quinta-feira, 28 de janeiro de 2016 By: Fred

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J. Herculano Pires

Concepção
Existencial de
Deus

Editora Paidéia Ltda.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 2

Título: Concepção Existencial de Deus

Autor: J. Herculano Pires

6ª Edição - Fevereiro de 2003 - 3.000 exemplares
(1ª edição novembro de 1981)

Coordenação Editorial: Herculano Ferraz Pires

Capa: Andrei Polessi

Diagramação: Adriana Cury Pires

Revisão: Tatiana Cury Pires

Número do ISBN 85 – 88849 – 05 – 4

Dados da Editora:
Editora Paidéia Ltda
Rua Pinto Ferraz, 70 - V. Mariana
CEP 04117-040 São Paulo - SP
Tel. (011) 5182-5836
www.editorapaideia.com.br

Apoio:

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 3

(Contracapa)

Uma Conversa sobre Deus

Com uma capacidade indiscutível de falar sobre o complexo
de maneira simples, Herculano Pires enfrenta neste livro o desafio
do tema que se expressa no próprio título: a Concepção Existenci-
al de Deus. Vai o autor abordar o Absoluto, o Criador, na feliz
tentativa de colocá-lo em termos humanos, daquilo que existe,
que é, e fugir, portanto, das abstrações incapazes de lhe dar um
rosto. "Deus – afirma ele – como Existente, que existe na nossa
realidade humana, pode ser tocado com os dedos e sentido, capta-
do pelo nosso sensório comum". O desafio de Herculano, contu-
do, corre como um rio para o perigoso e estreito campo do antro-
pomorfismo, onde Deus foi confundido com a imagem do homem
e transformado, ele mesmo, em homem. Ao dar-lhe esse rosto
coerente com a filosofia espírita, o rosto do Existente, que pode
ser valorizado pelo trato da lógica, do bom senso, ao contrário de
confundi-lo com o ser finito fisicamente. Herculano vai torná-lo
exatamente um pouco mais compreensível aos sentidos humanos,
aproximando-o mais do mundo terreno e daqueles que o habitam,
como nós. Eis, então, que "não necessitamos da percepção extra-
sensorial para captar sua existência", porque podemos vê-lo na
sua obra, com a visão elaborada do poeta ou a visão prática do
homem simples; a partir dos cálculos e métodos do cientista ou
depois das experiências cotidianas daqueles que, também existen-
tes, percebem, sem qualquer possibilidade de elaboração filosófi-
ca mais apurada, um Existente a presidir a vida em todos os senti-
dos.
Herculano, aqui, como em tantos outros momentos de sua vi-
da intelectual fecunda, ao mesmo tempo em que combate o erro

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 4

inominável das religiões, ou seja, essa dupla tentativa frustrante
de "apresentar Deus como enigma insolúvel e exigir que o ame-
mos de todo o coração e de todo o entendimento", empreende o
esforço de refletir sobre a "concepção existencial de Deus, enten-
dido este não mais como elaboração imaginária dos homens des-
lumbrados pelo esplendor da Natureza, mas como necessidade
lógica e ôntica da compreensão do real". Tudo isto para alcançar
uma síntese de valorização da consciência humana ou, melhor
dizendo, uma capacitação dessa consciência para a própria visão
de mundo que cada um constrói. E a síntese de Herculano se
expressa nessa conseqüência. "Ao homem-existente junta-se
necessariamente, e portanto de maneira inegável e indispensável,
o Deus-Existente, cuja imagem absoluta se reflete na pluralidade
humana". Deus existe assim como o homem existe, mas trata-se
de uma realidade que se objetiva pelas relações que se estabele-
cem entre ambos em contextos maiores e menores. Assim como o
senso comum admite hoje, sem maiores complicações, que o
homem não pode ser compreendido fora do social, assim também
Herculano vai demonstrar que este mesmo homem "não pode ser
explicado fora do contexto natural do Cosmo" sem os limites e os
universos que a mentalidade relativizada ainda lhe impõe.
Wilson Garcia

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 5

Índice

Deus Existe?................................................................................. 6
O Existente................................................................................. 13
Deus no Homem......................................................................... 24
Natureza Inteligente ................................................................... 30
Do Efeito à Causa....................................................................... 37
Deus e os Deuses........................................................................ 44
O Deus dos Místicos .................................................................. 51
A Loucura de Existir .................................................................. 58
A Paraexistência......................................................................... 65
A Ação de Deus ......................................................................... 72
Deus Social ................................................................................ 79
Autogênese de Deus................................................................... 86
O Mito do Diabo ........................................................................ 93

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 6

Deus Existe?

Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da
Morte de Deus, são anjos rebelados e decaídos do Paraíso Medie-
val. Nesta fase de inquietações e contradições que marca os flan-
cos bovinos do Século XX com imenso sinal de interrogação em
ferro e em brasa, a tese da Morte de Deus, oriunda da II Guerra
Mundial e inspirada no episódio do louco de Nietzche, anuncia a
liquidação final do espólio medieval no pensamento contemporâ-
neo. Os bens desse espólio se constituem dos imóveis patrimoni-
ais de um Cristianismo deformado, com as suas catedrais gigan-
tescas, a estrutura econômico-financeira do Vaticano, os artigos
da velha simonia contra a qual Lutero se rebelou e os inesgotáveis
lotes de quinquilharias sagradas, vestes e paramentos ornamen-
tais, símbolos e dogmas das numerosas Igrejas Cristãs. Essa a
razão por que, matando Deus, os novos teólogos pretendem colo-
car o Cristo provisoriamente em seu lugar. A imensa literatura
religiosa medieval, que superou de muito os absurdos dos sofistas
gregos, destina-se ao arquivo milenar da estupidez humana.
O Materialismo e o Ateísmo do Renascimento, acolitados pe-
lo Ceticismo, o Positivismo e o Pragmatismo, formam o cortejo
do féretro gigantesco e sombrio, manchado de cinza e sangue, da
pavorosa arrogância em que se transformou a pregação de humil-
dade, os exemplos de tolerância e simplicidade do Messias cruci-
ficado. É o lixo do famoso Milênio, carreado para a Porta do
Monturo do Templo de Jerusalém, para ser lançado nas geenas
ardentes. Dispensa-se o inventário, porque não sobraram herdei-
ros. Nenhuma civilização morreu de maneira mais inglória do que
essa, em que Deus figurou como o carrasco impiedoso da Huma-
nidade ingênua e ignorante.

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Apesar da rudeza dessa visão trágica, assim pintada em cores
fortes na tela de um pintor primitivista (bem ao gosto do século),
ela não implica a negação da necessidade histórica da Idade Mé-
dia. Pelo contrário, o fundo histórico desse panorama, na perspec-
tiva tumultuada das civilizações da mais remota antiguidade,
todas fundadas na força, na violência e nos arbítrios das civiliza-
ções massivas que vêm da lendária Suméria até a Macedônia e a
Pérsia, projetando-se num impacto em Esparta e Roma, e um
clarão de beleza e consciência em Atenas (que também não esca-
paria aos eclipses da escravidão e da execução de Sócrates) justi-
ficam histórica e antropologicamente a tragédia humana desses
séculos de primarismo e barbárie que sucederam ao estranho
advento do Cristianismo. Nada se pode condenar nesse panorama
monstruoso, em que as idéias cristãs, renovando tímidos lampejos
de esperanças frustradas e revigorando-os na visão de esperanças
futuras, penetravam na massa e a ela se misturavam como o fer-
mento da parábola evangélica. As leis naturais da evolução cria-
dora, segundo a expressão de Bergson e de acordo com a tese
dialética de Hegel, levavam ao fogo de Prometeu (roubado ao
Céu) o caldeirão implacável das fusões dantescas, na percepção
intuitiva de Wilhelm Dilthey, os elementos conjugados das civili-
zações mortas. Os deuses mitológicos eram caldeados nas pró-
prias chamas votivas de seus templos, fundindo-se com Iavé, o
Deus Único dos hebreus, para modelagem futura do Deus Cristão,
que nascera da palavra mágica do Messias: Pai.
Mas até que os homens pudessem compreender o sentido des-
sa breve palavra, desse átomo oral, os detritos ferventes do caldei-
rão medieval teriam de escorrer pelas muralhas do preconceito e
da ignorância, queimando o solo do planeta e a frágil carne huma-
na. Não é de admirar que as atrocidades da II Guerra Mundial
tenham feito o mesmo. Em meados do Século XX estávamos
ainda bem próximos das fogueiras da Inquisição e dos instintos
ferozes dos antigos sátrapas das civilizações massivas, monstruo-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 8

sas expansões das tribos bárbaras, em que os ritos do sangue e do
ódio ao semelhante purificavam a túnica dos sacerdotes e das
vestais, manchadas pelos sacrifícios humanos e pela prostituição
sagrada nos altares e nas escadarias dos templos. Os abutres da
guerra devoravam Prometeu em cada vítima da loucura hitlerista e
chafurdavam na prostituição sagrada dos mitos da violência, essa
Górgora terrível e insaciável do Jardim das Hespérides nazista. A
histeria e o sadismo, a brutalidade e o homossexualismo campea-
vam livres nas guarnições de heróis, como um Estige de lamas
que escorresse do Fuherer para a Alemanha, asfixiando as mais
belas conquistas da sua tradição cultural a invadir e contaminar as
nações vencidas. Os campos de concentração e suas câmaras de
gás destruíam a confiança no homem, revelavam a falência do
Humanismo e a fé em Deus nas cinzas das incinerações brutais.
Na Itália dos poetas e cantores tripudiavam os asseclas do Duce,
submisso ao Fuherer, e no Japão das cerejeiras e dos Kaikais o
fanatismo dos kamikazes desafiava a insensibilidade de Truman,
que não tardou a lançar suas bombas atômicas sobre Nagasaki e
Hiroshima, no mais monstruoso genocídio da História.
Não nos é possível sequer conceber o Nada, o vazio absoluto,
do qual Deus teria saído como o Ser Absoluto. Tirar o Absoluto
do Nada é uma contradição que nosso entendimento repele. A
existência de Deus, como anterior à Criação é inconcebível. E se
algo existia antes, temos um poder criador anterior a Deus. A tese
budista do Universo incriado, que sempre existiu, subordina o
poder de Deus a essa existência misteriosa e inexplicável. Nos
limites da nossa mente esses problemas não cabem, são mistérios
que serviram para todos os sofismas, jogos de palavras e conclu-
sões monstruosas do pensamento teológico. Mas quando aplica-
mos o bom-senso, com a devida modéstia de criaturas finitas e
efêmeras, diante do Infinito e da Eternidade, podemos reduzir o
ilimitado aos limites da realidade inteligível. Então o raciocínio
dedutivo, de ordem científica, que parte do chão da existência

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evidente, para alcançar pouco a pouco as alturas acessíveis, nos
coloca diante de uma realidade que podemos dominar. Deus como
Existente, que existe na nossa realidade humana, pode ser tocado
com os dedos e sentido, captado pelo nosso sensório comum. Não
necessitamos da percepção extra-sensorial para captar sua exis-
tência. O grande erro das religiões é apresentar Deus como enig-
ma insolúvel e exigir que o amemos de todo o coração e todo o
entendimento. Essa colocação contraditória levou-as a um absur-
do ainda maior, o de transformar Deus num tirano sádico que nos
criou para submeter-nos à tortura e à perdição. Por mais que se
fale em amor, misericórdia e piedade, essas palavras nada valem
diante das ameaças da escatologia religiosa.
Mas Deus como Existente é o Pai que Jesus nos apresenta em
termos racionais, pronto a nos guiar e amparar, a nos dar pão e
não cobras quando temos fome e a nos convidar incessantemente
para o seu Reino de Harmonia e Beleza. Se podemos percebê-lo
em nós mesmos, na nossa consciência e no nosso coração, se
podemos vê-lo em seu poder criador numa folha de relva, numa
flor, num grão de areia e numa estrela, se podemos conviver com
ele e sentarmos com ele à mesa e partir o pão com os outros,
então ele realmente existe em nossa realidade humana e o pode-
mos amar, e de fato o amamos de todo o coração e de todo o
entendimento. Deus como Existente é o nosso companheiro e o
nosso confidente. Não dependemos de intermediários, de atraves-
sadores do mercado da simonia para expor-lhe as nossas dificul-
dades e pedir a sua ajuda. A existência de Deus se prova então
pela intimidade natural (não sobrenatural) que com ele estabele-
cemos em nossa própria existência.
Diante desse quadro horripilante, e particularmente dentro de-
le, nada mais se poderia esperar dos crentes e dos teólogos do que
a pergunta amarga e geralmente irônica: Deus existe? Na Antigui-
dade os sátrapas eram considerados como investidos de prerroga-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 10

tivas divinas. Tudo quanto faziam vinha de Deus e a crendice
popular não se atrevia a discutir os direitos humanos ante o perigo
sempre iminente da Ira de Deus. Mas após o Renascimento, a
Época das Luzes, a crendice transformou-se em crença sofisticada
pelas racionalizações abusivas. O homem moderno escorava a sua
fé no conceito hebraico da Providência, sempre vigilante e pronta
a socorrer a fragilidade humana. Esse homem não poderia supor-
tar a catástrofe que se abatia sobre ele de maneira implacável, ante
a mudez comprometedora do Céu. Sua razão aprimorada conde-
nava o passado e jamais supusera possível a sua ressurreição
brutal, sob as asas metálicas dos aviões de bombardeio e das
bombas voadoras. O ateísmo do passado parecia-lhe agora uma
simples atitude pedante. O seu ateísmo, o seu materialismo e o
seu pragmatismo, pelo contrário, assentavam-se agora nas bases
sólidas de um horror que o deixara só e frágil em face dos carras-
cos poderosos. Os velhos teólogos não podiam explicar a indife-
rença divina, o desprezo de Deus pelas suas criaturas que, segun-
do eles, haviam sido criadas por amor. Os novos teólogos só
encontraram uma explicação possível: a Morte de Deus.
Entretanto, por mais esmagado que esteja, o homem não pode
ficar sem uma luz de esperança. Os novos teólogos lhe ofereceram
então a figura humana de Cristo. Um Deus histórico, existencial,
que sofrera e morrera por ele aqui mesmo, na Terra dos Homens.
Não foi uma solução pensada, mas nascida das entranhas da des-
graça total, das entranhas do horror. Homens que cresceram e se
formaram nas crenças em Deus, alimentados pelas ilusões teoló-
gicas do Cristianismo, cobravam agora do Cristo as suas promes-
sas frustradas. Ele, o Cristo, assumiria o lugar vazio de Deus em
termos de emergência. Foi dessa situação premente que surgiu a
aventura do Cristianismo Ateu. Por isso, quando lemos os livros
brilhantes dos novos teólogos, transbordantes de uma inteligência
vibrátil, mas impotente, que não consegue nem mesmo esclarecer
o que é a Morte de Deus, perdendo-se em rodeios e sofismas que

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 11

nunca atingem uma definição, compreendemos o desespero total a
que chegou a inteligência humana ante os enigmas existenciais
deste fim dos tempos. Na proporção em que a rotina da vida se
restabelece no mundo arrasado, recompondo-se aos impulsos
naturais da vitalidade humana, os tempos negros esmaecem na
distância, introjetando-se na memória profunda da espécie como
arcanos do inconsciente. As forças da vida reagem contra a des-
truição e a morte, a ponto de fazerem brotar redivivas – indiferen-
tes às ameaças maiores que pesam no horizonte – as flores de
antigas e esmagadas esperanças. Queremos todos confiar, quere-
mos todos esperar.
Mas isso não acontece apenas pelo influxo das forças vitais.
Acontece sobretudo pela certeza íntima, que todos trazemos em
nós, de que cometemos um erro imperdoável ao alimentar nas
gerações sucessivas um conceito falso de Deus. Muitas vezes essa
certeza aparece como simples suspeita, desprovida de provas que
lhe dêem validade ôntica. Mesmo assim ela nos sustenta no pre-
sente e nos faz esperar. Os reflexos dessa situação ocidental no
Oriente não-cristão provocaram o mesmo abalo e a mesma des-
confiança que sentimos. Os mestres indianos, os gurus e bonzos
que viviam isolados em seu orgulhoso ascetismo, ciosos de seus
segredos milenares, fizeram-se caixeiros viajantes perfumados e
sorridentes, assessorados por técnicos em relações públicas, para
venderem aos ocidentais os mistérios sagrados. Essa atitude,
embora não seja geral, revela a suspeita insidiosa no inconsciente
guru quanto à validade tradicional de suas técnicas religiosas. O
pesadelo da guerra e o desespero posterior contribuíram de manei-
ra decisiva para que o mundo se transformasse na Aldeia Global
de Mac Luhan. Parece que pelo menos acreditamos todos, no
Ocidente e no Oriente, que o mundo de comunicação de massa
nos oferece a opção coletiva de esperar sem preocupações, pois
todos sabemos que se apertarem os botões da guerra nuclear
morreremos na solidariedade absoluta. A destruição não será mais

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 12

tão dolorosa e lenta. Seremos aniquilados de um só golpe, na
morte tecnológica.
Deus ressurge, se não no seu amor, ao menos na sua Justiça.
Já será um consolo para os que sempre sofreram e morreram,
enquanto outros vivem felizes no uso e abuso dos bens terrenos. A
idéia de um Pai todo poderoso, e no entanto insensível à miséria e
ao sofrimento da maioria dos filhos, sempre perturbou os que
pensam e levou muitas criaturas à revolta e à descrença. De duas,
uma: ou aceitavam a injustiça ou não admitiriam a existência de
Deus. Bastaria isso para nos mostrar que o conceito de Deus,
formulado pelas religiões e sustentado a ferro e fogo através dos
milênios, não pode estar certo. Precisamos examinar esse grave
problema enquanto não apertam os botões do Juízo Final.

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O Existente

Na Filosofia da Existência, que caracteriza o pensamento de
nosso século, o homem é considerado como o existente. É nele
que se procura descobrir o mistério do Ser, porque é ele o ser mais
acessível à investigação ontológica. A partir da sua análise, não
apenas em termos psicológicos, mas na visão de conjunto de toda
a sua realidade ôntica, é que podemos partir para indução do
conceito real do Ser. É uma subversão filosófica, um virar no
avesso os processos tradicionais da dedução, para que o pensa-
mento contemporâneo se enquadre no plano do real – o plano dos
efeitos e não das causas. O avanço tecnológico mostrou a validade
indiscutível do método científico, na pesquisa das leis que deter-
minam a estrutura das coisas, da rés que nos dá o real. Ao invés
de atrelar-se da Filosofia ao carro da Ciência, como pretendeu
Augusto Comte, os filósofos atuais atrelaram o método dedutivo
da Ciência ao método dedutivo do pensamento filosófico, provo-
cando o processo dialético da fusão que resultou no método exis-
tencial. O homem, como ponto de encontro do finito com o infini-
to, de causas e efeitos que nele se conflitam, apresenta-se como a
síntese natural de toda a realidade, normal e paranormal. No aqui
e agora das Filosofias Existenciais temos o encontro do tempo
com a eternidade, que Kierkegaard figurou no instante, o fiat
criador da criatura, ou seja, o lapso rapidíssimo do tempo em que
o mistério se revela como um impacto, numa espécie de insight
não apenas mental, mas total, que abrange toda a potencialidade
do Ser. Descartes, como precursor, já revelara esse processo no
cogito, ou seja, no instante em que o seu mergulho na cogitação
sobre o real lhe revelou a ligação do homem com Deus.
Pai da Ciência, do Método e do Pensamento moderno, Des-
cartes ficou esquecido no processo do deslanche científico, que

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 14

absorveu o pensamento criador nas minúcias necessárias da inves-
tigação objetiva. Mas a sua aventura subjetiva foi o marco de um
novo rumo para o pensamento filosófico. O cogito ergo sum
(penso, logo existo) foi o abre-te Sésamo da Nova Filosofia.
Graças a ele, o pensamento moderno libertou-se das amarras
tradicionais para agir com desembaraço na investigação de uma
realidade que é una, seqüente e não atomizada nos processos de
análise. A fragmentação dos conhecimentos científicos estava
barrada pela possibilidade da globalização do pensamento filosó-
fico.
O dogma religioso da Criação arrancada do nada por uma es-
pécie de passe de mágica perdeu o seu poder hipnótico sob os
pensadores ainda subjugados pela subserviência medieval, descor-
tinando no Renascimento a visão platônica do Mundo das Idéias,
na qual o efeito aparece como reflexo da causa, ligados ambos
pela necessidade de ser que é o próprio fundamento do Ser em si
mesmo. Todas as figurações absurdas da Teologia caíram no
ridículo, como simples invenções.
Resulta daí a concepção existencial de Deus, entendido este
não mais como elaboração imaginária dos homens deslumbrados
pelo esplendor da Natureza, mas como necessidade lógica e ôntica
da compreensão do real. Ao homem-existente junta-se necessari-
amente e, portanto, de maneira inegável e indispensável, o Deus-
Existente, cuja imagem absoluta se reflete na pluralidade humana.
A inaceitável imagem de um Deus antropomórfico é imediata-
mente substituída pela antiimagem de um Deus Absoluto, existen-
te por si mesmo, cuja idéia se reflete na Criação produzindo o
homem. A idéia, que para Platão era a própria mônada de que
nascem os seres, substitui assim a imagem criada pelos homens.
Causa e efeito se distinguem com clareza, não permitindo mais o
jogo de sofismas teológicos e filosóficos do passado, em que
causa e efeito se confundem e se revezavam nas argumentações

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 15

falaciosas. Se temos o existente no plano relativo ansiando pela
sua própria transcendência, buscando o arquétipo do absoluto, a
unidade causa-efeito se confirma no plano ôntico, revelando uma
nova dimensão do homem e gerando um novo conceito de Deus.
O homem já não pode ser explicado fora do contexto natural do
Cosmo, como uma criação artificial e ocasional, espécie de capri-
cho do Criador para uma experiência romântica. E também não
cabe mais na medida exígua das concepções materialistas, na
colher de pau dos fazedores de bonecos de barro, destituídos de
conteúdo e sentido. Restabelecemos a dinâmica simbiótica de
Pitágoras, na qual, apesar da figura egípcia da metempsicose, a
criatura humana aparecia no processo cósmico de maneira natural.
O homem isolado era uma pretensão frustrada, suas dimensões se
fechavam no circuito efêmero de berço e túmulo, sem nenhuma
perspectiva que pudesse justificar os seus sonhos inúteis. A con-
cepção existencial o projeta no infinito através da transcendência.
Por outro lado, a transcendência não se limita a um anseio do
homem, pois se revela como lei, como fato verificável, positivo,
em todos os elementos da Criação, como na teoria do transfor-
mismo de Darwin e na teoria da evolução criadora de Bergson. A
ambas Kardec apresenta a contribuição das pesquisas espíritas em
termos psicológicos, seguindo-se as contribuições de Zöllner,
Richet, Crookes e dos atuais parapsicólogos, inclusive os materia-
listas da área soviética. O Padre Chardin, no próprio seio da Igreja
imutável, lança sua gigantesca teoria da evolução, na linha do
pensamento espírita de Léon Denis, com as mesmas bases do
critério científico de pesquisa e experimentação de Kardec. O
pensamento fixista das instituições imutáveis não passa de um
entulho que as correntes poderosas da evolução criadora removem
de um golpe.
O conceito existencial de Deus se impõe como conseqüência
lógica do conceito existencial do homem. Deus não se torna, por
isso, num existente, mas no Existente Arquétipo. Se não nos é

