessoas egoístas, que
se apresentam com tanta atração e cortesia, que somos quase
levados a perdoar sua insinceridade; estas, realmente, não
desejam amar, mas não deixam de oferecer uma agradável
companhia. Um cristão deveria ser sempre uma "agradável
companhia", muito mais do que poderia sê-lo o mais
irresistível conquistador. Cumpre-mos, pois, cuidar que
posso comportamento e nossas maneiras exprimam respeito
pela dignidade da pessoa alheia, desejo de servir-lhe, e
abertura em aceitar a amizade que porventura se nos
oferece.
Posto que só podemos estar com o próximo e servir-lhe
mediante nossos corpos, e que nosso corpo é o principal
instrumento para exprimirmos o amor, surge também a
necessidade de cultivarmos todos os meios de comunicação
formal ou informal, inclusive a arte de conversar.
Deveríamos desejar comunicar-nos com os outros do
melhor modo possível, e procurar os meios mais oportunos
para conseguir, realmente, esse objetivo. É mister, pois,
atendermos às descobertas da psicologia e da psico-
sociologia, no que diz respeito às coisas que impedem ou
facilitam a intercomunicação, não para obter maior ha-
bilidade em manipular os outros, mas para conseguir
melhores condições de contato interpessoal.
Enfim, devemos cultivar a arte de exprimir um caloroso
afeto. A maioria das pessoas apresenta-se excessivamente
inibida a esse respeito. Não nos sentimos livres de trocar um
caloroso aperto de mão, de reanimar com um abraço urna
pessoa angustiada, de abraçar um amigo que há muito não
encontrávamos, significa sufocar, aos poucos, a própria
capacidade afetiva. Se quisermos restituir-lhe sua verdadeira
função na vida cristã, devemos encontrar modo e meios de
exprimí-la mediante nossos corpos.

Intimidades físicas e relação sexual

O principal motivo que nos leva a temer as demonstrações
de afeto, que acabamos de mencionar é também o perigo de
que todo sentimento afetivo profundo não só procure
exprimir-se fisicamente, mas provoque ressonâncias sexuais,
que serão tanto mais fortes quanto mais envolverem a
pessoa. Mas ninguém vê algo malsão ou imoral quando dois
homens, ligados por profundo afeto, dão violentas batidas
nas costas um do outro em sinal de saudação, ou ouando os
atletas se penduram um no outro após uma dura vitória. São,
contudo, manifestações de afeto violentas e, em certo
sentido, sexuais. Além disso, abraços e carícias entre pais e
filhos não são assexuais; há diversos cambiantes nas
expressões físicas de amor, se a relação é entre mãe e filha,
mãe e filho, pai e filha, pai e filho.
Irreal seria, portanto, pretender traçar uma linha precisa e
imutável entre as expressões de afeto dotadas de ressonância
sexual física, e as que não as têm. A distinção tradicional
entre lícito e ilícito nas relações extramatrimoniais — o
beijo "casto", como se fosse entre "irmão e irmã", oposto ao
beijo passional — não leva em consideração as sutilezas da
sexualidade e do fato humano. Entretanto, esta distinção
constituía pelo menos uma tentativa, embora inepta, de
exprimir uma real diferença.
Quiçá tal diferença possa ser melhor expressa do seguinte
modo. Toda relação verdadeira de amor implica prazer
recíproco, desejo de se conhecer um ao outro mais
profundamente, e de realizar uma união cada vez maior de
espírito e coração. Em todas as demonstrações físicas de
afeto, procuramos exprimir este prazer e este desejo. Mas,
na intimidade sexual física e na conjunção carnal, um
homem e uma mulher também se deleitam reciprocamente,
procuram conhecer-se melhor e se unir precisamente
mediante a sensação recíproca dos seus corpos, e, no ato
sexual, mediante a penetração e permeação do corpo femi-
nino pelo corpo do homem.
Naturalmente, qualquer demonstração de afeto pode pecar
por insinceridade e constituir, portanto, falsos sinais e
violação mais ou menos séria da dignidade humana. Até
mesmo uma criança, por exemplo, tem razão de estranhar
quando agarrada e abraçada por alguém que ela sente não
possuir nenhum afeto por ela como pessoa, cujo gesto é
movido apenas por um sentimentalismo genérico em
relação às crianças. Muito mais ainda, constituirão afronta à
pessoa humana, as intimidades e o ato sexual quando se
revestem de caráter simplesmente físico, pois não só
representam um falso sinal do amor mas também uma pro-
cura de prazer em um corpo, não em uma pessoa como tal;
uma tentativa de conhecer e possuir outro corpo, não de se
unir a outra pessoa ern unidade de corpo e espírito.
Todas as verdadeiras demonstrações de afeto constituem,
portanto, sinais e expressões de amor. Mas, através das
intimidades físicas e do ato sexual "centralizados na pessoa"
e animados pelo amor, um homem e uma mulher procuram
não somente exprimir suas relações de amor, mas também
promovê-las pelo conhecimento, e pelo prazer recíproco
que deste conhecimento físico e amoroso diretamente
deriva. Destarte, a conjunção carnal, realizada por amor e
com a devida ordem, constitui, em sentido profundamente
real, o ato mais plenamente humano que um homem e uma
mulher podem executar, que os engaja plenamente em dar e
receber como pessoas constituídas de corpo e espírito, em
conhecer e deixar-se conhecer, em comprazer-se um no
outro. Tal união sexual coloca o homem e a mulher na mais
íntima reciprocidade física e psicofísica, unindo-os e
fazendo-os viver um pelo outro no mais singular dos modos.
Eis porque as intimidades físicas e a cópula carnal exigem e
implicam o contexto do matrimônio. Nosso corpo é tão
intimamente o nosso ser, que um conhecimento físico tão
íntimo, para ser ato plenamente humano, deveria realizar-se
somente num contexto cm que um homem e uma mulher
se engajam reciprocamente em um conhecimento mútuo
como pessoas, de modo singularmente completo e
exclusivo, que os leva a se doar um ao outro numa união
vital e perpétua. "Viver juntos", em sentido sexual, implica e
exige a "união de vida" no sentido mais vasto, que consiste
em compartilhar a vida de cada dia, com a intenção de assim
fazer durante toda a existência.
Isto não significa, naturalmente, que o conhecimento físico
recíproco obrigue um homem e uma mulher a tal
compromisso. É exatamente o contrário: o engajamento
prévio da mente e do coração faz com que o conhecimento
físico seja um ato verdadeiramente humano, dando-lhe
valor e autenticidade; as intimidades e a conjunção carnal,
por sua vez, acrescentam a este engajamento uma nova e
singular dimensão.
Assim, há uma diferença específica, não apenas gradual,
entre as ações que se destinam simplesmente a exprimir o
amor e aquelas que procuram também o conhecimento
físico íntimo da outra pessoa. Tal distinção pode ser
exemplificada pela diferença que existe entre um "beijo à
francesa" e o mais caloroso beijo por afeto. Entretanto, a
interrogação que um homem e uma mulher não unidos por
vínculos matrimoniais devem colocar não é esta: "até onde
podemos chegar nos atos de amor?" Mas: "desejamos real-
mente chegar ao amor?" Pois o amor, como sabemos, não só
significa o desejo de estar com alguém, mas também de
servir-lhe, de procurar seu bem no contexto de uma
situação concreta. Procurar intimidades e união sexual sem
profundo desejo de união pessoal, constitui, obviamente,
uma negação do amor. Mas, procurar o primeiro tipo de
relações fora do engajamento matrimonial, que é a única e
mais completa comunhão de vida, significa minorar os
valores realmente humanos do sexo em relação a si mesmo e
ao próximo.
Talvez um dos problemas mais agudos para os jovens que
procuram encontrar o próprio caminho em todas as áreas de
relações humanas é o seguinte: como podem duas pessoas
chegar a se conhecer o bastante para decidirem se realmente
desejam contrair vínculo matrimonial, se não começaram a
se conhecer pelo menos através das intimidades físicas?
Uma das respostas é que as pessoas podem se conhecer
mutuamente através de outras formas de relacionamento
humano, que não incluem relações sexuais: conversar,
trabalhar em conjunto, encontrar-se em várias circuns-
tâncias, intercâmbios, etc. Com efeito, estas aproximações
preliminares são necessárias para que a intimidade física
venha a constituir o conhecimento de uma outra pessoa e
não simplesmente de um corpo.
Além disso, podemos aproximar-nos de alguém mediante
demonstrações físicas de afeto, que não incluem intimidade
sexual. É óbvio que, no matrimônio, marido e mulher
cheguem a se conhecer psicofisicamente através de muitas
formas de contato físico e de afeto fora das relações sexuais,
e estas exigem o contexto daquelas para serem realmente
expressões plenamente humanas de afeto.
Dispõem, portanto, as criaturas humanas, de muitos meios
para chegarem a um conhecimento recíproco, que
dispensam aquela forma singular de aproximação constituída
pelas intimidades físicas c pela conjunção carnal. Se
compreendesse melhor a necessidade e o valor destes outros
meios, não sentiria o homem tanta urgência em recorrer à
intimidade sexual física. Nas conjunturas atuais, a obsessão
pelo "sexo" tende a esconder-nos estas outras possibilidades
de contato afetivo. Se cultivássemos com mais consciência,
chegaríamos a apreciar melhor as especiais características da
intimidade física sexual, e mais fácil seria abster-nos toda vez
que não se tratasse de um ato de amor plenamente humano.
Idealmente falando, a relação entre um homem c uma
mulher que pretendem se casar, deveria amadurecer "pari
passu" com o temperamento e a situação de ambos, passando
por diversas fases de conhecimento recíproco em várias
circunstâncias, aumentando o afeto e suas várias expressões.
Se chegaram a um mútuo compromisso através de um
noivado formal ou informal, o progresso das intimidades
físicas deverá caminhar de tal forma que o casal chegue ao
matrimônio quando suas relações já estejam prontas para a
união sexual; protrair esta fase de compromisso sem chegar à
relação sexual, pode provocar tensões e desgaste, que não
raro irão prejudicar a própria conjunção física.
Naturalmente, poucos namoros e noivados conseguirão
proceder conforme esta linha ideal. Por isso, trata-se apenas
de uma orientação para quem se esforça em evitar erros e
procura adaptar-se às circunstâncias.
Muitos, porém, perguntam: "Por que esperar até o
casamento, se já estamos verdadeiramente engajados um
com o outro? Que poderá acrescentar uma cerimônia
matrimonial ao nosso compromisso?" Um dos aspectos da
resposta consiste na própria natureza da cópula carnal.
Muitas pessoas se enganam, pensando tratar-se de uma
experiência maravilhosa em qualquer circunstância; ficam
desorientadas e desiludidas auando percebem que isso não é
absolutamente verdadeiro, tanto no matrimônio quanto fora
da vida maravilhosa: fatores físicos, psicofísicos e
circunstanciais; alguns destes não caem sob o controle direto
das pessoas interessadas. Transformar estas experiências em
um ato de comunicação interpessoal, de mútuo
conhecimento do coração mediante o corpo, realizá-las com
ternura e paixão, estar preparado a dar e a receber o prazer,
constituem, sem dúvida, aspectos essenciais para o pleno
sucesso. Só quem despende esforços neste sentido,
conseguirá obter as várias tonalidades que impedem a
conjunção carnal de se esvaziar, de se tornar rotineira; entre
estes matizes, enumerern-se a consolação, a alegria, o risco,
a serenidade, a intensa ternura, o descanso.
Sendo a conjunção carnal, potencialmente, um ato humano
tão completo que envolve a participação psicofísica total cie
duas pessoas no esforço de se conhecer, de dar e receber, de
mutuamente se unir, ela constitui uma verdadeira arte. Se
todas as formas de comunicação exigem inteligência, esforço
e prática para conseguirem o próprio objetivo, quanto mais o
exigirá esta forma de inter-relacionamento, que é
potencialmente a mais completa de todas! As ações que
envolvem a mente e o corpo requerem habilidade e, por
conseguinte, prática inteligente a fim de se obter um
resultado bom e harmonioso. Que dizer, então, deste
engajamento completo de duas criaturas humanas, prontas a
colocar seus corpos plenamente a serviço do amor,
utilizando-se deles para exprimir e incrementar o afeto e o
conhecimento recíproco?
Aí está uma das razões válidas para se admitir que a
conjunção carnal antes do matrimônio, ou extra-
matrimonial, não é humanamente desejável, mesmo que
haja sincero engajamento entre as duas pessoas. O homem e
a mulher devem viver juntos, isto é, compartilhar a vida um
do outro; e esta convivência deve ser aceita pela sociedade
em que vivem, se quiserem ter condições reais para
desenvolver os valores incluídos na conjunção carnal e
torná-la instrumento entre os mais válidos para favorecer o
mútuo engajamento. Para ser uma elevada experiência
humana e um ato de amor sublime, a cópula carnal exige um
estado de espírito livre de qualquer preocupação, a escolha
do tempo oportuno, a oportunidade de falhar e de tentar
outra vez, no contexto de uma vida amorosamente
condividida. Apesar dos métodos anticoncepcionais
modernos e da acolhida cada vez maior dispensada, em
alguns ambientes, às relações extra-matrimoniais,
semelhantes liberdades não podem ordinariamente existir
fora do matrimônio. Mesmo o assim chamado "matrimônio
experimental" não assegura aquelas liberdades de que
falamos, justamente porque "experimental".
Esperamos que estes conceitos contribuam para esclarecer
um pouco a razão pela qual o afeto não justifica certas
"licenças" — termo em voga nos estudos sobre o
comportamento sexual pré-matrimonial — mesmo quando
excluem o ato sexual, a menos que tal afeto, por parte de
ambos, tenha atingido uma sincera vontade de amor, leve a
um engajamento mútuo matrimonial, e o matrimônio futuro
constitua uma possibilidade existencial não excessivamente
remota. "Licença" é termo sem dúvida infeliz, que se usa
quando a mulher permite ao homem "tomar liberdades" em
relação a seu corpo e à sua pessoa. Se um homem e uma
mulher conceberem o comportamento sexual como
"licença", dificilmente o conceberão em termos de amor. O
comportamento expresso pelo termo "licença" identifica-se,
especificamente, com a relação sexual, e exige, pelo menos
em intenção, o mesmo contexto, para que seja um
comportamento plenamente humano.
Nutrimos, outrossim, a esperança de que nossas palavras
contribuam para esclarecer por que a cópula carnal exige
comunhão de vida e de amor, se quisermos se torne, como
deve, uma experiência humana. Os argumentos geralmente
aduzidos contra a liceidade do ato sexual antes do
matrimônio costumavam firmar-se na possibilidade de uma
gravidez e de contrair moléstias venéreas. Embora se trate
de possibilidades reais, cada um tende a responder: "isso não
acontecerá comigo". Alguns especialistas em problemas
atuais sobre comportamento pré-matrimonial afirmam, com
efeito, que muitas moças não usam a "pílula" nem se
premunem com outras espécies de anticoncepcionais,
porque sentem que só poderá justificar o ato sexual o fato de
serem "arrebatadas" pela paixão, e é difícil que alguém se
convença de ter sido "arrebatada" se se prepara, antes,
contra possíveis conseqüências da união carnal.
Na realidade, tal "arrebatamento" tem pouca possibilidade de
constituir aquela experiência que se procura. De qualquer
forma, uma experiência sexual feliz é quase sempre algo que
há de ser preparado com muito trabalho, e que não pode se
realizar com sucesso senão em um contexto matrimonial,
pois constitui o ponto culminante da vida de matrimônio.
Muitas concepções diferentes do sexo negam decididamente
um ou ambos os requisitos. Em certas camadas da sociedade,
a relação sexual é tida simplesmente como necessidade
biológica, pelo menos para o homem, e não se faz a mínima
questão de procurar uma experiência ou um sentido humano
mais completo para a união carnal. Mas tão logo a educação
nos introduza nas experiências passadas e atuais do outro e
nos torne sensíveis a estas experiências, tais interrogações
começam a ser colocadas. O tipo hedonista das revistas
pornográficas responde a estas interrogações dizendo que,
por quanto lhe diz respeito, a relação sexual se propõe
alcançar uma experiência do mesmo nível da que se obtém
em uma refeição bem preparada, e inclui talvez as
dimensões de um intercâmbio prazeiroso e estimulante
entre pessoas, como acontece, justamente, em um aprazível
jantar à deux. Mas semelhante experiência condividida, diz
o hedonista, não implica nenhuma doação de si e nenhuma
responsabilidade em relação à outra pessoa.
Cumpre afirmar que os partidários desta concepção, embora
aparentem sutileza de raciocínio, pecam por imaturidade e
insegurança. São imaturos porque nem mesmo começaram a
levar a sério o outro e as relações pessoais; permanecem
fechados no próprio "ego"; inseguros, porque não ousam sair
de si próprios pelo amor, e assumir o risco da
responsabilidade.
Outros — e em número cada vez maior, como salientamos
no último capítulo — acham que as intimidades e o ato
sexual deveriam ter como "centro" a pessoa e incluir relação
e engajamento real com o companheiro como pessoa. Mas,
opinam eles, os homens mudam, alguns mais, outros menos,
e outros, ainda, de maneira muito radical.- Por que as
intimidades e o ato sexual deveriam exigir algo mais que o
engajamento completo que duas pessoas realizam hic et
nunc? Por que deveria, ou melhor, como poderia ser um
engajamento por toda a vida?
Alguns observadores, constatando que este ponto de vista
tende a prevalecer cada vez mais, especialmente entre os
que receberam formação universitária, sugerem que a
sociedade deve autorizar duas espécies de casamento: um
tipo se limitaria a sancionar, oficialmente, os valores da
comunhão de vida aceita pela sociedade, que não pretende
ser permanente nem procriar, e outro tipo, que só seria
abraçado por pessoas de certa maturidade, que visam
contrair víncuio estável e desejam ter filhos. Em um dos
capítulos seguintes voltaremos ao complexo problema do
grau de maturidade e da natureza do consentimento exigido
para contrair compromisso de matrimônio por toda a vida, e
perguntaremos se o casal é obrigado a manter este
engajamento em todas as circunstâncias. Quanto a este
capítulo, o problema é saber se a doação recíproca, toda
singular, realizada no ato sexual, não exige, para ser
plenamente humana, um engajamento com o outro
justamente como pessoa que vive e cresce no tempo, um
engajamento de confiança em suas capacidades, no seu
futuro "por toda a vida". Se, como sabemos, a história é uma
dimensão essencial da personalidade humana, como pode
alguém engajar-se totalmente com um outro sem se
comprometer com a sua história futura, com seus dotes
atuais e com as esperanças que nutrimos nele para o futuro?
Um mútuo compromisso, firmado e favorecido pelas
relações sexuais, não exige engajamento em um futuro
condividido? Esperamos que ulteriores estudos filosóficos e
psicológicos em torno da personalidade humana e da
sexualidade em seu desenvolvimento possam confirmar a
tradição cristã, que responde afirmativamente ao problema
em debate.
Como é natural, o princípio cristão de que a cópula c o ato
próprio do matrimônio, e só pode realizar suas
potencialidades humanas em um engajamento de vida
intencionalmente perpétua, não significa que o matrimônio
ofereça algum poder mágico para realizar o ato sexual com
amor e com sentido humano. Muitos casais nem mesmo
percebem por que procurar fazê-lo, pois as regras morais em
que foram educados nunca fizeram menção desta exigência.
Mas, tanto no matrimônio como fora dele, será ilícita
qualquer manifestação sexual quando alguém procura
usufruir do corpo alheio como fonte impessoal de prazer,
em vez de buscar a doação recíproca com alegria e amor. A
idéia de relação sexual como "dever" — a expressão é de S.
Paulo — a ser prestado reciprocamente pelos cônjuges,
parece reduzi-la à satisfação de uma necessidade impessoal.
Talvez, porém, o termo "dever" constituiria expressão
menos infeliz se o considerássemos no contexto daquele
amor que, segundo o mesmo S. Paulo, "devemos" uns para
com os outros. Neste sentido, marido e mulher realmente
têm o "dever" recíproco não só de permitirem um ao outro a
realização do ato matrimonial, como também de se
esforçarem para tornado um ato de amor, sinal e
consumação de todas as outras formas de mútua doação em
sua vida quotidiana.
Este é o motivo pelo qual os ensinamentos da filosofia e da
psicologia sobre a relação sexual são extremamente
necessários como subsídio para realizar a cópula com
habilidade e prazer como um ato psicofísico. Mas tudo isso
explica, também, porque tais informações não constituem
tudo o que se exige como preparação ao matrimônio ou
como matéria de cursos para casais — mesmo quando a elas
se acrescentem algumas exortações espirituais sobre o
sacramento do matrimônio. Os cônjuges devem ser
conscientizados sobre o sentido do afeto, do verdadeiro
amor, da cópula conjugal em seu amplo significado; só assim
terão condições de atribuir à relação sexual o lugar que lhe
compete em sua vida de matrimônio.

Nossa atitude em relação ao corpo

Muitos, porém, casados ou solteiros, necessitamos examinar
toda a nossa atitude em relação aos nossos corpos e procurar
aceitá-los e usá-los como corpos humanos, físicos, mas
sempre pessoais. Isto não acontece facilmente em muitos
ambientes americanos. A tendência da publicidade e da
cultura de nossa classe média visa, em geral, fazer-nos
conhecer apenas os aspectos "simpáticos" de nossos corpos.
Os doentes são levados para o hospital, fora das vistas dos
que têm saúde. Nascemos e morremos em hospitais; por
isso, pode acontecer vivermos mais de cinqüenta anos sem
nunca termos visto alguém nascer ou morrer. Usamos
desodorantes e perfumes para nossos corpos como se fossem
bonecas. Empregamos todos os tipos de eufemismos para
indicar os lugares destinados a "libertar a natureza", como
dizia uma velha tradução da Bíblia. Não possuímos termos
neutros exatos para as funções excretorias e sexuais; temos
de escolher entre a expresão licenciosa, vulgar, e o termo
científico. Somos amiúde definidos como "materialistas",
mas com muita dificuldade começamos a apreciar o prazer
das coisas materiais: alimentos, bebidas, perfumes, cores,
sons, estruturas. E é bem noto que os americanos, homens e
mulheres, são internacionalmente respeitados como
expertos na arte de copular.
Por outro lado, gastamos muito tempo e energia com o
nosso corpo, não só para mantê-lo sadio, mas também para
adquirir o conforto e as coisas que julgamos atraí-lo. O sexo,
de que nossa cultura está saturada, é tido por nós,
primariamente, como atividade física sexual.
Tudo isso denota atitude ambígua cm relação ao corpo: uma
espécie de versão pós-vitoriana (e pós-fronteiriça) da noção
maniquéia, segundo a qual, não importa saber que uso
fazemos do corpo, pois tudo que é matéria é mal; importa
apenas que as almas sejam puras. Temos, em geral, exagerada
vergonha de certas partes de nossos corpos; prodigamo-lhes
muita atenção, mas não nos preocupamos em usá-las com
habilidade e prazer, visando uma vida mais plena para nós e
para os outros. Tal atitude é fruto da nossa concepção de
sexualidade, pois a consideramos como algo estranho a nós
mesmos, como realidade de que devemos nos envergonhar,
ou como coisa de que devemos gozar; falta-nos a visão do
sexo como algo de que nos cumpre usar em vista de
objetivos plenamente humanos. Estas atitudes encontram
apoio em certas noções segundo as quais seria errado (ou
"pouco simpático") para os solteiros pensar nos aspectos da
relação sexual.
Daí resulta que muitos consideram a união sexual como ato
puramente físico; necessário seria que chegassem a
compreendê-la em termos mais vastos, como realidade
psicofísica na qual o aspecto físico há de ser colocado a
serviço do ato humano de comunicação interpessoal. Por
outro lado, muitas mulheres se debatem com o problema de
aceitar plenamente o ato sexual em seu aspecto físico como
algo relacionado com o amor. Muitos manuais sobre a vida
matrimonial passam diretamente de uma descrição exaltada
das belezas do amor conjugal à descrição científica e aos
diagramas dos órgãos sexuais femininos e masculinos, do ato
sexual, da concepção, da gravidez. O choque que nos causa
esta leitura, pela passagem de um estilo para outro, é
comparável à sensação de desânimo que experimentam
muitas mulheres ao descobrirem a nua realidade do coito em
seu aspecto físico, por mais informadas e preparadas que
sejam, e muito embora tenham sido muito "permissivas"
antes do matrimônio, chegando até os limites da relação
sexual completa.
Os manuais sobre o matrimônio dão geralmente bons
conselhos sobre como deve o marido ajudar a esposa a
alcançar todo o prazer possível no ato sexual; alguns são
realmente úteis, pois ensinam aos cônjuges a maneira de
obterem relações matrimoniais bem realizadas. Mas estes
conselhos seriam mais eficazes — pelo menos na opinião
dos autores deste livro — se tomassem como fundamento
uma correta atitude em relação ao corpo humano, conforme
delineamos neste capítulo, encarando o corpo do homem e
da mulher, em sua plenitude física, como elemento essencial
de nós mesmos, como instrumento indispensável para
estarmos com o outro, servindo-o e comunicando-nos com
ele. Tal atitude nos dará a reconhecer o erro que constitui o
mau uso do próprio corpo, e do corpo de outrem, quando o
tratamos sem amor, e compreenderemos como é importante
servir-nos do corpo, retamente, qual instrumento de amor.
Nos versos de Burn: "Gin (if) a body meet a body / Comin
thro' the rye" (Se um corpo encontra outro em meio ao
centeio) a palavra "body" (corpo) significa toda a pessoa,
como em "somebody" ou "any-body", alguém, ninguém. (Os
exegetas dizem que o mesmo se deve dizer das palavras de
Jesus na última ceia: "Este é o meu corpo"). Desta citação
pretendemos deduzir que, quando um corpo encontra outro
corpo, e o encontro de duas pessoas; por isso, devemos
assumir, com seriedade, a função que desempenham nossos
corpos em todos os nossos encontros.
Na primeira parte deste livro, procuramos mostrar que não
podemos cumprir nossa vocação cristã ao amor sem que
aprendamos a amar como pessoas humanas, isto é, como
pessoas dotadas de sexo e de corpo. Nos próximos capítulos
vamos debater o problema referente ao modo de
crescermos, como pessoa, na arte de amar, pesquisando a
maneira de cultivar relações de afeto, e de levar a termo a
obra do amor, amadurecendo-nos como pessoas que amam.

5. "AMA E FAZE O QUE QUERES"

Orientar todo o dinamismo íntimo em nossa natureza e
personalidade para o amor de Deus e do próximo, é tarefa
primordial da vida humana; por isso, o amor há de ser
norma definitiva de toda a nossa conduta. A vida de afeto e a
vida de amor não precisam mais construir dois
compartimentos estanques da existência. Nosso agir pode ser
vivificado e humanizado pelo calor de profundas atenções
para com o próximo. A vida afetiva e as paixões podem ser
libertadas dos entraves do sentimento e da emoção porque
procuramos o bem verdadeiro daqueles que amamos, em
situações concretas. E a vida moral não terá mais como
principal preocupação procurar saber, ansiosamente, se
praticamos o mal, quantas vezes e em que medida.
Consistirá em um esforço que visa ao futuro, e só examinará
o passado em vista de melhor agir para o futuro: esforço em
corresponder ao amor de Deus como pessoas que se
aprofundam no ágape fraterno e cumprem o maior número
possível de ações por amor. Assim, imprimiremos gradual
unidade cm todo o dinamismo de nossa vida.
Como já dissemos, os teólogos estão empenhados na
reorganização da moral, tendo por fundamento a lei positiva
do amor, em vez de se firmarem nos preceitos negativos, ou
na fuga do pecado. Mas não devemos esperar que cheguem
ao fim destas pesquisas para fazermos do amor a norma
definitiva de nossa conduta. O que de nós se exige é o esfor-
ço para desenvolvermos uma consciência cristã adulta, e isso
deve ser possível a todos os cristãos normalmente
preparados. Devemos superar o estádio do superego infantil,
no qual somos vítimas do temor de transgredir tabus e
preceitos materiais, em busca de uma autocrítica cada vez
mais madura em torno das atitudes e das motivações que
determinam o nosso agir; cumpre interrogar-nos sobre
nosso proceder e seus motivos, em vez de aceitar
passivamente certos preceitos meticulosos, em
determinados setores do comportamento, como único
critério do lícito e do ilícito; devemos produzir normas
cristãs em todos os campos, normas que encarnem os
valores humanos a serem ativamente fomentados por nossas
ações. É mister superemos a imatura atitude do "pergunte a
papai", que procura sempre alguma autoridade para nos
indicar o reto caminho, em determinadas circunstâncias, e
aprendamos a tomar decisões que tenham em justo apreço a
sabedoria e a autoridade cristã, mas que também constituam
decisões nossas, pessoais, de que nos sentimos responsáveis.
Como já dissemos, para nos tornarmos responsáveis,
devemos, ser, antes, responsivos. Infelizmente, embora
tenhamos ouvido dizer amiúde que devemos "amar a Deus
sobre todas as coisas, por ele mesmo". Deus nos tem sido
apresentado de tal forma que este preceito se nos torna
psicologicamente muito difícil de cumprir. A insistência
sobre o pecado e o medo do inferno como punição por
nossas faltas, apresenta-nos a figura de Deus como a de
certos pais insensatos, que só sabem dizer ao filho: "não!",
"não faça isso!", dando-lhe a entender que perderá seu amor
se desobedecer. Uma criança educada neste sistema terá
dificuldade em fazer algo mais que a simples obediência por
temor das ordens do pai, e jamais conseguirá elevar-se a um
desejo mais maduro de agradá-lo por amor, a uma
participação ativa pessoal e espontânea nos desejos do
progenitor.
Mister se faz, então, procuremos, com o auxílio de Deus
realizar uma mudança em nossa perspectiva moral,
convencendo-nos de que nunca podemos perder o amor de
Deus — embora possamos nos afastar dele, ele jamais nos
abandona — e tomando consciência de que agir bem
significa responder ao amor de Deus, participar em suas
obras, que redimem a humanidade. Devemos, pois, começar
a perceber que necessitamos pedir a Deus perdão por nossa
falta de amor, e por aquilo que nos induziu a agir assim.
Necessitamos de seu auxílio para superarmos nosso egoísmo,
tornando-nos mais abertos ao amor, c evitando qualquer
ação que não seja por ele ditada.
Começaremos, assim, a perceber a necessidade de uma
autocrítica mais profunda do que o simples exame de nossos
"pensamentos, palavras e ações". É mister desenvolvermos
não só a consciência daquilo que fazemos, mas também o
motivo pelo qual agimos; indagaremos as causas de nossa
falta de amor, e a maneira de superá-las, incrementando os
estímulos que conduzem ao bem-querer. Reconheceremos,
então, a necessidade de cultivar uma atitude de amolem
todas as nossas relações com os outros e de libertar-nos dos
impulsos que nos impedem assumir a amizade no
relacionamento com os outros.
Descobriremos, em outras palavras, que é necessário encetar
um trabalho constante de "conversão", isto é, de renúncia a
viver e agir conforme a "carne", conforme a natureza
humana em seu egoísmo, procurando viver e agir no
espírito, isto é, de acordo com o espírito de Cristo, que é
amor vivificante. Muitos textos da Escritura e da Liturgia em
torno do arrependimento e da conversão, que antes, talvez,
não tivessem muito sentido para nós, porque só procurá-
vamos, em geral, "evitar o pecado mortal", começam a nos
apresentar realidades extremamente relevantes. Mas
devemos também inteirar-nos de que Deus não pretende
tornar-nos perfeitos no amor em um instante; é um
processo de lento amadurecimento, um "morrer'' sem cessar
ao próprio egoísmo para viver mais livre e humanamente.

Para a formação de uma consciência cristã

Tudo que fazemos, é sempre para realizar ou promover algo
que acreditamos constitua um valor, tenhamos, ou não,
consciência disso no instante em que agimos. Quando
escovamos os dentes depois das refeições, por exemplo,
assim o fazemos porque nossa educação infantil, o dentista,
o reclame da pasta dental, convenceram-nos de que
conseguiremos o valor que representam os dentes sadios
escovando-os após as refeições. Quando deixamos de fazê-
lo, é porque temos em vista outra coisa que parece
representar, naquele instante, um valor maior — por
exemplo, chegar ao trabalho na hora certa, responder ao
telefone, etc.
O processo que usamos para elaborar normas de conduta
quotidiana — isto é, selecionar valores e estabelecer
hierarquia entre eles — parece muito complexo. No estádio
de desenvolvimento do superego infantil, assimilamos
consciente ou inconscientemente, as normas que nossos
pais nos apresentam. Em seguida, quando nos abrimos para
um mundo de relações mais amplas, e encontramos outras
crianças, começamos a confrontar aquelas normas com as
nossas, e a formular certos juízos críticos sobre a validade
das mesmas. Este processo torna-se cada vez mais complexo
à medida em que nos deparamos com as normas de
comportamento dos outros, na escola, na vida social em
nossas leituras, no trabalho, etc. Durante toda a vida,
descobrimos valores (reais ou fictícios, mas sempre aceitos
como valores) e continuamos estabelecendo uma espécie de
hierarquia entre eles, sobre a qual fundamos as pequenas e as
grandes decisões de nossa vida.
Por isso, a formação de uma consciência cristã adulta inclui a
crítica dos valores que motivam nossa vida, e a
reestruturação dos mesmos à luz da norma suprema do
amor. Teoricamente, nossa educação familiar e religiosa
deveria ajudar-nos nesta tareia durante a infância e a
adolescência. Mas a dificuldade provém de que o ensino
religioso no passado insistiu excessivamente em preceitos
negativos, ou relacionados somente com certas esferas do
comportamento, despreocupando-se com a constante
necessidade de formar nossas consciências — isto é, de
sermos cada vez mais capazes de discernir os atos que mais
se inspiram no amor. Conseqüência disso é que os católicos
dotados de considerável formação religiosa podem possuir
informações bastante detalhadas, por exemplo, sobre aquilo
que, para os teólogos, constitui pecado mortal no furto,
demonstrando-se, porém, completamente alheios face à
injustiça da discriminação racial, pois este aspecto do
comportamento não se costumava incluir no ensino
religioso. Mas, ainda, muitos católicos não tomaram
consciência do dever de fomentar a justiça em relação ao
problema racial, pois não se usava inculcar como obrigação
cristã o desenvolvimento dos valores humanos.
A Igreja tem sido freqüentemente criticada por se ter
preocupado em ditar normas pormenorizadas a respeito da
moral sexual, dando pouca atenção à moral social. Porém,
pedir aos moralistas que indiquem o limite exato entre
pecado mortal e venial no que diz respeito, por exemplo, à
discriminação de raças, ao problema habitacional, à
educação, e que promulguem suas conclusões, nas cátedras e
nos livros, não resolveria o problema, mas iria fomentar
ainda a moral negativa do "não farás"; nem ajudaria a
convencer os católicos do dever de se engajarem na tarefa
de transformar a cidade secular em cidade mais humana, de
perceber os valores humanos que estão sendo agora
destruídos ou sufocados, de começar a intervir, em maior
escala e mais positivamente, para socorrê-los.
Trabalhar para que a vida do homem seja mais humana, eis
exatamente a vocação cristã. O Senhor disse ter vindo para
que os homens recebam a vida e a possuam em abundância.
Tal como o amor do Cristo, o amor cristão há de ser
realidade vivificadora; nossas ações não devem apenas não
impedir que outros vivam de maneira humana (como nos
prescrevem os seis últimos mandamentos), e sim promover
concretamente o desenvolvimento humano de nosso pró-
ximo (como nos ordena o segundo "grande mandamento").
Além disso, devemos doar-nos em nosso trabalho
quotidiano, era nossas atividades comunitárias, e assim por
diante, para realizarmos este mandamento, pois nossa missão
é amar-nos uns aos outros como Cristo nos amou, a ponto
de sacrificar a própria vida.

Para formar uma consciência cristã adulta, não basta,
portanto, descobrir sempre mais claramente o que não se há
de fazer. Deveríamos, também, procurar conhecer, com
evidência cada vez mais lúcida, aquilo que nos cumpre fazer
para realizarmos a lei do amor. Segundo o ensinamento de
Aristóteles, aceito e desenvolvido pela doutrina cristã, a
norma suprema para agir retamente como homem é "o
maior bem do maior número possível de pessoas". Se
compreendermos esta norma, no contexto do interesse
divino pela pessoa humana, em particular, c do seu supremo
desígnio em relação aos homens, o "bem" deve consistir na
dignidade e na inviolabilidade da pessoa humana, no direito
de possuir todos os meios para se sustentar e se desenvolver
como seres livres, em todas as dimensões da humanidade,
amparados e ao mesmo tempo amparando a sociedade
orientada para levar a uma plenitude de vida as pessoas
mutuamente relacionadas. O bem, que devemos desejar a
todos (inclusive a nós mesmos) e procurar promover, em
nossas resoluções, e com o nosso trabalho, é o conjunto de
valores que tornam os homens capazes de serem mais
perfeitamente humanos.
Realmente, não é sempre fácil discernir os valores humanos
em jogo nas decisões a serem tomadas, e optar por um deles,
quando parecem conflitantes; e isso ainda mais difícil se
torna em virtude da pressão exercida pelas emoções. Por
exemplo, quando um jovem e uma jovem devem enfrentar
o problema de se decidir pelo casamento, ou não, antes de
terminar os estudes, deveriam teoricamente ponderar as
vantagens que um matrimônio precoce pode proporcionar-
lhes contra a possibilidade de o matrimônio comprometer os
bons resultados que adviriam se terminassem o curso,
valores estes que poderiam mais tarde enriquecer a vida
familiar. Quantos tiveram de enfrentar semelhante situação
não ignoram que existem fatores, às vezes muito
"condicionantes", a serem considerados: a carreira ou
trabalho futuro de ambos, as condições econômicas
presentes e futuras, a possibilidade de virem a ter filhos c
suas conseqüências, os deveres para com os próprios pais.
Conhecem também a extrema dificuldade em ponderá-los
desapaixonadamente. Todavia, como bem salienta a ética da
situação, o amor não pode ser cego. Deve procurar ser o
mais esclarecido possível, para discernir e escolher o maior
bem de todas as pessoas interessadas — isto é, o potencial
humano mais elevado e vivificante, que possa, de qualquer
modo, ser realizado.
Considere-se, por exemplo, o problema do casal que deve
decidir se deverá, ou não, ter outro filho. Em plano técnico,
haveriam de levar ern consideração a própria saúde, idade,
rendimento, responsabilidades atuais e futuras em relação
aos filhos que já têm, e outras obrigações de família.
Poderiam também considerar as conseqüências que
acarretaria o nascimento de outro filho quanto ao trabalho
em que um deles, ou ambos, se acham engajados. Se este
fator resultasse negativo, qual seria sua incidência na
situação econômica da família? E se este trabalho
representasse uma contribuição tão importante para a
sociedade, que não pudesse ser comprometido? Que peso
deveria ter, sobre a sua decisão, um possível achatamento,
ou a estagnação de suas condições de vida? Quando se pede
dizer que alguém, realmente, precisa de uma nova geladeira
cu de um carro mais do que de outro filho? E até que ponto
pode influenciar nesta decisão o desejo quase inconsciente
de menores dificuldades ou de uma vida mais segura? Que
peso teria tudo isso?
Mais ainda, que dizer do amplo contexto social em que se
coloca semelhante decisão, não só no que diz respeito à
"explosão demográfica", mas também em relação às crianças
já existentes — órfãs, abandonadas, desamparadas, — que
necessitam de cuidados especiais e amorosos? Não seria
talvez melhor, para o casal, adotar uma criança, ou financiar-
lhe um asilo, do que ter outro filho? E à mãe que dispusesse
de tempo e energia, seria lícito preferir trabalhar em um
asilo vizinho, para crianças abandonadas, do que ter outro
filho? Seria lícito ao casal enviar o dinheiro que gastaria com
mais um filho a uma organização internacional, como a
UNICEF, para sustentar crianças necessitadas cm qualquer
região do mundo?
Eis por que tomar uma decisão sobre o modo de agir mais
inspirado pelo amor em várias situações concretas, é
problema complexo, que implica não somente a consciência
dos valores humanos em geral, e daqueles particularmente
envolvidos no caso, mas também sensibilidade e
conhecimento adequado da situação concreta e daquilo que
se pode fezer, na prática, para atuar uma outra opção. Por
exemplo, para decidir se deverá ou não realizar uma cirurgia,
deverá o médico levar em consideração, além do bom
resultado que poderá advir para o paciente, as probabilidades
de sucesso com a técnica, a habilidade e outros meios de que
poderá valer-se. O amor cristão não deve ser apenas teórico;
há de ser prático, levando-nos a peguntar: "Até que ponto
seríamos capazes de conduzir a bom termo este ou aquele
compromisso em determinada circunstância?"



Pensar com a humanidade e com a Igreja

Realizamos, porém, este complexo trabalho de
discernimento e de opção como membros da comunidade
humana e cristã. Podemos, pois, beneficiar-nos da sabedoria
humana e cristã, passada e presente, para discernirmos quais
sejam os valores humanos autênticos, e quais devamos
preferir quando se apresentem conflitantes, bem como a
maneira de promovê-los em determinada situação concreta.
Atingirmos esta sabedoria do modo mais profundo e extenso
possível, através da leitura, do estudo, dos debates, das
consultas, é um aspecto integrante de nossa tarefa.
Cumpre-nos, todavia; inteirar-nos de que, assim fazendo,
estaremos mergulhando em uma corrente dinâmica de
desenvolvimento, que, começou com os primórdios da
história humana, e continua até hoje. Os homens sempre se
colocam esta questão: "Como posso ser feliz e viver mais
plenamente?" Na procura de uma resposta, foram
beneficiados por aquela "luz que ilumina todo homem". A
revelação de Deus ao povo de Israel esclareceu, em muitos
aspectos, as intuições que outros povos haviam alcançado,
quanto aos valores humanos, e proclamou, também, a
necessidade de promover estes valores para agradar a Deus:
se pretender ser justo aos olhos de Yahweh, deve o homem
ser justo e misericordioso para com seu próximo. Jesus
acolheu e interiorizou o ensinamento da Escritura,
resumindo a Lei e os Profetas no mandamento do amor de
Deus e do próximo. A Igreja, comunidade daqueles que
reconhecem e aceitam o Cristo como Senhor c procuram
viver em seu espírito, empenhou-se através dos séculos, na
tarefa de aprofundar a compreensão desta doutrina, e de
mostrar aos cristãos como viver em harmonia com ela.
Deste modo, a luz que resplandece na revelação de Deus
pelo Cristo, e se manifesta, de muitos modos, na humana
sabedoria levou a consciência do homem a se tornar cada
vez mais sensível aos valores terrenos: à vida, à dignidade, à
liberdade da pessoa, e a seu direito de possuir os meios para
desenvolver a própria personalidade. A Declaração dos
Direitos Humanos da ONU, por exemplo, é uma prova deste
progresso; embora não seja rigorosamente observada,
oferece um padrão básico de conduta e de avaliação do
comportamento humano. Este processo de desen-
volvimento da consciência continua; estamos engajados
nele, e podemos tanto promovê-lo quanto obstaculizá-lo.
Por exemplo, como a humanidade chegou lentamente a
perceber que a escravidão, por tantos anos aceita como
instituição social, era reprovável porque se opunha à
dignidade e à liberdade, assim também, em nossos dias,
estamos chegando a sentir o erro da discriminação de raças e
da injustiça social. Em nossas opções e conversas, com o
nosso voto, afinal, em todas as nossas atividades sociais,
podemos impedir, ou favorecer, a difusão e a implantação
desta tomada de consciência.
Naturalmente, em muitos problemas atuais, não se
consegue, ainda, uma clara convergência das opiniões de
pessoas sinceras e esclarecidas. Há divergências no que diz
respeito à moralidade de uma determinada guerra, ou das
guerras, em nossa situação atual; há também os que
sustentam que a imoralidade da guerra já esteja fora de
discussão. Mais precária ainda é a concordância das opiniões
quanto ao problema do aborto terapêutico. Podemos,
contudo, colaborar para o desenvolvimento do gênero
humano, procurando formar nossas próprias consciências
em torno destes problemas da atualidade, mediante estudos,
debates, reflexões c oração. Com efeito, nosso dever é agir,
sem ficar esperando que as autoridades resolvam o problema
para nós. Hoje, os problemas se multiplicam muito mais
rapidamente do que as soluções apresentadas pelos órgãos
competentes. Tomem-se como exemplo as questões
atinentes ao reto uso das descobertas no campo da genética.
Membros responsáveis por nossa sociedade, devemos
colaborar na busca de respostas que sejam as mais humanas
possíveis.
Cristãos que somos, formamos nossas consciências como
membros da comunidade eclesial, guiados por seus
ensinamentos. Deveríamos, pois, considerar, com a mais
séria atenção, as afirmações do Magistério, no passado e no
presente. Mas, cumpre inteirar-nos de que também este
ensinamento acha-se em fase evolutiva. Não podemos
permanecer fixos e estáticos quando a própria Igreja deve
crescer na compreensão do Evangelho, e tem por tarefa
indicar aos povos de várias mentalidades, culturas e
condições sociais, o comportamento exigido pelo
Evangelho. Além disso, quanto mais minuciosas forem as
leis propostas pela Igreja, e sua formulação, quanto mais
condicionadas por uma mentalidade particular, e pelas
circunstâncias que a provocaram, tanto menos serão
aplicáveis à todos os tempos e situações.
Muitos católicos de hoje acham-se desorientados porque,
dizem eles: "tudo está mudado, e aquilo que nos ensinaram
como sendo errado, não o é mais". Onde vamos parar? Uma
caricatura do New Yorker, que apareceu logo, após
promulgada a nova disciplina sobre o jejum e a abstinência,
mostrava um pequeno demônio perguntando a outro mais
adulto: "Que vamos fazer com todos aqueles católicos que
comiam carne nas sextas-feiras?", demonstra a grande
confusão reinante, que culmina com a determinação de
muitos católicos de abandonar a Igreja, se ela modificar a
doutrina tradicional em relação aos métodos
anticoncepcionais.
É lamentável que tantos católicos tenham crescido sem
conhecerem as razões que fundamentam os preceitos da
Igreja em vários setores, e a possibilidade de mudanças,
ficando, por isso, profundamente desorientados com as
modificações atuais, e com a possibilidade de outras ainda
para o futuro. Todos os preceitos da Igreja, tanto os que se
revestiam de caráter de lei positiva, como a abstinência na
sexta-feira, quanto os que interpretam a lei moral, como as
normas que regulam o uso dos métodos anticoncepcionais,
têm por finalidade proteger ou promover determinados
valores. A lei da abstinência da carne às sextas-feiras, por
exemplo, visava promover o valor da penitência cristã,
tornando obrigatória uma determinada prática penitencial.
Com a mudança das circunstâncias, e com o variar da
mentalidade dos povos, esta prática não parecia mais atingir
sua finalidade; as novas normas têm em mira inculcar o
espírito de penitência, dando aos católicos maior liberdade
de escolher o modo mais idôneo de atuá-lo na própria vida.
Ora, a propósito da lei moral, constitui exemplo clássico de
mudança, as normas introduzidas pela Igreja depois de 1450,
que aboliram numerosas e explícitas condenações da usura,
pois, até então, considerava-se usura "tudo que se exigia
além do capital emprestado":
"Que bens procurava a Igreja proteger? Que meta atingir?
Qual a função específica daquela norma? A estas questões,
poderíamos responder afirmando que a Igreja visava
proteger os bens da justiça e da caridade; que o escopo era
defender o pobre contra a exploração do rico, impelir o rico
a compartilhar seus bens com os outros, e conseguir uma
justa distribuição da riqueza, em benefício de toda a
comunidade. Função da lei de usura era atingir estes fins, e
proteger estes valores. Na economia das pequenas
povoações medievais, a lei da Igreja alcançava seu objetivo.
A Europa ocidental não chegou a conhecer o terrível mal da
usura que sufocou as aldeias da Grécia antiga e a China do
século vinte... Mas, aquela norma de conduta, expressa em
forma de proibição absoluta, não devia se confundir com a
lei moral imutável...
Cabe à Igreja proclamar, até o fim dos tempos, o exemplo de
Cristo, repetir a cada cristão o 'novo mandamento' de amar o
próximo 'como eu vos amei'. A proclamação do Evangelho
implica necessariamente o ensinamento da justiça e da
caridade. Entretanto, depende das circunstâncias concretas
de uma sociedade determinar quais as ações justas e
caridosas. Se mudarem os aspectos econômicos, mudarão
também as exigências da justiça e da caridade; alguns atos
receberão mais enfoque moral, outros menos; a atitude
moral em relação a certas atividades será alterada; as normas
que prescrevem certos atos, e proíbem outros, serão sujeitas
a reexame. Aquilo que se proclamou essencial, pode ser
considerado como tal somente em determinado contexto.
Tal reexame se deu quanto às normas da usura. A finalidade
da lei, que era a de orientar os homens a um maior amor nas
transações financeiras, podia ser atingida com mais proveito
mediante novas normas, e a proibição absoluta da usura, no
sentido antigo, foi realmente reformulada pelos teólogos de
1450 a 1600.
Do mesmo modo, a norma da Igreja acerca dos
anticoncepcionais visa proteger vários bens. "Nunca é lícito
agir diretamente contra uma vida inocente. A dignidade
pessoal de um cônjuge deve ser respeitada pelo outro. O
amor sexual é santo no matrimônio. No contexto de
costumes que ameaçam a procriação, propagados por vários
grupos dualistas durante mais de 1200 anos, a norma acerca
dos anticoncepcionais exerceu a função de proteger o valor
do ato procriativo. Em um contexto ambiental em que não
se tinha em conta a vida do embrião, nem se fazia exata
distinção entre aborto e métodos anticoncepcionais, a
norma teve o objetivo de proteger vidas inocentes,
considerando como sagradas todas as fases do processo da
geração. Em um contexto ambiental em que a liberdade na
escolha do futuro cônjuge era coisa rara, e era grande o
perigo da exploração das mulheres, a norma teve a função de
salvar a dignidade procriativa da mulher. No contexto de
uma aproximação entre métodos anticoncepcionais,
adultério e fornicação, o preceito proibitivo conseguiu
revigorar a fidelidade conjugal. Se estes bens puderem ser
protegidos sem uma norma absoluta no que diz respeito aos
métodos anticoncepcionais, tal rejra deveria então ser
revista, assim o exigindo as transformações sociais.
A norma sobre anticoncepcionais foi aplicada, sem qualquer
crítica, até o fim do século dezoito. Muito lentamente
começou a ser objeto de crítica, no século dezenove, e só a
partir de 1850 as novas circunstâncias ambientais
começaram a pressionar, afetando a sua validade. Entre estas
mudanças incluíam-se a explosão demográfica (crescimento
este provocado, em iarga escala, pelo controle das doenças),
a alterada situação das mulheres perante a lei e a sociedade
ocidental, que dispensava quase totalmente a proteção
paternalista exercida sobre elas, e o desenvolvimento
maciço, no Ocidente, dos estudos universitários. O contexto
cultural em que se situa o matrimônio não é o mesmo do
Império Romano, onde começaram a vigorar as normas
contra os anticoncepcionais, nem é o mesmo da Idade
Média, que reconfirmava aquelas leis. Se tais normas foram
estruturadas para fazer face aos perigos de um determinado
contexto histórico, poderão ser reexaminadas em relação ao
contexto atual.
Destarte, se o Papa, um dia, modificar explicitamente esta
proibição, isto não significará que a Igreja tenha mudado
suas afirmações em torno dos valores acima mencionados;
significará, apenas, que ela propõe uma norma diferente
como meio para incrementar estes valores em um novo
contexto.
Além disso, o conceito de "lei natural", herdado em
particular dos estóicos, que inspirou a elaboração de muitos
preceitos, inclusive dos que se referem ao uso de
anticoncepcionais, era um conceito que compreendia a
natureza humana como "realidade" estática. Não se
inculcava ao indivíduo e à sociedade o dever de "agir por
autodeterminação", mas se exigia apenas um conformismo
com o modslo preestabelecido na mente divina, cujos traços
podiam ser claramente averiguados, observando o homem
em sua natureza concreta. Parecia assaz satisfatório deter-
minar uma finalidade peculiar para cada uma das faculdades
e órgãos do homem. Podia-se afirmar que estavam sendo
retamente usados somente quando serviam à finalidade para
a qual foram criados: a inteligência, para procurar a verdade,
a vontade para fazer o bem, o sistema digestivo, para a
nutrição, etc. A alma e suas potências superiores, conforme
esta mentalidade, eram tidas como entidades distintas do
corpo; razão por que as potências físicas do homem podiam
ter apenas uma finalidade física, e a preservação de sua
integridade física era um valor que devia ser mantido até
mesmo sacrificando aquilo que hoje chamaríamos de bem-
estar psíquico.
Hoje, com o progresso de nossos conhecimentos em torno
da constituição psicofísica do homem (embora muito longe
de serem completos), estamos começando a reconhecer que
a finalidade biológica de um órgão, ou de uma função, não
esgota todos os seus objetivos. Por exemplo, comer e beber,
podem satisfazer muitas necessidades psíquicas, ao mesmo
tempo que apagam as necessidades físicas; comer e beber
juntos podem incrementar toda uma escala de valores
humanos, que superam os estritamente biológicos. (E
nenhum moralista, pelo que sabemos, jamais pôs em questão
a moralidade de um ato executado de tal forma que frustre a
sua finalidade biológica, por exemplo, comer alimentos que
contêm poucas calorias).
Indo mais a fundo, o conceito de responsabilidade humana
como concordância entre o anr e um ideal predeterminado
ou uma "lei natural" estática, está cedendo passo a uma idéia
dinâmica do homem como ser responsável por seu próprio
desenvolvimento, que pretende adquirir um grau cada vez
mais pleno de humanidade. "Lei natural" seria, então, o
consentimento evolutivo do gênero humano, através dos
séculos, quanto aos valores que constituem e desenvolvem a
humanidade. Neste contexto, parece menos importante
preservar a integridade das funções corporais do que tornar a
pessoa capaz de agir de maneira mais plenamente humana,
ou de possibilitar que outros atinjam esse nível de ação.
O problema da liceidade dos transplantes de rins é caso bem
característico. Outrora, os moralistas condenavam tais
operações, fundamentando-se na idéia de que o doador não
tinha nenhum direito de sacrificar sua integridade física, a
não ser em benefício de seu próprio bem-estar físico. Hoje,
embora não seja opinião unânime, a liceidade dos
transplantes é admitida por muitos moralistas, em razão do
maior bem humano que estas operações proporcionam. O
mesmo pensamento poderia ser aplicado, também, à questão
da liceidade da esterilização do marido, quando o casal já
procriou o número de filhos que lhe é possível educar
convenientemente. Sem dúvida, é um valor manter intactas
as próprias funções procriativas. Mas, se uma vasectomia
(operação muito simples e recuperável em cinqüenta por
cento dos casos) levasse os cônjuges a viver em paz a própria
vida matrimonial e a cuidar conscienciosamente dos filhos
que já possuem, não deveria o valor da integridade física
submeter-se a estes outros valores mais plenamente
humanos?
No passado, os moralistas desenvolviam as próprias idéias
mais ou menos em âmbito privado; a grande massa dos fiéis,
que viviam entre 1450 e 1600, não percebia, e por isso não
se perturbava, pela mudança que sofriam as normas da
Igreja.
Hoje, os meios de comunicação, e o elevado nível de cultura
geral, modificaram as perspectivas.
Devemos, pois, inteirar-nos de que o pensamento da Igreja,
em campo moral, está sofrendo um necessário processo de
desenvolvimento, e que isto não significa abandonar os
valores do passado, mas discernir, cada vez mais claramente,
os verdadeiros valores humanes, e os meios de protegê-los e
incrementá-los do melhor modo possível com o mudar das
circunstâncias. Não deveríamos perturbar-nos porque o
"ensinamento da Igreja" a respeito de determinados
comportamentos está mudando. Antes, deveríamos alegrar-
nos por pertencermos a uma Igreja viva, que responde ao
Espírito, e procura novas luzes no Evangelho, sensível à
mudança das condições humanas, compreensiva e, ao
mesmo tempo, operante, em relação ao desenvolvimento da
consciência dos homens. (Por "ensinamento da Igreja"
entendemos aqui os pronunciamentos não infalíveis dos
Papas e dos Bispos, o ensino nos púlpitos, as opiniões dos
teólogos e suas expressões nos manuais, etc.).
Dizem, porém, muitos católicos: se não posso contar com a
autoridade da Igreja para ter a exata solução de um problema
moral; se, após ter-me aconselhado com o representante da
hierarquia, devo eu mesmo tomar minha decisão, como
posso saber se estou agindo bem? A resposta foi bem
resumida nestas linhas de Gerard S. Sloyan:
"Sei que estou agindo bem se procuro ter reta intenção em
todas as coisas que faço. É isso que Cristo chamava de
'pureza de coração', ou de 'sinceridade total' (cf. Mt 5,8).
Sei que estou agindo retamente se levo em consideração o
ensinamento de Cristo, Cabeça da Igreja, expresso com suas
próprias palavras no Novo Testamento, assim como a
doutrina de Moisés e dos Profetas à qual ele se referiu, de
Paulo, e des outros apóstolos, que ensinaram em seu nome.
Sei que estou agindo bem quando, conscientemente, assumo
meu amor por Deus, expresso mediante meu interesse pelos
homens (por este homem, por esta mulher) como medida
de todas as minhas opções.
Sei que estou agindo retamente quando faço apelo à Igreja
para que me ajude a resolver os problemas da minha
consciência: ao ensinamento do Papa e dos Bispos, dos
teólogos e pensadores religiosos, dos sábios e santos que
conheço. Quando, em tudo que faço, procuro o conselho
fraternal dos que crêem, e de todos os homens de boa
vontade.
Sei que estou agindo bem quando permaneço fiel à minha
consciência, quando faço todo o possível para esclarecê-la.
Sei que estou agindo bem quando sigo com atenção os
debates em torno dos problemas morais de nosso tempo, e
suas implicações sociais, que aguardam ainda a palavra
definitiva da Igreja. Eu sou a Igreja, e todos os meus irmãos
necessitam de meu auxílio neste campo.
Sei que estou agindo bem quando suplico a Deus sua graça
em tudo o que faço.
Sei que estou agindo retamente se me arrependo de meus
pecados, e os confesso humilde e sinceramente, sem
encobri-los nem desculpá-los.
Sei que estou agindo bem se peço que o Espírito Santo faça
de mim uma criatura de amor, um ser que ama, na família
humana e na Igreja, apegando-me àquilo que é justo,
rejeitando o que é errado, sem compromissos, e sem
respeito humano. Que o Espírito realize em mim a imagem
de Cristo, filho do Pai, e o que justamente lhe peço.

O amor não pode dispensar a prudência

Os critérios mencionados não são condições a serem
realizadas de improviso ou casualmente; constituem um
programa para a vida inteira.
O filósofo Gilson fazia notar que a "piedade não dispensa a
técnica". Assim, também o amor não dispensa a prudência,
capacidade adquirida, que nos leva a tomar decisões sábias
tanto no que diz respeito àquilo que devemos fazer, quanto
no que concerne ao modo de melhor realizarmos nossas
ações. Estas duas coisas são correlativas, pois inútil seria
tomar uma decisão que não fosse, depois, realizável na
prática. O que se pode fazer representa uma interrogação
vital a ser colocada em referência àquilo que se deve fazer,
embora a imaginação, a coragem, e a esperança cristã
consigam ver possibilidades, e julgar fatível, aquilo que a
outros poderia parecer irrealizável. Por isso é que os cristãos
deveriam conceber a política como "arte do possível", e
dedicar-se a ela.
S. Tomás enumera oito partes ou elementos diferentes, que
concorrem para formar esta capacidade de decidir com
sabedoria: examinar os fatos; determinar os valores
subjacentes e os problemas implicados; raciocinar com
lógica; tomar conselho; proceder passo a passo; ter certeza
de que todos os fatores foram tomados em consideração;
usar criatividade e recursos próprios para chegar à solução e
à decisão final; e, o elemento mais importante, pedir as luzes
do Espírito Santo. Com uma expressão americana,
poderíamos denominar este último elemento de "hunch",
que significa fusão definitiva e pessoal entre experiência e
intuição do agir e do modo de proceder, e constitui a
resposta específica da pessoa e uma situação específica.
Sendo estes elementos tão essenciais como todos os outros
neste sentido a ética cristã deve ser sempre uma "ética de
situação".
É, pois, norma útil procurar analisar as decisões (ou os passos
dados sem tomar nenhuma decisão) a fim de constatar até
que ponto levamos em consideração todos estes elementos
(e, em decisões mais sérias, o elemento mais importante,
que S. Tomás considera como óbvio: pedir as luzes do
Espírito Santo). Pode-se fazer semelhante análise também a
respeito de decisões claramente éticas, principais ou
secundárias — por exemplo, tomar posição pró ou contra a
segregação em alguns casos específicos, criticar certas
normas que proíbem dirigir automóvel a quem tomou
bebida alcoólica — assim como outras que envolvem a moti-
vação fundamental da pessoa, e o sentido dos valores, em
vez do aspecto bom ou mau de um determinado fato. É útil
também procurar analisar os fatores que deveriam ser
levados em consideração ao tomar decisões hipotéticas sobre
questões que ainda não foram enfrentadas: comprar uma
casa nesta ou naquela vizinhança, em determinadas
circunstâncias; escolher uma escola para os próprios filhos,
aceitar este ou aquele tipo de emprego. Tal prática auxilia a
pessoa a não se deixar influenciar pela pressão de forças
internas e externas quando deve enfrentar uma séria decisão
capaz de envolver não apenas o próprio bem, mas também o
bem dos outros.
Naturalmente, não podemos nem devemos fazer um ensaio
geral antes de cada decisão de nossa vida quotidiana. É,
entretanto, claro que, para termos condições de escolha
sábia e amorosa em nossas decisões mais importantes,
cumpre-nos lutar a fim de adquirir as boas disposições e a
capacidade para isso. Cumpre conquistarmos esta
capacidade, se não quisermos ser simplesmente arrastados
por forças internas e externas, e se pretendermos alcançar
uma verdadeira liberdade pessoal. Além disso, se é mister
ponhamos em jogo todos os elementos necessários para
chegarmos a uma sábia decisão, devemos lutar
continuamente para sermos mais informados, melhor
instruídos, mais afetivos, como também mais abertos ao
amor. Aliás, devemos ser tudo isso para realizarmos com
sinceridade nossa obediência ao amor.
Dizer, como S. Paulo, que "o amor c consumação da lei", ou
com S. Agostinho, "ama e faze o que queres", não significa
um convite à irresponsabilidade emocional. Trata-se, antes,
de um convite a unificar nossa vida e ação no serviço
responsável do amor, perpetuando nó mundo de hoje a obra
benfazeja de Cristo e seu anélito que todos "tenham a vida
em abundância".

6. AMAR-SE MUTUAMENTE "NA VERDADE"

O amor é realmente "a consumação da lei"; mas só podemos
realizar este ideal procurando tornar-nos mais abertos ao
amor, assim nas atitudes como no agir. Dizia S. Paulo, que
podemos fazer toda sorte de boas obras, até distribuir nossos
bens aos pobres e entregar nossos corpos à chama; se não o
fizermos por caridade, tudo isso seria, em última análise,
simples futilidade (1Cor 13). Como assinalamos nos pri-
meiros capítulos deste livro, o amor cristão não pode ser
confundido com uma espécie de benevolência fria e
abstrata, mas tenciona ser um amor humano real, entre
pessoas realmente humanas, capaz de integrar e orientar
toda a vitalidade de nosso impulso afetivo. Por outro lado,
como cristãos, não somos chamados a "fazer o bem" à
distância, a estranhos, mas a nossos "vizinhos", a pessoas
com quem estamos, de qualquer forma, relacionados, em
virtude de nossa filiação comum à comunidade do gênero
humano, que Deus ama e protege; por isso, nossa atitude em
relação a todos há de ser pessoal e amorosa. Por outro lado,
em todo relacionamento, devemos ser realmente amorosos,
procurando transformá-lo em verdadeiro entrelaçamento do
amor.
Neste capítulo, consideraremos alguns dos requisitos destas
relações de amor, sua variedade e diferenciação nos vários
"estados de vida cristã".
Nossa relação com Deus é fundamental

É verdade que podemos realizar o amor de Deus através do
amor do próximo, e que, em toda a nossa vida,
conquistamos seu amor mais plenamente amando e sendo
amados; entretanto, se devemos crescer e atingir a
maturidade cristã, nossa relação com Deus em Cristo deve se
tornar, de qualquer modo, relação cada vez mais pessoal e
mais profunda, centralizando nossa existência e nosso
impulso vital. Não que devemos necessariamente dar mais
tempo à oração, em sentido formal, ou aos encontros em
que ele se acha eclesialmente presente — a Eucaristia, a
Escritura, a reunião de dois ou três em seu nome — mas
cumpre tornar-nos cada vez mais conscientes de sua
presença amorosa, de seu estar conosco e por nós em nosso
dia-a-dia.
Muitos fomos educados na mentalidade do temor, que é
paralela à visão legalista da vida cristã, e achamos difícil
renunciar à idéia de Deus como de alguém que se coloca
constantemente à nossa espreita, para ver se estamos
desobedecendo às suas leis, e admitir, ao reverso, que sua
presença é, antes de tudo, uma atenção amorosa para
conosco. Em Cristo, Deus se compromete definitivamente
em estar conosco e para nós. Por isso, ele está conosco e
para nós em todo o nosso amor. sequioso de ajudar-nos a
amar mais plena e humanamente. "Deus é amor, e quem
vive no amor vive em Deus, e Deus nele" (1Jo 4,16).
Além disso, Deus mesmo se apresentou como garantia de
que o amor é possível, e vale a pena ser praticado.
Precisamos ter o sentido de nosso próprio valor para sairmos
de nós mesmos pelo amor; necessitamos acreditar que
possuímos algo para dar aos outros, e que os outros sentem o
mesmo a nosso respeito. Deveria a criança, desde o início,
receber de seus pais este sentido de autoconfiança, de ser
por si mesma merecedora de amor. Adquirimos novamente
este sentido toda vez que somos amados. Mas, em última
análise, é o amor de Deus que constitui o fundamento
inabalável do sentido maduro da confiança em nós mesmos,
que nos torna capazes de quebrar os grilhões de nosso
egoísmo, para aventurar-nos na doação recíproca do amor.
Podemos crer que somos dignos de amar porque Deus nos
ama, porque nos dotou de personalidade única, porque
oferece a cada um de nós uma relação pessoal com ele em
Cristo.
Do mesmo modo, Deus é garantia da dignidade pessoal dos
outros. Entramos em contato com o mistério de cada pessoa
humana no clima da benevolência amorosa que Deus nutre
por aquela pessoa e por todas as suas capacidades. Não
devemos, portanto, procurar amar os outros "por amor de
Deus", como se não possuíssem valor em si mesmos. Não
encontramos "Cristo nos outros" como se fossem simples
meio para chegarmos a Cristo. Devemos amá-los por aquilo
que são em si mesmos, procurando condividir a mesma
estima que Cristo tem por eles, e o modo com que os serviu;
assim fazendo, encontraremos o Cristo.
Deus é garantia da validade de toda iniciativa de amor, por
mais imperfeita, frustrada e infrutuosa, possa às vezes
aparecer. Ressuscitando Cristo dentre os mortos, mostrou-
nos que, em última análise, o amor é fonte de vida; amar até
o extremo é a única via que conduz à vida para si e para os
outros. Cristo, vivo e glorioso, capaz de estar com os
homens e de se doar totalmente a eles mediante sua
ressurreição, garante que a vida por ele prometida é
totalmente dedicada ao amor, ao supremo amor, e que
podemos apressar a vinda do seu reino esforçando-nos,
agora, em amar como ele nos ama.
Finalmente, porque Deus nos faz capazes de procurá-lo em
nossos amores humanos, e acima deles, é que podemos
estimar seu valor, como também suas limitações. Nenhuma
pessoa pode ser para outra o último "tu", o último fim, a sua
realização suprema. Se esperarmos isto de outra criatura,
mesmo na relação conjugal, iremos ao encontro de
frustração e amargura. O cristão percebe que as aspirações de
seu impulso afetivo ultrapassam o poder das criaturas; por
isso, não deve esperar delas mais do que possam ou estejam
dispostas a dar. Chega, também, a inteirar-se de que a sua
busca — por quanto fugazes se apresentem as suas intuições
— não procura chegar a um "tu" evanescente, mas a alguém
que lhe vem ao encontro e o procura com amor. A relação
de amor do cristão com Deus não visa ser uma espécie de
sucedâneo para compensar as frustrações da falta de
correspondência por parte das criaturas, mas é a base da
estabilidade e da força do seu relacionamento amoroso com
o próximo. O cristão pode, verdadeiramente, amar outras
pessoas, precisamente porque se inteira de que nenhuma
delas pode ser Deus para ele, nem ele um Deus para elas,
pois seu amor e suas ações se desenvolvem no âmbito do
amor de Deus e do seu desígnio de dar a vida aos homens.


Cultivar atividade amorosa para com todos é
essencial à vocação cristã

Deus ama cada pessoa humana; devemos procurar amar
como ele nos ama; somos chamados a cultivar para com
todos, a atitude fundamentalmente inspirada pelo amor, que
nos dispõe a aceitar o outro como ele é, reconhecendo sua
dignidade e personalidade, desejando ser-lhe amigo aberto e
acessível. Tal atitude implica, naturalmente, a nossa boa
vontade de procurar o bem do outro, usando todos os meios
disponíveis para conseguí-lo efetivamente. Mas preserva
também nossas boas obras da esfera de uma
condescendência impessoal. O bem de pessoas concretas,
não de seres abstratos, é o que procuramos realizar, tendo
presente que cada um possui seu valor singular, e se
relaciona conosco, de qualquer forma, no amor e na atenção
de Deus.
"Nenhum homem é uma ilha", somos de algum modo
membros uns dos outros, nossas atitudes, até mesmo em
relação àqueles que não conhecemos e jamais
conheceremos pessoalmente, importam muitíssimo para o
bem da humanidade. Tais conceitos vão se lornando cada
vez mais óbvios no mundo atual. Se percebemos que nossos
sentimentos relativos a pessoas de outra cor levam-nos a
considerá-las como próximos indesejáveis, se vemos os
hebreus como um povo que procura abrir caminho a
qualquer custo, se julgamos que os subdesenvolvidos nos
incomodam e deveriam ser mantidos à distância, devemos
fazer um esforço positivo para mudar estas atitudes
começando a travar conhecimento com pessoas que perten-
cem a essas categorias — através da leitura, se for impossível
um contato direto — de tal forma que possamos considerar
as pessoas sem levar em conta clichês já preestabelecidos.
Aos cristãos cumpre desfazer-se de todo convencionalismo,
desenraizar todo preconceito capaz de forçá-los a tratar os
vários grupos como "coisas", não como pessoas, nos contatos
pessoais, na vida de comunidade, nos colóquios, e nas
decisões pelo voto.
Podemos, aliás, devemos, manter uma atitude de amor
autêntico em nossa vida, como membros da comunidade em
que vivemos, de nossa igreja, de nosso país, do mundo. Mas
cumpre-nos manter igual atitude também nos mais casuais
encontros. Mesmo ao varredor de rua, ou ao jornaleiro,
devemos estar dispostos a manifestar nossa benevolência
com um simples sorriso ou com uma observação sobre o
tempo. Muito diferem estes intercâmbios se motivados por
mera cortesia convencional, por familiaridade forçada e
ofensiva, ou quando, ao contrário, exprimem a alegria de se
encontrar com alguém, embora por breve tempo. Todos
sabemos como agradam estas manifestações de cordialidade;
são capazes de alegrar um pouco nosso dia, influindo-nos
uma nova coragem. É o que acontece, por exemplo, quando
um freguês enfadado encontra uma vendedora que o trata
como pessoa, ou um passageiro intranquilo se depara com
um agente da companhia de aviação, que se comporta como
ser humano. Manifestar esta atitude em nossos contatos
quotidianos de trabalho, é um modo de colaborar para tornar
mais humana a cidade do homem; é um aspeeio do amor
que devemos uns aos outros.
Mas é muito mais fácil manter esta atitude amorosa em
relação a estranhos, quando se percebe que o desejam, do
que com pessoas com quem estamos diariamente em
contato, e pelas quais não sentimos atração. Transcorremos
grande parte da vida acolhendo apenas um grupo restrito de
pessoas no círculo de nosso relacionamento pessoal, e
julgamos os outros como meios, ou obstáculos, ou
incômodos em relação ao conseguimento de nossas metas.
Isto pode acontecer até mesmo no âmbito das famílias.
Nutro certo ceticismo sobre as relações pessoais entre
marido e mulher quando ele a chama de "mãe": parece,
então, que a mulher se tornou para ele uma função e cessou
de ser uma pessoa.
Além disso, devemos examinar-nos quanto às nossas
relações com os colegas, professores ou estudantes, chefes
ou subordinados, companheiros ou conhecidos: estamos
procurando tratá-los como pessoas, no contexto de uma
determinada situação? Ou usufruímos deles, e os
negligenciamos, como se fossem coisa? Isto não significa
que devemos cultivar uma falsa camaradagem ou
familiaridade com os outros, e sim, que devemos procurar
abolir qualquer sombra de impersonalismo desumano em
todas estas relações. Quando percebemos uma atitude
negativa ou hostil de nossa parte em relação a outro,
convém procuremos suas origens, tanto em nós como no
outro. Talvez nutramos algum preconceito ou idéia conven-
cional em relação a todas as pessoas que ostentam
determinado modo de falar e de se trajar, possuidoras de
determinada esfera de interesses, originárias de peculiar
antepassado ético ou de determinada região do país. Tudo
que fizermos, buscando olhar o outro como pessoa, em sua
verdadeira identidade, antes que como encarnação de coisa
abstrata ou de qualidades desagradáveis, ajudar-nos-á em
nosso trabalho de transformar nossas relações em algo
pessoal. Naturalmente, não é fácil tarefa. É muito mais dura
para alguns do que para outros, especialmente em se
tratando de pessoas educadas em ambientes que nutrem pre-
conceitos e idéias convencionais, sem jamais questioná-los.
Mas, tentá-la é nosso dever de cristãos. Como sugere Carl
Rogers, só um incremento desta atitude, em larga escala,
poderá oferecer um futuro favorável para a humanidade.

Cultivar relações sinceras de amor é
essencial à vocação cristã

Pelo menos em certo sentido, pode ser muito difícil manter
uma atitude fundamental de amor em nossas relações mais
profundas, que engajam com mais veemência nossas
emoções e nossa sexualidade. Como vimos
precedentemente, nosso impulso afetivo, em sua carga
sexual, poderá induzir-nos a sair de nós mesmos, era direção
aos outros; ou poderá procurar atrair o outro para a órbita de
nosso interesse egoístico. Quanto mais nossas emoções e
nossa sexualidade ferem envolvidas, maiores serão nossas
possibilidades num ou noutro sentido. Todavia, no amor
recíproco, originado de relações profundas — certa dose de
egocentrismo de ambos os lados é impossível evitar-se — é
que aprendemos a amar, a encontrar forças para amar além
dos limites destas relações, e a amar até mesmo pessoas que
não são amáveis.
Analisar a qualidade destas relações profundas, e procurar
melhorá-las, não significa pretender desvendar o mistério do
amor recíproco, mas antes descobrir como tal mistério possa
tornar-se mais vital e frutuoso. Todos sofremos, de um
modo ou de outro, e quiçá muito profundamente, pela
incapacidade de amar ou pela falta ele amor, que
encontramos no outro. Todos tivemos, igualmente, ocasião
de arrepender-nos das feridas que provocamos nos outros.
Examinar os elementos de uma verdadeira relação de amor
— amizade, namoro, matrimônio, paternidade — não
significa deturpar a beleza da rosa ou diminuir nossa alegria.
Isso deveria, ao contrário, ajudar-nos a evitar o desperdício
de energias em nossa vida afetiva, a orientá-la e ordená-la,
para que se torne mais robusta e frutuosa.
Devemos precaver-nos contra o perigo de dissipar muita
energia emocional em relações irreais. A "paixão" que
arrasta cegamente e leva a circundar a pessoa amada com
uma auréola de atrativos irresistíveis, fazendo cair numa
espécie de adoração unívoca por ela, é fenômeno comum na
adolescência. Para muitos rapazes e moças, pelo menos, isso
pode servir como tirocínio para o verdadeiro amor. Mas os
adultos, também, não raro percebem que continuam ainda
cultivando esta espécie de relação imatura, quiçá por medo
inconsciente do verdadeiro amor, ou por alguma oculta
desilusão em suas relações concretas. A atitude de
"enfatuação unilateral", muitas vezes atribuída, nos
romances, às secretárias em relação a seus chefes, reduz a
possibilidade de uma verdadeira relação de amor coni o
outro, que poderia levar ao matrimônio, e favorecer a
fixação em algo indisponível e irreal.
O remédio, quiçá bastante doloroso, consiste em cultivar
uma sincera relação interpessoal com a pessoa por quem nos
apaixonamos, se isto for possível, bem como com todas as
que fazem parte da esfera de nosso relacionamento.
Devemos, também, precaver-nos contra falsas relações que
levam ao domínio ou à submissão, a possuir ou a ser
possuído. Podemos inteirar-nos da precariedade das relações
entre marido e mulher em que um domina e o outro se
submete, ou das relações entre pai e filho em que aquele se
torna um tirano e este um escravo. Eric Berne, em seu livro
Games People Play, acentua que todos propendemos a
colocarmos reciprocamente em falsas posições, e buscamos
sempre prevalecer, como dominadores ou dominados,
vencedores ou vítimas. Cumpre-nos, portanto, descobrir a
maneira de comportar-nos em todas as nossas ações,
inclusive nas mais íntimas; verificar se, pelo menos em linha
de máxima, estamos dispostos a permitir que o outro
exprima a própria personalidade, constatar se procuramos a
liberdade e o desenvolvimento do outro, ou se nos
preocupamos primordialmente em sujeitá-lo a nosso serviço.
Naturalmente, toda verdadeira relação implica o delicado e
misterioso entrelaçamento da livre opção de duas pessoas, e
o compromisso de respeitar a liberdade recíproca. Isso exige
que ambos se esforcem em sair do próprio eu, em se abrir
para dar e receber; que procurem servir um ao outro,
valorizar a personalidade um do outro, favorecer o mútuo
desenvolvimento das respectivas potencialidades. Não
significa, apenas, encontrar no outro o próprio prazer. Como
sabemos, este gáudio desperta um vivo desejo de nos
doarmos ao outro para que ele possa ser mais plenamente
aquilo que é, e de recebermos dele, a fim de sermos mais
plenamente nós mesmos, e termos mais para dar.
Uma verdadeira relação não é, por isso, algo esr tático, nem
se confunde com a rotina, mas há de se colocar em um
processo de contínuo crescimento. Ambos devem se
esforçar para sair de si mesmos e ir ao encontro do outro,
para ciar e receber. Se marido e mulher considerarem suas
relações recíprocas como ponto estático, o amor
matrimonial de ambos corre grave perigo. Cumpre-lhes
cultivá-las, sequiosos de maior conhecimento, pelo menos
em certas esferas das relações humanas, desejosos de se
doarem mutuamente cada vez mais, se não quiserem que o
amor lentamente morra. O simples fato de se familiarizar
com o outro constitui base suficiente para um matrimônio.
Do mesmo modo, comportar-nos-emos somente como
conhecidos, não como antigos, se não chegarmos a
procurar, recorrendo a todos os meios disponíveis, uma
união de mente e de coração mais generosa e mutuamente
enriquecedora. A amizade definha e morre, quando, por um
motivo ou outro, duas pessoas não mais se interessam nem
se preocupam uma pela outra. Do mesmo modo, duas
pessoas, embora não se tenham encontrado durante meses
ou anos, mas nutram interesse e preocupação uma pela
outra, podem manter a amizade e fazê-la reflorescer no pri-
meiro encontro.
Além disso, uma verdadeira relação transforma dois "eus"
em um único "nós", sensível e corresponsável pelos outros,
em todas as circunstâncias. Cada um sabe que certa
comunhão de gostos e interesses é uma necessidade quando
duas pessoas pretendem estabelecer relação duradoura;
devem possuir "algo em comum". Mas, até que esta não leve
à corresponsabilidade, e a uma ação conjunta pelos outros, a
relação não terá futuro. Eis porque pais, educadores, e os
próprios jovens devem criar condições para que rapazes e
moças, meninos e meninas possam desenvolver uma
atividade em comum — trabalhos acadêmicos, sociais, ou
atividades congêneres. Se se encontrarem apenas em
relações "eu-tu" artificiais de namoro, sem chegarem à
dimensão do "nós", as dificuldades em estabelecer relações
autênticas tornar-se-ão agudas.
De fato, as relações mais sólidas e vitais nascem, em geral, da
corresponsabilidade e da ação para atingir determinada meta,
e continuam "orientadas para uma tarefa", pelo menos no
sentido amplo do termo: interesse comum concreto pelo
progresso humano e pelo futuro do Reino de Deus. Além
disso, as verdadeiras relações são abertas; os dois desejam
viver unidos, um servindo ao outro, sem chegar, porém, ao
exclusivismo. A "comunhão embrional", que eles cons-
tituem, está a serviço de uma "comunhão" mais ampla com
um grupo ou com uma comunidade, da qual recebem o
necessário vigor. O fato de se colocarem a serviço um do
outro fá-los abrirem-se, em mútuo interesse, pelo desejo de
acrescer não apenas o próprio bem-estar, mas também, de
um modo ou de outro, para promover o desenvolvimento
de todos aqueles pelos quais são responsáveis. Uma amizade
entre dois homens, por exemplo, que leve qualquer dos dois
a negligenciar suas relações com a própria esposa, é amizade
imatura. A amizade entre um sacerdote e uma mulher
casada só será autêntica quando auxiliar ambos a cumprir os
próprios deveres.
Tal sentido de responsabilidade em nosso amor se faz tanto
mais necessário quanto mais a vida moderna, e nossa melhor
compreensão do ideal cristão, vem facilitando a criação de
relações não estruturadas nem circunscritas pelo
convencionalismo social. Se os casados, os solteiros c os que
escolheram a vida celibatária "por amor do reino" desejarem
criar amizades, elevem aprender a se tornar cada vez mais
sensíveis às condições humanas de cada pessoa, colhendo
todas as ocasiões para praticar o amor como um dom de
Deus que há de ser cultivado no contexto do ágape divino e
de seu plano de edificar uma Igreja-co-munhão-de-amizade.
Todo o processo na formação de relações antênticas deve
fundamentar-se na realidade; realidade constituída por
pessoas individualmente consideradas, nas circunstâncias em
que vivem, dotadas de peculiares capacidades de relação e
responsabilidades; realidade da condição peculiar de cada
pessoa; realidade do amor e do plano de Deus.
Toda relação profunda envolve, portanto, de qualquer
forma, uma decisão. Muitos romances se escreveram sobre
pessoas irresistivelmente atraídas uma pela outra, que não
conseguiram evitar de se apaixonar uma pela outra. Certo é
que não podemos sondar as profundezas deste mistério que
é o amor. Mas sabemos que o amor é realmente doação
livre; não pode ser forçado nem mesmo por atrativos
pessoais. Deve ser dom do coração, entendido em sentido
bíblico, como núcleo vital da nossa personalidade, e centro
de nossas decisões. Em dado momento, deveremos decidir-
nos livre e responsavelmente pelo amor, se quisermos que
nossa vida seja autêntica.

Quantos amores?

Tolslói coloca nos lábios de Ana Karenina, quando procura
convencer seu amante de que não o ama menos porque
ama seu filho, estas palavras: "todo amor é infinito". E é
realmente assim, pois toda relação autêntica, todo
verdadeiro amor e, sui generis, encontro único entre duas
pessoas singulares. Se tenho verdadeira amizade por Fulano,
esta há de possuir cambiantes que a diferem da amizade que
tenho por Sicrano, de tal forma a excluir qualquer in-
terferência entre ambos. Somente as relações espúrias ou
falsas podem ser conflitantes: se procuro "conquistar" Maria,
ficaria tremendamente magoado se outro tentasse o mesmo.
Mas se procuro ser bom amigo para ela, ficarei contente se
ela tiver outro amigo sincero.
É verdade também que, amando, adquirimos maior
capacidade para amar. O adolescente, quando começa a
perceber que seus pais são pessoas, não apenas "pais", e
procura amá-los como tal, está no bom caminho para poder
amar de maneira interpessoal, tanto nas amizades como no
namoro; os esposos, que lutam pelo verdadeiro amor no
matrimônio, descobrem em si mesmos, disposição muito
maior para a amizade e o amor em relação aos filhos. Assim,
à medida em que progredimos no amor, tornamo-nos cada
vez mais capazes da verdadeira amizade. É óbvio que vários
fatores como tempo, saúde, distâncias, limitam a
possibilidade de entrelaçarmos todas as amizades que
desejaríamos. Mas podemos sempre entrar no círculo de
relações sem limites, desprovidas de particular exigência, nas
quais cada um se dispõe a doar e a receber, a compartilhar
satisfações e responsabilidades, toda vez que se apresenta
ocasião concreta. Além disso, ninguém se iludirá pensando
ter coração aberto para o outro, se raciocinar assim: "Já
fechei o círculo de meus amigos verdadeiros, com os quais
pretendo entrelaçar relações autênticas; não posso mais
abrir-me para nenhuma outra amizade".
Muitos julgam impossível semelhante abertura para o
homem da cidade; outros, embora admitindo esta
possibilidade, consideram-na indesejável. Devo tratar como
pessoa quantos encontro cada dia; mas tenho o direito de
escolher aqueles com os quais desejo entrelaçar relações
mais íntimas. À maioria destas relações devem, pois,
reduzir-se a encontros de negócios, nas quais nenhuma das
partes deseja ou espera algo mais caloroso ou pessoal.
Julgo necessário, neste ponto, distinguir entre amor e
familiaridade, isto é, conhecer todos os fatos c sentimentos
do outro, tomar a liberdade de visitado inesperadamente em
qualquer hora — atitudes estas que tornam geralmente
desagradável a vida em lugarejos, em pequenas cidades, e em
alguns bairros das grandes aglomerações urbanas: isto não é
indispensável para uma verdadeira abertura ou para criar
autênticas relações pessoais. Poderá, talvez, acontecer em
determinadas relações e circunstâncias, embora até mesmo
marido e mulher não necessitem saber tudo o que se passa
com o outro, nem tomar a liberdade de se intrometer
continuamente na intimidade do outro. Em muitos casos,
esta familiaridade pode não encerrar nenhuma verdadeira
relação nem a ela conduzir. Uma tagarela de aldeia, que sur-
preende todas as manhãs suas vizinhas para tomar café com
elas, talvez nunca chegará a uma relação pessoal com
nenhuma delas.
Uma verdadeira abertura, ou a calorosa simpatia, não exigem
este tipo de familiaridade para o qual grande número de
pessoas, tanto da cidade como do campo, não dispõe de
tempo nem se sente inclinada. Por outro lado, como
sabiamente afirma o livro Towards a Quaker View of Sex,
"vida social exige, terminantemente, o calor do contato e da
intimidade pessoal. Vemos, em toda parte, exemplos de
sociabilidade sem a procura destes contatos, e, em nossas
cidades, pode coexistir a multidão que se atropela com o
isolamento e a solidão mais profunda. Vemos energias
humanas, que deveriam estar a serviço da criatividade e do
amor, fechadas em atividades que miram friamente à auto-
afirmação; vemos o amor inibido, frustrado e negado,
voltando-se para o oposto: a crueldade e a agressão".
Parece-nos, pois, necessário amar com todo o calor possível,
sem pôr limites à extensão e ao grau de intimidade, e sem
fechar-se à possibilidade de novas relações ou de um
desenvolvimento mais profundo das já existentes.
Além disso, como anteriormente dissemos, o cultivo de
autênticas relações com muitas pessoas reduz ao máximo a
possibilidade de concentrar todo o nosso impulso afetivo em
uma só pessoa, fazendo com que ela tome o lugar de Deus
em nossa vida. Parece, pois, necessário a multiplicidade das
relações na vicia celibatária abraçada "por amor do reino".
Isto é também indispensável na vida do solteiro, que pensa
em se casar. A objeção contra um noivado precoce não se
fundamenta, somente, na possibilidade de levar a
experiências sexuais pré-matrimoniais, mas também no fato
de impedir que os jovens adquiram experiências de si e dos
outros através de uma variedade de relações, experiência
esta muito desejável antes do engajamento matrimonial.
(Todavia, alguns jovens podem ser incapazes de entrelaçar
verdadeiras relações se não conseguirem o necessário
sentido do próprio valor mediante a segurança que lhes
proporciona um noivado a longo prazo. Destarte, cada caso
deve ser julgado singularmente).
Para os casados, suas relações de esposos deveriam ter,
obviamente, uma função única e central; cultivá-las no
âmbito do próprio relacionamento com Deus, deveria ser a
preocupação primordial e contínua. Duas pessoas não
podem, porém, existir "completamente, em todos os
sentidos, uma para outra". Crer que isto seja ideal é criar um
misticismo platônico em torno do matrimônio. Toda relação
entre esposos é única porque existente entre duas pessoas
exclusivas, que doam, reciprocamente, os vários aspectos da
própria personalidade integral. Alguns casais vivem
satisfatoriamente, sem mesmo sentir necessidade, por
exemplo, de um nivelamento intelectual que outras pessoas
de mentalidade diferente poderiam considerar
indispensável.
Destarte, também o contexto matrimonial exige
multiplicidade de relações. Os casados necessitam cultivar
outras relações de amizade, com homens c mulheres, para o
desenvolvimento do mútuo amor conjugal, bem como da
personalidade dos seus amigos. Destas relações, algumas hão
de ser obviamente compartilhadas tanto pelo marido quanto
pela mulher. Outras, porém, serão condivididas somente no
sentido de que marido e mulher poderão oferecer ao
relacionamento matrimonial o enriquecimento que delas
deriva. Se marido e mulher têm, por exemplo, profissão
diferente, cada um criará amizade entre os colegas de
profissão de ambos os sexos, com os quais o outro cônjuge
terá pouco em comum; isto não se deve deplorar; antes, há
de ser encorajado, contanto que a relação matrimonial
continue sendo o centro de tudo.
Assim, a forma de vida afetiva do cristão casado é diferente
das manifestações de afeto daqueles que optaram pela vida
de celibato ou de virgindade consagrada. Todos os cristãos
podem, conscientemente, procurar em Deus o próprio "tu"
final, encontrando estabilidade e força, para todas as suas
relações, neste sustentáculo supremo da vida humana. O
cristão casado escolheu outra pessoa humana, não para ser o
seu "tu" neste sentido externo, mas para viver com ela e por
ela como "dois em uma só carne", isto é, em comunhão total
e singular, que implica a união de sexo e de vida. Mas
aqueles que se engajaram em um estado de vida celibatário
"pelo amor do reino" renunciaram à possibilidade de
escolher uma pessoa humana para ocupar esta função em
suas vidas. Podem adquirir maior disponibilidade para outras
relações, pois não possuem este engajamento centralizado,
nem sua complementação normal, o compromisso da
paternidade, ao qual todos os outros devem ser referidos.

O mesmo pode-se dizer de muitas outras formas de vida
celibatária. Quem não se engajou no matrimônio nem no
celibato consagrado, forçosamente carecerá daquela
estabilidade que estes engajamentos proporcionam, e não
provará a sensação de uma vida afetiva definitivamente
resolvida. Existe, porém, a possibilidade de conseguir uma
espécie de equilíbrio dinâmico, na própria tensão criada por
esta falta de engajamento afetivo. Se o solteiro, homem ou
mulher, evitar uma espécie de estabilidade prematura e falsa
em determinada relação (com os pais, com outro parente,
com amigo ou amiga), procurar viver cultivando as relações
que a sua situação concreta lhe proporciona, e permanecer
aberto para possíveis relações futuras, pode-se dizer que seu
comportamento é profundamente real. Sua vida pode
apresentar as mesmas possibilidades de crescimento no amor
que oferecem o matrimônio ou o celibato consagrado,
embora tais perspectivas sejam mais difíceis ainda de serem
atuadas do que naqueles outros estados de vida que possuem
formas emotivas mais claramente definidas.

Destarte, os vários "estados de vida" são realmente
diferentes: a carga afetiva deveria se diversificar em se
tratando de casado, de solteiro, ou de pessoa que escolheu a
vida celibatária "por amor do reino". Porém, todos estes são
estados de vida cristãos. Em qualquer condição, nosso
destino é procurar a Deus, cultivar as atitudes e as
verdadeiras relações de amizade, conquistar mais amor em
todas as nossas ações. Em qualquer estado, pode o cristão,
embora com dificuldade, lentamente, sujeito a muitos erros
e fracassos, aprender a amar e realizar as obras do amor. E
quanto melhor aprendermos a amar, tornaremos menos
difícil para os outros a tarefa de viverem no amor.
Nesta vida, sofrimento e trabalho estão sempre implicados
em nosso amor, mas também alegria e satisfação. Não
podemos esperar que os outros amem perfeitamente, em
medida maior do que nós mesmos amamos. Todos estamos
em busca da maturidade; ainda não a atingimos. Estamos
procurando sair de nós mesmos, e vencer nosso egoísmo,
mas necessitamos de conversão contínua. Cada qual à seu
modo, e em grau diferente, participamos da mesma luta para
colocar a sexualidade e o impulso afetivo a serviço do amor
(e a idéia de que esta luta se tornará mais fácil com o passar
dos anos é pura veleidade; poderá tomar aspectos diferentes,
em determinadas pessoas, mas só cessará se deixarmos de
nos interessar pelas vicissitudes da vida). Mas, neste esforço
de amar plena e humanamente, estaremos lançando as bases
do reino, da sociedade de amor, que é o desígnio supremo
de Deus para a humanidade.

7. A VIDA DE SOLTEIRO COMO VOCAÇÃO
AO AMOR

Os autores católicos, que tratam da vocação religiosa,
costumam distinguir três "estados": a vida sacerdotal e
religiosa (celibato), a vida matrimonial, e a vida de solteiro
"no mundo". Tais distinções não correspondem, exatamente,
à realidade, pois os sacerdotes e os religiosos não se destinam
a viver "fora do mundo", e o sacerdócio não se vincula
essencialmente com o celibato. Razão por que melhor seria
falar de vida de solteiro não engajado, vida celibatária
escolhida, "por amor do reino", e vida matrimonial.
Até há trinta anos, somente o segundo "estado", constituído
pela vida sacerdotal e religiosa considerava-se como
vocação, como chamamento de Deus para servi-lo de
maneira especial. Nas últimas três décadas, o matrimônio foi
gradualmente admitido como vocação. Estes dois modos de
vida foram altamente institucionalizados em muitos
aspectos; motivo por que devemos estudar as mudanças a
serem introduzidas no sistema estabelecido, teórico e práti-
co, a fim de reconduzirmos a vida consagrada e o matri-
mônio a seu conceito primordial, como modalidades da
única vocação cristã ao amor; é o que procuramos fazer nos
três capítulos seguintes.
Considerando que a vida de solteiro, não especificada por
compromisso matrimonial ou celibatário, nunca foi
institucionalizada, lícito é dizermos que os solteiros são,
hoje, os membros da Igreja mais livres e desobstruídos de
esquemas e regulamentos, capazes de criar estilos de vida
cristã consentâneos com as necessidades atuais. Até hoje,
contudo, as várias formas de celibato sem compromisso não
foram consideradas como aspectos da vocação cristã ao
amor. O número de adultos solteiros, que vivem fora do
contexto familiar, ou de qualquer instituição, foi crescendo
de tempos para cá. Vários fatores levaram a isso. Por
exemplo, a possibilidade de vida autônoma, conquistada
pelas mulheres, a decomposição da unidade do núcleo
familiar, o crescente número de separações conjugais, e a
proporção elevada de pessoas idosas, sobretudo mulheres, na
sociedade atual. A doutrina cristã continua, entretanto,
refletindo a estrutura social dos velhos tempos, quando as
pessoas ou se casavam muito cedo ou abraçavam o sa-
cerdócio ou a vida religiosa, ao passo que os que não se
casavam, nem emitiam profissão religiosa, permaneciam
amparados péla família ou se agregavam a uma instituição
eclesiástica.
Constatava-se, então, que o ensino religioso católico, nas
escolas superiores, incluía um capítulo sobre a vocação ao
matrimônio, ao celibato consagrado e à virgindade, mas
omitia qualquer referência sobre a vida de solteiro e, quando
o fazia, considerava-a como período de transição. Surgiram,
assim, os consultórios destinados a preparar e orientar
noivos e cônjuges para a missão do matrimônio. Seminários
e noviciados formam candidatos ao sacerdócio e à vida
religiosa, ao passo que as próprias estruturas institucionais
oferecem subsídios para bem viver esta vocação. Parece,
contudo, existir escasso interesse pelos católicos solteiros;
ninguém se preocupa em ajudá-los a viver o próprio celibato
como verdadeira vocação, embora todos os jovens, pelo
menos por certo período, devam passar por este estado,
muitos nele permaneçam durante período
consideravelmente longo, e alguns, por toda a vida.
A sociedade, geralmente, dirige a quem ultrapassou os vinte
e cinco anos, a seguinte observação: "Que pena, não
encontrou ainda a pessoa que lhe convém!" Eis por que
muitos católicos solteiros têm impressão de que a Igreja os
inclui entre os que "fracassaram na própria vocação".
Ao mesmo tempo percebem eles, em toda a sua extensão, o
conflito entre as normas tradicionais da moral c a
mentalidade moderna, que é muito indulgente no tocante ao
sexo. Aumentou consideravelmente o número de relações
pré-matrimoniais e extraconjugais, nas últimas décadas, e a
classe média deixou de considerar a virgindade como
indispensável para ser "boa menina" ou "bom rapaz".
Além disso, toda forma de celibato tornou-se árdua nos dias
que correm, seja pela exploração do sexo na cultura de hoje.
seja pelas descobertas que colocam em evidência seus
valores humanos. Os cristãos celibatários não podem
permanecer insensíveis a todos os estímulos sexuais a que os
expõem os meios de comunicação. Mas, em se mostrando
sensíveis às obras dramáticas, à literatura e às correntes do
pensamento moderno, não podem ignorar os reais valores
do sexo, e será muito difícil não se persuadirem de que sua
adesão às normas da moral sexual cristã significa deixar fugir
a única oportunidade para se realizarem como pessoa.
Quase insustentável tornou-se a posição dos celibatários,
pois vigoram ainda certas normas tradicionais, que inculcam
a necessidade de ignorar o sexo ou de lutar contra ele como
sendo o melhor modo de o cristão enfrentar o problema. A
muitos, essa atitude se afigura como batalha perdida desde o
início, que acarreta a destruição da amizade com Deus. Para
outros, o resultado pode ser a supressão do afeto,
provocando sérios danos em seu estado emocional, ou, pelo
menos, o enfraquecimento das energias psíquicas, e o
fechamento em uma solidão cada vez maior. Resultaria,
então, este dilema: ou viver na amizade com Deus, ou
perder contato com as pessoas. Para muitos, mais difícil se
torna ainda a situação porque são obrigados a viver fora do
ambiente familiar. Nada existe, na vida quotidiana, que os
convide a sair da própria solidão, ou que a mitigue. (Os
autores deste livro casaram-se quando tinham
respectivamente 44 e 30 anos; por isso, falam por
experiência vivida).
Esperamos, portanto, que este livro possa auxiliar a
promoção dos valores da moral cristã, de tal forma que
apareçam humanos e dignos de serem defendidos mais do
que o foram no passado, quando a maioria, pressionada pelas
necessidades e pelas interrogações da época, ancorada no
medo de transgredir um tabu, outra resposta não tinha senão
essa: "A Igreja diz que isso é pecado". E nutrimos a
esperança de que este livro apresente a obrigação de
aprender a amar como um compromisso de pessoas
humanas completas, como esforço louvável e vital, de tal
forma que as limitações e os interditos sejam apenas con-
seqüências de um aspecto do engajamento positivo em amar
e em agir por amor.
Sem dúvida, também as pessoas com as quais mantemos
qualquer relacionamento, devem aprender a amar. Muitos
apresentam-se mais ou menos cônscios desta necessidade,
ou de alguns aspectos que à especificam; outros não têm
nenhuma consciência deste dever. Quem quer que possua
alguma noção do que seja amar, e da função própria do sexo
no amor, não pode pretender atitudes sempre compreen-
sivas por parte daqueles a quem deseja oferecer o próprio
afeto. Podemos muitas vezes colocar-nos na embaraçadora e
difícil posição de quem deve dar testemunho do amor sem
nada receber; isso não raro acontece nos círculos de
amizade em que tentamos ser admitidos e bem recebidos.
Por outro lado. onde quer que encontremos respeito,
simpatia e interesse pelo outro, aí descobriremos sempre
uma atmosfera de amor, embora impensada e implícita.
O cristão não deve, portanto, julgar-se munido de princípios
de fé para dar combate ao mundo, à carne, ao demônio.
Deve, antes, julgar-se como um aprendiz na arte de amar.
Procurará adquiri-la não somente nos ensinamentos de
Cristo, mas também nos mestres da sabedoria humana, e em
companhia de outros discípulos. A arte de amar exige luta
contra a negação do amor em nós, nos outros, nas institui-
ções, na organização da sociedade. Como cristãos, temos a
vantagem da fé e da esperança no poder absoluto do amor;
temos a graça para amar, que nos c concedida por Cristo.
"O Espírito Santo, em cuja virtude amamos, pode ser doado
por Deus mesmo aos que não pertencem ao cristianismo
histórico. O cristão, entretanto, conhece algo imensamente
importante, que outros não chegam a perceber: o reino de
Deus, a graça e a misericórdia. A capacidade para amar o
próximo em espírito e verdade não deriva de suas forças,
mas do poder que Cristo lhe dá através de sua graça.
Tudo isso é certo. Cumpre, todavia, dizer que este
conhecimento não é como saber que os três ângulos de um
triângulo equivalem a dois ângulos retos. Trata-se, antes, de
conhecimento igual ao que temos de nossos pais.
Poderíamos até dizer que uma criança, que cresce sem co-
nhecer seus pais, somente por esta falta de conhecimento se
diferencia do resto da humanidade. Mas é óbvio que
semelhante conhecimento, ou a falta dele, não constitui para
ela apenas um problema teórico de informação: é algo capaz
de alterar toda a sua existência.
O cristão consciente espera, sem restrições, a vinda do reino
de Deus, isto é, o triunfo definitivo do poder do amor;
possui aquela intuição fundamental e indispensável de que
este poder do amor outra coisa não é senão o Espírito de
Cristo. Em definitivo, a caminhada do gênero humano para a
formação dc uma comunidade de amor deve ter, na
vanguarda, aqueles elementos que possuem esta esperança e
esta visão.
Os cristãos não ignoram, também, que Deus conhece de que
matéria somos feitos, e que somos principiantes na arte de
amar; razão por que ele não pretende que sejamos perfeitos
desde o início. Devemos recordar que a "virtude" não nasce
conosco; cumpre-nos conquistá-la. Mulher ou homem
virtuoso não é quem jamais errou, em matéria de
comportamento sexual, e, menos ainda, quem não fracassou
em seus afetos; virtuoso é quem, após anos de esforços, e
com o auxílio de Deus, conquistou gradualmente uma
capacidade para amar de maneira cada vez inais plena e
perfeita.
Nem mesmo a virgindade, em seu sentido cristão mais
profundo, deve ser conservada como fenômeno físico que
pode ser irremediavelmente perdido, e cuja perda fora do
matrimônio implique, também, uma necessária ausência de
"virtude". Quando o Apocalipse fala daqueles que não se
contaminaram com mulheres, que permaneceram virgens, e
seguem o Cordeiro para onde quer que vá (14.4-5), não se
refere às pessoas que nunca tiveram contato sexual, mas
àqueles que, segundo a expressão do Antigo Testamento,
não "fornicaram seguindo falsos ídolos". Virgindade significa
sentimento puro de amor para com Deus e o próximo, cujo
exemplo mais sublime é a Mãe de Jesus, virgem não só
fisicamente, mas também neste sentido profundo. "Puro de
coração" é quem procura amar a Deus e aos homens com
sinceridade. Deus é quem "ama e reintegra a inocência",
porque, quando nos afastamos intencionalmente do amor,
ele nos ajuda a reencontrá-lo; restitui-nos sempre a graça,
quando a desejamos, para tornar-nos capazes de maior
pureza de coração e de sinceridade mais transparente em
nosso amor.
Convidar os cristãos solteiros a crescer no amor, reconhecer
a própria sexualidade, e procurar colocá-la a serviço de todas
as suas relações e atos de amor, significa incentivá-los a
abandonar as torres de niai fim, reais ou imaginárias, em que
se acham fechados; é convidá-los a viver no mundo real
como seres humanos, enfrentando os riscos inerentes à
condição de homem e outros peculiares a quem deseja viver
o celibato como aspecto da vocação cristã ao amor. Mas, o
convite a amar faz parte do mandamento de Cristo a todos
os seus seguidores. O Senhor não pode deixar de desejar que
o aceitemos, embora seja incerta e imperfeita a nossa
vontade em cumprí-lo.
Há muitas espécies de celibato. O celibato de um jovem
universitário, ou de quem, pe'a primeira vez, encontra um
emprego, é bem diferente daquele do adulto, para quem as
possibilidades de matrimônio parecem diminuídas ou talvez
mesmo esgotadas; há, também, o celibato das pessoas que
deixaram de lado a idéia de casamento para mais livremente
se dedicarem ao próprio trabalho, ou em virtude de uma
situação familiar. Estas modalidades se diferenciam ainda das
que caracterizam a posição do viúvo e do desquitado. E
todas elas assumem peculiaridades bem diferentes, em se
tratando de homem ou de mulher.
Nestas múltiplas formas de celibato, como, aliás, em todos os
outros modos de vida, o risco de não amar é maior do que o
risco de amar. Quem quiser amadurecer como solteiro, isto
é, viver e crescer, há de se esforçar para criar muitas
relações de amor, sem se isolar; para agir com mais amor,
sem se abandonar à convicção de que o "verdadeiro" amor
seja somente o afeto entre esposos, e implique,
necessariamente, a união sexual. Assim fazendo, a
dificuldade principal dos jovens consistirá em explorar as
várias relações, inclusive as que lhes podem oferecer
possibilidade de matrimônio, reservando sempre a entrega
total de si mesmos para o dia em que se julgarem
completamente amadurecidos e até encontrarem a pessoa
adequada a quem fazer e de quem receber esta doação
completa. Igual dificuldade se apresenta quando nos
esforçamos em prosseguir, corajosamente no amor, toda vez
que constatamos nosso erro quando o dom integral de nós
mesmos não recebeu nenhuma correspondência por parte
da pessoa amada. Tais dificuldades subsistem à medida que
os anos passam; aliás, a tentação de nos resignar perante o
fato de que "a vida foge", tende a progredir rumo ao
fechamento em nós mesmos, fazendo-nos recusar o contato
com outras pessoas, e fugir de novas relações, não só pelo
temor de outros malogros, mas também porque cultivá-las
exigiria excessivo esforço.
Do mesmo modo, a vida dificílima de um católico
desquitado, com ou sem prole, sofre a grande tentação de
procurar refúgio em relações irreais ou superficiais, ou de se
isolar na solidão. Por maior que seja o esforço exigido, é
necessário dispor-se a aceitar outras relações, para continuar
a crescer no amor, nelas e por elas.
Assim, também, os viúvos e as viúvas, em qualquer idade,
não devem ter a sensação de que a vida tenha terminado, e
que a razão de sua existência sejam apenas os filhos e netos.
Conhecemos pessoas que, embora mais idosas, apresentam-
se tão vivazes e dispostas a aceitar qualquer relação nova que
se lhes ofereça, tão abertas para o presente e para o futuro,
que não só os coevos, mas também os mais jovens procuram
a sua companhia. A arte de amar é tal, que se pode praticar
em qualquer idade; sabemos que isso é possível porque há
pessoas que o realizam.
O professor O'Malley, de Notre Dame, que se conservou
solteiro, costumava dizer aos alunos: "Se vos casardes, ou se
permanecerdes solteiros, sempre havereis de arrepender-
vos". Era um modo espirituoso de afirmar que todo gênero
de vida possui suas dificuldades. As que apresenta a vida de
solteiro são bem conhecidas, mas" raramente se consideram
as potencialidades deste estado. O "testemunho" peculiar
que um celibatário ancião pode oferecer aos outros
membros da Igreja acha-se muito bem expresso em um ro-
mance, publicado em 1876, escrito por uma solteira de
quarenta e oito anos. A protagonista é uma viúva sem filhos,
vítima de um matrimônio fracassado; sua lüha adotiva
acabara de se unir em feliz matrimônio com o homem que a
própria viúva esperava ter como esposo.
"Que consolação para ela se fôssemos duas solteironas; se,
olhando para nós. pudesse dizer: 'Eis duas mulheres
fracassadas como eu, cada uma a seu modo!' Entretanto,
nenhuma de nós faliu na vida. Penso que seja esta a bênção
que somente nós, mulheres, representamos, e a grande
razão de nossa existência. Cada um observa que perdemos,
como diz o povo, uma notável porção de vida; mas as perdas
que sofrem aqueles cujas relações aparecem, por fora,
perfeitamente realizadas, ficam escondidas no segredo do
coração. Porém, se corajosamente enfrentarmos as provas
que o destino nos oferece, todos poderão constatar que não
somos absolutamente criaturas incompletas, e que, apesar de
tudo, existe ainda em nós uma verdadeira vida".
É exato falarmos de "testemunho", referindo-nos ao cristão
que escolheu o celibato como engajamento estável. Mas o
testemunho de um cristão celibatário sem votos, que vive
plenamente seu ideal, embora sem nenhum compromisso
estável, pode ser igualmente importante perante os esposos,
os sacerdotes, os religiosos e os outros solteiros.

Necessidade de uma formação comunitária

Todos os membros da Igreja os que escolheram o celibato
sem particular engajamento, bem como os sacerdotes, os
religiosos e os cônjuges, necessitam de colaboração
recíproca para que a própria vida corresponda à vocação do
amor. Além disso, uma comunidade de amor deve,
obrigatoriamente, incluir, no próprio ministério, o serviço
àqueles que não possuem família, nem se afiliaram a uma
comunidade religiosa.
Exigem-se, portanto, duas espécies de esforços: o trabalho
educativo e a criação pastoral (no sentido mais vasto do
termo). Ao concluir esta obra, enfrentaremos o problema da
"educação sexual" e dos "cursos matrimoniais", estendendo
estes conceitos à formação para o amor, que inclui os
elementos vários, esboçados neste livro: a vocação ao amor,
a função do afeto, do sexo e do corpo; o sentido de
crescimento na capacidade de agir por amor, e de amar com
maior profundidade; a necessidade de aprender a amar,
cultivando várias relações de amizade. Cumpre indicar com
clareza as perspectivas e as dificuldades em levar a bom
termo esta vocação, no matrimônio, na vida de celibato
temporário, permanente, engajado ou sem engajamento.
Acima de tudo, é mister convencermo-nos de que Deus
deseja que aprendamos a amar, e que nenhum cristão fica
abandonado neste esforço, pois pertence a uma comunidade
que mira exatamente a "edificar-se no amor".

Se se desse aos adolescentes, com maior largueza, essa
formação para o amor, iniciariam eles os estudos superiores,
ou a vida profissional, com noções adquiridas sobre a
maneira de enfrentar os problemas da vida e do mundo
afetivo. Vivendo muitas vezes fora do contexto familiar, não
preparados para a liberdade, abandonados a si mesmos,
sentem particular necessidade de encarar este período de sua
vida não como um inexplicável e aventuroso labirinto, mas
como período de especial oportunidade para se
enriquecerem integralmente. Se compreendessem melhor a
própria vocação, poderiam, sem restrições, aceitar como
objetivo principal deste período, o crescimento na
compreensão de si e dos outros, a conquista daquela destreza
e experiência indispensável para assumir a própria tarefa na
edificação da Cidade Secular. Deveriam perceber, com mais
clareza, a necessidade de amadurecer antes de se julgarem
em condições de optar livremente pelo matrimônio e por
determinada pessoa. Se conseguirem algum conhecimento
em torno da função do sexo no amor, e do dinamismo das
relações pessoais, será menos fácil sujeitarem-se a
experiências sexuais e a um matrimônio sem amor,
induzidos por forças internas ou externas
Não queremos dizer que uma formação qualquer seja capaz
de aplainar as dificuldades deste período da vida. Mas a
educação para o amor, proporcionada através de colóquios,
filmes e outros meios, inclusive conselhos, pode ajudar
adolescentes e jovens a assumirem as responsabilidades
inerentes à própria vida, levando-os a orientar suas energias
e atividades para metas reais.
Devem, igualmente, as igrejas, colocar à disposição de seus
membros, todos os meios disponíveis paia essa formação,
mostrando a casados e solteiros que a vida pode ter sentido
humano e cristão, em todas as circunstâncias e condições;
que cada qual tem o dever de amar e de crescer no amor,
em qualquer situação que se encontre; que a perfeição é
possível, não importa qual seja o nosso estado de vida,
quando persistirmos na luta para aprender a amar, amando.
A esse respeito, poderão ser úteis os debates em grupo, as
leituras dirigidas, e coisas semelhantes. Além disso, serviços
vários prestados à família por diversas entidades e
consultorias pré-matrimoniais, podem, da mesma forma,
socorrer às necessidades dos celibatários, bem como dos
noivos e cônjuges. Há promissores movimentos, neste
sentido, que promovem encontros em vários ambientes,
agrupando os jovens e seus pais, a princípio separadamente,
depois em conjunto, para debaterem problemas referentes
ao amor e ao sexo.
Tais programas deveriam, também, levar em consideração as
necessidades peculiares de outros grupos, como os viúvos e
desquitados. Os últimos, em particular, mantêm-se
completamente marginalizados da vida católica, quando não
chegam mesmo a ser excluídos dela. Certos ambientes
consideram-nos como "maus católicos", e dão-lhes a
sensação de serem indesejáveis em vários tipos de
encontros. Já é tempo de compreendermos que também um
católico pode se achar em circunstâncias que o obriguem a
recorrer ao desquite — quando necessita de uma sentença
para decidir sobre a custódia dos filhos ou a separação de
bens — e que isso não implica rompimento de relações com
a Igreja. Pelo contrário, deixando de se unir novamente em
matrimônio, oferece testemunho heróico de sua fé na Igreja.
É hora também de as instituições eclesiásticas dedicarem
maior carinho e esforços para levar os separados e
desquitados a melhor conhecerem e tratarem seus
dificílimos problemas: problemas dos que se separam sem
filhos, da mãe jovem ou adulta que ficou sem arrimo, dos fi-
lhos que perderam a companhia e o afeto dos pais.
Tais esforços para oferecer a celibatários e casados a
possibilidade de realizarem a vocação humana e cristã ao
amor, devem caminhar pari passu com um trabalho de
formação de grupos multiformes e abertos, nos quais seja
possível criar verdadeiro afeto e amizade construtiva. Não
entendemos que o objetivo principal seja proporcionar
reuniões alegres a solteirões simpáticos, ou refúgio para
corações solitários; a meta é formar comunidades e centros
em que os participantes, desenvolvendo todas as formas de
vida cristã, tenham possibilidade de encontrar outras pes-
soas, de se comunicar e de agir em grupo.

Há muitos anos, uma professora aposentada. Miss Sarah
Benedicta O'Neil, freqüentava um salão que, naquele tempo,
era a única livraria de Chicago onde era certo encontrar
pessoa com quem trocar palavras, tomar chá, e comprar
livros pela metade do preço se o dinheiro estivesse curto.
Quantos jovens trabalhadores, e inclusive um dos autores
deste livro encontraram naquela livraria o calor do amor
cristão, capaz de encorajar um espírito solitário e desorienta-
do! Muitos centros como este existem hoje, mas outros mais
são necessários, nas universidades, em cidades e lugarejos,
em paróquias e agrupamentos sociais.
As atuais estruturas de paróquia seriam muito mais eficientes
para formar mentalidade comunitária verdadeira e aberta, se
a prática pastoral tivesse por objetivo reunir casados e
solteiros em um clima de fraternal companhia e de comum
trabalho. Mas é necessário criar mais que simples
organizações. Sente-se real necessidade de se constituírem
centros formados por grupos abertos para quantos estiverem
dispostos a estabelecer verdadeiras relações de amizade com
os outros, colaborando na criação de um clima propício
para o reflorescimento do afeto cristão. Em outras palavras,
casados ou não, devemos ajudar-nos mutuamente a criar
aquela comunidade no amor, de que participam "todos os
que se nutrem de um mesmo Pão".

8. O CELIBATO ESCOLHIDO "POR AMOR DO
REINO"

As palavras do Evangelho de S. Mateus, que proclamam a
vocação ao celibato "por amor do reino", acham-se
intimamente conexas com o ideal do matrimônio
indissolúvel. "Não separe o homem o que Deus uniu..."
"Dizem-lhe os discípulos: se tal é a condição do homem a
respeito da mulher, é melhor não se casar! Respondeu ele:
nem todos entendem esta palavra, mas somente aqueles a
quem foi dado... Há eunucos que a si mesmos se fizeram tais
por amor do reino dos céus. Quem puder compreender,
compreenda" (Mt 19,6-12). O contexto deixa bem claro que
o ideal do matrimônio é mais fácil de ser compreendido e
aceito, pois somente poucos abraçarão voluntariamente o
celibato por amor de Deus e do Evangelho. Alguns não
duvidam em afirmar que o ideal celibatário é mais
condizente com a moral sexual cristã; e esse seria o motivo
que induz a optar por aquele estado de vida como forma de
serviço a Cristo.
Em recentes debates sobre anticoncepcionais, a relação
entre matrimônio cristão e castidade foi colocada em termos
muito superficiais, que têm em conta somente a satisfação
sexual física. Diziam alguns sacerdotes moralistas: "Se somos
capazes de abster-nos do prazer sexual, também os cônjuges
conseguirão fazê-lo", pelo menos durante certo período. Por
outro lado, é interessante observar a reação negativa de
alguns leigos solteiros perante sacerdotes convictos de que a
vocação sacerdotal não inclui necessariamente um chamado
para o celibato. Mas, a correlação entre as diversas formas de
vida cristã deveria entender-se de maneira bem mais
profunda.
No tocante ao reino que Cristo veio fundar, a vocação ao
celibato "por amor do reino" tem por objetivo dar
testemunho da doação que Deus fez de si em Cristo, como
"tu" supremo da pessoa humana. Tão grande e real é este
dom, que o cristão pode transcorrer toda a vida sem o afeto
matrimonial, e nem por isso sentir-se-á frustrado ou
incompleto. É a vocação a dar testemunho da realidade
humana do amor cristão, da possibilidade efetiva de cultivar
relações plenamente humanas fora do âmbito da amizade
conjugal; vocação a amadurecer no amor e a ajudar os outros
nesta tarefa.
O ideal do celibato "por amor do reino" representa,
portanto, um fator de vital importância para a comunidade
cristã, seja pelo trabalho que o consagrado pode, ou poderia
realizar, seja pelo testemunho especial que lhe cabe dar
perante os homens. Se os cônjuges cristãos são chamados a
testemunhar, em especial, a fidelidade e a redenção que o
amor de Deus através de Cristo, oferece à humanidade, em
todas as vicissitudes da vida e do amor humano, os que se
consagram a Deus pelo celibato são chamados a dar
testemunho da realidade do amor de Deus, no amor
humano, e além dos afetos terrenos, nos acontecimentos do
mundo, e além das vicissitudes desta vida.
Todos os outros cristãos, casados ou solteiros, precisam deste
testemunho. Precisamos vê-lo e apreciá-lo em nosso
trabalho, na vida social, desde as cidades até as mais remotas
aldeias das montanhas, para sentirmos a amorosa presença
de Cristo no mundo, e o seu contínuo apelo ao mundo para
realizar obras de amor.
Grande e evidente é o contraste entre a mentalidade dos que
consideram a vocação sacerdotal e religiosa como abandono
do mundo e tentativa de negar o próprio dinamismo de vida,
esforçando-se por pertencer inteiramente a Deus, e a
concepção que encara o ministério sacerdotal e a vida
religiosa como apelo ao amor de Deus e do próximo a ser
realizado de maneira plenamente humana, como vocação
para executar no mundo o plano divino. Quatro itens
cumpre-nos mencionar, pela importância que representam
para o tema deste livro: a vocação à vida de celibato
consagrado é dom que não se concede a todos os bons
cristãos, nem mesmo à maioria deles; seguir esta vocação
não significa negar o afeto humano e o sexo, mas integrá-lo
no conjunto dinâmico da pessoa que busca o amor de Deus
e dos homens; esta vocação exige opção livre para servir a
Deus e às necessidades do Evangelho conforme a capacidade
de cada um e as especiais exigências da Igreja e da sociedade;
esta vocação requer muitos tipos de comunidade.

Esta vocação é um dom

No Novo Testamento, seja nos Evangelhos, seja nas cartas
de S. Paulo, põe-se em relevo que esta vocação é dom
especial; disto decorre, e é óbvio, que uma pessoa pode ser
cristã perfeitamente engajada sem ter recebido este dom.
Entretanto, durante muitos séculos, até recentemente, foi
convicção bastante generalizada na Igreja católica que o
estado normal para se levar uma vida plenamente cristã era o
sacerdócio e a vida religiosa. Considerava-se, geralmente, a
vida matrimonial como apanágio dos medíocres; não se
pode negar que muitos escritos, ainda em voga, sobre a
"vocação", proclamam explícita ou implicitamente estas
idéias.
Tal concepção é fruto de longo e complexo processo
histórico. Parece-me que se radicalizou quando terminaram
as perseguições, logo após a paz constantina, ocasião em que
muitos passaram a aceitar o cristianismo por motivos alheios
a uma profunda convicção pessoal. A vida cristã ordinária
começou a parecer muito pouco heróica, especialmente
depois que cessou a possibilidade de testemunhar o Cristo
mediante o martírio. Os cristãos fervorosos deram-se à
procura de um modo de vida cristã mais autêntico, e de um
sucedâneo do martírio. Um dos resultados dessa busca foi o
nascimento e a rápida difusão do monaquismo em toda a
Igreja, e o desenvolvimento, através dos séculos, de muitas
outras formas de vida "religiosa", apresentando-se todas,
cada qual à sua maneira, como renúncia ao matrimônio e ao
direito de dispor das coisas, como obediência a um superior
e renúncia à própria vontade.
Atualmente, em especial após o Vaticano II, a Igreja esforça-
se para pôr em evidência a vocação de todo cristão à
perfeição e a viver como "mártir", dando testemunho do
amor a Cristo na abnegação de si próprio. Embora os
escritores ascéticos tenham sempre afirmado, mais ou
menos explicitamente que somos todos chamados a sermos
"perfeitos como nosso Pai que está nos céus", muito
raramente o católico comum levou "a sério" este apelo.
Admitir que o fiel de Cristo orienta-se, por sua natureza, ao
amor. e a realizar na prática as últimas conseqüências dessa
afirmação, parece ainda agora, para muita gente, um fato
revolucionário.
Aquela antiga suposição segundo a qual todo fiel realmente
fervoroso devia desejar a vocação ao sacerdócio (celibato) ou
à vida religiosa, teve como conseqüência este fato: quase
todo católico que se sentia chamado a uma relação mais
íntima com Cristo e a servir os irmãos, considerava-se,
também, na obrigação de abraçar a vida sacerdotal ou
religiosa. Tal suposição foi prejudicial para o matrimônio,
reduzindo-o a um estado de segunda classe; obviamente,
prejudicou também o conceito de celibato "no mundo",
como se costumava dizer.

Foi, outrossim, nociva ao sacerdócio e à vida religiosa, pois
muitas pessoas julgavam-se chamadas a estes estados de
perfeição simplesmente porque desejavam ser cristãos mais
plenamente engajados, embora não tivessem aquela graça
particular que se exige para o celibato consagrado a Deus. (O
número elevado de líderes leigos, em vários setores da vida
católica, que passaram pelo seminário, está a testemunhar a
difusão deste fenômeno em passado não muito remoto).

Diga-se ainda que, à luz da vocação cristã, o dom necessário
para abraçar o celibato consagrado deve consistir, pelo
menos em nível psicológico, na capacidade de crescer e
amadurecer no amor, sem o normal auxílio do vínculo
matrimonial. O indivíduo deve estar em condições de
quebrar as cadeias do propilo isolamento, de aprender a
amar os outros nas relações pessoais, de colocar o afeto e o
sexo a serviço do amor, sem a comunhão que o matrimônio
oferece, sem um companheiro ou uma companheira para
executar as obras do amor, sem atenuantes para a solidão,
sem a experiência da união sexual, sem aquele incentivo a
crescer no amor, que decorre normalmente do matrimônio.
Como salientamos no primeiro capítulo, há muitos, hoje,
sinceramente convencidos de que seja impossível adquirir
maturidade e perfeição, humanamente falando, sem a
experiência do amor, que deriva da necessidade sexual. Mas,
todos conhecemos pessoas capazes de desmentir esta
convicção com a própria personalidade e a própria vida. É
realmente possível amadurecer como pessoa humana aberta
ao amor, mesmo vivendo no celibato consagrado, porque há
pessoas que conseguiram e conseguem tal objetivo neste
estado de vida.
Entretanto, é necessário um grau notável de
autoconsciência, de experiência, de maturidade inicial, para
que alguém se veja em condições de afirmar, realmente, se
recebeu, ou não, este dom, se é capaz, ou não, de aceitar a
renúncia ao matrimônio, e emitir um compromisso livre e
pessoal de "fazer a vontade do Senhor" e servir ao
Evangelho.
Deve ser claro para todos, inclusive para os candidatos ao
sacerdócio e à vida religiosa, que a graça do celibato
significa, exatamente, capacidade para abraçar a realidade do
amor cristão sem o matrimônio, que é sinal desta realidade e
instrumento oferecido à maioria dos homens para conquistá-
la. Atribuir ao celibato e à virgindade consagrada o devido
apreço, significa estimar também o matrimônio cristão.

Função do amor e do sexo na vocação ao
celibato

A suposição de que todo católico, sequioso de se engajar
seriamente como cristão, deva abraçar o celibato sacerdotal
ou religioso, conduz a outra deletéria conseqüência: muitas
pessoas que possuíam idéias erradas sobre sexo e
matrimônio, ou emocionalmente imaturas, foram levadas a
confundir a própria aversão ao sexo com o apelo ao celibato
consagrado. A preparação para a vida clerical e religiosa,
bem como as condições em que viviam os candidatos antes
de ingressar no seminário ou noviciado, tornaram muito
difícil aos sacerdotes e religiosos adquirir visão clara e
equilibrada da própria sexualidade e da função aue ela
representa em sua vida e nos seus afetos. A desconfiança
geral, que envolve a sexualidade, e o conceito negativo, que
se criou em torno da pureza (já nos referimos a isso no
início deste livro) levaram a julgar pecaminoso tudo que diz
respeito ao sexo, e inculcaram que a única atitude possível,
nessa matéria, era não pensar nisso.
Mais ainda, a suposta periculosidade atribuída aos afetos
profundos fez com que sacerdotes e religiosos perdessem a
coragem de tentar relações intensas de amizade com pessoas
do mesmo sexo e, a fortiori, do outro sexo. Isso significou,
para muitos, a morte da afetividade, com todas as torturas
psicológicas e as anormalidades que geralmente acompa-
nham tais catástrofes. Tentou-se, então, orientar este
impulso somente para Cristo (ou sua Mãe), decorrendo disso
um sentimentalismo malsão, uma piedade melosa e
inconsciente. E eis um dos resultados muito freqüentes
dessa situação: justamente aqueles que mais necessitavam de
maturidade emocional, e de exata orientação afetiva, para
corresponderem à própria vocação, eram obstaculizados
quando tentavam lançar mão de meios positivos a fim de
alcançarem este amadurecimento. Destarte, em vez de
testemunho do amor cristão, deram provas muito freqüentes
dos maus efeitos da falta de formação para o amor. Au-
toritarismo opressor, paternalismo (ou maternalismo)
excessivo, são vícios comuns que muitas vezes caracterizam
essa lamentável deformação. Outra falha pouco mencionada
é aquela inclinação ao flerte, imatura e quase ofensiva, que
caracteriza o comportamento de alguns sacerdotes junto às
mulheres com as quais mantêm contato no trabalho, nos
escritórios, nas comissões e outras atividades semelhantes.
Muitos seminários e noviciados começam a recorrer aos
testes psicológicos como critério para a admissão dos
candidatos. Mas, é mister promover uma formação
contínua, por exemplo, mediante debates em grupo e
orientações dos peritos em torno da função do sexo e do
amor na vida cristã em geral, no celibato consagrado e, em
particular, na virgindade. É também indispensável incentivar
a formação de relações interpessoais. Grande vantagem
adviria da promoção de cursos especiais para sacerdotes e
religiosos sobre estes temas . Isso traria enormes proveitos
não só para eles, mas também para as pessoas confiadas à
orientação ou instrução que eles proporcionam, bem como
para quantos lhes pedem o conselho sacerdotal.
Além disso, há ainda a necessidade de esclarecer aos pais e
demais responsáveis, incentivando-os a oferecer aos jovens
noções mais sólidas em torno do sexo, do afeto e do amor
cristão, a fim de que se capacitem para escolher o próprio
"estado" de maneira mais segura do que o faziam outrora.

A necessidade de liberdade

São Paulo ensina claramente que uma das razões pelas quais
o cristão se decide a abraçar o celibato é a libertação das
preocupações e cuidados pela família, para se colocar mais
frutuosamente a serviço do Evangelho (1 Cor 7,35-40). Mas,
nas atuais estruturas eclesiásticas, os sacerdotes (para não
falar dos seminaristas) e os religiosos são geralmente muito
menos livres que os leigos para servir ao Evangelho no
mundo de hoje. As dificuldades encontradas por muitos
padres na luta pela aplicação dos direitos civis, ou os
obstáculos em que se debateram muitas freiras, tentando
superar as formas medievais da clausura para se dedicar onde
a Igreja mais precisa de seu trabalho, são claros exemplos do
que afirmamos.

Psicologicamente falando, as pessoas que se consagram ao
celibato, mais ainda que os solteiros, necessitam desenvolver
a própria personalidade em ocupações apropriadas que, de
qualquer maneira, ofereçam um objetivo para o próprio
impulso criativo. Para o homem ou a mulher frustrados em
seu trabalho, o celibato dificilmente poderá ser um
engajamento completo no amor. Apesar disso, muitas vezes
acontece, nas dioceses e nas comunidades religiosas, que as
pessoas sejam tratadas como pecas de reposição; usa-se delas
conforme as necessidades do momento, e não como pessoas
que só servirão frutuosamente à Igreja se engajadas e
capacitadas para desenvolver e pôr em prática todas as suas
potencialidades.
Estas falhas nas atuais estruturas eclesiásticas parecem
responsáveis, em grande escala, pelo minguar dos candidatos
ao sacerdócio e à vida religiosa, e pela deserção em massa,
sobretudo nas comunidades mais iluminadas e progressistas;
aqueles que deveriam constituir o protótipo da liberdade na
Igreja, terminaram sendo as pessoas mais compromissadas
pelas estruturas. Muitos problemas complexos implicados na
modificação e na transformação das estruturas existentes,
visando favorecer a liberdade de que falamos, ultrapassam os
objetivos deste livro. Mas entre os fatores invocados para o
desenvolvimento das atuais estruturas, três fazem parte do
tema em questão.

O primeiro diz respeito ao conceito de obediência religiosa,
que suprime o impulso criativo e afetivo, em vez de orientá-
lo e desenvolvê-lo a serviço do amor. O conceito original de
obediência religiosa era a submissão do principiante na vida
espiritual a um mestre experimentado, que o ajudava a se
conhecer melhor, prevenindo-o contra a auto-sugestão e
favorecendo o seu crescimento na fé e no amor de Deus.
Mas logo descambou para a idéia de que a pessoa deveria se
comportar como instrumento passivo nas mãos do superior.
A tese de que a perfeição consiste em aceitar a vontade do
superior como sendo a de Deus, levou muitas vezes os
religiosos a abdicar às suas responsabilidades, impedindo o
desenvolvimento da pessoa. Esta mentalidade facilita o
caminho para a organização, mas se opõe frontalmente à
idéia cristã segundo a qual o homem, por vontade de Deus,
deve crescer para conquistar uma personalidade
inteiramente livre em uma comunidade de amor. Cumpre,
pois, reformular as estruturas eclesiásticas, para adaptá-las
aos valores que deveriam promover, tanto nos que se sub-
metem quanto nos detentores da autoridade. Em qualquer
caso, seja a autoridade, seja a obediência, devem favorecer o
crescimento para a liberdade própria dos filhos de Deus.
Em segundo lugar, muitas estruturas existentes tiveram
origem no temor do "mundo", em grande parte originário da
preocupação pelo sexo. Padres e religiosos devem se afastar
do inundo, e permanecer longe dele, sobretudo para evitar
os perigos contra a castidade. A este temor aliava-se a idéia
de que as mulheres não são pessoas, no sentido pleno da
palavra, motivo pelo qual devem ser colocadas a salvo e pro-
tegidas por muros e regras (feitas por homens), a fim de
salvá-las das garras dos homens que poderiam atentar contra
a sua castidade.
Como vimos, este não é o tipo eficaz de separação c
proteção de que necessitamos hoje. Aqueles que escolheram
o serviço de Deus, consagrando-se ao celibato, necessitam,
antes, que se lhes ajude a compreender a função do sexo e
do amor na própria vida, a orientar para o amor o impulso
vital de que são dotados; depois, devem ser deixados cm
liberdade, para seguirem a própria vocação "a serviço dos
homens". Isto se faz urgente em nossos dias, não só pelo
bem daaueles que seguem esta vocação, mas também de
toda a comunidade cristã e da sociedade. Precisamos do
"testemunho" das pessoas, que se consagram pelo celibato,
onde esse exemplo possa ser bem dotado: nas vicissitudes da
vida contemporânea, que exige vivamos e concretizemos a
obra do amor cristão; nas grandes cidades, nas universidades,
nos subúrbios, no campo, de dia e de noite. Muitos, dentre
os que seguem esta vocação, já se orientam para uma linha
de liberdade, c combatem os obstáculos que se lhes opõem.
Tais pioneiros, homens c mulheres, estão inaugurando,
assim o esperamos, uma nova era para testemunhar o
celibato consagrado no mundo.

Necessidade de vida comunitária

"Não é bom que o homem esteja só". Tais palavras aplicam-
se, também, ao cristão que se consagra à vida de celibato. A
resposta tradicional a esta necessidade de companhia e de
amparo foi a criação de comunidades religiosas. (Na tradição
monástica, o indivíduo deve passar por longo período de
aprendizagem na vida comunitária, antes de ser admitido à
vida ere-mítica, para viver sozinho com "o Único
Absoluto"). Infelizmente, muitos institutos religiosos
conceberam esta "comunidade" como uma vida lado a lado,
seguindo a mesma regra, mas percorrendo caminhos pa-
ralelos cuidadosamente separados, sem exigir esforço
dinâmico para edificar uma verdadeira comunidade de amor
cristão. O medo das "amizades particulares" — expressão em
voga, nos escritos ascéticos, para indicar toda relação pessoal
muito chegada — que poderiam afastar do amor de Deus e
fazer cair em pecados sexuais, tornou quase suspeito o afeto,
até mesmo entre membros de uma comunidade.
É evidente que as "amizades particulares", no sentido de
relações falsas e egoístas, são malsãs em qualquer estado de
vida. O homossexualismo foi, e ainda pode ser, um sério
problema nas comunidades religiosas; problema complexo,
que deriva de educação falha desde a infância, como
também de um tipo "fechado" de vida religiosa em que
faltam experiências emocionais externas. As comunidades
procuram melhorar as antigas condições, e começam a
constatar que não há como subsistir verdadeira comunhão
sem que seus membros se unam reciprocamente em várias
relações de amizade e de afeto — relações abertas, em largos
círculos, mas sempre verdadeiras e interpessoais. Não quero
dizer que o indivíduo deva se esforçar para amar todos os
outros do mesmo modo: cada membro da comunidade há de
ser aberto para todos os outros, de tal forma que possa
florescer uma variedade de relações.
Mas, considerando que os consagrados ao celibato têm de
enfrentar cada vez mais as situações reais da vida, vai se
tornando mais difícil conservar as formas tradicionais da
vida religiosa, comunitária: vinculação dos membros ao
mesmo esquema de vida, lontras horas dedicadas à oração
comum, etc. Em muitas circunstâncias, somente dois ou três
podem viver juntos, como acontece com o clero diocesano
e em algumas congregações de freiras devotadas ao ensino e
à assistência social. Em outros casos, mulheres que fizeram
voto de castidade deverão viver sozinhas, bem como muitos
celibatários, embora não engajados por votos religiosos.
É, pois, evidente que para abrir às múltiplas necessidades dos
que fizeram voto de castidade nos dias de hoje, a idéia de
comunidade religiosa estática, e de vida regular comum,
deve ceder passo a modelos mais dinâmicos. Tais cristãos
terão, assim, condições para se inserirem em muitos grupos
de amizade, de interesse e de trabalho, entre eles mesmos,
ou em companhia de outras pessoas, casadas ou solteiras.
Todos os cristãos sentem necessidade do testemunho
daqueles que se consagraram ao celibato; mas, para isso, é
indispensável poder encontrar outras pessoas consagradas
prestando a própria colaboração nestes vários tipos de
comunidade.
Fazemos votos que "sacerdotes, religiosos e leigos" não mais
se apresentem como três classes rigidamente separadas da
Igreja católica, e que, em virtude das relações humanas, e do
comum trabalho pelo Reino, possam todos colaborar para a
"edificação do Corpo de Cristo no amor".

9. O CASAMENTO COMO VOCAÇÃO PARA O
AMOR

A Igreja, em sua longa história, sempre considerou a
realidade humana do casamento, conforme as peculiaridades
dos povos e dos tempos: entre os Judeus contemporâneos de
Cristo, na civilização greco-romana do Cristianismo
primitivo, entre as tribos bárbaras que estavam sendo
cristianizadas, na sociedade medieval do Ocidente. O
casamento, naquelas sociedades, era uma instituição social
em que os valores pessoais pouco importavam e as mulheres
ocupavam geralmente posição muito inferior. (A idéia do
consentimento pessoal como constituindo a essência do
contrato matrimonial remonta à época tardia da civilização
romana, e foi julgada essencial ao casamento somente depois
de muita hesitação e raciocínio, e, mesmo então, numa
perspectiva legalista, que fez este consentimento "pessoal"
parecer impessoal). Tão logo a Igreja dirigiu seus esforços
para a conservação e o fortalecimento desta instituição, os
pensadores cristãos começaram a estudar o matrimônio a
partir da realidade em que viviam, e tentaram incorporá-lo
nos moldes da época: por isso, não surpreende que o seu
trabalho, até há bem pouco tempo, tenha sido muito
impessoal e institucionalizado.
A repugnância e desconfiança em torno da sexualidade, tão
dominantes no pensamento cristão, fizeram o casamento
parecer um estilo de vida de segunda categoria, justificado
apenas pela necessidade de propagar a espécie humana em
uma instituição reconhecida e estável. Assim, teólogos e
canonistas têm-se interessado muito em emanar regras para
o uso das relações sexuais no casamento, contribuindo deste
modo, em certo sentido, para centralizá-lo na instituição,
fazendo da necessidade e importância da procriação sua
única desculpa válida. Como bem fez notar John T. Noonan,
a insistência sobre a importância da procriação provém dos
estóicos. "Pôr em evidência a finalidade procriadora do sexo
pareceu a muitos cristãos, como parecera aos estóicos pagãos
e a muitos judeus pensadores, como Filão, o melhor meio de
condenar, racionalmente, a promiscuidade sexual, enquanto
servia, ao mesmo tempo, para realçar a bondade da
procriação, contra o parecer dos agnósticos". Por esse mo-
tivo, o pensamento cristão, com relação ao casamento, tem
mostrado, de um modo geral, acentuada ambivalência: tenta,
por um lado, sustentar a instituição, enquanto, por outro,
mantém certa repugnância e suspeita com relação ao ato
característico do matrimônio.

Em décadas recentes, contudo, esforços crescentes têm sido
feitos para se reconhecer e desenvolver o sentido positivo
das relações sexuais e da vida familiar num contexto cristão.
Tais esforços foram iniciados e, até certo ponto, levados à
frente por casais para quem tornou-se cada vez mais claro
que a "realidade humana" do casamento mudou: não é mais
a instituição social que costumava ser. Se os cristãos,
argumentam eles, devem ser capazes de sentir o matrimônio
como "mistério de salvação" — uma resposta ao amor de
Deus que nos foi dado em Cristo —, essa realidade deve
exprimir-se em termos de valores pessoais e recíprocos.

Diz Schillebeeckx: "A família sofreu perda de funções.
Grande variedade de encargos, antes executados pela
comunidade familiar, foram assumidos por grupos
extrafamiliares. Conseqüência importante de toda essa perda
de funções é que o casamento e a família foram, por assim
dizer, abandonados a si mesmos. O casamento não produz
mais o engajamento dos cônjuges nos moldes objetivos e
permanentes da comunidade familiar. Veio a faltar este
sólido fundamento da vida de matrimônio, e o casal recém-
casado de boje tem de começar tudo do começo e, o que é
pior, deve começar sozinho, ou melhor, como duas pessoas
solitárias. A situação social objetiva, em que o casal, outrora,
se introduzia sem contrastes deixou de existir. Mas, o
declínio desta situação social objetiva levou a uma liberdade
e a uma visão mais ampla quanto ao aspecto pessoal e
subjetivo da vida matrimonial. O casamento e a família pas-
saram a contar apenas com seus próprios recursos. Razão por
que foi indispensável reformular a sua natureza objetiva.
Tudo quanto resta à família e ao casamento é este aspecto
pessoal e subjetivo, esta vida íntima, interior".
Mas, as autoridades da Igreja nem sempre acharam fácil
reconhecer que esta mudança na realidade humana do
casamento oferece aos cristãos uma nova oportunidade de
vivê-lo, como mistério salvador, de modo mais consciente e
pessoal. Acostumado às formulações do passado, o
Magistério tem sido lento em reconhecer a necessidade de
repensar e reafirmar o ensinamento cristão sobre o
casamento em termos pessoais, embora estes sejam muito
mais adequados ao Evangelho que os termos impessoais e
legalistas das formulações antigas. As afirmações sobre o ca-
samento e a vida familiar na Constituição sobre a Igreja
no Mundo de Hoje, apresentaram realmente um enorme
avanço em confronto com a Encíclica sobre o Casamento
Cristão, publicada em 1930 (a qual representa, por sua vez,
considerável passo à frente em relação aos pronunciamentos
anteriores). A Constituição contém, por exemplo, uma
bela afirmação sobre O amor matrimonial. Evita,
cuidadosamente, estabelecer hierarquia entre os "fins" do
casamento, enquanto que, em todos os documentos
anteriores, o amor conjugal era muito claramente relegado a
uma posição inferior à procriação. Mas os dizeres do do-
cumento e a história de sua formulação indicam a grande
dificuldade que encontra a mentalidade personalista sobre o
casamento para abrir caminho e superar a velha mentalidade
institucional retrataria ao sexo e suas formulações.
Nesta afirmação do Concílio, as duas mentalidades parecem
apenas justapostas, cemo acontece em muitos escritos atuais
relativos ao casamento. Elas estão, de fato, em conflito nas
mentes e nos corações dos católicos, e talvez de todos os
cristãos. É o casamento a forma mais ou menos inevitável de
"servidão humana" à qual as pessoas são forçadas pela
necessidade de legitimar o sexo, ou pode ele ser um modo
de vida pessoalmente frutuoso c realizador? O sexo, mesmo
no casamento, é algo sujo, embora inevitável e fascinante,
ou pode ser ele uma forma verdadeira de autodoação? A
procriação e o cuidado dos filhos são o tributo que se paga
por "ceder" ao sexo, ou podem eles ser o fruto de uma
decisão responsável e amorosa? Deve o marido ser a
"cabeça" da família, e a mulher, seu "coração", ou deveriam
eles tentar complementar-se enquanto pessoas, tais como
são? Deveria a mulher, idealmente falando, ficar em casa, e
cuidar dos filhos e do lar, ou deveria ela se dedicar a algum
outro trabalho, mesmo se isto não fosse necessário para o
sustento da família? O matrimônio é apenas um
engajamento social, para viver juntos, gerar e educar filhos?
Ou, se é um engajamento profundamente pessoal, emais as
condições para sua validade? Em que sentido devem as
pessoas, lealmente, ter intenção de se casar? Que
significado devem dar ao casamento para que ele seja verda-
deiro?
Tais questões, formuladas mais ou menos conscientemente,
provocam sentimento de culpa, e ainda mais confusão,
porquanto as necessidades da vida moderna, em muitos
casos parecem estar forçando as pessoas a respostas
contrárias à mentalidade "tradicional", em que foram
educadas. Mas a solução deste conflito não pode ser
encontrada tentando projetar um ideal de vida familiar
cristão imcompatível com a realidade humana do casamento
na hora atual. Deve ser encontrada tentando refletir sobre
todas as questões hodiernas concernentes ao casamento e à
vida familiar, à luz da vocação cristã de praticar as obras do
amor. Só nesta perspectiva, podem os valores humanos
implicados, serem mais claramente discernidos, escolhidos e
promovidos, a fim de que o casamento cristão possa tornar-
se, mais plenamente, um mistério vivificador para os
cônjuges de nossos dias.

A vocação ao matrimônio

Se levarmos a sério nossa obrigação de praticar as obras do
amor, torna-se logo manifesto o motivo por que o
casamento é o modo de vida que melhor corresponde à
maioria das pessoas. Isto não acontece por causa da
"fraqueza da carne" ou pela necessidade de reproduzir a raça
humana, mas porque viver juntos, como "dois numa só
carne" (o que significa dois numa só vida), oferece ao
homem e à mulher oportunidade, sob muitos aspectos, de
romper o auto-isolamento, de entrar na dinâmica de um re-
lacionamento amoroso, empregando a totalidade de suas
pessoas sexuadas, constituídas de corpo e espírito, de colocar
a sexualidade a serviço do amor, de lazer dos seus corpos,
instrumentos de doação, de comunicar mutuamente a vida e
de doá-la aos filhos e à sociedade.
É claro que nem todos os casais sabem aproveitar,
integralmente, estas oportunidades, e muitos mal as
conhecem. Marido e mulher, ou um deles, podem nunca
compreender a necessidade de tentar romper o auto-
isolamento e de se abrir para o outro; um pode fechar-se ao
outro. Uma pessoa pode viver em matrimônio por muitos
anos antes de perceber que, inconscientemente, levantou,
de uma ou outra maneira, barreiras que impedem uma
comunicação maior. Da mesma forma, pessoas casadas
existem que não reconhecem o papel da relação sexual em
toda a sua extensão, ou a necessidade de aprender a executá-
la bem, como ato de amor. E, certamente, muitos casais não
têm idéia de várias dimensões vivificadoras do casamento,
além daquela de colocar filhos no mundo. Não percebem
que sua missão é ajudar um ou outro a crescer no amor, a
educar os filhos como pessoas capazes de amar, c que, como
indivíduos e como casal, são destinados a contribuir para o
bem-estar da sociedade.
Entretanto, as pessoas que entendem o casamento, de
alguma forma como um sério compromisso, abraçam-no
com a intenção de amar-se reciprocamente, por mais
imperfeita que a sua concepção de "amor" possa ser, e com a
determinação de "levá-lo a bom resultado". Para espelhar a
natureza da vocação cristã e a realidade das intenções das
pessoas, o ensinamento sobre o matrimônio deveria, pois,
reconhecer explicitamente o amor conjugal como essência
do casamento, colocando a seu serviço todos os outros
aspectos: fisiológico, psicológico, econômico, etc.
É demais freqüente apresentar-se o amor conjugal como
uma espécie de doação estática, na relação sexual, ou como
confortável incandescência que permanece depois de o fogo
da paixão e do romantismo ter-se apagado. Mas o amor
essencial ao casamento cristão não é nenhum destes, menos
ainda um sentimento romântico de mar de rosas. É, antes, a
vontade de um homem e de uma mulher, estimulados pelo
afeto e pela sexualidade, de estar um com o outro e pelo
outro na comunhão matrimonial, como membros da
comunidade, da Igreja e da sociedade.
Esta vontade inclui, portanto, implicitamente, o esforço de
crescer no amor mútuo e de tentar agir amorosamente um
para com o outro. E isto, por sua vez, implica no desejo de
aprofundar as várias artes requeridas para crescer no amor
conjugal e na capacidade de agir amorosamente — a arte de
cultivar uma relação de amor, as artes do relacionamento
humano e do contato físico, a habilidade em controlar um
orçamento, manter uma casa, e assim por diante. Implica,
também, a vontade de ser parte de um amoroso "nós",
gerando filhos, educando-os no amor, e praticando obras de
amor na sociedade humana. Em outras palavras, tudo que se
pode dizer sobre as exigências de qualquer relacionamento
amoroso é, a fortiori, verdadeiro a respeito do
relacionamento conjugal, justamente porque o casamento
constitui, em potencialidade, o relacionamento humano
mais completo e o que oferece as mais completas e variadas
oportunidades para crescer no amor.
Semelhante idéia do casamento capacita-nos a considerá-lo,
a um tempo, idealista e realisticamente, em vez de sermos
— como é por demais freqüente — sentimentais sob o
aspecto ideal e cínicos face à realidade. Podemos ser
idealistas em relação ao casamento, porque percebemos que
não há limites para o crescimento no amor. E desde que o
casamento oferece tantas e tão variadas maneiras de estar
com e para o outro, podem-se descobrir maneiras novas ou
negligenciadas de crescer numa ou noutra dimensão,
quando as costumeiras parecem fracassar.
Podemos, porém, ser realistas, porque vemos que estas
formas de renovar o amor e crescer nele não consistem,
basicamente, em gestos, como o marido que se lembra do
aniversário de sua esposa oferecendo-lhe flores, ou a esposa,
que procura apresentar-se bonita e bem arrumada quando o
marido chega em casa, voltando do trabalho. Estas atitudes
podem muito bem ser apropriadas num determinado casa-
mento, como sinais e expressões de afeto. Mas, o cres-
cimento no amor dá-se, primeiramente, dentro e através das
realidades humanas básicas da vida em comum ao longo dos
anos, tentando tornar-se mais amoroso em situações
alteradas e através delas, procurando agir mais
amorosamente no trabalho e no descanso de cada dia. Dá-se
no cuidado de um pelo outro e pelos filhos, "na doença e na
saúde", na tarefa da manutenção da casa e na de sustentar a
família, na participação da vida eclesial e comunitária.
Descrever o casamento como modalidade especial da
vocação cristã ao amor não quer dizer, pois, encorajar o
subjetivismo ou o romantismo, mas o realismo cristão. O
amor conjugal não é espécie de bônus acrescentado à
essência do casamento; é sua base por direito, seu
dinamismo necessário. Muitos casamentos, é verdade,
sobretudo em culturas onde os enlaces são combinados
pelos pais, apresentam-se muito bem sucedidos sem que o
casal tenha, de antemão, "se apaixonado" reciprocamente,
em qualquer sentido que este termo possa ser tomado. Mas
nenhum bom casamento pode existir sem o respeito pela
outra pessoa, c sem a vontade de estar com e pelo outro, que
constitui a essência do amor, na comunhão peculiar do
matrimônio.

Dizer que o casamento é, essencialmente, vocação ao amor,
não significa negar o ensinamento cristão tradicional,
surgido com Santo Agostinho, sobre os "fins" do matrimônio
como sendo proles, fides et sacramentum (prole,
fidelidade e sacramento). É antes, desenvolver este
ensinamento em linhas personalistas. A "prole" indicando o
aspecto "nós" do amor conjugal e da missão do casamento; a
"fidelidade", o aspecto interpessoal; e o "sacramento", a
autenticação de Deus, através de Cristo, no amor
conjugal, o esclarecimento de seus valores, a habilitação do
homem e da mulher para concretizarem estes valores.
Porque o casamento visa ser uma escola única de amor, é
que constitui a origem adequada e o berço de uma nova
pessoa humana. As declarações do Concílio Vaticano II
sobre a prole como finalidade do matrimônio salientaram
que esse objetivo inclui não só gerar filhos, mas também,
educá-los para a vida humana c cristã. Educar, porém, os
filhos de forma que aprendam a amar, é essencial para um
bom encaminhamento na vida, e isto só pode ser dado se os
pais se esforçarem em realizar a obra do amor, no lar e na
sociedade.
"Fidelidade" significa mais do que não cometer adultério.
Significa fidelidade à pessoa que escolhemos e pela qual
fomos escolhidos como companheiro de vida; é, portanto,
uma fidelidade que nos empenha em crescer no amor pelo
outro, em abrir-nos ao amor do outro, em todas as
vicissitudes e mudanças que os anos e o desenvolvimento de
duas pessoas diferentes podem trazer. A inconsistência de
muitos casamentos, aparentemente bem sucedidos, aparece
quando casais, cujos filhos cresceram, descobrem que não
têm mais nada em comum para mantê-los unidos. O seu
casamento, de repente, parece ter sido apenas um
companheirismo na tarefa de educar filhos; desempenhando
seu papel de pais, negligenciaram a "fidelidade" dinâmica
que deviam um ao outro como pessoas, a qual lhes teria
assegurado a continuidade e vitalidade do casamento. Os
debates atuais sobre como mulheres casadas possam melhor
precaver-se contra o perigo dos "anos vazios", depois que
seus filhos cresceram, não deveriam negligenciar este
aspecto do casamento somado ao cultivo de várias
habilidades e interesses.
A sacramentalidade do matrimônio tem sido por demais
freqüentemente apresentada como conferindo-lhe uma
auréola de santidade especial, ou fazendo as pessoas casadas
conseguirem um suplemento de "graça", que as habilita a
levar vida tranqüila e feliz, "como a Sagrada Família de
Nazaré". A teologia sacramental hodierna prefere ressaltar
que, através do sacramento, as potencialidades humanas do
matrimônio são focalizadas na sua relação essencial com a
"vida mais abundante" que Cristo veio revelar e tornar
acessível à humanidade; os cônjuges correspondendo à
revelação e ao convite de Cristo, capacitam-se a atualizar
mais plenamente estas potencialidades em suas vidas.

Deus nos criou para amá-lo, para amar-nos reciprocamente,
c desenvolver-nos rumo à plenitude de vida da qual Jesus
ressuscitado é exemplo e fonte. O casamento, então, sempre
e em toda parte, foi sinal, por quanto ambíguo e tênue, desta
vocação humana, e realização deste apelo, toda vez que se
agiu por amor. O uso que os profetas fizeram da analogia do
amor conjugal para descrever as relações entre Deus e seu
povo tornaram este sinal mais claro, demonstrando, ao
mesmo tempo, como é o amor de Deus, e como deveria ser
o amor dos cônjuges: fiel, criador, misericordioso,
renovador. A descrição que Cristo fez de si como "noivo", e
a imagem do Apocalipse apresentando a consumação da
história humana como casamento entre a "nova Jerusalém" e
o "Cordeiro", revelam o sentido do matrimônio como sinal
de união, em vida c amor, de um para com o outro e para
com Deus, cm cuja direção são orientadas as aspirações de
toda a humanidade. Na Carta aos Efésios, 5,21-53, S. Paulo
proclama os deveres dos cônjuges no matrimônio: devem
amar-se, dar-se um ao outro e pelo outro, estimar-se.
(Parece-nos, portanto, grave erro, índice de um sentido de
analogia muito deficiente, não descobrir nenhuma outra
exemplificação para o matrimônio que não seja a
comunidade de amor constituída pela Trindade. O
relacionamento conjugal não é relação pai-filho, e Deus
houve por bem revelar-se como Pai, Filho, e Espírito, não
como marido, mulher e filho, tal como acontecia em muitos
mitos primitivos. A união matrimonial é sinal de nossa união
com esse Deus-em-três-pessoas, por Cristo, no Espírito, mas
não constitui sinal da vida íntima de Deus).
Quando, pois, dois esposos aceitam-se, mutuamente, na
alegria e na tristeza, na prosperidade e na pobreza, na
doença e na saúde, até que a morte os separe, eles se
empenham em tentar viver juntos de tal forma que a
realidade humana de seu casamento seja sinal do amor fiel
de Deus, - que procura conduzir a humanidade, tanto
através das vicissitudes e deficiências, quanto das realizações
e do progresso da história humana, à plenitude de vida em
Cristo. Seu compromisso mútuo constitui o "sacramento", si-
nal visível e eficaz da presença e ação de Cristo nas
realidades quotidianas da vida, para conduzi-los (e, através
deles, outros) rumo a esta plenitude. Isto não quer dizer que
o Cristo é, por assim dizer, um terceiro em cada
matrimônio, como pareceria indicado pelo título do livro
Três para Casar-se. Cristo não está presente, em nenhuma
relação amorosa, como um "outro", mas se situa no "centro"
do próprio relacionamento, para iluminá-lo, dirigi-lo à
consumação através do Espírito: isto é verdadeiro, a fortiori,
no que concerne ao relacionamento conjugal.
Além disso, os esposos cristãos assumem seu compromisso,
mutuamente, como membros da Igreja, da comunidade
daqueles que reconhecem a Cristo como Senhor da História,
e procuram conscientemente responder a seu convite para
trabalhar com ele a fim de transformá-la numa história
plenamente humana. A necessidade, sentida em quase todas
as sociedades, de um compromisso público para o
casamento, parece atribuível, sobretudo a uma questão de
ordem social para ter certeza de que a prole nasça numa
unidade familiar estável e de que apenas os filhos legítimos
participem da vida e propriedade da família. A celebração
pública do casamento cristão também ressalva a natureza
essencialmente social desta vocação, objetivando o
compromisso dos esposos, não apenas reciprocamente, mas
também face à Igreja e à comunidade humana, de cumprir
sua missão de amor na sociedade. E, através desta celebração
pública, a comunidade, por sua vez, se compromete cm
ajudar este casamento a tornar-se o que deve ser.
Este aspecto eclesial e social do casamento lança novas luzes
sobre a interrogação: "Por que esperar pelo casamento?"
Desde que a relação sexual é o ato caracterizador da união
matrimonial, que, por sua vez, é sinal de união entre Cristo e
a Igreja, torna-se mais conveniente que o matrimônio seja
primeiro ratificado publicamente e reconhecido pela Igreja.
O significado pleno do casamento, corno realidade humana
e cristã, explica também por que a cerimônia deveria, a
rigor, realizar-se no contexto da celebração eucarística, sinal
e antecipação da eterna festa nupcial.
Mas, a dimensão eclesial do casamento cristão também exige
que os casais não vivam como unidades isoladas; deveriam
eles encontrar, nos outros membros da Igreja, auxílio para
viver em fidelidade e amor crescente. As Igrejas e a
sociedade estão percebendo que a idéia da unidade familiar
auto-suficiente não é mais válida; tanto a ajuda material
quanto os serviços de assistência, por exemplo, devem, mais
e mais, pôr-se à disposição das famílias que deles necessitam,
se quisermos que a sociedade seja sadia. O Movimento
Familar Cristão realizou, e está realizando, um grande
trabalho, reunindo casais para se auxiliarem a crescer no
conhecimento de Cristo, na compreensão da vocação ao
matrimônio, e a resolver problemas concretos, relativos às
famílias. Mas também precisamos de maior
intercomunicação entre os membros da Igreja, casados e
solteiros. A liberdade de algumas irmãs, por exemplo, de
visitar famílias e grupos familiares para ajudá-los a descobrir
algumas das conotações do Concílio Vaticano II que dizem
respeito à vida matrimonial, constitui excelente progresso;
assim também a formação de equipes integradas por
sacerdotes, irmãs, casados e solteiros, para trabalhar juntos
na programação de várias atividades.
Além do Movimento Familiar Cristão, todas as associações
para a educação religiosa devem promover a idéia da família
cristã não como fim de si mesma, mas como escola de amor
tanto para os pais quanto para os filhos. Semelhante escola
deveria ser considerada parte integral da "Igreja Servidora",
cujos membros devem ser preparados para servir seus
semelhantes. Nem toda família cristã pode ser "apostólica"
no sentido de realizar algum trabalho especial em nome da
Igreja; os casais, porém, deveriam compreender que sua
vocação não é apenas "rezarem juntos e coabitarem" como
família. Os pais devem educar seus filhos para que se tornem
pessoas responsáveis no amor, e para formarem uma
comunidade aberta de amor, pronta a receber outras de
braços abertos, e a servir às necessidades dos demais.
Familiarismo, no sentido de limitação dos interesses de uma
família aos dos próprios membros qual sociedade fechada,
constitui deficiência na compreensão do matrimônio.
Resumindo, pois, a idéia de que o casamento cristão é,
essencialmente, vocação ao amor, esclarece, desenvolve e
fortifica os valores básicos do ensinamento cristão
tradicional. Embora não tenha sido explicitamente
formulada semelhante visão do matrimônio é, de fato,
sustentada por pessoas que, de modo refletido e sério,
tentam encarnar valores cristãos em suas vidas. Adotar e
desenvolver, mais plena e solidamente, este sentido de
vocação no ensino e na praxe da Igreja não redundaria, pois,
na infiltração de "valores pagãos", que algumas pessoas
parecem temer, se as idéias legalistas sobre o casamento
forem abandonadas. Este sentido, pelo contrário, reforçaria a
única base sobre a qual o casamento cristão pode ser,
solidamente, estabelecido hoje em dia: o amor interpessoal.

Que constitui o casamento?

A idéia de que o casamento é, essencialmente, uma vocação
para o amor, também esclarece, embora talvez ainda sem
plena evidência, interrogações que se suscitam em nossos
dias sobre a natureza do consentimento matrimonial e sobre
o que, realmente, constitui um casamento. O pensamento
cristão debateu durante muito tempo este problema antes de
chegar à presente definição da lei canônica; "O
consentimento matrimonial é ato de vontade pelo qual cada
parte dá e recebe um direito perpétuo e exclusivo sobre o
corpo para atos que, por si mesmos, se destinam à geração
de filhos", antes de decidir que tal consentimento, e os
elementos objetivos da sua manifestação pública "na Igreja",
e sua consumação pela cópula, constituem o matrimônio
indissolúvel. A lei canónica acrescenta ainda: "Para que seja
possível o consentimento matrimonial, é necessário que as
partes não ignorem, pelo menos, que o casamento é uma
sociedade permanente entre o homem e a mulher para a
procriação de filhos; esta ignorância não se presume depois
da puberdade".
Muitos católicos, inclusive canonistas, estão começando a
questionar a validade destas definições, e os motivos que as
fundamentam. Se o casamento é, essencialmente, um
aspecto da vocação cristã para o amor, então o
consentimento mútuo deve referir-se a esta forma única de
viver em comum no amor, e não apenas ao "direito
perpétuo e exclusivo sobre o corpo". Realidade óbvia, as
pessoas sempre consentiram em algo mais do que neste
direito; consentiram no casamento como ele estava sendo
vivido em sua sociedade. Na antiga sociedade ocidental,
"casamento" era termo mais ou menos unívoco. Podia-se
vivê-lo pessoal ou impessoalmente, amorosamente ou sem
amor, mas era uma realidade social claramente definida. Era
nesta realidade que as pessoas realmente consentiam, e havia
pouca confusão sobre o objeto do consentimento desde que
a indissolubilidade era tida como certa.

Mas, hoje em dia, o casamento como realidade social não é,
de forma alguma, necessariamente, uma "sociedade
permanente entre o homem e a mulher para a procriação de
filhos". Pode-se, pois, perguntar se a maioria dos cristãos,
que se casam, consentem no casamento indissolúvel ou no
casamento como ele é, quer dizer, o casamento com a
possibilidade do divórcio, se as coisas forem mal. Pode-se
presumir que consentiram no matrimônio cristão como
definido acima, pelo simples fato de, antes, terem sido
batizados? Para poder presumir que estejam realmente
casados, mesmo no sentido da atual definição canónica do
casamento, cumpre sempre perguntar: "No que realmente
consentiram os esposos?"

Mas, se o casamento é, essencialmente, vocação para o
amor, então toda a perspectiva de "contrato" há de ser
mudada. Um homem e uma mulher devem pretender viver
com c pelo outro, nesta forma única de comunidade, se
quiserem ser verdadeiramente esposo e esposa. Qual é,
então, a espécie de consentimento necessário para constituir
um casamento? A lei canônica já enumera vários fatores, tais
como a violência e o medo, capazes de invalidar o consen-
timento matrimonial. Mas, como o conhecimento de outros
fatores psicológicos, que podem condicionar o livre
consentimento, tomou impulso nos últimos anos, há muitos
elementos que também precisam ser levados em conta.
Quantos casamentos entre adolescentes, por exemplo, foram
celebrados porque a menina ficou grávida, e seus pais não
suportaram a sua
"desgraça", ou por pressões mais sutis, como a necessidade
desesperada de se "arranjar", ou a pressão ainda mais sutil
exercida pela mentalidade do "assim fazem todos"? Em
semelhantes circunstâncias, pode-se afirmar que os dois
consentiram em casar livremente?
Além disso, qual é o grau de maturidade emocional
necessário para que uma pessoa seja capaz de assumir um
verdadeiro compromisso de viver com e para a outra, na
união do casamento? Seria, sem dúvida, extremamente
difícil elaborar métodos práticos para determinar a existência
de semelhante maturidade antes de admitir ao enlace
matrimonial cristão. Certamente, uma melhor preparação
pré-nupcial poderia promover a urgência desta maturidade
antes do engajamento definitivo. Mas, se for claro que o
casal (ou um dos cônjuges) não assumiu tal compromisso, e
era incapaz de fazê-lo, pode-se dizer que contraíram
matrimônio cristão? Mais ainda, deixando de lado o
consentimento original, se um casal se mostra incapaz de
viver um com o outro e pelo outro com certa dose de boa
vontade, tal matrimônio seria realmente um casamento
cristão? Deve, necessariamente, ser considerado indissolúvel
pela lei da Igreja?
Não se promove o sucesso do casamento cristão, em nossos
dias, insistindo na indissolubilidade de um matrimônio cuja
nulidade não possa ser provada conforme os critérios
canónicos vigentes. O casamento indissolúvel é, sem dúvida,
o ideal proposto por Cristo, ideal a ser fomentado pela
educação, e a ser tido como norma na prática. Mas, quando
for bastante claro que um casal não se comprometeu com a
realidade do matrimônio cristão, e não pode mais viver
junto, num esforço para se amar mutuamente, é difícil
descobrir valores a serem salvaguardados declarando tais
côniuges indissoluvelmente ligados pelo vínculo nupcial.
Eles não estão vivendo o matrimônio cidstão, mas apenas a
sua ficção legal. Não deveriam ficar livres, perante a Igreja,
para assumirem um verdadeiro vínculo com outra pessoa, se
e quando forem capazes de fazê-lo, ou de obterem a
revalidação de semelhante compromisso, se já assumido?
Mesmo se o dito casal tiver filhos, o bem-estar destes não é
promovido se viverem num clima de desamor; possibilitar a
seus pais de se separarem c, talvez, de tornarem a se casar,
poderia também beneficiar os filhos.
Existe, hoje em dia, profundo abismo entre o matrimônio,
como o considera a legislação da Igreja, e a realidade
humana do casamento, como as pessoas a entendem e
experimentam. Muitos se preocupam cm viver o casamento
de forma realmente humana, e muitos, que não se
impressionam com isso, abandonam a Igreja, a qual, dizem
eles, cuida apenas de preservar uma instituição, não de
ajudar as pessoas a viver cristãmente. Mesmo casamentos
consumados sacramentalmente podem ser dissolvidos
conforme a praxe da Igreja Ortodoxa, e os tribunais da Igreja
Latina parecem inclinados a aplicar, cada vez mais
largamente, os pricípios que levam a declarar nulos os
casamentos entre católicos e não-católicos. Desta forma, o
casamento indissolúvel não é absoluto na prática da Igreja.
Mas, ao mesmo tempo, a complexidade do processo jurídico
adotado pelos tribunais eclesiásticos em matéria de
matrimônio, criou obstáculos intoleráveis ao bem-estar
daqueles aos quais estes tribunais deveriam servir, como
também absorve um volume inacreditável de tempo e
energia sacerdotais, não só dos que trabalham nos tribunais,
mas também dos pastores, que devem coletar provas.
Para proteger e incrementar, pois, valores humanos e
cristãos do casamento, é necessário mais e melhor
preparação para ele, e se exigem mais e melhores serviços de
consultoria, providenciados quer pela Igreja, quer pela
comunidade civil, a fim de ajudar as pessoas a salvar e
melhorar seus casamentos. Mas o que também é necessário,
para casais que não podem viver juntos no casamento, e não
têm esperança de fazê-lo, é um processo largamente simpli-
ficado para declarar tal casamento inexistente no parccer da
Igreja. Como Huizing sugere, a melhor solução poderia ser o
treinamento de sacerdotes e leigos para trabalharem ao lado
de pessoas especializadas em assuntos matrimoniais,
atribuindo-lhes o poder de decidir, com o parecer destes
conselheiros, que um dado casal não está realmente vivendo
em matrimônio, e que seu casamento, como entidade
eclesial externa, está dissolvido.
Naturalmente, o pensamento da Igreja Católica e da
comunidade cristã ainda não se amadureceu neste sentido.
Não presumimos antever o desenvolvimento que o futuro
nos reserva, neste campo, do ponto de vista das ciências
sociais, da teologia ou da lei canónica. Mas podemos dizer,
com alguma certeza, que tal evolução, para ser autêntica,
deverá esclarecer e promover os valores pessoais do
casamento e da vida familiar, a fim de tornar menos difícil a
compreensão e a possibilidade de viver o matrimônio como
vocação para o amor. Enquanto isso, a nossa tarefa de
casados é tentar viver esta vocação, e educar nossos filhos,
procurando fazê-los compreender sua verdadeira natureza,
como forma de servir a Deus e aos homens.

10. "Educação Sexual" ou Educação Para o
Amor?

Reformadores sociais desanimados afirmaram, certa vez, que
a única maneira de melhorar a humanidade seria matar todos
os pais e professores e trazer uma legião de arcanjos para
educar as crianças. Aqueles dentre nós que são pais ou
educadores (e provavelmente também os jovens, dos quais
estamos encarregados), podem, de certo modo, concordar
com esta opinião. Tudo que temos feito parece, tantas vezes,
se não positivamente errado, pelo menos pateticamente
inadequado. Quase todos concordariam que isto é
sobremaneira verdadeiro no campo da educação sexual; que
os pais e professores, e a sociedade em geral, desapontaram,
e ainda estão desapontando os jovens, neste ponto; que urge
procurar meios e programas melhores.
Mas, como esperamos ter demonstrado neste livro, o
problema central consiste exatamente em nossa tendência a
considerar o "sexo" como algo isolado, separado do resto da
vida humana; por conseguinte, encaramos a "educação
sexual" como algo que se acrescenta à educação de uma
criança ou de um adolescente. A sexualidade não é um
aspecto separável da vida humana; afeta todo o nosso viver e
amar. A educação sexual, pois, não oode ser dada como algo
separado da educação global da criança para viver e amar.
O período crucial da primeira infância fundamenta as
atitudes básicas da pessoa para consigo mesma, para com os
outros, para com a sexualidade própria e alheia. A criança
copia estas atitudes observando o comportamento que os
pais manifestam, um pelo outro, em relação a ela e aos
outros membros da família. Estas atitudes são aprofundadas e
modificadas nos anos que os psiquiatras chamam de período
da sexualidade "latente", anos em que a criança começa a
formar normas mais conscientes de comportamento,
resultantes da interação com as normas de pessoas que não
sejam seus pais. Depois, no segundo período crítico, na
adolescência, o despertar para a sexualidade acha-se
intimamente ligado com o despertar do jovem para uma
procura mais explícita de sua personalidade e da necessidade
de se unir com outros jovens. Mas este despertar é
profundamente condicionado por suas atitudes já existentes,
recebidas sobretudo de seus pais, assim como pelas atitudes
que ele, inconsciente ou conscientemente, percebe em seus
coetâneos e nos adultos.
Em outras palavras, os pais realmente iniciam a educação
sexual de seus filhos no dia em que estes nascem (ou talvez
mesmo antes), através de suas atitudes para consigo mesmos,
para com seus corpos, de um para com o outro, para com o
filho e a vida em geral. Eles ministram essa educação pela
maneira como sentem c agem na vida diária, durante os anos
de crescimento do filho, através de todos os contatos com
ele, não apenas quando respondem às suas perguntas sobre a
origem dos bebês. O que quer que possam, ou não, dizer
explicitamente sobre o sexo, estão, sem cessar, co-
municando suas próprias atitudes e idéias sobre o que
significa ser uma pessoa ciente de seu corpo, uma pessoa
sexuada, sobre o que significa amar e ser amado.
Há, portanto, pouca utilidade em tentar capacitar os pais a
darem explicação mais claras e adequadas dos "fatos da vida",
a menos que também lhes sejam dadas oportunidades para
examinarem e, se necessário, melhorarem suas próprias
atitudes e idéias em relação ao amor, à sexualidade e a seus
próprios corpos.
Para começar por esse último aspecto, uma criança não se
beneficiará por seus pais lhe contarem algo sobre a
"bondade" das partes sexuais e sobre os fenômenos do corpo
humano masculino e feminino, se eles mesmos se
comportarem na vida diária como se seus corpos fossem
coisa de que é preciso envergonhar-se, ou se lhe inculcarem
medo e sentimento de culpa a respeito de qualquer órgão ou
função do corpo (por exemplo, afastar suas mãos, com
expressão de horror, quando a criança explora o pênis —
uma ação tão natural e inocente, como a de contar os dedos
dos pés). Mães e pais devem ser convidados a examinar suas
atitudes em relação a seus corpos e todos os aspectos físicos
da vida, inclusive a conjunção carnal, para ver se há
necessidade de torná-los mais sadios e realistas; pois os pais
comunicam suas atitudes aos filhos muito antes de tentar
falar-lhes com franqueza sobre os órgãos e as funções
sexuais.
Muitos psicólogos ressaltam sobremaneira a importância do
modo de ensinar o uso da toilette, não apenas porque é uma
das primeiras recomendações dos pais às crianças sobre
como tratarem o próprio corpo, mas também porque isso
pode afetar muito a atitude de uma criança em relação a seu
corpo. Inculcar sentido de repugnância ou de culpa
relativamente a qualquer das partes do corpo ou de seus
processos é, naturalmente, um fundamento desfavorável
para uma ulterior educação do corpo como instrumento de
amor.
Neste sentido, afirmou-se muitas vezes que os pais deveriam
ensinar aos filhos os nomes científicos exatos dos órgãos
genitais, mostrando-se dispostos a dar-lhes uma versão
simplificada dos processos de concepção, gestação e
nascimento, quando fizerem perguntas a respeito. Mas os
pais deveriam estar igualmente bem preparados para
ministrar a seus filhos informações adequadas sobre todas as
partes do corpo e seus processos, para ajudá-los a adquirir
um vasto conhecimento de toda a sua estrutura orgânica.
Cumpre proporcionar, também, às crianças, alguma noção
das interações entre a psique e o corpo — por exemplo, que
a gente pode sentir-se mal quando está com medo, ou
quando não se quer ir à escola. A criança, na medida de sua
capacidade, deve ser instruída sobre o próprio corpo como
entidade pessoal, como parte do "eu", dando-lhe condições
para tratá-lo como tal.
Como foi dito muitas vezes, os pais não deveriam tentar dar
à criança informações sobre "a origem dos bebês" mais do
que peçam, o que é, em geral, muito menos do que um
adulto poderia supor. O período que precede a adolescência,
isto é, da "sexualidade latente" parece a melhor época para
ministrar às crianças informações mais precisas e científicas.
Isto poderá ser feito na escola, na aula de ciência, se os pais
tiverem, antes, providenciado o necessário contexto de
atitudes sadias. Ora, talvez, em alguns casos, tais aulas pode-
riam oferecer uma oportunidade para a educação dos pais,
iniciando com o porquê de a escola estar ministrando
semelhantes aulas às crianças, em nível escolar. As crianças,
nesta idade, interessam-se normalmente por qualquer fato,
e, se forem educadas sadiamente, vão encarar esta matéria
como todas as outras. Mas, aqui entra em jogo a atitude dos
professores. Se eles não estiverem em condições de tratar
com naturalidade esta matéria, sob o ponto de vista
científico, e se ficarem perplexos sem saber o que transmitir
às crianças, cumpre-lhes examinar-se e descobrir a razão da
sua incerteza, antes de aceitar o ensino naquela classe.
Convidar os pais (e também os professores) a examinarem
suas atitudes sobre o corpo humano é, pois, um aspecto
muito importante para melhorar a educação sexual. Mas isto
não pode ser feito sem convidá-los a examinarem suas
atitudes em torno da própria masculinidade ou feminilidade,
da sexualidade como elemento essencial no amor, em torno
do relacionamento conjugal e do amor. Não adianta um nai
dizer a seu filho que "o sexo é expressão de amor", se a
criança não experimentou o amor em sua vida familiar, ou
experimentou-o como sufocante ou dominador, e não sentiu
a sexualidade como elemento integrante e alegre do amor.
Os pais, portanto, precisam ser auxiliados a entender os
requisitos de todo amor, as qualidades especiais do amor
conjugal, e também as características próprias do amor
paterno; devem possuir algumas noções básicas das
principais fases do desenvolvimento emocional da criança,
para poderem amá-la mais inteligentemente.
Aqueles dentre nós que aceitaram o cargo da paternidade
nos anos de 1940 viveram momentos de grande confusão
com as teorias em conflito sobre o modo de criar os filhos:
alimentar o bebê de acordo com um horário ou quando ele
queria? Ser rígido ou tolerante? Receávamos frustrar o
desenvolvimento emocional do filho, se lhe impuséssemos
rigorosa disciplina; receávamos o perigo de prejudicá-lo, se
nos mostrássemos excessivamente indulgentes. O que
nenhum livro sobre cuidados infantis esclarecia
suficientemente — e isso teria, se não facilitado, pelo menos
simplificado as coisas — era a extrema importância de amar
a criança e evidenciar este amor. Todos os especialistas em
psicologia infantil certamente concordavam em afirmar que
toda criança, desde o primeiro instante de vida extra-uterina,
e durante todo o crescimento, necessita sobretudo de amor
ardente e protetor, capaz de infundir-lhe o sentido de seu
valor e a coragem para sair de si mesma, e começar a amar,
em busca de sua realização.
Mas, amar um filho não significa sufocá-lo com atenções ou
superprotegê-lo, ou ser sentimental a seu respeito. O amor
paterno deve ser amor real, com todos os requisitos que
procuramos descrever anteriormente, neste livro — amor
que respeite a dignidade de criança como pessoa livre e
autônoma; amor que, gradualmente, a inicie no autocontrole
e na liberdade. Todos os pais compreendem que devem
amar seus filhos, mas muitos têm idéias muito confusas
sobre o que este amor deveria ser, e como exprimí-lo da
melhor forma.
Por exemplo, durante os primeiros anos, a criança
interioriza as exigências conscientes e inconscientes de seus
pais, formando o que os freudianos chamam de "superego"
— um amálgama de inibições e canalizações de seus anseios
para satisfazer suas necessidades crescentes. Os psicólogos
são unânimes em ressaltar a importância vital de impor
disciplina à criança, numa atmosfera de amor, durante esta
fase, ajudando-a a conseguir no futuro autocontrole, impon-
do-lhe controles externos. O filho tem muito medo de
perder o amor dos pais. Ele precisa assegurar-se de que uma
desobediência ou falha em aceder às exigências paternas não
o farão perder aquele amor. Isto não significa que nunca se
devam punir as crianças ou que ficariam elas
emocionalmente prejudicadas, por toda a vida, se os pais as
repreendessem. Significa que apesar dos gritos, das
palmadas, ou mesmo de alguma eventual injustiça real por
parte dos pais, a criança é capaz de sentir que lhe querem
bem, com afeição ardente, que jamais se extingue.
Ajudar os pais cristãos a terem idéias mais claras sobre as
prerrogativas do amor paternal é importante, também,
levando-se em consideração que a criança adquire a primeira
idéia de Deus, observando o comportamento e o amor dos
pais. Adquire a idéia do tipo de resposta que Deus espera
para seu amor, por analogia com a resposta que os pais
esperam. Se estes ameaçam retirar sua afeição quando a
criança se comporta mal, será difícil convencê-la, mais
tarde, de que Deus não faz o mesmo. Se lhe impõem
obediência por medo, será difícil para a criança, mais tarde,
tentar responder ao apelo de Deus com amor. Desde que
todo o campo do desenvolvimento da consciência está
intimamente ligado com a experiência da criança em torno
do amor dos pais, devem estes aprender as qualidades
libertadoras do verdadeiro amor: se amarem realmente seus
filhos, deverão educá-los, gradualmente, rumo à liberdade
responsável, não em direção à obediência "cega".
Se quisermos proporcionar aos jovens de hoje e de amanhã
uma educação sexual melhor do que a oue receberam até
hoje, devem os pais adquirir melhor noção do amor humano
e divino — e do papel da sexualidade e do corpo no amor.
Felizmente, a grande maioria dos pais dispõem-se a fazer por
seus filhos o que jamais fariam por si mesmos. Se se
convencerem da necessidade de reexaminar suas idéias e
atitudes nesta matéria, farão pelo menos um esforço real
para se adaptarem, aceitando a colaboração de especialistas.
Mas não basta a orientação dos pais. Os adolescentes,
embora muito bem educados por pais amorosos, precisam de
auxílio para começar a integrar todos os elementos no amor
humano, em cujo conhecimento vão se iniciando, e esta
ajuda deve vir preferivelmente, de adultos que não sejam
seus próprios pais. (Não que os pais não devam tomar parte
neste trabalho; cumpre-lhes permanecer disponíveis, porém
sem exclusivismo; precisam estar prontos a aconselhar e
ajudar, ou simplesmente a estarem juntos com seus filhos,
encorajando-os, animando-os. Mas, só se intrometerão com
conselho, ou obrigá-los-ão a seguir determinada linha,
quando isso for compatível com os ditames de uma
equilibrada prudência).
Esta ajuda pode melhor ser proporcionada nas escolas ou
associações, em discussões de grupo, ou coisa semelhante.
Os jovens poderiam ser auxiliados a distinguir entre
relacionamento verdadeiro e falso, a entender a dinâmica
das relações autênticas, a aprender mais conscientemente as
qualidades do verdadeiro amor, e a ver como a regra do
amor se aplica em situações concretas. Neste contexto,
pode-se mostrar-lhes o papel positivo da sexualidade, suas
diferentes manifestações no homem e na mulher, a maneira
de colocá-la a serviço do amor e o uso adequado do corpo
no afeto e na relação sexual.
Outro aspecto essencial poderia ser constituído por debates
realistas sobre o modo de estabelecer relações com pessoas
que não compartilham a mesma filosofia do amor: como dar
testemunho da própria fé sem ser pedante. O uso de bons
filmes e romances, naturalmente, seria uma ajuda para
promover e fazer refletir, descortinando a complexidade
infinita das relações humanas, as potencialidades destrutivas
e criadoras do amor e da sexualidade, o esforço que o amor
exige, as alegrias e a satisfação que oferece.
Professores e conselheiros, a quem incumbe orientar tais
debates, necessitam de informações mais do que exatas
sobre os órgãos, as relações sexuais e os vários aspectos do
matrimônio. Eles, também, precisam examinar suas próprias
atitudes em relação à vida e ao amor, à sexualidade e ao
próprio corpo, pois são estas atitudes aquilo que, em última
análise, irão comunicar. O mesmo vale, obviamente, para os
encarregados de cursos pré-nupciais ou da formação
matrimonial.
É claro, portanto, que a abordagem da educação sexual c da
consultoria matrimonial há de compreender um programa
de educação para o amor. Tal educação é, propriamente, um
aspecto da educação religiosa; à luz de Deus, que nos chama
e nos capacita a amarmos a ele e uns aos outros, é que a
tarefa do amor humano pode ser vista em todas as suas
dimensões, e em toda a sua urgência. Contudo, enquanto
um humanista não crente, como Erich Fromm, é capaz de
ajudar as pessoas a aprender a amar, um crente que possua
idéia de Deus e de suas relações com a humanidade alheia ao
amor, seria incapaz de fazê-lo. A educação religiosa, em
todos os níveis, deve tentar mostrar o conceito da vida cristã
delineado nos documentos do Concílio Vaticano II. Só
assim a educação cristã para o amor humano terá
fundamento e se enquadrará em um justo contexto.
Mas isto não significa que a educação para o amor deva ser
deixada só a cargo de educadores religiosos. A cooperação de
especialistas em todas as ciências e artes que lidam com a
psique e o corpo humano, com a família e com a pessoa,
como membro da sociedade, será necessária para programar
a melhor maneira de ministrar essa educação em suas
multiformes expressões, tornando-a sempre mais acessível.
É tarefa que exige tato, delicadeza, respeilo pela liberdade,
conhecimento das pessoas e jeito para lidar com elas. Nossa
paixão por respostas simples a problemas complexos, e pela
apresentação complexa de verdades que, em última análise,
devem ser captadas pela intuição, nosso gosto em produzir
textos e programas ao nível somente de pessoas treinadas,
inteligentes e sensíveis, são perigos contra os quais cumpre
tomar todas as precauções possíveis, a fim de que, tentando
ajudar' a amar, não manchemos o esplendor do amor, nem
prejudiquemos sua vitalidade. Por outro lado, continuar
organizando cursos de atualização, ou coisas semelhantes,
em vista da educação sexual, separando-a de seu contexto
natural do amor, é encorajar a desumana separação entre o
sexo e a vida humana, entre o sexo e o amor.
É lícito, pois, esperarmos que a cooperação frutuosa entre
educadores religiosos e seculares, e os vários institutos e
centros de consultoria pré-matrimonial, auxiliados por
especialistas nos vários ramos das artes e ciências, consiga
elaborar programas adequados às necessidades dos vários
grupos, e às diferentes faixas de idade. Fazemos votos que
estes programas sejam apenas um aspecto de todo o
dinamismo do pensamento e da vida da Igreja, orientada em
direção ao amor, à luz e no poder do Espírito.
Podemos, ainda, esperar que a onda atual de interesse por
uma educação sexual mais adequada, possa levar a um
reexame de toda a educação e trazer à tona a necessidade de
ordená-la mais efetivamente numa linha personalista e
realmente humana. Hebreus, humanistas e cristãos, todos
concordam, por mais diferentes sejam suas formas de
expressão, que a tarefa da humanidade é construir a Cidade
do Homem como sociedade de pessoas, que livremente
contribuem para o bem-estar e o desenvolvimento mútuo:
No que diz respeito à fé em Deus e em nossa tarefa,
qualquer que seja nossa opinião quanto à sua fonte — para
alguns, resposta a um chamado de Deus; para outros, criação
puramente humana — ela nos impõe o dever de cuidar que
cada homem se torne um homem, um coração ardente de
iniciativa, um poeta no sentido mais profundo do termo;
alguém que experimentou, dia após dia, a superação criadora
de si mesmo — que os cristãos denominam transcendência,
e nós, autêntica humanidade.
Este ideal é bastante sublime, e de realização assaz difícil,
para exigir esforços conjugados de todos nós, mesmo que
tenhamos de ver queimar no fogo do diálogo, que nos
permite encontrar-nos bem no fundo de nós mesmos, no
limiar da base — quanto em nós impede de nos tornarmos o
que somos. Este é o sentido luminoso que Nazim Hikmet -
deu à chama de purificação do sacrifício: Se eu não queimo,
/ Se você não queima, / Se nós não queimamos, / Como é
que as sombras / Se tornarão luz?

Talvez a necessidade clara e urgente de encontrar melhores
soluções para os problemas levantados pela sexualidade na
civilização ocidental contemporânea, possa forçar um
reexame do papel do amor humano na construção desta
sociedade, e uma reorganização da educação e de outras
instituições, para incrementar, de modo mais adequado, o
desenvolvimento de pessoas humanas capazes de amor e de
ação amorosa.
Este livro tentou demonstrar que é tanto possível quanto
essencial, para os cristãos, colaborar nesta tarefa de atribuir à
sexualidade seu próprio papel no amor e, ao amor, sua
função própria na vida humana, embora isso exija mudança
em nosso modo de pensar e em nossas instituições. Se, de
alguma forma, nosso trabalho inspirar os leitores a
considerarem e debaterem os meios para amar-nos mutua-
mente, da melhor maneira possível, "em ação e em
verdade", terá alcançado seu objetivo.
a noite roxa
Urbano Tavares Rodrigues

Todos os direitos desta edição
reservados por P. E. A.

Capa: estúdios P. E. A

URBANO TAVARES RODRIGUES

a noite roxa


Publicações Europa-América

A NOITE ROXA

A David Mourão-Ferreira

Havia duas semanas que Marcelo ia todas as manhãs
à posta-restante. Mostrava o passaporte e explicava
sempre meticulosamente ao mesmo rapaz esgrouviado,
que o atendia com enfado : <<Teixeira e Veloso, proeure
em T e em V, tenho um nome duplo, não sei em que
letra terão classificado a carta que eu espero.>> O empregado relanceava, displicente, o passaporte largamente
aberto na primeira página ; levantava-se, a contragosto ;
remexia um instante nas cartas que correspondiam
àquelas iniciais e voltava, imperturbável, de mãos
vazias, com um leve, quase desdenhoso, aceno negativo.
Era sempre assim. Marcelo ficava ainda um momento,
incrédulo, entorpecido, a olhar o placard de madeira,
onde aquelas duas divisórias, T e V, eram há pouco
uma esperança e agora o silêncio, a distância, a certeza
de que ela não escreveria nunca.
Naquela noite resolveu ir procurá-la. Era desumano, insensato, ridículo, e só podia fazer-lhe mal.
Embora! Que havia ele de fazer senão procurá-la nos
sítios onde haviam estado juntos? Foi à Coupole, a
Montparnasse, e sentou-se na mesma mesa da terrasse
envidraçada onde a esperara pela primeira vez na noite
longa daquele dia exaltante em que a conhecera à porta
dum museu fechado. Ela surgira do nevoeiro, toda
vestida de preto, e ele tinha perguntado banalmente:
- O Jeu de Paume está fechado?
- É uma decepção. Também vim cá de propósito. . .
Tinha um leve sotaque italiano.
-Conhece o Museu de Arte Contemporânea?
- Não.
- Então vamos lá - propusera Marcelo.
Ela deixara-se levar, de táxi. Parecia muito espontânea e confiada.
Fora assim o começo: um passeio rápido através
do nevoeiro e depois pelas salas geladas dum museu,
com uma desconhecida a quem ele ia tentar, por desfastio, revelar a pintura moderna, e que, de chofre,
lhe corrigia os julgamentos, em matéria técnica, sem
sombra de pedantismo. Era ela que lhe mostrava a

importância da tela nua nas marinhas de Albert Marquet,
ela que lhe desvendava o segredo de uma pincelada
azul nos brancos de Vlaminck, céus atormentados
sobre necrópoles de neve, braseiros de cor que ela
decompunha lucidamente. E Marcelo arrastava-a para
junto de um Rouault e dizia-Lhe o seu deslumbramento
perante aquela poesia bíblica e a massa de vitral que
o mago do fauvismo conseguira transportar para a
pintura. E paravam a discutir um Chagall, a graça
faminta e viciosa dos rostos de Goerg, as fraudes de
Dali, que a paleta chegava a justificar; a precisão mecânica e a intemporalidade da cor em Fernand Léger,
a elegância maravilhosa e o sentido helénico de Picasso,
o valor plástico e decorativo das colagens de Georges
Bracque. Estavam sempre de acordo. Deambulavam,
já de braço dado, pelas salas frias e desertas. Era a hora
do almoço que não comeriam. E o amor nascia entre
eles, sentiam-no nascer em tumulto. E não podiam
nem queriam escondê-lo um do outro. Sentiam romper
milhões de afinidades daquela súbita intimidade.
Marcelo descobria pouco a pouco, com um entusiasmo crescente, que ela tinha cabelos loiros e olhos
verdes, muito abertos e imensos, a boca risonha, com
o lábio inferior um pouco saliente e sensual, um queixo
arredondado e firme de estátua grega. E de pele era
quase morena, lustrada de sol e com sombras cálidas
no pescoço macio. Sob a pressão dos dedos de Marcelo,
o braço dela era rijo e cheio.
Chamava-se Pãola, vivia em Florença, estava em
Paris só por quinze dias. Quando lhe sorria, sorria
completamente, com os olhos, com a boca, com as mãos,
um sorriso de oferta inteira e natural. E Marcelo naquele
momento - nunca tal lhe acontecera com semelhante
intensidade - daria tudo por beijá-la, penetrá-la, mordê-la e amá-la até às lágrimas, até ao sangue, sofrer
por ela, adorá-la toda a vida. E falava de arte e da vida,
numa excitação febril, sem parar. Pensavam do mesmo
modo sobre mil coisas, gostavam dos mesmos livros:
Lawrence, Leopardi, Rimbaud, os sonetos de Dante,
o teatro de Sartre. Passavam de um assunto a outro,
sem transição, a esmo, como se naquela manhã tivessem
de dizer muito, muitíssimo, para se reconhecerem,
e para encherem de qualquer maneira o fosso das suas
vidas ausentes, e porque, se se calassem, podiam ficar
de novo dois desconhecidos.
- São três horas - disse Pãola, de súbito. - Preciso de telefonar à minha tia, que me esperava depois
do almoço. Já não posso chegar a tempo.
Mas estava visivelmente desolada por ter de o deixar.
Marcelo convidou-a então a sair à noite com ele.
Pãola aceitou logo, com um límpido olhar de alegria.
Marcelo exultou. Só um pequeno objecto, inquietante,
ficou a dançar-lhe no espírito, interrogativamente: a
aliança de platina que ela trazia no dedo e que nunca
estivera em causa, entre as mil coisas abstractas e positivas de que haviam falado.
Afinal só sabia dela, no plano social, que era pintora
e habitava Florença, que viera passar duas semanas a
Paris, onde morava havia muito uma tia sua, meio

italiana, meio francesa. E tinha vinte e quatro anos,
uns seios arrogantes, umas mãos nervosas, e aqueles
olhos que o fitavam já com ternura. . .

De gli occhi suoi gittuva una lumera
la qual parea un spirito infiammato.

Marcelo tinha corrido, cantara à beira do Sena e
por pouco não fora atropelado por um automobilista,
que lhe chamara <<couillon, abruti, imbécile>>. Marcelo
rira e dissera-lhe adeus e abençoara-o por não o ter
atropelado naquele dia maravilhoso.
E agora ali estava na terrasse da Coupole aborrecendo a humanidade. Já descompusera um garçon,
que tardara a servir-lhe o café, e enjeitava o olhar das
mulheres que o fixavam: adivinhava-as suadas, sob as
roupas perfumadas, cheirando a sexo, brancas de
lixívia, anafrodisíacas, canhestras, viciosas e insatisfeitas e com remordimentos de alma pavorosos, diferentes dela, dela, dela, que nunca mais viria.
A primeira noite em que tinham dançado! Sentira
logo, ao contacto daquele corpo, que eram da mesma
massa, da mesma neve, da mesma lama. Nada podia
evitar que aquilo acontecesse. Beijou-a no pescoço.
Pãola estremeceu e revoltou-se. Declarou-lhe que tinha
medo dele. Marcelo insistiu, apertou-a, viu-lhe os
olhos brilhantes, alucinados. E ela apertou-o também,
com a mesma força, com a mesma violência.
Sentaram-se e conversaram. Entendiam-se igualmente
bem no campo das ideias. Pãola estudara pintura em
Paris, havia quatro anos. Por isso conhecia tão perfeitamente o francês. Abusava um pouco do calão, não
se dava conta do exagero de certas expressões. Quando
falava italiano, servia-se de uma linguagem mais elevada, num tom logo mais sóbrio. Adorava Paris. A pedido de Marcelo, tirou da mala de mão uma folha de
papel e fez dois escorços de paisagens: a Place des
Vosges, um candeeiro à beira do Sena. Eram apontamentos líricos.
- É uma das minhas facetas - disse. - Mas o
que eu desenho melhor são nus.
Marcelo obrigou-a a esboçar um, para ele. Pãola
traçou um corpo de mulher, de fortes proporções, com
volumes perfeitos, mas quase hermafrodita, tanto vigor
desprendia, de uma forma tão intensa, na sua atitude
hierática, que lembrava uma estátua egípcia. O toucado
bizarro, apenas apontado, acentuava essa parecença.
Marcelo contemplava-a embevecido. Achava-a estranha, um pouco selvagem, espiritual e carnal, um misto
de poesia e vulgaridade, falando em voz demasiado
alta, denunciando uma seiva, uma violência, que o
estonteavam. Devia ser corajosa, teatral, cínica, meiga,
apaixonada. Pressentia tudo isso, mas tudo isso lhe
parecia adorável. Uma encarnação feminina de Benvenuto Cellini: tempestade, luxúria, arte com maiúscula, até aquela primeira experiência de Paris, a que
ela aludira, e que ele adivinhava promíscua, cheia

de frustrações, de misérias, mas com clareiras luminosas de contemplação, de vagabundagem lírica, de
êxtases como o que ambos haviam partilhado naquela
manhã.
Quando lhe pegava na mão, a pele de Pãola escaldava-o.
Ela tinha explosões de entusiasmo, bruscas, desmedidas: era uma natureza rica.
- Gosto imenso desta valsa, vamos dançar. Vamos !
Vamos! - E arrastou-o.
Era a Valsa Triste, de Sibelius.
Não desfitou os olhos dos dele, enquanto volteavam
só para a direita, porque Marcelo não sabia valsar
doutro modo. Os olhos dela, dilatados, muito sérios,
perturbantes, rebordados de pestanas negras, que os
faziam ainda mais claros e esquisitos, iam-se tornando
ansiosos, cada vez mais ansiosos, insustentáveis, até
que explodiram num riso de felicidade suprema, que
parecia raiar pela loucura.
- Nunca mais me esquecerei deste momento - disse.
Era a confissão do amor que passava entre eles.
E não podiam deixá-lo fugir. Quase tinham corrido,
pela escada acima, de mãos entrelaçadas.
O táxi, os beijos, a orgia cintilante dos lampadários,
tudo acudia em alvoroço ao espírito de Marcelo. E a
ausência dela doía-lhe fisicamente, como se lhe faltasse uma parte do corpo. Se pudesse anular o tempo,
abolir o espaço, chamá-la, gritar-lhe, que ela o ouvisse
em Florença, e viesse de pronto, na asa dum desejo,
até ali, à porta da Coupole, onde ele a esperava naquele
instante como em todos os outros, onde a beijara, em
público, naquela noite, onde ela Lhe dissera apenas:
- O que seria isto em Itália! Lá ninguém se beija
no meio da rua. . .
Seguiu, a pé, pelo Boulevard du Montparnasse
até ao Jardim do Luxemburgo e desceu o Boul'Mich.
Entrou num café fronteiro ao Capoulade, onde havia
uma maquineta com discos, que se podiam ouvir pelo
módico preço de vinte francos. Introduziu uma moeda
no orifício correspondente e premiu os botões J e 9,
que já conhecia de cor. O disco caiu e a abertura da
balsa Triste veio sobre ele como uma onda de angústia,
aglutinante, e arrastou-o para o fundo da dor, da desesperança!
Dois árabes - sírios ou persas - de grenha espessa
e riso lupino, bronzeados, másculos, entretinham-se,
ao lado dele, a marcar pontos, num bilhar eléctrico.
Inspeccionaram-no, com uma curiosidade hostil. Não
ia ao menos chorar diante deles! Abortaram-lhe as
lágrimas em raiva e cravou os olhos nos árabes, até
desviarem dele a vista. Um espelho enviou-lhe a sua
imagem : boneco de prazer ! Aquele rosto branco e
delgado, aquela boca arqueada, aqueles olhos doces
e admirados, agora cheios de tristeza, aquele queixo
fraco de indeciso, percorrera-os ela, às escuras, com
dedos religiosos, para que lhe ficassem no tacto, para
nunca os esquecer.
Não podia dar dois passos sem que uma pedra,
uma casa, uma montra, um restaurante, lha lembrassem. No Jardim do Luxemburgo tinham passeado,

numa manhã cinzenta. O lago estava seco, com um
fundo de lodo, mas as árvores, que o Inverno já esfolhara, tomavam, ao longe, ilusoriamente, um tom de
rosa. Nesse dia já Marcelo sabia que o amor estava
nela e que dela faria o que Lhe apetecesse, que não se
tratava já de quinze dias fora da vida, mas da vida
inteira, se ele quisesse. Já a tinha visto tremer de delírio
e quase desmaiar de prazer, e vira-a arrastar-se-lhe
aos pés e abraçar-se-lhe aos joelhos e beijar-lhe as
mãos, agradecida e suplicante, e vira-a, convulsa e
chorosa e exigente e insaciável, retê-lo, prometer-lhe
que abandonaria tudo por ele. E deixara-a partir, incitara-a até a partir, a voltar para o marido, que ela estimava apenas como um irmão e que sabia disso mas
que lhe queria bem, junto do qual a carne dela ficara
sempre fria, o marido que ela afinal já enganara com
outro, com um valdevinos de uma agência de viagens,
que lhe deixara uma recordação enodoada e decepcionante.
Chegara a ser cruel: ela descobrira-se demasiado,
implorara de mais. E Marcelo já nem sabia se a enxotara
afinal por egoísmo, para se consagrar à sua carreira
de cineasta pobre, sem estorvos, antevendo outros
amores breves e menos lacrimosos, ou se quisera, como
lhe havia dito, empurrá-la realmente para um caminho
mais praticável, ao lado do marido, que era a única
certeza; ou se fora o excesso, o cansaço dos nervos e
do sexo que o tinham levado a apontar-lhe a direcção
de Itália e a impor-lhe: <<Não me escrevas, esquece-me,
tenta recomeçar a tua vida; agora, que te tornaste
mulher, vais ser feliz com ele.>>
<<Cala-te, não digas isso>>, respondia ela, com asco
e com horror. E jurava-lhe então que o desprezava,
porque ele era fraco e egoísta. Mas logo a seguir lhe
confessava que o adorava, que não poderia nunca
mais tolerar o contacto de outro homem. E quedava-se
a olhá-lo, num pasmo animal, numa ânsia de osmose,
como ele jamais sonhara que pudesse haver.
<<Não me escrevas, mais vale o silêncio>>, dizia-lhe
Marcelo nos últimos dias, mas consentira que Pãola
tomasse nota do número do bureau da posta-restante,
onde ele recebia a sua correspondência. E ela afinal
cumprira, não lhe mandara nem uma linha. Marcelo
até já admitira a hipótese de ela ter morrido. Que se
passaria? Como era possível? Porque não escrevia?
Como se arrependia da presunção, da vaidade, daqueles
últimos dias, em que até lhe havia roubado algumas
horas, para descansar dela!
Agora daria tudo, o êxito, a profissão, o talento,
para tornar a vê-la, despenteada, opressa, uma madeixa
loira sobre a testa alta, os olhos um pouco esgazeados,
quase a correr pelo meio da rua, como quando chegava
atrasada aos encontros das seis da tarde na Brasserie
de la Sorbonne.
Lá estava à porta o mesmo criado, que eles haviam
crismado de <<Grão-duque>>, devido ao ar displicente
com que atendia os fregueses. Tudo na mesma. O sussurro das vozes, a atmosfera de fumo, os mesmos bancos
de estofo castanho, as mesas vermelhas e envernizadas,

os presuntos pendurados do tecto e envoltos em celofane, as mesmas paredes, que um artista anónimo
decorara com cenas do Boul'Mich. E os mesmos estudantes bebendo o mesmo intragável café, as mesmas
raparigas de calças, a mesma gama de rostos, atrevidos, espirituosos, loiros, esgrouviados ou intonsos,
uns já gastos e outros em flor, o olhar oblíquo dos
Anamitas, a maxila prógnata dos Negros, enfiados,
como espantalhos, nos seus fatos largos e berrantes,
de venda a pronto. Tudo aquilo era cenário. Tudo
aquilo lhe era alheio. Faltava <<ela>>. Tinha decorrido
um mês - e nada, nem uma palavra. Tomara-o ao
pé da letra. Não podia ser orgulho. Nem podia tê-lo
esquecido. Marcara-a a fogo por dentro. E ela também
o marcara. Só depois de a ter perdido, uma semana
depois, é que se sentira roubado, ansioso, revoltado,
com uma chaga no ventre, um prurido inacalmável,
e uma cova no peito, um buraco vazio a clamar por ela.
Vida sem ela era uma cópia de vida, um arremedo
grotesco.
Ali mesmo, naquela mesa deserta em frente do
balcão, lhe entregara uma tarde a lembrança das despedidas: um pregador de camurça negra, com brilhantes
falsos a que a empregada da loja chamara <<burma>>.
A caixinha ia embrulhada em papel de seda, que ela
desfez lentamente. Duas lágrimas grossas rolaram-lhe
dos olhos. Levou aos lábios a jóia de pacotilha e beijou-a. Marcelo limpou-lhe os olhos com o seu lenço
branco, de linho. Pãola ficou-se a olhar, concentrada,
para aquele trapo maculado; pegou-lhe, hesitante, e
perguntou :
- Posso ?
Marcelo, constrangido, emocionado, anuiu, sem
uma palavra. E ela guardou o lenço na mala, amorosamente. Fixou o pregador no chanduil preto, à nascença do seio esquerdo, e nunca mais Marcelo deixou
de lho ver, sempre no mesmo sítio, enquanto Pãola
permaneceu em Paris.
Todos os dias havia lágrimas, queixas, exprobrações. Todos os dias ela lhe trazia alguma coisa: um
livro de Moravia ou de Sillone. pelo qual ele denunciara um interesse ocasional; fotografias antigas, em
que ela aparecia muito loira e mais gorda. no seu atelier
de Florença. Não esquecia uma palavra anódina que
ele dissesse. Copiava-lhe os poemas de que ele gostava.
Dava-lhe todos os seus croquis de Paris. Contava-Lhe
o seu passado e gabava-se de já ter sido cruel, egoísta,
de ter escarnecido os que a desejavam.
Antes do casamento, na roda de artistas em que
vivera, chamavam-lhe <<la pitriccia maladetta>>, a pintora maldita. Marcelo via alvorecer nessas confidências
uma reacção do orgulho que ele lhe pisava pelo simples
facto de não poder dar mais do que dava. Pãola rebaixava-se ao ponto de admitir com um olhar dolorosamente lúcido :
- Sei que não gostas de mim a sério. E eu só posso
gostar de ti. O meu marido sabe que nunca o amei.
A minha frieza corta-lhe o desejo que ainda tem de

mim. E nem sequer o ajudo. Crio-lhe inibições. Humilho-o. Só agora compreendo como tenho sido má
para ele.

Marcelo forçara-a a mostrar-lhe o retrato do outro.
Curioso! Era um homem atraente, de testa escampada, perfil aquilino, à Dante, com o queixo voluntarioso, o ar viril que ele, Marcelo, não tinha, ele, que
era apesar disso o único, o prometido através do tempo
e do espaço, que lhe desposava a carne, que a convulsionava, que lhe revelava o Céu e o Inferno.
- Não gostas de mim, meu amor!
-Cala-te, sabes bem que sim.
E podia convencê-la, logo que estivessem sós, a
tremer, perdidos um no outro até à inconsciência, até
ao desvario, ao esquecimento do mundo. Então não
havia entre eles tempo, nem limites, nem fadiga: só
aquela fome acerba e exaltante, inestancável. O que
Marcelo não conseguia aguentar era o amor de todos
os minutos, que ela exigia. o vibrar constante da sensibilidade, a ternura permanente, a comunhão em tudo. . .
Nem com Pãola isso Lhe era possível. Antes dela,
com as outras, menos ainda, muito menos. Nem o
problema então se lhe punha. Com Clotilde, sua compatriota em Paris, sua ligação efémera, pobre, tresloucada Clotilde. fora um tácito convénio carnal, que
ela tingira ao de leve de romanesco. Incidente quase
incolor, que pouco durara, de resto. Sem amor. sem
paixão, até sem camaradagem real. . . Mistificação ambígua, que lhe deixara apenas um resíduo de piedade,
uma vacilante tenção de ternura. Depois Constance,
uma <<aventura>> cómoda e rápida. Funcionária, dispunha de pouco tempo. Fazia versos, publicara até
um livro de poemas, de reduzida tiragem, para iniciados. Mas era ruiva e mole, bonita talvez como um
bibelot, um pouco flácida, submissa, extasiada, linfática e pudica. Enjoava-o fisicamente. Possuíra-a fisiológica, regrada, espaçadamente, sem alvoroço nem
autenticidade. Tantas mulheres haviam desfilado assim
pelos seus anos de Paris, em série, com intervalos de
recuperação e de fadiga. Vinham do acaso, surgiam
um dia, sorrindo, desmaiavam-lhe pouco a pouco na
carne e na lembrança, saíam-lhe da vida sem destempero nem dor, amigável cortesmente. Com Pãola
tudo fora diferente, tão diferente! E, mesmo assim,
Marcelo não podia, não, não podia dar-lhe o amor
de todos os minutos. Que defeito de raiz haveria nele,
que assim o arredava da entrega total? Defendia instintivamente a sua liberdade, o seu direito à inconstância,
à vagabundagem, à incerteza. Mesmo com Pãola, tão
querida, tão desejada. Não que apetecesse alguma
mudança. Mas a ternura permanente era-lhe difícil.
Quantas vezes o seu espírito se desprendia dela, de
tudo, e Lhe exigia a solidão interna, os antigos sonhos
diurnos, imensos e braneos, de solitário, sem fronteiras, sem companhia! Recusava-lhe assim a comunhão em tudo. E a eternidade, que ela pedia. Mesmo
a Pãola, Marcelo recusava-lhe o futuro. E recusava-lho calma, ponderada, raciocinadamente.

Porquê? O que queria ele afinal? Maluco, transviado ! O que queria afinal ? Assim a havia perdido.
Tinha-a perdido, sim, perdido. Imbecil, vagabundo
insatisfeito, vaidoso, ambicioso, volúvel !. . . Cerrava os
punhos, até as unhas lhe penetrarem na pele. Tivera
medo do futuro, medo de se prender, de se cansar,
medo dela, que era tão exclusiva, tão absorvente, tão
exageradamente apaixonada. Tivera medo do amor,
aquela coisa maravilhosa e terrível. . . Também ele
nunca havia experimentado aquele desejo tão intenso
e que não se abatia, que não morria nunca completamente em desconsolo ou em piedade ou em meiguice
ou em aversão, como de outras vezes, com outras mulheres. E tudo isso ele perdera : aquele delírio divino, sobre-humano, que chegara a assustá-lo. Perdera-se a si
próprio. Perdera-a, Pãola, os seus olhos verdes, aquele
corpo doirado, de veludo e de fogo, aqueles braços que
o fechavam, antes e depois, que o chamavam e não o
soltavam, e que obrigavam sempre o desejo a acordar,
a renascer, até à prostração dos últimos beijos, que já
sabiam a sangue, a vitória, a morte, a infinito.

Saiu da Brasserie de la Sorbonne sem haver tomado
o café, que pedira só para ter o direito de ali se sentar.
Em frente das ruínas do Mosteiro de Cluny elevava-se
uma fila de barracas de feira, muito concorridas pela
fauna heterogénea do quartier. Tômbolas, tiro ao alvo
ou em movimento, por meio de células fotoeléctricas,
espuma de açúcar à venda, milho americano, todo o
odor e o ruído das feiras francesas. Por duas vezes
Marcelo foi empurrado, a ponto de quase perder o
equilíbrio. Nem reagiu, tão deprimido se sentia.
<<Se não escreveu até agora, já não escreve>>, reflectiu.
Era evidente.
<<E se eu lhe escrevesse'? Vou-lhe escrever, vou
mesmo, escrevo-Lhe amanhã, esta noite ainda. Ela
não se decide, julga talvez que a esqueci, tem pudor
de insistir, receio da minha indiferença. Que venha!
Que venha já, sem demora. Ou vou eu, se ela não puder. . .
Deixo tudo. Logo que receba a resposta, meto-me a
caminho. Uma noite no comboio, pouco mais, e estarei
em Florença, com ela.>>
Mas teria o direito de tomar aquela atitude`? E se
ela tivesse recobrado a tranquilidade, a serenidade,
a conformação? Quem sabe se não seria até mais feliz
agora com o marido! Porque não admiti-lo'? Já pensara nessa hipótese. Até lha havia comunicado. Tudo
era possível. . . Ironias do destino. . . Talvez ele houvesse
contribuído, sem o saber, para a ventura daquele marido
bondoso, inteligente, compreensivo. O outro cedera-lhe
uma estátua atormentada. soberba, suando ideias e
orgulho, solitária e ansiosa; e ele devolvia-lhe uma
mulher desabrochada em dor e em luxúria. O amor. . .
Quanto tempo teria durado o amor? Que fizera dela?
Uma bacante. Ao fim e ao cabo, o marido devia-lho
agradecer. Restituíra-lhe uma mulher autêntica. Nas
mulheres sabia ele mexer. Tinha dedos de cetim e sabia
esperar, explorar, descobrir. Um corpo de mulher

era como um instrumento de música com vibrações
secretas. Ah! Se aqueles tipos decentes, de guarda-chuva aberto, que o cruzavam no boulevard, Lhe conhecessem a vida, bem podiam escarrar-lhe em cima o
seu desprezo, que o merecia. Que era ele senão uma
espécie de prostituto? Onde aprendera o amor, senão
rolando de cama em cama, adolescente serôdio, de
rosto romântico, sem cabelos no peito? Mas as mulheres
reconheciam-no. Porque não lhe cuspiam eles em cima,
os homens regrados, virtuosos e circunspectos, que
não faziam vida do prazer, que se despejavam ordeira
e autoritariamente nas esposas submissas e recalcadas?
Ah ! Não ! A vida era um nojo, a sua vida. Que fizera
dela? Aquilo... O sexo. E agora só havia uma mulher
no mundo : ela, que o outro estaria fruindo. . . ou que
estaria chorando. Que absurdo! Tudo era absurdo
sem sentido. Deixara-a fugir.
E uma ideia louca veio-lhe ao espírito, impôs-se-lhe, dominou-o. Queria tornar a ver o quarto onde
haviam passado tardes, noites inteiras. Tinha de rever
a fachada triste, as paredes leprosas, a porta discreta
daquele hotel manhoso de uma rua esconsa.
O proprietário consentiu. Desde que ele pagava. . .
-Pour un moment?
- Comme d'habitude. . . - respondeu Marcelo.
Deviam julgá-lo doido. Que lhe importava? Fechou
a porta à chave.
Quando começara a despi-la, da primeira vez, ela
tinha cerrado as mãos e ele vira-Lhe os nós dos dedos
tornarem-se brancos através da pele. Acariciara-lhe os
cabelos, enquanto ela chorava. Pedira-lhe para ver
de novo os desenhos. Estava disposto a sair com ela,
sem lhe tocar, e a não a deixar durante toda a noite.
Levá-la-ia ao Sacré-Coeur de Montmartre, de onde
dominariam Paris de madrugada, e iriam cear às Halles
quando o dia nascesse. Mas foi ela que o beijou, depois,
apaixonadamente. Ele estendeu-se na cama, sobre a
colcha, e disse-Lhe apenas:
- Viens !
Ouvia-a. O corpo dela, longo, flavo, queimado
do sol, cheio de sombras quentes, arquejava, contorcia-se, gemia.
-Ti amo, ti amo tanto!
Falava-lhe em italiano, baixo, roucamente, com
uma imensa doçura.
Marcelo soluçou, apertou o rosto com os dedos
exasperados, bateu com a testa nos vidros da janela,
repetidamente, desvairado.
Tardes inteiras, noites inteiras! Comiam uma sanduíche, fora de horas, bebiam um copo de leite, à saída.
E depois passeavam, enlaçados, através do nevoeiro,
pela Ilha Saint-Louis, ao longo do Quais Bourbon.
Túneis de olmeiros, abóbadas góticas, todas as miragens da madrugada eles recolhiam piedosamente. Quantos dias restavam? Nove? Oito? Menos um. Ali tinham
visto um gato sobre uma árvore, além um barco atracado à beira do Sena. Uma noite tinham ouvido um

tiro e de uma esquina desembocara um malfeitor perseguido pela polícia. Junto do Pont des Arts ela havia
tossido e Marcelo retirara o cachecol, para lho pôr,
à força, ao pescoço.
Mas ali, no quarto, era onde ela vivia ainda.
-Gosto dos teus olhos e do teu espírito, adoro
as tuas mãos, o teu modo de rir e quando me dás socos
no queixo, a brincar. . .
Por último, despiam-se com a mesma pressa febril.
A intimidade tornara-se completa, ardia em ambos a
mesma ânsia de uma posse que fosse mais além do que
a natureza consente. Apetecia-lhes morrerem nos braços
um do outro.
Ali, todavia, uma tarde, ao lusco-fusco, ela lhe dissera as palavras mais duras:
- És fraco, tens medo da vida. Por isso me mandas
embora. Se me quisesses verdadeiramente, não me
deixavas partir.
E nesse momento, cansado de rogos e de lamentos,
cansado de censuras e de lágrimas, ele pensara que
realmente a não amava. Era a antevéspera da partida.

Ela já se vestira. Escondera o corpo sagrado que o
perturbava sempre. E, sondando-lhe os olhos verdes,
fosforescentes de revolta, Marcelo pensara que não
podia amá-la com a piedosa devoção de todos os dias,
com o desejo de lhe satisfazer os menores caprichos,
de lhe adivinhar os pensamentos, de se sacrificar por
ela capitosamente, como amara outrora uma rapariguinha esquiva que tinha menos para lhe dar do que
ele agora podia oferecer a Pãola.
A vida secara-o, murchara-lhe a candura, a ingenuidade de amar com o coração e de ser feliz.
Sentia-se diante dela de mãos vazias, os olhos cheios
de melancolia, e não ousava desmenti-la.
Tinham descido a escada em silêncio, afastados,
mas logo na rua, no desvão duma porta, uma força
invencível, exterior à vontade e à razão, juntara-os
no mais apertado dos abraços. ela a chorar, ele a sorrir
e a ofegar, com os olhos a picarem.
Nesse instante, ouviram uma chalaça grosseira,
que parecia dizer-lhes respeito. Marcelo voltou-se e
avistou quatro operários, que riam e os miravam.
Estavam descarregando rolos de papel de uma camioneta, defronte de uma tipografia. Ficou quieto, observando-os. Repetiram o gracejo. Então avançou para
eles, sem uma hesitação. Nunca lhe falecera a coragem
física. Era como uma consolação, um contrapeso de
todos os seus erros e tibiezas morais. Não experimentava
nem uma suspeita de medo. Ia até feliz provocá-los.
Pãola veria se ele era fraco. Perguntou-lhes se queriam
vir um por um ou todos ao mesmo tempo. Que lhes
partia a cara, que eram insolentes e cobardes. Os homens
recuaram, pediram desculpa. Arriscar a vida para quê?
Não estavam habituados àquele tipo de reacções por
motivos fúteis. Nem concebiam que aquele rapaz delgado, franzino, pudesse afrontá-los desarmado, com
tanta segurança.
Marcelo atirou o impermeável para cima dos ombros

e abandonou o quarto, após um último olhar. Na Rua
Bonaparte passou por um cinema, aonde tinham ido
uma noite ver A Porta do Inferno, um filme japonês
de paixão tempestuosa, com o colorido mais belo,
os efeitos de luz mais subtis que o écran jamais lhe
oferecera. Pãola era tão exigente que tivera ciúmes
da atenção que ele prestava ao filme. Marcelo beijara-lhe as pálpebras molhadas, os lábios sempre ávidos
dos seus, as faces cálidas e rijas, e concentrara-se de
novo na tela. No intervalo comentara o filme com
entusiasmo e com uma perscrutante clareza de julgamento.
-Como podes assim absorver-te numa ficção a
três dias de nos separarmos? Consegues abstrair de
tudo, isolar-te de mim por completo, e da nossa situação. Há em ti qualquer coisa de uma frieza horrível -- dissera-lhe Pãola, encandeando-o com os olhos profundos e reprovativos.
- Não compreendes ! Eu sou mesmo assim : vivo
no presente. Estás ao meu lado e sou feliz. Não consigo
antecipar o futuro. Não penso no que virá. Para quê?
Mas sei que, quando me faltares, hei-de sofrer. A minha
realidade agora é esta, apenas esta.
- É cómodo - concluíra ela, desiludida.
Pãola resistia sempre a ir ao cinema. Parecia-lhe
tempo perdido. Não o ouvia. não lhe falava, não o
apertava nos braços. Às vezes Marcelo desviava a
vista do écran, sentindo que uma chama o lambia,
e dava com ela a adorá-lo. intensamente, num misto
de devoção e de fúria. Pãola então sorria-lhe e o seu
rosto clareava em suavidade.
Marcelo ia muito ao cinema. Fazia parte do seu
trabalho. Estava em Paris concluindo o curso do
I. D. H. E. C. e já revelara qualidades profissionais,
pois haviam-no encarregado - o que raramente acontecia a um estudante - de realizar duas curtas metragens. Rebelava-se contra a tirania amorosa de Pãola,
quando ela lhe reclamava o tempo inteiro. Declarara-lhe de uma vez que duvidava da sua afeição, uma
vez que ela se obstinava em querer desviá-lo dos afazeres que representavam para ele uma carreira e até
o dinheiro necessário para comer. Não lhe regateava
o seu tempo, mas ela queria tudo, não admitia que ele
tivesse de ver os filmes novos que apareciam, nem que
fosse ao I. D. H. E. C. ou ao estúdio onde trabalhava.
Que género de amizade era aquela?
-Não é amizade, é amor! Se tivéssemos tempo,
tudo o que tu fazes e queres fazer seria sagrado para
mim, mas vejo os dias a desaparecerem e detesto as
pessoas e as coisas que me roubam a tua presença,
até odeio o cinema.
E Marcelo agora renunciaria a tudo pela presença
dela. O cinema parecia-lhe um jogo sem importância,
o seu talento uma habilidade de pouca monta, o êxito,
a fortuna, mesquinhas vitórias. Só ela existia, ela ausente,
ela devolvida ao passado, separada dele pelo espaço,
pela dúvida, encerrada agora em mistério. inacessível,
distante. perdida para sempre.

Voltou para casa. Esperava-o uma rima de livros sobre

a mesa-de-cabeceira: Hemingway, Erskine Caldwell.
Roger Vaillant, La Varende. la procurar no ópio de
um romance o esquecimento da realidade. Todas as
noites folheava aqueles livros, em busca de algum
cuja intriga conseguisse prendê-lo, que fosse fértil em
peripécias. Mas todas as frases eram alusivas ao seu
caso ; revia-se em todas as dores. em todos os fracassos ;
a imagem de Pãola ressurgia, interpunha-se entre ele
e a narrativa.
Pendurou o impermeável no cabide, ao lado da
porta. Tinha deixado a janela aberta e o ar frio da
noite lavara-lhe o quarto. Acendeu um cigarro e sentou-se na cama. Pãola deixara de fumar cigarros americanos para fumar os dele - Gitunes. Só ali estivera
uma vez. O quarto não era completamente independente. Dava directamente para a escada, mas a parede
interior era estreita e indiscreta: ouvia-se tudo do outro
lado. E embora Marcelo não tivesse que dar satisfações
do seu comportamento aos proprietários, respeitava-os.
Não recebia visitas de noite. Só Pãola ali viera uma vez
e demorara-se pouco. O bastante, em todo o caso,
para permanecer em todos os objectos que tocara,
nos livros, nos papéis, no guarda-fato, diante do qual
se penteara com o pente dele. na cama, onde ele a beijara
e lhe descobrira a carne aveludada, e onde o desejo
insatisfeito desse momento o ficara rondando, apoleando-o, intumescendo-o, obsessivo, na solidão das
noites de agora, até ao paroxismo, até à nevrose.
Um retrato dela, sobre a mesa que ali servia de
secretária, mostrava-a em trajo de esquiadora numa
paisagem alpina. Não era exactamente ela, tal como
a conhecera, mas a boca carnuda e teimosa era a que
ele tantas vezes sorvera. aqueles olhos claros que sorriam num rosto mais jovem e mais cheio eram os mesmos
que lhe haviam dito exaltadamente todo o amor que
de um ser humano podia brotar.
Marcelo pegou no retrato, retirou-o da moldura
que ela Lhe oferecera também e ficou a olhá-lo, querendo beijá-lo e não podendo, querendo chorar, sem
que as lágrimas lhe concedessem o alívio de ter piedade
de si.
Foi então que ressoaram na porta quatro pancadas
fortes, impacientes.
- Un instant - disse ele, em sobressalto.
Ninguém o visitava habitualmente, àquela hora.
Repôs a fotografia no caixilho e abriu a porta,
fechada à chave.
Pintou-se-lhe no rosto a desilusão. Mas compôs
um sorriso amável. Por um momento, chegara a esperar. . . Era absurdo, mas saltara-lhe o coração no peito.
Chegara a esperar que fosse ela. Como? Porquê? Vinda
de onde? Por que milagre? Absurdo! Mas vivera um
segundo delirante. E não era ela, não.

Era outra. Outra. Apenas uma mulher. Um farrapo do seu passado: Clotilde. Uns olhos muito azuis

e falsos, cariciosos, num rosto quase lívido, uma máscara trágica, ainda bela, já com rugas fundas, emoldurada em cabelos negros.
Entrou logo, sem lhe pedir licença.
Marcelo teve vontade de lhe dizer que não recebia
visitas àquela hora. Mas não se encontravam havia
já muito tempo. Sempre caprichara em manter relações amistosas e corteses, mesmo ternas, com as antigas
amantes.
Ajudou-a a tirar o casaco de peles e convidou-a
a sentar-se. cerimoniosamente. com um sorriso de
ocasião, de uma solicitude forçada.
- A que devo a honra? - perguntou, em tom de
brincadeira.
-Estou muito triste, Marcelo. Precisava do conforto duma pessoa amiga. Por isso vim vê-lo.
Dar-se-ia ela conta ou não de que a amizade entre
eles era quase uma obra de arte, um esforço tácito
em que ambos se haviam empenhado para que não
morresse tudo o que os havia unido: romance barato,
frases, uma vaga sensualidade ? Fora afinal bem pouco :
um fogacho do sangue, logo extinto, a que eles tinham
convencionado chamar amor, para salvar as aparências.
Representavam aquela comédia desde o terceiro dia
da ligação breve que começara por acaso, num dia em
que ele, ocioso, lhe batera à porta e em que ela estava
a tomar banho e o recebera de roupão.
-Então o que aconteceu?
- Não, não posso. . .
Marcelo violentou-se. Não tinha nada para lhe
dar naquela noite, nem compreensão, nem uma migaLha de carinho. Queria estar só, com o fantasma de
Pãola. Mas, por delicadeza, entrou no jogo: pegou-lhe
na ponta do queixo, já um pouco deformado sob a
máscara de creme. Pegou-lhe no queixo exactamente
como outrora fazia, e animou-a:
- Vamos lá, niria, conte. . .
E a confissão veio, teatral, mas pungente. Marcelo
adivinhava tudo o que ela não dizia. Afinal sempre
era amigo dela, maçava-o um pouco, mas tinha graça
e fantasia, levava a vida a representar, e sofria com
certeza, no seu fundo de mulher e de burguesinha portuguesa, por não se ter casado e não ter filhos, nem posição
definida, nem arrimo, nem futuro, nem esperança,
com a beleza já gasta, humilhada por uns e por outros,
oferecendo-se a torto e a direito, resvalando na mendigagem do seu orgasmo difícil, de um galanteio reconfortante ou até só de uma companhia gentil e paciente.
<<Pobre Clotilde !>>
Tinha falta de dinheiro como ele, jornalista falhada,
com veleidades a escritora, inculta, mas inteligente;
e sinuosa, felina, obstinada, capaz de humildade e de
insolência, capaz de se vender e de desprezar, capaz
de amar. Se alguém gostasse dela, poderia salvá-la.
Era do que ela precisava, o que merecia afinal, coitada,
após tanta decepção, tanto vexame, tanta náusea que
ele pressentia.
Sentiu por ela uma grande compaixão. Passou-lhe
a mão pelos cabelos negros.
O que ela lhe contava devia ser falso, claro, ou

pelo menos retocado a seu favor, embelezado, poetizado.
Marcelo não queria de modo algum bulir com
essa construção dramática. Fingia acreditar em tudo.
-Sim? Um diplomata? Francês? Novo? Hum!
Hum!
E ouviu a história até ao fim. A ligação acabara,
segundo ela, porque o sedutor, sendo solteiro, não só
não manifestava qualquer intenção remota de casar
com ela, como até a afastava das pessoas do seu meio.
Não queria comprometer-se, nem dar nas vistas. Velava
pela sua reputação. Viver com ele de casa e pucarinho
ainda ela podia aceitar, mas aquele sigilo era de um
monstruoso egoísmo.
-Imagine! Telefonava-me, quando lhe apetecia,
para eu ir ter com ele. Não me queria apresentar a
ninguém. Se fosse casado, era diferente. Assim, não,
não podia continuar. Foi por isso que acabei: disse-lhe três verdades na cara. Meu menino, a Clotilde,
c'est fini. Estou farta da sua toleima, da sua mesquinhez e da sua cobardia.
Marcelo adivinhava que não fora assim, que o
outro se cansara, mais um que se cansara dela, daquela
pobre carne fria e insatisfeita, do seu dramatismo,
da sua beleza fanada. E ela implorara ainda talvez
uma ilusão de amor, bastava-lhe a mentira, o calor
dum corpo, um braço para a passear na rua. E o outro
correra-a, mais ou menos como ele fizera, com certeza
mais à bruta.
- E você gostava muito dele, Clotilde?
- Não sei. Ao princípio talvez. Mas feria-me constantemente. Acho que nunca lhe quis tanto como a
si, enquanto você consentiu. Você nunca me deixou
verdadeiramente gostar de si.
- Eu sou seu amigo, Clotilde.
Não acreditava nela, mas a amizade que naquele
momento lhe oferecia era sincera.
A reacção dela, porém, consternou-o. Viu-lhe o
rosto odiento, decepcionado"quase feroz, das horas más :
- Amizade ! Amizade ! E o que todos me prometem, a esmola que me dão. Não quero para nada a
vossa amizade. Rio-me da vossa amizade.
-Antes assim, Clotilde, sincera, autêntica, deite
fora a máscara, ao menos uma vez.
- Cale-se. Poupe-me.
Começou num pranto convulsivo, quase repugnante,
desolado, terrivelmente comovedor.
- Sou tão infeliz, Marcelo, tão infeliz!
Por fim serenou. Pediu-Lhe um copo de água,
um cigarro, cruzou as pernas, não parecia disposta
a ir-se embora, já sorria. <<Eram feridas epidérmicas>>,
pensou ele.
- E você, Marcelo, o que tem feito? O cinema,
claro, muito trabalho. . . E. . . amores?
Marcelo olhou para o retrato de Pãola, carinhosamente, com nostalgia, com suavidade, com fervor,
com orgulho, e respondeu, como para si próprio, num
acesso de egoísmo, toda a paixão a vibrar-lhe na voz:
-Eu? Vivi os quinze dias supremos da minha

vida. E não posso esquecê-la. Nunca ninguém gostou
de mim daquela forma. De corpo e alma. Até à raiz
dos cabelos, até às unhas dos pés. E eu adorava-a também. Ainda a adoro. Parecíamos feitos por medida
um para o outro. Tremia só de eu lhe tocar.
Continuou a mirar a fotografia, em êxtase. Quando
finalmente encarou com Clotilde, viu-Lhe nos olhos
fugidios duas lágrimas a brilharem. Lágrimas, lágrimas,
lágrimas, que lhe importavam as lágrimas de Clotilde,
lágrimas de crocodilo; ela passava a vida a chorar,
depois ria, bebia, abraçava-se aos homens, fazia-lhes
poesia sexual, metia-se-lhes debaixo e não se mexia,
revirava os olhos. . . Que se fosse embora, que o deixasse com as suas lembranças, com o seu amor que
não era comédia. Não estava para a aturar. Mas teve
pena dela, mais uma vez. Via-a dobrar-se, arquejante.
- Então o que é isso, Clotilde, vamos lá, deixe-se
de partes. . . O que é que eu lhe fiz?
- Quais partes! Deixe-me ao menos imaginar que
você é menos grosseiro do que os outros. Não me fale
assim. Não compreende sequer como foi cruel falando-me
de outra mulher, que era superior a mim em tudo, que
teve de si o que eu não tive. Eu nunca lhe disse se os
outros valiam mais do que você como homens. Essa
mulher marcou-o então a esse ponto? Estou farta de
mim, é por isso que choro, farta de mim e farta de tudo.
Às vezes penso em voltar para a minha terra, mas já
não sou de lá nem de cá. Já não tenho lugar neste mundo.
Percebe agora porque eu choro? Continue a humilhar-me, vá, fale-me dela. Não tem importância. Eu
vou-me matar, um dia destes.
- Clotilde, minha pobre Clotilde ! - disse Marcelo, abraçando-a, cheio de dó, e sentindo-se impotente para a consolar.
Ela soluçava de novo. Chorou, por muito tempo,
abraçada a ele, que se pusera a fitar o tecto, já menos
comovido. E apertava-o nos braços, com desespero.
Marcelo queria libertar-se e não conseguia. De repente,
os lábios de Clotilde, húmidos, salgados, pastosos,
procuraram os dele, que lhe fugiram. E Marcelo viu-lhe no olhar uma súplica mortal. Sentiu que era naquele
momento para ela a última tábua do naufrágio. Desgraçada criatura, viscosa, sem brio, sem pudor. Ao
que chegara ! Que queria ela ? Certificar-se de que ainda
podiam desejá-la`? Esquecer-se na vertigem da cópula
do sarro que a envolvia? Ou arrastá-lo com ela para
a lívida degradação de um abraço mecânico e desesperado, sem amor, quase sem desejo?
Furtou-se-lhe. Mas ela grudava-se-lhe, pegajosa;
seguia-o, como uma coisa, batendo com o corpo na
esquina da cama. Não o soltava. E Marcelo via-lhe
na boca descaída e nos olhos azuis um sorriso arteiro,
obstinado, no fundo do qual a esperança luzia, patética. Era um rosto de lodo e de mel, um rosto quase
pavoroso de condenada. Naqueles olhos misturavam-se
súplica e dor, dissimulação, vexame, sedução, ódio
manso, ânsia de desforra, vontade de o envilecer. Havia
nela sobretudo desgraça. E uma aurora de morte. . .

Marcelo parou de se debater. Sentou-se de novo
na cama, com aquele fardo a pesar-lhe em cima, e
ficou inerte. Era uma esmola que ela queria - pobre
Clotilde! -, uma horrível esmola, que de momento
a acalmasse. Já tinha feito aquilo com indiferença,
quase com repugnância. Fá-lo-ia mais uma vez. Mas
depressa! E depois que o deixasse em paz. Viu as horas
disfarçadamente no relógio de pulso: duas da madrugada.
Principiou a despi-la, sem a fixar, vencendo a relutância dos sentidos. Mas não pôde continuar. Afastou-se. Desfez-se das suas roupas. Depois foi-se deitar
ao lado dela, apagou a luz, para não ter de lhe suportar
o veneno doloroso dos olhos, e esperou. Mas a carne
recusava-se, resistia a todos os estímulos, mole, agoniada.
Marcelo enervou-se, insistiu, crispou-se, cerrou os
dentes de fúria e acabou por entrar naquele longo
corpo suado e silencioso. Só queria terminar, já nem
caridade sentia, só fastio e receio, náusea, raiva. Tentou
pensar em Pãola, para se excitar, mesmo com um sacrilégio, e pôr termo de qualquer modo àquela farsa ignóbil.
Mas o efeito foi contrário. Fugia-Lhe aquela semivirilidade laboriosa, e ilusória, mecânica, frouxa. Sentiu-se
de novo impotente. E odiou-a. Odiou aquele corpo
demasiado branco, o seu cheiro acre, o púbis ralo, os
suspiros que Clotilde exalava. Odiou-a. Porque viera
torturá-lo, pedir-lhe o que ele não podia nem queria
dar-lhe'? Comédia infame!
Desprendeu-se. Levantou-se de repelão, acendeu um
cigarro no escuro. Foi ela que abriu a luz.
Marcelo viu-a lívida e descomposta, um riso de
ódio na boca.
- Não valia a pena ter-me despido para isto -- disse ela.
- Foi você que começou.
- Está bem. Eu vou-me embora.
Mas não foi. Pediu-lhe outro cigarro. E depois
pediu-lhe uma bebida. Não teria qualquer coisa com
álcool?
Marcelo desrolhou uma garrafa de vinho do Porto,
a última que lhe restava. Não haveria nela nem sequer
sombra de dignidade? Estendeu-lhe o copo com vinho,
fitando-a, curioso. Era aflitivo! Clotilde tinha medo
de sair, medo de voltar para a sua solidão, para o seu
fracasso, para os seus fantasmas.
-Deixe-me ficar consigo esta noite.
-Não, isso não.
Pronunciou estas palavras com determinação, friamente, de maxilares contraídos.
- Põe-me na rua?
- Não é isso, Clotilde, compreenda. . .
- Julga que alguma vez gostei de si?
E riu escarninha.
- Não, não julgo nada. Antes assim ! Ainda bem !
-Eu não gosto de ninguém. Ninguém gosta de
mim. Nunca ninguém gostou de mim.
Recomeçou a chorar.
-Mas você gosta da italiana. Porquê? O que
tem ela diferente de mim?
Marcelo olhou para o retrato. <<Pãola, meu amor!>>

A sensação do irremediável, o sentimento da sua baixeza, a impressão de que o mundo se esvaziara, de
que ela era a única mulher, o espírito que respondia
ao seu, a carne gémea da sua, tudo isso lhe apertava
o peito. A voz dela, o calor da sua pele !. . . Nunca mais
a veria. Não lhe escreveria, nem iria vê-la. Nem ela
voltaria jamais. Acabara-se tudo, tudo, tudo. . .
- Vá-se embora, Clotilde. Desculpe.
Caminhou para ela, beijou-a na testa, com uma
meiguice superficial, empurrou-a para a porta.
-Eu não lhe quero mal, Marcelo. Sou eu que
peço desculpa.
E saiu.
Marcelo foi até à janela. Abriu-a. O ar frio da
madrugada cortava-lhe a pele. O céu estava cheio de
estrelas. Dissipara-se o nevoeiro. Ao fundo da rua
sangravam luzes. Sobre os telhados, destacava-se, maciça,
a cúpula do Panthéon. A alta silhueta de Clotilde surgiu
lá em baixo, atravessou para o outro passeio, aconchegada no amplo casaco de peles. Perdera todo o
seu panache. Parecia mais velha. la visivelmente enregelada.
<<Preciso de dormir, de esquecer>>, pensou Marcelo.
<<Quero-me esquecer, esquecer, esquecer. . .>> Que diferença entre o amor e aquilo !. . . Aquele arremedo inconvicto dos gestos espontâneos !. . . Aquele fracasso impuro
e caricato. . . Não lhe apetecia recomeçar nunca mais.

E, sem Pãola, o futuro era talvez aquele, semelhante
àquilo para sempre... Estava cansado. Sentia-se moído,
inerme, farto daquele viver desencontrado e baço,
sem alegria autêntica. Passara-lhe à mão o remédio,
o calor de Pãola, que tinha um sentido, a chama da
vida (com ela todos os gestos eram limpos e naturais!)
e fora egoísta, desnorteado, cego, desatento. . . deixara-a
seguir sem ele, não a detivera, Pãola, Pãola já sem
rosto. . . Os braços dela tinham caído, já não o chamavam. Sentia-se todo ele um vómito, tudo em volta
era fel: o quarto conspurcado, as recordações poluídas.
revoltas e sujas as roupas da cama onde teria de se
deitar. Como poderia deitar-se ainda naquela cama?
Varrera-se-Lhe da alma a esperança. Queria morrer,
não acordar nunca mais. Abriu a gaveta da mesa-de -cabeceira, onde guardara um tubo de gardenal, destinado às noites de insónia. Mirou-o longamente, hesitante. Por fim, decidiu-se a abri-lo. Despejou-o inteiro
no copo ainda sujo de vinho. Dissolveu os comprimidos
com água da torneira. <<Que mistela, deve ser intragável !>>
? Os olhos de Pãola sorriam-Lhe no retrato antigo,
verdes, luminosos. <<Não podes ver isto, meu amor!>>
Voltou o retrato para a parede. E Pãola deixou de
existir. Era verdade, já só a morte estava com ele, a
morte e o medo.
<<Então o que é isso, Marcelo, medo?>> Não queria
pensar. Era como se fosse uma carga de cavalaria aquele
líquido esbranquiçado.
Tinha de pagar, cedo ou tarde. Não, aquela noite
não merecia amanhecer. Fez uma saúde às estrelas:

o teatro ajudava imenso, até a morrer. Encheram -se-lhe os olhos de lágrimas, lágrimas de fraqueza.
<<Sou um pobre diabo!>>
Num ímpeto irracional, bruscamente, ergueu o
copo, decidido a engolir o conteúdo de um trago. Mas
à altura dos lábios faleceu-lhe o gesto. Suspenso, encarou
o líquido espesso. Covardia? Seria mesmo covardia?
Um sorriso lento, pútrido, lasso, arrepelou-Lhe a boca.
Não, não beberia o veneno. Não era da raça dos que
se matam. Ou seria que nele estava ainda verde aquele
gesto? Na pele, no sangue, nos ossos, ardia-lhe ainda
o fogo da vida. Mesmo suja, conspurcada, essa vida.
tinha de a cumprir. Se a morte viesse, a morte limpa,
na lâmina duma espada, no clarão dum tiro, em campo
raso, ao som rubro duma corneta, entre cânticos e
pragas, seria diferente. Mas escolhê-la, assim, naquele
podre anonimato, naquele limbo desolado, não, não
podia. . .
Tinha de aceitar-se, com humildade, e continuar. . .
Já a sua decisão lhe parecia absurda. Suicidar-se!
Que pretensão, que vaidade! Pobre dele, coisa vil,
odre de vida mal vivida, cheio de feridas, a escorrer
vergonha. . .
E aquela queimadura no ventre, no peito! Pãola
que ele não merecia, Pãola que ele perdera para
sempre !
Mas no seu espírito, insidiosamente. infiltrara-se
o bicho da verdade, monstro invisível que o roía,
monstro sagrado que lhe reclamava naquele instante
uma confissão inteira, descarnada, fosse embora feia.
horrível, desconsoladora, a verdade que ele recolhesse,
a sua verdade sem máscara, sem rosto, sem pintura,
sem condescendência, implacável, absoluta. Pãola,
mesmo Pãola, poderia ele guardá-la, ser feliz com
ela, se de novo ali a tivesse para sempre? Quando os
sentidos, após o maravilhoso enlace que lhe estancaria a sede, de novo embranquecessem, como já
acontecera, apesar de tudo, com ela presente, Pãola,
mesmo Pãola, tão querida, tão lamentada, tão desejada, encheria ela ainda aquele seu doloroso vazio?
Não seria ainda egoísta e ilusório mesmo aquele seu
amor ?
Revoltou-se. Não queria responder a si próprio,
àquela pergunta cruel. Restasse-lhe ao menos de Pãola
a lembrança intacta. Lançou-se sobre a cama e, débil,
abandonadamente, encharcado de náusea e de dó,
ficou molhando de lágrimas o travesseiro, de janela
aberta, até que a aurora, branda de luz, o adormeceu.


Paris, Janeiro de 1955

ESCOMBROS

À memória de Pedro de :bluuru e Sá

Para que Lhe contava afinal tudo aquilo? Ela apenas
Lhe perguntara o que estava ele fazendo em Berlim.
Era tão fácil responder : <<Sou correspondente do Diário

Carioca.>> Mas a hora adiantada da noite estimulava-o
a falar de si. Era a hora do balanço, quando se afogava
em vazio e a consciência lhe pingava sebo. Mais um
dia de ócio e de expedientes. Daquela sensação de
inutilidade Baudelaire fazia poemas. O ócio podia
frutificar. Porque não faria ele também poemas? Não
estava mais enterrado na crápula do que Villon ou
do que Verlaine. Simplesmente, não tinha talento,
nem perseverança, não desejava coisa alguma. Se
começava a escrever. logo perguntava a si próprio:
<<Para quê?>> Era mais simples, mais natural, ir jogar
com o Wolfgang ou saírem com as escandinavas, que
pagavam discretamente as contas dos restaurantes e
dos cabarés.
Soledad vinha de outro tempo, vinha de Paris.
A intimidade que houvera entre eles deixara-lhes aquele
gosto das confissões. E Soledad era também um destroço. Com dinheiro, mas era outro farrapo. E lúcida,
como ele. Conhecia-o sob alguns aspectos. Noutros
pontos errava: julgava-o ambicioso e ele era apenas
vaidoso; julgava-o interesseiro e ele era apenas indolente. Dera-lhe presentes, em tempos, e contara-lhe
toda a sua vida. Chamava-lhe então, por brincadeira,
<<O Belo Jacinto>>. Não adivinhara nunca o que ele
calava.
-Sabe, Jacinto, você está ficando com muitas
brancas. Ao princípio davam-lhe graça, mas se continua assim tem de mudar de ofício.
Era tudo o que ela encontrava para lhe dizer, em
paga do seu abandono. E contudo Soledad gostara
dele, tal como podia gostar, e dentro do que ele consentia. Durante pouco tempo, é certo. O bastante,
em todo o caso, para Lhe adivinhar os caprichos, para
o rodear, com uma elegante naturalidade, daquelas
atenções veladas que mulher alguma jamais lhe dispensara. Bilhetes para o teatro, que ele dizia oferecidos
por uma amiga; a gravata que ele vira numa montra
e que lhe agradara ; o relógio, que era uma jóia, emprestado no dia em que o dele parara, e que Soledad depois
não lhe aceitara, porque queria deixar-Lhe em lembrança um objecto usado por ela. Até simulava com
ele um prazer exagerado, para se remir do olhar fugidio,
do rosto ingrato, que ela sentia indignos de serem
amados. Porque Soledad era quase feia. E sofria com
isso. Tinha maneiras, vestia-se ostentosamente, perfumava-se muito, sabia mandar, escolher um jantar,
entrar numa sala - nascera naquilo -, mas era feia.
Agora, vendo bem, talvez estivesse melhor. . . Já dantes
parecia aquela idade com o seu rosto carregado. Estava
agora mais à vontade na casa dos trinta, não havia
dúvida.
Jacinto verificava que perdera realmente todo o
domínio sobre ela. Não eram já os mesmos. Ele emprestara-lhe uma forma e Soledad, esforçando-se por entrar
na moldura, existira em função dele durante um mês.
Agora era outra coisa. Ma? o quê? Imagem de que
espelhos deformados?
Afastou de junto dela a garrafa de Armagnac.

