domingo, 10 de janeiro de 2016 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livro: Capitães de Areia -Jorge Amado.txt

MESTRES
DA LITERATURA BIZASILEIRA
E PORTUGUESA
JORGE AMADO
Capit�es de areia
@
E D I
RIO 1
Y//
� by Jorge Amado, Rua Alagoinhas, 33
Rio Vermelho 41940-620, SSA, Bahia, Brasil
Ilustra��es de Poty
Vinhetas recuperadas de ilustra��es de Poty por Pedro Costa
Retrato do autor por Jord�o de Oliveira
Retrato do autor na 4� capa: Arquivo de Z�lia Gattai
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:'i.",v.; .',x.
* �  : * :! yTAs uA AesiA * ? � * :'!
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MATTLDE:
jog�vamos jogos de prenda.
And�vamos de carro de boi.
Mor�vamos em casa mal-assombrada.
Convers�vamos com moFas e m�gicos.
Achavas a Bahia imensa e misteriosa.
Apoesia deste Itvro vrm de ti.
V�
� * � OR6E AMADO �  * % * �
*
* � `.: * y C.APIT�fS DA REIA * `.:  * �'y
Para Aydano do Couto Ferrax,
Jos� Olympio,
Jos�Am�rica deAlmeida,
Jo�o Nascimento Filho e
para An�io Teixeira, amigo dru crianyas.
ylll
/ii
C ` * `.: * A OR6E AMADO �  * ':: * �
* O `:? * :'` CariT,Es uA AREiA * `:: � * :`
#
CaIas�as LanRosas
AS AVFRIURAS 5INl9lRAS DOS C DA
ARE<A" -A CIDADE l'ADA POR CRIAl�AS
QDE VIVEM DO PllRTO -ORGE DMAPROVmRQA
DO I�IZ DE MF.IiORES E DO CAEFE DE
POIQA - 011118M HOUPE MAIS UM AS�A,LTO
J� por v�iias vezes o nossojornal, que �
sem d�vida o �rg�o das mais leg�timas aspi-
ra��es da popula��o baiana, tem trazido
noticias sobre a advidade crlminosa dos
"Capit�es da Areia", nome pelo qual � co-
nheddo o grupo de meninos assaltantes e
ladr�es que infestam a nossa urbe. Essas
crian�as que t�o cedo se dedicaram � tene-
brosa casreira do crime n�o t�m moradia
certa ou pelo menos a sua moradia ainda n�o
foi localizada. Como tamb�m ainda n�o foi
localizado o local onde escondem o produto
dos seus assaltos, que se torna.m di�rios,
fazendo jus a uma imediata provid�ncia do
Juiz de Menores e do dr. Chefe de Policia..
Esse bando que vive da rapina se com-
p�e, pelo que se sabe, de um n�unem eupe-
rior a 100cria.n�as dasmais diversas idades,
indo desde os 8 aos 16 anos. Crian�as que,
na�xralmente devldo ao desprezo dado � sua
educa��o por pais pouco servidos de senti-
mentos crlst�os, se entregaram no verdor
dos anos a uma vlda criminosa. S�o chama-
dos de "Capit�.es da Areia" porque o cais � o
seu quartel-general. E t�m por comandante
um molecote dos seus 1 anos, que � o mais
terr�vel de todos, n�o s� ladr�o, como j�
autor de um crime de ferimentos graves,
pradea.do na tarde de ontem. Infelizmente a
idenidade deste chefe � desconhecida.
O que se faz necess�rio � uma urgente
provid�ncia da policia e dojuizado de meno-
res no sen�do da estin��o desse bando e
3
* : * � JoRE AMADo ;.'` *  : * �
para que recolham esses precoces crnnino-
sos, que j� n�o deixam a cidade dormir em
paz o seu sono t�o rnerecido, aos institutos
de reforma de crian�as ou �s pris�es. Passe-
mos agora a relatar o assalto de ontem, do
qual foi ztima um honrado comerciante da
nossa pra�a, que teve sua resid�ncia furtada
em mais de um conto de r�is e um seu
empregado feridopelo desalmado chefe des-
sa malta dejovens bandidos.
NA RESID�NCIA DO COMFTDADOR
JOS� FERREIItA
No Corredor da Vit�ria, cora��o do mais
chique bairro da cidade, se eleva a bela
vivenda do Comendador Jos� Ferreira, dos
mais abastados e acreditados negociantes
desta pra�a, com loja de fazendas na rua
Portugal. �um gostover opalacete do comen-
dador, cercado dejardins, na sua arquitetu-
ra colonial. Pois ontem esse remanso de paz
e trabalho honesto passou uma hora de
indescrit� rel agita��o e susto com a invas�o
que sofreu por parte dos "Capit�es daAreia".
Os rel�gios badalavam as tr�s horas da
tarde e a cidade abafava de calor quando 0
jardineiro notou que algumas crian�as vesti-
das de molambos rondavam o jardim da
resid�ncia do comendador. Ojardineiro tra-
tvu de afastar da frente da casa aqueles
#
inc�modos visitantes. E, como eles continu-
assem o seu caminho, descendo a rua,
Ramiro, ojardineiro, volveu ao seu trabalho
nos jardins do fixndo do palacete. Minutos
depois, por�m, era o
AssALTo
N�o t,inham passado ainda cinco minu-
tos quando o jardineiro Ramiro ouviu gri-
tos assustados vindos do inteizor da resid�n-
cia. Eram gritos de pessoas terrivelmente
* � '.: * C' r,ApITAES DA AREIA * l: � *
assustadas. Armando-se de uma foice o jar-
dineiro penetrou na casa e mal teve tempo de
ver v�rios moleques que, como um bando de
dem�nios (na express�o curlosa de Ramiro),
fugiam saltando asjanelas, carregados com
objetos de valor da sala de jantar. A empre-
gada que havia gritado estava cuidando da
senhora do comendador, que �vera um li-
geiro desmaio em virtude do susto que pas-
sara. Ojardineiro dirigiu-se �s pressas para
o jardim, onde teve lugar a
Aconteceu que nojardim a linda crian�a
que � Raul Ferreira, de 11 anos, neto do
comendador, que se achava de visita aos
av�s, conversava com o chefe dos "Capit�es
da Areia", que � reconhec�vel devido a um
talho que tem no rosto. Na sua inoc�ncia,
Ra l ria para o malvado, que sem d�vida
pensava em fixrt�-lo. O jardineiro se atirou
ent�o em cima do ladr�o. N�o esperava,
por�m, pela rea��o do moleque, que se reve-
lou um mestre nestas brlgas. E o resultado �
que, quando pensava ter seguro o chefe da
malta, ojardineiro recebeu uma punhalada
no ombro e logo em seguida outra no bra�o,
sendo obrigado a largar o criminoso, que
fugiu.
A policia tomou conhecimento do fato,
mas at� o momento que escrevemos a pre-
sente nota nenhum rastro dos "Capit�es da
Areia" foi enconrado. O Comendador Jos�
erreira, ouvido pela nossa reportagem, ava-
lla o seu preju�zo em mais de um conto de
r�is, pois s� o pequeno rel�glo de sua esposa
estava avaliado em 900 e foi fixrtado.
URao  rRovmrcrA
Os moradores do aristocr�tico bairro
est�o alannados e receosos de que os assaltos
S
y! * ' * o ORGE AMADO � ! *  * o
se sucedam, pois este n�o � o primeiro leva-
do a efeito pelos "Capit�es da Areia". Urge
umapravid�nciaquetragaparasemelhantes
malandros umjusto castigo e o sossego para
as nossas mais disdntas famtllas. Eepera-
mos que o ffustre Chefe de Policia e o n�o
menos ilustre dr. Juiz de Menores saber�.o
tomar as devidas provid�ncias contra essea
criminosos t�.o jovena e j� t�o ousados.
A OPIftI�O DA IlQOCElQCIA
A nossa reportagem ouviu tamb�m o
pequeno Raul, que, como dissemos, tem
onze anos e j� � dos ginasianos mais aplica-
dos do Col�gio Ant�nio Vieira. Raul mostra-
va uma grande coragem, e noe disse acerca
da sua conversa com o terr�vel chefe dos
"Capit�es da Areia".
- Ele disse que eu era um tolo e n�o
sabia o qae era brincar. Eu respondi que
#
tinha uma bicicleta e muito brinquedo. Ele
riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei
gostando dele, parece um desses meninos
de cinema que fogem de casa para passar
aventtxras.
Fica.mos ent�o a pensar neste outro deli-
cado problema para a inf�ncia que � o cine-
ma, que tanta id�ia errada infixnde �s crian-
�a s acerca da vida. Outro problema que est�
merecendo a aten��o do dr. Juiz de Meno-
res. A ele volveremos.
(Reportagem publicada no Jornal da Tarde, na
p�gina de FatosPolsc�ais, com um clich� da casa
do comendador e um deste no momento em
que era condecorado.)
:: * c`! r7lEs oA AREiA *  : o * ;'!
CARTA DO SECREr�RIO DO C DE POIQA
� REDAo Do eloirira na T.roo
Sr. Diretor do Jornal da, Tarde.
Cordiais sauda��es.
Tendo chegado ao conhecimento do dr.
Chefe de Policia a local publicada ontem na
segunda edi��o desse jornal sobre as ativi-
dades dos "Capit�es da Areia", bando de
crian�as delinq�entes, e o assaito levado a
efeito por este mesmo bndo na resid�ncia
do comendador Jos� Ferreira, o dr. Chefe
de Policia se apressa a comunicar � dire�`ao
destejornal que a solu��o do problema com-
pete antes aojuiz de menores que � policia.
Apolicia neste caso deve agir em obedi�ncia
a um pedido do dr. Juiz de Menores. Mas
que, no entanto, vai tomar s�rias provid�n-
cias para que semelhantes atenta.dos n�o se
repitam e para que os autores do de anteon-
tem sejam presos para sofrerem o castigo
merecido.
Pelo egposto flca claramente provado
que a policia n�o merece nenhuma cr�dea
pela sua a�tude em face desse problema.
lI�o tem agido com maior eflci�ncia porque
n�o foi solicitada pelojuiz de menores.
Cordiais sauda��es.
Secret�rio do Chefe de Policia.
(Publicada em primeira p�gina do Jorna! da
Tarde, comclich� do chefe de policia e umvasto
coment�rio elogioso.)
b
C? * V: * � OkGE AuPO � * : * �
C'A DO IDOUhOR dD DB MfOEEBB �
Rona�iio no eTorr.vn na Tno
Eno. Sr. Diretor do Jornal da. Tarde.
Cidade do Salvador
lIeste Estado.
Meu caro patrfMo.
Cordiais ea da��es.
Folheando, mun dos raros momcntos de
lazer que me deim as mfilriplas e varladas
preocupa��es do meu espinhoso cargo, o
voseo brilhaote vesperano, tomei conheci-
mento de uma ep�stolado infatig�el doutor
ChefedePoliciadoEstado,naqualdiziados
motivos por que a Policia n�o pudera at� a
data presente inteneiflcar a merlt�rla cam-
panha contra os menores delinq�entes que
infestam a nossa urbe. Justiflca-se o doutor
Chefe de Pol�cia declarando que n�o poesu�a
ordens dojuizado de menores no senido de
agircontra a delinq��ncia infantil. Sem que-
rer absolutamente culpar abrilhante e infa-
#
�g�oel Chefia de Pol�cia, sou obrigado, a
bem da verdade (eses mesma verdade que
tenho colocado como o farol que ilumina a
estrada da minha vida com a sua luz
pur�seima), a declarar que a desculpa n�o
procede. N�o procede, sr. Diretor, porque ao
juizado de menores n�o compete peraeguir e
prender os menores delinq�entes e, sim,
desigoar o local onde devem cumprir pena,
nomear carador para acompanhar qualquer
proceseo contra eles instaurado, ete. N�o
cabe ao juizado de menores cap�rar os pe-
quenos delinq�entee. Cabe velar pelo seu
destino post.erior. E o sr. doutor Chefe de
Policia sempre h� de me encontrar onde o
dever me chama, porquejamais, em 50 anos
de vida impoluta, deisei de cumpri-lo.
Ainda nestes �ltimos meses que de-
correram mandei para. o Reformat�rio de
8
* O = * - CAPITAES DA AREIA * `  A * y
Meno,es v�rios menores delinq�entes ou
abandonados. N�o tenho culpa, por�m, de
Ne fujaiu, qu� n�o se impressionem com o
e,xemplo de trabalho que encontram naquele
estabelecimento de educa��o e qae, por meio
da fuga, abandonem um ambiente onde se
respiram paz e abho e onde s�o tratados
com o maior carinho. Fogem e se tornam
ainda mais perversos, como se o exemplo
que houvessem recebido fosse mau e dani-
nho. Por qu�`? Isso � um problema que aos
psic�logos cabe resolver e n�o a mim, sim-
ples curioso da filosofla.
O que quero deixar claro e cristalino, sr.
Diretor, � que odoutor Chefe dePolicia pode
contar com a melhor ajuda destejuizado de
menores para intensiflcar a campanha con-
tra os menores delinq�entes.
De V. Exa., admirador e patr�cio grato,
Juiz de Menores.
(Publicada no jornal da Tarde com o dich� do
juiz de menores em uma coluna e um pequeno
coment�rio elogioso.)
9
c-; * c * o oG o cy * c * o
c.arrA Do nomtoR aoz ns Mone a
RBDA�lIO DO aTORNA DA TARUE
Esmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarde.
Cidade do Salvador
Neate Eeta.do.
Mea caro patrfeio.
Cordiais eaudaG�es.
Folheando, mun doe raros momentoe de
lazer que me deisam as mfildplas e varladas
preocupa��es do meu espinhoeo cargo, o
voseo brllhate vespertino, tomei conheci-
mento de uma ep�stola do infatig�vel douwr
ChefedePoliciadoEstado,na qualdiziadoe
motivos por qae a Policia n�o pudera. atk a
data presente inteneiflcar a merit�rla cam-
panha contra os menores delinq�entes qae
infestam a nosea urbe. Justiflca-se o dout:or
Chefe de Policia declarando que n�o possu�a
ordens dojuizado de menorea no sentido de
agircon�a.adelinq��nciainfan�l. Semque-
rer absolutamente culpar a brllhante e infa-
�g�vel Chefla de Pol�cia, eou obrigado, a
bem da verdade (esea mesma verdade que
tenho colocado como o farol que ilumina a
estr�a. da minha vida com a eua luz
punssima), a declarar que a desculpa no
#
procede. N�o procede, sr. Diretor, porque ao
juizado de menores n�o compete perseguir e
prender oa menorea delinq�entes e, sim,
designar o Iocal onde devem cumprlr pena,
nomear curador para acompanhar qualquer
proceseo contra elea instaurado, etc. N�o
cabe ao juizado de menores capturar oa pe-
quenoe delinq�entes. Cabe velar pelo seu
destino post:erior. E o er. doutor Chefe de
Pol�cia sempre h� de me encontrar onde o
dever me chama, porquejamais, em �0 anos
de vida impoluta, deis.ei de cumprl-lo.
Ainda nestes �ltimos meses que de-
correram mandei para o Reformat�rio de
8
* o :: * ;:: Grrrls oA AmA * :: A * ;':
Menoes v�rlos menores delinq�entes ou
abandonados. N�o tenho culpa, por�m, de
4ue fujam, 4u� n�o se impressionem com o
exemplo de trabalho que encontram naquele
estabelecimento de educa��o e que, por meio
da fuga, abandonem um ambiente onde se
respiram paz e trabalho e onde s�o tratados
com o maior carinho. Fogem e se tornam
ainda mais perversos, como se o exemplo
que houvessem recebid� fosse mau e dani-
nho. Por qu�`? Isso � um problema que sos
psic�logos cabe resolver e n�o a mim, sim-
ples curloso da 8losofla.
O que quero de3xar claro e cristalino, sr.
Diretor, � que odoutor Chefe dePoliciapode
contar com a melhor ajtda destejuizado de
menores para intensificar a campanha con-
tra os menores delinq�entes.
De V. Exa., admirador e patr�cio grato,
Juiz de Menores.
(Publicada no Jornal da Tardecom o dich� do
juiz de menores em uma coluna e um pequeno
coment�rio elogioso.)
* '.: * A OR6E AMADO �  * '. * A
CARTA DE UMAM�Es COREIRA, �REIlA��O
DO rIORNAG DA TARDE
Sr. Redator:
Desculpe os erros e a letra pois n�o sou
costumeira nestas coisas de escrever e se
hoje venho a vossa presen�a � para botar os
pontos nos �. Vi nojornal uma noticia sobre
os fintos dos "Capit�es da Areia" e logo
depois veio a policia e disse que ia perseguir
eles e ent�o o doutor dos menores veio com
umaconversa dizendo que eraumapena que
elesn�o se emendavamnoreformat�riopara
onde ele mandava os pobres. � pra falar no
tal do reformat�rio que eu escrevo estas mal
tra�adas linhas. Eu queria que seu jornal
mandasse wna pessoa ver o tal do reforma-
t�rioparaver como s�o tratados osfllhos dos
pobres que t�m a desgra�a de cair nas m�.os
daquelesguardassemalina. MeufllhoAlonso
teve l� seis meses e se eu n�o arranjasse tirar
ele daquele inferno em vida, n�o sei se o
desgra�ado viveria mais seis meses. O me-
nos que acontece pros fllhos da gente �
apanhar duas e tr�s vezes por dia. O diretor
de l� vive caindo de b�bedo e gosta de ver o
chicote cantar nas costas dos fllhos dos po-
bres. Euvl isso muitasvezesporque eles n�o
ligam pra gente e diziam que era para dar
exemplo. Foi por isso que tirei meu filho de
l�. Se ojornal do senhor mandar uma. peseoa
#
l�, secreta, h� de ver que comida eles co-
mem, o trabalho de escravo que t�m, que
nem um homem forte ag�enta, e as surras
que tomam. Mas � preciso que v� seereto
sen�o se eles souberem vira um c�u aberto
V� de repente e h� de ver quem tem raz�o. �
por essas e outras que egistem os "Capit�es
da Areia". Eu preflro ver meu fllho no meio
deles que no tal reformat�rio. Se o senhor
quiser ver uma coisa de cortar o cora��o v�
io
* A : * s  rrAPIT�ES DA AREIA * = A *
l�. Tamb�m se quiser pode comrersaz com o
Padre Jos� Pedro, que foi capel�o de l� e viu
ttxdo isso. Ele tamb�m pode contar e com
melhores palavras que eu n�o tenho.
Maria Ricardina, costureira.
(Publicada na quinta p�gina do jornal da
Tarde, entre an�ncios, sem clich�s e sem co-
ment�rios.)
ir
; ` * ' : * o ORGE MADO ; * ` : * o
CaR,rA no PanRE Jos� PRo � R.EnaGo
DO rlORNA DA TARDE
Sr. Redator do Jornal da Tarde.
Sauda��es em Cristo.
Tendo lido, no vosso conceituadojornal,
a carta de Maria Ricardina que apelava para
mim como pessoa que podia esclarecer o
que � a vida das crian�as recolhidas ao
reformat�rio de menores, sou obrigado a
sair da obscuridade em que vivo para vir vos
dizer que infelizmente Maria Ricardina tem
raz�o. As crian�as no aludido reformat�rio
s�o tratadas como feras, essa � a verdade.
Esqueceram a li��o do suave Mestre, sr.
Redator, e em vez de conquistarem as crian-
�ascom bons tratos, fazem-nas mais revolta-
das ainda com espancamentos seguidos e
castigos fisicos verdadeiramente desuma-
nos. Eu tenho ido l� levar �s crian�as o
consolo da religi�o e as eneontro pouco dis-
postas a aceit�-lo devido naturalmente ao
�dio que est�o acumulando naquelesjovens
cora��es t�o dignos de piedade. O que tenho
visto, sr. Redator, daria um volume.
Muito grato pela aten��o.
Servo em Cristo,
Padre Jos� Pedro
(Carta publicada na terceira p�gina do Jornal
da Tarde, sob o t�tulo SsR,9 PsnneDE2 e sem
coment�rios.)
I2
1
o C: * ;y CAPITXES PA AItEIA *  : o * ;-
'A DO DIREI'OR DO RBFOR6iAT�RIO �
REDA�O DO eIORN�L DA TARDE
Esmo. Sr. Diretor do Jornal da Tarrle.
Sauda��es.
Tenho acompanhado com grande inte-
resse a campanha que o brilhante �rg�o da
imprensa baiana, que com t�o nxtila inteli-
g�ncia dirigis, tem feito contra os crimes
apavorantes dos"Capit�es daAreia", bando
de delinq�entes que amedronta a Mdade e
impede que ela viva sossegadamente.
Foi assim que li duas cartas de acusa-
��es contra o estabelecimento que dirijo e
que a mod�stia (e somente a mod�stia, sr.
Diretor) me impede que chame de modelar.
(uanto � carta de uma mulherzinha do
povo, n�o me preocupei com ela, n�o mere-
cia a minha respoata. Sem d�vida � uma das
muitas que aqui v�m e querem impedir que
o Refozmat�rio cixmpra a sua santa. miss�o
de educar os seus filhos. Elas os criam na
rua, na p�ndega, e como eles aqui s�.o sub-
metidos a uma vida exemplar, elas s�.o as
primeiras a reclamar, quando devlam beijar
as m�os daqueles que est�o fazendo dos
seus filhos homens de bem. Primeiro v�m
pedir lugar para os filhos. Depois sentem
falta deles, do produto dos fixrtos que eles
levam para casa, e ent�o saem a reclamar
contra o Reformat�rio. Mas, comoj� disse,
sr. Diretor, esta carta n�o me preocupou.
N�o � uma mulherzinha do povo quem h� de
compreender a obra que estou realizando �
frente deste estabelecimento.
O que me abismou, sr. Diretor, foi a
carta do Padre Jos� Pedro. Este sa�erdote,
#
esquecendo as fun��es do seu cargo, veio
lan�ar contra o estabelecimento que dirijo
graves acusa��es. Esse padre (que eu cha-
marei de padre do dem�nio, se me permitis
I3
C? * `.: * A JOkGE MADO y  * : * A
uma pequena ironia, sr. Diretor) abusou das
suas fun��es para penetrar no nosso estabe-
lecimento de educa��o em horas proibidas
pelo regulamento e contra ele eu tenho de
formular uma s�ria queixa: ele tem in-
centivado os menores qae o Estado colocou a
meu cargo � revolta, � desobedi�ncia. Desde
que ele penetrou os umbrais desta casa que
os casos de rebeldia e contraven��es aos
regulamentos aumentaram. O tal pa.dre �
apenas um instigador do mau car�ter geral
dos menores sob a minha guasda. E por isso
vou fechar-lhe as portas desta ca,sa de educa-
��o.
Por�m, sr. Diretor, fazendo minhas as
palavras da costureira que escreveu a este
jornal, sou eu quemvem vospedir que envieis
um redator aoReformat�rio. Disso fa�o ques-
t�o. Assim podereis, e op�blico tamb�m, ter
ci�ncia exata e f� verdadeira sobre a maneira
como s�o tratados os menores que se regene-
ram no Reformat�rio Baiano de Menores
Delinq�entes e Abandonados. Espero o vos-
so redator na segunda-feira. E se n�o digo
que ele venha no dia que quiser � que estas
visitas devem ser feitas nos dias permitidos
pelo regulamento e � meu costume nunca me
afastar do regulamento. Este � o mo�vo
�nico por que convido o vosso redator para
segtmda-feira. Pelo que vos 8co imensamen-
te grato, como pela publica��o desta. Assim
flcara confundido o falso vig�rio de Cristo.
Criado agradecido e admirador atento,
Diretor do Reformat�rio Baiano
de MenoresDelinq�entes e Aban-
donados.
(Publicada na3' p�gina doJornalda Tardecom
um clich� do reformat�rio e umanottcia adian-
tando que na pr�xima segunda-feira ir� um
redator do Jornal da Tarde ao reformat�rio.)
* A =% * �  CAPIT�ES DA AkEIA * : A * y
UM F1'ARElNCIMENfO MODELAR ORIIE REI-
NAlN A PAZ E O tABAlRO -UM DRtETOR (UE
� uM Arnco - �nMA COaA - CR�As
QDE 'IRABNHAM E SE DIPER7EltI - CRIAN�AS
IDRONAS EM CAlHO DA REGEPN'ltAO -
AcosA��Es IamRocEDEerEs -s�  IRcoR-
RoivEi. REcraMA -o RolrooerATbwo BAIA-
NO L LlMA GRAfiDE FAlLi� - OIODE DEVIAM
ESTAR OS CAPlT�GB DA AREIA.
(T�tulos da reportagem publicada na segunda
edi��o de ter�a-feira do Jornal da Tarde, ocu-
pando toda a primeira p�gina, sobre o Refor-
mat�rio Baiano, com diversosclich�s dopr�dio
e um do diretor.)
SOB A LUA, NUM VELHO TRAPICHE ABANDONADO, AS CRIAN�AS
dormem.
Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos
#
alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas, ora
vinham se bater mansamente. A �gua passava por baixo da ponte sob
a qual muitas crian�as repousam agora, iluminadas por uma r�stia
amarela de lua. Desta ponte sa�ram in�meros veleiros carregados,
alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para a aventura
das travessias mar�timas. Aqui vinham encher os por�es e atracavam
nesta ponte de t�buas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche
se estendia o mist�rio do mar-oceano, as noites diante dele eram de
um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que � a cor do
mar � noite.
Hoje a noite � alva em frente ao trapiche. � que na sua frente se
estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte n�o h� mais
rumor de ondas. A areia invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos
metros. Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do
trapiche. N�o mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir
carregados. N�o mais trabalharam ali os negros musculosos que
vieram da escravatura. N�o mais cantou na velha ponte uma can��o
ucn marinheiro nost�lgico. A areia se estendeu muito alva em frente
ao trapiche. E nunca mais encheram de fardos, de sacos, de caix�es,
o imenso casar�o. Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra
na brancura do cais.
8
o \: * ;y CApIT�ES DA IREIA * `.: o * �'y
;' * C: * o Joae AMe.o :.'! * f * o
Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que oe
atravessavam em corndas brincalhonas, que roiam a madeira das
portas monumentais, que o habitavun como senhores exclusivos. Em
cerra �poca um cachorro vagabundo o procurou como ref�gio contra
o vonto e contra a chuva. Na primeira noite n�o dormiu, ocupado em
despeda�ar ratos que passavam na sua frente. Dormiu depois algumas
noites, ladtando � lua pela madrugada, pois grande parte do teto j�
ru�ra e os raios da lua penetravam livremente, iluminando o assoalho
de t�buas grossas. Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo
partiu em busca de outra pousada, o escuro de uma porta, o v�o de uma
ponte, o corpo quente de uma cadela. E os ratos voltaram a dominar
at� que os Capit�es da Areia lan�aram as suas vistas para o casar�o
abandonado.
Neste tempo a porta cafra para um lado e um do grupo, certo dia
em que passeava na extens�o dos seus dom�nios (porque toda a zona
do areal do cais, como ali�s toda a cidade da Bahia, pertence aos
Capit�es da Areia), entrou no trapiche.
Seria bem melhor dotmida que a pura areia, que as pontes dos
demais trapiches onde por vezes a �gua subia tanto que amea�ava lev�-
los. E desde esta noite uma grande parte dos Capit�es da Areia dormia
no velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua
amarela. Na frente, a vastid�o da areia, uma brancura sem fim. Ao
longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos
navios que entravam e sa�am. Pelo teto viam o c�u de estrelas, a lua que
os iluminava.
Logo depois transferiram para o trapiche o dep�sito dos objetos
que o trabalho do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram
ent�o para o trapiche. N�o mais estranhas, por�m, que aqueles
meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas,
desde os 9 aos 16 anos, que � noite se estendiam pelo assoalho e por
debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o
casar�o uivando, indiferentes � chuva que muitas vezes os lavava, mas
com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos
�s can��es que vinham das embarca��es...
� aqui tamb�m que mora o chefe dos Capit�es da Areia: Pedro
Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos. Hoje tem
15 anos. H� dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de
20
o   * c-! crrxS DA aA * :: o * ;-!
sua m�e, seu pai morrera de nm bala�o. Ele ficou sozznho e empregou
anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos
os seus becos. N�oh� venda, quitanda, botequim que ele n�o conhe�a.
Quando seincorporou aos Capit�es daAreia (o caisrec�m-constru�do
atraiu para as suas areias todas as crian�as abandonadas da cidade) o
chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte.
N�o durou muito na chefia o caboclo Rimundo. Pedro Bala era
#
muito mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os
outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia
brigaram. A desgra�a de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o
rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto da vida. Os outros se
meteram e como Pedro estava desarmado deram raz�o a ele e ficaram
esperando a revanche, que n�o tardou. Uma noite, quando Raimundo
quis surrar Barand�o, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na
luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram.
Raimundo era mais alto e mais velho. Por�m Pedro Bala, o cabelo
loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade
espantosa e desde esse dia Raimundo deixou n�o s� a chefia dos
Capit�es da Areia, como opr�prio areat. Engajou tempos depois num
navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala � chefia, e foi
desta �poca que a cidade come�ou a ouvir falar nos Capit�es da Areia,
crian�as abandonadas que viviam do fiuto. Nunca ningu�m soube o
n�mero exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e
destes mais de quarenta dormiam nas ru�nas do velho trapiche.
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltan-
do palavr�es e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos
da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a
amavam, os seus poetas.
2I
* o C: * ;.'� Cpurr7lEs oA AiA * :: o * ;'�
 orr rs rr  � 
A GRANDE NOTTE DE PAZ DA BAHIA VEIO DO CAIS, ENVOLVEU OS
saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres
das igrejas. Os sinos j� n�o tocam as ave-marias que as seis horas �i
muito que passaram. E o c�u est� cheio de estrelas, se bem a lua n�o
tenha surgido nesta noite clara. O trapiche se destaca na brancura do
areal, que conserva as marcas dos passos dos Capit�es daAreia, quej�
se recolheram. Ao longe, a fraca luz da lanterna da Porta do Mar,
botequim de mar�timos, parece agonizar. Passa um vento frio que
levanta a areia e torna dif�ceis os passos do negro Jo�o Grande, que se
recolhe. Vai curvado pelo vento como a vela de um barco. � alto, o
mais alto do bando, e o mais forte tamb�m, negro de carapinha baixa
e m�sculos retesados, embora tenha apenas treze anos, dos quais
quatro passados na mais absoluta liberdade, correndo as ruas da Bahia
com os Capit�es da Areia. Desde aquela tarde em que seu pai, um
carroceiro gigantesco, foi pegado por um caminh�o quando tentava
desviar o cavalo para um lado da rua, Jo�o Grande n�o voltou �
pequena casa do morro. Na sua frente estava a cidade misteriosa, e ele
partiu para conquist�-la. A cidade da Bahia, negra e religiosa, � quase
t�o misteriosa como o verde mar. Por isso Jo�o Grande n�o voltou
mais. Engajou com 9 anos nos Capit�es da Areia, quando o Caboclo
ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido, pois o Caboclo n�o
gostava de se arnscar. Cedo Jo�o Grande se fez um dos chefes e nunca
deixou de ser convidado para as reuni�es que os maiorais faziam para
planejar os furtos. N�o que fosse um bom organizador de assaltos,
uma intelig�ncia viva. Ao contr�rio, do�a-lhe a cabea se tinha que
22
pensar. F'icava com os olhos ardendo, como ficava tamb�m quando via
algu�m fazendo maldade com os menores. Ent�o seus m�sculos se
retesavam e estava disposto a qualquer briga. Mas a sua enorme for�a
muscular o fizera temido. O Sem-Pernas dizia dele:
- Este negro � burro mas � uma prensa...
E os menores, aqueles pequeninos que chegavam para o grupo
cheios de receio tinham nele o mais decidido protetor. Pedro, o chefe,
tamb�m gostava de ouvi-lo. E Jo�o Grande bem sabia que n�o era por
causa da sua for�a que tinha a amizade do Bala. Pedro achava que o
negro era bom e n�o se cansava de dizer:
- Tu � bom, Grande. Tu � melhor que a gente. Gosto de voc�
e batia pancadinhas na perna do negro, que ficava encabulado.
Jo�o Grande vem vindo para o trapiche. O vento quer impedir
seus passos e ele se curva todo, resistindo contra o vento que levanta
a areia. Ele foi � Porra do Mar beber um trago de cacha�a com o
uerido-de-Deus, que chegou hoje dos mares do Sul, de uma
pescaria. O uerido-de-Deus � o mais c�lebre capoeirista da cidade.
Qnem n�o o respeita na Bahia? No jogo de capoeira de Angola
ningu�m pode se medir com o Querido-de-Deus, nem mesmo Z�
#
Moleque, que deixou fama no Rio de Janeiro. O Querido-de-Deus
contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no
trapiche para continuar as li��es de capoeira que Pedro Bala, Jo�o
Grande e o Gato tomam. Jo�o Grande fuma um cigarro e anda para
o trapiche. As marcas dos seus grandes p�s ficam na areia, mas o vento
logo as destr�i. O negro pensa que nessa noite de tanto vento s�o
perigosos os caminhos do mar.
Jo�o Grande passa por debaixo da ponte os p�s afundam na
areia evitando tocar no corpo dos companheiros que j� dormem.
Penetra no trapiche. Espia um momento indeciso at� que nota a luz
da vela do Professor. L� est� ele, no mais long�nquo canto do casar�o,
lendo � luz de uma vela. Jo�o Grande pensa que aquela luz ainda �
menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o
Professor est� comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra
mi�da. Jo�o Grande anda para onde est� o Professor, se bem durma
sempre na porta do trapiche, como um c�o de fila, o punhal pr�ximo
da m�o, para evitar alguma surpresa.
3
;-, * ; > * o Jo Awo ; ' * C * o
;- * :  * o Joacs Antao ;- * :? * o
Anda entre os grupos que conversam, entre as crian�as que
dormem, e chega para perto do Professor. Acocora-sejunto a ele e fica
espiando a leitura atenta do outro.
Jo�o Jos�, o Professor, desde o dia em quP furtara um livro de
hist�rias numa estante de uma casa da Barra, se tornara perito nestes
furtos. Nunca, por�m, vendia os livros, que ia empilhando num canto
do trapiche, sob tijolos, para que os ratos n�o os roessem. Lia-os todos
numa �nsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem,
muitas noites, contava aos outros hist�rias de aventureiros, de homens
do mar, de personagens her�icos e lend�rios, hist�rias que faziam
aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas
ladeiras da cidade, numa �nsia de aventuras e de hero�smo. Jo�o Jos�
era o �nico que lia correntemente entre eles e, no entanto, s� estivera
na escola ano e meio. Mas o treino di�rio da leitura despertara
completamente sua imagina��o e talvez fosse ele o �nico que tivesse
uma certa consci�ncia do her�ico das suas vidas. Aquele saber, aquela
voca��o para contar hist�rias, fizera-o respeitado entre os Capit�es da
Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo
sobre os olhos apertados de m�ope. Apelidaram-no de Professor
porque num livro furtado ele aprendera a fazer m�gicas com len�os e
n�queis e tamb�m porque, contando aquelas hist�rias que lia e muitas
que inventava, fazia a grande e misteriosa m�gica de os transportar
para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capit�es da
Areia brilhassem como s� brilham as estrelas da noite da Bahia. Pedro
Bala nada resolvia sem o consultar e v�rias vezes foi a imagina��o do
Professor que criou os melhores planos de roubo. Ningu�m sabia, no
entanto, que um dia, anos passados, seria ele quem haveria de contar
em quadros que assombrariam o pa�s a hist�ria daquelas vidas e muitas
outras hist�rias de homens lutadores e sofredores. Talvez s� o soubes-
se Don'Aninha, a m�e do terreiro da Cruz de Op� Afonj�, porque
Don'Aninha sabe de tudo que Y� lhe diz atrav�s de um b�zio nas
noites de temporal.
Jo�o Grande ficou muito tempo atento � leitura. Para o negro
aquelas letras nada diziam. O seu olhar ia do livro para a luz oscilante
davela, e desta para o cabelo despenteado do Professor. Terminou por
se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente:
- Bonita, Professor?
* o .: * ;.  �ApT�ES DA �ItEIA *  : o * ;-.'
 * ! : * A ORGE �MADO s  * % * �
Professor desviou os olhos do livro, bateu a m�o descamada no
ombro do negro, seu mais ardente admirador:
- Uma hist�ria zorreta, seu Grande seus olhos brilhavam.
- De marinheiro?
- � de um negro assim como tu. Um negro macho de verdade.
- Tu conta?
- Quando findar de ler eu conto. Tu vai ver s� que negro...
E volveu os olhos para as p�ginas do livro. Jo�o Grande acendeu
um cigarro barato, ofereceu outro em sil�ncio ao Professor e ficou
fumando de c�coras, como que guardando a leitura do outro. Pelo
trapiche ia um rumor de risadas, de conversas, de gritos. Jo�o Grande
#
distinguia bem a voz do Sem-Pernas, estr�dula e fanhosa. O Sem-
Pemas falava alto, ria muito. Era o espi�o do grupo, aquele que sabia
se meter na casa de uma famMia uma semana, passando por um bom 
menino perdido dos pais na imensid�o agressiva da cidade. Coxo, o
defeito f�sico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe tamb�m a simpatia
de quanta m�e de fam�lia o via, humilde e tristonho, na sua porta,
pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite. Agora, no
meio do trapiche, o Sem-Pernas metia a rid�culo o Gato, que perdera
todo um dia para fiwtar um anel�o cor de vinho, sem nenhum valor
real, pedra falsa, de falsa beleza tamb�m.
Fazia j� uma semana que o Gato avisara a meio mundo:
- V'i um anel�o, seu mano, que nem de bispo. Um anel�o bom
pro meu dedo. Batuta mesmo. Tu vai ver quando eu trouxer...
- Em que vitrine?
- No dedo de um pato. Um gordo que todo dia toma o bonde
de Brotas na Baixa do Sapateiro.
E o Gato n�o descansou enquanto n�o conseguiu, no aperto de
um bonde das seis horas da tarde, tirar o anel do dedo do homem,
escapulindo na confus�o, porque o dono logo percebeu. Exibia o anel
no dedo m�dio, com vaidade. O Sem-Pernas ria:
- Arriscar cadeia por uma porcaria! Um tro�o feio...
- Que tem tu com isso? Eu acho bom, t� acabado.
-Tu � burro mesmo. Isso no prego n�o d� nada.
- Mas d� simpatia no meu dedo. Tou arranjando uma comida.
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* � :? * t.`` rnXEs sA AREu * ! ? O * ;'`
Falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter
apenas 16 anos. Cedo conheciam os mist�rios do sexo.
Pedro Bala, que ia entrando, desapartou o come�o de briga. Jo�o
Grande deixou o Professor lendo e veio parajunto do chefe. O Sem-
Pernas ria sozinho, resmungando acerca do anel. Pedro o chamou e
foi com ele e com Jo�o Grande para o canto onde estava Professor...
- Vem c�, Professor.
Ficaram os quatro sentados. O Sem-Pernas acendeu uma ponta
de charuto caro, ficou saboreando. Jo�n Grande espiava o peda�o de
mar que se via atrav�s da porta, al�m do areal. Pedro falou:
- Gonzales do 14 falou hoje comigo...
- uer mais corrente de ouro? Da outra vez... atalhou o
Sem-Pemas.
-N�o. T� querendo chap�u. Mas s� topa de feltro. Palhinha n�o
vale, diz que n�o tem sa�da. E tamb�m...
- Qne � que tem mais? novamente interrompeu o Sem-
Pernas.
- Tem que muito usado n�o presta.
-T� querendo muita coisa. Se ainda pagasse que valesse a pena.
- Tu sabe, Sem-Pernas, que ele � um bicho calado. Pode n�o
pagar bem, mas � uma cova. Dali n�o sai nada, nem a gancho.
-Tamb�m paga uma mis�ria. E � interesse dele n�o dizer nada.
Se ele abrir a boca no mundo n�o h� costas largas que livre ele do
xilindr�...
- T� bom, Sem-Pernas, voc� n�o quer topar o neg�cio, v�
embora, mas deixe a gente combinar as coisas direito.
- N�o tou dizendo que n�o topo. Tou s� falando que trabalhar
pra um gringo ladr�o n�o � neg�cio. Mas se tu quer...
- Ele diz que desta vez vai pagar melhor. Uma coisa que pague
a pena. Mas s� chap�u de feltro bom e novo. Tu, Sem-Pemas, podia
ir com uns fazer esse neg�cio. Amanh� de noite Gonzales manda um
empregado do 14 aqui pra trazer os mi�dos e levar as carapu�as.
-Bom lugar � nos cinemas-disse o Professor voltando-se para
o Sem-Pemas.
r
C  * � 1 * A JORGE AMADO � * '::
- Bom � na Vit�ria... e o Sem-Pernas fez um gesto de
desprezo. - � s� entrar nos corredores e aquilo �chap�u garantido...
Tudo gente de nota.
- Tamb�m tem guarda em penca. ..
-Tu liga pra guarda? Se ainda fosse tira... Guarda � pra correr
picula. Tu vai comigo, Professor?
- Vou. Mesmo que tou precisando de um chap�u.
Pedro Bala falou:
#
- Arranja os que quiser, Sem-Pernas. Este neg�cio fica por tua
conta. Menos o Grande e o Gato, que eu tenho um neg�cio com eles
pra amanh� virou-se para Jo�o Grande. - Um neg�cio do
Querido-de-Deus.
- Ele j� teve me avisando. E diz-que de noite vem pra capoeira.
Pedro voltou-se para o Sem-Pernas, que j� se retirava para.r
combinar com Pirulito a forma��o do grupo que ia em cata dechap�us
no dia seguinte:
- Olha, Sem-Pernas, tu trata de avisar que se algum for bispado
trate de dar o su�te para outro lado. N�o venha pra c�.
Pediu um cigarro, Jo�o Grande deu. O Sem-Pernas,j� afastado,
chamava Pirulito. Pedro foi em busca do Gato, tinha um assunto a
conversar com ele. Depois voltou, se estendeu perto do lugar onde
estava Professor. Este retornou ao seu livro, sobre o qual se debru�ou
at� que a vela queimou-se toda e a escurid�o do trapiche o envolveu.
Jo�o Grande caminhou vagarosamente para a porta, onde se deitou ao
comprido, o punhal no cinto.
Pirulito era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada,
os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha. O Sem-
Pernas primeiro fez pilh�ria perguntando se ele j� estava rezando,
depois entrou no assunto da pilhagem de chap�us, acertaram que
levariam um certo n�mero de meninos que escolheram cuidadosa-
mente, marcaram as zonas onde operariam e se separaram. Pirulito
ent�o foi para o seu canto costumeiro. Dormia invariavelmente ali,
onde as paredes do trapiche faziam um �ngulo. Tinha disposto
28
o `  * y. E CNITJES PA AItEIA  :.� A * C.:
carinhosamente as suas coisas: um cobertor velho, um travesseiro que
trouxera certa vez de um hotel onde penetrara levando as malas de um
viajante, um par de cal�as que vestia aos domingos junto com uma
blusa de cor indefinida, por�m mais ou menos limpa. E pregados na
parede, com pregos pequenos, dois quadros de santos: um Santo
Ant�nio canegando um Menino Deus (Pirulito se chamava Ant�nio
e tinha ouvido dizer que Santo Ant�nio era brasileiro) e uma Nossa
Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas: sob o seu
quadro uma ffor murcha. Pirulito recolheu a flor, aspirou-a, viu que
n�o tinha mais perfume. Ent�o a amarroujunto ao bentinho que trazia
no peito e do bolso do velho palet� que vestia retirou um cravo
vermelho que colhera num jardim, mesmo sob as vistas do guarda,
naquela hora indecisa do crep�sculo. E colocou o cravo por baixo do
quadro, enquanto fitava a santa com um olhar comovido. Logo
ajoelhou-se. Os outros, a princ�pio, faziam muita pilh�ria quando 0
viam dejoelhos, rezando. Por�m j� haviam se acostumado e ningu�m
mais reparava. Come�ou arezar e seu ar de asceta se pronunciou ainda
mais, seu rosto de crian�a ficou mais p�lido e mais grave, suas m�os
longas e magras se levantaram ante o quadro. Todo seu rosto tinha
uma esp�cie de aur�ola e a sua voz tonalidades e vibra��es que os
companheirtis n�o conheciam. Era como se estivesse fora do mundo,
n�o no velho e arruinado trapiche, mas numa outra tena, junto cam
Nossa Senhora das Sete Dores. No entanto, sua reza era simples e n�o
fora sequer aprendida em catecismos. Pedia que a Senhora o ajudasse
a um dia poder entrar para aquele col�gio que estava no Sodr�, e de
onde sa�am os homens transformados em sacerdotes.
O Sem-Pernas, que vinha combinar um detalhe da quest�o dos
chap�us e que, desde que o vira rezando, trazia uma pilh�ria pre
parada, uma pilh�ria que s� com o pensar nela ele ria e que iria
desconcertar completamente Pirulito, quando chegou perto e viu
Pirulim rezando, de m�os levantadas, olhos fixosningu�m sabia onde,
o rosto aberto em �xtase (estava como que vestido de felicidade),
parou, o riso burl�o murchou nos seus l�bios e ficou a espi�-lo meio
a medo, possufdo de um sentimento que era um pouco de inveja e um
pouco de desespero.
29
:.'! * C: # � JoecE Anco ! * ? # �
O Sem-Pernas ficou parado, olhando. Pirulito n�o se movia.
Apenas seus l�bios tinham um lento movimento. O Sem-Pernas
costumava burlar dele, como de todos os demais do grupo, mesmo de
Professor, de quem gostava, mesmo de Pedro Bala, a quem respeitava.
Logo que um novato entrava para os Capit�es da Areia formava uma
id�ia ruim de Sem-Pernas. Porque ele logo botava um apelido, ria de
#
um gesto, de uma fiase do novato. Ridicularizava tudo, ee dos que
mais brigavam. Tinha mesmo fima de matvado. Uma vez fez tremen-
das crueldades com um gam que entrara no trapiche. E um dia cortara
de navalha um gar�om de rrstaurante para furtar apenas um fiango
assado. Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou fiYamente
a canivete e na vista de todos o espremeu rindo. Muitos do grupo n�o
gostavam dele, mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam
seus amigos d�iam que ele era um sujeito bom. No mais fundo do seu
cora��o ele tinha pena da desgra�a de todos. E rindo, e ridicularizan= 
do, era que fugia da sua desgra�a. Era como um rem�dio. F'icou parado
olhando Pirulito, que rezava concentrado. No rosto do que rezava ia
uma exalta��o, qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem-
Pernas pensou que fosse alegria ou felicidade. Mas fitou o rosto do
outro e achou que era uma express�o que ele n�o sabia definir. E
pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca
tivesse pensado em rezar, em se voltar para o c�u de que tanto falava
o padre Jos� Pedro quando vinha v�-los. O que ele queria era
felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela mis�ria, de toda aquela
desgra�a que os cercava e os estrangulava. fiavia, � verdade, a grande
libemade das mas. Mas havia tamb�m o abandono de qualquer
carinho, a fatta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no c�u,
nos quadros de santo, nas flores murchas que trazia para Nossa
Senhora das Sete Dores, como um namorado rom�ntico dos bairros
chiques da cidade ttaz para aquela a quem ama com inten��o de
casamento. Mas o Sem-Pernas n�o compreendia que aquilo pudesse
bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto
sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de
rir de tudo. Qne o livrasse tamb�m daquela ang�stia, daquela vontade
de chorar que o tomava nas noites de inverno. N�o queria o que tinha
Pirulito, o rosto cheio de uma exalta��o. Queria alegria, uma m�o que
o acarinhasse, algu�m que com muito amor o gzesse esquecer o
30
* �  : * :' ..p,riT7,es A AReiA * :: A * :'�
defeito f�sico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou
semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho
nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empur-
rado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera
fam�lia. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho
e que o surrava. Fugiu logo que p�de compreender que a fuga o
libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um
carinho, u'a m�o que passe sobre os seus olhos e fa�a com que ele possa
se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados b�bados o
fizeram correr com sua pema coxa em volta de uma saleta. Em cada
canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram
nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu
a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por
outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajud�-lo. E a borracha
zunia nas suas costas quando o cansa�o o fazia parar. A princ�pio
chorou muito, depois, n�o sabe como, as l�grimas secaram. Certa hora
n�o resistiu mais, abateu-se no ch�o. Sangrava. Ainda hoje ouve como
os soldados riam e como riu aquele homem de colete cinzento que
fumava um charuto. Depois encontrou os Capit�es da Areia (foi o
Professor quem o trouxe, haviam feito camaradagem num banco de
jardim) e ficou com eles. N�o tardou a se destacar porque sabia como
nenhum afetar uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras,
cujas casas eram depois visitadas pelo grupo j� ciente de todos os
lugares onde havia objetos de valor e de todos os h�bitos da casa. E o
Sem-Pemas tinha verdadeira satisfa��o ao pensar em quanto 0
xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre �rf�o.
Assim se vingava, porque seu cora��o estava cheio de �dio. Confusa-
mente desejava ter uma bomba (como daquelas de certa hist�ria que
o Professor contara) que arrasasse toda a cidade, que levasse todos
pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse tamb�m se viesse
algu�m, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e m�os
suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o
fizesse dormir um sono bom, um sono que n�o estivesse cheio dos
sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o �dio n�o estaria mais
no seu cora��o. E n�o teria mais desptezo, inveja, �dio de Pirulito que,
de m�os levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimentos
para um mundo que conheceu nas conversas do padre Jos� Pedro.
#
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'y * s i * � JORGE AMADU C * ` : * �
Um rumor de conversas se aproxima. Vem um grupo de quatro
entrando no sil�ncio quej� reina na noite do trapiche. O Sem-Pernas
se estremece, ri nas costas de Pirulito, que continua a rezar. Encolhe
os ombros, decide deixar para a manh� do dia seguinte o acerto dos
detalhes do furto dos chap�us. E como tem medo de dormir, vai ao
encontro do grupo que chega, pede um cigarro, diz dichotes sobre a
aventura de mulheres que os quatro contam:
-Uns franguinhos como voc�s, quem � que vai acreditar que seja
capaz de derrubar uma mulher? Isso devia ser algum xibungo vestido
de menina.
Os outros se irritam:
- Tu tamb�m se faz de besta. Se quer � s� vim com a gente
amanh�. Assim tu pode conhecer a zinha, que � um peix�o.
O Sem-Pemas ri, sard�nico:
- N�o gosto de xibungo.
E sai andando pelo trapiche.
O Gato ainda n�o est� donnindo. Sempre sai depois das onze
horas. � o elegante do grupo. Quando chegou, alvo e rosado, Boa-
Vida tentou conquist�-lo. Mas j� naquele tempo o Gato era de uma
agilidade incr�vel e n�o vinha, como Boa-Vida pensava, da casa de
uma famMia. Vinha do meio dos �ndios Maloqueiros, crian�as que
vivem sob as pontes de Aracaju. Fizera a viagem na rabada de um trem.
Conhecia bem a vida de um grupo de crian�as abandonadas. Ej� tinha
mais de 13 anos. Assim conheceu logo os motivos por que Boa-Vida,
mulato troncudo e feio, o tratou com tanta considera��o, lhe ofereceu
cigarros e lhe deu parte do seujantar e correu com ele a cidade. Depois
bateram juntos um par de sapatos novos que estava exposto na porta
de uma casa na Baixa dos Sapateiros. Boa-Vida tinha dito:
- Deixa estar, que eu sei onde se pode vender.
O Gato espiou seus sapatos pu�dos.
- Eu tava querendo eles pra mim. J� tou precisando.
3Z
* � `: * s. CAYIT�ESDAAREIA * : � * 
-Tu com um sapato ainda t�o bom... -se admirou Boa-Vida,
due raras vezes levava sapatos e que, naquele momento, estava
descal�o.
- Eu pago a tua parte. Qnanto tu pensa?
Boa-Vida olhou para ele. O Gato levava gravata, um palet�
remendado e, coisa espantosa!, levava meias.
Tu � da eleg�ncia, hein? sorriu.
-N�o nasci para essavida. Nasci para o grande mundo-disse
o Gato, repetindo uma frase que ouvira certa vez de um caixeiro-
viajante num cabar� de Aracaju.
Boa-Vida achava-o decididamente lindo. O Gato tinha um ar
petulante, e embora n�o fosse uma beleza efeminada, agradava a Boa-
Vida, que, al�m de tudo, n�o tinha muita sorte com mulheres, pois
aparentava muito menos que 13 anos, baixo e acachapado. O Gato era
alto e sobre os seus l�bios de 14 anos come�ava a surgir uma penugem
de bigode que ele cultivava. Boa-Vida naquele momento o amou com
certeza, porque disse:
- Tu pode ficar com eles... Eu te dou minha parte.
- T� certo. Fico te devendo.
Boa-Vida quis aproveitar os agradecimentos do outro para iniciar
sua conquista. E baixou a m�o pelas coxas do Gato, que se esquivou
s� com o jogo do corpo. O Gato riu consigo mesmo e n�o disse nada.
Boa-Vida achou que n�o devia insistir, sen�o era capaz de espantar o
menino. Ele n�o sabia nada do Gato e nem imaginava que este
conhecia seujogo. Andaramjuntos parte da noite, vendo a ilumina��o
da cidade (o Gato estava assombrado), e por volta das onze foram para
o trapiche. Boa-Vida mostrou o Gato a Pedro e levou-o depois para
o lugar onde dormia:
- Tenho aqui um len�ol. D� pra n�s dois.
O Gato deitou. Boa-Vida se estendeu ao lado. Q,uando pensou
que o outro estava dormindo o abra�ou com uma m�o e com a outra
come�ou a puxar-lhe as cal�as devagarinho. Num minuto o Gato
estava de p�:
- Tu te enganou, mulato. Eu sou � homem.
33
#
y  * ' * � JORGE AMADO s *
Mas Boa-V'ida j� n�o via nada, s� via seu desejo, a vontade que
tinha do corpo alvo do Gato, de enrolar o rosto nos cabelos morenos
do Gato, de apalpar as carnes duras das coxas do Gato. E se atirou em
cima dele com inten��o de derrub�-lo e for��-lo. Mas o Gato desviou
o corpo, passou-lhe a pema, Boa-V'ida se estendeu de nariz. J� tinha
se formado um grupo em torno. O Gato disse:
- Ele pensava que eu era .naricas. Tu te faz de besta.
Arrancou com o len�ol de Boa-V'ida para outro canto e dormiu.
Levaram algum tempo inimigos, mas depois voltaram �s boas e agora,
quando o Gato se cansa de uma pequena, entrega ao Boa-V'ida.
Uma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito
lustroso de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pesco�o,
assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade. As
mulheres o olhavam e riam:
- Olha aquele fiangote... O que querer� por aqui?
O Gato respondia aos sorrisos e seguia. Esperava que uma o
chamasse e fizesse o amor com ele. Mas n�o queria por dinheiro, n�o
s� porque os n�queis que possu�a n�o passavam de mil e quinhentos,
como porque os Capit�es da Areia n�o gostavam de pagar mulher.
Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal.
As mulheres olhavam para a sua figura de garoto. Sem d�vida
achavam-no belo na sua meninice viciada e gostariaurde fazer o amor
com ele. Mas n�o o chamavam porque aquela era a hora em que
esperavam os homens que pagavam, e elas tinham que pensar na casa
e no almo�o do dia seguinte. Se contentavam assim com rir e fazer
pilh�rias. Sabiam que dali sairia um daqueles vigaristas que enchem
a vida de uma mulher, que lhe tomam dinheiro, d�o pancadas, mas
tamb�m d�o muito amor. Muitas delas gostariam de ser a primeira
mulher deste malandrim t�o jovem. Mas eram dez horas, hora dos
homens que pagavam. E o Gato andava de um lado para outro
inutilmente. Foi quando viu Dalva, que vinha pela rua embu�ada num
capote de peles apesar da noite de ver�o. Ela passou por ele quase sem
o ver. Era uma mulher de uns trinta e cinco anos, corpo forte, rosto
cheio de sensualidade. O Gato a desejou imediatamente. Foi atr�s
dela. Viu quando entrou em casa sem se voltar. Ficou na esquina
esperando. Minutos depois ela apateceu na janela. O Gato subiu e
34
� ' : * s` CAPIT�ES DA AREIA * '.: � * �
desceu a rua, mas ela nem o olhava. Depois passou um velho, atendeu
ao chamado dela, entrou. O Gato ainda esperou, por�m, mesmo
depois do velho ter sa�do muito apressado, procurando n�o ser visto,
ela n�o voltou �janela.
Noites e noites o Gato volveu � mesma esquina s� para v�-la.
Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes
usados e se p�r elegante. Tinha o dom da eleg�ncia malandra, que est�
mais no jeito de andar, de colocar o chap�u e dar um la�o despreocu-
pado na gravata que na roupa propriamente. O Gato desejava Dalva
do mesmo modo como desejava comida ao ter fome, como desejava
dormir ao ter sono. J� n�o atendia ao chamado das outras mulheres
quando, passada a meia-noite, elasj� tinham feito para as despesas do
dia seguinte e ent�o queriam o amor juvenil do pequeno malandro.
Uma vez foi com uma s� para saber da vida de Dalva. Foi assim que
se inteirou de que ela tinha um amante, um tocador de flauta num caf�,
que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na
sua casa, atrapalhando a vida de todas as rameiras do pr�dio.
O Gato voltava todas as noites. Dalva nunca lhe deu sequer um
olhar. Por isso ele ainda a amava mais. Ficava numa espera dolorosa
at� meia hora depois de meia-noite, quando o flautista chegava e,
depois de a beijar najanela, entrava pela porta mal iluminada. Ent�o
o Gato ia para o trapiche, a cabe�a cheia de pensamentos: se um dia
o flautista n�o viesse... Se o flautista morresse.. . Era fraco, talvez n�o
ag�entasse nem o peso dos quatorze anos do Gato. E apertava a
navalha que levava na blusa.