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 16

possível provar essa existência nas retortas da Química, para
satisfazer a ambição das mentalidades de fichário, isso ocorre
porque os limites estreitos da metodologia científica não conse-
guiram e jamais conseguirão abranger a totalidade do real. As
próprias transformações da metodologia científica, mormente nos
últimos decênios, mostram de sobejo a inadequação dos processos
empíricos às exigências da realidade global. Mas o homem não
dispõe apenas das antigas retortas e dos modernos computadores;
dispõe também do instrumento superior do pensamento perquiri-
dor e criador que o leva muito além do seu próprio sensório e das
tentativas de laboratório. Por outro lado, os métodos analíticos da
Ciência funcionam eficazmente no plano do sensível, da matéria
em sua ilusão concreta; e assim mesmo sob controle matemático,
o que vale dizer sob o controle abstrato do pensamento. Alienan-
do-se à ilusão da matéria, os cientistas se fecham nas chamadas
realizações concretas. Disso Resulta o desprezo pelo metafísico,
para o que muito contribui a ilusão mística dos chamados homens
de Deus, como se todos os homens não fossem de Deus. A mente
ilusória, fascinada pelas aparências, apega-se a elas e rejeita as
intuições de uma visão superior da realidade. A hipnose do fenô-
meno produz a alienação do homem ao sensório, frustrando-lhe a
percepção do número, da causa primária que é a própria essência
do fenômeno. O próprio Kant negou-se a penetrar no mistério da
clarividência de Swedenborg, apesar das provas espontâneas e
evidentes que teve em mãos, e demarcou rigidamente os limites
da Ciência, no campo da dialética sensorial, como se a função da
Ciência não fosse precisamente a de conquistar os domínios do
mistério. É por isso que o progresso material caracteriza nosso
século, com a supremacia esmagadora do progresso material sobre
o moral e o espiritual. Não obstante, o avanço das pesquisas cien-
tíficas rompeu a barreira kantiana no próprio campo da Física,
quando esta teve de penetrar no mistério da constituição da maté-
ria, que se desfez nas mãos dos cientistas em átomos e partículas

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 17

infinitesimais, revelando a realidade surpreendente do Véu de Ísis,
da trama sutilíssima de vetores inframicroscópicos tecida sobre
um fundo radiante de campos de força desconhecida. Logo mais,
a descoberta atordoante da antimatéria, a princípio considerada
como estranha à Terra, mas logo mais revelando a sua presença
no íntimo das estruturas atômicas, deu o golpe de misericórdia na
hipnose do fenômeno. Graças a isso, estamos chegando ao fim do
século com uma visão mais real da realidade e descobrimos a
verdadeira grandeza do homem naquilo que Rhine chamou de
conteúdo extrafísico do homem.
Essa revolução conceptual é tão violenta que a maioria dos
cientistas sentem-se atônitos e recusam-se a aceitar as novas
proposições apresentadas pelos cientistas libertos da hipnose. Em
contrapartida, existem os alucinados que se lançam a hipóteses
malucas, jogando com os dados ainda inseguros da visão nova da
realidade na elaboração de teorias e prognósticos insensatos. De
um lado permanecem em catalepsia os que Remy Chauvin consi-
derou como dominados pelo mal científico da alergia ao futuro,
de outro lado os que se entregam à nova hipnose da pulverização
do real. Para estes, todas as suposições se tornam possíveis ou até
mesmo verídicas, ante a derrocada dos pressupostos materialistas
em que se apoiavam.
A idéia de Deus, abastardada pelos teólogos, mostra-se mais
do que nunca inaceitável. Mas a ordem, a precisão absoluta, a
inteligência orientadora e reguladora que se manifesta nas estrutu-
ras do real, a conotação das hipóstases de Plotino na organicidade
cósmica exigem o conceito científico de Deus como fonte genéti-
ca e estruturadora de toda a realidade. A existência de Deus não é
mais uma questão teológica, aleatória, mas uma exigência cientí-
fica da coerência do pensamento. Confirma-se a proposição carte-
siana de que tirar Deus do Universo é como tirar o Sol do sistema
Solar. Cairíamos no caos. nenhum pensamento sobre a realidade

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 18

pode justificar-se e sustentar-se na ausência de Deus. Mas não do
Deus das religiões, que é uma grotesca interpretação de Deus nos
traços caricaturais da figura humana, um resíduo da selva, onde os
homens desprovidos dos recursos da Ciência, armados apenas de
experiências primárias, imaginaram Deus na forma de um super-
homem, sem nenhuma consciência do que faziam, mas já sentindo
em si mesmos, na sua simplicidade e na sua ignorância, a necessi-
dade urgente de uma concepção de Deus.
O conceito existencial de Deus é uma superação de todo o
passado humano, Kierkegaard, o pai involuntário do Existencia-
lismo, era um teólogo e representou em nosso tempo o papel de
Pitágoras na Antigüidade, servindo de transição entre o passado
teológico e o presente científico da cultura humana. Podemos
aplicar-lhe a imagem que Bertrand Russell aplicou a Pitágoras:
um homem que tinha um pé no passado e outro no futuro. Do
passado mítico das culturas da Antigüidade, Pitágoras avançava
para o futuro racional. Por isso, como sucederia mais tarde a
Hegel, a posição pitagórica produziu correntes conflitivas no
mundo helênico. O mesmo se deu com o pensamento angustiado
de Kierkegaard, que arriscava um passo além da Teologia Medie-
val. Desse passo brotaram as posições antípodas do pensamento
de Heidegger e de Sartre, Marcel e Jaspers. Embora o tema cen-
tral da existência predomine em todas essas correntes, as posições
diversas em face dos problemas fundamentais caracterizam orien-
tações muitas vezes divergentes. Para Sartre, Deus não existe.
Para Karl Jaspers, Deus é o Ser que buscamos na transcendência
vertical. Para Heidegger, o que importa na filosofia é o problema
do Ser, sendo a existência apenas um meio de se perquirir a natu-
reza e o sentido do Ser. Max Scherer propôs uma nova prova da
existência de Deus como Ser Supremo, acrescentando-a às provas
clássicas do pensamento medieval. Scherer entende que o fato de
haver um saber a respeito de Deus, saber que só pode ser obtido
através de Deus, prova a sua existência. Ocorre, porém, que o

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 19

saber pode ser falso, o que parece não ter ocorrido ao filósofo. A
prova existencial de Deus decorre naturalmente de três fatos
incontestáveis:
1) a existência da idéia de Deus no homem, manifestando-se
universalmente na lei de adoração, que levou todos os povos,
em todos os tempos, à adoração de um Poder Supremo;
2) a inteligência da estrutura total da Natureza, em seus míni-
mos detalhes, que nos revela a imanência cósmica de um po-
der inteligente;
3) a lei de causa e efeito, que nos mostra a impossibilidade de
efeitos inteligentes sem uma causa inteligente.
Como corolário dessas provas podemos lembrar que essa in-
teligência imanente manifesta-se em graus progressivos nos rei-
nos da Natureza, para alcançar a culminância no homem. Impor-
tante também é o fato de que todo o saber humano nasce da expe-
riência vital do homem, sujeito, desde o seu aparecimento no
planeta, aos poderes e aos condicionamentos das leis naturais, que
constituem a fonte desse saber. Assim, a inteligência humana tem
sua origem na inteligência imanente da Natureza e o saber huma-
no foi adquirido num longo processo de aprendizado do saber da
Natureza. Atribuir tudo isso ao acaso é simplesmente uma fuga à
realidade, que implica a contradição de se atribuir inteligência ao
acaso. Por outro lado, uma concepção materialista do Universo
implica necessariamente (em termos de necessidade lógica) a
atribuição de inteligência à matéria, que hoje sabemos, cientifi-
camente, não existir em si mesma, sendo o produto da acumula-
ção da energia, que se realiza com lucidez e precisão científicas,
visando a fins determinados num gigantesco esquema de ações e
reações inimaginavelmente diversificadas. Essa realidade espan-
tosa levou Francis Bacon à conhecida afirmação de que, para
dominar a natureza, precisamos, primeiramente obedecê-la. A
Ciência, como se vê, a orgulhosa ciência humana, não é mais do

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 20

que ato de obediência a Deus. No plano ético a revolta materialis-
ta é como a queda dos anjos, no mito bíblico, uma atitude de
ingratidão e estupidez ante a Inteligência Suprema. O materialis-
mo não passa de uma crise de adolescência da Humanidade.
Mas é necessário considerarmos, no plano cultural, a infini-
dade de equívocos surgidos ao longo da História, que acabaram
por levar a inteligência humana a repudiar a fonte da sua precária
sabedoria. O desenvolvimento da razão despertou a vaidade do ser
humano – único detentor do pensamento lógico e produtivo na
Terra –, voltando-o contra a herança de submissão do passado
teológico; a espantosa seqüência de crimes e atrocidades pratica-
das em nome de Deus, por seus pretensos representantes, negando
a sabedoria e o amor de Deus; a comercialização das religiões e a
conseqüente profissionalização do sacerdócio, que resultou no
poderio político e econômico das igrejas; a deformação total dos
princípios fundamentais das religiões ocidentais e orientais, que
acabaram trocando o Reino do Céu pelos reinos da Terra, numa
espécie de câmbio espúrio, em termos da mais calamitosa simoni-
a. Esses fatores negativos, causando revolta e ateísmo, atenuam
em parte os aspectos da estupidez humana gerada pela vaidade. O
homem pode desculpar-se diante de Deus, alegando que as condi-
ções específicas da vida planetária e os impulsos cegos de seu
primitivismo o arrastaram para a ingratidão e a falta de respeito à
Inteligência Suprema. É o único álibi a que pode agarrar-se,
quando despertar para a compreensão real da sua posição na
estrutura cósmica. Mas esse mesmo álibi parece tristemente acu-
sador, quando nos lembramos de que a intuição do Poder Supre-
mo nunca lhe faltou, pois a marca de Deus em seu íntimo jamais
foi apagada, antes reforçada constantemente pelos reclamos da
sua consciência.
Provada assim a existência de Deus, tanto no plano objetivo
quanto no subjetivo, na realidade exterior em que a Sua presença

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 21

imanente é manifesta e na realidade interior em que Ele permane-
ce em nós, manifestando-se nos vetores conscienciais e no impul-
so de transcendência que nos leva a buscar a integração de nosso
ser na perfectibilidade possível de seu arquétipo divino, não há
como negar que existimos porque Ele existe e que a nossa exis-
tência se funda na Sua existência. Essa é a concepção existencial
de Deus, o conceito do Existente Absoluto, cuja forma, como
prescrevia o Judaísmo, não pode ser figurada de maneira alguma,
porque não se figura o Absoluto. A própria existência humana é
considerada, nas Filosofias da Existência, como subjetividade
pura. Podemos figurar o homem em sua realidade aparente, mas
não podemos fazê-lo em sua subjetividade, que é a sua única
realidade verdadeira. A criação do homem à imagem e à seme-
lhança de Deus, segundo o mito bíblico, torna-se compreensível,
não dando lugar à proposição inversa que nos apresentaria Deus à
imagem e semelhança do homem. Colocando esse problema no
plano histórico da Ontogênese podemos explicar racionalmente a
filogênese divina dos panteons religiosos do passado, em que
vemos Deus passar pelas metamorfoses do mito, desde a litolatria,
passando pela fitolatria, a zoolatria, a pirolatria e assim por diante,
até chegarmos à antropolatria e por fim ao panteísmo de Espinosa,
em que a cosmolatria nos aproxima de Deus-Pai do Evangelho de
Jesus.
Resta naturalmente a grande incógnita a cuja decifração ainda
não podemos aventurar-nos: a das origens do seu porquê. Há uma
origem de Deus? Podemos saber ou imaginar como, onde e quan-
do, de que maneira Ele surgiu – não no Cosmos, que não podia
ainda ter existido, mas no Inefável, como queria Pitágoras? Re-
montando a concepção matemática dos pitagóricos, podemos
imaginar o número 1 imóvel no Inefável e o seu estremecimento
que desencadeou a década, atingindo na equação do número 10
todo o circuito da Criação? A simples imaginação do Inefável nos
coloca ante a vertigem do vazio absoluto, que não podemos con-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 22

ceber. E como explicar o número 1 em meio desse vazio e a causa
possível de seu estremecimento? Podemos naturalmente pensar na
hipótese mais modesta de Aristóteles: Deus como o Primeiro
Motor Imóvel, no centro da gigantesca Usina do Infinito, onde,
apesar de imóvel, põe em movimento os motores estelares e todos
os demais motores de uma realidade subitamente acionada. Mas
onde a engenharia criadora, quando o próprio Deus não existia? A
solução bíblica do Fiat é evidentemente a mais prática, mas tam-
bém a que estabelece a barreira mais pesada ao nosso entendimen-
to, pois Deus é o Verbo que usa o Seu próprio verbo para fazer
que o Nada se transforme no Todo. Estas especulações ingênuas
servem apenas para mostrar a nossa impotência e deveria servir,
mas não serviu, para despertar a nossa humildade.
Mas se quisermos perguntar a nós mesmos pela nossa origem,
poderemos responder com segurança? O tema da facticidade, nas
Filosofias da Existência, mostra a nossa ignorância total a respeito
da nossa origem. Nascemos no mundo como náufragos desmemo-
riados que fossem lançados a uma praia desconhecida, impotentes
e nus. Só trazemos conosco a facticidade, a forma e a maneira
porque fomos feitos. Nada sabemos de nada. Estamos, segundo
Kardec, vestidos apenas com a roupagem da inocência, mas não
somos inocentes. No fundo misterioso da memória subliminar,
nos arcanos do inconsciente, trazemos uma bagagem secreta que
só poderemos usar na proporção do nosso desenvolvimento
psicofisiológico. Teremos de passar por todas as fases bem
graduadas do processo ontogenético, como se ainda não fôssemos
um ser, para depois começarmos a revelar as formas ocultas do
nosso ser, na realidade já preexistente. Nossas origens são tão
misteriosas como as origens possíveis de Deus, cuja facticidade se
revela no Fiat. Assim, tudo quanto se pretende saber a respeito de
Deus – o saber de Deus através de Deus, de Max Scherer – nada
mais é do que um jogo de palavras, flatus e nada mais. E apesar
disso podemos querer negar a Existência daquele Poder que
existia antes de nós? Não obstante, não são inúteis estas

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 23

de nós? Não obstante, não são inúteis estas digressões. Elas ser-
vem para nos mostrar a falácia de todas as construções utópicas
do pensamento humano a respeito de Deus, no tocante a sua ori-
gem e natureza. Cabe-nos ater-nos apenas ao conceito existencial
de Deus, que podemos sustentar com os dados da nossa própria
existência.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 24

Deus no Homem

A consciência humana tem a mesma estrutura fundamental
em todas as raças. O problema das raças está hoje praticamente
superado, em virtude da miscigenação, das incessantes misturas
raciais que se verificaram no tempo e em todos os tempos, produ-
zindo sub-raças e variedades inúmeras de tipos humanos em todas
as latitudes do globo. Pesquisas universais, realizadas pelos orga-
nismos especiais da ONU e de vários governos e instituições
científicas, revelaram a inexistência de uma raça pura no mundo.
Mas a tipologia racial ainda se apresenta de maneira definida em
certos povos, caracterizando-os quanto à linhagem principal do
seu desenvolvimento. Este não é o problema de nosso estudo, mas
como se relaciona com ele, aludimos à questão sem maiores in-
formações a respeito.
Hoje, o mais certo seria falar-se de nacionalidades, pois em
cada nação, mesmo naquelas racialmente mais definidas, existe
sempre um mosaico racial que não se revela facilmente quando a
mistura se deu em vários ramos da mesma raiz, do mesmo tronco
racial e lingüístico. Mas o que nos interessa é a constatação em
todos os povos da mesma estrutura fundamental da consciência
humana, naturalmente diferenciada com a preponderância ou não
de fatores constitutivos, em virtude de exigências mesológicas ou
da interferência de fatores históricos e culturais ligados às condi-
ções geográficas, climáticas, alimentares, tradicionais e assim por
diante. Mesmo na Antigüidade, nas fases de isolamento das civili-
zações, os fundamentos da consciência humana revelavam-se os
mesmos em todos os povos, como se pode verificar pelas suas
manifestações culturais. Nesse sentido, não importam as diferen-
ças da concepção de Deus entre os povos, que tanto podiam cultu-
ar a Zeus como a Brama, ao Tao chinês como ao Ivaé hebraico ou

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 25

aos deuses egípcios. Do Templo de Amom-Rá ao Templo de
Diana ia a distância espacial e cultural que os tornavam estranhos.
Mas em todos os templos e cultos o que se manifestava, como
lei universal, era a idéia de um poder superior que o homem deve-
ria reverenciar. E para reverenciar esse poder os homens deviam
sempre mostrar-se dignos dele, cumprindo as leis morais das
prescrições religiosas. Cultos e ritos podiam variar ao infinito,
mas a essência era a mesma: a intenção de agradar aos deuses
através de um comportamento coerente com as exigências da
evolução espiritual do homem.
Nas civilizações mais adiantadas os princípios fundamentais
da consciência humana se evidenciavam em traços mais fortes.
No plano moral as divergências formais davam, aos observadores
superficiais, a impressão da existência de sistemas morais contra-
ditórios. Isso acarretou, a partir do Renascimento, o desenvolvi-
mento das pesquisas científicas, um movimento intelectual depre-
ciativo para o conceito de moral. Entendeu-se que cada povo tinha
a sua moral própria, de maneira que a suposta existência de uma
moral superior e eterna não passaria de sonho vão, acalentado por
sonhadores e místicos. Como a moral vem da raiz latina mores,
que quer dizer costumes, chegou-se a conclusão de que a moral
era nada mais do que uma práxis, variável em seus fundamentos
como os costumes. Citou-se muito o exemplo da Grécia, onde o
casamento era monogâmico antes da Guerra do Peloponeso e
tornou-se poligâmico depois da guerra, pela necessidade de res-
taurar a população masculina terrivelmente dizimada. Esquecia-se
o essencial, ou seja, que o objetivo da poligamia então instaurada
era o restabelecimento da nação em seu estado natural, destruído
pela guerra, e do seu poder defensivo. O que se objetivava, por-
tanto, não era a poligamia em si, mas a continuidade da nação e
do seu desenvolvimento cultural, ou seja: o bem. O prossegui-
mento das pesquisas e dos estudos a respeito dessas variações da

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 26

moral acabou revelando que o princípio moral prevalecia sempre,
na busca de um objetivo único, que era o bem das nações, dos
povos, do homem em geral. Coube a Henri Bergson, na linha das
proposições universalistas de Pestalozzi, restabelecer o conceito
de moral como elemento básico da consciência humana. Bergson
revelou a conotação natural existente entre Religião e Moral, em
sua famosa tese sobre As Duas Fontes da Moral e da Religião.
Ambas, religião e moral, brotam das exigências da consciência
humana, primeiro nos costumes e depois na estruturação conven-
cional das regras de moral, bem como na formulação dos precei-
tos religiosos, cultos e ritos.
Essa reviravolta anulava os efeitos negativos da interpretação
errônea de moral e religião. A verdade era que ambas nasciam da
própria natureza espiritual do homem, que requeria disciplina e
orientação nas estruturas sociais. Um duro golpe para o pensa-
mento materialista, que insistia na tese da natureza animal do
homem. As pesquisas antropológicas e sociológicas, particular-
mente entre povos primitivos, em regiões selvagens, confirmaram
essa nova colocação do problema, embora ainda hoje materialistas
e pragmatistas insistam no erro, procurando sempre, segundo a
expressão do Apóstolo Paulo, sujeitar o espírito à carne. Vã tenta-
tiva sustenta a vaidade humana, que vai sendo progressivamente
frustrada pelo avanço das pesquisas científicas sobre a natureza
humana. Temos assim três princípios fundamentais da consciência
humana bem visíveis em suas manifestações no plano social: a
idéia de Deus no homem, o seu anseio de transcendência e o
desejo natural do bem. Neste anseio do bem encontramos o senti-
mento de afetividade, de amor pelos semelhantes, que se traduz
no princípio de fraternidade universal. Do anseio de transcendên-
cia derivam os impulsos de ligações sociais, que determinam a
formação das famílias e grupos afins, bem como o sentimento
estético, determinante do interesse pelo belo em todas as suas
expressões. O sentimento de justiça é corolário do amor e depen-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 27

de, nas suas variações de intensidade e clareza, do grau de nitidez
da idéia de Deus.
Esses vetores da consciência humana pertencem à espécie, e
estão presentes em todas as criaturas humanas, com as variações
determinadas pelos fatores psicofisiológicos e mesológicos ou
ambientais, influenciados em maior ou menor grau pela educação
e o meio social. A idéia de Deus é o conceito que rege ao desen-
volvimento e à manifestação de todos estes vetores na dinâmica
social da existência individual e coletiva. Vem daí a importância
do conceito de Deus para o comportamento do homem, solitário
ou em grupo. O chamado homem sem Deus, que não aceita a
existência de Deus por falta de um conhecimento mais claro do
problema, nem por isso está desprovido desse princípio em sua
consciência. O conceito de Deus, mesmo negativo, exerce influ-
ência em seu comportamento. Ele pode contrariar essa influência
em virtude de preconceitos ou de experiências passadas, como
frustrações religiosas ou sociais, mas em geral, mais hoje ou
amanhã, cederá aos impactos dos seus impulsos afetivos. A liber-
dade é a própria consciência, o ambiente espiritual em que todos
esses vetores conscienciais se desenvolvem. A supressão da liber-
dade numa consciência é o eclipse que a lança na escuridão. Essa
supressão pode ser produzida por fatores endógenos ou exógenos,
por temores e traumas íntimos ou por diversos tipos de pressão
vindos do exterior. Os tiranos assumem pesada responsabilidade,
seja no âmbito restrito das relações familiais ou no âmbito aberto
das atividades políticas e sociais, ao criarem situações supressivas
ou limitadoras da liberdade.
O problema da estética, geralmente considerado em segundo
plano, negligenciado pelos estudiosos do comportamento humano,
é o segundo em importância, depois da idéia de Deus, na estrutura
da consciência. O belo não é apenas um vetor da consciência, é
um arquétipo espiritual da espécie humana que atrai o homem