- Isso não é para si, Soledad. Você tem uma vida
a viver. . . sem Armugnac.
-É verdade que estou bebendo, um pouquinho
- admitiu ela. - O exemplo da Pilar. . . Ou talvez
simplesmente para dormir. . . Agora tenho insónias.
- A Pilar? Quem é? Ah ! sim. . . Aquela moça que
veio consigo. . .
Mudara, realmente. Mas em quê? Os mesmos
olhos sonsos e recalcados, a mesma boca sibilina, o
nariz grosso, a cabeleira fulva, o peito forte, aquele
mesmo corpo túrgido e moreno, que, desnudo, tinha
um encanto obsceno, qualquer parentesco com a perversidade burguesa das Bnigneuses de Courbet.
Pegou-lhe na mão.
-Você não é feliz, Soledad?
- Não. Ando profundamente descontente comigo.
Não faço nada. Não tenho uma razão de viver. Sou
ciumenta, inconfidente, e vivo em desacordo comigo.
Você diz que somos apenas um compromisso com os
outros, não me esqueço de nada do que você diz, mas
eu recuso-me a admitir que seja mesmo esta coisa que
para aqui vive. Às vezes penso que sou maluca. Atraiçoo
a confiança dos que me estimam, sujo todos os sentimentos. Neste momento há um rapaz que gosta de
mim, um inglês. Mas domino-o intelectualmente e,
como ele tem a fraqueza de me querer bem, sou má
para ele, mazinha. . . que eu nem sou capaz de ser completamente má. . .
- Você é boa, Soledad, foi sempre tão boa para
mim...
-É diferente. Você foi talvez o único homem
de quem eu gostei a sério. A si, ter-Lhe-ia sido fiel. Hoje
até me parece impossível ! Deslumbrava-me a sua inteligência inútil, a sua fria percepção de tudo o que não
é aparente, a sua souplesse no trato com os outros.
Agora sou sua amiga, mas passou-me a bebedeira e
vejo o seu donjuanismo meio inconsciente, a falta de
vigor moral que o torna tão simpático, e a sua ausência
de simpatia profunda pelos outros.
Jacinto sentiu-se triste. Soledad já nem lhe inspirava ternura, só um pálido reconhecimento que ele
não queria deixar morrer, mas era melancólico assistir
àquela exumação crítica de um amor que o lisonjeara
tanto. Soledad González, filha de um diplomata peruano,
embalada em berço de ouro !. . . Que conquista ! E até
era inteligente. Tinha relações na alta finança, na política, na carrière, frequentava em Paris o Lido e o Plaza
Athénée, falava francês tão bem como ele, punha vestidos de Lhamé, fazia-se preceder por um chauffeur
fardado. Durante um mês fora entre eles uma verdadeira osmose: Jacinto habituava-se a comer em restaurantes de luxo, a circular displicentemente pelos Campos
Elísios num automóvel sensacional; Soledad polia a
sua educação artística: ia com ele ao teatro, discutiam
ideias. Nunca Jacinto conseguira empreender um trabalho de fôlego, mas lia muito e conversava com brilho.
Por fim, Soledad fora apenas para ele uma mulher
apaixonada, com o pudor tocante de confessar o seu

amor. Se fosse verdadeiramente um chulo, teria casado
com ela. Mas nesse tempo ia ainda a descer a encosta. . .
Sentia-se triste, nem conseguira salvar a recordação.
E ela dissera-lhe palavras duras. <<Veleidade, inconsciência, narcisismo, egoísmo>>, tudo isso era verdade,
de certo modo, mas não era tudo. Precisava de se justificar. Se ela soubesse ! Se soubesse como ele fora puro !. . .
- Tem visto em Paris os meus amigos do Capoulade, aqueles que você achava <<sebentos>>?
-Vejo-os de vez em quando. Simpatizo muito
com um que você me apresentou, aquele alto, de barba
loira, muito feio, mas que tem um sorriso de menino.
- O Moreau. . .
Dinis, Moreau, Langepierre, o Antunes e o Jorge:
os cinco do Capoulade. Três portugueses, dois franceses, irmanados num sonho e detestando a palavra
sonho, todos eles convencidos do rigor das suas ideias,
assentes, segundo diziam, em bases científicas, acreditando piamente no progresso em marcha, na salvação da humanidade. O Moreau, com vocação sacerdotal
e abominando abstractamente o clero, instrumento da
reacção; Langepierre, com sensibilidade estética e individualista, mas disposto a abdicar de si, em favor de
um saneamento social imprescindível; Dinis, irónico
e persuasivo, deslumbrado por uma revisão materialista da história, envergonhado dos seus impulsos
caridosos, à maneira burguesa; o Antunes, pobre
diabo, tão límpido, persuadido de que iam abolir a
miséria da face da Terra; o Jorge, um revoltado, sempre
de dedo no ar, acusando, obcecado. intransigente,
às vezes insuportável, odioso, mas sóbrio, austero
como um puritano. Vivera ao lado deles seis anos,
tolerado como heterodoxo, com os seus vícios do <<podre
mundo capitalista>>, as suas impertinências de livre-pensador, o seu apetite frustrado de riqueza e a sua
nostalgia de ideal, de justiça, de harmonia, de sacrifício. Admirava-os porque tinham escolhido a obscuridade, as dificuldades, a luta sem glória, a miséria disfarçada. E momentos havia em que se solidarizava com
eles e aspirava a um mundo diferente daquele em que
viviam. Mas faltava-lhe a fé, a possibilidade de ter uma
fé, qualquer que fosse. A palavra fé era, de resto, tabu
naquele meio, herança de uma sociedade renegada.
Nem sequer falavam a mesma linguagem. Mas o convívio diário com eles marcara-o. A ideia da revolução
chegara a ser para ele como que uma forma de penitência, de resgate, tão culpado se sentia já de uma
existência desbaratada ao vento dos prazeres fáceis.
Filho de portugueses da média burguesia, nascido em
Trás-os-Montes, cedo emigrara com um irmão mais
velho para o Brasil, onde tinham um tio rico; viajara
ainda adolescente pela Argentina, pelo Uruguai, e aí
aprendera um espanhol melado. Concluíra os seus
estudos superiores em Lisboa, voltara ao Brasil, já
órfão, logo com saudades daquela enfiada e honesta
gente do Tejo, na qual de longe às vezes se reconhecia;
e viera finalmente para Paris, um pouco à experiência,
como correspondente do Diário Carioca, sem se deter

na sua capital marinha, porta do velho mundo, margem
alvíssima do continente do cepticismo, em que se viam
ainda barcas adormecidas, com tristes e serenos pescadores. De descoberta em descoberta, percorrera em
seis anos a Europa Ocidental, e bebera-lhe o sumo
perigoso, habitando num lado e noutro. Mas o cruzeiro desvalorizara-se, os cheques que lhe enviavam
do Rio de Janeiro eram por fim já quase simbólicos.
Aquela aventura de Berlim levara-a a efeito praticamente por sua conta, com os proventos de umas reportagens mundanas, de baixo servilismo, que tivera ainda
a dignidade de assinar com um pseudónimo. E agora
vivia mais ou menos de expedientes. Encontrara ali
o Wolfgang, o tipo acabado do aventureiro que sempre
o encandeara, homem da acção pela acção, reduzido
de momento ao manuseio das cartas e ao comércio
das escandinavas, ou à condução de caravanas de
turistas pelas boites de nuit, mas com um <<estofo formidável>>.
O que ele queria dizer a Soledad era que não fora
sempre completamente céptico, nem cínico, e que
ainda não era insensível nem venal, que se deixava ir,
por inércia e porque o destino lhe não oferecera ainda
a oportunidade espectacular de que ele necessitava.
Gostaria de lhe falar do grupo do Capoulade,
daquela asa de sonho que o roçara. Mas tudo aquilo
era chinês para ela. Gostaria também de lhe contar
os seus anos de menino em Trás-os-Montes, na serra
fria, a primeira adolescência depois no Ceará; falar-lhe da catinga e das oiticicas do sertão, do patriarcalismo da fazenda, ou das ribas, no tempo mais longínquas, do Douro, desse mundo perdido em que ainda
se evadia. Se pudesse explicar-lhe como renunciara á
oração por se sentir indigno do diálogo com Deus,
como abolira a confissão por repugnância do compromisso! Ainda hoje era sincero. O pecado já para
ele não tinha sentido. Mas continuava incapaz de
jurar <<Não tornarei a fazer isto>>, estando quase certo
de voltar a fazê-lo.
-Você anda meio abstracto, Jacinto. Dantes
era mais comunicativo, fazia um destes fogos-de-vistas !. . .
- Estou cansado, sabe. Estava pensando nos meus
amigos de Paris.
- Saudades?
-Acho que sim. Tenho-lhes amizade. Mas vou
afastar-me deles. Consideram-me uma espécie de traidor.
- Porquê?
-Não partilho a atitude deles, em face dos problemas políticos.
- Mas você é alheio à política. . .
- Sou e não sou. Já tenho perguntado a mim próprio em que medida posso ter atraiçoado. Houve um
momento em que desejei sinceramente uma modificação da nossa estrutura social. Não tenho cultura
política. Pensava apenas com o coração. Mas eles
adoptaram-me, apesar disso, como um dissidente, um
fantasista, com alguma coisa de aproveitável. Pergunto
a mim próprio se me afastei por cobardia moral, por

falta de têmpera. É verdade que o bem-estar imediato
me atrai, que as vaidades sociais chegaram a negacear-me. Mas nunca fiz carreira por esse lado. Nauseava-me ainda mais que esta minha vagabundagem
amorfa. Por outro lado, sentia-me demasiado putrefacto, demasiado sarnoso, para atacar coerentemente
os meus podres irmãos daquele negregado mundo
capitalista que eles condenavam sem apelo. E há em
mim, desde sempre, qualquer inconsciente necessidade
de coerência que me obriga a uma íntima humildade,
a dizer <<mea culpa>> e a não apedrejar os piores, ainda
quando os detesto, quando eles nem sequer dão esmola
e pisam a barriga dos escravos. É que também eu me
sinto baixo como a lama, em certas alturas. Mas a
principal razão não é essa, Soledad: é outra, é que
nunca tive fé, nunca acreditei profundamente que o
mundo deles fosse melhor que este. A aventura foi
sempre o meu grande fraco. a aventura pela aventura,
pelo risco, pela experiência, pela emoção, por um
sorriso, por uma rosa, por coisa alguma, como D. Quixote contra os leões. E eles queriam cortar-me as asas,
quando eu ainda tinha asas. Está bem! Eu ia na conversa. . . Estava disposto a tornar-me um ser útil, sossegado, razoável, decente, mas num mundo realmente
decente. E que mundo era esse? Uma mascarada diferente. Adeus liberdade, adeus epicurismo, adeus fantasia. Bom! Confesso que a uniformidade me apavora.
Mas o pão para todos, os cegos debaixo de telha, a
dignificação dos servos. . . que diabo ! tudo isso valia
o sacrifício das excentricidades anómalas desta pobre
e miserável criatura que eu sou, eu, Jacinto de Lemos,
vadio sensual e instável, com fumos de literatura e
hábitos de jogador.
-Não exagere, Jacinto, eu recebi muito de si,
aprendi consigo a poesia das coisas em que a gente
não repara, você ensinou-me a olhar, a ver o que é
belo... Por isso gostei de si.
-Isso é literatura, Soledad. Já não acredito em
nada disso. A minha vida é sórdida e lamentável. Tudo
isso era falso. A vida não é um cenário. Uma floresta
a arder não é um quadro: é uma floresta a arder. Hoje
estou assim. . . Que se lixe a beleza, essa em que eu
naveguei. A beleza é o contrário de mim. Mas. . . você
interrompeu-me. O que dizia eu ? Sim, é isso : o caso
é que eles não nos dão nada, expulsam deste mundo
a tolerância e oferecem-nos outras escravaturas, outras
hierarquias injustas, os sabujos, os ambiciosos, outra
vez a mandarem, e o terror, a violência. . . A felicidade
a longo prazo, três, quatro, cinco, dez gerações sacrificadas, sem uma certeza. . . Até quando ? Sei lá. . . Até
renascerem vigorosamente os privilégios, as aristocracias. Sabe?. . . Eu estou em Berlim. Aqui aprende-se
muita coisa. Estamos entre o mal e o mal. Que se amolem
todos! Cada vez me convenço mais de que isto não tem
mesmo conserto. E o pior é que já não acredito em
nada, em nada, em nada.
- Sabe do que precisávamos, Jacinto? De ir tomar

um cafèzinho, para você serenar. Dantes você pretendia que o café o acalmava.
-Isto não é o Bairro Latino, Soledad. Estamos
em Berlim: uma cidade em ruínas, a guarda avançada
do mundo ocidental. . . Aqui não se toma café às duas
da manhã. Já todos dormem no hotel, menos nós.
Que eu nem sou capaz de dormir nesta terra, sem lençol
nem cobertor. Você já reparou na roupa que põem
nas camas? Um édredon de penas... É pior que um
sinapismo. Todas as noites o arrojo fora, alagado em
suor, e depois acordo com frio, com dores reumáticas. . .
Soledad sorriu, como quando ele protestava dantes
contra os preconceitos franceses em matéria de alimentação. Lembrava-se daquele garçon do Vert Galant
que, no dizer de Jacinto, afrontaria as iras do imperador do Japão de preferência a servir-lhe um chatenubriand bem passado.
- Bem. . . Então desistimos do café. . .
- Café, não é fácil. Posso levá-la a uma cervejaria,
mas fica longe. Você tem é que provar a cerveja com
framboesa, a especialidade local. Amanhã vamos a
um cúbaret. Boites não faltam. . . do lado de cá. . . Hoje
não. Você deve estar cansada. Chegou há duas horas...
Como o mundo é pequeno! Logo havia de vir ter ao
mesmo hotel em que eu moro !. . . Nunca imaginei
vê-la aqui, nesta sala pseudocosmopolita, sentada aí
nesse maple, debaixo desses retratos, com dedicatórias ridículas, de artistas de circo e cantoras cubanas
e argentinas, que por aqui passaram antes da guerra.
Outra coisa, a propósito: quem é afinal a pequena
que vem consigo?
- Ah ! <<Monsieur de Lêmosse>>, decididamente, não
há-de mudar nunca. . .
- Que ideia ! O que você está já a pensar ! Quero
lá saber da pequena!
-- Já não é tão nova como isso. . . a pequena. É formada em Direito e divorciada. E, é claro, reparou
em si, como não podia deixar de ser. Achou-o jeitoso,
alinhado.
-Ah! Sim?...
- Vê como você continua vaidoso. . .
- Já nem vaidoso sou, pode crer, estou em decomposição.
-Não seja parvo. Você é inteligente, hábil, sabe
servir-se da lisonja com tacto, agrada às mulheres,
escreve bons artigos, tem todas as condições para
vencer, é só você querer.
- Justamente. Nem chego a ser ambicioso. E, apesar
disso, o triunfo dos outros amachuca-me. É como se
me lesasse. Tenho cá as minhas pústulas, mas há certo
número de infâmias toleradas, quase honrosas, a que
me recuso. E pesa-me que outros obtenham, à custa
delas, o que eu só intermitentemente desejo, mas que
às vezes desejo. Tudo isso é complicado. . . No fundo
sou um cata-vento. Imaginação caprichosa e instabilidade. . . Enfim, vamo-nos mas é deitar. <<En tout bien
tout honneur.>> Boa noite, minha jóia.

Soledad estava alojada no segundo andar. Num
extremo do corredor o quarto dela, no outro o de Pilar.

A porta era almofadada, amortecia o som. Logo que
a fechou, sentiu-se presa. Carregou num botãozinho
misterioso, abaixo do interruptor, e os rouquidos do
jaz, invadiram o aposento. Estrondo da bateria, zagunchada de clarinetes que lhe rompiam os tímpanos.
O rádio estava encravado na parede. Tentou baixar
o som. Havia para esse efeito um segundo botão, rotativo, ao lado do primeiro. Agora eram lieder naquela
língua aberta, áspera mas luminosa, que tanto se prestava ao canto. Decorrido um momento, os compassos
familiares da Lili Marleen clarearam de repente na
estranheza vagamente angustiosa que a envolvia:

lior der kazerne, von dem grossen tor
Steht eine laterne und steht sie noch davor'. . .1


? Em frente da caserna, em Frente do grande portão
Há uma lanterna, onde ela está encostada. . .
Aquilo ao menos percebia ela. E trazia-lhe um
perfume de passado conformista e sereno. Ouvira pela
primeira vez aquela canção em Lima, numa festa empertigada e nostálgica da colónia alemã, onde haviam
também tocado o Au_f iv?iedersehen, muito regado com
cerveja, dignamente, e entoado pela assistência, de
braço dado, em patriótica fraternidade. Tornara a
ouvir a Lili Marleen no Rio de Janeiro, de visita ao
Brasil com o pai, então deputado, que só excursionara,
a bem dizer, na Embaixada do Peru, sempre em contactos políticos, e com a mãe, que consumia o tempo
em piedosas romagens ás igrejas ou santuários de maior
virtude.
Apoiou de novo o indicador no botão e a telefonia
calou-se.
Como a julgariam os pais se conhecessem a vida
dela'? Era preciso que nunca soubessem, que nunca
desconfiassem. Até haviam oposto resistência ao noivado dela com o Tom, simplesmente porque era estrangeiro, com receio também de que fosse um aventureiro.
tentado pela fortuna dela, pela sua posição social.
E não era, pobre Tom, tão crédulo, tão sem malícia
que se tornava ás vezes enjoativo. Mas ninguém a
julgava capaz de inspirar amor. Uma mulher feia. Com
armas secretas. porém: um corpo tentador. Aquele
corpo do qual Tom era escravo e de que se julgava
o dono. Um corpo ansioso, experimentado, infecundo.
e sempre insatisfeito, despeitado, hipócrita, incompletamente impudico, já dedilhado por tantas mãos, babujado por tantas bocas, rasgado por tantos sexos sem
amor.
Desde que o pai regressara ao Peru, finda a sua
missão em Paris, e que ela lá ficara, a pretexto de concluir uns hipotéticos estudos de filologia, quantas
decepções, quantas madrugadas lacrimosas de medroso
arrependimento, de nojo e revolta vã ! Descera às aventuras com vizinhos de cinema, com franceses que não

se lavavam senão uma vez por semana, com compatriotas indiscretos, que a sua entrega inchava de presunção e que iam alardear a proeza, com subentendidos.
nos círculos oficiais, onde ela procurava ainda manter
uma atitude correcta. Jacinto fora no meio daquele
charco uma clareira de afecto. Gostara dele. do seu
olhar azul de marinheiro triste, daquela boca irónica
e infantil. Jacinto <<não tinha vergonha na cara>>, como
diriam os pais dela, não tinha aparentemente nenhum
sentimento do pecado carnal. Incapaz de censurar.
incapaz de magoar fosse quem fosse. Não era completamente adulto, até os seus assomos quixotescos atraiçoavam ainda os sonhos duma época que ele já deveria
ter superado. E, contudo, que virtuosismo o seu na
análise lúdica dos sentimentos, no julgamento dos
valores artísticos. Passeara-o de automóvel pela França :
Fontainebleau, a Bretanha morrinhenta e salina, florestas musgosas, castelos aparatosos, cidadezinhas pacatas e resmungonas, noites em que o esgotara e o aborrecera, mas em que ele fora sempre gentil, às vezes
meio trocista. à sua maneira. devotadamente mecânico,
muito mais grato do que autêntico. Nem com ele conhecera o orgasmo. Talvez Lawrence tivesse razão, na
sua Lady Chaterley. recusando o orgasmo à mulher.
Mas ela não se conformava. Por isso passara de mão
em mão, de quarto em quarto. detestando uns. receando.
desprezando outros, e fingindo sempre. Estava já um
pouco farta de tudo aquilo. E não encontrava já na
arte, na leitura, a certeza da sua alma, a possibilidade
de se lavar dos gestos. Nunca. aliás. a não ser no tempo
de Jacinto, acreditara verdadeiramente na realidade
dessa vida espiritual, isoladora e de certo modo dignificante. Nem ele já acreditava em tal. . .
Já não sentia nada por ele. Não estremecia ao ouvir-lhe a voz, não a enternecia o seu sorriso, abandonara-a o
antigo desejo de partilhar com ele as suas facilidades materiais. E, todavia, nunca pudera destruir, como fizera a tantos outros retratos, aquele que lhe tirara junto da estátua
do Diderot, defronte da igreja de Saint-Germain des Prés.
Como ele estava abatido! Perdera a alegria de viver
que a tinha encantado, e a confiança na sua inteligência,
o amor dos paradoxos. Podia agora vê-lo com outra
mulher e isso ser-lhe-ia completamente indiferente. Mas
tinha pena dele. Menos, em todo o caso, que de si.
Jacinto era homem e não tinha preconceitos. Sobre
ela pesava a infância austera. o juízo dos pais. a mancha
e a dor da virgindade perdida inutilmente, e todo o
sarro daquela vida desequilibrada, enodoada, porca,
imperfeita. . .
Foi até à janela e abriu-a. O Kurfürstendamm,
principal artéria do Berlim Ocidental, havia pouco
ainda rutilante de luzes, apagara-se em desolação.
Ao fundo adivinhava mais do que via o espectro da
Gedaechtniskirche, aquela igreja comemorativa não
sabia já bem de quê, recoberta de mosaicos e dourados
e de uma negra putine, as torres amputadas, ruína
enigmática e desconforme. com aquela beleza atormentada, ilusória ou não, que nasce da dor. da miséria,
da destruição, com um pitoresco azedo e tenebroso
sensível ao tal esteticismo que Jacinto acabava de

renegar. Mas Jacinto era esse mesmo esteticismo inconsciente e perfumado. Sem isso seria apenas um farrapo,
uma escória.
Olhou de novo a ruína bizarra, cheia de sugestão.
Dantes Jacinto opor-se-ia a que reconstruíssem aquela
igreja.
Era o único monumento que Soledad ainda conhecia
de Berlim. Viera de táxi do aeroporto, após a viagem de
avião. a música das hélices os rebanhos de nuvens que
faziam lagos de sombra sobre a terra proibida da zona
oriental. Vira lá em baixo rios e bosques compactos,
prados verdejantes e plainos arroteados, imprecisos
povoados estrangeiros. E tudo isso ela vira como uma
sucessão de quadros, deleitadamente. Aprendera com
ele os vícios requintados duma Europa eStiolada e
cerebral. Nesse sentido aprendera mais com Jacinto
em dois meses do que nas escolas em doze anos.

O Kurfürstendamm àquela hora era sinistro. E apontavam-lho como a rua mais chie de Berlim. Que viera
fazer afinal àquela capital sombria, esquisita e dolorosa, cheia de cicatrizes, de esforços silenciosos, de
ódios mal extintos, de apreensões e augúrios?
Mesmo naquela artéria de luxo ela estava presenciando as chagas da luta. Em frente, metade de uma
varanda, o frontão de uma janela mutilada, uma coluna
sem capitel, outra com o soclo roído, os mascarões
das fachadas comidos de sífilis, e grandes buracos
negros, por todo o lado, devorando as paredes. Uma
chuva supliciante, insistente. caía sobre as ruínas de
Berlim.
Soledad fechou a janela. Lamentava ter escolhido
para a sua viagem de déten?e aquela cidade cujo prestígio insidioso a intrigava, bastião do Ocidente, porta
do mundo desconhecido, coio de aventureiros, fornalha
ardente de pacientes construtores de impérios. Não.
Berlim era aquela chuva gelada, aquela solidão, aquele
espectáculo de angústia. um medo absurdo de continuar a viver e de ficar só, só, em companhia das vozes
reprovativas que lhe rosnavam na consciência amordaçada e que a acordavam. noite alta, para lhe roubar
o sono, para a atormentar.
Se ainda houvesse luz no quarto da Pilar, ia até
lá. Já não seria a primeira vez que ficavam toda a noite
a conversar. Confidências, má-língua, evocações da
infância e da adolescência, projectos de futuro. que
só de momento ela tomava a sério, tudo servia. . . Tudo
menos a solidão. Punha-se a beber, quando havia
álcool. Pilar não bebia, mas fumava muito e em Paris
fazia café no quarto. Pilar não era muito inteligente
e o seu narcisismo desmedido reclamava louvores
constantes. Soledad transigia. Tudo menos a solidão.
Tinha também medo dela. Sabia demasiado. . . Algum
dia podia falar. Convinha tratá-la bem, suportar-Lhe
as venetas. Tinha a certeza de que ela a invejava.
E rebaixava-se perante ela, diminuía-se, para que a
outra lhe perdoasse a sua origem, a fortuna dos pais,
a cultura que Pilar não possuía, a sombra de bom nome,

de honestidade oficial, que ainda a ornava. Temia-a
realmente, e por isso a não largava. Pilar não era normal, era um ser instintivo, às vezes quase feroz, de
impulsos imprevisíveis, sem nenhum sentimento de
justiça, felina, egoísta. E talvez feliz. . . Por vezes apavorava-a. E era a sua amiga inseparável.
<<Vou? Não vou`? Pode receber-me mal...>> Mas
a solidão era pior do que um vexame.
Atravessou quase pé ante pé o corredor em penumbra, por entre duas alas de sapatos enlameados e vazios,
comicamente perfilados junto daquelas portas enchumaçadas como cavalos de picador. Espreitou pelo
buraco da fechadura: havia luz no quarto de Pilar.
Bateu com forçá no estofo da porta.
- Un moment - disse a outra lá de dentro, sumidamente. Pilar não sabia uma palavra de alemão.
- Sou eu.
- Entra. Não repares na minha figura.
Pilar Zaragoza preocupava-se infinitamente com a
sua aparência. Não se deixava com facilidade surpreender sem maquilhagem. Nunca Soledad chegara a compreender se aquele cuidado em mascarar-se provinha
de algum oculto e venenoso complexo de inferioridade,
por causa do sangue índio que se lhe denunciava no
inquietante rosto triangular (ascendência a que ela
jamais aludira. ela que desprezava ostensivamente pretos
e judeus); ou se era apenas vaidade, a cega e monstruosa vaidade de Pilar. Quando saía à noite com algum
dos seus muitos súbditos de amor, em Paris, levava
duas horas numa laboriosa toilette. Só gostava de si
própria. Coleccionava-se em fotografias e em atitudes,
tinha um caderno, que já lhe mostrara a frio, com os
nomes de todos os homens com quem dormira.
- Senta-te. Estou realmente horrorosa - disse Pilar,
mirando-se ao espelho.
-Nada disso. Se aparecesses assim num c?ubnret
Berlim caía-te aos pés - declarou Soledad.
Podia adulá-la sem perigo. Pilar nunca desconfiava dum elogio, por muito desproporcionado que
fosse: todos lhe pareciam merecidos.
De resto, ficava realmente melhor sem pintura,
pensou Soledad. Invejava-lhe, à mistura com um dissimulado desdém, aquela sedução arrepiante, sinuosa,
selvagem. Pilar estava soberba, defronte do guarda-fato com o roupão de seda verde entreaberto, os
cabelos lisos, cor de alcatrão, repartidos ao meio sobre
a testa estreita e caídos livremente até às espáduas,
os olhos fosforescentes, a boca espessa e animal, o
queixo pequeno e aguçado de mestiça, que lhe conservava uma juventude incerta. Do que ela mais se orgulhava era do seu corpo ágil, cálido, longo e serpentino,
dos seios minúsculos e firmes, da cintura cavada, das
ancas venustas e trigueiras, das suas pernas impecáveis.
Soledad já a olhara nua. Era diabolicamente bela.
Com que prazer a via esconder aquele corpo, cuja perfeição a afrontava, em vestidos espaventosos, coleantes
e arrebicados, género mulher fatal de segunda ordem.
a entrançar a ri?a cabeleira em arquitecturas complexas.

muito exóticas! Às vezes, porém, sentia-se envergonhada em público, ao lado dela, tanto Pilar chamava
a atenção com os seus figurinos sensacionalistas. Tinha,
não obstante, andado com ela por todo o lado, com
risco de se comprometer ainda mais, porque a reputação de Pilar não podia ser pior; dormira com ela na
mesma cama; contara-lhe já a vida inteira, e a das
amigas, as intrigas do Consulado, tudo o que se diz
para combater o silêncio, quando é impossível parar.
Pilar vira-a enganar o Tom, arranjara-lhe ela própria
pares para dançar, companheiros de uma noite. sem
por isso deixar de os provocar na frente dela. Homens
que a beijavam quase por cortesia, com os olhos na
outra. naquela índia escandalosa, provinciana de Calão,
licenciada com certeza por milagre, que na sua ignorância majestosa se julgava omnisciente e digna de
todos os cultos.
-Então o moço. esse inolvidável Jacinto? Conversaram muito? - perguntou Pilar. acendendo um
cigarro cor-de-rosa, chato. de ponta dourada.
-- Achou-te muito nova. Só te chama <<a pequena>>.
Pilar sorriu, arqueando levemente as sobrancelhas:
- Que faz ele em Berlim'?
Oficialmente escreve ?ara um jornal brasileiro,
mas contou-me que ?vive mais ou menos à custa dumas
norueguesas, com um amigo alemão que por cá arranjou.
-- Não compreendo essas mulheres, capazes de
sustentarem assim um vadio. . .
Soledad escondeu por detrás da mão fulgente de
jóias um olhar culposo e suI-rado. Também ela em
tempos tivera. perante Jacinto, a sensação de lhe comprar pelo menos o adiamento da ruptura, as últimas
semanas dum amor quase profissional, demasiado solícito. cheio de delicadezas e de indiferença. Mas se ela
fora parva e ridícula. se Jacinto era amoral nos seus
actos. à primeira vista, Pilar, essa. era verdadeiramente
imoral. Caramba ! E de que maneira !. . . Que direito
lhe assistia de julgar Jacinto'? E ela'? Não se prostituíra
também'? Não visitara porventura a Riviera italiana
a e?pensas de um velho. e judeu, ainda por cima, enganando-o sem rebuço. aceitando-lhe. magnífica e displicente. trapos e dixes, passeios. noites de música e de
champanhe, sem a caridade sequer dumas gotas de
ternura. <<É uma ferazinha>>. pensou. <<Terá alguma
vez gostado de alguém'?>> Talvez um pouco do marido,
esse médico falhado de Calão. que outras amigas Lhe
haviam descrito como um sujeito indolente. malicioso,
faunesco. interessante. mas já idoso, que tolerara largo
tempo as infidelidades nem desmentidas de Pilar e
que um dia a trocara amistosa e definitivamente pelo
álcool. por uma mândria anacreôntica, abonando em
seu favor. com prudente filosofia, que ficara em bons
termos com ela, apesar do divórcio, mas que Pilar
precisava de muitos homens ao mesmo tempo. . . E era
verdade. O que mais lhe invejava, aliás, com raiva e
com desprezo, era aquela carne insaciável, limpa de
remorsos, que conhecia todos os prazeres até ao fim,
e que reclamava ainda e sempre os mesmos delírios.

- Há também uma coisa que não percebo no teu
Jacinto. . . - insistiu Pilar. - Como pode ele ser tão
sensível e intelectual como mo tens pintado e explorar
essas mulheres idiotas?
- Não o vejo a explorar ninguém deliberadamente.
Aceita o imediato por preguiça, não tem força para
dizer que não, aceita o que lhe oferecem. . . Neste momento
não me parece capaz de escolher seja o que for. Não
sei se percebes: todos os casos, vistos de perto, fogem
à generalidade. E o Jacinto não cabe na definição de
gigolo. Precisas de o conhecer !. . .
- Amanhã apresentas-mo - rematou Pilar.
Estava realmente interessada em conhecê-lo. Tinha-o
visto apenas de fugida, no vestíbulo do hotel. Ocupara-se das malas e servira-lhes de intérprete. Beijara-lhe a mão, fitara-a nos olhos, com um sorriso açucarado e trocista. Tudo o que Soledad Lhe contara da
sua superioridade disfarçada em cortesia, do seu autodomínio, da sua souplesse, do seu êxito com as mulheres,
da impossibilidade de o prender, inspirava-lhe um
desejo brusco de o ter aos pés, em adoração, lambendo-lhe a ponta dos dedos. Qual seria a reacção de Soledad,
se isso acontecesse? Soledad ainda lhe queria bem.
Era evidente. E Soledad era ciumenta, até das suas
amizades, ciumenta mesmo sem amor. Se houvesse
qualquer coisa entre ela e Jacinto, sofreria o apodrecer
de uma recordação. E, contudo estava certa de que
ela se não oporia, de que até facilitaria a aproximação.
Soledad era complicada. Achava-a fraca e viscosa.
Suportava-lhe as confidências amargas, só porque a
maledicência florescia naquele charco de remorsos.
Soledad divertia-a. Que língua de prata! É certo que
não se poupava a si própria. Mas comprazia-se em
anunciar catástrofes, em revolver desgostos : uma forma
de compensação. E. no meio de tudo isso, Soledad
tinha medo dela. Porque ela era forte: sabia o que
queria e não tinha nada a perder. E era delicioso inspirar aquele medo tê-la na mão, ensaiar-se a alfinetá-la,
com silêncios e desatenções intencionais. Soledad era
tão susceptível, tão vulnerável ! Naquele momento estava
à sua mercê. Vinha implorar-lhe companhia. Podia
embriagá-la, podia reduzir a lama aquele rebento
desgracioso da nata social, que dispunha de tudo o
que ela ambicionava e que ela merecia bem mais : modelos
de Jacques Fath, peles, vénias mundanas, dinheiro a
rodos. . . Mas ela, Pilar, dominava-a, pela sua independência, pela sua têmpera rija. não precisava de ninguém.
no fundo bastava-se a si própria. Aquele frangalho,
aquela menina distinta, vinha mendigar-lhe companhia,
tinha pavor de ficar só com os seus pecados: era repugnante. Podia correr com ela do quarto naquele mesmo
instante, pretextando que estava com sono.
Pilar olhava para o espelho e sorria obliquamente,
brincando com um frasco de água-de-colónia.
-Está calor. Não achas? Mas não sei diminuir
a chouffage. Sinto-me amolecer.
Soledad, vagamente inquieta. tentava perscrutar-lhe o rosto mongólico, esquivo, de ídolo tisnado.

- É verdade o Jacinto ofereceu-se para sair connosco a partir de amanhã. Prometeu levar-nos aos
cc<buret.s. E ele dança bem. Sabe todos os passos, até
do tango, que são os mais difíceis. Vocês vão fazer
sucesso. E difícil encontrares um par que te sirva, por
causa da tua altura. Mas ele tem quase um metro e oitenta. . .
<<Vai vender-me o Jacinto, a troco de mais umas
horas de conversa fiada, está a oferecer-mo, que nojo !>>pensou Pilar. Disse apenas:
-Não há dúvida, estou hoje cheia de sono, foi
da viagem. Não me levas a mal, pois não?
- Que ideia ! Boa noite - respondeu Soledad, desamparada.
Voltou para o quarto. Abriu ainda a janela, uma
saída para o mundo. A chuva continuava a cair sobre
as ruínas, numa cariciosa maldade. vã e musical. Tudo
respirava insónia. agonia, máculas indeléveis. A igreja
iluminada ao fundo da rua. angustiante. . . Extintas as
últimas luzes, as casas eram espectros, ossadas escuras,
feridas abertas. Ainda havia, mesmo no centro de
Berlim, destroços por remover. Além, já numa esquina.
bracejavam confusamente ferros torcidos. que brotavam dum monte de pedras e lama.
Soledad caiu sobre a cama. a chorar convulsivamente.


II

Wolfgang Jürgens apareceu na manhã seguinte.
com Jacinto, e não era n homem tenebroso que Soledad
imaginara. .As roupas feitas em série que todos os berlinenses h?iviam adoptado desde a guerra assentavam-Lhe
bem. Tinha feições correctas e angulosas de alemão
moreno, olhos pequenos, alegres e plissados, o riso
claro, imperioso. de um infantilismo egoísta e cativante. Falava com desembaraço um inglês horrível.
transformando o <<th>> em <<zê>>. Jacinto obrigava-o
de vez em quando, por cnmodismo, a balbuciar um
francês já meio esquecido. do qual só o rrr-got lhe saía
com fluência e sotaque castiço.
Pilar. consultada pelo telefone, declinou o convite
para sair. Tinha sono. Soledad não insistiu. Sabia por
experiência que ela raramente se levantava antes da
uma da tarde e que o seu primeiro embelezamento
requeria duas horas bem contadas. Meteram-se no
l,olk.si1?nge?ri de Wolfgang. que não era exactamente
dele, como Jacinto lhe explicou, mas de um proprietário anónimo que o encarregava de vender automóveis
usados, e foram ao aeroporto de Tempelhof, onde
Soledad trocou dólares. Wolfgang conhecia todo o
pessoal do aeroporto, com o qual tinha frequentes
contactos, na sua qualidade de intérprete e guia ao
serviço de uma agência de turismo. Cumprimentava
os empregados com gesto curto e desenvolto, um sorriso breve. Todos se moviam rapidamente naquela
atordoante aerogare. Chegavam aviões. Desembarcavam
gentes de um mundo distante. Homens apressados,
quase sem bagagem; outros olhando em volta sem se

deterem, como à espera de alguém que talvez não surgisse; rostos loiros, cautos e austeros, marcados pelo
incêndio da pátria, cobertos ainda das cinzas da sua
alvorada guerreira, do servilismo exaltante e bárbaro
que os ungira de sangue inocente e os deixara exaustos,
de joelhos perante o mundo, em acto de contrição.
Destacavam-se daquela multidão heterogénea e experimentada pela dor figuras corpulentas, cabeças apoplécticas. caricaturas do arianismo, que arrastariam até
ao fim do? seus dias a mancha e a suspeita de crimes
alheios. Turistas propriamente. não chegariam muitos
a Berlim, a não ser os americanos, que vinham sorver
ainda a espuma já seca da vitória. bater generosamente
nas costas do vencido, trazer-lhe o seu dinheiro fácil,
aplaudir i> suor que escorria pelos músculos de Berlim.
Era o que Jacinto queria explicar a Soledad, o drama
daquelas criaturas. a grandeza trágica daquela chaga
em flor que o hipnotizara: Berlim, capital da humilhação, ponto nevrálgico do globo, massa fumegante,
purulenta. donde acaso sairia o f?uturo. Mas era tão
laborioso esmiuçar aquilo tudo! Apenas lhe disse,
apontando um grupo vozeante de ??unkees, armados
de câmaras fotográficas, muito altos, muito rosados,
muito limpos :
- Não consigo gostar destes tipos tão simpáticos,
tão cândidos, tão dignos, tão eficientes. Conservam
a dignidade com banho de ouro. É ?verdade que também
não adoro os Russos. Você ainda não os viu: aqui,
pelos menos, parecem cães de fila. Todos eles querem
é devorar a estrumeira em que a gente vive e que podia
dar outra seara, não sei bem o quê. . . Mas têm competência, uns e outros. . . Se têm ! Nós é que só temos
má-língua, não é, Soledad? Somos de Paris. . .
- Andas com a mania da política ! - criticou Wolfgang, tranquilamente.
Tão-pouco ele gostava dos Americanos, aliás por
outras razões, mas achava ocioso deplorar o inevitável.
Soledad olhava em torno a agitação daquela onda
humana. Até Hamburgo, Munique, pareciam ali terras
distantes, na verdade. Havia alguma coisa de singular
em Berlim. um ar diferente. Naquele balcão, à direita
dela, três carimbos, em três línguas diversas, francês,
inglês, russo, caíam mecanicamente sobre os passaportes abertos. Na véspera, o mesmo funcionário
demorara-se um instante a observar o dela : não deviam
com certeza passar por ali muitos peruanos. Que ela
já pouco tinha de aborígene! Bebera em Paris todo
o veneno de uma Europa condenada. A liberdade,
a elegância de espírito, a tolerância, a civilização,
haviam degenerado no amoralismo sem esperança de
Jacinto. Aqueles olhos azuis, cheios de dúvidas, cuja
sensibilidade se ia velando de troça, de desgosto, de
laisser-aller, naquele momento incomodavam-na.
- Vamos tomar um café - propôs.
Sentaram-se no bar do aeroporto. Wolfgang falou-lhe do bloqueio de Berlim, causa de uma ascensão
económica mais lenta que a da Alemanha Ocidental.
Era inteligente. Mas Soledad suspeitou que o assunto

o não interessava verdadeiramente. Expunha com clareza, a frio, de uma forma distante. A produção industrial atingira já um terço do seu rendimento de antes
da guerra, graças à ajuda financeira dos Estados Unidos.
O poder de compra aumentava. Berlim era o berço
da indústria electrotécnica. Soledad começava a aborrecer-se com tantos informes minuciosos sobre construção de veículos, mecânica de precisão, coisas complicadas para ela.
- Você é engenheiro ? - perguntou.
-Não. Mas quase. Era estudante de Engenharia
antes da guerra. Depois, abandonei o curso. Queria
ganhar dinheiro. Já não tinha idade para me sentar
outra vez nos bancos da escola. . .
Jacinto explicou que Wolfgang, em campanha, chegara a capitão de infantaria, que lutara em Monte
Cassino, que depois da guerra resolvera viajar, que
andara pelo Egipto, onde dera lições de alemão e treinara na arte militar os soldados do rei Faruk.
<<Um tipo formidável!>>, pensara Jacinto no dia
em que Wolfgang Lhe contara, a sorrir, sem ligar muita
importância ao caso, como, no momento da derrocada
final. intimado a render-se por uma coluna inglesa.
à beira de um rio, em Itália, autorizara os soldados
a deporem as armas, reservando-se o capricho de tentar
atingir a nado, debaixo de metralha, a outra margem
do rio, com os voluntários que quisessem segui-lo.
<<Não sei bem porque fiz aquilo. nem como cheguei ao
outro lado. A psicose da guerra, um certo brio militar. . .>>,
ajuntara depois Wolfgang simplesmente.
Dali nascera o entusiasmo de Jacinto por ele. Um
entusiasmo inesperado, contraditório. Jacinto sempre
detestara os nazis. E, ainda que Wolfgang protestasse
sobriamente a sua inocência política, não o julgava
de todo impoluto naquela odiosa crise de idolatria
e de orgulho que arrojara a Alemanha contra as democracias, pelas quais o seu coração batera fervorosamente. Mas o heroísmo natural de que Wolfgang dera
provas, a sua esplêndida coragem gratuita, o seu panarhe
de oficial à paisana, pobre, insolente, aventureiro, ofuscavam-no e atraíam-no. Era o <<indivíduo>> autêntico.
Senhor de si, arrojado, frio. Mais disciplinado que um
meridional, mas com traços de anarquista. Muitas vezes
desconcertava-o. Jacinto não conseguia fazer planos.
Wolfgang, sim. Wolfgang é que tivera a ideia de o utilizar
como isca para atrair sul-americanos ricos, a fim de lhes
extorquirem dinheiro ao poker. Jacinto a princípio recuara. <<Não fazemos batota, pois não ?>>, dissera Wolfgang.
- Mas se eles nem sabem jogar !. . .
-E depois? Que fazem esses porcos obesos do
dinheiro que lhes sobra ? Deixa-te de parvoíces !
Argentinos, mexicanos, brasileiros, turistas, comerciantes, filhos-família, iam caindo na rede. Jacinto
falava espanhol com tal perfeição que lhe abriam logo
os braços. Só jogavam uma vez ou duas. Jacinto não
queria conhecê-los melhor. Os remorsos aumentavam
à medida que os argentários obtusos, egoístas e viciosos,
lhe iam aparecendo como seres humanos, iguais a
tantos outros, à medida que lhe davam palmadas nas

costas e começavam a tratá-lo por tu. Entre as escandinavas com cio e o poker, ia comendo, pagando o hotel,
que era caro, comprando gravatas com um encolher
de ombros, substituindo a gabardina, já imprópria
para o Outono, por um sobretudo de pele de camelo.
Como conseguia ainda escrever os artigos, nem ele
sabia. Era um refúgio, apesar de tudo. Só sabia que
aquilo não podia durar. Era o fim de qualquer coisa
que ele aceitava como justo que acabasse mal. Por
último, à mesa de jogo, quando Wolfgang lhe fazia
algum sinal, acabava até por corresponder. Era difícil
negar-se. O outro insistia tanto, perigosamente, diante
das vítimas. . . A amizade por ele é que já murchara,
embora quisesse agarrar-se a ela. Sempre era um valor:
a amizade. Não morrera de todo, mas estava na agonia.
Ali o tinha na frente, a sorrir, com aquelas rugas
maliciosas ao canto dos olhos vivos, perspicazes. Ainda
sentia por ele alguma coisa: solidariedade, uma certa
fraternidade na crápula. <<Mas eu não sou isto, não,
ando por um caminho que não é o meu...>> Vinha-lhe
muitas vezes o desejo de voltar atrás, de apagar da
lembrança aqueles últimos dois anos, em que traíra
a sua verdadeira natureza. Mas o que era ele afinal,
quem era ele, senão o resultado de tudo o que fizera?
Os actos é que o definiam, a sua rotina agora era aquela,
a dos gestos delituosos, e não podia renegar nem o
presente nem o passado. Tornar atrás, que absurdo!
Continuava. . . A expiação viria. Pois bem, que viesse !
Reconfortava-o antever que nesse momento ao menos
seria coerente. Recobraria uma certa harmonia. certa
identidade com a sua pessoa ideal, se em face da catástrofe que pressentia inevitável pudesse manter-se fiel.
por dentro e por fora, àquele lema castelhano que desde
sempre o deslumbrara: <<Na miséria e na vergonha é
que é preciso ter a cabeça alta.>> De toda a maneira,
vislumbrava no castigo, ainda que o deixasse em farrapos,
um anoitecer de alívio : seria o termo definitivo daquela
náusea, o fim de uma comédia errada.
Levantou-se e declarou com firmeza:
-Vocês desculpem, mas vou-me embora, tenho
de escrever um artigo. sem falta.
Não tencionava escrever nem uma linha. Iria estender-se na cama, de costas. e fumar, com um copo de
whisk?? ao lado, e ficaria a olhar o céu através da janela,
até adormecer, se o sono viesse. um hábito que ia
tomando. . . Acontecia-lhe ultimamente sentir assim uma
brusca necessidade de se isolar. um grande cansaço e
fastio dos outros. Não podia aguentar de momento
a companhia de Wolfgang. a segurança dele, que o
diminuía em face de Soledad. testemunha do seu passado.
- Mas, logo à noite, posso contar consigo? - perguntou ela. - Leva-nos aos cabarés?
- - Sem dúvida. Prometido !
Despediu-se de Wolfgang. com um aceno:
- Até logo.
Soledad viu-o infiltrar-se, delgado e ágil, no remoinho
dos viajantes.
- Onde quer que a leve? - perguntou Wolfgang.
-Você é que sabe. Confio em si inteiramente.

Eu gostaria de ver Berlim. . . Mas, não estarei a abusar
do seu tempo?..
-De modo nenhum. Hoje não tenho caravana
de camelos.
Era como ele se referia aos turistas.
Conduziu-a ao palácio das exposições, dominado
pela Funkturm, atalaia metálica que já fizera tremer
o mundo. Soledad depressa se cansou das amostras
de indústria pesada como dos instrumentos, ultra-aperfeiçoados, do conforto doméstico. Tentava reconhecer na assistência, pela expressão e pelo traje, os indivíduos que teriam vindo do sector oriental para visitar
aquela feira.
-A nossa produção técnica é esmagadoramente
superior - afirmou Wolfgang. - É certo que ficámos
com o Rur e com a Renânia e com os dólares americanos, mas temos ainda outra coisa, que eles perderam
do lado de lá, na zona escravizada pelos Russos : o sentido da iniciativa pessoal.
O que mais chocava Soledad era a acuidade de
raciocínio daquele valdevinos, expulso, pela instabilidade do após-guerra, de uma engrenagem de que fizera
parte, aparentemente conformado com a sua situação
actual, e que parecia conservar, através de tudo, uma
espécie de confiança orgulhosa, desprendida mas reconfortante, no destino alemão. <<Como se a certeza de o
mundo continuar nos pudesse salvar do desespero. . .>>,
pensou ela. Voasse a águia germânica industrialmente
sobre uma avalancha de engenhos de aço e Wolfgang
beneficiaria de saber que, para além do seu fracasso
pessoal, alguma coisa continuava. Devia ser isso. . .
Era com certeza um homem que lia os jornais.
Wolfgang pediu-lhe desculpa de a deixar um momento
só e afastou-se em direcção a um escritório, onde ela
o viu através da porta envidraçada, em conciliábulo
com um homem baixo e obeso, de tez azeitonada e
fácies caprina. <<Afinal>>, pensou Soledad, <<aproveitou
trazer-me aqui para tratar de um assunto.>> O interlocutor de Wolfgang tinha um ar comprometido e
untuoso. Pela forma de mover os lábios, adivinhava-se,
à distância, que falava em voz baixa, prudentemente.
Tudo aquilo tresandava a negócio escuro. Que estranho sujeito era Wolfgang ! Cheio de contrastes, de claros
e escuros !. . .

- Esse seu amigo, à primeira vista, não tem nada
de alemão. . . - comentou Soledad.
- É judeu. . . e até à medula - esclareceu Wolfgang,
com um sorriso divertido. - Venha daí ! Vamos a
Grunewald.
Mostrou-lhe o bosque, com sóbrio entusiasmo.
Afrouxava o andamento do carro, de vez em quando,
para lhe indicar as clareiras e as ramarias dilectas dos
Berlinenses, enamorados da natureza.
- Nas noites de Verão - explicou - quando a
Filarmónica de Berlim dá concertos na cerca do castelo,
lá em cima, a floresta iluminada transforma-se. Vim
cá uma ocasião com o Jacinto e ficámos sem fala: as

folhas pareciam vivas, metia impressão, e era lindíssimo...
Soledad compreendeu vagamente, pela primeira vez,
como é que Jacinto pudera ligar-se àquele homem:
não era completamente estranho ao mundo deles.
Wolfgang levou-a, em seguida, até à beira do
Wannsee, um dos grandes lagos de Berlim, agora desbotado e frio mas que, no dizer dele, um mês atrás
estava ainda cheio de velas, de pranchas e de banhistas.
Soledad não concebia como é que naquela terra podia
em tempo algum fazer calor.
A coma acinzentada e quieta dos pinheiros alemães
inspirava-lhe uma tristeza incerta. Aquele desconhecido a seu lado, sem saberem ambos que dizer. ele a
querer ser amável, ela sem vontade sequer de conversar,
Jacinto entre eles, a tolher-Lhe os gestos costumeiros,
e a cidade de Berlim já meio desflorada, catalogada,
traída em palavras. . .
Voltaram para o centro da cidade. Wolfgang teimava
cortesmente em mostrar-lhe as lojas. Gabava-lhe a
barateza de certos artigos. Que visse, que experimentasse. Insistia tanto, sempre em sonho, que Soledad chegou
a desconfiar de que ele tivesse pacto com os comerciantes. Não queria dizer-lhe, para não o magoar, que,
em matéria de roupas, preferia comprar em Paris,
mesmo tendo em conta a diferença de preço.
Impressionava-a, em todo o caso, o contraste das
lojas, que eram de grande capital, com o espectáculo
de certas ruas, onde um povo cabisbaixo e estóico
vivia no meio das ruínas. Divisavam-se silhuetas magras
e lentas através das janelas sem cortinados. Um sol
fugitivo, rompendo, morno, pelo céu cinzento, clareava, a espaços, a cidade lúgubre e trágica, as paredes
roídas pelas granadas. A cada esquina, novo aterro,
pedreiros por todo o lado, trabalhando num silêncio
tenaz ; pilhas de tijolo à beira dos passeios ; e outros
operários, sobre escadotes, pintando as casas reconstruídas; outros ainda, curvados, reparando o pavimento das ruas ainda esburacadas, onde cessara a
circulação de veículos.
Wolfgang mostrava-Lhe as casas novas, de estilo
sueco, altos ventiladouros porosos, e os blocos modernos, onde se haviam instalado as empresas electrotécnicas. Para ele o espectáculo da desolação era natural
e estava superado, mas Soledad vibrava, em pasmo,
na sinfonia das ruínas. Os seus olhos acompanhavam
os quarteirões decepados, revolviam os montes de
escombros, perseguiam, atónitos, os carrinhos de rodas
dos inválidos, empurrados por moças tristes, e os mutilados, que eles iam cruzando por toda a parte, dez
anos depois da catástrofe: manetas, com braços de
couro ou com os cotos horrendos a nu ; coxos ; e mendigos ; e desempregados ; e a chusma baça dos operários
que vinham das fábricas, de boné escuro até às orelhas,
sem a alegria reflexa dos pobres nas terras do sol.
- Tanto pedinte, tanto desempregado ! - exclamou
Soledad.
- Pudera ! - explicou Wolfgang. - Se eles vêm aos
milhares do lado de lá! Preferem seja o que for à pata

moscovita. De resto, o Estado aqui sustenta os desempregados, não os deixa morrer à fome.
-?Então, são assim tantos os que fogem do outro
lado ?
- Se são !
E citou-lhe números, falou-lhe do êxodo constante de Leste para Oeste, dos que vinham em procura de melhores condições de vida, dos que jogavam
tudo numa aventura para se libertarem do sentimento
de opróbrio, de vexame, para não verem mais as placas
de mármore que, nas praças públicas de Berlim, fustigavam com a palavra sacrossanta de Estaline a memória
de um povo vencido. Esses foragidos não se detinham
em geral nos sectores aliados, fugiam, sempre que
lhes era possível, para a zona ocidental, para Hanôver,
para Hamburgo, ou para mais longe ainda.
- Você já tem ido ao sector russo ? - perguntou
Soledad.
- Não. Mas há muito quem lá vá. . . E têm-me
contado o que vêem. Eu nem quero lá ir ! - respondeu
Wolfgang com firmeza, os maxilares um pouco contraídos. - Você, que gosta de arquitectura, que aprecia
os tímpanos das igrejas, os palácios, as estátuas, as
avenidas ordenadas, sabe o que eles fizeram de Berlim`?
Uma fogueira. Os soldados russos, no dia da vitória
incendiaram bairros inteiros: foi um lindo fogo de
artificio. A parte mais bela de Berlim ficava no que é
hoje o sector deles. Mas essas ruínas também devem
expiar os nossos crimes. E sobre elas ao lado delas
está-se edificando uma gloriosa cidade soviética. No
D?m, no Reichstag, ninguém mexe. Crescem lá dentro
as ervas. Deixaram-nos de pé, só como um aviso, como
um remorso; são a sombra dos nossos pecados monstruosos. Você não aprendeu na escola que a Alemanha
é o país do macabro? Alguma coisa eles tinham de nos
deixar. . . E eu detesto-os. Para o bom do Jacinto ainda
são de certo modo uma incógnita. Para mim, não.
O Jacinto tem problemas políticos. Eu não tenho.
Nunca acreditei na p?ítica, nem em regimes que transformem os homens, que os tornem felizes à força.
Nós não podemos ser felizes senão por acaso ou por
nossa própria vontade. Eu cuido de mim. Tive azar:
não me queixo, desforro-me como posso. Às vezes
também penso na miséria, sou do meu tempo, é claro.
até admito que a ideia socialista tenha sido um bem
e que desta salganhada de hoje nasça uma distribuição
mais justa da riqueza. Há um processo de osmose
inevitável. Ainda que os homens não mudem. Porque
não mudarão. Mas isso pouco tem a ver com o imperialismo soviético. Não aceito males necessários, não,
nem a felicidade à longue éc?hénnee. Eu vivo no momento
presente e sou um homem sem importância, interessam-me os casos concretos. as coisas que eu vejo e
desejo. Sou alemão e os russos são meus inimigos,
os meus inimigos de ontem, os meus inimigos de amanhã.
Soledad ainda não o ouvira falar com aquele calor.
Havia nele realmente um fundo de soldado, viril. Porque
não faria afinal qualquer coisa útil, porque não levaria

uma vida mais decente? Acabava de falar ao menos
com sinceridade e com vigor. Tentou encontrar-lhe
os olhos, mas os olhos de Wolfgang sorriam de novo
e eram agora desoladoramente iguais a tantos outros
que ela conhecera, cépticos, gozadores, satisfeitos, uns
olhos muito claros. raiados de sangue, e distantes,
indiferentes, para além do sorriso.
- Que conversa estúpida e ociosa, não é`? - desculpou-se Wolfgang.
- Não - disse apenas Soledad. E acrescentou, movida por uma brusca inspiração, sentindo que precisava de se evadir de tudo aquilo : - Há em Berlim
algum museu onde você possa levar-me?

Meteram-se de novo no carro, estacionado no
Kurfürstendamm, e seguiram para Dahlem.
O interesse de Soledad pelos Primitivos vinha-lhe de Jacinto, que em Paris a arrastava às vezes ao
Louvre, ainda meio adormecida, nas pálidas manhãs
de grande ressaca e de vazio, para recoserem a existência, na véspera toda rasgada e poluída, com aqueles
fios milagrosos de púrpura e oiro. Wolfgang, porém,
não devia gostar dos Primitivos. Talvez nem apreciasse as artes plásticas. Mas era bem-educado, não
dava mostras de impaciência. Apenas comentou, vendo-a
reconhecer os quadros, identificar os autores:
- Tem graça, você percebe disto. Prefere a pintura
dessa época?
- Toda a pintura - respondeu Soledad, pouco à
vontade.
O facto de gostar das formas e das cores. sincera,
sensual e comovidamente, num excesso quase maníaco,
sobretudo desde que Jacinto a ensinara a recuperar-se
ou a encontrar uma salvação de humildade e estesia
naquela contemplação purificante - tudo isso agora
Lhe parecia artificial, e estava prestes a renegar-se, em
face daquele homem que ela adivinhava áspero, prático e calejado. Sentia junto dele ameaçados os seus
parcos valores, aquela sensação de resgate e bem-estar
que Lhe procurava a comunicação com os quadros.
- Eu gosto mais dos modernos ou semimodernos,
do Renascimento para cá, especialmente dos retratistas,
sempre os entendo. . . - declarou Wolfgang, com a
irrespondível convicção dos leigos, apontando um Rembrandt famoso. magnífico aliás: o homem do elmo
dourado.
E Soledad, abjurando das suas predilecções, abanou
a cabeça numa dessorada anuência, volvendo ainda
uns olhos envergonhados e saudosos para os Holbein,
os Lucas Cranach, os Grunëwald. que não tivera a
coragem de examinar com deleitada minúcia. Eram
contudo deliciosos, esses Holbein de reflexos quentes
e brilhantes, aquelas mulheres franzinas de Lucas
Cranach, com a sua jáspea carnação enfermiça, o
erotismo primaveril e equívoco dos rostos suaves de
Botticelli numa sinfonia de azul e poeira de ouro. . .
Continuaram a visita. Soledad percorria as salas
velozmente, contra o seu costume. Mais do que isso:

com uma ostensiva rapidez. Fazia cerimónia com
Wolfgang. <<Até que ponto os respeitos humanos me
levam a atraiçoar-me!>>, pensava descontente consigo.
Decididamente. a companhia inquinava-lhe todo o
prazer daquele momento. Quando chegou, porém,
diante do Rapaz Gruve, de Zurbaran, e dos Músicos
Ambulantes, de Velásquez. deteve-se. Valia realmente
a pena pintar e acreditar na arte - pensou. Na arte
verdadeira, independente e perigosa. a dos videntes.
Fizessem os homens revoluções, à vontade, que pregassem a felicidade, que a impusessem mesmo aos aleijados, aos invertidos, aos sôfregos de eternidade, aos
maridos traídos, às viúvas inconsoláveis, aos paralíticos, aos impotentes; que tornassem o mundo feliz
à força, como dizia o Wolfgang, que dessem de comer
aos famintos, que era muito justo, e obrigassem os
imundos a lavar-se, mas que deixassem à solta. com
a sua loucura mansa, os pintores, os poetas. os escritores, os romancistas, deixassem-nos afirmar-se diferentes, tristes ou voluptuosos. mesmo que parecessem
contrariar a marcha implacável. rítmica e benéfica.
do progresso ni?elador. Quem poderia jamais pautar
a arte ?
Soledad permanecia em êxtase perante a tela de
Zurbaran.
- Venha ver os impressionistas - reclamou Wolfgang. - Temos uma colecção notável de franceses.
(Conhecia o museu de cor. em virtude da sua pilotagem
turística.) Está vendo esse quadro de Renoir. que se
chama No lier-ão, uma rapariga meridional? Parece
que é um dos nossos tesouros.
Quando saíram para a rua, Wolfgang.. de novo
ao volante, descreveu voltas caprichosas pela cidade.
em todos os sentidos. Mostrou-lhe os comissariados
francês, inglês e americano. as instalações mais modernas
(Wolfgang preferia com certeza o conforto à arte,
não estava nisso muito longe dos Americanos), e levou-a
a toda a velocidade por uma longa avenida, os Campos
Elísios de Berlim. até ao limite da zona russa : as Portas
de Brandeburgo. outrora encimadas por uma quadriga
romana, tirada por quatro cavalos a galope. Wolfgang,
quando aludia a estátuas como aquela, destruídas
pela guerra, deixava transparecer uma espécie de revolta
proibida, sofreada pelo hábito, pela prudência, e por
isso mesmo quase patética. Não longe dali, no Tiergarten,
à entrada de um templo ou monumento análogo, incrustado na zona inglesa, dos muitos que em Berlim comemoram os heróis soviéticos da guerra, perfilavam-se
soldados russos, de amplos capotes e agressivos bonés
de pala, de rosto inteiriço, remoto e disciplinado, sovacando metralhadoras, num digno silêncio quase feroz.
Era a mesma sensação que Soledad já tivera de Berlim.
ponto de atrito, guarda avançada do mundo ocidental.
Ali. o banho de cor e de fantasia ainda fresco nos seus
olhos perdia a sua efémera virtude analgésica : a cidade
excitante e perturbadora. dilacerada e sinistra. de
novo suava angústia, pressentimentos de catástrofe.
E Soledad sentia-se ali pequena. pobre coisa inútil e

vil. Sentia a inanidade dos seus complicados problemas,
o irremediável da sua vida conspurcada. das suas experiências frustradas. sem prazer nem vigor. . . A arte. . .
sim. . . mas era coisa longínqua, tão longínqua. ornamento dos seus lazeres. Se ela nem era artista !. . . <<Não
sou afinal coisa alguma>>. disse para consigo desconsoladamente. Sentia-se destroço amorfo de um clã
apodrecido e insincero, preocupada apenas. mesquinha
e incessantemente. com as sensações que lhe mobilavam o tédio já chegado de remorso. Preocupada. pobre
dela. pobre dela, com uma felicidade egoísta que o
destino lhe recusava.


III

Quando Jacinto e Wolfgang se apearam do volks-wagen no Kurfürstendamm. defronte do hotel. o céu
escuro de Berlim, eéu da Europa central, agonizava
em vagos tons crepusculares, verde e alaranjado. Tons
cadavéricos e suspeitos, que Jacinto não suportava.
<<Venha a noite depressa, com as suas luzes turbulentas>>,
desejava ele invariavelmente, no repúdio sempre renovado daquela hora molesta, em que se adensava um
fermento de dores adiadas, com laivos azedos de juízo
final. Arredava os olhos daquele céu incómodo e pressago. Era apenas um mau quarto de hora, breve as
luzes viriam transformar a cidade ocidental em sala
de festas. Pronto aquela angústia incontrolável, celeste,
se ia diluir na embriaguez das luzes que prolongavam
o dia e que se podiam apagar ou acender, escravas da
vontade humana, tranquilizadoras, calmantes.
Foram jantar com as peruanas a uma cervejaria
conhecida de Wolfgang, de estofos sombrios e criados
aprumados, sem pitoresco, mas onde se comia bem.
Escolheram, conformando-se com o que ali era usual,
um prato único, mas consistente - veado assado. com
batatas estufadas e doce de groselha- e beberam
muita cerveja, à excepção de Pilar, que ia fumando,
entre garfadas sóbrias, recolhida ao seu enigma de ídolo
maia quase macambúzia. Achava o restaurante desprovido de espectacularidade e de requinte. Jacinto ocupava-se dela, polidamente, mas Wolfgang conversava
sobretudo com Soledad; e Pilar não tolerava que se
tributassem honras a outra mulher na sua presença.
Soledad sabia-o e sempre dobrava a espinha em lhe
pressentindo tempestade no rosto. Chamava-a à cena.
Assim o pacto se não rompia.
<<Claro>>, conjecturou Pilar com acidez: <<este já
está ao corrente de que ela é rica e filha de gente importante.>>
- Vamos estabelecer um programa - impôs Wolfgang, alegremente, no momento da sobremesa, que
se ia eternizando.
Aceitara o convite, para comprazer a Jacinto, sem
qualquer intenção reservada, e estava disposto a divertir-se. Tinha uma noção muito mais precisa do que
Jacinto da economia do tempo. O outro podia passar

a noite a devanear, mesmo com um amigo, num banco
de jardim. Ele precisava de fazer qualquer coisa, concretamente. Se saía para se divertir, queria divertir-se.
Embora as achasse fisicamente agradáveis, não encontrava afinidades naquelas duas meridionais, ora lentas,
enervantes, ora explosivas, estridentes. Pilar, tenebrosa,
esquiva, reticente, de humor mais desigual, e com todo
o mistério de outra raça, desnorteava-o. Soledad tentá-lo-ia, com a sua fealdade mais aberta, as olheiras
pecaminosas, as carnes abundantes e rijas. Tinha além
disso uma formação europeia, com qualquer coisa,
é certo, de muito dulceroso e amassado, de pouco
são. Mas sentia que a deixava indiferente como homem.
Jacinto discutia distraidamente com Pilar a excelência dos licores franceses.
- Decide tu onde havemos de ir - respondeu molemente a Wolfgang, transportando para ele um olhar
fixo e brumoso, que às vezes tinha e que passava para
além das pessoas. Fazia-lhe espécie a despreocupação
total do amigo. Ainda o fim da tarde nele se destilava,
peçonhento. Aquela sessão de cartas com um brasileiro, grande proprietário de cafèzais, novo de mais
para tanto dinheiro, jovial. incauto, vaidoso, que lhes
deixara vinte marcos sobre a mesa e partira um pouco
diminuído, porque a mulher assistira ao seu revés.
Era o género de homem que se julgava capaz de ser
em tudo superior aos outros. Um pavão! De bigodinho donairoso. muito moreno, cor de azeitona. imperativo para a consorte, objecto seu, claro, e cheio de
lhaneza com os amigos, gabando-se. tropeçando em
todas as lisonjas, que o tinham levado a apostar mais
e a perder mais, tão sem defesa, pobre diabo !. . . E Wolfgang fora impiedoso. Extorquira-lhe os vinte marcos,
a sorrir, a deitar-Lhe whiski no copo, a elogiar-Lhe
discretamente as roupas caras e espaventosas. A mulher,
duas ou três vezes remetida pelo marido à sua condição de coisa possuída e dirigida com pulso, sempre
que dele se abeirava para sugerir fosse o que fosse,
engolfara-se finalmente na leitura de uma rima de
magazines americanos, de onde só erguia a vista para
sondar a desfortuna do seu garboso tirano ou para
inspeccionar com simpatia o agente dessa mesma pouca
sorte: Jacinto. <<Sou um pulha>>, pensou Jacinto. Tinha
vislumbrado no olhar daquela mulher tão correcta
a curiosidade da fêmea e a revolta dos servos. Devia
ter pelo menos a intuição de que o marido era fátuo
e grotesco. E Jacinto um momento desejara-a, desejara
sobretudo cornear aquele sujeito suficiente, aquele pilar
da sociedade, aquele imbecil que ele estava praticamente roubando. <<Como posso às vezes ser tão reles,
tão amoral, tão cínico. tão cru?>>, perguntava a si próprio
Jacinto, sem ouvir as palavras de Wolfgang, mas aparentemente atento. com um sorriso fixo, muito lento, encenado de há muito. com anos e anos de exercício social.
Só no fim da sessão verificara, com assombro, um por menor: havia no baralho cartas marcadas. Ainda por
cima ! Dirigira-se a Wolfgang :
- Então isto é novo, não é?

- E agora'? - respondera Wolfgang. com aquele
riso infantil e contente que lhe assomava aos lábios
quando alguém notava que ele praticara alguma proeza
particularmente difícil.
- Inconsciente ! - disse Jacinto, sem energia. sem
convicção.
Ludibriar a humanidade ou consertar com invulgar
virtuosismo a peça mais delicada de um motor eram
ainda para Wolfgang brincadeiras de criança. Mediria
ele a extensão de tudo aquilo?
E Wolfgang ria. Ludibriar um parvo inofensivo,
que grande mérito, que grande proeza!
- Só tenho pena da mulher dele, que vai aguentar-lhe o furor tardio da vaidade ferida e da bolsa aligeirada. . .
E, contudo, Wolfgang pensava - reflectiu Jacinto encarava determinados problemas com rigor, tomava
muitas coisas a sério. Que baralhada! Jacinto desistia
de resistir, de se salvar, se no meio daquilo tudo havia
ainda algo a salvar.
Assim, encolhera os ombros e olhara para o relógio
e entrara no carro com Wolfgang, ainda a encolher
os ombros nervosamente, como se pudesse desse modo
alijar o peso das ignomínias e das transigências, dos
pequenos delitos infames e reles que ia cometendo
dia a dia, por inércia, quase como um sonâmbulo.
Wolfgang sacudiu-o bruscamente daquele torpor
meditativo :
- Então. Jacinto, vamos ou não vamos? Os espectáculos estão a começar. as atracções dos cabarés.
<< As atracções. . . >>
- Vamos lá. . .
Ajudou Pilar a vestir o casaco de astracã. Notou
que ela se não perfumava tão violentamente como
Soledad. Pintava-se com exagero, sobretudo nos olhos,
era em tudo mais excessiva que a outra, quase indecorosamente, mas naquele ponto não: cheirava a carne
moça e lavada. Devia ser ágil, flexuosa. E o instinto
de luta que nela se adivinhava prometia cópulas selvagens. endemoninhadas. Mas não lhe era simpática.
Nem antipática. Sentia que ela girava fora da sua órbita.
que não poderia vê-lo, nem ele encontrá-la. mesmo
que lhe penetrasse a carne. Deu-lhe o braço, com um
sorriso mundano e blasé, e saíram juntos.
O primeiro cabaré era sórdido. meio dancing, meio
restaurante. com aspectos de café rúfio e de bordel.
Frequentado pela escória. Mesas de ferro, pequenas,
redondas, do tipo guéridon. prostitutas muito maquilhadas, de cabelo ruivo e ralo, ou roxo, esverdeado,
cor de trigo maduro. à espera de cliente. de perna traçada; vagabundos franzinos. de camisola de gola alta,
comendo e encharcando-se de cerveja. A atmosfera
cheia de fumo.
- Os bus-fonds de Berlim - anunciou Wolfgang,
muito à vontade.
Soledad retraía-se, ante o olhar perscrutante e
insolente das mulheres; sentia-se intrusa, culpada de
estarem ali a observá-las como bichos numa jaula.
O seu olhar fugidio implorava: <<Perdoem-me, não

me julgo mais que vocês. não vos desdenho, nem vos
? desprezo, nem me respeito.>> Se pudesse ao menos
'! calar com dinheiro ou com desculpas o ódio, a arrogância daqueles olhos pisados, sem pestanas, sem
piedade !. .
Pilar relanceava em torno, de pescoço erguido,
a sua mirada esfíngica e soberba, com uma curiosidade
inconfessa daquelas vidas esterquilíneas e brutais, dos
amantes monstruosos que naquelas mulheres se cevavam a troco de cobre.
- Vamos embora - propôs Jacinto, em voz baixa,
mas sem se levantar, sem esboçar um gesto. - Isto é
lamentável... <<E eles>>, pensou, <<n??e ainda eram os
privilegiados, apesar de tudo, não eram melhores que
aquelas desgraçadas criaturas. . .>>
Soledad colocou a mão dela sobre a dele. num
impulso repentino de ternura.
- Espera ao menos um bocado. Ainda não viste
nada - protestou Wolfgang.
O grande número reduzia-se a pouca coisa. A pista
de dança transformava-se bruscamente em picadeiro.
Enchiam-na de serradura. Entravam os cavalos por
uma porta oculta. ao f?undn da sala, e, enquanto o
equitador fazia estalar u chicote. no centro do redondel.
as meretrizes, com o mesmo vestido de noite com que
dançavam, arregaçando as saias, descobrindo as ligas
e as pernas desmaiadas, escrofulosas, ou bem feitas,
mas em que reflectiam dentadas e nódoas negras, prendiam-se às crinas das dóceis alimárias e cavalgavam -nas, a galope, ao som da música. com a perícia mecânica do hábito, algumas de sorriso estereotipado,
outras de cara fechada. num soberano ar de fastio
e de aversão pelo turista. No outro extremo da sala,
uma porta ribalta abria-se aos pares que um desejo
sem alegria e aquela lívida cupidez maquinal jungiam
por uns minutos. Havia quartos, decerto, no andar
superior. Vestidas de seda, magras, de rostos vincados,
algumas profissionais cabeceavam de sono.
- O que é que sugeres agora? - perguntou Jacinto.
- Se as levássemos à Oktoberfest?. . . - aventou
Wolfgang.
- Boa ideia ! - apoiou Soledad, ansiosa por partir
dali.
- Estou farto de orquestras bávaras, de bebedeira
colectiva, de espelhos deformantes e montanha russa.
Ainda por cima, tudo isso aqui é Baviera requentada -- objectou Jacinto baçamente. - Enfim. . . Se elas quiserem. . .
Entraram no carro e Wolfgang arrancou, veloz.
- Caramba ! Que muchacho apresurado ! - disse
Soledad para Pilar.
Só ouvindo-a falar castelhano, o que entre eles
era raro, Jacinto se dava conta de que havia nela um
fundo espanhol, já tão diluído. . . O seu castelhano de
além-mar, bastardo, adocicado, tinha, aliás, por paradoxal que fosse, uma ressonância mais humana. mais
europeia, que o rude linguajar sonoro dos desertos
asiáticos e místicos da ínsula espanhola, terra de loucos
e de santos, que Jacinto conhecia melhor que ela, que

durante anos ele venerara esteticamente, de longe,
chaga em flor trespassada de estoques luminosos,
coberta de açucenas, perfumada de limões e de luar. . .
e até essa sua visão agora desbotava também, no desabar de todos os seus valores. . . Já não havia no mundo
quadros transcendentes à espera dos seus olhos e o
absoluto dessa sua Espanha mentirosa apodrecera nele
como o sorriso ateniense de Paris. Deixava-se ficar
onde estava: em Berlim.
- Este é o bairro excêntrico de Berlim - disse Wolfgang, a certa altura, a meio duma via arruinada como as
outras. - Uma espécie de Quartier Latin, menos artificial que Soho. É o reino dos estudantes e dos originais.
Soledad procurou o olhar de Jacinto, com um sor riso cúmplice. <<Aquilo o Bairro Latino !. . .>>
- À primeira vista engana - confirmou Jacinto -,
mas é realmente um bairro boémio e intelectual. Formigam também por aqui, e isso surpreendeu-me, os
entusiastas de Kafka, de Sartre e de Faulkner.
Parecia impossível, no ventre daquelas ruínas, mas
a inteligência, planta tenaz, refloria sempre, em toda
a parte. Ele é que ultimamente até deixara de ler. Estava
cansado de literatura e a inteligência gratuita, sobretudo perdera para ele todo o significado.
Não se demoraram no recinto da Oktoberfest. As
noites já eram frias naquele começo de Outubro e
tanto Soledad como Pilar, a última especialmente,
menos desligada do mormaço tropical, temiam os
rigores do Inverno europeu.
Soledad conveio em que aquilo era na verdade um
pastiche que lhe faltava o grande sopro orgíaco, a
crueza hílare das assombrosas quermesses de Munique,
cidade em cujos palaces já fizera etapa de sibaritismo.
Pilar, pouco sensível aos cenários, amesquinhava, com
o seu olhar de já ter visto tudo, o aparato folclórico
e emplumado das aguerridas orquestras bávaras. Estranhava aqueles hinos báquicos, entoados em coro,
fraternamente, naqueles pavilhões ressoantes, por uma
assistência apopléctica. Confundia-a a proximidade de
um prazer colectivo e anónimo, cujo sentido Lhe escapava.
- Que tipos ordinários ! - disse em voz baixa para
Jacinto.
Ele sorriu :
- E é isto inautêntico. . .
Voltou-se para Soledad:
- Berlim é outra coisa. É o povo vencido e humilhado, mas com um vigor, com uma fé pasmosa. . .
De certo modo, admiro-os. E, contudo, sinto-os longe.
Questão de língua, de mentalidade diferente! Mas
não há dúvida, ainda é esta a capital da Alemanha
(seguiam agora, os quatro de braço dado, por uma
alameda tumultuosa, marginada de tômbolas, de salsicharias e barracas de tiro). Olhe para eles, Soledad.
Não vê? Têm uma certa expressão irónica própria
das capitais, uma aisance` um ar de esperteza quase
patrícia e superficial, mesmo os operários, comparados
com os de Munique ou de Estugarda. (Baixou o tom
da voz.) Têm além disso a malícia dos vencidos, que

aqui roça às vezes pelo servilismo. E isso desagrada-me.
(Continuou a conversa em espanhol, para que Wolfgang o não percebesse.) Os Alemães sabem lutar e
são sem piedade na vitória, mas na derrota rastejam.
Os Franceses de hoje, pelo contrário, batem-se mal,
desorganizadamente, mas nunca se deixam vencer de
todo, endireitam a espinha, como rebeldes, como fr-ondeurs que sempre são, mesmo emburguesados, no
momento em que parece que lhe vão pôr a canga. Ah!
Soledad, a malícia dos vencidos aqui em Berlim é pesada,
tão diferente daquela manhã subtil dos Italianos no
após-guerra !. . . Eu estive em Roma, com a Itália a
chorar, é verdade, mas, no meio das lágrimas, a Itália
ria o seu riso secular e salvador, ria da sua derrota
e da vitória dos vencedores. . .
-Quando é que você deixa de correr o mundo,
Jacinto ?
- Tenho a impressão de que já não vou longe. . .
Estou como um motor sem gasolina. Vivi depressa
de mais. Desfolhando-me sem previdência. Conhece
a história da cigarra? Eu também não pensei no futuro.
Agora já não tenho nada para dar. E quem não pode
dar não recebe. . .
- Não sei porquê. . . Basta poder-se ainda aceitar. . .
Eram palavras carinhosas, ditas de um modo especial, que ele lhe conhecia e que o comoveu. Mas Jacinto
preferia deixá-las sem resposta. Não queria recomeçar.
Estava, de resto, convicto de que Soledad não podia
outra vez amá-lo. Um instante de piedade e de ternura, a onda morna do passado. . . Mas os sentimentos
não ressuscitavam. Para que queria ela iludir-se? Seria
bem penoso, e para ambos, infligir-lhe a evidência.
Nada de comédias. Pobre Soledad! Não a desejava,
aliás? havia muito tempo que cessara de a desejar e
ela bem devia sabê-lo.
Voltaram no automóvel até à praça da Gedaechtniskirche, a igreja comemorativa do imperador Guilherme.
-Muito comemoradores e solenes são os Alemães !. . . - disse Soledad a Jacinto.
Procurava agradar-lhe. Mas Jacinto calou-se. Reconhecia o seu próprio estilo. E soavam-lhe mal aquelas
frases na boca dela. Alagado de culpa e de tédio, como
num banho de vapor, já não encontrava o sabor juvenil
de outrora no achincalhamento sistemático e irrequieto das convenções sociais, dos valores burgueses,
da moral circunstancial.
Àquela hora, a luz do néon transformava o centro
da cidade. Os sortilégios da idade atómica mascaravam
as ruínas de Berlim. Delirante magia eléctrica... Serpentes de anil e de fogo, letras góticas pestanejando,
prodígios de Bagdade importados de Nova Iorque.
Pilotados por Wolfgang. entraram num cabaré atulhado de oficiais e soldados americanos, quase todos
fardados, acompanhados de horizontais mais discretas
que as do picadeiro, algumas delas novas e bonitas,
de ombros esculturais, altas, musculosas como trapezistas, mas com as pálpebras avermelhadas pela insónia,
falando o inglês económico dos quartos de aluguer.

Outros soldados havia, à paisana, que se confundiam
com os alemães. Wolfgang, porém, identificava-os sem
dificuldade. Os negros, em grande número, alguns
embriagados, pareciam ter-se fixado num tipo caracterizado de loiras, muito loiras, bonecas de trapo sem
viço, débeis, linfáticas, passivas, sonolentas, roufenhas.
Pares de namorados, indiferentes àquele comércio,
misturavam os cabelos, a respiração e o suor, amorosamente, na acanhada pista de dança, onde ondulavam,
sob uma luz azul quase violeta. Só os artistas da casa
dançavam a preceito os boogies de Sidney Bechet, deleitando a soldadesca com os seus passos e acrobacias.
Um jovem alemão, de rosto fino e ossudo, com longos
cabelos claros e corredios. espartilhado num casaco
de fantasia de ombros muito estreitos, anunciava as
variedades, nos intervalos do ju??, com um penoso
esgar de entusiasmo. Wolfgang saudou-o de longe,
afectuosamente.
-- Este?e comigo em Itália - confiou ele a Pilar. Era tenente durante a guerra.
- De boa família`?
-Não. Creio que não... Mas esperto e civilizado.
Acho que estudava música. . . ou canto. . . Mas a sério.
No Conservatório.
Jacinto pegou na mão de Pilar, com um sorriso
interrogativo, e, erguendo-se. puxou-a para o palco.
Dançava bem, colado a ?la. Fundiam-se completamente no compasso do.slo?i,? quase sem avançar, marcavam com todo o corpo. requebrada. ligeiramente,
o ritmo insistente da música. Ela acompanhava-lhe
todos os passos como se houvessem dançado sempre
juntos. Tocava-Lhe no pescoço com as pontas dos dedos
e Jacinto sentia-Lhe o contorno dos seios contra o peito,
as coxas aveludadas. consentâneas, que desposavam
as dele. Em dois minutos. aquele corpo sinuoso e aderente tornara-se-lhe quase íntimo. E, contudo, nos
olhos dela revia-se estrangeiro, diferente, antagónico.
Não havia naqueles olhos oblíquos nenhum oculto
sinal. nenhuma resposta aos seus. Mas aquela pele
cheia de sol, o cheiro a carne, todo aquele corpo convertido em música, quente e natural, rolando como uma
vaga no seu abraço, esse corpo sem alma parecia feito
por medida para o seu. Trocavam poucas palavras e
banais. Logo que o.sloit? terminou, cessou bruscamente
o feitiço; e Jacinto, a agradecer, risonho, media, morna
e enfastiadamente, a distância irremediável que o separava dela.
Soledad não se entendera com Wolfgang, que era
hirto a dançar e não tinha o sentimento do ritmo.
As,arieclades arremedavam a Place Pigalle de uma
forma obscena. Frente aos silvos apreciativos dos
Americanos, o nu, ali, era gargalhante, forte, desmazelado, peludo. Mimando as rameiras do porto de
Hamburgo, de boina à maruja sobre a sua nudez ostentosa ou entoando canções acanalhadas naquela língua
alta e violenta, capaz de poetizar o pecado e o crime,
ainda aquele rebanho de mulheres corpulentas se sacudia
em frémitos de animalidade arrogante, mas a imitação

do.freneh can-can ou o strip-tease, em grande dose
e ao som da música. soçobravam num provincianismo
gordo, ridículo e obsceno.
- Isto nem sequer tem cor local ! - depreciou Pilar.
Soledad tentou disfarçar. em atenção ao Wolfgang,
que escolhera a boite. Não era tão mau como isso. . .
> cómico até tinha graça, embora não o percebesse. . .
mas os gestos. . . eram elucidativos. Aliás, toda a gente
ria a bandeiras despregadas. E o riso era contagioso.
Que pilhérias diria ele`?
Wolfgang não respondeu. Jacinto tão-pouco. Era
precisamente o que lhe repugnava no espectáculo:
aquele histrião bem mandado que, para comprazer
aos Americanos, ressuscitava os ídolos quebrados e
sepultos, os monstros do passado - Hitler, Goebbels,
Goering-, e atirava-lhes às faces mortas punhados
de lama e de riso.
- Então você não gosta? - disse Wolfgang, encarando Pilar com um ar meio conformado, meio trocista.
- Acho que isto não é alemão, é americano e francês.
Não foi para isso que vim a Berlim - respondeu ela
com absoluta seriedade.
<<Não tem sombra de humor, nem de delicadeza>>,
pensou Soledad.
-Bom! Vou levar-vos então a um dancing bem
berlinense - resolveu Wolfgang. Piscou o olho a Jacinto
e, à saída, deixando-as passar à frente, disse-lhe : - São
difíceis. Hã?
Era uma grande sala. Ao fundo, de um palco dissimulado e estreito jorravam repuxos autênticos e frescos,
caprichosas flores de água, que iam tomando diversos
cambiantes, consoante a luz dos projectores, desde o
branco cristalino ao púrpura vivo. A forma desses
repuxos variava também com as melodias da orquestra :
tulipas, anémonas, hidrângeas, estrelas-do-mar, chuva
de pétalas: um prodígio muito encenado. Aos cantos
do palco erguiam-se colunas salomónicas.
Soledad ficou encantada: tudo aquilo era fácil,
mas de bom gosto. Já conhecia os truques: o efeito.
porém, excedia desta vez tudo o que vira até então
naquele género.
Pilar condescendeu em se interessar pelos telefones
que permitiam comunicar de mesa para mesa e pelo
dispositivo estranho que, ao longo dum corrimão
oco. de aparência banal, podia levar um pneumático,
um bilhete de amor, ao destinatário que ela escolhesse.
Achou graça. Quis experimentar. Wolfgang, divertido,
sugeriu mistificarem um sujeito obeso e tranquilo,
que sorvia uma bebida espessa, solitariamente, do
outro lado da sala. Pilar encorajou-o, Soledad sorriu,
amável, fingindo-se interessada; Jacinto encolheu os
ombros. Então Wolfgang puxou da pena. redigiu uma
curta epístola feminina, dengue e faceira. O homem
correu a sala com uns olhos intrigados e brilhantes,
e respondeu. Convidava a senhora a dançar. para
fazerem conhecimento.
- E assim se chega ao conhecimento bíblico - disse
Jacinto.

Mas logo se arrependeu do gracejo pesado. Decididamente, a humanidade era grotesca sob todas as
latitudes. Questão de óptica e de momento! Tudo
podia ser grotesco ou sublime. Mas a elegância, ao
menos exterior, que ele cultivara e que se Lhe fora escapando, como areia, por entre os dedos feridos, que
valia essa elegância, coisa artificial, máscara que se
colava à pele e deixava sangue, quando o tempo vinha
arrancá-la? Antes ser são e trivialmente ordinário
ser trabal?ador e honesto, mesmo com brutalidade
e cegueira, ser limitado digno e decente. Mas onde
estavam a decência, a dignidade, se os dignos e os
honestos ele os conhecera presunçosos e cruéis, egoístas
e secos? <<Merda>>, disse para consigo; e sorria palacianamente, convidando Pilar a dançar de novo, com
um olhar e uma vénia apenas esboçada, no seu ar trocista e melancólico de quando não se tomava a sério.
O que nele impressionava Pilar era aquele dom
de se dirigir às mulheres com uma cumplicidade natural,
sem nada de imperativo ou de exigente. antes como
quem as conhecesse por dentro e por fora e estivesse
disposto a oferecer-lhes uma solidariedade maliciosa
e experiente.
Assim que Jacinto a enlaçou a princípio levemente.
Pilar apertou-se toda contra ele. A orquestra tocava
um tango. Jacinto aceitava a oferta daquele corpo
exótico, longamente vibrante, que já o reconhecia e
o procurava; e assistia. irónico, ao crescer lento do
desejo no seu próprio corpo, cheio de memórias, hábil
e desdenhoso naqueles prelúdios públicos, familiarizado
por de mais com todas as subtilezas e rotinas do amor
físico. Veio, porém, a vertigem queimar-lhe os lábios
e viu então a boca dela, igualmente ansiosa, buscando-o.
Mas os olhos de ambos evitaram-se. estranhos e inconciliáveis. <<Há qualquer coisa que não liga>>, pensou
Jacinto. <<Seria preciso forçar uma resistência. uma
pequena resistência insidiosa. . . E para quê? Por que
fazer aquilo com uma amiga da pobre Soledad, infligir-lhe mais essa humilhação `?. . .>> Se ele tinha, ainda
por cima, comodamente resolvidos, de momento, o;
seus pruridos carnais. sem sobressaltos nem vómitos
muito fortes. Era tão natural. tão higienicamente natural, nua e sem vício, aquela loira e linda Ingrid, de
uma beleza insípida e inteligente, desprendida, passageiramente material, nos seus quarenta anos passados.
Fora ela que a princípio o ajudara em Berlim. Vivera
à custa dela duas semanas, sem ela jamais lho fazer
sentir, sem que mostrasse sequer dar por isso. Encontravam-se agora duas ou três vezes por semana. Não
o maçava, não se preocupava com a sua alma, e queria-lhe bem, com um gentil reconhecimento epidérmico
e episódico. Para que havia de arranjar mais complicações`?
Mas Pilar encostava o rosto quente e duro ao rosto
dele, e comunicava-se-lhe o tremor do corpo. I?ião
lhe via assim os olhos inimigos, aqueles olhos dementes
de animal bravio, solitários e orgulhosos.
I\?las tornou a sondá-los, hesitante, no caminho
do regresso. As frases dela não tinham importância.

Que chegassem a ser vaidosas e ridículas, pouco contava. Havia, sim, uma força perigosa no olhar dela,
uma crueldade vã. de reflexos doirados. Era tão fácil
ficar ainda a conversar, passar a noite com ela. Mas
Pilar quase o assustava. E às vezes repugnava-lhe.
O que seria depois?
Wolfgang despediu-se efusivamente, à porta do
hotel. e Jacinto, invocando o cansaço da noitada. foi-se
logo deitar.

IV

No dia seguinte evitou-as.
Acordou tarde. com dor de cabeça. com a boca
saborosa, sem apetite; tentou prolongar o sono, a
inacção; mas a sua consciência batia as asas negras
naquele limbo, enchia-lhe a modorra de lembranças
biliosas, enquanto o sol já alto se infiltrava palidamente pelas gretas da janela. O sol que era a ameaça
de um novo dia igual aos outros. Levantou-se enfim
e barbeou-se a cantar, para sufocar as vozes interiores,
disposto a sair e a esquecer-se nos outros, de qualquer
modo. O convívio era uma forma de subsistir. Mas
não queria encontrar ninguém conhecido. Precisava ?
de dimensões novas, de se sentir grande perante um s
anão ou pequeno em face de um gigante, de se exilar
daquela forma quase definida que era e não era a sua
e que ele via, a sós consigo, inerme, a gangrenar.
Esgueirou-se, lesto, pelos corredores do hotel, não
fosse alguma das sul-americanas surpreendê-lo. Toda
a gente o cansava, especialmente as pessoas conhecidas. Ficavam logo maculadas, depois do primeiro
contacto, como um baralho novo após uma partida
de cartas.
Não sabia que fazer. Passeou, ao acaso, pelas ruas.
Tinha dinheiro, aquele dinheiro sujo ganho na véspera.
Era dinheiro, igual ao que corria em Berlim: suor dos
pobres, esperteza dos espertos. . . Estava no seu bolso,
era seu. Não o ganhara honradamente. E depois?
O brasileiro tinha-o ganho? Não, nascera com ele.
Roubara-o honradamente. Sem culpa. O remorso era
só para os valdevinos. <<Pois vou-lhe gastar o dinheiro
honrado>>. decidiu.
Entrou numa livraria, comprou os poemas de Rilke.
numa edição com folhas doiradas. <<Eis um destino
que o seu legítimo proprietário não daria a este dinheiro>.
disse para consigo. Comprou, em seguida, uma camisa
de perlon, de um branco-anilado, e um cachecol de
seda vermelha; entregou as unhas, longas e quebradiças, a uma escrupulosa manicure. Os pequenos luxos
a que se habituara e que lhe eram indispensáveis para
ir rolando pela encosta da vida, distraidamente. Com
esses luxos pelintras tapava os ouvidos ao refluxo da
alma. Mas a onda do remorso voltava dos seus areais
adormecidos e escuros, assim que Jacinto se afastava
daquelas presenças que eram a vida externa - a manicure, os lojistas- e subia-lhe à boca, cheia de sal e
de lodo. . .

Um pedinte, trémulo, encardido, repelente, com
os olhos ramelosos e enevoados de cataratas, as mãos
deformadas e suplicantes, chamou-o, tapou-Lhe o caminho, num alarde convulsivo de miséria:
-Ainda hoje não comi. Dê-me alguma coisa.
Talvez não fosse verdade. Berlim, em princípio,
acudia a todos os desempregados. Aquela pobre criatura comerciava talvez com as suas chagas. Devia ser
um irrecuperável, daqueles que recusam as sopas do
Estado para ganhar, em liberdade, o preço do medo
e do horror alheio.
Jacinto deu-lhe dois marcos, deixou-lhos cair de
alto na palma da mão encurvada e roxa de pústulas.
- Chega? - perguntou em voz fraca. envergonhadamente.
O homem mirou-o, com espanto, através dos olhos
azulados e espumosos, e disse, já ?em humildade, mas
continuando a tremer:
-Obrigado. meu pequeno.
Podia ter cinquenta. sessenta, setenta anos. Era
difícil atribuir-lhe uma idade aproximada.
Jacinto abriu a carteira. tirou de lá um punhado
de notas e entregou-as ao pedinte atónito.
- Tome lá.
- É de mais - protestou ele.
- Achei-as - disse Jacinto, a sorrir. - Fazem-lhe
mais falta a si do que a mim.
O homem, sempre a tremer, meteu o dinheiro num
bolso roto do seu velho casacão.
Jacinto não se decidia a guardar a carteira. Extraiu
da mesma divisória mais cinco, seis notas. Ficava
ainda com dinheiro para uns dias. para comprar cigarros, para algumas refeições para beber cognac. Forçou
o mendigo a aceitar. O desgraçado balbuciava confusas palavras de agradecimento. <<Não me agradeça>>,
gostaria Jacinto de poder dizer-lhe. <<Sou eu que lhe
peço perdão da minha existência e da sua miséria.>>
O mendigo pegou-Lhe nas mãos com os seus dedos
tortos e crispados, onde vermelhavam feridas asquerosas. Entre esses dedos, luziam as unhas polidas de
Jacinto.
Mas Jacinto já não sentia nojo pelo pedinte. Abraçou-o, fitou-lhe os olhos doentes, nebulosos, deu-lhe uma palmada tímida nas costas, querendo sorrir
de novo. Só então sentiu que chorava. Havia já muito
tempo que não chorava.
- Adeus, amigo.
- Obrigado.
Através da janela viu o dia castanho cobrir-se com
-Não tem de quê.
o véu levemente cor-de-rosa de uma morte discreta
<<Isto não resolve nada, claro, nem para mim nem
para ele>>,ia pensando, a caminho do hotel. Mas fizera-
e submissa. E a noite, insensivelmente. inodora. entrou
-lhe bem chorar Parecia-Lhe que de algum modo se
no quarto. Jacinto acendeu a luz, despejou no cesto
redimira um pouco. E a ideia de ter contribuído para

de papéis o cinzeiro carregado de fósforos ardidos e
suavizar uma desgraça derramava-se dentro dele, como
d n ?s de cigarro. foi buscar ao guarda-fato uma garrafa
chuva de Primavera.<<É ainda uma paz egoísta, uma
, r ? Ou?'iu com estranheza o gorgolejar do líquido
satisfação culpada>>, pensou. Mas repicavam-lhe no
caindo no copo: um ruído, a vida, de novo cheia de
coração os sinos de antigas páscoas.
sons e arestas, no brando silêncio opiado do quarto.
Uma branca lassidão amortecia-lhe os nervos.
Encheu o copo. meio de álcool, cum água da torneira;

repetiu a dose. Mais um cigarro. E estendeu-se na cama.
Logo que chegou ao hotel, subiu ao primeiro andar.
A luz era como uma obrigação de existir, de gesti abriu a porta do quarto e voltou ao rés-do-chão para
cular, de dar um sentido àquela noite. E Jacinto dedependurar a chave no placard, de modo que o julgassem
ausente. Deitou-se de bruços sobre a cama e abriu
feria que ela o submergisse como uma c,nd;t. Carregou
o volume de versos que comprara. Leu durante horas.
na pêra da electricidade, e lo?o,bruscamente,o quarto
dormiu, acordou a meio da tarde, bebeu uma garrafa
escureceu.
de leite e pôs-se a reler ainda os poemas de Rilke, um
Estava cansado de ler. Queria dormir. Mas a rádio
dos quais o maravilhou:
muito forte. no quarto ao lado. veio impedi-lo de so o

brar no sono: <<Morreu o burgomestre de Berlim.

Eleições na zona oriental....?> Era o noticiário.
7?udo será c?i novo grcrrrcle e majestoso,
Eleições Ilíl Zona oriental !... UIlla ignobil falsifins terrus sercìo sirr2ples e rr.s águci.s murrnurnnte.s,
caç??o! Poder-se-ia alguma vez chegar a um resultado
pequeítus us bcirreir?cz.s e cr.s árvore.s gigantes;
positivo pelo caminho da Inentira sistemática? Guerra
multiplo e fórte,viverá no.s vules
um povo de pnstores e cniripone.ses.
à fome,antes de mais,guerra à servidão económica =

diziam os intelectuais socialistas. Guerra à fome,de
acordo.guerra à miséria. E seria preciso, para isso,
E não m<ris cr,s igreju.s gucrrdurão
abolir a dignidade? Jacinto sentia-se indi?no,mas ele
Deus lVo.s,so Senhor eomo ujn fugitivo,
chorcrdo c'omo urn.scr'fèrirlo cz traição.
era um erro ambulante, uma experiência falhada;
E nos de.scorzheeirlos Nue haterem às portu.s
e importava-lhe que a dignidade dos homens sobrecrbrir-se-ão casrrs czcolhedor'as,

vivesse.Aceitava sem repulsa a ideia de morrer como
i todo.s nris e os no.s.sos' uctos r'espirarerno.s cr
oférendu. uma planta entre outras, mas não podia conceber

sem pavor uma agonia universal,uma síncope da vida
em todo o globo. E naquele mundo vermelho onde
a lei do partido único vergava todas as espinhas,onde
o bem empunhava a espada da mentira, onde as castas
renasciam à sombra da moralização, ele imaginava a
dignidade em perigo, o servilismo triunfante dos falsos
profetas abafando a voz dos verdadeiros. O bem não
era talvez desta terra. Viria, um dia, muito mais tarde,
com a osmose dos dois mundos, uma alva de justiça?
Ele só sabia que não podia escolher. Estava dum
lado, nesse lado ficaria. Só havia que aguardar o choque. Quem era ele, de resto, para escolher, pobre farrapo
maculado?
Sonja, uma amiga de Ingrid, jornalista, visitara o
sector russo de Berlim, desprevenidamente. Partira
animada de boa-fé e voltara desiludida, revoltada.
Sentira por todo o lado a pata soviética, a psicose do
povo eleito. e a condição privilegiada de alguns, quer
fossem sinceros, conformistas ou sabujos. Os quadros
dirigentes não viviam entre o povo: habitavam os edifícios novos, circulavam dignamente nos melhores automóveis. A vida era triste, baça, opressiva, sem sorrisos,
ou com sorrisos de encomenda.
A incógnita persistia no espírito de Jacinto. Seria
mesmo assim? A verdade é que os puros - Koestler,
Sillone. tantos outros - haviam desertado o barco da
esperança, puxado à sirga, por escravos tristes, para
nascente. O sol da liberdade não raiava ainda e no rio
barrento vogavam cadáveres inocentes. Ainda que não
houvesse outra esperança, outro caminho de boa-fé,
como sacrificar o presente, renegar os valores seculares
do seu mundo de compromissos, a sua saudade de Deus,
a Arte, o pensamento pessoal, a troco de uma incerta
aurora, anunciada por trombetas servis?
Pouco a pouco, a rádio foi-se calando. Jacinto
desapertou o colarinho, cobriu-se com o édredon e
adormeceu, meio vestido, tal como estava.
Acordou em sobressalto, a meio da noite, com o
telefone a tocar ao lado da cama. Retirou-o do gancho
desajeitadamente, na escuridão.
- Alô ?
- Sou eu, a Soledad.
-Diga, minha jóia (estava mal-humorado, mas
nada deixava transparecer na voz).
- Venho pedir-lhe um grande favor, Jacinto.
- Se eu puder. . .
Receava que ela o chamasse para alguma pândega
ou apenas para lhe iludir a solidão, como algumas
vezes fazia em Paris; e preparava-se para recusar,
polidamente, mas com firmeza, pretextando uma enxaqueca violenta. O tom da voz dela, porém, era de grande
aflição :
- Preciso absolutamente de si, Jacinto. Não conheço
aqui mais ninguém. Aconteceu-nos uma coisa absurda,

inverosímil. Estamos num hotel com dois desconhecidos. Alô?
- Estou ouvindo.
-A culpa foi da Pilar. É um animalzinho, sem
nenhum pudor, sem nenhum senso moral. Sorriu-lhes
no meio da rua. Eles seguiram-nos. começaram a dizer
piadas em alemão. depois em francês. Convidaram-nos
a tomar um drink no hotel deles, que era mesmo ao
lado. A Pilar - você já conhece o género dela - pôs-se
a armar em desdenhosa, mas foi aceitando. E convenceu-me a subir. Alô?
= Sim. E como é que você está falando ao telefone?
-Fechei-me num cubículo. O apartamento tem
várias divisões. Fechei-me neste quarto e encontrei
por acaso o telefone. Nem sei como consegui ligar.
Felizmente, tinha um cartão do hotel. Venha depressa,
Jacinto. Estou cheia de medo. A Pilar provocou-os,
consentiu-lhes alguns gestos. . . E agora nega-se. Eles
estão furiosos. Piores do que feras. Um até já nos mostrou uma faca. E ameaçou-me. Parecem levantinos.
E cheiram a suor. Devem ser turcos ou egípcios. Acuda-me, Jacinto.
- Eu vou já, Soledad. . .
-Olhe, agora está um deles a esmurrar a porta.
Não sei o que faça. Consegui fugir para aqui, porque
a certa altura atiraram-se os dois à Pilar, um a tentar
segurá-la e o outro. . .
- Mas onde é que você está? Qual é o hotel, em
que rua fica?
- Meu Deus! A rua não sei. Mas o hotel chama-se
Dubigny, fixei-lhe o nome por ser francês. É verdade,
escute: é o quarto número quinze, no primeiro andar.
Há um botão, em baixo, para abrir a porta da rua.
-Bom, eu não demoro nada. Vou procurar a
direcção na lista dos telefones. Até já.
- Obrigada, Jacinto.
Esperou que ela desligasse. Reajustou o nó da
gravata. Calçou-se. Vestiu o casaco e o impermeável.
Não dispunha de nenhuma arma, nem sequer de uma
navalha. Para quê? Não saberia servir-se dela. Mas
tinha as mãos, os pés, a cabeça, para bater, se fosse
preciso. Havia de ser preciso. E tinha o corpo, para
o arriscar, a sua miserável vida, para a expor. Numa
aventura sem sentido. Mas correr perigo de morte era
sempre limpo, fosse como fosse, uma espécie de exame,
que ?á o alvoroçava: ia tentar provar a si próprio que
ainda não apodrecera de todo.
Sabia-lhe mal a boca. como sempre que o despertavam de repente a meio de um sono profundo. Viu
ao espelho os olhos inchados, as faces pálidas e intuIIleSCÌdaS. Tinha um ar boémio e ensonado, :?érei>.
distante, mas atraente mesmo assim. Não ia feio de
todo para o combate que já lhe fervia no sangue, que
já lhe tremia nos nervos. Acendeu um cigarro e desceu
as escadas a correr.
Acordou o porteiro. Folheou precipitadamente a
lista dos telefones. Enganava-se, voltava duas páginas
de uma só vez, tornava atrás. Encontrou por fim a
direcção: Hotel Dubigny. Grunewaldstrasse.

Não tardou a descobrir um táxi. Dormira em tempos
com Soledad e dela recebera carinho, sensualidade,
conforto, piedade e admiração, até admiração. Pouco
importava que aquela história fosse absurda, grotesca,
degradante. Pouco importava que Soledad descesse às
experiências mais grosseiras, viciosas e deselegantes.
Era no fundo exactamente a mesma, ou se não fosse,
era a mulher que o tinha amado, em cujos olhos clareara. a fizrto. aquela ternura. uma mulher que ele poderia
ter salvo. Chamava-o. Pronto. Ia talvez pagar-lhe o
passado Com a única moeda decente: com o Seu própeio Sangue. ?<OS tipos da minha laia têm de pagar
em espécie.>>
(l automóvel seguia. veloz. pelas ruas desertas.
Mas havia mais luz do que habitualmente a meio da
noite. Que horas seriam?? Consultou o relógio, de pulso.
no escuro. Duas em ponto. As Casas ainda iluminadas.
tremulamente. Que luz esquisita! Dir-Se-iam velas
funéreas.
De súbito compreendeu. A cidade velava o burgomestre morto. Cidade funerária. cidade de loucos!
Sentiu apertar-se-Lhe o peito. Eram velas reais. um
fantasma em cada casa. Alamedas de luto no choro
da cera a derreter-se em silêncio, através das vidraças
que a persianas não esconderiam. Uma loucura colectiva acendera-se em Berlim: pranteava o Cadáver. ainda
quente. dum Chefe.
E ele. onde i?z a correr. naquele carro estranho.
com um motorista estranho. do qual Só via a nuca.
por ruas nocturnas. irreconhecíveis Sem uma palavra. nem ao menos <<bitte>> ou <<danke seh?ne?>.
Que tinha ele a ver com as aventuras incongruentes
de Pilar Zaragoza. que fornicava por Certo Com meio
mundo? Ela não queria meter-se debaixo dos turcos
ou lá o que raio eram, porque à última hora os achara
Sujos e apressados, ou por qualquer outro motivo.
E por isso iam cosê-lo de facadas uns tipos que, de
certo modo, até tinham razão, a sua razão pelo menos,
uma vez que haviam Sido provocados.
Mas Soledad pedira. implorara. É que decerto o
acto lhe f?tzia horror. Tratava-Se de impedir coisa
parecida com um estupro. Merecido talvez. . . E depois`?
Que se lhe dava a justiça ou o castigo dos outros? Nada
disso já lhe dizia respeito. Passara a barreira. Não
podia assomar-se, sem indignidade, sem hipocrisia,
à varanda da justiça. Só Lhe restavam a solidariedade
e a coragem.
O táxi estacou bruscamente. <<Pronto, vai começar
a dança>>, pensou Jacinto. Pagou a corrida. <<Tant pis!
Para a frente, suceda o que suceder!>> O vago receio
perturbado que lhe comunicara a visão da cidade mortuária dissipara-se por completo. Uma precaução apenas :
pediu ao chauffézrr que o esperasse. Podia não encontrar
outro táxi para o regresso. Se voltasse. . .
- Tenha paciência. É um momento.

Carregou no botão e a porta abriu-se com um esta lido seco. Ninguém. Subiu lentamente a escada alcatifada de castanho cor de sobreiro descarnado. Repugnava-lhe apelar fosse para quem fosse. Subia quase
pé ante pé. Se tinha de haver escândalo, não seria ele
a dar o alarme. Qualquer intervenção alheia anularia
a sua prova de valor. Pobre valor de rufia, defensor
de barregãs ! Mas valor. . .
Bateu à porta do número quinze, com os nós dos
dedos, decididamente. Decorreram uns instantes e a
porta recuou, de manso, sobre a carpete espessa. Defendendo a abertura, apareceu o corpo de Soledad, curvo
e humilhado. Ela assomou a cabeça pelo intervalo
estreito, despenteada, morna, cheirando a desordem.
e disse em voz muito baixa, junto ao rosto dele:
-Vá-se embora, Jacinto. Eles dão cabo de si.
Espere por nós lá fora, em frente do hotel. Prometeram
que nos deixam sair dentro de um quarto de hora.
Jacinto, acto contínuo, avançou o pé direito, de
modo a impedi-la de fechar a porta.
- Eu não tenho medo, Soledad.
- Bem sei. Mas o pior é para nós. Eles juraram
que fazem escândalo, que se põem a gritar, que partem
tudo, que vamos parar todos à cadeia.
- E você prefere. . . evitar a polícia ?. . .
- Não sei, Jacinto. . . Vá-se embora. é melhor.
Fique à espera lá fora.
Jacinto hesitou, com os olhos nos dela, querendo
perscrutá-la. Afinal. . . se ela assim o queria. . . Para
quê contrariá-la, apenas por orgulho? Custava-lhe a
aceitar aquela situação vexatória: esperá-las na rua,
como um cão de guarda proibido de morder, enquanto
elas se faziam violar, no sigilo duma alcova de ocasião,
com o pavor das afrontas públicas. Enfim. . . Se era
verdadeiramente o desejo de Soledad... Quem sabia
se não haveria até por detrás daquela contra-ordem
uma curiosidade inconfessável? Tinha de viver o papel
da paciência, que era também uma forma de coragem,
mais difícil, a humildade total, uma prova maior de
dedicação. Que noite desconcertante! Ia retirar o pé,
quando ouviu vozes altercando. Pilar chamou-o, lá
de dentro, com firmeza:
- Entre, Jacinto.
Ele então afastou Soledad, sem a brutalizar, mas
com força.
- Podem matá-lo, Jacinto - gemeu ela, segurando-o
ainda por um braço.
Jacinto desenvencilhou-se e avançou pelo quarto,
de mãos nos bolsos, pálido. com os olhos dilatados
e brilhantes.
Pilar veio para ele, descomposta, e ficou a seu lado,
numa atitude de desafio. Sentiu por ela, pela confiança
que lhe oferecia, pelo seu despejo insolente, uma brusca
simpatia, exaltante.
Um dos homens fazia-lhes frente, em desalinho.
mas vestido. Era novo, de meia estatura, escuro e cetinoso de tez, bem encabelado, feições correctas, mas
pesadas, olheirento, de bigodinho amorudo, com o ar
sombrio e aquela sensualidade patente, enjoativa, dos
Orientais. O outro, reclinado num canapé, em mangas
de camisa, um pouco obeso, o rosto muito grande

e carregado, fitava de longe em Jacinto, aplicadamente,
a mirada torva e desdenhosa.
-Julgo que estou lidando com um homem de
bem - começou o mais novo. - Elas dizem que o
senhor é um amigo, simplesmente um amigo. . .
- É verdade - confirmou Jacinto.
-Eu também sou um homem de bem. A culpa
foi delas. O Senhor é espanhol?. . . Francês`?. . .
- Não interessa.
- Como quiser. . . Mas deixe-me contar-Lhe. Há
coisas que não se fazem. E ela portou-Se de uma maneira. . . (voltou-se, com raiva, para Pilar). Ela. . .
- Quem conta sou eu - disse Pilar.
- Perdão !
- Eu prefiro saber o que se passou pela boca dela -- atalhou Jacinto.
O outro olhou-o, em silêncio, com atenção. O segundo
homem ergueu-se e aproximou-se.
- Vamos embora ! -- decidiu Jacinto. - Está tudo
dito.
-- Já '?. . . Não - falou O mais gordo. com uma
Segurança superior. =Tem de nos ouvir. Esta mulher...-E estendeu o braço curto na direcção de
Pilar, apontando-a com um dedo depreciativo, de
unha sula e quadrada.
- Inútil - cortou de novo Jacinto -, não> estou
aqui para servir de árbitro, estou aqui para defender
estas senhoras. mesmo que elas não tenham razão.
E venho disposto a tudo.
- Aquela, pode levá-la, se quiser - insistiu O mesmo,
na sua rude Obstinação, designando Soledad. -Esta,
fica só por um quarto de hora: temos umas contas a
ajustar, docemente. . .
-Ordinário! - arriscou Pilar, encostando-se a
Jacinto.
- Esta. . . nem sei o que lhe chame. . . - interveio
o mais novo.
- É preferível não chamar - disse Jacinto -, porque então não saio já. Vejo-me Obrigado a recorrer á
violência, a meu pesar.

Houve um breve silêncio, cheio de indecisões, de
ameaças. No olhar de Jacinto luzia uma promessa
de morte. As duas mulheres iam-se encaminhando
para a porta. Jacinto cobria-lhes a retirada. de cabeça
alta, as mãos sempre nos bolsos. Por fim, deu dois
passos atrás, voltou-se, e Caminhou a passos largos,
para a saída. Foi o único momento em
que teve medo.
-Havemos de nos tornar- a encontrar- gritou-Lhe ainda o rapaz de bigode.
- Às suas ordens - respondeu Jacinto. já no patamar da escada.
- Acovardaram-se por você estar armado - disse
Soledad. ainda toda tremente. dentro do táxi, que os
conduzia ao hotel.
-O que é engraçado é que não trago arma nenhuma -- revelou Jacinto, a sorrir.

-- Você é doido! - Exclamou Pilar, com admiração,
chegando-se para ele, discretamente. no escuro. O andamento do carro projectava-os um contra o outro. E a
SenSaçìto i1e cuinplicidade. i1e Lllliã0 secreta. que Jacinto
?Xllerlnli'lllara a0 lfìdel dela, alnda dul-ava.
Soledad sentia-se c-epildiada. tl-i?te e ??azia. enCerrcidEi Illlllla Iluvem de vc:l-gOnha, cOin c> remc>rSO da sua
??il t?raqueza. Não obStante. c>lha??a com ternura para
Jl?cintc>, tàc> I>i-óxim0 C tã0 distante. Celil>o ele parecia
jo??em. CIarO e frágil. entr;: aqueles itldivídLlOs terrosos
e defìnìdo?. el2. qLle tinha o ?lr de viver por acaso Ileste
mundo ! Vil-a-lhe, hav ia I>OLlcO. a bOCa crispada : agora
sorria. Mal eillpregad0 sOrriso! Pilar, I>inguéin a eclcantava. . . O amc>r el-a para ela unla masturbação. CC>nta??alil lãc> pouCO os ageclte, dOs seus es?asmOs selváticOs. Sc>ledad via-Os apl-c?xiillarem-se. ell?r?ados. procurarelll-;e. E aquil0 fazill-lhe mal. Pilar cïllltav? ??Or;i
a Jacinto o ocorriClii. illsi;tiild0 Ila C>dlOSa f?ri)S?ErÌa
daC)Lli:le? <<SL1)elTO?li, ?u2 ?e illlhalll obs1lllEldel 21)1
ConSeguir pela força C> qlle tem de Sel- ofert?l IlilILll??l.
Nd0,
Solecl?i;l nâcl CIll?rÍi1 ?t?SiStir aoS manejos de l'ilar,
n?i0

97



queria reconhecer o desejo no rosto de Jacinto. Colou
a cara à vidraça. Se ele soubesse tudo o que se passara !. . .
Como podia mexer-Lhe, se ela tinha ainda na pele o
bafo dos outros; cheia de odores estranhos, excitada
por earícias brutais e incompletas?. . Sentia-se a mais
entre eles, meio esquecida, volumosa, incómoda, um
estorvo.
Despediram-se no elevador do hotel. Jacinto ficava
no primeiro andar, elas continuavam.
-Amanhã temos muito que falar. Isto ainda dá
pano para mangas - disse Soledad. Afinal, talvez ficassem por ali. Talvez não acontecesse mais nada. Mas
não, eles não se despegavam, Jacinto não soltava a
mão de Pilar. E Soledad seguia-lhes, sorrelfa, os olhares
febris, que se apunhalavam. ansiosos, diante dela,
impudicamente, numa antecipação, já cruel. da luta
dos sexos.
Fechou-se no quarto, acendeu um cigarro. Depois
teria de abrir ainda a janela, porque lhe fazia mal dormir
numa atmosfera de fumo. Estava eerta de que ele ia
subir. E de que Pilar o esperava. Aquela sua porta
abominàvelmente espessa abafava todos os ruídos.
não podia sequer ouvir-lhe os passos. Entreabriu-a,
muito ao de leve, e espionou. Descalçou os sapatos
de salto alto, que a molestavam, e repeliu-os com os
bicos dos pés. Os minutos passavam. Jacinto fora
sempre caprichoso, volúvel. pouco perseverante. Talvez
não viesse. Melhor para ele! Tinha o pressentimento de
que Pilar só poderia causar-lhe dissabores. Era perigosa, no seu egoísmo insensato, na inconsciência do
seu orgulho desmesurado, com a força maligna, incontrolável, dos estúpidos e dos dementes.
Mas a alta silhueta de Jacinto surgiu finalmente,
quase em sombra, apoiada ao corrimão. Não podia
distinguir-lhe as feições, a expressão. Viu-o atravessar
vagarosamente o corredor, deter-se defronte do quarto
de Pilar, encolher os ombros, bater à porta, curvar-se,
chamar. Adivinhou que ele sorria. Desafio ao futuro
e a si próprio. Imaginava-lhe o sorriso. Sim, ele encolhera os ombros. Conhecia-lhe aquele gesto. Mais uma
experiência, e ao cabo o mesmo sabor a lodo. Era tão
fácil tão simples, bater a uma porta. Já ela se abria.
ao fundo do corredor e Jacinto desaparecia. Que
importava isso, afinal? Se, mais do que desejo -queria
convencer-se disso -, aquilo era desafio, puro desafio.
mascarado de capricho, de desejo fortuito. Amanhã,
depois, seria a Pilar o estorvo, e de novo os olhos de
Jacinto, a ela, Lhe diriam fraternidade. Mas sentia-se
só, terrivelmente só. Vestiu de novo o casaco de peles,
para abrir a janela e arejar o quarto. Não sabia o que
queria. Só desejava dormir, esquecer, desaparecer,
encontrar-se talvez noutro lado, com outra vida, ainda
em branco, outros nervos. outra gente. . . Mas em toda
a parte o mesmo acontecia.
Deitou-se. Sabia que as imagens daquela noite
gordurosa iam persegui-la até no sono: os egípcios,

as mãos que a tinham palpado e magoado. a saliva
deles no seu pescoço, nas orelhas, na boca, que nem
sequer ainda lavara: o eco dos insultos, os risos de
escárnio, o desdém amável de Jacinto pela sua cobardia
tísica, que envolvia contudo - e ninguém o percebera o respeito pela vida dele. . . Tudo ia voltar, em tropel
de angústia. Tudo aquilo. . . e a visão do sabá, a miragem
do prazer completo, consumado, que ela nunca encontrara, no quarto de Pilar transformado em altar de
luxúria: Jacinto, enovelado com aquela mulher exaltada, em mil atitudes diferentes, nervoso, congestionado,
violento, cínico lânguido, ausente, caricioso, e de novo
erecto, quase feroz, gemendo, sufocando gritos, tal
como em Paris, nos primeiros dias. . .

VI

- Venho pedir-lhe uma aspirina - disse Jacinto,
encostando a porta. - Dói-me a cabeça.
Pilar sorriu. O primeiro sorriso de entendimento,
enviesado e quente, os olhos semicerrados. Abriu a
mala de mão e sacou de lá um tubo de aspirinas, com
um ar triunfante, saboreando a comédia, à espera da
continuação.
Jacinto sorriu por sua vez e deu a volta à chave na
fechadura.
- Não faça isso. . . - disse Pilar, langorosa.
Encontrou-se logo nos braços dele e começou a
debater-se voluptuosamente, com protestos roucos, que
eram quase incitamentos. Deixou-se despir, oferecendo
uma meia resistência excitante.
-Não acha que é melhor ficarmos simplesmente
amigos? Não acha, Jacinto?
Durante mais de um quarto de hora, já quase nua,
teimou, repeliu-o, torceu-se entre as mãos dele. Fugia-lhe, deixava-se de novo prender, consentia-Lhe os
primeiros beijos abrasados. sempre com o seu sorriso
enigmático, os pesados cabelos desfeitos, que assim
a rejuvenesciam e lhe diminuíam o rosto, mimoso e
bestial visto de tão perto. semelhante aos dos ídolos
polinésicos. Jacinto, no seu íntimo, achava odiosa
aquela cena. Sentia vivamente a sua indignidade. Participar numa comédia daquelas, ridícula e degradante,
como um garoto ávido de sexo !. . . Mas começara,
continuaria. Ia procedendo com tacto, com paciência.
E o corpo de Pilar, sinuoso, reticente, ambarino, cheio
de frémitos, acicatava-lhe o desejo, tanto mais brutal
e vingativo quanto mais ela o feria com o grotesco
da situação que lhe impunha.
Finalmente, ela cedeu. Foi a nuvem de fogo, a
cavalgada de sensações, a noite escura e irracional,
cheia de gritos e punhaladas. beijos esponjosos, e luta.
ainda, sempre luta, até aos longos delíquios vermelhos. . .

VII

Nunca Pilar Zaragoza encarara Soledad com tanta
indulgência como nos dias que se seguiram àquela

noite acidentada. Franqueou-lhe logo de início a sua
recente intimidade com Jacinto, sem o consultar. Recuperavam-se ambos tão completamente após o encontro
dos sentidos que Soledad era ainda um elo dessa intimidade ingrata, hesitante, cerimoniosa. De resto, Pilar
admitia, tacitamente, sem relutância, que Jacinto Lhe
vinha de Soledad, através dela: achava justo partilhar
com ela as cinzas mornas daquele falso amor. Quando
Soledad se insinuava entre eles, com uma mansuetude
canina, forçando-se à naturalidade, receosa de perder
com eles todo o contacto, Pilar sentia-se até inclinada
a uma simpatia condescendente. Era tão mole, tão
invertebrada, tão acomodatícia, aquela pobre Soledad!
Quando ela batia à porta do quarto as suas três pancadas cúmplices, com um <<Posso entrar?>> ou <<Não
incomodo?>> dulcerosamente alegre, nunca a enjeitavam,
faziam-na, quando muito, esperar um momento.
Jacinto, surpreendido às vezes em desalinho, despenteado, descalço, de roupão, rendia-se ao facto consumado, àquele masoquismo de Soledad, à sua necessidade mórbida dos outros. Chocado a princípio com
os esforços confrangentes que ela despendia para lhes
tornar mais fácil aquela promiscuidade, acabou por
se adaptar, combatendo a náusea com palavras, espreguiçando-se na poltrona que era já a sua, encolhendo
os ombros, expuiïando os escrúpulos na afirmação
dos seus gestos longos e fatigados. Como tinha muito
pouco que dizer á Pilar, conversava com Soledad sobre
assuntos que lhes eram comuns == teatro, livros, teorias,
viagens - chegava a pôr nesse passatempo uma
certa devoção, uma ponta de arte, como que desejando
remir-se, por meio dessa prodïgalidade, daquela espécie
de traição humildemente consentida e aprovada por
ela. Quando não havia outro assunto, desenterravam
às vezes do olvido figuras, comparsas daquele passado
breve que em Paris tinham gravado em conjunto: um
criado de restaurante que sabia de cor passagens da
Divina Comédia, a gente grave e postulante do Consulado, que não desdenhava acanalhar-se em segredo,
uma amiga dela, louquinha, vazia como um pássaro,
mãos rotas para todos, que ficara estropiada, em consequência de um aborto mal sucedido. Pilar maquilhava-se
escrupulosamente na presença deles. Soledad gostava
de dissecar, de discutir as personagens que intervinham
no filme da sua vida. E, se era severa consigo, ao ponto
de agoniar o seu semelhante com aquele constante
revolver, melado e sangrento, das próprias entranhas,
não era menos severa com os outros, nesses momentos
de verdade quase voluptuosa, ao seu modo agridoce,
alfinetante. Jacinto, próximo dela no sentimento enraizado da sua decadência, julgava, no entanto, com
céptica tolerância as criaturas que o acotovelavam,
quando se permitia lucidamente julgar alguém.
Aquelas conversas intermináveis, num quarto fechado, já bafiento, com o cheiro forte dos corpos (Pilar,
temerosa do frio, nunca abria a janela), acabavam em
dor de cabeça e num imenso fastio. Soledad, uma tarde,

pôs-se a falar do noivo, que acreditava nela estupidamente, sem malícia, e com quem talvez casasse, afinal
de contas. . .
- Case, sim, Soledad. Salve-se, está ainda a tempo.
Tente viver para ele, fazê-lo feliz, a felicidade alheia pode
ser uma forma de felicidade. Procure um equilíbrio, criar
hábitos, adormecer-se numa rotina, vai ver que se cura !
Ela dizia que sim, sorria, batia=lhe na mão pequenas palmadas reconhecidas e sensuais, carinhosamente.
Daí a um instante, replicava:
- Mas eu não estou certa de querer-me curar. . .
Tenho medo de encontrar à vida um sabor insípido.
E, sobretudo, não gosto o bastante do meu noivo. . .
- Depois virá a gostar - insistiu Jacinto, naquele
momento sincero.
Pilar, junto do espelho, observava-os, com o seu
sorriso obscuro. Achava-os ridículos. Mas parecia-lhe
que a atraiçoavam naquela conspiração piegas. Não
acreditava nos lamentos de Soledad. Sentia, porém,
que aquele entendimento a diminuía, que era ela que
eles agora renegavam e expulsavam dali, que a ignoravam e a desprezavam.
O sorriso murchou-lhe na boca. Ficava assim quase
feia, mais sombria, os malares mais salientes. Durante
mais de dez minutos não descerrou os lábios, embora
eles a interpelassem distraidamente.
Soledad, que a não perdia de vista por muito tempo,
adivinhava a borrasca.
- A Pilar está estupenda, não está? Fica-lhe bem
o verde ! E a saia travada assenta-lhe lindamente. . .
A outra não respondeu. Naquelas alturas ignorava
a piedade, a esmola duma palavra.
Soledad insistiu. Perguntou-lhe se o rimmel que
ela estava usando era bom. Pilar respondeu apenas
com um gesto de enfado.
Jacinto, incomodado, permanecia também silencioso ;
pressentia o surdo conflito, o furor malcontido de
Pilar, que podia nascer dum nada, a humilhação de
Soledad, que transpirava em aflitas adulações, precipitadas, e que a ele, testemunha involuntária, lhe queimavam o rosto.
E Soledad sentia-se vil, pastosa, húmida, como um
molusco, calcada pela pata bravia e displicente daquela
fera, contra a qual não podia nem sabia reagir. Toda
a vergonha reprimida daquela situação dependente,
abjecta, encharcava-a bruscamente como um banho
de lama. E assaltava-a uma vontade irreprimível de
chorar.
- Queria um cognac - pediu por fim, esforçando-se
muito por parecer natural.
Pilar, triunfante, foi buscar ao armário a garrafa,
enxaguou um copo no lavatório, encheu-o até acima.
Depô-lo meticulosamente em cima da mesa, sobre
a qual Soledad pendia, sem a olhar, e recomendou,
com uma nota muito leve de troça na voz:
- Vê lá se te faz mal. . . O Tom já te suplicou que
não bebesses. E o Jacinto, que é o melhor defensor
dos ausentes, também não concorda, com certeza. . .



VIII

Jacinto rompeu com Ingrid. Renunciava com certa
melancolia àquela tranquila ligação, higiénica, amena,
repousante. Já, na sua permanente insatisfação, a
lastimava, antes de a ter perdido. Maçava-o tão pouco.
Mas, que fazer? Não podia cortar com Pilar, quatro
dias depois de haver começado. Com Ingrid, tão bem-educada, tão compreensiva tudo era fácil, até romper.
Sacrificava-a por comodidade, quase por preguiça.
Já não experimentava o alarido do sangue junto daquele
corpo róseo e comedido, sobejamente explorado, mas
o seu desejo respondia dócil, ao dela, que era sempre
como que sorridente. Pilar era ainda a novidade, preferia-a à outra no quarto, com todo o mistério da sua
carne trigueira e nervosa, insaciável e arisca. l?las na
rua, ali especialmente, onde o encanto mestiço de
Pilar, o seu tipo espectaculoso, chegavam a ofender
a decência daquela rubicunda burguesia ariana, como
não lamentar já a graça composta, a beleza distinta
e desabrochada de Ingrid?
Não obstante, rompeu com a norueguesa. Sabia
que ela não protestaria com sanha. E assim foi. Tentou
expor-lhe a situação com uma brandura enternecida,
acusando-se de mesquinha inconstância, declarando-se
indigno dela. Mas fez-lhe uma ferida de amor-próprio,
causou-lhe uma pequena desilusão, que ela não dissimulou.
-Julgava que só o tempo nos separaria, dentro
em breve aliás. . . a tua partida ou a minha. . . e que
ficaríamos amigos. de longe - disse ela.
- E porque não havemos de ficar'?
- Pois sim. . . - E inquiriu : - Está? então apaixonado?
- Nem isso. . . É muito complicado !. . . Desculpa.
Prefiro não te dar mais explicações. Magoa-nos, a
ambos.
-Podes falar à vontade. Enfim, custa-me um
E bocado, é certo. . . mas, não tens com certeza a pre tensão de julgar- que te amo.
- Não, não sou tão fátuo - respondeu apressadamente Jacinto, vexado.
E deixou-Lhe aquela separação mais um ressaibo
de fracasso, de salsugem. Ingrid merecia, ao menos.
? uma elegância que ele não soubera manter. ? ers que
ela própria apagava o leve rasto acetinado que fizer?i
na vida dele, aquele som moroso de violino passageiro
nos seus sentidos descontentes. Tudo acabava fatal mente gotejando lodo.
Foi procurar Wolfgang ao quarto dele. Precisava
de não ver mulheres durante algumas horas. Porque
acabara assim, acidamente, aquela história sem importância'? Se ele fosse capaz, como Wolfgang, de lidar
com duas e três fêmeas ao mesmo tempo, não teria
ferido ninguém. Mas, embora não gostasse de Pilar
nem de Ingrid, não aguentava situações duplas : repugnava-lhe aquele género de mentira, mesmo tolerada.
Já se encontrara enleado em circunstâncias desse género
e delas conservava uma sensação de aflitivo enjoo,

um profundo sentimento de degradação. Preferia salvaguardar, ao menos, uma certa autenticidade dos
sentidos.
Wolfgang queixava-se de não surgirem parceiros
; para o poker. Jacinto estendeu-se num divã, aceitou
uma cerveja, que o amigo lhe oferecia. Ouviu-o sucessivamente abordar o tema do parto sem dor, do descolamento vertical dos aviões, do investimento de
capitais americanos em Berlim nas empresas de construção, dos bancos hipotecários, da crise parlamentar
em França.
Jacinto parecia atento, de vez em quando interrompia-o com assentimentos ou objecções puramente
formais, porque Wolfgang era muito mais um conversador do que um discursador, necessitava de réplica.
Mas Jacinto, na verdade, mal o escutava. Viera visitá-lo
para se afastar de si próprio. Afinal não se distraía.
Aborrecia-se. E continuava só.
- Queres dar uma volta no carro? - perguntou
Wolfgang, que já o conhecia o bastante para lhe decifrar
as crises, embora uma espécie de pudor viril o impedisse de provocar ou facilitar confidências. Tinha uma
saudável repulsa pela desnudação de sentimentos. Contudo, teimou :
-Vamos até ao estádio fumar um cigarro. Hoje
que há sol vale a pena aproveitar.
Jacinto gostava daquele imenso estádio, majestoso
e frio quando deserto, como de tudo o que evocasse
o mundo mítico dos deuses pagãos, colunas truncadas,
mares de prata, estandartes ao vento em areais vazios,
a palpitação do infinito. Aquele estádio fora em Berlim
a sua hora de mármore e comunhão. Wolfgang sabia-o,
por instinto: por isso se oferecia para Lhe abrir aquela
porta.
Mas Jacinto não podia erguer-se do divã, ao qual
aderia toda a sua lassitude. E assim ficaram conversando, bebendo, em tom morrediço, frouxamente, até
aquela vaga claridade solar desaparecer da janela.
Na penumbra cansada, continuaram falando. Wolfgang desencardiu a roupa de nylon no lavatório, engraxou
os sapatos, pregou um botão numa camisa (era extremamente habilidoso em todos os trabalhos manuais)
e acendeu a lâmpada de álcool, para preparar café.
Confessou então a Jacinto, com desafectada ironia,
como se se tratasse simplesmente de uma grande farsa,
que, à míngua de parceiros para o jogo, descobrira
uma combine formidável: começara a fazer chantage
com um judeu do aeroporto, com quem andara misturado num negócio de contrabando - tabaco e fazendas - e que o levara à parede nas contas, sem sombra
de contemplação.
Jacinto protestou: que aquilo era indigno dele,
que diabo! tudo tinha limites, e que por aquele caminho ainda acabava na cadeia.
- Corro o risco, é caso para isso - admitiu calmamente Wolfgang. - Mas não creio que o tipo reaja :
é cobarde e afinal, se me denunciasse, só tinha a perder
com isso. De resto, estás a exagerar: no fim de contas,
trata-se de uma restituição.

Jacinto desistiu de o influenciar. Nada podia contra
as decisões de Wolfgang.
- Tu lá sabes. . . Mas desagrada-me ver-te metido
numa nojeira dessas. - Apertou-lhe, todavia, a mão
com força, à despedida, para Lhe mostrar que a solidariedade entre eles permanecia intacta. <<E certo que
quase todos os negócios são mais ou menos porcos>>,
dizia consigo, em defesa de Wolfgang. Mas tudo aquilo
lhe repugnava. Só havia uma fuga para aquela náusea:
Pilar, a inconsciência do sexo, o uivo dos sentidos,
o escurecer da alma. Já que humilhara Ingrid, que se
lacerara ele próprio naquela amputação de pequena
cirurgia, já que tudo o incomodava e que até a tarde
arroxeada o feria à traição, já que Berlim destilava
censura e remorso e enfado, pois bem, tinha ao menos
à mão o festim do esquecimento. Porque havia de
retardá-lo? Tomou um táxi e voltou, depressa, depressa,
para o hotel.

IX

Junto de Pilar, Jacinto experimentava sensações
tão contraditórias que não tardou a sentir-se mais
gasto, deprimido e neurasténico do que habitualmente.
Todos os dias ainda o desejo nele renascia, todas as
noites se extinguia numa pútrida indiferença, vizinha
da animosidade.
Pilar era anormal nos seus apetites, exigia sempre
mais e mais, sem rogos explícitos, sinuosamente. Os
seus olhos eram duas fendas verdes. o seu corpo um
bailado de cobra, sacudido de espasmos. Jacinto, solicitado daquela maneira retorcida, envolvente, descia
aos abismos de um amor exangue, já lúcido, vascular;
assistia aos seus próprios gestos, mecânicos e solitários,
padecia intermináveis e fastidiosos preâmbulos. visguentos e automáticos. Constatava o prodígio amargo
da sua erecção quase supliciante, já sem ansiedade
nem gozo. Assistia ao prazer intenso de Pilar, às suas
contorções afrontosamente animais. E sentia que naquele
poço de lascívia que ela era, ele não ia além de um
estimulante. Pilar, como uma deusa vendada. não
descobrira sequer o corpo dele: embora o enlaçasse
e o beijasse, beijava ainda o seu próprio corpo insaciável. Para se gostar de um corpo alheio, era preciso
amor.
Quando já era impossível ressuscitar o desejo,
mesmo esse desejo incerto e doloroso, Jacinto estendia-se na cama ao lado daquela desconhecida. Acordava, a horas mortas, com uma sensação de estranheza,
de absurdo, junto dela. adormecida entre os cabelos
selvagens e negros, com os flancos polidos, rebeldes,
a descoberto sob o édredon que lhes fugia. E naquele
leito estranho despertava de manhã, com uma súbita
e premente necessidade de se escapar dali.
Mas voltava, na noite" seguinte. Punham a rádio a
funcionar. E de começo era ainda a fome daquele
pele morena, a labareda do desejo a esbraseá-lo. Logo
depois a ressaca, cada vez mais perto. E repetia-se a

imitação do amor: os mesmos gestos inconvictos, o
espectáculo lancinante e grotesco.
Não se tratavam por tu. Exausto, mas sem sono,
Jacinto conservava às vezes a luz acesa. Trazia o cinzeiro para cima da mesa-de-cabeceira e fumava. Tentava conversar. Era difícil. Pilar não via, nunca lera,
parecia quase impossível que se tivesse formado em
Direito. Tinha sobre algumas coisas opiniões assentes
e diversas das dele. Proclamava-se anti-semita, o que
devia ser - pensava Jacinto - consequência do seu
complexo de inferioridade. Não se aceitava, aliás,
como mestiça. Jacinto tão-pouco aludira jamais a
semelhante pormenor. Pilar gabava-se até de uma
ascendência nobre, que ele punha intimamente em
dúvida. Em política não teria ideias, mas concebia a
liberdade como um justo privilégio das <<pessoas finas
e esclarecidas>> e admitia que a autoridade fosse o melhor
meio de conduzir o povo, a gentalha incapaz de escolher.
Quanto á questão social. invejava os mais afortunados,
os que possuíam bens de que ela não seria menos digna,
mas aceitava, sem problemas. a existência de ricos e
pobres, como coisa natural e imutável. E Jacinto tinha
de reconhecer nessa atitude primária, que lhe não era
simpática, um egoísmo são e uma certa coerência.
A verdade é que por se arrepender dos bifes que comia
ele não deixava de os comer, não abdicava das suas
regalias e envenenava-lhes a digestão com remorsos.
Pilar julgava-se inteligente e Jacinto não a desiludia.
Foi ela a primeira a chegar à confidência. Confidências que não brotavam de qualquer afinidade entre eles.
mas do simples facto de se encontrarem a sós com o
tempo, no mundo fechado daquelas noites. Confessou-lhe assim que nunca gostara dos homens senão como
instrumentos de prazer, à excepção talvez do marido. e
mesmo assim <<mitigadamente>>. Usava de quando em
quando palavras caras e não se sabia bem onde as colhera.
Mas a sua expressão preferida era <<ordinário>>, que distribuía prodigamente pelo género humano. Quanto a ele,
Jacinto, achava-o em todo o caso gentil. agradável, bonzinho, corajoso, não se esquecia de que a defendera, e encontrava-lhe na intimidade qualquer coisa de adolescente,
que a princípio a surpreendera, favoravelmente. de resto.
Contou-lhe várias aventuras, escalonando hierarquicamente os amantes de ocasião pelas profissões
que exerciam e pela maior ou menor virtude sexual.
Vangloriava-se de ter sido sempre ela a terminar.
- Devíamos constituir uma sociedade - disse Jacinto -, o grupo dos amantes abandonados por Pilar
Zaragoza.
Nada daquilo lhe respeitava. Também ele tivera
episódios carnais e sentimentais, mas nunca fora coleccionador de mulheres. E nunca apetecera tanto a castidade ou a harmonia suave dum amor total e respeitado
como naquele convívio com Pilar. Mas que podia ele
oferecer à mulher capaz de o prender, se a encontrasse?
Um ser meio descomposto, escravo da facilidade e de
hábitos viciosos, com a nostalgia constante duma
pureza virtual. . .

Pilar apreciou o gracejo, que a desvanecia. <<Se ela
sonhasse>>, pensou Jacinto, <<como eu desejava neste
momento que me abandonasse também e já, como aos
outros amantes que tem tido !. . .>>
As confidências dele nasceram de uma necessidade
doentia de se acusar, que o acometia, mesmo perante
as pessoas que pouco considerava, sempre que o julgavam melhor do que se supunha. Tal não excluía
nele a vaidade do seu físico e da sua inteligência improdutiva, mas insurgia-se contra os louvores mais discretos, que lhe parecessem imerecidos no campo moral.
Pilar narrava-lhe os amores curtos e apimentados
que tivera com um fabricante de moeda falsa, na meia
ignorância dessa sua qualidade. Estivera com ele em
Monte Carlo. Era um austríaco, que se fazia passar
por belga, loiro, delgado, habituado aos palaces, incansável nas justas amorosas, sempre bem disposto. Quando
entrava no casino, começavam-lhe as mãos a suar.
Assim que ela desconfiara da proveniência de todo
aquele dinheiro, principiara a tomar cuidado, não
desaparecesse ele de um dia para o outro, sem pagar
a conta do hotel. Tinham-se separado a mal, depois
de uma discussão violenta. Era no fundo <<um tipo
sórdido, ordinário>>. Houvera ainda outro, um poeta
existencialista, em Paris, frequentador do Mabillon,
a quem ela matara a fome. Mas acabara por <<correr
com ele>>, porque uma noite, numa <<cave>> -sítios
que Pilar, de resto, frequentadora dos Campos Elísios,
desdenhava - dançara demasiado com uma amiga sua.
Não que tivesse ciúmes - que ideia ! -, mas não
admitia afrontas a um sujeito daqueles, tão reles.
E foi assim que Jacinto violou o seu silêncio, para
lhe confiar que, ele também, já aceitara esmolas femininas e fizera batota ao jogo, quase involuntariamente,
mas fizera-a. Calando-se, parecer-lhe-ia que era cúmplice dela e de todos os que condenavam, com direito
ou sem direito, os proscritos da ordem.
Pilar sorriu vagamente e não proferiu nenhum
comentário. Pôs-se a acariciar as rendas da sua camisa
de noite, sempre a sorrir. E apagou a luz.
- Devo estar feia, com olheiras, devo estar vincada,
preciso de dormir até mais tarde - disse, passado
um momento, como para consigo.
- Você nunca é feia - garantiu Jacinto, amável.
Ela então roçou-Lhe a mão pelo ombro, deixou-a
ficar e fez uma leve pressão, incitativa. Ele obedeceu,
sem entusiasmo, mais uma vez, ao orgulhoso convite.
Soledad, entretanto, saiu duas vezes, à noite, com
Wolfgang, que andava alegre e cheio de dinheiro. De
ambas as vezes, no regresso, entre as duas e as três da
madrugada, foi bater, numa malícia composta e arre pendida, à porta de Pilar. Jacinto já chegava a apetecer
aquelas interrupções, que o libertavam do tête-à-tête
? com a mestiça.
Puxava logo uma cadeira para junto de Soledad
e <<dava-Lhe corda>>. Ela descrevia a soirée. Pilar ficava

com inveja dos sítios caros que a outra pisara. Jacinto

não a levava a nenhum lado, porque - dizia ela -,
andava sem dinheiro. A verdade é que já não podia
suportá-la diante de gente. Além disso, estava realmente, um chavo. Que o dinheiro, enfim. sempre
se arranjava !. . . Mas, por comodismo, só par?i não
ter de ir vender algum objecto ou para não recorrer
aos proventos de Wolfgang, cuja origem presente o
paralisava, aceitara-Lhe alguns marcos emprestados,
com os quais ia fazendo despreocupadamente uma
refeição drária. Tencionava restituir-lhe aquela pequena
soma logo que pudesse. Sentia que não conseguiria
aturá-la ?á por muito tempo.
Jacinto era sóbrio, contentava-se com pouca comida,
às vezes até ingeria as refeições a custo, só pela obrigação de se alimentar. Pilar aconselhava-o pausada e
didacticamente a devorar bifes em sangue. criticava
o regime anti-higiénico a que ele estava habituado.
no qual o leite e o cognac desempenhavam um papel
de vulto. Mas Jacinto descortinava, por detrás daqueles
cuidados dela com a sua saírde, a intenção egoísta de
o manter em forma, com vitualhas excitantes, par??
dele se servir, como se fosse um cavalo de cobrição.
Essa hipótese provável enchia-o de asco e de velridades
de revolta, logo reprimidas.
Quando Soledad veio visitá-los de noite pela segunda
vez, chovia. Apareceu com o casaco de peles todo rociado,
as faces quase vermelhas e Freseas de água, os cabelos
desfrisados e pastosos sobre as têmporas.
Abriu de novo o guarda-chuva, no quarto, e poisou-o, com o cabo para cima, a fim de o deixar secar.
junto do radiador do aquecimento central. Pilar, desatenta, a pentear com deleite as crinas fortes e luzidias
sobre as suas espáduas de bronze, protestou, logo que
deu por isso, e pediu-lhe, com um pouco de irritação.
que fizesse o favor de fechar o guarda-chuva. Era supersticiosa. Um guarda-chuva aberto dentro do quarto
dava azar. Não tolerava tão-pouco -Jacinto já o
sabia- facas em cruz. Ficava apreensiva se, na presença dela, alguém entornava tinta ou quebrava um
espelho. E recusava-se sempre terminantemente a passar
por debaixo duma escada.
-Como quiseres, filha. Fecha-se já o guarda-chuva acudiu Soledad, muito solícita.
Instalou-se pesadamente na cadeira, com certo desleixo, as pernas demasiado afastadas. Vinha cansada.
Dantes, porém, tinha mais distinção, era incapaz de
se abandonar- assim -- notou Jacinto. Tudo se perdia
entre eles, até aquela compostura exterior que corria
o pano sobre as desordens do corpo e que ele sempre
sentira tão necessária no seu deslizar pela vertente
do vício. Berlim estava perto do fim - dizia-lhe uma
voz secreta. <<O meu príncipe !>> - chamava-lhe outrora Soledad. Como tudo isso ia longe!... Outrora?
Dois anos antes. Nem tanto. . . Ano e meio. Que jornada ! Príncipe de pacotilha. . . Nem já conservavam
ali os seus postiços, as vénias refrigerantes do circo
social, os seus diademas corteses de saltimbancos
mundanos. . . Era a sórdida promiscuidade, a lassidão

traiçoeira, a verter podridão; uma estrumeira propícia
ao desabrochar do rancor. . . Um rancor indeciso em
todos os três, mais escondido nele, medroso em Soledad,
insolente em Pilar. E contavam uns aos outros anedotas cruas, histórias verídicas. Mas não se encontravam. Jacinto contemplou o corpo de Soledad, amolecido,
desmascarado, que jazia, sem estilo, esparramado naquela
cadeira de tédio, sem forças para se recuperar, para
os deixar.
Soledad era curiosa. Fazia perguntas acerca de
Wolfgang. Não era apenas bisbilhotice. Havia nela
uma curiosidade do humano que Pilar desconhecia.
Pilar interessava-se essencialmente pelos factos, Soledad
também pelos motivos. Como é que Wolfgang obtinha
aquele dinheiro todo`? Nos últimos dias parecia nadar
em ouro. Jacinto já bebera demasiado cognac. Raramente se embriagava, mas o unto daquela noite soez
exigia um narcótico. <<Soyons toujours livres>> - dissera
Baudelaire. E o álcool, agindo, soltou-lhe a língua.
Falou das artimanhas de Wolfgang, do jogo, daquela
experiência de chantagista em que o outro se aventurara
e que não era afinal senão um reembolso ajudado pela
persuasão.
Soledad ficou séria.
- É uma pena - comentou. - Pode acarretar-lhe
sérios dissabores.
- Boa rês ! - considerou Pilar. - Sempre o achei
um tipo ordinário. Nunca teve sequer a atenção de nos
convidar. Na noite em que saímos com ele, até aceitou
que partilhássemos as despesas. Você não devia acompanhar com um tipo desses, Jacinto.
Ele ficou a olhá-la e a morder os lábios. Falara
de mais e já disso se arrependia. Se pudesse engolir
tudo o que dissera! Pilar era perigosa. Enfim, por que
diabo havia de lhe fazer mal? Mas a ideia de ter de
algum modo traído um segredo molestava-o. Estendeu-se na cama, um pouco agoniado. e procurou não
pensar mais naquilo. O que estava dito estava dito.
Imbecil! O cognac em excesso revolvia-lhe o estômago.
Tinha uma sensação de vómito iminente. E precisava,
contudo. de falar, de continuar a falar. de se aturdir
com palavras. que enterrassem a inconfidência numa
aluvião de banalidades. Tentou ainda voltar atrás.
desmentir-se. Mudava de assunto. E voltava desastradamente ao que o preocupava, ao caso de Wolfgang.
cujo alcance procurava diminuir. Não podia apagar
a nódoa daquele absurdo desabafo, estúpido, inútil,
sem razão.
Por fim, levantou-se, declarou que se sentia incomodado, deu as boas-noites às duas mulheres e recolheu.
a querer afastar-se de si, cambaleante e envergonhado,
ao quarto que o esperava em desordem. Despiu-se
rapidamente. Em vez de colocar o fato num cabide
do armário, deixou a roupa espalhada sobre a mesa,
sobre as cadeiras, deitou-se, e cobriu a cabeça com o
lençol. Cerrava os dentes, de descontentamento. Queria
adormecer, mas uma dor na testa, pertinaz, proibia
o sono de o envolver. Tudo era fumo, queda, vazio

debaixo dele, depois a dor novamente, apoleante, a
náusea, e todo o cortejo dos seus fracassos, a maré
lodosa do passado, a imagem múltipla do irremediável,
sarabanda ruiva. Ouviu as horas na Igreja Comemorativa, punhadas de bronze na noite hostil. Só de madrugada adormeceu, esmagando o rosto suado contra o
travesseiro.

XI

No dia seguinte. acordou mole, transpirando, sem
forças. as feições vincadas. Não fez a barba. Viu-se
ao espelho, cadavérico. Sobre os olhos tristes e apagados, só as pestanas muito compridas, que haviam
ficado sempre loiras no seu rosto mate, conservavam
um ar de inocência falida.
Bebeu café e sentou-se à mesa de escrever, ainda
em roupão. Queria <<cozinhar um artigo>>, como ele
dizia. para o Diário Carioca. Já não enviava correspondência havia tanto tempo que corria o risco de
o esquecerem, de o banirem da redacção. Mas nem
era tanto isso que o impelia a escrever. Era a necessidade
de se sentir ainda inteiro em três páginas de papel cobertas
de tinta, de nelas segurar o pensamento. Queria aquela
impressão de vitória, algumas vezes já saboreada, a
sensação de ter desviado o rio da vida, de acariciar
uma estátua palpitante e finalmente sólida, indestrutível. cuja massa fosse o fluir incerto dos gestos casuais.
Duas. três vezes, na sua vida, julgara um instante haver
transformado em arte alguma coisa da sua experiência:
uma reportagem sobre inundações na Holanda, outra
sobre os bcr.s-fòncl.s- de Marselha. Bem pouco, é certo.
Pintara o que vira, o que vivera. E tinha-se metido
naquelas histórias, nu, cheio de pústulas, de saudades,
de remorsos. Permitira-se deformar um pouco os casos
e só o que ficara escrito afinal era autêntico, o resto
fora água incolor que ele vira fugir à luz do sol e que
ainda nele corria subterraneamente, irreal.
De cada vez que isso lhe acontecera, criara em si
passageiramente uma espécie de Olimpo. Escrita a
crónica, olhava para trás e em torno com um olhar
sereno. Todo o fruir dos s?us gestos ocasionais lhe
parecia irrisório: coisas que sucediam. Ele tinha apenas
uma missão, um dever: assistir, testemunhar, compreender, exprimir. O resto era sem importância. E o
acto de escrever, em si, era lavado. era puro, qualquer
que fosse o assunto.
Mas essa impressão pouco durava. Logo a vida,
a sua vida, se Ihc afirmava a única realidade.
A maior parte das vezes, Jacinto limitava-se a fabricar
crónicas de circunstância. fraudulentas e fáceis, cheias
de truques. Mesmo assim, quando as concluía sentia-se
satisfeito: representavam um triunfo da vontade na
sua natureza movediça, o desabrochar dum esforço.
E ele precisava tanto de se dignificar, ainda que passageiramente, aos seus próprios olhos. Era o que pretendia agora, curvado sobre a mesa, sustendo a testa
pesada com a mão esquerda, traçando rabiscos nervosos

no papel virgem. Escrever, fosse o que fosse. Sobre
Berlim, sobre Rilke, sobre si próprio, um artigo, uma
parábola, um poema, fosse o que fosse. . . E não conseguia, não podia escrever. Estava aniquilado, gasto.
Paciência! Tinha de desistir. Mais uma vez o encolher
de ombros, o gosto azedo da desistência. . .
E teria de se barbear, de se vestir, de se imitar ainda.
De se imitar, sim, de se imitar. Tinha de ver Pilar e
Soledad, Wolfgang, tinha de continuar a ser Jacinto,
Jacinto, o que os actos dele haviam feito, imagem
já tão definida. Parecia-lhe que estava além, muito
além, o melhor dele, aonde não chegava, porque a
força da inércia o levava por um caminho que já não
era o seu, onde ele representava esse Jacinto já sem
segredos e que por isso mesmo, revelado, estava
morto.

XII

Uma noite, cerca das três horas, Soledad bateu-Lhes à porta e Pilar resolveu não abrir.
-Não estou para a aturar!
Podia mandá-la esperar, pedir-lhe que voltasse mais
tarde, ao ponto a que as coisas haviam chegado. . .
pensou Jacinto. Soledad, entre eles, perdera completamente o orgulho, como um bicho que perde a pele.
Agora, porém, ia bruscamente encontrar-se em carne
viva. Jacinto, certo da humilhação que ela havia de
sentir, teve um arrepio. Tentou contemporizar. Mas
Pilar, em voz baixa. opôs-se-Lhe. E disse alto:
-Tem paciência, menina, hoje não posso abrir.
- Está bem, filha, está bem, não te incomodes -- respondeu Soledad numa mansidão ácida e lenta,
envenenada.
Ouviram-lhe os passos ao longo do corredor. Jacinto
como que a via. desmanchada, extinta, os ombros
pesados e descaídos, a vergarem, envolta no casaco
de marta que a engordava. quase disforme na solidão
daquela retirada baça, a chaga a arder-lhe, os olhos
tristes, semicerrados. Passadas longas, abafadas. Devia
calçar os sapatos de salto quase raso, com sola de panco,
que lhe ficavam tão mal. Soledad! Tão abandonada
tão envelhecida, com um colar de pérolas negras ao
pescoço, as mãos carregadas de anéis !. . . Apetecia-lhe
saltar da cama e correr atrás dela, detê-la, consolá-la.
Mas não se mexeu. Um momento depois, discreta,
silenciosamente, pegou no maço dos cigarros e nos
fósforos, que estavam sobre a mesa de cabeceira. Não
se deu ao trabalho de ir buscar o cinzeiro, pôs-se a
fumar, deitando a cinza sobre o tapete.
- Em que está a pensar? - perguntou Pilar.
- Em nada.
Detestava-a naquele instante. Tinha de pôr cobro
àquilo tudo. Pilar, incapaz de experimentar amor,
aparecia-Lhe como a viva imagem do erotismo puro,
sádico, desenfreado, degradante. E pensar que em
tempos esse erotismo, concebido intelectualmente, se
lhe afigurara digno de reabilitação no mundo moderno,

que ele julgava então, na sua pressa adolescente de
varrer teias de aranha, tolhido pelos mitos cristãos.
E era aquilo o erotismo, ao cabo de tanta experiência
falhada, do mal que fizera. do mal que lhe haviam
feito, era aquele apodrecer de tudo, era o visco daquele
quarto, a nudez trigueira e odienta de Pilar, a sua ânsia
de prazer, entre eles o coro surdo, medonho, do orgulho
e da vergonha. Soledad escorraçada, e Pilar agora,
sinuosa, insinuante, num esplendor demoníaco jovem,
animalesca, acobreada, a reclamar a cumplicidade das ?
carícias que o seu gesto inclemente exigia. Queria enlaçá-lo sobre o cadáver duma amizade renegada, escarnecida. A dor de Soledad como um afrodisíaco...
Jacinto ergueu-se, simulou um bocejo, declarou que ?
tinha sono, que a noite anterior mal dormida o arrasara
e que até sentia febre.
-Vou-me deitar. Preciso imenso de repouso. Não ?
me leva a mal?
- Que ideia ! - disse Pilar. Olhou-o perscrutadoramente e, dominando-se, sem denunciar mau humor,
num ar de superior indiferença, voltando-se para a
parede, ainda amável mas já distante, acrescentou:
<<Boa noite. Faça-me o favor de apagar a luz antes
de sair.>>
XIII
No dia seguinte, Jacinto teve uma explicação com
Soledad. Foi o dia das explicações, difícil, entrecortado,
verdadeiro e mentiroso, piedoso, reticente, cheio de
ânsias e de baba, com um tinir de ferros, longínquo,
dentro deles.
De manhã, saiu com ela. Primeiro, Soledad recusou-se :
- Não quero falar mais consigo.
- Porquê?
-Porque não. Não adianta discutirmos.
-Que culpa tive eu?
- Toda.
-Está bem. Mas engana-se. Asseguro-lhe que a
sua amizade é mais importante para mim do que você
supõe. E vou-lhe dar a prova disso. Se houver qualquer incidente entre você e a Pilar, eu tomo a sua defesa.
- Não tenciono zangar-me com ela. . .
- Tem medo dela?
- Tem ?
- Tenho sim, Jacinto. Sabe coisas de mais a meu
respeito. Pode comprometer-me. Não se trata só de
mim. É o bom nome da minha família que eu arrisco.
Sinto-me amarrada, sem saída. Um horror. . . E não
sou muito corajosa, como você sabe. Mas isso não
impede. . .
- O quê?
- Que me sinta !
Conseguiu persuadi-la a irem dar uma volta. Tomaram um autocarro, o primeiro que passou, e desceram,
ao acaso, num bairro da periferia oeste, entre vivendas
modernas. Pacientes, neutras, recém-construídas, mas
sem viço, incaracterísticas, arrumadas em série. Cancelas tranquilas de vida habitual, jardins, garotos
loiros, e algumas chaminés de fábricas, desenhando

escuras espirais no cinzento-pérola do céu matinal.
Encontraram um banco, molhado de orvalho. Jacinto
limpou-o com o lenço e sentaram-se. A paisagem doméstica, em volta, no extremo de Berlim em ruínas, parecia-lhes mais um limbo do que um oásis.
- Você é realmente meu amigo, Jacinto? - perguntou Soledad.
- Como pode duvidar?
-Então porque não me travou nunca, quando
podia fazê-lo? Com a sua mania de compreender os
outros, de Lhes respeitar as taras, de os aceitar como
eles são, você é mais pernicioso do que as pessoas frustes,
intolerantes, autoritárias. É i?so que eu lhe censuro
e que lhe não perdoo, Jacinto. Você nunca me aconselhou, nunca me repreendeu. Bem sei que tem escrúpulo de julgar os outros. Antes se arrogasse todos os
direitos e fosse ao mesmo tempo duro com as mulheres,
como fazem tantos homens <<respeitáveis>>. Que afinal
é mais são! Antes fosse duro comigo e me tivesse chamado sem-vergonha e me tivesse proibido de beber
e me tivesse desgostado de mim. Mas não : é tão cómodo
também, tão elegante e tão simpático, encontrar justificações para tudo, sorrir, dar aos outros a ilusão de
que se podem respeitar, de que merecem ser admirados,
apesar de tudo. . . Não é, Jacinto ? É o que você faz,
o que fez sempre comigo, por gentileza, talvez um
bocadinho por egoísmo. Não é verdade, Jacinto?
-Não sei, Soledad... Estou cansado.
- Desculpe, Jacinto. Mas você é que quis falar. . .
ultimamente, por exemplo, você não devia ter consentido nesta intimidade dolorosa e aviltante. A culpa
foi minha, não há dúvida. Eu é que vos aparecia e vos
perseguia, a pedir esmola. Ontem mesmo, quando
me enxotaram, como um cão, fiquei cheia de dor e
de raiva. Sentia-me só. Prefiro que me desdenhem,
que me torturem, a que me deixem só. É assim, eu
bem sei que é assim. Mas não seria melhor que você,
desta vez, tivesse tido a hombridade de correr comigo
desde o princípio, definitivamente. Os grandes choques podem ser salutares. Talvez seja preferível ferir
a direito, com resolução, a ir espetando alfinetes
doces numa carne que vai apodrecendo. É isso que
eu lhe censuro, meu querido Jacinto. Sabe lá o que
eu tenho passado !. . . Ciúme, nojo de mim. nojo de
vocês, uma agonia constante. . .
- Soledad !
Pegou-lhe nas mãos.
- Não - resistiu ela. - Você não tem nada para
me dar.
- Tenho : piedade, carinho, amizade. . .
-Será verdade? Eu sei que não é muito, mas já
me tornaria um pouco feliz, neste momento, pelo
menos. Já gostei muito de si. Agora, não sei, julgo
que já não gosto, enfim, da mesma maneira, mas ainda
tenho ciúmes de si, sobretudo do afecto que você possa
dar aos outros.
- Com certeza que não pensa. . . que a Pilar representa para mim. . .
- Mas eu é que fui expulsa, ontem à noite. . .

-Isso acabou. E não se repetirá.
Regressaram. Era a hora do almoço. Jacinto sugeriu
-?n restaurante pitoresco, quase sempre vazio, ao pé
do Wannsee, que lhe seria agradável naquela manhã
triste e átona, longe dos ruídos da cidade, junto da
água descorada, com o vento a cantar nos juncos uma
casta melopeia de renovo, brancamente lacrimosa. Apetecia-lhe também gastar dinheiro com Soledad - o dinheiro de um anel de família que vendera na véspera -,
ter atenções com ela, animá-la. Não sabia bem o que
queria. Ver água, sentir a brisa pálida no rosto. Talvez
fosse só egoísmo, mais uma vez, como ela dizia.
Mas Soledad declarou que precisava de passar
ainda pelo hotel, antes do almoço. Acrescentou, já
no autocarro, ao lado dum alemão corpanzudo e
rubro, atento discretamente àquela língua remota,
soalheira :
- Sabe, Jacinto, é melhor não a irritarmos. Quero
afastar-me dela, mas tem de ser com jeito. É perigosa.
Deve estar à nossa espera. Ficava <<fula>>. Podia criar-me
os maiores dissabores. . .
-Como você quiser!
-Você, se não lhe apetece, não venha. Isto é...
Venha, sim. Não me deixe. Mas. . . Sei lá ! Faça como
entender. Desculpe, Jacinto. Oh ! Meu Deus ! - Escondeu a cabeça entre as mãos.
Jacinto acariciou-lhe os cabelos, ao de leve.
- Não se preocupe, não se rale, Soledad.
Compadecia-se dela, como que lhe via a nu a consciência bracejante, transpirandd medo, no refluir aflitivo
daquele desabafo, já desfeito em indecisão, toda ela
invertebrada e inerme, pobre Soledad. . .
O almoço, a três, foi de pesadelo. Espionavam-se.
- Deram então um passeio ? Bonito ? - perguntou
Pilar com altiva indiferença, à beira da agressividade,
sem se dignar sorrir.
- Um girinho. . . Sem grande interesse - disse
Soledad.
Jacinto ficou incomodado de a ver assim rastejar.
Sentiu necessidade de lhe dar a mão, de a reabilitar
perante si própria, de a erguer acima de Pilar. Fez
conversa só para ela. Pôs-se a falar do excêntrico e
irreverente Jules Laforgue, que fora em Berlim, durante
anos, leitor da imperatriz Augusta. Soledad sabia-lhe
os poemas de cor.
Entusiasmou-a. Levou-a a recitar aqueles versos
que ela adorava:

Aux cierges, au vitrail,
D'un autel en corail,
Une jeune Madone
Tend áun air ébaubi
Un beau coeur de rubis
Qui se meurt et rayonne !

Pilar, excluída daquele domínio, que lhe era totalmente desconhecido, reduzida ao silêncio, mastigava
furiosamente a carne picada, as pesadas batatas alemãs,

que detestava. Da mesa que haviam escolhido, junto
da janela, viam desfilar pelo Kurfürstendamm os transeuntes apressados, operários de boné de pala, raparigas ginasticadas, com olhos azuis, duros e lavados,
de opaca porcelana, intelectuais, empregados, de chapéu
desabado, usando a gabardine burguesa, com uma
elegância um pouco hirta, mas europeia, da velha
Europa abalada e empobrecida.
Passaram, em fila, quatro volkswagen.
- Um bom carro este volkswagen - disse Pilar.
- É - anuiu Soledad.
- Sobretudo para as estradas de montanha - acrescentou Pilar.
-Nas curvas, tira vantagem do tamanho. E então
resistente !. . .
A atmosfera parecia levemente desanuviada. Discutiram a excelência das diversas marcas de automóveis.
Soledad recordou os meios de condução da sua infância.
No Peru, chegara a andar em carros de bois, seges,
velhos trens tirados por cavalos, ou a dorso de guanaco.
Aliás, era entendida em toda a espécie de coches, de
viaturas antigas.
- A propósito, vocês sabem donde vem a palavra
<<berlinda>>?
Não sabiam.
- De Berlim - explicou ela. - É muito simples.
Foi aqui que no século dezoito se construíram pela
primeira vez carruagens desse tipo.
- Estamos em dia de adivinhas - resmoneou Pilar,
em voz sumida e enfadada.
Soledad sobressaltou-se, baixou a cabeça.
- Impressionam-me sempre os conhecimentos que
você tem em tantos assuntos diversos - enalteceu Jacinto, adrede lisonjeiro.
- Pois é : sei coisas, coisinhas - admitiu Soledad. Nada mais: no fundo, sou ignorante, não resisto a
uma análise demorada. Nem sequer sou esperta.
- Isso é falsa modéstia. Você é uma das raparigas
mais inteligentes que eu conheço.
- Eu é que sou estúpida, não é? - perguntou
Pilar, com mau modo.
- Não disse nada disso - protestou Jacinto.
Ela levantou-se e, sem mais uma palavra, saiu.
- Lá rebentou a bomba - concluiu Soledad, consternadamente.
- Que absurdo ! Tem a mania da perseguição -- disse Jacinto, encolhendo os %ombros. - Em que é
que eu a ofendi? Não era nada com ela. É completamente absurdo ! Ridículo !. . . Duma futilidade. . .
- Apenas um pretexto. . . Ela não é boa da cabeça.
Você não deve fazer caso.
-Tudo isto é cómico. Não sei se lhe diga mais
alguma coisa. . .
- Daí a pouco passa-lhe - garantiu Soledad.
Foram andando para o hotel. Encontraram Pilar
sentada no salão, taciturna, sob os deuses tutelares
da casa, os antigos retratos autografados pelos hóspedes célebres no music-hall. Mirava com aplicação

as fotografias do Berlin Programm, um guia de espectáculos, que ela não podia perceber, pois só estava
escrito em alemão. Soledad deitou-lhe um olhar de
viés e apressou-se a subir a escada, prevenindo Jacinto,
com um aceno expressivo, de que o momento era inoportuno para mais explicações.
Mas ele insistiu. Achava insensata aquela reacção
de Pilar. Nada dissera que a pudesse ter magoado.
Avançou para ela.
- Pilar ?
Ela não desfitou os olhos da brochura.
- Não seja caprichosa, Pilar. Não se obstine. Não
tem razão. . . Tudo isto é um equívoco -- condescendeu
Jacinto.
Ela então, lentamente, levantou para ele a face
crispada, violenta.
-Que categoria tem você para me julgar inteligente ou estúpida? Nenhuma. Um vagabundo. . . Fique
sabendo que lhe não reconheço a mais pequena autoridade moral, nem intelectual, para me julgar.
-= Eu não a julgo - disse ele friamente. Tinha a
impressão de estar a intervir numa história de doidos.
- A sua atitude de há pouco significava isso.
-Não. Está enganada. Mas afinal, vendo bem,
podia significar. - De súbito, corou. Abriu a carteira.
Retirou de lá duas notas amarfalhadas. - Aqui tem
o que lhe devo. =Pousou o dinheiro sobre o braço
da poltrona.
Ela não lhe tocou. Parecia olhar para dentro, escuramente. Seria fúria, seria piedade`'
Envergonhado, Jacinto acrescentou. numa voz sem
timbre :
- Faltam uns cobres. Deixo-lhos logo à noite no
cacifo do correio.
Não obteve resposta. Voltou costas e saiu, trémulo,
com o rosto abrasado, uma sensação devastadora de
náusea e de fracasso.

XIV

Três dias depois, regressando Jacinto ao hotel,
a meio da tarde, extenuado. com necessidade absoluta
de dormir ou, pelo menos, de se estender na cama e
repousar, sentiu bruscamente gotas de suor Frio que
lhe corriam ao longo do corpo. Dançava-lhe a rua
diante dos olhos, as pessoas iam ficando sem rosto.
Oscilavam, com ânsia de se esmagarem no passeio, as
paredes monstruosas das casas violadas pela guerra.
E, ao fundo do Kurfürstendamm, viu agitar-se a igreja
sinistra e deslumbrante, Kaiser Wilhem Gedaechtniskirche, com a rosácea negra e furada, qual uma boca
sem dentes. gritando na desolação da fachada, entre
os cotos das torres, sobre os três pórticos trémulos
que, naquele vaivém perigoso, espumavam minúsculos
seres humanos.

Jacinto apoiou-se ao vidro de uma montra. Dentro
reluziam, sobre um estrado, motocicletas cromadas.
A sarabanda terminara.

Volveu os olhos para a igreja, simbólica e parada.
E, naquele instante agudo de acalmia, por entre o
tumulto da rua, sentiu-a, ao longe, vivamente, como
um ser, uma ideia tornada forma, sobranceira aos
irrisórios desconhecidos que gritavam sobre o asfalto
os seus destinos sempre alheios. Tudo o que o deprimia
e o amachucava lhe pareceu de repente sem importância.
Já uma vez, em Paris, numa fase de debilidade
física que o tornara hipersensível, Notre-Dame o fizera
parar à força sobre a ponte Saint-Michel, num pasmo
semelhante. Mas Notre-Dame fora então um ser diferente, todo eurítmico, luminoso, consolador. E o reconforto de agora vinha-lhe apenas da cinzenta sensação
da sua insignificância.
Havia três dias que quase se não alimentava. A comida
não passava, e ele não insistia. Era dinheiro que poupava, o dinheiro duvidoso de Wolfgang. Dormia mal
e de dia vinha-lhe o sono. Os excessos sexuais haviam-no
abatido, às vezes tinha tremores.
Soledad, meio a sério meio a rir, atribuíra aquele
estado a algum obscuro maleficio de Pilar, que ela
considerava capaz de se socorrer, para o amor ou para
a vingança, de filtros e encantações. Jacinto mandara-a
<<passear>>.
Entre Soledad e Pilar tudo continuava bem, na
aparência. Pilar gabara-se-lhe de haver suprimido
Jacinto, <<mais um sujeito ordinário>>, do círculo das
suas relações, mas não a culpava directamente do
que acontecera. Soledad escutava-a, calava-se e vinha
contar tudo a Jacinto.
Aquele mexericar agoniava-o, mas ouvia-a, com
um sorriso forçado, para ver -dizia ele a si próprio - até que ponto podia chegar o desvario, a falta
de senso de Pilar. <<E uma mitómana>>, comentava
por fim. <<Você tem razão, Soledad, ela está à beira
da loucura. Peço-lhe que não me fale mais em tal criatura. Por favor, já chega de Pilar.>>
Evitava voltar para o hotel durante o dia, com
receio de as encontrar. Naquele momento, porém,
o cansaço era mais forte.
Mal se havia recolhido ao torpor agasalhado do
quarto, soaram na porta, que ele fechara à chave, duas
pancadas leves.
- Quem é? - perguntou com enfado.
-Sou eu, a Soledad.
-Já abro, um segundo.
Soledad entrou de repelão, perturbada, trágica,
e apertou-lhe nervosamente as duas mãos, sem poder
falar. <<Temos teatro>>, pensou Jacinto. Mas viu na
expressão dela que alguma coisa realmente grave
sucedera.
- Más notícias ?
Ela baixou a cabeça afirmativamente.
-Eu adivinho logo. Em você estando nessa agitação. . . Você tem costela de Cassandra, Soledad.
- Jacinto ! - exclamou ela, magoada.
- Vá lá, o que é que aconteceu? - inquiriu ele,
já com brandura.

- Uma coisa tremenda. A Pilar foi-vos denunciar
à polícia, a si e ao Wolfgang. Com todos os pormenores, e muito mais, muito exagero, muita invenção,
julgo eu. Como é possível, meu Deus? Não percebo
como se entendeu com eles, mas o que é certo é que
se entendeu. E acusou-vos de tudo: jogatina, vagabundagem, exploração de mulheres, roubo, contrabando, chantagem, eu sei lá. . . Voltou há bocado para o
hotel e veio contar-me a proeza, friamente, triunfante.
Acho que é despeito, sabe. Ela não tem afeição por
ninguém, é verdade, mas você era uma conquista que
a lisonjeava, e queria que você gostasse dela, que a
estimasse. Aliás, tenho a impressão de que já está um
pouco arrependida, embora pretenda convencer-se de
que agiu muito bem.
- Bonito ! - disse Jacinto. - Por minha culpa, por
eu ter sido indiscreto, está agora o Wolfgang metido
num sarilho dos diabos. . .
-E você também.
- Isso é o que menos me rala!
- A Pilar. . .
- Quero lá saber da Pilar! A culpa é toda minha.
Também, ter-me ligado com uma mulher destas! Enfim. . . Tinha de acontecer. O pior é o Wolfgang. . . Vou
já preveni-lo, imediatamente.
- E você, Jacinto? Você? Há mais de meia hora
que estou à sua espera. Tenho andado no corredor,
como uma alma penada, de um lado para o outro.
Fui várias vezes lá abaixo espreitar se a sua chave ainda
estaria no cacifo. Você tem de sair já daqui. Tem de
se ir embora. Às seis horas parte um avião para Francoforte, já me informei. ?rc,me-o, peço-lhe eu. E siga
de lá para Paris ou para Bruxelas, para onde quiser,
mas para longe daqui. Eu tenho dinheiro. Empresto-Lhe o que for preciso.
-E o Wolfgang`?
-Ele que faça o mesmo. Dinheiro parece que
não lhe falta neste momento, não é verdade'?
- Creio que sim. . . Soledad, minha pobre Soledad !Sentou-se na cama com um sorriso esmorecido. Acendeu
um cigarro.
-Você agora não fuma, tenha paciência. Vai
fazer a mala e pôr-se a andar.
-Pois sim. Por esta vez. Ainda. Visto que você
o quer. . . Obrigado, Soledad, minha jóia. . . Menina
tonta ! Como se eu merecesse alguma coisa !. . .
Ela começara já a abrir o armário, a tirar de lá
as roupas.
Jacinto obrigou-a a voltar-se e, lentamente, beijou-lhe os olhos. Soledad principiou a chorar.
- É melhor não, Jacinto. Nada de comoções! Cada
minuto pode ser-lhe fatal. Ainda nos voltaremos a ver,
o mundo é pequeno. Depois falaremos, sim'?
Jacinto baixou a cabeça a sorrir. Não podia dizer
uma só palavra. Se o fizesse, choraria também.
Beijaram-se. Soledad meteu-lhe o dinheiro na carteira, empurrou-o para a escada.
-Vá-se embora. Depressa, Jacinto, depressa. Até

Paris, até sempre.
De mala na mão, Jacinto chamou um táxi. Deu a
morada de Wolfgang. Talvez a polícia já lá estivesse.
Pediu ao motorista que se despachasse. O homem
resmungou, mas obedeceu.
Wolfgang veio à porta, de cachimbo entre os dentes,
com um vistoso casaco de trazer por casa que Jacinto
lhe não conhecia. Lavado, penteado, um sorriso muito
claro no rosto anguloso, daquele moreno e sadio que
nas raças do Norte atira para a cor de tijolo.
- Ainda bem que apareces, tenho uma surpresa. . .
- Pois eu trago-te uma má notícia. É importante.
Por favor, Wolfgang, presta-me atenção.
-Não. Espera um momento. Nem que venha
aí a bomba atómica, nem que a Marilyn Monroe se
tenha convertido ao comunismo !. . . Comprei um pick-up ! - E arrastava-o para dentro, numa satisfação
pueril, luminosa. - Sossega, rapaz, tens tempo. Falavas-me tanto naquele poema de Apollinaire cantado
pelo Yves Montand. Pois o teu amigo descobriu-o.
Em Berlim encontra-se tudo. Aqui está ele. É mais
teu do que meu. Tinhas razão, é estupendo.
Mostrava o disco, triunfalmente. Pôs o pick-up
a funcionar e uma música revolta de saltimbancos
surdiu daquela caixinha mágica; encheu-se o quarto
do rufo cadenciado dos tambores; uma imagem de
campos sem esperança, de viagem sem fim, nasceu
do som; e Jacinto ficou paralisado. A música doía-lhe.
Entre eles, uma voz triste e varonil de trovador começou
a cantar :

Dans la plaine les balladins
.5??loignent au long des jardins. . .
N, R. - 9 129



Devant l'hui des auberges grises,
Par les villages.snn.s églises. . .

Jacinto não podia mais. Parecia que lhe ia rebentar
uma veia dentro do peito.
- Acaba com isso ! - exigiu. Wolfgang ! Vêm-nos prender! Ouves? Estás a ouvir`? Talvez já venham
mesmo a subir a escada. ;
Wolfgang olhou-o com espanto.
- É do fim do disco que eu gosto mais - disse,
mas já sem nenhuma alegria.
Escutaram em silêncio o resto da canção.
- Explica-me lá então o que é que se passa. -- pediu Wolfgang.
Jacinto acendeu um cigarro e, rapidamente, informou-o de tudo - da sua intimidade com Pilar, da
inconfidência que cometera e de que tanto se arrependia,
da denúncia, do perigo que corriam: a ameaça do
escândalo e da cadeia.
- Tens que te pôr a andar. Vem comigo de avião.
Tens de sair de Berlim. E, antes de mais, desta casa,
o mais depressa possível.
-Aqui não posso ficar realmente. Quanto a sair
já de Berlim, é diferente. Tenho de arrumar ainda um
assunto. Depois, de acordo.
-Entretanto, mexe-te. Vamos embora. Não descanso enquanto não te vir fora daqui. Sinto-me responsável pela tua segurança. Fui eu que tive a culpa. . .
-Não penses nisso.
- Perdoas-me?
- Foste ingénuo - disse Wolfgang. - És ingénuo.
Paciência! Agora não tem remédio.
Jacinto olhava-o, quieto, com um rosto desolado.
Wolfgang sorriu, abanou a cabeça, poisou-lhe a
mão sobre um ombro, apertou com força, com bastante força.
- Homem, então ?
`Abriu uma garrafa de porto, a única que possuía,
encheu dois copos, obrigou-o a aceitar um e bebeu
o dele.
- É uma saúde, Jacinto, com o vinho da tua terra.
À nossa aliança. Juro-te que não te guardo o menor
rancor. Pelo contrário! Não tens encaixe, porque sentes
de mais, pensas de mais complicas tudo, mas és generoso. Como poucos! Bom, agora, deixemo-nos de
mariquices. Safa-te daqui: se ficas, nunca mais me
despacho. De resto, é mais prudente separarmo-nos já.
Palavra, prefiro que me deixes só.
Jacinto, comovido, abraçou-o.
la sair.
-Escuta - acrescentou Wolfgang precipitadamente. -- Donde quer que estejas, escreve-me para
Londres, para a posta-restante, daqui a quinze dias.
- Não será perigoso`?
- Qual história ! E. . . bem. . . não te esqueças de
que sou teu amigo. A sério. Como de um irmão mais
novo. Apesar do mal que te fiz, se te desviei do teu

caminho. . .
Fitava-o com uns olhos graves, quase incomodativos, que Jacinto lhe desconhecia.
-Desculparmo-nos com os outros é cobardia.
E má-fé. O mal está em mim, se eu o vejo. Mas chego
para ele. Adeus, Wolfgang.
Desceu as escadas, lentamente. Tinha o pressentimento de ir encontrar lá em baixo a polícia. Era até
absurdo que demorassem tanto. Mas, não. A rua estava
calma, quase deserta. Poisou a mala no chão, para
descansar o braço. Um grupo de operários, no outro
passeio, galhofava, carregando tijolos e vigas. Berlim
erguia-se, dia a dia, das suas próprias ruínas, das suas
pedras queimadas. E os operários, junto daquele branco
edifício que crescia, ainda informe, entre o negror
dos escombros, riam, barulhentos, sem receio. Jacinto
contemplava-os e estava separado deles, irremediavelmente, por uma dor ligeira, mas persistente, estranha, que não podia localizar. Parecia-Lhe que eles
viviam noutro mundo, no mundo das pessoas confiantes e lisas, alegres, honradas.
Passou um táxi. Chamou-o. Entrou. O carro arrancou. E nesse momento preciso outro automóvel parou
à porta da casa de Wolfgang. A rua era longa e direita.
Voltado para trás, Jacinto viu-os apearem-se, inconfundíveis. Não havia que duvidar: era a polícia, finalmente. Escapara por um triz. Dois dos agentes, à paisana, já se engolfavam no portal. Os outros ficavam
em baixo, a vigiar.
Ainda estendeu o braço, para dar contra-ordem
ao chauffeur. Mas o motorista não viu sequer o gesto.
Afinal, para quê? Wolfgang estava cercado. E ele não
podia valer-lhe. Deixou cair o braço, desanimadamente.
Numa agência de viagens, comprou o bilhete, com
o táxi sempre a contar, e, sem mais delongas, seguiu
para o aeroporto.

XV

No coração da cidade, o aeroporto de Tempelhof,
em tumulto, acolheu Jacinto com indiferença. Viajantes, empregados de agências de turismo, afanosos,
em torno dos seus clientes. Um grupo de hindus, opacos
e concentrados, perdidos na multidão, elas de sari
e pinta vermelha na testa, lindas, sujas, sedosas, ondulantes, desconfiadas; eles, vestidos à europeia, desorientados e lentos, gordos, humildes, estrangeiros. Muitos
alemães, em família, escoltados por amigos.
Entre as formalidades, Jacinto acercou-se duma
janela, para respirar. Doía-Lhe o coração. Mas o coração
não dói. Eram nervos. Uma lassitude branca. Apetecia-lhe estender-se e dormir. Já não sentia a urgência
de partir. Para quê? Para onde? la partir. Sabia que
ia partir. Mas a ansiedade, subitamente, abandonara-o.
Fora como um corte: de repente, encontrava-se sem
futuro, sem esperança. Nada o interessava, nada lhe
importava, nada o atemorizava. Através da janela,
o vinho turvo dum crepúsculo último, sobre Berlim.

Roncavam motores de aviões, na pista, monstros
furiosos. A multidão agitava-se: pesavam-se malas,
carimbavam-se passaportes, distribuíam-se senhas de
voo. Parentes abraçavam-se, beijavam-se, sofriam, mas
estavam vivos, naquela antecâmara do futuro; lia-se
a tristeza, uma escura tristeza, no rosto dos que ficavam,
e uma tristeza diferente, ainda só em promessa, no
rosto crispado, já ausente, dos que partiam. Jacinto
sentia-se numa sala de espera. À espera de quê? Esquecera-se de Soledad, de Wolfgang, de Pilar; todo esse
passado próximo ali morrera. Só aquele presente tangível o envolvia, mas não chegava a arrepelá-lo. Era
como se tivesse bebido um narcótico que o houvesse
insensibilizado, sem o cegar. Via. Via toda aquela
gente. As despedidas, as lágrimas, as corridas nervosas
dos passageiros cautelosos, as perguntas absurdas, o
porte profissional das hospedeiras do ar. . . Estariam
ali refugiados políticos, recém-vindos do acampamento
de Marienfeld, desejosos de recomeçar a vida noutra
latitude e jungidos tragicamente aos cadáveres de si
próprios que ali deixavam. Homens, mulheres, que
largavam a pele e partiam em chaga, contando sarar
sob outros céus. E os pobres, os invejosos, os tenazes,
que os viam arribar e se quedavam naquela forja de
dias espinhosos. . . Tudo isso ele via, como num cinema.
Uma jovem de cabelos cor de linho, boné à banda,
marcial, risonha, ergueu um braço e chamou o seu
rebanho, os que seguiam para Francoforte. Alinhou-os.
Puseram-se em marcha. Jacinto lá ia. Mas abotoava
agora nele uma ridente amargura.
No fundo de si uma música antiga acordava em
lago de venenos quietos. Pudicas estrelas, as primeiras
da noite, já no céu se velavam, sob uma capa de nuvens.
Partir, partir mais uma vez, partir, era, apesar de tudo,
um futuro, o clarim dum acontecer imediato. Depois,
não avistava nada. nada. Era só ao vento da noite
?? que ele sorria. E a uma pomba que se poisou no alto
;'! dum mastro, no limite da pista. Subiu a escada metálica. Sentou-se num dos lugares da frente, junto de
uma janela. Começou a fumar. O ruído dos motores
? crescia. Rugiam. Ergueu-se. por fim, o avião. Uma
rapariga de modos austeros. sem pintura, com uma
? testa imensa e fria, quase de aborto, quase de sábia,
r;: debruçou-se sobre Jacinto, com uma frase rígida de
"? desculpa, e ficou-se a olhar fixamente a cidade que
desaparecia, como a querer guardá-la em si para sempre,
;? a cidade que talvez nunca mais visse. Seria quase feia,
se não fosse a boca, naquele momento de uma beleza
milagrosa, a beleza dos instantes derradeiros. E foram-se
apagando os rios de luz da capital mutilada e ressurt?; recta, cercada por todos os lados de ameaças.
Jacinto desdobrou um jornal e tentou ler. A rapariga, à sua esquerda. acomodou-se, como para dormir.
Mas Jacinto sentia-a desperta, apesar dos olhos fechados.
Dois vincos dolorosos poluíam-lhe as faces, em torno
da boca imóvel e pura. Rugas de sofrimento. Como
teria vivido? Que teria passado'? Grandes amarguras,
grandes desgraças, lances horríveis? Ele, nem isso.

E começavam, todavia, a sulcar-Lhe o rosto. ainda ao
de leve, as mesmas rugas finas e frias, tristes, quase
belas, paramento crepuscular dos seres sensíveis que
a dor visitou, a dor que santifica e irmana os que a
recebem. Rugas que ele nem merecia. Ele que vivera
mal, sem harmonia nem grandeza. Nunca olhara tão
claramente para trás, para o seu passado, como para
um quadro interpretado, já sem segredos. Com aquele
cansaço triste e alheado, humilde e quase irónico, sem
remédio. Mas sem medo. Sem esperança, sem medo.
Falavam baixo as suas vozes interiores, apagadamente,
como se alguma corda secreta nele se houvesse que brado. Todo o mesquinho, todo o irrisório, dos seus
acontecimentos de Berlim lhe aparecia, à margem de
uma vida mais verdadeira. Vivera mal. E talvez já
não pudesse, não soubesse, viver melhor. Não se reconhecia, porém, desprovido de qualidade. Sentira-se
em tempos preso na sua estreiteza de indivíduo, com
uma só vida, com um só caminho pela frente, protegido
por vidros isoladores, mas transparentes. Se havia
tantos outros caminhos e nele tantas possibilidades
diversas! Partira os vidros, estilhaçara-os pouco a
pouco. Fora pisando os caminhos vedados. Nenhuma
estrada real. Furtara-se-lhe o acaso: não dera com ela,
com essa estrada talhada para si. Confiara-se aos gestos,
forçara-os até, como uma criança que destrói um brinquedo. E os gestos tinham-no feito o que era. Escravo
não, ainda não, nem desses gestos. Tão-pouco mais
livre que outrora. Somente, agora não tinha nada a
sacrificar; nada já Lhe apetecia escolher.
Acenderam-se neste momento, ao fundo do estreito
corredor, os clássicos letreiros luminosos: <<Apertem
os cintos. É proibido fumar.>> Mas ainda estavam
longe de chegar, era cedo. Jacinto consultou o relógio.
Faltava mais de uma hora de viagem. Voavam no
corredor aéreo fixado pelos Russos. Sentiu que o avião
subia. Aquela sensação desagradável no estômago:
os poços de ar. Lá fora chovia. Nuvens pesadas, insofridas, erravam na noite tempestuosa. O avião erguia-se,
aos arrancos, para fugir à tormenta. A chuva rufava
nas asas metálicas da alumbrada nave, rutilante. Relâmpagos riscavam um céu de assombramento.
Só se fosse aquilo a liberdade - pensou Jacinto :
uma aceitação serena da morte. Que se lhe dava que
o aparelho desabasse por ali abaixo! Seria um instante.
Nem haveria tempo para sofrer fisicamente. O fim!
Não mais ter de optar, de decidir, de arrepender-se.
Mas o avião não cairia, um quadrimotor não caía
assim, por causa dum aguaceiro. Subiram, subiram.
O som da chuva cessou. Apagaram-se os dísticos vermelhos no quadro, ao fundo. A passageira do lado
não se mexera, não descerrara os lábios tranquilos
e pungentes. Outros viajantes. porém, inquietavam-se.
<<Como é que nos deixaram partir, com um tempo
destes?>>, indignou-se uma senhora, ainda emocionada.
Depois, foi de novo o silêncio. Jacinto fumou mais
um cigarro. <<A minha qualidade !. . .>>, disse para consigo, escarninho. Cifrava-se em pouca coisa: uma

dúzia de fórmulas de cortesia, três ou quatro sorrisos
de confecção, umas quanta? reminiscências literárias,
algumas ideias já exangues, mas vistosas como flores
de pirotecnia. Não, tudo isso era adquirido. Talvez
o seu amor pelas crianças, pelos doentes, pelas árvores
e pelo espaço, talvez a sua ternura pelas mulheres. . .
Também não, nada disso. Ele para viver não prestava.
Mas era capaz de morrer, de saber morrer, direito,
de cabeça alta, sem venda nos olhos. Só para isso servia.
Pena era que não tivesse encontrado a sua ocasião.
E começara a apodrecer. Qualidade humana !. . . Wolfgang, Soledad, também a tinham, cada um a seu modo. . .
O mito da qualidade! E Pilar? Agora, a distância,
Pilar fazia-lhe pena, não lhe queria mal, apesar de
tudo. Paranóica? Não, menos que isso. Enfim, desequilibrada. . . Uma natureza pobre. Bravia, mas pobre.
Seria sequer infeliz? Que lhe importava, afinal! Pobre
Pilar, agarrada ao seu orgulho desmedido e grotesco,
toda torcida sobre si própria. Acabaria mal. Ainda
havia de ser espezinhada e havia de morder e de pagar.
Ou talvez não. . . Sim, ela própria se esmagaria, cedo
ou tarde.
Pela segunda vez, acenderam-se as luzes de emergência. A chuva recomeçava. Iam ascender, de novo,
na noite soturna, cada vez mais alto. Dançavam sobre
a zona soviética, no meio da tempestade furiosa.
Ouvia-se a chuva a fustigar o alumínio do aparelho.
E Jacinto, de repente, sentiu-se vivo, vivo como quando
pela primeira vez andara de moto em Paris na Praça
da Concórdia, onde era mais intenso o movimento,
como quando na Andaluzia, num dia de sol e jasmim,
montara um cavalo bravo que um cioso ganadero,
muito rogado, Lhe cedera em ar de desafio. Subiam.
Uma náusea. O chão a faltar-lhe debaixo dos pés.
Subiam, desciam, subiam novamente.
Principiaram a doer-lhe os ouvidos. Tapou-os com
os dedos. A companheira da esquerda abriu os olhos,
imitou-o, relanceou um olhar inquiridor pelo salão
e voltou ao seu recolhimento.
A dor tornou-se mais forte. Jacinto sentiu um calor
súbito, esquisito, numa das orelhas. Inspeccionou os
dedos húmidos: era sangue. Tanta presunção, tanta
vontade de se superar, de se redimir ao menos pela
coragem, e era apenas aquele cangalho que sangrava
com a simples pressão da altitude! Sorriu. E tapou
de novo os ouvidos. Espreitou a noite fúnebre pela
pequena janela circular e pareceu-lhe que uma das
hélices, daquele lado, já não girava. Era exacto: um
dos motores imobilizara-se. Um só. Não tinha importância. Chamou a loira steit?ardess, que passava no
corredor, toda azul-celeste, no seu uniforme muito
hirto, animando os passageiros alarmados. Pediu-lhe
a confirmação, em francês.
- É verdade - disse ela. - Já parou um de cada
lado. Mas ainda sobejam dois. E já estamos perto de
Francoforte. Senão, talvez voltássemos para Berlim.
Mas assim não vale a pena. Consultámos o aeroporto
de Francoforte e as condições meteorológicas de lá

são melhores que as de Berlim. Além disso, há perto
de Francoforte aeroportos utilizáveis em caso de emergência. De resto, não é a primeira vez que isto nos
acontece. Não se assuste.
- Que ideia ! - protestou Jacinto, quase ofendido
com a suposição.
Muitos passageiros trocavam olhares interrogativos.
Alguns procuravam tranquilizar-se, encorajando os vizinhos : <<Que diabo, um quadrimotor, hoje em dia, oferece
grande segurança, para mais numa viagem tão curta !. . . >>
Mas havia suspeitas no ar, uma ameaça suspensa, uma
promessa de pânico, a crescer, mesmo no pudor de falar
alto. Rostos perturbados, estremecimentos nervosos.
De novo a indiferença se apoderou de Jacinto,
uma lisa indiferença desmaiada, isoladora. Por seu
turno, recostou-se no assento, deixou que as pálpebras
Lhe velassem os olhos ardidos, parados. Era ela, agora,
a companheira do lado, que o observava. Teria ouvido
o diálogo em surdina com a steit?arde.s.s:' Compreenderia
o francês? Sentia-lhe a mirada furtiva, adejante, sobre
o seu rosto, de vez em quando. Abriu os olhos e fitou-a,
ainda dos longes do seu vazio. Pareceu-lhe que ela ia
falar ou sorrir. Seria o perigo, ou a curiosidade, que a
aproximava dele`? Mais uma vez impressionou-o a
realidade invasora da proximidade. Era aquela desconhecida, primeiro plano do universo naquele momento,
que para ele significava o apelo da vida: os dedos dela,
levemente crispados, mas dignos, o calor daquele braço,
quase fraterno, quando o roçava.
Mas Jacinto preferia a atonia da sua indiferença.
Queria preservá-la da menor onda de interesse que
pudesse vir corrompê-la. Por isso recusou o chamamento daqueles olhos, sedutoramente límpidos e fracos,
ainda que Lhe pesasse negar-se a dar, fosse o que fosse,
mesmo naquele instante. Mas a sua indiferença, queria
que ela durasse : não desejar nada, nada mais lhe importar,
nada ter que recear, nada, nada.
Pela terceira vez se acenderam as luzes e veio o
conselho, agora aterrador: <<Apertem os cintos.>> Mas
tudo aquilo decorria longe. Nem o pânico dos outros
aflorava o torpor de Jacinto.
Por fim, aterraram, sem acidente. Revista dos
documentos. Um autocarro, através duma floresta,
negros abetos, luzes à beira da estrada, pórticos verdes
no seio da noite, campos desconhecidos. Não havia
decorrido meia hora e estavam no centro de Francoforte,
na estação terminal.
Jacinto retirou a mala de entre as bagagens. Cada
passageiro seguia para seu lado. Todos os laços criados
pela angústia partilhada se tinham já desfeito. Desconhecidos apressados, que nunca mais porventura se cruzariam. Jacinto deteve-se, cansado, isolado, lento, a
acender um cigarro. Sentia ainda uma tontura. Avisaram-no de que era difícil conseguir quarto num hotel,
porque a feira industrial, que estava no auge, atraíra
à cidade forasteiros de toda a Europa.
Nem um táxi pôde arranjar. Atravessou avenidas
e ruas iluminadas, a pé, com um moço de fretes, ao

lado, carregando a mala. Francoforte tinha um ar de
opulência, artigos de luxo nas montras, restaurantes,
balbúrdia, o lagartejar metálico dos eléctricos atrelados,
grandes blocos de edifícios modernos. e as dálias de
néon, arabescos, goivos, serpentinas de néon.
Jacinto chegou assim, deixando-se guiar, a um bairro
que mais parecia um bordel para americanos. Com
bares, muitos bares, intérminos, sucessivos, mulheres
sós, rondando, soldados, operários, homens loiros, de
camisola azul e boné de pala, como marinheiros, e americanos, embriagados, mais americanos, fardados, dos
quais se destacavam os negros, acompanhados de prostitutas.
Primeiro hotel : cheio. Segundo : a mesma recusa.
Só à quinta tentativa Jacinto logrou alojamento. O quarto,
num dos últimos andares, despejava para um saguão,
mas até assim ali soava o rumor das altercações que
iam na rua, o estrupido dos bêbados rasgando-se em
gritos, protestos de meretrizes, pragas, alguma voz
tarda, pastosa, cantarolando. Jacinto lavou-se. Fechou
a mala novamente à chave. Tentou aclimatar-se ao
quarto, que o repelia. Era um cubículo acanhado, quase
nu, mas aquecido. Sobre a cama estreita, o eterno
édredon de penas, roto, com o froixel a evaporar-se
ao menor contacto.
Jacinto pendurou o impermeável no único cabide
que se balançava no guarda-fato em desequilíbrio.
Desceu, para comer, ao restaurante que vira à entrada,
contíguo ao hotel. Pediu salsichas e cerveja. Não tinha
fome, mas o desconforto mortiço do quarto, quase
sem luz, incitava-o a procurar gente, passivamente.
Comendo, recobrou energias. Bebeu outra cerveja e
outra. Ficou um pouco entorpecido com sono os
membros lassos. Para lá desse cansaço benéfico, embruscava-se a nuvem do futuro ; e uma onda de vasa pútrida,
verde, refluía do passado; nela se afogava Wolfgang,
abandonado ; e Soledad chorava, já sem rosto ; Pilar,
amofinada, como uma caricatura, aguilhoava-o ainda,
insultava-o. Dobrado sobre a mesa, Jacinto sacudia
uma mosca da espuma da sua cerveja e nesse gesto
varria os seus horizontes interiores, longínquos, apagados. Queria o silêncio em si. o sono, a calma estagnada
outra vez. Já lamentava o bálsamo da abdicação aquela
serenidade que encontrara entre um enxame de vidas
estranhas, alheias, durante a viagem aérea, o éter da
morte que o roçara. Chamou o criado : <<Mais cerveja !>> `
O sono envolvia-o, docemente, um calor brando que
se lhe alargava por todo o corpo.
Um hóspede inglês, perto dele, forcejava por se
explicar, recorria aos gestos. indignava-se, dignamente,
sardento, exclamativo, sincopado, persuasivo, desanimado, de ombros curvos. punhos Imaculados, uma ?
melena ruça sobre os olhos cândidos de bibliómano
ou caçador de borboletas. Ninguém ali falava inglês, ?
excepto o criado do restaurante, que sabia duas ou c
três palavras culinárias. Jacinto acudiu ao desventurado '
hóspede, que lhe agradeceu muito a intervenção e
encomendou-lhe a ceia, sobriamente britânica: fatias
de pão com manteiga, carnes frias, café com leite.

Instou com o criado, cuja ortodoxia se rebelava contra
aquelas exigências. Apetecia-Lhe sentar-se ao lado do
inglês, conversar, retardar o encontro consigo, o momento
de recolher, o diálogo interrompido com os fantasmas
que o rondavam. Naquele instante, de novo, essas
sombras penosas e com elas, mais que elas, os cadáveres de si próprio, flutuavam-lhe nos pegos da consciência. E ouvia-lhes aienuadamente as vozes ressurrectas, embaralhadas, plangentes. Precisava de agarrar-se a alguma coisa exterior, que o definisse aos próprios olhos, diversamente, tranquilizadoramente. O inglês! Ele, Jacinto, seria o que o inglês dele visse. Hesitou,
de mãos nos bolsos, um sorriso incerto nos lábios.
Mas não ousou intrometer-se. Deu as boas-noites.
Meteu-se no elevador. Era o luxo do hotel: uma caixa
rectangular, frágil, toda abalada, na ascensão, por
?n tremelear vagaroso, entre muros cerrados, sem
mais vista para o mundo que a abertura baça de cada
novo piso através das grades.
No quarto, Jacinto despiu-se e tornou a fumar.
Foi até à porta, para a fechar, mas verificou que a
chave não rodava na fechadura. Introduziu-a no orifício por várias vezes, com jeito, tacteando, procurando
o vazio, à entrada, a meio, mais para o fundo. Em vão!
Por mais que a forçasse, a chave não girava. Desistiu.
Como a porta não tivesse tão-pouco trinco de segurança, encostou-Lhe uma cadeira. Chamar alguém, para
quê? Só a ideia de voltar novamente lá abaixo, naquele
ascensor tumular, e de ter que se explicar e reclamar,
lhe repugnava mais que a perspectiva de um assalto,
pouco provável aliás.
Escondeu a carteira debaixo do colchão e deitou-se.
Teve vontade de ler, para se adormecer gradualmente,
sobretudo para fincar a atenção fora de si. Mas os
livros estavam na mala, perto da janela. Seria preciso
levantar-se ainda, ir até lá, procurar, escolher. . . Revolveu-se na cama, comprimiu os olhos com as mãos,
como a proibi-los de espreitarem para dentro, enterrou
a cabeça no travesseiro. Uma suspeita deprimente
atravessou-lhe o espírito. Sentia-se, não havia dúvida,
sentia-se mais abjecto, mais revoltado consigo, agora
que fora descoberto, agora que se expunha às afrontas
públicas, ao desdém, ao julgamento dos outros, até
das pessoas que ele menos prezava. Depois, ponderou,
quis acreditar que não, que aquele descontentamento
consigo Lhe vinha antes de se considerar responsável
pela prisão de Wolfgang, de ter contribuído para a
degradação de Soledad, que de tal o acusara, de resto.
E talvez fosse verdade. . . Mas só lhe quisera bem, com
certa tibieza, sim, mas sempre lhe tivera afeição; por
isso evitara feri-la e lhe lisonjeara os vícios. E o que
era afinal vício, o que era virtude? Das estrumeiras
nascia a erva mais verde: naquele ranço dos defeitos
irremediáveis de Soledad abotoava a flor da ternura,
cresciam os seus disparates generosos. Wolfgang também
fora generoso com ele; e fora homem perante as circunstâncias: nem uma palavra de censura, nem um
olhar rezingão para trás, todo o peito exposto ao que

viesse. Porque o abandonara? Deveria ter ficado em
Berlim, aguentar. mesmo sem lógica, mesmo sem
razão. . . Mas seria absurdo. inútil. E, contudo, talvez
se sentisse melhor. Tudo o que deixara para trás, em
aberto, agora lhe pesava.
O sono, por fim, dilatou-se nele e foi extinguindo,
pouco a pouco, a importância das lembranças que
o ralavam. Adormeceu.
A meio da noite, sentiu bulha no quarto, mas não
abriu logo os olhos. Sabia que a pêra da electricidade
se encontrava ao seu alcance, suspensa, acima da sua
cabeça. Mediu o gesto, calculadamente; num impulso
brusco, alumiou o quarto e ficou sentado na cama,
em atitude de defesa.
Perto dele, entre o leito e o guarda-fato, um homem
corpulento, correctamente vestido, olhava-o, e parecia
atónito, confuso.
-Ent.schuldiRen Sie, desculpe. Enganei-me no andar - disse o estranho, envergonhado.
- Não faz mal. São coisas que acontecem - respondeu Jacinto, com uma polidez glacial, ainda desconfiado.
O homem retirou-se, às arrecuas, acumulando confusas desculpas. A cadeira que ficara a proteger a porta
tinha caído.
Jacinto repô-la no seu lugar e reforçou a barricada
com outra cadeira, nas costas da qual havia pendurado
o casaco. O despertar sobressaltado dera-lhe azia.
Estava sonhando, quando aquele ruído o acordara.
Agora já não poderia reatar o sonho. Mal conseguia
lembrar-se. Um salão de festas, imenso. a cúpula milfurada de azul, perto do céu; e ele andava lá por cima,
de cabeça para baixo, sem medo, sem apreensão, os
pés aderiam-lhe à superfície da cúpula. Sentia-se jovem
e forte, a vida era uma página branca. Tinha todos
os direitos, nenhum remorso o pungia. Transpunha
os buracos azuis, que abriam para o firmamento, e em
baixo havia pessoas que o observavam, pasmadas.
E ele pensava que, se quisesse, podia mergulhar de
repente, entre elas, deixar-se cair, por experiência.
Mas o sonho fora-se. Ainda lhe deixara na alma
um perfume incolor, de mocidade, de glória, que pronto
se evolava. Inútil persegui-lo. Só lhe restava a realidade daquele quarto franqueado a visitas importunas,
mal-intencionadas talvez. Aquele homem, seria um
ladrão um ébrio, um invertido, ou simplesmente um
hóspede pacato que se enganara no andar, como afirmara ?
Pouco Lhe importava, afinal. Queria era dormir.
Que o estrangulassem, que o degolassem. Desde que
fosse durante o sono. Não daria por isso.
Sozinho, naquele hotel suspeito, num bairro de
prostitutas e soldados negros americanos! E que indiferença, que exausta indiferença, bem-vinda, salvadora,
de novo, dentro dele, aniquilando-o. Naquele momento,
a sua vida dos últimos dias aparecia-Lhe como uma
fantástica aventura, cinematográfica, distante, visível,
como se tivesse acontecido a outro. Nada podia já
espantá-lo, nem infundir-lhe receio.
<<O que vier virá>>, pensou. Voltou-se na cama,

pesada, lentamente, e adormeceu.

XVI

Quando acordou, um sol estranho, açafroado, arfava
? nas persianas das janelas, como chamas de vela. Lá
fora trovejava. Ou seriam os camiões e os eléctricos
abalando a rua?
Jacinto furtou-se à luz e esmagou o rosto no travesseiro. Não queria despertar completamente. Aquele
dia amarelado e viscoso repugnava-lhe. Os membros
moídos recusavam-se-lhe a qualquer movimento. Um
simples gesto premeditado, para se erguer, logo lhe
surgia como um esforço imenso. Mexer-se, levantar-se
lavar-se, sair. . . Para quê? Recomeçar. . . E aquele livor
de trovoada! Nem lhe apetecia comer. A boca amargava-Lhe.
Teria. contudo, de ir à estação. Informar-se dos
horários. Comprar bilhete para Paris. E partir.
Ainda era a única solução: fugir depressa dali.
Tomar o primeiro comboio para Paris. A velocidade
era para ele às vezes uma espécie de tónico: serenava-o.
A sensação de se distanciar, como se ele próprio ficasse
para trás, ou parte dele e assim se fosse purificando,
e pudesse renascer. O galope dos comboios, sob outros
céus. . . Iria à estação. Tinha de se arranjar. Tinha de
vencer aquela moleza.
Nada mais queria ver de Francoforte. Haviam-lhe
dito em Berlim que a cidade medieval fora destruída
pelos bombardeamentos. E que assim não fosse! Não
estava em alma de visitar monumentos, nem por uma
hora. Esperaria na estação o momento da partida. Tão-pouco a urbe moderna o chamava. Lobrigara-a de noite,?
estrangeira e agitada. Ouvia a ora o fragor do trânsito é
na rua, o guincho metálico das gruas nalgum arranha-?
-céus em construção. Queria fugir da Alemanha, depressa.;
E adiava, entretanto, o instante de firmar-se na cama,'
endireitar o tronco, pular para o chão.
Levantou-se, por fim. Lavou-se, vestiu-se e começou
a acomodar na mala o pijama, a água-de-colónia, o
estojo de toilette. Que mais faltaria? Relanceou um
olhar pelo quarto. Não, já guardara todas as suas coisas.
Mas a mala custava a fechar. Tinha de aproveitar
melhor o espaço. Revolvendo as roupas, notou que
algumas das suas gravatas estavam velhas. Moles,
puídas. Especialmente uma, cor de pau-rosa, com
pintas amaranto, desbotadas. Dera-lha uma tia, no
Porto, havia treze anos, talvez. Treze ou catorze? Já
nunca a usava, afinal. E não se resolvera ainda a deitá-la
fora. <<Para que quero eu isto?>>. pensou. Era a recordação de uma época imaculada, sobre a qual a rotina
não chovera. Pouco tempo estivera no Porto: dias
aborrecidos, docemente aborrecidos, e agora tão claros.
Porque não enterrara nunca a sua imagem de então
e a da tia, redivivas naquela gravata? Estreara-a numa
reisada, em Chaves, estavam as férias a terminar. A boa
senhora ficara radiante de lha ver ao pescoço. Agora,
se acaso voltasse, já não teria conversa para aquela
piedosa matrona, afável, açodada, apesar da gordura.

sempre preocupada com o veredicto dos vizinhos,
ciosa de aparentar a decorosa abastança que a sua
ascendência senhorial, já assaz turva, lhe impunha.
Lembrava-se do tio veterinário. seu tio por afinidade,
de cabelo à escovinha, pausado, vestido de preto, sem
ambições, condescendente, governado pela mulher. Um
homem que não lia, que falava pouco, e lhe mostrava
sempre deleitadamente as roseiras do quintal, os nabos,
os feijoeiros. as primícias do pomar. Já então o tio o
intrigava. Que pensaria? De que vivia, assim calmamente, sem gestos, sem ideias, sem alegrias, sem dores?
Com ele, todavia, estaria ainda hoje quase à vontade:
nunca haviam trocado impressões, seria o mesmo silêncio confortável, a mesma certeza de durarem corpòreamente, à hora do quintal adormecido pelo sol.
Jacinto dobrou a gravata entre as outras, compradas
em sítios tão diversos: uma de Londres, escolhida no
Strand, algumas de Paris, outras de Espanha, uma
de Milão, já fora de moda, imitando palha entrançada.
Cada uma lhe lembrava, agora, que se voltava para o
passado, um acontecimento uma pessoa, amores fortuitos, viagens, gloríolas fracassos, e através delas
seguia a sua progressão desconsoladora para o fastio,
para o cansaço de si.
Não gostava já de si p?óprio. O que nele havia de
movediço e vibrátil corrompera-o. Atendera a todas
as solicitações, à esquerda e à direita, sem freio. Repetira
os mesmos gestos, até quase lhes perder o gosto. E já
não sofria como dantes, com inteireza redentora. Ficara
todo cambiante, todo frouxo, plástico e dolorido.
Apetecia agora o quê? Não se sentia com direito a
desejar ardentemente fosse o que fosse. Que banho
poderia lavá-lo, restituir-lhe as longas perspectivas sem
desvios, a sua frescura de outrora, o direito de amar
e ser amado, sequer de ser amigo, de viver para alguém?
Agora só se sentia capaz, digno, de morrer por alguém
ou por alguma coisa, quiçá por uma máscara elegante
de si próprio, tecido escamoso, pintado a primor, de
um antigo rosto autêntico. Deixara que a vida lhe
dissolvesse a verdade da sua pele, da sua carne.
Sentou-se na cama, acabrunhado. O passado, em
turbilhão, desordenadamente, bulia nele, não morrera.
Acordava. Onde? Na cabeça, no peito, no ventre?
Onde aquelas sensações agudas, memórias fugitivas
calores escaldantes, bruscos; cores, sons amargos, num
rodopio? Tudo vinha tão depressa e lhe fugia. . . O irmão,
o tio <<brasileiro>>, além-mar, rindo, gritando, abraçando-o, ambos falando já um português carioca;
e Lisboa, Paris, apitos de comboios, mãos a acenarem
nos cais. Tantos anos a descer e a subir, ele a enfeitar
o espírito com flores de papel. Seriam mesmo flores
de papel? Talvez não: tinha agora das coisas uma
óptica mais fina, mais penetrante, via-as em relevo.
Mas deixara nisso a força e a esperança.
De repente, arrefeceu. Descia-lhe súbito, irremediavelmente - onde? -, um véu, sobre aquele mar
da alma um instante revolto, lascado de raios. Viu o

quarto vazio, a janela, o saguão, a mala fechada. E continuou a inventariar-se, mas voluntariamente agora,
concentrando-se, arrancando lembranças, aos punha=
dos, do campo narcotizado onde jaziam. Lisboa e o
tempo do Só, da poesia, dos magros amores semivenais,
o tempo da revolta e dos romances devorados numa
noite, as suas ambições estéticas, tão cedo depostas,
o acordar da fraternidade, e simultaneamente a fome
de absoluto carnal; as ideias socialistas em conflito
com o seu frenesim de liberdade: depois a fuga no
espaço, e finalmente Paris. o grupo do Capoulade,
francesas, tantas francesas, a consciência a tornar-se-lhe elástica; e Soledad, a vida brilhante, o narcisismo, o começo do tédio, os dedos da alma já dormentes.
Paris adorado, Paris ainda. a cidade harmoniosa da
frivolidade inteligente. E no presente tudo esvaído,
tudo aluído, decomposto. . .
Foi até ao espelho, escovou as bandas do casaco.
Nenhuma condescendência, nenhuma agonia ou remorso,
ou ressaca de orgia ou escuridão de pecado, nenhuma
dor lhe desfigurara o rosto. As mesmas pestanas arqueadas, quase loiras, a mesma palidez macia e macerada
nas faces emagrecidas. Só os olhos mais fixos, dilatados, agora olhavam sem esperança para além do
espelho. Alguma coisa nele murchara, talvez para
sempre. Restavam-lhe possibilidades de ser feliz, de
se pôr em ordem consigo, mas a ideia desse futuro
constrangia-o, porque o não merecia. Pior ainda: tinha
o sentimento de não merecer sequer o seu passado.
Já lhe não pertencia: expulsavam-no de lá os amigos
de outrora, recusavam-lhe o direito de o reviver com
eles, com as suas imagens. Os tios, o irmão, a primeira
namorada, a primeira amante, os próprios pais, todos
esses que rejeitariam o Jacinto do presente, se o vissem
a descoberto. Soledad, porém, aceitava-o. A lembrança
de Soledad enchia-o de ternura, de reconhecimento,
de piedade. Mas nem um sussurro de esperança lhe
trazia. Escondiam ambos dos outros a sarna que os
minava. Era o que os unia, mais que a inteligência
ou a educação, esse contacto das próprias chagas. Mas
só de outra fonte ele poderia beber - poderia ainda? com os seus lábios da alma tão chagados.
No momento em que Jacinto se dispunha a estender-se de novo na cama, pára descansar uns minutos
antes de sair, soaram na porta duas pancadas secas,
autoritárias. Abriu. Era a polícia. Dois homens discretos, de impermeável, breves, ríspidos, de sapatos
enlameados, um deles com uma verruga na mão. Foi
sobretudo aquele pormenor monstruoso que Jacinto
fixou: a enorme verruga na mão de um deles, acastanhada e peluda, com vida própria.
Exigiram-lhe o passaporte. Entregou-o. calmamente.
Pediu explicações. Deram-lhas. Estava descoberto. la
pagar. Já não sentia receio, nem vergonha, nem aquela
impressão penosa de andar a iludir toda a gente que
o cruzava. Oeorreu-Lhe uma frase de Oscar Wilde:
<<Só o criminoso desmascarado é criminoso.>> Curioso,
ele reagia de outro modo.
Deixaram o hotel, correctamente, como para um

passeio. O carro prisional não pudera estacionar ali.
Tinham de percorrer umas centenas de metros. Os
polícias falavam um com o outro, acerca do tempo,
que não clareava. Jacinto seguia entre eles, de cabeça
alta, silencioso. Que lhe fariam? A prisão, a extradição? iam com certeza levá-lo para Berlim. Paciência!
Decidiriam por ele, já não compraria o bilhete para
Paris, ficava adiado o futuro. Parecia-lhe, todavia,
que, naquele momento preciso em que, já preso, caminhava para um vexame, ia recuperando uma certa
dignidade, em troca de quanto perdia. O áspero sabor
de <<fazer frente>>! Julgá-lo-iam. Pois bem, que o
julgassem. Não se defenderia, não pediria nada. Merecia que o humilhassem, sim, merecia, mas já pouco
lhe importava merecer ou não. Oh! Bendita indiferença que o envolvia ! Que alívio ! Seria aquela a coragem
da resignação ?
Melhor que a arrogância, melhor que as espadas
nuas, tanta vez sonhadas, sob o céu a arder. Não, não
o atingiriam. Só dentro dele estava a justiça, e dispensavam-no de se julgar. Talvez sofresse, se o privassem
do sol, da liberdade. E que sol, que liberdade? Que
sol esse que ele já não via?
Um carro eléctrico, todo cromado, tilintante, vinha
em direcção a eles. Os polícias forçaram Jacinto a
galgar o passeio, até junto da parede. Em frente, uma
mulher gorda, de bandós loiros, de um loiro baço,
obstruía-Lhes a passagem, vestida de caxemira berrante,
com uma menina pela mão. Era uma criança mimosa,
de cabelo claro, como o da mãe, mas doirado, quase
de oiro, os olhos castanhos, doces e inquietos, grandes
e pisados. Tinha um defeito ligeiro no pescoço, talvez
um tendão ofendido, rígido, que a forçava a pender
a cabecita para o ombro.
Jacinto sorriu-lhe. A menina sorriu também. Depois
voltou-se para trás, já a mãe a arrastava, e estendeu
ainda um braço para ele, para aquele desconhecido.
Jacinto sentiu então os olhos molhados.
Nada havia no mundo mais lindo que uma criança
- pensou -, nada mais digno de amor que um defeito.

JORNADA SEM REGRESSO

A Celso Cunha e Fran Martins

Do fundo da tarde anilada surgiu uma forma indecisa. Um cavaleiro tisnado, a perna bamba, sacudida,
veio crescendo pela estrada clara, entre os agostadouros
de trigo e de cevada, onde o sol ardente chispava. Chegou
ao alto dum cerro e parou, junto dum charco. Deixou
o cavalo beber. Amontoavam-se ali roleiros de fava,
negros, e uma azinheira seca assinalava o caminho.
O homem, estonteado pela luz, pôs as mãos em pala
sobre os olhos e escrutou o horizonte. Transfigurou-se
de repente, sorriu: vira o Guadiana no termo dum
vale salpicado de aloendros. Deitou a galope. Os juncos
atufavam a margem e cresciam ainda rio adentro até
à azenha. À beira da água, pastava um rebanho de

cabras. O guardador, de calças arregaçadas, fazia
molhos de junco numa ilhota, que de Verão ficava a
descoberto. Era um rapazito trigueiro, espantadiço,
de ar selvagem. O cavaleiro acercou-se e perguntou-Lhe
o caminho para Moura. Havia tantos anos que por
ali não passava!
<<Não sei>>, respondeu o mocinho e largou a fugir,
direito ao gado, chapinhando na água apodrecida.
O cavaleiro admirou-se daquela atitude insólita. Com
um encolher de ombros, deu de rédeas à montada,
buscando as passadeiras. Sempre lhe aconteciam coisas
singulares! Voltou os safões sobre as coxas, para os
não molhar, e tirou os pés dos estribos. Guiado pelo
instinto, o rocim lá agarrou o vau. Como se fosse afundando até os peitorais, ia deixando no rio uma tira
branca de escuma e um som de frescura na calma.
Apesar da cautela, encheram-se de água as botas do
viageiro solitário. Nem se demorou, todavia, a esvaziá-las. Tinha pressa de atingir a vila antes da noite.
E praticamente desconhecia o caminho; em cada encruzilhada, hesitava; ia torcendo para a direita, à aventura: assim queimou quilómetros de searas e estevais.
Várias vezes limpou o suor ao lenço de riscado que
lhe protegia a nuca. Doíam-lhe os rins, maçados do
contínuo balanço.
Cada cabeço era uma esperança, que se desfazia
noutra onda do montado.? Mal se via um <<monte>>,
flamejante de luz entre os granais. E tão longe! Cinco
carros de bois carregados com molhos de trigo desfilavam na linha do horizonte, muito para a esquerda. . .
Sempre a estrada branca, no dia quase branco, sem
fim, inchado de calor; e no céu deserto aquele sol de
loucura, queimando a nobre terra alentejana, que
dormia o seu sono. . .
Cavaleiro e cavalo eram o centro da tarde, uma
pequena mancha em movimento rasgando a letargia
do montado. O homem, descomposto, esfalfado, a
sinistra esquecida nas rédeas, cedendo maquinalmente
ao puxão, nem contrariava o cabecear nervoso da
montada, a quem as moscas apoquentavam. Um alforge,
barrigudo, e a velha manta, ?á arruçada, do viandante
alentejano quase tapavam os quartos traseiros do
animal.
Finalmente, o espaço vazio humanizou-se; apareceu
um <<Monte>> endorminhado, silencioso, cercado de
frescos limoeiros, e de verdugais onde retoiçavam,
peados, jericos pardos. Aquele <<monte>> quebrava a
maré das colinas fulvas, abrasadas. Da eira, onde se
alteavam serras de aveia, levantou-se um rafeiro, agressivo, a ladrar. Ladeira abaixo, o caminho enforquilhava-se e justamente no vértice ao pé dum meloal
havia um poço, onde um trabalhador dava de beber
a uma parelha de machos. Mais dois homens, estiraçados no chão, fumavam, apoiados nos cotovelos.
O cavaleiro estacou junto deles e saudou. Olhavam-no, curiosos e desconfiados. Voltou a perguntar
o caminho.
-Você é da família de Alqueva que tem andado

à ceifa no <<monte dos Ratinhos>>? - volveu-Lhe um
dos homens, sem responder.
-Não, senhor, sou das bandas de Reguengos.
Reguengos ficava longe.
-Vá por essa estrada velha, à sua direita, e, em
alcançando o cimo do oiteiro, logo há-de ver a estrada
da <<Defesa>>. Siga sempre a direito. . . Procure lá aos
almocreves, que logo o ensinam.
Os outros continuavam a mirá-lo, intrigados.
Sempre fora assim ; não inspirava confiança : tinha
uns modos muito seus, um ar de <<não te rales>>.
Já voltava o cavalo, agradecendo, sem mais perguntas, quando um dos homens que estavam deitados,
soerguendo-se, o interpelou:
-Escute lá: você não esteve à do Dr. Fasquia,
em Alqueva, há-de haver uns anos, como amansador
de potros?
- Sim senhor. Mas não me lembro de vossemecê.
-Fui lá guardador. Era ainda muito moço. Até
me lembra, com sua licença, que lhe chamavam o Encristado. Você abalou mor duma discussão que teve com
o <<encarregado>>, que por pouco se não matavam?
O Encristado sorriu. Acenou com a cabeça que sim.
-Você então vai até à vila? Acautele-se que já
passou hoje por aí a guarda à busca duns espanhóis.
Andam de maus azeites. Em eles começando a malhar,
vêem tudo encarnado. Eu é que não queria ser espanhol !
Têm caçado uma porrada deles, que vêm fugidos da
guerra. Apanham-nos aqui perto para os lados do
oiteiro de S. Bernardo, onde dizem que há um bezerro
de oiro. Nem de propósito! Dantes, iam para lá uns
parvos cavar, que até fizeram um buraco de respeito. . .
Agora são esses desgraçados que por lá se escondem. . .
Os olhos do cavaleiro luziram.
- Um bezerro de oiro? Que história é essa?
- Escute, amigo - disse o ganhão, divertido e
incrédulo -, eu cá não acredito nessas coisas de tesouros.
Pobres nascemos, pobres havemos de morrer. Agora. . .
Contam para ai coisas. . . Mas olhe que tem havido
mortes para aquele lado. Parece mesmo que o sítio
foi agourado. E nunca ninguém de lá trouxe nada. . .
O Encristado calava-se, mas o seu olhar traduzia
interesse. Acabou por sorrir:
- Vontade não me faltava de ir ver isso.
O rapaz abanou a cabeça em desacordo:
-Você é homem destemido, está certo. Tem a
fama disso. Mas não lhe dou de conselho que se meta
em sarilhos. Ali, pode acreditar-se, nesta altura não há
muito quem passe de noite, para mais agora, com
lua nova. A gente nem gosta de ouvir falar em tais
coisas.
Ensinou-lhe o caminho e continuava a mirá-lo.
O cavaleiro, sorridente, despediu-se:
- Então muito obrigado. Até mais ver.
Era homem de pouca conversa.
A estrada da Defesa serpenteava no alto dos cerros,
sobre a bela monotonia dos estevais. Nas lonjuras
ondulavam outras colinas, com o seu mistério lilás

de todo o ano. Moura, a vila desejada, branquejava
no extremo do horizonte, amparada à torre e ao castelo.
O Encristado levantou-se nos estribos, firmando
as mãos no sopinho. Já nem se sentia cansado: até lhe
apetecia correr. Deu uma palmada no pescoço suado
do cavalo, dizendo-lhe baixinho:
- Eh, Falcão ! Amigo !. .
Ria sozinho: o puto chamara-lhe Encristado. Como
era baixote, quando garoto, e houvesse tomado o jeito
de se entesar para aumentar a estatura, tinham-lhe
prantado aquele nome. Depois, dos quinze para os
dezassete, deitara corpo. Mas o apelido ficara.
Devia ser ainda muito para a direita o outeiro
de S. Bernardo, o do bezerro de oiro. . . Sempre queria
ver aquilo. Olá se queria! Nem era tanto o bezerro
que o chamava: era a lenda do sítio, que lhe excitava
a imaginação.
Pronto: lá estava o <<monte>> da Defesa. E água
outra vez. O Encristado adorava os rios do seu deserto.
Via para lá do porto, alongando os olhos, uma atalaia
e um choupal. Depois eram as terras de Moura, que
a distância guardava preciosamente: olivais densos,
terra rica, de branda feição.
Havia de torcer já para a direita, querendo atingir
a curva do Ardila, pelo caminho que Lhe tinham ensinado. Era um atalho fundo e estreito, cheio de covas,
donde mal se enxergava a verde limpidez da várzea.
O calor diminuía.
O cavalo lá ia seguindo, num trote certo.
Lembrava-se já o cavaleiro das poldras, por onde
uma vez passara, havia mais de dez anos. Por ali é
que se ia para Moura. Mas ele agora queria era ver o
cabeço do tesouro.
Já a azenha, que ao Encristado tinham dado em
referência, se avantajava no cotovelo do rio, projectando sobre o cascalho alvirrosete uma sombra alongada. Das encostas rugosas que além proibiam o caminho, surgia, bojudo, com alguns chaparros, alcantilado
e manchado de verdum, o famoso outeiro de S. Bernardo.
Uma velhota, perto do moinho, andava recolhendo
peças de roupa, que ali deixara estendidas a secar.
O cavaleiro, para maior certeza, inquiriu ainda se
_ia bem por ali.
-Sim, senhor - informou a velha, fitando-o,
admirada.
Mas, quando ele já se afastava, deteve-o:
- Homem, vem aí a noite. E esse caminho é ruim.
Vaia vossemecê de roda dos montes ou tenha cautela.
Aos modos que andam para aí espanhóis, fugidos
da guerra. E não é gente certa. Fizeram-me essa conversa uns seareiros, que vinham da Cobiça. . .
- Bem, obrigadinho - interrompeu o Encristado. Passe vossemecê muito bem.
E deu de esporas à montada, para se afastar
depressa.

Estava chegando, caramba! Depois de tantas horas
de jornada, já nem queria saber de Moura. Moura

podia esperar. Lá estava o cerro fabuloso, onde talvez
houvesse um tesouro escondido e que era sítio mal-assombrado e de muitos mistérios. . . Levava por acaso
no alforge, além do pão, já duro, e dos chouriços, um
enchadão sem cabo. Até podia amanhá-lo com madeira
de azinho. E se fosse mister uma picareta, voltaria
depois. Primeiro apetecia-lhe esquadrinhar o sítio.
Olhava em redor, contente, como sempre quando
mudava de ares. E nisso havia levado a vida. Pôs-se
a rir, ingénuo: <<Sempre sou muito maluco, não há
dúvida!>> Não parava em lado algum. Desde pequeno.
Porqueiro aos doze anos, fugira de casa, porque o
pai lhe gastava a paga em vinho, e ele ambicionava
de todo o coração um pelico. Andara na azeitona e
às mondas, fora eguariço, caçador furtivo, maltês,
mas nunca saíra do Alentejo. Aprendera a ler e a escrever
na tropa. Soldado de cavalaria em Elvas, tinha a melhor
forquilha do regimento; podia ter seguido a vida militar,
mas era orgulhoso e casmurro, naturalmente; nunca
vergaria a espinha; passava metade do tempo nos
bordéis, o resto, a cavalo. Era impedido de um oficial
da mesma terra, com quem em miúdo se tratara por tu.
Depois, amansador de potros, ou cocheiro, se por
acaso lhe ofereciam boa paga, despedindo-se volta e
meia sem motivo, ou afastado por insolência, que
não era aliás intencional, vadiando quando bem não
por tabernas, esfomeado mas a jogar a manilha; as
mais das vezes trabalhando no campo, torrando ao
sol, taciturno em companhia dos outros, ou a sós pelos
montados, sorrindo ao dia a dia incerto, desinteressado, gastador - o dinheiro incomodava-o -, andava
já perto dos trinta, e sem nunca aceitar conselhos a
ninguém, sem afeições, sem mulher nem amigos, continuava aquela existência rebelde, magnífica e atrasada, por terras e terras daqueles senhorios perdidos.
Por morte do pai, facto ainda recente, herdara
uma courelazita e o cavalo, um rosilho já velho, mas
que ainda corria á desfilada. Logo tratou de vender
a courela, surdo a quaisquer alvitres. Já não queria
fazer nada - <<Chega de misérias !>> - e, entanto que
se não fartou de alcoices e enregou de tossinhar, foi-lhe
o dinheiro correndo de tal modo que era uma coisa
em disparate. Depois, desacostumado que estava há
muito de trabalhar e amolengado -o calor vinha
apertando -, não achava jeito em meter por vida nova.
Sobejavam-lhe ainda uns quatro contos. E como entrasse
de andar esmorecido, nostálgico, vá de buscar um
pretexto de jornada: chegou-lhe ao conhecimento a
notícia de que em Moura se vendiam parelhas de muares
por uma tuta-e-meia. E se comprasse uma parelha?
Era uma maneira de ir vivendo. . . Tanto bastou para
que se decidisse a abalar. Convenceu-se até de que se
estava tornando razoável: desta vez é que era mesmo.
Quando o Encristado atingia o sopé do outeiro
de S. Bernardo, encontrou-se com dois guardas, a
cavalo, que vinham em sentido inverso. Olharam-no
muito, curiosos. Ele desviou a vista com desagrado.
Não gostava dos guardas em geral. Eram quase todos

<<galegos>>, homens de fora, grossos, vermelhos, como
aqueles dois, e com a farda que vestiam ganhavam
afoiteza, enxovalhavam, batiam. Seria por causa dos
tais espanhóis que eles vinham daquele lado. Falava-se
há tanto tempo da guerra! Para as bandas de Moura
parece que até soavam os canhões, segundo ouvira dizer
algures. A ele que se lhe dava a guerra !. . . Sabia de quem
resmoesse, como o mano Zé Sapateiro, que em chegando
os Espanhóis haviam os lavradores de puxar à canga.
Nem ele estava ao corrente de quais malhavam mais rijo
na altura : pouco se ralava com isso !. . . Nunca pensara
em assomar-se à janela do morgado. Às vezes sentia-se
pobre, condenado à pobreza. Mas não era <<invejoso>>. De
momento, pelo menos, sobravam-lhe alcantis e vales e
todos aqueles campos louros, de erva seca, que o rosilho
pisava e onde não estava inscrito o nome de ninguém.

O outeiro de S. Bernardo, que o Encristado agora
ia espiolhando com os olhos, nada apresentava na
verdade de muito particular: um cerro como os outros,
descoroçoante; sem as tintas da lonjura era fulvo,
pinturilado de pedregulhos, apenas maior que os circunvizinhos. Talvez na vertente oposta oferecesse novidade. Um atalho margeado de sarças caracoleava riba
acima. A meio da subida,' onde já apareciam escassas
azinheiras, uma piteira em flor erguia alto sobre a
paisagem quase nua o seu recorte exótico e garrido.
Adiante já não havia caminho: era um alcanchal.
la o Sol dobrando o dia sem nuvens e ao transmontar-se, numa rútila e lenta agonia, já muito baixo,
estirava-se no horizonte sobre um <<monte>> em ferradura todo branco.
Esporeando o cavalo, ora sustendo-o quando escorregava nos penedos, o Encristado lá foi acometendo
o cerro até à grimpa.
Horas depois, noite escura, noite de lua nova, lá
estava ele ainda, emonado, no mesmo sítio onde calhou
sentar-se, ao descer do rosilho.
- Bolas ! - pensava o Encristado. - Então isto é
que é o outeiro de S. Bernardo ?. . . E ele que antegozara
uma coisa em grande !. . .
Aferrado a uma esperança que não queria pôr
ainda em risco (mais que não fosse ver alguma coisa
diferente, um indício, receber um aviso daquela terra
misteriosa), deixava-se ficar.
Cabisbaixo, cismava.
Extraiu dum bolso da jaleca um maço de Provisórios, muito amachucado. Endireitou um dos cigarros
e acendeu-o, tapando com os dedos um rasgão da
mortalha. Podia conservar-se quieto grandes pedaços,
o olhar inexpressivo, endurecido.
- Alçará que descubra alguma coisa ! - decidiu,
sacudindo-se. Uma maneira de espalhar ideias incomodativas. O Encristado gostava pouco de magicar;
evitava sobretudo encarar-se: deliberar lucidamente,
julgar-se a si próprio ou a outrem que fosse, não lhe
sorria. Desanimar às primeiras, e depois insistir; ou
mudar de voo como ave esparvoada, e, já refeito, sem

cicatrizes, voltar ou tomar novos rumos - assim era
do seu modo.
Pôs-se a olhar a noite; não enxergava senão uns
metros em roda.
E ainda havia de escurecer mais. Vinham apenas
nascendo as estrelas.
Ergueu-se. Tirou o freio ao Falcão para o deixar
pastar da erva que topasse entre as rochas. Deitou
a mão ao alforge e alcançou o pão e um chouriço, mais
um saquito com azeitonas.
O pão, que era de trigo rijo, não tinha endurecido,
mas esfarelava-se. Com a navalha, a bem dizer um
facalhaz, começou a cortar o enchido, conforme ia
tasquinhando repousadamente.
Estava avezado a pernoitar no campo, mormente
de Verão. O melhor, em todo o caso, era ir para a vila.
Seria mais acertado. Ora ! Tanto fazia ! Sentia-se cansado. Estendeu a manta por terra e ajeitou-se para
dormir.
Bem que estropiado, não Lhe chegava o sono: remirava as estrelas, pequeninas, que tremeluziam na vasta
escuridão, altíssima e redonda.
O tempo fluía devagar.
?A súbitas, o Encristado, com o seu ouvido afinado,
percebeu uma restolhada por detrás daquela lomba.
Julgou distinguir vozes em surdina, ainda longe.
Pôs-se à escuta, apreensivo. Acudiram-lhe, de repente,
todas as histórias sinistras que corriam acerca da ruindade do outeiro.
O barulho partia justamente da encosta que ele
ainda não pesquisara.
Fincando as mãos nas fráguas, para se balançar
sem ruído, ou colando-se às penhas, engatinhando pelo
matagal, pronto logrou atingir o beirado da plataforma.
Três vultos vinham trepando cautelosamente. Ainda
não se lhes diferençavam as feições.
O Encristado abriu a navalha, mas, prudente,
ocultou-a, não lhe atirassem logo, vendo-o naqueles
preparos Quiçá não viriam de má-fé, apesar do cuidado
que punham em não fazer estrupido. Se adregasse
armar-se guerreia, estava amolado: se calha arrumavam-Lhe logo alguma eñxadada ou davam-lhe fogo
sem água-vai.
Notou então que havia no grupo uma mulher.
Entre aqueles malteses !. . .
Já tinham visto o cavalo. Lia-se-lhes nas caras o
medo.
O Encristado surdiu bruscamente detrás do moitão
onde estava amagado. Ficou a olhá-los, direito. Pressentia que não lhe fariam mal. Tinha quase a certeza.
Deu as boas-noites numa voz calma.
Sobressaltaram-se. Um dos homens puxou logo
por uma pistola, mas ficou quieto, à espera. Devia
ser um cigano, trigueiraço, vesgo, bexigoso, um cara
estanhada.
Foi a mulher quem rompeu o silêncio, admoestando
o companheiro :
- Déjalo, Mané. Que tontería!

E, dirigindo-se ao Encristado, explicou:
- Nosotros andamos perdidos por estes montes. . .
Abria muito as vogais, ao falar português, e, caprichando em pronunciar bem, molhava comicamente
os esses.
O Encristado sorriu, cheio de suficiência, apesar
do momento crítico.
-Então vossemecês são espanhóis? Eu cá não
lhes quero mal nenhum.
Os homens não deviam entendê-lo. Continuavam
receosos, prontos a deitarem-se a ele.
A mulher é que não parava de falar: que tivesse dó
deles, andavam à fome? vinham fugidos da guerra,
tinham-se perdido ; nem sabiam como ah haviam chegado.
- Venimos de cerca de Rosal-informava.-É uma
desgracia a nossa...
- Em vista disso, vou-lhes dar um pão - adiantou
o Encristado, para acalmar desconfianças.
Caminhou para o cavalo, mas sem os perder de olho.
- Pan?! - exclamou o cigano, sofregamente.
E, assim que lhe deram um pedaço, tanchou-lhe
os dentes, babando-se.
O outro comia com mais aprumo. Era um rapazote
loiro, de rosto sombrio, com um casaco de veludo
todo esburacado.
A mulher estava de brinca com o cavalo, já quase
alegre. Via-se, só de a olhar, que tivera outra criação.
Aceitou umas azeitonas, para conduto. Pôs grande
empenho em dizer a preceito:
- Obrigado.
-Onde é que vossemecê aprendeu a falar português? - inquiriu o Encristado, muito curioso.
- Fui professora de castelhano em Olivença. Fala-se
lá português. Djá falaba um pouquito, pero esqueci.
Ele ficou na mesma. Olivença?. . . Apenas reteve
que ela era professora: uma senhora fina. Embasbacou.
A espanhola, por sua vez, quis saber o que ele fazia
ali de noite.
- Ando de jornada - satisfez sucintamente.
Sentaram-se todos perto do cavalo, que se havia
deitado, mas parecia inquieto.
Os dois espanhóis observavam o Encristado, à
socapa. Via-se que nunca sossegavam.
A mulher narrava as peripécias da fuga, o receio
em que viviam de ser agarrados. Referiu-se a uma
ribeira, cuja correnteza haviam seguido e onde se tinham
escalavrado nos penhascos da margem. Ouvira nomeá-la.
Devia ser a Toitalga.
Depois, como o Encristado parecesse escutá-la com
interesse, animou-se a outras confidências: os companheiros eram anarquistas: um, o cigano, quase não
o conhecia; o outro era um operário de Sevilha, amigo
dos irmãos dela. Ela é que não tinha nada a ver com
a guerra : até os irmãos lhe metiam horror, que andavam
também lavados em sangue, como os fascistas. Não se
queria com políticas. . . Ganhara, porém, tanto medo,
vendo a família toda perseguida, que se deixara levar
por aquele amigo, a quem se figurava fácil passar a

fronteira a salto.
- Pois é uma desgrácia, lá isso é - concordava
o Encristado, sem mais que dizer.
Anarquistas - era coisa abstrusa para ele, palavra
a que não estava afeito. O cigano dava-lhe ares de malandro. Adregava ele de mexer-se, já o Encristado estava
em guarda, sem dar mostras disso. O outro, o senhorito,
mal que esfarrapado, tinha modos de artista, como
soem chamar-se os mesteirais nas vilas alentejanas.
Seria criatura ambiciosa, certamente. Um impostor.
Não Lhe caía muito em bem. Estranhava que se tratassem
por tu. E pressentia confusamente no rapazote louro,
sisudo, uma rigidez determinada e ardente, que o seu
individualismo selvagem não acolhia.
Com um negrume tão denso como era o daquela
noite, até quase não se distinguiam uns aos outros.
Enquanto a rapariga tentava colher informações
sobre possíveis itinerários e averiguar onde residiam
espanhóis capazes de lhes valerem, o Encristado ia-a
observando e demorava nela a vista gostosamente.
Desatento à conversa, ora dava de ombros em sinal de
ignorância, ora acenava com a cabeça afirmativamente,
esboçando um sorriso de ocasião : <<Veja lá vossemecê !. . .>>
Entretanto ia-lhe perscrutando a carne polpuda e morena, sorvia-lhe o olhar que a fadiga enlanguescera,
atrevia-se a espreitar-lhe as coxas penugentas, já mal
encobertas pela saia esfiampada.
- Desde luego - asseverou a espanhola, interrompendo-se - tivemos sorte em encontrá-lo.
O Encristado, a quem os agradecimentos sempre enleavam, mascavou uns sons vagos e desviou
a cabeça. Reparando ocasionalmente na manta, arredada uns passos do grupo, foi apanhá-la e ofereceu-a
à rapariga.
- Sempre fica mais cómoda. . .
Ela sorriu. Dava-se conta da impressão que lhe
produzia e isso não lhe desagradava. É que o Encristado
era um esquisito moço. Com aquele perfil recortado,
a pele cozida do sol, e uns olhos garços salpicados de
negro, ora ingénuo, sorrindo, ora insolente, porque o
seu modo era assim mesmo, seco e esticado como um
choupo, dir-se-ia trazer de nascença sinais de um misterioso destino. Tinha às vezes gestos de caravaneiro
vagabundo, de um alma perdida que se busca pelo
mundo. Botasse embora fala canhestra e traduzindo
ignorância, a verdade é que ela achava-o bizarro e
atraente.
Calaram-se todos por momentos.
Entanto não havia sonido que entrasse com a virgindade das trevas mornas. Uma grande serenidade ia
no campo. Recatadamente dormiam os pastos mirrados ;
e àqueles poisios caprichosos não amontava àquela
hora nem sombra de milheirinha. Mas na torva cobertura celeste, apenas alumiada pelas estrelas, impinguavam
umas insólitas manchas, mal perceptíveis à vista escruitadora do Encristado. Ou seria ilusão ?. . . Semelhavam
velhas almatrixas de pele. . . Ná !. . . Uma mondonga
duma nuvenzita sem prenúncio. . .

Animando-se, os dois espanhóis iniciaram uma discussão com a companheira.
O Encristado não percebia. Deduziu, porém, que
deviam perguntar-lhe se obtivera quaisquer informações.
Prosseguiam provavelmente falando das suas fezes.
Como raio teriam vindo justamente parar àquele outeiro ?
Sem dúvida por ser o mais alto e o mais rochoso - ponderou. Cuidavam-se ali seguros. Devia avisá-los - só
agora se lembrava - de que havia notícia deles, pois
que a velhota de tarde lhe fizera aquela conversa. Para
mais, tinha visto os guardas. Afinal, quanto aos espanhóis, estava-se nas tintas. Agora a moça !. . . Mesmo
eles : sempre eram homens. . . Uns desgraçados. . . O que
custava preveni-los ?. .
Nisto, o Falcão começou a relinchar.
Chiça ! As coisas acontecem assim ! Já era tarde
de mais.
- Acautelem-se - bradou o Encristado -, vêm aí
os gajos !
- Quienes? - interrogou o louraço, que o havia
percebido, levantando-se de pulo.
- Os guardas, homem. Escute. Não ouve os cascos
das bestas?
A rapariga traduziu. Pintava-se-lhes nos semblantes
acabados uma indizível angústia.
- Devem de ser muitos - presumiu o Encristado.
- Vêm fazer uma batida.
Já soava agora nitidamente o tropel dos cavalos.
O cigano levantou a voz, incitando os companheiros.
Queria fugir. Estava já de pistola na mão.
- Diga-lhe que não se safa com a pistola - aconselhou o Encristado, voltando-se para a mulher. - Só
fica mais mal se o agarram.
Ela assim fez.
- Mierda - volveu-lhe o matulo, que parecia uma
fera acuada.
A rapariga, trémula, agarrava-se ao outro espanhol,
que estava lívido, todo contraído.
- Santa Maria ! Tan pronto volvemos. . . - exclamou, deixando-se cair. E, de rastos, batia com a cabeça
no chão.
- O melhor será deixarem-se estar - disse o Encristado. - Se os vêem a fugir, podem dar fogo. . . Aí cercam eles o oiteiro!
O cigano, ouvindo-o ainda falar, sem entender patavina, deitou-lhe um olhar de raiva.
Os guardas subiam o cabeço à carga. Abrandaram,
ao meter pelo alcanchal. Vinham outros do lado contrário. Instantes depois assomavam-se à plataforma.

Eram mais de meia dúzia. Desmontaram. Todos traziam
carabinas e revólveres.

