sábado, 5 de dezembro de 2015 By: Fred

{clube-do-e-livro} A Casa dos Espíritos Sofredores – José Carlos Leal

A CASA DOS ESPÍRITOS SOFREDORES


JOSÉ CARLOS LEAL


A família Fonseca Teles conseguiu comprar a casa tão sonhada:
ampla, com jardim na frente e horta nos fundos. Só não sabia que
ela não estava vazia, mesmo estando fechada.
Assim que a família mudou para a nova casa, Cristina e Ana Júlia
começaram a testemunhar coisas "estranhas" que aconteciam nela.
Porém, na opinião de Augusto, para todas essas coisas, havia uma
única explicação: tudo não passava de fruto da imaginação das
filhas. Dona Rosa as confortava, mas ao final sempre concordava
com o marido.
Imaginação ou não, o fato foi que, desde a mudança, os tais
acontecimentos vinham tirando o sossego da família. Por isso,
naquela noite, Augusto resolveu que desvendaria o "mistério", seja
qual fosse. Mas desta vez ele não teve explicação nem para o que os
próprios olhos viram... Foi aí que, convencido por Dona Rosa,
resolveu buscar ajuda.



Nascido em 20/2/1940. Possui em sua formação acadêmica os
seguintes cursos: graduação em Português Literatura pela Universidade
Gama Filho (UGF), pós graduação em Ciência da
Literatura, pós graduação em nível de mestrado em Ciência da
Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); livre
docente em teoria da literatura pela UGF. Além disso, pertence à
Academia Duque Caxiense de Letras e Academia de Silva Martins
Barbosa. É ainda professor do Instituto de Cultura Espírita.
Em sua atividade espírita publicou mais de 80 livros. É
conferencista, palestrante e promove seminários e workshops na área
espírita.

A CASA DOS ESPÍRITOS
SOFREDORES


1a edição

SUMÁRIO

Palavras iniciais

Capítulo I

A casa em Jacarepaguá

Capítulo II

D. Eulália

Capítulo III

D. Eulália tinha razão
Capítulo IV

A visita do tio Abílio

Capítulo V

A primeira sessão

Capítulo VI

Ramiro volta a se comunicar

Capítulo VII

Sinhá Moça

Capítulo VIII

Meu tio nos fala sobre a reencarnação

Capítulo IX

Uma conversa muito interessante

Capítulo X

Um ator perdido no tempo

Capítulo XI

O demônio e o Espiritismo

Capítulo XII

Caem as últimas restrições de em relação ao Espiritismo


Capítulo XIII

A narrativa da Irmã Letícia

Capítulo XIV

Por fim Hasterius se manifesta

"Que todos os espíritos sofredores possam compreender essa
verdade, em vez de se revoltarem contra as dores e os sofrimentos
morais que são o seu quinhão aqui na Terra. Usai, pois, como divisa,
estas duas palavras: devotamento e abnegação, e sereis fortes,
porque elas resumem todos os deveres que a caridade e a
humildade vos impõem."

O Espírito de Verdade

ALLAN KARDEC

O Evangelho segundo o Espiritismo -Cap. VI.

Palavras iniciais

Meu nome é Álvaro Fonseca Teles e a história que vou narrar
aconteceu comigo e minha família. Embora já faça muito tempo,
ainda me lembro dela com riqueza de detalhes. Resolvi escrevê-la,
em forma romanceada, depois que me tornei espírita militante
porque acredito que todas as coisas que possam reforçar as ideias


espíritas devem ser divulgadas. A pedido dos meus familiares, os
nomes dos personagens foram trocados, embora os fatos continuem
os mesmos sem a menor alteração. Espero, sinceramente, que o
nosso leitor possa aproveitar, de algum modo, a leitura destas
páginas.

CAPÍTULO I
A casa em Jacarepaguá


Naquela noite de sábado, em maio de 1999, o nosso pai estava
muito feliz. Havíamos terminado o jantar e permanecemos à mesa
conversando, como era o costume lá em casa. Meu pai sempre nos
dizia que durante as refeições é o momento ideal para a família se
reunir e conversar sobre as coisas do cotidiano, coisas que, à
primeira vista, parecem banalidades, fatos corriqueiros e sem
importância; entretanto, quando refletimos sobre eles descobrimos o
quanto podem ser importantes. Foi com o meu pai que aprendi que
não existe "jogar conversa fora", pois todo diálogo por mais simples
que nos pareça possui o seu valor. Naquela noite, ele nos fez uma
surpresa que nos foi revelada rapidamente:

Gente, hoje é um dia muito especial para a nossa família.

— O que há de tão especial, Augusto? — perguntou minha mãe.
— Calma, calma que vou contar. Disse meu pai com um sorriso no
rosto como se fosse um jogador que possui um trunfo na manga.
— Pai, fale logo. Eu estou morrendo de curiosidade. Pediu Cristina,
minha irmã mais nova.

— Espera um pouco, pessoal, há tempo para tudo embaixo do sol.
— Sim, eu sei e há tempo para contar o que deve ser contado, seu
Augusto — falou Ana Júlia, a minha outra irmã.
— Está bem. Eu quis só citar o Eclesiastes.
— Mas, papai, você não é religioso — observou Ana Júlia.
— Não. Não sou, porém isso não me impede de apreciar um livro
que contém grande sabedoria como o Eclesiastes.
— Senhor Augusto, não fuja do assunto. Chega de fazer suspense.
Diga logo qual é a surpresa. Espero que a sua revelação justifique
tudo isso — falou minha mãe, fingindo-se de zangada.
— Está bem, Dona Rosa. Vou dizer. Vocês sabem que todos nós
temos um sonho, um sonho muito antigo...
— Sonho de nossa família? — perguntou Cristina.
— Sim. Sonho de nossa família — confirmou meu pai.
— Então já sei o que é! É a casa nova! — exclamou Júlia elevando o
tom da voz.
— Acertou, filha, é isso mesmo — concluiu meu pai acariciando os
cabelos de minha irmã.
Quando meu pai fez aquela declaração, pude ver nos olhos de todos
um brilho singular e nos sorrisos francos o fim da expectativa que
nos dominava. Minha mãe que estava saboreando um pedaço de
manga Palmer, que ela havia colocado no prato ainda sujo de
comida, foi quem tomou a palavra.

— Augusto, vá com calma. Você sabe como todos nós sonhamos em
sair deste apartamento para uma casa maior com um jardim na
frente e uma horta nos fundos. Vem você, agora, nos dizer que este
sonho foi realizado. Você está falando sério?

— Claro que estou, Maria Rosa. Comprar a casa nova foi um sonho
para mim também durante muito tempo. Incomodava-me quando
vocês reclamavam do pouco espaço deste apartamento.
Devagarzinho, as coisas foram melhorando para mim. Aumentei
um pouco a oficina, comprei máquinas novas, fiz convênios com
algumas seguradoras de automóveis. De repente, fui percebendo
que dava para guardar um dinheirinho, fazer uma poupança e
alguns outros investimentos, não demorou muito, surgiu uma bela
oportunidade e eu não vacilei. O complicado mesmo foi fazer isso
tudo sem que vocês soubessem. Eu queria que fosse uma surpresa
como está sendo agora.
— Olha que você conseguiu mesmo nos fazer uma surpresa.
Confesso que eu achava que viveria até meus últimos dias aqui,
neste apartamento — comentou minha mãe.
— Acho que todos estão felizes, ou não estão?
— Puxa, pai, você nem imagina quanto — disse Cristina.
— Pronto. A surpresa é esta — afirmou meu pai com um suspiro de
alívio.
Ana Júlia, que era extremamente curiosa, pediu:
— Pai, gostaria que o senhor nos contasse onde é a casa e como ela
é.
— Fica em Jacarepaguá, mas ainda não fechei o negócio.
— Como você soube da casa?
— Eu tenho um cliente que é corretor de imóveis. Ultimamente, eu
vinha pedindo a ele para que se aparecesse um imóvel grande, não
muito caro, me avisasse.
Não demorou muito, ele veio com um retrato de uma casa e me
disse:

— Seu Augusto, aqui está a sua casa.

— A minha casa? — perguntei sem entender muito bem o que
estava acontecendo.
— A casa que o senhor pediu. Demorou um pouco, mas encontrei.
Papa fina! Negócio de ocasião.
— Mas pelo que estou vendo aqui na foto, deve estar muito além do
que disponho.
— Não está. Esta casa é de um rapaz inglês, chamado John Lesler
que vive em Londres e veio aqui só para se livrar da casa que o avô
deixou para ele como herança. Ele me disse que esta casa se tornou
um estorvo em sua vida por causa dos impostos e de outras
despesas que uma casa assim possui. Ele estava tão chateado que
pediu um preço mais baixo para se livrar dela.
— Quanto? — perguntei interessado.
— 80.000 mais os impostos — ele respondeu.
— Quanto ele deve de impostos? — tornei a perguntar.
— Não é muita coisa. Eu já fiz a conta para o senhor. Com 92.000
tudo fica resolvido.
— Não era tão barato quanto eu imaginava, mas o corretor me
levou até o imóvel e achei que ele não era caro. Não fechei o negócio
porque quero que, em primeiro lugar, vocês vejam a casa.
Meu pai calou-se como se desejasse avaliar o efeito de suas palavras
em cada um de nós. Muito alegre, Cristina indagou:

— Quando é que nós vamos ver a casa, pai?
— Amanhã bem cedo.
— Amanhã? Que legal! — exclamou minha irmã.
— Amanhã, às dez horas, o corretor vai estar lá para mostrá-la a
vocês. De certo modo, para mim também porque quando fui vê-la,
ele havia esquecido as chaves e eu só a vi por fora. O que vocês
acham? Vamos ver a casa amanhã?

— Você ainda pergunta, pai? Claro que nós vamos, não é mãe? —
perguntou Ana Júlia como se quisesse buscar o apoio de nossa mãe.

— Sim. Eu também estou louca para ver a casa — disse nossa mãe.
No dia seguinte, acordamos cedo, tomamos um café reforçado e
saímos de casa no Santana da família. Naquela época, nós
morávamos em Marechal Hermes, perto da Escola Evangelina onde
eu e minhas irmãs estudávamos. Tomamos a direção da esquerda
como quem vai para o antigo Campo dos Afonsos onde ficava a
Escola da Aeronáutica. Não demorou muito passamos por Vila
Valqueire e fomos desembocar na Praça Seca. Eu, que não estava
menos ansioso que meus irmãos, perguntei ao meu pai:

— Onde é mesmo, pai?
— Em um bairro chamado Freguesia.
— Ainda está longe?
— Um pouquinho.
Continuamos a nossa caminhada, passamos pelo Mato-Alto, um
pouco antes do Hospital-Colônia Curupaiti, exclusivo para
hansenianos e, cerca de uns vinte minutos depois, chegamos à
Freguesia. Seguimos por uma rua comprida até que o nosso carro
dobrou à direita e entramos em uma rua descalça com eucaliptos
plantados de um lado e outro. Uns cavalos magros pastavam em
um terreno vazio. O lugar era bonito, pelo menos para o meu gosto.

— Pessoal, a rua é esta. Disse meu pai diminuindo bastante a
velocidade do carro e olhando para um lado e para o outro como
quem procura localizar alguma coisa. Não demorou muito e
paramos em uma casa com um Gol branco na frente. Meu pai nos
disse:
— Esta é a casa e o Gol é do corretor.
Então, papai estacionou o carro e todos nós saímos. Vimos uma casa
com aspecto antigo, com uma aparência arquitetônica que lembrava


um pouco os chalés da época vitoriana. Era a única casa da rua que
possuía aquele aspecto. O corretor veio em nossa direção e
cumprimentou meu pai efusivamente.

— Essa deve ser a família. Estou certo? — perguntou o homem
afrouxando o laço da gravata.
— Sim. Este é o meu pessoal: minha esposa e filhos — disse meu
pai apertando a mão que o corretor lhe estendera.
O homem parecendo um tanto ansioso para vender o imóvel,
convidou-nos para entrar. Havia antes da varanda um jardim
inglês, mas não muito grande. Estava descuidado, pois o capim
havia crescido e disputava o espaço com algumas roseiras e um pé
de dália junto do muro. O corretor chegou próximo à porta da casa,
colocou a chave na fechadura e fez um movimento enérgico da
esquerda para a direita. A porta se abriu atirando em nosso rosto
uma lufada de ar quente e cheiro de coisas velhas.

— Parece que faz muito tempo que alguém não vem aqui —
observou minha mãe.

— É verdade, minha senhora. Este imóvel está vazio faz tempo.
Eu tive vontade de perguntar por que a casa não tinha sido alugada
e nem vendida há tanto tempo, mas silenciei com medo de causar
algum constrangimento ao homem ou perturbar a alegria dos meus
familiares. O corretor sempre muito falante nos levou a todos os
cômodos da casa. Enquanto examinávamos o imóvel, ele não
parava de falar:

— Esta casa possui cinco quartos, três no primeiro andar e dois no
segundo, duas salas de estar, duas de jantar e este jardim de
inverno. O senhor tem três filhos. Pode dar um quaro para cada um
e ainda sobra um para o senhor fazer um espaço para livros ou
mesmo um escritório.

— É verdade — falou meu pai, satisfeito com o que escutara.
Depois de o homem nos ter mostrado a casa toda, nosso pai nos
perguntou:

— O que acharam? Ficamos com a casa?
— Claro! — dissemos todos quase ao mesmo tempo.
— Como o senhor vê, a venda está fechada. Eu lhe disse que a
minha família daria a última palavra e deu — afirmou meu pai
convicto.
O corretor, parecendo querer valorizar mais ainda o imóvel para o
comprador, disse:

— Seu Augusto, o senhor está fazendo uma bela compra e por um
preço de ocasião. O senhor está vendo aquela casa logo ali em
frente?
— Aquela pintada de cinza, está para vender e o preço dela, em
relação a esta aqui, está muito salgado.
— Não será por que a nossa casa já está muito velha? — interrogou
Ana Júlia.
— Esta é uma boa observação, Senhorita, mas se considerarmos a
idade da casa de vocês, ela deveria ser muito mais cara — disse o
vendedor muito sério.
— Eu pensei que era o contrário — comentou minha irmã.
— Esta casa, senhorita, foi construída em 1928 por Sir Paul
Livingstone Leister que era adido cultural da Inglaterra no Rio de
Janeiro. Naquele tempo as construções eram muito mais sólidas e o
material usado de excelente qualidade. Por exemplo, todo mármore
usado nela veio da Itália, acho que de Carrara se não estou
enganado.

— Deixe para lá, Moreira, minha filha é assim mesmo. Puxou a avó
materna. Disse meu pai, sorrindo e olhando para a minha mãe como
se esperasse uma resposta que não veio.
— Acreditem — insistiu o corretor —, os senhores fizeram um
negócio da China.
— Acredito, Moreira — falou papai.
— Espero que sejam muito felizes aqui. Ah! Sem querer me
intrometer, mas já me intrometendo. Acho que já perceberam como
o jardim está descuidado e como o mato cresceu no fundo do
quintal. Se quiserem, posso lhes dar o endereço do seu Joaquim, ele
pode cuidar disto para vocês. Ele é bom nessas coisas e é uma
pessoa de inteira confiança. Se desejarem, eu mesmo posso falar
com ele para fazer uma boa limpeza por aqui.
— Sim, claro que queremos. Falou minha mãe. Só que não é preciso
o senhor se incomodar com isso. O Senhor nos passando uma forma
de contacto com ele, nós mesmos resolveremos o problema.
— Está bem. Aqui está o telefone dele.
— Muito grata seu Moreira. Nós vamos precisar muito de uma
pessoa assim.
CAPÍTULO II

D. Eulália
Nós não nos mudamos logo de nosso apartamento em Marechal
Hermes porque a casa foi comprada em setembro, faltando mais ou
menos três meses para o fim do ano letivo. Por isso, meus pais


decidiram que deixariam acabar o ano escolar para fazer a
mudança. À época, Ana Júlia e eu estávamos no segundo grau e
Cristina na metade do primeiro grau. Enquanto nós não nos
mudávamos, papai contratou o seu Joaquim para limpar o terreno e
dar uma nova forma ao jardim. Papai mandou também religar a luz
e água, pintar a casa e consertar o muro que estava com algumas
falhas. Finalmente, ficou resolvido que mudaríamos no mês de
janeiro.

De fato, foi assim. Esperamos o final do ano de 1999, e fizemos, em
nossa antiga residência, a ceia de Natal e de Ano novo. Desse modo,
no dia 5 de janeiro do ano 2000, estávamos deixando o nosso antigo
apartamento e seguindo na direção da casa nova. Quando
chegamos, eu quase não a reconheci. Estava pintada de marrom
claro. O jardim, bem limpo, tinha outro aspecto. Podíamos ver,
agora, algumas flores que foram libertas do mato pelo trabalho do
seu Joaquim. Mamãe foi quem mais vibrou com aquela mudança. O
sonho dela havia, por fim, se realizado.

O caminhão que trouxera a nossa mudança começou a ser
descarregado. Papai estreou logo a garagem. Eu fiquei parado no
portão olhando para a casa com a sensação estranha de quem
contempla uma novidade, mas que não se sente muito seguro em
relação a ela. Um pássaro preto, pousado em um pé de acácia do
terreno vizinho, piou como se fosse um lamento. Apenas eu notei
naquele pio que, para mim, soou tanto como uma saudação de
boas-vindas como uma advertência. Meu pai que havia acomodado

o carro e tirado a bagagem que viera no porta--malas, abraçou
minha mãe dizendo-lhe:
— Agora temos alguma coisa digna da família Fonseca Teles.
— Graças a Deus, Augusto, graças a Deus.
— Então, você está feliz? — perguntou meu pai, embora soubesse a
resposta.

— Que pergunta, Augusto! Melhor não poderia estar. Não é todo
dia que se realiza um sonho acalentado por tantos anos.
Assim que os carregadores colocaram todos os móveis da casa sob o
comando de minha mãe e minhas irmãs, teve início uma disputa
sobre quem ficaria com os quartos de cima. Decidimos que o mais
democrático seria tirar a sorte, assim fizemos, e Cristina e eu
ficamos com os quartos de cima. Ana Júlia não reclamou e nos disse
que preferia mesmo o quarto debaixo, porque era bem maior que os
de cima e ela precisava de espaço. Eu não sabia se ela estava sendo
sincera ao dizer isso ou se era apenas desculpa de perdedor. Fosse
porque fosse, o fato é que não houve mágoas por causa dos quartos.

Passou-se o mês de fevereiro e veio março. Nós conseguimos as
transferências para as escolas da proximidade sem maiores
dificuldades. A nossa vida passou a deslizar suave com as águas
tranquilas de um regato nas tardes de Primavera. Mamãe, com a
ajuda de seu Joaquim, havia reconstruído o jardim e começava a
pensar na horta que ficaria no quintal dos fundos. Meu pai, porém,
discordava da horta, pois achava que era muita coisa para minha
mãe cuidar. Na opinião dele, ela deveria escolher entre a horta e o
jardim. Minha mãe, como era de seu costume, silenciou. Esse
silêncio, entretanto, não significava que ela havia desistido da horta,
mas que esperaria outro momento para voltar ao assunto. Numa
sexta--feira, mamãe estava no jardim quando a vizinha do lado, que
voltava da feira arrastando um carrinho de compras, ao passar pelo
portão, vendo minha mãe, puxou assunto:

— Bom dia, vizinha! Está gostando da casa nova?
— Muito. O meu sonho era uma casa assim. A gente morava em
um apartamento de dois quartos em Marechal Hermes.
— Eu conheço Marechal Hermes. É perto de Bento Ribeiro não é?
— Sim. Fica entre Bento Ribeiro e Deodoro.

— Tenho uma irmã que ainda mora lá na Rua Jarina 263. Aqui é um
pouco mais sossegado, embora lugares realmente tranquilos estejam
se tornando uma raridade no Rio de Janeiro.
— No Brasil, eu diria — ponderou minha mãe.
— Isso mesmo. A Violência está tomando conta deste país. A
senhora me desculpe por não me apresentar. Meu nome é Eulália.
Sou professora primária aposentada. Foram 25 anos aturando um
bando de pestinhas que me deixaram de cabelos brancos. Já no
final, deixei a sala de aula e me tornei Diretora da Escola, mas as
coisas não melhoraram muito. Muita politicagem, sabe? Já vi os seus
meninos. São muito bonitos. Eu tenho dois filhos, mas estão casados
e já me deram netos. Não é para me gabar, mas são netos
maravilhosos: uma menina e um menino. A menina é uma coisa
rara. Inteligente que só vendo! O menino não fica pra trás, mas a
Taisinha é especial. A senhora ainda vai conhecê-la.
Ante aquela enxurrada de palavras e os sinais evidentes de que a
mulher não desejava encerrar a conversa logo, minha mãe resolveu
se apresentar:

— Meu nome é Maria Rosa. Sou doméstica. Ensinava para as
mocinhas de meu bairro noções de corte e costura, fazia isso para
ajudar meu marido nas despesas.
— Então, a senhora é costureira.
— Sim, e gosto bastante de costurar.
— Isso é muito bom. Aqui neste bairro não há costureiras. Hoje,
com os shoppings e as butiques as pessoas preferem roupas
prontas, mas, para mim, as costureiras e alfaiates ainda têm o seu
valor. De vez em quando, preciso fazer umas reformas nas minhas
roupas e não encontro onde. Posso contar com a senhora?
— Penso que sim. Isso se a senhora não for muito exigente.

— Não. Sou uma pessoa simples.
— Então, neste caso...
— Posso lhe perguntar uma coisa, Maria Rosa? Vou lhe chamar
assim e você pode me chamar de Eulália, certo?
— Certo. Mas a senhora me disse que gostaria de me fazer uma
pergunta... Pode perguntar.
— Rosa, você não me tome por uma pessoa "entrona" destas que
adoram se meter na vida alheia, porque se há uma coisa que
considero sagrada é a vida dos outros.
— Não tenho por hábito julgar as pessoas, Eulália. Já lhe disse.
Pode perguntar.
— Está bem, Rosa, vou perguntar: está tudo bem aí na sua casa?
— Está tudo bem, pelo menos até agora. Por que esta pergunta?
— Vou ser muito franca. Posso?
— Claro que pode.
— O seu marido não fez um bom negócio comprando esta casa.
— Não fez?
— Não. Não fez.
— Por que você está dizendo isso, Eulália?
— Ué! Vocês não sabem?
— Não sabemos de quê?
— Rosa, esta casa onde vocês moram é mal-assombrada.
— Mal-assombrada! Que história é essa, Eulália?
— Isso mesmo. O último morador, um pastor evangélico, saiu daí
correndo com a família e nunca mais voltou. E olha que era um
homem bom e temente a Deus. Não largava a Bíblia; porém, não
pôde com as coisas que aconteciam aí. Vai para uns cinco anos que
ninguém mora mais nesta casa.

— Você está falando sério, Eulália?
— Você acha que iria brincar com uma coisa desta? Eu respeito
muito as coisas que estão além de minha compreensão.
— Que tipo de assombração esta casa tem? — quis saber minha
mãe muito interessada.
— O que sei me foi contado por dona Débora, a mulher do pastor.
Logo nas primeiras semanas que eles estavam aí, começaram a
escutar barulhos de passos no andar de cima. De noite se ouviam
pessoas conversando alto nos quartos a ponto da família não poder
dormir. A filha mais nova deles viu um velhinho corcunda no
jardim. Ela, pensando que fosse uma pessoa viva, foi falar com ele,
mas o velho desapareceu bem na frente dela e a menina desmaiou
de medo. O Pastor convocou, então, uns amigos dele lá da igreja e
fizeram uma reunião na casa e logo no primeiro dia, todas as
lâmpadas se quebraram deixando todos na escuridão. Aí começou a
aparecer flutuando cabeças humanas e mãos luminosas que
passavam de um lado para outro. Foi demais para o homem e, dois
dias depois, ele arrumou as malas e foi embora.
— E você, Eulália, já viu alguma coisa aqui em casa?
— Não vi e nem quero ver. Tenho medo de alma do outro mundo,
mas uma amiga minha, por nome Dalva, viu.
— O que foi que ela viu?
— Esta minha amiga é médium. A propósito, você sabe o que é
médium?
— Sim. É uma pessoa que recebe espíritos. Não é?
— É isso mesmo, mas me deixe contar o que aconteceu com ela. No
dia em que a Dalva esteve aqui em casa, ficou muito tarde para ela
voltar para Irajá, onde ela mora. Então, ofereci a ela dormir aqui e
ela aceitou. De noite, depois da novela das oito, estando muito
calor, ficamos sentadas na varanda conversando. Tudo estava muito

bem até que ela me perguntou quem eram os nossos vizinhos da
direita. Fiquei sem entender coisa alguma, porque a casa da direita,
era esta onde você está morando, e ela não tinha moradores fazia
muito tempo. Então, disse a ela que deveria haver engano porque
na casa da direita ninguém morava. Ela apontou para a sua casa e
disse que ali havia uma festa com pessoas vestidas com roupas
antigas, bem antigas. Expliquei que ela não poderia estar vendo tais
coisas, uma vez que a casa da direita estava vazia. Ela virou-se para
mim e, com a cara mais calma deste mundo, disse:

— Então são espíritos. Não sei como não percebi antes.
— Rosa, fiquei arrepiada do dedão do pé aos cabelos da cabeça e
pedi a ela para entrarmos.
— Foi por isso, Rosa, que perguntei a você se estava havendo
alguma coisa na sua casa.
— Afirmo a você que nada está acontecendo conosco.
— Fico feliz. Olha, Rosa, desculpe-me. Eu não quis assustá-la, até
pensei que você já soubesse de algo sobre a casa.
— Tudo bem, Eulália, mas agora você me desculpe que preciso
entrar. Está quase na hora de meus filhos voltarem da escola.
— Tudo bem. Eu também tenho de guardar estas frutas e legumes.
Olha a feira daqui fica bem Perto e é muito boa. Quando você quiser
ir lá...
— Muito obrigada, Eulália. Até mais ver.
— Até mais ver.
Naquela mesma noite, minha mãe comentou com meu pai a
conversa que havia tido com a nossa vizinha. Meu pai ficou cético e
preferiu acreditar que tudo aquilo fosse conversa fiada da D.
Eulália. Fantasmas não existem, dizia ele, a não ser para as almas
medíocres, para as pessoas supersticiosas e ignorantes. Conforme
meu pai falava. Pessoas racionais e inteligentes buscam sempre para


os fenômenos tido como estranhos uma explicação natural. Dava
com reforço de seu ponto de vista um livro de um padre chamado
Oscar Quevedo, A face oculta da mente que botava fim em todas
essas coisas supersticiosas.

Penso que devo explicar aqui esse comportamento de meu pai. Ele,
na mocidade, havia se filiado a um sindicato e lá teria feito cursos
de política. Leu alguns textos de Marx e Engels, um pouco de Lênin
e muitos romances de J. P. Sartre. Essa leitura o fez ficar certo de que
era ateu e materialista dialético. No tempo da ditadura no Brasil
esteve preso, mas foi logo solto. Estou contando esta brevíssima
história sobre meu pai para que fique justificado o motivo de seu
ceticismo quanto às convicções de D. Eulália.

CAPÍTULO III

D. Eulália tinha razão
Passaram-se alguns dias sem que nos acontecesse coisa alguma
digna de nota. Uma noite, porém, em que estávamos vendo
televisão na sala, Cristina apareceu muito assustada.

— Cristina, o que aconteceu? — perguntou minha mãe.
— Não consigo dormir.
— Por que não consegue dormir, minha filha?
— Por causa do barulho.
— De que barulho você está falando?
— Um barulho no telhado. Parece que tem gente andando no sótão
e fazendo toe... toe. toe.

— Está bem, vamos ver o que é — falou meu Pai para tranquilizar
minha irmã.
Subimos todos e fomos diretos ao quarto dela, a luz estava acesa,
conforme ela havia deixado e o quarto vazio e silencioso. Meu pai
disse à Cristina:


— Veja, minha filha, nada há aqui e nenhum barulho se ouve.
— Mas eu escutei um barulho muitas vezes e é no sótão e não
dentro do quarto. A impressão que eu tive era de que alguém estava
andando lá em cima.
— Devem ser ratos ou mesmo uma família de gambás por aqui tem
uma fartura desses bichos. Vamos fazer o seguinte: amanhã bem
cedo, antes de ir para o trabalho, eu ligo para o seu Joaquim, peço a
ele para vir aqui e dar uma boa olhada lá encima. Vamos, deite-se,
fique quietinha que você logo pega no sono.
— Está bem pai. Eu vou tentar dormir.
— Vai sim, vou pedir a sua mãe que fique aqui com você até que
durma. Certo?
— Certo, pai.
Assim foi feito, mamãe ficou no quarto de minha irmã até que ela
dormisse. Aquela noite transcorreu calma sem que nada de
sobrenatural acontecesse. Ao sair para o trabalho, papai ligou para o
seu Joaquim e pediu que ele fosse lá em casa dar uma boa olhada no
sótão para ver se havia algum ninho de ratos ou de qualquer outro
bicho. O homem veio, vasculhou tudo e nada encontrou que
justificasse o barulho que minha irmã ouvira. Na ocasião, eu
também subi ao sótão e, de fato, nada havia lá exceto algumas ferramentas
velhas e uma Enciclopédia Britânica em inglês, mas
incompleta. Quando meu pai soube que nada havia no sótão,
limitou-se a dizer que a Cristina tinha sonhado com o barulho e
confundido o sonho com a realidade. As crianças assim como os


povos primitivos costumam confundir seus sonhos com a realidade.