E uma noite o flautista n�o veio. Nesta noite Dalva andara pelas
ruas como uma doida, voltara tarde para casa, n�o recebera nenhum
homem e agora estava ali, postada na janela, apesar de j� ter dado as
doze horas h� muito tempo. Aos poucos a rua foi ficando deserta. N�o
restaram sen�o o Gato na esquina e Dalva, que ainda esperava na
janela. O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre. Dalva
#
desesperava. Ent�o o Gato come�ou a passear de um lado para o outro
da rua at� que a mulher o notou e fez um sinal. Ele veio logo, sorrindo.
- Tu n�o � um frangote que fica na esquina toda noite?
- Qnem fica na esquina sou eu. Agora essa coisa de frangote...
Ela sorriu tristemente:
5
:' * `:? * � JvRE ArnAUv :` * `:? * �
- Tu quer me fazer um favor? Te dou uma coisa mas logo
pensou e fez um gesto. - N�o. Tu com certeza t� esperando tua
comida e n�o vai perder tempo.
- Posso, sim. A que estou esperando n�o vem agora.
- Ent�o eu quero, filhinho, que tu v� na rua Rui Barbosa. O
n�mero � 35. Procura seu Gast�o. � no primeiro andar. Diz a ele que
estou esperando.
O Gato saiu humilhado. Primeiro pensou em n�o ir e em nunca
mais voltar a ver Dalva. Mas depois se decidiu a ir para ver de perto
o flautista que tinha coragem de abandonar uma mulher t�o bonita.
Chegou no pr�dio (um sobrado negro de muitos andares), subiu as
escadas, no primeiro andar perguntou a um garoto que dormia no
corredor qual era o quarto do Sr. Gast�o. O garoto mostrou o �ltimo
quarto, o Gato bateu na porta. O flautista veio abrir, estava de cuecs
e na cama o Gato viu uma mulher magra. Estavam os dois b�bados.
O Gato falou:
- Venho da parte de Dalva.
- Diga �quela bruaca que n�o me amole. Tou chateado dela at�
aqui... e punha a m�o aberta na garganta.
De dentro do quarto a mulher falou:
- Quem � esse cocadinha?
- N�o te mete disse o flautista, mas logo acrescentou: - �
um recado da bruaca da Dalva. T� se pelando que eu volte.
A mulher riu um riso canalha de b�bada:
-Mas tu agora s� quer tua Bebezinha, n�o �? Vem me dar um
beijinho, anj� sem asas.
O flautista riu tamb�m:
- T� vendo, peda�o de gente? Diz isso a Dalva.
- Tou vendo um couro espichado ali, sim senhor. Qne urubu
voc� arranjou, hein, camarada?
O flautista o olhou muito s�rio:
- N�o fale de minha noiva e logo: - Q,uer tomar um trago?
� caninha da boa.
O Gato entrou. A mulher na cama se cobriu. O flautista riu:
3�
� `.' * � CAPIT�ES UA AREIA * ' � *
- � um filhote somente. N�o faz medo.
-Mesmo esse couro-disse o Gato-n�o me tenta. Nem pra
me tocar bronha.
Bebeu a cacha�a. O flautista j� voltara para a cama e beijava a
mulhei. Nem viram que o Gato sa�a e que levava a bolsa da prostituta,
que estava esquecida na cadeira, sobre vestidos. Narua o Gato contou
sessenta e oito mil-r�is. Jogou a bolsa no p� da escada, meteu o
dinheiro no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando.
Dalva o esperava na janela. O Gato olhou para ela fixamente:
- Vou emborcar... e foi entrando sem esperar resposta.
Dalva, mesmo no corredor, perguntou:
- O que foi que ele disse?
- No quarto te digo. Me mostre onde �.
Entraram no quarto. A primeira coisa que o Gato viu foi um
retrato de Gast�o tocando flauta, vestido de smoking. Sentou na
cama olhando o retrato. Dalva espiava espantada e mal p�de nova-
mente mterrogar:
- O que foi que ele disse?
O Gato respondeu:
- Senta aqui e indicou a cama.
- Esse frangote... murmurou ela.
- Olha, bichinha, ele t� grudado com outra, sabe? Tamb�m eu
disse as boas aos dois. E depois pelei a bruaca -meteu a m�o no bolso,
tirou o dinheiro. - Vamos rachar isso.
-T� com outra, n�o �? Mas meu Senhor doBonfim h� de fazer
com que os dois fique entrevado. Senhor do Bonfim � meu santo.
Foi at� onde estava o quadro do santo. Fez a promessa e voltou.
#
Guarda teu dinheiro. Tu ganhou direito.
O Gato repetiu:
- Senta aqui.
Desta vez ela sentou, ele a pegou e a derrubou na cama. Depois
que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu,
murmurou:
- O frangote parece um homem...
37
* : * � ORGE AMADO e * '.. * �
Ele se levantou, endireitou as cal�as, foi at� onde estava o retrato
do flautista Gast�o e o rasgou.
- Vou tirar um retrato pra tu botar a�.
A mulher riu e disse:
- Vem, bichinho bom. ue malandro n�o vai sair da�! Vou te
ensinar tanta coisa, meu cachorrinho.
Fechou a porta do quarto. O Gato tirou a roupa.
Por isso o Gato sai toda meia-noite e n�o dorme no trapiche. S�
volta pela manh� para ir com os outros para as aventuras do dia.
O Sem-Pemas se aproximou e pilheriou:
- Agora tu vai mostrar o anel, n�o �?
-Tu n�o tem nada com isso o Gato fumava um cigarro. -
Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo?
- N�o vou em casa de couros. Sei onde tem coisas que valha a
pena.
Mas o Gato n�o estava disposto a conversar e o Sem-Pernas
continuou a sua peregrina��o atrav�s do trapiche.
O Sem-Pemas encostou-se junto a uma parede e deixou que o
tempo passasse. Viu o Gato sair por volta das onze e meia. Sorriu
porque ele havia lavado a cara, posto brilhantina no cabelo e ia
marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros e
os mar�timos. Depois o Sem-Pemas ficou muito tempo olhando as
crian�as que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinq�enta crian-
�as, sem pai, sem m�e, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade
de correr as ruas. Levavam vida nem sempre f�cil, arranjando o que
comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras
e chap�us, ora amea�ando homens, por vezes pedindo esmola. E o
grupo era de mais de cem crian�as, pois muitas outras n�o dormiam
no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-c�us, nas pontes,
nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas
reclamava. Porvezes morria um demol�stia queningu�m sabia tratar.
uando calhava vir o padre Jos� Pedro, ou a m�e-de-santo
Don'Aninha ou tamb�m o uerido-de-Deus, o doente tinha algum
* � '�= * s  CAPIT�ES GA AREIA * '.  � * y
rem�dio. Nunca, or�m, era como um menino que tem sua casa. O
Sem-Pernas ficava pensando. E achava que a alegria daquela liberda-
de era pouca para a desgra�a daquela vida.
Voltou-se porque ouviu movimento. Algu�m se levantava no
meio do casar�o. O Sem-Pernas reconheceu o negrinho Barand�o,
que se dirigia de manso para o areal de fora do trapiche. O Sem-Pernas
pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e n�o queria
mostrar aos companheiros. E aquilo era um crime contra as leis do
bando. O Sem-Pernas seguiu Barand�o, atravessando entre os que
dormiam. O negrinho j� tinha transposto a porta do trapiche e dava
a volta no pr�dio para o lado esquerdo. Em cima era o c�u de estrelas.
Barand�o agora caminhava apressadamente. O Sem-Pernas no-
tou que ele se dirigia para o outro extremo do trapiche, onde a ateia
era mais fina ainda. Foi ent�o pelo outro lado e chegou a tempo de ver
Barand�o que se encontrava com um vulto. Logo o reconheceu: era
Almiro, um do grupo, de doze anos, gordo e pregui�oso. Deitaram-se
juntos, o negro acariciando Almiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir
palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho. O Sem-Pernas recuou
e a sua ang�stia cresceu. Todos procuravam um carinho, qualquer
coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda,
o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito
na ora��o que o transfigurava, Barand�o e Almiro no amor na areia do
cais. O Sem-Pernas sentia que uma ang�stia o tomava e que era
imposs�vel dormir. Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia.
Queria que aparecesse algu�m a quem ele pudesse torturar com
dichotes. Qneria uma briga. Pensou em ir acender um f�sforo na
perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do trapiche,
#
sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo
pelo areal, correndo sem fito, fugindo da sua ang�stia.
Pedro Bala acordou com um ru�do perto de si. Dormia de bru�os
e olhou por baixo dos bra�os. Viu que um menino se levantava e se
aproximava cautelosamente do canto de Pirulito. Pedro Bala, no meio
do sono em que estava, pensou, aprinc�pio, que se tratasse de um caso
de pederastia. E ficou atento para expulsar o passivo do grupo, pois
3q
y * : * � URGE MADU y * ' : * �
uma das leis do grupo era que n�o admitiriam pederastas passivos.
Mas acordou completamente e logo recordou que era imposs�vel,
pois Pirulito n�o eradestas coisas. Devia se tratar de furto. Realmente
o garoto j� abria o ba� de Pirulito. Pedro Bala se atirou em cima dele.
A luta foi r�pida. Pirulito acordou, mas os demais dormiam.
- Tu t� roubando um companheiro?
O outro ficou calado, co�ando o queixo ferido. Pedro Bala
continuou:
-Amanh�tu vai embora... N�o quero maistu com a gente. Vai
ficar com a gente de Ezequiel, que vive roubando uns dos outros.
- Eu s� queria era ver...
ue era que tu vinha ver com as m�os?
- Juro que era s� para ver aquela medalha que ele tem.
- Desembucha esta hist�ria direito sen�o leva porrada
Pirulito se meteu:
* � '�: * s` C.APIThES DA MREIA * t ` � * �
Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugadaj� ia alta. O
cabelo de mulato sertanejo estava revolto. Cal�ava alpercatas como
quando viera da caatinga. O seu rosto sombrio se projetou dentro do
casar�o. Passou por cima do corpo do negro Jo�o Grande. Cuspiu
adiante, passou o p� em cima. Apertado no bra�o trazia um jornal.
Olhou todo o sal�o procurandoalgu�m. Segurou ojornal com as m�os
grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor. E sem se
importr da hora tardia se dirigiu para l� e come�ou a cham�-lo:
Professor... Professor...
- O que �? - Professor estava semi-adormecido.
- Eu quero uma coisa.
Professor sentou-se. O rosto sombrio de Volta Seca estava meio
invis�vel na escurid�o.
- � tu, Volta Seca? Qne � que tu quer?
- Deixa ele, Pedro. Era bem capaz de querer ver mesmo a
medalha. � uma medalha que o padre Jos� Pedro me deu.
- � isso mesmo disse o menino -, eu s� queria ver. Juro -
mas tremia de medo. Sabia que a vida de um expulso dos Capit�es da
Areia ficava dif�cil. Ou entrava para o grupo de Ezequiel, que vive
todo dia na cadeia, ou acabava no reformat�rio.
Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do
Professor. Ent�o o menino disse com a voz ainda tremendo:
- Vou contar pra voc� saber. Foi uma menina que eu vi hoje.
Tava na Cidade de Palha. Eu tinha entrado na casa com id�ia de
abafar um palet�, quando ela veio e ficou perguntando o que eu queria.
A� topamos a conversar. Eu disse que amanh� ia levar um presente pra
ela. Porque foi boa, boa assim comigo, sabe? e agora gritava e
parecia que tinha raiva.
Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera, ficou mirando.
De repente estendeu para o menino:
-Tome. D� a ela. Mas n�o conte a Pedro Bala.
- Quero que tu leia pra eu ouvir essa not�cia de Lampi�o que o
Di�rio traz. Tem um retrato.
- Deixa pra amanh� que eu leio.
- L� hoje, que eu amanh� te ensino a imitar direitinho um
can�rio.
O Professorbuscou uma vela, acendeu, come�ou a ler a not�cia
dojornal. Lampi�o tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito
soldados, deflorara mo�as, saqueara os cofres da Prefeitura. O
rosto sombrio de Volta Seca se iluminou. Sua boca apertada se
abriu num sorriso. E ainda feliz deixou o Professot, que apagava a
vela, e foi para o seu canto. Levava ojotnal para cortar o retrato do
grupo de Lampi�o. Dentro dele ia uma alegria de primavera.
40 4
o t * ;y� CArIT�ES DA AREIA * C o * v:
#
chamar os Capit�es da Areia, seus amigos, a um dos malandros do
cais. Sabia que os Capit�es da Areia valiam mais que muitos homens
e rinham a boca calada. A Porta do Mar estava quase deserto �quela
hora. Somente dois marinheiros de um baiano bebiam cerveja ao
fimdo, conversando. O Gato p�s o baralho em cima da mesa e prop8s:
- Quem topa uma ronda?
O Querido-de-Deus pegou no baralho:
-T� mais que matcado, seu Gato. Um baralhinho bem velho...
J I-r  l'rl I Jlr
ESPERARAM QUE O GUARDA ANDASSE. ESTE DEMOROU OLHANDO O
c�u, mirando a roa deserta. O bonde desapareceu na curva. Era o,,
�ltimo dos bondes da linha de Brotas naquela noite. O guarda
acendeu um cigarro. Com o vento que fazia, gastou tr�s f�sforos.
Depois suspendeu a gola da capa, pois havia um fiio �mido que o
vento trazia das ch�caras onde balou�avam mangueiras e sapotizeiros
Os tr�s meninos esperavam que o guarda andasse para poder atraves-
sar de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem cal�amento.
O Qnerido-de-Deus n�o tinha podido vir. Toda a tarde tinha passado
na Porta do Mar esperando o homem que n�o veio. Se ele tivessevindo
seria mais f�cil, pois com o Q.uerido-de-Deus ele n�o ia discutir,
mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista. Mas n�o tinha vindo,
a inform3��o fora errada, e o Querido-de-Deus j� tinha uma viagem
acertada para essa noite. Ia aItaparica. Durante a tarde, num terreninho
que havia no fundo da Porta do Mar, fizeram treinos do jogo de
capoeira. O Gato prometia ser, com algum tempo, um lutador capaz
de se pegar com o pr�prio Q,uerido-de-Deus. Pedro Bala tamb�m
tinha muito jeito. Dos tr�s o menos �gil era o negro Jo�o Grande,
muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme for�a f�sica.
Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte que
ele. Q,uando se cansaram passaram para a sala. Pediram quatro pingas
e o Gato sacou um baralho do bolso das cal�as. Um velho baralho
sebento, de cartas muito grossas. O Querido-de-Deus afirmava que
o homem viria, o camarada quelhe dera a informa��o era um sujeito
seguro Era neg�cio para render muito e o Querido-de-Deus preferira
4
- Se tu tem outro eu n�o me importo.
- N�o. Vamos com esse mesmo.
Come�aram o jogo. O Gato descobria duas cartas na mesa, os
outros apostavam numa, a banca ficava com a outra. A princ�pio Pedro
Bala e o uerido-de-Deus ganharam. Jo�o Grande n�o estava jo-
gando (conhecia demais o baralho do Gato), s� fazia espiar, rindo com
seus dentes alvos, quando o Querido-de-Deus dizia que estava com
sorte neste dia porque era o dia de Xang�, seu santo. Sabia que a sorte
seria s� no princ�pio e que quando o Gato come�asse a ganhar n�o
pararia mais. Certo momento o Gato come�ou a ganhar. Quando
ganhou a primeira vez, disse com uma voz meio triste:
- Tamb�m j� era tempo. Tava com um peso da m�e!
Jo�o Grande abriu mais seu sornso. O Gato ganhou de novo.
Pedro Bala se levantou, recolheu os n�queis que havia ganho. O Gato
olhou desconfiado:
- Tu n�o vai botar nada agora?
- Agora n�o que vou mijar... e foi para os fundos do bar.
O Querido-de-Deus ficou perdendo. Jo�o Grande ria e o capoei-
rista se afundava. Pedro Bala tinha voltado, mas n�o jogava. Ria com
Jo�o Grande. O uerido-de-Deus passou tudo quanto tinha ganho.
Jo�o Grande disse entre dentes:
- Vai entrar no capital...
- Ainda tou perdendo falou o Gato.
Reparou que Pedro tinha voltado:
- Tu n�o arrisca mais nada? N�o vai na dama?
- Tou cansado de jogar... e Pedro Bala piscou para o Gato
como que dizendo que ele se contentasse com o Qnerido-de-Deus.
d3
( ! * '.:  A .JORGi A.k!e.DO :'' * �= * o
=-, * ; ; * o o, ::� * , * o
O Qgerido-de-Deus passou cinco mil-r�is do capital. S� ganhara
duas vezes durante as �ltimas jogadas e estava meio desconfiado. O
Gato abriu o baralho na mesa. Puxou um rei e um sete.
- Quem vai? perguntou.
Ningu�m foi. Nem mesmo o Q,uerido-de-Deus, que olhava o
#
baralho muito desconfiado. O Gato perguntou:
- T� pensando que tem treita? Pode espiar. Eu fa�o jogo
limpo...
Jo�o Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas.
Pedro Bala e o Qnerido-de-Deus riram tamb�m. O Gato olhou para
Jo�o Grande com raiva:
- Esse negro � burro como uma porta. Tu n�o t� vendo...
Mas n�o completou a fiase, porque os dois marinheiros do.
baiano, que j� miravam o jogo h� bastante tempo, se aproximaram.
Um deles, o mais baixo, que estava b�bado, falou para o Querido-de-
Deus:
- Pode-se entrar nesta brincadeira?
O uerido-de-Deus apontou o Gato:
- A banca � deste mo�o.
Os marinheiros olharam desconfiados para o menino. Mas o
baixo cutucou o outro com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao
ouvido. O Gato riu para dentro porque sabia que ele estava dizendo
que seria f�cil arrancar o dinheiro daquela crian�a. Se abancaram os
dois e o Qnerido-de-Deus achou estranho que Pedro Bala se abancasse
tamb�m. Jo�o Grande, no entanto, n�o s� n�o achou estranho como
se abancou tamb�m. Ele sabia que era preciso tapear os marinheiros,
e ent�o era necess�rio que a gente do grupo perdesse tamb�m. Os
marinheiros, do mesmo modo que tinha acontecido com o Querido-
de-Deus, come�aram ganhando. Mas durou pouco a aragem da sorte
e em breve s� o Gato ganhava dos quatro. Pedro Bala soltava
exclama��es:
- Esse Gato quando tem sorte � um caso s�rio...
-Tamb�m, quando d� de perder, perde a noite todareplicou
Jo�o Grande, e esta sua r�plica deu grande confian�a aos marinheiros
4d
* o ,:: * r' c,,,rn,,5 PA AmA * ,:: o * ;-,
sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar. E
continuaram a jogar e a perder. O baixo s� dizia:
- A sorte tem de virar..
O outro, que tinha um bigodinho, jogava calado e cada vez
apostava mais alto. Tamb�m Pedro Bala subia o valor das suas apostas
Certa hora o de bigodinho virou pro Gato
- A banca topa cinco mil?
O Gato co�ou o cabelo cheio de brilhantina barata, aparentando
uma indecis�o que os companheiros sabiam que n�o possu�a.
- V� l�. Topo. S� pra dar meio de voc� livrar teu preju�zo.
O de bigodinho apostou cinco mil. O baixo foi com tr�s mil-r�is
Foram ambos num �s contra um valete da banca. Pedro Bala e Jo�o
Grande foram no �s tamb�m. O Gato come�ou a virat as cartas. A
primeira era um nove. O baixo batia com os dedos, o outro puxava o
bigodinho. Veio em seguida um dois e o baixo disse:
- Agora � o �s. Dois, depois um.. . e batia com os dedos.
Mas veio um sete e depois um dez e ent�o veio um valete. O Gato
arrastou a mesa, enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande
aborrecimento e dizia:
- Amanh�, quando o peso te pegar, tu vai ver que te arraso.
O baixo confessou que estava limpo. O de bigodinho meteu as
m�os nos bolsos:
- Tou s� com os n�queis pra pagar a cerveja. O garoto � um
bra�o.
Se levantaram, cumprimentaram o grupo, pagaram a cerveja que
tinham bebido na outra mesa. O Gato os convidou a voltarem no
outro dia. O baixo respondeu que o navio deles sa�a aquela noite para
Caravelas. S� quando voltasse. E se foram, de bra�o dado, comen-
tando a pouca sorte.
O Gato contou o lucro. Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e
Jo�o Grande haviam perdido, existia um lucro de trinta e oito mil-r�is.
O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala, depois o de Jo�o Grande,
ficou um minuto pensando. Meteu a m�o no bolso, tirou os cinco mil-
r�is que o uerido-de-Deus havia perdido anteriormente:
45
;.' * :? * � JoRcE AMADo :� * ':? *
- Toma, batuta. Tinha trapa�a, eu n�o quero embolsar teu
cobre...
O Qnerido-de-Deus beijou a nota com satisfa��o, bateu a m�o
#
nas costas do Gato:
- Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas.
Mas j� o sol se punha e o homem n�o vinha. Eles pediram outra
pinga. Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou. O
Qnerido-de-Deus come�ava a ficar impaciente. Fumava cigarro sobre
cigarro. Pedro Bala espiava para a porta. O Gato dividiu os trinta e oito
mil-r�is pelos tr�s. Jo�o Grande perguntou:
- Como teria ido o Sem-Pernas com o abafa de chap�us?
NinguEm respondeu. Esperavam o homem e agora tinham a
impress�o que ele n�o viria. A informa��o tinha sido errada. N�o
ouviam sequer a can��o que vinha do mar. A Porta do Mar esta
desem e seu Felipe quase dormia no balc�o. N�o tardaria, no entanto,
a estar cheia, e ent�o todo acerto seria imposs�vel com o homem. Ele
n�� haveria de querer conversar ali com o sal�o cheio. Poderiam
conhec�-lo, e ele n�o queria isto. Tampouco o queriam os Capit�es da
Areia. Em verdade, o Gato n�o sabia de que se tratava. E pouco mais
sabiam Pedro Bala e Jo�o Grande. Sabiam quanto sabia o uerido-
de-Deus, a quem o neg&io tinha sido proposto e que o tinha aceito
para Pedro Bala e os Capit�es da Areia. No entanto, ele mesmo tinha
apenas vagas informa��es e iam saber de tudo pelo homem que
marcara uma entrevista � tarde na Porta do Mar. Mas at� as seis horas
n�o chegou. Em lugar dele chegou o tal que tinha falado ao Querido-
de-Deus. Chegou na hora em que o grupo ia sair. Explicou que o
homem n�o tinha podido vir. Mas que esperava o Qnerido-de-Deus
� noite, na rua em que morava. V'iria por volta de uma da madrugada.
O uerido-de-Deus declarou que n�o podia ir, mas que entregava o
assunto aos Capit�es da Areia. O intermedi�rio mirou os meninos,
desconfiado. O Querido-de-Deus perguntou:
- Nunca ouviu falar nos Capit�es da Areia?
- J�, sim. Mas...
- De qualquer jeito quem ia tratar do neg�cio era eles. Da�...
O intermedi�rio pareceu se conformar. Combinaram para uma
da manh� e se separaram. O Q,uerido-de-Deus foi para seu barco, os
d6
* � ': * s r..APIT�ES DA AREIA * '�% � * 
Capit�es da Areia para o trapiche, o intermedi�rio desapareceu no
ais.
O Sem-Pernas n�o havia ainda voltado. N�o havia ningu�m no
trapiche. Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade, cavando
o jantar. Os tr�s sa�ram novamente e foram comer num restaurante
barato que havia no mercado. Na sa�da do trapiche, o Gato, que estava
muito alegre com o resultado do jogo, quis passar uma rasteira em
Pedro Bala. Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato:
- Tou treinado nisso, best�o.
Entraram no restaurante fazendo barulho. Um velho, que era o
gar�om, se aproximou com desconfian�a. Sabia que os Capit�es da
Areia n�o gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais
tem�vel de todos. Apesar de haver bastante gente no restaurante, o
velho disse:
- Acabou tudo. N�o tem mais b�ia.
Pedro Bala replicou:
- Deixa de conversa fiada, meu tio. N�s quer comer.
Jo�o Grande bateu a m�o na mesa:
- Sen�o a gente vira esse frege-mosca de cabe�a pra baixo.
O velho fitava indeciso. Ent�o o Gato bateu o dinheiro em cima
da mesa:
- Hoje n�s vai fazer gasto.
Foi um argumento suficiente. O gar�om come�ou a trazer os
pratos: um prato de sarapatel e depois uma feijoada. Quem pagou foi
o Gato. Depois Pedro Bala prop�s que fossem andando at� Brotas,
pois j� que iam a p� tinham muito que caminhar.
- N�o vale a pena tomar a taioba disse Pedro Bala. - �
melhor que ningu�m saiba que a gente foi pra l�.
O Gato ent�o disse que chegaria depois e os encontraria l�. Tinha
uma coisa que fazer antes. Ia avisar a Dalva para que n�o o esperasse
essa noite.
E agora estavam ali, no Ponto das Pitangueiras, esperando que o
guarda se afastasse. Escondidos no v�o de um portal, n�o falavam.
Ouviam o v�o dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos p�s.
Finalmente, o guarda andou, eles ficaram espiando at� que a sua figura
#
47
* ` : * � JORGE AMADU � ! * '� ' * �
desapareceu na curva que a rua fazia. Ent�o atravessaram e en-
traram na alameda das ch�caras e novamente se esconderam num
portal. O homem n�o tardou muito. Saltou de um autom�vel na
esquina, pagou a corrida e veio subindo a alameda. Tudo o que se
ouvia eram os seus passos e o rumor das folhas que o vento
balan�ava nas �rvores. Quando o homem vinha pr�ximo, Pedro
Bala saiu do portal. Os outros vieram logo depois e como que o
guardavam, pareciam dois guarda-costas. O homem se aproximou
mais do murojunto ao qual vinha andando. Pedro caminhava para
ele. uando estava defronte, parou:
- Pode me dar o fogo, senhor? levava na m�o um cigarro
apagado.
O homem n�o disse nada. Sacou a caixa de f�sforos, estendeu ao
menino. Pedro riscou um e, enquanto acendia o cigarro, olhou parao
homem. Depois, ao entregar a caixa de f�sforos, perguntou:
- � o senhor que se chama Joel?
- Por qu�? quis saber o homem.
- Foi o Q.uerido-de-Deus que nos mandou.
Jo�o Grande e o Gato se aproximavam. O homem mirou os tr�s
com espanto:
- Por�m s�o uns meninos! Isso n�o � neg�cio para meninos.
- Diga o que �, a gente sabe fazer o trabalho direito retnzeou
Pedro Bala, quando os outros dois tinham se aproximado.
- Mas se um neg�cio que talvez nem homens... e o homem
p�s a m�o na boca, como quem teme ter dito mais do que convinha.
- N�s sabe guardar um segredo t�o bem como um cofre. E os
Capit�es da Areia sempre faz os servi�os bem feito...
-Os Capit�es da Areia? Esse grupo de que falam osjomais? De
meninos abandonados? S�o voc�s?
- � a gente, sim. E dos que manda.
O homem parecia reffetir. Enfim se decidiu:
- Eu preferia entregar esse neg�cio a homens. Mas como tem
que ser esta noite mesmo... O jeito...
- Vai ver como a gente sabe trabalhar. N�o fique assustado.
48
:: * C! Carit�Es sa AEiA *  : � *
- Venham comigo. Mas deixem que eu v� na frente. Voc�s ir�o
uns passos atr�s de mim.
Os meninos obedeceram. Num port�o o homem parou, abriu,
ficou esperando. Veio de dentro um grande c�o que lhe lambia as
m�os. O homem fez os tr�s entrarem, atravessaram uma roa de
�rvores, o homem abriu a porta da casa. Entraram para uma saleta, o
homem p�s a capa e o chap�u numa cadeira e sentou-se. Os tres
estavam de p�. O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles
miraram desconfiados as largas e c�modas poltronas. Isso Pedro Bala
e Jo�o Grande, porque o Gato j� estava se sentando muito a gosto,
numa atitude displicente. A outro sinal do homem, Pedro e o Grande
se sentaram, sendo que Jo�o Grande ficou sentado apenas na ponta dz
cadeira, como se temesse suj�-la. O homem tinha um ar de riso. De
repente levantou-se e falou, mirando a Pedto, em quem reconhecera
o chefe:
- O que voc�s v�o fazer � dificil e ao mesmo tempo � f�cil. Agora
o que tem � que � uma coisa que necessita que ningu�m saiba.
- N�o passa daqui disse Pedro Bala.
O homem puxou o rel�gio do bolso:
- S�o uma e um quarto. Ele s� volta �s duas e meia. . . olhava
os Capit�es da Areia ainda com indecis�o.
- Ent�o n�o � muito tempo falou Pedro. - Se quer que a
gente v�, � bom desembuchar logo...
O homem se decidiu:
- Duas ruas adiante desta. � a pen�ltima ch�cara a direita. Tem
que evitar um cachorro que j� deve estar solto. � bravo.
Jo�o Grande interrompeu:
- O senhor tem a� um peda�o de carne?
- Pra qu�?
- Pro cachorro. Um peda�o chega.
- Verei j� olhava os meninos. Parecia perguntar a si mesmo
se devia confiar neles. - Voc�s entram pelos fundos. Junto da
#
cozinha, na parte de fora da casa, tem um quarto por cima da garagem.
� o do empregado, que agora deve estar dentro de casa esperando 0
4q
C ! * : * o ORGE AMADO �  * : * o
patr�o. � no quarto dele que voc�s v�o entrar. Devem procurar um
embrulho igual a este, igualzinho...
Foi ao bolso da capa, trouxe um pequeno pacote amarrado com
uma fita cor-de-rosa.
- � igualzinho. N�o sei se ainda estar� no quarto. Tamb�m pode
ser que o empregado o tenha no bolso. Se assim for, nada mais se pode
fazer e um desespero repentino pareceu tom�-lo. - Se eu tivesse
podido ir esta tarde... Ent�o, com certeza, ainda estaria no quarto.
Mas agora quem sabe? e cobriu o rosto com as m�os.
-Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer... -disse
Pedro.
- N�o. � essencial que ningu�m saiba que houve furto deste
embrulho. O que voc�s v�o fazer � trocar os embrulhos, se o outro
estiver no quarto.
- E se estiver com o empregado?
- Ent�o... e a fisionomia do homem novamente se alterou.
Jo�o Grande pensou ouvir um nome que soava como Elisa. Mas talvez
fosse ilus�o de Jo�o Grande, que por vezes ouvia e via coisas que
ningu�m percebia. O negro era muito mentiroso.
- Ent�o a gente troca os embrulhos do mesmo jeito. Pode ficar
descansado. O senhor n�o conhece os Capit�es da Areia.
Apesar do seu desespero, o homem sorriu da bravata de Pedro
Bala:
- Ent�o podem ir. Depois, tem que ser antes de duas horas,
voltem aqui. Mas s� quando a rua estiver deserta. Eu os esperarei.
Acertaremos nossas contas ent�o. Mas quero dizer outra coisa leal-
mente. Se voc�s forem percebidos e presos, n�o me envolvam no caso.
Nada farei porvoc�s, porque meu nome n�o pode aparecer nisso tudo.
Tratem de dar fim a este embrulho e n�o me chamem para nada. �
ganhar ou perder...
-Neste caso-replicou Pedro Bala-� preciso marcaro pre�o
antes. uanto o senhor paga � gente?
- Dou 100. Trinta para cada e mais 10 para voc� apontou
para Pedro.
50
`.: * :-! �AplT�ES DA AItEIA * .  o * ;-!
O Gato se mexeu na cadeira. Pedro fez sinal para que ele se
calasse.
- O senhor d� cinq�enta a cada e parece que ainda vai fazer
neg�cio. S�o 150 bicos pros tr�s. Sen�o, n�o tem embrulho.
O homem n�o vacilou muito. Olhava o rel�gio, onde os ponteiros
corriam:
- Est� bem.
A� o Gato falou:
- N�o � que a gente desconfie do senhor. Mas a coisa pode sair
pelo avesso e o senhor mesmo disse que n�o se importaria com o que
acontecesse � gente.
- E da�?
- � justo que o senhor nos passe logo algum.
Jo�o Grande apoiava o Gato com um gesto de cabe�a. Pedro Bala
repetiu as �ltimas palavras do outro:
- � justo, sim. Se depois a gente n�o pode lhe recorrer...
- � justn repetiu tamb�m o homem. Tirou uma carteira do
bolso. Puxou uma nota de cem mil-r�is. Entregou a Pedro:
-Agora toca a andar. Se faz tarde.
Sa�ram. Pedro Bala disse:
-Pode ficar descansado. Daqui a uma hora a gente volta com o
embrulho.
Em frente da casa (a rua estava completamente deserta, numa
janela da casa havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que
andava de um lado para outro) o Grande bateu na testa:
- Me esqueci da carne pro cachorro.
Pedro Bala estava olhando a janela com luz, se voltou:
- N�o tem nada. Isso me cheira a coisa de amigamento. O
sujeito aquele derrubava a zinha daqui e agora o empregado tem as
cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme. Esse pacote t� com
#
perfiime. � que o outro h� de ter.
5I
* :  A JORGE AMADO s  *  * A
Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua, chegou para
perto do port�o da casa. Logo que se encostou, um grande c�o se
aproximou latindo. Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do
pott�o, enquanto o c�o andava de um lado para outro, latindo baixo.
Depois chamou os outros dois:
- Tu apontou pro Gato fica aqui na rua pra dar o alarma
se vem algu�m. Tu, Grande, entra comigo.
Treparam na gradezinha do muro. Pedro Bala puxou com o
cord�o o ferrolho e o port�o abriu. O Gato tinha ido para a esquina.
O c�o ao ver o port�o aberto se precipitou para a rua, ficou remexendo
uma lata de lixo. Pedro Bala e Jo�o Grande pularam o muro, cerraram
o port�o para que o cachorro n�o pudesse entrar, se adiantaram entre
as �tvnres. Najanela iluminada da casa o vulto de mulher mntinuava
a andar. Jo�o Grande disse baixinho:
- Tenho pena dela.
- Quem manda deitar com outros...
Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se
viesse algu�m.1'inham assovios especiais para estes casos. Pedro Bala
rodeou a casa, chegou � cozinha. A porta estava aberta, como tamb�m
a do quarco sobre a garagem. Per�m, antes de subir a escada que dava
para o quarto, Pedro espiou pela porta da cozinha. Na copa havia luz
e um homemjogava paci�ncia.Deve ser o ta1 empregado, pensou Pedro,
e r�pido se afastou para a escada da garagem. Subiu de quatro, entrou
no quarto do homem. N�o havia luz. Pedro fechou a porca, acendeu
um f�sforo. Havia apenas uma cama, um ba� e um cabide na parede.
O f�sforo se apagou, mas Pedroj� estava em cima da cama, que correu
tnda com as m�os. Depois viu embaixo do colch�o. Tampouco havia
nada. Desceu ent�o da cama, se aproximou, sem fazer ru�do, do ba�.
Suspendeu a tampa, acendeu um f�sforo que prendeu nos dentes.
Remexeu a roupa com cuidado, n�o havia nada. Cuspiu o f�sforo
(depois se lembrou que o homem podia n�o fumar e ent�o o recolheu
ao bolso) e foi at� o cabide. Nada nos bolsos da roupa ali dependurada.
Pedro Bala acendeu outro f�sforo, mirou todo o quarto:
- Com certeza est� com o homem. Agora � que v�o ser elas.
Abriu a potta do quarto, desceu as escadas. Chegou na porta da
cozinha. o homem ainda estava sentado. Ent� Pedro Bala reparou
52
* A !  * yE CAPIT�ES DA AItEIA * ' % A * y
que ele estava sentado em cima do embrulho. Aparecia uma ponta sob
a perna do homem. Pedro pensou que tudo estava perdido. Como iria
ele tirar o embrulho de baixo da perna do homem? Saiu da porta da
cozinha, foi andando para onde estava o Grande. S� se ele e o Grande
atacassem o homem. Mas a� haveria gritaria, todo mundo saberia do
roubo. E o senhor que os tinha empregado n�o queria saber disso. De
repente teve uma id�ia. Chegou perto de onde tinha deixado 0
Grande, assoviou baixinho. Jo�o Grande apareceu logo. Pedro falou
em voz muito baixa:
- Olha, Grande, o tal empregado t� sentado em riba do
embrulho. Tu vai chegar na porta da rua, apertar a campainha e sumir
depois. � pro homem se levantar e eu abafar o embrulho. Mas d� o
su�te logo pro homem n�o te ver, pensar que foi sonho. Deixa passat
o tempo de eu chegar na cozinha.
Voltou r�pido para a porta da cozinha. Da� a um minuto a
campainha soou. O empregado levantou-se �s pressas, abotoou o
palet� e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor, onde acendeu
uma luz. Pedro Bala penetrou na copa, trocou os pacotes e abriu para
os lados da ch�cara. Saltou o muro, assoviou para o Gato e Jo�o
Grande. O Gato veio logo. Mas Jo�o Grande n�o apareceu. Andaram
de um lado para outro e o negro n�o chegava. Pedro come�ava a ficar
impaciente pensando que o empregado podia ter surpreendido Jo�o
Grande e agora estar atracado com ele. Mas quando ele passara por
aqueles lados n�o havia escutado nenhum ru�do... Disse:
- Se ele demorar, a gente entra.
Assoviaram novacnente, n�o tiveram resposta. Pedro Bala resol-
veu:
- Vamos entrar de novo...
Mas ouviram o assovio de Jo�o Grande, que n�o tardou a estar ao
#
lado deles. Pedro perguntou:
- Onde tu te meteu?
O Gato tinha pegado o cachorro pela coleira e o punha para
dentro do port�o. Tiraram o cordel do ferrolho e desapareceram pelo
outro lado da rua. A� o Grande explicou:
- Na hora que meti o dedio nacampainha entonce a dama l� em
cima &cou muito assustada. Pegou, abriu a janela, parecia que ia se
53
 * '.: * A ORGF AMAUO �  * '�= * A
atirar mesmo. Espiava que fazia medo. Tava mesmo chorando.
Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que n�o
chorasse mais, que n�o tinha mais de qu�. Qne a gente tinha abafado
os pap�is. E como tive que explicar tudo a ela, tive que demorar...
O Gato perguntou muito curioso:
- Era boa, era?
-Eraboa, sim. Passou a m�o na minha cabe�a, depois me disse
que muito obrigado, que Deus ia me ajudar.
-Deixa de ser burro, negro. Eu tava perguntando se era boa mas
pra cama. Se tu viu o coxame...
O negro n�o respondeu. Um autom�vel entrava pela rua. Pedro
Bala bateu no ombto do negro e Jo�o Grande sabia que o chefe estava
aprovando o que ele fizera. Ent�o seu rosto se abriu de satisfa��o e
murmurou:
- Eu s� queriaver a cara do galego quando o patr�o abrir o pacote
e n�o encontrar o que esperavam.
E, j� em outra rua, os tr�s soltaram a larga, livre e ruidosa
gargalhada dos Capit�es da Areia, que era como um hino do povo da
Bahia.
' 1 5
O GRANDE CARROSSEL JAPONS NAO ERA SENAO UM PEQUENO
carrossel nacional, que vinha de uma triste peregrina��o pelas paradas
cidades do interior naqueles meses de inverno, quando as chuvas s�o
longas e o Natal est� muito distante ainda. De t�o desbotada que
54
A ' : * y .' rAPIT�ES DA AREIA * ': A * 
estava a tinta, tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o
azul era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e de
tantos peda�os que faltavam em certos cavalos e em certos bancos,
Nhozinho Fran�a resolveu n�o arm�-lo numa das pra�as centrais da
cidade e sim em Itapagipe. Ali as fam�lias n�o s�o t�o ricas, h� muitas
ruas s� de oper�rios e as crian�as pobres saberiam gostar do velho
carrossel desbotado. O pano tinha muitos buracos tamb�m, al�m de
um rasg�o enorme que fazia o carrossel depender da chuva. J� fora
belo, fora mesmo Oorgulho da meninada de Macei� noutros tempos
F icava ent�o ao lado de uma roda-gigante e de uma sombrinha,
sempre na mesma pra�a, e nos domingos e feriados as crian�as ricas,
vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde ingl�s, as meninas de
holandesa ou de finos vestidos de seda, vinham se aboletar nos cavalos
preferidos, indo os menores nos bancos com as aias. Os pais iam para
a roda-gigante, outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar
as mulheres, tocando muitas vezes nas coxas e nas n�degas. O parque
de Nhozinho Fran�a era naquele tempo a alegria da cidade. E, mais
que tudo, o carrossel dava dinheiro, rodando incansavelmente com as
suas luzes de todas as cores. Nhozinho achava a vida boa, as mulheres
belas, os homens am�veis para com ele, mas achava que a bebida era
boa tamb�m, fazia os homens mais am�veis e as mulheres mais belas.
E bebeu assim primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante. Depois,
como n�o queria se separar do carrossel, ao qual tinha um pegadio
especial, o desarmou uma noite com o aux�lio de amigos e come�ou
a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe. Enquanto isto, os
credores o xingavam de quanto nome feio conheciam. Andou muito
Nhozinho Fran�a com o seu carrossel. Depois de percorrer todas as
cidadezinhas dos dois estados, de se embriagar em todos os seus
bares, penetrou no estado da Bahia e at� para o bando de Lampi�o
ele deu uma fun��o. Estava numa pobre vila do sert�o e n�o lhe faltava
o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel. Faltava para o
miser�vel hotel onde se hospedara e que era o�nico da vila, e tamb�m
para o trago de pinga, para a cerveja, que n�o era gelada ali, assim
mesmo ele gostava. O carrossel armado no capim da pra�a da Matriz
estava parado fazia uma semana.Nhozinho Fran�a esperava a noite de
#
s�bado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar
para umlugar melhor. Mas na sexta-feiraLampi�o entrou na vila com
vinte e dois homens e ent�o o carrossel teve muito que trabalhar.
57
;-: * c * o Jo A ;- * c * o
Como as crian�as, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte
e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luza
rodando, ouvir a m�uica velhissima da sua pianola e montar naqueles
estropiados ravalos de pau era a maior felicidade. E o canossel de
Nhozinho Fran�a salvou a pequena vila de ser saqueada, as mo�as de
serem defloradas, os homens de serem mortos. S� mesmo os dois
soldados da polfeia baiana que lustravam as botas na frente do posto
policial foram fireilados pelos cangaceiros, assim mesmo antes que
eles vissem o carrossel armado na pra�a da Matciz. Porque tatvez at�
aos soldados da pol�cia baiana Lampi�o perdoasse nessa noite de
suprema felicidade para o bando de cangaceiros. Ent�o eles foram
como crian�as, gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado
na sua meninice de filhos de camponeses: montar e rodar num cavalo
de madeira de um rarrossel, onde havia m�sica de uma pianola e onde
as luzes eram de todac as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas e
vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados.
Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca (que ficou exci-
tadfssimo) e ao Sem-Pernas naquela tarde em que os encontrou na
Porta do Mar e os convidou para que o ajudassem no servi�o do
carrossel durante os dias que estivesse armado na Bahia, em Itapagipe.
N�o podia marcar ordenado, mas tatvez desse para tirar cada um uns
cinco mil-r�is por noite. E quando Volta Seca mostrou suas habilida-
des em imitar animais os mais v�rios, Nhozinho Fran�a se entusias-
mou por completo, mandou baixar mais uma garrafa de cerveja e
declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o p�blico, enquan-
to o Sem-Pernas o ajudaria com as m�quinas e tomaria conta da
pianola. Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estives-
se parado. Qnando estivesse rodando, Volta Seca o faria. E de guando
em arez, disse piscando Oolho, um sai pra tomar uma pinga enguanto 0
outro faz o servrio de dois.
Volta Sera e o Sem-Pemas nunca haviam acolhido uma id�ia
com tanto entusiasmo. Eles muitas vezesj� tinham visto um carrossel,
mas quase sempre o viam de longe, cercado de mist�rio, cavalgados os
seus r�pidos ginetes por meninos ricos e choraminguentos. O Sem-
Pernas j� tinha mesmo (certo dia em que penetrou num Parque de
Divers�es armado no Passeio P�blico) chegado a comprar entrada
para um, mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido
5b
* o :  * ;.' rAr,rls uA Am # :: o * ;
de farrapos. Depois o bilheteiro n�o quis lhe devoher o bilhete da
entrada, o que fez com que o Sem-Pernas metesse as m�os na gaveta
da bilheteria, que estava aberta, abafasse o troco, e tivesse que
desaparecer do Passeio P�blico de uma maneira muito r�pida, en-
quanto em todo o Parque se ouviam os gritos de: Ladr�o; lodrao!
Houve uma tremenda confiis�o, enquanto o Sem-Pernas descla
muito calmamente a Gamboa de Cima, levando nos bolsos peb
menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada. Mas o Sem-Pernas
preferiria, sem d�vida, ter rodado no carmssel, montado naquek
fant'�stico cavalo de cabe�a de drag�o, que era sem d�vida a coisa mais
estranha e tentadora na maravilha que era o cacrossel para os seus
olhos. Criou ainda mais �dio aos guardas e maior amor aos rirrossbs
distantes. E agora, de repente, vinha um homem que pagava cerneja
e fazia o milagre de o chamar para viver uns diasjunto a um verdadeiro
carrossel, movendo com ele, montando nos seus calos, vendo de
perto rodarem as luzes de todas as cores. E para o Sem-Pernas
Nhozinho Fran�a n�o era o b�bado que estava em sua fiente na pobre
mesa da Porta do Mar. Para seus olhos era um ser extraordin�rio, algo
como Deus, para quem rezava Pirulito, algo como XangB, que era o
santo de Jo�o Grande e do Querido-de-Deus. Porque nem o padre
Jos� Pedro e nem mesmo a m�e-de-santo Don'Aninha seriam capazes
de realizat aquele milagre. Nas nois da Bahia, numa pra�a de
#
Itapagipe, as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas
pelo Sem-Pernas. Era como num sonho, sonho muito diverso dos que
o Sem-Pernas costumava ter nas suas noites angustiosas. E pela
primeira vez seus olhos sentiram-se �midos de l�grimas que n�o eram
causadas pela dor ou pela raiva. E seus olhos �midos miravam
Nhozinho Fran�a como a um �dolo. Por ele at� a garganta de um
homem o Sem-Pernas abriria com a navalha que traz entre a cal�a e
o velho colete preto que lhe serve de palet�.
- � uma beleza disse Pedro Bala olhando o velho cnrel
armado. E Jo�o Grande abria os olhos para ver melhor. Penduradas
estavam as l�mpadas azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas.
* ; : * o Joecs Awo : ` * :: * o
� velho e desbotado o carrossel de Nhozinho Fran�a. Mas tem a
sua beleza. Talvez esteja nas l�mpadas, ou na m�sica da pianola
(velhas valsas de perdido tempo), ou talvez nos ginetes de pau. Entre
eles tem um pato que � para sentar dentro os mais pequenos. Tem a
sua beleza, sim, porque a opini�o un�nime dos Capit�es da Areia � que
ele � maravilhoso. Qne importa que seja velho, roto e de cores
apagadas se agrada �s crian�as?
Foi uma surpresa quase incr�vel quando naquela noite o Sem-
Pemas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar
uns dias num carrossel. Muitos n�o acreditaram, pensaram que fosse
mais uma pilh�ria do Sem-Pernas. Ent�o iam perguntar a Volta Seca,
que, como sempre, estava metido no seu canto sem falar, examinando
um rev�lver que funara numa casa de armas. Volta Seca fazia que sim
com a cabe�a e por vezss dizia:
- Lampi�o j� rodou nele. Lampi�o � meu padrim...
O Sem-Pernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra
noite, quando o acabariam de armar. E saiu para encontrar Nhozinho
Fran�a. Naquele momento todos os pequenos cora��es que pulsavam
no trapiche invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas. At�
mesmo Pinrlito, que tinha quadros de santos na sua parede, at�
mesmo Jo�o Grande, que nessa noite iria com o Querido-de-Deus ao
candombl� de Proc�pio, no Matatu, at� mesmo o Professor, que lia
livros, e quem sabe se tamb�m Pedro Bala., que nunca tivera inveja de
nenhum porque era o chefe de todos? Todos o invejaram, sim. Como
invejaram Volta Seca, que no seu canto, o cabelo mesti�o e ralo
despenteado, os olhos apertados e a boca rasgada naquele rictus de
raiva, apontava o rev�lver ora para um dos meninos, ora para um rato
que passava, ora para as estrelas, que eram muitas no c�u.
Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas e Volta Seca (estes
tinham passado o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o carrossel) ver
o carrossel armado. E estavam parados diante dele, extasiados de
beleza, as bocas abertas de admira��o. O Sem-Pernas mostrava tudo.
Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo que tinha sido
cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampi�o. Eram quase
cem crian�as olhando o velho carrossel de Nhozinho Fran�a, que a
estas horas estava encornado num p' ao tremendo na Porta do Mar.
58
o c: * c-, GrJs d AiA *  : o * ;'�
O Sem-Pernas mostrou a m�quina (um pequeno motor que
falhava muito) com um orgulho de propriet�rio. Volta Seca n�o se
desprendia do cavalo onde rodara Lampi�o. O Sem-Pernas estava
muito cuidadoso do carrossel e n�o deixava que eles o tocassem, que
bulissem em nada.
Foi quando o Professor perguntou:
- Tu j� sabe mover com as m�quinas?
- Amanh� � que vou saber... disse o Sem-Pemas com um
certo desgosto. - Amanh� seu Nhozinho vai me ensinar.
- Ent�o amanh�, quando acabar a fun��o, tu pode botar ele pra
rodar s� com a gente. Tu bota as coisas pra andar, a gente se aboleta.
Pedro Bala apoiou a id�ia com entusiasmo. Os outros esperavam
a resposta do Sem-Pernas ansiosos. O Sem-Pernas disse que sim, e
ent�o muitos bateram palmas, outros gritaram. Foi quando Volta
Seca deixou o cavalo onde montara Lampi�o e veio para eles:
- Qner ver uma coisa bonita?
Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na
pianola e come�ou a m�sica de uma valsa antiga. O rosto sombrio de
Volta Seca se abria num sornso. Espiava a pianola, espiava os meninos
envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela m�sica que
#
sa�a do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia s� para
os ovidos aventureiros e pobres dos Capit�es da Areia. Todos
estavam silenciosos. Um oper�rio que vinha pela rua, vendo a aglome-
ra��o de metinos na pra�a, veio para o lado deles. E ficou tamb�m
parado, escutando a velha m�sica. Ent�o a luz da lua se estendeu sobre
todos, as estrelas brilharam ainda mais no c�u, o mar ficou de todo
manso (talvez que Yemanj� tivesse vindo tamb�m ouvir a m�sica) e a
cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invis�veis
cavalos os Capit�es da Areia. Neste momento de m�sica eles sentiram-
se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irm�os
porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o
carinho e conforto da m�sica. Volta Seca n�o pensava com certeza em
Lampi�o neste momento. Pedro Bala n�o pensava em ser um dia o
chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no
mar, onde os sonhos s�o todos belos. Porque a m�sica sa�a do bojo do
59
C * `.: * o ORGE AMADO ;y * `:: * o
velho carrossel s� para eles e para o oper�rio que parara. E era uma
valsa velha e triste, j� esquecida por todos os homens da cidade.
Desemboca gente de todas as ruas. � noite de s�bado, amanh� os
homens n�o ir�o para o trabalho. Podem demorar na rua essa noite.
Muitos preferiram ir para os bares, a Porta do Mar est� cheia, mas os
que tinham filhos vieram com eles para a pra�a, que � mal iluminada.
Em compensa��o a� est�o as luzes do carrossel que rodam. As crian�as
olham para elas e batem palmas. Em frente � bilheteria Volta Seca
imita vozes de animais e chama o p�blico. Leva uma cartucheira,
como se estivesse no sert�o. Nhozinho Fran�a achou que isto chama-
ria a aten��o do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com
o chap�u de couro e a cartucheira atravessada. E imita animais at� que ,
se re�nam homens, mulheres e crian�as na sua frente. Ent�o oferece
entradas, que as crian�as compram. Vai uma alegria por toda a pra�a.
As luzes do carrossel alegram a todos. No centro, agachado, o Sem-
Pernas ajuda Nhozinho Fran�a a botar o motor para trabalhar. E o
carrossel gira, carregado de meninos, a pianola toca suas velhas valsas,
Volta Seca vende entradas.
Na pra�a, casais de namorados passeiam. M�es de fam�lia com-
pram picol�s e sorvetes, um poeta sentado perto do mar faz um poema
sobre as luzes do carrossel e a alegria das crian�as. O carrossel ilumina
toda a pra�a e todos os cora��es. A cada momento desemboca gente
das ruas e dos becos. Volta Seca imita os animais, vestido de canga-
ceiro. Qnando o carrossel p�ra de girar, os meninos o invadem,
exibindo o bilhete de ingresso, e � dif�cil cont�-los. Qnando um n�o
encontra mais lugar, fica com um rosto magoado de desilus�o e espera
impaciente a sua vez. E quando o carrossel p�ra, os que v�o nele n�o
querem saltar, � preciso que o Sem-Pernas venha e diga:
- Pula fora! Pula fora! Ou ent�o compra outra entrada.
S� assim deixam os velhos cavalos, que nunca se cansam da eterna
corrida. Outros cavalgam os ginetes e a corrida recome�a, as luzes
girando, todas as cores fazendo uma cor �nica e estranha, a pianola
tocando sua antiga m�sica. Tamb�m v�o casais de namorados nos
bancos e enquanto gira o carrossel murmuram palavras de amor. H�
sa
*o V: * C: �ppIT�ES DAREIA * :: o * 
br
;:: *  * o JoRcE AnPo :' * O * o
mesmo quem troque um beijo na corrida, quando o motor fatha e as
luzes se apagam. Ent�o Nhozinho Fran�a e o Sem-Pernas se debru-
�am sobre o motor e examinam o defeito at� a cornda recome�ar,
abafando os protestos dos meninos. O Sem-Pernasj� aprendeu todos
os mist�rios do motor.
Certa hora Nhozinho Fran�a manda que o Sem-Pemas v�
substituir Volta Seca na venda de bilhetes. E manda que Volta Seca
v� andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a Lampi�o.
E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um
verdadeiro cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos
que v�o na sua frente, e na sua imagina��o os v� cair banhados em
cangue, sob os tiros da sua repeti��o. E o cavalo corre e cada vez corre
mais, e ele mata a todos, porque s�o todos soldados ou fazendeiros
ricos. Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, 
cidades, trens de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.
#
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha como��o 0
possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio
da mulher amada, um suicida para a morte. Vai p�lido e coxeia. Monta
um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os
l�bios est�o apertados, seus ouvidos n�o ouvem a m�sica da pianola.
S� v� as luzes que giram com ele e prende em :i a certeza de que est�
num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que
t�m pai e m�e, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que
� um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. J� n�o
v� os soldados que o surtaram, o homem de colete que ria. Volta Seca
os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. � como
se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem
do mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou.
Seu cora��o bate tanto, tanto, que ele o aperta com a m�o.
Nesta noite os Capit�es da Areia n�o vieram. N�o s� a fun��o do
canossel na pra�a terminou muito tarde (�s duas horas da manh� os
homens ainda rodavam), como muitos deles, inclusive Pedro Bala,
Boa-Vida, Barand�o e o Professor, estavam ocupados em v�rios
assuntos. Manaram para o dia seguinte, das tr�s para as quatro da
6?
* o '.: * s CAPIT�ES PA REIA * '.  o * y %
manh�. Pedro Bala perguntou ao Sem-Pernas se elej� sabia manobrar
bem com o motor:
- N�o paga a pena dar um preju�zo ao teu patr�o explicou.
- J� sei aquilo tudo de cor e decorado. � o tipo da coisa canja.
O Professor, que jogava damas com Jo�o Grande, perguntou:
-N�o era bom a gente de tarde d� um pulo na pra�a? uem sabe
se n�o vale a pena?
- Eu vou falou Pedro Bala. - Mas acho que n�o pode ir
muitos. A turma pode desconfiar de ver tanto junto.
O Gato disse que de tarde n�o ia. Tinha o que fazer,j� que � noite
ia estar ocupado no carrossel. O Sem-Pernas mangou:
-Tu n�o pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca,
n�o �? Tu vai acabar tutu...
O Gato n�o respondeu. Jo�o Grande tamb�m n�o iria � tarde.
Tinha que ir encontrar com o Qnerido-de-Deus para irem comer uma
feijoada na casa de Don'Aninha, a m�e-de-santo. Finalmente ficou
resolvido que fosse um grupo pequeno operar � tarde na pra�a. Os
outros iriam para onde bem quisessem. S� � noite se reuniriam para
irem todos cotrer no carrossel.
- � preciso levar gasolina, gente, pro motor.
O Professor (tinha vencido Jo�o Grande j� em tr�s partidas) fez
uma coleta para comprarem dois litros de gasolina:
- Eu levo.
Mas na tarde do domingo chegou o padre Jos� Pedro, que era uma
das rar�ssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais perma-
nente dos Capit�es da Areia. O padre Jos� Pedro se fizera amigo deles
h� bastante tempo. A amizade veio por interm�dio do Boa-V'ida.