O cigano tinha-se sentado: chorava. O sevilhano
sustinha a mulher, que parecia atordoada.
O Encristado aguardava. O rosilho, que se havia
erguido e viera para o pé dele, ameaçava espantar-se.
Os espanhóis deixaram-se prender, sem resistência.
Dois dos guardas avançaram para o Encristado,

reconhecendo-o :
- Olha quem ele é! Não foi este que a gente viu há
bocado?
Eram os mesmos com quem se cruzara de tarde.
Um deles, considerando-o suspeitosamente, disse:
-É tudo a mesma corja! Bandeiam-se uns com
os outros !
-Oiça, senhor guarda: eu não tenho nada a ver
com isto. Dei com eles aqui por acaso.
- Cala-te. Ainda não te mandei falar - intimidou
o mais vermelhudo.
O Encristado resmungou baixinho, revoltado e com
um medo raivoso a transformar-se em ódio.
- É verdade o que ele diz - apoiou a rapariga, com
energia. Eram as primeiras palavras que pro?eria desde
a chegada dos guardas.
Estes olharam-na, interditos. Ela voltou então a
explicar, fatigadamente, que tinha aprendido português;
e contou como haviam encontrado naquele cerro um
desconhecido.
Desde o momento da captura, os espanhóis tinham
serenado: conservavam uma atitude passiva e composta,
à excepção do cigano, ora furioso, ora amedrontado.
Um dos guardas, ainda novo e que parecia além
disso mais brando, observando o Encristado sem animosidade e como o trajo dele não denotasse um malfeitor,
senão um homem do campo de medianas posses, intrometeu-se e ordenou :
- Mostre lá os seus papéis.
Examinou-os e, restituindo-lhos, admoestou-o por
simples formalidade :
-Vocês não querem acreditar-se que não gozam
com a gente. Vá-se lá embora por esta vez. . . Não resmungue. Ponha-se a andar.
O Encristado, muito pálido, relanceou por todos eles
um olhar de ódio. Colheu as rédeas do cavalo, deu-lhes
um esticão; ia abalar, encosta abaixo, para as bandas
da noite mais escura: encontrou o olhar da espanhola,
compadecido, quase carinhoso. <<E ela que estava de
marcha para pior!>> Partiu ferido daquele olhar, que era
uma espada que levava na garganta.
Praguejava baixinho, numa raiva concentrada.
Ah ! Se tivesse uma arma de fogo !. . .
Picava-se nos cardos e nas silvas: nem dava sentido
do quer que fosse; encontroava-se com os penedos,
tropeçava.
- Vou ainda ver se há por ali mais alguns - ouviu
gritar lá de cima. - Podem seguir, que já os agarro.
Era a voz de um dos guardas que o tinham insultado.
O Encristado parou, automaticamente. Não havia
força que dali o arrancasse. Cuidava que seria um
cagarola, um desbrioso, se desatasse a fugir lá porque
o gordo vinha para aquele lado. Sentia-se vexado,
esfrangalhado - e impotente.
Não tardou o outro a dar com ele. Porque o tomara
assim de ponta?
- Olá !. . . - chasqueou, com um riso manhoso na
cara vermelhusca.

E logo, ameaçador, o invectivou:
- Então ainda andas por aqui? O que é que andas
a cheiriscar? Vê lá. . . que amda as provas. . .
- Astreva-se - ripostou o Encristado, branco de
cólera.
E como o outro prontamente erguesse o sabre,
esquivou, formou o pulo e, lançando-se a ele, deitou-lhe
as mãos aos gorgomilhos, baldeando-o do cavalo. Já não
o largava. Tapou-lhe a boca, para o impedir de gritar.
deu-lhe tanta punhada na cara que, por fim, o
? guarda, todo lacerado, implorava, falando a custo:
- Solte-me, homem, por amor de Deus.
- Ah! Agora já tem avondo?. . - casquinou por
sua vez, desapiedado. E continuava a moê-lo de pancadas, à toa.
Finalmente, deixou-o. O homem tinha perdido
o a?cordo.
O Encristado olhou-o friamente. Limitou-se a tirar-lhe a espingarda, que ele trazia a tiracolo.
Estava metido numa realíssima enrascada - pensou.
Era homem foito, pois bem, mas desamador de
sangueiras. Se não fosse isso. . . Ou seria medo ?. . . Com
aquela arma que tinha nas unhas, se ele fosse desencravado, ainda livrava a moça !. . . Carago ! Já estava
bem amanhado de qualquer maneira !. . .
? Foi um impulso que Lhe deu: não resolveu nada,
não premeditou coisa alguma; pôs a espingarda a
tiracolo, caminhou para o rosilho e deitou-lhe a mão
às crinas; eia, em sela, na sua cadeira; meteu esporas
à barriga do cavalo e largou a fugir, desalvorado, a
corta-mato.
Nem distinguia as árvores; forcejava unicamente por
se arredar do caminho que a tropa haveria tomado.
Contava ir muito de volta e ultrapassá-los, surpreendê-los.
Era um projecto vago: depois veria se os tinha no seu
lugar !
Tentava dominar o tremor que o invadia, apertando
os queixos com força.
Agora é que o Falcão merecia o nome: galopava
tão depressa e tinha tamanho alcance que o Encristado
recebia pela cara, continuamente, chapadas de um
vento aguilhoante que lhe cortava a respiração; e, como
houvesse perdido o chapéu, doidejavam-Lhe os cabelos
em fúria.
Também lhe saltavam as entranhas e a cada sacão
mais duro entrava-lhe com o peito uma dor aguda,
à esquerda.
Mas não abrandava, não se detinha. O Falcão voava; - Estou
tramado - deduziu o Encristado, tão calo magano não tinha idade: pulava barrancos como um m?ente que
isso lhe causou espanto.
poldro cheio de sangue; ia cego na carreira. O Encristado
era vertiginoso. O cavalo do guarda parecia
tado só tinha que evitar as pernadas dos chaparros, ?o?e,
prestes a desabar sobre ele. As ferraduras
juntando a cabeça ao pescoço do rosilho. E ate nem deitavam
lume.
levava verdasca: aquilo é que era correr. Disparou pela

segunda vez. Atingida a meio dos
Conforme lobrigou a atalaia, susteve um pouco peitos, a
alimária emborcou e caiu depois para o lado,
o cavalo ; voltaram-lhe as tremuras : agora é que havia
torcendo-se, enquanto o guarda, que se destribara a
de ser. Encaminhou-o para o rio, a trote largo. te?po,
engatinhava dificilmente, procurando afastar-se.
Parou junto dum loendreiro, no meio da cascalheira. ?evla
ter fracturado uma perna.
Não podiam ainda ter passado. Dirigiu-se para o juncal, Os
outros apontaram novamente. Houve um grande
mesmo à beira de água, onde se abrigou, forçando o estrondo:
os tiros foram quase simultâneos.
cavalo a deitar-se. Todos estes gestos eram instintivos. , O
Encristado sentiu uma valente pancada no ombro ;
Quinze minutos decorridos, denunciava-se-lhe ao ?al lhe
doía, mas caiu, sem saber como, e largou a espinouvido a comitiva, que vinha em marcha repousada garda. Viu um
cavalo de estrelas ladeando na abóbada
pelo atalho, a uns vinte metros. Se houvessem demorado
nocturna. Que esquisito ?. . .
mais, já ele não aguentava : teria partido. Ouviu o galope de
muitas bestas, cada vez mais perto.
Os espanhóis caminhavam à frente, guardados pelos Recebeu
outro choque, no peito. Entrou-lhe um
canos das espingardas. A rapariga vinha trôpega, cam- grande
clarão aos olhos; pendeu a cabeça para a terra.
baleando: uma lamentável silhueta de fatahdade e Os guardas
aproximaram-se e desmontaram. Curvacansaço. ram-se sobre ele. Enlambuzaram as mãos de sangue
Se atirasse para o ar?. . . - meditou o Encristado. ao
tocarem-lhe.
- Estes gajos no fundo são uns maricas. . . - Claro ! Quem
havia de ser !
- Alto aí - gritou. - Está pronto - considerou um deles.
exami E deu fogo. nando-o.
Colhidos de surpresa, dois dos guardas retrocederam. - Olha,
traz a espingarda do Toino. Ora gaita ?
Encalhavam uns nos outros. Um dos cavalos cangochou. É capaz
de o ter matado. Eu bem estranhava ele ainda
Os espanhóis, paralisados pela emoção não buliam. não nos ter
apanhado.

Então, o mais novo dos guardas, picado de brios e - Já vou por
ele - declarou o primeiro, com mossentindo que havia um dever a cumprir, lançou-se tras de
aflição, afastando-se imediatamente rés da água,
à carga pela praia de cascalho, direito ao maciço de com o
cavalo à rédea.
onde viera o tiro. Imediatamente os outros visaram - Real
cabrão ! - concluiu o mais mendinho, em ' purrando com um pé o corpo do Encristado para a beira
apoiando-lhe a investida, porém com tento em não do rio.
o atingirem. As balas passaram alto, à excepção de uma Amanhã se vem buscar.
que embateu no solo, perto do Encristado. Foram juntar-se ao
companheiro que tinha ficado no
O Falcão ergueu-se de repente, e afastou-se, relin- atalho,

vigiando os espanhóis. De caminho, tiveram de
chando. ? amparar o do cavalo morto, que não podia quase
andar.

I 70

I



- A culpa também é tua - foram-lhe dizendo.
- Não o deixasses ainda agora ir-se, quando a gente TENSÃO
o queria prender.
O ferido era justamente aquele que havia pouco,
no seu modo rude, valera ao Encristado, lá no outeiro
de S. Bernardo.
Ajudaram-no a subir para a garupa dum cavalo,
onde iria melhor, agarrado ao colega que guiava.
E o grupo pôs-se de novo em movimento, silenciosamente. Captores e prisioneiros, todos acusavam a fadiga
e as emoções.
Passou algum tempo.
O céu estava subindo, subindo, cada vez ficava mais
longe ; já não era redondo : alguém o puxava pelo meio
e aquela borracha preta engelhava, tremia em pregas,
e as luzinhas desandavam como um rebanho espantado. . .
O Encristado olhava o último céu com os seus verdes
olhos moribundos, que se iam vidrando. Tinha uma das
mãos na água do rio e não podia mexê-la. Água múrmura
do rio. . . dum rio alentejano. . . Era fresca. O Encristado
sorriu e fechou os olhos.

A António Coimbra Martins

- Então? Boas notícias? - perguntava ele, com
sorriso prazenteiro, a disfarçar a ansiedade em que
?tardava a resposta. Resposta esta que vinha também
um sorriso forçadamente despreocupado, todos os dias
igual: <<Nada de novo.>>
Não podiam esperar mais. Era preciso agir. Agir. . .
Naquela terra onde quase não conheciam ninguém. . .
Só agora Eduardo se dava conta disso. Os membros
da colónia portuguesa eram inabordáveis. Por tantas
razões. . . E os belgas, não os conhecia. Podia facilmente
cair sob a alçada da lei>>, como rezava a prosa dos
jornais. . . Verificava que não tinha um só amigo. Antevia
o escândalo, a sua situação comprometida. . . Um passo
em falso e estavam perdidos.
Ester reagia bem. Parecia até menos preocupada
do que ele. Ainda não perdera o sangue-frio. Continuava a olhá-lo com o mesmo olhar dourado, submisso,
docemente risonho, docemente confiante. Contudo, era
ela quem mais arriscava.
Quer a visse em público, quer se encontrassem a sós,
o olhar ávido de Eduardo, carregado de espera e de
inquietação, interrogava-a logo, implorava aquele <<finalmente !>> que o tranquilizaria. Mas por detrás do corajoso sorriso dela havia um encolher de ombros, que dizia
sempre : << Na mesma. . . >>
? Se <<aquilo>> acontecesse, pobre Ester, ficaria com
a vida completamente arruinada. Tinham de acabar
com aquela tensão.
Ester, que viera apenas por dois meses à Bélgica,
habitava em casa duns amigos portugueses. Eduardo,
incapaz de disfarçar a voz, já receava telefonar-lhe,
de tanto que o fazia ultimamente. Evitava despertar

suspeitas. Bem bastava o resto. . .
Como partilhava o appartement com um amigo,
nem sempre podiam servir-se dele. Recebê-la no hotel,
seria uma loucura. Com toda aquela gente conhecida
que se cruzava fatalmente na escada e nos corredores !. .
Avistavam-se agora, em geral, duas vezes por dia.
A aflição em que viviam ligava-os mais do que antes
os ligava o entendimento carnal. <<Uma aventura!>>
pensava Eduardo. <<O que é uma aventura? uma palavra
cómoda para adormecer a consciência.>> Classificava-se
assim uma revolução profunda na vida duma mulher,
porque o rótulo consagrado bania os escrúpulos arreliadores, clarificava a situação. Ficara assente, desde a
primeira hora, ainda antes dos beijos, que nada mais
os ligaria do que uma camaradagem sensual - aquele
desejo forte que teriam um do outro e uma afeição
lúcida, sem amor, no sentido perigoso de sentimento
que exige eternidade. Eduardo é que definira os termos
desse pacto, numa voz suave, cariciosa, que iludia
a secura desumana do contrato. Entendia ele que assim
e só assim é que era franco e honesto. Ester limitara-se
a consentir, com um sorriso levemente melancólico,
levemente irónico. Confessara-Lhe todavia que já antes,
muito antes, em Lisboa, encontrando-se um dia numa
conferência atrás dele, sentira uma vontade absurda,
que reprimira, de lhe correr a mão pelos cabelos. Insólita
ternura, que a não impedira, e amda bem, de casar,
sensatamente - reflectia Eduardo. O marido, austero
oficial de marinha, que os amigos tinham na conta
de insípido e opinante, partira um ano antes para o
Extremo Oriente, e Ester, sem filhos, nem parentes
que a prendessem, resolvera-se, por fim, havia dois meses,
a fazer uma viagem de recreio. Viera, por acaso (quem
poderia afirmá-lo?), à Bélgica, onde Eduardo, diplomata de carreira, gravitava na órbita da colónia portuguesa, desempenhando funções que o obrigavam a uma
conduta <<decente>>.
Os despropósitos românticos em que Ester, apesar
de tudo, ocorria nos primeiros tempos, pequenas
confissões de ternura excessiva, confidências vagamente
_,perturbantes, foram-se transformando, no ciclo que
depois chamariam <<do appartement>>, em pura sensualidade, dentro da regra ; e Eduardo já não lhe vislumbrava
nos olhos, agora raiados de sol aquelas sombras que a
princípio ameaçavam vir a desfazer-se em lágrimas
de amor. Ester aceitava o jogo. Talvez gostasse menos
dele... Eduardo, cujo orgulho masculino se insurgia
ilogicamente contra as suas próprias conveniências, que
residiriam em poupar-se a complicações, às vezes tentava
sondá-la. Mas, em geral, evitava a aproximação espiritual. Entregavam-se aos sentidos. Ester conhecia pela
primeira vez o prazer. E essa revelação transformava-a.
O marido, em três anos de calmo matrimónio, tinha
buscado nela digna e espaçadamente a sua migalha de
satisfação. Deixara-a sempre correctamente fria, consentânea e decorosamente desinteressada.
? Nos momentos de lânguido abandono que sucediam
ao <<amor>>, Eduardo frustrava-lhe os já raros transportes

afectivos. Preferia interessá-la, como antídoto, e cada
vez mais, nos requintes da vida erótica, por meio de
novas experiências. em que aliás não punha inteira
convicção. Contava-Lhe adrede anedotas escabrosas, no
seu tom de voz sempre sereno e suave. Falavam mais
dos outros do que deles próprios. Criticavam os portugueses de Bruxelas, recordavam os amigos comuns de
Lisboa. Para fugir ao perigo da emoção, Eduardo forçava-se constantemente ao comentário espirituoso, à ironia
precavida. E neste modo ligeiro, como dois camaradas,
conversavam, passeavam, riam, questionavam ; mas abraçavam-se, ela sobretudo, com paixão.
O appartement não era completamente independente.
Um casal de velhos, fantasmático, surgia às vezes,
com um ar afrontosamente discreto, no corredor que
tinham de atravessar para chegarem à casa de banho.
Uma vez, Ester, esquecida da presença sempre silenciosa
daquele casal, saiu do quarto quase nua. rindo à gargalhada, envolta numa colcha que lhe caía até aos pés
em pregas de túnica romana. Apareceu-Lhe a velha no
corredor, arrastando as alpargatas, e logo se desviou,
num sorriso lívido, de sinistra cumplicidade. De outra
vez queimaram um lençol com os cigarros e foi então
o velhote quem chamou de parte <<Monsieur de Vasconcelos>>, para lhe pedir, com uma firmeza cortês, que
tivesse a bondade de reparar o prejuízo.
Quando se esqueciam de deixar as janelas abertas,
no dia seguinte a sala e o quarto cheiravam a bafio.
Além disso, havia os outros, o amigo de Eduardo e as
mulheres que ali o acompanhavam e que deixavam
amiúde vestígios chocantes de intimidade, próprios
de casa de passe.
Mas, tudo isso e o calor, e os moradores daquela
ruazita, que começavam a conhecê-los e a espiá-los
à chegada e à partida, que importava tudo isso se Ester
era feliz?. . .
Depois, veio <<aquilo>>. a suspeita, a ameaça de que
fosse realmente <<aquilo>>. Num ponto estavam, haviam
estado sempre de acordo, em que tal coisa não podia,
não devia acontecer.
Ester mantinha-se relativamente calma.
- Não te aflijas ! - recomendava-lhe Eduardo, desejoso de poupar-lhe, a ela ao menos, a angústia que ele
já experimentava.
- Tenho confiança em ti - respondia ela. E, vendo-o um pouco transtornado, animava-o com a sua inalterável presença de espírito, corajosamente conseguida.
Era um ponto de honra, para ambos, não lastimarem
nunca o sucedido, não se acusarem um ao outro, acontecesse o que acontecesse.
- Há uma divisa espanhola que sempre admirei:
<<A lo hecho, pecho !>> Vou adoptá-la - disse um dia Ester,
olhando de frente para Eduardo, com um olhar levemente
excitado, a cabecita espirituosa atirada para trás, os
beiços um pouco trémulos de comoção.
.? Deixa, tudo se há-de arranjar - tranquilizou-a
Eduardo, beijando-a nos olhos e na testa, com ternura.
? Durante perto de dois meses negara-lhe essa ternura,

se insinuava agora entre eles. Sentia-se obrigado
a ? uma atitude mais gentil, mais caridosa, vendo-a em
" apuros, fraca e desamparada. Depois, naturalmente,
o que ainda era piedade e solidariedade transformou-se
?um grande carinho, que começou a invadi-lo, a enchê-lo,
de envolta com o desejo imenso de a ajudar, de a salvar,
desse por onde desse.
<<Não gosto dela, é certo>>, pensava Eduardo. <<Não
lhe tenho amor, mas. . .>> O escândalo arruinaria com
certeza a sua carreira e semelhante hipótese também
o preocupava; arreliava-o, porém, infinitamente mais
a ideia do que ela poderia vir a sofrer, se as coisas se não
resolvessem.
E Bruxelas era hostil. <<Raio de terra !>> Não conhecia
ali ninguém, ninguém que pudesse ajudá-lo. Adivinhava,
pressentia, ao menor gesto que fizesse, a um passo
a que se determinasse, emboscadas traiçoeiras, recusas;
debatia-se constantemente com os seus pensamentos,
em volta <<daquilo>>. inerte e ansioso de agir, esperando
ainda um milagre.

Nos últimos tempos encontravam-se com frequência
até de noite. Juntos, a tensão contínua em que viviam
diminuía. Encorajavam-se mutuamente. Marcavam esses
encontros ou para os lados da Gare do Sul, zona escura
da cidade, ou nos cafés pacatos que ficavam por detrás
da Bolsa, ponto central e sem o movimento da luminosa
Place de Brucker ou do aristocrático Boulevard Adolphe
Max.
Ester chegou adiantada ao rendez-vous. Olhou para
o relógio de pulso, que marcava dez horas. Eduardo
só chegaria às dez e meia. Não se sentia capaz de o
esperar, imóvel, a uma mesa, diante de uma chávena
de café, que não beberia, como de outras vezes, a pensar
inutilmente no seu caso. Contornou a massa sombria
da Bolsa e dirigiu-se para a Grand-Place, a dois minutos
dali. Aquela igreja atarracada, à esquerda, com a fachada
escondida num córtice de hera, intrigara-a na sua primeira noite de Bruxelas, quando Eduardo, entusiasmado, a trouxera direita à Grand'Place, que era - dizia
ele - um coração de pedra' na cidade, visita obrigatória
e inadiável dos peregrinos da sensação.
Ester, à entrada da praça, via a Lua ainda a subir,
por entre as nuvens, no céu de laca negra; o Hôtel de
Ville alteando-se, com o agudo beffroi apontado para
a cúpula da noite e todo em lavores góticos, que pareciam
de prata e de marfim; uma luz leitosa a envolver os
coruchéus ; e por todo o lado, na Maison du Roi, rasgada
em arcos flamejantes, nas colunatas, nos torreões, nas
esculturas dos nichos, nas rendilhadas casas das antigas
corporações, aquela mesma pedra veludosa, embaciada
de sonho, que dois meses antes a transportara numa
alegria dulcíssima e casta, das mais puras que jamais
experimentara, enquanto Eduardo, em cujo ombro ela
se apoiava, Lhe fornecia, a rigor, explicações históricas,
muito compenetrado das suas obrigações de <<guia>>
consciencioso. Voltara depois várias vezes, sozinha,
à Grand'Place, até de manhã, à hora do mercado das

flores. E agora o que sentia, olhando, como sonâmbula,
a mesma praça sem encanto, era a impressão de que
nada daquilo já lhe respeitava. Desde que as <<suspeitas>>
se haviam praticamente confirmado, vivia num mundo
sem cores, sem objectos exteriores.
Tornou a espreitar o relógio: ainda faltavam vinte
e sete minutos. Talvez ele chegasse também antes da
hora. . . Avançou maquinalmente até meio da praça, onde
estacionavam automóveis alinhados. A cada momento
surgiam novos grupos de turistas, que logo se espalhavam
pelo largo, buscando a melhor perspectiva. Ester mal
os via, através de uma cortina de espessa indiferença.
Nem sempre lhe fora tão fácil obter a companhia
de Eduardo. Uma semana depois de haverem começado,
já ele se escusava de não poder acompanhá-la mais.
Afazeres, obrigações mundanas. . . Além disso, não queria
comprometê-la. Ela é que estava sempre disposta a pôr
de lado todas as cautelas, a vencer todos os obstáculos
e aborrecimentos, para conseguir durante algum tempo
a presença dele. Aqueles cuidados, quase excessivos,
com a sua reputação e, sobretudo, o modo dele, atencioso,
porventura em demasia, seguro, desprendido, ligeiramente protector, a facilidade com que se recusava,
adiando, pelo telefone, uma entrevista ou um almoço
(quantas vezes o via só no appartement) - tudo isso
a levara a concluir que não representava para ele efectivamente mais do que uma tranquila e agradável <<aventura de Verão>>, mero entretenimento carnal. Agora
a atmosfera transformara-se : eram aliados. Caíra sobre
eles a fatalidade. E Eduardo mudara, não havia dúvida. . .
Das poucas vezes, bem poucas afinal, que tinham
passeado juntos, sem estranhos, guardava recordações
que o medo do futuro não havia de infectar, aquele
sórdido medo, deprimente, aviltante, contra o qual ela
lutava, que não havia de vergá-la. . .
Quando o convencia a sair com ela, Eduardo preferia
levá-la de automóvel (e que bem ele guiava!) para fora
da cidade. Nunca se preocupava com despesas, lá isso não,
embora a carreira diplomática não fosse, sob o aspecto
pecuniário - dizia ele a rir -, <<um mar de rosas>>.
Ester lembrava-se, com um vago desdém, sem animosidade, de que o marido costumava desligar o motor
do carro nas descidas, para poupar a gasolina.
Assim conhecera a assombrosa Catedral de Malines,
e Waterloo, Melsbroek, a verde floresta de Soignes,
de tremulosas faias chorando luz. Acontecia irem apenas
ao aeroporto tomar um drink, assistir à largada de um
avião; ou rolavam, sem destino, pela pista das auto-estradas. O essencial era estar com ele. Vira distraidamente os cabeços emplumados da Valónia e a zona
industrial do Sul da Bélgica, com escuras aldeias de
tijolo, cobertas de ardósia, e com enormes pirâmides
de carvão, no meio de prados bovinos e frescos bosques.
Eduardo tornava-se, de um modo indefinível, menos
distante. Parecia, às vezes, um adolescente. Fazia loucas
ultrapassagens, espectaculares. A velocidade embriagava-o. E a Bélgica era tão pequena ! Dava-se-lhe a volta
num ápice.

Haviam-se banhado no mar do Norte, em Ostende.
Mas, daqueles passeios, que ela achara demasiado curtos
e espaçados, o dia inesquecível fora o da ida a Gand e a
Bruges. A partida, quase amuara com o tempo, mormacento, que prometia chuviscos. Mas Eduardo acordara
bem disposto. Beijara-a na boca mais do que habitualmente e até, com insistência, num sinal que ela tinha
à nascença dum seio. <<Trazes hoje um decote convidativo !. . .>> Que não se ralasse com a chuva : para ver
Bruges era até preferível. Agradara-se do vestido dela,
que lhe descobria por completo os ombros aloirados
pelo sol das praias. Dissera-lhe mesmo um galante?o,
a respeito do decote e dos seios. Ester achava-os descaídos, quase se envergonhava deles. Mas sentira-se feliz.
Eram tão raros os cumprimentos que Eduardo lhe
dirigia! Tinham almoçado em Gand, onde já se falava
flamengo. A paisagem da Flandres, plana, hortaliceira,
quadriculada, desenxabida, não conseguira interessá-la.
Eduardo já a havia prevenido. Além disso, as casas
sucediam-se, à beira da auto-estrada, terra domesticada,
inautêntica; e ambos caprichavam em depreciar, como
cenário, o que não fossem vastidões desabitadas. Ainda
preferiam àquele panorama <<burguês>> os relevos arborizados do Brabante, mais próximo dos extensos relvados
e das florestas decorativas do Norte da França. De vez
em quando Eduardo afrouxava o andamento, para lhe
apontar um campo de linho, uma estufa com flores,
ou aquela aldeia de que já lhe falara, onde se faziam
quadros efémeros com areia de várias cores, obra de
paciência, que podia ser, caso valesse a pena. fixada
por meio dum produto químico. Não chegava a parar.
Não estaria para isso, devia conhecer sobe?amente tudo
o que se mostra aos turistas. . .
Mas, em Gand, Eduardo ainda se entusiasmara.
Como aquela excursão os aproximava ! Gostaram ambos
das velhas pedras. Tinham visitado o tenebroso castelo
de Gérard le Diable; a igreja de Saint-Bavon, onde Ester
descobria o estilo brabancão ? e o famoso Cais das Ervas,
com as suas casinhas de tijolo amarelado pelos séculos,
fendidas em minúsculas janelas medievais. Haviam
passeado, de braço dado, pelo cais; e Eduardo até lhe
descrevera, pela primeira vez, a família dele: parecia
verdadeiramente tomá-la a sério. . . Depois, fora Bruges,
sob a chuva refrescante, com os seus beffrois e os doloridos canais, verdes, parados. impondo-Lhes um silêncio
cheio de sensações, que ela só interrompera com exclamações de irreprimível admiração na praça do Hôtel
de Ville, toda em pedra florida, estrídula de oiros e arabescos como um som de clarim.
Depois daquele passeio, pouco depois, haviam começado as preocupações. <<Tudo se paga neste mundo.>>
Sim, o prazer paga-se bem caro. Mas não estava arrependida, não, não estava arrependida.
Ainda tinha conseguido persuadir Eduardo a almoçar
com ela um dia em Bruxelas, num pequeno restaurante
próximo do Palais de Justice, monstro solene de cujo
miradouro haviam contemplado a cidade fosca, arremedo de Paris. Mas faltava-Lhes já a alegria. Roía-os

a ambos o medo. Eduardo não era afinal um homem
habituado a <<aventuras galantes>>. Antes assim ! Sentia-o
atrapalhado, sem expediente, mas acreditava piamente
na coragem dele. Tudo acabaria por se resolver. Era
triste, não obstante, era sórdido, doloroso. . . Porque
havia <<aquilo>> de acontecer-lhe?. . .
Não chegara a visitar os <<cafés>> pitorescos da Estação
do Norte, baiucas mal frequentadas que Eduardo prometera mostrar-lhe. Que importava isso agora? Nem a
manhã que passara no Museu com os seus velhos amigos
Van Dick, Jordaens, Tyerri Bouts e Pieter de Hooch,
nem essa manhã, confusa de cores, escapara ao grasnar
daqueles pensamentos. Não obstante, tinham ainda
continuado a ir ao appartement, até Eduardo lhe significar
tacitamente que esse período acabara. Haviam apodrecido <<naquilo>> as horas de gozo, que ela não queria
renegar. Coisa estúpida! Como o desastre se dera,
apesar das precauções !. . .
Nunca mais lá voltariam?.. Eduardo ficara, com
certeza, sem vontade de se meter noutra. Que intenções
seriam as dele? Se é que podia sequer pensar lucidamente
no futuro. . .
Levavam já dois meses naquele convívio. Custava-lhe
a admitir a ideia de um futuro de onde ele desaparecesse
por completo.
Pela terceira vez, viu as horas no pequeno relógio
de pulso. Faltavam ainda cinco minutos. Talvez ele já
tivesse chegado. Sem dar quase por isso, ladeara o Hôtel
de Ville e achava-se à entrada da pequena praça do
Manneken Pisse, que vertia inocentemente o recheio do
seu roliço ventre de pedra para um grupo de <<papalvos>>
estrangeiros, que ali se instruíam das maravilhas do
mundo e riam, muito deliciados, da facécia do escultor.
Ester tornou, a toda a pressa, para o café.

Eduardo esperava-a, amarrotando nervosamente um
jornal, numa das mesas mais próximas da porta. Para
não se demorar, quando ela aparecesse, já pagara
a cerveja. As bebidas alcoólicas estavam proibidas na
Bélgica, excepto em reuniões privadas.
Assim que a viu, correu a cumprimentá-la e arrastou-a para fora, dando-lhe o braço, o que nem sempre fazia. Falou-lhe em voz baixa, embora os transeuntes
presumivelmente não compreendessem português. Ester
empalideceu, ficou muito séria, mas não perdeu a
calma.
- Tem de ser - insistiu Eduardo. - Não há outro
recurso. Para que havemos de esperar mais? Vamos
liquidar isto.
- Está bem - concordou ela. E conseguiu sorrir.
?- Não contava que fosse hoje, a esta hora. . .
- Foi a hora que ela marcou. . . Como já te mudaste
para o hotel (não é assim ?), aceitei, em princípio. . . Mas
posso ainda telefonar. se quiseres. . .
- Não. . . Uma vez que já estou instalada no? hotel. . .
Os amigos de Ester, um casal com duas crianças,
tinham partido na véspera para Portugal onde iam passar

o fim da temporada. Haviam-na convidado a acompanhá-los: sempre seria mais agradável do que o comboio,
<<que era mesmo uma estafação>>. Ela desculpara-se.
Que ainda não se cansara da Bélgica, queria aproveitar
bem aquele intervalo da sua vida, para ver coisas diferentes. . .
Nesse caso, é claro, continuaria, sem cerimónia,
na casa deles. Mas Ester recusara também essa gentileza.
Mudar-se-ia para o hotel. Pelo tempo que permaneceria
_ em Bruxelas. . . De resto, talvez fosse à Holanda ou
a Anvers. Tinham estranhado um pouco aquela obstinação, mas conheciam-lhe o feitio independente e, como
pessoas educadas, compreensivas, não haviam insistido.
Eduardo fez sinal a um táxi, grande viatura antiquada,
chocalhante. Deu a direcção da rua, mas não indicou
número. Mandá-lo-ia parar um pouco antes. Não que ria chamar as atenções. Antes excesso de prudência. . .
- E o teu carro ? - perguntou Ester. - Porque não
o trouxeste ?
Ele contou que tivera um pequeno acidente, sem importância. Ainda se magoara numa perna. O automóvel
estava a consertar, ficara com um semieixo partido. Eram
umas atrás das outras. . . Andava mesmo com os nervos
num feixe. Arrependeu-se, porém, logo da frase. Que
momento bem escolhido para se carpir!
Percorreram ainda uns quantos metros a pé, depois
de despedirem o táxi.
Ester agarrava-se-lhe ao braço. Tinha medo. medo
físico. Por fim, logrou um sorriso que pretendia exprimir
optimismo.
- Onde é que me esperas?
Eduardo apontou-lhe um café quase fronteiro. Era
contra-indicado deixar-se enternecer. Empurrou-a, brandamente. Voltou-se ainda e viu-a entrar, desaparecer.
<<E se nunca mais a vejo?>
Que absurdo ! Passavam por ali tantas, e escapavam. . .
Tinham-lhe garantido que tudo correria bem, que não
havia perigo. Mas. . . <<Quem sabe?>> Num instante
cobrira-se de suores frios. Gotas geladas deslizavam-lhe
ao longo das pernas. Era a vez de ele ter medo.
O criado aproximou-se, inquisitorial.
Eduardo fitou-o, como espantado, em silêncio;
gaguejou, pediu uma água mineral.
Se o coração falhasse. se ela não voltasse, seria
cúmplice de um crime, desmascarado, perseguido. Ele
próprio se acusaria. Só a vida dela contava, uma vida,
a vida dela, dela, dela.
Relanceou o olhar pelo café, onde alguns operários
jogavam às cartas, e encontrou em todos os rostos
a reprovação que o aguardava. Consultou o relógio.
De minuto a minuto, tornava a olhá-lo, suplicante,
alucinadamente. Decorreu assim um quarto de hora,
meia hora.
Enfim, avistou-a na rua. à porta, espreitando. Parecia
exausta. Eduardo levantou-se. Por pouco não derrubava
uma cadeira. Enlaçou-a pelos ombros. Pegava-lhe como
num objecto frágil, delicada, ansiosamente.
- Então ? Como te sentes ?
- Arranja-me um táxi. Tenho receio de desmaiar.

Não te assustes. Estou bem. Acabou-se, pronto, não
faças essa cara.
Não aparecia nenhum táxi. <<Que falta de lembrança
não haver conservado o outro !>> Eduardo desesperava-se.
- Fica aqui. Não te mexas. - E corricava pelas
ruas transversais, retrocedia, mordia os lábios de raiva
impotente. Tudo parado, adormecido. Ruas adversas
e escuras, com raros candeeiros, que destilavam um
funesto livor. Até que um táxi surgiu finalmente.
Pararam ainda numa farmácia, para comprarem
um saco de borracha, que Eduardo foi encher de gelo
a um café vizinho.
- Sofreste muito ?
- Não. . . creio que não. Amanhã deve ser pior.
Como já era tarde, separaram-se no vestíbulo do
hotel. O veilleur de nuit mirava-os com desconfiança.
-Tens telefone no quarto?
- Mesmo ao lado da cama.
- Então, já sabes, se não te sentires bem, falas-me.
Tomo logo providências.
- Como ?
- Sei lá !. . . Hei-de encontrar alguém. Não hesites :
telefona. Não há-de haver nada, é claro. Mas, se houver,
não armes em forte. Se eu pudesse ao menos ficar contigo!...
- Está descansado, avisava-te : não quero morrer.
Mas não te apoquentes. Vais ver: vou passar uma noite
sossegada.
Foi uma noite horrível para ambos. Ester teve dores
violentas e febre, mas, como a temperatura não excedia
os trinta e oito, não quis alarmá-lo. Para quê? Aquele
seu estado devia ser normal. Esgotada, acabou por
adormecer. Eduardo, porém. não dormiu, sempre em
sobressalto, à escuta, pronto a acudir ao primeiro tinido
do telefone. <<E se sobrevém uma hemorragia?. . Que
desgraça !. . .>> Rezou, coisa que não fazia havia muitos
anos. Revolvia-se incessantemente no divã que lhe servia
de leito. <<Não tenho o direito de rezar.>> Sentia-se um
farrapo, ainda mais miserável por aceder àquela fácil
solicitação da prece. <<Pobre Ester!>> Sozinha, no seu
quarto de sofrimento, e naquela cidade estranha, onde
só contava com ele.
No dia seguinte, voltaram à mesma rua, mas de tarde.
Eduardo sentou-se, ansioso. no mesmo café. cujo criado
deu mostras de o reconhecer. Naquela malfadada terra
de gente loira e amorfa, não poderia nunca passar
despercebido. Foi a mesma tortura da véspera. Mais
acerba ainda porque durou mais.
O táxi, desta vez, aguardava-os à esquina. Ester
vinha desfeita, com grandes olheiras, um sorriso pisado.
- Custou muito ?
Ela admitiu, cansadamente, que sim :
- Mas já passou. . .
- E. . . <<ela>>, o que é que diz?
- Nada. Enfim, acha que tudo corre bem. É verdade,
tenho de tomar penicilina.
Eduardo não podia pensar naquela <<criatura>> sem
mal-estar, sem um vago horror. Contudo, não eram
menos culpados. De toda a maneira, desatolara-os.

Deviam-lhe isso. É certo que se fizera pagar bem,
e adiantado.
Durante quatro dias, Ester ficou de cama. Eduardo
passava as manhãs e as tardes com ela. Trazia-lhe
romances e flores. Voltava ainda depois de jantar, mas
partia cedo, pelas onze horas no receio de qualquer
observação desagradável. Embora o hotel fosse de
muitos andares, um autêntico caravanceralho, parecia-lhes que já eram alvo de insidiosa vigilância. Eduardo
atravessava, comprometido, os intermináveis corredores,
olhando sempre a direito. Evitava tomar o ascensor,
por causa do empregado.
Nas curtas ausências dele, Ester lia quase sem interrupção. Entrou assim na intimidade dos últimos favoritos de Eduardo: Yassou Gauclère, Sillone, Carmen
Laforet. Pela primeira vez leram poemas lado a lado:
Les Chunt.s de Maldoror e as doces blasfémias do irreverente Jules Laforgue, Paul Fort, Viellé Griffin, poetas
menores que ele elegera, em grande parte, porque o vulgo
mal os conhecia.
Quando o enfermeiro vinha dar-lhe a injecção,
Eduardo saía do quarto, correctamente, cerimonioso,
frio, como uma <<visita>> solene. Se havia retirado o
?saco, não deixava de fazer um comentário displicente
acerca daquele <<abominável calor>>.
A febre caía durante a noite, mas voltava a subir
a meio da tarde, à hora cruel. Quando ela punha o termómetro, Eduardo contraía os maxilares, tentava disfarçar, mas a avidez do olhar atraiçoava-o. Eram dois
minutos insuportáveis de espera. Não esquecia o perigo
de infecção, que ainda a ameaçava.
A combinação do primeiro dia de pesadelo continuava de pé: Eduardo todas as noites ficava alerta,
excitado. Se ela telefonasse. no caso de piorar, teria
de pôr-se em campo, sem perda de um segundo. Iria
ao serviço de urgência de um hospital, não recuaria
perante nada. Não haveria escrúpulos nem temores que
pudessem detê-lo.
Viviam ainda um permanente nervosismo. Ester,
todavia, mostrava-se mais calma, aparentemente mais
forte do que ele. Eduardo admirava aquela rijeza. Talvez
ela houvesse conservado no fundo qualquer coisa de
<<povo>>. <<És burguesa, tem paciência>>, tinha-lhe dito
quantas vezes, a contrariá-la, por simples pirraça, se ela
invocava a sua origem <<operária>> como argumento para
uma romântica e hipotética <<solidariedade de classe>>.
Haviam sido colegas na Faculdade. Eduardo conhecera
até vagamente o pai dela, que era electricista. Mas Ester,
na medida em que se cultivara e convivera com outra
gente, quebrara - segundo Eduardo - os laços que
a ligavam ao meio de onde provinha. Para mais, até
fizera <<um bom casamento>>. Todavia - verificava ele -,
esses laços não eram ainda meramente simbólicos:
alguma coisa daí lhe ficara, na verdade, de franco e rude,
de prático, dedicado e intempestivo, mesmo a facilidade
com que arrojara ao vento os preconceitos, como quem
atira fora um vestido velho. Tinha a pele mais dura
do que ele, aristocrata anémico e sem bandeira, às

piruetas no circo intelectual. Admirava-Lhe, sincera e
comovidamente, a generosa coragem.
No terceiro dia, às cinco horas, a testa dela abrasava.
Como Eduardo, deprimido, se acusasse de ser o culpado,
<<louco que eu fui !>>, Ester reagiu : não lamentava o
sucedido. Mais: tudo o que vivera e estava vivendo,
ao fim e ao cabo, só a enriquecia.
= De resto, prefiro estar aqui, doente, mas ao pé
de ti. . . a ter de partir.
Eduardo, emocionado, ?esquivou-se àquele olhar
direito. Perturbava-o, incomodava-o, vê-la tão presa
a ele. Desde o início da crise, nunca mais tinham aludido
ao <<pacto>?. Mas ele bem sentia que ela ganhava terreno.
E de que modo!
Não os oprimia a ideia de haverem cometido um
crime. Eduardo nem pensava nisso. Salvara-a do repúdio,
da desonra pública. Infringira uma lei local, que noutros
países nem existia. Mas um pequeno incidente veio
perturbá-lo também a esse respeito. Ester tomava as
refeições na cama -- felizmente o hotel dispunha dum
restaurante anexo -, mas levantava-se e chegava a sair
para o corredor quando lhe vinham arranjar o quarto.
Os vizinhos do lado eram ingleses, tinham uma filha
de menos de três anos, loira de linho, fresca e arisca,
que distinguia Ester com uma simpatia reticente, cheia
de curiosidade por <<aquela senhora morena de olhos
amarelos>>.
- Adoro crianças ! - declarou Ester a Eduardo,
falando-lhe da pequena, mas logo reparou no que havia
dito e ficou por muito tempo silenciosa, sem olhar para ele.
Eduardo desconfiava, estava quase certo, embora
não o quisesse admitir, de que ela teria deixado tudo,
teria arrostado com a família. com o escândalo; e alegremente, se ele se tivesse decidido a aceitá-la. . . para
sempre.
Todavia, quando, a fim de a auxiliar, lhe propusera
aquela solução, Ester não recusara, pelo contrário.
Tinham estado <<absolutamente>> de acordo. Verdade era
também que ela sabia - se sabia ! - até onde ele queria
ir. E agora desconfiava de que. . . Mas isso era impossível,
impossível. Não teria dado, nunca daria esse passo.

Não gostava dela o bastante, não, apesar de tudo. . .
Tinha de lutar novamente contra os progressos daquele
sentimento. E agora era bem mais difícil.
Quando chegava, aproximando-se da cama, curvava-se, erguia-Lhe as mãos e beijava-lhe as palmas húmidas,
febris, num gesto comedido, galante.
Ester não se conformava com aquelas atitudes palacianas, premeditadas, distantes; puxava-o para ela,
abraçava-o, beijava-o, casta, meigamente, nas faces e
na boca.
Nunca se referia ao marido, mas falava às vezes
da mãe, que a adorava.
- Se ela pudesse ver-me ! Coitada ! Aflige-se sempre
tanto por minha causa. . .
Apresentava-a como uma pessoa simples, áspera,
mas independente como ela, e inteligente, de vistas

largas, apesar da sua condição modesta.
A sombra daquela estranha intimidava Eduardo, que
fazia não obstante repetidas perguntas a seu respeito.
Através da amante, ia-a imaginando. Sentia-se ainda
mais responsável pela existência de Ester, com o sabê-la
tão preciosa para alguém. Aquela desconhecida preocupava-o. Era como se estivesse presente, entre eles,
muda, desaprovativa, ameaçadora. Reconhecia-lhe o
direito de lhe pedir contas pelo que fizera. Como o
julgaria ela se soubesse?
-A tua mãe com certeza que me detestava, se
pudesse adivinhar. . .
-A ti? Não, creio que não. Foste sempre leal para
comigo, desde o princípio. E não me abandonaste num
momento tão difícil... Sabes? A minha cabeçada,
o escândalo, tudo isso para ela seria ainda o menos.
O resto é que. . . Compreendes? Põe a minha saúde,
a minha vida, acima de tudo. É tão exaltada! Se me
acontecesse alguma coisa, era capaz de fazer asneiras,
podia até enlouquecer.
Eduardo contemplava-a, apreensivo, com lágrimas
de piedade a formarem-se-lhe nos olhos. Tinha medo.
Aquela febre de bicos! Tinha medo por ambos. <<Que
tremenda responsabilidade !>> Em tempos havia-se julgado
valente. Podia bater-se a frio. Agora, o caso era outro,
era mais sério. Não se tratava de duelos a murro, nem
de cavalos, nem de automóveis. Examinava-se sem
contemplações. Seria mesmo um cobarde? Ou simplesmente um fraco'? Nas grandes alturas, fazia apelo àquela
coragem cultivada, luxo da `sua casta, que lhe apontava
o caminho, nem que fosse para a morte, a passo mesurado.
Mas falecia-Lhe a resistência de todos os dias à dor,
às dificuldades, à ameaça constante da desgraça. Até
o instinto agressivo fora perdendo no caminho que
outros chamavam de <<ascensão em elegância e condescendência irónica>>. Repugnavam-lhe as discussões, a brutalidade, os gritos. E assim lhe aparecia a mãe de Ester,
que ele respeitava, mas que supunha capaz de todas
essas violências. Assim lhe aparecia, julgadora, justiceira,
a acusá-lo. E vingá-la-ia, sem dúvida, se alguma coisa
acontecesse. Mas nada aconteceria, não. E se ela
morresse '?
Ia então abraçá-la, espontaneamente.
- Minha pobre Ester! Deves estar farta deste quarto.
Os olhos dela agradeciam o carinho inesperado,
como os dum cãozinho -lindos que eram aqueles
olhos ! - doirados, mansos e firmes, límpidos.
Havia de salvá-la, tinha de a salvar. Afinal, porque
se ralava tanto`? Não havia motivo para tamanha
inquietação. Tornava a apalpar-lhe a testa: escaldante.
Tomava-lhe o pulso. Recomendava-Lhe repouso : <<Quieta !
Assim não te curas.>> Que não fizesse aqueles movimentos bruscos. Se ela morresse - ideia obcecante -,
o resto já nem o afectaria. Que o demitissem, que o
prendessem. Só a outra ainda teria importância: a mãe.
A meio do quarto dia, Ester ardia em febre. Nunca a
temperatura fora tão alta. Eduardo beijou-lhe ao de leve

os cabelos empastados, afagou-lhe o rosto suado, descomposto, erguido para ele e cuja expressão cansada era muito
meiga, amorável, ainda sem a sombra duma censura.

- - Nunca me deste tanto mimo - disse ela, num
?gt?ço de sorriso. - Vês: valeu a pena eu passar por
=???to; Ao menos fico sabendo que sempre represento
? alguma coisa para ti.
- Eu volto já - prometeu Eduardo, em voz baixa,
dominando-se. - Vou buscar um médico. É preferível,
embora o teu estado não seja grave. Ficamos mais
tranquilos.
la gelado de pavor. <<Criminoso ! Inconsciente ! Deixei-a chegar a este ponto !. . . É com certeza a infecção,
g septicemia. . .>> Porque confiara <<naquela criatura>> ?
Corria pela cidade, estonteado. O amigo com quem
partilhava o appartement não estava em casa. Ghamou
outro táxi. Que devagar seguiam aquelas miseráveis
carripanas! Entrou em vários cafés, como doido, à procura de <<conhecidos>>. Não sabia a quem dirigir-se.
Ficara embrutecido, vazio, sem ideias, inerme, perdido,
e com aquela imensa aflição. Esbarrava com os transeuntes, que o repeliam, e nem reagia. Os ossos do crânio,
parecia-lhe que iam estoirar. Repuxava a pele das faces
com os dedos exasperados. <<Quem sabe se já é tarde?
Tenho de encontrar alguém, depressa, depressa!>> Penosamente, contou a <<história>> a dois amigos. Nunca se
confessava a ninguém. Foi inútil: não viam maneira de
o ajudar. Isto é, um deles conhecia vagamente um especialista. Talvez esse. . . Deu-Lhe a direcção.
Bruxelas, cidade calma, ordeira, repudiava-o. O trânsito, moroso, escoava-se pelos largos boulevards, numa
rigorosa indiferença. Os eléctricos, retrémulos, tintinantes de campainhas, abalavam as ruas periodicamente.
Eduardo cerrava os punhos com força, enervava-se
cada vez mais, tinha palpitações. A pesada torre carcomida da Catedral Sainte Goudoule, revestida de
andaimes, maciça, soturna no céu grisisco, inclinava-se,
parecia prestes a desabar sobre ele. Andava-Lhe a cabeça
à roda. Faltava-lhe o equilíbrio.
Não aparecia outro táxi. Já era de esperar! Largo?
a correr: não estava muito longe daquela morada.
O médico acedeu, mais facilmente do que Eduardo
imaginava. Uma vez que a tarefa criminável fora realizada
por mãos alheias, não se eximia a desempenhar, com
a necessária discrição, o seu papel de salvador.
Eduardo meteu-o num táxi. Que falta lhe fazia o carro,
ainda em reparação! Ordenou ao motorista que fosse
depressa.
- Ne vous atiolez pa? = dísse o outro com afabilidade.
Era um homem ainda novo, de ar proficiente. Não
podiam adiantar a conversa na presença do chauffeur.
Eduardo, que se sentia perante aquele estranho em
posição moral desfavorável, não ousava falar-lhe nem
do tempo. Foi um silêncio incómodo. À entrada do hotel,
sem testemunhas, voltaram ao assunto. O homem deixara
de ser um estranho : subitamente desumanizara-se : era
de novo <<o médico>> ; e Eduardo, desvanecido o mal-estar,
tornou ao que Lhe queimava a língua: os sintomas de

Ester. Esta recebeu-os sem acanhamento, sorrindo, apesar
da prostração evidente. <<E isto nela é natural, caramba !>>
pensou Eduardo.
Ester tinha posto o robe de chambre de seda verde,
que o levara a prometer desenhar-lhe um vestido para
aquele mesmo tom>>. Embora desfigurada, mantinha
o seu encanto travesso, docemente animal. Na presença
dum terceiro, Eduardo dava-se conta, melhor que nunca,
da claridade delíciosamente plebeia daquele sorriso que
Lhe revirava para cima os cantos da boca impudente.
O médico, cortês, prodigalizava-lhe atenções, já familiar,
quase galanteador. Em poucos segundos tomara posse
da <<sua doente>>. Para mais, devia achá-la interessante:
nova, estrangeira, numa situação difícil.
Eduardo deixou-os sós, antes que o expulsassem.
Mas permaneceu no corredor, caminhando de trás para
diante, à espera da sentença, quase pé ante pé, para
não atrair o pessoal, já muito <<intrigado>? com aquelas
continuas entradas e saídas. Por fim, decididamente
como não o chamavam, mau grado a sua habitual delicadeza
foi bater à porta uma tímida pancada.
? -Já posso entrar?
Tinham-se esquecido dele. O médico, sentado no
sofá, com um cigarro, ainda por acender, entre os lábios,
saboreava, cumprido o dever profissional, um instante
de contacto humano. Adivinhava-se que encontrava uma
compensação do esforço na sensação que os doentes
lhe davam do seu poderio. Ergueu-se, a serená-lo:
-Acalme esses nervos. é apenas uma inflamação,
que não há-de ter importância.
Sentou-se de novo, para escrever a receita, e despediu-se de Ester, afectuoso, protector, lembrando-lhe
mais uma vez as principais recomendações.
-Volto depois de amanhã. Vamos lá a ver se já
está boa !. . .

Começou a convalescença. Abdicavam - com que
alívio!- de pensar, de resolver. Descansavam enfim
daquela luta às cegas contra o perigo. Entregavam-se
completamente à autoridade do médico, que voltou
ainda algumas vezes e continuava a prescrever <<repouso,
muito repouso>>, mesmo que as temperaturas desaparecessem de todo.
Ester demorara-se já em Bruxelas mais tempo do que
era sua tenção. Sobejava-Lhe pouco dinheiro. Eduardo,
vendo-a melhorar, começava a impeli-la para a estação,
com argumentos sensatos: <<Hão-de estranhar a tua
ausência. . . Já lá vão quase três meses. . .>> Sentia-a
recuar perante a separação. Não se desprendera dela de repente, uma vez curada, não era bem isso: a ternura persistia, uma lúcida ternura, misturada com piedade: Ester conquistara-a com a dor, moeda sagrada. Mas experimentava
uma espécie de desejo metódico de pedir a conta ao
destino e de <<arrumar suavemente o caso>>, antes que
degenerasse em enfado ou em tragédia. Não queria
renovar a experiência, noutra assim não caía ele. Por
outro lado, aquilo tinha de ir com mansidão: não se
tratava de uma ruptura, mas de um carinhoso afastamento.

Defendia-se. Espaçava mais e mais as visitas. Entrava-lhe no quarto a assobiar cançonetas, num jeito de
futilidade intencional, que ela aceitava já com uma
inconsciente nostalgia dás horas graves que tinham
passado. Informava-a do que ocorria em Bruxelas, na
<<colónia>>: uma recepção em tal parte, uma gaffe de
Sicrano, o que se dizia de uma loira cheia de panache
e de <<crónica>> que eles conheciam.
- E tu, que é que me contas?
Ester encolhia os ombros, apontava-lhe a janela, que
despejava para um saguão :
- É o que eu vejo do mundo.
Havia, no prédio vizinho, um aparelho de rádio,
que - nem de propósito ! - gemia frases desesperadas,
melodias da fatalidade.
Quando bem não, Ester interrompia Eduardo, a meio
da narração de uma história burlesca.
- Escuta ! É o Domino !
Gostava daquela música. <<Como toda a gente>>,
depreciava ele, por graça, sem convencimento.
Ouviam a apaixonada canção até às últimas notas
e Ester, no fim, olhava-o prolongadamente, até que ele
baixava a cabeça, como um devedor que não pode pagar.
Uma tarde, Eduardo, afundado no sofá, narcisicamente melancólico, cedeu ao apetite, condenado pelo
bom senso, de remexer ao de leve no tempo transcorrido.
Desfiava recordações comuns, para si próprio, em voz
alta. E a concluir, sem o costumeiro tacto, com uma
ponta de vaidade e também de tristeza, mas tristeza
epidérmica, perguntou :
-Achas que te lembrarás mais tarde dos nossos
encontros no appartement?
Ester não respondeu, pensativa, e Eduardo mudou
de conversa: principiou a falar convencionalmente nos
escolhos da sua <<carreira>>, já mais cauteloso, arrependido
daquele ilógico momento de abandono. Porém, segundos
volvidos, Ester atalhava-lhe, brusca, o discurso :
-Vamos pôr uma coisa a limpo, sim? Falando
da nossa vida assim no pretérito, pretendes dar-me
a entender que está tudo acabado, não é?
-Que ideia! Não tinha nada essa intenção.
E riu-se. Não tivera com efeito qualquer intuito.
Podia jurá-lo, com sinceridade. Mas Ester pressentira
nas palavras dele o sabor da <<liquidação>>.
Muito franca, com aquela sua franqueza ingénua
e forte, que ele achava <<tão honesta>>, ainda que um
pouco <<precipitadamente plebeia>>, insistiu:
- Mas vai acabar tudo, não vai?
- Não. . . Já te disse que não. Francamente ! É absurdo
falarmos nisso. Só daqui a um ano tornaremos a ver-nos.
Até lá:. . pode acontecer tanta coisa. . .
E nada ficou assente.
Est?r não tolerava situações indefinidas. Receava,
porém, forçar uma resposta dolorosa. Depois, havia
o seu orgulho. Já uma vez lhe tinha dito - mas
há tempo! - que em estando farto dela lho
se logo: ao menos conservariam a amizade.
Da; de resto, um dos pontos de que Eduardo sempre

q?teo : que ficariam amigos, para sempre, profundamente amigos.
? Agora ela sentia que atingira o limite da franqueza.
Não podia ir mais longe. Se Eduardo queria viver sem
compromissos, salvaguardar, a todo o preço, a liberdade,
mais valia não insistir. O tempo decidiria. Quando se
vissem de novo. . . só então ela havia de saber. . .
Mas ficou triste. Teve uma ponta de febre, provocada
pela excitação. Deram uma pequena volta, em torno do
quarteirão, ao anoitecer. De mãos entrelaçadas, quase
silenciosos. Farrapos de nuvens, nacarados, despediam-se, no céu, do Estio, que terminava.

O dia seguinte era a véspera da partida. Eduardo,
para fugir ao tête-à-tête, propôs irem a um cinema.
Mas Ester preferia passar ali mesmo a última tarde,
a sós com ele, naquele quarto onde sofrera e do qual,
ainda em Bruxelas, já tinha saudades.
<<Uma tarde que promete emoções !>>, pensou Eduardo,
apreensivo, cruzando as pernas, equilibrando o cinzeiro no braço do sofá. Levou a mão direita ao rosto
magro, onde os ossos se desenhavam, salientes. Tinha
emagrecido mais do que ela naqueles quinze dias de
permanente tensão: quase não comera, pouco dormia.
- Devo estar pavoroso !. . .
- Nunca foste propriamente bonito - troçou ela.
E, divertida, perante o sorriso aprovativo, mas desapontado, de Eduardo, acrescentou em ar de consolação : - Deixa lá ! Vales mais assim do que bonito !E contou-lhe como, desde que o conhecera na Faculdade, gostara logo da cara dele, de feições finas e angulosas, tão sensíveis à menor fadiga, e sobretudo dos olhos suaves, que ela achava quase angélicos, e da
boca feminina, às vezes irónica, outras vezes sensual.
Pensava nele, em casa, junto da família que não a compreendia, a quem não podia falar nele. E todas as manhãs
ia, alegre, para a Faculdade, na esperança de o ver,
de conversar com ele cinco minutos. Quando saíam
juntos, depois das aulas, era feliz. Sobretudo se ele
lhe pegava no braço. Mas quando Eduardo nem dava
por ela ou se, depois de Lhe ter vagamente dirigido a
palavra, ficava a fazer perguntas a um professor, a
discutir com outros colegas, que decepção! Sabia como
ele se vestia, os gestos que faria em certas ocasiões.
Vivia daquelas esmolas, dos poucos momentos que
ele, indiferente, um dia ou outro, por acaso, Lhe concedia. Tentara lutar contra aquele sentimento, bem
via que era uma loucura: separava-os a diferença de
meio, de fortuna, de educação, tudo. . . Não conseguira
fugir àquela obsessão. Inútil procurar convencer-se
de que ele não valia muito. Que tinha a mais do que
os outros? Devia ser inconstante, egoísta; fisicamente
parecia fraco, sem vigor, sem saúde. Porém, não deixava de pensar nele. . . e desejava tanto poder escorrer-lhe a mão pelos cabelos pretos. . . Depois Eduardo
partira para o estrangeiro, nunca mais o vira. Esquecera-o. . . mas não completamente. E tinha acabado
por casar. <<Mas. . . Sabes? O que tem de ser tem muita
força!>> Conseguira afinal o que dantes sonhava. Tinha

sido, é claro, muito diferente. . .
Eduardo, comprometido, ouvia aquela confissão
com um nó na garganta. Era iniludivelmente uma confissão de amor. Dum amor que ele não podia corresponder. E não queria mentir : seria pior para ela ! Estranha situação, que o lisonjeava, ao mesmo tempo que
o entristecia. Sentia-se culpado. Mas culpado de quê?
Não entendia realmente as mulheres. Ester, à chegada
a Bruxelas, parecia mesmo aceitar o jogo dele, a aventura sem exageros nem complicações. Que perigosa
ilusão essa das <<aventuras>>!
-Não deves gostar de mim dessa maneira, Ester!
Eu não mereço. . . - implorou, transtornado.
-Que queres tu que eu faça? Não é questão de
mérito. . . - respondeu ela, com um sorriso magoado
e ao mesmo tempo satisfeito. Aliviara-a deitar fora
tudo aquilo.
-Peço-te que não gostes assim de mim. É um
absurdo. Não vês que serias infeliz? E eu só quero a
tua felicidade. . .
- Não digas mais disparates. Já disseste bastantes.
Eduardo calou-se.
- Agora - prosseguiu ela -, depois destes meses,
de que não me arrependo, digas tu o que disseres, gosto
ainda mais de ti do que antes. Duma forma diferente.
Dantes, não sei explicar, faltava muita coisa, faltava
a realidade, e até o hábito, percebes? Não estava tão
presa a ti. Quando vim para a Bélgica, vendo bem,
talvez só gostasse ainda verdadeiramente, profundamente, da minha mãe. E agora existem para mim vocês
os dois. Os outros. . . Tenho alguns amigos, é claro,
<<conhecidos>>, mas nada mais. . .

Chegaram à estação um quarto de hora antes da
partida do rápido para Paris. Ester agarrava-se à ideia
duma correspondência entre eles. Seria difícil Eduardo
escrever-lhe para Portugal, mas, com boa vontade,
tudo se podia arranjar. <<Queres?>>
- Era uma imprudência. . . - começou Eduardo.
Ester não o contrariou, não insistiu:
- Já sabia que não havias de escrever-me.
<<Que tormento ! Ainda dez minutos de espera !. . . >>,
pensava Eduardo, enquanto o carregador procedia
à instalação das malas no porta-bagagens. Ela própria,
que desde a manhã não consentira em largá-lo um
segundo, concordava em que aqueles últimos momentos
eram horríveis. <<Pobre Ester!>> Tinha a expressão dos
dias piores, e umas olheiras !. . . Não dormira, com
certeza. . . Pegou-Lhe
nas mãos e apertou-Lhas com força,
como se assim pudesse insuflar-lhe coragem, uma vez
que ela o proibira de dizer: <<Esquece-me.>> A carruagem
estava ainda vazia. Ia pouca gente para Paris, excepto
em terceira classe. A Estação do Sul tinha o seu ar
calmo, burguês, de todos os dias. Antes o alarido das
grandes gares !
Beijou-lhe a boca triste, mole, sorridente.
Depois, desceu do comboio. Mas ficou no cais

entre todos aqueles desconhecidos, com as mãos agarradas ao rebordo da janela. A olharem-se nos olhos
até ele não poder mais. Mas Ester não cedia. E Eduardo
teve de aguentar-lhe ainda o olhar espantosamente
fixo, e triste, tão triste. . .
- Train Express. . .
Apertaram uma última vez as mãos, convulsivamente.
<<Talvez nunca mais>>, pensou Eduardo, <<alguém
venha a gostar tanto de mim.>>
- Querido ! Até um dia - disse ela.
O comboio partia. Ester, à janela, continuava a
olhá-lo fixamente, uma expressão aflitiva. Eduardo
ergueu o braço direito, repetidas vezes, num gesto
de adeus, e sempre ela correspondeu, até ao longe
desaparecer.

POEMA DO <<MONTE>> AGOIRADO

À Zita

<<Apaixonado>> - dizem na minha terra de alguém
que tem profunda pena.

Meu amor, porque te deixei sozinha?. . . Volto tão
triste do hospital, à hora de vésperas, quando o vento
carrega as lembranças do tempo antigo. O vento do
Mediterrâneo. . . e não aquele que rasa a charneca,
perseguindo na última luz das distâncias a rota esquecida dos churriões.
Olha, um som familiar. Dir-se-ia que alguém coze
pão num forno. Não, não pode ser: aqui é o padeiro
que vem de bicicleta trazer as carcaças à porta das
vivendas.
Ouvíamos crepitar a lenha de azinho. A tarde baixava, sorridente. Era bem um som alentejano !. . .
Acolhiam-se os abibes aos piornais, lá junto do
Ardila, onde estão guardados os nossos segredos. . .
Que fantasma saiu da Margem Esquerda para
correr o mundo, se eu volto toda a noite aos caminhos
meus, onde o luar desenha a sombra fantástica dos
chaparros ? !. .
São meus os gestos maquinais de agora: acendo
o cigarro, dou corda ao relógio, penduro a gabardine
detrás da porta ; e tenho os pés frios em terra estranha ;
mas sou um corpo vazio; os meus olhos seguem a miragem das águas do Guadiana. Ouço os campanilhos
dos rebanhos, ao recolher. Já são horas de vestir a
minha samarra : a planura chama por mim ; vai cair
geada entre os cabeços, nas ondas do matagal cheiroso. . .
Meu amor, que solidão !. . . Lembras-te da nossa
hora?. . Escorriam pelo rio em fogo as canções mouriscas. Colheste um lírio.
Ai terras do Guadiana
Descampados a sonhar. . .
Ai a manada vermelha
Mais o pastor a cantar. . .

Eu queria apanhar um grilo para conhecer as vozes

da terra à hora de o sol esfriar. . .
Cavalos fugiam pelos montados e esse som de
cavalgada era sempre o longe, como os cerros azulando - impossíveis aventuras na placidez infinita da
tarde. Os abegões, de abalada para a vila, vinham
saber da lenha. Andava o Zé Queimado à busca de
um tesouro no outeiro de S. Bernardo.
Imagina, o meu poële nem funciona. Uma das
malas, deixei-a a um canto do quarto; pus a outra
em cima do guarda-vestidos. Mesquinha desordem:
são espectros do meu cansaço estas malas gastas, um
dia doiradas pelo sol de Veneza, onde sonhei entrar
a cavalo na laguna.
Vai, meu amor, ver se os choupos crescem, se voltaram as cegonhas. . . Diz à Atalaia que tornarei, que
hei-de volver ao Alentejo.
Sinto-me grotesco nesta farda de empréstimo.
Lembras-te da canção que ouvimos ao pé do <<monte>>
agoirado ?. . .
Também eu estou só, como o pastor marreco trovando à boca da noite, e já não vejo na largada do
sol a miragem das quatro partidas. . . Olha. Vês o sol
poente? Vês as folhas magentas que caem no rio?...
Ai o pastor da vacada vermelha, a pontos de
matar o pai, ali, diante de mim, como eu vi, com estes
dois olhos !. . .
Tudo porque uma moça lhe quis bem. . .
Já terá saído da cadeia?
Um dia entrei a cavalo na vila - manhã de cristal e a Igreja de S. João Baptista era uma chama claríssima na hora pintada de azul. O marreco assomava-se
às grades da cadeia, rosto miudinho, danado. Nem
sombra de tristeza: os mesmos traços antigos, finos,
sem expressão. Dantes não era mais feliz, quando
o batiam de enfiada porque nascera com uma boja
nas costas.
- Amigo - disse-me de uma vez -, nem vossemecê cuida do que eu tenho penado !. . .
Até que enregou de crescer no tarde, como seara
atrasada. Parece que enfloresceu, desde que pousaram
nele olhos de mulher.
E fazia-se de navalha aberta -mesmo uma cegueira!- para quem lhe bulisse na fama da moça.
Que vinha dos <<quartéis>> ! Embora ! Não era como
as outras. . . Não poder levá-la a casar, entre chuvas
de flores e grãos de trigo e folhas de oliveira!
Mas deitara-se com ele, com um pobre de misérias,
ensinara-o, no meio das estevas e dos cardos. Coisa
de maravilha! O pastor via tudo em grande, tudo em
bom. . . A noite íntima dos barrancos, sob a lâmpada
fosca da lua cheia, e aquela flor carnosa, tentando-o. . .
Braços de seda em volta do seu corpo aleijado. . . Lágrimas que ele chorou de brando contentamento !. .
Enregou de crescer, pois bem não. la longe o tempo
em que era o escarro do <<monte>>. Mas lá dizia o ditado :
<<Casa de pombos, casa de tombos.>> Pelo menos o
Zé Queimado deita as culpas aos pombos pelas desgraças
que vieram.

Primeiro foi quando ele se atracou com o pai, que
lhe chamara <<curta>> à rapariga. <<É meu pai, está visto>>,
obstinava-se, tentando eu serená-lo, <<é meu pai, sim
senhor, mas tenho escândalos dele que nem uma tulha
cheia.>>
Depois. . . Em má hora o lavrador se lembrou de
olhar para ela. <<Quis-me roubar o meu maior bem,
era só a única coisa que eu tinha.>>
E, vá feito, assim o patrão lhe jogou a mão às
carnes da moça, sangrou-o que nem a um porco gordo
pela matança. E era valente homem, o lavrador, rijo
como um sobreiro.
Ai a manada vermelha
Mais o pastor a cantar. . .

Conforme vieram as chuvas, ficou a ribeira encarnada, toda em ondas de barro, fugindo para o moinho
árabe. . .
Nem de propósito: o rio pintava de sangue, como
se as cantigas dele se desfizessem na água.
E o marreco, olhos fundos, cheios de amor, lá ia
no meio da guarda, a caminho da cadeia.
Estava agoirado, o <<monte>> dos pombos. Foram
todos afogados por ordem da viúva do lavrador.
Tu bem te lembras: o pastor vimo-lo passar na
estrada nova, de mãos amarradas, até parei a carrinha.
Não te lembras?. . .

(fim do livro).
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..

Canja de Galinha para a Alma ~o
i
Canja de Gânha para
a Alma 89 histórias para abrir
o coração e reavivar o espírito Escrito e compilado por
Jack Canfield Mark Victor Hansen Tradução Outras Palavras
aoouRo
Do original: Chicken soup for the soul
Copyright © 1993 by Jack Canfiled and Mark Victor Hansen [Edição original: ISBN 1-55874-262-X]
© 1995, Ediouro Publicações S.A.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5.988 de 14/12/73. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por
escrito, da editora.
Capa Carol Sá
Editoração Eletrônica DTPhoenix Editorial
Projeto Gráfico Ediouro
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
C227c
Canfield, Jack, 1944
Canja de galinha para a alma: 89 histórias para abrir o coração e o espírito / Jack Canfield, Mark Victor Hansen; tradução de Outras Palavras. - Rio
de Janeiro: Ediouro, 1995.
Tradução de: Chicken soup for the soul ISBN 85-00-12880-1
1. Meditações. 2. Parábolas. I. Hansen, Mark Victor. II. Título.
CDD - 158
95-1004 CDU - 159.94
Ediouro Publicações S.A. Rio de Janeiro Rua Nova Jerusalém, 345 CEP 21042-230 Tel.: (021) 560-6122 Fax: (021) 280-2438 São Paulo Av. Jabaquara, 1799 e 1803 Mirandópolis
CEP 04045-003 Tel.: (011) 5589-3300 Fax: (011) 5589-3300 ramal 232 e-mail: info@ediouro-livros.com.br
Se há luz na alma, Haverá beleza na pessoa. Se há beleza na pessoa, Haverá harmonia na casa. Se há harmonia na casa, Haverá ordem na Nação. Se há ordem na Nação,
Haverá paz no mundo.
Provérbio Chinês
Com amor, dedicamos este livro a nossas esposas, Georgia e
Patty, e a nossos filhos, Chistopher, Oran, Kyle, Elizabeth e Melanie, que são canja de galinha para nossas almas. Vocês estão constantemente abrindo nossos corações
e reacendendo nossos espíritos. Nós os amamos muito!
Agradecimentos
Este livro levou quase dois anos, desde sua concepção até sua conclusão. Foi um trabalho de amor e valeu-se dos esforços conjuntos de muitas pessoas. Gostaríamos
de agradecer especialmente a:
Patty Mitchell, que datilografou e redatilografou cada uma destas histórias no mínimo cinco vezes. Sua dedicação ao projeto incluiu muitos dias úteis até as 22h
e inúmeros fins de semana. Obrigado, Patty! Não teríamos conseguido sem você.
Kim Wiele, pela datilografia e redatilografia monumental de muitas das histórias, realização de grande parte da pesquisa extensiva e coordenação de todo o trabalho,
apa rentemente interminável, para garantir permissão de direitos autorais das histórias que não escrevemos. Ela fez um ótimo trabalho. Obrigado, Kim.
Kate Driesen, que auxiliou na datilografia, leu e comentou cada história e ajudou em grande parte da pesquisa. Sempre presente quando precisávamos cumprir prazos.
Obrigado.
Wanda Pate, que contribuiu infinitamente auxiliando na datilografia e na pesquisa.
Cheryl Millikin, que cuidou o tempo todo do processamento e fluxo de materiais.
Lisa Williáms, por cuidar dos negócios de Mark para que ele pudesse se dedicar a este livro.
A Jeff Herman, por ser um agente literário tão inspirado e por ter acreditado no livro desde o início. Jeff, adoramos trabalhar com você.
A Peter Vegso, Gary Seidler e Barbara Nichols, da Health Communications, por captar o ideal do livro muito antes de qualquer outra pessoa. Apreciamos seu entusiástico
apoio.
A Cindy Spitzer, que escreveu e editou várias das histórias mais importantes neste livro. Cindy, sua colaboração foi inestimável.
A Marie Stilkind, nossa editora na Health Communications, por seus eternos esforços em trazer este livro a seu estado de excelência.
A Bob Proctor, que colaborou com várias histórias e anedotas de seu volumoso arquivo de histórias de magistério. Obrigado, Bob. Você foi um grande amigo.
A Brandon Hall, que nos ajudou com duas histórias. Também gostaríamos de agradecer às seguintes pessoas por seu feMback muito valioso na primeira versão do livro:
Ellen Angelis, Kim Angelis, Jacob Blass, Rick Canfield, Dan Drubin, Kathy Fellows, Patty Hansen, Norman Howe, Ann Husch, Tomas Nani, Dave Potter, Danielle Lee, Michele
Martin, Georgia Noble, Lee Potts, Linda Price, Martin Rutte, Lou Tartaglia, Dottie Walters, Rebecca Weidekehr, Harold C. Wells.
av
Sumário
Introdução ...........................................................................................
1. SOBRE OAMOR .........................................................................
Amor: a única força criativa Eric Butterworth ............................ Tudo de que me lembro Bobbie Probstein ..................................... Canção
do coração Patty Hansen ................................................... Verdadeiro amor Barry e Joyce Vissell ........................................... Ojuiz
dos abraços Jack Canfield e Mark V. Hansen ...................... Isso pode acontecer aqui? Jack Canfield ........................................ Você é importante
Helice Bridges ................................................... Um de cada vez Jack Canfield e Mark V. Hansen .......................... O presente Bennet
Cerf ..................................................................... Um irmão como esse Dan Clark ..................................................... Sobre
a coragem Dan Millman ....................................................... Grande Ed Joe Batten ........................................................................
O amor e o taxista Art Buchwald .................................................... Um gesto simples John W. Schlatter ..............................................
O sorriso Hanoch McCarty ............................................................... Amy Graham Mark V. Hansen .......................................................
Uma história para o dia dos namorados Jo Ann Larsen ........... Carpe diem! Alan Cohen .................................................................. Conheço
você, você é igualzinho a mim! Stan Dale .................. A mais nobre necessidade Fred T. Wilhelms ................................ Bopsy Jack Canfield e Mark
V. Hansen ............................................ Filhotes à venda Dan Clark .............................................................
13 15 17 19 22 24 26 31 34 37 39 40 42 44 47 50 52 55 58 61 66 70 72 76
2. APRENDENDO A AMAR A SI PRbPR10 ............................
O Buda de ouro Jack Canfield .......................................................... Comece consigo mesmo Anônimo .................................................
Nada além da verdade! Dallas Marning News ............................ Cobrindo todas as bases Fonte Desconhecida ............................... Minha declaração
de auto-estima Virgínia Satir ........................ A mendiga Bobbie Probstein ............................................................. As regras para ser
humano Anônimo ............................................
3. SOBRE A PATERNIDADE ......................................................... 93
Os fiilhos aprendem o que vivenciam Dorothy L. Nolte ........... 95
Por que escolhi meu pai para ser meu papai Bettie B. Youngs 97
A escola dos animais George H:' Reavis .......................................... 105
Tocado Victor Nelson ......................................................................... 107 Eu te amo, filho Victor B. Miller ........................................
............. 110 "O que você é" é tão importante quanto "o que você faz'
Patrícia Fripp .................................................................................... 113
A perfeita família americana Michael Murphy ............................ 115
Apenas diga! Gene Bedley ................................................................ 120
4. SOBRE O APRENDIZADO ........................................................
Costruindo meu futuro Frank Trujillo ........................................... Agora gosto de mim Everett Shostrom .......................................... Todas
as melhores coisas Helen P. Mrosla .................................... Você é uma maravilha Pablo Casals ............................................... Aprendemos
fazendo John Holt ..................................................... A mão Fonte Desconhecida ................................................................
O garotinho Helen E. Buckley .......................................................... Sou professor John W. Schlatter ......................................................
5. VIVA SEU SONHO .....................................................................
Acho que posso! Michele Borba ....................................................... Descanse em paz: o enterro do "não mnsigo"
Chicle Moorman ................................................................................. A história do 333 Bob Proctor .....................................................
......
79 81 84 85 86 87 89 91
125 127 128 129 133 134 135 137 142
145 147
150 155
Pedir, pedir, pedir Jack Canfield e Mark V. Hansen ...................... 158
Você já fez a terra se mover? Hanoch McCarty ........................... 161 O adesivo de Tommy Mark V. Hansen ......................................... 163
Se não pedir, você não consegue - mas se pedir, consegue!
Rick Gelinas ....................................................................................... 169
A busca de Rick Little Adaptada de Peggy Mann ......................... 173
A magia de acreditar Edward J. McGrath Jr. ............................... 178
O livro de metas de Glenna Glenna Salsbury .............................. 179
Mais um item assinalado na lista John Goddard .......................... 182
Preste atenção, benzinho, eu sou seu amor! Jack Canfield ...... 187
Disposto a pagar o preço John McCormack .................................. 191
Todo mundo tem um sonho Virginia Satir ................................. 195
Siga seu sonho Jack Canfield ........................................................... 198
A caixa Florence Littauer ................................................................... 201
Estímulo Nido Qubein ....................................................................... 205 Walt Jones Bob Moawad ...............................................
..................... 207 Você é suficientemente forte para agüentar críticas?
Theodore Roosevelt ............................................................................ 212
Correndo riscos Patty Hansen ......................................................... 213
Serviço e um sorriso Kar Albrecht e Ron Zenke ............................ 215
6. VENCENDO OBSTÁCULOS .................................................... Obstáculos Victor E. Frankl ..............................................................
Considere isto Jack Canfield e Mark V. Hansen ............................. John Corcoran - O homem que não sabia ler Pamela Truax . Abraham Lincoln não desistiu
Abraham Lincoln ........................ Lição de um filho Danielle Kennedy ............................................... Fracasso? Não! Só dificuldades temporárias
Dottie Walters .... Para ser mais criativo, estou esperando... David B. Campbell .. Todo mundo pode fazer alguma coisa Jack Canfield ................ Sim, você pode
Jack Canfield e Mark V. Hansen ........................... Corra, Patti, corra Mark V. Hansen ................................................ O poder da determinação
Burt Dubin ......................................... Fé Roy Campanella ............................................................................. Ela salvou 219
vidas Jack Canfield e Mark V. Hansen ..................
217 219 220 223 227 229 233 238 241 244 247 250 252 254
Você vai me ajudar? Mark V. Hansen ........................................... 258
Só mais uma vez Hanoch McCarty ................................................. 261
Há grandeza ao seu redor - aproveite-a Bob Richards ........... 263
7. SABEDORIA ECLÉTICA ............................................................ 265
Negócio fechado! Florence Littauer ................................................ 267 Reserve um momento para ver de verdade
J. Michael Thomas ............................................................................. 270
Se eu pudesse começar tudo novamente Nadine Stair ............ 274
Dois monges Irmgard Schloegl ........................................................ 276
Sachi Dan Millman ............................................................................ 277
O presente do golfinho Elizabeth Gawain .................................... 278
O toque da mão do mestre Myra B. Welch .................................. 280
Mais canja de galinha? ..................................................................... 2,82
Contribuições ...................................................................................... 283
Agradecimentos (continuação) ......................................................... 294
Sobre os autores ................................................................................. 299
Introdução
Sabemos tudo de que precisamos para acabar com o sofrimento emocional desnecessário que muitas pessoas experimentam atualmente. Auto-estima elevada e eficácia pessoal
são acessíveis a qualquer um que queira dedicar seu tempo a essa busca.
É difícil traduzir o espírito de uma situação real para o mundo das palavras. Histórias que contamos todos os dias tiveram que ser reescritas cinco vezes para que,
impressas, tivessem o mesmo efeito que ao vivo. Quando estiver lendo estas histórias, por favor esqueça tudo o que sempre aprendeu em suas aulas de leitura dinâmica.
Diminua o ritmo. Ouça o que diz o seu coração, tanto quanto a sua mente. Saboreie cada história. Deixe que o toquem. Pergunte-se: O que esta história desperta em
mim? O que sugere para minha vida? Que sentimento ou atitude evoca em meu ser interior? Permita-se uma relação pessoal com cada história.
Algumas histórias falarão mais alto a você do que a outras pessoas. Algumas terão um significado mais profundo. Algumas o farão chorar. Algumas o farão rir. Algumas
lhe encherão de um sentimento de ternura. Algumas talvez lhe
Amor: a única forca criativa
Espalhe o amor por onde você for: antes de tudo, em sua própria casa. Dê amor a seus filhos, sua esposa ou seu marido, a um vizinho próximo... Não permita jamais
que alguém se aproxime de você sem viver melhor e mais feliz. Seja a expressão viva da bondade de Deus; bondade em seu rosto, bondade'em seus olhos, bondade em seu
sorriso, bondade em sua terna saudação.
Madre Teresa
Um professor universitário levou seus alunos de sociologia às favelas de Baltimore para estudar as histórias de duzentos garotos. Pediu a eles que redigissem uma
avaliação sobre o futuro de cada menino. Em todos os casos, os estudantes escreveram: "Ele não tem chance alguma." Vinte e cinco anos mais tarde, outro professor
de sociologia deparou-se com o estudo anterior. Pediu aos seus alunos que acompanhassem o projeto, a fim de ver o que havia acontecido com esses garotos. Com exceção
de vinte deles, que haviam se mudado ou morrido, os estudantes descobriram que 176 dos 180 restantes haviam alcançado uma posição mais bem-sucedida do que a comum
como advogados, médicos e homens de negócios.
1
O professor ficou estarrecido e resolveu continuar o estudo. Felizmente, todos os homens continuavam na mesma área, e ele pôde perguntar a cada um: "A que você atribui
o seu sucesso?" Em todos os casos, a resposta veio com sentimento "A uma professora".
A professora ainda estava viva; portanto, ele a procurou, perguntando à senhora idosa, embora ainda ativa, que fórmula mágica havia usado para resgatar esses garotos
das favelas para um mundo das conquistas bem-sucedidas.
Os olhos da professora faiscaram e seus lábios se abriram num delicado sorriso.
- É realmente muito simples - disse ela. - Eu amava aqueles garotos.
Eric Butterworth
Tudo de que me lembro
Quando falava comigo, meu pai sempre começava a conversa com "Eu já lhe disse hoje o quanto a adoro?" A expressão de amor era recíproca e, em seus últimos anos,
conforme sua vida começou visivelmente a fluir, nos aproximamos ainda mis... como se isso fosse possível.
Aos 82 anos ele estava preparado para morrer, e eu, para deixá-lo ir, para que seu sofrimento terminasse. Nós rimos e choramos, nos demos as mãos, dissemos um ao
outro que nos amávamos e concordamos que era hora. Eu disse:
-Papai, depois que você se for, quero um sinal de que você está bem.
Ele riu, diante do absurdo daquilo; papai não acreditava em reencarnação. Tampouco eu tinha certeza se acreditava, mas havia tido muitas experiências que haviam
me convencido de que poderia receber algum sinal do "outro lado".
Meu pai e eu éramos tão profundamente unidos que senti seu ataque cardíaco em meu peito no momento em que ele morreu. Mais tarde, lamentei que o hospital, em sua
sabedo ria estéril, não me tivesse deixado segurar a mão dele enquanto ele se ia.
Dia após dia eu rezava por ter notícias dele, mas nada acontecia. Noite após noite eu pedia um sonho antes de dor
i mir. Mas, mesmo assim, quatro longos meses se passaram, sem que eu ouvisse ou sentisse algo que não fosse pesar pela sua perda. Mamãe morrera cinco anos antes
do mal de Alzheimer, e, apesar de já ter criado as minhas próprias filhas, eu me sentia como uma criança perdida.
Um dia, enquanto estava deitada numa mesa de massagem, numa sala escura e tranqüila, aguardando meu horário, fui envolvida por uma onda de saudade de meu pai. Co
mecei a me perguntar se fora exigente demais em lhe pedir um sinal. Notei que minha mente estava num estado de hipersensibilidade. Experimentei uma estranha lucidez
na qual seria capaz de calcular de cabeça a soma de várias colunas de números. Verifiquei para ter certeza de que estava acordada, e não sonhando, e percebi que
estava o mais longe possível de um estado de sonho. Cada pensamento que eu tinha era como um pingo d'água perturbando a tranqüilidade de um lago tranqüilo, e fiquei
maravilhada diante da paz de cada momento que passava. Então pensei: "Tenho tentado contrblar as mensagens do outro lado; vou parar com isso agora."
De repente, o rosto de minha mãe apareceu - minha mãe, como era antes que a doença de Alzheimer a tivesse despojado de sua razão, de sua humanidade e de trinta qui
los. Seu magnífico cabelo prateado coroava seu rosto doce. Ela estava tão próxima e tão real, que, aparentemente, eu poderia estender o braço e tocá-la. Ela se parecia
com o que havia sido há doze anos, antes do início da deterioração. Eu sentia até a fragrância de Joy, seu perfume favorito. Ela parecia estar esperando, e não falava.
Eu me perguntava como minha mãe poderia aparecer se eu estava pensando em meu pai e me senti um pouco culpada por não ter perguntado por ela também.
Eu disse:
- Oh, mãe, sinto tanto que você tenha precisado sofrer com aquela doença horrível.
• 20
Ela inclinou a cabeça levemente para um lado, como que para se mostrar grata pelo que eu havia dito sobre seu sofrimento. Depois, sorriu - um belo sorriso - e disse
muito nitidamente:
- Mas eu só me lembro do amor. E desapareceu.
Comecei a tremer e a sala subitamente ficou fria; senti na alma que o amor que damos e recebemos é tudo o que importa e tudo o que é lembrado. O sofrimento desaparece;
o amor permanece.
As palavras dela são as mais importantes que eu já ouvi, e aquele momento ficará para sempre gravado em meu coração.
Ainda não vi ou ouvi sobre o meu pai, mas não tenho dúvidas de que algum dia, quando eu menos esperar, ele vai aparecer e dizer "Eu já lhe disse hoje o quanto a
adoro?"
Bobbie Probstein,
Canção do coração
Era uma vez um homenzarrão que se casou com a mulher dos seus sonhos. De seu amor, nasceu uma garotinha. Ela era uma garotinha talentosa e alegre e o homenzarrão
a amava muito.
Quando ela era bem pequena, ele a pegava no colo, cantarolava uma melodia, dançava com ela pela sala e lhe dizia: -Amo você, garotinha.
Enquanto a garotinha crescia, o homenzarrão a abraçava e lhe dizia:
- Amo você, garotinha.
A garotinha fazia beicinho e dizia: - Não sou mais uma garotinha. O homenzarrão ria e dizia:
- Mas para mim você será sempre a minha garotinha. A garotinha que-não-era-mais-garotinha deixou sua casa e saiu pelo mundo. À medida que aprendia mais sobre si
mesma, aprendia mais sobre aquele homem. Viu que ele era verdadeiramente grande e forte, porque agora reconhecia seus poderes. Um de seus poderes era sua capacidade
de expressar seu amor pela família. Não importava para que lugar do mundo ela fosse, ele ligava para ela e dizia:
- Amo você, garotinha.
• 22
Veio o dia em que a garotinha que-não-era-mais-garotinha recebeu um telefonema. O homenzarrão estava doente. Ele havia sofrido um derrame. Estava afásico, explicaram
à garota. Não podia mais falar e não se tinha certeza de que podia entender o que lhe diziam. Não podia mais sorrir, rir, andar, abraçar, dançar ou dizer à garotinha
que-não-eramais-garotinha que a amava.
Então, ela foi para junto do homenzarrão. Quando entrou no quarto e o viu, ele parecia pequeno e nada forte. Ele a olhou e tentou falar, mas não podia.
A garotinha fez a única coisa que podia fazer. Subiu na cama, ao lado do homenzarrão. Lágrimas escorreram dos olhos de ambos e ela passou os braços em torno dos
ombros inertes do pai.
Com a cabeça em seu peito, ela pensou muitas coisas. Lembrou-se dos maravilhosos momentos que haviam passado juntos e de como ela sempre se sentira protegida e acarinhada
pelo homenzarrão. Sentiu pesar pela perda que teria que suportar, das palavras de amor que a haviam confortado.
Então, ela ouviu as batidas que vinham de dentro do coração do homem. Um coração onde a música e as palavras sempre haviam vivido. O coração batia, sem se preocupar
com os danos sofridos pelo resto do corpo. E, enquanto ela estava ali, a mágica continuava. E ela ouviu o que precisava ouvir.
O coração dele batia as palavras que seus lábios diam mais dizer...
Amo você Amo você Amo você Garotinha Garotinha Garotinha E ela se sentiu confortada.
nao po
Patty Hansen
• 23
Verdadeiro amor
Moses Mendelssohn, avô do famoso compositor alemão, estava longe de ser um homem bonito. Além da pequena estatura, possuía uma grotesca corcunda.
Certo dia, visitou um comerciante em Hamburgo, que tinha uma adorável filha chamada Frumtje. Moses se apaixonou perdidamente por ela. Mas Frumtje sentiu repulsa
por sua aparência disforme.
Quando chegou a hora de sua partida, Moses reuniu coragem e subiu os degraus até o quarto dela, a fim de ter uma última oportunidade de lhe falar. Ela era de uma
beleza celestial, mas sua recusa em olhar para ele lhe causou profunda tristeza. Depois de tentar várias vezes conversar com ela, Moses perguntou timidamente:
- Você acredita que os casamentos são feitos no céu? - Sim - respondeu ela, ainda olhando para o chão. - E você?
- Sim, acredito - replicou ele. - Sabe, no céu, quando nasce um menino, Deus anuncia a menina que ele irá desposar. Quando nasci, minha futura noiva me foi apontada.
En tão, Deus acrescentou: "Mas sua esposa será corcunda." Aí, eu gritei: "Oh, Deus; uma mulher corcunda seria uma tragédia! Por favor, Senhor, dê-me a corcunda e
deixe-a ser bela."
• 24
Então, Frumtj e olhou bem dentro dos seus olhos e se comoveu com alguma profunda lembrança. Ela estendeu sua mão a Mendelssohn e, mais tarde, se tornou sua devotada
esposa.
Barry e Joyce Vissell
• 25
O juiz dos abraços
Não me bata! Abraçe-me!
Bumper Sticker
Lee Shapiro é um juiz aposentado. É também uma das pessoas mais genuinamente amorosas que conhecemos. A certa altura de sua carreira, Lee percebeu que o amor é o
maior poder que existe. Conseqüentemente, Lee se transformou no homem dos "abraços". Começou a oferecer a todo mundo um abraço. Seus colegas o apelidaram de "o juiz
dos abraços" (em oposição a "juiz dos enforcamentos", supomos). O adesivo do seu carro diz: "Não me bata! Abrace-me!"
Há cerca de seis anos, Lee criou o que ele chama de "kitabraço". Do lado de fora lê-se: "Um coração por um abraço." Dentro, há trinta coraçõezinhos vermelhos bordados
com al finetes atrás. Lee sai com seu kit-abraço, encontra as pessoas e oferece-lhes um coraçãozinho em troca de um abraço. Lee tornou-se tão conhecido por isso
que freqüentemente é convidado para apresentar conferências e convenções, onde compartilha sua mensagem de amor incondicional. Numa conferência em São Francisco,
a imprensa local o desafiou dizendo: "É fácil sair distribuindo abraços, aqui na
• 26
conferência, a pessoas que resolveram vir por vontade própria. Isso nunca funcionaria no mundo real."
Eles desafiaram Lee a distribuir alguns abraços pelas ruas de São Francisco. Seguido por uma equipe de televisão do noticiário local, Lee saiu às ruas. Primeiro,
se aproximou de uma mulher que passava.
- Oi, sou Lee Shapiro, o juiz dos abraços. Estou doando estes corações em troca de um abraço.
- Claro - respondeu ela.
- Fácil demais - provocou o comentarista local.
Lee olhou à sua volta. Viu uma guarda de trânsito que estava enfrentando problemas com o dono de uma BMW a quem estava entregando uma multa. Aproximou-se dela, a
equipe de televisão junto com ele, e disse:
- Parece-me que um abraço poderia lhe ser útil. Sou o juiz dos abraços e estou lhe oferecendo um.
Ela aceitou.
O comentarista de televisão lançou um último desafio. - Veja, aí vem um ônibus. Os motoristas de ônibus de São Franciscó são as pessoas mais rudes, rabugentas e
intratáveis de toda a cidade. Vamos ver se você consegue um abraço dele.
Lee aceitou o desafio.
Quando o ônibus parou, Lee disse:
- Oi, sou Lee Shapiro, o juiz dos abraços. Seu trabalho deve ser um dos mais estressantes do mundo. Hoje, estou oferecendo abraços às pessoas para aliviar um pouco
sua carga. Gostaria de um?
O homenzarrão de dois metros e mais de cem quilos levantou do banco, desceu do ônibus e disse:
- Por que não?
Lee o abraçou, deu-lhe um coração e acenou quando o ônibus partiu. A equipe de TV estava sem fala. Finalmente, o comentarista disse:
- Tenho que admitir, estou muito impressionado.
• 27
C
Um dia, Nancy Johnston, amiga de Lee, bateu em sua porta. Nancy é palhaço profissional e estava usando sua fantasia, maquiagem e tudo o mais.
- Lee, pegue um punhado de seus kit-abraço e vamos a um lar de deficientes.
Quando chegaram ao lar, começaram a distribuir chapéus com balões, corações e abraços aos pacientes. Lee sentia-se desconfortável. Nunca havia abraçado pacientes
termi nais, pessoas gravemente retardadas ou quadraplégicas. Foi definitivamente um esforço. Mas, depois de um certo tempo, ficou mais fácil, e Nancy e Lee conquistaram
uma comitiva de médicos, enfermeiros e serventes que os seguiram de ala em ata.
Depois de algumas horas, eles entraram na última ala. Eram os 34 piores casos que Lee jamais vira em sua vida. O sentimento era tão cruel que partiu seu coração.
Mas, cum prindo seu compromisso de compartilhar seu amor com os outros, Nancy e Lee começaram a passear pela sala, seguidos pela comitiva de médicos que, a essa
altura, já traziam corações nos colarinhos e chapéus feitos de balões na cabeça.
Finalmente, Lee chegou à última pessoa, Leonard. Leonard usava um enorme babador branco sobre o qual babava. Lee olhou para Leonard, que babava, e disse:
- Vamos embora, Nancy, não há como encarar esse aqui.
Nancy replicou:
- Vamos lá, Lee. Ele também é um ser humano, não é? Então, ela colocou-lhe um engraçado chapéu de balões na cabeça. Lee pegou um de seus coraçõzzinhos vermelhos
e prendeu-o no babador de Leonard. Respirou fundo, inclinou-se e o abraçou.
De repente, Leonard começou a gritar: - Eeeeeeh! Eeeeeeh!
Alguns dos outros pacientes na sala começaram a bater coisas. Lee voltou-se para a equipe esperando alguma ex
. 28
plicação e apenas viu que todos os médicos, enfermeiros e serventes estavam chorando. Lee perguntou à enfermeira chefe:
-0 que équehá?
Ele nunca poderá esquecer o que ela disse:
- Esta é a primeira vez em 23 anos que vemos Leonard sorrir.
Como é simples ser importante na vidados outros.
Jack Canfield e Mark V. Hansen
• 29
A LENTE SEMPRE SABE QUANDO ELE ANDOU OUVINDO AS FITAS DE LEO BUSCACLIA...
© 1984 United Feature Syndicate, Inc.
PEANUTS reimpresso com a permissão da United Feature Syndicate, Inc.
•30•
Isso pode acontecer aqui?
Precisamos de quatro abraços por dia para sobreviver. Precisamos de oito abraços por dia para nos manter. Precisamos de doze abraços por dia para crescer.
Virginia Satir
Sempre ensinamos às pessoas a abraçarem umas às outras em nossos workshops e seminários. Muitas pessoas respondem dizendo:
- Você nunca conseguiria abraçar as pessoas com quem eu trabalho.
Tem certeza?
Aqui está a carta de uma aluna diplomada em nossos seminários.
Caro Jack,
Comecei este dia bem triste.
Minha amiga Rosalind parou para me perguntar se eu ia distribuir abraços. Eu apenas resmunguei alguma coisa, porém, durante a semana, comecei a pensar sobre abraços
e tudo o mais. Eu olhava para o papel que você nos deu sobre Como Manter o Seminário Vivo e me encolhia quando chegava à parte sobre abraçar e ser abraçado, porque
não conseguia me imaginar abraçando as pessoas no trabalho.
Bem, decidi fazer desse dia "o dia do abraço" e comecei a abraçar os clientes que se aproximavam do meu balcão. Foi incrível ver como as pessoas simplesmente ganha
ram brilho... Um aluno do MBA saltou sobre o balcão e começou a dançar. Algumas pessoas chegaram a voltar e pedir mais. Aqueles dois mecânicos que consertam a máquina
de xerox, e que estavam apenas caminhando lado a lado, sem falar um com o outro, ficaram tão surpresos que simplesmente acordaram e de repente estavam conversando
e rindo pelo saguão.
Parece que eu abracei todo mundo na Wharton Business School e seja lá o que estivesse errado comigo esta manhã, incluindo um pouco de dor, tudo passou. Descul pe-me
por escrever uma carta tão longa, mas é que simplesmente estou muito animada. O melhor foi que, a. certa altura, havia cerca de 10 pessoas abraçando umas às outras
bem em frente ao meu balcão. Eu não podia acreditar que isto estivesse acontecendo.
Com amor, Pamela Rogers.
P.S. A caminho de casa, abracei um policial na Rua 37. Ele disse: "Uau! Policiais nunca são abraçados. Tem certeza de que não quer atirar alguma coisa em mim?"
Outro de nossos alunos enviou-nos o seguinte trecho sobre abraços:
Abraçar é saudável. Ajuda o sistema imunológico, mantém você mais saudável, cura a depressão, reduz o estress, induz o sono, é revigorante, rejuvenesce, não tem
•32•
efeitos colaterais indesejáveis, e é nada menos do que um remédio milagroso.
Abraçar é totalmente natural. É orgânico, naturalmente doce, não contém aditivos químicos, não contém conservantes, não contém ingredientes artificiais e é cem por
cento integral.
Abraçar é praticamente perfeito. Não tem partes móveis, não tem baterias que acabam, não necessita de checkups periódicos, requer baixo consumo de energia, produz
muita energia, é à prova de inflação, não engorda, não exige prestações mensais, não exige seguro, é à prova de roubo, não tributável, não poluente e, é claro, completamente
retornável.
Fonte desconhecida
• 33
Jack Canfield
Você é importante
Uma professora de Nova York decidiu homenagear seus alunos do último ano do colegial, dizendo a cada um deles a sua importância. Usando um processo desenvolvido
por Helice Bridges, de Del Mar, Califórnia, ela chamou todos os alunos em frente à classe, um de cada vez. Primeiro, disse a eles como eram importantes para ela
e para a classe. Então presenteou cada um deles com um laço azul com uma frase impressa em letras douradas: "Eu sou importante."
Depois, a professora resolveu desenvolver um trabalho com a classe para ver que tipo de impacto o reconhecimento teria sobre uma comunidade. Deu a cada aluno mais
três la ços e os instruiu para que saíssem e disseminassem a cerimônia de reconhecimento. Em seguida, eles deveriam acompanhar os resultados, ver quem homenageara
quem e relatar à classe dentro de cerca de uma semana.
Um dos garotos foi até um executivo júnior de uma empresa próxima e o condecorou por ajudá-lo no planejamento de sua carreira. Deu-lhe um laço azul e prendeu-o em
sua camisa. Então, deu-lhe dois outros laços, e disse:
- Estamos fazendo um trabalho para a escola sobre reconhecimento, e gostaríamos que você procurasse alguém
• 34
para homenagear, que o presenteasse com um laço azul, e então lhe desse o outro laço para que ele possa homenagear uma terceira pessoa, disseminando esta cerimônia
de reconhecimento. Em seguida, por favor, procure-me novamente e conte-me o que aconteceu.
Mais tarde naquele dia, o executivo júnior procurou seu chefe, que, por falar nisso, era tido até então como um cara rabugento. Pediu ao chefe que se sentasse e
lhe disse que o admirava profundamente por ser um gênio criativo. O chefe pareceu muito surpreso. O executivo júnior perguntou-lhe se ele aceitaria o laço azul como
presente e se permitiria que ele o colocasse. Seu chefe, surpreso, disse:
- Bem, certamente.
O executivo júnior pegou o laço azul e colocou-o no paletó do chefe bem acima do coração. Ao dar ao chefe o último laço, disse:
- O senhor me faria um favor? Receberia este outro laço e o passaria adiante homenageando uma outra pessoa? O garoto que me deu os laços está fazendo um trabalho
para a escola e queremos que esta cerimônia de reconhecimento prossiga, para descobrir como ela influencia as pessoas. Naquela noite, ao chegar em casa, o chefe
procurou seu filho de quatorze anos e pediu que se sentasse. Ele disse: - Hoje me aconteceu a coisa mais incrível. Estava em meu escritório e um dos executivos juniores
entrou, disse que me admirava e me deu este laço azul por me considerar um gênio criativo. Imagine. Ele acha que eu sou um gênio criativo. Então, ele prendeu esse
laço azul que diz "Eu sou importante" no meu paletó, bem sobre o meu coração. Deume um outro laço e pediu-me que homenageasse uma outra pessoa. Esta noite, voltando
para casa, comecei a pensar em quem homenagearia com esse laço e pensei em você. Quero homenagear você. Meus dias são muito tumultuados e, quando chego em casa,
não lhe dou muita atenção. Algumas vezes grito com você por não tirar boas notas na escola e por
• 35
seu quarto estar uma bagunça, mas, de qualquer forma, esta noite eu gostaria apenas de me sentar aqui e, bem, dizer-lhe que você é importante para mim. Além de sua
mãe, você é a pessoa mais importante na minha vida. Você é um grande garoto e eu amo você!
O sobressaltado garoto começou a soluçar, e não conseguia parar de chorar. Todo o seu corpo tremia. Ele olhou para o pai e disse através das lágrimas:
- Papai, eu planejava cometer suicídio amanhã, porque achava que você não me amava. Agora, não preciso mais.
Helice Bridges
• 36
Um de cada vez
Um de nossos amigos estava caminhando ao pôr-do-sol em uma praia deserta mexicana. À medida que caminhava, começou a avistar outro homem a distância. Ao se aproximar
do nativo, notou que ele se inclinava, apanhando algo e atirando na águá. Repetidamente, continuava jogando coisas no mar.
Ao se aproximar ainda mais, nosso amigo notou que o homem estava apanhando estrelas-do-mar que haviam sido levadas para a praia e, uma de cada vez, as estava lançando
de volta à água.
Nosso amigo ficou intrigado. Aproximou-se do homem e disse:
- Boa tarde, amigo. Estava tentando adivinhar o que você está fazendo.
- Estou devolvendo estas estrelas-do-mar ao oceano. Você sabe, a maré está baixa e todas essas estrelas-do-mar foram trazidas para a praia. Se eu não as lançar de
volta ao mar, elas morrerão por falta de oxigênio.
-Entendo -respondeu meu amigo-, mas deve haver milhares de estrelas-do-mar nesta praia. Provavelmente você não será capaz de apanhar todas elas. É que são muitas,
• 37
simplesmente. Você percebe que provavelmente isso está acontecendo em centenas de praias acima e abaixo desta costa? Vê que não fará diferença alguma?
O nativo sorriu, curvou-se, apanhou uma outra estrelado-mar e, ao arremessá-la de volta ao mar, replicou:
- Fez diferença para aquela.
Jack Canfield e Mark V. Hansen
• 38
O presente
Bennet Cerf relata esta tocante história sobre um ônibus que sacudia ao longo de uma estrada vicinal no sul.
Num dos assentos, um delicado senhor de idade segurava um buquê de flores frescas. Do outro lado do corredor havia uma menina cujos olhos se voltavam insistentemente
para as flores do homem. Chegou o momento de o senhor saltar. Impulsivamente ele jogou as flores no colo da garota. - Posso ver que você ama as flores - explicou
ele - e acho que minha esposa gostaria que fossem suas. Direi a ela que as dei a você.
A garota aceitou as flores e ficou olhando o senhor saltar do ônibus e atravessar o portão de um pequeno cemitério.
• 39
Um irmão como esse
Um amigo meu chamado Paul ganhou um automóvel de presente de seu irmão no Natal. Na noite de Natal, quando Paul saiu de seu escritório, um menino de rua estava andando
em volta do reluzente carro novo, admirando-o.
- Este carro é seu, senhor? - ele perguntou. Paul assentiu.
- Meu irmão me deu de Natal. O garoto ficou boquiaberto.
- Quer dizer que foi um presente de seu irmão e não lhe custou nada? Rapaz, quem me dera... - hesitou ele.
É claro que Paul sabia o que ele ia desejar. Ele ia desejar ter um irmão como aquele. Mas o que o garoto disse chocou Paul tão completamente que o desarmou.
- Quem me dera - continuou o garoto - ser um irmão como esse.
Paul olhou o garoto com espanto, e então, impulsivamente, acrescentou:
- Você gostaria de dar uma volta no meu automóvel? - Oh, sim, eu adoraria.
Depois de uma voltinha, o garoto virou-se e, com os olhos incandescentes, disse:
• 40
- O senhor se importaria de passar em frente à minha casa?
Paul deu um leve sorriso. Pensou que soubesse o que o rapaz queria. Ele queria mostrar aos vizinhos que podia chegar em casa num carrão. Mas Paul estava novamente
enganado.
- Pode parar em frente àqueles dois degraus? - perguntou o garoto.
Ele subiu correndo os degraus. Então, passados alguns momentos, Paul ouviu-o retornar, mas ele não vinha depressa. Carregava seu irmãozinho paralítico. Sentou-o
no degrau inferior e depois como que o abraçou fortemente e apontou carro.
- Aí está ele, amigão, exatamente como eu te contei lá em cima. O irmão deu o carro a ele de presente de Natal e não lhe custou um centavo. E algum dia eu vou te
dar um igualzinho... então você poderá ver com seus próprios olhos, nas vitrines de Natal, todas as coisas bonitas sobre as quais eu venho tentando te contar.
Paul saiu do carro e colocou o rapaz no banco da frente. O irmão mais velho, com os olhos brilhando, entrou atrás dele e os três deram uma volta comemorativa.
Naquela noite de Natal, Paul aprendeu o que Jesus queria dizer quando mencionava:
"Mais afortunados os que dão..."
o
Dan Clark
Sobre a coragem
- Então, você me acha corajosa? - ela perguntou. - Sim, eu acho.
- Talvez eu seja. Mas, isso é porque eu tive alguns bons professores. Vou te contar sobre um deles. Há muitos anos, quando trabalhava como voluntária no Hospital
Stanford, conheci uma garotinha chamada Liza que sofria de uma doença grave e rara. Aparentemente, sua única chance de recuperação era uma transfusão de sangue de
seu irmão de cinco anos, que sobrevivera milagrosamente à mesma doença e desenvolvera os anticorpos necessários para combater o mal. O médico explicou a situação
ao irmãozinho dela e perguntou ao menino se ele doaria seu sangue à irmã. Vi-o hesitar por apenas um momento antes de respirar profundamente e dizer:
- Sim, eu o farei, se for para salvar Liza.
r~ medida que a transfusão transcorria, ele estava deitado num leito vizinho ao de sua irmã e soma, como todos nós, ao ver a cor retornar às maçãs de seu rosto.
Depois, o rosto dele ficou pálido e seu sorriso se apagou. Ele olhou para o médico e perguntou numa voz trêmula:
- Vou começar a morrer já?
• 42
Sendo muito jovem, o menino compreendera mal o médico; pensou que teria que dar a ela todo o seu sangue.
Sim, aprendi a ser corajosa - acrescentou ela - porque tive professores que me inspiraram.
Dan Millman
• 43
Grande Ed
Quando cheguei à cidade para apresentar um seminário' sobre Gerência Obstinada, um pequeno grupo me levou para jantar a fim de me instruir sobre as pessoas a quem
eu falaria no dia seguinte.
O líder óbvio do grupo era o "Grande Ed", um homenzarrão corpulento, de voz grave e retumbante. Durante o jantar, ele me informou que trabalhava como intermediário
numa grande organização internacional. Seu trabalho consistia em ir a determinadas divisões ou subsidiárias para rescindir o contrato do executivo encarregado.
- Joe - disse ele - estou realmente ansioso por amanhã, porque todos precisam ouvir um cara firme como você. Eles vão ver que o meu estilo é o certo -sorriu largamente
e deu uma piscadela.
Eu sorri. Sabia que o dia seguinte seria diferente do que ele estava prevendo.
No dia seguinte, ele sentou-se impassivelmente durante todo o seminário e, ao final, saiu sem me dizer nada.
Três anos depois, voltei àquela cidade para apresentar outro seminário gerencial para aproximadamente o mesmo grupo. O grande Ed estava lá de novo. De repente, por
volta das dez horas, ele se levantou e perguntou em voz alta:
• 44
- Joe, posso dizer algo para estas pessoas? Eu sorri e disse:
- Claro. Quando alguém é grande como você, Ed, pode dizer o que quiser.
O grande Ed prosseguiu dizendo:
- Todos vocês me conhecem e alguns sabem o que aconteceu comigo. No entanto, quero partilhar isso com todos vocês. Joe, acho que você vai gostar.
"Quando ouvi você sugerir a cada um de nós que, para nos tornarmos realmente firmes, deveríamos aprender a dizer àqueles que nos são caros que realmente os amamos,
pensei que tudo aquilo não passasse de sentimentalismo barato. Tentei imaginar o que aquilo tinha a ver com ser firme. Você tinha dito que a firmeza é como o couro,
e a dureza é como o granito; que a mente firme é aberta, flexível, disciplinada e tenaz. Mas eu não conseguia entender o que o amor tinha a ver com isso.
"Naquela noite, quando me sentei diante de minha esposa na sala de estar, suas palavras ainda estavam me atormentando. Que tipo de coragem seria preciso para dizer
à minha esposa que eu a amava? Será que qualquer pessoa não seria capaz de fazê-lo? Você também havia dito que isso deveria ser feito à luz do dia, e não no quarto.
Deparei comigo mesmo limpando a garganta, e começando, e parando. Minha esposa olhou para cima e me perguntou o que eu havia dito, e eu respondi,'Ah, nada'. Então,
de repente, levantei-me, atravessei a sala, empurrei o jornal dela nervosamente para o lado e disse: 'Alice, eu te amo.' Por um minuto ela pareceu sobressaltada.
Então, lágrimas afloraram aos seus olhos e ela disse suavemente: 'Ed, eu também te amo, mas esta é a primeira vez em vinte e cinco anos que você disse isso dessa
forma.'
"Conversamos durante algum tempo sobre como o amor, quando há bastante, é capaz de dissolver todo tipo de tensões e, de repente, decidi, no entusiasmo do momento,
ligar
• 45
para meu filho mais velho em Nova York. Nunca nos dem muito bem. Quando ouvi sua voz ao telefone, falei sopetão:'Filho, você pode pensar que estou bêbado, mas n
estou. Apenas pensei em te telefonar e dizer que eu te am Houve uma pausa do outro lado da linha, e então eu o ou dizer baixinho: 'Papai, acho que eu já sabia, mas,
com cert za, é muito bom ouvir. Quero que saiba que também te am Tivemos um bom papo e então liguei para meu filho novo em São Francisco. Sempre fomos mais chegados.
E disse o mesmo a ele, e isso também proporcionou uma co versa realmente agradável, como nunca havíamos tido d fato. Ao me deitar naquela noite, pensando, percebi
que tud o que você havia falado - detalhes operacionais da verd deira gerência -adquiriram um novo significado, e eu co segui perceber como aplicá-los se realmente
entendesse praticasse o amor obstinado. Comecei a ler livros sobre o a sunto. Com certeza, Joe, várias personalidades têm muito dizer, e comecei a perceber a enorme
praticidade de aplic o amor à minha vida, tanto em casa quanto no trabalh Como alguns de vocês aqui sabem, eu realmente mudei mi nha forma de trabalhar com as pessoas.
Comecei a prest mais atenção e a ouvir de verdade. Aprendi o que é tent conhecer os pontos fortes das pessoas, em vez de insistir e seus pontos fracos. Comecei a
descobrir o verdadeiro praze de ajudar a desenvolver sua confiança. Talvez o mais impor tante de tudo foi eu ter começado a entender, de verdade que uma forma excelente
de demonstrar amor e respeito pe Ias pessoas é esperar que utilizem seus pontos fortes para al cançar os objetivos que definimos juntos. Joe, esta é minha forma
de dizer'Obrigado!' E, coincidentemente, vamos falar' do aspecto prático! Agora sou vice-presidente da empresa e as pessoas me chamam de líder principal. Ok, pessoal,
agora ouçam esse cara!"
Joe Batten
• 46
O amor e o taxista
Outro dia, estava em Nova York, e tomei um táxi com um amigo. Quando descemos, meu amigo disse ao motorista: - Obrigado pela condução. Você dirigiu muito bem.
O motorista do táxi ficou atordoado por um segundo. Então disse:
- Você é algum engraçadinho?
- Não, meu caro, e não estou caçoando de você. Admiro a forma como você se mantém calmo no trânsito pesado. - É - disse o motorista, e partiu.
- O que significou tudo isso? - perguntei.
-Estou tentando trazer o amor de volta a Nova Yorkdisse ele-Acho que é a única coisa que pode salvar a cidade. - Como um homem só pode salvar a cidade?
- Não sou um homem só. Acho que ganhei o dia para aquele motorista de táxi. Suponha que ele tenha vinte passageiros. Ele será gentil com esses vinte passageiros
porque al guém foi gentil com ele. Por sua vez, esses passageiros serão gentis com seus empregados ou gerentes ou garçons ou até com suas próprias famílias. Finalmente,
o bom humor poderia se espalhar para até mil pessoas. Agora não está nada mal, não é?
• 47
- Mas você depende de que aquele motorista de t passe o seu bom humor aos outros.
- Não dependo - disse meu amigo. - Estou conscie te de que o sistema não é infalível, e assim farei o mesmo co dez pessoas diferentes hoje. Se entre estas dez eu
puder
zer três felizes, ao final posso influenciar ïndiretamente atitudes de mais 3.000.
- Essa teoria soa bem - admiti -, mas não tenho cert za de que funcione na prática.
-Não perderei coisa alguma se não funcionar. Não ga tei meu tempo dizendo àquele homem que ele dirigiu be Ele não recebeu uma gorj eta maior nem menor. Se entrar
po um ouvido e sair pelo outro, e daí? Amanhã haverá um ou tro motorista de táxi que eu possa tentar fazer feliz.
- Você é maluco - eu disse.
- Isso demonstra o quanto você se tornou cético. Fiz u estudo sobre esse assunto. Aparentemente, o que está faltan do aos nossos funcionários dos correios, além
de dinheiro claro, é que ninguém diz a eles que estão fazendo um ótimo trabalho.
- Mas eles não estão.
- Não estão, porque acham que ninguém se importa com isso. Por que alguém não deveria dizer uma palavra bondosa a eles?
Passávamos por um obra em construção e cinco operários estavam almoçando. Meu amigo parou.
- É um magnífico trabalho, o de vocês. Deve ser difícil e perigoso.
Os operários olharam meu amigo desconfiados. - Quando estará terminado?
- Junho - grunhiu um homem.
- Ah. Realmente impressionante. Vocês todos devem estar muito orgulhosos.
Fomos embora. Eu disse a ele:
-Não vejo ninguém como você desde Dom Quixote de La Mancha.
• 48
- Quando aqueles homens digerirem minhas palavras se sentirão melhor. De alguma forma a cidade se beneficiará de sua felicidade.
-Mas você não pode fazer tudo isso sozinho! -protestei. - Você é apenas um homem.
- O mais importante é não desanimar. Fazer com que as pessoas da cidade se tornem boas novamente não é um trabalho fácil, mas se eu puder incluir outras pessoas
em minha campanha...
- Você acaba de deixar passar uma mulher muito simpática - eu disse.
- Sim, eu sei - replicou ele. - E se ela for professora, sua aula de hoje será fantástica.
Art Buchwald
• 49
Um gesto simples
Todo mundo pode ser grande... porque todo mundo pode servi Não é preciso um diploma de faculdade para servir. Não é preei concordar sujeito e verbo para servir.
Basta um coração cheio d graça. Uma alma gerada pelo amor.
Martin Luther King, Jr
Certo dia, Mark estava caminhando da escola para casa quando notou que o menino à sua frente havia tropeçado derrubado todos os livros que estava carregando, além
de''
dois suéteres, um bastão de beisebol, uma luva e um pequeno gravador. Mark ajoelhou-se e ajudou o garoto a pegar as coisas espalhadas. Como estavam caminhando na
mesma direção, ajudou o menino a levar parte de sua carga. No caminho, Mark descobriu que o nome do garoto era Bill, que ele adorava videogames, beisebol e História,
que estava tendo muitos problemas com suas outras matérias e que acabara de terminar o relacionamento com sua namorada.
Chegaram primeiro à casa de Bill, e Mark foi convidado para uma Coca-Cola e para assistir televisão. A tarde trànscorreu agradavelmente, com algumas risadas e alguns
segre
e
50
dos compartilhados; depois, Mark foi para casa. Os dois continuaram a se encontrar na escola, almoçaram juntos uma ou duas vezes e ambos se formaram no primeiro
grau. Foram para a mesma escola secundária, onde tiveram contatos esporádicos durante vários anos. Finalmente, o tão esperado último ano do segundo grau chegou e,
três semanas antes da formatura, Bill perguntou a Mark se eles podiam ter uma conversa.
Bill lembrou do dia em que haviam se encontrado, há alguns anos.
,, - Você algum dia se perguntou por que eu estava carregando tanta coisa naquele dia?-perguntou-lhe Bill.-Limpei meu armário porque não queria deixar uma bagunça
para o próximo dono. Eu tinha guardado algumas pílulas para dormir da minha mãe e estava indo para casa cometer suicídio. Mas depois que passamos algum tempo juntos
conversando e rindo, percebi que, se tivesse me matado, teria perdido aqueles momentos e tantos outros que poderiam se seguir. Portanto, Mark, quando você pegou
meus livros no chão naquele dia, fez muito mais do que isso. Você salvou minha vida.
John W Schlatter
O sorriso
Sorria para o outro; sorria para sua esposa, sorria para seu marido, sorria para seus filhos, sorria para o outro - não importa quem seja - e isso o ajudará a crescer
através do maior amor pelo outro.
Muitos americanos conhecem O Pequeno Príncipe, um maravilhoso livro de Antoine de Saint-Exupéry. É um livro fantástico e lendário, que funciona tanto como história
infan til, quanto como fábula que leva os adultos à reflexão. Porém, poucos conhecem os outros escritos de Saint-Exupéry, novelas e contos.
Saint-Exupéry foi um piloto de guerra que lutou contra os nazistas e foi morto em combate. Antes da Segunda Guerra Mundial, lutou na Guerra Civil Espanhola contra
os fas
cistas. Escreveu uma história fascinante sobre essa experiência intitulada O Sorriso (Le Sourire). É esta história que eu gostaria de partilhar com vocês agora.
Não está claro se ele tencionava escrever uma história autobiográfica ou uma história de ficção. Prefiro acreditar na primeira hipótese.
52
Segundo sua história, ele foi capturado pelo inimigo e lançado numa cela de prisão. Estava certo de que, pelos olhares desdenhosos e pelo tratamento rude que recebeu
de seus carcereiros, seria executado no dia seguinte. A partir daqui, contarei a história conforme me lembro, com minhas próprias palavras.
"Eu tinha certeza de que seria morto. Fiquei terrivelmente nervoso e perturbado. Remexi em meus bolsos para ver se havia algum cigarro que tivesse escapado à sua
revista. En contrei um e, por causa de minhas mãos trêmulas, mal podia levá-lo aos lábios. Mas eu não tinha fósforos; estes eles haviam levado.
"Olhei através das grades para o meu carcereiro. Ele não respondeu ao meu olhar. Afinal, não se estabelece contato visual com uma coisa, um cadáver. Eu gritei para
ele: 'Tem fogo, por favor?' Ele olhou para mim, encolheu os ombros e veio até onde eu estava para acender meu cigarro.
"Ao se aproximar e acender o fósforo, seus olhos inadvertidamente se cruzaram com os meus. Naquele momento eu sorri. Não sei por que fiz isso. Talvez por nervosismo,
talvez porque, quando se está realmente perto de alguém, é muito difícil não sorrir. Em todo o caso, eu sorri. Naquele instante, foi como se uma faísca saltasse
no espaço entre nossos dois corações, nossas duas almas humanas. Sei que ele não queria, mas meu sorriso saltou por entre as grades e gerou um sorriso em seus lábios
também. Ele acendeu meu cigarro, mas permaneceu perto, olhando-me diretamente nos olhos e continuando a sorrir.
"Continuei sorrindo para ele, agora consciente da pessoa e não apenas do carcereiro. E seu olhar para mim também parecia ter uma nova dimensão."
- Você tem filhos? - ele perguntou.
- Sim, aqui, aqui. - Tirei minha carteira e procurei nervosamente as fotografias de minha família. Ele também puxou as fotos de seus ninos e começou a falar sobre
seus pla
53
nos para eles. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu disse que temia nunca mais ver minha família novamente, nunca ter a chance de vê-los crescer. Lágrimas também
afloraram aos seus olhos.
"De repente, sem qualquer outra palavra, ele destrancou minha cela e silenciosamente me conduziu para fora. Uma vez fora da prisão, conduziu-me silenciosamente por
estra das secundárias, para fora da cidade. Lá, nos limites da cidade, ele me libertou. E, sem nenhuma outra palavra, voltou em direção à cidade.
"Minha vida foi salva por um sorriso."
Sim, o sorriso - a conexão verdadeira, espontânea, natural entre as pessoas. Conto essa história em meu trabalho porque gostaria que as pessoas considerassem que,
sob todas as camadas que construímos para nos proteger, nossa dignidade, nossos títulos, nossos diplomas, nossa posição e nossa necessidade de sermos vistos de determinada
forma - sob tudo isso, permanece o eu autêntico, essencial. Não receio chamá-lo de a alma. Acredito realmente que se aquela parte de mim e aquela parte de você puderem
se reconhecer, não seremos inimigos. Não poderemos ter ódio, inveja ou medo. Concluo tristemente que todas essas outras camadas, que construímos com tanto cuidado
ao longo de nossas vidas, nos distanciam e isolam do verdadeiro contato com os outros. A história de Saint-Exupéry fala daquele momento mágico em que duas almas
se reconhecem.
Tive apenas alguns momentos assim. Apaixonar-se é um exemplo. E olhar para um bebê. Por que sorrimos quando vemos um bebê? Talvez seja porque vemos alguém sem to
das aquelas camadas defensivas, alguém cujo sorriso sabemos ser genuíno e sem malícia. E aquela "alma de bebê" dentro de nós, sorri ansiosamente em reconhecimento.
Hanoch McCarty
• 54
Amy Graham
Quando cheguei à Mile High Church, em Denver, para conduzir três cultos e um workshop sobre a consciência da prosperidade, depois de passar a noite inteira no avião,
vin
do de Washington, D.C., estava muito cansado. Ao entrar na igreja, o Dr. Fred Vogt me perguntou:
- Você conhece a Fundação Faça Um Desejo? - Sim - respondi.
-Bem, Amy Graham recebeu o diagnóstico de leucemia terminal. Deram a ela três dias. Seu último desejo foi assistir aos seus ofícios.
Fiquei chocado. Senti um misto de exaltação, espanto e dúvida. Não podia acreditar. Pensei que garotos à beira da morte quisessem ver a Disneylândia, conhecer Sylvester
Stallone, Mr. "T" ou Arnold Schwartzenneger. Com certeza não desejariam passar seus últimos dias ouvindo Mark Victor Hansen. Por que uma garota com apenas poucos
dias de vida desejaria ouvir um orador motivacional? De repente meus pensamentos foram interrompidos...
- Aqui está Amy - disse Vogt ao colocar a frágil mão dela sobre a minha. Diante de mim estava uma garota de dezessete anos, usando um turbante vermelho e laranja
para
• 55
cobrir a cabeça calva devido a tantos tratamentos quimi terápicos. Seu corpo débil estava curvado e sem energia. E disse:
- Minhas duas metas eram formar-me no colegial e a sistir ao seu sermão. Meus médicos não acreditavam que pudesse alcançar nenhum dos dois. Eles não achavam qu
eu teria energia suficiente. Eles me deram alta, sob os cuida dos de meus pais... Estes são meu pai e minha mãe.
Meus olhos encheram-se de lágrimas; fiquei paralisado;'! Perdi o equilíbrio. Estava totalmente comovido. Limpei a garganta, sorri e disse:
- Você e seus familiares são nossos convidados. Obrigado por terem vindo. - Nos abraçamos, esfregamos os olhos e nos separamos.
Eu assistira a muitos seminários de cura nos Estados Unidos, Canadá, Malásia, Nova Zelândia e Austrália. Observara os melhores curandeiros trabalhando e estudei,
pesquisei,
ouvi, ponderei e questionei o que funcionava, por que e como.
Naquela tarde de sábado, conduzi o seminário a que Amy e seus pais assistiram. O auditório estava transbordando, com mais de mil presentes ansiosos por aprender,
crescer e se tornar mais humanos.
Humildemente, perguntei ao público se gostaria de aprender um processo de cura que poderia lhes ser útil por toda a vida. Do palco, parecia que todas as mãos estavam
levantadas bem alto no ar. Eles unanimemente queriam aprender.
Ensinei ao público a esfregar vigorosamente as mãos, separa-las cinco centímetros e sentir a energia da cura. Então, formei pares para que sentissem a energia de
cura que emanava de seus parceiros, de um para o outro. Eu disse:
- Se você precisa de cura, aceite-a aqui e agora.
O público estava em fila e foi um sentimento extasiante. Expliquei que todos temos energia de cura e potencial de
• 56
cura. Cinco por cento de nós temos essa energia e potencial fluindo tão dramaticamente de nossas mãos que poderíamos fazer dessa habilidade uma profissão. Eu Aias
- Esta manhã fui apresentado a Amy Graham, de dezessete anos, cujo último desejo era estar presente a este seminário. Quero trazê-la aqui à frente e pedir a todos
que
lhe enviem sua energia vital. Talvez possamos ajudar. Ela não pediu isso. Estou fazendo isso espontaneamente, porque acho que é certo.
O público entoou:
- Sim! Sim! Sim! Sim!
O pai de Amy conduziu-a até o altar. Ela parecia frágil devido à quimioterapia, devido ao longo tempo no leito e à total falta de exercícios. (Os médicos não haviam
permitido que ela andasse durante as duas semanas anteriores a este seminário.)
Pedi ao grupo que esquentasse as mãos e lhe enviasse energia de cura; em seguida, de pé, as pessoas fizeram-lhe uma aclamação cheia de lágrimas.
Duas semanas depois, Amy telefonou-me para dizer que seu médico lhe dera alta depois de uma remissão total da doença. Dois anos depois, ela ligou novamente para
dizer que se casara.
Aprendi a nunca subestimar a força de cura que todos possuímos. Está sempre ali para ser usada para o maior dos bens. Precisamos apenas nos lembrar de usa-la.
Mark V. Hansen
57
Uma história para o dia dos namorados
Larry e Jo Ann eram um casal comum. Viviam numa casa comum, numa rua comum. Como qualquer outro casal comum, lutavam para equilibrar o orçamento e para educar corretamente
os filhos.
Eram comuns ainda em outro aspecto - tinham seus desentendimentos. A maioria de suas conversas dizia respeito ao que estava errado em seu casamento e de quem era
a culpa.
Até um dia em que o mais extraordinário evento ocorreu. - Sabe, Jo Ann, tenho uma cômoda com gavetas mágicas. Toda vez que abro as gavetas, elas estão cheias de
meias e cuecas - Larry disse. - Quero agradecer-lhe por abastecê-las todos estes anos.
Jo Ann fitou o marido por cima dos óculos. - O que você está querendo Larry?
- Nada. Apenas quero que você saiba o quanto aprecio aquelas gavetas mágicas.
Essa não era a primeira vez que Larry fazia algo estranho, assim Jo Ann afastou o incidente de sua mente até alguns dias depois.
• 58
- Jo Ann, obrigado por anotar tantos números de cheque corretamente no canhoto do talão de cheques este mês. Você acertou quinze dos dezesseis números. E um recorde.
Não acreditando no que acabara de ouvir, Jo Ann desviou os olhos de sua costura.
- Larry, você está sempre reclamando sobre eu anotar os números dos cheques errados. Por que parar agora?
- Por nenhum motivo. Apenas queria que você soubesse que aprecio o esforço que está fazendo.
Jo Ann balançou a cabeça e voltou para sua costura. - O que deu nele? - murmurou para si mesma. Contudo, no dia seguinte, ao fazer um cheque no merca do, Jo Ann
deu uma olhada no canhoto para ver se havia anotado o número certo.
- Por que é que de repente me importo com esses estúpidos números de cheque? - perguntou a si mesma. Tentou desconsiderar o incidente, mas o comportamento de Larry
se intensificou.
- Jo Ann, esse foi um grande jantar - disse ele certa noite. - Aprecio todo o seu empenho. Posso apostar que, nos últimos quinze anos, você serviu mais de 14.000
refeições para mim e para as crianças.
E depois:
- Nossa, Jo Ann, a casa está linda. Você deu um duro danado para deixá-la tão bonita.
E até:
- Obrigado, Jo Ann, apenas por ser você mesma. Eu realmente gosto da sua companhia.
Jo Ann estava ficando preocupada.
- Onde estão o sarcasmo, o criticismo?-perguntava-se. Seus temores de que algo peculiar estivesse acontecendo ao seu marido foram confirmados por Shelly, de dezesseis
anos, que reclamou:
- O papai pirou, mamãe. Ele simplesmente me disse que eu estava bonita. Com toda essa maquiagem e essas rou
• 59
pas desleixadas, mesmo assim ele disse que eu estava boni Aquele não é o papai, mãe. O que há de errado com ele? Independente do que estivesse errado, Larry não
se orou do erro. Dia após dia, ele continuava a se concentrar positivo.
As semanas se passavam, e Jo Ann se acostumava ca vez mais ao estranho comportamento de seu companheir ocasionalmente, ela até lhe rosnava um "Obrigada'. Ela s
orgulhava de enfrentar a situação com calma e serenidad até que um dia aconteceu algo tão peculiar que ela ficou completamente perturbada:
- Quero que você descanse um pouco - disse Larry Vou lavar os pratos. Por favor, largue esta frigideira e saia d cozinha.
(Longa, longa pausa).
- Obrigada, Larry. Muito obrigada!
Os passos de Jo Ann estavam agora um pouco mais leves sua autoconfiança mais elevada e, de vez em quando, ela cantarolava. Parecia que não tinha mais tantos ataques
de tristeza.
-Prefiro o novo comportamento de Larry-pensou. Este seria o final da história se outro evento ainda mais extraordinário não tivesse ocorrido. Desta vez, foi Jo Ann
quem falou.
- Larry - disse ela. - Quero agradecer-lhe por trabalhar e nos sustentar durante todos estes anos. Acho que eu nunca lhe disse o quanto aprecio isso.
Larry nunca revelou a razão de sua dramática mudança de comportamento, por mais que Jo ~~nn tenha insistido numa resposta, e assim, esse continuará sendo mais um
dos mistérios da vida. Mas é um mistério com o qual sou grata em conviver.
Como você pode ver, eu sou Jo Ann.
n
Jo Ann Larsen Desert New's
• 60
Carpe diem!
Um brilhante exemplo de expressão de coragem é John Keating, o professor revolucionário interpretado por Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos. Neste filme
magis tral, Keating toma um grupo de estudantes espiritualmente impotentes, arregimentados e reprimidos num internato rígido e os inspira a tornarem suas vidas extraordinárias.
Estes jovens, como Keating lhes faz ver, perderam de vista seus sonhos e ambições. Estão automaticamente vivendo os planos e expectativas de seus pais em relação
a eles. Pla nejam se tornarem médicos, advogados e banqueiros porque isso é o que seus pais lhes disseram que irão fazer. Mas estes rapazes sem vida dificilmente
dedicaram qualquer pensamento ao que seus corações lhes clamam a expressar.
Uma das primeiras cenas do filme mostra o Sr. Keating descendo com os meninos até o saguão da escola, onde um quadro de troféus exibe fotos de turmas anteriores
de alunos. Olhem para estas fotos, meninos' - Keating diz aos estudantes. - "Os jovens que vocês contemplam possuíam a mesma chama que vocês possuem nos olhos. Planejavam
revolucionar o mundo e transformar suas vidas em algo magnífico. Isso foi há setenta anos. Agora estão todos mortos.
Quantos deles realmente viveram seus sonhos? Quantos zeram o que estavam determinados a realizar?" Então, o Keating se inclina para o grupo de rapazes e murmura
modo que todos possam ouvi-lo: "Carpe diem! Aproveitem oportunidades!"
No início os estudantes não sabem o que fazer com es estranho professor. Mas logo ponderam a importância suas palavras. Passam a respeitar e reverenciar o Sr. Keatin
que deu a eles uma nova visão - ou devolveu-lhes suas sões originais.
d
Todos nós carregamos algum tipo de cartão de aniversário quego~ taríamos de presentear a alguém - uma expressão de alegr criatividade ou vivacidade que escondemos
sob a camisa.
Uma das personagens do filme, Knox Overstreet, é pe didamente apaixonado por uma bela garota. O único probl ma é que ela é a garota de um famoso atleta. Knox está
enfe
tiçado por essa adorável criatura até a raiz dos cabelos, m não tem autoconfiança para se aproximar dela. Então, ele s lembra do conselho do Sr. Keating: "Aproveite
as oportun dades!" Knox percebe que não pode simplesmente continu ar sonhando - se ele a quer, terá que fazer algo a respeito. faz. Corajosa e poeticamente, ele
lhe declara seus mais puro sentimentos. Durante sua declaração, ela o manda embora, ele leva um soco no nariz do namorado dela e enfrenta em baraçosos contratempos.
Mas Knox não quer desistir do se sonho e, assim, segue o desejo de seu coração. No final, el percebe que o amor dele é verdadeiro e abre seu coração Apesar de Knox
não ser especialmente bonito ou popular, garota é conquistada pela força de sua intenção sincera. El tornou sua vida extraordinária.
Eu mesmo tive uma chance de praticar o "Aproveite a oportunidades!" Apaixonei-me por uma garota atraente que conheci numa loja de animais de estimação. Ela era mais
jo-'
vem do que eu, levava um estilo de vida muito diferente e
• 62
não tínhamos muito sobre o que conversar. Mas, de alguma forma, nada disso parecia importar. Eu gostava de estar com ela e sentia uma chama na sua presença. E, aparentemente,
ela também gostava de minha companhia.
Quando soube que o aniversário dela estava chegando, decidi convidá-la para sair. Antes de lhe telefonar, sentei-me e fiquei olhando para o telefone durante mais
ou menos meia hora. Então discava e desligava antes que tocasse. Sentia-me como um garoto de colégio, oscilando entre a ansiedade e excitação e o medo da rejeição.
Uma voz diabólica insistia em me dizer que ela não gostava de mim e que seria muito atrevimento convidá-la. Mas eu estava entusiasmado demais com a idéia de sair
com ela para deixar que esses receios me detivessem. Finalmente, tomei coragem e a convidei. Ela me agradeceu e disse que já tinha outros planos.
Senti-me nocauteado. A mesma voz que me dissera para não telefonar me advertiu para desistir antes de ficar ainda mais envergonhado. Mas eu estava decidido a ver
no que ia dar essa atração. Havia algo mais dentro de mim querendo vir à tona. Eu tinha sentimentos por aquela mulher, e precisava expressá-los.
Fui a uma loja e comprei-lhe um lindo cartão de aniversário no qual escrevi uma mensagem poética. Dobrei a esquina em direção à loja de animais. Sabia que ela estava
lá traba
lhando. Ao me aproximar da porta, a mesma voz perturbadora me aconselhou cautela: "E se ela não gostar de você? E se ela o rejeitar?" Sentindo-me vulnerável, meti
o cartão embaixo da camisa. Decidi que se ela me mostrasse sinais de afeição, eu o daria; se ela fosse fria comigo, manteria o cartão escondido. Dessa forma eu não
correria riscos e evitaria a rejeição ou vergonha.
Conversamos durante alguns momentos e não recebi sinal algum de sua parte, numa ou noutra direção. Sentindome constrangido, fui saindo.
No entanto, ao me aproximar da porta, uma outra voz me falou. Era um sussurro, como a voz do Sr. Keating. A voz me
• 63
estimulou "Lembre-se de Knox Overstreet... Carpe diem! Neste momento, estava diante de minha aspiração em ex pressar totalmente meus sentimentos e de minha resistênci
em enfrentar a insegurança de me despir emocionalmente Como posso sair por aí dizendo às pessoas que vivencie
seus sonhos, perguntei a mim mesmo, quando eu não esto vivenciando os meus? Além disso, qual a pior coisa que p deria acontecer? Qualquer mulher adoraria receber
um poé tico cartão de aniversário. Decidi aproveitar a oportunidade Ao fazer essa escolha, senti uma onda de coragem correr pe Ias minhas veias. De fato, havia força
na intenção.
Senti-me mais satisfeito e em paz comigo mesmo do que havia m sentido durante muito tempo... Precisava abrir meu coração e da amor sem esperar nada em troca.
Retirei o cartão de dentro da camisa, virei-me, fui até balcão e entreguei-o a ela. Ao entregá-lo senti um vigor e uma excitação incríveis - além de medo. (Fritz
Perls disse
que o medo é "uma excitação sem fôlego".) Mas entreguei cartão.
E sabe o que aconteceu? Ela não ficou especialmente im-¡, pressionada. Disse "obrigada" e colocou o cartão de lado, sem nem abri-lo. Meu coração afundou. Senti-me
desapon tado e rejeitado. A ausência de resposta parecia ainda pior do que um fora direto.
Despedi-me educadamente e saí da loja. Então, algo interessante aconteceu. Comecei a me sentir estimulado. Uma enorme onda de satisfação interna se acumulou dentro
de mim e fluiu para todo o meu ser. Eu havia expressado meus sentimentos e isso me trouxera uma sensação fantástica! Eu havia vencido o medo e partido para a pista
de dança. Sim, eu fora um pouco desajeitado, mas havia conseguido. (Emmet Fox disse: "Faça-o tremendo se precisa fazê-lo, mas faça-o!") Eu havia mostrado meus sentimentos
sem exigir garantias de
• 64
resultados. Não dei para receber algo em troca. Abri meus sentimentos a ela sem compromisso com uma determinada resposta.
A dinâmica necessária para que qualquer relacionamento funcione. basta continuar demonstrando seu amor.
Minha animação aprofundou-se, transformando-se num morno contentamento. Senti-me mais satisfeito e em paz comigo mesmo do que me sentira em muito tempo. Per
cebi o propósito de toda a experiência: eu precisava aprender a abrir meu coração e dar amor sem exigir nada em troca. Não era uma experiência de criar um relacionamento
com aquela mulher. Era o aprofundamento de meu relacionamento comigo mesmo. E eu consegui. O Sr. Keating teria ficado orgulhoso. Mas, acima de tudo, eu estava orgulhoso.
Desde então não vi mais a garota. Mas aquela experiência mudou minha vida. Através daquela simples interação, pude ver claramente a dinâmica necessária para fazer
qual quer relacionamento, e até mesmo o mundo inteiro, funcionar: Basta continuar demonstrando seu amor.
Acreditamos que nos magoamos quando não recebemos amor. Mas não é isso que nos magoa. Nosso sofrimento vem quando não damos amor. Nascemos para amar. Você poderia
dizer que somos máquinas de amar criadas por Deus. Funcionamos com mais potência quando estamos dando amor. O mundo nos levou a acreditar que nosso bem-estar depende
do amor de outras pessoas. Mas este é o tipo de pensamento às avessas, que tem causado tantos de nossos problemas. A verdade é que nosso bem-estar depende de nossa
capacidade de dar amor. Não tem nada a ver com o que volta; tem a ver com o que vai!
Alan Cohen
• 65
Conheço você, você é igualzinho a mim!
Um de nossos amigos mais chegados é Stan Dale. St ministra um seminário sobre amor e relacionamentos cha coado Sexo, Amor e Intimidade. Há alguns anos, numa ten
tativa de descobrir como era realmente o povo da União S viética, ele levou para lá, durante duas semanas, 29 pessoas: Quando escreveu sobre a experiência em seu
boletim, fica mos profundamente tocados pelo seguinte caso.
Ao caminharmos por um parque na cidade industrial de;; Cracóvia, vi um senhor russo, veterano da Segunda Guerra Mundial. Os veteranos são facilmente identificáveis
pelas medalhas e fitas que exibem orgulhosamente em suas camisas e jaquetas. Não é um ato de vaidade. É a forma de seu país homenagear aqueles que ajudaram a salvar
a Rússia, embora vinte milhões de russos tenham sido mortos pelos nazistas. Fui até este senhor, sentado ao lado de sua esposa, e disse: "Droozhba, emir (paz e amizade).
O homem, fitandome com descrença, apanhou o broche que havíamos feito para a viagem, que dizia ~mizadé em russo e mostrava um mapa dos Estados Unidos e da União
Soviética seguros por mãos amorosas, e disse: Americanski? Respondi: Da, Americanski. Droozhba, emir." Ele apertou ambas as minhas mãos,
• 66
como se fôssemos irmãos há muito separados, e repetiu novamente: Americanski! Desta vez havia reconhecimento e amor na sua afirmação.
Durante os próximos minutos, ele e a esposa falaram em russo como se eu entendesse tudo, e eu falei inglês como se soubesse que ele entenderia. E sabe de uma coisa?
Nenhum de nós entendia uma palavra, mas com certeza compreendíamos um ao outro. Nos abraçamos, rimos e choramos, dizendo todo o tempo Droozhba, emir, Americanski.
"Eu te amo, estou orgulhoso de estarem seu país, não queremos a guerra. Eu amo você!"
Mais ou menos cinco minutos depois, nos despedimos e os sete de nosso pequeno grupo se foram. Cerca de quinze minutos depois, já a uma distância considerável, este
mesmo senhor veterano nos alcançou. Ele veio até mim, tirou sua medalha da Ordem de Lenin (provavelmente sua mais alta condecoração) e prendeu-a à minha jaqueta.
Então me beijou nos lábios e me deu um dos abraços mais calorosos e fraternos que já recebi. Ambos choramos, nos olhamos nos olhos durante um longo tempo e nos dissemos
Dossvedanya (adeus).
A história acima simboliza toda a nossa viagem de "diplomacia civil" à União Soviética. Todos os dias conhecíamos e tocávamos centenas de pessoas, em todos os locais
possí
veis e impossíveis. Nem os russos, nem nós, americanos, jamais seremos os mesmos. Hoje, há centenas de crianças nas três escolas que visitamos que não concordarão
imediatamente que os americanos são pessoas que querem destruílos. Dançamos, cantamos e brincamos com crianças de todas as idades, e depois nos abraçamos, nos beijamos
e trocamos presentes. Elas nos deram flores, bolos, broches, pinturas, bonecas, mas, mais importante que tudo isso, abriram seus corações e mentes.
Mais de uma vez, fomos convidados a participar de festas de casamento, e nenhum membro da famlia poderia ter
• 67
sido mais calorosamente aceito, acolhido e festejado do nós fomos. Nos abraçamos, nos beijamos, dançamos e to mos champagne, schnapps e vodka com o noivo e a noiva,
a sim como Momma e Poppa e o resto da família.
Em Kursk, fomos recepcionados por sete famílias russ que se apresentaram como voluntárias para nos recebere para uma noite maravilhosa de comida, bebida e conve:
Quatro horas mais tarde, nenhum de nós queria partir. N so grupo tem agora uma família completa na Rússia.
Na noite seguinte, recebemos "nossa família" em noss hotel. A banda tocou até quase meia-noite, e sabem o que mais? Mais uma vez, comemos, bebemos, conversamos,
dará çamos e choramos quando chegou a hora de dizer adeus Dançamos cada dança como amantes apaixonados, e er exatamente o que éramos.
Eu poderia me estender para sempre sobre nossas expe riências, mas ainda assim não haveria como transmitir vocês exatamente como nos sentimos. Como você se sentiri
ao chegar ao seu hotel em Moscou, se houvesse uma mensa gem telefônica o aguardando, escrita em russo, do escritório de Mikhail Gorbachev, dizendo que ele lamentava
muito não poder encontra-lo naquele fim de semana, pois estaria fora da cidade, mas que, em lugar desse encontro, providenciara um outro de duas horas entre todo
o grupo e cerca de meia-dúzia de membros do Comitê Central para uma mesaredonda? Tivemos um debate extremamente franco sobre tudo, inclusive sexo.
Como você se sentiria se mais de uma dúzia de senhoras de idade, usando babushkas, descessem as escadas de seus prédios de apartamentos e o abraçassem e o beijassem?
Como se sentiria se suas guias, Tanya e Natasha, lhe dissessem e a todo o grupo, que nunca haviam conhecido ninguém como vocês? E, quando partimos, todos os trinta
choramos, porque havíamos nos apaixonado por essas mulheres fabulosas, e elas por nós. Sim, como se sentiria? Provavelmente, exatamente como nós.
q.
• 68
Cada um de nós teve sua experiência própria, é claro, mas a experiência coletiva certamente nos faz uma revelação: a única forma de garantir algum dia a paz neste
planeta
é adotar o mundo inteiro como "nossa família". Teremos que abraça-los e beija-los. E dançar e brincar com eles. E teremos que nos sentar e conversar e caminhar e
chorar com eles. Pois, quando o fizermos, poderemos ver que, de fato, todos são belos, todos nos complementamos uns aos outros de uma forma tão bela, e todos seríamos
mais pobres sem o outro. Então, os dizeres: "Eu conheço você, você é igualzinho a mim!" passarão a ter o mega-sentido de "Esta é'minha família e eu ficarei ao seu
lado, não importa o que houver!"
Stan Dale
• 69
I A mais nobre necessidade
No mínimo uma vez ao dia, nosso velho gato preto ve até um de nós, de uma forma que todos passamos a ver iss como um pedido especial. Não que ele queira ser alimenta
do ou que o deixem sair ou algo do gênero. Sua necessidad é de algo bem diferente.
Se você tem um colo acessível, ele saltará para ele; se não,' é provável que permaneça ali, de pé, olhando-o suplicante, até que você libere seu colo para ele. Uma
vez ali, ele começa
a vibrar, quase antes de você afagar suas costas, coçar seu queixo e repetir várias vezes o quanto ele é um bom gatinho. Então, seu motor entra em rotação de verdade;
ele se contorce para ficar confortável; ele se esparrama. De vez em quando, um de seus ronrons lhe foge ao controle e se transforma num ronco. Ele olha para você
com olhos bem abertos de adoração e lhe dá aquela longa e demorada piscadela de confiança definitiva, própria dos gatos.
Depois de algum tempo, aos poucos, ele se aquieta. Se achar que pode, talvez fique no seu colo para uma soneca aconchegante. Mas é igualmente provável que salte
para o
chão e vá perambular por aí e cuidar dos seus afazeres. Em qualquer das hipóteses, ele está se sentindo bem.
70
Nossa filha coloca tudo isso numa frase simples: "Blackie precisa ser afagado."
Em nosso lar ele não é o único que tem essa necessidade: eu a compartilho e minha esposa também. Sabemos que essa necessidade não é exclusiva de nenhuma faixa etária.
Ainda
assim, uma vez que sou professor e pai, eu a associo especialmente aos jovens, com sua rápida e impulsiva necessidade de um abraço, de um colo quente, uma mão segura,
uma coberta bem arrumada, não porque algo esteja errado, não porque algo precise ser feito, apenas porque este é o seu jeito de ser.
Há uma porção de coisas que eu gostaria de fazer por todas as crianças. Se eu pudesse realizar apenas uma, seria esta: garantir a cada criança, em todos os lugares,
pelo menos um bom afago todos os dias.
As crianças, como os gatos, precisam de tempo para serem afagadas.
Fred T. Wilhelms
Bopsy
A mãe de 26 anos olhou em direção ao filho que estav morrendo de leucemia grave. Apesar de ter seu coração car regado de tristeza, ela também tinha um sentimento
de forte,
determinação. Como qualquer mãe ou pai, desejava que seu filho crescesse e realizasse todos os seus sonhos. Agora isso não era mais possível. A leucemia se encarregaria
disso. Mas ela ainda queria que os sonhos de seu filho se realizassem.
Pegou a mão do filho e perguntou:
-Bopsy, você alguma vez pensou no que gostaria de ser quando crescesse? Você já sonhou ou imaginou o que faria de sua vida?
- Mamãe, eu sempre quis ser bombeiro quando cresces
se.
A mamãe sorriu para ele e disse:
- Vamos ver se podemos transformar seu desejo em realidade.
Mais tarde, naquele dia, ela foi ao Corpo de Bombeiros em Phoenix, Arizona, onde conheceu o bombeiro Bob, que tinha um coração tão grande quanto a cidade de Phoenix.
Ela
explicou o último desejo do filho e perguntou se seria possível dar uma volta ao redor do quarteirão com o menino de seis anos num carro de bombeiros.
72
O bombeiro Bob disse:
- Olhe, podemos fazer mais que isso. Se seu filho estiver pronto às sete horas da manhã de quarta-feira, faremos dele um bombeiro honorário por um dia. Ele poderá
vir ao Corpo de Bombeiros, comer conosco, sair em todas as chamadas de incêndio, acompanhar todo o nosso trabalho! E, se nos der suas medidas, conseguiremos um uniforme
de bombeiro para ele, com um chapéu de bombeiro de verdade - não de brinquedo - com o emblema do Corpo de Bombeiros de Phoenix, um impermeável amarelo como o nosso
e botas de borracha. São fabricados aqui mesmo em Phoenix, e, portanto, podem ser feitos rapidamente.
Três dias depois, o bombeiro Bob apanhou Bopsy, vestiuo em seu uniforme de bombeiro e escoltou-o de seu leito de hospital ao caminhão com guincho e escada que os
aguarda
va. Bopsy sentou-se na parte traseira do caminhão e ajudou a conduzi-lo de volta ao posto de bombeiros. Ele estava nas nuvens.
Naquele dia, houve três chamadas de incêndio em Phoenix, er Bopsy saiu em todas elas. Ele andou em vários carros de bombeiro, na caminhonete dos paramédicos e até
no carro do chefe dos bombeiros. Além disso, também foi filmado para o telejornal local.
Tendo realizado seu sonho, com todo o amor e atenção que foram derramados sobre ele, Bopsy ficou tão profundamente tocado que viveu três meses além do que qualquer
médico julgara possível.
Uma noite, todos os seus sinais vitais começaram a cair drasticamente e a enfermeira chefe, que acreditava no conceito Hospice de que ninguém deve morrer só, começou
a
chamar os membros da família ao hospital. Lembrou-se então do dia que Bopsy havia passado como bombeiro e telefonou ao chefe do Corpo de Bombeiros, perguntando se
poderia enviar um bombeiro uniformizado ao hospital, para estar com ele em seus últimos instantes de vida. O chefe respondeu:
• 73
- Podemos fazer mais que isso. Estaremos aí em ci minutos. A senhora me faria um favor? Quando ouvir sirenes soando e vir as luzes piscando, poderia anunciar
sistema de alto-falantes que não se trata de um incêndio apenas o Corpo de Bombeiros que veio ver um de seus lhores membros mais uma vez. E a senhora poderia ab
janela do quarto dele? Obrigado.
Cerca de cinco minutos depois, um caminhão com g,u; cho e escada chegou ao hospital, estendeu a escada até a j nela aberta do quarto de Bopsy no terceiro andar e
14 h mens e 2 mulheres do Corpo de Bombeiros subiram e ente ram no quarto de Bopsy. Com a permissão de sua mãe, ab çaram-no, seguraram-no e disseram-lhe o quanto
o amava
Com seu último suspiro, Bopsy olhou para o chefe d bombeiros e disse
- Chefe, sou mesmo um bombeiro agora? - Sim, Bopsy, você é.
Com aquelas palavras, Bopsy sorriu e fechou os olh pela última vez.
Jack Canfield e Mark V Hans
• 74
~MPçAO REPF
R$ 0,50
Z~88y © Ziggy and Friends. Dtstributdo pelo Universal Press Sindicate. Reimpressão autorizada, Todos os direitos reservados.
..:... .•: .:•...s,
• 75
-¡~,~,. W ~g+,.
Filhotes à venda
Um lojista estava fixando na porta de sua loja um cari onde se lia "Filhotes à Venda". Cartazes como esse têm o p der de atrair crianças pequenas e, na verdade,
um garotinha
apareceu sob o cartaz do lojista.
- Por quanto o senhor vai vender os filhotes? -pergun tou ele.
O dono da loja respondeu: - Entre 30 e 50 dólares.
O garotinho enfiou a mão no bolso e tirou uns trocados. - Tenho 2,37 dólares - disse ele. - Posso dar um olhada neles?
O dono da loja sorriu, assobiou e, do canil, saiu Lady, qu veio pelo corredor seguida de cinco pequeninas e miúda bolinhas de pêlo. Um dos filhotes tinha ficado
consideravel mente para trás. Imediatamente, o garotinho indicou o filhote atrasado, que se movia com dificuldade, e disse:
- O que há de errado com aquele cachorrinho?
O dono da loja explicou que o veterinário havia examinado o filhotinho e descobrira que ele não possuía uma articulação do quadril. Ele mancaria para sempre. Seria
defeituoso para sempre. O garotinho ficou animado.
. 76 •
Este é o filhotinho que quero comprar. O dono da loja disse:
- Nãó, você não pode comprar este cachorrinho. Se você realmente o quiser, eu o darei a você.
O garotinho ficou muito aborrecido. Olhou diretamente nos olhos do dono da loja, com o dedo em riste, e disse:
- Eu não quero do senhor um presente. Aquele cachorrinho vale exatamente tanto quanto os outros e eu pagarei o preço real. Na verdade, eu lhe darei 2,37 dólares
agora, e cinqüenta centavos por mês, até que tenha pago tudo.
O dono da loja se opôs:
- Você não quer realmente comprar esse cãozinho. Ele nunca será capaz de correr, saltar e brincar com você como os outros filhotes.
Diante disso, o garotinho abaixou-se e enrolou a perna da calça, revelando uma perna esquerda gravemente deformada e aleijada, amparada por um grande braço de metal.
Olhou para o dono da loja e replicou suavemente:
-Bem, eu também não corro tão bem, e o filhotinho precisará de alguém que compreenda isso!
Dan Clark
Weathering the Storm
. 77
2
APRENDENDO A AMAR A SI PRÓPRIO
Certa vez, Oliver Wendell Holmes participou de uma reunião na qual, entre os presentes, ele era o homem mais baixo. - Dr.Holmes -gracejou um amigo -eu deveria julgar
que o senhor se sente um tanto pequeno entre nós, grandes sujeitos. - Realmente- retrucou Holmes - sinto-me como uma moeda de dez centavos de dólar, entre uma porção
de moedas de um centavo.
0 Buda de ouro
E agora, eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
Antoine de Saint-Exupéry
No outono de 1988, minha esposa Georgia e eu fomos convidados a fazer uma palestra sobre auto-estima e desempenho máximo numa conferência em Hong Kong. Como nunca
havíamos estado no Extremo Oriente, decidimos estender nossa viagem e visitar a Tailândia.
Ao chegarmos a Bangkok, resolvemos fazer uma visita aos mais famosos templos budistas da cidade. Naquele dia, juntamente com nosso intérprete e motorista, eu e Georgia
visitamos vários templos budistas, mas, depois de algum tempo, todos eles começaram a se confundir em nossa memória.
No entanto, um dos templos deixou uma indelével impressão em nossos corações e mentes. Chama-se o "Templo do Buda de Ouro". O templo em si é muito pequeno, prova
velmente não mais do que 10 X 10 metros. Mas, ao entrarmos, ficamos atordoados com a presença de um Buda de ou
ro maciço de 3,5 metros de altura. Ele pesa mais de duasneladas e meia, e está avaliado em aproximadamente c e noventa e seis milhões de dólares! Foi uma visão extre
mente impressionante - o Buda de ouro maciço, gen. bondoso, embora imponente, sorrindo para nós. Enqu estávamos envolvidos com as atividades normais dos t tas (tirar
fotografias e fazer exclamações de admiração di da estátua), caminhei até uma vitrine que continha um de pedaço de barro com cerca de oito polegadas de espes ra
por doze polegadas de largura. Ao lado da vitrine ha uma página datilografada descrevendo a história desta ma, nífica peça de arte.
Nos idos de 1957, um grupo de monges de um mon tério precisava transferir um Buda de barro de seu teme para um novo local. O monastério teria que ser transferi
para ceder espaço à construção de uma auto-estrada q atravessaria Bangkok. Quando o guindaste começou a su pender o ídolo gigantesco, seu peso era tamanho que ele
c meçou a rachar. E, como se isso não bastasse, começou a ch ver. O monge superior, que estava preocupado com os d nos que pudessem ocorrer ao Buda sagrado, resolveu
devo ver a estátua ao chão e cobri-la com um grande encerado d lona para protegê-la da chuva.
Mais tarde, naquela noite, o monge foi verificar como e tava o Buda. Acendeu sua lanterna sob o encerado para ve se o Buda continuava seco. Conforme a luz incidiu
sobre
rachadura, o monge notou um pequeno brilho e achou e tranho. Ao olhar mais de perto o reflexo da luz, perguntou se se poderia haver algo sob o barro. Foi buscar
um cinzel um martelo no monastério e começou a retirar o barro. medida que derrubava fragmentos do barro, o pequeno brilho se tornava maior e mais forte. Muitas
horas de trabalho se passaram até que o monge se deparou com o extraordinário Buda de ouro maciço.
Os historiadores acreditam que algumas centenas de anos antes da descoberta do monge, o exército dos birma
e,
• 82
peses estava prestes a invadir a Tailândia (chamada então de pião). Os monges siameses, percebendo que seu país seria logo atacado, cobriram seu precioso Buda de
ouro com uma cansada externa de barro, a fim de evitar que seu tesouro fosse roubado pelos birmaneses. Infelizmente, parece que os birmaneses massacraram todos os
monges siameses, e o bem-guardado segredo do Buda de ouro permaneceu intacto até aquele fatídico dia em 1957.
Voltando para casa no avião da Cathay Pacific Airlines, pensei comigo mesmo: "Somos todos como o Buda de barro, recobertos por uma concha de resistência criada pelo
medo e
ainda assim, dentro de cada um de nós, há um 'Buda de ouro', um'Cristo de ouro' ou uma'essência de ouro', que é o nosso eu verdadeiro. Em algum lugar ao longo do
caminho, entre as idades de dois e nove anos, começamos a encobrir nossa 'essência de ouro', nosso eu natural. E, assim como o monge, com o martelo e o cinzel, nossa
tarefa agora é descobrir mais uma vez a nossa verdadeira essência."
Jack Canfield
• 83
Comece consigo mesmo
As palavras a seguir foram escritas na tumba de um bis anglicano (1100 A.D.), nas criptas da abadia de Westminste
Quando era jovem e livre, e minha imaginação não tinha limites, eu sonhava em mudar o mundo. Quando fiquei mais velho e mais sábio, descobri que o mundo não mudaria,
e assim reduzi um pouco os limites de meu ideal e decidi mudar apenas meu país.
Porém este, também, parecia imutável.
À medida que chegava ao crepúsculo, numa última e desesperada tentativa, procurei mudar apenas minha família, aqueles mais próximos a mim, mas, ai de mim, eles não
mudaram.
E agora, deitado em meu leito de morte, subitamente percebo: se eu tivesse apenas mudado a mim mesmo primeiro, então, pelo exemplo, eu teria mudado minha família.
Com sua inspiração e estímulo, eu poderia ter melhorado meu país e, quem sabe até, ter mudado o mundo.
Anônimo
• 84
Nada além da verdade!
David Casstevens, do Dallas Morning News, conta uma história sobre Frank Szymanski, centroavante do Notre Dame nos anos 1940, que foi chamado para servir de testemunha
numa ação civil em South Bend.
- O senhor está no time de futebol este ano? - perguntou o juiz.
- Sim, Excelência. - Em que posição? - Centroavante, Excelência. - Um bom centroavante?
Szymanski contorceu-se na cadeira, mas disse com firmeza:
- Senhor, sou o melhor centroavante que o Notre Dame já teve.
Frank Leahy, treinador do time, que estava no tribunal, ficou surpreso. Szymanski sempre fora modesto e despretensioso. Assim, quando a audiência terminou, ele puxou
Szy manski de lado e perguntou-lhe porque tinha feito tal afirmação. Szymanski corou.
--- Detestei fazê-lo, treinador - disse ele. - Mas, afinal, eu estava sob juramento.
85
Cobrindo todas as bases
Um garotinho falava consigo mesmo ao transpor corre do o quintal de sua casa, boné de beisebol a postos, carrega do bola e taco.
- Sou o maior jogador de beisebol do mundo - dizi orgulhosamente.
Então, lançou a bola no ar, girou o taco, e errou. Impávt do, ele pegou a bola, j ogou-a no ar e disse a si mesmo:
- Sou o maior jogador de todos os tempos!
Ele girou o taco novamente, e novamente errou. Fez u pausa e examinou cuidadosamente o taco e a bola. Então ~tma vez mais lançou a bola no ar e disse:
- Sou o maior jogador de beisebol que já existiu. Girou fortemente o taco e novamente perdeu a bola.
-Uau! Que lançador!
Fonte desconhecida
Lima criança pequena estava desenhando e sua professora disse: - É um desenho interessante. Fale-me sobre ele.
- É um retrato de Deus.
- Mas ninguém sabe como é Deus.
- Vão saber quando eu tiver terminado.
• 86
Minha declaração de auto-estima
O que eu sou só será suficientemente bom, se eu o for abertamente.
Carl Rogers
O trecho seguinte foi escrito em resposta à pergunta de uma garota de 15 anos: "Como posso me preparar para uma vida de plena satisfação?"
Sou eu mesma.
No mundo inteiro, não há ninguém mais exatamente como eu. Há pessoas que possuem algumas partes que eu também possuo, mas o todo nunca é exatamente igual ao meu.
Portanto, tudo que vem de mim é autenticamente meu, porque eu o escolhi sozinha.
Sou dona de tudo o que diz respeito a mim - meu corpo, inclusive tudo o que ele faz; minha mente, inclusive todos os meus pensamentos e idéias; meus olhos, inclusive
as imagens de tudo o que eles contemplam; meus sentimentos, independente de quais sejam - raiva, alegria, frustração, amor, desapontamento, excitação; minha boca
e todas as palavras que saem dela - gentis, doces ou rudes, corretas ou incorretas; minha voz, estridente ou suave; e todas as minhas ações, sejam elas para os outros
ou para mim mesma.
• 87
Possuo minhas próprias fantasias, meus sonhos, min esperanças, meus medos.
Possuo todos os meus triunfos e sucessos, todos os me fracassos e erros.
Uma vez que sou dona de tudo em mim, posso me nhecer intimamente. Assim fazendo, posso me amar e s amigável com todas as minhas partes. E então possibili que todo
o meu eu trabalhe em favor dos meus maiores int resses.
Sei que há aspectos em mim que me confundem, e o tros que não conheço. Mas desde que seja cordial e bondo para comigo mesma, posso corajosa e esperançosament
procurar soluções para os problemas, e meios para descob mais a meu respeito.
Seja lá com o que eu pareça ou como soe, o que eu di ou faça e o que eu pense ou como me sinta em determinad momento no tempo, sou eu. Isso é autêntico e represent
onde estou naquele momento no tempo.
Revendo mais tarde aquilo com que pareci e como soei, que eu disse ou fiz, e o que pensei e como me senti, algum partes talvez pareçam desajustadas. Posso descartar
o que
desajustado e manter o que se encaixa, e inventar algo nov para o que descartei.
Posso ver, sentir, pensar, dizer e fazer. Tenho as ferra-" mentas para sobreviver, para estar próxima dos outros, para ser produtiva, para dar sentido e organizar
o mundo de coisas e pessoas fora de mim.
Sou dona de mim e, portanto, posso me planejar. Sou eu mesma e estou bem.
Virginia Satir
88
A mendiga
Ela costumava dormir na agência dos correios de Fifth Street. Eu podia sentir seu cheiro antes de contornar a entrada que levava até onde ela dormia, de pé, ao lado
dos telefones públicos. Eu sentia o cheiro da urina que passava através das várias camadas de roupas sujas e da decomposição da sua boca quase sem dentes. Se ela
não estava dormindo, murmurava palavras incoerentes.
Agora, fecham-se os correios às seis para manter os semteto do lado de fora, e assim ela se enrola na calçada, falando sozinha, sua boca aberta oscilando, como que
se desconjuntando, seus odores minorados pela suave brisa.
Certo dia de Ação de Graças, tivemos tantas sobras de comida que eu as embrulhei, pedi licença aos outros e fui de carro até Fifth Street.
Era uma noite fria. As folhas rodopiavam e quase ninguém estava nas ruas, a não ser alguns desafortunados em alguma casa ou abrigo aquecido. Mas eu sabia que a encontraria.
Ela estava vestida como sempre, mesmo no verão. As camadas quentes da lã disfarçando seu corpo velho e curvo. Suas mãos ossudas seguravam o precioso carrinho de
com
. 89
pras. Acocorara-se contra uma cerca de arame em frente playground ao lado da agência dos correios. "Por que não colheu algum lugar mais protegido do vento?", pensei,
e s pus que ela já não tivesse juízo para se encolher em algo porta.
Encostei meu carro novo no meio-fio, abaixei o vidro janela e disse:
- Mãe... A senhora gostaria... - e fiquei chocada ante palavra "mãe'. Mas, ela era... é... de alguma forma que ná consigo compreender.
Eu disse novamente:
- Mãe, eu trouxe um pouco de comida para a senho A senhora gostaria de um pouco de peru recheado e torta maçã?
Diante disso, a velha mulher me olhou e disse com mui clareza e distinção, seus dois dentes inferiores, frouxos, b lançando enquanto ela falava:
- Ah, muito obrigada, mas estou bastante satisfeita ag~ ra. Por que não a leva para alguém que realmente necessit Suas palavras foram claras, suas maneiras graciosas.
E tão, fui dispensada: sua cabeça afundou novamente entr seus farrapos.
Bobbie Probstei
• 90
As regras para ser humano
1. Você receberá um corpo.
Você pode gostar dele ou odiá-lo, mas ele será seu enquanto durar seu tempo por aqui.
2. Você fará um aprendizado.
Você está inscrito por tempo integral numa escola informal chamada Vida. A cadã dia nesta escola você terá a oportunidade de aprender lições. Você pode gostar das
lições ou achá-las estúpidas ou irrelevantes. 3. Não existem erros, apenas lições.
Crescer é um processo de tentativa e erro: experimentação. Os experimentos "fracassados" são parte do processo, tanto quanto o experimento que efetivamente "funciona".
4. Uma lição será repetida até que seja aprendida.
Uma lição lhe será apresentada de formas variadas, até que você a tenha aprendido. Quando a tiver aprendido, você poderá passar à lição seguinte.
5. O aprendizado nunca termina.
Não há parte da vida que não contenha suas lições. Enquanto você estiver vivo, haverá lições a serem aprendidas.
6.
7.
S.
9.
"Lá" não é melhor do que "aqui".
Quando o seu "lá" tiver se tornado um "aqui", v simplesmetne obterá um outro "lá", que novamen parecerá melhor do que "aqui".
Os outros são meramente seus espelhos.
Você não pode amar ou odiar algo em outra pessoa, menos que isso reflita algo que ama ou odeia em mesmo.
O que você faz de sua vida é escolha sua.
Você possui todas as ferramentas e recursos de qu precisa. O que fará com eles depende de você. A esc lha é sua.
Suas respostas estão dentro de você.
As respostas às questões da Vida estão dentro de voc Tudo que você precisa fazer é ver, ouvir e confiar. Você se esquecerá de tudo isto.
Você poderá se lembrar quando quiser.
Anôni
92
3
SOBRE A PATERNIDADE
Talvez o maior serviço social que possa ser prestado por alguém ao país e à humanidade seja educar uma família.
George Bernard Shaw
os filhos aprendem o que vivenciam
Se os filhos vivem com críticas, aprenderão a condenar.
Se os filhos vivem com hostilidade, aprenderão a brigar.
Se os filhos vivem com medo, -aprenderão "a ser apreensivos.
Se os filhos vivem com piedade, aprenderão a sentir pena de si mesmos.
Se os filhos vivem com o ridículo, aprenderão a ser tímidos.
Se os filhos vivem com ciúmes, aprenderão o que é a inveja.
Se os filhos vivem com vergonha, aprenderão a se sentir culpados.
Se os filhos vivem com tolerância, aprenderão a ser pacientes.
Se os filhos vivem com estímulo, aprenderão a ser confiantes.
• 95
Se os filhos vivem com elogios, aprenderão a apreciar.
Se os filhos vivem com aprovação, aprenderão a gostar de si mesmos.
Se os filhos vivem com aceitação,
aprenderão a encontrar o amor no mundo.
Se os filhos vivem com reconhecimento, aprenderão a ter um objetivo.
Se os filhos vivem com partilha, aprenderão a ser generosos.
Se os filhos vivem com honestidade e imparcialidade, aprenderão o que são a verdade e a justiça.
Se os filhos vivem com segurança, aprenderão a ter fé em si mesmos e naqueles ao seu redor.
Se os filhos vivem com benevolência, aprenderão que o mundo é um lugar agradável de se viver.
Se os filhos vivem com serenidade, aprenderão a ter paz de espírito. Com que estão vivendo seus filhos?
• 96
Dorothy L. Nol
Por que escolhi meu pai para ser meu papai
Cresci numa bonita e ampla fazenda no Iowa, criada por pais que são freqüentemente descritos como o "sal da terra e a espinha dorsal da comunidade". Eles foram tudo
o que sa bemos que bons pais são: amorosos, comprometidos com a tarefa de educar seus filhos segundo altas expectativas e com uma noção positiva de amor-próprio.
Esperavam que cumpríssemos as tarefas matinais e vespertinas, que chegássemos pontualmente na escola, tivéssemos notas decentes e fôssemos boas pessoas.
Somos seis filhos. Seis filhos! Nunca achei que devêssemos ser tantos, mas também ninguém me consultou. Para piorar as coisas, o destino me jogou no coração dos
Estados Unidos, no clima mais rigoroso e frio. Como todas as crianças, eu achava que houvera um grande engano universal e eu havia sido colocada na família errada
- mais seguramente no estado errado. Eu não gostava de enfrentar as forças da natureza. O inverno no Iowa é tão frio que é preciso fazer rondas no meio da noite
para ver se o gado não está preso em algum lugar e que pode congelar até a morte. Animais recém-nascidos têm que ser levados para o celeiro e, às vezes, até aquecidos
para que possam se manter vivos. O inverno é frio de verdade no Iowa!
• 97
Papai, um homem incrivelmente belo, forte, carismáti, e vigoroso, estava sempre em movimento. Meus irmãos e más e eu o admirávamos. Nós o respeitávamos e nutríam
por ele a mais alta estima. Agora entendo por quê. Não ha incoerências em sua vida. Ele era um homem honrado, princípios elevados. A fazenda, o trabalho que escolheu,
e sua paixão; ele era o melhor. Ficava em casa criando e dando dos animais. Sentia-se parte da terra e tinha enor prazer em semear e colher as plantações. Recusava-se
a caç fora de estação, apesar dos cervos, faisões, codornas e outr caças perambularem pelas nossas terras em abundância. R cusava-se a usar aditivos químicos no
solo ou a alimentar animais com qualquer outra coisa que não fossem grãos n turais. Ensinou-nos por que fazia isso e por que deveríam abraçar os mesmos ideais. Hoje
posso ver o quanto ele e consciencioso, porque isso foi na metade dos anos cinqüe ta, antes que houvesse alguma tentativa de compromiss universal para com o meio
ambiente.
Papai também era um homem muito impaciente, ma não no meio da noite, enquanto verificava seus animais, du rante as rondas feitas bem tarde. O relacionamento que
de
senvolvemos nesses momentos que passamos juntos foi sim plesmente inesquecível. Foi extremamente importante em minha vida. Aprendi muito sobre ele. Freqüentemente
ouça homens e mulheres dizerem que passaram muito pouco! tempo com seus pais. De fato, a essência das conversas que; ocorrem hoje nos grupos de homens é a busca
em vão de um, pai que nunca conheceram realmente. Eu conheci o meu.
Na época, sentia-me como se, secretamente, eu fosse sua filha favorita, apesar de ser bem possível que nós seis nos sentíssemos da mesma forma. Isso tinha, ao mesmo
tempo,
um lado bom e um ruim. O ruim era que eu havia sido eleita por papai para sair com ele naquelas verificações da meianoite e da madrugada, e eu absolutamente detestava
me levantar e abandonar uma cama quente para sair no ar gélido.
• 98
Mas meu pai sempre estava no melhor dos humores e extremamente amável nessas ocasiões. Mostrava-se extremamente compreensivo, paciente, gentil e um bom ouvinte.
Sua voz era tranqüila e seu sorriso me fez entender a paixão de minha mãe por ele.
Nessas horas, ele era um professor exemplar - sempre se concentrando nos porquês, nas causas. Falava sem parar pela hora ou hora-e-meia que as rondas duravam. Falava
de suas experiências na guerra, dos porquês da guerra na qual havia servido e sobre a região, seu povo, os efeitos da guerra e suas conseqüências. Repetidas vezes
ele contou sua história. Na escola, eu achava História a matéria mais excitante e familiar.
Ele falava do que adquiriu em suas viagens e da importância de ver o mundo. Incutiu em nós a necessidade e o amor pelas viagens. Aos trinta anos eu já trabalhara
em ou visitara uns trinta países.
Ele falava sobre a necessidade e o amor pelo aprendizado e na importância de uma educação formal, e falava sobre a diferença entre a inteligência e a sabedoria.
Queria tanto que eu fosse além do meu diploma de colégio. "Você é capaz" , ele dizia repetidamente. "Você é uma Burres. Você é brilhante, tem uma cabeça boa e, lembre-se,
você é uma Burres." De forma alguma eu haveria de decepcioná-lo. Eu possuía mais que confiança suficiente para abraçar qualquer carreira. Finalmente, completei meu
Ph.D. e mais tarde concluí um segundo doutorado. Embora o primeiro doutorado tenha sido para papai e o segundo para mim, havia definitivamente um senso de curiosidade
e investigação que fez com que os dois fossem fáceis de conquistar.
Ele falava sobre padrões e valores, sobre o desenvolvimento do caráter e seu significado no curso da vida de uma pessoa. Eu escrevo e ensino um tema semelhante.
Ele falava sobre como tomar e avaliar decisões, quando contabilizar as perdas e desistir e quando se manter firme, mesmo em face
• 99
da adversidade. Falava sobre o conceito de ser e tornar-se não apenas ter e conseguir. Eu ainda uso essa frase. "Nun traia seu coração", dizia ele. Falava em intuição
e em co distinguir entre a intuição e as fraudes emocionais, e como evitar ser tapeado pelos outros. Ele dizia: "Ouça se pre a sua intuição e saiba que todas as
respostas de que pr cisará estão dentro de você. Reserve algum tempo à solidão ao silêncio. Seja firme o suficiente para encontrar as respo tas lá dentro, e então
ouça-as. Encontre algo que goste de zer e então viva uma vida que demonstre isso. Seus objetiv devem derivar de seus valores, e assim seu trabalho irradi rã o desejo
de seu coração. Isso a afastará de todas as distr ções tolas que apenas servirão para fazê-la perder tempo sua vida pra valer é com o tempo -, o quanto puder cresce.
em quantos anos lhe forem dados. Interesse-se pelas pess as", ele dizia, "e sempre respeite a mãe natureza. Onde que que você viva, certifique-se de que tem uma
vista total de ár vores, céu e terra."
Meu pai. Quando reflito sobre como ele amava e valoriza va seus filhos, sinceramente lamento por aqueles que nun conhecerão seus pais desta forma ou nunca sentirão
a for
de seu caráter, ética, conduta e sensibilidade, tudo numa só pessoa - como eu sinto no meu. Meu pai planejava o que dizia. Sei que ele considerava meu valor, e queria
que eu visse esse valor.
A mensagem de papai fez sentido para mim porque eu nunca vi nenhum conflito na forma como ele vivia sua vida. Ele havia refletido sobre sua vida e a vivia diariamente.
Ele°
comprou e pagou várias fazendas em todos esses anos (é tão ativo hoje quanto o era então). Está casado e amou a mesma mulher durante toda sua vida. Minha mãe e ele,
agora casados há aproximadamente 50 anos, ainda são namorados inseparáveis. São os maiores amantes que conheço. E ele amou muito sua família. Eu pensava que ele
fosse exageradamente possessivo e protetor com seus filhos, mas agora que sou mãe
• 100
posso entender essas necessidades e vê-los como são. Apesar de ter achado que podia nos salvar do sarampo, e quase ter conseguido, ele se recusava veementemente
a nos perder para vícios destrutivos. Vejo também o quanto ele estava determinado a que nós fôssemos adultos responsáveis e interessados.
Até hoje, cinco de seus filhos moram a apenas algumas milhas de distância dele, e escolheram uma versão de seu estilo de vida. São devotados esposos e pais e a agricultura
é o trabalho que escolheram. Eles são, sem dúvida, as espinhas dorsais de suas comunidades. Há um desvio nisso tudo, e suspeito que seja por ter me levado com ele
naquelas rondas da meia-noite. Eu tomei uma direção diferente da dos outros cinco filhos. Comecei uma carreira como educadora, advogada e professora universitária,
tendo finalmente escrito vários livros para pais e filhos, a fim de partilhar o que aprendi sobre a importância de se desenvolver a auto-estima na infância. Minhas
mensagens para minha filha, embora um pouco diferentes, são os valores que aprendi com meu pai, temperados pelas minhas experiências de vida, é claro. Eles continuam
a ser transmitidos.
Devo lhes falar um pouco sobre minha filha. Ela é um "mulherão", uma bela atleta que se inscreve em três esportes a cada ano, se aborrece com a diferença entre um
A- e um B,
e acaba de ser eleita finalista no concurso de Miss Califórnia Adolescente. Mas não são seus dotes externos e talentos que me lembram meus pais. As pessoas sempre
me dizem que minha filha possui uma enorme bondade, uma espiritualidade, uma chama interior profunda e especial, que se irradia. A essência de meus pais está personificada
em sua neta.
As recompensas por estimarem seus filhos e serem pais dedicados também teve um efeito extremamente positivo nas vidas de meus pais. No momento em que escrevo este
artigo, meu pai está na Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota, para se submeter a uma bateria de testes, programados
• 101
para levar de seis a oito dias. É dezembro. Por causa do verno rigoroso, ele reservou um quarto num hotel próxim clínica (como um paciente de ambulatório). Devido
a co promissos em casa, minha mãe só pôde estar com ele d
te os primeiros dias. E assim, na noite de Natal, eles estav separados.
Naquela noite, telefonei primeiro ao meu pai e Rochester para desejar Feliz Natal. Ele pareceu deprimid desanimado. Então, liguei para minha mãe no Iowa. Ela tava
triste e mal-humorada. "Esta é a primeira vez que s pai e eu passamos as festas separados", lamentou-se e "simplesmente não parece Natal, sem ele."
Eu esperava quatorze convidados para o jantar, tod prontos para uma noite de festa. Voltei para a cozinha, sem conseguir tirar completamente da cabeça o dilema
meus pais, telefonei para minha irmã mais velha. Ela lig para meus irmãos. Conferenciamos por telefone. Ficou co binado, determinado que meu pais não passariam a
noite d Natal separados. Meu irmão mais moço dirigiria duas hor até Rochester, apanharia meu pai e o levaria para casa se dizer nada à minha mãe. Liguei para meu
pai para contar lhe os planos. "Oh, não", ele disse, "é perigoso demais sa numa noite como esta." Meu irmão chegou a Rochester e b teu à porta do quarto de hotel
de meu pai. Telefonou-me d quarto de papai para dizer que ele não queria ir. "Você te que falar com ele, Bobbie. Você é a única que ele ouvirá."
"Vá, papai", eu disse gentilmente.
Ele foi. Tim e meu pai partiram para o Iowa. Nós acom panhávamos seus progressos, a jornada e o clima, faland com eles pelo telefone do carro de meu irmão. A essa
altura; todos os meus convidados haviam chegado e todos tomavam parte da provação. Quando o telefone tocava, nós ativavamos o viva-voz, para que pudéssemos saber
das últimas! Passava das 9:00 quando o telefone tocou e era papai no telefone do carro: "Bobbie, como eu posso ir para casa sem um
• 102
presente para sua mãe? Seria a primeira vez em quase cinqüenta anos que não lhe dou um perfume no Natal!" A essa altura todos os convidados do meu jantar já estavam
arquitetando este plano. Ligamos para minha irmã para saber os nomes dos centros de compras abertos nas proximidades, para que eles pudessem parar para comprar o
único presente que meu pai cogitaria dar à mamãe - a mesma marca de perfume que sempre deu a ela, todos os anos, no Natal.
Naquela noite, às 9:52 meu irmão e meu pai deixaram um pequeno shopping center em Minnesota para retomarem a viagem para casa. As 11:50 entraram na fazenda. Meu
pai agindo como um garoto risonho em idade escolar, correu para trás da casa e se escondeu.
-Mamãe, fui visitar o papai hoje e ele me disse que lhe trouxesse a roupa suja - disse meu irmão ao entregar as malas à minha mãe.
- Oh - ela disse suave e tristemente. - Estou com tantas saudades dele que bem poderia fazer isso agora.
Saindo de seu esconderijo, meu pai disse:
- Você não terá tempo de lava-las esta noite.
Depois que meu irmão me telefonou para contar esta cena tocante entre nossos pais - estes dois amantes e amigos - telefonei para minha mãe.
- Feliz Natal, Mamãe!
- Oh, vocês, garotos... - disse ela numa voz engasgada, sufocando as lágrimas. Ela não pôde continuar. Meus convidados brindaram.
Mesmo estando a 2.000 milhas de distância deles, foi um dos Natais mais especiais que compartilhei com meus pais. E é claro, até hoje meus pais nunca estiveram separados
na noite de Natal. Essa é a força dos filhos que amam e honram seus pais e, é claro, do maravilhoso e fiel casamento que meus pais compartilham.
- Bons pais - Jonas Salk me disse uma vez -dão a seus filhos raízes e asas. Raízes para que saibam onde é seu lar, asas para partir voando e exercitar o que lhes
foi ensinado.
• 103
Se a aquisição das habilidades necessárias para cond uma vida cheia de propósitos, ter um ninho seguro e bem-vindo de volta a ele é a herança dos pais, então acre
que escolhi bem meus pais. Foi no Natal passado que co
preendi mais profundamente por que era necessário que sas duas pessoas fossem meus pais. Apesar de minhas me terem levado ao redor do mundo e finalmente a me nhar
na adorável Califórnia, as raízes que meus pais me ram serão, para sempre, alicerces indestrutíveis.
d
Bettie B. Youn
• 104
A escola dos animais
Certa vez, os animais decidiram que deveriam fazer algo heróico para resolver os problemas de "um novo mundo'. Assim, organizaram uma escola.
Adotaram um currículo de atividades que compreendia corrida, alpinismo, natação e vôo. Para ministrar o currículo mais facilmente, todos os animais teriam todas
as matérias.
O pato era excelente em natação, na verdade era até melhor do que seu instrutor, mas teve apenas notas satisfatórias em vôo e era bem ruim na corrida. Como era lento
na corrida, precisou treinar depois das aulas e também abandonar a natação para praticar a corrida. Continuou fazendo isso até seus pés palmados ficarem gravemente
feridos e passou a ter um aproveitamento apenas regular em natação. Mas, como regular era aceitável na escola, ninguém se preocupou com isso, a não ser o próprio
pato.
O coelho começou como o melhor da classe em corrida, mas teve um colapso nervoso por causa de tantos treinos de natação.
O esquilo era excelente em alpinismo até ficar frustrado com seu aproveitamento nas aulas de vôo, quando sua professora mandou que partisse do chão para cima, e
não do
• 105
topo da árvore para baixo. Além disso, desenvolveu cãï, devido a uma estafa e então tirou um C em alpinismo e D em corrida.
A águia era uma criança problema e foi severamente ciplinada. Na aula de alpinismo, venceu todos os outros direção ao topo da árvore, mas insistiu em utilizar seu
prio caminho para chegar lá.
Ao final do ano, uma excepcional enguia que sabia na_ extremamente bem, além de correr, subir e voar um pou obteve a melhor média e foi a melhor da turma.
As marmotas ficaram fora da escola e protestaram con as mensalidades, porque a administração não quis incluir , cavação e construção de tocas no currículo. Matriculara
seus filhos como aprendizes de um texugo e mais tarde ju. taram-se aos porcos-da-terra e aos geômios para fundare uma bem-sucedida escola particular.
Qual a moral da história?
George H. Rea
• 106
Tocado
Ela é minha filha e está imersa na turbulência de seu décimo sexto ano de vida. Imediatamente após um recente episódio de doença, ela soube que sua melhor amiga
logo esta ria se mudando. A escola não estava indo tão bem quanto ela esperava, nem tão bem quanto minha mulher e eu esperávamos. Ela.exalava tristeza pelo abafado
dos cobertores, ao se encolher na cama, procurando conforto. Queria me aproximar dela e arrebatar todas as tristezas que haviam se enraizado em seu jovem espírito.
Ainda assim, mesmo consciente do quanto me importava com ela e queria acabar com sua infelicidade, sabia da importância de proceder com cautela.
Como terapeuta familiar fui bem instruído a respeito de expressões de intimidade impróprias entre pais e filhas, basicamente por clientes cujas vidas foram arrasadas
por abuso sexual. Tenho consciência também de quanto o cuidado e a proximidade podem ser facilmente sexualizados, especialmente pelos homens que consideram o campo
emocional um território estrangeiro, e que confundem qualquer expressão de afeição com convite sexual. Quão mais fácil era segurá-la e confortá-la quando ela tinha
dois, ou três, ou mesmo sete anos. Mas agora, seu corpo, nossa sociedade e
• 107
minha masculinidade, pareciam todos conspirar contra fato de eu confortar minha filha. Como eu poderia consolá e ainda respeitar os limites necessários entre um
pai e u filha adolescente? Escolhi oferecer-lhe uma massagem costas. Ela consentiu.
Massageei suavemente sua coluna e ombros nodos enquanto me desculpava por minha ausência recente. Exp quei-lhe que acabava de voltar das finais internacionais concurso
de massagem dorsal, onde obtivera o quarto lu, Assegurei a ela que é difícil derrotar a massagem dorsal um pai preocupado, especialmente se ele é um massagista excelência
mundial. Contei a ela tudo sobre o concurso e outros concorrentes enquanto minhas mãos e dedos proc ravam relaxar seus músculos contraídos e libertar as tensõ de
sua juventude.
Contei a ela sobre o concorrente asiático, um senhor mi rado e idoso, que obtivera o terceiro lugar no concurso. D pois de estudar acupuntura e acupressão a vida
inteira, el
era capaz de concentrar toda sua energia em seus dedo transformando a massagem dorsal numa arte. "Ele calcava espetava com precisão de prestidigitador", expliquei,
dand à minha filha uma pequena amostra do que eu aprender, com o velho senhor. Ela gemeu, embora eu não tivesse a certeza se em resposta à minha aliteração ou ao
meu toque. En tão, contei a ela sobre a mulher que tirara o segundo lugar Era da Turquia e desde sua infância praticara a arte da danaá do ventre, e assim podia
fazer os músculos se moverem e ondularem num movimento fluido. Com sua massagem dorsal, seus dedos despertaram, em músculos cansados e corpos exaustos, uma ânsia
de vibrar, dançar e palpitar. "Ela deixava que seus dedos caminhassem e os músculos os seguissem", disse, demonstrando.
"Isso é extraordinário", emanou fracamente de um rosto abafado por um travesseiro. Teria sido o movimento ou meu toque?
• 108
Então apenas massageei as costas de minha filha e ficamos em silêncio. Depois de algum tempo ela perguntou: - E então, quem ficou com o primeiro lugar?
- Você não acreditaria! - eu disse. - Foi um bebê!
E expliquei como os toques suaves e confiantes de uma criança explorando um mundo de pele, odores e sabores era como nenhum outro toque. Mais suave que o suave.
Imprevisível, gentil, investigador. Mãos pequeninas dizendo mais do que as palavras jamais poderiam expressar. Sobre posse. Sobre confiança. Sobre o amor ingênuo.
E então, com leveza e suavidade, a toquei como aprendera com a criança. Relembrei vividamente sua própria infância - segurando-a, embalando-a, vendo-a tatear e crescer
no mundo. Compreendi que ela, na verdade, era a criança que me ensinara o toque de uma criança.
Depois de outro período de leve massagem dorsal e silêncio, eu disse que estava contente por haver aprendido tanto com os peritos mundiais em massagens dorsais.
Expliquei como havia me tornado um massagista ainda melhor para uma filha de dezesseis anos, que se alongava dolorosamente em direção à sua forma adulta. Ofereci
uma oração silenciosa de agradecimento que tal vida me tivesse sido colocada nas mãos e que eu tivesse sido abençoado com o milagre de tocar ao menos uma parte sua.
Victor Nelson
• 109
Eu te amo, filho
Pensamentos no carro, enquanto levo meu filho à esc Bom dia, filho. Você está bem elegante em sua roupa Lobinho, não tão gordo quanto o seu velho quando era e teiro.
Acho que meu cabelo nunca foi tão comprido até e trar na faculdade, mas acho que eu o reconheceria de quer forma pelo que você é: meio peludo em volta das o: lhas,
dedos dos pés arranhados, joelhos enrugados... N acostumamos um com o outro...
Agora que você tem oito anos, eu noto que não o v mais tanto assim. No dia do descobrimento da América vo saiu às nove da manhã. Vi-o por 42 segundos na hora do
moço e você reapareceu para o jantar às cinco. Sinto saud des suas, mas sei que você tem negócios sérios a tratar. Co certeza tão sérios quanto os que as outras
pessoas na estra estão tratando, se não mais importantes.
Você tem que crescer e se desenvolver, e isso é mais i portante do que emitir cupons, organizar opções de ações o vender a descoberto. Você precisa aprender do que
é e d
que não é capaz - e como lidar com isso. Você preci aprender sobre as pessoas e como elas se comportam quan do não se sentem bem consigo mesmas-como os valentõ
que ficam no depósito de bicicletas provocando os garotos menores. É, você vai ter até que aprender a fingir que apelidos não magoam. Sempre magoam, mas você terá
que usar uma `fachada' ou eles o chamarão de nomes piores da próxima vez. Apenas espero que você se lembre do quanto é ruim - caso alguma vez você resolva atormentar
um garoto menor do que você.
Quando foi a última vez que eu disse que estava orgulhoso de você? Acho que se não consigo me lembrar, tenho que trabalhar muito. Lembro-me da última vez que gritei
com você - disse que íamos nos atrasar se você não corresse - mas, no geral, como Nixon costumava dizer, não te acariciei tanto quanto gritei com você. Fica registrado,
caso você leia isso, que me orgulho de você. Gosto especialmente de sua independência, do modo como cuida de si, mesmo quando isso me assusta um pouco. Você nunca
foi chorão e isso faz de você um garoto superior no meu conceito.
Por que é que pais demoram tanto a perceber que os de oito anos precisam de tantos abraços quanto os de quatro anos? Se eti não prestar atenção, logo, logo eu estarei
lhe dando um soco no braço e dizendo: "E aí, garoto?!", em vez de abraçá-lo e dizer-lhe que o amo. A vida é muito curta para se esconder a afeição. Por que é que
os de oito anos demoram tanto a perceber que os de 36 precisam de tantos abraços quanto os de quatro?
Será que eu me esqueci de lhe dizer que fiquei orgulhoso de você voltar ao lanche da merendeira depois de uma semana de indigestos lanches especiais? Fico contente
que você valorize seu corpo.
Queria que o percurso não fosse tão curto... queria falar sobre ontem à noite... quando seu irmão menor estava dormindo e nós deixamos você ficar acordado e assistir
ao jogo
dos Yankees. Esses momentos são tão especiais. Não há forma de planejá-los. Todas as vezes que tentamos planejar algo juntos, nunca é bom, ou valioso, ou caloroso
o suficiente. Por
alguns minutos, curtos demais, foi como se você já tive crescido e nos sentássemos e conversássemos telepaticam te sobre "Como vai indo na escola, filho?" Eu já
verifiquei lição de matemática da única forma que podia - com u calculadora. Você é melhor com os números do que eu mais serei. Então, conversamos sobre o jogo e
você sabia sobre os jogadores do que eu e eu aprendi com você. E bos ficamos felizes quando os Yankees venceram.
Bem, lá está o guarda da escola. Provavelmente ele vi rá mais do que todos nós. Eu queria que você não tivesse ir à escola hoje. Há tantas coisas que eu quero dizer.
Você desceu do meu carro tão depressa. Quero reco rar o momento, mas você já avistou dois de seus amigos. queria apenas dizer: "Eu te amo, filho."
a
Victor B. Mit
"Oque você é" é tão importante quanto "o que você faz"
O que você é fala tão alto, que não consigo ouvir o que você está dizendo.
Ralph Waldo Emerson
Era uma tarde ensolarada de sábado em Oklahoma City. Meu amigo e pai orgulhoso, Bobby Lewis estava levando seus dois garotos para jogar minigolfe. Ele foi até o
sujeito na bilheteria e disse:
- Quanto é a entrada? O jovem respondeu:
- Três dólares para o senhor e três dólares para cada garoto acima de seis anos. A entrada é livre para as crianças de seis anos ou menos. Quantos anos eles têm?
Bobby respondeu:
- O advogado tem três e o médico tem sete, então, acho que eu lhe devo seis dólares.
O homem da bilheteria disse:
-Ei, o senhor acabou de ganhar na loteria ou coisa parecida? O senhor poderia ter economizado três cobres. Poderia ter dito que o mais velho tinha seis anos; eu
não saberia a diferença.
Bobby replicou:
- É, pode ser; mas os garotos saberiam.
Como Ralph Waldo Emerson disse, "o que você é fala alto, que eu não consigo ouvir o que você está dizendo". tempos desafiadores, quando a ética é mais importante
que nunca, certifique-se de dar um bom exemplo a to com quem trabalha e vive.
Patricia F;
• 114
A perfeita família americana
São 10:30 de uma perfeita manhã de sábado e somos, no momento, a fanuilia americana perfeita. Minha esposa levou nosso filho de seis anos à sua primeira aula de
piano. Nosso filho de quatorze ainda não acordou. O de quatro assiste na outra sala a pequeninos seres antropomórficos arremessando uns aos óutros de penhascos.
Eu me sento em frente à mesa da cozinha lendo o jornal.
Aaron Malachi, o de quatro, aparentemente entediado pela carnificina do desenho animado e animado pelo considerável poder pessoal de segurar o controle remoto da
televisão, adentra meu espaço.
- Estou com fome - diz. - Quer mais sucrilhos? - Não.
- Quer um pouco de iogurte? - Não.
- Quer ovos?
- Não. Posso tomar um pouco de sorvete? - Não.
Pelo que sei, sorvete pode ser até mais nutritivo do que cereais processados ou ovos carregados de antibióticos, mas,
de acordo com meus valores culturais, é errado tomar so te às 10:45 de uma manhã de sábado.
Silêncio.
Cerca de quatro segundos.
- Papai, temos muito tempo de vida ainda, não temo - Sim, temos muito tempo de vida, Aaron.
- Eu, você e mamãe? - Isso mesmo.
- E Isaac? - Sim. - E Ben? - Sim. Você, eu, mamãe, Isaac e Ben.
- Temos muito tempo de vida. Até que todas as pesso morram.
- Como assim?
-Até que todas as pessoas morram e os dinossauros vo tem.
Aaron senta-se na mesa, pernas cruzadas como um Bud no meio do meu jornal.
- O que você quer dizer, Aaron, com "até que todas pessoas morram"?
- Você disse que todas as pessoas morrem. Quando t dos morrerem, os dinossauros voltarão. Os homens das ca, vernas viviam em cavernas, cavernas de dinossauros. Entãd
os dinossauros voltaram e acabaram com eles.
Percebo que para Aaron a vida já é uma economia limita da, um recurso com começo e fim. Ele imagina a si mesmo e nós em algum lugar nessa trajetória, uma trajetória
que ter mina em incerteza e perda.
Defronto-me com uma decisão ética. O que eu deveria fazer agora? Deveria tentar dar a ele Deus, salvação, eterni dade? Deveria aborrecê-lo com um discurso do tipo
"seu cor-, po é apenas uma concha e depois que você morrer estaremos todos eternamente juntos em espírito"?
Ou deveria deixa-lo com sua incerteza e sua ansiedade porque acho que é verdadeira? Deveria tentar transforma-lo
num existencialista ansioso ou deveria tentar fazê-lo sentirse melhor?
Não sei. Olho para o jornal. Os Celtics estão perdendo consecutivamente nas noites de sexta-feira. Larry Bird está zangado com alguém, mas eu não consigo ver quem,
porque o pé de Aaron está na frente. Não sei, mas minha sensibilidade de classe média, neurótica e viciada, está me dizendo que este é um momento muito importante,
um momento em que Aaron está começando a construir seu mundo. Ou talvez seja apenas minha sensibilidade de classe média, neurótica e viciada, que esteja me fazendo
achar isso. Se vida e morte são uma ilusão, por que eu deveria perder tempo com a forma pela qual outra pessoa as compreende?
Sobre a mesa Aaron brinca com um soldado, levantando seus braços e equilibrando-o sobre suas pernas trêmulas. Era com Kevin Machale que Larry Bird estava zangado.
Não, não Kevin Machale, era com Jerry Sichting. Mas Jerry Sichting não está mais no Celtics. O que houve com Jerry Sichting? Tudo morre, tudo tem um fim. Jerry Sichting
está jogando no Sacramento ou no Orlando ou desapareceu.
Eu não deveria brincar com a forma de Aaron compreender a vida e a morte, porque quero que ele tenha uma noção sólida de estrutura, uma noção de permanência das
coisas. É óbvio o bom trabalho que as freiras e padres fizeram comigo. Era agonia ou bênção. Céu e inferno não estavam conectados por serviço discagem direta a distância.
Ou você estava no time de Deus, ou estava no caldo, e o caldo era quente. Não quero que Aaron se queime, mas quero que ele tenha uma estrutura forte. A ansiedade
neurótica, porém, inevitável, pode vir depois.
Isso é possível? É possível ter a percepção de que Deus, espírito, karma, Y*W*H, sei lá - é transcendente, sem traumatizar o presente de uma pessoa, sem incutir
isso den tro dela? Podemos guardar nosso bolo e comê-lo ao mesmo tempo, ontologicamente falando? Ou sua frágil sensibilidade, sua existência, fica dividida por tal
ato?
Sentindo um leve crescer de agitação sobre a mesa, cebo que Aaron está começando a se aborrecer com seu co panheiro. Numa atitude teatral propícia ao momento, lim
a garganta e começo num tom profissional.
-Aaron, a morte é algo em que algumas pessoas acre tam...
- Papai - interrompe Aaron - podemos jogar vide game? Não é um jogo muito violento - explica ele, gesti lando com as mãos. -Não é como um jogo de matar. Os ras só
tombam.
- Sim - digo com certo alívio -, vamos jogar vide game. Mas, antes vamos fazer outra coisa.
- O que? - Aaron pára e se volta, lá no lugar para ond correu, já na metade do caminho em direção à galeria.
- Primeiro, vamos tomar sorvete.
Outro sábado perfeito para uma família perfeita. Por e quanto.
Michael Murp
Seu problema, Sheldon, é falta de autoconfiança.
Reproduzido com Permissão Especial da revista Playboy: Copyright © 1971 by Playboy.
Apenas diga!
Se você fosse morrer logo e pudesse dar apenas um telefonema, quem ligaria e o que diria? E o que está esperando?
Certa noite, depois de ler um dos mais de cem livros sobre paternidade que já li, me senti um pouco culpado, por-, que o livro descrevia algumas estratégias que
eu não usava'
há algum tempo. A principal era falar com seu filho e usar as três palavras mágicas: "Eu amo você." O livro ressaltava repetidamente que as crianças precisam saber
que você real-' mente as ama, inequívoca e incondicionalmente.
Subi até o quarto do meu filho e bati na porta. Ao bater, tudo que pude ouvir foi a sua bateria. Eu sabia que ele estava lá, mas ele não respondia. Então, abri a
porta, e ele estava re
almente lá, sentado com seus fones de ouvido, ouvindo uma fita e tocando bateria. Depois de me inclinar para chamar sua atenção, disse a ele:
- Tem um segundo, Tim? Ele disse:
-Ah, claro, papai. Sempre tenho.
• 120
Nos sentamos e depois de 15 minutos e uma porção de conversa fiada e gagueira, eu simplesmente olhei para ele e disse:
- Tini, adoro como você toca bateria. Ele disse:
- Obrigado, papai, eu agradeço. Saí pela porta e disse:
-Te vejo mais tarde!
Enquanto descia as escadas me ocorreu que eu fora lá em cima com uma determinada mensagem e não a entregara. Senti que era realmente importante voltar lá e ter uma
outra chance de dizer aquelas três palavras mágicas.
Subi novamente as escadas, bati na porta e abri. - Tem um segundo, Tim?
- Claro, papai. Sempre tenho um ou dois. O que é?
- Filho, a primeira vez que subi até aqui queria compartilhar com você uma mensagem, mas acabei falando outra coisa. Não era realmente o que eu queria compartilhar
com você. Tim, lembra-se de quando você estava aprendendo a dirigir, que me causou um monte de problemas? Escrevi três palavras e as coloquei sob o seu travasseiro
na esperança de que fosse suficiente. Fiz meu papel de pai e expressei meu amor por meu filho.
Finalmente, depois de um pouco de conversa fiada, olhei para Tim e disse:
- O que quero que saiba é que nós o amamos. Ele me olhou e disse:
- Ah, obrigado, papai. Refere-se a você e à mamãe? Eu disse:
- É, ambos, nós não dizemos isso o suficiente. Ele disse:
- Obrigado, isso significa muito. Eu sei que vocês me amam.
Virei-me e saí pela porta. Enquanto descia as escadas, comecei a pensar: "Não acredito. Subi duas vezes - sei qual é
a mensagem - e mesmo assim acabo falando uma outra sa."
Resolvi voltar lá e dessa vez dizer a Tim o que eu mente sinto. Ele ouvirá diretamente de mim. Não faz que ele tenha 1,80 metro de altura! Lá vou eu de volta, na
porta e ele grita:
- Espere um minuto. Não me diga quem é. Seria v papai?
Eu disse:
- Como sabe? E ele respondeu: - Conheço-o desde que é pai, papai. Então eu disse:
-Filho, você tem só mais um segundo?
- Você sabe que eu sempre tenho, então entre. Supon que você não tenha me dito o que queria?
Eu disse:
- Como sabe?
- Conheço-o desde quando eu ainda usava fraldas. Eu disse:
- Bem, aí está, Tim, o que eu tenho hesitado em dize Apenas quero expressar o quanto você é especial para nos família. Não pelo que você faz, e não pelo que tem
feit
como tudo que está fazendo pelos garotos do ginásio. É po você ser quem você é. Eu o amo e queria apenas que voc soubesse que o amo, e não sei por que hesito em
relação algo tão importante.
Ele me olhou e disse:
- Ei, papai, eu sei que você me ama, e é realmente espe cial ouvir você me dizer isso. Muito obrigada por seus sentimentos, assim como pela intenção.
Quando eu saía pela porta, ele disse:
- Oh, ei, papai. Tem mais um segundo?
Comecei a pensar: "Oh, não. O que ele vai me dizer?" Mas disse:
• 122
É claro. Sempre tenho.
Não sei onde os garotos conseguem isso -tenho certeza ~e não poderia ser com seus pais, mas ele disse:
. Papai, queria apenas lhe fazer uma pergunta. Eu disse:
r Qual?
Ele me olhou e disse:
Papai, você esteve num workshop ou algo assim?
Eu pensei: "Oh, não, como qualquer outro garoto de dezoito anos, ele me pegou', e eu disse:
-Não, eu estava lendo um livro que falava no quanto é impo ante dizer a seus filhos o que você realmente sente por eles.
- Ei, obrigado pela resposta. Falo com você depois, pa
pai.
Acho que, acima de tudo, o que Tim me ensinou naquela noite é que a única maneira de se entender o verdadeiro significado e o propósito do amor é pagando o preço.
Você tem que ir lá e se arriscar a compartilhá-lo.
Gene Bedley
• 123
4
SOBRE OAPRENDIZADO
Aprender é descobrir o que já se sabe. Praticar é demonstrar o que se sabe. Ensinar é lembrar aos outros que eles sabem tanto quanto você. Todos são alunos, praticantes,
professores.
Richard Bach
Qerida profeçora.
Oje a mamoe xorou. Mamae perguntou mim Jody vose sabe de verdade por que vai a escola. Eu disse nao sei Por que? Ela disse que é porque
vamos costruir meu futuru. Eu disse o que é futuru e como é? - -
Momoe disse eu não sei Jody, níngem pode ver todo o seu futuru, so vose. Nao se preocupe vose vai vê vai vê. Foi ai qe ela xorou e disse Jody eu te amo tanto.
Mamae dis qe todos presísam trabalha duro para nos crianças podermos fazer do poço futuro o melhor qe o mundo pode oferesser.
Profeçora podemos comesor oje a costruir meu futuru? Vose pode tentar fazer um bem legou so pra momoe e eu?
Eu te amo profeçora
amor
ghank TruIillo
© 1990' Pr'Teach PubIicgtíons. Todos os diremos reservados.
127 .
Jody
Agora gosto de mim
Quando vir a auto-imagem de uma criança começar a se aperfi ar, você verá significativos progressos na área das realizações, mais importante, verá uma criança que
está começando a apr mais a vida.
Tive uma grande sensação de alívio quando comecei entender que um jovem precisa de mais do que apenas u' assunto. Sei bem matemática, e a ensino bem. Eu achava q
isso era tudo o que precisava fazer. Agora, ensino crianças, não matemática. Aceito o fato de que posso ter sucesso ap nas parcial com algumas. Quando não tenho
que saber tod as respostas, parece que consigo ter mais respostas do q quando tentava ser o especialista. O jovem que realmen me fez entender isso foi Eddie. Certo
dia, perguntei-lhe p que achava que estava muito melhor do que no ano anterio Ele deu sentido a toda minha nova conduta. "É porque ag~ ra gosto de mim quando estou
com você', disse ele.
LIm professor citado p
Everett Shostrom em Man, The Manipulato
• 128
Todas as melhores coisas
Ele estava na classe de terceira série em que eu ensinava, na Escola Saint Mary, em Morris, Minnesota. Eu gostava de todos os meus 34 alunos, mas Mark Eklund era
um em um milhão. Muito elegante na aparência, ele tinha aquele comportamento de quem está feliz-por-estar-vivo que tornava deliciosas até suas ocasionais travessuras.
Mark também falava sem parar. Tentei lembrá-lo várias vezes que não se podia falar sem permissão. O que me impressionava muito, no entanto, era a resposta sincera
todas as vezes que eu tinha que corrigi-lo por seu mau comportamento. "Obrigado por me corrigir, Irmã!" No início eu não sabia bem o que fazer com aquilo, mas logo
me acostumei a ouvir a mesma resposta muitas vezes ao dia.
Certa manhã, minha paciência já estava se esgotando enquanto Mark falava sem parar. Cometi um erro de professora principiante. Olhei para Mark e disse: "Se você
disser mais uma palavra, vou colar sua boca com fita adesiva!"
Menos de dez segundos depois, Chuck deixou escapar: ~~Mark está conversando de novo:' Eu não havia pedido a nenhum dos alunos que me ajudasse a vigiar Mark, mas,
uma vez que tinha estabelecido a punição na frente da classe, tinha que agir de acordo com ela.
• 129
Lembro-me da cena como se ela tivesse ocorrido e manhã. Fui até minha mesa, abri a gaveta decididament retirei um rolo de fita adesiva. Sem dizer uma palavra, fui
a mesa de Mark, cortei dois pedaços da fita e fiz um grand sobre sua boca. Então voltei para a frente da sala. Quando olhei para Mark para ver como ele estava se
indo, ele piscou para mim. Foi o suficiente! Comecei a rir. classe toda aplaudia enquanto eu voltava até a mesa Mark, removia a fita e encolhia os ombros. Suas primei
palavras foram: "Obrigado por me corrigir, Irmã!"
Ao final do ano, fui convidada para ensinar matemáti para o ginásio. Os anos voaram e antes que eu me desse co ta, Mark estava em minha classe novamente. Ele estava
belo do que nunca e tão educado quanto antes. Como pre sava ouvir atentamente minhas instruções sobre a "no matemática", ele não conversava tanto na nona série.
Numa sexta-feira, as coisas simplesmente não pareci bem. Havíamos trabalhado arduamente um novo concei durante toda a semana, e eu sentia que os alunos estavam
cando cada vez mais frustrados consigo mesmos- e impa entes uns com os outros. Tinha que combater esse mau h mor antes que ele fugisse ao meu controle. Assim, pedi
a el que listassem os nomes dos outros alunos da sala em du folhas de papel, deixando um espaço entre cada nome. E di se a eles que pensassem na melhor coisa que
pudessem di zer a respeito de cada um de seus colegas e a escrevessem. Levou o resto do período para que terminassem a taref mas, ao deixarem a sala, cada um dos
alunos me entrego seu papel. Chuck sorriu. Mark disse: "Obrigado por me ensi nar, Irmã. Tenha um bom final de semana."
Naquele sábado, escrevi o nome de cada aluno numa f lha separada e listei o que todos os outros haviam dito sobr cada um deles. Na segunda-feira, entreguei a cada
aluno su lista. Alguns deles tinham duas páginas. Logo, a classe toda
estava sorrindo. "Verdade?", ouvi cochicharem. "Nunca
• 130
achei que isso significasse algo para alguém!" "Eu não sabia que os outros gostavam tanto de mim!"
Ninguém jamais mencionou aqueles papéis novamente em sala de aula. Eu nunca soube se eles conversaram sobre aquilo depois da aula ou com seus pais, mas não importa.
O exercício havia alcançado seu propósito. Os alunos estavam novamente felizes consigo mesmos e com os outros.
Aquele grupo de alunos prosseguiu. Vários anos mais tarde, ao retornar de férias, meus pais foram me encontrar no aeroporto. A caminho de casa, mamãe me fez as pergun
tas comuns sobre a viagem: sobre o tempo, sobre minhas experiências de modo geral. Houve uma leve pausa na conversa. Mamãe lançou a papai um olhar de soslaio e disse
simplesmente: "Papai?" Meu pai limpou a garganta. "Os Eklunds ligaram ontem à noite", começou ele.
- É mesmo? - eu disse. - Não os vejo há vários anos. Gostaria de saber como está Mark
Papai respondeu calmamente:
- Mark foi morto no Vietnã - ele disse. - O funeral será amanhã e os pais dele gostariam muito que você comparecesse.
Até hoje ainda posso indicar o ponto exato na estrada I494 onde papai me contou sobre Mark
Eu nunca vira um soldado num caixão militar. Mark estava tão bonito, tão amadurecido. Eu só conseguia pensar "Mark, eu daria toda a fita adesiva do mundo apenas
para que você pudesse falar comigo".
A igreja estava repleta de amigos de Mark. A irmã de Chuckcantou "O Hino de Batalha da República". Por que teve que chover no dia do funeral? Já estava bem difícil
ao lado da sepultura. O pastor disse as orações costumeiras e o corneteiro tocou o toque de silêncio. Um a um, aqueles que amavam Mark passaram pelo caixão e salpicaram
água benta sobre ele.
Eu fui a última a abençoar o caixão. Enquanto permanecia ali, de pé, um dos soldados que carregara o féretro veio até mim.
- A senhora era a professora de matemática de M - Fiz que sim enquanto continuava a olhar o caixão. - Mark falava muito na senhora - ele disse. Depois do enterro,
a maioria dos ex-colegas de Mark guiram para a fazenda de Chuck para almoçar. A mãe e o de Mark estavam lá, obviamente esperando por mim. - Queremos mostrar-lhe
algo - o pai dele disse, tir do uma carteira do bolso. -Acharam isso com Mark quan ele foi morto. Achamos que a senhora poderia reconhecê-1 Abrindo a carteira de
notas, ele cuidadosamente retir dois pedaços gastos de folha de caderno que haviam si obviamente colados, dobrados e redobrados muitas vez Sem precisar olhar, eu
soube que eram as folhas nas quais listara todas as qualidades que cada um dos colegas de Ma dissera a seu respeito.
- Muito obrigada por ter feito isso - a mãe de Mark di se. - Como pode ver, Mark guardava esses papéis como u tesouro.
Os colegas de Mark começaram a se juntar à nossa vol Chuck sorriu bastante timidamente e disse:
- Eu ainda tenho a minha lista. Está em casa, na gave de cima de minha escrivaninha.
A esposa de John disse:
- John me pediu que pusesse a sua em nosso álbum casamento.
- Eu também tenho a minha - disse Marilyn. - no meu diário.
Então, Vicky, uma outra colega, pegou sua bolsa, tirou carteira e mostrou sua surrada e esfarrapada lista ao grupo. -Eu carrego isso comigo o tempo todo - disse
Vicky se pestanejar. -Acho que todos nós guardamos nossas listas. Foi quando finalmente eu me sentei e chorei. Chorei po Mark e por todos os seus amigos que nunca
mais o veriam.
d
Helen P. Mrosla
• 132
Você é uma maravilha
Cada segundo que vivemos é um momento novo e único do universo, um momento que nunca mais existirá... E o que é que ensinamos aos nossos filhos? Ensinamos a eles
que dois mais dois são quatro, e que Paris é a capital da França. Quando ensinaremos a eles o que eles são?
Deveríamos dizer a cada um deles: Sabe o que você é? Você é uma maravilha. Você é único. Em todos os anos que se passaram, nunca houve outra criança como você. Suas
pernas, seus braços, seus dedos inteligentes, a maneira como você se move.
Você pode se tornar um Shakespeare, um Michelangelo, um Beethoven. Você tem capacidade para qualquer coisa. Sim, você é uma maravilha. E quando crescer, como então
poderá fazer mal a uma outra pessoa que, como você, é uma maravilha?
Você deve trabalhar - todos devemos - para tornar o mundo digno de suas crianças.
Pablo Casals
• 133
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..
Aprendemos fazendo
Há alguns anos, nem tantos, comecei a tocar violoncelo, A maioria das pessoas diria que estou "aprendendo a tocar' violoncelo. Mas essas palavras despertam em nossa
mente a idéia estranha de que existem dois processos diferentes: (1) aprender a tocar_ violoncelo e (2) tocar violoncelo. Implicam que eu realizarei a primeira atividade
até concluí-la, e então interromperei esse primeiro processo e iniciarei o segundo. Em suma, continuarei "aprendendo a tocar" até que tenha "aprendido a tocar",
e então começarei a tocar. Evidentemente, isso não faz sentido. Não existem dois processos, mas um único. Aprendemos a fazer uma coisa fazendo-a. Não existe outra
maneira.
• 134
#A mão
Um editorial pelo Dia de Ação de Graças no jornal falava
de uma professora que pediu aos alunos de sua classe de pri
wa série que desenhassem alguma coisa pela qual fossem os. Ela pensou em como estas crianças de vizinhanças
s tinham realmente pouco pelo que agradecer. Mas saque a maioria delas desenharia perus ou mesas com co
. A professora ficou surpresa com o desenho que Dou
entregou... uma mão, desenhada de forma simples e infil.
Mas mão de quem? A classe ficou encantada com a ima
abstrata. "Acho que deve ser a mão de Deus que nos dá 'mento", disse uma criança. "Um fazendeiro", disse ou"porque cria os perus". Finalmente, quando os outros já
m voltado ao trabalho, a professora se inclinou sobre a
de Douglas e perguntou de quem era a mão.
-É a sua mão, professora - murmurou ele.
Ela lembrou-se de que, várias vezes, no recreio, ela havia
do Douglas, um garoto raquítico e desamparado, pela o. Ela fazia isso freqüentemente com as crianças. Mas
o significava muito para Douglas. Talvez essa devesse
• 135
#ser a Ação de Graças de todos, não pelas coisas materiais que nos são dadas, mas pela chance, de todas as pequenas formas, de dar aos outros.
Fonte desconhecida

i 1
• 136
ez vrn
um garotinhobem pequeno. E era uma escola bem grande. Mas quando o garotinho
Descobriu que podia ir para sua sala, Entrando diretamente pela porta da rua, Ficou feliz.
E a escola não lhe pareceu mais Tão grande assim.
Certa manhã,
Quando o garotinho já estava na escola havia algum tempo, A professora disse:
"Hoje vamos fazer um desenho".
Que bom!", pensou o garotinho. Ele gostava de desenhar.
Sabia fazer desenhos de todos os tipos: Leões e tigres,
Galinhas e vacas,
Trens e barcos -
• 137
Mas a professora disse:
"Esperem! Não é hora de começar!"
E esperou até que todos estivessem prontos.
Ele sabia fazer toda a sorte de coisas de argila: Cobras e bonecos de neve, Elefantes e ratos,
Carros e caminhões -
E ele começou a puxar e apertar Sua bola de argila.
E puxou seu estojo de lápis de cera E começou a desenhar.
"Agora", disse a professora,
"Vamos fazer flores".
"Que bom!", pensou o garotinho, Ele gostava de fazer flores. E começou a fazer umas lindas,
Com seus lápis de cera rosa, laranja e azul.

Mas a professora disse:
"Esperem! Eu lhes mostrarei como".
E ela desenhou uma flor no quadro-negro. Era vermelha, com um caule verde. "Aí está", disse a professora. "Agora podem começar".
Num outro dia,
Quando o garotinho abriu A porta da rua sozinho A professora disse
"Hoje vamos fazer um trabalho com argila". "Que bom!", pensou o garotinho. Ele gostava de argila.
Mas a professora disse:
"Esperem! Não é hora de começar!"
E esperou até que todos parecessem prontos.

"Agora", disse a professora, "Vamos fazer um prato".
"Que bom!", pensou o garotinho, Ele gostava de fazer pratos. E ele começou a fazer alguns, De todas as formas e tamanhos.

Mas a professora disse:
"Esperem! Eu lhes mostrarei como". E ela mostrou como fazer Um prato fundo.
"Aí está", disse a professora, "Agora podem começar".
O garotinho olhou para a flor da professora.
Depois olhou para a sua própria flor.
Ele gostava mais da sua do que da flor da professora, mas não disse isso. Apenas virou sua folha de papel, E fez uma flor como a da professora. Era vermelha, com
um caule verde.
O garotinho olhou para o prato da professora
Depois olhou para os seus.
Ele gostava mais dos seus do que do prato da professora, Mas ele não disse isso,
Apenas enrolou sua argila numa grande bola novamente, E fez um prato como o da professora. Era um prato fundo.
138
• 139
E logo
o garotinho aprendeu a esperar E a prestar atenção,
E a fazer coisas como a professora. E logo
Ele não fazia mais coisas à sua maneira.
Então aconteceu
Que o garotinho e sua família Mudaram-se para outra casa, Em outra cidade, E o garotinho
Teve que ir para outra escola.
-o que vamos fazer?"
"Não vou saber até que você faça", disse a professora. "Como devo fazê-lo?", perguntou o garotinho "Ora, como você preferir', disse a professora. "E de qualquer
cor?", perguntou o garotinho. "De qualquer cor", disse a professora, "Se todos fizessem o mesmo desenho, E usassem as mesmas cores, Como eu saberia quem fez o quê,
E qual era qual?"
"Eu não sei", disse o garotinho.
E começou a fazer flores cor-de-rosa, laranja e azuis.
Esta escola era ainda maior Do que a outra, E não havia porta da rua Para a sua sala.
Ele tinha que subir uns enormes degraus, E descer um grande corredor Para chegar à sua sala.

E no primeiro dia
De aula, a professora disse
"Hoje vamos fazer um desenho".

`Que bom!", pensou o garotinho,
E esperou que a professora Lhe dissesse o que fazer,
Mas a professora não disse nada. Apenas caminhava em volta da sala.

Quando passou pelo garotinho,
fla disse: "Você não quer desenhar?" "Sim", disse o garotinho.
Ele gostou de sua nova escola, Mesmo que não tivesse uma porta Direto da rua!
Helen E. Buckley
• 140
141
Sou professor
Sou professor.
Nasci no momento exato em que uma pergunta saltou boca de uma criança.
Fui muitas pessoas em muitos lugares.
Sou Sócrates, estimulando a juventude de Atenas a de
cobrir novas idéias através de perguntas.
Sou Anne Sullivan, extraindo os segredos do universo
mão estendida de Helen Keller.
Sou Esopo e Hans Christian Andersen, revelando a ve
dade através de inúmeras histórias.
Sou Marva Collins, lutando pelo direito de toda a crian
à Educação.
Sou Mary McCloud Bethune, construindo uma grand universidade para meu povo, utilizando caixotes de laranj como escrivaninhas.
Sou Bel Kaufman, lutando para colocar em prática o U
The Down Staircase.
Os nomes daqueles que praticaram minha profissã soam como um corredor da fama para a humanidade.. Booker T. Washington, Buda, Confúcio, Ralph Waldo Emer son, Leo
Buscaglia, Moisés e Jesus.
Sou também aqueles cujos nomes foram há muito esquecidos, mas cujas lições e o caráter serão sempre lembrados nas realizações de seus alunos.
Tenho chorado de alegria nos casamentos de ex-alunos, gargalhado de júbilo no nascimento de seus filhos e permanecido com a cabeça baixa de pesar e confusão ao lado
de suas sepulturas cavadas cedo demais, para corpos jovens demais.
Ao longo de cada dia tenho sido solicitado como ator, amigo, enfermeiro e médico, treinador, descobridor de artigos perdidos, como o que empresta dinheiro, como
motorista de táxi, psicólogo, pai substituto, vendedor, político e mantenedor da fé.
A despeito de mapas, gráficos, fórmulas, verbos, histórias e livros, não tenho tido, na verdade, nada o que ensinar, pois meus alunos têm apenas a si próprios para
aprender, e eu sei que é preciso o mundo inteiro para dizer a alguém quem ele é.
Sou um paradoxo. É quando falo alto que escuto mais. Minhas maiores dádivas estão no que desejo receber agradecido de meus alunos.
Riqueza material não é um de meus objetivos, mas sou um caçador de tesouros em tempo integral, em minha busca de novas oportunidades para que meus alunos usem seus
talentos e em minha procura constante desses talentos que, às vezes, permanecem encobertos pela autoderrota.
Sou o mais afortunado entre todos os que labutam.
A um médico é permitido conduzir a vida num mágico momento. A mim, é permitido ver que a vida renasce a cada dia com novas perguntas, idéias e amizades.
Um arquiteto sabe que, se construir com cuidado, sua estrutura poderá permanecer por séculos. Um professor sabe que, se construir com amor e verdade, o que construir
durará para sempre.
Sou um guerreiro, batalhando diariamente contra a pressão dos colegas, o negativismo, o medo, o conformismo, o
• 142
• 143
#preconceito, a ignorância e a apatia. Mas tenho grandes ali dos: Inteligência, Curiosidade, Apoio paterno, Individu dade, Criatividade, Fé, Amor e Riso, todos correm
a to meu partido com apoio indômito.
E a quem mais devo agradecer por esta vida maravilh sa, que sou tão afortunado em experimentar, além de vocês, ao público, aos pais? Pois vocês me deram a grau honra
de confiar-me suas maiores contribuições para com eternidade, seus filhos.
E assim, tenho um passado rico em memórias. Tenho u presente de desafios, aventuras e divertimento, porque mim é permitido passar meus dias com o futuro.
Sou professor... e agradeço a Deus por isso todos os dia
5
VIVA
SEU
SONHO
As pessoas que dizem que não

pode ser feito, não deveriam

interromper as que estão

fazendo.
Acho que posso!
Seja pensando que é capaz ou que não é capaz, você está certo. Henry Ford
Rocky Lyons, filho do ponta de defesa do New York Jets, Marty Lions, tinha cinco anos quando passava de carro pelo interior do Alabama com sua mãe, Kelly. Ele dormia
no banco da frente da caminhonete, com os pés sobre o colo dela.
Dirigindo cuidadosamente pela estrada de terra, sua mãe entrou numa ponte estreita. Ao fazê-lo, a caminhonete caiu num buraco e deslizou para fora da estrada; a
roda dianteira direita ficou presa no sulco dos pneus. Temendo que a caminhonete tombasse, ela tentou jogar o carro de volta na estrada pisando fortemente no acelerador
e virando o volante para a esquerda. Mas o pé de Rocky ficou preso entre sua perna e a direção, e ela perdeu o controle da caminhonete.
A caminhonete rolou por um barranco de vinte pés. Quando bateu lá embaixo, Rocky acordou.
- O que aconteceu, mamãe? - ele perguntou. - Nossas rodas estão apontando para o céu.
Kelly estava coberta de sangue. O câmbio de marchas se comprimira contra o seu rosto, cortando-o dos lábios até a
147
testa. Suas gengivas foram arrancadas, suas bochechas trituradas, seus ombros esmagados. Com um osso da axila despedaçado e exposto, ela foi imprensada contra a
porta esmagada.
- Vou tirá-la daí, mamãe - anunciou Rocky, que milagrosamente não sofrera ferimentos. Ele escorregou para fora passando por baixo de Kelly, esgueirou-se pela janela
aberta e tentou puxar sua mãe para fora. Mas ela não se movia.
- Deixe-me dormir - implorava Kelly, que oscilava entre a consciência e a inconsciência.
- Não, mamãe, você não pode dormir.
Rocky entrou de volta na caminhonete e conseguiu empurrar Kelly para fora dos destroços. Então, disse a ela que subiria até a estrada e pararia um carro para pedir
ajuda. Temendo que ninguém pudesse ver seu garotinho no escuro, Kelly não deixou que fosse sozinho. Em vez disso, arrastaram-se pelo aterro, com Rocky usando seus
parcos dezoito quilos para empurrar os cinqüenta da mãe. Rastejaram cada centímetro. A dor era tamanha que Kelly pensou em desistir, mas Rocky não deixava. Para
animar sua mãe, Rocky disselhe para pensar "naquele trenzinho" da história, que consegue subir uma montanha tão íngreme. Para lembrá-la, Rocky repetia sua versão
da inspiradora frase da história: "Sei que você pode, sei que você pode".
Quando finalmente chegaram à estrada, Rocky pôde ver claramente, pela primeira vez, o rosto dilacerado da mãe. Começou a chorar. Agitando os braços e protestando
"Pare! Por favor, pare!", o garoto atraiu a atenção de um caminhão.
- Leve minha mãe a um hospital - implorou ao motorista.
Foram necessários oito horas e 344 pontos para reconstruir o rosto de Kelly. Hoje ela está bem diferente - "eu tinha um nariz longo e reto, lábios finos e maxilares
altos; agora tenho nariz arrebitado, maxilares achatadas e lábios muito mais grossos" - mas tem poucas cicatrizes visíveis e se recuperou dos ferimentos.
148
O heroísmo de Rocky virou notícia. Porém, o jovem corajoso insiste em que não fez nada de extraordinário.
- Não planejei - explica ele -, só fiz o que qualquer um teria feito.
Sua mãe diz:
- Se não fosse Rocky, eu teria sangrado até a morte.
Ouvido pela primeira vez de Michele Borba
• 149
A turma de quarta série de Donna parecia-se com muitas outras que eu vira antes. Os alunos sentavam-se em cinco fileiras de seis carteiras. A mesa do professor era
na frente, virada para os alunos. O quadro de avisos exibia trabalhos dos alunos. Em muitos aspectos, parecia uma sala de escola primária tipicamente tradicional.
Mesmo assim, algo me pareceu diferente naquele primeiro dia em que entrei ali. Parecia haver uma corrente subterrânea de excitação.
Donna era uma professora veterana de uma cidadezinha de Michigan, e faltavam apenas dois anos para sua aposentadoria. Além disso, era voluntária ativa num projeto
municipal de desenvolvimento de equipes que eu organizara e auxiliara. O treinamento se concentrava em idéias artísticas de linguagens, capazes de estimular os alunos
a se sentirem bem consigo mesmos e assumirem a responsabilidade sobre suas vidas. O trabalho de Donna era assistir às sessões de treinamento e implementar os conceitos
apresentados. Meu trabalho era visitar as salas de aula e encorajar a implementação.
Tomei um lugar vazio no fundo da sala e assisti. Todos os alunos estavam trabalhando numa tarefa, preenchendo uma folha de caderno com idéias e pensamentos. Uma
aluna de
• 150
dez anos, mais próxima de mim, estava enchendo a folha de
11não consigos".
"Não consigo chutar a bola de futebol além da segunda base."
"Não consigo fazer divisões longas com mais de três nú
meros.-"Não consigo fazer com que Debbie goste de mim."
Sua página já estava pela metade e ela não mostrava sinais de parar. Trabalhava com determinação e persistência.
Caminhei pela fileira olhando as folhas dos alunos. Todos estavam escrevendo sentenças que descreviam o que não conseguiam fazer.
"Não consigo fazer dez flexões."
"Não consigo acertar uma por cima da cerca do campo esquerdo."
"Não consigo comer um biscoito só."
A esta altura, a atividade despertara minha curiosidade, e assim decidi verificar com a professora o que estava acontecendo. Ao me aproximar dela, notei que ela
também estava ocupada escrevendo. Achei melhor não interromper.
"Não consigo trazer a mãe de John para uma reunião de professores."
"Não consigo fazer com que minha filha abasteça o carro."
"Não consigo fazer com que Allan use palavras em vez de murros."
Frustrado em meus esforços em determinar por que os alunos estavam trabalhando com negativas, em vez de escrever frases mais positivas, ou "eu consigo", voltei para
o meu lugar e continuei minhas observações. Os estudantes escreveram por mais dez minutos. A maioria encheu sua página. Alguns começaram outra.
"Terminem a página em que estiverem e não comecem outra", foram as instruções que Donna usou para assinalar o final da atividade. Os alunos foram então instruídos
a dobrar
Descanse em paz:

o enterro do "não consigo".
suas folhas ao meio e trazê-las para a frente da classe. Quan do os alunos chegaram à mesa da professora, depositaram frases "não consigo" numa caixa de sapatos
vazia.
Quando as folhas de todos os alunos haviam sido reco lhidas, Donna acrescentou as suas. Ela pôs a tampa na caixa, enfiou-a embaixo do braço e saiu pela porta, pelo
corredora Os alunos seguiram a professora. Eu segui os alunos.
Na metade do corredor a procissão parou. Donna entrou na sala do zelador, remexeu um pouco e saiu com uma pá. Pá numa das mãos, caixa de sapatos na outra, Donna
saiu para o pátio da escola, conduzindo os alunos até o canto mais distante do playground. Ali começaram a cavar.
Iam enterrar seus "Não consigos"! A escavação levou mais de dez minutos, pois a maioria dos alunos queria sua vez. Quando o buraco chegou a cerca de um metro de
profundidade, a escavação terminou. A caixa de "não consigos" foi depositada no fundo do buraco e rapidamente coberta de terra.
Trinta e uma crianças de dez e onze anos permaneceram de pé, no local da sepultura recém-cavada. Cada um tinha no mínimo uma página cheia de "não consigos" na caixa
de sapatos um metro abaixo. E a professora também.
Neste ponto, Donna anunciou: "Meninos e meninas, por favor dêem-se as mãos e baixem suas cabeças." Os alunos obedeceram. Rapidamente, dando-se as mãos, formaram
um círculo ao redor da sepultura. Baixaram as cabeças e esperaram. Donna proferiu os louvores.
"Amigos, estamos hoje aqui reunidos para honrar a memória do 'Não consigo'. Enquanto esteve conosco na Terra, ele tocou as vidas de todos nós, de alguns mais do
que de outros. Seu nome, infelizmente, foi mencionado em cada instituição pública - escolas, prefeituras, assembléias legislativas e, sim, até mesmo na Casa Branca.
Providenciamos um local para o seu descanso final e uma lápide que contém seu epitáfio. Ele vive na memória de seus
irmãos e irmãs 'Eu consigo', 'Eu Vou' e 'Eu vou imediatamente'. Estes não são tão conhecidos quanto seu famoso parente e certamente ainda não tão fortes e poderosos.
Talvez algum dia, com sua ajuda, eles tenham uma importância ainda maior no mundo. Que'Não Consigo' possa descansar em paz e que todos os presentes possam retomar
suas vidas e ir em frente na sua ausência. Amém."
Ao escutar as orações entendi que aqueles alunos jamais esqueceriam esse dia. A atividade era simbólica, uma metáfora da vida. Foi uma experiência direta que ficaria
gravada no consciente e no inconsciente para sempre.
Escrever os "Não Consigos", enterrá-los e ouvir a oração. Aquele havia sido um esforço maior da parte daquela professora. E ela ainda não terminara. Ao concluir
a oração ela fez com que os alunos se virassem, encaminhou-os de volta à classe e promoveu uma festa.
Eles celebraram a passagem de "Não Consigo" com biscoitos, pipoca e sucos de frutas. Como parte da celebração, Donna recortou uma grande lápide de papelão. Escreveu
as palavras "Não Consigo" no topo, "Descanse em Paz" no centro e a data embaixo.
NÃO CONSIGO

Descanse em Paz

28/3/80
A lápide de papel ficou pendurada na sala de aula de Donna durante o resto do ano. Nas raras ocasiões em que um aluno se esquecia e, dizia "Não Consigo", Donna simples
. 153
• 152
mente apontava o cartaz Descanse em Paz. O aluno então lembrava que "Não Consigo" estava morto e reformula frase.
Eu não era aluno de Donna. Ela era minha aluna. Ain assim, naquele dia aprendi uma lição duradoura com ela.
Agora, anos depois, sempre que ouço a frase "Não Co go", vejo imagens daquele funeral da quarta série. Como alunos, eu também me lembro de que "Não Consigo" es
morto.
• 154
A história do 333
Estava ministrando um seminário de final de semana no Hotel Deerhust, norte de Toronto. Na noite de sexta-feira, um tornado varreu uma cidade ao norte da nossa,
chamada Barrie, matando dezenas de pessoas e causando prejuízos de milhões de dólares. Na noite de sábado, voltando para casa, parei o carro quando cheguei a Barrie.
Desci do carro no acostamento e olhei em volta. Estava uma confusão. Em todos os lugares para onde eu olhava havia casas destruídas e carros de cabeça para baixo.
Naquela mesma noite, Bob Templeton dirigia pela mesma estrada. Ele parou para olhar a tragédia assim como eu, só que seus pensamentos foram diferentes dos meus.
Bob era vice-presidente da Telemedia Communications, dona de uma cadeia de estações de rádio em Ontário e Quebec. Ele achou que devia haver algo que pudéssemos fazer
por aquelas pessoas através de suas estações de rádio.
Na noite seguinte, estava ministrando um outro seminário em Toronto. Bob Templeton e Bob Johnson, outro vicepresidente da Telemedia, entraram e ficaram de pé no
fundo da sala. Ambos compartilhavam a convicção de que devia haver algo que pudessem fazer pelas pessoas em Barrie. Ter
155
minado o seminário, voltamos para o escritório de Bob. Agora ele estava comprometido com a idéia de ajudar as pessoas que haviam sido afetadas pelo tornado.
Na sexta-feira seguinte, ele chamou todos os executivos da Telemedia em seu escritório. No alto de um flipchart, ele escreveu três 3. E disse a seus executivos:
- Vocês gostariam de levantar 3 milhões de dólares, em apenas 3 horas, daqui a 3 dias, a contar de hoje, e dar esse dinheiro à população de Barrie?
Não houve nada além de silêncio na sala.
Finalmente alguém disse:
- Templeton, você está louco. Não há como fazer isso.
Bob disse:
- Espere um minuto. Eu não perguntei se poderíamos ou se deveríamos. Perguntei apenas se vocês gostariam. Todos eles disseram:
- É claro que gostaríamos.
Então ele desenhou um grande T embaixo do 333. De um lado ele escreveu "Porque não podemos". Do outro, "Como podemos".
- Vou fazer um grande X no lado do "Porque não podemos". Não vamos perder tempo com idéias de "Porque não podemos". Isso é inútil. Do outro lado vamos escrever todas
as idéias que tivermos sobre "Como podemos". Não vamos sair da sala até chegar às soluções.
Houve silêncio novamente.
Finalmente, alguém disse:
Poderíamos fazer um show de rádio e transmiti-lo a todo o Canadá.
Bob disse:
- Esta é uma grande idéia - e anotou-a.
Antes que tivesse terminado de escrever, alguém disse: - Não podemos fazer um show de rádio e transmiti-lo a
todo o Canadá. Não temos estações em todo o Canadá. Aquela foi uma objeção bastante válida. Eles tinham es
tações apenas em Ontário e Quebec.
Templeton replicou:
- Isso é "porque podemos". Isso fica.
Mas essa era uma objeção realmente forte, porque as estações de rádio são muito competitivas. Normalmente, elas não trabalham juntas e conseguir que o fizessem seria
praticamente impossível, de acordo com os padrões estabelecidos de raciocínio.
De repente alguém sugeriu:
- Poderíamos convidar Harvey Kirk e Lloyd Robertson, os maiores nomes da radiodifusão canadense, como âncoras do show. (Isso seria como ter Tom Brokaw e Sam Donaldson
ancorando o show. Eles são âncoras na televisão nacional. Eles não irão ao rádio.) Àquela altura foi absolutamente espantoso a rapidez e a fúria com que as idéias
criativas começaram a fluir.
Isso foi numa sexta-feira. Na quinta-feira seguinte, cinqüenta estações de rádio do país inteiro haviam concordado em transmitir o show. Não importava de quem seriam
os créditos desde que as pessoas em Barrie recebessem o dinheiro. Harvey Kirk e Lloyd Robertson ancoraram o show e conseguiram levantar 3 milhões de dólares, em
três horas, dentro de um período de três dias úteis!
Veja só, você pode fazer qualquer coisa se concentrar sua energia em "Como pode" fazer, e não em "Porque não pode".
Bob Proctor
• 156
• 157
A atual maior vendedora do mundo não se importa q a chamem de menina. Isso porque Markita Andrews gero mais de oitenta mil dólares vendendo os biscoitinhos G* Scout
desde que tinha sete anos.
Batendo de porta em porta após a escola, Markita, em rã terrivelmente tímida, transformou-se num dínamo d vender biscoitos quando descobriu, aos treze anos, o segr
do de vender.
Tudo começou com um desejo. Um desejo abrasador incandescente. O sonho de Markita e sua mãe, que trabalha vã como garçonete desde que seu marido a deixara, quando
Markita tinha oito anos, era dar a volta ao mundo. "Vou trabalhar duro para conseguir dinheiro suficiente para mandála à faculdade", sua mãe lhe disse certo dia
- "Você irá para a faculdade e, quando se formar, ganhará bastante dinheiro para nos levar a uma volta ao mundo. Está bem?"
Assim, aos treze anos, quando Markita leu na revista Girl Scout, a revista das bandeirantes, que a bandeirante que vendesse mais biscoitos ganharia uma viagem para
dois ao redor do mundo, com todas as despesas pagas, decidiu vender todos os biscoitos Girl Scout que conseguisse - mais do que qualquer outra pessoa no mundo jamais
vendera.
Mas desejo apenas não basta. Para transformar seu sonho em realidade, Markita sabia que precisava de um plano.
- Use sempre o equipamento correto, seu uniforme profissional -aconselhou sua tia. - Quando estiver trabalhando, vista-se como se estivesse fazendo negócios. Use
seu uniforme de bandeirante. Quando subir nos prédios para visitar as pessoas em seus apartamentos às 16:30 ou 18:30, e especialmente às sextas-feiras à noite, peça-lhes
que façam grandes encomendas. Sorria sempre, seja sempre agradável. E não lhes peça para "comprar" seus biscoitos, peça-lhes para investir.
Muitas outras bandeirantes podem ter desejado aquela viagem ao redor do mundo. Muitas outras bandeirantes podem ter planejado essa viagem. Mas apenas Markita saiu,
vestida com seu uniforme, todos os dias após a escola, pronta para pedir - e continuar pedindo - às pessoas que investissem nos seus sonhos.
- Olá. Eu tenho um sonho. Ganharei uma viagem ao redor do mundo para mim e minha mãe vendendo os biscoitos Girl Scout - dizia ela à porta. - Gostaria de investir
em uma ou duas dúzias de caixas de biscoitos?
Markita vendeu 3.526 caixas de biscoitos Girl Scout naquele ano e ganhou sua viagem ao redor do mundo. Desde então, vendeu mais 42.000 caixas de biscoitos Girl Scout,
deu palestras em convenções de vendas no país inteiro, estrelou um filme na Disney sobre sua aventura e foi co-autora do
best-seller How to Sell More Cookies, Condor, Cadillacs, Computers... And Everything Else.
Markita não é mais esperta ou mais extrovertida do que milhares de outras pessoas, jovens ou idosas, que têm seus próprios sonhos. A diferença é que Markita descobriu
o segredo de vender: Pedir! Pedir! Pedir! Muitas pessoas fracassam mesmo antes de começar, porque não conseguem pedir o que querem. O medo da rejeição leva muitos
de nós a rej eitar a nós mesmos e aos nossos sonhos, muito antes que qual
Pedir, pedir, pedir
158
159
quer um tenha jamais tido a chance de fazer isso - não porta o que estejamos vendendo.
E todos estamos vendendo algo.
"Vendemos a nós mesmos todos os dias - na escola,, patrão, às novas pessoas que encontramos - disse Mar aos 14 anos. - Minha mãe é garçonete: ela vende a refei do
dia. Prefeitos e presidentes tentando angariar votos es vendendo... Uma de minhas professoras favoritas foi a Chapin. Ela fez com que Geografia se tornasse uma mat
interessante, e isso, na verdade, é vender... Vejo vendas p toda parte. Vender faz parte do mundo.
É necessário coragem para pedir ó que se deseja. Cor gem não é ausência de medo. É fazer o que é necessário ap sar do medo.. E, como Markita descobriu, quanto mais
pede, mais fácil (e mais divertido) isso se torna.
Uma vez, na televisão, ao vivo, o produtor resolveu pr por a Markita seu maior desafio de vendas. Pediram-lhe q vendesse os biscoitos Girl Scout a um outro convidado
d programa.
- Gostaria de investir em uma ou duas dúzias de caix de biscoitos Girl Scout? -perguntou ela.
- Biscoitos Girl Scout?! Eu não compro nenhum biscoito Girl Scout! - respondeu ele. - Sou diretor da Penitenciári Federal. Coloco na cama dois mil raptores, ladrões,
crimino-a sos, desordeiros e corruptores de menores todas as noites.
Tranqüila, Markita rapidamente replicou:
- Senhor, se aceitar alguns destes biscoitos, talvez não se sinta tão indisposto, zangado e mau. E acho que também seria uma boa idéia levar alguns biscoitos para
cada um dos seus dois mil prisioneiros.
Markita pediu.
O diretor fez um cheque.
160
Você já fez a terra se mover?