Falou meu pai do alto de sua sabedoria.
O segundo fato preocupante se deu com a minha irmã mais velha.
Aconteceu em uma quinta--feira à noite, mais ou menos às 22 horas.
Ana Júlia estava estudando em seu quarto, pois no dia seguinte
seria prova mensal em sua escola. A casa estava em silêncio. Papai
já havia chegado e estava tomando banho para jantar. Cristina
adormecera no quarto de cima e eu estava vendo televisão na sala.
Ouvi, então, um grito apavorado que vinha do quarto de Ana Júlia.
Corri para lá, abri a porta e vi minha irmã sentada sobre a cama com
os olhos esbugalhados. Os livros e cadernos estavam caídos no
chão. Logo depois, chegou mamãe. Minha irmã parecia estar em
estado de choque. Chamei-a pelo nome, sacudia--a pelos ombros.
Então, ela me abraçou, chorando muito e exclamando:

— Foi horrível! Foi horrível!
— O que foi horrível, Aninha? — perguntei a ela.
— A mulher! A mulher!
— Que mulher? — perguntei.
— A que esteve aqui.
— Aqui não entrou pessoa alguma, Ana. Se houvesse entrado
alguém, teria passado pela porta e eu teria visto — tentei explicar.
— Mas eu vi. Era uma mulher alta com um vestido comprido. Ela
chegou bem perto de mim, mas quando gritei ela sumiu.
— Ana, minha filha, acalme-se — disse mamãe, procurando
tranquilizar Ana Júlia.
Nesse momento, meu pai entrou no quarto, perguntando,
preocupado:

— O que está acontecendo, Rosa?
— Eu não sei. Nossa filha deu um grito e viemos aqui para ver o
que havia acontecido, encontrei-a assim, nesse estado de nervos.

— E ela disse o que aconteceu? — interrogou meu pai.
— Disse que viu uma mulher dentro do quarto dela.
Que coisa esquisita! Como uma mulher entrou em nossa casa e
vocês não viram?

— Este é o problema, Augusto porque aqui não entrou pessoa
alguma — respondeu minha mãe.
Enquanto meu pai falava com minha mãe, Ana Júlia foi se
recompondo. Mamãe foi até a cozinha e buscou para ela um chá de
erva-cidreira. Ela bebeu aos goles compassados. Quando ela
conseguiu falar, nos contou com detalhes o que havia acontecido.
Disse que estava estudando, ficou cansada e se recostou um pouco.
Estava de olhos fechados, mas inteiramente consciente quando
ouviu um respirar de leve. Teve a certeza íntima de que não estava
sozinha. Abriu os olhos e viu, de pé, olhando, para ela, uma mulher
ainda jovem, alta, de cabelos compridos, porém com o rosto muito
pálido como se não tivesse no corpo uma gota de sangue. No
momento em que ala gritou, a senhora misteriosamente
desapareceu. Meu pai buscou racionalizar a visão de minha irmã:

— Minha filha, você estava acordada mesmo?
— Estava. Tenho certeza — respondeu minha irmã enfaticamente.
— Você pode estar enganada, filha. Pode ter sido um pesadelo —
argumentou meu pai.
— Até pode ser, mas estou certa de que não foi.
Depois que Ana Júlia falou de sua experiência, acalmou-se, mas não
quis dormir no quarto dela de forma alguma. Naquela noite ela
dormiu no sofá da sala. No dia seguinte, na hora do café, mamãe
puxou o assunto da noite anterior e nos contou a conversa que
tivera com D. Eulália. Quando ela acabou de falar, Ana Júlia tomou
a palavra:

— Pai, não quero mais ficar nesta casa. Estou com medo.

— Calma, Aninha, não há motivo para tomarmos atitudes
apressadas e radicais. Custamos muito a conseguir esta casa,
curtimos tanto o nosso novo lar. Não tem sentido sairmos daqui
correndo ante a primeira dificuldade. Filha, obstáculos acontecem
para serem superados.
— Eu sei, pai, mas esta casa é assombrada. O senhor sabe muito
bem o que D. Eulália contou para a mamãe.
— Filha, isso são estórias. Contos fantásticos iguais a esses filmes
que a televisão passa para conquistar a audiência de gente que
adora narrativas de terror.
— E a mulher que eu vi?
— A mulher que você imagina que viu. Dá um tempo, filha, não
vamos nos deixar influenciar por estas coisas.
Pai, não quero ver aquela mulher horrível
novamente.

Meu pai levantou-se da mesa, beijou a cabeça de minha irmã e falou
carinhosamente:

— Filhinha, se você não quiser vê-la mais, não verá. Você não sabe
o poder da nossa imaginação. O medo produz fantasmas onde eles
não existem. Seja corajosa, esqueça isso e você verá que essas coisas
passam. Vou-lhe contar um caso que exemplificará o que estou
dizendo.
— Lá em Marechal Hermes, perto da rua Sirici, existe um prédio
antigo que por sua forma se chama palacete. Dizem que foi o
Marechal Hermes quem o mandou construir. Você já ouviu falar
nele?
— Não só ouvi falar como já o vi. Fica num altinho não é?
— Isso mesmo. O pessoal de lá dizia que o palacete era
assombrado, por isso, à noite, embora se pudesse cortar caminho

por lá para a estação de trem, as pessoas evitavam e faziam um
trajeto maior, porém, menos assustador.

— Naquele tempo, eu morava na rua Igaratá e costumava cortar
caminho pelo palacete para pegar o trem. Um dia, um amigo meu e
meu vizinho, por nome Almir, veio da estação à noite e tomou o
atalho do palacete. Era uma noite de lua cheia e ele não era dos mais
corajosos. Quando ele chegou bem em frente ao Palacete, viu um
vulto branco e enorme avançando contra ele, o pobre saiu em
desabalada carreira só parando no portão de sua casa onde estava o
Aderaldo, seu tio, um sujeito que não tinha medo de nada. O Almir
contou para ele o que havia acontecido e o homem foi lá ver o tal
fantasma. Chamou o sobrinho, mas não houve força neste mundo
que o convencesse a voltar ao palacete.
O Aderaldo decidiu ir sozinho e quando chegou ao lugar, onde o
fantasma foi visto, viu pelo chão alguns panos brancos. Examinou-
os e percebeu que eram lençóis. Um pouco mais à frente, estava um
cavalo. Juntando coisa com coisa, ele descobriu que o cavalo, solto à
noite, passou por um varal da casa ao lado onde alguém havia
esquecido uns lençóis de um dia para o outro. Quando o animal
passou por baixo do varal se enrolou neles e assustado saiu
correndo, exatamente na hora em que o Almir passava. Esse era o
fantasma que o meu amigo havia visto. É claro que ele não
acreditou na explicação do Aderaldo, preferiu manter o fantástico
que era algo muito mais interessante para ser contado do que falar
sobre o medo sentido por causa de um cavalo coberto por lençóis.
Entendeu, minha filha? O medo faz das suas. Você irá me prometer
que não vai pensar mais nisso, ou que pelo menos, se esforçará.

— Está bem, pai, eu prometo.
Aquele dia se passou normalmente. Minha mãe teve vontade de
contar para D. Eulália o que nos havia acontecido; porém, desistiu
porque não havia gostado muito da loquacidade da vizinha. Minha


mãe era uma pessoa muito discreta, falava pouco e não gostava de
expor nossa vida para os outros. Talvez, por isso, tivesse muito
poucas amigas. Na tarde daquele dia, quando voltamos do colégio,
Cristina perguntou a mamãe:

— Mãe, sabe o que aconteceu?
— Como eu vou saber se você não me disse? — falou minha mãe
sorrindo.
— A minha boneca — disse Cristina.
— O que houve com a sua boneca? — quis saber minha mãe.
— Ela sumiu. Eu sempre colocava ela junto do meu ursinho, no
chão, do lado da cama, mas esta manhã procurei e ela não estava no
lugar de sempre.
— Você procurou bem.
— Não muito bem porque estava na hora de ir Para a escola.
— Então, vá para o seu quarto e procure com mais atenção.
Cristina seguiu a sugestão de nossa mãe e me pediu para ajudá-la a
procurar a boneca perdida. Subimos, fomos até o quarto dela e
começamos a pesquisar.

— Cristina, onde você disse que colocou a boneca? — perguntei.
— Aqui perto da cama, nessa caixa de papelão onde guardo o meu
ursinho.
— Estou vendo a caixa, mas nela só está o ursinho.
— Claro que a boneca não está na caixa. Já não disse que ela sumiu.
— Você não olhou embaixo da cama, olhou?
— Claro que não. Eu vou procurar a minha boneca em um lugar
onde eu não coloquei.
— Então eu vou olhar.
— Problema seu.

— Não fique irritada senão eu não ajudo mais.
— Desculpe.
— Tudo bem. Eu vou dar uma olhadinha também no armário.
Procurei sob a cama, olhei no armário gaveta por gaveta e nada da
boneca. Ela havia desaparecido mesmo. Quando minha irmã se deu
por vencida, fez um muxoxo e pareceu se conformar. Esse fato
ocorreu em uma terça-feira. Na quinta-feira, Cristina entrou
correndo na cozinha e falou para minha mãe:

— Mãe, achei a minha boneca.
— Achou? Onde é que ela estava?
— A senhora nem imagina.
— Não imagino mesmo. Onde estava?
— No jardim. Por trás do registro de água. Está toda molhada e
suja.
— Mas como esta boneca foi parar lá?
— Não sei.
— Filha, você não foi brincar com ela no jardim e a esqueceu lá?.
— Não, mãe, tenho certeza de que não fiz isso.
Dois dias depois do caso da boneca, nós estávamos dormindo
quando ouvimos um gato miando alto. Ficamos preocupados
porque não tínhamos gato nem cachorro. O miado era tão alto que
meu pai se levantou para ver de onde vinha, e foi seguindo o miado
até chegar ao banheiro. Papai abriu a porta e lá dentro da banheira,
todo molhado, estava um gato preto.

Papai nos chamou e perguntou quem havia apanhado aquele gato e
escondido no banheiro. Todos nos respondemos que jamais
havíamos visto aquele animal. Meu pai disse que desejava saber
como o bicho havia entrado no banheiro, pois a única janela
existente estava bem fechada. O gato foi posto para fora, e aquele


mistério ficou tão sem resposta como caso da boneca de minha

irmã.
Na noite seguinte, depois do jantar, papai no reuniu à mesa e,
assumindo um tom didático, nos falou:


Estão acontecendo, nesta casa, fatos estranhos, mas dizer que um
fato é estranho, não é dizer que ele seja sobrenatural. A gente
costuma chamar de estranho as coisas para as quais não temos
explicação natural. Isso significa que a causa do fenômeno '
desconhecida, mas tem de ser material.

— Sempre será material esta causa, pai7 — interroguei com
interesse.
— Sim. Isso, para mim, é pacífico.
— E por quê? — insisti com ele.
— Simples, meu filho: o sobrenatural não existe. Tudo o que existe
é necessariamente natural.
— Você não está sendo muito radical, pai? Há muitas coisas para as
quais ainda não existem explicação natural — argumentou Ana
Júlia.
— Disse-o bem, filha, ainda não existe explicação, entretanto, ela
virá com o tempo. Muitas coisas que no passado foram vistas como
milagres, hoje são naturais. Pessoal, quero dizer uma coisa a vocês.
Todos nós, durante muitos anos, sonhamos com uma casa igual a
esta e agora que conseguimos não podemos abrir mão dela
facilmente.
— Sim, Augusto, você tem razão — disse nossa mãe, falando por
todos nós.
— Então, vamos ficar firmes aqui. Não podemos ser expulsos desta
casa seja por que motivo for.

Mamãe segurou a mão de nosso pai e deu três tapinhas sobre ela
como se quisesse dizer: "conte comigo, estou com você." Depois,
falou-nos em apoio a nosso pai:

— Acho que seu pai está certo. Vamos dominar os nossos temores,
pôr um freio em nossa imaginação, e isso por um motivo muito
simples: não vamos encontrar, em lugar algum, uma casa como esta.
Seu pai colocou nela todas as suas economias, assim, não temos, em
pouco tempo, condições para comprar outra. Vamos nos encher de
força e de fé em Deus, pedindo a ele proteção para a nossa família.
Certa vez ouvi alguém dizer: "Eu sozinho sou nada, mas com Deus
sou maioria." Nós estamos com Deus e isso tudo vai passar, meus
filhos.
Nós ficamos emocionados e prometemos a nossos pais que faríamos

o melhor de nós mesmos para evitar que o nosso medo virasse
pânico e a vida naquela casa se tornasse insuportável.
Confesso que a conversa que tivemos com nossos pais nos tocou. De
certo modo, parece que a nossa mudança de atitude funcionou,
porque durante alguns dias não tivemos problema, até que em uma
conversa entre meu pai e minha mãe, que ficamos sabendo mais
tarde, trouxe um novo dado ao nosso problema. A conversa a que
me refiro foi a seguinte: em uma tarde de domingo, meu pai
chamou minha mãe para uma conversa particular e lhe disse:

— Rosa, preciso pedir desculpas a você.
— Desculpas! Por que Augusto?
— Deixe-me explicar. Na semana passada, quando cheguei aqui, vi
um homem, de terno branco e chapéu na cabeça, em pé no portão
de nossa casa, olhando para dentro.
— E quem era ele?

— Não sei por que assim que ele me viu, escafedeu-se. Lembra
aquele dia em que lhe perguntei se havíamos recebido visita e você
disse que não.
— Sim, eu me lembro.
— Isso aconteceu mais de uma vez. Aí eu me perguntei: quem era
aquele homem? O que ele fazia na porta de minha casa? Foi aí que
me bateu a suspeita de que ele estivesse no portão de nossa casa
interessado em alguém que mora aqui.
— Espera aí, Augusto, será que você está pensando?...
— O que você queria que eu pensasse, vendo, por três vezes, um
homem estranho observando a nossa casa.
— Augusto, não estou reconhecendo você.
— Mas é exatamente por isso que comecei esta conversa lhe
pedindo desculpas.
— Chega, Augusto, seja claro. Não vou aceitar a sua suspeita.
— Calma, Rosa, deixe-me explicar. Na terceira noite, resolvi que iria
desvendar o mistério custe o que custasse. Um dia desses, vim pela
rua ao lado para pegar o sujeito por trás. Cauteloso, estacionei o
carro, saí devagar fui caminhando pé ante pé, evitando fazer
barulho. Para minha surpresa, nesse dia, ele estava do lado de
dentro, quase embaixo de nossa janela. Fiquei furioso, contudo,
tentei manter a calma. Aproximei-me dele quase a ponto de tocá-lo.
Saltei então sobre ele, mas ele fugiu.
— Fugiu? Como?
— Entrou em nossa casa, porém, sem passar Pela porta.
— Passou por onde?
— Pela parede, por dentro da parede.
— Não pode ser, Augusto!

— Isso não posso negar. Você sabe que não acredito nessas coisas,
mas desta vez, não posso ir contra o testemunho dos meus sentidos.
Rosa, aquilo que vi não pode ser deste mundo.
— Meu Deus! Mas você mesmo diz que não existem fantasmas que
tudo é produto de nossa imaginação.
— Já não estou tão certo. Desta vez, aconteceu comigo. Ainda estou
muito assustado e não sei o que fazer.
— Augusto, tenho refletido muito sobre essas coisas todas que nos
tem acontecido. Acho que precisamos de ajuda.
— Ajuda de quem?
— Pensei em meu irmão, Abílio. Como você sabe, ele é espírita.
— Rosa, não gostaria de que a gente se envolvesse nessa história de
Espiritismo. Isso é pura superstição. Superstição por superstição,
prefiro chamar um padre para benzer a casa.
— Não vejo o Espiritismo do mesmo modo que você, entretanto,
respeito a sua opinião. Se você prefere buscar ajuda de um padre,
tudo bem. Nesse momento toda ajuda é bem vinda.
— Não leve a mal o que disse. Nada tenho contra o seu irmão. A
minha restrição é com respeito à religião dele. Outra coisa. Por
enquanto não vamos falar sobre esta conversa com nossos filhos.
— Está certo.
O fato de estarmos há muito pouco tempo no bairro, dificulta a
nossa aproximação com o padre da igreja local. O problema foi
resolvido com a ajuda de D. Eulália que nos levou à igreja na missa
do domingo próximo e nos apresentou ao padre Eusébio que,
depois do ofício religioso, nos recebeu na casa paroquial. Foi meu
pai quem expôs os fatos acontecidos em nossa casa. Quando ele
acabou, o padre falou:


— Meus amigos, os casos que acabaram de narrar não são
incomuns nesta paróquia e em outras onde já trabalhei. A maioria
deles, porém, são produtos de alucinações, imaginação exaltada,
fantasias do inconsciente e coisas assim.
— Eu sei, padre Euzébio, mas se houver mesmo algo de
sobrenatural em nossa casa? — quis saber minha mãe.
— Minha senhora, existem espíritos que se manifestam em diversos
lugares, mas eles são demônios.
— E o que se pode fazer, padre, se em nossa casa houver demônios?
Não é possível exorcizá-los? — voltou a perguntar minha mãe.
— Sim. O exorcismo muitas vezes é uma tentativa de solucionar
estes casos.
— Então seria possível fazer um exorcismo em nossa casa? —
questionou meu pai.


O padre ajeitou-se melhor na cadeira, tirou os óculos e com a ponta
do lenço limpou as lentes vagarosamente. Com aquela atitude me
pareceu que ele estava precisando ganhar tempo. Por fim,
respondeu:

— Senhor Augusto, a Igreja é muito cautelosa nesses casos. Não
basta que uma pessoa procure um padre e lhe conte histórias
sobrenaturais para que a Igreja determine um exorcismo. A Igreja só
permite o ritual depois de exaustiva e escrupulosa investigação dos
fatos.
— Devo entender que não podemos contar com a sua ajuda? —
interrogou meu pai.

— Não é bem isso, porque existe algo que eu possa fazer, embora
não seja um exorcismo.
— E o que é? — perguntou minha mãe.

— Se vocês concordarem, posso ir à casa de vocês, fazer umas
preces e benzer o lugar. Em muitos casos, o resultado tem sido bom.
O senhor faria isso? — indagou meu pai.

— Sim, desde que concordem.
— Claro que concordamos — afirmou minha mãe.
Naquela semana mesmo, o padre Eusébio, à tardinha, foi lá em casa,
levando uma Bíblia e um pouco de água-benta -em uma garrafinha.
Ele disse que iria fazer um ritual e pediu que o ajudássemos
concentrando o nosso pensamento em Deus e nos santos benditos.
Quem soubesse rezar, que o fizesse porque isso ajudaria muito.

— Por onde devemos começar a benzer? — interrogou o padre.
— Não sei — disse meu pai —, talvez devêssemos começar pelo
quarto de nossa filha Cristina onde se deu o primeiro fenômeno.
— Muito bem. Comecemos por lá.
Subimos todos e entramos no quarto de Cristina. O padre fez uma
prece em voz alta e começou a jogar água-benta nos cantos do
cômodo. Feita esta parte, Pegou a Bíblia e começou a ler uma
passagem do Evangelho segundo São Mateus:

Quando o espírito impuro sai do homem, perambula por lugares
áridos, procurando repouso, mas não o encontra. Então diz, voltarei
para a minha casa de onde saí. Chegando lá a encontra desocupada,
varrida e arrumada. Diante disto, vai e toma consigo outros sete
espíritos piores do que ele e aí vêm habitar. E com isso, a condição
final daquele homem torna-se pior que antes. Eis o que vai
acontecer a esta geração má.1

1 Marcos, 12:43 a 45.


Mal o padre havia terminado a leitura, um vento frio invadiu o
quarto, acompanhado de um cheiro nauseante. O padre pediu que
continuássemos a rezar sem perder a fé. Então, como se uma força
invisível ali estivesse, arremessou o padre Euzébio contra a parede,
a bíblia caiu no chão e fora deslocada para debaixo da cama, como
se houvesse levado um chute. Ana Júlia e Cristina apavoradas
deixaram o quarto correndo. No chão, em voz alta, o padre Euzébio
exclamou: Meus Deus! O que é isso? No mesmo momento, uma voz
masculina e grave soou no quarto: "Saiam daqui! Esta casa é
minha." Depois da voz misteriosa ter dito essas palavras, tudo
voltou ao normal. O padre Euzébio estava nervoso. As mãos
tremiam ao tirar a Bíblia de onde ela foi parar.

— Vamos descer — disse ele, e nós descemos.
Lá embaixo, o padre ainda bastante nervoso e abatido nos falou:

— Vocês ouviram?
— Ouviram o quê, padre?
— Aquela voz.
— Sim. Ouvimos. O que era aquilo, padre? — interrogou meu pai.
— Eu não sei.
— E o que vamos fazer agora? — disse minha mãe com voz
trêmula.
— Minha senhora, confesso que não sou especialista em matéria de
exorcismos. O que fiz em sua casa foi um ritual simples. O que
aconteceu não sei explicar.
— Diga-me, padre, aquela voz poderia ser do demônio? — indagou
minha mãe.
— Não tenho certeza, mas tudo é possível.
— Padre, é preciso fazer algo — insistiu mamãe.

— Bem. Acho que o melhor a fazer seria eu me aconselhar com o
Senhor Bispo. Ele pode avaliar essas coisas com muito mais
competência que eu e se ele achar que é caso de exorcismo, ele
mesmo indicará um especialista.
— Isso vai demorar, padre? — pergunto minha mãe.
— Pode demorar um pouco.
— Quanto tempo? — questionou meu pai.
— Não sei. Talvez alguns meses.
— Meses! Não podemos esperar tanto tempo assim — objetou
nossa mãe.
— Essas coisas demoram, minha Senhora.
O padre, que parecia estar incomodado em nossa casa, pediu
licença, despediu-se de nós e prometeu que voltaria para nos contar

o resultado de sua conversa com o bispo. Depois que ele saiu,
ficamos na sala, tensos e sem saber o que fazer. Minha mãe, que
parecia a pessoa mais interessada em resolver o problema, virou-se
para meu pai e falou:
— Augusto, hoje as coisas foram longe demais. O padre saiu daqui
apavorado.
— Mãe, não quero mais morar aqui — falou minha irmã mais nova
com voz chorosa.
— Eu também não quero mais ficar aqui —Ana Júlia fez coro com a
irmã.
— Meninas, nós vamos conseguir outra casa no menor tempo
possível — disse meu pai, consolando as filhas.
Papai parecia desanimado. Tinha a cabeça baixa, os ombros caídos.
Durante muitos anos ele havia se esforçado para conseguir uma
casa para nós. De repente, aquilo que era um sonho, convertera-se
em pesadelo. Minha mãe, percebendo o estado de meu pai disse a
ele:



— Augusto, tenha calma. Deve haver uma saída. Olhe, antes de
tomar qualquer medida apressada, vamos pedir ajuda ao meu
irmão Abílio. O que você acha?
— Eu não acho mais nada. O que você fizer estará bem feito.
— Tudo bem. Vou ligar para ele e pedir que venha a nossa casa
sábado agora. De acordo com o que ele disser, nós tomaremos uma
decisão. Confio no Abílio. Ele é professor universitário, tem
doutorado em Literatura, já escreveu alguns livros, faz conferências
espíritas e não-espíritas, portanto não é uma pessoa qualquer. Só de
Espiritismo ele tem mais de vinte anos.
Concordamos com a mamãe, e ficou acertado também que
dormiríamos em um quarto único, o maior da casa, pois nenhum de
nós, depois do caso do padre, estava com coragem de dormir
sozinho.

CAPÍTULO IV

A visita do tio Abílio

Meu tio tinha um compromisso no sábado, creio que era uma
palestra em um Centro Espírita de Nova Iguaçu, mas prometeu a
mamãe que viria no domingo pela manhã. Assim, no dia marcado
às dez horas, ele e tia Hortência chegaram lá em casa. Meus tios não
correspondiam a ideia que eu fazia deles, e essa forma de vê-los se
devia ao fato de minha avó materna, depois de se tornar evangélica,
considerar os espíritas, como servidores de Satanás na Terra,
inclusive o próprio filho.


Além disso, os filmes americanos colocavam estereotipadamente os
médiuns como vigaristas e embusteiros, que usam turbantes e se
ocupam em olhar bolas de cristal a fim de invocar o espírito dos
mortos em troca de muito dinheiro. Minha imaginação trabalhou
ainda mais negativamente quando soube que a tia Hortência era
médium, palavra que vovó até mesmo evitava pronunciar. As raras
vezes que tio Abílio foi lá em casa eu dava uma desculpa e saía.

Naquele domingo, entretanto, eu estava realmente interessado no
que iria acontecer e pude examinar com mais cuidado os meus tios e
nada notei neles de anormal. Ele era um homem simpático, afável e
bem educado. Usava uma calça jeans de marca, um tênis moderno,
camisa azul de seda com mangas compridas. Ela vestia-se com
elegância e bom gosto. Era discreta ao falar e econômica nos gestos.

Depois do tradicional cafezinho com bolo d aipim com coco, que era

o preferido do meu tio, mostramos às nossas visitas a casa nova.
Meu tio fe alguns comentários despretensiosos sobre a arqui tetura
de nossa casa e o fato de o arquiteto ter s inspirado na época
vitoriana. Por fim, nos reunimo na sala e mamãe entrou direto no
assunto:
— Abílio, vou direto ao assunto. Nós estamos com um problema
que eu acho ser você a melhor pessoa para nos ajudar, ou pelo
menos aconselh sobre o que está acontecendo aqui.
— Qual é o problema, Rosa?
— Esta casa parece estar infestada de espírit
— Espíritos? Rosa, por favor, descreva detalh damente o que está
acontecendo.
Minha mãe fez um relato minucioso dos últim acontecimentos,

inclusive o testemunho de D. Eulál
Meu tio pontilhou a narrativa de minha mãe com perguntas
diversas. Quando ela terminou, houve um silêncio que foi quebrado
por ele:


— Para que vocês entendam com clareza o que está acontecendo
nesta casa, preciso fazer algumas considerações sobre a morte e a
vida pós-morte. Em primeiro lugar, segundo a doutrina que
professo, não existe céu, inferno, purgatório e limbo conforme prega
o Catolicismo e outras religiões.
— E para onde vão as pessoas depois da morte? — perguntei a ele.
— Alvinho, algumas almas desencarnadas continuam presas à
Terra conforme os seus interesses quando encarnadas. O jogador vai
para os cassinos; o alcoólatra volta a frequentar os bares; os espíritos
sexólatras vão para os "inferninhos", lugares de prostituição e
similares. Nesses ambientes esses espíritos desencarnados, mas
ainda submetidos às paixões materiais, buscam satisfazer suas
emoções e desejos primários. Muitos ficam presos a certos lugares
como velhos castelos, cemitérios e casas chamadas assombradas,
pode ser que seja isso que esteja acontecendo aqui.
— Esta situação espiritual dura para sempre? _ interroguei.
— Não. Os Espíritos superiores, quando o espírito sofredor solicita
ajuda, vêm em auxílio desses irmãos para levá-los a lugares de
ajuda como é o caso de Nosso Lar.
— Nosso Lar? Que lugar é esse? — perguntou meu pai.
— É uma colônia espiritual de transição que cuida de espíritos
retirados do Umbral.
— Umbral é outra palavra cujo sentido desconheço — comentou
meu pai.
— Umbral, como o nome indica, é uma regia sombria e triste onde
os espíritos desencarnados pouco esclarecidos passam uma
temporada. Olhe Augusto, há um livro do espírito André Luiz,
psicografado por Francisco Cândido Xavier, com este título que
aclara todas essas coisas. Qualquer dia desses vou trazê-lo para
você. Você quer?

— Sim. Gostaria de lê-lo.
— Por quanto tempo um espírito fica em um colônia dessas, Abílio?
— perguntou minha mãe.
— Depende do progresso que ele fizer e da necessidade mais ou
menos urgente de reencarnar.
— Tio, todos nós passamos obrigatoriamente pelo Umbral? —
perguntou Ana Júlia.


— Não minha filha. Isso depende do grau evolutivo de cada
espírito. Há aqueles de certa evolução que, depois de
desencarnados, se liberam da Terra e ascendem a planos mais altos.
Há também os que continuam na Terra, andando pelas ruas,
visitando suas casas, frequentando os lugares de que gostavam
quando encarnados; são os que se encontram fortemente ligados a
valores materiais. Muitos desses nem mesmo sabem da própria
morte.
— Pessoas que morrem e não sabem da própria morte? Como isso é
possível? — questionou meu pai que parecia muito interessado na
explicação do tio Abílio.
— Isso se dá porque cada um de nós possui mais um corpo, o de
natureza fluídica e que foi denominado, por Allan Kardec, de
perispírito. O corpo de carne é uma cópia fiel dele e tudo que há no
segundo, existe também no primeiro. Desencarnado, o espírito
perde o corpo material, mas não o perispírito e, assim, embora
morto, sente-se como se vivo estivesse, respirando, emocionando-se,
vendo e ouvindo, por isso, confuso quanto ao seu estado, não sabe
que morreu.
— Esse perispírito pode ser visto por nós? — questionou meu pai.
— Não por todos. As pessoas que veem espíritos são chamados de
médiuns videntes, embora haja uma situação especial em que todos
podem ver um espírito.
— Que situação é esta? — perguntei.