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 28

para a transcendência e particularmente para sua integração cons-
ciencial. As fases iniciais da transcendência, que se passam no
plano da sociabilidade (a transcendência horizontal de Jaspers)
preparam a consciência para sua integração, que é a fusão dos
vetores conscienciais numa unidade global. O chamado homem
prático desenvolveu eficazmente a sua consciência de relação,
através da mente, que é o instrumento das relações com o exterior.
Esse homem, como ensina René Hubert, tem plena consciência de
sua posição social e de seus deveres profissionais, acha-se teórica
e praticamente preparado para as suas atividades. Mas sua consci-
ência só atinge o pleno desenvolvimento quando ele aprimora a
sua estesia, conquistando os planos superiores de uma visão esté-
tica geral. Sabemos a importância que os gregos davam à beleza e
ao sentimento estético. Platão chegou a afirmar que através dos
belos corpos a alma atingia o Belo. A pobreza espiritual do nosso
tempo interpreta essa afirmação em termos sensoriais, quando o
seu sentido é puramente espiritual. Os belos corpos despertam
admiração e amor, este se converte em devoção e eleva a alma ao
encontro do arquétipo ou idéia superior do Belo, no mundo das
idéias. Só neste momento o homem se liberta da animalidade e
penetra os arcanos da espiritualidade. Sua consciência se despren-
de dos liames terrenos para atingir o desenvolvimento pleno. A
visão do Belo impregna toda a sua alma, transfigura o mundo aos
seus olhos iluminados pelos clarões da Eterna Beleza. Essa visão
não tolera o mal nem a injustiça e penetra na essência do próprio
Feio para ali descobrir os germens ocultos da Beleza. Deus não é
apenas o Bem, pois sem o Belo não existe o Bem na sua perfeição
necessária.
Como vemos, Deus está no homem não apenas como idéia,
mas como a própria essência da criatura. Foi o que sentiu o após-
tolo Paulo quando disse que em Deus vivemos e nele nos move-
mos. Deus é assim a essência da existência humana. Por isso,
Deus não é o Existente Absoluto apenas por existir além das

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 29

nossas dimensões, mas porque determina o homem como existen-
te e participa da existência humana. O conceito existencial de
Deus é o único adequado a esta fase tormentosa da evolução
humana, quando todos os mitos do passado se despedaçam aos
nossos pés para que a Verdade possa escapar do invólucro dos
símbolos e iluminar o mundo novo que está nascendo.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 30

Natureza Inteligente

A inteligência da Natureza contrasta chocantemente com a es-
tupidez dos homens. O equilíbrio ecológico perfeito, medido
rigorosamente na dosagem certa dos elementos que o compõem,
parece a obra de uma equipe de especialistas. A estrutura de uma
árvore, da raiz às franças, exigiria anos de pacientes trabalhos
para ser feita. A composição do ar que respiramos, na proporção
exata de quatro partes de azoto e uma de oxigênio, única medida
que permite a oxigenação vital das plantas, dos animais e do
homem, só poderia ser estabelecida por um químico especializado
em manutenção da vida no planeta, pois bastaria um excesso de
oxigênio para que toda a vida desaparecesse. As simples propor-
ções de oxigênio e hidrogênio na composição da água, para que
ela se tornasse vitalizadora e não corrosiva, seria suficiente para
lembrar-nos a presença de determinações inteligentes na Criação.
Tudo isso sem tratarmos da constituição muito mais complexa do
corpo humano, com suas múltiplas exigências de segurança e
regularidade no funcionamento orgânico, desafia os mais hábeis
construtores de robôs e computadores da moderna tecnologia. A
Cibernética e a Biônica esforçam-se em nossos dias para arreme-
dar grosseiramente a perfeição dos organismos vivos. Mas apesar
dessa exuberância de provas da existência de uma inteligência
imanente na natureza, os homens elaboram teorias absurdas para
explicar o prodígio como decorrente de fatores ocasionais ou de
uma dialética dos opostos que representa em si mesma a maior
exigência de um poder inteligente. Durante os últimos dois sécu-
los milhares de cientistas têm lutado desesperadamente para afas-
tar da humanidade ingênua a perigosa superstição da existência de
Deus. Para tentar equilibrar as estruturas sociais destrambelhadas,
estabelecendo a Justiça Social no mundo injusto, de saques e
pilhagens sistemáticas, surgido ao acaso dos instintos de rapina-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 31

gem, voracidade e arrogância, chegaram mesmo à conclusão de
que a idéia de Deus devia ser apagada da mente humana.
Basta-nos olhar uma flor, ouvir o canto de um pássaro, sentir
a carícia de uma brisa primaveril, para estarmos recebendo a
saudação de uma inteligência prodigiosa, oculta na realidade
subjacente do mundo das coisas e dos seres. Mas ao invés de
perceber isso, os homens se revoltam indignados contra os que
sustentam que a Natureza é obra de Deus. Por que Deus, para os
expoentes da cultura materialista do século, não passa de um
resíduo dos tempos de superstição. Não obstante, essa própria
cultura, através das pesquisas científicas, provou, sem querer, que
a matéria, seu ídolo e única verdade, só existe de fato como ilusão
dos nossos sentidos. Bertrand Russell, para enfrentar a crise do
materialismo sensorial, apegou-se apenas a uma tábua de salva-
ção: "Até agora – afirmou – as leis físicas não foram mudadas e
continuam válidas." Arthur Compton, menos opiniático, declarou
conformado: "Descobrimos que por trás da matéria está a energia,
mas parece que há algo por trás da energia e esse algo é pensa-
mento." Na verdade, como Einstein ironizou: "O materialismo
morreu de asfixia, por falta de matéria." Mas apesar de alguns
expoentes, dos mais graduados, do meio científico-internacional,
terem a coragem de enfrentar a realidade, a maioria permanece
apegada à concepção materialista com um desespero de náufra-
gos. Por que essa teimosia, se justamente agora a pesquisa cientí-
fica levanta o Véu de Ísis que a Ciência há muito vinha lutando
para rasgar? Temos nesse episódio a prova do poder da inércia, do
instinto de conservação. O saber adquirido se acumula e consoli-
da, resistindo a tudo que possa modificá-lo. Inútil resistência,
porque não vivemos num Universo estável, mas constituído preci-
samente pela instabilidade dos fluxos. Como dizia Tales de Mile-
to, não podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Querer anquilo-
sar a Ciência, organismo vibrátil, de penetração na realidade
mutável, é como tentar recolhê-la a um museu. Nos fins da Idade

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 32

Média e no Renascimento, cientistas e filósofos tiveram de lutar
contra a imutabilidade fictícia da Igreja. Agora a Igreja se entrega
à correnteza e os próprios cientistas se agarram nas raízes do
barranco.
Mais do que nunca a inteligência imanente – o pensamento
por trás da energia – revela-se aos nossos olhos. Ultrapassando os
dados tradicionais, as pesquisas atuais nos mostram uma estrutura
da realidade em que a inteligência da Criação esplende de maneira
inegável. As estruturas atômicas, suas infinitas formas de conju-
gação, os campos de força do espaço sideral, as partículas atômi-
cas livres formando os plasmas físicos, o outro mundo da antima-
téria e tantas outras descobertas recentes ampliaram tanto o poder
da inteligência imanente que não existe mais a mínima possibili-
dade de negá-la.
Deus se revela na Natureza, como queria Camille Flammari-
on. E como pretendia Ernesto Bozzano, talvez se possa explicar
cientificamente a ação de Deus em termos da antiga teoria do éter
espacial, hoje revivida pela luz infravermelha dos físicos soviéti-
cos, que impregna todo o Universo, ou pelo oceano de elétrons
livres de Dirac, em que o universo está mergulhado. Não se trata
de Deus antropomórfico das religiões, do Velho Padre Eterno da
crença popular, nem mesmo do Iavé bíblico, esse caprichoso
manipulador de bonecos de barro em que soprava o hálito da vida,
e nem tão pouco do Brama indiano que gerava as castas segundo a
hierarquia dos membros do seu corpo humano, mas de uma Inteli-
gência Cósmica dotada de ciência e poder, que a tudo se liga pelo
seu magnetismo ou pelo seu pensamento, criando, sustentando e
renovando as coisas e os seres no infinito. Não é um Deus alheio
ao destino da Criação, mas ligado a ela em todas as minúcias e
agindo segundo um plano em que todos os objetivos estão defini-
dos. Sua poderosa ação não é jamais aleatória, mas teleológica,
determinante, precisa. Negar isso seria negar as próprias conquis-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 33

tas da Ciência em nosso tempo. A verdade inegável e insofismá-
vel é que essas conquistas provaram de sobejo a existência de
Deus, não mais apenas como necessidade lógica, mas como reali-
dade sensível e verificável a todo instante.
Os sofismas levantados contra essas conseqüências do avanço
científico são sempre ingênuos absurdos, portanto anticientíficos.
Isso desespera os que, sem nenhuma esperança razoável, conta-
vam com a negação total da existência de Deus pela Ciência.
Estranha posição a desses fanáticos do Nada, que sabem e não
podem deixar de saber que o nada não existe, não passou de uma
suposição ante uma realidade plena, onde hoje não se encontra
uma pequena brecha para se guardar o sonho de múmia da teoria
sartreana da nadificação.
Estranha mentalidade humana, necrófila e suicida, que rejeita
a sua própria imortalidade, pretendendo reduzir o homem, a es-
sência do homem, o espírito, ao fogo-fátuo das combustões de
gases nos cemitérios, num Universo em que nada se extingue,
tudo se renova no fluxo evolutivo! Contra-senso dos sábios que
não têm a humildade suficiente para se curvarem ante as provas
contrárias às suas falsas teorias. A aceitação do conceito antropo-
mórfico de Deus e a negação da Sua existência são igualmente
anticientíficas e absurdas. O ateísmo foi uma reação ao deísmo
tirânico das civilizações teocráticas da Antigüidade e ao milênio
de atrocidades sagradas da Idade Média. Irmão gêmeo do Anar-
quismo, ligou-se a este na luta pela liberdade humana, contra os
poderosos dominadores e exploradores dos povos. Tem, portanto,
a sua justificação histórica e revestiu-se da nobreza das causas
libertárias. Mesmo em nossos dias o ateísmo ideológico se apóia
nesses fundamentos, como vemos no caso do Marxismo, das
correntes de socialismo revolucionário e dos remanescentes de
antigas instituições anticlericais. A posição de Sartre e Simone de
Beauvoir insere-se nessa mesma linha. Mas acontece que a situa-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 34

ção modificou-se profundamente em nosso tempo. O que se pas-
sou na área soviética basta para mostrar que a tirania não depende
mais do poder divino das instituições religiosas. Além disso, o
desenvolvimento cultural, apoiado em avançada tecnologia, pul-
verizou as razões e os argumentos aparentemente lógicos do
passado. Os intelectuais dos séculos XVIII e XIX podiam vanglo-
riar-se de avançados quando sustentavam a sua posição de ateus.
Os intelectuais de hoje, pelo contrário, revelam ignorância das
conquistas científicas que enriquecem a cultura do século XX e
apresentam-se como remanescentes de um mundo morto. Essa é
uma das contradições mais estranhas da posição existencial sar-
treana, alimentada por idiossincrasia que é inteiramente avessa à
lucidez do pensamento filosófico.
O fato mais significativo da crise provocada pelo avanço ci-
entífico no mundo marxista foi a recente descoberta do corpo
bioplásmico dos seres vivos, particularmente do homem, nas
pesquisas de uma equipe especializada na Universidade de Alma-
Ata, na zona de pesquisas secretas do Centro Espacial da URSS,
no Cazaquistão. Os cientistas puderam ver e fotografar esse corpo
analisando a sua constituição atômica e constatando a sua retirada
do corpo material no processo da morte. Submeteram moribundos
às câmaras Kirlian de fotografia sobre campo imantado por alta
freqüência elétrica. As câmaras foram conjugadas com microscó-
pios eletrônicos de alta potência. Detectores de pulsações biológi-
cas registraram a sobrevivência do corpo bioplásmico após a
morte. O nome de corpo bioplásmico foi dado em virtude de se
constatar que esse corpo luminoso, constituído de partículas atô-
micas livres, que formam um plasma físico, é o corpo vital do
homem. O corpo material não se cadaveriza enquanto o corpo
bioplásmico não se desliga dele totalmente.
O plasma físico é o quarto estado da matéria, formando tor-
rentes de massas de partículas ionizadas. Esse corpo descoberto

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 35

pelos cientistas soviéticos corresponde inteiramente, na forma, na
aparência, na constituição energética e nas suas funções vitais, ao
perispírito da teoria espírita que, por sua vez, confirma a tradição
cristã do corpo espiritual, a que o Apóstolo Paulo alude na I
Epístola aos Coríntios. Bastou a divulgação desse fato nos Esta-
dos Unidos, com repercussão mundial, para que medidas imedia-
tas fossem tomadas pelo oficialismo soviético, desautorizando as
pesquisas e sustando as informações para o exterior sobre o assun-
to. O oficialismo soviético percebeu o perigo que essa descoberta
representava para as bases rigidamente materialistas da Filosofia
do Estado. As pesquisas com as câmaras Kirlian prosseguiram nos
Estados Unidos, mas ainda na fase da efluviografia. Os america-
nos não obtiveram informações sobre o processo de conjunção das
mesmas com microscópios eletrônicos. Mas o fato auspicioso
ficou registrado pelo livro Descobertas Psíquicas por trás da
Cortina de Ferro, de autoria das pesquisadoras da Universidade
de Prentice Hall (EUA) Scheila Ostrander e Lynn Schroeder, que
antes das medidas proibitivas estiveram na URSS, verificaram o
caso e entrevistaram os cientistas pesquisadores. O livro foi lan-
çado pela editora da Universidade americana e depois pela Bentan
Books, de New York, London e Toronto, entre 1970 e 1971. A
Editora Cultrix, de São Paulo, lançou uma tradução para o portu-
guês em 1974, de autoria de Antônio Mendes Cajado.
As pesquisas oficiais sobre o corpo bioplásmico foram reali-
zadas por biólogos, biofísicos e parapsicólogos na famosa Univer-
sidade de Kirov. Essa Universidade fica na cidade de Alma-Ata.
A equipe de pesquisadores constituía-se dos professores Iniushin,
Grischenko, Vorobev, Shiski, Nadia Fedorova e Gibaduin. Em
1968 essa equipe anunciou que suas pesquisas haviam provado
que todos os seres, vegetais, animais e humanos, possuem, além
do corpo físico, um corpo energético formado de plasma biológi-
co. Esta foi, sem dúvida, a maior conquista científica do século,
mas a glória dos descobridores ficou soterrada no silêncio deter-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 36

minado pelos interesses do Estado. Ontem, o totalitarismo da
Igreja sufocando a Ciência; hoje, o totalitarismo do Estado anti-
religioso fazendo o mesmo. Presa por ter e por não ter cão, a
Ciência avança, apesar de tudo, nos rumos certos da investigação
imparcial da realidade. E a inteligência imanente revela cada vez
mais a sua sabedoria sem limites. Que inteligência é essa? Dêem-
lhe o nome que quiserem, mas historicamente, na tradição e no
coração dos povos de todo o mundo ela se chama Deus.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 37

Do Efeito à Causa

O pensamento científico inverteu os termos do pensamento
antigo. Sabemos que essa inversão começou com Aristóteles, em
sua curiosidade pela observação das coisas naturais. Mas na ver-
dade começou bem antes, com fisiólogos gregos, entre os quais se
destacam Tales de Mileto, um pesquisador atrevido que chegou a
medir o diâmetro da Lua e calculou o seu peso. A intuição platô-
nica, orientada pelas lições de Sócrates, eclipsou essa tentativa
com esplendor de uma sabedoria de tipo pitagórico, haurida na
fonte oculta das causas. Correriam os séculos sobre as inquieta-
ções dos povos, até que a razão grega pusesse fim ao pragmatismo
dos povos europeus. A luz da Ásia teria de misturar-se, como o
fermento da parábola evangélica, à massa do pão ocidental para
levedá-la. O que Dilthey chamou de Caldeirão Medieval de fusão
das idéias, foi antes a panela de pressão em que, na medida de
tempo de um milênio, rigorosamente controlada pela válvula de
escapamento, Platão e Aristóteles seriam cozinhados no caldo dos
princípios cristãos. Só no Renascimento teríamos o quitute prepa-
rado com vários ingredientes estranhos colhidos no Olimpo de-
vastado pelo vandalismo cristão.
Os estudos de Gilson sobre a Filosofia Medieval e as pesqui-
sas de Dilthey, Cassirer e outros revelam que as fases sucessivas
da ebulição do pensamento medieval seguiam a intenção secreta
da inteligência imanente, um plano divino destinado a salvar o
pensamento cristão puro do gigantesco sincretismo religioso-
filosófico. Parece ter cabido a Abelardo a tarefa ingrata de prepa-
rar o prato especial destinado a Descartes, escoimado dos exces-
sos de gordura e condimentos míticos, para que os elementos
essenciais da evolução espiritual não se perdessem na transição
para a era científica. E Descartes realmente alimentou-se bem

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 38

com o prato de Abelardo, o suficiente para rejeitar o cozido tradi-
cional dos jesuítas do Colégio de La Fleche. Não fosse isso e o
esbelto espadachim francês teria se empanturrado com cozidos e
estufado a barriga como Tomás de Aquino.
Rejeitando o fascínio da Causa, o espírito ocidental preferiu a
tarefa secundária de analisar e pesquisar os efeitos. Essa atitude
de humildade socrática levou o pensamento ocidental à descoberta
do problema central do método. O entendimento humano estava
preparado para os novos tempos, mas se não lhe pusessem os
freios do método ele poderia disparar como Quixote pelos campos
da Mancha, a combater moinhos de vento. O efeito e não a causa,
o fenômeno e não a sua interpretação teológica, essa a grande
opção que o pensamento ocidental teve de fazer. Já advertiam os
antigos romanos, com seu feroz instinto prático, que podemos
tomar a nuvem por Juno. Os cristãos substituíam a deusa Juno por
Maria de Nazaré e continuaram a cometer o erro pagão de vê-la
nas nuvens, na escuridão sugestiva das grutas, no nevoeiro das
florestas e até mesmo em imagens quebradas arrastadas nas águas
de um rio. Galileu teria de arriscar a pele com suas experiências
na Torre de Pisa e Giordano Bruno morrer na fogueira inquisitori-
al como precursor herético de Espinosa e Leibniz. O século XVI
foi a abertura do mundo antigo para as novas dimensões da Civi-
lização que nascia, superando a bárbara concepção de Deus e do
homem que se tornaram, na organização social e cultural, mais
agressivas, deformadas e injustas que nos tempos selvagens. As
figuras exponenciais que nem surgiram, como as que menciona-
mos, tiveram de sacrificar-se para que os ideais cristãos não desa-
parecessem da Terra para sempre, tragados nas chamas inquisito-
riais, alimentadas muito mais pela arrogância de mentes embria-
gadas na volúpia da vaidade e do poder.
Apesar dessa embriaguez generalizada e terrivelmente conta-
giosa, geradora de crimes nefandos em nome de Deus e de Cristo,

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 39

os objetivos secretos da inteligência imanente foram atingidos.
Mas a estupidez humana é opaca e dura, não se deixa penetrar
facilmente pela luz e resiste, encastelada nas fortificações feudais,
a todas as tentativas de desalojá-las. Todos os que ainda hoje
lutam pela modificação das estruturas sociais e culturais enfren-
tam as maiores dificuldades. Não podem restringir-se à estreiteza
da mentalidade vulgar, que se acomoda nos costumes e nas vanta-
gens do momento, nem endossar os processos da política de com-
promissos grupais ou de castas, nem mergulhar no comercialismo
voraz e vampiresco do chamado poder econômico. Não obstante,
a busca da verdade mudou de rumos e só é válida quando remonta
dos efeitos às causas, libertando o homem do domínio dos mitos.
Essa simples mudança de posição recompensa o martírio dos que
morreram em nome da verdade, sem trair-se a si mesmos.
Em meados do século XIX o interesse pelo efeito desviou-se
da área restrita dos fenômenos habituais, segundo a expressão de
Richet, para as áreas desconhecidas e abandonadas dos efeitos
inabituais. Pesquisadores norte-americanos seguiram os pioneiros
da conquista da terra para tentar a conquista do espírito, obser-
vando e analisando os famosos fenômenos de Hydesville, com as
irmãs Fox. Essa tentativa repercutiu na França, onde Denizard
Rivail iniciou corajosamente a pesquisa científica desses fenôme-
nos. A pesquisa invadia diretamente as zonas sombrias do domí-
nio religioso, a selva escura de Dante, em que se haviam refugia-
do todos os mitos do passado. Era necessário penetrar nessa selva
a fundo, vasculhar as suas furnas, espantar os mochos noturnos,
desbastar os emaranhados de ramagens espinhentas que impediam
a penetração de luz solar. O pedagogo, o médico, o cientista De-
nizard Rivail, à maneira dos cristãos da era apostólica, mudou o
seu nome conhecido por um pseudônimo simbólico, de origem
gaulesa: Allan Kardec. E até hoje o simples enunciar do seu nome
causa arrepios às mentalidades retrógradas e evoca o mito desmo-
ralizado do Diabo. Foi a última vítima das fogueiras inquisitoriais,

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 40

queimando em efígie e queimadas as suas obras numa fogueira
erguida em Barcelona. O último bispo inquisidor não conseguiu o
cheiro, tão agradável aos santos inquisidores, da carne humana
queimada em vida. Teve de contentar-se com o cheiro de papéis
queimados, e esse cheiro serviu para incentivar a busca da verda-
de.
A pesquisa de Kardec ateve-se ao campo psicológico e psico-
físico. Como todos os vanguardeiros, teve de criar os seus méto-
dos de investigação, adequados ao objeto novo que tinha de en-
frentar. Durante doze anos dedicou-se a essa pesquisa de maneira
intensiva, chegando muitas vezes à exaustão. Ao mesmo tempo
enfrentava os anátemas da Igreja, os ataques de todo o campo
religioso da época, as críticas da leviandade mundana, as calúnias
dos invejosos, as agressões violentas dos sistemáticos, a condena-
ção das corporações científicas e as censuras filosóficas. A todas
essas agressões e condenações respondeu com serena firmeza,
apoiado em fatos, tentando esclarecer os adversários. Toda a sua
obra é um exemplo de didatismo paciente na sustentação da ver-
dade. Os doze volumes da Revista Espírita por ele regidos e pu-
blicados em fascículos mensais, durante doze anos, são o arquivo
dessa guerra branca, em que os ataques dos adversários são regis-
trados e analisados e o material de suas pesquisas apresentado ao
público. Hoje, felizmente, graças ao trabalho de tradução do
Engenheiro Júlio Abreu Filho e ao lançamento da coleção pelo
Editor Frederico Giannini Júnior, já o nosso público pode conhe-
cer em nossa língua esse espantoso acervo.
Kardec, reconheceu Richet – que não partilhava da sua filoso-
fia –, fundamentava-se sempre na pesquisa. Submeteu os proble-
mas espirituais à investigação científica, através de uma metodo-
logia rigorosa e tão bem esquematizada que as ciências psíquicas
posteriores, desde a antiga Parapsicologia alemã, passando pelas
Sociedades inglesas e norte-americanas de investigações psíqui-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 41

cas, até à psicobiofísica de Schrenk-Notzing na Alemanha e a
Parapsicologia atual, não conseguiram sair (embora sem saber) do
seu esquema metodológico e das classificações por ele estabeleci-
das para os fenômenos. Por outro lado, as conclusões de todas
essas ciências não conseguiram contrariar as de Kardec. Seu
esquema metodológico estabelecia a mesma divisão de campos
que elas tiveram de fazer: fenômenos subjetivos, anímicos e espi-
ríticos; existência de um corpo espiritual das plantas, dos animais
e dos homens; possibilidade de separação temporária do corpo
espiritual para a hoje chamada projeção do seu eu à distância;
natureza do corpo espiritual (perispírito) como semimaterial,
dotado de energias físicas e espirituais; existência da memória
profunda e possibilidade de sua emersão na consciência atual,
com influências benéficas ou maléficas no comportamento huma-
no; reencarnação e comunicabilidade dos espíritos (hoje pesquisas
da reencarnação na Parapsicologia e fenômenos theta no grupo
especial de pesquisas da Duke University e nas universidades
européias e soviéticas). Quando Kardec tratou dos fenômenos
anímicos (manifestações de dupla personalidade) e mostrou que a
anomalia podia ser curada com a elucidação do caso, Sigmund
Freud tinha apenas um ano de idade, e a catarse psicanalítica já
era empregada pelo mestre francês em maior profundidade do que
hoje, como lembrou o Dr. Ehrenwald. Hoje, na Universidade de
Moscou, segundo divulgam os próprios russos, o Dr. Wladmir
Raikov e sua equipe investigam o problema das chamadas reen-
carnações sugestivas, que afetam o comportamento normal de
muitas pessoas. Até mesmo os casos de agêneres (pessoas mortas
que reaparecem como vivas e se relacionam com os vivos) têm
ocorrido e chegado ao conhecimento de alguns pesquisadores,
mas são sempre interpretados como alucinações. O Dr. Hamen-
dras Nat Barnejee, da Universidade de Jaipur na Índia, famoso
pesquisador dos casos de reencarnação, que tem estado numerosas
vezes na URSS, soube de curiosos fatos que não puderam ser