Angela, de onze anos, foi acometida por uma doença debilitante envolvendo seu sistema nervoso. Ela não podia andar e também havia outros tipoçde restrições em seus
movimentos. Os médicos não tinham muita esperança de que ela algum dia se recuperasse dessa doença. Previram que ela passaria o resto de sua vida numa cadeira de
rodas. Disseram que poucos, talvez ninguém, seriam capazes de voltar à vida normal depois de contrair essa doença. A garotinha era destemida. Ali, deitada em seu
leito de hospital, ela prometia a quem quisesse ouvir que, definitivamente, um dia voltaria a andar.
Foi transferida para um hospital especializado em reabilitação, na região da baía de São Francisco. Todas as terapias que podiam ser aplicadas ao seu caso foram
usadas. Os terapeutas ficaram encantados pelo seu espírito inabalável. Eles a ensinaram a técnica de "criação de imagens" - visualizar a si mesma caminhando. Se
não ajudasse em mais nada, ao menos lhe daria esperança e alguma coisa positiva para fazer durante as longas horas em que permanecia acordada na cama. Angela dedicou-se
com o maior afinco à fisioterapia, hidromassagens e em sessões de exercícios. Mas de
dicou-se com o mesmo afinco à prática fervorosa da "construção de imagens", visualizando a si mesma se m do, movendo, movendo!
Um dia, quando se esforçava ao máximo para ima suas pernas se movendo novamente, aconteceu uma c que pareceu um milagre: A cama se moveu! E começou a mover pelo
quarto! Ela gritava:
- Olhem o que estou fazendo! Olhem! Olhem! Eu co go! Eu me movi! Eu me movi!
É claro que, neste momento, o hospital inteiro tam estava gritando e correndo em busca de abrigo; pessoas tavam, equipamentos caíam e vidros se quebravam. Veja era
o recente terremoto de São Francisco. Mas não conte Angela. Ela está convencida de que fez aquilo sozinha. E a ra, apenas alguns anos depois, está de volta à escola.
Sob suas próprias pernas. Sem muletas, sem cadeiras de ro Veja só, uma pessoa capaz de fazer a terra tremer entre Francisco e Oakland pode vencer uma doencinha trivial,
n pode?
Um garotinho da nossa igreja em Huntington Beach veio me procurar depois de me ouvir falar sobre o Banco das Crianças. Ele apertou minha mão e disse:
- Meu nome é Tommy Tighe, tenho seis anos e quero um empréstimo do seu Banco das Crianças.
Eu disse:
- Tommy, este é um dos meus objetivos, emprestar dinheiro aos garotos. E até hoje todos eles me pagaram de volta. O que quer fazer?
Ele disse:
-Desde que eu tinha quatro anos tenho o sonho de que eu poderia trazer paz ao mundo. Quero fazer um adesivo que diga: "PAZ, POR FAVOR! PAZ POR NÓS, CRIANÇAS!", assinado
Tommy.
- Posso apoiar sua idéia - eu disse. Ele precisava de US$454,00 para produzir mil adesivos. O Fundo pelos Livres Empreendimentos das Crianças Mark Victor Hansen
fez um cheque à gráfica que estava imprimindo os adesivos.
O pai de Tommy cochichou em meu ouvido:
- Se ele não lhe pagar o empréstimo, você vai executar a bicicleta dele?
O adesivo de Tommy
• 162
• 163
#Eu disse:
- Não, bata na madeira, todo garoto nasce com hon dade, moral e ética. É preciso ensiná-los outras coisas. Acr dito que ele nos pagará.
Se você tem um filho de mais de nove anos, deixe-o t-r b-a-l-h-a-r e ser r-e-m-u-n-e-r-a-d-o por algo honesto, mo e ético, para que aprenda o princípio desde cedo.
Demos a Tommy uma cópia de todas as minhas fitas, e ouviu 21 vezes cada uma e assumiu a propriedade do mat rial. As fitas dizem: "Comece sempre a vender do topo
Tommy convenceu seu pai a levá-lo até a casa de Ronald Reagan. Tommy tocou a campainha e o porteiro veio ateu der. Tommy fez uma irresistível apresentação de dois
minu tos da venda de seus adesivos. O porteiro enfiou a mão no bolso, deu US$1,50 a Tommy e disse:
-Aqui está, quero um desses. Espere e eu chamarei o expresidente.
Perguntei:
- Por que pediu a ele que comprasse o adesivo? Ele disse:
- Você disse nas fitas para pedir a todo mundo para comprar.
Eu disse:
- É, eu disse, disse. A culpa é minha.
Ele enviou um adesivo a Mikhail Gorbachev com uma conta de US$1,50 em fundos norte-americanos. Gorbachev enviou-lhe os US$1,50 e uma fotografia com a dedicatória
,
va em frente pela paz, Tommy" e assinava "Mikhail Gorbachev, Presidente".
Já que coleciono autógrafos, eu disse a Tommy:
Eu lhe darei US$500,00 pelo autógrafo de Gorbachev. Ele disse:
- Não, obrigado, Mark
Eu falei:
- Tommy, sou dono de muitas empresas. Quando você crescer gostaria de contratá-lo.
Está brincando? Quando eu crescer, eu vou contratar
você.
A edição de domingo do Orange County Register fez um especial com a história de Tommy, o Banco pelos Livres Empreendimentos das Crianças e eu. Marty Shaw, o jornalista,
entrevistou Tommy durante seis horas e escreveu uma reportagem fenomenal. Marty perguntou a Tommy que impacto ele esperava causar sobre a paz mundial. Tommy disse:
- Acho que ainda não tenho idade suficiente; acho que você tem que ter oito ou nove anos para parar todas as guerras no mundo.
Marty perguntou:
- Quem são seus heróis?
Ele disse:
- Meu pai, George Burns, Wally Joiner e Mark Victor Hansen.
Tommy tem bom gosto para ídolos.
Três dias depois, recebi um telefonema da empresa de cartões Ha1knark Uma das franquias da Hallmark havia passado por fax uma cópia do artigo do Register. Eles teriam
uma convenção em São Francisco e gostariam que Tommy falasse. Afinal, eles viram que Tommy tinha nove metas:

1. Resgatar os custos (caução do cartão de beisebol).
2. Imprimir os adesivos.
3. Fazer plano para um empréstimo. 4. Descobrir como falar às pessoas. 5. Conseguir endereços de líderes.
6. Escrever uma carta a todos os presidentes e líderes de
outros países e enviar-lhes um adesivo gratuito.
7. Falar a todos sobre paz.
8. Ligar para a banca de j ornais e falar sobre o meu negó
cio.
9. Ter uma conversa na escola.
164
• 165
A Hallmark queria que a minha empresa, Look Talking, agendasse a palestra de Tommy. Embora a pales não tenha acontecido, porque o intervalo de duas se
era pequeno demais, as negociações entre a Hallmark, eu Tommy foram divertidas, estimulantes e poderosas.
Joan Rivers chamou Tommy Tighe para seu programa televisão. Alguém também lhe passara uma cópia via fax entrevista de Tommy ao Register.
- Tommy - Joan disse - aqui é Joan Rivers e quer você no meu programa, que tem milhões de espectadores.
- ótimo! - disse Tommy. Ele não tinha a menor idé' de quem era ela.
- Pagarei a você US$300,00 - disse Joan.
- ótimo! - disse Tommy.
Tendo ouvido repetidamente as minhas fitas Sell Yoursel Rich e se transformado num mestre de vendas, Tommy continuou a vender a Joan dizendo:
-Tenho apenas oito anos, então não poderei ir sozinho. Você poderia custear a ida de minha mãe também, não é Joan?
- Sim! - respondeu Joan.
- Falando nisso, acabei de assistir a um programa Estilos de Vida dos Ricos e Famosos, que dizia que se deve hospedar no Trump Plaza quando se vai a Nova York, Pode
providenciar isso, não é, Joan?
- Sim! - ela respondeu.
- O programa também disse que, uma vez em Nova
York, deve-se visitar o Empire State Building e a Estátua da
Liberdade. Pode conseguir ingressos, não é? - Sim...
- Ótimo. Eu lhe disse que minha mãe não dirige? Então, podemos usar sua limousine, não podemos? - Claro - disse Joan.
• 166
Tommy foi ao programa de Joan Rivers e fez um enorme sucesso com Joan, a equipe de cinegrafistas, o público ao vivo e o da televisão. Ele estava bonito, interessante,
autêntico e um excelente exemplo de alguém que se lança por conta própria. Contou histórias tão cativantes e persuasivas que o público se viu puxando imediatamente
o dinheiro da carteira para comprar os adesivos.
Ao final do programa, Joan se inclinou e perguntou:
- Tommy, você realmente acha que seu adesivo trará a paz ao mundo?
Tommy disse entusiasticamente, com um sorriso radiante:
- Até agora, trabalhei apenas dois anos e já consegui derrubar o muro de Berlim. Estou indo bem, não acha?
Mark V. Hansen
Se não pedir, você não consegue -

mas se pedir, consegue!
Até hoje Tommy vendeu mais de 2.500 adesivos e devolveu ao Banco pelos — vres Empreendimentos das Crianças Mark Victor Hansen seu empréstimo de US$454,00. Se você
gostaria de obter um dos adesivos de Tommy, envie US$3,00 a Tommy Tighe,17283 Ward Street, Fountain Valley, CA 92708.
Linda, minha esposa, e eu moramos em Miami, na Flórida. Quando havíamos apenas começado nosso programa de treinamento em auto-estima, chamado Little Acorns, para
ensinar às crianças como dizer não às drogas, à promiscuidade sexual e a outros comportamentos autodestrutivos, recebemos o prospecto de uma conferência sobre Educação
em San Diego. Ao lermos o prospecto, percebemos que todas as pessoas importantes estariam lá e percebemos que tínhamos que ir. Mas não víamos como. Estávamos apenas
começando, trabalhando em casa, e tínhamos acabado de exaurir nossas economias com os primeiros estágios do trabalho. Não havia forma de pagarmos as passagens aéreas
ou quaisquer outras despesas. Mas sabíamos que deveríamos estar lá, e assim começamos a pedir.
A primeira coisa que fiz foi telefonar aos coordenadores da conferência em San Diego, explicar por que simplesmente tínhamos que estar lá e perguntar-lhes se nos
dariam duas admissões para a conferência. Quando expliquei nossa situação, o que estávamos fazendo e por que tínhamos que estar lá, eles disseram sim. Portanto,
tínhamos os ingressos.
Contei a Linda que já tínhamos os ingressos e podíamos entrar na conferência. Ela disse:
168
• 169
#- Ótimo! Mas estamos em Miami e a conferência é San Diego. O que faremos agora? Então eu disse:
- Temos que conseguir transporte.
Liguei para a Northeast Airlines, uma companhia a que eu sabia que estava em ótima situação na época. Coi dentemente, a mulher que atendeu era a secretária do pr
dente, então eu disse a ela o que precisava. Ela me colos diretamente em contato com o presidente, Steve Quinto. pliquei-lhe que acabara de falar com os conferencistas
e San Diego, que eles nos tinham ofertado as entradas para conferência, mas que não podíamos ir porque não tnham como chegar lá e, por favor, será que ele poderia
nos do duas passagens de ida e volta de Miami a San Diego?
Ele disse:
- É claro que sim - e foi exatamente assim. Foi assa rápido, e o que disse em seguida realmente me surpreende Ele disse:
- Obrigado por pedir.
Eu disse:
- Como?
Ele disse:
- Não é sempre que tenho a oportunidade de fazer o melhor que posso pelo mundo, a não ser que alguém me peça. Esta é uma ótima oportunidade e quero agradecer a você
por ela.
Fiquei desconcertado, mas agradeci e desliguei o telefone.
Olhei para minha esposa e disse:
- Querida, temos as passagens aéreas! Ela falou:
- Ótimo. Onde vamos ficar?
A seguir telefonei para a Holliday Inn Downtown Miarru e perguntei:
- Onde é a sua sede?
• 170
Eles me disseram que era em Memphis, Tennessee. Ligt1ei para o Tennessee e eles me passaram para a pessoa com quem eu precisava falar. Era alguém de São Francisco.
Ele dirigia todas os Holiday Inns na Califórnia. Expliquei-lhe que tínhamos conseguido as passagens aéreas com uma empresa e perguntei se ele poderia nos auxiliar
de alguma forma com a hospedagem durante três dias. Ele perguntou se estaria bem se nos colocasse em seu novo hotel no centro de San Diego como seus convidados.
Eu disse:
- Sim, isso seria ótimo.
Ele então disse:
- Espere um minuto. Tenho de preveni-los, o hotel fica a cinqüenta quilômetros de carro do campus onde a conferência será realizada e terão que achar um meio de
chegar lá.
Eu disse:
- Darei um jeito mesmo que eu tenha que comprar um cavalo.
Agradeci a ele e disse a Linda:
- Bem, querida, temos as entradas, conseguimos as passagens aéreas e lemos um lugar para ficar. Precisamos agora de um meio para ir do hotel ao campus e voltar,
duas vezes ao dia.
Em seguida, liguei para a National Car Rental, conteilhes a história e perguntei se poderiam me ajudar. Eles disseram:
- Um Olds 88 estaria bem?
Eu disse que estaria.
Num único dia tínhamos conseguido tudo.
Acabamos pagando nossas próprias refeições parte do tempo, mas, antes do término da conferência, levantei-me, contei esta história numa das assembléias gerais e
disse:
- Seremos extremamente gratos desde já a qualquer um que queira ser voluntário para nos levar para almoçar.
Cerca de cinqüenta pessoas levantaram e se candidataram, e assim terminamos conseguindo também algumas refeições.
Foi uma experiência maravilhosa, aprendemos nau conhecemos gente como Jack Canfield, que ainda es nosso conselho consultivo. Quando retornamos, lança programa e
ele vem crescendo cerca de 100% ao ano. timo mês de junho, formamos a turma número 2.250 do namento Little Acorn. Também realizamos duas impo tes conferências para
educadores chamadas Tornand Mundo Seguro para as Crianças, para as quais convida pessoas do mundo inteiro. Milhares de educadores vie a fim obter idéias sobre como
realizar treinamentos em au estima em suas salas de aula.
Da última vez que patrocinamos a conferência, convi mos educadores de 81 países. Dezessete países enviaram presentantes, inclusive ministros da educação. Além di
surgiram convites para que levássemos nosso programa a seguintes lugares: Rússia, Ucrânia, Bielorrússia, Gelara Kazaquistão, Mongólia, Taiwan, Ilhas Cook e Nova
Zelâ dia.
Assim, como você vê, é possível conseguir o que você qw ser; basta pedir a um número suficiente de pessoas.
A busca de Rick Little
Às cinco horas da manhã, Rick Little dormiu no volante de seu carro, foi arremessado sobre um barranco de três metros de altura e bateu contra uma árvore. Passou
os seis meses seguintes engessado, com a coluna quebrada. Rick teve tempo de sobra para pensar profundamente sobre sua vida - algo para o que seus treze anos de
formação não o haviam preparado. Certa tarde, ao voltar para casa, apenas duas semanas depois de receber alta no hospital, encontrou sua mãe deitada no chão, semiconsciente,
devido a uma overdose de pílulas para dormir. Rick enfrentou mais uma vez a inadequabilidade de sua educação formal em preparálo para lidar com os aspectos sociais
e emocionais de sua vida.
Durante os meses que se seguiram, Rick começou a formular uma idéia -o desenvolvimento de um curso que desse aos alunos auto-estima, habilidade de relacionamento
e de administração de conflitos. Ao começar a pesquisar o possível conteúdo de um curso como esse, deparou com um estudo do Instituto Norte-Americano de Educação,
no qual 1.000 indivíduos de trinta anos foram questionados se achavam que seus cursos de segundo grau os haviam preparado
173
• 172
com as habilidades necessárias para enfrentar a vi Mais de oitenta por cento responderam "Definitiva não".
Esses indivíduos de trinta anos também foram quer dos sobre quais habilidades eles gostariam que lhes tiv sido ensinadas.
A maior parte das respostas referiu-se a habilidad relacionamento: Como conviver melhor com as pessoas quem se vive. Como encontrar e manter um trabalho. lidar com
um conflito. Como ser um bom pai. Como e der o desenvolvimento normal de uma criança. Como a nistrar financeiramente o dia-a-dia. E como intuir o sen da vida.
Inspirado em seu sonho de criar um curso que pud ensinar essas coisas, Rick deixou a faculdade e se lançou país, entrevistando alunos de segundo grau.
Em sua busca de informações sobre o que deveria ser cluído no curso, ele fez a mais de 2.000 estudantes de 120 colas as mesmas duas perguntas:
1. Se você tivesse que desenvolver um programa para s curso de segundo grau que o auxiliasse a enfrentar situações que está vivenciando hoje e as que acha encontrará
no futuro, o que este programa incluiria?
2. Liste os dez principais problemas em sua vida, os você gostaria que fossem tratados melhor em casa e escola.
Fossem estudantes de escolas particulares abastadas
de guetos de cidades do interior, rurais ou suburbanos, respostas foram surpreendentemente idênticas. Solidão falta de adaptação encabeçavam a lista de problemas.
Alé do mais, a lista das habilidades que gostariam de ter apren dido era a mesma mencionada pelos indivíduos de trinta anos.
Rick dormiu em seu carro por dois meses, vivendo de um total de sessenta dólares. Na maioria dos dias comeu biscoito
com pasta de amendoim. Alguns dias não comeu absolutaniente nada. Rick tinha poucos recursos, mas estava comprometido com seu sonho.
Seu próximo passo era fazer uma lista dos principais educadores e líderes nacionais em aconselhamento e psicologia. pecidiu visitar todas as pessoas dessa lista
e pedir sua contribuição e apoio. Embora impressionadas com sua iniciativa - perguntar diretamente aos alunos o que gostariam de aprender - elas não ofereceram grande
ajuda. "Você é muito jovem. Volte para a faculdade. Tire seu diploma. Faça um curso de pós-graduação e então poderá ir atrás disso." Não se pode dizer que foram
encorajadores.
Mesmo assim, Rick persistiu. Quando completou 20 anos, havia vendido seu carro, suas roupas, tomara dinheiro emprestado de amigos e tinha uma dívida de 32 mil dólares.
Alguém sugeriu que ele procurasse uma fundação e pedisse
dinheiro.
Sua primeira entrevista numa fundação local foi uma enorme decepção. Ao entrar no escritório, Rick literalmente tremia de medo. O vice-presidente da fundação era
um homem enorme, de cabelos escuros e com um rosto frio e inflexível. Durante meia hora, ele ficou sentado sem pronunciar uma só palavra, enquanto Rick contava sobre
sua mãe, os dois mil alunos e seus planos de um novo tipo de curso para os garotos do segundo grau.
Quando ele terminou, o vice-presidente puxou uma pilha de pastas.
- Filho - ele disse. - Estou aqui há quase vinte anos. Fundamos todos estes programas educacionais. E todos falharam. O seu também falhará. As razões? São óbvias.
Você tem vinte anos, não tem experiência, não tem dinheiro, não tem diploma. Nada!
Ao deixar o escritório da fundação, Rick jurou provar que aquele homem estava errado. Iniciou uma pesquisa sobre as instituições que estavam interessadas em financiar
progra
• 174
• 175
mas de estudo para adolescentes. Então, passou meses gindo propostas para subvenções - Rick trabalhou
um ano laboriosamente, desde a madrugada até tarde noite, redigindo grandes propostas, cada uma cuidad mente talhada conforme os interesses e exigências de fundação.
Todas partiram com grandes expectativas e to voltaram - rejeitadas.
Uma após a outra, suas propostas foram enviadas e rej tadas. Finalmente, depois que a centésima güinquagési quinta proposta de subvenção foi recusada, todo o apoio
Rick começou a desmoronar. Os pais de Rick implorav que ele voltasse para a faculdade e Ken Greene, um edu dor que abandonara o emprego para ajudar Rick a redigir
propostas, disse:
- Não tenho mais dinheiro e tenho esposa e filhos p sustentar. Esperarei mais uma única proposta. Mas, se f uma recusa, terei que voltar a Toledo para lecionar.
Rick tinha uma última chance.
Movido por desespero e convicção, ele conseguiu pass por varas secretárias e agendar um almoço com o Dr. Ru Mawby, Presidente da Fundação Kellogg. A caminho do moço,
eles passaram por uma banca de sorvetes.
- Gostaria de um? - perguntou Mawby.
Rick assentiu. Mas sua ansiedade lhe pregou uma pe Ele apertou a casquinha na mão e, com sorvete de chocola escorrendo-lhe entre os dedos, ele fez um esforço furtivo
maÊ frenético de soltá-lo antes que o dr. Mawby pudesse notar que acontecera. Mas Mawby vira, e desatando a rir, voltou ao sorveteiro e trouxe um maço de guardanapos
de papel para Rick
O jovem rapaz entrou no carro, corado e infeliz. Como poderia pedir financiamento para um novo programa educacional quando não sabia nem segurar uma casquinha de
sorvete?
Duas semanas mais tarde Mawby telefonou.
- Você pediu US$55.000. Sentimos muito, mas os membros do conselho votaram contra. - Rick sentiu lágrimas a lhe pressionarem os olhos. Por dois anos ele trabalhara
por u,n sonho, que agora ia por água abaixo.
- No entanto - disse Mawby -, os membros do conselho votaram unanimemente a favor de conceder-lhe
US$130.000.
Então, sim, vieram as lágrimas. Rick mal podia balbuciar um "obrigado".
Desde então, Rick Little levantou mais de US$100.000.000 para financiar seu sonho. Os Programas de Habilidades Quest são ensinados atualmente em mais de 30 mil escolas
de todos os cinqüenta estados norte-americanos e em 32 países. Anualmente, três milhões de crianças aprendem habilidades importantes para sua vida porque um rapaz
de 19 anos de idade se recusou a receber um "não" como resposta.
Em 1989, devido ao incrível sucesso do Quest, Rick Little expandiu seu sonho e foi recompensado com US$65.000.000, a segunda maior doação jamais feita na história
norte-americana, para a çriação da Fundação Internacional da juventude. O propósito desta fundação é identificar e expandir pelo mundo programas de sucesso para
a juventude.
A vida de Rick Little é testemunho do poder de um compromisso com um ideal elevado, aliado à disposição de continuar pedindo até que alguém manifeste o sonho.
Adaptado de Peggy Mann
• 176
177
A magia de acreditar
Não tenho idade suficiente para jogar futebol ou beisebol. Ainda não tenho oito anos. Minha mãe me disse que "quando começar a jogar beisebol, você não vai ser muito
veloz, porque sofreu uma operação". Eu disse à mamãe que não precisarei correr tanto. Quando jogar beisebol, vou lançar para fora do campo. Então, poderei simplesmente
caminhar.
Edward J. McGrath, Jr.
"Uma Visão Excepcional da Vida
O livro de metas de Glenna
Em 1977 eu era uma mãe solteira com três filhas pequenas para criar, as prestações de uma casa e de um carro para pagar e uma necessidade de recuperar alguns sonhos.
Certa tarde, assisti a um seminário e ouvi um homem falar sobre o princípio do I + V = R (Imaginação mais Nitidez igual a Realidade). O orador mostrava que a mente
pensa em imagens, e não em palavras. E que se fotografarmos em nossas mentes o que desejamos, isso se tornará realidade.
Esse conceito acendeu uma veia criativa em meu coração. Eu conhecia a verdade bíblica de que Deus nos proporciona "os desejos de nosso coração" (Salmos 37:4) e que
"um homem é o que pensa em seu coração" (Provérbios 23:7). Estava determinada a tomar minha lista escrita de orações e transformá-la em imagens. Comecei a recortar
velhas revistas e a reunir fotografias que ilustrassem os "desejos de meu coração". Eu as organizei num caro álbum de fotografias e esperei ansiosamente.
Minhas imagens eram bastante específicas. Elas incluíam:
1. Um homem bonito.
2. Uma mulher vestida de noiva e um homem de smoking. 3. Buquês de flores (sou romântica).
• 179
• 178
4. Belas jóias com diamantes (eu pensei: Deus ama
David e Salomão, e eles foram duas das pessoas
ricas que já existiram).
5. Uma ilha no azul cintilante caribenho. 6. Uma linda casa.
7. Mobília nova.
8. Uma mulher que recentemente se tornara vice-presa dente de uma grande empresa. (Eu trabalhava p uma empresa que não tinha mulheres como diretoras, Queria ser
a primeira mulher vice-presidente daque empresa.)
Cerca de oito semanas depois, estava dirigindo numa auto-estrada na Califórnia, pensando na vida, às 10:30 d manhã. De repente um lindo Cadillac branco e vermelh
passou por mim. Olhei para o carro porque era um carro bonito. O motorista me olhou e sorriu, e eu correspondi porque sempre sorrio. Aí me vi em má situação. Alguma
vez você já fez isso? Tentei fingir que não tinha olhado. "Quem, eu? Eu não olhei para você!" Ele me seguiu durante quinze minutos. Quase morri de medo! Dirigi algumas
milhas, ele dirigiu algumas milhas. Estacionei, ele estacionou ... e, finalmente, me casei com ele!
No dia seguinte ao nosso primeiro encontro, Jim me enviou uma dúzia de rosas. Então, descobri que ele tinha um passatempo. Seu passatempo era colecionar diamantes.
Dos grandes! E ele estava procurando alguém para embelezar! Eu me ofereci! Namoramos durante mais ou menos dois anos e todas as segundas-feiras eu recebia dele uma
rosa vermelha de caule longo com uma mensagem de amor.
Cerca de três meses antes de nos casarmos, Jim me disse: "Descobri o lugar perfeito para irmos em nossa lua-de-mel. Iremos à Ilha de St. John, no Caribe.
E eu disse risonhamente:
- Eu jamais teria pensado nisso!
• 180
Só confessei a verdade sobre meu livro de imagens quando eu e Jim já estávamos casados há quase um ano. Foi quando estávamos nos mudando para nossa nova e linda
casa e mobiliando-a com a elegante mobília que eu havia imaginado. (Jim era distribuidor atacadista, na Costa Oeste, do fabricante de uma das mais belas linhas de
móveis.)
Por falar nisso, o casamento foi em Laguna Beach, Califórnia, com o vestido de noiva e o smoking de verdade. Oito meses depois de eu ter criado meu livro de sonhos,
tornei-me vice-presidente de Recursos Humanos da empresa
onde trabalhava.
De certa forma, isso soa como um conto de fadas, mas é absolutamente real. Jim e eu fizemos muitos outros "livros de imagens" desde que nos casamos. Deus preencheu
nossas vidas com as demonstrações desses poderosos princípios de fé no trabalho.
Decida o que quer em cada área de sua vida. Imagine nitidamente. Então, represente seus desejos criando seu próprio livro de metas. Transforme suas idéias em realidades
concretas através deste simples exercício. Não há sonhos impossíveis. E, lembre-se, Deus prometeu dar a seus filhos os desejos de seus corações.
Glenna Salsbury
#Mais um item assinalado na lista


Certa tarde chuvosa, um inspirado garoto de quinze anos chamado John Goddard sentou-se em frente à mesa da cozinha em sua casa em Los Angeles e escreveu as seguintes
palavras no alto de um bloco de anotações: "Minha Lista de Vida". Sob este título, escreveu 127 metas. Desde então, cumpriu 108 delas. Veja a lista dos objetivos
de Goddard apresentada a seguir. Não são metas simples ou fáceis. Incluem escalar as montanhas mais altas do mundo, explorar vastos cursos d'água, correr um quilômetro
e meio em cinco minutos, ler as obras completas de Shakespeare e toda a Enciclopédia Britânica.
Explorar
1/1. Rio Nilo
1/2. Rio Amazonas 1/3. Rio Congo
1/4. Rio Colorado
5. Rio Yang-tsé, China 6. Rio Negro 7. Rio Orinoco,
Venezuela
1/8. Rio Coco, Nicarágua
Estudar Culturas Primitivas em
1/ 9. Congo
1/10. Nova Guiné 1/11. Brasil 1/12. Borneo
1/13. Sudão (John quase foi en
terrado vivo durante uma
tempestade de areia) 1/14. Austrália
1/15. Kênia
s/16. Filipinas
r/17. Tanganica (agora
Tanzânia) V18. Etiópia V19. Nigéria r/20. Alaska

Escalar
21. Monte Everest
22. Monte Aconcágua,
Argentina
23. Monte McKinley
1/24. Monte Huascaran, Peru 1/25. Monte Kilimanjaro 1/26. Monte Ararat, Turquia 1/27. Monte Kênia
28. Monte Cook, Nova
Zelândia
1/29. Monte Popocatepetl,
México
1/30.0 Matterhorn 1/31. Monte Rainer 1/32. Monte Fuji 1/33. Monte Vesúvio 1/34. Monte Bromo, Java 1/35. Grand Tetons
V36. Monte Baldy, Califórnia x/37. Desenvolver carreiras em
Medicina e exploração
(fez um curso de inicia
ção na área de Medicina e
trata doenças entre tribos
primitivas)
38. Visitar todos os países do
mundo (faltam trinta)
V39. Estudar os índios Navaho
e Hopi
x/40. Aprender a pilotar um
avião
x/41. Montar a cavalo em Rose
Parade
Fotografar
x/42. Cataratas do Iguaçu,
Brasil
x/43. Cataratas do Vitória,
Rodésia (perseguido por
um javali no percurso) 1/44. Cataratas de Shuterland,
Nova Zelândia
1/45. Cataratas de Yosemite 1/46. Cataratas do Niágara 1/47. Retraçar as viagens de
Marco Polo e Alexandre,
o Grande
Exploração Subaquática
1/48. Recifes de corais da
Flórida
1/49. A Grande Barreira de
Recifes, Austrália (foto
grafado com um molusco
de 120 quilos)
1/50. Mar Vermelho 1/51. Ilhas Fiji 1/52. Bahamas
1/53. Explorar Okefenokee
Swamp e os Everglades
182 -
183 -
#Visitar
54. Pólos Norte e Sul

x/55. Grande Muralha da
China
x/56. Canais de Suez e do
Panamá
x/57. Eastem Island x/58. Ilhas Galápagos
x/59. Cidade do Vaticano (viu o
Papa)
x/60. Taj Mahal x/61. Torre Eiffel x/62. Gruta Azul
x/63. Torre de Londres x/64. Torre inclinada de Pisa x/65. Poço Sagrado de
Chichen-ltza, México x/66. Escalar a Pedra Ayers na
Austrália
67. Acompanhar o Rio Jordão
desde o Mar da Galiléia
até o Mar Morto

Nadar em
W/68. Lago Vitória
s/69. Lago Superior x/70. Lago Tanganica
x/71. Lago Titicaca, América do
Sul
x/72. Lago Nicarágua

Realizar
v/73. Tomar-me um Escoteiro da Águia s/74. Andar de submarino
V75. Pousar e levantar vôo
num porta-aviões
x/76. Voar num pequeno bala( -
dirigível de ar quente e
planador
x/77. Montar um elefante, um
camelo, um avestruz e
um potro xucro (Oeste
dos E.U.A.)
V78. Mergulhar a 12 metros de
profundidade e prender
a respiração por 2,5
minutos embaixo d'água x/79. Pegar uma lagosta de
cinco quilos e achar uma
concha de vinte centíme
tros.
V80. Tocar flauta e violino x/81. Datilografar 50 palavras
por minuto
x/82. Saltar de pára-quedas x/83. Aprender a esquiar na
água e na neve.
V84. Sair em missão eclesiásti
ca
V85. Seguir a Trilha de John
Muir
õ/86. Estudar remédios nativos
e relançar os úteis.
V87. Obter troféus fotográficos
de um elefante, leão,
rinoceronte, cheetah,
búfalo e baleia x/88. Aprender hipismo V 89. Aprender jiu-jitsu
r/ 90. Lecionar um curso superior
~/ 91. Assistir a uma cerimônia de cremação em Bali
~/ 92. Explorar as profundezas do mar
93. Aparecer num filme do Tarzan (este sonho ele considera agora como um irrelevante sonho da infância de um menino)
94. Ter uri cavalo, um chimpanzé, um guepardo e um coiote (ainda não tem o chimpanzé e o guepardo)
95. Tornar-se um operador de radio amador
r 96. Construir o próprio telescópio
* 97. Escrever um livro (sobre a viagem ao Nilo)
* 98. Publicar um artigo na revista National Geographic
* 99. Saltar uma altura de 1,5 metro
x/100. Saltar uma distância de
4,5 metros
x/101. Correr um quilômetro e
meio em cinco minutos
x/102. Pesar 70 quilos despido
(ainda pesa)
V103. Fazer 200 agachamentos
e 20 flexões
V104. Aprender francês, espanhol e árabe
105. Estudar lagartos na ilha Komodo (o barco quebrou a 32 quilômetros da ilha)
V106. Visitar o local de nascimento do avô Sorenson na Dinamarca
x/107. Visitar o local de nascimento do avô Goddard na Inglaterra
/108. Viajar a bordo de um navio cargueiro como marinheiro
109. Ler toda a Enciclopédia Britânica (leu partes extensas de cada volume)
x/110. Ler a Bíblia do começo ao fim
VI 11. Ler as obras de Shakespeare, Platão, Aristóteles, Dickens, Thoreau, Poe, Rosseau, Bacon, Hemingway, Twain, Burroughs, Conrad, Talmage, Tolstoi, Longfellow,
Keats, Whittier e Emerson (não leu todas as obras de todos esses autores)
VI 12. Familiarizar-me com as composições de Bach,
• 184
• 185
Beethoven, Debussy, Ibert, Mendelssohn, Lalo, Rimsky-Korsakov, Respighi, Liszt, Rachmaninov, Stravinsky, Toch, Tchaikovsky, Verdi
j/113. Tornar-me proficiente no uso de um avião, motocicleta, trator, prancha de surf, rifle, pistola, canoa, microscópio, bola de futebol, bola de basquetebol,
arco e flecha, laço e bumerangue
x/114. Compor músicas
VI 15. Tocar Clair de Lune ao
piano
VI 16. Assistir a cerimônia de caminhar sobre brasas (em Bali e no Suriname)
VI 17. Extrair veneno de uma cobra (mordido por uma cascavel durante uma sessão de fotografias)
I18. Acender um fósforo um rifle calibre 22
v4119. Visitar um estúdio de cinema
x/120. Escalara pirâmide d Quéops
V121. Tornar-me membro Clube dos Explorado
e Clube dos Aventurei. ros
x/122. Aprender a jogar pólo
/123. Viajar pelo Grand Canyon a pé e de bano
x/124. Dar a volta ao mundo

(quatro vezes)
125. Visitar a lua ("Algum dia, se Deus quiser')
/126. Casar-me e ter filhos (tem cinco filhos)
127. Viver para ver o século 21 (terá 75 anos)
Preste atenção, benzinho,

eu sou seu amor


É melhor estar preparado para uma oportunidade e não ter nenhuma, do que ter uma oportunidade e não estar preparado.
Whitney Young, Jr.
• 186
Les Brown e sëu irmão gêmeo foram adotados por Mamie Brown, funcionária de cozinha e empregada doméstica, logo depois de seu nascimento, num bairro miserável de
Miami.
Devido à sua hiperatividade e tagarelice incessante, Les foi colocado em classes de educação especial para deficientes durante todo o segundo grau.
Depois da formatura, tornou-se funcionário do departamento de saneamento em Miami Beach. Porém sonhava ser disc jockey.
A noite, levava um rádio transístor para a cama, onde ouvia os DJs locais e seus jargões. Criou uma estação de rádio imaginária em seu pequeno quarto de piso gasto
de vinil. Uma escova de cabelos lhe servia de microfone enquanto ele praticava sua gíria, apresentando discos para seus ouvintes fantasmas.
• 187
Sua mãe e seu irmão podiam ouvi-lo através das p finas e gritavam para ele que parasse de tagarelar e fosse mir. Mas Les não os ouvia. Estava envolvido em seu pró
mundo, vivendo um sonho.
Certo dia, Les foi à estação local de rádio durante seu h rário de almoço do serviço de cortador de grama da cidad Entrou no escritório do gerente da estação e disse
a ele queria ser disc jockey.
O gerente observou aquele jovem desalinhado de ma
cão e chapéu de palha e perguntou:
- Tem alguma experiência em radiodifusão? Les respondeu:
- Não, senhor.
- Bem, filho, então temo que não tenhamos um trabalh para você.
Les agradeceu-o educadamente e saiu.
O gerente da estação supôs ter visto aquele rapaz pela primeira e última vez. Mas subestimou a profundidade d compromisso de Les Brown e sua meta. Veja bem, Les
tinha um propósito maior do que o simples desejo de ser disc jockey. Queria comprar uma casa melhor para sua mãe adotiva, a quem amava profundamente. O trabalho
como disc jockey era somente um passo em direção a seu objetivo.
Mamie Brown ensinara Les a perseguir seus sonhos, e ele tinha certeza que conseguiria um emprego naquela estação de rádio, a despeito do que o gerente havia dito.
Assim, Les voltou à estação todos os dias durante uma semana, perguntando se havia alguma vaga. Finalmente o gerente da estação desistiu e contratou-o como contínuo
- sem salário. No início ele servia café ou comprava almoço e jantar para os DJs que não podiam sair do estúdio. Finalmente, seu entusiasmo pelo trabalho dos disc
jockeys acabou conquistando sua confiança e ele começou a dirigir os Cadillacs que buscavam celebridades como The Temptations, Diana Ross ou The Supremes. Mal sabiam
eles que o jovem Les não
tinha carteira de motorista.
Les fazia tudo que lhe pedissem na estação - e mais. Quando estava com os DJs, imitava seus movimentos de lnão no painel de controle. Permanecia nas salas de controle
e aprendia o que podia, até que lhe pedissem para sair. Então, de volta ao seu quarto, à noite, praticava e se preparava para a oportunidade que sabia que surgiria.
Numa tarde de sábado, enquanto Les estava na estação, um DJ chamado Rock estava bebendo no ar (durante a programação). Les era a única outra pessoa no prédio, e
percebeu que Rock estava se embriagando e certamente arranjaria problemas. Les ficou por perto. Andava de um lado para o outro em frente à janela da cabina de Rock.
E, enquanto espreitava, dizia a si mesmo: "Beba, Rock, beba!"
Les estava faminto, e estava pronto. Teria corrido rua abaixo por mais bebida se Rock lhe tivesse pedido. Quando o telefone tocou, Les se lançou sobre ele. Era aquele
gerente da estação, como sabia que seria.
- Les, é o Sr. IQein.
- Sim - disse Les. - Eu sei.
- Les, acho que Rock não conseguirá terminar seu programa.
- Sim, senhor, eu sei.
- Poderia ligar para um dos outros DJs e pedir-lhe que o substitua?
- Sim, senhor. Vou ligar.
Mas, quando desligou o telefone, Les disse a si mesmo: "Ele deve achar que sou maluco."
Les discou o telefone, mas não para chamar outro DJ. Telefonou para sua mãe e para sua namorada.
- Vocês todos, vão para a varanda da frente e liguem o rádio porque estou entrando no ar! - disse ele.
Esperou quinze minutos antes de ligar para o gerente geral.
- Sr. IQein, não consigo encontrar ninguém - disse Les.
O Sr. Klein então perguntou:
• 188
189
- Rapaz, sabe usar os controles no estúdio?
- Sim, senhor - respondeu Les.
Les voou para dentro da cabine, afastou delicada Rocle para o lado e sentou-se em frente ao toca-discos. pronto. E ávido. Ligou o botão do microfone e disse:
- Atenção! Aqui quem fala é LB, o Fera do Disco. houve ninguém antes de mim e não haverá ninguém d de mim. Isso faz de mim o único e eterno. Jovem e soli cheio de
amor para dar. Registrado, de boa fé, indu velmente qualificado para trazer-lhe satisfação e muita Preste atenção benzinho, eu sou seu amoo-o-or!
Com essa estréia, Les estava pronto. Surpreendeu o blico e o gerente geral. Daquele começo fervoroso, Les p para uma carreira de sucesso na radiodifusão, em poli
oratória e televisão.
• 190
Quando eu e minha esposa Maryanne estávamos construindo nosso salão de cabeleireiro em Greenspoint Mall, há treze anos, um vietnamita passava no salão todos os dias
para nos vender rosquinhas. Ele quase não falava inglês, mas era sempre simpático e, por meio de sorrisos e mímica, ficamos nos conhecendo. Seu nome era Le Van Vu.
Durante o"dia ele trabalhava numa padaria, e à noite ele e a esposa ouviam cassetes para aprender inglês. Mais tarde fiquei sabendo que eles dormiam em sacas de
serragem no chão do quarto dos fundos da padaria.
No Vietnã, a família Van Vu era uma das mais abastadas do Sudeste da Ásia. Possuíam quase um terço do Vietnã do Norte, incluindo enormes complexos industriais e
propriedades imobiliárias. No entanto, depois que seu pai foi brutalmente assassinado, Le mudou-se para o Vietnã do Sul com sua mãe, onde freqüentou a escola e finalmente
tornou-se advogado.
Como seu pai fez antes dele, Le prosperou. Vislumbrou uma oportunidade de construir prédios para acomodar a sempre crescente presença norte-americana no Vietnã do
Sul e logo tornou-se um dos construtores mais bem-sucedidos do país.
Disposto a pagar o preço
Em viagem ao norte, no entanto, Le foi capturado vietnamitas do norte e jogado na prisão por três anos. pou, matando cinco soldados, e voltou para o Vietnã onde
foi preso novamente. O governo do Vietnã do pôs que ele fosse "informante" do Norte.
Depois de cumprir pena na prisão, Le saiu e com uma empresa de pesca, finalmente tornando-se o maio bricante de conservas do Vietnã do Sul.
Quando soube que as tropas norte-americanas e o p al da embaixada estavam prestes a sair de seu país, tom decisão de mudar de vida.
Pegou todo o ouro que acumulara, carregou com ele u de suas embarcações de pesca e navegou com sua esposa os navios americanos no porto. Então, trocou todos os bens
pela passagem livre do Vietnã às Filipinas, onde ele sua esposa foram recebidos num campo de refugiados.
Depois de ter acesso ao presidente das Filipinas, L convenceu a transformar uma de suas embarcações em p queiro e lá estava ele novamente nos negócios. Dois an depois,
antes de deixar as Filipinas a caminho da Améri seu maior sonho, Le havia desenvolvido, com sucesso, to a indústria pesqueira das Filipinas.
Mas a caminho da América, Le ficou deprimido e desanimado quanto a ter que recomeçar novamente do nada. Sua esposa conta como o encontrou perto da murada do navio
prestes a se lançar ao mar.
- Le - disse ela - se você saltar, o que será de mim? Estamos juntos há tanto tempo, passamos por tantas coisas. Podemos fazer isso juntos.
Era todo o estímulo que Le Van Vu precisava.
Quando ele e sua esposa chegaram a Houston, em 1972 estavam "falidos" e não falavam inglês. No Vietnã, família cuida de família, e Le e sua esposa se viram abrigados
no quarto dos fundos da padaria de seu primo em Greenspoint Mall. Estávamos construindo nosso salão a apenas sessenta metros de distância.
Agora, como eles dizem, aqui vai a "mensagem' desta
história:
p primo de Le ofereceu a ele e a sua esposa emprego na padaria. Deduzidos os impostos, Le levaria para casa US$175 por semana, e sua esposa, US$125. Em outras palavras,
sua renda anual total seria US$15.600. Além disso, seu primo ofereceu vender-lhes a padaria quando pudessem dar US$30.000 de entrada. O primo financiaria o restante
com uma promissória de US$90.000.
Aqui está o que Le e sua esposa fizeram:
Mesmo com uma renda de US$300 semanais, resolveram continuar morando no quarto dos fundos. Durante dois anos, mantinham-se limpos tomando banho com esponjas nos
banheiros dos shoppings.
Durante dois anos, sua dieta compreendeu quase inteiramente mercadorias da padaria. A cada ano, durante dois anos, sobreviveram com um total de, é isso mesmo, US$600,
economizando US$30.000 para o pagamento da entrada.
Le depois explicou seu raciocínio:
- Se alugássemos um apartamento, que poderíamos pagar com US$300 por semana, teríamos que pagar o aluguel. Então, é claro, teríamos que comprar a mobília. Depois,
teríamos que pagar o transporte de ida e volta para o trabalho, e assim teríamos que comprar um carro. Então, teríamos que comprar gasolina para o carro e fazer
seguro. E, provavelmente, iríamos querer visitar lugares de carro e precisariamos comprar roupas e artigos de toalete. Assim, eu sabia que, se alugasse o apartamento,
nunca conseguiríamos juntar os US$30.000.
Agora, se você pensa que já sabe tudo a respeito de Le, deixe-me dizer-lhe uma outra coisa: depois que ele e sua esposa economizaram os US$30.000 e compraram a padaria,
Le sentou-se novamente com a esposa para uma conversa séria. Ainda deviam US$90.000 a seu primo, disse, e por mais difíceis que tivessem sido os dois últimos anos,
teriam que conti
• 192
• 193
#nuar a viver no quarto dos fundos da padaria durante um ano.
Tenho orgulho de lhe contar que, em um ano, meu go e mentor, Le Van Vu, e sua esposa, economizando camente cada níquel do lucro do negócio, pagaram a pro sova de
US M.000. E que, em apenas três anos, eram d de um negócio extremamente lucrativo, livre e sem dí '
Então, e somente então, os Van Vu arrumaram seu meiro apartamento. Até hoje, continuam a economizar regularidade, vivem de um percentual extremamente queno de sua
renda e, é claro, sempre pagam em dinh por qualquer de suas aquisições.
Você acha que Le Van Vu é milionário hoje em dia?
Fico feliz em lhe dizer que é muito mais que isso.
Todo mundo tem um sonho
• 194
Há alguns anos, aceitei uma atribuição numa cidade do sul para trabalhar numa obra assistencial do governo. O que eu queria era mostrar que todo mundo tem capacidade
de ser auto-suficiente, basta que essa capacidade seja ativada. Pedi à cidade que selecionasse um grupo de pessoas da obra assistencial, pessoas de diferentes grupos
raciais e famílias. Assim, eu veria essas pessoas, em grupo, durante três horas, todas as sextas-feiras. Pedi também uma pequena quantia em dinheiro para o trabalho,
conforme minha necessidade.
A primeira coisa que eu disse depois de apertar as mãos de todos foi: "Quero saber quais são seus sonhos." Todos me olharam como se eu fosse alguma desequilibrada.
- Sonhos? Não temos sonhos.
Eu disse:
- Bem, o que aconteceu quando você era criança? Não tinha algo que queria fazer?
Uma mulher me disse:
-Não sei para que servem os sonhos. Os ratos estão comendo meus garotos.
- Oh - eu disse. - Isso é terrível. Não, é claro, você está muito envolvida com os ratos e seus garotos. Como se pode resolver isto?
• 195
- Bem, eu poderia utilizar uma nova porta de tela que há buracos na minha.
Perguntei:
- Há alguém aqui que saiba consertar uma porta tela?
Havia um homem no grupo, que disse:
-Eu costumava fazer coisas assim há muito tempo, mas agora tenho uma terrível dor nas costas. No entanto, vos tentar.
Eu disse a ele que tinha algum dinheiro, se ele iria até a loja comprar um pouco de tela para consertar a porta da senhora.
- Acha que pode fazer isso? - Sim, vou tentar.
Na semana seguinte, quando o grupo se sentou, eu disse: - Bem, sua porta de tela está consertada? - Oh, sim - ela disse.
- Podemos então começar a sonhar, não podemos? Ela deu um meio sorriso.
Eu disse ao homem que havia feito o trabalho: - Como se sente?
Ele disse:
-Bem, sabe, é muito engraçado. Estou começando a me sentir muito melhor.
... Aquilo ajudou o grupo a começar a sonhar. Estes aparentemente pequenos sucessos permitiram que o grupo visse que os sonhos não eram insanos. Estes pequenos passos
começaram a fazer as pessoas sentirem que algo podia realmente acontecer.
Comecei a perguntar a outras pessoas sobre seus sonhos. Uma mulher contou que sempre quisera ser secretária. Eu disse:
- Bem, o que a impede? (Esta é sempre a minha próxima pergunta.)
Ela disse:
- Tenho seis filhos e ninguém que tome conta deles enquanto estou fora.
- Vamos ver - eu disse. - Há alguém aqui que tome conta de seis crianças por um dia ou dois na semana enquanto esta mulher faz um treinamento na faculdade da comunidade?
Uma mulher disse:
- Também tenho filhos, mas poderia fazer isso.
- Mãos à obra - eu disse. Então criou-se um plano e a mulher foi para a escola.
Todos encontraram algo. O homem que instalou a porta de tela tornou-se faz-tudo. A mulher que tomou conta das crianças transformou essa atividade em profissão. Em
doze semanas, todas aquelas pessoas estavam fora da obra assistencial. E eu não fiz isso uma única vez, tenho feito muitas
vezes.
Virgínia Satir
• 196
197
Siga seu sonho
Tenho um amigo, chamado Monty Roberts, que tem unr° rancho em San Isidro. Ele me emprestou sua casa para reali-? zar eventos com a finalidade de levantar dinheiro
para programas em prol dos jovens em perigo.
Da última vez em que estive lá, ele me apresentou dizendo:
- Quero dizer-lhes porque deixo Jack usar minha casa. Isso remonta a uma história de um jovem rapaz, filho de um treinador de cavalos itinerante, que vivia de estrebaria
em estrebaria, de pista de corridas em pista de corridas, de fazenda em fazenda e de rancho em rancho, treinando cavalos. Conseqüentemente, o curso de segundo grau
do garoto era constantemente interrompido. Quando estava no último ano, lhe pediram que escrevesse sobre o que queria ser e fazer quando crescesse.
"Naquela noite, ele escreveu sete páginas sobre seu objetivo de algum dia possuir um rancho de cavalos. Descreveu seus sonhos com riqueza de detalhes e até fez o
desenho de
um rancho de oitenta hectares, mostrando a localização de todos os prédios, as estrebarias e a pista. Então, desenhou em detalhes a planta baixa de uma casa de quatrocentos
metros
quadrados, que edificaria nos oitenta hectares do rancho de seus sonhos.
"Ele colocou seu coração no projeto e no dia seguinte entregou-o ao professor. Dois dias depois recebeu sua folha de volta. Na página frontal havia um grande F vermelho
e uma mensagem que dizia: 'Procure-me depois da aula."'
O garoto do sonho foi ver o professor depois da aula e perguntou:
- Por que recebi um F?
O professor disse:
- Este é um sonho irreal para um rapaz como você. Você não tem dinheiro, vem de uma família itinerante. Não tem recursos. Ter um haras requer muito dinheiro. Você
tem que comprar a terra. Tem que comprar os primeiros animais e, mais tarde, terá que pagar impostos enormes. Não há como você possa realizar isso algum dia. - E
o professor acrescentou: - Se reescrever estas folhas com um objetivo mais realista, reconsiderarei sua nota.
O garoto foi para casa e pensou muito naquilo. Perguntou a seu pai o que deveria fazer. Seu pai disse:
- Olhe, filho, você tem que decidir isso sozinho. No entanto, acho que é uma decisão muito importante para você.
Finalmente, depois de sentar-se diante do trabalho por uma semana, o garoto devolveu o mesmo papel, sem fazer nenhuma mudança. E declarou:
- Pode ficar com seu F, que eu ficarei com meu sonho.
Monty voltou-se para o grupo e disse:
- Estou lhes contando esta história porque estão sentados em minha casa de quatrocentos metros quadrados, bem no meio de meu haras de oitenta hectares. Ainda tenho
aquele trabalho escolar emoldurado em cima da lareira.
E acrescentou:
-A melhor parte da história é que, há dois verões, aquele mesmo professor trouxe trinta garotos para acampar no meu rancho durante uma semana. Quando estava indo
embora, o professor disse:
• 198 -
• 199
#- Olhe Monty, posso dizer-lhe isso agora. Quando
seu professor eu era um tip d ldã d ,oearoe sonhos .
aqueles anos, roubei os sonhos de uma porção de alu
P01;' I.
men e você teve jífii seus.,uzo sucente para não desistir Não deixe que ninguém roube seus sonhos. Siga seu c
ração não importa o que at
,coneça.
• 200
A caixa
Quando estava no último ano da faculdade, fui para casa nos feriados de Natal prevendo quinze dias cheios de diversão com meus dois irmãos. Estávamos tão agitados
por estarmos juntos, que nos oferecemos para tomar conta da loja para que meu pai e minha mãe pudessem tirar seu primeiro dia de folga em anos. Um dia antes que
meus pais fossem para Boston, meu pai me puxou silenciosamente de lado e me levou ao quartinho atrás da loja. O quarto era tão pequeno que só comportava um piano
e uma cama embutida. De fato, quando se puxava a cama para fora, ela enchia o quarto e podia-se sentar aos pés dela para tocar piano. Papai estendeu a mão e retirou
de trás do piano uma caixa de cigarros. Abriu-a e mostrou-me uma pilha de artigos de jornal. Eu havia lido tantas histórias de detetive de Nancy Drew que fiquei
excitada e de olhos arregalados quando vi a caixa de recortes escondida.
- O que são? - perguntei
Papai respondeu seriamente:
- São artigos que escrevi e foram publicados e algumas cartas ao editor.
Ao começar a ler, observei, no final de cada artigo cuidadosamente recortado, o nome Walter Chapman.
201
- Por que não me disse que fez isso? - perguntei.
- Porque não queria que sua mãe soubesse. Ela sena me disse que como eu não tinha uma boa formação, não veria tentar escrever. Eu também queria me candidatar a gum
cargo público, mas ela me disse que eu não deveria te tar. Acho que ela tinha medo de ficar envergonhada se perdesse. Eu só queria tentar para me divertir. Vi que
pod escrever sem que ela soubesse, e assim fiz. Quando cada ite era publicado, eu o recortava e escondia nesta caixa. Eu sabià que algum dia mostraria a alguém,
e esse alguém é você.
Ele me olhava enquanto eu passava os olhos pelos arti, gos e, quando olhei para cima, seus grandes olhos azuis estavam úmidos.
- Acho que tentei algo grande demais desta vez - ele acrescentou.
- Escreveu alguma outra coisa?
- Sim, enviei algumas sugestões para a revista da nossa igreja sobre como melhor conduzir a seleção para a nomeação do comitê nacional. Já faz três meses que as
enviei. Acho que tentei algo grande demais.
Este era um aspecto tão novo do meu pai, um homem que gostava de se divertir, que eu quase não sabia o que dizer, então arrisquei:
- Talvez ainda saia.
- Pode ser, mas não espere demais.
Papai deu um sorrisinho e uma piscadela para mim, e então fechou a caixa de cigarros e enfiou-a no espaço atrás do piano.
Na manhã seguinte, nossos pais partiram no ônibus para Haverhill Depot, onde tomaram um trem para Boston. Jim, Ron e eu cuidávamos da loja e eu pensava na caixa.
Eu nunca soubera que meu pai gostava de escrever. Não contei a meus irmãos, era um segredo entre meu pai e eu. O Mistério
da Caixa Oculta.
À noitinha, naquele dia, olhei pela janela da loja e vi minha mãe descer do ônibus - sozinha. Ela cruzou a praça e atravessou a loja rapidamente.
-- Onde está o papai?
- Seu pai morreu - disse ela, sem lágrimas.
Descrentes, nós a seguimos para a cozinha onde ela nos contou que estavam andando na estação do Metrô de Park Street, em meio a multidões de pessoas, quando papai
caíra ao chão. Uma enfermeira se inclinara sobre ele, olhara para mamãe e dissera simplesmente:
- Está morto.
Mamãe permanecera de pé ao seu lado, desorientada, sem saber o que fazer, enquanto as pessoas saltavam sobre ele em sua pressa para chegar ao metrô. Um padre disse:
- Vou chamar a polícia - e desaparecera.
Mamãe guardou o corpo de papai durante mais ou menos uma hora. Finalmente, uma ambulância chegou e levou os dois ao único necrotério da cidade, onde mamãe teve que
revistar seus bolsos e remover seu relógio. Ela voltara sozinha no trem, e depois no ônibus local para casa. Mamãe contou-nos a chocante história sem derramar sequer
uma lágrima. Não demonstrar emoções sempre fora para ela uma questão de disciplina e motivo de orgulho. Nós também não choramos e nos revezamos para aguardar os
fregueses.
Um freguês assíduo perguntou:
- Onde está o velho senhor esta noite?
- Morreu - respondi.
- Oh, que pena! - e foi embora.
Eu nunca pensara nele como velho, e fiquei louca com a pergunta, mas ele tinha setenta anos e mamãe apenas cinqüenta. Ele sempre fora saudável e alegre, cuidara
da minha frágil mãe sem reclamar, e agora se fora. Acabaram-se os assobios, os hinos cantados enquanto ele abastecia as prateleiras. O "velho" se fora.
Na manhã do funeral sentei-me à mesa na loja abrindo cartões de pêsames e colando-os num álbum de recortes,
• 202
203
#quando notei a revista da igreja sobre a pilha. Normalmen eu não teria aberto o que julgava uma estúpida publica religiosa, mas talvez aquele artigo sagrado estivesse
lá estava.
Levei a revista para o quartinho, fechei a porta e explodi em lágrimas. Eu havia sido valente, mas ver as corajosas re. comendações de papai para a convenção nacional
publicai das foi mais do que eu podia suportar. Li e chorei, e reli. Pu xei a caixa de trás do piano e sob os recortes encontrei ume carta de duas páginas de Henry
Cabot Lodge para meu pai, agradecendo as sugestões para sua campanha.
Não contei a ninguém sobre minha caixa. Permaneceu um segredo.
Estímulo
Alguns dos maiores sucessos da história seguiram-se a uma palavra de estímulo ou a um ato de confiança de uma pessoa amada ou de um amigo confiável. Se não fosse
por uma esposa confiante, Sophia, poderíamos não ter incluído na lista dos grandes nomes da literatura o de Nathaniel ~thorne. Quando Nathaniel, de coração partido,
foi para casa para contar à sua esposa que era um fracasso e havia sido demitido de seu emprego na alfândega, ela o surpreendeu com uma exclamação de alegria.
- Agora - disse ela triunfante - você pode escrever seu livro!
- Sim - replicou o homem, com prudência - e de que viveremos enquanto eu estiver escrevendo?
Para seu espanto, ela abriu uma gaveta e tirou uma quantia considerável de dinheiro.
- Onde foi que você conseguiu isso? - exclamou ele.
- Eu sempre soube que você era um homem genial - ela lhe disse. - Eu sabia que algum dia você escreveria uma obra de arte. Assim, toda a semana, eu economizava um
pouquinho do dinheiro que você me dava para as despesas


• 205
• 204
#da casa. E aqui há o suficiente para nos mantermos durante um ano inteiro.
De sua confiança surgiu um dos maiores romances da literatura norte-americana, The Scarlett Letter.
Walt Jones


A grande questão é se você será capaz de dizer um sincero sim à sua aventura.
Joseph CampbA
Ninguém é prova maior de que o sucesso é uma jornada e não um fim, do que aquelas pessoas sempre viçosas e em crescimento constante que não permitem que a idade
impeça suas realizações. Florence Brooks juntou-se ao Corpo da Paz quando tinha 64 anos de idade. Gladys Clappison viveu no dormitório da Universidade de louva enquanto
trabalhava em sua tese, aos 82 anos. E Ed Stitt, aos 87, trabalhou no programa de cursos universitários comunitários em Nova Jersey. Ed disse que isso evitava que
ele se contaminasse com a doença "da velha guarda" e mantinha seu cérebro vivo.
Provavelmente, em todos esses anos, ninguém despertou mais minha imaginação do que Walt Jones, de Tacoma, Washington. Walt sobreviveu à sua terceira esposa com quem
estava casado há 52 anos. Quando ela morreu, alguém disse a Walt que devia ter sido triste perder uma companheira de tantos anos. Sua resposta foi:
206
• 207
- Bem, é claro que foi, mas, mais uma vez, talvez isso nha sido pelo seu bem.
- Por quê?
- Não quero ser negativo ou dizer algo que deponha contra a maravilhosa personalidade de minha esposa, ma na última década, ela estava me consumindo.
Quando lhe pediram que explicasse, ele prossegw acrescentando:
- Ela simplesmente nunca queria fazer nada, tornou-se retrógrada. Há dez anos, quando tinha 94 anos, eu disse minha esposa que nunca tínhamos viajado para lugar
ai gum, exceto para o belo nordeste do Pacífico. Ela me perguntou o que eu tinha em mente, e eu lhe disse que pensava em comprar uma casa sobre rodas e que talvez
pudéssemos visitar todos os 48 estados norte-americanos.
"O que você acha disso?"
Ela disse:
-Acho que você perdeu o juízo, Walt.
- Por que você diz isso? - perguntei.
- Seríamos assaltados. Morreríamos e não seríamos
nem velados.
Então ela me perguntou:
- Quem vai dirigir, Walter?
- Eu, Lambie - respondi.
- Você vai nos matar! - ela disse.
Eu queria deixar pegadas nas areias do tempo antes de me retirar, mas não se pode deixar pegadas nas areias do tempo quando se fica o tempo todo com o traseiro sentado...
a não ser que se queira deixar "traseiradas" nas areias do tempo.
- E agora que ela se foi, Walt, o que pretende fazer?
- O que pretendo fazer? Enterrei a minha velha garota e comprei uma casa sobre rodas para mim. Estamos em 1976 e pretendo visitar todos os 48 estados para comemorar
nosso bicentenário.
208
Walt foi a 43 dos estados naquele ano vendendo antigui
dades e souvenirs. Quando lhe perguntaram se pegava ca
ronistas, ele disse:
- De jeito nenhum. A maioria deles o acertarão bem na
cabeça por qualquer micharia ou o processarão por alta velo
cidade se você se meter em algum acidente.
Walt tinha sua casa sobre rodas há alguns meses apenas
e sua esposa havia sido enterrada há apenas seis meses,
quando foi visto descendo a rua com uma senhora bastante
atraente, de 62 anos, ao seu lado.
- Walt? - perguntaram-lhe. - Sim - respondeu ele.
- Quem era a mulher sentada ao seu lado? Quem é essa
sua nova amiga, Walt?
Ao que ele respondeu: - Sim, ela é. -Ela é o quê? - Minha amiga.
- Amiga? Walt, você foi casado três vezes, você tem 104
anos de idade. Essa mulher deve ter quatro décadas a menos
que você.
- Bem - respondeu ele. - Logo descobri que um ho
mem não pode viver sozinho numa casa sobre rodas.
- Compreendo, Walt. Provavelmente você sente falta de
alguém com quem conversar, depois de ter uma companhei
ra por todos estes anos.
Sem hesitar, Walt replicou:
- Eu sinto falta daquilo também.
- Também? Você está insinuando que tem um interesse
romântico?
- Bem, eu poderia. - Walt...
- O quê? - ele disse.
- Há um tempo na vida em que se dispensa esse tipo de
coisa.
209
- Sexo? - respondeu ele.
- Sim.
- Por quê?
- Bem, porque esse tipo de esforço poderia ser preju
ciai à saúde.
Walt considerou a questão e disse:
- Bem, se ela morrer, morreu.
Em 1978, com uma inflação de dois dígitos esquentar o país, Walt foi um dos principais investidores no desenv vimento de um prédio de apartamentos. Quando lhe p
guntaram por que estava tirando seu dinheiro de uma cor bancária segura e colocando-o num empreendimento imo liário, ele disse:
- Não ouviu dizer? São tempos de inflação. Você te que investir em bens imobiliários para que seu dinheiro se valorize e esteja aí anos depois, quando você realmente
precisar.
Que tal essa afirmação como pensamento positivo?
Em 1980, ele vendeu grande parte de suas propriedades ao redor de Pierce County, Washington. Muitas pessoas pensaram que Walt estivesse batendo as botas, mas ele
vendera as propriedades para ter fluxo de caixa.
- Fiz um depósito pequeno e um contrato de 30 anos. Terei mil dólares por mês até os 138 anos.
Ele comemorou seu centésimo décimo aniversário no programa de Johnny Carson. Estava resplandescente com sua barba branca e seu chapéu preto, parecendo-se um pouco
com o recente Coronel Sanders, e Johnny disse:
- É muito bom tê-lo aqui conosco, Walt.
- É bom estar em qualquer lugar quando se tem 110 anos, Johnny.
- 110?
-110.
-1-1-0?
-210
- Qual é o problema, Carson, está perdendo a audição? Foi o que eu disse. É a minha idade. Qual é a grande novidade?
- A novidade é que daqui a três dias você será duas vezes mais velho do que eu.
Isso lhe chamaria a atenção, não é? Cento e dez anos de idade - um homem viçoso e em crescimento. Walt aproveitou a deixa e rapidamente devolveu a Johnny.
- Quantos anos você teria se não soubesse sua data de nascimento e não houvesse nenhum para deprimi-lo uma vez por ano? Nunca ouviu falar em gente deprimida por
causa de uma data do calendário? Ai, meu Deus, cheguei ao meu trigésimo aniversário. Estou tão deprimido, estou em cima do muro. Meu Deus, cheguei aos quarenta.
Todos os membros de minha equipe de trabalho se vestiram de preto e mandaram um carro fúnebre me apanhar. Meu Deus, tenho cinqüenta anos. Meio século de idade. Enviaram-me
rosas murchas com teias de aranha. Johnny, quem disse que uma pessoa deve se virar de lado e morrer aos 65 anos? Tenho amigos que prosperaram mais depois dos 75.
E como conseqüência de um pequeno investimento que fiz num condomínio há alguns anos, ganhei mais dinheiro dos 105 anos para cá do que jamais ganhara. Posso dar-lhe
minha definição de depressão, Johnny?
- Vá em frente.
- Deixar passar o aniversário.
Que a história de Walt Jones possa nos inspirar a todos para que permaneçamos viçosos e em crescimento todos os dias de nossas vidas.
Bob Moawad
Você é suficientemente forte para

agüentar críticas?
Correndo riscos
O valor não está no crítico, nem naquele que aponta a falha do forte ou mostra de que forma uma pessoa poderia ter feito algo melhor. O crédito pertence àquele que
está de fato na arena, cujo rosto está marcado pela poeira, pelo suor e pelo sangue, que luta valentemente, que tenta muitas vezes sem alcançar, pois não há esforço
sem tentativa e dificuldades, que conhece a verdadeira devoção, que se esgota por uma causa valiosa, e que sabe que, na melhor das hipóteses, conhecerá a alta realização
do triunfo, e que, na pior, se fracassar com coragem, seu lugar jamais será junto das frias e tímidas almas que desconhecem vitória ou derrota.
Theodore Roosevelt
Duas sementes descansam lado a lado no solo fértil da primavera.
A primeira semente disse:
- Eu quero crescer! Quero enviar minhas raízes às profundezas do solo e fazer meus brotos rasgarem a superfície da terra... Quero abrir meus botões como bandeiras
anunciando a chegada da primavera... Quero sentir o calor do sol em meu rosto e a bênção do orvalho da manhã em minhas pétalas!
E assim ela cresceu.
A segunda semente disse:
- Tenho medo. Se eu enviar minhas raízes às profundezas, não sei o que encontrarei na escuridão. Se rasgar a superfície dura, posso danificar meus brotos... e se
eu deixar que meus botões se abram e um caracol tentar comê-los? E se abrir minhas flores e uma criança me arrancar do chão? Não é muito melhor esperar até que eu
me sinta segura?
212•
213•
#E assim ela esperou.

Uma galinha ciscando no solo da primavera recent procura de comida, encontrou e rapidamente co a semente à espera de segurança.


MORAL DA HISTÓRIA
Os que se recusam a correr riscos e crescer

são engolidos pela vida.
Um homem escreveu uma carta para um pequeno hotel de uma cidade do centro-oeste que planejava visitar em suas férias. Escreveu:
Gostaria muito de levar meu cachorro comigo. Ele é muito bem-cuidado e muito bem-educado. Seria possível que ficasse comigo em meu quarto à noite?
Uma resposta imediata veio do dono do hotel, que disse:
Administro este hotel há muitos anos. Em todo este tempo, nunca hospedei um cachorro que tivesse roubado as toalhas, as roupas de cama, os talheres ou os quadros
das paredes.
Nunca tive que expulsar um cachorro no meio da noite por estar bêbado e fazendo desordem. E nunca hospedei um cachorro que tivesse fugido sem pagar a conta.
Portanto, seu cachorro é bem-vindo em meu hotel. E, se seu cachorro garantir, o senhor também será bem-vindo para se hospedar aqui.
• 214
215•
Karl Albrecht e Ron Zenke Service America
6
VENCENDO
OBSTÁCULOS
Obstáculos são aquelas coisas

tenebrosas que vemos quando

desviamos os olhos de nossos

objetivos.
Henry Ford
Obstáculos
Nós, que vivemos nos campos de concentração, lembramo-nos dos homens que passavam pelas tendas confortando os outros, dando-lhes seu último pedaço de pão. Podem
ter sido poucos, mas são prova suficiente de que se pode tirar tudo de um homem, menos uma coisa: a última de suas liberdades -.a de escolher seu comportamento em
quaisquer circunstâncias; a de escolher seu próprio caminho.
Viktor E. Frankl
Man 's Search for Meaning
219•
Considere isto:
• Após o primeiro teste cinematográfico de Fred Astaire, o memorando do diretor de testes da ~, datado de 1933, dizia: "Não sabe representar! Ligeiramente
calvo! Dança um pouco!" Astaire conservou este memorando pendurado sobre a lareira em sua casa de Beverly Hills.
• Um perito comentou sobre Vince Lombardi: "Possui conhecimentos mínimos sobre futebol. Falta-lhe motivação."
• Sócrates foi chamado de "corruptor imoral da juventude".
• Quando Peter J. Daniel estava na quarta série, sua professora, Sra. Phillips, dizia constantemente: "Peter J. Daniel, você é imprestável, uma maçã bichada,
e nunca chegará a lugar algum." Peter foi totalmente analfabeto até os 26 anos. Um amigo ficou acordado com ele a noite toda, e leu para ele uma cópia de Think and
Grow Rich. Agora ele é dono das esquinas das ruas onde costumava brigar e acaba de publicar seu mais recente livro: Mrs. Phillips, You Were Wrong! (Sra. Phillips,
a senhora estava errada!)
• Louisa May Alcott, autora de Little Women, foi aconselhada por sua família a procurar trabalho como servente ou costureira.
• Beethoven segurava o violino desajeitadamente e preferia tocar suas próprias composições ao invés de aperfeiçoar sua técnica. Seu professor julgava-o um
compositor sem futuro.
• Os pais do famoso cantor de ópera Enrico Caruso queriam que ele fosse engenheiro. Seu professor lhe disse que ele não tinha voz e não poderia cantar.
• Charles Darwin, pai da Teoria da Evolução, abandonou a carreira médica e ouviu de seu pai: "Você não se importa com nada além de cães, caçar ratos e atirar."
Em sua autobiografia, Darwin escreveu: "Fui considerado, por todos os meus mestres e por meu pai, um garoto muito comum, bem abaixo do padrão intelectual normal."
• Walt Disney foi despedido pelo editor de um jornal por falta de idéias. Walt Disney também faliu várias vezes antes de construir a Disneylãndia.
• Os professores de Thomas Edison disseram que ele era burro demais para aprender alguma coisa.
• Albert Einstein não falou antes dos quatro anos de idade e não leu ant• es dos sete. Seu professor o descreveu como "mentalmente lento, insociável e eternamente
mergulhado em seus sonhos imbecis". Foi expulso e sua admissão na Escola Politécnica de Zurich foi recusada.
• Louis Pasteur foi apenas um aluno medíocre nos estudos de primeiro grau; ficou em décimo quinto lugar entre os 22 alunos de química.
• Isaac Newton foi muito mal na escola.
• O pai do escultor Rodin disse: "Tenho um filho idiota." Descrito como o pior aluno da escola, Rodin foi reprovado três vezes no exame de admissão da escola
de artes. Seu tio chamava-o de "ineducável".
• Leon Tolstoi, autor de Guerra e Paz, foi afastado da escola por incompetência. Descreveram-no como "incapaz e sem vontade de aprender".
• O dramaturgo Tennessee Williams se enfureceu quando sua peça Me, Vasha não foi escolhida num concurso na
• 221
Considere isto
• 220
Universidade de Washington, onde estava inscrito no so Inglês XVI. O professor recorda que Williams ques nou as escolhas dos juízes e sua inteligência.
• Os funcionários de F.W. Woolworth's que trabalhavam depósito disseram que ele não tinha sensibilidade p atender os fregueses.
• Henry Ford fracassou e faliu cinco vezes antes de ser finai: mente bem-sucedido.
• Babe Ruth, considerado pelos historiadores do esporte co--fij mo o maior atleta de todos os tempos e famoso por estabelecer o recorde do honre run, também
mantém o recorde bolas fora.
• Winston Churchill repetiu a sexta série. Só foi Primeiro-No nistro da Inglaterra aos 62 anos e, mesmo assim, depois dê uma eternidade de derrotas e retrocessos.
Deu suas maiores contribuições quando se tornou um "cidadão idoso".
• Dezoito editores recusaram a história de 10.000 palavras de Richard Bach sobre a gaivota sublime, Fernão Capelo Gaivota, até que a Macmillan finalmente
a publicou em 1970. Em 1975, já havia mais de sete milhões de cópias vendidas apenas nos Estados Unidos.
• Richard Hooker trabalhou por sete anos em M*A*S*H, seu romance satirizando a guerra, recusado simplesmente por 21 editores antes que a Morrow decidisse
publicá-lo. Tornou-se um best-seller, dando origem a um filme de sucesso estrondoso e a um seriado de televisão altamente bem-su-, cedido.
Desde quando John Corcoran podia se lembrar, as palavras zombaram dele. As letras das sentenças trocavam de lugar, os sons das vogais se perdiam nos túneis de seus
ouvidos. Na escola, ele se sentava em sua carteira, ignorante e silencioso como uma pedra, sabendo que seria diferente de todos os outros, eternamente. Se simplesmente
alguém tivesse se sentado ao lado daquele garotinho, colocado o braço em torno de seus ombros e dito "Vou ajudá-lo. Não tenha medo"...
. Mas, até então, ninguém ouvira falar em dislexia. E John não podia lhes dizer que o seu lado esquerdo do cérebro, o lobo que os seres humanos usam para organizar
os símbolos numa seqüência lógica, sempre falhara.
Em vez disso, na segunda série, colocaram-no na fila dos "burros". Na terceira série, uma freira entregava uma régua às outras crianças quando John se recusava a
ler ou a escrever e deixava que cada aluno lhe desse uma reguada nas pernas. Na quarta série, seu professor o chamava para ler e fazia com que todos esperassem em
silêncio, minuto após minuto, até que a criança pensasse que ia sufocar. E então ele passava para a série seguinte e para a outra. John Corcoran nunca repetiu de
ano na vida.
e,
John Corcoran -

O homem que não sabia ler
• 222
223
No último ano, John foi eleito rei da turma, portoucom segurança como orador e foi a estrela do time de bas. quete. Na formatura, sua mãe o beijou - e continuou
falara_ do sobre a faculdade. Faculdade? Seria uma loucura só pen sar. Mas, finalmente, ele se decidiu pela Universidade da Texas em El Paso, onde poderia tentar
o time de basquete. Respirou fundo, fechou os olhos... e tornou a cruzar as linhas inimigas.
No campus, John perguntava a cada novo amigo: quais os professores que faziam questões dissertativas? Quais os que usavam testes de múltipla escolha? No exato momento
em que pisava fora da sala de aula, ele arrancava as páginas de rabiscos do caderno, para o caso de alguém pedir para ver suas anotações. A noite, ficava olhando
para grossos livros de textos, para que seu companheiro de quarto não desconfiasse. E deitava-se na cama, exausto, porém sem coraseguir dormir, incapaz de deixar
sua mente perturbada descansar. John prometeu que iria à missa durante trinta dias seguidos ao raiar do dia se Deus apenas lhe permitisse tirar seu diploma.
Conseguiu o diploma. Pagou a Deus seus trinta dias de missas. E agora? Talvez estivesse viciado. Talvez o motivo maior de sua insegurança - sua mente - fosse o que
precisava ter admirado mais. Talvez por isso, em 1961, John se tornou professor.
John lecionava na Califórnia. Todos os dias ele fazia um aluno ler o livro de textos para a classe. Ele usava testes padronizados que poderiam ser corrigidos com
um gabarito perfurado nas questões corretas e, nas manhãs dos fins de semana, ficava horas deitado na cama, deprimido.
Foi então que ele conheceu Kathy, enfermeira e uma aluna que só tirava A. Não uma tábua, como John. Uma pedra.
- Há algo que preciso te contar, Kathy - disse ele certa noite, em 1965, antes de se casarem. - Eu... eu não sei ler.
"Ele é professor", pensou ela. "Deve estar querendo dizer que não sabe ler bem." Kathy não compreendeu até anos
mais tarde, quando viu que John não conseguia ler um livro infantil para sua filha de dezoito meses. Kathy preenchia seus formulários, lia e escrevia suas cartas.
Por que ele simplesmente não pedia a ela que o ensinasse a ler e a escrever? Ele não acreditava que alguém pudesse ensiná-lo.
Aos 28 anos, John tomou emprestados US$2.500, comprou uma segunda casa, consertou-a e alugou-a. Comprou e alugou outra. E mais outra. Seu negócio cresceu e cresceu
até que ele precisou de uma secretária, um advogado e um sócio.
Então, certo dia, seu contador contou-lhe que ele estava milionário. Perfeito. Quem iria notar que um milionário sempre puxava as portas onde estava escrito "EMPURRE",
ou que se detinha antes de entrar em banheiros públicos, esperando para ver de qual deles saíam os homens?
Em 1982, as coisas começaram a degringolar. Suas propriedades começaram a se esvaziar, e os investidores a se afastar. Ameaças de execução de hipotecas e processos
judiciais saltavam dos envelopes. Parecia-lhe que a todo o momento estava negociando com banqueiros para estender os prazos de seus empréstimos, persuadindo os construtores
a permanecerem no trabalho, tentando dar sentido à pirâmide de papéis. Logo soube que estaria no banco das testemunhas e o homem de vestes negras lhe diria: "A verdade,
John Corcoran. Você nem sabe ler?"
Finalmente, no outono de 1986, aos 48 anos, John fez duas coisas que prometera não fazer jamais. Hipotecou sua casa para obter um empréstimo para uma última construção.
E entrou na Biblioteca da Cidade de Carlsbad e disse à encarregada do programa de instrução:
- Eu não sei ler.
E então, chorou.
Foi colocado junto a uma avó de 65 anos de idade chamada Eleanor Condit. Cuidadosamente - letra por letra, foneticamente - ela começou a ensiná-lo. Em 14 meses,
sua
- 225 -
-224
empresa de loteamentos começou a reviver. E John Corcoran estava aprendendo a ler.
O passo seguinte foi uma confissão: uma palestra para uma platéia de duzentos executivos estupefactos em San Diego. Para curar-se, era preciso se sentir limpo. Ele
foi colocado no conselho diretor do Conselho de Alfabetização de San Diego e começou a viajar pelo país fazendo palestras.
- O analfabetismo é uma forma de escravidão! - lamentava ele. -Não podemos perder tempo culpando ninguém. Precisamos tornar-nos obsessivos em ensinar as pessoas
a ler!
Ele lia todos os livros e revistas que lhe caíam nas mãos, cada sinal de trânsito por que passava, em voz alta, enquanto Kathy pudesse suportar. Era glorioso, como
cantar; e agora ele conseguia dormir.
Então, certo dia lhe ocorreu - ainda havia algo que ele poderia finalmente fazer. Sim, aquela caixa empoeirada em seu escritório, aquele maço de papéis presos por
um laço... um quarto de século depois, John Corcoran pôde ler as cartas de amor de sua esposa.
Parcela Truax
• 226
Abraham Lincoln não desistiu
O senso do dever de continuar está presente em todos nós. A obrigação de lutar é obrigação de todos nós. Eu senti o apelo desta obrigação.
Abraham Lincoln


Provavelmente o maior exemplo de persistência é o de Abraham Lincoln. Se você quiser aprender sobre alguém que não desistiu, não procure mais.
Nascido na miséria, Lincoln defrontou-se com a derrota ao longo de toda sua vida. Perdeu oito eleições, fracassou duas vezes nos negócios e teve um colapso nervoso.
Poderia ter desistido muitas vezes -mas não desistiu e, por não ter desistido, tornou-se um dos maiores presidentes na história dos Estados Unidos.
Lincoln era um vencedor e jamais se entregou. Aqui está um resumo do caminho percorrido por Lincoln até a Casa Branca:
1816 Sua família foi forçada a sair de sua casa. Ele teve que
trabalhar para sustentá-la. 1818 Sua mãe morreu. 1831 Fracassou nos negócios.
227
1832 Concorreu a deputado estadual - perdeu.
1832 Perdeu também o emprego - quis entrar na escola d
Direito, mas não conseguiu ser admitido.
1833 Tomou dinheiro emprestado com um amigo para co
meçar um negócio e, por volta do final do ano, estava
falido. Passou os dezessete anos seguintes de sua vida
pagando essa dívida.
1834 Candidatou-se novamente a deputado estadual -ga
nhou.
1835 Estava noivo, sua noiva morreu e ele ficou desolado. 1836 Teve um colapso nervoso e ficou de cama durante seis meses.
1838 Indicado para porta-voz da Câmara Estadual - der- -
rotado.
1840 Indicado para o Colégio Eleitoral - derrotado.
1843 Candidato ao Congresso - perdeu.
1846 Candidato ao Congresso novamente-desta vez ganhou
- foi a Washington e fez um bom trabalho.
1848 Candidato à reeleição para o Congresso - derrotado. 1849 Indicado para o Cartório de Registro de Imóveis em seu
estado - rejeitado.
1854 Candidato ao Senado dos Estados Unidos - perdeu. 1856 Solicita a indicação para Vice-Presidente na convenção
nacional do seu partido - obteve menos de cem votos. 1858 Candidato ao Senado dos Estados Unidos novamente
- novamente perdeu.
1860 Eleito presidente dos Estados Unidos.
O caminho foi difícil e escorregadio. Um de meus pés escorregou, empurrando o outro para fora da estrada, mas eu me levantei e disse a mim mesmo: "É apenas um deslize
e não uma queda. "
Abraham Lincoln
Depois de perder uma candidatura ao Senado
Licão de um filho


A paixão de meu filho Daniel pelo surf começou aos treze anos. Antes e depois da escola, ele vestia sua roupa de borracha, remava para além da linha da arrebentação
e esperava ser desafiado por suas companheiras de um a dois metros. O amor de Daniel pelo esporte foi posto à prova em certa tarde decisiva.
- Seu filho sofreu um acidente - o salva-vidas disse a meu marido Mike ao telefone.
- Feriu-se muito?
- Bastante. Quando subiu para a superfície da água a ponta da prancha estava apontada para o seu olho.
Mike correu com ele para um pronto socorro, de onde foram mandados para o consultório de um cirurgião plástico. Ele recebeu 26 pontos do canto do olho ao alto do
nariz.
Eu estava dentro de um avião, voltando de uma palestra, enquanto o olho de Dan estava sendo costurado. Mike foi diretamente ao aeroporto depois que deixaram o consultório
do médico. Ele veio ao meu encontro no portão e me disse que Dan estava esperando no carro.
- Daniel? - estranhei. Lembro-me de ter pensado que as ondas deveriam estar ruins naquele dia.
• 228
• 229
- Ele sofreu um acidente, mas vai ficar bem.
O pior pesadelo de uma mãe em viagem de negócios via se realizado. Corri tão depressa para o carro que o salto meu sapato se quebrou. Eu quase arrebentei a porta
do
e meu filho mais novo, com um curativo no olho, inclinoupara a frente, com ambos os braços esticados em minha dir' ção, chorando: "Oh, Mãe, que bom que você voltou."
Solucei em seus braços dizendo a ele como me sen mal por não estar lá quando o salva-vidas telefonara.
- Tudo bem, mamãe - ele me confortou. - Você nã sabe surfar, de qualquer jeito.
- O quê? - perguntei, confusa diante da sua lógica. -Vou ficar bem. O médico disse que posso voltar para água dentro de oito dias.
Estaria ele fora de si? Eu quis dizer a ele que estava proibido de se aproximar da água novamente antes dos 35 anos, mas, em vez disso, mordi a língua e rezei para
que ele esquecesse o surf para sempre.
Durante os sete dias seguintes, ele ficou me pressionando para deixá-lo voltar a subir na prancha. Um dia depois de eu lhe ter repetido enfaticamente "Não" pela
centésima vez, ele me venceu no meu próprio jogo.
- Mamãe, você nos ensinou a nunca desistirmos do que amamos.
E me entregou um suborno - um poema emoldurado de Langston Hughes que havia comprado "porque o poema me lembrou você".
De mãe para filho
Bem, filho, eu te digo:
A vida para mim não tem sido nenhuma escadaria de cristal.
Ela tem preguinhos.
E lascas,
E tábuas arrancadas,
E lugares sem tapete no chão - Desertos.
Mas, todo tempo,
Tem sido uma escalada, E várias aterrissagens,
E um dobrar de esquinas,
E algumas vezes penetrar na escuridão Onde não há luz.
Assim, filho, não se volte, Não se detenha nos degraus,
Por achar que são muito difíceis para uma criança. Não caia agora -
Pois eu continuarei prosseguindo, querido, Eu continuarei escalando,
E a vida para mim não é nenhuma escadaria de cristal.
Eu entreguei os pontos.
Daniel era apenas um garoto apaixonado pelo surf. Agora ele é um homem com uma responsabilidade. Ele está entre os 25 maiores surfistas profissionais do mundo.
Fui posta à prova em minha própria casa quanto a um importante princípio que ensino ao público em cidades distantes: "Pessoas apaixonadas abraçam o que amam e nunca
desistem".
Danielle Kennedy
230
• 231
Fracasso? Não!

Só dificuldades temporárias
Ver as coisas na semente, isso é gênio. Lao-tse
Ziggy © Ziggy and Friends. Distribuído por Universal Press Syndicate Inc. Reimpressão autorizada. Todos os direitos reservados.
232
Se você pudesse vir hoje ao meu escritório na Califórnia para me visitar, notaria de um lado da sala um belo e antigo balcão de mogno com ladrilhos espanhóis, e
nove banquinhos forrados de couro (do tipo que se costumava ter nas velhas farmácias). Estranho? Sim. Mas, se aqueles banquinhos pudessem falar, eles lhe contariam
uma história sobre o dia em que eu quase perdi as esperanças e desisti.
Era um período de recessão após a Segunda Guerra Mundial e os empregos estavam escassos. Cowboy Bob, meu marido, havia comprado um pequeno negócio de lavagem a
seco com um dinheiro emprestado. Tínhamos dois bebês
adoráveis, as prestações de uma casa, um carro e todos os pagamentos periódicos costumeiros. Foi então que as coisas degringolaram. Não tínhamos dinheiro para as
prestações da casa ou para qualquer outra coisa.
Senti que não tinha nenhum talento especial, nenhum
treinamento, nenhuma formação universitária. Eu não pen
• 233
sava muito em mim mesma. Mas me lembrei de alguém
no passado achava que eu tinha alguma capacidade
nha professora de inglês na Escola Secundária de Alham
Ela me estimulava a cursar jornalismo e me nomeou geres
de propaganda e editora de reportagem do jornal da escola,
Pensei: "Agora, se pudesse escrever uma 'Coluna de Com,
pras' para o pequeno jornal semanal de nossa cidade, talvez
pudesse conseguir as prestações da casa."
Eu não tinha carro nem babá. Assim, saí empurrando
meus dois filhos num frágil carrinho de bebês, com um gran
de travesseiro amarrado atrás. A rolinha vivia caindo, mas
eu a colocava de volta batendo com o salto do meu sapato e seguia em frente. Eu estava determinada a que meus filhos não perdessem sua casa como eu freqüentemente
havia perdido a minha quando criança.
Porém, não havia empregos disponíveis no escritório do jornal. Recessão. Então tive uma idéia. Perguntei se poderia comprar anúncios por atacado e vendê-los no varejo
para uma "Coluna de Compras". Eles concordaram. Mais tarde, disseram-me que, secretamente, haviam me dado no máximo uma semana para continuar empurrando aquele carrinho
pelas estradas até que eu desistisse. Mas estavam errados.
A idéia da coluna no jornal funcionou. Consegui dinheiro suficiente para as prestações da casa e para comprar um velho carro usado que Cowboy Bob encontrara para
mim. Em seguida, contratei uma garota do segundo grau para tomar conta dos meus filhos, das três às cinco, todas as tardes. Quando o relógio batia três horas, eu
passava a mão nas minhas amostras de jornal e voava pela porta em direção aos meus compromissos.
Porém, certa tarde escura e chuvosa, todos os clientes com os quais eu havia trabalhado desistiram dos anúncios quando fui buscá-los.
- Por quê? - perguntei.
Eles disseram que haviam notado que Ruben Ahlman, Presidente da Câmara de Comércio e dono da Drogaria Rexall, não anunciava comigo. Sua loja era a mais popular da
cidade. Eles respeitavam seu julgamento.
- Deve haver algo errado com sua propaganda - eles explicaram.
Meu coração afundou. Aqueles quatro anúncios teriam pago a prestação da casa. Então, pensei, vou tentar falar com o Sr. Ahlman mais uma vez. Todos gostam dele e
o respeitam. Seguramente, ele me ouvirá. Todas as vezes que eu havia tentado me aproximar dele antes, ele se recusara a me ver. Estava sempre "fora" ou ocupado.
Eu sabia que se ele publicasse seus anúncios comigo, os outros comerciantes da cidade seguiriam sua iniciativa.
Desta vez, ao entrar na Drogaria Rexall, ele estava lá, atrás do balcão de remédios. Sorri o meu melhor sorriso e empunhei minha Coluna de Compras" cuidadosamente
assinalada com o lápis de cera verde de meus filhos. Eu disse:
- Todos respeitam a sua opinião, Sr. Ahlman. Poderia apenas olhar meu trabalho por um momento, para que eu possa dizer aos outros comerciantes o que o senhor acha?
Sua boca ficou perpendicular, formando um "U" de cabeça para baixo. Sem dizer uma palavra, ele sacudiu enfaticamente a cabeça, num gesto negativo e desalentados.
- NÃO!
Meu coração nocauteado foi ao chão, fazendo tanto barulho que pensei que todo mundo tivesse ouvido.
De repente, todo o meu entusiasmo desapareceu. Consegui chegar ao belo balcão na frente da drogaria, sentindo-me sem energia para dirigir até em casa. Eu não queria
me sentar sem comprar algo, então puxei meus últimos dez centavos e pedi uma Cherry Coke. Pensava desesperadamente no que fazer. Será que meus bebês perderiam sua
casa, como eu, que perdera a minha tantas vezes durante a infância? Minha professora de jornalismo estaria errada? Talvez aquele talen
234
235
to de que ela falava fosse apenas um embuste. Meus olhos encheram de lágrimas.
Uma voz suave vinda do banco ao lado disse:
- O que houve, meu bem?
Olhei para o rosto solidário de uma simpática senhora de cabelos grisalhos. Desabafei contando-lhe minha estória, e terminei:
- Mas o Sr. Ahlman, a quem todos respeitam tanto, não quer ver meu trabalho.
- Deixe-me ver essa "Coluna de Compras" - disse ela, Pegou nas mãos meu exemplar assinalado do jornal e leu-o cuidadosamente do começo ao fim. Então, virou-se no
banquinho, levantou-se e olhou novamente para o balcão de receitas, e numa voz de comando que poderia ter sido ouvida por todo o quarteirão, disse:
- Ruben Ahlman, venha aqui! Era a Sra. Ahlman!
Ela disse a Ruben que comprasse meu anúncio. Sua boca virou-se em sentido contrário, abrindo-se num amplo sorriso. Então ela me perguntou os nomes dos comerciantes
que haviam se recusado a comprar os anúncios. Foi até o telefone e ligou para cada um deles. Abraçou-me e disse-me que eles estavam me aguardando; que eu voltasse
para pegar os anúncios.
Ruben e Vivien Ahlman se tornaram nossos amigos queridos, além de clientes fixos dos anúncios. Fiquei sabendo que Ruben era um homem amável, que comprava de todo
mundo. Ele havia prometido a Vivian não comprar mais nenhum anúncio. Estava apenas tentando manter sua palavra. Se tivesse perguntado às outras pessoas na cidade,
eu descobriria que deveria ter falado com a Sra. Ahlman desde o começo. Aquela conversa no balcão foi o momento decisivo. Minha empresa de propaganda prosperou e
hoje tem quatro escritórios, com 285 funcionários servindo a 4.000 contas com contratos permanentes de propaganda.
Mais tarde, quando o Sr. Ahlman modernizou a velha drogaria e tirou o balcão, meu doce marido Bob comprou-o e instalou-o no meu escritório. Se você estivesse aqui
na Califórnia, nos sentaríamos juntos nos bancos em frente ao balcão. Eu lhe serviria uma Cherry Coke e lhe recomendaria que nunca desistisse, que se lembrasse que
a ajuda está sempre mais próxima do que pensamos.
Então eu lhe diria que, se não consegue se comunicar com uma determinada pessoa, procure outras informações. Tente outro caminho. Procure alguém que possa se comunicar
em seu nome, o endosso de uma terceira pessoa. E finalmente, eu lhe serviria estas palavras iluminadas e renovadoras de Bill Marriot, dos Hotéis Marriot:
Fracasso? Nunca o enfrentei. Só me deparei com dificuldades temporárias.
Dottie Walters
236
• 237
1. Inspiração
2. Permissão
3. Reafirmação
4.0 café ficar pronto
5. Minha vez
6. Alguém que abra caminho
7.0 restante das regras
8. Alguém para mudar
9. Passagens mais amplas 10. Vingança
11. Riscos menores 12. Mais tempo
13. Que um relacionamento
significativo:
a. melhore
b. termine
c. aconteça
14. A pessoa certa 15. Um desastre
16. Tempo para quase acabar 17. Um óbvio bode-expiatório
18. Que as crianças saiam de
casa
19. Um Dow-Jones de 1500 20. Que o leão se deite com o
carneiro
21. Acordo mútuo
22. Um tempo melhor
23. Um horóscopo mais favorá
vel
24. Minha juventude retornar 25.0 aviso de dois minutos 26. A reforma legal 27. Que Richard Nixon seja
reeleito
28. Que a idade me conceda o
direito à excentricidade 29. Amanhã
30. Três-coarias ou melhor 31. Meu check-up anual 32. Um melhor círculo de
amizades
33. Que os riscos aumentem 34. Que o semestre comece 35. Caminho livre
36.0 gato parar de arranhar o
sofá
37. A ausência de riscos 38. Que o cão que late no
vizinho deixe a cidade

39. Meu tio retornar do serviço
militar
40. Alguém me descobrir 41. Mais garantias
42. Uma taxa mais baixa de
ganhos de capital
43.0 estatuto das limitações
perder o valor
44. Meus pais morrerem!
(brincadeirinha!)

45. A cura da herpes/Aids

46. Que as coisás que não
entendo ou não aprovo
desapareçam
47. Que as guerras acabem 48. Meu amor se reacender 49. Alguém para observar
50. Um conjunto de instruções
claramente redigidas

51. Melhor controle de natali
dade
52. Que a ERA termine
53. Um fim para a pobreza,
injustiça, crueldade, falsida
de, incompetência, pesti
lência, crime e sugestões
ofensivas
54. Uma patente rival expirar 55. A volta do Chicken Little
56. Meus subordinados amadu
recerem
57. Meu ego se aperfeiçoar 58.0 bule ferver
59. Meu novo cartão de crédito 60.0 afinador do piano 61. Esta reunião terminar 62. Os meus créditos serem
liberados
63. Os cheques do seguro
desemprego expirarem 64. A primavera 65. Meu temo voltar do
tintureiro
66. Minha auto-estima se
recuperar
67. Um sinal dos céus
68. Os pagamentos da pensão
alimentícia terminarem 69. Que as preciosidades de
inteligência ocultas em
meus primeiros esforços
vaidosos de ser reconheci
do, sejam aplaudidas e
substancialmente recom
pensadas, para que eu
possa trabalhar a segunda
versão confortavelmente 70. Uma reinterpretação de
Robert's Rules of Order 71. Que várias dores e sofri
mentos cedam
72. Filas menores no banco
Para ser mais criativo, estou esperando...
• 238
• 239
#73. Que o vento aumente
74. Meus filhos se tornarem ponderados, arrumados, obedientes e auto-suficientes
75. A próxima estação
76. Outra pessoa para tomar coragem
77. Minha vida ser declarada ensaio geral, com algumas mudanças no roteiro permitidas antes da estréia
78. Que a lógica prevaleça
79. A próxima vez
80. Que você saia de frente da luz
81. Que o meu navio chegue
82. Um desodorante melhor
83. Que minha dissertação esteja terminada
84. Um lápis apontado
85. Que o cheque seja liberado
86. Que minha mulher, filme ou bumerangue voltem
87. A aprovação do meu médico, a permissão do meu pai, a bênção do meu pastor ou o Ok do meu advogado
88. A manhã
89. Que a Califórnia caia no
mar
90. Um tempo menos turbul
to
91.0 Iceman to Cometh
92. Uma oportunidade para
ligar a cobrar
93. Escrever melhor
94. Que minha vontade de
fumar desapareça
95. Que as cotações caiam 96. Que as cotações subam
97. Que as cotações se estabili
zem
98. Que a herança do meu avô
seja estabelecida

99. As cotações do fim de
semana
100. Uma senha
101. Que você vá primeiro
Todo mundo pode fazer alguma coisa


A diferença básica entre um homem comum e um guerreiro é que um guerreiro toma tudo como desafio, enquanto um homem comum toma tudo ou como bênção ou como castigo.
Don Juan
David B. Campbell
Roger Crawford tinha tudo o que precisava para jogar tênis - menos duas mãos e uma perna.
Quando os pais de Roger viram seu filho pela primeira vez, viram um bebê com uma projeção parecida com um polegar saindo diretamente de seu antebraço direito e um
polegar e um dedo saindo de seu antebraço esquerdo. Ele não tinha palmas. Os braços e pernas do bebê eram encurtados, e ele tinha apenas três dedos no mirrado pé
direito e uma perna esquerda seca, que mais tarde viria a ser amputada.
O médico disse que Roger sofria de ectrodactilismo, um raro defeito de nascença que afeta uma entre 90.000 crianças nascidas nos Estados Unidos. O médico disse que
Roger provavelmente nunca andaria ou poderia cuidar de si mesmo.
Felizmente, os pais de Roger não acreditaram no médico.
- Meus pais sempre me ensinaram que eu só seria defeituoso o quanto quisesse ser - disse Roger. - Eles nunca
- 240
• 241
#permitiram que eu sentisse pena de mim mesmo ou ti vantagem das pessoas por causa do meu defeito. Certa tive problemas porque meus trabalhos de escola estav sempre
atrasados- explicou Roger, que tinha que segurar lápis com ambas as "mãos" para escrever devagar. - Pedi papai que escrevesse um bilhete para os meus professo pedindo
que o prazo de minhas tarefas fosse adiado d dias. Em vez disso, papai me fez começar a escrever os tra lhos com dois dias de antecedência!
O pai de Roger sempre o encorajou a se envolver nos e portes, ensinando Roger a receber e a lançar uma bola d voleibol e a jogar futebol no quintal depois da escola.
Aos anos, Roger conseguiu ser destaque no time de futebol escola.
Antes de cada jogo, Roger visualizava seu sonho de faz um touchdown. Então, um dia, teve sua chance. A bola caiu em seus braços e ele correu o mais rápido que pôde
com sua perna artificial em direção ao gol, seu treinador e seus colegas torcendo loucamente. Porém, antes dele chegar lá, um garoto do outro time agarrou seu tornozelo
esquerdo. Roger, tentou libertar sua perna artificial, mas, em vez disso, ela acabou se soltando.
- Eu ainda estava em pé - relembra Roger. - Eu não sabia mais o que fazer e então comecei a saltar de um pé só até o gol. O juiz correu e lançou as mãos para o ar.
Touchdownl Sabe, melhor ainda que os seis pontos, foi ver a expressão no rosto do garoto que ficou segurando minha perna artificial.
O amor de Roger pelos esportes cresceu e também sua autoconfiança. Mas nem todos os obstáculos abriam caminho para a determinação de Roger. Comer no refeitório,
com os outros garotos observando a bagunça que ele fazia com a comida, era muito doloroso para Roger, assim como seus fracassos sucessivos na aula de datilografia.
-Aprendi uma boa lição na aula de datilografia - disse Roger. - Não se pode fazer tudo; é melhor nos concentrarmos naquilo que podemos fazer.
Uma das coisas que Roger podia fazer era manejar uma raquete de tênis. Infelizmente, quando o fazia com força, sua fraca empunhadura geralmente lançava a raquete
no espaço. Por sorte, Roger encontrou uma raquete de tênis estranha numa loja de esportes e, acidentalmente, enfiou o dedo entre as duas partes do seu cabo duplo
quando a empunhou.
O formato da raquete possibilitou a Roger bater, sacar e lançar como um jogador sem nenhuma deficiência. Ele praticava todos os dias e logo estava jogando - e perdendo
-
partidas.
Mas Roger persistiu. Praticou e praticou, e jogou e jogou. Uma cirurgia nos dois dedos de sua mão esquerda permitiu a Roger empunhar melhor sua raquete especial,
aperfeiçoando enormemente seu jogo. Apesar de não ter um modelo para copiar, Roger ficou obcecado pelo tênis e com o tempo começou a vencer.
Roger continuou a jogar na faculdade, terminando sua carreira com 22 vitórias e 11 derrotas. Mais tarde, tornou-se o primeiro jogador de tênis deficiente fisico
a ser reconhecido como professor profissional pela Associação Norte-Americana de Tênis Prófissional. Agora Roger viaja pelo país, dando palestras sobre o que é necessário
para ser um vencedor, não importa quem você seja.
-A única diferença entre vocês e eu é que vocês podem ver minhas deficiências, mas eu não posso ver as suas. Todos nós as temos. Quando as pessoas me perguntam como
fui capaz de superar minhas deficiências físicas, eu lhes digo que não superei nada. Simplesmente aprendi o que não posso fazer - como tocar piano ou comer com palitinhos
- mas, mais importante, aprendi o que posso fazer. E assim, faço o que posso, com todo meu coração e toda a minha alma.
Jack Canfield
• 242
• 243
Sim, você pode
Experiência não é aquilo que acontece a um homem. É o que um homem faz com o que lhe acontece.
Aldous Huxley
O que aconteceria se, aos 46 anos, você se queimasse num terrível acidente de motocicleta a ponto de ficar irreconhecível e, quatro anos mais tarde, ficasse paralítico
da cintura para baixo num acidente aéreo? Então você poderia se imaginar tornando-se um milionário, um respeitado orador, um feliz recém-casado e um bem-sucedido
homem de negócios? Poderia se imaginar praticando canoagem? Sky diving? Concorrendo a uma carreira política?
W. Mitchell fez tudo isso e muito mais, depois que dois horríveis acidentes deixaram seu rosto como uma colcha de retalhos, de tantos enxertos de pele, suas mãos
sem os dedos e suas pernas finas e sem os movimentos, preso a uma cadeira de rodas.
As dezesseis cirurgias que Mitchell enfrentou após o acidente de motocicleta que queimou mais de 65% do seu corpo, deixaram-no impossibilitado de segurar um garfo,
discar
• 244
o telefone ou ir ao banheiro sem ajuda. Mas Mitchell, ex-fuzileiro naval, nunca acreditou que estivesse derrotado.
- Eu sou o capitão da minha nave espacial. Eu digo "para cima" e "para baixo". Eu poderia ter escolhido essa situação como um retrocesso ou como um ponto de partida.
Seis meses depois, ele estava novamente pilotando um avião.
Mitchell comprou uma casa em estilo vitoriano no Colo- 19 rado, alguns imóveis, um avião e um bar. Mais tarde, juntouse a dois amigos e os três fundaram uma madeireira
que progrediu até se tornar a segunda maior empresa privada de Vermont.
Quatro anos depois do acidente de motocicleta, o avião que Mitchell pilotava espatifou-se na pista durante a decolagem, esmagando 12 de suas vértebras torácicas
e paralisando-o permanentemente da cintura para baixo.
- Eu me perguntava que diabos estaria acontecendo comigo? O que eu fiz para merecer isso?
Impávido, Mitchell trabalhou noite e dia para recuperar ao máximo sua independência. Elegeu-se Prefeito de Crestem Butte, no Colorado, para salvar a cidade da mineração,
o que arruinaria sua beleza natural e o meio ambiente. Mais tarde candidatou-se ao Congresso, transformando sua estranha aparência em vantagem, com slogans como
"Não apenas mais um belo rosto".
A despeito de sua aparência a princípio chocante, e de seus desafios, Mitchell começou a praticar canoagem, apaixonou-se e casou-se, fez mestrado em administração
pública e continuou a pilotar, a participar de atividades ligadas ao meio ambiente e a falar em público.
A atitude mental inabalável de Mitchell renderam-lhe aparições no Today Show e no Good Morning América, assim como reportagens nas revistas Parade, Time, no The
New York Times e outras publicações.
- Antes de ficar paralítico, havia dez mil coisas que eu podia fazer- diz Mitchell. -Agora há nove mil. Posso ficar
• 245
#com as mil que perdi, ou me concentrar nas nove mil que me restam. Digo às pessoas que tive dois enormes solavancos em minha vida. Se escolhi não usá-los como uma
desculpa para desistir, talvez algumas das experiências que vocês estejam vivendo e que os estejam desestimulando, possam ser colocadas sob uma nova perspectiva.
Você pode recuar, ter uma visão mais ampla e a oportunidade de dizer "Afinal, talvez isso não seja tão ruim assim".
Lembre-se: "Não é o que lhe acontece, é a sua atitude em relação ao que lhe acontece."

Iack Canfield e Mark V. Hansen
Corra, Patti, corra
Jovem de tenra idade, Patti Wilson soube através de seu
médico que era epilética. Seu pai, Jim Wilson, costumava fa
zer jogging pela manhã. Um dia, sorrindo através de seu apa- 1~
relho de adolescente, ela disse: ~
- Papai, eu gostaria mesmo era de coper com você todos os dias, mas tenho medo de ter uma crise.
Seu pai lhe disse:
- Se tiver, sei como controlá-la, então gamos começar a correr!
E foi o que fizeram, todos os dias. Foi ~ experiência maravilhosa que os dois compartilharam, e Patti não teve nenhuma crise durante as corridas. Depois de algumas
se- ii manas, ela disse a seu pai:
- Papai, o que eu gostaria mesmo era de quebrar o recorde mundial de corrida de longa distânciâ Para mulheres.
Seu pai consultou o livro Guiness de recordes mundiais e descobriu que o máximo que uma mulhei já correra haviam sido 128 quilômetros. Como caloura do colégio, Patti
declarou:
- Vou correr do Município de Orange até São Francisco (uma distância de 640 quilômetros). No segundo ano - con-
• 246
247
tinuou -, vou correr até Portland, Oregon (mais de 2.400 quilômetros). No terceiro ano correrei até St. Louis (cerca de 3.200 quilômetros). E, no último, vou correr
até a Casa Branca (mais de 4.800 quilômetros de distância).
Em vista de sua deficiência, Patti era tão ambiciosa quanto entusiasta, mas disse que via sua epilepsia simplesmente como "uma inconveniência". Concentrava-se não
no que havia perdido, mas no que lhe restava.
Naquele ano, completou seu percurso até São Francisco vestindo uma camiseta que dizia "Amo os epiléticos". Seu pai correu cada milha a seu lado, enquanto sua mãe,
enfermeira, seguia atrás deles numa motor honre, para o caso de algo sair errado.
No segundo ano, os colegas de Patti a seguiram. Fizeram um poster gigante onde se lia "Corra, Patti, Corra!" (Desde então, este se tornou seu lema e o título de
um livro que ela escreveu.) Em sua segunda maratona, a caminho de Portland, ela fraturou um osso do pé. Um médico disse-lhe que ela teria que parar a corrida. Ele
disse:
- Tenho que engessar seu tornozelo para que você não sofra um dano permanente.
-Doutor, o senhor não compreende-disse ela. -Este não é apenas um dos meus caprichos, é uma grande obsessão! Não estou fazendo isso por mim, estou fazendo para romper
as correntes que aprisionam o cérebro de tantos outros. Não há uma forma de eu continuar correndo?
Ele deu a ela uma alternativa. Ele poderia enfaixá-la com esparadrapo em vez de engessá-la. Advertiu-a de que seria incrivelmente doloroso, e disse-lhe: "Seu tornozelo
ficará cheio de bolhas." Ela pediu ao médico que enfaixasse.
Ela terminou o percurso até Portland, completando o último quilômetro com o governador do Oregon. Vocês devem ter visto as manchetes: "Super Corredora, Patti Wilson,
Termina Maratona Pela Epilepsia Em Seu 17° Aniversário!"
Depois de quatro meses de corrida quase contínua da Costa Oeste até a Costa Leste, Patti chegou à Casa Branca em Washington e apertou a mão do presidente dos Estados
Unidos. Ela lhe disse:
- Queria que as pessoas soubessem que os epiléticos são seres humanos normais com vidas normais.
Há pouco tempo, contei esta história num de meus seminários e, em seguida, um homem grande com os olhos cheios d'água me procurou, estendeu a mão enorme e carnuda
e disse:
-Mark, meu nome é Jim Wilson. Você estava falando de minha filha, Patti.
Os nobres esforços de Patti, como seu pai me contou, ajudaram a levantar dinheiro suficiente para abrir dezenove centros multimilionários para epiléticos por todo
o país.
Se Patti Wilson pode fazer tanto com tão pouco, o que você, com sua saúde perfeita, poderia fazer para superar seu próprio desempenho?
Mark V. Hansen
248
249
O poder da determinação
A casinha da escola rural era aquecida por um velho e bo! judo forno a carvão. Um garotinho tinha a função de ir mais,, cedo à escola todos os dias, para acender
o fogo e aquecer o recinto antes que a professora e seus colegas chegassem.
Certa manhã, eles chegaram e encontraram a escol engolida pelas chamas. Retiraram o garotinho inconsciente do prédio em chamas, mais morto do que vivo. Tinha queimaduras
profundas na parte inferior do corpo e foi levado para o hospital do município vizinho.
De seu leito, o semiconsciente e pavorosamente queimado garotinho ouviu ao longe o médico que conversava com sua mãe. O médico dizia a ela que seu filho seguramente
morreria- o que na realidade, até seria melhor-pois o terrível fogo devastara a parte inferior de seu corpo.
Porém o bravo garoto não queria morrer. Ele se convenceu de que sobreviveria. De alguma maneira, para surpresa do médico, ele realmente sobreviveu. Quando o risco
de morte havia passado, ele novamente ouviu o médico e sua mãe falando baixinho. A mãe foi informada de que, uma vez que o fogo destruíra tantos músculos na parte
inferior de seu corpo, quase que teria sido melhor que ele tivesse morrido, já que estava condenado a ser eternamente inválido e não fazer uso algum de seus membros
inferiores.
Mais uma vez o bravo garoto tomou uma decisão. Não seria inválido. Ele andaria. Mas, infelizmente, da cintura para baixo, ele não tinha nenhuma capacidade motora.
Suas pernas finas pendiam inertes, quase sem vida.
Finalmente, ele teve alta do hospital. Todos os dias sua mãe massageava suas perninhas, mas não havia sensação, controle, nada. Ainda assim, sua determinação de
andar era mais forte do que nunca.
Quando ele não estava na cama, estava confinado a uma cadeira de rodas. Num dia ensolarado, sua mãe o conduziu até o quintal para tomar um pouco de ar fresco. Neste
dia, ao invés de ficar sentado na cadeira, ele se jogou no chão. Arrastou-se pela grama, puxando as pernas atrás de si.
Arrastou-se até a cerca de estacas brancas que limitava o terreno. Com grande esforço, levantou-se apoiando-se na cerca. E então, estaca por estaca começou a arrastar-se
ao longo da cerca, decidido a andar. Começou a fazer isso todos os dias até que um caminho se formou ao lado da cerca, e em volta de todo o quintal. Não havia nada
que ele desejasse mais do quedar vida àquelas pernas.
Finalmente, com as massagens diárias, com sua persistência de ferro e com sua resoluta determinação, ele foi capaz de ficar em pé, depois de andar mancando, e então,
de andar sozinho. Mais tarde, de correr.
Começou a caminhar para a escola, depois passou a correr para a escola, e a correr, pura e simplesmente, pela alegria de correr. Na faculdade, integrou o time de
corrida com obstáculos.
Depois, no Madison Square Garden, aquele rapaz sem esperanças de sobreviver, que seguramente não andaria nunca mais, e que jamais poderia esperar correr - aquele
rapaz determinado, o Dr. Glenn Cunningham, foi o corredor mais rápido do mundo na corrida de uma milha!
Burt Dubin
250
251



Nós, os quadraplégicos, somos seres fortes. Se não fôssemos, não estaríamos por aí atualmente. Sim, somos uma espécie resistente. De muitas formas, fomos abençoados
com doses de sabedoria e humor que não são concedidas a todos.
E, permitam-me dizer, toda essa recusa de aceitação total ou completa da deficiência de alguém está conectada a uma única coisa - fé, uma fé quase divina.
Lá em baixo, na recepção do Instituto de Medicina Física e Reabilitação em East River, Rua 34, East 400, na cidade de Nova York, há uma placa de bronze pregada à
parede. Durante os meses em que freqüentei o Instituto para tratamento - duas ou três vezes por semana - passei por aquela recepção muitas vezes - indo e vindo.
Mas nunca parei o suficiente para me afastar para o lado e ler as palavras que estão escritas naquela placa, segundo dizem, proferidas por um soldado confederado
anônimo. Então, certa tarde, li a placa. Li e reli. E, quando terminei de ler pela segunda vez, estava a ponto de explodir - não de desespero, mas de uma força interior,
que me fazia querer arrancar os braços de minha cadeira de rodas. Gostaria de compartilhar com vocês essas pa
lavras..


• 252
Um credo para os que sofrem

Pedi a Deus força, para que pudesse realizar.
Fui feito fraco, para que aprendesse a obedecer humildemente...
Pedi saúde, para que pudesse realizar grandes feitos.
Me foi dada a enfermidade, para que eu pudesse fazer coisas melhores...
Pedi riquezas, para que pudesse ser feliz.
Me foi dada a pobreza, para que eu fosse sábio...
Pedi poder, para que eu pudesse exercê-lo sobre os homens.
Me foi dada a fraqueza, para que eu pudesse sentir a necessidade de Deus...
Pedi todas as coisas, para que pudesse aproveitar a vida.
Me foi dada a vida, para que eu pudesse aproveitar todas as coisas...
Não obtive nada do que pedi - mas tudo por que ansiava.
Quase a despeito de mim mesmo, minhas orações silenciosas foram atendidas.
Sou, entre os homens, o mais plenamente abençoado!

Roy Campanella
• 253
A Sra. Betty Tisdale é uma heroína de categoria mundial. Quando a guerra no Vietnã esquentou, em abril de 1975, ela, soube que precisava salvar os quatrocentos órfãos
que estavam para ser jogados nas ruas. Ela e seu marido, o ex-pediatra Coronel Patrick Tisdale, que era viúvo e já tinha cinco filhos, já haviam adotado cinco garotas
vietnamitas órfãs.
Em 1954, como médico da marinha dos Estados Unidos no Vietnã, Tom Dooley ajudou refugiados a escaparem dos comunistas do norte. Betty diz:
- Realmente acho que Tom Dooley era um santo. Sua influência mudou minha vida para sempre.
Por causa do livro de Dooley, ela pegou todas as suas economias e viajou para o Vietnã quatorze vezes em férias, para visitar e trabalhar em hospitais e orfanatos
que ele fundou. Em Saigon, apaixonou-se pelos órfãos do An Lac (Lugar Feliz), dirigido por madame Vu Thi Ngai, e que, mais tarde, no dia em que o Vietnã caiu, foi
evacuado por Betty, que voltou à Geórgia levando as crianças para viver com ela e seus dez filhos.
Quando Betty, uma pessoa do tipo "faça já" e "invente soluções conforme os problemas vão surgindo", percebeu o
drama das quatrocentas crianças, entrou em ação a toda velocidade. Telefonou para Madame Ngai e disse: "Sim! Irei buscar as crianças e adotarei todas." Não sabia
como o faria. Apenas sabia que faria. Mais tarde, num filme sobre a desocupação, The Children of An Lac, Shirley Jones retratou Betty.
Em instantes, ela começou a mover montanhas. Usou vários expedientes para levantar o dinheiro necessário. Simplesmente decidiu fazê-lo e fez. Ela disse:
- Eu visualizava todas aquelas crianças crescendo em bons lares cristãos na América, e não sob o comunismo.
Isso a manteve motivada.
Ela partiu para o Vietnã de Fort Benning, na Geórgia, num domingo, chegou na terça-feira em Saigon e, sem dormir, venceu milagrosamente cada obstáculo para embarcar
quatrocentas crianças para fora de Saigon até a manhã de sábado. No entanto, no momento de sua chegada, o chefe do serviço social vietnamita, Dr. Dan, anunciou repentinamente
que só aprovaria a saída de crianças menores de dez anos e que todas deveriam ter certidão de nascimento. Rapidamente, ela descobriu que órfãos de guerra têm apenas
a sorte de estarem vivos. Eles não têm certidões de nascimento.
Betty foi ao departamento pediátrico do hospital, obteve 225 certidões de nascimento e criou rapidamente datas e locais de nascimento para os 219 recém-nascidos,
bebês e crianças. Ela diz:
- Não tenho idéia de quando e onde nasceram e quem eram seus pais. Meus dedos apenas criaram certidões de nascimento. Certidões de nascimento eram a única esperança
que as crianças tinham de deixar o lugar a salvo e terem um futuro viável com liberdade. Era agora ou nunca.
Agora ela precisava de um local para alojar os órfãos, uma vez que haviam sido despejados... Os militares em Fort Benning resistiram, mas Betty persistiu com inteligência
e tenacidade. Por mais que tentasse, não conseguia falar com o General Comandante ao telefone, então ligou para o escritó
• 255
Ela salvou 219 vidas
• 254 -
rio do Secretário do Exército, Bo Callaway. Ele também tinhã dado uma ordem de que as chamadas de Betty não seriam atendidas, não importava o quanto fossem urgentes
e de i" portância vital. No entanto, Betty não seria derrotada. Havia chegado muito longe para ser detida agora. Como ele também era da Geórgia, ela ligou para a
mãe dele e contou-lhe seu caso. Betty a envolveu com seu coração e pediu que intercedesse. Praticamente do dia para a noite, o Secretário do Exército, seu filho,
respondeu e providenciou para que uma escola em Fort Benning fosse usada como casa provisória para os órfãos de An Lac.
Mas o desafio de retirar as crianças ainda estava por ser realizado.
Ao chegar em Saigon, Betty dirigiu-se imediatamente ao Embaixador Graham Martin e pleiteou algum tipo de transporte para as crianças. Ela tentara fretar um vôo da
Pan Am, mas o Lloyds de Londres aumentara tanto o seguro que se tornara impossível negociar àquela altura. O embaixador concordou em ajudar se todos os documentos
fossem liberados pelo governo vietnamita. O Dr. Dan assinou a última declaração, literalmente, enquanto as crianças embarcavam em dois aviões da força aérea.
Os órfãos estavam subnutridos e doentes. Muitos nunca haviam saído do orfanato. Estavam assustados. Ela recrutara soldados e a equipe da ABC para ajudar a segurá-los,
transportá-los e alimentá-los. É incrível de que forma permanente e profunda os corações daqueles voluntários ficaram tocados naquele lindo sábado em que 219 crianças
foram transportadas para a liberdade. Todos os voluntários choraram de alegria e satisfação por terem contribuído tangivelmente para a liberdade do próximo.
Os vôos fretados das Filipinas para casa criaram uma grande controvérsia. O custo do avião da United Airlines foi de US$21.000.0 Dr. Tisdale garantiu o pagamento
por amor aos órfãos. Se Betty tivesse tido mais tempo, provavelmente
conseguiria de graça! Mas o tempo era o principal, então ela agiu rapidamente.
Aproximadamente um mês depois de sua chegada aos Estados Unidos, todas as crianças haviam sido adotadas. A agência Tresler Lutheran, em York, Pennsylvania, especializada
em adoções de crianças deficientes, encontrou um lar para cada órfão.
Betty provou repetidas vezes que, definitivamente, se pode fazer qualquer coisa, basta ter disposição para pedir, para não se acomodar diante de um "não", para fazer
o que for necessário e perseverar.
Como disse o Dr. Tom Dooley certa vez: "São necessárias pessoas comuns para fazer coisas extraordinárias."
Jack Canfield e Mark V. Hansen
257
256
Em 1989, um terremoto de 8.2 graus quase nivelou a Armênia, matando mais de 30 mil pessoas em menos de quatro minutos.
Em meio à completa devastação e ao caos, um pai deixou sua esposa a salvo em casa e correu para a escola onde seu filho deveria estar, descobrindo simplesmente que
o prédio tinha sido achatado como uma panqueca.
Depois do traumático choque inicial, ele lembrou a promessa que fizera a seu filho:
- Haja o que houver, eu sempre estarei com você!
E lágrimas começaram a encher seus olhos. Olhando para a pilha de escombros que antes havia sido a escola, parecia sem esperança, mas ele continuava recordando seu
compromisso com o filho.
Começou a se concentrar nos caminhos que percorria para conduzir o filho à classe todas as manhãs. Lembrandose que a classe de seu filho ficava no canto direito
ao fundo do prédio, ele correu para lá e começou a cavar no meio do entulho.
Enquanto cavava, outros pais desesperados chegaram com os corações apertados e dizendo:
- Meu filho!
- Minha filha!
Outros pais bem-intencionados tentavam retirá-lo de
cima do que sobrara da escola dizendo:
- Tarde demais! - Estão mortos!
-Você não pode ajudar! - Vá para casa!
- Vamos, encare a realidade, não há nada que você pos
sa fazer!
- Você só vai piorar as coisas!
E a cada um ele respondia com apenas uma frase:
- Você vai me ajudar? - e continuava cavando em bus
ca de seu filho, pedra por pedra.
O chefe do corpo de bombeiros apareceu e tentou afastá
lo das ruínas da escola dizendo:
- Há incêndios começando e explosões em toda a parte.
O senhor está em perigo. Nós cuidaremos de tudo. Vá para
casa.
Ao que este pai armênio, amoroso e cuidadoso, respon
dia:
- Você vai me ajudar?
A polícia chegou e disse:
- O senhor está revoltado, decepcionado e arrasado. O
senhor está colocando outras pessoas em risco. Vá para casa.
Nós cuidaremos disso!
A quem ele replicou: - Você vai me ajudar? Ninguém o ajudou.
Corajosamente, ele prosseguiu sozinho, porque precisa
va ver com seus próprios olhos: "Meu garoto estará vivo ou
morto?"
Cavou por oito horas... 12 horas... 24 horas... 36 horas... e
então, na trigésima oitava hora, removeu uma enorme pedra
• 259
Você vai me ajudar?
258
#e ouviu a voz de seu filho. Gritou seu nome "ARMAND!" E ouviu em resposta:
- Papai?! Sou eu, papai! Eu disse aos outros garotos que não se preocupassem. Disse a eles que se estivesse vivo, você me salvaria, e quando me salvasse, todos estariam
salvos. Você prometeu "Haja o que houver, estarei sempre com você!" Você cumpriu, papai!
- O que está acontecendo aí? Como está? - perguntou o pai.
- Restaram quatorze da nossa turma de 33, papai, Estamos assustados, com fome, com sede, e gratos por você estar aqui. Quando o prédio caiu, formou-se uma cunha,
como um triângulo, e isso nos salvou.
- Saia daí, garoto!
- Não, papai! Deixe os outros garotos saírem primeiro, porque sei que o senhor vai me esperar! Haja o que houver, sei que estará sempre comigo!
Há um romance do século dezenove que se passa numa pequena cidade gaulesa, na qual, durante os últimos quinhentos anos, a cada ano, na noite de Natal, o povo todo
se reúne na igreja para orar. Pouco antes da meia-noite, eles acendem velas e, cantando cânticos e hinos, descem alguns quilômetros por um caminho de terra, em direção
a uma velha choupana de pedra abandonada. Lá montam um presépio, com manjedoura e tudo. E, em simples devoção, se ajoelham e rezam. Seus hinos aquecem o ar gelado
de dezembro. Todos da cidade, podendo caminhar, estão lá.
Há um mito naquela cidade, uma crença de que se todos os habitantes estiverem presentes na noite de Natal, e se todos rezarem com fé verdadeira, então, e só então,
ao bater da meia-noite, o Messias retornará. E durante quinhentos anos, o povo tem ido àquela ruína de pedra e rezado. Entretanto, o retorno do Messias os iludiu.
Pergunta-se a uma das principais personagens neste romance:
- Você acredita que Ele voltará para a nossa cidade na noite de Natal?
-Não -ele responde, balaçando tristemente a cabeça não acredito.
Só mais uma vez
Mark V. Hansen
260•
• 261
- Então, por que vai todos os anos? - pergunta
- Ah - diz ele sorrindo. - E se eu for o único a não tar lá quando acontecer?
Sua fé é bem pequena, não é? Mas, ainda assim é algo
fé. Como foi dito no Novo Testamento, basta uma fé do ta. manho de um grão de semente de mostarda para entrar no reino dos céus. E, algumas vezes, ao trabalharmos
com crianças perturbadas, jovens que correm perigo, adolescentes pra blemáticos, parceiros, amigos ou clientes alcoólatras, corruptos ou depressivos... é nesses
momentos que precisamos daquele pouquinho de fé que fazia aquele homem retornar à ruína de pedra na noite de Natal. Só mais uma vez. Só esta próxima vez, talvez
aconteça.
Às vezes, somos chamados a trabalhar com pessoas que outros já perderam todas as esperanças de recuperar. Talvez nós também cheguemos à conclusão de que não há possibilidade
de mudança ou crescimento. É nesta hora que, se conseguirmos encontrar o menor resíduo de esperança, dobramos a esquina e conseguimos uma melhoria considerável,
salvamos alguém que vale a pena ser salvo. Por favor volte, amigo, só mais uma vez.
Hanoch McCarty
Há muitas pessoas que poderiam ser campeãs olímpicas; todos os norte-americanos que nunca tentaram. Estimo que cinco milhões de pessoas poderiam ter me vencido nos
anos em que ganhei a competição de salto com vara; cinco milhões, no mínimo. Homens mais fortes, maiores e mais velozes do que eu poderiam tê-lo feito, mas nunca
pegaram uma vara; nunca fizeram o menor esforço para tirar as pernas do chão e tentar passar por cima da barra.
A grandeza está ao nosso redor. É fácil ser grande porque as grandes pessoas o ajudarão. O fantástico em todas as convenções a que vou é que as pessoas mais importantes
da área comparecem e compartilham suas idéias, métodos e técnicas com todos os outros. Tenho visto os maiores homens de vendas se abrirem e mostrarem aos jovens
vendedores exatamente como fizeram. Eles não escondem. Também descobri que isso acontece ainda no mundo dos esportes.
Nunca me esquecerei de quando estava tentando bater o recorde de Dutch Warmer Dam. Eu estava cerca de uns 30 centímetros abaixo de sua marca; então, telefonei para
ele. Disse-lhe:
- Dutch, você me ajudaria? Parece que estou estacionado. Não consigo saltar mais alto.

263
Há grandeza ao

seu redor - aproveite-a
262
I
Ele disse:
-Claro, Bob, venha me visitar e eu lhe transmitirei tudo que sei.
Passei três dias com o mestre, o maior do mundo. Por três dias, Dutch me ensinou tudo que sabia. Havia coisas que eu estava fazendo errado e ele as corrigiu. Para
encurtar a história, saltei 16 centímetros mais do que sua marca. Aquele grande sujeito me deu o melhor que podia. Descobri que campeões do esporte e heróis fazem
isso de boa vontade, apenas para que você também se torne grande.
John Wooden, o grande treinador de basquete da UCLA., tem a filosofia de que todos os dias se deve ajudar alguém que nunca possa lhe retribuir. Este é o seu dever.
Quando estava na faculdade, trabalhando em sua tese sobre futebol defensivo e explorador, George Allen redigiu um questionário de trinta páginas e enviou-o para
os melhores treinadores do mundo. Oitenta e cinco por cento responderam todo o questionário.
Os grandes compartilham; foi o que fez de George Allen um dos maiores técnicos de futebol do mundo. Os grandes contam seus segredos. Procure-os, telefone-lhes ou
compre seus livros. Vá onde eles estão, fique em volta deles, converse com eles. É fácil ser grande quando se está ao lado dos grandes.
Bob Richards
Atleta Olímpico
264•
7
SABEDORIA
ECLÉTICA
Esta vida é um teste.

É só um teste.

Se fosse de verdade

Você teria recebido

Mais instruções sobre

Onde ir e o que fazer!

Retirado de um
quadro de avisos
#Negócio fechado!


Quando Marita tinha treze anos, as meninas usavam camisetas tingidas e jeans rasgados. Embora tivesse crescido durante a Depressão e não tivesse dinheiro para roupas,
eu nunca havia me vestido de forma tão desleixada. Um dia, vi Manta na rua esfregando a bainha de seus jeans novos com poeira e pedras. Fiquei furiosa quando a vi
estragando as calças que eu havia acabado de pagar e corri para lhe dizer isso. Ela continuou a triturar as calças enquanto eu recomeçava minha novela de privações
da infância. Quando terminei, sem conseguir levá-la às lagrimas de arrependimento, perguntei por que ela estava arruinando seus jeans novos. Ela respondeu sem me
olhar:
-Não se pode usar jeans novos.
- Por que não?
- Porque não, por isso estou esfregando para que pareçam velhos.
Uma total falta de lógica! Como poderia ser moda estragar roupas novas?
Todas as manhãs, quando ela saía de casa para a escola, eu olhava para ela e suspirava:
• 267
- Minha filha, com essa aparência.
Lá estava ela com a velha camisa do pai, tingida com
grandes manchas e tiras azuis. Perfeita para pano de chão,
pensei. E os jeans - tão baixos que eu temia que se ela respi
rasse fundo eles desceriam de seu traseiro. Mas para onde
eles iriam? Eram tão justos e duros que não poderiam se mo
ver. As bainhas, com a ajuda das pedras, tinham fios que se arrastavam atrás dela à medida que andava.
Um dia, depois que ela saiu para a escola, foi como se Deus chamasse minha atenção e dissesse:
- Você percebe quais são suas últimas palavras a Marita todas as manhãs? "Minha filha, com essa aparência." Quando ela chega à escola e seus amigos falam de suas
mães antiquadas que reclamam o tempo todo, ela terá seus comentários constantes para contribuir. Você já olhou para as outras garotas da classe dela? Por que você
não dá uma olhada?
Naquele dia, fui buscá-la na escola e observei que muitas das outras meninas tinham uma aparência ainda pior. No caminho para casa, mencionei minha reação exagerada
aos seus jeans arruinados. Assumi um compromisso:
- De agora em diante, você pode usar o que quiser para ir à escola e sair com seus amigos; e eu não vou mais importuná-la.
- Será um alívio.
- Mas quando você for comigo à igreja ou ao shopping
ou à casa de meus amigos, gostaria que se vestisse do jeito
que você sabe que eu gosto sem precisar dizer uma palavra. Ela pensou no acordo.
Então acrescentei:
- Isso significa 95% do seu jeito e 5% do meu. O que você acha?
Seus olhos brilharam e ela estendeu sua mão e apertou a minha.
-Negócio fechado!
Daquele dia em diante, passei a despedir-me dela alegremente pela manhã, sem importuná-la a respeito de suas roupas. Quando saíamos juntas, ela se vestia adequadamente,
sem estardalhaço. Negócio fechado!
Florence Littauer
• 268
• 269
#Reserve um momento para

ver de verdade


Todos nós já ouvimos a expressão: "Lembre-se de parar e sentir o perfume das rosas." Mas com que freqüência realmente reservamos tempo das nossas vidas agitadas
para perceber o mundo à nossa volta? Comumente, somos prisioneiros de nossos horários ocupados, de pensamentos sobre nosso próximo compromisso, do trânsito ou da
vida em geral, tanto que não nos damos conta de que há outras pessoas por perto.
Sou tão culpado quanto qualquer um por dessintonizar o mundo dessa forma, especialmente quando estou dirigindo pelas ruas exageradamente cheias da Califórnia. Há
pouco tempo, no entanto, testemunhei um acontecimento que me mostrou o quanto o fato de ser prisioneiro de meu pequeno mundo me impedia de estar completamente consciente
da imagem maior do mundo ao meu redor.
Eu dirigia o carro a caminho de um compromisso de negócios e, como de costume, planejava em minha mente o que iria dizer. Cheguei a um cruzamento muito movimentado
onde o sinal acabara de ficar vermelho.
- Tudo bem - pensei comigo mesmo -, posso passar o próximo sinal se arrancar à frente dos outros.
Minha mente e meu carro estavam no pilotoauto%prontos para sair quando, de repente, meu transe E01 ~i
rompido por uma visão inesquecível. Um joveP casa, bos cegos, caminhava de braços dados atrave9sandq cruzamento movimentado, cheio de carros zunindo 1 das as direções.
O homem segurava a mão de uWSar~t; e a mulher apertava um "porta-bebês" contra o se10"~~~ fiando obviamente uma criança. Ambos levavam n , gala branca à frente,
tateando pistas que os gviose ~ cruzamento.
Eles estavam superando
A princípio fiquei tocado. eu achava uma das deficiências mais temerosas-
a cai
— "Não seria horrível ser cego?" -pensei. Meus pense
. tos foram subitamente interrompidos por horror/ 9ua
que o casal não caminhava pela faixa de ped&tres,
desviava na diagonal, em direção ao meio do a hP Sem perceberem o perigo que corriam estavann nq
, TF,
Ao bem na direção dos carros que se aproximavam' 1 eles, pois não sabia se os outros motoristas havíamc~V i endido o que estava acontecendo. É,
Olhando da primeira fila de trânsito (eu estava hpi~, lhor lugar da casa), vi um milagre se manifestar d'ahr`
meus olhos. Todos os carros, em todas as direções, Mktkt )
multaneamente Não ouvi ruídos de freadas, nem ° v,11 . buzinas. Ninguém sequer gritou: "Saiam do carYlinhol~
o tempo parece0 Ya W congelou. Naquele momento,
aquela família. ar i
Surpreso, olhei para os carros à minha volta F c z1~
J
car se estávamos todos vendo a mesma coisaa rotei
b¿,
das as atenções também se haviam fixado no Ga ' ~J ,I~i mente, o motorista à minha direita reagiu. Estica"'p ) coço para fora do seu carro, gritou:
- Para a direita! Para a direita! P?
Outras pessoas o seguiram, em uníssono, gïltando ~I a direita!"
• 270
• 271
#Sem perder o ritmo, o casal ajustou o curso seguindo as instruções. Confiando em suas bengalas brancas e nos gritos de alguns cidadãos preocupados, eles conseguiram
chegar ao outro lado da rua. Ao atingirem o meio-fio, algo me intrigou - estavam ainda de braços dados.
Fiquei surpreso pelas expressões sem emoção em seus rostos e julguei que eles não tivessem idéia alguma do que estava acontecendo ao seu redor. Senti ainda, imediatamente,
os suspiros de alívio de todos que estavam parados no cruzamento.
Ao olhar para os carros à minha volta, pude ver que o motorista à minha direita pronunciava as palavras "Uau, você viu isso?!" O motorista à minha esquerda dizia
"Não acredito!" Acho que todos ficamos profundamente tocados com o que havíamos acabado de testemunhar. Ali estavam seres humanos esquecendo-se de si mesmos por
um momento, a fim de ajudar quatro pessoas em dificuldades.
Voltei a refletir sobre essa situação várias vezes, e dela aprendi diversas lições poderosas. A primeira é: "Diminua a velocidade e sinta o perfume das rosas" (algo
que eu raramente fizera até então). Reserve um tempo para olhar à sua volta e realmente ver o que está acontecendo neste exato momento, diante de você. Faça isso
e perceberá que este momento é tudo o que há, e mais importante, este momento é tudo que você tem para tornar sua vida diferente.
A segunda lição que aprendi é que os objetivos que estabelecemos para nós podem ser alcançados, através da fé que depositamos em nós mesmos e nos outros, a despeito
de obstáculos aparentemente insuperáveis.
O objetivo do casal de cegos era simplesmente chegar ao outro lado da rua intactos. Seu obstáculo eram oito filas de carros apontados diretamente para eles. Mesmo
assim, sem pãnico ou dúvida, eles foram em frente até atingir seu objetivo.
Nós também podemos ir em frente para alcançar nossos objetivos, colocando vendas nos olhos para os obstáculos
que se colocarem em nosso caminho. Apenas precisamos confiar em nossa intuição e aceitar as instruções de outras pessoas que tenham maior discernimento.
Finalmente, aprendi a apreciar de verdade o meu dom da visão, algo que eu ignorava com muita freqüência. Você pode imaginar o quanto a vida seria diferente sem seus
olhos? Tente se imaginar, por um momento, caminhando num cruzamento movimentado sem poder enxergar. Com que freqüência nos esquecemos das dádivas simples, porém
incríveis, que recebemos na vida.
Ao me afastar daquele cruzamento movimentado, eu dirigia mais consciente da vida e com mais compaixão pelos outros do que possuía ao chegar ali. Desde então, tomei
a resolução de enxergar a vida de verdade ao realizar minhas atividades diárias e usar meus talentos, concedidos por Deus, para ajudar outras pessoas menos afortunadas.
Enquanto caminha pela vida, faça um favor a si mesmo: diminua a velocidade e reserve um tempo para ver de verdade. Reserve um momento para ver o que está acontecendo
à sua volta, neste exato instante, bem onde você está. Você pode estar perdendo algo maravilhoso.
J. Michael Thomas
272
273
Se eu pudesse começar

tudo novamente
Fui uma dessas pessoas que nunca vão a lugar algum sem
um termômetro, uma garrafa térmica, uma capa de chu
va e um pára-quedas.
Se eu pudesse viver novamente, viajaria mais leve da próxi
ma vez.
Se eu pudesse viver novamente, tiraria os sapatos no começo
da primavera e ficaria descalço até o final do outono. Dançaria mais.
Subiria em mais carrosséis. Colheria mais margaridas.
Entrevistas com doentes terminais e idosos não revelam se as pessoas se arrependem das coisas que fizeram, mas a maioria fala sobre o que se arrependeu de não ter
feito.
Eu me arriscaria mais da próxima vez. Relaxaria. Seria flexível.
Seria mais bobo do que fui nesta viagem. Levaria as coisas menos a sério.
Aproveitaria mais oportunidades. Viajaria mais.
Subiria mais montanhas e nadaria em mais rios.
Tomaria mais sorvete e comeria menos feijão.
Talvez eu tivesse mais problemas reais, mas teria menos ima
ginários.
Veja, sou dessas pessoas que vivem de forma sensata todas as horas, todos os dias.
Oh, tive meus momentos, e se pudesse começar novamente, teria mais alguns. Na verdade, tentaria não ter nada mais. Só momentos.
Um após o outro, em vez de viver tantos anos à frente de cada dia.
Nadine Stair
(85 anos)
• 274
• 275
Dois monges
Dois monges em peregrinação iam passando por um rio. Lá avistaram uma menina vestida com toda a elegância, obviamente sem saber o que fazer, já que o rio estava
alto e ela não queria estragar suas roupas. Sem mais cerimônias, um dos monges levou-a nas costas, atravessou-a e depositou-a em solo seco do outro lado.
Então os monges continuaram seu caminho. Porém o outro monge, depois de uma hora, começou a reclamar:
- Com certeza não é certo tocar uma mulher; é contra os mandamentos ter contato íntimo com mulheres. Como você pôde ir contra as leis dos monges?
O monge que carregara a menina seguia em frente em silêncio, mas finalmente observou:
- Eu a deixei no rio há uma hora, por que você ainda a está carregando?
Logo após o nascimento de seu irmão, a pequena Sachi começou a pedir a seus pais que a deixassem a sós com o bebê. Temendo que, como a maioria das crianças de quatro
anos, ela pudesse sentir ciúmes e o quisesse machucar, eles disseram não. Porém, ela não mostrava sinais de ciúmes. Tratava o bebê com carinho e seus apelos para
que fosse deixada a sós com ele começaram a se intensificar. Eles decidiram permitir.
Alvoroçada, ela entrou no quarto do bebê e fechou a porta; mas uma fresta se abriu - o suficiente para que seus curiosos pais espiassem e ouvissem. Eles viram a
pequena Sachi andar devagarinho até seu irmãozinho, aproximar seu rosto para bem junto do dele e dizer baixinho:
- Bebê, diga-me como é Deus. Estou começando a me esquecer.
Irmgard Schloegl
The Wisdom of The Zen Masters
Dan Millman
• 276
• 277
Estava a cerca de doze metros de profundidade na água, sozinha. Sabia que não devia ter ido sozinha, mas era bastante hábil e apenas estava aproveitando a oportunidade.
Não havia muita correnteza, e a água estava morna, clara e atraente. Ao ter uma cãibra, percebi logo como havia sido tola. Não fiquei alarmada, mas estava completamente
dobrada de cãibras no abdômen. Tentei remover meu cinturão de peso, mas estava tão dobrada que não conseguia alcançar a fivela. Fui afundando e comecei a ficar mais
amedrontada, incapaz de me mover. Eu podia enxergar meu relógio e sabia que havia apenas mais um pouco de tempo no tanque, até que ficasse sem ar. Tentei massagear
meu abdômen. Eu não estava de roupa de borracha, mas não conseguia me esticar para alcançar os músculos retesados com as mãos.
Pensei: "Não posso terminar assim! Tenho coisas a fazer!" Eu simplesmente não podia morrer daquela forma, anonimamente, sem que ninguém ao menos soubesse o que me
acontecera. Chamei mentalmente "Alguém, alguma coisa, socorro!"
Eu não estava preparada para o que aconteceu. De repente, senti um cutucão por trás de mim sob a axila. Pensei: Oh, não, tubarões!" Fiquei realmente aterrorizada
e entrei
em desespero. Mas meu braço estava sendo levantado energicamente. No meu campo de visão entrou um olho - o olho mais maravilhoso que eu jamais poderia imaginar.
Eu juro que sorria. Era o olho de um enorme golfinho. Olhando dentro daquele olho, eu soube que estava salva.
Ele veio mais para a frente, cutucando e enganchando sua barbatana embaixo da minha axila, deixando meu braço sobre suas costas.
Relaxei, abraçando-o, aliviada. Senti que o animal estava me transmitindo segurança, que estava me curando ao mesmo tempo que me levava para a superfície. Minhas
cãibras passaram, conforme subíamos e eu relaxava em segurança, mas senti que ele também me curara.
Na superfície, ele me puxou até a praia. Levou-me a águas tão rasas que comecei a temer que encalhasse e puxeio de volta um pouco mais para o fundo, onde ele esperou,
me observando, acho que querendo ver se eu estava bem.
Foi como se eu tivesse renascido. Quando tirei o cinturão de peso e o tanque de oxigênio, tirei simplesmente todo o resto e voltei nua para dentro do oceano e para
o golfinho. Eu me sentia tão livre e leve e viva, que queria apenas brincar ao sol e na água, gozando de toda aquela liberdade. O golfinho me levou de novo para
o fundo e brincou comigo na água. Notei que havia uma porção de golfinhos ali, mais distantes.
Depois de um tempo ele me levou de volta para a praia. Eu estava muito cansada, quase desmaiando, e ele se certificou de que eu estivesse a salvo em águas mais rasas.
Depois, virou-se de ambos os lados, com um olho fitando os meus. Permanecemos assim pelo que me pareceu muito tempo, uma eternidade, eu acho, quase que em transe,
com pensamentos pessoais sobre o passado atravessando minha mente. Depois, ele apenas emitiu um som e foi para o fundo se juntar aos outros. E todos partiram.
Elizabeth Gawain
O presente do golfinho
-278
279
O toque da mão do mestre
"Estava maltratado e amassado, e o leiloeiro
Pensou que quase nem valia a pena Perder tanto tempo com o velho violino, Porém, segurou-o com um sorriso.
"Quanto me oferecem, meus amigos?" - falou - "Quem dará o primeiro lance?" "Um dólar, um dólar", e então, dois! Apenas dois? "Dois dólares, e quem oferecerá três?
Três dólares, dou-lhe uma; três dólares, dou-lhe duas; Dou-lhe três..." Mas, não,
Do salão, lá no fundo, um homem grisalho Veio à frente e tomou do arco: Então, tirando a poeira do velho violino, E afinando as cordas frouxas, Tocou uma doce e
pura melodia Como canta um anjo que gorjeia.

Cessa a música, e o leiloeiro,
Em voz suave e calma,
Diz: "O que me oferecem pelo velho violino?" E segura-o no alto juntamente com o arco.
280•
"Mil dólares, e quem oferecerá dois?
Dois mil! Alguém dá três?
Três mil, dou-lhe uma; três mil, dou-lhe duas; Dou-lhe três, vendido", diz ele.

A pessoas aplaudem, mas algumas gritam
"Não compreendemos nada.
O que alterou seu valor?" A resposta vem imediata: O toque da mão de um mestre.

E muitas vezes um homem com a vida fora de tom E judiado e marcado pelo destino, É vendido barato para a multidão descuidada, Assim como o velho violino. Um prato
de sopa, um cálice de vinho; Um jogo - e ele segue viajando. Vai "uma", e vão "duas", Vai a "terceira" e "foi".
Mas, vem o Mestre, e a tola multidão Nunca compreende
O valor de uma alma e a mudança operada Pelo toque da mão do Mestre.
Myra B. Welch
• 281
Mais canja de galinha?
Abra seu coração para o resto do mundo. Se você tem uma história, poema ou artigo (próprio ou de outra pessoa) e acha que poderia ser incluído em um próximo volume
de Canja de Galinha para a Alma, por favor, envie-nos.

Jack Canfield e Mark Victor Hansen

Self-Esteem Seminars (Seminários de auto-estima)

6035 Bristol Parkway

Culver City, California 90230
FAX: 310-337-7465
CONTRIBUIÇÕES
Nos certificaremos de que você e o autor recebam os créditos pela contribuição. Obrigado!
Palestras, seminários e workshops
Você também pode entrar em contato conosco no endereço acima para palestras ou para informações sobre circulares, outros livros, fitas de aúdio, workshops e programas
de treinamento.
Nós lhe desejamos muito amor! Jack e Mark
• 282
..r
#Muitas das histórias deste livro foram retiradas de livros que lemos. As fontes são declaradas na seção de Agradecimentos. Algumas das histórias e poemas foram
contribuições de nossos amigos que, como nós, são oradores profissionais. Se quiser entrar em contato com eles para informações sobre seus livros, gravações e seminários,
poderá encontrá-los nos endereços e telefones fornecidos abaixo.
Wally "Famous" Amos é fundador do Famous Amos Cookies e autor do livro e do álbum de cassetes The Power...In You. Wally mora em Maúi, Havaí. Para entrar em contato
com ele, escreva para 215 Lanito Drive, Kailua, Hawaü 96734 ou ligue para (808) 261-6075.
Joe Batten C.P.A.E. é orador profissional e homem de negócios de sucesso, que sabe como inspirar autoconfiança em organizações nos bons e nos maus tempos da economia.
Seus trinta e cinco anos de experiência como autor, consultor e orador rendeu-lhe o título de Mentor de Empresas. Joe foi autor do best-seller: Tough Minded Management.
Joe é um homem que ama a vida e as risadas, e transmite essa ternura e essa paixão a qualquer público. Você poderá se comunicar com joe escrevendo para 2413 Grand
Avenue, Des Moines, Iowa, 50312 ou ligando para (515) 244-3176.
Gene Bedley é o diretor da Escola Elementar de El Rancho, em Irvine, Califórnia, ganhador do prêmio PTA de 1985 como Educador Nacional do Ano e autor de inúmeros
livros sobre como criar um ambiente positivo em sala de aula. Pode-se entrar em contato
• 285
#com ele em 14252 East Mall, Irvine, Califórnia 92714 ou pelo telefone (714) 551-3090.
Michele Borba é uma criativa autora que escreve sobre o desenvolvimento de auto-estima em salas de aula de cursos elementares. É membro do Conselho Nacional pela
Auto-estima. Seu melhor livro é Esteem Builders, coletânea de 379 atividades de sala de aula. Pode-se entrar em contato com ela escrevendo para 840 Proseou Drive,
Palco Springs, Califórnia 92262 ou pelo telefone (619) 323-5387.
Helice Bridges é uma considerada e dinâmica oradora e instrutora, que viaja internacionalmente, realizando treinamentos e workshops em escolas, organizações e empresas.
É presidente da Board for Difference Makers, Inc., e pode-se entrar em contato com ela pela P.O. Box 2115, Del Mar, Califórnia 92014 ou pelo telefone (619) 481-6019.
Les Brown é um orador altamente aclamado que fala às 500 empresas da Fortune e conduz seminários particulares e profissionais por todo o país. É bastante conhecido
do público da televisão americana por seus especiais para a PBS, todos os quais podem ser encontrados em vídeo e audiocassetes. Para entrar em contato com ele, escreva
para Les Brown Unlimited, 2180 Penobscot Building, Detroit, Michigan 48226 ou pelo telefone (800) 733-4226.
Dan Clark é orador motivacional profissional, que conduziu milhares de palestras para estudantes de colégio, pais e corporações. Pode ser contatado através da P.O.
Box 8689, Salt Lake City, Utah 84108 ou pelo telefone (801) 532-5755.
Alan Cohen é um orador criativo e dinâmico e escritor. Entre seus livros o nosso favorito é The Dragou Doesn't Live Here Anymore. Pode-se entrar em contato com ele
na P.O. Box 450, Kula, Hawaü 96790 ou pelo telefone (808) 572-4500 ou (808) 878-2803.
Roger Crawford é orador motivacional dinâmico. Seu livro chamase Playing froco The Heart. Pode ser contactado escrevendo-se para 1050 St. Andrews Drive, Byron, Califórnia
94514 ou pelo telefone (510) 634-8519.
Stan Dale, anteriormente a voz do The Shadow e apresentador e narrador dos programas de rádio The Lone Ranger, Sgt.Preston e The Green Hornet, é diretor-fundador
do Human Awareness Instituto em San Mateo, Califórnia, uma organização dedicada a "criar um mundo onde todos sejam vencedores". Conduz os workshops "Sexo, Intimidade
e Amor" ao redor do mundo. É autor de Fantasies Can Set You Free e My Child, My Self: How to Raise The Child You Always Wanted To Be. Ambos também disponíveis em
cassete no The Human Awareness Institute,1720 S. Amphlett B1vd. Suite 128, San Mateo, Califórnia 94402 ou pelo telefone (800) 800-4117 ou (415) 571-5524.
Burt Dubin é o criador do Speaking Sucess System, um poderoso instrumento para ajudar aspirantes a oradores a desenvolverem presença no palco e a mágica do marketing.
Um especialista em marketing e posicionamento, Burt transmite suas habilidades dos palanques quando se dirige às associações e organizações atacadistas e varejistas.
Pode ser encontrado no Management Achievement Instituto, Box 6543, Kingman, Arizona 86402-6543 ou telefonando-se para (800) 321-1225.
Patricia Fripp,,C.S.P, C.P.A.E. é a "oradora para todas as ocasiões". Foi presidente da National Speakers Association e é uma das oradoras mais dinâmicas que conhecemos.
Pode ser contactada em 527 Hugo Street, San Francisco, Califórnia 94122 ou telefonando para (415) 753-6556.
Bobbie Gee, C.S.P. é considerada como uma das oradoras americanas mais destacadas. É autora do livro Winning the Image Game (Pagemill Press) e de dois álbuns de
cassetes Life Doesn't Have To Be A Struggle e Image Power. Você poderá entrar em contato com ela através da Bobbie Gee Enterprises, 1540 S. Coast Highway, Suite
206, Laguna Beach, Califórnia 92651 ou pelo telefone (800) 4624386 ou (714) 497-1915.
Rick Gelinas é presidente da Lucky Acorns Delphi Foundation em Miami, Flórida. Tem Mestrado em Educação e dedica sua vida a ser útil às crianças. Pode-se contactá-lo
através de 5888 S.W. 77 Terrace, Miami, Flórida 33143 ou pelo telefone (305) 667-7756.
• 286
• 287
John Goddard é aventureiro, explorador e orador motivacional de categoria mundial. Pode ser contactado em 4224 Beulah Drive, La Canadá, Califórnia 91101 ou pelo
telefone (818) 790-7094.
Patt Hansen é esposa de Mark e diretora administrativa da Look Whó s Talking. Pode ser contactada pela P.O. Box 7665, Newport Beach, Califórnia 92658 ou pelo telefone
(714) 759-9304.
Danielle Kennedy, M.A. é autora famosa, instrutora de vendas de nível internacional, sugestiva e premiada vendedora. Possui diploma honorário em Humanidades da Faculdade
de Clarke e Doutorado em Redação Profissional da Universidade da Califórnia do Sul. Faz palestras sobre vendas, marketing e liderança em 100 cidades por ano. Seus
livros mais vendidos incluem How To List and Sell Real Estate in The '90s (Prentiee Hall) e Kennedy On Doubling Your Incorre in Real State Sales Qohn Wiley). É casada
e tem oito filhos. Pode ser contactada em 219 S. El Camino Real, San Clemente, Califórnia 92672 ou pelo telefone (714) 498-8033.
Florente Littauer, C.S.P., C.P.A.E., é uma das pessoas mais maravilhosas que conhecemos. É professora e escritora inspirada. Entre seus livros, nosso favorito é
Little Silver Boxes. Pode ser contactada em 1645 Rancho Fe Rd., San Marcos, Califórnia 92069 ou pelo telefone (619) 744-9202.
Rick Little nos últimos dezesseis anos tem participado de ampla gama de esforços em prol da melhoria das condições econômicas e sociais das crianças e da juventude.
Em 1975 fundou a Quest International, da qual foi presidente por 15 anos. O Sr. Little foi coautor de livros com autoridades em juventude, incluindo Bill Cosby e
o Dr. Charlie W. Shedd. Em 1990, Rick Little fundou a International Youth Foundation com apoio maior da Fundação W.K. Kellogg. Agora é Secretário Geral da International
Youth Foun
dation, cujo objetivo é identificar e financiar programas para a juventude que tenham demonstrado sucesso e sejam reaplicáveis. A fundação geralmente se concentra
em programas no Sul da África, Polônia, Equador, México, Bangladesh, Tailândia e Filipinas.
Hanoch McCa^ Ed.D., é orador profissional, instrutor e consultor especializado em motivação, produtividade e aperfeiçoamento da auto-estima. Hanoch é um dos mais
procurados oradores da
nação, pois combina humor e histórias comoventes a habilidades práticas que podem ser trabalhadas imediatamente. Seus livros e programas em fitas de vídeo incluem
Stress and Energy e SelfEsteem: The Bottom Line. Para entrar em contato com ele, escreva para P.O. Box 66, Galt, Califórnia 95632 ou pelo telefone (800) 2317353.
Dan Millman é autor de inúmeros livros sobre tomar-se um vencedor espiritual. É ex-campeão mundial de ginástica, treinador na universidade e um professor de faculdade
cuja desilusão para com a vida "normal" levou-o ao redor do mundo e para dentro das profundezas de seu coração e sua mente. Suas experiências geraram uma visão da
vida que ele chama de "o caminho do guerreiro pacifista". Seus livros incluem Way Of The Peaceful Warrior, The Warrior Athlete, e No Ordinary Moments. Pode ser contactado
através da Peaceful Warrior Services, P.O. Box 6148, San Rafael, Califórnia 94903 ou pelo telefone (415) 491-0301.
W. Mitchell, C.P.A.E., é dos mais inspirados oradores que já conhecemos. Seu programa gravado chama-se It's Not What Happens To You, It's What You Do About It. Pode
ser contactado em 12014 W. 54th Drive, #100, Arvada, Colorado 80002 ou pelo telefone (303) 425-1800..
Robert Moawad é dirigente e diretor-executivo do Edge Leaming Instituto com escritórios em Tacoma, Washington e Tempo, Arizona. A Edge é uma firma de desenvolvimento
profissional dedicada a auxiliar organizações a atingirem melhores níveis de produtividade, qualidade e satisfação do cliente. Bob é um "educador-apresentador" dinâmico.
Tem impressionante capacidade de inspirar e impacto sobre o público ao misturar ilustrações coloridas a sólidos princípios. Isso o tornou um dos mais procurados
oradores de diretrizes do país. Desde 1973 ele assistiu mais de 2 milhões de pessoas, incluindo alguns dos líderes mais respeitados dos negócios, governo e educação.
Pode ser contactado escrevendo-se para a Edge Learning Instituto, 2217 N. 30th, #200, Tacoma, Washington 98403 ou pelo telefone (206) 272-3103.
Chick Moorman é diretor do Institute for Personal Power, empresa de consultoria dedicada a promover atividades de desenvolvi


- 289
• 288
mento profissional de alta qualidade para educadores e pais. Todos os anos ele cruza o país conduzindo mais de cem workshops sobre aprendizado cooperativo, aperfeiçoamento
da auto-estima e desenvolvimento de comportamentos positivos. Sua missão é auxiliar pessoas a experimentar um maior sentimento de poder pessoal em suas vidas para
que possam, por sua vez, dar poder ao outros. Seu último livro, que tem como co-autora sua esposa, Nancy, é Teacher Tal: What it Really Means. Teacher Talk explora
as formas pelas quais os professores falam às crianças e examina as "mensagens silenciosas" implícitas que acompanham a palavra falada. Pode ser pedido por $11.95
dólares ao The Instituto for Personal Power, P.O. Box 1130, Bay City, Michigan 48706 ou pelo telefone (517) 686-3251.
Michael Murphy, Ed.D., é diretor da Family Consultation Team no Northern Berkshire Counseling Conter, 85 Main Street, Suite 500, North Adams, Massachusets 01247.
Victor H. Nelson, S.T.M., é terapeuta e conselheiro pastoral particular. Seu endereço é 505 Evergreen Street West, Lafayette, Indiana 47906.
Price Pritchett, Ph.D., tem doutorado em psicologia e foi presidente da Dallas Psychological Association. É diretor-executivo da Pritchett e Associates, Inc., uma
empresa de consultoria especializada em mudança organizacional sediada em Dallas. Dr. Pritchett é autor de onze livros sobre eficiência individual e organizacional,
incluindo: You:z: A High Velocity Formula For Multiplying Your Personal Effeetiveness In Quantum Leaps. Você poderá contactálo pelo endereço 200 Crescem Court, Suite
1080, Dallas, Texas 75201 ou pelo telefone (214) 855-8999.
Bobbie Probstein é escritora e fotógrafa e seu novo livro, Healing Now, foi amplamente elogiado. É indispensável para qualquer um que sofra de doença ou esteja se
preparando para uma cirurgia. Seu primeiro livro, uma autobiografia, Return to Conter, está na terceira edição. Pode ser contactada através da P.O. Box 1433, Santa
Mônica, Califórnia, 90401.
Bob Proctor é presidente dos Seminários Bob Proctor e fundador do Million Dollar Forum em Ontário, Canadá. Bob é autor de You
Were Born Rich e conduz os Born Rich Seminais pelo mundo todo. Os seminários de Bob dão força às pessoas para que possam ter a vida com que sempre sonharam. Você
pode contactá-lo através da Million Dollar International, 211 Consumeis Road, Suite 201, Willowdale, Ontário, Canadá M2J 4G8 ou pelo telefone (416) 4986700.
Nido Qubein, C.S.P., C.P.A.E., é ex presidente da National Speakers Association e destacado orador nas áreas de vendas, gerenciamento e marketing. Entre seus muitos
livros estão Get The Best From Yourself, Communicate Like A Pro e Professional Selling Teehniques. Pode ser contactado pela Creative Services, Inc., P.O. Box 6008,
High Point, North Carolina 27262-6008 ou pelo telefone (919) 889-3010.
Anthony Robbins, nacionalmente conhecido como o líder no campo dos treinamentos de desenvolvimento humano, é autor de dois best-sellers, Unhmited Power e Awaken
The Giant Within: How to Take Immediate Control of Your Mental, Emotional, Physical e Financial Destiny.! Durante os últimos dez anos, mais de um milhão de pessoas
investiram e se beneficiaram de seus seminários, audio cassetes, fitas de vídeo e livros. Ele é fundador de nove empresas, consultor para negócios e governadores
nos Estados Unidos e no exterior, e filantropo comprometido com a criação da Anthony Robbins Foundation. Para maiores informações sobre produtos e serviços, ligar
para Robbins Research International, Inc. no número 1-800445-8183 ou escrever para a empresa em 9191 Towne Centre Drive, Suite 600, San Diego, Califórnia 92122.
Parcela Rogers fez doutorado em Educação na Universidade de Pennsylvania em 1990 e ensina o segundo grau na Reynolds Elementary School em Filadélfia. Estuda teatro
quando não está lecionando.
Glenna Salsbury. C.S.P., C.P.A.E., formada pela Northwestern University em Evanston, Illinois, obteve seu mestrado na UCLA e dezesseis anos depois um mestrado em
Teologia do Fuller Seminary. Em 1980, Glenna fundou sua própria empresa que promove apresentação de diretrizes e seminários de crescimento pessoal. Na vida pessoal
Glenna é casada com Jim Salsbury, ex-Detroit
291
• 290
#Lion e Green Bay Packer e tem três filhas. Telefone ou escreva para obter seu poderoso álbum de seis cassetes chamado Passion, Pozver and Purpose. Pode ser contactada
em 9228 North 64th Placo, Paradise Valley, Arizona 85253 ou pelo telefone (602) 483-7732.
Jack Schlatter, ex-professor, é atualmente orador motivacional. Pode ser contactado em P.O. Box 577, Cypress, Califórnia 90630 ou pelo telefone (714) 772-1974
Lee Shapiro é ex-advogado e juiz que deixou de exercer o Direito por que nunca recebeu uma aclamação de pé de nenhum júri! Agora ele é orador e professor especializado
em ética e gerência, definição de diretrizes e habilidades pessoais. Pode ser encontrado em 5700-12 Baltimore Drive, La Mesa, Califórnia 91942 ou pelo telefone (619)
668-9036.
Frank Siccone, Ed.D., é diretor do Instituto Siccone em São Francisco. É consultor de várias escolas e negócios. Seus livros incluem
Responsibility: The Most Basie R e 101 Ways to Develop Students SelfEsteem And Responsibility com Jack Canfield (Allyn & Bacon). Pode ser contactado através do Siccone
Instituto, 2551 Union Street, São Francisco, Califórnia 94123 ou pelo telefone (415) 922-2244.
Cindy Spitzer é escritora free-lancer que nos auxiliou a reescrever várias de nossas mais difíceis e importantes histórias. Pode ser contactada em 5027 Berwyn Road,
College Park, Maryland 20740.
Jeffrey Michael Thomas é vice-presidente regional da Van Kampen Merritt, empresa de administração de investimentos. É membro da National Speakers Association e fala
sobre tópicos que abrangem desde administração financeira até levantamento de fundos para obras de caridade através de sua empresa, a J. Michael Thomas & Associates.
O Sr. Thomas vive e trabalha em Tustin, Califórnia, e está atualmente pleiteando uma cadeira no Conselho Municipal de Tustin. Pode ser contactado pelo telefone (714)
5441352.
Pamela Truax é autora de Small Business Pitfalls And Bridges. Pode ser contactada através do endereço 2073 Columbia Way, Vista, Califórnia 92083 ou pelo telefone
(619) 598-6008.
Francis Xavier Trujillo, Ed.D., é fundador e presidente da Pro Teach Publications, firma especializada na criação e produção de posters, cartões e materiais relativos
à motivação e construção da estima para estudantes e professores. Seus escritos, inicialmente em formato de cartazes, podem ser vistos enfeitando as paredes de praticamente
todas as escolas dos Estados Unidos. Entre seus títulos se incluem Who Builds The Builders?, The Power to Teach, A Letter to My Students e Giver of a Lifelong Gift.
Frank fala sobre uma variedade de assuntos relacionados à auto-estima, sobre o poder do professor e reforma educacional. Pode ser contactado através da Pro Teach
Publications, P.O. Box 19262, Sacramento, CA 95819 (800) 233-3541. Escreva ou telefone para adquirir seu catálogo colorido que exibe Building Me a Fewchr e dezenas
de posters e materiais de motivação afins. Building MeA Fewchr se tornou a base para o projeto Build Me A Future Project, campanha de correspondência apartidária
de nível nacional, em que garotos de todas as idades enviaram cartas ao Presidente Clinton sugerindo formas pelas quais todos poderiam trabalhar juntos para ajudar
a construir um futuro melhor.
Dottie Walters é presidente da Walters International Speakers Bureau, na Califórnia. Ela envia oradores remunerados ao mundo inteiro e está altamente envolvida no
treinamento de apresentação. É autora, juntamente com sua filha Lilly, do novo livro da Simon and Schuster, Speak and Grow Rich, e fundadora e administradora do
International Group of Agents and Bureaus. Dottie publica a Sharing Ideas, a maior revista do mundo para oradores profissionais. Pode-se escrever para ela para P.O.
Box 1120, Glendora, Califórnia 91740 ou telefonar para (818) 335-8069 ou fax (818) 335- 6127.
Bettie Youngs é presidente do Instruction & Professional Development, Inc., empresa de consultoria e recursos que presta serviços para escolas distritais. Bettie
foi eleita Professora do Ano do louva, atualmente é professora na Universidade Estadual de San Diego e diretora-executiva da Phoenix Foundation. Autora de 14 livros
in
cluindo The Educator's Self-Esteem: It's Criteria #1, The 6 Vital Ingrediente of Self-Esteem And How To Develop Them In Students e Safeguarding Your Teenager From
The Dragons Of Life. Pode ser con
tactada pela P.O. Box 22588, Del Mar, Califórnia 92014 ou pelo telefone (619) 481-6360.
• 292
• 293
#Agradecimentos (continuação)
Gostaríamos de agradecer aos seguintes editores e indivíduos pela permissão de reeditar o material. (Nota: As histórias que foram escritas anonimamente, que são
de domínio público ou foram escritas por Mark Victor Hansen ou por Jack Canfield, não estão incluídas nesta lista.)
Sobre a coragem e Sachi, de Sacred Journey of the Peaceful Warrior de
Dan Millman © 1991 Dan Millman - Reimpresso com a permissão do autor e H.J. Kramer, Inc., P.O. Box 1082, Tiburon, CA 94920. Todos os direitos reservados.
A mais nobre necessidade. Reimpresso por Fred T. Wilhelms. Reimpresso com a permissão do autor e Educational Leadership, 48, 1:51. © ASDC.
Minha declaração de auto-estima e Todo mundo tem um sonho reim
pressos com a permissão expressa por escrito da AVANTA Network, que foi fundada por Virgina Satir e herdou os direitos de toda sua propriedade intelectual. Para
informações sobre direitos dos materiais de Virgínia Satir elou AVANTA Network, entre em contato com: Avanta Network, 310 Third Avenue N.E., Ste.126, Issaquah, WA
98027 ou telefone para (206) 391-7310.
Por que escolhi meu pai para ser meu papai de The Six Ingrediente of SelfEsteem and How They are Developed in Your Children de Bettie B.
Youngs. ©1992 Rawson Assoc.
Sobre a paternidade de O Profeta de KahW Gibran. © 1923 de Kahhl Gibran e renovado em 1951 por Administrators C.T.A. of Kahld Gibran Estate and Mary G. Gibran. Reimpresso
com a permissão de Alfred A. Knopf, Inc.
Costruindo meu futuru. Copyright © 1990. Pro Teach Publications. Autoria de Frank Trujillo. Todos os direitos reservados. (800) 2333541.
Disposto a pagar o preço, de Self Made in America de John McCormack. Reimpresso com a permissão de Addison-Wesley Publishing Co., Inc., e do autor. © 1990 de The
Visible Changes Educational Foundation e David R. Legge.
Dois monges, de Wisdom of the Zen Masters de Irmgard Schloegl. Reimpresso com a permissão de New Directions Publishing Corporation. ©1975 Irmgard Schloegl.
Amor: A única força criativa. Reimpresso com a permissão de Eric Butterworth. © 1992 Eric Butterworth.
Tudo de que me lembro e A mendiga. Reimpressos com a permissão de Bobbie Probstein. ©1992 Bobbie Probstein.
O verdadeiro amor. Reimpresso com permissão de Barry Vissel. 1992 Barry Vissel.
Isso pode acontecer aqui? Reimpresso com a permissão de Pamela Rogers. ©1992 Pamela Rogers.
Você é importante. Reimpresso com a permissão de Helice Bridges. ©1992 Helice Bridges.
Um irmão como esse. Reimpresso com a permissão de Dan Clark. 1992 Dan Clark.
Grande Ed. Reimpresso com a permissão de Joe Batten. ©1989 de AMACOM Books.
O amor e o taxista. Reimpresso com a permissão de Art Buchwald. ©1992 Art Buchwald.
Um gesto simples e Sou professor. Reimpressos com a permissão de John Wayne Schlatter. © 1992 John Schlatter.
O sorriso, Você já fez a terra se mover? e Só mais uma vez. Reimpressos
com a permissão de Dr. Hanoch McCarty. ©1991 Hanoch McCarty and Associates.
Uma história para o dia dos namorados. Reimpresso com a permissão de Jo Ann Larsen. ©1992 Jo Ann Larsen.
Carpe diem , de Dare to Be Yourself de Alan Cohen. Reimpresso com a permissão de Alan Cohen. ©1991 Alan Cohen Publications. Para obter gratuitamente um catálogo
dos livros, fitas e programa de workshops de Alan Cohen, escreva para P.O Box 98509, Des Moines, WA 98198 ou telefone para (800) 462-3013.
Eu conheço você, você é igualzinho a mim. Reimpresso com a permissão de Human Awareness Instituto. © 1992 Stan V. Dale.
• 294
295•
#Filhotes à venda. Reimpresso com a permissão de Dan Clark. ©1989 Dan Clark.
Eu acho que posso! Reimpresso com a permissão de Michele Borba. ©1992 Michele Borba.
Nada além da verdade! Reimpresso com a permissão de David Casstevens.
As crianças aprendem o que vivenciam. Reimpresso com a permissão de Dorothy Law Nolte.
Tocado. Usado com a permissão de Victor H. Nelson. ©1990 Victor H. Nelson. Este artigo apareceu primeiramente na edição de maio/ junho de Family Therapy Networker.
Eu te amo, filho! de Victor Brook Miller. Usado com a permissão de The Instituto for Humanistic and Transpersonal Education. ©1977 IHTE.
"O que você é"é tão importante quanto "o que você faz". Reimpresso com
a permissão de Patricia Fripp. © 1992 Patricia Fripp.
A perfeita família americana. Reimpresso com a permissão de Michael Murphy, Ed.D. ©1992 Michael Murphy, Ed.D.
Apenas diga! Reimpresso com a permissão de Gene Bedley. ©1992 Gene Bedley.
Um legado de amor. Reimpresso com a permissão de Bobbie Gee. 1992 Bobbie Gee.
Agora gosto de mim, de Man, The Manipulator de Everett L. Shostrom. Usado com permissão. © 1967 Abington Press.
Todas as coisas boas. Reimpresso com a permissão de Helen P. Mrosla. OSF, e Shippensburg University © 1991 Shippensburg University. Este artigo apareceu originalmente
em Proteus: A Journal of Ideas, primavera de 1991. Reimpresso com a permissão de Readers Digest, outubro de 1991.
O garotinho de Helen E. Buckley. Reimpresso com a permissão de "Glad To Be Me - Building Self-Esteem in Yourself and Others". © 1989 Dov Peretz Elkins. (Princeton,
NJ: Growth Associates).
Transforme em realidade. Reimpresso com a permissão de Dan Clark. ©1992 Dan Clark.
Descanse em paz: o funeral do "não consigo". Reimpresso com a permissão de Chicle Moorman. ©1992 Chicle Moorman.
A história do 333. Reimpresso com a permissão de Robert C. Proctor. ©1992 Robert C. Proctor.
Se não pedir, você não consegue - mas se pedir, consegue! Reimpresso
com a permissão de Rick Gelinas. ©1992 Rick Gelinas.
A magia de acreditar. Reimpresso com a permissão de Dale Madden, presidente da Island Heritage Publishing, uma divisão da The Madden Corporation. ©1992 Dale Madden.
O livro de metas de Glena. Reimpresso com a permissão de Glena Salsbury. ©1991 Salsbury Enterprises.
Um outro item assinalado na lista. Reimpresso com a permissão de John Goddard. ©1992 John Goddard.
Veja, bonzinho, eu sou seu amor. Reimpresso com a permissão de Les Brown e Look Whó s Talking.
A caixa e Negócio fechado! Reimpressos com a permissão de Florence Littauer. ©1992 Florence Littauer, presidente da CLASS Speakers, Inc., autora de 20 livros, inclusive:
Silver Boxes, Dare to Dream e
Personality Plus.
Estímulo. Reimpresso com a permissão de Nido R. Qubein. ©1992 Nido R. Qubein.
Walt Jones. Reimpresso com a permissão de Edge Learnig instituto, Inc. ©1992 Bob Moawad, presidente/diretor-executivo.
Serviço e um sorriso, de Service America, página 128. Reimpresso com a permissão de Dow Jones/Irwin. ©1985 Karl Albrecht & Ron Zenke.
Obstáculos. Reimpresso com a permissão de Beacon Press. © 1992 Victor E. Frankl.
John Corcoran - o homem que não sabia ler. Reimpresso com a permissão de John Corcoran. © 1992 John Corcoran.
• 296
• 297
Fracasso? Não!- Só dificuldades temporárias. Reimpresso com a permissão de Dorothy Walters. ©1992 Dorothy Walters.
Para ser mais criativo, estou esperando... Reimpresso com a permissão de Center for Creative Leadership, Greensboro, NC ©1992, Issues and Observations. O centro
é um instituto educacional sem fins lucrativos que trabalha para adaptar as teorias e idéias das ciências comportamentais às preocupações práticas dos gerentes e
lideres. Para receber informações sobre o trabalho do centro ou uma assinatura gratuita de Issues and Observations, escreva para: Center for Creative Leadership,
P.O Box 26300, Greensboro, NC 27438-6300 ou telefone para (919) 288-7210.
O poder da determinação. Reimpresso com a permissão de Burt Dubin. © 1992 Burt Dubin.
Ela salvou 219 vidas. Reimpresso com a permissão de Betty Tisdale. ©1992 Betty Tisdale.
Há grandeza ao seu redor-aproveite-a! Reimpresso com a permissão de Bob Richards. ©1992 Bob Richards.
Reserve um momento para ver de verdade! Reimpresso com a permissão de Jeffrey M. Thomas. ©1992 Jeffrey M. Thomas.
Se eu pudesse começar tudo novamente de Nadine Stair. Este poema, que foi distribuído e reimpresso durante anos, foi atribuído a Nadine Stair. Foi supostamente escrito
quando ela tinha 85 anos. O consenso geral é de que ela vivia no estado de Kentucky quando escreveu o poema. Não conseguimos entrar em contato com sua família para
verificar essas alegações.
O presente do golfinho. Extraído de The Dolphin's Gift © 1980. Reimpresso com a permissão de New World Library, San Rafael, CA 94903.
Jack Canfield é presidente dos Seminários Self-Esteem e do Canfield Training Group, empresa de seminários e treinamento dedicada a dar assistência a indivíduos e
organizações para que vivam de acordo com seus mais altos propósitos e aspirações. Jack ministra treinamentos em corporações, agências governamentais, escolas distritais
e seminários públicos individuais. Também faz palestras em conferências e convenções estaduais regionais e na
cionais.
Os seguintes workshops, seminários e serviços de consultoria
estão disponíveis no Canfield Training Group:
Self-Esteem and Peak Performance
Self Esteem: The Bottom Line To Sucess Self-Esteem: Learning to Love And Express Yourself Self-Esteem In The Classroom: A Workshop For Teachers
And Counselors
How To Build High Self-Esteem Parenting For High Self-Esteem The Ten Steps to Success
Visionary Selling: How To Become A World Class
Salesperson
The Couples Seminar: How To Have An Affair With Your
Spouse
The Self-Esteem Facilitating Skills Seminar: Training The
Trainers
The STAR programa A Video-Based Corporate Training
Program.
The Gonu Programa A Video-Based Training For At-Risk
Adults.
Jack também tem ampla variedade de livros, cassetes e programas de vídeo cassete disponíveis. Se você deseja receber um prospecto ou discutir possíveis datas para
um workshop ou palestra, favor entrar em contato através do telefone (310) 337-9222 ou 1-800
2-ESTEEM.
• 299
• 298
Os clientes de Mark Victor Hansen o chamam de o "motivador das empresas norte-americanas". As 500 empresas da Fortune e suas associações profissionais têm requisitado
Mark por mais de dezoito anos para compartilhar seus amplos talentos e recursos nas áreas de estratégia e excelência em vendas, empowerment e desenvolvimento pessoal.
Mark tem dedicado toda sua vida à missão de influenciar profunda e positivamente a vida das pessoas. A cada ano mais pessoas em todo o mundo conhecem Mark, já que
ele viaja mais de 400 mil quilômetros internacionalmente e faz mais de duzentas palestras por ano. Ao longo de sua carreira, tem inspirado centenas de milhares de
pessoas a criarem para si mesmas um futuro mais promissor e cheio de propósitos ao mesmo tempo em que estimula a venda de milhões de dólares em mercadorias e serviços.
Seu livro Future Diary é lido por milhares de pessoas em todo o país. Dare to Win, seu livro mais recente, foi altamente recomendado por Norman Vincent Peale e Og
Mandino, ambos mitos na área do desenvolvimento pessoal. Além disso, escreveu How to Achieve Total Prosperity e o Miracle Of Tithing, todos na lista de mais vendidos.
Além de falar e escrever, Mark produziu uma biblioteca completa de cassetes sobre empowerment pessoal e programas de vídeo, que permitiram a seus ouvintes reconhecer
e usar suas capacidades inatas em seus negócios e em sua vida pessoal. Sua mensagem também o tomou uma personalidade popular no rádio e na televisão. O "Mark Victor
Hansen Show" levado ao ar na Califórnia do Sul, na HBO, assim como um programa piloto para a PBS entitulado "Build A Better You". A revista Success Magazine relatou
suas realizações na capa de seu exemplar de agosto de 1991.
Mark é um grande homem, com um grande coração e um grande espírito, inspiração para todos que buscam aperfeiçoar a si próprios.
Comunique-se com Mark pelo telefone (714) 759-9304 ou, fora da Califórnia, (800) 433-2314.
• 300
ESTA OBRA, COMPOSTA EM PALATINO 11/13,5,

FOI IMPRESSA NO PARQUE GRÁFICO

DA EDIOURO, COM MIOLO EM CHAMBRIL, 75G,

E CAPA EM CARTÃO SUPREMO 250 G
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..
TÍTULO:O caso do sapato da ladra
AUTOR: GARDNER, Erle Stanley
GÉNERO: Romance
CLASSIFICAÇÃO: Literatura norte-americana - Século XX - Ficção
EDITORA: Livros do Brasil
Lisboa, 19**
COLECÇÃO:Obras Escolhidas de Erle Stanley Gardner nº 2
DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR:
Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves
Maio de 2003
***
Os livros desta colecção são constituídos por dois títulos. Este é o segundo , sendo o primeiro:
O caso do rosto substituído
Nota do digitalizador




O CASO
DO SAPATO
DA LADRA


Tradução de
ALFREDO MARGARIDO

*

Capa de
ANTÓNIO PEDRO

*

Título da edição original
THE CASE OF THE SHOPLIFTER'S SHOE

Copyright (g) 1938 by Erie Stanley Gardner
Reservados todos os direitos pela legislação em vigor



CAPÍTULO I

Grossas gotas de chuva estalavam no passeio.
Corramosdisse Perry Mason apertando com a mão
o cotovelo de Della Street, que se lançou para a frente.
Ela caminhava com ligeireza, na ponta dos pés, em largas
passadas, desembaraçadamente, mantendo-se, com facilidade,
a par de Mason.
O aguaceiro tinha-os surpreendido numa ruazinha que
não oferecia nenhum abrigo. No canto, os algerozes descarregavam
já torrencialmente. A porta do armazém estava a uns
vinte metros. Precipitaram-se. As gotas de chuva, enormes
projécteis líquidos, pareciam ressaltar no passeio antes de
explodir.
Mason meteu Della Street na porta giratória:
Entremos. Isto ainda está para uma boa meia hora.
Há um restaurante no último andar.
Ela fitou-o através dos longos cílios e comentou:
Já entrou alguma vez no salão de chá de um grande
armazém, patrão? Não é coisa muito do seu género.
Mason contemplava as gotas de chuva que deslizavam
pela aba do seu chapéu de palha.
É o destino, minha querida. Mas não julgue que a vou
acompanhar às secções para lhe carregar os embrulhos.
Tomamos o elevador para uma viagem directa. Não ouvirei
as indicações do ascensorista:
253
"Segundo andar: confecções para senhoras e crianças!
Terceiro bijuterias, pérolas falsas e brincos. Quarto: relojoaria,
medalhões."
E o quinto? interrompeu ela. Flores, chocolates,
livraria. Podia parar aí e dar uma alegria a uma pobre
assalariada...
Nada a fazer. Sexto andar: restaurante e salão de chá.
Directamente.
O ascensor subiu lentamente, parando em todos os andares.
A empregada recitava a sua monótona litania:
Esquecemo-nos dos brinquedos no quinto notou Della
Street.
Um dia destes disse Mason, sonhadordepois de um
negócio rendoso, hei-de comprar um comboio eléctrico com
estações, túneis e sinais para o instalar nos nossos escritórios.
Para ligar o meu gabinete à biblioteca e...
Ela torceu-se de riso.
Que lhe aconteceu?
Estou a ver Jackson com o sobrolho carregado, a estudar
um ponto de direito e o seu comboio a atravessar a
porta para parar na mesa em frente dele.
Mason conduziu-a a uma mesa vazia, perto de uma janela.
Jackson não devia gostar da brincadeira. Esse tipo nunca
foi criança.
Ela pegou na lista.
Como é você quem paga, patrão, vou tratar de tirar o
ventre de misérias.
Estava a julgar que você seguia um regime?perguntou,
fingindo-se consternado.
É verdade. Tenho quilo e meio para perder.
Então o melhor é um biscoito, com uma chávena de chá
sem açúcar... , .
Veremos isso esta noite observou ela. Sou uma assalariada
e sei aproveitar as boas ocasiões. vou comer uma sopa
de creme de tomate, salada de abacate e toranja, um filete
254
zinho, alcachofras, batatas recheadas e plum-pudding de
conhaque.
Mason ergueu os braços ao céu, num espanto.
E cá estamos! Lá se vai todo o meu dinheirinho! Vou
contentar-me com uma fatia de queijo muito fininha e um
copinho de água.
Apareceu a criada.
Menina! Duas sopas de creme de tomate, duas saladas
de toranja, dois filetezinhos, duas alcachofras, duas batatas
recheadas e dois plum-puddings de conhaque.
Mas, patrão exclamou Della Street, eu estava a
brincar!
À mesa nunca se brinca anunciou severamente Mason.
Nunca conseguirei comer tanta comida!
Justo castigo dos céus. Ficarei vingado.
E, dirigindo-se à criada:
Traga isso depressa e não dê atenção aos protestos.
A rapariga afastou-se, sorrindo.
E vou ficar reduzida a pão e água para o resto da
semana, pelo menos gemeu Della Street. Não é engraçado
examinar o rosto das pessoas, patrão?
Ele aquiesceu com um abanar de cabeça, enquanto
examinava os ocupantes das mesas próximas.
Diga-me, patrão continuou ela, já que está habituado
a ver o lado mau da vida, a analisar as más paixões, filhas da
hipocrisia social... isso não o tornou cínico?
Pelo contrário, encantadora criança. A natureza humana
não tem só pontos fracos. A verdadeira filosofia toma as pessoas
pelo que são e não espera muito delas. O cínico parte de um
erro inicial e lamenta-se. Na verdade, a causa de quase todas
as gatunices diárias deve-se ao desejo de satisfazer as nossas
convenções económicas. No fundo de si próprio, o indivíduo
é honesto. O vizinho que lhe rouba meio quilo de açúcar
está pronto a arriscar a pele para lhe roubar a água.
Como as pessoas são diferentes!exclamou Della
255
Street, pensativa. Olhe aquela mulher agressiva, à esquerda,
que está a maltratar a pobre criada... Este contraste com
aquela velha senhora de cabelos brancos, que está de pé
perto da janela, com aquele belo olhar maternal. É tão calma,
tão amável...
Uma cleptómanainterrompeu Mason.
-Hem?
Sim. E o homem que está na caixa a fingir pagar a
conta é na verdade um detective do armazém que a seguiu
até aqui.
Uma cleptómana? Como o conseguiu saber, patrão?
Repare que ela tem o braço colado ao corpo. Esconde
qualquer coisa debaixo da capa. Conheço o detective. Vi-o
no tribunal... Olhe, a mulher vira a cabeça. Sabe que está
a ser seguida.
Irá almoçar aqui?
É pouco provável. Não pode tirar a capa... Repare, lá
vai ela para os lavabos.
-Então?
Vai procurar ver-se livre da presa... O detective está
a falar com a criada negra. Estão a arranjar as coisas de modo
a evitar o escândalo.
Aquela velha senhora... uma cleptómana? Não posso
acreditar. Aqueles cabelos brancos, aquele olhar franco,
aquela boca bem modelada... Não, é impossível.
A experiência ensinou-me que as ladras procuram
aparentar um ar respeitável. Treinam-se. É uma coisa que faz
parte da ética do ofício.
A criada trouxe a sopa que fumegava. A criada negra apareceu
à porta dos lavabos e fez um sinal com a cabeça ao
detective. Um momento depois a senhora dos cabelos brancos
apareceu e veio sentar-se numa mesa junto da de Mason, muito
calma, muito senhora de si mesma.
Até que enfim a encontro, tia Sarah! Perdi-a no meio
da multidão.
256
A exclamação vinha de uma rapariga alta e com ar decidido.
Logo no primeiro relance Mason se deu conta do medo
que havia nos seus olhos cinzentos e brilhantes.
A velha senhora não perdeu um átomo da sua calma.
Pois eu não me preocupei nada, Ginny. Aconteça o que
acontecer, sei o que hei-de fazer...
O detective interpôs a sua pessoa entre Mason e a velha
senhora.
Peço-lhe muita desculpa, minha senhora, mas vejo-me
obrigado a pedir-lhe que venha ao meu escritório.
Mason pôde ouvir a exclamação abafada da rapariga.
Não tenho vontade nenhuma de o fazer, rapaz replicou
a senhora, sempre muito calma. vou almoçar, se não vê
nisso qualquer inconveniente. Se alguém dos escritórios me
quiser falar, sabe onde me pode encontrar.
Desejava evitar o escândalo recomeçou o detective,
muito digno.
Muito interessado, Mason afastou o guardanapo. O detective
tinha-se colocado atrás da cadeira da sua interlocutora
que, pegando numa fatia de pão, começou lentamente a
cobri-la de manteiga.
Não vale a pena incomodar-se comigo, rapaz. Faça
como quiser.
A senhora não me está a facilitar as coisas.
-Verdade?
Não julga, minha tia... arriscou a rapariga.
Não sairei daqui enquanto não tiver almoçado interrompeu
secamente a tia Sarah. Parece-me que a sopa de
tomate é uma maravilha...
Estou desolado, minha senhora recomeçou o inspector.
Vejo-me obrigado a prendê-la em público.
Prender-me ?
A mão que levava a fatia de pão à boca parou a meio
caminho. "
Que me diz você?
17-VAMP. G. 2
257
Prendo-a por roubo nos escaparates disse o homem.
Mordiscando o pão com manteiga, a velha senhora
começou a mastigá-lo tranquilamente. Parecia pesar, no
espírito, as possibilidades da situação.
Que coisa divertida! murmurou, pegando no copo.
Seguia-acontinuou o inspector, levantando a voz.
Vi-a esconder vários artigos debaixo da capa.
E como a mulher pretendesse abrir a capa:
É inútil. Sei muito bem que deixou os artigos nos lavabos.
Fez um sinal à empregada, que afastou a cortina e desapareceu.
Não acredito retorquiu a velha senhora, que parecia
querer recordar-se. Não me lembro de ter sido alguma vez
presa por roubo nos escaparates... Não, na verdade!
Tia! Este homem não está a brincar. Está a falar a
sério...
A empregada reapareceu com uma braçada de roupa
interior. Meias de seda, roupas interiores de seda, uma blusa,
uma echarpe, um pijama.
A rapariga abriu a bolsa e tirou um livro de cheques.
A minha tia é muito excêntricaexplicou rapidamente.
Às vezes faz as suas compras de maneira bem curiosa.
Diga-me quanto é. vou liquidar...
Certamente que não replicou o detective. Assim
seria muito fácil. O truque já tem barbas. Fazer as suas
compras! Aquilo a que nós chamamos roubar, minha senhora ?
Levantaram-se algumas cabeças na sala. A rapariga
estava vermelha de vergonha. A velha senhora apenas dava
atenção ao menu.
vou comer croquetes de galinha.
Senhora!gritou o detective pousando-lhe a mão no
ombroPrendo-a!
Na verdade? comentou ela olhando-o por cima dos
óculos. Você é um empregado da casa, rapaz?
Sou. Sou detective. Tenho o meu cartão...
258
Nesse caso continuou a velha senhoraficar-lhe-ia
muito agradecida se chamasse a criada. Quero almoçar e não
jantar.
Prendo-a repetiu o homem. Quer seguir-me sem
resistência, ou vou ser obrigado a arrastá-la?
Tia! Peço-lhe! Vá com ele suplicou a rapariga.
Vamos arranjar isto...
Eu fico aqui.
O detective dispunha-se a empregar a força quando
Mason, levantando-se, deixou cair no ombro do homem uma
mão possante.
Um minuto, meu amigo!
O outro voltou-se, vermelho de furor.
Você talvez seja um detective continuou Mason, mas
ignora visivelmente a lei. Em primeiro lugar, o sítio não é
muito conveniente para uma prisão. Em segundo lugar,
você não tem mandado de captura e não foi cometido nenhum
crime na sua presença. Em terceiro lugar, se soubesse o mínimo
indispensável acerca do seu ofício, saberia que é impossível
acusar alguém de roubo nos escaparates antes da pessoa em
questão ter abandonado o armazém ou as suas dependências.
Qualquer pessoa pode pegar nas mercadorias numa secção
e levá-las para onde lhe apetecer. Você não tem nenhuma
possibilidade de agir, antes do culpado ter saído a porta do
armazém.
Quem diabo é você?perguntou o detective. Um
cúmplice?
Não. Um advogado. Chamo-me Perry Mason. Se isto
lhe pode dizer alguma coisa...
O homem tomou outro ar.
E mais aindacontinuou Mason. Você arrisca-se a
obrigar os seus patrões ao pagamento de indemnização por
prejuízos morais. Chega de brutalidade, ou então vejo-me
obrigado a acalmá-lo, para lhe ensinar duas ou três regras
básicas do ofício.
259
Estou pronta a pagar tudo o que minha tia apanhou
disse a rapariga mostrando o livro de cheques.
Muita vontade tenho eu de os enjaular aos doisatirou
o detective, raivoso.
Ponha a mão nesta mulher e aconselhá-la-ei a pedir a
indemnização de vinte mil dólares por prejuízos morais
disse tranquilamente Mason. Toque-lhe, seu asno, e quebro-lhe
esses rins!
Um subdirector precipitou-se, evidentemente chamado
pelo telefone.
Que aconteceu, Hawkins?
Apanhei esta mulher em flagrante delito de roubo
explicou o homem. Sigo-a há mais de meia hora. Veja,
senhor, o que trazia com ela! Deve ter notado que estava a
ser seguida e deixou tudo nos lavabos.
É evidente disse Masonque o seu detective não está
à altura das funções.
Mas quem é o senhor?
O advogado entregou-lhe um cartão e o outro estremeceu.
Venha ao meu gabinete, Hawkins. Oxalá você não
tenha cometido um erro.
Já lhe disse que não, senhor! Seguia-a...
Venha ao meu gabinete, já lhe disse!
Uma vez mais, a jovem brandiu o livro de cheques:
Já me fartei de dizer a este homem que a minha tia
estava a fazer compras. Se quiser ser tão amável que me dê o
montante das suas compras, passar-lhe-ei imediatamente um
cheque.
O subdirector olhou a velha senhora, sempre muito calma,
a rapariga e depois o sorridente advogado.
vou mandar embrulhar tudo, minha senhora. Quer que
lho mande a casa ou leva o embrulho consigo?
Mande-me o embrulho, senhor. E já que é o patrão diga
à criada para nos dar atenção... Ah! Cá está ela. Traga-nos
260
duas sopas de creme de tomate. Depois quero croquetes de
galinha. E tu, Ginny?
Corada até à raiz dos cabelos, a rapariga abanou a cabeça.
Nada, minha tia. Não sou capaz de comer.
Que estupidez, Ginny! Não te deixes impressionar por
estas pequenas coisas. Este homem enganou-se, como ele
mesmo reconheceu.
E, levantando os olhos para Mason:
Estou-lhe muito agradecida, meu caro jovem. Aceitarei
um dos seus cartões, se não vê nisso inconveniente.
Mason estendeu-lho, sorrindo.
E poderei convidá-la, minha senhora, a juntar-se a nós ?
Há dois lugares na nossa mesa. E baixando a voz para a
rapariga: Será menos notada.
com muito prazeranuiu a velha senhora afastando a
cadeira. Eu sou Mrs. Sarah Breel e esta é a minha sobrinha
Virgínia Trent. Tenho muito prazer em conhecê-lo.
Miss Della Street, minha secretária apresentou
Mason.
Tomaram lugar sem. dar atenção aos olhares curiosos.
Acabe a sua sopadisse Mrs. Breel. Não a deixe
arrefecer. Nós os apanharemos.
Não tenho fome declarou Virgínia Trent.
É ridículo, Ginny! Vamos, acalma-te!
Na verdade este creme de tomate está delicioso interveio
Mason. É coisa que lhe fará esquecer a... a chuva.
Virgínia examinou o prato fumegante de Mason, os olhos
amistosos de Della e comentou com ar dubitativo:
Nunca se deve comer quando estamos mal dispostos.
Acalma-te repetiu a tia.
Dois cremes de tomate disse Mason à criada. Traga
já. Parece-me que há croquetes de galinha.
Peça dois disse Mrs. Breel. Ginny gosta muito.
E duas chávenas de chá, minha querida, com limão. Chá
muito forte.
261
E recostou-se na cadeira, com um ar de profunda satisfação.
Gosto muito de almoçar aqui continuou. Tem muito
boa cozinha e o serviço é bem feito. É a primeira vez que
tenho razão de queixa da casa.
É uma vergonha disse Masonque a tenham incomodado
desta maneira.
Incomodado, a mim? Mas não me incomodaram nada.
A minha sobrinha é bastante mais sensível. Pessoalmente,
tudo isto me deixa muito fria. Vivo como entendo, e... Ah!
Cá vem o homem com as compras. Ponha aqui, se'nhor.
Quanto é? perguntou Virgínia.
Vinte e sete dólares e oitenta e três cêntimos, imposto
Incluído enunciou o subdirector com dignidade.
Virgínia preencheu o cheque. Quando ela tomou nota no
talão e fez a subtracção, Mason, mais curioso do que desejaria,
deitou um rápido olhar. Depois de pago o cheque, a conta
ficaria reduzida a vinte e dois dólares e quinze cêntimos.
A rapariga estendeu o cheque ao subdirector.
Tenho de lhe pedir o favor de vir ao meu gabinete
assinar um impresso de crédito.
A sr.a Breel interpôs-se.
Não vale a pena. Ainda aqui estaremos uma meia hora,
tempo mais do que suficiente para mandar descontar o cheque
ao banco, que é numa destas ruas vizinhas... Espero que o seu
embrulho seja sólido, senhor. Continua a chover.
Espero que satisfaça inteiramente respondeu o subdirector
suavemente. Verifico acrescentou fitando Perry
Masonque a sua mesa aumentou. Será que vai intentar
uma acção por prejuízos morais à nossa casa?
A sr.a Breel respondeu à pergunta.
Nãodisse, magnânima. O que lá vai, lá vai. Mas
foram muito grosseiros... Cá está a criada com a minha sopa.
Afaste-se, faça favor, para a deixar passar.
O subdirector inclinou-se, afável.
262
Se nas suas compras houver alguma coisa que a não
satisfaça, Mrs. Breel, faremos a troca com muito prazer.
Fez as suas escolhas com muita rapidez e não pôde examinar
bem os artigos...
Não se preocupe, senhor. Tenho sempre muito cuidado.
Ainda que não seja já muito nova, possuo excelente memória.
Escolhi o que havia de melhor.
O subdirector inclinou-se afastando-se, seguido de alguns
olhares.
Mrs. Breel, ignorando visivelmente a sua notoriedade,
atacava vigorosamente a sopa.
Prova, minha querida; está deliciosa. É na verdade uma
boa casa.
Virgínia mostrava pouco entusiasmo, mas a sua tia não
perdia uma colherada. O episódio pareceu esquecido. Mas
em todo o caso ninguém falava. Mason contentava-se em representar
o perfeito anfitrião e Della Street, habituada por
longos anos de treino a ler o seu pensamento, imitava-o.
Pouco a pouco o mal-estar desapareceu. Tudo conspirava
para fazer esquecer a Virgínia o interesse que lhe dedicavam
os ocupantes das mesas vizinhas. Para terminar, Mason
anunciou a sua partida. Tinha uma entrevista à uma e meia.
Na rua, sob um céu onde se adivinhava o azul entre as
nuvens, voltou-se para Della Street.
Foi um almoço muito agradável, não foi?
Como a classifica o patrão?
Não sou capaz e é isso mesmo que me diverte.
Julga que se trata de uma profissional?
Duvido muito. A atrapalhação da rapariga não era
fingida.
Então?
Nada, Della. Aquela mulher não é do tipo delinquente.
Ela tem mesmo uma filosofia interessante... Vamos marcar
este dia com uma pedra branca, minha querida. Este almoço
263
é um capítulo isolado, interessante e incompreensível porque
não conhecemos o princípio do livro. Esta manhã perguntava-me
você se o estudo dos meus semelhantes tinha feito de
mim um cínico e eu respondi-lhe que não. Conhecer bem os
homens é retirar todo o interesse à vida. Tudo se torna monótono,
evidente. Passa a não haver nada novo. Fica apenas uma
longa procissão de mediocridade precipitando-se no longo
caminho da vida, esforçando-se por dar satisfação aos seus
mais pequenos desejos. Mas às vezes a vida sobressalta-nos,
mostrando-nos um tipo novo, ainda não classificado. É o caso
de hoje. Agradeçamos à vida e não pensemos mais nisso.
CAPÍTULO II

Perry Mason estava enganado: ia conhecer os acontecimentos
posteriores. Estudava um processo quando Della o
avisou que Miss Trent perguntava se podia ser recebida.
Virgínia? perguntou o advogado. Disse o que
queria ?
Não.
Veio sozinha?
-Veio.
Está bem. Mande-a entrar.
Afastando os cotovelos fincados na mesa para criar espaço,
Mason acendia um cigarro quando Virgínia entrou, escoltada
por Della. Quando do seu primeiro encontro, o advogado
só tinha atentado na tia. Estudava agora a sobrinha, que
avançava para se sentar na grande poltrona de couro escuro,
no canto do gabinete. Uma rapariga grande, com uma boca
talvez muito firme, sem "baton". Grandes olhos cinzentos,
usando um vestido de linhas severas. As mãos eram finas,
nervosas, denotando muita sensibilidade.
Que posso fazer por si?perguntou Mason, cujo tom
264
indicava que deixara de ser o conviva amável para ser apenas
o advogado.
É por causa da minha tia Sarah.
-Ah!
Sabe o que se passou no início do almoço. A minha
tia não me chegou a convencer. É evidente que roubou as
coisas nos escaparates.
E porque fez ela aquilo?
Não faço a menor ideia.
Ela tinha necessidade daqueles artigos?
Não.
Tem dificuldades de dinheiro?
Não muitas.
Os olhos de Mason brilharam.
Está bem, estou a ouvi-la. Mas seja breve. Limite-se
ao essencial.
Minha tia é viúvacontinuou a rapariga. O seu
marido morreu há muito tempo. Meu tio, George Trent,
nunca se casou. É perito de diamantes, compra e vende à
comissão, corta, talha e pule. Tem oficina e escritório no
último andar de um edifício, 913, South Marsh Street, e tem
quase sempre ao seu serviço dois a quatro operários. Diga-me
uma coisa, Mr. Mason, interessa-se pela psicologia?
Pela psicologia prática, sim respondeu o advogado.
A teoria não me interessa grande coisa.
É, todavia, necessário interpretar os factos teoricamente
para os compreenderenunciou doutoralmente a rapariga.
Pelo meu lado direi que é necessário interpretar praticamente
a teoria para a podermos compreender. Sem isso,
não tem interesse. Voltemos ao tio George.
O pai morreu-lhe muito cedo e teve de sustentar a
família. Safou-se muito bem, mas não teve juventude. Não
teve prazeres, nem alegrias...
Isto relaciona-se com a sua tia?
Já lá vamos. Quero fazer-lhe compreender que o meu
265
tio era um recalcado e que um sentido de rebelião inconsciente
o levava...
A fazer o quê?
Ela hesitou, mas por fim disse:
A beber...
Perfeito comentou Mason. Embebeda-se. Bem. E
então?
Ele bebe periodicamente. É uma rebelião inconsciente
contra a monotonia da vida...
E, interrompendo-se a um gesto do advogado, apressou-se
a acrescentar:
Acontece-lhe levar uma vida muito regular durante
meses. Depois aparece um pequeno facto que o faz sair dos
eixos. Pobre tio! É tão metódico nisso como em tudo o mais!
Quando sente chegar a crise, fecha tudo na oficina, fecha
também o cofre forte de que a minha tia connhece o segredo.
Mete num sobrescrito as chaves do carro, endereça o sobrescrito
a si próprio e depois... começa a beber. Quando está
bêbedo, joga. Três, quatro ou oito dias mais tarde aparece,
com os bolsos vazios, os olhos injectados de sangue, com a
barba por fazer, esfarrapado.
E que faz a sua tia?perguntou Mason, muito interessado.
Não lhe faz a mínima censura. Manda-o a um banho
turco, manda as roupas para a tinturaria e manda-lhe outras
para o estabelecimento de banhos. Quando volta a ser ele
mesmo, regressa ao escritório. Entretanto, a tia Sarah abre
o cofre e põe os operários a trabalhar.
É muito bonito tudo isso comentou Mason. Bonita
colaboração.
Sim, mas pense nas angústias da minha tia, no choque
nervoso sofrido... tanto mais violento quanto ela nada exterioriza.
Que blague! A sua tia é mulher para desafiar o Mundo.
É mulher que não sabe o que é o medo. Aí temos uma que
266
sabe aproveitar o lado bom da vida. Essa mulher não tem
nervos!
É isso que se pode julgar à primeira vista continuou
Virgínia em tom austero. Mas, quanto a mim, estou convencida
de que este complexo surpreendente que a levou a roubar
no armazém se deve a uma pequena perturbação reflexa
do subconsciente.
É possível. Há muito tempo que isso dura?
É a primeira vez.
Qual é a explicação dada pela sua tia?
Nenhuma. Deixou-me à porta do armazém sem dizer
onde ia. Tenho a impressão de que está transtornada. Receio
que o seu equilíbrio psíquico tenha sido alterado por... "
Resumindo, você receia que ela recomece?
Sim.
Julga que a prenderam e quer que me ocupe dela?
É isto mesmo o que quer?
Não. Não exactamente. <
Então diga.
Virgínia baixou os olhos.
Para lhe dizer tudo, Mr. Mason, receio que ela tenha
roubado os diamantes Bedford.
Conte-me lá issopediu o advogado, inclinando-se
para a sua interlocutora.
Mrs. Bedford confiou-os a meu tio. Tratava-se de os
talhar novamente e de os voltar a montar, dando-lhe um
aspecto moderno. Não conheço as minúcias da encomenda.
Devo admitir que o seu tio anda na pândega ?
Sim. No sábado à noite não voltou a casa. E nós sabemos
o que isto quer dizer. Naturalmente, não houve correio
no domingo, mas a minha tia foi ao escritório preparar o
trabalho para o dia seguinte.
Abriu o cofre?
Certamente. Esta manhã foi ao escritório, falou com
o chefe da oficina e regulou as coisas com ele. Como se pre-
267
via, as chaves do carro do tio chegaram pela primeira distribuição.
Mas onde estava o carro? Só perto do meio-dia
é que a polícia nos telefonou. Estava num parque de estacionamento
limitado a trinta minutos... O que significa que
as multas choviam desde manhã.
Foi procurar o carro?
Fui. com a minha tia. Pusemo-lo na garage. Depois
a minha tia quis fazer compras. Entramos no armazém e
estava a provar sapatos quando a minha tia, que eu julgava
atrás de mim, desapareceu... e sabe o resto.
Voltou a encontrá-la no restaurante.
Sim. Depois de ter corrido todas as secções. Justamente
antes... do escândalo.
Fale-me então desses diamantes.
Foi Austin Cullens que os entregou a meu tio.
Quem é o sujeito?
Um velho amigo da família. Conhece o tio e a tia
há muitos anos. Grande viajante, colecciona pedras preciosas
e tem muitas relações. O tio Georges trabalha bem
e barato e Mr. Cullen arranja-lhe frequentemente trabalho
bem pago.
Voltemos aos diamantes.
Mr. Cullens levou-os a meu tio no sábado. Mrs. Bedford
devia lá passar por toda esta semana.
Quando é que você soube que eles faltavam?
Há mais ou menos meia hora. E decidi logo vir vê-lo.
Continue.
A nova desaparição de minha tia tinha-me desesperado
totalmente. Fui ao escritório do meu tio, pensando que a
encontraria lá. O chefe da oficina mostrou-me uma nota
do tio dando instruções para o que era necessário fazer aos
diamantes de Mrs. Bedford. Mas... não estavam lá.
O cofre estava aberto?
Estava. Tinha sido aberto de manhã pela minha tia.
Confia totalmente nos operários?
268
Sim.
E que a leva a acreditar que a Sua tia levou os diamantes?
Por Deus... depois de tudo o que se passou no armazém...
Quando um complexo... Não sei se estudou a cleptomania,
Mr. Mason. É... terrível. A doente não pode resistir
ao desejo de se apoderar do que lhe não pertence... Em
todo o caso, a minha tia esteve no escritório onde, disse,
foi atacada de vertigens. Não se lembra do que fez. É o
coração, diz ela. Quis chamar o médico. Ela recusou. Tinha,
explicava ela, a sensação de ter feito o que não devia fazer.
Como se tivesse matado alguém, cometido uma falta grave,
um crime.
Chegou a chamar o médico?
Não. Ela dormiu algumas horas e quando acordou
disse-me que se sentia melhor. Ao jantar já se parecia com
ela mesma.
Não vejo bem o que posso fazer por agora disse
Mason. O melhor será você encontrar a sua tia e se possível
o seu tio. Deve ter algumas indicações. Ele tem hábitos...
É que... Mrs. Bedford reclama os diamantes.
Há quanto tempo?
Telefonou ao meio-dia. Ao que parece, a senhora
mudou de opinião e já não quer que lhe toquem nas pedras.
Tem um comprador que se interessa por pedras antigas e
quer oferecer-lhas com as montagens.
-Falou com Mrs. Bedford?
Não. Foi o chefe da oficina que a atendeu.
Que lhe disse ele?
~-Que o patrão tinha saído e que quando voltasse lhe
telefonaria.
Nesse caso previna a polícia e faça procurar a sua tia.
Pode ter uma recaída. Talvez a tivessem conduzido de urgência
ao hospital. Ou talvez...
A porta abriu-se deixando passar a empregada.
269
Que há?perguntou o advogado.
Um tal Mr. Cullens deseja ver imediatamente Miss
Trent. Parece muito enervado.
Virgínia Trent reprimiu uma exclamação de desagrado.
Preciso de esconder-me, senhor. Diga-lhe que não estou
aqui, que já saí, que...
Nada disso! interveio Mason. Arrumemos já o
assunto. Como sabe ele que a Miss está aqui?
Tinha dito no escritório. Mr. Cullens deve ter lá ido.
O chefe da oficina deve ter-lhe dito.
Foi ele quem arranjou o negócio a seu tio? Foi, não
foi? Pois bem! Mais vale pô-lo ao corrente sem mais delongas.
Deve ter dado uma garantia a Mrs. Bedford.
Provavelmente.
Diga-lhe que entre disse Mason à empregada.
As mãos de Virgínia Trent agitaram-se nervosamente.
Que vou eu dizer-lhe?gemia ela.
A verdade, muito simplesmente.
Mas é coisa de que não tenho a certeza.
Diga-lhe. Porque lhe havia de esconder o que se passa?
Eu... não sei. É tão duro...
A porta abriu-se, brutalmente empurrada por um homem
grandalhão, já muito perto dos cinquenta anos que, desprezando
inteiramente Mason, caminhou para a rapariga, que
continuava sentada na poltrona.
Que vem a ser esta história, Virgínia?começou ele.
Que história? Não sei a que se refere respondeu
a rapariga, atrapalhada.
Onde está sua tia?
Não sei. Na cidade, sem 'dúvida. A fazer compras,
suponho.
O grandalhão deitou uma breve e viva olhadela ao
advogado, pareceu medi-lo e tornou a voltar-se para a rapariga.
Um grande diamante brilhava na mão que lhe pousou no
ombro.
270
Vamos, explique-se, Virgi. Que significa esta visita
a um advogado?
Queria falar-lhe da tia Sarahexplicou timidamente
a rapariga.
Que lhe aconteceu?
Roubou num armazém.
Cullens recuou e começou a rir um bom riso franco
e sonoro que pareceu clarear a atmosfera. E, estendendo a
mão a Mason:
Você é Perry Mason. Eu chamo-me Cullens. Tenho
muito prazer em conhecê-lo. Desculpe-me esta intrusão
brusca, mas o assunto é grave. Vamos, Virgi, faça o favor
de se explicar. Que aconteceu aos diamantes de Mrs. Bedford ?
Não sei.
E quem mo poderá dizer?
A tia Sarah.
bom. Onde está ela?
Já lhe disse. Ela roubou.
É uma pessoa espantosa. Consegue tudo em que se
mete. George anda na pândega, pela certa?
Virgínia inclinou a cabeça.
Mrs. Bedford telefonou recomeçou Cullens. Quer os
diamantes. Telefonou para George e a resposta que lhe
deram não lhe agradou muito. Pensou que a queriam levar
à certa e telefonou-me logo a seguir. Compreendi imediatamente.
Mas sabia mais: que trataria também de mandar
as chaves pelo correio e que a sua tia o substituiria no escritório.
Na verdade, lone Bedford tem um comprador para
os diamantes... e não quer perder o negócio. Precisa das
jóias imediatamente.
Virgínia apertou os lábios.
Já lhe disse que a tia Sarah fez um roubo num armazém.
Pode rir; mas é a verdade. Mr. Mason pode confirmar.
Deve ter tido uma crise e pegou nos diamantes de Mrs. Bedford
e suponho que os escondeu.
271
É verdade tudo isto?atirou Cullens, perplexo e consultando
o advogado com o olhar.
De seguida acrescentou:
Diabos me carreguem!
Sentou-se, puxou um charuto, cortou-o com um pequeno
canivete de ouro e, virando-se para Virgínia:
Conte-me lá isso tudo.
Não tenho nada a dizer replicou a rapariga. A
minha tia teve um ataque nervoso. É evidentemente vítima
de uma ideia fixa. Mas deixemos isso. Tem também lapsos
de memória. Quando lhe sobrevêm a crise torna-se cleptómana
e pega em tudo que lhe vem à mão. Esta manhã,
num grande armazém, apanharam-na e quase fiquei sem
saldo no banco para evitar que fosse parar à cadeia.
Cullens acendeu o charuto, contemplou pensativamente
a chama do fósforo e apagou-a.
Quando foi a primeira vez que isso aconteceu, Virgi?
Hoje, pelo meio-dia.
E os primeiros sintomas?
Quando ontem passou pela oficina sentiu-se perturbada
e não conseguiu lembrar-se do que tinha feito na meia hora
precedente. Voltou a casa muito preocupada, com a sensação
de que tinha matado alguém. Deve ter sido durante esse
espaço de tempo que se apoderou dos diamantes de Mrs. Bedford
para os esconder em qualquer parte. Ela...
Cullens tirou o charuto da boca. Tinha os olhos brilhantes.
É idiota! Ela não é uma ladra. Procura esconder o seu
tio, é o que é.
Que quer dizer?
Ontem ela deu-se conta de que os diamantes não estavam
no cofre. Aqui para nós: Ela sempre temeu que o seu
tio, numa das suas pândegas, levasse uma ou duas pedras
no bolso. Tratou de a iludir e a mim também, por tabela.
Deve andar à procura de George.
272
Não acredito que ela seja capaz de agir assim: de
mentir...
Quer-me fazer acreditar que a senhora sua tia resolveu
pôr a saque os grandes armazéns?
Vi com os meus olhos!
Está bem. Não discutamos. Vamos pôr lone Bedford
a par dos acontecimentos.
Oh, não! Não faça isso! Haja o que houver é preciso
esconder...
Cullens ignorou-a e voltou-se para o advogado:
Desculpe-me, doutor, incomodá-lo, mas julgo necessária
a sua presença. O negócio é importante. Pode ser grave
para mim. Estas pedras valem entre vinte e cinco a trinta mil
dólares. O meu carro está à porta. Um Sedan verde, descapotável.
Mrs. Bedford está lá à minha espera. Quer fazer
o favor de a mandar chamar?...
Vá, Della disse Mason e traga-me Mrs. Bedford.
Desaprovo inteiramente esta maneira de agir disse
com firmeza Virgínia Trent. A minha tia procederia de maneira
muito diferente, tenho a certeza.
É possível, mas esta é a minha maneira replicou
Cullens E, sobre tudo, sou o principal interessado. Lembre-se
de que fui eu quem arranjou este trabalho a seu tio.
Que pensa disto, Mr. Mason?
Nada respondeu o advogado, amuado. Estou fora
da questão. A sorte destinou-me o papel de testemunha da
primeira demonstração de cleptomania de Mrs. Breel. Que
foi muito edificante.
Não o duvido foi o comentário sorridente de Cullens.
Como se passou?
Aguentou-se muito bem. E acabou por se sentar à minha
mesa com a sobrinha. Eu já não pensava no caso quando
Miss Trent me veio consultar. E não sei ainda exactamente
o que pretende ela de mim. Você tinha direito a uma explicação.
Portanto já lha dei.
18-VAMP. G. 2
273
Quererá você fugir com o corpo ao manifesto e deixar-me
aguentar as consequências sozinho?perguntou secamente
Cullens à rapariga.
Certamente que não!
Foi, portanto, Mason que insistiu para que você se
avistasse comigo?
Ela não respondeu.
Que queria você de Mason?continuou Cullens.
Quero que ele encontre a minha tia e que... pense
num meio de parar as coisas, de modo a tirarmos o ponto.
Podemos tirá-lo muito bem, mas agindo francamente
afirmou Cullens.
É o que lhe parece. Você fica com a sua reputação
limpa à custa do tio George. Mrs. Bedford vai declarar que
ele roubou as pedras... e vai fazer uma bonita cena!...
Você não conhece lone Bedford. É uma mulher corajosa
e capaz de aguentar o golpe. O que precisamos é encontrar
os diamantes.
E que conta fazer?
Ainda não sei replicou Cullens. Veremos.
Percebeu-se o passo rápido de Della Street no corredor.
A porta abriu-se. Uma mulher com cerca de trinta anos
apareceu no limiar.
Mrs. Bedfordanunciou Della, 'que a seguia.
Entre, lone convidou Cullens sem se levantar. Pegue
numa cadeira e esteja à sua vontade. Apresento-lhe Perry
Mason, o advogado. Os seus diamantes deram às de vila
diogo, lone!
Imóvel, Mrs. Bedford analisava os ocupantes do gabinete
com os seus olhos negros ligeiramente lânguidos. Um pouco
mais forte que Della Street, parecia bem feita e a sua blusa
cor de ferrugem e o "tailleur" cinzento sublinhavam agradavelmente
a sua linha. O chapéu era igual à blusa, assim
como os sapatos, de que os altos tacões realçavam a pequenez
do pé, muito arqueado. Adiantando-se para a cadeira, teve
274
uma ligeira paragem ao ver Mason abrir a cigarreira; ergueu
os sobrolhos em interrogação muda e, a um sinal de cabeça,
tirou um cigarro. Inclinou-se para o acender no isqueiro
que Mason lhe estendia e disse:
Bem. Ao menos há novidades. Conte-me lá isso, Aussie.
Ainda não conheço os pormenores. Georges Trent não
deixou ainda de ser um dos melhores lapidadores do país.
Trabalha bem e faz preços razoáveis. Inteiramente honesto,
só tem um defeito. Um vício, se quiser. Bebe por acessos.
Nessas alturas joga e não tem método. Fecha todas as suas
pedras no cofre, mete no bolso uma quantia razoável, põe
no correio as chaves do carro e vai para a pândega. Quando
está teso quer dizer, sem tostão recobra a razão, volta
a casa e regressa ao trabalho. Desta vez, parece que, por
distracção, levou com ele os seus diamantes. Dei-lhos no
sábado de tarde. Começou a beber nessa mesma tarde. E aqui
estão, resumidas, notícias muito más.
Aspirando uma boa fumaça, ela deitou-a pelo nariz, cujas
narinas tremiam:
E que faz o advogado neste assunto?perguntou,
indicando Perry Mason com o queixo.
Cullens riu-se.
Virgínia Trent, que vê aqui, é sobrinha de George,
pensa que a tia se tornou subitamente cleptómana. E persuadiu-se
de que a tia pegou nos diamantes para fazer não sei
o quê.
Que vem a ser isso?perguntou lone Bedford a Virgínia
Trent com uma voz quente, um pouco gutural. Leu
alguma vez os contos de Grimm, minha filha?
E, vendo que a rapariga se empertigava, indignada,
a boca crispada, Cullens interveio:
Não. Psicologia, ideias fixas, complexos e o resto da
música. A pequena estuda, compreende? Freud, histórias de
sexo, de crime, recalques...
275
Infelizmente e a voz de Virgínia era ácida, a minha
tia entregou-se à sua mania na presença de testemunhas.
Foi apanhada com a boca na botija, ainda não há quatro
horas.
lone Bedford, virando-se para Austin Cullens, ergueu os
sobrolhos, espantada.
Tratava-se, evidentemente, de um hábito e Mason notou
que ela tinha os olhos grandes. lone Bedford parecia sabê-lo,
tal como sabia ter uma graciosa curva da perna, que uma saia
curta mostrava generosamente.
É um estratagema, lone disse Cullens. Se você
pudesse ver Sarah Breel dez segundos que fosse, ficaria
elucidada. O chefe da oficina deu esta manhã pela falta dos
diamantes. Sarah percebeu imediatamente que George os
tinha levado com ele. Quis ocultá-lo, como mulher corajosa
que é! A ideia não era má! Infelizmente, é ideia que não
conduz a nada.
Uma enorme esmeralda brilhou em toda a sua beleza
no dedo de lone Bedford, quando sacudiu a cinza do cigarro.
E, na sua opinião, o que é que precisamos fazer?
Vou tratar de encontrar George Trentrespondeu
Cullens. Está para aí num tasco qualquer, perdido de
bêbedo. Os seus diamantes devem estar na bolsa de camurça
que traz agarrada à pele e esqueceu-os de todo em todo.
O perigo está em ele se lembrar das pedras para as vender
a um jogador mais feliz do que ele. Parece-lhe, Mr. Mason,
que poderemos invocar o abuso de confiança para os recuperar,
se tal caso se der?
Não sem processo. É coisa que dependerá das circunstâncias.,
da maneira como as pedras se encontram em seu
poder e da pessoa que lhas entregou.
Fui eu quem lhas levou. Mas não queremos acção judiciária,
não é verdade, lone?
Ela abanou a cabeça e sorriu a Mason.
Perde-se sempre com a justiça. Só o advogado ganha.
276
E mesmo assim não se ganha grande coisa retorquiu
Mason.
Então que vamos fazer, Lone? continuou Cullens.
Supondo que ele as tenha vendido, quanto pensa você
que terá conseguido pelas pedras?perguntou ela, analisando
a ponta do cigarro.
Não mais de três a quatro mil dólares. Estava bêbedo.
Ninguém, no estado em que ele se devia encontrar, lhe daria
mais de um quinto do valor da mercadoria.
E quanto custarão as investigações?perguntou ela,
dirigindo-se a Mason.
Uns três a quatro mil dólares.
Sim? Bem, isso decide-me (a esmeralda brilhou-lhe no
dedo). Encontre Trent, Aussie. Se ele tem as pedras, tire-lhas.
Senão trate de encontrar o penhorista e pague-lhe a quantia
emprestada. Será coisa mais barata e mais rápida do que um
processo. '
...compreendo muito bem o que sente, minha filha
acrescentou voltando-se para Virgínia Trent. Tem, sem
dúvida, medo de mim. De resto, sem razão. De qualquer
maneira, a culpa não é sua.
Já não sou criança respondeu suavemente Virgínia.
Continuo a pensar que a minha tia agiu em consequência
de uma grande emoção...
Vamos embora interrompeu Cullens, levantando-se.
Temos de trabalhar e não há necessidade de fazer perder
tempo a Mr. Mason.
As duas mulheres seguiram-no em direcção à porta.
Virgínia Trent falava outra vez de psicologia e lone Bedford
lançou um olhar brejeiro a Cullens, antes de se virar para a
rapariga:
Depois de tanta conversa, o que 'sabe dos recalques,
minha pequenina?
Não falava exactamente disso replicou Virgínia,
muito direita e muito digna.
277
Mason que olhava Della (esta segurava a porta pronta
a fechá-la sobre os visitantes) juraria que Mrs. lone Bedford
lhe tinha deitado um olhar de despedida.
Quando penso disse ele à secretária depois de fechada
a porta que ao meio-dia me lamentava pelo facto de os
nossos semelhantes passarem pela vida sem a compreender!
É raro encontrar um trio igual a este reconheceu Della.
Destes, poderemos esperar tudo.
Infelizmente não têm nada de misterioso. São todos magnificamente
normais. Talvez possamos exceptuar Virgínia Trent.
Onde imagina que possa estar a tia?
Tendo-a visto em acçãocontinuou Mason de olhos
Fechados sou levado a aceitar a explicação de Cullens.
Tenta tapar o irmão. Mas é coisa que viremos a saber, Della.
O destino enredou-nos nesta história. Chame o comissariado
central da polícia. Assim, saberemos se foi presa ou se deu
entrada no hospital. Tome nota dos acidentes de viação e das
chamadas das ambulâncias.
CAPÍTULO III

Cerca das sete e meia, chamaram Mason ao telefone do
vestíbulo do seu hotel. Reconheceu a voz profunda de lone
Bedford, antes dela se ter identificado.
Suponho que Mr. Mason já tem notícias da tia?
Ainda não. A sua desaparição é aparentemente voluntária.
Mandei telefonar às esquadras policiais, mas nada consegui.
E não foi presa por roubo?insistiu Mrs. Bedford.
Se o foi, a polícia não o sabe.
Suponho que os meus diamantes estão em segurança.
Telefonei-lhe só para tranquilizar a nossa florzinha ávida de
sensações e de psicologia.
278
Já os encontrou?
Não precisamente, mas Aussie telefonou-me para me
dizer que Trent os tinha empenhado. Trata-se de uma casa
de segunda categoria, na rua 3, este, uma boite que se chama
O Prato de Ouro. No rés-do-chão é um café-restaurante. Em
cima há um pouco de tudo. George Trent parece ter conseguido
seis mil dólares pelos brilhantes. Respondi a Aussie
que não iria além dos três mil. Aussie supõe que foi a quantia
obtida por Trent. O resto são os juros. Resumindo, ele pensa
ganhar. Disse-lhe para continuar para a frente. Entender-nos-emos
com Trent, quando ele tiver voltado a si... Quis apenas
pô-lo a par da situação.
Muito obrigado. Cullens não encontrou Trent?
Cullens diz que ele já tem idade suficiente para tomar
conta de si. Aussie já está a caminho a fim de reaver os diamantes.
Terei notícias dele dentro de uma hora.
Como conseguiu arranjar o número do meu telefone?
Respondeu-lhe uma risada, um riso sensual, um pouco
rouca, estudada para incitar o macho à conquista.
Mr. Mason está a esquecer-se de que é uma pessoa célebre!
Mais ainda: interessante. Boa noite, Mr. Mason.
Já tinha desligado e o advogado, maquinalmente, consultou
o relógio e tomou nota da hora, antes de voltar ao
cocktail.
Depois de madura reflexão, pediu a Della Street que
avisasse Virgínia Trent de que os diamantes estariam em breve
nas mãos do seu proprietário. Após o que jantou só, como
de costume. Estava a acabar de beber o café quando se
aproximou um groôm.
Estão a chamá-lo ao telefone, Mr. Mason.
Toma nota do número porque depois chamo.
Desculpe, Mr. Mason. É o sargento Tremont, do
Comissariado Central da Polícia. Diz que é um assunto
importante.
279
O advogado afastou a chávena, pousou o guardanapo e a
gorjeta na mesa e seguiu o groom à cabina.
A voz do sargento chegou-lhe, seca, cortante e fria.
Mr. Mason, o seu escritório fez chamadas para todos os
hospitais, de tarde, à procura de uma tal Mrs. Breel?
É verdade, sargento respondeu jovialmente Mason,
mantendo-se em guarda. E então?
Mrs. Breel foi atropelada, há uma meia hora, por um
automóvel no Boulevard Saint-Rupert. Está a receber
tratamento. Perdeu os sentidos. Fractura do crânio, uma
perna partida e lesões internas, provavelmente... Gostaríamos
muito de saber, Mr. Mason, as razões que o levaram a prever
este acidente.
Mason começou a rir, tão naturalmente quanto pôde.
Então eu prevejo os acidentes? Na verdade... sargento...
Se julgarmos pela sua solicitude...
O sargento parecia muito céptico.
Estava a tratar de saber o que lhe tinha acontecido.
É tudo.
Está bem! Agora já o ficou a saber. E que vai fazer da
informação ?
Conheço a sobrinha dela. Uma tal Virgínia Trent.
Vou avisá-la.
Já o tentámos fazer, mas não conseguimos encontrá-la
declarou o sargento. É um assunto muito interessante.
Faria melhor se viesse ao Comissariado Central para falar
comigo.
O convite era nitidamente uma ordem e Mason assim o
entendeu.
A ideia não é má. Quem é o autor do desastre?
Um sujeito chamado Diggers. Parece muito chocado.
Continua detido à sua ordem?
Até ver. Vamos deixá-lo sair dentro de minutos.
É evidente que ela se atirou para debaixo das rodas do carro.
Acabei agora mesmo de jantar e já vou.
280
Mas depressínha, hem? Gostaríamos de lhe fazer
algumas perguntas acerca de uns certos diamantes.
Diamantes?repetiu Mason como um eco.
Sim, simconfirmou Tremont desligando.
Enquanto esperava o carro que tinha pedido à garagem,
Mason telefonou a Della Street.
Já conseguiu encontrar Virgínia Trent?
Não, patrão. Estou a chamá-la de dez em dez minutos.
Mas ninguém me atende.
Deixe correr. Mrs. Breel foi atropelada no Boulevard
Saint-Rupert. Parece ter sofrido uma fractura de crânio,
tem uma perna partida e lesões internas. A polícia está a ver
se consegue encontrar Miss Trent. O sargento pediu-me,
mas, de facto, intimou-me, oficialmente, que comparecesse no
Comissariado Central, a fim de responder a um certo inquérito
acerca de diamantes. Alguns aspectos da questão desagradam-me.
Ligue para a Agência Drake. Trate de informar
pessoalmente Paul Drake do que se trata. Diga-lhe para se
meter num taxi e ir ao Comissariado Central. O meu carro
deve estar num parque próximo. Não estará fechado à chave.
Que se meta nele e que me espere. E que leve com ele dois
dos seus melhores homens.
Entendido, patrão. vou tratar disso imediatamente.
Mas porquê tantas precauções?
Não sei. O tom do sargento Holcomb desagradou-me.
No dia em que o tom de um polícia lhe agradar, patrão...
Sua patifona!
Quando desligava, vieram dizer-lhe que o carro estava
pronto.
Mason rolou lentamente, absorvido pelos seus pensamentos.
Tinham-se descuidado e não sabia o endereço de lone Bedford,
o que era muito aborrecido. Por razões pessoais, Mason era
de opinião de que o melhor era saber o que se tinha passado
no Prato de Ouro antes de falar à polícia.
Parando o carro perto do posto de socorros, ainda não
281
tinha dado vinte passos, quando Tremont saiu da sombra e,
agarrando-lhe um braço com mão cordial, mas firme,
perguntou:
Quem é esta mulher, Mason? Uma das suas clientes?
Não exactamente, sargento.
Uma amiga ?
Também não. Almocei hoje com ela, por puro acaso.
-Onde?
No restaurante de um grande armazém.
Desde há quanto tempo frequenta esses estabelecimentos?
O advogado acendeu um cigarro.
Fique sabendo, então, se é coisa que lhe possa interessar
profissionalmente, que se come lá muito bem. E, por outro
lado, não tinha por onde escolher. Talvez se lembre de que,
perto do meio-dia, começaram a cair pedras.
Nesse caso é evidente que você não convidou a senhora
para almoçar. Encontrou-a, sem mais.
A isso chama-se ter espírito de análise e de dedução
redarguiu Mason.
Mas não respondeu à minha pergunta.
Foi você mesmo que se encarregou de o fazer.
Tremont estendeu bruscamente a cabeça.
E os diamantes, Mason?
Que diamantes?
Sabe muito bem o que quero dizer.
Interesso-me muito pouco por diamantes, sargento
volveu Mason, abanando a cabeça. Se quer falar de criminosos,
de honorários... experiência incluída, compreendo.
O crime é o inevitável subproduto dos ódios e das rivalidades
nascidas de uma civilização que se baseia na concorrência.
Sabe, sargento, que até o facto de não medearem quarenta e
cinco dias de intervalo entre um crime e outro crime, me
encanta positivamente? Imagine-se no Comissariado Central
da Polícia, quando o quadragésimo quarto dia está a findar.
282
Os minutos passam. Vão matar alguém em qualquer parte.
Senão o "record" é batido... É apaixonante!
Se julga que está a ganhar tempo ou a enfiar-me o
barrete, está muito enganado cortou Tremont. Que sabe
você dos diamantes?
Os diamantes?
Sim. Os diamantes! Essas pequeninas pedras brilhantes
que as mulheres usam nos dedos ou em qualquer outra parte
do corpo. São polidas e brilhantes. E também muito duras.
Servem também para cortar vidros. Também conhecidas como
cachuchos ou calhaus. Se a minha descrição lhe não basta,
posso emprestar-lhe uma enciclopédia. Temos uma excelente,
no gabinete do comando.
Ah! Os diamantes! exclamou Mason.Já me lembro
de me ter falado neles. Ela tinha-os ou ia procurá-los, já não
sei bem como era. O irmão dela é lapidador.
Sim, já sabemos. Quando o seu escritório se começou a
interessar pela mulher, achámos de bom aviso interessarmo-nos
também. Quando você se interessa por alguém, é muito
raro que não acabemos embrulhados num crime, mais cedo
ou mais tarde.
Muito obrigado pela confidência. De futuro não a
esquecerei.
Peço-lhe que o faça. Faça-o, pois. É um prazer poder-lhe
ser útil. Mas ainda não respondeu à minha pergunta.
Não lhe posso dizer nada respondeu Mason, que parecia
esforçar-se por juntar as suas recordações. Ela falou-me
de um irmão excelentemente colocado no ramo dos diamantes.
Na sua ausênciapara que ela dava não sei que razãoela
dirigia o negócio. Não me sinto capaz de lhe dizer, com
exactidão, o que ela me contou.
Está bem. Voltaremos a falar do assunto. Entre então
por aqui, Mason.
E conduziu o advogado a uma sala de espera. Avistando-o,
um homem aparentando cinquenta anos, muito magro,
283
levantou-se precipitadamente para se voltar a sentar rápida- '
mente, depois de ver a expressão do rosto de Tremont.
Este cavalheiro é Harry Diggers, que guiava o carro
apresentou o sargento. Perry Mason, o advogado.
Mason fez com a cabeça um sinal tranquilizador a Diggers,
que lhe veio apertar a mão.
Dê-me a bolsa de Mrs. Breelordenou o sargento a um
funcionário que estava atrás de um "guichet" gradeado.
Entregaram-lhe uma bolsa preta, com asas redondas
imitando jade, com cerca de quinze centímetros de diâmetro.
Afastando as asas, via-se nitidamente o conteúdo do saco.
Parece-me realmente a bolsa da senhoraobservou
Mason. Olha, ela faz "tricot"!
O sargento tirou a ponta de uma camisola e um par de
agulhas espetadas num novelo de lã azul escura. Depois vinha
meia dúzia de pares de meias de seda.
Repare nas etiquetas que trazem, o preço e o número de
venda. Estes artigos não passaram pela caixa, foram roubados
nos escaparates.
É plausívelassentiu Mason.
Já sabia?
O advogado abanou a cabeça.
Espere. Ainda não viu tudo continuou Tremont que,
remexendo na bolsa, tirou uns pacotezinhos feitos com um
tecido branco e fino, para os abrir um a um.
Cinco grandes diamantes, com engaste antigo, brilharam
sob os olhos do espantado Mason.
Caramba! Não sou perito, mas isto parece-me valer uns
bons cobres.
Não está nada enganado. Não tem uma ideia qualquer
acerca da sua proveniência?
Mason sacudiu a cinza do cigarro e plantou-se diante do
inspector.
Quando encontrei Mrs. Breel, discutia ela com um
detective do armazém que a acusava de ter roubado algumas
284
mercadorias dos escaparates. A sobrinha declarou que ela
andava a fazer compras. Os artigos não tinham saído do
armazém. Intrometi-me e pedi ao detective que se mostrasse
mais caridoso.
Então?
Então sentámo-nos e almoçámos. Um modelo, esta
mulher. Mais tarde, a sobrinha foi-me visitar. Falou de uns
diamantes entregues a George Trent. Na minha opinião,
sargento, pode averiguar facilmente a origem das pedras
com o auxílio de Miss Trent. São sem dúvida as que foram
confiadas a George Trent.
E que fazem elas nesta bolsa?
Ignoro-o inteiramente,
E isto? perguntou o sargento, batendo com os nós dos
dedos nas meias de seda. Isto foi roubado. Então os diamantes...
Mason deu uma larga gargalhada.
Apliquemos o mesmo princípio ao "tricot" e poderemos
admitir também que é produto de um roubo.
Não se faça esperto, Mason. É vulgar uma mulher
trazer o seu "tricot" na bolsa.
Você parece esquecer que o irmão dela é técnico de
diamantes. Compra e vende à comissão, repara ou modifica
um engaste, lapida e pule todas as pedras preciosas. Quando
ele não está é Mrs. Breel que toma conta do negócio.
E onde está ele agora?
Na pândega, ao que parece.
Pois bem! Ela terá muita sorte, na minha opinião,
se estas pedras estiverem legalmente em seu poder. Como se
meteu você neste assunto, Mason?
Meteram-me nele à força. Depois de ter almoçado com
a tia e a sobrinha, esta foi visitar-me, de tarde, para me dizer
que a tia tinha desaparecido. Pediu-me que a mandasse procurar,
E logo a seguir entraram outras pessoas que queriam
285
ver imediatamente a sobrinha. A conferência deu-se no meu
escritório.
Os sapatos, Bill! ordenou o sargento ao funcionário,
que lhe entregou um par de sapatos de camurça cinzenta com
tacões e biqueiras muito estropiados.
O sargento pegou no sapato esquerdo.
Olhe-me para isto, Mason.
O advogado examinou cuidadosamente a camurça cheia
de manchas castanhas. A sola estava também castanha.
Como explica você estas manchas de sangue? perguntou
o sargento.
Não faço a menor ideia replicou Mason levantando a
cabeça. Como já lhe disse, vi esta mulher pela primeira e
última vez no restaurante do armazém, quando paguei a
conta na caixa. Devia ser uma hora e um quarto, ou uma
e dezassete, para ser exacto. Tinha uma entrevista à uma e
meia, no escritório, a que não queria faltar.
Isso não explica as manchas de sangue.
Não é o dela? Se ela teve um desastre... Partiu uma perna.
Fractura simples replicou o sargento. Sem derramamento
de sangue. E, depois, como explicar esta sola completamente
embebida em sangue. A sua cliente não teria dado cabo
de alguém para reaver os diamantes?
Mason julgou chegado o momento de mostrar a sua
impaciência:
Como diabo o posso saber? Em primeiro lugar, não é
minha cliente. Em segundo, não sei nada dela. Limitei-me
a tentar reconfortar uma infeliz rapariga de olhos cinzentos,
rosto liso e que parecia respeitar muito as convenções.
Tanto pior redarguiu o sargento com uma careta.
Estávamos a pensar que nos podia ajudar...
Lamento cortou Mason, esmagando o cigarro no
cinzeiro.
Poderei ir-me embora daqui a pouco? perguntou o
homem. ,
286
Sim. Um momento respondeu o sargento sem desfitar
Mason.
Como se deu o acidente?perguntou o advogado a
Diggers.
Mr. Mason é advogado interveio Tremont. O senhor
já fez o seu depoimento e não é obrigado a responder.
Não tenho nada a esconder replicou o interpelado.
Rodava no Boulevard de Saint-Rupert a quarenta à hora,
não mais, encostado à direita. Um Sedan azul, que estava
parado junto do passeio, arrancou à minha frente e torci o
volante para a direita, para o evitar. Já está a ver como ia
devagar! Tinha passado a rua 91. Quando raspava pelo passeio,
essa mulher atirou-se para debaixo das rodas, no sítio onde
tinha estado o Sedan azul. Quando me viu assustou-se e
levantou os braços. Travei bruscamente, buzinei e torci o
volante. O estribo direito apanhou-lhe uma perna, acima do
joelho e partiu-lha. Caiu de bruços. A bolsa estava junto dela.
Ia metê-la no meu carro para a levar ao hospital, mas já
alguns transeuntes tinham chamado uma ambulância... e
preferi deixar-lhes a responsabilidade.
Ia sozinho no carro? perguntou Mason.
-Ia.
Viu a mulher muito antes de a atropelar?
Não mais de um ou dois segundos. Saltou do passeio
mesmo diante das rodas e parou imediatamente. E mandei
arrolar o conteúdo da bolsa. Imaginem: havia uma pistola
que tinha caído da bolsa...
Uma pistola! exclamou Mason.
Já o sargento agarrava Diggers por um braço.
Vamos, Diggers. Não vejo a necessidade de o reter aqui
mais tempo. É inútil responder às perguntas deste senhor.
Mason dirigiu-se para a porta.
Agora vou ver Mrs. Breel, sargento.
Não, Mason!
Vai proibir-me, não?
287
Exactamente replicou afàvelmente Tremont. Em primeiro
lugar, o médico que a trata proibiu as visitas. Em segundo,
está sob vigilância policial. E como você já me explicou
que se não trata de uma sua cliente, não a poderá ver.
Mason reflectiu.
Os seus argumentos convencem-me, sargento admitiu
com uma careta.
CAPÍTULO IV