Este, um dia, penetrara, ap�s uma missa, na sacristia de uma igreja
onde oficiava padre Jos� Pedro. Penetrara mais por curiosidade que
por outra qualquer coisa. Boa-Vida n�o era dos que mais faziam pela
v�da. Gostava de deixar a vida correr, sem se preocupar muito. Era
mais um parasita do grupo. Um dia, quandolhe dava ganas, entrava
numa casa de onde trazia um objeto de valor ou batia o rel�gio de um
homem. Quase nunca o punha ele mesmo na m�o dos intermedi�rios.
Trazia e entregava a Pedro Bala, assim como uma contribui��o que
63
* '.: * A ORGE AMADO �  * '�: * A
dava ao grupo. Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais, em
v�rias casas pobres da Cidade de Palha, em muitos pontos da Bahia.
Comia em casa de um, em casa de outro. Em geral n�o aborrecia a
nenhum. Se contentava com as mulheres que sobravam do Gato e
mais que nenhum conhecia a cidade, suas ruas, seus lugares curiosos,
uma festa onde podiam ir beber e dan�ar. Quando j� tinha algum
tempo que havia contribu�do com algum objeto de valor para a
economia do grupo, fazia um esfor�o, arranjava algo que rendesse
dinheiro e entregava a Pedro Bala. Mas realmente n�o gostava de
nenhuma esp�cie de trabalho, fosse honesto ou desonesto. Gostava
era de deitar na areia do cais, horas e horas espiando os navios, de ficar
de c�coras tardes inteiras nos port�es dos armaz�ns do porto ouvindo
#
hist�rias de valentias. Vestia-se de farrapos, pois s� providenciava
arranjar uma roupa quando seu traje ca�a aos peda�os. Gostava de
andar ao l�u nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um
cigarro sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza
do ouro velho, ffanando pelas ruas cal�adas de grandes pedras negras.
Naquela manh�, quando viu o povo saindo da missa, entrou na
igreja displicentemente e foi furando at� a sacristia. Espiava tudo, os
altares, os santos, riu de um S�o Benedito muito preto. Na sacristia
n�o tinha ningu�m e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito
dinheiro. Espiou mais umavez, n�oviu ningu�m. Foi passando a m�o,
mas algu�m tocou no seu ombro. O padre Jos� Pedro acabara de
entrar:
- Por que faz isso, meu filho? perguntou com um sorriso,
enquanto tirava da m�o do Boa-Vida o relic�rio de ouro.
-Tava s� dando uma espiada, reverendo. � batuta-respondeu
Boa-Vida com certo receio. -� batuta mesmo. Mas n�o v� pensando
que ia levar. Ia deixar a� direitinho. Sou de boa fam�lia.
O padre Jos� Pedro espiou as roupas do Boa-V'ida e riu. Boa-Vida
olhou tamb�m para seus trapos:
- � que meu pai morreu, sabe? Mas at� num col�gio estive...
Tou falando a verdade. Pra que � que eu ia roubar essa coisa? -
apontava o relic�rio. - Demais numa igreja. N�o sou pag�o.
O padre Jos� Pedro sorriu de novo. Sabia perfeitamente que
Boa-Vida estava mentindo. H� muito que ele aguardava uma
64
* O ': * t' ..o,r�Es DA AsEiA * ':: A * :`
oportunidade para travar rela��es com as crian�as abandonadas da
cidade. Pensa -ra que aquela era a miss�o que lhe estava reservada. J�
fizera umas tantas visitas ao reformat�rio de menores, mas ali lhe
punham todas as dificuldades porque ele n�o esposava as id�ias do
diretor de que � necess�rio surrar uma crian�a para a emendar de um
erro. E mesmo o diretor tinha id�ias �nicas sobre os erros. H� bastante
tempo que o padre Jos� Pedro ouvia falar nos Capit�es da Areia e
sonhava entrar em contato com eles, poder trazsr todos aqueles
cora��es a Deus. Tinha uma vontade enorme de trabalhar com
aquelas crian�as, de ajud�-las a serem boas. Por isso tratou o melhor
que p�de a Boa-V'ida. Quem sabe se por interm�dio dele n�o chegaria
aos Capit�es da Areia? E assim foi.
O padre Jos� Pedro n�o era considerado uma grande intelig�ncia
entre o clero. Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legi�o
de padres da Bahia. Em verdade fora cinco anos oper�rio numa f�brica
de tecidos, antes de entrar para o semin�rio. O diretor da f�brica, num
dia em que o bispo a visitara, resolveu dar mostra de generosidade e
disse que j� que o senhor bispo se queixava da falta de vocaf�o sacerdotal,
ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de algu�m qut
quisesse estudarparapadre. Jos� Pedro, que estava no seu tear, ouvindo,
se aproximou e disse que ele queria ser padre. Tanto o patr�o como 0
bispo tiveram uma surpresa. Jos� Pedro j� n�o era mo�o e n�o tinha
estudo algum. Mas o patr�o, diante do bispo, n�o quis voltar atr�s. E
Jos� Pedro foi para o semin�rio. Os demais seminaristas riam dele.
Nunca conseguiu ser um bom aluno. Bem comportado, isso era.
Tamb�m dos mais devotos, daqueles que mais se acercavam da igreja.
N�o estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no
semin�rio e por isso os meninos o perseguiam. N�o conseguia pene-
trar os mist�rios da filosofia, da teologia e do latim. Mas era piedoso
e tinha desejos de catequizar crian�as ou �ndios. Sofreu muito,
principalmente depois que, passados dois anos, o dono da f�brica
deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no
semin�rio para poder continuar. Mas conseguiu se ordenar e ficou
adido a uma igreja da capital, esperando uma par�quia. Por�m seu
grande desejo era catequizar as crian�as abandonadas da cidade, os
meninos que, sem pai e sem m�e, viviam do roubo, em meio a todos
os v�cios. O padre Jos� Pedro queria levar aqueles cora��es todos a
65
;- * c * o ,E  :v * c * o
Deus. Assim come�ou a freq�entar o reformat�rio de menorec, onde
a princ�pio o diretor o recebia com muita cortesia. Mas quando ele se
dedarou contra os castigos corporais, contra deixar as crian�as com
fome dias seguidos, ent�o as coisas mudaram. Um dia teve que
escrever uma carta sobre o assunto para a reda��o de um jornal. Ent�o
#
sua entrada foi proibida no reformat�rio e at� uma queixa contra ele
foi dirigida ao arcebispado. Por isso n�o teve uma freguesia logo.
Por�m seu maior desejo era conhecer os Capit�es da Areia. O
problema dos menores abandonados e delinq�entes, que quase n�o
preocupava a ningu�m em toda a cidade, era a maior preocupa��o do
padre Jos� Pedro. Ele queria se aproximar daquelas crian�as n�o s�
para traz�-las para Deus, como para ver se havia algum meio de
melhorar sua situa��o. Pouca influ�ncia tinha o padre Jos� Pedro.
N�o tinha mesmo influ�ncia nenhuma, nem tampouco sabia como
agir para ganhar a confian�a daqueles pequenos ladr�es. Mas sabia
que a vida deles era falta de todo o conforto, de todo carinho, era
uma vida de fome e de abandono. E se o padre Jos� Pedro n�o tinha
cama, comida e roupa para levar at� eles, tinha pelo menos palavras
de carinho e, sem d�vida, muito amor no seu cora��o. Numa coisa
se enganou, a princ�pio, o padre Jos� Pedro: em lhes oferecer, em
troca do abandono da liberdade que gozavam, soltos na rua, uma
possibilidade de vida mais confort�vel. O padre Jos� Pedro bem
sabia que n�o podia acenar com o reformat�rio �quelas crian�as. Ele
conhecia demais as leis do reformat�rio, as escritas e as que se
cumpriam. E sabia que n�o havia possibilidade de nele uma crian�a se
tornar boa e trabalhadora. Mas o padre Jos� Pedro confiava em umas
amigas que possu�a, beatas velhas e religiosas. Elas podiam se encar-
regar de v�rios dos Capit�es da Areia, de educ�-los e aliment�-los.
Mas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida deles:
a aventura da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades
do mundo, nas ruas da Bahia de Todos os Santos. E logo que, por
interm�dio de Boa-V'ida, o padre Jos� Pedro fez rela��es com os
Capit�es da Areia, viu que se lhes fizesse essa proposta perderia toda
a confian�a quej� depositavam nele e que se mudariam do trapiche e
e1e nunca mais os veria. Al�m do mais n�o tinha absoluta confian�a
naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e que
aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida alheia.
Lembrava-se que, a princ�pio, elas tinham ficado magoadas com ele
66
* o '�: * :-' Arn�,Es uA AWA *  ? o * :'`
porque, ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja, um
grupo de beatas se acercou dele com o evidente prop�sito de o ajudar
a mudar os trajes do of�cio da missa. E ressoaram em torno a ele
exclama��es comovidas:
- Reverendozinho... Anjo Gabriel...
Uma velhusca magra juntava as m�os em adora��o:
- Meu Jesuscristozinho...
Pareciam ador�-lo e o padre Jos� Pedro se revoltou. Em verdade
ele sabia que a grande maioria dos padres n�o se revoltava e ganhava
bons presentes de galinhas, perus, len�os bordados e por vezes at�
antigos rel�gios de ouro que passavam atrav�s de gera��es na mesma
famMia. Mas o padre Jos� Pedro tinha outra id�ia da sua miss�o,
pensava que os outros estavam errados e foi com um furor sagrado que
disse:
-As senhoras n�o t�m o que fazer? N�o t�m casa de que cuidar?
Eu n�o sou Jesuscristozinho, nem Anjo Gabriel... V�o para suas casas
trabalhar, preparar o almo�o, coser.
As beatas o olhavam assombradas. Era como se ele fosse o pr�prio
Anticristo. O padre completou:
- Em suas casas trabalhando servem melhor a Deus que aqui
cheirando as fraldas dos padres... V�o, v�o...
E enquanto elas sa�am atemorizadas, ele repetia mais com m�goa
que com raiva:
- Jesuscristozinho... O nome de Deus em v�o.
As beatas foram diretas ao padre Cl�vis, que era gordo, calvo e
muito bem-humorado, confessor preferido de todas elas. Narraram-
lhe entre exclama��es de assombro o que acabara de se passar. O padre
Cl�vis mirou as beatas com um olhar temo e as consolou:
- Logo passar�... Isto � come�o. Depois ele ver� que voc�s s�o
umas santas, umas verdadeiras filhas do Senhor. Isso passar�. N�o
fiquem tristes. V�o rezar um padre-nosso e n�o se esque�am que h�
b�n��o hoje.
Ficou rindo quando elas partiram. E murmurava de si para si:
- Esses padres rec�m-ordenados estragam a vida da gente...
67
#
* '.: * � OR6E AMADO ' * ' : * �
Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente
do padre Jos� Pedro. A verdade � que nunca chegaram a ter com ele
uma perfeita intimidade. O seu ar s�rio, a sua bondade que se reservava
para quando se fazia necess�ria, e seu horror �s intriguinhas de
sacristia faziam com que elas o respeitassem ma�s que o amassem.
Algumas, no entanto, aquelas que em geral eram ou vi�vas ou esposas
de maus maridos, se fizeram mais ou menos suas amigas. Outra coisa
o afastava das beatas: ele era a nega��o do pregador. Nunca havia
conseguido descrever o infemo com a for�a de convic��o do padre
Cl�vis, por exemplo. Sua ret�rica era pobre e falha. No entanto, ele
acreditava, ele era um crente. E dificilmente se poderia dizer que o
padre Cl�vis acreditasse pelo menos no inferno.
A princ�pio o padre Jos� Pedro pensara em levar os Capit�es da
Areia �s beatas. Pensava que assim salvaria n�o s� as crian�as de uma
vida miser�vel, como salvaria tamb�m as beatas de uma inutilidade
perniciosa. Poderia conseguir que elas se dedicassem aos meninos
com a mesma fervorosa devo��o com que se dedicavam �s igrejas, aos
gordos padres. O padre Jos� Pedro adivinhava (mais do que sabia) que
se elas passavam os dias em in�teis conversas nas igrejas, ou a bordar
len�os para o padre Cl�vis, era porque n�o haviam tido, na sua
malograda exist�ncia de virgens, um filho, um esposo, a quem-dedicar
seu tempo e seu carinho. Agora ele levaria filhos para elas. Muito
tempo o padre Jos� Pedro acariciou este projeto. Chegou mesmo a
levar para casa de uma um menino do reformat�rio. Isso muito antes
de conhecer os Capit�es da Areia, quando apenas ouvia falar neles. A
experi�ncia deu maus resultados: o menino arribou da casa da soltei-
rona levando uns objetos de prata, preferindo a liberdade da rua,
mesmo vestido de farrapos e sem muita certeza de almo�o, aos bons
trajes e ao almo�o garantido com a obriga��o de rezar o ter�o em voz
alta, assistir v�rias missas e b�n��os todos os dias. Depois o padre Jos�
Pedro compreendeu que a experi�ncia tinha fracassado mais por culpa
da solteirona que do menino. Porque evidentemente pensava o
padre Jos� Pedro - � imposs�vel converter uma crian�a abandonada
e ladrona em um sacrist�o. Mas � muito poss�vel convert�-la em um
homem trabalhador... E esperava quando conhecesse os Capit�es da
Areia entrar num acordo com alguns deles e com as beatas para tentar
uma nova experi�ncia, agora bem dirigida. Mas logo depois que
sa
* � ': * ;' ..Arn,Es Da AREiA *  : � * ;'�
Boa-V�da o apresentou ao grupo, que aos poucos ganhou a confian�a
da maioria, viu que era totalmente in�til pensar nesse projeto. Viu que
era absurdo, porque a l�berdade era o sentimento mais arraigado nos
cora��es dos Capit�es da Areia e que tinha que tentar outros meios.
Nas primeiras vezes os meninos o olhavam com desconfian�a.
Ouviam muitas vezes na rua dizer que padre dava peso, que neg�cio
de padre era para mulher. Mas o padre Jos� Pedro tinha sido oper�rio
e sabia como tratar os meninos. Tratava-os como a homens, como a
amigos. E assim conqu�stou a confian�a deles, se fez amigo de todos,
mesmo daqueles que, como Pedro Bala e o Professor, n�o gostavam
de rezar. Dificuldade grande s� teve mesmo com o Sem-Pernas.
Enquanto que o Professor, Pedro Bala, o Gato eram indiferentes �s
palavras do padre (o Professor, no entanto, gostava dele, pois lhe trazia
livros), Pirulito, Volta Seca e Jo�o Grande, principalmente o primei-
ro, muito atentos ao que ele dizia, o Sem-Pernas lhe fazia uma
oposi��o que a princ�pio tinha sido muito tenaz. Por�m o padre Jos�
Pedro terminara por conquistar a confian�a de todos. E pelo menos
em Pirulito descobrira uma voca��o sacerdotal.
Mas naquela tarde n�o foi com muita satisfa��o que o viram
chegar. Pirulito se aproximou e beijou a m�o do padre. Volta Seca
tamb�m. Os demais o cumprimentaram. O padre Jos� Pedro expli-
cou:
- Hoje venho fazer um convite a todos voc�s.
Os ouvidos se fizeram atentos. O Sem-Pernas resmungou:
- Vai chamar a gente pra b�n��o. S� quero ver quem topa...
Mas se calou porque Pedro Bala o olhava com raiva. O padre
sornu com bondade. Sentou-se num caix�o, Jo�o Grande viu que a
batina dele era suja e velha. Tinha remendos feitos com linha preta e
era grande para a magreza do padre. Cutucou Pedro Bala, que espiou
tamb�m. Ent�o o Bala disse:
#
-Minha gente, o padre Jos� Pedro, que � amigo de n�s, tem uma
coisa pra gente. Viva o padre Jos� Pedro!
Jo�o Grande sabia que tudo era por causa da batina rasgada e
grande para a magreza do padre. Os outros responderamviva, o padre
sorriu acenando com a m�o, Jo�o Grande n�o tirava os olhos dabatina.
Pensou que Pedro Bala era mesmo um chefe, sabia de tudo, sabia fazer
b9
s? * ! : * o ORGE AMADO �  * = * o
tudo. Por Pedro Bala, Jo�o Grande se deixaria cortar a fac�o como
aquele negro de Ilh�us por Barbosa, o grande senhor do canga�o. O
padre Jos� Pedro meteu a m�o no bolso da batina, tirou o brevi�rio
negro. Abriu e de dentro sacou algumas notas de dez mil-r�is:
-lsso � pra gente andar no carrossel hoje... Convido voc�s todos
para andarem hoje no carrossel da pra�a de Itapagipe.
Esperava que os rostos se animassem mais. ue uma extraor-
din�ria alegria reinasse em toda sala. Porque assim ficaria ainda mais
convicto de que estava servindo a Deus quando daqueles quinhentos
mil-r�is que dona Guilhermina Silva dera para comprar velas para o
altar da V'irgem tirara cinq�enta mil-r�is para levar os Capit�es da
Areia ao carrossel. E como os rostos n�o ficaram subitamente alegres,
ele ficou desconcertado, as notas na m�o, olhando a multid�o de
meninos. Pedro Bala co�ou o cabelo (que lhe
ca�a sobre as orelhasl
quis falau, n�o acertou. Olhou ent�o para o Professor, e foi este quem
explicou:
- Padre, o senhor � um homem bom. -Teve vontade de dizer
que o padre era bom como Jo�o Grande, mas pensou que talvez o
padre se ofendesse se ele o comparasse ao negro. - Mas o que tem �
que o Sem-Pernas e Volta Seca t�o os dois trabalhando no carrossel.
E a gente t� convidado a� fez uma pequena pausa pelo
propriet�rio, que � amigo deles, pra andar � noite de gra�a. A gente n�o
esquece do convite do senhor... - O Professor falava pausado,
escolhendo as palavras, pensando que aquele era um momento deli-
cado, adivinhando muita coisa, e Pedro Bala o apoiava com a cabe�a.
-Fica pra outra vez. Mas o senhor n�o vai zangar com a gente porque
a gente n�o aceita? N�o vai, n�o �? e espiava o padre, cujo rosto
agora estava novamente alegre.
- N�o. Fica pra outra vez. - Olhou para os meninos sorrindo.
- Foi at� melhor assim. Porque o dinheiro que eu tinha... e se
calou de repente ante o fato que ia contar. E pensou que talvez tivesse
sido uma li��o de Deus, um aviso, e que tivesse feito uma coisa
malfeita. Seu olhar foi t�o estranho, que os meninos se aproximaram
um passo.
Olhavam para o padre sem compreender. Pedro Bala franzia a
testa como quando tinha um problema a resoh�er, o Professor tentou
70
* o !: * C.`` CArl,Es oo, AREiA * ! : o * :.'`
falar. Mas Jo�o Grande compreendeu tudo, apesar de ser o mais burro
de todos:
-Era da igreja, padre?e bateu na boca com raiva de si mesmo.
Os outros entenderam. Pirulito pensou que tivesse sido um
grande pecado, mas sentiu que a bondade do padre era maior que o
pecado. Ent�o o Sem-Pernas veio coxeando ainda mais que o seu
natural, como se viesse lutando consigo mesmo, chegou perto do
padre e quase gritou a princ�pio, se bem logo baixasse muito a voz:
- A gente pode botar no lugar onde estava... � coisa canja pra
gente. N�o fique triste... e sorria.
E o sorriso do Sem-Pernas e a amizade que o padre lia nos olhos
de todos (haveria l�grimas nos olhos do Grande? ) lhe restitu�ram a
calma, a serenidade, a confian�a no seu ato e no seu Deus. Disse com
sua voz natural:
- Uma velha vi�va deu quinhentos mil-r�is para vela. Eu tirei
cinq�enta para voc�s andarem no carrossel. Deus julgar� se fiz bem.
Agora compro mesmo de vela.
Pedro Bal� sentia que tinha uma d�vida a saldar com o padre.
Qneria que o padre soubesse que todos eles compreendiam. E como
n�o achasse nada mais � m�o, se disp�s a perder o trabalho que
poderiam fazer naquela tarde e convidou o padre:
- A gente vai pro carrossel ver Volta Seca e Sem-Pernas agora
de tarde. Quer ir com a gente, padre?
Padre Jos� Pedro disse que sim, porque sabia que aquilo era mais
#
um passo na sua intimidade com os Capit�es da Areia. E foi um grupo
com o padre para a pra�a. V�rios n�o foram, o Gato inclusive, que foi
ver Dalva. Mas os que iam pateciam um bando de bons meninos que
vinham do catecismo. Se estivessem bem vestidos e limpos, pareceria
um col�gio de t�o em ordem que eles iam.
Na pra�a rodaram tudo com o padre. Mostravam com orgulho
Volta Seca imitando animais, vestido de cangaceiro, o Sem-Pernas
fazendo sozinho o carrossel girar, porque Nhozinho Fran�a fora
tomar uma cerveja num bar. Uma pena que � tarde as luzes do
carrossel n�o estivessem acesas. N�o era t�o belo como � noite, as
luzes girando de todas as cores. Mas eles tinham orgulho de Volta
Seca imitando animais, do Sem-Pernas movimentando o carrossel,
7I
* '. ' * o OkGE �MADO � ! * ` : * o
fazendo as crian�as subirem, as crian�as baixarem. O Professor, com
um peda�o de l�pis e uma tampa de caixa, desenhou Volta Seca vestido
de cangaceiro. Tinha um jeito especial para desenhar e por vezes
ganhava dinheiro fazendo desenho, nas cal�adas, de homens que
passavam, de senhoritas que iam com os noivos. Estes paravam um
minuto, riam do desenho ainda indeciso, as noivas diziam:
- Est� muito parecido...
Ele recolhia os n�queis e ent�o ficava a retocar o desenho feito a
giz, a ampli�-lo, a colocar homens de cais e mulheres da vida, at� que
um guarda o expulsava da cal�ada. Por vezesj� tinha um grupo grande
espiando e havia quem dissesse:
- Este menino promete. � pena que o governo n�o olhe essas
voca��es. .. -e lembravam casos de meninos da rua que, ajudados por
famMias, foram grandes poetas, cantores e pintores.
O Professor acabou o desenho (no qual p�s o carrossel e Nhozinho
Fran�a caindo de b�bado) e deu ao padre. Estavam todos num grupo
cerrado espiando o desenho, que o padre elogiava, quando ouviram:
- Mas � o padre Jos� Pedro...
E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como uma
arma de guerra. O padre Jos� Pedro ficou meio sem jeito, os meninos
olhavam com curiosidade os ossos do pesco�o e do peito da velha,
onde um barret custos�ssimo brilhava � luz do sol. Houve um momen-
to em que todos ficaram calados, at� que o padre Jos� Pedro criou
�nimo e disse:
- Boa tarde, dona Margarida.
Mas a vi�va Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de
ouro.
- O senhor n�o se envergonha de estar nesse meio, padre? Um
sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta
gentalha...
- S�o crian�as, senhora.
A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca.
O padre continuou:
- Cristo disse: Deixai vir a mim as criancinhas...
- Criancinhas... Criancinhas... cuspiu a velha.
72
* o c: * c:: CAllTIlES DA AkEIA * `.: o * y:
-Ai de guem fafa ma1 a uma crianFa, falou o Senhor e o padre
Jos� Pedro elevou a v�n acima do desprezo da velha.
- Isso n�o s�o crian�as, s�o ladr�es. Velhacos, ladr�es. Isso n�o
s�o crian�as. S�o capazes at� de ser dos Capit�es da Areia. . . Ladr�es
repetiu com nojo.
Os meninos a fitavam com curiosidade. S� o Sem-Pernas, que
tinha vindo do carrossel pois Nhozinho Fran�a j� voltara, a olhava
com raiva. Pedro Bala se adiantou um passo, quis explicar:
- O padre s� quer aju...
Mas a velha deu um repel�o e se afastou.
-N�o se aproxime de mim, n�o se aproxime de mim, imund�cie
Se n�o fosse pelo padre eu chamava o guarda.
Pedro Bala a� riu escandalosamente, pensando que se n�o fosse
pelo padre a velha j� n�o teria o barret nem tampouco o lorgnon. A
velha se afastou com um ar de grande superioridade, n�o sem dizer
antes para o padre Jos� Pedro:
-Assim o senhor n�o vai longe, padre. Tenha mais cuidado com
as suas rela��es.
Pedro Bala ria cada vez mais, e o padre tamb�m riu, se bem se
#
sentisse triste pela velha, pela incompreens�o da velha. Mas o carros-
sel girava com as crian�as bem vestidas e aos poucos os olhos dos
Capit�es da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de
andar nos cavalos, de girar com as luzes. Eram crian�as, sim -pensou
o padre.
No come�o da noite caiu uma carga d'�gua. Tamb�m as nuvens
pretas logo depois desapareceram do c�u e as estrelas brilharam,
brilhou tamb�m a lua cheia. Pela madrugada os Capit�es da Areia
vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esquece-
ram que n�o eram iguais �s demais crian�as, esqueceram que n�o
tinham lar, nem pai, nem m�e, que viviam de furto como homens, que
eram temidos na cidade como ladr�es. Esqueceram as palavras da
velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crian�as,
cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas
;'� * :: * A Jos Ao ; ' * r: * A
brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam na
noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas do
Grande Carrossel Japtin�s.
PEDRO BALA BATEU A MOEDA DE QjIATROCENTOS R�IS NA PAREDE DA
Alf�ndega, ela caiu adiante da de Boa-Vida. Depo�s Pirulito bateu a
dele, a moeda ficou entre a de Boa-V'Ida e a de Pedro Bala. Boa-V'ida
estava acocorado, espiando. Tirou o cigarro da boca:
- Eu gosto � assim mesmo. De come�ar ruim...
E continuaram o jogo, mas Boa-V'ida e Pirulito perderam ac
moedas de quatrocent�o, que Pedro Bala embolsou:
- Eu sou � bamba mesmo.
Diante deles estavam os saveiros ancorados. Do Mercado sa�am
mulheres e homens. Eles esperavam nesta tarde o saveiro do Querido-
de-Deus. O capoeirista estava numa pescaria, que sua profiss�o era de
pescador. Continuaram o jogo do cruzado at� que Pedro Bala limpou
os outros dois. A cicatriz do seu rosto brilhava. Gostava de vencer
assim num jogo limpo, princ�palmente quando os parceiros eram da
for�a do Pirulito (que fora muito tempo o campe�o do grupo) e de
Boa-Vida. Q,uando terminaram, Boa-V'lda puxou o bolso para fora.
-Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado. Tou a nem-
nem.
Depois mirou o mar, os saveiroc ancorados:
- Querido-de-Deus vai chegar de tardinha. Vamos pras docas?
ra
* ;. � CAPITAES DA AItEIA * :: o * ;-,
Pirulito disse que ficava esperando o Qnerido-de-Deus, mas
Pedro Bala foi comBoa-Vida para as docas. Atravessaram as ruas do
cais, afundaram os p�s na areia. Um navio desatracava do armaz�m 5,
havia um movimento de gente que entrava e sa�a. Pedro Bala pergun-
tou ao Boa-VIda:
- Tu n�o tem vontade de ser mar�timo?
-T� vendo... Gosto daqui. N�o quero arribar, n�o.
- Pois eu tenho vontade. � bonito trepar num mastro. E um
temporal, hein? Tu te lembra daquela hist�ria que o Professor leu pra
gente? Aquela que tinha um temporal. Batuta...
- Era porreta, sim.
Pedro Bala ficou se lembrando da hist�ria. Boa-V'ida achava
besteira sair da Bahia, onde, quando crescesse, seria t�o f�cil viver uma
boa exist�ncia de malandro, navalha na cal�a, viol�o debaixo do bra�o,
uma morena para derrubar no areal. Era a exist�ncia que desejava ter
quando se fizesse completamente homem.
Chegaram ao port�o do armaz�m sete. Jo�o de Ad�o, um estiva-
dor negro e fort�ssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a
estma, estava sentado num caix�o. Fumava cachimbo e os m�sculos
saltavam sob sua camisa. Quando viu os meninos foi saudando:
- Olha o amigo Boa-Vida. E o Capit�o Pedro.
S� chamava Pedro de Capit�o Pedro e gostava de conversar com
eles. Ofereceu um peda�o de caix�o a Pedro Bala, Boa-Vida se
acocorou na sua frente. Num canto, uma negra velha vendia laranjas
e cocadas, vestida mm uma saia de chit�o e uma an�gua que deixava
ver os seios ainda duros apesar da sua idade. Boa-V'ida ficou espiando
os peitos da negra, enquanto descascava uma laranja que apanhara no
tabuleiro.
-Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia?
A negra sorriu:
#
- Esses meninos de hoje n�o respeita os mais velho, compadre
Jo�o de Ad�o. Onde j� se viu um capetinha destes falar em peito pra
uma velha encongrujada como eu?
- Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa...
A negra riu com vontade:
76
r
* '.: * � ORGE AMADO ' * '.: * �
- J� fechei a cancela, Boa-Vida. Passei da idade. Pergunta a
este. . . aponta Jo�o de Ad�o. - Vi quando ele, quase menino assim
como tu, fez a primeira greve aqui nas doca. Naquele tempo ningu�m
sabia que diabo era greve. Tu te lembra, compadre?
Jo�o de Ad�o balan�ou a cabe�a que sim, fechou os olhos
recordando os long�nquos tempos da primeira greve que chefiara nas
docas. Era um dos doqueiros mais velhos, embora ningu�m lhe desse
a idade que tinha.
Pedro Bala falou:
- Negro quando pinta, tr�s vezes trinta.
A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco. Tinha
tirado o len�o que enrolava na cabe�a e Boa-Vida chalaceou:
- Por isso tu anda com esse len�o. � negra cheia de prosopo-
p�ia...
Jo�o de Ad�o perguntou:
- Tu te lembra de Raimundo, comadre Lu�sa?
- O Loiro, que morreu na greve? Como n�o me lembro? Era um
que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo, gostava de tirar
pilh�ria...
- Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavalaria atropelou
a gente. - Olhou para Pedro Bala. - Tu nunca ouviu falar nele,
Capit�o?
- N�o.
- Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou um ano da
casa de um pra casa de outro at� que tu fugiu. Depois a gente s� veio
saber de tu quando tu j� era chefe dos Capit�es da Areia. Mas a gente
sabia que tu havia de te arranjar. Q,uantos anos tu tem agora?
Pedro ficou fazendo c�lculos e o pr�prio Jo�o de Ad�o interrom-
peu.
-Tu t� com uns quinze anos. N�o �, comadre?
A negra fez que sim. Jo�o de Ad�o continuou:
- No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas. A gente
tem um lugar guardado pra tu.
* O '.: * s.  CAHT�ES DA AREIA * : A *
-Por qu�?-perguntou Boa-Vida, j� que Pedro apenas olhava
espantado.
- Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo
i:
lutando pela gente, pelo direito da gente. Era um homem e tanto.
Valia dez destes que a gente encontra por a�.
-Meu pai?-fez Pedro Bala, que daquelas hist�rias s� conhecia
vagos rumores.
k
- Teu pai, era. A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da
greve fazia discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado
por uma bala. Mas tem um lugar pra tu nas docas.
Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto. Olhou Jo�o de
Ad�o:
- Por que tu nunca me contou isso?
-Tu era pequeno para entender. Agora tu t� ficando um homem
e riu com satisfa��o.
Pedro Bala riu tamb�m. Estava contente de saber a hist�ria de seu
pai, porque ele tinha sido um homem valente. Mas perguntou
lentamente:
- E minha m�e tu conheceu?
Jo�o de Ad�o pensou um momento:
- N�o sei, n�o. uando conheci o Loiro, ele n�o tinha mulher.
Mas tu vivia com ele.
- Eu conheci era a negra que estava falando. - Um peda�o
de mulher. Corria uma hist�ria que teu pai t�nha furtado ela de casa,
que ela era de uma famMia rica l� de cima e apontava a cidade alta.
- Morreu quando tu nem tinha seis meses. Nesse tempo Raimundo
#
trabalhava na f�brica de cigarros de Itapagipe. Depois foi que veio pras
docas.
Jo�o de Ad�o repetiu:
- Qnando tu quiser...
Pedro Bala fez um aceno com a cabe�a. Depois perguntou:
- Foi uma coisa batuta a greve, n�o foi?
E ficaram ouvindo Jo�o de Ad�o narrar a greve. uando ele
acabou, Pedro Bala disse:
n
;' * C3 * o JoscE ArAo ;-; * c3 * o
.
- Eu gostsva de fizer uma greve. Deve ser porreta.
Vinha entrando um navio. Jo�o de Ad�o se levantou:
- Agora a gente vai carregar aquele holand�s.
O navio apitava nas manobras de atraca��o. De todos os cantos
surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armaz�m.
Pedro Bala os olhou rnm carinho. Seu pai fora um deles, morrera por
defesa deles. Ali iam passando homens brancos, muLatos, negros,
muitos negros. Iam encher os por�es de um navio de sacos de cacau,
fudos de fumo, a��car, todos os produtos do estado que iam para
p�trias longinquas, onde outros homens como aqueles, talvez altos e
loiros, descarregariam o navio, deixariam va�ios os seus por�es. Seu
pai fora um deIes. S� agora o sabia. E por eles fizera discursos trepado
em um caix�o, brigara, recebera uma bala no dia em que a cavalatia
enfrentou os grevistas. Talvez ali mesmo, onde ele se sentava, tivese
ca�do o sangue de seu pai. Pedro Bala mirou o ch�o agora asfaltado.
Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo de
seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas docas,
entre aqueles homens, olugar que fora de seupa�. E teriatamb�m que
carregar fardos... V'ida dura aquela, com fardos de sessentaquilos nas
costas. Mas tamb�m poderia fazer uma greve assim como seu pai e
Jo�o de Ad�o, brigar com pol�cias, morrer pelo direito deles. Assim
vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu direito
(vagamente Pedro Bala sabia o que eta isso). Imaginava-se numa
greve, lutando. E sorriam os seus olhos como sorriam os seus l�bios.
Boa-V'ida, que chupava a terceira laranja, interrompeu seu so-
nho:
- T� pensando na morte da bezerra, seu mano?
A preta velha olhou Pairo Bala com carinho:
- � a cara do pai. S� que tem o cabelo ondeado da m�e. Se n�o
fosse esse talho na cara, n�o tinha que tirar nem p�r para ver
Raimundo. Um homem bonito...
Boa-V'ida riu entre dentes. Ferguntou quanto devia, pagou os
duzentos r�is. Depois olhon mais uma vez os peitos da negra,
perguntou:
-Tu n�o tem uma fia, minha tia?
- Pra que tu quer saber, desgra�ado?
=
78
* o '.: * y  rppIT�ES DA AItEIA * '.: o * C
Boa-Vida riu:
- Eu podia me amigar com ela...
A negra atirou o chinelo, Boa-Vida desviou o corpo:
- Se eu tivesse uma filha, n�o era pra teu bico, malandro.
Depois se lembrou:
-Tu n�o vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas. Um
fandango de primeira. � festa de Omolu.
- Muita b�ia? E alu�?
- Se tem... mirou Pedro Bala. -Por que tu n�o vai, branco?
Omolu n�o � s6 santo de negro. � santo dos pobres todos.
Boa-V`ida estendeu a m�o numa sauda��o quando ela falou em
Omolu, o deus da bexiga. A tarde ca�a. Um homem comprou cocada.
As luzes se acenderam de repente. A negra se levantou, Boa-Vlda
ajudou a que ela botasse o tabuleiro na cabe�a. Ao longe, Pirulito
apontava com o uerido-de-Deus. Pedro Bala olhou mais uma vez os
homens que nas docas carregavam fardos para o navio holand�s. Nas
largas costas negras e mesti�as brilhavam gotas de suor. Os pesco�os
musculosos iam curvados sob os fardos. E os guindastes rodavam
ruidosamente. Um dia iria fazer uma greve como seu pai... Lutar gelo
#
direito... Um dia um homem assim como Jo�o de Ad�o poderia
contar a outros meninos na porta das docas a sua hist�ria, como
contavam a de seu pai. Seus olhos tinham um intenso brilho na noite
rec�m-chegada.
Ajudaram o uerido-de-Deus a desembarcar a pescaria, que fora
boa. Yemanj� o tinha ajudado. Um homem que tinha banca de peixe
no mercado comprou toda a pescaria. Depois foram comer num
restaurante pr�ximo. Pirulito foi ver o padre Jos� Pedro, que estava lhe
ensinando a ler e a escrever. Passou pelo trap�che antes, para apanhar
uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria pela manh�.
Pedro Bala, Boa-Vida e o Querido-de-Deus andaram para o can-
dombl� do Gantois (o Q,uerido era og�), onde Omolu apareceu com
suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres, no
c�ntico mais lindo que pode haver, que em breve a mis�ria acabaria,
* `.: * A JOkGE �MADO � * ' %  A
que ele levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam
alimentados e felizes. Os atabaques tocavam na noite de Omolu. E ele
anunciava que o dia de vingan�a dos pores chegaria. As negras
dan�avam, os homens estavam alegres. O dia da vingan�a chegaria.
Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade, pois o Boa-Vida
fora com o Q,uerido-de-Deus dan�ar num blefor�. Desceu as ladeiras
que o conduziam � cidade baixa. Ia devagar, como se carregasse um
peso dentro de si, ia como que curvado por dentro. Pensava na
conversa da tarde com Jo�o de Ad�o, conversa que o alegrara porque
ficara sabendo que seu pai fora um homem valente do cais, um homem
que chegara a deixar uma hist�ria. Mas Jo�o de Ad�o falara tamb�m
dos direitos dos doqueiros. Pedro Bala nunca tinha ouvido falar
naquilo e, no entanto, fora por estes direitos que seu pai morrera. E
depois, na macumba do Gantois, Omolu, paramentado de vermelho,
dissera que o dia da vingan�a dos pobres n�o tardaria a chegar. E tudo
isso oprimia o cora��o de Pedro Bala, como aqueles fardos de sessenta
quilos oprimem o cangote dos estivadores.
Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal, com
vontade de ir para o trapiche ver se dormia. Um cachorro latiu � sua
passagem, pensdo que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo.
No fim da rua edro Bala viu um vulto. Parecia uma mulher que
andava apressada. Sacudiu seu corpo de menino como se sacode um
animal jovem ao ver a f�mea, e com passo r�pido se aproximou da
mulher que agora entrava no areal. A areia chiava sob os p�s e a mulher
notou que era seguida. Pedro Bala podia v�-la bem quando ela passava
sob os postes: era uma negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas 15
anos como ele. Mas os seios saltavam pontiagudos e as n�degas
rolavam no vestido, porque os negros mesmo quando est�o andando
naturalmente � como se dan�assem. E o desejo cresceu dentro de
Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de afogar a ang�stia
que o oprimia. Pensando nas n�degas reboleantes da negrinha n�o
pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas, em
Omolu pedindo vingan�a na noite de macumba. Pensava em derrubar
a negrinha sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros (talvez
80
* o c: * ;- crnx w, ,.�.IA * :? o * c::
seios de virgem, sempre seios de menina), em possuir seu corpo quente
de negra.
Apressou seus passos, porque a negrinha se desviara da rua que
cortava o areal e se intemara por este, se afastando dos postes de
ilumina��o. Mas quando ela notou que Pedro Bala estava cada vez
': mais pr�ximo, se lan�ou para a frente quase correndo. Pedro compre-
endeu que ela ia para uma daquelas ruas que ficam al�m dos trapiches,
perdidas entre o morro e o mar, e que se atravessava o areal era para
fazer caminho mais curto e com mais facilidade poder fugir dele. Ia
`1 um sil�ncio por todo o cais, s� o chiar da areia sob os passos deles fazia
 estremecer de medo o cora��o da negrinha e de impaci�ncia o cora��o
= de Pedro Bala. Mas estava cada vez mais pr�ximo. Andava muito mais
 r�pido que a negra e a alcan�aria com mais dez passos. E ela tinha
#
 amda muito que andar no areal antes de atingir os trapiches e as ruas
 que ficam al�m dos trapiches. Pedro soroa, um sornso de dentes
:, apertados, era igual a um animal feroz ca�ando no deserto um outro
'v: . animal para seu almo�o.
Quandoj� ia levando a m�o para tocar em seu ombro e fazer com
'; que ela voltasse o rosto, a negrinha come�ou a correr. Pedro Bala se
y=: lan�ou em sua persegui��o e logo a alcan�ou. Mas ia a tal velocidade
' que esbarrou nela e ambos rolaram na areia. Pedro se levantou de um
salto, rindo, chegou para o lado dela, que procurava se p�r em p�:
- N�o precisa, lindeza. Assim mesmo t� bom.
O rosto da negrinha era de terror. Mas quando viu que seu
; perseguidor era um menino de quinze para dezesseis anos se animou
' mais um pouco e perguntou com raiva:
f
- Que � que tu quer?
- Deixa de orgulho, morena. Vamos bater um papozinho...
E a agarrou pelo bra�o e novamente a derrubou na areia. O medo
 . voltou a possu�-la, um terror doido. V'mha da casa da av� e ia para sua
casa, onde m�e e irm�s a esperavam. Para que tinha vindo de noite,
.... Para q
ue se arriscara na areia do cais? N�o sabia que a areia das docas
� a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladr�es, de todos
os mar�timos, de todos os Capit�es da Areia, de todos os que n�o
� 4� podem pagar mulher e t�m sede de um corpo na cidade santa da
Bahia? Ela n�o sabia disto mal fizera uinze anos, havia muito pouco
, 9
, 8
y * `: * A JORGE AMADO  * ' % * o
tempo que era mulher. Pedro Bala tamb�m s� tinha quinze anos, mas
h� muito tempo conhecia n�o s� o areal e os seus segredos, como os
segredos do amor das mulheres. Porque se os homens conhecem esses
segredos muito antes que as mulheres, os Capit�es da Areia os
conheciam muito antes que qualquer homem. Pedro Bala a queria
porque h� muito sentia os desejos de homem e conhecia as car�cias do
amor. Ela n�o o queria porque fazia pouco que se tornara mulher e
pretendia reservar seu corpo para um mulato que a soubesse apaixonar.
N�o o queria entregar assim ao primeiro que a encontrasse no areal.
E est� com os olhos entupidos de medo.
Pedro Bala passou a m�o na carapinha da negra:
- Tu � um pancad�o, morena. N�s vai fazer um filho lindo...
Ela lutou por se afastar dele:
- Me deixa. Me deixa, desgra�ado!
E olhava em torno de si para ver se enxergava algu�m a quem
gritar, a quem pedir socorro, algu�m que a ajudasse a conservar a sua
virgindade, que tinham lhe ensinado que era preciosa. Mas � noite no
areal do cais da Bahia n�o se v�em sen�o sombras e n�o se ouvem mais
que gemidos de amor, baques de corpos que rolam confundidos na
areia.
Pedro Bala acariciava seus seios e ela, no fundo de seu terror,
come�ava a sentir um fio de desejo, como um fio de �gua que corre
entre montanhas e vai engrossando aos poucos at� se transformar em
caudaloso rio. E isso fez com que crescesse o seu terror. Se ela n�o
resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possu�sse, estaria perdida,
iria deixar uma mancha de sangue no areal, da qual ririam os estiva-
dores na madrugada seguinte. A certeza da sua fraqueza lhe deu novo
alento e novas for�as. Baixou a cabe�a, mordeu a m�o de Pedro que
segurava seu seio. Pedro deu um grito, retirou a m�o, ela se levantou
e correu. Mas ele a pegou e agora seu desejo estava misturado com
raiva.
- Vamos deixar de chove-n�o-molha e tentava derrub�-la.
- Deixa eu ir embora, desgra�ado. Tu quer fazer minha des-
gra�a, filho da m�e? Deixa eu ir embora, que n�o tenho nada com tu.
Pedro n�o respondia. Conhecia outras que faziam chiqu�. Em
geral porque tinham um amante a esper�-las. Nem por um momento
82
* o : * ;- ,rrr�Es ea AREiA *  ? o * ;
gensou que a negrinha fosse virgem. Mas ela resistia e o xingava, e
mordia, batia suas fr�geis m�os no peito de Pedro Bala.
- Mas que � que tu viu, cabocla? Tu pensa que eu vou te deixar
antes de tu me dar? Deixa de orgulho. Teu macho n�o vai saber,
#
ningu�m fica sabendo. E tu vai ver o que � um homem bom...
E agora fazia por acarici�-la, queria dominar sua raiva, fazer com
que ela sentisse desejo. Suas m�os desciam ao longo do seu corpo,
deitou-a com esfor�o. Ela agora repetia num refr�o:
- Me deixa, desgra�ado... Me deixa, desgra�ado...
Ele suspendeu as saias pobres de chita, apareceram as duras coxas
da negra. Mas estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separ�-
las. A negrinha reagiu de novo, mas como o menino a estava acari-
ciando e ela sentiu a chegada impetuosa do desejo, n�o o xingou mais,
sen�o que disse num pedido angustioso:
-Me deixa, que eu sou virgem. Tu pode ser bom, n�o me querer.
Depois tu encontra outra. Eu sou donzela, tu vai me fazer mal.
Ele olhou, ela estava chorando de medo e tamb�m porque sua
vontade estava enfraquecendo, seus peitos estavam intumescidos.
- Tu � donzela mesmo?
-Juro por Deus Nosso Senhor, pela Virgem -beijava os dedos
postos em cruz.
Pedro Bala vacilava. Os seios da negrinha intumescidos sob seus
dedos. As coxas duras, a carapinha do sexo.
- Tu t� falando a verdade? e n�o deixava de acarici�-la.
- Tou, juro. Deixa eu ir embora, minha m�e t� me esperando.
Chorava, e Pedro Bala tinha pena, mas o desejo estava solto
dentro dele. Ent�o prop�s ao ouvido da negra (e fazia c�cegas a lingua
dele):
- S� boto atr�s.
- N�o. N�o.
- Tu fica virgem igual. N�o tem nada.
- N�o. N�o, que d�i.
Mas ele a acarinhava, uma c�cega subiu pelo corpo dela. Co-
me�ou a compreender que se n�o o satisfizesse como ele queria, sua
83
: * o Joae Aoo :` * ': * A
.. *
vitgindade ficaria ali. E quando ele prometeu (novamente sua lingua
a excitava no ouvido) se doer eu tiro... ela consentiu.
- Tu jura que n�o vai na frente?
- Juro.
Mas depois que tinha se satisfeito pela primeira vez (e ela gritara
e mordera as m�os), vendo que ela ainda estava possu�da pelo desejo,
tentou desvirgin�-la. Mas ela sentiu e saltou como uma louca:
- Tu n�o te contenta, desgra�ado, com o que me fez? Tu quer
me desgra�ar?
E solu�ava alto, e levantava os bra�os, estava como uma louca,
toda sua defesa eram seus gritos, suas l�grimas, suas impreca��es
contra o chefe dos Capit�es da Areia. Mas para Pedro a maior defesa
da negrinha eram os olhos cheios de pavor, olhos de animal mais fraco
que n�o tem for�as para se defender. E como seu maior desejo j se
satisfizera, e como aquela ang�stia do princ�pio da noite voltava a
domin�-lo, ele falou:
- Se eu te deixar, tu volta amanh�?
- Volto, sim.
- S� fa�o o que fiz hoje. Te deixo donzela...
Ela fez que sim com a cabe�a. Seus olhos estavam iguais aos de
um doido e naquele momento s� sentia dor e pavor, vontade de fugir.
Agora que as m�os dele, os l�bios dele, o sexo de Pedro, n�o tocavam
mais nas carnes dela, seu desejo desaparecera e pensava unicamente
em defender sua virgindade. Respirou quando ele disse:
- Ent�o tu pode ir. Mas se tu n�o voltar amanh�.. . Quando eu
te pegar tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha...
Ela come�ou a andar sem nada responder. Mas o menino a
acompanhou:
- Vou te levar para um malandro n�o lhe pegar.
Foram os dois e ela chorava. Ele quis pegar na m�o dela, ela n�o
deixou e se afastou dele. Ele tentou novamente, novamente ela retirou
a m�o. Ent�o ele disse:
- Qne diabo � isso?
E foram de m�os dadas. Ela chorava e aquele choro foi angus-
tiando Pedro Bala, foi fazendo com que voltasse sua inquieta��o do
d
* o :  * c- CAPIT�ES DA AItEIA * ` ' o *
#
come�o da noite, a vis�o de seu pai morrendo na luta, a vis�o de
Omolu anunciando vingan�a. Come�ou a maldizer intimamente o
encontro da cabrocha e apressou o passo para chegar quanto antes ao
come�o da rua. Ela solu�ava e ele falou com raiva:
- Que foi que tu teve? Tu n�o teve nada...
Ela apenas o olhou e seus olhos (apesar de ainda ir com ele e ainda
estar apavorada) estavam cheios de �dio e de desprezo. Pedro baixou
a cabe�a, n�o sabia o que dizer, n�o tinha mais desejo nem raiva, s�
tristeza no seu cora��o. Ouviram a m�sica de um samba que um
homem cantava na rua. Ela solu�ou mais alto, ele foi chutando areia.
Agora se sentia mais fraco que ela, a m�o da negrinha pesava na sua
como se fosse chumbo. Largou a m�o, ela se afastou dele. Pedro n�o
protestou. Qneria n�o a ter encontrado, n�o ter encontrado tamb�m
Jo�o de Ad�o nem ter ido ao Gantois. Chegaram na rua, ele disse:
- Agora tu pode ir, ningu�m te faz maL
Ela o olhou novamente com �dio e deitou a correr. Mas na
esquina mais pr�xima parou, virou para ele (que ainda a olhava) e
rogou praga com uma voz que o encheu de medo:
- Peste, fome e guerra te acompanha, desgra�ado. Deus te
castiga, desgra�ado. Filho de uma m�e, desgra�ado, desgra�ado -
sua voz solit�ria atravessava a rua, abalava Pedro Bala.
Ela, antes de desaparecer na esquina, cuspiu no ch�o num
supremo desprezo e ainda repetiu:
- Desgra�ado... Desgra�ado...
Primeiro ele ficou patado, depois deitou a correr no areal e ia
como se os ventos o a�oitassem, como se fugisse das pragas da
negrinha. E tinha vontade de se jogat no mar para se lavar de toda
aquela inquieta��o, a vontade de se vingar dos homens que tinham
matado seu pai, o �dio que sentia contra a cidade rica que se estendia
do outro lado do mar, na Barra, na V'it�ria, na Gra�a, o desespero da
sua vida de crian�a abandonada e perseguida, a pena que sentia pela
pobre negrinha, uma crian�a tamb�m.
Uma crianfa tamb�m ouvia na voz do vento, no samba que
cantavam, uma voz dizia dentro dele.
85
r Fr tu  J
OLTTRA NOITE, UMA NOITE ESCURA DE INVERNO, NA QUAL OS SAVEIROS
n�o se aventuravam no mar, noite da c�lera de Yemanj� e Xang�,
quando os rel�mpagos eram o �nico brilho no c�u carregado de nuvens
negras e pesadas, Pedro Bala, o Sem-Pernas e Jo�o Grande foram
levar a m�e-de-santo, Don'Aninha, at� sua casa distante. Ela viera ao
trapiche pela tarde, precisava de um favor deles, e enquanto explicava,
a noite caiu espantosa e ternveL
- Ogum est� zangado.. . explicou a m�e-de-santo Don'Ani-
nha.
Fora este assunto que a trouxera ali. Numa batida num can-
dombl� (que seem n�o fosse o seu, porque nenhum policia se
aventurava a dar umabatida no candombl� de Aninha, estava sob a sua
prote��o) a policia tinha carregado com Ogum, que repousava no seu
altar. Don'Aninha tinha usado da sua for�a junto a um guarda para
conseguir a volta do santo. Fora mesmo � casa de um professor da
Faculdade de Medicina, seu amigo, que vinha estudar a religi�o negra
no seu candombl�, pedir que ele conseguisse a restitui��o do deus. O
professor realmente pensava em conseguir que a pol�cia lhe entregasse
a imagem. Mas para juntar � sua cole��o de �dolos negros e n�o para
reintegr�-la no seu altar no candombl� distante. Por isso, por estar
Ogum numa sala de detidos na policia, Xang� descarrega os raios
nessa noite.
Por �ltimo Don'Aninha veio aonde estavam os Capit�es da
Areia, seus amigos de h� muito, porque s�o amigos da grande
86
;-. * f * O JocE AMoo :' * f: *

;1
vi
;-de-santo todos os negros e todos os pobres da Bah
ela tem uma palavra amiga e maternaL Cura do
ntes, seus feiti�os matam homens ruins. Explicou
tecido a Pedro Bala. O chefe dos Capit�es da Areia ia p��co a�s
lombl�s, como pouco ouvia as li��es do padre Jos� Pedro. Mas era
;o tanto do padre como da m�e-de-santo, e entre os Capit�es da
z quando se � amigo se serve ao amigo.
Agora levavam Aninha para sua casa. A noite em torno era
ientosa e col�rica. A chuva os curvava sob o grande guarda-chuva
co da m�e-de-santo. Os candombl�s batiam em desagravo a
un e talvez num deles ou em muitos deles Omolu anunciasse a
;an�a do povo pobre. Don'Aninha disse aos meninos com uma voz
- N�o deixam os pobres viver... N�o deixam nem o deus dos
bres em paz. Pobre n�o pode dan�ar, n�o pode cantar pra seu deus,
b pode pedir uma gra�a a seu deus sua voz era amarga, uma voz
ue n�o parecia da m�e-de-santo Don'Aninha. - N�o se contentam
s matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres...
al�ava os punhos.
Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres n�o tinham
da. O padre Jos� Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino
os c�us, onde Deus seria igual para todos. Mas a raz�o jovem de
�dto Bala n�o achavajusti�a naquilo. No reino do c�u seriam iguais.
Ilts j� tinham sido desiguais na terra, a balan�a pendia sempre para
m lado.
As impreca��es da m�e-de-santo enchiam a noite mais que o
�do dos agog�s e atabaques que desagravavam Ogum. Don'Aninha
!� magra e alta, um tipo aristocr�tico de negra, e sabia levar como
nhuma das negras da cidade suas roupas de baiana. Tinha o rosto
legre, se bem bastasse um olhar seu para inspirar absoluto respeito.
lisso se parecia com o padre Jos� Pedro. Mas agora esrma com um
tertlvel e suas impreca��es contra os ricos e a policia enchiam a noite
p Bahia e o cora��o de Pedro Bala.
Quando a deixaram, rodeada das suas filhas-de-santo, que beija-
an sua m�o, Pedro Bala prometeu:
- Deixa estar, m�e Aninha, que amanh� te trago Ogum.
d7
;:: * :? * o oE  c:: * :: * o
Ela bateu a m�o na cabe�a loira dele, sorriu. Jo�o Grande e o Sem-
Pernas beijaram a m�o da negxa. Desceram a ladeira. Os agog�s e
atabaques ressoavam desagravando Ogutr
O Sem-Pernas n�o acreditava em nada, mas devia favores a
Don'Aninha. Perguntou:
- O que � que a gente vai fazer? O tro�o est� na policia..
Jo�o Grande cuspiu, estava com certo receio.
- N�o chame Ogum de tro�o, Sem-Pernas. Ele castiga..
- T� preso, n�o pode fazer nad'a riu o Sem-Pernas.
Jo�o Grande calou a boca, porque sabia que Ogum era grande
demais, mesmo na cadeia podia castigar o Sem-Pernas. Pedro Bala
co�ou o queixo, pediu um cigarro:
-Deixa eu matutar. A gente tem que dar conta. A gente garant�u
a Aninha. Agora tem que fazer.
Desceram para o trapiche. A chuva entrava pelos buracos do teto,
a maior parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda
havia telhado. O Professor tentara acender sua vela, mas o vento
parecia brincar com ele, apagava-a de minuto a minuto. Afinal ele
desistiu de ler ess noite e ficou peruando umjogo de sete-e-meio que
o Gato bancava, audado por Boa-Vida, num canto. Moedas no ch�o,
mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas ora��es diante da
V'Irgem e de Santo Ant�nio.
Nestas noites de chuva eles n�o podiam dorm�r. De quando em
vez a luz de um rel�mpago iluminava o trapiche e ent�o se viam as caras
magras e sujas dos Capit�es da Areia. Muitos deles eram t�o crian�as
que temi�m ainda drag�es e monstros lend�rios: Se chegavam para
junto dos mais velhos, que apenas sentiam frio e sono. Outros, os
negros, ouviram no trov�o a voz de Xang�. Para todos estas noites de
chuva eram terr�veis. Mesmo para o Gato, que tinha uma mulher em
cujo seio escondia ajovem cabe�a, as noites de temporal eram noites
m�s. Porque nestas noites homens que na cidade n�o t�m onde
#
reclinar a sua cabe�a amedrontada, que n�o t�m sen�o uma cama de
solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor, pagavam
g8
* o :: * ;:; r.."rXEs oA A�EA * :: o * ;-,
para dormir com Dalva e pagavam bem. Assim o Gato ficava no
trapiche, bancando jogos com seu baralho marcado, ajudado na
roubalheira pelo Boa-Vida. Ficavam todosjuntos, inquietos, mas s�s
todavia, sentindo que lhes faltava algo, n�o apenas uma cama quente
num quarto coberto, mas tamb�m doces palavras de m�e ou de irm�
que fizessem o temor desaparecer. Ficavam todos amontoados e
alguns tiritavam de frio, sob as camisas e cal�as esmolambadas.
Outros tinham palet�s furtados ou apanhados em lata de lixo, palet�s
que utilizavam como sobretudo. O Psofessor tinha mesmo um sobre-
tudo, de t�o grande arrastava no ch�o.
Uma vez, e era no ver�o, um homem parara vestido com um
grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade.