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 42

divulgados. Por fim, é bom lembrar que o próprio Stalin, apesar
de seu materialismo, teve experiências notáveis com o médium
polonês Messing, mundialmente famoso.
Não é de admirar, portanto, que tenha havido em Moscou um
simpósio científico sobre a obra de Allan Kardec, segundo divul-
garam em 1974 várias agências telegráficas. Kardec era apresen-
tado como um racionalista francês do século XIX que havia ante-
cipado muitas pesquisas da atualidade sobre fenômenos paranor-
mais.
Na realidade, todo esse interesse mundial pelo paranormal
decorre da colocação racional do problema, em termos de pesqui-
sa científica. Existindo o fenômeno e sendo possível a sua inves-
tigação, o que durante um século negaram, e ainda hoje tentam
negar alguns opositores sistemáticos, não há motivo para que a
Ciência se recuse a investigá-lo. O que impediu o desenvolvimen-
to dessas pesquisas de maneira normal e seqüente foram as incrí-
veis arruaças promovidas pelos que mais deviam interessar-se por
elas, os que se dizem representantes de Deus na Terra. Por que
essas arruaças, essas enxurradas de mentiras despejadas em forma
de anátemas, bulas, folhetos, artigos e reportagens de jornais e
revistas, conferências, programas de rádio e televisão, livros
carregados de trapaças e ironias contra uma realidade que consti-
tui a própria essência das religiões? Todos os truques foram em-
pregados na luta contra a investigação de fatos que os homens
sempre conheceram, desde a mais remota Antigüidade. É que os
clérigos e os religiosos fanáticos ou tradicionais dão mais impor-
tância ao convencional do que ao verídico, às elaborações fantasi-
osas dos homens do que às manifestações de uma realidade evi-
dente. Prezam mais a estrutura das igrejas, em que se acomodam,
do que a estruturas da Natureza criada por Deus; preferem o reino
passageiro do mundo ao Reino de Deus que pregam nos púlpitos e
aceitam mais a exegese sectária do Evangelho do que relato sim-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 43

ples e claro dos textos evangélicos, repletos de exemplos de fe-
nômenos paranormais, muitas vezes produzidos e explicados, sem
ambigüidades, pelo próprio Cristo.
O método científico de investigação fenomênica, rigorosa-
mente controlado, com centenas e milhares de repetições dos
fenômenos, não deixa dúvidas sobre a sua realidade e a sua signi-
ficação. A única maneira de combater as provas científicas é
cobri-las com a cortina de fumaça da mentira. Já agora isso não é
possível, a não ser no âmbito restrito das seitas ignorantes. O
método científico triunfou e a pesquisa do fenômeno paranormal
levou o homem a descobrir a causa desses fenômenos intrigantes,
que está no próprio homem, na sua natureza espiritual sustentada
teoricamente pelas religiões. O mundo amadureceu para a verdade
e as novas gerações rejeitam a ilusão piedosa de uma fé que se
fundamenta apenas em afirmações dogmáticas, sustentadas pelo
autoritarismo dos poderes supostamente divinos de instituições
formalistas erigidas e mantidas pelos próprios homens. A virada
violenta e necessária da causa para o efeito, nos rumos do pensa-
mento humano, leva-nos hoje ao conceito existencial de Deus,
arquivando para sempre as falaciosas concepções do passado
religioso.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 44

Deus e os Deuses

O Deus judeu, exclusivista e autoritário, definiu-se na Bíblia
com esta afirmação: Eu sou aquele que é. Os homens já percebi-
am, então, que a multiplicidade dos deuses era contraditória em si
mesma, militava contra a idéia de Deus. Se Iavé ou Jeová se
apresentava como o Único, sua posição era lógica e respondia às
exigências de coerência do novo pensamento que se desenvolvia
em Israel e no mundo. Mas o exclusivismo de Iavé parecia dema-
siado arrogante. O poder esmagador de Júpiter, que através das
legiões romanas ameaçava dominar o mundo inteiro, não deixava
lugar para esse deusinho petulante de uma pequena província do
Império. Caberia, talvez, a Zeus, senhor do Olimpo, que levara os
gregos a um desenvolvimento cultural sem precedentes, impor-se
como Deus único. Mas quando o Messias judeu, Jesus de Nazaré,
adoçou a arrogância judia chamando Iavé de Pai, abriu-se a possi-
bilidade de uma aceitação universal do monoteísmo hebraico. O
desenvolvimento posterior do Cristianismo, facilmente infiltrado
nas populações subjugadas do Império Romano, provou a eficácia
da intervenção messiânica. Todos os deuses foram perdendo os
seus adeptos para aquele Deus desconhecido com o qual o Após-
tolo Paulo identificara Iavé em Atenas.
Kerchensteiner, em notável estudo, analisou em nossos dias a
fisiologia do mito, mostrando as leis que regem o processo mito-
lógico. Os deuses não foram inventados pelos homens, como
querem as teorias simplórias de Taylor e Spencer, ainda hoje
sustentadas até mesmo pelo chamado materialismo científico. Os
mitos nascem do seio da Mãe-Terra, evocados pelo coração dos
homens, e sobem aos céus escalando montanhas ou nos vapores
d'água que se acumulam na atmosfera. Daí a facilidade com que
se tomava a nuvem por Juno ou o relâmpago por Júpiter. Da

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 45

Terra-Mãe surgem as pedras e os rios, as matas e os animais e,
por fim, os homens. Mas os homens trazem a idéia de Deus no
coração e possuem a capacidade mental de projetar-se nas coisas e
nos seres. A dinâmica do animismo primitivo gera a floração dos
deuses que protegem os povos. Mas os deuses particulares, das
tribos e depois das nações, nada mais são do que a fragmentação
ilusória da unidade primitiva e irredutível. Assim como, partindo
das coisas isoladas – a terra, a água, os vegetais, os animais, etc. –
os homens vão depois descobrindo a unidade da realidade indivi-
sível, pois a realidade é uma só, formada de inumeráveis conjun-
tos, assim também a multiplicidade dos deuses tribais vai aos
poucos se fundindo nas pequenas unidades do sistema solar e à
unificação atual do Cosmo, maiores das mitologias nacionais. O
homem finito não pode conceber o infinito como uno e absoluto
senão através das experiências do real. A unificação da idéia de
Deus precedeu à unificação copérnica da unidade do sistema solar
e a unificação atual do Cosmo, como exigência primária do de-
senvolvimento da razão. Por isso os gregos anteciparam o mono-
teísmo no plano filosófico, pelo qual Sócrates teve de pagar o
preço da taça de cicuta. Mas a unidade religiosa só foi possível na
reforma do Judaísmo por Jesus de Nazaré, que os gregos apoiaram
chamando-o de Cristo (um nome grego) e que teve de pagar um
preço mais alto com a crucificação romana. Os homens partem
das coisas mínimas para chegarem pouco a pouco às máximas. O
mito é, ao mesmo tempo, a projeção da alma humana nas coisas e
a absorção das coisas pelo poder anímico do homem. A mitologia
não foi também a invenção gratuita dos deuses pela imaginação
dos homens, nem a busca de proteção ante a insegurança da vida
precária, mas a tentativa necessária de racionalização do mundo.
Superando o sensível da teoria platônica, os homens converteram
o mundo num organismo vivo e inteligível, através dos mitos. O
Olimpo se assemelhava às cortes dos Soberanos terrenos, com a
hierarquia humana de funções e poderes, não por imitação, mas

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 46

porque somente assim os homens poderiam compreender o misté-
rio do mundo. Não foi o medo, mas a curiosidade que gerou os
deuses. A prova histórica disso está na teoria diltheiana do caldei-
rão medieval, onde, só naquela fase específica da teocracia medi-
eval a Razão se fundia numa peça única, destinada à preparação
do Renascimento como Idade da Razão.
A embriaguez racional, como acontece aos indivíduos na pas-
sagem da mitologia infantil para o alvorecer racional da puberda-
de e da adolescência, levou os homens à rebeldia dos primeiros
tempos de liberdade, geradora do ateísmo e do materialismo. O
desenvolvimento das Ciências segue os rumos da crise da adoles-
cência, no esquema do famoso estudo de Maurice Debesse. Os
homens do Renascimento, do Mundo Moderno e até mesmo do
Mundo Contemporâneo portaram-se como adolescentes no cha-
mado conflito de gerações. Já agora, porém, nas vésperas da Era
Cósmica, os achados do Renascimento precisam ser revisados,
para que a problemática humana seja respondida em termos de
razão; mesmo porque é na razão que temos a imagem de Deus no
homem, não em sua forma corpórea, que o assemelha aos símios.
A concepção antropomórfica de Deus foi uma traquinagem da
Humanidade adolescente. Essa traquinagem se justifica em seu
tempo, como simples ensaio religioso para uma tentativa posterior
de colocação da idéia de Deus em termos racionais. Kardec, em
seu livro O Céu e o Inferno, comparando a mitologia greco-
romana com a mitologia cristã, mostrou as incongruências tipica-
mente adolescentes da reformulação teológica da idéia de prêmio
e castigo após a morte. O Céu cristão aparece ingênuo e fantasio-
so como um sonho de meninotes e o Inferno cristão impiedoso e
injusto como uma descrição de terrores infantis. Tão mais impie-
doso e desarrazoado é esse inferno do que o pagão, que chegamos
a rir das graves proposições teológicas formuladas por teólogos e
clérigos eminentes.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 47

O poder temporal da Igreja, que submeteu ao seu arbítrio as
cortes européias, estendendo-se depois a todas as áreas mundiais
da conversão, impediu a análise dessas criações monstruosas e
incentivou o desenvolvimento do ateísmo e do materialismo. O
panteísmo de Espinosa foi a única reação madura aos absurdos
teológicos, colocando a concepção monoteísta em termos real-
mente racionais. Mas a posição panteísta incide no erro de con-
fundir a Criação com o Criador, o que diminuiu a eficácia da
proposição espinosiana. O campo continuou livre para o materia-
lismo.
Espinosa teve o mérito de desfazer o engano da concepção
antropomórfica da Bíblia e substituir o símbolo da criação alegó-
rica do homem numa proposição filosófica de integração cósmica
da criatura humana. A orgulhosa pretensão de separatividade e
privilégio, que ainda hoje é pregada nos seminários de várias
igrejas cristãs, foi esmagada pela sua inteligência. O homem,
simples modo ou afecção da substância terrena, nas muitas mani-
festações do poder divino, brota da natureza como todas as coisas
e a ela volta com a morte. Mas nem por isso o seu panteísmo caiu
no materialismo. A Natureza naturata representa a Criação, é
natureza sensível. Mas por baixo do sensível existe o inteligível,
que é a Natureza naturans, o próprio Deus, fonte geradora de toda
a realidade. Deus é imanente no mundo e todas as coisas e todos
os seres nascem dele, como as fontes e os vegetais. A exposição
matemática de Espinosa em A Ética faz desse pequeno judeu
excomungado o restaurador da grandeza moral e espiritual do
judaísmo. Os rabinos esbravejaram nas sinagogas, mas ele arran-
cou da sua fé judaica independente uma contribuição heróica para
a concepção existencial de Deus que apareceria mais tarde na obra
de Kardec.
Na Antigüidade encontramos algumas posições que podem
ser consideradas precursoras da posição espinosiana. Encontramos

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 48

na China o conceito do Tao, que gerou o Taoísmo, em que o Céu
é o próprio Deus e ao mesmo tempo o caminho da redenção; na
Pérsia arcaica a proposição dinâmica de Zoroastro, que toma o
fogo como a única imagem possível de Deus; em Pitágoras, na
Grécia arcaica, a visão cósmica de um Universo integrado em que
os reinos da Natureza permutam incessantemente as suas energias,
inclusive o humano; e, ainda, entre os gregos a concepção isoloís-
ta da Terra como um ser vivo e gerador de vida. A Música das
Esferas, girando no Infinito, podia ser captada pelos ouvidos
sensíveis e dava a essa concepção o valor estético de uma criação
musical. Nenhuma dessas concepções elevadas, entretanto, conse-
guiu socializar-se e conquistar o povo. Foram clarões da inteli-
gência humana que não comoveram o homem, o que Jesus de
Nazaré conseguiu, transformando o mundo, não obstante as igre-
jas nascidas do seu pensamento o houvessem deturpado com
incríveis enxertos do mais primário paganismo. O próprio Jesus
foi transformado num mito em que há pinceladas fortes de Apolo
e Osíris. Ritos simplórios das religiões pagãs, como as bênçãos de
aspersão (de origem fálica) perderam a sua naturalidade ingênua e
pura e se transformaram em ritos sofisticados e desprovidos de
seu sentido genético. Igrejas pagãs foram transformadas pela
força e embuste em templos cristãos, como a igreja rústica da
deusa Lutécia, em Paris, sobre a qual foi erguida mais tarde a
Catedral de Notre Dame, que guarda em seu porão os restos da
igreja pagã.
Os herdeiros do Cristianismo primitivo sufocaram as práticas
mediúnicas de que o Apóstolo Paulo dá notícias em sua I Epístola
aos Coríntios, asfixiaram as manifestações do espírito (o pneuma
grego), introduziram altares e imagens no culto cristão e negaram
o princípio da reencarnação constante de vários trechos dos
Evangelhos. Ao invés de desenvolverem a concepção cristã de
Deus, restabeleceram a concepção mitológica de Iavé como Deus
dos Exércitos e voltaram à violência bíblica que Jesus havia
substituído pelo amor e a caridade, implantando as guerras de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 49

do pelo amor e a caridade, implantando as guerras de conquista
em nome do Deus judaico antigo, chegando mesmo a adotar a
imagem de um Deus iracundo e cruel, vingativo e ordenador de
matanças e devastações do tipo bíblico da conquista de Canaã.
O Deus mitológico dos judeus absorveu em sua concepção,
como Deus do Cristianismo deformado, os deuses da Antigüidade
mais violentos, num processo de sincretismo religioso até então
sem precedentes. Todas essas deturpações vingaram entre as
populações incultas da Europa, a partir do século IV da Era Cris-
tã, asfixiando a essência dos ensinos renovadores do Cristo e
criando condições propícias para a revolta do ateísmo e do mate-
rialismo que explodiria na Era da Razão, após a Idade Média. A
unicidade de Deus, que devia ampliar e elevar o conceito de Deus
no mundo, transformou-se na multiplicidade dos deuses, no poli-
teísmo dos altares carregados de imagens destinadas à adoração
dos crentes interessados em milagres e no comércio de indulgên-
cias. A Reforma do século XVI, iniciada por Lutero, com objetivo
de retorno ao Cristianismo puro, foi também desfigurada pela
influência de inovadores violentos, como Calvino, apegado à
violência bíblica.
Apesar de todas essas deformações, o Cristianismo, particu-
larmente após a Reforma de Lutero e a publicação dos Evange-
lhos em línguas populares de várias nações, contribuiu poderosa-
mente para modificar a selvageria dos homens; porque os princí-
pios cristãos, vividos por clérigos humildes e humanos como
Francisco de Assis e outros, conseguiram tocar os corações sensí-
veis em todo o mundo.Victor Hugo, em seu Prefácio de Crom-
well, considerado como manifesto do romantismo, traçou em
pinceladas ardentes a modificação profunda que o Cristianismo
conseguiu, apesar de todos os percalços, promover no pensamento
europeu, com reflexos mundiais. O conceito de Deus como o Pai
era tão poderoso, correspondia de tal maneira aos anseios de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 50

populações cansadas de guerras e violências, que conseguiu supe-
rar os malefícios, embora em parte, das adulterações ocorridas em
dois mil anos e ainda hoje em desenvolvimento. Essa constitui
uma prova altamente significativa, na dura experiência religiosa
da Terra, da importância do conceito de Deus para a evolução
planetária. Por isso, apesar de tudo, podemos ainda esperar que o
restabelecimento progressivo, lento e difícil, da pureza dos ensi-
nos de Jesus, juntamente com o avanço cultural e científico do
nosso tempo, que leva a Ciência à necessária conversão, prepare
nos próximos séculos condições mais favoráveis à espiritualiza-
ção racional da Terra. A razão conturbada por tantos absurdos
deverá restabelecer-se em seus fundamentos espirituais, pois
quem diz razão não se refere à matéria, mas ao espírito. Apesar
das confusões materialistas a respeito de cérebro e mente, já se
começa a compreender essa coisa tão simples e clara: que a razão
é função do espírito e, como assinalou Rhine, que o pensamento é
uma energia extrafísica. Enquadrando-se nessa nova perspectiva e
conceito existencial de Deus, é possível que a guerra nuclear
desapareça com o advento das novas gerações, libertas dos prejuí-
zos do passado e do presente. É sempre melhor pensar no melhor.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 51

O Deus dos Místicos

Os místicos povoam a Terra. Estão em toda parte com suas
mãos postas e olhos lânguidos, voz macia na busca do Céu e
tonitruante como os trovões de Iavé na condenação dos pescado-
res e nas ameaças do Inferno. São uma espécie dentro da espécie,
quase uma antiespécie, unânimes na repulsa à condição humana.
Adoram um Deus feito à sua imagem e semelhança, um anti-Deus
que vem das páginas mais desumanas da Bíblia, do Corão, das
escrituras sagradas do Egito, da Babilônia, da Índia e das entra-
nhas de fogo de Moloch. Eles e seu Deus, ou seus deuses irascí-
veis e impotentes, criaram e alimentam o fogo das geenas para
queimar o lixo da Terra, a que se ligam pelo cordão umbilical da
hipocrisia. São capazes de tudo, menos de se atreverem a escalar
as montanhas para roubar, como Prometeu, o fogo do Céu e com
ele incendiar a Terra. Preferem o fogo rasteiro das geenas de
Jerusalém. Todas as deturpações da Verdade, todas as distorções
da natureza humana, todas as mentiras sagradas são obra dessa
turba de loucos mansos ou do palavreado absurdo e dos sacrifícios
cruéis de criaturas inocentes e puras.
Este quadro dantesco pode parecer injusto, mas bastam as três
cruzes levantadas sobre o Calvário para mostrar que não é. A
mística é uma górgora insaciável, com sua cabeleira de serpentes
ocultas no jardim das Hespérides. Detesta a razão, o bom-senso, o
equilíbrio. Prefere o fanatismo, o contra-senso, as profecias esca-
tológicas. Vive em delírio, mas nunca se arrisca na voragem da
loucura legítima, que é prerrogativa das criaturas heróicas. Os
místicos acenderam as fogueiras da Inquisição e promoveram as
Cruzadas, com suas tropelias e matanças. Têm a paixão morna e
mórbida dos sádicos e as mãos cheias de raios jupterianos, a boca
esfogueante de anátemas e condenações sumárias. O conceito de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 52

Deus que semeia entre os homens é o de um tirano bárbaro. As
delícias celestes que apresentam aos crédulos é a indolência dos
sibaritas e, como proclamou Agostinho, a sua maior ventura é ver,
das acomodações eternas do Céu, a tortura eterna dos ímpios nos
caldeirões ferventes do Inferno. Não conhecem a virtude do meio
termo, que Tomás de Aquino aprendeu com o pagão Aristóteles,
como se o Cristo não a houvesse ensinado. Preferem os extremos,
sem perceber que sua covardia inata não lhes permite jamais
atingi-los, a não ser a mão do gato, através dos sectários imbecis
e, portanto, irresponsáveis.
Existem várias espécies de Místicas, desde a que mal se des-
vencilhou da magia primitiva, ainda encharcada com a água lodo-
sa dos pântanos selvagens, até a dos fariseus carregados de orgu-
lho e hipocrisia e a dos chamados Grandes Místicos, voltados para
as fulgurações platônicas, no anseio de subir ao Céu através das
grandes inspirações ou fazer que o Céu baixe até eles, como na
anedota de Maomé e a montanha. Mas entre essas espécies diver-
sas de tipologia inclassificável perpassam algumas figuras estra-
nhas de homens-fantasma que rastejam humildes na terra, trocan-
do os esplendores celestes pela dedicação humilde aos espoliados
e sofredores. Por mais que brilhe a sabedoria dos grandes visioná-
rios, são esses vultos de piedoso masoquismo os que ainda justifi-
cam de certa maneira a existência da Mística. Por isso mesmo são
eles os mártires de um ideal de sublimação humana, desprezados e
explorados pelos potentados das instituições místicas. E nem por
isso escapam à ilusão mística da fuga, que em última instância
não passa de uma traição à espécie humana, nas vias tortuosas da
alienação ao sonho, da esquizofrenia dosada pelo medo às puni-
ções eternas. E existem ainda os místicos da matéria, que se alie-
nam à realidade sensorial na convicção pretensiosa de poderem
transformar o mundo num Éden sem maçãs e serpentes. Conde-
nam a violência assassina dos místicos religiosos e entregam-se à
violência das atividades terroristas, acreditando-se capazes de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 53

atemorizar a humanidade com seus atos de loucuras. Negam a
Deus e ao mesmo tempo se empenham em combatê-lo, reconhe-
cendo praticamente a sua existência, sem compreenderem a con-
tradição do círculo vicioso de suas idéias.
Tudo isso nos mostra que a Mística, em todas as formas de
misticismo, mesmo as mais prestigiadas nos meios culturais, não
passa de um estado patológico a que tanto pode se entregar um
religioso como um ateu e materialista. Esse estado se define pela
idéia fixa da insubordinação ao real. Por isso, Padovan e Marcel,
Amadou e Abagnano, e quantos se enfileiram na mesma linha de
pensamento, enganam-se a si mesmos ao proclamar a excelência
cultural da Mística, atribuindo-lhe um papel superior ao da Filoso-
fia. Acreditam na sabedoria infusa que desce do Céu sobre algu-
mas cabeças privilegiadas, esquecidos de que Descartes, para
fundar o método científico, teve de apresentar-se como homem
simplesmente homem, ironizando com finura e cautela os homens
mais do que homens. Foi necessário um aviador arrojado e pionei-
ro, como Saint-Exupéry, descobrir com seus vôos à Terra dos
Homens com desertos, mares, montanhas e florestas, em que a
humanidade luta sem cessar pela própria sobrevivência, para
termos uma idéia aproximada da condição humana real e da bata-
lha sem tréguas pela conquista real do saber. Não foram os gurus
indianos ou os monges tibetanos, nem as patas do cavalo de Aní-
bal ou os comissários soviéticos que arrancaram a Terra da servi-
dão teológica e ensaios incipientes do renascentismo para lançá-la
na era tecnológica e no limiar da era cósmica. Foram os homens
integrados no processo existencial, vivendo a vida e assimilando a
experiência vital do mundo, alheios aos delírios dos místicos e à
dogmática eclesiástica, à exegese mística dos textos antigos,
foram esses homens que prepararam, no mundo inteiro, as novas
condições da cultura terrena. Os verdadeiros sábios não saíram
dos arquivos de pergaminhos e da convivência com as traças dos
mosteiros, mas da luta com a terra e os bichos, do fazer e do