Paul Drake, director da Agência Drake, era alto, magro
e pessimista. E contudo, no seu rosto corado, os lábios de
cantos levantados por uma perpétua contracção dos músculos
faciais pareciam rir-se para a vida.
Estava dobrado num banco do carro de Mason, com a
cabeça baixa, um cigarro colado aos lábios e endireitou-se
ligeiramente quando avistou o advogado, que vinha sentar-se
ao volante.
Que horas são, Perry? Acusaram-no de cumplicidade?
Ainda não retorquiu alegremente Mason. As investigações
continuam.
As investigações?
Parece. Não sei mais nada.
Quando começamos ?
Logo que tenhamos consultado um anuário e arrancado
do ninho um tal Austin Cullens.
Que relação?
Se ele mora no Boulevard Saint-Rupert, entre a rua 91
e a rua 92, será muito fácil estabelecer a relação.
Arrancando suavemente, virou a esquina da rua e parou
diante de uma farmácia.
Espere-me aqui, Paul. vou consultar o anuário.
Um minuto depois estava de posse da informação pre-
288
tendida. Austin Cullens morava no n.º 58 da rua 92, Boulevard
Saint-Rupert.
Mason meteu uma moeda na fenda do aparelho e marcou
o número de Della Street.
Sinto-me desolado por ter de a incomodar, Della.
Espero não perturbar as suas numerosas entrevistas...
Em nada, patrão. Estou sempre à espera do toque do
telefone. Que aconteceu?
Ainda não sei bem. Temos o endereço de Mrs. Bedford?
Não me parece.
É muito de lamentar. Trate de a procurar. Arranje
maneira de estabelecer relações com ela e trate de desaparecer.
Para a polícia, claro.
E ela deve saber o que pretendemos, chefe?
Sentia-se na sua voz um interesse diferente.
Evite-o, se for possível. Conte-lhe uma história qualquer.
Diga-lhe que a mandei para junto dela na expectativa
de acontecimentos importantes. Faça-se sedutora. Convide-a
para jantar. Dou-lhe carta branca. Mas arranje-se de maneira
que a polícia não a possa encontrar e sem ela o pressentir.
Entendido, patrão. Onde o poderei encontrar se a coisa
falhar?
Mantenha-se em contacto com a Agência Drake
continuou Mason. Deixe um recado à pessoa que a atender
Diga-lhe que um de nós, Drake ou eu, telefonará um pouco
mais tarde. Para o- resto, silêncio. Naturalmente, se não
conseguir encontrar a senhora...
Confie em mim, patrão interrompeu Della Street.
Consegui-lo-ei. Mas que aconteceu?
Ainda não sei bem. Procuro saber. Não se esqueça de
se pôr em contacto com a Agência Drake.
Entendido. vou lançar-me ao trabalho.
Mason voltou imediatamente para o volante e arrancou
brutalmente. Paul Drake, sentado de esguelha no banco,
espantou-se:
19-VAMP. G. 2
289
Então, que vamos fazer?
Andar.
E depois ?
Paramos para tocar uma campainha.
Assim já se fica a saber alguma coisa murmurou
Drake recostando-se no seu canto Quando chegar acorde-me,
sim ?
Fechou os olhos e pareceu efectivamente adormecer.
Mason lançou o carro no máximo autorizado, virou no
Boulevard Saint-Rupert e travou junto do passeio, do lado
oposto ao de uma residência bastante pretensiosa, um pouco
afastada das casas vizinhas, cercada por um relvado bem
tratado. Um passeio cimentado conduzia a uma vasta garagem,
por cima da qual se via a residência do motorista.
Quem mora aqui, Perry? perguntou Drake abrindo
os olhos.
Austin Cull ens. Venha.
Atravessando o passeio, encaminharam-se para a porta
da mansão e Mason premiu o botão da campainha. O som
rolante levantou ecos no interior, mas nada se mexeu atrás
das janelas sombrias.
A porta está entreaberta notou Drake.É curioso!
Sem dúvida. Vamos entrar.
Acontece que às vezes disparam contra os ladrões
observou o detective, tirando uma lanterna eléctrica do
bolso.
Dizem que sim. Trate de encontrar o comutador, Paul.
Ah! Cá está!
Mason avançou e girou-o duas vezes, sem sucesso.
Fusíveis fundidos observou Drake.
Está bem. Continuemos a inspeccionar. Alumie o
soalho. Poderemos...
O fecho luminoso iluminou uma mancha vermelha que
Drake examinou.
Olhe, antes de ir mais adiante, faria melhor dizendo...
290
O advogado arrancou-lhe a lanterna da mão.
Se é aquilo que pensa, Paul, não temos tempo a perder
em discussões.
Um rasto vermelho conduzia a uma porta. Mason empurrou-a
e Drake reprimiu uma exclamação quando o foco
luminoso parou sobre o corpo estendido e sem vida de Austin
Cull ens.
Experimente o comutador, Paul.
O detective girou-o, mas em vão.
Vamos deixar as nossas impressões por todos os lados
observou. Precisamos de avisar a polícia...
Num casarão destes interrompeu Mason há vários
circuitos. Um fusível fundido não corta a corrente para todas
as lâmpadas. É evidente que podem ter fechado o interruptor
geral, mas continuo a pensar que há um curto circuito.
Experimente os comutadores dos outros compartimentos,
Paul, até conseguir obter luz.
Isto não nos conduz a nada. Vamos espalhar por toda
a parte as nossas impressões.
Então não toque em nada.
Passe-me a lanterna. '
Não. Dê um pequeno giro. Não se esqueça de que está
a procurar o telefone para avisar a polícia.
E que vai você fazer durante todo esse tempo?
vou também procurar o telefone.
Não se engane, Perry. Olhe que vou chamar imediatamente
os "chúis".
Espero que sim. A sua história está pronta: você encontrou
o corpo, procurou o telefone, encontrou-o e chamou.
Não percamos tempo.
Drake dirigiu-se ao vestíbulo. Mason analisou o compartimento
e o corpo estendido por terra. O homem tinha sido
visivelmente abatido com uma bala que penetrara um
pouco acima do coração. O casaco e a camisa estavam
abertos descobrindo uma cinta de pele de camelo a que
291
tinham revistado as algibeiras, íiavía uma larga poça de
sangue ao lado do cadáver. Parecia terem andado por cima
dela.
O compartimento era um vasto salão. Na parede, havia
livros. Duas grandes poltronas entre o fogão de sala e uma
pesada mesa de acaju. Uma meia dúzia de tapetes orientais
cobria o pavimento, cuidadosamente encerado. Numa cadeira,
negligentemente abandonados, um sobretudo, um
cachecol, um chapéu e luvas, que pertenciam, sem dúvida,
a Cullens.
Tomando o cuidado de não tocar em nada, Mason aproximou-se
do corpo e inclinava-se sobre ele quando uma
voz de homem se ergueu subitamente no salão:
"Carro dezasseis, dirija-se imediatamente à esquina das
ruas Washington e Maplet. Acidente de automóvel. Carro
trinta e dois, chame o seu posto. Carro catorze, dirija-se ao
3819 da Rua Walpole. Mulher atacada por um vadio".
O rádio calou-se.
Mason ouviu os passos de Drake no vestíbulo. Uma luz
frágil coava-se pela porta de entrada, que estava entreaberta.
Drake entrou.
Já está, Perry. Chamei a Secção Criminal.
Disse-lhe que eu estava cá?...
Não. Só falei do corpo e...
A voz vinda do canto do salão interrompeu-o:
"Carro vinte e dois. Dirija-se imediatamente ao 58 do
Boulevard Saint-Rupert. Um detective particular chamado
Drake acaba de telefonar dizendo que descobriu o corpo
de um homem assassinado. Trata-se provavelmente de
Austin Cullens. Detenha qualquer pessoa que se encontre
na casa. A Secção Criminal vai imediatamente para o local."
Repetiram a mensagem.
Foi você que pôs o aparelho no comprimento de onda
da polícia? perguntou Drake.
Mason acenou com a cabeça.
292
Você não devia ter dado o nome do morto, Paul.
Perguntaram-me e, igualmente, a razão por que me
encontrava aqui. Respondi que tinha vindo visitar Austin
Cullens em companhia do advogado do morto.
Mencionou o meu nome?
Não. Disse apenas "o seu advogado".
Que ambiguidade! exclamou Mason, sarcástico.
Havia necessidade de lhe contar a sua vida desde pequenino!
Você tinha apenas de falar do cadáver e mais nada.
O tipo que estava do outro lado do fio não era dessa
opinião.
Pode sempre iludir-se a pergunta.
Eh, eh! Talvez você, mas não eu. Tenho de renovar
a minha licença no mês que vem.
E além do mais não tem importânciaconcedeu Mason.
Eles acabariam por vir a sabê-lo. O que me contrafaz é o
rádio ter falado. Nunca se sabe quem ouve. E a luz?
Só este lado da casa está isolado. O circuito que alimenta
as lâmpadas da sala de jantar, de escritório, da cozinha
e das escadas, está em bom estado.
Deixou as lâmpadas acesas?
Deixei. "
Onde está o telefone?
Encontrei um na sala de jantar. Deve haver um outro
por aqui.
Mason examinou o salão com o foco da lanterna.
Olha!exclamou Drake. Lá está um, naquele canto.
É verdade. Não o tinha visto. Bem! Paul, ligue para o
seu escritório. Um tal Harry Diggers atropelou e feriu uma
mulher diante desta casa, há cerca de uma hora, uma
Mrs. Sarah Breel. Ele pretende que ela saía daqui. A polícia
deteve-o algum tempo. Preciso do seu depoimento completo
e minucioso antes de os "chúis" lhe deitarem outra vez a mão.
Há também uma casa de jogo na Rua 3 Este, por cima de
um café-restaurante chamado O Prato de Ouro. Mande dois
293
dos seus homens fazer uma investigação por lá. Um lapidador
chamado George Trent meteu-se na pinga. Mande-o procurar.
Consiga uma fotografia, se possível. Se for necessário,
assalte-lhe o escritório. Vive com uma sobrinha chamada
Virgínia. Tem telefone. Vai encontrá-lo, provavelmente,
num tasco qualquer, a beber e a jogar.
E com mulheres?
Talvez. Não sei. Pouco importa. Ande-me depressa
antes de chegarem os "chúis".
com uma agilidade que desmentia o seu aspecto despreocupado,
Drake dirigiu-se ao vestíbulo e, poucos segundos
depois, ouvia-se a sua voz ao telefone. Na rua, um automóvel
deteve-se com um guincho de pneus brutalmente travados.
Para dar tempo a Drake, Mason encaminhou-se para os
agentes e abordou-os no meio da vereda cimentada que conduzia
à casa.
Você é o tal Drake?perguntou um dos agentes.
Não. Chamo-me Mason respondeu o advogado.
Encontrei o cadáver.
Julgava que você se chamava Drake.
Não. Pode ver o meu bilhete de identidade.
Procurou nos bolsos, ganhando preciosos minutos.
De que se trata? perguntou o agente.
Não sei volveu Mason. Vim visitar Cullens por
causa de um negócio. Encontrei as lâmpadas apagadas e
a porta aberta. Entrei e encontrei-o...
As lâmpadas estão acesas interrompeu um dos agentes
mostrando as janelas iluminadas no lado direito da mansão.
É um outro circuito explicou o advogado. Deve
ter-se fundido um fusível no circuito do compartimento onde
está o corpo. Um circuito apenas. O rádio funciona.
Quem acendeu as lâmpadas do outro lado?
Foi para encontrar o telefone...
Entendido. Vamos ver. O relatório diz que você se
chamava Drake.
294
Eram impossíveis mais delongas.
\ Mr. Drake estava comigoesclareceu o advogado.
\ Onde está ele agora?
Na casa.
E porque não tratou de o dizer mais cedo?
Porquê?perguntou Mason que parecia sinceramente
espantado. Mas... não me perguntou! Queria explicar-lhe
como se tinha passado...
E o que está ele a fazer, o Drake?
Está à sua espera.
Um agente agarrou o braço de Mason. O outro correu
para a porta. Drake dirigia-se para eles, com um cigarro
nos lábios.
bom dia, camaradas! Estou a ver que não perderam
tempo. Avisei a Secção Criminal.
Está bem, mas que estava você a fazer metido lá
dentro ?
Drake mostrou o bilhete de identidade e a sua licença
de detective particular.
Você não tocou em nada?
Em nada, se exceptuarmos o telefone.
E porquê no telefone?
Tinha de os avisar!
Drake não se quis servir do aparelho do salãointerveio
Mason. Não tocámos em nada. O homem foi atingido
com uma bala. O móbil do crime parece ter sido o roubo.
Ao longe, silvou uma sirene.
Eh! Jim ordenou um dos agentes. Cá está a Secção.
Deitemos uma olhadela antes de cá chegarem... bom Deus!
Como está escuro!
Já lho tinha dito respondeu Mason. Há um contacto
inutilizado.
Como encontrou você o cadáver ?
com uma lanterna eléctrica.
Mason tirou-a da algibeira.
295
É hábito seu trazer semelhante Coisa consigo?per-
guntou, desconfiado, um dos agentes. '
É a de Drake.
O agente tirou a sua, examinou o compartimento e
deteve o círculo luminoso sobre o cadáver.
Está morto. Não há lugar para enganos.
As sirenes silvaram diante da casa. Um carro travou,
rangendo, encostado ao passeio. Sentiram-se passos pesados
na vereda de cimento e nos degraus da escada. O sargento
Holcomb, da Secção Criminal, apareceu e imobilizou-se
ao avistar Mason.
Você está metido nisto?
Não, sargento. Estou apenas na casa onde isto foi
cometido.
E que carga de água o trouxe para estes lados?
Queria avistar-me com Mr. Cullens para tratar de um
negócio.
Que negócio?
Tinha-me consultado.
Era um dos seus clientes?
Não precisamente.
Então? Explique-se.
Andava à procura de um sujeito chamado George
Trent, que é lapidador. Tinha razões para acreditar que
Cullens sabia alguma coisa acerca do meu homem.
E quais são as razões que o levam a pensar assim?
Ponha isto na conta da intuição, se quiser.
Tudo isso me parece pouco lógico.
Como quiser, sargento retorquiu azedamente o advogado. Não
há intuição nem lógica. E depois?
Prenda-me estes dois cágados separadamente ordenou
Holcombe a um agente. Não lhes fale e não lhes responda.
Não os deixe telefonar. E, sobretudo, não os deixe passear
por estes lados!... Entrem vocês também. Vamos começar
pelo salão... Mande guardar as saídas... Vamos.
296
Passaram-se vinte minutos antes do sargento Holcomb
vir interrogar o detective e o advogado, e um quarto de
hora de esforços não lhe indicou nada que não soubesse já.
Está bem, podem pôr-se a andar concluiu. Mas vou
tê-los debaixo do olho. Tudo isto me parece pouco limpo.
Não vejo o que poderíamos ter feito para mais completa
Colaboração retorquiu Mason. Drake preveniu imediatamente
a polícia.
Onde esteve você antes de vir para aqui?
A telefonar, numa farmácia.
A quem?
À minha secretária, se isso lhe interessa. (
A propósito de quê?
Procurava o endereço de um cliente.
De Cullens?
Não.
De quem?
Nada tem a ver com este assunto. E, para mais, não
consegui nada.
E porque veio você aqui?
Para ver Cullens.
Já compreendo. Você queria perguntar-lhe o endereço
que a sua secretária lhe não tinha podido dar?
De facto procurei o endereço de Cullens no anuário
da farmácia concordou Mason.
Está bem. Desapareça... Não se esqueça de que a sua
licença acaba no mês que vem, Drake.
Aqui está o que eu chamo uma tentativa de intimidação
protestou Mason. Drake não teve desvios, neste
assunto. Ambos respondemos a todas as perguntas feitas.
É possível. Resta saber se eu fiz todas as perguntas que
deveria fazer.
Estamos à sua disposição, sargento.
Como diabo querem vocês que eu saiba aquilo que
devo perguntar?
297
E como diabo quer você que nós respondamos?opôs
Mason levantando a voz.
com o polegar, Holcomb apontou a porta:
Desapareçam! E, sobretudo, nada de novo cadáver
antes de amanhã, compreenderam? Há casos em que um
detective particular corre sérios riscos mostrando-se excessivamente
astucioso. Atenção, Drake...
Drake tentou responder, mas Mason antecedeu-o.
Quer dizer, que deve evitar, de futuro, indicar-lhe os
cadáveres que possa descobrir no decorrer do seu trabalho?
O rosto de Holcomb sombreou-se.
Vocês compreenderam-me muito bem. Vamos! Rua!
Os agentes empurraram Mason e Drake, fazendo-os
atravessar o vestíbulo cheio de fotógrafos, e onde se viam
um representante do procurador e uma meia dúzia de agentes
de segurança.
Diabos o carreguem! praguejou Drake entrando no
carro. Este estupor vai-me fazer voar a licença...
Mais devagar! Ainda é preciso que ele tenha uma
razão para tentar agir sobre o conselho. Há muitos tipos
destes que precisam de ser postos no seu lugar para não nos
aborrecerem.
Pouco importa. Tratemos de não encontrar mais
cadáveres.
Onde vamos agora?
Vai telefonar para o seu escritório para saber de que
lado sopram os ventos. Se não se passou nada de extraordinário,
vamos fazer uma pequena visita ao Prato de Ouro e
tratar de fazer a nossa investigação antes da polícia.
Aqui está justamente o que me desagrada na sua
maneira de agir observou Drake. Você procura andar
sempre à frente dos "chúis".
É a melhor forma de proteger os meus clientes.
E qualquer dia isso vai-me custar a licença.
Por que razão?
298
Acusar-me-ão de reservar certas informações para mim,
entravando a acção da polícia.
Que sabe você das necessidades actuais da polícia?
Nada. Mas tenho para mim que não sucede o mesmo
consigo.
Não tente ler os meus pensamentos, meu velho! Na
minha qualidade de seu advogado, Paul, aconselho-o a
fazer-se de parvo. Siga as minhas instruções sem procurar
compreender.
Entendido, Perry. Assim se fará.
CAPÍTULO V

Mason dobrou a esquina da rua, procurando um lugar
junto do passeio para parar.
Então, Paul, que conseguiu saber?
Muito pouco desculpou-se o detective. Os meus
homens só dispuseram de alguns minutos...
Bem sei... Vamos aos factos. Diga-me o que conseguiu
respigar.
De início, era apenas um restaurante comum. Os actuais
proprietários abriram uma casa de jogo no primeiro andar.
Os proprietários?
Bill Golding e Eva Tannis, que passam por marido e
mulher. Na realidade não são casados.
Percebem do negócio?
A fundo e há muito tempo. Golding dirigiu um clube
clandestino em S. Francisco. Mais tarde, foi inspector de um
grande casino, no México. O casal chegou aqui sem um tostão,
mas soube encontrar comanditários.
E a rapariga?
Eva Tannis trabalhava como atracção em S. Francisco,
na boite de Golding. Tem a seu cargo fornecer ideias aos
299
clientes e despertar os apetites. Então, meu Deus... essas
corajosas pessoas abrem os cordões à bolsa e arriscam algumas
notas.
Naturalmente está tudo viciado?perguntou Mason,
virando à direita para ficar na mão junto do passeio.
Não. É regular. Só atraem os pontos e mais nada.
E os jogadores felizes?
Eva intervém. Retêm-nos até a casa ter recuperado os
seus fundos. Se o ponto sai ainda com alguns lucros, ela sai
com ele, marca uma entrevista para a noite seguinte e atrai-o
para a mesa. O tipo está convencido de que basta aparecer
para ganhar. Então, está perdido.
Tudo isso me parece bastante sujo, Paul.
Trata-se apenas do primeiro lance. Enquanto se espera
a grande partida.
Pois bem! Vamos lá! concluiu Mason, consultando os
números.
Entraram, sem dar atenção à loura mal arranjada que
estava na caixa e Drake apontou com o dedo uma porta que
dava para as escadas. Subiram, sem provocar qualquer
protesto. No primeiro andar, o fundo do corredor servia de
sala de espera. Havia uma escrivaninha, um livro de registo,
uma campainha e um cartão onde se lia: "Chame o gerente".
Drake deixou cair a mão sobre a campainha.
Faríamos bem, fingindo que estamos um pouco tocados
propôs ele ao advogado.
Este tirou a carteira do bolso, apoiou-se à escrivaninha
e começou a contar as notas com a gravidade de um bêbedo
que se esforça por parecer em jejum. Abriu-se uma porta para
deixar passar um homem de ombros largos.
Que querem vocês?
Mason olhou-o, sorrindo com ar estúpido. Drake teve um
gesto vago na direcção do corredor.
Bem... que... tentar um velho golpe...
Não os conheço.
300
Metendo as notas na carteira, Mason inclinou-se, vacilante,
para Paul.
Vamos, Paul. Não nos querem aqui. Vamos p'ra outra
boite...
Nada a fazer meu velho replicou Drake, peremptório.
Eles devem-me cento e quarenta notas nest'urno. Quero-as!
Está bem, rapazesdisse o homem. Entrem. Segunda
porta à esquerda.
Foram pelo corredor, muito parecido ao de qualquer
casa mobilada, e Drake premiu o botão da porta indicada.
Do outro lado ressoou uma campainha. Correram um ferrolho
e a porta abriu-se.
De vários quartos tinham feito uma grande sala, mobilada
com bastante pretensão. O pavimento, pintado, estava coberto
de carpetes berrantes. Na parede, telas baratas iluminadas
como se fossem quadros de mestres, cada quadro com uma
lâmpada tubular cromada. Havia duas mesas de roleta, uma
de "poker", duas de monte e uma de burro americano.
No fundo, havia um bar cheio de copos e de lâmpadas veladas.
Havia na sala uns trinta a quarenta homens, calculou Mason,
e umas quinze mulheres, das quais sete ou oito com vestidos
de noite muito decotados. Quase todos os homens estavam
de jaqueta. O advogado notou dois "smokings".
Não percamos tempo disse Mason a Drake. Estamos
onde queríamos. Vamos até ao fim.
Entendido.
Os dois homens aproximaram-se do bar e o advogado
pôs uma nota de cinco dólares em cima do balcão.
Dois cocktails. Diga a Bill Golding que lhe queremos
falar.
Quem?perguntou o barman.
Nós dois.
E quem são vocês?
Mason pôs um cartão sobre o mogno húmido do balcão.
O barman chamou um criado e falou-lhe em voz baixa,
301
sem tirar os olhos de Mason e Drake. Entregou o cartão ao
criado que, praguejando, desapareceu atrás de uma porta
com reposteiro. O barman estava a servir as bebidas, quando
o criado voltou e lhe fez um sinal afirmativo.
Está bem assentiu o barman. Golding vai recebê-los.
Espere-me aqui, Drake disse Mason, afastando-se
sem ter tocado no copo. Abra os olhos.
O criado abriu a porta; o advogado, afastando um reposteiro
verde, encontrou-se num pequeno escritório. Um homem
sentado atrás de uma mesa analisava-o friamente. Uma
mulher, alguns anos mais nova do que o seu companheiro,
usando um vestido de seda que lhe realçava as formas, estava
de pé, perto da mesa. Nos seus cabelos de um preto de azeviche
brilhavam travessas de fantasia. Os lábios, muito vermelhos,
não sorriam. Adivinhava-se nos seus olhos escuros e
brilhantes uma emoção mal dominada. O pescoço redondo e
liso denunciava a vitalidade, o desejo de prazer, em contraste
com o rosto jovem e ossudo do homem, nos lábios do qual se
desenhava o sorriso estereotipado do oportunista vivendo
da ruína dos seus semelhantes. Nas maçãs do rosto viam-se
duas rosetas de mau indício. Os olhos brilhavam não de vida,
mas de febre.
Sente-seconvidou o homem em voz baixa e rouca.
O advogado sentou-se numa poltrona de couro e cruzou
as compridas pernas. O silêncio que se seguiu provava que
não haveria apresentações. E, todavia, era evidente que a
mulher não estava na disposição de sair. Mason tirou um cigarro
e olhou a mulher.
Permita-me que fume?
Certamente. E vou seguir-lhe o exemplo.
Ela deu um passo e via-se a agitação dos músculos do seu
corpo bem feito sob o vestido muito justo.
Peço-lhe que se não levante disse ela.
Mason riscou um fósforo. Ela segurou a mão do advogado
entre as suas para acender o cigarro.
302
Então, que quer você? resmungou o homem.
Onde estão as pedras que você recebeu de George
Trent?perguntou brutalmente Mason.
O homem pareceu mortificado, agitou-se e corou.
Ah! É por isso...
Devagar, Bill interveio a mulher, que se sentou ao
lado de Mason, com o braço nu apoiado nas costas da poltrona
e tão perto do advogado que este podia aspirar-lhe o perfume
da nuca.
George Trent não me deu pedras nenhumasrespondeu
Golding.
Há duas ou três horas, no máximo, esteve aqui Austin
Cullens continuou Mason.
Austin Cullens? Não conheço.
Um grandalhão, com um metro e oitenta, cerca de
quarenta anos, cabelos castanhos e ondulados, um grande
diamante num dedo e outro na gravata.
Não vi.
Veio tirar informações de George Trent e propôs-lhe
resgatar as pedras que Trent lhe tinha deixado.
Não vi ninguém.
Não é essa a minha opinião continuou Mason, muito
calmo.
Estou a mentir, talvez?
Digamos que está enganado corrigiu o advogado com
um sorriso irónico.
Não minto, nem estou enganado. Pode ir pelo caminho
por onde veio. E aconselho-o a fazê-lo imediatamente, antes
de resolver dar-lhe uma ajuda.
Você tem ali um bonito aparelho de rádioobservou
Mason.
Gosto dele e é o essencial.
Porque não gira o botão para ouvir um pouco de
música ?
Não sou vendedor.
303
A minha sugestão foi feita na esperança de que você
poria no comprimento de onda reservado à polícia. Poderia
ficar a saber que assassinaram Cullens.
Não percebo o que quer dizer.
Mason mantinha o tom ameno de conversa.
Cullens fez um telefonema, antes de vir visitá-lo.
Você está enganado!
Compreendo muito bem a sua situação. Como pro
prietário de boite, você não tem nenhum desejo de atrair as
atenções. Você prefere não se ver misturado, mesmo de longe,
a um assassínio.
Vamos! comentou Golding, em ar de chacota. Diga
lá a sua cantiga. Mas não conte comigo para o acompanhamento.
Se você fosse mais amável, poderíamos falar amigavelmente.
Senão, telefonarei ao meu amigo sargento Holcomb,
da Secção Criminal, para lhe dar uma pequena indicação.
Queixa-se, ele, ultimamente, de que não colaboro estreitamente
com a polícia. E esse aviso arranjaria muita coisa.
Continue, meu velho! Estou perdidamente divertido.
Pode até telefonar ao papa, se isso lhe agradar.
Bastará Holcomb volveu Mason.Virá para lhe fazer
milhentas perguntas, não apenas a si, mas também aos frequentadores
da sala de jogo. Talvez eles tenham visto entrar
e sair Cullens.
O homem, atrás da mesa, fixava o advogado com olhos
inexpressivos.
Isto já o preocupa, hem?continuou Mason, sempre
irónico.
Golding molhou os lábios com a ponta da língua. Virando
a cabeça, pareceu interrogar a mulher sentada ao lado de
Mason.
Apanhou-nos disse ela com voz rouca e pouco firme.
! É uma chantagem.
É possível. Mas os trunfos são dele.
304
Obrigado disse Mason à vizinha, por cima do ombro,
sem deixar de fitar Golding.
Não há de quê replicou ela. Você tem sorte, é tudo.
Na roleta você levaria esta noite a banca à glória.
Pois bem! Sim, ele veio disse Golding. Queria falar
comigo. Contou-me uma história de fazer dormir em pé,
dos diamantes que me teria deixado George Trent. Tive de
lhe dizer que era tudo uma invenção, pois já há mais de dois
meses que não vejo George Trent. Discutimos um bom pedaço
e depois ele retirou-se
Foi tudo?
-Tudo.
Isso não acerta bem com os factos que conheço disse
Mason.
bom, conte lá então a sua históriaconcedeu Golding.
Cullens soube que você ficou com as pedras de Trent.
Preveniu-o de que as pedras não pertenciam a Trent. Vocês
discutiram para decidir se você tinha o direito de ficar com elas,
ou se esses direitos pertenciam a Cullens. Você dizia que tinha
dado pelas pedras seis mil dólares. Cullens oferecia-lhe
metade da soma contra entrega das jóias. O que a si não
agradou. Mas você estava com o mau jogo e viu-se obrigado
a aceitar a proposta. Aceitou o dinheiro e deu as pedras
a Cullens que regressou a casa para ser abatido.
Onde pescou você essa história de malucos?
, Foi um passarinho que ma contou.
O passarinho que tenha tento no caçador.
Você, não?
É possívelrespondeu Golding, ameaçador.
Bill!gritou a mulher. Cala o bico!
Mason puxou tranquilamente a cigarreira.
Em todo o caso, para Cullens, a caça terminoudisse ele.
Golding quis replicar.
Cala-te, Bill Golding repetiu a mulher, atemorizada.
Tu falas demais!
20-vAMP. G. 2
305
Ou muito pouco disse Mason.
Você sabe tudo insistiu ela. Ele já lhe contou tudo.
Esta história não tem pés nem cabeça.
Isso é coisa que você poderá verificar.
Vocês souberam da morte de Cullens insistiu Mason
e acharam imediatamente que o melhor era esquecer a
visita que ele lhes tinha feito. Avisaram os empregados, mas
não esperavam que fossem notados tão depressa. Quando
falei de fazer interrogar os vossos clientes pela Secção Criminal,
vocês compreenderam. E decidiram confessar que ele os tinha
vindo visitar e calar o resto. Vocês julgam que ninguém vos
poderá contradizer.
Essa é a sua históriadisse Golding. Eu agarro-me
à minha-. Continue a chatear-me e vou mostrar-lhe a lenha
com que ardo.
Impossível, meu velho volveu Mason, o dedo estendido
na direcção da sala de jogo. com esta instalação tão
pequena, você não pode meter medo a ninguém.
Porque não se vai embora com o seu companheiro?
disse a mulher encostando-se a Mason.
Isso é o que eu quero, mas tratem de despejar primeiro
o saco.
Já está vazio. Você sabe tudo.
Você estava aqui quando Cullens apareceu? perguntou
Mason virando-se para ela.
-Não.
Onde estava então?
Não sei. Estava aqui alguém contigo, Bill?
Ninguém replicou o homem com um pequeno sorriso
de satisfação. Só ele e eu.
Está bem disse Mason, levantando-se. Vocês podem
continuar a esconder os factos. Mas não se esqueça de que foi
a última pessoa que viu Cullens vivo. Quer ele lhe tenha pago
ou ameaçado apenas, tudo se explica: você seguiu-o e abateu-o.
306
O furor descompunha o rosto de Golding.
Se acertei as minhas contas foi com um de seis tiros!
E então?
Ainda tenho cinco balas para...
A mulher precipitou-se para ele, os olhos brilhantes,
e o homem recuperou a sua máscara impassível.
Basta!gritou a mulher em voz dura. Você, advogado,
desapareça! Basta de gracejos.
Nada más as bebidas que vocês servem no bardisse
Mason.
Se soubesse o que você vinha cá fazer, ter-lhe-ia servido
outra coisa.
Sem dar resposta, o advogado abriu a porta e arrastou
Drake para a rua.
Então ? perguntou o detective.
Cullens passou por aqui, não há dúvida. Ligue para o
seu escritório, Paul. Ponha esta casa sob a vigilância de dois
ou três homens, dos bons. Que sigam de perto Golding e a
mulher. E preciso do nome de alguns clientes, de possíveis
testemunhas.
Meu Deus, Perry! Não se pode entrar numa boite deste
género e pedir testemunhas voluntárias...
Faça-as seguir à saída. Tome nota dos números dos
carros.
Mas não falarão gemeu Paul. Depois de estar em
casa, todos protestarão a sua completa ignorância.
Acorde, meu velho! gritou Mason, impaciente.
Escolha os tipos prósperos acompanhados de bonecas bem
parecidas, com menos de metade da idade dos melros. Esses
passarões farão tudo para evitar a publicidade. Contente-se
em identificá-los. Eu me encarregarei do interrogatório.
Que lhes dê na veneta não pretenderem conhecer a casa e
saberei refrescar-lhes a memória!
Sim, é melhor isso ficar a seu cargo!
Então mexa-se e ponha-me tudo em movimento.
Enquanto trata desse assunto, faça procurar lone Bedford,
uma amiga de Austin Cullens. Arranque dela tudo quanto
puder. Mande um dos seus homens apresentar-se a Harry
Diggers na qualidade de inspector de seguros, para conseguir
dele um depoimento pormenorizado do acidente. Trate de
conseguir um inventário completo do conteúdo da bolsa de
Mrs. Breel.
Entendido. vou já. Alguns dos meus homens conhecem
pela certa Bill Golding e Eva Tannis. E isso me poupará o
trabalhão de regressar ao escritório para dirigir as operações.
Vou vigiar a boite enquanto você telefona. Vamos,
depressa!
Drake correu para um estanco de tabaco e saiu segundos
depois.
Agora é consigo, Paul. Vigie bem.
Conte comigo, Perry.
CAPÍTULO VI

Mason abriu a porta do carro e, de sobrolhos franzidos,
reconsiderou bruscamente. Batendo a porta, entrou num
restaurante nocturno para consultar uma lista telefónica.
Levantando o aparelho, pediu um número:
Desejava falar com o dr. Charles Gifford, para um
assunto urgente. Da parte de Perry Mason.
Da outra ponta da linha veio um ruído de passos apressados.
E, um momento depois:
É você, Mason. Que há?
Trata-se de uma mulher chamada Sarah Breel. Está
no posto de socorros do Comissariado Central. Uma perna
partida, fractura do crânio e prováveis lesões internas. Está
inconsciente e vigiada pela polícia. Você já os conhece, pouco
lhes interessa a vida de um ferido. Vão esmagá-la com per-
308
guntas, mal consiga abrir um olho. Oficialmente, ela não é
minha cliente e não posso intervir. Não tem médico particular.
Encarregue-se dela, por minha conta. Isto fica entre
nós, bem entendido. Faça-a conduzir para o melhor hospital
da cidade. Senão, trate de lhe arranjar o máximo do conforto
que se possa conseguir com o dinheiro. Ponha-lhe duas enfermeiras
à cabeceira. Esteja sempre a par da situação. Logo
que a ferida recupere o conhecimento corra para lá.
Tem outras instruções a dar-me?perguntou o médico
no seu tom mais profissional.
Isto não basta?
Sem ter visto a doente, Masoncontinuou o médico
com a sua voz seca e nítida de técnico posso dizer que ela
sofre de um violento abalo nervoso. Precisa calma. Muita
tranquilidade. Impossível interrogá-la antes de passados
muitos dias, sem comprometer gravemente as possibilidades
de cura. Exijo que lhe garantam um repouso absoluto.
Nenhuma visita será autorizada...
Você é o melhor dos médicos, doutor... Leve duas
enfermeiras ruivas.
Ruivas?
É uma ideia minha. Para o caso de os "chuis" serem
muito violentos, é sempre bom dispor dos serviços de uma
ruiva bem característica. Uma ruiva não deixa que lhe façam
o-ninho atrás da orelha.
Tenho o que precisamosvolveu o dr. Gifford. Um
par de rapariguinhas muito decididas, uma ruiva e outra
castanha. Excelentes enfermeiras e que se não deixam levar.
Brincadeira à parte, Mason. A tranquilidade é indispensável
a um ferido sofrendo de choque traumático.
Diabo de médico!exclamou jovialmente Mason
pousando o telefone.
Chamando a Agência Drake, soube que a sua secretária
tinha conseguido encontrar a pessoa que lhe tinham designado
e que agia de acordo com as instruções recebidas.
309
Alguns minutos mais tarde, o advogado parava o carro
junto do n.º 913 da Rua South Marsh, onde George Trent
tinha o escritório e oficina.
Mason tocou para o porteiro, de quem fez desaparecer
o ar carrancudo com uma nota dobrada em quatro.
Trent? Sim. Mora cá. No quinto. A sua sobrinha subiu
ainda não há cinco minutos.
Virgínia? perguntou Mason.
Parece-me que é assim que se chama. Uma rapariga
alta e magra.
Vou vê-ladisse o advogado. Leve-me lá.
O porteiro obedeceu.
No fundo do corredor à esquerda indicou quando o
elevador parou no quinto andar.
Mason caminhou para a porta envidraçada e bateu.
Quem é?
Mason.
Um momento.
Rangeu um ferrolho. Mason entrou no pequeno compartimento
mobilado para o escritório. Uma pequena carteira,
classificadores, uma mesa com uma máquina de escrever.
Uma porta lateral. Uma outra ao fundo. Virgínia Trent
vestia uma ligeira capa de "tweed" com dois grandes bolsos.
Nas mãos, luvas de pele. Na cabeça, um chapéu castanho,
inclinado sobre a orelha direita, guarnecido com uma grande
pluma de cores vivas.
Qual o motivo da sua agradável visita?
Mason olhava-a, enquanto ela fechava a porta, colocando
a barra no seu lugar.
Apenas o desejo de falar consigo.
A que propósito?
com o olhar, o advogado procurava onde sentar-se.
Ela indicou-lhe a cadeira diante da máquina de escrever.
A rapariga tinha pousado sobre ela a sua bolsa de couro
castanho.
310
Você estava a escrever?
Cheguei agora mesmo.
Onde tem estado você, então ? Procurei, em vão, encontrá-la.
Fui ver uma exposição de pintura, para me distrair
e deixar de me preocupar com a minha tia. Nada como isso
para recuperar o equilíbrio mental. Nunca o faz, doutor,
quando um assunto o preocupa?
Não retorquiu Mason com um sorriso. Recearia
muito que o adversário se aproveitasse para me passar à frente.
E era boa essa exposição?
Não era má... Mr. Mason, tenho uma pergunta a
fazer-lhe.
Faça-a então.
O que vem a ser um detector de mentiras?
Não se lia nada nos seus olhos.
A que propósito vem essa pergunta?
A nenhum. Apenas para saber.
Unicamente?
Interesso-me pelo lado psicológico da questão, se insiste
em sabê-lo.
Não é mais do que um aparelho registando a pressão
arterial do paciente. O seu princípio é o seguinte: admite-se
que uma testemunha disposta a mentir reúne as suas forças
mentais. Este esforço revela-se por uma modificação da pressão
arterial, registada pela agulha de um quadrante. Pelo contrário,
a verdade é fácil e não necessita de qualquer esforço.
Este aparelho tem um real valor?
Sem dúvida, mas depende sobretudo da habilidade do
interrogador em pôr as perguntas. Por outras palavras:
a máquina regista apenas uma modificação do estado psíquico
do paciente.
Sabe, Mr. Mason, que estou convencida de que, pela
minha parte, poderia fazer falhar este método se me fosse
311
aplicado?disse a rapariga fixando atrevidamente o advogado.
com que fim?
Simples experiência psicológica. Gostaria de a tentar.
E sobre que recairia a sua mentira?
Sobre qualquer assunto.
Acerca das suas ocupações aqui mesmo?
Eu... eu não o estou a compreenderdisse Virgínia,
espantada. Vim aqui escrever algumas cartas particulares
a alguns amigos.
Há quanto tempo está aqui?
Cinco ou dez minutos, no máximo.
E, todavia, você ainda não tinha começado a escrever
quando eu bati.
-Não.
Que estava você a fazer, então?
Será isto replicou a rapariga rindo uma espécie de
terceiro grau?
Pensa mesmo em mentir se lhe aplicarem o detector?
Não brinque, Mr. Mason. O aparelho, repito-lhe,
não tem para mim mais do que um interesse científico, psicológico...
É você, Mr. Mason, que me quer ver, ao que suponho.
A que propósito?
Queria falar-lhe de sua tia disse o advogado, observando-a.
Minha tia Sarah?
Sim.
Meu Deus! Já o sabia. Este pressentimento preocupou-me
durante o tempo em que estive na exposição.
Isso devia acontecer.
O quê?, Diga.
Ela foi detida, evidentemente.
Porquê?
Por roubo nos "caparates. Ou então... por causa dos
diamantes.
312
Falemos então destes últimos. Pode-me descrevê-los?
Posso. O tio George tinha apontamentos... Mas fale-me
de minha tia Sarah. Que aconteceu? Onde a prenderam?
Foi atropelada por um automóvel.
Um carro?
No Boulevard Saint-Rupertcontinuou Mason. Perto
da Rua 91. Isto não lhe diz nada?
Que andava ela a fazer por lá?
Não é nesta rua que mora'Cullens?
Ela franziu os sobrolhos.
Parece-me que sim. Espere. Tenho o endereço aqui,
nas nossas fichas, e...
É inútil. É nessa rua que ele mora. Ou melhor,
morava.
Ele partiu? Mudou-se?
Não. Mataram-no.
Morto ?!
Sim. com uma bala no coração.
Onde quer chegar, Mr. Mason? Fale, peço-lhe.
A sua tia saiu de casa dele a correr e atirou-se para
baixo de um automóvel, que a atropelou, quebrando-lhe
uma perna e fracturando-lhe o crânio. Não houve derramamento
de sangue e, no entanto, a sola dos seus sapatos
está manchada...
Deteve-se, vendo a rapariga, lívida escorregar pela cadeira.
Acalme-se disse ele.
Ela tentou sorrir.
Você tem whisky?perguntou o advogado.
Ela indicou a mesa e Mason, abrindo a gaveta, tirou
uma garrafa meio cheia que estendeu a Virgínia, depois
de ter tirado a rolha. Ela bebeu, desajeitadamente, pelo
gargalo, manchando a blusa e fazendo uma careta.
Precisa de aprender a beber pela garrafa disse Mason.
É necessário deixar entrar o ar. Assim.
Ela observou como ele fazia e sorriu.
313
Você tem, pelo que vejo, experiênciadisse ela. Continue,
Mr. Mason. Estou a sentir-me melhor.
Não tenho nada a acrescentar, ou quase nada. A sua
tia ainda não recobrou os sentidos. Encontraram-lhe na
bolsa um revólver, diamantes, alguns pares de meias de seda
furtados no escaparate de qualquer grande armazém e um
"tricot".
Pobre tia... Conseguirão salvá-la?
Acredito que sim. Mandei-lhe o melhor médico da
cidade. E tratei de lhe arranjar duas enfermeiras.
Os olhos da rapariga agradeceram-lhe.
Voltemos aos cinco diamantes continuou o advogado.
Estavam embrulhados em papel de seda. Estou a pensar
que se trata dos diamantes Bedford.
São realmente cinco. Onde... onde teria conseguido
minha tia...?
Aqui está a questão. Cullens trazia com ele, debaixo
das roupas, uma cinta de couro. As algibeiras foram abertas.
Mas onde teria Cullens conseguido encontrar as pedras
de Mrs. Bedford?
Provavelmente num tasco conhecido pelo nome de
Prato de Owo. Cullens telefonou a Mrs. Bedford dizendo que
o seu tio tinha conseguido seis mil dólares, entregando os
diamantes como penhor, mas que contava reavê-los por
metade desta quantia.
Mas a minha tia não os teria tirado a Mr. Cullens.
Mr. Cullens não lhos teria podido dar, é verdade...
Se ela não os conseguiu de Cullens, então é porque
ela os tinha, muito simplesmente, tirado do cofre de seu tio.
É possível, efectivamente murmurou Virgínia Trent.
Lamento não ter pensado em lhe revistar o saco. É uma
autêntica mala, pelo tamanho e pelo peso. O que ela consegue
meter lá dentro!...
Ela não a trazia consigo quando nos encontramos
no restaurante do armazém?
314
Não. Tinha-a deixado no carro.
O que não teria certamente feito, se trouxesse lá os
diamantes.
É difícil de dizer... Se a tia Sarah tinha a intenção de
roubar nos escaparates, era, todavia, o melhor lugar onde
a podia deixar.
É justo reconheceu lentamente Mason...A ideia
não é má... Que há atrás desta porta? A oficina?
Ela aquiesceu com um sinal de cabeça e o advogado foi
abrir a porta em causa, lançando uma olhadela para o aposento
escuro.
Dispõem aqui de muito espaço observou o advogado.
Sim. Mais do que o julgado necessário pelo tio George.
Mas, a não ser assim, teria ficado muito apertado num escritório
vulgar.
Onde está o comutador ?
Não há. Cada lâmpada acende separadamente, por
meio de um puxador preso ao quebra-luz. Isto impede os
operários de desperdiçarem energia... Olhe, pegue numa
lanterna, se quer entrar.
Tirou do bolso uma pequena lanterna niquelada, com
cerca de quinze centímetros de comprimento e quatro de
diâmetro.
Que coisa tão bonita comentou Mason. Traz isso
sempre consigo?
Sim... Sirvo-me dela muitas vezes.
Utilizando a lanterna, Mason encontrou a cadeia da
primeira lâmpada. Avançava para a puxar quando o feixe
luminoso, iluminando uma pilha de caixas, a um canto,
revelou uma larga mancha avermelhada.
O que é aquilo? perguntou o advogado.
Aquilo o quê?
Aquela pilha de caixas... A caixa de cima tem uma...
Vou ver aquilo.
Mason deu alguns passos e examinou mais de perto a
315
mancha suspeita. Para terminar, subiu para uma caixa,
que flectiu sob o seu peso e rebentou. O advogado, procurando
um ponto de apoio, agarrou com a mão o canto de
uma caixa e o conjunto oscilou perigosamente.
Atenção! gritou Virgínia da soleira.
Mason atirou-se para o lado. A pesada caixa deslizou e,
com grande estrondo, veio rebentar no chão, projectando no
meio dos seus destroços o corpo inerte de um homem, irreconhecível
na semiobscuridade.
Virgínia Trent, os olhos arregalados pelo horror, pôs-se
a lançar gritos agudos, interrompidos por soluços.
Cale-se! gritou Mason. Uma lâmpada! Depressa!
Às apalpadelas (tinha deixado cair, na queda, a lanterna),
encontrou a cadeia que movia o interruptor. Virgínia afastou-se
dele com um salto, como o teria feito diante de um
assassino. Da sua boca completamente aberta saiu um grito
contínuo, uma espécie de estertor muito agudo.
Ressoaram passos no corredor. Bateram à porta, em
pesados golpes.
Cale-se, imbecil zinha! disse Mason, irritado, dirigindo-se
à rapariga. Você não compreende...?
Sempre a berrar, ela correu para o aposento vizinho.
Martelavam na porta, com grandes punhadas. Virgínia
escondeu-se num canto. O vidro da porta estilhaçou-se e
uma mão entrou para girar o botão.
Mason encontrou-se face a face com o sargento Holcomb.
Que se passa aqui?interrogou este.
Ainda não sei bem, sargento. Venha você mesmo ver.
Virgínia Trent continuava a gritar.
O que tem aquela rapariga? perguntou Holcomb.
Uma crise. '
A rapariga apontava com um dedo trémulo a oficina,
sem poder falar. Mason dirigiu-se para ela:
Calma, vejamos!
316
Afastando-se dele com horror, ela lançou-se nos braços
do sargento, agarrando-se a ele, a tremer.
Que diabo quis você fazer aqui?perguntou Holcomb
a Mason.
Porte-se com juizo, sargento! Esta criança está fora de
si. Há um cadáver ali ao lado.
Um cadáver?
Sim.
-Quem é?
Não sei. Tinham-no metido numa caixa. Reparei
numa mancha que me pareceu suspeita. Quando quis ver
mais de perto, fiz desequilibrar a pilha das caixas. O corpo
rolou pelo chão. Ela pôs-se a gritar e tentei acalmá-la.
Vamos a ver issodisse o sargento.
Virgínia continuava agarrada ao sargento, aterrorizada.
Em vão Holcomb procurava livrar-se dos braços frágeis que
lhe rodeavam o pescoço.
Calma! Não grite assim!... Mas... ela está bêbeda!
Nãoesclareceu Mason. Desmaiou há bocadinho
quando lhe falei da tia e dei-lhe um pouco de whisky.
Quando foi isso?
Há poucos minutos.
Sim. O porteiro garante-me que você tinha acabado
de subir reconheceu o sargento de muito má catadura.
Onde está essa garrafa?
Nessa gaveta.
Holcomb pegou na garrafa, depois, abaixando-se, tirou
um revólver.
E isto?
É um "trinta-e-oito"respondeu Mason, analisando
a arma.
Ajude-me a agarrar-lhe os braços enquanto lhe meto
algumas gotas de álcool pelo bico. Ela não mo quer deixar
fazer, a cadela!
A rapariga berrou de terror ao ver aproximar-se Mason.
317
Ela tem o aspecto de o considerar responsável disse
Holcomb.
Cale-se para aí! Ela é doida. Vamos, Virgínia, beba
isto... Você não vê que ela está com uma crise?
A rapariga virava a cabeça para todos os lados, recusando-se
a beber.
Só há um meio continuou Mason. Aguente-a, sargento.
Felizmente tem as luvas calçadas. Não nos pode
arranhar.
Reunindo as suas forças, os dois homens conseguiram
obrigar a rapariga a beber uma golada. Ela engasgou-se,
tossiu.
Isto impedi-la-á de gritar. Vamos, Virgínia, coragem.
O porteiro enquadrava-se na porta.
Que aconteceu?
Olhe, trate dela disse Holcomb pondo-lhe a rapariga
nos braços. Virgínia agarrou-se imediatamente a ele, como
o tinha feito ao sargento.
Holcomb e Mason passaram para a oficina, acendendo
uma lâmpada.
Penso que é George Trent disse Mason. Está morto
há vários dias.
Eh, você!gritou Holcomb. Venha agora aqui para
nos dizer se reconhece este homem.
O porteiro avançou, pousou Virgínia na cadeira da
dactilógrafa, e a rapariga meteu a cabeça nas mãos e começou
a soluçar.
É George Trent disse o porteiro, simplesmente.
Já Holcomb se dirigia para a mesa e, estendendo o braço
por cima dos ombros trémulos da rapariga, levantava o
telefone.
Secção Criminal... Aqui Holcomb. Sim. Uma descoberta
no 913 da Rua South Marsh. Desta vez é George Trent.
Despachem-se.
E, desligando:
318
Mostre-me onde estava.
Mason indicou a pilha de caixas.
Ouvi-o cair ao sair do elevadoradmitiu o sargento.
Como sabia você que estava lá?
Não fazia a menor ideia respondeu Mason. Reparei
numa mancha castanha no fundo da caixa. Subi para outra
caixa para ver melhor e acabou por cair tudo.
. Onde estava ele?
Metido nesta grande caixa de embalagem. Mesmo no
alto da pilha.
É evidente que o meteram dentro depois de o terem
Morto notou o sargento, inspeccionando o aposento.
E içado para o alto da pilhaajuntou Mason.
Porque não tinha tampa e queriam esconder o corpo.
Mas deviam pensar que viria a ser descoberto, cedo
ou tarde.
O assassino pretendeu ganhar tempo.
Pensativo, analisou o corpo estendido a seus pés.
Raio de esconderijo, apesar de tudomurmurou.
Muito!
Houve um silêncio, apenas perturbado pelos soluços abafados
de Virgínia.
Veja o que tem debaixo da camisa continuou Mason.
Veja se traz uma cinta de pele de camelo.
Só começarei a minha investigação depois da chegada
do juiz disse o sargento em tom azedo. Se pretende informações
complementares, Mr. Mason, encontrá-las-á nos
jornais.
Você quer dizer que a minha presença é supérflua?
O porteiro disse-me que você apenas me tinha precedido
aqui um ou dois minutos. Eu mesmo ouvi cair a caixa
e a rapariga começar a gritar. Não tenho receio de si, desta
vez, mas qualquer coisa me diz que conseguirei mais coisas
desta jovem se você não estiver presente com os seus conselhos.
Ela não está em estado de lhe responder.
319
Já está melhor.
Será uma vergonha interrogá-la agora. Você vai-lhe
dar cabo dos nervos.
Que estava ela a fazer aqui?
Ela trabalha regularmente no escritório.
Eh, eh! A esta hora aqui? E você, como sabia que a
podia encontrar neste lugar?
Nem sequer pensava que tal pudesse acontecer. Ela
regressava de uma exposição de pintura e queria escrever
algumas cartas.
A quem?
Não imagino.
com o polegar, o sargento Holcomb apontou o fim
do corredor.
Está bem, Mason. Ela fala inglês. Não terei necessidade
de intérprete.
CAPÍTULO VII

Mason ligou para o escritório de Drake.
Há recados para mim?
Sim, Mr" Mason. A sua secretária pede-lhe que lhe
telefone para a Câmara Verde, do Maxime Hotel, É importante,
parece.
Nada mais?
Mr. Drake está a entrar. Quer falar-lhe.
Mason percebeu o clique do comutador e reconheceu
a voz do detective.
Qual a razão desta agitação na Secção Criminal, Perry ?
Encontrei-lhes um novo cadáver.
-Não?
- Sim.
Isso é que é sorte!
320
Como assim?
Sorte o não ter estado consigo. O corpo de quem, Perry ?
George Trent.
Drake emitiu um assobio de surpresa.
Onde estava ele?
Numa caixa de embalagem, na sua oficina. Já tratou
de se informar acerca dele, Paul?
Ainda não sei grande coisa. Apenas sinais. Estamos a
trabalhar na coisa. vou chamar os meus homens.
A sinalética é minuciosa?
Bastante. Cinquenta e dois anos, altura um metro e
oitenta, noventa e um quilos, cabelos e olhos castanhos...
Diga-me, Perry, está certo de que se trata do nosso homem ?
Quase certo. A sobrinha arranjou uma crise de nervos.
O porteiro reconheceu-o. Tinham metido o cadáver numa
caixa. Quis fazer o meu inqueritozinho, mas Holcomb pôs-me
no olho da rua. Quer interrogar a rapariga a despeito do seu
estado. Nada mais, Paul?
Fiz investigar a clientela do Prato de Ouro, Estou a
tratar de conseguir os endereços dos proprietários dos carros,
seguindo os números.
E lone Bedford?
Está na Câmara Verde, no Maxime Hotel, com Della.
Aproveite para mandar um homem a casa dela. Talvez
se consiga qualquer coisa, não?
Pode ser. Ah! outra coisa: transferiram Sarah Breel.
Afinal não tem fractura de crânio.
Onde a puseram?
No Hospital Deaborn Memorial.
Já recobrou a consciência?
Não acredito. Mas, à parte o perigo de poderem existir
lesões internas, tem apenas a fractura da perna. E Trent,
Perry? De que morreu ele?
Aparentemente, com uma bala esclareceu Mason.
A propósito, havia numa das gavetas um revólver de
21-VAMP. G. 2
321

grande calibre, um trinta-e-oito. Havia também uma garrafa
de whisky. Dei-o a beber à sobrinha. Holcomb puxou a gaveta
um pouco mais do que eu e encontrou a arma.
Vou pôr os meus homens no negócio a ver o que se
poderá fazer. Della pediu que o chamasse.
Agora mesmodisse Mason, desligando para pedir
imediatamente o Hotel Maxime.
Alguns minutos depois, Della estava na linha.
Quanto tempo vai durar isto, patrão? perguntou ela
numa voz mais aguda do que lhe era habitual.
Durar o quê?
Bem sabe...
Você quer dizer quanto tempo ainda terá de se ocupar
de lone Bedford?
Precisamente.
Não muito tempo. Porquê?
É que ela tem ideias.
Ideias ?
Ela quer continuar.
Continuar ?
A beber, por conta do cliente.
Aguente volveu Mason. Não se incomode com a
conta.
Della Street teve um soluço. Mason foi incapaz de avaliar
se se tratava de um acto involuntário...
Desculpe-medisse ela, muito digna. É o estômago...
Não é pela conta, é por mim que me preocupo.
Um pouco de paciência. vou já.
Está a ouvir a música, patrão?
Então?
Isto gira... isto gira...
Della desligou. Cinco minutos depois, Mason parava o
carro diante do Maxime, entrava e encontrava a sua secretária
sentada à mesa com Bedford e três desconhecidos.
322
Mas... é Mrs. Bedfordexclamou fingindo-se surpreendido.
Que prazer!...
Não maior que o meu respondeu lone Bedford,
sorrindo.
É o dia de anos da sua secretáriaexplicou Mrs. Bedford.
Um criado trouxe uma cadeira e Mason sentou-se. Os
homens dirigiram-lhe, sem o menor entusiasmo, um ligeiro
aceno de cabeça. Nenhum fez menção de se apresentar.
Della Street agitou-se, chamou o criado.
Estou até à bocadeclarou ela sem delongas. Pago
e desapareço.
Abriu a bolsa, remexeu-a, abriu um pequeno porta moedas
e pareceu consternada.
Meu Deus murmurouesqueci-me da carteira!
Mason, que queria tirar a sua carteira, recebeu um
doloroso pontapé nas canelas.
A orquestra iniciou uma música de dança.
Desculpe-me disse um dos desconhecidos. Vou dançar
com uma rapariga de S. Francisco.
Della Street piscou os olhos ao criado. Os três homens
empurraram barulhentamente as suas cadeiras e eclipsaram-se.
Della tirou da bolsa um rolo de notas.
Isso é muito aborrecido comentou Mrs. Bedford.
Precisávamos de nos ver livres deles replicou Della
Street. O patrão quer falar à vontade.
Quem eram? perguntou Mason.
Chulos de dancing explicou a rapariga. Vão e voltam,
instalam-se a uma mesa, bebem por conta alheia,
dançam e regressam.
Ela voltou a meter as notas na bolsa.
Eis o que dá deixar à vontade duas raparigas como
vocês comentou Mason. Venha, Della, vamos dar uma
volta.
O criado aproximou-se.
323
Que devo eu trazer para a senhora?
A conta disse Della. Não sei, decididamente, o que
fiz ao meu dinheiro. Devo tê-lo deixado em casa.
Gravemente, o criado pousou a nota diante de Mason,
que tirou uma nota de vinte dólares para pagar.
Guarde o troco.
O criado inclinou-se.
Onde vamos? perguntou lone Bedford.
Ao Comissariado Central esclareceu Mason.
À polícia?
Sim. Queria que você identificasse uns diamantes.
Os meus?
É provável... Um momento. Tenho um telefonema
a fazer.
Aproveitaremos para refazer a beleza disse lone.
Venha, Della. Dê-me o seu apoio moral.
O advogado chamou imediatamente o escritório de Drake.
Atenção, Paul. É importante. Nós vamos para o Comissariado
Central, lone Bedford, Della e eu, para ver os diamantes
que foram encontrados em poder de Mrs. Breel.
Farei de modo a afastar Mrs. Bedford. Agora é consigo
o saber onde irá e o que fará depois de nos ter deixado.
Utilize homens que nos conheçam, a Della e a mim, de
maneira a poderem identificar Mrs. Bedford sem dificuldades.
É possível que ela saia só do Comissariado.
Entendido respondeu Drake.
As duas mulheres voltavam. Mason ajudou-as a pôr
as capas e conduziu-as ao carro.
Qual a razão que o leva a acreditar que se trata dos
meus diamantes ? perguntou Mrs. Bedford.
Nenhuma. Quero simplesmente que os veja.
Onde os encontraram e como pode acontecer estarem
em poder da polícia?
Mrs. Breel foi atropelada por um automóvel. Levaram-na
para o hospital. Os diamantes estavam na sua bolsa.
324
É impossível que sejam os meus, pois Aussie já os tinha
recuperado no Prato de Ouro.
Ele declarou-lhe expressamente que os tinha no bolso?
Não em absoluto. Tinha-os encontrado. Reclamavam
seis mil dólares e ele pensava liquidar com três mil. Disse-lhe
para aceitar e pagar.
Desculpar-me-á, Mrs. Bedford declarou Mason se
me recusar a discutir este ponto antes de ter visto os diamantes.
Ah! Um mistério! Adoro isto disse Mrs. Bedford
muito animada.
Você pode mostrar-se menos sério num dia de anos,
Patrão interveio Della. O que lhe falta é um cocktail ou
vários.
O remédio é conhecido retorquiu Mason, consultando
discretamente o relógio.
Não sou da sua opiniãodisse Della, muito grave.
O mal é incurável. Você trabalha e o álcool desliza sobre si
como a água sobre as penas do pato.
lone Bedford estava muito divertida e Della virou-se para
ela, com ar de reprovação:
Não estou a brincar!
Sei isso muito bem e é justamente isso que me faz rir.
Uma mulher não deve rir assim de uma outra na presença
de um homem continuou severamente Della Street.
Deve manter-se cortês e delicada. Você quis insinuar coisas...
incorrectas. Pouco -importa, apesar de tudo. Quem podia
sonhar em embriagar um pato?
A sua secretária é mais nova do que eu pensava disse
lone Bedford ao advogado.
É exacto.
E ela não bebeu mais de cinco ou seis cocktails. Mas isto
ainda não acabou. Estou cheia de ideias... Desculpe-me. Vou
telefonar.
Mrs. Bedford mergulhou na cabina, tomando a precaução
de fechar cuidadosamente a porta.
325
Sabe quem está ela a chamar?perguntou o advogado
a Della Street.
Não faço a menor ideia.
Que se passou na reunião?
Ela fez-me beber, para me fazer falar disse Della,
irónica. Não sabendo quando você chegaria, fingi ser muito
sensível aos efeitos do álcool.
lone Bedford regressava e metia o braço no de Mason.
Pois bem! A caminho! Parece-lhe que encontraremos
no Comissariado alguma coisa que se beba?
É coisa que se verá.
No carro, as duas raparigas, muito alegres, divertiram-se
imenso. Tudo servia para rir: os carros ultrapassados, os
anúncios luminosos, os sinais eléctricos.
No Comissariado, o empregado do guiché acolheu com
bastante secura o advogado. Mason apontou lone Bedford.
Mrs. Bedford explicou tinha confiado a Austin
Cullens alguns diamantes para os entregar a George Trent.
Trata-se, possivelmente, dos diamantes que se encontraram
na bolsa de Mrs. Breel.
E então? Que deseja? retorquiu o outro atrás das suas
grades.
Mrs. Bedford não os pode ver?
Um momento disse o homem levantando um telefone
munido de uma espécie de corneta que impedia que ouvissem
o que dizia. Como se chama essa senhora?
Mrs. Bedford. lone Bedford.
O homem aproximou o auscultador dos lábios e falou
durante alguns minutos. Depois, pousando o aparelho, foi
abrir o cofre, tirou as pedras, desdobrando o papel de seda
em que estavam embrulhadas.
Mrs. Bedford, que já não pensava em rir, examinou as
jóias com cuidadosa atenção.
Nãodisse ela por fim. Estes não são os meus diamantes.
326
Está certa? perguntou Mason.
Certíssimaconfirmou ela, voltando-se para ele. Estas
nunca as vi na minha vida. Estas pedras parecem-se com as
minhas, mais nada.
Está bem. Obrigado.
O empregado refez cuidadosamente os embrulhos.
Porque trazia Mrs. Breel estes diamantes na sua bolsa ?
perguntou Mrs. Bedford. Valem muito dinheiro.
Ainda não sabemos volveu Mason. Mrs. Breel saiu
de uma casa do Boulevard Saint-Rupert entre a rua 91 e a
rua 92.
Que fazia ela por lá? perguntou Mrs. Bedford, cuja
voz subitamente se transformou e se tornou dura.
Não sei. Ninguém sabe. Evidentemente, a polícia
depois de ter descoberto o corpo de Cullens, supõe...
O corpo de Cullens?
Como? Você ainda não sabia?
Não sabia o quê ?
Ela martelava as palavras.
Oh! Na verdade... Lamento...
-Vamos! Fale!
Mataram Cullens esta noite, com uma bala. Encontraram
o seu cadáver no salão da casa.
Rígida, lone Bedford ouvia, sem comentários.
Porque não mo disse, patrão? espantou-se Della
Street.
Julguei que já o tinha feito.
Ela abanou energicamente a cabeça.
Tudo isto é tão complicado suspirou Mason, confundido. Deve
ter-me esquecido... Acredite, Mrs. Bedford,
que lamento muito ter-lhe infligido este golpe... Já o conhecia
há muito tempo, sem dúvida?
com um movimento brusco, lone tinha-se virado para
Della. Lia-se-lhe a suspeita nos seus olhos frios.
327
Vocês podem continuar sozinhos o giro. Eu não jogo
mais.
Quer que a leve a qualquer parte ? perguntou amavelmente
Mason. O meu carro está à sua disposição.
Não, obrigada atirou ela secamente, dirigindo-se para
a porta, que bateu atrás dela.
Foi cruel, patrão fez notar Della. Ela amava-o talvez
muito.
Queria ter a certeza volveu Mason.
CAPÍTULO VIII

Mason, barbeado de fresco, pulando como uma bola de
ténis nova, pôs o chapéu no cabide de cobre, dirigiu-se para
o seu gabinete, pegou no classificador de cartas importantes,
posto ao alcance da mão pelos cuidados de Della Street, e
afastou-o para a ponta da mesa.
Della abriu a porta ao seu chefe.
bom dia, patrão. Alguma novidade?
E esse aniversário ? retorquiu Mason.
Vai melhor, mas não volto a beber.
Não há notícia dos scheiks?
Dos scheiks?
Os seus admiradores de ontem à noite, na mesa do
Maxime. Recusou-se a dar-lhes o seu número de telefone?
O rosto de Della Street iluminou-se.
Declarei que me chamava Virgínia Trent e dei-lhes
o número dela. Espero que isto lhe dê sorte.
Mason estalou numa gargalhada.
Paul Drake deseja falar-lhe.
Chame-o. Que há nos jornais? Nada de novo?
Pilhas de coisas, e Drake está cheio de informações
confidenciais. vou chamá-lo.
328
Enquanto esperava, Mason pegou nos jornais e percorreu-os
avidamente. Decorreram alguns minutos. Depois,
Della Street, indo postar-se à porta que dava para o corredor,
abriu-a e empertigou-se numa impecável posição de sentido.
Paul Drake apareceu.
Alo! Della! Bom dia, Perry.
Mason apontou-lhe uma cadeira.
Que há de novo, Paul?
O detective sentou-se e passou as pernas sobre o braço da
poltrona.
Montes de truques disse ele.
Então vamos, meu velho. Comece pelo meio e marche
nos dois sentidos.
Esta história da sala de jogo, primeiro começou
Drake. Fiz seguir dois gordos clientes do género ricaço.
Um empreiteiro de cerca de cinquenta e cinco anos, com uma
rapariga de uns trinta anos e que parecia ter vinte. E um
gerente bancário com uma loirinha muito brejeira. É exactamente
aquilo que procuramos.
E lone Bedford? Mandou-a seguir?
Claro que sim.
E que se passou?
Saindo do Comissariado Central começou Drake,
abrindo o seu caderno de apontamentos parecia estar muito
apressada. Correu para o canto da rua para fazer grandes
sinais a um táxi, sem resultado. Então foi a pé pelo passeio
até ao Hotel Spring, na estação de táxis. O motorista levou-a,
rapidamente, aos Apartments Milpas, em Canyon Drive.
Ela subiu para o apartamento 314, alugado por um tal
Chennery. Ela é provavelmente sua mulher.
Todavia o apartamento em Bixel Arms, em Madison
Avenue, está em seu nome fez notar Della Street. A lista
telefónica não a menciona porque a assinatura é recente,
mas as informações dão o seu nome.
Porquê supor que ela é a mulher de Pete Chennery?
329
Os meus homens tiraram informações por todos os
lados.
Onde está ela actualmente?
Nos Milpas... de acordo com as últimas notícias.
Já mandou revistar o apartamento?
Sim, mas não tivemos tempo de fazer uma revista em
regra. Logo que ela saiu do Comissariado, mandei retirar
os meus homens. Apesar de tudo, fizeram um bom trabalho.
Não havia cartas, nem correspondência, nem livro de cheques.
Só coisas comuns: escovas, cremes, robes e um cento de
cartões de visita gravados.
E Chennery ? Já voltou ?
Não.
Gostaria muito de conhecer esse sujeito disse Mason,
Preciso dos sinais dele. Pete Chennery não seria, por acaso,
Austin Cullens?
vou mandar outros homens disse Drake para saber
o máximo possível dela, sem lho dar a conhecer. Você não
quer que ela se dê conta da nossa vigilância?
Em nada. Ela não deve...
O telefone tocou e Della levantou-o.
O dr. Gifford, patrão.
Mason pegou no aparelho. O médico falava depressa,
em voz sacudida.
Atenção, Mason! Ouça-me bem. Não terei tempo de
repetir. Mrs. Breel já recobrou a consciência. Agora está a
dormir. Um simples choque. Nada de fractura do crânio nem
de lesões internas. A fractura da perna já está reduzida.
O membro está engessado. Ela está sob prisão. Um agente
guarda a porta. Ela recusa-se a qualquer declaração, excepto
na sua presença. Você é o seu advogado, garante ela. O sargento
Holcomb acaba de anunciar a sua visita. Seria melhor
que você viesse. Quarto 620.
Você está no hospital? '
Estou.
330
Porque foi ela pronunciada?
Acusada do assassínio de Austin Gullens.
Ela não fez qualquer declaração, nem mesmo às enfermeiras?
Nem uma palavra. Estou a telefonar-lhe sem ninguém
saber, aqui. Não me denuncie. Até logo.
Desligando o aparelho, Mason foi buscar o chapéu.
Sarah Breel recobrou a consciênciaanunciou aos seus
amigos. Até agora não disse nada. Foi acusada de homicídio
premeditado.
Então tudo é claro, Perrydisse Drake.
-O quê?
Que o serviço de balística comparou a bala que matou
Gullens com as do revólver encontrado na bolsa de
Mrs. Breel.
Tem a certeza de que havia um revólver no saco da
senhora?perguntou Mason.
Diggers é taxativo respondeu Drake. Da presença
da arma, ele deduziu que a bolsa tinha objectos de valor, e foi
por esta razão que ele fez inventariar o que havia no saco
pelo pessoal da ambulância.
Você dispõe de uma testemunha do acidente?
Quer você dizer se há alguém que tenha visto Mrs.
Breel atirar-se para debaixo do carro?
Isso mesmo.
Não reconheceu Drake. Só lhe deram atenção
depois de ter sido atropelada.
Apalpe Diggers a esse respeito. Trate de se informar
acerca dele também. Eu raspo-me.
Posso acompanhá-lo, patrão?perguntou Della Street.
Não. A polícia deve ter um estenógrafo. Sozinho
poderei desembaraçar-me melhor.
Rápido, correu para o elevador. Trinta segundos depois
estava na rua. Apanhou imediatamente um táxi.-
331
Hospital Deaborn Memorial. A toda a velocidade!
Durante o trajecto, Mason recapitulou as informações
de que dispunha. Sem qualquer dúvida possível, o revólver
encontrado na bolsa era o factor determinante da decisão
tomada de inculpar Mrs. Breel. Era evidente que esta arma
tinha disparado a bala que matara Cullens. As solas manchadas
de sangue não teriam sido elemento suficiente. Mas estas
três provas acumuladas, os sapatos, o revólver, a presença
indiscutível de Mrs. Breel nas proximidades do local do
crime no momento fatal, tudo concordava para tornar bastante
difícil o caso da acusada.
No hospital, Mason foi de elevador até ao sexto andar e
encontrou sem dificuldade o quarto da ferida. Um agente
guardava a porta. Ouvia-se o rumor de uma discussão. O
advogado tentou abrir a porta. O braço do agente deteve-o.
Não se pode passarrosnou o homem.
Quero ver Mrs. Breelrespondeu Mason, muito digno.
Ela pediu-me que a viesse ver.
Isso não me importa. Não se pode entrar sem autorização
escrita.
Quem está lá dentro?
O médico, o substituto do procurador, um escrivão
e o sargento Holcomb.
Eu sou o advogado de Mrs. Breel.
Perfeitamente.
Desejo entrar.
Já o tinha dito.
Avise o sargento Holcomb.
Nada a fazer. Pagam-me para isto. Guardo a porta
e é tudo.
com um gesto rápido, Mason levantou o punho e bateu
brutalmente na porta.
O agente empurrou-o.
Que é que você tem? Quem lhe permitiu...?
Não falemos mais nisso, meu amigo volveu Mason,

332
conciliador. Você está aqui para me impedir de passar.
Mas, apesar de tudo, pode bater-se...
A porta entreabriu-se. Apareceu uma cabeça.
Que quer você?
Eu sou Perry Mason, o advogado de Mrs. Breel. Quero
ver a minha cliente.
Entre, Mr. Mason!gritou a ferida do seu leito.
No mesmo instante, o agente e o civil que tinha aberto
a porta, reunindo as suas forças, atiraram Mason para o
corredor.
Tinham-lhe dito para não deixar entrar ninguém!
disse severamente o civil ao guarda.
Foi ele que bateu defendeu-se o guarda. Eu recusei-me
a deixá-lo passar.
Que isto se não repita! concluiu o outro, fazendo
menção de voltar para o quarto.
O agente segurava Mason. Este esperou que a porta se
abrisse e, em voz suficientemente alta para ser ouvido de
dentro, disse:
Mrs. Breel não responderá se eu não assistir a este
interrogatório!
A porta fechou-se. O agente fixou o advogado com ar
belicoso.
Você é um advogado porcalhão, é o que é! resmungou.
Mason sorriu e ofereceu-lhe um cigarro.
Eu? Nada disso.
O agente hesitou, depois aceitou, riscou um fósforo e,
mostrando o corredor com o queixo:
Vamos, corra! Desapareça!
Não. Esperarei aqui.
Isso é o que vamos ver!
Você está a guardar o quarto, mas não o corredor.
Não tem nada que fazer aqui.
Mas vou tê-lo daqui a pouco.
Caiu o silêncio. O agente, de sobrolho franzido, estudava
333
a situação. Do outro lado da porta discutia-se vigorosamente.
O tom crescia. De repente, a porta abriu-se e o sargento
Holcomb meteu a cabeça pela fresta.
Está bem, Mason. Entre.
O advogado passou o umbral. Um escrivão tinha tomado
lugar a uma pequena mesa, com um caderno de estenógrafo
aberto diante dele, a caneta na mão. Larry Sampson, substituto
do procurador, estava de pé, de mãos nos bolsos, junto
do leito. Perto da janela, o dr. Gifford aguardava, de olho vivo,
espreitando. Ao lado dele, uma enfermeira de cabelos do
mais belo vermelho, grandes olhos castanhos, pele de pêssego
e rosa, a blusa de folhos, dura.
Na cama, onde o travesseiro tinha sido levantado para
sustentar melhor a sua cabeça ligada, Sarah Breel observava
a cena com um olhar calmo. Uma corda presa à goteira que
lhe protegia a perna partida saía de sob as cobertas, passava
por uma roldana e sustentava um peso que pendia ao pé da
cama.
Senhores dizia o dr. Giffordvolto a repetir que esta
discussão não os conduz a nada. A ferida sofre as consequências
de um forte abalo nervoso. Não permitirei que a
venham pôr em perigo com um interrogatório prolongado e
brutal.
Basta! cortou secamente o sargento Holcomb. Ninguém
quer matar a sua doente!
Ao primeiro sinal de fadiga, faço parar tudo concluiu
o médico, teimoso.
Sarah Breel sorriu para Mason. Um sorriso de esguelha,
pois as ligaduras rodeavam-lhe a cabeça e o inchaço da
maxila.
bom dia, Mr. Mason. Tenho empenho em que seja o
meu advogado.
Mason inclinou a cabeça.
Sou, ao que parece continuou ela acusada de assas-
334
sínio. Recusei-me a fazer qualquer declaração antes da sua
chegada.
A senhora compreende disse o sargento que o seu
sistema de defesa...
Deixe-me falar interrompeu Larry Sampson. Vou
explicar mais uma vez a Mrs. Breel, e para informar
Mr. Mason que o fim desta reunião não é provocar qualquer
confissão. As provas materiais, sem mais nada, bastam para
a acusação de crime premeditado. Se, todavia, ela está
inocente e pode anular estas presunções, abandonaremos a
acusação. Damos-lhe a possibilidade de evitar a publicidade
e a mancha indelével de um processo público.
Brincadeiras! comentou Mason. É um truque já
muito gasto, Mrs. Breel. Estas gentes inculparam-na e seria
preciso um milagre para as levar a supor o contrário. Trata-se
simplesmente de a fazer falar para retirar das suas declarações
qualquer contradição aparente que possa justificar a
sua acção.
Sampson corou.
Se você continua nesse tom vai pôr-se a andar daqui
ameaçou o sargento Holcomb.
Tenho o direito de ver a minha cliente e de a aconselhar.
De a convencer a não responder às nossas perguntas?
perguntou Sampson.
Nada disso retorquiu Mason. O que eu fiz foi apenas
corrigir as inexactidões das suas declarações. A minha cliente
tem liberdade absoluta de fazer aquilo que quiser. Mas
considero, contudo, do meu dever recomendar-lhe que não
responda se se sentir ligeiramente nervosa. Ela só tem de
adiar a conversa para mais tarde, depois de ter ouvido a
minha opinião.
Depois de você lhe ter ensinado a lição, não é verdade?ironizou
o sargento.
Sustento aquilo que disse.
Tudo isso está muito bem interrompeu Mrs. Breel.
335
É inútil continuar a discutir. Estou pronta a fazer um depoimento
completo. Queria apenas que o meu advogado estivesse
presente.
Assim já está melhor concordou Sampson calorosamente. A
senhora é uma mulher inteligente. A senhora
compreende o efeito desastroso, para si, que o seu silêncio
causaria. As provas que possuímos...
As vossas provas?perguntou Mrs. Breel. Não compreendo
o que quer dizer.
Serei franco, Mrs. Breel. Brutalmente franco. Para seu
bem. Quando o automóvel a atropelou, ontem à noite, tinha
na sua bolsa um revólver de calibre 38. A polícia disparou uma
bala com essa arma. Comparou-a com a bala que matou
Austin Cullens. Microfotografaram os dois projécteis. Saíram,
é uma certeza, do mesmo tambor. Por outras palavras, Mrs.
Breel, o revólver que trazia consigo disparou ontem a bala
que pôs fim aos dias de Austin Cullens.
Mrs. Breel contemplou severamente o substituto.
Tem a certeza, meu caro jovem, de que encontraram
um revólver na minha bolsa?
Absoluta respondeu Larry Sampson. A bolsa estava
a seu lado quando a levantaram.
E era mesmo a minha?interrompeu Mrs. Breel.
Estava então sem sentidos. Não me pode tornar responsável
por uma bolsa só pela simples razão de a terem encontrado
a meu lado. Ignoro quem a poderá ter posto lá.
Mason dirigiu um pequeno sorriso de cumplicidade ao
dr. Gifford.
E aqui está disse o sargento com ar desgostoso a
mulher que nos queriam impedir de interrogar, sob o pretexto
de não estar no gozo de todas as faculdades!
Não sem hesitar, Larry Sampson abriu uma sacola que
tinham posto no chão, a um canto.
Cá está a bolsa, Mrs. Breel. Diga-me então se é a sua.
336
Dramático, agitava sob os olhos da doente a bolsa preta
com punhos de imitação de jade.
Mrs. Breel contemplou o objecto com um olhar frio e
desinteressado.
Parece-me bemcomeçou ela que tive, em tempos,
uma bolsa desse género, mas não o posso garantir. Não, meu
caro jovem, é-me impossível declarar se essa bolsa me pertence...
Isso foi em...
Sampson não tentava esconder a sua surpresa. com um
gesto brusco, exibiu o "tricot".
Vai-me negar também que este é o seu trabalho? Isto
é mesmo seu, não é verdade?
Acredita que sim?
Sabe-o muito bem.
-Não.
Vejamos, Mrs. Breel, não estamos a brincar. O assunto
é grave. É acusada de assassínio, que é o crime mais grave
registado pelas nossas leis. Quer as perguntas que lhe faço,
quer as suas respostas, estão a ser estenografadas. Podem servir
de elementos de acusação em qualquer -altura. Não gostaria
de aproveitar as circunstâncias para a prejudicar. A sua
situação é difícil. As presunções abundam. Mas é, todavia,
possível que se possa justificar. Colaborando com a polícia,
pode conseguir-estabelecer a sua inocência. Uma falsa declaração
terá efeito contrário, comprometê-la-á irremediavelmente.
Mr. Perry Mason, seu advogado, está presente. Ele
poderá confirmar-lhe a verdade das minhas palavras. Se
persiste em negar que esta bolsa seja sua propriedade e nós
conseguirmos provar o contrário, essa simples mentira bastará
para a fazer incorrer no rigor da lei. Uma vez mais, lhe
faço a pergunta, Mrs. Breel: Esta bolsa é sua?
Volto a repetir-lhe que não sei nada.
Examine-a atentamente continuou Sampson. Pegue
nela e responda-me.
Não sei.
22-vAMP. G. 2
357
Vai pretender dizer-me que se sente impossibilitada
de dizer se é ou não a sua bolsa?
Exactamente.
Ontem trazia consigo uma bolsa?
Não sei.
Como! A senhora não sabe se tinha uma bolsa de mão
quando foi visitar Mr. Austin Cullens?
Nem sequer me lembro de ter ido a casa dele.
Como! Disso também não?
Não respondeu ela, muito plácida. E tenho quebrado
a cabeça a pensar desde que recobrei os sentidos. Lembro-me
de ontem de manhã... quer dizer... daquilo que, julgo eu,
era ontem.
E, virando-se para o advogado:
Estamos realmente na segunda, hoje, Mr. Mason?
E recebendo uma resposta afirmativa:
Sim, lembro-me da manhã de ontem, minuciosamente,
com todos os seus detalhes. Recebi pelo correio as chaves
de meu irmão. Fui procurar o carro e levei-o para uma garagem.
Estou a ver-me na secção de sapataria de um grande
armazém. Mais tarde, fui acusada de roubo nos escaparates.
Almocei com Mr. Mason... Depois mais nada. O vácuo.
Vamos! comentou Sampson, irónico. Não vai agora
convencer-nos de que perdeu a memória?
Isso não é uma pergunta, mas sim um ataque, Sampson
interveio Mason.
E depois?
Mr. Mason tem razãointerveio o dr. Gifford. O senhor
pode interrogar a ferida dentro dos limites do razoável,
mas não discutir com ela, da mesma forma que não deve
procurar intimidá-la.
Esperteza de luvas brancas chasqueou o sargento.
Fiquem sabendo, meus senhores insistiu o médico
que acontece frequentemente a um ferido perder completamente
a memória depois de um violento abalo, isto por
338
muitas horas e às vezes, até, por dias. Pouco a pouco, vai
recuperando a memória.
Dentro de quanto tempo poderemos ver Mrs. Breel
recuperar a memória ? perguntou o substituto do procurador,
muito sarcástico.'
Ignoro-o respondeu o médico. É coisa que depende
de uma série de factores imprevisíveis.
Estou a ver foi o seco comentário de Sampson.
Posso perguntar-lhe, doutor interveio Masonse uma
tal perda de memória é coisa surpreendente depois de um
choque tal como o que acaba de vitimar a nossa cliente?
Não é nada surpreendente.
Vejamos, Mrs. Breel! gritou Sampson exibindo o
"tricot" da bolsa. Não pode reconhecer o seu trabalho ?
Dá-me licença de ver, senhor?
Sampson estendeu-lho. Ela examinou-o com olhos de
quem sabe.
Bonito trabalho comentou por fim. Uma mão hábil.
A senhora tricota, Mrs. Breel?
Sim.
- Considera-se muito hábil?
Muito boa, realmente.
Reconhece o seu ponto ? ,_
Não.
Pretende dizer que este ponto não é seu?
Também não. '
Se tivesse de fazer um "tricot" com um azul igual a este,
fá-lo-ia desta maneira?
Qualquer pessoa que saiba o faria assim.
Isso não é responder à minha pergunta. Faria o tricot"
desta maneira?
Parece-me que sim.
E não pode garantir que este seja seu?
Não. Não me lembro de o ter visto, fosse quando fosse.
339
Sampson trocou com o sargento um olhar exasperado
e, com um gesto raivoso, meteu o "tricot" na bolsa.
Está bem, senhora. Vou-lhe mostrar outra coisa, que
talvez tenha o condão de lhe refrescar a memória.
E desdobrando o papel de seda que embrulhava os
diamantes:
Já alguma vez viu estas jóias ?
Não sou capaz de lho dizer.
Não é capaz?
Não me lembro de já as ter visto. Mas, antes de ter
recobrado todas as minhas faculdades, não serei capaz de
fazer uma afirmação.
Oh! Não, pela certa observou Sampson, furioso.
A senhora está disposta a ajudar-nos em tudo quanto puder,
não é verdade?
Devo voltar a lembrar-lhe, Mr. Sampson interveio
novamente o médico, que esta senhora sofreu um violento
choque nervoso?
É nítido que ela precisa de um conselheiro. Pobre
mulher indefesa, transformada em pasto de feras...
Na minha qualidade de advogado de Mrs. Breel
interrompeu Mason sinto-me na obrigação de lhes pedir,
meus caros senhores, que se ponha termo a este interrogatório.
É a mais elementar humanidade que o impõe. Têm outras
perguntas a fazer?
Temos respondeu o sargento Holcomb. Mrs. Breel,
a senhora foi visitar Austin Cullens?
Não me lembro.
Sabe o seu endereço?
Também não me lembro.
Mas está certamente nas fichas que existem no escritório
do seu irmão!
Acredito... E julgo mesmo que já lhe mandei algumas
cartas... Espere aí... ele mora para os lados do Boulevard
Saint-Rupèrt, parece-me...
340
Exactamente. A senhora saiu ontem à noite. A que
horas?
Repito-lhe que não me lembro de nada.
A senhora entrou nessa casa continuou o sargento.
sub-repticiamente. Deu-se conta de uma lâmpada e meteu
no suporte uma moeda de cobre, para provocar um curto
circuito, logo que se girasse o comutador.
Não estou a perceber onde quer chegar.
Não se está a lembrar?
Absolutamente nada. Lembro-me, apenas, de ter apertado
a mão de Mr. Mason no restaurante do armazém.
Nesse caso continuou Holcomb, triunfante se não
se lembra dos seus actos, não pode jurar que não pegou num
revólver de calibre 38 e morto Mr. Cullens ontem à noite,
aí pelas sete e meia?
Não. Evidentemente. Não sei o que fiz, o que significa
que também me não lembro daquilo que não fiz. Até posso
ter assassinado o Presidente da República. Feito descarrilar
um comboio. Posso ter mentido ou ter-me casado. Não
sei nada.
Então não nega que matou Cullens?
Não tenho a menor ideia.
Mas não nega ? ,
Não me lembro de o ter feito.
E contudo é possível.
Isso já é outra coisa replicou Mrs. Breel. Garanto-lhe
que não lhe posso dizer aquilo que se passou. Sei apenas
que não matei ninguém na noite de anteontem e não tenho
ideia de ter agido de maneira diferente dos outros dias na
tarde de ontem.
Está preocupada por causa de seu irmão?
Não mais que das outras vezes.
Sabia que ele tinha ido para a pândega?
Supunha-o, pelo menos.
341
Mais uma pergunta disse Sampson. Lembra-se de
ter subtraído artigos nos escaparates?
Mrs. Breel hesitou.
Sim reconheceu finalmente.
Realmente?
Sim.
Onde ? Quando ?
Ontem de manhã, ao meio-dia mais precisamente,
justamente antes de ter encontrado Mr. Mason.
A senhora roubou?
Sim. E peço-lhe que me compreenda: O meu irmão
estava de proa a uma das suas crises de intemperança. Estava
preocupada. No domingo fui ao escritório inventariar o conteúdo
do cofre-forte. Não fui capaz de encontrar os diamantes
que, na véspera, Mr. Cullens tinha confiado a meu irmão.
Compreendi que meu irmão os levara consigo. Cullens
conhece a fraqueza de George. É o único, além de mim e
de minha sobrinha. Receio que ele me venha pedir as pedras
antes de meu irmão regressar da sua fuga. Não pretendia
o escândalo e esforcei-me por o encobrir, fingindo-me cleptómana.
Ideia estúpida, estou agora a ver, mas que de momento
me pareceu excelente. A única maneira de retardar as coisas,
de me dar tempo para procurar George e tratá-lo.
Foi então deliberadamente que resolveu roubar...
Não em absoluto. Tinha lido, em qualquer parte, que
não se podia acusar uma pessoa de roubo antes dela ter
saído do armazém, ou das suas dependências. Eu pretendia
fazer-me prender dentro do armazém, e se não fosse
Mr. Mason...
Está bem interrompeu o sargento Holcomb. Outra
coisa. O seu irmão foi encontrado...
O dr. Gifford precipitou-se.
Não! Cale-se! gritou. Pedi-lhe para poupar os nervos
da minha cliente. Comprometeu-se a fazê-lo. Não tem o
direito...
342
Procederei como entender declarou Holcomb. O
senhor não tem aqui nenhuma autoridade. Posso...
É possível, mas sou o responsável pela doente. Aceitei
que a interrogassem. Mas não lhe vai provocar um novo
abalo nervoso. O senhor prometeu...
Mudei de opinião replicou o sargento. Esta mulher
está na plena posse das suas faculdades...
O dr. Gifford fez um sinal à enfermeira, que abriu o
estojo que tinha debaixo do braço. O médico avançou.
Um momento, peço-lhe. Deixe-me ver o seu braço
esquerdo, Mrs. Breel.
A doente estendeu-lho e o médico debruçou-se.
Que está a fazer?perguntou, desconfiado, o sargento.
O dr. Gifford tapava-lhe a vista. A enfermeira estendeu-lhe
um pedaço de algodão que o médico embebeu em álcool
antes de esfregar o braço da sua cliente.
Pode observar, escrivãodisse ele , que acabo de
injectar a Mrs. Breel, por via hipodérmica, um poderoso
narcótico que a põe desde já ao abrigo de qualquer nova
emoção.
Estou-me nas tintas para tudo o que lhe tenha injectado
! gritou o sargento, furioso. Não deixarei de continuar...
Tudo o que quiser, sargento replicou amavelmente
o médico. A doente está já sob a influência do narcótico.
Como médico, posso-lhe garantir que qualquer resposta dada
por ela não tem valor nenhum.
com um ligeiro suspiro, Mrs. Breel deixou cair a cabeça
no travesseiro e fechou os olhos. Distinguia-se-lhe, no canto
dos lábios, um leve sorriso.
Está a fingir! berrou Holcomb. Esta picadela não
pode ter dado efeito em tão pouco tempo!
Está a pretender que os seus conhecimentos médicos
são superiores aos meus?perguntou o dr. Gifford.
O sargento perdia completamente o sangue-frio. Estava
escarlate.
343
Sei muito bem o que digo! É fingimento! É um truque
preparado! Pode brincar aos avestruzes enquanto quiser,
mas não deixa de ser verdade que o seu irmão foi...
Sampson, precipitando-se para o sargento, tapou-lhe
a boca.
Cale-se lá, imbecil! Quem manda aqui sou eu!
Recuando um passo, Holcomb fez-lhe frente, os punhos
fechados, ameaçadores:
Está bem. Já que assim quer...
Cale-se! Não está a perceber que está a ir no jogo deles ?
O punho do sargento falhou por pouco o queixo de
Sampson.
Senhores interveio o médico, vou chamar alguns
enfermeiros para fazer evacuar este quarto. Esta cena é
escandalosa e pode ter sobre a doente consequências muito
graves.
Não esteja a fazer-se tolo, Holcomb! disse o adjunto
do procurador. Não está a ver que...
Defenda-se, em vez de se deixar bater como uma
cabaça! gritou Holcomb, furioso, os punhos cerrados.
Não vou nisso!
E, mantendo o adjunto a distância, virou-se para a cama
e berrou:
Já vamos ver isso... Encontraram o corpo do seu irmão
na oficina. Mataram-no com um tiro e meteram-no numa
caixa de embalagem.
Mrs. Breel não devia ter percebido. com os olhos fechados
respirava pausadamente, aparentemente mergulhada num
profundo sono.
Muito bem!, já lá chegou, meu pobre diabo de "chui"!
comentou Sampson. Jogou o seu único trunfo antes de
tempo.
Ela está a dormir tanto como eu! continuava Holcomb
a teimar, com uma voz onde, entretanto, já se infiltrara
a indecisão.
344
E nesse caso você não a consegue apanhar. Deixa-lhe
imenso tempo para reflectir.
Aproveitemos a calma interveio Mason para termos
a certeza de que o escrivão tomou nota da hora a que o
dr. Gifford ministrou o narcótico à doente. Quero que diga
no seu relatório que, a despeito do estado nervoso da paciente,
o substituto do procurador e o sargento da Secção Criminal
sustentaram um combate de boxe, com os punhos nus, por
cima da cama...
Não houve luta corrigiu Sampson. Não se faça
tolo, Mason.
Houve combate! repetiu o advogado.
Não. Eu não levantei a mão para Holcomb. Até me
afastei dele.
Holcomb atirou-lhe um soco.
Mas não me acertou.
É possível, mas figurará na acta e saberei o que fazer
dele.
Já cá está disse o escrivão, de mau humor.
Obrigado.
Houve um silêncio. Mrs. Breél, na sua cama, emitiu um
rumor da garganta, muito semelhante a um ronco.
É impossível que este narcótico tenha agido com tanta
rapidez garantiu o sargento mais uma vez.
Tomou nota da hora exacta da injecção? perguntou
Mason.
Não. Mas não passaram dois minutos, desde então.
O tempo passa depressa, sargento, sobretudo quando
se trava luta com o representante do procurador no quarto
de uma ferida cujo estado físico é tão grave que o médico
proibe que lhe inflijam qualquer fadiga nervosa.
Tudo isto não nos leva a nada disse Sampson, despeitado.
Estamos simplesmente a fazer o jogo de Mason.
Ele terá muito a dizer retorquiu o sargento.
Mas não aqui volveu secamente Sampson.
345
O sargento fitava a doente como se a quisesse arrancar
do sono, apenas com a força dos olhos.
Seria melhor que fossem discutir para outro sítio
sugeriu o dr. Gifford. A paciente está a dormir.
Você terá notícias minhasatirou Holcomb, virando-se
para ele.
E você minhas. Se surgir a menor complicação, torná-lo-ei
pessoalmente responsável.
É-lhe naturalmente possível, doutor, obter do tribunal
um mandado interdizendo qualquer interrogatório da sua
cliente sem a sua prévia autorização disse Mason.
Essa interdição continuou com dignidade o dr. Gifford será
indispensável. E estará naturalmente prolongada
pelo facto mesmo da fadiga a que acabam de sujeitar
Mrs. Breel. Senhores, ficar-lhes-ia muito grato se fizessem
o favor de sair daqui.
E como parecia haver hesitações:
Devo pedir ajuda ao pessoal do hospital?
Vamos, Holcomb disse Sampson. Não temos nada
a fazer aqui.
Em todo o caso replicou o sargento, não vou permitir
que Mason fique atrás de mim para ensinar a lição à acusada.
Mason dirigiu-se para a porta, na ponta dos pés, fingindo
enormes cautelas.
Não vejo necessidade de perturbar o sono da doente
disse, baixando a voz.
O dr. Gifford baixou a cabeça e Sampson não pôde
impedir-se um sorriso. O sargento Holcomb rebentava de
indignação.
Basta, sargento disse-lhe Sampson, pondo-lhe a mão
no ombro.
346
CAPÍTULO IX

Mason entrou na cabina telefónica do hospital para ligar
para Drake.
As coisas estão a ir depressa por aqui confiou-lhe.
Dê-me notícias de Virgínia Trent.
Puseram-na sob a vigilância de uma enfermeira da
polícia respondeu o detective. Interrogaram-na brutalmente
e teve uma crise de lágrimas. Para acabar, o médico
ministrou-lhe um enérgico calmante e a enfermeira levou-a
para casa, onde está guardada à vista.
Foi inculpada?
Até agora não. Vêem nela, sem dúvida, uma testemunha
importante de que se poderão servir, se houver necessidade.
O tio foi morto por uma bala de 38, disparada pelo revólver
encontrado na gaveta da secretária. Você estava lá quando
o sargento encontrou a arma.
Então? perguntou Mason. Ela chegou lá uns breves
minutos antes de mim. O cadáver estava já há muito tempo
na caixa.
Bem sei. Mas a polícia pergunta-se se Virgínia não
terá voltado ao local do crime para se desfazer do corpo
ou para despejar as algibeiras do morto, ou então...
Tudo isso é absurdo.
Não é essa a questão continuou Drake, filosófico.
Estou-lhe simplesmente a repetir o que pensam as autoridades.
Essas corajosas pessoas que não fazem a sua primeira
burrice e que continuarão. Que se passa do seu lado,
Perry? Você está a parecer-me muito belicoso.
Quiseram intimidar Mrs. Breel.
Conseguiram alguma coisa?
Nada replicou prontamente Mason com um chasqueio
de alegria.
E lone Bedford?
Continua nos Apartamentos Milpas.
347
Pete Chennery ainda não apareceu?
Não. De acordo com as últimas informações.
Agora vamos ocupar-nos da casa de jogo. Estou no
Hospital Deaborn. Passe por aqui para me levar.
Dentro de dez minutos.
Pousando o aparelho, Mason seguiu ao longo do comprido
corredor, desceu a grande escadaria de mármore e
deixou-se aquecer ao sol, um cigarro nos lábios, até que o
carro de Paul Drake travou encostado ao passeio.
Vamos então ver o banqueiro de que me falou, Paul.
Entendido. Parece que o Prato de Ouro lhe interessa
Particularmente fez notar o detective, atento ao volante.
Sim. As contas não se equilibram lá muito bem. Precisamos
de um perito contabilista.
Como vem a ser isso?
De acordo com as informações dadas por Gullens a
lone Bedford, George Trent teria ido ao Prato de Ouro na
noite de sábado e empenhado os diamantes por seis mil
dólares. Cullens projectava recuperá-los por três mil.
E então?
O cadáver de Trent foi encontrado no seu escritório
continuou Mason. Quando andava na borga, nem se
lavava, nem se barbeava, nem mudava de roupas. Ora ele
estava correctamente vestido, barbeado de fresco. Deve ter
sido assassinado no escritório. Se ele foi jogar à casa de jogo,
deve ter regressado ao escritório nessa mesma noite de sábado.
E qual é a impossibilidade?
Não quadra com o resto. Primeiro, ele meteu as chaves
no correio. Saiu para se embebedar. Levou com ele os diamantes
Bedford? A pergunta merece discussão. É, em todo
o caso, surpreendente que tenha empenhado jóias que lhe
não pertenciam e logo no início da excursão. Depois de dois
dias de bebedeira, seria diferente e mais verosímil.
Onde quer você chegar?
A isto: se Trent não empenhou os diamantes no Prato
348
de Ouro por seis mil dólares, porque o afirmou Cullens-a lone
Bedford? Se Trent não dispôs dos diamantes e se Gullens,
julgando que ele o tivesse feito, foi fazer escândalo em casa
dos donos da casa de jogo, não é de supor que estes tenham
reagido e regulado as suas contas com Cullens? O truque
da moeda metida no suporte de uma lâmpada não é de
amador. Finalmente, se os diamantes Bedford eram mesmo
aqueles que se encontraram na que parece ser a bolsa de
Mrs. Breel, nada prova que provenham da cinta de Cullens.
Note também que lone Bedford garante que se não trata
das suas jóias. Tudo isto, como pode verificar, complica
singularmente o assunto.
É verdade reconheceu Drake. Temos um gatinho
que se enrodilhou numa tira de papel apanha-moscas.
É essencial voltar aos princípios básicos. Quero saber
se realmente os diamantes foram empenhados no Prato
de Ouro.
E como poderá informar-nos o freguês que vamos agora
visitar ?
Ajudar-nos-á. Suponha que Cullens fez uma cartada
pessoal destinada a ludibriar lone Bedford? Que não foi
ao Prato de Ouro, mas agiu de combinação com Bill Golding?
Já compreendo. Você pretende verificar tudo.
Até aos mais ínfimos pormenores.
Pois bem! Cá estamos! exclamou Drake encostando
o carro ao passeio. O banco fica em frente.
Atravessaram a rua para penetrar no sumptuoso edifício
onde se pavoneava nobremente um polícia. Empregados,
sentados atrás das suas mesas de acaju, ditavam, tomavam
notas, discutiam gravemente. Os caixas afadigavam-se,
pagando cheques, aceitando depósitos.
Qual é o nosso homem?perguntou Mason.
Aquele tipo de cabelos brancos, à esquerda.
Caramba! Que ar! Tipo a quem se daria a absolvição
sem confissão!
349
Sim reconheceu Drake abafando um riso malicioso.
São todos os mesmos, estes farçantes.
Aproximaram-se de uma secretária de mármore com
uma placa de cobre, onde estava gravado o nome do chefe
de serviços: Mr. Marquad. O homem de cabelos brancos
ouvia, impassível, o visitante sentado diante dele. Este,
inclinado para a frente, falava com tanto calor que dava a
impressão de querer passar por cima da mesa para melhor
convencer o interlocutor.
Para terminar, o banqueiro abanou a cabeça.
O homem, febril, recomeçou a sua argumentação. Um.
novo sinal de cabeça negativo, travou-o.
Estou desolado, senhor. Mas é impossível.
E como o outro insistisse:
Isto é, evidentemente, apenas a minha opinião. Posso,
se quiser, consultar a administração. Está entendido. Vou
tomar nota. Terá a resposta amanhã, às dez e meia.
Um frio sorriso despediu o importuno e o banqueiro,
levantando-se, deu alguns passos para Mason. com o olhar,
Drake consultou o advogado.
Eu trato do assunto murmurou este.
Mr. Marquad, não é verdade? continuou imediatamente. Posso-lhe
perguntar se leu os jornais da manhã?
A que propósito?
Mason deu-lhe um cartão. Um relâmpago passou nos
olhos do homem.
Já ouvi falar de si, Mr. Mason. De que assunto se
trata?
De assassínio de Austin Cullens.
-Verdade?
Estou a tentar reconstituir a maneira como Cullens
empregou o seu tempo continuou o advogado. Deve ter
visto a sua fotografia, muito parecida, de resto. No caso
de não ter lido, faça favor de tomar conhecimento do artigo,
Mr. Marquad.
350
Mason tirou do bolso um recorte de jornal. Marquad
lançou-lhe um olhar.
Leia estes sinais, peço-lheinsistiu Mason.
O banqueiro fê-lo, não sem que mostrasse uma certa surpresa.
E que referência tem isto comigo, doutor?
Não conhecia a vítima?
Não. Não me lembro de o ter encontrado, nem visto.
Reflicta, Mr. Marquad. Na noite passada...
O que o leva a acreditar...
As minhas informações respondeu Mason. Mr. Gullens
passou pelo Prato de Ouro pouco antes de morrer.
Pelo Prato de Ouro?repetiu o banqueiro, reprimindo
um estremecimento. A que se refere, Mr. Mason?
É um restaurante e uma casa de jogo. Rua 3, Este.
Essa casa não deve constar dos nossos clientes observou
Marquad, desdenhosamente.
Não se trata de números, nem de contas correntes.
volveu Mason, de que a maxila inferior ganhou um súbito
relevo. Estou-lhe a perguntar se não esteve ontem à noite
no Prato de Ouro.
Eu?perguntou o banqueiro endireitando-se. Em
semelhante lugar? Na verdade, Mr. Mason...
com o olhar, o advogado consultou Paul Drake, que lhe
respondeu com um sinal de cabeça.
Está bem, Mr. Marquad. Vamos precisar as coisas,
se o desejar. O senhor estava acompanhado por uma
loirinha.
Mr. Mason retorquiu o banqueiro, muito digno
peço-lhe que me desculpe. Está a insultar-me gravemente.
Há aqui um agente de serviço e...
O senhor saiu à meia-noite menos um quarto interrompeu
Drake, que tinha tirado do bolso um caderno de
apontamentos. Acompanhou a garota até ao seu apartamento,
na Avenida Phyliss. Subiu a casa dela. As janelas
351
iluminaram-se e foi mesmo o senhor que desceu os estores.
Às três menos um quarto da manhã desceu e...
Chiu! Senhores, suplico-lhes!
Está bem. Então, que responde?perguntou-lhe Mason.
O banqueiro molhou os lábios secos.
Trata-se de uma chantagem?
De modo algum respondeu Mason. Quero simplesmente
saber se o Cullens em causa foi ao Prato de Ouro nessa
mesma noite, entre as seis e as sete da noite. Reflicta um pouco.
Tem a'intenção de me chamar ao tribunal como testemunha?
Se me der as informações que preciso, não será provavelmente
necessário. Senão, terá de comparecer. Demonstrarei
a sua presença no estabelecimento e perguntar-lhe-ei aquilo
que viu.
O senhor não pode fazer isso!
Lamentarei muito! Uma palavra mais e entrego-lhe
já a intimação.
Tinha tirado do bolso um papel dobrado, que Marquad
fez menção de afastar com a mão.
Não, não, Mr. Mason. Suplico-lhe! Não está a compreender?
Estamos num lugar público.
Viu Cullens?
Houve uma ligeira agitação na sala respondeu Marquad
com os olhos no chão. Não me lembro exactamente
da hora. Eu estava no bar: sentia necessidade de um ligeiro
estimulante. Um homem, correspondendo aos sinais que me
deu, entrou para se dirigir imediatamente ao gabinete particular
do gerente. Ouviu-se uma violenta discussão. O barman
meteu no bolso, um objecto que apanhou atrás do balcão e
entrou no gabinete. Pouco depois, o visitante saiu.
Percebeu o que eles diziam?
-Não.
O tom da conversa?
Nitidamente hostil.
352
Que viu mais?
Nada mais.
Estava na sala quando nós chegámos?
Estava.
Ficou ainda muito tempo depois de nós partirmos?
Cerca de uma hora. A minha... eh... a rapariga que
estava comigo não fez mais do que andar entre o bar e a mesa
de jogo... Julgo que tudo isto ficará entre nós, meus caros
senhores'
Bebeu?
Muito moderadamente. O barman poderá confirmá-lo.
Não me parece que tenha despejado mais de três copos em
toda a noite.
Está bem. Quem lhe indicou esse local?
Que quer dizer?
Não frequenta habitualmente as casas de jogo?
Oh, não!
Pagou o que consumiu?
Quer dizer que... eu era, de certa maneira, um convidado
da gerência. Já muitas vezes me tinham pedido para
lá aparecer.
Bill Golding?
Sim.
Ele tem aqui crédito aberto?
Sim, eu...
Conhece-o bem ?
Falei-lhe bastantes vezes.
Conhece a mulher que vive com ele?
Quer dizer a sua mulher?
Se assim o prefere.
Também a conheço, sim.
Falou a um ou a outro depois da visita de Culens?
-Não.
Mas viu-os?
Apenas quando saíram.
23-VAMP. G. 2
353
Mason tinha os olhos semicerrados.
A que horas?
Não poderei dizer-lhe com precisão. Algum tempo
depois da saída de Cullens e antes da sua chegada.
Viu-os voltar?
-Vi.
Quanto tempo estiveram ausentes?
Ignoro-o em absoluto, Mr. Mason.
Uma meia hora, talvez?
É muito possível. Não liguei muita atenção... Eu...
Sinto-me feliz por não me terem notado. Quer dizer que a
rapariga que estava comigo...
Compreendo volveu o advogado. Viu-nos entrar,
a mim e a Mr. Drake?
-Vi.
Bill Golding e a mulher já tinham regressado. Sabe-me
dizer quanto tempo antes, pouco mais ou menos?
Não lho saberia dizer exactamente.
E quanto tempo decorreu entre a saída de Cullens e a
do gerente acompanhado de sua mulher?
Digamos... um quarto de hora pelo menos. Uma meia
hora no máximo. Estávamos no bar quando Cullens chegou
e jantávamos quando Golding saiu com a mulher. Tanto
quanto me posso lembrar, tínhamos acabado -de jantar
quando voltaram.
Está bem assentiu Mason. Quero apenas verificar
os movimentos de Cullens.
Não vai dar nenhuma publicidade às minhas declarações,
pois não, Mr. Mason?
Nenhuma, se o puder evitar. Obrigado. Vamos, Paul.
Saíram, deixando Marquad na sua secretária muito
inquieto.
E agora falemos do carro de Bill Goldingdisse Mason
ao seu companheiro.Um Sedan azul estava parado junto
do passeio, um pouco antes de Mrs. Breel ter saído da casa
354
de Cullens. Era talvez o de Golding. Diggers declarou-me
que tinha um guarda-lamas amolgado.
É fácil. Sabê-lo-ei rapidamente. Quer que telefone ao
escritório ?
Agora não. Depois.
Que temos mais no programa?
lone Bedford.
Não quer esperar o regresso de Pete Chennery?
Não. Não temos tempo. Quero adiantar-me à polícia
e falar com esta mulher.
Agarre-se bem disse Drake. Vamos andar depressa.
A opinião de Drake era que o carro de um detective devia
passar despercebido por toda a parte, não despertar curiosidade,
nem deixar recordações. Mason, estirado no banco
deste carro ligeiro já com dois anos, observava Drake, via-o
deslizar no meio das vagas dos veículos, arriscar alegremente
os guarda-lamas, que todavia não tinham nada a temer de
um erro do condutor.
Se Cullens recebeu os diamantes de Golding disse
lentamente Mason porque não preveniu ele lone Bedford?
E se eram realmente os dela, porque se recusou Mrs. Bedford
a reconhecê-los? Se, pelo contrário, lhe não pertencem,
de onde vieram as pedras? Se Bill Golding ficou com eles,
porque não quis dizê-lo?
Se, por outro lado, Cullens os conseguiu de um terceiro
e não do Prato de Ouro, como pôde reavê-los assim tão depressa ?
Duas horas antes de morrer, parecia convencido de que Bill
Golding os detinha como garantia de seis mil dólares e se
deixaria persuadir a largar o penhor por metade desta quantia.
Por outras palavras comentou Drake é mais complicado
que uma declaração de impostos de rendimento. Quanto
mais se anda, menos se compreende.
Não sabia que o inspector de finanças tivesse qualquer
razão para se inquietar com as agências de detectives particulares comentou
Mason.
355
Muito pelo contrário.
Mason calou-se, pensativo. Drake acabou por parar
junto de um passeio.
Cá estamos, Perry. Preparar a armadilha é consigo.
Uma armadilha? vou fazer jogo franco.
E pensa que pode conseguir alguma coisa?
Não sei. Esta mulher deu-me a impressão de ser muito
franca.
Mas nem por isso deixa de levar uma vida dupla fez
notar Drake.
Não me esqueço. Diga-me lá: não é o seu homem que
se pavoneia na esplanada do outro lado da rua?
Drake fez um sinal de cabeça. O homem tocou na aba
do chapéu, acendeu um cigarro, sacudiu o fósforo para o
apagar e mexeu-se na cadeira como se estivesse a arranjar
espaço para outra pessoa que se fosse sentar a seu lado.
Drake traduziu:
A mulher está em casa. O homem ainda não apareceu.
Está bem. Vamos lá decidiu Mason.
O elevador levou-os ao terceiro. Diante da porta do
apartamento, depois de ter batido, o advogado agarrou o
braço de Drake.
Se ela abrir, nós entramos. Se ela fizer perguntas,
diga-lhe que tem uma encomenda e um telegrama para ela.
Quem está aí?perguntou de dentro lone Bedford.
Um telegrama e uma encomenda para Mrs. Chennery
respondeu Drake.
Abriu-se a porta. Mason, afastando-se ligeiramente, pôs
a palma da mão nas costas de Drake e empurrou-o.
Então! exclamou ela, impaciente. Onde está o telegrama?
Não entre...
Demasiado tarde. O advogado já estava a empurrar o
batente. Uma expressão consternada apareceu no rosto da
mulher. Tranquilamente, Mason fechou a porta, dirigiu-se
a uma cadeira e sentou-se.
356
Que significa...
Mr. Drake é detective, Mrs. Bedford esclareceu Mason.
Chennery rectificou ela.
Como quiser. Não deixa por isso de ser um detective.
Ela riu-se.
Você está a brincar comigo. É impossível.
Diga lá porquê?perguntou Mason pegando num
cigarro.
Está sem chapéu. Um verdadeiro detective nunca tira
o chapéu.
Mason sorriu e ofereceu-lhe um cigarro, que ela aceitou.
Mas a mão tremia-lhe.
Estou a ver que você vai muitas vezes ao cinema.
Não. Mas já vi muitos detectives.
Cadastro criminal?
Não respondeu ela secamente.
Então sente-se e falemos.
Não tenho nada a dizer-lhe.
Não sou da mesma opinião.
De que falarei eu então? perguntou ela num tom de
desafio. Se quer saber, fique sabendo que sou na verdade
Mrs. Chennery, legalmente casada.
É menos romântico, mas mais conveniente.
Sentando-se na borda de uma cadeira, ela cruzou as
pernas.
Por onde devo começar?
Pelo princípio.
Eu e Pete discutimos.
A sério?
Não muito.
A que propósito?
Duas louras e uma ruiva.
Motivo bastante para uma batalha feroz,
Deixei-o.
-Então?
357
Voltei a encontrar Aussie.
com a ideia de que seria divertido demonstrar ao seu
marido que você também era capaz de baralhar as cartas?
Ela abanou a cabeça, abriu a boca e voltou a fechá-la.
Não me tente enganar observou Mason. Não há
necessidade.
E o seu amigo?perguntou ela indicando Drake com
o queixo.
Fechado como uma porta de prisão. Entra tudo e não
sai nada.
Ela observou longamente as unhas.
Está bem. Você ganhou.
O quê?
Encontrei Aussie num barco. Agradou-me.
Muito ?
Bastante.
E então?
Que quer saber?
Tudo.
Pois bem! Aussie sabia defender-se. Estava muito
batido, encarando a vida pelo lado bom. Tudo lhe servia.
Eu tinha embarcado com o coração doente, amaldiçoando
o casamento. Eu...
Tudo isso me é indiferente interrompeu Mason.
Via-a com Cullens. O meu ofício não é conhecer o lado mau
da vida conjugal. É inútil insistir.
No fim de contas, que quer você?
Os diamantes.
-Oh! Isso!...
Mason sorriu. Ela tinha voltado a contemplar as unhas.
Sim, as pedras insistiu o advogado.
Não sei grande coisa disse ela levantando os olhos.
Mas que sabe?
Naturalmente, eu não andava a nadar em ouro continuou
ela. Tinha um pequeno depósito num banco. Tinha-lhe
358
feito uma larga brecha ao abandonar Pete, para ver mundo
e procurar fortuna. É evidente que poderia arranjar trabalho,
mas Pete ter-me-ia localizado e pedido que lhe perdoasse.
Para concluir, eu teria voltado e ele teria ganho tudo. E se eu
o tivesse deixado para bem, teria sido eu a perder.
No fundo, você gostava da coisa, hem?
Como qualquer pessoa de bom gosto... começou ela,
desdenhosa.
Vamos cortou Mason, irónico.
Decidi então comprar um fato de viagem, levar os meus
melhores vestidos, fazer um cruzeiro e deixar Pete com as
suas reflexões.
Naturalmente você estava interessada em que ele
soubesse que não se aborrecia na viagem.
Ela sorriu.
Enviei-lhe um postal ilustrado de Cartagena.
Nada mais?
Sim. Pedi à companhia de navegação que lhe mandasse
um prospecto elogiando os encantos do cruzeiro, luares no
mar das Caraíbas, saraus a bordo, banhos sob as palmeiras,
danças e passeios sentimentais sob a brisa dos trópicos.
De maneira que, com o prospecto numa das mãos e o
postal na outra, ele podia tirar as suas próprias conclusões.
Justamente.
Continue.
Naturalmente- eu esperava encontrá-lo no portaló do
vapor quando voltasse. Mas a um ou dois dias do porto,
compreendi a minha burrice. Pete não faria nada que se
parecesse. Ele é orgulhoso. É do Sul.
Sangue quente?
Muito quente.
Ciumento ?
Sim.
Então?
Tinha ido muito longe para recuar. Não tinha mais um
359
tostão. Impossível pensar em trabalhar. Teria sido coisa
muito humilhante.
Que fez então?
Aussie compreendeu muito bem. Ele tinha um discernimento
seguro. Tinha viajado muito e... conhecia as mulheres.
E você também.
Sim, ele conhecia as mulheres.
Em seguida?
Fez-me uma proposta. Tinha jóias que queria vender,
utilizando a actividade de um corretor. Ele coleccionava
belas pedras. Explicou-me ser como o negócio de automóveis
usados. As pessoas hesitam muitas vezes em comprar a um
garagista, com medo de serem levadas, e mostram-se mais
interessadas por um proprietário que quer vender o seu carro.
É por isso que os intermediários arranjam particulares que
fiquem em casa ao domingo e confiam-lhes os carros para
vender...
Bem sei disse Mason. Continuando, você devia
passar por possuir belas jóias para vender.
Sim.
E qual era o seu lucro?
Uma base e uma comissão. E mais: tinha uma casa.
Seria a jovem e brilhante divorciada, uma mulher da sociedade
elegante dando pouca atenção às convenções.
Quais ?
Isso dava-me um motivo válido para mostrar as jóias
e para pretender vendê-las a preços baixos. Aussie dizia que
os compradores comprariam as pedras a uma bela mulher
que parecesse desconhecer o seu valor e temporariamente
em baixo de pecúnia.
Resumindo: Cullens servia-se de si como isca?
Se quiser dar-lhe esse nome...
Mas estas velhas pedras não convinham ao seu papel
fez notar Mason, interessado.
Sim. Isso fazia parte da montagem do espectáculo.
360
Diga-me como eram elas.
Não seria capaz, Nunca as vi. Aussie tinha-me dito que
as ia entregar a Trent para as lapidar e montar de novo.
Depois disso você se encarregaria de as vender"?
Não. Era assunto de Trent. Eu ficava em segundo plano.
Se alguém fizesse um inquérito, era eu a proprietária.
Para que Trent pudesse conseguir um preço melhor?
Ela fez um sinal de assentimento.
Portanto, você telefonou para George Trent na segunda-feira
de manhã. Você tinha, dizia-lhe, um comprador e tinha
decidido...
Era uma ideia de Aussie.
Ele disse-lhe? Quando?
Uma meia hora antes de eu telefonar. Ele tinha ensaiado
cuidadosamente aquilo que eu deveria dizer. E enquanto
durou a ligação esteve sempre perto de mim.
Você chamou Mr. Trent?
Sim.
Que lhe responderam?
Que tinha saído.
Então?
Perguntei quem é que falava. Disse-me ser o chefe da
oficina.
E participou-lhe a sua intenção de reaver as jóias?
Sim.
Cullens sabia que Trent não estava?
Sabia. Eu devia perguntar por Mr. Trent, que tinha
desaparecido para a borga. Procurariam ganhar tempo e eu
não me deixaria levar. Devia reclamar a restituição imediata.
Mason contemplava a fina espiral de fumo do cigarro.
Um momento disse ele. Recapitulemos. Você nunca
tinha visto essas pedras de que era presuntiva proprietária?
Nunca.
Quer dizer que, no Comissariado Central, você não
361
podia responder-me, garantindo-me que as jóias não eram
realmente suas?
Exactamente.
Você declarou mesmo, categoricamente, que lhe não
pertenciam!
Era necessário que eu dissesse qualquer coisa. Podia-lhe
declarar que nunca as tinha visto ? E depois tive medo. Julguei
que você me estava a armar uma cilada.
Você ainda não sabia da morte de Cullens?
Ela virou os olhos, depois, erguendo a cabeça, olhou o
advogado bem de frente, não sem esforço.
Claro que não disse por fim.É evidente que não
sabia. Como o poderia ter sabido?
Poderia estar a ganhar tempo.
Talvez. Mas você tinha-me agarrado pela garganta.
Não tive tempo de reflectir.
Mason levantou-se e aproximou-se da janela para deitar
para a rua uma olhadela distraída. Um descapotável com
rodas de aros metálicos parava. Um homem jovem, muito
alto, saiu. Mason meneou a cabeça virando-se para lone.
Isso não pega sempredisse ele.
É-me indiferente volveu ela, agressiva.
A seguir recomeçou Mason depois de ter tido conhecimento
da morte de Cullens, do seu assassínio, você saiu como
um furacão para vir para aqui queimar o pavimento.
Sim. Sabia que ia haver um inquérito e não me queria
ver enredada nele.
Porquê?
Por causa de Pete. Não quero que ele saiba aquilo que
fiz. Por outro lado, também não queria que ele interviesse.
Se, quando o deixei, eu me tivesse limitado a fixar-me em
qualquer parte, ele ter-me-ia aparecido sem dificuldade.
Teria fingido arrependimento, mas, no fundo, ficaria convencido
de que eu lhe pertencia de facto. Ter-me-ia deixado
trabalhar um bom pedaço de tempo para me ensinar. Par-
362
tindo para o cruzeiro, dava-lhe tempo para reflectir, mas
também me não queria comprometer definitivamente no
seu juízo.
Concluindo, o inquérito metia-lhe medo?
Céus! Eu era lone Bedford, vivendo numa casa montada
por Aussie Bedford. Era bem claro e teria podido protestar
sempre. Pete nunca engoliria isso.
No seu desejo de evitar o inquérito, correu para aqui.
Foi assim?
Foi.
Mason, com os polegares nas cavas do colete, caminhava
pelo aposento. Ela seguia-o com os olhos, não dando nenhuma
atenção a Drake, que se tinha aninhado num canto da poltrona,
com o queixo na mão.
Não, isso não pega continuou o advogado depois de
um breve silêncio.
Não pega o quê?
A sua corrida para aqui.
E todavia é um facto. É preciso aceitá-lo.
Ela teve um pequeno riso agastado.
Isso não pega repetiu Mason. Logicamente, você
devia ter-se dirigido para um quarto de hotel, com um nome
inventado e avisado Pete. Deixando o seu marido, o seu único
objectivo era fazê-lo voltar para si. Você é muito inteligente
e muito calculista para depor as armas no momento exacto
em que a vitória lhe pertencia.
E, no entanto, voltei.
Por uma única razão, lone retorquiu Mason. Tomando
conhecimento do assassínio de Cullens, surgiu-lhe a
ideia de que o seu marido tinha sabido que Cullens lhe tinha
montado a casa e que, dado o seu temperamento violento,
o seu sangue quente de meridional tinha...
É falso!gritou ela.É falso!
A porta do corredor abriu-se brutalmente. Um rapaz forte,
de cabelos pretos, olhos azuis e frios, deteve-se na soleira:
363
O que é que é falso?
-Pete!
Drake levantou-se.
Ela correu para ele e Drake agarrou-a pela cintura para
a deter. Ela defendeu-se, arranhando-o como uma gata brava.
O homem deu dois passos para a frente. Drake viu o seu olhar,
quis pôr-se em guarda, mas já era tarde. O golpe atingiu-o
no queixo. Foi atirado para cima do canapé, de pernas
para o ar.
A mulher rodeou o homem com os braços. Ele empurrou-a
para fechar a porta com um pontapé. Ignorando o detective,
veio plantar-se diante de Mason.
Agora é consigo. Fale!
Será melhor começar você a fazê-lo, Chennery disse
calmamente Mason, sem tirar os polegares das cavas do
colete.
Este é Perry Mason, o advogado disse a mulher.
E que vem ele aqui cheirar?
Drake tinha-se levantado e endireitava-se, ameaçador.
Onde vamos continuar isto?atirou ele a Chennery.
Esse nem sequer virou a cabeça. E, encarando Mason:
Então? Isso vem?
Apalpe-lhe os bolsos disse Mason a Drake. Veja se
ele não tem por acaso um "38" no bolso.
Pete! Não os deixes fazer! gritou a mulher. Tu não
,sabes! Eles, eles sabem... coisas... eles vão-te...
Pode saber-se a razão desse "38"?perguntou friamente
Chennery.
Austin Cullens foi assassinado com uma bala desse
Calibre esclareceu Mason.
Austin Cullens? Quem vem a ser esse cavalheiro?
lone voltou para o advogado uns olhos aterrorizados.
Um tipo a quem regularam a conta com um revólver
respondeu Mason.
E você quer-me meter no barulho?
364
Viram um carro diante da casa no momento do crime
explicou Mason, encolhendo cuidadosamente as palavras.
Um "coupé" vermelho descapotável com rodas amarelas.
Podem ter-se enganado no número da placa de matrícula,
mas parece que tudo coincide... a descrição do carro e a do
homem que o guiava.
E você quis fazer falar minha mulher, insinuando que
eu o poderia ter morto?
Nós fizemos-lhe algumas perguntas. Ela parece ter-nos
Adivinhado disse Mason.
Chennery teve um risinho frio.
Está bem. Apalpem-me os bolsos.
Tinha posto os braços horizontalmente, as mãos abertas,
os polegares afastados. Drake passou uma mão hábil ao longo
do homem e apalpou-lhe o casaco debaixo dos sovacos.
Nada concluiu.
Nada mal comentou o advogado. Deve ter abandonado
a arma no local do crime.
Vocês estão a perder tempo disse Chennery. Vocês
não conseguirão provar semelhante acusação.
Você não entrou em casa na noite passada disse Mason.
Chennery lançou um olhar raivoso à mulher.
Não a acuse, meu velho disse o advogado. Ela não
falou. Temos este apartamento vigiado desde as onze horas
da noite de ontem.
Está bem. Não estava em casa. E depois?
Nada. Só quero saber onde estava você?
Você é advogado?
Sou.
E o outro é detective disse a mulher.
Da Segurança?
Não. É um detective particular que trabalha por minha
conta.
Chennery caminhou para a porta e abriu-a:
Vamos. Saiam. Os dois
365
Pete!implorou a mulher, pousando a mão no braço
do marido. Ouve-me! Não faças isso... Eles são...
Ele afastou-a.
Já disse: desapareçam!
Mason parecia não ter ouvido. De pé, junto da janela,
os polegares no colete, olhava para a rua.
Será preciso ver... disse Drake agressivo.
Está tudo visto. Paguei o aluguer. Aqui, estou em minha
casa. Vocês não têm mandado para a buscar. Ponham-se
lá fora, imediatamente!
Isso poderá ser um mandado de capturadisse Drake.
Um detective particular? Um'mandado de captura?
Tu fazes-me rir!
Mason virou-se bruscamente, piscando um olho a Drake.
Vamos, Paul. Não vale a pena insistir. Ele tem todos
os trunfos.
Quer dizer que nos vamos embora?
Pois.
Chennery continuava com a porta aberta.
Sem uma palavra, Mason e Drake passaram para o
corredor. A porta bateu-lhes nos calcanhares.
Apesar de tudo! comentou o detective, fora de si:
Só faltava este chulo acreditar que me pode tratar assim!
No momento em que íamos resolver o problema Cullens...
Mason agarrou Drake pelos ombros.
Deixemos isso, Paul. E depois, nós não temos nada
que identificar o criminoso.
Que está você para aí a cantar?
Se nós resolvemos o problema continuou o advogado
o detective Holcomb, da Secção Criminal, não tirará vantagem
alguma. Terá então tendência para recusar a nossa
solução, onde só verá o nosso desejo de pôr em liberdade
Sarah Breel. Se, por outro lado, o sargento resolve investigar
pelo lado de Pete Chennery, admitirá muito naturalmente...
366
É verdade, Perry interrompeu Drake. Desculpe-me.
Este soco deve-me ter abalado a cabeça.
Fez-lhe mal?perguntou o advogado.
com os diabos!
Drake virou-se para o apartamento de onde tinha saído
e Mason viu a manga do casaco ganhar relevo com a contracção
muscular do seu companheiro que empurrou para
o elevador.
Um comprimido de aspirina o aliviarádisse-lhe.
Outra coisa: Chennery sabe que o mantemos vigiado. E não
terá dificuldade em notar o seu homem. O seu primeiro
cuidado vai ser dar-lhe uma sova para se desembaraçar
dele. Previna o seu tipo, para que a correcção não seja muito
dura. Entrementes, vamos pôr-lhe mais três rapazes nos
calcanhares. Dos bons. Está a perceber?
Perfeito. Será um grande prazer pregar uma boa
partida a esse bruto.
Vamos então telefonar desta farmácia e tome a sua
aspirina.
E depois? perguntou Drake, a quem já tinha voltado
o sorriso.
Depois, vai fazer o favor de me organizar uma lista
dos roubos de jóias de certo valor feitos nestes últimos cinco
anos. Se lone Bedford não puder identificar as jóias roubadas,
há muitas possibilidades de que outra pessoa o possa fazer.
Longe de mim querer gerir os seus próprios interesses, mas
é possível que consiga arrancar alguma boa recompensa
ao controlar os factos e os gostos de Austin Cullens.
Drake friccionou cuidadosamente a maxila.
Decididamente, sou um parvo reconheceu ele.
367
CAPÍTULO X

Virgínia Trent sentou-se na cama e olhou para Mason.
Tinha os olhos inchados pelo sono.
bom dia, Mr. Mason.
Como se sente? perguntou o advogado.
Não sei muito bem. A enfermeira acordou-me agora
mesmo.
Você estava muito nervosa disse esta, de pé, ao lado
da cama. O médico deu-lhe um calmante.
Muito enérgico, sem dúvidacontinuou Virgínia
esfregando os olhos. Devo estar horrorosamente feia. Dê-me
um espelho e um copo de água.
Veio o copo de água, sem o espelho, e a rapariga bebeu-a
avidamente. Depois, baixando os olhos, analisou a camisa
de flanela que a cobria até ao pescoço.
Aqui está uma camisa que não visto nunca. Onde a
encontrou ?
Na última gaveta da direita. Eu...
Porque não tirou uma camisa mais leve, da gaveta
de cima ?
Você estava esgotada e receei que apanhasse frio.
A sua resistência estava muito diminuída. O calmante começou
a agir no táxi.
Ah! Já me lembro! Estes polícias! Que brutos sádicos!
Adoram torturar os fracos.
Que lhe fizeram eles? perguntou Mason.
Arrasaram-me com perguntas, até quase me enlouquecerem.
Parece-me bem que acabei por ter uma crise de
nervos.
Isso mesmo disse a enfermeira.
E então?
Para terminar, um médico deu-lhe um sedativo e
encarregaram-me de a trazer para sua casa.
Para me guardar. Você garante que não me escaparei?
368
A enfermeira, com muito tacto, não respondeu.
Onde está minha tia?
No hospital. O choque foi menos grave do que se
pensava e dormiu muito bem. Não se preocupe com ela.
É perfeitamente capaz de se defender sozinha.
Que significa essa história do revólver encontrado na
sua bolsa?
Ainda não se conseguiu demonstrar que a bolsa era dela.
Ela bocejou largamente, quase deslocando o queixo.
Lamento fazê-lo esperar, Mr. Mason. Mas tenho de
fazer a minha "toilette".
Entendido. Lamento tê-la incomodado, mas temos de
trabalhar.
A propósito do senhor meu tio, encontraram alguma
. coisa ?
Nada, que eu saiba. Em todo o caso, não me disseram
nada.
Ele está...? Quer dizer...
Vão proceder à autópsia esclareceu Mason. Está
actualmente na Morgue.
Vire-sedisse a rapariga. Vou levantar-me.
Vou fazer ainda melhor. vou esperá-la lá em baixo,
na biblioteca. Você julga que pode falar com o estômago
vazio ?
Não. Onde está Itsumo?
Lá em baixo respondeu a enfermeira.
Muito bem. vou tomar um duche. Diga-lhe que quero
um copo de sumo de tomate, um bife com muito molho de
Worcestershire, café, ovos mexidos e torradas. Não me
quer fazer companhia?
Sem dúvida. Uma chávena de café e um cigarro.,
Espero-a lá em baixo.
Ela só apareceu vinte minutos depois. O japonês serviu-os,
rapidamente e em silêncio.
24-vAMp. G. 2
369
Agora falemos disse o advogado depois dela ter
bebido uma segunda chávena de café.
De quê?
De tudo.
Você sabe tanto como eu.
Diga-me alguma coisa acerca do revólver que estava
na gaveta. Você sabia que estava lá?
com certeza! Já me servi dele muitas vezes.
Sim? Quando?
Só durante os últimos seis meses. Uma vez por semana
vou treinar-me para o campo.
Posso perguntar-lhe para que faz esse treino?
É muito simples. Estou muitas vezes aqui sozinha.
Há neste cofre pedras no valor de milhares de dólares. Eu
entendia não dever deixar o primeiro larápio ordinário
esvaziar este cofre à minha vista, arruinando assim o tio
George.
Não está no seguro?
Só em parte. Mas não se trata só dos perigos,
Mr. Mason. Cuidei sempre de desenvolver a minha personalidade.
Entendo poder desenvencilhar-me pelos meus próprios
meios... Não há nada melhor para fazer perder o uso
das pernas do que umas muletas... Tenho um camarada,
um amigo que... gosta das mulheres de carácter... e atira
notavelmente bem. Eu quero ser aquilo que ele ama,
uma companheira digna dele. Uma mulher que se não
rende aos gostos do homem que lhe interessa, comete um
erro muito grave. Em Biologia, sabemos que os polos opostos
se atraem, mas quando aparece o hábito, é necessária, para
preservar a união, uma comunidade de interesses. Não se
pode construir nada de sólido só com base na atracção biológica.
A camaradagem entre os sexos divide-se em duas épocas.
Primeiro, temos a atracção biológica, depois temos...
Nós estávamos a falar de tiro de revólver interrompeu
Mason, docemente. E você derivou para o casamento.
370
Isso não! Estava a falar apenas das reacções essenciais.
O casamento é apenas o produto, a consequência natural.
Pouco importa. Não falemos, peço-lhe, senão daquilo
que me interessa.
A rapariga corou.
...E portanto do tiro de revólverconcluiu o advogado.
Não vejo que mais possa acrescentar àquilo que já lhe
disse. Treino-me no tiro de revólver há dez meses e fiz notáveis
progressos.
Você usa sempre aquela arma?
Quase sempre. Tentei o modelo regulamentar do
exército, mas recua muito.
Falou aos polícias desse treino de tiro?
Ela fez sinal que sim.
E como os conseguiu convencer de que não tinha
morto o seu tio?
Em grande parte, porque ele foi assassinado na tarde
de sábado e pude justificar o emprego do meu tempo, minuto
a minuto. Julga, Mr. Mason, que essa gente me vai continuar
a torturar esta manhã?
Não me parece.
Que razão o leva a pensar assim ?
Porque eu estarei aqui.
Mas não o deixarão ficar.
Devem deixar. A não ser que não a inculpem de assassínio
e não a metam na cadeia. Coisa que muito me admiraria.
Tenho uma nota do juiz que me autoriza, como seu
advogado, a conferenciar consigo. Naturalmente a enfermeira
não viu nada mais urgente a fazer que telefonar... Olhe!
Cá estão eles!
Uma sirene uivou e Virgínia pousou a chávena de café.
Espero aguentar disse ela. Mas esta provação...
depois destes desgostos... e este desastre...
Prometa-me que não se vai enervar. Deixe-se estar
sentada e deixe-me falar.
371
Atitude que lhes não dará muito prazer.
Antes de Mason poder responder, ouviu-se um rumor
de passos no vestíbulo e a enfermeira alcançou a porta antes
de Itsumo, abrindo-a" dizendo:
Estão na sala de jantar.
O sargento Holcomb apareceu nos umbrais, rodeado
por dois agentes.
Que faz você aqui?perguntou a Mason.
Autorização do juiz respondeu Mason exibindo um
papel.
Devia tê-la mandado para a prisãocontinuou o sargento,
voltando-se para Virgínia Trent. Aqui está a minha
recompensa por a ter poupado.
Não tenho nada a ver com isto protestou a rapariga.
Mr. Mason veio acordar-me.
E se a tivesse guardado à sua disposição interveio
o advogado teria conseguido uma ordem de habeas corpus.
A prisão não teria alterado nada.
Suponho que lhe vai dizer que não responda às minhas
perguntas, não?continuou o sargento, sentando-se. Fazer
valer os seus direitos?
Pelo contrário. Vamos fazer tudo para lhe facilitar
o trabalho.
Quero ver como isso vai ser! comentou sarcásticamente
o sargento. Fique desde já sabendo que esta jovem
senhora admite que sabia da existência do revólver na gaveta
e se treinou longamente no tiro.
Então?
Tire as suas próprias conclusões.
Já fizeram a autópsia?
Holcomb aquiesceu com um sinal de cabeça.
Conversemos então, sargento. George Trent foi assassinado
de tarde.
Como é que o sabe?
É fácil. Ignoro os resultados da autópsia, mas basta-me
372
o estado do corpo e das roupas. A camisa estava limpa.
Por outro lado, o corpo foi metido numa caixa, no alto de
uma pilha. A sobrinha seria tão capaz de lá o colocar, como
de deslocar uma parede da casa.
Um cúmplice?sugeriu Holcomb.
Isso...
Não se esqueça de que o nosso homem tinha saído para
se embebedar. Tinha saído, deixando o carro num parque,
para meter depois as chaves no correio.
Isso mesmo e, contudo, voltou ao escritório. Por que
razão ?
Não seivolveu Holcomb.É justamente isso que
quero saber.
Não lhe parece melhor tratar de investigar por esse
lado, em vez de brutalizar Miss Trent, só porque conhecia
a existência do revólver e sabia utilizá-lo?
Não brutalizei ninguém.
Você interrogou-a até tornar necessária a intervenção
de um médico.
Mandei-a para casa dela. Agora está a parecer-me de
excelente saúde.
Tenho razões continuou Mason para julgar que
Trent só foi a uma casa de jogo, ao Prato de Ouro, da
Rua 3, Este.
E que deduz você?
Que se viu obrigado a voltar ao escritório. A minha
opinião é ser esse o lado por onde devemos conduzir as investigações.
A orientação do inquérito é dada por mim.
Bem entendido que sim, mas não receia que a defesa
acuse a polícia de não querer pôr em cheque uma sala de
jogo clandestino que visivelmente essa mesma polícia protege ?
Uma casa clandestina? Nesse endereço? atirou Holcomb,
agressivo.
Sim. E depois, sargento, que vai fazer?
373
Orientar as minhas investigações nesse sentido respondeu
o sargento após breve reflexão.
Perfeito. E eu vigiarei as suas averiguações. Entretanto,
dar-lhe-ei conta, minuto a minuto, da maneira como
Miss Trent empregou o tempo no sábado de tarde... Você
fechou o escritório ao meio-dia, Virgínia?

Fechei.
Para onde foi?
Para o campo.
Passear ?
Sim. O meu amigo e eu queríamos...
Depois veremos isso, entre nós. Agora vamos deixar
tempo ao sargento para proceder às suas averiguações...
A resposta da senhora fechou-lhe o bico, hem, Mason?
disse Holcomb.
A mim? Porquê?
Você está a andar muito depressa, Mason. Esta rapariga
contou-nos tudo. Como tinha levado o revólver na sua bolsa,
para se treinar ao alvo, garantiu ela.
O advogado deitou uma breve olhadela a Virgínia Trent,
que fez um sinal confirmativo.
E depois?perguntou ela. Há seis meses que me
treino no tiro. O meu amigo poderá dizer-lho...
Quem é o seu amigo? perguntou Mason.
O tenente Ogilby. É meu colega nos cursos de psicologia.
Mason consultou Holcomb com os olhos.
É exacto respondeu este. Partiram os dois, por volta
da hora e meia. Nessa altura, Trent estava a almoçar num
restaurante próximo. Ela regressou por volta das seis horas.
Não se separaram.
Desculpe-mepediu Mason. Tenho um telefonema a
fazer. Onde está o aparelho, Miss Trent?"
Na entrada.
374
O advogado foi fazer uma chamada para o escritório
de Drake.
É você, Paul? Os seus homens conseguiram informações
do porteiro de Trent?
Tenho um relatório minucioso, Perry Trent fechou
no sábado ao meio-dia, mas há no edifício grande número
de escritórios que estão abertos todo o dia, e os elevadores
funcionam até às seis e meia. A partir dessa hora só funciona
aquele que está a cargo do porteiro, e os que o usam têm
de assinar o livro das subidas e descidas.
Esse livro prova que Virgínia Trent voltou no sábado
cerca das oito horas, para só descer às nove e dez. Sarah
Breel, vinda no domingo de manhã às dez e meia, ficou no
escritório até ao meio-dia e cinco. É tudo. Nenhum vestígio
da passagem de Trent. É crível que, tendo fechado o
escritório ao meio-dia, tenha lá voltado antes das seis e meia
da tarde. Depois dessa hora, seria obrigado a dar o seu nome
ao porteiro.
Este último subiu às sete e meia para fazer a limpeza.
Esteve sozinho no escritório cerca de uma meia hora. Quando
saía, deu-se conta de Virgínia saindo do elevador e deixou-lhe
a porta aberta. Ela também estava só.
Mas não é tudo, Perry. Um jornalista disse-me que o
médico legista tinha estabelecido com muita precisão a hora
da morte. Pôde saber-se que Trent tinha almoçado, e a que
horas, e julga-se que o mataram por volta das quatro e meia
da tarde, às cinco, o mais tardar. Isto não agradou à polícia,
que, todavia, se viu obrigada a aceitá-lo.
Obrigado foi a resposta breve de Mason, desligando
para regressar imediatamente à sala de jantar.
Então, sargento, tem a intenção de inculpar Miss Trent ?
Não se preocupe comigo, peço-lhe.
Não penso em tal. O que pretendo, são factos.
Aqui estão: George Trent foi assassinado antes da
cinco da tarde. Miss Trent tem um alibi irrefutável.
375
Mason disse o sargento inclinando-se para o advogado já
nos defrontamos muitas vezes. Pouco importa.
Falemos razoavelmente. Concorde comigo ser impossível
ter Miss Trent conservado este revólver consigo durante toda
a tarde. Está enganada, pela certa; e se ela persiste no seu
erro, isso vai muito simplesmente impedir a condenação do
culpado, quando o pusermos diante dos juizes. Tudo o que
peço é que ela nos ajude, que coopere connosco.
Não vejo nisso nenhum inconveniente concordou
Mason, irónico.
Então não está a ver... ? começou a rapariga.
Talvez o sargento ignorasse ontem à noite o que sabe
hoje: que tinham assassinado o seu tio antes das sete e meia
da noite.
Não com o revólver encontrado na gaveta, em todo o
Caso ripostou Virgínia. Por Deus, o que não falta são
revólveres do mesmo calibre...
Alto lá! cortou o sargento. O nosso serviço de peritagem
microfotografou a bala que matou o seu tio e comparou-a
com uma outra disparada pela mesma arma. Os
projécteis têm marcas idênticas. A que horas voltaram,
você e o tenente Ogilby, para a cidade?
Por volta das seis.
O seu amigo ficou para jantar?
Não.
Vamos lá interrogar esse criado japonês continuou
Holcomb.
Um agente voltou pouco depois, trazendo o homenzinho,
que mostrou um rosto fechado, indecifrável. Deixou os olhos
presos nos de Holcomb.
O seu nome?
Itsumo.
Tem outro?
Sim, senhor. Itsumo Shinahara.
Há quanto tempo trabalha aqui?
376
Há cinco meses e três dias.
Lembra-se do dia de sábado?
Muito bem, senhor.
A que horas serviu o jantar?
Às seis e meia, senhor.
Quem estava à mesa?
Miss Virgínia e Mrs. Sarah Breel. Mr. George Trent
não apareceu.
Você sabia que ele não viria?
Não, senhor.
Pôs-lhe o lugar na mesa?
Sim, senhor.
Sabe a que horas entrou em casa Miss Virgínia, no
sábado de tarde?
Uns vinte minutos antes do jantar. Olhei para o relógio
para pôr a carne a cozer.
Que qualidade de carne?
Carne de vitela.
Quanto tempo estiveram à mesa?
Aos sábados tenho licença de sair à noite respondeu
Itsumoe encontro-me sempre com um amigo para ir
estudar na escola de fotografia. A aula é às oito horas. Despacho-me
depressa, acabo de lavar a louça pelas sete e meia,
telefono ao meu amigo e apanho o "tramway" das oito menos
vinte. Chego precisamente antes de começar a lição, um
minuto talvez.
Onde estavam Mrs. Breel e Miss Virgínia quando as
deixou ?
Miss Virgínia tinha saído um pouco antes de mim,
talvez uns cinco minutos. Mrs. Breel ficou.
O sargento Holcomb virou-se para Virgínia Trent.
Limpou o revólver depois de ter atirado?
Certamente. Limpei-o e oleei-o no meu quarto. O meu
tio tinha-me ensinado a fazê-lo.
Voltou a carregar a arma?
377
Claro.
E voltou a pô-la no sítio, no escritório, antes das oito
horas?
Deviam ser precisamente oito horas.
Vejamos, Miss Trent! Está enganada, garanto-lhe! Foi
esta arma que matou o seu tio por volta das quatro e meia
da tarde de sábado. É impossível que tivesse esse revólver
consigo.
Não me deixou.
Um momento! Você julgava tê-lo consigo, mas não
deu um cuidado especial à arma.
Que quer dizer?
Você não lhe verificou o número.
Não, com certeza disse a rapariga, sorrindo.
Você pegou nela maquinalmente para a meter na
bolsa?
Sim.
Sabe apenas que se tratava de um 38?
Era da mesma marca. Disso estou certa.
Mas nada a autoriza a identificá-la mais completamente?
Não, é verdade.
Portanto, às oito da noite, você voltou ao escritório
e meteu na gaveta o revólver que trazia na bolsa?
Sim.
E havia outra pistola na gaveta?
Não.
Como estava vestida quando voltou ao escritório?
Não estou a compreender... levava um vestido de
passeio.
Levava luvas ?
Ela reflectiu.
Quando cheguei ao escritório levava luvas, mas eu...
Não. Estava sem hluvas.
Tinha o revólver na bolsa?
378
Sim.
Tirou-o da bolsa para o meter na gaveta?
Sim.
Verificou-o, quero dizer: verificou se estava carregado?
Girei o tambor para me certificar de que estava carregado.
Faço-o sempre.
Muito bem, Miss Trent! exclamou o sargento, triunfante.
Era isso que eu pensava. Não tinha consigo a arma
que matou seu tio.
O silêncio da rapariga provava a sua absoluta falta de
convicção.
Qual a razão dessa sua afirmação ? perguntou Mason.
O nosso exame prova que a última pessoa que mecheu
no revólver estava de luvas calçadas. As impressões antigas
foram safadas a ponto de perderem o interesse para nós,
e o nosso perito garantiu que o manejaram com luvas.
Mason dirigiu a Virgínia Trent um olhar furtivo, antes
de se voltar para o sargento.
Continue, sargento.
Aqui tem uma boa razão para trabalhar connosco,
Mason. Está a ver o que se passou. Uma terceira pessoa tirou
o revólver de George Trent para deixar outro em seu lugar.
Na manhã de segunda-feira, essa mesma pessoa voltou a pôr
o revólver de Trent no seu lugar, levando aquele que tinha
deixado no sábado.
Porque diz você na manhã de segunda? perguntou
Mason.
Porque não entrou ninguém no escritório desde as seis
e meia de sábado até às oito da manhã de segunda-feira,
exceptuando Miss Trent, no sábado à noite e Mrs. Breel no
domingo.
Que quer que se faça para o ajudar?
Os jornalistas vão entrevistar esta jovem criatura
gemeu Holcomb. Gostaria que ela não falasse do revólver.
Está a ouvir, Miss Trent?perguntou o advogado,
379
voltando-se para a rapariga. Na qualidade de seu advogado,
peço-lhe que guarde o mais completo silêncio no que se refere
a este pormenor.
O sargento estendeu a mão ao advogado.
É muito gentil o que está a fazer, Mason!
Mas não, sargento. Isto não é nada. É sempre um
prazer colaborar consigo.
CAPÍTULO XI

Nada mais engraçado que a raposa apanhada pela sua
própria armadilha declarou Mason a Della Street.
Meu Deus!suspirou ela. Vejo pelo seu ar satisfeito
que nos vai mergulhar noutra história suja...
Em nada protestou Mason. Pelo contrário. Garanto-lhe
a nossa segurança. Sabe, Della, que o mais grave defeito
de um polícia é a sua falta de imaginação?
A que propósito vem essa alusão?
Não ignora que desde alguns anos atrás se conseguem
identificar ás balas de revólver ou de espingarda graças às
marcas deixadas pelas estrias dos canos. Uma espécie de
impressão pessoal, de assinatura individual de cada arma.
É na verdade novo, patrão. Como o rádio. E admira
também os progressos realizados pelos preços, pelos impostos...
Falemos a sério. Não há nada de espantoso em, servindo-nos
de uma invenção científica, procurarmos documentar-nos
acerca de uma história.
Eu não quereria, patrão, de maneira alguma,
desviá-lo das suas altas especulações filosóficas, mas permita-me,
já que estamos a falar seriamente, que lhe comunique
as últimas notícias. Notícias que lhe tirarão toda a vontade
de rir.
Vamos a isso.
380
~-Um dos homens de Drake procura-o, com os olhos
injectados de sangue.
Injectados de sangue, diz você? Não será melhor dizer
que lhos meteram dentro, por acaso?
Caramba! Sabe ?
Simples dedução da minha parte.
Se o homem chega a saber quem lhe pregou esta
partida...
Bateram à porta três pancadas secas. Só podia ser Drake,
que entrou imediatamente.
O nosso amigo Chennery parece gostar dos métodos
directos, Perry!
Que aconteceu?
Cinco minutos depois de termos saído do apartamento
de Chennery, este saiu, atravessou a rua e aproximou-se da
esplanada onde estava o meu empregado.
"O teu amigo advogado disse que me andavas a seguir
e queria conhecer-te."
Então ?
O meu homem não se lembra muito bem do que aconteceu
a seguir continuou Drake, disfarçando um sorriso.
Garante que o edifício lhe caiu nas costas, mas deve exagerar.
Os homens que o teriam de substituir encontraram-no
dez minutos mais tarde atado no fundo do carro, os olhos e a
boca colados com adesivo.
E Chennery?
Tinha desaparecido. Voado. Mas estamos a seguir a
mulher e, cedo ou tarde, ela nos levará para junto dele.
Ela ficou em casa?
O tempo de fazer as malas. Estava a sair quando os
meus reforços chegaram.
Onde está ela agora?
No Hotel Monadnock, com o nome de Mrs. Peabody,
de New-Orleans.
Óptimo. Não a perca de vista. Trate de pôr um micro-
381
fone registador no quarto dela e os seus homens na vizinhança"
Você vai esperar monsieur Charles Peabody.
-Tudo feito já.
Diga-me uma coisa, Paul, amordaçar e cegar uma
pessoa com adesivo é um truque de profissional?
Sem dúvida.
Esse Chennery conhece a música. Quando ele soube
que você não era da polícia regular, tratou logo de ajustar
as contas consigo.
-Logo.
Por outro lado, o estratagema da moeda inserida no
suporte da lâmpada, em casa de Cullens, para provocar um
curto-circuito, é também de um profissional.
Você está no bom caminho sentenciou Drake. Mrs.
Breel nunca teria pensado em semelhante coisa.
Sim, tudo se combina. O adesivo e a moeda. Tudo isto
vem da mesma pipa. Um método firme, eficaz. Coisas de
técnico.
Você quer que o meu homem apresente queixa por
golpes e ferimentos?
Não retorquiu vivamente o advogado. Menciono
estes dois pontos para sua edificação pessoal, para o caso de se
encontrar em frente de Mr. Charles Peabody, de New-Orleans.
Compreendo. Ah! Outra coisa, Perry: Bill Golding
tem um novo Sedan vermelho escuro.
Este adjectivo interessa-me, Paul.
O vermelho escuro?
Sim.
Estou a compreendê-lo... Mas o carro não é novo.
Trate de ter a certeza, meu velho.
Entendido. Volto ao essencial. Identifiquei os diamantes
Bedford. Você tinha cem por cento razão. Foram roubados
em New-Orleans, há uns seis meses atrás. Um grupo de
peritos despejou um cofre de jóias antigas e, desde essa altura,
382
as companhias de seguros moveram céus e terra para encontrar
os ladrões.
Já avisou a companhia?
Queria falar-lhe primeiro. Devo ir para diante ? Há uma
recompensa que poderíamos dividir, dois mil dólares...
As recompensas que vão para o diabo!exclamou
Mason.
E, como o rosto do detective se alongasse.
No que se me refere, pelo menos. Você pode ficar com
tudo, mas permita-me que lhe dê um bom conselho: Paul...
não seria mau que você a dividisse com Holcomb.
com essa múmia! exclamou o detective. E porquê,
diga-me lá ?
Estaria de melhor vontade a nosso lado para o que se
vai seguir.
O que se vai seguir? Não compreendo.
Sim, o resto. Verificando a origem das outras pedras
ou jóias confiadas por Cullens a Trent, talvez consiga outros
prémios.
Para si, Cullens seria, então...
Era um receptador, não restam dúvidas. Se você
guardar esses dois mil dólares, vai entrar em competição com
a polícia e estará tramado para o resto. Holcomb tratará de
estar alerta. Vai começar por declarar nula a sua intervenção,
sob o pretexto de que as pedras estão nas mãos da polícia, e...
Estou a ver. Mas parece-lhe que o devo pôr ao corrente ?
Estabeleça com ele um acordo minucioso. Eu já estou
a colaborar com o sargento.
Você? Que boa piada!
É como lhe estou a dizer, Paul!
Desde quando?
Desde que ele mo pediu.
É muito esquisito...
Mais do que isso. É espantoso. É a primeira vez, na
história...
383
O procurador vai fazer passar este caso do Cullens
diante do júridisse Drake. Tenho um depoimento minucioso
de Diggers, assinado por ele... Este negócio das jóias
vai fazer um barulho dos diabos.
Estou certo de que Holcomb fará tudo para implicar
Pete Chennery e a mulher.
Desde que saiba tanto como nós.
Nós cooperamosrepetiu enfaticamente Mason.
Será que você está na disposição de lhe contar a história
de Mrs. Chennery?
Oh! Não irei tão longe, Paul! O sargento poderá ficar
vexado, mas... Mrs. lone Bedford, saindo do Comissariado
Central, onde se tinha recusado a reconhecer os diamantes,
foi direitinha ao apartamento de Pete Chennery. Bastaria
soprar ao sargento para se informar acerca do movimento
dos táxis, saber onde o motorista de Mrs. Bedford a levou.
Isto dar-lhe-ia uma visão muito clara dos acontecimentos,
sem que tivesse de se indignar com a nossa intervenção.
Bah! Você está a brincar, Perry?...
Faça por ser razoável, Paul!exclamou o advogado,
parecendo ofendido. Você começa logo aos saltos com o
pretexto de que lhe vou pôr a polícia às costas, e quando lhe
ofereço a oportunidade de ficar bem colocado perante a
Secção Criminal põe-se a discutir.
Você tem qualquer coisa que me esconde, mas tanto
pior. Não tenho tempo para discussões. Vou-me pôr a andar.
Você poderá sugerir também a Holcomb que estude as
impressões digitais encontradas no apartamento de Chennery.
Esse rapaz deve ser um reincidente, a avaliar pelos seus
métodos.
Entendido. vou dar um salto a casa de Holcomb.
Um momento mais. Ainda falta uma coisa.
-O quê?
Uma fotografia do interior do cano do revólver que
serviu para matar George Trent.
384
Você quer, sem dúvida, falar daquele que foi encontrado
na bolsa de Mrs. Breel ? O que serviu para liquidar Cullens ?
Faça o favor de não voltar a dizer "a bolsa de Mrs.
Breel"interpôs Mason em tom áspero. Essa bolsa ainda
não foi identificada. Há uma dúvida. Não, quero referir-me
à arma que matou George Trent.
Precisa de uma fotografia do cano?
Sim. Uma ampliação, se possível. E no estado actual
da arma, com as balas.
Nada mais fácil quando começar a colaborar com esses
senhores da polícia!
Então trate de andar depressa.
Drake partiu e Mason voltou-se para Della Street, com
um sorriso no canto dos lábios. Ela estudava-lhe o rosto.
Se o patrão fosse meu filho, e ainda criancinha, iria a
correr verificar o armário das compotas, com a certeza de
chegar muito tarde. Mr. Perry Mason, o senhor está a meditar
um mau golpe. Venha dizer à sua mamãzinha o que é.
Enfiando as mãos nos bolsos, o advogado reprimiu, não
sem contrariedade, a sua alegria.
Tenho uma bela surpresa para si, Della. Uma destas
surpresas... Mas discrição, hem? Promete?
Diga já. Você faz-me desesperar...
Della! Virgínia Trent tem um amiguinho. Trata-se de
uma relação séria...
Patrão! Suplico-lhe! Tenha modos! Veja bem, patrão,
como fala com a sua escrava assalariada...
Ela foi passear com ele no sábado continuou Mason.
Para o campo, num qualquer valezinho discreto, à sombra
de grandes árvores, atrás das colinas...
Flanqueada por dois guarda-costas e munida de um tratado
de psicologia de noivado, certamente?disse Della Street.
Não. Mas não se trata evidentemente do amigo, tal
como se imagina habitualmente. É um rapaz extremamente
sério que também segue os cursos de psicologia.
25-VAMP. G. 2
385
Não diga mais, patrão. Deixe-me adivinhar... Naturalmente
apanham ferraduras de cavalo... não, praticam astronomia...
Espere! Já descobri! Armados de lupa passam em
revista a flora e a fauna locais, trocando graves ideias acerca da
vida em geral. Quando, desajeitadamente, ele lhe toca numa
mão, pede-lhe imediatamente desculpa, e ela tem suficiente
grandeza de alma para não voltar a pensar no acidente.
Está muito quente, Della. Ele é tenente do activo, estuda
psicologia nos momentos livres, e estes passeios têm apenas
como objectivo treinarem-se ambos no tiro à pistola.
Então o patrão admite que um homem de inteligência
média, que lê os jornais -e sabe que a caça ao marido está
autorizada durante todo o ano, não encontrou nada melhor
para ensinar à sua futura mulher que a servir-se de uma arma
de fogo?
E para que serve aprender ? Leia a crónica dos acidentes
citadinos. Nunca uma mulher ciumenta falhou um tiro.
Confesso que estou a zero, patrão. Instrua-me e diga-me
o que tenho a fazer. Porque aquilo que adivinho...
Ele chama-se Ogilby. Tenente Ogilby. Ela conheceu-o
num curso de psicologia. Encontre-o.
Para fazer o quê?
Entrar em relações com ele e ganhar-lhe confiança.
Então é isso! Para que ele me comece a fazer a corte,
talvez? Ou então devo convencê-lo a atrever-se a pegar na
mão de Virgínia e desvendar-lhe?...
Você ainda não percebeu. Leve-o ao mesmo lugar onde
ele estava no sábado com a sua doce amiga. Fale de tiro,
de armas de fogo... e faça com que ele junte todas as cápsulas
vazias que por lá haja.
Todas?
Sim.
O patrão quer falar das cápsulas picadas pelos revólveres
de ambos, durante o treino ao alvo que fizeram no
sábado de tarde?
386
Exactamente.
E depois?
Mais nada. Deixe-as em qualquer lugar de confiança,
onde o sargento Holcomb as possa encontrar e de tal forma
que ele não possa suspeitar que foram propositadamente
juntas. O melhor será confiá-las ao próprio tenente.
E se Virgínia julga que lhe vou roubar o amigo?...
Ela ignorará tudo. Faça com que o tenente prometa
não lhe dizer nada.
Porque não encarregar da operação um dos homens de
Drake ? Não sei se o patrão se está a dar conta. Ir pegar neste
rapaz pela mão...
Não interrompeu Mason. Você é que tem de ir para
a frente. Quero que Drake ignore tudo.
Porquê ?
Ele colabora com Holcombdisse o advogado, muito
sério.
Mas eu julgava que o patrão também?...
Está entendido. Mas a palavra colaboração tem um
sentido muito elástico.
Qual será a significação que o sargento lhe dá?
Mason acendeu um cigarro.
A mesma que eu, pouco mais ou menos.
Já compreendo volveu Della, passando um dedo pela
garganta antes de desligar o gravador.
CAPÍTULO XII

O melhor será vestir o seu colete de cota de malha,
Patrão disse Della Street, fechando suavemente a porta
atrás dela.
Que aconteceu?
Mr. e Mrs. Golding estão na sala de espera, cheios
de raiva.
387
Mr. Golding, o gerente da casa de jogo conhecida por
Prato de Ouro?
Ele não disse a profissão, mas parece que o patrão o
citou para comparecer como testemunha de defesa no processo
de Sarah Breel e atirou-se pelo caminho da guerra.
E a mulher?
O patrão também a citou sob o nome de Eva Tannis,
e está louca de cólera. Ela pretende chamar-se Eva Golding.
Ela mostrou-lhe a certidão de casamento?
Bincadeira à parte, patrão. Estão furiosos.
Óptimo disse Mason afastando a pilha de cartas que
estava a ler. Mande-os entrar, Della.
A mulher entrou à frente, cabeça levantada, olhos brilhantes,
seguida de Bill Golding, de rosto impassível. Mas
lia-se-lhe nos olhos uma cólera prestes a rebentar.
Sentem-seconvidou o advogado, muito amável.
Feche a porta, Della.
Que significa esta citação?começou Golding sem
esperar mais.
Tenho necessidade do seu testemunho.
Para a defesa?
Sim.
E eu que o julgava bom advogado! exclamou Golding,
sarcástico.
As opiniões divergem admitiu Mason, muito calmo.
Você insultou a minha mulher! recomeçou o homem,
de dentes cerrados.
Apresento-lhe as minhas desculpas e acredite que
lamento muito.
Que razão o levou a citá-la sob o nome de Eva Tannis ?
Julgava que era o seu nome.
Pois está enganado. É minha legítima mulher.
Apresento-lhe as minhas desculpas, minha senhora
disse polidamente Mason. Para dizer tudo, queria ter a
certeza de que os teria presentes na bancada das testemunhas.
388
,. Ela contemplava-o com os olhos semicerrados. Mas a
agitação das narinas provava a sua emoção,
i Ainda o virá lamentar, Mr. Mason!
Lamentar o quê?
A sua citação, assim como a que enviou a meu marido.
Não sou da mesma opinião.
Mas é a minha.
Vejamos, Mason interpôs Golding. Você sabe, tanto
como eu, que sou gerente de uma casa de jogo. Você obriga-me
a comparecer e a dar o meu nome, o meu endereço e a minha
profissão. Vão esmagar a minha mulher com perguntas.
Tudo isto nos vai causar grandes prejuízos.
Se tudo é para bem'da minha cliente...
Tem a certeza?
Um cigarro, madame?propôs Mason sem responder
à pergunta.
Não. Obrigada.
E você, Golding?
-Não.
Mason serviu-se.
Muito bem! Eu tiro um. Você tem, um carro novo,
meu caro senhor, pelo que me disseram. .
E que tem você a ver com isso?
Oh! Na verdade muito pouco. Mas parece-me que
você o comprou um dia depois do assassínio de Cullens, não ?
-Então?
O seu antigo carro interessava-me. Estava em perfeito
estado. Você tinha-o há menos de seis meses.
É um pouco forte! explodiu a mulher. Devemos
mandar uma nota a todos os advogados da cidade cada vez
que comprarmos um carro?
Realmente o assunto interessa-me continuou Mason
sem fazer caso da interrupção. Pus os meus detectives em
campo. Era um Sedan azul, que tinha o guarda-lamas da
esquerda, na retaguarda, um pouco amachucado. Não sei se
389
sabem que Diggers garante que, antes de atropelar Mrs. Breel,
teve tempo de ver um carro arrancar à sua frente e virar
bruscamente para a esquerda. Era um Sedan azul com o
guarda-lamas da retaguarda amolgado.
Golding e a mulher trocaram um rápido olhar.
Isso não prova nada disse por fim Golding. Qualquer
agência de detectives pode encontrar, em vinte e quatro horas,
centenas de viaturas azuis com um guarda-lamas amolgado.
É possível admitiu Mason.
Então porque exige o nosso testemunho?
Para dizerem simplesmente ao júri onde foram depois
de Cullens ter saído de vossa casa.
Outra coisa continuou Golding. Você foi dar à
língua para o meu banco. Você emporcalhou-me.
A palavra é um pouco forte, Mr. Golding.
Mas mantenho-a. Emporcalhou-me.
Um momento, Bill interveio a mulher. As coisas
assim não nos levam a parte alguma.
Sou da mesma opinião apoiou Mason.
A mulher levantou-se.
Eu gostaria de dizer uma palavra a meu marido
disse ela. Não tem para aí um canto onde possamos conversar?
Porque não aqui?
Na verdade, porque não?
Cala-te, Eva disse Golding.
Foste tu que me fizeste falar!gritou a mulher, com os
olhos brilhantes de cólera.
Eva, cala-te, já te disse!
Oh, tu não te faças estúpido! É o que ele quer.
Não lhe digas nada insistiu Golding. Vamos falar
primeiro ao nosso advogado. É o nosso advogado que se deve
entender, com Mason.
É então tão grave ? perguntou Mason.
Não, Bill disse a mulher deixando-se cair na poltrona.
Não há necessidade de advogado. Ele falará a Mason, mas
a quem mais falará também?
Tu estás doida, cala-te!
Eva já não o olhava.
Pois bem! Aqui está, Mr. Mason. Sim, estávamos lá.
Era mesmo o nosso carro que tínhamos parado diante da
casa de Cullens. Tínhamos saído de casa uns vinte minutos
'depois dele...
Eva! Suplico-te! Cala-te! pediu Golding levantando-se
para se aproximar da mulher.
Tu, vai-te sentar e cala o bico! impôs ela no tom que
teria empregado com um cão. Senta-te! Tu és um jogador
muito divertido, tu! Tu nunca soubeste perder!
Virando-se para Mason, continuou o seu relato, numa voz
calma, sem dar mais atenção a Bill, que hesitou e acabou
por voltar ao seu lugar.
Não compreendíamos porque fazia Cullens tanto
barulho continuou. Tudo aquilo tinha o aspecto de um
golpe combinado. Decidimos então não nos deixar enrolar.
Primeiro, fomos ao escritório de Trent. Ninguém. Telefonámos
à irmã. Também não estava em casa. Resolvemos então ir
visitar Cullens e pôr as cartas na mesa.
Parámos o carro defronte da casa dele. Não havia luz nas
janelas.
Vamos tocar, apesar de tudo" disse-me Bill.
Quem conduzia ? interrompeu Mason.
-Eu.
Continue.
Subitamente, Bill disse-me:
"Olha! Há alguém na casa, com uma lanterna eléctrica."
Era verdade: via-se um feixe luminoso da lanterna.
Não era muito forte, ou então estava tapada.
No rés-do-chão ou no primeiro andar?perguntou
Mason.
Em baixo.
391
Continue.
Isto não tinha nada a ver connosco, mas sempre há
uma curiosidade, não é verdade? Então deixei o motor a
trabalhar, para nos permitir partir rapidamente. E depois
ouvimos dois tiros.
Dois?
Sim. Dois.
Vindos da casa?
Sem possibilidade de erro.
Depois de terem visto a luz? '
Sim.
Prossiga.
Vimos outra vez a luz e depois saiu uma mulher a
correr. Trazia uma bolsa na mão e procurava meter qualquer
coisa nela. Eu estava ao volante, à esquerda, e Bill estava a
meu lado.
"Olha, lá está a irmã de George Trent"sussurrou-me
ele.
Não esperei mais. Larguei a toda a velocidade.
Quer dizer, você não viu o acidente?
Não.
E que fez depois?
Primeiro fomos para a garagem, depois para casa.
Para pôr o aparelho de rádio no comprimento de onda
reservado à polícia?
-Sim.
Vocês ouviram que tinha sido encontrado o corpo de
Cullens?
Sim.
Avisaram a polícia?
Não.
Porquê?
Não nos queríamos imiscuir na história.
Vocês não falaram a ninguém?
Evitamos fazê-lo.
392
Está bem concluiu Mason. Vou reflectir.
Reflectir? Para quê? Você cala a história e nós também.
Na minha qualidade de advogado, devo aconselhá-los
a dizer à polícia tudo quanto sabem.
Pois bem, é isso mesmo! Você cumpriu o seu dever
Disse a mulher levantando-se.
Pelo vosso lado, vocês não falarão.
A menos que sejamos obrigados a comparecer na barra
do tribunal.
Isso faria um barulho dos diabos, desde que fosse dito
diante do júri.
Tanto pior para Sarah Breeldisse Bill,
E para vocêsacrescentou Mason.
Nós aguentaremos. Mas Sarah Breel...
Isso é o que vamos verinterrompeu o advogado.
É inútil fazer "bluff"atirou Golding tirando a citação
da algibeira. Que vou eu fazer desta coisa?
Qual é a sua opinião?perguntou Mason olhando o
homem nos olhos.
Lentamente, Golding rasgou o papel e fez sinal à mulher
para se levantar.
Vamos, Eva.
Saíram, sem uma palavra. Mason mergulhou fundamente
as mãos nos bolsos e pôs-se a fixar pensativamente o canto
da sua mesa de trabalho.
Eles mentem, patrão comentou Della Street. Esta
história foi completamente inventada para o obrigarem a não
falar do carro azul.
Nesse caso, é espantosamente forte comentou o
advogado.
Sim. Isto deixa-o de mãos atadas,
Inteiramente.
Mas se eles mentem?
Então?
Apenas para se defenderem?
393
-De quê?
Para evitar darem explicações da sua presença diante
da casa de Cullens. Talvez de serem acusados de assassínio.
Você tem razão. Por outro lado, eles jogam uma partida
perigosa... Chame Drake. Diga-lhe para controlar os actos
e os gestos destes indivíduos, e que trate de lhes encontrar
um móbil. Está a perceber o que quero dizer? Até aqui,
a acusação contra Sarah Breel é apenas feita de presunções.
Ela estava nas vizinhanças; encontraram com ela a arma do
crime e os diamantes que poderiam ter estado em poder da
vítima. Mas, uma vez mais, são apenas presunções. Mas agora
aparecem duas testemunhas que se encontravam no local do crime
no momento exacto em que este era cometido. Se mentem, é apenas
para não serem acusados de assassínio. Se, pelo contrário,
dizem a verdade... está bem!...
Então ?
Mason, franzindo os sobrolhos, fixava a biqueira dos
sapatos.
Ligue-me para Drake.
A rapariga levantou o aparelho e colocou quase imediatamente
a mão no bocal.
Não está lá, patrão. Quer falar com um empregado?
Não. Diga para me vir ver logo que chegue.
E Mason, levantando-se, começou a percorrer o aposento,
de cabeça baixa.
Bateram três golpes secos na porta que dava para o corredor
e Mason foi abrir. Drake entrou, ofegante.
Que vem a ser esta história, Perry?
Uma história? Qual?
Esta história das testemunhas?
Mason, surpreendido, trocou um breve olhar com Della
Street.
Que sabe você na verdade, Paul?
Drake tinha-se ido sentar na sua poltrona favorita e tirava
do bolso um maço de cigarros.
394
Começo por lhe garantir que não tenho a mínima
intenção de me ocupar de coisas que se me não referem, meu
velho. Por outro lado, se trabalho consigo devo saber tudo.
Continue.
Acha que me deve pôr ao corrente da visita que acaba
de receber?
Não tem importância, mas diga porquê?
Tenho necessidade de saber, para compreender.
Quem lhe falou?
Tenho no meu carro uma telefonia que me permite
receber as chamadas da polícia. Não é permitido, mas, na
minha profissão, é sempre bom saber onde se vão pôr os pés.
Sim. E depois?
Há uns cinco ou seis minutos atrásprosseguiu Drake
enviaram uma chamada urgente para o carro 19. Tratava-se
de alcançar o mais rapidamente possível este edifício
e obrigar duas testemunhas que deviam sair do seu gabinete
a irem imediatamente ao Comissariado Central.
...Julguei compreender que tinha deitado a mão a duas
testemunhas susceptíveis de rebentar com o assunto, que
tinha telefonado a Holcomb e que...
Está enganado, meu caro interrompeu Mason. Os
polícias conseguiram apanhar as testemunhas?
Julgo que sim. Regressava ao escritório quando interceptei
a chamada. Um pouco depois, fui ultrapassado por
um carro da polícia. Havia duas pessoas na retaguarda.
Não as pude ver, mas parece-me que se tratava de um homem
e de uma mulher.
Pelos deuses, patrão! exclamou Della Street. Você
não está a pensar que Golding...?
Cale-se, Della! ordenou secamente Mason.
Della olhou interrogativamente Drake e calou-se.
Golding era uma das testemunhas?perguntou o
detective. Já percebo: Golding e Eva Tannis! Mas porquê
todo este mistério, Perry?
395
Sem responder, o advogado, a passos lentos, pôs-se a
examinar as paredes, analisando cuidadosamente o pavimento.
Depois, baixando-se, pousou o indicador no soalho. Partículas
de areia aderiam ao dedo. A um sinal de cabeça, Drake
aproximou-se para se pôr ao lado dele. com o dedo, o advogado
apontou um quadro pendurado na parede. Cuidadosamente,
os dois homens levantaram o quadro, para o retirar.
Tinham feito um pequeno furo redondo na parede.
O círculo negro e feio de um microfone fazia uma ligeira
protuberância.
Della, os olhos arregalados pela surpresa, queria falar e
calar-se, ao mesmo tempo. Drake emitiu um ligeiro assobio.
Dirigindo-se à sua mesa, Mason pegou numa folha de
papel branco, meteu-o na máquina de escrever e começou
a bater as teclas, com dois dedos. Paul Drake e Della Street
Liam por cima do seu ombro.
Este método é repugnante. Mas para que serviria apresentar uma
queixa ? E era tudo quanto poderíamos fazer. Praticamente, estamos
desarmados. Hokomb está-se nas tintas para que estejamos ou não
a par do seu procedimento. Triunfou. A nossa única possibilidade
é despistá-lo. Ajudem-me.
Afastando a cadeira, Mason começou a percorrer o
aposento.
Bill Golding e Eva Tannis vieram visitar-me, Paul
disse em voz alta. Holcomb deve tê-los apanhado. Tinha-os
citado para comparecer. Deve ter havido uma fuga em
qualquer parte.
Que teriam eles a dizer na barra?perguntou Drake.
Julgava que estavam metidos nest crime, Paul. Estão
a procurar atirar todas as suspeitas para Mrs. Breel.
Drake olhava Mason, à espera de um sinal qualquer,
e não compreendia a pantomima do advogado. Della Street
interrompeu-o :
Que vai o patrão fazer?
396
Mason teve um Sorriso de satisfação. Ela tinha interpretado
correctamente as suas atitudes.
Não tenho por onde escolher respondeu. Se quiser
evitar a condenação de Sarah Breel, tenho de recorrer às
argúci as processuais... senão...
Mason desfez-se em sinais. Drake arriscou-se:
E que poderemos esperar de melhor?
Não sei. Será talvez preferível que ela se confesse culpada
e alegue a legítima defesa. Ah! É uma grande responsabilidade
defender um cliente que nem sequer nos pode
expor os factos, que não sabemos se matou ou não. Para
mim, ela é culpada. vou visitá-la para fazer uma sondagem.
Se ela se reconhecer culpada, posso talvez conseguir uma
pena ligeira, alegar circunstâncias atenuantes.
Suponho que não está disposto a que a polícia conheça
os seus projectos perguntou vivamente Della Street.
Pelos deuses, não, de maneira nenhuma! Quero que
o procurador continue convencido de que vou procurar
lutar para que a ponham em liberdade. vou marralhar até
ao último minuto. Ele tomará uma atitude menos firme
por fraqueza e recusar-me-á tudo... Quanto mais penso no
caso, mais me parece indispensável visitar Mrs. Breel. Você
guardará a fortaleza enquanto eu estiver fora, Della.
E Mason, pondo o chapéu na cabeça, saiu, batendo
duramente a porta.
Bem, parece-me que é tudo, Mr. Drake disse Della
Street ao detective.
E isto significa que não temos nada a fazer?
Nada mais, além do que o patrão nos pediu.
Está bem. Até à vista disse Drake, que saiu, não
sem deitar um olhar de apreensão ao dictafone.
397
CAPÍTULO XIII

Perry Mason encontrou Sarah Breel sentada na sua cama
do hospital.
Então?perguntou alegremente o advogado. Como
estamos nós?
Tudo vai tão bem como se poderia esperar respondeu
ela no mesmo tom.
Uma desgraça nunca vem sócontinuou Mason mais
suavemente. O velho provérbio continua a ser verdadeiro,
pelo que vejo. Um carro atropela-a, quase a mata, parte-lhe
uma perna. Acusam-na de assassínio e, para cúmulo, sabe
da morte do seu irmão.
Para que servirá gemer ou ranger os dentes?respondeu
a ferida. É preciso encarar filosoficamente as coisas.
No que se refere ao processo, cabe-lhe defender-me o melhor
possível. Quanto a George, já ninguém pode fazer nada
por ele. Espero, bem entendido, que seremos capazes de
encontrar o criminoso para o castigar. O choque foi violento,
concordo. Fiquei muito abalada e George vai fazer-me muita
falta. Mas, na minha idade, já nos habituámos à ideia da
morte, Mr. Mason.
Esforço-me por encarar a morte e a vida de um ponto de
vista elevado. Desde que nascemos, é preciso também morrer.
A vida não é mais que uma passagem, uma aventura, e a
morte é necessariamente o seu fim. Se não houvesse no Mundo
nem bebés, nem moribundos, a vida seria uma bem triste
coisa, sem alegria, sem romance, sem luas-de-mel e sem
risos de crianças.
George está morto. Era o seu destino. Repito-lhe que -a
sua partida criou um grande vazio no meu coração, mas sou
eu que lamento mais, mais do que ele. Não sei se me está a
compreender bem, Mr. Mason. Talvez lhe pareça muito
fria e dura, o que não sou, garanto-lhe.
398
Falemos então de sidisse Mason puxando uma
cadeira.
De mim?
Do seu processo.
Tem alguma coisa nova?
Nada de bom, a julgar pelas primeiras impressões.
Lamento-o, Mr. Mason, mas é-me impossível dar-lhe
o meu auxílio neste assunto. Não tenho a menor lembrança
do que se passou, na tarde do dia em que Cullens foi assassinado...
Um cigarro, Mr. Mason? Sei que é fumador e
o fumo não me incomoda... Não, obrigada. Fume sozinho.
E fale. É inútil tomar precauções comigo.
Esta perda de memória é-lhe muito prejudicial começou
Mason. Torna a sua defesa muito difícil.
Que quer dizer?
Até aqui, as acusações que lhe faziam assentavam em
presunções. Mas suponha que aparece uma testemunha no
tribunal e pretende tê-la visto, na casa de Cullens, atirando
contra ele? Nem sequer poderia protestar e negar.
Ela não baixou os olhos.
Existe essa testemunha? , :
Ainda não. .<
Explique-se mais claramente.
Um tal Golding e uma mulher que vive com ele tinham
parado o carro em frente da casa de Cullens na noite do
crime. Ouviram dois tiros e viram sair alguém que, enquanto
corria, metia qualquer coisa na sua bolsa. Um revólver,
talvez.
Que fizeram eles?
Partiram logo que reconheceram a pessoa que se aproximava
do seu carro.
Quem era a pessoa?
A senhora respondeu brevemente Mason, fixando os
olhos de Mrs. Breel.
Nasceu o silêncio. Quando ela falou, foi num tom leve-
399
mente alheado da questão, discutindo um problema puramente
académico.
Houve segundo eles um certo lapso de tempo entre
os tiros e a aparição, na soleira da casa, da pessoa em causa?
Alguns segundos, no máximo.
E garantem que me reconheceram?
Pretendem que sim.
Julga poder confundi-los no tribunal?
Não sei. Quais são, no fim de contas, as suas intenções?
É possível que me queiram atrapalhar. Do que tenho a
certeza é de que eles sabem que a senhora perdeu a memória
em relação a tudo quanto se passou no sábado à tarde.
Logo, tratam de aproveitar a situação arrancando-lhe
o máximo que possa dar. É tentador, reconheça-o. Sabendo-a
impossibilitada de negar seja o que for...
Ela reflectia.
Uma situação muito delicada concordou ela por fim.
Receio muito que só possa contar com o seu talento, na
instrução contraditória... E que estavam eles a fazer, sentados
num carro de onde podiam vigiar a porta da casa de Cullens?
Iam visitar Cullens.
E porque o não tentaram?
Quando chegaram, a casa estava dizem eles mergulhada
na escuridão. Iam regressar, julgando inútil tocar,
quando viram nos vidros das janelas a luz de uma lanterna
eléctrica portátil. Coisa que lhe pareceu muito curiosa.
Ouviram depois dois tiros e viram-na sair a correr. Nessa
altura apressaram-se a partir.
É o que eles dizem fez notar Mrs. Breel,
Evidentemente.
Isto também os situa a eles.
É justo.
Pode servir-se deste último argumento diante do júri ?
Não me parece.
-Porquê?
400
Primeiro, são dois contra uma. Em segundo lugar,
podem negar ter entrado na casa, o que a si lhe é impossível.
Seguidamente, porque o procurador lhe dará um apoio
integral, o que significa que dá mais peso ao seu testemunho.
Finalmente, porque há, contra si, numerosas presunções.
Encontraram um revólver na sua bolsa, bem como os diamantes.
Quando me acudiram estava, ao que parece, estendida
a todo o comprimento ao lado do carro que me tinha atropelado.
A minha bolsa estava perto de mim, aberta?
Sim, parece-me que sim.
Já perguntou ao condutor do carro, se está absolutamente
certo de ter estado esse revólver dentro do meu saco
ou se estava simplesmente ao lado?
Ainda não tive oportunidade de o interrogar.
Poderá fazê-lo no tribunal?
Evidentemente.
E vai fazer-lhe esta pergunta?
-Vou.
Suponha que ele declara que a arma não estava dentro
do saco, mas ao lado, e tão perto que ele julgou que tivesse
caído?
Seria excelente para si.
Lembrar-se-á de lhe fazer esta pergunta?
-Sim.
Se a acusação não puder provar que o revólver estava
dentro da bolsa, nesse caso...
Ela deteve-se subitamente.
Nesse caso continuou Masonconseguiremos, provavelmente,
convencer alguns jurados de que o revólver foi atirado
do carro azul para diante da casa.
Concluindo, eu teria perfeitamente podido ver o revólver
no chão e correr para o apanhar, quando o carro me
atropelou.
Será capaz de se lembrar disso?
26-VAMP. G. 2
401
Não. A memória continua sem dar sinal de si.
É muito aborrecido.
A quem o diz!
Dá-me licença que lhe faça algumas
perguntas, Mr. Mason ?
Faça favor.
Julgo que se pode matar em legítima defesa sem cometer
um crime?
É exacto.
E que se entende por legítima defesa?
O medo da morte ou a consciência de um grande
perigo físico.
Nada mais?
A pessoa deve ter sido ameaçada por um adversário
parecendo ter a intenção de matar ou de infligir um dano
físico considerável e, aparentemente, provido dos meios para
realizar as suas intenções.
E então?
A pessoa ameaçada pode atirar.
Suponhamos que estava alguém em casa de Cullens.
Essa pessoa poderia alegar ter sido obrigada a matar para se
defender ?
Seria difícil.
Porquê ?
Porque uma pessoa que penetra ilegalmente numa casa
pratica um delito. O ocupante legal tem o direito de se
defender contra o intruso. E este não tem o direito de se
defender.
Como estabeleceria que essa pessoa tinha entrado
ilegalmente na casa?
A moeda metida no suporte da lâmpada prova as
suas más intenções.
Se, então, uma pessoa entrou ilegalmente em casa de
Austin Cullens, não pode arguir legítima defesa?
Talvez em certas condições, mas seria impossível, no
caso que estamos a tratar, convencer o júri. No espírito dos
402
seus membros, não se esqueça, a "casa" é inviolável, por
definição. Em sua casa, o homem tem o direito de agir como
lhe der na real gana, o direito de defender os seus bens e
a sua vida. O intruso é presumido agressor.
Tudo isso é muito interessante. Que pena não poder
eu recordar-me do que aconteceu. Seria sem dúvida muito útil.
com efeito concordou Mason sem entusiasmo.
Essas pessoas falaram do meu comportamento depois
de sair da casa?
Sim. A senhora esteve, parece, muito tempo no pórtico
para meter qualquer coisa na bolsa, correndo depois para
o passeio. Eles reconheceram-na e foi isso que os decidiu a
partir mais depressa.
Eu corria?
Sim.
Ela suspirou e deixou-se cair sobre os travesseiros!
Pois bem! Mr. Mason, tudo isto é muito complicado
e a sua missão será rude. Não lha invejo.
Não será para mim, no final de contas, mais do que uma
causa perdida respondeu brutalmente Mason. Para si
é diferente.
Quer sugerir desde já que serei condenada por assassínio ?
Sim.
E que serei executada?
A menos que o júri peça para si a clemência do juiz.
E julga que o júri o fará?
É difícil dizê-lo. Dependerá das provas, do júri e da
maneira como o Ministério Público apresentar a questão.
É muito possível que consiga convencer os jurados a reconhecerem-na
culpada sem circunstâncias atenuantes. Por
outro lado, o procurador pode, por si mesmo, não pedir a
pena últimamas também depende das circunstâncias.
Nada se pode prever.
Mason observava-a atentamente enquanto ela digeria a
resposta.
403
E o assassínio com recurso à graça?
Prisão perpétua.
Está bem. Faça o melhor que puder. Não peço mais
nada.
Mas se eu perder?perguntou o advogado. Quer
dizer, se nós perdermos, o que nos espera?
Ela teve um sorriso muito doce, quase maternal.
Abençoado seja, Mr. Mason, por ter pensado em mim.
Mas não vale a pena. Já vivi muito tempo. Uma vida muito
activa e muito cheia. Para quê inquietarmo-nos? Fazia-o,
quando era nova. Há uns vinte anos atrás, decidi, um belo
dia, deixar-me disso no futuro. Tenho confiança em si. Sei
que fará tudo o que for humanamente possível. Se o júri
me reconhecer culpada e me enforcarem, que importa?
Tudo terá acabado... e não me parece que vá tropeçar nas
escadas do cadafalso. Mas queira desculpar-me, Mr. Mason.
Falei muito e sinto-me fatigada. Se não tem mais nada a
dizer-me, vou dormir uma soneca... São muito aborrecidas
estas duas testemunhas... Isso complica muito as coisas,
para si. Bem vejo... Aqui estou numa posição desgraçada...
Mas que posso fazer, Mr. Mason? As preocupações são
consigo, agora.
Ela arranjou o travesseiro, fechou os olhos e deu um
longo suspiro. Uma expressão de profunda tranquilidade
adoçou-lhe as linhas do rosto. Dormia.
CAPÍTULO XIV

Mason abriu a porta que conduzia ao seu gabinete particular.
Caminhando à frente de Drake, acendeu a luz e,
na ponta dos pés, aproximou-se do quadro atrás do qual
tinham descoberto o microfone. A um sinal de cabeça, os
dois homens levantaram o quadro.
404
Já não havia nada. Uma leve diferença de cor permitia,
apenas, reconhecer que tinham tapado o buraco com um
gesso rápido.
É sempre isto, Paulcomentou Mason.
E se o puseram noutro lado?perguntou Drake, estudando
de muito perto a hábil reparação dos estragos.
Não. Partiram com armas e bagagens.
Porquê? Porque já sabiam o bastante?
Não. Porque souberam que nós o sabíamos.
Como ?
Por minha culpa, Paul. Só me dei conta quando já
era tarde.
Não estou a compreender.
Não se lembra de que depois da nossa descoberta do
microfone bati uma mensagem à máquina?
Sim. E depois ?
O barulho da máquina bastou para os avisar. Sabiam
que estávamos aqui os três. Só podia servir-me da máquina
(além da escrita que também exigia silêncio), para os prevenir,
sem falar.
E vieram imediatamente levantar o aparelho.
Exactamente. Receiam que apresente uma queixa ou
que faça um escândalo tal que provoque um movimento a
meu favor.
De maneira que negarão, em caso de falência, ter
recorrido a semelhante estratagema.
Não iriam tão longe, mas pretenderiam nada saber,
muito simplesmente.
Quando penso disse amargamente Drake que falam
das armadilhas feitas pelos advogados aos júris, quando,
evidentemente, se nos atrevêssemos a metade do que faz
a polícia, dormiríamos esta noite nas grades...
Mason encolheu os ombros.
Recriminações inúteis, meu velho. Tinha na mão a
ocasião de fazer um magnífico escândalo, bastando seguir
405
os fios até à sua origem, e perdia-a. Receio muito que nunca
voltemos a ter uma oportunidade igual.
Há quanto tempo poderia estar este aparelho colocado ?
Ignoro.
E o procurador sabe agora os nossos projectos, o nosso
plano de defesa?
Sabe.
Então, que vai fazer?
Vou simplesmente ignorar o facto. Quando se não
pode provar nada, é estúpido passar a vida a pensar no caso...
Você, Drake, vai concentrar os seus esforços sobre Diggers.
Precisa de saber claramente como se passou essa história da
bolsa. A arma foi encontrada no chão, como se tivesse saído
do saco ou como se tivesse caído das mãos de Mrs. Breel.
Julgo que Diggers, declarando que o revólver estava na
bolsa, quis dizer: não que tinha encontrado a arma na bolsa,
mas que deduzia que tinha caído...
Oxalá você não esteja a seguir um mau caminho, Perry.
Como assim?
Já devem ter arrancado a Diggers tudo quanto se
refere ao assunto. Já o limitaram. Já leu os jornais da tarde?
Quer falar do artigo em que se declara que Golding
e Eva Tannis identificaram Sarah Breel como tendo estado
no local no momento do crime?
Isso mesmo.
É disso mesmo que lhe quero falar, Paul. Preciso que
me estude essas duas criaturas, que lhes investigue o passado.
E de forma a eles o saber. Vá direito ao fim, francamente,
cruamente.
Estou a compreender. Você quer-lhes criar medo,
de forma a fazè-los calarem-se. Hem? É o que eu penso,
Perry ?
Se eles pudessem retratar-se na audiência... ainda
que não seja capaz de o esperar. Ficariam em muito má
situação se desaparecessem depois da publicidade dada às
406
suas declarações, com o assentimento do magistrado instrutor.
Você vai fazer deles os bodes expiatórios?
Irei até à insinuação de que são eles os assassinos de
Cullens.
E que foram eles mesmo que colocaram a arma do crime
na bolsa de Mrs. Breel?
Naturalmente.
Receio que esteja a subestimar a franqueza e a capacidade
desse tal Diggers. Pessoalmente, tudo me leva a crer
que o procurador quase o hipnotizou e o levou a dizer aquilo
que, mais ou menos, pretendia. Você sabe como estas coisas
se passam no decurso de um acidente? Um peão atira-se
para debaixo das rodas de um carro que trava quase imediatamente.
O condutor está naturalmente muito enervado.
Já vi alguns tremerem de tal forma que nem sequer eram
capazes de assinar a acta. E depois as pessoas lembram-se
das minúcias do acidente com certa confusão de pormenores.
Fica apenas uma série de imagens gravadas no espírito do
condutor. Mais tarde as imagens precisam-se à sua maneira...
Oh! Não se trata de um falso testemunho... Não... Apenas
uma questão de influência sobre um cérebro que ainda se
ressente da violência do choque... Resumindo: não me parece
que arranque grande coisa de Diggers no banco das testemunhas,
Perry. Ele é absolutamente sincero.
O procurador precipita a formação da acusação.
Quer que o processo decorra dentro de uma grande emoção
geral.
Porquê?
Para cuidar da sua própria publicidade e obter uma
condenação severa.
E que faço eu no meio de tudo isto?
Transmita-me todas as informações que puder conseguir.
Eu estou encostado à parede. Não posso cometer mais
407
nenhum erro. Quero, quando entrar na sala de audiências,
saber mais do assunto que o procurador.
Quando é o julgamento?
Dentro de uns oito dias, talvez. Logo que se possa
levar Mrs. Breel diante do Tribunal ou possa ser deslocada
num carrinho.
Em oito dias faz-se muito trabalho, Perry.
Mason sorriu levemente. Mas lia-se-lhe a fadiga nos olhos.
Tudo o que me possa encontrar, Paul. Tudo me fará
arranjo.
CAPÍTULO XV

Larry Sampson, substituto do procurador, encarregado
da instrução do processo Sarah Breel, inclinou-se, sobre a sua
secretária, para Harry Diggers, que parecia intimidado.
Tudo o que lhe peço, Mr. Diggers, é que diga a verdade,
só a verdade, toda a verdade. E isto a despeito de todos os
obstáculos. Está a compreender-me bem?
Diggers aquiesceu com um rápido sinal de cabeça.
Perry Mason é um advogado retorcido. Ninguém sabe
melhor do que ele perturbar uma testemunha. Terá de estar
com muita atenção.
Um novo sinal de cabeça.
Lembre-se bem, sobretudo prosseguiu Larry Sampson
que o nosso procurador só se decide a pedir uma condenação
capital num único caso: quando tem a certeza da culpabilidade
do acusado. Quando tem a mais ligeira dúvida, abstém-se.
Infelizmente, a lei permite que o assassino se possa garantir
no serviço de advogados do crime, pessoas astuciosas e sem
escrúpulos. A percentagem de absolvições neste país é uma
vergonha nacional. Lembre-se de que, aparecendo no banco
das testemunhas, assume um papel de utilidade pública.
Você é testemunha num processo criminal. É uma grande
408
honra, senhor, é um grande papel! Vai testemunhar, expor os
factos. É seu dever fazê-los compreender aos jurados e convencê-los.
As provas acumuladas contra Mrs. Breel são esmagadoras.
Ela cometeu deliberadamente o crime, assassinou a sangue-frio.
Podemos prová-lo e entregar assim a culpada à justiça,
se você souber expor a verdade como convém, conservando
o sangue-frio na audiência.
Recapitulemos os factos, tal como eu os vejo. Você rodava
a trinta e cinco ou quarenta à hora, não é verdade?
Por Deus, não reparei no conta-quilómetros.
Mas você não estava num sector onde a velocidade
máxima é de quarenta à hora? É um cidadão respeitador das
leis, não é verdade, Mr. Diggers?
Certamente.
Não é um maníaco da velocidade?
Não.
Então devemos presumir que não ultrapassou <> limite
autorizado.
Suponho que sim.
Ah! Um conselho: Mr. Diggers. Será supérfluo indicar
ao júri o raciocínio que lhe permite chegar a esta conclusão.
Diga muito simplesmente que não ia a mais de quarenta à hora
e nada mais. Nesse momento a acusada apareceu-lhe inesperadamente
diante dos faróis?
Sim. É perfeitamente exacto respondeu Diggers sem
hesitações.
E, antes de poder conseguir deter o carro, apanhou-a.
É assim?
Sim, sr. substituto.
Ela caiu?
Torci a direcção e tentei evitá-ladeclarou Diggers.
Infelizmente, o meu guarda-lamas apanhou-a e ela rolou
por terra.
409
Compreendo. Ocupemo-nos mais detalhadamente do
que aconteceu a seguir. Você travou quase instantaneamente ?
Já tinha carregado no travão de pé quando a apanhei.
E, saltando do carro correu para ela?
Sim.
Ela caíra de bruços?
Quer dizer... um pouco de lado, parece-me.
Ela trazia esta bolsa quando a atropelou?
Pois bem... parece-me que...
Larry Sampson interrompeu-o bruscamente.
Aqui está o perigo contra o qual quero avisá-lo, Mr. Diggers.
O senhor é um homem honesto, bem sei. Dizer a verdade
é a sua única preocupação. Quando hesita na resposta a uma
pergunta, é porque se está a esforçar por reconstituir na sua
memória a sucessão dos acontecimentos, como também sei.
Mas um júri não o compreenderá assim. Logo o senhor
hesita, os jurados pensarão: "Cá está um homem que não se
lembra muito bem daquilo que aconteceu." Vejamos,
Mr. Diggers, toda a testemunha que comparece no tribunal
sabe que vai ser objecto de exame contraditório por parte
da defesa. E prepara-se, cuidadosamente, para esta prova
para que o advogado da parte adversa lhe não encontre
pontos fracos. Os jurados estão habituados a que as testemunhas
respondam com nitidez e sem hesitações. Você sabe
muito bem que a acusada trazia esta bolsa. Você não está
a desejar que Perry Mason o ridicularize em público?
Não, evidentemente. Mas...
Também não está disposto a passar por um azelha?
Não cometi nenhuma falta protestou Diggers. Ninguém
no Mundo faria melhor do que eu. Ela atirou-se para
debaixo das rodas e...
Já sabemos, mas não está disposto a que o público vá
julgar que você não a viu ?
Mas sim, vi-a. Vi-a no momento preciso em que descia
do passeio, mas era demasiado tarde para fazer o que fosse.
410
Quantos passos deu ela na rua ?
Não sei. Quatro ou cinco, provavelmente.
Você não a perdeu de vista nem por um instante?
Não.
Você viu-lhe a cara, as mãos, os pés?
Sim. Se assim o quer.
Ela devia trazer a bolsa na mão.
Deve ser assim mesmo. Suponho...
Não suponha, Mr. Diggers interrompeu Sampson.
Não é, já sei, mais do que uma forma de falar, mas bem pode
adivinhar o que sucederá se fizer um depoimento com essas
palavras. Perry Mason levantará um dedo para comentar:
"Ah! Então você supõe?". Você meter-se-á imediatamente
na defensiva e dar-se-á conta de que todas as pessoas se riem
à sua volta.
Diggers agitava-se, pouco à vontade.
Não vejo porque não poderei dizer muito simplesmente
aquilo que vi e mais nada.
Claro que pode, Mr. Diggers, e é exactamente aquilo
que lhe estou a pedir para fazer. O que é preciso, com toda
a justiça, para si, para mim, para todo o país, é que você
exponha claramente, positivamente, sem reticências, aquilo
que viu; que não caia na armadilha que infalivelmente lhe
armará a defesa; que fuja ao ridículo. As minhas intenções
são puras e está a compreendê-las, não é verdade?
Diggers mostrava-se convencido.
Continuemos entãoprosseguiu o ajudante. Se você
lhe viu as mãos, viu a bolsa que ela trazia. Talvez esta ideia
lhe não tenha ocorrido até agora. Talvez ainda não tenha reconstituído
a cena em todos os seus pormenores. Quando você
sair daqui, lembre-se então das suas recordações e precise-as,
a fim de ver exactamente tudo quanto se passou. Voltemos
agora ao conteúdo da bolsa. Você fê-lo inventariar pelo pessoal
da ambulância, se me não engano?
Foi assim mesmo respondeu Diggers e fiz bem.
411
com aquele embrulho de diamantes... ela poderia ter sido
capaz de me acusar de ter bifado um ou dois...
Muito justo e é, na minha opinião, o ponto capital.
Será preciso pôr em relevo a sua atitude, toda de rigorosa
probidade, diante dos jurados. Você foi prudente, cauteloso,
respeitador da moral e das leis. Esta acção é de um homem
judicioso, calmo na hora do perigo e do acidente. Você
compreendeu a importância do papel que estava a cumprir.
Você pretendeu que se tivesse inteira confiança no seu testemunho...
Resumindo, a arma estava na bolsa, não é verdade?
Será melhor dizer ao lado. No chão.
Não, Mr. Diggers. Este revólver não podia estar totalmente
fora da bolsa. Só o deve ter visto parcialmente. Veja bem:
aqui está um dos detalhes em que os advogados tratarão de
o fazer cair na armadilha. Vão esforçar-se por fazê-lo jurar
que estes objectos não estavam dentro do saco quando os
viu pela primeira vez. A diferença é grande, não se esqueça.
Seja muito prudente. Por outras palavras, Mr. Diggers,
você não terá nada a temer se no tribunal disser a verdade,
só a verdade e nada mais que a verdade, mas é preciso ter
desde já a certeza é seu deverque é bem a verdade que
vai dizer. Não se trata nem de "crer", nem de hesitar. Não faça
nenhuma dedução, não discuta; agarre-se aos factos e apresente-os
nitidamente, claramente. Enfim, e antes de mais, não
quero que Perry Mason o ridicularize em plena audiência.
Desconfie do seu ar amável, adulador. Dirá que procura a verdade
e nada mais que a verdade. Na realidade, procurará
confundi-lo, encurralá-lo, enrolá-lo numa segurança enganadora,
perturbar a precisão do seu testemunho. Diga "creio"
ou "suponho", ou "parece-me", uma só vez que seja e estará
perdido. Você é um homem inteligente, Mr. Diggers, de uma
inteligência acima da média. Posso contar consigo para
fazer boa figura no tribunal, para não se deixar empurrar
para a mentira?
412
Não mentirei afirmou Diggers com muita convicção.
Direi a verdade.
É assim que o quero ver, meu caro senhor! Cumpra o
seu dever de cidadão. Volte para casa e repasse no seu espírito
todos os factos, um a um, até os reconstituir claramente.
Volte a lembrar-se do acidente, faça uma espécie de filme.
Sarah Breel atravessa o passeio a correr, desce para a calçada.
Dá alguns passos, quatro ou cinco no máximo. Você vê-a.
Vê-lhe nitidamente as mãos. Traz uma bolsa e corre diante
do seu carro. Você torce a direcção e trava. Alcança-a e ela
cai; você desce, corre para ela; está estendida no chão, parcialmente
de lado, a cara no solo, a bolsa está a seu lado e a
primeira coisa que você vê é um revólver meio saído da bolsa.
Você faz parar um outro automobilista, chama uma ambulância
e inventaria o conteúdo do saco com o motorista e os
maqueiros; nessa altura encontra os diamantes.
Exponha estes factos diante do júri sem se deixar perturbar.
E lembre-se, Mr. Diggers, de que todo este processo roda sobre
si, depende de si, meu caro senhor, deixe-me que lho repita.
E agora queira desculpar-me. Tenho um encontro importante.
Volte a passar por aqui. O processo começa amanhã.
Vamos andar depressa. O grande júri inculpou directamente
Mrs. Breel pelo que não temos necessidade de audiência
preliminar. Não, nós não perdemos tempo. Lembre-se,
Mr. Diggers, da importância do seu papel. Dependemos
todos de si.
O substituto, a mão no braço de Diggers, escoltou-o até
à porta, apertou-lhe efusivamente a mão e, fechando a porta
sobre o visitante, esfregou as mãos, visivelmente muito satisfeito.
413
CAPÍTULO XVI

O juiz Barnes, tomando lugar na sua cadeira, deitou para
a sala cheia um olhar marcado pela gravidade profissional e
baixou os olhos para os advogados já sentados nas suas mesas.
Antes de iniciar os debates, a Corte deseja dirigir algumas
palavras aos senhores profissionais da Imprensa, aqui presentes.
A Corte sabe que alguns juizes aplicam com toda a severidade
a disposição que proíbe que se façam fotografias neste recinto.
Resulta daí que os mais engenhosos representantes dos grandes
jornais dissimulam aparelhos de objectiva rápida e tiram,
clandestinamente, fotografias.
Esta Corte foi sempre de opinião de que o grande público
tem o direito de ser mantido a par do desenvolvimento dos
grandes processos. A proibição de fotografar tem apenas como
fim evitar a desordem inerente às explosões de magnésio.
Consequentemente, senhores, nada de magnésio! Nada de
fotografias feitas no decurso das audiências, no sentido de
perturbar os debates, distrair as testemunhas ou os defensores.
Por outras palavras, senhores, a Corte entrega-se à vossa
discreção, ao vosso firme desejo de cooperar com ela. Em caso
de abuso, essa liberdade ser-lhes-á retirada, bem 'entendido.
Senhores, estão prontos a começar o processo do Ministério
Público contra Sarah Breel?
A resposta veio dos dois lados.
O juiz teve ainda um olhar para a mulher de cabelos
brancos sentada num carrinho, ao lado de Perry Mason,
a perna direita ainda engessada. Parecia estar tão perfeitamente
calma como o juiz.
Está aberta a audiência.
Já Mason estava de pé, muito grande, atraindo todos os
olhares, como um imã.
A defesa não pede outra coisa que não seja justiça,
Vossa Honradeclarou com aquela voz sonora que, sem ser
potente, alcançava todos os recantos da imensa sala. Ela
414
sabe que os factos falarão por si mesmo. E propomos à acusação
que admitamos sem discussão os primeiros doze jurados
chamados.
Você quer dispensar as perguntas habituais ? perguntou
o substituto.
Mason aquiesceu com um breve movimento de cabeça.
E se, entretanto, eles têm'conhecimento do processo?
Se têm já uma opinião formada?
Pouco me importa volveu Mason. Tudo o que pretendo,
são doze jurados, homens e mulheres inteligentes e
honestos. Todos os que vejo agrupados aqui satisfazem estas
duas condições. Chame, pois, doze nomes. Aceitá-los-emos.
Pouco importa que tenham, ou não, ideias preconcebidas.
Larry Sampson pressentia uma armadilha. com Mason
era preciso estar em guarda. Se se afastasse, pouco que fosse,
da sua rota, encontrar-se-ia em águas perigosas, à mercê dos
recifes.
Não respondeu. Não aceito a proposta da defesa e
reservo os meus direitos.
E, compreendendo subitamente que, agindo assim, parecia
não partilhar a confiança de Mason na integridade e imparcialidade
dos jurados, levantou a voz para acrescentar:
-Não que eu duvide da honestidade ou inteligência de
qualquer um destes homens ou mulheres, mas quero estar
certo... sim!... Quero dizer que entendo não renunciar ao
direito de os interrogar.
Mason virou-se para o grupo dos inscritos na lista dos
jurados:
Vamos então a isso, sr. substituto. Tem esse direito.
Quanto a mim, renuncio a ele.
O advogado sentou-se, pela primeira vez desde que o juiz
tinha ocupado o seu lugar, e inclinou-se para falar a Mrs. Breel.
Não julga que os testemunhos que vão surgir neste
tribunal poderão contribuir para lhe devolver a memória?
415
Não me lembro de nada retorquiu ela desde o nosso
almoço até ao momento em que acordei no hospital.
Isto vai ser duro murmurou Mason. Vai ser necessário
sofrer, sem titubear, os ataques do Ministério Público,
os seus sarcasmos, as suas referências irónicas à sua falta de
memória.
Aguentarei replicou ela, sorridente.
O escrivão chamou doze nomes. Sampson pôs os jurados
ao corrente da natureza do processo. Depois de ter feito
algumas perguntas, o juiz virou-se para os advogados:
Façam as suas perguntas, senhores. Analisem a qualidade
dos futuros membros do júri.
De pé, Mason estudou os rostos e sorriu.
O defensor não tem nenhuma pergunta a fazer, Vossa
Honra disse ele.
Suspirando, Sampson começou o seu exame, compreendendo
que assumia um papel ingrato: parecia mostrar-se
desconfiado destes jurados. Impossível, entretanto, fazer
marcha atrás. O silêncio da defesa privava-o de qualquer
indicação, precisava de se cansar, perguntar a cada um dos
jurados se tinha conhecimento do processo, se tinha tido
oportunidade de formar uma opinião pessoal e exprimi-la
publicamente.
Para sua grande atrapalhação, soube assim que um dos
jurados, tendo lido os jornais, tinha declarado acreditar na
culpabilidade de Mrs. Breel. Mas o homem, diante do sorriso
desarmante de Mason, apressou-se a garantir que estava
pronto a abandonar qualquer opinião preconcebida e a dar
prova da maior imparcialidade.
Sampson sabia, sem qualquer motivo para dúvida, que"
Perry Mason devia, em boa lógica, recusar este jurado.
Danava-se apenas por ser obrigado a fazer o trabalho que,
no fim de contas, cabia ao advogado de defesa.
O exame terminou e Mason levantou-se.
Aceito o júri tal como está declarou. Parece-me
416
inteiramente satisfatório e renuncio a qualquer recusa. Os jurados
podem prestar juramento.
De novo, Sampson sentiu-se pouco à vontade. Tinha
esperado que uma meia sessão, pelo menos, fosse consagrada
à formação do júri, e os debates iam começar menos de uma
hora depois de ter sido aberta a primeira audiência. Bem
contra sua vontade, via-se constrangido a estar na defensiva.
Todavia, as primeiras palavras que pronunciou diante do
júri devolveram-lhe toda a confiança. Só a enumeração dos
factos devia bastar para dar confiança ao procurador mais
timorato.
A acusada tinha tido relações contínuas com a vítima.
Encontrava-se muito perto de facto diante da porta da
casa onde tinha sido cometido o crime aproximadamente
à hora do assassínio. O roubo tinha sido o móbil do crime.
A acusada fora encontrada na posse do revólver de que
se tinha servido. Por outro lado, e compreendendo que a
acusação teria algumas dificuldades em provar que a bolsa de
mão era realmente propriedade da acusada, Sampson insistia
sobre este ponto o sapato da acusada estava manchado de
sangue humano, do sangue da vítima. A pessoa que tinha
morto Austin Cullens devia ter-se debruçado sobre o cadáver
para esvaziar as algibeiras da cinta e tirar os diamantes.
Fazendo isto, o assassino tinha assinado a sua presença
deixando pegadas sangrentas no pavimento. Seriam submetidas
à apreciação do júri fotografias dessas pegadas e também
do sapato esquerdo que a acusada calçava no momento em
que tinha sido conduzida ao hospital. Só esse sapato bastaria
para convencer os mais renitentes dos jurados, seria suficiente
para provocar a condenação.
Agradecendo ao júri a atenção que lhe tinha dedicado,
Sampson sentou-se e Mason, reservando-se, chamou, como
primeira testemunha, uma pessoa das relações de Austin
Cullens, que declarou brevemente que conhecia há muito
tempo Austin Cullens e que este estava morto, que lhe tinha

27-VAMP. G. 2
417
visto o corpo no momento da autópsia, que o corpo era bem
o de Austin Cullens, residente no n.º 58 da rua 91, Boulevard
Saint-Rupert.
Sampson chamou o médico-legista, dr. Carl Frankel, que
forneceu os resultados da autópsia, indicando o trajecto feito
pela bala fatal no corpo e a causa da morte.
Pode proceder ao interrogatório de contradiçãodisse
o substituto.
A que horas foi feita a autópsia, doutor? perguntou
Mason.
Pelas três horas da manhã.
Encontrou a bala causadora da morte de Austin Cullens ?
Sim.
Que lhe fez?
Entreguei-a ao sargento Holcomb, da Secção Criminal,
que estava a meu lado.
Vejamos continuou negligentemente Mason três
horas da manhã. Tinha duas autópsias a fazer nessa noite?
Sim.
A outra era a de George Trent, igualmente morto com
uma bala.
Sim, senhor.
Fez essas duas autópsias ao mesmo tempo?
Não, senhor. Fiz primeiro a de Austin Cullens, depois
a de George Trent.
Logo a seguir à primeira?
Assim mesmo.
O sargento Holcomb assistiu aos dois exames?
Sim, senhor.
Não abandonou a mesa da operação nem sequer por
um momento?
Que tem isso a ver com a causa? perguntou Sampson.
Procuro simplesmente informar-me replicou Mason,
afável. Desejo saber o que aconteceu às balas.
418
Sabê-lo-á quando chamarmos o sargento Holcomb para
Depor disse o ajudante.
Que o médico-legista responda a esta pergunta, que
será a última.
Nãodisse o dr. Frankel. O sargento não deixou o
aposento. Esteve junto de mim durante as duas autópsias.
Agradeço-lhe muito, doutor.
Chamem Harry Diggers disse Sampson.
Diggers veio tomar lugar. Claramente, com uma precisão
fotográfica, descreveu o acidente do Boulevard Saint-Rupert.
Acabava de passar a rua 91 e estava quase a meio do bloco.
Um Sedan azul, parado junto do passeio, com o guarda-lamas
da esquerda amolgado, arrancou subitamente, atirando-se
brutalmente sobre a esquerda. A testemunha
tinha-se visto obrigada, para evitar um choque, a virar
violentamente o volante para a direita. Nesse momento a
acusada tinha descido do passeio para a rua, diante das
rodas do carro. Tinha levantado as mãos como para se proteger.
A testemunha tinha torcido violentamente o volante
para a esquerda e o guarda-lamas atingira a mulher
na perna, derrubando-a. Ela tinha caído por terra, desmaiada.
A testemunha quis conduzi-la ao hospital mais
próximo, mas outros automobilistas, que tinham parado,
aconselharam-no a deixar essa responsabilidade à ambulância.
Diggers tinha encontrado perto da ferida a sua
bolsa, de que saía quase metade do revólver. Tinha apanhado
o saco e insistido para que se procedesse a um inventário do
conteúdo da bolsa, primeiro pelos assistentes, depois com os
maqueiros. Leu o inventário, indicou o número do revólver,
que tinha apontado no seu caderno de apontamentos.
Sampson observava atentamente o júri. Quando Diggers
tinha lido o número da arma, os olhares, abandonando a
testemunha, tinham-se dirigido ao defensor. bom sinal.
Mason podia desenfardar as suas astúcias. Quando os jurados
se inclinam para a frente para ouvir melhor uma testemunha
419
de acusação, e depois, com rostos duros, se voltam para olhar
com fria indiferença o advogado de defesa, o veredicto está
construído, o processo está no saco.
No fim do depoimento de Diggers, a Corte interrompeu-se,
para almoçar, e Sampson teve de se conter para sair sem
manifestar o seu júbilo.
Uma enfermeira veio auxiliar Mrs. Breel a mudar de
posição, para lhe evitar uma cãibra sempre possível. A ferida
sorriu a Mason.
Olá! As coisas não se passaram muito maldisse ela.
Espere pelo que se vai seguir.
Então?
É antes da alvorada que a noite se faz mais profunda.
Virgínia Trent aproximou-se, alta, esbelta, austera.
A expressão tensa do seu rosto contrastava com a calma que
se lia no de Mrs. Breel.
É um crime disse ela imediatamente arrastar a
minha tia diante dos juizes quando ainda sofre com a sua perna
partida.
O procurador aferrava-se a fazê-la julgar antes de ela
recuperar a memóriadisse Mason.
Não poderá apresentar um atestado médico e conseguir
um adiamento?exclamou a rapariga.
Sim, evidentemente que sim, mas tenho uma ideia que
me parece melhor.
Gostaria muito de saber qual.
A de defender a sua tia antes de ela recuperar a memória.
Mrs. Breel deitou ao advogado uma olhadela furtiva.
Que significa?atirou Virgínia, indignada.
Ou, se assim o preferir, correr o risco do julgamento na
altura mais favorável.
Está bem certo disso?
Explico-mecontinuou Mason.É actualmente que
tenho mais possibilidades de obter uma absolvição. Qualquer
atraso pode dar mais força à acusação.
420
Você já me disse e repetiu isso interveio Mrs. Breel.
Pode precisar-me a sua ideia?
Preferiria que depositasse em mim inteira e plena
Confiança respondeu o advogado, metendo os papéis na
pasta.
Não insisto concluiu Mrs. Breel.
Estamos em idade de saber tudo teimou Virgínia
Trent, assim como em idade de partilhar todas as responsabilidades.
Sarah Breel lançou um suspiro resignado.
Deixemos então o meu defensor com as suas preocupações,
Ginny.
Os olhos de Virgínia brilhavam com uma luz perigosa.
Dir-se-ia que você se ri de nós ambasdisse ela. Saiba,
Mr. Mason, que na assistência a opinião geral é que se
desinteressou do processo.
Não se preocupe com isso replicou o advogado, com
um ligeiro sorriso no canto dos lábios. Devo confessar, aqui
entre nós, que sou de espírito preguiçoso. Guardo todas as
minhas energias para o combate decisivo. Estes senhores
que defendem o terreno palmo a palmo cansam-se depressa,
desperdiçam as suas forças. Queimam geralmente as asas.
Oh! não se arrisque a queimar as suas comentou a
rapariga por cima do ombro. Parece-me até que está bastante
morno.
Sarah Breel não podia virar-se o suficiente para ver o
rosto de Mason e contentou-se em fazer, com a mão, um gesto
de confiança.
Não dê atenção ao que a minha sobrinha diz, sr. doutor
disse ela.É uma pessoa que leva a vida muito a sério.
No fim de contas, a acusada sou eu. Vamos, Ginny.
Paul Drake veio murmurar algumas palavras ao ouvido
de Mason.
Os homens do sargento Holcomb encontraram Mrs.
Peabody.
421
lone Bedford?
Sim.
Que fazem eles"?
Nada. Vigiam-na, nada mais. Os meus homens estavam
no seu lugar. Reconheceram os colegas da Secção Criminal.
Não há sinal de vida de Pete Chennery?
Nenhum. A mulher espera... Holcomb também não
se mexerá.
Obrigado, Paul. Isso deixa-me numa situação muito
esquisita.
Quando a audiência foi reaberta, às duas horas, Mason
interrogou por sua vez Diggers.
Diz você que rodava a quarenta quilómetros à hora,
Mr. Diggers?
Sim, senhor.
E a minha cliente desceu do passeio, atirando-se para
diante do seu carro?
Sim, senhor.
Decorreu muito tempo entre o momento em que ela
desceu do passeio e aquele em que o seu carro a apanhou?
Um ou dois segundos, no máximo.
A minha cliente trazia, as mãos levantadas?
-Sim.
Mostre ao júri a maneira como as trazia.
A testemunha levantou as mãos e manteve-as abertas ao
nível da cabeça.
Como se quisesse empurrar o carro, detê-lo?
Exactamente.
Você viu-lhe as duas mãos?
-Vi.
Ela trazia luvas?
Sim, luvas pretas.
Está certo de ter visto nitidamente as duas mãos?
Absolutamente certo.
E ela trazia luvas?
422
Sim, senhor.
Das duas mãos, qual era aquela que via melhor?
Pressentindo uma armadilha, a testemunha enervava-se.
Via as duas, tão bem uma como outra. Ela estava de
frente para mim. Trazia as mãos à frente, como para se proteger.
Mason pareceu aceitar a derrota e abandonou o interrogatório
com o mau humor de quem é obrigado a bater
em retirada para evitar a derrota.
Depois de ter derrubado esta mulher, travou?
Sim, senhor... quer dizer que travei antes do acidente...
Compreendo disse Mason. Onde estava ela quando
o carro se imobilizou?
Parei no momento preciso do choque. Ela estava no
chão, junto da roda traseira, à direita.
Você saiu pela direita?
Não, senhor, pela esquerda, do lado do volante.
Então teve de dar uma volta ao carro?
Sim.
Pela frente ou pela retaguarda?
Pela retaguarda.
Que fez então?
Baixei-me, tomei o pulso da mulher e tentei transportá-la
para o passeio. Alguns transeuntes vieram ajudar-me.
Conhecia essas pessoas?
Não, mas tomei nota daquelas que assistiram ao inventário
do conteúdo da bolsa.
Ah sim! comentou Mason negligentemente. Vejamos,
você estava naturalmente muito enervado?
Um pouco abalado, mas não perdi a cabeça.
E recorda-se de tudo com tanta nitidez?
Tudo isto está gravado na minha memória.
Foi depois de ter deitado a ferida no passeio que se
deu conta da bolsa, no chão, na calçada?
Não, senhor. Já a tinha visto quando a acusada descia
do passeio.
423
Já o advogado saltava da sua cadeira.
Julgava eu gritou em voz tonitruante que a acusada
levantava as mãos enluvadas como para se proteger do
choque; que você tinha visto distintamente as duas mãos.
Quer explicar ao júri como é possível que ela mantivesse a
bolsa nas mãos abertas?
Diggers esperou, pacientemente, que o advogado terminasse.
Depois, virou-se para o júri, como Sampson lhe tinha
recomendado.
É muito simples, senhor. Ela deixou cair a bolsa quando
levantou as mãos. A bolsa ficou no passeio, no sítio onde caiu.
E no lugar onde tinha estado o carro azul?
Sim, senhor.
Então como pode saber que essa bolsa não foi atirada
por qualquer ocupante desse carro?
Porque vi a acusada com ela na mão. Foi a primeira
coisa em que reparei. Se a bolsa tivesse sido abandonada
pelos ocupantes do carro azul, senhor, teria sido necessário
que a acusada mergulhasse debaixo daquele carro, para
voltar ao passeio antes de voltar a descer para se atirar para
debaixo das minhas rodas.
Onde estava o revólver, esse "38" de que falou ao júri ?
Saía da bolsa.
Não estava ao lado da bolsa?
Não.
Mason sentou-se.
Agradeço-lhe muito disse. É tudo.
A testemunha pode retirar-se anunciou Sampson num
tom onde se percebia a satisfação.
O substituto chamou seguidamente um dos maqueiros,
que conheceu a bolsa e o conteúdo. Mason não lhe fez
qualquer pergunta e Sampson deu um suspiro de alívio.
O obstáculo mais difícil estava ultrapassado. A defesa tinha
sido forçada a inclinar-se diante dos factos.
Carl Ernest Hogan!
424
A nova testemunha veio declinar a sua profissão: perito
de balística junto dos serviços da polícia. com a elegante
brevidade do homem que se sente perfeitamente à vontade
no tribunal, Hogan identificou a bala atirada, a título de
experiência, com o revólver encontrado na bolsa de Sarah
Breel, a que lhe tinha sido entregue pelo sargento Holcomb
como sendo o projéctil fatal, e exibiu a ampliação de uma
microfotografia mostrando as marcas deixadas no metal
pelas estrias do cano. A prova era formal. Um relance
bastava para se verificar que as suas balas provinham da
mesma arma. Tinha-se tentado encontrar o proprietário
desta última com o auxílio dos números. A tentativa tinha
sido infrutífera: o armeiro tinha destruído os seus arquivos
e a compra devia datar de há muitos anos. Em todo o caso,
não tinham tentado fazer desaparecer o número.
É a sua vez de interrogar a testemunha disse Sampson,
triunfante.
Tinha-se encostado na cadeira, seguindo vagamente o
ruído monótono das perguntas e das respostas. Não, a testemunha
não podia, em sua consciência, garantir que este
revólver tivesse sido encontrado na bolsa. A arma tinha-lhe
sido entregue pelo sargento Holcomb da Secção Criminal.
Todavia a testemunha tinha verificado o número: conferia
com o que Diggers tinha anotado na altura do acidente.
Não, a testemunha também não podia garantir que a
bala fosse realmente a que tinha provocado a morte. Parecia
que o projéctil tinha sido extraído do corpo da vítima pelo
médico-legista, para ser entregue ao sargento Holcomb, que
por sua vez o tinha dado à testemunha.
Larry Sampson, receando que alguns dos jurados se deixassem
perturbar, aproveitou o momento para intervir:
Nós não apresentamos esta bala como peça de convicção,
Vossa Honra. Identificámo-la diante da Corte, nada
mais. Caberá ao sargento Holcomb o desfazer o último anel
425
da cadeia. E então, e só então, nós apresentaremos a bala
agente da morte."
O juiz aprovou com um sinal de cabeça.
A propósito, Mr. Hogan perguntou Mason entregaram-lhe,
creio eu, as duas armas para analisar ao mesmo
tempo ?
Sim, senhor.
Dois revólveres do mesmo calibre "38"?
Sim, senhor. Mas de marcas diferentes.
Eu sei volveu Mason. Quero simplesmente precisar
diante do júri as condições em que se realizou o seu exame.
Uma das armas era a que serviu para matar George Trent,
se não estou em erro?
Não lhe posso dizer replicou Hogan, sorrindo. Sei
apenas o que o sargento Holcomb me disse quando me
entregou as duas armas. O meu papel limitou-se a comparar
as balas de ensaio às que provocaram a morte das vítimas.
O juiz sorriu. Larry Sampson exultava. Se Mason pensava
poder apanhar em falso um perito tão cauteloso como Hogan,
estava redondamente enganado. Hogan era um adversário
temivel, que devolvia golpe por golpe com uma rapidez
desconcertante.
Diga-me continuou Mason se se recorda de ter primeiro
comparado uma bala vinda do revólver que, segundo
o sargento, matou Trent proveniente, sempre segundo o sargento,
da bolsa da minha cliente?
Hogan reflectiu, sobrolhos franzidos.
Tanto quanto me posso recordar, descarreguei primeiro
este revólver que vê aqui. Depois disparei uma bala da arma
que, de acordo com o sargento, serviu para matar George Trent.
E, comparando as balas, qual foi a ordem que seguiu?
O sargento entregou-me primeiro uma bala que comparei
a uma bala do revólver da sua cliente respondeu
Hogan. Creio que declarei ao sargento que os dois projécteis
não vinham da mesma arma...
426
Muito justo interrompeu Mason.
Permita-me, peço-lhe, que termine o meu depoimento
retorquiu Hogan em tom azedo.
--Desculpe-me disse o advogado. Julguei que já tinha
acabado.
Não. Fiz apenas notar ao sargento que esta bala não
tinha sido atirada por este revólver.
" É evidente respondeu-me o sargento; entreguei-lhe
a bala retirada do cadáver de Trent.
Depois do que comparei esta mesma bala com a bala
de ensaio disparada com o revólver do caso Trent e encontrei-as
idênticas. Comparei- depois a bala que ele me tinha
indicado como oriunda do corpo de Austin Cullens e encontrei-a
idêntica à bala de ensaio disparada com o revólver
que está a ver nesta mesa.
Está bem volveu Mason, com ar sombrio.
Chamem William Golding disse Sampson.
O homem avançou e prestou juramento. O seu rosto era
o de jogador profissional, frio, inexpressivo, não traindo
nenhum dos seus pensamentos.
Golding declinou o seu nome e endereço.
Profissão ? perguntou Sampson.
Sou gerente de um restaurante: O Prato de Ouro.
Conhece a acusada, Sarah Breel?
Sim.
Conhecia o morto, Austin Cullens?
Sim.
Quando foi que o viu pela última vez?
Na tarde do dia em que foi assassinado.
Onde foi isso ?
No Prato de Ouro, no meu estabelecimento, cerca das
sete da noite.
Foi, um pouco mais tarde, a casa de Austin Cullens?
Sim. Cerca das oito horas.
Acompanhado por quem?
427
Miss Eva Tannis.
Que fez você?
Fomos de carro até ao nonagésimo primeiro bloco do
Boulevard Saint-Rupert. Miss Tannis conduzia. Parou
diante da casa de Mr. Cullens.
Podiam ver a casa?
Sim. Evidentemente.
Havia luz ali?
Não.
Que se passou então?
Ia descer do carro quando vi as janelas iluminarem-se
pàlidamente. Minha mulher... oh!... Miss Tannis pensou
que se tratava da luz de uma lanterna de algibeira...
Pouco importa o que um terceiro pudesse acreditar
ou pensar interrompeu precipitadamente Sampson. Que
foi o que você viu, pessoalmente?
Uma luz fugitiva numa janela, por várias vezes. Depois
ouvi dois tiros e vi uma mulher sair da porta da casa e correr
para o meu carro.
Reconheceu essa mulher?
Reconheci.
Quem era ela?
Num silêncio que se teria ouvido o zumbido de uma
mosca, Golding levantou dramaticamente o indicador e
designou Sarah Breel:
Aquela mulher disse ele.
A que está sentada no carrinho?
Sim, senhor substituto.
Que fez ela?
Corria para nós. Miss Tannis disse-me...
Pouco importa, Mr. Golding. Que fez o senhor?
Fiquei sentado no carro. Miss Tannis arrancou.
Onde estava a acusada quando a viu pela última vez?
A seis passos da borda do passeio, correndo em direcção
à calçada.
428
Corria depressa?
Sim.
Pode interrogar a testemunha disse Sampson a Perry
Mason.
Porque se afastaram assim tão depressa, você e Miss
Tannis?perguntou o advogado.
Porque não queríamos ver Mrs. Breel.
E não queriam que ela os visse?
Não.
Porquê?
Porque queria falar sem testemunhas a Mr. Cullens.
Você abriu, por cima do seu restaurante, uma sala
de jogo?continuou Mason.
Sampson levantou-se bruscamente.
Esta pergunta, Vossa Honra, é inconcebível. O advogado
de defesa procura desacreditar as testemunhas aos
olhos dos jurados insinuando-lhes, tendenciosamente...
Defiro o seu requerimento, sr. procuradordecidiu
o juiz.
Mason sorriu.
Vou então pôr a pergunta sob uma outra forma, Vossa
Honra. Mr. Golding é exacto que, nessa tarde, Mr. Cullens
o tinha ido visitar para falar de uns certos diamantes empenhados
por George Trent para cobrir uma grossa perda
ao jogo na sua sala de jogo clandestina, O Prato de Ouro?
Vossa Honraclamou Sampsonoponho-me a que
haja resposta para esta pergunta. A atitude do advogado de
defesa é intolerável. O advogado de defesa merece uma
admoestação da Corte, que já decidiu...
Não é exacto interrompeu o juiz. Podia considerar-se
a primeira pergunta como tendenciosa e própria para impressionar
desfavoravelmente o júri evocando factos alheios à
causa. A segunda, tal como está feita, evoca uma conversa
havida entre Mr. Cullens e a testemunha na noite do crime.
A testemunha admitiu já ter falado com Cullens, e o defensor
429
tem o direito de lhe perguntar o tema dessa conversa, tanto
mais que ela tem certa relação com o processo. A testemunha
responderá à pergunta assim formulada.
Lentamente, Sampson serenou.
É exacto, senhor disse Golding, impassível.
E George Trent tinha efectivamente perdido ao jogo,
no Prato de Ouro?
Sim.
Ele deu-lhe os diamantes como garantia das quantias
devidas à sala de jogo?
Não, senhor.
Em nenhum momento?
Não, senhor.
Devo compreender que não recebeu os diamantes de
Mr. Trent como garantia de uma dívida de jogo ?
É assim mesmo, senhor. Não recebi nada.
Nem por nenhuma outra dívida ?
Por nenhuma dívida, senhor.
Afirma não ter penetrado na casa de Austin Cullens,
no Boulevard Saint-Rupert?
Sim, senhor.
Parou apenas diante da porta? Não desceu do carro?
Não, senhor.
Está absolutamente certo de que a bolsa encontrada
no pavimento, ao lado da minha cliente, não vinha do seu
carro ?
Absolutamente certo.
E o revólver a respeito do qual o autor do acidente,
Diggers, testemunhou, não esteve em nenhuma altura da
noite em seu poder?
Não, senhor.
Não caiu, ou não o atirou você do carro?
Não, senhor.
E Miss Tannis também não?
Também não.
430
Mas continuou Mason fixando a testemunha nos
Olhos você estava, como já o admitiu, a alguns passos da
casa de Cullens, na noite do crime. Você estava lá, pois que
ouviu o ruído dos dois tiros, que vinham verosimilmente de
dentro de casa.
Sim, senhor.
E você não é capaz de dar uma explicação qualquer
da sua presença em tal lugar a não ser aquela que já deu ?
Não.
O seu carro era na verdade um Sedan azul, com o
pára-lamas esquerdo da retaguarda amolgado?
Sim.
E sabe que a testemunha Diggers declarou ter visto
esse carro parado junto do passeio, na noite do crime?
Sim.
E tratou de se afastar imediatamente?
Sim.
Porquê?
Não queria, comparecer no tribunal.
Por que razão?
Desejava estar à margem de todo este negócio. Tenho,
uma casa de jogo. Esta publicidade vai-me arruinar. A polícia
vai-me fechar o estabelecimento.
Esse desejo de não aparecer não viria de você estar
embrulhado, de perto ou de longe, neste assassínio?
Não.
Está bem. Agradeço-lhedisse Mason.
Chamem o sargento Holcombdisse Sampson.
O sargento aproximou-se a grandes passos. A sua atitude
marcava claramente o seu total desprezo pela acusada e
pelo defensor. Era visível que sabia exactamente o que ia
dizer e estava disposto a não se deixar intimidar ou manobrar
por um advogado. Sentou-se e cruzou as pernas. Lia-se-lhe
no rosto a segurança fácil do homem que se sente perfeita-
431
mente em sua casa, num círculo que lhe é familiar. Teve
para Larry Sampson um olhar eloquente que significava:
"Comece lá, meu rapaz. Estou à sua espera."
O substituto afadigava-se já, dando o último retoque ao
seu processo.
O sargento declarou ter encontrado o cadáver de Austin
Cullens, estando presentes Perry Mason e Paul Drake, detective
particular; assim como uma moeda de cobre metida no
suporte de uma lâmpada. Exibiu, uma após outra, as fotografias
mostrando o salão de Austin Cullens, o corpo, o rasto
de sangue levando do cadáver à porta de entrada. Mais
tarde, Larry Sampson utilizaria as fotografias, para o efeito
final, para o toque dramático que eliminaria as últimas
indecisões do júri. Compararia as impressões sangrentas
encontradas no pavimento do salão às que tinham sido
encontradas na sola do sapato esquerdo de Mrs. Breel. De
momento, só podia desejar um depoimento sem relevo do
sargento, que lhe permitisse usar junto do júri efeitos dramáticos.
Para terminar, apresentou a bala fatal.
O sargento identificou-a. Tinha estado ao lado do médico
durante todo o tempo que durara a autópsia, tinha-o
visto, com os seus olhos, extrair a bala do corpo de Austin
Cullens. Tinha recebido a bala das mãos do médico, para
a entregar a Hogan, encarregado da peritagem. Tinha
também assistido aos testes do perito. A bala fatal tinha sido
atirada pelo revólver encontrado na bolsa da acusada.
Agora é consigo disse Sampson a Perry Mason.
Desde há quanto tempo está adstrito à secção criminal,
sargento?perguntou o advogado.
Há dez anos.
Em dez anos, deve ter-se podido familiarizar com a
técnica das investigações criminais?
Evidentemente.
Sabe aquilo que se deve fazer quando entra num
quarto onde se cometeu um crime?
432
Julgo que sim.
Revistou as algibeiras do morto, sargento?
Esperei que chegasse o magistrado. Não tocámos no
cadáver antes de ele ter chegado.
E depois inventariou o conteúdo das algibeiras do morto?
Sim.
Encontrou uma cinta de pele de camelo debaixo da
camisa?
Sim.
Havia jóias nessa cinta?
Sim, ainda restavam algumasrespondeu o sargento.
Mrs. Breel tirou os diamantes que estavam nas algibeiras
da frente e meteu-as na bolsa.
Tem a certeza, sargento? Como o sabe você?
Por Deus, suponho-o... Estou há mais de dez anos na
secção criminal e não é preciso ser um grande técnico...
A Corte reprova as considerações da testemunha
interrompeu o juiz.
Lembra-se ainda do que havia nas algibeiras do morto?
perguntou o advogado.
Posso responder consultando as minhas notas.
Então faça favor.
O sargento tirou um caderno de apontamentos da algibeira.
Que havia no bolso superior esquerdo do colete?
Uma caneta de tinta permanente e um pente pequeno.
Na algibeira esquerda das calças?
Um lenço e um canivete.
E no bolso direito das calças?
Nada.
-Nada?
Como já disse.
Mesmo nada?
Quando digo nada, é nada, Mr. Mason. Não percebo
a diferença que faz entre nada e mesmo nada.
28-VAMP. G. 2
433
Deixemos isso. Você assistiu à autópsia praticada pelo
dr. Frankel no corpo de Austin Cullens e, imediatamente
a seguir, à do cadáver de George Trent. É realmente assim?
Perfeitamente.
Você não deixou a sala de operações desde o início da
primeira autópsia até ter terminado a segunda?
Não.
Recebeu das mãos do dr. Frankel uma bala encontrada
no corpo de Austin Cullens?
Sim, senhor.
Agora, a fim de simplificar as coisas, sargento, demos, se
não vê inconveniente, a esta bala o nome de Cullens e ao
revólver de calibre 38, que a testemunha Diggers declara
ter encontrado na bolsa de Sarah Breel, acusada, o revólver
Breel. Está a perceber-me?
Sim, senhor.
Pois bem, que fez você da bala Cullens?
-Metia-a no bolso esquerdo do meu colete.
Alguns minutos depois, você recebia, sempre das mãos
do dr. Frankel, uma bala encontrada no corpo de George
Trent, não é verdade?
Sim, senhor.
Chamemos a este segundo projéctil a bala Trent.
E, visto que se assevera que esta bala foi disparada por um
revólver encontrado numa gaveta da secretária de Trent,
chamemos a essa arma o revólver Trent. Está ainda a perceber-me?
Muito bem.
Perfeito. Que fez você da bala Trent?
Pu-la na algibeira direita do meu colete.
E depois ? Que fez você ?
Dirigi-me imediatamente ao serviço de balística e pedi
a Mr. Hogan que disparasse balas de ensaio com o revólver.
Como é possível perguntou afàvelmente Mason que
você tenha confundido os dois projécteis?
434
Que eu tenha... o quê?exclamou o sargento, saltando
da cadeira como impelido por uma mola. Não confundi
absolutamente nada.
Era o que eu pensava continuou Mason. Não entregou
você a bala Trent para a fazer comparar às balas de
ensaio do revólver Breel?
Nunca, mas nunca!
Parecia-me que Mr. Hogan tinha dito qualquer coisa
de muito semelhante quando fez o seu depoimento.
É absolutamente falso! É ridículo!gritou o sargento,
o rosto vermelho-tijolo e meio levantado na cadeira como
para dar mais força às suas afirmações. Qualquer insinuação
desse género é uma mentira deliberada. A sua...
Basta, sargento interrompeu Sampson levantando-se
bruscamente da sua cadeira. Compreendo os seus sentimentos
e a sua indignação, mas não deve perder de vista que
fala aqui na qualidade de testemunha. Modere-se, pois, e
queira responder respeitosamente às perguntas de Mr. Mason.
A testemunha é um oficial de políciadisse com força
o juiz. Conhece sem qualquer dúvida muito bem o procedimento
das Cortes de justiça. Fará, portanto, o favor de
responder às perguntas que lhe são feitas, abstendo-se de
qualquer comentário, de qualquer recriminação.
O sargento fechava os punhos. Brilhavam-lhe os olhos
e a sua face era a de um homem que tivesse retido o fôlego
durante muitos segundos.
Continue, doutordisse o juiz.
Você entregou a Mr. Hogan a bala Trent, pedindo-lhe
que a comparasse à bala de ensaio disparada pelo revólver
Breel, não é verdade, sargento?
Em nada!
Então que fez você, sargento?
Tirei a bala Trent do bolso e entreguei-a a Hogan
pedindo-lhe para a comparar. Não disse com qual revólver.
Hogan comparou-a primeiro com a bala de ensaio do revólver
435
Breel. Como era natural, as duas balas não tinham nada de
comum. Chamou-me a atenção para o facto e respondi-lhe:
"Naturalmente." Depois comparou-a à bala de ensaio do
revólver Trent e verificou-se que as marcas das balas eram
idênticas. Para terminar, entreguei-lhe a bala Cullens que ele
comparou à bala de ensaio do revólver Breel, e encontrou
marcas idênticas nas duas balas. Aqui estão os factos, e não
conseguirá embrulhá-los, Mr. Perry Mason!
Basta, sargento interveio severamente o juiz.
E não é também um facto, sargento continuou o
advogado, que você confundiu as duas balas? Não entregou
em primeiro lugar a Mr. Hogan a bala Trent, com a impressão
de que se tratava da bala Cullens?
Não, senhor. Já lhe disse, e volto a repeti-lo, e repeti-lo-ei
cem vezes, que meti a bala Trent no bolso direito.
E, quando entregou esses projécteis ao perito de balística,
tirou primeiro a bala do bolso direito?
-Sim.
Porquê ?
É um gesto muito natural num indivíduo direito, como
Eu respondeu o sargento.
Mason sorriu.
Nesse caso, sargento, e aplicando o mesmo raciocínio,
não seria também natural, para um direito, colocar o objecto
que se lhe entrega no bolso direito, só utilizando o bolso
esquerdo em segundo lugar?
O sargento corou sem responder imediatamente, depois,
dominando-se:
Não falo do que é natural quando lhe digo onde meti
as balas. Repito-lhe que meti a bala Cullens no meu bolso
esquerdo e a bala Trent no bolso direito.
Se bem que tenha recebido a bala Cullens em primeiro
lugarinsistiu Mason e que a sua tendência natural o
levasse a metê-la no seu bolso direito, você meteu-a no bolso
esquerdo ?
436
Apesar de tudo quanto possa dizer para ludibriar
o júri e perturbar o meu entendimento...
Sargento Holcomb!exclamou o juiz. Mais uma
palavra e, ver-me-ei obrigado a processá-lo por insultos à
magistratura. Queira responder, apenas, às perguntas e
abster-se, de uma vez para sempre, de qualquer comentário.
Responda à pergunta de Mr. Mason!
Meti a bala Cullens no meu bolso esquerdo e a bala
Trent no direito repetiu Holcomb, obstinado e rabugento.
Não há nenhuma possibilidade de se ter enganado?
Nenhuma.
Uma num milhão?
Nem uma num bilião.
Mason teve um gesto resignado que dispensava a testemunha.
Está bem, agradeço-lhe.
Sampson teve um largo sorriso na direcção do júri.
Chamem Eva Tannis.
A mulher respondeu numa voz baixa, muito calculada.
Dir-se-ia um tigre-fêmea procurando adoçar a pata. Ela
limitou-se apenas a confirmar os mais simples pormenores do
depoimento de Bill Golding.
Agora é consigo disse Sampson, preparando-se para
protestar indignadamente contra todas as perguntas que o
advogado fizesse.
Não tenho nada a perguntar à testemunha respondeu
este. Renuncio ao meu direito de interrogar.
A Corte interrompeu-se e Mason, cercado de jornalistas,
defendia-se de ter pretendido 'perturbar os movimentos do
sargento Holcomb.
Desejava apenas estabelecer os factos disse ele. Nada ,
mais.
Evitando a sua cliente, saiu discretamente para almoçar.
Voltou às duas horas para ouvir Sampson declarar que a
defesa ia pronunciar o seu requisitório.
437
Desejo, em primeiro lugar interveio o advogado
fazer uma breve declaração ao júri.
Levantando-se, foi-se colocar diante da barreira que
separava o lugar dos jurados. E, em tom calmo, cortês e muito
simplesmente, começou:
Senhoras e senhores, permito-me recordar-lhes que a
acusada não tem de provar a sua inocência. Ela não teve,
todavia, nem o tempo, nem os meios de proceder à investigação
que lhe teria permitido provar que não assassinou
Austin Cullens. É ao Ministério Público, ao procurador,
que cabe provar de maneira peremptória que ela cometeu
este crime. No caso de a acusação se encontrar impossibilitada
de o fazer, a acusada tem o direito de ser posta em
liberdade. Ora toda a argumentação do procurador se
baseia no facto de o revólver que Diggers encontrou, ao que
ele diz, na bolsa de Sarah Breel, e que nós chamamos o revólver
Breel, ser aquele que disparou a bala que matou Austin
Cullens. Esperamos vir a provar que há neste facto uma
impossibilidade material. Esperamos estabelecer, matematicamente,
que foi este revólver que matou George Trent.
E, da mesma forma, queremos demonstrar que o revólver
Trent matou Austin Cullens.
Sem parecer reparar na estupefacção pintada nos rostos
dos jurados, Mason virou-se para o substituto.
Poderá, Mr. Sampson, confirmar-nos aqui que George
Trent foi morto na tarde de sábado, entre as duas e as sete e
meia da tarde? Que, de acordo com os cálculos do médico
que fez a autópsia, a morte deve ter sobrevindo por volta das
cinco horas?
Sampson hesitou. Todos os olhares convergiam para ele.
Era preciso não hesitar, contudo. Era necessário responder
depressa, afectar não procurar mais que a verdade, a justiça...
Mas estendiam-lhe uma armadilha, pela certa. Qual? Experimentava
uma bizarra sensação de vazio no estômago.
Apesar de tudo, o sargento poderia ter...
438
Porque continuou docemente Masonno caso de nos
não poder dar esta garantia, ver-nos-íamos obrigados a
chamar à barra as suas próprias testemunhas, assim como
as nossas, uma após outra, no sentido de estabelecer, sem
contestação possível, que George Trent foi ferido com uma
bala de calibre "38" pelas cinco horas da tarde.
Sampson ainda hesitava. Zumbiam-lhe os ouvidos,
assaltavam-no mil pensamentos numa confusa mistura.
Se Mason tivesse razão... Mas não! Era impossível... Existiria
algum erro... parecia haver qualquer coisa a esconder...
Era preciso decidir-se e depressa!
Aguardo a sua resposta, sr. substituto.
Larry Sampson inspirou profundamente.
Confirmo-o disse. Mas sem tomar qualquer opinião
a propósito das balas ou dos revólveres. A acusação aceita
integralmente o depoimento do sargento Holcomb.
Assim o compreendi desde início respondeu polidamente
Mason. A minha primeira testemunha será o
tenente Ogilby.
O tenente avançou com passo marcial. Declarou ser
tenente do activo do Exército dos Estados Unidos e, como tal,
interessar-se particularmente pelo tiro de revólver. Conhecia
Virgínia Trent, sobrinha de George Trent. De tempos a
tempos, os dois jovens iam passear para o campo; tinha ensinado
a sua companheira a atirar com o revólver. A arma de regulamento
era muito pesada para a rapariga, pelo que ela levava
consigo o revólver de seu tio, arma ligeira, disparando uma
bala comumente designada como "38 curto", de que ela se
servia com facilidade. Ela tinha aproveitado as lições, transformando-se
numa atiradora emérita. No dia do assassínio
de George Trent, o tenente tinha vindo buscar a rapariga
de automóvel. Ela tinha tirado o revólver da gaveta de cima
da secretária do tio, que saíra para almoçar. A testemunha
tinha-o visto a almoçar num restaurante vizinho.
A testemunha e Virgínia tinham-se dirigido para as colinas
439
que cercam a cidade e disparado uns cinquenta tiros sobre
alvos diversos. A testemunha regressara com a sua companheira
por volta das seis da tarde.
O sr. substituto quererá mostrar a arma encontrada
na gaveta da secretária do escritório de George Trent?
perguntou delicadamente Mason. Assim como aquela que
se declara ter servido para matar Austin Cullens? Queria
pedir à testemunha para identificar esse revólver.
Isso vai levar alguns minutos respondeu Sampson.
Muito bem. A Corte aproveitará para suspender a
audiência.
A Corte julgou-o conveniente. Os jornalistas aproveitaram
para inundar Mason de perguntas. Os espectadores,
sentindo a importância do debate, recusaram-se a abandonar
os seus lugares. Os jurados desfilaram diante de Mrs. Breel,
mas os seus olhares já não eram hostis. Lia-se neles a curiosidade,
o interesse, mesmo a simpatia, em alguns deles.
Perry Mason ficou sentado à sua mesa, sem se afastar da
atitude modesta de técnico que apenas tem por fim esclarecer
a opinião dos jurados, para os ajudar a cumprir a sua missão.
com o dedo, Mrs. Breel chamou o seu defensor que,
levando consigo a cadeira, foi sentar-se junto dela.
Sabe bem o que está a fazer, Mr. Mason?perguntou
ela em voz tensa.
Julgo que sim respondeu o advogado. Esperava
poder impedi-los de provar que a bolsa apresentada é realmente
a sua. Tive de me lançar na segunda linha de defesa.
Tenho bem a impressão prosseguiu Mrs. Breel sempre
muito calma que você vai saltar da panela para o lume.
Isso alterará um pouco as coisas, apesar de tudo
retorquiu Mason, sorridente.
Ela reflectia.
Sabe, Mr. Mason, que, esforçando-me nesse sentido,
talvez consiga recuperar parcialmente a memória e lembrar-me
do que se passou desde sábado?
440
Não se esforce, cara senhora.
Porquê? Não quer que eu me recorde?
Não é necessário.
Certas pessoas poderiam achar bem.
Não sei nada disso disse Mason. Procedo logicamente
e é tudo. Quem sabe o que daria uma referência às
idas e vindas de cada um de nós na tarde de sábado!
Você conhece a sua profissão melhor do que eu, está
muito certo, Mr. Mason, mas não julgo que um único jurado
acredite na sua teoria de uma confusão de balas. Este sargento
é excessivamente afirmativo e tem uma grande experiência.
Sim respondeu simplesmente Mason.
Que quer você dizer?
Na minha opinião explicou o advogado com um ligeiro
sorriso de ironia ele é muito afirmativo e conhece muito bem
a sua profissão.
Sarah Breel riu-se.
Promete-me ao menos que vai ser prudente murmurou
ela.
Não receie nada disse o advogado batendo-lhe na mão
e deixe-me as preocupações do processo. Já tínhamos combinado
isso.
Virgínia recusou-se a aceitar.
Está bem! Então entretenha-se a" remoer as suas
inquietações à sua vontade! replicou Mason.
Sarah Breel lançou-lhe um olhar perplexo. Mas o advogado,
que apenas tinha querido, sem dúvida, brincar", voltou
à sua mesa e pôs-se a classificar os papéis,
Cinco minutos depois, a Corte recomeçou a audiência
e Ernest Hogan, o perito de balística, avançou:
Peço disse ele que se inscreva na acta que aceitei,
apenas para servir a justiça, que se entregasse à testemunha,
para exame, o revólver n.º 7-9362. O escrivão pode anotar
também que não renuncio à posse desta peça de convicção
sob nenhum pretexto, dado que me foi confiada.
441
É muito justo disse Mason. Deve conservar esta peça
que deve aparecer no processo do assassínio de George Trent.
Efectivamente volveu Hogan.
Tenente Ogilby, posso perguntar-lhe se já viu, esta
arma?
Já a vi, é exacto.
É este o revólver que Virgínia Trent levava com ela na
tarde de sábado em questão?
O mesmo.
É exactamente o mesmo de que ela se serviu para atirar
ao alvo em sua companhia?
Já Sampson saltava, as garras completamente saídas.
Como pode o tenente reconhecer esta arma, sem qualquer
dúvida, só com uma vista de olhos ? É impossível. Como
pode identificá-la sem recorrer ao número de fabrico?
O tenente sorriu.
Perdoe-me, Mr. Sampson, mas acontece que conheço
muito bem as armas de fogo. É a minha especialidade, o meu
violino de Ingres, se assim o quiser. Estes revólveres são,
permita-me que lhe lembre, tão idênticos à saída da fábrica,
como os carros de uma mesma série se parecem quando
saem a porta da fábrica. Mas com o uso, e muito depressa,
surgem certas diferenças. Assim, o revólver que tenho na mão
atirava muito baixo, e tive de dar uma limadela na mira.
Ainda se vêem os sinais. Por outro lado, e para mais segurança
e por me ter sido pedido por Mr. Mason, voltei ao lugar onde
atirámos ao alvo, e juntei as cápsulas vazias picadas pelo
revólver, durante o treino.
E para que servem essas cápsulas? perguntou sarcàsticamente
Sampson.
Vai já sabê-lo, sr. substituto. Antes da ciência da balística
nos ter ensinado a identificar as balas comparando as
marcas deixadas pelas estrias do cano, o único método que
permitia determinar com certeza se a bala tinha sido disparada
por determinada arma era centrar a marca do percutor
442
sobre o fulminante. Teoricamente, o percutor toca no centro.
Na prática, não acontece assim. E mais ainda, no uso, qualquer
percutor apresenta caracteres que lhe são próprios. E não
quero falar aqui unicamente da localização da marca, mas
também das ligeiras irregularidades que apresenta e que o
personificam, de qualquer maneira. Pude certificar-me de que
qualquer destas cápsulas foi realmente picada pelo revólver
que tenho na mão.
Ele não estava à sua disposição observou Sampson.
Não, mas tinha uma fotografia do tambor, que me foi
fornecida por um jornal e que tenho todas as razões para
julgar autêntica. Um minuto, sr. substituto, vamos proceder a
uma verificação suplementar.
Tirando do bolso uma cápsula, e fazendo girar o tambor
do revólver, apresentou o conjunto a Hogan.
Você é perito. Faça favor de comparar.
Hogan inclinou-se.
Oponho-me a este exame. A testemunha só deve responder
às perguntas feitas disse Sampson.
É o seu perito disse Mason com um doce sorriso.
Pode fazer-lhe abandonar a barra, se assim o quiser.
Hogan recuou alguns passos, consultou Sampson com os
olhos e dirigiu-lhe um sinal de cabeça quase imperceptível.
Aproxime-se do júridisse Mason ao tenente Ogilby
e mostre-lhe as marcas deixadas pelo percutor na cápsula
que ainda está no tambor da arma e as marcas existentes nas
cápsulas apanhadas no local onde se treinaram no tiro.
O oficial avançou. Os jurados inclinaram-se, atentos,
verificando a similitude das impressões do percutor.
Sampson conversava em voz baixa com Hogan. E, levantando
a cabeça:
É tudo disse ele. Não tenho perguntas a fazer à
testemunha.
Já não compreendia nada. Os factos empurravam-se,
chocavam-se, atordoavam-no. Desejaria deter o curso dos
443
seus pensamentos, fazer o ponto, mas a confusão em que tinha
o espírito não lhe permitia. Tinha a impressão de estar numa
pequena estação do "metro", de ver passar diante dos olhos
comboios directos com um barulho de trovoada, tentando
em vão detê-los. Estavam a olhá-lo, adivinhava-o, estarrecido.
O juiz parecia perplexo. Mason sorria. Os jurados fixavam-no.
A cabeça girava-lhe. Invadia-o uma náusea. Tinha a boca seca,
amarga.
Mason falava. Ouvia-o confusamente.
E agora, com a autorização da Corte, tendo demonstrado
que George Trent não pode ter sido morto com o
revólver designado sob o nome de Trent, é fatal que o tenha
sido com o revólver Breel, pois sabemos já que existem apenas
dois revólveres, e apenas duas balas mortais, a bala Trent e a
bala Cullens. A bala encontrada no corpo de Trent corresponde
à bala de ensaio disparada por um dos dois revólveres
que estão em poder do gabinete de balística. E, não tendo sido
com a bala de ensaio disparada pelo revólver Trent, é preciso
que o tenha sido com a outra, com a disparada com o revólver
Breel.
Para terminar, Vossa Honra, e tendo em linha de conta as
circunstâncias, vou pedir que o júri seja autorizado a deslocar-se
à casa de Austin Cullens para visitar o local do crime.
O primeiro impulso de Sampson levou-o a combater.
E com que fim, Vossa Honra? Que benefícios se poderão
tirar de semelhante visita?
Que está então a procurar esconder?perguntou
Mason.
Nada volveu lastimàvelmente Sampson.
Então, sr. substituto, que receia?
Um momento, Mr. Mason interveio o juiz. Queira
dirigir-se à Corte e abster-se de qualquer discussão com a
acusação. Qual a razão que o leva a requerer esta deslocação
do júri?
É muito simples, Vossa Honra. Esta arma que a teste-
444
munha Diggers declara ter encontrado na bolsa de Mrs. Breel
provém na realidade do bolso de Austin Cullens. Já terá
reparado que, segundo o depoimento do sargento Holcomb,
não se encontrou nada no bolso direito das calças de Cullens?
Este trazia habitualmente uma arma e foi com ela que matou
George Trent. É o revólver que a testemunha Diggers pretende
ter encontrado na bolsa da minha cliente. Lembre-se,
Vossa Honra, dos depoimentos de Golding e de Tannis. Ambos
ouviram dois tiros. O médico encontrou apenas uma bala no
corpo de Austin Cullens. Ninguém falou da segunda bala.
Nestas condições, o defensor julga ser necessário conceder ao
júri a faculdade de estudar pessoalmente o local do crime,
de proceder à sua própria investigação no sentido de descobrir
a segunda bala...
O juiz abanou a cabeça.
Não é essa, na minha opinião, uma justa interpretação
da faculdade que têm os jurados de se deslocarem ao local do
crime, querendo transformá-los em testemunhas de uma
descoberta susceptível de ter uma influência primordial no
curso do processo. A Corte vai designar um inquiridor imparcial
e desinteressado para efectuar essas buscas, se tal é. o desejo
da defesa. Esse inquiridor poderá ser acompanhado pelos
advogados das duas partes e fazer depois um relatório'à Corte.
A solução satisfaz-me inteiramente concordou Mason
e para melhor provar a minha intenção de não querer
mais do que estabelecer factos pertinentes, proponho à Corte
que indique o perito de balística da polícia, Mr. Hogan, que
inquirirá na presença do sr. substituto do procurador e de
mim próprio, como representante de Sarah Breel.
O juiz aquiesceu.
E assim seja ordenado disse. O tribunal reune-se
amanhã, às dez horas.
Um imenso rumor afogou estas últimas palavras.
445
CAPÍTULO XVII

Durante todo o caminho, o substituto conservou-se em
silêncio. Tentava encontrar o fio das ideias, esforçava-se- por
as pôr em ordem, fazer delas um todo coerente, lógico.
Hogan também ia calado, no receio de falar demais.
Muito pelo contrário, Mason mostrava-se inexaurível.
Contava histórias, falava de política e a vaga de palavras
não deixava de incomodar os outros que queriam concentrar
o espírito sobre o problema que acabava de tomar uma
importância completamente nova.
Atrás do carro oficial que conduzia os advogados e o perito
encarregado da investigação, vinha um carro da polícia
seguido de três táxis carregados de jornalistas e de fotógrafos.
Sampson virou-se para deitar um olhar inquieto ao vidro
traseiro, violentamente iluminado pelos faróis dos carros que
vinham a seguir.
Não temos necessidade de toda esta gente disse ele.
E em que os incomodam eles?perguntou Mason.
Vão incomodar-nos, tornar as nossas buscas mais
difíceis. Por outro lado, o juiz falou apenas de nós os três.
Não sou absolutamente da sua opinião ripostou
amavelmente Mason. A Corte designou Mr. Hogan. Nós
temos autorização de o acompanhar. E não foram mencionados
os membros da Imprensa.
Pessoalmente, importunam-me.
Não se aborreça, sr. ajudante disse Mason rindo.
Tome a responsabilidade de os afastar, mas acautele-se com
as suas reacções.
E porque não lho diria você? propôs Sampson.
A minha situação política não me permite agir. Não posso
arriscar-me a que a Imprensa me caia em cima.
Então, deixemo-la tranquila concluiu Mason.
Admitiu portanto que, atrás de Mason que franqueava
a porta do salão onde tinha sido encontrado o cadáver de
446
Cullens, os fotógrafos se amontoassem no vestíbulo. O magnésio
explodiu e as fotografias tomadas mostraram nos jornais da
manhã um Mason sorridente, afável, e um ajudante desconfiado,
de rosto franzido.
Hogan afadigava-se já, calmo, eficiente.
O corpo disse ele estava estendido aqui. Você
pretende, Mason, que esta bala foi disparada por Cullens.
Este devia fazer face ao seu agressor. Devemos, portanto,
encontrar o projéctil nesta parte da parede, desde o pavimento
até, digamos, um metro e oitenta de altura... Não
vejo nada.
Agora é a minha vez disse Mason. Estou de acordo
consigo no que se refere à direcção aproximada do tiro.
Mas a bala talvez não tivesse atingido a parede. É possível
que tenha sido interceptada... Que pensa você desta poltrona?
Veja...
Hogan, ajoelhado, estudava de perto o intervalo existente
entre a madeira do assento e a almofada de couro que o
guarnecia. Entrevia-se uma fenda nas costas da poltrona.
Talvez haja aqui qualquer coisa admitiu o perito.
Levantemos o assento.
Distinguia-se no caixilho um buraco redondo, de bordos
enegrecidos.
O projéctil ficou na madeira disse Mason, alegre.
Vamos recuperá-lo.
Depois de ter tirado uma fotografia decidiu Hogan.
A Imprensa não pedia mais que obsequiar aqueles
senhores. Estalaram doze objectivas.
Hogan abriu uma navalha bem afiada e exibiu umas
tesouras.
Vamos a isto.
Rasgou a almofada. Afastando a crina, sondou. Uma bala
tinha sido detida no coração de carvalho.
Devo extraí-la?perguntou o perito ao ajudante.
447
Mais algumas fotospropôs Mason.A bala faz-nos
falta, bem entendido.
Hogan pôs-se calmamente ao trabalho, tomando muito
cuidado para não riscar o chumbo com a ponta do canivete.
A madeira era dura. com uma última insistência, o perito
libertou finalmente o projéctil.
Tomemos, desta vez, todas as cautelas para evitar
um novo erro. vou meter esta bala num sobrescrito que lhe
vou pedir que rubrique.
Mason puxou a caneta, inscrevendo o seu nome nas costas
do sobrescrito e Sampson imitou-o. Hogan meteu o sobrescrito
no bolso.
Se não vê nisso inconveniente disse o advogado vou
seguir esta bala até ao seu último destino, pelo menos até
que tenha podido tirar microfotografias.
Venha então disse Hogan. Aqui sou um simples
perito.
Na soleira do seu laboratório, Hogan deteve-se e virou-se
para o advogado.
Dispararei duas ou três balas de ensaio com o revólver
Breel, Mason. Vê algum inconveniente em que me sirva de
uma delas?
Nenhum.
Mason via a mão do técnico accionar lentamente a rosca.
O exame foi minucioso. Por fim o perito endireitou-se.
Não há erro, Sampson disse ele. Estas balas provêm
do mesmo revólver.
Seguiu-se uma fuzilaria de câmaras.
Você exigirá sem dúvida microfotografias continuou
o perito mas isso é apenas uma formalidade. Veja você
mesmo.
Basta-me a sua palavra disse Mason, sorridente.
Sei também que posso contar consigo para que não haja
qualquer erro ou substituição. Até amanhã, então. Tenho
trabalho no meu escritório.
448
Tudo isto é muito bonito disse Sampson irritado
mas não impede que o sapato da sua cliente esteja cheio de
sangue. Isso é que você não conseguirá eliminar, Mason.
Nem sequer o tentareivolveu Mason na soleira.
Paul Drake e Della Street esperavam-no no escritório.
Então ? perguntou a rapariga.
Ninguém tinha reparado na bala que tinha passado
entre a almofada e a base da poltrona para se alojar no
caixilho disse alegremente Mason.
Diga, então, patrão continuou Della Street. Está a
dar-se bem conta do caminho que tomou? '
Como? perguntou Mason franzindo o sobrolho.
Está a afastar do processo Sarah Breel para meter
Virgínia na cadeia.
Isso é verdade! exclamou alegremente o advogado.
Que quer você ? Cullens está morto, e precisamos de alguém
que o tenha morto.
Mas a pequena Trent não é também sua cliente?
Muito justo, mas não estão a julgá-la, que eu saiba.
Mas não tardará muito, se continuar assim.
Tanto pior volveu Mason. Ver-se-á depois. Vamos
jantar. Tenho uma fome canina.
CAPÍTULO XVIII

Às dez horas não havia um lugar vazio na sala de audiências.
As pessoas encostavam-se à parede, de pé. A atmosfera
estava tensa. Só os jurados que, muito conscienciosos, não
tinham deitado uma olhadela às manchetes e às fotografias
dos jornais podiam ignorar o que se tinha passado na véspera
depois da audiência. O juiz, tendo ocupado a sua cadeira
e ouvindo o escrivão que procurava obter silêncio, olhava
Perry Mason com uns olhos onde se lia uma surpresa admirativa.
29-VAMP. G. 2
449
Larry Sampson, de lábios cerrados, inclinava a cabeça.
Todo o seu processo se desmoronava. Todavia, dispunha
ainda de algumas cartas a opor aos trunfos da defesa.
Peço a Mr. Hogan para vir à barra das testemunhas
disse Mason.
O perito veio expor o que tinha encontrado em casa de
Austin Cullens. Apresentou a bala extraída da poltrona e as
fotografias.
Na sua opinião perguntou o advogado esta bala foi
realmente disparada pela arma exibida pela acusação e a que
chamaremos, para simplificar, o revólver Breel?
Não há a menor dúvida a esse respeito.
Mas, quando a arma foi encontrada na bolsa da minha
cliente, só havia um cartucho percutido?
Não posso responder a esta pergunta volveu Hogan.
Sei apenas que, quando a arma me foi entregue, o tambor
continha cinco cartuchos cheios e um vazio.
Agradeço-lhedisse Mason. É tudo.
Não tenho perguntas a fazerdeclarou Sampson.
Chamem Paul Drake disse o advogado.
Drake avançou e prestou juramento. Parecia ligeiramente
pouco à vontade.
Você é um detective particular começou Mason
e como tal servi-me dos seus serviços.
Sim.
Teve ocasião de vigiar uma mulher conhecida com o
nome de lone Bedford e que pretendia ser a proprietária de
certas jóias confiadas a George Trent por Austin Cullens?
Esta pergunta não deve ser admitida! berrou Sampson.
Não tem qualquer relação com o processo.
Penso poder provar que o tem volveu Mason.
Não estou a percebê-lo muito bem fez notar o juiz.
Não se trata de enfadar a Corte continuou Mason
mas o processo que está a ser julgado não é ordinário. A acusação
encarrega-se, geralmente, de demonstrar a culpabilidade
450
do acusado. A este cabe apenas provar a sua inocência.
Mas já que, nesta causa, a acusação soube estabelecer claramente
como o crime não podia ter sido cometido, a defesa
vai mostrar como poderia ter sido perpetrado.
E espera poder justificar a sua pergunta? perguntou
o juiz com ar dubitativo.
Espero que sim, Vossa Honra.
Admito então a pergunta, de momento. Mas a acusação
terá o direito de a riscar da acta no caso de se não referir
ao processo de maneira clara e precisa.
Isso me basta volveu Mason. Responda, Mr. Drake.
Sim respondeu Drake.
Seguiu essa mulher?
Sim.
Onde começou a segui-la?
À saída do Comissariado Central.
Onde ela acabava de se recusar a reconhecer como sendo
sua propriedade os diamantes encontrados na bolsa de
Mrs. Breel?
Vossa Honra, oponho-me a esta pergunta! exclamou
o ajudante. É tendenciosa e sem qualquer ligação com a
causa. Pouco importa que...
A testemunha deverá limitar-se a falar da sua vigilância
decidiu o juiz.
Onde o conduziu ela? perguntou Mason.
Aos Apartamentos Milpas, em Canyon Drive, apartamento
314.
Procurou saber qual o nome em que ela morava ali?
Sim.
Qual era esse nome?
A pergunta é inadmissíveldisse Sampson. Trata-se
de um rumor, de um diz-se. Pouco importa esse nome.
Concedido disse o juiz.
Mason franziu os sobrolhos e pareceu contrariado.
451
--Vou apresentá-la de outra forma, Mr. Drake. Havia,
vivendo nesse edifício, uma pessoa que se chamava Pete
Chennery ?
Sim, senhor.
Qual era o apartamento que ele ocupava.
O "314"respondeu Drake antes de o ajudante lhe ter
podido impor silêncio.
Vossa Honra declarou Sampson oponho-me a isto,
que está inteiramente fora do processo.
A objecção parece-me aceitável disse o juiz a menos
que a defesa possa apoiá-la em qualquer teoria.
Se o senhor ajudante quiser deixar de me impedir, com
as suas argúcias disse Mason perdendo a paciência talvez
consiga provar que Pete Chennery é o assassino de Austin
Cullens. Isto conto demonstrá-lo por...
Isso basta, Mr. Mason interrompeu o juiz. Não o
convidei a fazer a acusação do ministério público. O senhor
procurador pôs objecções que a Corte aceitou até agora
A Corte pergunta-lhe apenas qual a ligação existente
a sua pergunta e a causa.
Fá-lo-ei volveu o advogado. Fá-lo-ei provando
a minha cliente não pode ter assassinado Austin Cullens
porque o assassino é Pete Chennery.
Aqui temos um procedimento bem excepcional
comentou o juiz.
O processo não o é menos replicou Mason.
Admito portanto a pergunta, temporariamente decidiu
o juiz, fazendo retirar da acta a parte da resposta que
tratou do apartamento habitado por Pete Chennery. Nada
liga, para nós, lone Bedford e Pete Chennery.
Porque a acusação não me permitiu explicar.
A acusação não tem nada a ver com a pergunta disse
o juiz. É a Corte que julga a ordem das provas. Continue,
Mr. Mason, e dirija as suas observações à Corte.
Muito bem assentiu Mason. Mr. Drake tirou ou
452
fez tirar sob o seu controle fotografias das impressões digitais
que pôde encontrar em casa de Austin Gullens?
Sim.
E procurou encontrar provas fotográficas das impressões
digitais de Pete Chennery?
Penetrei no seu apartamento respondeu Drake.
Fotografei as impressões digitais que presumi serem as de
Pete Chennery, pela razão de serem muito mais numerosas.
Quem estava consigo quando fotografou essas impressões,
Mr. Drake?
O sargento Holcomb.
Conseguiu estabelecer que Pete Chennery tinha um
passado criminal?
Oponho-me a esta pergunta interveio o ajudante.
Ultrapassa incontestavelmente o quadro deste processo
e não se baseia senão no diz-se. Mesmo a testemunha reconheceu
ignorar se as impressões fotografadas eram as de
Pete Chennery.
Mason consultou o juiz com um olhar.
Esta objecção é válida disse este. Trata-se, no caso
que nos ocupa, de saber se a acusada matou Austin Cullens.
Razoavelmente qualquer testemunho tendente a provar que
Cullens foi morto por uma terceira pessoa deve ser admitido,
mas em certos limites e observando ainda determinadas
formas.
Suponho que sim, Vossa Honra respondeu Mason
com muita urbanidade mas não passo de um pobre diabo
de um advogado. A testemunha é detective particular. Da
mesma forma que eu, não dispõe dos poderosos meios de
investigação do procurador e dos seus gabinetes.
É certo, Mr. Mason, mas isso não tem nada a ver com
a Corte que tem apenas que conhecer testemunhos e provas
pertinentes. A opinião da testemunha não pode encadear
a acusação.
Talvez eu consiga chegar ao fim por outro caminho.
453
Agradeço à testemunha e peço a comparência do sargento
Holcomb como testemunha de defesa.
O sargento avançou, belicoso. Era evidente que não
tinha a menor intensão de ajudar no que quer que fosse o defensor
a triunfar na sua causa.
Permitir-me-ei perguntar-lhe, sargento, se conseguiu
encontrar o proprietário das jóias que se encontravam na
bolsa que se pretende ser a da minha cliente.
Esta pergunta não deverá ser aceite interveio uma vez
mais o substituto. Pouco importa o proprietário destes
diamantes.
Mas objectou Mason parecia-me que, segundo a
acusação, tinham despojado a vítima...
Nada disso declarou Sampson. Exibimos fotografias
mostrando a cinta usada pelo defunto e o estado em que
foi encontrada. É tudo. A acusação nunca pretendeu...
A relação existente entre a pergunta e a causa parece-me
suficientedecidiu o juiz Autorizo esta pergunta. Identificou
o proprietário das jóias, sargento ?
Sim, Vossa Honra.
Tinham sido roubadas?perguntou Mason.
Sim.
A alguém que reside em New-Orleans?
É exacto.
Não ofereceu uma companhia de seguros uma recompensa
a quem lhe permitisse recuperar os objectos roubados?
Sim.
Não reclamou uma parte dessa recompensa?
Sim.
Qual é o seu montante?
Protesto interveio Sampson. Esta pergunta é inadmissível.
Tende a provar que a testemunha tem um interesse
pessoal nesta causa.
" Efectivamente concedeu o juiz.
Uma vez mais, Mason pareceu desapontado.
454
Quando do exame do local onde foi descoberto o corpo
de Cullens, não notou que um fusível do circuito eléctrico
tinha saltado, sargento ? continuou.
Reparei.
Conseguiu verificar a causa desta avaria?
Sim. Tinham desatarraxado uma lâmpada para introduzir
no suporte uma moeda de cobre. Virando o interruptor,
provocava-se inevitavelmente um curto circuito e a extinção
das lâmpadas.
Verificou as impressões digitais existentes na moeda?
Esta pergunta não deverá ser admitida, na minha
Opinião disse Sampson. É uma pergunta que sai do
âmbito da questão.
O juiz franziu o sobrolho.
Julgará o ministério público que a acusada se não pode
servir, para a sua defesa, de factos que a própria polícia
estabeleceu ?
Não é isso volveu Sampson. Aquilo que não queremos
é que se não entrave sistematicamente a acção da justiça
enredando sistematicamente os factos. Nenhum dos depoimentos
recolhidos neste recinto permite supor que outra
pessoa, além da acusada, tenha penetrado na casa da vítima.
Mas foi o senhor mesmo, senhor substituto, que declarou
ter sido o roubo o móbil do crime...
Torna-se por vezes necessário ao acusador público
peço à Corte para me perdoar esta interrupção modificar
a sua táctica no decurso de um processo...
É justoaquiesceu o juiz. Mas também me parece
muito convincente deixar responder à pergunta feita. Admiti-la-ia
no exame contraditório. Ora a testemunha foi citada
para a defesa. Encontrou impressões digitais nessa moeda,
sargento ?
Sim, Vossa Honra.
Tirou as impressões digitais à minha cliente? perguntou
Mason.
455
-Sim.
Comparou-as às encontradas na moeda?
Ela trazia luvasvolveu o sargento, azedo. Não
podia deixar impressões.
A pergunta não é essa. Pergunto-lhe se procedeu à
comparação das impressões.
Sim.
E correspondiam?
, Não.
Peço à Corte continuou Mason para intimar o
sargento Holcomb a apresentar as fotografias das impressões
digitais encontradas na moeda e dar à testemunha Drake
oportunidade de demonstrar que são as impressões de Pete
Chennery, indivíduo de largo cadastro conhecido pela polícia.
Oponho-me. Oponho-me a esta declaração e à maneira
de apresentar a pergunta ao júridisse Sampson. É tentar
embrulhar os factos. A Corte decidiu já que a testemunha
Drake não dispunha dos meios necessários para estabelecer
que as impressões digitais encontradas eram realmente as
de Pete Chennery.
Devo compreender que a acusação quer impedir a
defesa de estabelecer a identidade da pessoa que meteu a
moeda no suporte da lâmpada? perguntou o juiz.
Não vejo em que esta questão possa referir-se aos debates
presentes insistiu Sampson. Mesmo admitindo que
essa terceira pessoa tenha entrado na casa de Cullens, pouco
tempo antes do crime, isso não tem nada a ver com o processo.
Não? disse o juiz em tom ameaçador. Mas suponhamos
que essa entrada se deu no momento mesmo do crime?
Mesmo nesse caso, pouco importa a identidade do indivíduo.
Estabelecemos já diante da Corte que as impressões
encontradas na moeda não são as da acusada. É tudo quanto
a defesa está autorizada a provar.
456
...Não julgue, porém, Vossa Honra que quero pôr obstáculos
ao estabelecimento de provas legítimas, mas, do
ponto de vista técnico, a acusada tem todo o direito de provar
que não participou do roubo provocando uma avaria na
instalação eléctrica. Não tem mais nada que conhecer, nem
que estabelecer. A identidade do terceiro responsável não
pode interessar senão provando-se que se trata de um cúmplice
da acusada. Ora a acusação não pretende tal.
Está bem! exclamou Mason, levantando os braços.
Se o Ministério Público não quer que o júri saiba quem
matou Austin Cullens, não vou perder tempo a fazer o seu
trabalho. Retiro a minha pergunta. Não desejo mais nada
da testemunha.
É desleal disse Sampson. Você procura perturbar
o espírito dos jurados.
Mas é você quem...
Senhores interrompeu o juiz, batendo na secretária
queremos que a ordem seja respeitada neste recinto. Não
tolerarei semelhantes observações. Mr. Mason a sua atitude "
é repreensível. Quanto a si, Mr. Sampson, é deslocado acusar
o defensor de más intensões. A Corte admoestá-lo-ia mais
severamente, se a observação de Mr. Mason não tivesse sido
tão despropositada. E fica desde já estabelecido que não se
tratará aqui de casos pessoais. É o último aviso da Corte.
Está bem disse Mason sentando-se, resignado. Acabei.
Você quer dizer que desiste?perguntou Sampson.
Mason levantou os olhos para o juiz.
Já que devo dirigir as minhas observações a Vossa
Honra, posso sugerir à Corte que faça observar ao magistrado
encarregado da acusação que, quando o defensor diz:
"Acabei", é incorrecto da parte do substituto do procurador
dirigir observações ao defensor. Estou, todavia, convencido
de que o júri compreenderá que a defesa fez todos os esforços
para resolver este processo e que a única razão por que o não
conseguiu fazer...
457
Seja prudente nas suas palavras, doutor cortou o
juiz, severamente.
...é muito clara terminou Mason com um sorriso.
Pleiteiam o processo, senhores? perguntou o juiz.
Sampson assim o queria e toda a sua argumentação limitou-se
a afirmar que a defesa não tinha conseguido anular
as acusações que pesavam sobre a ré. Exibiu o sapato, mostrou
a sola manchada de sangue e desafiou a defesa a que
explicasse a origem daquelas manchas. A acusada era culpada,
declamava ele.
De passagem, citou a tentativa do defensor tentando
introduzir no processo uma terceira pessoa, um mito que
teria penetrado na casa e que, implicitamente, teria assassinado
Austin Cullens; esmagou Mason por ter tentado perturbar
o depoimento, tão claro, do sargento Holcomb e de o
ter acusado de ter confundido as balas dos dois revólveres.
Sentou-se, finalmente e Mason, sorridente, veio colocar-se
diante dos jurados.
Minhas senhoras e meus senhores começou ele a
Corte vai dizer-nos que, para justificar uma condenação
baseada em conjecturas, as referidas conjecturas devem não
só tender a provar a culpabilidade da acusada, mas ainda
não contradizer nenhuma outra hipótese razoável. No caso
que nos ocupa, esta segunda hipótese lógica existe, explica
os factos, prova a inocência da acusada. É, portanto, dever
vosso absolver a minha cliente.
Porque a acusação apenas se baseia em conjecturas.
No que se refere ao revólver, esta conjectura ressaltou, voltou
como o "boemerang" à mão de quem a lançou. Os depoimentos
recolhidos provam de maneira concludente que a<
arma encontrada na bolsa da acusada porque é realmente
a sua bolsa, reconheço-a diante de todos, não porque a
minha cliente me tenha dito (pois ela perdeu toda a recordação
dos acontecimentos), mas porque tende a prová-lo
que esta arma, portanto, não matou Austin Cullens. Pelo
458
contrário, ela matou George Trent. Neste processo há apenas
referência a duas balas. Se, portanto, a bala do revólver Breel
não matou Cullens, foi porque matou George Trent. Mas
na noite da morte de Cullens foi apenas disparada uma bala
com este revólver, e foi disparada pelo próprio Austin Cullens
contra qualquer um que estava com ele no aposento. A bala
alojou-se nas costas da poltrona. Cullens trazia este revólver
no bolso direito das calças e foi por esta razão que o investigador
a encontrou vazia.
Não é, minhas senhoras e meus senhores, mais razoável
supor que Mrs. Breel adivinhou que o seu irmão estava
morto e que desconfiou que Austin Cullens o tinha morto?
Austin Cullens tinha todas as razões para se desembaraçar
de George Trent. Tudo indica que George Trent teve
informação de certos factos que, levados ao conhecimento
da polícia, teriam permitido acusar Cullens de uma série
de vigarices e de roubos de jóias. Cullens mata então Trent.
Para afastar as suspeitas, trata de inventar que Trent empenhou
os diamantes numa casa de jogo. E, para dar mais
peso ao estratagema, vai fazer escândalo à casa de jogo,
reclama os diamantes, procura atirar as suspeitas para cima
do gerente do estabelecimento.
É de uma total evidência, meus senhores e minhas senhoras,
que, como no caso Cullens, Trent não pôde ter sido
morto com o revólver que, no dizer da acusação, foi utilizado.
É portanto evidente que deve ter sido morto com o outro revólver",
pois há apenas dois revólveres e duas balas que deram a
morte, uma para cada arma. É evidente que o sargento Holcomb
julgou, muito naturalmente, que o revólver encontrado
na bolsa de Mrs. Breel matou Austin Cullens, e que o revólver
encontrado no escritório de Trent matou Trent. Tirou
da algibeira direita do colete a bala que o médico lhe tinha
entregue como tendo morto Cullens e entregou-a ao perito
Hogan. Este comparou-a às balas de ensaio atiradas pelos
dois revólveres e informou o sargento de que esta bala tinha
459
sido disparada com o revólver encontrado no escritório de
Trent.
Que acontece então?
O silêncio era profundo, tenso, e Mason fez um compasso
de espera.
Já devem ter compreendido o carácter do sargento
Holcomb continuou. Esse carácter foi revelado muito
claramente na barra das testemunhas. Ele pensou que se tinha
enganado na bala, julgou ter, por descuido, confundido as
duas balas, quando na realidade não cometeu nenhum erro.
Para reparar esse suposto erro, entregou imediatamente a
outra bala ao perito, declarando-lhe ser a bala que tinha
matado Cullens.
Para uma pequena causa, meus senhores e minhas senhoras,
um grande efeito. Este gesto define-nos bem o carácter do
sargento Holcomb. Sem qualquer dúvida, ele não teria
pensado um único momento em acusar a minha cliente, se
tivesse pensado, um instante que fosse, que ela estava inocente.
Mas, convencido de ter cometido um erro, procurou encobri-lo
e foi até testemunhar diante da Corte uma coisa que
é de uma manifesta impossibilidade. A despeito do que o
senhor substituto lhes possa dizer, a despeito do testemunho
do sargento Holcomb, é materialmente impossível que a
bala que matou Austin Cullens tenha saído do cano do
revólver Breel. É igualmente impossível que George Trent
tenha sido morto pelo revólver Trent.
Agora, minhas senhoras e meus senhores, se estivesse
autorizado a continuar o meu raciocínio, poder-lhes-ia indicar
o assassino de Cullens. Não o podendo fazer, vou-me servir
dos factos tal como os conhecemos actualmente e _xpor uma hipótese
razoável e que aclara todo o processo. E não apenas esta
hipótese tende a provar a inocência da minha client", como
é também a única que permite explicar os factos.
Um incidente que nós ignoramos surgiu na tarde do dia
da morte de Cullens, incidente que convenceu Sarah Breel
460
de que Cullens era o Responsável do desaparecimento do Seu
irmão e até da sua morte. Foi a casa dele para ter a certeza.
Já alguém a tinha precedido.
Quem?
Alguém que atirava muito bem com revólveres, alguém
que tinha acesso à arma com a qual sabemos agora que o
crime foi cometido.
Austin Cullens viu essa pessoa. Sabia o que ela queria.
E, sabendo-se culpado, tirou subitamente o revólver do seu
bolso direito e atirou. Mas errou o alvo. Mas o seu visitante
estava, por sua vez, preparado para todas as eventualidades.
Estava armado e não errou o alvo, por sua vez!
Um pouco mais tarde, chegou Mrs. Breel. A porta estava
aberta. Reinava a escuridão. Não havia luz e, lembrem-se,
minhas senhoras e meus senhores, não se encontrou lanterna
eléctrica na sua bolsa. Teve de andar aos apalpões na sombra.
Ela não sabia que Cullens estava estendido no pavimento,
morto. Subitamente o seu pé tocou em qualquer
coisa.
Como dar-se conta, senão pelo tacto? O aposento estava
escuro. Ela não tinha lanterna, nem fósforos. Ela baixa-se
e apalpa com a ponta dos dedos enluvados. É duro e frio.
Pega na coisa com a mão. É um revólver. E depois ela toca
num corpo. Tomada de pânico, ela quer prevenir a polícia.
Maquinalmente, sem dar atenção ao gesto, mete a arma
na bolsa e foge, gritando por socorro. Mas ninguém está lá
para ouvir os seus gritos. Atira-se para o passeio, atravessa-o
a correr. Dois faróis de carro a cegam. No seu terror, ela
nem sequer se dá conta de que desceu para a calçada.
Aqui está, meus senhores e minhas senhoras, a explicação
que os próprios factos nos obrigam a aceitar.
Juraram, todos, responder imparcialmente, honestamente,
às perguntas que lhes serão formuladas.
Não fiz, pela minha parte, nenhum esforço para introduzir
entre os jurados pessoas dispostas a favorecer a minha
461
cliente. E para que serviria tal procedimento? Tudo o que
pretendia, eram pessoas honestas. Não declarou um de vós
que tinha feito, antes dos debates, uma opinião desfavorável
em relação à minha cliente? Acrescentou ele que não se
mostraria menos imparcial. Teria podido recusá-lo, impedi-lo
de se sentar ao vosso lado. E porquê ? Senti que seria justo,
pois era inteligente. E de que mais poderá ter necessidade
a minha cliente, senão de correcção e de inteligência? É esta,
digam-me, a atitude de um advogado defendendo um culpado ?
É a atitude de um defensor que quer aturdir e enganar um
júri?
Minhas senhoras e meus senhores, juraram observar a
lei. Compreenderão, ao escutar as recomendações do juiz,
que são assim conduzidos solenemente a pronunciar a absolvição
no caso de os factos imputados à minha cliente se
poderem explicar, racionalmente, sem implicar a sua culpabilidade.
Façam o vosso dever.
Mason tinha tido apenas o tempo de regressar ao seu
lugar quando Sampson se endireitou, lívido, e com voz
pouco firme:
Uma palavra ainda, meus senhores e minhas senhoras!
Permitam-me que convide o advogado de defesa a prosseguir
o seu raciocínio até ao fim... Quem era então essa pessoa que
atirava tão bem com o revólver? Essa pessoa que, segundo
as suas próprias afirmações, tinha acesso ao revólver com o
qual declarou que Austin Cullens foi assassinado? Essa
pessoa será Virgínia Trent, a sobrinha da mulher sentada
no banco dos réus? Deve ser ela! Desafio-o a que
negue!
Lamento ver-me forçado a interromper o senhor substituto replicou
Mason, irónico mas... devo compreender
que ele acusa Virgínia Trent de ter morto Austin Cullens?
Seguindo o seu raciocínio é claro como água! exclamou
Sampson.
Está bem! Mas diga-me o que lhe parece reprovável
462
no meu raciocínio ? Encontra-lhe algum defeito, por pequeno
que seja ? Se assim é, queira indicá-lo ao júri.
Sampson, que tinha corado, voltou a empalidecer. A resposta
deixava-o sem fala.
Mason virou-se para o juiz.
Preparava-me, Vossa Honra, para sugerir à Corte que
propusesse ao júri a absolvição da minha cliente, se o ministério
público é agora de opinião de que os factos tendem a
acusar Virgínia Trent da morte de Cullens. Mas se o senhor
substituto quer realmente saber quem é o assassino de Cullens,
aconselhá-lo-ei a falar com Paul Drake...
Basta, doutor interrompeu o juiz. Esta declaração
é deslocada. Sente-se. A Corte não tem a menor intenção
de aconselhar o júri, que saberá agir por si mesmo. A menos
que, bem entendido, o substituto não seja de opinião de
suspeitar que Virgínia Trent é a autora do crime.
Sampson hesitou, engoliu a saliva e disse bruscamente:
Não. Queria simplesmente demonstrar o absurdo do
raciocínio de Mr. Mason.
Onde está o absurdo?perguntou um dos jurados,
fixando o substituto com um olhar de profunda crítica.
É apenas uma cortina de fumo! exclamou Sampson.
Um truque para tratar de salvar a sua cliente!
Qual é então o erro da teoria? insistiu o jurado.
Total! Todavia eu... eu terminei a minha acusação.
I Vocês têm a prova... de que Cullens foi morto com o revólver
encontrado na bolsa da acusada. O resto serve apenas para
perturbar os espíritos. Quero acreditar, minhas senhoras e
meus senhores, que se não deixarão ludibriar. Agradeço-lhes.
\ E voltou para o seu lugar.
Ansiosa, Mrs. Breel procurava atrair a atenção do seu
advogado, que virou a cabeça.
O juiz leu em voz alta o texto da lei, fez jurar ao escrivão
que acompanharia os jurados até uma sala onde, em completa
segurança, poderiam deliberar. Depois, quando estes
463
abandonavam a sala, anunciou que a Corte suspendia a
audiência até ao momento em que fosse conhecido o veredicto.
Sarah Breel fez sinal a Perry Mason para que se aproximasse
dela.
Você não devia ter feito isto disse ela.
Feito o quê?
Pôr Virgínia nesta situação.
De que situação está a falar, Mrs. Breel? perguntou
Mason, fingindo-se surpreendido. Ela não arrisca nada,
bem pelo contrário. A senhora ouviu o que disse Sampson:
seria absurdo pensar que ela matou Cullens!
Onde está ela? Quero vê-la.
No campo, para onde a minha secretária a levou,
para dar uma volta. Pensei que um pouco de ar puro lhe
faria bem. Convencia-a a não assistir ao decorrer dos debates.
Sarah Breel suspirou.
Pois bem! Já que temos de esperar a resolução dos
senhores jurados, já que, por outro lado, reconheceu que a
bolsa era realmente minha, faça com que me entreguem o
tricot que lá está. Assim darei um avanço na camisola de
Ginnie.
Experimente antes um problema de palavras cruzadas
aconselhou Mason batendo-lhe na mão. Será menos
perigoso.
Teremos de esperar muito tempo?
Dez minutos, na minha opinião.
Enganava-se em bons vinte minutos. Os jurados só apareceram
depois de uma meia hora de discussão.
Chegaram a acordo, minhas senhoras e meus senhores ?
perguntou o juiz.
Sim respondeu um deles.
O escrivão pegou no documento dobrado e entregou-o
ao juiz, que o estudou e lho devolveu.
Leia disse ele.
O presidente tossiu e, com voz forte:
464
Nós declaramos Sarah Breel não culpada do crime de
que é acusada. O júri sugere unanimemente ao procurador
que proceda imediatamente à prisão de Virgínia Trent e de
instaurar o processo mais inteligentemente do que o fez em
relação à acusada.
Mason retinha um sorriso.
Penso disse ele que bastará registar a primeira
parte do veredicto: a concernente à inocência da minha
cliente.
Aceito respondeu Sampson, sombrio.
O juiz esperou que o veredicto fosse transcrito para se
virar para o júri.
Minhas senhoras e meus senhores disse ele desligando-vos
das vossas funções, a Corte começa por vos agradecer
a maneira como cumpriram o vosso dever. Este processo
é um dos mais surpreendentes dos que a Corte teve
conhecimento. Até ao presente, a Corte declara não saber
se os factos, como o julga o júri, acusam Virgínia Trent de
ter disparado o tiro de revólver que matou Austin Cullens
ou se foi testemunha de uma das mais espantosas escamoteações
judiciárias que se perpetraram diante de um tribunal.
O futuro no-lo dirá. A acusada, está livre! A Corte interrompe-se.