Parecia um estrangeiro. Era pelo meio da tarde e o calor do�a nas
carnes. Mas o homem parecia n�o senti-lo, vestido com seu sobretudo
novo. O Professot achou o homem engra�ado e com cara de sujeito de
dinheiro e come�ou a fazer um desenho dele (com o sobretudo
enorme, maior que o homem, era opr�prio homem o sobretudo) a giz
no passeio. E ria de satisfa��o, porque provavelmente o homem lhe
daria uma prata de dois mil-r�is. O homem voltou-se na sua cadeira
e olhou o desenhoquase conclu�do. O Professor ria, achava o desenho
bom, o sobretudo dominando o homem, era mais que o homem. Mas
o homem n�o gostou da coisa, se deixou possuir por uma grande raiva,
levantou-se da cadeira e deu dois pontap�s no Professor. Um atingiu
o menino nos rins e ele rolou pela cal�ada gemendo. O homem ainda
meteu o p� no seu rosto, dizendo congestionado ao se afastar:
-Toma, corneta, para aprender a n�o fazer burla de um homem.
E saiu batendo moedas na m�o, ap�s meio apagar com o p� o
desenho. A gar�onete veio e ajudou o Professor a se levantar. Olhou
com piedade o menino, que apalpava olugar dos rins doloridos, olhou
o desenho, disse:
- Q,ue bruto! At� que o retrato estava parecido. .. Um est�pido!
Meteu a m�o no bolso onde guardava as gorjetas, tirou uma prata
de um mil-r�is, quis dar ao Professor. Mas ele recusou com a m�o,
sabia que ia fazer falta a ela. Olhou o desenho semi-apagado, seguiu
seu caminho ainda com as m�os nos rins. Ia quase sem pensar, com
nm n� na garganta. Ele quisera agradar o homem, merecer uma
prata dele. Tiveradois pontap�s e palavrasbrutais. N�o compreendia.
89
c-, * c: * o ORGE  : - * c * o
Por que eram odiados assim na cidade? Eram pobres crian�as sem pai,
" ` sem m�e. Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam? Foi
com sua dor. Mas aconteceu que no caminho para o trapiche, no
deserto do areal sob o sol, encontrou novamente, minutos depois, o
�,'. homem de sobretudo. Parecia que ia para um dos navios atracados no
; i.: porto e levava agora o sobretudo no bra�o porque o sol estava
abrasador. Professor tirou a navalha (poucas vezes a usava) e se
aproximou do homem. O calor tinha alijado do areal todos os homens
e o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto
para o cais. O Professor foi silenciosamente por detr�s do homem
,
quando chegou perto tomou a frente com a navalha na m�o. A vista
do homem tinha transformado a confus�o de seus sentimentos num
�nico sentimento: vingan�a. O homem o olhou aterrorizado. 0
Professor crescia em sua frente com a navalha aberta. Murmurou entre
dentes:
- Sai, moleque.
O Professor avan�ou com a navalha, o homem &cou branco.
-Q,ue � isso? Qne � isso?-e mirava todos os lados na esperan�a
de ver algu�m. Mas s� ao longe, nas docas, apareciam perfis de
r, ,;.
homens. Ent�o o do sobretudo largou a correr quando o Professor
saltou em cima dele e lhe cortou a m�o com a navalha. O sobretudo
ficou abandonado no ch�o e o sangue caa da m�o do homem na areia.
O Professor torpu pelo outro lado, &cou um instante sem saber que
fazer. N�o tardana a vir um guarda, logo muitos, acompanhando 0
homem em sua persegui��o. Se o navio do homem safsse logo, tudo
#
estava bem, a persegui��o pouco demoraria. Mas se tardasse a sair,
com certeza o homem o perseguiria at� dar com ele e p�-lo no xadrez.
Ent�o o Professor lembrou-se da gar�onete. Caminhou para a canti-
na, do jardim que ficava em frente fez sinal para a gar�onete. Ela veio
e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo. O Professor
avisou:
- Ele t� com um talho na m�o.
Ela riu:
- Tu te vingou, hein?
. Levou o sobretudo para a cantina, guardou. O Professor sumiu
at� que o navio saiu barra afora. Mas de onde estava viu a batida dos
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guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes. Foi assim que o Professor
tinha conseguido aquele sobretudo, que nunca quis vender. Adquirira
um sobretudo e muito �dio. E tempos depois, quando as suas pinturas
murais admiraram todo o pa�s (eram motivos de vidas de crian�as
abandonadas, de velhos mendigos, de oper�rios e doqueiros que
rebentavam cadeias), notaram que nelas os gordos burgueses apareci-
am sempre vestidos com enormes sobretudos que tinham mais
personalidade que eles pr�prios.
Pedro Bala, Jo�o Grande e o Sem-Pernas entraram no trapiche.
Foram para o grupo que jogava em torno ao Gato. Q,uando eles
chegaram, o jogo parou um momento, o Gato ficou espiando os tr�s:
- Q,uer topar um sete-e-meio?
- Tou com cara de besta? respondeu o Sem-Pernas.
Jo�o Grande sentou para espiar, Pedro Bala se afastou com o
Professor para um canto. Qneria combinar uma maneira de roubar a
imagem de Ogum dapolicia. Discutiram parte da noite ej� eram onze
horas quando Pedro Bala, antes de sair, falou para todos os Capit�es
da Areia:
-Minha gente, eu vou fazer um tro�o dificil. Se eu n�o aparecer
at� de manh�, voc"s fica sabendo que eu tou na policia e n�o demoro
a t� no reformatono, at� fugir. Ou at� voc�s me tirar de l�...
E saiu. Jo�o Grande o acompanhou at� a porta. O Professor veio
para junto do Gato novamente. Os menores olhavam a partida do
chefe com certo receio. Tinham uma grande confian�a em Pedro Bala
e sem ele muitos n�o saberiam como se arranjar.
Pirulito veio do seu canto, deixara uma ora��o pelo meio:
- O que foi?
- Pedro foi fazer um tro�o dif�cil. Se n�o voltar de manh�, � que
t� na chave...
- A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente, e nem
parecia que minutos antes estava ante um quadro da V'irgem rezando
pela salva��o da sua pequena alma de ladr�o. E voltou aos seus santos
a rezar por Pedro Bala.
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* o c? * c:  cNxS DA A * :  o * ;-,
#
Ojogo recome�ou. Chuva e raios, trov�es e nuvens no c�u. O frio
intenso no trapiche. Gotas de �gua ca�am sobre os meninos que
jogavam. Mas o iogo agora era sem aten��o, o pr�prio Gato se
esquecia de ganhar, havia como que uma confus�o em todo o trapiche.
Durou at� que Professor disse:
- Eu vou ver as coisas...
Jo�o Grande e o Gato foram com ele. Nesta noite foi Pirulito que
se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabe�a. E perto dele
Volta Seca espiava a noite com s�a cara sombria. E pensava em que
lugar estaria nesta noite de temporal o grupo de Lampi�o na imensi-
dade das caatingas. Talvez que nessa noite de temporal lutassem com
a policia como ia fazer agora Pedro Bala. E Volta Seca pensou que
quando Pedro Bala fosse grande como um homem seria t�o corajoso
como Lampi�o. Lampi�o era o dono do sert�o, das caatingas sem fim.
Pedro Bala seria dono da cidade, do casario, das ruas, do cais. E Volta
Seca, que era do sert�o, poderia andar nas caatingas e nas cidades.
Porque Lampi�o era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo. Imitou o
cocoroc� de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre.
' Pedro Bala, enquanto subia a ladeira da Montanha, revia men-
talmente seu plano. Fora arquitetado com a ajuda do Professor e era
a coisa mais arriscada em que se metera at� hoje. Mas Don'Aninha
bem que merecia que um corresse risco por ela. Qnando tinha um
doente ela trazia rem�dios feitos com folhas, tratava dele, muitas vezes
curava. E quando aparecia um Capit�o da Areia no seu terreiro ela o
tratava como a um homem, como a um og�, dava-lhe do melhor para
comer, do melhor para beber. O plano era arriscado, possivelmente
n�o daria certo, Pedro Bala comeria cadeia uns dias e terminaria
remetido para o reformat�rio, onde a vida era pior que vida de c�o.
Mas havia uma possibilidade de dar certo, e Pedro Balajogaria tudo
nesta possibilidade. Chegou ao largo do Teatro. A chuva ca�a e os
guardas se abrigavam sob as capas. Come�ou a subir a ladeira de S�o
Bento vagarosamente. Tomou por S�o Pedro, atravessou o largo da
Piedade, subiu o Ros�rio, agora estava nas Merc�s, diante da Central
de Policia, olhando as janelas, o movimento de guardas e secretas que
q3
; - * c? * o Jo  :' *  * o
entravam e safam. De minuto em minuto um bonde passava fazendo
ru�dos nos trilhos, iluminando ainda mais a ruaj� bastante iluminada.
O guarda amigo de Don'Aninha tinha dito que Ogum estava na sala
de detidos, jogado sobre um arm�rio, em meio a diversos outros
objetos apreendidos em batidas v�rias em casas de ladr�es. Naquela
sala colocavam os que eram presos durante a noite antes de serem
ouvidos ou pelo delegado ou pelos comiss�rios de turno e que depois
ou eram remetidos para as pris�es ou para a rua. Ali, num canto, a
princ�pio dentro de um arm�rio que logo se encheu, depois junto ou
sobre ele, colocavam objetos sem valor apreendidos nas batidas
policiais. O plano d� Pedro Bala era passar a noite ou parte dela na sala
de detidos e levar ao sair (se conseguisse sair) a imagem de Ogum
oonsigo. Tinha uma grande vantagem: n�o era conhecido entre a
policia. Mesmo s� raros guardas o conheciam como moleque das ruas,
se bem todos os guardas e mesmo alguns investigadores desejassem
ardentemente capturar o chefe dos Capit�es da Areia. Sabiam dele
apenas que tinha aquele talho no rosto e Pedro Bala passou a m�o
no talho. Mas o pensavam maior do que era em verdade e tamb�m
faziam a id�ia de que Pedro Bala devia ser mulato e de mais idade. Se
chegassem a descobrir que ele era o chefe dos Capit�es da Areia talvez
nem para o reformat�rio o mandassem. Muito provavelmente iria
diretamente para a penitenci�ria. Porque do reformat�rio se consegue
fugir, mas da penitenci�ria n�o � f�ciL EnPrm... -e Pedro Bala andou
at� o Campo Gr�de. Mas j� n�o ia com aquele seu passo despreocu-
pado de moleque das ruas da cidade. Ia agora gingando como um filho
de mar�timo, o bon� puxado por causa da chuva, a gola do palet� (devia
ter sido anteriormente de um homem muito grande) levantada.
O guarda estava debaixo de uma �rvore por causa da chuva. Pedro
veio chegando assim como quem tem medo. E quando falou ao
guarda, sua voz era a de uma crian�a que estava temerosa da noite
tempestuosa da cidade.
- Seu guarda...
O guarda olhou:
- O que �, moleque?
#
- Eu n�o sou daqui. Eu sou de Mar Grande, vim com meu pai
hoje.
94
* o  * ;-. c,n o AA # c: o * ;-.
O guarda n�o deixou que ele continuasse:
- E o que tem isso?
- Eu n�o tenho onde dormir. Qneria que o senhor deixasse eu
domor na policia...
- A policia n�o � hotel, malandro. Desaperta, desaperta... e
fez sinal para que Pedro se afastasse.
Pedro tentou novamente puxar conversa, mas o guarda o amea-
�ou com o cassetete:
- Vai dormir num jardim... Vai embora...
Pedro saiu com cara de choro. O guarda ficou espiando o menino.
Pedro parou no ponto de bonde, esperou. Do primeiro carro n�o
desceu ningu�m, mas do segundo saltou um casal. Pedro se atirou em
cima da mulher, o homem viu que ele queria abafar a carteira dela,
segurou Pedro por um bra�o. A coisa fora t�o mal feita que se um dos
Capit�es da Areia passasse ali sem d�vida n�o reconheceria o seu
chefe. O guarda, que via a cena, j� estava junto a eles:
- Ent�o era assim que voc� n�o era daqui? Um moleque ladr�o.
Se afastou levando Pedro pelo bra�o. O menino ia com uma cara
entre amedrontada e ri'sonha:
- S� fiz isso pro senhor me pegar mesmo...
- Hein?
- Tudo que eu disse � verdade. Meu pai � mar�timo, tem um
saveiro em Mar Grande. Hoje me deixou aqui, n�o voltou com o
temporal. Eu n�o sei onde dormir, pedi pra dormir na policia. O
senhor n�o deixou, eu fiz que ia roubar a mulher s� pro senhor me
pegar... Agora tenho onde dormir.
- E por muito tempo foi a �nica resposta do guarda.
Entraram na Central. O guarda atravessou um corredor, largou
Pedro Bala na sala dos detidos. Havia uns cinco ou seis homens. O
guatda disse tro�ando:
- Agora voc� pode dormir, filho da m�e. E depois que o
oomiss�rio chegar vamos ver quanto tempo voc� vai dormir aqui...
Pedro ficou calado. Os outros presos nem ligavam para ele,
estavam muito interessados em fazer tro�a com um pederasta que
tinha sido preso e se dizia chamarMariazinha. A um canto Pedro
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*  : * o Joaee AMnoo : - *  * o
Bala viu o arm�rio. A imagem de Ogum estava ao lado, junto de
uma cesta para pap�is in�teis. Pedro se adiantou para ali, tirou o
palet�, p�s sobre a imagem. E enquanto os outros conversavam.
enrolou Ogum (n�o era grande, havia outras imagens muito
maiores) no seu palet� e deitou-se no ch�o. P�s a cabe�a sobre o
embrulho e fez que dormia.
Os presos daquela noite continuavam a rir com o pederasta,
exceto um velho que tremia num canto, Pedro n�o sabia se de frio ou
de medo. Mas ouvia a voz de um negrojovem que dizia aMariazinha:
- Quem tirou teu caba�o?
- Ora, me deixe... respondeu o pederasta rindo.
- N�o. Conta. Conta! disseram os outros.
- Ah! Foi Leopoldo.. . Ah!
O velho continuava a tremer. Um malandro de cara chupada pela
tlsica percebeu o velho no canto:
- Tu por que n�o vai te enrabar com aquele velhote? -
perguntou a Mariazinha, que fez bico.
- N�o t� vendo logo que n�o me passo pra velho. Olhe, n�o
quero mais conversa, n�o...
Agora um guarda gozava na porta e o de cara chupada se virou
para o velho, que se encolheu todo:
-Mas tutem que gostava se ele lhe desse hoje, hein, tio?
- Eu sou um velho. .. Eu n�o fiz nada... murmurou o velho,
mais que falou. - N�o fiz nada, minha filha est� me esperando...
Pedro, que estava de olhos fechados, adivinhou que o velho
chorava. Mas continuou fingindo que estava dormindo. Ogum do�a
nos ossos da sua cabe�a. Os presos continuavam a pilheriar com o
pederasta e o velho, at� que chegou outro guarda e falou para o velho:
- Voc�, velhote. Vamos...
#
- Eu n�o fiz nada... falou mais uma vez o velho. - Minha
filha est� me esperando... se dirigia a todos, guardas e presos. E
tremia tanto, que todos tiveram pena e at� o malandro de cara chupada
baixou a cabe�a. S6 o pederasta sorria.
O velho n�o voltou. Depois foi o pederasta. Demorou muito.
O de cara chupada explicava que Mariazinha era de boa famllia.
9�
* O `.: * y.' CAPITXES DA AREIA * : ' O *
Naturalmente estavam telefonando para casa dele, pedindo que o
viessem buscar para n�o terem que o prender de novo naquela
noite. De quando em vez, quando tomava coca�na demais, dava
esc�ndalos na rua e era trazido por um guarda. QuandoMariazinha
voltou, foi s� para pegar o chap�u. Ent�o viu Pedro Bala deitado
e disse:
- T�o novinho este. Mas � um amorzinho...
Pedro cuspiu de olhos fechados:
- Sai, xibungo, antes que eu te pranche a cara...
Os outros riram, e s� ent�o atentaram em Pedro:
- Que � que tu t� fazendo aqui, rato de igreja?
- O que n�o � da tua conta, macaqueiro... respondeu Pedro
Bala ao de cara chupada.
At� o guarda riu e explicou para os outros a hist�ria de Pedro.
Mas o negrojovem foi chamado e eles ficaram silenciosos. Sabiam
que o negro tinha esfaqueado um homem num blefor� nesta noite.
Quando o preto voltou trazia as m�os inchadas dos bolos. Expli-
cou:
- Disse que vou ser processado por ferimentos leves. E me dero
duas d�zia...
N�o conversou mais, procurou um canto, se arnou. Os outros
tamb�m ficaram calados. E foram indo um por um para o despacho
do comiss�rio. Uns eram postos em liberdade, outros iam para o
calabou�o, outros voltavam apanhados. O temporal cessara e a
madrugada chegava. Pedro foi o �ltimo a ser chamado. Deixou o
palet� onde enrolara Ogum.
O comiss�rio era um jovem advogado que reluzia um rubi no
dedo e um charuto no queixo. Quando Pedro entrou com o guarda,
pedia caf� em voz alta. Pedro ficou diante da escrivaninha, parado. O
guarda disse:
- Esse � o menino do roubo no Campo Grande.
O comiss�rio fez um sinal com a m�o:
- Veja se esse caf� sai ou n�o sai..
O guarda retirou-se. O comiss�rio leu a parte do guarda que
prendera Pedro Bala, olhou o menino
9T
;-. * r * o Jo  :' * c.  o
- O que � que voc� tem a dizer? E n�o venha me mentir, n�o.
Pedro contou com umavoz amedrontada uma hist�ria comprida.
Que seu pai era saveirista em Mar Grande e naquele dia pela manh�
viera com o saveiro e o trouxera. Mas voltara em seguida para buscar
outra carga e o deixara na cidade passeando, porque o saveiro tornaria
� Bahia ainda � tardinha e ent�o ele poderia voltar com seu pai. Mas
com o temporal seu pai n�o tinha podido voltar e ele, que n�o conhecia
ningu�m, ficou na chuva sem ter onde dormir. Perguntou a um
homem na rua onde poderia dormir, o homem respondera que na
policia. Ent�o ele pedira ao guarda que o levasse a dormir na policia,
o guarda n�o deixara, ele fizera ent�o que ia furtar a mulher s� para ser
levado, para poder dormir sob um teto.
-Tanto que n�o roubei e nem fugi... concluiu.
O delegado, que sorvia o caf� em golinhos, disse de si para si:
- N�o � poss�vel que uma crian�a desta idade inventasse essa
hist�ria...
Depois, como tinha veleidades liter�rias, murmurou:
- Eis af um conto formid�vel... e sorriu com bom humor.
- Como � o nome de teu pai? perguntou a Pedro.
-Augusto Santos-respondeu o menino, dando o nome de um
saveirista de Mar Grande.
- Se o quepoc� contou forverdade, eu vou lhe soltar. Mas se voc�
quis me tapear com essa hist�ria, vai ver...
Tocou a campainha chamando o guarda. Pedro estava com os
nervos todos em tens�o. O guarda chegou, o comiss�rio perguntou se
#
na pol�cia havia um livro de registro de saveiristas de Mar Grande que
ancoravam no cais do Mercado.
- Tem, sim senhor.
- V� ver se tem um tal Augusto Santos e volte para me dizer. E
ande depressa, que minha hora est� acabando.
Pedro Bala olhou para o rel�gio: marcava canco e meia da manh�.
O guarda demorou uns minutos, o comiss�rio n�o se ocupou mais de
Pedro, que estava de p� ante sua secret�ria. S� quando o guarda voltou
e disse: Tem, sim renlror... Hoje mesmo tewe no ca�, mar troltou logo. . .
o comiss�rio fez um gesto com a m�o e falou para o guarda:
q8
# O ,:? * :.' �ArAEs oA AeEiA #  ? A * ;'s
- Ponha esse moleque em liberdade
Pedro pediu para ir buscar seu palet�. Acomodou debaixo do
bra�o, nem parec?a trazer a imagem envolvida nele. Atravessaram o
corndor novamente, o guarda o deixou na porta. Pedro tomou para o
largo dos Aflitos, rodeou o velho quartel, desabou pela Gamboa de
Cima. Agora ia correndo, mas ouviu passos atr�s de si. Parecia que o
perseguiam. Olhou. Professor, Jo�o Grande e o Gato vinham atr�s
dele. Esperou que eles chegassem e pergunt�u curioso
- Q.ue � que voc�s tava fazendo por estas bandas
O Professor co�ou a cabe�a
- N�o v� que a gente saiu agora cedo. E velo mnd'o por aqw,
andando sem que fazer, foi quando topou com tu, que vinha
desabalado..
Pedro abriu o palet�, mostrou a imagem de Ogum. Jo�o Grande
riu com satisfa��o:
- Como foi que tu tapeou eles?
Foram descendo a ladeira escorregadia da chuva. E Pedro Bala ia
narrando as aventuras da noite. O Gato perguntou:
-Tu n�o teve nem um pingo de medo?
Primeiro Pedro Bala pensou em dizer que n�o, depois confessou:

I  - Pra falar verdade, tive um caga�o da desgra�a..
I E riu da cara gozada que Jo�o Grande fazia. O c�u agora estava
azul, sem nuvens, o sol brilhava e da ladeira eles viam os saveiros que
j partiam do cais do Mercado.
v9
,J JUiil rJl/lJ Jnl l IGrI Ila
O MENINO ERA UMA TENTA�AO POR DEMAIS GRANDE.
Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobr:
ruas uma claridade macia, que n�o queimava, mas cujo calor acarici.
como a m�o de uma mulher. No jardim pr�ximo as flores desab.
chavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, d�lia
violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas 
Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como queembriag�-lo. Tir
comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de
almo�o que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxer
prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens 
passavam sem capa:
- T� fazedo um dia lindo.
Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, 
menino ia despreocupado, assoviando um samba quelhe ensinar
Qnerido-de-Deus, recordando que o padre Jos� Pedro promer
tudo fazer para 1he conseguir um lugar n o semin�rio. Padre Jos� Pe
Ihe dissera que toda aquela beleza que ca�a envolvendo a terra e
homens �ra um presente de Deus e que era preciso agradecer a De
Pirulito mirou o c�u azul onde Deus devia estar e agradeceu n=
sornso e pensou que Deus era realmente bom. E pensando em D
pensou tamb�m nos Capit�es da Areia. Eles furtavam, brigavam ,
ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por ve
feriam com navalhas ou punhal homens e policias. Mas, no entar:
eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo � c
n�o tinham casa, nem pai, nem m�e, a vida deles era uma vida serc
IUU
* `.: * O JORGE AMADO  * l: *
o c: * ;-� CAPIlXES DA AkEIA * r? o * ;-,
comida certa e dormindo num casar�o quase sem teto. Se n�o fizessem
tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam
de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a
#
todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno.
Pedro Bala n�o acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.
Jo�o Grande acreditava era em Xang�, em Omolu, nos deuses dos
negros que vieram da �frica. O uerido-de-Deus, que era um
pescador valente e um capoeirista sem igual, tamb�m acreditava
neles, misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo
da Europa. O padre Jos� Pedro dizia que aquilo era supersti��o, que
era coisa errada, mas que a culpa n�o era deles. Pirulito se entristeceu
na beleza do dia. Estariam todos condenados ao infemo? O infemo
r
era um lugar de fogo etemo, era um lugar onde os condenados ardiam
uma vida que nunca acabava. E no infemo havia mart�rios desconhe-
cidos mesmo na policia, mesmo no reformat�rio de menores. Pirulito
vira h� poucos dias um frade alem�o que descrevia o inferno num
serm�o na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebi-
am as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade
eravermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua lingua era atrapalhada
e dela o inferno sa�a mais terr�vel ainda, as labaredas lambendo os
corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as m�os que
' . foram �geis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da
navalha. Deus no serm�o do frade erajusticeiro e castigador, n�o era
o Deus dos dias lindos do padre Jos� Pedro. Depois explicaram a
Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justi�a. E
Pimlito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora
vivia entre os dois sentimentos. Sua vida era uma vida desgra�ada de
menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de
furtos quase di�rios, de mentiras nas portas das casas ricas. Por isso na
beleza do dia Pirulito mira o c�u com os olhos crescidos de medo e
pede perd�o a Deus t�o bom (mas n�o t�ojusto tamb�m... ) pelos seus
pecados e os dos Capit�es da Areia. Mesmo porque eles n�o tinham
culpa. A culpa era da vida. ..
O padre Jos� Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para
remediar a vida deles, pois sabia que era a �nica maneira de fazer com
que eles tivessem uma exist�ncia limpa. Por�m uma tarde em que
estava o padre e estava o Jo�o de Ad�o, o doqueiro disse que a culpa
4' _
* ; ? * O Joesa Aro �' * C? * a
era da sociedade mal organizada, era dos ricos... Qne enquanto tuc
n�o mudasse, os meninos n�o poderiam ser homens de bem. E dis
que o padre Jos� Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque
ricos n�o deixariam. O padre Jos� Pedro naquele dia tinha ficac
muito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicando que ele n:
ligasse ao que Jo�o de Ad�o dizia, o padre respondeu balan�ande
cabe�a magra.
-Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem raz�o, que is
tudo est� errado. Mas Deus � bom e saber� dar o rem�dio...
Padre Jos� Pedro ahava que Deus perdoaria e queria ajud�-lc
E como n�o encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente (tod
queriam tratar es Capit�es da Areia ou como a criminosos ou comc
crian�as iguais �quelas que foram criadas com um lar e uma famili:
ficava como que desesperado, por vezes ficava atarantado. M
esperava que Deus o inspirasse um dia e at� l� ia acompanhando
meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das cria
�as. Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina
pederastia no grupo. E isto foi uma das suas grandes experi�ncias
sentido de como agir para tratar com os Capit�es da Areia. Enquar
ele lhes disse que era necess�rio acabar com aquilo porque era e
pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costa:
continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia e
que o padre, desta vez ajudado pelo Q,��rido-de-Deus, afirmou q
aquilo era coisahdigna num homem, fazia um homem igual a ut
mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violent
expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre fizesse n�o
quis mais ali.
- Se eles voltar, a safadeza volta, padre.
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia oe entre
Capit�es da Areia como um m�dico arranca um ap�ndice doente
corpo de um homem. O dificil para o padre Jos� Pedro era concil ,.
as coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultad,
A n�o ser quando Jo�o de Ad�o ria dele e dizia que s� a revoluc
#
acertaria tudo aquilo. L� em cima, na cidade alta, os homens ricc
as mulheres queriam que os Capit�es da Areia fossem para as pr�s�
para o reformat�rio, que era pior que as pris�es. L� embaixo, = 
docas, Jo�o de Ad�o queria acabar com os ricos, fazer tudo igual, 
IO?
* o c3 * ;- cNri o<, AIA * c o * ;-,
eacola aos meninos. O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto
aos meninos sem a revolu��o, sem acabar com os ricos. Mas de todos
os lados era uma barreira. Ficava como perdido e pedia a Deus que o
inspirasse. E com certo pavor via que, quando pensava no problema,
dawi, sem sequer o sentir, raz�o ao doqueiro Jo�� de Ad�o. Ent�o era
possufdo de temot, porque n�o fora assim que lhe haviam ensinado,
e nzava horas seguidas para que Deus o iluminasse.
Pirulito fora a grande conquista do padre Jos� Pedro entre os
Capit�es da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo,
contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um
menino que n�o queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando
devagarinho, sem tremer, at� que o sangue come�ou a correr e o outro
lhe deu tudo que queria. Mas contavam tamb�m que outra vez cortou
de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se
swenturara no trapiche atr�s dos ratos. No dia que o padre Jos� Pedro
come�ou a falar de Deus, do c�u, de Cristo, da bondade e da piedade,
Pirulito come�ou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz
poderosa no trapiche. V'ia Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de
Deus de que falava o padre Jos� Pedro. E se voltou de todo para Deus,
ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No
primeiro dia come�aram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um
dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele
Szera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito ent�o dera a sua
;r; navalha quase nova ao menino a que espancara. E n�o espancara mais
nenhum, evitava as brigas e se n�o evitava os furtos era que aquilo era
..: o meio de vida que eles tinham, n�o tinham mesmo outro. Pirulito
sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus.
 Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no ch�o nu, rezava
mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que
ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas ent�o amava Deus-
pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na
berra. Depois veio aquela revela��o de Deus justi�a (para Pirulito
ficou Deus-vingan�a) e o temor de Deus invadiu o seu cora��o e se
nisturou ao amor de Deus. Suas ora��es foram mais longas, o terror
do inferno se misturava � beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua
face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de m�stico
e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava seus olhos
03
* ! : * A JOItGE AMAPO �' * ::  A
afastados das n�degas e seios das negrinhas que andavam como que
dan�ando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua
esperan�a era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver s� para a sua
contempla��o, viver s� para Ele. A bondade de Deus fazia com que ele
esperasse consegu�-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de
Pirulito fazia com que ele desesperasse.
E � esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a
vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol � brando e claro,
as flores desabrocham nojardim, vem uma calma e uma paz de todos
os lados. Mas, mais belo que tudo � a imagem da Concei��o com o
Menino, que est� na prateleira daquela loja de uma s� porta. Na
vitr�na, quadros de santos, livros de ora��es em encaderna��es luxu-
osas, ter�os de ouro, relic�rios de prata. Mas dentro, bem na ponta da
prateleira que chega at� a porta, a imagem da Virgem da Concei��o
estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem est� alhe
entregar Deus, Deus crian�a e nu, pobre como Pirulito. O escultor fe2
o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, :
mostr�-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem est� ali e n�
se vende. O Menino nas imagens � sempre gordo, um ar de meninc
rico, um Deus Rico. Ali � um Deus Pobre, um menino pobre, mesm
igual a Pirulito, ainda mais igual �queles mais novos do grupe
exatamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que fico
abandonado na ru no dia que sua m�e morreu de um ataque, quand
o levava nos bra�os, e que Jo�o Grande trouxe para o trapiche, ond
ficou at� o fim da tarde (os meninos vinham e espiavam e riam d
#
Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e �gua para o beb�
quando a m�e-de-santo Don'Aninha viera e o levara consigo, recosr
do ao seu seio. S� que aquele era um menino negro e o Menino
branco. No mais a parecen�a � absoluta. At� uma cara de choro te
o Menino, magro e pobre, nos bra�os da Virgem. E esta o oferece
Pirulito, aos carinhos de Piralito, ao amor de Pirulito. L� fora o d
� lindo, o sol � brando, as flores desabrocham. S� o Menino tem for
e frio neste dia. Pirulitv o levar� consigo para o trapiche dos Capit�
da Areia. Rezar� para ele, cuidar� dele, o alimentar� com seu am
N�o v�em que, ao contr�rio de todas as imagens, ele n�o est� preso rv
bra�os da Virgem, est� solto nas suas m�os, ela o est� oferecendo
carinho de Pirulito? Ele d� um passo. Denrro da ioja s� uma senhor
10d
i
* o  * c:; crx , IA * : o * c-,
'' espera os fregueses, pintando os l�bios com uma nova marca de batom.
; � fac�limo levar o Menino. Pirulito estende o p� noutro passo, mas o
temor de Deus o assalta, E fica parado, pensando.
Ele tinhajurado a Deus, no seu temor, que s� furtaria para comer
ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto
para o qual fosse indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair
as leis (nunca tinham sido escritas, mas existiam na consci�ncia de
I cada um deles) dos Capit�es da Areia era um pecado tamb�m. E agora
ia furrar s� para ter o Menino consigo, aliment�-lo com seu carinho. '
Era um pecado, n�o era para comer, para matar o frio, nem para
I cumprir as leis do grupo. Deus erajusto e o castigaria,lhe daria o fogo
do inferno. Suas carnes arderiam, suas m�os que levassem o Menino
queimariam durante uma vida que nunca acabava. O Menino era do
dono da loja. Mas o dono da loja rinha tantos Meninos, e todos gordos
, e rosados, n�o iria sentir falta de um s�, e de um magro e friorento! Os
outros estavam com o ventre envolto em panos caros, sempre panos
azuis, mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no
ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho. E a V'irgem o
oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos bra�os dela... O dono
da loja tinha tantos Meninos, tantos. . . Que falta lhe faria este? Talvez
nem se importasse, talvez at� se risse quando soubesse que haviam
futtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que
estava solto nos bra�os da Virgem, diante do qual as beatas que vinham
 comprar diziam horrorizadas:
-Este n�o... Ele � t�o feio, Deus me perdoe... E ainda por cima
solto dos bra�os de Nossa Senhora. Cai no ch�o e pronto. Esse n�o...
E o Menino ia ficando. A Virgem o oferecia ao carinho dos que
passavam, mas ningu�m o queria. As beatas n�o queriam lev�-lo para
 seus orat�rios, onde havia Meninos cal�ados de sand�lias de ouro,
com coroa de ouro na cabe�a. S� Pirulito viu que o Menino tinha fome
e sede, tinha frio tamb�m e quis lev�-lo. Mas Pirulito n�o tinha
dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito
podia lev�-lo consigo, podia dar ao Menino que comer, que beber, que
vestir, tudo tirado do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o
castigaria, o fogo do inferno comeria, durante uma vida que nunca
acabava, suas m�os que levassem o Menino, sua cabe�a que pensava
em levar o Menino. Ent�o Pirulito lembrou-se que s� o pensarj� era
I05
* `: * � ORGE AMADO �- * : *
pecado. Que se pecava s� de pensar em cometer o pecado. O fr
alem�o dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sat
porque estava pecando com o pensamento. Pirulito estava pecan
sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou a correr p
n�o continuar a pecar. Mas n�o correu muito, ficou na esquina, !
p�de se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrines, as:
n�o pecava. Meteu as m�os no bolso (prendia as m�os... ), desvic
pensamento. Mas agora os homens que volviam ao trabalha ape
almo�o passavam na sua frente e um pensamento o assaltou: den
em pouco os outros empregados da loja voltariam e ent�o s<
imposs�vel levar o Menino. Seria imposs�vel... E Pirulito volcou I
a frente da loja de objetos religiosos.
L� estava o Menino, e a Virgem o oferecia a Pirulito. Um rel�
deu a primeira hora da tarde. N�o tardariam a voltar os ou:
empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a :
era t�o pequena que ficaria imposs�vel levar o Menino. Parece qi
#
a Virgem que est� lhe dizendo isso. Que � a Virgem alhe dizer qu�
ele n�o levar o Menino agora n�o o poder� levar mais, parece que
est� mesmo dizendo isso. E com certeza foi ela, sim, foi ela quem
com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da lo
a deixasse sozinha. Sim, foi a V'irgem, que agora estende o Men
para Pimlito o quanto podem seus bra�os e o chama com sua doce 
- Leve e cuide dele... Cuide bem...
Pirulito avn�a. V� o inferno, o castigo de Deus, suas m�os e
cabe�a a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo cc
quejogando longe a vis�o, recebe o Menino que a Virger lhe entrc
o encosta ao peito e desaparece na rua.
N�o olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu pe
o Menino sorn, n�o tem mais fome nem sede nem tcio. Sar
Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se enc.
trou no trapiche e viu que Jo�o Grande lhe dava leite �s colhera
com suas m�os enormes, enquanto o Professor o sustinha encast:
ao calor do seu peito.
Assim sorri o Menino.
lU6
* o  * ;- CAtIt�ES DA AtEIA * t o * ;-:
i
rl  !
FOI O BOA-VIDA QUE CONTOU A PEDRO BALA QUE NAQUELA CASA DA
Gra�a tinha coisa de ouro de fazer medo. O dono da casa, pelo jeito,
parecia colecionador, o Boa-V'ida tinha ouvido um malandro dizer
que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no
prego haviam de dar uma fortuna. � tarde Pedro Bala foi com o Boa-
Vida ver a casa. Era um pr�dio modemo e elegante, jardim na fiente,
garagem ao fundo, espa�osa resid�ncia de gente rica. O Boa-Vida
cuspiu por entre os dentes, desenhando uma flor no passeio com o
aspe, e disse:
- E dizer que nesse mundo s� mora dois velhos, hein?
- Toca batuta. . . comentou Pedro Bala.
Uma empregada abriu a porta da frente, saiu para o jardim. No
hall, que ficou � vista, eles perceberam quadros pela parede, estatuetas
oobre as mesas. Pedro Bala riu:
- Se o Professor visse isso ficava doidinho... Nunca vi tanm
pegadio com livro e pintura.
- Ele vai fazer uma pintura como eu, deste tamanho... e
Boa-V�da mostrava o tamanho separando as m�os uma da outra.
Pedro Bala olhou mais uma vez a casa, se acercou um pouco do
jardim, assoviando. A empregada colhia flores e os seios alvos apare-
ciam sob o decote, pois ela estava curvada. Pedro Bala espiou. Eram
eeios alvos terminando em bicos vermelhos. Boa-Vida suspirou ao seu
Irdo.
- ue montanha, Bala.
l07
;.'� * :: * o Jo Aroo :y * f3 #
cala a boca.
Mas a empregadaj� os vira e os olhava como a perguntar o qi
desejavam. Pedro Bala sacou o bon� e pediu:
- Podia dar uma caneca de �gua � gente, por favor? O sol
encalistrando... -e sorria, limpando com o bon� a testa, onde o su -
corria. Estava muito vermelho sob o sol, seus cabelos loiros crescid
desabando sobre as orelhas em ondas maltraradas, e a empregada
mirou com simpatia. Ao lado Boa-Vida fumava uma ponta 
charuto, com um p� em cima da gradezinha do jardim. A cria,
primeiro falou para Boa-Vida com desprezo:
- Tira esta pata da� de cima...
Depois sorriu para Pedro Bala:
- Trago a �gua j�.. .
Voltou com do�s copos d'�gua e eram copos como eles nur,
tinham visto de t�o bonitos. Beberam a �gua, Pedro Bala agradec .
- Muito obrigado... e baixinho lindeza.
A empregada falou tamb�m baixinho:
- Frangote atrevido...
- Q,ue hora tu sai daqui?
-Te repara. Tenho meu homem. Ele me espera �s nove ho
da noite naquel esquina...
- Pois hoje tou na outra...
#
Sa�ram pela rua, Boa-V'ida fumando sua ponta de chan
abanando o rosto com o chap�u-coco que usava. Pedro Bala com,
tou
- Eu sou � mesmo simp�tico... Aquela t� no papo...
Boa-Vida cuspiu novamente entre os dentes:
- Tamb�m com essa cabele�ra de mulher, toda cheia de
chos...
Pedro Bala nu, mostrou o punho fechado ao Boa-Vida:
- Deixa de inveja, mularo pachola...
Boa-V'ida desviou a conversa:
- E o ourame?
?08
I
* o :  * c:: cA"T7ES DA AItFlA *   o *
I
- � trabalho primeiro pro Sem-Pernas... Amanh� ele d� um
jeito de embocar na casa e passar uns dias morando. Depois que ele
souber onde fica os tro�o melhor a gente vem, uns cinco ou seis, tira
0 ourame...
- E tu perde a comida?
- A criada? Como hoje mesmo... Nove horas tou firme a�...
Voltou-se. Olhou a casa. A criada se debru�ava na grade, Pedro
Bala deu adeus. Ela respondeu, Boa-Vida cuspiu:
- � peste de sorte, nunca vi...
No outro dia, por volta de onze e meia da manh�, o Sem-Pernas
apareceu em frente � casa. Q,uando ele tocou a campainha a emprega-
da com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no
seu quarto no Garcia, porque n�o ouviu o tilintar. O menino tocou de
novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou a cabe�a
grisalha de uma senhora, que mirou com os olhos apertados ao Sem-
Pernas:
- ue �, meu filho?
- Dona, eu sou um pobre �rf�o...
A senhora fez com a m�o sinal que ele esperasse e dentro de
poucos minutos estava no port�o sem ouvir sequer as desculpas da
empregada por n�o ter atendido � porta:
- Pode dizer, meu filho olhava os farrapos do Sem-Pernas.
-Dona, eu n�o tenhopai, faz s� poucos dias que minha m�e foi
chamada pro c�u mostrava um la�o preto no bra�o, la�o que tinha
eido feito com a fita do chap�u novo do Gato, que se danara. - N�o
benho ningu�m no mundo, sou aleijado, n�o posso trabalhar muito,
faz dois dias que n�o vejo de comer e n�o tenho onde dormir.
Parecia que ia chorar. A senhora olhava muito impressionada:
- Voc� � aleijado, meu filho?
O Sem-Pemas mostrou a perna capenga, andou na frente da
enhora for�ando o defeito. Ela o fitava com compaix�o:
- De que morreu sua m�e?
IOq
* C  o Jos Anoo :-' * c? #
.:
- Mesmo n�o sei. Deu uma coisa esquisita na pobre, uma feb
de mau agouro, ela bateu a ca�oleta em cinco dias. E me deixou s� c
mundo... Se eu a�nda ag�entasse o repuxo do trabatho, ia me arranja
Mas com esse aleij�o s� mesmo numa casa de famffia... A senhora n:
t� precisando de um menino pra fazer compra, ajudar no trabalho . ;
casa? Se t�, dona...
E como o Sem-Pemas pensasse que ela ainda estava indeci;
completou oom cinismo, uma voz de choro:
- Se eu qu�sesse me metia a� com esses meninos ladr�o. Com
tal de Capit�es da Areia. Mas eu n�o sou disso, quero � trabalhar.
que n�o ag�ento um trabalho pesado. Sou um pobre �rf�o, tou cc
fome...
Mas a senhora n�o estava indecisa. Estava era se lembrando ;
seu filho, que tinha morrido com a idade daquele e que ao mor
matara toda a sua ategria e a do marido. Este ainda tinha as s. 4
cole��es de obras de arte, mas ela tinha apenas a recorda��o daqu :-
filho que a deixara t�o cedo. Por isso olha o Sem-Pernas, esfarrapa
com um grande carinho e aolhe fatar sua voz tem uma do� :
diferente da de sempre. H� como que um pouco de alegria na do�
da sua voz, e isso espanta a criada:
#
- Entre, meu filho. Deixe estar que vou arranjar um traba
para voc�... p8s a m�o fina e aristocr�tica, onde brilhava
solit�rio, na ca �a suja do Sem-Pernas e falou para a criada:
Maria Jos�, prepare o quarto de cima da garagem para este meni
Mostre o banheiro a ele, d� um roup�o de Raul, depois d� com
a ele...
- Antes de botar o atmo�o, dona Ester?
-Antes, sim. Faz dois dias que ele n�o come, pobrezinho
O Sem-Pernas nada dizia, apenas secava com as costas da i
i�grimas &ngidas.
-N�o chore... -falou a senhora, e acariciou o rosto da cria
-A senhora � t�o boa. Deus lhe paga...
Depois perguntou como ele se chamava, e o Sem-Pemas d.
primeiro nome que lhe passou pela cabe�a:
110
* O `.: * C rrAPIT�ES PA AREIA * ::
-Augusto... e como repetia o nome para si mesmo, para n�o
se esquecer que se chamava Augusto, n�o viu no pr�neiro momento
a emo��o da senhora, que murmurava:
- Augusto, o mesmo nome...
Disse em voz alta, porque agora o Sem-Pernas olhava seu rosto
emocionado:
- Meu filho tamb�m se chamava Augusto... Morreu quando
tinha assim o seu tamanho... Mas entre, meu filho, v� se lavar para
comer.
Dona Ester o acompanhou comovida. Viu que a empregada
mostrava o banheiro ao Sem-Pemas, dava-lhe um roup�o e se dirigia
pata o quarto em cima da garagem para arrum�-lo (o chofer tinha se
despedido, o quarto estava vazio). Dona Ester se aproximou, disse ao
$em-Pernas que parara na porta do banheiro:
- Pode jogar essas roupas fora. Maria Jos� depois vai lhe trazer
roupa...
O Sem-Pernas agora olhava a senhora que desaparecia, e tinha
raiva, mas n�o sabia se era dela ou de si mesmo.
.
Dona Ester sentou-se em frente ao seu penteador, ficou com os
olhos parados, quem a visse pensaria que ela olhava o c�u atrav�s da
janela. Por�m, em verdade, ela nada olhava, nada via. Olhava, sim,
para dentro de si, para as suas recorda��es de muitos anos, e via um
menino da idade doSem-Pernas, vestido com uma roupa de marinhei-
m, correndo no jardim da outra casa, da qual se mudaram depois que
ele morreu. Era um menino cheio de vida e de alegria, gostava de rir
e de saltar. Qnando se cansava de correr com o gato, de montar na
gangorra do jardim, de jogar a bola de borracha no quintal para o c�o
lobo a apanhar, vinha e passava os bra�os em tomo ao colo de dona
Ester, a beijava no rosto e ficava com ela, vendo livros de figuras,
aprendendo a ler e a desenhar as letras. Para t�-lo junto a si o maior
tempo poss�vel dona Ester e o marido resolveram ensinar ao filho as
primeiras letras mesmo em casa. Um dia (e os olhos de dona Ester se
enchem de l�grimas) veio a febre. Depois o pequeno caix�o saiu pela
1
* `.  * A JORGE AMADO  * '�% *
porta e ela o olhava de olhos espantados, n�o podia compreender
; seu filho houvesse morndo. O retrato dele ampliado num quadro 
no seu quarto, mas uma cortina o cobre sempre, porque ela n�o g
de rever a face do filho para n�o renovar sua ang�stia. Tamb�n
roupas que ele usou est�o todas trancadas na sua pequena ma
jamais buliram nela. Mas agora dona Ester tira as chaves da sua c.
de j�ias.
E, lentamente, muito lentamente, se dirige para onde est� a m
Puxa uma cadeira na qual senta. Abre com m�os tr�mulas a mal
Mira as cal�as e blusas, a roupa de marinheiro, os pequenos pija
e camisolas com que ele dormia. Aperta a roupa de marinheirc
peito como se abra�asse seu filho. As l�grimas rebentam.
Agora um menino pobre e �rf�o viera bater � sua porta. Del
" da morte de seu filho ela n�o quisera ter outro, n�o gostava mesm
ver e brincar com crian�as para n�o avivar a dor das suas recorda�
Mas um, pobre e �rf�o, aleijado e triste, que se dissera char
Augusto como seu filho, batera em sua porta pedindo p�o, pousa
carinho. Por isso ela tem coragem de abrir a mala onde guard:
#
roupas que seu filho usou. Por isso tira esta roupa azul de marinhe
a roupa da qual ele mais gostava. Porque para dona Ester seu f
voltou hoje na figura desta crian�a andrajosa e aleijada, sem pai, :
m�e. Seu filho voltou e suas l�grimas n�o s�o apenas de dor. Vo:
seu filho macilento e esfomeado, com �ma perna aleijada e vestid
farrapos. Mas m breve ser� novamente o Augusto alegre e �
daqueles anos passados, e novamente vir� e passar� os bra�os em tc
ao seu pesco�o e ler� as grandes letras da cartilha.
Dona Ester se levanta. Leva consigo a roupa azul de marinhe
E � vestido com ela que o Sem-Pernas come o melhor almo�o da
vida.
.
Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de prop�sito pam
n�o estaria t�o bem. Estava perfeita no Sem-Pernas e quando el
olhou no espelho da sala quase n�o se reconheceu. Estava lavad
empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no
rosto. A roupa de marinheiro era um a beleza. O Sem-Pernas se mi
ria
* O l: * y? CAllTJES DA AItEIA * `.: � *
no espelho. Passou a m�o na cabe�a, depois no peito alisando a roupa,
sorriu pensando no Gato. Daria muito para que o Gato o visse t�o
elegante. Tinha tamb�m sapatos novos, mas a verdade � que os
sapatos o desgostavam um pouco porque tinham um la�o de fita,
pareciam um pouco sapatos de mulher. O Sem-Pernas achava esqui-
sito estar vestido de marinheiro com sapatos de mulher. Andou para
o jardim, pois queria fumar, nunca tinha deixado de tragar o seu
cigarro ap�s o almo�o. Por vezes n�o havia almo�o, mas havia sempre
uma ponta de cigarro ou de charuto. Ali era preciso cuidado, n�o podia
fumar abertamente. Se o houvessem deixado na cozinha de mistura
com a criadagem, como o deixavam nas outras casas onde penetrara '"
para depois roubar, poderia fumar, conversar na lingua de poucos
termos dos Capit�es da Areia. Mas desta vez o tinham lavado, vestido
de novo, posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto. Depois
tinham lhe dado comida na sala de jantar. E durante o almo�o a
senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado.
Agora mandara que ele brincasse nojardim, onde o gato amarelo que
se chamava Berloque esquentava ao sol. O Sem-Pernas chega para um
banco, tira do bolso o ma�o de cigarros baratos. uando mudara a
roupa n�o se esquecera dos cig�rros. Acende um e come�a a saborear
as tragadas, pensando na sua nova vida. Muitas vezes j� fizera aquilo:
penetrar em casa de uma fam�lia como um menino pobre, �rfF�o e
aeijado e neste t�tulo passar os dias necess�rios para fazer um
reconhecimento completo da casa, dos lugares onde guardavam os
objetos de valor, das sa�das f�ceis para uma fuga. Depois os Capit�es
da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos, e
no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria,
alegria da vingan�a. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe
davam comida e dormida, era como cumprindo uma obriga��o
fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam
na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no
sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a senhora
que se comovera com a sua hist�ria, contada na porta em voz
solu�ante, e o acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento.
Para o Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas
achava que eles eram todos culpados da situa��o de todas as crian�as
pobres. E odiava a todos, com um �dio profundo. Sua grande e quase
�nica alegria era calcular o desespero das farrulias ap�s o roubo, ao
I 3
;- * c * o JOGE  ;v * c
pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida 
quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar
esfomeadas onde estavam os objetos de valor.
Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez n�o o deixa
na cozinha com seus molambos, n�d o puseram a dormir no quir
Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala dejantar. Era como
h�spede, era como um h�spede querido. E fumando o seu cig
escondido (o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que est.
escondendo para fumar), o Sem-Pernas pensa sem compreender. T
compreende nada do que se passa. Sua cata est� franzida. Lembr
dias da cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca de�x
#
de persegui-lo. E, de s�bito, tem medo de que nesta casa sejam b
para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. N�o s
mesmo por que, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconde
e vai fumar bem por baixo dajanela da senhora. Assim ver�o que
� um menino perdido, que n�o merece um quarto, roupa nova, con
na sala dejantar. Assim o mandar�o para a cozinha, ele poder� 1
para diante sua obra de vingan�a, conservar o �dio no seu cora,
Porque se esse �dio desaparecer, ele morrer�, n�o ter� nenhum mo
para viver. E diante dos seus olhos passa a vis�o do homem de co
que v� os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalh
brutal. Isso h� de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o r
bondoso de dona Ester, o gesto protetordas m�os do padre Jos� Pe
a solidariedad�bdos m�sculos grevistas do estivador Jo�o de A
Ser� sozinho e seu �dio alcan�a a todos, brancos e negros, home
mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para cons
Pela tarde o dono da casa, Raul, chegou do seu escrit�rio. Era
advogado de muito nome, enriquecera na profiss�o, era catedr�tic
Faculdade de Direito, mas antes de tudo era um colecionador. Ti
uma boa galeria de quadros e tinha moedas antigas, obras raras de ;
O Sem-Pernas viu quando ele entrou. Neste momento o Sem-Pe
via as gravuras de um livro para crian�as e ria sozinho do elefante
a quem o macaco enganava. Raul n�o o viu, subiu as escadas. Mas >
depois a empregada veio chamat o Sem-Pernas e o lewu ao quart
114
* O :? * :.'` CariTXs oA AmA * :: A * :.:
dona Ester. Raul ali estava de man a de
g camisa, fumando um cigarro
e olhou o menino com um sorriso divertido, j� que o Sem-Pernas
mostrava uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto:
� - Passe...
O Sem-Pernas entrou capengando, n�o tinha onde botar as
m�os. Dona Ester falou com bondade:
- Sente, meu filho, n�o tenha medo, n�o...
O Sem-Pernas sentou-se na ponta de uma cadeira e ficou
esperando. O advogado o estudava, mirando seu rosto, mas era com
simpatia, e o Sem-Pernas preparava as respostas para as inevit�veis
perguntas. Contou novamente a hist�ria inventada pela manh�, mas
quando come�ou a chorar abundantes l�grimas o advogado mandou
que ele parasse e se levantou, dirigndo-se � janela. O Sem-Pernas
mmpreendeu que ele estava comovido, e este resultado da sua arte o
fez ficar orgulhoso. Sorriu s� para si. Mas agora o advogado se
aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois nos l�bios. O
Sem-Pernas baixou os olhos. Raul andou at� ele, botou a m�o no seu
ombro e falou:
- Deixe estar, que agora voc� n�o passa mais fome. V�... V�
brincar, v� ver os livros. � noite n�s vamos ao cinema. Voc� gosta de
cinema?
 - Gosto, sim senhor.
O advogado o despedia com um gesto. O Sem-Pernas saiu, mas
ainda viu Raul se aproximar de dona Ester e dizer:
- �s uma santa. Vamos fazer dele um homem...
Era a hora do crep�sculo, as luzes se acendiam e o Sem-Pemas
 pensou que nesta hora os Capit�es da Areia percorriam a cidade
 procurando o que comer.
Pena que no cinema n�o pudesse gritar quando o mocinho
wrrava o vil�o, como fazia nas vezes que conseguira penetrar no
galinheiro do Olimpia ou do cinema de Itapagipe. Ali, no Guarani,
hxuoso e de c�modas cadeiras, tinha que ouvir o filme em sil�ncio e
num momento que n�o se conteve e soltou um assovio, Raul o olhou.
��
;.' * :? * o JoRca Anuo : - *   *
� verdade que sorria, mas tamb�m � certo que fez um gesto par
o Sem-Pernas n�o assoviasse mais.
Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em fren v
cinema. O Sem-Pernas, enquanto tomava seu gelado, pensava en
ia cometend9 uma irremedi�vel tolice quando o advogado pergut
o que ele queria. Estivera para pedir uma cerveja bem geladinha.
se contivera em tempo e pedira o sorvete.
No autom�vel o advogado foi na frente guiando e o Sem-Pe
foi atr�s com dona Ester, que conversava com ele. A convers;
#
dif�cil para o Sem-Pemas, que tinha que controlar sua terminol<
que era escassa e repleta de palavr�es. Dona Ester perguntava c
de sua m�e, o Sem-Pemas respondia como podia, fazendo gr:
esfor�o para reter os detalhes que inventava para posteriormente
cair em contradi��o. Por fim chegaram na casa da Gra�a e dona I
conduziu o Sem-Pernas para o quarto em cima da garagem:
- N�o tem medo de dormir a� sozinho?
- N�o, senhora...
-lsso � por poucos dias. Depois lhe porei l� em cima, no q
que foi de Augusto...
- N�o precisa, dona Ester, aqui t� muito bom.
Ela se acercou dele e o beijou na face:
- Boa noite, meu filho.
Saiu, cerrando a porta. O Sem-Pernas ficou parado, sen
gesto, sem responder sequer o boa noite, a m�o no rosto, no luga
que donaEster o beijara. N�o pensava, n�o via nada. S� a suaveca
do beijo, uma car�cia como nunca tivera, uma car�cia de m�e.
suave car�cia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse p�
naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. S� hav�
universo inteiro a sensa��o suave daquele beijo maternal na fa
Sem-Pernas.
Depois foi o horror dos sonhos da cadeia, o homem de colet
ria brutalmente, os soldados que surravam o Sem-Pernas, que c
com a perna aleijada em volta da saleta. Mas de repente chegou
Ester e o homem de colete e os soldados morreram entre infi
torhu'as, porque agora oSem-Pernas estava vestido com uma rou
marinheiro e tinha um chicote na m�o como o mocinho do cin
rs
* O �  *   CAPIT�ES DA AREIA * `  � *
Oito dias se passaram. Pedro Bala por v�rias vez�s j� andara em
frente da casa para saber not�cias do Sem-Pernas, que tardava a voltar
ao trapiche. J� havia tempo mais que suficiente para que o Sem-Pernas
soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transport�veis
da casa e as sa�das que podiam auxiliar a fuga. Mas em vez de ver o
Sem-Pernas, Pedro Bala via era a empregada, que pensava que ele
vinha por ela. Certo dia em que conversava com a empregada, Pedro
Bala tocou com muito j�ito no assunto do Sem-Pernas:
-A mo�a da� tem um filho, n�o tem?
- � um menino que ela t� criando. Muito bonzinho.
Pedro Bala sorriu, porque sabia que o Sem-Pernas, quando
queria, se fazia passar pelo melhor menino do mundo. A empregada
continuou:
- � um pouco mais mo�o que voc�, mas � mesmo um menino.
N�o � assim um perdido como voc�, que at�j� dorme com mulher...
-e ria para Pedro Bala.
- Foi tu que tirou meu caba�o...
, - N�o diga coisa feia. Demais � mesmo mentira.
- Juro.
Ela gostaria que fosse, e se bem desconfiasse muito que n�o,
gostava que ele lhe dissesse aquilo. Se sentia n�o s� como amante do
menino, mas um pouco como m�e tamb�m.
- Vem hoje, que eu te ensino um modo gostoso...
- De noite, na esquina... Mas diz um tro�o: tu n�o trepa com
esse menino daqui?
- Esse nem sabe que � isso... � um tolinho. Menino mimado.
Tu t� feito bobo. N�o v� que eu n�o me passo...
De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o Sem-Pernas. Este
estava estirado nojardim (o gato roncava ao seu lado), espiando um
livro de figuras, e Pedro Bala ficou espantad�ssimo quando o viu
vestido com uma cal�a de casimira cinza e uma blusa de seda. At�
o cabelo do Sem-Pernas estava penteado, e Pedro Bala quedou um
rrr
* i � * � �ORGE AMADO  * '.: *
momento boquiaberto, sem sequer assoviar para o Sem-Per:
Afinal voltou a si e assoviou. O Sem-Pernas se p�s logo de p�, v
Bala do outro lado da rua. Fez um sinal para que ele o esperasse,
pelo port�o, ap�s ver que ningu�m da casa estava pr�ximo.