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 54

pesquisar da inteligência em contato permanente e pertinaz com a
realidade dos reinos da Natureza. É fazendo que se aprende, e foi
através do fazer contínuo que o homem conseguiu atingir as en-
tranhas da matéria e nelas descobrir o espírito como elemento
natural e não sobrenatural. A vitória do saber existencial sobre a
cultura mística foi mais longe do que se esperava, reformulando
ao mesmo tempo a concepção da matéria e a concepção do espíri-
to e integrando ambos na dialética da evolução.
Pelo prejuízo do passado na formulação arrogante de pré-
juízos e pré-conceitos arbitrários, que saltavam do palavreado dos
doutores místicos, ainda hoje se confunde a nova posição espiritu-
al do homem com a posição mística de um passado recente. Preci-
samos compreender que o tempo dos místicos já se escoou, ironi-
camente, na realidade invencível das ampulhetas antigas. O Espi-
ritismo não descende dos místicos. Sua linhagem se define nas
gerações de cientistas e pesquisadores. Kardec não negou a vali-
dade do sentimento religioso, mas revelou a falácia do sobrenatu-
ral, mostrando que a existência humana transcorre no seio da
Natureza, onde Deus se manifesta em termos fenomênicos, na
fenomenologia real de suas leis criadoras. A inteligência imanente
chama constantemente a nossa atenção, a atenção da inteligência
humana, para a realidade das suas criações científicas. Ciência e
consciência se encontram e se conjugam no plano do real, cujas
múltiplas dimensões se desvendam aos nossos olhos numa gigan-
tesca ampliação do mundo e da vida. E é do mundo e da vida que
se recorta o conceito de existência, colocando o homem na posi-
ção de criador de si mesmo. De nada valem as longas preces dos
fariseus nos templos ou nas esquinas das ruas, se os homens não
se integrarem na realidade existencial, abrindo-se na convivência
e no companheirismo, para o encontro em termos de razão e
realidade. O Decálogo judaico, tão louvado como essência da
moral cristã, pertence à época das civilizações agrárias e pastoris
de um superado mundo teocrático. Para ajustá-lo ao presente, os

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 55

teólogos e clérigos tiveram de cortar-lhe as prescrições mosaicas
referentes aos costumes antiqüíssimos da Israel arcaica. Essas
prescrições simplórias fariam rir aos crentes mais ingênuos de
hoje. Isso não quer dizer que não haja no Decálogo uma orienta-
ção moral válida, mas nos limites do horizonte agrário e pastoril
das civilizações da época. As condições atuais de vida e as con-
quistas culturais realizadas, a visão nova do mundo que hoje
desfrutamos exigem uma nova ética, para a qual os Evangelhos,
expurgados de suas implicações mitológicas – derivadas da cultu-
ra do tempo em que foram escritos –, poderão contribuir com
mais eficácia, em virtude da visão universalista de Jesus, voltada
para os tempos futuros.
Nada justifica a fusão que as igrejas cristãs fizeram do testa-
mento judeu com o testamento cristão. Jesus, como reformador do
Judaísmo, corrigiu os excessos místicos da Israel arcaica e apon-
tou novos rumos à compreensão humana do humano. A condena-
ção do formalismo judaico, do conceito errôneo e hipócrita de
pureza, do racismo comum às civilizações fechadas e isoladas,
bem como a superação dos absurdos preconceitos sexuais, como
se vê no episódio da mulher adúltera, o perdão do roubo de za-
queu sob a condição de reparação do mal cometido, a violação do
Sábado na sinagoga para atender um doente, a afirmação de que
as prostitutas chegariam ao Reino dos Céus antes dos crentes
vaidosos de sua pureza convencional são elementos indicadores
de uma ética mais humana e ampla que deveria surgir no futuro. O
próprio Apóstolo Paulo, tão fortemente marcado pelos preconcei-
tos judeus do tempo, chegou a considerar que as Escrituras anti-
gas estavam superadas pela reforma cristã. Não obstante, as igre-
jas cristãs até hoje vivem apegadas aos textos antigos, que consi-
deram como a palavra de Deus.
A mística judaica projetou-se em cheio na mística cristã me-
dieval, contrariando os ensinos e os exemplos de Jesus, que prefe-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 56

riu viver com o povo a isolar-se nos templos para cultivar a vai-
dade e a pureza mentirosa dos clérigos. Em Jerusalém e em toda a
Palestina ele era conhecido como filho do carpinteiro José e sua
esposa Maria de Nazaré. Mas a fantasia natural dos homens for-
mados numa cultura mitológica, onde a realidade era o mito e não
o real, o transformou no mito de um Messias nascido de uma
virgem, segundo sistema mitológico em voga, como mostra Saint-
Yves em seu livro As Virgens Mães. Além disso, o menino nasci-
do em Nazaré, nas condições normais dos filhos de famílias po-
bres da época, passou a ser considerado como natural de Belém,
na linhagem de David, para enquadrar-se nas exigências proféti-
cas, como Renan no século passado e Charles Guignebert em
nosso século demonstraram de maneira incontestável. A supersti-
ção do sobrenatural e o conceito negativo de sexo chegaram a
modificar a data do recenseamento determinado por César Augus-
to, para arranjar uma justificativa supostamente histórica para o
nascimento mitológico em Belém. Que interesse teriam os roma-
nos, que faziam recenseamento para saber onde cobrar os impos-
tos, em deslocar famílias judias de suas cidades para atender a um
capricho de genealogia dos judeus? A mentalidade mitológica era
alegórica, apegada aos símbolos, aos mitos. Essas deturpações
não foram certamente intencionais, mas forçadas pela necessidade
imaginária de enquadrar Jesus nas profecias judaicas. Não obstan-
te esse esforço dos evangelistas, de que Paulo não participou, os
judeus ortodoxos, que conheciam bem a história real de Jesus,
rejeitaram o Messias. Paulo jamais se referiu ao nascimento virgi-
nal de Jesus em Belém. Isso nada significava para ele, que se
interessava pelos ensinos do Mestre e não pelo ajustamento de sua
figura às predições bíblicas. Apesar de sua formação judaica, e
dos fundos resíduos do moralismo judeu que aparece em suas
epístolas, era um homem de cultura universalista e soube superar
esses pormenores ingênuos.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 57

Não podemos querer, em nossos dias, sustentar essas ficções
do passado mítico de Israel e alimentar ainda o misticismo de um
rabinato falido, que negociou com os romanos a sua sobrevivência
e entregou à condenação o rabino popular, reformador da religião
arcaica, ao poder romano. Os cristãos que aceitam essa situação
imoral, criada pelas ambições humanas do tempo, são cúmplices
retardatários dos rabinos de há dois mil anos. Aceitam de mão
beijada, em nome das tradições igrejeiras posteriores, a deforma-
ção da figura de Jesus em mito, sem se lembrarem de que ele se
sacrificou para combater os mitos e a hipocrisia da época. Nessa
inconsciência mística, temerosos do pecado, na verdade pecam de
maneira irremediável contra o objetivo principal da missão do
Mestre, que era modificar a concepção de Deus entre os homens.
O conceito cristão de Deus não se compadece com esse estranho
apego às tradições judaicas. É evidente que, nessas condições, o
materialismo teria de se avantajar em nosso tempo.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 58

A Loucura de Existir

O conceito de existência impôs-se à Filosofia Contemporânea
pela necessidade de se distinguir o simples ato de viver, comum a
todos os seres vivos, do ato complexo e profundo de um viver
ascensional. Andar, mover-se de um lado para outro, buscar ali-
mentos, evitar perigos, entregar-se às funções instintivas de con-
servação e reprodução da espécie todos os seres vivos fazem
naturalmente. Mas escalar uma montanha exige intenção, pensa-
mento, vontade ativa, guiada por objetivos definidos, um esforço
que implica todas as possibilidades vitais do homem postas a
serviços da sua subjetividade total: do saber, do sentir, do querer,
do amar, do aspirar e do fazer. Todos esses dispositivos interiores
do ser humano, que são as molas do seu existir, e outros facilmen-
te perceptíveis numa análise mais minuciosa, constituem a sua
subjetividade. Por isso a existência é subjetiva, está em nosso
íntimo, pertence ao que podemos chamar de psiquismo e não ao
soma, ao corpo material. Há no homem dois seres que se conju-
gam na sua facticidade, ou seja, na sua organização, com a qual
ele surge feito na existência e não por fazer. Há o ser do corpo e o
ser da existência. No ser do corpo acumulam-se os elementos
vegetativos da vida e no ser da existência projetam-se os impulsos
de transcendência. A ligação dos dois seres se faz por um sistema
de ação e reação. O corpo sofre a ação do meio sobre ele e capta o
meio através da percepção, reagindo imediatamente através do
fazer. Perceber e fazer constituem assim o fundamento dinâmico
de viver, que interliga os dois seres do homem e, numa conse-
qüência dialética, liga o homem ao mundo.
Se essa ligação com o mundo se processa em ternos de aco-
modação, o homem passa simplesmente a viver no mundo. Mas se
ela se verifica em ternos de projeção, o homem existe no mundo.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 59

A existência é um ato de afirmação do homem diante das duas
realidades que lhe são dadas ao nascer: a sua facticidade e a facti-
cidade do mundo. Essa afirmação do homem diante de si mesmo e
do mundo implica a sua decisão de aceitar o desafio do mundo
para conquistá-lo, dominá-lo e superá-lo. A síntese final de todo
esse processo é a dialética da evolução, que caracteriza o homem
como um projecto, um ser lançado na existência como uma flecha
em direção a um alvo, que é a transcendência. Por isso o homem
nasce, vive e morre. Esse passar pela vida no mundo é simples-
mente o trajeto que todos têm de percorrer. É também uma facti-
cidade, algo que já está feito, que o homem recebe como um
itinerário que ele tem de seguir, sem outra opção a não ser a fuga,
que lhe oferece várias opções à sua liberdade relativa: a morte
antecipada, a inadaptação esquizofrênica, a loucura, o delírio
místico, a alienação de sua subjetividade à ilusão material e assim
por diante. Em todas essas opções, porém, o homem seguirá o
itinerário como um ser que se projeta do nascimento à morte por
determinação das leis naturais. Por isso, Sartre entendeu que o
homem é uma frustração, pois não consegue atingir a transcen-
dência, uma vez que acaba na morte. A alienação mental de Sartre
à visão materialista do mundo teria de levá-lo a essa frustração de
si mesmo. Heidegger e Jaspers discordam dessa posição, o primei-
ro vendo na morte o completar do homem como ser, e o segundo
mostrando que a transcendência começa no plano horizontal da
existência, desde o nascimento, para depois se projetar no plano
vertical da busca de Deus. Mas essa busca não pode ser acomoda-
tícia, o homem se abandonando nas mãos de mestres e guias, de
instituições sectárias e formalistas, acomodando-se na responsabi-
lidade alheia e considerando-se privilegiado e salvo pelo sangue
de Cristo ou pelos sacramentos formais desta ou daquela igreja ou
ainda pelas instruções de livros sagrados ou de sabedoria oculta,
reservada aos supostos escolhidos de Deus. A busca de Deus é a
busca da Verdade, a descoberta por cada um da essência do real, a

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 60

superação do ilusório. Essa a razão porque o misticismo, rústico
ou refinado, inferior ou superior, não é mais que um meio de fuga,
de deserção do homem na existência. Fundado no conceito do
sobrenatural, o misticismo nos afasta do natural e nos lança no
desfiladeiro do orgulho, da pretensa superioridade, geralmente
revestida de uma leve camada de verniz de humildade convencio-
nal que não passa de fingimento, hipocrisia. Acostumado aos
arranjos das conveniências terrenas, o místico transfere insensi-
velmente a sua busca de proteção e companheirismo aos planos
do espírito e se entrega à ilusão de um protecionismo exclusivista
que acabará fatalmente em frustração e revolta. Quantos místicos
passaram da alienação espiritual à alienação materialista em vir-
tude de decepções sofridas em sua leviana ilusão de intimidade
interesseira com Deus. Cada ser humano é dotado de potenciali-
dades divinas e precisa confiar nessas potencialidades para trans-
formá-las em ato, em realidades atuantes. Esse é o trabalho de
cada um, intransferível, de responsabilidade pessoal. A fé em si
mesmo é o primeiro passo no caminho ascensional da fé em Deus.
Para os que se acomodam na estrutura social que encontrou
feita, apoiando-se nas próprias injustiças do mundo, entregue à
rotina, a atitude existencial é simples loucura. Quando Jesus
atingiu a idade que devia iniciar a sua missão na Terra, seus pa-
rentes e amigos o consideram tomado de loucura. Sua mãe e seus
irmãos foram buscá-lo em pleno trabalho e tentaram levá-lo de
volta para casa. Muitos ainda hoje o consideraram como um jo-
vem alucinado que pretendeu apresentar-se ao mundo como en-
carnação de Deus. Jamais ele cometeu esse engano. Dizia-se ao
mesmo tempo filho de Deus e filho do Homem e explicava que
todos poderiam fazer o que ele fazia e até muito mais. Os que não
podiam negar a evidência dos seus poderes e a grandeza do seu
saber o transformaram em mito, chegando ao absurdo de reconhe-
cer na sua pessoa o próprio Deus encarnado. E quase dois mil
anos depois Benét Sanglé publicava em Paris o seu famoso livro

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 61

La Folie de Jesus (A Loucura de Jesus), tentando demonstrar que
o Messias cristão sofria de loucura hereditária. Essa estranha
forma de loucura, que se traduzia em atos de amor, lições e exem-
plos da mais alta sabedoria, dividiu a História Universal em duas
fases e transformou o homem e o mundo. Nunca a existência
brilhou tão poderosamente na Terra como na loucura de Jesus,
que se tornou o arquétipo do futuro existente da Filosofia atual.
Sua crucificação entre dois ladrões, o bom e o mau, selou em
sangue e luz sua existência, que se passou entre os humilhados e
entre eles se findou. A elaboração mítica desse sacrifício dramati-
zou em estilo grego a sua morte, que os mitólogos consideram
como paródia da morte de Osíris. A comparação mais certa seria
com Sócrates, que também existiu e morreu entre humilhados,
recusando-se a fugir à condenação dos homens acomodados. O
mau ladrão precisava estar ali, ao seu lado, porque ele não rejeita-
va os maus, procurava compreendê-los e despertá-los. A existên-
cia de Jesus, ainda hoje negada por alguns espíritos sistemáticos,
que alegam a falta de provas históricas, provou-se por si mesma,
pela existência. Nenhum mito poderia ter existido como ele exis-
tiu. (Note-se a razão do grifo, distinguindo o conceito filosófico
de existência de existir comum). O testemunho dos apóstolos e
discípulos, que morreram por ele após a sua morte, é mais impor-
tante que documentos históricos. O testemunho de Paulo, que não
o conheceu mas perseguiu os seus seguidores para depois se
integrar no pensamento cristão, vale mais que qualquer referência
de historiador antigo, sempre voltado para figuras exponenciais
do tempo. E hoje as pesquisas universitárias não deixam mais a
menor dúvida quanto à existência real da figura de Jesus. O pró-
prio Sanglé, para provar a loucura hereditária de Jesus, teve de
mergulhar nessas pesquisas, examinando a linhagem de Jesus,
sem o que a hipótese da hereditariedade seria vã. Temos ainda a
prova dos evangelistas, homens de formação mitológica, que não
puderam evitar pintá-lo à maneira do tempo e da cultura em que

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 62

viviam. Para esses homens o colorido do mito era mais válido que
o real. Não podiam fugir a esse condicionamento mental. Vemos
isso claramente no Evangelho de João, o último evangelista e o
derradeiro apóstolo a morrer. João começa o seu Evangelho com o
mito do Verbo, de origem egípcia, desenvolvido pelas escolas
gregas de Alexandria. Vivendo então em Éfeso, por longos anos,
João impregnou-se das idéias filosóficas da era helenística e foi o
precursor de Agostinho e Tomás de Aquino na tentativa de expli-
car o Cristianismo pelo pensamento de Platão e de Aristóteles. O
que ressalta no evangelho de João, mistura de realidade e mito,
são as descrições minuciosas de episódios da vida de Jesus, como
a da sua discussão com os fariseus num dos pátios do Templo, em
que Jesus chama os fariseus de filhos do Diabo. São episódios
vivos, de uma realidade flagrante, em termos de relatos clássicos
realistas (o naturalismo literário da época), que destoam das ex-
pressões grandiosas e obscuras da Filosofia Alexandrina.
Esse curioso contraste nos mostra a dificuldade de uma tran-
sição do plano dos mitos, do idealismo helênico, da especulação
filosófica ou teológica para o plano existencial. A herança das
civilizações agrárias, cujas raízes se afundam nas selvas primiti-
vas, pesa ainda esmagadoramente no psiquismo humano. A acei-
tação do método científico pelo homem atual, apesar de todo o
prestígio da Ciência e dos avanços tecnológicos dos últimos anos,
encontra barreiras muitas vezes intransponíveis na maioria das
pessoas, mesmo entre as que militam no campo de estudos e
pesquisas. Essa situação criou sérias dificuldades para o esclare-
cimento racional de problemas religiosos e espirituais. Já assina-
lamos o prejuízo causado por Kant com sua delimitação arbitrária
do campo científico. Até hoje a autoridade kantiana prevalecia
sem contestação possível, e ainda prevalece em muitos espíritos
sistemáticos. A Ciência tem os seus limites no sensível platônico,
na realidade dialética dos contrastes. Passando desses limites ela
não pode mais funcionar, pois não dispõe dos recursos sensoriais

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 63

para investigação. Essa posição, ao contrário dos próprios objeti-
vos da crítica de Kant, reforçou as heranças místicas e, conse-
qüentemente, a posição religiosa formalista, apegada a evidentes
resíduos mágicos irracionais. A luta contra a razão, apoiada nes-
ses resíduos e na idéia do sobrenatural inverificável e incontrolá-
vel, fortaleceu-se também com essa tese. Por outro lado, a recusa
da Ciência em ampliar os quadros de suas pesquisas no terreno
aparentemente fugidio e escorregadio dos fenômenos paranor-
mais, abandonando o terreno às interpretações religiosas e à ga-
nância dos charlatães, forçou muitas inteligências insatisfeitas a
aceitar a dogmática das igrejas e procurar enriquecê-las com
estudos e princípios pseudocientíficos. O problema da existência
de Deus, já de si bastante complexo, revestiu-se de novos aparatos
culturais sofisticados, que exaltavam o saber infuso dos homens
mais do que homens da ironia cartesiana. Temos hoje uma vasta
literatura cristã na mesma linha de sincretismo da literatura medi-
eval. Essa literatura satisfaz os espíritos de tendência mística que
repelem a aridez dos tratados científicos e esperam encontrar nela
os esclarecimentos que a Ciência se mostrou incapaz de lhe pro-
porcionar.
O que sofreram cientistas como Crookes, Richet, Lodge,
Zöllner, Gibier, Crawford e tantos outros, por se aventurarem e
dar prosseguimento à pesquisa científica além dos limites marca-
dos por Kant, mostra e prova o apego dos homens, mesmo quando
cientistas, ao formalismo cultural anticientífico.
Como advertiu Kardec, numa posição tipicamente existencial,
"a Natureza é uma só e a Ciência tem o dever de investigá-la até
onde as possibilidades humanas o permitirem." Os fenômenos
sobrenaturais não podem existir fora da natureza. Se são fenôme-
nos, pertencem à Natureza e devem oferecer condições favoráveis
à investigação científica. Levantou-se a falsa acusação de que
esses fenômenos eram puramente ocasionais, impossíveis de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 64

serem repetidos segundo as exigências da Ciência. Os fatos, como
assinalou Lombroso, são fatos e podem ser examinados e investi-
gados. A questão, afirmou Kardec, é puramente metodológica. O
método científico tem de ser adequado ao tipo de objeto a que se
aplica. As discussões a respeito se prolongaram, até que a própria
investigação científica do nosso tempo rompeu naturalmente os
limites arbitrários. A função da Ciência é esclarecer mistérios,
torná-los inteligíveis. Felizmente a Física, que Rhine chamou de
Ditadora das Ciências, foi a primeira a invadir o domínio secreto
dos mitos, ampliando ao infinito as dimensões estreitas da reali-
dade física. O atrevimento dos físicos, tomados da loucura exis-
tencial, derrubou as muralhas do preconceito científico. Não há
mais razão para qualquer retração da Ciência diante dos mistérios
que a desafiam. A segurança dos métodos e dos instrumentos
atuais de pesquisas garantem a validade dos resultados.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 65

A Paraexistência

Embora conheçamos as limitações da nossa condição tridi-
mensional e saibamos que as dimensões da realidade ultrapassam
de muito as nossas restritas possibilidades de percepção, quere-
mos viver tranqüilos em nosso pequeno mundo sensorial. Quere-
mos, e isto é justo, ter segurança, ter a certeza de que nossa exis-
tência específica não será perturbada por invasões estranhas.
Nossos objetivos existenciais estão definidos em nossa subjetivi-
dade própria e temos a consciência de que precisamos realizá-los.
O instinto de conservação e o impulso vital são os esteios perma-
nentes da nossa vontade natural de viver enquanto possível. Mas,
apesar disso, nossa existência, desde que o mundo é mundo, tem
sido invadida por uma existência circundante, uma espécie de
paraexistência que nos obriga a reconhecer que temos vizinhanças
incômodas. Verificamos isso nas próprias condições das cidades.
Vivemos em São Paulo, por exemplo, numa área central que
chamamos a cidade (the city), mas ao redor desse miolo expan-
dem-se os bairros, as zonas suburbanas e a zona rural. Temos
assim a cidade e a paracidade. O exemplo é tridimensional, mas é
desse plano que temos de partir para a boa compreensão do pro-
blema.
Nas dimensões cósmicas a situação é a mesma. Estamos na
Terra e queremos passar nela a nossa atual existência. Mas ao
nosso redor há a zona lunar e as zonas das órbitas planetárias, e
sabemos que além delas temos ainda a imensidade da Galáxia a
que estamos atrelados, com milhões de mundos e de sóis inimagi-
náveis. Nossas sondas espaciais e nossos astronautas, neste fim de
século, andam pesquisando essas extensões siderais em que, num
meio fluídico, aparentemente vazio, os mundos estão suspensos e
circulam em órbitas precisas. Quase sabemos de tudo isso, mas