CAPÍTULO XIX

Mason fez entrar o carro no pórtico onde se lia a insígnia
de Gables Hotel. O velho albergue perfilava-se contra o Céu,
silhueta negra picada de um ou outro ponto de luz.
O advogado arrumou o carro, confiou a bolsa e a mala
a um groom que apareceu de uma porta, correndo, e aproximou-se
do gabinete de recepção.
Têm, julgo eu, um quarto reservado em meu nome?
Mr. P. Mason.
30-VAMP. G. 2
465
Perfeitamente, senhor. Deseja subir já?
Sim.
O groom precedeu-o no corredor, abriu a porta, esquivou
o corpo e recebeu a gorjeta. Mason tirou o casaco, lavou o
rosto e as mãos, voltou a vestir o casaco e, passando pela
sala de banho, veio escutar na porta de comunicação que
ligava ao quarto vizinho. Ouviam-se soluços abafados.
Bateu e respondeu-lhe a voz de Della Street.
Quem está aí?
Mason.
Ela abriu.
Virgínia Trent, os olhos vermelhos e inchados, o cabelo
áspero e desalinhado, levantou a cabeça e pegou num quimono
para se tapar.
De onde vem você? perguntou ela.
Do tribunal respondeu Mason aproximando-se.
E andei depressa.
A rapariga deitou os cabelos para trás, enrolou o travesseiro
húmido de lágrimas e encostou-se.
Vou voltar disse ela.
Mason abanou a cabeça.
Sim, volto para a cidade, quer você queira quer não.
A sua secretária não mo deixou fazer em todo o dia.
Ela fez bem.
Ah? Você acha? vou dizer...
O quê? perguntou Mason,
-Tudo.
Comece então por me falar a mim.
A tia Sarah quis proteger-me gemeu a rapariga. Ela
perdeu tanto a memória como eu. Pouco me importa o que
ela dirá e o que vocês dirão, Mr. Mason. Ela está em perigo.
Ela arrisca-se a ser condenada. Os jornais estão todos de
acordo para considerar o veredicto como certo...
O júri acaba de a absolver, Virgíniadisse docemente
Mason.
466
A tia Sarah absolvida?
-Sim!
Como é isso possível?
Parece que o júri compreendeu muito bem todo o
processo.
Não estou a compreendê-lo, Mr. Mason.
Conte-me tudo o que se passou, Virgi.
Sim. vou dizer-lhe tudo. Toda a verdade disse a
rapariga numa voz entrecortada de grandes suspiros. Austin
Cullens tinha-nos marcado, a mim e a minha tia, um encontro
no canto da rua. Veio ter connosco para nos levar de
carro a casa dele. Devíamos, dizia ele, coordenar os nossos
esforços e encontrar o meu tio.
Propôs que nos separássemos depois de ter dividido o
trabalho de busca. Devíamos visitar todos os clubes e salas
de jogo. Tinha, dizia ele, uma lista dos estabelecimentos
frequentados por meu tio.
Tinha levado o meu revólver, pensando ter de entrar
em casas pouco recomendáveis. Levava também uma lanterna
eléctrica.
Então?
No momento em que íamos entrar em casa dele, vi
luz numa janela e Cullens exclamou dizendo que havia
alguém em casa dele. Tirou o revólver e atirou-se para a
porta. Eu não queria segui-lo, mas a minha tia arrastou-me
para a frente. Naturalmente, levava também a arma na
mão. Eu atiro muito bem e...
Bem sei, bem seiinterrompeu Mason, impaciente.
E depois?
Havia um homem na casa. Distingui-o vagamente.
Mr. Cullens girou um interruptor. Fundiu-se um fusível.
As luzes apagaram-se. O homem correu e saiu pela porta
da retaguarda.
Então?
Tirei a minha lanterna e entreguei-a a Mr. Cullens.
467
Você continuava com o revólver na mão?
Continuava. Mr. Cullens exclamou que lhe tinham
roubado jóias e como a minha tia se espantasse de que ele
as deixasse tão à mão, do primeiro ladrão que aparecesse,
ele comentou:
"Não teria sido você que pôs um detective na minha
peugada ?"
" E porque faria eu semelhante coisa, Aussie retorquiu
a minha tia. Será que essas jóias são produto de um roubo ?
Adivinhei bem, não é o caso? Pois bem! Se você nos disser
onde está George não diremos nada. Senão, avisaremos
imediatamente a polícia...
Ela não pôde continuar. Aussie gritou qualquer coisa
que não pude compreender e disparou contra a minha tia.
Que fez então você?
Agi maquinalmente. Na verdade, nem sequer me
lembrei de ter apertado o gatilho. Subitamente vi Mr. Cullens
estendido no pavimento. A minha tia não tinha perdido
um átomo do seu sangue-frio.
"Calma, minha querida disse-me ela. Receio muito
que tenha acontecido alguma desgraça ao George e vai ser
preciso fazer falar Aussie. Vamos também precisar de telefonar
para pedir uma ambulância, mas, antes, vou ver se.
não tem com ele alguma coisa.
Ela abriu-lhe o colete, pondo a descoberto uma cinta
de pele de camelo que tinha os diamantes. Ela pegou neles,
meteu o revólver na sua bolsa e disse-me:
"Chama a polícia, Virgi."
Andei aos apalpões à procura do telefone, quando ela
acrescentou:
" Pára, Virgi. Ele está morto."
E depois?
Virgínia, trémula, parecia incapaz de continuar e escondeu
o rosto no travesseiro.
468
Calma continuou Mason, pousando a mão no ombro
da rapariga.
A tia Sarah disse-me que se tratava indubitavelmente
de pedras roubadas acrescentou, soluçante. Nesse caso,
garantiu ela, tudo irá bem para nós. Senão, ficaremos em
muito má posição. O melhor era sair e calarmo-nos. Ela
obrigou-me a sair pela porta das traseiras. Ela sairia pela
frente... E já sabe o resto.
E você foi ao escritório do seu tio pôr o revólver no
seu lugar? , ,
Sim.
Desconhecia a sorte do seu tio?
Por Deus, sim! Quando vi o corpo dele, a caixa...
julguei que ia enlouquecer.
E que se passou depois?
É muito simples. A minha tia declarou que se não
recordava de nada do que tinha acontecido. Não valia a
pena preocupar-me, repetia-me ela.
Talvez ela seja realmente vitima de uma perda de
memória ? disse Mason.
Não acredite. Ela procura defender-me, é tudo.
Mas você não tem a certeza?
Não.
Mason deitou a Della Street um olhar eloquente.
Virgi: dê muita atenção ao que lhe vou dizer. Que a
sua tia tenha ou não perdido a memória, é coisa que não
altera a sua situação. Você agiu em legítima defesa. É evidente
que Cullens tinha a intenção de matar as duas. Tinha
já morto o seu tio, que, pela certa, se tinha dado conta que
as pedras provinham de um roubo. Foi provavelmente seu
tio que o levou ao escritório; Cullens, vendo-se entalado,
puxou do revólver e abateu o seu tio. Voltando a casa, limpou
o revólver, carregou-o de novo e, conhecendo os hábitos
de seu tio, meteu as chaves do seu carro no correio.
Tudo isto me parecia seguro, mas duvidava. lone Bedford
469
tinha, evidentemente, confiado tudo ao marido e Pete Chennery,
especialista de roubos de jóias, deu-se imediatamente
conta de que havia um bom golpe a dar. Bastava que a
mulher continuasse a inspirar confiança a Cullens. E estava
a roubar-lhe a casa quando Cullens voltou em vossa companhia.
Sei agora que foi realmente Cullens quem matou o seu
tio. Faltavam-me até agora as provas decisivas.
A sua tia, tenha ou não perdido a memória, procurava,
evidentemente, esconder alguém. E só podia ser a si. Quanto
a Pete Chennery servi-me dele apenas como bode expiatório.
O que desejava era conseguir a absolvição de sua tia e tinha
muitas esperanças, pois que, era evidente, tinham confundido
as duas balas.
Depois, quando o sargento se mostrou tão afirmativo na
barra do tribunal, com o único fito de ocultar o erro que tinha
cometido, compreendi que se apresentava uma magnífica
ocasião de forçar a verdade e servir a justiça.
Francamente, Virgi, não sei muito bem o que se teria
passado se a acusação tivesse pressentido a verdade e procedido
a uma investigação minuciosa e imparcial. Tê-la-iam
prendido, acusado de assassínio e teria sido necessário alegar
a legítima defesa. O processo teria sido menos fácil. Quando
um homem é assassinado em sua casa, é sempre difícil provar
a legítima defesa.
Bem sei disse ela entre dois soluços.
Muito felizmente, o sargento Holcomb julgava ter-se
enganado e ter confiado ao perito a bala errada; é difícil
censurá-lo. Não se pode exigir de um oficial de polícia que
seja tão consciencioso a ponto de deixar escapar um criminoso
à justiça simplesmente porque confundiu, por inadvertência,
dois projécteis que lhe foram entregues, quase ao mesmo
tempo, pelo médico-legista. Mas mostrou-se tão preciso e tão
agressivo na barra que aproveitei para a colocar ao abrigo
de todas as perseguições.
470
Como é isso?
O procurador encontra-se desde agora na impossibilidade
de a acusar do assassínio de Austin Cullens, a menos que
possa provar que Cullens foi morto com o revólver que você
colocou na gaveta do seu tio. Para aí chegar, seria necessário
começar por identificar a bala retirada do corpo de Cullens.
E como fazê-lo sem pôr o sargento Holcomb no banco dos
réus? Sem o processar por falso testemunho e sem mergulhar
a sua reputação no ridículo? Não, não ousará tanto.
Não me farão nada?
Nada, se você tiver tento na língua. Não fale a ninguém
do que acabou de me dizer.
Eu queria salvar a tia Sarah, confessar tudo...
Bem sei, e era capaz de o fazer disse Mason, com a mão
no ombro da rapariga. Mas sabia também que a sua tia era
capaz de se aguentar sozinha.
Vamos, coragem, minha querida. Mostre-se tão bom
soldado como a sua tia Sarah. Acabou. Pode voltar a casa,
telefonar ou...
Como... encarou ela a coisa?
Magnificamente. Rolou a cadeira para diante do júri
e agradeceu-lhe. Ali mesmo ela começou a fazer a camisola
que lhe vai oferecer.
Esperava isso mesmovolveu Virgínia. E repare bem
que se tivesse sido condenada a sua atitude teria sido a mesma.
É muito prováveldisse Mason, pensativo. Mas
repare, Della, que estou a morrer de fome. Saí do Palácio
a correr, evitando apertos de mão, cumprimentos, desiludindo
os fotógrafos. Quando comemos nós, onde e o quê?
Vamos a um restaurantezinho que há no outro lado da
Rua disse Della Street. O restaurante do hotel está fechado.
Encontraremos sempre sanduíches de salsichas. Se Virgínia
quiser molhar os olhos e pentear-se...
Isso levaria muito tempo disse a rapariga. E para
mais não tenho fome... Vão à frente... eu tenho de telefonar.
471
Lutei toda a tarde com esta pestezinha, que queria a
toda a força correr para o Palácio observou Della. Conceda-me
um quarto de hora para me pôr em estado de sair,
patrão.
Combinado! Espero-a lá em baixo.
CAPÍTULO XX

Mason passou o braço pelos ombros de Della Street.
Estavam na rua principal, atravessada de carros. Um anúncio
luminoso gritava: "Salsichas quentes".
Um dia violento?perguntou Mason.
Bastante. Levou o dia todo a chorar.
Esperava-o.
O patrão contava com uma absolvição?
Tinha quase a certeza. Mas pouco faltou para que o
sargento Holcomb engolisse a pílula e confessasse a verdade.
Você teve medo?
Não. E, no fundo, não o podem censurar. Qualquer
pessoa teria feito o mesmo no seu lugar. Sobretudo aqueles que,
como ele, vêem no advogado de defesa um inimigo natural.
Julga que tentarão prender Virgínia Trent?
Não o creio. Meti Pete Chennery tão bem no assunto
que a polícia poderá facilmente imaginar um alibi. Dirão
que Chennery se introduziu no escritório de Trent, tirando a
arma, matando Cullens e roubando um punhado de diamantes,
antes de voltar a pôr a arma no lugar.
E se eles lhe deitam a mão?
Não há perigo! exclamou Mason, rindo-se. Chennery
leu os jornais e conhece bem a música. Veja, Della,
é um dos processos onde o advogado não deve esquecer que
o seu alvo final, o de qualquer defensor, é que a justiça deve
ser feita. Um destes casos em que os fins justificam os meios.
472
Resumindo, você aceita lutar com o Diabo utilizando o
fogo do Inferno?
Não é bem isso. O sargento Holcomb deformou a verdade,
concordo, mas com a falsa impressão de que reparava
um erro. Tinha de ter isso em linha de conta.
Caminhava em silêncio.
E Virgi? perguntou Mason. Julga que ela se refará
rapidamente de tantas emoções?
Não tenha dúvidas, patrão. Quando a deixei, acabava
de telefonar ao seu amiguinho.
Mais uma daquelas conversas académicas, desinteressadas,
acerca da balística, do tiro de revólver...
Della riu-se.
Virgínia ainda nos conseguirá espantardisse ela.
-Porquê?
Se tivesse ouvido a conversa... terna até mais não.
E antes de desligar, ela...
-Ela...?
Não lho posso dizer. Seria trair um segredo.
Mostre-me, ao menos...
com uma olhadela, ela certificou-se de que estavam realmente
sós.
Isso já posso disse ela com um risinho gutural.
Baixe-se um pouco...
FIM


OFICINAS
GRÁFICAS
DE LIVROS
DO BRASIL
LISBOA
Curso sobre o Novo Regime de Recuperação da Empresa e de Falência

José de Oliveira Ascensão

- Efeitos da Falência sobre a Pessoa e Negócios do Falido 319


Miguel Teixeira de Sousa

- A Verificação do Passivo no Processo de Falência ... 353


José Lebre de Freitas

- Apreensão, Restituição, Separação e Venda de Bens no Processo de Falência 371


Carlos Ferreira de Almeida
- O Ambito de Aplicação dos Processos de Recuperação da Empresa e de Falência: Pressupostos Objectivos e Subjectivos...... 383


Maria Fernanda Palma
- Aspectos Penais da Insolvência e da Falência: Reformulação dos Tipos Incriminadores e Reforma Penal. 401


Pedro Romano Martinez
- Repercussöes da Falência nas Relaçöes Laborais....... 417

Doutrina

Herbert Schambeck
- Aspectos Jurídicos e Políticos da Evolução da
Integração Europeia no Limiar do Séc. XXI... 427


José Manuel Sérvulo Correia
- Contencioso Administrativo e Estado de Direito.... 445


Jorge Bacelar Gouveia
- O Princípio Democrático no Novo Direito Constitucional Moçambicano... 457


Jorge Cortês
- O Princípio da Maioria. Natureza e Limites... 493

Vida da Faculdade

Antônio de Sousa Franco
- Relatório Curricular sobre a Actividade Académica exercida como Professor Catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa nos anos Escolares de 199011991 a 1994/1995 575


Paulo de Pitta e Cunha
- Doutoramento Honoris Causa de Etienne Cerexhe
pela Universidade de Lisboa... 599




Instituto de Cooperação Jurídica - Estatutos.................. 603

Curso de Pós-Graduação em Ciências Político-Administrativas... 605


ffl Vária
Gil Miranda - Dez Contos para Crianças (e um poema) em Inglês, de João de Castro Mendes...... 615


CURSO SOBRE O NOVO REGIME DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALENCIA

I

EFEITOS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGóCiOS DO FALIDO

JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO

(Professor Catedrâtico da Faculdade de Direito de Lisboa)


SUMARIO

PRELIMINARES

1. Delimitação
2. Classificação
3. Universo legislativo

CAPITULO I - EFEITOS SOBRE A PESSOA DO FALIDO

4. Efeitos pessoais
5. Perda da administração e disposição da massa falida
6. Inibição para o exercício do comércio
7. Natureza da inibição do falido

CAPITULO II - EFICACIA SOBRE AS RELAÇÖES EM CURSO

8. Separação da massa falida
9. Congelamento da massa
10. A liberação do devedor do falido
11. Cláusulas de reserva de propriedade
12. Interrupção das relaçöes em curso
13. O princípio geral: resolver ou conservar?
14. A preferência pela conservação do valor económico dos bens
15. Associação em participação
16. Compra e venda ainda não cumprida, sendo o falido o comprador
17. Compra e venda ainda não cumprida, sendo o falido o vendedor
18. Vendas com entregas periódicas e contrato de fornecimento
19. Venda a prestaçöes e operaçöes semelhantes

20. Venda de coisas já expedidas à data da declaração da falência
21. Contratos de mandato ou de comissão
22. Agência
23. Arrendamento em que o falido é arrendatário
24. "Posse, a título precário, do falido"
25. Extinção ou continuação das relaçöes em curso?
26. A outorga de indemnização
27. Conclusöes quanto à eficácia sobre os negócios em curso
28. Conclusão sobre a sujeição a indemnização
29. As situaçöes não satisfeitas, após o levantamento da falência

CAPITULO III - EFICACIA SOBRE ACTOS PASSADOS

30. Aspectos comuns
3 1. Actos resolúveis em benefício da massa
32. Impugnação pauliana

CAPITULO IV - EFICACIA SOBRE NEGóCiOS POSTERIORES

33. Valor dos actos relativos à massa
34. Repercussão sobre a massa falida

CAPITULO V - A VIDA INSTITUCIONAL DA MASSA FALIDA

35. As dívidas não sujeitas a rateio
36. Significado destas situaçöes

PRELIMINARES

1. Delimitação

Cabe-nos estudar os efeitos substantivos da declaração de falência.
Estes efeitos são tão vastos que se exige antes de mais uma delimitação.

É dedicado à matéria dos "Efeitos da falência" o cap. IV (arts. 147 a 174) do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (a seguir designado, por brevidade, Código de Falência).

Mas logo o cap. V tem por epígrafe "Providências conservatórias".

Poderia pensar-se que se abrangeriam actos como a impugnação pauliana. Mas esta está compreendida já no cap. IV. O que se regula é a própria apreensão de bens.

É matéria que deixaremos de parte, por ser objecto doutra exposição na economia deste curso.

Por idêntica razão, deixaremos também de parte:

- os efeitos penais
- os efeitos laborais
- a "representação" do falido e a posição do liquidatário judicial.


EFEITOS I)A FALENCIA SOBRE A PESSOA E NeGóCiO dO FALIDO


2. Classifícação

Mesmo assim, resta uma massa muito vasta de efeitos. Para a dominarmos, impöe-se uma classificação.

A lei portuguesa divide o cap. IV em três secçöes:

- efeitos em relação ao falido;
- efeitos em relação aos negócios jurídicos do falido;
- efeitos em relação aos trabalhadores do falido.

Esta última é uma inovação, mas a autonomização é contestável. Nas duas restantes misturam-se aspectos muito diferentes. Não melhora em relação ao Código de Processo Civil, que distinguia os efeitos relativamente ao falido e aos credores e os efeitos sobre os actos prejudiciais à massa.

Inúmeras classificaçöes são possíveis ('). Parece-nos que o critério mais elucidativo passa por uma distinção, dentro dos negócios do falido, consoante o tempo a que respeitam. Podemos distinguir assim a eficácia sobre:
- a pessoa do falido;
- os negócios passados do falido;
- as relaçöes em curso;
- os negócios posteriores do falido.

De fora ficarão apenas aspectos instrumentais, como a apensação de acçöes (art. 154 Cod. Fal.), que não ocuparão particularmente a nossa atenção.

Ainda assim, a matéria abrangido em cada título da nossa exposição continua a ser muito vasta . Pelo que vamos privilegiar os efeitos da falência sobre as relaçöes
em curso, por nos parecer a matéria mais carecida de dogmatização. Essa matéria ocupará logo o capítulo I da nossa exposição, por surgir como condicionante dos próprios efeitos em relação a negócios passados do falido.


3. Universo legislativo

Qual o âmbito das fontes a que recorrer?
O Dec.-Lei n'.132/93, de 23 de Abril, que aprovou o Código de Falência,
contém no art. 9 uma norma revogatória expressa. Termina, primariamente, pela revogação da "demais legislação que contrarie o disposto no mesmo Código".
Parece que o legislador português nunca ouviu falar de revogação tácita.

Que dizer porém de preceitos contidos em leis não expressamente revogados, que não contrariem o disposto neste código?

A revogação operada pelo Código de Falência não é apenas a expressa e a tácita: é também a global ou por substituição.
Por esta entendemos a que resulta da
o

(I) Assim, a lei italiana distingue os efeitos relativos ao falido, aos credores, aos actos prejudiciais aos
credores e às relaçöes jurídicas preexistentes. Ferri, Manuale di diritto commerciale, 5'. ed., UTET, 1983, n'. 287,
faz unia divisão tripartida de actos respeitantes aos credores, aos actos realizados e às relaçöes em curso.



substituição global da disciplina, que engloba mesmo preceitos que, isoladamente tomados, não são contrariados por nenhum preceito da nova lei Mas a revogação não é exaustiva, como foi por exemplo a revogação operada pelo Código do Processo Civil de 1939. Dispôs-se: "fica revogada toda a legislação
anterior sobre processo civil e comercial" (3)

. Não se encontra nenhuma previsao semelhante no Código de Falência.

Daqui resulta que:

1) foram revogados preceitos individuais sobre falência, que constassem por exemplo do Código Penal ou da legislação sobre infracçöes anti-económicas;

2) não foram revogados preceitos que constem por sua vez doutras disciplinas globais, como as relativas a instituiçöes de crédito ou ao mercado de valores mobiliários (4).

O art. 2 do Dec.-Lei n'. 132/93 deve ser considerado emanação deste princípio.

Comporta dois trechos.
Por um lado, exclui em absoluto destes processos as pessoas colectivas públicas.
Por outro lado, ressalva legislação especial relativa a:

- empresas públicas;
- instituiçöes de crédito ou financeiras;
- sociedades seguradoras.

Mas neste último trecho não se faz a exclusão da aplicação do Código.

Ressalva-se apenas a legislação especial, e o Código aplica-se se compatível com essa legislação especial. Nomeadamente no que respeita a sociedades seguradoras, o regime da falência estabelecido pelo código é-lhes aplicável, e apenas terão de ser observadas disposiçöes especiais eventualmente existentes sobre a liquidação destas empresas.

Não temos possibilidade de desenvolver o tema. Vamos de todo o modo abstrair desta disciplina sectorial.

CAPITULO I

EFEITOS SOBRE A PESSOA DO FALIDO

4. Efeitos pessoais

Estes efeitos, que são os que atingem o falido em si, podem ser pessoais ou patrimoniais. Comecemos pelos pessoais.



(I) Cfr. o nosso Direito - Introdução e Teoria Geral, 9'. ed., Almedina, 1995, nll 160 I e 162 I e III.

(I) Art. 3 do Dec.- Lei n'. 29 637, de 28 de Maio de 1939. O § único ressalvou todavia alguma legislação.

(I) Assim, o Código de Faléncia não revoga por si o art. 460 do Código Comercial, pois este se integra

na disciplina global do seguro.


EFEItOS DA fALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGóCiO DO FALIdo


O Código de Falência procurou reduzir estes efeitos, numa perspectiva de defesa pessoal do falido.

1) Fixação de residência ao falido

Esta matéria consta logo do art. 128lla C.F., que abre o cap. 11. Na sentença que declarar a falência deve o tribunal "fixar residência ao falido".
O preceito não deve ser considerado extensivo aos administradores de pessoa colectiva, dado o art. 149 C.F. e o princípio de que a sociedade é notificada na respectiva sede, que torna dispensável o termo de residência: cfr. o art. 1192/3 C.P.C..
O art. 1192/1 dispunha que o falido não poderia, enquanto durasse a acção, ausentar-se sem autorização expressa do juiz ou do síndico.
O art. I I 94 sancionava a infracção deste dever e do dever de apresentação em juízo com a pena de desobediência. Tudo isto desapareceu, no que respeita à sanção penal, decerto porque
se pensou serem suficientes os princípios gerais.

2) Dever de apresentação pessoal em juízo. É conteúdo do art. 149. Abrange expressamente "no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os seus administradores".

3) Atribuição eventual de alimentos
Os pressupostos são a carência absoluta de meios de subsistência e a impossibilidade de o falido os angariar pelo trabalho.

O benefício abrange também os administradores de sociedades e de pessoas colectivas. A situação só pode ser entendida como galardão para quem levar a entidade
a uma situação de falência.

Vem desenhado como um direito: "pode o liquidatário......

Em compensação, a generalidade das faculdades de carácter pessoal mantém-se.

Nomeadamente, pode o falido angariar pelo seu trabalho meios de subsistência.
Embora não haja hoje declaração geral, correspondente à do art. 1189/2 CPC, o princípio resulta do art.150/1 C.F. e foi até ampliado, como veremos a propósito dos efeitos patrimoniais.
A generosidade para o falido levou à supressão do princípio do art. 1216 C.P.C.,
segundo o qual a correspondência dirigida ao falido seria aberta pelo administrador, na presença do falido.
Deve-se decerto a preocupaçöes de salvaguardar os aspectos
pessoais.

É uma inovação imprudente, que não toma em conta que todos os direitos, mesmo os pessoais, estão sujeitos a restriçöes para compatibilização com outros direitos.

Assim, a situação comercial fica nas mãos do falido, não havendo maneira de o forçar a comunicar os elementos que recebe. Por isso, o princípio da abertura da correspondência do falido pelos órgãos da falência consta de ordens jurídicas, como a alemã, que sabem demarcar com finura e bom senso as restriçöes dos direitos pessoais.

Criam-se problemas em relação a restriçöes constantes da lei civil. Assim, mantêm-se em vigor as regras do art. 1933/2 do Código Civil, segundo o qual os falidos podem ser tutores, desde que sejam apenas encarregados da guarda e regência
da pessoa do menor? A resposta é afirmativa, pois a revogação operada pelo Código de Falência não foi exaustiva, como vimos, e o preceito compöe o equilíbrio global da lei civil.
Não se vê que o Código de Falência o pretenda pôr em causa.


5. Perda da administração e disposição da massa falida

A declaração de falência tem numerosos efeitos que se referem à actividade comercial (ou mais vastamente negocial) do falido. Vamos examiná-los a propósito dos efeitos pessoais, como é hábito fazer, apenas para não antecipar a conclusão: a de saber se é realmente a pessoa do falido que é atingida.
Com a falência cessa a actividade comercial do falido: veremos porém que, mesmo no decurso da falência, pode ser retomada. E provoca efeitos derivados, como o do encerramento dos livros do falido (art. 148/1 C.E).

Podemos porém distinguir sobretudo duas grandes categorias de efeitos:

- perda do poder de administração e disposição da massa falida;
- inibição para o exercício do comércio.

A primeira consequência, que nos vai agora ocupar, é afirmada no art. 147/1
C. F. Refere-a aos bens presentes e futuros, que passam a integrar a massa falida.
O nº.. 2 determina que o liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.

O que significa esta "representação" é matéria que não nos cabe examinar, na economia deste curso.
A qualificação da limitação do falido em relação aos bens tem variado muito.
Anteriormente falava-se sempre em incapacidade para qualificar quaisquer restriçöes do falido. Esta qualificação é porém hoje genericamente rejeitada.

Poderia falar-se então de limitaçöes (I) ou restriçöes. A qualificação pode apoiar-se na epígrafe do art. 147 C.F., "Limitaçöes resultantes da declaração de falência". A expressão abrangeria quer esta limitação, quer a inibição, de que falaremos a seguir.

Mas não tem nenhum poder explicatívo, porque em sentido amplo toda a situação passiva é uma limitação; em sentido restrito, as restriçöes à capacidade podem ainda ser ou não situaçöes de incapacidade propriamente dita, sendo estas caracterizadas por representarem um estado.

Fala-se também de uma ilegitimidade Sem dúvida que há restriçöes à legitimidade, mas não se pode falar sem mais de uma ilegitimidade do falido em relação à massa falida, como veremos ao tratar do estatuto dos negócios do falido posteriores à declaração de falência.

Preferimos falar em indisponibilidade, por esclarecer melhor a causa da ilegitimidade: assenta no estatuto de uma massa de bens que continua na titularidade
do falido. Mas logo há que precisar que se trata de uma indisponíbilidade relativa



Assim falam Carvalho Fernandes/Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e de Falência Anotado, 2'. ed., Quid Juris, 1995, sub art. 147, nt. 4, e noutros lugares.
(I) Cfr. por exemplo Moia Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3'.ed., Coimbra Editora, 1985, n' 63 IV

(I) Fala já em indisponibilidade relativa Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurt'dica, ll,

Almedina, 1960, n' 87: o falido apenas não pode dispor dos bens de maneira que advenha prejuízo para a massa
falida. Também Pedro de Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, II, Almedina, 1968, § 24 a, enfileira



6. Inibição para o exercício do comércio

A outra grande ordem de efeitos é a inibição para o exercício do comércio.
É a qualificação expressamente usado por lei no art. 148/1 C.F.
Mas não só o falido está sujeito a estas restriçöes. São atingidos também, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os administradores desta.
Mais ainda: a lei alarga o âmbito, ao dizer que a declaração de falência implica a inibição....... incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa."
A ternura da lei pelo falido manifesta-se porém no n'. 2. Tratando-se de pessoa singular o falido poderá exercer essas actividades, desde que a autorização se justifique
pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência e não prejudique a boa liquidação da massa (').

A regra é surpreendente, por não avultar a mínima preocupação de interesse público. Só se estabelecem limites de interesse particular. A perturbação que possa ser
causada por um falido ir administrar empresas terceiras (bastando que tenha necessidade de meios de subsistência e não prejudique a boa liquidação da massa falida) não é considerada pelo legislador.

Mais paradoxal ainda, refere-se o falido pessoa singular. E os administradores de pessoas colectivas e sociedades, que não são falidos? Não poderão eles exercer
também estas actividades para angariar meios indispensáveis de subsistência?
Quando em relação a eles se poderia dizer que - por maioria de razão até, por não serem falidos esta possibilidade deveria ser reconhecida.

Supomos que a resposta a estas interrogaçöes só pode resultar do confronto com o art. 218/1 C.F.

Regula este os casos em que a cessação dos efeitos legais pode ser levantada, a pedido do interessado. E a al. d prevê a hipótese de não ter havido procedimento
criminal e o juiz reconheça que o devedor ou, tratando-se de sociedade ou pessoa colectiva, o respectivo administrador, agiu no exercício da actividade com lisura ou
diligência normal.

Ora bem: se os efeitos relativos ao falido só podem ser levantados se este agiu com diligência normal, também no caso do levantamento parcial dos efeitos, que é
previsto no art. 148/2, a providência só é cabível se se considerar implícita numa apreciação desta índole da situação do inibido. Só se admite que vá exercer qualquer
cargo de titular de órgão se actuou no exercício da sua actividade com lisura e diligência normal.


no que designa as teorias subjectivas, rejeita a incapacidade e coloca a alternativa entre ilegitimidade e
indisponibilidade, embora venha depois a decidir-se pelo primeiro conceito "por se mostrar mais amplo e experimentado".
(I) Este prejuízo dificilmente se configura, particularmente quando o falido vai administrar empresas
terceiras.

Por outro lado, e aqui por maioria de razão, também o administrador de sociedade falida pode ver o efeito levantado, nos termos do art. 148/2. Confirma-o o art. 238/1 d, que é enganador na sua epígrafe, pois não abrange só o falido, mas
também o administrador de sociedade falida. O texto do art. 148/2 é incorrecto, mas entende-se que a sua preocupação seja a de admitir que aquelas actividades só possam
ser exercidos por falidos pessoas singulares, e não por pessoas colectivas ou sociedades falidas. Por isso fala em pessoa singular. Com o que pretende porém abranger as
pessoas singulares que tenham sido administradores de entidades falidas.

Continua porém a manifestar-se a extraordinária afeição do Código de Falência pelo falido. Mesmo os efeitos genericamente estabelecidos, no que respeita à situação
patrimonial do falido, logo poderão ser levantados pelo juiz, quando se fizer esta demonstração. Nem sequer se exige o decurso de qualquer prazo.
Em toda a disciplina dos efeitos da falência sobre a pessoa do falido foi o interesse do falido o motor principal das alteraçöes legislativas.

Muitos outros aspectos haveria que tocar, que teremos que deixar de lado.
Assim, poderia perguntar-se se o falido poderá actuar no mercado de valores mobiliários. O art. 399 d do Código de Mercado de Valores Mobiliários só o exclui
como efeito da condenação. Outros preceitos falam em inibição ou incapacidade:
vejam-se os arts. 618/1 b e 619 d. Também se fala na " idoneidade ". Veja-se ainda o
art. 4. Mas não se refere directamente a falência.
Parece porém que o falido deverá ser excluído, pelo menos por se exigirem garantias de solvabilidade, que o falido não pode dar, por definição.


7. Natureza da inibição do falido

Qual a natureza destas restriçöes que têm por núcleo a proibição do exercício do comércio?

Estas não tendem já à defesa da massa falida. A ineficácia dos actos que a
atinjam já representa para a massa tutela completa. Dissemos que as restriçöes se
justificam pela credibilidade que devem merecer os comerciantes.
Não têm por base uma diminuição na pessoa do comerciante, também. Basta
pensar qua a falência pode ser casual. Uma certa suspeita que na prática social rodeia
sempre o falido não basta para ver como fundamento destas restriçöes uma presunção
de inaptidão por parte daquele.
Pelo que nos parece dever aproximar esta restrição das incompatibilidades para
o exercício do comércio, há pouco apontadas. Não se quer prestigiar uma alta posição, como a de general ou político, mas há sempre uma incompatibilidade entre quem se
encontra numa situação - a de falido - e o exercício do comércio.
De todo o modo, é claro que esta restrição não se destina a proteger o falido, mas sim o comércio em geral. Não há qualquer confusão com as incapacidades,
Aliás, estas proibiçöes nem sequer são emanação ou componente da situação do falido.

É muito clara a lei, ao fazer incidir nesta restrição também os administradores de pessoas colectivas ou equiparadas falidas. Estes não são comerciantes, não foram
declarados falidos, e no entanto estão do mesmo modo sujeitos à proibição de comerciar.

Vê-se assim que está em causa uma defesa geral da credibilidade da vida comercial, e não um conteúdo do estado de falência (9).

Recorde-se também que esta restrição não abrange apenas a proibição de comerciar, mas também a de exercer qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica, empresa pública ou
cooperativa - o que já não tem nada que ver com o exercício do comércio.

A lei fala neste caso em "inibição" (art. 148/1)
Procurando determinar a natureza desta inibição, nada adianta dizer que há uma limitação da capacidade patrimonial do falido. Não é errado mas nada adianta, uma
vez que limitação da capacidade e incapacidade não são conceitos equivalentes Continua por determinar em que consiste afinal semelhante limite.

Não há nenhuma manifestação de incapacidade de exercício, pois esta tem fundamento numa diminuição natural de um sujeito e a sua finalidade na protecção desse sujeito. Não há nenhuma representação de semelhante "incapaz" nestas relaçöes.
A categoria da incompatibilidade, com a sua manifestação geral em Direito Comercial e a sua extensão a pessoas que não estão falidas, dá-nos explicação suficiente


CAPITULO 11

EFICACIA SOBRE AS RELAÇÖES EM CURSO


8. Separação da massa falida

Passando ao aspecto nuclear, dos efeitos da falência sobre os negócios e as relaçöes em curso, vamos distinguir desde logo dois aspectos fundamentais:

¨ separação da massa falida;
¨ liquidação das relaçöes em curso.

Comecemos pelo primeiro aspecto. Do património do falido vai separar-se a massa falida. Os livros do falido são encerrados (art. 148/1), o falido perde a
administração e a disposição dos bens presentes (e também futuros, mas não interessa



(I) E tanto é assim que em países como a Alemanha não encontramos nenhuma restrição desta ordem.
A falência não é configurada como incompatibilidade.
(I") Cfr. o nosso As Pessoas cit., n' 49 I.
(I I) Se o falido, inibido para o exercício do comércio, o exercer efectivamente, adquire a qualidade de
comerciante'? Supomos que se manifesta aqui o princípio geral de que a prática de actos de comércio em
contravenção de uma proibição legal não invalida os actos praticados, mas não permite obter as vantagens inerentes
à qualidade de comerciante. Cfr. as nossas liçöes de Direito Comercial, F.D.L., vol. I, 1986187, n'. 52 II.



agora), passando esse poder para o liquidatário judicial (art. 147/1) (l2)

. Por isso se diz que este representa o falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência (art. 14712).

Na sentença declaratória de falência deve o tribunal decretar a apreensão dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens (art. 128/íc).

Os bens são apreendidos, ainda que arrastados, penhorados ou por qualquer outra forma apreendidos ou detidos. Nenhuma destas regras é de tomar à letra e ambas são corrigidos pelo art. 175/1 C.F. Só são apreendidos os bens susceptíveis de penhora;

e não são apreendidos os bens que já hajam sido objecto de apreensão em virtude de infracção, penal ou de mera ordenação social.

Observamos assim que o falido não deixa de ter o seu património; se bem que seja um património remanescente, é um património geral, que se contrapöe à massa
falida como património autónomo e separado.
Compöem-no os bens impenhoráveis (l3);
os proventos que angariar; a remuneração que lhe for arbitrada em consequencia do auxílio que preste ao liquidatário judicial (art.143/3C.F.);
os alimentos que lhe forem atribuídos;
os rendimentos dos cargos sociais que seja autorizado a exercer (art. 14812);
o que angariar se os efeitos patrimoniais da falência forem levantados nos termos do art. 23811 d C.F.

Com isto se obtém em qualquer caso a separação patrimonial, formando-se a massa falida como património autónomo, afecto ao fim particular da satisfação dos
credores.



9. Congelamento da massa

Por outro lado, há que proceder à liquidação das relaçöes em curso. Mas aqui, há de novo que distinguir vários aspectos.
O primeiro pode traduzir-se por um certo congelamento da massa falida.

Embora este não explique a totalidade da função do processo de falência

I) Suspensão de prazos de prescrição e caducidade oponíveis pelo devedor (art. 29 C.F.).

Esta é efeito do despacho de prosseguimento da acção, portanto prévio à declaração de falência. Mas os seus efeitos vêm a repercutir-se neste momento posterior.

2) Já vimos que, pelo art. 148/1 C.F., são mandados encerrar os livros do falido.
3) Cessa a contagem de juros ou de outros encargos sobre as obrigaçöes do falido e é rigorosamente apurado o montante em escudos, correspondente à liquidação das obrigaçöes expressas em moeda estrangeira ou sujeitas a qualquer factor de
actualizarão (art. 151/2 C.F.).


('2) Tal como o perdem os administradores de pessoas colectivas e sociedades por força do mesmo preceito.

(i 3) Rodrigo Uria, Derecho Mercantil, 13' ed., Marcial Pons, 1986, n' 890, in fine, refere os bens que
não são aptos para converter-se em dinheiro, como o uso e habitação e os usufrutos legais. Mas trata-se de
problemática geral.




Isto representa uma vantagem para o falido que, não o esqueçamos, continua a ser o titular da massa falida.

4) Posse a título precário do falido, art. 171 C.F.
É um preceito complexo. Teremos oportunidade de voltar a ele. Mas no entanto há um claro efeito de congelamento, deixando de poder desenvolver-se uma relação
nos termos que seriam normais. Também o valor das coisas é estabilizado pelo da data da declaração da falência.

5) Perda do direito de compensação, art. 153 C.F.
Também representa uma forma de congelamento.
Aparentemente, o preceito afasta-se do art. 1220 C.RC.. Mas há só simplificação formal. O regime é exactamente o mesmo

(l4) . A compensação legal operada
antes da sentença não pode deixar de ser atendida na verificação de créditos, porque está já consumada. E a consequência da exclusão da compensação, a partir da sentença
da declaração da falência, é exactamente a que estava prevista no art. 1220/2 C.RC.:

o terceiro terá de pagar à massa todo o seu débito mas, não tendo preferência, só receberá em pagamento a percentagem que lhe competir (l5).


6) Encerramento de todas as contas correntes do falido, art. 151 C.F.
Aqui há, de certo modo, também um prolongamento da regra anterior. As contas correntes são reduzidas ao saldo exigível, só esse relevando para a falência.



10. A liberação do devedor do falido

A partir da declaração de falência, os devedores do falido devem cumprir as suas obrigaçöes perante o liquidatário judicial. É uma consequência de o falido
ter perdido a disponibilidade da massa falida e de os bens futuros pertencerem à massa.

Surpreende porém que semelhante princípio não conste, aparentemente, do Código.

Estará no art. 155/3 C.F.? Dispöe este: "0 devedor do falido deve cumprir as suas obrigaçöes perante o liquidatário judicial, só sendo liberatório o pagamento feito ao falido se a sentença não estiver registada e se tratar de terceiro de boa
fé ou se o devedor provar que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa falida".

Porém, o preceito está subordinado à epígrafe: "Negócios posteriores à
declaração de falência".





Pelo contrário, Carvalho FernandesíLabareda, Código, sub art. 153, nt. I, afirmam que o regime se

diferencia sensivelmente.
(") As legislaçöes variam quanto à admissibilidade de compensação em caso de falência. Pode ser
excluída: assim na Alemanha, cfr. Capelle/Canaris, Handelsrecht, 21'. ed., C.H. Beck, 1989, § 22 11 I b. Pode ser
admitida: assim na Itália, mesmo em relação a débitos não vencidos, cfr. Ferri, ob. cit., n' 290, in fine. Podem
fazer-se distinçöes, por exemplo, consoante os débitos e créditos provêm ou não da mesma relação jurídica: assim
em Espanha, cfr. Uria, ob. cit., n'. 887.


Tudo se esclarece, verificando-se que há aqui uma grave falha sistemática do Código.

Aparentemente, o n'. 3, como aliás o n'. 4 também, relativo à cláusula de reserva de propriedade, respeitariam a "negócios posteriores à declaração de falência",
pois esta é a epígrafe do artigo. E não deixariam de ter a sua lógica assim entendidos, pois as aquisiçöes que o falido faça após a falência são inoponíveis mas válidas, como veremos.
A massa está interessada em que se não disfarcem aquisiçöes realizadas, porque os bens futuros também revertem para a massa.
Mas o n'.4 termina com a frase: "sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes". E esses respeitam a actos praticados em prejuízo dos credores antes da falência. O que contradiz a epígrafe do preceito.

Só se compreende se se vir que os n's. 3 e 4 foram transpostos do art. 1190 C.P.C.. E este não regulava apenas os actos posteriores à declaração de falência, mas
também outros aspectos. O n'. 4, que corresponde ao actual, como aliás também os restantes números, era expresso em ressalvar: "Sem prejuízo do disposto nos arts. 1200
a 1204.

..... Estes respeitavam aos efeitos da falência sobre os actos prejudiciais à massa.

Temos assim que o art. 155/4 C.F. está completamente deslocado. Respeita a um efeito da declaração de falência sobre actos anteriores, e não sobre actos posteriores. Para evitar fraudes contra os credores, só reconhece cláusulas de reserva de propriedade que tenham sido estipuladas por escrito até à entrega da coisa a que se
referem. E mesmo então não ficam isentas do controlo das regras sobre actos
praticados em prejuízo dos credores.
O mesmo devemos concluir para o art. 155/3. O art. 1900/3 C.RC. tinha lógica,
porque determinava apenas o regime dos pagamentos feitos ao falido depois de
declarada a falência. O Código de Falência sobrepôs-lhe a afirmação do princípio
de que todas os pagamentos devem ser feitas ao liquidatário, e com isso desequili-
brou-o. Passou a conter um princípio geral, que é viciosamente inserido num preceito
dedicado aos "negócios posteriores à declaração de falência".


I 1. Cláusulas de reserva de propriedade

O art. 155/4 C.F. dispöe: "A cláusula de reserva de propriedade nos contratos de alienação de coisa determinada, em que o adquirente seja o falido, só é oponível à
massa falida no caso de ter sido estipulada por escrito, até ao momento da entrega da coisa, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes".

Acabamos de ver que este preceito padece de uma grave falha sistemática.
Enuncia um princípio geral, quando se insere num preceito relativo a negócios posteriores à declaração de falência. Mas, reconstituído por interpretação o seu significado, a regra pode ser encontrada. A lei toma uma cautela especial, que limita
a admissão na falência de cláusulas de reserva de propriedade.
Essa cláusulas terão de ser estipuladas por escrito. E não apenas isso: o escrito terá de fazer-se até ao momento da entrega da coisa. Escritos posteriores não serão
atendidos.



12. Interrupção das relaçöes em curso

As relaçöes não ficam apenas congeladas. Para além disso, há fenômenos de interrupção, a preparar a liquidação futura.
O preceito mais importante é o do art. 151/1: "A declaração de falência torna imediatamente exigíveis todas as obrigaçöes do falido, ainda que sujeitas a prazo não
vencido".

Este preceito afasta-se do do art. 1196/C.P.C., onde se dizia que a declaração de falência produz o imediato vencimento de todas as dívidas."
A diferença é perturbadora, por agora se falar em exigibilidade (l6) .
E mais perturbadora ainda por a epígrafe do art. 151 C.F. ser: "Vencimento imediato de
dívidas; estabilização do passivo".
Em caso de divergência entre a epígrafe e o texto prevalece o texto, como
elemento directamente determinante (l7). Ora aqui há divergência, pois a exigibilidade
aponta para um acto, a interpelação, só com ele se produzindo o vencimento da
obrigação. Este deixaria de ser automático.
Mas o desenho que aparentemente resulta da lei é estranho. Enquanto se não
fizesse a interpelação as obrigaçöes não venceriam. Se o liquidatário judicial não tiver
conhecimento de uma dívida, ou por lapso não proceder à interpelação, a dúvida não
se vence?

Pode suscitar-se por isso a hipótese de o Código de Falência, por grave incorrecção, falar de exigibilidade quando pretendia referir o vencimento. A epígrafe traduziria essa intenção do legislador, que teria ficado frustrada na formulação ('8).

A interrupção de relação em curso, através de uma liquidação que prepara a extinção das situaçöes, já resultaria também de providências que referimos ao congelamento: seja o caso da liquidação das obrigaçöes expressas em moeda estrangeira ou sujeitas a qualquer factor de actualização (art. 151/2 C.F.).

Tem ainda carácter preparatório da liquidação patrimonial e repartição futura o art. 152 C.F.: "com a declaração de falência extinguem-se imediatamente os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituiçöes de segurança social, passando os respectivos créditos a ser exigíveis apenas como créditos comuns".

É um preceito destinado a estabelecer a igualdade entre os credores; para maior segurança, tornam-se uns mais iguais que os outros. É um preceito muito próprio da época de ultra-liberalismo selvagem em que vivemos, em que o Estado é colocado na sua posição natural de vaca leiteira dos privados.
Mas como os dinheiros do Estado são os dinheiros de todos, atinge-se assim o ideal de serem todos a pagar para benefício
de alguns.




Carvalho Fernandes/Labareda, Código cit., sub art. 151, nt. I, afirmam porém não haver diferenças a referir.
(") Cfr. o nosso O Direito cit., n'.224 II, sobre a valia destes elementos formalmente incluídos na fonte.
('8) Uria, ob.cit., n'. 886, observa que regra semelhante pode levar aopagamento antecipado, pelo que a
lei espanhola sujeita nesse caso o crédito a desconto. Não se vê que o mesmo possa acontecer perante a lei
portuguesa, o que implica assim uma vantagem injustificada para o credor.



13. O princípio geral: resolver ou conservar?

Passamos a examinar a disciplina trazida directamente às relaçöes em curso.
Esse é o objecto dos arts. 161 a 171 C.F. Querer-se-ia chegar a um desfecho justo dessas relaçöes.
Mas a situação aparentemente resultante do Código seria inadmissível.
Enuncia-se um conjunto de tipos singulares, compra e venda, associação em participação, mandato, arrendamento.- e estabelece-se uma disciplina específica.

Mas tudo se limita a essas previsöes singulares. Não se encontra nenhum princípio geral. Foi suprimido o princípio constante do art. 1197/1 C.RC.:
"A declaração de falência não importa a resolução dos contratos bilaterais celebrados pelo falido".

Que concluir? Que o princípio é o de que os contratos celebrados pelo falido se prolongam e o liquidatário judicial só lhes pode pôr termo nos casos particulares
estabelecidos por lei?

Mas isso seria incompatível com a finalidade da falência, como execução universal.
Haveria necessariamente contratos que teriam de subsistir - e perante quem?

Quando parece que na lógica da falência está antes a redução, se necessário, de toda a massa falida a dinheiro ('9).
Por outro lado, também se não encontra um princípio geral, de resolução forçosa de todos os contratos do falido; nem isso se justificaria, pois pode ser conveniente
manter essas relaçöes em vida, quando isso for favorável para a massa, mesmo que a lei o não preveja especificamente.

Como proceder então? Temos de partir de uma análise dos casos singulares, procurando o que será compatível com estes. O princípio reitor deverá estar imerso
nos tipos previstos. Uma vez apurado, poderá ser aplicado aos casos não contemplados.

Mas para esta análise não interessam todas as previsöes que a lei dedica aparentemente a esta matéria.

Assim, o art. 165 C.F. dispöe que a falência de um ou mais membros de um agrupamento complementar de empresas, que não tenham sido excluídos do agrupamento pelo simples facto da sua falência, só determina a dissolução do agrupamento se no contrato assim se houver convencionado.
Aqui não se disciplina a falência, mas o agrupamento complementar de
empresas. Não tem que ver com negócios em curso, mas com a repercussão da falência
dum dos membros sobre o agrupamento.
O art. 172/2 C.F. trata da perda da posse depois de terem sido aprendidas para
a massa falida as coisas que devem ser restituídas. Respeita à vida institucional da
massa falida, e não aos efeitos da falência sobre os negócios em curso.
O art. 170 C.F. regula o arrendamento em que o falido é, não arrendatário, mas
senhorio. Mas não interessa para os nossos fins. A manutenção da posição do arrendatário decorre do carácter real (no nosso entendimento) dessa posição; não é objecto da disciplina deste preceito. A possibilidade de o liquidatário judicial intentar
ou fazer prosseguir acção de despejo decorre da posição institucional deste. O preceito é aliás ocioso, pois o liquidatário pode propor quaisquer outras acçöes de extinção do
arrendamento, mesmo sem previsão específica. Também é inútil o n'. 2, que garante ao arrendatário os direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em caso de alienação
do prédio arrendado. De todo o modo, não se disciplinam aqui negócios em curso.

A terminologia legal nesta matéria é muito variada: ora se fala de resolução, ora de revogação, ora de denúncia. Carvalho Fernandes/Labareda contestam que se trate tecnicamente de resolução (20) Não nos vamos ocupar da fixação rigorosa das
categorias jurídicas, por não ser imprescindível para a economia da nossa exposição.



14. A preferência pela conservação do valor económico dos bens

Antes mesmo de iniciar a apreciação individualizada, podemos fazer algumas observaçöes gerais.

O fim do processo de falência é realmente proceder à liquidação da massa falida. É um processo de liquidação de patrimónios; por isso fica colocado na dependência dum liquidatário.

O objectivo típico não é pois conservar o património. Mas também não podemos dizer que semelhante objectivo seja juridicamente irrelevante. Pelo contrário, foi sendo
sucessivamente acentuado, levando ao desenvolvimento paralelo dos processos de recuperação da empresa, hoje correlacionados integralmente com o de falência.

Podemos assim concluir que será preferível a conservação do património e a transmissão na sua integralidade ou em elementos funcionais a terceiro, se isso for
possível. O falido já não lucrará com isto, mas lucram a economia geral e a função
social que é atribuída à riqueza.
Dando mais um passo neste sentido, o art. 145/1 determina que o liquidatário
judicial deverá agir como um gestor diligente e nomeadamente "promover a con-
servação e frutificarão dos direitos do falido, evitando quanto possível o agravamento
da situação económica dele".
Releve-se o habitual desvelo pelo falido, que faz a lei colocar em primeiro plano
os interesses do falido e não os interesses institucionais da massa. Para o que nos
interessa, avulta a referência a uma actividade de frutificarão. Isto mostra que o liquidatário não é apenas o algoz da massa falida, mas deve ser antes de mais o
gestor criterioso que aproveita as potencialidades económicas desta.

Daqui resulta que o termo escolhido pelo Código, "liquidatário", é afinal impróprio, pois ele é bem mais
do que isso.

Assim, o liquidatário pode dirigir-se para a alienação do estabelecimento comercial em bloco, em vez de proceder à sua decomposição. Por isso, há-de haver

um espaço de manobra, que permita a opção entre dissolvê-lo ou continuar a exploração.

Mas isto só se for economicamente viável. Se o não for, há que conduzir à massa falida para um desfecho próximo. Nada permite a demora na liquidação do património se não for justificado pela melhor satisfação dos credores.

A lei não marca para isso nenhum prazo. Mas deve partir do princípio de que a comissão de credores não permitirá um prolongamento inútil.

Em todos os casos em que a empresa ou o estabelecimento não puderem ser mantidos, o destino é a transformação do património em valores líquidos, que permitam a satisfação, mesmo parcial ou rateada, dos credores.


15. Associação em participação

Passemos agora à análise das figuras específicas constantes da lei.

A falência do contraente-associante implica necessariamente a extinção da associação em participação (art. 166/1 C.F.).
Neste caso, o associado é obrigado a entregar à massa a sua participação nas
perdas, podendo por outro lado reclamar, como credor comum, quaisquer prestaçöes
que tenha realizado e não devam incluir-se nas perdas da associação (art.l66/2).
Supomos porém que neste caso há uma mera manifestação do princípio de que
não é possível a compensação de créditos com débitos do falido (art. 153).

16. Compra e venda ainda não cumprida, sendo o falido o comprador

Os arts. 161 a 164 são dedicados a vários aspectos da compra e venda.
¨ art. 161 disciplina a compra e venda ainda não cumprida.
Há que distinguir consoante o falido é o comprador ou o vendedor.

Se é o comprador, a lei parte da previsão de que não haja ainda total cumprimento do contrato por ambas as partes (art. 161/1 C.F.). Pode perguntar-se porém se
é necessário que ambas não tenham cumprido, ou se basta que só uma delas o não tenha feito.

A resposta está contida no regime estabelecido no preceito. O vendedor pode realizar ou completar a prestação. O comprador pode sujeitar o vendedor ao recebimento do preço. Isto pressupöe que ambos, comprador e vendedor, ainda não
cumpriram.

A faculdade do vendedor, de realizar ou completar a prestação, compreende-se porque o vendedor, se prestar, fica sujeito ao pagamento rateado do preço. É razoável que se lhe dê a possibilidade de não incorrer nesta situação.
Pode porém o vendedor não tomar essa atitude (21).

O contrato fica então em suspenso. Perante isto nasce em alternativa a faculdade do liquidatário judicial de:




(21) Parece que o vendedor se deverá pronunciar no prazo que resulte do contrato. Caso não haja prazo,

o liquidatário poderá, parece, assinar-lhe prazo para o fazer.




a) declarar que quer dar execução ao contrato;
b) resolvê-lo, ficando a massa liberada das obrigaçöes.

E se o liquidatário não tomar nenhuma atitude? Pode nessa altura o vendedor fixar um prazo razoável para ele se pronunciar, findo o qual o contrato se considera
resolvido.
Surgem problemas na conjugação deste preceito com o do art. 468 do Código comercial.
Dispöe este que "o vendedor que se obrigar a entregar a coisa vendida antes de lhe ser pago o preço considerar-se-á exonerado de tal obrigação, se o comprador falir antes da entrega, salvo prestando-lhe caução ao respectivo pagamento".

Carvalho Fernandes/ Labareda entendem que o Código de Falência não revogou este preceito, uma vez que ele é referido no art. 201/1 d C,F. ( ). Determina este que
as disposiçöes relativas à reclamação e separação de créditos são igualmente aplicáveis ,,ao caso previsto no art. 468'. do Código Comercial e nos termos dele, se tiver havido
indevida apreensão da coisa vendida".

Mas o art. 468 do Código Comercial é objecto da revogação global operada
pelo Código de Falência, pois está incluído no objecto deste. Por outro lado, consome
a disciplina do mesmo preceito, substituindo a extinção da obrigação de entrega, aí
prevista, por uma faculdade em alternativa. O art. 201/1 d faz uma remissão errada para um preceito revogado, mas o seu sentido substantivo não é mantê-lo em vida, é
remeter para o conteúdo material (23):
pressupöe-se que houve indevida apreensão da
coisa vendida, quando o vendedor não estava obrigado a entregá-la. Tudo isto cai inteiramente na disciplina do novo Código.
Outros problemas serão adiante examinados. Notemos que a lei fala de uma faculdade de resolução pelo liquidatário, mas nada diz sobre o dever de indemnizar, em contrapartida dessa resolução.



17. Compra e venda ainda não cumprida, sendo o falido vendedor

A hipótese de o falido ser o vendedor, em compra e venda ainda não cumprida à data da declaração da falência, é regulada no art. 161/3 C.F.
Se o domínio da coisa já se transmitiu, a relação não sofre alteração. O preço pagar pelo comprador figurará como crédito da massa.

Pelo contrário, se o domínio não se transmitiu, cabe ao liquidatário optar entre cumprir ou resolver o contrato. Mas neste caso, se optar pela resolução, o comprador
pode reclamar da massa falida indemnização por falta de cumprimento. Há assim diversidade nas previsöes legais sobre resolução, consoante o falido é comprador (n'. 2)
ou vendedor (no. 3).


e e

C(;di,@<) cit., sub art. 161, n.' 2.

É @te o sentido geral da lei que faz uma remissão para a lei já revogado: cfr. o nosso O Direito cit.,

n'. 161 lll, onde analisámos especificamente esta situação.

15. Vendas com entregas periódicas e contrato de fornecimento

O art. 162 C.F. limita-se a remeter a disciplina destas matérias para o art.
161/1 e 2. Conclui-se assim que só abrange as situaçöes em que o falido seja
comprador; no caso do contrato de fornecimento, só abrangerá aquelas em que o falido
seja o destinatário do fornecimento prestado pela outra parte.
Não se justifica que repitamos a análise do regime legal. Mas observe-se que
o art. 161 é tomado como o preceito-padrão nesta matéria, de modo a aplicar-se mesmo
a contratos duradouros, como os referidos; e nomeadamente ao contrato de
fornecimento, que não é um contrato de compra e venda.


19. Venda a prestaçöes e operaçöes semelhantes

Esta é a epígrafe do art. 163 C.F. Mas é enganosa, pois logo o n'. I limita o
conteúdo aos casos em que há:

- venda por um preço de mercado ou de bolsa, em determinada data ou dentro
de certo prazo;
- venda a prestaçöes;
- venda com reserva de propriedade (24);
- locação, com cláusula de reversão final da propriedade.

Por outro lado, vemos que de novo a compra e venda é tomada como o contrato-
padrão, a que se equiparam figuras, como a locação financeira e certos alugueres de
longa duração, que não representam tecnicamente compra e venda.
De novo surge a alternativa, a juízo do liquidatário, de optar pelo cumprimento
ou pela resolução do contrato.
Se optar pela resolução, fica sujeito a indemnização (previsão que, recorde-se,
não se encontra no art. 161/2). Para além disso, o art. 163/3 dá o critério para o cálculo
desta indemnização.


20. Venda de coisas já expedidos à data da declaração de falência

É o objecto do art. 164 C.F. Pressupöe-se agora que as coisas foram já
expedidos mas ainda não recebidas pelo falido. Ressalva-se a hipótese de outrem ter
adquirido direitos sobre elas.
Dá-se ao vendedor, ainda neste caso, a possibilidade de reaver as coisas,
tomando a seu cargo as despesas de retorno dos bens e a restituição dos adiantamentos
recebidos. O preceito representa assim uma excepçao ao art. 161, uma vez que permite,




(l4) Esta cláusula só é oponível à massa falida no caso de ter sido estipulada por escrito, até ao momento

da entrega da coisa, nos termos do art. 15514 C.F.


EFEl7'OS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGóClO DO FALIDO





mesmo quando não tiver havido total cumprimento por uma das partes, que o vendedor
possa reaver a coisa, se ela tiver sido expedida, mas ainda não recebida, pelo compra-
dor entretanto falido.
Que o vendedor ainda não deve ter sido pago resulta do mesmo preceito, ao
permitir ao vendedor manter o contrato, submetendo-se nesse caso a ser pago, como
credor comum, pelas forças da massa falida.
No fundo, ainda há que contar com outra ampliação. O art. 201/5 C.F. dispöe
que as mercadorias enviadas ao falido, por efeito de venda a crédito, podem ser
reclamadas nos termos do art. 164/1 e 2, enquanto se encontrarem em trânsito ou
mesmo depois de entrarem para o armazém do falido, se puderem ser identificados e
separadas das que pertencem à parte restante da massa. Pressupöe da mesma forma
que não há total cumprimento por ambas as partes, e por isso não se aplica o art. 161:
o vendedor já cumpriu, mas o comprador-falido não, porque a venda é a crédito.
A coisa pode ser recuperada se em trânsito, e com isto nada se acrescenta ao art.
164/1; mas pode também sê-lo mesmo depois da chegada ao poder do falido, desde
que se não tenha confundido ainda com a massa. Quer dizer, o limite não está afinal
em a coisa vendida a crédito se encontrar ainda em trânsito, como parecia resultar do
art. 16411 C.F., mas na separabilidade da coisa, dentro da massa falida.
A formulação da lei é assim defeituosa. O verdadeiro princípio é o de que as
coisas enviadas mas não pagas podem ser recuperadas, desde que separáveis da massa
falida.
A faculdade do credor só se justifica por não ter sido pago. Por isso, o
liquidatário judicial pode opor-se, pagando o preço integral contra a entrega das coisas
expedidos (art. 164/2). Por maioria de razão, este preceito aplica-se ao caso de as
mercadorias terem já entrado no armazém do falido mas serem separáveis, nos termos
do art. 201/5.
A este propósito convém atentar no art. 201/4, pois contém ainda um efeito da
declaração da falência sobre os negócios em curso. Se as mercadorias enviadas ao
falido a título de consignação ou comissão estiverem vendidas a crédito, pode o
comitente reclamar o preço devido pelo comprador, a fim de o poder receber deste.
Dá-se assim a substituição do falido pelo vendedor, permitindo a este subtrair-se à
contingência de se tornar credor da massa falida.


21. Contratos de mandato ou de comissão

O art. 167/1 regula os contratos de mandato, realizados também no interesse
do mandatário, e os de comissão. Sendo declarado falido o mandante ou comitente,
estes não caducam necessariamente, mas o liquidatário judicial tem a opção de mantê-
-los ou revogá-los. Mas se os revogar, a outra parte não tem direito a compensação
pelo dano sofrido.
Se o mandato for apenas no interesse do mandante, não se pode a contrario
concluir que não pode ser revogado. Pode, a fortiori, pelos princípios gerais.
O art. 167/2 regula por sua vez a falência do mandatário com poderes de
representação e a do comissário. A declaração faz caducar imediatamente os contratos.


JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO





Suscitam-se problemas curiosos no caso do mandato sem representação.
Também aqui pensamos não ser convincente arguir a contrario. Mas, se a lei considera
imperativamente que ninguém pretende manter um representante ou um comissário
falido, já não terá a mesma atitude rígida em caso de o falido ser um simples
mandatário. O contrato não caduca automaticamente, mas poderá ser revogado, ou pelo
mandante, por aplicação das regras do mandato, ou pelo liquidatário judicial, consoante
resultar das regras da falência.
Não se vê aliás motivo para que o falido não possa aceitar novos mandatos,
após a declaração de falência.
A lei não dá nenhuma abertura a uma indemnização, em consequência da
falência do mandatário ou do comissário.


22. Agência

O art. 168 determina que o contrato de agência se extingue com a declaração
de falência de qualquer dos contraentes.
A solução é aqui mais radical que a trazida para os casos de mandato e de
comissão do art. 167, pois a caducidade automática só se daria em caso de falência
do mandatário com poderes de representação ou do comissário.
Não se faz nenhuma referência a indemnização.


23. Arrendamento em que o falido é arrendatário

Regula-o o art. 169 C.F. O arrendamento não cessa mas o liquidatário pode
denunciá-lo, de acordo com os interesses da massa falida.
O art. 1197/2 C.P.C. dispunha que no caso de ser mantido o arrendamento de
casa, estabelecimento ou armazém do falido, as rendas seriam pagas integralmente pelo
administrador da falência. Não há hoje disposição correspondente. Parece que, deste
modo, tudo o que respeita à casa de habitação é considerado, e bem, exterior à falência.
O art. 169 dá ao senhorio o direito de reclamar as rendas em dívida até à
denúncia, como créditos comuns, o que é óbvio.
Pode ainda, nas mesmas condiçöes, reclamar a indemnização devida por
incumprimento do contrato.
O senhorio pode requerer a resolução do contrato por falta de pagamento de
rendas, mesmo após a declaração da falência, mas não tem direito a indemnização
pela mora anterior (n'. 2) (21).
O n'. 3 prevê a hipótese de o prédio dado de arrendamento não ter sido ainda
entregue ao arrendatário quando este é declarado falido. Neste caso, ambas as partes
podem desistir da execução do contrato. O preceito nada acrescenta em relação ao




(25) Foi assim afastada a regra constante do art. I I 97/3 CPC.


EI,'El'rOS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGóClO DO FALIDO





falido, pois o ri'. I já lhe dava a possibilidade de denúncia, mas traz uma faculdade
inesperada ao senhorio. A desistência implica para a parte a quem for oposta uma
indemnização por incumprimento.
Este preceito é uma peça importante no sentido de se conceber o arrendamento
com contrato real quoad constitutionem.
Nos termos do no. 4, tanto o senhorio como o liquidatário podem fixar um ao
outro um prazo razoável para a declaração de resolução do contrato, findo o qual cessa
o direito de resolução. Esta regra, porém, só é referível à situação do no. 3. A resolução
nos termos do no. 2 e sobretudo a denúncia nos termos do ri'. I seguem as regras gerais.
É ii-nportante que assim seja, pois doutro modo eliminava-se o que parece ser um
princípio fundamental da falência, como veremos: a possibilidade de uma liquidação
integral do património do falido.


24. "Posse, a título precário, do falido"

O art, 171/1 C.F. (e só este número, como dissemos, respeita aos efeitos da
falência sobre as relaçöes em curso) tem esta espantosa epígrafe. Na realidade, nada
tem que ver com a figura técnica da posse a título precário. Refere~se ao dever do
falido de restituir coisas a que outrem tem direito, no caso de essas coisas não se
encontrarem no seu poder à data da falência.
Nos termos normais, o liquidatário deveria reavê-las para proceder à entrega.
Mas a lei quebra este desenho normal, e aqui temos outro efeito de falência sobre as
relaçöes em curso. O liquidatário não as "pode" reaver, e é ao titular destas que
cumprirá fazer valer o seu crédito por elas, segundo o valor à data da declaração da
falência. Trata-se de um crédito comum, portanto sujeito a rateio.
Isto não impede, porém, que o credor possa reclamar as coisas do poder de
terceiros, se a isso tiver direito nos termos gerais, não tendo assim de se sujeitar às
consequencias do concurso pelo valor da coisa.


25. Extinção ou continuação das relaçöes em curso?

Terminámos a análise das previsöes do Código de Falência respeitantes aos
reflexos da declaração de falência sobre os negócios em curso. Foi longa e dispersava,
como todas as análises casuísticas. Permitirá todavia que com esta base desenhemos
os princípios gerais?
Perguntei-nos antes de mais: as relaçöes em curso extinguem-se automatica-
mente? Continuam? Ou podem ser resolvidas, revogados ou denunciadas pelo
liquidatário?
O art, 1197/1 C.RC. continha um princípio geral: a declaração de falência não
importa a resolução dos contratos bilaterais celebrados pelo falido, que serão ou não
cumpridos consoante for julgado mais conveniente para a massa.
Este princípio desapareceu: o Código de Falências é mais empírico, neste sec-
tor essencial. Reunindo os dados disperses, por que soluçöes concluir, afinal?


JOSÉ DE OLIVEIRA ASCEN,@ÃO





A extinção automática ou caducidade das relaçöes em curso é determinada nos
seguintes casos:

I) Art. l5l/l-encerramento das contas correntes.
2) Art. 166/l-associação em participação (,pela falência do associante).
3) Art. 167/2-mandato com poderes de representação e comissão (a falência
do mandatário ou do comissário "faz caducar imediatamente os contratos").
4) Art. l68-agência (pela declaração de falência de qualquer das partes).

Pelo contrário, não encontramos nenhum caso em que a lei imponha a manu-
tenção de uma relação duradoura. Não há contrato nenhum que, por irresolvido, possa
obstar à liquidação universal a que a falência tendencialmente se dirige.
Na generalidade dos casos, é dado ao liquidatário o poder de pôr fim à relação.
A lei ora fala de revogação, ora de resolução, ora de denúncia, mas dissemos já que
nos não preocuparia uma qualificação rigorosa. Vamos elencar as hipóteses em que
este poder potestativo é atribuído, abstraindo por enquanto de o exercício do poder
originar ou não o dever de indemnizar:

l ) Venda não cumprida, sendo o falido comprador (art. 161/2): dar execução
ao contrato ou resolvê-lo.
2) Venda não cumprida, sendo o falido vendedor (art.]61/3): cumprir ou
resolver.
3) Vendas com entregas periódicas e contrato de fornecimento (art. 162): aplica
o art. 161/2
4) Venda a prestaçöes ou operaçöes semelhantes (art. 163): cumprir ou
resolver
5) Mandato também no interesse do mandatário e comissão (art. 167): conti-
nuação ou execução, em caso de falência do mandante ou comitente.
6) Arrendamento em que o falido é arrendatário (art. 169/1): manter ou
denunciar.
7) Idem, se ainda não houve entrega (art. 169/3): manter ou desistir..

A outra parte são também atribuídos poderes de manter ou pôr termo ao
contrato nos seguintes casos:

I) Venda ainda não cumprida por ambas as partes (art. 161/1): mas ao vendedor
cabe aqui só a faculdade de manter o contrato
2) Venda com entregas periódicas e contrato de fornecimento (art. 162): aplica
o art. 161/1
3) Venda de coisas já expedidos, mas ainda não pagas nem confundidas na
massa falida (arts. 164/1 e 20115): manter ou reaver
4) Arrendamento em que o falido é arrendatário (art. 169/3): manter ou desistir,
se o prédio não foi ainda entregue.

Para além de tudo isto há efeitos atípicos, como o do art. 171/1 ("posse, a título
precário") ou 201/4 (mercadorias enviadas ao falido a título de consignação ou
comissão), que se consubstanciam numa reformulação dos poderes que resultariam de
um desenvolvimento normal da relação.


EFEITOS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGO('IO DO FALIDO




26. A outorga de indemnização

Vejamos agora em que casos a lei outorga, como contrapartida da extinção da
relação, o direito a indemnização.
O art. I 197/1 C.P.C. atribuía sempre, como contrapartida do não cumprimento
do contrato por parte do falido, o direito de exigir à massa a indemnização pelos danos
sofridos.
Aqui, de novo a posição do Código de Falência é mais empírica. Não há
princípio geral.

I - Negam a indemnização:

I) Art. 167/1, em caso de revogação unilateral do contrato de mandato ou de
comissão pelo liquidatário judicial.
2) Art. 164/1 (e art. 201/5), implicitamente, em caso de retoma pelo vendedor
da coisa ainda não confundida na massa falida.
3) Art. 169/2, em caso de resolução do contrato pelo senhorio com fundamento
em falta de pagamento de rendas anterior à declaração de falência. Mas
trata-se da indemnização pela mora.

11 - Concessão de indemnização como crédito comum:

I) Art. 161/3, em caso de falência do vendedor. O crédito parece ser comum.
2) Art. 163/3, em caso de venda a prestaçöes ou operaçöes semelhantes, em
que a lei dá inclusivamente o critério de cálculo da indemnização.
3) Art. 169/1, em caso de denúncia do arrendamento por parte do arrendatário
falido.
4) Art. 169/3, em caso de desistência da execução do arrendamento. Esclarece-
-se que, sendo devida pelo arrendatário-falido, constitui crédito comum.

111 - Concessão de indemnização como crédito integral

Não há propriamente nenhum caso desta índole nos preceitos que examinamos.
¨ art. 164/2 contempla o pagamento de um preço, e não de uma indemnização.
¨ art. 171/2, relativo à " posse precária ", não respeita, como vimos, a esta fase.
A matéria da indemnização dos trabalhadores do falido está sujeita a lei
especial.

iv - Não esclarecem se há ou não indemnização

I) Art. 161/1 e 2, relativos à compra e venda ainda não cumprida em que o
falido seja comprador.
2) Art. 162, relativo às vendas com entregas periódicas e a contrato de
fornecimento, que remete para o anterior.

Tai-nbém não esclarecem se há ou não indemnização todos do preceitos em que
se decreta a extinção automática da relação.


JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO





27. Conclusöes quanto à eficácia sobre os negócios em curso

Passemos às conclusöes, no que respeita primeiro ao destino da relação. A lei
actual é menos esclarecedora ainda que o art. 1197 C.p.C. (21).
Mas, a partir dos casos singulares, não podem deixar de se detectar princípios
comuns. Esses são indispensáveis para a própria interpretação daquelas hipóteses e
para a solução de casos não previstos (27).
I) Nenhuma relação pode deixar de ser levada a termo, se for necessário.
É isso que corresponde a uma liquidação universal, como é a falência. É o
próprio sentido de Abwicklung, liquidação, visto que liquidar é reduzir a dinheiro (28)
Apenas recordamos que a liquidação ultrapassa o conceito de Direito das Obrigaçöes;
ou, se quisermos, é instrumental para a satisfação justa dos credores que é a finalidade
institucional precípua do processo de falência.
Logo, o processo tem de estar apetrechado de modo a nele se poder pôr termo
a qualquer relação do falido.
2) Os actos de cumprimento do falido não são repostos em causa.
Estamos evidentemente a falar de actos verdadeiros e não praticados em
prejuízo dos credores: estes ocupar-nos-ão a seguir.
Determina-se assim em homenagem à estabilidade das relaçöes e à protecção
de terceiros (29).

O falido passa a ter um direito à coisa ou ao preço, que revertem para a massa.
Não encontramos propriamente nenhuma excepção a esta salvaguarda dos actos
praticados sem mancha antes da declaração de falência. A disciplina das suas
consequências futuras não implica a destruição de efeitos passados.
3) Os contratos de transferência de propriedade são mantidos, em beneficio
da massa, desde que a coisa se tenha tornado inseparável, muito embora o preço
não tenha sido pago.
4) Só nos casos estabelecidos na lei há a cessação automática, ou caducidade,
da relação.
O princípio do art. I I 74 C.P.C. mantém-se, afinal. A lei prefere a uma deter-
minação cega a ponderação dos interesses, em cada caso, à luz das finalidades da
falência.
5) Os contratos duradouros estão sujeitos a denúncia pelo liquidatário.
A falência tem de poder conduzir a uma extinção definitiva da relação, em prazo
mediamente limitado. Seria pois impossível a continuidade de relaçöes, que impe-
dissem aquela liquidação.
O problema surge todavia no que respeita a relaçöes duradouras que o
liquidatário tenha decidido manter.



Como dissemos, este estabelecia regras gerais para os contratos bilaterais em curso. Estes ou se
cumpriam ou não, consoante fosse mais favorável para a massa.
(") Em orientação análoga para o direito italiano, cfr. Ferrara, II Fallimento, 2'. ed., Giuffrè, 1966,
n' 179, em que pergunta qual é a regra, se a suspensão, a cessação ou a resolução do contrato.
(28) Cfr. Grunsky, Einführung cit., 23 .
(") Cfr. neste sentido por exemplo Uria, ob. cit., n'.289.

EFEITOS DA FALENCIA SOBRF A PESSOA F NECóClO I)0 fALII)0





Em muitos contratos o problema não é sensível, porque têm uma perspectiva
limitada de duração. Seja o caso da compra e venda, mesmo retomada pelo liquidatário,
nos termos do art. 161/2.
Mas que dizer do contrato de fornecimento a que o liquidatário tenha decidido
dar execução, nos termos do art. 162?
Ou do arrendamento que não for denunciado, nos termos do art. 169/1?
Se nestes casos houver termo de renovação, serão estes os termos a utilizar para
a denúncia.
Se tiver havido uma prorrogação por períodos mais amplos, 5 anos, por
exemplo'? Não parece correcto fazê-lo, mas em princípio o contrato deve ser cumprido.
Em qualquer caso, se o estabelecimento for definitivamente encerrado, os
contratos extinguein-se, sem prejuízo das indemnizaçöes que forem devidas.
De toda a maneira os contratos por prazo indeterminado, ou de tal modo
duradouros que ultrapassem a vida da falência, estão sujeitos a denúncia.
O art. 169/1 não pode ser entendido como limitando a faculdade de denúncia,
em caso de arrendamento, a um único momento inicial: já dissemos que o n'.4 não
lhe é aplicável. A denúncia do arrendamento pelo liquidatário pode ser feita em
qualquer altura.
6) Não havendo disposição especial, o liquidatário judicial tem a opção entre
manter os contratos ou pôr-lhes termo.
É o princípio que avulta na generalidade dos casos previstos, e o que resulta
da finalidade institucional da falência, que implica a possibilidade de liquidar as
relaçöes em curso (311). Seja por resolução, revogação ou denúncia, não nos interessa.
7) A o tra parte cabe por vezes a alternativa de pôr termo à relação, ou pelo
contrário de a manter.
É difícil enunciar um princípio geral. Se existir, assentará na distinção entre
as relaçöes já cumpridas pelo falido e as que estão ainda em curso de execução. Só a
estas se referirá a faculdade da outra parte,
8) O liquidatário pode por vezes opor-se a esta extinção, cumprindo integral-
mente o contrato.
Neste caso, o crédito da outra parte não estará sujeito a rateio.
Pode tentar-se, embora a base positiva seja escassa, a formulação de um
princípio geral, pois aquela faculdade da outra parte só se justifica como modo de ela
se furtar ao concurso de credores.

28. Conclusão sobre a sujeição a indemnização

Pode estabelecer-se o princípio de que a extinção do negócio impöe o
pagamento duma indemnização? Do que concluirmos resulta a solução dos casos não
previstos, e dos previstos sem que nada se dispon a quanto à in emnização.



Ferri, ob. cit., n'. 295, afirma que só há dissolução do contrato nas hipóteses especiais em que h.,'i
incidência directa da falência sobre as bases do negócio. Tem porém em vista a dissolução automática. Dá como
exemplos o contrato de empreitada, quando a pessoa do empreiteiro for um elemento determinante do contrato, a
sociedade org@iiiizada em base pessoal, os contratos de bolsa a prazo, a conta corrente, o mandato e a comissão, e
a associação em participação em caso de falência do associante. São tudo exemplos retirados da lei italiana.

JOSÉ I)E OLIVEIRA ASCENSÃO





Podemos formular as seguintes conclusöes:
I) Sempre que a lei determina a caducidade (ou extinção automática) não
outorga indemnização.
A lei nunca fala então em indemnização, e a ausência de indemnização é
conforme com o sentido da lei. A dissolução é um efeito legal, e não a consequência
de um acto jurídico. E esse efeito legal pode atingir qualquer das partes da relação:
pense-se no contrato de agência (art. 168), por exemplo, que se extingue com a
declaração de falência de qualquer dos contraentes.
2) A suspensão ou extinção do contrato pela parte não falida, nos casos em
que é admissivel, nunca outorga direito a indemnização.
A lei nunca a prevê, e compreende-se que seja este o seu sentido. A extinção
do contrato pela contraparte, em reacção à falência da outra parte, dá-se sempre com
justa causa.
3) Só num caso (a revogação do contrato de mandato ou comissão pelo liqui-
datário judicial, nos termos do art. 167/1) há recusa de indemnização na sequência
de revogação pelo liquidatário.
4) Nos restantes casos, a lei liga à resolução pelo liquidatário o dever de
indemnizar.
5) São excepção as hipóteses previstas nos arts. 16111 e 2 e 162 (este aplicável
também ao contrato de fornecimento), de compra e venda em que o falido seja
comprador.
Já porém na venda a prestaçöes e operaçöes semelhantes (art. 163) se prevê a
indemnização em caso de resolução pelo liquidatário.
É possível que a omissão seja devida ao facto de nestas hipóteses se dar
primeiro ao vendedor a faculdade, a que o liquidatário não se pode opor, de manter o
contrato (art. 161/1). A lei pode ter pensado que este benefício representaria
contrapartida suficiente, e por isso ter recusado a indemnização.
6) A lei não formula critérios de fixação da indemnização, salvo no caso do
art. 163/3, que não é generalizável.
7) O crédito a indemnização entra na massa e é sujeito a rateio.
Não examinamos o caso da indemnização aos trabalhadores, que é sujeita a lei
especial.

29. As situaçöes não satisfeitas após o levantamento da falência

Um último aspecto tombaria ainda neste capítulo: o do destino das situaçöes
não satisfeitas, uma vez levantada a falência. Limitamo-nos a um simples aceno.
Pode acontecer que um determinado crédito não tenha sido tomado em
consideração. Em caso de rateio, os créditos ficam parcialmente insatisfeitos. Podem
mesmo ficar totalmente insatisfeitos todos os créditos, ou uma categoria delas.
Levantada a falência, os titulares sacrificados poderão reclamar os seus créditos
contra o ex-falido?
Pensamos que esta solução seria impossível, pois equivaleria a tornar o ex-falido
de novo em falido, sempre que a massa não tivesse chegado para satisfação integral
dos créditos.


EFEITOS l)A @A I.ENCIA SOBRE A PF.@OA E NÉGóClO DO [<A LIDO





Na realidade, a falência, como execução universal, apaga na totalidade as
situaçöes anteriores, qualquer que tenha sido o êxito do processo. Dela resulta uma
juridicidade nova, substitutiva da preexistente.
Como em todos os casos em que à juridicidade substantiva se substitui uma
juridicidade formal, pode porém pôr-se a problemática da transformação das obrigaçöes
não satisfeitas em obrigaçöes naturais.


CAPITULO 111

EFICACIA SOBRE ACTOS PASSADOS


30. Aspectos comuns

Referimos agora, muito brevemente, outros tipos de efeitos substantivos da
declaração de falência: sobre os actos passados e, no capítulo seguinte, sobre os actos
futuros do falido.
Os efeitos sobre os actos passados são regulados nos arts. 156 a 160 C.F..
Dividem-se em duas grandes categorias:
resolução de actos;
impugnarão pauliana.

O efeito da resolução ou da impugnarão pauliana é a reversão dos bens para a
massa (art. 159/1): e se a contraparte tiver direito a restituição, o seu valor é
considerado crédito comum (n'. 3).
Aproxima-se aparentemente ainda desta matéria o art. 155/4, sobre a redução
a escrito da cláusula de reserva da propriedade. Já vimos porém que há uma falha
sistemática, e que o preceito respeita directamente às reservas anteriores à declaração
de tal ncia (31). Pode porém o princípio ser estendido a reservas de propriedade
posteriores a essa declaração, quando essas reservas forem válidas, nos termos gerais.


31. Actos resolúveis em benefício da massa

A lista dos actos resolúveis consta do art. 156 C.F., que procurou trazer
aperfeiçoamentos em relação ao art. 1200 C.P.C..
Abrangein-se assim na resolubilidade:

actos que envolvam diminuição do património celebrados a título gratuito nos
dois anos anteriores à data da abertura do processo;
partilhas suspeitas, celebradas no ano anterior;



Stipr<i, n'. 10.


JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO




actos a título oneroso realizados pelo falido nos seis meses anteriores, com
entidades com as quais medeie uma relação de domínio.

É fundamental porém a determinação do termines a quo.

Para o Código de Processo Civil era a data da sentença declaratória da falência.
Para o Código de Falência passou a ser a data de abertura do processo
conducente à falência, o que é muito mais perfeito, pois se eliminam as contingências
resultantes de um eventual protelamento da decisão.
Mas nem assim desaparecem as dúvidas, porque se não conjugou esta matéria
com a dos processos especiais de recuperação de empresa, embora regulados no mesmo
Código.
Se eventualmente se tentou ou adoptou mesmo uma providência de recuperação
de empresa, que todavia não resultou, o prazo conta-se desde o momento em que a
empresa requereu em juizo a providência de recuperação adequada, nos termos do
art. 5 C.F.?
É que, se não for assim, aqueles prazos perdem sentido, por serem consumidos
ou reduzidos pelo próprio processo de recuperação.
Tenderíamos pois a interpretar o 11 processo conducente à falência" como
englobando qualquer processo de recuperação de empresa que não resulte, não evitando
o trânsito para o processo de falência.
Mesmo com esta interpretação, continua em aberto o problema de situaçöes
passadas, que tenham sido precedidas de um processo de recuperação. O problema só
se resolveria se se entendesse que com a introdução dos processos de recuperação de
empresa o prazo se passou a contar desde a data de início desse processo, e não desde
a data da declaração de falência.

32. Impugnação pauliana

A impugnarão pauliana é regulada nos arts. 157 e seguintes. Mas o art. 157
limita-se a declarar impugnáveis em benefício da massa todos os actos susceptíveis
de impugnarão pauliana nos termos da lei civil.
É fundamental o art. 158, que estabelece a presunção de celebração de má fé
de vários actos, para efeitos de impugnarão pauliana.
A al. d permite atingir actos, mesmo a título oneroso, em que haja "manifesta
desproporção", das obrigaçöes assumidas pelo falido em relação às da contraparte, e
portanto lesão do falido. Abrangem-se os praticados nos últimos dois anos. O prazo
é o mesmo que para os actos a título gratuito previstos no art. 156; mas aqui a
consequência é a impugnabilidade, e não a resolução.
A al. e permite impugnar fianças, subfianças e mandatos de crédito que não
apresentem real interesse para o falido, concedidos nos últimos dois anos. Parece
porém que se estes actos forem inteiramente gratuitos caem na resolubilidade do art.
159, e só aqueles em que houver uma contrapartida, embora insuficiente, estão sujeitos
a impugnarão pauliana.
A a]. c atinge as garantias reais posteriores ao nascimento das obrigaçöes,
constituídas dentro do ano anterior; e até as coevas da obrigação, constituídas nos


EI,'EITOS DA IALENC'IA SOBRE A PESSOA E NEGóCiO DO @AL/1)0





90 dias anteriores. O preceito reflecte uma reforçada sensibilidade legal no que respeita
à criação de uma desigualdade entre credores. Isto não significa porém que o devedor
em dificuldades não mantenha a liberdade de pagar umas dívidas e não outras e con-
ceder garantias, até àquela data, como espaço de manobra tendente a permitir-lhe sair
daquela situação.
Esta interpretação está em consonância com o tipo penal de "favorecimento de
credores". O art. 327 do Código Penal de 1982 na redacção que lhe foi dada justamente
pelo Dec.-Lei ri'. 132/93, que aprovou o Código de Falência, só atinge actos, praticados
com intenção de favorecer certos credores em detrimento de outros; nomeadamente,
o de o falido dar "garantias para suas dívidas a que não era obrigado". O preceito
transitou tal qual para o Código Penal revisto de 1995, como art. 229 (32).
Criam-se problemas graves em matéria de garantias. Por um lado, deixam de
ser resolúveis as fianças de dívida, passando a ser impugnáveis nos termos do art. 158
e Ountamente com a subfiança e os mandatos de crédito), desde que outorgadas nos
dois anos anteriores à abertura do processo. O legislador terá considerado que uma
fiança não é necessariamente um acto a título gratuito, pelo que seria mais conveniente
submetê-lo à presunção de má fé.
Parece porém que a transposição não afecta a distinção básica dos actos a título
gratuito e a título oneroso. Os actos a título gratuito continuam sujeitos ao regime do
art. 156 - a resolução. Portanto, a fiança gratuita cai naquela previsão.
Exactamente o mesmo regime é aplicável às garantias reais, em relação às quais
não houve mudança de lei: o art. 158 d corresponde, neste aspecto, ao art. 1202 c
C.P.C.. Dispöe que se presumem outorgadas de má fé as garantias reais posteriores
ao nascimento das obrigaçöes asseguradas, dentro do ano anterior, e as contemporâneas
das obrigaçöes garantidas, constituídas dentro dos 90 dias anteriores àquela data.
Este regime só abrange as garantias constituídas a título oneroso, portanto aque-
las em que há uma contrapartida para quem dá a garantia. Se são outorgadas a título
oratuito, estão su citas à resolubilidade do art. 156 a. Nenhuma razão haveria para que
os actos a título gratuito fossem resolúveis, salvo quando fossem actos de garantia.
Estes actos, quando celebrados sem contrapartida, caem sem dúvida na previsão
do art. 156 a. O acto a título gratuito é o género, de que a liberalidade é a espécie.
E dentro dest@i ainda se especifica a doação, como liberalidade entre ViVoS (33).
O art. 156/1 a C.F. fala em "actos que envolvam diminuição do património do
falido, celebrados a título gratuito...... Supomos que a aplicação às garantias não
oferece dificuldade. É certo que essa diminuição é potencial, se a garantia vier a ser
actuada: mas é justamente esse efeito que se quer evitar. Por isso se estabelece que o
acto é resolúvel (31).


e

('2) N@Ie se continua a distinguir consoante for declarada a falência, ou for reconhecida judicialmente a
insolvêiici@t.
Clr. Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 3'. ed., Lisboa, 1965, n'. 199.
Quanto ao critério para determinar se o acto é gratuito ou oneroso, quando ele for gratuito para o
prestador da garintia mas oneroso para o credor que a recebe, Moia Pinto, Onerosidade e gratuitidade das garantias
de díiití@iv (le terceiro na doutrina da falência e da impugnarão pauliana, em "Estudos em Homenagem ao Prof.


JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO





CAPITULO IV

EFICACIA SOBRE NEGóClOS POSTERIORES


33. Valor dos actos relativos à massa

No que respeita aos negócios posteriores do falido, o texto básico é o do art.
155/1 c C.F.: estes negócios são inoponíveis à massa. A única limitação é a de que,
se forem celebrados com terceiros de boa fé, a oponibilidade só principia com o registo
da sentença (art. 155/1 e 3).
A consequência é lógica, uma vez que o falido não tem a administração e dispo-
sição da massa falida, nos termos do art. 147/1. Não tem pois normal legitimidade
para actuar sobre a massa. Poderá quando muito ser chamado a coadjuvar o liqui-
datário, nos termos do art. 13413 C.F., mas isso não lhe dá poderes negociais.
Mas a insensibilidade da massa no que respeita aos actos posteriores do falido
é relativa. Logo o art. 15512 C.F. nos diz que os negócios do falido posteriores à
declaração de falência podem ser confirmados pelo liquidatário judicial, quando nisso
haja interesse para a massa falida.
O recurso à categoria da confirmação é contestável. Em sentido técnico, a
confirmação respeita a actos inválidos (31).
É árdua a determinação do valor dos actos do falido, mas já assentámos que a
inoponibilidade nunca poderia significar a nulidade. A lei nem sequer impôs a
anulabilidade. Bastou-se com a fórmula muito mais expedita da inoponibilidade, que
poupa ao liquidatário judicial a preocupação de impugnar eventuais actos que venham
a ser praticados pelo falido e atinjam a massa.
Isto significa que semelhantes actos são válidos, apenas ineficazes em relação
à massa falida. A afirmação de validade não é teórica, porque a ineficácia pode ser
meramente transitória. Levantada a falência, os actos que o falido tenha praticado
poderão produzir efeitos, nomeadamente sobre o remanescente da massa falida; e
seguramente o produzirão negócios mortis causa.
Manuel de Andrade pöe a hipótese de um prédio, vendido após a sentença
declaratória pelo falido, não ter sido liquidado na falência. O titular teria direito a
indemnização, mas esta só seria paga depois de levantada a falência. Aplica ainda à
hipótese de empréstimo (36).
Podem porém levantar-se problemas relativamente à outra parte no negócio
com o falido. Se ela conhecia a situação de falência, o que dissemos aplica-se sem



Doutor J.J. Teixeira Ribeiro", III, BFD (Coimbra), 1983, 93 e segs., defendeu que a apreciação deve ser feita em
relação ao credor que recebeu a garantia. Não nos parece ter razão. Para o instituto da falência, como para o da
impugnarão pauliana, o que interessa é saber se a garantia dos credores foi indevidamente desfalcado. Por isso, o
que releva é que o devedor tinha praticado um acto gratuito em prejuízo daqueles.
(") Cfr. as nossas liçöes de Teoria Geral do Direito Civil - Vol. Ill - Acçöes e Factos Jurídicos, F.D.L.,
1992, n's. 182 e 185.
(36) Cfr. Teoria cit., II, n'. 87. Os exemplos são integralmente retomados por Mota Pinto, Teoria cit.,
n'. 63 III.


EFEITOS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NEGóClO DO FALIDO





reserva, em endendo-se que quiseram negociar para a hipótese de levantamento da
falência.
Pelo contrário, se o terceiro a desconhecia, coloca-se a hipótese da anulabilidade
por erro (").


34. Repercussão sobre a massa falida

Voltemos à repercussão do acto do falido sobre a massa falida.
Já dissemos que a insensibilidade da massa no que respeita aos actos praticados
pelo falido é relativa: por isso falámos de uma indisponibilidade relativa. Desde logo,
devíamos distinguir uma eficácia negativa e uma eficácia positiva.
É a eficácia negativa, ou em detrimento da massa, que é excluída pelo esquema
da inoponibilidade.
Mas os actos podem ter eficácia positiva. E podem-na ter por duas vias.
Uma, é a da confirmação (art. 155/2). Cabe ao liquidatário judicial apreciar se
são ou não favoráveis à massa, e confirmá-los no caso de o serem. A confirmação dá
assim ao acto passaporte para a repercussão na massa falida. Passa a ser relevante
perante esta.
Mas para além disso há outro efeito que se poderá a todo o momento produzir,
que é o da reversão para a massa dos bens adquiridos através desses actos posteriores.
Vimos já que o art. 147/1 fez perder ao falido a administração e o poder de disposição
dos seus bens presentes e futuros. Logo, qualquer aquisição repercute-se favora-
velmente sobre a massa.
Uma manifestação desta ordem seria aparentemente dada pelo art. 155/3, que
impoe que o cumprimento das obrigaçöes pelo devedor do falido seja feito perante o
liquidatário. Vimos já porém que, não obstante a enganosa epígrafe, o preceito respeita
na realidade directamente ao cumprimento das obrigaçöes anteriores à declaração de
falência. Mas não impede que o dispositivo seja estendido às obrigaçöes posteriores
a esta declaração, porque também aqui se manifesta a incidência dos princípios de que
a massa falida abrange todos os bens que de futuro advenham ao falido e de que
o falido é ilegítimo para actuar por esta. O que quer dizer que mesmo em relação a
estes negócios o pagamento só é liberatório nestas condiçöes, devendo beneficiar
directamente a massa falida.
Para além disso, há a reversão para a massa de todos os bens que forem
adquiridos pelo falido, e que não estão excluídos da apreensão.
Essa reversão é automática, ou está dependente de uma iniciativa do
liquidatário? Apesar de perturbadora, parece-nos não poder afastar a figura de uma
reversão automática para a massa de todos os bens adquiridos pelo falido. Por isso o
art. 147/1 diz que esses bens, quer presentes quer futuros, passam a integrar a massa
falida.



(l7) Foi porém afirmado que esta não bastaria, sendo mais conveniente a nulidade.


JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO




Talvez possamos fazer apenas uma distinção, baseada na importância desses
bens. Já vimos que o falido tem um património, que é o seu património geral, embora
seja por outro lado um património residual. Os bens valiosos que adquirir revertem
imediatamente para a massa. Os bens de escassa importância ficam a compor esse
património residual. Permitindo-lhe realizar negócios, com eficácia imediata, sobre esse
património residual.
Tudo isto mostra que as restriçöes do falido não assentam antes de mais na
pessoa do falido, mas derivam das necessidades da execução universal


CAPITULO V

A VIDA INSTITUCIONAL DA MASSA FALIDA


35. As dívidas não sujeitas a rateio

Para além destes efeitos substantivos, há que não esquecer que a massa falida
tem também uma vida institucional, que lhe permite ser o suporte de negócios que
sobre ela validamente se celebram.
Para que possa atingir as suas próprias finalidades é indispensável que sejam
celebrados actos e que sobre ela passem a recair novas dívidas. Seguramente que
ninguém negociaria com o liquidatário se soubesse que os créditos que lhe adviessem
só através do rateio poderiam ser satisfeitos.
As novas dívidas ocupam assim posição privilegiada em relação às antigas.
O que significa que a própria massa falida tem os seus credores privilegiados, e
responde prioritariamente perante esses.
Já assim acontece no decorrer de processos de recuperação da empresa, em que
os novos créditos gozam de privilégio mobiliário geral (art. 65 C.E).
Todas as dívidas constituídas de novo no processo de falência - de salários, de
pareceres técnicos, e assim por diante - ficam nesta posição privilegiada.
Assim, do art. 169 C.F. resulta que as rendas futuras de prédios de que o falido
seja arrendatário devem ser pagas integralmente.
Quaisquer contratos que o liquidatário decida manter devem ser pontualmente
cumpridos: cfr. por exemplo o art. 163/2, para as vendas a prestaçöes e operaçöes
semelhantes.
Mas mesmo algumas dívidas emergentes da liquidação da situação anterior
gozam desta subtracção à condição de créditos comuns.
Só com uma dívida nova acontecerá assim: com a indemnização devida aos
trabalhadores por cessação do contrato de trabalho, de que falámos.



(31) Ferri, Manuale cit., n'. 288, considera-as por isso essencialmente objectivas. Logo, a insensibilidade
da massa prolonga-se enquanto o património é necessário para a satisfação dos credores e não subsiste quando a
assunção da obrigação é pressuposto da aquisição de bens do falido.

EFEITOS DA FALENCIA SOBRE A PESSOA E NE(;O('IO I)0 @AI,IDO




Quando houver direitos de terceiros sobre bens indivisos ou em contitularidade,
se esses bens já tiverem sido alienados, o titular tem, em alternativa, o direito ao valor
dos bens ou ao preço da venda (art. 179/2). É-lhe expressamente atribuído o privilégio
do art. 65 C.F..
E que acontece se houver direitos de terceiros que indevidamente foram
incluídos na liquidação? Se um prédio de terceiro, por exemplo, foi vendido no
processo de falência'?
Pelo menos hoje, e na medida em que semelhantes situaçöes se possam veri-
ficar, pensamos que devem tombar sob um principio geral, que se apoia parcialmente
no art. 179/2 C.F.. Os direitos de terceiros, postergados no processo de falência,
subsistem e podem ser integralmente exercidos sobre a massa falida. São créditos
e nascidos da vida institucional da massa, e não créditos a liquidar no processo de
falência.
A consciência deste princípio permite-nos abordar em boas condiçöes a figura
contemplada no art. 171/2.
Está este tão infelizmente subordinado à epígrafe "Posse, a título precário, do
falido". Dispöe: "Se a posse se perder depois de terem sido apreendidas para a massa
falida as coisas que devam ser restituídas, tem o titular direito a receber o seu valor
integral".
Coi@is, a que outrem tem direito, foram apreendidas para a massa, mas por
qualquer ratão vêm a perder-se. É natural que o titular possa reclamar o valor inte-
gral, porque é completamente estranho, quer à falência, quer à causa da perda da posse.
O "valor integral" só pode significar que o crédito não está sujeito a rateio.
Carvalho Fcrnandes / Labareda sustentam tratar-se de um crédito comum, por contra-
posição com a atribuição expressa de privilégio mobiliário geral pelo art. 179/2 ('9).
Mas todos os créditos emanados da vida institucional da massa falida gozam deste
,privilégio", mesmo no silêncio da lei. A massa falida é-lhes antes de mais afectada.
Nem se compreenderia um regime diferente, dada a perfeita analogia de situaçöes, pelo
ponto de vista do terceiro, entre as figuras do art. 171/2 e do art. 179/2. Até talvez
por maioria de razão, dada a culpa funcional da massa falida que se verifica no I'.
caso, e no 2'. não.
Isto significa pois que no interior da massa falida, já de si um património
autónomo pela a ctação a certos credores, se cria um subpatrimónio autónomo, pois
a massa responde antes de mais por estas categorias de dívidas.
Outro problema é o do momento com referência ao qual se deve fazer a
avaliação da coisa. No art. 171/1 C.F. esse valor é referido à data da declaração da
falência, mas precisão semelhante não consta do ri'. 2. Isto significa que haverá que
fazer funcionar os princípios gerais, sem nenhuma inflexão resultante da integrarão
desta matéria no processo de falência.






C(@di,@o cit., sub art. 171, n'. 5.


JOSE DE Ol,lVEIRA ASCENSAO





36. Signifícado destas situaçöes

Estes são os casos que nos surgem de dívidas não sujeitas ao regime de rateio.
Exceptuando porém as indemnizaçöes a pagar aos trabalhadores pela cessação
do contrato de trabalho, na medida em que lhes seja atribuído regime privilegiado, o
que não nos cabe examinar, vemos que em todos os casos se trata de dívidas que
surgem ex novo, e nao em consequencia da liquidação de situaçöes preexistentes.
Sendo assim, estamos perante aspectos da vida institucional da massa falida.
São efeitos substantivos, mas não exprimem já uma eficácia da declaração de falência
sobre os negócios do falido.

Estão por isso fora do nosso tema.


A VERIFICAÇÃO DO PASSIVO NO PROCESSO
DE FALENCIA

MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA

(Professor da Faculdade de Direito de Lisboa)



Introdução


I. Enquadramento da falência

O processo de falência é uma execução universal num duplo sentido: numa
@iccl)ção subjectiva, dado que a ela podem concorrer todos os credores do falido e não
@ipcii@[s, como acontece na execuçao singular, o exequente e os credores com garantias
i-e@ii,; sobre os bens penhorados (cfr. art' 864', al. h), do Código de Processo Civil
(= ('IIC"; numa acepção objectiva, dado que pelo pagamento, ainda que rateado,
do,, créditos verificados responde a massa falida, que é constituída por todos os bens
do f"ltlido susceptíveis de penhora (art' 175', ri' I, do Código dos Processos Especiais
de l@eciiperação da Empresa e de Falência (= CPEREF); sobre os bens penhoráveis,
cai-. @irt"s 821' ss. CPC).
Esta universalidade subjectiva da falência traduz-se num concurso dos credores
do I'Itlido (o chamado concursos creditorum, expressão que subsiste na terminologia
@ilciii,-t Konkijrs para designar a falência). Esse concurso enforma o processo de falência
e acentua a diferenciação deste último perante a execução singular. Esta execução
pelo princípio da prioridade: o credor exequente é pago pelo produto da
vcii(li de certos bens com preferência (resultante da penhora ou de um direito real de
gii-,tiiti@i) sobre os demais credores, mesmo reclamantes, excepto se estes possuírem
ijili@@ yai-@intia real anterior à penhora do exequente ou à garantia real deste (cfr. art's
865", ri" I, e 873', ri' 2, CPC). Pelo contrário, a falência estrutura-se com base no
princípio da proporcionalidade das perdas dos credores: perante a insuficiência do


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




activo do falido, os credores são pagos rateadamente pelo produto da liquidação do
activo, admitindo-se apenas as preferências resultantes das garantias reais sobre os bens
integrados na massa falida (art' 209' CPEREF), excepto a hipoteca judicial e a penhora
(art' 200', n' 3, CPEREF).
Do concurso dos credores do falido decorre a inadmissibilidade da pendência
de qualquer acção executiva contra o falido (art' 154', n' 3, CPEREF), pois que todos
os credores do falido têm o ónus de concorrer à falência. Esse concurso não pressupöe
necessariamente - note-se - a igualdade de tratamento de todos os credores no
processo de falência (a conhecida regra da par condicio creditorum): do facto de todos
os credores serem admitidos a intervir no processo de falência não decorre que todos
eles tenham de ser tratados no mesmo plano. A igualdade entre os credores é apenas
umas das possíveis formas de actuação desse concurso (]), como o demonstra a
preferência concedida aos credores que beneficiam de uma garantia real sobre um bem
da massa (art' 209' CPEREF).


ll, Verificação do passivo

Atendendo ao carácter universal da execução falimentar, o processo de falência
comporta duas operaçöes nucleares: uma delas é destinada à determinação do activo
do falido e à sua liquidação, a outra visa a verificação do passivo do falido. Essas
operaçöes pressupöem a prévia verificação das condiçöes justificativas da declaração
da falência e destinam-se a permitir o pagamento, ainda que rateado, dos credores.
Resumindo, o processo de falência comporta as seguintes cinco fases: a fase da
declaração de falência (art's 122' a 13 I' CPEREF), a fase da determinação do activo
do falido (art's 175' a 178' e 201' a 204' CPEREF), a fase da liquidação do
activo (art's 179' a 187' CPEREF), a fase da verificação do passivo (art's 188'
a 200' CPEREF) e, finalmente, a fase do pagamento dos credores (art's 209' a 218'
CPEREF).
O passivo do falido é constituído pelo conjunto dos créditos que sejam recla-
mados pelos respectivos credores (art' 188', n' I, CPEREF) e reconhecidos pelo tri-
bunal do processo (arts 196', n's 2 e 3, e 200', n' I, CPEREF). Também a reclamação
de créditos se rege pelo princípio da universalidade subjectiva, pelo que qualquer
credor do falido - tanto comum, como preferencial - tem o ónus de reclamar o seu
crédito (art' 188', n' I, CPEREF). Só os créditos verificados podem participar da dis-
tribuição proporcional ou rateada posterior à liquidação do activo falimentar, podendo,
por isso, afirmar-se que, enquanto a sentença de declaração da falência (art' 124',
n' 2, CPEREF) justifica a execução de todos os credores sobre a totalidade do patrimó-
nio penhorável do falido, a sentença de verificação de créditos (art' 200' CPEREF)
destina-se a determinar os beneficiários da liquidação do activo falimentar (2).




Cfr. Bonsignori, Fallimento, Digesto delle Discipline Privatistiche I Sezione Commerciaic V, 378.
Cfr. Spellenberg, Zurn Gegenstand des Konkursfeststellungsverfahrens (Göttingen 1973), 12


A VERIFICAÇ'ÃO I)0 PASSIVO NO PROCESSO DF FALENCIA





III. Indicação da sequência

A verificação dos créditos no processo de falência contende com aspectos
materiais e processuais: os aspectos materiais referem-se à determinação dos créditos
reclamáveis; os aspectos processuais respeitam à tramitarão da reclamação e verifica-
ção de créditos. Uns e outros serão analisados de seguida.


"Aspectos materiais: créditos reciamáveis


1. Enunciado geral

As condiçöes sobre a reclamação de créditos podem ser resumidas no seguinte
enlinci@iilo: são reclamáveis todos os créditos sobre o falido que se encontrem consti-
tuído,@ no momento de declaração de falência, que sejam referidos a prestaçöes patri-
moni@tis e que sejam susceptíveis de tutela jurisdicional. A reclamação de créditos está
su eit@i, por isso, a condiçöes temporais, objectivas, subjectivas e processuais.


11. Condiçöes temporais

1. Só são reclamáveis os créditos que se encontrem constituídos no momento
da deci@iraç@-to da falência ou, pelo menos, cujos fundamentos já estejam verificados
nesse momento. Isso significa que há que distinguir os créditos sobre o falido dos
créditos sobre a massa falida: aqueles são os créditos correspondentes a débitos do
falido e, por isso, já existentes no momento da declaração da falência; estes últimos
são os créditos resultantes da administração da massa falida pelo liquidatário judicial
(art' 141' CPEREF) e, portanto, posteriores a essa declaração.
Pode observar-se que, quanto aos créditos da massa, o regime português é,
comparativamente a alguns regimes estrangeiros, algo restritivo (o que, correla-
tivamente, se vem a traduzir numa ampliação dos créditos que, por não serem créditos
sobre @i massa, são reclamáveis como créditos sobre o falido). Poder-se-ia entender
- como se estabelece no § 59 da Konkursordnung alemã - que nos créditos sobre a
massa se incluiriam não só aqueles que resultam da sua administração pelo liquidatário
jii@licizil, mas ainda aqueles que são um desenvolvimento ou consequência de uma
simétrico pr -falimentar, como os contratos bilaterais cujo cumprimento pode ser
exil,i(lo à massa falida pelo contraente que contratou com o falido. Segundo esse
critério, tini crédito sobre a massa, por exemplo, aquele que respeita às despesas de
i-ciiov@ição das instalaçöes arrendadas que eram utilizadas pelo falido.
() @lii@eito português fornece, no entanto, uma outra solução. Conforme se pode
conclui do (li,,,l)osto em vários preceitos do regime falimentar (nomeadamente, do
estabelecido tios artos 159', n' 3, 161', n's I e 3, 163', n' 3, 164', n' I, 166', n' I, e
169', ii(' 3. CPEREF), os créditos resultantes de contratos bilaterais celebrados pelo
falido da declaração de falência ou do incumprimento ou denúncia, legitimamente


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




decididos pelo liquidatário judicial, desses contratos não são considerados créditos da
massa, mas créditos sobre o falido e, por isso, créditos reclamáveis.

2. Um caso especial merece uma referência particular. O art' 1273', n' I, do
Código Civil (= CC) concede ao possuidor, de boa ou má fé, o direito a ser indem-
nizado das benfeitorias necessárias que haja feito e, bem assim, a levantar as benfei-
torias úteis realizadas na coisa, mas o n' 2 do mesmo preceito estabelece que quando,
para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar a esse levantamento, o possuidor tem
direito ao valor das benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem
causa. Também o art' 1275', n' I, CC atribui ao possuidor de boa fé o direito a levantar
as benfeitorias voluptuárias, se não se der o detrimento da coisa, mas, se isso não puder
suceder, ele não pode levantá-las nem haver o valor delas.
Se quaisquer dessas benfeitorias puderem ser removidas, não há qualquer
problema - se elas tiverem sido (indevidamente) incluídas na massa falida, o seu titu-
lar pode requerer a sua separação dessa massa (art' 201', n' I, al. c), CPEREF) (').
Mas se isso não puder acontecer e o possuidor quiser obter o valor das benfeitorias
ou pretender exercer o direito à indemnização pelas benfeitorias necessárias, o
respectivo crédito deve ser considerado como um crédito da massa. Essas prestaçöes
pecuniárias representam o valor de bens integrados na massa falida e, por isso, devem
ser tratadas, enquanto sucedâneo desses bens, segundo o regime mais aproximado
possível ao estabelecido para estes últimos. O mesmo pode ser dito, num outro plano,
do crédito referido no art' 17 I' CPEREE


111. Condiçöes objectivas

1. Apenas créditos referidos a prestaçöes patrimoniais podem ser reclamados.
Assim, não são reclamáveis, desde logo, os direitos pessoais, como todos os direitos
relativos à constituição ou extinção de estados pessoais, tal como igualmente o não
são os direitos potestativos, como os direitos à anulação ou resolução de um negócio.
Quanto às prestaçöes de facto, há que distinguir, antes do mais, entre as referi-
das a uma prestação fungível e as respeitantes a uma prestação infungível. Quanto aos
créditos cujo objecto é uma prestação fungível, podem ser reclamadas as quantias gas-
tas ou a despender para a sua realização por terceiros (art' 828' CC; art's 933', n' I,
e 935', n' I, CPC); relativamente às prestaçöes infungíveis, dado que o devedor não
pode ser coagido a praticar o facto (segundo o conhecido brocardo nemo potest cogi
ad actum), o credor só pode reclamar a correspondente indemnização (cfr. art' 934'
CPC). Quanto aos créditos relativos a uma prestação de non facere, eles não são
reclamáveis, embora, naturalmente, o seja o crédito relativo ao custo da demolição da
obra e o direito à indemnização pela violação desse dever de omissão (artl 8290 CC).




(3) Cfr. Menezes Cordeiro, Da falência e das benfeitorias e incorporaçöes feitas por terceiros, Dir. 120
(l988), 85 ss..

A VERIFICAÇÃO DO PASSIVO NO PROCESSO DE FALENCIA





2. Apenas créditos certos, líquidos e exigíveis podem ser reclamados. Se, para
tornar certo o crédito, houver que proceder à escolha da obrigação alternativa, essa
operação deverá ser previamente realizada pelo credor reclamante, mas, se a escolha
pertencer ao devedor (agora falido), os créditos devem ser reclamados como alterna-
tivos, podendo o credor exigir que o devedor, dentro do prazo que lhe for fixado pelo
tribunal, declare por qual das prestaçöes opta, sob pena de se devolver ao credor o
direito de escolha (art' 547' CC).
Se o crédito for ilíquido, há que realizar a sua liquidação por um dos meios
apropriados (que são os referidos nos art's 805' a 809' CPC), não esquecendo a
importante regra constante do art' 151', no 2, CPEREF: na data da declaração da
falência cessa a contagem de juros ou de outros encargos sobre as obrigaçöes do falido
e é apurado o montante em escudos correspondente à liquidação das obrigaçöes
expressas em moeda estrangeira ou sujeitas a qualquer factor de actualizarão. Quanto
à exigibilidade do crédito, importa referir que a declaração da falência torna
imediatamente exigíveis todas as obrigaçöes do falido, ainda que sujeitas a prazo não
vencido (art' 1510, no I, CPEREF), pelo que todos os créditos sobre o falido, mesmo
que nao vencidos, são reclamáveis.
Relativamente aos créditos sujeitos a uma condição, há que observar o
seguinte: - os créditos submetidos a uma condição resolutiva ainda não verificado são
reclamáveis com a indicação dessa circunstância, pelo que a reclamação fica sem efeito
e os pagamentos realizados devem ser restituídos se, entretanto, a condição se
verificar; - os créditos submetidos a uma condição suspensiva são reclamados como
tal, pelo que o seu pagamento só se efectuará se, entretanto, a condição se veri-
ficar (4).

3. Um importante grupo de créditos reclamáveis é constituído por aqueles que
são atribuídos às contrapartes do falido em execuçao dos contratos bilaterais ou na
sequência da resolução, denúncia ou incumprimento destes pelo liquidatário judicial.
Assim, se, num contrato de compra e venda, o falido for o comprador e se o contrato
ainda não estiver totalmente cumprido por ambas as partes à data de declaração de
falência, o vendedor pode completar a sua prestação e reclamar o crédito relativo ao
preço (art' 161 I n I, PEREF). O mesmo vale para a venda com entregas periódicas
e para os contratos de fornecimento ao falido (art' 162' CPEREF). Identicamente, se
o falido tiver comprado coisas móveis que já foram remetidas pelo vendedor mas ainda
não recebidas por aquele, o vendedor pode preferir a subsistência do contrato a reaver
as coisas, hipótese em que pode reclamar, como crédito comum, o preço devido
(art' 164', no I, CPEREF).
Resolvido o negócio em benefício da massa falida (art' 156' CPEREF) ou jul-
gada procedente a impugnarão pauliana (art's 157' e 158' CPEREF), no caso de a
contraparte (isto é, o contraente, conjuntamente com o falido, do acto resolvido ou




(4) A RL - 212/1982, BMJ 320, 446 recusou a reclamação de um crédito, porque o considerou condicional,

mas a situação refere-se realmente a um crédito futuro (que, por essa razão, não é reciamável).


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




impugnado) ter direito a restituição, o seu crédito é considerado como comum
(art' 159', n' 3, CPEREF). É uma solução que, ao mesmo tempo que faculta a esse
contraente a reclamação do crédito, procura não o premiar, atendendo ao seu possível
conluio com o falido.
Na compra e venda em que o falido é o vendedor (e, portanto, credor do preço
contra a entrega da coisa) e em que o domínio da coisa ainda não se tenha transmitido
à data da declaração de falência, o liquidatário judicial pode optar pelo cumprimento
desse contrato ou pela sua resolução (art' 161', n' 3 2 a parte, CPEREF); optando por
esta última, o comprador fica com o direito a reclamar da massa falida a indemnização
pela falta de cumprimento (art' 16 I', n' 3 in fine, CPEREF).
Também nas hipóteses de venda ao falido de certos bens por um preço de
mercado ou de bolsa em determinada data ou dentro de certo prazo que ocorra ou se
extinga depois de declarada a falência, de venda a prestaçöes ao falido com reserva
de propriedade e ainda de locação financeira a favor do falido, o liquidatário judicial
pode optar pelo cumprimento ou pela resolução do contrato (art' 163', n' I, CPEREF).
Se optar pela resolução, a contraparte pode reclamar, como crédito comum, uma
indemnização, que é, consoante os casos, igual a metade do preço médio de compra
em mercado ou em bolsa nos dois dias seguintes ao da declaração de falência ou a
correspondente à cláusula penal acordada na venda a prestaçöes (art' 163', n' 3,
CPEREF).
Quando o falido for o arrendatário, o liquidatário judicial pode denunciar o
contrato de arrendamento, mas, nesse caso, o senhorio pode reclamar, como créditos
comuns, as rendas em dívida e a indemnização devida pelo incumprimento do contrato
(art' 169', n' I, CPEREF). Se o prédio arrendado ainda não tiver sido entregue ao
falido arrendatário, o liquidatário pode desistir da execução do contrato e o locador
pode reclamar, como crédito comum, uma indemnização pelo incumprimento
(art' 169', n' 3, CPEREF).
Finalmente, há que referir os créditos provenientes da associação em partici-
pação, isto é, da associação de uma pessoa a uma actividade económica exercida por
uma outra, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e perdas que desse
exercício resultarem para a segunda (art' 21', n' I, do Dec.-Lei 231/81, de 28/7).
A associação em participação extingue-se pela falência do contraente associante
(art' 166', n' I, CPEREF), mas o contraente associado conserva o direito de reclamar
da massa falida, como credor comum, o pagamento dos créditos por prestaçöes que
tenha realizado e não devam ser incluídas na sua participação nas perdas da associação
(art' 166o, n' 2, CPEREF).

4. Reclamáveis são igualmente os créditos do Estado, nomeadamente os crédi-
tos fiscais e os créditos da segurança social, e, em geral, os créditos dos entes públicos.
Essa reclamação incumbe ao Ministério Público (art' 188', n' I, CPEREF). Note-se
que, segundo a importante regra que consta do art' 152' CPEREF, com a declaração
de falência extinguem-se os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e
das instituiçöes de segurança social, pelo que os respectivos créditos só podem ser
reclamados como créditos comuns.


A VERIFI('AÇÃO DO I'ASSIVO NO PROCFSSO DF FAI,EN('IA





IV. Condiçöes subjectivas

1. Se alguns devedores solidários se acharem falidos, o credor pode concorrer
a cada uma das diferentes massas falidas pela totalidade do seu crédito, mas, como é
natural, não pode receber nessas falências mais do que o montante do seu crédito
(art' 189' CPEREF). Para evitar esta eventualidade, o credor não pode receber em
pagamento qualquer quantia sem apresentar os seus títulos ou certidöes para aí serem
averbados os pagamentos (art' 212', no I, CPEREF). O indevidamente recebido deve
ser restituído em dobro, além da eventual responsabilidade do credor pelos danos
causados (art' 212', ri' 2, CPEREF).
Essa faculdade que é concedida ao credor quanto à reclamação da totalidade
do seu crédito em qualquer dos vários processos de falência dos devedores solidários
concorda com o estipulado no art' 519', ri' I, CC quanto à possibilidade de o credor
exigir ju leia mente a tota i ade o crédito a ca a um os devedores soli rios se se
verificar - como acontece na hipótese em análise - a insolvência do demandado.
O que se estabelece tanto no art' 189' CPEREF, como no arto 5190, no I, CC, é um
desvio às regras da verificação da excepção de litispendência (cfr. art's 497', ri' I, e
498' CPC).
Importa ainda referir que essa reclamação simultânea do mesmo crédito nos
vários processos de falência pendentes contra os vários devedores solidários nem
sempre constitui a única possibilidade de actuação do credor. Isso só assim sucede
quando todos os devedores solidários se encontrem falidos. Mas também pode
acontecer que apenas alguns desses devedores se encontrem nessa situação, hipótese
que faculta ao credor uma outra forma de actuação.
Com efeito, o art' 526', ri' I, CC estabelece que, se um dos devedores solidários
estiver insolvente, a sua quota-parte é repartida proporcionalmente entre todos os
demais condevedores. Suponha-se, por exemplo, uma dívida solidária no montante de
600 contos pela qual são responsáveis três devedores; um deles encontra-se falido; os
200 contos que por este deveriam ser pagos são repartidos pelos outros dois devedores
(cabendo 100 contos a cada um deles). Assim, o credor, em vez de reclamar o seu
crédito no processo de falência pendente contra um dos devedores, pode exigir o
montante em dívida proporcionalmente a cada um dos devedores que não estão falidos.
Por seu turno, estes devedores, que possuem um direito de regresso perante o seu
condevedor (art' 524' CC), podem reclamar no processo de falência deste último os
respectivos créditos. Note-se que, no entanto, estes credores de regresso podem ficar
impossibilitados de exercer o seu direito se, por sua negligência, não tiverem cobrado
os seus créditos antes da falência do seu condevedor (art' 526', ri' 2, CC).

2. Uma eventualidade que merece alguma atenção é a que se prende com a
situação em que o credor reclamante e o falido são titulares de créditos recíprocos.
Sobre a compensação de créditos, o art' 153' CPEREF estabelece que, a partir da data
da declaração de falência, os credores perdem a faculdade de compensar os seus
débitos com quaisquer créditos que tenham sobre o falido. Suponha-se que, por exem-
plo, o credor possui sobre o falido um crédito de 500 contos e que o falido possui
sobre esse mesmo credor um crédito de 400 contos. Daquela impossibilidade de o


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA





credor opor a compensação resulta que esse sujeito deve pagar à massa o seu débito
de 400 contos e reclamar o seu crédito de 500 contos.
Essa insusceptibilidade de invocação da compensação pelo credor é um
claro afloramento da par condicio creditorum, porque o credor do falido, além de
pagar à massa o seu débito (que deverá ser cobrado pelo liquidatário no momento
do vencimento, arto 1460, n' I, CPEREF), só será pago pelo seu crédito (se ele
tiver sido reclamado) na proporção do que lhe couber no respectivo rateio (art's 210'
e 214' CPEREF). Essa solução parece ter transposto para o âmbito da falência a
exclusão da compensação sempre que dela resulte prejuízo para direitos de terceiro
(art' 8530, n' 2, CC), considerando que ela prejudica os demais credores reclamantes,
porque estes ficam privados de aceder ao rateio do débito do credor perante a massa
falida.
Essa exclusão é especialmente duvidosa quando as condiçöes de reciprocidade
e de exigibilidade dos créditos se encontrem verificados antes da declaração da falência
e, especialmente, quando o credor esteja impossibilitado de compensar apenas porque
concedeu ao devedor um prazo gratuito (art' 849' CC), tanto mais que, nesta última
hipótese, a declaração da falência implica a imediata exigibilidade desse crédito
(art' 1510, n' I, CPEREF) e a perda do benefício desse prazo (art' 780', n' I, CC).
Seja como for, a proibição de compensação constante do art' 153' CPEREF só cobre
a compensação voluntária que não foi invocada pelo credor antes da declaração da
falência e não obsta a qualquer compensação legal já operada.

3. No âmbito das condiçöes subjectivas também devem ser consideradas as
hipóteses em que o falido goza de um benefício de excussão prévia e em que a
responsabilidade do falido é limitada. Se o falido gozar de um benefício de excussão
prévia quanto a um crédito, esse crédito é reclamável, mas o falido é admitido a opor
esse benefício ao credor reclamante. Suponha-se que, por exemplo, o falido é o fiador
de um crédito; o fiador goza do benefício da excussão prévia tanto em relação aos
bens do devedor (art' 638', n' I, CC), como quanto aos bens sobre os quais existe
uma garantia real constituída por um terceiro que seja contemporânea da fiança ou
anterior a ela (art' 639', n' I, CC), pelo que, apesar de o crédito poder ser reclamado
na falência do fiador, este pode opor ao credor aquele benefício.
Nas situaçöes de responsabilidade limitada do falido, o crédito só é reclamável
até ao respectivo limite. Se, por exemplo, tiver sido estipulado que o sócio de uma
sociedade por quotas, agora falido, também responde perante os credores sociais até
determinado montante (cfr. art' 198', n' I, do Código das Sociedades Comerciais),
qualquer desses credores pode reclamar créditos sociais, mas apenas até ao limite da
responsabilidade do falido.


V. Condiçöes processuais

Só são reclamáveis os créditos susceptíveis de tutela jurisdicional, isto é, os
créditos que sejam accionáveis. Assim, não podem ser reclamados nem os créditos
relativos a obrigaçöes naturais (art' 402' CC), nem os créditos prescritos (art' 304',


A VERIFICAÇÃO DO PASSIVO NO PROCESSO DE FALEN('IA




no I, CC). A ambos falta a accionabilidade ou, mais especificamente, a exequi-
bilidade (').


M Aspectos processuais: trâmites da reclamação e da verificação


1. Enquadramento geral

1. A verificação do passivo rege-se por um princípio de exclusividade: só os
credores com créditos verificados e graduados podem concorrer à distribuição do
produto da liquidação do activo. É isso que justifica que, por exemplo, os credores
cujos créditos se encontrem reconhecidos por sentença transitada não estejam dispen-
sados de os reclamar (art' 188', no I, CPEREF). Desse princípio também decorre que
o credor que é demandado para o pagamento de um débito à massa não pode utilizar
a reconvenção como forma de reclamação do seu crédito sobre o falido (6).
No direito português, a verificação dos créditos é uma actividade totalmente
jurisdicional: mesmo que não haja qualquer contestação do crédito reclamado, esse
crédito só se considera verificado depois do seu reconhecimento no despacho saneador
do apenso de verificação (art' 196', nos 2 e 3, CPEREF). Ao contrário do que sucede
nos ordenamentos jurídicos em que a verificação jurisdicional só deve ser solicitada
quando o crédito reclamado tiver sido contestado (é o que se encontra estipulado no
§ 146 da Konkursordnung alemã), no regime português a verificação é sempre jurisdi-
cionalizada.
Isso justifica que a verificação de créditos apresente, no direito português, uma
estrutura semelhante à de qualquer processo declarativo comum. Depois da apresen-
tação, em requerimento próprio, do crédito reclamado (art' 188', no I, CPEREF) e da
autuação das várias reclamaçöes (art' 190' CPEREF), segue-se a apresentação pelo
liquidatário judicial de uma relação de todos os credores reclamantes, à qual pode ser
acrescentada uma outra com a indicação dos créditos não reclamados que conste
existirem e que se lhe afigure terem alguma consistência (art' 191', no I, CPEREF).
Os credores reclamantes e o próprio falido podem contestar a existência ou o
montante dos créditos reclamados (art' 192' CPEREF), admitindo-se uma resposta do
credor reclamante a essa contestação (art' 193' CPEREF). Depois de esgotado o prazo
para as respostas às contestaçöes, deve o liquidatário juntar aos autos o seu parecer
final, sucintamente fundamentado, e, bem assim, o da comissão de credores sobre os
créditos reclamados (art' 195' CPEREF). Juntos esses pareceres, o processo é concluso
ao juiz para proferimento do despacho saneador (art' 196', no I, CPEREF), no qual
se consideram logo verificados os créditos não contestados (art' 196', nos 2 e 3,
CPEREF).


(I) Sobre a caracterização da accionabilidade como uma condição processual de procedência, cfr. M.
Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil (Lisboa 1993), 73 s..
(I) cfr. BoZZa / Schiavon, L'accertamento dei credita nel fallimento e te cause di prelazione (Milano
1992), 173.

MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA





Se a verificação de algum dos créditos necessitar de prova posterior (art' 196',
n' 4, CPEREF) e se houver diligências probatórias a realizar antes da audiência de
discussão e julgamento, o juiz ordenará as providências necessárias para que estejam
concluídas dentro do prazo de 20 dias a contar do despacho que as tiver determinado
(art' 197' CPEREF). Produzidas essas provas, o processo vai com vista ao Ministério
Público e, em seguida, é marcada a audiência de discussão e julgamento (art' 198'
CPEREF), que segue, com algumas adaptaçöes, o regime estabelecido para o processo
declarativo sumário (art' 199' CPEREF; cfr. art's 790' e 791' CPC). Finalmente, é
proferida a sentença que gradua os créditos verificados e fixa a data da falência, se
antes o não tiver sido (art' 200', n' I, CPEREF).

2. Antes de analisar alguns aspectos da tramitarão do apenso de verificação de
créditos, convém referir algo sobre as partes e o objecto desse processo. Todos os
credores reclamantes são simultaneamente partes activas (se assim podem ser
designadas) relativamente aos créditos por eles reclamados (art' 188', n' 1, CPEREF)
e partes passivas quanto aos créditos reclamados pelos outros credores, pois que
qualquer credor reclamante pode contestar a existência ou o montante dos créditos
reclamados pelos outros credores (art' 192' CPEREF). Parte passiva, por poder
contestar qualquer crédito reclamado, é igualmente o próprio falido (arto 192'
CPEREF), que, para esse efeito, excepcionalmente não é representado pelo liquidatário
judicial (cfr. art' 147', n' 2, CPEREF). A este liquidatário cabe apenas os deveres de
apresentar a relação tanto dos credores reclamantes, como dos potenciais (art' 191',
n' I, CPEREF), de patentear no local mais adequado os documentos de escrituração
do falido (art' 194' CPEREF) e de juntar aos autos o seu parecer final e o da comissão
de credores (art' 195' CPEREF), pelo que esse liquidatário não assume a qualidade
de parte no apenso de verificação de créditos.
No processo de verificação de créditos deverão estar preenchidos todos os
pressupostos processuais respeitantes às partes. Importa especialmente salientar a
necessidade de garantir a legitimidade do reclamante: assim, por exemplo, se o crédito
for de ambos os cônjuges (art' 1724' e 1732' CC), a sua reclamação deverá ser
realizada por ambos (cfr. art' I S' CPC).

3. Quanto ao objecto do processo de verificação, há que referir o seguinte: o
objecto desse processo é o direito de crédito, mas considerado como direito à execução
patrimonial e não como direito à prestação (utilizando expressöes que são sugeridos
pelo disposto no art' 817' CC). É exactamente porque o activo do devedor é
insuficiente para satisfazer todos os direitos à prestação que é decretada a sua falência,
pelo que o objecto do processo de verificação de créditos não pode ser um direito à
prestação, que, pelo menos em parte, não pode ser satisfeito, mas um direito à execução
do património do falido e à distribuição do produto da sua liquidação (7).




(I) Cfr. Henckel, Der Gegenstand des Verfahrens zur Feststellung von Konkursforderungen, FS Karl

Michaelis (Göttingen 1972), 158 e 167; Spellenberg, Gegenstand, 81 ss..


A VFRIFICAÇAO DO PASSIVO NO PROCESSO DE FALENCIA





Após a declaração de falência realiza-se a apreensão do património penhorável
do falido com a finalidade de facultar a sua liquidação em benefício dos credores cujos
créditos, devidamente reclamados, tenham sido verificados. Para aceder a essa liqui-
dação o que releva é o direito de executar o património do devedor (falido) a que se
refere o art' 817' CC.

4. Dos vários aspectos relacionados com a tramitarão do processo de verificação
do passivo importa destacar fundamentalmente aqueles que se prendem com a
reclamação dos créditos, a sua contestação e a sentença de verificação.


11. Reclamação dos créditos

1. O credor reclamante deve indicar a proveniência (isto é, o fundamento), a
natureza comum ou preferencial e o montante do crédito (art' 188', n' I in fine,
CPEREF). A reclamação deve ser apresentada em requerimento próprio (art' 188', n'
I, CPEREF), que deve observar as regras da petição inicial (STJ - 6/3/1990, BMJ 395,
505) e que pode ser enviado por telecópia nos termos do art' 2', n' I, do Dec.-Lei
28/92, de 27/2. Se o crédito for reclamado sem a indicação do fundamento, natureza
ou montante (que deve estar sempre determinado em escudos, art' 151', n' 2,
CPEREF), o juiz deve, por analogia com o disposto no art' 4770, n' I, CPC quanto à
petição irregular e deficiente, convidar o credor reclamante a completar ou a corrigir
a reclamação apresentada.
Na regulamentação relativamente exaustiva do processo de reclamação e
verificação de créditos nada consta quanto à apresentação dos meios de prova, pelo
que, dado o disposto no art' 463', no I, CPC, dever-se-á observar o estabelecido para
o processo declarativo ordinário. Assim, conjuntamente com o requerimento de
reclamação devem ser apresentados ou indicados apenas os meios de prova que a lei
manda apresentar ou indicar com os articulados das partes nesse processo: é o caso
dos documentos destinados a fazer prova do fundamento, natureza ou montante do
crédito reclamado (art' 523o, n' I, CPC).
A reclamação do crédito produz alguns dos efeitos característicos da alegação
em juízo das situaçöes subjectivas. Essa reclamação implica, nomeadamente, a
interrupção da prescrição do crédito reclamado (art' 323', n' I, CC). Quanto à
constituição do devedor em mora - que também é um dos efeitos resultantes dessa
invocação (art' 805', n' I, CC) -, há que considerar que a declaração da falência torna
imediatamente exigíveis todas as obrigaçöes do falido (art' 151', n' I, CPEREF) e faz
cessar a contagem de outros encargos sobre as obrigaçöes do falido (art' 15 I', n' 2,
CPEREF), pelo que não são reclamáveis quaisquer créditos relativos a penas
convencionais ou a juros de mora.

2. O princípio da exclusividade da verificação de créditos justifica que, mesmo
o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva, deverá reclamá-
-lo no processo de falência (arto 188', n' 3, CPEREF). Se o processo ainda estiver
pendente e se, portanto, essa decisão ainda não tiver sido pronunciada, a reclamação


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




parece implicar a apensação da acção, a requerimento do credor, aos autos da falência
(art' 188', ri' 4, CPEREF). Isto é, se estiver pendente uma acção relativa a um crédito
reclamável, parece que a única forma de o reclamar é requerer a apensação dessa acção
ao processo de falência. Podem suscitar-se algumas dúvidas no caso de a acção ter
sido proposta contra vários réus (isto é, contra o falido e outros demandados), mas
essa circunstância parece não constituir obstáculo à apensação.
Em contrapartida, consideram-se reclamados o crédito do requerente da falência
(cfr. art's 8', ri' 3, e 9' CPEREF), bem como os créditos exigidos nos processos em
que já tenha havido apreensão de bens do falido (art' 188', ri' 4, CPEREF), como são,
por exemplo, aqueles que o juiz deve requisitar ao tribunal ou entidade competente
(art' 175', n' 3, CPEREF). Expressamente reclamados devem ser, pelo contrário, os
créditos já reclamados num anterior processo de recuperação (art's 44' a 49'
CPEREF) (8), assim como os créditos que tenham sido contraídos durante uma
providência de recuperação que não teve sucesso (cfr. art's 65' e 109' CPEREF).

3. O prazo para a reclamação de créditos é fixado na sentença declaratória da
falência entre 20 a 60 dias (art' 188', n' I, CPEREF), começando a sua contagem desde
a data da publicação da sentença no Diário da República (art' 188', ri' 2, CPEREF).
Mas este prazo não é peremptório. O art' 205', n's I e 2, CPEREF, determina que,
depois de findo o prazo das reclamaçöes e no ano subsequente ao trânsito em julgado
da sentença de declaração de falência, é possível reconhecer ainda novos créditos por
meio de acção proposta contra os credores e também, apesar do silêncio legal, contra
o falido (9). Isto é, além de dever demandar o falido, o credor reclamante deve propor
a acção contra todos os credores reclamantes ou, se a respectiva sentença já tiver sido
proferida, contra todos os credores cujos créditos tenham sido verificados.
Por novos créditos deve entender-se todos aqueles que não tenham sido
atempadamente reclamados no processo de falência, não sendo necessário qualquer
superveniência deles em relação ao prazo normal para apresentação das reclama-
çöes ('O). Proposta a acção, o autor deve assinar termo de protesto no processo prin-
cipal de falência (art' 205', ri' 3 I' parte, CPEREF); se o não fizer ou se, tendo-o feito,
tiver deixado caducar os seus efeitos por não promover os termos da acção durante
30 dias (arto 205', ri' 3 2' parte, CPEREF), o credor só adquire direito a entrar nos
rateios posteriores ao trânsito em julgado da respectiva sentença (art' 206', al. a),
CPEREF).
O art' 1241', ri' I, CPC exigia que o credor provasse que a falta oportuna de
reclamação não foi devida a culpa sua, mas esta exigência desapareceu do corres-
pondente art' 205', ri' I, CPEREF. Trata-se de uma alteração de duvidosa justificação,



(I) Neste sentido, Carvalho Fernandes /João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação
da Empresa e de Falência Anotado (Lisboa 1994), 428.
Assim, Carvalho Fernandes ljoão Labareda, Código, 455.
Cfr. Martim de Albuquerque, "Novos créditos", RFD 27 (l986), 35 ss. = Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa (ed.), Estudos de Direito Comercial / 1. Das falências (Lisboa 1989), 87 ss.; sobre o direito
italiano, cfr., com interesse, Scalini, Accertamento del passivo e dei diritti reali mobiliari dei terzi nel fallimento
(Milano 1995), 195 ss.,

A VERI@ICAÇÃO DO PA,@,SIVO NO PROCE@SSO DE FALENCIA





que, no entanto, se enquadra na relevância muito limitada que o direito processual civil
português concede à valoração do comportamento processual da parte como culposo
ou desculpável: exceptuando as situaçöes de justo impedimento (art' 146' CPC), a lei
processual civil portuguesa considera precludida a prática de um acto que foi omitido
por um erro desculpável da parte, isto é, não admite a realização de um acto que a
parte não praticou atempadamente sem negligência; noutras situaçöes - de que é
exemplo o actual regime da verificação ulterior de créditos -, a mesma reduzida
importância que é concedida à valoração da conduta da parte leva a aceitar a prática
de um acto em circunstâncias em que a responsabilizarão pelas condutas livremente
assumidas justificaria uma outra solução. Afigura-se como particularmente criticável
a possibilidade de essa verificação ulterior ser utilizada pelo credor que foi avisado
pelo liquidatário para se pronunciar sobre a titularidade de um crédito reclamável e
que, nesse momento, nada comunicou (art' 191', ri' 2, CPEREF).

4. O credor reclamante pode alterar ou modificar a reclamação apresentada.
Quanto ao regime dessa alteração, há que distinguir duas hipóteses. A redução do
montante do crédito, bem como a desqualificação do crédito de privilegiado para
comum, são admissíveis sem quaisquer restriçöes: vale aqui a analogia com o regime
da desistência do pedido (art' 293', n' I, CPC). Pelo contrário, uma alteração
substancial do crédito reclamado (como sucede com o seu aumento, com a alteração
do seu fundamento ou da respectiva garantia real ou ainda com a sua qualificação como
crédito preferencial) só pode ser realizada nas condiçöes e com os efeitos da
verificação ulterior de créditos (art's 205' e 206', n' I, CPEREF). Este regime espe-
cial pretere a aplicação do regime geral da modificação do objecto processual que
consta dos art's 272' e 273' CPC.


111. Contestação dos créditos

1. Os credores reclamantes e o falido podem contestar a existência ou o
montante dos créditos reclamados (art' 192o CPEREF). Essa faculdade é reconhecida
a qualquer credor reclamante quanto a qualquer crédito reclamado ou que se considere
como tal - como sucede com o crédito do requerente da falência (art' 188', n' 4,
CPEREF) -, não sendo necessário que o crédito do contestante não tenha sido
contestado ou já se encontre provado e verificado. Esta possibilidade de qualquer
credor reclamante contestar qualquer crédito reclamado deve ser devidamente
salientada: ela significa que qualquer fundamento de contestação que pode ser alegado
por um credor pode ser igualmente invocado por qualquer outro, não constituindo
sequer impedimento a tal o carácter pessoal da excepção invocável por um desses
credores. A contraposição de interesses que liga os credores reclamantes (na medida
em que o que cada um deles houver que receber não poderá ser atribuído a qualquer
outro) justifica essa restrição à disponibilidade de cada um deles sobre a sua posiçao
processual no apenso de verificação de créditos.
Essa comunidade de interesses contrapostos justifica igualmente que todos os
créditos reclamados possam ser contestados. Impugnado pode ser mesmo o crédito do


MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




credor que requereu a falência ('I). Não existe nenhum motivo para coarctar a qualquer
credor reclamante e ao próprio falido a faculdade de se pronunciar sobre qualquer
crédito reclamado, bem como sobre aqueles que, não sendo reclamados, devem ser
considerados como tal (como acontece com o crédito do requerente da falência,
art' 188', no 4, CPEREF).
Já se entendeu que os credores cujos créditos, pelas garantias que lhes assistem,
são necessariamente graduados à frente de outros créditos reclamados não podem
contestar estes últimos, porque - argumenta-se - esses credores preferenciais não
possuem qualquer interesse processual, dado que não podem ser afectados por um
crédito que será graduado abaixo do seu (' 2). É uma orientação que, no entanto,
esquece que, no momento da contestação, ainda não há qualquer reconhecimento do
crédito como preferencial e que, mesmo que ele venha a ser reconhecido como tal, o
credor privilegiado pode vir a concorrer com os credores comuns se não ficar
integralmente pago pelo produto da liquidação do bem onerado (art' 209' CPEREF).
Se dois credores reclamarem o mesmo crédito, isto é, se se considerarem ambos
titulares de um mesmo crédito, a não contestação por qualquer deles do crédito
reclamado pelo outro credor não significa o reconhecimento por esse credor da
pertença do crédito ao outro credor reclamante ("). A reclamação do crédito equivale,
naturalmente, à contestação da sua titularidade por qualquer outro credor.

2. A contestação pode respeitar ao fundamento, à natureza e ao montante do
crédito reclamado. A circunstância de o art' 192' CPEREF se referir apenas à
contestação da existência e do montante do crédito não pode obstar à contestação da
sua natureza, até porque contestar o carácter preferencial de um crédito é também
contestar a sua existência como crédito privilegiado.
Questão complexa é a que se relaciona com os fundamentos que podem ser
invocados na contestação dos créditos reclamados. Abstraindo dos aspectos referidos
aos pressupostos processuais e analisando apenas, por isso, os fundamentos materiais,
parece haver que distinguir, desde logo, consoante o crédito reclamado se encontre
judicialmente reconhecido ou não haja qualquer reconhecimento judicial desse crédito.
Se o crédito não estiver judicialmente reconhecido, pode ser invocado, por qualquer
credor reclamante ou pelo falido, qualquer fundamento de impugnarão do crédito,
qualquer excepção a ele oponível ou ainda qualquer circunstância relativa às condiçöes
de reclamação do crédito.
Se o crédito se encontrar reconhecido em sentença proferida contra o falido,
haverá que considerar que essa sentença, que, se for condenatória, é um título exe-
cutivo (art' 46', al. a), CPC), não pode valer no processo falimentar menos do que
valeria numa execução singular. Por isso, quanto aos fundamentos de contestação do
crédito reclamado, deverá aplicar-se a essa situação, por analogia, o disposto no art'
813', al. h), CPC. Assim, é sempre invocável qualquer facto extintivo ou modificativo



Contra, Elias da Costa, Das falências (Porto 1981), 123 s..

(I 2) Assim, Carvalho Fernandes /João Labareda, Código, 435.

(I 3) Kilger / Karsten Schmidt, Konkursordnung 16 (München 1993), § 144 5.


A VERIFIC'AÇÃO DO PASSIVO NO PROCESSO DE FALENCIA




da obrigação que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de
declaração, podendo essa alegação ser feita tanto por um dos credores reclamantes,
como pelo falido (art' 192' CPEREF). Quanto aos factos anteriores a essa fase
processual (e que, por isso, podiam ter sido invocados na acção declarativa), há que
diferenciar: - o falido não pode invocar nenhum desses factos, operando quanto a ele
a preciusão imposta pelo art' 813', al. h), CPC; - os credores reclamantes, todavia,
podem invocar um facto que podia ter sido alegado nessa acção desde que ele seja
um daqueles que, aliás excepcionalmente, podem ser invocados pelos credores do
demandado (é o que acontece, por exemplo, com a prescrição não deduzida pelo
devedor demandado, art' 305', ri' 3, CC).

3. As situaçöes de solidariedade activa (isto é, de pluralidade de credores
solidários) implicam algumas especialidades que importa referir. Agora há que
distinguir consoante o devedor demandado por um único dos credores solidários tenha
sido condenado ou absolvido. Se foi condenado, qualquer dos credores solidários
(mesmo aquele que não demandou) pode reclamar o crédito, porque o caso julgado
favorável a um desses credores aproveita a todos os demais (art' 53 I' CC). Contra o
credor reclamante que não foi autor na acção declarativa só podem ser invocados
excepçöes pessoais (art' 53 I' in fine CC), o que, se for procedente, implica a exclusão
desse credor do concurso e reduz, na respectiva quota-parte, o crédito solidário.
Se o devedor tiver sido absolvido na acção proposta por um dos credores
solidários, o credor demandante não pode reclamar o crédito, mas pode fazê-lo
qualquer outro credor solidário, porque o caso julgado desfavorável não lhe é oponível
(arto 531' CC). Mas, nessa hipótese, o falido pode opor a esse credor qualquer
fundamento de impugnarão ou qualquer excepção, pessoal ou comum.

4. Pode levantar-se o problema de saber se o falido pode opor a um crédito
reclamado a compensação com um crédito sobre o credor reclamante. A resposta deve
ser negativa. A ratio legis da proibição da invocação por qualquer credor do falido
da compensação do seu crédito com um crédito recíproco do falido (art' 153' CPEREF)
estende-se à hipótese em análise: a razão é sempre a necessidade de obviar que o
credor deixe de participar da distribuição do produto da liquidação do activo e obtenha,
pela via da compensação, uma satisfação, integral ou parcial, do seu crédito à custa
da massa falida e, por isso, em prejuízo dos demais credores reclamantes.


IV. Sentença de verificação

1. Os créditos reclamados, que não puderem ser verificados no despacho
saneador (cfr. art' 196', n's 2 e 3, CPEREF), sê-lo-ão na sentença de verificação
@irt' 200', ri' I, CPEREF). Essa sentença gradua os créditos verificados em
conformidade com as preferências resultantes do direito substantivo, havendo uma
"raduação geral para os bens da massa falida e uma especial para os bens a que
respeitem direitos reais de garantia (art' 200', n's I e 2, CPEREF) e pelos quais vão
ser pagos os respectivos credores preferentes (art' 209' CPEREF). Nessa graduação


T MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA




não são atendidas note-se as preferências resultantes de penhora ou de hipoteca
judicial (art' 200', n' 3, CPEREF).
O recurso da sentença de verificação e graduação de créditos pode ser interposto
por qualquer credor reclamante ou pelo falido, mesmo que não tenham contestado o
crédito reconhecido. O que releva, quanto à aferição da legitimidade para recorrer, é
o prejuízo efectivo que esses sujeitos sofrem com a verificação do crédito e não a sua
posição formal de contestante ou não contestante do crédito reclamado. Quando
admissivel, esse recurso sobe em separado e com efeito meramente devolutivo
(art' 229', n' 2, CPEREF). Note-se que, exactamente porque esse recurso não tem
efeito suspensivo, o credor cujo crédito foi verificado é admitido nos rateios que se
realizarem, mas as quantias que lhe sejam destinadas ficam depositadas até ao
proferimento da decisão definitiva (art' 213', n' I, CPEREF).

2. Não se encontra no regime português qualquer mecanismo destinado a
possibilitar a modificação da sentença de verificação de créditos (como se estabelece,
por exemplo, no art' 102 da Legge Fallimentare italiana ("". Mas não se pode excluir
a supervenjência de factos relevantes para a contestação de um crédito reclamado,
como, por exemplo, o conhecimento de um documento não oportunamente utilizado.
Para situaçöes como esta, oferece-se como solução a aplicação analógica, com as
devidas adaptaçöes, do disposto quanto à verificação ulterior de créditos (art' 205'
CPEREF).

3. A decisão de verificação vincula todos os credores reclamantes e o falido, o
mesmo sucedendo quanto à sentença de verificação ulterior. Mas, como frequentemente
sucede quando se abordam questöes relacionadas com o caso julgado, é particularmente
complexo o problema da eficácia extrafalimentar do reconhecimento ou do não
reconhecimento dos créditos reclamados em qualquer dessas sentenças. Importa
recordar que, como acima se referiu, o objecto do processo de verificação não é o
crédito como direito à prestação, mas sim esse mesmo crédito considerado como direito
à execução patrimonial. Esta premissa não pode deixar de impor alguma prudência
quando se trata de averiguar qual o reflexo que a verificação ou não verificação do
crédito como direito à execução produz num outro processo em que esse crédito é
discutido como direito à prestação.
Essa cautela é reforçada pela circunstância de o direito à prestação e o direito
à execução, embora referidos ao mesmo crédito, poderem reportar-se a valores
patrimoniais muito diversos: se o crédito tiver por objecto l OOO, mas o património do
devedor só puder satisfazer 200, entre o valor económico do direito à prestação e o
do direito à execução existe uma diferença significativa. Importa sublinhar que essa
é precisamente a situação subjacente à falência do devedor: essa falência fundamenta-
-se na circunstância de os direitos à prestação excederem aquilo que pode ser obtido
com a execução do seu património.




Sobre esta regulamentação, cfr. Scalini, Accertamento, 209 ss..


A VEI?IFICAÇÃO DO PASSIVO NO PROCESSO DE FALEN(@IA





Assente esta base, pode analisar-se a primeira hipótese que há que considerar:
a de o tribunal reconhecer o crédito reclamado e julgá-lo como verificado. Nesta
eventualidade, a diferença económica entre o direito à execução (que é o único que
se encontra verificado) e o direito à prestação justifica que aquele reconhecimento não
possa ter qualquer eficácia extrafalimentar. Dessa verificação do direito à execução
não pode resultar uma vincularão das partes quanto ao correspondente direito à
prestação ("). As partes de um processo não podem ficar vinculadas à decisão proferida
num outro processo quando os interesses económicas que estavam em causa neste
último eram substancialmente menos importantes do que aqueles sobre os quais elas
litigam agora no processo pendente (l6) . Resta analisar a hipótese em' que o crédito
reclamado não é verificado. Convém começar por referir que o fundamento para a não
verificação de um crédito reclamado pode ser, em alternativa, um de dois: essa não
verificação pode fundamentar-se tanto na inexistência do crédito, como na mera
insusceptibilidade da sua reclamação, isto é, na falta de condiçöes para, indepen-
dentemente da averiguação da sua existência ou inexistência, ele ser aceite como
crédito reclamável ("). Importa analisar a eventual eficácia extrafalimentar dessa
decisão de não verificação com qualquer um desses possíveis fundamentos.
Se o crédito não foi verificado porque o tribunal o considerou inexistente, o
mesmo critério que, atendendo à diversidade do valor económico entre o direito à
execução e o direito à prestação, fundamenta a rejeição da vincularão das partes ao
reconhecimento do direito à prestação com base na verificação do direito à execução,
justifica idêntica recusa quanto à sua vincularão à inexistência do crédito à prestação
extraída da não verificação do direito à execução. Ou seja, do não reconhecimento do
direito à execução no processo falimentar nada pode resultar quanto ao direito à
prestação.
Se a não verificação do crédito reclamado se fundamentou apenas na falta de
uma das condiçöes para a sua reclamação, é claro que, nada se chegando a apreciar
quanto à sua existência ou inexistência, dessa decisão nunca pode resultar qualquer
vincularão das partes quanto a essa existência ou inexistência. Em conclusão: em
nenhuma hipótese se justifica a eficácia extrafalimentar da decisão sobre a verificação
do crédito reclamado.








Identicamente, Heiickel, Gcgenstand, 167; cfr. também Ricci, Sull'efficacia deite sentenze sulle
opposizioni e suile impugnazioni nella formazione de] passivo fallimentare, in Uaccertamento dei credita nelle
procedere concorsuali / Atti del Convegno S.I.S.CO. del 9 Novembre 1991 (Milano 1992), 147 s..
(") Sobre o valor económico como critério do âmbito objectivo do caso julgado, cfr. Henckel, Prozessrecht
und materielles Recbt (Göttingen 1970), 171 ss..
(l7) Chamando a atenção para essa altematividade, cfr. Henckel, Gegenstand, 155; em sentido aproximado,
cfr. Ricci, Efficacia, 139.

o








E


APREENSAO, RESTITUIÇAO, SEPARAÇAO E VENDA
DE BENS NO PROCESSO DE FALENCIA

JOSÉ LEBRE DE FREITAS

(Professor da Faculdade de Direito de Lisboa)



1. No âmbito deste curso sobre o novo regime de recuperação de empresas e
de falência, cabe hoje assumir a perspectiva processual. Muitos são os aspectos que,
sob esta perspectiva, poderiam ser analisados, mas pareceu-nos útil restringir e centrar
a atenção no processo de falência (deixando, portanto, de fora o de recuperação) e,
dentro dele, nas actuaçöes processuais relativas ao activo da massa falida (de que
irei tratar seguidamente) e nas que respeitam ao seu passivo (de que tratará o Prof.
Teixeira de Sousa). Estes dois aspectos, sugeridos pelo Prof. Teixeira de Sousa,
constituindo embora objecto mais amplo do que o dos capítulos VI e Vll do Código
dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, ficam, ainda assim,
muito longe de esgotar o universo dos problemas processuais da falência.
De processo de falência é possível falar em dois sentidos: num sentido restrito,
trata-se da sequência ordenada de actos que se inicia com a apresentação à falência
(art. 6), o pedido de declaração desta (arts. 8, 76-1 e 86) ou a decisão judicial que
converta em processo de falência o de recuperação (arts. 23-1, 25-4, 53-1, 56-4,
82-2 e 84-2) e se conclui com o pagamento aos credores (art. 209) e o julgamento
definitivo das contas do liquidatário (art. 223); num sentido amplo, abrange, além dessa
sequência, as tramitaçöes estruturalmente autónomas que têm lugar na dependência
funcional da primeira, em consequência da sentença que decrete a falência. Na primeira
acepção, mais rigorosa, não se integram no processo de falência, por constituírem
sequências de actos processadas por apenso, os embargos à sentença de falência (art.
129), as acçöes em que se apreciem questöes relativas a bens do activo e de que o
liquidatário judicial requeira a apensação (art. 154- I), a acção de impugnarão pauliana
e as derivadas da resolução de actos praticados pelo falido (art. 160), os processados
relativos à apreensão de bens (art. 177) e à liquidação do activo (art. 180-2), as acçöes


JOSÉ LEBRE DE FREITA.S




destinadas à verificação do passivo (art. 190), as que visam a separação e a restituição
de bens (art. 201) e os embargos ao acordo extraordinário (art. 236). Na segunda
ac epção, considerada a sua subordinação funcional ao processo principal, a autonomia
estrutural das tramitaçöes por apenso não constitui obstáculo à sua integrarão num
conceito de processo de falência mais compreensivo. Esta é a acepção utilizada pelo
legislador ao intitular de processo de falência o título 111 do Código. Mas, embora se
compreenda a sua utilização enquanto oposta ao processo de recuperação da empresa,
não deixa ela de sofrer de menos rigor do que a acepção restritiva, dado que a unidade
dum processo civil exige, ao mesmo tempo que a subordinação dos actos nele
praticados a uma finalidade global, também a sua inserçao numa sequência estru-
turalmente autónoma.
Assim, tal como em sede de acção executiva se distingue o processo executivo
propriamente dito dos processos a ele apensados, também na área da falência se
distingue um processo principal (o processo de falência propriamente dito) e processos
apensos. Só que, enquanto que o processo de execução tem natureza diversa dos
processos, de natureza declarativa, de embargos de executado, de embargos de terceiro
e de reclamação e verificação de créditos (de tal modo que o princípio da equidade,
nas duas vertentes da contraditoriedade e da igualdade de armas, neles se exprime
diferentemente), no caso da falência não só o processo principal tem a natureza mista
de processo declarativo e de processo executivo (e não a de execução universal, que
autores como MANUEL RODRIGUES, ALBERTO DOS REIS e PESSOA JORGE lhe
atribuíram), mas também nem todos os processos apensos têm natureza declarativa,
como se vê considerando os casos do apenso de apreensão de bens e do de liquidação
do activo.
O processo de falência (tal como o de recuperação da empresa) inicia-se com
uma fase declarativa que, não tendo havido oposição à apresentação ou ao
requerimento da falência, se encerra com os juízos sobre o reconhecimento da situação
de insolvência e (eventualmente) sobre a inviabilidade económica da empresa e a
consequente sentença (arts. 25 e 122) e, tendo havido oposição, se prolonga até à
sentença a proferir após audiência de discussão e julgamento (arts. 123 e 124).
Natureza declarativa tem também o processamento que tem lugar no processo prin-
cipal com vista à homologação do acordo extraordinário (arts. 231-235 e 237).
Restam os outros actos praticados no processo de falência (propriamente dito)
após o decretamento desta: nomeação do liquidatário judicial e da comissão de
credores; requerimentos, impugnaçöes, autorizaçöes e decisöes relativas à
administração ordinária e extraordinária da massa falida, bem como ao rateio e ao
pagamento do respectivo produto; actos respeitantes às contas do liquidatário. Todos
têm natureza executiva.
Não obstante esta duplicidade do processo de falência, sentir-nos-emos talvez
tentados a dizer, tal como os autores há pouco citados, que, sendo indubitável a
natureza executiva dos actos de apreensão, venda e pagamento e constituindo todo o
processo de falência uma sequência destinada ao fim último da realização (na medida
do possível) dos direitos dos credores, a função executiva se sobrepöe à função
declarativa da fase inicial do processo, conferindo a todo ele uma indubitável natureza
executiva. "0 processo de falência", diz JAUERNIG, "não é um processo declara-


APREENSÃO, RESTITUIÇAO, SEPARAÇÃO E VENDA [)E BEN@@ NO PROCESSO DE FALENCIA




tivo mas, por sua natureza, uma execução, visto levar a uma agressão do Estado
à posição jurídica do devedor e em especial à confiscação do seu património. É uma
liquidação forçada do património global do devedor, para satisfazer os credores",
Julgo, porém, que a fase declarativa do processo de falência não pode deste
modo ser menosprezada.
Por um lado, a declaração de falência não tem o único efeito de abrir a sucessiva
fase executiva e assim proporcionar a satisfação possível - e igualitária - dos
direitos dos credores comuns, mediante a actuação do mecanismo da garantia geral
das obrigaçöes. Tem ela também importantíssimos efeitos de direito substantivo, que
não respeitam apenas aos direitos sobre os bens (actuais e futuros) do falido e à eficácia
dos actos que os tenham por objecto; consistem também na sua inibição (ou dos
administradores da sociedade ou pessoa colectiva falida) para o exercício do comércio
e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil,
associação privada de actividade económica ou empresa pública ou cooperativa (art.
148- I). Ora, se é certo que há paralelismo entre o efeito de ineficácia relativa dos actos
subsequentes à penhora previstos nos arts. 919 e 920 CC e o de inoponibilidade à
massa falida (art. 155- I), bem como entre o da perda dos poderes de uso e fruição
do bem penhorado (arts. 838-2 e 843 CPC) e o da perda da administração e do poder
de disposição dos bens presentes e futuros do falido (art. 147- I), já a inibição do falido
para o exercício do comércio e para a ocupação dos cargos referidos não tem qualquer
paralelo no campo do processo executivo.
Por outro lado, a consideração do fim último que na prática os credores
pretendem tipicamente atingir não deve levar a instrumentalizar mais a fase declarativa
da falência do que a fase declarativa do processo de venda e adjudicação do penhor
(correntemente tido como processo misto de declaração e de execução, quando não é
classificado entre os processos executivos) ou, no limite, do que a acção declarativa
de condenação (também ela uma etapa no caminho que conduz à realização do direito
de crédito). A dispensa da obtenção do título executivo no processo de falência
obedece, aliás, a razöes de ordem eminentemente prática e é compensada pelos proce-
dimentos de verificação do passivo e pela fase declarativa do processo principal.
O processo de falência tem, pois, a natureza mista de processo declarativo e
executivo.
Se considerarmos agora o tema da presente lição, constatamos que apreensão,
separação, restituição e venda de bens são, em si, actos de natureza executiva; mas,
enquanto que a venda, tendo por objecto os bens previamente apreendidos, dispensa
qualquer juízo autónomo de natureza declarativa e a apreensão, implicando embora
um juízo sobre a penhorabilidade do bem, é feita pelo liquidatário sem precedência
duma decisão judicial que o tenha por conteúdo, já a separação e a restituição só têm
lugar após um procedimento declarativo destinado a verificar o direito de terceiro,
proprietário ou possuidor, o direito do cônjuge do falido aos seus bens próprios e à
sua meação nos bens comuns ou o direito de restituição do vendedor comercial que
tenha convencionado fornecer a mercadoria antes do pagamento do preço.

2. A qualificação da apreensão como providência executiva não se conforma
com a terminologia utilizada pelo Código, ao introduzir o seu capítulo V com a
epígrafe providências conservatórios.


JOSE LEBRE DE FREITAS
WM



Tendo por objecto, além dos elementos da contabilidade, todos os bens
penhoráveis do falido, a apreensão reveste-se dum carácter definitivo que a distingue
das providências cautelares. Com ela realiza-se, é certo, uma finalidade de acaute-
lamento, na medida em que o ingresso dos bens na esfera de disponibilidade material
do liquidatário impede o falido de deles materialmente dispor, ocultando-os ou
dissipando-os. Mas a função da apreensão consiste, essencialmente, em concretizar o
conteúdo da massa falida e o objecto dos actos executivos (administração e alienação)
que sobre ela subsequentemente se irão realizar. Trata-se duma função semelhante à
da penhora no processo executivo, embora, dos efeitos imediatos desta, só tenha o de
atribuir ao liquidatário o poder de administração dos bens apreendidos (art. 141), pois
quer o efeito de inoponibilidade situacional quer o de perda da administração dos
bens pelo falido resultam, antes dela, da sentença de declaração da falência. Note-se,
aliás, como, na falência, se dá a cisão entre o momento da perda do poder de
administração pelo falido e o da sua aquisição pelo liquidatário, que, como resulta do
art. 176, começa por ter tão-só o poder de apreensão e só quando esta se realiza fica
constituído depositário, adquirindo assim a posse em nome alheio (em nome do tri-
bunal) dos bens corpóreos apreendidos. Esses dois momentos coincidem no acto da
penhora. A função da apreensão dos bens do falido extravasa assim a função cautelar,
constituindo uma função executiva.
Consequentemente, o arrolamento a que se refere o art. 176 não se confunde
com o arrolamento dos arts. 421 e ss do Código de Processo Civil, que é uma
verdadeira providência cautelar, com eficácia provisória condicionada à instauração,
ao normal processamento e ao resultado da acção declarativa de que depende e, como
todas as providências cautelares, ordenada após uma fase declarativa destinada a
verificar o fumus boni juris e o periculum mora.
O art. 176 prevê duas modalidades de apreensão de bens para a falência: o arro-
lamento e a entrega directa através de balanço. O arrolamento consiste na descrição,
avaliação e depósito dos bens: di-lo a alínea d) do n' 4 do artigo, em termos idênticos
aos do art. 424-1 CPC, de cujos n's 2 e 3 resultaram também as alíneas e) e f) do
n' 4 do referido art. 176, aplicáveis quer ao arrolamento quer à entrega por balanço.
Mas esta identidade de formalidades não implica a identidade das duas figuras de arro-
lamento. Pelo contrário, o facto da reprodução que se constata nas alíneas d), e) e f)
do art. 176 inculca a ideia de se tratar de figuras diversas, pois de outro modo seria
mais racional a remissão, expressa ou até implícita, para os requisitos e o regime do
arrolamento no Código de Processo Civil. Com efeito, precedida da declaração de
falência (em vez de subordinada a uma acção declarativa pendente ou a propor) e
consistindo em actuaçöes materiais independentes de qualquer indagação declarativa
específica prévia, a apreensão dos bens do falido, em qualquer das suas duas
modalidades, constitui acta executivo da sentença de declaração dafalência, a qual,
desempenhando no processo de falência papel paralelo ao do título executivo, constitui
o poder de apreensão, que naquele acto se exerce. Tal como ao arrolamento do Código
de Processo Civil, aplica-se-lhe subsidiariamente o regime da penhora, mas não por
via do art. 424~5 CPC ("são aplicáveis ao arrolamento as disposiçöes relativas à
penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secçao ou a diversa
natureza das providências"). Este artigo é, tal como o art. 402 CPC ("o arresto consiste


APREENSAO, RESTITUIÇAO, SEPARAÇAO E VENDA DE BENS NO PROC'F.@SO D@ FAI,ENCI,





numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposiçöes relativas à
penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado neste capítulo"), afloramento
duma norma geral implícita, de acordo com a qual o regime da penhora é subsidia-
riamente aplicável às outras figuras de apreensão judicial. O recurso a esse regime não
tem, pois, que passar pelo art. 424-5 CPC (o que, aliás, o restringiria à modalidade
do arrolamento) e faz-se, quer no caso de arrolamento, quer no de entrega directa
através de balanço, por directa aplicação dessa norma geral. Ressalvadas as adaptaçöes
necessárias, o regime de efectivarão da penhora (arts. 838 e ss CPC) e o das citaçöes
e notificaçöes a terceiros (ex.: arts. 825-2, 829-2, 830-2, 853-3, 857-3 CPC; expressa-
mente, art. 119 do Código do Registo Predial e art. 178) aplicam-se. Ao invés, e ainda
em consequência da natureza não cautelar, mas executiva, da providência, não lhe é
aplicável o regime das providências cautelares.
Apreendidos são para a massa falida todos os bens susceptíveis de penhora,
dispöe o art. 175-1, ainda que penhorados, arrastados ou por qualquer outra forma
apreendidos noutro processo, casos em que a sua imediata disponibilidade pelo
liquidatário não impede que se mantenha o depósito anterior (art. 176-4-a). Acrescenta
ainda o art. 175-2 que os bens isentos de penhora poderão, porém, ser integrados na
massa falida se o devedor voluntariamente os apresentar.
Esta remissão para o regime geral da penhorabilidade dos bens implica algumas
adaptaçöes. Assim, as limitaçöes legais à disponibilidade, objectiva ou subjectiva, dos
bens, bem como as que directamente afectam a sua penhorabilidade. seja em termos
absolutos, seja em termos relativos, mantêm-se inteiramente; mas os regimes de
penhorabilidade subsidiária, quando impondo a prévia excussão ou verificação da
insuficiência de determinados bens ou categorias de bens do devedor, não impedem
que, declarada a falência, os bens só subsidiariamente penhoráveis não devam ser
imediatamente apreendidos, pois não faria sentido a exigência da prévia excussão de
outros e a insuficiência do património do falido está reconhecida. Para dar um
exemplo, o direito ao produto da liquidação da quota do falido na sociedade civil, na
sociedade comercial em nome colectivo e, sendo ele sócio comanditado, na sociedade
comercial em comandita simples deverá ser imediatamente apreendido. As normas que
estabelecem, no âmbito do património do devedor, a penhorabilidade apenas subsi-
diária de certos bens, que visam salvaguardar, não têm, pura e simplesmente, possibi-
lidade de aplicação em caso de falência. Assim também, os regimes de impenho-
rabilídade convencional permitidos pelos arts. 602 (convenção entre credor e devedor),
603 (determinação de terceiro) e 833 (cessão de bens aos credores) do Código Civil
mantêm-se, no âmbito dos créditos com responsabilidade patrimonial limitada, mas
não impedem a apreensão para a massa falida, dado o carácter universal da falência.
Mais interessante é, porém, considerar os casos em que bens do falido estejam
afectos à garantia de dívidas de terceiro e aqueles em que bens de terceiro garantam
créditos contra o falido.
Constituindo objecto da apreensão os bens que, nos termos do art. 147-1,
integram a massa falida (os bens, presentes e futuros, do falido), mais os que tenham
sido transmitidos pelo falido por negócio que seja objecto de resolução ou de
impugnarão pauliana e os que sejam ulteriormente adquiridos por cumprimento de
negócio celebrado pelo falido, não oferece dúvida que bens de terceiro não podem ser


001

JOSÉ LEBRE DE FREITAS





objecto de apreensão no âmbito do processo de falência. A satisfação dos créditos
reclamados na falência que por eles sejam garantidos deverá, por isso, aguardar a
verificação, em acção executiva própria, da insuficiência dos bens onerados. Ora, não
sendo a perda do benefício do prazo por virtude da insolvência do devedor extensível
ao terceiro proprietário (art. 782 CC), tal poderá, no caso de dívida vincenda, dar lugar
a algumas dificuldades de rateio, designadamente parcial (art. 210), de que o legislador
não parece que se tenha apercebido.
Por seu lado, a apreensão dos bens dofalido afectos à garantia de dívidas de
terceiro não impede que, nos termos gerais, o produto da sua venda só se destine à
satisfação dos credores da massa falida após a satisfação do terceiro preferente; mas,
não se prevendo que o reconhecimento do crédito deste possa ter lugar, como no
processo executivo singular, em apenso declarativo especial adequado à sua reclamação
e verificação, esse reconhecimento deverá ter lugar em acção comum que, porém,
convém que, nos termos do art. 154-1, seja apensada ao processo de falência.
Efectivamente, a nossa lei nem trata este caso como de separação de bens nem dispensa
o terceiro, que não é credor do falido, da obtenção de título executivo.
3. A oposição à apreensão de bens para a massa falida não dá lugar a embargos
de terceiro (art. 1037-1 CPC). Há, sim, no Código um meio específico de oposição,
que se processa como a reclamação de créditos: o da acção de restituição e separação
de bens. Deve ela ser instaurada no prazo fixado para a reclamação de créditos (entre
20 e 60 dias, contados continuamente desde a data da publicação da sentença no Diário
da República) ou, no caso de apreensão superveniente de bens, nos 7 dias posteriores
(arts. 201 e 203), prazo este que não pode, a meu ver, sob pena de injustificada
desigualdade de tratamento, deixar de se contar também no caso de apreensão de bens
efectuada menos de 7 dias antes do termo do prazo para a reclamação. Passado esse
prazo, os pedidos de separação e de restituição são ainda admissíveis, mas ia não pelo
meio específico do Código: deverá então o terceiro propor uma acção comum com
processo sumário que corre, no entanto, ainda por apenso ao processo de falência e
cujos efeitos neste processo estão condicionados à efectivarão, nele, dum termo de
protesto, sem o qual o terceiro perde o direito aos bens logo que estes sejam vendidos
e só será emboisado, em situação de preferência, até à importância do produto da venda
e, mesmo assim, com importantes limitaçöes (arts. 205 a 207). Devendo os n's 2 e 3
do art. 179 (sobre o direito à separação no caso de bens indivisos ou em
contitularidade) ser interpretados em sintoma com as alíneas h) e c) do art. 206, creio
que em caso algum é dispensado o protesto, não obstante o referido no 3, só por si,
parecer significar o contrário.
É interessante comparar o protesto em causa com o protesto pela reivindicação
previsto nas disposiçöes paralelas dos arts. 910 e 911 CPC.
Diversamente de outros sistemas jurídicos, em que a tutela do comprador de
boa fé impede o reconhecimento ulterior de direitos reais de terceiros sobre o bem
penhorado (móvel ou, em caso de inscrição registral a favor do executado, também
imóvel), a nossa lei, baseada na nulidade da aquisição a non domino, faz ceder o
interesse do comprador na execução perante o do proprietário reivindieante: atribui a
este a coisa reivindicado e àquele apenas o direito a ser reembolsado do preço por

AI'RFENSAO, RE,@TITUIÇÃO, SEPARAÇÃO E VENDA DE BENS NO PROCESSO DE PALENCIA





aqueles a quem ele tenha sido atribuído, podendo ainda pedir uma indemnização, pelos
danos que tenha sofrido, ao exequente, aos credores e ao executado que hajam
procedido culposamente (art. 825-1 CC). A finalidade do protesto pela reivindicação
feito no acto da venda, ou antes dela, é dupla: exclui o direito do comprador à
indemnização, pois se entende que o risco decorrente da reivindicação foi por ele
assumido (art. 825-2 CC); obriga-o a prestar caução, destinada a garantir o direito
do reivindicante, mas com a contrapartida da caução que os titulares de direitos sobre
o produto da venda igualmente terão que prestar, em garantia do direito do comprador
à restituição do preço (arts. 910-1 e 1384-l-c CPC). Num caso apenas o comprador
goza do direito de retenção da coisa comprada enquanto não lhe for restituído o preço:
quando, feito o protesto, a acção de reivindicação não for proposta dentro de 30 dias
ou estiver negligentemente parada durante 3 meses e for requerido a extinção das
cauçöes referidas (art. 910-2 CPC).
No processo de falência, já o direito do proprietário e a consequente nulidade
da aquisição a non domino sofreram alguma entorse: se o protesto não tiver lugar ou
os seus efeitos caducarem, por inércia do autor em promover os termos da causa
durante 30 dias, a venda dos bens mantém-se e o autor mais não terá do que o já
referido direito de crédito. A tutela do comprador de boa fé é feita, pois, em termos
que levam ao sacrifício do direito sobre a coisa vendida. A função do protesto não se
realiza já a latere do reconhecimento absoluto do direito real, mas consiste antes na
manutenção dos efeitos que este tem erga omnes. É uma excepção importante, já
consagrada na lei de processo desde 1961, à regra da prevalência do direito real sobre
os interesses de terceiros de boa fé - regra esta que, como se sabe, veio mais tarde
a ser também limitada pelo Código Civil de 1966 em sede de direitos sobre imóveis,
tida em conta a sua sujeição a registo.
Noutro ponto importante diverge o regime do meio, especial ou comum, de
restituição e separação de bens apreendidos para a massa falida dos seus homólogos
dos embargos de terceiro e da acção de reivindicação dos bens penhorados: os
embargos de terceiro fundam-se na posse em nome próprio, enquanto a acção de
reivindicação se funda num direito real; por seu lado, os pedidos de restituição e
separação de bens podem fundar-se num direito real ou numa situação possessória
(além de um caso, adiante referido, em que se fundam num direito de restituição
meramente obrigacional), podendo consequentemente respeitar a bens incorpóreos.
A inexplicável circunscrição da legitimidade para embargar de terceiro, também ela
oposta ao que se verifica em outros sistemas jurídicos, não tem aqui equivalente (]).
Restituição e separação de bens são, obviamente, conceitos distintos, corres-
pondendo não a duas acçöes diversas, mas a duas actuaçöes cumuláveis na mesma
acção. Reconhecido que determinado bem não pertence à massa falida, ele deve ser
dela separado, por reclamação de terceiro legitimado ou oficiosamente. A esta
separação seguir-se-á a restituição ao titular do respectivo direito, se a ela houver lugar



(I) No Código de Processo Civil resultante da actual revisão (posterior ao texto ora publicado) os embargos
de terceiro deixam de constituir um meio possessório para passarem a ser facultados ao titular do direito de fundo
ofendido pela penhora (ou acto judicial semelhante).


JOSÉ LEBRE DE FREI'VAS




e ele a tiver pedido. Embora a terminologia do art. 201 não seja muito rigorosa e a
sua epígrafe baralhe os termos em que ela deve ser feita, ao referir a restituição
antes da separação, a leitura dos seus n's I e 2 evidencia a distinção, ainda que a
arrumação constante das quatro alíneas do n' I (maxime, das alíneas a e c) não seja
nada feliz.
Têm o direito de separação, nos termos do art. 201-1 e do art. 179-2:

a) Os titulares de direito real de gozo (direito de propriedade, direito real menor
de gozo, direito sobre bens incorpóreos, algum destes direitos em comi-
tularidade) sobre bem apreendido com sua ofensa. Têm ou não o direito de
restituição, consoante a configuração do seu direito real lhes permitisse ou
não o exercício exclusivo de poderes de uso e fruição sobre a coisa.
b) Os titulares de quinhão em universalidade (herança, comunhão conjugal)
em que também quinhoe o falido, quando a apreensão tenha excedido o
direito deste. Não têm o direito de restituição.
c) O possuidor em nome do qual o falido possuísse o bem apreendido (locador,
comodante, depositante, consignante). Tem também o direito de restituição.

Vejamos a aplicação deste esquema a algumas situaçöes menos nítidas.
Titular de direito real com direito à restituição é, sem dúvida, o transmitente
que reserve a propriedade da coisa vendida, quando a compra e venda seja resolvida,
por ele próprio ou, nos termos do art. 163-1, pelo liquidatário. Mas a questão pöe-se
igualmente na pendência do contrato, enquanto o preço não for integralmente pago.
De direito à restituição da coisa não poderá então falar-se, visto que ele está depen-
dente da resolução e o adquirente é possuidor em nome próprio. Mas, não pertencendo
a coisa (ainda) à massa falida, da sua situação de impenhorabilidade subjectiva resulta
que não devia ter sido apreendida, pelo que deve ser separada da massa e assim se
manter até o pagamento da última prestação do preço.
O mesmo se aplica ao caso da locação financeira: o bem locado deverá ser
separado até que seja exercido o direito à sua aquisição nos termos do contrato de
leasing (salvo sempre o eventual direito de resolução do locador, nos termos gerais
ou nos do art. 27-b do D.L. 171179 de 616, e o direito de resolução conferido ao
liquidatário pelo art. 163- I): embora, diversamente do caso da reserva de propriedade,
se deva entender a posse do locatário financeiro como posse em nome alheio, a
manutenção do contrato impede o direito do locador à restituição, mas não a separação
do bem da massa falida.
O mesmo se diga ainda do direito do promitente vendedor em caso de tradição,
contratuaimente estipulada, da coisa prometida para o falido: o direito de aquisição
(real ou obrigacional) da massa falida, ainda não exercido, não impede o exercício
do direito à separação, mas a restituição só deverá ter lugar em caso de resolução do
contrato,
Em qualquer dos casos, a apreensão manter-se-ã, mas tendo por objecto a
expectativa de aquisição do bem separado da massa falida.
Pôr-se-á o problema de saber como se passarão as coisas nas situaçöes inversas
às descritas, isto é, se o adquirente com reserva de propriedade, enquanto o preço não


APREEN,@ÃO, RES'117'UIÇÃO, SEPARAÇÃO E VENDA DE BENS NO I'ROCESSO DE FALEN(:IA




for pago, e o promitente comprador, em caso de tradição contratualmente estipulada,
têm o direito de separação e restituição do bem objecto do contrato que, por ser (ainda)
próprio do falido, tenha sido apreendido para a massa. O problema não se pöe para o
locatário financeiro, na pendência do contrato de leasing, dada a inaplicabilidade do
regime da falência às sociedades financeiras, estabelecido pelo art. 2 do D.L. 132/93,
que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de
Falência.
No caso da compra e venda em que a transmissão não tenha tido ainda lugar,
o art. 161-3 confere ao liquidatário o direito de resolução, que, exercido, constituirá
a massa falida em responsabilidade por incumprimento. É um preceito muito discutível,
visto sacrificar o direito do comprador no altar dos interesses dos credores do falido,
e já por isso foi defendido que só terá aplicação, de acordo com as normas gerais,
quando o adquirente, por seu lado, não cumpra. Esta interpretação tem por si a razoa-
bilidade, mas contra si a expressa referência ao direito do comprador à indemnização
pelo incumprimento do vendedor. Optando o liquidatário pela resolução, a apreensão
do bem deverá ter lugar, não podendo o preceito deixar de se entender também
aplicável, por maioria de razão, ao caso da promessa de compra e venda.
Não havendo resolução, a posse - em nome próprio no caso da reserva de
propriedade e em nome alheio nos de contrato-promessa e de locação financeira -
deveria manter-se e o consequente direito à separação ser consagrado. Não o faz o
art. 201, que, indiferente às novas figuras jurídico-contratuais, mantém, na sua
estrutura, os fundamentos de separação do art. 1200 do velho CPC de 1939. O
alargamento da previsão do preceito impöe-se. Mas, de qualquer modo, pelo menos
quando o contrato-promessa tenha eficácia real e sobrevenha sentença de execução
específica, tal como quando o comprador pague a última prestação do preço (ou 718
do preço: art. 934 CC) de que depende a transferência da propriedade, o direito à
separação do bem torna-se indubitável.
O direito do cônjuge do falido à separação e à restituição dos seus bens
próprios não oferece dificuldade, sendo que nenhum dos casos excepcionais em que
o cônjuge não proprietário tem a administração dos bens próprios do outro (art. 1678,
als. e, f e g CC) implica a sua apreensão para serem administrados pelo liquidatário
da massa falida.
Havendo bens comuns do casal, deve, após a sua apreensão, ser o cônjuge do
falido citado, nos termos do art. 825 CPC, para requerer a separação de bens. Mas,
diversamente do que acontece no caso da execução singular, a separação pode também
ser ordenada oficiosamente, nos termos do art. 201-2 (cf. também o art. 1406-1 CPC).
Dada a multiplicidade dos credores da massa falida, é dificilmente verificável a
existência de moratória; mas é incompreensível que não se tenha previsto a falência
do cônjuge como causa autónoma de separação de bens.
O direito de separação do possuidor em nome de quem o falido possuísse só
faz sentido ser autonomizado do direito do proprietário ou titular de outro direito real
na medida em que o proprietário dos bens seja um terceiro (dada a presunção de
propriedade de que goza o possuidor em nome próprio) e nesta acepção deve ser
interpretada a alínea a) do art. 201-1. Nela cabem casos como o do comodatário dum
automóvel que o dê a separar ou a guardar a um comerciante que entretanto caia em


won JOSÉ LEBRE DE FREITAS



falência: sem prejuízo de o proprietário ter o direito de pedir a sua separação e
restituição, o comodatário tem-no também (art. 1133-2 CC).
Já o direito meramente obrigacional à restituição da coisa de que não se tenha
(ou já não se tenha) a posse, tal como o direito à prestação duma coisa fora do âmbito
da restituição, não constituem fundamento de separação. Assim acontece com o direito
à restituição duma prestação efectuada em cumprimento dum contrato nulo ou anulado
(art. 289-1 CC) ou com o direito a receber do falido a coisa móvel por ele construída
em empreitada (art. 1212-1 CC).
Tão-pouco é fundamento de separação a titularidade dum direito de crédito
apreendido. Diversamente se entende em direito alemão, com fundamento no § 43 da
Konkursordnung ainda vigente, que expressamente estatui como fundamento do
Aussonderungsrecht, ao lado dos direitos reais, "os direitos pessoais". Entre nós, em
que não há uma estatuição semelhante, o verdadeiro credor não perde o direito à
prestação que lhe é devida pelo facto de ela ser erradamente apreendida para a
massa falida. Tratando-se dum direito relativo, poderá exercê-lo contra o seu deve-
dor, cabendo a este negar a existência do crédito da massa falida, nos termos do
art. 858-1 CPC, para evitar pagar duas vezes.
Tem, porém, direito à restituição da coisa vendida, em consonância com o
art. 468 do Código Comercial, o vendedor que, no âmbito da compra e venda
comercial, a tenha entregue antes de lhe ser pago o preço, em virtude de estipulação
neste sentido. Di-lo a alínea d) do art. 201-1, tal como antes o dizia o Código de Pro-
cesso Civil, embora hoje se deva entender que, a exemplo do que acontece em outras
legislaçöes, deixou de ser exigida a estipulação prévia quanto às mercadorias que, à
data da falência, se encontrem em trânsito, anterior ao pagamento. O art. 164-1 con-
cede ao vendedor o direito de as reaver, a menos que o liquidatário as pague, e não
faria sentido que não pudesse fazer valer esse direito em oposição à apreensão feita
não obstante a disposição desse artigo.

4. Apreensão de bens para a massa falida e separação de bens da massa falida
(com eventual restituição) são assim duas realidades antagónicas, das quais a segunda
constitui meio de oposição à primeira. São os bens apreendidos e não separados que
vão ser objecto da venda.
Sobre esta, duas observaçöes, a concordar com pontos de regime devidos a
alteraçöes anteriores ao Código: por um lado, o art. 181-2, ao quebrar - já desde
1961: art. 1247-2 CPC - a regra da venda por arrematarão em hasta pública, constitui
solução mais acertada do que a vigente no processo de execução singular (2); por outro
lado, o art. 181-3, ao dispor expressamente - desde 1986: art. 1247-3 CPC - no
sentido de o estabelecimento comercial dever ser vendido, em regra, unitariamente,
constitui um passo importante no sentido de se admitir o tratamento processual
unitário, ao qual a nossa jurisprudência se tem revelado avessa, da universalidade
constituída pelo estabelecimento.



(2) No Código de Processo Civil resultante da actual revisão a venda judicial passa a revestir a modalidade

das propostas em carta fechada.


APREENSÃO, RESTITUIÇÃO, SEPARAÇÃO E VENDA DE BENS NO PROCESSO DE FALENCIA





Uma observação ainda, esta crítica. As modalidades de venda judicial (arre-
matação em hasta pública ou venda por propostas em carta fechada) continuam, no
processo de falência como no de execução singular, sobrecarregados de formalismos
dilatórios, custosos e grandemente inúteis. A publicidade na imprensa é dispensável,
como dispensada é noutros sistemas jurídicos, em que se entende ser suficiente a
afixação do anúncio da venda no edifício do tribunal, local a que os interessados em
compras judiciais facilmente se dirigirão para saberem da sua efectivarão.

5. Isto o que se me oferecia dizer sobre o tema escolhido. Mas não queria acabar
sem quatro notas sobre outros pontos do regime processual da falência.
A primeira é que, de acordo com o art. 122, o processo de falência, quando
esta é requerido por um credor, é um processo cominatório pleno: se o devedor não
se opuser, logo o tribunal declara a falência. A solução é violenta, tanto mais que o
devedor pode ter sido citado por via postal, a qual é considerada um meio de citação
pessoal (art. 238-A-1 CPC). Estando normalmente envolvidos valores patrimoniais
elevados, a cominação, própria das formas de processo comum menos solenes, não
se compreende (3).
A segunda nota anunciada é que, proferida a sentença sobre a falência, seja
declaratória ou negatória, admite o art. 129 que contra ela se deduzam embargos. Não
constituindo a figura dos embargos um meio de impugnarão de decisöes, mas sim um
meio de oposição à execução duma decisão ou ao prosseguimento de determinada
operação, mal se entende a sua admissibilidade contra a sentença que julgue
improcedente o pedido de falência.
A terceira nota é que a imposição da continuidade dos prazos cria uma distorção
não desejável no âmbito dum sistema jurídico dominado pela regra do desconto dos
sábados, domingos e feriados. Compreende-se a intenção num legislador inconformado
com a regra geral do sistema. Mas, enquanto esta não fosse alterada, uma elementar
preocupação de unidade deveria levar a não estabelecer a excepção, tendo nomea-
damente em conta as consequências negativas - e normalmente irreparáveis - da
inobservância dum prazo peremptório mal contado (4).
A quarta nota é de ordem geral: se é certo que o novo regime da falência
representa, em diversos aspectos, um esforço de simplificação e de racionalização do
processo, poder-se-ia, porém, ter ido mais longe na revisão de soluçöes que a evolução
sócio-económica tornou caducas. E, no que respeita ao processamento prévio em sede
de medidas de recuperação da empresa, pôr-se-á a dúvida de saber se, na generalidade
dos casos, está verdadeiramente contribuindo para um saneamento socialmente útil
ou, pelo contrário, está servindo, sem grande utilidade, para a dilação do processo.
A intenção que presidiu à sua introdução no nosso sistema jurídico, em sintonia com




(3) No Código de Processo Civil resultante da actual revisão a cominação plena é suprimida nos processos
sumário e sumaríssimo e dele só restam pequenas ilhas desgarradas.
(4) No Código de Processo Civil resultante da actual revisão volta-se à regra da continuidade do prazo
processual, que só se suspende nas férias. Outra foi, entretanto, a opção do legislador no campo do procedimento
administrativo.

JOSE LEBRE DE FREITAS




a evolução verificado em outros sistemas, é louvável; mas duvido que a prática da sua
aplicação esteja produzindo os resultados que se esperariam. Talvez mesmo só se
devam esperar resultados frutuosos desta nova concepção quando, ao lado do sanea-
mento da empresa, se encarar, em moldes arrojados, o saneamento económico-finan-
ceiro das pessoas singulares com excesso de dívidas. A recente legislação francesa deu
um importante passo neste sentido e há, a nível europeu, a preocupação de encontrar
novas soluçöes. O mundo das falências é, aliás, como anteontem realçou o Prof.
Ferreira de Almeida, um fenômeno preocupante, atentamente seguido nos países mais
avançados. Minorar as suas consequencias é uma aposta que cada vez mais se poe
ao direito.


O AMBITO DE APLICAÇÃO DOS PROCESSOS
DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALENCIA:
PRESSUPOSTOS OBJECTIVOS E SUBJETIVOS

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA

(Professor da Faculdade de Direit. de Lisboa)



SUMARIO

I-INTRODUÇÃO

1. Modernização do direito português da insolvência
2. Limitaçöes ao âmbito de aplicação em função das especialidades de regime de algumas
categorias de pessoas jurídicas

11 - PRESSUPOSTO OBJECTIVO COMUM AOS DOIS PROCESSOS: SITUAÇÃO DE
INSOLVENCIA

3. Conceito de insolvência
4. índices de insolvência

Ill -PROCESSO DE FALENCIA

5. Pressuposto objectivo: inviabilidade
6. Pressuposto subjectivo: elenco das categorias de devedores que podem ser sujeito
passivo do processo de falência

IV - PROCESSO DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA

7. Pressuposto objectivo: viabilidade
8. Pressuposto subjectivo: a empresa

V - REGIME DA INSOLVENCIA DE DEVEDORES NÃO TITULARES DE EMPRESA

VI - OBSERVAÇÃO CONCLUSIVA


ØNo (@ARI-OS FERREIRA DE ALMEIDA





I-INTRODUÇAO

1. Modernização do direito português da insolvência

O instituto da insolvênvia está na ordem do dia ('), porque é um daqueles em
que se defrontam as clássicas tensöes entre justiça e eficácia (I) e entre protecção de
interesses particulares e dos interesses de funcionamento global do sistema (3). Por isso,
continuando a ser instituto de direito processual, não é hoje claro se pertence também
ao domínio do direito comercial ou ao do direito económico (4).
No direito português, o instituto da insolvência/falência tinha, em meados dos
anos setenta, sede legislativa concentrada no Código de Processo Civil (5) . Em compa-
ração com a evolução posterior, as suas características essenciais - influenciadas ainda
pela modificação napoleónica - eram as seguintes:

I a- distinção entre falência dos comerciantes e insolvência dos não-
-comerciantes;
2 a- qualificação de qualquer das acçöes como processos de liquidação em
benefício dos credores.

Entretanto, outras ordens jurídicas ensaiaram reformas legislativas que,
considerando a possibilidade de separar os destinos do "homem e da empresa"
insolventes (6) @ visavam interesses mais amplos do que o interesse dos credores e a
protecção da "paz social" (7).





(I) Exemplos recentes de importantes medidas legislativas adaptadas em três países da vanguarda do
desenvolvimento económico: no Canadá - significativas alteraçöes ao Bankruptcy and Insolvency Act, em vigor
desde 30.11.92 (cfr. M.H. OGILVIE, Rehabilitation, equity and efficiency: the new bankruptcy law in Canada,
"The journal of business law", 1994, p. 304 ss); na Alemanha - Insolvenzordnung, de 5.10.1994, que só entrará
em vigor em 1. I.99 (sobre o processo de reforma, cfr. GOTTWALD/ARNOLD, Insolvenzrechtshandbuch, Münchenl
1990, p. 12 ss; L. HÃSEMEYER, Insolvenzrecht, Köln-Berlin-Bonn-München, 1992, p. 72 ss); e novamente em
França (Y CHAPUT, Le décret n' 94-910 du 21 octobre 1994 relatif au droit des entreprises en difficulté, "La
semaine juridique", 1995, n' 7, p. 101 ss). Mas o interesse central pelo instituto não é só de agora, como se
demonstra pela publicação de revistas especializadas, entre as quais actualmente se contam as seguintes: 11 diritto
falimentare e delle società commerciali (Padova), Fallimento e le altre procedere concorsuali (Milano), Revue
des procédures collectives (Paris), Zeitschriftfür Insolvenzrecht (Köln-Berlin-Bonn-München), Insolvency law &
practice (London), The american bankruptcy law journal (Lexington).
(2) R.K. RASMUSSEN, An essay on optimal bankruptcy rules and socialjustice, "University of lllinois

Law Review", 1994, p. I ss.

(3) Cfr. P. AGHION/O. HART, The economics of bankruptcy reform, "The journal of law, economics &

organization", 1992, p. 523 ss.
(4) D. MÉLÉDO-BRIAND, Procédures collectives et droit économique. L'exemple français, "Revue
internationale de droit économique", 1994, p. 265 ss.
(@5) ALBERTO DOS REIS, Processos especiais, II, Coimbra, 1956, p. 310 ss; P. SOUSA MACEDO,
Manual de direito das falências, 2 vols, Coimbra, 1964.
(6) Y. CHAPUT, Droit du redressement et de la liquidation judiciaires des entreprises, Paris, 1987, p.
16; K.J. HOPT, Probleme der Insolvenzvermeidung aus rechtsvergleichender Sicht, em "Das Unternehmen ia der
Krise", ob. cit. na nota (I 2), p. 17.
(7) L. HÃSEMEYER, p. 19 ss.

O AMBITO DE APLICAÇÃO DOS PROCESSOS DE RECI@PFRAÇÃO DA FMPRE.@A E DE FALENCIA





Esta via teve como principais antecedentes os reorganisation proceedi gs,
criados, em 1938, por alteração do Bankruptcy Act norte-americano (8), e os règlements
judiciaires, introduzidos em França por lei de 1967 (9).
Em Portugal, para além da concordara e do acordo de credores, já previstos no
Código de Processo Civil como "meios de prevenção da falência", o movimento
reformador iniciou-se com as fórmulas de cariz administrativo da legislação de 1977
sobre contratos de viabilização ('O) e empresas em situação económica difícil, parcial-
mente jurisdicionalizadas pelo decreto-lei no 177/86, de 2 de Julho, que introduziu o
,,processo especial de recuperação da empresa e de protecção dos credores" (I
A evolução dos últimos vinte anos veio agora a culminar no Código dos
processos especiais de recuperação da empresa e de falência, aprovado pelo decreto-
-lei no 132/93, de 23 de Abril, onde se consagram as seguintes orientaçöes inovadoras:

I a- eliminação da dicotomia falência de comerciantes/ insolvência de não-
-comerciantes, substituída pela dicotomia empresa/não-empresa, em fun-
ção da qual é ou não admissivel o processo de recuperação;
2 a - preferência concedida ao processo de recuperação de empresas, em
alternativa ao processo de falência.

O novo Código constitui, no essencial, um sinal de modernização,
acompanhando as tendências dos mais evoluídos países de economia de mercado ( I 2).

2. Limitaçöes ao âmbito de aplicação em função das especialidades de regime de
algumas categorias de pessoas jurídicas

Antes de iniciar a abordagem do tema central do presente artigo - análise
sistemática dos pressupostos objectivos e subjectivos dos processos regulados no novo
Código - impöe~se uma referência às limitaçöes que reduzem o seu âmbito de
aplicação em função de critérios de índole subjectiva relacionados com a natureza e
o regime jurídico de algumas categorias de pessoas jurídicas.





(I) Sobre este processo, na sua origem e na actualidade, D.L. BUCHBINDER, Fundamentals ofbank-
ruptcy. A lawyer k guide, Boston-Toronto-London, 199 I, p. 12 ss, 391 ss; D.M. GLOSBAND, Reorganization under
the United States Bankruptcy Code, em "INSOL'85 International Insolvency Conference" (ed. S.Lowe), New York,
1985, p. 7-1 ss; S.A. RIESENFELD, Neue Entwicklungen im Reorganisationsrecht der Vereinigten Staaten, em
"Das Unternehmen in der Krise" (ob cit. na nota 12), p. 135 ss.
(I) Sobre a reforma francesa de 1967 e as reformas subsequentes, YCHAPUT, ob. cit. na nota (6); E
DERRIDA/ P. GODÉ/J.-P. SORTAIS, Redressement et liquidation judiciaires des entreprises, 3' ed., Paris, 199 I;
M. JEANTIN, Droit commercial. Instruments de paiement et de crédit. Entreprises en difficulté, 3' ed., Paris, 1992,
P. 293 ss.
(]O) MENEZES CORDEIRO, Saneamento financeiro: os deveres de viabilização das empresas e a
autonomia privada, em "Novas perspectivas do direito comercial", Coimbra, 1988, p. 57 ss.
(]I) A. RIBEIRO MENDES, O processo de recuperação de empresas em situação de falência, "Revista
da Banca", n' I, 1987, p. 67 ss.

CARLOS FERREIRA DE ALMl7ll)A





Dispöe a este respeito o diploma de introdução ao Código (decreto-lei
n' 132/93, de 23 de Abril):

ARTIGO 2'
Entidades não sujeitas aos processos
de recuperação da empresa e de falência
Os regimes de recuperação da empresa e de falência não são aplicáveis às
pessoas colectivas públicas, nem prejudicam a legislação especial relativa às empresas
públicas, às instituiçöes de crédito a às sociedades seguradoras.
As limitaçöes de aplicação dos processos regulados no Código são consideradas
em dois níveis: a plena exclusão de aplicabilidade ("não são aplicáveis"); a simples
restrição na aplicação ("nem prejudicam" [a aplicação]), quando as normas dos pro~
cessos especiais não sejam (total ou parcialmente) compatíveis com "a legislação espe-
cial relativa" a certas categorias de pessoas.
A plena exclusão de aplicabilidade circunscreve-se "às pessoas colectivas
públicas", expressão que deve, no contexto, ser entendida como referida às pessoas
colectivas com regime de direito público (l3)@ isto é@ às pessoas colectivas públicas de
base territorial (Estado, regiöes autónomas e autarquias locais), assim como aos
institutos públicos e associaçöes públicas (l4).
Não é seguro que esta exclusão total corresponda à melhor política legislativa.
Tal como sucede nos Estados Unidos, onde se criou um processo especial de reorga-
nização (regulado no capítulo IX do Bankruptcy Code) aplicável às municipalities, não
se vê por que não admitir no direito português algum meio de recuperação dirigido
às autarquias locais e eventualmente a outras entidades públicas em situação de
insolvência.
Em relação às empresas públicas, o processo de falência não é aplicável, porque
dispöem de um regime completo de liquidação (decreto-lei n' 260/76, de 8 de Abril,
art's 41' e seguintes) que abrange também as situaçöes de insuficiência patrimonial
(art' 45', n' 2). Mas parece ser-lhes aplicável, verificados os respectivos requisitos, o
processo de recuperação da empresa, visto que ele não "prejudica" a legislação espe-
cial sobre empresas públicas que é omissa a tal respeito.
No âmbito das instituiçöes de crédito, o decreto-lei n' 30689, de 27 de Agosto
de 1940, regula a falência das pessoas que designava como "instituiçöes comuns de
crédito" ou "estabelecimentos bancários". Tratando-se de um sistema de natureza

(i2) Estudos sobre a insolvência no direito comparado: COMMISSION DES COMMUNAUTÉS
EUROPÉENNES, Les conditions d'ouverture desprocédures defaillite et des procédures analogues. Étude com-
parative, 1979; G. HOHLOCH, Sanierung durch "Sanierungsverfahren "? - Ein rechtsvergleichender Beitrag zur
ln,yolvenzrechtsreform, "Zeitschrift für Unternenhniens- und Gesellschaftsrecbt", 1982, p. 145 ss; R. BIRK/K.
KREUZER (org.), Das Unternehmen in der Krise. Probleme der Insolvenzvermeidung aus rechtsvergleichender
Si(,ht, Frankfurt a. M., 1986; P. PAJARDI, llfallimento nel mondo, Panorama dei sistema esecutivi concorsuali
izelle realità narina, Padova, 1988; U. JAHN (org.), Insolvenzen in Europa, Bonn, 1994.
(l3) Porque as empresas públicas são especialmente referidas na segunda parte do preceito. Por maioria
de razão não fazem parte da exclusão as pessoas colectivas que, embora pertençam ao sector público, são pessoas
colectivas privadas (como as sociedades de economia mista controladas).
([4) Cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso de direito administrativo, vol. I, 2'ed., Coimbra, 1994, p. 586.


O AMBITO DE APLICAÇÃO DOS PRO(@FSSOS DE RECUPFRAÇÃO DA EMPRESA E DF FAI.ENCIA




admnistrativa, e por isso excepcional (i5) , deve considerar-se que continua a ser
aplicável apenas aos bancos e àquelas instituiçöes de crédito que, na actual nomen-
clatura, reúnem as características correspondentes aos estabelecimentos bancários
segundo a terminologia própria da época em que foi aprovado o referido diploma.
As restantes instituiçöes de crédito, com a amplitude que actualmente está
fixada pelo Regime Geral das Instituiçöes de Crédito e Sociedades Financeiras
(decreto-lei n' 298/92, de 31 de Dezembro, art's 2' e 3') e às sociedades financeiras
(art's 5' e 6' do mesmo RGICSF), aplica-se o processo de falência regulado no Código.
Diferentemente, e conforme disposição expressa do art' 139', n' 2, do RGICSF,
o processo de recuperação da empresa não é aplicável nem às instituiçöes de crédito
nem às sociedades financeiras (l6)@ porque finalidades homologas são cobertas pelo
processo de saneamento regulado pelos art's 139' e seguintes do mesmo diploma.
Mais complexa é a conciliação do Código com a legislação especial sobre
insolvência e liquidação das sociedades seguradoras.
Assim, o melhor entendimento parece ser o de que o processo de falência ju-
dicial regulado no Código lhes é aplicável, salvo quando as suas normas colidirem
com as normas dos art's 44' e seguintes do decreto de 21 de Outubro de 1907, que
conferem especiais poderes ao Instituto de Seguros de Portugal (então Conselho de
Seguros) designadamente em matéria de liquidação.
Também não haverá fundamento para afastar a aplicabilidade do processo de
recuperação da empresa. As medidas de saneamento previstas pelos art' 102' e
seguintes do decreto-lei n' 102/94, de 20 de Abril, para as empresas de seguros em
,,situação financeira insuficiente" são de natureza administrativa e de alcance limitado,
pelo que se devem entender como sistema que não é prejudicado pela aplicação
alternativa do processo judicial regulado no Código.


11 - PRESSUPOSTO OBJECTIVO COMUM AOS DOIS PROCESSOS: SITUA-
ÇAO DE INSOLVENCIA


3. Conceito de insolvência

O processo de recuperação da empresa aplica-se a empresas insolventes viáveis
(artos 5' e 8', n' I




No sentido de que o diploma é "globalmente constitucional", GOMES CANOTILHO/ CANELAS
DE CASTRO, Constitucionalidade do sistema de liquidação coactiva administrativa de estabelecimentos bancários,
previsto e regulado no decreto-lei n' 30689, de 27 de Agosto de 1940, "Revista da Banca", 1992, n' 23, p. 57 ss.
No sentido da inconstitucionalidade de algumas das suas normas, acórdão do Tribunal Constitucional de 20.11.91,
publicado do DR, II série, de 2.4.92 (fiscalização concreta).
(") Conforme resulta do art' 198', n' I, que ressalva a possibilidade de legislação especial (para certas
espécies de sociedades financeiras),
(") Os preceitos doravante citados sem outra indicação pertencem ao Código dos processos especiais de
recuperação de empresas e da falência, aprovado pelo decreto-lei n' 132/93, de 23 de Abril.

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA




O processo de falência aplica-se a empresas insolventes inviáveis (art' I',
n' 2) e a outros devedores insolventes que não sejam titulares de empresa (art' 27',
n'
Logo, a insolvência constitui um pressuposto objectivo comum a ambos os
processos que tanto se pode verificar em relação a "empresas" como a qualquer
devedor. Por isso, o Código - que, à semelhança de algumas legislaçöes estrangeiras,
melhor se designaria por "Código dos Processos de Insolvência" ou simplesmente
"Código da Insolvência" - estabelece um processo bifurcado que se inicia com uma
"fase processual introdutória comum" (como se diz no n' 3 do preâmbulo).
Decorre do art' 3' (que literalmente se refere apenas a empresas) que existe
situação de insolvência quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as
suas obrigaçöes (l8).
A outra frase do preceito ("por carência de meios próprios e por falta de
crédito") não tem, em rigor, um conteúdo positivo, isto é, não implica qualquer
requisito adicional. Significa apenas que a situação líquida negativa (valor do passivo
superior ao valor do activo) não é condição suficiente nem sequer condição necessária
para que a situação de insolvência esteja caracterizada. Acentua-se assim, em
comparação com o regime anterior, que a insuficiência patrimonial deixa de ser
fundamento possível de falência (Código de Processo Civil, art' 1174', ri' 2, e art'
I I 84', n' 2, aplicáveis às sociedades ditas de responsabilidade limitada, e art' 1313',
n' I, aplicável à insolvência civil) ('9).
No regime actual, sem prejuízo dos factores económico-financeiros que podem
contribuir para a tendencial coincidência entre insolvência e situação líquida negativa,
uma pode existir sem a outra:

- situação líquida negativa sem insolvência, se, apesar da "carência de meios
próprios", o recurso ao crédito permitir (temporariamente) satisfazer o
pagamento pontual das obrigaçöes;
- insolvência com situação líquida positiva, se, apesar da suficiência dos meios
próprios, a "falta de crédito" não permitir superar a situação de carência de
liquidez.


4. índices de insolvência

Constam do art' 8', n' 1. Em comparação com a legislação anterior (Código
de Processo Civil, art' 1174', n' I, e decreto-lei ri' 177/86, art' I', n' 2), o índice
directo e objectivo da situação de insolvência é agora descrito pela "falta de



Nessa parte, a redacção é igual à do art' 1135' do Código de Processo Civil (com referência a
comerciantes) e do art' I', n' I, do decreto-lei n' 177/86 (com referência a empresas).
('9) Assim, na linha que já vinha sendo defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, Acção executiva e
pressupostos dafalência, em "Estudos de direito comercial", I, Coimbra, 1989, p. 43 ss, a verificação, em acção
executiva de insuficiência do património do executado (CPC, art' 870'), não dispensa uma apreciação autónoma
(e actualmente sempre com base em outros pressupostos) sobre a verificação dos requisitos da insolvência e eventual
declaração de falência.

O AMRITO DE APLICAÇÃO DOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALENCIA





cumprimento de uma ou mais obrigaçöes que, pelo seu montante e pelas circunstâncias
do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a
generalidade das suas obrigaçöes" (alínea a), redacção que acentua a natureza sinto-
mática da omissão de alguns pagamentos, sem necessidade de abstenção total de
pagamentos. Os índices indirectos e comportamentais (alíneas b e c) são, em compa-
ração com a legislação anterior, enunciados de modo mais amplo, acrescentando-se
explicitamente a fuga dos titulares do órgão de gestão, o abandono do estabelecimento
e a constituição fictícia de créditos.
Resolvendo questão discutida no domínio da legislação anterior (20) @o Código
veio tornar claro que a verificação dos índices de insolvência é condição suficiente
para que exista situação de insolvência("). É o que resulta do art' S', n' I (que
qualifica os índices como "factos reveladores da situação de insolvência") e do art'
23', n's I e 2 (que constituem o juiz no dever de declarar a falência ou mandar
prosseguir a acção como processo de recuperação quando, havendo oposição preliminar
dos credores à forma de processo inicialmente escolhida, reconheça a "existência de
qualquer dos factos previstos no n' I do artigo 8"').
Geralmente a prova desses índices é também condição necessária para preencher
o pressuposto da insolvência, comum aos dois processos (cfr. arto 8', n's I e 3, onde
tal exigência decorre das expressöes "desde que" e "sempre que").
Mas tal prova parece estar dispensada quando seja o titular da empresa a tomar
a iniciativa de requerer providências de recuperação. Diferentemente do que sucede
nas hipóteses de apresentação à falência (art' 6o) e de iniciativa dos credores ou do
Ministério Público em relação a qualquer dos dois processos (art' 8'), nenhuma
disposição legal, designadamente o art' 5', se refere aos índices de insolvência quando
o processo de recuperação se desenvolva por iniciativa da própria empresa. Neste caso,
portanto, os índices de insolvência não farão parte dos "pressupostos legalmente
exigidos" para o prosseguimento da acção (art' 25', n' 2), pelo que as medidas que
mereçam a aceitação da assembléia de credores podem vir a ser decretadas pelo juiz
sem a prova de qualquer dos factos reveladores de insolvência. Tal é compreensível
em função da natureza quase-contratual de que se revestem as medidas de recuperação
e de a situação de insolvência estar processualmente concebida como facto
desfavorável ao devedor.
Pode mesmo suceder, em caso de iniciativa de recuperação tomada pelo titu-
lar da empresa, que a falência venha a ser declarada sem haver lugar a apreciação
substancial da situação de insolvência. É o que acontece nas seguintes circunstâncias:
se a assembléia de credores nada deliberar em relação às medidas propostas (art' 53o,
n' I), se uma maioria qualificada de credores a elas se opuser (mesmo artigo, n' 2),
se as medidas aprovadas não forem homologadas (art' 56', n' 4) ou se, havendo acordo
de credores, a sociedade formada não cumprir as suas obrigaçöes (art' 82', n' 2).




Sobre o problema, RITA AMARAL CABRAL, Dos pressupostos materais da falência. Anotação ao
Ac. do S. TJ. de 7-12-86, ROA, 1987, p. 935 ss (p. 942 ss).
(21) Neste sentido, em relação à legislação anterior, cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 51 s; e Ac.
do S.T.J. de 7.12.86, BMJ 353, p. 343 ss (=ROA, 1987, p. 929 ss, seguido da anotação referida na nota anterior).

A






Ill -PROCESSO DE FALENCIA


5. Pressuposto objectivo: inviabilidade

O processo de falência aplica-se a empresas insolventes inviáveis (art' I'
n' 2, confirmado pelos art's 6', 8', n' 3, 23', n' I, e 25', n's 3 e 4). O mesmo art' I':
n' 2, enuncia o princípio da preferência pelo processo de recuperação. O processo de
falência é, em relação a empresas insolventes, um meio residual que só deve ser usado
quando se não considere possível a recuperação.
O processo de falência aplica-se também a devedores insolventes que não sejam
titulares de empresa (art' 27').
Mas neste domínio já não se tem em conta o conceito de viabilidade e, em
consequência, não vale o princípio da preferência pela viabilização. A regra dirige-
se, pelo contrário, à declaração de falência das pessoas insolventes. O Código está
pensado com base numa presunção de inviabilidade (ou incapacidade para a
viabilização?) das pessoas que não sejam titulares de empresas (cfr. infra V).
Assim, além do pressuposto comum da insolvência, a inviabilidade constitui
pressuposto objectivo da falência, que só é todavia operacional em relação a empresas
insolventes. O sentido de "inviabilidade", sendo o inverso de "viabilidade", resultará,
por contraste, da análise desta, a que adiante (n' 7) se procederá.