— Todos podem ver espírito se ele estiver matrializado ou com um
corpo ectoplasmático.
— Corpo ectoplamástico! O que é isso? perguntou meu pai.
— É um corpo formado por ectoplasma. E esta palavra foi criada
em 1903, em Argel, por Charles Richet, um grande metapsiquista
francês, que, naquela oportunidade, estava estudando fenômenos
de materialização produzidos pela médium Eva Carriére.
— Para encurtarmos o nosso caminho, devo Ih dizer que o
ectoplasma é uma substância fluídica d aparência diáfana e sutil
que flui, através de determinadas cavidades, do corpo do médium.
Os espírit valendo-se desta substância plasmam para si corpo
ectoplasmáticos (feitos com o ectoplasma). Tais corpos não raro
apresentam uma grande semelhan com os de carne. A propósito.
Você gosta de ler?
— Muito.
— Então sugiro que leia um livro chamado Materializações
luminosas, de Rafael Ranier ou Trabalho dos mortos, de Nogueira
de Farias e principalmente, um livro de William Crooks de pesquisa
sobre os fenômenos espíritas. Essa obra f publicada no Brasil, se não
me engano, com o título de Fatos espíritas.
— Esses livros são fáceis de serem encontrados?
Sim. Os que estão esgotados podem ser
achados em sebos de livros espíritas. Augusto, este assunto é muito
rico, complexo e vasto, entretanto, agora o que devemos tratar é das
aparições desta casa, porque, para isso, fui chamado aqui. Não é
verdade?

— Sim, Abílio — respondeu minha mãe.
— Vamos então objetivar este assunto. Segundo o que me foi
relatado, aqui existem espíritos que, por razão desconhecida, vivem

aqui. A nossa tarefa é afastá-los desta casa e, com isso, os fenômenos
cessarão.

— E como podemos tirar de nossa casa esses intrusos? — falou
nossa mãe.
— Nós precisamos entrar em contato com eles para doutriná-los.
— O que é doutrinar um espírito? — interrogou Ana Júlia.
— A prática consiste em dialogarmos com ele a fim de conscientizá-
los em relação à sua real situação, mostrando-lhe a impropriedade
moral de sua conduta.
— Como o senhor pode conversar com um espírito? — perguntou
Ana Júlia.
— Isso é feito através de um médium, ou seja, de uma pessoa que
possui a faculdade de intermediar os contatos entre o plano
espiritual e o encarnado. O espírito se comunica conosco por meio
dela.
— Abílio, quando vamos fazer a primeira sessão?
— quis saber minha mãe.
— Existe um pequeno problema. Não é aconselhável que se faça
esse tipo de sessão em uma casa de família?
— Porque não é? — tornou a perguntar minha
mãe.
-Porque essas casas não são lugares adequa dos. Nelas o que se
pode fazer é apenas o chamado culto Cristão no Lar.

— Como é este culto? — perguntou Ana Júlia.
— É feito sempre no mesmo dia da semana. Nele se faz uma prece
de abertura e a leitura de um trecho de uma obra espírita. Em
seguida, conversamos sobre o texto lido. O encerramento também é
feito com uma prece, chamada prece de encerramento. Durante o
culto não deve haver manifestações de espíritos guias ou sofredores.

— Então como faremos a limpeza desta casa?
— interrogou meu pai.
— Vocês terão que ir ao centro que eu frequento, aqui bem perto, no
largo do tanque, onde o trabalho poderá ser feito com toda a
segurança. Vocês estão dispostos a ir?
— Sem dúvida que vamos, não é, meu querido? — disse a minha
mãe virando-se para meu pai.
— Sem dúvida — falou meu pai um pouco incomodado.
— Ah! Há outra coisa. As reuniões serão feitas à noite, entre as 20 e
22 horas, todas as quartas--feiras. Não serão naturalmente reuniões
públicas. Delas participarão, além do presidente do centro, o Dr.
Ramalho, eu, minha esposa, os médiuns da casa e vocês que são a
parte mais interessada nesta questão. As crianças não participarão,
porque em nada acrescenta a presença delas, além de ser um sacrifício
para elas.
— Não se preocupe Abílio, vou pedir a nossa vizinha Eulália para
que fique com elas. Um dia só, não acredito que ela se negue.
— E eu, tio, posso assistir. Tenho muito interesse. Gostaria até de
gravar as sessões se for possível.
— Álvaro, você já é um rapazinho e parece tão interessado que a
sua participação não nos trará nenhuma dificuldade. Quanto à
gravação, não vejo em que poderá prejudicar os trabalhos.
— Então está tudo certo — disse minha mãe muito satisfeita.
— Sim. Mais do que certo. Confirmou meu tio. Falta apenas falar
com o presidente do centro e ele nos dar sinal verde.
Deixando a nossa casa, o tio Abílio foi conversar com o Dr.
Ramalho, que era presidente do Centro Espírita Ernesto Bozzano, e
contou a ele a natureza de nosso problema, pedindo a sua ajuda. Dr.
Ramalho acolheu muito bem o pedido de meu tio e a nossa ida ao
centro foi marcada para a quarta-feira seguinte.


CAPÍTULOV
A primeira sessão


De posse do endereço do Centro Ernesto Bozzano, na quarta feira,
às 18 horas, meu pai, minha mãe e eu, entramos no carro rumo à rua
das Flores uma pequena rua sem saída onde ficava o centro. De
fato, como o meu tio dissera, o lugar não era muito longe de nossa
casa. Quando chegamos, estavam lá o Dr. Raul Ramalho, a esposa
dele D. Otilia e mais dois médiuns, um de incorporação, o senhor
Paulo Medeiros e a senhorita Julieta Marins de Campos que
psicografava. Assim, que chegamos, fomos apresentados ao Dr.
Ramalho, que nos disse:

— Estamos muito felizes em recebê-los em nossa casa. Esperamos
que encontrem aqui aquilo que vieram buscar. Nossa casa não é
muito grande. Foi fundada, em 1928, por um engenheiro chamado
Ernesto Ramalho que, não por acaso, era meu avô. Vamos
aproveitar o tempinho que temos ainda para mostrarmos a vocês o
centro.
Saímos com o Dr. Ramalho e ele foi nos mo trando as diversas salas
que compunham a casa.

— Este é o salão — começou ele —, onde fazemos as nossas
conferências e algumas atividades artísticas. Esta segunda sala é
onde realizamos os nossos trabalhos mediúnicos. No momento,
estamos em obras para construir um segundo andar e assim que ele
estiver pronto, passaremos esta sala lá para cima. Esta outra aqui é
onde os jovens se reúnem para estudar a doutrina e esta ao lado é
dedicada à evangelização. Ainda há uma onde guardamos os
alimentos para os nossos assistidos, mas agora está fechada e a
chave não está comigo. É este o nosso local de trabalho. Como eu
disse, não é muito grande, mas estamos trabalhando para aumentá-
lo.

— Muito bom — disse meu pai que jamais havia entrado em um
centro espírita em toda a sua vida.
O Dr. Ramalho olhou para o relógio e nos convidou para irmos para
a sala dos trabalhos mediúnicos. Logo que entrei, percebi que mais
dois médios haviam chegado: o professor Aluízio Menezes médium
de psicofonia e Maria Augusta Vianna médium de efeitos físicos.

Sentamos todos em uma grande mesa que possuía lugar para 12
pessoas. Sobre ela, havia livros da Codificação, um de André Luiz,
Sinal verde e um de

Ernmanuel, com o título Seara dos médiuns. Depois que nos
acomodamos, foi lida uma mensagem do livro de André Luiz e logo
em seguida o Dr. Ramalho fez uma prece:

"Jesus, bom e amado mestre. Aqui se encontra um grupo de irmãos
desejoso de prestar ajuda a esta família que veio nos procurar em
busca de ajuda. Nós, porém, somos muito pequenos e pedimos, por
isso, a sua ajuda. Jesus, envia até nós os bons espíritos e
principalmente aqueles que têm por tarefa auxiliar a nossa reunião.
Ampara o nosso desejo de crescimento e que esta reunião possa
transcorrer em paz e com grande proveito para todos nós. Assim
seja."

Depois dessa prece, o Dr. Ramalho, que parecia ter muito respeito
por meu tio, pediu a ele que atuasse como doutrinador uma vez que

o pedido era dele.
De repente, o médium que estava sentado ao meu lado, começou a
respirar de maneira ofegante. Meu tio compreendeu que um
espírito estava se comunicando através do médium. Com voz
suave, mas enérgica, falou ao espírito recém-chegado:

— Meu querido irmão, a que devemos a sua visita?
O médium mudando a expressão facial e o to normal de sua voz,
falou:


— Epa! Vamos com calma. Em primeiro lugar não sou seu irmão e
muito menos seu querido. Em segundo lugar, desejo saber o que
estão fazendo na minha casa. Saio um pouquinho e, quando volto
encontro cheia de gente. Como é que se entra assim na casa dos
outros sem pedir? Estão pensando o quê.
— Meu irmão, você está enganado. Esta casa não é sua mais.
— Como não é? Pois eu não moro aqui?
— Você não mora aqui, meu irmão, por um simples motivo: para se
ter uma casa é preciso estar encarnado e, você não está.
— Que papo é este de encarnado? Encarnado que eu sei é vermelho.
— Vamos facilitar: quando eu disse que você não está encarnado é o
mesmo que dizer que você está morto.
— Estou morto? Esta é a maior patacoada que já ouvi. Eu, Ramiro
Cobra-Verde, malandro da Lapa, amigo de Meia-Noite, Madame-
Satã, Miguelzinho Camisa-Preta, morto! Eu estou aqui falando com
você, como posso estar morto? Deixa de más-más, meu camarada.
— Meu irmão, pense um pouco. Você ignora o seu verdadeiro
estado — ponderou meu tio.
— Ignoro uma pinoia! De que estado você está falando?
— O seu estado espiritual.
— Se você insistir com essa bobagem, vou me embora e deixo você
falando sozinho.
— Não faça isso, Ramiro, será pior para você.
— Pior coisa nenhuma — nisto o espírito viu meu pai à mesa e
disse:
— Não é o besta que queria me pagar um dia desses quando eu
estava no portão de minha casa? Dei uma volta nele que ele ficou
sem pai nem mãe.

Quando meu pai ouviu isso, segurou a mão de minha mãe, abaixou
a cabeça como se não quisesse olhar para o médium ao seu lado. O
tio Abílio retomou o diálogo com ele:

— Ramiro, por que você fez isso?
— Isso o quê?
— Isso que você fez com o senhor Augusto.
— O nome dele é Augusto? Eu nem sabia. Nada pessoal, foi uma
brincadeira. Na verdade, no Primeiro dia eu estava a fim de brincar,
mas, nos outros, tive a ideia de fazê-lo pensar que eu era amante da
mulher dele.
— Você acha isso certo, meu irmão?
— Nem certo nem errado. Acho divertido. Quer saber de uma
coisa? Já estou chateado de toda esta baboseira. Vou-me embora. A
Lapa me espera.
Então, o médium estremeceu e voltou ao normal. Neste mesmo
momento, chegou outro espírito. Este incorporou em uma das
médiuns abriu a comunicação com uma breve saudação:

— Que a Paz de Nosso Senhor Jesus Cristo esteja em vossos
corações hoje e sempre. Aqui agora tem início uma tarefa que a
Espiritualidad Maior nos confiou e que devemos levar a bom term
se desejamos colaborar com o Mundo Maior.
— Como se chama, minha irmã? — pergunto tio Abílio.
— Para vocês, sou a irmã Letícia.
— Irmã, a senhora nos disse que há uma tarefa que está começando
hoje na qual estaríamos envolvidos. Que tarefa é essa? — continuou
meu tio.
— Vou explicar: Na casa em que estão morando, estão alguns
espíritos a ela relacionados como este que se manifestou, faz pouco
tempo. São espíritos que, por razões diversas, estão presos psiquica

mente a àquela casa, mas que precisam se libertar para dar
continuidade a sua caminhada em direção aos Mundos Maiores.
Um deles, que se encontra lá, é muito querido por mim, e, por isso,
fui designada para auxiliar na chefia de uma equipe socorrista que
visa levá-los de lá, para que possam se recompor na espiritualidade.

— E por que fomos convocados a auxiliar? — quis saber meu tio.
— Em primeiro lugar, está sendo oferecida a vocês uma
oportunidade muito boa de trabalho e elevação espiritual, não foi
por simples acaso que compraram aquela casa. Maiores
esclarecimentos hão de vir no prosseguimento de nosso trabalho.
Será que poderei contar com vocês?
— Por certo, irmã Letícia, pode contar com nossa ajuda, embora
ainda sejamos iniciantes neste tipo de trabalho. Temos apenas boa
vontade — falou meu tio expressando o pensamento do grupo.
— Isso é muito bom. Estejam certos de que Jesus Cristo e os bons
espíritos estarão ao nosso lado o tempo todo. Não tenham medo de
iniciar este tipo de tarefa, pois é o trabalho a escada que nos leva a
Mundos Maiores. Não tenham dúvidas de que o conhecimento
intelectual é importante para o progresso dos espíritos, contudo é o
trabalho pelo nosso próximo que nos impulsiona verdadeiramente
para o alto. Por isso, frente ao trabalho fraterno, jamais se coloquem
como incompetentes ou incapazes. Todos nós podemos auxiliar os
nossos irmãos encarnados ou desencarnados.
A irmã Letícia parou de falar. Todos nós estávamos emocionados
com as palavras dela, até mesmo meu pai, que sempre se mostrara
avesso às coisas do espírito, parecia tocado de algum modo. Eu
mesmo, apesar da pouca idade, tentei entender o que aquele
espírito bondoso queria nos dizer com aquelas palavras de
incentivo. Hoje, quando conto esse relato, alguns anos depois,
imagino que aquele dia foi um dos mais importantes de minha vida,
pois ele determinara o caminho que eu deveria seguir dali para
frente.


CAPÍTULO VI
Ramiro volta a se comunicar


Na quarta-feira seguinte, Ramiro voltou a se comunicar. Estava um
pouco menos agressivo. Parecia cansado. Foi o tio Abílio quem deu
início ao diálogo:

— Meu irmão Ramiro, sentimos muita alegria com o seu retorno.
Por que voltou?
— Eu não sei bem. Estou meio lelé da cuca. Ando por aí muito
triste, sem destino, fazendo um monte de porcaria que não levam a
nada. Estou cansado de tudo isso. Eu pensava que era "espertão",
mas acho que, de fato, sou um otário e dos grandes.
— Então, você despertou para uma nova vida, meu irmão?
— Penso que sim.
— Como foi isso?
— Foi depois de uma conversa com uma senhora muito
bacana, gente fina mesmo. Ela costuma vir aqui.
— Você se refere à irmã Letícia?
— Acho que este é o nome dela. Você i conhece?
— Faz pouco tempo que tive o prazer de conhecê-la.
— Acredite na irmã Letícia, colabore com ela, pois ela deseja a sua
felicidade.
— Você ainda acha que posso ser feliz?
— Mas é claro, meu irmão! A bondade de Deus é ilimitada, é como
o sol que aquece o justo e o injusto.
— Meu irmão, você não sabe da missa a metade. Eu fiz todo o tipo
de loucura quando estava encarnado. Acho que não sou digno do
perdão de Deus.

— Não diga isso, Ramiro, como já disse, o perdão de Deus não é
negado a nenhum de seus filhos, por maiores que sejam os erros
cometidos. A única condição é que nos arrependamos
verdadeiramente das faltas cometidas.
— Estou arrependido de verdade.
— Isso é muito bom, meu amigo. Diga-me uma coisa. Nesta nossa
conversa, você usou a expressão: "quando estava encarnado." Então
você já conhece a sua real situação?
— Sim, eu já sei que estou desencarnado.
Isso é muito bom. Como você fez essa
descoberta?

— A irmã Letícia me levou a um lugar muito bonito com jardins,
parques e prédios, parecia mesmo esses condomínios de bacanas
que a gente vê por aqui. Ela me conduziu a um prédio onde havia
muitas pessoas vestidas de branco, pareciam médicos. Acho que ali
era um hospital. Nesse lugar fui levado a uma sala onde passaram
um filme para mim. Você sabe quem estava nesse filme?
— Não.
— Eu. Na tela me vi com o meu "tresoitão" correndo e atirando na
polícia. Eu corria, mas, de repente, me vi com o meu terno branco
encharcado de sangue. Depois me vi de pé junto da gaveta de um
necrotério onde estava meu corpo. Aí, o filme parou e eu tive a
certeza de que estava morto.
— E agora, meu irmão, o que pretende fazer?
— Irmã Letícia me disse que vem me buscar para me levar a um
lugar bonito onde vou descansar e cuidar da saúde. Quero me
desculpar com você por causa das grosserias que lhe fiz.
— Não precisa se desculpar. Isso já passou.
— Está bem, meu amigo, devo ir agora.

Nesse momento, o espírito se retirou dessa vez com suavidade.
Logo depois, a irmã Letícia se comunicou:

— Meus irmãos, esta foi a nossa primeira vitória. Nosso amigo
Ramiro vai conosco para fazer um longo tratamento, a fim de que
ele possa voltar à carne para uma nova experiência retificadora.
Fiquem na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. A nossa luta. meus
irmãos, continua, pois ainda há muitos irmãos sofredores que
necessitam de nossa ajuda.
Terminada a reunião, meu pai que parecia cada vez mais
interessado em tudo o que assistia, perguntou ao tio Abílio:

— Abílio, a irmã Letícia falou uma coisa que não compreendi bem.
Algo como voltar a uma experiência na carne. Você sabe o que
significa isso?
— Sim. Trata-se de um conceito-chave na Doutrina Espírita.
— A reencarnação ou vidas sucessivas.
— Isso não é uma ideia hinduísta?
— Não apenas. Ela aparece no Egito, na Grécia, entre os judeus e
outros povos. A rigor a reencarnação é uma lei natural e, sendo
assim, não é propriedade de um povo ou de um credo. Posso
sugerir-lhe um livro que tirará as suas dúvidas sobre a reencarnação
e outros conceitos espíritas.
— Que livro é esse?
— Refiro-me a O Livro dos Espíritos, publicado no dia 18 de abril
de 1857 em Paris por Allan Kardec. Nele estão descritos os
fundamentos da Doutrina Espírita.
— Há outros livros além desse?
— Sim mais quatro: O livro dos médiuns, publicado em 1861; O
Evangelho segundo o Espiritismo

que veio à luz em 1864; depois foram lançados O Céu e o Inferno,
em 1865, e, por fim, em 1866, A Gênese. Esse conjunto forma o que
se convencionou chamar em nosso meio de O Pentateuco Espírita
em uma alusão clara ao Pentateuco da Bíblia. Você quer mesmo ler
O Livro dos Espíritos, Augusto?

— Quero sim, Abílio, ainda não acredito nas concepções espíritas,
mas é um tema muito interessante e tenho vontade de me informar
melhor sobre ele.
— Então está bem, na próxima reunião, trago o livro. Espere um
pouco, vou fazer melhor. Vou lhe presentear o Pentateuco.
— Muito grato, Abílio.
— Não me agradeça. Prometa-me apenas que vai ler esses livros
com o carinho e atenção que eles merecem.
— Pode deixar. Prometo.
CAPÍTULO VII
Sinhá Moça


Na quarta-feira seguinte, o meu tio voltou à nossa casa, trazendo
consigo, além de O Evangelho segundo o Espiritismo, que ele
usava para leitura preparatória da reunião, os Livros da Codificação
que ele prometera meu pai. Percebi que meu pai havia sofrido uma
grande transformação. Ele pegou os livros que meu tio lhe
presenteara, deu uma rápida folheada em O Livro dos Espíritos e
levou-o para o seu quarto e lá o guardou com os outros quatro


livros. Aquele era um sinal de que ele iria mesmo lê-los porque

papai não levava um livro para o quarto se não o fosse ler.
Mamãe serviu um chá de pêssego com bolachinhas de polvilho, sua
especialidade. Conversamos sobre muitas coisas relacionadas ao
Espiritismo e o tio Abílio nos explicou quem era Allan Kardec e
como ele havia codificado o ensinamento dos espíritos. Por fim,
chegou a hora de irmos para o centro, para mais uma reunião de
desobsessão. Quando chegamos, os nossos companheiros já
estavam lá Ocupamos nossos lugares à mesa e houve um respeitoso
silêncio. O Dr. Ramalho fez a prece de abertura:

"Senhor Jesus, aqui está mais uma vez um grupo de irmãos seus,
desejosos de seguir o seu Evangelho de Luz e Amor. Dá-nos,
Senhor, o entendimento das coisas que estão além de nossa compreensão,
fortifica-nos o desejo de crescimento e nos ampare em
nossas vacilações. Peço também que, se for da vontade de Deus,
esteja presente entre nós a nossa irmã e benfeitora, Letícia, que será
a condutora espiritual desta reunião. Que assim seja."

Fez-se silêncio e, de repente, a irmã Letícia se manifestou através da
médium Maria Augusta:

— Que a paz de Jesus esteja com todos nesta casa. Fico muito
feliz que possamos dar continuidade ao nosso trabalho junto aos
nossos irmãos sofredores. Hoje se encontra aqui uma irmã que
carece, e não pouco, de nossa ajuda. Nós vamos permitir que ela se
manifeste para que todos possam ver o estado em que ela se
encontra e, assim, compreender, na prática, a condição dos espíritos
desencarnados.
Alguns segundos depois, o médium Aluízio Meneses deu sinais de
que estava sob o efeito de um espírito. Meu tio se apressou em
interrogar o espírito manifestante:

— Irmã, você está entre amigos, Fique a vo tade. Todos aqui
desejamos o seu bem.

Não vejo aqui meus amigos. Onde estão os
barões, os condes e os duques que me faziam a corte. Aqui só vejo
pessoas plebeias que, naturalmente, não conheço.

— Minha irmã, como é o seu nome? — perguntou Abílio.
— Como! Você não me conhece? Nem mesmo ouviu falar de mim, a
Baronesa Maria Carolina Catarina Pontes de Mello e Silva? É, você
deve ser mesmo um rústico!
— De fato, Baronesa, não a conheço e lhe peço desculpas por isso —
falou meu tio com seriedade.
— Isso tudo está muito estranho. Esta é a minha fazenda no Rio de
Janeiro. Aqui é o Rio de Janeiro, a corte do Imperador D. Pedro de
Alcântara, marido da Imperatriz Tereza Cristina, uma pessoa
maravilhosa pelo sangue e pela nobreza do caráter. Eu a conheço
muito bem. Espere aí! O que é Isso? É uma reunião política? Uma
conspiração? Um conciliábulo de bruxos?
— Não é nada disto. Somos irmãos dedicados ao estudo e ao
conhecimento — falou meu tio.
— Estudo? Isso é muito bom! Então são pessoas instruídas. Devem
gostar de poesia... Eu sou urna declamadora, querem ouvir?
Já lá vem a primavera, Mostra o rosto animador Vem na sua
companhia O suave e meigo amor.

Já derrama sobre os campos, Brando orvalho criador; E as campinas
devastadas Fazem animar um novo amor.

Já dos ventos furiosos Não sai o rouco estridor; E as galernas
lisonjeiras Só inspiram paz e amor.

Já dentre os verdes raminhos, Ouço o emplumado cantor, Que
entoa em seus gorjeios Fulgentes hinos de amor.


— Esses versos são de Domingos Cald Barbosa. Vocês conhecem
esse poeta? As pessoas de minha classe social não gostam dele.
Dizem que ele é muito popular; mas quando fico cansada de
Camões, Gil Vicente e outros portugueses gosto de ler algo deste
Caldas Barbosa e de outros poetas brasileiros. Nós cá, também
temos os nossos talentos Talentos bárbaros, mas sempre talentos.
O espírito fez uma pausa em sua enxurrada de palavras. Tio Abílio
aproveitou-se para falar com ela:

— Um conciliábulo de bruxos Irmã Carolina, gostei muito. A
Baronesa canta muito bem.
— Eu sei. Aprendi com o Padre Heitor de Mariz. Ele é o mestre de
canto de nossa capela. É homem erudito, conhece latim e até grego.
Veio de Coimbra. O senhor conhece Coimbra? Ah! É uma bela
cidade.
— Baronesa, posso lhe fazer uma pergunta? — disse o tio Abílio.
— Permito. Hoje estou com uma ótima disposição. Do que se trata?
— Carolina, você acredita, realmente, que esta casa é a mesma
fazenda onde você viveu.
— Vivi? Não! Esta é casa em que vivo.
— Minha irmã, você não pertence mais a esta vida.
— E eu não sei disso? Claro que sei. Só que isso não altera nada.
Continuo aqui porque foi nesta casa que nasci e onde vivo até hoje e
não desejo abrir mão dela.
— Minha amiga, você não pode agir assim. — insistiu meu tio.
— Claro que posso. Tanto posso que estou agindo.
— Sim, é verdade, mas você está impedindo a sua própria evolução.
-Quer saber de uma coisa? Esta conversa não está me interessando
nem um pouco. Vou-me embora agora. Tenho muito mais o que
fazer para perder tempo com pessoas como vocês.


— Apenas havia terminado de dizer essas palavras, o espírito
deixou o médium, e a irmã Letícia voltou a falar por meio de Maria
Augusta.
— Vocês puderam ver com extrema clareza o estado em que se
encontra este espírito sofredor.
— Quem é esse espírito, irmã Letícia? Quis saber meu tio, fazendo a
pergunta que todos nós gostaríamos de ter feito.
— Há muitos anos, antes mesmo que esta casa fosse construída,
aqui era uma grande fazenda de café, cujo dono era Manoel Pontes
de Mello e Silva, o Barão de Santa Tecla, um homem poderoso
ligado à corte de Pedro II e que viera para o Brasil cerca de vinte
anos depois da chegada de D. João VI. Carolina era a filha única do
Barão. Uma jovem muito alegre e gentil, cortejada pelos melhores
partidos da época, mas sem se decidir por nenhum deles. Então, o
pai. como era costume à época, contratou o casamento dela com o
filho de Manoel Álvares Ribeiro, Conde de Igarassu, um homem
que enriquecera com as usinas de açúcar que possuía em
Pernambuco.
E devido ao fato de as finanças do Barão de Santa Tecla não irem
muito bem, ele viu, neste casamento, a oportunidade de sair de tal
condição financeira. Ele conheceu o Conde de Igarassu em uma
festa na corte. Conversaram muito e logo entre eles, espíritos
afinados, surgiu uma forte amizade cimentada no interesse
recíproco. O Barão desejando sair das dificuldades em que estava, e

o Conde, que havia comprado o título, queria injetar em sua família
uma dose de sangue azul autêntico.
O filho do Conde se chamava Augusto Manoel Ribeiro, um rapaz
cuja vida estróina e dissoluta trazia para seu pai grandes
preocupações. Fora estudar nas maiores capitais da Europa, porém
aprendera muito mais sobre as artes dos amores escusos e das
bebidas inebriantes do que sobre o que as faculdades poderiam ter
lhe ensinado. Esse era mais um motivo para o Conde desejar ver o


filho casado, transformado em homem sério como se costuma dizer.
O caráter do futuro genro não era obstáculo para os desejos do
Barão, e esse dizia ser esta coisa de mulher e bebida própria da
juventude.

O compromisso foi firmado entre os dois pais, entretanto, o que o
Barão de Santa Tecla não sabia era que Carolina havia encontrado,
na fazenda, um companheiro de muitas vidas passadas, e que
estava encarnado como um mulato, filho do Feitor Bento Rodrigues
e, por ele, ela se apaixonara. Esse sentimento, naturalmente, era
mantido em segredo absoluto. Por esse motivo, no dia em que o pai
avisou à filha sobre o seu casamento com o filho do Cond-de
Igarassu, a reação dela não fora a que o cond_ esperava. Pela
primeira vez, ela disse não ao pai, alegando que não se casaria com

o moço Augusto Manoel porque não o amava.
É claro que o pai não aceitou a negativa da filha: amando ou não o
noivo, ela se casaria com ele porque seu pai assim o queria, e a sua
vontade era lei. Carolina procurou o apoio da mãe, mas a pobre
mulher era inteiramente submissa ao marido tirânico.
Carolina ficou desesperada quando soube qu o pai oferecera um

jantar à família do Conde a fim de oficiar o noivado e marcar a data
do casamento o mais rápido possível. Os fados, porém, continuaram
tecendo as vidas a eles subordinadas. O rapaz, a quem ela amava,
havia sido enviado pelo Barão para o norte do Estado com o
objetivo de comprar algun negros da fazenda do Barão de Inhaúma,
nesse lugar deveria permanecer por alguns dias.

Carolina sentiu-se abandonada e apavorada à medida que o dia do
casamento se aproximav De uma coisa, entretanto, ela estava certa:
não se casaria com o filho do Conde. Enquanto isso, Bento
Rodrigues ao voltar de sua viagem, ficou sabendo do casamento de
sua amada. A notícia o abalou profundamente: havia sonhado alto
demais. É claro que jamais poderia se casar com a jovem Baronesa.
No seu íntimo, porém, queria conversar com Carolina e ouvir dela a


notícia de seu casamento. Mas como poderia falar com ela? Naquela


noite, não conseguiu dormir.
No dia seguinte, procurou Maria Bárbara, mucama de Carolina e
parenta do pai dele. Encontrou-a perto da senzala e lhe disse:


— Maria, preciso ter um dedo de prosa com vosmicê. É coisa séria e
sigilosa.
— Que coisa é esta?
— Soube que a sinhazinha Carolina vai se casá. Isso é coisa
verdadeira?
— Sim. Vai mesmo. O casório vai ser na semana que vem.
— Preciso de sua ajuda.
— Pra quê?
— Eu tenho necessidade de falá com ela antes do casamento.
— Você é maluco, Bento? Faz isso não. Deixa a sinhazinha se casá
cum quem ela quisé. Num fica Procurando chifre na cabeça de
cavalo. Vosmicê é uma besta, Bento, parece que num enxerga.
— Num enxergo o quê?
— Num enxerga que essa moça não é pra seu bico. Aprende a botá
o chape onde a mão alcança.
Olhe, quem dá um passo maio que as pernas, cai cai feio.
— Vosmicê, Maria está se metendo onde não é chamada e fala que
só a preta do leite. Eu gosto da Sinhá Carolina e ninguém vai muda
isso. Deixa de mais, mais e leva um recado meu para ela.
— Bento, Bento isso num vai dá certo. A corda sempre arrebenta
pro lado mais fraco.
— Vosmicê, Maria, parece uma ave agourenta. Acho que tu tem o
sangue da coruja rasga-mortalha.