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 66

temos uma visão geral abstrata, que não nos perturba, antes nos
embala em sonhos e esperanças.
Radiações solares, estelares e lunares nos envolvem, incidem
sobre nós de maneira inevitável, e isso não nos atemoriza, pois
ocorre de todos os tempos. Pasteur, em sua loucura existencial,
descobriu uma faixa perigosíssima da paraexistência que nos
cerca no mesmo plano tridimensional em que vivemos. Ninguém
quis acreditar naquele absurdo de pequeninos animais invisíveis
que podiam invadir o nosso corpo e nos levar ao sofrimento e à
morte. Mas hoje sabemos que existem bactérias microbianas e
vírus que não deixam em paz o sistema defensivo secreto do
nosso organismo. Toleramos essa realidade incrível e tratamos de
pesquisá-la para melhor nos defendermos. Os físicos descobriram
a paraexistência de um mundo de vibrações terrenas e cósmicas
que nos atingem e podem destruir-nos facilmente. Não há como
refutar esse absurdo e o suportamos confiando em nossa estranha
segurança milenar. Nossas cidades são cercadas e pontilhadas de
áreas tradicionais em que, segundo dizemos, os mortos repousam.
Pretendemos retê-los ali, enterrados, entregues ao mundo dos
vermes que brotam do próprio corpo apodrecido e surgem de suas
moradas subterrâneas. Sabemos que esses cemitérios também nos
esperam e que, mais hoje, mais amanhã, estaremos mortos e enter-
rados ou mortos e incinerados no forno dos crematórios. E nem
por isso deixamos de viver, querer e fazer, enquanto isso for
possível, às vezes até o extremo limite, à última hora e o último
segundo da nossa existência.
Não somos inconscientes, temos plena consciência de tudo is-
so e, entretanto, vivemos como bois de corte no curral ou galinhas
no galinheiro, disputando migalhas entre nós, lutando sem cessar
por coisas mínimas, como se a nossa existência não pudesse aca-
bar agora mesmo. Por outro lado, achamos a nossa situação ab-
surda perfeitamente racional e normal e rimos dos que falam que

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 67

temem a morte. Entretanto, desde todos os tempos, desde as sel-
vas até às civilizações, sabemos que criaturas mortas invadem a
nossa zona existencial, mostrando-se vivas, falando, dando sinais
inteligentes de sua presença, servindo-se de médiuns como de
intérpretes e até mesmo tornando-se visíveis e palpáveis como se
ainda estivessem de posse do seu corpo já destruído. Isso assusta
quando ocorre, mas se demora a ocorrer de novo logo vamos nos
esquecendo do estranho fato e nos contentamos com explicações
alucinatórias bem montadas pelos especialistas em religião ou
ciência.
Esse levar a vida como ela é, esse aceitar da vida e esse ape-
gar-se a ela com unhas e dentes devia parecer-nos estranho, mas
não parece. É o normal, como se diz. Heidegger lembrou que nos
livramos levianamente da morte através de um truque de lingua-
gem, empregando a partícula reflexiva se. Dizemos morre-se
referindo-nos aos outros, o reflexivo não nos atinge, não nos
envolve. Temos a nossa vida e a nossa morte está distante, talvez
nem chegue. Exorcizamos a morte com jogos de palavras e trapa-
ças do raciocínio. Ela desaparece da nossa mente e voltamos
alegremente a viver, e mesmo que penosamente insistimos na
vida. Bastaria um pouco de reflexão sobre tudo isso para compre-
endermos que somos instrumentos de uma orquestra, não músicos
nem muito menos maestros-regentes. A vida, o mundo, as coisas,
os vivos e os mortos não nos pedem licença para existir, existem
por si mesmo ou par la force des choses, ou talvez, por uma de-
terminação misteriosa de estranhas circunstâncias. Pode ser que
Deus exista, pode ser que não. Se existir, é ele o responsável por
tudo. Se não, tudo pode ocorrer por simples acaso. Esta acomoda-
ção é característica do vivente, não do existente. O homem que
tem consciência da sua existência, o existente, esse não se con-
forma com levar a vida, pois quer existir e precisa existir. Para
ele, Deus é a fonte da vida, a inteligência das coisas e dos seres, o
poder inteligente que tem consciência de sua Criação e dirige toda

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 68

ela em seus mínimos detalhes, preparando os efeitos necessários
para que ela atinja a sua finalidade prevista. Veja-se a displicência
de um filósofo existencial, como Sartre, quando trata dessas ques-
tões fundamentais. A sua lucidez e o seu critério filosófico desa-
parecem quando ele se afasta das questões puramente existenciais.
Para explicar o ser foi obrigado a lançar mão de um princípio
metafísico: o em-si da Filosofia clássica de Hegel, e o transfor-
mou numa coisa oblonga e viscosa, que existe em si mesmo, sem
consciência de nada, como um pinto no ovo, e que de repente sai
da casca e se projeta na existência. Com essa piada, que até nos
faz ouvir o pio do pinto ao sair da casca, ele liquida o assunto e
passa a tratar do ser na existência, ou seja, do homem no mundo.
Isso nos mostra que há graus de existentes, pois há existentes que
se comportam como simples criaturas que vivem, quando tratam
dos mais graves problemas existenciais.
Leibniz, pelo contrário, se apega ao conceito da mônada e
com ele fundamenta o ser. Kardec pesquisa durante quinze anos,
exaustivamente, doze deles na Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, e chega à conclusão de que existe uma criação dos seres
através de um processo dialético assombroso, inteligente e cons-
ciente, teleológico, objetivando fins definidos, e que esse proces-
so, por tudo isso, só pode ter sido criado e posto em prática por
uma Inteligência Cósmica. E acaba revelando-nos, através de
pesquisas rigorosas, que ao redor da nossa existência no mundo
existe o que hoje podemos chamar de uma paraexistência de seres
desprovidos de corpo material, mas dotados de um corpo espiritu-
al. Esses seres, como os do mundo das bactérias ou como o das
radiações invisíveis, exercem influências maléficas e benéficas
sobre nós. Os cientistas atuais investigam o problema no campo
parapsicológico, chegando às mesmas conclusões, e os cientistas
soviéticos, hoje fundamente empenhados, descobrem o corpo
bioplásmico, que ao mesmo tempo explica a existência de seres
corporais fora do plano material conhecido e a possibilidade de

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 69

existência humana diferenciada nas dimensões da antimatéria,
onde os físicos constataram a existência de elementos químicos
do nosso mundo em direção e sistema ao inverso do nosso. A
paraexistência espiritual se define em termos de existência anti-
material, no exato momento em que Rhine, Pratt, Soal, Carington
e outros, nas Universidades americanas, européias e asiáticas,
provam e comprovam a sobrevivência do homem após a morte
física. Como contestar tudo isso? Através de argumentos falacio-
sos e trapaças teológicas e filosóficas, como fizeram com Kardec?
Isso não é mais possível, está fora de qualquer viabilidade. Rhine
afirma que o pensamento não é físico, não se submete às leis
físicas conhecidas. Conseqüentemente, existe no homem um
conteúdo extrafísico e a mente, que não é física, rege esse conteú-
do. Carington, na Universidade de Cambridge, Inglaterra, formula
uma teoria da mente extrafísica, constituída de psicons, que seri-
am uma espécie de átomos do plano mental. Vasiliev, soviético,
pretende provar que a teoria de Rhine e Carington é falsa e dedi-
ca-se a uma série de pesquisas rigorosas, chegando declaradamen-
te à conclusão de que não encontrara provas em contrário. O que
mais esperam os defensores da hipótese vazia do Acaso e os
pregoeiros de uma sobrevivência nebulosa, em que a alma aparece
como assombração e não como gente, como ser que volta à forma
limbosa, segundo Sartre? De que recursos dispõe a cultura atual
para provar que Deus não existe?
Se a nossa existência é subjetividade pura, como querem os
filósofos existenciais, não é evidente que só existimos no inteligí-
vel e não no sensível, como queria Platão? Seria possível, filosofi-
camente, refutar os dados da Ciência? Podem os teólogos conti-
nuar sustentando as suas deduções ilógicas em face das provas
múltiplas e progressivas das induções científicas?
As igrejas insistem nos seus dogmas revelados, na autentici-
dade da palavra de Deus escrita pelos homens, na validade dos

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 70

fundamentos divinos de sua instituição, mas os templos se esvazi-
am e o poder institucional declina. A paraexistência substitui as
instâncias do mundo sobrenatural do passado. O terrorismo diabó-
lico desaparece nas provas diárias. O mito do Diabo serviu e serve
apenas de instrumento para os espíritos maldosos, esses paraexis-
tentes que enxameiam ao nosso redor na Terra e querem subme-
ter-nos pelo medo aos seus caprichos, na busca de sensações que
não podem mais obter, mas que conseguem nas relações mediúni-
cas, embora de forma indireta. Para uma pessoa dotada de media-
na cultura atualizada, em nosso tempo, as carradas de ilusões
religiosas do passado não podem mais subsistir. Seu destino é o
arquivo dos museus que guardam os resíduos de tempos mortos.
Para um materialista esclarecido quanto aos problemas atuais da
matéria, sua constituição e sua natureza, as funções e suas possi-
bilidades, a sustentação de uma concepção materialista do Uni-
verso é simples suicídio intelectual. O dualismo espírito-matéria é
apenas circunstancial e funcional. A matéria é energia sedimenta-
da para servir aos desígnios do espírito, como a argila é terra
molhada para servir aos desígnios do oleiro. Por trás de cada
realidade funcional existe uma inteligência criadora. Como negar,
por trás da realidade funcional do Universo, a existência da Inteli-
gência Criadora a que tradicionalmente chamamos Deus?
A mente, que não é física, age por vias não físicas sobre a
matéria. Essa é uma das conclusões decisivas da pesquisa parapsi-
cológica do laboratório da Duke University. Rhine a proclamou
como conquista definitiva da Ciência em nossos dias. Os seus
opositores não conseguiram até agora nenhuma esperança de
prova em contrário. A matéria radiante, ou quarto estado da maté-
ria, provado por Crookes, é o plasma físico que os soviéticos hoje
consideram como a matéria do corpo bioplásmico. Quem quiser
vangloriar-se do espírito forte e dotado de cultura superior, não
pode mais usar as armas quebradas do materialismo, pois parecerá
simplesmente atrasado e desatualizado. Estamos em pleno psychic

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 71

boom, segundo assinalou o último suplemento de ciências da
Enciclopédia Britânica. Essa explosão psíquica assinala a abertura
de uma nova cultura, em que o homem se liberta da hipnose da
matéria para mergulhar na realidade substancial. Entre o existente
e o paraexistente multiplicam-se os interexistentes, médiuns de
aguda sensibilidade que vivem praticamente num intermúndio
(como os deuses gregos antigos) relacionando-se ao mesmo tem-
po com os homens e os espíritos e servindo de intermediários
entre eles. Os sentidos humanos rompem as malhas estreitas da
rede sensorial orgânica para captar a realidade extra-sensorial. A
paraexistência se revela interpenetrada na existência. Os mistérios
do passado se esclarecem através do acelerado desenvolvimento
científico e tecnológico dos nossos dias. O Céu, o Purgatório e o
Inferno estão aqui mesmo, no nosso planeta.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 72

A Ação de Deus

A ação providencial de Deus na vida humana, segundo o con-
ceito de Deus comum às igrejas cristãs – e a quase todas as de-
mais igrejas –, decorre dos tempos mitológicos. Fez-se muito
alarde da originalidade do providencialismo judeu e Dilthey o
inclui entre os três elementos fundamentais da consciência mo-
derna, fundidos no caldeirão medieval. Mas a verdade é que ele
existiu em todas as religiões antigas. O conceito antropomórfico
de Deus dominou o mundo desde todos os tempos, pois o homem,
superadas as fases primárias de sua evolução nas selvas, com as
concepções míticas ligadas aos reinos naturais, passando progres-
sivamente do totemismo à antropolatria, só conseguia imaginar
Deus à sua imagem e semelhança. Por isso os deuses sumerianos,
babilônicos, egípcios e persas, indianos e gregos estiveram sem-
pre muito ligados às atividades humanas de seus adoradores. Só
na Alta Filosofia Grega o conceito de Deus se distanciou do ho-
mem e tornou-se indiferente à realidade existencial, como se vê
em Platão, Aristóteles e Pitágoras. Na concepção bramânica os
homens nascem da própria anatomia humana de Brama, determi-
nando as castas de um sistema social impermeável. E em todas as
religiões antigas os homens prestavam homenagens aos deuses
precisamente para obterem suas graças e providências na solução
de problemas individuais ou sociais. Os deuses mitológicos che-
gavam a participar dos trabalhos e das guerras humanas, interfe-
rindo na vida íntima dos seus adoradores e até mesmo conquis-
tando as mulheres belas, pelas quais se apaixonavam. Pitágoras
era considerado filho de Apolo e não de seu pai Mnésicles. Reve-
lando suas profundas raízes mitológicas, Iavé ordenou a saída do
clã de Abraão, Isaac e Jacó da cidade de Ur, na Mesopotâmia, e
conduziu-o ao Egito, para depois, através das guerras implacáveis
do relato bíblico, levá-lo à conquista de Canaã. Os romanos obe-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 73

deciam às ordens de Júpiter e sua Corte, submetendo-se ainda aos
manes ou deuses familiares, que interferiam em todas as suas
atividades. As procissões piedosas das religiões cristãs têm sua
origem nas procissões dos deuses-lares de Roma, carregados em
andores pelas ruas para que não se esquecessem de auxiliá-los em
seus negócios, disputas e empreendimentos. Iavé não fez mais do
que seguir o exemplo condenável dos deuses anteriores, quando
mexericava nas tendas do deserto a ponto de se tornar alcoviteiro,
como ao defender o direito de Moisés de arranjar mais uma espo-
sa, além das que já possuía.
Não é necessário gastarmos muito tempo e papel com essas
questões que figuram amplamente na Bíblia e nas demais escritu-
ras sagradas das religiões antigas. Basta-nos assinalá-las como
dado importante que revela o engano universal de considerar-se o
providencialismo como originalidade absoluta judeu-cristã. O
mesmo se dá com a idéia de criação do mundo a partir do nada.
Na verdade, a Bíblia não explicita o fato suposto de que Deus
criou o mundo do nada, sendo mesmo contraditória em seus livros
no tocante a esse ato de magia. O conceito do nada considerado
por Kant como conceito vazio, desprovido de objetos, foi longa-
mente debatido pelos filósofos gregos e adquiriu vários sentidos
contrários à idéia específica do vazio absoluto. A idéia de que o
nada é o não-ser (aquilo que não é) exige a existência de um ser
do não-ser, que supriria o vazio, desfazendo o nada. A Ciência
atual, amparada pelas pesquisas da Astronáutica, não encontrou o
nada em parte alguma. Assim, a idéia do nada se tornou absurda,
filosófica e cientificamente. Coube a Filon, de Alexandria, filóso-
fo judeu, dar a definição mais simples e clara do ato de criar:
Deus criou o que não existia. Criar, nesse caso, seria tirar do nada
alguma coisa. Mas esse nada não será absoluto, pois sua relação
com o criador existe deste e da coisa que se designou como sendo
nada em relação ao que foi criado. Por exemplo: o escultor tira
uma estátua do nada, sem dispor de modelo ou idéia preconcebi-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 74

da, mas o nada, no caso, é apenas simbólico, pois ele a tirou da
sua inspiração e do material de que se serviu. O próprio Filon
chama Deus, como Criador, de Demiurgo, que era para Platão o
Deus subalterno ao qual Deus proporcionava a matéria para cria-
ção de um mundo. É evidente que a idéia de criar do nada não
representa nenhuma originalidade específica dos judeus ou dos
cristãos. Abagnano diz mesmo que ela não consta da Bíblia.
Essas questões precisam ser expostas para vermos que o pro-
blema da existência de Deus foi envolvido em muitas trapaças do
pensamento, em conseqüência dos desvios místicos e das exigên-
cias dogmáticas. Para provar a existência de Deus não se precisa-
va inventar originalidades inexistentes no pensamento judeu-
cristão. A grande originalidade do Cristianismo não foi a palavra
nada, mas o sentido e a força de universalidade dada à palavra Pai
por Jesus.
Platão, Plotino e os neoplatônicos foram mais precisos quan-
do propuseram a tese de que Deus criou por emanação de si mes-
mo. Essa emanação podia ser do pensamento, aglutinando-a à
matéria dispersa para estruturá-la em átomos e mônadas; como
podia ser um processo de tipo ectoplásmico em que a própria
matéria seria criada por Deus em si mesmo e expandida no pré-
cosmo (o inefável de Pitágoras) para criar não apenas a Terra mas
o Cosmo. De qualquer maneira, porém, não se poderia negar uma
realidade anterior, que se constituiria do espaço cósmico e da
existência de Deus. E essa incógnita não pode ser resolvida.
Mas tínhamos de tratar de tudo isso, embora de forma sumá-
ria, para tentarmos uma solução do problema da ação de Deus.
Esse problema está hoje mais próximo de nós, graças ao conceito
existencial de Deus. Remontando do efeito à causa, já vimos que
não se pode negar a ação de uma Inteligência imanente na reali-
dade existencial. Ninguém admitirá que uma flor desabrocha sem
motivo, que uma pedra cai sem causa. Da mesma maneira, não

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 75

podemos admitir que um Universo apareça tirado da cartola de
um mágico. Não ficaria bem atribuirmos a Deus o papel de presti-
digitador. Há, pois, uma causa e disso estão seguras a Ciência, a
Filosofia e a Religião. Ao menos nessa questão elas estão de
acordo. Já vimos que a idéia de Deus como Acaso é contraditória,
pois teríamos um acaso inteligente; que a idéia de Deus como um
homem gigantesco é simplesmente grotesca e que a idéia de Deus
como o número 1 a desencadear a Década é bela e poética, mas
tão inviável como as anteriores. A única admissível é a de uma
Consciência Cósmica, que não sabemos como surgiu ou se sem-
pre existiu, mas que responde pela estruturação da realidade com
que nos defrontamos no mistério do Infinito. Temos pelo menos a
certeza do efeito, no qual nos integramos como sua parcela insig-
nificante, mas pensante e inquiridora.
Deus, pela sua transcendência, é o Criador, mas pela sua ima-
nência se integra na Criação. Existente Absoluto, está presente em
todas as coisas e em todos os seres. No homem a sua presença não
está apenas na ação das leis naturais, mas também e principalmen-
te na consciência humana, que implica toda a sua estrutura ôntica,
todo o seu ser. Foi o que Jesus explicou aos judeus, quando disse:
Não está nas vossas escrituras que vós sois deuses? Porque toda
criatura humana é um deus em potencial. O corpo material está
para o homem como o Universo está para Deus. O homem cria o
seu próprio corpo e isso não só através das leis genéticas, mas
também pela sua mente. Na Parapsicologia define-se a ação da
mente sobre o corpo como fenômeno psicapa, de ação da mente
sobre a matéria. Cada embrião humano traz em si mesmo o plano
de seu corpo, como a semente de uma planta traz o plano da árvo-
re em seu interior. Mas se, no vegetal e no animal, esse plano se
desenvolve por si mesmo, através das leis naturais, no homem o
problema é mais complexo e o espírito colabora no desenvolvi-
mento do plano. A mente, que não é física, atua sobre a formação
do corpo de acordo com o esquema a desenvolver. A integração

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 76

espírito-corpo se processa através de todo o período de gestação.
A mente age como sonâmbula, sua ação é praticamente catalítica,
mais de presença do que propriamente de ação. Ela sabe o que
será o seu corpo e o estrutura lentamente, sem pressa, na medida
do tempo que lhe é concedido. As leis do espírito controlam essa
atividade sonambúlica. Duas linhas de hereditariedade estão
presentes no embrião: a hereditariedade genética e a hereditarie-
dade psíquica. A primeira vem dos genes paterno e materno, a
segunda vem do próprio espírito, do ser espiritual que se reencar-
na, das experiências, acertos e erros do passado. A facticidade
nasce com a criança, não lhe é dada arbitrariamente, nem ao sabor
das influências do meio. No seu desenvolvimento embrionário, a
criança já estava enquadrada nas condições mesológicas que iria
encontrar. Tudo havia sido previsto e determinado. Essa a ação de
Deus, através das inteligências que o servem. E a presença de
Deus se faz sentir na estrutura consciencial da criança. Os princí-
pios fundamentais da consciência, os vetores da atividade psíqui-
ca, abrangendo todas as instâncias do psiquismo, ali já se encon-
tram, amadurecendo para a manifestação nas condições biofisio-
lógicas das primeiras idades. Por isso diz Kardec: A criança nasce
com a roupagem da inocência. Por trás dessa roupagem encontra-
se a personalidade adulta que irá se definindo aos poucos, no
ritmo do desenvolvimento orgânico. A teoria materialista da
tábula rasa dos empiristas ingleses, que considera a mente infantil
como uma página em branco, já foi superada pelas pesquisas
psicológicas atuais. As pesquisas hipnóticas de regressão da me-
mória, quando levadas além dos limites da vida intra-uterina e do
berço, revelam a ancestralidade do espírito reencarnante. Foi o
que mostraram as pesquisas de Albert De Rochas, em Paris, nos
fins do século passado, e o que hoje revelam as experiências do
mesmo tipo do Prof. Wladimir Raikov em Moscou, não obstante
os disfarces exigidos pelo figurino político-ideológico. O fenôme-
no é o mesmo, os métodos são os mesmos. Muito além das ins-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 77

tâncias psicanalíticas de Freud, Kardec revelou (quando Freud
tinha apenas um ano de idade) que no inconsciente do médico
vienense havia um profundo acervo do passado desconhecido.
Esse quadro esquemático, baseado em dados atuais das pes-
quisas psicológicas e parapsicológicas (Jung, Ehrenwald, Montes-
sori, Kerchensteiner, René Hubert, Frederich Myers e outros) nos
introduz no problema da ação de Deus no homem. As consciên-
cias humanas são reproduções microscópicas da Consciência
Suprema. E funcionam no homem como bússola e tribunal. A
bússola indica os rumos a seguir na existência. O tribunal alerta,
corrige os desvios ou adverte o ser a respeito, julga-o aqui mes-
mo, na Terra, e quando necessário também após a morte condena-
o ou concede-lhe as recompensas merecidas. No seu livro O Céu e
o Inferno Kardec oferece um quadro grandioso das punições e
recompensas da consciência, com exemplos colhidos ao vivo em
suas pesquisas. Whately Carington, da Universidade de Cambrid-
ge (Inglaterra) em suas pesquisas parapsicológicas, fez verifica-
ções semelhantes em nossos dias e provou que a mente humana
não desaparece na morte. Não se trata, pois de hipóteses, de teori-
as audaciosas ou de suposições místicas, muito menos de afirma-
ções teológicas. Trata-se de fatos, resultantes de investigações
científicas susceptíveis de tantas repetições quantas forem neces-
sárias à sua verificação.
O homem é o seu próprio juiz, no aquém e no além. Ninguém
lhe pede contas do que fez, mas ele mesmo se defronta com a
imagem do que foi e do que é. Essa a infalibilidade da Justiça
Divina. O Tribunal de Deus está instalado na consciência de cada
um de nós e funciona com a regularidade absoluta das leis natu-
rais. Não somos julgados por nenhum tribunal sobrenatural, mas
pela nossa própria consciência. Daí a fatuidade dos julgamentos
religiosos, das indulgências e sacramentos. Deus, o Existente,
partilha conosco as provas existenciais. E é dentro de nós, em