Pedro Bala andava para a esquina, e Sem-Pernas o acompanl
Qnando chegou perto, ainda mais se espantou Pedro Bala:
- Peste! Tu t� at� cheirando, Sem-Pernas.
#
O Sem-Pernas fez uma cara de aborrecimento, mas Bala co
nuou:
- Tu t� dez vez mais elegante que o Gato. Puxa! Se tu apar�
assim na toca assim tratavam o trapiche os outros vai dar
cima de tu. Tu t� mesmo uma tet�ia...
- N�o chateia... Tou vendo as coisas. N�o demora dou o f
" tu pode vim com os outros.
- Desta vez tu t� demorando...
- � que os tro�o melhor t�o trancado mentiu o Sem-Per
- V� se tu te arranja.
Depois lembrou-se:
- O Gringo andou ruim. uase bate o trinta e sete. Andou
pouco. Se n�o fosse Don'Aninha, que deu beberagem a ele que be
ele em p�, tu n�o via mais ele. T� mais magro que um espeto...
E com es not�cia se despediu, dando mais uma vez press
Sem-Pernas.
O Sem-Pernas voltou a se estender nojardim. Mas agora n�c
as figuras do livro. Via era o Gringo. O Gringo fora um dos t
perseguidos pelo Sem-Pernas no grupo. Filho de �rabes, falava 
uma pron�ncia esquisita, e isso dava lugar a piadas consecutiva:
Sem-Pernas. O Gringo n�o era forte e nunca conseguira ser im�
tante entre os Capit�es da Areia, se bem Pedro Bala e Profe
procurassem dar lugar a isso. Gostavam de ter entre eles um est
geiro ou quase estrangeiro. Mas o Gringo se contentava com pec
nos furtos, evitava os assaltos arriscados e ideava um ba� cheic
bugigangas para vender nas ruas �s criadas das casas ricas. O S
Pernas o maltratava sem piedade, burlando dele, do seu falar arr
sado, da sua falta de coragem. Mas agora, deitado sobre a grama m
rr
f * C.'` �rnl4s sA AmA *  : � * :'`
dojardim rico, vestido com boa roupa, penteado e com perfume, um
livro de figuras ao lado, o Sem-Pemas pensava no Gringo quase
morrendo, enquanto ele comia bem e vestia bem. N�o s� o Gringo
estivera quase morrendo. Durante aqueles oito dias os Capit�es da
Areia continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a
chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-
Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha at� uma
senhora que o beij ava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor
do grupo. Era igual �quele doqueiro do qual fala Jo�o de Ad�o
cuspindo no ch�o e passando o p� em cima com desprezo. Aquele
doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado, para o lado
dos ricos, furara a greve, fora contratat homens de fora para trabalhar
nas docas. Nunca mais um homem do cais apertou sua m�o, nunca
mais um o tratou como amigo. E se para atgu�m o Sem-Pernas abria
exce��o no seu �dio, que abrangia o mundo todo, era para as crian�as
que formavam os Capit�es da Areia. Estes eram seus companheiros,
eram iguais a ele, eram as v�timas de todos os demais, pensava o Sem-
Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passan-
do para o outro lado. Com este pensamento se sobressaltou, sentou-se.
N�o, ele n�o os trairia. Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos
Capit�es da Areia. Os que a tra�am eram expulsos e nada de bom os
esperava no mundo. E nunca nenhum a havia tra�do do modo como
� Sem-Pemas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma
daquelas crian�as que eram eterno motivo de galhofa para eles. N�o,
n�o os trairia. Teriam bastado tr�s dias para ele localizar os objetos de
valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais que a comida,
a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele
passasse j� oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como 0
estivador fora comprado por dinheiro. N�o, n�o trairia. Mas a� pensou
se n�o ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela tamb�m na sua casa
tmha uma lei como os Capit�es da Areia: s� castigava quando havia
erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia
pagar o bem com o mal. Lembrou-se que das outras vezes, quando
dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria
que o invadia. Desta vez n�o tinha alegria nenhuma. Seu �dio para
todos n�o desaparecera, � verdade. Mas abrira uma exce��o para a
gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava
na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria de continuar
II9
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#
naquelavida. Mas que adiantaria isso para os Capit�es da Areia? E ele
era um deles, nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os
soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria
brutalmente. E o Sem-Pernas se decidiu. Mas olhou com carinho as
janelas do quarto de dona Ester e ela, que o espiava, notou que ele
chorava:
- Est� chorando, meu filho? e desapareceu da janela para vir
para junto dele.
S� ent�o o Sem-Pernas viu que estava mesmo chorando, limpou
as l�grimas, mordeu a m�o. Dona Ester chegava para junto dele:
- Est� chorando, Augusto? Aconteceu alguma coisa?
- N�o, senhora. N�o estou chorando, n�o...
- N�o minta, meu filho. Bem que eu vejo... O que passou? Est�
se lembrando da sua m�e?
E o trouxe parajunto de si, sentou-se no banco, encostou a cabe�a
do Sem-Pernas no seu seio maternal.
- N�o chore por sua m�e. Agora voc� tem outra m�ezinha que
lhe quer bem e far� tudo para substituir a que voc� perdeu. .. (. . . e ele
faria tudo para substituir o filho que ela perdera, ouviu o Sem-Pernas
dentro de si).
Dona Ester o beijou na face onde as l�grimas corriam:
- N�o chre, que sua m�ezinha fica triste.
Ent�o os l�bios do Sem-Pernas se descerraram e ele solu�ou,
chorou muito encostado ao peito de sua m�e. E enquanto a abra�ava
e se deixava beijar, solu�ava porque a ia abandonar e, mais que isso, a
ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia
furtar a si pr�prio tamb�m. Como n�o sabia que o choro dele, que os
solu�os dele eram um pedido de perd�o.
Os acontecimentos se precipitaram, porque Raul teve que faze
uma viagem ao Rio de Janeiro, a neg�cios importantes de advocacia
E o Sem-Pernas achou que n�o havia melhor ocasi�o para o assalto
i�r
* o :: * ;-: crxs DA 1, * :  o * ;: 
, Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato
Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de gravura. Depois
j foi ao quarto de dona Ester, disse que ia at� o Campo Grande passear.
Ela ent�o lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e
,
ent�o todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de
passear a p�. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio at�
dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beij ava, e ela ficou muito
alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de si:
- A senhora � muito boa. Eu nunca vou esquecer...
Saiu e n�o voltou. Essa noite dormiu no seu canto no trapiche.
Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa. Os outros tinham
rodeado o Sem-Pemas, admirando suas roupas, seu cabelo assentado,
o perfume que evolava do seu corpo. Mas o Sem-Pernas meteu o bra�o
em um, foi resmungando para seu canto. E ali ficou mordendo as
unhas, sem dormir, angustiado, at� que Pedro Bala voltou com os
outros, trazendo os resultados do assalto. Comunicou ao Sem-Pernas
que fora a coisa mais canja do mundo, que ningu�m dera f� na casa,
que todos tinham continuado dormindo. Talvez que nem no dia
seguinte descobrissem o roubo. E mostrava os objetos de ouro e de
prata:
- Amanh� Gonzales d� uma dinheirama por isso. : .
O Sem-Pernas fechava os olhos para n�o ver. Depois que todos
foram dormir, ele se aproximou do Gato:
- Tu quer fazer um neg�cio comigo?
- ue �?
- Eu dou essa roupa, tu me d� a sua...
O Gato olhou cheio de espanto. A sua roupa era a melhor do
grupo, sem d�vida. Mas era roupa velha, estava muito longe de valer
a boa roupa de casimira que o Sem-Pernas vestia. T� doido, pensou o
Gato enquanto respondia:
- Se topo? Nem se pergunta.
Trocaram a roupa. O Sem-Pernas voltou ao seu canto, procurou
dormir.
Na rua vinha doutor Raul com dois guardas. Eram os mesmos
soldados que o haviam espancado na cadeia. O Sem-Pernas corria,
i.r
#
�-, * : * o OGE A :', * c *
,.
mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma
sala. A cena era a mesma de sempre: os soldados que se divertiam a
faz�-lo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem
de colete que ria. S� que na sala estava tamb�m dona Ester, que c
olhava com os olhos tristes e dizia que ele n�o era mais seu filho, era
um ladr�o. E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que a
pancadas dos soldados, mais que o riso brutal do homem.
Acordou molhado de suor, fugiu da noite do trapiche, a madru-
gada o encontrou vagando no areaL
No outro dia, � noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua
parte no furto. Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explica��es,
Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia not�cias de
Lampi�o. Professor leu a not�cia para Volta Seca e ficou vendo aa
outras coisas que o jornal trazia. Ent�o chamou:
- Sem-Pernas! Sem-Pernas!
O Sem-Pemas ve�o. Outros vieram com ele e formaram um
c�rculo. Professor d�sse:
- Isso aqui � com tu, Sem-Pernas...
E leu umaot�cia no jornal:
Ontem desapareceu da casa nfimero...
da rua ..., Gra�a, um fllho dos donoa da casa,
charnado Augueto. Deve ter se perdido na
cidade que pouco conhecia. � coxo de uma
perma, tem treze anos de idade, � muito
t�mido, veste roupa de casimira cinza. A
pol�cia o procura para o entregar aos eeus
paie aflitos, mas at� agora n�o o encontrou. A
fam�liagratiflcar�bemquemdernoticiasdo
pequeno Auguato e o conduz a sua casa.
O Sem-Pernas ficou calado. Mord�a o l�b�o. Profecsor d�sce:
- Ainda n�o descobriram o furto...
I2
* O l  * C! �ppITXES DA REIA * ! :  * �'!
A
Sem-Pernas fez que sim com a cabe�a. Qnando descobrissem o
furto n�o o procurariam mais como a um filho desaparecido. Baran-
d�o fez uma cara de riso e gritou:
-Tua fam�lia t� te procurando, Sem-Pemas. Tua mam�e t� te
procurando pra dar de mamar a tu...
Mas n�o disse mais nada, porque oSem-Pernasj� estava em cima
dele e levantava o punhal. E esfaquearia semd�vida o negrinho se Jo�o
Grande e Volta Seca n�o o tirassem de cima dele. Barand�o saiu
unedrontado. O Sem-Pemas foi indo para o seu canto, um olhar de
�dio para todos. Pedro B ala foi atr�s dele, botou a m�o em seu ombro:
- S�o capazes de n�o descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas.
Nunca saber de voc�... N�o se importe, n�o.
- Quando doutor Raul chegar v�o saber...
E rebentou em solu�os, que deixaram os Capit�es da Areia
estupefatos. S� Pedro Bala e o Professor compreendiam, e este
9banava as m�os porque n�o podia fazer nada. Pedro Bala puxava uma
oonversa comprida sobre um assunto muito diferente. L� fora o vento
corria sobre a areia e seu ru�do era como uma queixa.
I/! Irl r JIIIO JI/1 JiJ
PEDRO BALA, ENQUANTO SOBE A LADEIRA DA MONTANHA, VAI
pensando que n�o existe nada melhor no mundo que andar assim, ao
azar, nas ruas da Bahia. Algumas destas ruas s�o asfaltadas, mas a
grande, a imensa maioria � cal�ada de pedras negras. Mo�as se
debru�am nas janelas dos casar�es antigos e ningu�m pode saber se �
uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se
l23
;.'! * :? * o JocE ANudo ! * r? * o
� uma prostituta que o mira de um balc�o velh�ssimo, enfeitado apenas
de flores. Entram mulheres de negros v�us nas igrejas. O sol bate nas
pedras ou no asfalto do cal�amento, ilumina os telhados das casas. Na
sacada de um sobrad�o, flores medram em pobres latas. S�o de
diversas cores e o sollhes d� seu di�rio alimento de luz. Os sinos da
igreja da Concei��o da Praia chamam as mulheres de v�u que passam
apressadas. No meio da ladeira um preto e um mulato est�o curvados
#
sobre uns dados que o preto acabou de jogar. Pedro Bala, ao passar,
cumprimenta o negro:
- Como vai, Coruja Branca?
- E tu, Bala? Como vai essa prosopop�ia?
Mas o mulatoj� atirou os dados e o negro se volta todo para ojogo.
Pedro Bala continua seu caminho. O Professor vai com ele. Sua figura
magra se atira para a frente como se lhe fosse dif�cil vencer a ladeira.
Mas sorri da festa do dia. Pedro Bala vira-se para ele e surpreende seu
sorriso. A cidade est� alegre, cheia de sol. Os dias da Bahia parecem dias
defesta, pensa Pedro Bala, que se sente invadido tamb�m pela alegria.
Assovia com for�a, bate risonhamente no ombro de Professor. E os
dois riem, e logo a risada se transforma em gargalhada. No entanto,
n�o t�m mais que uns poucos n�queis no bolso, v�o vestidos de
farrapos, n�o sabem o que comer�o. Mas est�o cheios da beleza do dia
e da liberdade de andar pelas ruas da cidade. E v�o rindo sem ter do
que, Pedro Bala pom o bra�o passado no ombro de Professor. De onde
est�o podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho
trapiche onde dormem. Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz
a Professor:
- Tu devia fazer uma pintura disto... � porreta.
A fisionomia do Professor se fecha:
- Eu sei que nunca h� de ser...
- Qn�?
- Tem vez que me topo pensando. . . e Professor mira o cais
l� embaixo, os saveiros parecendo brinquedos, os homens mi�dos
carregando sacos nas costas.
Continua com a voz �spera como se algu�m o tivesse batido:
- Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui.. .
r�s
* o .  * ;-: �AtITXES DA �tEIA * :  o * ;-:
- Tu tem jeito. Se tu tivesse andado pela escola...
... mas nunca pode ser um tro�o alegre, n�o... (Professor
parece n�o ter ouvido a interrup��o de Pedro Bala. Agora est� com os
olhos longe e parece ainda mais fraco.)
- Por qu�? - Pedro Bala est� espantado.
- Tu n�o v� que tudo � mesmo uma beleza? Tudo alegre...
Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa:
- Tem mais cores que o arco-�ris...
- � mesmo... Mas tu espia os homem, t� tudo triste. N�o tou
falando dos rico. Tu sabe. Falo dos outros, dos das docas, do mercado.
Tu sabe... Tudo com cara de fome, eu nem sei dizer. � um tro�o que
sinto...
Pedro Bala n�o estava mais espantado:
-Por isso Jo�o de Ad�oj� fez um bocado de greve nas docas. Ele
diz que um dia as coisas vira, tudo vai ser de vice-versa...
- Tamb�m j� li um livro... Um livro de Jo�o de Ad�o. Se eu
tivesse tado numa escola como tu diz, tinha sido bom. Eu um dia ia
fazer muito quadro bonito. Um dia bonito, gente alegre andando,
rindo, namorando assim como aquela gente de Nazar�, sabe? Mas
cad� escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo
bonito, mas os homens sai triste, n�o sei n�o... Eu queria fazer uma
coisa alegre.
- Qnem sabe se n�o � melhor mesmo fazer uma coisa como tu
faz? Pode at� d� mais bonito, mais vistoso.
- Q,ue � que tu sabe? Que � que eu sei? A gente nunca andou em
escola... Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens, a figura das
ruas, mas nunca tive na escola, tem um bocado de coisa que eu n�o
sei...
Fez uma pausa, olhou Pedro Bala que o escutava, continuou:
- Tu j� deu uma espiada na Escola de Belas-Artes? � um
belezame, rapaz. Um dia andei de penetra, me meti numa sala. Tava
tudo vestido de camis�o, nem me viram. E tavam pintando uma
mulher nua... Se um dia eu pudesse...
Pedro Bala ficou pensativo. Olhava Professor como que pensan-
do. Logo falou com um ar muito s�rio:
I2�
;-, * :: * o OGE  :' * c * o
-Tu sabe o pre�o?
- Que pre�o?
- De pagar na escola? O professor?
#
- Que hist�ria � essa?
- A gente se reunia, pagava pra tu...
Professor riu:
- Tu nem sabe... Tem tanta complica��o... N�o pode n�o,
deixa de tolice.
- Jo�o de Ad�o disse que um dia a gente pode ter escola...
Sa�ram andando. Professor parecia ter perdido a alegria do dia.
Como que ela se afastara para longe dele. Ent�o Pedro Bala deu-lhe
um soco de leve:
- Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua
Chile, mano. Sem escola sem nada. Nenhum destes bananas da escola
faz uma rara como tu... Tu tem � jeito...
Professor riu. Pedro Bala riu tamb�m:
- E tu faz meu retrato, hein. Bota o nome embaixo, n�o bota?
Capit�o Pedro Bala, macho valente.
Tomou uma atitude de lutador, um bra�o estirado. Professor riu,
Bala tamb�m riu, logo o riso se transrmou em gargalhada. E s�
pararam de garlhar para aderir a um grupo de desocupados que se
reunira em torno a um tocador de viol�o. O homem tocava e cantava
uma moda da cidade da Bahia:
Quando ela disse adeus..
meu peito em cruz transformou...
Eles aderiram. Pouco depois cantavam junto ao homem. E com
eles cantavam todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, at� uma
prostituta cantava. O homem do viol�o estava todo entregue a sua
m�sica, n�o via mesmo ningu�m.
Se o homem n�o se levantasse para ir embora, ainda tocando seu
viol�o e cantando, eles teriam se esquecido de continuar a caminhada
rz
, * o  * ;-� ITXES DA IA  o * ;-�
I
para a cidade alta. Mas o homem foi embora levando a alegria da sua
m�sica. O grupo se dispersou, um vendedor de jomais passou apre-
I goando os di�rios da manh�. Professor e Pedro Bala continuaram a
subir a ladeira. Do largo do Teatro subiram para a rua Chile. Professor
tirou o giz do bolso, sentou-se no passeio. Pedro Bala ficou a seu lado.
Quando viram vir o casal, Professor come�ou a desenhar. Fez um
desenho o mais r�pido que p�de. O casal estava muito perto j�,
Professor agora fazia as caras. A mo�a sorria, sem d�vida seriam
; aoivos. Mas iam t�o entretidos na sua conversa que nem notaram o
desenho. Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse at� eles:
-.V�o pise na cara da mo�a, senhor...
O homem olhou para Pedro Bala ej� ia dizer um desaforo quando
a mo�a viu o desenho do Professor e chamou sua aten��o:
- Que bom... e batia as m�os como uma menina a quem
tivessem dado uma boneca de presente.
O rapaz espiou e sorriu. Voltou-se para Pedro Bala:
- Foi voc� quem desenhou, garoto?
- Foi aqui o meu companheiro, o pintor Professor...
Professor dava os �ltimos retoques no bigode elegant�ssimo do
homem. Depois passou a aperfei�oar a figura da mo�a. Ela ent�o ficou
a�jeito de quem estava posando. Riam os dois, ela se dependurava no
bra�o do amado. O homem puxou a carteira de n�queis, atirou uma
ptata de dois mil-r�is, que Pedro Bala apanhou no ar. Seguiram. O
desenho ficou no meio do passeio. Umas senhoritas que vinham das
compras o viram de longe e uma disse:
- Vamos depressa, que aquilo parece que � um an�ncio do novo
�lme de Barrymore... Dizem que � um amor... E ele � t�o forte...
Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada. E
abra�ados seguiram juntos na liberdade das ruas.
Quasejunto do pal�cio do governo pararam novamente. Profes-
tor ficou de giz na m�o esperando que sa�sse do ponto do bonde um
pato. Pedro Bala assoviava ao seu lado. Breve teriam o dinheiro para
izr
;-� * :: * o ORGE �MADO c' * ::  o
um bom almo�o e ainda para levar um presente para Clara, a amante
do Q,uerido-de-Deus, que fazia anos naquele dia.
Uma velhota deu dez tost�es por seu desenho. A velhota era feia
e Professor tinha conservado sua fei�ra no desenho. Pedro Bala notou;
- Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha, ela te dava mais,
#
Professor riu. Assim passaram a manh�, Professor fazendo a cara
dos que vinham pela rua, Pedro Bala recolhendo as pratas ou os
n�queis que jogavam. Q,nase meio-dia veio um homem que fumava
numa piteira que parecia cara. Pedro Bala correu para avisar ao
Professor:
- Faz deste que parece que � um pato cheio da nota. . .
Professor come�ou a desenhar a figura magra do homem. A
piteira longa, os cabelos encaracolados que apareciam sob o chap�u,
O homem trazia tamb�m um livro na m�o e Professor teve um deseje
irresist�vel de fazer o desenho do homem lendo o livro. O homem ia
passando, Pedro Bala chamou sua aten��o:
- Olhe seu retrato, senhor.
O homem tirou a longa piteira da boca, perguntou a Bala:
- O que, meu filho?
Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava. C
homem aparecia sentado (se bem n�a houvesse cadeira nem nada
estava sentado o ar), fumando sua piteira e lendo seu livro. O cabelc
encaracolado voava sob o chap�u. O homem examinou o desenhe
atentamente, foi espi�-lo em diversos �ngulos, nada dizia. uando c
Professor deu o trabalho por conclu�do, ele perguntou:
- Onde voc� aprendeu desenho, meu caro?
- Em lugar nenhum...
- Em lugar nenhum? Como?
- �, sim senhor...
- E como desenha?
- Me d� vontade, pego, desenho.
O homem estava um pouco incr�dulo, mas sem d�vida recordoi
outros exemplos no fundo da sua mem�ria:
- Qner dizer que voc� nunca estudou desenho?
I28
�-. r  * A IOItGE AMADO  * 3 * A
, *
- Nunca, n�o senhor.
-Posso garantirfalou Pedro Bala. -N�s morajunto, eu sei.
- Ent�o � uma verdadeira voca��o... murmurou o homem.
Voltou aexaminar o desenho. Tirou uma longa fuma�ada da sua
piteira. Os dois meninos olhavam para a piteira encantados. 0
homem perguntou ao Professor:
- Por que voc� me retratou sentado e lendo o livro?
Professor co�ou a cabe�a como se fosse uma coisa dificil de
respondet. Pedro Bala quis falar, mas nada disse, estava atarantado.
Por fim Professor explicou:
- Pensei que sentava melhor pro senhor... co�ou de novo a
cabe�a. - N�o sei mesmo...
- � uma verdadeira voca��o. . . murmurou o homem em vrn
mais baixa, assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta.
Pedro Bala esperava o n�quel, mesmo porque o guarda j� o:
olhava desconfiado da esquina. Professor espiava a piteira do homem
longa, desenhada a fogo, uma maravilha. Mas o homem continuou
- Onde voc� mora?
Pedro Bala n�o deu tempo a que Professor respondesse. Foi el
quem falou:
- A gen mora na Cidade de Palha...
O homem meteu a m�o no bolso e tirou um cart�o:
- Voc� sabe ler?
- A gente sabe, sim senhor respondeu Professor.
-A� est� meu endere�o. Eu quero que voc� me procure. Talve
possa fazer alguma coisa por voc�.
Professor tomou o cart�o. O guarda se encaminhava para ele
Pedro Bala se despediu:
- At� logo, doutor.
O homem ia puxando a carteira de n�queis, mas viu o olhar d
Professor na sua piteira. Jogou o cigarro fora, entregou a piteira a
menino.
- Isso � pelo meu retrato. V� a minha casa...
I30
* o : * ;: CAllT�ES PA AREIA *  : o * ;-
Mas os dois desabaram pela rua Chile, porque o guardaj� estava
quase junto a eles. O homem olhava meio sem compreender quando
ouviu a voz do guarda:
#
- Lhe roubaram alguma coisa, senhor?
- N�o. Por qu�?
- Porque como aqueleslandrins estavam aqui junto ao
senhor...
- Ern duas crian�as... Por sinal que uma com maravilhosa
inclina��o para a pintura.
- S�o ladr�es retrucou o guarda. - S�o dos Capit�es da
Areia.
- Capit�es da Areia? fez o homem se recordando. - J� li
algo... N�o s�o crian�as abandonadas?
- Ladronas, isso s�o... Tenha cuidado, senhor, quando eles se
zproximarem do senhor. Veja se n�o lhe falta nada...
O homem fez que n�o com a cabe�a e olhou a rua. Mas n�o havia
nem rastro dos dois meninos. O homem agradeceu ao guarda,
af rmando mais uma vez que n�o tinha sido furtado, e desceu a rua,
murmurando:
-Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor n�o seria!
O guarda o espiava. Depois comentou para os bot�es da farda:
- Bem dizem que estes poetas s�o doidos...
Professor exibia a piteira. Estava agora nos fundos de um
tnanha-c�u, onde existia um restaurante chique. Pedro Bala sabia
como conseguir do cozinheiro os restos do menu. Esperavam o
slmo�o na rua deserta. Depois que comeram, Pedro Bala ofereceu
cigarros e o Professor se disp�s a fumar na piteira que o homem lhe
dera. Procurou limp�-la:
- O bicho era magro como um espeto. � capaz de ser tutu..
Como n�o achou coisa melhor com que limpar, fez do cart�o do
homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o
cart�o na rua. Pedro Bala perguntou:
i;
11 i i
 * :: * A JORGE lMADO .� *
- Por que tu n�o guarda?
- Pra que quero? e o Professor riu, Pedro Bala riu tamb�n
e por um momento as suas gargalhadas encheram a rua. Riam assu
sem motivo, pelo prazer de rir.
Mas Pedro Bala se fez s�rio:
- O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser u
pintor... apanhou o cart�o e leu o nome do homem. - Tu dev
guardar. uem sabe?
Professor baixou a cabe�a:
- Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gen
s� pode sair ladr�o... uem � que quer saber da gente? uem? 
ladr�o, s� ladr�o... e sua voz se elevava, agora gritava com �dic
Pedro Bala fez que sim com a cabe�a, sua m�o soltou o cart�o, q
caiu na sarjeta. Agora n�o riam mais e estavam tristes na alegria c
manh� cheia de sol, da manh� igual a um quadro de um pintor d
Belas-Artes.
Oper�rios passavam para o trabalho, ap�s o almo�o pobre, e e
tudo que eles viam, que eles conseguiam ver na manh�.
- rJ rll I/1
OMOLU MANDOU A BEXIGA NEGRA PARA A CIDADE. MAS L� EM CID
os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas
�frica, n�o sabia destas coisas de vacina. E a var�ola desceu para
cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de cha
em cima da cama. Ent�o vinham os homens da Sa�de P�bli
r
* o .: * ;:  �Api?�ES DA �REIA *   o * ;-�
metiam os doentes num saco, leva para o lazareto distante. As
mulheres ficavam chorando, porabiam que eles nunca mais
voltariam.
Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta, para a
�dade dos ricos. Omolu n�o sabia da vacina, Omolu era um deus das
florestas da �frica, que podia saber de vacinas e coisas cient�ficas? Mas
como a bexigaj� estava solta (e era a terr�vel bexiga negra), Omolu teve
que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres. J� que a soltara,
tmha que deixar que ela realizasse sua obra. Mas como Omolu tinha
pena dos seus filhinhos pobres, tirou a for�a da bexiga negra, virou em
alastrim, que � uma bexiga branca e tola, quase um sarampo. Apesar
 disto, os homens da Sa�de P�blica vinham e levavam os doentes para
#
o lazareto. Ali as fam�lias n�o podiam ir visit�-los, eles n�o tinham
ningu�m, s� a visita do m�dico. Morriam sem ningu�m saber e
quando um conseguia voltar era mirado como um cad�ver que
houvesse ressuscitado. Os jomais falavam da epidemia de var�ola e da
necessidade da vacina. Os candombl�s batiam noite e dia, em honra
a Omolu, para aplacar a f�ria de Omolu. O pai-de-santo Paim, do
Alto do Abacaxi, preferido de Omolu, bordou uma toalha branca de
I . seda, com lantejoulas, para oferecer a Omolu e aplacar sua raiva. Mas
Omolu n�o quis, Omolu lutava contra a vacina.
 Nas casas pobres as mulheres choravam. De medo do alastrim, de
medo do lazareto.
Almiro foi o primeiro dos Capit�es da Areia que caiu com
alastrim. Uma noite, quando o negrinho Barand�o o procurou no seu
canto para fazer o amor (aquele amor que Pedro Bala proibira no
trapiche), Almiro lhe disse:
-Tou com uma coceira danada.
Mostrou os bra�os j� cheios de bolhas a Barand�o:
- Parece que tamb�m tou queimando de febre.
Barand�o era um negrinho corajoso, todo o grupo sabia disto.
Mas da bexiga, da mol�stia de Omolu, Barand�o tinha um medo
doido, um medo que muitas ra�as africanas tinham acumulado dentro
r
;-, * ;  * o Joar, Asuao :' * =?  1
dele. E sem se preocupar que descobrissem suas rela��es sexuais cor
Almiro saiu gritando entre os grupos:
- Almiro t� com bexiga... Gentes, Almiro t� com bexiga,
Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastand
receosos do Iugar onde estava Almiro. Este come�ou a solu�ar. Pedr
Bala n�o tinha chegado ainda. Professor, o Gato e Jo�o Grand
tamb�m andavam por fora. Da� ter sido o Sem-Pernas quem domino
a situa��o. O Sem-Pernas nestes �ltimos tempos andava cada ve
mais arredio, quase n�o falava com ningu�m. Fazia espantosas burla
de todo mundo, por tuilo puxava uma briga, s� respeitava mesm
Pedro Bala. Pirulito rezava por ele mais que por nenhum, e por veze
pensava que Satan�s tinha se metido no corpo do Sem-Pernas. (
padre Jos� Pedro era paciente com ele, mas tamb�m do padre o Sem
Pernas se afastara. N�o queria saber de ningu�m, conversa em que el
se metia era conversa que terminava em briga.
Q,uando o Sem-Pernas passou entre os grupos, todos se afasta
ram. Quase o tem�am tanto quanto � bexiga. O Sem-Pernas tinh
arranjado por aqueles dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramen
te. Aprinc�pio, quando o c�o aparecera no trapiche, esfomeado, Sem
Pernas o malttatou quanto p�de. Mas terminou por acarinh�-lo e 
tomar para si. Agora como que vivia inteiramente para o cachorro.1
por isso voltou s� para levar o c�o, que o acompanhara, para longe d
Almiro. Depos andou novamente para onde estavam os meninoF
Estes cercavam Almiro de longe. Apontavam as bolhas que apareciar
no peito do menino. Antes de tudo, Sem-Pernas falou com sua vo
fanhosa para Barand�o:
- Agora tu va� ter bexiga na p�roca, negro burro.
Barand�o Oolhou assustado. Depois, Sem-Pernas falou pa
todos, apontando Almiro com o dedo:
- Ningu�m aqui vai ficar bexiguento s� por causa deste freso
Todos o olhavam, esperando o que eIe diria. Almiro solu�ava,
m�os no rosto, encolhido na parede. Sem-Pernas falava:
- Ele vai sair daqui agorinha mesmo. Vai se meter em qualqu
canto da rua at� que os mata-cachorro da sa�de pegue ele e leve p
lazareto.
- N�o. N�o rugiu Almiro.
I3d
* o c? * ;- CArrr7s sA AmA *  ? o * ;'s
- Vai, sim fez Sem-Pernas. - A gente n�o vai chamar os
mata-cachorro aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita. Tu
vai por bem ou por mal e leva teus trapos. Vai pro inferno, que a gente
a�o vai ficar com bexiga por voc�. or de voc�, xibungo...
Aln�ro fazia que n�o, que n�o,s solu�os enchiam o trapiche.
0 negrinho Barand�o tremia, Piru to clamav� que era castigo de
Deus por causa dos pecados deles, os outros n�o sabiam que fazer.
Sem-Pernas se preparava para for�ar sua id�ia. Pirulito se abra�ou com
um quadro de Nossa Senhora e disse:
#
- Vamos rezar todo mundo, que isto � um castigo de Deus pros
pecados da gente. A gente peca muito, Deus t� castigando. Vamos
pedir perd�o... e sua voz era como um clamor, soava anunciando
vingan�as.
Alguns juntaram as m�os e Pirulito chegou a iniciar um padre-
nosso. Mas Sem-Pernas o afastou com uma das m�os:
- Sai, sacrista...
Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo.
Parecia um quadro estranho. Ao fundo, Almiro solu�ava e dizia que
n�o. Pirulito rezava, os outros estavam indecisos, n�o sabiam o que
fazer. Barand�o tremia de medo, pensando que estava contagiado.
Sem-Pernas voltou a falar:
 -Gente, se ele n�o quiser sair, a gente bota ele pra fora debaixo
de porrada. Sen�o, tudo vai morrer de bexiga, tudo... Voc�s n�o v�,
desgra�ados? A gente bota ele pra fora at� uma rua onde levem ele pro
lazareto.
- N�o. N�o fazia Almiro. - Pelo amor de Deus.
- Isso � castigo... fez Pirulito.
- Cala a boca, filho de padre o Sem-Pernas continuava. -
Vamos levar ele, gente, j� que ele n�o quer ir por bem.
Como via que os outros ainda estavam irresolutos, marchou para
o lado de Almiro e estendeu o p� para lhe dar uma pancada:
- Assim tu vai embora, bexiguento.
Almiro se encolheu mais:
-N�o. Tu n�o pode fazer isso. Eu sou um do grupo. Espera Bala
chegar.
35
;1 * � i * o Joec,E A!�9o ;-: * c3 * o
-� castigo... � castigo... -avoz de Pirulito ainda irritou mais
o Sem-Pemas, que descarregou um pontap� em Almiro.
- D� o fora, bexiguento. D� o fora, fresco.
Mas neste instante uma m�o o pegou e o sacudiu longe. Volta
Seca se plantou entre Almiro e o Sem-Pernas. O mulato levava um
rev�lver na m�o e os seus olhos fuzilavam:
- Juro que tem bala e que como um que toque em Almiro -
olhou para todos com sua cara sombria.
- Qne � que tu tem que fazer aqui, cangaceiro? - Sem-Pernas
queria recuperar o dom�nio da situa��o.
- Ele n�o � um soldado de policia pra gente tratar ele assim. �
um do grupo, ele falou direito. Vamos esperar Pedro Bala chegar. Ele
resolve. E se algu�m tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco
da policia e segurava o rev�lver.
Os outros se afastaram aos poucos. Sem-Pernas cuspiu:
- Tudo � uns covarde... e seguiu para onde o cachorro o
esperava. Se deitou ao seu lado e os que ficaram mais perto dele a
ouviam murmurar: covardes, covardes.
Volta Seca ficou diante de Almiro com o rev�lver na m�o. Almiro
solu�ava, e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam
pelo seu corpo. Pirulito rezava, pedia a Deus que voltasse a sei
suprema bondtie, n�o fosse suprema justi�a.
Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre Jos� Pedro
Escapuliu pela porta do trapiche, se dirigiu � casa do padre. Mas pelc
caminho ainda ia rezando, os olhos dilatados cheios do temor d
Deus.
Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de Jo�o Grande
Voltavam de um neg�cio que tinham resolvido bem e comentavam 
sucesso entre gargalhadas. O Gato tinha ido com eles, mas n�
36
I * o :: * c:, cx5 PA  * :: o * ;: 
voltara. Ficara em casa de Dalva. Os tr�s entraram no trapiche e a
primeira coisa que enxergaram foi Volta Seca com o rev�lver na m�o.
- Que � isso? perguntou Pedro Bala.
Sem-Pernas se levantou do seu canto, o cachorro o acompanhow
- Este besta metido a cangaceiro n�o quer deixar que a gente fa�a
o que resolveu e apontava Almiro. - Aquele fresco t� com a
bexiga...
Jo�o Grande se en eu. Pedro Bala olhou Almiro, o Professor
andou para onde esta lta Seca. O mulato n�o largava o rev�lver.
Pedro perguntou ent�
- Como foi, Volta Seca?
#
- Este t� com a maldita... mostrou o menino que solu�ava.
- E aquele macaco mesmo que um soldado quis botar ele no meio da
rua pra assist�ncia levar ele pro lazareto. Eu n�o tava me metendo.
Mas ele n�o quis ir. A� eles todosjuntos-cuspiu-quis dar nele pra
obrigar ele ir. Foi quando ele falou que era do grupo, que eles esperasse
que tu chegasse. Eu achei que ele falou direito, fiquei do lado dele...
Ele n�o � um soldado de pol�cia pra tratar ele assim...
- Tu fez direito, Volta Seca - Pedro Bala bateu no ombro do
mulato. Depois olhou Almiro: - Tu t� mesmo com ela?
O menino inclinou a cabe�a e rebentou em solu�os. Sem-Pernas
gritou:
- S� tem mesmo que fazer o que eu disse. N�o pode chamar a
assist�ncia aqui que todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita.
S� tem mesmo que deixar ele numa rua onde passe gente. Vamos
fazer, tu queira ou n�o...
Pedro Bala gritou:
- Quem � o chefe daqui, � tu ou eu? Tu quer que eu te rebente?
Sem-Pernas saiu murmurando. O cachorro veio lamber seus p�s,
mas ele deu-lhe um pontap�. Logo depois se arrependeu, por�m, e
eome�ou a acarinhar o c�o, enquanto espiava os outros.
Pedro Bala andou at� Almiro. Jo�o Grande queria vencer o medo
e ir paraj unto de Almiro tamb�m. Mas o medo da bexiga era uma coisa
enorme nele, era quase maior que sua bondade. S� Professor estava
junto de Pedro Bala. Este disse a Almiro:
I3y
;-, * ; 3 # N Jo Auo ;` * ,D #
- Deixe eu ver...
Almiro mostrou os bra�os cheios de bolhas. Professor disse:
- � alastrim. Bexiga negra fica logo preta...
Pedro Bala &cou pensando. Ia um sil�ncio pelo trapiche. Jo�
Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou. Mas ia com passo
arrastados. Parecia violentar sua pr�pria vontade para chegar at�junt
de Almiro. Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre Jos
Pedro. O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente
Pirulito apontou Almiro, o padre se dirigiu para ele, chegou pertc
pegou no bra�o, examinou. Depois disse a Pedro Bala:
- � preciso levar para a assist�ncia...
- Pro lazareto
- Sim.
- N�o, n�o vai, n�o fez Pedro Bala.
O Sem-Pernas se levantou outra vez, veio para junto de1es:
- Tou dizendo isso h� muito tempo. Tem que ir pro lazareto
- N�o vai repetiu Pedro Bala.
- Por que, meu filho? perguntou o padre Jos� Pedro.
- Tu sabe, padre, que ningu�m volta do lazareto. Ningu�n
volta. E ele � um da gente. um do grupo. A gente n�o pode fazer isso..
- Mas � a lei, filho.
- Morr�r?
O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos. Aquele
meninos viviam a lhe dar surpresas, sempre mais adiantados er
intelig�ncia do que ele pensava. E, no fundo, o padre sabia que ele
tinham raz�o.
- N�o vai, n�o, padre... afumou Pedro Bala.
- Ent�o que � que voc� vai fazer, meu filho?
- Tratar dele aqui. . .
- Mas como?
- Chamo Don'Aninha...
- Mas ela n�o sabe tratar de ningu�m.
Pedro Bala ficou confuso. Passado um momento, disse:
IJ8
* o c * ;:: c,x , IA * O o * ;-,
- � melhor que morra aqui que no lazareto.
Sem-Pernas se meteu de novo:
- Vai pegar bexiga em todo mundo... se dirigia aos outros.
- Vai pegar em todo mundo. A gente n�o pode deixar.
- Cala a boca, desgra�ado, sen�o eu te arrombo disse Pedro.
Mas o padre interveio:
- Ele tem raz�o, Balz.
- N�ovai pro lazareto. padre. O senhor � bom, bem sabe que ele
n�o pode ir. L� � uma mis�ria, tudo morre.
#
O padre bem sabia que era verdade, calou. Foi quando Jo�o
Grande falou:
- Mas ele n�o tem casa?
- Quem?
- Almiro. Tem sim.
- N�o quero irpara l�... -solu�ou Almiro. - Eu tinha fugido.
Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa:
- Deixa estar, Almiro. Primeiro eu vou l�, falo com tua m�e.
Depois a gente levavoc�. Tu l� fica bem, n�o tem que ir pro lazareto.
E o padre arranja um m�dico pra cuidar de tu, n�o arranja, padre?
' - Levo, sim prometeu o padre Jos� Pedro.
Havia uma lei que obrigava os cidad�os a denunciarem � Sa�de
Pr�blica os casos devarfola que conhecessem, para o imediato recolhi-
mento dos variolosos aos lazaretos. O padre Jos� Pedro conhecia a lei,
mas, mais uma vez, ficou com os Capit�es da Areia contra a lei.
Pedro Bala foi � casa de Almiro, a m�e do menino ficou feito
louca, era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador al�m da
Cidade de Palha. Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois
levou um m�dico. Mas acontece que o m�dico estava cavando um
lugar na Sa�de P�blica e denunciou o caso de varfola. Almiro foi
mesmo levado para o lazareto e o padre ficou em maus len��is, pois
o m�dico (que se dizia livre-pensador, mas em verdade era esp�rita)
denunciou o padretamb�m como encobridor do caso. As autoridades
* ;  * o ORGE ,AMADO � * :: * o
n�o agiram contra o padre, mas se queixaram ao arcebispado. E o
padre Jos� Pedro foi chamado � presen�a do C�nego Secret�rio do
Arcebispado. Ficou amedrontado.
Pesadas cortinas, cadeiras de alto espaldar, um retrato de Sante
In�cio numa parede. Na outra, um crucifixo. Uma grande mesa,
custosos tapetes. O padre Jos� Pedro entrou na sala com o cora��c
batendo muito. N�o tinha absoluta certeza do motivo por que recebe-
ra aquela comunica��o do C�nego Secret�rio do Arcebispado para
comparecer ao Pal�cio Episcopal. No primeiro momento lembrou-sf
da par�quia que esperava inutilmente havia dois anos. Seria sua
par�quia? Sorriu com alegria. Ent�o, sim, iria ser um verdadeirc
sacerdote, iria ter almas entregues a si, � sua guia. Serviria a Deus. Ma;
certa tristeza o invadiu: e suas crian�as, as crian�as abandonadas da;
ruas da Bahia, principaamente os Capit�es da Areia, como ficariami
Ele era um dos seus poucos amigos. Nunca um outro padre se voltar
para aqueles meninos. Se contentavam em ir celebrar de quando en
vez uma missa no reformat�rio, o que os tornava mais antip�ticos ao
meninos porque atrasava o magro caf�. O padre Jos� Pedro, enquant
esperava sua par�quia, se dedicara aos meninos abandonados. N�i
podia dizer que os resultados tivesserri sido grandes. Mas era precis
compreender tue ele estava fazendo uma experi�ncia, que muita
vezes tinha que voltar atr�s. Fazia pouco tempo que o padre captar
de todo a confian�a dos meninos. Estes j� o tratavam como amige
mesmo quando n�o o levavam a s�rio como sacerdote. O padre tiver
de passar por cima de muita coisa para conseguir a confian�a de
Capit�es da Areia. Mas Jos� Pedro pensava que s� Pirulito e a su
voca��o pagavam a pena. O padre tivera que fazer muita coisa conn
o que lhe haviam ensinado. Pactuara mesmo com coisa que a Igre
condenaria. Mas era o �nico jeito... A� o padre lembrou-se que be
podia ser por causa daquilo que o haviam chamado. Devia ter sido pe
aquilo. Muitas beatasj� murmuravam por causa das suas rela��es co
as crian�as que viviam do furto. E havia aquele caso de Almiro. Dev
ser por aquilo. O primeiro sentimento do padre Jos� Pedro quanc
descobriu o motivo da comunica��o foi um grande temor. Ia s
r4 
* O :? * :: ` CmnXEs  AmA * :? O *
castigado com certeza, perderia toda esperan�a de uma par�quia. E o
padre Jos� Pedro necessitava de uma par�quia. Sustentava uma m�e
velha, uma irm� na Escola Normal. Logo depois pensou que muito
possivelmente tudo o que fizera fora errado, seus superiores n�o
aprovariam. E, no Semin�rio, lhe tinham ensinado a obedecer. Mas
pensou nos meninos. Na sua mem�ria passaram as figuras de Pirulito,
Pedro Bala, Professor, Sem-Pemas, Boa-Vida, o Gato. Era preciso
salvar aqueles pequeninos... As crian�as eram a maior ambi��o de
Cristo. Devia se fazer tudo para salvar aquelas crian�as. N�o era culpa
deles se estavam perdidos...
#
O C�nego entrou. Nos seus pensamentos o padre nem vira que
muitos minutos de espera tinham se passado. N�o viu tampouco
quando o C�nego entrou com um passo manso. Era alto e muito
magro, anguloso, com a batina muito limpa, os raros cabelos que lhe
restavam muito bem penteados. Os l�bios tinham uma linha dura.
Um ros�rio descia-lhe em torno ao pesco�o. Se bem sua figura desse
uma impress�o de pureza, essa impress�o n�o fazia seus tra�os mais
doces. N�o havia nenhuma simpatia humana na sua 6gura, nos seus
tra�os duros. Como que a pureza era uma coura�a que o afastava do
mundo. Diziam que era inteligent�ssimo, grande orador sacro, c�lebre
pela rigidez dos seus costumes. Ali estava parado diante do padre Jos�
Pedro, olhando com olhos observadores a figura baixa do padre, a sua
batina suja e remendada em dois lugares, o seu ar de medo, a falta de
intelig�ncia que de mistura com a bondade se refletia na cara do padre.
Estudou o padre uns poucos minutos. O bastante para penetrar a
fundo na alma sem complica��es de Jos� Pedro. Tossiu. O padre o viu,
levantou-se, beijou humildemente sua m�o:
- C�nego...
- Sente-se, padre. Temos que conversar.
Olhava com os olhos sem express�o o padre. Sentou-se, cruzou
zs m�os com grande cuidado, afastou sua reluzente batina da batina
suja do padre Jos� Pedro. Sua voz contrastava com sua pessoa.
Podia-se dizer que era uma voz doce, quase feminina, se n�o fosse um
acento de decis�o que a cada passo surgia nela. O padre Jos� Pedro
baixou a cabe�a e esperou que o C�nego falasse. Este come�ou:
- Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor, padre.
rdI
* `.: * A JORGE AMADO .  * C: *
Padre Jos� Pedro quis figurar uma cara de quem n�o entendia
Mas a malicia era superior � sua intelig�ncia e naquele momento el
pensava nos Capit�es da Areia. O C�nego sorriu ligeiramente.
- Creio que o senhor j� sabe do que se trata...
O padre olhou com uns olhos abertos, mas logo baixou ;
cabe�a:
- S� se � as crian�as...
-O pecador n�o pode esconder seu pecado, ele est�vis�vel na su
consci�ncia... e a voz do C�nego tinha perdido aquela nota d
do�ura.
O padre Jos� Pedro ouviu com pavor. Era o que ele temia. O
seus superiores, aqueles que tinham intelig�ncia para compreen
der os desejos de Deus, n�o estavam de acordo com os m�todos qu
ele empregara junto aos Capit�es da Areia. Vinha um temor d
dentro dele, n�o propriamente um temor do C�nego, do arcebispe
mas um temor de ter ofendido a Deus. E at� suas m�os tremian
ligeiramente.
A voz do C�nego retomou sua do�ura. Era como uma voz d
mulher, doce e suave, mas que negava a um homem suas car�cias:
- T�m-nos chegado bastantes queixas, padre Jos� Pedro. C
arcebispado tem fechado os olhos na esperan�a de que o senhe
conhecesse seuerro e se emendasse...
Olhou o padre com olhos duros. Jos� Pedro baixou a cabe�a.
- N�o faz muito tempo a vi�va Santos queixou-se. O senhe
ajudou uma corja de moleques, numa pra�a, avai�-la. Melhor, incito
os moleques a que a vaiassem... ue tem a dizer, padre?
- N�o � verdade, C�nego.
- O senhor quer dizer que a vi�va mentiu?
Fuzilou o padre com os olhos. Mas desta vez Jos� Pedro n�
baixou a cabe�a, apenas repetiu:
- O que ela disse n�o � verdade...
- O senhor sabe que a vi�va Santos � uma das melhore
protetoras da religi�o na Bahia? N�o sabe dos donativos...
- Eu posso lhe narrar o fato...
rsz
* O �? * :'! CariTXs sA AmA # � ? O * :'!
- N�o me interrompa. .. No Semin�rio n�o lhe ensinaram a ser
humilde e respeitoso com seus superiores? Se bem o senhor n�o tivesse
sido um aluno dos mais brilhantes...
O padre Jos� Pedro sabia daquilo. N�o era preciso que lhe
repetissem que fora um dos piores alunos do Semin�rio em mat�ria
de estudos. Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado, de ter
#
ofendido a Deus. O C�nego devia ter raz�o, era muito mais
inteligente, estava muito mais pr�ximo de Deus, que � a suprema
intelig�ncia.
O C�nego fez um gesto com a m�o, como quem relegava para
longe aquele incidente da vi�va, e a sua voz se fez doce novamente:
- Por�m agora h� coisa muito mais grave. Por sua causa, padre,
este arcebispado foi procurado pelas autoridades. O senhor sabe o que
fez? Sabe?
O padre n�o tentou negar:
- Foi o caso do menino com alastrim?
- Um menino com var�ola, sim senhor. E o senhor escondeu o
caso das autoridades sanit�rias...
O padre Jos� Pedro tinha confian�a na bondade de Deus. Muitas
vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo. Agora
pensava isto tamb�m. Aquele pensamento tinha enchido seu cora��o
de repente. Levantou o busto, fixou a vista no C�nego:
- O senhor sabe o que � o lepros�rio?
O C�nego n�o respondeu.
- Pois � raro o homem que volta de l�. Qnanto mais uma
crian�a... Mandar uma crian�a para l� � cometer um assassinato...
-lsso n�o � conosco-respondeu o C�nego com voz inexpressiva
mas cheia de decis�o. - Isto � com a Sa�de P�blica. Mas o nosso
papel � respeitar as leis.
- Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus?
- Q,ue sabe o senhor da bondade de Deus? Qne grande inteli-
g�ncia tem para saber dos des�gnios de Deus? O dem�nio da vaidade
o dominou?
O padre Jos� Pedro tentou explicar:
Id;
* r  * o OGE ar :-' *  * o
- Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de serrir ao
Senhor. Mas estas crian�as nunca tinham tido ningu�m que olhasse
por elas. Eu tive a inten��o...
- A boa inten��o n�o desculpa os maus atos... cortou o
C�nego com voz muito doce ao enunciar a senten�a.
O padre Jos� Pedro se sentiu novamente em d�vida. Mas elevou
o pensamento a Deus, voltou parte da sua confian�a:
- Teriam sido maus? Eram uns meninos que nunca tinham
�;,
ouvido falar seriamente de Deus. Misturam Deus com os santos dos
negros, n�o t�m nenhuma id�ia de religi�o. Eu quis ver se salvava
aquelas almas...
-J� lhe disse que suas inten��es foram boas, mas suas a��es n�o
conesponderam �s inten��es...
- � que o senhor n�o conhece estes meninos... -o C�negolhe
:
deitou um olhar duro. - S�o meninos iguais a homens. Vivem como
homens, conhecem a vida toda, tudo... E preciso tratar com jeito,
fazer concess�es.
- Por isso o senhor faz o que eles querem...
- �s vezes tenho que fazer para conseguir um bom resultado...
- Compactua com os roubos, com os crimes destes perversos...
- Que culpa eles t�m? o padre se lembrava de Jo�o de Ad�o,
- Quem cuida�ieles? Qnem os ensina? Qnem os ajuda? Q.ue carinhe
eles t�m?-estava exaltado e o C�nego se afastou mais dele, enquantc
o fitava com os olhinhos duros. - Roubam para comer porque todo;
estes ricos que t�m para botar fora, para dar para as igrejas, n�o s<
lembram que existem crian�as com fome... Qne culpa...
- Cale-sea voz do C�nego era cheia de autoridade. - Quen
o visse falar diria que � um comunista que est� falando. E n�o � dificil
No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles..
O senhor � um comunista, um inimigo da Igreja...
O padre o olhou horrorizado. O C8nego levantor-se, estendei
a m�o para o padre:
- Qne Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos
suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e � Igreja. Ter
desonrado as vestes sacerdotais que leva. V'iolou as leis da Igreja e d
i d4
* � L: * y.  rAPiT�ES UA lREIA * :  � * 'y
Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obriga-
#
dos a n�o lhe dar t�o cedo a par�quia que o senhor pediu. V� (agora
sua voz voltava a ser doce, mas de uma do�ura cheia de resolu��o, uma
do�ura que n�o admitia r�plicas), penitencie-se dos seus pecados,
dedique-se aos fi�is da igreja em que trabalha e esque�a essas id�ias
comunistas, sen�o, teremos que tomar medidas mais s�rias. O senhor
pensa que Deus aprova o que est� fazendo? Lembre-se que a sua
intelig�ncia � muito pequena, o senhor n�o pode penetrar nos des�g-
nios de Deus...
V'irou as costas ao padre e foi saindo. O padre Jos� Pedro deu dois
passos at� ele, falou com voz estrangulada:
- Se tem um at� qve quer ser padre...
O C�nego voltou-se:
' - A entrevista est� terminada, padre Jos� Pedro. Pode se retirar
e que Deus o ajude a pensar melhor...
Mas o padre ainda ficou parado uns minutos, querendo dizer
alguma coisa. Mas n�o dizia nada, estava como que apatetado,
olhando a porta por onde o C�nego tinha sa�do. Naquele momento
n�o podia pensar em nada. Estava c�mico com a m�o ainda estendida,
o corpo meio ca�do para um lado, a batina suja e remendada, os olhos
abertos, apavorados, os l�bios tremendo como que querendo falar. As
� pesadas cortinas impediam que a luz entrasse na sala. O padre ainda
se demorou na obscuridade.
:t<..
Um comunista... Uma orquestra vagabunda, por�m afinada,
tocava uma velha valsa na rua:
Fiyuei sem alegria, senhor meu Deus...
O padre Jos� Pedro ia encostado � parede. O C�nego dissera que
ele n�o podia compreender os des�gnios de Deus. N�o tinha inteli-
g�ncia, estava falando igual a um comunista. Era aquela palavra que
mais perseguia o padre. De todos os p�lpitos todos os padres tinham
falado contra aquela palavra. E agora ele... O C�nego era muito
inteligente, estava pr�ximo de Deus pela intelig�ncia, era-lhe f�cil
ouvir a voz de Deus. Ele estava errado, perdera aqueles dois anos de
Id5
* ` : * O JOkGE A.Me.DO �'E * ! * �
tanto trabalho. Pensara levar tantas crian�as a Deus... Crian�as
extraviadas... Ser� que elas tinham culpa? Deixai vir a mim as
criancinhas... Cristo... Era uma figura radiosa e mo�a. Os sacer-
dotes tamb�m disseram que ele era um revolucion�rio. Ele queria
as crian�as... Ai de quem fa�a mal a uma crian�a... A vi�va Santos
era uma protetora da Igreja... Ser� que ela tamb�m ouvia a voz de
Deus? Dois anos perdidos... Fazia concess�es, sim, fazia. Sen�o,
como tratar com os Capit�es da Areia? N�o eram crian�as iguais �s
outras... Sabiam tudo, at� os segredos do sexo. Eram como
homens, se bem fossem crian�as... N�o era poss�vel trat�-los como
aos meninos que v�o ao col�gio dos jesu�tas fazer a primeira
comunh�o. Aqueles t�m m�e, pai, irm�s, padres confessores e
roupas e comida, t�m tudo.. Mas n�o seria ele quem podia dar
li��es ao C�nego... O C�nego sabia de tudo, era muito inteligen-
te. Podia ouvir a voz de Deus... Estava pr�ximo de Deus... N�o foi
dos alunos mais brilhantes... Tinha sido dos piores... Deus n�o ia
falar a um padre ignorante... Ouvia Jo�o de Ad�o. Um comunista
como Jo�o de Ad�o... Mas os comunistas s�o maus, querem acabar
tudo... Jo�o de Ad�o era um homem bom... Um comunista... E
Cristo? N�o, n�o podia pensar que Cristo fosse um comunista...
O C�nego devia entender melhor que um pobre padre de batina
suja... O C�nego era inteligente e Deus � a suprema intelig�ncia...
Pirulito queria ser padre. Qneria ser padre, sim, a sua voca��o era
verdadeira. M pecava todos os dias, roubava, assaltava. N�o era
culpa deles... st� falando como um comunista... Por que este vai
num autom�vel, fuma um charuto? Falando como um comunista
O C�nego disse, ser� que Deus o perdoa?
O padre Jos� Pedro vai encostado � parede. As �ltimas notas d
orquestra distante chegam aos seus ouvidos. Os olhos do padre est�c
esbugalhados.
Sim, padre Jos� Pedro, Deus �s vezes fala aos mais ignorantes
Aos mais ignorantes... Ele era ignorante... Mas, Deus, ouvi... S�c
uns pobres meninos... Q,ue sabem eles do bem e do mal? Se ningu�n
nunca lhes ensinou nada? Nunca u'a m�o de m�e nas suas cabe�as
Uma palavra boa de um pai. Senhor, eles n�o sabem o que fazem..
#
Por isso estive com eles, fiz como eles queriam muitas vezes...
O padre aperta as m�os, as eleva para o c�u.