— Num sou isso não, nem tenho sangue de coruja. O causo é que
eu gosto de vosmicê mais do que a sinhazinha ou outra muié
qualqué.
— Deixa de bestera, Maria, isso é pura bobage da sua cabeça. Vê se
vosmicê se enxerga. Vai e leva o meu recado para ela. Diz a
sinhazinha Carolina que eu espero por ela perto do tronco de
Jacarandá junto da fonte. Amanhã de tarde. Ali, não tem ninguém.
— Vosmicê é quem sabe.
Maria Bárbara sentiu-se diminuída e humilhad Amava Bento em
silêncio e não podia aceitar o mo como ele a havia tratado. Pouco a
pouco, em sua mente dominada pelo ciúme, foi nascendo um novo
pensamento. Assim que Bento partiu, ela correu até a casa grande e
contou ao Barão o que estava acontecendo. O Senhor da fazenda
disse a mucama que levasse o recado à sinhazinha e ela assim o fez.
No dia seguinte, à tarde, Bento Rodrigues estava no lugar do
encontro encostado ao tronco do Jacarandá. Esperava ansioso por
sua amada, e ela não veio. Estava decidido a desistir e voltar para
casa, quando sentiu as mãos fortes dos homens do Barão que o
manietavam. Amarrado e arrastado, o filho do feitor foi levado à
presença do Barão cujos olhos estavam repletos de ódio e desprezo
pelo mulato.

— Então seu negro safado, você imaginava que poderia se casar
com minha filha. Quem pôs em sua cabeça tal maluquice?
— Sinhô Barão, me disculpe eu não tinha esta intenção.
— Isso não me interessa. Vou lhe dar uma lição seu moleque para
você nunca mais se esquecer.
O Barão de Santa Tecla mandou que o colocassem amarrado ao
tronco e o açoitassem até a morte. De dentro da casa, Carolina ouviu
os gritos do rapaz, mas não chorou. Existem dores tão profundas
que podem inibir as lágrimas de quem as sofre. De manhã, o Barão


mandou retirar o corpo de Bento Rodrigues de lá, e depois o
entregasse ao pai para enterrá-lo. Carolina nada falou, aquele
mutismo foi tido por seu pai como falta de sentimento. Então, ele,
que não gostava do mulato, pensou dizendo para si mesmo: tanto
melhor, daqui a pouco ela se casa e as coisas se acertam.

Quando faltavam apenas três dias para o casamento, Carolina
tomou uma decisão extrema. Depois do almoço, saiu com uma de
suas primas para um passeio no campo.

— Onde vamos? — perguntou Alice à prima.
— Vamos à casa de Vó Balbina.
— Quem é Vó Balbina? — perguntou a jovem
— É uma preta velha tida como feiticeira pelo povo daqui.
— Ela é uma bruxa?
— Não sei. Desde menina eu a conheço, e jamais a vi fazer o mal a
alguém. Sei que ela entende muito de ervas boas e más.
Quando chegaram à tapera onde morava Vó Balbina, a negra estava
amassando ervas em um pequeno pilão de pedra. Assim que ela viu
as duas moças, falou.

— Menina, que alegria vê vosmicê aqui em minha humilde casinha.
— Eu vim aqui a mando de minha mãe, vó Balbina.
— E o que é que vossa mãe qué com esta preta velha.
— Ela quer um pouco daquela erva que a senhora conhece, aquela
que mata cavalo.
— Mata gente também.
— Ela sabe. É o cavalo dela, ele anda doente de fazer pena. O meu
pai queria dar um fim no animal, mas minha mãe não permitiu. Ela
mesma quis matar o bichinho, porém de um modo mais suave sem
o animal sofrer muito. A senhora tem aquela erva aí?

— Tenho uma que é muito boa nesses casos.
A preta foi em uma espécie de jardim, que cultivava nos fundos da
casa, e veio com um ramo de cicuta e explicou a Carolina como se
fazia o veneno. Depois que Vó Balbina entregou as ervas, Carolina
agradeceu e voltou para casa.

— Será que a tia vai conseguir fazer o veneno? — quis saber Alice.
— Vó Balbina me ensinou como se faz.
As duas moças correram para casa, e chegando ao quarto, Carolina
fez o veneno, bebeu uma dose dupla e deitou-se na cama para
esperar a morte. Pela manhã, ela foi encontrada com o corpo rígido,
os olhos muito abertos e vidrados fitando o vazio.

Desalojada do corpo pela ação do veneno Carolina esteve confusa
por um longo ternpd Caminhava a esmo. Ouvia nas trevas
gargalhadas sinistras e vozes que a acusavam de suicida. Sentia em
seu corpo espiritual, por uma espécie de sensi bilidade reflexa, a
ação dos vermes em seu cor físico. O que acontece com o suicida,
devido ao gesto extremo, ainda encontra-se ligado fluidicamente ao
corpo de carne. Aquilo era pavoroso.

Na sua caminhada sem destino, achou um gruta nas proximidades
da fazenda onde vivera. Al entrou e ficou quietinha. Tinha medo e
sentia muito frio. Todo seu corpo tremia. Durante longo tempo
ficou ali, pois tinha medo de sair e ser capturada po aqueles seres
horríveis. Um dia, sem mais ouvir as gargalhadas e as ofensas, que
lhe eram dirigidas po seres invisíveis, saiu de seu esconderijo.
Decidida, foi até a casa grande da fazenda onde vivera desde
menina. A casa estava vazia. Para onde teriam ido seus pais? Nem
mesmo os antigos escravos estavam lá. Entrou nela e foi até onde
era o seu antigo quart e ali se instalou.

O estranho da situação de nossa amiga é qu a sua mente atribulada
permitiu que a imaginação, tomando imagens do passado,


reconstruísse, para si, a vida antiga daquela casa. Tempos depois,

outro espíritos sofredores, que viveram e desencarnaram
na antiga fazenda, ali também se estabeleceram e ela os tomava
como antigos nobres que voltavam a fazer-lhe a corte como no
passado.
Os anos se passaram. A casa da fazenda tornou--se uma ruína com

o mato cobrindo tudo e pequenos lagartos verdes correndo por
sobre os tijolos velhos que restaram de uma antiga parede. Os
espíritos sofredores foram embora, no entanto, ela, apegada aos
fluidos do lugar, não conseguiu se afastar e continuava vivendo ali
a sua fantasia de sinhazinha. Nas noites de lua, ouvia-se uma voz
feminina que vinha das ruínas cantando uma modinha antiga em
tom lastimoso. Mais tarde, veio o inglês e comprou o terreno para
fazer esta casa e ela prosseguiu nela como se nada houvesse
mudado.
— Irmã Letícia, será esse mesmo espírito que apareceu para a
minha filha e a deixou apavorada?
— Sim. Foi ela mesma?
— O que podemos fazer por ela, irmã Letícia? Questionou meu pai,
inteiramente envolvido pelos acontecimentos.
— Precisamos despertá-la de seu sonho.
— Mas como? Perguntou meu pai que estava inteiramente
motivado pelo assunto.
— Acho que há uma possibilidade.
— Qual? — indagou meu pai.
— Em nosso próximo encontro, vamos trazê-la de volta ao nosso
meio e virá comigo alguém que vai nos ajudar no processo de
desalienação de nossa amiga.

A sessão daquela quarta-feira foi encerrada com a Prece costumeira,
e na quarta seguinte voltamos a nos reunir. Nessa, após a chegada
da irmã Letícia, manifestou-se a Baronesa que parecia menos extrovertida
que na última sessão. Sua voz possuía certa inflexão de
melancolia.

— Por que me chamaram aqui?
— Chamamos porque desejamos ajudá-la. — falou a irmã Letícia
com o seu jeito carinhoso
— Não preciso da ajuda de ninguém. Acho que vocês querem me
expulsar de minha casa.
— Minha irmã, ninguém deseja expulsar você de lá.
— Não querem mesmo?
— Claro que não. Você possui livre-arbítrio e se a sua vontade é
permanecer lá, nós devemos respeitada, entretanto, acredite:
queremos o melhor para você.
— Como você pode saber o que é o melhor para mim?
Não seria tão arrogante, Carolina, em dizer
que eu sei o que é melhor para você, entretanto, se você desejar,
talvez eu possa lhe fazer uma boa surpresa.

— Surpresa! Que surpresa é essa?
— Refiro-me a alguém que lhe é muito caro.
— De quem você está falando?
— Olhe para ele. Está ao seu lado.
— Bento! Você aqui?
— Sim. Foi o Bento quem intercedeu por você. Faz muito tempo
que ele estava à sua procura, mas, quando a encontrou, você não o
reconheceu. Não falou com ele e nem mesmo o ouvia.
— Bento, agora me lembro de tudo. Você morreu por minha causa.
Perdão, meu amor, perdão! Eu não imaginava que a maldade de

meu pai chegasse a tanto. Ditas essas palavras, o médium começou
a chorar convulsivamente.

A Irmã Letícia falou com ternura:

— Filha, fique calma, Bento ama você do mesmo modo que a amou
quando estavam encarnados. Ele quer cuidar de você. Você não
quer tentar?
— Sim eu quero e muito.
A irmã Letícia falou conosco sem esconder a sua alegria:
— Tudo está acabado, meus amigos, por fim a nossa companheira
encontrou-se e este será o início de sua terapia.
CAPÍTULO VIII
Meu tio nos fala sobre a reencarnação


Em nosso encontro seguinte, em nossa casa, meu pai que se
mostrava muito interessado nas questões espíritas, disse a meu tio:

— Abílio, tem muito pouco tempo que passei a me interessar pelo
Espiritismo, e tudo começou com os fenômenos que perturbavam a
nossa vida nesta casa. Como iniciante na ciência espírita, há um
tema que não consegui ainda compreender muito bem. Refiro-me à
reencarnação. Assim, gostaria que você abordasse esse tema para
nós. É possível?
— Sem dúvida, meu irmão. Em primeiro lugar, quero lembrar que a
ideia das vidas sucessivas é muito antiga. Os egípcios e os indianos,

duas das culturas mais antigas da Terra, já conheciam a

reencarnação.
O grande Platão foi um pensador grego que defendia a tese da
reencarnação. Em um de seus diálogos mais famosos, o Mênon, ele
apresenta Sócrates, aplicando maiêutica a fim de mostrar como um
escravo ignorante poderia deduzir complexo teoremas de
matemática. Como era possível coisa? Ele responde dizendo que,
por certo, se ele não aprendera aqueles teoremas na vida atual, os
havia aprendido em outras vidas. Assim, conforme Platão todo
aprendizado nada mais seria do que a recordação' de
conhecimentos de existências passadas.

— Tio, o Senhor usou uma expressão que eu não conheço —
perguntei, bastante interessado maiêutica. O que é isso?
— Vamos ver. Sócrates possuía um método pedagógico que
consistia em fazer perguntas muito bem graduadas com as quais
tentava despertar o conhecimento adormecido na mente das
pessoas mãe de Sócrates, Fenáretes, era parteira que se di em grego
clássico, maieutria. Sócrates se considerava, como sua mãe, um
parteiro, mas um parteiro de ideias. Foi por isso que deu esse nome
a seu método. Compreendeu?
— Sim. Agora ficou claro para mim. Quando Senhor disse que ele
aplicou a maiêutica ao escrav significa que ele fez perguntas a ele. É
isso?
— Isso mesmo.
— E Jesus, meu tio, ele também aceitava a reencarnação? —
perguntei com interesse crescente.
Meu filho, devo lhe dizer que Jesus era reenrnacionista. Disso não se


deve ter a menor dúvida. Nos Evangelhos existem muitas
passagens que deixam a ideia de reencarnação bastante clara. Uma


das que me parece mais evidente é a que se encontra no Evangelho
de João, capítulo 3, versículos de 1 a 15.

— Que passagem é essa? — perguntou meu pai.
— Trata-se do encontro entre Jesus e Nicodemos.
— Quem era Nicodemos? — interroguei.
— Era um homem dos mais sábios em Israel. Conhecia a história de
Israel e o Torá ou lei mosaica como poucos. Além disso, conhecia o
hebraico, o aramaico e, muito provavelmente, o grego e o latim.
Aconteceu então que Nicodemos, ouvindo falar em um novo
pregador que além de pregar fazia coisas maravilhosas como:
devolver a visão aos cegos, limpar leprosos, expulsar maus
espíritos, decidiu falar com ele. Esse desejo de Nicodemos foi
satisfeito e, assim, aconteceu o encontro entre o velho sábio judeu e

o Cordeiro de Deus.
Em certo momento desse colóquio, Nicodemus perguntou a Jesus
como deveria agir para alcançar o Reino dos Céus. Jesus lhe dá a
seguinte resposta: "Em verdade, em verdade te digo que aquele que
não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus". Nicodemus
ficou espantado e falou ao Nazareno: "Como pode um homem
nascer, sendo velho? Porventura pode entrar no ventre de sua mãe e
nascer?". Jesus admira-se com a pergunta do velho rabi e lhe diz:
"Tu és mestre em Israel e desconheces estas coisas?". Mais a frente
Jesus insiste: "Em verdade, em verdade te digo que aquele que não
nascer da água e do espírito, não pode entrar no reino de Deus".

— Abílio, posso interrompê-lo? — perguntou o meu pai, e
continuou, certo dia conversando com um padre sobre esta
passagem, ele me disse que o verbo grego usado é anothen que tanto
pode dizer nascer de novo como nascer do alto, e ele preferia a
segunda interpretação naturalmente. Uma segunda coisa, que ele
me disse, foi que no texto, em virtude da inclusa da palavra água

em nascer da água, havia uma ciar referência ao batismo que era a
forma de nascer d novo. O que você me diz sobre isso?

— A referência aos dois sentidos do verbo greg é pertinente,
entretanto, Nicodemos entendeu nascer de novo como voltar à
carne e não nascer do alto. Se admitirmos que a conversa entre Jesus
e Nicodemo tenha sido feita em hebraico ou aramaico esta ambi
guidade, que só existe no verbo grego, desaparece.
Quanto à segunda arte de sua pergunta, poss-lhe dizer o seguinte:
não existe relação direta entr nascer da água e o batismo. A água, no
context'

evangélico, significa o princípio material. Não vamos nos esquecer
de que o corpo humano é formado em 80% de água. Assim, nascer
da água deve ser entendido como nascer de um corpo de carne
animado por um espírito que não deriva do corpo, mas que dele se
apossa para mais uma experiência na carne. Está satisfeito, meu
amigo?

— Sim. Perfeitamente.
— Deixe-me então continuar. Há ainda por parte de Jesus outra
declaração sobre as vidas sucessivas muito mais clara do que a
anterior. Essa passagem se encontra em Mateus, XVII: 10-13 e
Marcos, IX: 10-13. Neste trecho, Jesus está conversando com os
apóstolos e um deles lhe perguntou sobre a encarnação do profeta
Elias como precursor do Messias, tese tradicional defendida pelos
textos sagrados e pelos escribas, intérpretes desses textos. Jesus
concorda com a tradição, mas faz um adendo interessantíssimo:
"Mas eu vos digo que Elias já veio e não conheceram, antes fizeram
com ele tudo o que quiseram; assim também, o Filho do Homem há
de padecer por parte deles."
— O evangelista encerra essa passagem dizendo: "então os
discípulos entenderam que ele lhes falava a respeito do João

Batista". Em verdade, porém, o assunto não era o Batista, mas o
Elias que vivera cerca de 940 anos antes. Assim, Jesus deixou claro
que Elias e João Batista eram o mesmo espírito. Desse modo, não é
possível entender essa passagem dos evangelhos sem o conceito da
reencarnação.

— Isso é fantástico, Abílio. Pode nos falar um pouco mais sobre
isso?
— Posso. Vamos entender dois conceitos fundamentais para o caso:
o de individualidade e o de personalidade. A individualidade é um
espírito e a personalidade são os diversos papéis que esse assume
ao longo de suas muitas vidas. Isso é muito semelhante ao ator que
vive muitas personagens em cada uma das peças em que trabalha.
O ator é único, mas as personagens são diversas.
— Dei essa explicação por causa de um argumento dos adversários
da reencarnação. Dizem eles que João batista não era o Elias porque,
quando perguntado se ele era aquele profeta, Batista respondeu que
não. E, de fato, não era. Naquela encarnação, ele vivia o papel
(Personagem) de João, filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, uma
parenta de Maria de Nazaré, a mãe de Jesus. Talvez se o fariseu lhe
houvesse perguntado: você foi o Elias, quiçá a resposta fosse outra.
Estão satisfeitos?
— Sim, por favor, continue.
— Nesse primeiro momento de nossa argumentação, tratamos
apenas das razões históricas para se crer na reencarnação, mas há
outros argumentos não menos interessantes. Vamos examiná-los em
seguida.
A reencarnação é a ideia que consegue harmonizar os fatos da vida
com a justiça divina. Quando olhamos com atenção a nossa volta,
vemos como as pessoas ocupam lugares diferentes na sociedade. Há
os ricos e poderosos que ocupam uma classe normalmente chamada
de elite. Logo abaixo, vem um grupo de pessoas que não são muito


ricas nem muito pobres cujos proventos lhes permitem viver uma
vida digna sem excessos; elas fazem parte da classe média. Por fim,
mais abaixo, estão as pessoas que vivem na pobreza e, até mesmo,
na extrema pobreza. Elas nem mesmo possuem o mínimo para uma
vida digna, não raro, se alimentam dos restos que catam do lixo e
seus filhos não têm acesso à educação. Nessa última classe social,
costumam encarnar espíritos que, em outras vidas foram ricos e
poderosos.

A primeira pergunta seria: quem produziu este tipo de sociedade,
foi Deus ou foi o homem? Se foi Deus, não há justiça nesse tipo de
sociedade onde uma criança pode nascer na elite e outra na extrema
pobreza? Se foi o homem, quem criou a sociedade desigual, e Deus
permitiu que fosse assim, mais uma vez ele não é justo.

A resposta que a reencarnação dá a esse fato é a seguinte: Deus não
faz ninguém nascer em comunidades miseráveis, seja como castigo,
seja como simples capricho. Em muitos casos, os espíritos reencarnam
na pobreza por livre escolha, uma vez que em outra vida
foram ricos e fizeram mal uso de seu dinheiro e poder, jogando fora
uma grande oportunidade de servir e crescer. Escolhendo uma vida
mais humilde, não só terão experiências novas como testarão a sua
capacidade de lutar e vencer obstáculos. As sociedades, com seu
cortejo de desigualdade, são criações humanas, mas delas a
Providência se utiliza para o progresso dos espíritos.

Outra questão é a grande quantidade de doentes e doenças físicas e
mentais que existem neste mundo. Se nos focarmos nessas dores,
veremos passar aos nossos olhos — cegos, paralíticos, surdos-mudos,
hansenianos, diabéticos, pacientes renais, aidéticos, loucos e
outras tantas formas de sofrimento com as quais entramos em
contacto em nosso dia a dia. Novamente nos perguntamos: Por que
existem as doenças? Por que Deus permite que elas existam?
Novamente a reencarnação é capaz de responder essa questão.


Quero deixar bem claro que nós não sofremos por causa do pecado
do casal mítico Adão e Eva como acreditam muitos teólogos.
Sofremos porque é necessário ao nosso progresso. Em uma
passagem do Evangelho segundo Mateus, encontramos Jesus dizendo:

[...] Se, pois, a tua mão ou o teu pé te fizer tropeçar, corta-o e lança-o
de ti, melhor te será entrares na vida aleijado ou coxo, do que tendo
duas mãos e dois pés seres lançado ao fogo eterno. E o teu olho, se
te fizer tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; melhor é entrares na vida
com um só olho do que, tendo os dois seres atirado ao inferno de
fogo.2

Essa passagem é uma das mais estranhas do Evangelho, uma vez
que Jesus nos pede para tirarmos um órgão que nos sirva de tropeço
para alcançarmos o Reino dos Céus.

— Sabe Abílio, eu também sempre achei esta passagem muito
esquisita — falou meu pai.
— Sim, entretanto, mais uma vez a reencarnação pode nos socorrer.
É claro que Jesus não está nos aconselhando a nos mutilarmos para
alcançarmos o reino de Deus. Assim, só nos resta uma explicação
possível: um órgão ou sentido que tenha sido causa de tropeço em
uma vida pode ser retirado ou mesmo mutilado na vida seguinte: o
cientista que usou seu cérebro para o mal pode nascer com
hidroencefaijg ou qualquer outra doença cerebral congênita; o
homem que se perdera pela visão, poderá nascer privado dela-as
pernas que levaram ao crime podem ser atrofiada
em u'ima dura expiação, e assim por diante.
— Abílio, os espíritos podem aceitar nascere-mutilados? —
interrogou meu pai.

2 Mateus, 18:8.


— Sim, caso desejem de fato dar um passo à frente na senda do
progresso. Nós, os encarnados, sempre julgamos que o sofrimento é
mau e o praze é bom. Nem sempre é assim. Eu já disse isso antes,
mas insisto: uma encarnação com grande dose d sofrimento, se bem
aproveitada, fará o espírito avançar consideravelmente. Eu,
entretanto, gostaria de dar continuidade aos meus argumentos em
favor d reenca mação.
— Desculpe-me, Abílio, mas, de fato, o me desejo de aprender é tão
grande que, às vezes, m torno inconveniente — disse meu pai.
— Não, meu irmão, não veja as coisas assim Estou aiqui exatamente
para ajudá-los, embora meu conheci mentos sejam muito limitados.
Pode ficar vontade e perguntar quando assim o desejar.
— Grato. Muito grato — agradeceu meu pai.
— Outro aspecto da vida humana, intimament relacionado com a
reencarnação, é o das criança prodígios. Napoleão Bonaparte, em
tenra idade, mostrava-se com grande aptidão para a guerra, criando
inclusive, ainda na infância, um método extraordinário de defesa e
ataque a cidades, algo muito difícil de ser pensado por uma criança.
Outro caso notável é o de Jacques Chrichton, um verdadeiro
fenômeno no aprendizado de línguas. Nascido na Escócia, esse
menino com apenas 15 anos era capaz de discutir em latim, grego,
hebraico e árabe sobre qualquer assunto. Esse jovem conquistou o
grau de Mestre com 14 anos. Esses exemplos podem se multiplicar e
não pouco.
— Desculpe-me, mas tenho uma curiosidade sobre um personagem
que você citou — interrompeu meu pai.
— Que personagem?
— Napoleão Bonaparte.
— O que deseja saber sobre ele?

— Um conhecido meu, que é espírita, me disse certa vez que
Alexandre Magno, Júlio César e Napoleão seriam o mesmo espírito.
É verdade?
— Eu lhes disse que os meus conhecimentos sao muito limitados.
Confesso que não tenho uma resposta pronta para sua pergunta.
— Desejaria, aproveitando este ensejo, parg fazer uma observação.
As pessoas que acreditam na reencarnação, não raro, ficam
preocupadas com aquilo que elas foram e se despreocupam com
aquilo que elas são, e o que somos e fazemos hoje é o que
verdadeiramente importa.
— Acho que você tem razão — falou meu tio meio envergonhado.
— Meu irmão, também quero fazer uma pergunta. Eu gostaria de
falar sobre o esquecimento das vidas passadas. Parece-me que, se
agente se lembrasse das vidas passadas, seria mais fácil nos corrigir
nas próximas.
— Este é um grande engano. Em primeiro lugar, Deus estabeleceu
desse modo e, se assim o fez, é porque é o melhor para os espíritos.
Em segundo lugar, esta lembrança nos traria grandes problemas,
principalmente nos reencontros entre vítimas e algozes cujo objetivo
seria a reciclagem de sentimentos hostis e o exercício do perdão.
Ora, se a vítima se lembrasse de seu algoz, não se aproximaria dele
ou mesmo, talvez, tentasse tirar uma desforra. Em terceiro lugar,
minha irmã, não é fácil lidar com as culpas de uma só vida, imagine
se tivéssemos em nosso íntimo as culpas de muitas vidas? Fique
certa, pois, a cortina do esquecimento, que cai sobre as nossas vidas
passadas, é uma bênção divina.
— Sem dúvida. Eu não havia visto esta questão por essa ótica. Disse
minha mãe.
— Há, entretanto, algo que pode ajudar os espíritos curiosos a
descobrir algo de suas vidas passadas. Isso é o que chamo de janelas
para o passado. Se olharmos por essas janelas, não saberemos quem

fomos em vidas anteriores, mas teremos pistas, às vezes, boas
pistas.

— E que Janelas são essas? Perguntei muito interessado sobre
aquele apaixonante assunto.
— Vamos conhecê-las. A primeira delas, vocês poderiam chamar de
autoanálise. Examine as suas falhas morais mais graves como:
vaidade, orgulho, egoísmo, insensibilidade, prepotência entre
outras. É provável que você tenha reencarnado com a finalidade de
eliminá-las; observe as suas vocações para a vida artística, religiosa,
intelectual ou mesmo para a vida frívola e desregrada.
Quanto ao possível lugar de nascimento, verifique se você aprecia
um país muito mais que outros, se teve facilidade para aprender
uma determinada 'íngua, se deseja conhecer este país de que você
tanto gosta, e se já conheceu o que sentiu quando lá esteve. Seus
sentimentos, em relação a um determinado país, podem ser
poderosos indicadores de u vida passada em um determinado
lugar.

Outra janela são os sonhos, principalmente recorrentes ou repetidos.
Muitos deles são lembranças de vidas passadas. Algumas vezes,
espíritos amigos fazem com que o encarnado relembre, em sonhos,
certos aspectos de sua vida passada para que não incorra nos
mesmos erros na vida presente. Há também sonhos desse tipo cuja
finalidade é lembrar o encarnado das tarefas que ele deveria realizar
na Terra, e delas está se desviando.

Mais uma forma de resgatar o passado é o de/á vú ou sensação do já
visto. Nesse caso, a pessoa, indo a um lugar, que antes não havia
ido, é capaz de reconhecer não só o lugar como detalhes dele.
Existem sensações desse tipo tão fortes que não há modos de
explicar esse conhecimento a não ser através da reencarnação. Por
fim, gostaria de falar para vocês um pouco sobre a TVP ou teorias
de vidas passadas.


— Tenho ouvido falar nisso, mas não sei bem o que é — disse
minha mãe.
— Vamos ver se eu consigo explicar. Nos seus estudos sobre
histeria, Freud descobriu que os sintomas de seus doentes eram
devidos a traumas (lesões psíquicas) que aconteceram na infância
deles e que teriam natureza sexual. Esses traumas teriam sido
recalcados, mas não eliminados. Assim, trazendo o material
recalcado inconsciente à vida consciente, os sintomas terminavam.
O método usado para fazer aflorar este material doentio à vida
consciente foi hipnose. Freud, entretanto, por ser mau hipnotizador
(segundo dizem) abandonou esse método, preferindo o de
associação de ideias que passou a ser usado com regularidade na
Psicanálise.

Mais à frente, alguns pesquisadores mais ousados passaram a
admitir que o trauma, causador do sintoma, poderia estar em outra
vida. Foi assim que surgiu a TVP ou terapias de vidas passadas que
se utiliza do método da RDM (regressão de memória). Assim,
através da hipnose, faz-se com que um indivíduo volte a uma vida
passada (ou mais de uma) com o intuito de descobrir o trauma
original do sintoma. Vou-lhes dar um exemplo para aclarar esse
assunto.

Em um livro escrito por Judith Johnstone e Glenn Willinston que se
intitula Em busca de vidas passadas. Há uma história muito
interessante sobre uma jovem de 14 anos, chamada Linda. Ela ficava
aterrorizada cada vez que nas aulas de ginástica, uma bola vinha
em sua direção. Em esportes como badminton ou tênis não
conseguia apanhar uma bola ou devolvê-la a seu parceiro de jogo. A
menina sentia tanto medo de projéteis de qualquer natureza, estava
impedida de participar das aulas de educação física. Os diretores da
escola, onde ela frequentava embora compreendessem a situação
dela, aconselharam aos pais da menina a procurar ajuda profissional
para a filha deles.


Foi assim que um dos autores do livro recebeu em seu consultório a
menina e os seus pais. Submetida a uma regressão de memória, a
moça se viu, de pé, em uma sala de julgamento, sendo acusada de
feitiçaria. Seu nome então era Elisabeth Bradley. Ela ouve os juízes a
condenarem à morte por enforcamento e fica revoltada. Não era
feiticeira, uma vizinha armara contra ela por inveja e ciúme. Não,
não ia morrer. Reunindo as suas forças, conseguiu fugir do tribunal.
Uma grande multidão a persegue, chamando-a de bruxa ela corre
até não poder e cai exausta na beira de um lago.

Os seus perseguidores a alcançam e atiram pedras contra ela.
Homens, mulheres, crianças participam do apedrejamento. Ela
sente no corpo cada golpe. Até que uma pedra maior atinge-lhe a
cabeça e ela morre. Vê o próprio corpo esmagado sobre as pedras,
mas sente-se livre. Vê pessoas levando seu corpo, mas não tem o
menor interesse por ele.