6. Pressuposto subjectivo: elenco das categorias de devedores que podem ser
sujeito passivo do processo de falência

Sendo o processo de falência aplicável a empresas (art' I', n' I) e a devedores
não-titulares de empresa (art' 27', n' I), qualquer pessoa em situação de insolvência,
seja ou não titular de empresa, pode ser declarada em situação de falência.
No elenco dos potenciais falidos incluem-se portanto:

- as pessoas físicas, quer sejam titulares de empresa (que podem ser
comerciantes em nome individual ou titulares de qualquer empresa que não
confira a qualidade de comerciante, vg. de empresa agrícola) quer sejam
devedores não titulares de empresa (isto é, geralmente pessoas que se
endividaram enquanto consumidores); ou
- pessoas colectivas que não estejam excluídas por força do art' 2' do diploma
de aprovação do Código, sejam ou não comerciantes (isto é, sociedades
comerciais, sociedades civis sob forma comercial, sociedades Civis (l2)@
agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos de interesse




(22) Ponto duvidoso, por ser discutida a personificação das sociedades civis (cfr., por todos, CARVALHO

FERNANDES, Teoria geral do direito civil, I, 2.' ed., Lisboa, 1995, p. 413 ss). O art' 125', n' I, e a omissão de
referência no art' 126', n'l, parecem constituir argumentos contra a personalizarão das sociedades civis (ou, pelo
menos, de todas as sociedades civis).

O AMBITO DI--- APLI('AÇ'ÃO DOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E DE FALENCIA




económico, cooperativas (23) , associaçöes civis com personalidade jurídica,
fundaçöes), podendo qualquer delas ser ou não titular de empresa.

Mas, além da falência de pessoas jurídicas, o Código prevê também a falência
de patrimónios autónomos. Tal é evidente em relação aos seguintes:

- estabelecimento individual de responsabilidade limitada (l4) ; a sua falência
não implica a falência do comerciante individual que é seu titular, salvo se
tiver havido confusão patrimonial, nos termos do art' I I', n' 2, do decreto-
-lei n' 248/86 (art' 125', n' 2);
- a herança, como resulta de a falência poder ser requerido depois da morte
do devedor, desde que não tenha passado mais de um ano após a verificação
dos índices de insolvência (art' 9'), e de o processo de falência prosseguir
para além da morte do devedor (art' I O', n' 2) (25).

A letra da lei (art' 125', n's l e 3) induz no sentido de que outros patrimónios
autónomos, designadamente os que são aí mencionados (associaçöes sem personalidade
jurídica (26)@ comissöes especiais (27)@ sociedades civis sem personalidade jurídica (28 )@
sociedades irregulares (29 @), não podem ser sujeito passivo de falência, porque só os
seus sócios, associados, membros ou pessoas civilmente responsáveis podem ser
declarados em situação de falência.
Esta conclusão não é todavia compatível com outras normas do sistema jurídico,
pelo que tem de ser revista.
Em todas estes casos, a responsabilidade das pessoas indicados é subsidiária,
isto é, o seu património só pode ser executado depois de excutidos os bens do
património autónomo (30). Ora, para que seja possível respeitar esta regra no âmbito
da execução falimentar, é necessário que os bens integrados nos patrimónios
autónomos sejam incluídos no activo a liquidar, o que só é possível pela sua inclusão
em massa falida (art's 134', n' I, 175' e 179', n' I). Além disso, parte dos efeitos da
falência (vg. em relação aos negócios jurídicos do falido) só podem ser aplicados
eficazmente se se considerar que a falência afecta não apenas as pessoas responsáveis
mas também o património autónomo (por exemplo, art' 161').




(l3) A sujeição à falência das cooperativas, assim como dos agrupamentos complementares de empresas
e dos agrupamentos de interesse económico, é confirmada pelo art' 126', n's 2, 3 e 4.
(24) Sobre a qualificação do EIRL como património autónomo, OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito
comercial. Parte geral, Lisboa, 1988, p. 319; ID., Estabelecimento comercial e estabelecimento individual de
responsabilidade limitada, em "Novas perspectivas do direito comercial", Coimbra, 1988, p. 33 ss (p. 40 s).
(") No direito alemão, a herança constitui objecto de processo especial de insolvência (cfr. HÃSEMEYER,
p. 801 ss, e Insolvenzordnung, de 5.10.1994, §§ 315 ss).
Código Civil, art' 1951.
Código Civil, art' 199'.
Cfr. nota (22).
('9) Código das Sociedades Comerciais, art's 5', 36', n' 2, e 37' ss.
('O) Código Civil, art' 198', n's I e 2 (associaçöes sem personalidade jurídica, aplicável por analogia às
comissöes especiais); mesmo Código, art' 997', n' 2 (sociedades civis, aplicável às sociedades irregulares, por força
do arto 36', n' 2, e, por maioria de razão, aos casos do artl 40', n' I, CSC).

00@ CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA




A solução técnica exige assim que se declare a falência do património
autónomo (3 I) e que as falências das pessoas ilimitadamente responsáveis sejam consi-
deradas como falências derivadas. Na verdade, é em relação aos patrimónios
autónomos que se deve verificar a situação de insolvência (32)@ sendo a falência das
pessoas responsáveis pelas suas dívidas declarada sem consideração dos pressupostos
gerais de falência, como é típico das falências derivadas.
A intenção terá sido estabelecer perfeita coincidência entre sujeitos passivos
da falência e pessoas jurídicas (33). Mas este deriderato, que mais corresponde a um
preconceito do que a qualquer imposição de princípio, não parece afinal compatível
com o sistema considerado na globalidade.

Se falido pode ser qualquer pessoa insolvente, nem só as pessoas insolventes
podem ser declaradas em situação de falência. Tal sucede nas chamadas falências
derivadas.
Diz-se que há falência derivada quando a declaração de falência de uma pessoa
(ou de um património autónomo) implica a declaração de falência de uma (outra)
pessoa, independentemente da verificação nesta dos pressupostos da falência (insol-
vência e inviabilidade). As falências derivadas são consequência da presunção inilidível
de que pessoas ilimitadamente responsáveis pelas dívidas de outra pessoa ou de um
património autónomo em situação de falência reúnem também os pressupostos da
falência, na medida em que não evitaram a insolvência do falido por cujas dívidas eram
responsáveis.
Os casos de falência derivada constam do art' 126', cuja interpretação não
suscita especiais dificuldades. Recorde-se apenas que actualmente ao elenco clássico
dos sócios de responsabilidade ilimitada, cuja falência decorre da falência das
sociedades sujeitas ao regime do CSC, nos termos do n' I daquele preceito (isto é,
os sócios das sociedades em nome colectivo e os sócios comanditados das sociedades
em comandita), devem ser aditados:

- o sócio único, se se verificar a falência de sociedade unipessoal e se provar
confusão patrimonial (art' 84' CSC);
- a sociedade dominante, em caso de falência da sociedade dominada, quando
entre elas exista relação de grupo, por efeito de domínio total inicial ou
superveniente (art's 488' e 489', por força do art' 501', n' I, aplicável ex
vi do art' 491', todos do CSC) (l4).




A declaração de falência de patrimónios autónomos é aliás congruente com a atribuição de
personalidade judiciária nos termos dos art's 6' e 8' CPC.
(32) As palavras da lei ("tratando-se de...... "no caso de ...") denotam a dificuldade de exprimir
coerentemente a "tese" segundo a qual só são declaradas falidas as pessoas civilmente responsáveis pela situação
de insolvência de patrimónios autónomos.
(33) CARVALHO FERNANDES/JOAO LABAREDA, Código dos processos especiais de recuperação
da empresa e de falência anotado, Lisboa, 1994, p. 55, referem-se a um princípio geral no sentido de afastar da
falência entidades não personificadas.
(") Para CARVALHO FERNANDESIJOÃO LABAREDA, p. 3 I O, a falência de uma sociedade civil com
personalidade jurídica envolve a falência (derivada) dos seus sócios, por aplicação analógica do art' 126', n' I.

O AMBITO DE AI'LICAÇÃO DOS PROCESSOS DE RECUPFRAÇÃO I)A EMPRESA E DE FALENCIA




A enumeração das falências derivadas incluída no art' 126' acrescem ainda,
pelas razöes antes invocados, os casos de falência de patrimónios autónomos que
implicam falência das pessoas civilmente responsáveis pelas suas dívidas.


IV - PROCESSO DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA

7. Pressuposto objectivo: viabilidade

Os pressupostos objectivos do processo de recuperação da empresa são a
insolvência e a viabilidade (art's 5', 8', n' I, 23', n' 2, e 25', n' 3). Analisada já a
situação de insolvência, falta caracterizar a viabilidade.
A viabilidade tem uma dupla vertente (económica e financeira) expressa no alf
5' do seguinte modo: que a empresa seja "economicamente viável" e que seja
,,superável a deficiente situação financeira".
Viabilidade económica significa adequação dos meios de produção da empresa
aos mercados onde são transaccionáveis os seus produtos ou serviços, de tal modo que
a actividade possa gerar lucros (ou, pelo menos, não gerar prejuízos).
Viabilidade financeira significa aptidão para transitar de situação de insolvência
para situação de solvência.
Tanto a viabilidade económica como a financeira são juízos prospectivos e de
probabilidade ("probabilidade séria" - cfr. art' 23, n's 3 e 4).
A vertente económica é condição necessária da viabilidade da empresa
insolvente, porque, se esta continuar a ter prejuízos, agravará a situação de insolvência.
Mas não é condição suficiente, porque a viabilização exige sacrifícios (dos credores
e/ou dos titulares da empresa) que têm de ser comparados com as vantagens esperadas.
A viabilidade financeira consiste portanto num juízo comparativo entre os
efeitos financeiros da situação actual de insolvência e a hipotética situação em que
se encontrará a empresa em consequência da aplicação das providências de viabilização
cuja adopção se prevê. O juízo tenderá a ser positivo se for provável que o valor
actualizado que os diferentes interessados esperam receber (deduzido de eventuais
custos de viabilização) seja superior ao que receberiam após simples liquidação
falimentar, isto é, numa fórmula sintética, se o valor de viabilização for superior ao
valor de liquidação (31).
A viabilidade não é portanto um conceito abstracto e intemporal, mas sim o
resultado de uma avaliação concreta e localizada no tempo, em função de factores de
mercado, de escolhidas medidas terapêuticas e dos cálculos dos interessados na
viabilização.





(31) Sobre diversos critérios de viabilização (Sanierungsfãhigkeit), GOTTWALD/MAUS,
Insolvenzrechtshandbuch, ob. cit. na nota (I), p. 55 ss. O critério adoptado baseia-se naquele que, em 1940, foi
proposto pelo autor norte-americano BUCHANAN na obra The economics of corporate entreprise (apud ob. cit.,
p. 57 s).

('ARLOS FERREIRA DE ALMLII)A





Por isso também, a viabilidade, enquanto pressuposto do processo especial de
recuperação de empresas, não é uma noção jurídica, mas algo que, para efeitos
jurídicos, se recolhe da realidade económica e financeira.
Precisamente porque se trata de um juízo de probabilidade que escapa à
capacidade técnica do juiz, a forma prática de a aferir traduz-se na homologação
processual das previsöes e disposiçöes da maioria dos interessados. O juiz é assim
poupado a qualquer apreciação material de viabilidade, consistindo a sua função e
competência na verificação sobre a existência de decisão regularmente tomada pela
maioria qualificada dos credores (art' 56', nos l e 2) e, em relação a algumas
providências, com o acordo do devedor insolvente (arto 550, nO2) (36).


8. Pressuposto subjectivo: a empresa

O processo de recuperação aplica-se apenas a empresas (art's I', no I, 5', 801
nos I e 2, 27', no I).
O art' 2' define empresa, "para o efeito do disposto no presente diploma", como
"toda a organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer
actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços".
O elenco clássico dos factores de produção é formado por uma trilogia
composta pela terra e outros recursos naturais, pelo capital (em sentido técnico) e pelo
trabalho. Mas, como os recursos naturais e o capital podem ser considerados numa
classe ampla de meios de produção (37) , que por vezes se designa simplificadamente
como capital, e os elemento "organização" e "exercício de actividade" implicam uma
estrutura activa e dinâmica, que exige a participação do factor trabalho, com exclusão
da mera fruição de bens, pode concluir-se que existe empresa hoc sensu sempre que,
e apenas quando, se ordenem para uma finalidade produtiva recursos naturais e/ou
capital com a prestação de trabalho.
Quanto ao elenco de actividades referidas na parte final do preceito, ele deve
ser interpretado em sentido amplo, de modo a abranger designadamente os sectores
pecuário e silvícola, as indústrias extractiva e piscatória, a construção civil e os
espectáculos.
Como não se exige qualquer finalidade lucrativa, o conceito de empresa
adoptado no art' 2' pode ser abreviado nos termos seguintes: organização de capital
e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica.





"0 juíz velará apenas pela observância das regras de votação e pelos condicionamentos de regime
que resultem da lei, sem interferir no juízo de mérito técnico, económico e financeiro dos meios e providências
aprovados pelos credores, salvo naturalmente casos limite de manifesta fraude ou de abuso de direito" (ROBIN
DE ANDRADE, Reestruturação financeira e gestão controlada como providências de recuperação, "Revista da
Banca", 1993, n' 27, p. 77 ss (p.78". No mesmo sentido, A.ALMEIDA MORGADO, Articulação entre os processos
de recuperação da empresa e de falência, p. 58, e ANTóNlO DE CAMPOS, Linhas gerais do processo de
recuperação da empresa, p. 118 s, ambos no eit. n' da "Revista da Banca", p. 41 ss e 107 ss, respectivamente.
(37) C. FERREIRA DE ALMEIDA, Propriedade dos meios de produção, Lisboa, 1982, p. 6 s.


O AMBITO DE APLICAÇÃO DOS PRO('ESSOS DE RECIIPERAÇÃO DA EMPRESA E DE I-AI,EN('IA





Parece assim que, para efeito do processo de recuperação de empresas, se
adoptou o conceito de empresa como organização, afastando-se portanto as restantes
concepçöes conhecidas na ordem jurídica portuguesa: empresa-objecto (vg. em-
presa=estabelecimento comercial), empresa-actividade e empresa-sujeito (vg. empresa-
-pessoa jurídica) (38).
Todavia a análise dos contextos em que a palavra empresa é utilizado no Código
conduz-nos a conclusão diferente.
Na generalidade das referências a empresa, a palavra só pode ser compreendida,
no contexto, em sentido subjectivo:

-,,a empresa [... ] pode requerer em juízo" (art' 5'); "deve a empresa
requerer a sua declaração de falência" (arto 6');
"empresa devedora" (art's 7', 12', no I, 78', no I) e mesmo 11 contratos
bilaterais da empresa devedora" (art' IOI', no I, f);
- "depois de ouvida a empresa" (arto 320, no I).

Ora, uma organização não pode requerer, nem dever, nem contratar, nem ser
ouvida. Tais actos e situaçöes são próprios e exclusivos de pessoas ou entidades
personalizadas.
Há até alguns preceitos em que empresa está em vez de sociedade: "capital
social da empresa" (arto IOO', no 2), "administradores da empresa" (art' 680, no I),
.,sociedades dominadas pela empresa" (art' IOI', no I, d) (39).
Em outros lugares ainda, empresa surge na expressão "titular da empresa" (vg.
art's 7' e 8', no I, b), isto é, com o sentido de empresa-objecto, tal como expressamente
se diz no arto lo, no I ("toda a empresa em situação de insolvência pode ser objecto
de uma ou mais providências de recuperação") (").
A conciliação destes diferentes sentidos de empresa (empresa-organização,
empresa-sujeito e empresa-objecto) só pode conseguir-se pelo modo seguinte:

e

Sobre estas concepçöes, ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura do estabelecimento
comercial, Coimbra, 1967, p. 7 ss, 137 ss; C. FERREIRA DE ALMEIDA, Direito económico, I, Lisboa, 1979,
P- 323 ss; L. BRITO CORREIA, Direito comercial, I', Lisboa, 1987-88, p. 213 ss; OLIVEIRA ASCENSÃO, Direit.
comercial. Parte geral, cit., p. 134 ss; M. PUPO CORREIA, Direito comercial, 3' ed., Lisboa, 1994, p. 174 ss.
Na bibliografia alemã, podem referir-se, entre muitas outras, as seguintes obras gerais: GIERKE/SANDROCK,
Handels- und Wirtschaftsrecht, Berlin-New York, 1975, p. 171 ss; HÜFFER, vor § 22, em HGB - STAUB Gross
Kommentar, 4' ed., Berlin-New York, 1983; W. FIKENTSCHER, Wirtschaftsrecht, II, Deutsches Wirtschaftsrecht,
München, 1983, p. 104 ss; E. RITTNER, Wirtschaftsrecht. Ein Lehrbuch, Heidelberg, 1987, p. 124 ss;
K. SCHMIDT, Handelsrecht, 3' ed., Köln-Berlin-Bonn-München, 1987, p. 57 ss. Sobre o conceito de empresa no
direito comunitário da concorrência, ver, por todos, A. BLECKMANN, Europarecht. Das Recht der Europãischen
Wirtschatsgemeinschaft, KC)In-Berlin-Bonn-München, 2' ed., 1978, p. 302 ss; GOLDMAN/LYON-CAEN/VOGEL,
Droit commercial européen, 5' ed., Paris, 1994, p. 350 ss; CASEIRO ALVES, Liçöes de direito comunitário da
concorrência, Coimbra, 1989, p. 22 ss.

(31) Porque, no direito português, a relação de domínio se estalece entre sociedades comerciais (cfr. CSC,

art's 486' e 48 I').

(41) Esta expressão é destacada por ALMEIDA MORGADO, p. 47, para considerar a empresa como

objecto" (colocando porém a palavra entre aspas) e recusar que o Código tenha operado qualquer personalizarão
da empresa.

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA




- desconsiderar, para a caracterização geral da empresa no âmbito do Código,
as frases em que empresa está utilizada em substituição de sociedade ou de
pessoa colectiva, por se tratar de óbvia incorrecção de linguagem;
- considerar que, em todas as outras utilizaçöes, tanto a palavra "empresa"
como a expressão "titular da empresa" são utilizadas como modo de
referência a entidades que exercem uma actividade económica através da
organização de factores de produção.

Não se trata porém de personalizar a empresa, mas de empregar a palavra como
modo de referência (41 ) a uma categoria geral de pessoas (41 ) estruturadas segundo as
diversas formas jurídicas admitidas no direito português, desde que exerçam uma
actividade económica através da organização de factores de produção (43).
O sentido útil do art' 2' não é portanto a definição de empresa mas a definição
de organização empresarial pela indicação de elementos (factores de produção;
exercício de uma actividade económica) que estão ordenados em função de objectivos
de recuperação e que se inserem no conceito completo de empresa tal como resulta
do conjunto dos preceitos do Código.
Um conceito rigoroso de empresa - elaborado a partir da política legislativa
(imperfeitamente) expressa no Código - seria portanto o seguinte: titular de direitos
sobre bens que, conjuntamente com outros factores de produção, se inserem em
organização destinada ao exercício de uma actividade económica.

Para o conceito de empresa é irrelevante o conceito de comerciante.
Há empresas que são sempre comerciantes (aquelas que estejam juridicamente
estruturadas como comerciantes em nome individual ou sociedades comerciais); há
empresas que podem ser ou não comerciantes (agrupamentos complementares de
empresas, agrupamentos europeus de interesse económico e cooperativas, conforme
tiverem ou não por objecto o exercício de uma actividade comercial (44" ; há empresas



(41) "Conceito de conexão" (GIERKE/SANDROCK, p. 172 ss); termo utilizado por "comodidade de
linguagem" (SERLOOTEN, apud DERRIDA/ GODÉ/SORTAIS, p. 17).

(41) E eventualmente a patrimónios autónomos.

(41) Nas liçöes de Direito económico (Lisboa, 1979) qualifiquei a empresa no direito português como

"categoria jurídica subjectiva", sustentando que "a personalidade jurídica é atribuída - no estado actual da ordem
jurídica - não à empresa, em si, mas a cada uma das empresas existentes" (p. 367 s). Perante os novos dados
fornecidos pelo Código dos processos de insolvência (e por outros diplomas legais, como a Constituição da
República, art's 54', n' I e n' 5, h) e e), 55', n' 2, d), 85', n' 2, 87', n's I, 2 e 3, 103' e), e o decreto-lei n' 371/
93, de 29 de Outubro, que regula a defesa da concorrência e a concentração de empresas, art's 2', n' I, 3', 6', 7'
ss, I I'), parece-me agora que não é sequer uma categoria subjectiva mas um modo de referir uma categoria
subjectiva. Quanto aos caracteres comuns dessa categoria, o que fica escrito pouco altera em relação à definição
que então propus: exercício de uma "actividade económica por forma organizada e continuada" (p. 359).

(") Em relação aos AEIE'S, há lei expressa (decreto-lei n' 148190, de 9 de Maio, ar@ 3', n' 2) no sentido
de que têm a qualidade de comerciante se tiverem por objecto a prática de actos de comércio. Em consequência
deste novo dado legislativo, não parece ser hoje defensável que a atfibuição da qualidade de comerciante, nos termos
do art' 13', n' I, do Código Comercial, exija uma finalidade lucrativa, uma vez que ela não é necessária nos AEIE's
(Regulamento CEE do Conselho n' 2137187, de 25 de Julho, art' 3', n' I). Por isso, igual critério, quanto à
qualificação como comerciante, se aplicará aos ACE's e cooperativas, pessoas para as quais o fim lucrativo não é
também elemento necessário e que podem ter ou não corno objecto urna actividade comercial.


O AMBITO DE APLICAÇÃO DOS PROCFSSOS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRFSA E DF FALENCIA





que não são comerciantes (sociedades civis, sociedades civis sob forma comercial,
agricultores em nome individual, associaçöes de direito civil - incluindo, por
exemplo, clubes desportivos e associaçöes de estudantes -, fundaçöes de direito civil).
Em qualquer destes casos, a qualificação como empresa depende porém da existência
de uma organização empresarial.
Há comerciantes que não são empresas (todos aqueles, incluindo comerciantes
em nome individual e sociedades comerciais, que não exerçam a sua actividade através
de uma organização empresarial).

Algumas situaçöes são susceptíveis de controvérsia.
Os profissionais liberais e os artesãos são tradicionalmente excluídos, no direito
português como na linguagem comum, não só do âmbito da noção de comerciante (45
mas também do de empresa ou de empresário (46).
Não parece que esta exclusão se deva manter para o efeito do processo de
recuperação de empresa. A finalidade do,processo e os instrumentos disponíveis
assentam na viabilidade económica como meio para atingir a viabilidade financeira.
A capacidade de gerar lucros revelada por uma estrutura organizada para o exercício
de uma actividade económica não exige que o trabalho prestado seja trabalho
dependente, isto é, que se integre numa relação laboral em sentido técnico. O trabalho
independente também pode ser, nesta situação, qualificado como factor de pro-
dução.
Pelas mesmas razöes, a existência do factor trabalho como elemento da
organização empresarial não implica um número mínimo de trabalhadores, factor
frequentemente escolhido como indicador de dimensão mínima para que à estrutura
económica se ligue determinada qualificação ou um certo efeito (47).
A qualificação de uma organização de factores de produção como empresa, para
que lhe possa ser aplicado o regime de recuperação, em casos marginais como
sociedades de advogados, sociedades de prestação de serviços médicos, contabilísticos






(45) FERNANDO OLAVO, Direito comercial, I, Coimbra, 1979, p. ll, 241 s, 256 s; PEREIRA DE
ALMEIDA, Direito comercial, Lisboa, 1976-77, p. 173 ss, 200; PUPO CORREIA, p. 147 ss. REMÉDIO
MARQUES, Direito comercial, Coimbra, 1995, p. 407 ss, 420 ss, aceita, mas relativiza, a exclusão. No direito
alemão, os profissionais liberais não são comerciantes (CAPELLE/CANARIS, Handel.@recht, 21' ed., München,
1989, p. 19; K. SCHMIDT, p. 249); os artesãos só são comerciantes se voluntariamente se inscreverem no registo
comercial (CAPELLE/CANARIS, p. 27; K. SCHMIDT, p. 275).
(41) Cfr., em relação aos artesãos, Código Comercial, art' 230', § I', e PEREIRA DE ALMEIDA,
p. 181 s. No direito italiano, os profissionais liberais não são empresários (F, GALGANO, Diritto commerciale,
L'imprenditore, 4' ed., Bologna, 1991, p. 14; G.E CAMPOBASSO, Diritto commerciale. I. Diritto dell'impresa,
2' ed., Torino, 1993, p. 46). Os artesãos são considerados empresários, mas não estão sujeitos à falência
(F. GALGANO, p. 28 s; G.F. CAMPOBASSO, p. 73).
(41) Alguns exemplos: na URSS, foram nacionalizadas em 1920 as empresas que ocupavam mais de 10
operários ou mais de 5, se utilizassem instalaçöes a vapor (C.FERREIRA DE ALMEIDA, Direito económico, cit.,
p. 49); o decreto n' 20677, de 28 de Dezembro de 1931, no art' I', § único, exclui da qualificação de comerciais
as empresas de pesca em que os pescadores assalariados sejam em número não superior a 20; o despacho norniativo
ministerial n' 32518 I, de 12 de Outubro, publicado no DR de 2.11.8 I, indicava entre os requisitos para a qualificação
de uma PME industrial que a empresa empregasse um mínimo de 5 trabalhadores.

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA




ou de arquitectura (41) , de pequenas unidades artesanais (49) @ comerciais ou industriais,
deve ser resolvida mais em função da concreta possibilidade de viabilização do que
do carácter dependente ou independente do trabalho prestado ou do número de pessoas
que o prestam.
Diferente é a questão de saber se os patrimónios autónomos referidos no art'
125', n's I e 3, em especial as sociedades irregulares, por hipótese economicamente
estruturadas como empresas, podem beneficiar do regime de recuperação.
Por um lado, dir-se-á que tal não é possível sempre que se defronte uma
situação de nulidade da sociedade ou da associação. Sendo a nulidade de conhecimento
oficioso, seria forçoso um processo de liquidação que não é compatível com o
desenvolvimento de providências de recuperação.
Esta conclusão é exacta quando as hipotéticas medidas a adoptar sejam a
concordara ou a reestruturação financeira. Mas não parece que seja necessária em
relação às restantes soluçöes.
No regime do acordo de credores só não será de aplicar o efeito de dissolução
da pessoa colectiva insolvente (art' 78', n' 2), visto não haver pessoa colectiva
validamente constituída. No regime de gestão controlada, a sua aplicação ficará
também dependente da regular constituição da pessoa colectiva, medida que, sendo
no caso necessária para a "gestão futura da empresa", é susceptível de ser adicionada
ao elenco não taxativo do art' IOI'. Pressupondo que preexista uma empresa com os
requisitos do art' 2', não se vê razão para excluir soluçöes que satisfazem os objectivos
do processo de recuperação, salvaguardando para o futuro a regularização jurídica do
titular da empresa.
Por último, dificuldades podem ainda existir em relação a sociedades que sejam
meras detentoras de participaçöes sociais.
Prescindindo da análise do problema de saber se um tal objecto é compatível
com o conceito de sociedade, por inobservância do requisito do art' 980' do Código
Civil (que exclui do seu âmbito a actividade económica de "mera fruição"), a questão
consiste em decidir sobre a susceptibilidade de qualificação como empresa.
Embora o regime legal possa não ser o melhor (50)@ o conceito de empresa, tal
como se deduz do art' 2', implica, como se viu, que o exercício de actividade
económica se realize com a prestação de trabalho, excluindo portanto do seu campo
as sociedades sem trabalhadores. Mas a atitude flexível antes preconizada, em termos
de admitir como tal o trabalho independente e a dispensa de um número mínimo de
trabalhadores, poderá facilitar que, em concreto, sociedades cujo principal objectivo




(l8) Cfr., para o direito francês, B. PONS, Ouverture d'une procédure de redressementjudiciaire à l'égard
d'un profissionnel liberal en cas d'inexécution d'un accord de règlement amiable, "Revue des procédures
collectives", 1994-2, p. 129 ss.
(41) A lei francesa sobre a recuperação de empresas aplica-se também aos artesâos desde 1985 (M.
JEANTIN, p. 316).
('O) Poder-se-ia prever, à semelhança do direito italiano, um regime particular para a recuperação de
sociedades em relação de grupo (S. SATTA, Diritto falimentare, 2' ed., Padova, 1990, p. 564 ss). Sobre os
problemas suscitados pela falência de sociedades coligadas, ver, no direito alemão, HÃSEMEYER, p. 789 ss, e,
no direito comparado, HOPT, p. 66 ss.

O AMBI'1'0 DF APLICAÇÃO DOS PROCESSOS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E I)E FALEN(@IA





seja o de mera participação em outras sociedades possam ser consideradas como
empresas, se exercerem alguma prestação de serviços relacionada com as participaçöes
de que são titulares.


V - REGIME DA INSOLVENCIA DE DEVEDORES NAO TITULARES DE

EMPRESA

O art' 27' só admite, como alternativa à falência, a chamada concordara par-
ticular, regulada nos art's 240' a 245', concebida como simples meio de prevenção
da falência e não como providência de recuperação.
O sistema revela alguma insensibilidade em relação à problemática da insol-
vência dos consumidores que, noutros países, constitui objecto de soluçöes jurídicas
inovadoras. Refira-se em especial o "processo de reorganização" prevista no capí-
tulo Xlll do Código de falências dos Estados Unidos (5 I) e o regime de "sobre-endivi-
damento" que vigora em França desde 1990 (-12).
É urgente estudar soluçöes legislativas adequadas para aplicação em Portugal,
tendo em conta o crescente acesso ao crédito ao consumo que se vem registando nos
últimos anos. A semelhança de outras legislaçöes, as particularidades do processo
deverão orientar-se em dois sentidos: avaliação das potencialidades do rendimento
familiar para satisfazer, em prazo razoável, o passivo acumulado; fiexibilização da
reserva de competência dos credores para a selecção das medidas adequadas, subs-
tituída, em certos casos, pela atribuição ao juiz de poderes de decisão prudencial.


VI - OBSERVAÇÃO CONCLUSIVA

Tendo-se verificado que o conceito de empresa está imperfeitamente expresso
no Código e que, como pressuposto subjectivo,

- é fonte de equívoco em relação ao processo de falência (onde se revela
efectivamente inútil),
- origina dificuldades no enquadramento da recuperação de estruturas ligadas
a profissöes liberais, artesãos, pequenas unidades económicas e holdings e



Aplicável a indivíduos com rendimento regular e passivo inferior a 350000 ou 100000 dólares
(conforme se trate de dívidas com ou sem garantia); o plano de recuperação pode ter uma duração até 60 meses
(D.L.BUCHBINDER, p. 393 ss).
(") Loi n' 89-1010, de 31.12.89, e décret n' 90-175, de 21.2.90, que admitem a imposição pelo juiz de
medidas a favor do devedor, tais como a moratória com prazo máximo de 5 anos, a imputação preferencial de
pagamentos ao capital e a redução de taxas de juro (DERRIDAIGODÉ/SORTAIS, p. 41 s). A nova lei alemã (cfr.
nota I) regula nos §§ 304 e seguintes um processo especial de insolvência dos consumidores (cfr., em comentário
ao respectivo projecto, R. KEMPER, La futura réglementation du surendettement en Alemagne, "Revue européenne
de droit de Ia consommation", 1994, p. 114 ss). Sobre a comparação das legislaçöes nos Estados membros e as
medidas a adoptar na União Européia, o "European Consumer Law Group" elaborou, em 1995, um documento de
trabalho intitulado "Le surendettement des consommateurs en Europe. Pour une solution communautaire"
(ECLGI I 13195, de 22/3/95).

CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA





limita os meios de recuperação da situação de insolvência de consumidores,

parece que será preferível, em futura revisão do Código,

prescindir do conceito de empresa (53)@ substituindo-o pelo de devedor
insolvente (l4)@ COMO pressuposto comum aos dois processos e
simplificar os pressupostos do processo de saneamento financeiro, reduzin-
do-os aos estritamente necessários para atingir a finalidade de recuperação
de patrimónios.








Nenhum outro sistema jurídico (que seja do nosso conhecimento) utiliza o conceito de empresa para
delimitar o campo de aplicação de processos de insolvência. Mesmo no direito italiano - onde, a partir do Código
Civil de 1942, a figura do empresário toma o lugar que até então fora ocupado pelo comerciante (GALGANO,
p. I I) - a falência, a concordara preventiva e a administração controlada têm como pressuposto subjectivo comum
o "empresário comercial" (G.R. MAGGIORE, 11 presuposto soggettivo delle procedere concorsuali, "Vila notarile",
1993, p. 100 ss).
(") Na fase de preparação do Código, PINTO FURTADO, Pervpectivas e tendências do moderno direito
de falência, "Revista da Banca", n' ll, 1989, p. 63 ss (p. 85), escrevia: "é o devedor, não a empresa, que deverá
qualificar-se como falido".

ASPECTOS PENAIS DA INSOLVENCIA E DA FALENCIA:
REFORMULAÇÃO DOS TIPOS INCRIMINADORES
E REFORMA PENAL

MARIA FERNANDA PALMA

(Professora da Faculdade de Direito de Lisboa)




I

INTRODUÇÃO

I - A relevância penal da insolvência e da falência surge em duas perspectivas
conflituantes: por um lado, a do apelo aos meios penais, com a sua suposta eficácia,
para prosseguir finalidades que geralmente são realizadas por outros meios (incluindo
outros meios de sancionamento); por outro lado, a da dignidade penal dos bens
jurídicos acautelados pelas incriminaçöes naquela área, subordinando-se toda a matéria
criminal da falência a uma lógica penal tradicional (maiores garantias do Estado de
direito democrático, dada a rigidez dos respectivos critérios responsabilizadores).
As duas tendências desenvolvidas em conflito implicarão uma irredutível
oposição entre a via do alargamento não controlado da área de relevância penal
da falência e a da forte restrição da intervenção penal ou até mesmo da descrimina-
lização. A irredutibilidade das posiçöes esconde, todavia, uma análise incompleta da
realidade.
Uma visão englobante pode articular a eficácia (ou até a maior eficácia) dos
meios penais na área patrimonial e económica com uma tendência restritiva e
descriminalizadora da política criminal, através de um acordo fundamental sobre a
essencialidade das razöes da intervenção penal ('). A eleição como bem jurídico-



(I) Uma bibliografia abrangendo a doutrina de vários países sobre os crimes de falência é apresentada
por Tiedemann no seu comentário monográfico ao § 283 do Código Penal alemão, em Strafgesetzbuch, Leipziger
Kommentar, Grosskommentar, coord. de Jescheck e outros, IO' ed., 1985.

001 MARIA FERNANDA PALMA



-penal, afectado pelo crime de falência, de interesses e necessidades vitais para a
sociedade e para os seus membros é um meio de obtenção daquele acordo.
Na realidade, embora historicamente os crimes de falência tenham sido
manifestaçöes de uma necessidade crescente de protecção da economia de crédito
(foram as cidades medievais italianas que criaram este tipo de incriminação) (2)@ pôde
entender-se, na doutrina, que apenas se prosseguia a tutela penal das concretas relaçöes
de crédito (o que parecia conduzir à aceitação da consequente responsabilidade penal
por dívidas). A própria protecção do património dos credores não é, verdadeiramente,
obtida pela protecção penal na relação jurídica imediata, isto é, o direito penal não
permite obter efeitos reparadores semelhantes aos do direito civil. Nesse sentido, as
sançöes penais tornam-se ineficazes e desnecessárias para, directamente, ressarcirem
os danos gerados na sociedade pelas situaçöes de insolvência ou de falência. Quando
o direito penal intervém já não é, em regra, possível evitar irreparáveis lesöes para
os bens dos credores.
O direito penal só assegura, verdadeiramente, a tutela a bens que sejam
moldáveis pela eficácia desmotivadora das penas e que sustentem ou interfiram na
coesão social (3). Ora, nas situaçöes de insolvência e de falência, a realidade tutelável
nessa dimensão é a economia de crédito ou até a ecomomia em geral (4).

2 - Mas poder-se-á pensar então que a transferência do bem jurídico protegido
para um plano supra-individual em nada alterará a realidade focada pelo direito e o
correspondente regime. Levar-se a cabo a protecção penal da vida de cada pessoa em
nome do direito à vida ou do valor objectivo da vida humana não significará, apenas,
atribuir diferentes nomes à mesma realidade normativa?
A pergunta geral concretizada pelo exemplo merece uma resposta negativa, pois
os contornos da tutela penal e a estruturação das condutas incriminadas podem
modificar-se pela alteração de perspectiva quanto ao bem jurídico. O que é notório
no exemplo dos crimes contra a vida também o é nos crimes de falência (').
A deslocarão do objecto da tutela penal dos direitos dos credores para a
economia de crédito permitirá incriminar certas condutas mesmo que elas não cheguem




(I) No direito romano não vigorava a incriminação da falência, sendo o património salvaguardado
atribuído aos credores. A intervenção penal limitava-se aos crimen falsi [cf. Leipziger Kommentar, cit., n' 38,
§§ 283-283 d)j.
(3) A ideia de bens da coesão social surge, afinal, no texto, como um casamento, eventualmente possível,
entre a ideia de bem jurídico como realidade substancial (e que satisfaz objectivamente necessidades) e a ideia de
coesão social com a sua acentuação simbólica. Não me parecem, na verdade, inconciliáveis a categoria do bem
jurídico como critério de legitimidade do Direito Penal (cf., por exemplo, Hassemer, Theorie und Soziologie des
Verbrechens, 1973) e a concepção de estabilização das expectativas e reforço da validade do Direito que leio em
Jakobs (Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2' ed., 1991).
(I) Cf., em geral sobre a discussão, Tiedemann, cit., e Wirtschaftsstrafrecht, I, 1976, p. 239 e ss., que
reflecte sobre o bem jurídico protegido, tendendo a considerar que é apenas a economia de crédito o objecto da
protecção das normas penais (com argumentos históricos e fundamentando-se na necessidade de seleccionar como
"bens jurídicos unidades de função específicas com o mais baixo grau de abstracção").
(s) É geralmente reconhecida pela doutrina uma função interpretativa do bem jurídico, que, no texto,
apenas se exemplifica. Sobre essa função interpretativa, cf. Rudolphi, Systematischer Kommentar zum
Strafgesetzbuch, Allgemeiner Teil, anot. 3 ao § I, n' 3, 3' ed., 1983.

ASPECI'OS PENAIS DA INSOLVENCIA E [)A FALENCIA





a causar lesão efectiva dos direitos dos credores. Exemplificando, a incriminação de
condutas como o falso balanço e a destruição ou ocultarão de documentos contabi-
lísticos, isto é, a mera "tentativa" nos crimes de falência, independentemente da
verificação da situação de insolvência ou da declaração de falência, legitimar-se-ia pela
sua elevada perigosidade para o funcionamento do crédito, abalando a segurança de
todos os agentes económicas que se inter-relacionam na base da confiança no regular
funcionamento das empresas ou que agem economicamente recorrendo ao crédito. Tais
condutas não só atingiriam imediatamente o valor simbólico (ou de coesão) do bem
jurídico-penal como levariam, com um elevado grau de probabilidade, a efeitos dano-
sos para os direitos patrimoniais envolvidos, directa ou indirectamente, propagando
efeitos em cadeia. Por essas razöes, tais condutas mereceriam uma tutela antecipada
relativamente à lesão efectiva dos bens jurídicos protegidos.
Mas, independentemente de se deduzir da supra-individualidade dos bens
jurídicos esta ou aquela consequência concreta, o acordo quanto à necessidade de
construir o objecto da tutela penal articuladamente com o núcleo do sistema penal é,
obviamente, pleno de consequências, de que apenas se referiu um exemplo, aliás
discutível, quanto à decisão de punir e à espécie e à medida das penas cominadas.

3 - A problemática do bem jurídico (na sua articulação com o centro do sistema)
nos crimes de falência é, aliás, a célula fundamental do pensamento jurídico
potencialmente reformador: o "até onde" da utilização de meios penais nesta área
exigirá o controlo prático da eficácia do sistema vigente, mas também a fiscalização
teórica constante da coerência e da nacionalidade do pensamento que subjaz ao direito
positivo (6).
As alteraçöes introduzidos no Código Penal de 1982 pelo Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência de 1993 e pela Revisão do Código
Penal operada em 1995 (7 ) devem ser sujeitas a este tipo de controlo, numa fase em
que a sua eficácia não pode ser ainda dimensionada.
Constituirão, por conseguinte, linhas de orientação da análise daquelas altera-
çöes as perguntas seguintes:
I) Que possível significado têm as alteraçöes relativamente ao bem jurídico
protegido?
2) Serão satisfatórias, na perspectiva da coerência geral do sistema, tais
alteraçöes'?








(I) Faço esta afirmação com a consciência de que a problemática do bem jurídico que apenas sirva de
orientação para uma metodologia dedutiva e que não considere outras informaçöes (nomeadamente dados empíricos)
é pouco produtiva. A pergunta sobre o bem jurídico corresponde, afinal, a um esforço de compreensão sobre o
que falta entender e pesquisar.
(I) Revisão do Código Penal aprovada pelo Decreto-Lei n' 48195, de 15 de Março.

MARIA FERNANDA PALMA








A RECENTE EVOLUÇAO LEGISLATIVA

4 - Impöe-se uma análise do regime introduzido pelo Decreto-Lei n' 132/93,
de 23 de Abril, e pela Revisão do Código Penal de 1995 que permita apreciar as
mudanças.
As alteraçöes podem ser sistematizadas em três grupos:
a) Alteraçöes quanto à dignidade punitiva das condutas, no sentido da
criminalização ou da descriminalização;
b) Alteraçöes quanto à construção dos tipos incriminadores - modalidades
ob ectivas e subjectivas de conduta, construção dos tipos criminais como crimes de
perigo ou de dano, de resultado ou de mera actividade, etc.;
c) Alteraçöes quanto às penas (espécies e medida).

5 - O primeiro grupo de alteraçöes foi constituído, basicamente, pela revogação
(artigo 9' do Decreto-Lei n' 132/93) da incriminação da frustração de créditos, prevista
no artigo 324o do Código Penal de 1982, mas veio a incluir a supressão dos no, 3 e 4
do actual artigo 228', que faziam depender de queixa o procedimento criminal, nos
crimes de falência negligente (s). Neste grupo de alteraçöes integra-se a inclusão, no
crime agora designado de insolvência dolosa (actualmente previsto artigo 227') (9), das
novas condutas de destruição ou ocultarão de documentos contabilísticos, não
organização da contabilidade, apesar de devida [última parte da alínea b) do no I do
artigo 227'1, criação ou agravação artificial de prejuízos ou redução de lucros [alí-
nea c) do n' I do artigo 227'1 ('O). Finalmente, o artigo 229' (favorecimento dos
credores) deixa de abranger agora a situação de insolvência como mera insuficiência
do activo patrimonial




(8) Com o Decreto-Lei n' 132/93, de 23 de Abril, foi apenas suprimido o ri' 4 do artigo 326' do Código
Penal de 1982, que limitava significativamente o direito de queixa quanto ao prazo e à legitimidade do seu exercício.
Após a Revisão de 1995 é a própria natureza semipública da falência negligente que desaparece, pois foi suprimido
o n' 4 do artigo 326'. O artigo 228' do Código Penal não contempla, igualmente, a incriminação pelo crime
negligente nas situaçöes de mera falta de cumprimento das disposiçöes legais quanto à escrituração e transacçöes
comerciais, bem como de violação do dever de se apresentar à falência ou de requerer providências de recuperação,
modalidade típica prevista no artigo 326', ri' 2, do Código Penal de 1982 e que ainda subsistiu com o Decreto-
-Lei n' 132/93.
(I) Antes da Revisão de 1995, artigo 325' do Código Penal.
(") Antes da revisão de 1995, o artigo 325', ri' I, alínea d), alterado pelo Decreto-Lei n' 132/92, ainda
contemplava a conduta de "angariarão de fundos em condiçöes ruinosas".
(I I) Note-se que a nova redacção, introduzido pela Revisão de 1995 do Código Penal (artigo 229'),
substitui as expressöes "se for declarada a falência" e "se for reconhecida judicialmente a insolvência" pela locução
"se vier a ser reconhecida judicialmente" em ambos os casos. A alteração de redacção não deixa de ter repercussöes
na configuração do ilícito típico com expressão processual. Com efeito, poderá entender-se que o momento tem-
poral da verificação da condição objectiva de punibilidade aí referida não é constitutivo do ilícito típico, de modo
que a instauração do processo crime não dependerá da verificação da condição objectiva de putiibilidade, que, no
entanto, terá de preceder a condenação. E, igualmente, será possível considerar que o prazo de prescrição do
procedimento criminal não é contado a partir do reconhecimento judicial daquelas situaçöes (mas sim a partir da
prática do facto típico).


ASPECTOS PENAIS DA INSOLVENCIA E DA FALENCIA





Um primeiro balanço em termos político-criminais destas alteraçöes revela
alguma concentração e antecipação da tutela penal na identificação de condutas
perigosas em si mesmas e uma integrarão de novas condutas com essas características
que são formas (mais graves) de outras espécies já descritas tipicamente no Código
Penal ou são indiscutivelmente tão graves como as que anteriormente eram conside-
radas. No primeiro caso, estão a destruição e a ocultarão de documentos contabilísticos
relativamente à contabilidade inexacta; no segundo caso, a criação artificial de
prejuízos e a redução de lucros.
Esta concentração da tutela em condutas especialmente perigosas para o bem
jurídico é, igualmente, revelada pela descriminalização da "frustração de créditos",
conduta em que uma dimensão penal diferenciada da protecção dos direitos patrimo-
niais do credor era dificilmente conceptualizável (l2).
A concentração da tutela resulta de uma adequação dos tipos legais às realidades
mais graves, de uma maior selecção das condutas criminosas e de uma menor ampli-
tude das incriminaçöes relativamente a aspectos comunitariamente menos relevantes
do bem jurídico (").

6 - O segundo grupo de alteraçöes caracteriza-se por uma restruturação dos
elementos dos tipos legais de crimes a partir das inovaçöes centrais do regime da
falência e do processo de recuperação de empresas. Foi, como é sabido, o próprio
conceito de falência a que o Código Penal se referia (o da lei processual civil) que
soçobrou, para o seu lugar ser ocupado pelas novas figuras da insolvência e da falência
resultantes dos artigos I', 3' e 8', ri' I, do Código dos Processos Especiais de
Recuperação de Empresas e da Falência. Os principais traços destas novas figuras, no
que ao direito penal interessa, são a desvinculação da falência do estatuto de
comerciante do devedor e a definição, de acordo com a funcionalidade económica da
empresa, do conceito de insolvência, para o qual deixou de relevar a posição relativa
do activo perante o passivo patrimonial (artigo 3' do Decreto-Lei ri' 132/93).
A tutela penal passou a referir-se, consequentemente, a um estado - a
insolvência - cuja existência é suficientemente substancial (isto é, não essencialmente
dependente de declaração judicial) para ser ponto de referência de um verdadeiro
resultado típico. Assim, em primeiro lugar, o crime de insolvência dolosa, que
substituiu a falência dolosa, inclui a ocorrência da situação de insolvência como
elemento do tipo, o que não se verificava na vigência do artigo 325', na versão
originária do Código de 1982, relativamente ao estado de falência. Na verdade, este
preceito exigia, apenas, independentemente de conexöes causais, a declaração de
falência, que era entendida geralmente pela doutrina como condição objectiva de
punibilidade. E, em segundo lugar, o ri' 2 do artigo 227' exige agora, inovatoriamente,




E em que o direito penal, pelo menos mediatamente, elevava direitos não absolutos a objecto de
protecção penal, pondo em causa o seu clássico carácter fragmentário e a sua natureza de direito público. Cf.
Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 4' ed., 1988, pp. 44-47.
(l3) Note-se, todavia, que com a Revisão de 1995 se operou certa contenção na amplitude das incrimi-
naçöes, como se revela nas alteraçöes referidas na nota S.

MARIA FERNANDA PALMA





que a própria declaração de falência seja consequência da prática dos actos previstos
nas diversas alíneas do n' I (l4).
As condutas típicas dolosas parecem ter sido restruturadas em termos de uma
certa conexão causal entre as acçöes proibidas e a ocorrência de um evento objectivo
- a situação de insolvência -, que é, simultaneamente, o fundamento da efectiva lesão
da ordem jurídica. No n' 2 do artigo 227', é clara a referência a uma conexão entre a
acção e a própria declaração de falência. E, no ri' I, parte final, a ocorrência da
situação de insolvência deixa em aberto a dúvida sobre se estamos perante uma
condição objectiva de punibilidade em sentido próprio ("), meramente limitativa da
punibilidade de acçöes em si mesmas perigosas, ou se o legislador continuou a pre-
tender a estruturação típica tradicional. Neste último caso, terá continuado a associar
a uma grande amplitude de acçöes proibidas - que não necessitariam de ser concreta-
mente adequadas à criação da situação de insolvência - uma condição de punibilidade
igualmente ampliadora, atributiva, em si mesma, de dignidade penal a acçöes
eventualmente não perigosas em concreto.
A chave da interpretação do artigo 227', ri' I, parece ser o próprio artigo 227',
n' 2. A relação expressamente prevista no n' 2 não é, na verdade, uma efectiva relação
de causalidade (expressa como conditio sine qua non) entre a prática dos factos e a
declaração de falência, pois esta declaração só pode surgir em consequência de decisão
judicial e nunca é o desfecho necessário do preenchimento dos factos indiciadores
da situação de insolvência do devedor [artigo 8', ri' I, alínea a), do Decreto-Lei
ri' 132/931 ou do reconhecimento judicial da insolvência (artigo 227', nlll 2 e 3). Com
efeito, a declaração de falência nem sequer tem como pressuposto necessário o
reconhecimento judicial da insolvência, nas situaçöes de requerimento de providências
de recuperação pelos titulares de empresas (artigos 53', no, I e 2, 56', ri' 4, e 82',
ri' 2, do Decreto-Lei ri' 132/93), caso em que a falência pode resultar apenas da
frustração de um acordo dos credores ou da incapacidade de a sociedade formada pelos
credores cumprir as suas obrigaçöes.
Consequentemente, a referida conexão apenas pode significar que os factos
descritos no ri' I do artigo 227' do Código Penal produziram a inviabilidade (econó-
mica e financeira) da empresa insolvente (independentemente do reconhecimento
judicial da insolvência), nos termos do artigo I', ri' 2, do Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (",), sendo a declaração judicial
da falência condição objectiva de punibilidade própria (limitativa da punibilidade),
extrínseca ao poder causal do agente.




O artigo 325', n' 2, da versão originária do Código Penal de 1982 já o previa, após a alteração
introduzido pelo Decreto-Lei n' 132193.
(") Sobre o conceito de condição de punibilidade, cf. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, cit., pp. 500-
-503. Em sentido diferente, Jakobs, ob.cit., p. 275 e ss. Esta figura depende, na verdade, da autonomização da
categoria da punibilidade na análise do crime, ideia que está hoje no centro de uma discussão doutrinária com
repercussão na construção do sistema de aplicação do direito penal ao caso concreto. Sobre este problema, cf. Costa
Andrade, "A 'Dignidade Penal' e a 'Carência de Tutela Penal' como referências de uma doutrina teleológico-
-racional do crime", Revista Porluguesa de Ciência Criminal, Ano 2, n' 2, Abril-Junho de 1992, p. 173.
(l6) Sobre o conceito, cf. Jescheck, ob.cit., p. 500 e ss.

ASP@,('TOS PENAI.@ I)A liV,@OLVi.NCIA F I)A FALENCIA





Só num sentido limitado parece ser possível explicitar uma conexão de
imputação objectiva e até de causalidade, implicado na expressão "se a falência vier
a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número
anterior" (artigo 227', n' 2, do Código Penal). Na verdade, esta relação não pode
também deixar de incluir os casos de declaração de falência após falta de acordo dos
credores ou não cumprimento das obrigaçöes pela sociedade constituída, se a situação
de inviabilidade económica, não ultrapassada pelas providências de recuperação, tiver
sido determinada pela prática de algum dos factos das alíneas do n' I do artigo 227'.
A ocorrência de situaçöes de insolvência prevista no n' I do artigo 227'
exprimiria, deste modo, a imputação objectiva da situação de insolvência (prevista no
n' 3) aos factos descritos no n' I, desde que não viesse a ser declarada a falência
(obviamente, por ter sido possível a recuperação da empresa).
Impor-se-á esta interpretação ou será sustentável uma outra leitura sobre a
função típica da situação de insolvência, de natureza não causal?
Se se aceitasse a perspectiva não causal, a "inviabilidade económica" deixaria
de ser entendida como algo determinável pelas condutas incriminadas de modo
autónomo (como um evento mais grave) relativamente à criação da situação de
insolvência. E, assim, não haveria, na perspectiva da intensidade do desvalor da acção
e do desvalor do resultado, a possibilidade de distinguir as duas situaçöes típicas
(previstas nos nO' I e 2) ("). A criação de uma situação de insolvência (carência de
meios e falta de crédito, impossibilitando o cumprimento pontual das obrigaçöes) e a
criação da situação de inviabilidade económica e financeira da empresa seriam
condutas equiparáveis e a diferenciação de gravidade dos ilícitos típicos (nlls I e 2)
menosprezaria um ilícito concebido corno articulação do desvalor da acção com o
desvalor do resultado.
Só uma perspectiva que baseie a gravidade do ilícito na lesão puramente
objectiva de bens poderia conceber, naquela óptica, que a verificação da falência fosse
sempre mais grave para o sistema penal. Essa perspectiva levaria a utilizar, na verdade,
a declaração de falência como condição objectiva de punibilidade imprópria ( I 8)@
fundamentadora da gravidade da pena, abstraindo do grau de ilicitude e da corres-
pondente culpa. E, se assim fosse, uma tal interpretação não causal do tipo seria
dificilmente compatilizável com o princípio da culpa.
Mas, para além desta interpretação do artigo 227' do Código Penal, são ainda
viáveis outras interpretaçöes não arraigadas a uma visão causal, mas adequadas ao
princípio da culpa. Segundo uma dessas interpretaçöes, apenas se exigiria uma conexão
causal no âmbito do artigo 227', n' 2, que contemplaria um verdadeiro crime de




Lido conjugadamente com o artigo 3' e aplicável a todos os devedores insolventes não titulares de
empresas, segundo o disposto no artigo 27', n' 2, de Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa
e da Falência.
(") E tal consideração é tanto mais plausível quanto se sabe que o desfecho da falência não constitui
efeito automático de um estado absolutamente objectivo ou científico de inviabilidade económica, mas sim,
naturalmente, consequência de urna conjugação da insolvência com a falta de interesse económico dos credores
na recuperação da empresa (ou de uma falta de entendimento) - para a qual relevam, a par de uma lógica económica
tendencialmente objectiva, factores de preferência e de interesse puramente subjectivos.

RNANDA PALMA





resultado. O n' I do artigo 227' já consagraria um crime de perigo abstracto, cuja
ilicitude se revelaria pelas condutas das alíneas e cuja punibilidade seria limitada pelas
condiçöes objectivas de punibilidade: ocorrência da insolvência e respectivo
reconhecimento judicial.
Uma tal perspectiva seria, aliás, expressão natural da vontade legislativa que
refere, no artigo 8' do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e
da Falência, os pressupostos da insolvência como meras condutas indiciadoras de tal
estado, não utilizando uma descrição causal. Também várias das condutas previstas
no n' I do artigo 227' são tipicamente geradoras de situaçöes de insolvência, num grau
de risco muito apreciável.
Contra esta última interpretação alegar-se-á, porém, que algumas das condutas
previstas no n' I do artigo 227' não são suficientemente perigosas, em si mesmas, fora
de uma reconhecida situação de crise, isto é, de insolvência. Por exemplo, os actos
de esbanjamento do património através do jogo e das apostas ou de despesas
extravagantes, que podem ser tidos como irrelevantes numa situação empresarial
saudável, são eventualmente subsumíveis na alínea a) do n' I do artigo 227o.
Assim sendo, será dificilmente sustentável a afirmação de que caberiam na
intenção legislativa, objectivamente considerada, tipos legais de perigo abstracto em
que o ilícito e a culpa seriam congruentes e estariam limitados por uma condição
objectiva de punibilidade. A própria tese de uma interpretação conforme ao princípio
da culpa, que remeteria para a aceitação da estrutura típica dos crimes de perigo
abstracto ('9), não tem suficiente apoio literal em todas as condutas descritas no
artigo 227' [como as das alíneas a) e d)].
A ocorrência da situação de insolvência e o seu reconhecimento judicial
permitem a configuração pelo intérprete de uma condição objectiva de punibilidade
em sentido impróprio, alargando, assim, a incriminação a condutas neutrais ou não
perigosas tipicamente (confirmando, a posteriori, a sua perigosidade típica). Todavia,
esta interpretação confronta-se com uma objecção de fundo que não logra superar: a
diferenciação do ilícito relativamente ao da falência não intencional seria feita através
de uma intenção de prejudicar os credores não apoiada em acçöes concretamente
perigosas a esse nível. Assim, a maior relevância do ilícito teria de deduzir-se,
meramente, de um elemento subjectivo da ilicitude.
Impöe-se, por isso, como solução jurídica preferível, uma outra interpretação.
Tal interpretação implicará o reconhecimento de uma estrutura de crime de perigo
concreto relativamente à própria situação de insolvência, que constitui substrato
da lesão do bem jurídico (direitos dos credores e economia de crédito). Deste modo,
as diversas alternativas de conduta típica exigirão sempre uma casuística apti-
dão para criar a situação de insolvência, cuja prova se terá de produzir no pro-

cesso penal.
Deste entendimento, segundo o qual a insolvência e a falência não são
condiçöes objectivas de punibilidade impróprias e os tipos legais pressupöem que elas



Ideia defendida por Tiedemann para o direito germânico, Leipziger Kommentar, cit.


ASPECTOS PENAIS DA INSOLVENCIA E DA FALENCIA





estejam relacionadas causalmente com as condutas típicas, resultará uma concepção
restritiva das incriminaçöes que se exprime em dois corolários:
a) A conduta que não haja contribuído causalmente para a insolvência ou a
falência será atípica, apesar da verificação destas;
b) A conduta a que não suceda a insolvência ou a falência não poderá ser
punida porque faltará aquela condição objectiva de punibilidade (20).

7 - Este segundo grupo de alteraçöes não atinge intensamente os tipos
subjectivos. Trata-se da modificação da epígrafe do artigo 228', que converte a falência
negligente em falência não intencional, e da integrarão, no artigo 229', da mera
previsão da iminência da situação de insolvência a par do conhecimento da situação.
A primeira alteração não é totalmente inequívoca, porque não se deduz de
qualquer modificação do teor literal do tipo incriminador que o tipo subjectivo não
corresponde, efectivamente, a um crime negligente. Poder-se-á retirar da não intencio-
nalidade anunciada na epígrafe que este tipo apenas se distingue do anterior por não
se exigir o elemento subjectivo especial da ilicitude que é a intenção de prejudicar os
credores? Isto é, as condutas típicas poderão ser dolosas relativamente à criação do
estado de insolvência, na forma de dolo necessário ou eventual, por exemplo, não
sendo, todavia, intencionais quanto ao prejuízo dos credores?
O elemento subjectivo especial da ilicitude implica, no artigo 227', que as
condutas típicas sejam dirigidos finalisticamente ao prejuízo dos credores (isto é, dos
respectivos direitos), que funciona como elemento referencial do dolo extratípico
(crime de resultado parcial). As condutas são concebidas, objectivamente, como meio
para a obtenção desse fim.
No artigo 228', falta aquela conformação subjectiva sem, no entanto, o dolo
deixar de ser título de imputação subjectiva da criação da situação de insolvência.
Deste modo, a não intencionalidade deve ser entendida como englobando a realização
dolosa do tipo (dolo necessário ou eventual), sem a intenção de prejudicar os credores,
e a prática (gravemente) negligente das condutas previstas (2 I ) .
O facto de o artigo 228' parecer referir-se apenas às condutas negligentes não
obstará a que se incluam, no seu âmbito, as condutas dolosas não subsumíveis no
artigo 227', pois, de outro modo, conceber-se-ia uma lacuna de tipicidade que
acarretaria a punição da negligência e a impunibilidade do dolo (por não caberem no
artigo 227' certos casos de dolo). Assim, a negligência grave constitui apenas o título
mínimo de imputação subjectiva requerido pela norma.
No sentido desta interpretação concorre, igualmente, a supressão do n' 2 do
artigo 326' da versão originária do Código Penal de 1982, na versão de 1995. Com


Tudo isto implica a não punição da tentativa nestes crimes. Na alínea d), no entanto, as condutas
típicas já pressupöem a situação de insolvência e a conduta incriminada corresponde, tão só, a condutas fraudulentas
normalmente utilizadas para retardar a declaração de falência e que, geralmente, ainda agravam mais a situação
de crise, lesando gravemente o património dos antigos e dos novos credores. Trata-se, consequentemente, de uma
estrutura típica de mera actividade e de dano efectivo (pois a situação de crise agrava-se necessariamente).
(") Apenas se excluíam expressamente situaçöes de pura negligência em que o agente não poderia contar
seriamente com o resultado (pela sua insuficiente informação, por exemplo), na primeira versão do preceito, antes
da Revisão de 1995 (artigo 326', n' 2).

MARIA FERNANDA PALMA




efeito, a equiparação do incumprimento de disposiçöes legais sobre escrituação e
transacçöes comerciais à criação gravemente negligente de um estado de falência
acentuava a perspectiva de crime de dever. Ora, a supressão desta modalidade de
conduta típica acentua a natureza de crime de resultado com um elemento subjectivo
congruente: o dolo ou a negligência grave. Aliás, a grave incúria ou imprudência,
prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas e as especulaçöes ruinosas
constituem modalidades sociais (objectivamente identificáveis) de conduta empresarial
que não impedem que o elemento subjectivo do tipo seja, por exemplo, o dolo even-
tual (ou necessário) quanto à criação do estado de insolvência.
O artigo 229', por seu turno, integra, no elemento intelectual do dolo, a mera
consciência do perigo da situação de insolvência, continuando a exigir, adicionalmente,
a intenção de favorecer certos credores. Não só o crime se torna objectivamente um
crime de perigo, antecipando-se claramente a tutela penal, como o dolo é, correspon-
dentemente, um mero dolo de perigo (22) , no caso de a situação de insolvência não se
ter verificado ainda,
A última grande alteração que se extrai das novas descriçöes típicas resulta de
se ter retirado dos artigos 325', n' 1, e 326', n' I, do Código Penal de 1982 a referência
ao autor como comerciante. O estatuto profissional do autor deixou de ser uma
qualidade típica, colocando-se agora, nos artigos 227', n' 1, e 228' do Código Penal,
frontalmente, a problemática da autoria em função de uma relação específica, de urna
objectiva relação de dever.
Esta modificação torna claro que a autoria não está condicionada por qualidades
formais (nem a de comerciante, nem a de devedor), mas é antes determinada pela
relação funcional entre o agente e os direitos patrimoniais dos credores. Devedor será,
assim, não só quem é sujeito passivo de uma relação de crédito, mas também qualquer
responsável pela satisfação dos direitos de crédito (como os cônjuges relativamente
às dívidas comuns do casal, nos termos do artigo 1691' do Código Civil). A autoria
bastará esta relação funcional com os direitos do credor, se a isso vier acrescer a
prática (em autoria singular ou compartieipação) das actividades tipicamente des-
critas (").
Mas existirá ainda a qualidade típica de devedor quando funcionalmente não
seja reconhecível qualquer responsabilidade pelas dívidas do verdadeiro devedor,
embora seja outro agente quem venha praticar as condutas típicas?
O problema pöe-se, sobretudo, a propósito dos sócios das sociedades comerciais
de responsabilidade limitada e dos titulares dos órgãos deliberativos dessas sociedades.
A questão central é a seguinte: as alteraçöes legislativas não comportam, explicita-
mente, a responsabilidade penal das pessoas colectivas nem prevêem qualquer cláusula
de responsabilidade das pessoas singulares que ajam em nome de tais entidades.
Todavia, a reunião, na mesma pessoa, da capacidade de acção referida às condutas
típicas e da qualidade típica não se verifica quando o devedor é uma pessoa colectiva.
Assim, mesmo que se entenda que não falta às pessoas colectivas capacidade de acção,



(21) Sobre o conceito, cf. Rui Pereira, O Dolo de Perigo, 1995, p. 83 e ss.

(3@) Cf. Tiedejnann, Leipziger Kommentar, cit.


ASPECTOS PENAIS DA IN.@OLVENC'IA E I)A IALENCIA





mas apenas de culpa (21) não é possível, em face do artigo I I' do Código Penal,
considerar que elas são responsáveis penalmente neste caso. Deste modo, mesmo que
se concluísse que a qualidade de autor e a realização da acção se reuniriam em tais
entidades, elas não poderiam ser criminalmente responsabilizadas.
Como decidir, então, nos casos em que a pessoa colectiva devedora tenha,
através dos seus órgãos deliberativos, determinado a criação da situação de
insolvência?
Tratando-se de sociedades comerciais de responsabilidade ilimitada, são, obvia-
mente, devedores todos os sócios responsáveis pelas dívidas da pessoa colectiva e
realizarão o tipo os membros da pessoa colectiva que tiverem actuado no interesse
desta ou mesmo no interesse próprio utilizando o património da pessoa colectiva.
É o que resulta do artigo 126', n' I, do Código dos Processos Especiais de Recupera-
ção da Empresa e da Falência, quando define os sujeitos passivos da falência.
A confusão de patrimónios (da pessoa colectiva e dos seus membros) não
permite distinguir responsabilidades através do critério dos interesses prosseguidos.
A afectação do património da sociedade atinge o património dos seus membros, de
modo que os interesses colectivo e individual não delimitam a autoria e a tipicidade.
Nas sociedades comerciais de responsabilidade limitada não poderão ser
caracterizados como devedores os titulares dos respectivos órgãos ou os administra-
dores, os quais não poderão ser considerados sujeitos passivos da própria declaração
de falência (artigo 125', n' 2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e da Falência). A tipicidade dependerá dos critérios extraídos do artigo 12'
do Código Penal.
Segundo estes critérios, o agente ainda será punível se tiver actuado "volunta-
riamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera
associação de facto ... quando o respectivo crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e só estes se verifiquem na pessoa do
representado; ou
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante
actue no interesse do representado".
É certo que os agentes em causa não possuem, em si mesmos, a qualidade típica
de devedores (qualidade que só a pessoa colectiva detém, mercê do contexto factual).
Todavia, tal qualidade caracteriza a autoria objectivamente (e não de modo elevada-
mente pessoal) e é, por isso, transferível pela função de representação do agente.
Por outro lado, tais agentes terão de actuar no interesse da pessoa colectiva.
De outro modo não será praticado um crime pelo qual a pessoa colectiva não pode
ser punível em "benefício" dela, mas sim um crime contra a própria pessoa colectiva
(de abuso de confiança ou infidelidade, por exemplo, nos termos do disposto nos
artigos 205' e 224', respectivamente, da nova versão do Código Penal) (25).
Esta exigência de agir no interesse da pessoa colectiva pode ser problemática
nos casos em que não tenha havido uma explícita tomada de posição dos respectivos



(24) Como entende a doutrina dominantemente. Cf. Jescheck, Lehrbuch, cit., p. 500 e ss.

(21) Assim também Tiedemann, para o direito alemão, Lèlpziger Kommentar, cit., nota 1.


MARIA FERNANDA PALMA





órgãos deliberativos no sentido da prática dos actos e em que, por isso, eles são
dificilmente imputáveis à sua vontade. Todavia, deverá bastar que os comportamentos
sejam praticados no exercício normal das funçöes dos agentes ou no âmbito dos
seus poderes de representação e que eles não tenham agido no estrito interesse
pessoal.
Em certas situaçöes, poderá ser difícil distinguir entre o interesse pessoal do
titular do órgão e o da pessoa colectiva, sobretudo se a pessoa colectiva existir com
uma função de mera libertação de responsabilidade do património dos titulares dos
órgãos. Nesses casos, a confusão factual dos patrimónios justificará a confusão dos
interesses para fins penais e o direito penal não deverá ceder perante situaçöes jurídicas
exclusivamente formais ou fictícias. É o que, aliás, resulta do artigo 125', n' 2, do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (26).
Onde, pelo contrário, se puder adivinhar uma total autonomia de vontades com
base na diferenciação real de patrimónios não bastará a mera convicção de que se está
a agir no interesse da pessoa colectiva, contra a própria aparência jurídica. Deverá
existir sempre, pelo menos, a aparência de representação ou de actuação como titular
de órgão da pessoa colectiva. A aparência jurídica permitirá, aliás, que meros sócios
ou outros agentes que não sejam titulares, do ponto de vista jurídico, dos órgãos da
pessoa colectiva, mas o sejam apenas de facto, realizem o tipo (21).
A actuação no interesse do devedor é, sobretudo, concebível, nas hipóteses
previstas no artigo 227' do Código Penal, como manifestação de uma actuação
enganadora dos credores com a qual a pessoa colectiva aproveitará. Nas condutas
típicas previstas nos artigos 228' e 229', não se pressupöe tão claramente que o agente
aja para beneficiar o seu património: no artigo 229', tal característica da acção está
muito esbatida e, no artigo 228', a própria configuração negligente da conduta faz
perder o sentido à ideia de uma actuação no interesse próprio.
Assim, é claro que, nestes tipos legais, não é concebível a tipicidade de condutas
dirigidos contra o interesse da pessoa colectiva. E, por conseguinte, é exigível que o
agente actue como se da pessoa colectiva se tratasse, em nome dela e por ela.
Também não se poderá confundir a conduta típica prevista no n' 3 do
artigo 227' com as verdadeiras situaçöes de responsabilidade penal dos titulares dos
órgãos da pessoa colectiva, fundamentadas no artigo 12' do Código Penal. Com efeito,
o artigo 227', n' 3, refere-se, explicitamente, a um terceiro, isto é, a alguém para quem
não é transferível juridicamente a caracterização objectiva do autor e que, portanto,
não possui (ou pode não possuir) sequer o elemento subjectivo especial da ilicitude
(a intenção de prejudicar os credores). A sua responsabilidade atenuada adequa-se a
um menor desvalor da acção relativamente ao património dos credores. Se assim se
não entendesse, o artigo 227', n' 3, consagraria uma punição especialmente atenuada
para os titulares dos órgãos da pessoa colectiva, em situaçöes em que a pessoa
colectiva também não poderia ser punida, em face da inexistência de uma regra
especial de responsabilidade penal.



Cf. Tiedemann, ibid.

(2') Assim, Tiedemann, ibid.


ASPECTOS PENAIS DA INSOLVENCIA E DA FAL@NCIA





A questão que estas limitaçöes - impostas pela cláusula extensiva da tipicidade
(prevista no artigo 12' do Código Penal) (21) - colocam é a de saber se a protecção pe-
nal não é demasiado tímida, exactamente onde deveria ser mais intensa, por força da
inexistência da responsabilidade daqueles que produziram a insolvência no seu exclu-
sivo interesse pessoal, para evitar a subsistência de uma empresa ou para transferir
bens de uma empresa para outra. Na realidade, também estes agentes lesam os direitos
patrimoniais dos credores e afectam a economia de crédito e não apenas bens jurídicos
na titularidade da pessoa colectiva. A própria orientação geral do Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência aponta para a protecção das
empresas enquanto realidades sócio-económicas destacadas das pessoas colectivas.
Mas uma tal extensão da incriminação da insolvência e da falência deveria
implicar, no direito a constituir, a sua inserção na área dos crimes económicas, com
uma superior variedade de tipos legais. Haveria que distinguir as actuaçöes da pessoa
colectiva contra os credores e a economia de crédito das condutas dos titulares dos
seus orgaos, sócios e outros agentes contra a própria empresa, em situaçöes em que a
tutela dos bens jurídicos não seja satisfatoriamente assegurada pela genérica previsão
dos crimes contra o património, como o abuso de confiança e a infidelidade.

8 - O terceiro grupo de alteraçöes respeita às novas medidas legais das penas.
O legislador racionalizou, e ' m função da culpa, as medidas legais das penas.
Assim, distingue a pena de prisão até 3 anos ou multa (até 360 dias, segundo o disposto
no artigo 47', n' I, do Código Penal), que comina para a mera produção de insolvência
dolosa (artigo 227', n' I, in fine) da pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias,
prevista para a falência declarada em consequência dos factos previstos no n' I, alí-
neas a) a d).
A diferenciação das penalidades justifica-se pela maior gravidade do desvalor
do resultado na hipótese do n' 2 (claramente um ilícito de resultado). Uma tal
diferenciação das penas há-de impedir, como se disse, que a declaração de falência
seja uma condição objectiva de punibilidade imprópria ou extensiva (29).
No no 3 do artigo 227', o legislador concebeu uma atenuação especial da pena
(nos termos do artigo 73' do Código Penal), explicitando, ao nível da ilicitude e da
culpa, as razöes que determinam o privilegiamento (razöes derivadas da ausência da
qualidade de devedor). A variação da pena resulta de graduaçöes.da ilicitude e da
culpa, devendo considerar-se excluída a natureza de condição objectiva de punibilidade
imprópria ou extensiva da declaração de falência. A aplicação da atenuação especial
da pena implica que à conduta do terceiro seja imputável a declaração de falência.
Só nesta base é admissivel o aumento relativo da medida da pena, no caso de falência
[que passará a ser de prisão até 3 anos e 4 meses ou multa até 400 dias, por força das
alíneas a) e c) do no I do artigo 73'1, relativamente aos dois anos da antiga versão,
quando se manteve a própria pena máxima da provocação de falência em 5 anos de
prisão.



(28) Neste sentido, Cavaleiro de Ferreira, Liç-i)es de Direito Penal, Parte Geral, I, 1992, p. 468 e ss.

(29) Ou imprópria. Cf. notas 8 e 9.


@ri MARIA FERNANDA PAI.MA




Por outro lado, o ri' 4, que incrimina o concordatado que não justifique a
regularização dos activos, comina a pena prevista no ri' I, por não haver, obviamente,
qualquer analogia com a provocação da declaração judicial de falência, já que não se
trata de crime de dano e de resultado, mas de mero crime de perigo abstracto e de
omissão pura.
A outra alteração significativa em sede de medida legal das penas concretiza-
-se na previsão, em alternativa, de penas de multa relativamente a todos os crimes
contra direitos patrimoniais. O legislador do Decreto-Lei n' 132/93, já em consonância
com a Revisão de 1995 do Código Penal de 1982, previu a multa alternativa
(revogando a multa cumulativa do artigo 326', antiga versão) nos crimes menos graves.
A opção pela multa alternativa, do ponto de vista político-criminal, é, porém,
problemática (30), na medida em que a deficitária situação económica do devedor não
deverá ser razão determinante da aplicação da pena de prisão. A opção pela multa
justificar-se-á, apenas, em face dos artigos 40' e 70' do Código Penal, pela suficiência
desta pena para a realização dos efeitos preventivos geral e especial, sobretudo em
agentes primários e com características de perigosidade diminutas.




CONCLUSÃO

9 - Este foi o breve retrato das alteraçöes introduzidos pelo Decreto-Lei
ri' 48/95. Como se viu, os problemas dogmáticos são, em grande parte, consequência
de uma opção histórica sobre os fins da protecção penal e da manutenção da estrutura
típica tradicional das condutas. Entre a tripartição adiantada por Garofalo - "diminuição
do activo", "aumento do passivo" e "ausência de contabilidade" '(3 I) -, concebida para
uma protecção penal dos direitos de crédito, e as modalidades de acção típica dos
códigos modernos não existe uma grande diferença, desde que se mantenha o interesse
dos credores como pólo de atracção da tutela. Também a escassa aplicação de tais
normas incriminadoras e a constatarão de que grande percentagem das falências está
associada à prática de comportamentos típicos, paralelamente a uma natural aceitação
de cifras negras nesta área de criminalidade, fazem pensar em alternativas de reforma,
exacerbando, provavelmente, a tendência, já documentada tenuemente no Código dos
Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, de seleccionar condutas
tidas como gravemente perigosas para uma economia que funciona através do crédito
e para os direitos de todos os que constroem a sua vida com base nessa economia
(empregadores e trabalhadores).




(311) Sobre o significado dessa opção, cf. exposição de motivos da Revisão do Código Penal, publicado
como introdução ao Código Penal revisto.
(31) Citação de Garofalo em Kellens, La Criminologia, 2' ed., 1890, p. 38 e ss., citada por Tiedemann
em Wirtschaftsstrafrecht, cit., p. 73. Interessante é, aliás, a exposição de Kellens em "Tendences actuelles du droit
de Ia banqueroute", em Revue de droit penal et de Criminologie, 1972, p. 1047.

ASPEC'FOS PENAIS DA INSOLVEVCIA E DA FALENC'IA milk




A principal direcção de uma continuada reforma penal deverá ser, nessa medida,
segundo creio, a ampliação da prevenção geral, mediante a antecipação da tutela,
através da criação de crimes de perigo abstracto-concreto, que enquadrem condutas
normalmente aptas a lesar os interesses dos agentes económicas e a afectar o
funcionamento da economia de mercado baseada no recurso ao crédito.
Essa intensificação da prevenção geral, mediante a antecipação da tutela e a
superação das dificuldades associadas à persistência de condiçöes objectivas de
punibilidade impróprias ou, em alternativa, à prova da imputação objectiva, é também
o meio mais eficaz de evitar o efeito corrosivo do Estado de direito democrático
operado pelas cifras negras. Para evitar soluçöes redutoras e fundamentalistas de
reforço das penas e da perseguição penal, só é configurável uma tutela penal antecipada
das condutas típicas mais adequadas (mesmo que provenientes de terceiros) a provocar
a insolvência.
A par desta via, tem pleno sentido intensificar a tutela penal relativamente a
condutas concretamente perigosas (e intensamente perigosas) para a subsistência
de empresas, que geram graves situaçöes de necessidade económica de pessoas e
empresas dependentes ou conexionadas (ampliando a tutela para além dos quadros do
artigo 229'). As vias da agravação da culpa e da aplicação de sançöes acessórias de
inibição do exercício de actividade empresarial poderão, nestes casos, propiciar uma
separação entre o trigo e o joio. Punindo, restritivamente, as condutas mais nocivas
com maior nacionalidade e eficácia, através de sançöes adequadas e operantes, o direito
penal moldar-se-á aos seus fins publicistas e comunitários, apesar de recorrer menos
à pena de prisão.


I


REPERCUSSÖES DA FALENCIA
NAS RELAÇÖES LABORAIS

PEDRO ROMANO MARTINEZ

(Professor da Faculdade de Direito de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade Católica)



PLANO

1. Falência do trabalhador
11. Falência do empregador

a) Repercussão nos contratos dê trabalho em vigor
h) Cessação dos contratos de trabalho
c) Celebração de novos contratos'de trabalho

111. Tutela dos créditos emergentes do contrato de trabalho em caso de falência do empregador

a) Privilégios creditórios
h) Outras garantias


1. Falência do trabalhador

Em relação à capacidade, o art. 148', n.Os I e 2 do Decreto-Lei no 132/93, de
23 de Abril, que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da
Empresa e de Falência (a seguir designado simplesmente por Código de Falência) e
revogou os arts. 1135' a 1325' do Código de Processo Civil (CPC), não estabelece
qualquer limitação relativamente ao falido, quanto a celebrar contratos de trabalho,
nas vestes de trabalhador ('). A ideia do falido, como um incapaz relativamente ao



(I) De facto, no Código de Falência não foi tida em conta a problemática laboral; nele parece ter-se
ponderado, em especial, o papel dos credores exteriores à empresa.

PEDRO ROMANO MARTlN[--Z





exercício de certas actividades, está posta de parte; há sim uma falta de legitimidade
quanto à prática de certos actos que afectem a massa falida (2). Já no revogado art.
1189', n' 2 do CPC, dizia-se que o falido podia adquirir, pelo seu trabalho, meios de
subsistência. Hoje, o art. 148', n.O, I e 2 do Código de Falência não se refere
expressamente à relação laboral; porém, tendo em conta que o legislador, no n' I do
preceito em causa, estabeleceu uma proibição pela positiva, admite-se que, no demais,
não impende qualquer inibição sobre o falido. Além disso, no art. 150', n' I do Código
de Falência faz~se alusão à eventualidade de o falido não poder angariar pelo seu
trabalho meios de subsistência, mas trata-se de uma impossibilidade que tem tão-só
um fundamento material e não jurídico. Tal hipótese verifica-se quando o falido não
encontra quem lhe "dê trabalho".
Perante a inexistência de limitaçöes no mencionado art. 148' do Código de
Falência e verificando-se, pelo contrário, que nele se estabelece a possibilidade de
manutenção e de constituição de várias situaçöes jurídicas, é de concluir que,
relativamente aos contratos de trabalho em vigor, a declaração de falência não tem
repercussöes e o falido pode celebrar livremente, mesmo após tal declaração, outros
negócios jurídicos na qualidade de trabalhador.
Não parece sequer que o falido, para celebrar um contrato de trabalho, careça
de autorização judicial, como prevê o art. 148', n' 2 Código de Falências, pois tal só
se justifica quando pretenda exercer actividades comerciais por conta própria ou
desempenhar cargos de direcção em sociedades (comerciais ou civis), associaçöes
privadas com actividade económica e empresas públicas ou cooperativas. Não se
considerando que o exercício de cargos de direcção possa integrar uma relação
laboral (3), a autorização a que se faz referência no n' 2 do art. 148' do Código de
Falência não é exigível para o ajuste de um contrato de trabalho.
Não obstante a liberdade de celebrar contratos de trabalho, há uma limitação
quanto ao pagamento da retribuição. Nos termos do disposto no art. 824', n' I, a) CPC,
verifica-se que um terço do salário do falido pode ser penhorado.
Como dispöe o art. 824', n' I, a) CPC são impenhoráveis "Dois terços dos
vencimentos ou salários auferidos pelo executado", já não se admitindo que, em
relação a créditos que provenham de comedorias ou géneros fornecidos para
alimentação do trabalhador e seu agregado familiar, a penhora possa ascender à metade
da retribuição, pois, na nova versão (4)@ foi eliminada a norma constante do n' 4 do
antigo art. 823' CPC).



(2) Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Lisboa, 1984/85, pp. 2 I O ss..
(3) Não é pacífico que o exercício de cargos de direcção não possa consubstanciar uma relação laboral;
a solução não poderá ser dada de modo global, haverá casos em que a qualificação como contrato de trabalho é
inadequada, mas nem sempre será assim. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra,
199 I, p. 523; BRITO CORREIA, Os Administradores das Sociedades Anónimas, Coimbra, 1993, pp. 375 a 39 I;
ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, Vol. I, Lisboa, 1994/95, pp. 249 a 253 e pp. 263 a 267; ABíLlO
NETO, Contrato de Trabalho, 12'ed., Lisboa, 1993, anot. 3.1 ss. ao art. I' LCT; MARIO PINTO/FURTADO MAR-
TINSINUNES DE CARVALHO, Comentário às Leis do Trabalho, Vol. I, Lisboa, 1994, anot. II.6, ao art. I'; ILíDlO
DUARTE RODRIGUES, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas, Lisboa, 1990, pp. 261 ss..
(4) Nos termos do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei n' 329-A/95, de 12 de Dezembro,
que entrará em vigor a 15 de Setembro de 1996 (Lei n' 6196, de 29 de Fevereiro).


REPERCUSSÖES [)A I-ALEN('IA NAS REIAÇOI--','; I,ABORAIS





Com base no princípio constitucional que garante um vencimento mínimo
(art. 590, n' 2, a) CRP) é sustentável que a penhorabilidade da retribuição só se possa
efectivar para além do montante fixado para o salário mínimo (5).


11. Falência do empregador

a) Repercussão nos contratos de trabalho em vigor

A falência por parte do empregador não acarreta nenhuma limitação quanto aos
contratos de trabalho vigentes. Os contratos de trabalho que estiverem em vigor no
momento em que a falência é decretada mantêm-se, como dispöe o art. 172' do Código
de Falência, que se limita a remeter para o regime geral da cessação do contrato de
trabalho, em particular para o art. 56' do Decreto-Lei n' 64-A/89, de 27 de Fevereiro,
a denominada Lei da Cessação do Contrato de Trabalho (LCCT). Deste modo, a
falência do empregador não traz, imediatamente, como consequência a cessação do
contrato de trabalho. Assim sendo, não obstante a declaração judicial da falência do
empregador, o contrato de trabalho mantém-se "devendo o administrador da massa
falida (hoje liquidatário judicial) continuar a satisfazer integralmente as obrigaçöes que
dos referidos contratos resultem pata os trabalhadores )" (art. 56', n' I LCCT).

h) Cessação dos contratos de trabalho

A falência do empregador, indirectamente, pode levar à cessação de contratos
de trabalho.
Situação diversa é aquela que se verifica em relação a empresas em situação
económica difícil. Em tais casos, nos termos dos arts. 3' e 4' do Decreto-Lei n' 353-
-H/77, de 29 de Agosto, podem os contratos de trabalho ser suspensos (art. 5', no I,
c) do mesmo diploma). Para ser declarada uma empresa em situação económica difícil
torna-se necessário que a mesma se encontre dentro dos pressupostos estabelecidos
nos arts. I' e 2' do mencionado Decreto-Lei.
Em determinadas circunstâncias, perante a falência do empregador, poderá o
estabelecimento ser encerrado (art. 56', n' I LCCT). Com o encerramento do esta-
belecimento cessam os contratos de trabalho. É o encerramento da empresa, derivado
da declaração de falência, que constitui uma causa especial de cessação do contrato
de trabalho. No fundo, se a falência implica o encerramento do estabelecimento, com
este surge uma impossibilidade objectiva de manutenção da relação laboral. Esta
situação, de certo modo, é idêntica à que se verifica aquando da cessação de contratos
de trabalho fundada em extinção de postos de trabalho por causas objectivas de ordem




(5) Cfr. MENEZES CORDEIRO, Trabalho, cit., pp. 733 e 734.
Relembre-se, a propósito, que o salário mínimo foi fixado pelo Decreto-Lei n' 20/95, de 28 de Janeiro,
com efeitos a partir de I de Janeiro de 1995, em 52 000$00.


PEDRO ROMANO MARTINF.Z





estrutural, tecnológica ou conjuntural relativas à empresa (arts. 16' ss. LCCT), mas
não está sujeita exactamente ao mesmo regime, designadamente no que respeita a todas
as formalidades previstas nos arts. 17' ss. LCCT. EM termos gerais, tendo em conta
que no art. 24o, n' 3 LCCT se considera ilícita a cessação do contrato de trabalho com
base em falência do empregador em caso de desrespeito do disposto nas várias alíneas
do n' I do art. 24' LCCT, à excepção do requisito previsto na alínea d), é de admitir
um regime equiparado. A este propósito, cabe ainda referir que no art. 24', n' 3 LCCT,
ao aludir-se ao art. 56' do mesmo diploma, não se distingue entre as duas situaçöes
nele previstas, respectivamente nos n.l' I e 2, que são distintos. É diferente a cessação
do contrato de trabalho derivada do encerramento do estabelecimento (n' 1), daquela
que deriva de uma decisão do administrador com base na dispensabilidade do
trabalhador (n' 2).
Prevê a lei também, no art. 56', n' 2 LCCT, que antes do encerramento defini-
tivo do estabelecimento, o liquidatário judicial pode fazer cessar os contratos de
trabalho em relação aos trabalhadores cuja colaboração não seja indispensável à manu-
tenção do funcionamento da empresa. Mas a cessação do contrato de trabalho, nesse
caso, vai passar pelos termos do chamado despedimento colectivo (arts. 16' ss. LCCT).
Por conseguinte, a declaração de falência não constitui causa directa de cessação
do contrato de trabalho. Contudo, dela derivam dois fundamentos de extinção do
vínculo laboral: a impossibilidade de manutenção do contrato por encerramento
definitivo do estabelecimento; a admissibilidade de recurso ao despedimento colectivo.
Na segunda hipótese, o liquidatário judicial tem de demonstrar que a colaboração
daqueles trabalhadores não é indispensável à manutenção do funcionamento da
empresa e deverá seguir os trâmites previstos nos arts. 17' ss. LCCT (6).
Em qualquer dos casos, perante a cessação do contrato de trabalho, ao trabalha-
dor cabe o direito a uma indemnização a determinar nos termos do art. 13', n' 3 LCCT,
por remissão do art. 23o, n' I LCCT, válido também em caso de encerramento de
estabelecimento, como se depreende do disposto no art. 24', n' 3 LCCT. Com respeito
aos contratos de trabalho que cessem nos termos do n' 2 do art. 56' LCCT -por
decisão do administrador -, como vale o "regime estabelecido nos arts. 16' a 25'",
não restam dúvidas quanto à aplicação do art. 23', n' I LCCT. Não obstante a omissão
legal, o regime indemnizatório não parece poder ser diverso nos casos a que se aplique
o n' I do art. 56' LCCT - cessação do contrato por encerramento do estabelecimento.
Poder-se-ia suscitar a questão de aplicar a indemnização prevista no n' 2 do
art. 6' LCCT para a hipótese de caducidade do contrato por extinção da entidade

o

(6) A situação é, sem dúvida, complexa no caso de o empregador ser uma pessoa colectiva, na medida
em que, nos termos do art. 6', n' 3 LCCT, o contrato de trabalho caduca com a "extinção da entidade colectiva
empregadora". No caso de associaçöes, a declaração de insolvência (falência) implica a sua extinção (art. 182',
n' I, e) do Código Civil (CC", mas em relação a sociedades a lei comina a respectiva dissolução (art. 1007', e)
CC e art. 141'. n' I, e) do Código das Sociedades Comerciais). Mesmo que se interpretasse a "extinção" a que
alude o art. 6, n' 3 LCCT em sentido idêntico ao dos citados preceitos do Código Civil e do Código das Sociedades
Comerciais - o que não parece correcto - sempre a situação de falência constituiria excepção ao regime da
caducidade, nos termos previstos no art. 56' LCCT, ao lado de outra excepção constante do próprio art. 6', n' 3
LCCT, a transmissão do estabelecimento.


REPERCUSSÖES DA I,-ALENCIA NAS RELAÇÖES LABORAIS




colectiva empregadora. Para além do facto de a indemnização ser idêntica, à excepção
de no art. 13', no 3 LCCT se estabelecer que não pode ser inferior a três meses, não
parece de aceitar tal ideia pelas razöes referidas na nota 6 e, principalmente, porque
o art. 6', no 2 LCCT não encontraria aplicação com respeito aos empregadores, pessoas
singulares, que fossem declaradas falidas.

c) Celebração de novos contratos de trabalho

O empregador que abriu falência não pode celebrar novos contratos de trabalho.
Não por se estar perante uma incapacidade quanto à sua pessoa, mas porque, em caso
de falência, relativamente ao exercício da profissão, há limitaçöes (art. 148', no I
Código de Falência) e, nessa medida, o empregador está impedido de celebrar outros
contratos de trabalho.
Quem pode contratar novos trabalhadores será o liquidatário judicial (art. 173'
do Código de Falência), que vai administrar a massa falida (7). É um problema de
limitação legal, e não uma falta de capacidade relativamente ao falido.
Note-se, porém, que tal limitação legal só vale na medida em que a celebração
de novos contratos de trabalho esteja abrangido na previsão do art. 148', no I Código
de Falência ou acarrete repercussöes na massa falida. Assim, nada obsta a que o falido
contrate, por exemplo, uma empregada doméstica se o salário desta for satisfeito sem
afectar a massa falida.


111. lbtela dos créditos emergentes do contrato de trabalho em caso de falência
do empregador

a) Privilégios creditórios

Tendo em conta que a retribuição devida, não raras vezes, está relacionada com
o sustento do trabalhador e da sua família, o legislador instituiu certas garantias que
visam a tutela de um efectivo pagamento da mesma. Mas levanta-se o problema de
saber se essa tutela se estende à indemnização devida em caso de cessação do contrato
de trabalho, designadamente quando esta é, indirectamente, derivada da falência do
empregador. A solução não é unitária, depende da previsão legal. Tais garantias consti-
tuem um regime excepcional em que, por força da lei, se atribui uma preferência a
determinados credores em detrimento de outros; assim sendo, quando a lei se refere
só a salários não se pode alargar a garantia a outros créditos.





(7) Como se estabelece no art. 173' Código de Falência, a contratarão terá de ser feita a termo certo ou
incerto. Todavia, nas várias alíneas do n' I do art. 41' LCCT, onde se indicam as situaçöes de admissibilidade do
contrato a termo, não consta a hipótese de contratarão efectuada pelo liquidatário judicial. Admitindo a taxatividade
das situaçöes previstas no art. 41', n' I LCCT, é de aceitar que o art. 173' Código de Falência acrescentou àquele
preceito uma outra causa de celebração do contrato a termo.


PEDRO ROMANO MAWI'INEZ





Em primeiro lugar, estabeleceu-se um princípio de irredutibilidade da retribui-
ção no art. 21', n' I, c) Lei do Contrato de Trabalho (LCT), no sentido de não poder
ser diminuída a remuneração do trabalhador, nem com o seu acordo, salvo raras
excepçöes.
Para garantia do pagamento da retribuição, no art. 25' LCT, por remissão para
o art. 737', n' I, d) CC, estabeleceu-se um privilégio creditório mobiliário geral.
O mesmo privilégio vale também em relação aos créditos provenientes da violação
ou da cessação do contrato de trabalho, porque é esse o sentido do disposto na alínea
d) do n' I do art. 737' CC, que se refere expressamente aos créditos provenientes da
cessação do contrato. Sendo um privilégio mobiliário geral incide sobre todos os bens
móveis que constituem o património do empregador à data da penhora ou acto
equivalente (art. 735', n' 2 CC). O privilégio mobiliário geral concedido ao trabalhador
está graduado em último lugar na ordem dos privilégios mobiliários (art. 747', n' I
CC) e não prevalece contra direitos reais (de gozo, de garantia ou de aquisição) de
terceiros que recaiam sobre coisas abrangidos pelo privilégio (art. 749' CC). Estes dois
últimos aspectos levam a que esta garantia concedida aos trabalhadores seja pouco
eficaz. Porém, com a aprovação do Código dos Processos Especiais de Recuperação
da Empresa e de Falência esta situação alterou-se ligeiramente, na medida em que,
nos termos do respectivo art. 152', com a declaração de falência extinguem-se os
privilégios creditórios do Estado das autarquias locais e das instituiçöes da segurança
social. Assim sendo, o privilégio creditório atribuído ao trabalhador adquire uma maior
eficácia.
Mas tendo em conta que este privilégio creditório concedido ao trabalhador nem
sempre constitui uma garantia eficaz e também pelo facto de, na primeira metade dos
anos oitenta, se terem generalizado os salários em atraso, o legislador decidiu intervir
e publicar a Lei n' 17/86, de 14 de Junho, a chamada Lei dos Salários em Atraso
(LSA), alterada em 1989 e 1991.
Esta lei teve uma occasio legis muito específica: a proliferação de salários em
atraso e nela denota-se que a técnica jurídica usada, bem como as soluçöes postas em
prática, nem sempre foram as mais felizes.
No art. 12' LSA, como garantia patrimonial dos trabalhadores constituem-se
privilégios creditórios. No art. 12', n' I, a) LSA volta a mencionar-se o privilégio
mobiliário geral, que já existia nos termos do Código Civil, sem a restrição temporal
constante deste diploma, mas no n' 3, a) altera-se a ordem de preferência estabelecido
no Direito Civil.
O problema está em que, contrariamente ao disposto no art. 735', n' 3 CC, onde
se lê: "Os privilégios imobiliários são sempre especiais", no art. 12', n' I, b) LSA
admitiu-se o constituição de um privilégio imobiliário geral.
Relativamente ao privilégio imobiliário geral, no art. 12', n' 3, h) LSA, vem
dizer-se que tal garantia prevalece sobre os privilégios estabelecidos no art. 748o CC,
ou seja sobre os privilégios imobiliários especiais.
Há logo uma incongruência em uma figura geral prevalecer sobre uma espe-
cial; até porque, tratando-se de um privilégio geral, que não incide sobre coisas certas
e determinadas, não podendo, por conseguinte, ser qualificado como um direito real,
é de duvidar que um direito obrigacional possa prevalecer sobre situaçöes jurídicas


REPERCUSSÖES DA FALENCIA NAS RL'L4ÇöES LABORAI.@




reais constituídas anteriormente. Mas, além disso, tal solução acarreta como conse-
quência que, como os privilégios imobiliários especiais prevalecem sobre os direitos
de terceiros, ainda que anteriores (art. 751' CC), por exemplo, uma hipoteca, se o
privilégio imobiliário geral prevalece sobre o especial, também prevalece sobre os
direitos de terceiros anteriores. Esta tomada de posição é nefasta sob dois prismas.
Primeiro, implica uma limitação de direitos de terceiro, em particular direitos reais,
assimilável a uma expropriação (8). Segundo, a garantia concedida aos trabalhadores
acaba por ser contraproducente, pois como os terceiros não são protegidos, em espe-
cial os potenciais financiadores do empregador, não estão dispostos a correr riscos e,
em casos limites, não permitem a viabilização económica de empresas, com o
consequente despedimento colectivo.
É discutível que os privilégios creditórios estabelecidos na Lei dos Salários em
Atraso sejam válidos em relação a outros créditos emergentes do contrato de trabalho,
que não a retribuição, designadamente a indemnização devida em caso de cessação
do contrato de trabalho. No art. 12', n' I LSA o legislador faz alusão aos créditos
emergentes do contrato de trabalho, o que, interpretado em consonância com o disposto
no art. 737', n' I, d) CC, levaria a admitir que tais privilégios creditórios garantem o
pagamento de quaisquer obrigaçöes emergentes para o trabalhador do contrato de
trabalho, entre as quais as indemnizaçöes devidas pela cessação do contrato. Porém,
no art. 1' LSA, sob a epígrafe "objecto", estabelece-se que a presente lei rege as ques-
töes relativas ao não cumprimento pontual da retribuição, limitando o âmbito de
aplicação do diploma às situaçöes de não pagamento do salário. Ponderados estes dois
aspectos, propende-se, com alguma dúvida, para admitir a aplicação alargada dos privi-
légios creditórios estabelecidos no art. 12' LSA, com base em duas razöes. Primeiro,
relativamente ao privilégio mobiliário geral não teria sentido que o legislador preten-
desse conceder maiores garantias ao trabalhador, alterando a ordem de preferência do
Código Civil, e, ao mesmo tempo, restringisse o seu campo de aplicação; o espírito
do legislador, na Lei dos Salários em Atraso, foi o de alargar a garantia atribuída ao
trabalhador e não de a restringir. Segundo, no art. 12' LSA, diferentemente de outros
preceitos do mesmo diploma, faz-se referência a créditos emergentes do contrato de
trabalho e não só a salários, levando a crer que, no respeitante aos privilégios
creditórios, se pretendeu alargar o âmbito de aplicação da lei a todos os créditos,
nomeadamente os derivados da cessação do contrato de trabalho.

h) Outras garantias

Para garantia dos trabalhadores, a referida lei impöe igualmente a inibição da
prática de certos actos à empresa com retribuiçöes em dívida (art. 13' LSA), que, sendo
praticados, constituem actos nulos (art. 294' CC) e prescreve a anulabilidade de actos




(8) Idêntico raciocínio encontra-se em MENEZES CORDEIRO, "0 Novíssimo Regime do Contrato
Promessa", Estudos de Direito Civil, Vol. I, Coimbra, 1987, pp. 86 ss., a propósito do estabelecimento de um direito
de retenção a favor dos promitentes compradores, que limita os direitos dos credores hipotecários.


wwl






PEDRO ROMANO MARTINEZ





de disposição do património da empresa, a título gratuito e oneroso (art. 140 LSA).
Tais garantias só encontram aplicação nas situaçöes de atraso no pagamento de salários,
pois é esse o sentido, não só do objecto da Lei dos Salários em Atraso (art. I'), como
das previsöes dos arts. 13' e 14' LSA.
A lei, ao vedar às entidades patronais com retribuiçöes em dívida a prática de
certos actos, como a distribuição de lucros ou dividendos ou o pagamento de certos
créditos (art. 13', n' I, a) e c) LSA), prescreve a nulidade de tais actos, não permitindo,
em princípio, a convalidarão dos mesmos, o que talvez não tenha sentido.
Do art. 14' LSA parece poder depreender-se que o legislador olvidou a figura
da impugnarão pauliana (arts. 610' ss. CC). Contrariamente ao disposto no art. 612'
CC, aqui a anulabilidade pode ser pedida mesmo que o adquirente a título oneroso
esteja de boa fé, o que parece um exagero. Tal invalidada implica a destruição do
negócio jurídico, com a consequente reversão do bem e, no caso de impugnarão
pauliana, o bem alienado pode ser executado no património do terceiro adquirente (art.
615' CC), que é uma solução mais vantajosa para todos os intervenientes.
Por outro lado, não se justifica estabelecer a possibilidade de invocar a
anulabilidade por parte de quem já dispöe de privilégios creditórios mobiliário e
imobiliário gerais. Há, pois, uma injustificável sobreposição de garantias.
Tal como em relação aos privilégios creditórios, esta garantia concedida aos
trabalhadores é contraproducente. Compreende~se que os actos de disposição a título
gratuito sejam anuláveis (art. 14', n' l LSA), ou impugnáveis como dispöe o art. 612'
CC; o mesmo não se pode dizer dos actos de disposição a título oneroso realizados
com terceiros de boa fé (art. 14', n' 2 LSA). Tal solução leva a que ninguém esteja
disposto a adquirir bens a uma empresa com salários em atraso tendo em vista
viabilizá-la economicamente, pois corre o risco de ver o negócio jurídico anulado.
Em suma, a super protecção do trabalhador facilita a falência do empregador,
com a consequente cessação do contrato de trabalho.
Para terminar o ponto referente às outras garantias dos trabalhadores em caso
de falência do empregador, resta fazer referência à institucionalização do fundo de
garantia salarial relativamente a retribuiçöes não pagas pelo empregador falido, cuja
declaração de falência venha a acarretar a cessação do contrato de trabalho (art. 10
do Decreto-Lei n' 50/85, de 27 de Fevereiro). Em tal caso, o pagamento da retribuição
passa a ser assegurado pelo Gabinete de Gestão do Fundo de Desemprego (art. 3' do
mesmo diploma). Esta garantia vale tão-só com respeito ao salário e não a outros
créditos emergentes do contrato de trabalho, como a indemnização devida em caso de
cessação da relação laboral, pois não só é essa a previsão expressa na lei, como a sua
finalidade, que será a de assegurar o rendimento mensal aos trabalhadores despedidos
de uma empresa falida.


DOUTRINA


EL

do objecto da Lei dos Salários em Atraso (art. I'), como
das previsöes dos arts. 13' e 14' LSA.
A lei, ao vedar às entidadÕ?
N&ë¤ÃFÞï^=ÐÒ¯&ï¤ÇÕ¤Ç-Ó&ë¤ v
v
v= v
PV
Þ¸â-
^_MMïÕ]M-ÉîÏÉEUïý-ÃÏâýWVïvÃÿ �j�j:šˆv ƒÃŽF&‰&‰Tǘ ��&&lsqauo;D&
u ¸ýÿ鐎FŒÀ&Ã&Ç ÿŽÀ&Ã&ÇG��ŽÀ&Ã&lsqauo;N
&‰OŽÀ&Ã&lsqauo;N
&‰OŽÀ&Ã+É&‰O
&‰OŽÀ&Ã&‰O
&‰O
ŽÀ&Ã&‰O&‰O&lsqauo;NŽÀ&Ã&‰O&lsqauo;^
ŽÀ&Ã<&‰]ŽÀ&Ã<&‰MŽÀ&Ã<&‰]ŽÀ&Ã+É&‰O-&‰OŽÀ&Ã&lsqauo;N&‰O ŽÀ&Ã&ÇG"ÿŽÀ&Ã&ÇG$ÿÿŽÀ&Ã&ÇG&��ŽÀ&Ã&ÇG(ÿÿŽÀ&Ã&ÇG*��ŽÀ&Ã&ÇG,ÿŽÀ&Ã+É&‰O0&‰O.ŽÀ&Ã&lsqauo;N&‰O2ŽÀ&Ã+É&‰O6&‰O4ŽÀ&Ã&lsqauo;F&‰G8+À^_MM&lsqauo;å]MË-XEU&lsqauo;ì-ŽØƒì
WVÃ~ÇFö��&&lsqauo;E0&
E.tÇFü��&ÿu&ÿušÌ­ïƒÃ
À~A+öŽF&Ã].&&lsqauo;�&&lsqauo;P‰Vô
Ðt
ÿvôPš‚u ƒÃâãÃF& u& u¶Ü¦¡´¶â- F³;F³-ÃF& u0& u.îãÜéu §â-Ãã++&ëE0&ëE.ÚÅ�&&lsqauo;E6&
E4ué�&&lsqauo;uÇFü��&ÿu&ÿušÌ­ïƒÃ
À~C‰vø&lsqauo;vü&lsqauo;Æ(tm)÷~øÑàŽF&Ã]4Ø&ÿ7šÙþïƒÃ
Àt‰FöŽF&ÿu&ÿušÌ­ïƒÃvø;ÆÃŽF&ÿu6&ÿu4ŒÆš‚u ƒÃŽÆ+À&‰E6&‰E4ŽF&&lsqauo;E&
Et-&ÿu&ÿuŒÆš‚u ƒÃŽÆ+À&‰E&‰E&lsqauo;Fö^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒì
WV&lsqauo;vŽF&&lsqauo;D
&
Dt&ÿt
&ÿtš‚u ƒÃŽF&&lsqauo;D
&
D
t&ÿt
&ÿt
š‚u ƒÃŽF&&lsqauo;D-&
Dt&ÿt-&ÿtš‚u ƒÃÿvV
è)þƒÃ&lsqauo;øŽF&ƒ|$ÿt+&ÿt$‰vúŒFüšðÂïƒÃÃ^ú&ÿw&šDÃïƒÃRPš´ÅïƒÃŽF&ƒ|(ÿt+&ÿt(‰vöŒFøšðÂïƒÃÃ^ö&ÿw*š3/4ÌïƒÃRPšêÍïƒÃ&lsqauo;FPVš‚u ƒÃ&lsqauo;Ç^_MM&lsqauo;å]M-É-XÉEUïý-ÃÏâý6WVïvïF
ãt0ÃF&ïD&
D¶t#&-\¶&ïG&
Gt§ÃF&ÃD&ïG&ïWëFÞëVÛïF
ãt0ÃF&ïD&
D¶t#&-\¶&ïG
&
Gt§ÃF&ÃD&ïG&ïW
ëFõëVµï~
;~
|Úï¯ÐÒë^Í^ÞÃFÛë^ÏîF+&÷GtÚ¦ë~=ÃF&ïD
&ïT
-^õ^Íë^ÊîFÈ&ïÇþ¤ÐÒÏÃ-&ï Çõ?= ?tÚÃÿ �hOh(r)!&lsqauo;Æ&lsqauo;V�RPÃ^Ø&ŠGÀè*ãPFìPšH¬ïƒÃ
‰Fú
Àtér£˜ ŽF&&lsqauo;D
&&lsqauo;T
ŒÁÃ^Ò&&lsqauo;€çÑãØŽÂ&Šg%�À
Fì&‰ ŽÁ&ƒ|$ÿu+&lsqauo;Æ&lsqauo;V&lsqauo;È&lsqauo;Ú&�RP‰NΉ^К4ÅïƒÃÃ^Î&‰G$=ÿÿuéFÜPWÿv
ÿvV
è¿ñƒÃ
‰Fú
ÀtéÁÃ^Ø&Š_ãï�ÀëŽÌ9&&lsqauo;‡Ê!‰FüŠàÀã*À‰Fô‰Fú&lsqauo;N‰~ò&lsqauo;øŽF&lsqauo;Fì&9D,éÎj(tm)ŠòŠÔŠà*ÀÑàÑÒÑàÑÒRP&ÿt$š,ÃïƒÃ=ÿÿu ;ÐuÚÃ�ŽF&lsqauo;FüFì&9D,}'&&lsqauo;D,&lsqauo;ÈŠà*fìÀã*À&lsqauo;ø&lsqauo;ÁŠvü*ñvìÀæ*Ò‰Vú‰FìWÿvÞÿvÜ&ÿt$š¬ÃïƒÃ;ÇtTŽÎ9&>T"ÜüuGŽF&|,ÿu<&lsqauo;Fì&‰D,D*P‰vÊŒFÌšœÍïƒÃÃ^Ê&‰G(=ÿÿté6ÿŽÎ9&¡T"ŽÊ9&£Féò�ŽF&lsqauo;Fì&9D,Kj&+D,(tm)ŠòŠÔŠà*ÀÑàÑÒÑàÑÒRP&ÿt(š,ÃïƒÃ=ÿÿu;Ðt³ÿvúÿvÞÿvÜŽF&ÿt(š¬ÃïƒÃ;Fúu-ŽFŒÀ&Ã|ŒÁÃ^Ò&&lsqauo;€çÑãŽÁ&ÇÿÃ^Ø&&lsqauo;&lsqauo;ˊ߁ãï�ÀëŽÌ9&&lsqauo;-Ê!‰VüÿvòŠÍÀé*íQŽÀ&ÿt&ÿtšO³ïƒÃ‰Fú
Àt&lsqauo;Fúë8&lsqauo;~ò&lsqauo;^ü뱎FÚ&&lsqauo;€çïÓëÁëŽÌ9&&lsqauo;ŸÊ!û;~
}
&lsqauo;véýǘ ��ëÅ+À^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWVƒ>˜ �un&lsqauo;v&lsqauo;F
ÆtdŽF&&lsqauo;D&
DtW&ÿt&ÿt‰vúŒFüšÌ­ïƒÃ@ÁàPjÿv
ÿvüÿvú
è üƒÃ
&lsqauo;ø
ÿu& vV
Þ£¨â-ï°
u§ÃF&ïD&ëD&ïD&ëD++^_MMïÕ]M-îÏÉEUïý-ÃÏâýW++ïN
-~3/4¬_MMïÕ]M-ÉîÏÉEUïý-ÃÏâýÃð9&í&&ï(ëF·ëV³
ðt¶ v
v v ^·ÃÊ9&úFMMïÕ]M-îÏÉEUïý-ÃÏâý v
v v v
v
ÜN ¸¶MMïÕ]M-ÉîÏÉEUïý-ÃÏâýVï^
ï3/4-µïã· Ö;V |;Fw-Òïç³ Ö;V|
;Fr++ÙÉ(c)³^MMïÕ]M-îÏÉEUïý-ÃÏâýWV-^&â?�}¸çÿéÃ^
&ƒ?�} ¸æÿéÃ^&ƒ?�} ¸üéø�Ã^&ƒ?�} ¸üéè�&lsqauo;Vƒú }éÙ�ƒú~~éÑ�"ŽÖ9‰^òŒFô&ƒ?�uj�š`IïƒÃ&lsqauo;ð
öté¶�&lsqauo;~ŽF&ƒ=�té-�Ã^ò&ƒ?|té‰�ŽØ9&ƒ>
}}"ŽÚ9‰^îŒFð&&lsqauo;G&
tXFúPj�j%&lsqauo;^î&ÿw&ÿ7šFhïƒÃ
&lsqauo;ð
öuVFöPj�jÃ^î&ÿw& 7ÜFh´¶â-
ï­
÷u5 v³ v·Vh¦Üh¸¶¸n÷ÙÉÉ(c)�(Ã^&+ ŽF&‰+Àë
¸åÿŽÔ9&£F^_MM&lsqauo;å]Mː-XEU&lsqauo;ì-ŽØƒìÃ^&ƒ?�}¸çÿë@Ã^
&ƒ?�}¸æÿë1Ã^&ƒ?�}¸üë#Ã^&ƒ?�}¸üë&lsqauo;Vƒú |
ƒú~+Àë
¸åÿŽÔ9&£FMM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWV+À‰Fü‰Fú+ÿ‰~øš-;ï&lsqauo;ð
ö|yƒþ u3/40�ƒþ0|ƒþ9~ƒþA|ƒþF~
ƒþa|8ƒþf3jFúPšÌ=÷ƒþa|D(c)ë
ƒþA|DÉëDÐ(tm)FúVüGƒÿ|žë
¸ÒÿŽÜ9&£Fë&lsqauo;Fú&lsqauo;VüÃ^&‰ &‰W+À^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒì$WV&lsqauo;v&lsqauo;F
Æu鎎F&€|3u
&€|�uéz&lsqauo;F
&lsqauo;V
&9T w
r&9D-s¸Åÿéc&lsqauo;~
ÿu ¸ÃÿéV&&lsqauo;D &
D-téCVš
UïƒÃŽF&€|u&ÆDÿvVšL¤ïƒÃŽF&ŠD*ã
ÀtHuÚ �Huéÿ�HHué*é&ŠD1*ã&lsqauo;ø
ÿu¿�&ƒ|
t$&lsqauo;Ç(tm)RPRPš÷ÑàÑÒÑàÑÒÑàÑÒRP&&lsqauo;D
&÷d
ë!&lsqauo;Ç(tm)RPRPš÷ÑàÑÒÑàÑÒÑàÑÒRP¸À3&÷d
RPšh÷‰Fú‰Vü&ŠD*ã-1�t HtHtë$jFúPšzT÷ëj�jëj�hÈ�FúPšXT÷ƒ~ü�u ~ú@œv
ÇFúèÇFü��&lsqauo;Fú&lsqauo;VüŽF&‰D&‰TRPŒÇšˆv ƒÃŽÇ&‰D&‰T&lsqauo;Â&
Dté9¸ýÿé¸Ãÿé
&ÇDþÿŽF&ŠD*ã
Àué<HtáHuéÙHHuéFHué¸ËÿéÙ&ŠD1*ã&lsqauo;ø
ÿu¿�&ƒ|
t$&lsqauo;Ç(tm)RPRPš÷ÑàÑÒÑàÑÒÑàÑÒRP&&lsqauo;D
&÷d
ë!&lsqauo;Ç(tm)RPRPš÷ÑàÑÒÑàÑÒÑàÑÒRP¸À3&÷d
RPšh÷‰Fú‰Vü&ŠD*ã-1�t HtHtë$jFúPšzT÷ëj�jëj�hÈ�FúPšXT÷ŽF+À&‰D &‰D-&lsqauo;Fú&lsqauo;VüÿƒÒ�ŠÃŠâŠÖ*öÑêÑØÑêÐÏ&ëD¶ÖÐÓÐÊRPîÃÜêv §â-ÃÃ&ëD&ëTï-&
DuÚð¦ÃF&ÃD��&lsqauo;~éÓþWÿvÿv
ÿv
ÿv
&lsqauo;FPVš1/4ðïƒÃ
é&lsqauo;Ç+ÒF
V
‰Fè‰Vê&9TwDr&9Ds<èƒÒ�&‰D&‰TRP&ÿt&ÿt‰vãŒFæšðu ƒÃÃ^ã&‰G&‰W&lsqauo;Â&
GuéHþWŽF&&lsqauo;D&&lsqauo;TF
RPÿvÿv
‰vàŒFâš"ïƒÃ
&lsqauo;Fè&lsqauo;VêÃ^à&9W wr&9G-s
ŽF&‰D-&‰T &lsqauo;ÇéVš¨ïƒÃj�ÿv
ÿv
ŽF&ÿtš,ÃïƒÃ=ÿÿu;ÐtWÿvÿv
ŽF&ÿtš¬ÃïƒÃ;Çt
Žà9&¡T"éÐŽF&lsqauo;Ç+ÒF
V
‰Fè‰Vê&9T w'rˆ&9D-sŠéÿ&lsqauo;F
&lsqauo;V
FƒÒ�‰Fè‰VêÿƒÒ�ŠÃŠâŠÖ*öÑêÑØÑêÑØ&lsqauo;ø&;|~:(tm)ÑàÑÒRP&ÿt&ÿt‰vÜŒFÞšðu ƒÃÃ^Ü&‰G&‰W&lsqauo;Â&
Gué%ýŽF&‰|&lsqauo;F‰Fü&lsqauo;F
&lsqauo;V
ŠÃŠâŠÖ*öÑêÑØÑêÑØ&lsqauo;ø&lsqauo;F
€õëF¶-�÷؉Føš
¤ïƒ~�uéÆ�&lsqauo;ÇÑà‰Fú&lsqauo;N‰~öŽF&lsqauo;Fö&9D,&&lsqauo;D&&lsqauo;TFúRPFìPš
£ïƒÃ&lsqauo;ø
ÿté¬�ŽF&ÿDë;&Ã\^ú&ÿ7FìPšP£ïƒÃ&lsqauo;ø
ÿtéƒ�ŽF&Ã\^ú&ÿ7šŒ£ïƒÃ&lsqauo;ø
ÿuh&lsqauo;Fø9Füsi&lsqauo;~üWÿvÿv
&lsqauo;Fì&lsqauo;VîFôRPš`ýïƒÃ
~
)~üÇFô��¿�ƒFúÿFö‰~øƒ~ü�téGÿ&lsqauo;~&lsqauo;Fè&lsqauo;VêŽF&9T wr&9D-s&‰D-&‰T š,¤ïéðý&lsqauo;øë-¸ÆÿŽÞ9&£F^_MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìV¡N!(tm)�ƒÒ�RPšˆv ƒÃ&lsqauo;ð‰Vü
Ðt¡N!�PÿvüVš°'ïƒÃ&lsqauo;Æ&lsqauo;Vü^MM&lsqauo;å]MË-XEU&lsqauo;ì-ŽØƒì&lsqauo;N!&lsqauo;F£N!&lsqauo;ÂMM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìÇP!��MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØì-�WV&lsqauo;F
‰Fú
Àuéß&lsqauo;v¡P!=�vé­Ñà".ÿ§dœvœŒœâœ"Ÿ ( @ r ÇâDæDŒ-ãDÃP!�‰vé|ŽF&€<
uFŒÀÿN
ÇP!��ëã&€<,u;&ŠÃ-âD&ˆ F&lsqauo;FÿâDÿN
ÇP!�뿐ŽF&ŠÃ-âD&ˆ F&lsqauo;FÿâDÿN
뤎F&€<
uÝ&ŠÃ-âD&ˆ F&lsqauo;FÿN
ÿâDÃ-âD&Æ �ÇP!�éuÿÇÞD�� æD˜-0�t
HtHtHtë-ÇÞDëÇÞDë
ÇÞD ëÇÞD¡ÞD(tm)RPj�j" Žâ9‰žrÿŒ†tÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ

Àt\ÇÞDÿÿ"\Žã9‰žnÿŒ†pÿ&&lsqauo;G&
uék¸æD&lsqauo;Ð&lsqauo;ø- ¹ÿÿ3Àò(r)÷ÑIQ-RÞnÿ&ÿƒÃ‰Fü
ÀuéA&lsqauo;FüŽæ9&£T"¸ÿÿé]€>ÿD
t€>ÿD,tj-hýDëj-hüDš2ïƒÃ&lsqauo;øj-hçDš2ïƒÃ(tm)÷ÿ(tm)RPj�jÞrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
&lsqauo;ð
ötéôj-hìDš2ïƒÃ(tm)÷ÿ(tm)RPj�jÞrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
&lsqauo;ð
ötéÀj-hñDš2ïƒÃ(tm)÷ÿ(tm)RPj�jÞrÿ&ÿw& 7ÜÔ+´¶â-
ï­
÷tÚîj-h÷DÜ2´¶â-Ö¸ ÖRPj�jÞrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
&lsqauo;ð
ötéX&lsqauo;Ç(tm)RPVh°šh÷‰†jÿ‰-lÿRPj�j Þrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
&lsqauo;ð
öté ÿ¶lÿÿ¶jÿVjÞrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
&lsqauo;ð
ötéù96R!tG†vÿPj�jÞrÿ&ÿw&ÿ7š1/4ïƒÃ
†vÿP
èæƒÃ†vÿPj�jÞrÿ&ÿw&ÿ7šâ1/4ïƒÃ
Þrÿ&ÿw&ÿ7šˆ1/2ïƒÃ&lsqauo;ø
ÿté"éoÿN
ŽF&lsqauo;ÞF&Š ¢æD<
u]ƒ>ÞDÿu4"\Žã9‰žnÿŒ†pÿ&&lsqauo;G&
ué­üj-hæD&ÿƒÃ‰Fü
Àué-üéâýŽâ9&ÿ6¢&ÿ6 š-3/4ïƒÃ&lsqauo;ø
ÿtéérü‰vÇP!�éø�ŽF&lsqauo;ÞF&Š ¢çDÿN
ÇP!�é^üŽF&lsqauo;ÞF&Š ¢èDÿN
ÇP! �éFüŽF&lsqauo;ÞF&Š ¢éDÿN
ÇP!�¸æD£âDŒ-ãDj-Pš2ïƒÃ£àDéü&lsqauo;^
&lsqauo;ó9-àD}&lsqauo;6àDâ>ÌD uJ+\Ãõ9ë×n îåp &ïG&
tYj-hµD& â-ëF³
+tÚ
²V v v-×n & â-ëF³
+t+Ú3/4³ÉV v vÃÔ9& 6ó& 6áÜ+¢´¶â-
ëF³
+tÚ+³)v
)6ÓDuÃP!�ƒ~
�té<û됎æ9&‰>T"é¬üŽæ9&‰6T"é ü&lsqauo;Fú^_MM&lsqauo;å]Mː-XEU&lsqauo;ì-ŽØƒì"WV&lsqauo;v&lsqauo;F&lsqauo;Ð&lsqauo;þŽÀ¹ÿÿ3Àò(r)÷ÑI&lsqauo;ÞÙKŒFø&€?.u&lsqauo;óë
&lsqauo;óN&€<.uùN&€<0|&€<9~&€<ZuR&€|ÿ0|K&€|ÿ9DÃ~¹ÿÿ3Àò(r)÷ÑI&lsqauo;Ù^&lsqauo;óŒFø&€.t&Š&ˆDN&€|.uñŽFø&ÆDA&€<Zu*ŽFø&ÆAë!&€<Zu&€|ÿA|&€|ÿZ
&ÆA&þDÿë&þÃ~¹ÿÿ3Àò(r)÷ÑINŒÀI‰Nâ‰Fã;Nv-&lsqauo;ù&lsqauo;NŽFã&€=\t &€=:t &lsqauo;ÁO;Çrí‰~â&lsqauo;vâŽFã&€<\t&€<:uFÃ~¹ÿÿ3Àò(r)÷ÑINŒÀI‰Fè;Nv;&lsqauo;Ù&lsqauo;N&lsqauo;þŽFè&€?.t K&lsqauo;Ã&lsqauo;Ñ;-w±ï+ï¤+-=�~q&lsqauo;Fè&lsqauo;ˉFì‰Nê&lsqauo;Ç;Èw
&lsqauo;ñë-&lsqauo;Ù&lsqauo;þëØ&lsqauo;ñŽFì&€<0|&€<9~N;Ærï&lsqauo;Æ&lsqauo;Ï;ÁvŽFì&€<0| &€<9 &lsqauo;ÇN;Ærí‰vêÃ^ê&€?�t&ŠD&ˆD&lsqauo;ð&lsqauo;Þ&€?�uì^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWV&lsqauo;~
&lsqauo;vÿv
WÿvVš
èïƒÃ
Àt&lsqauo;F
PW&lsqauo;FPVšXÐ÷ƒÃ^_MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìV&lsqauo;v

ö|VÿvÿvšúÏ÷ë VÿvÿvšèèïƒÃ^MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìV&lsqauo;v
ö| Vš,Ð÷ë VšrêïƒÃ^MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìš¨êïš2Ñ÷MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìV&lsqauo;v
ö| VšÑ÷ë Vš¬ëïƒÃ^MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìš0ìïš"Ñ÷MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìš(r)ìïšœÑ÷MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìŽè9&¡*&&lsqauo;,‰Fú‰Vü
Ðt
ÿvÿvÿ^úƒÃë+ÀMMïÕ]M-îÏÉEUïý-ÃÏâýHïFÖëF¦ëV+ÃF¥ ÃF+ ÃÛ9&â>�u)Žì9&ÇF��FºPj
šÒ'ïƒÃŽì9&¡F‰F¸
Àu+ÀMM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìV¡V!
T!uUj�j
šˆv ƒÃ£T!‰V!&lsqauo;Â
T!u
¸ýÿŽî9&£Féœ�Ã-T!+À&‰G&‰ &lsqauo;F&lsqauo;VÃ-T!&‰G&‰W&lsqauo;F
Ã-T!&‰GënÃ6T!ŒÀ
Æt&lsqauo;^
&9\t &Ã4ŒÀ
ÆuñŒÀ
Æu8j�j
šˆv ƒÃ&lsqauo;ð‰Vü
Ðt¡T!&lsqauo;V!ŽFü&‰&‰T‰6T!ŒV!&lsqauo;F
&‰D됌Fü&lsqauo;F&lsqauo;VŽFü&‰D&‰T+À^MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìÃ-T!ŒÀ
Ãt&lsqauo;N&9Ot &ÃŒÀ
ÃuñŒÀ
Ãt
&&lsqauo;G&&lsqauo;Wë+À(tm)MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒì
WV¡T!&lsqauo;V!&lsqauo;؉Vø&lsqauo;È&lsqauo;ú&lsqauo;ð‰Vü
ùt&lsqauo;NŽÂ&9Lt
&lsqauo;ÞŒFø&Ã4ŒÀ
ÆuìŒFü&lsqauo;Fü
ÆtL&lsqauo;Fü;6T!u;V!uÃ-T!&&lsqauo; &&lsqauo;W£T!‰V!ÙÃ+&ï&ïTÃF°&ë &ëWÃF³++&ëD&ëVÜéu §â-++^_MMïÕ]M-ÉîÏÉEUïý-ÃÏâýW++--T!î+
+tï~ïF&9u &9GuA&-î+
+uþï-_MMïÕ]M-ÉîÏÉEUïý-ÃÏâýWVíT!ïV!ï°ëV¶
ðuÚã�ŽFô&&lsqauo;E&
Eué...�&&lsqauo;&&lsqauo;U&lsqauo;؉Vü
Ðt7ŽFô&&lsqauo;E&&lsqauo;UŽFü&9Gu&9Wu
+À&‰G&‰GŽFü&&lsqauo; &&lsqauo;W&lsqauo;؉Vü
ÐuÉŽFôŒÀ&Ã]&&lsqauo;&&lsqauo;W&lsqauo;ñ‰VðS‰~ê‰FìšZgïƒÃÿvðVšãdïƒÃÃ^ê+À&‰G&‰GŽFô&&lsqauo;&&lsqauo;U&lsqauo;ð‰Vü+À&‰E&‰Wš‚u ƒÃ&lsqauo;Fü&lsqauo;þ‰Fô
Æté:ÿ+À£V!£T!^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒì&lsqauo;F÷ØŽð9&£FMM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWVÃ~&ƒ}�|é$&ƒ}þu;&lsqauo;njŒÃ�RP&lsqauo;÷‰vø‰^úš4ÅïƒÃÃ^ø&‰G=ÿÿuŽò9&¡T"Žô9&£Féå�ÇFü��Žö9&&lsqauo;>ý¦�"ò¸WŽÀ&9?s&&lsqauo;?‰NüAƒÃû
rë&lsqauo;~&lsqauo;vü&lsqauo;ÞÑãÞÑã‰^òÃîŽö9‰^ôŒFö&&lsqauo;G&
t/&Ã&ƒ�|Ã^ô&Ã&ÿwšðÂïƒÃ
ÀtésÿÃ^ô&Ã&ÇGÿÿŽF&ƒ}�}-j�&ÿu‰~îŒFðšDÃïƒÃRPš'ÂïƒÃÃ^î&‰G=ÿÿué0ÿ¡X!ÿX!Žö9&lsqauo;^ò&‰‡ì&lsqauo;FÃ^ô&‰?&‰GŽÀ&‰u+À^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìƒ>Z!�u4"ì¸WŽÀ&Ç ��+À&‰G&‰GƒÃû
rèhïh²(c)šPR÷ƒÃÇZ!�MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWV3/4îŽö9&&lsqauo;&&lsqauo;T‰Fø‰Vú
ÐtÃ^ø&ƒ�|&&lsqauo;&ÇGþÿWšðÂïƒÃƒÆþ
rÅšØÅï^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìÃ^&&lsqauo; MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒì&lsqauo;F@@ÑàMM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìW&lsqauo;~
&lsqauo;^ŽF&‰?&ÇG��¸ÿ�&lsqauo;ÏÑáóª+À_MM&lsqauo;å]MːŒØÉEUïý-ÃÏâýWVï^ïN
ÃF&+¤(c) �&&lsqauo;7ÑæÑáxóª &lsqauo;F
&‰ +À^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWV&lsqauo;~&lsqauo;^
ŽF&&lsqauo;E‰FøŽø93/4Ò!&lsqauo;ÃÑà+ð&&lsqauo;‰Fð&lsqauo;^øŽFÇFö��ƒ~ð�~H&lsqauo;v
Áæ&lsqauo;"š!&lsqauo;"œ!‰Fò‰Vô&lsqauo;óÑæ÷&&lsqauo;D‰Fî‰^ø&lsqauo;^ò&lsqauo;~öŽFô&lsqauo;Fî&# &; t!CCŒÀG9~ðë&lsqauo;^øÃ~C&9u+Û&9]uŸëy‰~ö&lsqauo;^ø&lsqauo;~ŽF&‰]&lsqauo;óÑæ&lsqauo;Í]&lsqauo;Ë&lsqauo;^
ÁãŒÂßš!‰^êŒFìŽÂ&lsqauo;Ù&&lsqauo;&lsqauo;Þ&lsqauo;vöÑæ‰^èÃ^ê‰Fæ&&lsqauo;�÷Ð#È&lsqauo;^èŽÂ&‰IŽø9&lsqauo;^
Ñã&&lsqauo;‡Ê!÷nö&lsqauo;NæÁáÁÃ^
&‰ +À됸ýÿ^_MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWV&lsqauo;~&lsqauo;^
&lsqauo;ù(tm)÷ù&lsqauo;ÂŽø9&lsqauo;v
Ñæ(tm)&÷1/4Ê!&lsqauo;Ó&lsqauo;Ø&lsqauo;Â(tm)3Â+ÂÁø3Â+ÂÑã&lsqauo;v
Áæôš!&&lsqauo;&lsqauo;ØÑãŽF&
Q&‰Q+À^_MM&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØƒìWVÃv
&&lsqauo;D&
u^&&lsqauo;|&&lsqauo;D;ø~&lsqauo;øWÃ^&ÿƒÃ(tm)RPšˆv §â-ÃF
&ë&ëTï-&
u (c)² Ú$Éë~¶ï¤QÃF
& t& 4-^& _â-ï°
tÚ�ÿvÿvÿv
ŽF
&ÿt&ÿ4Ã^&ÿ_ƒÃ
‰Fü=ýÿtéØ�ŽF
&ÿt&ÿ4ŒÀÃ^&ÿ_ƒÃ‰Fü‰FôŽF
&9D~‰&lsqauo;ø&|&9|}&&lsqauo;|WÃ^&ÿƒÃ(tm)RPšˆv ƒÃ‰Fð‰Vò
ÐuéWÿ‰~üÿvôÃ^&ÿƒÃ‰FúÃ^
&&lsqauo; &&lsqauo;W&lsqauo;Nú-&lsqauo;ðŽÚÃ~ðÑéó¥Éó¤ &ÿw&ÿ7š‚u ƒÃ&lsqauo;Fð&lsqauo;VòÃ^
&‰ &‰WÿvüRPÃ^&ÿ_
ƒÃ
Àuÿvÿvÿv
Ã^
&ÿw&ÿ7Ã^&ÿ_ƒÃ
^_MM&lsqauo;å]MːŒØEU&lsqauo;ì-ŽØì��WV&lsqauo;F
Fué �Ã^&&lsqauo; é�¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì��WV&lsqauo;FÁà �é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WVÿv
š(r)ïƒÃPj�ÿvÿvšv
÷ƒÃ&lsqauo;F
Ã^&‰ Ã^&ÇG�&lsqauo;F&lsqauo;V-
�Ã^&‰G&‰W‰Fú‰VüïF
-ÓFïV-^&ëG&ëW
ëF÷ëV°¥��é�Fƒþ~é?�&lsqauo;þÑçÃ^ú&Ša%�ðL

Á&lsqauo;þÑçÃ^ú&‰A&lsqauo;þÑçÃ^ö&Ša%�ðL

Á&lsqauo;þÑçÃ^ö&‰Aé¸ÿ&lsqauo;v
NÁæé�ƒîƒþ�}é�DPjÿvÿvšO³ïƒÃéÞÿ¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WV&lsqauo;F&lsqauo;V-
�Ã^&‰G&‰W‰Fú‰Vü&lsqauo;F
ÁàF&lsqauo;VÃ^&‰G&‰W
‰Fö‰VøÃ^&&lsqauo; Áà
�P&lsqauo;Fö&lsqauo;Vø�RPÃ^&&lsqauo; ÁàF&lsqauo;V�RPš"ïƒÃ
&lsqauo;F
Ã^&+ ÁàPj�Ã^&&lsqauo; ÁàFú&lsqauo;Vü �RPšv
÷ƒÃ&lsqauo;F
Ã^&+ ÁàPj�Ã^&&lsqauo; ÁàFö&lsqauo;Vø �RPšv
÷ƒÃÃ^&&lsqauo;?Áç&lsqauo;F
Ã^&‰ &lsqauo;v
NÁæé�ƒî;þ~é�DPjÿvÿvšO³ïƒÃéßÿ¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WV&lsqauo;F
Fté�¸ýÿé�Ã^&&lsqauo;G&&lsqauo;W‰Fú‰VüÃ^&&lsqauo;G&ïW
ëF÷ëV°ïv
ïÌÐÒ^·ÃF³&ïG% ¤+ã=
�ué-�&lsqauo;ÞÑã^úŽFü&&lsqauo;çÿÃ^
&‰?Wÿv
ÿvÿvšò°ïƒÃé�ƒþ}é�¸ýÿé�Fé¦ÿ^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WV&lsqauo;F
Fté�¸ýÿé1Ã^&&lsqauo;G&&lsqauo;W‰Fú‰VüÃ^&&lsqauo;G&&lsqauo;W
‰Fö‰Vø&lsqauo;^
Ñã^úŽFü&ŠGÀè*ã&lsqauo;ð&lsqauo;^
Ñã^öŽFø&&lsqauo;ãÿÑã^úŽFü&&lsqauo; &lsqauo;^
Ñã^úŽFü&3 %ÿ&lsqauo;^
Ñã^öŽFø&&lsqauo;ãÿÑã^úŽFü&1 &lsqauo;^
Ñã^úŽFü&&lsqauo;ãÿÑã^öŽFø&&lsqauo; &lsqauo;^
Ñã^öŽFø&3 %ÿ&lsqauo;^
Ñã^úŽFü&&lsqauo;ãÿÑã^öŽFø&1 &lsqauo;^
Ñã^úŽFü&'ÿï9v
uéú�NŽú9&lsqauo;ÞÑã&&lsqauo;¿Ê!~
&lsqauo;ßÑã^úŽFü&�&lsqauo;ßÑã^úŽFü&&lsqauo; %ÿ&lsqauo;ΊéÀå*É
Á&lsqauo;ßÑã^úŽFü&‰ &lsqauo;ÞÑã^úŽFü&&lsqauo;G&lsqauo;ßÑã^úŽFü&3 %ÿ&lsqauo;ßÑã^úŽFü&1 &lsqauo;ßÑã^öŽFø&Šg%�ðL

-ï¯ÐÒ^÷ÃF°&ë ïÌÐÒ^·ÃF³&ï_üÒ ¤ÐÒ^÷ÃF°&èg%�ð
Ç&lsqauo;ÞÑã^úŽFü&&lsqauo;_ãÿÑã^öŽFø&‰ &lsqauo;ÞÑã^úŽFü&Šg%�ð
Ç&lsqauo;ÞÑã^úŽFü&‰Géþþ&lsqauo;^
Ñã^úŽFü&&lsqauo; %ÿŠn
Àå*É
Á&lsqauo;^
Ñã^úŽFü&‰ &lsqauo;^
Ñã^öŽFø&&lsqauo; %ÿ �à&lsqauo;^
Ñã^öŽFø&‰ ¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WVÃ^&&lsqauo;G&&lsqauo;W‰Fú‰VüÃ^&&lsqauo;G&&lsqauo;W
‰Fö‰VøŽú9&lsqauo;^
Ñã&&lsqauo;·Ê!3v
ƒ~
uéë�&lsqauo;ÞÑãÃ~ú&öAuéÚ�&lsqauo;ÞÑãÃ~ú&ŠAÀè*ã;F
téÂ�&lsqauo;ÞÑãÃ~ú&lsqauo;Ã&lsqauo;Þ&lsqauo;Ø&&lsqauo;‰Fô&lsqauo;ÞÑãÃ~ö&&lsqauo;ãÿÑãÃ~ú&&lsqauo;3Fô%ÿ&lsqauo;ÞÑãÃ~ö&&lsqauo;ãÿÑãÃ~ú&1&lsqauo;ÞÑãÃ~ö&lsqauo;Ã&lsqauo;Þ&lsqauo;Ø&&lsqauo;‰Fò&lsqauo;ÞÑãÃ~ú&&lsqauo;ãÿÑãÃ~ö&&lsqauo;3Fò%ÿ&lsqauo;ÞÑãÃ~ú&&lsqauo;ãÿÑãÃ~ö&19v
é�Ã^&lsqauo;F
&9Gté �Ã^&‰w‰v
ÿF
Žú9&lsqauo;^
Ñã&&lsqauo;·Ê!3v
Ú
ï^
ÐÒ-~·&ü �&lsqauo;^
ÑãÃ~ú&&lsqauo;%ÿŠn
Àå*É
Á&lsqauo;^
ÑãÃ~ú&‰&lsqauo;^
ÑãÃ~ú&&lsqauo;&lsqauo;~
ÑçÃ^ú&3A%ÿ&lsqauo;^
ÑãÃ~ú&1&lsqauo;^
ÑãÃ~ö&Ša%�ð&lsqauo;N
ƒÁ

Á&lsqauo;^
ÑãÃ~ö&‰&lsqauo;~
ÑçÃ^ú&&lsqauo;YãÿÑãÃ~ö&Ša%�ð
F
&lsqauo;~
ÑçÃ^ú&&lsqauo;YãÿÑãÃ~ö&‰&lsqauo;~
ÑçÃ^ú&Ša%�ð
F
&lsqauo;~
ÑçÃ^ú&‰A¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì-�WVÃ^&&lsqauo;G&&lsqauo;W‰Fö‰VøÃ^&&lsqauo;G&&lsqauo;W
‰Fì‰VîÃ^&&lsqauo;G‰FüŽú9&lsqauo;^
Ñã&&lsqauo;‡Ê!‰Fæ&lsqauo;FæH...Füué"�&lsqauo;^üÑãÃvö&ŠXãï�ÀëŽú9&&lsqauo;‡Ê!FüéÒÿÃ^&&lsqauo; @Áà;Füté�ÇFü�&lsqauo;FüÃ^&‰G&lsqauo;FæÁà‰FâÇFêÿÿÇFô��&lsqauo;FüFæ‰Fú&lsqauo;Fü‰Fðé�&lsqauo;FãFð&lsqauo;Fð9Fúé-�&lsqauo;^ðÑãÃvö&ŠXãï�ÀëŽú9&&lsqauo;‡Ê!‰Fã&lsqauo;^ðÑãÃvö&ö@téc�&lsqauo;^ðÑãÃvì&Š`%�ð‰Fèƒ~è�uéC�ŠFé*ã÷fãFô~è� ué+�~è�0ué!�nè� &lsqauo;^ðÑãÃvì&&lsqauo;�%ÿ
Fè&lsqauo;^ðÑãÃvì&‰�é�Fô�éXÿƒ~ô�ué�&lsqauo;Fô9Fêwé
�&lsqauo;Fô‰Fê&lsqauo;Fü‰FòÃ^&&lsqauo; @Áà;Fðté�ÇFð�ƒ~ô�ué
�&lsqauo;Fâ9Fôvé�é�&lsqauo;Fð‰FüÃ^&lsqauo;Fü&9GtéÞþ&lsqauo;FðÃ^&‰Gƒ~êÿté�¸ýÿé�&lsqauo;FòÃ^
&‰ ¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì��WVŽü9&¡T"é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØìV�WVÿv-h"FªPšNwïƒÃRPšêwïƒÃ‰Fú‰Vü&lsqauo;Fü
Fúté�¸
"ŒÚé �&lsqauo;Fú&lsqauo;Vüé��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì��WV~
xì~é�~
ì}é
�ÿv
šˆ·ïƒÃé7�~
ì~é�~
±ë}é�j
ÿv
j�j�j�Ã^&ÿ_é
�h욈·ïƒÃé��^_ƒí&lsqauo;å]MË-XEU&lsqauo;ì-ŽØì��WVšŒuïé��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ý-ÃÏüý��WVÿvÿ6hEÿ6fEšã·ïƒÃé��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì
�WVÇFú��ÇFü��&lsqauo;F&lsqauo;V‰Fö‰Vøé�ÿFöÃ^ö&€?�ué�Ã^ö&€?.té�Ã^ö&€1}é�Ã^ö&€8~é�ét�Ã^ö&€?,té�ée�Ã^ö&€?:té�&lsqauo;Fö+FHué�éJ�Ã^ö&€?\ué
�Ã^ö&€?:té�ÇFü�é'�Ã^ö&€?.té�&lsqauo;F&lsqauo;V9Föté�9Vøué�ÇFú�éTÿ&lsqauo;F
&lsqauo;V
‰Fò‰Vôƒ~ü�téA�š.qïRPÿv
ÿv
š3/4 ÷ƒÃ-h"ÿv
ÿv
š¸,÷ƒÃÿv
ÿv
šô ÷ƒÃF
&lsqauo;V
‰Fò‰Vôÿvÿvÿvôÿvòš3/4 ÷ƒÃ&lsqauo;^ö+^Ãvò&Æ��ƒ~ú�té�-h"ÿvôÿvòš¸,÷ƒÃ&lsqauo;F
&lsqauo;V
é��^_ƒí&lsqauo;å]MË-XEU&lsqauo;ì-ŽØì��WV¸�º��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì†�WVƒ>ø!�té�hïhÏ3/4šPR÷ƒÃÇø!�†~ÿPÿv vÜ1/2(c)´¶â-j�jšˆv ƒÃÃ^
&‰ &‰WÃ^
&&lsqauo;G&
té�¸sì鍆~ÿPšCÃ^
&Ã&‰ Ã^
&Ã&ƒ? ré �Ã^
&ÿw&ÿ7š‚u ƒÃ¸ÅîŽþ9&£Fé×�Ã^
&Ã&ÿ7-h$"š´Ã^
&Ã&‰G&‰WÃ^
&Ã&&lsqauo;G&
Gté.�Ã^
&ÿw&ÿ7š‚u ƒÃÃ^
&Ã&ÿ7š ¸ÁîŽþ9&£Fév�jÿvÿvj�j�Ã^
&Ã&ÿ_&lsqauo;ðƒþ�ué*�Ã^
&Ã&ÿ7š ÿv
ÿv
š‚u ƒÃŽþ9&‰6F&lsqauo;Æé,�¡ô!&lsqauo;ö!Ã^
&Ã&‰G
&‰W
Ã^
&&lsqauo; &&lsqauo;W£ô!‰ö!¸��é��^_ƒí&lsqauo;å]MˌؐEU&lsqauo;ì-ŽØì�WVÇFúô!Œ^üé�Ã^ú&&lsqauo; &&lsqauo;W
�‰Fú‰VüÃ^ú&&lsqauo;G&
uéc�&lsqauo;F&lsqauo;VÃ^ú&9 téO�&9WtéF�Ã^&&lsqauo;G
&&lsqauo;W
Ã^ú&‰ &‰Wjj�j�j�j�Ã^&ÿ_&lsqauo;ðÃ^&ÿ7š ÿvÿvš‚u ƒÃ&lsqauo;Æé �é{ÿ¸tìé




A FILHA


Ela era uma mulher tranqüila Gostava das coisas simples da vida — a luz suave de uma lareira e as noites passadas em casa. Uma tranqüila viúva, dedicada unicamente à sua filha.
Até que passou a fazer parte de um sofisticado grupo, indo de festa em festa, fazendo coisas que outrora consideraria inadmissíveis, jamais pensando nas conseqüências.
Por que teria mudado? E o que aconteceria à sua sensível e jovem filha?
PEQUENA COLEÇÃO
AGATHA CHRISTE

AGATHA CHRISTIE
escrevendo sob o nome
Mary Westmacott
A FILHA
Tradução de
CARMEN VERA CIRNE LIMA




EDITORA
NOVA
FRONTEIRA

Título original em inglês
A DAUGHTER'S A DAUGHTER
© 1952 by Agatha Christie
Direitos adquiridos somente para o Brasil pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Barão de Itambi, 28 — Botafogo — ZC-01 — Tel.: 266.7474
Endereço telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro
Proibida a exportação para Portugal ou províncias ultramarinas e países africanos de língua portuguesa
Capa
SÉRGIO MATTA
Revisão
ÁLVARO TAVARES NILDON FERREIRA
Diagramação
ANTONIO HERRANZ
FICHA CATALOGRÁFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte
do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Christie, Agatha, 1891-1976.
C479f A Filha; tradução de Carmen Vera Cirne Lima.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976.
220p. 21cm (Agatha Christie)
Do original em inglês: A daughter's a daughter.
1. Romance inglês. I. Título. II. Série.
76-0065 CDD-823.0872
CDU-820-312.4

SUMÁRIO
LIVRO
UM
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
LIVRO
DOIS
Capítulo
Capítulo
Capítulo
Capítulo
LIVRO
TRÊS
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI

LIVRO
UM

Capítulo I
1
ANN PRENTICE ficou acenando, parada na plataforma da Estação Vitória.
O trem pôs-se em marcha com uma série de arrancos decididos, a cabeça escura de Sarah desapareceu, e Ann voltou-se e caminhou vagarosamente pela plataforma em direção à saída.
Foi tomada por aquelas sensações estranhamente confusas que às vezes nos assaltam ao nos despedirmos de alguém muito querido.
Querida Sarah — como sentiria falta dela... É claro que seria apenas por três semanas... Mas o apartamento ia parecer tão vazio... Só ela e Edith, duas insípidas mulheres de meia-idade...
Sarah era animada, tão viva, tão positiva acerca de tudo... E, no entanto, ainda um bebê tão adorável de cabelos negros...
Que horror! Que maneira de pensar! Como isso deixaria Sarah tremendamente irritada! A única coisa que Sarah e todas as outras garotas da idade dela pareciam fazer questão era de uma atitude de displicente indiferença por parte dos pais. "Não exagere, Mamãe", diziam insistentemente.
Aceitavam, é claro, tributos em espécie: que levassem suas roupas à lavanderia, fossem buscá-las e geralmente pagassem por elas; que dessem telefonemas difíceis ("Se você telefonar a Carol será tão mais fácil, Mamãe"); que limpassem a constante desordem ("Querida, eu tinha intenção de dar um jeito nas minhas coisas, mas tenho que sair simplesmente voando").
"Agora, quando eu era moça", refletiu Ann.
Seus pensamentos retrocederam. Sua casa fora antiquada. A mãe tinha mais de quarenta anos quando ela nasceu, o pai era ainda mais velho, tinha quinze ou dezesseis anos mais que a esposa. A casa era administrada da maneira que o pai gostava.
O carinho que existia fora sempre claramente demonstrado: "Essa é minha menininha querida"; "Mimosa do papai"; "Posso lhe ajudar em alguma coisa, Mamãe querida?".
Arrumar a casa, levar pequenos recados, pagar contas, redigir convites e cuidar da correspondência social, tudo isso era tarefa de Ann, que ela aceitava como obrigação. As filhas existiam para servir aos pais — não o inverso.
Ao passar perto da banca de livros, Ann de repente perguntou a si mesma: "Qual será o melhor?"
Surpreendentemente, não parecia uma pergunta fácil de responder.
Passando os olhos pelas publicações expostas (alguma coisa para ler esta noite, diante do fogo), chegou à inesperada conclusão de que aquilo realmente não tinha importância. Era tudo convenção, nada mais que isso. Como usar gíria. Numa determinada época a gente dizia que as coisas eram "o máximo", ou então que eram "divinas", depois que eram "maravilhosas", e que "não se podia estar mais de acordo", e que se era "louco" por isto, aquilo e mais aquilo.
Os filhos serviam aos pais, ou os pais serviam aos filhos — isso não fazia diferença na relação básica vital entre as pessoas. Ann acreditava que entre ela e Sarah havia um amor profundo e verdadeiro. Entre ela e sua própria mãe? Recordando, pensou que sob a aparente ternura e afeição houvera, na verdade, aquela indiferença afável e displicente que era moda adotar hoje em dia.
Sorrindo consigo mesma, Ann comprou um livro de bolso, que lembrava ter lido e apreciado alguns anos antes. Talvez pudesse parecer um pouco sentimental agora, mas isso não tinha importância, uma vez que Sarah não estaria ali...
Ann pensou: "Vou sentir falta dela — claro que vou — mas vai ser um bocado tranqüilo..."
E pensou: "Será também um descanso para Edith. Ela se aborrece quando estão sempre mudando os planos e alterando o horário das refeições".
Porque Sarah e seus amigos estavam permanentemente numa maré de ir e vir e telefonar, mudando de planos: "Mamãe querida, podemos comer mais cedo? Queremos ir ao cinema". "É você, Mamãe? Telefonei para avisar que não vou estar em casa para o almoço, afinal".
Para Edith, aquela fiel servidora há mais de vinte anos, trabalhando agora três vezes mais do que se esperara dela no início, tais interrupções da vida normal eram extremamente irritantes.
Como dizia Sarah, Edith seguidamente ficava azeda.
Não que Sarah não soubesse levar Edith, e sempre que quisesse. Edith podia rezingar e resmungar, mas adorava Sarah.
Seria tudo muito silencioso, sozinha com Edith. Tranqüilo — mas silencioso demais... Uma estranha sensação de frio fez Ann estremecer... Pensou: "Nada além do silêncio, agora". Silêncio, avançando pelas veredas da velhice até chegar à morte. Nada mais a esperar.
"Mas o que quero, afinal?" perguntou a si mesma. "Tive tudo. Amor e felicidade com Patrick. Uma filha. Tive tudo que quis da vida. Agora... acabou. Agora Sarah vai continuar onde eu parei. Vai casar, ter filhos. Serei avó."
Sorriu. Gostaria de ser avó. Imaginou crianças espertas e bonitas, filhos de Sarah. Garotinhos travessos, com o cabelo preto e rebelde da mãe, menininhas rechonchudas. Leria para eles... contaria histórias...
A idéia a fez sorrir — mas a sensação de frio persistia . Se ao menos Patrick ainda vivesse... A mágoa antiga e rebelde despertou. Fora há tanto tempo (Sarah tinha apenas três anos), tanto tempo, que a perda e a agonia tinham cicatrizado. Podia pensar em Patrick com ternura, sem angústia. O marido jovem e impetuoso que ela tanto amara, tão longe agora — longe, no passado.
Mas hoje a revolta despertou outra vez. Se Patrick ainda estivesse vivo, Sarah sairia de perto deles — para a Suíça, praticar esportes de inverno, para um marido e um lar no devido tempo — e ela e Patrick estariam ali juntos, mais velhos, mais tranqüilos, mas partilhando a vida, com seus altos e baixos. Não estaria sozinha...
Ann Prentice saiu para o pátio apinhado da estação. Pensou consigo: "Que sinistros parecem todos esses ônibus vermelhos — formados em linha como monstros à espera de comida". Era fantástico como pareciam ter vida própria — uma vida que era, talvez, hostil ao seu criador, o Homem. Que mundo atarefado, barulhento, era esse — todos indo e vindo, correndo, apressando-se, falando, rindo, reclamando, um mundo de encontros e despedidas.
E de repente, mais uma vez, sentiu aquela dor aguda de solidão.
Pensou: "Era hora de Sarah se afastar; estou ficando por demais dependente dela. E talvez a esteja tornando dependente demais de mim. Não devo fazer isso. Não devemos agarrar-nos aos jovens, impedi-los de levar suas próprias vidas. Isso seria cruel — realmente cruel."
Devia eclipsar-se, manter-se bem ao fundo, encorajar Sarah a fazer seus próprios planos, seus próprios amigos.
E então sorriu, porque na verdade não havia necessidade alguma de encorajar Sarah. Sarah tinha montes de amigos e estava sempre fazendo planos, correndo de um lugar para outro com a máxima segurança e alegria. Adorava a mãe, mas a tratava com amável condescendência, como alguém incapaz de compreender e participar devido à idade avançada.
Como quarenta e um anos pareciam a Sarah uma idade avançada — enquanto para Ann era um verdadeiro esforço pensar em si mesma como uma mulher de meia-idade. Não que ela tentasse fazer o tempo parar. Quase não usava pintura, e suas roupas ainda tinham o ar levemente provinciano de uma jovem senhora em visita à cidade: simples casacos e saias, e um fiozinho de pérolas verdadeiras. Ann suspirou.
—Não sei por que estou tão tola — disse a si mesma em voz alta. — Acho que foi a despedida de Sarah.
O que diziam os franceses? Partir, c'est mourir un peu...
Sim, era verdade... Sarah, arrebatada por aquele trem majestoso e arquejante, estava, no momento, morta para sua mãe. "E eu para ela", pensou Ann. "Uma coisa curiosa, a distância. Separação no espaço..."
Sarah vivendo uma vida. Ela, Ann, vivendo outra... Sua própria vida.
Uma sensação ligeiramente agradável substituiu a angústia que sentira anteriormente. Agora poderia escolher quando levantar, o que fazer... poderia planejar seu dia. Poderia ir cedo para a cama, com o jantar numa bandeja, ou ir a um teatro, ou um cinema. Ou tomar um trem para o campo e sair a passear... caminhando pela mata sem folhas, com o céu azul aparecendo por entre o intrincado desenho dos galhos.
Naturalmente, ela podia fazer todas essas coisas a qualquer hora que quisesse. Mas quando duas pessoas vivem juntas, há uma tendência para que uma vida molde a outra. Ann divertira-se bastante, indiretamente, com as animadas idas e vindas de Sarah.
Sem dúvida era muito divertido ser mãe. Era como repetir a própria vida, sem muitas das agonias da juventude. Uma vez que se sabia como certas coisas tinham pouca importância, era possível sorrir com indulgência frente às crises que surgiam.
—Mas francamente, Mamãe — diria Sarah com veemência, — é tremendamente sério, não deve achar graça. Nádia acha que todo seu futuro está em jogo!
Mas, aos quarenta e um, a gente já aprendeu que muito raramente todo o futuro está em jogo. Que a vida é muito mais elástica e resiliente do que se pensara um dia.
Quando serviu numa ambulância, durante a guerra, Ann percebeu pela primeira vez como as pequenas coisas eram importantes. As pequenas invejas e ciúmes, os pequenos prazeres, a fricção de um colarinho, uma frieira dentro de um sapato apertado — tudo isso parecia muito mais importante no momento do que o fato iminente de que se podia ser morto a qualquer instante. Esse pensamento deveria ser grave e esmagador, mas na realidade as pessoas se acostumavam rapidamente a ele — e as pequenas coisas cresciam de importância, talvez exageradas só porque, no fundo, havia a idéia de restar muito pouco tempo. Aprendera também alguma coisa sobre curiosas inconsistências da natureza humana, de como era difícil classificar as pessoas como "boas" ou "más", como se vira inclinada a fazer nos seus dias de dogmatismo juvenil. Tinha visto pessoas demonstrarem inacreditável coragem ao socorrer uma vítima, e depois se rebaixarem a roubar uma ninharia daquele que acabavam de salvar. Na verdade, as pessoas tinham várias facetas.
Enquanto hesitava, de pé no meio-fio, a buzina estridente de um táxi trouxe Ann de volta a considerações mais práticas, fazendo-a abandonar as reflexões abstratas. O que deveria fazer agora, neste momento? Naquela manhã não pensara em nada além de assistir à partida de Sarah.
Hoje à noite sairia para jantar com James Grant. Querido James, sempre tão bom e atencioso. "Você vai se sentir um pouco deprimida com a ausência de Sarah. Vamos sair e festejar." Realmente, era muita bondade de James. Bem o tipo de coisa que faria Sarah rir e chamá-lo de "O seu namorado pukka Sahib, querida". James era uma ótima pessoa. Podia ser às vezes um pouco difícil manter a atenção quando contava uma de suas histórias muito compridas e confusas, mas ele tinha tanto prazer em contá-las, e afinal de contas, se a gente conhece alguém há vinte e cinco anos, o mínimo que se pode fazer é escutá-lo amavelmente.
Ann olhou o relógio. Poderia ir até às lojas Army and Navy. Edith estava querendo algumas coisas para a cozinha. Essa decisão resolveu seu problema imediato. Mas durante todo o tempo em que examinou caçarolas e perguntou preços (realmente fantásticos, agora!), esteve consciente daquele estranho pânico frio no fundo de sua mente.
Afinal, num impulso, entrou numa cabine telefônica e discou um número.
— Posso falar com Dame1 Laura Whitstable, por favor?
1 Dame — titular feminina da Ordem do Império Britânico, correspondente a Knight (anteposto ao nome próprio, corresponde a Sir) (N. do T.)
— Quem fala?
— A Sra. Prentice.
— Só um momento, Sra. Prentice.
Houve uma pausa, e então uma voz profunda, ressonante, falou:
— Ann?
— Oh, Laura, sei que não devia telefonar a esta hora do dia, mas acabo de me despedir de Sarah, e pensei se você estaria terrivelmente ocupada hoje...
A voz disse, em tom decidido:
— É melhor almoçar comigo. Pão de centeio e coalhada. Serve?
— Qualquer coisa serve. Você é um anjo.
— Estarei esperando. A uma e um quarto.
2
Faltava um minuto para a uma e quinze quando Ann pagou o táxi, na Rua Harley, e tocou a campainha.
O eficiente Harknesse abriu a porta, acolheu-a com um sorriso, e disse:
— Queira subir, Sra. Prentice. Dame Laura talvez ainda demore alguns minutos.
Ann subiu agilmente as escadas. A sala de jantar da casa era agora uma sala de espera, e o andar de cima fora convertido num confortável apartamento. Na sala de estar havia uma mesinha, posta para uma refeição. A peça em si parecia muito mais pertencer a um homem do que a uma mulher: poltronas grandes e confortáveis, uma profusão de livros, alguns dos quais empilhados nas cadeiras, e coloridas cortinas de veludo de boa qualidade.
Ann não precisou esperar muito. Dame Laura, sua voz a precedê-la nas escadas como um fagote triunfante, entrou na sala e beijou afetuosamente a convidada .
Dame Laura Whitstable era uma mulher de sessenta e quatro anos. Tinha em torno dela a aura que envolve a realeza, ou conhecidas figuras públicas. Tudo nela era um pouco maior do que o normal: a voz, o busto firme como uma plataforma, as massas empilhadas de cabelo cinza escuro, o nariz que mais parecia um bico.
— Que prazer vê-la, minha querida criança — disse com estrondo. — Está muito bonita, Ann. Vejo que comprou um ramo de violetas. Soube escolher. É
a flor com que você mais se parece.
— A tímida violeta? Francamente, Laura.
— Doçura de outono, bem escondida pelas folhas.
— Não parece coisa sua, Laura. Você é sempre tão rude.
— Descobri que compensa, mas às vezes é um esforço e tanto. Vamos comer logo. Basset, onde está Basset? Ah, cá está. Vai gostar de saber que há um filé de peixe para você, Ann. E um copo de vinho branco.
— Oh, Laura, você não devia. Coalhada e pão de centeio seriam mais que suficientes.
— Só há coalhada que chegue para mim. Vamos, sente. Então Sarah foi para a Suíça? Por quanto tempo?
— Três semanas.
— Que bom.
A angulosa Basset deixara a sala. Bebericando seu copo de coalhada com toda aparência de satisfação, Dame Laura disse judiciosamente:
— E você vai sentir falta dela. Mas não me telefonou nem veio aqui para me dizer isso. Vamos, Ann, diga-me. Não temos muito tempo. Sei que me aprecia, mas quando as pessoas telefonam e querem minha companhia dentro de um prazo mínimo, geralmente a atração é minha superior sabedoria.
— Sinto-me horrivelmente culpada — disse Ann em tom de desculpa.
— Bobagem, minha cara. Na verdade, é quase um elogio.
Ann disse apressadamente:
— Laura, sou uma perfeita idiota, sei disso! Mas fiquei numa espécie de pânico. Lá na Estação Vitória, com todos aqueles ônibus! Senti-me tão... senti-me tão terrivelmente só!
— Si... sim, eu entendo.
— Não era só que Sarah ia embora e eu ia sentir falta dela. Era mais que isso...
Laura Whitstable inclinou a cabeça, enquanto seus astutos olhos cinzentos observavam calmamente Ann.
Ann falou vagarosamente:
— Porque, afinal, na verdade a gente está sempre só...
— Ah, então descobriu isso? A gente descobre, mais cedo ou mais tarde. Curiosamente, é sempre um choque. Que idade você tem, Ann? Quarenta e um?
Uma idade muito boa para fazer sua descoberta. Se a gente deixa para muito tarde, pode ser devastador. Se descobre cedo demais, precisa-se de um bocado de coragem para aceitar.
— Você alguma vez já se sentiu realmente sozinha, Laura? — perguntou Ann, curiosa.
— Oh, sim. Aconteceu quando eu tinha vinte e seis anos... foi até em meio a uma reunião familiar das mais cordiais. Fiquei surpresa e assustada... mas aceitei. Nunca negue a verdade. É preciso aceitar o fato de que temos apenas um companheiro neste mundo, um companheiro que nos segue do berço à sepultura: nós mesmos. Mantenha boas relações com esse companheiro... aprenda a viver consigo mesma. Essa é a resposta. Nem sempre é fácil.
Ann suspirou.
— A vida pareceu absolutamente sem sentido... estou lhe contando tudo, Laura... nada mais que anos vazios até perder de vista. Oh, acho que não passo de uma mulher tola e inútil...
— Ora, ora, conserve o bom-senso. Você fez um trabalho muito bom, eficiente e nada espetacular durante a guerra; educou Sarah, ensinando-lhe boas maneiras e como aproveitar a vida; e você mesma, a seu modo tranqüilo, goza a vida. Isso tudo é muito satisfatório. De fato, se você viesse ao meu consultório, eu
a mandaria embora sem nem ao menos cobrar a consulta... e eu sou uma velha gananciosa.
— Laura, querida, você é muito animadora. Mas penso que, na verdade, eu me preocupo demais com Sarah.
— Bobagem!
— Tenho sempre tanto medo de me tornar uma dessas mães possessivas, que positivamente devoram os filhos!
Laura Whitstable disse secamente:
— Falam tanto em mães possessivas, que algumas mulheres têm medo de mostrar uma afeição normal pelos filhos!
— Mas ser possessiva é um mal!
— Claro que é. Eu encontro isso todos os dias. Mães que conservam os filhos amarrados às tiras do avental, pais que monopolizam as filhas. Mas nem
sempre é inteiramente culpa deles. Certa vez tive um ninho de passarinhos em meu quarto, Ann. No devido tempo as avezinhas deixaram o ninho, mas havia uma
que não queria ir. Queria ficar, queria ser alimentada, recusava-se a encarar o momento de se atirar da bordado ninho. Isso perturbava muito a mãe-pássaro. Ela mostrava ao filho, descia voando da borda várias vezes, gorjeava, batia as asas. Finalmente, deixou de alimentá-lo. Trazia comida no bico, mas ficava a chamá-lo
do outro lado do quarto. Bem, há seres humanos assim. Crianças que não querem crescer, que não querem encarar as dificuldades da vida adulta. Não é pela educação. São elas mesmas.
Fez uma pausa antes de continuar:
— Há o desejo de ser possuído, assim como o desejo de possuir. É um caso de amadurecimento tardio? Ou alguma falta de elementos essenciais à maturidade? Ainda sabemos muito pouco sobre a personalidade humana.
— De qualquer modo — disse Ann, nem um pouco interessada em generalidades, — você não acha que sou uma mãe possessiva?
— Sempre pensei que você e Sarah tivessem um relacionamento muito satisfatório. Eu diria que há um profundo amor natural entre vocês duas. — Acrescentou pensativamente: — Claro que Sarah é infantil para a idade que tem.
— Sempre pensei que fosse madura para a idade.
— Eu não diria isso. Ela me parece ter mentalidade inferior a dezenove anos.
— Mas é muito positiva, muito segura. E bastante sofisticada. Cheia de idéias próprias.
— Cheia de idéias correntes, você quer dizer. Vai se passar muito tempo antes que tenha idéias realmente suas. E todas essas jovens criaturas hoje em
dia parecem positivas. É porque precisam de reafirmação. Vivemos numa época de incertezas; tudo é instável, e os jovens sentem isso. É aí que começa metade
do problema, hoje em dia. Falta de estabilidade; lares despedaçados; falta de padrões morais. Você sabe que uma planta nova precisa ser amarrada a uma estaca boa e firme.
Riu subitamente.
— Como todas as velhas, embora sendo ilustre, eu faço sermões. — Esvaziou o copo de coalhada. — Sabe por que eu bebo isto?
— Porque é saudável?
— Bah! Eu gosto. Sempre gostei, depois de passar férias numa fazenda. A outra razão é "para ser diferente". A gente faz pose. Todos nós fazemos. Temos que fazê-lo. Eu, mais que a maioria. Mas, graças a Deus, sei que estou fazendo isso. Mas agora vamos ao seu caso, Ann. Não há nada de errado com você.
Está só no seu segundo fôlego, nada mais que isso.
— O que quer dizer com segundo fôlego, Laura? Não se refere... — hesitou.
— Não me refiro a nada físico. Estou falando em termos mentais. As mulheres têm sorte, embora noventa e nove dentre cem não saibam disso. Com que idade Sta. Teresa se dispôs a reformar os conventos? Aos cinqüenta. E eu poderia citar inúmeros outros casos. Dos vinte aos quarenta anos as mulheres estão biologicamente absorvidas... e isso se justifica. Sua preocupação é com crianças, maridos, amantes... com relações pessoais. Ou sublimam essas coisas e se lançam
a uma carreira, de maneira emocional e feminina. Mas a segunda florescência natural é a da mente e do espírito, e acontece na meia-idade. As mulheres se interessam mais por coisas impessoais quando ficam mais velhas. Os interesses dos homens se tornam cada vez mais limitados, os das mulheres cada vez mais amplos. Um homem de sessenta anos habitualmente se repete como um disco de gramofone. Uma mulher de sessenta anos, se tiver algum resquício que seja de individualidade, é uma pessoa interessante. .
Ann pensou em James Grant e sorriu.
— As mulheres buscam algo novo. Oh, também fazem tolices nessa idade. As vezes se voltam para o sexo. Mas a meia-idade é uma época de grandes possibilidades .
— Como você é animadora, Laura! Pensa que devo começar alguma coisa? Algum tipo de assistência social?
— Até que ponto você ama seus semelhantes? — perguntou Laura Whitstable gravemente. — A ação não tem valor sem o impulso interior. Não faça coisas que não quer fazer, para depois dar pancadinhas nas próprias costas por tê-las feito! Nada, se me é permitido dizer, produz resultados dos mais odiosos. Se você tem prazer em visitar as velhas doentes, ou em levar pirralhos antipáticos e sem modos para a praia, faça isso, pelo amor de Deus! Muita gente sente prazer nisso. Não, Ann, não se force a nenhuma atividade. Lembre-se de que todo solo precisa às vezes descansar. Até agora, a maternidade tem sido sua colheita. Não posso imaginá-la transformada numa reformadora, artista ou expoente do serviço social. Você é uma mulher bastante comum, Ann, mas muito agradável. Espere. Espere tranqüilamente, com fé e esperança, e verá que logo alguma coisa que valha a pena aparecerá para encher a sua vida.
Hesitou antes de continuar:
— Você nunca teve um caso, teve?
Ann enrubesceu.
— Não. — E, tomando coragem: — Você acha... acha que eu deveria?
Dame Laura soltou uma enorme risada, um som explosivo e agudo que fez tremer os copos na mesa.
— Esse modernismo! Na era vitoriana, tínhamos medo do sexo, chegávamos a cobrir até as pernas dos móveis. O sexo era algo que devia ser escondido, empurrado para longe do alcance dos olhos. Um erro, sem dúvida. Mas hoje em dia caímos no extremo oposto, e o sexo é tratado como algo que se pode pedir na farmácia. Uma coisa parecida com sulfa, ou penicilina. Sou procurada por mulheres jovens que me perguntam: "Não seria melhor que eu arranjasse um amante?" "A senhora acha que eu deveria ter um filho?" Como se ir para a cama com um homem fosse um dever sagrado e não um prazer! Você não é uma mulher ardente, Ann. Tem uma grande reserva de afeição e ternura, e embora isso também possa incluir o sexo, ele não é o mais importante para você. Se me
pedir para prever seu futuro, eu lhe direi que você tornará a casar, no devido tempo.
— Oh, não! Não creio que pudesse fazer isso.
— Por que então comprou este ramo de violetas e o prendeu no casaco? Você costuma comprar flores para embelezar sua casa, não para se enfeitar. Essas violetas são um símbolo, Ann. Foram compradas por que, lá bem no fundo, você sente que a primavera... sua segunda primavera... está chegando.
— Você quer dizer um veranico de outono...
— Se quiser chamá-lo assim.
— Realmente uma bela idéia, Laura, mas acredite: só comprei as violetas porque a vendedora me pareceu uma mulher gelada e infeliz!
— Isso é o que você pensa, mas é apenas a razão superficial. Procure descobrir o verdadeiro motivo, Ann. Aprenda a conhecer a si mesma. Essa é a coisa mais importante da vida: tentar se conhecer. Céus... já passa das duas. Tenho que correr. O que vai fazer esta noite?
— Vou jantar com James Grant.
— O Coronel Grant? Sim, claro. Um bom sujeito — seus olhos brilharam. — Ele anda atrás de você há muito tempo, Ann.
Ann Prentice riu e corou.
— Oh, é só um hábito.
— Pediu-lhe várias vezes que casasse com ele, não foi?
— Sim, mas não é nada sério. Oh, Laura, acha que... talvez... eu devesse? Afinal, se nós dois somos solitários?
— Ninguém casa porque deve, Ann. E lembre-se de que um companheiro errado é pior do que nenhum. Pobre Coronel Grant... não que eu tenha realmente
pena dele. Afinal, um homem que vive pedindo a uma mulher que se case com ele e não consegue convencê-la a dizer sim, é porque secretamente deve gostar de se dedicar a causas perdidas. Sem dúvida teria gostado de estar em Dunquerque... embora, na minha opinião, a Carga da Brigada Ligeira fosse ainda mais ao seu gosto. Como nós, ingleses, parecemos gostar de nossos erros e derrotas... e como parecemos sentir vergonha de nossas vitórias!

Capítulo II
1
AO VOLTAR AO APARTAMENTO, Ann foi recebida com uma certa frieza pela fiel Edith.
— Tinha um lindo pedaço de linguado para o seu almoço — falou ela, aparecendo na porta da cozinha. — E um pudim de caramelo.
— Sinto muito. Almocei com Dame Laura. Mas telefonei a tempo, avisando que não viria, não telefonei?
— Ainda não tinha cozinhado o linguado — admitiu Edith, relutante. Era uma mulher alta e delgada, com o porte ereto de um granadeiro e uma boca franzida e desaprovadora. — Mas essas mudanças de planos não são coisa que se espere da senhora. Agora, se fosse a Srta. Sarah, eu não me surpreenderia. Depois
que ela se foi, encontrei as luvas enfeitadas que ela andava procurando; mas aí já era tarde demais. Estavam enfiadas atrás do sofá.
— Que pena! — disse Ann, pegando as coloridas luvas de tricô. — Ela partiu sem problemas.
— E bem feliz, com certeza.
— Sim, todo o grupo estava muito alegre.
— Talvez não estejam tão alegres na volta. É bem possível que apareçam de muletas.
— Oh, não Edith, não diga isso!
— Esses lugares suíços são perigosos. Quebram os braços e as pernas das pessoas e depois não arrumam direito. A gangrena começa por baixo do gesso, e... acabou-se.
— Bem, esperemos que isso não aconteça a Sarah — disse Ann, já habituada às sombrias previsões de Edith, ditas sempre com considerável deleite.
— Isto aqui não vai ser o mesmo sem a Srta. Sarah — continuou Edith. — Vamos ficar tão quietas que nem vamos nos reconhecer.
— Você vai poder descansar um pouco, Edith.
— Descansar? Para que vou querer descansar? É melhor a gente se gastar trabalhando do que enferrujando, é o que minha mãe sempre me dizia... e eu
sempre segui esse conselho. Agora que a Srta. Sarah está fora, e ela e os amigos não vão ficar entrando e saindo daqui a cada minuto, posso fazer uma boa faxina. A casa bem que está precisando.
— Tenho certeza de que o apartamento está limpíssimo, Edith.
— Isso é o que a senhora pensa. Mas eu sei que não. As cortinas precisam de uma boa sacudida, e uma boa lavada nos lustres e nas lâmpadas não ia fazer mal nenhum. Oh, há mil e uma coisas que precisam ser feitas. — Os olhos de Edith brilhavam de agradável expectativa.
— Arranje alguém para ajudá-la.
— Quem, eu? De jeito nenhum! Gosto das coisas bem feitas, e hoje em dia não há muitas dessas mulheres capazes de trabalhar decentemente. A senhora
tem muita coisa bonita aqui, e essas coisas devem continuar bonitas. Com a cozinha, e uma coisa e outra, não posso fazer meu trabalho tão bem quanto deveria.
— Mas você cozinha muito bem, Edith. Sabe disso.
Um leve sorriso de gratidão transformou a costumeira expressão de profunda censura do rosto de Edith.
— Ora, cozinhar — disse ela com jeito brusco. — Isso não é nada, não é o que eu chamo trabalhar de verdade.
Voltando à cozinha, perguntou:
— A que horas vai querer seu chá?
— Agora não. Lá pelas quatro e meia.
— Se eu fosse a senhora, deitava e dormia um pouco. Assim, ficava novinha em folha para esta noite. É melhor aproveitar a calma enquanto durar.
Ann riu. Entrou na sala e deixou que Edith a acomodasse confortavelmente no sofá.
— Você cuida de mim como se eu fosse uma meninazinha, Edith.
— Bem, a senhora não era muito mais que uma criança quando fui trabalhar com sua mãe, e não mudou muito desde então. O Coronel Grant telefonou. Disse para não esquecer que o encontro é às oito horas, no Restaurante Mogador. Falei que a senhora sabia, mas isso é bem coisa de homem... ficam o tempo todo se preocupando com bobagens. E os militares são os piores.
— Foi muita gentileza dele lembrar que eu poderia me sentir sozinha hoje à noite, e me convidar para sair.
Edith falou judiciosamente:
— Não tenho nada contra o Coronel. Pode ser um pouco maçante, mas é um cavalheiro da melhor espécie. — Fez uma pausa, e acrescentou: — Pensando
bem, a senhora poderia arranjar alguém bem pior que o Coronel Grant.
— O que disse, Edith?
Edith encarou-a sem pestanejar.
— Falei que há cavalheiros bem piores... Bem, acho que já não veremos tanto o Sr. Gerry, agora que a Srta. Sarah partiu.
— Você não gosta dele, não é mesmo Edith?
— Ora, gosto e não gosto, se é que me entende. Ele tem um certo encanto, isso não se pode negar. Mas não é do tipo perseverante. A minha sobrinha Marlene casou com um desses. Nunca fica mais de seis meses num emprego. E, aconteça o que acontecer, a culpa nunca é dele.
Edith deixou a sala, e Ann recostou a cabeça nas almofadas e fechou os olhos. Os sons do tráfego chegavam distantes e amortecidos através da janela fechada, num agradável zumbido, como de abelhas distantes. Na mesa perto dela, um vaso de junquilhos amarelos desprendia no ar o seu cheiro doce.
Sentia-se em paz, e feliz. Sentiria falta de Sarah, mas era bastante repousante ficar só por algum tempo. Que sensação esquisita de pânico tivera de manhã...
Indagou-se quem seriam os convidados de James Grant esta noite.
2
O Mogador era um restaurante pequeno e um tanto antiquado, com boa comida, bons vinhos e ambiente tranqüilo. Ann foi a primeira a chegar, e encontrou o Coronel Grant sentado no bar da entrada, abrindo e fechando o relógio de bolso.
— Ah, Ann — saltou para saudá-la — você chegou. — Seus olhos examinaram com ar de aprovação o vestido preto e o cordão de pérolas.
— É ótimo quando uma mulher bonita consegue ser pontual.
— Estou apenas três minutos atrasada — disse Ann, sorrindo para ele.
James Grant era um homem alto, de porte rígido e marcial, cabelos grisalhos cortados rente e um queixo obstinado.
Tornou a consultar o relógio.
— Por que os outros não chegam? A mesa estará pronta para nós às oito e quinze, e vamos beber alguma coisa antes. Sherry para você? Prefere sherry a um coquetel, não é mesmo?
— Sim, por favor. Quem são os outros?
— Os Massinghams. Você os conhece?
— Naturalmente.
— E Jennifer Graham. É minha prima, mas não sei se você alguma vez...
— Acho que já a encontrei uma vez, com você.
— E o outro homem é Richard Cauldfield. Eu não o via há muitos anos, e o encontrei outro dia. Passou a maior parte da vida em Burma, e agora ao voltar sente-se um pouco desambientado.
— Sim, imagino.
— É um bom sujeito. Uma história bastante triste. A mulher morreu ao nascer o primeiro filho. Ele era extremamente dedicado a ela. Ficou inconsolável durante muito tempo e achou que devia afastar-se... por isso foi para Burma.
— E a criança?
— Também morreu.
— Que tristeza!
— Ah, lá vêm os Massinghams.
A Sra. Massingham, que Sarah sempre chamava a Mem Sahib, lançou-se sobre eles com uma grande exibição de dentes. Era uma mulher magra e comprida, com a pele descorada e seca pelos anos passados na Índia. O marido, um homem baixo e corpulento, que falava em stacatto.
— Como é bom tornar a vê-la — disse a Sra. Massingham, apertando calorosamente a mão de Ann. — E que delícia poder jantar com roupas apropriadas. Positivamente, parece que eu nunca consigo pôr um vestido de noite. Todos estão sempre me dizendo: "Não precisa trocar de roupa"! Na verdade, acho a vida bem insípida hoje em dia. E as coisas que a gente é obrigada a fazer sozinha! Tenho a impressão de estar eternamente junto à pia da cozinha. Realmente não creio que possamos continuar neste país. Estamos pensando em ir para o Quênia.
— Muita gente indo embora — disse o marido. — Fartos. É este governo omisso.
— Aqui está Jennifer — exclamou o Coronel Grant. — E Cauldfield.
Jennifer Graham era uma mulher de trinta e cinco anos, alta e com cara de cavalo, que relinchava quando ria; e Richard Cauldfield, um homem de meia-idade, de rosto queimado de sol.
Sentou-se junto a Ann, e esta começou a conversar. Estava há muito tempo na Inglaterra? Qual era sua impressão?
Não era fácil acostumar-se, disse ele. Tudo agora era tão diferente do que costumava ser antes da guerra. Estava à procura de trabalho, mas não havia muitos empregos para um homem da sua idade.
— Não, creio que não. E isso me parece tão injusto!
— Sim, pois afinal eu ainda não cheguei aos cinqüenta — sorriu ele, um sorriso um pouco infantil, desconcertante. — Disponho de um pequeno capital.
Estou pensando em comprar um lugarzinho no campo e me dedicar à floricultura, ou à criação de galinhas.
— Galinhas não! — protestou Ann. — Tenho muitos amigos que tentaram... e elas sempre apanham alguma doença.
— Não, talvez a floricultura fosse melhor. Provavelmente não daria muito lucro, mas seria uma vida agradável. — Suspirou. — Tudo parece tão confuso!
Talvez que uma mudança de governo...
Ann concordou, hesitante. Era o remédio de sempre.
— Deve ser difícil saber exatamente o que fazer — falou. — Isso deve preocupá-lo bastante.
— Ah, eu não me preocupo. Acho que não vale a pena. Se um homem tem fé em si mesmo, e bastante determinação, todas as dificuldades podem ser vencidas.
Era uma afirmação muito dogmática, e Ann não pareceu muito convencida.
— Não tenho muita certeza.
— Posso garantir-lhe que é assim. Não tenho nenhuma paciência com gente que anda sempre se queixando da falta de sorte.
— Ah, nesse ponto concordo com você — exclamou Ann, com tanto fervor que ele arqueou as sobrancelhas, numa interrogação:
— Parece que você conhece alguém assim.
— E conheço mesmo. Um dos namorados da minha filha vem sempre contar a sua última desgraça. Eu costumava sentir pena dele, mas agora só consegue me deixar insensível e aborrecida.
Do outro lado da mesa, a Sra. Massingham interveio:
— Histórias de azar são mesmo aborrecidas.
O Coronel Grant perguntou:
— De quem está falando? Do jovem Gerald Lloyd? Ele nunca será grande coisa na vida.
Richard Cauldfield disse baixinho para Ann:
— Então tem uma filha? E com idade bastante para ter um namorado?
— Oh, sim, Sarah tem dezenove anos.
— E você gosta muito dela?
— É claro!
Percebeu no rosto dele uma fugaz expressão de dor, e lembrou a história que o Coronel Grant tinha contado. Richard Cauldfield era um homem solitário, pensou.
Ele falou baixinho:
— Você parece jovem demais para ter uma filha já crescida.
— Isso é o que se costuma dizer a uma mulher da minha idade — respondeu Ann, com uma risada.
— Talvez seja, mas estou sendo sincero. Seu marido... morreu?
— Sim, há muito tempo.
— E por que não voltou a casar?
Poderia ter sido uma pergunta impertinente, mas o interesse sincero da voz dele o eximia de qualquer acusação desse tipo. Mais uma vez Ann pensou que Richard Cauldfield era um homem simples. Ele realmente queria saber.
— Ah... porque... — parou. Então falou a verdade, francamente: — Eu amava muito meu marido. Depois que ele morreu, não voltei a amar ninguém. E
havia Sarah, é claro.
— Sim — disse Cauldfield. — Sim... as coisas teriam que acontecer exatamente assim com você.
Grant levantou e sugeriu que passassem ao restaurante. Na mesa redonda, Ann sentou-se entre o anfitrião e o Major Massingham. Não teve mais oportunidade de continuar seu tête-à-tête com Cauldfield, que agora conversava, com certo esforço, com a Srta. Graham.
— Será que vão se dar bem? — murmurou o coronel no ouvido de Ann. — Ele precisa casar, sabe?
Por alguma razão a sugestão a desagradou. Logo Jennifer Graham, com aquela voz aguda e enérgica, o riso relinchado! Jamais o tipo de mulher que servia para casar com um homem como Cauldfield.
As ostras foram servidas, e o grupo dedicou-se a comer e conversar.
— Sarah partiu esta manhã?
— Sim, James. Espero que encontrem bastante neve.
— Sim, embora seja de duvidar, nesta época do ano. De qualquer forma, creio que ela vai se divertir. Sarah é uma bela moça. Por falar nisso, espero que
o jovem Lloyd não faça parte do grupo.
— Ah, não, ele começou a trabalhar há pouco tempo na firma do tio. Não poderia ausentar-se.
— Ótimo. Você tem que cortar essa história pela raiz.
— Hoje em dia isso não é tão fácil, James.
— Hummm, creio que não deve ser. Mesmo assim, você conseguiu afastá-la por algum tempo.
— Sim, achei que seria uma boa idéia, eu... Realmente achei...
— Ah, você achou? Não é nada tola, Ann. Esperemos que ela encontre algum outro rapaz por lá.
— Sarah ainda é muito jovem, James. Não creio que aquela história com Gerald Lloyd devesse ser levada a sério.
— Talvez não, mas da última vez que a vi ela parecia muito preocupada com ele.
— Preocupar-se com os outros é um traço característico de Sarah. Ela sabe exatamente o que cada um deve fazer, e não descansa enquanto não fazem. É muito leal aos seus amigos.
— Ê uma criança muito querida. E atraente. Mas nunca será tão atraente quanto você, Ann. Ela é um tipo mais duro... como se diz hoje em dia... mais
durona.
Ann sorriu.
— Não creio que seja assim tão dura. É o jeito da geração dela.
— Talvez seja... Mas algumas dessas moças poderiam ter aulas de charme com as mães.
Ele a olhava com carinho, e Ann pensou, com repentino e raro calor: "Querido James. — Como ele é bom para mim. Para ele, eu sou perfeita. Não estarei sendo tola ao recusar o que me oferece? Ser amada, querida..."
Infelizmente, naquele exato momento o Coronel Grant começou a contar uma história sobre um dos seus subalternos e a mulher de um major, na Índia. Era uma história comprida, e ela já a ouvira três vezes antes.
O afetuoso calor desapareceu. Olhou Richard Cauldfield, do outro lado da mesa, avaliando-o. Um pouquinho confiante demais em si mesmo, excessivamente dogmático — não, corrigiu-se, não de verdade... Tudo devia ser apenas uma armadura que ele usava para se defender de um mundo estranho e provavelmente hostil.
Era na verdade um rosto triste. Um rosto solitário...
Tinha muitas qualidades, pensou. Devia ser bom, honesto, e totalmente justo. Teimoso, provavelmente, e preconceituoso algumas vezes. Um homem que não estava acostumado a achar graça nas coisas, nem a que achassem graça nele. O tipo do homem que floresceria ao sentir-se realmente amado.
— ...e você acredita — o coronel chegava ao ponto culminante da história — que Sayce sabia de tudo, todo o tempo?
Com um choque, Ann retornou aos seus deveres imediatos, e riu com o esperado entusiasmo.

Capítulo III
1
ANN acordou na manhã seguinte, e por um momento se indagou onde estaria. Certamente a silhueta mal delineada da janela deveria estar à sua direita, e não à esquerda... A porta... O guarda-roupa...
Então percebeu que estivera sonhando; sonhando que era outra vez uma menina, de volta à velha casa em Applestream. Tinha chegado lá cheia de alegria, fora recebida pela mãe e por uma Edith mais jovem. Correra pelo jardim, admirando Uma coisa e outra, e finalmente entrara na casa. Tudo estava exatamente como tinha sido: o vestíbulo um pouco escuro, a sala de estar coberta de chintz que se abria para ele. E então, surpreendentemente, sua mãe dissera: "Vamos tomar o chá aqui", e a conduzira para uma sala nova e desconhecida. Uma sala agradável, com os móveis cobertos de alegre chintz estampado, flores, sol. E alguém tinha dito: "Você não sabia que estas salas estavam aqui, sabia? Nós as descobrimos no ano passado!" Havia mais salas novas, uma escadinha e mais quartos lá em cima. Era tudo muito excitante, emocionante.
Agora, acordada, sentia-se ainda parcialmente dentro do sonho. Era Ann, a menina, para quem a vida apenas começava.
Aqueles quartos nunca vistos. Estranho, ter passado tantos anos sem saber que existiam. Quando tinham sido descobertos? Há pouco tempo? Há muitos anos?
A realidade infiltrou-se vagarosamente através da confusa e agradável lembrança do sonho. Fora tudo um sonho, um sonho bom. Entremeado agora por uma ligeira dor, a dor da saudade. Porque não se pode voltar atrás. E como era estranho que sonhar com a descoberta de alguns quartos a mais em uma casa pudesse provocar um prazer tão singular e arrebatador. Sentiu-se triste quando pensou que esses quartos nunca tinham existido.
Ann permaneceu deitada, olhando os contornos da janela, cada vez mais nítidos. Já devia ser bem tarde, pelo menos nove horas. As manhãs eram tão escuras, agora. A esta hora, Sarah estaria acordando para o sol e a neve, na Suíça.
Mas, de uma certa maneira, Sarah parecia não existir naquele momento. Estava distante, remota, apagada. O que era real era a casa de Cumberland, os chintz, o sol, as flores... sua mãe. E Edith, respeitosamente parada em posição de sentido, parecendo tão desaprovadora como de costume, apesar do rosto jovem, macio e sem rugas.
Ann sorriu e chamou:
— Edith!
Edith entrou, e abriu as cortinas.
— Bem — falou aprovadoramente, — dormiu bastante. Não quis acordá-la, o dia não está lá essas coisas. Acho que vamos ter nevoeiro.
Visto pela janela, o céu era amarelo escuro.
Não era uma perspectiva atraente, mas não abalou a sensação de bem-estar que Ann sentia. Continuou deitada, sorrindo para si mesma.
— Seu café está pronto, já vou trazê-lo. — Edith parou antes de deixar o quarto, e olhou a patroa com curiosidade.
— Parece contente esta manhã. Deve ter-se divertido ontem.
— Ontem? — por um momento Ann ficou no ar. — Oh, sim, foi bom. Edith, sonhei que tinha voltado para casa. Você estava lá, era verão, e a casa tinha quartos novos que nós não conhecíamos.
— E foi melhor não conhecer, é o que lhe digo. Aquele casarão velho já tinha quartos demais. E a cozinha! Quando penso na quantidade de carvão que
aquele fogão devia gastar! Por sorte o carvão era barato naquele tempo.
— Você era bem moça outra vez, Edith, e eu também.
— Ah, não se pode fazer o tempo voltar, não é mesmo? Por mais que a gente queira, aqueles tempos estão mortos e enterrados para sempre.
— Mortos e enterrados para sempre — Ann repetiu baixinho.
— Não que eu não esteja satisfeita. Tenho força e saúde, embora digam que a meia-idade é a melhor época para se arranjar um desses tumores internos. Tenho pensado muito nisso, ultimamente.
— Estou certa de que você não tem nada disso, Edith.
— Ah, mas nunca se pode ter certeza. Só se fica sabendo quando carregam a gente para o hospital, abrem e descobrem que já é tarde demais.
E Edith saiu do quarto com ar soturno. Voltou pouco depois, trazendo numa bandeja o café e a torrada de Ann.
— Aqui está, senhora. Sente-se, e eu ajeito o travesseiro nas suas costas.
Ann olhou-a, e falou num impulso:
—Como você é boa para mim, Edith.
Edith ficou vermelha.
— Sei como as coisas devem ser feitas, só isso. E, de qualquer jeito, alguém tem de cuidar da senhora. A senhora não é uma dessas mulheres de espírito forte.
Se fosse aquela Dame Laura... nem o Papa de Roma pode com ela.
— Dame Laura é uma grande personalidade, Edith.
— Eu sei, já a ouvi falando no rádio. Ora, só pela cara já se pode saber que ela é alguém. E conseguiu casar, pelo que ouvi dizer. Foi divórcio ou morte que
os separou?
— Oh, ele morreu.
— Provavelmente a melhor coisa que lhe poderia acontecer. Ela não é o tipo de mulher com quem um cavalheiro goste de viver... embora eu não possa negar que alguns homens preferem que a mulher use as calças. — Caminhou em direção à porta, observando: — Agora não precisa ter pressa, minha querida. Descanse bastante, fique deitadinha pensando seus belos pensamentos e aproveitando as férias.
"Férias", pensou Ann, divertida. "É esse o nome que ela dá?"
E, no entanto, não deixava de ser verdade. Aqueles dias seriam um intervalo no ritmo sempre igual de sua vida. No fundo há sempre uma certa ansiedade, quando se vive com uma filha que se ama. Ela é feliz? Será que A ou B são boas amizades para ela? Deve ter acontecido alguma coisa na festa de ontem à noite. O que poderia ter sido?
Ela nunca tinha interferido, nem feito perguntas. Compreendia que Sarah devia sentir-se livre para falar ou calar — devia aprender sozinha as lições da vida, escolher seus próprios amigos. E no entanto, como amava a filha, era impossível ignorar seus problemas. Ann poderia ser necessária a qualquer momento, e se Sarah a procurasse, em busca de apoio ou ajuda prática, tinha que estar ali, a postos. As vezes Ann pensava: "Devo estar preparada para ver Sarah infeliz algum dia, e mesmo então não falar nada, a menos que ela o deseje."
O que a vinha preocupando ultimamente era o crescente interesse de Sarah por Gerald Lloyd, um rapaz amargo e sempre cheio de queixas. Daí seu alívio ao pensar que Sarah ficaria pelo menos três semanas longe dele, e conheceria muitos outros rapazes durante esse tempo.
Sim, com Sarah na Suíça ela poderia tirá-la despreocupadamente da cabeça e descansar, deitada em sua cama confortável, pensando no que poderia fazer hoje. Divertira-se no jantar da noite anterior. Querido James — tão bom, e no entanto tão maçante também, pobre querido! As histórias intermináveis que contava! Realmente, ao chegar aos quarenta e cinco os homens deviam fazer o voto de não contar mais histórias ou anedotas. Se pudessem imaginar o desânimo que dominava os amigos assim que começavam: "Não sei se já contei, mas uma vez aconteceu uma coisa curiosa com o...", e assim por diante. É claro que sempre se poderia interromper, dizendo: "Sim, James, já me contou três vezes". Mas o pobrezinho ficaria tão magoado! Não, era impossível fazer uma coisa dessas com James.
E aquele outro, Richard Cauldfield. Naturalmente era muito mais moço, mas provavelmente ele também um dia começaria a repetir as mesmas histórias compridas e sem graça.
Talvez... pensou... mas não acreditava que pudesse acontecer. Não. Era mais provável que se tornasse prepotente, didático, cheio de preconceitos e idéias preconcebidas. Precisaria de alguém que caçoasse dele, delicadamente. Poderia ser um pouco ridículo, às vezes, mas era um bom homem — um homem solitário, muito solitário... Teve pena dele. Sentia-se perdido na frustrada vida moderna de Londres. Pensou em qual o tipo de trabalho que ele iria conseguir. Isso não era tão fácil hoje em dia. Provavelmente compraria sua fazendola, ou floricultura, e se instalaria no campo.
Pensou se voltaria a encontrá-lo. Qualquer noite dessas convidaria James para jantar, e poderia sugerir que ele trouxesse Richard Cauldfield. Seria uma gentileza — ele era obviamente um homem muito sozinho. E convidaria outra mulher. Poderiam ir ao teatro...
Que algazarra Edith estava fazendo! Ela estava na sala ao lado, e, pelo barulho, parecia haver lá um exército de homens fazendo a mudança. Baques, batidas, de vez em quando o zumbido alto do aspirador de pó. Edith devia estar se divertindo.
Logo ela apareceu na porta, a cabeça envolta num pano de pó e o olhar sublime e extasiado de uma sacerdotisa celebrando alguma orgia ritual.
— A senhora não vai almoçar fora, por acaso? Eu estava enganada, vai ser um belo dia, sem névoa. Não é que eu tenha esquecido o linguado, não esqueci. Mas
se não estragou até agora, não vai estragar até o jantar. Não se pode negar que essas geladeiras conservam mesmo as coisas... mas tiram o gosto de tudo, é o que eu digo.
Ann olhou para ela e riu.
— Está bem, está bem, eu almoço fora.
— Para mim não faz diferença, é claro. Eu não me importo.
— Sim, Edith. Mas não se mate. Por que não traz a Sra. Hopper para ajudá-la, já que quer limpar a casa de alto a baixo?
— Sra. Hopper, Sra. Hopper. Pois sim! Na última vez que ela veio eu deixei que limpasse aquela grade da lareira de latão bonita que foi da sua mãe. Ficou
toda manchada. Essas mulheres só sabem mesmo é lavar o assoalho, e isso qualquer um pode fazer. Lembra-se da grelha de ferro trabalhado que nós tínhamos em
Applestream? Aquilo, sim, dava trabalho. Tinha orgulho dela, palavra. Ah, bem... a senhora tem móveis bem bonitos, e eles ficam lindos quando bem lustrados. Pena que haja tanta coisa embutida.
— Facilita o trabalho.
— Fica muito parecido com hotel, para o meu gosto. Então a senhora vai sair? Ótimo. Posso tirar todos os tapetes.
— Posso voltar hoje à noite? Ou prefere que eu durma num hotel?
— Ora, Sra. Ann, não me venha com essas brincadeiras. Por falar nisso, aquela panela dupla que a senhora comprou não vale nada. É grande demais, e tem
um formato ruim para se mexer com a colher lá dentro. Quero uma igual à minha antiga.
— Sinto muito, mas acho que aquelas não existem mais.
— Esse governo — falou Edith com desagrado. — E os pratos de porcelana tiara suflê que eu lhe pedi? A Srta. Sarah gosta de suflê servido naqueles pratos.
— Esqueci que você tinha pedido, mas acho que poderia encontrá-los facilmente.
— Então! Já tem alguma coisa para fazer!
— Francamente, Edith! — exclamou Ann, irritada. — Parece até que sou uma meninazinha que você tem que mandar brincar lá fora.
— Confesso que com a Srta. Sarah longe a senhora parece mais moça. Mas eu estava apenas fazendo uma sugestão, madame — Edith empertigou-se
e falou com azeda cerimônia, — que se por acaso passasse perto das Lojas Army and Navy, ou talvez John Barker's...
— Muito bem, Edith. Agora vá você brincar na sala.
— Ora, francamente — disse Edith, ofendida; e bateu em retirada.
Recomeçaram os baques e as batidas, e logo veio juntar-se a eles um novo som, o da voz fraca e desafinada de Edith, elevando-se num hino particularmente lúgubre:
"Este mundo é só dor e mágoa,
Não há sol, nem alegria, nem luz.
Oh, lava-nos, lava-nos no teu sangue,
Para que possamos chorar-te, ó Jesus!"
2
Ann divertiu-se na seção de louças das Lojas Army and Navy. Pensou que nos dias que correm, com tantos artigos inferiores e mal feitos, era um consolo ver que boa louça, cristais e cerâmica o país ainda podia produzir.
Nem os avisos proibitivos "Somente para exportação" estragaram sua admiração pelos artigos expostos em brilhantes fileiras. Chegou até às mesas onde estavam em exibição as mercadorias rejeitadas para exportação, onde havia sempre compradoras rondando, de olhos ávidos, prontas a saltar sobre alguma peça mais atraente.
Hoje fora Ann a felizarda. Havia até um jogo de café quase completo, com lindas xícaras arredondadas de cerâmica vitrificada marrom decorada. O preço não era excessivo, e ela comprou bem a tempo. No instante em que anotavam seu endereço apareceu uma mulher, e disse nervosamente:
— Fico com este.
— Lamento, senhora. Já está vendido.
Ann falou hipocritamente "Sinto muito", e afastou-se, animada pelo prazer de uma boa compra. Tinha encontrado também alguns pratos para suflê bastante bonitos e de bom tamanho, e embora fossem de vidro e não de louça, esperava que Edith os aceitasse sem muitos resmungos.
Saindo da seção de louças, atravessou a rua e entrou no departamento de plantas e jardins. A jardineira da janela do apartamento estava em ruínas, e ela queria substituí-la.
Falava a respeito disso com o vendedor, quando ouviu uma voz atrás dela:
— Ora, bom dia, Sra. Prentice.
Voltou-se e viu Richard Cauldfield. Era tão evidente o prazer que ele sentia ao vê-la, que Ann não pôde deixar de sentir-se lisonjeada.
— Imagine, encontrá-la aqui! É realmente uma maravilhosa coincidência. Na verdade, eu estava mesmo pensando em você. Sabe, ontem à noite eu quis
perguntar seu endereço, e se poderia talvez visitá-la. Mas depois temi que me julgasse impertinente. Deve ter tantos amigos, e...
Ann interrompeu:
— É claro que deve me visitar. Para ser franca, eu estava pensando em convidar o Coronel Grant para jantar em minha casa, e sugerir que o levasse também.
— Estava mesmo? De verdade? — Sua ansiedade e prazer eram tão óbvios, que Ann teve pena. Pobre homem, como devia se sentir sozinho! Aquele sorriso feliz parecia o sorriso de um menino.
— Estava encomendando uma jardineira nova para minha janela. É a coisa mais parecida com um jardim que se pode ter num apartamento.
— Sim, imagino que seja.
— O que faz aqui?
— Estava examinando as incubadoras.
— Ainda pensando em criar galinhas?
— De certa forma. Estive examinando os equipamentos mais modernos para a avicultura. Pelo que sei, esta chocadeira elétrica é a última novidade.
Caminharam juntos para a saída. Richard Cauldfield disse, num arranco:
— Será que... naturalmente já tinha outro compromisso... será que gostaria de almoçar comigo... se não tem mais nada para fazer?

— Obrigada, eu gostaria muito. Na verdade Edith, minha criada, lançou-se numa orgia de limpeza de primavera, e me disse, com muita firmeza, que eu não
fosse almoçar em casa.
Richard Cauldfield não achou graça nenhuma, e pareceu até um tanto chocado com as palavras dela.
— Isso é muito arbitrário, não é?
— Edith tem seus privilégios.
— Ainda assim, não convém mimar os criados. —
Ele está me reprovando, pensou Ann, divertida. E disse, delicadamente:
— Já não restam muitos para mimar. E, de qualquer forma, Edith é mais amiga do que criada. Está comigo há muitos anos.
— Oh, entendo. — Percebeu que fora gentilmente censurado, mas a impressão permaneceu. Esta bela e delicada senhora estava sendo governada por uma criada despótica, e era demasiado dócil e submissa para enfrentá-la.
— Limpeza de primavera? — perguntou, confuso. — Deve ser feita nesta época?
— Não, na verdade não deve. Deve ser feita em março, mas minha filha foi passar algumas semanas na Suíça e aproveitamos a oportunidade. Quando ela
está aqui há sempre muito movimento.
— Imagino que deve sentir falta dela.
— Sim, muita.
— Parece que as moças quase não gostam de ficar em casa, hoje em dia. Creio que preferem viver suas próprias vidas.
— Não tanto quanto até pouco tempo atrás; acho que a novidade já perdeu um pouco o encanto.
— Ah! Bonito dia, não? Gostaria de caminhar pelo parque, ou isso iria cansá-la?
— Não, é claro que não. Ia mesmo sugerir.
Atravessaram a Rua Vitória e desceram por uma estreita passagem, chegando afinal ao lado da estação do Parque Saint James. Cauldfield ergueu os olhos para as esculturas de Epstein.
— Vê alguma coisa nisso? Como é possível chamar essas coisas de arte?
— Oh, creio que é possível, sim. Bem possível.
— Você certamente não gosta delas?
— Não, eu pessoalmente não. Sou antiquada, e continuo a gostar da escultura clássica, e de todas as coisas que me ensinaram a gostar. Mas não significa que o meu gosto seja o certo. Acho que é necessário aprender a apreciar novas formas de arte. E acontece o mesmo com a música.
— Música! Não se pode chamar isso de música!
— Não acha que está sendo um pouco reacionário, Cauldfield?
Ele voltou rapidamente a cabeça para olhá-la. Ela estava afogueada, um pouquinho nervosa, mas seus olhos o encararam sem pestanejar.
— Estou? Talvez. Sim, quando se esteve longe durante tanto tempo, tem-se a tendência de não gostar de tudo que não é mais exatamente como a gente
lembrava. — De repente sorriu. — Deve ter paciência comigo.
Ann disse depressa:
— Oh, eu também sou terrivelmente antiquada. Sarah muitas vezes ri de mim. Mas sinceramente, acho terrível que a gente... como posso explicar... que a
gente vá perdendo o interesse pelas coisas novas à medida que... bem, à medida que vai envelhecendo. Porque, em primeiro lugar, isso nos torna terrivelmente enfadonhos, e, além disso, também podemos estar perdendo alguma coisa importante.
Richard caminhou em silêncio por alguns momentos, antes de falar:
— Parece-me tão absurdo ouvi-la falar em envelhecer! Você é a pessoa mais jovem que conheci nestes últimos tempos. Muito mais jovem do que algumas dessas garotas assustadoras. Elas realmente me dão medo.
— Sim, a mim também assustam um pouco. Mas sempre descubro que são ótimas pessoas.
Tinham chegado ao Parque Saint James. O sol estava forte agora, e o dia quase quente.
— Aonde vamos?
— Vamos olhar os pelicanos.
Olharam os pássaros, satisfeitos, e conversaram sobre as várias espécies de aves aquáticas. Completamente tranqüilo e à vontade, Richard era um companheiro encantador, jovial e espontâneo. Falaram e riram juntos, e sentiram-se extremamente felizes na companhia um do outro.
Logo Richard disse:
— Que tal sentarmos um pouco ao sol? Não está sentindo frio?
— Não, estou bem aquecida.
Sentaram-se e ficaram olhando a água. Com suas cores desmaiadas, a paisagem parecia uma gravura japonesa.
Ann falou baixinho:
— Como Londres pode ser bonita. Nem sempre a gente percebe isso.
— Não, é quase uma revelação.
Ficaram em silêncio durante um ou dois minutos, e Richard continuou:
— Minha mulher sempre dizia que Londres é o único lugar para se estar na chegada da primavera. Dizia que os brotos verdes, as amendoeiras e, a seu
tempo, os lilases, realçavam contra o fundo de tijolos e argamassa. Achava que no campo era tudo muito vasto, e acontecia de modo demasiado confuso para
que pudesse ser devidamente apreciado; mas que num jardim suburbano a primavera chegava da noite para o dia.
— Creio que ela tinha razão.
Richard falou com esforço, e sem olhar para Ann:
— Ela morreu... há muito tempo.
— Eu sei, o Coronel Grant me contou.
Richard voltou-se e olhou para ela.
— Contou como ela morreu?
— Sim.
— É algo que jamais poderei esquecer. Terei sempre a impressão de tê-la matado.
Ann hesitou um momento, antes de falar.
— Posso entender o que sente, no seu lugar eu sentiria o mesmo. Mas não é verdade, sabe.
— Sim, é verdade.
— Não. Não do ponto de vista dela... de uma mulher. A responsabilidade de aceitar esse risco é da mulher. Está implícita no seu... no seu amor. Lembre-se de que ela quer a criança. Sua esposa desejava. .. o filho?
— Ah, sim. Aline estava muito feliz. Eu também. Era uma jovem forte, saudável. Parecia não haver qualquer motivo para as coisas não correrem bem.
Houve um silêncio, e então Ann falou:
— Sinto muito... muito, mesmo.
— Já faz muito tempo.
— O bebê também morreu?
— Sim. E de certa forma eu me alegro que isso tenha acontecido, sabe. Acho que iria culpar o pobrezinho. Nunca esqueceria o preço que fora preciso pagar
pela vida dele.
— Fale-me sobre sua esposa.
E ali, com os dois sentados sob o pálido sol de inverno, ele lhe falou sobre Aline. Como tinha sido bonita e alegre. E das vezes em que ficava quieta de repente e ele se perguntava em que estaria pensando e por que estaria tão longe.
Uma vez ele se interrompeu para dizer, admirado:
— Há muitos anos eu não falava nela com ninguém.
E Ann incitou-o suavemente:
— Continue.
Tudo fora tão breve — breve demais. Três meses de noivado, o casamento — "o exagero de sempre, nós não queríamos mas a mãe dela insistiu". Tinham passado a lua-de-mel viajando de carro pela França, visitando os castelos do Loire.
— Ela ficava nervosa quando andava de carro — acrescentou despropositadamente. — Costumava pôr a mão no meu joelho. Isso parecia acalmá-la, mas não sei por que ficava tão nervosa, ela nunca sofreu um acidente. — Fez uma pausa, antes de continuar: — As vezes, quando eu corria no meu carro, lá em Burma, depois de tudo já ter acontecido, eu parecia sentir a mão dela. Imaginava, entende?... Parecia incrível que ela pudesse ter desaparecido assim, que não vivesse mais.
Sim, pensou Ann, é isso que a gente sente — parece incrível. Sentira o mesmo com relação a Patrick. Ele tinha que estar em algum lugar. Precisava fazê-la sentir sua presença. Não era possível que tivesse partido assim, sem deixar nada atrás de si. O terrível abismo que separa os vivos dos mortos!
Richard continuava. Contava da casinha que eles tinham descoberto numa rua sem saída, com uma touceira de lilases e uma pereira. Então, quando a voz brusca e áspera deixou de falar as frases vacilantes, ele repetiu, surpreso:
— Não sei por que lhe contei tudo isto.
Mas ele sabia. Quando perguntara, um tanto nervoso, se ela gostaria de almoçar no seu clube — "Acho que eles têm um Anexo para Senhoras — ou prefere ir a um restaurante?", e ela respondera que preferia o clube, e eles tinham levantado e começado a caminhar em direção a Pall Mall, soube no seu íntimo o que estava acontecendo, embora não o quisesse reconhecer.
Este fora seu adeus a Aline, ali em meio à beleza fria e extraterrena do parque no inverno.
Ele a deixaria ali, junto ao lago, onde os galhos nus das árvores mostravam seus rendilhados arabescos contra o céu.
Pela última vez ele a fez reviver na sua juventude, na sua força, na tristeza do seu destino. Foi um lamento, um canto fúnebre, um hino de louvor — talvez um pouco de cada um.
Mas foi também um funeral.
Deixou Aline ali no parque, e caminhou com Ann para as ruas de Londres.

Capítulo IV
— A SRA. PRENTICE ESTÁ? — perguntou Dame Laura Whitstable.
— Não, no momento não está. Mas acho que não deve demorar. Gostaria de entrar e esperar, madame? Sei que ela ia gostar de ver a senhora.
Edith afastou-se respeitosamente enquanto Dame Laura entrava, dizendo:
— Bem, vou esperar ao menos uns quinze minutos. Já faz algum tempo que não a vejo.
— Sim, senhora.
Edith conduziu-a até a sala e ajoelhou-se para acender o aquecedor elétrico. Dame Laura olhou em volta, e soltou uma exclamação:
— Vejo que mudaram os móveis de lugar. Aquela escrivaninha costumava ficar no canto. E o sofá está num lugar diferente.
— A Sra. Prentice achou que seria bom variar — disse Edith. — Um dia entrei aqui e dei com ela empurrando e arrastando coisas de um lado para o outro.
"Oh, Edith", ela me disse, "não acha que a sala fica muito melhor assim? Mais espaçosa?" Bem, eu não pude ver nenhuma melhora, mas naturalmente não
quis dizer isso. As senhoras têm seus caprichos. A única coisa que eu disse foi: "Agora, não vá fazer muito esforço, madame. Não há nada pior para as entranhas
do que ficar levantando peso; e depois que elas saem do lugar, não voltam assim tão fácil". Eu sei o que digo. Aconteceu com minha própria cunhada. Foi levantar uma dessas janelas de guilhotina e passou o resto da vida deitada no sofá.
— Provavelmente sem a menor necessidade — comentou Dame Laura com energia. — Felizmente acabamos com essa mania de achar que ficar deitado num sofá é o remédio para todas as doenças.
— Agora nem deixam mais a pessoa ter seu mês de descanso depois do parto — disse Edith com ar de censura. — Veja a minha pobre sobrinha, fizeram a coitadinha caminhar no quinto dia.
— Somos hoje uma raça muito mais saudável do que jamais fomos.
— Espero que seja verdade — disse Edith sombriamente. — Fui uma criança muito fraquinha. Nunca pensaram que eu fosse me criar. Tinha desmaios e convulsões horríveis. E no inverno ficava azul... o frio me atacava o coração.
Indiferente aos males passados de Edith, Dame Laura examinava as modificações feitas na sala.
— Acho que mudou para melhor — comentou. — A Sra. Prentice tem razão. Não sei por que não fez isso antes.
— Está fazendo ninho — disse Edith, significativamente.
— O quê?
— Fazendo ninho. Já vi passarinhos fazerem a mesma coisa, voando para lá e para cá com gravetos no bico.
— Oh!
As duas mulheres trocaram um olhar; e embora não se notasse nenhuma mudança de expressão, uma informação parecia ter sido transmitida.
Dame Laura perguntou em tom casual:
— O Coronel Grant tem aparecido muito ultimamente?
Edith sacudiu a cabeça.
— Pobre senhor — disse. — Se quer saber, acho que ele se congeu. Isso é quebrar a cara, em francês — acrescentou, à guisa de explicação.
— Oh, congé, entendo...
— Era um cavalheiro muito bom — disse Edith, falando nele no passado, com o jeito fúnebre de quem pronuncia um epitáfio. — Oh, bem...
Enquanto deixava a sala, falou:
— Vou lhe dizer quem não vai gostar de ver a sala diferente: a Srta. Sarah. Ela não gosta de mudanças.
Laura Whitstable ergueu as sobrancelhas hirsutas. Depois retirou um livro da estante e folheou desinteressadamente as páginas.
Logo escutou o ruído da chave na fechadura, e a porta do apartamento se abriu. Ouviu no pequeno vestíbulo duas vozes animadas e alegres: a de Ann e a de um homem.
A voz de Ann disse:
— Oh, a correspondência. Veio carta de Sarah.
Entrou na sala com a carta na mão e parou de chofre, momentaneamente confusa:
— Ora, Laura, que bom vê-la — voltou-se para o homem que entrara na sala atrás dela. — Sr. Cauldfield, Dame Laura Whitstable.
Dame Laura avaliou-o rapidamente.
Tipo convencional. Podia ser teimoso. Honesto. Bom coração. Nenhum senso de humor. Provavelmente sensível. Muito apaixonado por Ann.
Pôs-se a conversar com ele, naquele seu jeito expansivo.
Ann murmurou:
— Vou dizer a Edith que traga o chá — e deixou a sala.
— Para mim não, querida — Dame Laura gritou para ela. — Já são quase seis horas.
— Bem, Richard e eu queremos chá, fomos a um concerto. O que você vai tomar?
— Brandy e soda.
— Muito bem.
Dame Laura perguntou:
— Gosta de música, Sr. Cauldfield?
— Sim. Especialmente Beethoven.
— Todos os ingleses gostam de Beethoven. Sinto dizer que ele me dá sono, mas a verdade é que não sou muito musical.
— Aceita um cigarro, Dame Laura? — Cauldfield abriu sua cigarreira.
— Não, obrigada. Só fumo charutos. — Acrescentou, olhando-o astutamente: — Então é do tipo de homem que prefere tomar chá às seis horas, em vez de um coquetel ou sherry?
— Não, acho que não. Não sou grande apreciador de chá. Mas ele parece combinar com Ann — ele se interrompeu. — Isso parece absurdo!
— De modo algum. O senhor demonstra ser perspicaz. Não estou querendo dizer que Ann não beba coquetéis ou sherry, ela bebe, mas é essencialmente o tipo de mulher que fica melhor atrás de uma bandeja de chá; uma bandeja com um belo serviço de prata georgiana, e xícaras e pires da mais fina porcelana.
Richard estava encantado:
— A senhora tem toda a razão!
— Conheço Ann há muitos anos. Gosto muito dela.
— Eu sei, ela me falou muito na senhora. E, é claro, eu a conheço de outras fontes.
Dame Laura sorriu jovialmente:
— Oh, sim, sou uma das mulheres mais conhecidas da Inglaterra. Sempre participando de comitês, ou divulgando minhas idéias pelo rádio, ou geralmente decretando o que é melhor para a humanidade. Entretanto, de uma coisa eu sei: seja o que for que se consiga realizar na vida, é realmente muito pouco e outra pessoa poderia tê-lo feito facilmente.
— Ora, vamos — protestou Richard. — Não acha que é uma conclusão um tanto deprimente?
— Não deveria ser. A humildade deveria estar por trás de todo esforço.
— Acho que não concordo com a senhora.
— Não?
— Não. Penso que a primeira condição para que um homem (ou uma mulher, naturalmente) chegue a realizar qualquer coisa válida é acreditar em si mesmo.
— E por que deveria?
— Ora, Dame Laura, certamente...
— Sou antiquada. Eu preferiria que um homem conhecesse a si mesmo, e acreditasse em Deus.
— Conhecimento, fé, não são a mesma coisa?
— Perdoe-me, mas não são, absolutamente, a mesma coisa. Uma de minhas teorias favoritas (totalmente irrealizável, é claro, e isso é o que as teorias têm de agradável) é que todos deveriam passar um mês por ano no meio do deserto. Acampados junto a um poço, é claro, e com um suprimento bem grande
de tâmaras, ou seja lá o que for que se coma no deserto.
— Poderia ser bastante agradável — disse Richard, sorrindo. — Mas eu insistiria em levar alguns clássicos da literatura.
— Ah, mas aí é que está. Nenhum livro. Livros são uma droga que vicia. Com água e alimentos suficientes, e nada... absolutamente nada para fazer,
teria, afinal, uma boa oportunidade de se conhecer.
Richard sorriu, descrente:
— Não acha que quase todos se conhecem bastante bem?
— É claro que não! Hoje em dia, não temos tempo de reconhecer nada além das nossas características mais agradáveis.
— Sobre o que os dois estão discutindo? — perguntou Ann, entrando com um copo na mão. — Aqui está seu brandy com soda, Laura. Edith já vai trazer
o chá.
— Estou propondo minha teoria de meditação no deserto — respondeu Laura.
— É uma das idéias de Laura — disse Ann, rindo. — A gente fica sentado no deserto, sem fazer nada, e descobre que é realmente horrível.
— Mas será que todos têm que ser horríveis? — perguntou Richard secamente. — Sei que os psicólogos nos dizem isso; mas por que, afinal?
— Porque se só tivermos tempo para conhecer uma parte de nós mesmos, como acabei de dizer, escolheremos sempre a mais agradável — respondeu Dame Laura resolutamente.
— Está tudo muito bem, Laura — disse Ann, — mas depois de ficarmos sentados no deserto e descobrirmos como somos horríveis, de que nos adiantará isso? Seremos capazes de mudar?
— Acho bem pouco provável... mas pelo menos teremos uma indicação de como iremos reagir sob determinadas circunstâncias e (o que é ainda mais importante) por que o faremos.
— Mas será que não somos capazes de saber exatamente qual será nossa reação sob dadas circunstâncias? Quero dizer, basta a gente se imaginar nelas.
— Oh, Ann, Ann. Pense em qualquer homem que fica ensaiando o que vai dizer para o chefe, a namorada ou o vizinho. Tem tudo na ponta da língua, mas
quando chega o momento de falar, ou fica mudo ou acaba dizendo algo completamente diferente. As pessoas que intimamente estão certas de poder enfrentar qualquer emergência são exatamente aquelas que perdem completamente a cabeça, enquanto aqueles que têm medo de não estar à altura se surpreendem ao dominar totalmente uma situação.
— Sim, mas você não está sendo muito justa. O que está querendo dizer agora é que as pessoas ensaiam diálogos ou ações imaginárias, como gostariam
que acontecessem. Provavelmente sabem muito bem que nada vai ser como imaginam. Mas acho que fundamentalmente sempre sabemos qual vai ser nossa
reação e como... bem, como é nosso caráter.
— Ah, minha querida criança — Dame Laura ergueu as mãos, — então você acha que conhece Ann Prentice? Eu me pergunto se isso é verdade...
Edith entrou com o chá.
— Não creio que seja particularmente boa — disse Ann, sorrindo.
— Aqui está a carta da Srta. Sarah, madame. A senhora a deixou no quarto.
— Oh, obrigada Edith.
Ann colocou a carta, ainda fechada, ao lado do prato. Dame Laura lançou-lhe um rápido olhar.
Richard bebeu, um tanto apressado, sua taça de chá, e retirou-se.
— Ele está sendo delicado — disse Ann. — Acha que nós duas queremos conversar.
Dame Laura olhou atentamente a amiga. Estava bastante surpresa com a transformação que se operara em Ann. Suas feições tranqüilas tinham florescido numa espécie de beleza. Laura Whitstable já vira isso acontecer antes, e sabia o motivo. Aquele ar radiante e feliz só poderia significar uma coisa: Ann estava apaixonada. Como é injusto, pensou Dame Laura, que as mulheres quando amam fiquem com seu melhor aspecto, enquanto os homens apaixonados parecem ovelhas atacadas de melancolia.
— O que tem feito ultimamente, Ann? — perguntou.
— Oh, não sei. Andado por aí. Nada de especial.
— Richard Cauldfield é um amigo novo, não é?
— Sim. Eu o conheço há apenas dez dias. Encontrei-o no jantar de James Grant.
Contou alguma coisa sobre Richard para Dame Laura, e acabou perguntando ingenuamente:
— Você gosta dele, não gosta?
Laura, que ainda não havia decidido se gostava ou não de Richard Cauldfield, apressou-se em responder:
— Sim, muito.
— Eu acho, sabe, é que teve uma vida muito triste.
Dame Laura já ouvira muitas vezes essa afirmação. Reprimiu um sorriso e perguntou:
— Tem tido notícias de Sarah?
O rosto de Ann se iluminou.
— Oh, Sarah está se divertindo loucamente. A neve está ótima, e parece que ninguém quebrou nada.
Dame Laura observou secamente que Edith ficaria desapontada. Ambas riram.
— Esta carta é dela. Importa-se que eu abra?
— É claro que não.
Ann rasgou o envelope e leu a cartinha; riu afetuosamente e passou-a para Dame Laura.
"Querida mamãe (escrevera Sarah).
A neve tem estado perfeita. Todos dizem que esta foi a melhor temporada até hoje. Lou fez o teste, mas infelizmente foi reprovada. Roger tem treinado bastante comigo, o que é muita bondade dele, uma vez que é tal figurão no mundo do esqui. Jane diz que ele está interessado em mim, mas realmente não acredito. Acho que sente um prazer sádico em me olhar enquanto me emaranho toda e caio de cabeça nos montes de neve. Lady Cronsham está aqui com aquele sul-americano horrível. Eles são mesmo blatant. Estou meio apaixonada por um dos guias (incrivelmente lindo), mas infelizmente ele não me dá a mínima confiança, pois está acostumado a despertar essas paixonites. Ao menos aprendi a dançar valsa no gelo.
E você como está, querida? Espero que esteia saindo bastante com todos os seus namorados. Mas não vá longe demais com o velho coronel — ele tem às vezes um brilho estranho no olhar! Como vai o professor? Tem lhe contado alguns ritos matrimoniais bem grosseiros ultimamente? Até breve. Com amor, Sarah."
Dame Laura devolveu a carta.
— É, Sarah parece estar se divertindo. Suponho que o professor seja aquele seu amigo arqueólogo?
— Sim, Sarah sempre caçoa comigo por causa dele. Tinha intenção de convidá-lo para almoçar, mas tenho estado tão ocupada!
— Sim, parece ter estado mesmo...
Ann dobrava e desdobrava a carta de Sarah. Por fim, disse num meio suspiro:
— Ah, meu Deus...
— Por que o "Ah, meu Deus"?
— Ora, creio que é melhor eu lhe contar logo. De qualquer modo, provavelmente já adivinhou. Richard Cauldfield pediu que eu casasse com ele.
— Quando foi isso?
— Oh, só hoje.
— E você vai casar?
— Acho que sim... Por que estou dizendo isto? É claro que vou.
— Foi rápido, Ann.
— Você quer dizer que o conheço há pouco tempo. Ah, mas nós estamos bem certos.
— E você sabe muita coisa sobre ele, através do Coronel Grant. Estou contente por você, minha querida. Parece muito feliz.
— Suponho que vá achar uma bobagem, Laura, mas eu o amo muito.
— Por que pareceria bobagem? Sim, pode-se ver que gosta dele.
— E ele me ama.
— Isso também é evidente. Nunca vi um homem parecer tanto com um carneiro.
— Richard não parece um carneiro.
— Um homem apaixonado sempre se parece com um carneiro. Deve ser alguma lei da natureza.
— Mas você gosta dele, Laura? — insistiu Ann.
Desta vez, Laura Whitstable não respondeu tão depressa.
— Ele é um tipo de homem, muito simples, sabe Ann.
— Simples? Talvez. Mas isso não é bem agradável?
— Bem, pode ter as suas dificuldades. Ele é sensível, ultra-sensível.
— Você observou bem, Laura. Alguns não perceberiam.
— Eu não sou "alguns". — Hesitou antes de continuar. — Já contou a Sarah?
— Não, é claro que não. Já lhe disse. Aconteceu hoje.
— O que eu quis perguntar, realmente, foi se você falou nele nas suas cartas... se preparou o caminho.
— Não... não, não, para falar a verdade. — Fez uma pausa e continuou: — Terei que escrever e contar a ela.
— Sim.
Novamente Ann hesitou antes de falar:
— Não creio que ela se importe muito; e você?
— É difícil dizer.
— Ela é sempre tão carinhosa comigo. Ninguém imagina como Sarah pode ser carinhosa... quero dizer, sem falar coisa alguma. É claro... suponho... — Ann olhou para a amiga com ar de súplica. — Talvez ela vá achar engraçado.
— É bem possível. Você se importa?
— Oh, eu não me importo. Mas Richard vai se importar.
— Sim... sim. Bem, Richard vai ter que engolir, não vai? Mas eu certamente contaria tudo a Sarah antes que ela voltasse. Daria tempo para que ela se acostumasse com a idéia. A propósito, quando pensa casar?
— Richard quer que seja o mais cedo possível. E não há mesmo nenhuma razão para esperar, não acha?
— Realmente. Eu diria que quanto mais cedo vocês casassem, melhor.
— Foi uma sorte... Richard acaba de conseguir um emprego, com Hellner Bros. Conheceu um dos sócios interessados em Burma, durante a guerra. É uma
sorte, não é; mesmo?
— Minha querida, tudo parece muito bem. — Voltou a falar, suavemente: — Estou muito contente por você.
Levantando-se, Laura Whitstable aproximou-se de Ann e a beijou.
— Então... por que a testa franzida?
— É por causa de Sarah... esperando que ela não vá se importar.
— Minha querida Ann, qual vida você está vivendo... a sua ou a dela?
— A minha, é claro, mas...
— Se ela achar ruim, achou, ora! Acabará aceitando. Ela gosta muito de você, Ann.
— Oh, eu sei.
— Ê bastante incômodo ser amado. Quase todo mundo descobre isso mais cedo ou mais tarde. Quanto menos pessoas nos amarem, menos teremos que sofrer.
Que sorte a minha, que a maioria das pessoas me deteste, e o resto sinta por mim apenas uma alegre indiferença.
— Laura, isso não é verdade. Eu...
— Adeus, Ann. E não obrigue o seu Richard a dizer que gosta de mim. Na verdade ele me detestou, mas isso não tem a menor importância.
Naquela noite, durante um jantar oficial, o erudito sentado junto a Dame Laura ficou desapontado quando, ao terminar de expor uma inovação revolucionária no tratamento por eletrochoques, descobriu que ela o olhava totalmente distraída.
— Você não estava ouvindo — exclamou, em tom de censura.
— Sinto muito, David. Estava pensando numa mãe e numa filha.
— Ah, sim, um caso — disse ele, interessado. — Não, não um caso. Amigas.
— Uma dessas mães possessivas?
— Não — respondeu ela. — Neste caso, trata-se de uma filha possessiva.

Capítulo V
1
— BEM, MINHA QUERIDA ANN — disse Geoffrey Fane, — certamente lhe dou meus cumprimentos, ou seja lá o que for que se costuma dizer nessas ocasiões. Hum... Ele é um felizardo, se me permite dizê-lo. Sim, um homem de muita sorte. Eu não o conheço, não é mesmo? Não consigo recordar o nome.
— Não, eu o conheço há apenas algumas semanas.
O professor Fane espiou docemente por cima dos óculos, como era seu hábito.
— Meu Deus — disse em tom de reprovação. — Não é tudo um tanto repentino? Precipitado?
— Não, acho que não.
— Entre os Matawayala, existe um período de corte de pelo menos um ano e meio.
— Deve ser uma gente muito cautelosa. Pensei que os selvagens obedecessem a impulsos primitivos.
— Os Matawayala estão longe de ser selvagens — respondeu Geoffrey Fane em voz chocada. — Sua cultura é muito característica. Seus rituais de casamento são curiosamente complexos. Na véspera da cerimônia, os amigos da noiva... ha, hum... bem, talvez seja melhor não falar nisso. Mas é realmente muito interessante, e parece sugerir que nalguma época o ritual sagrado do casamento da sacerdotisa-mor... não, acho que não devo continuar. Vamos falar do presente de casamento. Qual o presente que gostaria de receber, Ann?
— Você não precisa me dar nenhum presente, Geoffrey.
— É geralmente alguma coisa de prata, não é mesmo? Parece que me lembro de ter comprado uma caneca de prata... ah, não, isso foi para um batizado. Colheres, talvez? Ou uma torradeira? Ah, já sei: um centro de mesa. Mas Ann, você sabe alguma coisa sobre esse sujeito? Quero dizer, ele tem quem o recomende... amigos comuns, essas coisas? Porque a gente sempre lê coisas tão extraordinárias!
— Ele não me apanhou no cais, nem eu fiz um seguro de vida em seu favor.
Geoffrey Fane espiou para ela ansiosamente, e ficou aliviado ao descobrir que ela estava rindo.
— Está bem. Está certo. Temi que tivesse ficado aborrecida comigo. Mas é preciso ter cuidado. E o que a menina acha de tudo isso?
O rosto de Ann anuviou-se por um momento.
— Escrevi para Sarah... ela está na Suíça, sabe... mas não tive resposta. É claro que mal dava tempo para ela responder, mas eu esperava... — interrompeu-se.
— É difícil lembrar de responder cartas. Acho cada vez mais difícil. Fui convidado a fazer uma série de conferências em Oslo, em março. Tive a intenção
de responder, mas esqueci completamente. Fui descobrir a carta ontem... metida no bolso de um casaco velho.
— Ora, ainda tem bastante tempo — disse Ann, querendo consolá-lo.
Geoffrey Fane voltou para ela os suaves olhos azuis, cheio de tristeza.
— Mas o convite era para março passado, querida Ann.
— Ah, céus! Mas Geoffrey, como é que uma carta pode ficar todo esse tempo no bolso de um casaco?
— Era o meu casaco mais velho. Uma das mangas estava quase solta, o que o deixava muito incômodo. Eu... hmm... o deixei de lado.
— Alguém devia mesmo tomar conta de você, Geoffrey.
— Prefiro que não cuidem de mim. Tive uma vez uma governanta muito eficiente, ótima cozinheira, mas uma dessas inveteradas maníacas por limpeza. Chegou a pôr fora minhas anotações sobre os fazedores de chuva de Bulyano. Uma perda irreparável. Sua desculpa foi alegar que elas estavam dentro do balde de carvão... mas, como eu disse a ela, "um balde de carvão não é uma cesta de papéis, Sra..." Sei lá como se chamava. Temo que as mulheres não tenham nenhum sentido de proporção. Dão uma importância absurda à limpeza, tarefa que realizam como se fosse um ato ritual.
— Algumas pessoas dizem que é mesmo, não dizem? Laura Whitstable (você a conhece, naturalmente) me deixou realmente horrorizada com o significado
sinistro que parecia atribuir às pessoas que lavam o pescoço duas vezes por dia. Aparentemente, quanto mais sujos formos, mais limpo será nosso coração!
— Re... almente? Bem, tenho que ir andando — suspirou. — Sentirei sua falta, Ann, mais do que poderia dizer.
— Mas você não vai me perder, Geoffrey. Não vou embora daqui. Richard trabalha em Londres. Tenho certeza de que vai gostar dele.
Geoffrey Fane voltou a suspirar.
— Não será a mesma coisa. Não, não, quando uma mulher bonita casa com outro homem... — apertou a mão dela. — Você significou muito para mim, Ann. Cheguei a ter a esperança... mas não, não, teria sido impossível. Um velho fóssil como eu. Não, você se aborreceria. Mas gosto muito de você, Ann, e desejo sinceramente que seja feliz. Sabe do que você sempre me fez lembrar? Daquelas frases de Homero.
Citou, com visível prazer, um longo trecho em grego.
— Aí está — concluiu, sorrindo.
— Muito obrigada, Geoffrey. Não sei o que significa...
— Quer dizer...
— Não, não me diga. Nunca seria tão belo quanto parece. Que bela língua é o grego! Adeus, querido Geoffrey, e obrigada. Não vá esquecer seu chapéu. Esse não é seu guarda-chuva, é a sombrinha de Sarah... e... espere um minuto: aqui está sua pasta.
Fechou a porta atrás dele.
Edith pôs a cabeça para fora da porta da cozinha.
— Desamparado como um bebê, não é mesmo? Mas não que seja gagá. Acho que até é bem inteligente, nos assuntos dele. Embora eu ache que essas tribos
indígenas de quem ele gosta tanto têm umas idéias bem sujas. Aquela figura de madeira que ele trouxe para a senhora eu guardei no fundo da rouparia; está
precisando de um sutiã e de uma folha de parreira. E, no entanto, o velho professor não é capaz de um mau pensamento. E nem é tão velho assim.
— Tem quarenta e cinco anos.
— É isso. Foi esse estudo todo que fez ele perder o cabelo daquele jeito. O meu sobrinho teve uma febre e perdeu todo o cabelo. Ficou careca como um
ovo. Mas cresceu de novo, depois de um tempo. Tem duas cartas aqui.
Ann apanhou-as.
— Correspondência devolvida? — Seu rosto mudou. — Oh, Edith, é a carta que escrevi a Sarah. Como sou idiota! Enderecei ao hotel e não escrevi o
nome do lugar. Não sei o que há comigo ultimamente.
— Eu sei — disse Edith, de maneira significativa.
— Faço as coisas mais estúpidas... Esta outra é de Dame Laura... oh, que amor... tenho que telefonar a ela.
Foi até a sala, e discou.
— Laura? Acabo de receber sua carta. É muita gentileza. Nada me agradaria mais do que um Picasso. Sempre quis ter um. Vou pendurá-lo sobre a escrivaninha. Você é muito boa para mim. Oh, Laura, tenho sido tão idiota! Escrevi a Sarah, contando tudo... e agora minha carta voltou. Só escrevi "Hôtel des Alpes, Suíça". Pode imaginar alguém ser tão pateta?
A voz profunda de Laura disse:
— Hmm, interessante.
— O que quer dizer com "interessante"?
— Só o que disse.
— Conheço esse tom de voz. Você está querendo dizer alguma coisa. Está insinuando que eu na verdade não queria que Sarah recebesse minha carta, ou
coisa parecida. É essa sua teoria irritante que todos os erros são cometidos deliberadamente.
— A teoria não é bem minha.
— Bem, de qualquer modo, não é verdade. Cá estou eu, com Sarah voltando para casa depois de amanhã, e tendo de contar-lhe pessoalmente, o que será muito mais embaraçoso. Simplesmente não saberei como começar.
— Sim, é o que merece por não querer que Sarah recebesse aquela carta.
— Mas eu queria que ela recebesse. Não seja tão irritante.
Ouviu-se um riso reprimido no outro lado da linha.
Ann disse, mal-humorada:
— De qualquer maneira, é uma teoria ridícula! Ora, Geoffrey Fane acaba de sair daqui. Ele recebeu um convite para fazer conferências em Oslo em março
do ano passado, e só agora o encontrou, perdido num bolso. Você com certeza diria que ele o extraviou de propósito?
— Ele queria fazer conferências em Oslo? — perguntou Dame Laura.
— Suponho... bem, não sei.
Dame Laura disse: "interessante", numa voz maliciosa, e desligou.
2
Richard Cauldfield comprou um ramo de narcisos na florista da esquina.
Estava de bom humor. Após as primeiras dificuldades, começava a se ajustar à rotina do novo emprego. Achava Merrick Hellner, seu chefe, bastante simpático; e a amizade, iniciada em Burma, permanecia estável na Inglaterra. O trabalho não era técnico. Era um serviço administrativo comum, no qual um conhecimento de Burma e do Oriente vinha a calhar. Richard não era um homem brilhante, mas era escrupuloso, trabalhador, e tinha bastante bom-senso.
Os primeiros reveses de sua volta à Inglaterra foram esquecidos. Era como se começasse uma vida nora, com tudo a seu favor. Trabalho adequado, um patrão amável e compreensivo, e a perspectiva próxima de casar com a mulher amada.
A cada dia, de novo se admirava de que Ann gostasse dele. Como ela era meiga, gentil e atraente! E no entanto às vezes, quando ele expressava firmemente suas idéias, de maneira um tanto dogmática, ao levantar os olhos dava com ela a olhá-lo com um sorriso malicioso. Poucas vezes haviam rido dele, e a princípio não estava certo de que isso o agradasse; mas afinal foi forçado a admitir que, vindo de Ann, poderia aceitar, e até mesmo gostar disso.
Quando Ann dizia: "Não estamos sendo arrogantes, querido?" ele a princípio franzia o cenho, depois acompanhava o riso, e dizia: "Acho que estava sendo um pouco prepotente".
E uma vez ele lhe disse:
— É muito boa para mim, Ann. Você me faz muito mais humano.
Ela retrucou rapidamente:
— Nós dois somos bons um para o outro.
— Não há muito que eu possa fazer, exceto protegê-la e cuidar de você.
— Não me proteja demais. Não encoraje minhas fraquezas.
— Suas fraquezas? Ora, você não tem nenhuma!
— Oh, tenho sim, Richard. Gosto que as pessoas fiquem contentes comigo. Não gosto de contrariar ninguém. Não gosto de brigas, nem de confusões.
— Graças a Deus! Eu detestaria ter uma mulher brigona, sempre discutindo. Já vi várias, eu lhe garanto. A coisa que mais admiro em você, Ann, é estar sempre tranqüila e de bom humor. Minha querida, como vamos ser felizes juntos!
— Sim, acho que vamos.
Pensou que Richard tinha mudado bastante desde a noite em que o conhecera. Não tinha mais aquele jeito agressivo de um homem na defensiva. Estava, como ele mesmo dissera, muito mais humano. Mais seguro de si, e portanto mais tolerante e amável.
Richard apanhou os narcisos e caminhou até o bloco de apartamentos. O de Ann era no terceiro andar. Subiu pelo elevador, após ser saudado amavelmente pelo porteiro, que a esta altura já o conhecia bem de vista.
Edith abriu-lhe a porta e ele ouviu, lá do fim do corredor, a voz de Ann chamando um tanto ansiosa:
— Edith! Edith, você viu minha bolsa? Deixei-a em algum lugar.
— Boa tarde, Edith — disse Cauldfield ao entrar.
Nunca se sentia muito à vontade com Edith, e tentava dissimular o fato com uma cordialidade exagerada que não parecia muito natural.
— Boa tarde, senhor — disse Edith respeitosamente.
— Edith! — a voz de Ann soava com insistência, vinda do quarto. — Não me ouviu? Venha!
Ela saiu para o corredor bem quando Edith disse:
— É o Sr. Cauldfield, madame.
— Richard? — Ann veio pelo corredor na direção dele, parecendo surpresa. Puxou-o para a sala, dizendo a Edith, por sobre o ombro:
— Você tem que achar aquela bolsa. Veja se a deixei no quarto de Sarah.
— Da próxima vez, perde a cabeça — falou Edith.
Richard franziu as sobrancelhas. A liberdade de expressão de Edith feria seu senso de decoro. Os criados não falavam assim quinze anos atrás.
— Richard, não o esperava hoje. Pensei que viria almoçar amanhã. — Ela parecia surpresa, e um tanto constrangida.
— Amanhã parecia muito longe — disse ele, sorrindo. — Trouxe-lhe isto.
Ao entregar-lhe os narcisos, enquanto ela dava demonstrações de alegria, ele subitamente notou que já havia uma profusão de flores na sala. Um vaso de jacintos estava na mesinha baixa, junto ao fogo, e havia jarros de tulipas e de narcisos.
— Parece muito festiva — observou.
— É claro. Sarah volta hoje para casa.
— Oh, sim... sim, é verdade. Sabe, eu havia esquecido.
— Oh, Richard.
Ela falou em tom de censura. Era verdade, ele esquecera. Sabia perfeitamente o dia da chegada dela, mas quando ele e Ann haviam ido juntos ao teatro na noite anterior, nenhum dos dois fizera referência ao fato. No entanto, tinham discutido o assunto, e concordado em que Sarah teria Ann só para si na noite em que voltasse, e que ele viria almoçar no dia seguinte, para conhecer a futura enteada.
— Sinto muito, Ann. Na verdade me fugiu da memória. Você parece muito animada — acrescentou, com um ligeiro tom reprovador.
— Bem, voltas ao lar são sempre um tanto especiais, não acha?
— Acho que sim.
— Estou saindo para encontrá-la na estação. — Olhou o relógio. — Oh, está bem. De qualquer modo, acho que o trem vai chegar atrasado. Ele geralmente
chega.
Edith entrou marchando na sala, carregando a bolsa de Ann.
— A rouparia... foi lá que deixou.
— É claro, quando estava procurando as fronhas. Pôs os lençóis verdes na cama dela? Não esqueceu?
— Ora, eu alguma vez esqueço?
— E lembrou dos cigarros?
— Sim.
— E Toby e Jumbo?
— Sim, sim, sim.
Balançando indulgentemente a cabeça, Edith saiu da sala.
— Edith! — Ann chamou-a de volta e estendeu-lhe os narcisos. — Ponha num vaso, sim?
— Vai ser difícil encontrar um. Não se preocupe, eu acho alguma coisa. — Apanhou as flores e saiu.
Richard falou:
— Você está alvoroçada como uma criança, Ann.
— Bem, é tão bom pensar em voltar a ver Sarah!
Ele perguntou em tom de troça, embora com uma leve dureza na voz:
— Há quanto tempo não a vê? Três semanas inteiras?
— Sei que provavelmente estou sendo ridícula — Ann sorriu candidamente — mas gosto muito de Sarah, mesmo. Você não gostaria que eu não a amasse,
gostaria?
— É claro que não. Estou ansioso por conhecê-la.
— Ela é tão impulsiva e afetuosa. Tenho certeza de que vocês vão se dar bem.
— Estou certo que sim — acrescentou, ainda sorrindo. — Ela é sua filha, portanto é certamente uma pessoa encantadora.
— Que gentil de sua parte dizer isso, Richard — pousou as mãos nos ombros dele, e levantou o rosto. — Querido Richard — murmurou ao beijá-lo. Então acrescentou: — Você... você será paciente, não, querido? Quer dizer... você vê, nós nos casarmos pode ser até certo ponto um choque para ela. Se ao menos eu não tivesse feito aquela tolice com a carta!
— Ora, vamos, acalme-se querida. Sabe que pode confiar em mim. Talvez Sarah custe a aceitar de início, mas devemos fazê-la ver que é realmente uma
idéia muito boa. Eu lhe asseguro que não me ofenderei com coisa alguma que ela disser.
— Oh, ela não dirá coisa alguma. Sarah é muito bem educada. Mas ela tem tanto horror a qualquer tipo de mudança!
— Bem, anime-se, querida. Afinal de contas, ela não pode impedir o casamento, pode?
Ann não respondeu à brincadeira. Ainda parecia preocupada.
— Se ao menos eu tivesse escrito logo...
Richard falou, rindo abertamente:
— Você está com o ar exato da menininha que foi apanhada roubando geléia! Vai dar tudo certo, querida. Sarah e eu logo seremos amigos.
Ann olhou-o com ar de dúvida. Não gostou da segurança da atitude dele; preferiria que estivesse um pouco mais nervoso.
Richard continuou:
— Querida, você precisa mesmo não deixar que as coisas a preocupem assim.
— Eu habitualmente não deixo — disse Ann.
— Deixa, sim. Cá está você tremendo, quando a coisa toda é perfeitamente simples e coerente.
— É só que estou... bem, acanhada. Não sei exatamente o que dizer, como explicar.
— Por que não dizer apenas "Sarah, este é Richard Cauldfield. Vou casar-me com ele daqui a três semanas".
— Assim tão cruamente? — Ann sorriu, a despeito de si mesma. Richard retribuiu o sorriso.
— Não é mesmo a melhor maneira?
— Talvez seja — ela hesitou. — O que você não percebe é que eu vou me sentir tão... tão terrivelmente boba.
— Boba? — ele a interrompeu vivamente.
— A gente se sente mesmo boba ao contar a uma filha crescida que vai casar.
— Não posso ver por quê.
— Suponho que é porque os jovens inconscientemente consideram que a gente tenha acabado esse tipo de coisa. Para eles, nós somos velhos. Eles acham
que o amor (apaixonar-se, quero dizer) é monopólio da juventude. Não podem deixar de achar ridículo que pessoas de meia-idade se apaixonem e se casem.
— Não há nada de ridículo nisso — disse Richard bruscamente.
— Não para nós, porque somos de meia-idade.
Richard franziu as sobrancelhas. Quando falou, foi com uma certa aspereza:
— Agora olhe aqui, Ann, sei que você e Sarah são muito devotadas uma à outra. Acho provável que a menina venha a se sentir um tanto magoada e enciumada. Eu entendo; é natural, e estou disposto a aceitar isso. Acho provável que ela me deteste, de início... mas vai acabar mudando de opinião. É preciso fazê-la entender que você tem direito a viver sua própria vida, a encontrar sua própria felicidade.
Um leve rubor subiu ao rosto de Ann.
— Sarah não vai se ressentir com o que você chama de "minha felicidade" — disse ela. — Sarah nada tem de egoísta ou mesquinha. É a criatura mais generosa do mundo.
— A verdade é que você está se enervando por nada, Ann. Sarah talvez fique até bem contente que você case. Isso a deixará mais livre para viver sua própria vida.
— Viver sua própria vida — Ann repetiu a frase com sarcasmo. — Francamente, Richard, você fala como um romance vitoriano.
— A verdade é que vocês, mães, nunca querem que o pássaro abandone o ninho.
— Você está muito enganado, Richard. Totalmente enganado.
— Não quero aborrecê-la, querida, mas às vezes até o amor da mais devotada das mães pode ser demasiado. Ora, lembro de quando eu era jovem. Gostava muito de meu pai e de minha mãe, mas morar com eles era muitas vezes exasperante. Sempre me perguntando aonde ia, e a que horas ia voltar. "Não esqueça sua chave"; "Tente não fazer barulho quando entrar"; "Esqueceu de apagar a luz do hall, da última vez"; "O quê? Sair de novo esta noite?"; "Não parece gostar nem um pouco de sua casa, depois de tudo que
fizemos por você". — Fez uma pausa. — Eu gostava da minha casa... mas, Meu Deus, como eu queria só me sentir livre!
— Entendo tudo isso, é claro.
— Então não deve se sentir ferida se no final Sarah desejar mais sua independência do que você pensa. Lembre-se de que há tantas carreiras abertas
às moças hoje em dia.
— Sarah não é do tipo de fazer carreira.
— Isso é o que você diz. Mas lembre-se de que a maioria das moças trabalha.
— Isso é em grande parte uma questão de necessidade econômica, não é?
— O que quer dizer com isso?
Ann falou com impaciência:
— Você está uns quinze anos atrasado, Richard. Houve uma época em que era moda "levar a própria vida" e "sair para o mundo". As moças ainda o fazem mas não há encanto algum nisso. Com as taxas e os impostos que recaem sobre as heranças, e todo o resto da história, uma moça faz bem em se preparar para alguma coisa. Sarah não tem nenhuma tendência em especial. Ela tem algum conhecimento de línguas modernas, e está fazendo um curso de decoração floral.
Uma amiga nossa dirige uma loja de decorações florais e conseguiu um lugar para Sarah lá. Acho que ela vai gostar bastante, mas é só um emprego e nada mais que isso. Não, é inútil falar tão solenemente nesse negócio todo de independência. Sarah adora a casa dela e é perfeitamente feliz aqui.
— Sinto muito se a contrariei, Ann, mas... — interrompeu-se quando Edith enfiou a cabeça para dentro da sala. Seu rosto tinha a expressão de alguém
que escutou mais do que pretende admitir.
— Não quero interrompê-la, madame, mas sabe que horas são?
Ann olhou o relógio.
— Ainda tenho muito... ora, está marcando exatamente a mesma hora que marcava da última vez que olhei. — Levou o relógio ao ouvido. — Richard,
ele parou. Que horas são realmente, Edith?
— Passam vinte minutos da hora.
— Meu Deus, não vou encontrá-la. Mas os trens estão sempre atrasados, não estão? Onde está minha bolsa? Oh, aqui. Há muitos táxis agora, graças a Deus.
Não, Richard, não venha comigo. Olhe, fique e tome chá conosco. Sim, fique. Sério. Acho que seria melhor. Acho mesmo. Tenho que ir.
Saiu correndo da sala. A porta da frente bateu. O balanço do casaco de pele tinha tirado duas tulipas do vaso. Edith parou para apanhá-las e voltou a arrumá-las cuidadosamente no vaso, dizendo enquanto o fazia:
— Tulipas são as flores favoritas da Srta. Sarah. Sempre foram, especialmente as lilases.
Richard disse, um pouco irritado:
— Tudo aqui parece girar em torno da Srta. Sarah.
Edith lançou-lhe um rápido olhar. Seu rosto permaneceu imperturbável — desaprovador como sempre. Falou, na sua voz insípida e fria:
— Ah, ela é insinuante, isso não se pode negar. Já notei muitas vezes como tem moças que deixam as coisas desarrumadas, esperam que tudo seja consertado para elas, fazem a gente gastar os pés de tanto arrumar a desordem que fazem... e ainda assim não há o que a gente não faça por elas! Tem outras que não incomodam nada, tudo arrumadinho, nada de trabalho demais... e, no entanto, veja só, a gente parece que não gosta delas do mesmo jeito. Diga o que
disser, é um mundo injusto. Só um político maluco pode falar em quinhões justos para todos. Uns têm um milhão, outros um tostão, e a coisa é assim mesmo.
Movia-se pela sala enquanto falava, pondo em ordem um ou dois objetos e afofando uma das almofadas.
Richard acendeu um cigarro, e perguntou amavelmente:
— Você está há muito tempo com a Sra. Prentice, não Edith?
— Mais de vinte anos. Vinte e dois, quero dizer. Vim para a mãe dela antes da Srta. Ann casar com o Sr. Prentice. Um cavalheiro muito bom, ele era.
Richard lançou-lhe um olhar penetrante. Seu ego ultra-sensível levou-o a imaginar que houvera uma ligeira ênfase no "ele".
Perguntou:
— A Sra. Prentice lhe contou que vamos nos casar em breve?
Edith sacudiu a cabeça.
— Não que precisasse contar — disse ela.
Richard, falando em tom solene porque estava acanhado, continuou, um tanto constrangido:
— Eu... eu espero que sejamos bons amigos, Edith.
Edith disse sombriamente:
— Eu também espero, senhor.
Richard continuou, ainda falando em tom formal:
— Temo que possa significar trabalho a mais para você, mas precisamos arranjar alguém que ajude...
— Não gosto dessas mulheres que vêm. Quando estou sozinha, sei onde estou. Sim, vai mudar muito ter um cavalheiro na casa. Para começar, as refeições são diferentes.
— Na verdade não sou de comer muito — Richard lhe assegurou.
— É o tipo de refeição — disse Edith. — Cavalheiros não aprovam bandejas.
— As mulheres as aprovam um pouco demais.
— Isso pode ser — admitiu Edith. Numa voz lúgubre, acrescentou: — Não nego que um cavalheiro em casa anima as coisas.
Richard sentiu-se quase enjoativamente agradecido.
— É muita bondade sua, Edith — disse com entusiasmo.
— Oh, pode confiar em mim, senhor. Eu não vou deixar a Sra. Prentice. Não deixo por nada deste mundo. E, afinal, nunca foi do meu feitio abandonar o
barco se há barulho a bordo.
— Barulho? O que quer dizer com barulho?
— Tempestade.
Richard repetiu o que ela dissera:
— Tempestade?
Edith encarou-o sem pestanejar.
— Ninguém me pediu conselho — disse ela. — E eu não sou do tipo que vai dando sem que peçam. Mas uma coisa eu digo: se a Srta. Sarah tivesse voltado para casa e a coisa toda estivesse feita e acabada... bem, teria sido melhor, se é que me entende.
A campainha da porta da frente tocou, e logo voltou a soar insistentemente.
— E eu sei muito bem quem é — disse Edith.
Saiu para o vestíbulo. Quando abriu a porta, ouviram-se duas vozes, uma feminina e outra masculina. Houve risos e exclamações.
— Edith, minha jóia! — Era uma voz de moça, uma voz cálida de contralto. — Onde está Mamãe? Vamos, Gerry, jogue esses esquis na cozinha.
— Não, na minha cozinha é que não!
— Onde está Mamãe? — repetiu Sarah Prentice, entrando na sala e falando por sobre o ombro.
Era uma moça alta e morena, e seu vigor e vitalidade exuberantes surpreenderam Richard Cauldfield. Ele vira fotografias de Sarah pelo apartamento, mas uma fotografia nunca pode retratar a vida. Ele tinha esperado uma edição mais jovem de Ann — uma edição mais dura, mais moderna, mas o mesmo tipo. Mas Sarah Prentice se parecia com o pai, alegre e encantadora. Era exótica e impaciente, e sua simples presença parecia transformar toda a atmosfera do apartamento.
— Oh, tulipas adoráveis — exclamou ela, curvando-se por sobre o vaso. — Elas têm aquele leve cheiro de limão que é absolutamente primavera. Eu...
Seus olhos se arregalaram enquanto ela endireitava o corpo e via Cauldfield. Ele se adiantou, dizendo:
— Meu nome é Richard Cauldfield.
Sarah apertou-lhe a mão delicadamente, perguntando de maneira educada:
— Está esperando por Mamãe?
— Receio que ela tenha recém-saído para esperá-la na estação... deixe-me ver... há cinco minutos.
— Que coisa mais idiota! Por que Edith não a fez sair em tempo? Edith!
— O relógio dela tinha parado.
— Os relógios de Mamãe... Gerry... Onde você anda, Gerry?
Um rapaz de rosto bonito e expressão um tanto descontente espiou para dentro por um momento, com uma mala em cada mão.
— Gerry, o robô humano — observou ele. — Onde quer tudo isto, Sarah? Por que vocês não têm porteiros nesses apartamentos?
— Nós temos. Mas eles nunca estão por perto se a gente chega com bagagem. Leve para o meu quarto, Gerry. Oh, este é o Sr. Lloyd. Senhor...
— Cauldfield — disse Richard.
Edith entrou. Sarah agarrou-a e deu-lhe um beijo estalado.
— Edith, é adorável ver sua carinha de gato rabugento.
— Gato rabugento uma ova — disse Edith, indignada. — E não vá me beijando, Srta. Sarah. Devia conhecer melhor o seu lugar.
— Não fique tão zangada, Edith. Você sabe que está encantada em me ver. Como tudo parece limpo! Está tudo igualzinho. Os estofados, e a caixa de conchas de Mamãe... oh, vocês mudaram o sofá de lugar. E a escrivaninha costumava ficar lá.
— Sua mãe diz que assim fica mais espaçoso.
— Não, eu quero como era antes. Gerry! Gerry, onde anda você?
Gerry Lloyd entrou, perguntando:
— O que é, agora?
Sarah já estava arrastando a escrivaninha. Richard fez menção de ajudá-la, mas Gerry disse animadamente :
— Não se incomode, senhor, eu faço. Onde você a quer, Sarah?
— Onde estava antes. Lá.
Quando tinham mudado a escrivaninha e empurrado o sofá para a antiga posição, Sarah suspirou e disse:
— Assim é melhor.
— Não estou tão certo disso — replicou Gerry, afastando-se para observar o efeito.
— Bem, eu estou — retrucou Sarah. — Gosto que tudo esteja igual. De outro modo, não é minha casa. Onde está a almofada de passarinhos, Edith?
— Foi para a lavanderia.
— Oh, bem, está certo. Tenho que ir ver meu quarto. — Parou na portada, para dizer: — Prepare uns drinques, Gerry. Dê um ao Sr. Coalfield. Você
sabe onde estão as coisas.
— Certo — Gerry olhou para Richard. — O que vai tomar? Martini, gim e laranja? Pink-gin?
Richard tomou uma súbita decisão.
— Não, muito obrigado. Nada para mim. Tenho de sair.
— Não vai esperar até a Sra. Prentice voltar? — Gerry tinha maneiras agradáveis e encantadoras. — Não penso que ela vá demorar. Assim que descobrir que o trem já chegou, vai voltar direto.
— Não, preciso ir. Diga à Sra. Prentice que o... compromisso... está de pé... para amanhã.
Cumprimentou Gerry com a cabeça e saiu para o vestíbulo. Podia ouvir pelo corredor a voz de Sarah, vinda do quarto, falando com Edith numa torrente de palavras.
Melhor não ficar agora, pensou. O plano original dele e de Ann fora o acertado. Ela poderia contar a Sarah esta noite, e amanhã ele viria almoçar e começar a fazer amizade com a futura enteada.
Estava perturbado porque Sarah não era como tinha imaginado. Ele pensara nela como superprotegida por Ann, como dependente dela. Sua beleza, sua vitalidade e segurança o haviam assustado.
Até aqui, ela fora uma mera abstração. Agora era realidade.