Idb
* o C: * :v CAllt�ES DA ARFIA * :: o * ;-
Ser� que um comunista age assim? Dar um pouco de conforto
�quelas pequenas almas. Salv�-las, melhorar seus destinos... Antes
dali s� sa�am ladr�es, batedores de carteira, vigaristas, os melhores
eram os malandros... A profiss�o mais digna... Qneria que agora
sa�ssem homens para o trabalho, honestos, dignos... Tinha que ir aos
poucos... Do reformat�rio sa�am piores... N�o � com castigo brutal,
Deus, ouvi... L� o castigo � brutal... S� com paci�ncia, com bonda-
de... Cristo tamb�m pensava assim... Por que como um comunis-
ta?... Deus pode falar a um ignorante... Abandonar as crian�as? A '!
par�quia est� perdida. .. M�e velha que solu�ar�. . . E a carreira da irm�
na Escola Normal? Tamb�m ela quer ensinar a crian�as... Mas ser�o
outras crian�as, crian�as com livros, com pai, com m�e... N�o ser�o
iguais a estas abandonadas na rua, dormindo sob a lua, nas pontes, nos ,
trapiches... N�o pode abandon�-las. Com quem estar� Deus? Com
o Conego ou com o pobre padre? A vi�va... N�o, Deus est� com o
padre... Est� com o padre. . . Sou muito ignorante para ouvir a voz de
Deus... (Se esconde na porta de uma igreja.) Mas por vezes Deus fala
aos ignorantes... (Sai da porta da igreja, continua a caminhada `
encostado na parede.) Continuar�, sim. Se estiver errado, Deus o
perdoar�... As boas tntenf�es n�o desculpam os maus atos. Mas Deus � a
suprema bondade... Continuar�... Os Capit�es da Areia talvez n�o
d�em s� ladr�es... E n�o seria uma grande alegria para Cristo?. . . Sim,
Cristo sorri. � uma figura radiosa. Sompara o padre Jos� Pedro.
Obrigado, meu Deus, obrigado.
O padre ajoelha na rua, levanta as m�os para o c�u. Mas olha a
gente que sorri. Se p�e de p� espantado, salta num bonde cheio de
vergonha.
Um homem comenta:
- Olha um padre b�bado. Qne descarado...
Todos riem no ponto de bondes.
Boa-V'ida meteu a unha negra, rasgou a bolha. Depois espiou o
bra�o: estava cheio. Por isso sentia tanto calor, um amolecimento no
corpo. Era a febre da bexiga. A cidade pobre estava assoladade bexiga.
Os m�dicos diziam que a epidemia j� estava declinando, mas ainda
ydy
* `.: * � ORGE AM�DU �` * `.:
assim eram muitos os casos, todos os dias ia gente para o lazaretc
Gente que n�o voltava, pensou Boa-Vida. At� Almiro, por cuja caus
se armara t�o grande barulho no trapiche, fora para o lazareto. E n�
voltara... Era um menino bonito. Havia quem dissesse que ele 
Barand�o... Mas n�o era ruim, n�o aborrecia ningu�m. Sem-Perna
armara umesc�ndalo. Depois que soubera que ele morrera ficara aind
mais retra�do, parecia o culpado da morte de Almiro. N�o conversav
com ningu�m. S� com o cachorro que arranjara.
- Acaba doido... pensou Boa-Vida.
Acendeu um cigarro. Andou para o trapiche. S� o Professo
estava. �quelas horas da tarde era dif�cil que estivesse alga�m n
trapiche. Professor viu quando ele entrou:
- Passa um cigarro, Boa-Vida.
Boa-Vidajogou um. Chegou no seu canto, f�z uma trouxa con
seus trapos. Professor ficou espiando aquele movimento:
- Tu vai embora?
Boa-Vida andou at� ele com a trouxa debaixo do bra�o:
- Tu n�o diz a ningu�m... S� a Bala...
- Pra onde tu vai?
O mulato riu:
- Pro lazareto...
Professorlhou os bra�os cheios de bolhas, o peito.
-Tu n�o vai, Boa-Vida...
- Por que, mano?
- Tu sabe... � buraco na certa...
-Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros?
- A gente trata de tu...
- Morria tudo. Almiro tinha casa, t� certo. Eu n�o tenh
ningu�m.
Professor calou-se. Qneria dizer muita coisa. O mulato estava n
#
sua frente, a trouxa debaixo do bra�o cheio de bolha de bexiga. Boa
Vida falou:
-Tu diz a Pedro Bala. Os outros n�o precisa.
Professor s� soube dizer:
I48
* o .: * ; CAPIT�ES DA AItEIA *  : o * ;-
- Tu vai mesmo?
Boa-Vuda fez que sim, sa�ram do trapiche. Boa-Vida olhou a
cidade, fez um gesto com a m�o. Era como um adeus. Boa-V'ida era
malandro e ningu�m ama sua cidade como os malandros. Olhou o
Professor:
- Qnando tu fizer meu retrato... Tu ainda vai fazer?
- Vou, Boa-Vlda... (Vontade de dizer palavras carinhosas
como a um irm�o.)
- N�o me faz cheio de bexiga, n�o...
Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com as palavras
presas, um n� na garganta. Mas tamb�m achava bonito Boa-Vida
andar assim para a morte para n�o contaminar os outros. Os homens
assim s�o os que t�m uma estrela no lugar do cora��o. E quando
morrem o cora��o fica no c�u, diz o Q,uerido-de-Deus. Boa-Vida era
um menino, n�o era um homem. Masj� tinha uma estrela no lugar do
cora��o. J� desapareceu o seu vulto. E ent�o a certeza de que n�o mais
ver� seu amigo encheu o cora��o do Professor. A certeza de que o
outro ia para a morte.
Nas macumbas em honra de Omolu, o povo negro, castigado
com a bexiga, cantava:
Cabono,
aziela engoma!
Quero v� couro zo�!
Omolu vai pro sert�o
Bexiga vai espalh�
Omolu espalhara a bexiga na cidade. Era uma vingan�a contra
a cidade dos ricos. Mas os ricos tinham a vacina, que sabia Omolu
de vacinas? Era um pobre deus das llorestas d'�frica. Um deus dos
negros pobres. Que podia saber de vacinas? Ent�o a bexiga desceu
e assolou o povo de Omolu. Tudo que Omolu p�de fazer foi
transformar a bexiga de negra em alastrim, bexiga branca e tola.
Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu dizia
que n�o fora o alastrim que matara. Fora o lazareto. Omolu s�
rdv
;-, * ; ; * A JocF AM,oo ��' * r * o
queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros. O lazareto �
que os matava. Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga
da cidade, levasse para os ricos latifundi�rios do sert�o. Eles
tinham dinheiro, l�guas e l�guas de terra, mas n�o sabiam tampou-
co da vacina. O Omolu diz que vai pro sert�o. E os negros, os og�s,
as filhas e pais-de-santo cantam:
Ele � mesmo nosro pai
e � guem pode nos ajudar...
Omolu promete ir. Mas para que seus filhos negros n�o
esque�am avisa no seu c�ntico de despedida:
Ora, adeus, � meus fslhinhos,
qu �u vou e torno a vort�...
E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa
noite de mist�rio da Bahia, Omolu pulou na m�quina da Leste
Brasileira e foi para o sert�o de Juazeiro. A bexiga foi com ele.
Boa-Vfda voltou magro, a roupa dan�ando no seu corpo. A cara
agora estava toda picada. Os outros o olharam ainda com receio
quando naquela noite ele entrou no trapiche. Mas Professor andou
logo para ele:
- Ficou bm, mulato?
Boa-Vida sorriu. Vinham apertar a m�o dele, Pedro Bala lhe deu
um abra�o:
- Mulato bom. Mulato batuta.
At� Sem-Pernas veio, Jo�o Grande ficou junto de Boa-Vida. 0
mulato olhou os amigos. Pediu um cigarro. Sua m�o estava descarna-
da, o rosto ossudo. Ficou calado, olhando com amor o velho trapiche,
os meninos, o cachorro que estava deitado no colo do Sem-Pemas.
Ent�o Jo�o Grande perguntou:
- Como era o lazareto?
#
Boa-V'lda se voltou r�pido. Seu rosto tomou uma express�c
amarga de desgosto. Demorou um pouco a responder. Depois a:
palavras sa�ram com dificuldade:
I50
i
* O : * y.? CAllT�ES PA AItEIA * ! : A *
�,,,.
- Ningu�m sabe dizer, n�o. � uma coisa oor demais... Uma
, i nojeira. A gente quando entra � igual um que entra no caix�o...
Olhou os outros, que estavam suspensos das suas palavras. Sua
voz era amarga:
- Igual que entrasse pro caix�o pra ir pro cemit�rio... Igual...
' N�o achou mais que dizer. Sem-Pernas perguntou entre dentes:
- Que mais?
i
- Nada. Nada. N�o sei, n�o... Por Deus, n�o pergunte...
baixou a cabe�a, que balan�ava para todos os lados. Sua voz saiu muito
, baixa, como que ainda amedrontada: - � mesmo que ir pro cemit�-
rio. Tudo j� est� morto.
Olhou como se pedisse que n�o lhe perguntassem mais nada.
Jo�o Grande disse para os outros:
- A gente n�o devia perguntar nada...
Boa-V'Ida apoiou com um gesto da m�o. Disse baixinho:
- Nada... � ruim demais...
Professor olhou o peito de Boa-Vida. Estava todo picado da
var�ola. Mas no lugar do cora��o Professor viu uma estrela.
Uma estrela no lugar do cora��o. '.
1JI
,t-rmo
OCUPARAM A MESA DO CANTO. O GATO PUXOU O BARALHO. MA!
nem Pedro Bala, nem Jo�o Grande, nem Professor, tampouco Boa
V`ida se interessaram. Esperavam o Q.uerido-de-Deus na Porta de
Mar. As mesas estavam cheias. Muito tempo a Porta do Mar andan
sem fregueses. Avartola n�o deixava. Agora que ela tinha ido embora
os homens comentavam as mortes. Algu�m falou no lazareto. � um
desgraFa ser pobre, disse um mar�timo.
Numa mesa pediram cacha�a. Houve um movimento de copo;
no balc�o. Um velho ent�o disse:
- Ningu�m pode mudar o destino. � coisa feita l� em cima -
apontava o c�u
Mas Jo�o de Ad�o falou de outra mesa:
- Um dia a gente muda o destino dos pobres...
Pedro Bala levantou a cabe�a, Professor ouviu sorridente. Ma
Jo�o Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do velho, qu
repetiu:
- Ningu�m pode mudar, n�o. Est� escrito l� em cima.
- Um dia a gente muda. . . disse Pedro Bala, e todos olharan
para o menino.
- Que � que tu sabe, frangote? perguntou o velho.
- � filho do Loiro, fala a voz do pai respondeu Jo�o d
Ad�o olhando com respeito. - O pai morreu pra mudar o destin
da gente.
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Olhou para todos. O velho calou e tamb�m olhava com respeito.
A confian�a foi de novo chegando para todos. L� fora um viol�o
come�ou a tocar.
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*
I56
r  a  3m J rr 
A M�SICA JA RECOME�ARA NO MORRO. OS MALANDROS VOLTAVAM
a tocar viol�o, a cantar modinhas, a inventar sambas que depois
vendiam aos sambistas c�lebres da cidade. Na venda de Deocl�cio
novamente ficava um grupo todas as tardes. Durant� algum tempo
tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamenta��es das
mulheres e crian�as. Os homens passavam de cabe�a baixa para as suas
casas ou para o trabalho. E os caix�es negros de adultos, os caix�es
brancos de virgens, os pequenos caix�es de crian�as desciam as �speras
ladeiras do morro para o cemit�rio distante. Isso quando n�o eram
sacos que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para
o lazareto. A fam�lia chorava como choraria a um morto, pela certeza
de que eles n�o voltariam jamais. Nem a m�sica de um viol�o. Nem
a voz cheia de um negro cortava ent�o a tristeza do morro. S� a reza
das sentinelas, o choro convulsivo das mulheres.
Assim estava o morro quando Est�v�o foi levado para o lazareto.
N�o voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por l�. Nesta
tarde ela j� estava com febre. Mas o alastrim parecia ser dos mais
mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a not�cia,
conseguiu n�o ser metida num saco. Aos poucos foi melhorando. Os
dois filhos andavam pela casa, fazendo o que ela mandava. Z� Fuinha
era um bocado in�til, ainda n�o sabia fazer nada, com seus seis anos.
Mas Dora tinha treze para quatorze anos, os seiosj� haviam come�ado
a surgir sob o vestido, parecia uma mulherzinha, muito s�ria, a buscar
os rem�dios para a m�e, a tratar dela. Margarida melhorou quando j�
os viol�es recome�avam a tocar no morro, porque a epidemia de
rr
* O '.: * s.  CAPIT�ES DA REIA * `.: � *
;-. * c * o Jo  c- * o * o
var�ola tinha se acabado. A m�sica voltou a dominar as noites do
morro e Margarida, se bem ainda n�o estivesse completamente
boa, foi � casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa.
Voltou com a trouxa nas costas, se atirou para a fonte. Trabalhou
o dia todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia n�o
voltou ao trabalho porque recaiu do alastrim e a reca�da � sempre
terr�vel. Dois dias depois descia do morro o �ltimo caix�o feito pela
varlola. Dora n�o solu�ava. Cornam as l�grimas pelo seu rosto,
mas enquanto o caix�o descia ela pensava era em Z� Fuinha, que
pedia o que comer. O irm�ozinho chorava de dor e de fome. Era
muito menino para compreender que tinha ficado sem ningu�m na
imensid�o da cidade.
Os vizinhos deram jantar aos �rf�os nesta tarde. No outro dia
pela manh� o �rabe que era dono dos barrac�es do morro mandou
derramar �lcool no de Margarida para desinfetar. E logo o alugou,
pois era um barrac�o bem situado, bem no alto da ladeira. E
enquanto os vizinhos discutiam o problema dos �rfi�os, Dora
tomou o irm�o pela m�o e desceu para a cidade. N�o se despediu
de ningu�m, era como uma fuga. Z� Fuinha ia sem saber para
onde, arrastado pela irm�. Dora marchava tranq�ila. Na cidade
havia de encontrar quem lhes desse de comer, quem pelo menos
tomasse conta de seu irm�o. Ela arranjaria um emprego de copeira
numa casa. Ainda era uma menina, mas havia muitas casas que
preferiam mesrro uma menina porque o ordenado era menor. Sua
m�e certa vez falara em a empregar de copeira na casa de uma
freguesa. Dora sabia onde era e se dirigiu para l�. O morro, a
m�sica dos viol�es, o samba que um negro cantava ficaram para
tr�s. Os p�s descal�os de Dora se queimam no asfalto ardente. Z�
Fuinha vai alegre, vendo a cidade para ele desconhecida, os bondes
#
que passam repleto, as marinetes que buzinam, a multid�o que
corta as ruas. Dora fora com Margarida certa vez � casa desta
freguesa. � na Barra, elas tinham ido num bonde bagageiro,
levando a trouxa de roupa lavada. A dona da casa fizera festa a
Dora, perguntara se ela queria vir trabalhar ali. Margarida ficara de
traz�-la quando ela estivesse mais crescida. Era para l� que Dora
pensava ir. E perguntando a um e a outro tomou o caminho da
Barra. A caminhada era grande, o sol no asfalto queimava seus p�s
158
* o :? * ;-? CAllT�ES PA AItEIA *  : o * ;-,
sem sapato. Z� Fuinha come�ou a pedir de comer e a se queixar do
cansa�o. Dora o acalentou com promessas e seguiram. Mas no
Campo Grande Z� Fuinha n�o p�de mais. A caminhada era
demasiada para ele, para os seus seis anos. Ent�o Dora entrou
numa padaria, trocou os �nicos quinhentos r�is que possu�a,
comprou dois p�es dormidos, deixou Z� Fuinha sentado num
banco com os p�es:
-Tu come e me espera, t� ouvindo? Eu vou ali, voltoj�. Mas n�o
v� sair daqui, sen�o voc� se perde...
Z� Fuinha prometeu com uma cara muito s�ria, dando dentadas
nos p�es duros. Ela o beijou e seguiu.
O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam.
0 cabelo loiro dela, maltratado, voava com o vento. Sentia queima-
duras nas solas dos p�s e um cansa�o no corpo todo. Mas seguiu. O
n�mero era 611. Qnando chegou ao 53 parou um pouco para descan-
sat e pensar o que diria � dona da casa. Depois retomou a caminhada.
Agora a fome ajudava a magoar seu corpo, a fome ternvel das crian�as
de 13 anos, uma fome que exige comida imediatamente. Dora tinha
vontade de chorar, de se deixar cair na rua, sob o sol, e n�o fazer
movimentos. Uma saudade dos pais mortos a invadiu. Mas reagiu
contra tudo e continuou.
 O 611 era uma casa grande, quase um palacete, com �rvores na
frente. Numa mangueira, um balan�o onde uma menina da idade de
Dora se divertia. Um rapazote dos seus 17 anos a balan�ava e riam os
dois. Eram os filhos do dono da casa. Dora ficou a olh�-los com inveja
uns minutos. Depois tocou a campainha. O rapaz olhou, mas conti-
nuou a balan�ar a irm�. Dora tocou novamente, a empregada veio. Ela
explicou que queria falar com dona Laura, a patroa. A empregada a
olhou com desconfian�a. Mas o rapazola deixou de balan�ar a irm� e
andou at� o port�o. Espiava os seios mal nascidos de Dora, os peda�os
de coxas que apareciam sob o vestido. Perguntou:
- O que � que voc� quer?
- Eu queria falar com dona Laura. Sou filha de Margarida, que
foi lavadeira dela... N�o v� que ela morreu...
O rapaz n�o despregava os olhos dos seios de Dora. Era bonita a
menina, de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com
�J
:.'! * C? * O JoE Auo : ' * C? * 1
uma mulata. Margarida dizia que ela puxara ao av�, que tamb�t
tinha cabelos muito loiros e um bigod�o bem tratado. Dora baixou c
olhos porque o rapaz n�o tirava os dele dos seus peitos. Ele tamb�t
se desconcertou, falou para a empregada:
- V� chamar mam�e...
- Sim, senhor.
O rapaz puxou um cigarro, acendeu. Jogou a fuma�a para cima
estendendo o bei�o, deu mais uma espiada para os peitos de Dora:
- Voc� est� procurando emprego?
- Tou, sim senhor.
O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamentc
canalhas ao ver o peda�o de coxa. J� se sonhava na cama, Do
trazendo o caf� pela manh�, a safadeza que se seguiria.
- Vou ver se mam�e arranja um lugar pra voc�...
Ela agradeceu. Mas estava um pouco assustada, se bemlh
eseapasse muito da malicia dos olhares dele. Dona Laura chego
os cabelos grisalhos, a filha atr�s dela, espiando Dora com olhe
compridos. Era sardenta, mas tinha certa gra�a.
Dora contou que a m�e tinha morrido:
-A senhora tinha me prometido um emprego...
- De que foi que Margarida morreu?
- De betiga, sim senhora.
#
Dora n�o sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidac
do emprego.
- De var�ola?
A mocinha se afastou receosa. At� o rapaz se desviou um pouc
pensou nos seios pequenos de Dora marcados de vartola. Cuspiu co
nojo. Dona Laura tomou um tom triste:
- � que j� tomei outra empregada. Agora n�o tenho necessid
de...
Dora pensou em Z� Fuinha:
-A senhora n�o tem precis�o de um menino pequeno pra faz
compra, recados, estas coisas? � meu irm�o...
- N�o, minha filha, n�o tenho.
60
� * O l: * y  CAPIT�ES PA AItEIA * ' : O *
- N�o sabe de ningu�m?
- N�o. Se soubesse recomendaria voc�...
Qneria acabar a conversa. Voltou-se para o filho:
- Voc� tem dois mil-r�is a�, Emanuel?
- Pra que, mam�e?
- Me d�.
O rapaz deu, ela p�s em cima da grade. Tinha medo de tocar em
Dora, queria que fosse dali, antes de contagiar a casa.
- Leve isso para voc�. ue Deus lhe ajude...
Dora voltou a descer a rua. O rapaz ainda espiou as n�degas que
apareciam redondas sob o vestido apertado. Mas a voz de dona Laura
o interrompeu. Ela falava para a empregada:
- Dos Reis, passe um pano com �lcool no port�o, onde esta
menina pegou. N�o � bom brincar com var�ola...
O rapaz voltou a balan�ar a irm� sob as mangueiras. Mas de vez
em quando suspirava para si mesmo: tinha uns peitos muito bons...
Z� Fuinha n�o estava no banco. Dora levou um susto. Era capaz
que o irm�o tivesse sa�do andando pela cidade e se perdesse. E como
ela o iria encontrar, ela que t�o pouco conhecia a cidade? Demais um
grande cansa�o a invadia, um des�nimo, saudade da m�e morta,
vontade de chorar. Os p�s do�am e ela tinha fome. Pensou em comprar
p�o (agora possu�a dois mil e quatrocentos), mas em vez disto saiu em
busca do irm�o. Foi encontr�-lo embaixo das �rvores do jardim
comendo ameixas verdes. Dora deu-lhe uma pancada na m�o:
- Tu n�o sabe que isso faz dor de barriga?
- Tou com fome...
Ela comprou p�o, comeram. A tarde toda foi uma caminhada de
um lado para outro � procura de emprego. Em todas as casas diziam
que n�o, o medo da var�ola era maior que qualquer bondade. No
come�o da noite Z� Fuinha n�o se ag�entava mais de cansado. Dora
estava triste e pensava em voltar ao morro. Ia ser uma carga para os
vizinhos pobres. N�o queria voltar. Do morro sua m�e tinha sa�do
num caix�o, seu pai metido num saco. Mais uma vez deixou Z�
Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa
padaria, antes que fechasse. Gastou os �ltimos n�queis. As luzes se
6I
* `.: * A ORGE AMADO ;-! * : * o
acenderam e ela achou a princ�pio muito bonito. Mas logo depois
sentiu que a cidade era sua inimiga, que apenas queimara os seus p�s
e a cansara. Aquelas casas bonitas n�o a quiseram. Voltou curvada,
afastando com as costas das m�os as l�grimas. E novamente n�o
encontrou Z� Fuinha. Depois de andar em volta dojardim foi dar com
o irm�o, que espiava um jogo de gude entre dois garotos: um negro
forte e um magrelo branco. Dora sentou num banco, chamou o irm�o.
Os garotos que jogavam se levantaram tamb�m. Ela desembrulhou os
p�es, deu um a Z� Fuinha. Os garotos a olhavam. O preto estava com
fome, ela bem viu. Ofereceu do p�o a eles. Ficaram os quatro comendo
o p�o dormido (era mais barato) em sil�ncio. uando terminaram, o
preto bateu as m�os uma na outra, falou:
- Teu irm�o disse que a m�e de voc� morreu de bexiga...
- Papai tamb�m...
- L� tamb�m morreu um...
-Teu pai?
- N�o. Foi Almiro, um do grupo.
O branco magrelo,.que tinha estado calado, perguntou:
- Voc� arranjou onde trabalhar?
#
- Ningu�m quer filha de bexiguento...
Agora chorava. Z� Fuinha brincav no ch�o com as bolas que os
outros tinham eixado perto das �rvores. O preto co�ava a cabe�a. 0
magrelo olhou para ele, depois para Dora:
-Tu tem onde dormir?
- N�o.
O magrelo falou para o negro:
- A gente leva ela pro trapiche...
- Uma menina... O que � que Bala vai dizer?
- T� chorando disse o magrelo em voz muito baixa.
O negro olhou. Evidentemente estava atarantado. O branci
co�ou o pesco�o, espantando uma mosca. Botou a m�o no ombro d
Dora muito devagarinho, como se tivesse medo de a tocar:
- Vem com a gente. A gente dorme num trapiche...
O preto fez esfor�o para sorrir:
62
I
* O `.: * y CAPIT�ES DA AREIA * ' : � *
- N�o � um palacete, mas � melhor que a rua...
Andaram. Jo�o Grande e Professor iam na frente. Ambos tinham
vontade de conversar com Dora, mas nenhum sabia o que dizer, n�o
tinham se visto ainda num apuro assim. A luz das l�mpadas batia nos
cabelos loiros dela. O preto disse:
- � uma lindeza.
- Batuta fez Professor.
Mas n�o olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo
loiro batido pela luz das l�mpadas el�tricas.
No areal Z� Fuinha n�o p�de mais ir andando. O negro Jo�o
Grande pegou a crian�a (apesar de ser tamb�m crian�a... ) e a
botou nas costas. Professor ia junto de Dora, mas estavam calados
na noite.
Entraram no trapiche meio desconfiados. Jo�o Grande arriou Z�
Fuinha no ch�o, ficou parado, esperando que o Professor e Dora
entrassem. Foram todos para o canto do Professor, que acendeu a vela.
Os outros espiavam para o canto com surpresa. O cachorro do Sem-
P�rnas latiu.
- Gente nova... murmurou o Gato, que ia sair.
Gato andou at� onde eles estavam:
- Qnem �, Professor?
-A m�e e o pai morreu de bexiga. Tavam na rua, sem ter onde
dormir.
Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sornso. Fez uma
esp�cie de sauda��o (tinha visto num cinema um gal� fazendo) com
o corpo, ensaiou uma fiase que tinha ouvido certa vez:
- Boas-vindas, madame...
N�o se lembrou do resto, ficou meio encabulado, foi embora ver
Dalva. Mas os demais j� se aproximavam. Sem-Pernas e Boa-Vida
vinham na frente. Dora olhava assustada. Z� Fuinha dormia de
cansa�o. Jo�o Grande se p�s na frente de Dora. A luz da vela iluminava
o cabelo loiro da menina, de quando em vez pousava nos seios.
y63
! * t: * � JORGE AMADO s` * L: * I
Professor se levantou, encostou-se na parede. Agora a lua aparec:
pelos buracos do teto.
Boa-Vida estava diante deles. Sem-Pernas vinha coxeando, e c
outros logo atr�s, os olhos estirados para Dora. Boa-Vida falou:
- uem � essa lasca?
Professor se adiantou:
-Tava com fome. Ela e o irm�o. A bexiga matou o pai e a m�e.
Boa-Vida riu um riso largo. Empinou o corpo:
- � um peix�o.. .
Sem-Pernas riu seu riso burl�o, apontou os outros:
- T� tudo como urubu em cima da carni�a...
Dora se chegou para junto de Z� Fuinha, que acordara e tremi
de medo. Uma voz disse entre os meninos:
- Professor, tu t� pensando que a comida � s� pra tu e pra Jo�
Grande? Deixa pra n�s tamb�m...
Outro gritou:
- J� tou com o ferro em brasa...
Muitos riram. Um se adiantou, mostrou o sexo a Jo�o Grand
#
- V� como a bichinha est�, Grande. Doidinha...
Jo�o Gra e se p�s na frente de Dora. N�o dizia nada, mas puxc
o punhal. O m-Pernas gritou:
-Tu assim n�o arranja nada. Ela tem que ser pra todos.
Professor replicou:
- N�o t�o vendo que � uma menina...
- J� tem peito! gritou uma voz.
Volta Seca saiu de entre o grupo. Trazia os olhos muito excitado
um riso no rosto sombrio:
- Lampi�o tamb�m n�o respeita cara. D� ela pra gent
Grande...
Sabiam que Professor era fraco, n�o ag�entava pancada. Estava
doidamente excitados, mas ainda temiam Jo�o Grande, que segura
o punhal. Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampi�
I frd
:? * :.'! Crn7ls aA Aaam * ': � * :'!
pronto para deflorarjunto com todos uma filha de fazendeiro. A vela
iluminava os cabelos loiros de Dora. Ia um pavor pelo rosto dela.
Jo�o Grande n�o dizia nada, mas segurava o punhal na m�o.
Professor abriu a navalha, ficoujunto dele. Ent�o Volta Secatamb�m
puxou do punhal, come�ou a avan�ar. Os outros vinham por detr�s
dele, o cachorro latia. Boa-Vida falou mais uma vez:
- Desaparta, Grande. � melhor...
Professor pensava que se o Gato estivesse ali, estaria do lado
deles, porque o Gato j�,tinha mulher. Mas o Gato j� tinha sa�do.
Dora via o grupo avan�ar. O medo foi vencendo o des�nimo e o
cansa�o em que estava. Z� Fuinha chorava. Dora n�o tirava os olhos
de Volta Seca. A cara sombria do mulato estava aberta em desejo, um
riso nervoso a sacudia. Viu tamb�m os sinais da var�ola no rosto de
Boa-Vida quando este passou em frente da vela, e ent�o se lembrou
da m�e morta. Um solu�o a sacudiu e deteve um momento os
meninos. Professor disse:
- N�o v� que ela t� chorando.
Eles pararam um momento. Mas Volta Seca falou:
- E n�s com isso? A babaca � a mesma...
Continuaram avan�ando. Iam vagarosamente, os olhos fixos ora
em Dora, ora no punhal que Jo�o Grande tinha na m�o. De repente
se apressaram, chegaram muito mais perto. Jo�o Grande falou pela
primeira vez:
- Furo o primeiro...
Boa-Vida riu, Volta Seca manejou o punhal. Z� Fu:nha chorava,
Dora o olhou com os olhos apavorados. Se abra�ou nele, viu Jo�o
Grande derrubar Boa-Vida. A voz de Pedro Bala, que entrava, fez
com que parassem:
- Qne diabo � isso?
Professor levantou-se. Volta Seca o soltou, j� o havia cortado no
bra�o. Boa-Vuda ficou deitado como estava, um talho no rosto. Jo�o
Grande continuou em guarda na frente de Dora. Pedro Bala se
adiantou:
- Qne � isso?
Boa-Vida falou do ch�o mesmo:
I6�
C? * !  * A ORGE AMADO ' * '�% *
- Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para el
s�. A gente tamb�m tem direito...
- Tamb�m. Eu pelo menos quero trepar hoje... esgani�c
Sem-Pernas.
Pedro Bala olhou para Dora. V'm os peitos, o cabelo loiro.
- T�o com o direito... fatou. - Arreda, Jo�o Grande.
O negro olhou Pedro Bala espantado. O grupo avan�ava nov
mente, agora chefiado por Pedro Bala. Jo�o Grande estendeu i
bra�os, gritou:
- Bala, eu como o primeiro que chegar aqui.
Pedro Bala adiantou mais um passo:
- Sai, Grande.
- Tu n�o t� vendo que � uma menina? Tu n�o t� vendo?
Pedro Bala parou, o grupo parou atr�s dele. Agora Pedro Ba
olhava Dora com outros olhos. Via o terror no rosto dela, as l�grim
que ca�am dos olhos. Ouviu o choro de Z� Fuinha. Jo�o Gram
falava:
#
- Eu sempre tive contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela � un
menina, fui eu e Professor que trouxe ela. Eu sou teu amigo, mas
tu vier eu te mato. � uma menina, ningu�m faz mal a ela...
- A gene te derruba e depois... disse Volta Seca.
- Cala a boca gritou Pedro Bala.
Jo�o Grande continuou:
- O pai dela, a m�e dela morreu de bexiga. A gente encontr
ela, n�o tinha onde dormir, a gente trouxe ela. N�o � uma puta, � ur
menina, n�o v� que � uma menina? Ningu�m toca nela, Bala.
Pedro Bala disse baixinho:
- � uma menina...
Pulou para o lado de Jo�o Grande e de Professor.
-Tu � um negro bom. Tu t� com o direito... -voltou-se pa
os outros. - Q,uem quiser vir, venha...
-Tu n�o pode fazer isso, Bala... -e Boa-V'ida passava a m
no talho. -Tu agora quer comer ela s� com o Grande e Professor
r66
p�.,'.
* o l * ;  CpllTJES DA �IIEIA *  ? o * ;-
-Juro que n�o quem comer ela, nem eles quer. � uma menina.
Mas ningu�m toca nela. Quem quiser que venha...
Os menores e mais medrosos foram se afastando. Boa-Vida se
levantou, foi para seu canto, limpando o sangue. Volta Seca falou para
Pedro Bala devagar:
- Eu n�o vou n�o � de medo. � que tu disse que � uma meniria.
Pedro Bala se aproximou de Dora:
-Tem medo, n�o. Ningu�m toca em voc�.
Ela saiu do seu canto, arrancou um peda�o da fralda, come�ou a
ver a ferida do Professor. Depois marchou para onde estavaBoa-Vida
(que se encolheu todo), molhou a ferida do malandro, botou um pano
em cima. Todo o temor, todo o cansa�o tinham desaparecido. Porque
confiava em Pedro Bala. Depois perguntou a Volta-Seca:
-Tamb�m t� ferido?
- N�o... fez o mulato sem compreender. E fugiu para seu
canto. Parecia ter medo de Dora.
Sem-Pernas espiava. O cachorro saiu do colo dele, veio lamber os
p�s de Dora. Ela o acarinhou, perguntou ao Sem-Pernas:
- � teu?
- �, sim. Mas pode 6car com ele.
Ela sornu. Pedro Bala andou ao l�u no trapiche. Depois disse
pra todos:
- Amanh� ela vai embora. N�o quero menina aqui.
-N�o-disseDora.-Eufico,ajudovoc�s. Euseicozmhar,
coser, lavar roupa.
- Por mim pode ficar falou Volta Seca.
Dora olhou Pedro Bala:
- Tu disse que ningu�m me fazia mal?...
Pedro Bala olhou os cabelos loiros. A lua entrava pelo trapiche.
��
,dr 
O GATO VEIO GINGANDO O CORPO NAQUELE SEU CAMINHAI
caracter�stico. Andara procurando enfiar a linha na agulha um
imensidade de tempo. Dora fizera Z� Fuinha dormir, agora s
preparava para ouvir Professor ler aquela hist�ria t�o bonita que estav
no livro de capa azul. O Gato veio gingando o corpo, se aproximo
devagar:
- Dora...
- Qne �, Gato?
- Tu quer fazer uma coisa?
Mirava a agulha e a linha que tinha na m��. Parecia estar dianb
de um problerpta grave. N�o sabia como se arranjar. Professor paroi
a leitura, Gato mudou de conversa:
- Tu ainda fica cego de tanto l�, Professor.. . Se ainda fosse lu
el�trica... olhou Dora sem se resolver.
- Que �, Gato?
- Esse diabo desta linha... Nunca vi coisa mais di8cil. Mete
isso no rabo desta agulha...
- D� c�...
Enfiou a linha, deu um n� numa das pontas. Gato disse par
Professor:
#
- S� mulher � que sabe fazer esse tro�o...
Estendeu a m�o para receber a agulha, mas Dora n�o entregou
Perguntou o que � que Gato tinha que coser. Gato mostrou o palet
Ib8
::: *  # O Jo Awo :: * G * 1

i * o :: * ::  CAPIT�ES DA AkEIA * ,.: o * :: 
roto no bolso. Era aquela roupa de casimira que fora do Sem-Pernas
quando ele andara feit� menino rico numa casa da Gra�a:
- � uma roupa porreta! fez o Gato.
- Boa mesmo apoiou Dora. - Tira o casaco.
Professor e Gato ficaram vendo ela coser. Em veraade n�o era
uma maravilha de costura, mas eles nunca tinham tido ningu�m que
remendasse suas roupas. E somente Gato e Pirulito tinham costume
de remendar eles mesmos as suas. Gato porque era metido a elegante
e tinha uma amante, Pirulito porque gostava de andar limpo. Os
outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem
ainda mais, at� se tornarem trapos in�teis. Ent�o mendigavam ou
furtavam outra cal�a e outro palet�. Dora acabou o servi�o:
- Tem mais?
Gato alisou o cabelo cheio de brilhantina:
- As costas da camisa...
Virou-se. A camisa estava rasgada de cima a baixo. Dora mando�
 ' que ele sentasse, come�ou a coser no corpo dele mesmo. Q,uando os
� dedos dela tocaram pela primeira vez nas costas de Gato, ele sentiu um
  atrepio. Como quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas,
"; arranhando suas costas e dizendo:
 - A gatinha arranha o gatinho...
Mas Dalva n�o cosia suas roupas, talvez nem soubesse enfiar uma
�:v: linha no fundo de uma agulha. Gostava era de se bater com ele na
.:: cama, arranhar suas costas, mas de prop�sito, pra o arrepiar e o
' excitar, para que o amor se fizesse ainda melhor. E Dora, n�o. N�o era
 de prop�sito. A m�o dela (unhas maltratadas e sujas, ro�das a dente)
n�o queria excitar, nem arrepiar. Passava como a m�o de uma m�e que
 remendava camisas do filho. A m�e do Gato morrera cedo. Era uma
: mulher fr�gil e bonita. Tamb�m tinha as m�os maltratadas, que
r' esposa deoper�rio n�o temmanicura. E era delatamb�m aquele gesto
de remendar as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato. A m�o
de Dora o toca de novo. Agora a sensa��o � diferente. N�o � mais um
;" arrepio de desejo. � aquela sensa��o de carinho bom, de seguran�a que
lhe davam as m�os de sua m�e. Dora est� por detr�s dele, ele n�o v�.
Imagina ent�o que � sua m�e que voltou. Gato est� pequenino de
novo, vestido com um camisol�o de bulgariana e nas brincadeiras
r�9
? * ! : *  JORGE AMADO �  * ! : * I
pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua m�e vem, faz com que el
se sente na sua frente e suas m�os �geis manejam a agulha, de quand
em vez o tocam e lhe d�o aquela sensa��o de felicidade absolur
Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou, remenda as camisa
do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cant
para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda que ainda
uma crian�a. Mas s� na idade, porque no mais � igual a um homen
furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher d
vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite � totalmente crian�
esquece Dalva, suas m�os que o arranham,l�bios que prendem os seu
em beijos longos, sexo que o absorve. Esquece sua vida de pequen
batedor de carteiras, de dono de um baralho marcado, jogado
desonesto. Esquece tudo, � apenas um menino de quatorze anos con
uma m�ezinha que remenda suas camisas. Vontade de que ela cant
para ele dormir... Uma daquelas cantigas de ninar que falam en
bicho-pap�o. Dora morde a linha, se inclina para ele. Os cabelos loiro
dela tocam no ombro do Gato. Mas ele n�o tem outro desejo sen�
que ela continue a ser suam�ezinha. Sua felicidade naquele moment
� quase absurda. � como se n�o houvesse existido toda a sua vid
depois da morte da sua m�e. � como se tivesse se conservado um
crian�a igual a todas. Porque nesta noite sua m�e voltou. Por isso
inconsciente caricia dos cabelos loiros de Dora n�o excita seu deseje
Mas aumenta sua felicidade. E a voz dela que diz: t� pronto, Gato, so
aos seus ouvids direitinho a voz doce e musical de sua m�e qu
cantava, a cabe�a do Gato recostada no seu colo, cantigas de ninar,
#
Levanta, olha Dora com olhos agradecidos:
- Voc� � a m�ezinha da gente, agora... mas fica encabulad
do que diz, pensa que Dora n�o compreender� mesmo porque ela est
rindo com seu rosto s�rio de quase mulherzinha. Mas Professo
compreende, e Gato, na frente de Dora, falando numa voz feliz, ma
sem desejo, chamando-a de m�e, e ela sorrindo com seu ar matern
de quase mulherzinha, fica gravado na cabe�a de Professor como un
quadro.
Gato joga o palet� nas costas e sai com seu passo gingado. Sent
que h� qualquer coisa de novo no trapiche: eles encontraram m�E
carinho e cuidados de m�e. Dalva o estranha nesta noite:
- Q,ue foi que Gatinho teve? Qne foi?
Wo
* O �: * :! CmTXEs A AmA * :: i1 * ::!
Mas ele guarda seu segredo. � uma coisa t�o grande demais
encontrar na terra uma m�e que j� morreu. Dalva n�o o entenderia.
Q,uando Professor estava come�ando a hist�ria, Jo�o Grande
chegou e sentou-se ao lado deles. A noite era chuvosa. Na hist�ria que ;
Professor lia, a noite era chuvosa tamb�m e o navio estava em grande
perigo. Os marinheiros apanhavam de chicote, o capit�o era um
malvado. O barco a vela parecia so��brar a cada momento, o chicote
dos oficiais ca�a sobre as costas nuas dos marinheiros. Jo�o Grande
tmha uma express�o de dor no rosto. Volta Seca chegou com um
jornal, mas n�o interrompeu a hist�ria, ficou ouvindo. Agora o
marinheiro John apanhava chibatadas porque escorregara e ca�ra no
meio do temporal. Volta Seca interrompeu:
- Se Lampi�o tivesse af,j� tinha comido esse capit�o no fuzil...
Foi o que fez o marinheiro James, um homenzarr�o. Se atirou em
cima do capit�o, a revolta estalou no buque. L� fora chovia. Chovia na
hist�ria tamb�m, era a hist�ria de um temporal e de uma revolta. Um
dos oficiais ficou do lado dos marinheiros.
- � do balacobaco... disse Jo�o Grande.
Amavam o hero�smo. Volta Seca espiou Dora. Os olhos dela
brilhavam, ela amava o hero�smo tamb�m. Isso agradou ao sertanejo.
Depois o marinheiro James sustentou uma luta feroz. Volta Seca
assoviou como um passarinho de tanto contentamento. Dora riu
tamb�m, satisfeita. Riram os doisjuntos, logo foi uma gargalhada dos
quatro, como era costume dos Capit�es da Areia. Gargalharam alguns
minutos, outros se aproximaram, a tempo de ouvir o resto da hist�ria.
Olhavam o rosto s�rio de Dora, rosto de uma quase mulherzinha que
os fitava com carinho de m�e. Sornam e, quando o marinheiro James
jogou o capit�o do navio num barco salva-vidas e o chamou de cobra
.rtm veneno, eles todos gargalharamjunto com Dora, e a olharam com
unor. Como crian�as olham a m�e muito amada. Qnando a hist�ria
acabou, eles voltaram para os seus cantos entre coment�rios:
- Porreta...
- Macho bamba...
r�I
* :: * A JOEGE AMADO y : * `.: * A
- Tamb�m era um prensa..
- O capit�o fez uma cara, hein?
Volta Seca espichou o jornal para Professor Dora olhou o
mulato, ele sorriu meio confuso.
- � que traz not�cias de Lampi�o.. seu rosto sombrio
clareava. - Tu sabe que Lampi�o � meu padrim
- Padrinho?
- Pois �... Foi minha m�e que tomou, porque Lampi�o � um
macho de verdade, n�o respeita cara:. Minha m�e era uma cnulher
valente, uma mulher capaz de ag�entar um fuzil. Um dia fez correr
dois soldados que se fizeram de besta. Era um mulher�o.. Valia um
homem.
Dora ouvia encantada. Seu rosto scno fit�va com a maior simpa-
tia o rosto sombrio do mulato. Volta Seca ficou calado, mas num jeito
de quem queria dizer alguma coisa. Por fim falou.
- Tu tamb�m � valente... Sabe? Minha m�e era um mulher�o
destas grandes. Era mulata, n�o tinha cabelo loiro, tinha uma carapi-
nha danada... N�o era mais menina tamb�m, podia ser tua av�... Ma�
tu parece com ela...
Olhou Dora, mas baixou a cabe�a:
- Parece mentira, mas tu me lembra ela. Parece mentira, mas tL
#
parece com el .
Professor olhou com seus olhos de m�ope. Volta Seca quasE
gritava, seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta. Tarnb�n
e1e descobriu sua m�e, pensou Professor. Dora estava s�ria, mas sei
olhar era carinhoso. Volta Seca riu, ela riu, virou logo gargalhada. Ma;
Professor n�o os acompanhou na gargalhada. Come�ou a ler muitc
r�pido o relato do jornal.
Lampi�o fora pegado de surpresa ao entrar numa vila. O chofe
de um caminh�o que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila
e avisara. Dera tempo de pedirem refor�os de vilas pr�ximas e a colun,
volante tamb�m veio. Quando Lampi�o entrou na vila encontrou fo
bala muita pela frente, bala que eIe n�o esperava. O tiroteio foi grande
Lampi�o s� p�de mesmo abrir para a caatinga, que � sua casa. Um do
homens do grupo ficou estirado com um bala�o no peito. Cortaran
y?
* � :  * :: ` CAriT7s A AmA * ,:? O *
a cabe�a dele, que foi enviada para a Bahia em triunfo. Vinha a
fotografia no jornal. A boca aberta, os olhos furados, um homem
segurando pela carapinha rala. Tinham cortado o pesco�o a fac�o.
Dora comentou:
- Coitado dele... Qne judiaria!
Volta Seca olhou agradecido. Seus olhos estavam injetados, seu
rosto todavia mais sombrio. Dolorosamente sombrio.
- Filho de uma �gua... disse baixo. - Filho de uma �gua de
chofer... Se um dia eu te pegar...
A not�cia adiantava que Lampi�o devia ter outros homens
feridos, pois a retirada do grupo fora por demais r�pida. Volta Seca
falou em surdina. Era como se falasse para si mesmo...
- J� t� em tempo d'eu ir...
- Pra onde? perguntou Dora.
- Pra junto de meu padrim. Ele t� precisando de mim...
Ela o olhou com tristeza:
- Tu vai mesmo, Volta Seca?
- Vou, sim.
- E se a policia te matar, cortar tua cabe�a?
- Juro que eu eles n�o topa vivo. Vou com um, mas eu eles n�o
topa vivo... N�o tem medo, n�o...
Afirmava � sua m�e, forte e valente mulata sertaneja, capaz de
brigar com soldados, comadre de Lampi�o, am�sia de cangaceiro,
que podia confiar nele, que n�o o pegariam vivo, que lutaria at�
morrer... Dora ouvia com orgulho.
Professor apertou os olhos e viu tamb�m, em lugar de Dora, uma
sertaneja forte, defendendo seu peda�o de terra contra os coron�is,
com a ajuda amiga dos cangaceiros. Viu a m�e de Volta Seca. E era o
que o mulato via. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces
eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave era o rosto
sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sornso de
orgulho de m�e para filho.
I73
* ;  * o OBGE A.M,DO � * :: * o
Pirulito a viu chegar com desconfian�a. Para ele Dora era o
pecado. Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal
e da quentura dos corpos se embolando no areal. Se despia aos poucos
dos seus pecados para aparecer puro aos olhos de Deus e poder
merecer a gra�a de se vestir com as vestes dos sacerdotes. Pensava
mesmo em arranjar um lugar de vendedor de jomais para fugir do
pecado di�rio do furto.
Olhava Dora com receio: a mulher era o pecado. Em verdade ela
era apenas uma crian�a, uma crian�a abandonada como eles. N�o ria
como as negrinhas do ar�al um riso insolente de convite, um riso de
dentes apertados pelo desejo. Seu rosto era s�rio, parecia o rosto de
uma mulherzinha muito digna. Mas os pequenos seios que nasciam
se empinavam no vestido, o peda�o de coxa que aparecia era branco e
redondo. Pirulito tinha medo. N�o tanto da tenta��o de Dora. Ela n�o
parecia das que tentavam, era uma crian�a, era muito cedo para isto.
Mas tinha medo da tenta��o que vinha dentro dele, que o dem�nio
punha dentro dele. E procurava rezar em voz baixa enquanto ela se
aproximava.
Dora ficou olhando os quadros de santo. Professor parou atr�s
dela, olhava tamb�m. Havia flores sob a imagem do Menino Deus que
#
Pirulito furtara um dia. Dora chegou mais perto:
- � uma beleza...
O medo eme�ou a desaparecer do cora��o do Pirulito. Ela se
interessava pelos seus santos, santos para os quais ningu�m ligava nc
trapiche. Dora perguntou:
- � tudo teu?
Pirulito fez que sim com a cabe�a e sorriu. Se adiantou, mostro
tudo que possu�a. Os quadros, o catecismo, o ter�o, tudo. Ela olhaw
com satisfa��o. Sorria tamb�m enquanto Professor a espiava com o
olhos m�opes. Pirulito contava a hist�ria de Santo Ant�nio, que tinh
estado em dois lugares ao mesmo tempo. Isso para salvar seu pai d
forca, para a qual fora condenado injustamente. Contava do mesm
modo como Professor lia hist�rias her�icas de marinheiros corajoso
e revoltosos. Dora escutava com a mesma aten��o e a mesma simpatia
Conversavam os dois, Professor calado, ouvindo. Pirulito contoi
174
* 4 f? * :.' Cnvn7s cA AiA * f ? O *
coisas da sua religi�o, milagres de santos, a bondade do padre Jos�
Pedro:
- Quando tu conhecer ele, vai gostar...
Ela disse que com certeza. Ele j� havia esquecido que ela podia
trazet a tenta��o nos seios de menina, nas coxas gordas, na cabeleira
loira, agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com
carinho. Como a uma m�e. S� ent�o compreendeu. Porque naquele
mpmento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser
sacerdote, que queria seguir aquela voca��o, que sentia o chamado de
Deus. S� � sua m�e teria coragem de contar isso. E ela est� na sua
frente. Ele fala:
- Tu sabe que eu quero ser padre?
- Q,ue bom... fez ela.
O rosto de Pirlito se iluminou. Olhou para Dora, falou com a
voz exaltada:
- Tu pensa que eu mere�o? Deus � bom, mas tamb�m sabe
castigar...
- Por qu�? - havia espanto na pergunta de Dora.
- Tu n�o v� que a vida da gente � cheia de pecado?... Todo
cia...
-A culpa n�o � da gente... esclareceu Dora. -A gente n�o
tem ningu�m.
Mas agora Pirulito tinha a ela. A sua m�e. Riu satisfeito:
- Padre Jos� Pedro tamb�m j� disse isso. � capaz...
Riu mais, ela sornu tamb�m animando.
... � capaz de que um dia eu seja padre.
- Tu vai ser, sim.
- Tu quer esse Deus Menino pra tu? perguntou ele de
repente.
Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua
m�e, que lhe dera o n�quel para que comprasse.
E Dora aceitou, como uma m�e aceita parte da guloseima do filho
querido para que este fique satisfeito.
rr
C * :: * � JORGE AMADO � * ::  I
Professor via a m�e de Pirulito, que n�o sabia como era, com
fora. Mas a via ali no lugar de Dora. Sentiu inveja da felicidade d
Pirulito.
Encontraram Pedro Bala estendido na areia. O chefe dos Capi
t�es da Areia n�o entrara para o trapiche nesta noite. Ficara espiand
a lua, deitado na quentura boa da areia. A chuva tinha cessado e
vento que corna agora era morno. Professor deitou tamb�m, Dor
sentou entre os dois. Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos, puxo
o bon� mais para a cara. Dora disse voltada para ele:
-Tu ontem foi bom comigo e meu irm�o...
-Tu devia ir embora... respondeu Bala.
Ela n�o disse nada, mas frcou triste. Professor ent�o falou.
- N�o, Bala. � como uma m�e... Como uma m�e, sim. Pr
todos...
Repetia:
- � como uma m�e... Como uma m�e...
Pedro Bala olhou os dois. Suspendeu o bon�, sentou na areis
Mas Dora o olhava com carinho. Para ele... Para ele era tudo: esposs
#
irm� e m�e. Soriu confuso para Dora:
- Pensei que fosse ser uma tenta��o pra todos...
Ela fez que n�o, ele continuou:
- Depois podiam aproveitar uma hora que a gente n�o estava. ,
Riram. Professor repetiu mais uma vez:
- N�o. � como uma m�ezinha...
-Tu pode ficar-disse Pedro Bala, e Dora sornu para ele, er
o seu her�i, uma figura que ela nunca tinha imaginado, mas que ur
dia haveria de imaginar. Amava-o como a um &Iho sem carinho, ur
irm�o corajoso, um amado t�o belo como n�o havia outro.
Mas Professorviu os sorrisos dos dois. E disse ainda umavez cor
voz sombria:
- � como m�d
rT6
* o c * ::  crn DA tA *  ? o * c-�
!J Jtr  i/blr    Jllr1
COMO O VESTIDO DIFICULTAVA SEUS MOVIMENTOS E COMO ELA QUERIA
ser totalmente um dos Capit�es da Areia, o trocou por umas cat�as que
deram a Barand�o numa casa da cidade alta. As cal�as tinham ficado
enormes para o negr�nho, ele ent�o as ofereceu a Dora. Tamb�m
estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que
dessem. Amarrou com cord�o, seguindo o exemplo de todos, o vestido
servia deblusa. Se n�o fosse a cabele�ra loira e os seios nascentes, todos
a poderiam tomar como um menino, um dos Capit�es da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente
de Pedro Bala, o menino come�ou a rir. Chegou a se enrolar no ch�o
de tanto rir. Por fim conseguiu dizsr:
-Tu t� gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
- N�o t� direito que voc�s me d� de comer todo dia. Agora eu
tomo parte no que voc�s fizer.
O assombro dele n�o teve limites:
- Tu quer dizer. . .
Ela o olhava calma, esperando que ele conclu�sse a &ase.
... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
- Isso mesmo sua voz estava cheia de resolu��o.
- Tu endoidou...
y7
Dizia com voz soturna, porque, para ele, ela tamb�m n�o era
m�e. Tamb�m para o Professor ela era a Amada.
;y * r? r/r 4 Jo Awo :' * f? *
- N�o sei por qu�.
- Tu n�o t� vendo que tu n�o pode? Que isso n�o � coisa p
menina. Isso � coisa pra homem.
- Como se voc�s fosse tudo uns hom�o. � tudo uns meninc
Pedro Bala procurou o que responder:
- Mas a gente veste cal�a, n�o � saia.
- Eu tamb�m e mostrava as cal�as.
De momento ele n�o encontrou nada que dizer. Olhou para e
pensativo, j� n�o tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falo
- Se a policia pegar a gente n�o tem nada. Mas se pegar tu?
- � iguaL
- Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que �...
- Tem nada, n�o. Eu agora vou com voc�s.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem n�o tinha nada co
aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupad
Por isso ainda disse:
,,
- Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
- Tu j� viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu n�
ag�enta um empurr�o...
- Posso fazer outras coisa.
Pedro B se conformou. No fundo gostava da atitude dela, ;
bem tivesse do dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capit�es da Arei
J� n�o achava a cidade inimiga. Agora a amava tamb�m, aprendi
a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos autom�
veis em disparada. Era �gil como o mais �gil. Andava sempre cor
Pedro Bala, Jo�o Grande e Professor. Jo�o Grande n�o a largaw
era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfa��o quand
#
ela o chamava com sua voz amiga de meu irm�o. O negro a segui
como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia nur
assombro das qualidades de Dora. Qnase a achava t�o valent
como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto:
rr
I _
; * O :: * y ` �Apn'�ES PA AREIA * `.: � *
- � valente como um homem...
Professor preferia que n�o fosse assim. Sonhava com um olhar de
carinho dos olhos da Dora. Mas n�o daquele carinho maternal que ela
tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito.
Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lan�ava a Jo�o Grande,
a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Q,ueria um daqueles olhares
plenos de amor que ela lan�ava a Pedro Bal� quando o via na carreira,
fugindo da policia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:
- Ladr�o! Ladr�o! Me furtaram...
Daqueles olhares ela s� tinha para Pedro Bala, e este nem
reparava. Professor ouve os elogios de Jo�o Grande mas n�o sorri.
Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho
inchado e o l�bio roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de
outro grupo de meninos mendigos e ladr�es, grupo muito menor que
o dos Capit�es da Areia e muito mais sem ordem. Ezequiel vinha com
uns tr�s do grupo, inclusive um que fora expulso dos Capit�es da Areia
por ter sido pegado furtando um companheiro. Pedro Bala tinha ido
deixar Dora e Z� Fuinha no p� da ladeira do Tabo�o para que eles
fQssem para o trapiche. Jo�o Grande tinha um servi�o a fazer e n�o
pudera ir com Dora. Pedro Bala pensou em ir com ela, em n�o deix�-
la sozinha no areal. Mas como ainda n�o ca�ra a noite, n�o h�via perigo
de um negro dar em cima dela. Demais ele tinha que ir receber uns
cobres da m�o de Gonzales do 14, dinheiro que era devido a uma
batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um �rabe rico.
Enquanto andava para o 14, Pedro Bala pensava em Dora. No
cabelo loiro que ca�a no pesco�o, nos olhares dela. Era bonita, era igual
a uma noiva. Noiva... Nem podia pensar nisso. N�o queria que os
outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com
ela. E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele, outro
poderia sejulgar no direito de tamb�m dizer. E ent�o n�o haveria mais
lei nem direito entre os Capit�es da Areia. Pedro Bala se recorda de
que � o chefe...
Vai t�o distra�do que quase esbarra com Ezequiel. Est�o os
quatro parados diante dele. Ezequiel � um mulato alto, fuma uma
ITq
 * :: * A JORGE AMADO s * :: * I
ponta de charuto. Pedro Bala fica parado tamb�m, esperande
Ezequiel cospe:
- N�o v� onde pisa?... Agora anda cego?
- O que � que tu quer?
O menino que fora dos Capit�es da Areia pergunta:
- Como v�o aqueles frescos?
- Tu ainda se lembra da surra que apanhou l�? Tu ainda dev
guardar a marca.
O menino range os dentes, quer avan�ar. Mas Ezequiel faz ur
gesto com a m�o e avisa a Pedro Bala:
- Um dia destes vou fazer uma visita a voc�s.
- Uma visita? pergunta Bala desconfiado.
- Diz-que agora voc�s tem uma putinha l� pra todo mundo..
- Dobre a l�ngua, filho da m�e.
Com o soco Ezequiel rolou. Mas os outros tr�s j� estavam en
cima de Pedro Bala. Ezequiel meteu o p� na cara de Bala. O que for,
dos Capit�es da Areia gritou:
- Segura ele bem e meteu um soco na boca de Pedro.
Ezequiel deu dois pontap�s na cara de Bala:
- Fique sabendo que sou teu patr�o.
- Quatro... come�ou a xingar Pedro Bala, mas um soco c
calou.
O guarda vinha marchando para eles, debandaram. Pedro Bad:
apanhou o bon�, as l�grimas de raiva desciam junto com sangue
Estendeu a m�o fechada para o lado por onde Ezequiel e os seu;
haviam desaparecido. O guarda falou:
- Desaperta, corneta. D� o fora antes quelhe leve pro xilindr�
#
Pedro Bala cuspiu puro sangue. Desceu a ladeira devagar, nen
pensou em ir buscar o dinheiro de Gonzales. Descia resmungande
consigo mesmo: S� s�o homem guatro contra um. E pensava vingan�as
Entrou no trapiche, Dora estava sozinha com o irm�o, que
dormia. Os �ltimos raios do sol entravam pelo teto, dando uma
estranha claridade ao casar�o. Dora o viu entrar e andou para ele:
- Segurou os cobres?...
r�o
* O �? * :: ` CArrXEs sA AmA * � ? A * ;'.