A partir desse momento Judith, a psicóloga, trabalha com este
material que aflorou à consciência de linda e, em pouco tempo, ela
perde o medo de projéteis e volta a sua antiga escola onde se torna
uma excelente aluna de educação física. Acho que é isso que, no
momento, eu posso falar a vocês sobre reencarnação. Quanto a você
Augusto. Se quiser saber mais sobre o assunto, aconselho um livro
muito interessante chamado Vinte casos sugestivos de
reencarnação, escrito pelo Dr. la Stevenson. É uma das melhores
obras sobre o assunto, escrita fora do meio espírita.

— Muito obrigado, Abílio, vou procurar este livro.
CAPÍTULO IX



Uma conversa muito interessante


As visitas de meu tio à nossa casa foram muito importantes para
nossa família, porque serviram para aproximar aquelas pessoas tão
interessantes e generosas que estavam distante de nós, Abílio e sua
esposa. Meu pai construiu definitivamente o conceito sobre a
Doutrina dos Espíritos e eu mesmo aprendi a conhecer melhor o
meu tio e a ter por ele um grande respeito. Assim, ele passou a nos
visitar com maior assiduidade, fora das visitas semanais às quartas-feiras
onde íamos ao centro para as sessões. Numa dessas visitas,
quando estávamos na sala conversando, meu tio perguntou para
meu pai:

— Augusto, você está lendo O Livro dos Espíritos?
— Sim.
— Está gostando?
—-Bastante. Eu não sabia que o Espiritismo científico era algo tão
interessante.

— Augusto, você acabou de usar uma expres são que seria bom
fazer sobre ela uma ligeira reflexão
— Qual?
— Espiritismo científico.
— Ouço muita gente falar isso.
— Eu também costumo ouvir, mas é ums expressão inteiramente
equivocada. Admitir a exis tência de um Espiritismo científico é
admitirtambém a existência de um Espiritismo não-científicoeé aí
que reside a questão.
— Não estou compreendendo, Abílio.
— Vou tentar ser mais claro. A Doutrina Espírit é uma estrutura
que se apoia em três pilastras: Ciência, Filosofia e Religião. Não se
trata, porém, de compartimentos separados, mas de três elemento

que formam uma síntese e de tal modo que nenhu deles é superior
ao outro, mas complementares. Assim, ser científico não é uma
diferença essencial entre o Espiritismo e, outras doutrinas, mas um
com ponente inerente a nossa doutrina.

— Compreendo. Mas, por que as pessoas falai assim? — insistiu
meu pai.
Meu tio fez um breve silêncio para beberum pouc do chá que
mamãe havia servido. Depois, colocand a xícara sobre o pires e
passando educadamente ponta do lenço nos lábios, falou do seu
modo habitual

— Esta é uma longa história. No começo do século, a Igreja
Católica estava muito preocupada c0m o avanço da Doutrina dos
Espíritos, e um modo de desacreditá-la foi associá-la à religião dos
negros que à época ainda não se chamava Umbanda, mas batuque,
feitiçaria e era considerada uma superstição dos escravos da
senzala. Em virtude disso, os próprios espíritas criaram expressões
pouco felizes como: Alto e Baixo Espiritismo; Espiritismo de mesa e
de Terreiro; Espiritismo de linha branca e Espiritismo científico com
o objetivo de fazer uma distinção entre o Espiritismo e a religião
afro-brasileira. Assim, colocavam-se em um mesmo saco o
Africanismo e o Espiritismo com uma diferença apenas de
particularidades como magia negra e magia branca (baixo e alto);
local das sessões (terreiro e mesa); orientação mágica (linha preta e
linha branca); método de estudo (científico e não--científico) e
outras semelhantes.
Essa terminologia não pode ser aceita pelo espírita contemporâneo.
Só existe uma forma de Espiritismo: a Doutrina codificada por Allan
Kardec na segunda metade do século XIX. O que não derivar dos
cinco livros da codificação pode ser qualquer coisa, inclusive algo
respeitável, mas não será Espiritismo.


— Muito interessante. Já que estamos numa hora de esclarecimento
de pessoas que, como eu, ainda não conhecem Espiritismo, gostaria
de fazer uma outra pergunta — pediu meu pai.
—Fique à vontade, Augusto — disse meu tio com simpatia.

— Muito bem. Então, diga-me uma coisa: dizer-se espírita é o
mesmo que se dizer espiritualista?
— Esta é uma questão interessante, mas de início devemos saber o
seguinte: todo espírita é espiritualista, mas nem todo espiritualista é
espírita.
— 0 que é que o senhor quer dizer com isso, tio? — perguntei.
— Meu rapaz, vamos tomar três palavras: materialista,
espiritualista e espírita. A primeira delas é formada de Matéria + al
+ ista e significa: doutrina que defende um monismo material, ou
seja, a matéria como o único elemento existente na realidade
objetiva ou de um modo ainda mais simples: crença apenas na
matéria; espiritualismo é formado de Spiritus + al + ista, crença que
defende um dualismo formado por matéria (corpo) + espírito e que
se opõe ao Materialismo; a terceira palavra, Espiritismo é formado
de Spiritus + ismo e tem um sentido próximo ao do espiritualismo,
entretanto, vai além deste e defende as teses das vidas sucessivas,
da comunicação dos espíritos e da pluralidade dos mundos
habitados.
— Essas teses não são aceitas pelas religiões tradicionais, não é
assim? — disse meu pai.
— De fato. Esses três aspectos são característicos apenas da
Doutrina Espírita.
-Estes pontos de vistas não são dogmáticos? questionou meu pai.


— Não. Dogmas são opiniões impostas pelas igrejas e as crenças
espíritas são verdades que nascem da observação dos fatos, tanto é
assim que Allan Kardec chegou a dizer que o Espiritismo não pode

se opor aos fatos, em um caso de choque entre a verdade espírita e o
fato real e concreto fica-se com o fato.

— Abílio — comentou minha mãe — uma amiga minha, católica,
me disse, certa vez, que os espíritas não acreditam em Deus. Isso é
fato?
— Claro que não, entretanto, nesse caso, temos de fazer algumas
observações. Vocês devem conhecer muito bem o credo católico.
— Sim, eu o conheço de cor. Falou minha mãe.
— Pois bem. O credo ou símbolo dos apóstolos é um conjunto de
afirmações que todo católico deve respeitar como máxima expressão
de verdade de sua religião. O credo católico afirma que Deus é o
criador de todas as coisas e que se encontra sentado no céu tendo à
sua mão direita Jesus Cristo seu filho único.
Para nós os espíritas, Deus não pode estar senado uma vez que o
ato de sentar-se é próprio do ser mano e também não cremos que
Jesus esteja sen-0 ao lado dele e muito menos que seja seu filho Un'c°Se
nós não cremos nisso, para um católico

estamos errados e não cremos em Deus, porque cremos no deus que
ele acredita.

— Sim, por certo —falou minha mãe.
— Rosa, em verdade, Deus é um conceito sendo assim, é um
produto da linguagem. Des modo haverá tantos conceitos de Deus
quantas fore as doutrinas que a ele se referirem.
— Então existe um conceito espírita sobre divindade? — voltou
meu pai a participar.
— Sim. Existe. E esse conceito se encontra e O Livro dos Espíritos.
Augusto, você que está lend esse livro, se lembra da definição de
Deus que está na questão número um?

— Sim, pois foi um item que me interess muito. A pergunta: Que é
Deus? Dá-se a seguinte re posta: Deus é a Inteligência Universal
causa primei
de todas as coisas.
— Parabéns, Augusto, é isso m esmo — elogiou meu tio Abílio.
— Muito obrigado, Abílio, estou levando a sério o meu estudo.
— Isso é muito bom. Notaram, porém, alguma coisa na pergunta
que é Deus?
— Não. Confesso que não. O que você esperava que eu notasse? —


disse papai.
_ O pronome que e não o pronome quem.
—E faz diferença? — quis saber minha mãe.
Muita. Repare bem. O pronome que é um
interrogativo neutro e, portanto, é usado para coisas, em frases
como: que é isso? Que pássaro é aquele? De que pedra você está
falando. O pronome quem, por seu turno, é usado para pessoas em
frases assim: Quem é o convidado? Quem escreveu este livro?
Quem está vendo televisão?


— Ainda não atinei com o que o senhor quer dizer, tio. Falei um
tanto confuso com o que ouvia.
— Tenha calma, pense comigo, se a pergunta de Allan Kardec fosse
quem é Deus, ele estaria antropomorfizando a divindade, ou seja,
dando a ela qualidades humanas. Usando o pronome neutro que,
ele nos diz que Deus não é como nós, mas uma inteligência
abrangente da qual derivam todas as coisas.
Meu tio sorriu como se estivesse satisfeito com a própria conclusão.
Meu pai parecendo cada vez roais movido pelo assunto, tomou a
palavra:

— Abílio, gostaria de pedir a você desculpa.
— Desculpa, por que, Augusto?

— Pela maneira intransigente e preconceituosa com que tratei você
por todo esse tempo.
— Não se preocupe com isso. Eu também tive a minha parcela de
culpa em nosso relacionamento.
— Você?
— Sim. Quando percebi que você me via de um modo pouco
simpático, afastei-me sob a alegação de que assim seria melhor para
nós dois e nisso errei. Deveria ter sido mais humilde e me
aproximando mais de vocês, entretanto, por orgulho, não o fiz.
Deixemos, porém essas coisas que passaram. É como diziam os
antigos: "Águas passadas não movem moinhos". Daqui para frente,
todas as barreiras, que havia entre nós, foram quebradas. Espero em
Deus que, inclusive, você se torne espírita.
— Talvez isso não esteja muito longe. A propósito, diga-me uma
coisa.
— Fique à vontade.
— Diga-me, a codificação é toda a obra de Allan Kardec?
— Não. Ele ainda publicou um livreto chamado O que é o
Espiritismo, uma obra propedêutica para o principiante espírita e a
A Revista Espírita, que
publicada no Brasil, deu origem a um conjunto de dez livros se não
me engano.
— Puxa! Que memória você tem, Abílio! -j exclamou meu pai,
admirado.
Não se trata de boa memória, mas da repetição dessas coisas. Tanto
falo nelas, que elas acabaram se incorporando à minha memória.


— Será que chego lá um dia? — brincou meu pai.
— Só depende de você, meu amigo.
— Posso lhe fazer mais uma pergunta? É a última por hoje, garanto.

— Claro que pode. E saiba que me dá muito prazer responder as
questões que você me faz.
— É o seguinte. Você acredita mesmo na comunicação dos
espíritos?
— Sim, e você também acreditará se ler com atenção O livro dos
médiuns. Eu vou lhe explicar por que fiz esta pergunta. Todas as
vezes que falei com os padres e com amigos meus materialistas
sobre os fatos mediúnicos, eles sempre me diziam que a
mediunidade seria um conjunto de truques e trapaças que se
assemelhavam aos truques dos Prestidigitadores e dos mágicos de
circos. O que você Pode me dizer sobre isso?
— De início, não posso negar que a mediunidade é algo que com
muita facilidade pode ser usada para o exercício do embuste, e
muitos médiuns poderosos como Eusápia Pladino, Carlos Mirabelli,
Eva Carriere, entre muitos outros, foram acusados de fraude;
entretanto, o fato de um médium ser apanhado em fraude, não
elimina o conjunto de sua obra.

— Por que os médiuns fraudam? — indagou meu pai.
— Porque são seres humanos. Esta é a primeira razão. A segunda é
o fato de que a mediunidade mal usada pode ser cassada pela
Espiritualidade Maior e, por fim, porque o médium não é senhor
dos fenômenos que acontecem com ele. O telefone toca de lá para cá
e não daqui para lá. Assim, em lugares onde há médiuns
profissionais que são remunerados, como acontece nos Estados
Unidos, as pessoas pagam pata obter o fenômeno que desejam, e o
médium, se não o consegue através de seus recursos mediúnicos,
pode simular uma comunicação para atender à demanda do cliente
e justificar o pagamento.
— Muito interessante! — exclamou meu pai.
— Muito mesmo. Por isso, já ouvi alguém dizer que o menos
importante no Espiritismo é receber espíritos. Em verdade,

conhecemos um verdadeiro espírita por sua transformação moral e
pelo esforço que faz neste sentido. Meu cunhado, eu gostaria de
lembrar a você algo que considero fundamental.

— De que se trata?
— O Espiritismo, meti amigo, não tem Por finalidade dar ao homem
condições material de vida, não é uma religião de resultados, mas
um discurso religioso que busca explicar a realidade de um ponto
de vista espiritual ou, se você achar melhor, metafísico. Com isso, a
nossa doutrina busca reforma íntima, a modificação dos caracteres e
a instauração de um projeto moral cujo objetivo é nos levar aos
mundos maiores.
— Isto é muito interessante...
— Não só. É algo básico para todo espírita saber e por em prática.
— Abílio, estou abismado! Como eu fazia uma ideia errada do
Espiritismo!
— Não só você, Augusto, há muitas pessoas boas e corretas que,
por falta de informação, pensam como você pensava.
— Mais uma vez estou grato a você, Abílio, muito grato mesmo.
— Agradeça não a mim, Augusto, mas ao Cristo, pois foi ele quem
tocou no seu coração. Eu fui um mero instrumento para isso e nada
mais.
CAPÍTULO X
Um ator perdido no tempo



Eu estava muito satisfeito com o correr dos acontecimentos, pois
notara a melhora acentuada de meu pai, não só por sua aceitação
das ideias espíritas, como por sua melhora como ser humano. Eile
se tornara mais compreensivo. Já podia falar em Deus quase que
com naturalidade já que, no passado, julgando-se ateu este era um
nome para ele impronunciável. Certa manhã, na hora do café, ele
nos falou de suas mudanças.

— Vocês sabem, algo está acontecendo comigo.
— Algo de bom ou de mau? — perguntou minha mãe com
curiosidade.
— Acho que algo de muito bom.
— Que coisa é esta? — indagou minha mãe.
— Este meu encontro com o Espiritismo. Só lamento ter levado
tanto tempo para encontrar esta doutrina maravilhosa. É
impressionante como os nossos preconceitos impedem o nosso
progresso.
Agora que adquiri estes novos esclarecimentos, não quero mais
perder tempo.

Meu pai ainda falou algumas coisas e, por fim deixou a mesa e foi
para o trabalho. Eu estava feliz em ouvir aquelas palavras dele, pois
elas indicavam uma mudança qualitativa que fazia de meu pai uma
pessoa nova.

Aquela semana passou tranquila, exceto em um fato que se deu na
terça-feira. Quando minha irmã Cristina, ficou muito calada
olhando para um canto da parede. Perguntei a ela o que se passava
e ela me respondeu:

— Alvinho tem um homem ali no canto olhando para gente. Ele é
esquisito.
— Esquisito como, Aninha?

— As roupas deles não se parecem com as nossas e o rosto dele está
todo pintado.
Compreendi que se tratava de um espírito desencarnado e, como
meu tio Abílio me ensinara, fechei os olhos e pedi aos bons espíritos
que ajudassem aquele irmão. Depois de alguns segundos, perguntei
à minha irmã:

— O homem ainda está no mesmo lugar, Aninha?
— Não. Ele foi embora.
No dia seguinte, quarta-feira estando na reunião do Ernesto
Bozzano, meu tio fez a invocação e, não demorou muito, ouvimos
uma voz masculina que se expressava através do Senhor Paulo
Meneses

— Eu não devia estar aqui! Eu não devia!
— Nós o chamamos aqui, meu irmão. Disse meu tio Abílio.
— Eu não posso estar aqui agora. Devo ir para a casa de Lisânias
que é o meu litúrgico. Esta semana vamos representar o Agamenon,
de Ésquilo. Coube a mim o papel principal.
— Meu irmão, você está no século XXI e não na Grécia Antiga.
— Eu não sei o que é século XXI. Isso não faz o menor sentido. O
que sei é que eu vinha da casa de Céfalo, onde assisti uma conversa
de um sofista notável, um certo Sócrates do demo de Alopeke. Ele
fala muito bem e com isso engana todo mundo. Aristófanes não
gosta dele e até compôs uma comédia para satirizá-lo. O nome, se
não me engano, era As nuvens, foi um sucesso eu mesmo vi e quase
estourei de tanto rir.
— Meu irmão, insisto, você não vive na Grécia Antiga. Você já
viveu, mas isso faz muito tempo.
— Espere aí que tipo de sofista é você? Que conversa é esta? Como
eu não vivo em Atenas. Não só vivo como aqui nasci e cresci. Você

está parecendo com aquele Sócrates que faz o certo parecer errado e

o errado certo. Você sabe que este tal de Sócrates vai se dar mal?
Tem muita gente na cidade que o odeia principalmente Ânito e
Méletos.
— Meu amigo — insistiu meu tio —, olha bem ao seu redor e veja se
este lugar parece com alguma casa grega das que você conheceu.
— Não. Não parece.
— Então, se não parece, você está enganado quanto a estar na
Grécia.
— Isso é um ardil. É claro que estou na Grécia. Por Hércules que
estou! Eu vou sair daqui e vou falar com o meu chefe.
— Quem é seu chefe? — interrogou meu tio.
— Meu chefe é muito poderoso. Ele disse para eu vir para cá e ficar
aqui tomando conta das coisas dele.
— Do que você está tomando conta?
— Eu não sei bem.
— Meu amigo, você sabe que está numa condição diferenciada?
— Diferenciada? O que é isso?
— Isso quer dizer que você não está aqui entre nós.
— Você está dizendo que estou morto! Isso é que não estou. Se eu
estivesse morto, estaria no
Hades. E se estivesse no Hades, teria viajado no barco do Caronte,
teria visto Cérbero, o terrível cão de três cabeças. Nada disso eu vi.
Nada mudou para mim. Continuo andando pela cidade de Atenas e
me sinto muito bem. Quer saber de uma coisa? Eu não vou ficar
mais aqui. Vou-me embora.


Tendo acabado de dizer estas palavras, o médium teve um ligeiro
estremecimento. Neste mesmo momento, a irmã Letícia se


manifestou através de minha tia, Hortência. O espírito, depois de
nos saudar a todos, falou-nos, explicando a comunicação anterior.

— Meus irmãos, vocês acabaram de ver algo não muito comum,
que se dá com certos espíritos, embora para os encarnados que não
estudam sobre a vida espiritual pareça algo fantástico e mesmo fora
de propósito. O espírito com quem entraram em contacto, agora há
pouco, sofre uma espécie de paralisação psíquica. É como se ele
houvesse parado no tempo, em uma de suas encarnações na Grécia
Antiga. Ele vive emocionalmente naquela fase histórica, e a sua
mente está tomada por antigas imagens das quais ele não consegue
se liberar.
— Irmã, essa pessoa que ele chama de chefe ou Arconte parece
exercer sobre ele grande fascínio. Disse o Dr. Ramalho.
— Não tenham dúvida. De que o espírito recido no mal exerce
sobre esses espíritos fracos doentes um grande poder hipnótico.
Este a quem 6 chama de Arconte é o líder da falange obsessora está
naquela casa.
— Quem é esse espírito?
— Em tempo oportuno irão saber.
— E o que nós podemos fazer por este espírito?
— Não muita coisa, além de orar. Depois dessa manifestação, tenho
certeza de que ele será levado para um de nossos hospitais
psiquiátricos, onde médicos espirituais competentes vão
descondicioná-lo. Não faz muito tempo, um espírito muito amigo
dele veio até nós interceder por ele e seus rogos foram ouvidos.
— Minha irmã, o pouco que tenho estudado sobre a vida espiritual,
revelou-me que um espírito só pode ser ajudado caso peça auxílio
dos espíritos superiores e se tiver merecimento. Nesse caso, não
haveria uma ajuda compulsória a esse espírito?
— De certo modo, sim. O caso dele é muito interessante. Nessa
última encarnação na Hélade, ele não foi uma pessoa má. Ele está

nesta situação não como castigo de algo negativo que tenha
praticado, mas por ter adoecido depois de desencarnado.

— Adoecido como? Meu pai voltou a perguntar.
Ele amou tanto a sua vida na Grécia Antiga como ator que resolveu
negar-se e perdê-la. Foi, então viver em uma comunidade espiritual
que é habitada por espíritos oriundos da Grécia. Ali existem as
diversas cidades gregas como Esparta, Atenas, Corinto e Tebas, são
projeções ideoplásticas. E assim encontrou o lugar adequado para
alimentar suas fantasias.
— Há nesta história, algo para mim muito estranho, minha irmã —
falou meu pai.

— Do que se trata? — quis saber a irmã Letícia.
— Do tempo. Ele está distante de nós bem mais do que dois mil
anos.
— É verdade, entretanto, devo deixar claro para vocês que a noção
de tempo no mundo material, não é a mesma que temos no mundo
espiritual. Em geral, o espírito desencarnado, vítima de
perturbação, perde a noção de tempo e espaço. Em muitos castelos
ingleses e na Torre de Londres existem personagens históricos
desencarnados que assombram aqueles locais e foram vistos por
muitas pessoas, chamadas médiuns videntes. Muitos desses
espíritos se encontram presos a esses lugares por mais de mil anos.
Irmã Letícia parou de falar por um momento, enquanto ficávamos
meditando sobre o que ela nos avia dito. Em verdade, em termos de
conhecimento do mundo espiritual a gente está ainda no jardim da
infância. É verdade que o Espiritismo abriu para nós as janelas da
espiritualidade, o que nos possibilitou ver um pouco além do que
víamos antes de seu surgimento, no século XIX, entretanto, a
Doutrina dos Espíritos trouxe para nós apenas aquilo que
poderíamos suportar no nível atual de nossos conhecimentos.


Ainda estava imerso nesses pensamentos quando a Irmã Letícia
voltou a falar:

— Como vocês podem ver a nossa tarefa é árdua, pois há muitos
espíritos sofredores que necessitam de nossa ajuda e,
principalmente, de nossa compreensão. Não esmoreçamos,
portanto, confiemos em Jesus e continuemos com este trabalho.
CAPÍTULO XI
O demônio e o Espiritismo


Em uma tarde de domingo, em que Tio Abílio veio nos visitar, o
assunto não foi outro: o Espiritismo. Meu pai, cada vez mais
entusiasmado falou:

— Abílio quando eu nada sabia do Espiritismo, um amigo meu me
deu de presente um livro que se intitulava O Espiritismo no Brasil,
escrito por um padre chamado Boaventura Kloppenburg.
— Eu conheço este livro. Observou meu tio. Ele escreveu um outro,
Umbanda no Brasil.

— Pois bem. Li esta obra toda do início ao fim, e notei que se
tratava de um ataque, muitas vezes grosseiro, ao Espiritismo. Nele
diz o padre que a maioria dos chamados fenômenos mediúnicos se
dão Pela ação do diabo. Você poderia falar-nos um pouco sobre o
diabo e o Espiritismo.
— Este é um assunto longo.
— Temos a tarde e a noite para ouvi-lo.

-Está bem. Por sorte acabei de escrever um livro intitulado Deus eo
demônio segundo o Espiritismo.

— Legal,tio. Osenhorvai publicá-lo?—perguntei.
— Não sei. Dependo apenas de encontrar uma editora. Por sorte
nossa, os originais dele estão no carro. Alvinho, por favor, vai lá
fora e pega na mala do carro um livrinho encadernado em espiral,
parecido com um caderno ou com uma apostilha. Está dentro de
minha pasta.
— Está bem tio, já vou.
Fui ao carro, peguei o livro e o entreguei ao meu tio, que me
agradeceu e nos disse.

—Pronto. Se a memória me falhar, tenho o livro como apoio. Vamos
ver então esta questão que causa, às vezes, tanta polêmica no
mundo religioso. Para a teologia católico-protestante, a existência
do diabo é necessária para explicar como, em um mundo criado e
governado por um Deus Bom e Justo, existe o mal. Não vou
esmiuçar as sutilezas próprias dos teólogos. Vou me dedicar a
examinar, primeiramente a concepção de demônio no imaginário
popular. Comecemos por seu nome.

No folclore europeu, o demônio aparece com diversos nomes. O
francês Démon, o italiano Diávolo, o espanhol Diablo, o inglês Devil
são termos que podem designar o príncipe das trevas. Na literatura
apocalíptica, o diabo é chamado de Satã, Belial e Belzebu, cujos
caracteres e funções, às vezes, são independentes. No folclore e na
literatura medieval surgem algumas distinções de hierarquia, por
exemplo, Lúcifer é o príncipe do mal, o grande rebelde e Satã e
outros demônios menores são seus servidores. Em geral, entretanto,
essa diferença é rejeitada pela Teologia que parece defender a tese
de que Satã e Lúcifer são uma única pessoa; por fim, na tradição


gnóstica, aparecem nomes como: Satanás, Satanael, Abaton,

Asmodeus, Triphon e Sabathai.
Há uma ideia bastante difundida, segundo a qual o nome é a coisa.
Esta concepção é muito antiga, e por causa dela é que, no decálogo,
se proibiu pronunciar em vão o santo nome de Deus, pois, se banalizarmos
o nome, acabamos, também, banalizando o que ele
representa. A isso chamo de esvaziamento semântico.


Algo muito semelhante acontece com respeito aos tabus
linguísticos. Existem palavras que são carregadas de energia
negativa e que, por isso, devem ser evitadas. Por este motivo o
diabo possui uma grande quantidade de nomes eufemísticos como:
Diacho, Dianho, Diego, Demo, Cramulhão, Capeta, Cão, Tinhoso,
Zarolho, Canhoto, Tisnado, o Negro, o Rapaz, o Compadre, o Coxo,
o Tristonho, o Velho, o Jogador, o Solitário, o Tembá, o Azarepe, o
Canh Duba, o Dubá, Mafarro, Mafarrico, Galhardo, o Homem* o
Renegado, o Pé-de-Pato, o Sei-lá-o-que-diga ' Coisa Ruim, a Velha
Serpente, entre outros nomes'

Como vocês sabem, o diabo é também um personagem bíblico.
Vamos ver com que nomes ele aparece nos Evangelhos. O primeiro
é Satã ou Satanás

Esta palavra se diz em hebraico Satan e em aramaico Sitiná. O seu
sentido é o de adversário, opositor, pessoa que se coloca contra os
projetos de outra. Em grego, foi transliterado para Satanás. Na
confissão de Pedro (Marcos, VIII: 27-33 e Mateus, XVI: 13-23) Jesus
conversando com os apóstolos, diz-lhes que seria necessário que o
filho do Homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos poderosos e,
por fim, morto. Pedro, escandalizado, repreende Jesus por falar
daquele modo:

Mas ele virando-se e olhando para os discípulos, repreendeu a
Pedro dizendo: Afasta-te de mim Satanás porque não compreendes
as coisas que são de Deus, mas as que são dos homens.3


Neste trecho, a palavra Satanás foi usada por jesus com o sentido de
que falamos há pouco. Pedro, por ignorância do projeto divino,
tenta impedir que jesus cumpra a sua missão; está, portanto, se
opondo às pretensões do Mestre, daí o termo Satanás aplicado a ele
pelo Cristo.

Segundo termo é Diabo. E está relacionado com três outras palavras
gregas: 1â o verbo diaballo, formado pelo prefixo dia que significa
separação em duas ou mais direções, e bailo cujo sentido é o de
jogar, atirar, arremessar. 2a O substantivo diabolé-es que significa
desunião, calúnia. É por isso que na tradição ocidental é chamado
de o Caluniador, Intrigante, o Pai-da-Mentira etc. 3â O adjetivo
diabalo, os, on que se traduz por — O Provocador, aquele que
provoca ou produz divisões. Essas palavras, naturalmente, não
eram aplicadas apenas ao diabo, mas eram palavras de uso comum,
como acontece em nossa língua.

Vamos examinar, em seguida, outra palavra: Lúcifer. Esse nome,
com o qual costumamos designar o Espírito do Mal, deriva do
adjetivo latino lúci-fer-fera-ferum e significa luminoso, o que traz a
luz, o que porta o archote. Lucifer-eri, em latim, era o nome que se
dava ao planeta Vénus com o nome de estrela ualva, pelo fato de ele
aparecer de madrugada como se trouxesse a luz do dia (a alva ou
alba).

A próxima palavra é bastante conhecida nós. Refiro-me a demônio.
Esta é uma palavra ^ não pode ser confundida com as anteriores.
Quando os gregos usavam o substantivo daimon-ônus queriam falar
apenas de um espírito desencarnado Um daimon poderia ser um
espírito guia, um espírito familiar ou um espírito obsessor. Os
verbos gregos dairno-nizomai e daimono expressam a ação de receber
um espírito ou ser possuído por um desencarnado. Há entretanto,

¹ Marcos, 8:33.


outros usos do termo. Platão, no Crátilo, usa daimonios associado à
sophia, com ideia de sabedoria divina. Heródoto (História IV: 126 e

VII: 48) usa o termo como determinante da palavra homem,
indicando pessoa excelente. Nos Evangelhos, quando este termo
aparece, deve ser traduzido como espírito impuro, imperfeito ou
obsessor.
Vamos agora a um termo do qual eu tinha muito medo quando era
menino e que as pessoas evitavam pronunciar: Belzebu. O nome
Belzebu difere um pouco de Baalzebube, deus de Acaron. O texto
grego anota Beelzebube. A explicação razoável dessa diferença é que
os judeus, com o fim de escarnecer dos acaro-nitas e o seu deus,
converteram a palavra zebube, mosca em sibbul ou sebe/que significa
estrume. Mas como a palavra zebul significa habitação, Baalzebub
queria dizer o Senhor da habitação. Segundo, porém, ideia de que o
meu deus é verdadeiro e o seu deus falso ou é o demônio, Baalzbube
tornou-se um dos ríncipes do inferno.
por estranho que isso possa parecer, o demônio aparece muitas
vezes associado ou disfarçado em certos animais. Normalmente se
encontram associados o demônio: A cobra, o macaco, o morcego, o
gato, urso, o bode, o leão, o cachorro, o corvo, o galo, a cabra, o
ganso, a mosca, o verme, o gafanhoto a lebre, raposa, a baleia, o
cavalo, a hiena, o sapo, a coruja, o carneiro, a aranha, o gafanhoto, o
escorpião, o abutre.