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 78

nossa consciência, em nosso íntimo – sem que tenhamos a mínima
possibilidade de fuga ou desculpas mentirosas – que somos julga-
dos. Mas a Justiça de Deus, se é rigorosamente precisa, é também
revestida de misericórdia. As atenuantes justas são levadas em
conta e as oportunidades de regeneração e reparação dos erros e
crimes jamais nos serão negadas. Deus não nos castiga ou repro-
va. Entrega-nos a nós mesmos, sob a garantia infalível do tribunal
consciencial. Deus não nos criou para perdição, mas para o de-
senvolvimento das nossas possibilidades divinas. O simbólico
pagamento das dívidas do passado não é mais do que a reparação
necessária dos nossos erros, por mais graves que sejam, para que
possamos continuar na administração da nossa herança divina.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 79

Deus Social

As estruturas sociais da Terra parecem suficientes para negar
tudo o que dissemos sobre Deus e a consciência humana. Basta a
seqüência de guerras e atrocidades que assolaram o planeta em
todos os tempos para mostrar essas estruturas, em crise permanen-
te através dos milênios, que jamais se ajustaram ao que costuma-
mos chamar os desígnios de Deus. Como decorrência do livre-
arbítrio do homem, indispensável à formação da sua responsabili-
dade e do seu senso moral, o poder social organizou-se na linha
dos interesses imediatistas dos homens, que apesar da fragilidade
humana e da efemeridade da vida, da morte sempre à espreita, só
se lembra da sobrevivência quando a vida material lhe escapa das
mãos. Em todos os tempos as novas gerações se instalam no chão
do planeta como herdeiras incontestáveis dos privilégios sustenta-
dos pelas anteriores. As linhagens do sangue desaparecem na
voragem dos túmulos suntuosos, mas o exemplo subsiste e novas
linhagens se formam com outros fundamentos. Do caciquismo
ingênuo das tribos às dinastias da nobreza, do dinheiro e da técni-
ca as posições sociais se conservam substancialmente as mesmas.
As civilizações teocráticas provam historicamente que a idéia de
Deus no homem foi posta a serviço das ambições mundanas. As
instituições religiosas utilizam seus ritos, sacramentos e bênçãos
para atingir os soberanos em nome de Deus. Foi por isso que
Jesus respondeu aos fariseus, com a moeda romana entre os de-
dos: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não
se trata de esperteza política, para escapar ao dilema, como até
hoje se interpreta esse episódio. A grandeza espiritual de Jesus e a
sua inteira abnegação à causa humana não comportariam jamais
essa interpretação entre povos mais adiantados. Jesus apenas
mostrava que eram inúteis os sacrifícios de uma revolta insensata
numa estrutura social dominada por César, com suas legiões

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 80

brutais. Era preferível pagar o tributo enquanto ele semeava as
idéias novas de redenção humana pelo esclarecimento das consci-
ências, e despertar nas criaturas os sentimentos inatos de amor e
justiça que traziam em si mesmas.
As leis da evolução dirigem o desenvolvimento social, como
as leis biológicas dirigem o desenvolvimento do corpo humano.
Tentar o aceleramento dessas leis por meios artificiais é aumentar
e exacerbar os conflitos sociais sob o ônus de novas injustiças e
brutalidades. O necessário é preparar os homens para situações
novas que devem nascer de suas próprias consciências. Os atos de
violência, como assinalou Frederic Wertham, são contagiosos e se
propagam no organismo social como câncer no organismo huma-
no. O homem não dispõe apenas de liberdade para agir, mas tam-
bém de consciência para orientar a ação num sentido criador e não
destruidor. Cada luta na Palestina, naquele momento, contra o
poder de César resultava unicamente em centenas de crucificações
ao longo das estradas. A semeadura de Jesus redundaria na sua
própria crucificação, mas as sementes chegariam à Roma e abate-
riam a sua arrogância.
Iavé, o deus judaico, estava submetido a Júpiter, o deus ro-
mano. As classes dominantes de Israel haviam negociado a sub-
missão com o invasor. A Águia Romana pousara sobre o templo
de Jerusalém, com a aquiescência do Sumo Sacerdote. O Messias
não vinha fazer o milagre da expulsão dos romanos, mas da trans-
formação do mundo. As condições históricas locais, portanto,
concretas, resultam de encadeamentos de causas ao longo do
tempo e são processos temporais terrenos pertencentes à jurisdi-
ção humana. A transformação do mundo, que depende de fatores
conscienciais, é um processo abstrato que depende de interven-
ções espirituais. A questão do pagamento do tributo era um negó-
cio de César. A missão de Jesus era uma delegação de Deus. Essa
divisão jurisdicional explica por que motivo as grandes revolu-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 81

ções que modificam os sistemas sociais, apesar de assentadas na
estrutura sócio-econômica das nações, dependem do chamado
momento psicológico para sua eclosão eficaz. Há que amadurecer
no psiquismo dos povos o processo transformador, e esse amadu-
recimento decorre de intrincados fatores nem sempre perceptíveis,
pela sutileza de seus componentes. A Revolução Cristã não devia
ser cruenta, e só o foi pelo desequilíbrio dos homens nas fases de
transição.
Deus, como Existente, no seu constante ascender do imanente
para transcendente, participa com os homens de todo o processo
social. É um Deus Social, de ação temporal humana no plano
humano. Kardec aceitou a interpretação religiosa do episódio da
moeda romana, mas converteu-o numa lição de aplicação geral.
Foi o que fez com numerosas passagens evangélicas, evitando que
a transição para nova compreensão dos textos fosse demasiado
rápida. Usou o bom-senso da dosagem cautelosa da revisão exe-
gética. O mesmo havia feito Jesus no tocante a problemas de
ordem circunstancial. Os espíritos esclarecidos procedem como
professores experientes nas relações com o povo, mormente em
questões de fé, evitando perturbações desnecessárias. Tudo vem a
seu tempo no processo evolutivo e só os homens inquietos, des-
providos da calma necessária para enfrentar as dificuldades de
uma renovação em plano social, usam de precipitação nesses
casos.
Deus não está ausente nas horas difíceis das grandes trans-
formações sociais. Pelo contrário, sua presença se faz sentir de
maneira mais intensa nessas horas, orientando através se suas leis
os processos renovadores, de maneira a que os excessos sejam
contidos por meios naturais. Na parábola do joio e do trigo, Jesus
esclareceu com admirável simplicidade a questão principal. Con-
vém deixar o trigo amadurecer, para que não seja arrancado jun-
tamente com o joio. De cada fase da evolução a experiência acu-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 82

mulada contém elementos valiosos que não devem ser destruídos.
Sistemas econômicos e culturais renovam-se na sucessão das
gerações. Dewey lembrou que a educação existe por causa da
morte, pois se não morrêssemos não precisaríamos ensinar às
novas gerações o que aprendemos. Mas lembrou também que cada
geração reelabora as experiências da anterior. Ernst Cassirer
mostrou que as civilizações extintas renascem no seio das posteri-
ores graças ao acervo das experiências e conquistas válidas que
deixou gravadas em suas ruínas. Existe uma imortalidade material
do pensamento, que se grava nas pedras e até mesmo na argila,
assegurando a continuidade, através dos milênios, do desenvolvi-
mento seqüente da cultura. E em todas as civilizações, em todas
as culturas, encontramos a idéia de Deus marcando os passos
humanos. Deus acompanha o homem, passo a passo, na roda
incessante das gerações e das civilizações em torno do globo
planetário.
Episódios curiosos da História revelam a intervenção de Deus
nas atividades humanas mais diversas, ora através de inspirações,
ora através de agentes especiais. Sócrates surge do meio dos
sofistas gregos, que revolucionavam a Filosofia, graças à influên-
cia do seu daimon, o espírito que o aconselha constantemente. E é
no Templo de Delfos que vai encontrar um dos princípios funda-
mentais da sua moral: Conhece-te a ti mesmo. Joana D'Arc, jo-
vem camponesa, empunha armas, comanda exércitos, coroa o Rei
e expulsa os ingleses da França por ordem das suas Vozes Ocultas
que só ela ouvia. Lincoln assina a lei de extinção da escravidão
negra na América por ordem dos espíritos que se comunicavam
em suas sessões mediúnicas na Casa Branca. Lindenberg atraves-
sa o Atlântico num vôo solitário, instaurando as rotas aéreas,
auxiliado e estimulado por companheiros invisíveis. Os sonhos
premonitórios e os fenômenos de aparições, determinando revira-
voltas nos processos históricos, estão presentes nos anais das
Sociedades de Pesquisas Psíquicas.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 83

Mais significativas, pela quantidade incalculável e a eficácia
imediata, são as intuições populares, os pressentimentos, as pre-
monições ocorridas nos momentos de penetração em terras desco-
nhecidas, para sua integração na civilização, ou de fundação de
novos núcleos populares e criação de cidades, ou de devassa dos
mares para a abertura de uma nova era, como na era da expansão
marítima, quando o Infante D. Henrique se transforma no criador
da Escola de Sagres e Colombo vence todos os obstáculos, em
terra e no mar, para realizar o desígnio oculto que brota da cons-
ciência subliminar impelindo-o na arrojada aventura. No mundo
inteiro dos povoados mais distantes e humildes até as grandes
capitais, homens, mulheres e crianças participam de visões, ou-
vem vozes secretas, sentem impulsos que não sabem explicar e
realizam pequenos feitos que, em seu imenso conjunto, revelam
um desígnio secreto que comanda a ação humana na ampliação da
Terra e no enriquecimento material, cultural e espiritual dos po-
vos. É o comando de Deus, ora diretamente por sua ação endóge-
na na consciência humana ou sua exógena através de seus instru-
mentos paraexistentes, dos oráculos e pitonisas ou dos médiuns
modernos, desenvolvendo, ampliando e enriquecendo as socieda-
des humanas. Os cientistas procuraram, até agora, atribuir todo
esse vasto e múltiplo testemunho da presença de Deus na experi-
ência social à ação puramente humana. Mas nesta hora em que o
próprio espaço sideral começa a ser devassado pelas sondas espa-
ciais e os foguetes espaciais tripulados, e em que mais do que
nunca a harmonia e a grandeza da Criação se desvenda assustado-
ramente aos olhos humanos, é impossível insistir na pretensa
supremacia do homem, esse bicho da terra tão pequeno, na ex-
pressão de Camões.
O homem, que aparece no mundo como um náufrago nu e
desmemoriado, segundo a concepção existencialista, que não sabe
de onde vem nem para onde vai, cuja inteligência não lhe permite
muitas vezes nem mesmo reconhecer a sua própria natureza, não

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 84

tem mais a menor possibilidade de sustentar o seu orgulho fátuo
na rejeição à existência de Deus. Torna-se ridícula a tentativa dos
astronautas soviéticos de continuar negando Deus por não o terem
encontrado em seus vôos mecânicos em torno da Terra, um grão
de areia no infinito. No século XVIII os cirurgiões alegavam com
ênfase estúpida que não haviam jamais encontrado a alma humana
na ponta de seus bisturis primitivos. Hoje astronautas que mal
iniciam a aventura cósmica no âmbito apenas do nosso Sistema
Solar, repetem o atrevimento daqueles cirurgiões. Não obstante, a
idéia de Deus se torna cada vez mais evidente e necessária, para
que se possa explicar, pelo menos de maneira rudimentar, o misté-
rio da realidade universal.
Deus, o Existente, é um Ser social. Toda a existência de
Deus, como subjetividade, semelhante à nossa, revela-se na natu-
reza naturans da concepção espinosiana. É o número Kantiano
que se projeta nos fenômenos normais e paranormais. Acessível à
investigação científica, esse número, essência e alma do fenôme-
no, é a própria Alma de Deus que tantos negam por não poder vê-
la, como negam a alma humana que constitui o próprio ser do
homem. É possível a uma criatura de inteligência mediana e de
mediana cultura querer que a visão sensorial humana, mais limi-
tada que a de muitos animais, possa captar em seu minúsculo
campo visual a Alma de Deus? Além do orgulho e da colocação
falsa do problema pelas religiões, suas pretensas teologias e suas
místicas sectárias e dogmáticas, existe hoje o impedimento ideo-
lógico dos materialistas que, contraditoriamente se dizem huma-
nistas, reduzindo o homem a nada em suas elucubrações sofísti-
cas.
É também suposta prova de superioridade intelectual dizer-se
materialista livre-pensador, homem liberto das ilusões metafísi-
cas. Tudo isso podia produzir efeito ilusório no passado, mas não
hoje. A Metafísica trata precisamente do que está além da Física.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 85

No entanto, a própria Física moderna entrou no plano da trans-
cendência vertical de Jaspers, obrigada pelas exigências inexorá-
veis do desenvolvimento científico. Onde e como se confirma a
superioridade intelectual de um intelecto que, fugindo às crendi-
ces do passado, da mesma maneira que um pobre tabaréu foge do
fogo-fátuo julgando-o assombração, recusa-se a tomar consciência
das novas dimensões do conhecimento científico?
Até nisso, nesse temor pedante, confirma-se a sociabilidade
de Deus, um ser social que se impõe ao meio cultural dos nossos
dias pela sua participação em todas as atividades humanas. Deus,
Ser Absoluto, é o arquétipo do homem. Como este, é subjetivida-
de pura que escapa às percepções sensoriais, mas projeta a sua
realidade extrafísica no sensível, nas éctases da sua possibilidade
de manifestação. Quando dizemos, conscientemente ou por hábi-
to: Se Deus quiser, estamos reconhecendo, conscientemente ou
por hábito, que Deus convive conosco em nossa éctase existenci-
al. Querer negar essa realidade evidente é repetir os argumentos
dos anticopérnicos, que viam o Sol rodar em torno da Terra mas
não viam nem podiam ver a Terra girar em torno do Sol. Não
vemos Deus, nunca o vimos, e os que pensaram que o viram e
falaram com ele não podem provar que isso não foi alucinação.
Mas a presença de Deus no mundo é bem visível e palpável.
Queremos algo mais positivo do que a realidade em que vivemos
e a que pertencemos, tão dura e opaca aos nossos sentidos, e não
obstante fluídica e transparente como os véus de Ísis?

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 86

Autogênese de Deus

Pode parecer absurdo querermos tratar de uma possível ori-
gem de Deus. A mente perquiridora do homem não se conforma
com o mistério. Se a Ciência não dispõe de recursos para a inves-
tigação nesse plano, e se a Teologia só fez aumentar o mistério
através de sistematizações sectárias, só resta a cogitação filosófica
para oferecer à inquietação humana o consolo de uma proposição
racional. As primeiras indagações gregas a respeito de Deus mos-
traram que a origem da dicotomia Natural e Sobrenatural derivou
de uma confusa concepção da realidade universal, que considera-
va a Terra como separada do espaço cósmico. Os astros são clas-
sificados como seres divinos, constituindo o mundo celeste ou
sobrenatural; dessa maneira, a Natureza pertencia à Terra, despro-
vida de brilho próprio e iluminada pelos astros. A distinção per-
maneceu até os nossos dias, embora com diversas alterações do
pensamento primitivo, que não afetaram a essência do problema.
Os deuses pairavam no Infinito, sobre a natureza essencialmente
terrena. A idéia de um Deus Criador surgiu pela primeira vez, em
termos filosóficos, com Anaxágoras, que o considerou como
ordenador do mundo, criador da ordem natural. Anaxágoras cha-
mou esse Deus pelo nome de Intelecto, reconhecendo nele a Inte-
ligência organizadora da realidade. Com Platão surgiria mais
tarde o conceito do Demiurgo, ou seja, do construtor do mundo.
Isso implicava a existência de um poder superior a Deus, pois o
construtor trabalhava a matéria que lhe era dada. Aristóteles figu-
rou Deus como O Primeiro Motor Imóvel que punha em movi-
mento todos os demais motores da dinâmica universal. Sua voca-
ção prática, e portanto científica, comprovada por suas pesquisas
naturais, dava o primeiro passo contra a idéia do sobrenatural.
Com os estóicos surgiu o panteísmo que contaminaria também o
neoplatonismo. Deus era o mundo, o mundo era Deus. Natural e

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 87

Sobrenatural fundiam-se confusamente e Tales de Mileto afirma-
va que o mundo estava cheio de deuses. A intuição grega traçava,
nos quadros de sua cultura nascente, o esquema do futuro. A
concepção de Deus seguiria esse esquema nos milênios seguintes,
oscilando entre as alternativas gregas, adaptando Platão e Aristó-
teles ao pensamento judeu-cristão e, por conveniência político-
teológica do poder romano, restabelecendo a supremacia do so-
brenatural. Caberia a Espinosa definir com precisão matemática,
sob a dupla ameaça de judeus e cristãos indignados, o infuso
panteísmo da era helenística. O império cairia sob a invasão bár-
bara e a Igreja se ergueria como poder supremo, com o prestígio
do sobrenatural, amparada nas ordenações do Messias crucificado,
para que as cabeças coroadas da Europa se curvassem reverentes à
unção divina dos clérigos. A concepção do Deus Único triunfaria
a ferro, fogo e sangue. A proposição grega de Crísipo, entrosando
o homem no esquema dos poderes terrenos, seria esquecida por
um milênio. A teocracia massiva das antigas civilizações orientais
transferia-se para as terras ensolaradas do Mediterrâneo. E os
Evangelhos se tornariam livros proibidos para o povo, que só
poderia ouvir a sua leitura em latim, a língua misteriosa do impé-
rio morto. Todo um milênio de servidão fermentaria entre as
púrpuras herdadas do Templo de Jerusalém. Os filósofos gregos,
mortos e vivos, seriam submetidos à servidão. E a própria Filoso-
fia, deusa-coruja, bateria suas asas noturnas sobre os dois cadáve-
res: o do Império e o do Cristianismo.
Ninguém se atreveria a pedir que a razão explicasse de onde
surgira o Deus Criador, pois sua origem era vedada ao conheci-
mento humano. A razão grega se apagara à distância, como fogo
simbólico de uma olimpíada pagã, e o seu renascimento na Euro-
pa só aconteceria, como o da Fênix, quando as cinzas da inquisi-
ção lhe pudessem proporcionar os elementos necessários ao re-
nascimento da liberdade. Quem se atreveria a indagar onde e
como Deus nascera? O mistério insondável não poderia ser tocado

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 88

por mãos profanas de servos sem direitos, mesmo que filósofos.
De que valiam os filósofos, ante a sabedoria dos teólogos? O
Livro da Sabedoria não viera da Grécia, mas de Israel. Era a
Bíblia hebraica a que se acrescentavam os Evangelhos, a ela
subordinados. Quem contrariasse esse código do direito divino só
devia esperar a sentença piedosa do Santo Ofício, inspirada por
Deus Todo Poderoso. Por sua própria origem, essa sentença não
era um castigo, mas o prêmio da Salvação para a vida eterna,
livrando o infeliz da eterna condenação.
Com o Renascimento a liberdade ateniense de pensar e per-
quirir restabeleceu-se na Terra. As multidões ignaras da descen-
dência bárbara podiam então redescobrir o gosto da liberdade,
enquanto os homens de pensamento restabeleciam os direitos da
estranha serva dos teólogos, a Filosofia, que voltaria a investigar
os mistérios proibidos. O avanço da Ciência anunciava tempos
novos. Mas a herança do Milênio pesava sobre as consciências, a
ameaça do sobrenatural continuava pairando sobre a cabeça dos
atrevidos. As multidões acarneiradas no imenso rebanho não
dispunham de luz nem de experiência para romper as muralhas
das cidades fortificadas. Não obstante, homens de pensamento
surgiam por toda parte e o clima cultural se restabelecia na Euro-
pa sacudida por idéias libertárias. Descartes atirava no cesto toda
a sabedoria duvidosa que lhe haviam dado no Colégio Jesuíta de
La Fleche, Kant examinava os problemas da razão, Bacon lem-
brava que a Ciência só podia vencer obedecendo a Deus e Voltai-
re perguntava, com um sorriso irônico, pela origem e natureza de
Deus. O dogma da queda dos anjos era substituído pela tese da
queda do homem na sociedade. Lutero clamava pela volta a Cris-
to. Deus reassumia no pensamento humano a posição de Causa e
Newton atormentado transformava a maçã do Éden no verdadeiro
fruto da Sabedoria. O Sic et Non de Abelardo podia ser lido no-
vamente e A Nova Heloísa mostrava como devia ser a nova famí-

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 89

lia numa sociedade organizada pelo Contrato Social, na visão
pré-revolucionária de Rousseau.
Nesse quadro mental apenas esboçado estabelecia-se o armis-
tício entre os homens e Deus. A distinção entre a Divindade e
Deus, motivo de especiosas condenações de tribunais sagrados,
desaparecia no conceito cristão do Deus-Pai, embora chamuscado
de fogo e manchado de sangue. Figuras divinas como a de Fran-
cisco de Assis haviam abrandado a ferocidade dos guardiões da
Fé. Tornava-se possível o retorno aos problemas fundamentais da
origem e natureza de Deus. Mas crescia a maré do materialismo e
do ateísmo no pensamento moderno. A reação de impiedade
brotava da terra, como os cogumelos da heresia no tempo de
Tertuliano, contra as piedosas mordaças dos guardiões e a genero-
sa concessão da morte mais rápida pelo garrote-vil inventado na
Espanha. Os ventos do mediterrâneo sopravam mais suaves nas
praias romanas e o céu da Itália parecia tocado por um azul mais
puro. Muitos ainda temiam tocar no nome sagrado, mas vozes
corajosas indagavam cada vez mais pelo grande mistério. Os
deuses mitológicos tinham sua origem e linhagem conhecidas no
simbólico fabulário das crenças mortas. Pensadores livres davam
ao Deus Único a miserável origem do medo gerado pela ignorân-
cia nas selvas. O dogma do absoluto, sem princípio nem fim,
contrariava os princípios invioláveis da Lógica, herança aristotéli-
ca absorvida pela Fé. Reinvestido na sua dignidade de Causa
Primeira e Absoluta, que produzira por meios sobrenaturais o
efeito natural do mundo, o conceito de Deus não podia ficar flutu-
ando nas nuvens das suposições. Era necessário dar-lhe uma
segurança racional, que pelo menos aquietasse os espíritos inquie-
tos. Os teólogos não se atreviam a sair do campo do mistério, da
impossibilidade humana de devassar o sagrado, enquanto os atre-
vidos profanadores de revelações arcaicas zombavam das contra-
dições, dos ilogismos grosseiros e das fantasias do passado imagi-
nário. Nem mesmo a teoria neoplatônica da emanação satisfazia