Capítulo VI
SARAH voltou à sala, fechando um robe de brocado.
— Eu tinha que tirar aquela roupa de esquiar. Quero mesmo um banho. Como os trens são sujos! Tem um drinque para mim, Gerry?
— Cá está.
Sarah apanhou o copo.
— Obrigada. Aquele homem já foi? Bom trabalho.
— Quem era ele?
— Nunca o vi na minha vida — disse Sarah. Riu: — Deve ser um desses que Mamãe pega na rua.
Edith entrou na sala para puxar as cortinas, e Sarah perguntou:
— Quem era ele, Edith?
— Um amigo de sua mãe, Srta. Sarah. — Edith deu um puxão nas cortinas e rumou para a segunda janela.
Sarah disse animadamente:
— Já era tempo de voltar para casa e escolher os amigos dela.
Edith disse "Ah", e puxou a segunda cortina. Então, olhando fixamente para Sarah, ela falou:
— Não gostou dele?
— Não, não gostei.
Edith resmungou alguma coisa e saiu da sala.
— O que foi que ela disse, Gerry?
— Acho que falou que era uma pena.
— Que engraçado.
— Parecia misteriosa.
— Ora, você sabe como ela é. Por que Mamãe não chega? Por que tem que ser tão confusa?

— Ela não costuma ser muito confusa. Eu, pelo menos, não diria isso.
— Foi delicadeza sua vir me receber, Gerry. Sinto nunca ter escrito, mas você sabe como é a vida. Como conseguiu sair do escritório a tempo de ir à Vitória?
Houve uma ligeira pausa, antes que Gerry dissesse:
— Oh, não foi particularmente difícil, face às circunstâncias.
Sarah sentou-se, muito atenta, e olhou para ele.
— Então, Gerry, conte logo. O que há de errado?
— Nada. Só que as coisas não saíram muito bem.
Sarah falou em tom acusador:
— Você disse que ia ser paciente e manter a calma.
Gerry franziu as sobrancelhas.
— Sei de tudo isso, querida, mas você não tem idéia do que tem sido. Bom Deus, voltar para casa depois de um lugar como a Coréia, onde tudo é infernal mas ao menos a maioria dos caras é decente, e se ver preso num escritório ganancioso da City. Você não imagina como é o Tio Luke. Gordo e ofegante, com olhinhos vivos como os de um porco. "Contente em vê-lo em casa, meu filho". — Gerry era um bom mímico. Ele arquejava a cada palavra, num jeito asmático e untuoso. — "Er... ah... espero que, agora que essa agitação acabou, você venha para o escritório e aa... aa... e se esforce mesmo de verdade. Nós estamos... aa... com falta de pessoal... acho que posso dizer que há... excelentes perspectivas se você levar mesmo a sério o trabalho. Naturalmente começará de baixo. Nada... aa... de favores, é o meu lema. Você já teve um longo período de folga... agora veremos se pode começar a trabalhar seriamente".
Levantou-se, e começou a caminhar.
— Folga, é assim que aquela coisa gorda chama o serviço ativo no exército. Por Deus, eu gostaria de vê-lo tocaiado por um daqueles comunistas amarelos. Esses ricaços ficam de traseiro sentado nos escritórios, sem pensar em nada a não ser dinheiro...
— Ora cale-se, Gerry — disse Sarah, impaciente. — Seu tio simplesmente não tem imaginação. Afinal, você mesmo disse que precisava ter um emprego e ganhar algum dinheiro. Não nego que seja tudo muito desagradável, mas qual é a alternativa? Na verdade você tem sorte em ter um tio rico na City. A maioria das pessoas daria os olhos para ter um!
— E por que ele é rico? — perguntou Gerry. — Porque está nadando no dinheiro que devia ter vindo para mim. Por que meu tio-avô Harry deixou para
ele, ao invés de deixar para meu pai, que era o irmão mais velho...
— Tudo isso não importa — disse Sarah. — De qualquer jeito, provavelmente quando o dinheiro chegasse às suas mãos já não restaria mais nada. Teria ido tudo no imposto de transmissão causa mortis.
— Mas foi injusto. Você admite isso?
— Tudo é sempre injusto — retorquiu Sarah. — Mas não adianta continuar se queixando. Para começar, isso deixa você extremamente maçante. A gente fica tão cansada de só ouvir falar na falta de sorte das pessoas.
— Devo dizer que você não está sendo muito compreensiva.
— Não. Sabe, no que eu acredito é em franqueza absoluta. Acho que devia ou tomar uma atitude e sair desse emprego, ou parar de se queixar dele e apenas
agradecer aos céus por ter um tio rico na City, com olhos de porco e asma. Olá, parece que Mamãe chegou finalmente.
Ann mal abrira a porta. Entrou correndo na sala.
— Sarah querida!
— Mamãe... finalmente — Sarah envolveu a mãe num grande abraço. — O que houve?
— É o meu relógio. Tinha parado.
— Bem, Gerry me encontrou, o que já foi alguma coisa.
— Oh, olá Gerry, não o tinha visto. — Ann saudou-o animadamente, embora no íntimo se sentisse irritada. Desejava tanto que essa história de Gerry acabasse!
— Deixe-me olhá-la, querida — disse Sarah. — Você está muito elegante. Esse chapéu é novo, não? Está com ótimo aspecto, Mamãe.
— Você também. E tão bronzeada!
— Sol na neve. Edith está terrivelmente desapontada por eu não ter chegado em casa envolta em ataduras. Você gostaria que eu tivesse quebrado alguns ossos, não é Edith?
Edith, que estava trazendo a bandeja do chá, não replicou diretamente:
— Trouxe três xícaras — disse ela, — embora pense que a Srta. Sarah e o Sr. Lloyd não vão querer, uma vez que estão tomando gim.
— Como você faz isso soar dissoluto, Edith — observou Sarah. — Em todo caso, nós oferecemos àquele fulano. Quem é ele, Mamãe? Um nome como Cauliflower.
Edith disse a Ann:
— O Sr. Cauldfield disse que não podia esperar, madame. Vai vir amanhã, como tinha ficado combinado.
— Quem é Cauldfield, Mamãe, e por que ele tem que vir amanhã? Tenho certeza de que não o queremos.
Ann disse rapidamente:
— Você toma mais um, não Gerry?
— Não, obrigado, Sra. Prentice. Preciso mesmo ir agora. Adeus, Sarah.
Sarah foi com ele até o vestíbulo. O rapaz perguntou :
— Que tal um cinema esta noite? Há um bom filme francês no Academy.
— Oh, que bom. Não... talvez seja melhor não ir. Afinal, é minha primeira noite em casa. Penso que devia passá-la com Mamãe. A pobrezinha pode ficar desapontada se eu sair logo.
— Eu acho, Sarah, que você é uma filha incrivelmente boa.
— Bem, Mamãe é mesmo muito querida.
— Oh, sei que é.
— Faz um monte incrível de perguntas, é claro. Você sabe, quem a gente encontrou e o que fez. Mas de um modo geral, para uma mãe ela é bastante sensata. Vamos fazer uma coisa, Gerry, se eu achar que não tem problema telefono mais tarde.
Sarah voltou à sala e começou a mordiscar bolinhos.
— Esses são a especialidade de Edith — observou. — Loucamente engordantes. Não sei onde ela consegue arranjar os ingredientes. Agora, Mamãe, conte-me tudo o que tem feito. Tem saído com o Coronel Grant e o resto dos amigos, e se divertido bastante?
— Não... só que... sim, de um certo modo...
Ann parou. Sarah encarou-a.
— Aconteceu alguma coisa, Mamãe?
— Acontecer? Não. Por quê?
— Você está tão estranha!
— Eu?
— Mamãe, alguma coisa há. Você realmente parece muito esquisita. Vamos, conte. Nunca vi uma expressão tão culpada. Vamos, Mamãe, o que andou fazendo?
— Nada... nada de mais. Oh, Sarah, querida. Precisa crer que não fará nenhuma diferença. Tudo será o mesmo, só que... — A voz de Ann vacilou e
morreu. "Como sou covarde", pensou consigo. "Por que uma filha deixa a gente tão acanhada, ao falar nessas coisas?"
Enquanto isso Sarah continuava a encará-la. Subitamente começou a sorrir da maneira mais amável possível.
— Eu acho... Vamos, Mamãe, confesse. Está tentando me contar, com jeito, que vou ter um padrasto?
— Oh, Sarah — Ann deu um suspiro de alívio.
— Como adivinhou?
— Não foi tão difícil assim. Nunca vi alguém tremer de maneira tão horrível. Pensou que eu fosse me importar?
— Acho que pensei. E não se importa? Mesmo?
— Não — respondeu Sarah em tom sério. — Acho até que está certa. Afinal, Papai morreu há dezesseis anos. Você deve ter alguma vida sexual antes que seja tarde demais. Está exatamente no que chamam de idade perigosa. E é antiquada demais para apenas ter um caso.
Ann olhou um tanto desamparada para a filha. Pensou em como tudo estava acontecendo de modo diferente do que pensara.
— Sim — disse Sarah, balançando a cabeça. — Com você tem que ser casamento.
Ann pensou: "Esse querido bebê absurdo", mas teve cuidado em não dizer coisa alguma desse tipo.
— Você ainda é bem bonita — continuou Sarah, com a devastadora franqueza da juventude. — É por que tem pele boa. Mas ficaria muito mais bonita se depilasse as sobrancelhas.
— Gosto das minhas sobrancelhas — disse Ann, obstinadamente.
— Você é mesmo tremendamente atraente, querida — disse Sarah. — Fico mesmo surpresa por não ter escapado antes. Quem é, por falar nisso? Tenho três palpites: um, o Coronel Grant, dois o Professor Fane, três aquele polonês melancólico de nome impronunciável. Mas estou quase certa de que é o Coronel Grant. Ele anda atrás de você há anos.
Ann disse quase sem fôlego:
— Não é James Grant. É... é Richard Cauldfield.
— Quem é Richard Cauld... Mamãe, aquele homem que estava aqui ainda agora?
Ann assentiu com a cabeça.
— Mas não pode, Mamãe. Ele é todo arrogante e horrível.
— Não é nem um pouco horrível — disse Ann, asperamente.
— Francamente, Mamãe, você podia conseguir coisa melhor.
— Sarah, não sabe do que está falando. Eu... eu gosto muito dele.
— Quer dizer que o ama? — Sarah estava francamente incrédula. — Quer dizer que está realmente apaixonada por ele?
Ann voltou a sacudir a cabeça.
— Sabe — disse Sarah, — eu não consigo mesmo entender tudo isso.
Ann endireitou os ombros.
— Você viu Richard apenas por um ou dois momentos — disse ela. — Quando o conhecer melhor, estou certa de que gostará muito dele.
— Parece tão agressivo!
— É porque estava acanhado.
— Bem — disse Sarah lentamente. — O enterro é seu, é claro.
Mãe e filha permaneceram silenciosas por alguns momentos. Estavam ambas constrangidas.
— Sabe, Mamãe — falou Sarah, rompendo o silêncio. — Precisa mesmo de alguém para cuidar de você. Só porque me afasto por algumas semanas, faz uma bobagem.
— Sarah! — Ann encolerizou-se. — Você está sendo muito cruel.
— Sinto muito, querida, mas acredito em franqueza total.
— Bem, acho que eu não.
— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — perguntou Sarah.
A despeito de si mesma, Ann deu uma risada.
— Francamente, Sarah, você parece um pai tirano nalgum drama vitoriano. Conheci Richard há três semanas.
— Onde?
— Com James Grant. James o conhece há anos. Ele voltou recentemente de Burma.
— Ele tem dinheiro?
Ann estava tão irritada quanto comovida. Como aquela criança era ridícula! Tão resoluta nas suas perguntas. Controlando a irritação, disse numa voz seca e irônica:
— Tem uma renda independente e é perfeitamente capaz de me sustentar. Trabalha na Hellner Brothers, uma grande firma da City. Francamente, Sarah,
qualquer um pensaria que eu sou sua filha, e não sua mãe.
Sarah disse seriamente:
— Bem, alguém tem que tomar conta de você, querida. É positivamente incapaz de cuidar de si mesma. Gosto muito de você, e não quero que faça uma
bobagem. Ele é solteiro, divorciado ou viúvo?
— Perdeu a mulher há muitos anos. Ela morreu ao ter o primeiro filho, e o bebê morreu também.
Sarah suspirou e balançou a cabeça.
— Estou entendendo tudo agora. Foi assim que ele conseguiu prendê-la. Você sempre teve um fraco por essas histórias sentimentalóides.
— Deixe de ser absurda, Sarah!
— Ele tem mãe e irmãs... todo esse tipo de coisas?
— Acho que não tem parentes próximos.
— Isso é uma bênção, pelo menos. Ele tem casa? Onde vocês vão morar?
— Aqui, acho eu. Há montes de lugar, e ele trabalha em Londres. Você não se importa, não é Sarah?
— Oh, eu não me importo. Estou pensando apenas em você.
— Querida, isso é muito gentil de sua parte, mas eu realmente sei melhor da minha vida. Estou certa de que Richard e eu seremos felizes juntos.
— Quando estão pensando em casar?
— Dentro de três semanas.
— Três semanas? Oh, não pode casar com ele tão cedo!
— Não parece haver razão para esperar.
— Oh, por favor, querida. Adie um pouco. Dê-me algum tempo para... para me acostumar à idéia. Por favor, Mamãe.
— Não sei... vamos ver...
— Seis semanas. Deixe para seis semanas.
— Nada foi decidido ainda, na verdade. Richard vem almoçar amanhã. Você... Sarah... você será boazinha com ele, não?
— Claro que serei boazinha. O que está pensando?
— Obrigada, querida.
— Anime-se, Mamãe, não há razão para se preocupar.
— Estou certa de que vão gostar muito um do outro — disse Ann, um tanto sem convicção.
Sarah ficou em silêncio.
Ann falou novamente num repente de raiva:
— Pode ao menos tentar...
— Já lhe disse que não precisa se preocupar — acrescentou Sarah, depois de alguns momentos. — Prefere que eu fique em casa hoje à noite?
— Por quê? Está com vontade de sair?
— Pensei que talvez saísse... mas não quero deixá-la sozinha, Mamãe.
Ann sorriu para a filha, e o antigo relacionamento se restabeleceu.
— Oh, não ficarei sozinha. Para falar a verdade, Laura convidou-me para uma conferência.
— Como está a velha guerreira? Incansável como sempre?
— Oh, sim, como sempre. Eu disse não à conferência, mas posso facilmente telefonar a ela.
Podia, com a mesma facilidade, telefonar a Richard... Mas recuou. Seria melhor conservar-se longe de Richard até que ele e Sarah se tivessem encontrado, no dia seguinte.
— Então muito bem — disse Sarah. — Vou telefonar a Gerry.
— Ah, é com Gerry que vai sair?
Sarah falou, num desafio:
— Sim. Por que não?
Mas Ann não aceitou a provocação. Disse suavemente :
— Estava só pensando...

Capítulo VII
1
— GERRY?
— Sim, Sarah?
— Não quero ver esse filme. Podemos ir conversar em algum lugar?
— Claro. Vamos comer alguma coisa?
— Oh, eu não poderia. Edith simplesmente me empanturrou.
— Bem, então vamos beber alguma coisa num lugar qualquer. — Olhou-a de relance, pensando no que a teria aborrecido.
Sarah só falou depois que estavam acomodados, diante dos copos. Então irrompeu abruptamente:
— Gerry, Mamãe vai casar de novo.
— Opa! — Gerry estava verdadeiramente surpreso. Perguntou: — Você não suspeitava?
— Como poderia? Ela só o conheceu depois que viajei.
— Trabalho rápido.
— Rápido demais. Para algumas coisas Mamãe simplesmente não tem juízo.
— Quem é ele?
— Aquele homem que estava lá esta tarde. O nome dele é Cauliflower, ou coisa parecida.
— Ah, aquele homem.
— Sim. Não concorda que ele é um tanto impossível?
— Bem, não prestei muita atenção nele — disse Gerry, refletindo. — Parecia um sujeito bastante comum.

— Ele é absolutamente a pessoa errada para Mamãe.
— Acho que ela é quem pode julgar isso melhor — falou Gerry, em tom conciliador.
— Não, não pode. O problema de Mamãe é que ela é fraca. Fica com pena das pessoas. Mamãe precisa de alguém que cuide dela.
— Ela aparentemente pensa o mesmo — disse Gerry com um sorriso.
— Não ria, Gerry; isto é sério. Cauliflower é o tipo errado para Mamãe.
— Bem, isso é assunto dela.
— Eu tenho que cuidar dela. Sempre senti isso. Conheço mais a vida, e sou duas vezes mais resistente.
Gerry não discutiu a afirmação. De um modo geral, concordava. Ainda assim, estava preocupado. Disse lentamente:
— De qualquer modo, Sarah, se ela quer casar novamente...
Sarah não o deixou terminar:
— Ah, eu concordo com isso. Mamãe deve casar de novo. Eu disse isso a ela. Ela está precisando de mais de uma vida sexual normal. Mas definitivamente
não com o Cauliflower.
— Você não acha... — Gerry parou, em dúvida.
— Não acha o quê?
— Que talvez possa... bem, sentir o mesmo por alguém? — Estava um pouco nervoso, mas deixou escapar as palavras. — Afinal, não pode realmente saber
se Cauliflower não serve para ela. Você não trocou duas palavras com ele. Não acha que talvez na verdade esteja — precisou de coragem para dizer a última palavra, mas conseguiu — aaa... com ciúmes?
Sarah imediatamente saltou:
— Com ciúmes? Eu? Quer dizer, essa história de padrasto? Gerry querido! Não lhe disse há muito tempo... antes de ir para a Suíça... que Mamãe precisava
voltar a casar?
— Sim. Mas há uma diferença — disse Gerry num lampejo de percepção — entre só dizer as coisas e vê-las acontecer de verdade.
— Não sou ciumenta — disse Sarah. — Só estou pensando na felicidade de Mamãe — acrescentou virtuosamente.
— Se eu fosse você, não andaria brincando com a vida dos outros.
— Mas é minha própria Mãe.
— Bem, ela provavelmente sabe melhor da sua vida.
— Estou lhe dizendo que Mamãe é fraca.
— De qualquer modo — disse Gerry — não há nada que você possa fazer.
Pensou que Sarah estava fazendo muito barulho por nada. Estava cansado de Ann e seus problemas, e queria falar de si mesmo.
Disse abruptamente:
— Estou pensando em dar o fora.
— Dar o fora do escritório do seu tio? Ah, Gerry...
— Não posso mesmo agüentar mais. Fazem um barulho dos diabos cada vez que me atraso quinze minutos.
— Bem, a gente tem de ser pontual em escritórios, não?
— Bando miserável de indolentes. Sempre às voltas com aqueles livros de contabilidade, pensando só em dinheiro, da manhã à noite.
— Mas Gerry, se mandar o emprego às favas, o que irá fazer?
— Ora, encontrarei alguma coisa — disse Gerry serenamente.
— Você já tentou muitas coisas — falou Sarah em tom de dúvida.
— Está querendo dizer que sempre me põem na rua? Bem, não vou esperar que me despeçam desta vez.
— Mas Gerry, francamente, acha que está sendo inteligente? — Sarah olhou para ele com uma solicitude preocupada, quase maternal. — Quer dizer, ele é seu tio, e quase o único parente que tem, e você disse que ele estava nadando em dinheiro.
— E se eu me portasse bem ele poderia me deixar todo seu dinheiro? Suponho que é o que quer dizer.
— Bem, você já se queixa o suficiente daquele tio-avô — como é o nome dele? — por não ter deixado o dinheiro para seu pai.
— Se ele tivesse tido qualquer sentimento familiar decente, eu não precisaria me humilhar para esses magnatas da City. Acho que todo este país está podre até a medula. Pretendo ir embora definitivamente.
— Ir para algum outro lugar, no estrangeiro?
— Sim. Ir para algum lugar onde se tenha perspectivas.
Ficaram ambos em silêncio, imaginando uma vida nebulosa que tivesse perspectiva.
Sarah, que sempre teve os pés mais firmes na terra do que Gerry, disse sutilmente:
— Pode fazer alguma coisa que valha a pena sem capital? Você não tem capital nenhum, tem?
— Sabe que não tenho. Ora, imagino que haja muitas coisas que se possa fazer.
— Bem, o que pode fazer... realmente?
— Precisa ser tão abominavelmente desanimadora, Sarah?
— Desculpe. O que quero dizer é que você não tem preparo específico de espécie alguma.
— Tenho jeito para dirigir homens, e viver ao ar livre. Não encerrado num escritório.
— Oh, Gerry — disse Sarah; e suspirou.
— O que há?
— Não sei. A vida parece mesmo difícil. Todas essas guerras transtornaram tanto as coisas.
Ficaram ambos olhando o nada, com ar sombrio.
Dentro em pouco Gerry, magnanimamente, disse que daria outra oportunidade ao tio. Sarah aplaudiu essa decisão.
— É melhor eu ir para casa agora — falou ela. — Mamãe já deve ter voltado da conferência.
— Sobre o que era?
— Não sei. "Para onde vamos, e por quê?", esse tipo de coisa. — Levantou. — Obrigada, Gerry. Você ajudou muito.
— Tente não ser parcial, Sarah. Se sua mãe gosta desse sujeito e vai ser feliz com ele, é isso que interessa.
— Se Mamãe vai ser feliz com ele, então está tudo bem.
— Afinal, você mesma vai acabar casando... eu acho... um desses dias... — Disse isso sem olhar para ela. Sarah ficou absorta, encarando a bolsa.
— Algum dia, com certeza — ela murmurou. — Não estou particularmente ansiosa...
Pairou no ar, entre eles, um agradável constrangimento.
2
No dia seguinte, durante o almoço, Ann sentiu-se aliviada. Sarah estava se portando muito bem. Recebeu Richard com amabilidade e conversou educadamente com ele durante a refeição. Ann sentiu-se orgulhosa da filha, jovem, com seu rosto vivo e suas boas maneiras. Devia ter sabido que podia contar com Sarah — ela nunca a desapontaria.
O que ela gostaria é que Richard pudesse mostrar-se sob um ângulo mais favorável. Percebeu que ele estava nervoso. Ansiava por causar boa impressão e, como seguidamente acontece, sua própria ansiedade trabalhava contra ele. Estava sendo pedante, quase pretensioso. Ansioso por parecer à vontade, dava a impressão de dominar a reunião. A própria deferência que Sarah lhe demonstrava agravava essa impressão. Era positivo demais nas suas afirmações e parecia indicar que seria impossível outra opinião que não a sua. Isso afligia Ann, que conhecia até muito bem o quanto ele era retraído.
Mas como Sarah poderia perceber? Ela estava vendo o lado pior de Richard, e era tão importante que visse o melhor! Isso deixou a própria Ann nervosa e pouco à vontade, o que, ela logo viu, aborrecia Richard.
Depois que a refeição terminou e foi trazido o café, ela os deixou, com a desculpa de que precisava passar um telefonema. Havia uma extensão em seu quarto. Esperava que, deixados juntos, Richard pudesse sentir-se mais à vontade e mostrar mais de sua verdadeira personalidade. Era ela realmente a causa da irritação. Uma vez que se retirasse, podia ser que as coisas se acomodassem.
Depois que Sarah serviu café a Richard, ela comentou educadamente alguns lugares-comuns, e a conversa então esgotou-se.
Richard tomou coragem. Ele julgava que a franqueza era seu melhor trunfo. De um modo geral, Sarah lhe causara uma impressão favorável. Ela não mostrara hostilidade. A grande coisa seria mostrar como entendia a posição dela. Antes de vir, ensaiara o que pretendia dizer. Como a maioria das coisas ensaiadas com antecedência, soaram insípidas e artificiais. Para se pôr à vontade adotou uma cordialidade presunçosa que era totalmente diferente da sua verdadeira e dolorosa timidez.
— Olhe aqui, jovem, há uma ou duas coisas que gostaria de lhe dizer.
— Ah, é? — Sarah voltou para ele um rosto atraente, mas de momento bastante inexpressivo. Esperou educadamente, e Richard ficou ainda mais nervoso.
— Só quero dizer que entendo muito bem seus sentimentos. Tudo isto deve ter sido um choque para você. Você e sua mãe sempre foram muito unidas. É perfeitamente natural que se ressinta por outra pessoa entrar na vida dela. Não pode deixar de estar um pouco magoada e ciumenta por isso.
Sarah disse rapidamente, em tom amável e formal:
— De maneira alguma, posso lhe assegurar.
Incauto, Richard não deu atenção ao que era, na verdade, um aviso. Continuou, às cegas:
— Como eu digo, é tudo muito normal. Não vou apressá-la. Seja tão fria comigo quanto quiser. Quando decidir que está pronta a ser minha amiga, estarei pronto a fazer minha parte. Tem que pensar é na felicidade de sua mãe.
— Eu penso nisso — disse Sarah.
— Até aqui, ela tem feito tudo por você. Agora é a vez dela ser levada em consideração. Estou certo de que quer vê-la feliz. E tem que lembrar disto; você tem sua própria vida a levar... está toda à sua frente. Tem seus próprios amigos e suas próprias esperanças e ambições. Se casasse, ou arranjasse algum em
prego, sua mãe seria deixada completamente só. Isso significaria para ela grande solidão. É este o momento em que precisa pô-la em primeiro lugar, e deixar a
si mesma por último. — Fez uma pausa. Pensou ter-se expressado bastante bem.
A voz de Sarah, educada mas com uma subcorrente quase imperceptível de impertinência, interrompeu sua satisfação:
— Faz discursos em público seguidamente?
Surpreso, ele perguntou:
— Por quê?
— Acho que deve ser muito bom nisso — murmurou Sarah.
Ela estava agora recostada na poltrona, admirando as unhas. O fato destas serem vermelho carmesim, uma moda que ele desgostava intensamente, aumentou a irritação de Richard. Ele reconhecia agora que estava encontrando hostilidade.
Com um esforço, conservou a calma. Como resultado, falou num tom quase condescendente:
— Talvez eu estivesse lhe passando um pequeno sermão, minha filha. Mas queria chamar sua atenção para algumas coisas que poderia não ter considerado. E posso assegurá-la de uma coisa: sua mãe não vai gostar menos de você porque gosta de mim, sabe?
— É mesmo? Que bondade sua, me dizer isso.
Agora não havia dúvida quanto à hostilidade.
Se Richard tivesse abandonado suas defesas, se tivesse dito simplesmente — "Estou fazendo uma terrível confusão disso tudo, Sarah. Estou acanhado e infeliz, e isso me faz dizer todas as coisas erradas, mas gosto demais de Ann e quero que, se possível, você goste de mim" — isso talvez tivesse enfraquecido as resistências de Sarah, uma vez que ela era, no fundo, uma criatura generosa.
Mas, ao invés disso, sua voz endureceu:
— Os jovens — disse ele — tendem a ser egoístas. Não costumam pensar em ninguém além de si mesmos. Mas você tem que pensar na felicidade de sua mãe. Ela tem direito a uma vida própria, e direito a agarrar a felicidade quando a encontrar. Ela precisa de alguém que cuide dela e a proteja.
Sarah levantou os olhos e encarou-o de frente. A expressão do seu olhar o deixou intrigado. Era duro, e tinha um quê de calculista.
— Não poderia estar mais de acordo — disse ela, inesperadamente.
Ann voltou para a sala um tanto nervosa. Perguntou:
— Sobrou algum café?
Sarah serviu uma xícara, cuidadosamente. Levantou-se e passou a xícara à mãe.
— Aqui está, Mamãe — disse ela. — Voltou no momento exato. Tivemos nossa conversinha. — Saiu da sala.
Ann lançou a Richard um olhar indagador. Ele tinha o rosto um pouco vermelho.
— Sua filha já decidiu não gostar de mim.
— Seja paciente com ela, Richard, por favor. Seja paciente.
— Não se preocupe, Ann, estou perfeitamente preparado para ser paciente.
— Você vê, para ela foi um choque.
— Realmente.
— Sarah é na verdade muito amorosa. É uma criança tão querida!
Richard não replicou. Considerava Sarah uma jovem odiosa, mas era impossível dizer isso a sua mãe.
— Tudo vai dar certo — disse, tranqüilizadoramente.
— Estou certa de que sim. É uma questão de tempo.
Estavam ambos infelizes, e não sabiam bem o que dizer depois.
3
Sarah tinha ido para o quarto. Com olhos cegos, tirou roupas do armário e espalhou-as pela cama.
Edith entrou.
— O que está fazendo, Srta. Sarah?
— Oh, dando uma olhada nas minhas coisas. Talvez precisem ser lavadas, ou consertadas, ou qualquer coisa.
— Já providenciei tudo isso. Não precisa se incomodar.
Sarah não respondeu. Edith olhou-a de relance, e viu os olhos dela se encherem de lágrimas.
— Ora, ora, vamos, não fique assim.
— Ele é detestável, Edith, positivamente detestável. Como é que Mamãe pôde? Oh, está tudo arruinado, estragado... nada vai ser como antes.
— Ora, ora, Srta. Sarah. Não adianta ficar nervosa. Quanto menos se fala, mais depressa se conserta. O que não tem remédio remediado está.
Sarah riu freneticamente.
— "Um passo dado a tempo vale por nove", e "Pedras que rolam não juntam musgo". Vá embora, Edith. Por favor, vá!
Edith balançou compassivamente a cabeça e saiu, fechando a porta.
Sarah chorou arrebatadamente, como uma criança. Estava dilacerada pela dor. Como uma criança, ela via escuridão em toda parte, uma escuridão que nada poderia aliviar.
Soluçava baixinho:
— Oh, Mamãe, Mamãe, Mamãe...

Capítulo VIII
1
— OH, LAURA, que prazer vê-la!
Laura Whitstable sentou-se numa cadeira de espaldar alto. Ela nunca se recostava indolentemente.
— Bem, Ann, como vão as coisas?
Ann suspirou.
— Temo que Sarah esteja sendo um tanto difícil.
— Bem, isso era de se esperar, não?
Laura Whitstable falou com animada despreocupação. Mas olhava para Ann com certa ansiedade.
— Não está com boa aparência, minha cara.
— Eu sei. Não tenho dormido bem, e sinto dor de cabeça.
— Não leve as coisas tão a sério.
— É fácil dizer isso, Laura. Você não tem idéia de como as coisas estão. — Ann falava com impaciência. — Assim que Sarah e Richard são deixados juntos
por um momento, eles discutem.
— Sarah está com ciúmes, é claro.
— Acho que sim.
— Bem, como eu disse, já era de se esperar. Sarah ainda é muito infantil. Todas as crianças se ressentem quando as mães dão tempo e atenção a outra pessoa. Certamente você estava preparada para isso, Ann?
— Sim, de uma certa maneira. Embora Sarah sempre parecesse tão independente e adulta. Ainda assim, como você diz, eu estava preparada. O que eu não podia esperar é que Richard tivesse ciúmes de Sarah.
— Esperava que Sarah agisse como uma tola, mas pensou que Richard tivesse mais juízo?

— Sim.
— Ele é um homem fundamentalmente inseguro. Um homem com mais segurança limitar-se-ia a rir e mandar Sarah para o inferno.
Ann esfregou a testa num gesto exasperado.
— Realmente, Laura, não tem idéia de como estão as coisas! Eles se desentendem pelos motivos mais bobos, e então me olham para ver de que lado vou ficar.
— Muito interessante.
— Muito interessante para você... mas para mim não tem graça nenhuma.
— De que lado você fica?
— De nenhum, quando posso. Mas às vezes...
— Sim, Ann?
Ann ficou um momento em silêncio, e então falou:
— Entende, Laura, Sarah é mais esperta do que Richard em tudo.
— Como assim?
— Bem, os modos de Sarah são sempre corretos... exteriormente. Educada, entende, e tudo isso. Mas ela sabe como irritar Richard. Ela.... ela o atormenta. E
então ele estoura e se torna bastante irracional. Oh, por que não podem gostar um do outro?
— Porque há uma verdadeira antipatia natural entre eles, eu diria. Concorda com isso? Ou pensa que é só ciúme de você?
— Receio que esteja certa, Laura.
— Sobre que tipo de coisa eles discutem?
— As coisas mais bobas. Por exemplo, você lembra que eu troquei os móveis de lugar, mudei a escrivaninha e o sofá... e então Sarah os pôs de volta nos lugares, porque detesta mudanças... Bem, Richard disse um dia, de repente: "Pensei que você gostasse da escrivaninha ali, Ann". Eu disse que gostava, que
achava que dava mais espaço. Aí Sarah falou: "Bem, eu gosto do jeito que ficava sempre". E imediatamente Richard disse, naquele tom dominador que adota às
vezes: "Não é uma questão do que você gosta, Sarah, mas do que sua mãe gosta. Vamos arrumar do modo que ela prefere, agora mesmo". E mudou a escrivaninha de lugar naquele momento, e me disse: "É assim que você quer, não é?" Então eu mais ou menos fui obrigada a dizer "Sim", e ele virou-se para Sarah e falou: "Alguma objeção, mocinha?" E Sarah olhou para ele e disse, muito suave e educadamente: "Oh, não, Mamãe é que sabe. Eu não conto". E sabe, Laura, embora eu estivesse apoiando Richard, na verdade estava do lado de Sarah. Ela adora sua casa e todas as coisas dentro dela... e Richard não tem idéia de como ela se sente. Oh, meu Deus, não sei o que fazer.
— Sim, deve ser difícil para você.
— Posso esperar que vá passar?
Ann olhou esperançosamente para a amiga.
— Eu não contaria com isso.
— Devo dizer que você não é muito animadora, Laura!
— Não adianta a gente contar a si mesma histórias de fadas.
— Francamente é muita maldade deles. Deviam perceber como estão me fazendo infeliz. Eu me sinto mesmo doente.
— Autocomiseração não vai ajudá-la, Ann. Nunca ajuda ninguém.
— Mas estou tão infeliz!
— Eles também, minha querida. Tenha pena deles. Sarah, pobre criança, está desesperadamente infeliz... e também, imagino eu, Richard.
— Oh, céus, e éramos tão felizes juntos antes de Sarah voltar para casa.
Dame Laura ergueu levemente as sobrancelhas. Ficou um ou dois momentos em silêncio. Então disse:
— Você vai casar... quando?
— Dia treze de março.
— Quase duas semanas ainda. Você adiou. Por quê?
— Sarah pediu-me que o fizesse. Disse que teria mais tempo para se acostumar à idéia. Insistiu e insistiu até que concordei.
— Sarah... compreendo. E Richard se aborreceu?
— Claro que se aborreceu. Ficou muito brabo mesmo. Fica dizendo que eu sempre mimei Sarah. Laura, você acha que isso é verdade?
— Não, não acho. Apesar de todo seu amor por Sarah, você nunca foi excessivamente indulgente. E até agora Sarah tem demonstrado sempre uma razoável consideração por você... tanto, é claro, quanto pode qualquer jovem egoísta.
— Laura, acha que devo... — parou.
— Acho que deve fazer o quê?
— Oh, nada. Mas às vezes eu sinto que não posso agüentar isso por muito mais tempo.
Interrompeu-se, enquanto se ouvia o ruído da porta da frente do apartamento, que se abria. Sarah entrou na sala e pareceu contente ao ver Laura Whitstable .
— Oh, Laura, não sabia que estava aqui.
— Como vai minha afilhada?
Sarah aproximou-se e beijou-a. Seu rosto estava frio do ar da rua.
— Muito bem.
Murmurando alguma coisa, Ann deixou a sala. Os olhos de Sarah a seguiram. Ao voltarem e encontrarem os de Dame Laura, Sarah enrubesceu com ar culpado.
Laura Whitstable sacudiu vigorosamente a cabeça.
— Sim, sua mãe estava chorando.
Sarah pareceu surpresa e indignada.
— Bem, não é minha culpa.
— Não? Você gosta muito de sua mãe, não é?
— Adoro Mamãe. Você sabe disso.
— Então por que fazê-la infeliz?
— Mas não faço. Não faço coisa alguma.
— Você discute com Richard, não?
— Oh, isso! Isso ninguém pode evitar! Ele é impossível. Se ao menos Mamãe pudesse perceber como ele é impossível! Na verdade, acho que verá um dia.
Laura Whitstable disse:
— Você precisa tentar organizar a vida dos outros, Sarah? Quando eu era jovem, eram os pais os acusados de fazer isso com os filhos. Hoje, ao que parece, acontece o inverso.
Sarah sentou-se no braço da poltrona de Laura Whitstable. Falou em tom confidencial:
— Mas estou muito preocupada. Ela não vai ser feliz com ele, sabe.
— Isso não é da sua conta, Sarah.
— Mas não posso deixar de me preocupar. Por que não quero que Mamãe seja infeliz. E ela vai ser... Mamãe é tão... tão indefesa. Precisa ser cuidada.
Laura Whitstable prendeu as mãos bronzeadas de Sarah entre as suas. Falou com um vigor que alarmou Sarah:
— Agora escute, Sarah. Escute. Tenha cuidado. Tenha muito cuidado.
— O que quer dizer?
Laura voltou a falar com ênfase:
— Tenha muito cuidado para não deixar sua mãe fazer alguma coisa de que se arrependerá toda a vida.
— É exatamente o que eu...
Laura continuou, empolgada:
— Estou lhe avisando. Ninguém mais o fará. — Fungou súbita e longamente. — Sinto o cheiro de alguma coisa no ar, Sarah, e vou lhe dizer o que é. É o cheiro de oferendas queimadas... e não gosto de sacrifícios.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Edith abriu a porta e anunciou:
— O Sr. Lloyd.
Sarah levantou-se de um salto.
— Olá, Gerry — voltou-se para Laura Whitstable: — Este é Gerry Lloyd. Minha madrinha, Dame Laura Whitstable.
Gerry apertou-lhe a mão e disse:
— Acredito tê-la ouvido no rádio, ontem à noite.
— Fico satisfeita.
— Fazendo a segunda palestra da série "Como estar vivo hoje". Fiquei muito impressionado.
— Nada de impertinências — disse Dame Laura, olhando-o com uma súbita piscadela.
— Não, mas fiquei mesmo. A senhora parecia saber todas as respostas.
— Ah! — disse Dame Laura. — Sempre é mais fácil ensinar alguém a fazer um bolo do que o fazer mos nós mesmos. E também muito mais divertido.
Mau para o caráter, no entanto. Estou bem consciente de estar ficando a cada dia mais detestável.
— Ora, não está não — protestou Sarah.
— Estou sim, filha. Estou quase chegando ao ponto de dar conselhos às pessoas... um pecado imperdoável. Agora vou ao encontro de sua mãe, Sarah.
2
Assim que Laura Whitstable saiu da sala, Gerry falou:
— Vou deixar a Inglaterra, Sarah.
A moça, aflita, olhou-o espantada.
— Oh, Gerry... quando?
— Praticamente logo. Quinta-feira que vem.
— Onde?
— África do Sul.
— Mas é muito longe — exclamou Sarah.
— Bastante.
— Não vai voltar por anos e anos!
— Provavelmente não.
— O que vai fazer lá?
— Cultivar laranjas. Vou me associar a dois outros camaradas. Deve ser bem divertido.
— Oh, Gerry, você tem de ir?
— Bem, estou saturado deste país. É insípido e presunçoso demais. Não serve para mim, e eu não sirvo para ele.
— E o seu tio?
— Oh, não estamos mais nos falando; Tia Lena, no entanto, tem sido muito boa. Deu-me um cheque e um remédio para mordidas de cobras. — Ele sorriu.
— Mas você sabe alguma coisa sobre laranjas, Gerry?
— Absolutamente nada, mas imagino que se aprenda logo.
Sarah suspirou.
— Vou sentir sua falta...
— Acho que não... não por muito tempo — Gerry falou um tanto asperamente, evitando olhar para ela, — Se a gente está longe, do outro lado do mundo, as pessoas logo nos esquecem.
— Não, não esquecem...
Ele olhou-a rapidamente.
— Não?
Sarah sacudiu a cabeça.
Perturbados, evitaram olhar um para o outro.
— Tem sido divertido... andando juntos por aí — disse Gerry.
— É...
— Às vezes as pessoas conseguem prosperar cultivando laranjas.
— Imagino que sim.
Gerry falou, escolhendo cuidadosamente as palavras:
— Acredito que seja uma vida bastante alegre... quer dizer, para uma mulher. Bom clima... e muitos criados... tudo isso.
— É.
— Mas acho que você vai casar com algum sujeito. ..
— Oh, não — Sarah sacudiu a cabeça. — É um grande erro casar muito cedo. Não pretendo casar por séculos.
— Você acha isso... mas algum porco ou outro vai fazer você mudar de idéia — disse Gerry, com ar lúgubre.
— Sou muito fria por natureza — disse Sarah tranqüilizadoramente.
Permaneceram de pé, desajeitados, sem olhar um para o outro.
Então Gerry disse, em voz embargada, o rosto muito pálido:
— Sarah querida... sou louco por você. Sabe disso, não é?
— É mesmo?
Vagarosamente, como se contra a vontade, eles se aproximaram mais. Os braços de Gerry a envolveram. Beijaram-se, tímidos e maravilhados.
Estranho, pensou Gerry, que ele pudesse ser tão desajeitado. Tinha sido um jovem alegre, e tivera muitas experiências com garotas. Mas esta não era uma "garota", esta era sua querida Sarah...
— Gerry...
— Sarah...
Beijou-a de novo.
— Não vai esquecer, querida, vai? Todos os momentos felizes que vivemos... e tudo mais?
— Claro que não esqueço.
— Você me escreve?
— Não gosto muito de escrever cartas.
— Mas vai escrever para mim. Por favor, querida. Estarei tão sozinho...
Sarah afastou-se dele e deu uma risadinha trêmula.
— Não ficará sozinho. Haverá um monte de garotas.
— Se houver, será um monte horrível. Mas prefiro imaginar que não vai haver nada além de laranjas.
— É melhor me mandar uma caixa, de vez em quando.
— Mando mesmo. Oh, Sarah, eu faria qualquer coisa por você.
— Bem, então trabalhe muito. Faça de sua fazenda de laranjas um sucesso.
— Farei. Juro que farei.
Sarah suspirou.
— Gostaria que você não tivesse que ir justamente agora — disse ela. — Tem sido tão confortador poder falar com você.
— Como vai Cauliflower? Está gostando um pouco mais dele?
— Não, não estou. Nunca paramos de brigar. Mas — sua voz era de triunfo — acho que estou vencendo, Gerry!
Gerry olhou-a, inquieto.
— Quer dizer que sua mãe...
— Acho que ela começa a ver como ele é insuportável.
Sarah sacudiu a cabeça, triunfante. Gerry mostrou-se ainda mais inquieto.
— Sarah, seja como for, gostaria que você não...
— Não combatesse Cauliflower? Vou lutar contra ele com unhas e dentes! Não vou desistir. Mamãe tem que ser salva.
— Gostaria que você não interferisse, Sarah. Sua mãe deve saber o que quer.
— Já lhe disse antes, Mamãe é fraca. Fica com pena das pessoas, e perde o discernimento. Estou salvando-a de fazer um casamento infeliz.
Gerry criou coragem.
— Bem, ainda penso que você está só com ciúmes.
Sarah lançou-lhe um olhar furioso.
— Muito bem! Se é isso que pensa, é melhor ir agora.
— Ora vamos, não fique zangada comigo. Provavelmente sabe o que está fazendo.
— Claro que sei — disse Sarah,
3
Ann estava em seu quarto, sentada frente à penteadeira, quando Laura Whitstable entrou.
— Sente-se melhor agora, minha cara?
— Sim. Foi mesmo muita estupidez minha. Não devo deixar essas coisas me atacarem os nervos.
— Um rapaz acaba de chegar. Gerald Lloyd. É esse o...
— Sim. O que achou dele?
— Sarah o ama, naturalmente.
Ann pareceu perturbada.
— Oh, Deus, espero que não.
— Não adianta esperar.
— Não pode dar em nada, compreende?
— Ele é totalmente insatisfatório, é?
Ann suspirou.
— Parece que sim. Nunca leva nada até o fim. É atraente. Não se pode deixar de gostar dele. Mas...
— Sem estabilidade?
— A gente sente que nunca vai dar certo em lugar algum. Sarah está sempre falando na má sorte que ele teve, mas não acho que seja só isso. — Ela
continuou: — Além disso, Sarah conhece tantos rapazes bons de verdade.
— E os acha sem graça, suponho. Garotas bem dotadas e capazes... e Sarah é mesmo muito capaz... são sempre atraídas por rapazes que não prestam. Parece uma lei da natureza. Devo confessar que até eu achei o rapaz atraente.
— Até você, Laura?
— Tenho minhas fraquezas femininas, Ann. Boa noite, minha cara. Boa sorte.
4
Richard chegou ao apartamento um pouco antes das oito. Devia jantar com Ann. Sarah ia sair para jantar e dançar. Ela estava na sala, pintando as unhas, quando ele chegou. Havia no ar um cheiro de esmalte.
Ela levantou os olhos e disse: "Olá, Richard", e depois retomou a operação. Richard observou-a irritado. Ele mesmo estava bastante assustado com a crescente antipatia que sentia por Sarah. Tivera tão boa intenção, vira-se no papel de padrasto bondoso, amável e indulgente... quase carinhoso. Estivera preparado para uma desconfiança inicial, mas vira-se facilmente superando preconceitos infantis.
Ao invés disso, parecia que Sarah, e não ele, estava no comando da situação. Seu frio desprezo e sua antipatia atravessavam-lhe a pele fina, ferindo-o e humilhando-o. Richard nunca se julgara grande coisa, e o modo pelo qual Sarah o tratava aviltava ainda mais seu amor próprio. Todos seus esforços, a princípio para aplacá-la e depois para dominá-la, tinham sido desastrosos. Ele sempre parecia dizer e fazer a coisa errada. Por trás de sua antipatia por Sarah estava surgindo também uma crescente irritação com Ann. Ann devia apoiá-lo. Ann devia voltar-se contra Sarah e pô-la no seu lugar, Ann devia ficar do lado dele; os esforços que ela fazia para agir como mediadora, para se conservar num meio-termo, o irritavam. Aquele tipo de coisa não adiantava nada, e Ann precisava compreender isso!
Sarah estendeu uma das mãos para secar as unhas, virando-a para cá e para lá.
Consciente de que teria sido melhor não dizer coisa alguma, Richard não pôde deixar de observar:
— Parece que mergulhou as unhas em sangue. Não posso entender por que vocês meninas têm que usar esse negócio nas unhas.
— Não pode?
Procurando um assunto mais seguro, Richard continuou:
— Encontrei seu amigo Lloyd esta noite. Ele me contou que vai embora para a África do Sul.
— Vai na quinta-feira.
— Ele vai ter que trabalhar de verdade, se quiser ter sucesso lá. Não é lugar para um homem que não gosta de trabalhar.
— Acho que sabe tudo sobre a África do Sul, não?
— Todos esses lugares são muito parecidos. Precisam de homens de tutano.
— Gerry tem tutano de sobra — disse Sarah, acrescentando: — se precisa usar essa expressão.
— O que há de errado nela?
Sarah levantou a cabeça e olhou-o friamente.
— Eu só acho que é bastante desagradável, nada mais — disse ela.
Richard ficou vermelho.
— É uma pena que sua mãe não a tenha educado melhor.
— Fui rude? — Seus olhos se abriram numa expressão inocente. — Sinto muito.
Suas desculpas exageradas não conseguiram acalmá-lo. Perguntou bruscamente:
— Onde está sua mãe?
— Mudando de roupa. Estará aqui num minuto.
Sarah abriu a bolsa e examinou cuidadosamente o rosto. Começou a retocar a pintura, repintando os lábios, aplicando lápis de sobrancelhas. Ela na verdade já se pintara pouco antes. Suas ações agora eram calculadas para irritar Richard. Sabia que ele tinha uma estranha e antiquada aversão por ver uma mulher se maquiar em público.
Tentando falar em tom brincalhão, Richard disse:
— Ora vamos, Sarah, não exagere.
Ela baixou o espelho que segurava e perguntou:
— O que quer dizer?
— Quero dizer o ruge, o pó. Na verdade os homens não gostam de tanta pintura, posso lhe assegurar. Você simplesmente fica parecendo...
— Parecendo uma rameira, acho que quer dizer!
Richard falou furioso:
— Não foi isso que eu disse.
— Mas quis dizer. — Sarah arremessou os apetrechos de maquiagem para dentro da bolsa. — Afinal, por que, diabos, isso seria da sua conta?
— Olhe aqui, Sarah...
— O que eu ponho no rosto é só da minha conta. Não é da sua, seu metido.
Sarah estava tremendo de fúria, meio chorando. Richard perdeu completamente a calma. Gritou para ela:
— Mocinha insuportável e mal-educada! Você é absolutamente impossível!
Naquele momento Ann entrou. Parou na porta e disse com ar cansado:
— Oh, Deus, o que há agora?
Sarah passou correndo por ela. Ann olhou para Richard.
— Eu estava só dizendo que ela põe pintura de mais no rosto.
Ann deu um suspiro agudo, exasperado.
— Francamente, Richard, acho que você devia ter um pouco mais de juízo. O que tem a ver com isso?
Richard caminhou de um lado para o outro, furioso.
— Ora, muito bem. Se gosta que sua filha saia parecendo uma rameira...
— Sarah não parece uma rameira — retrucou Ann vivamente. — Que coisa horrível para dizer! Todas as moças usam maquiagem, hoje em dia. Você tem idéias tão antiquadas, Richard!
— Antiquado! Fora de moda! Você não me tem em alta conta, não Ann?
— Oh, Richard, precisamos discutir? Não percebe que ao dizer o que disse de Sarah está na verdade me criticando?
— Não posso dizer que a considere uma mãe particularmente criteriosa. Não se Sarah é uma amostra de sua maneira de educar.
— É uma coisa cruel para dizer, e não é verdade. Não há nada errado com Sarah.
Richard atirou-se num sofá.
— Deus ajude o homem que casa com a mãe de uma filha única! — disse ele.
Os olhos de Ann se encheram de lágrimas.
— Você sabia de Sarah quando me pediu em casamento. Eu lhe disse quanto a amava e tudo que ela significava para mim.
— Eu não sabia que você era absolutamente bestificada por ela! Para você é Sarah, Sarah da manhã à noite!
— Oh, Deus! — disse Ann. Ela caminhou para ele e sentou-se ao seu lado. — Richard, tente ser razoável. Eu pensei que Sarah poderia ter ciúmes de
você... mas não pensei que você fosse ter ciúmes dela.
— Não tenho ciúmes de Sarah — disse Richard, amuado.
— Mas querido, você tem.
— Você sempre põe Sarah em primeiro lugar.
— Oh, céus — Ann recostou-se, desanimada, e fechou os olhos. — Francamente não sei o que fazer.
— Onde fico eu? Em lugar nenhum! Eu simplesmente não conto, para você. Adiou nosso casamento... simplesmente porque Sarah lhe pediu que o fizesse...
— Eu queria dar a ela um pouco mais de tempo para se acostumar à idéia.
— E ela está mais acostumada agora? Passa todo o tempo fazendo tudo que pode para me irritar.
— Sei que ela tem sido difícil... mas na verdade, Richard, acho mesmo que você exagera. A pobre Sarah mal pode dizer uma palavra sem que você tenha um acesso de fúria.
— Pobre Sarah. Pobre Sarah. Está vendo? É isso que você pensa!
— Afinal de contas, Richard, Sarah é pouco mais que uma criança. Devemos ser tolerantes com ela. Mas você é um homem... um ser humano adulto.
Richard disse de súbito, candidamente:
— É porque a amo tanto, Ann.
— Oh, querido.
— Éramos tão felizes juntos... antes de Sarah voltar.
— Eu sei...
— E agora... pareço estar todo o tempo perdendo você.
— Mas não está me perdendo, Richard.
— Ann, minha adorada... você ainda me ama?
Ann disse com súbita paixão:
— Mais do que nunca, Richard. Mais do que nunca.
5
O jantar foi um sucesso. Edith tinha se esmerado e o apartamento, removida a tempestuosa influência de Sarah, era novamente o cenário calmo que fora antes.
Richard e Ann conversaram, riram, lembraram um ao outro incidentes passados, e para ambos foi uma calma bem-vinda e serena.
Foi depois de terem voltado à sala e terminado o café e o Beneditino que Richard falou:
— Foi uma noite maravilhosa. Tão calma. Ann, minha querida, se pudesse ser sempre assim!
— Mas vai ser, Richard.
— Não está sendo sincera, Ann. Sabe, tenho pensado muito. A verdade é uma coisa desagradável, mas tem que ser encarada. Para ser bem franco, acho que
Sarah e eu nunca vamos nos dar bem. Se nós três tentarmos morar juntos, a vida será insuportável. Na verdade, só há uma coisa a fazer.
— O que está querendo dizer?
— Para falar com franqueza, Sarah precisa sair daqui.
— Não, Richard. Isso é impossível.
— Quando as moças não estão felizes em casa, vão viver sozinhas.
— Sarah só tem dezenove anos, Richard.
— Há lugares em que moças podem morar. Pensionatos. Ou como hóspedes de uma família.
Ann sacudiu a cabeça com decisão.
— Acho que não se dá conta do que está sugerindo. Sugere que, por querer casar de novo, eu expulse minha filha... enxote-a para fora de sua casa.
— Moças gostam de ser independentes e de morar sozinhas.
— Sarah não. Não é uma questão de ela querer morar sozinha. Esta é a casa dela, Richard. Ela nem sequer é de maior idade.
— Bem, eu penso que é um bom plano. Podemos dar-lhe uma boa mesada... eu contribuirei. Ela não precisará sentir-se restringida. Será feliz sozinha, e nós seremos felizes sozinhos. Não posso ver nada de errado nisso.
— Você está pressupondo que Sarah vai ser feliz sozinha?
— Ela vai gostar. Eu lhe digo que as moças gostam de ser independentes.
— Você não sabe coisa alguma sobre moças, Richard. Tudo que está pensando é no que você quer.
— Estou sugerindo o que penso ser uma solução perfeitamente razoável.
Ann falou lentamente:
— Antes do jantar, você disse que ponho Sarah em primeiro lugar. De um certo modo, Richard, isso é verdade... Não é uma questão de qual de vocês eu amo mais. Mas quando penso em ambos... sei que são os interesses de Sarah que devem vir antes dos seus. Porque você vê, Richard, Sarah é minha responsabilidade. Não estou livre dessa responsabilidade até que Sarah seja uma mulher feita... e ela ainda não é uma mulher feita.
— As mães nunca querem que os filhos cresçam.
— Isso às vezes é verdade, mas honestamente não penso que seja verdade no nosso caso. Vejo algo que você não pode ver: que Sarah é ainda muito jovem e
indefesa.
Richard riu com desdém.
— Indefesa!
— Sim, foi exatamente o que quis dizer. E insegura sobre si mesma, sobre a vida. Quando estiver pronta a sair para o mundo, ela quererá ir... e então
estarei mais do que pronta a ajudá-la. Mas ela não está pronta.
Richard suspirou, e disse:
— Acho que simplesmente não se pode discutir com mães.
Ann retorquiu com insuspeitada firmeza:
— Não vou expulsar minha filha da casa dela. Fazer isso, quando ela não quer ir, seria uma crueldade.
— Bem, se você está tão decidida.
— Oh, certamente. Mas Richard, querido, se você ao menos for paciente. Não vê que não é você o intruso, mas Sarah? E ela sente isso. Mas sei que, com
o tempo, ela aprenderá a ser sua amiga. Porque ela realmente me ama, Richard. E no fim não quererá que eu seja infeliz.
Richard olhou para ela com um sorriso levemente irônico.
— Minha doce Ann, que otimista incurável você é.
Ela entrou no círculo dos braços dele.
— Richard querido... eu o amo... Oh, Deus, gostaria de não ter tanta dor de cabeça...
— Vou buscar uma aspirina...
Ocorreu-lhe que, agora, toda conversa que tinha com Ann acabava sempre em aspirina.

Capítulo IX
1
POR DOIS DIAS houve uma paz bem-vinda e inesperada. Isso animou Ann. Afinal, as coisas não eram tão más. Como havia dito, com o tempo tudo se ajeitaria. O apelo que fizera a Richard dera resultado. Dentro de uma semana estariam casados... e depois disso, parecia-lhe que a vida seria mais normal. Sarah certamente deixaria de hostilizar tanto Richard, e acharia mais interesse em outros assuntos.
— Sinto-me realmente muito melhor hoje — comentou com Edith.
Ocorreu-lhe que um dia sem dor de cabeça era agora um verdadeiro fenômeno.
— Quase como uma calmaria na tempestade, pode-se dizer — concordou Edith. — São como cão e gato, a Srta. Sarah e o Sr. Cauldfield. Tomaram o que
se pode chamar de uma genuína aversão um pelo outro.
— Mas acho que Sarah está superando um pouco, não acha?
— Se eu fosse a senhora, não me encheria de falsas esperanças, madame — disse Edith sombriamente.
— Mas não pode continuar sempre assim.
— Eu não apostaria nisso.
Edith era sempre tão lúgubre, pensou Ann! Divertia-se em predizer desastres.
— Tem sido melhor ultimamente — insistiu.
— Ah, porque o Sr. Cauldfield tem vindo aqui quase sempre de dia, quando a Srta. Sarah está na loja de flores, e ela tem ficado com a senhora só para ela
de noite. Além disso, ela está absorvida pela ida daquele Sr. Gerry para o estrangeiro. Mas depois que a senhora estiver casada, vai ter os dois aqui juntos. Vão reduzir a senhora a pedaços, isso é que vão!
— Oh, Edith — o desalento se apoderou de Ann. Era uma comparação horrível.
E exprimia tão bem o que vinha sentindo!
Disse desesperadamente:
— Não agüento isso. Detesto cenas e brigas, e sempre detestei.
— É verdade. Sempre viveu quieta e protegida, e é isso que lhe convém.
— Mas o que posso fazer? O que você faria, Edith?
Edith disse com gosto:
— Não adianta se lamentar. Me ensinaram quando criança: "Esta vida não é mais que um vale de lágrimas".
— Se é tudo que pode sugerir para me consolar!
— Essas coisas são mandadas para nos pôr à prova — disse Edith solenemente. — Agora, se ao menos a senhora fosse uma dessas que gostam de brigas! Há muitas que gostam. A segunda mulher do meu tio, por exemplo. Não há nada que goste mais do que de bater boca. Tem uma língua ferina... mas quando termina, não guarda ressentimentos e não torna a pensar naquilo. Já desabafou. Acho que é o sangue irlandês. A mãe dela veio de Limerick. Não são rancorosos, mas adoram uma briga. A Srta. Sarah tem um pouco disso. Lembro da senhora ter falado que o Sr. Prentice era meio irlandês. Tem seus repentes, a
Srta. Sarah, mas nunca houve uma moça de coração tão bom. Se quer saber, é muito bom que o Sr. Gerry esteja indo para o outro lado do mar. Ele nunca vai
se acomodar e ficar numa coisa só. A Srta. Sarah pode conseguir coisa melhor que ele.
— Acho que ela gosta muito dele, Edith.
— Eu não me preocuparia. Dizem que "A ausência aumenta o amor", mas minha tia Jane costumava acrescentar "por outro". "Longe da vista, longe do
coração" é um provérbio mais verdadeiro. Agora não se preocupe com ela nem com mais ninguém. Está aqui aquele livro que a senhora tanto queria ler, e vou trazer uma boa xícara de café e um ou dois biscoitos. Distraia-se enquanto pode.
Ann ignorou a sugestão levemente sinistra das três últimas palavras. Falou:
— Você é um grande consolo, Edith.
Na quinta-feira Gerry Lloyd viajou e Sarah, naquela noite, voltou para casa e teve a pior das discussões com Richard.
Ann os deixou e procurou refúgio em seu próprio quarto. Ficou lá, deitada no escuro, cobrindo os olhos com as mãos. os dedos apertando a testa dolorida. Lágrimas lhe rolaram dos olhos.
Disse a si mesma várias vezes, num murmúrio: — não posso agüentar... não posso agüentar...
Daí a pouco escutou o fim de uma frase dita por Richard, quase gritada, enquanto ele saía tempestuosamente da sala:
— ... e sua mãe não pode escapar sempre, fugindo com uma das eternas dores de cabeça!
Ouviu-se então a batida da porta da frente.
Os passos de Sarah soaram no corredor, vindo hesitante e vagarosamente para seu próprio quarto. Ann chamou:
— Sarah.
A porta se abriu. A voz de Sarah, levemente culpada, disse:
— No escuro?
— Minha cabeça dói. Acenda a lampadazinha do canto.
Sarah fez isso. Veio devagar até a cama, os olhos baixos. Havia nela algo desamparado e infantil que tocou o coração de Ann, embora apenas minutos antes tivesse ficado violentamente zangada com ela.
— Sarah — disse Ann. — Você precisa?
— Preciso o quê?
— Brigar com Richard todo o tempo? Não sente coisa alguma por mim? Percebe como está me fazendo infeliz? Não quer que eu seja feliz?
— Claro que quero. É por isso mesmo.
— Não a entendo. Você me faz perfeitamente infeliz. Penso às vezes que não posso continuar... Tudo é tão diferente.
— Sim, tudo é diferente. Ele estragou tudo. Quer me tirar daqui. Não vai deixar ele fazer você me mandar embora, vai?
Ann ficou zangada.
— Claro que não. Quem sugeriu uma coisa dessas?
— Ele. Agora mesmo. Mas você não vai, vai? É tudo como um pesadelo. — Subitamente as lágrimas de Sarah começaram a correr. — Tudo saiu errado.
Tudo. Desde que voltei da Suíça. Gerry foi embora. Provavelmente nunca voltarei a vê-lo. E você se voltou contra mim...
— Não me voltei contra você! Não diga uma coisa dessas.
— Oh, Mamãe... Mamãe...
A moça se atirou de joelhos junto à cama e soluçou incontrolavelmente. Repetia de quando em quando aquela palavra: "Mamãe",,.
2
Na bandeja do desjejum de Ann, na manhã seguinte, havia um bilhete de Richard.
QUERIDA ANN:
Positivamente, as coisas não podem continuar assim. Precisamos achar alguma solução. Acredito que encontrará Sarah mais acessível do que pensa.
Sempre seu,
RICHARD
Ann franziu as sobrancelhas. Estaria Richard se iludindo deliberadamente? Ou será que a crise de Sarah na noite anterior fora, em grande parte, histérica? Isso era bem possível: Ann tinha certeza de que Sarah estava sofrendo toda a angústia do amor de adolescente, e seu primeiro adeus ao bem-amado. Afinal, já que antipatizava tanto com Richard, pode ser que fosse realmente mais feliz longe de casa...
Num impulso, Ann estendeu a mão para o telefone e discou o número de Laura Whitstable.
— Laura? É Ann.
— Bom dia. Está chamando muito cedo.
— Oh, não sei mais o que fazer. Minha cabeça não pára de doer, e sinto-me realmente doente. As coisas não podem continuar assim. Queria pedir um conselho.
— Não dou conselhos. É uma coisa perigosíssima.
Ann não deu atenção.
— Escute, Laura, você acha... poderia... ser uma boa coisa... se... se Sarah fosse morar sozinha... quer dizer, se dividisse um apartamento com uma amiga... ou coisa assim?
Houve uma pequena pausa e então Dame Laura perguntou:
— É o que ela quer?
— Bem... não... não exatamente. Quer dizer, foi apenas uma idéia.
— Quem sugeriu? Richard?
— Bem... foi.
— Muito razoável.
— Você acha mesmo? — perguntou Ann ansiosamente.
— Quero dizer que foi muito razoável do ponto de vista de Richard. Ele sabe o que quer... e faz tudo para consegui-lo.
— Mas o que você acha?
— Já lhe disse, Ann, eu não dou conselhos. O que diz Sarah?
Ann hesitou:
— Não cheguei a discutir o assunto com ela... ainda.
— Mas você provavelmente tem alguma idéia?
Ann disse um tanto relutante:
— Não creio que ela vá gostar, de jeito nenhum.
— Ah!
— Mas eu talvez devesse insistir?
— Para quê? Para curar suas dores de cabeça?
— Não, não! — exclamou Ann horrorizada. — Unicamente para a felicidade dela.
— Isso parece magnífico! Sempre desconfio de sentimentos nobres. Não quer ser mais clara?
— Bem, tenho me perguntado se eu não serei mesmo um tipo de mãe demasiado apegada, se não seria melhor para Sarah sair de perto de mim. Para que possa desenvolver sua própria personalidade.
— Sei, sei, muito moderno.
— É mesmo, sabe, penso que ela talvez venha a gostar da idéia. Não pensava no início, mas agora... Oh, por favor, diga o que pensa.
— Minha pobre Ann.
— Por que diz "minha pobre Ann"?
— Você me perguntou o que eu pensava.
— Não está me ajudando muito, Laura.
— E nem quero ajudar, não do jeito que você pretende .
— Richard está ficando cada vez mais difícil, sabe. Escreveu-me uma espécie de ultimato esta manhã... Logo estará pedindo que eu escolha entre ele e Sarah.
— E qual você escolheria?
— Oh, Laura, não diga isso. Não quis dizer que as coisas já chegaram a esse ponto, não realmente.
— Mas talvez cheguem.
— Laura, você é de enlouquecer! Nem sequer tenta ajudar.
E Ann bateu o telefone, furiosa.
3
Naquela tarde, às seis horas, Richard Cauldfield telefonou.
Edith atendeu:
— A Sra. Prentice está?
— Não, senhor. Foi a uma daquelas reuniões onde sempre vai, um Lar de Velhos, ou coisa parecida. Não deve voltar antes das sete.
— E a Srta. Sarah?
— Acabou de chegar. Quer falar com ela?
— Não, eu vou até aí.
Richard cobriu a distância entre o escritório e o bloco de apartamentos de Ann em passadas firmes e uniformes. Passara a noite em claro e tinha finalmente chegado a uma resolução. Embora fosse um homem que levava algum tempo para decidir, uma vez que o fizesse atinha-se obstinadamente à sua decisão.
As coisas não podiam continuar como estavam. Primeiro Sarah, e depois Ann, teriam que ser forçadas a ver isso. Aquela garota estava consumindo a mãe com suas crises de mau humor e sua obstinação! A pobre e doce Ann... Mas seus pensamentos não eram inteiramente amorosos. Sentia contra Ann um certo ressentimento, quase imperceptível. Ela fugia constantemente da luta, lançando mão de artifícios femininos — dores de cabeça, prostrações... Ann tinha que encarar os fatos!
Essas duas mulheres... todas aquelas tolices femininas precisavam acabar.
Tocou a campainha, foi recebido por Edith e entrou na sala. Sarah voltou-se da lareira onde estava. Tinha um copo na mão.
— Boa noite, Richard.
— Boa noite, Sarah.
Sarah disse com certo esforço:
— Sinto muito sobre ontem à noite, Richard. Receio ter sido muito grosseira.
— Não tem importância. — Richard fez com a mão um gesto magnânimo. — Não vamos falar mais nisso.
— Quer beber alguma coisa?
— Não, obrigado.
— Acho que Mamãe ainda demora a chegar. Ela foi a...
Ele a interrompeu:
— Não tem importância. Eu vim ver você.
— Eu?
Os olhos de Sarah se estreitaram e escureceram. Ela deu um passo à frente e sentou-se, observando-o com desconfiança.
— Quero discutir as coisas com você. Parece-me perfeitamente claro que não podemos continuar como estamos, com todas essas brigas e discussões. Não é justo para sua mãe, em primeiro lugar. Estou certo de que gosta dela.
— Naturalmente — disse Sarah, com frieza.
— Então, entre nós, temos que lhe dar uma folga. Ela e eu estaremos casados dentro de uma semana. Quando voltarmos da lua-de-mel, que tipo de vida pensa que teremos, vivendo os três neste apartamento?
— Bastante infernal, creio.
— Vê? Você mesma reconhece. Agora, quero lhe dizer que não lhe atribuo toda a culpa.
— Muito magnânimo de sua parte, Richard. — O tom de voz dela era sério e educado. Ele ainda não conhecia Sarah o suficiente para reconhecer um sinal de perigo.
— É uma pena não nos entendermos. Falando francamente, você não gosta de mim.
— Já que insiste, sim, é verdade.
— Não importa. Eu, de minha parte, também não simpatizo particularmente com você.
— Você me detesta — disse Sarah.
— Ora, vamos — retrucou Richard, — eu não chegaria a tanto.
— Eu sim.
— Bem, vamos pôr as coisas assim: não gostamos um do outro. Não me importa muito se você gosta ou não de mim. É com sua mãe que vou casar, não com você. Tentei ser seu amigo, mas você não quer... Então precisamos achar uma solução. Estou disposto a fazer o que puder de outras maneiras.
Sarah perguntou, desconfiada:
— Que outras maneiras?
— Já que não pode suportar a vida em casa, farei o que puder para ajudá-la a levar sua própria vida em algum outro lugar, onde possa ser mais feliz. As
sim que Ann for minha esposa, estou preparado para prover totalmente pelo seu sustento. Haverá dinheiro de sobra para você. Um apartamentozinho simpático
nalgum lugar, que você possa partilhar com uma amiga. Mobiliá-lo e tudo mais... exatamente como quiser.
Os olhos dela se estreitaram ainda mais e ela falou:
— Que homem maravilhosamente generoso você é, Richard.
Ele não pressentiu o sarcasmo. No íntimo, estava se congratulando. Afinal a coisa fora bastante simples. A garota sabia perfeitamente bem o que mais lhe convinha. Tudo se resolveria de modo bastante amistoso.
Sorriu para ela, bem-humorado.
— Bem, não gosto de ver as pessoas infelizes. E compreendo (coisa que sua mãe não faz) que vocês, jovens, anseiam por seguir seus próprios caminhos e ser
independentes. Será muito mais feliz sendo independente do que vivendo aqui como cão e gato.
— Então é essa a sua sugestão?
— É uma ótima idéia, todos ficam satisfeitos.
A risada de Sarah fez Richard voltar abruptamente a cabeça:
— Não vai se livrar de mim assim tão facilmente — disse ela.
— Mas...
— Não irei, estou lhe dizendo. Não irei!!
Nenhum dos dois ouviu a chave de Ann na porta da frente. Ela abriu a porta e os encontrou olhando-se com ar feroz. Sarah tremia dos pés à cabeça e repetia histericamente:
— Eu não vou... não vou... não vou...
— Sarah...
Ambos se voltaram de chofre. Sarah correu para a mãe.
— Querida, querida, você não vai deixar que ele me mande embora, vai? Viver num apartamento com uma amiga — eu detesto amigas. Não quero ser independente. Quero ficar com você. Não me mande embora, Mamãe. Não... não.
Ann respondeu prontamente, num tom apaziguador.
— É claro que não. Está tudo bem, querida. — Para Richard, ela perguntou rispidamente: — O que estava dizendo a ela?
— Fazia uma sugestão perfeitamente sensata.
— Ele me odeia e vai fazer você me odiar. — Sarah soluçava agora como uma criança histérica.
— Não, não, Sarah, não seja absurda — o tom de Ann era conciliador. — Fez um sinal a Richard. — Vamos falar sobre isso em outra ocasião.
— Não, não vamos — Richard foi taxativo. — Falaremos nisso aqui e agora. Temos que esclarecer as coisas.
— Oh, por favor — Ann caminhou com a mão na testa. Sentou-se no sofá.
— Não adianta ter uma dor de cabeça para se livrar, Ann! A questão é quem vem em primeiro lugar para você, eu ou Sarah?
— Não é essa a questão.
— Claro que é! Tudo isto tem que ser esclarecido de uma vez por todas. Não posso agüentar muito mais.
Os tons altos da voz de Richard atravessavam a cabeça de Ann, fazendo cada nervo retesar-se num paroxismo de dor. Ela tivera uma reunião difícil no comitê, viera cansada para casa, e sentia agora que sua vida, como vivida no presente, era positivamente insuportável!
Disse debilmente:
— Não posso falar com você agora, Richard. Realmente não posso. Simplesmente não agüento mais.
— Pois eu lhe digo que isso precisa ser esclarecido. Ou Sarah sai de casa, ou saio eu.
Um ligeiro tremor percorreu o corpo de Sarah. Ela levantou o rosto, encarando Richard.
— Meu plano é perfeitamente razoável — disse ele. — Eu o descrevi a Sarah em linhas gerais e ela não parecia ter nada contra, até você aparecer.
— Eu não vou — repetiu Sarah.
— Minha menina, você pode ver sua mãe sempre que quiser, não pode?
Sarah voltou-se impulsivamente para Ann, jogando-se no chão ao lado dela.
— Mamãe, Mamãe, você não vai me expulsar, vai? Você é minha mãe!
O rosto de Ann ficou vermelho. Ela falou com súbita firmeza:
— Não pedirei que minha única filha saia de sua casa, a menos que ela queira fazê-lo.
Richard gritou:
— Ela quereria... se não fosse para me contrariar.
— É o tipo da coisa que você pensaria — disse Sarah com veemência.
— Cale a boca! — gritou Richard.
Ann levou as mãos à cabeça.
— Não posso suportar isso — disse ela. — Estou avisando vocês, não posso suportar isso...
Sarah gritou em tom de súplica:
— Mamãe!...
Richard voltou-se, furioso, para Ann.
— Não adianta, Ann. Você e suas dores de cabeça! Você precisa escolher, que diabo!
— Mamãe — Sarah estava realmente fora de si agora. Apegava-se a Ann como uma criança assustada. — Não deixe que ele a ponha contra mim, Mamãe...
não deixe...
Ann, com as mãos ainda a apertar a cabeça, disse:
— Não posso agüentar mais. É melhor você ir, Richard.
— O quê? — ele a olhou fixamente.
— Vá, por favor. Esqueça-me. É inútil...
Novamente a fúria o dominou e ele perguntou com ar sombrio:
— Você percebe o que está dizendo?
— Preciso de paz... não posso continuar — falou Ann, aturdida.
Sarah sussurrou novamente:
— Mamãe...
— Ann... — a voz de Richard estava cheia de sofrimento incrédulo.
Ann gritou desesperada:
— Não adianta... não adianta, Richard.
Sarah voltou-se contra ele, furiosa e infantilmente:
— Vá embora. Não o queremos, está ouvindo? Nós não o queremos! — Havia um ar de triunfo em seu rosto que seria feio, se não fosse tão infantil.
Ele não lhe deu atenção. Estava olhando para Ann.
— É isso mesmo que você quer? — falou gravemente. — Não... voltarei mais.
Ann disse, exausta:
— Eu sei... simplesmente... não pode ser, Richard. Adeus...
Ele caminhou lentamente para fora da sala.
Sarah gritou: "Querida!" e mergulhou a cabeça no colo da mãe.
Com gestos mecânicos Ann acariciou a cabeça da filha; mas seus olhos estavam fixos na porta pela qual Richard acabara de sair.
Um instante depois ouviu o som da porta da frente que se fechava com uma pancada decidida.
Sentiu a mesma sensação de vazio que sentira naquele dia na Estação Vitória, e uma grande desolação...
Richard descia as escadas agora, saía no saguão e descia a rua.
Caminhando para fora da sua vida...

LIVRO
DOIS
Capítulo I
1
LAURA WHITSTABLE olhou com carinho para as conhecidas ruas de Londres, pelas janelas do ônibus que a trazia do aeroporto. Estivera muito tempo fora, servindo numa Delegação Real que incluíra uma interessante e prolongada volta ao mundo. As sessões finais nos Estados Unidos tinham sido cansativas. Dame Laura fizera conferências, presidira, almoçara e jantara e tivera dificuldade em encontrar tempo para ver seus amigos pessoais.
Bem, agora tinha terminado. Estava novamente em casa, com uma mala cheia de anotações, estatísticas e papéis importantes, e com a perspectiva de mais um bocado de trabalho pela frente, preparando o material para publicação.
Era uma mulher de grande vitalidade e enorme resistência física. A perspectiva do trabalho lhe fora sempre mais atraente do que a do lazer, mas, ao contrário de muita gente, ela não se vangloriava disso e às vezes candidamente admitia que a preferência poderia ser encarada mais como uma fraqueza do que como uma virtude. Porque o trabalho, dizia ela, é uma das principais vias pelas quais fugimos de nós mesmos. E viver consigo mesmo, sem subterfúgios e em humildade e contentamento, é alcançar a única e verdadeira harmonia da vida.
Laura Whitstable era uma mulher que se concentrava numa coisa de cada vez. Nunca fora dada a escrever cartas longas e noticiosas aos amigos. Quando estava ausente, estava ausente — tanto em pensamento quanto em físico.
Escrupulosamente enviava cartões-postais bem coloridos para o quadro de auxiliares domésticos, que se sentiriam ofendidos se ela não o fizesse. Mas amigos e familiares sabiam que a primeira coisa que ouviriam de Dame Laura seria uma voz profunda e áspera ao telefone, anunciando que estava de volta.
Era bom estar em casa, pensou Laura um pouco mais tarde, enquanto passava os olhos pela sala confortável e masculina e ouvia distraída o melancólico catálogo de pequenos desastres domésticos que, segundo Basset, haviam ocorrido em sua ausência.
Dispensou Basset com um "fez bem em me contar" final, e afundou na grande e velha poltrona de couro. Cartas e jornais estavam empilhados numa mesa lateral, mas não se preocupou com eles. Todos os assuntos urgentes tinham sido tratados pela sua eficiente secretária.
Acendeu um charuto e recostou-se na poltrona, com os olhos semicerrados.
Era o fim de um período, o início de outro...
Relaxou, deixando que a engrenagem do cérebro diminuísse a velocidade e mudasse para o novo ritmo. Seus companheiros de delegação... os problemas que haviam surgido... teorias... pontos de vista... personalidades americanas... os amigos americanos... lenta e inexoravelmente todos eles recuaram, tornaram-se vagos...
Londres, as pessoas que precisava ver, os figurões que iria tiranizar, os Ministérios que se propunha a incomodar, as medidas práticas que pretendia tomar, os relatórios que precisava escrever... tudo lhe veio à mente com clareza. A futura campanha, as extenuantes tarefas diárias...
Mas antes disso haveria um intervalo, uma nova aclimatação. Relações pessoais e prazeres. Os amigos para ver... um interesse renovado por seus problemas e alegrias. Um revisitar dos lugares favoritos — todos os mil e um prazeres de sua vida privada. Presentes que trouxera para dar... O rosto severo suavizou-se, e ela sorriu. Nomes flutuavam-lhe na mente. Charlotte... o jovem David... Geraldine e os filhos... o velho Walter Emlyn... Ann e Sarah... o Professor Parker...
O que acontecera a eles desde que partira?
Iria a Sussex para ver Geraldine depois de amanhã, se fosse conveniente. Pegou o telefone, conseguiu ligação, marcou dia e hora. Então ligou para o Professor Parker. Cego e quase totalmente surdo, ele ainda assim parecia estar ótimo de saúde e de espírito, e ansioso por um debate realmente violento com a velha amiga Laura.
O número que ligou a seguir foi o de Ann Prentice.
Foi Edith quem atendeu.
— Ora, isto é uma surpresa, madame. Faz um tempão. Li um artigo sobre a senhora no jornal, um ou dois meses atrás. Não, sinto muito, a Sra. Prentice não está. Agora quase sempre sai à noite. Sim, a Srta. Sarah também saiu. Sim, madame, vou dizer à Sra. Prentice que telefonou e está de volta.
Reprimindo o desejo de observar que lhe teria sido mais difícil telefonar se não tivesse voltado, Laura Whitstable desligou e passou a ligar outro número.
Durante as conversas que se seguiram e os compromissos que assumiu, Laura relegou ao fundo da mente algum pontinho que prometeu a si mesma examinar mais tarde.
Foi só depois de estar na cama que sua mente analítica perguntou por que uma coisa dita por Edith a surpreendera. Levou algum tempo até lembrar, mas finalmente conseguiu.
Edith dissera que Ann tinha saído, e que agora quase sempre saía à noite.
Laura franziu as sobrancelhas, pois parecia que Ann devia ter modificado muito seus hábitos. Naturalmente, seria de esperar que Sarah andasse na folia todas as noites de sua vida. As moças faziam isso. Mas Ann era do tipo quieto — uma saída ocasional para jantar... um cinema de vez em quando... ou uma peça de teatro... mas não um hábito de todas as noites.
Deitada na cama, Laura Whitstable pensou por algum tempo em Ann Prentice...
2
Foi duas semanas mais tarde que Dame Laura tocou a campainha do apartamento de Ann Prentice.
Edith abriu a porta, e sua expressão azeda teve uma quase imperceptível mudança, indicando que estava satisfeita. Afastou-se para que Dame Laura entrasse.
— A Sra. Prentice está se arrumando para sair — disse ela. — Mas estou certa de que vai querer ver a senhora.
Conduziu Dame Laura até a sala, e seus passos pesados soaram pelo corredor em direção ao quarto de Ann.
Laura passou os olhos pela sala, um tanto surpresa. Estava completamente transformada — ela dificilmente saberia que era a mesma peça, e só por um instante brincou com a idéia absurda de ter vindo ao apartamento errado.
Algumas peças da mobília original ainda restavam, mas a um canto havia um grande bar. O novo décor era uma versão atualizada do estilo Império francês, com elegantes cortinas de cetim listrado e muitos bronzes e dourados. Os poucos quadros nas paredes eram modernos. Parecia menos uma peça da casa de alguém do que o cenário de uma produção teatral.
A cabeça de Edith assomou à porta:
— A Sra. Prentice estará com a senhora num momento, madame — avisou.
— Houve uma transformação total por aqui — observou Dame Laura.
— Custou rios de dinheiro — disse Edith desaprovadoramente. — E um ou dois moços muito esquisitos têm andado por aqui supervisionando. A senhora
nem pode imaginar.
— Ora, imagino sim — respondeu Dame Laura. — Bem, parece que fizeram um ótimo trabalho.
— Bugigangas — disse Edith com desprezo.
— A gente precisa acompanhar os tempos, Edith. Com certeza a Srta. Sarah gosta.
— Oh, não é o gosto dela. Tem horror a mudanças. Sempre teve. Ora, a senhora lembra, madame, ela não queria nem o sofá virado para o outro lado! Não, é a Sra. Prentice que é doida por tudo isso.
Dame Laura levantou levemente as sobrancelhas. Parecia-lhe novamente que Ann Prentice devia ter mudado muito. Mas naquele momento passos vieram correndo pelo corredor e a própria Ann entrou precipitadamente, com as mãos estendidas.
— Laura, querida, que maravilha! Estava ansiosa por vê-la!
Deu em Laura um beijo rápido e distraído. Esta olhou-a com surpresa.
Sim, Ann Prentice mudara. Seu cabelo castanho claro, com um ou dois fios entremeados de cinza, fora pintado num tom avermelhado e cortado num estilo exageradamente moderno.
Depilara as sobrancelhas, e tinha o rosto dispendiosamente maquiado. Usava um vestido curto de coquetel, adornado com grande quantidade de bijuterias. Seus movimentos eram agitados e artificiais — e isso, para Laura, era a mudança mais significativa de todas, pois a característica principal da Ann Prentice que conhecera era uma tranqüilidade meiga e serena.
— E o que me diz do jovem Gerald Lloyd... aquele rapaz que a preocupava tanto?
— Oh, foi para a América do Sul, ou um lugar qualquer. Aquilo acabou, felizmente. Engraçado você lembrar.
— Eu lembro de coisas que dizem respeito a Sarah. Gosto muito dela.
— Você é um amor, Laura. Sarah está muito bem. Muito egoísta e irritante em vários sentidos... mas suponho que isso é normal, na idade dela. Chegará
daqui a pouco, e então...
O telefone tocou, e Ann interrompeu-se para atender.
— Alô?... Oh, é você, querido... Ora, é claro, eu adoraria... Sim, mas tenho de olhar na minha agenda... oh, que inferno, não sei onde está... sim,
estou certa de que está bem... Quinta, então... o Petit Chat... sim, não foi?... Engraçado como Johnnie se apagou completamente... Sim, é claro, estávamos todos um pouco altos... Sim, também acho...
Recolocou o fone no gancho, comentando com uma nota de satisfação na voz que desmentia as palavras:
— Esse telefone! Toca o dia inteiro.
— Eles têm esse hábito — concordou Laura secamente. Acrescentou: — Você parece estar levando uma vida muito divertida, não Ann?
— Não se pode vegetar, querida... oh, parece que é Sarah.
Ouviram a voz de Sarah no vestíbulo:
— Quem, Dame Laura? Ótimo!
Abriu violentamente a porta da sala e entrou. Sua beleza surpreendeu Laura Whitstable. Desaparecera o toque desajeitado de potrinho, e ela agora era uma jovem excepcionalmente atraente, com rosto e corpo de beleza bastante incomum.
Pareceu radiante ao ver a madrinha, e beijou-a afetuosamente.
— Laura querida, que bom! Você fica ótima com esse chapéu. Ele lhe dá um ar quase Real, com um toquezinho tirolês.
— Criança impertinente — disse Laura, sorrindo para ela.
— Não, mas é verdade. Você é mesmo uma personalidade, não é, minha jóia?
— E você, uma jovem muito bonita!
— Oh, é só a minha maquiagem cara.
O telefone tocou, e Sarah atendeu.
— Alô? Quem está falando? Sim, ela está aqui. É para você, Mamãe... como sempre.
Quando Ann tomou o fone das mãos dela, Sarah sentou-se no braço da poltrona de Laura.
— O telefone toca para Mamãe o dia inteirinho — disse ela rindo.
Ann interrompeu asperamente:
— Fique quieta, Sarah, não consigo escutar. Sim... bem, acho que sim... mas estou ocupadíssima na semana que vem... Vou olhar na agenda. — Voltou-se e pediu: — Sarah, encontre a minha agenda. Deve estar junto à minha cama.
Sarah saiu da sala. Ann continuou falando:
Bem, naturalmente sei o que quer dizer... sim, esse tipo de coisa é uma obrigação horrível... Verdade, querido?... Bem, no que me diz respeito, cansei de Edward... Eu... Oh, cá está a agenda — tomou-a de Sarah, virando as folhas. — Não, sexta não dá... Sim, eu poderia ir depois... Muito bem, então, nos encontraremos nos Lumley Smith... Oh, sim, concordo. Ela é terrivelmente sem graça.
Recolocou o fone no gancho e exclamou:
— Esse telefone! Vai acabar me deixando maluca...
— Você adora isso, Mamãe. E adora flanar por aí, sabe disso. — Sarah voltou-se para Dame Laura e perguntou: — Não acha que Mamãe está muito elegante com esse novo penteado? Anos mais moça?
— Sarah não me deixa mergulhar graciosamente na meia-idade — disse Ann, com uma risada levemente artificial.
— Ora, Mamãe, você sabe que gosta de se divertir. Ela tem muito mais namorados do que eu, Laura, e raras vezes chega em casa antes do amanhecer.
— Não seja absurda, Sarah — disse Ann.
— Quem é hoje à noite, Mamãe? Johnnie?
— Não, Basil.
— Oh, antes você do que eu. Acho Basil o fim.
— Bobagem — falou Ann, asperamente. — Ele é muito divertido. E você, Sarah? Vai sair, suponho?
— Sim, Lawrence vem me buscar. Tenho que correr e mudar de roupa.
— Vá, então. E, Sarah... Sarah... não deixe suas coisas espalhadas por todo lado. Sua pele... e suas luvas. E apanhe aquele copo. Vai acabar quebrando.
— Ah, está bem, Mamãe. Não reclame tanto.
— Alguém tem que reclamar. Você nunca arruma nada. Para falar a verdade, às vezes não sei como agüento! Não... leve-as com você.
Ann deu um suspiro de exasperação enquanto Sarah saía.
— Francamente, garotas são absolutamente enlouquecedoras. Você não tem idéia de como Sarah é exasperante!
Laura lançou-lhe um rápido olhar. Houvera uma nota de verdadeiro mau humor e irritação na voz de Ann.
— Você não se cansa de toda essa correria. Ann?
— Claro que sim. Fico morta de cansaço. Mas a gente precisa fazer alguma coisa para se divertir.
— Você não costumava ter dificuldade em se divertir.
— Ficar sentada em casa com um bom livro e uma refeição numa bandeja? A gente passa por essa fase de retraimento. Mas estou no meu segundo fôlego agora. Por falar nisso, Laura, foi você que usou essa expressão pela primeira vez. Não está contente ao ver que aconteceu?
— Eu não quis dizer exatamente essa roda-viva social.
— Claro que não, querida. Você se referia a algum objetivo mais nobre. Mas não podemos todas ser figuras públicas como você, tremendamente científicas e sérias. Gosto de me divertir.
— E Sarah, do que ela gosta? Também gosta de se divertir? Como está a criança? Feliz?
— Claro. Ela se diverte muito.
Ann falou num tom despreocupado e indiferente, mas Laura Whitstable franziu as sobrancelhas. Quando Sarah deixou a sala, Laura tinha ficado perturbada por ver uma momentânea expressão de profundo cansaço no rosto da moça. Era como se por um momento a máscara sorridente tivesse escorregado — e por baixo dela Laura pensou ter visto incerteza e algo como sofrimento.
Sarah era feliz? Ann evidentemente pensava que sim. E Ann devia saber.
Não fique imaginando coisas, mulher — disse para si, severamente.
Mas a despeito de si mesma, sentia-se inquieta e perturbada. Havia alguma coisa errada na atmosfera do apartamento. Ann, Sarah, até mesmo Edith, todas percebiam isso. Todas elas, pensou, tinham algo a esconder. O olhar sombrio de desaprovação de Edith, a inquietude de Ann, suas maneiras nervosas e artificiais, a atitude insegura de Sarah... Havia algo errado em algum lugar.
A campainha da frente tocou e Edith, com o rosto mais lúgubre do que nunca, anunciou o Sr. Mowbray.
O Sr. Mowbray arremessou-se para dentro da sala. Não havia outro termo para aquilo. Eram os movimentos saltitantes de algum inseto alegre. Dame Laura pensou que ele poderia desempenhar bem o papel de Osric. Era jovem e de modos afetados.
— Ann! — exclamou ele. — Você está usando, afinal! Minha querida é o maior sucesso!
Ele se manteve a distância, a cabeça inclinada para um lado, examinando o vestido de Ann, enquanto esta o apresentava a Dame Laura.
Avançou para ela, exclamando excitado:
— Um broche de camafeu! Que coisa absolutamente adorável! Adoro camafeus. Tenho uma coisa por camafeus!
— Basil tem uma coisa por qualquer jóia vitoriana — disse Ann.
— Minha querida, eles tinham imaginação. Aqueles medalhões divinos, divinos. Fios de cabelos de duas pessoas entrelaçados num cacho em forma de salgueiro ou de vaso. Não fazem mais aquele tipo de trabalho com cabelos, hoje em dia. É uma arte perdida. E flores de cera... sou louco por flores de cera... e mesinhas de papier mâché. Ann, tem que deixar que a leve para ver uma mesa realmente divina.Tem até as taças malaias originais. Repulsivamente cara, mas vale cada centavo.
— Preciso ir — falou Laura Whitstable. — Não se prendam por minha causa.
— Fique e converse com Sarah — disse Ann. — Mal chegou a vê-la. E Lawrence Steene ainda demora um pouco a chegar.
— Steene? Lawrence Steene? — perguntou Dame Laura bruscamente.
— Sim, o filho de Sir Harry Steene. Muito atraente.
— Oh, você acha, querida? — comentou Basil. — Ele sempre me parece um tanto melodramático... como um mau filme. Mas todas as mulheres parecem
ficar loucas por ele.
— Ele é revoltantemente rico — disse Ann.
— Sim, há isso também. A maioria dos ricos é de uma falta de charme mortal. Quase não parece justo que alguém devesse ter dinheiro e charme.
— Bem. acho melhor irmos — disse Ann. — Eu lhe telefono, Laura, e vamos marcar uma conversa demorada e adorável uma hora destas.
Beijou Laura de maneira ligeiramente artificial e saiu com Basil Mowbray.
Dame Laura ouviu Basil comentar no vestíbulo: Que maravilhosa peça de museu ela é... tão divinamente lúgubre. Por que nunca a encontrei antes?
Alguns minutos depois Sarah entrou precipitadamente.
— Não fui rápida? Corri e quase não me pintei.
— É um bonito vestido, Sarah.
Sarah rodopiou. Usava um vestido de cetim azul claro que se ajustava às linhas adoráveis de seu corpo.
— Gosta? Foi horrivelmente caro. Onde está Mamãe? Saiu com Basil? Ele é horrível, não? Mas muito divertido e maldoso, e faz uma espécie de culto a mulheres mais velhas.
— Provavelmente descobriu que isso compensa — disse Dame Laura, em tom sombrio.
— Como você é cínica... e como está certa, também. Mas afinal, Mamãe precisa de alguma diversão. Está se divertindo loucamente, pobrezinha. E é mesmo atraente, não acha? Meu Deus, deve ser horrível envelhecer!
— Posso lhe assegurar que é bastante confortável — disse Dame Laura.
— Está tudo muito bem para você... mas nem todos podem ser figuras importantes! O que tem feito nesses anos todos em que não a vimos?
— De um modo geral, abusado da minha autoridade, interferindo na vida dos outros e dizendo-lhes como ficarão alegres e felizes se fizerem exatamente o
que lhes digo. Na verdade, incomodando todo mundo de maneira tirânica.
Sarah riu afetuosamente.
— Não quer me dizer como dirigir minha vida?
— Você precisa que lhe digam?
— Bem, não sei se estou sendo muito inteligente.
— Alguma coisa errada?
— Não exatamente... Divirto-me bastante e tudo isso... Acho que devia mesmo fazer alguma coisa.
— Que tipo de coisa?
— Oh, não sei — disse Sarah, vagamente. — Dedicar-me a alguma coisa. Preparar-me para alguma coisa. Arqueologia, ou taquigrafia e datilografia, ou
massagem, ou arquitetura.
— Que campo vasto... Nenhuma queda em especial?
— Não... não, acho que não... Esse trabalho com as flores é bom, mas estou um pouco enjoada dele. Não sei o que quero realmente...
Sarah perambulou a esmo pela sala.
— Não está pensando em casar?
— Oh, casamento! — Sarah fez uma careta expressiva. — Casamentos sempre parecem não dar certo.
— Nem sempre.
— Bem — disse Sarah, — a maior parte dos meus amigos parece ter-se separado. Vai tudo bem por um ou dois anos, e depois desanda. Naturalmente não deve ser tão ruim se a gente casa com alguém que tem montes de dinheiro.
— Então é essa a sua opinião?
— Bem, na verdade é a única opinião razoável. O amor não deixa de ser uma boa coisa — continuou com desembaraço — mas afinal de contas ele se baseia
na atração sexual, e isso não pode durar.
— Você parece tão informada quanto um livro-texto — comentou Dame Laura secamente.
— Bem, é verdade, não é?
— Absolutamente verdadeiro — replicou Laura prontamente.
Sarah pareceu um pouco desapontada.
— Por conseguinte, a única coisa sensata a fazer é casar com alguém realmente bem de vida.
Um leve sorriso crispou os lábios de Laura Whitstable.
— Isso também pode não durar — disse ela.
— É, acho que o dinheiro é um pouco incerto hoje em dia.
— Não foi isso que eu quis dizer — continuou Dame Laura. — O que quis dizer foi que o prazer de ter dinheiro para gastar é como a atração sexual. A gente acaba acostumando. Desaparece, como todo o resto.
— Comigo isso não aconteceria — afirmou Sarah. — Roupas bonitas... peles... jóias... e um iate...
— Como você ainda é criança, Sarah.
— Oh, mas não sou, Laura. Às vezes eu me sinto muito velha e desiludida.
— Verdade? — Dame Laura não podia deixar de sorrir diante da expressão grave do rosto jovem e bonito de Sarah.
— Na verdade, acho que eu deveria dar um jeito de sair daqui — falou Sarah, inesperadamente. — Arranjar um emprego, ou casar, ou alguma coisa. Eu deixo Mamãe horrivelmente nervosa. Tento ser boa, mas isso não parece adiantar. É claro que eu devo ser mesmo difícil. A vida é estranha, não é mesmo, Laura? Num momento tudo é alegria e a gente está se divertindo, e logo nada parece dar certo, e a gente não sabe onde está, nem o que quer fazer. E não há ninguém com quem se possa falar. Às vezes tenho uma sensação esquisita de medo. Não sei por que, nem de que... Medo, apenas. Talvez eu devesse me analisar, ou coisa parecida.
A campainha tocou e Sarah estremeceu.
— Acho que deve ser Lawrence!
— Lawrence Steene? — perguntou bruscamente Laura.
— Sim. Conhece?
— Ouvi falar nele — disse Laura, num tom sombrio.
Sarah deu uma risada.
— Nada de bom, garanto — disse ela, enquanto Edith abria a porta e anunciava:
— O Sr. Steene.
Lawrence Steene era alto e moreno. Tinha uns quarenta anos, e aparentava isso mesmo. Olhos um tanto velados pelos cílios. Movia-se com a elegância indolente de um felino. Era o tipo de homem que as mulheres notam imediatamente.
— Olá, Lawrence — disse Sarah. — Este é Lawrence Steene. Minha madrinha, Dame Laura Whitstable.
Lawrence Steene aproximou-se e tomou a mão de Dame Laura, curvando-se de um modo ligeiramente teatral e que quase poderia ser impertinente.
— É realmente uma honra — disse ele.
— Vê, querida? — exclamou Sarah. — Você é mesmo Nobre! Deve ser muito divertido ser uma Dame. Acha que algum dia serei uma?
— Não me parece nada provável — disse Lawrence.
— Oh, por quê?
— Você tem outros talentos. — Voltou-se para Dame Laura. — Li ontem um artigo seu. No Commentator.
— Oh, sim — disse Dame Laura. — Sobre a estabilidade do casamento.
— A senhora parece não ter dúvidas de que seria desejável a estabilidade no casamento. Mas no meu entender é a impermanência do casamento nos dias de hoje o que constitui seu maior encanto.
— Lawrence tem bastante experiência no assunto — acrescentou Sarah maldosamente.
— Só três vezes, Sarah.
— Meu Deus, espero que não tenha sido um daqueles casos em que as noivas desaparecem na banheira? — perguntou Dame Laura.
— Ele se desfaz delas na corte de divórcios — disse Sarah. — Bem mais simples que a morte.
— Mas lamentavelmente mais dispendioso — observou Lawrence.
— Creio ter conhecido sua segunda esposa, quando menina... Moira Denham, não é verdade?
— Exatamente.
— Uma moça encantadora.
— Concordo com a senhora, ela era realmente encantadora. Tão sem sofisticação.
— Um atributo pelo qual se paga caro às vezes — observou Laura. Levantou-se:
— Preciso ir.
— Podemos deixá-la em casa — ofereceu Sarah.
— Não, obrigada, estou com vontade de dar uma boa caminhada. Boa noite, minha querida.
A porta se fechou energicamente atrás dela.
— A desaprovação — disse Lawrence — foi marcante. Sou uma má influência na sua vida, Sarah. O dragão Edith positivamente lança fogo pelas ventas toda vez que me deixa entrar.
— Psiu, ou ela vai ouvir — pediu Sarah.
— É o que há de pior nos apartamentos — observou Lawrence. — Não se pode ter segredos.
Tinha chegado muito perto de Sarah, que se afastou um pouco, retrucando, petulante:
— Não, nada é secreto num apartamento, nem mesmo o encanamento.
— Onde está sua mãe esta noite?
— Saiu para jantar.
— Sua mãe é uma das mulheres mais sábias que conheço.
— Em que sentido?
— Ela nunca interfere, não é?
— Não... oh, não...
— Como eu disse, uma mulher sábia... Bem, vamos. — Afastou-se, olhando para ela. — Você está linda hoje, Sarah. Exatamente como deveria ser.
— Por que toda essa preocupação com esta noite? É alguma ocasião especial?
— É uma comemoração. Eu lhe direi mais tarde o que estamos comemorando.

Capítulo II
PASSARAM-SE ALGUMAS HORAS antes que Sarah repetisse a pergunta.
Estavam sentados na atmosfera atordoante de um dos mais caros clubes noturnos de Londres. Era um lugar demasiado cheio, mal ventilado e, pelo que se podia ver, sem nada que o distinguisse de qualquer outro night club, mas apesar disso o lugar da moda no momento.
Uma ou duas vezes tentara abordar o assunto dos motivos da comemoração, mas Steene conseguira desconversar. Ele sabia como criar uma atmosfera de crescente interesse.
Enquanto fumava e olhava ao seu redor, Sarah comentou:
— Muitos dos amigos mais conservadores da Mamãe acham horrível que eu tenha permissão para vir aqui.
— E ainda pior que venha aqui comigo?
Sarah riu:
— Por que acham você tão perigoso, Larry? Você costuma andar por aí, seduzindo mocinhas inocentes?
Lawrence estremeceu afetadamente, e disse:
— Nada tão grosseiro.
— O que, então?
— Pensam que eu participo daquilo que os jornais chamam "orgias inomináveis".
— Tenho ouvido dizer que você oferece mesmo umas festas um tanto excêntricas — disse Sarah, com franqueza.
— Algumas pessoas as chamariam assim. Mas a verdade pura e simples é que não sou uma pessoa convencional. Há tantas coisas para fazer na vida, desde que se tenha ao menos a coragem de experimentar.
— É exatamente o que eu penso — exclamou Sarah, com entusiasmo.
Steene continuou:
— Não ligo muito para garotas. São umas coisinhas fofas e tolas. Mas você é diferente, Sarah. Você é corajosa, tem calor... calor de verdade. — Seus
olhos a examinaram significativamente, numa lenta carícia. — Tem um lindo corpo, também. Um corpo capaz de experimentar sensações... provar... sentir.
Você ainda mal conhece suas próprias potencialidades.
Esforçando-se para esconder sua reação interior, Sarah disse, despreocupadamente:
— Tem uma boa conversa, Larry. Estou certa de que sempre funciona.
— Minha querida, a maioria das garotas me cansa. Você não... Daí — ergueu a taça para ela — a nossa comemoração.
— Sim. Mas o que estamos comemorando? Por que todo o mistério?
Sorrindo, ele respondeu:
— Não há mistério. É muito simples. Meu divórcio foi assinado hoje.
— Ah... — Sarah parecia surpresa. Steene a observava.
— Sim, isto abre o caminho. Bem... o que me diz, Sarah?
— Sobre o quê? — indagou a moça.
Steene falou, com súbita e reveladora selvageria:
— Não banque a inocente comigo, Sarah. Você sabe muito bem que eu a desejo. Sabe disto há bastante tempo.
Sarah evitou o olhar dele. Seu coração batia agradavelmente. Havia em Larry algo muito excitante.
— Você acha quase todas as mulheres atraentes, não? — perguntou em tom despreocupado.
— Poucas, hoje em dia. No momento, só você. — Fez uma pausa e continuou, falando num tom calmo e quase indiferente: — Você vai casar comigo, Sarah.
— Não quero casar. Além disso, acho que você deveria ficar contente por estar livre outra vez, sem pensar em se prender imediatamente.
— A liberdade é uma ilusão.
— Você não é muito boa propaganda para o matrimônio. Sua última mulher foi bem infeliz, não foi?
Lawrence respondeu calmamente:
— Chorou quase sem parar nos dois últimos meses que vivemos juntos.
— Porque gostava de você?
— Assim parecia. Ela sempre foi uma mulher incrivelmente burra.
— Por que casou com ela?
— Porque se parecia demais com uma das Madonas Primitivas, meu período artístico favorito. Mas é o tipo da coisa que acaba perdendo a graça.
— Você é um demônio cruel, não Larry? — falou Sarah, entre revoltada e fascinada.
— E é exatamente isso que você gosta em mim. Se eu fosse o tipo de homem que pudesse vir a ser um bom marido, estável e fiel, não pensaria em mim duas vezes.
— Bem, pelo menos você é franco.
— Você quer viver insípida ou perigosamente, Sarah?
Ela não respondeu. Empurrava um pedacinho de pão pelo pratinho:
— E sua segunda mulher... Moira Denham... aquela que Dame Laura conheceu... o que... o que houve com ela?
— É melhor perguntar a Dame Laura — ele sorriu. — Ela lhe contará tudo nos mínimos detalhes: Uma jovem meiga e tão simples, e como eu lhe parti o coração... para colocar as coisas numa linguagem romântica.
— Devo dizer que você parece ser uma ameaça e tanto às esposas.
— Posso garantir-lhe que não parti o coração da minha primeira mulher. Incompatibilidade moral foi a razão que alegou para deixar-me. Uma mulher com
altos padrões morais. A verdade, Sarah, é que as mulheres nunca se contentam em casar conosco pelo que somos. Querem que sejamos diferentes. Mas ao menos você tem que admitir que não lhe escondo meu verdadeiro caráter. Gosto de viver perigosamente, gosto de experimentar prazeres proibidos. Não tenho altos padrões morais e não finjo ser o que não sou.
Baixou a voz:
— Posso lhe dar muitas coisas, Sarah. Não estou falando apenas nas coisas que o dinheiro pode comprar: peles para envolver o seu corpo adorável, jóias para contrastar com a brancura da sua pele. O que eu quero dizer é que posso lhe oferecer toda a gama de sensações. Posso fazê-la viver, Sarah... posso fazê-la sentir. Toda a vida é experiência, lembre-se.
— Eu... sim, acho que é...
Sarah o olhava, num misto de repulsa e fascínio.
— O que você conhece da vida, Sarah? Menos que nada! Posso levá-la a lugares, lugares horríveis e sórdidos, onde você verá a vida correr ardente e misteriosa, onde poderá sentir... sentir... até que o fato de estar viva se transformará num êxtase desconhecido.
Apertou os olhos, observando o efeito de suas palavras. Então, deliberadamente, rompeu o encantamento.
— Bem — disse animadamente, — é melhor sairmos daqui.
Fez um sinal ao garçom para que trouxesse a conta. Sorriu para Sarah, com ar de desinteresse.
— Agora vou levá-la para casa.
Na escuridão luxuosa do carro, Sarah manteve-se tensa e na defensiva, mas Lawrence nem ao menos tentou tocá-la. No íntimo, ela sabia que aquilo a desapontava, e Lawrence percebia esse desapontamento. Ele conhecia bem as mulheres.
Subiu com ela até o apartamento. Sarah abriu a porta com a chave, entrou na sala e acendeu a luz.
— Uma bebida, Larry?
— Não, obrigado. Boa noite, Sarah.
Ela foi impelida a chamá-lo de volta, e ele contava com isso.
— Larry...
— Sim?
Ficou parado na porta, olhando por sobre o ombro.
Seus olhos deslizaram pelo corpo dela com a aprovação de um connaisseur. Perfeita — absolutamente perfeita. Sim, precisava tê-la. Seu pulso apressou um pouco, mas o rosto permaneceu impassível.
— Sabe... acho...
— Sim?
Voltou para junto dela. Os dois falavam baixinho, atentos ao fato de que a mãe de Sarah e Edith estavam presumivelmente adormecidas ali perto.
Sarah falou depressa:
— Entende Larry, acontece que não estou apaixonada por você.
— Não está?
Alguma coisa no tom da voz dele fez com que ela continuasse rapidamente, gaguejando um pouco:
— Não... não realmente. Não como devia ser. O que eu quero dizer é que se perdesse todo o seu dinheiro e... oh, tivesse que cuidar de alguma plantação de laranjas ou coisa parecida em algum lugar, eu não tornaria a pensar em você.
— O que seria bastante sensato.
— Mas mostra que eu não o amo.
— Nada me aborreceria mais do que uma devoção romântica. Não é isso o que quero de você, Sarah.
— Mas então... o que você quer?
Fora uma pergunta insensata — mas ela quisera fazê-la. Queria ir adiante. Queria ver o que...
Ele estava bem junto dela. Então, de repente, curvou-se e beijou-lhe a nuca. Suas mãos a enlaçaram, cobrindo-lhe os seios.
Ela começou a se afastar — e então se rendeu. Sua respiração tornou-se mais rápida.
Após um momento, ele a soltou.
— Quando diz que não sente nada por mim, Sarah — disse ternamente, — está mentindo.
E com isso a deixou.

Capítulo III
ANN tinha voltado para casa uns quarenta minutos antes de Sarah. Ao abrir a porta, ficou aborrecida ao ver a cabeça de Edith, ouriçada com antiquados grampos, espiando para fora do quarto.
Ultimamente, vinha achando Edith cada vez mais irritante.
A criada disse logo:
— A Srta. Sarah ainda não chegou.
A censura implícita na observação de Edith enfureceu Ann, que retrucou bruscamente:
— E por que deveria ter chegado?
— Namorando na rua até estas horas... e é só uma menina.
— Não seja ridícula, Edith. As coisas não são mais como eram quando eu era mocinha. Agora, as moças são educadas para saberem cuidar de si mesmas.
— Tanto pior — disse Edith. — Provavelmente é por isso que acabam mal.
— Também acabavam, quando eu era moça — retrucou Ann secamente. — Eram demasiado confiantes e ignorantes, e toda a vigilância do mundo não
as impedia de fazer papel de bobas, se fossem desse tipo de moça. Hoje em dia as moças lêem tudo, fazem qualquer coisa e vão a qualquer lugar.
— Ah — disse Edith em tom soturno. — Um grama de experiência vale por um quilo de conhecimento. Bem, se a senhora está satisfeita, não tenho nada
a ver com isso... mas existem cavalheiros e cavalheiros, se é que me entende... e não simpatizo muito com o que ela saiu esta noite. Foi um tipo desses que
deixou a segunda filha da minha irmã Nora em dificuldades. E não adianta gastar os olhos de tanto chorar depois que o mal foi feito.
Apesar de irritada, Ann não pôde deixar de sorrir. Edith e seus parentes! Além disso, a imagem de Sarah, tão segura de si, no papel de uma seduzida donzela de aldeia estimulava seu senso de humor.
— Bem, pare de se preocupar — falou — e vá para a cama. Mandou fazer aquela receita de pílulas para dormir?
— Estão junto da sua cama — resmungou Edith. — Mas não vai adiantar nada a senhora começar a tomar essas coisas para dormir... Quando se der conta, não consegue mais dormir sem elas. Sem falar que vão deixar a senhora mais nervosa ainda do que está.
Ann voltou-se contra ela, furiosa:
— Nervosa? Não estou nervosa!
Edith não replicou, simplesmente deixou cair os cantos da boca e retirou-se para o quarto, com um profundo suspiro.
Francamente — pensou Ann, indo para o seu quarto, ainda furiosa — Edith fica mais impossível a cada dia que passa. Não sei por que agüento.
Nervosa? Claro que não estava nervosa. Ultimamente contraíra o hábito de ficar deitada, acordada — só isso. Todo mundo sofre de insônia de vez em quando. Era muito mais razoável tomar alguma coisa e ter uma boa noite de sono do que ficar acordada, ouvindo as batidas dos relógios, enquanto o pensamento dá voltas e mais voltas — como esquilos numa gaiola. O Dr. McQueen fora muito compreensivo e lhe dera uma receita, algo muito leve e inofensivo — brometo, ao que parecia. Algo para acalmar e não deixar pensar...
Oh Deus, como todos eram cansativos. Edith e Sarah — até mesmo a querida Laura. Sentia-se um pouco culpada em relação a Laura. Naturalmente deveria ter-lhe telefonado há uma semana. Laura era uma de suas amigas mais antigas. Só que por qualquer razão, por enquanto ainda não quisera preocupar-se com ela — Laura podia ser um tanto difícil às vezes...
Sarah e Lawrence Steene? Haveria mesmo qualquer coisa? As moças sempre gostaram de andar com homens de má reputação... Provavelmente não era nada sério. E mesmo que fosse...
Tranqüilizada pelo brometo, Ann adormeceu, mas mesmo dormindo ela se agitava, revolvendo-se na cama.
Estava sentada, tomando café, quando o telefone junto à cama tocou na manhã seguinte. Levantando o fone do gancho, ficou irritada ao escutar a voz de Dame Laura, que perguntava num tom áspero:
— Ann, Sarah sai muito com Lawrence Steene?
— Santo Deus, Laura, precisa telefonar a esta hora da manhã para perguntar isso? Como vou saber?
— Bem, você é a mãe dela, não é?
— Sim, mas não se pode interrogar os filhos todo tempo, perguntar aonde vão, e com quem. Para começo de conversa, eles não tolerariam isso.
— Ora vamos, Ann, não tente fugir da minha pergunta. Ele anda atrás dela, não anda?
— Oh, acho que não. O divórcio dele ainda não foi assinado... pelo que eu sei.
— O divórcio foi concedido ontem, vi no jornal. O que você sabe dele?
— É o único filho do velho Harry Steene. Tem rios de dinheiro.
— E uma péssima reputação.
— Oh, isso! As jovens sempre sentem atração por um homem que tenha má fama... sempre foi assim, desde o tempo de Lorde Byron; mas na verdade isso não quer dizer nada.
— Gostaria de conversar com você, Ann. Vai estar em casa hoje à noite?
Ann retrucou rapidamente:
— Não, vou sair.
— Lá pelas seis, então.
— Sinto muito, Laura, vou a um coquetel...
— Muito bem, então irei às cinco. Ou prefere — a voz de Laura denotava inflexível determinação — que eu vá agora?
Ann capitulou graciosamente.
— Cinco da tarde... será ótimo.
Recolocou o fone no gancho com um suspiro de exasperação. Francamente, Laura era impossível! Todas essas Comissões, e Unescos e Unos — isso virava a cabeça das mulheres.
Não quero que Laura fique vindo aqui a toda hora — disse para si mesma, com impaciência.
Apesar disso, recebeu a amiga com todas as demonstrações de prazer quando esta apareceu. Conversou, alegre e nervosamente, enquanto Edith trazia o chá. Laura Whitstable estava excepcionalmente contida. Escutava e respondia, mas isso era tudo.
Então, quando a conversa morreu, Dame Laura pousou a xícara e disse com a costumeira franqueza:
— Sinto preocupá-la, Ann, mas acontece que, ao voltar dos Estados Unidos, ouvi quando dois homens falavam sobre Larry Steene... e o que disseram não foi particularmente agradável de escutar.
Ann encolheu ligeiramente os ombros:
— Ora, as coisas que a gente ouve por acaso...
— São muitas vezes interessantes — disse Dame Laura. — Eram homens muito decentes... e a opinião que tinham de Steene era bastante comprometedora.
Além disso, há Moira Denham, que foi a segunda esposa dele. Eu a conheci antes que casasse com ele, e voltei a vê-la depois que tudo acabou. Era uma ruína total, com os nervos em frangalhos.
— Está sugerindo que Sarah...
— Não estou sugerindo que Sarah seria reduzida a uma ruína se casasse com Lawrence Steene. Ela tem um temperamento mais exuberante. Sarah não é uma borboletinha indefesa.
— Bem, então...
— Mas acho realmente que ela poderá ser muito infeliz. E há ainda um terceiro ponto. Leu algo nos jornais sobre uma jovem chamada Sheila Vaugham
Wright?
— Alguma coisa sobre ser viciada em drogas?
— Sim. É a segunda vez que vai a julgamento. Durante algum tempo foi amiga de Lawrence Steene. Tudo que estou lhe dizendo, Ann, é que Lawrence Steene é uma pessoa particularmente sórdida... no caso de você ainda não saber. Mas talvez saiba?
— Sei que falam muito dele, é claro — disse Ann, um tanto relutante. — Mas o que espera que eu faça? Não posso proibir Sarah de sair com ele. Se proibisse, ela provavelmente continuaria saindo. As jovens não suportam ser mandadas, como você deve saber muito bem. Isso simplesmente daria ao caso uma importância maior. Não creio que haja algo de sério nisso tudo, no momento. Ele a admira e ela se sente lisonjeada porque ele é considerado um cafajeste. Mas você parece estar pressupondo que ele quer casar com ela...
— Sim, acho que quer. Ele é o que eu chamaria de colecionador.
— O que quer dizer?
— É um tipo... e não é o melhor dos tipos que existem. Supondo que ela queira casar com ele... o que você acharia disso?
— De que adiantaria eu achar alguma coisa? — respondeu Ann, com amargura. — As moças fazem exatamente o que querem; e casam com quem querem.
— Mas você tem muita influência sobre Sarah.
— Oh, não, Laura. Aí você se engana. Sarah é inteiramente independente. Eu não interfiro.
Laura Whitstable encarou-a.
— Sabe Ann, não consigo entendê-la. Não ficaria contrariada se ela casasse com esse homem?
— É tudo tão difícil! Muitos homens de má reputação revelam-se ótimos maridos, uma vez passados os desvarios da mocidade. Encarando do ponto de
vista puramente mundano, Lawrence Steene é um ótimo partido.
— Isso não a influenciaria, Ann. É a felicidade de Sarah que você deseja, não suas propriedades materiais.
— Ora, é claro. Mas, caso você ainda não tenha percebido, Sarah gosta muito de coisas bonitas, de viver luxuosamente... muito mais do que eu.
— Mas ela não casaria unicamente por isso?
— Acho que não — Ann parecia em dúvida. — Na verdade, penso que ela se sente mesmo atraída por Lawrence.
— E acha que o dinheiro poderá equilibrar os pratos da balança...
— Não sei, estou lhe dizendo! Penso que Sarah iria... bem... hesitar antes de casar com um homem
— Gostaria de saber — disse Dame Laura, pensativa.
— As moças de hoje parecem não pensar nem falar em outra coisa além do dinheiro.
— Ora, falar! Ouvi Sarah falar, abençoada seja! Tudo muito razoável, frio e sem sentimentalismos. Mas a linguagem serve tanto para expressar os pensamentos como para escondê-los. Seja em qual for a geração, as jovens falam segundo um padrão estabelecido. A questão é saber o que Sarah deseja, realmente.
— Não tenho idéia — disse Ann. — Imagino que deseje apenas... se divertir.
Dame Laura lançou-lhe um rápido olhar,
— Acha que ela é feliz?
— Oh, sim. Realmente, Laura, ela se diverte muito.
— Não me pareceu assim tão feliz — comentou Laura, pensativa.
Ann retrucou vivamente:
— Todas as moças têm um ar descontente: é uma atitude que assumem.
— Talvez. Então acha que não pode fazer nada com relação a Lawrence Steene?
— Não vejo o que possa fazer. Por que você não fala com ela?
— Não farei isso. Sou apenas a madrinha. Conheço minhas obrigações.
Ann ficou vermelha de raiva.
— Suponho que considera minha obrigação falar com ela?
— De modo algum. Como você diz, falar não adianta muito.
— Mas acha que devo fazer alguma coisa?
— Não necessariamente.
— Então o que quer dizer?
Laura Whitstable olhou pensativamente para o lado oposto da sala.
— Estava me perguntando em que você estaria pensando...
— Eu?
— Sim.
— Não estou pensando em nada. Absolutamente nada.
Laura tirou os olhos do outro extremo da sala e lançou a Ann um rápido olhar, como o de um pássaro.
— Não — disse ela. — E é disso que eu tinha medo.
— Não entendo nada do que você está dizendo.
Laura Whitstable falou:
— O que está acontecendo não se passa na sua mente. Ê muito mais profundo.
— Oh, não me venha com tolices sobre o inconsciente! Realmente, Laura, você... você parece estar me acusando...
— Não sou eu quem a está acusando.
Ann levantou-se e começou a caminhar pela sala:
— Não sei o que está querendo dizer. Eu amo Sarah... Você bem sabe como ela sempre foi importante para mim. Eu... eu sacrifiquei tudo por ela!...
— Sei que há dois anos você fez um grande sacrifício por ela — disse Laura gravemente.
— Então — perguntou Ann. — Isso não prova alguma coisa?
— O quê?
— O quanto eu gosto dela!
— Mas minha querida, não fui eu que disse que você não gostava! Você está se defendendo... mas não de qualquer acusação que eu tenha feito — Laura
levantou-se. — Tenho que ir agora. Talvez fosse melhor eu não ter vindo.
Ann foi com ela até a porta:
— Entenda, é tudo tão vago... nada em que se possa deitar as mãos...
— Sei, sei. — Laura fez uma pausa e logo continuou, com repentina e surpreendente energia: — O problema dos sacrifícios é que eles nunca terminam, nem são esquecidos, depois que acontecem... mas continuam...
Ann encarou-a, surpresa:
— O que quer dizer, Laura?
— Nada. Deus a abençoe, minha querida, e aceite um conselho meu, em caráter profissional: não viva num ritmo tão intenso que não lhe deixe tempo para pensar.
Ann riu, outra vez bem-humorada.
— Só vou sentar e pensar quando for velha de mais para fazer qualquer outra coisa — disse alegremente.
Edith entrou para levar os copos. Ann olhou o relógio, soltou uma exclamação e foi para o quarto.
Pintou-se com especial cuidado, examinando-se atentamente no espelho. O novo corte de cabelo fora um sucesso, pensou. Parecia muitos anos mais moça. Ouvindo uma batida na porta da frente, gritou para Edith:
— Alguma carta?
Houve um silêncio enquanto Edith examinava a correspondência, antes de responder.
— Nenhuma, apenas contas, madame... e uma vinda da África da Sul para a Srta. Sarah.
Edith deu leve ênfase às três últimas palavras, mas Ann não percebeu. Voltou à sala no instante em que Sarah entrava.
— O que eu detesto nos crisântemos é esse cheiro horrível que eles têm — resmungou Sarah. — Acho que vou largar Noreen e arranjar um emprego de manequim. Sandra está doida para que eu vá trabalhar com ela. E o salário é melhor. Olá, recebeu visitas para o chá? — perguntou, enquanto Edith entrava para apanhar uma xícara esquecida.
— Laura esteve aqui.
— Laura? Outra vez? Ela esteve aqui ontem.
— Eu sei — Ann hesitou um instante antes de continuar. — Ela veio para me dizer que eu não devia permitir que você saísse com Larry Steene.
— Laura disse isso? Quanto cuidado! Está com medo de que eu seja devorada pelo lobo mau?
— Parece — disse Ann, cautelosamente. — Dizem que ele tem uma péssima reputação.
— Ora, isso não é novidade! Aquilo que eu vi na entrada eram cartas? — Sarah foi até o vestíbulo e voltou trazendo na mão uma carta com selo da África
do Sul.
— Laura parece pensar que eu devia impedir este seu namoro com Lawrence — falou Ann.
Olhando para a carta, Sarah perguntou com ar ausente:
— O quê?
— Laura acha que eu devia pôr um ponto final nos seus passeios com Lawrence.
— Querida, e como você faria isto? — indagou Sarah alegremente.
— Foi o que eu disse a ela — retrucou Ann, triunfante. — Não há muito que as mães possam fazer hoje em dia.
Sarah sentou-se no braço de uma poltrona e abriu a carta. Desdobrou as duas folhas e começou a ler.
— A gente chega a esquecer que Laura tem a idade que tem! — continuou Ann. — Está ficando tão velha que perdeu totalmente o contato com as idéias modernas. É claro que, para ser franca, eu também fiquei bastante preocupada ao vê-la sair tanto com Larry Steene... mas depois decidi que seria pior, se eu falasse alguma coisa. Sei que posso ter certeza de que você não vai fazer nenhuma tolice.
Parou. Sarah, a atenção voltada para a carta, murmurou:
— Claro, querida.
— Mas você deve ter a liberdade de escolher seus amigos. Creio mesmo que muitas vezes surgem atritos justamente porque...
O telefone tocou.
— Oh meu Deus, o telefone! — exclamou Ann. Inclinou-se alegremente para atender, cheia de expectativa.
— Alô... Sim, é a Sra. Prentice. Sim... Quem? Não consigo entender o nome. Cornford? Oh, C-A-U-L-D-... Oh!... Oh!... Que estupidez a minha! É
você, Richard? Sim, faz tanto tempo... Bem, é muita gentileza sua. Não, é claro que não... Não, estou encantada ... Sinceramente, palavra... Pensei em você
muitas vezes... O que tem feito?... O quê?... É mesmo?... Fico tão contente! Meus cumprimentos... Estou certa de que ela é encantadora... É muita bondade sua... gostaria muito de conhecê-la...
Sarah levantou-se do braço da cadeira onde estivera sentada. Caminhou lentamente até a porta, os olhos perdidos, vazios. A carta estava amarrotada na sua mão.
Ann continuou:
— Não, amanhã não posso... não... espere um minuto, vou apanhar meu caderninho... — chamou com urgência: — Sarah!
Sarah voltou-se da porta:
— Sim?
— Onde está meu caderninho?
— Seu caderninho? Não tenho a menor idéia... Sarah estava a quilômetros de distância. Ann continuou, irritada:
— Bem, procure. Deve estar em algum lugar. Ao lado da minha cama, talvez. Depressa, querida!
Sarah saiu e voltou um momento depois com a agenda de compromissos:
— Aqui está, mamãe.
Ann folheou rapidamente:
— Ainda está aí, Richard? Não, almoço é impossível. Você talvez pudesse vir tomar um drinque na terça-feira?... Oh, entendo... Sinto muito. E almoçar, também é impossível? Bem... você tem mesmo que viajar no trem da manhã? Onde está hospedado? Ah, mas é aqui perto. Sei... e não poderiam vir agora para um drinque rápido? Não, eu ia sair... mas tenho ainda muito tempo. Será ótimo. Venham logo.
Colocou o fone no gancho e ficou distraída, os olhos perdidos no espaço.
Sarah perguntou, sem muito interesse:
— Quem era? — e logo acrescentou, com esforço: — Mamãe, soube notícias de Gerry...
Ann levantou-se subitamente.
— Diga a Edith para trazer os copos melhores e um pouco de gelo. Depressa! Eles vêm até aqui para tomar um drinque.
Sarah moveu-se obedientemente:
— Quem? — perguntou, ainda sem grande curiosidade.
— Richard — respondeu Ann. — Richard Cauldfield!
— Quem é ele? — indagou Sarah.
Ann olhou-a vivamente, mas o rosto de Sarah não tinha qualquer expressão. Ela saiu para chamar Edith e quando voltou, Ann disse com ênfase:
— Era Richard Cauldfield.
— E quem é Richard Cauldfield? — Sarah parecia intrigada.
Ann apertou as mãos. Sua fúria era tão intensa que teve que ficar calada durante um minuto para controlar a voz que tremia.
— Então... você nem ao menos lembra o nome dele...
Os olhos de Sarah estavam novamente pousados sobre a carta que tinha nas mãos. Respondeu com naturalidade:
— Eu o conheci? Fale alguma coisa sobre ele.
Ann tinha a voz rouca, quando repetiu, desta vez, com ênfase cortante que não podia ser ignorada:
— Richard Cauldfield!
Sarah ergueu os olhos, espantada. De repente, entendeu:
— Quê! Não é o Cauliflower?!
— Ele mesmo.
Para Sarah aquilo era uma grande piada.
— Engraçado ele aparecer de novo — disse, animada. — Ainda está atrás de você, mamãe?
— Não, ele casou — Ann respondeu secamente.
— Muito bem! Como será ela?
— Ele vai trazê-la até aqui. Vão chegar logo, estão hospedados no Langport. Dê um jeito nestes livros, Sarah. Guarde suas coisas no vestíbulo. Não esqueça as luvas.
Abrindo a bolsa, Ann examinou ansiosamente o rosto no espelhinho.
— Estou bem? — perguntou a Sarah, que voltava.
— Sim, ótima — respondeu ela, distraidamente.
Tinha o cenho franzido. Ann fechou a bolsa e andou, inquieta, pela sala, mudando a posição de uma cadeira, arranjando melhor uma almofada.
— Mamãe, recebi notícias do Gerry.
— Recebeu?
O vaso com crisântemos dourados ficaria melhor naquela mesa do canto.
— Ele teve um azar horrível.
— Teve?
A cigarreira e os fósforos aqui.
— Sim. As laranjas pegaram uma doença qualquer, ele e o sócio ficaram cheios de dívidas, e agora... agora tiveram que vender. Foi um fracasso.
— Que pena. Mas não posso dizer que seja uma surpresa.
— Por quê?
— Coisas desse tipo parecem acontecer sempre com Gerry — disse Ann vagamente.
— Sim... sim, é verdade — Sarah parecia abatida. A generosa indignação com que defendera Gerry não era agora tão espontânea. Continuou sem muita
convicção: — A culpa não é dele... — Mas já não estava tão convencida quanto teria estado no passado.
— Talvez não — falou Ann, distraidamente. — Mas tenho medo de que ele acabe sempre estragando as coisas.
— Você acha? — Sarah voltou a sentar no braço da cadeira, e falou ansiosamente: — Mamãe, você acha... realmente acha,.. que Gerry nunca vai acertar?

— Não vejo muito jeito.
— E no entanto eu sei... tenho certeza... de que ele tem muito valor.
— É um rapaz encantador — disse Ann — mas creio que é uma dessas pessoas que nunca se encontram.
— Talvez — suspirou Ann.
— Onde está o sherry? Richard sempre preferia tomar sherry. Oh, lá está ele.
— Gerry diz que vai para o Quênia — continuou Sarah — ... ele e um outro amigo. Vão vender carros... e dirigir uma garagem.
— É incrível a quantidade de gente incompetente que acaba dirigindo garagens — comentou Ann.
— Mas Gerry sempre teve jeito para lidar com carros. Conseguiu fazer com que aquele que comprou por uma ninharia funcionasse maravilhosamente, lembra-se? E sabe, mamãe, não é que ele seja preguiçoso ou não queira trabalhar. Ele trabalha... e às vezes se esforça muitíssimo. Mas acho que não tem muito discernimento.
Pela primeira vez Ann concentrou a atenção em Sarah. Falou então bondosamente, mas num tom decidido:
— Sabe, Sarah, se eu fosse você, eu... bem, eu trataria de esquecer Gerry...
— Você faria isso? — Sarah pareceu abalada. Seus lábios tremeram e ela falou sem convicção.
A campainha tocou, com chamadas surdas e insistentes .
— Chegaram — disse Ann.
Levantou-se e ficou parada diante da lareira, numa pose um tanto artificial.

Capítulo IV
RICHARD entrou na sala com aquele ar de segurança que assumia sempre que estava pouco à vontade. Não teria vindo se não fosse por Dóris. Mas ela tinha ficado curiosa, tinha insistido, falado, ficara amuada. Era muito jovem, bonita, e, tendo casado com um homem bem mais velho, pretendia fazer valer sempre a sua vontade.
Ann foi ao encontro deles com um sorriso encantador. Sentia-se como alguém desempenhando um papel no palco.
— Richard! Como é bom vê-lo! Esta é sua esposa?
Por trás das saudações educadas e dos comentários, os cérebros trabalhavam.
Richard pensava: "Como ela mudou... eu mal a teria conhecido".
E sentiu um certo alívio ao pensar — "ela não teria servido para mim — realmente. É requintada demais... Elegante... Fútil. Não é o meu tipo."
E sentiu renovada afeição pela esposa. Dóris o deixava meio tonto às vezes — era tão jovem. Havia ocasiões em que ele percebia, mesmo sem querer, que aquele seu jeito afetado de falar podia ser irritante e que a constante brejeirice era também um pouquinho cansativa. Não admitia a idéia de que se tivesse casado com alguém de classe inferior à sua. Conhecera Dóris num hotel de veraneio na costa sul. O pai dela era construtor aposentado e a família tinha bastante dinheiro, mas havia ocasiões em que os pais dela o desagradavam, embora isto acontecesse agora menos do que há um ano. E já começava a aceitar a idéia de que os amigos de Dóris seriam também os seus amigos. Não era o que tinha desejado antes, ele sabia; Dóris nunca poderia tomar o lugar da sua Aline, morta há tanto tempo. Mas conseguira fazer com que vivesse uma nova primavera dos sentidos e, por agora, isto lhe bastava.
Dóris, que tivera suas suspeitas sobre essa tal Sra. Prentice, e sentira até certo ciúme dela, ficou favoravelmente surpresa com a aparência de Ann.
"Ora, ela é bem velha" pensou, com a intolerância cruel da juventude.
Ficou impressionada com a sala e os móveis. A filha também era bastante elegante, parecia ter saído das páginas do Vogue. Saber que o seu Richard tinha sido noivo de uma senhora tão distinta a deixava bastante orgulhosa, fazia com que ele subisse no seu conceito .
Para Ann, rever Richard fora um choque. Este homem que lhe falava com tanta desenvoltura era um estranho. Tinham seguido caminhos diferentes e agora já não restava nenhum ponto comum entre eles. Sempre percebera a existência de duas tendências no caráter de Richard: um traço de arrogância, uma propensão à mediocridade.
Fora um homem comum com possibilidades interessantes. Agora uma porta se fechara sobre essas possibilidades, e o Richard que Ann amara estava aprisionado dentro deste típico marido inglês, bem-humorado e um tanto arrogante.
Tinha conhecido e casado com esta criança rapace e vulgar, destituída de bondade ou inteligência, tendo como única qualidade uma certa beleza rosada e um apelo sexual jovem e grosseiro.
Casara com esta moça porque ela, Ann, o mandara embora. Ferido, cheio de raiva e ressentimento, fora presa fácil para a primeira mulher decidida a conquistá-lo. Bem, talvez tivesse sido melhor assim. Provavelmente ele era feliz...
Sarah trouxe bebidas e conversou educadamente. Seus pensamentos eram bastante simples e podiam ser resumidos numa frase: "Que gente maçante!" Não percebia nada além disso. Ainda sentia uma dor surda ao pensar em Gerry.
— Vejo que você redecorou tudo.
Richard olhava em volta:
— Ficou lindo, Sra. Prentice — disse Dóris. — O estilo Regência é a última moda, não? E como era antes?
— Coisas antigas e cor-de-rosa — respondeu Richard, vagamente. Tinha uma lembrança da luz suave da lareira, ele e Ann sentados no velho sofá que fora
banido para ceder lugar ao divã estilo Império. — Gostava mais como era antes.
— Os homens têm mania de gostar de coisas velhas, não acha Sra. Prentice? — Dóris sorriu com afetação.
— Minha mulher está decidida a me manter atualizado — comentou Richard.
— É claro que sim, querido. Não vou deixar que você fique velho antes do tempo — disse Dóris afetuosamente. — A senhora não acha que ele parece muito
mais moço agora do que quando o viu pela última vez, Sra. Prentice?
Ann evitou o olhar de Richard ao responder:
— Acho que ele está ótimo.
— Comecei a jogar golfe.
— Achamos uma casa perto de Basing Heath, não foi uma sorte? Tem um bom serviço de trens para que Richard possa ir e vir todos os dias. E o campo de golfe é tão bonito! Embora fique cheio demais nos fins de semana...
— Hoje em dia é mesmo uma sorte enorme quando se consegue a casa que se deseja — observou Ann.
— Sim. Tem um fogão Aga, uma boa instalação elétrica e foi construída dentro das linhas mais modernas. Richard suspirava por uma dessas casas de
época, caindo aos pedaços. Mas eu bati pé!
Ann respondeu delicadamente:
— Estou certa que uma casa moderna elimina muitos problemas domésticos. Vocês têm jardim?
— Não de verdade — respondeu Richard, ao mesmo tempo em que Dóris exclamava:
— Oh, sim! — lançando-lhe um olhar reprovador. — Como pode dizer uma coisa dessas depois de todas as flores que plantamos?
— Temos uma pequena faixa de terra em torno da casa.
Por um instante seus olhos encontraram os de Ann. Tinham falado às vezes sobre o jardim que teriam se fossem viver no campo. Um pomar, um gramado com árvores...
Richard voltou-se rapidamente para Sarah:
— Bem, minha jovem, e o que tem feito? — A velha inquietação que sentia diante de Sarah reviveu e fez a voz dele soar odiosamente brincalhona. — Imagino que tem ido a muitas festas malucas.
Sarah riu animadamente, enquanto pensava:
"Tinha esquecido como Cauliflower é odioso. Foi ótimo para mamãe eu ter acabado com ele."
— Oh, sim — falou. — Mas tenho por princípio não acabar bêbada mais de duas vezes por semana.
— As moças de hoje bebem demais. Faz mal à pele... embora eu deva dizer que a sua parece ótima.
— Você sempre se interessou por cosméticos, eu me lembro — disse Sarah, docemente.
Foi ter com Dóris, que conversava com Ann.
— Deixe-me oferecer-lhe outro drinque.
— Oh não, Srta. Prentice... eu não poderia. Este já me subiu à cabeça. Que lindo bar a senhora tem. É tudo elegantíssimo, não é mesmo?
— É bastante prático — respondeu Ann.
— Ainda não casou, Sarah? — indagou Richard.
— Oh, não, Mas ainda tenho esperanças.
— Imagino que você deve freqüentar Ascot e todos esses lugares — disse Dóris, invejosamente.
— A chuva deste ano arruinou meu melhor vestido — contou Sarah.
— Sabe, Sra. Prentice — Dóris voltou-se outra vez para Ann, — a senhora não parece nem um pouquinho com o que eu imaginava.
— E como você me imaginava?
— É que os homens são péssimos ao descrever as pessoas, não é mesmo?
— Como é que Richard disse que eu era?
— Ora, não sei. Não foi o que ele disse exatamente. Foi a impressão que eu guardei. Imaginava a senhora como uma dessas mulherezinhas quietas e apagadas — concluiu com uma risada estridente.
— Uma mulherzinha quieta e apagada! Isto parece horrível!
— Oh não, Richard tem uma admiração enorme pela senhora. Tem mesmo. Às vezes eu ficava bem enciumada, sabe?
— Que tolice!
— Oh, a senhora sabe como são essas coisas. As vezes, quando Richard fica muito quieto, de noite, e não quer falar, eu digo a ele que deve estar pensando na senhora. Só para implicar, sabe?
(Você pensa em mim, Richard? Pensa? Não creio. Você tenta não pensar em mim — como eu tento não pensar em você.)
— Se alguma vez for para os lados de Basing Heath, precisa ir nos visitar, Sra. Prentice.
— É muita bondade sua. Eu gostaria muito.
— É claro que o nosso maior problema é o problema doméstico, como aliás para todo mundo. Só se conseguem diaristas... e muitas vezes não se pode confiar nelas.
— Vejo que você ainda conserva a velha Edith — disse Richard, abandonando a conversa com Sarah.
— Sim. Estaríamos perdidas sem ela.
— Era uma ótima cozinheira. Lembro dos ótimos jantares que ela costumava fazer.
Houve um momento de embaraço.
Um dos jantarezinhos de Edith — a lareira acesa — os estofados de chintz com seus botões de rosas... A voz suave de Ann, seus cabelos castanhos, da cor
das folhas... Falando — fazendo planos... um futuro feliz. Uma filha que voltaria da Suíça — mas ele nunca poderia imaginar que aquilo pudesse ter tanta importância...
Ann olhava para ele. Por um breve instante ela viu o verdadeiro Richard — o seu Richard — fitando-a com olhos tristes e cheios de lembranças.
O verdadeiro Richard? Mas o Richard de Dóris não era tão real quanto o seu?
Mas agora ele tinha partido outra vez. Era o Richard de Dóris que se despedia. Mais conversas, mais ofertas de hospitalidade — será que não iriam embora nunca? Aquela garota horrível e gananciosa com sua voz afetada. Pobre Richard. — Oh, pobre Richard. E a culpa era dela. Fora ela que o mandara para aquele saguão de hotel onde Dóris o esperava.
Mas seria mesmo "Pobre Richard?". Ele tinha uma esposa jovem e bonita. Era provavelmente muito feliz.
Partiram! Finalmente! Sarah, que gentilmente os fora levar até a porta, voltou à sala:
— Ufa! — exclamou. — Felizmente acabou! Sabe Mamãe, você realmente teve sorte.
— É, creio que tive mesmo — Ann falou com ar vago, como se estivesse sonhando.
— Bem, fale a verdade: você casaria com ele agora?
— Não — respondeu Ann. — Não gostaria de casar com ele agora.
(Nós nos afastamos daquele ponto de encontro que houve em nossas vidas. Você seguiu um caminho, Richard, e eu o outro. Já não sou mais aquela mulher que caminhou com você pelo Parque St. James, e você não é o homem com quem eu queria envelhecer... Somos duas pessoas diferentes — dois estranhos. Você não gostou muito do meu jeito — e eu o achei enfadonho e arrogante...)
— Você morreria de tédio, sabe disso — disse a voz jovem e convicta de Sarah.
— Sim — disse Ann, lentamente. — É verdade, eu morreria de tédio.
(Eu agora já não poderia ficar parada, esperando a velhice chegar. Tenho necessidade de sair, divertir-me; é preciso que aconteçam coisas.)
Sarah pousou a mão carinhosamente no ombro da mãe.
— Não há dúvida, querida, você gosta mesmo é de movimento. Morreria de tédio presa num subúrbio, com um jardinzinho, sem ter nada para fazer a não ser esperar que Richard voltasse para casa no trem das 6:15, ou contasse para você as suas proezas no golfe! Não, realmente, esse tipo de vida Campestre não faz o seu gênero, de jeito nenhum.
— Eu teria gostado dela em outros tempos.
(Um velho jardim por trás do muro; um gramado com árvores, a casa pequena, estilo Rainha Ann, de tijolos vermelhos. E Richard não teria começado a jogar golfe, mas cuidaria das roseiras e plantaria lírios sob as árvores. Ou, se jogasse, ela teria ficado encantada em ouvir seus sucessos.)
Sarah beijou afetuosamente o rosto da mãe:
— Devia me agradecer por tê-la livrado disso, querida. Se não fosse por mim, você teria casado com ele.
Ann afastou-se um pouco. Seus olhos, de pupilas dilatadas, encararam Sarah:
"Se não fosse por você eu teria casado com ele. E agora — eu não quero. Ele já não significa nada para mim".
Foi até a lareira e tocou o mármore com o dedo, os olhos sombrios de surpresa e dor. Disse baixinho:
— Nada... nada... A vida é mesmo uma brincadeira de mau gosto!
Sarah caminhou até o bar e serviu-se de outro drinque. Ficou um instante parada, um tanto inquieta, e finalmente falou, sem se voltar, numa voz que pretendia ser calma:
— Mamãe... acho que é melhor eu lhe contar... Larry quer que eu case com ele.
— Lawrence Steene?
— Sim.
Houve uma pausa. Ann ficou em silêncio durante algum tempo antes de perguntar:
— E o que pretende fazer?
Sarah voltou-se e lançou-lhe um rápido olhar de súplica, mas Ann não estava olhando para ela.
— Não sei... — disse.
Havia na sua voz um tom desamparado e medroso como o de uma criança. Olhou para a mãe, cheia de esperança, mas o rosto de Ann se manteve frio e distante.
— Bem, você é que deve decidir — disse finalmente .
— Eu sei.
Apanhou a carta de Gerry que estava sobre a mesa e sem tirar os olhos dela, começou a amassá-la lentamente com os dedos: Afinal falou, quase num grito:
— Eu não sei o que fazer!
— Não vejo como possa ajudá-la — disse Ann.
— Mas o que você acha, mamãe? Oh, por favor, diga alguma coisa!
— Já lhe disse que ele não tem boa reputação...
— Ora, isso! Isso não tem a menor importância. Eu morreria de tédio se casasse com o modelo de todas as virtudes.
— Ele tem muito dinheiro, é claro, e poderia proporcionar-lhe uma vida cheia de prazeres. Mas se eu fosse você, não me casaria se não gostasse dele.
— Eu gosto dele, de certa forma — disse Sarah lentamente.
Ann ergueu-se, olhando o relógio:
— Muito bem. Então — falou, vivamente, — qual é o problema? Meu Deus, esqueci que ia à casa dos Elliots, vou chegar horrivelmente atrasada.
— Mesmo assim, não estou bem certa — Sarah parou. — Entende...
— Há mais alguém? — perguntou Ann.
— Não, na verdade não há — respondeu Sarah, olhando outra vez para a carta que tinha nas mãos.
Ann falou, rápida:
— Se está pensando no Gerry, eu o tiraria da cabeça, Sarah. Gerry não vale nada, e quanto mais cedo você se convencer disso, melhor será.
— Acho que tem razão — disse Sarah, lentamente.
— Tenho certeza que sim — respondeu Ann, com energia. — Esqueça o Gerry. Se não gosta de Lawrence Steene, não case com ele. Você é muito jovem;
há muito tempo ainda.
Sarah caminhou desalentadamente até a lareira.
— Acho que o melhor mesmo é casar com Lawrence... Afinal, ele é atraente. Oh, mamãe — exclamou de repente, — o que devo fazer?
— Francamente, Sarah — retrucou Ann, irritada. — Você está agindo como uma criancinha com dois anos de idade! Como é que eu posso decidir a sua vida por você? A responsabilidade é sua e de mais ninguém!
— Oh, eu sei disso...
— E então? — Ann estava impaciente.
— Pensei que você talvez pudesse... me ajudar, de alguma forma — Sarah falava como uma criança.
— Mas se já lhe disse que você não precisa casar com ninguém, a menos que o deseje!
Tendo ainda no rosto a mesma expressão infantil, Sarah fez uma pergunta surpreendente:
— Mas gostaria de se ver livre de mim, não é mesmo?
— Sarah! — exclamou Ann, asperamente. — Como pode pensar uma coisa dessas? É claro que eu não quero me livrar de você, que idéia!
— Sinto muito, mamãe. Falei por falar. Só que tudo está tão diferente! Quero dizer, nós costumávamos nos divertir tanto juntas, e agora parece que tudo
que eu faço deixa você irritada.
— Realmente, acho que fico um pouco nervosa às vezes — disse Ann, com frieza. — Mas afinal, você também é meio temperamental, não é mesmo, Sarah?
— Oh, talvez a culpa seja toda minha — continuou Sarah, pensativa. — Quase todas as minhas amigas estão casadas: Pam, Betty, Susan. Joan ainda não
casou mas só pensa em política. — Fez nova pausa antes de prosseguir. — Seria divertido casar com Lawrence, poder comprar tudo que eu quisesse: roupas,
jóias, tudo.
Ann comentou secamente:
— Sim, acho mesmo que precisa casar com um homem que tenha dinheiro, Sarah. Seus gostos são decididamente caros. Veja a sua mesada, sempre adiantada!
— Eu detestaria ser pobre — concordou Sarah.
Ann respirou fundo: Sentia-se hipócrita, artificial, sem saber exatamente o que deveria falar:
— Querida, não sei realmente o que dizer. Na verdade, acho que este é um assunto que só você poderá resolver. Seria um erro tentar convencê-la a aceitar,
ou aconselhá-la a recusar. Você é que deve decidir sozinha. Você entende, não é mesmo?
Sarah retrucou rapidamente:
— É claro, querida... será que não a estou amolando? Não quero deixá-la preocupada. Só queria que me dissesse uma coisa: o que acha de Lawrence?
— Para ser franca, não tenho opinião sobre ele, nem contra, nem a favor...
— Às vezes ele me assusta um pouco, sabe?
— Querida! — riu Ann. — Não acha que isto é uma bobagem?
— É, pode ser...
Sarah começou a rasgar a carta de Gerry, primeiro em tiras, logo em pedaços cada vez menores, que atirava para o ar. Ficou olhando, enquanto flutuavam e caíam como flocos de neve.
— Pobre Gerry — disse. — E lançando um rápido olhar para Ann, continuou: — Mamãe, você não se importa mesmo com o que me acontece, não é?
— Sarah! Francamente!
— Oh, lamento estar dizendo essas coisas, mas é que, não sei por que, ando me sentindo tão estranha ultimamente! É como se estivesse numa tempestade de neve, sem achar o caminho de casa... É uma sensação horrível. Tudo está tão diferente, as pessoas mudaram tanto!... você mudou, Mamãe...
— Ora, que idéia mais absurda! Meu bem, eu tenho que ir agora.
— É, acho que tem. Essa reunião é assim tão importante?
— Bem, é que tenho muita vontade de conhecer os novos murais que Kit Elliot mandou fazer...
— Ah, entendo — Sarah calou-se um momento e logo continuou. — Sabe, Mamãe, talvez eu goste mais do Lawrence do que imagino.
— Isso não me surpreenderia. Mas não tenha pressa. Adeus, meu bem. Tenho que voar!
A porta bateu atrás dela.
Logo Edith saiu da cozinha e entrou na sala para retirar os copos.
Sarah tinha colocado um disco na vitrola, e ouvia com melancólico prazer a voz de Paul Robeson cantando Sometimes I feel like a motherless child.
— De que músicas a senhorita gosta! — comentou Edith.— Essa então me dá arrepios!
— Pois eu acho linda.
— Gosto não se discute — resmungou Edith, zangada, enquanto observava: — Por que será que as pessoas não usam os cinzeiros, em vez de espalhar cinzas
por todo lado?
— Dizem que é ótimo para o tapete...
— Esta desculpa é velha e continua sendo tão falsa hoje quanto sempre foi. E por que jogou esses pedacinhos de papel no chão, se há uma cesta de papéis lá perto da parede?
— Perdão, Edith, foi sem pensar. Estava rasgando o meu passado, foi um gesto...
— Rasgando o passado, ora veja... — resmungou Edith, mas ao olhar para Sarah perguntou delicadamente: — Alguma coisa errada, minha linda?
— Nada. Estou pensando em casar, Edith.
— Não há pressa. Por que não espera pelo Homem Certo?
— Acho que não faz muita diferença com quem a gente casa, Edith, não vai dar certo, seja com quem for...
— Ora, não diga essas bobagens! E por que tudo isso afinal?
— Quero ir embora daqui — respondeu Sarah, com veemência.
— E posso saber o que há de errado na sua casa? — quis saber Edith.
— Não sei. Parece que tudo mudou. Por que tudo está tão diferente, Edith?
— Acho que está crescendo, sabe? — respondeu Edith docemente.
— Talvez.
— Será que é isso?
Edith afastou-se com a bandeja cheia de copos, mas logo pousou-a sobre uma mesa e voltou para junto de Sarah. Passou a mão carinhosamente pelos cabelos negros da moça, como há muitos anos, quando ela era ainda uma criança.
— Pronto, pronto, meu bem, vai passar...
Com súbita mudança de ânimo, Sarah ergueu-se de um salto, enlaçou Edith pela cintura e começou a dançar pela sala, cheia de energia.
— Vou casar, Edith! Não é ótimo? Vou casar com o Sr. Steene. Ele nada em dinheiro e é terrivelmente atraente! Não sou mesmo uma moça de sorte?
Edith soltou-se, resmungando:
— Primeiro uma coisa, depois outra. O que está acontecendo, Srta. Sarah?
— Acho que estou meio louca. Você irá ao casamento, Edith, vou comprar um vestido lindo para você... de veludo escarlate, se quiser!
— Pensa que um casamento é alguma cerimônia de coroação?
Sarah colocou a bandeja nas mãos de Edith e empurrou-a em direção à porta da cozinha.
— Vá embora, velhinha querida, não comece a resmungar.
Edith saiu, balançando a cabeça com ar de dúvida.
Sarah voltou lentamente para a sala. De repente, jogou-se sobre a grande poltrona e começou a chorar... e chorar...
O disco ia chegando ao fim — a voz melancólica e profunda repetia mais uma vez: "Sometimes I feel like a motherless child — a long way from home..."1
1 N. do T.: "Às vezes me sinto como uma criança sem mãe muito longe de casa..."

LIVRO
TRÊS
Capítulo I
EDITH movia-se com dificuldade pela cozinha. Ultimamente vinha sentindo cada vez mais os seus "reaumatismos", como ela os chamava, e isto não lhe melhorava o ânimo. Ainda se recusava obstinadamente a delegar qualquer das suas tarefas domésticas. Permitia apenas que uma mulher — a quem chamava, torcendo o nariz, de "aquela tal Sra. Hopper" — viesse uma vez por semana realizar certos trabalhos sob o seu olhar ciumento, mas qualquer outra ajuda era rejeitada com uma violência que anunciava desgraças a qualquer faxineira que ousasse tentar.
— Sempre me arranjei sozinha, não foi? — era o slogan de Edith.
E assim, continuava a se arranjar sozinha, com um ar de mártir e uma expressão cada vez mais azeda. Adquirira também o hábito de passar a maior parte do dia resmungando baixinho. Era o que fazia agora:
— Trazer o leite na hora do almoço... que idéia. Leite tem que ser entregue antes do café da manhã, esta é que é a hora certa. Esses rapazinhos atrevidos, assobiando, metidos naqueles casacos brancos... Quem eles pensam que são? Para mim parecem pirralhos fantasiados de dentista...
Parou de resmungar ao ouvir o som da chave na porta da frente.
— Lá vem confusão! — murmurou, e enxaguou uma tigela com movimentos enérgicos e furiosos.
Ouviu a voz de Ann chamando:
— Edith!
Tirou as mãos da água e enxugou-as cuidadosamente na toalha.
— Edith! Edith!
— Já estou indo, madame.
— Edith!
Erguendo as sobrancelhas e deixando cair os cantos da boca, Edith saiu da cozinha, atravessou o vestíbulo e entrou na sala onde Ann Prentice examinava a correspondência. Voltou-se quando Edith entrou:
— Telefonou para Dame Laura?
— Sim, é claro.
— Disse que era urgente... que eu preciso vê-la? Ela disse que viria?
— Falou que logo estaria aqui.
— Bem, e por que não chegou ainda? — perguntou Ann, irritada.
— Faz só uns vinte minutos que eu telefonei, logo depois que a senhora saiu.
— Parece que já faz uma hora. Por que ela não vem?
— Não adianta ficar nervosa, nem tudo acontece na hora que a gente quer — falou Edith, num tom conciliador.
— Você disse que eu estava doente?
— Contei que a senhora estava muito atacada.
— O que quer dizer atacada? — retrucou Ann, furiosa. — São os meus nervos que estão em frangalhos,
— Tem razão, estão mesmo.
Ann lançou um olhar furioso à fiel servidora e começou a caminhar pela sala, impaciente, indo até a janela e dali até a lareira. Edith permaneceu de pé, observando-a, enquanto alisava o avental com as mãos nodosas, grandes, desajeitadas e marcadas por anos de trabalho.
— Não consigo ficar parada um minuto — queixou-se Ann. — Não dormi nada ontem à noite. Sinto-me horrível... horrível... — Sentou-se, as mãos nas
têmporas. — Não sei o que há comigo.
— Pois eu sei — disse Edith. — É de tanto ficar zanzando por aí; isso não pode fazer bem na sua idade.
— Edith! — gritou Ann. — Você é muito impertinente! E está ficando cada vez pior. Está comigo há muito tempo e aprecio seus serviços, mas se vai começar a ficar atrevida, terá que ir embora.
Edith ergueu os olhos para o céu e assumiu sua expressão de mártir antes de responder:
— Eu não vou embora. E acabou-se.
— Irá, se eu mandar — disse Ann.
— Pois se fizesse uma coisa dessas a senhora seria ainda mais tola do que eu supunha. Eu acharia uma colocação num abrir e fechar de olhos, essas agências
iam correr atrás de mim. Mas, e a senhora? Provavelmente só conseguiria uma dessas diaristas, ou então uma estrangeira que só sabe cozinhar tudo no azeite
e deixar seu estômago embrulhado, sem falar no cheiro que ia ficar pelo apartamento. E essas estrangeiras nem sabem atender o telefone direito... iam entender mal todos os nomes. Ou quem sabe talvez arranjasse uma mulher limpa, de fala agradável, boa demais para ser de verdade: e um dia, ao voltar para casa, ia descobrir que ela tinha sumido com todas as suas peles e jóias. Ouvi contar um caso desses que aconteceu outro dia aqui perto, em Playne Court. Não, a senhora é daquelas que gostam que as coisas sejam feitas como devem... à maneira antiga. Eu faço comidinhas gostosas, não ando quebrando suas coisas bonitas cada
vez que lavo, como fazem algumas dessas sirigaitas. E, o que é mais importante, conheço os seus hábitos. A senhora não pode viver sem mim, sei muito bem
disso e não vou embora. A senhora pode ser difícil, mas afinal todos temos uma cruz, é o que está escrito no Livro Sagrado. Pois eu sou uma mulher cristã e a
senhora é a minha cruz.
Ann fechou os olhos e inclinou-se para a frente e para trás, com um gemido.
— Oh, minha cabeça... minha cabeça...
A expressão dura do rosto de Edith suavizou-se, seus olhos tornaram-se ternos:
— Calma. Vou lhe trazer um chá bem quentinho.
— Não quero chá — exclamou Ann, birrenta. — Era a última coisa que eu quereria agora!
Edith suspirou e ergueu mais uma vez os olhos para o alto.
— Faça como quiser — disse. E deixou a sala.
Ann estendeu a mão para a cigarreira, tirou um cigarro, acendeu-o, fumou-o por um ou dois minutos e amassou-o no cinzeiro. Levantou-se e recomeçou a caminhar pela sala. Um instante depois foi até o telefone e discou:
— Alô... alô... poderia falar com Lady Ladscombe? Oh, é você, Márcia querida? — a voz assumiu um tom de fingida alegria. — Como vai?... Oh, nada... Lembrei apenas de ligar... Não sei, querida... é que me sentia horrivelmente deprimida... sabe como a gente fica às vezes. Tem algum compromisso para o almoço, amanhã? Ah, sei, entendo... terça à noite?
Sim, não tenho nada marcado, seria ótimo. Falarei com Lee, ou outra pessoa qualquer, e organizaremos um grupo. Será maravilhoso. Eu telefono amanhã de
manhã.
Desligou. A momentânea animação desaparecera. Mais uma vez recomeçou a caminhada, até que ouviu a campainha e ficou imóvel, na expectativa, enquanto Edith dizia:
— Ela está esperando a senhora lá na sala.
— E logo Laura Whitstable entrou. Alta, feia, desagradável, mas com a confortável firmeza de um rochedo em meio ao mar revolto.
Ann correu para ela, exclamando frases incoerentes, numa histeria crescente:
— Oh, Laura... Laura... estou tão contente que tenha vindo...
Dame Laura ergueu as sobrancelhas, o olhar firme e atento. Pousou as mãos nos ombros de Ann e conduziu-a delicadamente até o sofá, onde sentou ao lado dela enquanto dizia:
— Bem, bem, o que está acontecendo?
Ann ainda parecia histérica:
— Oh, fico tão feliz por vê-la aqui! Acho que estou ficando louca.
— Bobagem — disse Dame Laura, rudemente. — Qual é o problema?
— Nenhum. Nenhum mesmo. Só os meus nervos. E é isso que me assusta: não consigo ficar parada. Não sei o que está acontecendo comigo.
— Hmm — Laura lançou-lhe um olhar atento e profissional. — Você não parece nada bem, mesmo.
Secretamente estava assustada com a aparência de Ann. Sob a pesada maquiagem o rosto dela estava devastado. Parecia muito mais velha agora do que quando Laura a vira pela última vez, há alguns meses.
Ann falou, impaciente:
— Estou perfeitamente bem. É só que... não sei bem o que é... Não consigo dormir... a menos que tome coisas. E estou tão irritada, tão mal-humorada.
— Já foi ao médico?
— Não nestes últimos tempos. Eles só receitam brometo e dizem para a gente não se cansar demais.
— Um ótimo conselho.
— Pode ser, mas é tudo tão absurdo! Nunca fui uma mulher nervosa, Laura, você sabe disso. Nunca soube o que fossem nervos.
Laura Whitstable ficou um instante em silêncio, lembrando a Ann Prentice de apenas três anos atrás. Sua delicada serenidade, sua calma, seu gosto pela vida, sua doçura, seu gênio estável. Sentiu uma profunda pena. Falou:
— O fato de nunca ter sido nervosa não quer dizer nada. Afinal, quando um homem quebra uma perna ele também provavelmente nunca tinha que brado uma perna antes!
— Mas por que eu haveria de ficar nervosa?
Laura Whitstable foi cuidadosa na resposta:
— Seu médico tem razão. Você provavelmente se movimenta demais.
Ann respondeu vivamente:
— Não posso ficar me aborrecendo em casa o dia inteiro.
— Mas é possível ficar em casa sem se aborrecer.
— Não — as mãos de Ann se agitaram nervosamente. — Eu... eu não posso ficar sentada sem fazer nada.
— E por que não? — a pergunta veio incisiva, como num inquérito.
— Eu não sei... — a agitação aumentou. — Não posso ficar sozinha. Não posso... — Lançou um olhar de desalento para Laura. — Acho que iria pensar que
eu estou completamente doida, se dissesse que tenho medo de ficar só?
— É a coisa mais sensata que você já disse hoje — respondeu prontamente Dame Laura.
— Sensata? — espantou-se Ann.
— Sim, porque é verdade.
— Verdade? — Ann fechou os olhos. — Não sei o que quer dizer com isso.
— Quero dizer que não conseguiremos nada sem conhecer a verdade.
— Oh, mas você não poderá entender; nunca teve medo de ficar sozinha, teve?
— Não.
— Então simplesmente não pode entender.
— Oh, sim, posso — Laura continuou, delicadamente. — Por que me chamou, minha cara?
— Eu precisava falar com alguém... precisava... e pensei que talvez você pudesse fazer alguma coisa.
Olhou para a amiga, cheia de esperança.
Laura sacudiu a cabeça e suspirou:
— Entendo. Você quer que eu faça uma mágica exorcizante?
— Será que não podia fazei uma para mim? Psicanálise, hipnotismo, qualquer coisa.
— Em uma palavra, qualquer uma dessas pantomimas modernas? — Laura sacudiu a cabeça. — Não posso tirar os coelhos da cartola para você, Ann. Você
deve fazer isso sozinha. E precisa descobrir, primeiro, o que há dentro da cartola.
— O que quer dizer?
Laura Whitstable esperou um minuto antes de falar:
— Você não é feliz, Ann — a. frase, mais que uma pergunta, era uma constatação.
Ann replicou rapidamente, talvez rapidamente demais:
— Oh, mas sou, pelo menos em parte. Eu me divirto bastante.
— Você não é feliz — insistiu Dame Laura, impiedosa.
Ann fez um gesto com os ombros e as mãos:
— E será que alguém é feliz? — insinuou.
— Muita gente, graças a Deus — falou Dame Laura, com entusiasmo. — Por que não você?
— Não sei.
— Só a verdade poderá ajudá-la, Ann. E você sabe muito bem qual é a resposta.
Ann ficou um instante em silêncio e logo, como se tomasse coragem, desabafou:
— Bem, já que é preciso ser honesta, acho que é porque estou envelhecendo. Sou uma mulher de meia-idade, que vai perdendo a aparência jovem e não espera mais nada da vida.
— Oh, minha querida! Acha que não tem mais nada a esperar da vida? Tem uma saúde perfeita, é inteligente, e há tantas coisas na vida que só conseguimos apreciar depois que passamos da idade madura! Eu já lhe disse isso uma vez: livros, flores, música, pintura, gente, o sol... todo esse desenho entre laçado e inextricável a que chamamos Vida.
Ann ficou quieta e replicou depois, num desafio:
— Oh, provavelmente é um problema de sexo. Acho que tudo perde a graça depois que os homens deixam de nos achar atraentes.
— Talvez isso seja verdade para algumas mulheres, mas não para você, Ann. Já deve ter visto A Hora Imortal... ou talvez tenha lido o livro? E lembra esta frase: "Há uma hora em que um homem poderia encontrar a felicidade, se ao menos soubesse descobri-la." Você esteve muito perto de encontrá-la uma vez, não
foi?
A expressão do rosto de Ann tornou-se mais suave. Parecia, de repente, muito mais moça.
— Sim — murmurou, — houve essa hora. Eu poderia tê-la encontrado com Richard. Eu teria envelhecido feliz, junto dele.
— Sim, eu sei — disse Laura, com profunda compaixão.
— E agora — continuou Ann, — nem sequer consigo lamentar a sua perda! Voltei a vê-lo, sabe... oh, há quase um ano... e ele já não significava mais na
da para mim... nada. Isto é que é mais trágico, mais absurdo. Estava tudo terminado, já não tínhamos nada para dizer um ao outro. Ele era apenas um homem de meia-idade, igual a tantos outros: um pouquinho arrogante, um tanto insípido e com certa tendência a mostrar-se vaidoso da nova esposa, uma jovenzinha de cabeça vazia, bonitinha e vistosa. Bastante simpático, entende? mas decididamente um chato. E no entanto... se... se nos tivéssemos casado... creio que teríamos sido felizes. Sei que teríamos sido.
— Sim — falou Laura, pensativa, — creio que teriam sido mesmo.
— Estive tão perto da felicidade... tão perto — a voz de Ann tremia de pena de si mesma — então... tive que abandonar tudo.
— Teve mesmo?
Ann não deu atenção à pergunta:
— Desisti de tudo... por Sarah!
— Exatamente — disse Dame Laura. — E nunca a perdoou por isso, não é mesmo?
Ann despertou do devaneio, surpresa:
— O que quer dizer?
Laura Whitstable deixou escapar um riso desdenhoso:
— Sacrifícios! Pense só por um momento no que eles realmente significam: o sacrifício não é apenas aquele momento heróico em que nos sentimos generosos, sensíveis e prontos a imolar-nos. O tipo de sacrifício em que você apenas oferece o peito ao punhal é fácil, pois termina ali mesmo, no momento em que você excede a si mesma. O problema é que na maior parte das vezes é preciso viver com eles depois que são feitos... todo o dia e todos os dias... e isto não é assim tão fácil. É preciso ser muito nobre para consegui-lo... e você, Ann, não foi suficientemente nobre...
Ann ficou vermelha de raiva:
— Eu abri mão da minha vida inteira, da minha chance de felicidade, pelo bem de Sarah... e você vem me dizer que isso não foi o bastante...
— Não foi isso o que eu disse.
— Imagino que a culpa seja toda minha, então! — Ann ainda estava com raiva.
Dame Laura falou com convicção:
— A metade dos problemas que temos na vida vêm de fingirmos para nós mesmos que somos melhores e mais nobres do que realmente somos.
Mas Ann não estava ouvindo. Seu ressentimento continuava:
— Sarah é exatamente igual a todas essas moças modernas, só pensa em si mesma, não se interessa por mais ninguém! Imagine que, quando Richard telefonou, um ano atrás, ela nem sequer lembrava quem ele era! O nome não lhe dizia nada... nada.
Laura Whitstable sacudiu a cabeça gravemente, com o ar de alguém que vê confirmado o seu diagnóstico.
— Entendo — disse. — Entendo.
— O que mais eu poderia ter feito? — continuou Ann. — Eles não paravam de brigar, aquilo era um suplício para os meus nervos. Se eu tivesse insistido, não teria nunca um minuto de paz.
Laura Whitstable foi firme, falando inesperadamente:
— Se eu fosse você, Ann, trataria de decidir se desistiu de Richard Cauldfield pelo bem de Sarah ou pela sua própria tranqüilidade.
Ann olhou-a, ressentida:
— Eu amava Richard — disse — mas amava Sarah ainda mais...
— Não, Ann, não é assim tão simples. Creio que houve realmente um momento em que você chegou a amar Richard mais do que amava Sarah. Creio que a profunda infelicidade e o ressentimento que vem sentindo surgiram desse momento. Se tivesse desistido de Richard porque gostava mais de Sarah do que dele, não estaria do jeito que está hoje. Mas se desistiu dele por fraqueza, porque Sarah a obrigou, porque você queria fugir das brigas, das discussões... se foi uma derrota e não uma renúncia... bem, eis uma coisa que ninguém gosta de admitir para si mesmo. Mas você realmente gostava de Richard. Ann falou com amargura:
— E agora ele já não significa mais nada para mim...
— E quanto a Sarah?
— Sarah?
— Sim. O que ela significa para você?
Ann deu de ombros.
— Eu quase não a vejo mais, desde que casou. Acho que tem uma vida alegre e movimentada. Mas, como disse, quase não a vejo.
— Pois eu a vi, ontem à noite... — Laura fez uma pausa e continuou — num restaurante, com um grupo. — Nova pausa e depois, abruptamente: — Ela estava bêbada.
— Bêbada?! — Por um instante Ann pareceu surpresa, depois riu. — Ora, Laura querida, não seja tão antiquada! Os moços bebem muito agora, e parece que
nenhuma festa pode ser um sucesso se todos convidados não estiverem meio alegres, ou "altos", ou seja lá como quiser chamá-los.
Laura não se alterou:
— Pode ser... E admito que sou suficientemente antiquada para não gostar de ver uma jovem, que eu conheço, bêbada num lugar público. Mas é mais do que isso, Ann: falei com Sarah e notei que tinha as pupilas dilatadas.
— E o que isso poderia significar?
— Entre outras coisas, cocaína.
— Drogas?!
— Sim. Uma vez eu lhe falei nas minhas suspeitas de que Lawrence Steene estivesse envolvido no tráfico de tóxicos. Não pelo dinheiro, é claro, apenas pela
emoção da aventura.
— Mas ele sempre me pareceu uma pessoa normal!
— Oh, as drogas não lhe fariam mal... conheço o tipo. É dos que gostam de experimentar tudo, gente assim não se vicia. Mas com uma mulher é diferente: quando uma mulher é infeliz, essas coisas podem dominá-la sem que ela consiga se libertar.
— Infeliz? Sarah? — Ann parecia incrédula.
Olhando-a, Laura disse secamente:
— Você deveria saber. Afinal, é a mãe dela.
— Ah, isso não quer dizer nada; Sarah não confia em mim.
— Por que não?
Ann levantou-se e caminhou até a janela, e então voltou lentamente até a lareira. Dame Laura permaneceu sentada, imóvel, olhando para ela. Enquanto Ann acendia um cigarro, perguntou com simplicidade:
— O que é que você sente, ao saber que Sarah pode ser muito infeliz?
— Como pode fazer uma pergunta dessas? É claro que isso me deixa terrivelmente perturbada.
— É mesmo? — Laura ergueu-se. — Bem, preciso ir. Tenho uma reunião do conselho daqui a dez minutos, mal terei tempo de chegar lá.
Caminhou em direção à porta. Ann foi atrás dela, perguntando:
— O que estava querendo dizer com aquele "É mesmo", Laura?
— Eu andava com as minhas luvas, onde as terei deixado?
A campainha da porta da frente tocou e Edith saiu da cozinha, sem fazer ruído, para atendê-la. Ann insistia:
— Você estava querendo dizer alguma coisa?
— Oh, aqui estão elas!
— Francamente Laura, você está sendo horrível comigo, horrível mesmo!
Edith entrou, anunciando com algo que quase poderia ser um sorriso:
— Veja só quem está aqui: é o Sr. Lloyd, madame.
Ann olhou para Gerry Lloyd como se mal pudesse acreditar no que via:
Há mais de três anos que não punha os olhos nele, e o rapaz parecia ter envelhecido muito mais do que isso: tinha um ar maltratado, o rosto marcado dos que fracassaram. Usava um terno de tweed grosso, de corte provinciano, obviamente herdado de alguém, e sapatos velhos e gastos. Era evidente que não tinha enriquecido. Saudou-a com um sorriso grave, e toda a sua atitude era séria e quase constrangida.
— Gerry! Isto é mesmo uma surpresa!
— Que bom ver que a senhora ainda se lembra de mim. Três anos e meio é muito tempo.
— Eu também me lembro de você, meu jovem, mas não creio que saiba quem eu sou — disse Dame Laura.
— Oh, mas é claro que lembro, Dame Laura! Ninguém poderia esquecer a senhora.
— É muita bondade sua... ou não? Bem, preciso ir andando. Adeus, Ann. Adeus, Sr. Lloyd.
Quando ela saiu, Gerry seguiu Ann até a lareira, sentou-se e acendeu o cigarro que ela lhe ofereceu. Ann começou a conversar com entusiasmo.
— Bem, Gerry, conte-me tudo a seu respeito, e o que tem feito. Vai ficar muito tempo na Inglaterra?
— Não sei ainda.
Aquele olhar franco pousado nela fazia Ann sentir-se levemente perturbada. Ela se perguntava em que ele estaria pensando. Era um olhar de alguém muito diferente daquele Gerry de quem se lembrava.
— Beba alguma coisa. O que vai ser? Suco de laranja com gim, ou prefere um pink-gin?
— Não, obrigado. Não quero nada. Eu vim apenas... para falar com a senhora.
— Quanta gentileza sua! Já viu Sarah? Ela casou, sabia? Com um homem chamado Lawrence Steene.
— Sabia, ela escreveu contando. E eu a vi, ontem à noite. É por isso que estou aqui. — Fez uma pausa antes de perguntar: — Sra. Prentice, por que
permitiu que ela casasse com aquele homem?
— Gerry, meu caro, francamente! — Ann estava surpresa.
Seu protesto não conseguiu arrefecer o ardor de Gerry, que continuou, num tom sério, a falar com simplicidade :
— Ela não é feliz. A senhora sabe disso, não sabe? Ela não é feliz.
— Sarah disse isso?
— Não, é claro que não, Sarah jamais faria uma coisa dessas; nem era necessário... eu percebi imediatamente. Ela estava com um grupo, quase não pude
mos conversar. Mas era evidente. Por que permitiu que isso acontecesse?
Ann sentiu a raiva crescer:
— Meu caro Gerry, não acha que está sendo um tanto ridículo?
— Não, não acho — ficou um instante pensativo, e quando continuou sua sinceridade era desconcertante. — Entenda, Sarah é muito importante para mim,
sempre foi, mais do que qualquer outra coisa no mundo. Portanto, naturalmente tenho interesse em saber se ela é feliz ou infeliz. Sabe, a senhora nunca devia ter permitido que ela casasse com Steene.
— Francamente, Gerry — irrompeu Ann, com raiva. — Você fala como um... como um vitoriano. Nunca se cogitou em permitir ou não permitir que
Sarah casasse com Lawrence Steene. As moças casam com quem bem entendem, e não há nada que os pais possam fazer para impedi-las. Sarah quis casar com
Lawrence Steene e casou com ele, só isso.
Gerry falou com tranqüila convicção:
— Mas a senhora poderia ter impedido.
— Meu caro rapaz, não sabe que sempre que tentamos impedir que as pessoas façam o que querem, só conseguimos torná-las mais obstinadas, mais teimosas?
Ele ergueu os olhos, encarando-a:
— E a senhora tentou?
Por alguma razão sentiu-se confusa diante daquele olhar francamente inquiridor, e gaguejou:
— Eu... eu... ele era muito mais velho do que ela, é claro... e tinha péssima reputação. Mostrei isso a ela, mas...
— Ele é um porco da pior espécie...
— Você não pode saber nada sobre ele, Gerry... esteve tantos anos fora da Inglaterra.
— Mas isso é público e notório. Todo mundo sabe. Pode ser que a senhora não conheça todos os detalhes sórdidos... mas será que não sentiu que ele era um animal?
— Comigo sempre foi encantador e amável — defendeu-se Ann. — E nem sempre o homem que tem um passado dá um mau marido. Não se deve acreditar
em todas as coisas mesquinhas que as pessoas contam. Sarah sentiu-se atraída por ele... na verdade, estava decidida a casar com ele. Lawrence é extremamente
rico...
Gerry interrompeu-a:
— Sim, ele é rico. Mas, Sra. Prentice, a senhora não é dessas mulheres que só querem que a filha case por dinheiro. Nunca foi o que eu chamaria de... bem... frívola. Seu desejo seria ver Sarah feliz... ou pelo menos era o que eu pensava. Olhou-a com uma curiosidade intrigada.
— É claro que eu desejava que a minha única filha fosse feliz. Isto nem era preciso dizer. Mas acontece que não se pode interferir, Gerry. — Tentou explicar. — Mesmo quando achamos que alguém está agindo de forma totalmente errada, não podemos interferir.
Olhou-o, num desafio, e ele retribuiu o olhar, ainda com a mesma expressão pensativa e cortês.
— Sarah queria mesmo casar com ele?
— Ela estava muito apaixonada — respondeu Ann num tom de desafio. E diante do silêncio dele, continuou: — Não creio que você possa perceber, mas as
mulheres consideram Lawrence um homem extremamente atraente.
— Oh, sim, posso perceber isso muito bem.
Ann cobrou ânimo:
— Sabe Gerry, acho que está sendo totalmente irracional: só porque uma vez houve entre você e Sarah um romancezinho juvenil, se acha no direito de vir até aqui e me acusar... como se eu tivesse culpa de Sarah ter casado com outro homem.
Ele a interrompeu:
— Mas eu acho mesmo que a senhora é a culpada.
Olharam-se. Gerry ficou vermelho, Ann empalideceu, a tensão entre os dois atingiu um nível intolerável.
Ann ergueu-se e disse secamente:
— Isso é demais!
Gerry levantou-se também. Por trás do seu modo tranqüilo e cortês, ela percebeu qualquer coisa de impiedoso e cruel.
— Perdoe-me se fui grosseiro.
— É imperdoável.
— Talvez seja. Mas entenda, eu estou realmente preocupado com Sarah. É a única coisa que me importa, e não posso deixar de sentir que a senhora permitiu que ela fizesse um casamento infeliz.
— Francamente!
— E vou livrá-la dele.
— O quê?
— Vou convencê-la a abandonar aquele animal.
— Mas que coisa mais absurda! Só porque vocês tiveram um namorinho de criança...
— Eu entendo Sarah... e ela me entende.
Ann deixou escapar uma risada áspera e inesperada:
— Meu caro Gerry, vai descobrir que Sarah já não se parece mais com aquela moça que conheceu.
— Sei que ela mudou — respondeu Gerry, baixinho. — Pude notar... — hesitou, antes de concluir, murmurando: — Lamento se me achou impertinente,
Sra. Prentice. Quero que entenda, para mim Sarah estará sempre em primeiro lugar. — E saiu da sala.
Ann serviu-se um copo de gim. Enquanto bebia, murmurava para si mesma:
— Como se atreve... como se atreve... E Laura... ela também está contra mim. Estão todos contra mim. Não é justo... O que foi que eu fiz?...
Nada...

Capítulo II
1
O MORDOMO que abriu a porta do n.° 18 da Pauncefoot Square olhou desdenhosamente o grosseiro terno de confecção que Gerry usava.
Mas quando seus olhos encontraram os do visitante, mudou de atitude. Veria se a Sra. Steene estava em casa, falou.
Pouco depois Gerry foi conduzido a uma sala grande e escura, cheia de flores exóticas e brocados claros onde, passados alguns minutos, Sarah Steene entrou com um sorriso de boas-vindas.
— Gerry! Que bom ter vindo! Na outra noite acabamos nos separando. Quer beber alguma coisa?
Preparou-lhe uma bebida e serviu-se também, antes de sentar num pufe baixo, junto à lareira. A luz difusa da sala mal deixava ver o seu rosto, e usava um perfume caro, que ele não lembrava ter sentido nela antes.
— E então, Gerry? — falou, sorrindo.
Ele retribuiu o sorriso.
— E então, Sarah? — e tocando com o dedo o ombro dela. — Você está praticamente usando o zoológico inteiro, não é mesmo?
Ela vestia um caríssimo trapinho de gaze debruado com fartas peles, macias e claras.
— É ótimo — assegurou ela.
— Imagino. Você está com uma aparência maravilhosamente cara.
— Oh, e sou mesmo. Mas conte-me as suas novidades, Gerry. Você saiu da África do Sul e foi para o Quênia. Desde então, não soube mais nenhuma notícia sua.
— Oh, bem. Não tive muita sorte.
— Naturalmente.
A observação foi rápida e Gerry quis saber:
— Naturalmente? O que quer dizer?
— Bem, seu problema foi sempre a falta de sorte, não é mesmo?
Por um breve instante ele viu a antiga Sarah, provocante, mordaz. Desaparecera a bela mulher de expressão dura, a estranha exótica: era Sarah, a sua Sarah, que o atacava sem piedade. E, respondendo à maneira antiga, ele se queixou:
— Foi uma coisa atrás da outra: primeiro as colheitas fracassaram... não por minha culpa. Depois, o gado pegou uma doença...
— Sei... A mesma velha e triste história de sempre.
— E além disso, eu não tinha capital. Se ao menos tivesse o capital...
— Eu sei... eu sei...
— Bem, que diabo, Sarah, não fui o culpado de tudo o que me aconteceu.
— Você... você nunca é culpado. E por que voltou à Inglaterra?
— Minha tia morreu...
— Tia Lena? — perguntou Sarah, que conhecia bem todos os parentes de Gerry.
— Ela mesma. Tio Luke morreu há dois anos sem me deixar um centavo, o velho sovina...
— Sábio tio Luke...
— Mas tia Lena...
— Tia Lena lhe deixou alguma coisa?
— Sim. Dez mil libras.
— Hum — ponderou Sarah. — Nada mau, mesmo nos dias de hoje...
— Vou entrar num negócio com um sujeito que tem uma fazenda no Canadá.
— Que tipo de sujeito? Essa foi sempre a questão. E a garagem que você montou com outro sujeito de pois que saiu da África do Sul?
— Oh, aquilo deu em nada. Fomos muito bem no início, mas depois que aumentamos um pouco o negócio veio uma baixa de preços e logo o movimento
caiu.
— Não precisa me contar os detalhes. Como essa história é conhecida! É a sua história...
— Sim — disse Gerry; e acrescentou, com simplicidade: — Você tem razão, creio que não sou muito bom mesmo. Ainda acho que tive azar... mas provavelmente também banquei o bobo. Só que desta vez vai ser diferente...
Sarah foi mordaz:
— Não sei...
— Ora vamos, Sarah! Não acha que aprendi a lição?
— Não creio — disse Sarah. — Ninguém aprende; nunca. Vivemos repetindo sempre os mesmos erros. Acho que você precisaria ter um agente... como as estrelas de cinema, as atrizes. Alguém que fosse prático e que não o deixasse ficar otimista demais na hora errada.
— Talvez você tenha razão nesse ponto. Mas realmente, desta vez tudo vai dar certo, Sarah. Vou ser cuidadoso como o diabo.
Houve uma pausa, e logo Gerry continuou:
— Fui visitar sua mãe ontem.
— Foi? Que gentileza a sua! Como estava ela? Correndo sem parar, como sempre?
Gerry respondeu lentamente.
— Sua mãe mudou muito.
— Acha?
— Sim, acho.
— Em que ela mudou?
— Não sei bem como explicar — hesitou. — Está terrivelmente nervosa, por exemplo.
— Quem não está, hoje em dia? — perguntou Sarah, despreocupadamente.
— Mas ela não era assim. Foi sempre tão tranqüila, tão... tão doce...
— Isso parece até letra de hino!
— Você sabe muito bem o que estou querendo dizer... e ela mudou mesmo. Os cabelos, as roupas, tudo...
— Está mais animada, apenas. E por que não havia de estar, pobre querida? Afinal, deve ser horrível envelhecer. E de qualquer forma, as pessoas mudam. — Parou um minuto antes de acrescentar, com um toque de desafio na voz: — Espero que eu também tenha mudado...
— Não de verdade.
Sarah corou.
— Apesar das peles — continuou Gerry deliberadamente, tocando outra vez a pele branca e cara — e da coleção de jóias de Wolwoorth — acrescentou
pondo as mãos no chuveiro de diamantes no ombro dela... — e do cenário luxuoso, você continua quase a mesma Sarah. A minha Sarah.
Sarah afastou-se, inquieta, e disse num tom alegre:
— E você continua o mesmo Gerry de sempre. Quando vai para o Canadá?
— Breve, logo que resolva meus assuntos com o advogado. — Ergueu-se. — Bem, tenho que ir. Não quer sair comigo um dia desses, Sarah?
— Não, venha você jantar conosco. Ou faremos uma festa. Você tem que conhecer Larry.
— Eu o conheci na outra noite, lembra?
— Só por um momento.
— Não creio que tenha tempo para festas. Venha dar um passeio comigo qualquer manhã destas, Sarah.
— Querido, para ser franca sou incapaz de fazer qualquer coisa de manhã: é a pior hora do dia.
— Ótima para quem quer raciocinar friamente.
— E quem quer raciocinar friamente?
— Acho que nós dois queremos. Venha, Sarah... duas voltas pelo Regent Park, amanhã de manhã. Encontro você no Hanover Gate.
— Você tem mesmo idéias incríveis, Gerry. E que roupa medonha está usando!
— É uma boa roupa, resistente.
— Pode ser que seja, mas o corte é horrível!
— Sempre a mesma preocupação esnobe com roupas! Amanhã, meio-dia, Hanover Gate. E não beba muito hoje à noite para não estar de ressaca amanhã.
— Estarei enganada, ou você está querendo insinuar que eu bebi demais ontem?
— E não bebeu?
— Era uma festa horrível. E uma bebida ajuda a gente a ir até o fim.
— Amanhã. Meio-dia. Hanover Gate.
2
— Bem, aqui estou — disse Sarah, num tom de desafio.
Gerry olhou-a de alto a baixo. Estava linda — muito mais bela agora do que tinha sido quando garota. Notou a cara simplicidade das roupas que vestia, o grande cabuchão de esmeraldas no seu dedo e pensou: "Devo estar louco" — mas mesmo assim, não recuou. — Venha — disse — vamos caminhar.
E caminharam. Contornaram o lago, atravessaram o jardim das rosas e finalmente pararam para sentar, num lugar pouco freqüentado do parque. Fazia demasiado frio para que houvesse muita gente sentada por perto.
Gerry respirou fundo:
— Agora — falou, — vamos ao que interessa. Sarah, quer vir comigo para o Canadá?
Sarah encarou-o, surpresa:
— O que está querendo dizer?
— Exatamente o que disse.
— Quer dizer... uma viagem? — perguntou Sarah, hesitante.
Gerry sorriu:
— Quero dizer para sempre. Deixe seu marido e venha comigo.
Sarah deu uma risada.
— Gerry, você enlouqueceu? Ora, nós não nos vemos há quase quatro anos e...
— Isso tem alguma importância?
— Não — ela hesitou. — Não, creio que não...
— Quatro anos, cinco, dez, vinte, não creio que fizesse nenhuma diferença. Nós pertencemos um ao outro. Eu sempre senti isso. Ainda sinto. Você não sente também?
— Sim, de certo modo — admitiu Sarah. — Mesmo assim, o que sugere é absolutamente impossível.
— Não vejo nada de tão impossível no que falei. Se você estivesse casada com um sujeito decente e vivesse feliz com ele, eu nem sonharia em me intrometer. Mas você não é feliz, é, Sarah? — completou baixinho.
— Acho que sou tão feliz quanto a maior parte das pessoas — respondeu Sarah corajosamente.
— Pois eu acho que você é horrivelmente infeliz.
— Se eu sou... a culpa é toda minha. Afinal, quando cometemos um erro, devemos aceitar as conseqüências.
— Mas Lawrence Steene não se destaca especialmente por aceitar as conseqüências dos seus próprios erros, não é?
— Isto é uma maldade!
— Não, não é. É a verdade.
— De qualquer modo, Gerry, o que sugere é uma loucura. Uma idéia maluca!
— Porque eu não fiquei rondando à sua volta, tentando convencê-la aos pouquinhos? Não há necessidade disso. Como eu já disse, eu e você pertencemos um
ao outro... e você sabe disso, Sarah.
Ela suspirou:
— Admito que em outros tempos gostei muito de você.
— É muito mais que isso, mocinha.
Ela voltou-se para olhá-lo e deixou de fingir:
— É mesmo? Você tem certeza?
— Tenho.
Ambos ficaram em silêncio, até que Gerry falou baixinho:
— Virá comigo, Sarah?
Ela suspirou outra vez e sentou-se, aconchegando as peles ao seu redor. Uma aragem fria agitava as árvores.
— Sinto muito, Gerry, mas a resposta é não.
— Por quê?
— Porque não posso... só isso.
— Todos os dias há gente abandonando os maridos.
— Não eu.
— Você está querendo me dizer que ama Lawrence Steene?
Sarah balançou a cabeça.
— Não, eu não o amo. Nunca amei. Mas ele me atraía. Ele tem... bem, ele sabe como conquistar uma mulher. — Estremeceu levemente, com repugnância.
— É muito raro a gente pensar que alguém seja realmente... bem... perverso. Mas se eu tivesse que pensar isso de alguém, seria de Lawrence. Porque ele não faz as coisas num impulso, por ser incapaz de se conter. Não: ele apenas gosta de fazer experiências com as coisas e as pessoas.
— E você acha que precisa ter qualquer escrúpulo de abandonar um homem desses?
Sarah ficou um instante em silêncio antes de continuar baixinho:
— Não é por escrúpulo... Oh! — ela se interrompeu, impaciente — é horrível ver como sempre preferimos apresentar primeiro as nossas razões mais nobres. Muito bem, Gerry, é melhor ficar sabendo como eu realmente sou. Vivendo com Lawrence, eu me habituei a certas coisas e não quero desistir delas: roupas, peles, dinheiro, restaurantes caros, festas, criados, carros, um iate... Tudo fácil e cheio de luxo. Estou mergulhada nele e você quer que eu largue tudo para
dar duro numa fazenda perdida no fim do mundo! Não posso... e não irei. Eu perdi a coragem, Gerry. O dinheiro e o luxo me corromperam.
— Então já é tempo de mudar de vida — falou Gerry, com frieza.
— Oh, Gerry — ela não sabia se devia rir ou chorar. — Você é tão positivo!
— Tenho os pés na terra, é verdade.
— Sim, mas não pode compreender nem a metade da história.
— Não?
— Não é só o dinheiro. Há outras coisas. Oh, será que não entende? Eu me tornei uma pessoa horrível, Gerry. As festas que oferecemos... os lugares que freqüentamos...
Parou, vermelha.
— Muito bem — disse Gerry, calmamente. — Você é uma depravada. Mais alguma coisa?
— Sim: há certas coisas... com as quais eu me habituei e não poderia viver sem elas.
— Coisas? — segurou bruscamente o queixo de Sarah, e voltou o rosto dela para o seu. — Ouvi boatos. Você quer dizer... drogas?
Sarah concordou com a cabeça:
— Elas provocam sensações maravilhosas.
— Ouça — a voz de Gerry era dura, incisiva. — Você vai vir comigo e vai parar de tomar essas coisas.
— E se eu não puder?
— Deixe comigo — disse Gerry sombriamente.
Os ombros de Sarah relaxaram e ela suspirou, inclinando-se para ele. Mas Gerry afastou-se.
— Não — disse ele, — não vou beijar você.
— Entendo. Tenho que decidir... a sangue-frio?
— Isso mesmo.
— Como você é engraçado, Gerry!
Permaneceram em silêncio durante alguns mo mentos, até que Gerry falou, com esforço:
— Sei muito bem que não sou grande coisa, que tive fracassos demais para que possa ter muita... muita confiança em mim. Mas acredito realmente, juro que acredito, que tudo poderia dar certo se eu tivesse você a meu lado. Você é tão inteligente, Sarah, e sabe como animar um sujeito quando ele começa a
perder o entusiasmo.
— Pareço ser uma criatura adorável!
Gerry insistiu, teimoso:
— Sei que posso vencer! Vai ser uma vida horrível para você, com muito trabalho e nenhum conforto. Nem sei como tenho a ousadia de convencê-la a vir. Mas será real, Sarah... Será... bem... será viver...
— Viver... real... — Sarah repetiu baixinho para si mesma.
— Você virá, Sarah?
— Não sei.
— Sarah... querida...
— Não, Gerry... não diga mais nada. Você já disse tudo... tudo o que precisava ser dito. Agora é comigo: tenho que pensar. Eu o avisarei.
— Quando?
— Breve...

Capítulo III
ORA, que bela surpresa!
Edith franziu o rosto azedo num sorriso, enquanto abria a porta do apartamento para Sarah.
— Alô Edith, minha jóia! Mamãe está?
— Deve estar chegando. Alegra-me que tenha vindo, vai animá-la um pouco.
— E ela precisa ser animada? Parece estar sempre tão alegre!
— Há qualquer coisa muito errada com sua mãe. Estou preocupada com ela — Edith seguiu Sarah até a sala. — Não consegue ficar nem dois minutos parada, e se eu falo qualquer coisa, só falta me cortar a cabeça. Não duvido que seja orgânico.
— Não seja agourenta, Edith. Para você, todo mundo está sempre às portas da morte...
— Pois eu não diria isso da senhora: está linda... Tch... e continua a mesma, jogando suas lindas peles pelo chão. São lindas, devem ter custado
rios de dinheiro.
— Custaram mesmo uma fortuna.
— Mais bonitas do que qualquer uma das que a patroa já teve. A senhora tem mesmo um monte de coisas lindas!
— E mereço. Quando se vende a alma, deve-se ao menos vendê-la por bom preço.
— Não diga uma coisa dessas — censurou Edith. — O seu mal é que, ou está lá em cima, ou cá em baixo. Eu me lembro como se fosse ontem, quando me
contou que estava querendo casar com o Sr. Steene e rodopiou comigo pela sala, dançando feito louca. "Eu vou me casar... vou me casar", dizia.
— Não... pare, Edith. Não suporto ouvi-la — disse Sarah, vivamente.
Imediatamente o rosto de Edith assumiu uma expressão atenta e sagaz.
— Pronto, pronto, queridinha — disse suavemente. — Dizem que os dois primeiros anos são sempre os piores. Se puder agüentá-los, estará salva.
— Não se pode dizer que seja uma visão otimista do casamento.
Edith continuou, com ar de censura:
— Mesmo o melhor casamento é um mau negócio, mas acho que o mundo não poderia continuar sem eles. Perdoe-me a liberdade: será que não há novidades
a caminho?
— Não, não há, Edith.
— Creia que eu sinto muito. Mas parece estar meio nervosa e eu fiquei pensando se não seria esse o motivo. As moças recém-casadas se comportam às
vezes de um jeito tão estranho! A minha irmã mais velha, quando estava esperando, foi um dia ao armazém e de repente lhe veio o desejo de comer uma pêra grande e suculenta, como as que viu numa caixa. Apanhou uma delas e deu uma dentada ali mesmo, na hora. "Ei, o que está fazendo?" falou o moço que aten
dia. Mas o dono do armazém, que era pai de família e entendia bem como eram essas coisas, foi logo dizen do: "Pode deixar que eu atendo esta senhora, meu filho" — e nem quis cobrar a pêra. Foi muito compreensivo; e, com treze filhos, tinha que ser mesmo!
— Que falta de sorte, ter treze filhos — comentou Sarah. — Que família maravilhosa você tem, Edith. Desde criança ouço falar nela.
— É verdade, quantas histórias da minha família eu já lhe contei. Também, a senhora era uma coisinha tão séria e prestava tanta atenção a tudo. E isto me
faz lembrar: aquele seu namorado esteve aqui outro dia. O Sr. Lloyd. Já o viu?
— Sim, já estive com ele.
— Parece muito mais velho, mas com um bronzeado lindo. Deve ser por ter vivido nesses lugares estrangeiros. Ele teve sorte?
— Não muita.
— Ah, que pena. O mal dele é que não tem persistência.
— Acho que é isso mesmo. Será que Mamãe vai chegar logo?
— Oh, sim, Srta. Sarah. Ela vai jantar fora e terá que vir em casa para trocar de roupa. E se quer saber a minha opinião, é uma pena que ela não fique mais noites sossegada em casa. Ela sai demais.
— Acho que deve gostar disso.
— Essa correria toda não lhe faz bem — fungou Edith. — E depois, sempre foi uma senhora tranqüila.
Sarah voltou o rosto abruptamente, como se as palavras de Edith a tivessem feito lembrar alguma coisa.
— Uma senhora tranqüila — repetiu, pensativa. — Sim, mamãe era tranqüila, Gerry também disse a mesma coisa. Engraçado como ela mudou completamente nestes três últimos anos. Você não acha que ela mudou, Edith?
— Às vezes chego a pensar que nem é a mesma pessoa...
— Ela não era assim... Era... — Sarah parou, pensativa, depois continuou: — Você acha que as mães continuam a gostar sempre dos filhos, Edith?
— É claro que sim, Srta. Sarah! Não seria normal que não gostassem!
— Mas será que é mesmo normal continuar a se importar com os filhos, mesmo depois que eles crescem e saem pelo mundo? Os animais não se importam.
Edith estava escandalizada, e falou rispidamente:
— Orar animais! Somos homens e mulheres cristãos. Deixe de dizer bobagens, Srta. Sarah, e lembre-se do ditado: "Um filho é um filho até arranjar uma companheira, mas uma filha é uma filha pela vida inteira."
Sarah riu:
— Conheço milhões de mães que odeiam as filhas como se elas fossem veneno, e filhas que não querem saber das mães.
— Bem, só posso dizer que não acho isso nada bonito.
— Mas muito, muito mais saudável, Edith... ou pelo menos é o que dizem os psicólogos.
— Pois eles devem ter umas mentes muito sujas.
Sarah continuou, pensativa:
— Sempre gostei muito de mamãe... como pessoa, não só como mãe.
— E sua mãe também a ama muito, Srta. Sarah.
Sarah não respondeu durante alguns segundos e então falou:
— Não sei...
— Se visse como ela ficou quando a senhora teve pneumonia, aos quatorze anos...
— Ah, sim, naquele tempo. Mas agora...
Ouviram o ruído da chave na fechadura:
— Aí está ela — disse Edith.
Ann chegou sem fôlego, arrancando da cabeça um alegre chapeuzinho de penas multicores.
— Sarah? Que surpresa agradável! Oh meu Deus, essa coisa estava machucando a minha cabeça. Que horas são? Estou horrivelmente atrasada. Vou encontrar os Ladesburys às oito no Chaliano's. Venha até o meu quarto enquanto eu troco de roupa.
Obediente, Sarah seguiu-a pelo corredor, até o quarto.
— Como vai Lawrence? — perguntou Ann.
— Muito bem.
— Ótimo. Eu não o vejo há séculos... e você também. Precisamos nos reunir qualquer dia desses. Dizem que a nova revista no Coronation é bastante boa...
— Mamãe, eu quero falar com você.
— Sim, querida?
— Será que não pode parar de mexer no rosto e me escutar?
Ann pareceu surpresa.
— Você parece estar muito nervosa, Sarah.
— Eu quero falar com você sobre um assunto sério: é Gerry...
— Ah — Ann baixou as mãos e pareceu refletir. — Gerry?
— Ele quer que eu deixe Lawrence e vá para o Canadá com ele — disse Sarah, com simplicidade.
— Que absurdo! Pobre Gerry, ele é realmente muito estúpido.
Sarah retrucou vivamente.
— Não há nada de errado com Gerry!
— Sei que sempre o defendeu, querida — disse Ann. — Mas falando sério, agora que tornou a vê-lo, não acha que já o deixou para trás?
— Você não está me ajudando muito, mamãe. — A voz de Sarah tremia. — Quero falar a sério.
Ann foi ríspida:
— Não me diga que está levando a sério essa tolice ridícula!
— Estou sim.
— Então também está sendo estúpida, Sarah — falou Ann, raivosa.
— Sempre gostei de Gerry e ele sempre gostou de mim.
— Minha criança querida! — disse Ann, sorrindo.
— Eu nunca devia ter casado com Lawrence. Foi o maior erro da minha vida.
— Vocês vão se acomodar — disse Ann, em tom consolador.
Sarah levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro, inquieta.
— Não, nunca. Minha vida é um verdadeiro inferno.
— Não exagere, Sarah — a voz de Ann era amarga.
— Ele é um monstro, um monstro desumano!
— Ele gosta de você, Sarah — censurou Ann.
— Por que fui casar com ele? Por quê? Na verdade eu nunca quis casar com ele — de repente voltou-se contra Ann. — Se não fosse por você, eu não
teria casado.
— Por mim?
Ann ficou vermelha de raiva.
— Eu não tive nada a ver com isso!
— Teve sim! Teve!
— Naquela ocasião eu lhe disse que você devia decidir sozinha.
— Você me convenceu de que tudo iria dar certo.
— Que acusação maldosa, Sarah! Eu até avisei que ele tinha péssima reputação e que você estava correndo um risco...
— Eu sei. Mas foi o seu jeito de dizer tudo isso, como se não tivesse importância. Oh, foi toda a nossa conversa! Não interessa, saber o que você disse; as palavras podiam ser apropriadas, mas no fundo você queria que eu casasse com ele. Queria, mamãe! Sei que era isso o que queria. Por quê? Para se ver livre de mim?
Ann encarou a filha, furiosa:
— Francamente Sarah, não entendo estas suas acusações!
Sarah aproximou-se da mãe. Seus olhos, enormes e negros, no rosto pálido, olhavam fixamente o rosto de Ann, como se esperassem encontrar nele a verdade.
— Sei que o que estou dizendo é verdade. Você queria que eu casasse com ele. E agora que nada deu certo, agora que eu sou horrivelmente infeliz, você nem liga. Às vezes cheguei a pensar que ficava contente...
— Sarah!
— Sim, contente! — Ann mexia-se inquieta sob aquele olhar que ainda a procurava. — Você está contente... Quer que eu seja infeliz...
Ann afastou-se bruscamente, trêmula, e caminhou até a porta. Sarah foi atrás dela.
— Por quê? Por que, Mamãe?
— Você não sabe o que está dizendo — respondeu Ann, forçando as palavras através dos lábios crispados.
— Quero saber por que desejava que eu fosse infeliz — insistiu Sarah.
— Nunca desejei isso. Não seja ridícula!
— Mamãe... — timidamente, como uma criança, Sarah tocou o braço da mãe. — Mamãe, eu sou sua filha... você devia gostar de mim.
— Mas é claro que gosto. O que mais?
— Não, não creio que goste. Acho que há muito tempo não gosta mais de mim, Mamãe. Você se afastou de mim, foi para longe... para algum lugar onde eu não consigo alcançá-la.
Ann fez um esforço para controlar-se antes de dizer, num tom de voz desapaixonado:
— Por mais que gostemos dos filhos, chega um momento em que eles devem aprender a ser independentes. As mães não podem ser possessivas.
— Não, é claro que não. Mas deviam estar prontas a ajudar nos momentos difíceis.
— Mas o que quer que eu faça, Sarah?
— Quero que me diga se devo partir com Gerald ou ficar com Lawrence.
— Fique com seu marido, é claro.
— Você parece muito certa do que diz.
— Minha querida, que outra resposta se poderia esperar de uma mulher da minha geração? Fui educada para respeitar certas normas de comportamento.
— É moralmente certo ficar com o marido e moralmente errado partir com o amante... é isso?
— Exatamente. É claro que os seus amigos moderninhos provavelmente teriam opinião bem diferente, mas foi a mim que você perguntou.
Sarah suspirou e sacudiu a cabeça:
— Não é assim tão fácil como você faz parecer. É tudo muito confuso. Na verdade é o meu eu mais sórdido que gostaria de ficar com Lawrence. É aquela parte de mim que tem medo de enfrentar a pobreza, as dificuldades; que gosta da vida fácil, tem gostos depravados, é uma escrava das sensações. O meu outro eu, que quer partir com Gerry, não é apenas uma mulherzinha devassa e apaixonada... é a parte de mim que acredita em Gerry e quer ajudá-lo. Entenda,
Mamãe: eu tenho exatamente aquilo que falta ao Gerry. Chega um momento em que ele perde o ânimo e só é capaz de parar e ter pena de si mesmo; é exatamente neste momento que precisa de mim para lhe dar um empurrão. Gerry poderia ser uma pessoa realmente formidável... tem tudo para ser. Precisa ape
nas de alguém que ria dele, e o incentive e... oh... ele precisa de mim..
Parou e lançou à mãe um olhar de súplica, mas o rosto de Ann manteve-se duro como pedra.
— Não vou fingir que conseguiu me impressionar, Sarah. Você quis casar com Lawrence, não importa o que diga agora, e devia ficar com ele.
— Talvez...
Ann fez valer sua ascendência sobre Sarah:
— E sabe, querida — continuou, num tom carinhoso. — Não creio que tenha sido feita para levar uma vida dura. Dizer é fácil, mas tenho certeza de que você iria odiar quando tivesse que enfrentá-la, principalmente se — e aqui pensou que tivesse um forte argumento a seu favor — principalmente se percebes
se que estava apenas criando mais dificuldades para Gerry, em vez de ajudá-lo.
Mas percebeu logo que dera um passo em falso. O rosto de Sarah tornou-se duro. Ela caminhou até a penteadeira, apanhou um cigarro e acendeu-o, antes de dizer despreocupadamente:
— Você é o próprio advogado do diabo, não é, Mamãe?
— O que quer dizer? — perguntou Ann surpresa.
Sarah postou-se diante da mãe, o rosto duro e cheio de suspeita:
— Qual é a verdadeira razão de não querer que eu vá embora com Gerry, Mamãe?
— Já lhe disse...
— A verdadeira razão... — insistiu Sarah, os olhos mergulhados nos de Ann. — Você tem medo de que eu possa ser feliz com ele, é isso?
— O meu medo é que possa ser muito infeliz!
— Não, não é — Sarah lançou as palavras, cheias de amargura. — Se eu fosse infeliz, você não se importaria. É a minha felicidade que você não deseja.
Você não gosta de mim. É mais do que isso: por alguma razão qualquer que eu desconheço, você me odeia... Não é verdade? Você me odeia, me odeia como o diabo.
— Sarah! Você enlouqueceu?
— Não, Mamãe, não estou louca. Finalmente começo a descobrir a verdade: há muito tempo você me odeia... há anos. Por quê?
— Não é verdade!
— É verdade sim. Mas por quê? Não é ciúme de mim, da minha mocidade... sei que algumas mães têm esse problema com as filhas, mas você não, você sempre foi boa para mim. Por que me odeia, Mamãe? Eu preciso saber!
— Mas eu não a odeio!
— Oh, por favor! Pare de mentir! — gritou Sarah. — Fale a verdade! O que foi que eu fiz para que me odiasse assim? Eu sempre a adorei, sempre tentei ser
boa para você, fazer coisas...
Ann voltou-se e respondeu, com uma voz cheia de amargura:
— Você fala como se só você tivesse feito sacrifícios!
Sarah encarou-a, confusa:
— Sacrifícios? Que sacrifícios?
A voz de Ann tremia; ela apertou as mãos, tentando controlar-se.
— Eu sacrifiquei a minha vida por você... desisti de tudo que amava por sua causa, e você nem ao menos se lembra!
Ainda surpresa, Sarah insistiu:
— Nem ao menos sei do que está falando.
— Não, é claro que não sabe. Nem sequer lembrava o nome dele. "Richard Cauldfield" — você perguntou — "quem é?"
Os olhos de Sarah deixaram transparecer que começava a entender o que ouvia, e sentiu-se tomada de leve desalento:
— Richard Cauldfield?
— Sim, Richard Cauldfield — Ann agora era francamente acusadora. — Você não gostava dele: mas eu o amava! Queria casar com ele! E, por sua causa, tive que desistir de tudo.
— Mamãe... — Sarah estava horrorizada.
— Eu tinha direito à felicidade — continuou Ann, num desafio.
— Eu não sabia o quanto você gostava dele — gaguejou Sarah.
— Não sabia, nem queria saber: fechava os olhos para não ver e fez tudo o que pôde para impedir o casamento. É ou não é verdade?
— Sim, é verdade... — Sarah voltou ao passado. Sentia-se quase doente ao lembrar a sua petulância infantil. — Eu... eu pensava que ele não seria capaz
de fazê-la feliz.
— E que direito tinha de pensar por outra pessoa? — indagou Ann arrebatadamente.
Gerry também dissera isto: tinha ficado preocupado ao ver o que ela estava tentando fazer. E ela só fora capaz de sentir-se satisfeita consigo mesma, triunfante com a vitória sobre o odiado Cauliflower. Tudo aquilo fora apenas ciúme, ciúme grosseiro e infantil, podia ver agora.
E por causa dele, sua mãe tinha sofrido, tinha se transformado aos poucos nesta mulher nervosa e infeliz que a confrontava agora com acusações contra as quais ela não tinha resposta.
Podia apenas dizer baixinho:
— Eu não sabia... Oh, Mamãe, eu não sabia...
Ann estava outra vez revivendo o passado:
— Nós dois podíamos ter sido felizes juntos. Ele era um homem solitário. A primeira mulher tinha morrido junto com o bebê; isto causou-lhe um grande choque. Sei que tinha defeito, uma certa tendência para se tornar arrogante e dominador... o tipo da coisa que os jovens não deixam passar... mas no fundo era um homem bondoso e simples. Nós teríamos envelhecido juntos, felizes. E em vez disso eu o magoei muito: mandei-o embora. Mandei-o para um hotel na
praia, onde ele conheceu aquela harpiazinha cretina que nem ao menos gosta dele.
Sarah afastou-se, ferida por cada uma das palavras que ouvira, mas recuperou as forças para defender-se :
— Mas por que não casou com ele, se o queria tanto?
Ann atacou-a, asperamente:
— E não lembra as eternas cenas, as discussões? Vocês dois eram como cão e gato. Você o provocava deliberadamente, como parte do seu plano.
(Sim, era verdade, aquelas brigas eram mesmo parte do plano.)
— Eu não podia mais suportar aquilo, dia após dia. Então fui obrigada a enfrentar uma opção: tive que escolher; foi assim que Richard colocou o problema... escolher entre você e ele. Você era minha filha, minha própria carne e sangue. Escolhi você.
— E desde então, me odiou — disse Sarah, entendendo afinal.
Tudo estava bem claro agora. Juntou suas peles e afastou-se em direção à porta:
— Bem, pelo menos agora sabemos onde estamos.
A voz dela era fria e calma. Vendo as ruínas da vida de Ann, passara a entender a ruína que era a sua própria vida.
Voltou-se e falou para a mulher de rosto devastado, que não negara a sua última acusação:
— Você me odeia por ter estragado a sua vida, Mamãe. Pois bem, eu a odeio por ter destruído a minha.
Ann retrucou vivamente.
— Não tive nada a ver com a sua vida: foi você que escolheu.
— Oh, não, não fui eu que escolhi... não seja hipócrita, Mamãe. Eu a procurei desejando que me ajudasse a não casar com Lawrence. Você sabia muito
bem como eu me sentia atraída por ele, e como desejava me libertar daquela atração. E foi muito esperta, soube exatamente o que devia dizer e fazer.
— Tolice! Para que haveria de querer que casasse com Lawrence?
— Creio que... porque sabia que eu não seria feliz. Você era infeliz e queria que eu também fosse. Vamos, Mamãe, ponha as cartas na mesa. Confesse: não
sente um certo prazer ao saber que o meu casamento é um fracasso?
Num súbito impulso de paixão Ann exclamou:
— Sim, às vezes penso que você merece!
Mãe e filha se olharam, implacáveis. Logo Sarah riu, um riso áspero e desagradável.
— Bem, agora sabemos! Adeus Mamãe, querida Mamãe...
Saiu pelo corredor e Ann ouviu a porta do apartamento batendo com uma pancada forte e definitiva. Estava só.
Ainda trêmula, jogou-se sobre a cama. As lágrimas encheram seus olhos e correram pelo rosto. Logo foi sacudida por uma crise de choro, como há muitos anos não experimentava.
Chorou e chorou...
Não sabia por quanto tempo tinha chorado, mas quando, enfim, os soluços começaram a diminuir, ouviu o tilintar da louça; Edith entrava com a bandeja do chá, que pousou na mesinha junto à cama, antes de sentar-se perto dela, batendo gentilmente no seu ombro.
— Pronto, pronto meu anjo... Trouxe uma boa xícara de chá, e vai beber, queira ou não queira.
— Oh Edith, Edith... — Ann abraçou-se à fiel criada e amiga.
— Ora, ora, não fique tão aflita. Tudo vai acabar bem.
— As coisas que eu disse... as coisas que eu disse...
— Não pense nisso. Agora vamos sentar, e eu sirvo o seu chá e a senhora vai beber tudo.
Obedientemente, Ann sentou-se e engoliu o chá.
— Assim! Daqui a um minuto já estará se sentindo melhor.
— Sarah... como é que eu pude?
— Não se preocupe com isso...
— Como é que eu pude dizer aquelas coisas para ela?
— Pois se quer saber a minha opinião, é melhor dizer do que só ficar pensando. As coisas que a gente pensa mas não fala vão ficando azedas como bílis dentro da gente... pode ter certeza.
— Mas eu fui tão cruel... tão cruel...
— Pois eu diria que o seu erro foi ficar tanto tempo com essas coisas guardadas dentro de si. É muito melhor pôr tudo para fora numa boa briga do que
fingir que não há nada errado. Todos nós temos maus pensamentos, mas nem sempre gostamos de reconhecer.
— Será que eu realmente odiei Sarah durante todo este tempo? Minha pequena Sarah... como ela era engraçadinha... e tão meiga. E eu a odiei?
— É claro que não... respondeu Edith vigorosamente.
— Mas é verdade. Eu queria que ela sofresse... que fosse ferida... como eu tinha sido.
— Agora não vá começar a imaginar um monte de asneiras. A Senhora gosta da Srta. Sarah, e sempre gostou.
Ann continuava a falar:
— Durante todo esse tempo... todo o tempo... o ódio corria como uma corrente subterrânea... ódio ...ódio...
— Foi uma pena que vocês não tivessem resolvido esse assunto antes. Uma boa briga sempre ajuda a clarear o ar.
Ann recostou-se fracamente nos travesseiros:
— Mas já não a odeio mais — falou, surpresa. — Está tudo acabado, sim... acabado...
Edith levantou-se e deu uma palmadinha no ombro de Ann.
— Não se aflija, meu bem; tudo vai dar certo!
Ann sacudiu a cabeça.
— Não, nunca mais. Nós duas dissemos coisas que nunca mais poderemos esquecer.
— Não, não vá atrás disso. Palavras duras não quebram ossos, é um ditado muito certo.
— Há certas coisas, coisas essenciais, que nunca são esquecidas.
— Nunca é uma palavra grande demais — disse Edith, apanhando a bandeja.

Capítulo IV
AO CHEGAR EM CASA, Sarah dirigiu-se à grande sala dos fundos, que Lawrence chamava o seu estúdio.
Ele estava lá, desembrulhando uma estatueta que comprara há pouco, obra de um jovem artista francês.
— O que acha, Sarah? Bonita, não é mesmo?
Os seus dedos acariciaram as linhas contorcidas do corpo nu.
Sarah teve um pequeno estremecimento, como se tivesse lembrando alguma coisa.
— É bonita, sim — disse, — mas obscena.
— Ora, vamos... é surpreendente que você ainda conserve traços de puritanismo, Sarah. Interessante como isso ainda persiste.
— Esta figura é obscena.
— Um tanto ou quanto decadente, talvez... Mas muito bem feita e cheia de imaginação. Paulo toma haxixe, é claro... isto provavelmente explica o espírito da coisa.
Largou a estatueta e voltou-se para Sarah.
— Você está en beauté, minha encantadora esposa... e aborrecida com alguma coisa. A aflição sempre lhe vai bem.
— Acabo de ter uma discussão terrível com Mamãe — disse Sarah.
— É mesmo? — Lawrence ergueu o cenho, divertido. — Que estranho! Mal posso imaginar a meiga Ann discutindo com alguém.
— Pois ela não estava nada meiga hoje. Mas devo admitir que eu disse coisas horríveis também...
— Brigas domésticas são muito desinteressantes, Sarah. Não falemos nelas.
— Não ia falar; Mamãe e eu estamos definitivamente afastadas... só isso. Não, é sobre outra coisa que eu queria lhe falar. Creio que vou deixá-lo, Lawrence.
Sem demonstrar qualquer reação especial, Steene apenas murmurou, erguendo o cenho:
— Acho que não seria nada inteligente da sua parte.
— Você faz isso soar como uma ameaça.
— Oh, não! Uma delicada advertência, apenas. E por que vai me deixar Sarah? Outras já fizeram isso antes, mas não creio que você possa alegar os mesmos motivos: eu não parti seu coração, por exemplo. Seu coração não é muito sensível à minha pessoa... e você ainda é...
— A favorita reinante? — perguntou Sarah.
— Se quiser pôr as coisas nestes termos orientais. Sim, Sarah, acho você perfeita... mesmo este seu toque puritano dá um tempero especial a essa nossa...
como direi... essa nossa maneira um tanto pagã de viver. E a propósito, não pode ter sido pela mesma razão que levou minha primeira esposa a me deixar:
incompatibilidade moral não poderia ser o seu argumento mais forte, se levarmos em conta...
— Será que tem tanta importância saber por que vou deixá-lo? Não finja que vai se importar mesmo!
— Mas eu vou me importar, e muito! No momento você é o meu bem mais precioso... mais do que tudo isto.
Sua mão fez um gesto largo, que abrangia toda a sala.
— O que eu quis dizer foi... você não me ama,não é?
— Como já lhe disse uma vez, o amor romântico nunca me interessou: nem para dar, nem para receber.
— A verdade é que... existe alguém — disse Sarah — e eu vou partir com ele.
— Ah!... e deixar todos os seus pecados para trás...
— Você quer dizer que...
— Não sei se isto será tão fácil quanto imagina. Você tem sido uma boa discípula, Sarah: sua ânsia de viver é muito grande. Será que pode abandonar todas essas sensações... esses prazeres... essas aventuras dos sentidos? Pense naquela noite no Mariana...lembre-se de Charcot e suas Diversões... Essas coisas não podem ser abandonadas assim tão facilmente.
Sarah olhou para ele, e por um momento seus olhos deixaram transparecer medo:
— Eu sei disso... sei... mas a gente pode desistir!
— Será que pode mesmo? Você está tão mergulhada nisto, Sarah!
— Mas eu conseguirei sair. Eu quero sair!
Voltando-se, ela deixou apressadamente a sala.
Lawrence largou a estatueta sobre a mesa, num movimento brusco.
Sentia-se seriamente perturbado. Ainda não tinha cansado de Sarah. Duvidava que algum dia chegasse a cansar daquela criatura de extraordinária beleza, daquela mulher de caráter forte, capaz de reagir, de lutar. Uma peça de coleção extremamente rara.

Capítulo V
— ORA, SARAH! — surpresa, Dame Laura levantou os olhos da mesa de trabalho.
Sarah estava sem fôlego, bastante perturbada.
— Eu não a via há séculos, afilhada! — continuou Laura.
— É verdade... Oh, Laura, estou numa embrulhada tão grande!
— Sente-se. — Laura Whitstable conduziu Sarah gentilmente até um sofá. — Agora, conte-me o que há.
— Pensei que talvez você pudesse ajudar. Será que a gente consegue... que a gente pode... é possível parar de tomar certas coisas?.,. Quero dizer...
quando... quando se criou o hábito de tomá-las. Ah, meu Deus, acho que você nem sabe do que eu estou falando — acrescentou, precipitadamente.
— Oh, sei, sim. Você está falando de drogas.
— Sim... — Sarah sentiu um enorme alívio diante da maneira realista com que Laura reagira.
— Bem, a resposta vai depender de uma série de fatores. Não é fácil... nunca é fácil. E as mulheres parecem ter mais dificuldades do que os homens para se libertar desse tipo de vício. Depende muito do tempo que você vem tomando a droga, seu grau de dependência dela, seu estado de saúde, da sua coragem,
determinação e força de vontade; sob que condições vai viver seu dia-a-dia, quais são suas perspectivas para o futuro e, se for mulher, se existe alguém para
ajudá-la a lutar.
O rosto de Sarah se iluminou:
— Ótimo!... Então, acho... acho mesmo que tudo vai dar certo!
— Passar os dias sem ter nada para fazer não vai ajudar muito — preveniu Laura.
— Mas eu vou ter muito pouco tempo livre! Passarei o dia inteiro trabalhando feito louca. E terei alguém para... para ser duro comigo e me fazer andar na linha. E quanto a ter perspectivas para o futuro... eu tenho tudo para esperar do futuro... tudo!
— Bem, Sarah, acho que você tem uma boa chance. — Laura olhou para ela e acrescentou inesperadamente. — Você parece ter crescido, finalmente!
— Sim, e como custei... percebo isto. Eu chamava Gerry de fraco, mas na verdade eu é que sou fraca, sempre querendo ser protegida. — Seu rosto se
anuviou. — Laura, fui horrível com Mamãe. Só hoje descobri que ela gostava realmente do Cauliflower. Agora sei que eu simplesmente não queria ouvir quando
você me preveniu sobre os sacrifícios e as oferendas queimadas. Eu me sentia tão horrivelmente satisfeita comigo e com o meu plano para me livrar do pobre
Richard... e agora vejo que durante todo o tempo estava sendo apenas ciumenta, infantil e despeitada. Fiz com que Mamãe desistisse dele, e naturalmente ela ficou com ódio de mim, só que nunca confessou; mas tudo começou a dar errado. Hoje tivemos uma discussão terrível, gritamos uma com a outra, eu lhe disse coisas horríveis, culpei-a por tudo que me aconteceu. Mas na verdade, durante todo o tempo eu me sentia mal pelo que tinha feito a ela.
— Entendo.
— E agora — Sarah parecia infeliz, — não sei o que fazer. Se ao menos eu pudesse compensá-la de algum modo... mas agora acho que já é tarde demais.
— Não há maior perda de tempo — disse Laura com ar didático, levantando-se resolutamente — do que dizer a coisa certa para a pessoa errada...

Capítulo VI
1
EDITH levantou o fone do gancho com ar de alguém que está lidando com dinamite, suspirou fundo e discou. Ao ouvir o telefone tocar no outro extremo da linha, virou a cabeça e olhou por cima do ombro. Tudo bem, estava sozinha no apartamento. A voz enérgica e profissional que lhe chegou através do fio deu-lhe um susto que a fez estremecer.
— Welbeck 97438.
— Oh... é Dame Laura Whitstable?
— Ela mesma.
Edith engoliu duas vezes em seco, nervosa.
— É Edith, madame. A Edith da Sra. Prentice.
— Boa noite, Edith.
Edith tornou a engolir em seco e falou obscuramente:
— Telefones são coisas detestáveis.
— Sim, entendo. Queria me falar sobre alguma coisa?
— É sobre a Sra. Prentice, madame. Estou preocupada com ela, estou mesmo.
— Mas já faz muito tempo que você está preocupada com ela, não é Edith?
— Agora é diferente, madame. Bem diferente. Ela não quer comer e fica sentada, sem fazer nada. E muitas vezes eu a encontro chorando. Está mais calma, entende, sem aquela agitação que tinha antes. E já não fica irritada comigo, voltou a ser delicada e atenciosa como antigamente... mas não tem mais ânimo... nenhum entusiasmo. É horrível, madame, horrível.
O telefone comentou "Interessante" de um modo profissional e desapaixonado que não era absolutamente o que Edith desejava ouvir.
— Seu coração ia sangrar se visse, madame; palavra que ia.
— Não use expressões ridículas, Edith. Corações não costumam sangrar, a menos que estejam feridos.
Edith continuou:
— É alguma coisa relacionada com a Srta. Sarah, madame. Tiveram uma briga danada e agora faz quase um mês que a Srta. Sarah não vem aqui.
— Não, ela esteve fora de Londres... — no campo.
— Eu escrevi para ela.
— Nenhuma carta lhe foi entregue.
Edith animou-se um pouco:
— Oh, bem, então quando ela voltar a Londres...
Dame Laura interrompeu:
— Acho que é melhor preparar-se para um choque, Edith: Sarah vai partir para o Canadá com o Sr. Gerald Lloyd.
Edith fez um ruído desaprovador, como de um sifão de soda.
— Mas isto é positivamente imoral! Abandonar o marido!
— Não seja santarrona, Edith. Quem é você para julgar a conduta dos outros? Lá ela vai ter uma vida dura... sem nenhum dos luxos a que está acostumada.
— É, isto parece tornar a coisa menos pecaminosa — suspirou Edith. — E se me permite dizer, madame, o Sr. Steene sempre me deu arrepios. É o tipo
do cavalheiro que a gente pode imaginar vendendo a alma ao diabo.
— Levando em conta a inevitável diferença na nossa linguagem, estou inclinada a concordar com você.
— A Srta. Sarah não virá aqui para se despedir?
— Parece que não.
— Pois eu acho que isto é pura maldade dela — disse Edith, indignada.
— Você não é capaz de entender.
— Eu sou muito capaz de entender como é que uma filha deve agir com sua mãe. Nunca esperei isso da Srta. Sarah! Não há nada que a senhora possa
fazer?
— Eu jamais interfiro.
Edith respirou fundo antes de falar:
— Bem, a senhora vai me desculpar... sei que é uma senhora muito famosa e muito sabida, e eu sou apenas uma criada... mas acho que este é um momento em que devia interferir!
2
Foi preciso que Edith repetisse duas vezes o que dissera, antes que Ann despertasse do seu torpor e desse sinal de ter escutado, perguntando:
— O que foi que você falou, Edith?
— Falei que o seu cabelo está esquisito, aí perto da raiz. A senhora devia retocar a pintura.
— Não vou me incomodar mais com isso, ficará melhor grisalho.
— Vai ficar com um ar mais distinto, concordo, mas assim misturado como está, tem um jeito engraçado.
— Não importa.
Nada importava. O que poderia ter qualquer importância na sucessão monótona dos dias que passavam? Ann pensou, como já pensara tantas vezes: "Sarah não me perdoará nunca. E ela tem razão." O telefone tocou e ela levantou-se para atender. Disse "alô" num tom desanimado e teve um pequeno sobressalto ao ouvir a voz incisiva de Dame Laura.
— Ann?
— Sim.
— Não gosto de me intrometer na vida dos outros, mas... creio que talvez você deva saber que Sarah e Gerald Lloyd vão viajar para o Canadá esta noite,
no avião das oito.
— O quê? — gaguejou Ann. — Eu... faz semanas que não vejo Sarah.
— Não. Ela esteve internada numa clínica, no interior. Foi para lá voluntariamente e submeteu-se a um tratamento para curar-se do vício das drogas.
— Oh, Laura! — as palavras jorravam pela boca de Ann. — Você se lembra de quando me perguntou se eu conhecia Ann Prentice? Pois conheço agora. Eu arruinei a vida de Sarah por ressentimento e despeito e ela nunca me perdoará!
— Tolice. Ninguém é capaz de arruinar a vida de outra pessoa, não de verdade. Não seja melodramática e não rasteje.
— Mas é verdade. Eu sei exatamente quem sou e o que fiz.
— Isto é ótimo... mas já faz algum tempo que sabe essas coisas, não é? Não seria melhor pensar no que vem depois?
— Você não entende, Laura. Eu sinto um tal peso na consciência... tanto remorso...
— Ouça Ann: há duas coisas que eu não admito. Alguém que vem me contar como é bom e quais as razões morais que o levaram a fazer as coisas que fez. E quem não pára de se lamentar e falar nas maldades que praticou. Ambos podem ter razão: devemos reconhecer a verdade das nossas ações, é claro, mas uma vez isto feito, passemos adiante! Você não pode fazer o tempo voltar atrás, e geralmente é impossível desfazer o que já está feito. Continue a viver!
— Laura, o que acha que devo fazer?
— Posso ter interferido, mas não vou descer ao ponto de dar conselhos — respondeu Laura, antes de desligar, com firmeza.
Movendo-se como num sonho, Ann atravessou a sala e foi até o sofá, onde ficou sentada, os olhos perdidos no espaço.
Sarah-Gerry... será que daria certo? Será que a sua menina, a sua menina tão amada, encontraria afinal a felicidade? Gerry era basicamente um homem fraco. Será que a sua história de fracassos iria continuar e ele acabaria decepcionando Sarah, tomando-a desiludida e infeliz? Se ao menos Gerry fosse diferente do que era! Mas Gerry era o homem que Sarah amava.
O tempo passava e Ann continuava sentada, imóvel.
Ela já não podia fazer nada, um abismo intransponível a separava de Sarah.
Edith veio espiar a patroa e afastou-se silenciosamente. Mas logo voltou para atender a campainha da porta.
— O Sr. Mowbray veio buscá-la, senhora.
— O que foi que disse?
— O Sr. Mowbray está esperando lá embaixo. Ann levantou-se de um salto: os olhos buscaram o relógio. Em que estivera pensando para ficar assim sentada, semiparalisada?
Sarah ia partir esta noite... para o outro lado do mundo...
Agarrou o casaco de pele e correu para fora do apartamento.
— Basil — falou, sem fôlego. — Por favor, leve-me para o aeroporto, o mais depressa que puder.
— Mas o que está acontecendo, Ann querida?
— É Sarah. Ela vai viajar para o Canadá e eu ainda não me despedi.
— Mas querida, não acha que deixou para fazer isso um pouco tarde?
— É claro que deixei! Fui uma idiota. Mas espero que não seja tarde demais. Oh, vamos Basil, depressa!
Basil Mowbray suspirou e ligou o motor:
— E eu que sempre pensei que você fosse uma mulher sensata, Ann — falou, em tom de censura. — Dou graças ao pensar que nunca vou ser pai. Isso parece fazer com que as pessoas se comportem de um modo tão esquisito!
— Ande depressa, Basil!
Basil suspirou.
Foram pelas ruas de Kensington, evitando os engarrafamentos de Hammersmith por uma série de ruazinhas complicadas, seguindo por Chiswick, onde o tráfego era pesado, até chegar finalmente à Great West Road, passando pelas altas fábricas e edifícios iluminados — depois pelas casas enfeitadas, onde viviam pessoas: mães e filhas, pais e filhos, maridos e mulheres, todos com seus problemas, suas brigas e reconciliações. "Exatamente como eu" — pensou Ann. Sentiu um súbito parentesco, um repentino impulso de amor e compreensão por toda a raça humana. Não estava sozinha, nem nunca estaria, pois vivia num mundo povoado por seus semelhantes...
3
No saguão do aeroporto os passageiros aguardavam a chamada para o embarque.
— Não está arrependida? — perguntou Gerry.
Sarah lançou-lhe um rápido olhar tranqüilizador. Estava mais magra, e o seu rosto trazia as marcas que o sofrimento costuma deixar. Era um rosto mais velho, não menos belo, mas agora totalmente amadurecido.
Gerry queria que eu fosse me despedir de Mamãe, ela pensava. Ele não entende... se ao menos eu pudesse reparar o mal que causei... mas não posso...
Ela não podia fazer com que Richard Cauldfield voltasse.
Não, o que fizera à mãe estava além de qualquer perdão.
Sentia-se feliz ao lado de Gerry, partindo para uma nova vida junto dele, mas alguma coisa nela gritava desconsoladamente: — Estou indo embora, Mamãe, indo embora...
Se ao menos...
A voz estridente do alto-falante fê-la estremecer:
"Passageiros do Vôo 00346, com destino a Prestwick, Gander e Montreal, queiram seguir a luz verde até a Alfândega e Imigração".
Os passageiros apanharam suas bagagens de mão e caminharam em direção à porta do fundo. Sarah seguia Gerry, deixando-se ficar um pouquinho para trás.
— Sarah!
Ann entrou pela porta principal, o casaco de pele escorregando-lhe dos ombros, e correu para a filha. Sarah foi ao seu encontro, deixando cair a pequena maleta de viagem.
— Mamãe!
Abraçaram-se com força, e logo se afastaram para se olharem melhor.
Todas as coisas que Ann pensara dizer, que tinha ensaiado durante a vinda para o aeroporto, lhe morreram nos lábios. Não havia necessidade delas. E Sarah também sentiu que não era preciso falar. Dizer "Perdão, Mamãe" não teria nenhum sentido.
E naquele momento Sarah se desfez dos últimos vestígios da dependência infantil que ainda a prendiam a Ann. Era agora uma mulher independente, capaz de tomar suas próprias decisões.
Com um curioso impulso para tranqüilizá-la, Sarah falou depressa:
— Tudo vai dar certo, Mamãe.
— Eu cuidarei dela, Sra. Prentice — disse Gerry, sorrindo.
Um funcionário do aeroporto aproximou-se deles para mostrar-lhes o caminho.
Falando na mesma linguagem inadequada, Sarah continuou:
— Você vai ficar bem, não é Mamãe?
E Ann respondeu:
— Sim, querida. Muito bem. Adeus... e Deus a abençoe!
Gerry e Sarah afastaram-se, em direção à sua nova vida, e Ann voltou para o carro, onde Basil a esperava.
— Essas máquinas aterrorizantes — comentou Basil, enquanto um jato rugia pela pista. — Parecem enormes insetos malignos! Eles me matam de medo!
Seguiu até a estrada e tomou a direção de Londres.
— Se não se importa, Basil, não vou sair com você; prefiro passar uma noite tranqüila, em casa.
— Muito bem, querida, eu a levarei até lá.
Ann sempre pensara que Basil Mowbray era "tão divertido e maldoso". Percebeu de repente que ele também era um homenzinho bom e um tanto solitário.
Meu Deus, pensou Ann, que confusão ridícula eu andei fazendo!
Basil estava dizendo, ansioso:
— Mas Ann, querida, não acha que devia comer alguma coisa? Não haverá nada pronto no apartamento.
Ann sorriu e sacudiu a cabeça. Diante dos seus olhos surgiu uma cena agradável.
— Não se preocupe — ela disse. Edith vai me trazer uma bandeja com ovos mexidos, e se Deus quiser, servir em frente à lareira uma gostosa xícara de
chá bem quente!
Enquanto entrava, Edith lançou um olhar feroz para a patroa, mas tudo o que disse foi:
— Entrem e sentem-se perto da lareira. Vou só tirar essa roupa e vestir algo mais confortável.
— Ponha aquele penhoar de flanela azul que você me deu há quatro anos. É muito mais confortável do que esse tal de negligê, como você chama. Eu nunca
usei. Está esquecido na última gaveta, esperando para eu ser enterrada com ele.
Deitada no sofá da sala, o penhoar azul envolvendo-lhe gostosamente o corpo, Ann olhava fixamente o fogo.
Nesse momento Edith entrou com a bandeja e pousou-a numa mesinha baixa, bem ao lado de Ann.
— Mais tarde vou escovar seu cabelo — disse ela.
Ann sorriu:
— Edith, por que você hoje está me tratando como se eu fosse uma menininha?
Edith resmungou:
— É isto que você sempre foi para mim.
— Edith — Ann olhou para ela e falou com certo esforço: — Edith, estive com Sarah. Está... está tudo bem.
— É claro que está tudo bem! Sempre esteve! Eu lhe disse!
Por um momento ela ficou em pé olhando para a patroa, sua velha fisionomia carrancuda, agora doce e desanuviada.
"Essa paz maravilhosa"... pensou Ann. Velhas palavras lhe voltaram à memória. "A paz de Deus que ultrapassa toda e qualquer compreensão ..."
























---------- Forwarded message ----------
From: Rosana






--

Abraços fraternos!

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

 

 

'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL

--
--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "clube do e-livro" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para clube-do-e-livro+unsubscribe@googlegroups.com.
Para mais opções, acesse https://groups.google.com/d/optout.

0 comentários:

Postar um comentário

Vida de bombeiro Recipes Informatica Humor Jokes Mensagens Curiosity Saude Video Games Car Blog Animals Diario das Mensagens Eletronica Rei Jesus News Noticias da TV Artesanato Esportes Noticias Atuais Games Pets Career Religion Recreation Business Education Autos Academics Style Television Programming Motosport Humor News The Games Home Downs World News Internet Car Design Entertaimment Celebrities 1001 Games Doctor Pets Net Downs World Enter Jesus Variedade Mensagensr Android Rub Letras Dialogue cosmetics Genexus Car net Só Humor Curiosity Gifs Medical Female American Health Madeira Designer PPS Divertidas Estate Travel Estate Writing Computer Matilde Ocultos Matilde futebolcomnoticias girassol lettheworldturn topdigitalnet Bem amado enjohnny produceideas foodasticos cronicasdoimaginario downloadsdegraca compactandoletras newcuriosidades blogdoarmario arrozinhoii