Para se justificar as relações entre os animais e diabo, separamos
alguns, cujo simbolismo poderia explicar a cumplicidade entre eles
e as Trevas.

A baleia

Ela é a boca enorme que devora tudo. No mito bíblico foi uma
baleia que engoliu o profeta Jonas quando este caiu no mar. No
sentido de boca voraz e saciável, ela representa a boca do inferno
que engole s pecadores. Não devemos ainda nos esquecer de que,


no Romance Moby Dick, de Herman Melville, a baleia é uma
representação do mal.

O bode

Do mesmo modo que o carneiro, o bode é um símbolo da força
genésica da natureza, da libido impulso sexual) e da fecundidade.
Embora se aproxime do carneiro o bode dele se afasta
porserocarneir um animal solar, e o bode, na maioria das vezes um
animal lunar. Por seu forte odor, foi considerado como um símbolo
de abominação e putrefação. Vamos recordar que o demônio,
tradicionalmente, possui um forte cheiro de enxofre. O demônio, o
deus do sexo e de todas as formas de iniquidade encontra no bode a
sua melhor representação. Deste modo, não é de se estranhar que,
no sabá, a festa das bruxas que tem por centro o culto a Satã, o
princípio do mal, manifesta-se na forma de um bode, o hircus
noturnus (bode da noite).

O cavalo

Há uma crença bastante geral que associa o cavalo ao Mundo dos
Mortos e, por consequência, às Trevas. O cavalo é aquele que
anuncia a morte. Por esse motivo, no famoso livro de Artemidoro, A
chave dos sonhos, sonhar com um cavalo indicaria que o sonhador
correria perigo de morrer.

Adeusa da fertilidade, Demetér da Arcádia, muitas vezes era
representada com a cabeça de cavalo. Essa deusa costumava ser
identificada com uma das Erínias ou fúrias, divindades que
castigavam os crimes no interior do genos. As harpias, demônios das
tempestades, da devastação e da morte são triformes: mulheres,
aves e mulheres éguas, sendo uma delas a mãe do cavalo de Aquiles
e, de outra, teria nascido o cavalo de Hermes.


Arhiman, o diabo do Zoroastrismo, quando quer matar e carregar a
sua vítima assume a forma de um cavalo. O cavalo é ainda o
símbolo da sexualidade masculina, da força viril, do macho.

O cachorro

Este é um animal de vastíssimo e complexo simbolismo. Sob o nome
de Cérbero e com três cabeças, ele guarda as portas do inferno,
alimentando-se da medula dos mortos. Sua baba venenosa é capaz
de infectar toda uma região. É ainda o companheiro de Hécate, a
Diana subterrânea, protetora das feiticeiras e padroeira das ações
maléficas.

A primeira função mitológica do cachorro é a de psícopompo, isto é,
condutor das almas dos mortos. Assim, o cão é o guia do homem na
morte como o havia sido na vida. Os cinocéfalos, macacos cuja
cabeça assemelha-se a de um cachorro, tinham, na religião egípcia, a
função de aprisionar ou destruir os inimigos da luz.

Entre os antigos germanos acreditava-se que um cachorro chamado
Garem guardava a entrada do Nifhein, o Reino dos Mortos, região
coberta de gelo e dominada pela mais densa treva.

Nas antigas culturas mexicanas, criavam-se cães especialmente
destinados a guiar as almas no além Assim, quando alguém morria,
enterrava-se com ele um cachorro de pelo amarelado (cor do sol)
que caminhava junto da alma como Xolate, o deus-cão, que
acompanhava o sol quando ele descia do mundo para o mundo das
sombras.

No Islamismo, o cão representa aquilo que há de mais sórdido e vil,
pois é um animal portador de grande impureza. Em uma tradição
de Maomé, o profeta do Islã, ensina que a vasilha onde bebeu um cã
deverá ser lavada sete vezes, sendo que a primeira purificação
deverá ser feita com terra. Ainda é atribuída ao profeta uma regra
interessante: não se pode matar um cão, exceto os cães negros que


possuírem duas manchas brancas sobre os olhos, porque esses

animais eram tidos como encarnação do diabo.
Por fim, vamos lembrar que, em nosso folclore, o diabo é chamado
de cão e que, em muitas histórias, ele aparece na forma de um
grande cachorro negro com olhos vermelhos como se fossem de
brasa. No filmes sobre satanismo, o Anticristo criança é guardado e
defendido por um cachorro.

A coruja

A coruja é, na mitologia grega, a ave pertencente à deusa grega
Atená, a Minerva dos romanos e, por isso ela é o símbolo da reflexão.
Entretanto, entre os astecas, ela é o animal que representa o deus do
inferno, sendo guardiã da morada trevosa dos mortos. Fia também é
um avatar da noite e das terríveis tempestades. Este simbolismo,
por um lado, associa à coruja ao Mundo dos Mortos e, por outro, às
forças poderosas da natureza. No folclore, ela aparece como o gato
preto e a serpente, associada às bruxas que, como se sabe, são
servidoras do diabo.

O gato

Como o cachorro, o gato também possui um simbolismo
extremamente complexo e variado. No folclore nipônico, o gato é
um animal de mau agouro. Dizem que ele é capaz de matar as
mulheres e ocupar o lugar destas. No Budismo, diz-se que o gato e a
serpente foram os únicos animais que não se comoveram com a
morte de Buda. Essa associação entre o gato e a serpente faz desses
animais signos do pecado e do abuso das coisas materiais.

Na ilha de Sumatra, há uma tribo chamada Nias. Segundo esse
povo, existe uma árvore cósmica que deu origem a todas as coisas.
Os mortos, para alcançarem o céu, passam por uma ponte sob a
qual está a profundeza dos infernos. Há um guardião de pé, na


porta do céu, que traz consigo um escudo e uma lança. O gato o
auxilia na tarefa de atirar no rio dos infernos a alma dos réprobos.
Podemos acrescentar ainda no Antigo Egito, os gatos eram
considerados como divindades, a ponto de, em 525 a.C, na batalha
de Pelusa, o exército persa de Cambises tomou o Egito levando
gatos que os egípcios não podiam matar A deusa gata no Egito se
chamava Bastet.

A serpente

Historicamente, a serpente é um símbolo positivo e não negativo.
Nas mais antigas mitologias, ela encontra-se na origem da vida e
simboliza a alma e a libido. Ela é um animal cósmico por excelência.
Na forma de Ananda cujos anéis encerram o eixo do mundo. No
mito grego, é o espírito vivificante e inspirador, padroeira dos
médicos e dos adivinhos.

A serpente ainda se relaciona com as mulheres e, por consequência,
com os cultos da fertilidade. Os tcho-kwes, uma tribo da Angola,
costuma colocar uma serpente de madeira no leito nupcial para que
a fecundação das mulheres seja garantida. Na índia, as mulheres
que desejam engravidar tentam tocar em uma naja, serpente
extremamente venenosa. Os Tupis-guaranis, no Brasil, pretendem
tornar férteis as mulheres batendo nelas com uma cobra.

Em algumas culturas, a serpente é tida como a responsável pela
menstruação, pois esta resultaria de sua picada. Essa estranha
concepção já aparece nas culturas pré-masdeístas da antiga Pérsia.
Na tradição rabínica diz que a origem da menstruação está nas
relações entre Eva e a Serpente.
Embora a Cristandade tenha conservado, da serpente, o seu aspecto
negativo e maldito, os textos sagrados se mostram ambíguos a este
respeito, pois a mesma serpente que tira a vida, também pode evitar
a morte. No livro de Números, lê-se:


Então, Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras cuja
picada matou muita gente em Israel. Veio, então, o povo dizer a
Moisés: "Pecamos falar contra lahweh e contra a ti. Intercede junto a
lahweh para que ele afaste de nós essas serpentes." Moisés
intercedeu pelo povo e lahweh lhe disse: "Faze uma serpente de
bronze e a coloque em uma haste. Todo aquele que for mordido e a
contemplar, viverá. "Moisés fez o que Deus lhe ordenara e todo
aquele que foi mordido olhava para a serpente de bronze não
morria.4

Na época da Igreja Primitiva, Jesus, que simboliza a humanidade, é
apresentado como uma serpente atravessada na cruz, em uma clara
alusão à serpente de bronze. Nos séculos XII e XIII, em um poema
místico traduzido por Remy Courmont, reapa rece a menção ao
Cristo-Serpente.

Naturalmente, porém, não é desta serpente que mata e salva de que

o imaginário medieval se apossou, mas da serpente da Gênese, "o
animal mais astuto da Terra" que arrastou Eva ao pecado e com ela
(ou por meio dela) Adão. Esta é a serpente a que João, O Vidente de
Patmos, se refere:
Foi expulso o grande Dragão, a Serpente Antiga, o chamado diabo
ou Satanás, Sedutor de toda a Terra habitada. A Serpente foi
expulsa para a terra e seus anjos foram com ela.5

É a partir daqui que a serpente perde os seus atributos positivos e
torna-se um ser repugnante e associado, claramente, a Satanás. Ela
se torna, então, O Tentador, responsável direto pela queda do
homem. Toda sabedoria que, na Antiguidade, se atribuía à serpente,

4 Números, XXI: 6-9.

5 Apocalipse, XVI: 19.


é ilusória e perigosa, uma falsa sabedoria que leva à morte o espírito
dos homens. Alexandre Krappe, tratando do mito da serpente,
escreveu:

Na Epopeia de Gilgamesh, a serpente rouba do herói a erva da
imortalidade, doada pelos deuses. Em a Nova Pomerânia, um bom
demônio quis que as serpentes morressem e os homens, apenas
mudando a pele, vivessem para sempre. Aconteceu, contudo, que um
mau demônio, sabendo disto, reverteu o processo é por isso que as
serpentes mudam de pele e os homens morrem. No arquétipo do
relato bíblico, a Serpente aparece fazendo Adão (ou melhor Eva )
acreditar que a árvore da morte era a árvore da vida. Ela própria, a
cobra, por certo, comeu da árvore da vida.6

Assim, a serpente é a Mãe da Mentira, a sedutora, aquela que não se
pode confiar, a que ilude e esses são traços do demônio.

A aparência do demônio

O demônio também se apresenta na forma humana. Nessas
ocasiões, os seus disfarces são variados. Pode aparecer como um
velho ou uma velha; uma jovem atraente; um criado ou um nobre;
um pescador; um caçador; um mercador, um sapateiro ou um
camponês. No folclore brasileiro, ele se manifesta, às vezes, como
um negro tocador de viola, sempre pronto a participar de um
desafio ou como um excelente dançarino.

Em muitos mitos europeus, o diabo toma a aparência de um monge,
de um padre, de um anacoreta ou um peregrino. Quando aparece
na forma de um filósofo, matemático, físico, alquimista ou
gramático apresenta um conhecimento sobrenatural e uma
habilidade fantástica nos debates. Pode ainda se manifestar como

6Krappe. A gênese dos mitos, Paris 1952.


um anjo de luz ou mesmo disfarçado como Jesus ou a Virgem
Maria; por fim, ainda pode se manifestar na ordem natural
invisivelmente.

Em diversos mitos, o diabo aparece como um ser deformado e a sua
aparência exterior denuncia a sordidez de seu caráter. Assim, o
demônio é coxo porque, ao cair na Terra, expulso do céu, seus joelhos
viraram para trás. Há, aqui, uma forte influência do mito de
Hefestos, filho de Zeus e Hera que, ao nascer, por causa de sua
feiura, foi atirado à Terra pelo pai, indo cair na ilha de Lemnos e em
razão da queda teria ficado coxo. O diabo possui outra face no
traseiro. É cego, tem chifres e cauda, tem pés de pato, não tem
narinas (ou apenas uma) nem sobrancelhas. Seus olhos são
quadrados e vermelhos ou emitem fogo. Exala um odor sulfuroso. E
provido de asas, inicialmente emplumadas como a dos anjos e mais
tarde, como as dos dragões alados ou dos morcegos.

Sendo um ser oponente da Grande Luz Divina, o demônio é negro,
sua pele é escura ou apenas suas roupas. Se aparecer montado, a
sua montaria será escura. Em razão de estar associado com o fogo e
com o sangue, não é raro que assuma a cor vermelha.
Ocasionalmente, poderá ainda usar roupas verdes por causa de sua
associação com a caça. A imagem do diabo como caçador é uma
metáfora que aparece nas enciclopédias medievais, que o descrevem
como um caçador de almas e o verde é a cor tradicional da roupa
dos caçadores. Há, porém, quem defenda a tese de que ele é muito
bonito, mas de uma beleza cheia de maldade. Esta representação do
demônio como um ser belo fisicamente deve-se ao fato de Lúcifer
ser tido um dos anjos mais belos que havia no céu antes da queda.

Outra relação deve-se à identificação do demônio com os deuses
célticos da fertilidade. O diabo ainda carrega uma espada de ferro e
correntes as quais agita lugubremente. O demônio, por fim, conhece
os lugares onde existem tesouros enterrados, preside a sorte no jogo


e os segredos da Alquimia. Com isso, seduz os homens cobiçosos,
que fazem pacto com ele para conseguirem fama e fortuna.

O tempo e o diabo

Nas crenças populares, certas horas do dia estão carregadas de
forças mágicas. À noite, principalmente, é o momento mágico por
excelência, é nessa hora que as forças do mal e da escuridão
caminham livremente. À noite, os vampiros saem de suas criptas
para se alimentarem de sangue humano, os lobisomens uivam nas
encruzilhadas, cumprindo' seu fado pavoroso; as almas dos mortos
acordam e vêm visitar os vivos; as bruxas se reúnem em seus covis
para adorarem Satanás ou dançarem nos sabás; Hécate, a pavorosa
Senhora das trevas, deixa o Mundo das Sombras e vem caminhar
sobre a Terra acompanhada dos monstros Gorgo e Empusa.

Em oposição à noite, o dia é o momento positivo em que a face de
Deus sorri para o homem. A luz do Sol destrói os vampiros, faz
terminar o sabá das bruxas e interrompe a dança do Povo Pequeno
nas clareiras da floresta. Há, porém, uma hora do dia que o povo
considera particularmente mágico: o meio-dia. Dizem que não se
deve rogar praga ao meio-dia porque, nesta hora, os anjos se
reúnem em coro para louvar a Deus. Exatamente ao meio-dia,
terminam sua louvação e dizem amém! Assim, as pragas proferidas
nesse horário recebem o amém (assim seja) dos anjos e, por isso, têm
grande possibilidade de dar certo.

Meio-dia é a hora em que Jesus foi crucificado e o momento em que
Adão pecou. Os gregos silenciavam nesta hora porque era o
momento e que o deus Pan adormecia e seria muito perigoso
acordá-lo. Em Roma, este horário é o do descanso dos deuses silvestres
fatigados. Nas florestas medievais, ao meio--dia, quem
apurasse bem os ouvidos, poderia ouvir a cavalgada sinistra
seguindo Wuotans Heer, o eterno caçador maldito. E ainda, nessa
hora, as mulheres de Creta eram perseguidas pelo demônio. Na


Morávia, no meio do dia, o homem das águas sai de sua morada
profunda para raptar crianças. Em Portugal, nesse horário, o
Homem das Sete Dentaduras faz a sua ronda sinistra. Assim, o
meio-dia é uma hora aberta em que o demônio se liberta e o mal
ganha força quase incontrolável.

Uma hora também muito rica em magia é às seis da tarde, hora
limiar entre o fim do dia e o início da noite. Nesse momento, os
homens param os seus labores e recolhem-se em seus lares, os
pássaros buscam abrigo no aconchego das árvores, as cigarras
cantam entre as ramagens. As montanhas verdes se tornam escuras
e o sol se esvai como uma ferida de luz. Este momento do dia não é
considerado negativo porque é a hora do ángelus, isto é, o momento
em que, segundo a tradição, Maria, a mãe de Jesus, recebeu a visita
do anjo que lhe deu o anúncio da vinda do Messias.

A morada do diabo

Onde vive o diabo? A tradição cristã, calcada no modelo clássico do
Hades greco-romano, coloca a região infernal embaixo da terra, daí a
prática popular de se mandar alguém que nos irrite para as
profundezas do inferno. Na Idade Média, porém, a mansão <j0 diabo
ficava ao Norte, origem da escuridão e do frio Por esse motivo as
igrejas eram construídas voltadas para o Leste. O Norte fica sempre
à esquerda da porta principal, e desse lado, está sempre o demônio
esperando uma oportunidade para atacar; por esse motivo as
pessoas não enterram seus mortos em lugares próximos ao norte. A
rigor, no Mundo Medieval, o Norte é a direção do inferno.

Uma associação bastante estranha, mas muito bem fundamentada, é
a que se faz entre o diabo e o Papai Noel. Ambos vivem na Lapônia
e dirigem as renas; vestem casacos vermelhos; descem pelas
chaminés e se sujam de fuligem; usam grandes sacos (no caso do
diabo, no saco estão as almas dos pecadores); carregam bastões;
deslocam-se pelo ar com a ajuda de animais; alimentos e bebidas,


como vinho, são usados para suborná-los. Um dos apelidos do
diabo é Velho Nick deriva diretamente do nome de São Nicolau ou
Santa Klaus. São Nicolau está relacionado com os cultos da
fertilidade (também o diabo), daí alimentá-lo com frutos, torta e
nozes.

Os lugares sagrados, para a religião pagã, tornaram-se malditos
para o Cristianismo. Assim, os templos erigidos para os deuses do
Paganismo foram considerados moradias do demônio, embora mais
tarde tenham sido convertidos em templos cristãos. Árvores, fontes,
montanhas, cavernas, grutas, ruínas, túmulos, cemitérios foram
tidos como habitações comuns ao diabo. Os demônios também
podem assombrar as casas e os fantasmas ou espíritos dos mortos,
nada mais são do que demônios. Por fim, fiel à velha tradição
mesopotâmica, o povo acredita que o lugar onde vivem os
demônios, em maior quantidade, é o ar. Tanto eram os demônios,
que se acreditava poder ferir-se um deles, atirando uma simples
agulha para cima. Um padre antigo afirmava que os demônios
vivem no ar como um enxame de moscas.

O número dos demônios existentes

A ideia de enxame de demônios como moscas levou muitos
demonólogos a tentarem calcular o número de diabos existentes.
Máximo de Tiro estima o número de 30.000. No século XIII, o abade
Richalm afirmou, com toda a segurança que havia mais diabos, no
Inferno e na Terra, do que grão de areia nas praias. No século XVI, o
demonólogo Johann Wier contou nada mais, nada menos do que

6.666 legiões formando um total de 7.403.926 demônios individuais.
Todos esses números, como se pode ver, facilmente nascem da
imaginação exaltada dos demonólogos e não de afirmações com
base em algum tipo de realidade.

Meu tio fez uma parada para beber um pouco do suco de uva que
minha mãe havia feito. Meu pai aproveitando-se desse momento
perguntou:

— Abílio, como o Espiritismo vê a questão do Diabo?
— Augusto, em um livro notável intitulado O Céu e o Inferno,
Allan Kardec faz uma crítica profunda e radical à ideia do diabo.
Para a nossa doutrina, não há diferenças entre anjos e demônios,
uma vez que os demônios também seriam anjos, dentro do ponto de
vista católico. Segundo o Espiritismo, os demônios não são seres
com uma criação à parte e voltados para o mal, mas espíritos
imperfeitos suscetíveis de regeneração desde que decidam mudar
de atitude perante a lei de Deus, trocando o mal pelo bem, o ódio
pelo amor.
— Abílio, você está dizendo que os demônios podem ser salvos? —
questionou meu pai.

— Quem diz isso não sou eu, mas Allan Kardec, intuído pelos bons
espíritos. Para o Espiritismo, os espíritos saem das mãos de Deus
simples e ignorantes. Os que caminham na direção do bem e erram
menos, vão um dia alcançar a posição angélica e os que erram mais
e recalcitram no mal se tornam demônios. Assim nada impede que
os maus espíritos ao mudarem as suas posições possam se tornar
anjos de luz.
— Pode-se dizer, então, Abílio, que os espíritas não acreditam na
existência dos anjos e demônios? Interrogou meu pai.
— Certo, Augusto. Conforme o Espiritismo, anjos e demônios no
sentido que lhes dá a teologia católica, não existem.
— Estou satisfeito — concluiu meu pai.

CAPÍTULO XII


Caem as últimas restrições de meu pai em relação ao


Espiritismo


Naquela tarde-noite, como sempre, seguimos para a nossa sessão
das quartas-feiras. A reunião transcorreu calmamente com a irmã
Letícia se comunicando e nos dando mensagens de ordem moral.
De repente, ela disse que havia ali um espírito que desejava
comunicar-se conosco, mas através da psicografia. Fiquei muito
atento porque ainda não havia visto um médium psicógrafo em
ação. Algumas folhas de papel em branco foram colocadas à frente
de Julieta Martins que, segundo já disse, possuía o dom de
psicografar.

Ela continuou muito calma e, com os olhos fechados, começou a
escrever. A sessão prosseguiu e, ao seu final, o Dr. Ramalho a quem
havia sido entregue o material psicografado, passou a mensagem
para meu pai. Dizendo apenas:

— É para o Senhor.
Meu pai guardou a mensagem para lê-la em casa e é essa mensagem
que transcrevo aqui com a permissão do papai:

Augusto, meu amado filho. Por fim, consegui permissão para entrar
em contato. Filho, jamais perdi a lembrança daquela tarde de junho
do ano de 1988, meu último dia sobre a Terra. Eu me lembro de
você, sentado ao meu lado tendo as suas mãos entre as minhas. Sua
mãe chorosa à minha cabeceira. Que dia tão triste foi aquele! De
repente, eu me senti de pé, olhando para vocês dois e para meu
corpo lívido estirado na cama. O médico que veio me atender, o Dr.
Samuel Goldstein, nosso amigo querido.

Fora do corpo, eu estava desnorteado e, de repente, me vi em uma
região inóspita, sombria onde havia muita gente que se


assemelhava a Zumbi, caminhando a esmo. Estranhamente, eu
estava com fome e sede. Em minha memória confusa, lembrava-me
do meu enterro e da missa do sétimo dia. Não tinha dúvidas de que
Estava morto. Só não sabia o que fazer. Desamparado como uma
criança que perdeu os pais, comecei a chorar convulsivamente. Os
meus prantos dolorosos tinham, como resposta os risos dos meus
companheiros de sofrimento. A fome e a sede aumentavam
consideravelmente. A minha cabeça doía fortemente. Não querendo
mais ouvir aquela zombaria insuportável saí correndo daquele
lugar, mas a região sombria não tinha fim. Por mais que eu corresse,
estava sempre dentro dela.

Na minha louca corrida, cheguei a uma espécie de caverna onde
havia espessa vegetação com umas frutinhas roxas a pender dos
ramos escuros. Morto de fome estendi as minhas mãos para pegar
os frutos, entretanto, naquele momento, senti uma espécie de forte
golpe na nuca e caí no chão lodoso. Olhei e vi, na minha frente, um
monstro horrendo que me dizia com voz indescritível: "Estas frutas
são minhas. Sai daqui, miserável." Eu não podia competir com ele e
saí espavorido, caindo e levantando daquele solo escorregadio.

Ah! Meu filho! Você não pode imaginar como seu pai sofreu, como
experimentou até o fim a taça de amarguras que me foi oferecida.
Um dia, já não mais aguentando, lembrei-me de minha mãe que era
muito religiosa, ao contrário de mim, que zombava de suas crenças.
Foi então que no fundo de minha alma veio um grito desesperado,
um pedido de ajuda a Deus. Foi um grito angustiado, um grito
cheio de desespero.

Quase imediatamente, notei uma pequena luz que veio em minha
direção. Ela foi aumentando gradualmente até que vi claramente
sua avó, Clarissa, sorrindo para mim e me estendend a mão. Pela
primeira vez sorri e me acalmei. Quando voltei a mim, estava em
uma espécie de hospital, onde médicos atentos cuidavam de mim


com extremo e desvelado carinho. Já não tinha mais a fome e a sede


que me torturavam.
Levei algum tempo me recuperando nesta casa de saúde e quando
consegui dar conta de mim mesmo e me lembrar de quem eu era,
quis vir à Terra para ver aqueles que eu havia deixado aqui, mas
não me foi possível, tive de esperar por algum tempo pela satisfação
de meu desejo.


Filho, implorei por esta oportunidade porque precisava avisar a
você da necessidade de mudar de comportamento. Você se lembra
do jeito que eu era. Como não tinha uma estatura filosófica para
negar Deus, segundo as linhas do pensamento do materialismo
clássico, eu dizia que acreditava, mas dizia da boca para fora. No
fundo eu professava uma forma de ateísmo muito mais grave do
que aquele que professam os verdadeiros ateus.


Você se lembra que eu era um amante das cervejinhas, das
caipirinhas das churrascarias onde consumia grande quantidade de
carne e de gordura. Fumava desbragadamente. Tive casos amorosos
fora do casamento. O pior é que eu achava tudo isso muito normal,
entretanto, este comportamento tão normal foi a causa de minha
morte.


Para que você não eduque meus netos com os mesmos erros que
incorri na sua educação, peço perdão a você pelos péssimos
exemplos que lhe dei. Fico feliz por saber que você se aproximou do
Espiritismo, coisa que jamais me interessou, infelizmente. Assim,
suplico a você, meu filho, não mais se afaste desta doutrina de luz e
de amor, pois nelas está a salvação das almas no melhor sentido
desta palavra.


Por agora, é só. Até ao nosso próximo encontro.



Paulo Roberto Fonseca Teles

Meu pai acabou a leitura com lágrimas nos olhos. Virando-se para
minha mãe, falou:

— Rosa, Rosa, você ouviu?
— Ouvi, Augusto. Era o seu pai mesmo.
— Sim. Sem dúvida alguma, aquela mulher que eu mal conheço não
poderia saber tanta coisa a respeito dele, como as que estão nesta
mensagem. Sabe, Rosa, como eu me sinto culpado.
— Culpado de que, Augusto.
— De não ter me dedicado há mais tempo ao Espiritismo. Como
perdi tempo!
— Esqueça o tempo perdido e pense no tempo recuperado. Você
agora é espírita. Como diz o povo: antes tarde do que nunca.
— Você está certa, Rosa.
CAPÍTULO XIII

A narrativa da Irmã Letícia
Tudo começou em Capela

Esta longa narrativa foi conseguida por meio da psicografia, em oito
sessões de trabalho, com a médium Julieta Martins. Transcrevo-a


aqui na íntegra pela importância que ela possui para o nosso

trabalho.
"Não faz muito tempo, meus irmãos, alguém me fez uma pergunta
sobre quem era o espírito que lidera a falange de sofredores que
assolam a casa de nossos amigos. Pois bem. Chegou a hora de
revelar o nome dele que se encontra associado à minha própria
história.

Eu e ele viemos em um dos mundos que orbita em torno da estrela
Capela, chamado Erodos. Em nossa última encarnação, ele era um
grande sacerdote de um culto à nossa divindade máxima. O seu
nome era Hasterius e o meu Eudóxia. De agora em diante, para
facilitar a compreensão desta narrativa, vou conservar estes dois
nomes, embora ao longo de nossas muitas vidas, tivéssemos nomes
diferentes.

Em nossa última encarnação em Erodos, Hasterius era um grande
mago que possuía notáveis faculdades mediúnicas, que ele recebera
para usar em favor do próximo. Ele, entretanto, usava tanto as
faculdades mediúnicas como o seu conhecimento de magia para
saciar a sua sede de poder. Antes de continuar esta narrativa devo
dizer o que estou chamando aqui de magia.

Chamo de magia a crença na existência, em nosso redor, de
entidades espirituais benéficas ou maléficas. Através de
determinadas técnicas o mago acredita poder dominar essas
energias espirituais para colocá-las a seu serviço. Na magia existem
duas formas: direta ou indireta de que se utiliza. O mesmo se dá na
Terra, uma vez que foram os capelinos que trouxeram para este
planeta os conhecimentos mágicos.

No primeiro caso, também conhecida como magia simpática, os
efeitos surgem diretamente dessas práticas, e no segundo, os
espíritos são convocados pelos magos e os efeitos dependem deles.
Ainda como na Terra, a magia em Erodos poderia ser usada tanto


para o bem como para o mal. Na Terra essas duas formas foram

chamadas impropriamente de magia negra e magia branca.
Na encarnação a que me refiro, como já disse, Hasterius era um
sacerdote e eu uma sacerdotisa do culto do nosso deus maior. Eu o
admirava e o tinha como meu mestre. Sem querer me eximir de
culpas e responsabilidades, devo dizer que ele exercia sobre mim
um forte fascínio de natureza hipnótica em todos os seus projetos.
Nossos desvios e erros naquela encarnação foram de tal porte que
teria de escrever um texto muito maior do que este para explicitá-
los, o que não posso fazer aqui e agora.