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 90

os inquiridores dotados de novas técnicas e novos conhecimentos.
Prometeus equipados de aparelhagem científica antecipavam a
invasão do Cosmos, procurando devassar os bastidores de Deus.
Onde escondia ele a sua origem, a sua certidão de nascimento?
Para acalmar a sede lógica dessas feras voadoras só havia uma
possibilidade, a que os místicos jamais recorreriam. Os céticos
racionalistas não vacilaram em tirá-la da caixa de segredos com as
garras do Diabo. E até hoje, em plena Era Cósmica, no tempo
antimatéria, não se consegue outra brecha, nem mesmo nas mais
audaciosas equações matemáticas, para se roubar uma fagulha do
Céu e com ela acender a lamparina da razão.
Tentaremos expô-la de maneira simples. O Deus-Intelecto de
Anaxágoras, o Bem de Platão, o Primeiro Motor Imóvel de Aris-
tóteles, por mais que se sustente sozinho no Inefável de Pitágoras,
não tem o direito de aturdir a sua própria Criação com a recusa a
qualquer origem. A razão humana, para aceitar a Divindade tem
de enquadrá-la nos seus limites. Esse enquadramento se faz com
auxílio da concepção budista do eterno existente. Há algo que
sempre existiu, que não foi criado. Esse Universo pré-existente,
para Buda, é a realidade concreta. Nunca houve o Fiat, esse tru-
que judaico. Em termos da razão acidental podemos eliminar a
contradição oriental e supor a existência da matéria incriada,
espécie de névoa na boca irreal do abismo inexistente. O abismo
seria vazio sem nome, o nada inimaginável mas necessário. Essa
névoa de matéria primária amadureceria no vazio produzindo
lentamente massas de matérias secundárias, das quais nasceriam
os primeiros reflexos de futuras energias. Através dos milênios
essas energias, em concentrações ocasionais, produziriam um
sistema de ações e reações que acabaria gerando uma estrutura
inteligente, mais tarde uma consciência: Deus. Como se vê, fica
em suspenso um grave dilema: aceitamos o acaso inteligente ou
admitimos a existência anterior a Deus, que na verdade é o Deus
Criador. Caímos no solipsismo platônico do Demiurgo, que ora

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 91

aparece como o Criador Absoluto, ora como simples construtor da
realidade, servindo-se da matéria prima posta à sua disposição
pelo Demiurgo anterior. Mas não nos assustemos com isso, nem
consideremos perdido o nosso tempo. Nada melhor que um exem-
plo para verificarmos ao vivo a impossibilidade de sondarmos, ao
menos no atual estágio de nossa evolução cultural, o mistério da
origem de Deus. Outros dilemas podem ser observados nesse
silogismo complexo que simplificamos ao máximo para torná-lo
mais acessível ao leitor. A suposta teoria da autogênese de Deus,
do Deus que se autogerou, que nasceu em si mesmo e não tinha o
que fazer na solidão absoluta, dá-nos a possibilidade de avaliar a
impossibilidade do nosso entendimento e com isso nos lembra a
conveniência da humildade. A negação científica de Deus não é
menos incongruente, implicando contradições insolúveis. No
plano teológico a afirmação da revolta dos Anjos e da existência
do Diabo (Lúcifer, o mais sábio) estabelecendo-se em forma
antropológica a dialética do bem e do mal, é um verdadeiro rede-
moinho de contradições que só a crença ingênua das massas pode
aceitar. O mesmo se dá com o problema das penas eternas na
Justiça Divina e assim por diante. Vemos assim que a razão hu-
mana é impotente para enfrentar os problemas inerentes à Causa,
pois o seu plano de aplicação é dos efeitos.
Nem por isso devemos descrer do valor da nossa razão, pois
já vimos que ela pode remontar dos efeitos às causas, e até mesmo
provar a existência da Causa Suprema. Além disso, como Frederi-
ch Myers demonstrou sobejamente em A Personalidade Humana
(The Human Personality), dispomos da razão imediata, na consci-
ência supraliminar, que se aplica à vida terrena, mas também da
razão futura, na consciência subliminar, destinada a sondar as
situações vindouras em nosso processo evolutivo. Só compreen-
deremos plenamente a Causa quando houvermos atingido os
estágios superiores do desenvolvimento espiritual, realizando a

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 92

síntese consciencial estética a que se refere René Hubert em seus
estudos sobre a Moral.
O problema da gênese da consciência, estudado por Gustave
Geley, em seu livro Do Inconsciente ao Consciente, é por ele
colocado em termos de um dinamismo-psíquico-inconsciente que
desenvolve na evolução geral, mostrando a intencionalidade da
Causa na seqüência dos efeitos, na mesma linha da evolução
criadora de Bergson. O homem, como sustentou Oliver Lodge, é
um processo em desenvolvimento. Nossas potencialidades inter-
nas são muito maiores do que podemos pensar. A impotência
atual da razão humana será suprida gradativamente pelo acrésci-
mo de potência que a atualização progressiva da consciência
subliminar proporciona à consciência supraliminar. O conceito
existencial do homem nos leva a uma visão mais ampla e mais
segura da realidade de nós mesmos e do mundo. Sua aplicação ao
problema de Deus descortina aos nossos olhos um panorama
coerente e grandioso do futuro humano. Deus existe como uma
realidade existencial inegável que se comprova na cogitação
filosófica, nas deduções lógicas e nas induções científicas, bem
como na experiência vital e psicológica da existência humana.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 93

O Mito do Diabo

A mística é também um processo dialético, embora os místi-
cos em geral recusem-se a admiti-lo. O sentimento místico é um
impulso de integração do ser naquilo que é. Não importa se aquilo
que é se revela como Bem ou Mal. O emprego da palavra mística
por Dionísio o Areopagita, no século V, restringiu o sentido do
termo às relações do homem com Deus. Dionísio se inspirava no
filósofo neoplatônico Proclo. Os cristãos absorviam a seiva do
pensamento grego e davam à sua terminologia aplicação própria.
Era uma forma evidente de apropriação, justificada pela intenção.
O que importa na Mística, portanto, é o seu sentido de unidade do
ser relativo com o Ser Absoluto. Este pode se definir como Deus,
o Diabo, um Ideal, um Sonho, uma Utopia e assim por diante.
Mas toda forma de mística se desenvolve na contradição. A mais
alta forma tinha de ser forçosamente uma contradição absurda.
Porque nada se pode opor ao Absoluto. O processo de racionali-
zação inconsciente levou a imaginação mística a elaborar na
figura do Diabo o contrário de Deus. A dialética do Bem e do
Mal, que vinha das experiências do homem primitivo em seus
contatos com os elementos naturais, aprimorou-se nas civilizações
e definiu-se nas religiões em duas formas de idealização antropo-
mórfica – a de Deus e a do Diabo. Eram os símbolos da salvação e
da perdição, os arquétipos positivos e negativos atraindo almas
com igual poder. Embora teologicamente o Diabo apareça como
um filho rebelado contra o pai, na prática e na vivência das religi-
ões o filho se iguala ao pai em poder e liberdade. Toda a História
Medieval não passa de um relato trágico da luta entre Deus e o
Diabo. O mesmo ocorre com as fases medievais do Oriente, que
dão a impressão de haverem cedido o seu modelo ao Ocidente.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 94

O absurdo dessa dialética está na impossibilidade de se opor
um Absoluto a outro, pois o Absoluto é o Todo e se outro Todo se
lhe opusesse não teríamos dois Todos, mas apenas duas metades.
Essa a razão fundamental por que Deus é o Ser e o Diabo é apenas
um Mito. Deus se define filosoficamente como o Ser Absoluto,
como Substância que a si mesma se basta, que de nada depende.
O Diabo se define como uma sombra invertida de Deus no espe-
lho côncavo da imaginação humana, uma espécie de figura gro-
tesca e incoerente do não-ser. Por isso Kardec o apresenta como
produto específico da imaginação terrena, incapaz de figurar com
a mesma força de nitidez e colorido a Deus e ao Céu. Apegada à
Terra, impregnada pelo magnetismo dos planos inferiores, tortu-
rada pela visão e a experiência das provações terrenas, a imagina-
ção humana só conseguiu figurar Deus e o Céu de maneira impre-
cisa, ao mesmo tempo em que carregava a pintura do Diabo e do
Inferno. Por isso também o Padre Teilhard de Chardin opôs-se em
suas obras de renovação teológica a aceitar o dogma da condena-
ção eterna do Diabo e reservou-lhe um lugar nos confins do Ple-
roma, o suposto corpo místico de Deus. Ali o filho ingrato per-
manecerá, sem ser lançado nas trevas exteriores, até que a miseri-
córdia de Deus se manifeste em seu benefício. Como? Certamente
com a solução apresentada por Giovanni Papini, em seu livro
Il Diavolo, ou seja, com a reintegração do Diabo no Pleroma de
maneira plena.
A mística do Diabo sempre teve o seu culto e os seus tem-
plos, o seu sacerdócio e as suas corporações devotas. Mas tudo
isso nunca passou nem pode passar de simples imitação grotesca
do culto legítimo a Deus. Porque os seres humanos, criados por
Deus, não podem distorcer, senão artificialmente, de maneira
efêmera, o seu impulso de integração naquilo que é para aquilo
que não é nem pode ser. Ao insistir na direção do mal, o homem
se condena a si mesmo e a si mesmo se tortura, violentando suas
potencialidades divinas e sofrendo na consciência a pressão das

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 95

reações da sua própria natureza ôntica. É essa pressão que leva os
criminosos, por mais transviados, à conversão e à regeneração,
muitas vezes no declínio da vida. O enfraquecimento das forças
vitais abranda a vontade rebelde e faz curvar a cerviz dos mais
terríveis celerados.
Certas pessoas pensam haver descoberto a pólvora quando
ouvem dizer que o Diabo não passa de um mito, e perguntam
animadas: Então Deus também não seria um mito contrário? Não,
simplesmente porque o contrário, aquilo que se opõe ao que é,
não é Deus, mas o Diabo. Não há contrários a Deus, pois tudo
quanto existe, pelo simples fato de existir já está subordinado a
Ele. Na dialética mística há também a subcontradição do anseio
de integração com o anseio de liberdade. As criaturas que não
cedem à atração diabólica têm sempre o pendor de ceder ao desejo
de fugir a Deus, principalmente em conseqüência da introjeção
que sofreram da imagem tirânica de Deus em seus inconscientes,
por força das crenças religiosas. O mito do Diabo tem o poder
fascinante que provém das forças telúricas. Essa fascinação é
alimentada pelas energias do ser do corpo, energias de sustenta-
ção da vida vegetativa. A luta sem tréguas entre o espírito e o
corpo, tão conhecida na dolorosa história da Mística, e sempre
interpretada como ação violenta do Diabo sobre a frágil carne
humana, nada mais são do que eclosões de energias vitais repri-
midas pelas práticas ascéticas. É bem conhecida a mórbida ten-
dência dos místicos para o erotismo. Nem as antigas flagelações,
nem os recursos simplórios da ocultação do corpo aos olhos de
fauno do Diabo, ainda hoje em prática, conseguem livrar os místi-
cos de terríveis tentações. O desmoralizado mito de Satanás não é
o culpado de eclosões sexuais. Culpados são os trânsfugas da
existência, os lúbricos sonhadores de sensações celestiais, que
pretendem sufocar os impulsos naturais do corpo, acreditando que
com isso agradarão a Deus, que estabeleceu as leis genéticas no
corpo humano para que a vida não se extinga no planeta.

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 96

O corpo humano é, existe porque é, porque goza do direito de
ser no plano ontológico. Sua função não é apenas viver, mas
principalmente servir ao espírito que através dele se projeta na
existência. Se o espírito se recusa a existir, preferindo a fuga e a
traição à vida, entregando-se à ilusão necrófila da santificação
forçada, torna-se o Diabo de si mesmo, o tentador que o leva ao
desespero, à humilhação e à marginalização existencial. O com-
plexo místico-erótico devastou os conventos e mosteiros medie-
vais, semeou loucura e simulação de santidade macerada nos
caminhos da vida, enfeitando morbidamente suas margens com as
flores roxas de olheiras fundas e olhos lânguidos em rostos páli-
dos de candidatas ao coro celestial das Dez Mil Virgens. E quan-
tos monges martirizados pelas garras noturnas do Diabo estrangu-
laram-se a si mesmos na busca de uma santificação artificial?
Enquanto isso, os párocos seculares, menos ambiciosos no tocante
à glória eterna, mais sensatos e práticos, na convivência natural
dos homens, ajeitavam-se longe dos cilícios e tocavam suas vidas
em paz com Deus e com o Diabo. Souberam tirar ilações pragmá-
ticas da lição de Jesus: Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus, sem lograr a um nem a outro, equilibrando a ba-
lança da vida.
Nos fenômenos do misticismo popular encontramos episódios
da alta roda social, como de Rasputin, na Corte Czarista, onde o
terrível monge se infiltrou graças aos seus dons terapêuticos; e
episódios sertanejos como o de Antônio Conselheiro, no Brasil,
que só falava com as mulheres dando-lhes as costas, mesmo às
velhas, para evitar o perigo das tentações. No alto clero o poder
absoluto dos altos cargos, revestidos de autoridade divina, em
meio à pompa e à fulguração dos palácios, o Diabo não causava
transtornos e os escândalos eram abafados na maciez discreta das
tapeçarias. Nas zonas interioranas, nas paróquias rurais os vigá-
rios modestos se faziam queridos da população e não raro consti-
tuíam famílias numerosas, que em nada os desabonava. Tinham o

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 97

privilégio de dar vida aos filhos e mesmo os batizarem, limpando-
os com as mãos paternas do pecado original. Homens sensatos e
bons, ignoravam santamente as prescrições antinaturais da profis-
são piedosa e não se entregavam à ambição mística, preservando-
se do erotismo doentio. Entraram no Céu, como Jesus falou das
prostitutas, antes dos fariseus hipócritas.
Encaramos todos esses aspectos do mundo religioso numa
perspectiva puramente histórica, sem nenhuma intenção condena-
dora ou agressiva. Os fatos nascem de circunstâncias decorrentes
de condições sociais e culturais universais, a que os homens são
naturalmente sujeitos em qualquer país e em qualquer instituição
religiosa. Por isso mesmo não podem ser escamoteados numa
tentativa de esclarecimento de realidades inegáveis e quase sem-
pre tratadas em tom polêmico. Temos de analisar enganos e erros
de interpretação, desvios do entendimento humano determinado
por exigências institucionais inadequadas à verdadeira condição
humana. Ainda hoje, nesta fase de abertura para uma Nova Era de
maior conhecimento, jovens de ambos os sexos são submetidos à
pressão de velhos e estúpidos preconceitos, de rançosas e doentias
superstições. Há pouco um nosso colega de magistério universitá-
rio contava-nos o que se passara com uma irmã que resolvera
entregar-se, adolescente ainda, à sua vocação religiosa. Foi obri-
gada a usar instrumentos especiais que lhe impedissem o desen-
volvimento natural dos seios e a tomar banho sem se despir, para
evitar a cobiça do Diabo que podia levá-la ao Inferno. Indignado,
o irmão professor deu um escândalo na família e arrancou a jovem
da condenação ao inferno do complexo místico-erótico que já a
deformava física e espiritualmente. De toda essa mórbida situação
resultou em nossos dias o desenvolvimento da Psicologia Liberti-
na, em que psicólogos e psiquiatras aconselham jovens perturba-
dos por desvios sexuais a se entregarem aos seus desvios e casais
desajustados a resolverem seus problemas com a terapêutica do
adultério. Do extremismo sumeriano, em que as práticas sexuais

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 98

se realizavam nos altares, diante dos sacerdotes, e da prostituição
sagrada nos templos de deuses mitológicos, até a condenação
brutal do sexo nas chamadas religiões positivas, voltamos à posi-
ção negativa da entrega à libertinagem através de prescrições
médicas, sob a saturação pornográfica dos meios de comunicação
de massa. A perversão diabólica do homem é considerada como
libertação das forças vitais da humanidade para sua volta do Éden.
O Paraíso Perdido está sendo reconquistado pelas publicações
pornográficas de grande vendagem em todo o mundo. A prática
secreta do nudismo torna-se pública e teólogos americanos, em
entrevista à imprensa, rádio e televisão, justificam a volta ao
primitivismo ingênuo da selva com o mito de Adão e Eva, decla-
rando que a nudez é um estado de graça. Ao mesmo tempo a orla
do Pacífico, nos Estados Unidos, se torna o domínio das Igrejas
do Diabo. O culto diabólico excita a baderna sexual em todo o
mundo, como reação geral à asfixia milenar de um moralismo
malicioso e hipócrita, que condenava o instinto da reprodução
como pecado e impureza. O contraste monstruoso teria de provo-
car, além das explosões atômicas genocidas, a explosão pornográ-
fica, a perversão sexual e o adultério, ambos terapêuticos.
Todo esse mural de Da Vinci sobre o Juízo Final foi pintado a
sangue nas telas de pele humana do III Reich, entre as gritarias
histéricas das ameaças de Hitler, um pintor de paredes que quase
estrangulou a Civilização. Sob as suas trágicas botas de histrião o
mundo tremia, implorando a clemência de Deus. A resposta do
Céu veio nas asas de aviões especiais da grande democracia de
Truman: duas bombas atômicas sobre Nagasaki e Hiroshima. E
isso era apenas um sinal, um toque de dupla explosão na carne
humana, para lembrar que o problema é dos homens. Porque não
foi Deus quem promoveu a guerra, mas os homens com sua desfi-
guração de Deus, sempre em favor de seus interesses mesquinhos
e de sua incomensurável ambição de riqueza e poder. O ponto
central da tragédia humana está no conceito absurdo, formulado

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 99

pela Inteligência mundial, de um Deus ilógico e sem grandeza. De
nada valerão as assembléias mundiais de sábios e chefes de na-
ções, as reuniões de cúpula das grandes potências, a assinatura de
tratados sem substância moral, os gigantescos arsenais de armas
atômicas, os pactos da traição. A mística religiosa e a mística
ideológica se confundem na deformação e na negação da idéia de
Deus. Enquanto não se fizer dessa idéia um conceito preciso e
claro, o mundo continuará na loucura em que o vemos. Não se
trata de uma suposição mística, mas de uma lâmina de navalha no
pescoço dos homens. Sem Deus ou com um deus falso, o que dá
na mesma, o mundo arrebentará. Porque o conceito de Deus é o
pivô da estridência ou da harmonia, da barbárie ou da Civilização,
da mentira ou da verdade. Esse conceito rege o comportamento
humano individual e coletivo. Quando uma nação o põe em dúvi-
da ou o joga pela janela, tem de se apegar a conceitos sociais que
transformam a própria sociedade numa deusa da desconfiança e
do medo. Elabora então um falso conceito que acaba implantando
o Estado-Leviatã com todas as suas conseqüências. Deus é a
unidade, mas o social é o múltiplo infinitamente fragmentado.
Alguém ou alguma coisa deve substituir a regência de Deus no
controle social. Esse alguém é um homem, um pequeno tirano
cercado de asseclas amedrontados, e essa alguma coisa é uma
ideologia, tão minuciosa e exigente para atender à pulverização
social, que perde o senso humano e se transforma em computador.
O conceito medieval de Deus, que se adaptava à estrutura feudal,
serviu para a burguesia, que modelou o seu sistema sobre o anti-
go, puxando as brasas para sua sardinha. As ideologias de Direita
e Esquerda consideram o Deus dos burgueses como paternalista e
reacionário. Hitler e Mussolini se colocaram no lugar de Deus e o
mundo se afundou na loucura. Hiroíto apenas aferiu, pois já era
deus de nascença. E truman julgou-se um novo Júpiter com as
mãos carregadas de raios para fulminar as cidades e povos. Israel
ressurgiu das cinzas num deserto coberto de ruínas, guiado por

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 100

Moisés sob a proteção de Iavé. O Deus dos Exércitos restabeleceu
o seu pequeno império com a petulância e a arrogância de um
dominador do mundo, equipando-se com a técnica moderna de um
007. Os árabes se apegaram a Maomé e transformaram as antigas
espadas em bazucas, metralhadoras, bombas e ogivas atômicas.
As Américas caíram de joelhos ante o Dólar, um deus tilitante, e
suas nações entraram em delírio.
O Brasil é um país abençoado por Deus, livre dos principais
flagelos que devastam os outros. Mas a Nação Brasileira não tem
um conceito claro de Deus. Nos seus oito e meio milhões de
quilômetros quadrados de território, sem um só vulcão em toda
essa amplitude, sem terremotos nem furacões, a idéia de Deus é
um flatus, uma palavra sem conceito. Derrubada a Monarquia, e
com ela o Catolicismo medievalesco herdado de Portugal, o Posi-
tivismo dos republicanos lutou em vão para impor a Deusa Hu-
manidade de Augusto Comte, que não tinha consistência para
substituir o velho Padre Eterno de barbaças grisalhas, tão seme-
lhante ao Imperador deposto e exilado. Ambos, de braços dados,
voltaram para a Europa. Os holandeses, que nos podiam ter trazi-
do um substitutivo mais definido, tiveram também de retornar
com seu Deus às suas terras. E o tráfico negreiro nos trouxe a
sarabanda dos deuses primitivos da África, com Alá de contra-
bando nos porões dos navios negreiros. Os deuses indígenas,
demasiado particulares, não tiveram condições de impor-se, con-
tentando-se com a regência das tribos dizimadas e uma estreita
faixa de terra no Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro, à seme-
lhança das faixas atuais delimitadas para os restos das antigas
tribos. Em fins do século passado a contribuição de Kardec infil-
trou-se entre nós, mas o Espiritismo brasileiro não foi além de
uma mistura particular de resíduos católicos e alguns princípios
kardecianos mal assimilados. Podemos repetir com Machado de
Assis: a confusão era geral. Alguns expoentes culturais lutaram
para elevar o conhecimento espírita, mostrando os seus aspectos

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 101

científicos e filosóficos. Mas o clero católico se empenhou em
combater a nova heresia, usando a sua arma mais poderosa: o
conceito do Diabo. Esse conceito vazio, como diria Kant, corres-
pondia ao mundo de superstições dominantes e era facilmente
assimilado pelo povo. O conteúdo supersticioso enchia o vazio
racional do conceito e lhe dava um aspecto sólido. Corremos o
risco de substituir Deus pelo Diabo. O desenvolvimento cultural
nos trouxe os ácidos corrosivos do intelectualismo pedante, do
ceticismo leviano e do materialismo sem esperança. Hoje corre-
mos o risco de trocar tudo pelo simples gosto de viver, não raro
numa vida inteiramente sem gosto. Daí a razão deste ensaio,
escrito ao correr das teclas, sem outra pretensão do que a de aju-
dar os que lêem e pensam a despertarem para a necessidade de um
esforço comum que consiga restabelecer o novo conceito de Deus
em termos existenciais. Só dessa maneira poderemos substituir o
borboletear das opiniões pelo conhecimento da existência de Deus
e pela convicção da Verdade que hoje nos falta. A razão de todas
as nossas crises é apenas essa: a falta de Deus, definido como o
Intelecto da teoria de Anaxágoras. Sem essa volta às origens do
pensamento grego, na concepção do Deus-Pai do Cristianismo (e
é bom lembrar que Cristo é uma palavra grega), estaremos sujei-
tos a entrar na Era Cósmica como um balão de luzes multicores
soprado pelo vento das circunstâncias e dos interesses imediatis-
tas. Nossa convicção não passará de uma mecha de fogo-fátuo.

– 0 –

J. Herculano Pires – Concepção Existencial de Deus 102

Amigo(a) Leitor(a),

Se você leu e gostou desta obra, colabore com a divulga-
ção dos ensinamentos trazidos pelos benfeitores do plano
espiritual. Adquira um bom livro espírita e ofereça-o de
presente a alguém de sua estima.
O livro espírita, além de divulgar os ensinamentos filo-
sóficos, morais e científicos dos espíritos mais evoluídos,
também auxilia no custeio de inúmeras obras de assistência
social, escolas para crianças e jovens carentes, etc.
As obras espíritas nunca sustentam, financeiramente, os
seus escritores; estes são abnegados trabalhadores na seara de
Jesus, em busca constante da paz no Reino de Deus.
Irmão W.

"Porque nós somos cooperadores de Deus."
Paulo. (1ª Epístola aos Coríntios, 3:9.)


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Muita paz ! Bezerra

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'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL

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