Ig
;- * :  * o oE aro c.' * :: * o
Mas enxergou o olho inchado de Pedro, o bei�o partido:
- Q,ue foi, meu irm�o?
- Ezequiel mais tr�s. S� s�o homem de quatro pra cima...
- Fez isso em tu?
- Foi quatro. Assim mesmo porque me pegaram desprevenido.
Eu caf na besteira de pensar que Ezequiel vinha s�. Era quatro.
Ela o sentou, foi ao canto de Pirulito, trouxe �gua. Com um
peda�o de pano limpou as feridas dele. Pedro arquitetava plano de
vingan�a. Ela apoiou:
- A gente acaba com eles desta vez.
Pedro riu:
- Tu vai tamb�m?
- Se vou...
Agora limpava os l�bios dele, estava curvada na sua frente, seu
rosto bem pr�ximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os
dele.
- Por que foi a briga?
- Por nada.
- Diga...
- Ele dise umas coisas...
- Foi por causa de mim, n�o foi?
Ele abanou a cabe�a afirmando. Ent�o ela chegou os l�bios par
junto dos de Pedro Bala, os beijou e depois fugiu. Ele saiu corrende
atr�s dela, mas ela se escondia, n�o se deixava pegar. Aos poucos foratr
chegando os outros. Ela de longe sorna para Pedro Bala. N�o havi
nenhuma malicia no seu sornso. Mas seu olhar era diferente do olt
de irm� que lan�ava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiw
ing�nua e t�mida. Talvez mesmo n�o soubessem que era amor. Apesa
de n�o ser noite de lua, havia um rom�ntico romance no casac�c
colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olhe
porque pensava que isto era namorar. E seu cora��o batia r�pide
quando Oolhava. N�o sabia que isso era amor. Por fim a lua veio
estendeu sua luz amarela no trapiche. Pe;dro Bala se deitou na areia i
I82
* O y: * ::' CArXs oA AmA *  : 4 * ;'�
mesmo de olhos fechados via Dora. Sentiu quando ela chegou e deitou
a seu lado. Disse:
-Tu agora � minha noiva. Um dia a gente se casa.
Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho:
- Tu � meu noivo.
Mesmo n�o sabendo que era amor, sentiam que era bom.
Quando Sem-Pernas e Jo�o Grande chegaram, Pedro Bala se
levantou da areia e reuniu os chefes. Foram para junto da vela do
Professor. Dora veiotamb�m e sentou entre Jo�o Grande eBoa-Vida.
O malandro acendeu um cigarro, falou para Dora:
-Tou aprendendo tocar uma samba porreta. E tou cavando um
viol�o, irm�.
- Tu t� tocando batuta mesmo, mano.
- � um tal de sucesso nas festa...
Pedro Bala interrompeu a conversa. Olhavam para o l�bio dele,
0 olho inchado. Ele narrou o caso:
- Qnatro contra um...
- Precisa duma li��o -falou Sem-Pernas rindo. - Eu n�o vou
com aquele cara.
Formaram um plano de batalha. E pelo meio da noitesa�ram uns
trinta. O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha,
nuns barcos virados e na ponte. Dora foi junto a Pedro Bala e levava
nma navalha tamb�m. Sem-Pernas disse:
- At� parece Rosa Palmeir�o.
#
Nunca houvera mulher t�o valente como Rosa Palmeir�o. Dera
em seis soldados de uma vez. Todo mar�timo sabe o seu ABC no cais
da Bahia. Por isso Dora gosta da compara��o e sorri:
- Obrigado, mano.
Irm�o... � uma palavra boa e amiga. Se acostumaram a
cham�-la de irm�. Ela tamb�m os trata de mano, de irm�o. Para os
menores � como uma m�ezinha, igual a uma m�ezinha. Cuida
deles. Para os mais velhos � como uma irm� que diz palavras boas
I8
* '.  * O JURGE AMADU �-  * '�= *
e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vid
aventurosa que levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela � ;
noiva. Nem mesmo o Professor sabe. E dentro do seu cora��c
Professor tamb�m a chama de noiva.
O cachorro que o Sem-Pernas arranjou vai latindo. Volta Sec,
imita o latir de um cachorro, todos riem. Jo�o Grande assovia un
samba. Boa-Vida come�a a cant�-lo em voz alta:
A mulata me abandonou. . .
V�o alegres. Levam navalhas e punhais nas cal�as. Mas s� 0
sacar�o se os outros puxarem. Porque os meninos abandonado
tamb�m t�m uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana
De repente Jo�o Grande grita:
- � ali.
Com a algazarra que fazem, Ezequiel sai de sob um barco:
- Quem vem l�?
- Os Capit�es da Areia, que n�o engole desaforo... respon
deu Pedro Bala.
E arrancaram para cima dos outros.
A volta fef um triunfo. Apesar do Sem-Pernas ter um talho 
Barand�o vir quase nos bra�os de tanta pancada (um grand�o do grup
de Ezequiel o surrara at� que Volta Seca o rebentou), voltavam todo
alegres, comentando a vit�ria. Os que tinham ficado no trapich
deram vivas. Ainda demoraram muito conversando, comentando
Falavam na coragem de Dora, que brigara igual a um menino. Igua
a um homem, dizia Jo�o Grande. Era como uma irm�, exatament
igual a uma irm�...
Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedr
Bala, estendido na areia. A lua amarelava o areal, as estrelas s
refletiam no mar azul da Bahia. Ela veio, deitou ao lado dele. 1
Igd
* o c * ;:: crxs PA IA * :: o * ;:
come�aram a falar de coisas tolas. Igual a uma noiva. N�o se beijaram,
n�o se abra�aram, o sexo n�o os chamava naquele momcnto. S� de leve
o �oiro cabelo dela tocava em Pedro Bala.
- Tu tem um cabelo bonito... disse ele.
Ela riu, olhou o cabelo dele:
- O teu tamb�m.
Riram os dois e logo foi uma gargallada. Era um h�bito dos
Capit�es da Areia. Ela come�ou a contar coisas do morro, hist�rias
dos vizinhos, ele relembrava fatos da vida agitada do grupo:
- Vim pra rua com cinco anos. Menor que teu irm�o...
Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro.
Depois o sono veio. Estavam separados, Pedro tomou a m�o dela,
segurou. Dormiram como dois irm�os.
fUl4lrf JtIU
O JORNAL DA TARDE TROUXE A NOTfCIA EM GRANDES TIT(JLOS.
Uma manchete ia de lado a lado na primeira p�gina:
PREBO O CHEFE DOS
"CaPITES D� HEI�"
Depois vinham os t�tulos que estavam em cima de um clich�,
onde se viam Pedro Bala, Dora, Jo�o Grande, Sem-Pernas e Gato
cercados de guardas e investigadores:
y85
;-a * r * o Jo Ao :- * c *
UfIA DIEEIRA PO GRUPO � A SUA HIST�RIA
� RECOLHIDA A UM ORFAlA1'O � O CHEFE
D09 CAPIT�ES DA AREI�"  FILHO DE �DI
GREVISTA � OS OVI'It08 CONSEGUEbi FITGIR
� KO REFORMAT�RIO O ENDIREITAR�"
s
#
Ros AFuIrIA o DIREToR.
Sob o clich� vinha esta legenda: llp�s ser batida esta chapa o che
dos peraltas armou uma discuss�o e um barulbo que deu lugar a gue
demais moleques presos pudessem fugir. O chefe � o gue est� marcado con
cruz e ao seu lado v�-se Dora, a nova gigolete dos molegues baianos.
Vunha a not�cia:
Ontem apolicia baiana.lavrou um tento.
Conseguiu prender o chefe do grupo de me-
nores delinq�entes conhecidos pelo nome
de "Capit,es daAreia.". Por mais de uma vez
este jornal tratou do problema doa menores
que viviam nas ruae da cidade dedicados ao
fiuto.
Por v�rias vezes tamb�m no�ciamos os
asealtos levadoa a efeito por este mesmo
grupo. Realmente a cidade vivia sob o temor
c tante destes meninos, que ningu�m sa-
bonde moravam, cujo chefe ningu�m co-
nhecia. H�algunsmesesdvemosocasiode
publicar cartas do dr. Chefe de Policia, do
dr. Juiz de Menores e do Diretor do Refor-
mat�rio Baiano sobre este problema. Todos
eles prometiam incendvar a campanha con-
tra oe menores delinq�entes e em particular
contra os "Capit�es da Areia".
Esta campanha t�o merit�ria deu os
seas prlmeiros frutoe ontem com a pris�o do
chefe desta malta e de v�rios do grupo,
inclusive uma menina. Infelizmente, devido
a wna sagaz burla de Pedro Bala, o chefe, os
demais consegui:ram escapar de entre as
m�os dos guardas. Em todo caso, a pol�ciaj�
18b

* A f3 * .': �.�Ei PA �kElA * f3 A * =,
conseguiu muito prcndendo o chefe e a ro-
m&rtica inspiradora doe rouboe: I?ora, uma
hgara interessant�esima de menor delin-
q�ente. Feitos estes coment�rios, narremoe
os fatos:
a lBNG'aPA DE I0
Ontem, �e�ltimashoraedatarde, dnco
meninos e ums menina penetraram no pala-
cete do dr. Alceb�ades Meaezes, na ladeirs
de So Bento. Foram por�m pressentldos
pelo fllho do dono da casa, estudante de
medicins, que deigou que eles penehassem
mxm quarto, onde os trancou. Chamou ent�o
oe guardas e imestlgadores, a quem oa en-
tregou.
A reportagem do "Jornal da Tarde"
,
informada do fato, pardu para a casa do dt.
Alceb�ades. L� chegando, encontrou os me-
nores que eram leva,dos � CheBa de Pol�cia.
Pedimos ent�o para tirar um retrato do
grupo� A pol�cia muito gentilmente consen-
du. Pois no momento em que o fotbgrafo
acabava de fazer funcionar o magn�sio e
bater a chapa, Pedro Bala, o t,em�vel chefe
dos "Capit�ea da Areia", facilitou a
Laso
Pondo em pr�tica uma agilidade
incomum Pedro Bala se livrou dos bra�os do
investigador que o seguravae com um golpe
de capoeira o derrubou. No entanto n�o fu-
giu. � claro que os demais guardas e inves�-
gadores se precipitaram em cima dele para
dnP a sua fuga. S� ent�o foi poss�vel
compreender o plano do chefe dos "Capit�es
da Areia" pois este grltou para os compt-
nheiros presos.
-Arriba, peseoal.
Umimicoguardagemaatomaz.dos
ouhns, e um deles, muito �gil, o dermbou
l87
* ! : * � ORGE AMADO  * !: * o
tamb�m com um golpe de capoeira. E desa-
baram para a ladeira da Montanha.
N Poi�c
Na Chefla de Pol�cia qnisemos ouvir
Pedro Bala. Mas ele nada nos disse, como
tampouco quis declarar �s autoridades o
lugar onde dormiam e gua.rdaam seus fixr-
tos os "Capit�es da Areia". Sb declarou seu
nome, disse que era fllho de um antigo
grevista que foi morto num "meering" na
c�lebre greve das docas de 191..., que n�o
tinha ningu�m no mundo. Quanto a Dora, �
fllha de uma lavadeira que morreu de var�ola
qaando da epidemia que alastrou a cidade.
N�o faz sen�o quatro meses que est� entre os
"Capit�es da Areia", masj� tomou parte em
muitos assaltos. E parece ter uma grande
honra nisso.
Nomos
Dora declarou � nossa reportagem que
era noiva de Pedro Bala e que iam se casar.
� uma menina ainda ing�nua, mais digna de
piedade que de castigo. Fala no seu noivado
com maior das ingenuidades. N�o tem
mai e quatorze anos, enquanto Pedro Bala
anda pelos seus dezesseis. Dora foi leva da ao
Orfanato Nossa Senhora da Piedade. Neste
#
santo ambiente n�o tardar� a esquecer Pe-
�ro Bala, o rom�ntico noivo-bandido, e a sua
vida criminosa entre os "Capit�es da Areia".
uamto a Pedro Bala, ser� recolhido ao
Reformat�rio de Menores logo que a pol�cia
consiga que ele declare qual o local onde se
esconde o grupo. Apol�cia tem grandes espe-
ran�as de consegtxi-lo ainda hoje.
Oovnvno o DroR no Rr'o�uo
O diretor do Reformat�rio Baiano de
Menores Abandonados e Delinq�entes � um
1d8
* o c * c-� CAllTXES DA m  * O o * ;-:
a
velbo amiigo do "Jornfil daTard� '. Certavez
uma reportngem nosea deafe,z um c�rculo de
calimiae jogadae contra aquele estabeleci-
mento de educa��o e seu diretor. Hoje ele se
achavanapol�ciaesperandopoderlevarcon-
sigo o menor Pedro Bala. A uma pergunta
nosea, respondeu.
-Ele se regenerar�. Veja o �tulo dacasa
que dirljo: "Reformatbrio". Ele se reforma-
r�.
E a outra pergunta noesa, sorriu:
-Fugir2 N�o � f�c� fugirdo Reformatb-
rio. Poseo lhe garantir que n�o o far�.
Professor, � noite, leu a notlcia para todos. Sem-Pemas disse.
- Ele j� t� no reformat�rio. Eu vi quando saiu da poli�a.
- E ela no orfanato. .. completou Jo�o Grande.
-A gente livra eles afirmou Professor. Depois virou-se para
o Sem-Pernas. - At� Pedro Bala chegar tu fica como chefe, Sem-
Pemas.
Jo�o Grande estendeu os bra�os para os outros, falou:
- Gentes, at� Bala voltar Sem-Pemas � o chefe...
Sem-Pernas disse:
- Ele ficou pra livrar a gente. � preciso que a gente livre ele. N�o
� direito?
Todos estavam decididos.
Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala calculava o que o
esperava. N�o veio nenhum guarda. Vieram dois soldados de pol�cia,
um investigador, o diretor do reformat�rio. Fecharam a sala. O
invrstigador disse numa voz risonha:
I89
;: * C3 * o ,Io Aauw ;.'� * f3 *
- Agora os jornalistas j� foram, moleque. Tu agora vai dize
que sabe queira ou n�o queira.
O diretor do reformat�rio riu:
- Ora, se diz...
O investigador perguntou:
- Onde � que voc8s dormem?
Pedro Bala o olhou com �dio:
- Se t� pensando que eu vou dizer...
- Se vai...
- Pode esperar deitado.
V`irou as costas. O investigador fec um sinal para os soldade
Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o p� do investigad
na sua cara. Rolou no ch�o, xingando.
-Ainda n�o vai dizer? perguntou o diretor do reformat�ri
- Isso � s� o come�o.
- N�o foi tudo o que Pedro Bala disse.
Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos
pontap�s. O diretor do reformat�rio levantou-se, sentou-lhe o p
Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. C
soldados vibraram os chicotes. Ele via Jo�o Grande, Professc
Volta Seca, m-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segi
ran�a de to os dependia da coragem dele. Ele era o chefe, n
podia trair. Lembrou-se da cena da tarde. Conseguira dar fuga a
outros, apesar de estar preso tamb�m. O orgulho encheu seu peit
N�o falaria, fugiria do reformat�rio, libertaria Dora. E se ving;
#
ria... Se vingaria...
Grita de dor. Mas n�o sai uma palavra dos seus l�bios. Vai 
fazendo noite para ele. Agoraj� n�o sente dores,j� n�o sente nada. r
entanto, os soldados ainda o surram, o investigador o soqueia. Mas e
n�o sente mais nada.
- Desmaiou diz o investigador.
-Deixe ele por minha conta-explica o diretor do reformatt
rio. - Eu levo ele pro reformat�rio, l� ele abre a boca. Garanto. E E
dou o aviso a voc�s.
q0
* o c * ;-� CNIlXES DA AItEIA * : o * ;-�
O investigador assentiu. Com a promessa de no dia seguinte
mandar buscar Pedro Bala, o diretor retirou-se.
Na madrugada, quando Pedro acordou, os presos cantavam. Era
umamoda triste. Falava do sol que havia nas ruas, em quanto � grande
e bela a liberdade.
O bedel Ranulfo, que o tinha ido buscar na polfeia, o levou �
presen�a dodiretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas
do dia anterior. Mas ia satisfeito, porque nada tinha dito, porque n�o
revelara o lugar onde os Capit�es da Areia viviam. Lembram-se da
can��o que os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que
a liberdade � o bem maior do mundo. Qne nas ruas havia sol e luz e
nas c�lulas havia uma eterna escurid�o porque ali a liberdade era
desconhecida. Liberdade. Jo�o de Ad�o, que estava nas ruas, sob o sol,
falava nela tamb�m. Dizia que n�o era s� por sal�rios que fizera
aquelas greves nas docas e faria outras. Era pela liberdade que os
doqueiros tinham pouca. Pela liberdade opai de Pedro Bala morreta.
Pela liberdade-pensava Pedro-dos seus amigos, ele apanhara uma
surra napol�cia. Agora seu corpo estava mole e dolorido, seus ouvidos
cieios da moda que os presos cantavam. L� fora, dizia a velha can��o,
� o sol, a liberdade e a vida. Pela janela Pedro Bala vt o soL A estrada
passa adiante d� grande port�o do reformat�rio. Aqui dentro � como
se fosse uma etema escurid�o. L� fora � a liberdade e a vida. E a
vinganFa, pensa Pedro Bala.
O diretor entra. O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala.
O diretor sorri, esfrega as m�os uma na outra, senta ante uma alta
secret�ria. Olha Pedro Bala uns minutos:
- Afinal. . . Faz bastante tempo que espero este p�ssaro, Ranul-
fo.
O bedel sorri aprovando as palavras do diretor.
- � o chefe dos tais de Capit�es da Areia. Veja... O tipo do
ctiminoso nato. � verdade que voc� n�o leu Lombroso... Mas se
lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com
esta idade j� tem uma cicatriz. Espie os olhos... N�o pode ser
tratado como um qualquer. Vamoslhe dar honras especiais..
I9I
;-. * :: * o ORGE  ::: * ::  o
Pedro Bala o espia com os olhos injetados. Sente cansa�o, uma
vontade doida de dormir. Bedel Ranulfo aventura uma pergunta:
- Levo prajunto dos outros?
- O qu�? N�o. Para come�ar, meta-o na cafua. Vamos ver se ele
sai um pouco mais regenerado de l�...
O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala. O diretor
ainda recomenda:
' - Regime n�mero 3.
- �gua e feij�o... murmura Ranulfo. D� uma espiada em
' Pedro Bala, balan�a a cabe�a. - Vai sair bem mais magro.
L� fora � a liberdade e o sol. A cadeia, os presos na cadeia, a surra
ensinaram a Pedro Bala que a liberdade � o bem maior do mundo.
Agora sabe que n�o foi apenas para que sua hist�ria fosse contada no
cais, no Mercado, na Porta do Mar, que seu pai morrera pela
liberdade. A liberdade � como o sol. � o bem maior do mundo.
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado
dentro da cafua. Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde
n�o se podia estar em p�, porque n�o havia altura, nem tampouco estar
deitado ao comrido, porque n�o havia comprimento. Ou ficava
sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posi��o
mais que inc�moda. Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo
dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua s� servia
para o homem-cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente
#
cerrado o quarto, a escurid�o era completa. O ar entrava pelas frestas
finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava,
n�o podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o
impediam. Seus membros do�am, ele tinha uma vontade doida de
esticar as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na
policia, e desta vez Dora n�o estava ali para trazer um pano frio e cuidar
do seu rosto ferido. A liberdade era Dora tamb�m. N�o era s� o sol,
andar livre nas ruas, rir no cais a grande gargalhada dos Capit�es da
Areia. Era tamb�m sentir junto a si o cabelo loiro de Dora, ouvir ela
contar coisas do morro, sentir os l�bios dela sobre os seus l�bios
92
,  o :: * ;: CApIT�ES PA AtEIA * :  o * ;-,
feridos. Noiva. Tamb�m ela estava sem liberdade. Os membros de
Pedro Bala doem e agorad�i sua cabe�atamb�m. Dora est�como ele,
sem sol, sem liberdade. Foi levada para um orfanato. Noiva. Antes que
ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de
derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabe�a com
cabe�a, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em
deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar
de coisas tolas e correr picula como os outros meninos, sem a derrubar
para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa
confus�o. Ele nunca tivera uma id�ia perfeita do amor. Q-ue era ele,
sen�o uma crian�a abandonada nas ruas, que pela for�a e agilidade e
coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abando-
nados, os Capit�es da Areia? Que podia saber de amor? Sempre
pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha
ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais. Isto cedo
aprendeu, quando n�o tinha ainda 13 anos. Isto sabiam todos os
Capit�es da Areia, mesmo os mais pequenos, aqueles que ainda n�o
tinham for�as para derrubar uma cabrocha. Mas j� o sabiam, e
pensavam com alegria no dia em que o fariam. Os membros e a cabe�a
de Pedro Bala doem. Tem sede, ainda n�o bebeu nem comeu neste
dia. Com Dora foi diferente. Logo que ela chegou, tanto ele como
todos os que estavam no trapiche pensaram em a derrubar, em a
po'ssuir, em praticar com ela, que era bonita, o �nico amor de que
tmham not�cia. Mas como era apenas uma menina, eles a tinham
respeitado. Depois ela foi como uma m�e para todos. E como uma
irm� tamb�m, Jo�o Grande dizia certo. Mas para ele desde o primeiro
momento fora diferente. Fora tamb�m uma companheira de brin-
quedos como para os demais, irm� querida. Mas fora tamb�m uma
alegria diversa da que d� uma irm�. Noiva. Gostaria, sim. Mesmo
quando quer negar a si pr�prio n�o pode. � verdade que nada faz para
isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar
timidamente na sua m�o. Mas gostaria de possu�-la tamb�m, de v�-la
gemer de amor. N�o, por�m, por uma noite. Por todas as noites de
toda uma vida. Como outros t�m esposa, esposa que � m�e, irm� e
amiga. Ela era m�e, irm� e amiga dos Capit�es da Areia. Para Pedro
Bala � noiva, um dia ser� esposa. N�o a podem ter num orfanato como
uma menina sem ningu�m. Ela tem um noivo, uma legi�o de irm�os
e de filhos de quem cuidar. O cansa�o desaparece dos membros de
I93
y! * :: * A JOkGE AMADO s  *  *
Pedro Bala. Ele precisa de movimento, de andar, de correr, para pa
conceber um plano para livrar Dora. Ali naquela escurid�o � que n
pode. Fica in�til pensando que ela est� ratvez numa cafua tamb�
Senta-se como pode. Ratos correm na cafua. Mas ele est� por dem
acostumado com os ratos, n�o liga. Mas Dora ter� medo deste nv
cont�nuo. � de enlouquecer um que n�o seja o chefe dos Capit�es
Areia. Qnanto mais uma menina... � verdade que Dora � a m
valente de quantas mulheres j� nasceram na Bahia, que � a terra c
mulheres valentes. Mais valente mesmo que Rosa Palmeir�o, que d
em seis soldados, que Maria Caba�u, que n�o respeitava cara, qu
companheira deLampi�o, que maneja umfiizil igual a um cangacei
Mais valente porque � apenas uma menina, apenas est� come�and
viver. Pedro Bala sorri com orgulho, apesar das dores, do cansa�o,
sede que aos poucos o aperta. Como seria bom um copo d'�g
Diante do areal do trapiche � o mar, um nunca arabar de �gua.1V
que o Querido-de-Deus, o grande capoeirista, corta com seu sav�
para as pescarias nos mares do Sul. O Qnerido-de-Deus � um be
sujeito. Se Pedro Bala n�o houvesse aprendido com ele o jogo
#
capoeira de Angola, a luta mais bonita do mundo, porque � tamb
uma dan�a, n�o teria podido dar fuga a Jo�o Grande, Gato e Se
Pernas. Agora ali, nacafila, sem poder se mexer, a capoeira n�ovai 1
servir de nada. Gostaria era de beber �gua. Ser� que Dora tamb
tem sede a estas horas? Deve estar tamb�m numa cafua, Pedro B
imagina o ornatoigualzinho ao reformat�rio. A sede � pior que m
cobra cascaveL Faz mais medo que a bexiga. Porque vai apertand
garganta de um, vai fazendo os pensamentos confisos. Um pouco
�gua. Um pouco de luz tamb�m. Porque se houver um pouco de h
talvez ele veja o rosto de Dora risonho. Assim na escurid�o ele o
cheio de sofiimento, cheio de dor. Uma raiva surda, impotente, ae
dentro dele. Levanta-se um pouco, a cabe�a encosta nos degraus
escada que lhe serve de teto. Esmurra a porta dacafua. Mas parece q
l� fora n�o tem ningu�m que o ou�a. V� a cara malvada do diret
Enterrar� seu punhal at� o mais fimdo do cora��o do diretor. Sem c
sua m�o trema, sem remorsos, gozando. Seu punhal ficou na pol�c
Mas Volta Seca lhe dar� o seu, ele tem uma pistola. Volta Seca q
it para o bando de Lampi�o, que � seu padrinho. Lampi�o m
soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama La
pi�o como a um seu her�i, a um seu vingador. � o bra�o armado c
94
* 4 ? * ::' CArn�s oA AmA * :: 4 * ;'�
pobres no sert�o. Um dia ele poder� ser do grupo de Lampi�o
tamb�m. E quem sabe se n�o poderiam invadir a cidade da Bahia, abrir
a cabe�a do diretor do reformat�rio? ue cara ele n�o faria quando
visse Pedro Bala entrar no reformat�rio na frente de uns cangacei-
ros... . Soltaria a garrafa de pinga, presente de um amigo de Santo
Amaro, e Pedro Bala lhe abriria a cabe�a. N�o. Antes o deixaria
naquela mesma cafua, sem ter o que comer, sem ter o que beber.
Sede. .. A sede o maltrata. Faz com que ele veja na escurid�o da parede
o rosto triste e doloroso de Dora. Aquela certeza de que ela est�
sofrendo... Fecha os olhos. Procura pensar em Professor, Volta Seca,
Jo�o Grande, Gato, Sem-Pernas, Boa-Vida, todos os do trapiche
salvando Dora. Mas n�o pode. Mesmo de olhos fechados v� o rosto
dela, amargurado pela sede. Esmurra a porta novamente.
Grita, xinga nomes. Ningu�m o atende, ningu�m o v�, nin-
gu�m o ouve. Assim deve ser o inferno. Pirulito tem raz�o de ter
medo do inferno. � por demais terr�vel. Sofrer sede e escurid�o. A
can��o dos presos dizia que l� fora � a liberdade e o sol. E tamb�m
a �gua, os rios correndo muito alvos sobre pedras, as cascatas
caindo, o grande mar misterioso. Professor, que sabe muitas
coisas, porque � noite l� livros furtados, � luz de uma vela (est�
comendo os olhos... ),lhe disse certa vez que tem mais �gua no
mundo que terra. Tinha lido num livro. Mas nem um pingo de
�gua na sua cafua. Na de Dora n�o deve ter tamb�m. Para que
csmurrar a porta como o faz neste momento? Ningu�m o atende,
suas m�os j� doem. Na v�spera o surraram na pol�cia. Suas costas
est�o negras,-seu peito ferido, o rosto inchado. Por isso o diretor
disse que ele tinha cara de criminoso. N�o tem, n�o. Ele quer �
liberdade. Um dia um velho disse que n�o se mudava o destino de
ningu�m. Jo�o de Ad�o disse que se mudava, sim, ele acreditara em
Jo�o de Ad�o. Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros.
Qnando ele sair, ir� ser doqueiro tamb�m, lutar pela liberdade,
pelo sol, por �gua e de comer para todos. Cospe um cuspe grosso.
A sede aperta sua garganta. Pirulito quer ser padre para fugir
daquele inferno. Padre Jos� Pedro sabia que o reformat�rio era
assim, falava contra meterem os meninos l�. Mas que podia um pobre
padre sem par�quia contra todos? Porque todos odeiam os meninos
pobres, pensa Pedro Bala. Qnando sair, pedir� � m�e-de-santo
Iq5
! * `.: * A JORGE AMADO ' * '�: *
' Don'Aninha que fa�a um feiti�o forte para matar o diretor. Ela ten
for�a com Ogum, e ele uma vez tirara Ogum da pol�cia. Fizer
muita coisa para a sua idade. Dora tamb�m fizera muita cois;
naqueles meses entre eles. Agora passavam sede, Pedro Bal;
esmurra inutilmente uma porta. A sede o r�i por dentro como ums
legi�o de ratos. Cai enrodilhado no ch�o e o cansa�o o vence
Apesar da sede, dorme. Mas tem sonhos terr�veis, ratos roem c
rosto belo de Dora.
Acorda porque algu�m bate pancadas leves num dos degraus ds
#
escada. Levanta-se curvadoi n�o pode ficar de p� direito, que a escad
n�o consente. Pergunta em voz baixa:
- Tem algu�m a�?
Uma alegria doida o invade quando respondem:
- Qnem � que t� a�?
- Pedro Bala.
-Tu � o chefe dos Capit�es da Areia?
- Sou.
Ouve um assovio. A voz continua, agora r�pida:
-Tenhom recado pra voc�, um trouxe hoje..
- Solta logo...
- Agora vem gente. Depois volto.
Pedro Bala ouve os passos que se afastam. Mas est� mais alegre
Pensa em seguida que o recado � de Dora, mas v� que � uma tolia
pensar isso. Como Dora havia de lhe enviar um recado? Deve ser un
do grupo. Devem estar tratando de tir�-lo dali. Mas primeiro � precis
que ele saia da cafua. Enquanto ele estiver ali, os Capit�es da Areia n�
poder�o fazer nada. Depois que ele estiver andando no reformat�ru
todo, a� a fuga ser� f�cil. Pedro Bala senta-se para pensar. Q,ne hora
ser�o, que dia ser�? Ali � sempre noite, nunca brilha a luz do so1
Espera impaciente que o seu informante volte. Por�m este demora 
ele se agita. Qne estar�o fazendo os outros sem ele? Professo
conceber� algum plano para o tirarem dali. Mas enquanto ele estive
iqe
* O s: * ::! CarXEs eA AesiA * :: O * C:!
na cafua � in�til. E enquanto n�o o tirarem, ele n�o poder� tirar Dora
do orfanato. Abrem a porta. Pedro Bala se atira para a frente,
pensando que o v�o soltar. Uma m�o o empurra:
- Ei, calma.. .
V� o bedel Ranulfo na porta. Traz um caneco com �gua, que
Pedro Bala arranca das suas m�os e bebe em grandes goles. Mas � t�o
pouca... N�o chega para matar a sede. O bedel lhe entrega um prato
de barro com uma �gua onde b�iam alguns caro�os de feij�o. Pedro
Bala pede:
- Pode me dar um pouco mais de �gua?
- Amanh�... ri o bedel.
- S� um pouco mais.
-Amanh� tem mais. E se voc� continuar a bater na porta e gritar
em vez de 8 passa 15 dias empurra a porta na cara de Pedro Bala.
Ouve a chave que o tranca. Tateia na escurid�o at� encontrar o
prato. Bebe a �gua escura do feij�o. Nem repara que � salgad�ssima.
Depois come os gr�os duros. Mas a sede o ataca novamente. O feij�o
muito salgado ativa a sede. O que � um caneco de �gua para aquela
sede que exigia uma moringa? Deita. J� n�o pensa em nada. Passam-se
horas. Ele apenas v� na escurid�o o rosto triste de Dora. E sente dores
no corpo todo.
Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada. Pergunta:
- T� a�?
- Um capenga mandou dizer que v�o te tirar daqui. Logo que
tu saia da cafua...
- J� � de noite? pergunta Pedro.
- T� come�ando...
- Tou morto de sede.
A voz n�o responde. Pedro pensa com desespero que � capaz do
menino ter ido embora. No entanto, ele n�o ouviu passos na escada...
Mas volta a voz:
-�gua n�o posso. N�o tem como passar. Mas quer um cigarro?
- Quero, sim.
- Ent�o espera.
l9T
y * ! : * O JORGE AMAtO � * ! : *
Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta. A vi
por debaixo da porta:
- Vou passar o cigarro por aqui. Ponha as m�os embaixo, be
no meio da greta da porta.
Pedro Bala faz o que lhe mandam. Um cigarro amassado che
�s suas m�os. Ele acaba de o retirar de sob a porta. Logo depois � u
f�sforo que vem sobre um peda�o de caixa, o peaa�o onde se risca
- Obrigado diz Pedro Bala.
Mas neste momento ouve um barulho l� fora. O som de un
#
bofetada, um corpo que rola. E uma voz que ele n�o conhece fala:
- Se tentar se comunicar com os de fora, seu castigo se:
aumentado.
Pedro se encolhe. Agora um vai sofrer castigo por causa del
Quando fugir, levar� aquele para os Capit�es da Areia. Para o sol e
liberdade. Acende o cigarro. Com muito cuidado para n�o perder
f�sforo que � o �nico. Esconde a brasa do cigarro sob a m�o para qi
ningu�m o possa ver pelas frestas da escada. O sil�ncio o envolve i
novo, e com o sil�ncio os pensamentos, as vis�es.
Qnando termina de fumar, se enrodilha no ch�o. Se pudes:
dormir... Pelo menos n�o veria o rosto cheio de sofrimento de Dor
Qnantas horas? Quantos dias? A escurid�o � sempre a mesma,
sede � sempre igual. J� lhe trouxeram �gua e feij�o tr�s veze
Aprendeu a n�o beber caldo de feij�o, que aumenta a sede. Agora es
muito mais fraco, um des�nimo no corpo todo. O barril onde defec
exala um cheiro hornvel. N�o o retiraram ainda. E sua barnga d�
sofre horrorespara defecar. � como se as tripas fossem sair. As pern
n�o o ajudam. O que o mant�m em p� � o�dio que enche seu cora��
- Filhos da m�e... Desgra�ados...
� tudo quanto consegue dizer. Assim mesmo, em voz baixa. J
n�o tem for�as para gritar, para esmurrar a porta. Agora est� certo d
I98
* O f? * :.'! W T7s sA AmA * '? � *
que morrer� ali. Cada vez sofre maiores dores para defecar. V� Dora
atsndida no ch�o, morrendo de sede, chamando por ele. Jo�o Grande
est� do lado dela, mas separado por grades. Professor e Pirulito
choram.
Trouxeram-lhe �gua e feij�o pela quarta vez. Ele bebe a �gua,
mas demora a comer o feij�o. S� sabe dizer em voz baixa:
- Filhos da m�e... Filhos da m�e...
� Antes que a comida (se poderia chamar aquilo de comida?)
I chegasse naquele dia (para Pedro era sempre noite), a voz voltou a
�,, cham�-lo na escada. Ele pergunton, sem se levantar sequer:
- Quantos dias j� tem que tou aqui?
' - Cinco.
- Me d� outro cigarro.
O cigarro o reanima um pouco. Pode pensar que com mais cinco
i dias morrer�. Aquilo � castigo para um homem, n�o para um menino.
O �dio n�o cresce mais em seu cora��o. J� atingiu o m�ximo.
.
� sempre noite. Dora morre lentamente ante suas vistas. Jo�o
Grande ao seu lado, as grades separando. Professor e Pirulito choram.
I, Ele dorme ou est� acordado? A barriga d�i violentamente.
I
Q,uanto tempo durar� ainda a escurid�o? E a agonia de Dora? O
cheiro do barril �insuport�vel. Doraagoniza ante seus olhos. Ser� que
ele agoniza tamb�m?
i
A cara do diretor aparece ao lado do rosto de Dora. Vem torturar
sua agonia ainda mais? [Luanto tempo ela leva para morrer... Pedro
wv
 * ' : * � ORGE AMADU s  * '�% *
Bala pede que ela morra logo, logo... Ser� melhor. Agora o direto
veio, veio para aumentar a tortura. Ouve a voz dele:
- Levanta. . . e um p� o toca.
Abre mais os olhos. Agora n�o v� mais Dora. S� a cara do direto
que sorri:
- Vamos ver se agora fica mais manso.
N�o pode fitar a claridade que entra pelasjanelas. Mal se ag�ent
'� nas pernas. Cai no meio do corredor. Dora teria morrido ou n�o?-
pensa ao cair.
Est� novamente na sala do diretor. Este o olha sorridente:
- Gostou do apartamento? Continua com muita vontade di
roubar? Eu sei ensinar, quebrar moleque aqui.
Pedro Bala est� irreconhec�vel de t�o magro. Os ossos aparecen
junto � pele. O rosto, verdoso da complica��o intestinal. O bede
Fausto, dono dacuela voz que ele ouvira certa vez na porta da cafua
est� ao seu lado. E um tipo forte, tem fama de ser t�o malvado quantc
o diretor. Pergunta:
- Na ofic'na de ferreiro?
#
-Acho que � melhor na planta��o de cana. Lavrar terra... -ri
Fausto diz que est� bem, o diretor recomenda:
- Olho nele. Este � um p�ssaro ruim. Mas eu te ensino...
Pedro Bala sustenta seu olhar. O bedel o empurra.
Agora v� detidamente o casar�o. No meio do p�tio o cabeleirein
raspa a sua cabe�a a zero. V� a cabeleira loira rolar no ch�o. D�o-lh
umas cal�as e palet� de mescla azul. Veste-se ali mesmo. O bedel leva
o a uma oficina de ferreiro:
Tem um fac�o? E uma foice?
Entrega os objetos a Pedro Bala. Marcham para o canavial, ond
outros meninos trabalham. Neste dia, de t�o fraco, Pedro Bala ma
sust�m o fac�o. Por isso os bed�is o soqueiam. Ele nada diz.
Oa
* O ,:: * ;:' CAriTJs uA AmA *  : � * :::
� noite, na fila, olha para todos, querendo descobrir aquele que
lhe falava e dava cigarros. Sobem as escadas, andam para o dormit�rio,
que fica no terceiro andar para impedir qualquer id�ia de fuga. A porta
� fechada. O bedel Fausto diz:
- Gra�a, puxe a reza.
Um menino avermelhado faz o pelo-sinal. Todos repetem as
palavras e os gestos. Depois � um padre-nosso e uma ave-maria, ditas
com voz forte apesar do cansa�o. Pedro sejoga na cama. Uma coberta
suja o espera. Mudam a roupa de cama de 15 em 15 dias. E a roupa de
cama � apenas uma coberta e uma fronha para um travesseiro de pedra.
J� est� dormindo quando algu�m toca no seu ombro.
-Tu que � Pedro Bala, n�o �?
- Sim.
- Fui eu que trouxe o recado.
Pedro olha o mulato que est� a seu lado. Pode ter dez anos:
- Eles t�m voltado?
- Todo santo dia. S� quer saber quando tu sai da cafua.
- Diz que eu tou no canavial...
-Tu n�o quer comer um sacana hoje? Tem uns aqui, a gente de
noite...
Tou morto de sono... Q,uanto tempo levei?
- Oito dias. J� morreu um ali.
O menino vai embora. Pedro nem perguntou seu nome. Tudo 0
que quer � dormir. Mas os que andam para as camas dos pederastas
fazem ru�do. O bedel Fausto sai do seu quarto de tabiques:
- Qne barulho � esse?
Sil�ncio. Ele bate as m�os:
- Todos de p�.
Fita a todos:
- Ningu�m sabe?
UI
* :: * A .IOkGE AMADO �  * '.: *
Sil�ncio. O bedel esfrega os olhos, anda entre as camas. Ucr
enorme rel�gio d� dez horas na parede.
- Ningu�m diz?
Sil�ncio. O bedel range os dentes:
- Ent�o ficar�o todos uma hora de p�... At� as onze. E c
primeiro que tentar deitar vai pra cafua. Agora est� desocupada...
Uma voz de menino corta o sil�ncio:
- Seu bedel...
� um pequeno, meio amarelento.
- Fale, Henrique.
- Eu sei...
Os olhos todos est�o fitos nele. Fausto anima a dela��o:
- Diga o que sabe.
- Foi Jeremias, que ia pra cama de Berto fazer coisa feia.
- Seu Jeremias, seu Berto!
Os dois saem das suas camas.
- De p� na porta. At� meia-noite. Os outros podem deitar -
olha mais uma vez a todos. Os castigados est�o de p� na porta.
Qnando o bedel se recolhe, Jeremias amea�a Henrique. Os outros
comentam. Pedro Bala dorme.
No refeit�rio, enquanto bebiam o caf� aguado e mastigavam o
bolach�o duro, seu vizinho de mesa fala:
- Tu � o chefe dos Capit�es da Areia? sua voz � baix�ssima.
- Sou, sim.
#
- V'i teu retrato no jornal... Tu � um macho! Mas te acabaram
olha o rosto magro de Bala.
Mastiga o bolach�o. Continua:
- Tu vai ficar aqui?
- Vou arribar...
202
* 4 :: * t.' CriTXs aA Aia * ,:: � * ;v
- Eu tamb�m. Tenho um plano.. Quando eu bater asa, posso
rr pra teu grupo
- Pode.
- Onde fica o buraco
Pedro Bala olha com desconfran�a.
- Tu encontra a gente no Campo Grande toda tarde
- Pensa que vou dizeF?
O bedel Campos bate as m�os Todos se levantam. Dirigem-se
para as diversas oficinas ou para os terrenos cultivados
Pelo mero da tarde Pedro Bala v� o Sem-Pernas que passa na
estrada. V� tamb�m um bedel que o tangee
Castigos... Castigos... � a palavra que Pedro Bala mais ouve no
reformat�rio. Por qualquer coisa s�o espancados, por um nada s�o
castigados. O �dio se acurnula dentro de todos eles.
' No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No
outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. Com certeza a
puseram durante a noite. � um rolo de corda fina e resistente. Est�
novinha. No meio dela o punhal que Pedro mete nas cal�as. A
dificuldade � levar o rolo para o dormit�rio. Fugir durante o dia �
imposs�vel, com a vigil�ncia dos bed�is. N�o pode levar o rolo entre
a roupa, que notariam.
De repente surge uma briga. Jeremias sejoga sobre o bedel Fausto
com o fac�o na m�o. Outros meninos se atiram tamb�m, mas vem um
grupo de bed�is armados de chicotes. Est�o sujeitando Jeremias.
Pedro mete o rolo de corda debaixo do palet�, abre para o dormit�rio.
Um bedel vem descendo a escada com um rev�lver na m�o. Pedro se
esconde atr�s de uma porta. O bedel vem r�pido, passa
Empurra a corda para baixo do colch�o, volta para o canavial.
Jeremias foi levado para a cafua. Os bed�is agorajuntam os meninos.
Ranulfo e Campos foram em persegui��o de Agostinho, que pulou a
a03
;-� * :: * o JORGE AMDo :v * ,.: * o
cerca na confus�o da briga. O bedel Fausto, com um talho no ombro,
foi para a enfermaria. O diretor est� entre eles, os olhos fuzilando de
raiva. Um bedel conta os meninos. Pergunta a Pedro Bala:
- Onde estava metido?
- Sa� pra n�o me meter no barulho.
O bedel o olha desconfiado, mas passa.
Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho. O fuj�o � surrado m
vista de todos. Depois o diretor diz:
- Metam-no na cafua.
- J� est� Jeremias fala Ranulfo.
- Ficam os dois. Assim podem conversar. . .
Pedro Bala se arrepia. Como ir�o ficar dois na pequenez da cafua
Nesta noite avigil�ncia � grande, ele n�o tenta nada. Os menino
ranem os dentes de raiva.
Duas noites depois, quando o bedel Fausto j� tinha se recolhid
h� muito ao sp quarto de tabiques e quando todos dormiam, Pedr
Bala se levantou, tirou a corda de sob o colch�o. Sua cama ficavajunt
a umajanela. Abriu. Amarrou a corda num dos armadores de rede qu
existiam na parede. Deixou que a corda ca�sse pelajanela. Era curt;
Faltava ainda muito. Recolheu. Procurava fazer o menor barulh
poss�vel, mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou
- Tu vai bater asa?
Aquele n�o tinha boa fama. Costumava delatar. Por isso mesm
fora colocado ao lado de Pedro Bala. Bala puxou o punhal, mostrc
a ele.
- Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a gargant
palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair.
Tu j� viu falar nos Capit�es da Areia?
- J�.
a�o
* 4 C? * ::' CArrrls A AmA *  ? � * :: `
#
- Pois eles me vinga.
P�e o punhal ao alcance da m�o. Recolhe completamente a
corda, amarra o len�ol na ponta com um daqueles n�s que o
Q,uerido-de-Deus lhe ensinou. Amea�a mais uma vez o menino,
joga z corda, passa o corpo pelajanela, come�a a descida. Ainda no
meio ouve os gritos denunciadores do delator. Se deixa escorregar
pela corda, salta ao ch�o. O pulo � grande, mas elej� salta correndo.
Pula a cerca, ap�s evitar os cachorros policiais que est�o soltos.
Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo
dos bed�is se vestirem e sa�rem em sua persegui��o e soltarem os
cachorros tamb�m. Pedro Bala prende o punhal nos dentes, tira a
roupa. Assim os cachorros n�o o conhecer�o pelo faro. E nu, na
madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade.
Professor l� a manchete do Jornal da Tarde:
"O C DOS `Crrr�e D is'
CO�9B6�8 fIT6IH DO BBFOBIIOT�DIO"
Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso. Todo 0
trapiche ri. At� o padre Jos� Pedro, que est� com eles, ri em gargalha-
das, como se fosse um dos Capit�es da Areia.
20�
Jr'l r'rJ
UM MES DE ORFANATO BASTOU PARA MATAR A ALEGRIA E A SA�DE DF
� Dora. Nascera no morro, inf�ncia em correrias no morro. Depois :
liberdade das ruas da cidade, a 'vida aventurosa dos Capit�es da Areia
N�o era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade.
Fizeram duas tran�as do seu cabelo, amarraram com fitas. Fita;
cor-de-rosa. Deram-lhe um vestido de pano azul, um avental de un
azul mais escuro. Faziam com que ela ouvisse aulas junto con
meninas de cinco e seis anos. A comida era m�, havia castigo tamb�m
Ficar em jejum, perder os recreios. Veio uma febre, ela esteve ns
enfermaria. Qnando voltou estava macilenta. Tinha sempre febre
mas n�o diziaada, porque odiava o sil�ncio da enfermaria, onde o so
n�o entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crep�scu
lo. Qnando podia, chegava perto das grades, porque por vezes divisav:
Professor ou Jo�oGrande que rondavam por ali. Um dia lhe passaran
um bilhete. Pedro Bala fugira do reformat�rio. Viria tir�-la dali. Nen
sentiu a febre em que estava.
Avisaram por interm�dio de outro bilhete, que Professor escre
veu e lhe jogou, que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria
Mas nem foi preciso, porque uma irm� notou o avermelhado das sua
faces. P�s a m�o no seu rosto:
- Est�s queimando de febre.
Era sempre crep�sculo na enfermaria. Era como uma ante-sal
do t�mulo, com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar. C
m�dico que a vira balan�ara a cabe�a com tristeza.
20b
? * '.: * e ORGE AMADO �  * : *
* 4 f? * C.' �mTXEs uA AmA * :: � * ;'�
Mas a luz entrou com eles. Como Pedro Bala estava magro,
pensou Dora ao se p�r ao seu lado. Jo�o Grande, Gato, Professor,
estavam com ele. Professor mostrou a navalha � Irm�, que abafou um
grito. A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os
len��is. Dora queimava de febre, mal podia estar de p�. A Irm�
murmurou:
- Ela est� muito doente...
Dora respondeu:
- Eu vou, Pedro.
Sa�ram pela porta. Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela
coleira. Tinham trazido um peda�o de carne. Gato abriu o port�o. Na
rua disse:
- Foi canja...
Professor av�sou:
- Vamos embora antes que alarmem.
Se atiraram por uma ladeira. Dora nem sentia a febre porque ia
junto com Pedro Bala, ele pegando na sua m�o.
Volta Seca fechava a marcha, a m�o no punhal, um sorriso no
rosto sombrio.
 Io r  .-I 
Os CArrrAEs nA A oL nzAEzN Doc, A IxA Dox,
Dora noiva, Professor v� Dora, sua amada. Os Capit�es da Areia
#
olham em sil�ncio. A m�e-de-santo Don'Aninha reza ora��o forte
para a febre que consome Dora desaparecer. Com um galho de
207
;-. * :? * o o  :' * c? * o
sabugueiro manda que a febre se v�. Os olhos febris de Dora sornem.
Parece que a grande paz da noite da Bahia est� tamb�m nos seus olhos.
Os Capit�es da Areia ollZam em sil�ncao sua m�e, irm� e noiva.
Mal a recuperaram, a febre a derrubou. Onde est� a alegria dela, por
que ela n�o corre picula com seus filhinhos menores, n�o vai para a
aventura das ruas com seus irm�os negros, brancos e mulatos? Onde
est� a alegria dos olhos dela? S� uma grande paz, a grande paz da noite.
Porque Pedro Bala aperta sua m�o com calor.
A paz da noite da Bahia n�o est� no cora��o dos Capit�es da
Areia. Tremem com receio de perder Dora. Mas a grande paz da noite
est� nos olhos dela. Olhos que se fecham docemente, enquanto a m�e-
de-santo Aninha enxota a febre que a devora.
A paz da noite envolve o trapiche.
O CACHORRO LATE A LUA NA AREIA. SEM-PERNAS SAI DO TRAPICI,
acompanha Don'Aninha atrav�s do areal. Ela disse que a febre n�o
tardaria a ir embora. Pirulito sai tamb�m, vai chamar o padre Jos�
Pedro. Tem confian�a no padre, ele pode saber um rem�dio.
Dentro do trapiche os Capit�es da Areia est�o silenciosos. Dora
pediu que eles fossem dormir. Se deitaram pelo ch�o, mas s�o raros os
que dormem. Na paz imensa da noite pensam na febre que consome
Dora. Ela beijou Z� Fuinha, mandou que ele fosse dormir. Ele n�o
compreende bem. Sabe que ela est� doente, mas n�o pensa um
momento aue ela o poder� abandonar. Mas os Capit�es da Areia
208
, � rr
; # O ,:: * ::! CArn7ls uA AmA * ,:: A * :.':
temem que isso aconte�a. Ent�o ficar�o novamente sem m�e, sem
irm�, sem noiva.
Agora s� Jo�o Grande e Pedro Bala est�o a seu lado. O negro
sorri, mas Dora sabe que o sorriso dele � for�ado, � um sorriso para a
animar, um sorriso arrancado � for�a da tristeza que o negro sente.
Pedro Bala segura sua m�o. Mais retirado, Professor est� dobrado
sobre si mesmo, a cabe�a enterrada nas m�os.
Dora diz:
- Pedro?
- ue �?
- Chegue aqui.
Ele se aproxima. A voz dela � um fio de voz. Pedro fala com
carinho:
- Tu quer alguma coisa?
- Tu gosta de mim?
- Tu bem sabe..
- Deita aqui.
Pedro deita ao seu lado. Jo�o Grande se afasta, chega para perto
de Professor. Mas n�o conversam, ficam entregues � sua tristeza. No
entanto � uma noite de paz que envolve o trapiche. E a paz da noite
est� tamb�m nos olhos doentes de Dora.
- Mais perto...
Ele se chega mais, os corpos est�o juntos. Ela toma a m�o dele,
leva ao seu peito. Arde de febre. A m�o de Pedro est� sobre seu seio
de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
- T'u sabe que j� sou mo�a?
A m�o dele pousada nos seus seios, os corposjuntos. Uma grande
paz nos olhos dela:
Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado:
- N�o, que tu t� doente...
- Antes de eu morrer. Vem...
- Tu n�o vai morrer.
205
;- * :: * o JORGE AMADU :' * :: * o
- Se tu vier, n�o.
Se abra�am. O desejo � abrupto e t�rnvel. Pedro n�o a quer
magoar, mas ela n�o mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo
seu ser.
- Tu � minha agora fala ele com voz agitada.
#
Ela parecia n�o sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela
febre se enche de alegria. Agora a paz � s� da noite, com Dora est� a
alegria. Os corpos se desunem. Dora murmura:
- � bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
' - Agora vou dormir diz.
Deita ao lado dela, segura sua m�o ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor � sempre doce e bom,
mesmo quando a morte est� pr�xima. Os corpos n�o se balan�am mais
no ritmo do amor. Mas nos cora��es dos dois meninos n�o h� mais
nenhum medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
.
Na madrugada, Pedro p�e a m�o na testa de Dora. Fria. N�o tem
mais pulso, o cora��o n�o bate mais. O seu grito atravessa o trapiche,
desperta os meninos. Jo�o Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro
Bala:
- Tu n�o devia ter feito...
- Foi ela que quis explica e sai para n�o rebentar em solu�os.
Professor se chega, fica olhando. N�o tem coragem de tocar no
corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, n�olhe
resta mais nada que fazer ali. Pirulito entra com o padre Jos� Pedro.
O padre pega no pulso de Dora, bota a m�o na testa:
- Est� morta.
Inicia uma ora��o. E quase todos rezam em voz alta.
- Padre nosso que esta� no c�u...
Pedro Bala se lembra das rezas � noite no reformat�rio. Seus
ombros se encolhem, tapa os ouvidos. Volta-se, v� o corpo de
�ro
* o l: * y CAPIT�ES PA AkEIA * `.: � *
c-� * :: * o OGE o :' * ::
Dora. Pirulito p�s uma flor roxa entre seus dedos. Pedro Bal;
rompe em solu�os.
Veio a m�e-de-santo Don'Aninha, veio tamb�m o Querido-de
Deus. Pedro Bala n�o toma parte da conversa. Aninha diz:
- Foi como uma sombra nesta vida. Vira santa na outra
Zumbi dos Palmares � santo dos candombl�s de caboclo, Ros
Palmeir�o tamb�m. Os homens e as mulheres valentes viram santi
dos negros...
- Foi como uma sombra... repete Jo�o Grande.
Foi como uma sombra para todos, um acontecimento sen
explica��o. Menos para Pedro Bala, que a teve. Menos para Professo
que a amou.
Padre Jos� Pedro fala
- Vai pro c�u, n�o tmha pecado. N�o sabia o que era pecado..
P'rulito reza. Qnerido-de-Deus sabe o que esperam dele. Qn
leve o cad�ver no seu saveiro e ojogue no mar, adiante do forte velhe
Como poder� sair um enterro do trapiche? � diflcil explicar tudo iss
' ao padre Jos� Pedro. O Sem-Pernas o faz numa voz apressada. (
; padre a princ�pio se horroriza. � um pecado, ele n�o pode consenti
num pecado. �Ias consente, que n�o vai denunciar onde moram c
Capit�es da Areia. Pedro Bala n�o fala.
Em torno � a paz da noite. Nos olhos mortos de Dora, olhos d
m�e, de irm�, de noiva e de esposa, h� uma grande paz. Algun
meninos choram. Volta Seca e Jo�o Grande v�o levar o corpo. Ma
, parado ante ele, est� Pedro Bala, im�vel. Volta Seca n�o pode estende
as m�os. Jo�o Grande chora como uma mulher. Don'Aninha toma d
bra�o de Pedro, tira-o dali e envolve o corpo de Dora numa toalh
branca de rendas:
- Vai para Yemanj� diz. - Ela tamb�m vira santo. . .
Mas ningu�m pode levar o cad�ver. Porque Pedro Bala es
abra�ado com ele, n�o o larga. Professor o chama:
- Deixa. Eu tamb�m gostava dela. Agora...
??
* 4 <? * C.' CArls aA AmA * r> O * ;'�
Levam-na para a paz da noite, para o m�st�rio do mar. O padre
reza, � uma estranha prociss�o que se dirige na noite para o saveiro do
Qnerido-de-Deus. Do areal, Pedro Bala v� o saveiro que se afasta.
, Morde as m�os, estende os bra�os.
Voltam para o trap�che. A vela branca do saveiro se perde no mar.
! A lua ilumina o areal, as estrelas tanto est�o no c�u como no mar. H�
#
uma paz na no�te. Paz que veio dos olhos de Dora.
r� a srt
t    1r'l� rl�  .r  lr
CONTAM NO CAIS DA BAHIA QUE QUANDO MORRE UM HOMEM
valentevira estrela no c�u. Ass�m foi com Zumbi, com Lucas da Feira,
com Besouro, todos os negros valentes. Mas nunca se viu um caso de
uma mulher, por mais valente que fosse, virar estrela depois de morta.
Algumas, como Rosa Palmeir�o, como Maria Caba�u, v�raram santas
nos candombl�s de caboclo. Nunca nenhuma virou estrela.
Pedro Bala se joga n'�gua. N�o pode ficar no trapiche, entre os
solu�os e as lamenta��es. Qner acompanhar Dora, quer ir com ela, se
reunir a ela nas Terras do Sem F'im de Yemanj�. Nada para diante
sempre. Segue a rota do saveiro do Q.uerido-de-Deus. Nada, nada
sempre. V� Dora em sua fiente, Dtira, sua esposa, os bra�os esten-
didos para ele. Nada at�j� n�o ter for�as. B�ia ent�o, os olhos voltad
23
c- *  : * o OGE A :' * c? *
para as estrelas e a grande lua amarela do c�u. ue importa morr
quando se vai em busca da amada, quando o amor nos espera?
Que importa tampouco que os astr�nomos afirmem que foi u:
cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala v
foi Dora feita estrela, indo para o c�u. Fora mais valente que todas
mulheres, mais valente que Rosa Palmeir�o, que Maria Caba�u. T
valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao sf
amor. Por isso virou uma estrela noc�u. Uma estrela de longa cabelei
loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz c
Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio tamb�
a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhar� para ele entre m
estrelas no c�u sem igual da cidade negra.
O saveiro do Q,uerido-de-Deus o recolhe.