Dando continuidade a nossa narrativa, devo dizer que os mundos,
assim como os espíritos, também evoluem, passando de um estado
para outro. Naquela época distante, Erodos se preparava para
avançar um passo na evolução dos mundos. Haveria, então, um
processo seletivo que faria a separação entre os espíritos rebeldes,
que não poderiam ficar naquele planeta e deveriam ser exilados, e
os espíritos obedientes às leis divinas que conquistaram o direito de
lá ficarem.

Um dia, sem que esperássemos, aconteceu um grande terremoto
fazendo ruir o templo, causando a morte de Hasterius e a minha
própria. No mundo espiritual, Assírios, eu e outros espíritos, que
perseveravam no mal, fomos conduzidos ao grande Tribunal dos
Espíritos Superiores que governavam o sistema capelino. Foi
deixado claro para nós que deveríamos incorporar a enorme
caravana de espíritos exilados e que não mais encarnaríamos em
nosso mundo de ohgem. Seríamos enviados a um mundo bastante
inferior ao nosso, que girava em torno de uma estrela de quinta
grandeza, que arrastava atrás de si um grupo de nove planetas. O
mundo a nós destinado era o terceiro em ordem de afastamento da
estrela central.

Hiperion, o grande Espírito que chefiava o tribunal, nos explicou
que o nosso exílio não seria perpétuo e que poderíamos voltar assim


que tivéssemos méritos para isso, e que a nossa função seria de
auxiliar os espíritos ainda rudes ali encarnados. A nossa ida para
este planeta não seria através de naves espaciais ou coisas
semelhantes, mas pelo processo de encarnação, o que seria muito
útil para a nossa adaptação a este novo mundo.

Estada no Egito

Muitos de nós fomos para lugares mais tarde chamados
Mesopotâmia, índia, Grécia, China, Palestina e Egito. Foi para este
último país que Hasterius e eu fomos levados. Naquele tempo, o
Egito ainda não era a Terra dos Faraós, mas um vale onde
habitavam espíritos muito pouco evoluídos que estavam na fase em
que os historiadores chamam de Neolítico. Talvez vocês não
possam imaginar o quanto foi duro para nós os capelinos, viver em
um planeta no estado em que a Terra se encontrava, mas nós não
tínhamos escolhas

Os espíritos, que viviam no vale do Nilo, moravam em choças
acanhadas, trançadas às pressas ou em covis tenebrosos. Esses seres
ainda não conheciam nem mesmo a técnica de acender o fogo,
dependiam do fogo natural que vinha do céu na forma de raio.
Comiam peixes, gafanhotos, vermes, formigas e cobras, quando
tinham sorte, matavam algum animal maior como corças, gazelas,
antílopes e macacos. Alguns desses povos praticavam a
antropofagia. Não possuíam animais domésticos, agricultura, nem
mesmo hortaliças.

Com a nossa chegada àquelas regiões inóspitas, pouco a pouco, em
meio aos egípcios pré--históricos, surgiu uma nova geração que deu
um formidável impulso às suas vidas. Nós os emigrados de Capela
ensinamos a eles o trabalho com a terra, a domesticação dos
animais, a técnica da construção de casas mais sólidas e fortes, a
feitura do vinho e da cerveja; a arte de tecer e fabricar armas de
metal e eliminamos o canibalismo, assim como os incestos que eram


praticados com grande naturalidade. Nesta tarefa destacou-se um
capelino por nome Osíris, cujo trabalho foi tão intenso e
significativo que as futuras gerações o colocaram no panteon dos
deuses.

Ensinamos a eles que havia seres superiores que mereceriam deles
respeito, admiração e adoração. Com isso, surgiram cidades como
Mênfis, Tebas,

Heliópolis, Edfu, Hierakonpolis, Ombos, Fayum e Coptos. E
templos dignos desses deuses em cada uma dessas cidades.
Estabelecemos também o sistema político monárquico e o Estado
egípcio passou a ser governado por um capelino ou seu
descendente que era tido como a encarnação dos deuses na Terra.

O interessante é que os capelinos continuavam revoltados com a
punição sofrida e, saudosos do seu mundo de origem, criavam
mitos sobre terras maravilhosas, muito além das montanhas de
onde eles haviam vindo, terras maravilhosos em que um dia
habitaram e de onde foram expulsos. Do mesmo modo, agiram os
judeus, os gregos e outros povos aqui exilados como mostram os
seus mitos sobre a Idade do Ouro ou o paraíso perdido.

Hasterius, meu companheiro de desdita, não se emendava, e em
algumas encarnações sempre esteve ligado à religião e ao poder, foi
sacerdote do culto Solar dedicado a Ra na cidade de Heliópolis. Em
uma dessas encarnações fui sua filha e com ele pude aprender
muita coisa sobre magia, pois ele me preparava para ser sacerdotisa.
Em uma de suas aulas particulares ele me falou:

— Minha filha, peço a você que tenha muito cuidado com os rituais,
pois eles não são práticas vazias. Você será uma grande sacerdotisa
e, por certo, vai dirigir os cultos, por isso precisa aprender sobre os
rituais e dar a eles a devida atenção.
— Eu os considerava apenas uma prática formal.

— Você está enganada, minha filha. O ritual em si mesmo, não se
esqueça, exerce uma função disciplinadora e deve ser usado
rigorosamente na sucessão das fases, atos e operações relacionados
à magia. Não existe magia se não houver o ritual adequado. Muitas
vezes, quando a magia não dá certo, o erro se encontra no ritual.
Compreendeu?
— Sim, meu pai.
— Muito bem. Então, insisto com você: cuidado com os rituais
porque eles são tudo, tudo mesmo.
Assim era Hasterius, capaz de ser carinhoso comigo e de me ensinar

o que eu deveria aprender com grande paciência, mas, ao mesmo
tempo, capaz de tratar com grande dureza e mesmo com crueldade
seus inimigos. Hoje tão distante, já não vejo essas coisas dessa
forma, nem levo mais a sério as aulas de Hasterius, mas naquela
época elas eram muito importantes para mim.
O mago egípcio

A magia era uma prática muito comum no Antigo Egito, e se
encontrava de tal modo entranhada na religião que, não raro, é
difícil, parra o moderno egiptólogo, separar uma da outra. Para ser
honesta, devo dizer que os egípcios praticavam dois tipos de magia
a que nos referimos há pouco: a positiva, usada para fins legítimos e
a negativa utilizada para fins criminosos e provocar calamidades.
Em diversos textos egípcios antigos existentes entre vós, encontram-
se várias narrativas em que se vê, com grande frequência, a magia
se tornar servidora da religião e, muitas vezes, aparece ao lado das
mais exaltadas e sublimes concepções espirituais. A técnica
principal da magia egípcia estava relacionada com o poder das
palavras.

Meus amigos, as palavras têm força, pois elas são o veículo do
pensamento, ainda precisamos delas para nos expressar. Em


mundos mais evoluídos, em planetas mais adiantados, a
comunicação se faz de pensamento para pensamento, através da
telepatia. Assim, quando uma pessoa fala mal de alguém, se refere a
outrem com ódio ou amaldiçoa, essa energia não atinge apenas a
pessoa a quem a agressão verbal é dirigida, mas também aqueles
que a escutam, multiplicando-se assim a força da carga malévola.

Desde que a palavra fosse pronunciada de certo modo e
obedecendo ao ritual, os resultados pretendidos seriam alcançados.
No antigo Egito, as palavras poderiam também ser escritas em rolos
de papiros, pedras preciosas, pedras comuns e também tabletes de
barro. As práticas mágicas eram tão comuns no Velho Egito que os
estrangeiros, visitando o Vale do Nilo, ficavam tão impressionados
que de volta às suas terras, costumavam dizer que o Egito era o país
dos feiticeiros.

Duas histórias sobre a magia egípcia

No Egito Antigo, havia muitas histórias sobre a prática da magia.
Aqui vou destacar duas delas. Certo dia em que o faraó Senefru
estava muito triste, ele chamou seus cortesões e lhes disse que
buscassem algum meio de fazer com que ele recuperasse a felicidade
perdida. Os nobres imaginaram jogos, danças, músicas e
espetáculos dramáticos, mas nada disso devolveu a alegria ao rei.
Como os nobres nada conseguissem, ele mandou que fossem buscar
Tchatcha -em-Ank o grande mago da corte e quando ele estava na
presença do rei, este lhe disse:

— Amigo, minha alma se entristeceu como jamais esteve antes. Pedi
ajuda a meus cortesões, mas eles em nada puderam ajudar. E você o
que pode fazer por mim?
O sacerdote passou algum tempo em silêncio, como se estivesse
meditando, e por fim falou:


— Majestade, sua alegria voltará quando velejar de um lado a outro
do lago e contemplar os belos bosques que por lá existem.
Em continuidade, o mago pediu que lhe fosse permitido organizar o
passeio real. Ordenou que lhe trouxessem vinte ramos de ébano
incrustados com fios do mais puro ouro, vinte virgens de belas
formas, braços fortes e pernas bem torneadas e que soubessem
cantar. Deveriam estar vestidas apenas com uma rede de pescar em
lugar de suas vestes cotidianas. Elas remariam e cantariam para o
faraó. Depois que tudo isso foi feito, o rei tomou seu lugar no barco
e teve início o passeio.

Enquanto as vinte belas jovens remavam em ritmo compassado, o
faraó olhava para elas esquecido de suas preocupações e angústias.
De repente, a líder das remadoras, enquanto remava ficou presa
pelos cabelos, e uma de suas jóias, feita de turquesas, caiu na água e
desapareceu. A moça e suas companheiras pararam de remar. O
faraó, então, perguntou a elas:

— Por que parou de remar?
— Porque a nossa líder não está mais remando.
— Por que parou de remar? — perguntou o soberano a chefe das
remadoras.
— Porque perdi minha jóia preferida. Ela caiu nas águas e
desapareceu.
— Não se preocupe minha amiga, pois tereis a vossa jóia de volta.
O faraó voltou ao castelo e mandou que fossem buscar o mago
Tchatcha. Assim que o faraó o teve em sua presença lhe disse:

— Meu amigo, deu tudo muito certo. Entrei no barco com as
remadoras. Ao vê-las remando meu coração encheu-se de alegria.
De repente elas pararam de remar porque a líder delas deixou cair,

nas águas, a sua joia mais preciosa. Eu garanti a ela que recuperaria
o objeto perdido.

— Vamos ver o que se pode fazer, meu senhor. — Disse o mago.
O mago foi com o faraó ao local onde a jovem havia perdido o
adereço. Por meio de palavras mágicas separou as águas do lago de
modo que a joia foi encontrada dentro de um caco de louça, no
fundo. Ele a tomou e a devolveu a sua dona. O rei, muito satisfeito,
recompensou o mago com muitos presentes.

A segunda história aconteceu no tempo do faraó Neb-Cau-Ra. Certo
dia, esse faraó resolveu visitar um de seus mais alto dignitários,
Aba-Aner, que era um estudioso e praticante de magia. Com ele foi,
como era de costume, uma comitiva real da qual participava um
belo soldado. Ora se deu que a esposa de Aba-ANer ao ver o
soldado por ele se apaixonou. No dia seguinte, a mulher mandou
uma de suas amas dizer ao soldado sobre sua paixão. O rapaz,
talvez lisonjeado ou mesmo impressionado com a beleza da mulher,
tornou-se amante desta. Passaram então a se encontrar em uma
casinha afastada que era propriedade do marido traído. A cada
encontro a mulher pedia a um serviçal que arrumasse a casa para
ela. O mordomo que não se sentia bem com aquela cumplicidade,
pois ele também estava traindo o seu Senhor, contou a Aba-Aner o
que estava acontecendo.

O Marido enganado, de início, nada fez. Mandou apenas que o
serviçal fosse à sua casa e trouxesse de lá uma caixa que estava
dentro de um armário. O homem fez o que lhe foi pedido e,
trazendo a caixa, entregou-a a seu patrão. Aba-Aner tomou uma
quantidade de cera que estava dentro da caixa e com ela fez um
crocodilo com mais ou menos dois palmos de tamanho. Em seguida,
disse algumas palavras sobre o animal e, depois, ordenou a ele:
quando o homem for se lavar nas minhas águas, agarra-o. Feito isso,


mandou que o mordomo ficasse de atalaia, e quando viesse o

soldado para tomar banho, atirasse atrás dele o crocodilo de cera.
Dias depois a mulher mandou que o mordomo preparasse a casa
para mais um de seus encontros. Ele, sem despertar suspeitas,
obedeceu como sempre. O solado chegou de manhã bem cedo e
ficou até o sol se por. Aí, ele saiu de casa e foi banhar-se no rio. O
mordomo aproveitou quando ele entrou na água e atirou, atrás dele,

o crocodilo de cera. Mal a imagem caiu na água transformou-se em
um enorme crocodilo que, pegando o homem, mergulhou com ele
para o fundo do rio.
Então Aba-Aner convidou o faraó para um passeio juntos quando
ele veria uma coisa maravilhosa, que acontecera em seu reino sem
que ele soubesse. O faraó ficou muito interessado e saiu com seu
funcionário pelas margens do Nilo. Em certo lugar do rio, Aba-Aner
parou e conjurou o crocodilo a aparecer ele veio trazendo consigo o
soldado atravessado na boca. O faraó aproximou-se do animal e
ficou maravilhado e o mago tocou no animal dizendo algumas
palavras e este reassumiu a sua forma de cera. Finalmente, ante aos
olhos espantados, o mago recolocou o animal na água, dizendo: leve

o que é seu. Afigura do crocodilo assumiu de novo a antiga forma e
mergulhou com o homem.
A Escola dos Hierogramatas

Esta era uma escola sacerdotal que havia em Heliópolis onde se
ensinava magia e ciências ocultas, disciplinas que eram essenciais
na formação dos sacerdotes egípcios. Ali se estudava e se praticava
a projeção do corpo astral ou bilocação; a telecinesia ou movimento
de objetos à distância sem o concurso de mãos humanas; fenômenos
ectoplasmáticos ou de materialização; regressão a vidas passadas7;
levitação e criptostesia ou clarividência. Esses saberes, entretanto,
eram conhecimentos secretos que estavam vedados ao grande
público. Deles poderiam participar apenas os iniciados e,


principalmente os candidatos ao sacerdócio e a se tornarem faraós.
Durante alguns anos Hasterius foi o presidente desta escola
iniciática.

Mernephta Convida Hasterius a se tornar mago de sua
corte

Na época em que se passaram esses acontecimentos, um fato novo
se deu com o Egito: voltava às terras do Nilo um homem que havia
deixado sua pátria, e que fora acusado de assassinato de um feitor
egípcio, esse homem havia passado muito tempo fora de sua terra.
Chamava-se Moisés e era filho adotivo de uma princesa egípcia,
filha de Ramsés II. De fato o seu sangue não era egípcio, mas
hebreu, um povo que há muitos anos havia sido introduzido no
Egito, no tempo dos faraós hicsos, também chamado reis pastores e,
com o tempo, convertido em escravos. Esse Moisés voltava
investido, por um deus chamado laweh, segundo ele, dizia da
missão de libertar o seu povo do domínio egípcio. Foi por causa
desse homem que o faraó convocou Hasterius à sua presença.

7 Foi no Egito que o grego Pitágoras soube de suas existências
anteriores como Aithalides, Euforbos entre outras.

— Meu caro Hasterius, chamei-o aqui para pedir a sua ajuda.
— Em que meus préstimos poderão ser úteis, meu faraó? — quis
saber Hasterius.
— Acho que vamos ter problemas — disse o Faraó.
— Que tipo de problemas, Senhor?
— Um homem está agitando os escravos hebreus.
— Quem é esse homem?
— Chama-se Moisés. Fugiu daqui há mais de vinte anos por ter
matado um de nossos guardas que controlava o trabalho dos
escravos; agora está de volta. Ele pediu uma reunião comigo e eu

concordei. Gostaria de que você estivesse ao meu lado com seus
magos a esta hora.

— Assim será, meu faraó — falou Hasterius.
Na tarde daquele mesmo dia, na audiência do faraó apareceram
Moisés, seu irmão Arão e anciões judeus. Foi Arão que,
aproximando-se do trono real, falou:

— Faraó, deixe meu povo ir para o deserto a fim de adorar o nosso
Deus.
— Nada farei do que diz, hebreu. Teu povo não deixará o meu
reino.
— Moisés, então, erguendo a voz, disse: Poi bem. Eu vou lhe
mostrar a força de nosso Deus.
Nesse momento, Moisés atirou a sua vara ao chão e ela, para o
espanto do faraó, transformou-se em uma serpente que passou a se
contorcer no chão. Hasterius manteve-se calmo e mandou que seus
magos atirassem suas varas ao solo e todas elas se transformaram
em serpentes.

— Moisés, não muito grande é a maravilha que seu deus produziu,
uma vez que os meus magos fazem o mesmo. Vá embora, pois não
libertarei seu povo, antes vou dobrar-lhes o trabalho.
De fato, Moisés havia se utilizado de um truque muito conhecido no
Oriente, que consiste em hipnotizar uma serpente, tornando-a
rígida como um pedaço de pau, bastando para isso, calcar com o
polegar uma região na base da cabeça do réptil. Moisés, havia
estudado na escola hierogramatas, a qual falei há pouco, onde
aprendera os segredos da alta magia egípcia e nada do que pudesse
fazer, assustaria Hasterius e os seus magos que estudaram na
mesma escola que ele.


Como o faraó dissera, o trabalho dos escravos hebreus fora
redobrado, e Moisés, voltando à presença dele fez-lhes novas
ameaças as quais o soberano não se rendeu. Assim, Moisés começa a
lançar sobre o Egito as suas famosas dez pragas, mas todas elas
eram explicadas pelos magos egípcios e por esse motivo o Faraó
continuava intransigente. Por fim, deu-se a morte dos primogênitos
que, também não foi milagre de Deus, pois Deus não poderia
eliminar pessoas inocentes inclusive animais, mas um assassinato
em massa muito bem urdido. Desse modo, aquela matança nada
mais foi do que um uma série de crimes e nada mais. Notem que foi
necessário marcar a casa dos judeus com um sinal para que Deus
(os assassinos) quando passassem distinguissem a casa dos judeus
da casa dos egípcios.

O faraó, temendo que mais mortes acontecessem por causa de sua
intransigência, decidiu deixar Moisés sair com todos os escravos
hebreus que viviam no Egito. Os acontecimentos que seguem a este
podem ser conhecidos por meio de um livro da Bíblia que se intitula

Êxodos.

Devo a você mais uma explicação. Hasterius, assim que chegou ao
Egito, entrou em contacto com uma sociedade de magos
poderosíssimos que descendiam de Atlântida. Esses homens
Contaram-lhe sobre uma civilização que floresceu nas terras do Sul
em um lugar chamado Photobolia, que significa a brilhante ou a
fosforescente, nome dado por sua natureza exuberante e por uma
claridade tão intensa que dava a impressão de que a luz do sol ali
jamais se punha. É este lugar que no futuro será chamado de Brasil.
Ali cresceu ema civilização deslumbrante que se espalhou por toda
a região hoje chamada de América do Sul, fragmentada em diversas
culturas como os maias, os incas, os astecas, os olmecas entre outros.
Aqueles sábios possuíam vários livros sobre a magia da Atlântida,
informações de tal importância que, quem os possuísse, seria a
pessoa mais poderosa deste mundo.


Este assunto interessou Hasterius que desejou saber se era verdade
ou se tratava apenas de um mito. Um desses sábios se prontificou a
ir com ele até esta terra distante. E lá chegando, eles localizaram o
lugar onde a biblioteca se encontrava. Só que ela havia sido
enterrada pelos sacerdotes atlantis, zelosos de proteger tais livros de
olhos e mentes despreparadas para lê-los. Usando a sua faculdade
de cripestesia ou vidência de coisas ocultas, Hasterius pode ver e se
maravilhar com os livros, só não conseguiu retirá-los de onde
estavam por causa do tempo em que ali foram guardados. Se
fossem expostos à luz do sol não resistiriam por muito tempo.

Valendo-se da alta magia trazida de Capela, ele imantou o lugar
com fluidos extraídos da natureza, tornando-o em um espaço
sagrado. O lugar exato, onde ficavam os livros, é o mesmo onde está
a casa em que a Família Fonseca Teles está morando.

A finalidade desta -imantação era fazer com que ele pudesse
registrar qualquer ameaça ao seu tesouro estivesse ele onde
estivesse. Era desse modo que ele ficava sabendo que a casa estava
sendo ocupada, e, com espíritos levianos, ele comandava, expulsava
da casa os moradores. Além desses, estavam também a seu serviço
espíritos perdidos e desorientados como Ramiro, Carolina e o ator
grego que vocês já conhecem. Assim, ele imaginava-se dono da casa
quando, em verdade, a casa é que era a dona dele, pois impedia que
ele caminhasse na direção dos Mundos Maiores.

Um dia teve vontade de ir ao lugar de seu tesouro para ver como
estava e se não corria perigo. Assim, logo depois da partida de
Moisés para o deserto, Hasterius pediu permissão ao Faraó para
seguir em uma viagem a Fenícia. Os fenícios, àquela época eram os
maiores navegadores do mundo e costumavam vir até a América do
Sul em busca de metais precisos, madeiras odoríferas e aves raras.
Naquela ocasião, perguntei a ele:

— Pai, você tem mesmo de fazer esta viagem?

— Sim, minha filha.
— Eu sentirei muito a sua falta — falei com sinceridade.
— Aqui no Templo, minha filha, não correrá o menor perigo.
Espere-me que voltarei.
A decisão de meu pai era inabalável, e, em uma tarde de primavera,
ele partiu para Cedam, de onde navegaria rumo à terra
desconhecida. O que eu não sabia naquela época era a relação
existente entre meu pai e as terras do Brasil. Ele jamais me revelou a
verdade sobre aquela viagem. Passaram-se dois anos sem que eu
soubesse o paradeiro dele e, um dia, quando eu estava dormindo
em meus aposentos, sonhei com ele me dizendo que chegara a seu
destino, entretanto, havia sido morto pelos habitantes daquela terra.
Foi a última vez que vi meu pai naquela encarnação.

Ainda vivi algum tempo na condição de sacerdotisa do Templo,
mas meu pai havia feito, naquela encarnação, muito mais
inimizades do que amizades e, embora ele estivesse certo de que eu
estaria segura no templo, de fato, eu não estava. Minha vida sem
meu pai tornou-se um verdadeiro inferno, um dos sacerdotes de
Amon-Rá, chamado Abu-Refain, desejou se casar comigo. Eu não
gostava dele, e unir-me a ele seria a última coisa que eu faria neste
mundo.

Após o terceiro ano da partida de meu pai, o Templo achou que já
era hora de eleger um novo Sumo-Sacerdote e o escolhido foi Abu-
Referin. Não demorou muito e eu fui ^acusada de alta traição e de
passar para o clero de Thebas informações preciosas de nosso
templo. Nada disso era verdade, o que não impediu de receber o
beijo da morte dado pela deusa serpente Mertseguer, a Senhora do
Silêncio. A execução se deu dois dias depois da sentença ser
promulgada. Levada ao poço das serpentes, ali fui atirada e os
beijos mortais se sucederam até que fechei olhos para as coisas deste
mundo.


Assim que deixei meu corpo de carne, não tive medo e nem me
espantei pelo fato de me ver, olhando para o meu corpo deitado no
mármore frio, cercada das áspides que ali viviam. Fiquei ali por
longo tempo como se estivesse presa aos meus despojos. Não sei
quanto tempo passei assim. Quando voltei ao domínio de mim
mesma, estava em uma casa de mumi-ficação, olhando o que estava
sendo feito com meu corpo. Um dos raros amigos de meu pai, um
médico por nome Sinahuê, conseguiu o meu corpo e foi ele que o
levou para eu ser mumificada.

Então, o paraquista, o primeiro profissional a interferir no processo
de mumificação aproximou-se de mim. Ele portava uma longa e
afiada faca de obsidiana. Ele chegou bem perto de meu corpo e fez
uma abertura mais ou menos larga, no flanco direito de meu
cadáver. Em seguida com a habilidade própria de quem trabalha há
muito tempo em uma determinada profissão, retirou as minhas
vísceras. Depois se afastou e veio o tariqueuta ou salgador e
mergulhou meu corpo em uma solução de sal e natro.

Assim, depois de lavado e purificado, meu cérebro foi retirado por
meio de um gancho de bronze introduzido em minhas narinas. Vi
que a minha massa encefálica saía em migalhas de cor cinza-escura.
O cérebro ou o que restou dele, foi atirado ao lixo uma vez que,
para os egípcios, o cérebro não possuía grande importância. Meu
coração também foi retirado e colocado à parte cuidadosamente,
uma vez que, em nossa religião, esse órgão possuía uma profunda
importância. Tudo o que foi retirado de meu corpo, foi colocado nos
vasos canopos. Terminada essa parte, meu corpo foi desidratado,
enfaixado e, por fim, levado para ser enterrado

Sim. Eu estava morta e disso não poderia ter mais a menor dúvida.
Estava confusa porque não via as coisas que O livros dos mortos
nos contava que aconteciam com os desencarnados. Não fui levada
também para ser julgada no tribunal de Osiris, onde estão os 42
juízes dos mortais e a deusa Maat com a sua balança onde Anúbis


colocaria meu coração para ser pesado. Só havia trevas em meu
redor e sombras ameaçadoras, mas que nada diziam e de nada me
acusavam. No meu coração havia uma enorme inquietação, um
vazio, uma sensação de incompletude.

O que me doía era^ a ausencia de sons naquele lugar. Ali só havia
silêncio, e eu podia estar a sós comigo mesma e isso não era bom.
Um forte sentimento de culpa me envolvia, era como se eu
houvesse jogado fora a minha vida passada. À medida que o tempo
passava, eu ficava isolada mergulhada naquele silêncio pavoroso.
Foi então que me ocorreu que eu havia sido uma sacerdotisa do
templo de Rá e que até aquele momento não me lembrara de entrar
em contacto com ele. Nesse instante, do fundo de minha alma,
supliquei:

"Rá, senhor de todas as coisas, tu que brilhas sobre os justos e os
injustos, tu que alimentas a vida em todas as suas manifestações,
vinde a meu auxílio pois de ti estou muito necessitada. Lembra-te
de mim, Senhor e visita-me na minha aflição. Grito e ninguém me
escuta; suplico e não sou atendida; abro os olhos e nada vejo nesta
escuridão. Senhor, nós pecamos como nossos pais; nós nos
desviamos de teus caminhos, nós preferimos a sombra de Apopi8 à
tua luz. Salva-me das mãos de meus adversários, livra-me do poder
de meus inimigos. Vem Senhor, iluminar a treva insuportável que
me envolve."

Mal eu havia terminado a prece e um ser luminoso apareceu e me
falou com bondade:

— Minha filha, Ra ouviu as tuas preces e me enviou para cuidar de
ti.
8 Serpente que engolia a barca do sol em cada fim do dia para devolvê-la na
manhã seguinte.


— Eu que estava de cabeça baixa, por causa do excesso de luz que
vinha daquele espírito, levantei a cabeça e, emocionada, o reconheci.
— Mãe, é você?
— Sim, minha filha, ouvi teu chamado angustiado e vim buscar-te.
Minha mãe sofrera muito com o meu exílio para a Terra, mas não
pudera impedir que isso acontecesse, porque eu havia concorrido,
decisivamente, para me afastar dela. Fui levada para Plano
Espiritual onde tive uma longa e proveitosa conversa com minha
mãe. Ficou então acertado que eu deveria me dedicar a uma longa
reciclagem para rever conceitos e modificar a minha via espiritual.
Durante muito tempo, eu não sei o quanto com exatidão, fiquei
trabalhando na assistência de espíritos sofredores que chegavam à
nossa colônia e participando de caravanas que iam às regiões sombrias
para resgatar determinados espíritos que por lá sofriam. Era
um trabalho árduo, mas de fundamental importância para mim.
Quanto a Hasterius, soube que fizera uma escolha bastante
equivocada, decidindo não mais encarnar e ficar vivendo no astral
inferior, comandando falanges de espíritos obsessores, mas sem se
esquecer do tesouro que ele considerava seu.

Uma nova oportunidade na carne

O tempo passou e um dia minha mãe me chamou e me disse sem
esconder a alegria na sua voz.

— Filha, por fim, consegui que você voltasse a viver na Terra. Será
uma experiência dura e muito difícil. Quero deixar claro para você
que não será obrigada a aceitar esta experiência. O que você me diz?
— Aceito, mãe, pois necessito recuperar o tempo perdido. E ser
liberada para voltar ao nosso planeta de origem.
— Isso só depende de você, filha.

Como minha mãe me dissera, eu logo fui chamada para planejar
aquela encarnação. Nasceria na Palestina em uma família muito rica
formada em sua maioria por saduceus. Nasceria em um corpo
masculino, experiência que, na Terra, ainda não havia tido. Cresci
estudando a lei de Israel com os mais sábios rabinos daquela época.
Havia, porém, algo na lei de Moisés que não me satisfazia
completamente, por isso, sofria certa inquietude, um desassossego
para mim inexplicável.

Uma tarde, um amigo meu por nome Jeriel, saduceu como eu,
encontrando-se comigo em Jerusalém, perto do tanque de Siloé, me
falou como quem me contasse uma grande novidade:

— Meu caro Salatiel por onde tem andado?
— A mim é lícito perguntar-lhe a mesma coisa. Pois não o vejo faz
algum tempo — disse em tom de brincadeira.
— Ora, eu não saio de Jerusalém. Você sim. Disseram-me que
andava por Jope, é verdade? — interrogou-me o meu amigo.
— Sim. Estive por lá cuidando dos negócios de meu pai. Falei, mas
não disse que tipo de negócio.
— Então é por isso que não temos nos visto.
— Sim, por certo.
— Você já sabe das novidades aqui por Jerusalém?
— Que novidades são essas? — perguntei interessado.
— A maior delas todas, há um novo pregador. Um Galileu de uma
aldeia chamada Nazaré. O nome dele é Jesus.
— E que tem ele de tão especial?
— Ele é um mestre sem ter ido à escola e nem mesmo frequenta o
Templo.
— Um mestre-sem ir à escola! De fato é muito interessante. E qual é
o núcleo de sua pregação? O que diz tal homem?

— Ele fala do Reino de Deus que, às vezes, ele chama de Reino dos
Céus.
Aquela resposta me deixou preocupado. Desde menino o tema do
Reino de Deus seduzia-me, embora não soubesse muito bem do que
se tratava. Depois, questionei os rabinos sobre esta questão, mas
eles nada me disseram de concreto. Se aquele homem fazia do Reino
de Deus o centro de suas pregações, provavelmente sabia como
chegar a este reino. Despedi-me de meu amigo certo de que iria
procurar aquele novo rabino para saber mais sobre o reino de Deus.
Não demorou muito, eu o encontrei na cidade pesqueira de
Cafarnaum. Ele estava com seus discípulos junto da sinagoga.
Aproximei-me e lhe disse com delicadeza:

— Bom Mestre, que devo fazer para alcançar o reino dos Céus?
— Bom? Por que me chamas de bom? Bom é o nosso Pai que está
no céu — disse-me ele, corrigindo a minha primeira fala.
— Compreendo, Senhor. Mas insisto: o que devo fazer para entrar
no Reino dos Céus?
— Tem cumprido, rigorosamente, a lei de Moisés?
— Sim. Escrupulosamente.
— Muito bem. Então, vá, vende tudo o que é seu. O produto dessa
venda deve dar aos pobres. Feito isso, segue-me e terá um tesouro
nos céus.
Ele nada mais me disse, e uma cortina de silêncio fechou-se sobre
nós. Ponderei sobre o que ele me falou e não foi difícil saber que não
faria o que ele me dissera. Deixei a sinagoga e voltei para casa, mas
confesso que havia ficado incomodado com o que ouvi daquele
homem.

Passaram-se alguns dias quando, certa manhã, ao acordar e fazer a
minha higiene, notei em meu rosto manchas estranhas de cor


avermelhada. Não dei muita importância ao fato, imaginando que
houvesse sido picado durante o sono por algum inseto, mas com o
passar dos dias, apareceram, mais manchas e o meu rosto ficou
inchado. Em pouco tempo, surgiram também bolhas que
estouravam, deixando uma secreção mal cheirosa. Meu pai, sempre
muito fiel à lei de Moisés, levou-me ao Templo para que eu fosse
examinado pelo sacerdote. Ele me levou para um quarto onde havia
uma cama alta e ali me deitou e começou a me examinar.
Terminado o exame, ele disse a meu pai secamente, que eu estava
com lepra.

Observei que meu pai, ao ouvir este diagnóstico ficou lívido e eu me
senti como que fulminado por um raio que caísse do céu e me
atingisse em cheio. O Sacerdote disse que o melhor que meu pai
tinha a fazer era deixar-me no Templo para um exame mais
demorado, o que levaria exatos sete dias. Meu pai, muito triste,
voltou para nossa casa, deixando-me sozinho na casa de lahweh. Na
minha alma, a palavra imundo repercutia com uma força incrível.
Naquela mesma noite, desesperado, burlei a vigilância dos homens
do Templo e fugi dali correndo sem destino, dominado por uma
sensação confusa de medo e vergonha. De uma coisa estava certo: se
eu estava imundo era com os imundos que eu deveria viver.

Assim, cheio de angústia, depois de caminhar a esmo, fui para o
Vale dos Leprosos onde eu acreditava ser o meu lugar. Naquele
mundo de extremo sofrimento, esforcei-me por esquecer a minha
família, a vida rica que eu tivera até aquele dia. Sem cuidados
terapêuticos, a doença progrediu e tomou conta de todo o meu
corpo. O que me doía mais era o fato de não compreender por que
aquela desgraça me acontecera. Eu era um bom judeu e cumpridor
da Lei. Sentia-me na situação de Jô, considerando-me vítima da
arbitrariedade de Deus.

Um dia, um dos meus companheiros de sofrimento me falou que
havia ouvido falar de um certo Jesus que dava luz aos cegos, voz


aos surdos e até mesmo vida aos mortos. Se ele fazia tudo aquilo
por certo também poderia nos limpar. Soubemos, então, que Jesus
seguia para Jerusalém e que passaria pela divisa entre a Samaria e a
Galileia. Achamos que, por ser um lugar deserto e afastado, a gente
poderia abordá-lo sem maiores problemas. Formamos, então, um
grupo de dez irmãos e fomos para lá.

Chegamos bem cedo e nos postamos na estrada à espera dele. Mais
ou menos, na hora sexta, ele apareceu seguido de seus apóstolos.
Nós nos adiantamos. Josafá, um dos nossos, parou a uma distância
considerável e em voz alta gritou para ele: "Senhor, tende
compaixão de nós". Jesus atendendo este pedido nos disse: "Eu
quero. Ficai limpos." Na mesma hora, os nossos estigmas
desapareceram. Os meus nove companheiros saíram, felizes
cantando e dançando, mas eu fui invadido por uma sensação
enorme de respeito e gratidão por aquele homem que tanto nos
fizera. Por isso, me aproximei dele e lhe disse:

— Senhor, serei eternamente grato pelo que me fez.
— Nada fiz que meu Pai não o desejasse também — agradecei a ele
e não a mim.
— Senhor, sou muito rico e posso lhe pagar com o que quiser.
— Eu sei que é muito rico e esse é o seu maior problema. Vou lhe
dar mais uma vez o mesmo conselho: se quiser agradecer ao Pai que
está nos céus, vá, vende tudo o que é seu e dê o resultado da venda
aos pobres e vem comigo. Agora, porém, deve ir ao templo
apresentar-se ao sacerdote para contar o que lhe aconteceu e ser
purificado.
Saí dali pensando no que me acontecera. Como as coisas deste
mundo são efêmeras e passageiras. Eu, que era um homem rico,
havia me transformado em um miserável leproso. De repente estava
limpo e voltava a ser rico. Quando cheguei em casa fui muito bem
recebido por minha família e meu pai me devolveu todos os meus


bens. Logo no dia seguinte, vendi tudo o que possuía, e entreguei o

dinheiro para o pecúlio dos pobres e viúvas que havia no Templo.
Três dias depois me apresentei a Jesus e fui aceito como um de seus
discípulos. Assisti à morte dolorosa e injusta dele, mas continuei
trabalhando na casa do caminho, sendo orientado e dirigido por
Pedro e João, os grandes pilares da igreja nascente. Voltei a servir a
Jesus em outra encarnação no século segundo de nossa era. Como
corolário de toda a minha mudança íntima desencarnei sob as
garras das feras nos circos romanos.

Durante muitos anos, trabalhei na Espiritualidade, continuando a
aprender cada vez mais, sempre esperando por minha volta ao meu
amado planeta. Um dia, na Colônia onde eu trabalhava, visitou-nos
um luminoso espírito, vindo de um mundo distante.

Estranhamente, dissera que ali estava para falar comigo. Não
entendi o que um espírito com aquele grau de evolução desejava
falar comigo, um espírito ainda imperfeito.

Na reunião com aquele irmão, ele me disse com alguma tristeza na
voz:

— Minha filha, vim aqui para falar contigo sobre meu filho,
Hasterius. Estou decidida a dar um basta nas insanidades dele. Ele
não pode mais continuar a usar seu livre-arbítrio contra ele mesmo.
Foi por isso que imaginei dar-lhe uma última oportunidade. E como
você está ligada emocionalmente a ele, vim pedir a sua ajuda.
— E em que posso ajudar?
— Imagino que seja possível formar aqui uma caravana socorrista
para irmos à Terra em um lugar chamado Rio de Janeiro.
— E por que devemos ir lá?
— Porque este lugar exerce sobre e meu filho uma profunda
atração, e ele mantém lá um grupo de espíritos sofredores,

entretanto, o mais sofredor de todos esses espíritos é ele próprio. Eu
gostaria de resgatar meu filho.

— Resgatá-lo de quem ou de quê?
— De si mesmo. Ele fez ali uma armadilha para os outros e ele
mesmo acabou preso a ela. Gostaria de me ajudar?
— Gostaria. Respondi sem pensar muito.
Penso que assim fica explicado o motivo de eu estar aqui me
valendo da cooperação de vocês para auxiliarmos este espírito
desviante a se voltar para o caminho do amor e da luz.

Hasterius fica sabendo da nossa ação na casa que
acreditava ser sua

Em um lugar tenebroso, nas regiões mais profundas do Umbral,
onde fui levado em sonho pela irmã Letícia, existe um castelo
cercado por arbustos espinhosos. Dali desce um riacho de águas
escuras e lodosas. Nesse castelo, vive Hasterius com uma corte de
espíritos infelizes e sofredores.

Uma tarde, Hasterius recebeu, em seu castelo, um de seus
colaboradores que trabalhava fazendo uma espécie de coordenação
com os espíritos que ali habitavam. O espírito, que se chamava
Átila, vinha dar a seu Senhor notícias sobre a casa e seus novos
habitantes. Muito irritado, Hasterius ouviu as informações de Átila
e, por fim, falou:

— O que me diz, Átila? Fomos atacados e vocês foram incapazes de
neutralizar. Jamais vi tamanha incompetência.
— Não foi um ataque honesto, de gente, algo que se esperasse, mas
uma iniciativa covarde. Tudo começou com um espírito poderoso
que trouxe, com ele, muitos soldados que cercaram a casa com halo
de luz terrível que nos faz muito mal. Aos poucos foram retirando

de lá alguns de nossos colaboradores e levando-os para não sei
onde.

— Átila, você está me dizendo que o grupo que você dirigia não se
encontra mais lá? Que o lugar está desprotegido?
— Sim. Quase não temos mais colaboradores naquela casa.
— Eu não estou acreditando no que estou ouvindo. Como é
possível, meia dúzia de espíritos, vindos de não sei onde,
conseguirem dar cabo das forças que lá estavam?
— Perdão, Senhor, mas não são quaisquer espíritos que lá estão.
São muito fortes e trazem armas que neutralizam as nossas.
— Neutralizam coisa nenhuma! O que acontece é que estou cercado
de idiotas como você e os seus soldados.
— Senhor, Perdão!
— Perdão coisa nenhuma! Você sabe como aquela casa é
importante para mim. Eu não sei onde estava com a cabeça quando
o escolhi para missão tão importante. Você é um animal! Está
ouvindo? Você é um animal! Saía de minha presença.
À medida que Hasterius dizia essas palavras, Átila ia perdendo a
forma humana e se transformando em algo semelhante a um lobo
ou a uma hiena, e saiu pela porta ainda aberta com o rabo entre as
pernas. Dominado pela Ira, Hasterius falou:

— Já que vocês para nada servem, eu mesmo vou cuidar do que é
meu. Locusta! Locusta! Venha cá!
A esse chamado, atendeu um espírito repulsivo. A aparência era
andrógina, o rosto comprido, os olhos verdes-lodo, cabelos
grisalhos e desgrenhados, pescoço fino, mãos longas e esqueléticas
que terminavam em garras com unhas pontiagudas. Sua voz era
desagradavelmente rouca.

— O que deseja de seu humilde servidor, Mestre?

— Locusta, confio em você, por isso vou lhe dar uma ordem que
espero seja cumprida.
— Não tenha dúvida, Senhor. Farei o que mandar com desvelo.
— Isso é bom. Eu estou me preparando para ir à região habitada
pelos encarnados a fim de verificar o que está acontecendo com o
meu tesouro. Recebi, porém, notícias de lá que me deixaram muito
inquieto. Antes de partir, entretanto, queria que você fosse lá e
fizesse uma avaliação real com o máximo de detalhes sobre o que
está acontecendo. Você pode fazer isso.
— Naturalmente, Senhor.
O espírito maligno seguiu rumo ao endereço dado. Enquanto isso,
em nossa reunião costumeira no Ernesto Bozzano, a irmã Letícia nos
avisou.

— Meus queridos irmãos. Hasterius está preocupado com o nosso
trabalho, porque estamos desmanchando a obra de seus
colaboradores. Ficamos sabendo que ele enviou para cá um espírito
extremamente grosseiro e perverso para nos observar. Nossa
guarda espiritual, que está sempre alerta, assim que esse agente das
trevas chegar, o levará preso para nossa colônia a fim de tratá-lo.
— Será que Hasterius virá mesmo, irmã? — perguntou meu pai.
— Creio que sim.
CAPÍTULO XIV
Por fim Hasterius se manifesta



De todas as sessões que eu havia assistido, esta foi a mais
interessante porque eu estava na expectativa de por fim, conhecer
um personagem que, depois da narrativa da irmã Letícia, tornara-se
central de toda essa história. A sessão em que, pela primeira vez,
Hasterius se manifestou, aconteceu em uma quarta-feira de janeiro
do ano 2000. Como sempre acontecia, a sessão foi aberta pelo
presidente do centro que fez uma prece e a sua esposa leu para nós
uma página do Fonte Viva, o livro de Emmanuel. Terminada a
leitura, a irmã Letícia se manifestou através da médium Maria
Augusta:

"Que a doce Paz de Jesus nos envolva agora e sempre. Hoje teremos
um dia muito especial e instrutivo, pois, esta noite, estará conosco o
nosso irmão desencarnado Hasterius. Cuidado para que, quando ele
estiver aqui, não tenhamos para com ele, sentimentos menores de
hostilidade e até mesmo de simples antipatia. Ele necessita de nossa
compreensão e de nosso amor. Acreditem: vocês não estarão em
contacto com um monstro, um espírito maléfico, mas com um
espírito sofredor que precisamos ajudar."

Não demorou muito e o médium Paulo Medeiros começou a dar
sinais de que um espírito desejava se comunicar por meio dele. E
em seguida, ouvimos a voz forte e autoritária de Hasterius soar no
cômodo onde estávamos:

— Quem são vocês que invadiram o lugar que me pertence sem o
menor respeito?
— Meu irmão, aquela casa não é sua e a família que lá vive não a
invadiu, comprou-a legalmente — disse meu tio muito calmo.
— Não estou gostando disso. Não sou seu irmão, não o conheço e
ninguém pode comprar uma propriedade que é minha sem que eu
saiba — disse o espírito com energia.

— Meu irmão, você não pode ser proprietário de coisa alguma na
Terra, porque você não pertence mais a esse mundo — insistiu o
doutrinador.
— Você acha que eu sou idiota? Pensa que não sei que não pertenço
ao mundo de vocês? Eu sei que sou um espírito fora de um corpo
físico, mas isso não me impede de me considerar com direito a
certas coisas na Terra que, no passado, foram minhas e continuam
sendo.
— Está bem, meu amigo, porém, quero deixar claro para você que,
enquanto não se desapegar das coisas materiais, não avançará no
caminho que o levará à Luz Maior — explicou o tio Abílio.
— Isso que você está dizendo é pura besteira e prova que você não
me conhece nem um pouco. Eu não sou qualquer um. Onde vivo,
sou poderoso e respeitado, tenho um castelo e súditos fiéis que me
servem sem discutir.
— Meu caro, isso não significa avanço moral, muito pelo contrário.
Você vive na Espiritualidade, uma vida ilusória, com grandes
fantasias de poder. Nada mais do que isso. As trevas jamais podem
significar poder. O espírito trevoso é por natureza frágil — falou
meu tio.
— Está bem! Então, você quer que eu mostre o meu poder. Muito
bem! Se você quer provas de quem sou, as terá agora.
Mal o espírito acabou de dizer essas palavras, a mesa começou a
tremer e as garrafas com água fluidificada começaram a dançar,
mas sem derramar a água. Tio Abílio pediu-nos que nos
mantivéssemos em prece. Embora estivesse com muito medo, procurei
me controlar. Então um quadro que estava na parede saiu, e
flutuou por toda a sala. Por fim, foi atirado contra as paredes com
grande estrépito. Em seguida, as janelas começaram a bater como se
uma força misteriosa as empurrasse de fora para dentro. Neste
momento, a voz clara e enérgica da irmã Letícia ecoou na sala.


— Basta Hasterius! Basta!
— Quem ousa falar assim comigo?
— Eu — disse a irmã Letícia.
— Eu quem? — perguntou ele.
— Olhe para mim, estou ao seu lado — retrucou a irmã Letícia.
— Eudóxia! O que você faz aqui?
— Estou aqui para buscá-lo, meu querido.
— Meu querido! Mas que hipocrisia é esta?
— Pensa que eu não sei que é você quem comanda esta conspiração
contra mim? Foi você por certo, quem mandou prender Locusta, o
meu melhor servidor. E depois de toda esta trama contra mim, você
vem me chamar de meu querido.
— Hasterius, está chegando a hora de grandes modificações. Sei
que você, tanto quanto eu, deseja ardentemente voltar para Capela,
mas por suas atitudes, não ficará nem mesmo na Terra. Assim que
se der o grande exílio dos espíritos deste mundo que não se
curvaram à lei de Deus, você será enviado, mais uma vez, para
mundos menos evoluídos e você sabe muito bem quanto foi dura a
nossa estada nesses mundos. Hasterius, o Pai espera que você dê o
primeiro passo na direção dele.
— Que pai é este de que você está falando? Não tenho pai e detesto
conversas sem sentido.
— Claro que você tem pai, um pai amoroso que está disposto a
perdoá-lo de todos os seus erros.
— Que perdão coisa nenhuma! Um justo não perdoa. Se ele é justo
como vocês dizem não deve me perdoar. Se ele quiser me castigar
que castigue porque perdoar é humilhante.
— Você está enganado, Hasterius, perdoar é divino e é necessário
ser muito forte para perdoar e, mais ainda, para não receber o
perdão como humilhação.

— Deixe de tolices. Não me arrependo de nada que fiz em
nenhuma de minhas vidas, portanto, não quero o perdão dele nem
de ninguém.
— Ainda que você não deseje o perdão do Pai, ele está sempre
disposto a perdoar seus filhos, não importa o crime que tenham
praticado.
— Está bem. Paremos com isso de uma vez por todas. Vamos direto
ao assunto que me trouxe aqui.
— Que assunto é este, Hasterius?
— A invasão de minha propriedade. Você sabe melhor do que eu
por que aquela casa me pertence e qual o motivo de meu interesse
por ela.
— Sim, sei. E sei também que a sua preocupação é inteiramente
inútil.
— Inútil! Por quê?
— Hasterius, você deveria saber que o seu tesouro não existe mais.
Passaram-se muitos anos e a biblioteca, que havia lá virou pó, não
mais existe. E mais ainda, se ela ainda existisse, que utilidade teria
para você?
— Isso é problema meu.
— Não, meu amigo, isso é problema nosso. Hasterius, não sou
indiferente ao seu sofrimento. Vê-lo sofrer, faz-me também sofrer.
Quantas vidas vivemos juntos, quantas oportunidade perdemos, e
agora você está perdendo mais uma. Não jogue fora esta chance que
o Pai está lhe dando, não feche a porta que lhe está sendo aberta
pela bondade divina.
— Quer saber de uma coisa? Já estou cansado de tanta conversa
fiada. Vou-me embora. Tenho mais o que fazer.
— Hasterius, não faça isso, eu lhe suplico — falou emocionada a
irmã Letícia.

— Já disse que sou surdo às suas súplicas. As súplicas são próprias
dos fracos e eu não gosto de gente fraca.
— Não, Hasterius, as súplicas são próprias daqueles que amam e
que sofrem quando aqueles a quem amamos estão cometendo erros
irremediáveis. Olhe existe alguém aqui que deseja vê-lo.
— Ninguém deseja me ver, e nem eu desejo ver ninguém.
— Hasterius, olha para quem acaba de chegar.
— Não posso olhar, tem muita luz sofro de fotofobia.
— Está bem. Então não olhe para ela. Escute apenas o que ela tem
para lhe dizer.
— Hasterius, que alegria vê-lo aqui! Disse a voz clara e branda do
espírito que acabava de chegar
— Esta voz... Esta voz... Mãe, é você?
— Sim, meu filho, sou eu e estou aqui para buscá-lo.
— Mãe, você me abandonou?—gritou Hasterius.
— Não, meu filho, sempre estive perto de você.
— Como perto de mim se jamais a vi?
— As suas escolhas, meu filho, colocaram um profundo abismo
entre mim e você. Isso desde os tempos de Capela. O mau uso que
você fez de seu livre-arbítrio fizeram com que você fosse exilado
para a Terra e assim aumentasse a distância entre nós. Mergulhei
nos vales profundos das regiões umbrali-nas, onde você vivia,
quando o encontrei, eu podia vê-lo, mas você não me via. Estive
com os nossos amigos superiores e supliquei por você, mas eles me
disseram que nada poderiam fazer, se você não cooperasse, e você
não estava cooperando. Disseram-me que me restava orar por você
e é isso que eu tenho feito até agora.
— Mãe, você já falou demais, vá embora daqui, não me torture
mais.

— Não sem você.
— Como não! Não vê que a sua luz me incomoda. Estamos
separados para sempre. A luz e as trevas não podem conviver.
— Meu filho amado, ante aos olhos de Deus não existem castigos
eternos nem afastamentos definitivos. Basta que você peça perdão
pelos seus crimes e se dispunha a refazer um longo caminho na
direção dos Mundos Maiores.
— Não, minha mãe, sou um miserável. Meus crimes não têm
perdão.
— Todos os crimes podem ser perdoados, porém, antes de
conseguir o perdão divino. Deve perdoar a você mesmo. Liberte-se
das algemas da culpa para que, livre, possa receber o perdão maior.
— Mãe, não me acene com falsas promessas. Deixe-me continuar
minha vida como tenho feito até hoje, esta é a única vida que
conheço e, por mais que seja sofrida, é a vida que tenho. Vá embora!
Deixe-me nesta escuridão, pois é ela que me sustenta e me ampara.
— Filho, você está insano. As trevas são a ausência da luz e por isso
a ninguém podem amparar.
Houve um silêncio breve entre Hasterius e sua mãe. Aproveitando a
aparente fragilidade emocional do filho, disse-lhe:

— Meu filho, o que vou lhe dizer não é uma ameaça. Os espíritos
perseverantes no mal, por longo tempo, e que albergam em seu seio
a revolta contra Deus e o desejo de vingança contra o próximo
sofrem um sério desgaste no perispírito, assumindo uma forma que
lembra um ovo, daí serem chamados de ovóides.
O corpo espiritual, desses seres, torna-se semelhante a pequenas
esferas, cada uma um pouco maior do que um crânio humano. Seu
estado é terrível: alguns se assemelham a amebas que respira em
uma espécie de pântano; outros repousam, aparentemente, inertes
como uma geleia apodrecida. Não gostaria de vê-lo assim, meu


filho, mas se continuar em sua teimosia de rever posições, este será

o seu destino.
— Esta é a coisa mais contraditória que já ouvi. — falou Hasterius.
— Contraditória, por quê?
— Ora, vocês vivem falando em um Deus de amor, um Deus que
perdoa não sei quantas vezes, e esse mesmo Deus criou esta tortura
para castigar os espíritos que não concordam com ele.
— Não, meu filho, Deus não criou os ovóides. Tornar-se um deles é
uma escolha dos espíritos. Veja o seu caso. De fato, você poderá se
tornar um ovóide, mas não pela vontade divina, porém, por sua
própria vontade. Arrependa-se, peça perdão a Deus por seus muitos
erros, mostre-se disposto a recomeçar, e um novo caminho abrir-seá
à sua frente. Vamos, meu filho, decida-se.
— Eu não quero sair daqui e abandonar o meu tesouro.
— Meu filho, estou oferecendo a você um tesouro muito maior, um
tesouro verdadeiro que os ladrões não roubam e a ferrugem não
corrói. Eu já me adiantei e anulei a imantação que você fez naquele
ambiente, você agora está livre. Eu vou ativar em você as suas
faculdades criptostésicas para você ver como se encontra a sua
biblioteca. Veja, meu filho, veja!
Em verdade, não sei o que aconteceu, mas um silêncio grande
tomou conta de nossa sala. Depois ouvimos a voz chorosa de
Hasterius.

— Não! Não é possível! Onde estão os meus livros? Os meus livros
tão preciosos.
— Meu filho, o tempo fez com que o seu tesouro virasse pó e lama.
Admira-me que um espírito como você, que fez um grande
progresso intelectual, não soubesse em que o seu tesouro havia se
transformado. Veja que nada mais há naquela casa para você
guardar, absolutamente nada. Venha comigo.

— Para onde?
— Para a verdadeira vida.
— Eu acho que não tenho escolha.
— Tem sim. Escolha o bem, a luz, o progresso e o amor do Cristo.
— Minha mãe, estou sofrendo muito. Durante muito tempo fui
cego e tateei nas trevas. Passei tanto tempo fazendo o mal e agora
compreendo que fui um suicida moral. Perdoa-me minha mãe,
Eudóxia e todos aqueles a quem fiz mal. Estou cansado de
continuar nesta luta inglória, a mais desastrosa que um espírito
pode travar, pois quando pensa que está vencendo está, em
verdade, perdendo.
— Ore comigo, meu filho, falou Laura com ternura.
— Não sei se sou digno. Tenho dúvidas de que ele ouvirá as preces
desse réprobo miserável.
— Ouvirá sim. Hasterius, vamos, ore comigo:
"Eu elevei o meu olhar a ti, ó Eterno e me senti fortalecido. Tu és a
minha força, não me abandones! Ó Senhor, sinto-me esmagado pelo
peso de minhas iniquidades. Ajude-me! Tu conheces as fraquezas
de minha carne; não afastas o teu olhar de mim.

Estou sendo devorado por uma sede ardente, faze brotar a fonte de
água viva e aliviarei a minha sede para lamentar as aflições de
minha vida. Que a minha boca apenas se abra para te louvar e não
pra lamentar as aflições de minha vida. Sou fraco, tu és forte, só tu
és a razão de ser e o objetivo de minha vida. Que o teu nome seja
bendito. Se me fazes sofrer é porque tu és o mestre e eu teu servidor
infiel; curvarei a minha cabeça sem me queixar porque só tu és
grande, só tu és a meta a ser alcançada".

Terminada a prece a irmã Letícia voltou a falar:


— Graças te dou meu Deus. Glória te dou, meu Deus por mais um
pecador ter sido salvo. Ampara em teu seio o nosso irmão
Hasterius, dá-lhe forças para que ele possa marchar por um novo
caminho.
— Irmã Letícia, Hasterius foi vencido? — perguntou meu tio Abílio.
— Não, meu amigo, Hasterius se tornou um vencedor. O vencedor
de si mesmo. A vitória sobre nós mesmos é a maior e mais
significativa que um espírito pode ter.
— E o que acontecerá com ele?
— Nós já preparamos um projeto de recuperação para ele, que
esperamos seja cumprido na íntegra. Este projeto não será imposto a
ele, mas aceito por ele. Está na hora dele aprender a usar o seu livre-
arbítrio para o bem.
Cerca de três dias depois destes acontecimentos, em uma reunião
em nosso centro, a irmã Letícia se manifestou por meio da tia
Hortência e fez uma espécie de despedida:

Meus amigos, meus irmãos, estou aproveitando esta oportunidade
para agradecer a todos vocês pela colaboração que nos deram na
tarefa de recuperar Hasterius. Devo lhes dizer que fui premiada
com a oportunidade de voltar a meu planeta de origem, porém, me
recusei para continuar na Terra, auxiliando Hasterius com todas as
minhas forças. Devo reencarnar com ele mais uma vez para auxiliá-
lo em uma existência muito dura que ele terá em regime de
expiação. Fiquem com Deus e até um dia.

Meu pai e minha mãe se tornaram espíritas. Continuamos
frequentando o Centro Espírita Ernesto Bozzano onde meu pai,
anos depois, ocupou a presidência. Quanto à nossa casa, nunca mais
tivemos problemas com espíritos sofredores. Eu e minhas duas
irmãs também nos tornamos espíritas militantes e foi por insistência
delas e de meus pais que escrevi este livro, valendo das gravações e


anotações que fiz durantes as sessões de desobsessão do Ernesto
Bozzano.

Fim

Primavera de 2010


Este e-book representa uma contribuição para aqueles que necessitam de
obras digitais, como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de
acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente
benefícios financeiros.
Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas
obras.









 A Casa dos Espíritos Sofredores – José Carlos Leal


 

   Digitalização:  M. Loureiro
   Livro de Rosana Bothmann


Sinopse:

A família Fonseca Teles conseguiu comprar a casa tão sonhada: ampla, com jardim na frente e horta nos fundos. Só não sabia que ela não estava vazia, mesmo estando fechada.

Assim que a família mudou para a nova casa, Cristina e Ana Júlia começaram a testemunhar coisas "estranhas" que aconteciam nela. Porém, na opinião de Augusto, para todas essas coisas, havia uma única explicação: tudo não passava de fruto da imaginação das filhas. Dona Rosa as confortava, mas ao final sempre concordava com o marido.

Imaginação ou não, o fato foi que, desde a mudança, os tais acontecimentos vinham tirando o sossego da família. Por isso, naquela noite, Augusto resolveu que desvendaria o "mistério", seja qual fosse. Mas desta vez ele não teve explicação nem para o que os próprios olhos viram... Foi aí que, convencido por Dona Rosa, resolveu buscar ajuda.




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Muita paz !

 Bezerra

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'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL

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