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C! * `.: * � JOR6E AMAPO s  * '�% *
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NAO HAVIA PASSADO MUITO TEMPO SOBRE A MORTE DE DORA, A
imagem da sua presen�a t�o r�pida e no entanto t�o marcante, da sua
morte tamb�m, ainda enchia de vis�es as noites do trapiche. Alguns,
quando entravam, todavia, olhavam para o canto onde ela costumava
sentar ao lado do Professor e de Jo�o Grande. Ainda com a esperan�a
de encontr�-la. Fora um acontecimento sem explica��o. Fora o
totalmente inesperado na vida deles, o aparecimento de u'a m�e, de
uma irm�. Motivo por que eles ainda a procuravam, apesar de terem
visto o uerido-de-Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar.
S� Pedro Bala n�o a procurava no trapiche. Procurava ver, no c�u de
tanta estrela, uma que tivesse longa e loira cabeleira.
Um dia Professor entrou no trapiche e n�o acendeu sua vela, n�o
abriu um livro de hist�rias, n�o conversou. Para ele toda aquela vida
tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre. uando ela
viera, enchera o trapiche com sua presen�a. Para Professor tudo tinha
uma nova significa��o. O trapiche ficara como a moldura de um
quadro: ora os cabelos loiros caindo sobre Gato, que via sua m�e, ora
os l�bios que beijavam Z� Fuinha para ele dormir. Ou a boca que
cantava cantigas de ninar. Tamb�m sorrisos de orgulho para a cora-
gem de Volta Seca, como se fosse uma destemida mulata sertaneja. Ou
a entrada no trapiche, os cabelos voando, o rosto todo rindo, de volta
da aventura do dia nas ruas da cidade. Ou os olhos cheios de amor, a
febre queimando seu rosto, as m�os chamando o amado para a posse
primeira e �ltima. Agora Professor olhava o trapiche como para uma
moldura sem quadro. In�til. Para ele deixara de ter significa��o, ou
21T
* O `.: * y. CAllTXES PA AIEIA * '  O *
* '.: * O ORGE UNADO � * '.: * �
tinha uma significa��o terr�vel demais. Mudara muito naqueles mese;
ap�s a morte de Dora, andava calado, o rosto s�rio, e entrara em
rela��es com aquele senhoque certa vez, num passeio da rua Chile;
#
conversara com ele, lhe dera uma piteira e seu endere�o.
Nesta noite Professor n�o acendeu vela, n�o abriu livro de
hist�ria. Ficou calado quando Jo�o Grande veio para seu lado,
Arrumava suas coisas numa trouxa. uase tudo era livro. Jo�o Grande
olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem todo;
dissessem que n�o havia negro mais burro que o negrinho Jo�c
Grande. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou tamb�m a seu lade
e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou:
- Vou embora, Bala...
- Pra onde, mano?
Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que riam,
que se moviam como sombras entre os ratos:
- Qne adianta a vida da gente? S� pancada na policia quande
pegam a gente. Todo mundo diz que um dia pode mudar. . . Padre Josi
Pedro, Jo�o de Ad�o, tu mesmo. Agora vou mudar a minha...
Pedro Bala n�o disse nada, mas a pergunta estava nos seus olhos
Jo�o Grande n�o perguntava nada, compreendia tudo.
- Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da
piteira, escreveu a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dize
que me mand�kse... Um dia vou mostrar como � a vida da gente..
Fa�o o retrato de todo mundo... Tu falou uma vez, lembra? Poi;
fa�o...
A voz de Pedro Bala o animou:
- Tu tamb�m vai ajudar a mudar a vida da gente...
- Como? fez Jo�o Grande.
Professor tamb�m n�o entendeu. Tampouco Pedro Bala sabi
explicar. Mas tinha confian�a no Professor, nos quadros que ele faria
na marca do �dio que ele levava no cora��o, na marca de amor �justi�
e � liberdade que ele levava dentro de si. N�o se vive inutilmente um
inf�ncia entre os Capit�es da Areia. Mesmo quando depois se vai se
um artista e n�o um ladr�o, assassino ou malandro. Mas Pedro Bal
n�o sabia explicar tudo isso. Apenas disse:
zra
* o : � * ;:  c,x5 PA A,, * :: o * ;:,
- A gente nunca te esquece, mano... Tu lia hist�ria para gente,
era o mais batuta da gente... O mais batuta...
Professor baixou a cabe�a. Jo�o Grande se levantou, sua voz era
um chamado, era um grito de despedida tamb�m:
- Gentes! Gentes!
Vieram todos, ficaram em torno. Jo�o Grande estendeu os
bra�os:
- Gentes, Professor vai embora. Vai ser um pintor no Rio de
Janeiro. Gentes, viva Professor!
O viva apertou o cora��o do menino. Olhou para o trapiche. N�o
era como um quadro sem moldura. Era como a moldura de in�meros
quadros. Como quadros de uma fita de cinema. V'idas de luta e de
coragem. De mis�ria tamb�m. LTma vontade de ficar. Mas que
adiantava ficar? Se fosse, poderia ser de melhor ajuda. Mostraria
aquelas vidas... Apertam sua m�o, o abra�am. Volta Seca est� triste,
t�o triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de
Lampi�o.
Na noite do cais o homem da piteira, que era um poeta, entrega
uma carta e dinheiro a Professor:
- Ele o esperar� no cais. Telegrafei. Espero que voc� n�o traia
a confian�a que depositei no seu talento.
Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedi-
da. Volta Seca lhe d� um punhal de presente. Pedro Bala faz tudo para
rir, para dizer coisasgozadas. Mas Jo�o Grande n�o esconde a tristeza
que vai dentro dele.
Professor ainda de longe v� o bon� de Pedro, que se sacode no
cais. E no meio daqueles homens desconhecidos, oficiais fardados,
comerciantes e senhoritas, fica t�mido, n�o sabe que fazer, sente que
toda a sua coragem ficou com os Capit�es da Areia. Mas dentro do seu
peito vem uma marca de amor � liberdade. Marca que o faria
abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acad�micas para ir
pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo 0
pa�s.
2l9
;:: * c> * o Joa Ao :' * c? *
Passou o inverno, passou o ver�o, veio outro inverno, e este
#
cheio de longas chuvas, o vento n�o deixou de correr uma s� noite
areal. Agora Pirulito vendia jomais, fazia trabalhos de engraxa
canegava bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar p;
viver. Pedro Bata consentira que ele continuasse no trapiche, apesar
que ele n�o levava a mesma vida que os outros. Pedro Bala n�o enten
o que vai dentro de Pirulito. Sabe que ele quer ser padre, que quer fu,
daquela vida. Mas acha que aquilo n�o resolver� nada, n�o endireir
nada na vida de todos eles. O padre Jos� Pedro fazia tudo para muc
a vida deles. Mas era um s�, os outros n�o achavam que ele fizesse be
Que tinha adiantado? S� todos unidos, como dizia Jo�o de Ad�o
Mas Deus chamava Pirulito. Nas noites do trapiche o meni
ouvia o chamado de Deus. Era uma voz poderosa dentro dele. U
voz poderosa como a voz do mar, como a voz do vento que corre E
torno ao casar�o. Uma voz que n�o fala aos seus ouvidos, que fala
seu cora��o. Uma voz que o chama, que o alegra e o amedronta
mesmo tempo. Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicida
de a servir. Deus o chama. E o chamado de Deus dentro de Piruli
� poderoso como a voz do vento, como a voz potente do mar. Piruli
quer viver para Deus, inteiramente para Deus, uma vida de recoll
mento e de penit�ncia, uma vida que o limpe dos pecados, que o tor
digno da contempla��o de Deus. Deus o chama e Pirulito pensa na s
salva��o. Ser� um penitente, n�o olhar� mais o espet�culo do munc
N�o quer ve,p nada do que se passa no mundo para ter os olh
suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus. Porque pa
aqueles que n�o t�m os olhos completamente limpos de todo
pecado, a face de Deus � ternvel como o mar enfurecido. Mas para
que t�m os olhos e o cora��o limpos de todo o pecado, a face de De
� mansa como as ondas do mar numa manh� de sol e de bonan�a
Pirulito est� marcado por Deus. Mas est� marcado tamb�m pi
vida dos Capit�es da Areia. Desiste da sua liberdade, de ver e ouvu
espet�culo do mundo, da marca de aventura dos Capit�es da Are
para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no s
cora��o � t�o poderosa que n�o tem compara��o. Rezar� pel
Capit�es da Areia na sua cela de penitente. Porque tem que ouvu
seguir a voz que o chama. � uma voz que transfigura seu rosto na no:
invernosa do trapiche. Como se l� fora fosse a primavera.
220
* o l : * ;:: CAIIT�ES DA �tEIA * : o * ;-,
Padre Jos� Pedro foi chamado novamente ao arcebispado. Desta
vez o C�nego est� acompanhado do superior dos Capuchinhos. Padre
Jos� Pedro treme, pensando que novamente v�o lhe ralhar, v�o falar
dos seus pecados. Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capit�es
da Areia. Teme ter fricassado, porque em quase nada conseguira
melhorar a vida deles. Mas em certos momentos cru�is levara um
pouco de conforto �queles pequenos cora��es. E tinha Pirulito... Era
uma conquista para Deus. Se n�o fizera tudo, se n�o transformara
como queria aquelas vidas, n�o tinha perdido tudo tamb�m. Algo
havia conseguido para Deus. Se alegrava, apesar da tristeza do pouco
que havia conseguido para os Capit�es da Areia. Assim mesmo, em
certos momentos fora como a famMia que lhes faltava. Certas horas
tinha sido pai e m�e. Agora os chefes estavam j� rapazes, quase
homens. Professor j� tinha ido embora, outros n�o tardariam a ir.
Mesmo que fossem ser ladr�es, levar uma vida de pecado, em certos
momentos o padre conseguira minorar o espet�culo de mis�ria das
suas vidas com um pouco de conforto e de carinho. E de solidariedade.
Mas desta vez o C�nego n�o ralha. Anuncia que o arcebispado
tesolveu lhe dar uma par�quia. Conclui:
- O senhor nos deu muito que fazer, padre, com suas id�ias
erradas acerca de educa��o. Espero que a bondade do Sr. Arcebispo
lhe dando esta par�quia far� com que o senhor pense nas suas
obriga��es e desista dessas inova��es sovi�ticas.
A par�quia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encon-
trara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros,
numa perdida vila do alto sert�o. Mas o nome do lugarejo alegrou o
cora��o do padre Jos� Pedro. Ia para o meio dos cangaceiros. E os
cangaceiros s�o como crian�as grandes. Agradeceu, ia falar, mas o
superior dos Capuchinhos o interrompeu:
- O Sr. C�nego me disse que entre estes meninos h� um que tem
voca��o sacerdotal.
- Ia falar disso mesmo disse o padre. - Nunca vi uma
#
voca��o t�o decidida.
22I
y * r * O Joa Aruco :` * O *
O mission�rio sorriu:
-Porque n�s estamos em falta de um irm�o. N�o � o mesmo q
ser padre, bem sei. Mas est� muito pr�ximo. E se a sua voca��o
verdadeira a ordem pode faz�-lo estudar e mesmo se ordenar.
- Ele vai ficar louco de alegria.
- O senhor responde pot ele?
Pirulito ir� ser fiade. Um dia talvez se ordene. O padre s
agradecendo a Deus.
I.evam o padre � esta��o. O apito do trem � como um lamenr
Est�o ali v�rios dos Capit�es da Areia. Padre Jos� Pedro os fita coi
amor. Pedro Bala diz:
- O senhor foi bom pra gente, padre. Um homem bom. A gen
n�o vai esquecer o senhor...
N�o reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com un
batina de fiade, um longo cord�o pendendo ao lado. Padre Jos� Ped
diz:
- Conhecem o irm�o Francisco da Sagrada Famflia?
Eles olham Pirulito com certa vergonha. Mas Pirulito sorri. Es
mais magro, um ar de asceta. Com o h�bito de capuchinho fica muu
alto.
- Ele rezar� por voc�s... diz o padre Jos� Pedro.
Se despede. Entra para o vag�o. O trem apita, � como un
despedida. Dajanela, o padre v� os meninos que agitam m�os e bon�
velhos chap�us, trapos que servem de len�o. Uma velha que v
defronte dele, doidinha para puxar conversa, se espanta do padre
chorando.
Boa-V'ida pouco aparece no trapiche. Tem um viol�o, faz san
bas, est� enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ningu�m te
uma vida igual 1 dos malandros. Passa o dia conversando nas doca
no mercado, vai �s festas dos morros e da Cidade de Palha � noite, c
22?
* O :: * �' C,rnTs aA AiA *  : O *
�s macumbas. Toca seu viol�o, come e bebe do melhor, apaixona as
cabrochas bonitas com sua voz e sua m�sica. Arma fuzu� nas festas e
quando a policia o persegue vem se esconder no trapiche entre os
Capit�es da Areia.
Ent�o toca para eles, ri com eles em gargalhadas como se ainda
fosse um deles. Boa-Vidavai se afastando aos poucos, � propor��o que
vai crescendo. Qnando tiver dezenove anos j� n�o voltar�. Ser� um
malandro completo, um daqueles mulatos que amam a Bahia acima
de tudo, que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade. Inimigo da
riqueza e do trabalho, amigo das festas, da m�sica, do corpo das
cabrochas. Malandro. Armador de fuzu�s. Jogador de capoeira
navalhista, ladr�o quando se fizer preciso. De bom cora��o, como
canta um ABC que Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prome-
tendo �s cabrochas se regenerar e ir para o trabalho, sendo malandro
sempre. Um dos valent�es da cidade. Figura que os futuros Capit�es
da Areia amar�o e admirar�o, como Boa-Vida amou e admirou o
uerido-de-Deus.
Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o Sem-Pernas
pelas ruas. Entraram numa igreja da Piedade, gostavam de ver as
coisas de ouro, mesmo era f�cil bater uma bolsa de uma senhora que
rezasse. Mas n�o havia nenhuma senhora na igreja �quela hora.
Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho quelhes
ensinava catecismo.
� Pirulito... disse Sem-Pemas.
Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros:
- Que adianta?
Sem-Pernas olhou:
- N�o d� de comer...
- Um dia um vai ser padre tamb�m. Tem que ser � tudo junto.
Sem-Pemas disse:
- A bondade n�o basta.
Completou:
�z
;-. * :  * o ORGE o c:, *  : * o
- S� O�dio...
#
Pirulito n�o os via. Com uma paci�ncia e uma bondade extremas
ensinava �s crian�as buli�osas as li��es de catecismo. Os dois Capit�es
da Areia sa�ram balan�ando a cabe�a. Pedro Bala botou a m�o no
ombro do Sem-Pernas.
- Nem o �dio, nem a bondade. S� a luta.
A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de �dio do
Sem-Pernas estavajunto de Pedro Bala. Mas ele n�o ouvia nenhuma.
Ouvia era a voz de Jo�o de Ad�o, o doqueiro, a voz de seu pai
morrendo na luta.
GATO CONTOU QUE A SOLTEIRONA ERA CHEIA DO DINHEIRO. ERA A
�ltima de uma fam�lia rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e
nervosa. Corna a not�cia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro;
de brilhantes e j�ias acumuladas pela fam�lia atrav�s de gera��es
Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado df
dinheiro. Gonzales, o dono da casa de penhor O 14, dava dinheiro po
aqueles objetos. Perguntou ao Sem-Pernas:
- Tu � capaz de penetrar?
- Se sou...
- Depois a gente invade.
Riram no trapiche. Gato saiu paraver Dalva. Sem-Pernas avisou
- Amanh� de manh� vou l�.
22d
rlICO , i- w01 , /lrr ll`I
* o : * :- CppIT�ES PA AkEIA *  : o * ;: 
A solteirona abriu a porta. S� tinha uma criada, uma negra velha,
que parecia fazer parte da heran�a, pois acompanhava a famMia h�
cinq�enta anos. A solteirona olhou muito digna para o Sem-Pernas:
- Qner alguma coisa?
- Eu sou um pobre �o e aleijadomostrava a perna coxa. -
N�o quero viver furtando, nem pedindo esmola. A senhora tem um
trabalho para mim? Posso fazer compras.
A solteirona n�o tirava os olhos dele. Um menino... N�o era a
bondade que falava dentro dela. Era a voz do sexo que dava seus
�ltimos latidos. Dentro em pouco seu sexo ficaria in�til, os m�dicos
diziam que ent�o o seu nervoso cessaria. Muito antes, quando ainda
era mocinha, houvera um menino na casa para fazer compras. Fora
bom... Mas seu irm�o descobrira, expulsara o menino. Agora o irm�o
estava morto, outro menino vinha pedir para fazer compras:
-T� bem.
Mandou que ele tomasse banho. Pela tarde deu-lhe dinheiro para
as compras e mais para uma roupa para ele. Sem-Pernas conseguiu
bater mil e duzentos nas contas. Pensou:
- Aqui vou � fazer dinheiro...
Na cozinha a negra contava hist�rias antigas com sua lingua
embolada. Sem-Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para
ganhar confian�a da negra. Mas quando perguntou pelas coisas de
ouro a negra n�o respondeu. Sem-Pernas n�o insistiu. Sabia ser
paciente, estava acostumado �quele trabalho. Na sala a solteirona fazia
ponto de cruz numa toalha, mirava Sem-Pernas com interesse, pela
porta. Era feia de cara, mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo
Chamou Sem-Pernas para ver o trabalho que ela estava fazendo,
quando Sem-Pernas olhou ela se curvou, ele viu os seios grandes. Mas
n�o pensou que ela estivesse lhe mostrando. Achou o trabalho muito
bonito, disse:
- A senhora � muito inteligente...
Parecia at� um menino bem-educado. Apesar da perna coxa e da
cara feia, a solteirona o achou lindo. Seria melhor que fosse um pouco
1'25
;-, *  : * o OGE  :'� * c:  o
menos crescido. Mas assim mesmo... Novamente se curvou, mostrou
os seios ao Sem-Pemas. Sem-Pemas desviou o olhar, n�o pensava que
fosse de prop�sito. Quando ele elogiou novamente o trabalho, ela
passou a m�o no seu rosto:
- Obrigada, meu filho sua voz era l�nguida.
A negra botou um colch�o na sala de jantar para o Sem-Pernas
dormir. Cobriu com um len�ol, arranjou um travesseiro. A solteirona
conversava na casa de uma amiga, na mesma rua, e quando voltou
Sem-Pernas j� estava deitado. Ouviu que ela se despedia de algu�m:
- Desculpe este trabalho de trazer uma vitalina pra casa.
- Dona Joana, n�o diga isso...
#
Entrou, trancou a porta da rua, tirou a chave. A negraj� tinha ido
dormir no quarto junto da cozinha. A solteirona veio at� a sala de
jantar, deu uma espiada em Sem-Pernas, que fez que estava dormin-
do. Suspirou. Marchou para seu quarto.
As luzes estavam todas apagadas na casa. Apesar de ser muito
cedo em rela��o � hora em que dormiam no trapiche, Sem-Pernas se
entregou ao sono.
Por isso n�o sabe a que horas a vitalina veio. Sentiu foi uma m�o
que passava em aus cabelos. Pensou que fosse um sonho bom. A m�o
deslizava, passava no seu peito, na sua barriga, agora segurava de
manso no seu sexo. Sem-Pernas despertou completamente, mas ficou
de olhos fechados. A solteirona machucava seu sexo, se encostava
contra ele. Estava de camisa de dormir, suspendeu a camisa, botou a
m�o de Sem-Pernas no seu corpo, Sem-Pemas se encostou nela. Qnis
falar, ela p8s a m�o na sua boca, apontou para a cozinha:
- Pode ouvir...
Disse ainda mais baixo:
- Tu vai ser bom para mim, n�o vai?
Se apertava contra ele. Puxou as cal�as do Sem-Pernas. Depois se
cobriram com o len�ol. Mas quando Sem-Pernas quis tudo, ela disse:
- N�o. S� em cima.
226
* O �: * :.`! CAerr,es oA AseiA * :: � * :'!
Era uma coisa incompleta que enraivecia Sem-Pernas.
A solteirona gemia baixinho de amor. Apertava a cabe�a do Sem-
Pernas contra seus seios enormes, o sexo dele contra suas coxas, a m�o
do menino no seu sexo.
Sem-Pernas levanta estremunhado. Um grande cansa�o nos seus
membros. Aquelas noites s�o como batalhas. Nunca � um gozo
completo, uma satisfa��o total. A solteirona quer uma migalha de
amor. Teme o amor completo, o esc�ndalo de um filho. Mas tem sede
e fome de amor, quer nem que sejam as migalhas. Mas Sem-Pernas
quer fazer o amor completo, aquilo o irrita, faz crescer seu �dio. Ao
mesmo tempo se sente preso ao corpo da solteirona, �s car�cias a meio,
trocadas na noite. Uma coisa o ret�m naquela casa. Se bem ao acordar
tenha �dio de Joana, uma raiva impotente, uma vontade de a estran-
gular j� que n�o a pode possuir totalmente, se a acha feia e velha,
quando a noite se acerca fica nervoso pelos caririhos da vitalina, pela
m�o que movimenta seu sexo de menino, pelos seus seios onde
repousa a cabe�a, pelas suas coxas grossas. Imagina planos para a
possuir, mas a solteirona os frustra, fugindo no �ltimo momento, e
ralha com ele em voz baixa. Uma raiva surda possui Sem-Pernas. Mas
a m�o dela vem de novo para seu sexo e ele n�o pode lutar contra o
desejo. E volta �quela luta tremenda da qual sai nervoso e esgotado.
Durante o dia responde mal a Joana, diz brutalidades, a solteirona
chora. Ele a chama de vitalina, diz que vai embora. Ela lhe d� dinheiro,
pede que ele fique. Mas n�o � pelo dinheiro que ele fica. Fica porque
o desejo o ret�m. J� sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda
seus objetos de ouro. Sabe como tirar a chave para lev�-la aos Capit�es
da Areia. Mas o desejo o ret�m ali, junto dos seios e das coxas da
vitalina. Junto da m�o da vitalina.
Fora sempre infeliz para o lado de mulher. Qnando conseguia
uma negrinha no areal era com a ajuda dos outros, era � for�a.
Nenhuma olhava para ele, convidando com os olhos. Outros eram
!2T
? * `.: * A JORGE AMADO �' * `.: *
feios, mas ele era repulsivo com a perna coxa, andando feito carangu
jo. Demais terminara por se fazer antip�tico e a se acostumar a possu
negrinhas a pulso. Agora vinha uma mulher branca e com dinheir
velha e fei�sca era verdade, mas bem com�vel ainda, e se deitava co
ele. Acariciava seu sexo com a m�o, juntava coxa com coxa, deitava si
cabe�a nos seus seios grandes. Sem-Pernas n�o podia sair dali, se be
cada dia estivesse mais bruto e mais inquieto. Seu desejo reclama
uma posse completa. Mas a vitalina se contentava em colher
migalhas do amor.
Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia, odeia o mundo tod
Pedro Bala reclamou a demora. J� era tempo do Sem-Pern
saber os segredos da casa. Sem-Pernas diz que sim, que n�o demora
mais. E naquela noite a batalha de amor � mais forte ainda.
solteirona geme de amor, recolhendo as migalhas do amor. Mas n
#
cede a sua honra. Isso d� coragem ao Sem-Pernas para no outro d
arribar com a chave.
A vitalina o espera para o amor. Est� como uma esposa a que
o marido abandonasse. Chora e se lastima. Seu amor n�o vem, e
tamb�m precisa de amor, como todas essas mo�as que passam i
vestidos bonitos na rua.
Mas o rdbo a enfurece. Porque pensa que Sem-Pernas s�
amou nas noites longas de v�cios para a furtar. Sua sede de amor
humilhada. � como se houvessem cuspido na sua cara, dizendo q
era por causa da sua fei�ra. Chora, n�o geme mais uma can��o 
amor. Se sente com coragem para estrangular o Sem-Pernas se
encontrasse. Porque burlaram do seu amor, da sede de amor que es
no seu sangue. A sua desgra�a � mais completa porque durante un
semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor. Rola no chi
com um ataque.
No trapiche, Sem-Pernas ri, relatando sua aventura. Mas 
fundo sabe que a solteirona o fez ainda pior, aumentou com se
v�cios o �dio que vivia latente no seu cora��o. Agora um dese
insatisfeito enche suas noites. Um desejo que impede seu sono, qi
lhe d� raiva.
222
o : : * ;` CAPIT�ES DA AREIA *   o * ;'y
, .r -,
r r 1 ' !, , r I I,
OS NAVIOS CHEGAM A ILH�US CARREGADOS DE MULHERES.
Mulheres que v�m da Bahia, de Aracaju, o mulherio todo de
Recife, mesmo do Rio de Janeiro. Os gordos coron�is olham das
pontes a chegada das mulheres. Morenas, loiras e mulatas, v�m em
busca deles. Porque a not�cia da alta do cacau correu pelo pa�s todo.
A not�cia de que numa cidade relativamente pequena como Ilh�us
estavam abertos quatro cabar�s. Qne os coron�is queimavam nas
noites dejogo e de champanha notas de quinhentos mil-r�is. ue
pela madrugada sa�am nus pelas ruas da cidade, formando o chamado
terno do Y. A not�cia corria pelas ruas de mulheres perdidas. Os
caixeiros-viajantes levavam a not�cia. O cabar� da Brama, em
Aracaju, ficou despovoado de mulheres. Foram para o El-Dorado,
cabar� de Ilh�us. O mulherio de Recife desceu todo em alguns
navios do Lloyd Brasileiro. Os pernambucanos ficaram sem mu-
lheres, vieram todas para o cabar� Bataclan, apelidado pelos
estudantes em f�rias de Escola. Vieram algumas do Rio de Janeiro
e estas foram para o Trianon, ex-Ves�vio, o mais luxuoso dos
quatro cabar�s da cidade do cacau. At� Rita Tanajura, c�lebre pelas
grandes n�degas reboleantes, deixou a paz da sua cidade de Est�n-
cia, onde era a rainha do pequeno mulherio de vida f�cil e onde se
dava com todo mundo, e veio ser a rainha do Far-West, o cabar�
da rua do Sapo, onde os beijos e o estalo das garrafas de champanha
se misturavam com os tiros, com o barulho das brigas. Porque o
Far-West era o cabar� dos capatazes, dos pequenos fazendeiros de
repente enriquecidos.
??9
? * `.  * � ORGE AMADO �  * '� *
Na rua de Dalva, na zona das mulheres perdidas da Bahia, a
casas se despovoaram. Vieram mulheres para o Bataclan, mulhere;
para o El-Dorado, mulheres para o Far-West. Umas poucas vieran
para o Trianon, onde dan�avam com os coron�is. No Bataclan
mulheres pernambucanas e sergipanas �avam parte do dinheiro qm
ganhavam dos coron�is, e que era muito, aos estudantes que en
compensa��olhes davam o amor. Os viajantes enchiam o El-Dorado
At� no Far-West as mulheres ganhavam j�ias. Por vezes ganhavan
um tiro tamb�m, como uma estranha j�ia vermelha no peitu. Rit
Tanajura dan�ava o charleston em cima de uma mesa, entre champa
nha e tiros. Tudo isso foi naquela alta do cacau de h� muitos anos.
uando Dalva soube que Isabel tinha colares e anel de brilhante
e, no entanto, n�o estava no Trianon, que era o mais luxuoso do
cabar�s, estava era no Bataclan, n�o resistiu. Arrumou as malas. O qui
n�o faria ela no Trianon, ela que era a melhor das mulheres da sua rua
Enfardou Gato com uma elegant�ssima roupa de casimira feita sol
medida, de repente Gato n�o era mais um menino, era o mais joven
dos vigaristas da Bahia.
Na noite que, envergando seu traje novo, sapatos negros di
#
verniz, gravata borboleta, chap�u de palhinha, apareceu no trapiche
Jo�o Grande soltou uma exclama��o de assombro:
- Pois n�o � o Gato?
Gato n�o fizera ainda dezoito anos. Fazia quatro que amav
Dalva. V'irou ara Jo�o Grande:
- Agora vou come�ar a vida...
Ofereceu cigarros tirados de uma cigarreira cara, alisou o cabeli
bem assentado. Botou a m�o no ombro de Pedro Bala:
- Mano, vou para Ilh�us. A patroa vai cavar a vida. Eu vou con
ela. Sou capaz de enricar. Qnando tiver fazendeiro a gente vai faze
uma farra daquelas.
Pedro sorriu. Era outro que ia. N�o seriam meninos toda vida..
Bem sabia que eles nunca tinham parecido crian�as. Desde pequenos
na arnscada vida da rua, os Capit�es da Areia eram como homens
eram iguais a homens. Toda a diferen�a estava no tamanho. No mai
eram iguais: amavam e derrubavam negras no areal desde cedo
furtavam para viver como os ladr�es da cidade. Qnando eram preso
230
* O `.: * s.  CAPIl�ES DA AREIA * :: � *
apanhavam surras como os homens. Por vezes assaltavam de armas na
m�o como os mais temidos bandidos da Bahia. N�o tinham tamb�m
conversas de meninos, conversavam como homens. Sentiam mesmo
como homens. Qnando outras crian�as s� se preocupavam com
brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em
acontecimentos que s� os homens sabiam resolver. Sempre tinham
sido como homens, na sua vida de mis�ria e de aventura, nunca
tinham sido perfeitamente crian�as. Porque o que faz a crian�a � o
ambiente de casa, pai, m�e, nenhuma responsabilidade. Nunca eles
tiveram pai e m�e na vida da rua. E tiveram sempre que cuidar de si
mesmos, foram sempre os respons�veis por si. Tinham sido sempre
iguais a homens. Agora os mais velhos, os que eram desde h� anos os
chefes do grupo, estavam rapazolas, come�avam a ir para seus desti-
nos. Professorj� fora, fazia quadros no Rio de Janeiro. Boa-Vida se
desligara aos poucos do trapiche, toca viol�o nas festas, vai aos
candombl�s, arma fuzu� nas quermesses. � mais um malandro na
cidade. Seu nome j� � conhecido at� nos jomais. Como os outros
vagabundos, � conhecido pelos investigadores de policia, que sempre
est�o de olho nos malandros. Pirulito � frade num convento, Deus o
chamou, nunca mais saber�o dele. Agora � o Gato que parte, vai
arrancar dinheiro dos coron�is de Ilh�us. O uerido-de-Deus certa
vez disse que Gato enricaria. Porque a vida na rua, no abandono, fez
de'Gato um jogador desonesto, um vigarista, um gigol� de mulheres.
N�o demorar� que os outros partam. S� Pedro Bala n�o sabe o que
fazer. Dentro em pouco ser� mais que um rapazola, ser� um homem
e ter� que deixar para outro a chefia dos Capit�es da Areia. Para onde
ir�? N�o poder� ser um intelectual como Professor, cujas m�os s�
viviam para pintar, n�o nasceu para malandro, como Boa-Vida, que
n�o sente o espet�culo da luta di�ria dos homens, que s� ama andar
vagabundando pelas ruas, conversar acocorado nas docas, beber nas
festas de morro. Pedro sente o espet�culo dos homens, acha que
aquela liberdade n�o � suficiente para a sede de liberdade que tem
dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como Pirulito 0
sentiu. Para ele as prega��es do padre Jos� Pedro nunca disseram
nada. Gostava do padre como de um homem bom. S� as palavras de
Jo�o de Ad�o encontravam acolhida no seu cora��o. Mas Jo�o de
Ad�o mesmo sabe muito pouco. O que tem � m�sculos potentes e voz
autorit�ria, e no entanto amiga, para chefiar uma greve. Tampouco
z;r
* ' : * � .IURGE MAGU   * ' : * �
Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coron�is de Ilh�us, arranca
o dinheiro deles. Quer qualquer coisa que n�o sabe ainda o que �, 
por isso se demora entre os Capit�es da Areia.
O trapiche grita se despedindo do Gato. Este sorri, elegant�ssi
mo, alisando o cabelo, no dedo aquele anel�o cor de vinho que furtar
certa vez.
Do cais Pedro Bala d� adeus ao Gato. Vestido com suas roupa;
esfarrapadas, agitando o bon�, se sente muito longe do Gato, que ac
lado de Dalva parece um homem feito com sua roupa bem talhada
Pedro sente uma afli��o, uma vontade de fugir, de ir para qualque
parte num navio ou na rabada de um trem.
#
Mas quem vai na rabada de um trem � Volta Seca. Uma tarde 
policia o pegou quando o mulato despojava um negociante da su
carteira. Volta Seca tinha ent�o dezesseis anos. Foi levado para a
pol�cia, o surraram porque ele xingava todos, soldados e delegados
com aquele imenso desprezo que o sertanejo tem pelapol�cia. Ele n�c
soltou um grito enquanto apanhou. Oito dias depois o puseram m
rua, e ele saiu quase alegre, porque agora tinha uma miss�o na vida
matar soldados de policia.
Passou uns dias no trapiche, o rosto sombrio, afogado en
pensamentos. ( sert�o o chamava, a luta do canga�o o chamava. Un
dia disse a Pedro Bala:
- Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju.
Os �ndios Maloqueiros eram os Capit�es da Areia em Aracaju
Viviam sob as pontes, roubavam e brigavam nas ruas. O juiz di
menores Olimpio Mendon�a era um homem bom, procurava resolve:
os conflitos como melhor podia, se abismava com a intelig�ncia da
crian�as iguais a homens, compreendia que era imposs�vel resolver c
problema. Contava aos romancistas coisas dos meninos, no funde
amava os meninos. Mas se sentia aflito porque n�o podia resolver c
problema deles. Q,uando entre os �ndios Maloqueiros aparecia algun
novo, ele j� sabia que era um baiano que tinha chegado na rabada d
um trem. E quando um sumia, sabia que tinha ido para entre o;
Capit�es da Areia na Bahia.
2;!
* o \: * ;:  CAllT�ES DA �tEIA * `.: o * ;::
Uma madrugada o trem de Sergipe apitou na esta��o da Cal�ada.
Ningu�m tinha vindo trazer Volta Seca � esta��o porque ele ia para
voltar, ia passar uns tempos entre os �ndios Maloqueiros, esquecer a
pol�cia baiana, que o tinha marcado. Volta Seca se meteu no vag�o de
carga que estava aberto, se escondeu entre uns fardos. Aos poucos o
trem abandona a esta��o. Depois � a estrada do sert�o, �ndia Nordes-
tina. Nas casas de barro aparecem mulheres e meninas. Os homens
seminus lavram a terra. Na estrada de anima�s que corre paralela �
estrada de ferro passam boiadas. Vaqueiros gritam tangendo os
animais. Nas esta��es vendem doces de milho, mingau, mungunz�,
pamonha e canjica. O sert�o vai entrando pelo nariz e pelos olhos de
Volta Seca. Qneijos e rapaduras passam em tabuleiros nas pequenas
esta��es, as paisagens agrestes jamais esquecidas enchem novamente
os olhos do sertanejo. Estes muitos anos na cidade n�o tinham
arrancado seu amor ao sert�o miser�vel e belo. Nunca fora um menino
da cidade igual a Pedro Bala, a Boa-Vida, ao Gato. Fora sempre um
deslocado na cidade, com uma fala diferente, falando em Lampi�o,
dizendo meu padrim, imitando as vozes dos animais sertanejos.
Antigamente ele e sua m�e tinham um peda�o de terra. Ela era
comadre de Lampi�o, os coron�is respeitavam sua terra. Mas quando
Lampi�o se internou pelo sert�o de Pernambuco os coron�is ficaram
com a tena da m�e de Volta Seca. Ela desceu para a cidade para pedir
justi�a. Morreu no caminho, Volta Seca continuou a caminhada com
seu rosto sombrio. Muita coisa aprendeu na cidade, entre os Capit�es
da Areia. Aprendeu que n�o era s� no sert�o que os homens ricos eram
ruins para com os pobres. Na cidade, tamb�m. Aprendeu que as
crian�as pobres s�o desgra�adas em toda parte, que os ricos perseguem
e mandam em toda parte. Sorriu por vezes, mas nunca deixou de odiar.
Na figura de Jos� Pedro descobriu o motivo por que Lampi�o
respeitava os padres. Se j� pensava que Lampi�o era um her�i, a sua
experi�ncia na cidade, o �dio adquirido na cidade, fez com que amasse
a figura de seu padrinho acima de tudo. Acima mesmo da de Pedro
Bala.
Agora � o sert�o. Perfume das llores do sert�o. Campos amigos,
aves amigas, magros cachorros nas portas das casas. Velhos que
parecem mission�rios indianos, negros de longos ros�rios no pesco�o.
Cheiro bom de comidas de milho e mandioca. Homens magros que
i33
 * ' : * O JURGE AlAADU �  * `.
lavram a terra para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra. S�
caatinga � que � de todos, porque Lampi�o libertou a caating
expulsou os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra d
cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O her�i Lampi�o, her
de todo o sert�o de cinco estados. Dizem que ele � um criminoso, ui
cangaceiro sem cora��o, assassino, desonrador, ladr�o. Mas pa
#
Volta Seca, para os homens, as mulheres e as crian�as do sert�o � m
novo Zumbi dos Palmares, ele � um libertador, um capit�o de m
novo ex�rcito. Porque a liberdade � como o sol, o bem maior c
mundo. E Lampi�o luta, mata, dellora e furta pela liberdade. Pe
liberdade e pelajusti�a para os homens explorados do sert�o imen;
de cinco estados: Pernambuco, Para� ba, Alagoas, Sergipe e Bahia.
O sert�o comove os olhos de Volta Seca. O trem n�o corre, es
vai devagar, cortando as terras do sert�o. Aqui tudo � lirico, pobre
belo. S� a mis�ria dos homens � terr�vel. Mas estes homens s�o t�
fortes que conseguem criar beleza dentro desta mis�ria. ue n�o far�
quando Lampi�o libertar toda a caatinga, implantar a justi�a e
liberdade?
Passam violeiros, improvisadores de poesia. Passam vaqueirc
que tangem o gado, homens plantam mandioca e milho. Nas esta�of
os coron�is descem para estirar as pemas. Levam grandes rev�lvere
Os violeiros cegos cantam pedindo uma esmola. Um negro de camis
e ros�rio atr���essa a esta��o dizendo estranhas coisas em lingu
desconhecida. Foi escravo, hoje � um doido na esta��o. Todos
temem, temem suas pragas. Porque ele sofreu muito, o chicote d
feitor rasgou suas costas. Tamb�m o chicote da policia, feitor de
ricos, rasgou as costas de Volta Seca. Todos o temer�o um di
tamb�m.
Caatingas do sert�o, olor das flores sertanejas, o manso andar d
trem sertanejo. Homens de alpercatas e chap�u de couro. Crian�a
que estudam para cangaceiro na escola da mis�ria e da explora��o d
homem.
O trem p�ra no meio da caatinga. Volta Seca pula fora do vag�
Os cangaceiros apontam os fuzis, o caminh�o que os trouxe es
parado no outro lado da estrada, os fios do tel�grafo cortados. n
caatinga agreste n�o se v� rungu�m. Uma mo�a desmaia num de
aa
* o l. * ;y �AplT�ES DA �kEIA * :? o * ;::
carros, um caixeiro-viajante esconde a carteira com dinheiro. Um
cotonel gordo sai do vag�o, fala:
- Capit�o Virgulino...
O cangaceiro de �culos aponta o fuzil:
- Para dentro.
Volta Seca pensa que seu cora��o vai estalar de alegria. Encon-
trou seu padrinho, V'irgulino Ferreira Lampi�o, her�i das crian�as
sertanejas. Chega parajunto dele, um outro cangaceiro o quer afastar,
mas ele diz:
- Meu padrim...
- Quem � tu?
- Sou Volta Seca, filho de tua comadre...
Lampi�o o reconhece, sorri. Os cangaceiros est�o entrando nos
vag�es de primeira, n�o s�o muitos, uns doze. Volta Seca pede:
- Meu padrim, deixe eu ficar com voc�... Me d� um fuzil.
-Tu ainda � um menino... - Lampi�o Oolha com seus �culos
escuros.
- N�o sou mais n�o, j� briguei com soldado...
Lampi�o grita:
- Z� Baiano, d� um fiizil a Volta Sera...
Olha o afilhado:
-Tu guarda esta sa�da. Se um quiser arnbar, mete fogo.
Entra para a coleta. Desmaios e gritos l� dentro, o soar de um
disparo. Depois o grupo volta para a estrada. Traz dois soldados de
pol�cia que viajavam no trem. Lampi�o divide dinheiro com os
cangaceiros. Volta Seca tamb�m recebe. De um vag�o sai um fio de
sangue. O cheiro bom do sert�o penetra as narinas de Volta Seca. Os
soldados s�o encostados numas �rvores. Z� Baiano prepara o fireil,
mas a voz de Volta Seca faz um pedido:
- Deixe pra mim, padrim. Eles me bateram na pol�cia, bateram
em muito menino.
Levanta o fuzil, qual � o sertanejo que n�o tem boa pontaria?
Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo. Cai o
primeiro, o segundo tenta fugir, mas a bala o alcan�a nas costas
�
 * ::  O JORGE AMADO �  * :: * I
Depois Volta Seca corre para cima dele com o punhal, sacia su
vingan�a. Z� Baiano diz:
#
- Este menino � dos bons...
- A m�e dele era um bicho, minha comadre... lembe
Lampi�o orgulhoso.
-Umaverdadeira fera... -pensa o viajante enquanto o trem s
move lentamente ap�s os empregados afastarem os toros de madeir
de sobre os trilhos. O grupo de cangaceiros se perde na caatinga. O a
do sert�o enche o peito de Volta Seca, que p�ra e com o punhal faz doi
tra�os na madeira do fuzil. Os dois primeiros... Ao longe o trem apit
angusriosamente.
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Jj/1J J1 Z\rrlJr\   ..0
FORA DEMASIADA AUD�CIA ATACAR AQUELA CASA DA RUA RL
Barbosa. Perto dali, na pra�a do Pal�cio, andavam muitos guarda;
investigadores, soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavar
cada vez maiores, cada vez mais atrevidos. Por�m havia muita gent
na casa, deram o alarme, os guardas chegaram. Pedro Bala e Jo�
Grande abalaram pela ladeira da Pra�a. Barand�o abriu no mund
tamb�m. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picul
com os guardas. Estes tinham se despreocupado dos outros, pensavar
que j� era alguma coisa pegar aquele coxo. Sem-Pernas corria de ur
lado para outro da rua, os guardas avan�avam. Ele fez que ia escapuli
por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira. Mas em ve
de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu para a pra�a d
Pal�cio. Porque Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariar
236
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y * :: * A JORGE AMADO � * '.: *
com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas, e al�m
mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo n�o queria q
o pegassem. Lembrava-se da vez que fora � policia. Dos sonhos c
suas noites m�s. N�o o pegariam e enquanto corre este � o �ni
pensamento que vai com ele. Os guardas v�m nos seus calcanhar
Sem-Pernas sabe que eles gostar�o de o pegar, que a captura de um e
Capit�es da Areia � uma bela fa�anha para um guarda. Essa ser� a s
vingan�a. N�o deixar� que o peguem, n�o tocar�o a m�o no seu corl
- Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca p�
ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porq
, a vidaj� o tinha marcadodemais. Nunca tivera uma alegria decriam
Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miser�vel c
vidas: a vida de crian�a abandonada. Nunca consegu�ra amac
ningu�m, a n�o ser a este cachorro que o segue. uando os cora�i
das demais crian�as ainda est�o puros de sentimentos, o do Se
Pernas j� estava cheio de �dio. Odiava a cidade, a vida, os home
Amava unicamente o seu�dio, sentimento que o fazia forte e coraje
' apesar do defeitof�sico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas E
verdade n�o o fora paraele e sim para o filho que perdera e que penss
que tinha voltado. De outra feita outza mulher se deitara com i
numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher
migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, por�m, o tinham ama
pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gent
tinha odiado E ele odiara a todos. Apanhara na policia, um homf
ria quando csurravam. Para ele � este homem que corre em s
#
persegui��o na figura dos guardas. Se o levarem, o h�mem rir�
novo. N�o o levar�o. V�m em seus calcanhares, mas n�o o levar
Pensam que elevai pararjunto ao grande elevador. Mas Sem-Perr
n�op�ra. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas q
ainda correm, ri com toda a for�a do seu �dio, cospe na cara de um q
se aproxima estendendo os bra�os, se atira de costas no espa�o cor
se fosse um trapezista de circo.
, A pra�a toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, c
uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha cor
um trapezista de circo que n�o tivesse alcan�ado Ooutro trap�zio.
cachorro late entre as grades do muro.
ZS8
* o c * ;:  c,5 PA A * <  o * :',
 Iwr�c  J Jrlr
O JORNAL DATARDE PUBLICA UM TELEGRAMA DO RIO DANDO CONTA
do sucesso da exposi��o de um jovem pintor at� ent�o desco-
nhecido. Dias depois transcreve uma cr�tica de arte publicada
tamb�m num jornal do Rio de Janeiro. Porque o pintor � baiano,
e oJornal da Tarde � muito cioso das gl�rias baianas. Um trecho da
cr�tica de arte, ap�s falar das qualidades e defeitos do novo pintor
social, de usar e abusar de express�es como clima, luz, cor, �ngulos,
for�a e outras mais, diz:
...um detalhe notaram todos que fo-
ram a esta estranha exposi��o de cenas
e retratos de meninos pobres. � que
todos os sentimentos bons est�o sempre
representados na figura de uma menina
magra de cabelos loiros e faces febris. E
que todos os sentimentos maus est�o
representados por um homem de so-
bretudo negro e um ar de viajante. (Zue
representar� para um psicanalista a re-
peti��o quase inconsciente destas figu-
ras em todos os quadros2 Sabe-se que o
pintor Jo�o Jos� tem uma hist�ria...
E continuava o abuso das palavras cor, for�a, clima, luz, �ngulos
e outras mais complicadas.
23p
* ! : * A JORGE AMADO �' * `.: * A
Meses depois uma notLaa informava aos leitores do Jornal da
Tarde, sob o t�tulo de
PRESENTE DE GREGO
A PoI,icIA DE BEI.sIowTE DEvoI.vE o
vIGARISTA GA'!'O
que a policia de Belmonte, havia recebido da policia de Ilh�us um
verdadeiro presente de grego. Um conhecido e jovem vigarista que
atuava em Ilh�us com o nome de �Gato", ap�s ter abiscoitado bons
cobres de muitos fazendeiros e comerciantes, fora remetido para
Belmonte. L� continuava a passar contos do vig�rio, em que era
mestre. Conseguira vender uma irnensidade de terras, �timas para o
cultivo do cacau, a muitos fazendeiros. Qnando estes foram ver as
terras, n�o eram mais que o leito sobre o qual corna o rio Cachoeira.
A policia de Belmonte tinha conseguido deitar m�o no tem�vel
vigarista e o remetia de volta para Ilh�us.
Os ilheenses s�o mais ricos que n�s, terminava com certa ironia o
" correspondente que assinava a not�cia, podem sustentar com mais
conforto o elegante Gato que os filhos da bela Belmonte, a Princesa do Sul
Porque se Belmonte � a Princesa, Ilh�us � muito justamente chamada a
Rainha do Sul.
Entre fatos policiais sem import�ncia oJornal da Tarde noticiou
um dia que um malandro conhecido pelo nome de Boa-V'ida armara
um fuzu� tremendo numa festa na Cidade de Palha, abrira a cabe�a
do dono da casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado
pela policia.
Perto de um Natal oJornal da Tarde apareceu com manchetes
em tipos enormes. Uma not�cia de tanta sensa��o como aquela que
fizera conhecida a hist�ria da mulher que acompanhava o bando de
2d0
* O ' : * y.�' CAPIT�ES PA AREIA * :: O *
Lampi�o, a amante do cangaceiro. Porque a popula��o dos cinco
#
estados, de Bahia, Sergipe, Alagoas, Para�ba e Pernambuco, vive
com os olhos fitos em Lampi�o. Com �dio ou com amor, nunca
com indiferen�a. A manchete dizia em letras garrafais:
UDIA CRIAIi�A DE le A1i09
li0 6RUPO DE LADIPI�O
Os tipos das letras dos t�tulos que encabe�avam a reportagem
eram tamb�m enormes:
C' UM DOS MAIS TEM�VEIS CANGACEIROS
- TRINTA E CINCO TRA�OS NO SEU
FUZIL - PERTENCEU AOS CAPIT�ES DA
AREIA" - A MORTE DE lIACRAD�O
DEVIDA A VOLTA SECA
A reportagem era extensa. Contava como as vilas saqueadas h�
algum tempo vinham notando entre o bando de Lampi�o uma crian�a
de uns dezesseis anos, que levava o nome de Volta Seca. Apesar da sua
idade, ojovem cangaceiro se fizera temido em todo o sert�o como um
dos mais cru�is do grupo. Constaaa que seu fuzil tinha trinta e cinco
marcas. E cada marca num fuzil de cangaceiro representa um homem
morto. Depois vinha a hist�ria da morte de Machad�o, um dos mais
antigos do grupo de Lampi�o.
Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho
sargento de pol�cia. E Lampi�o o entregara a Volta Seca para que o
despachasse. Volta Seca o despacbara devagarinho, � ponta de punhal,
cortando os pedacinhos com vis�vel satisfa��o. Fora tanta a crueldade,
que Machad�o, horrorizado, levantou o fuzil para acabar com Volta
Seca. Mas antes que disparasse, Lampi�o, que tinha um grande
orgulho de Volta Seca, atirou em Machad�o. Volta Seca continuara
sua tarefa.
A not�cia se estendia, narrando diversos outros crimes do canga-
ceiro de 16 anos. Depois lembrava que entre os Capit�es da Areia
.r
y. * ;  * o ORGE AMADO   *  * o
vivera um menino com o nome de Volta Seca e que era poss�vel que
fosse o mesmo. Vinham ent�o v�rias considera��es de ordem moral.
A edi��o se esgotou.
Meses depois a edi��o se esgotou novamente porque trazia a
not�cia da pris�o de Volta Seca, enquanto dormia, executada pela
' coluna volante que percorna o sert�o dando ca�a a Lampi�o. Anun-
ciava que o cangaceiro chegaria no outro dia � Bahia. Vinham v�rios
clich�s onde Volta Seca aparecia com seu rosto sombrio. O Jornal da
Tarde dizia que era rosto de criminoso nato.
O que n�o era verdade, como o pr�prio jornal da Tarde noticiou
tempos depois, ao relatar em edi��es extraordin�rias e sucessivas oj�ri
' que condenou Volta Seca a 30 anos de pris�o por 15 mortes conheci-
das e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 60 marcas. E o jornal
lembrava esse fato, repetindo que cada marca era um homem morto.
Mas publicava tamb�m parte do relat�rio do m�dico-legista, cava-
lheiro de honestidade e cultura reconhecidas, j� ent�o um dos grandes
soci�logos e etn�grafos do pa�s, relat�rio que provava que Volta Seca
era um tipo absclutamente normal e que se virara cangaceiro e matara
tantos homens e com tamanha crueldade n�o fora por voca��o de
nascen�a. Fora o ambiente... e vinham as devidas considera��es
cient�ficas.
O que ali�s n�o despertou tanta curiosidade entre op�blico comc
a descri��o debelissimo, vibrant�ssimo e apaixonad�ssimo discurso de
dr. PromotorP�blico, que fizeraosjurados chorar, e at� opr�priojuia
tinha limpado as l�grimas, ao descrever o dr. Promotor, com sublimE
for�a orat�ria, o sofrimento das v�timas do ferozeangaceiro-menino
O p�blico ficou indignado porque Volta Seca n�o chorou duran-
te o j�ri. Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma.
�a
rOlIlPI Ir!lrJS
H� UM MOVIMENTO NOVO NA CIDADE. PEDRO BALA SAI DO TRAPICHE
com Jo�o Grande e Barand�o. O cais est� deserto, parece que todos
o abandonaram. Somente soldados de policia guardam os grandes
armaz�ns. N�o h� descarga de navios neste dia. Porque os estivadores,
oom Jo�o de Ad�o � frente, foram prestar solidariedade aos conduto-
res de bonde que est�o em greve. Parece que h� uma festa na cidade,
mas uma festa diferente de todas. Passam grupos de homens que
conversam, os autom�veis cortam as ruas conduzindo gente para o
#
trabalho, empregados no com�rcio riem, a ladeira da Montanha est�
cheia de gente que sobe e desce, pois os elevadores tamb�m est�o
parados. As marinetes v�o entupidas, gente sobrando pelas portas. Os
grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato, onde
v�o ouvir a leitura do manifesto dos estivadores, que Jo�o de Ad�o
conduz nas suas m�os grandes. Na porta do sindicato grupos conver-
sam, soldados montam guarda.
Pedro Bala anda com Jo�o Grande e Barand�o pelas ruas. Diz:
-T� bonito...
Jo�o Grande tamb�m sorri, o negrinho Barand�o fala:
- Hoje vai ter fuzu�.
- Eu � que n�o queria ser condutor de bonde, nem motomeiro.
Ganha uma porcaria. Eles faz bem... fala Jo�o Grande.
- Vamos espiar? prop�e Pedro Bala.
V�o para a porta do sindicato. Entram homens negros, mulatos,
espanh�is e portugueses. V�em quando Jo�o de Ad�o e os outros
?43
* o C. * :` CIVll�ES DA AItEIA * :: o * :-�
* :: * A JORGf AMAPO �  * '�= * �
estivadores saem entre vivas dos oper�rios das linhas de bonde. Eles
vivam tamb�m. Jo�o Grande e Barand�o porque gostam do doqueiro
Jo�o de Ad�o. Pedro Bala n�o s� por isso como porque acha bonito 0
espet�culo da greve, � como uma das mais belas aventuras dos
Capit�es da Areia.
Um grupo de homens bem vestidos entra no sindicato. Da porta
eles ouvem uma voz que discursa, uma que interrompe: Irendido,
amarelo.
- T� bonito... repete Pedro Bala.
Tem vontade de entrar, de se misturar com os grevistas, de gritar
e lutar ao lado deles.
A cidade dormiu cedo. A lua ilumina o c�u, vem a voz de um
negro do mar em frente. Canta a amargura da sua vida desde que a
amada se foi. No trapiche as crian�as j� dormem. At� o negro Jo�o
Grande ronca estirado na porta, o punhal ao alcance da m�o. Somente
Pedro Bala vela, estirado na areia, olhando a lua, ouvindo o negro que
canta as saudades da sua mulata que partiu. O vento traz trechos soltos
da can��o e ela faz com que Pedro Bala procure Dora no meio das
estrelas do c�u. Ela tamb�m virou uma estrela, uma estranha estrela
de longa cabeleira loira. Os homens valentes t�m uma estrela em lugar
do cora��o. Masdhunca se ouviu falar de uma mulher que tivesse no
peito, como uma flor, uma estrela. As mulheres mais valentes da terra
e do mar da Bahia, quando morriam, viravam santas para os negros,
como os malandros que foram tamb�m muito valentes. Rosa Palmei-
r�o virou santa num candombl� de caboclo, rezam para ela ora��es em
nag�, Maria Caba�u � santa nos candombl�s de Itabuna, pois foi
naquela cidade que ela mostrou sua coragem primeiro. Eram duas
mulheres grandes e fortes. De bra�os musculosos como homens,
como grevistas. Rosa Palmeir�o era bonita, tinha o andar gingado de
mar�tima, era uma mulher do mar, certa vez teve um saveiro, cortou
as ondas da entrada da barra. Os homens do cais a amavam n�o s� pela
sua coragem, como pelo seu corpo tamb�m. Maria Caba�u era feia,
mulata escura, filha de negro e �ndia, grossa e zangada. Dava nos
homens que a achavam feia. Mas se entregou toda a um cearense
2dd
* O :? * :' Js uA AeeiA * :: O * ;'!
amarelo e fraco que a amou como se ela fosse uma mulher bonita, de
corpo belo e olhos sensuais. Tinham sido valentes, viraram santas nos
candombl�s de caboclo, que s�o candombl�s que de quando em vez
inventam novos santos, n�o t�m aquela pureza de rito dos candombl�s
nag�s dos negros. S�o candombl�s dos mulatos. Mas Dora fora mais
valente que elas. Era apenas uma menina, vivera igual a um dos
Capit�es da Areia, e todos sabem que um capit�o da areia � igual a um
homem valente. Dora vivera com eles, fora m�e para todos eles. Mas
fora irm� tamb�m, correra com eles pelas ruas, invadira casas, batera
carteiras, brigara com o grupo de Ezequiel. Depois, para Pedro Bala,
fora noiva e esposa, esposa quando a febre a devorava, quando a morte
j� a rondava naquela noite de tanta paz. Paz que ia dos olhos dela para
a noite em torno. Estivera no orfanato, fugira dele, igual a Pedro Bala
fugindo do reformat�rio. Tivera coragem para morrer, consolando
seus filhos, irm�os, noivos e esposo que eram os Capit�es da Areia. A
#
m�e-de-santo Don'Aninha a enrolara numa toalha branca, bordada
como se fora para um santo. O Qnerido-de-Deus a levara no seu
saveiro para junto de Yemanj�. Padre Jos� Pedro rezava. Todos a
queriam. Mas s� Pedro Bala quis ir com ela. Professor fugiu do
trapiche porque n�o p�de mais suportar o casar�o depois que ela
partiu. Mas s� Pedro Bala se jogou n'�gua para seguir o destino de
Dora, ir fazer com ela aquela maravilhosa viagem que os valentes
fazem com Yemanj� no fundo verde do mar. Por isso s� ele viu quando
ela virou estrela e cruzou os c�us. Ela veio s� para ele, com sua longa
cabeleira loira. Brilhou sobre sua cabe�a de quase afogado e suicida.
Deu-lhe novas for�as, o saveiro do Qnerido-de-Deus que voltava o
p�de recolher. Agora olha o c�u procurando a estrela de Dora. � uma
estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como n�o existe nenhuma
outra. Porque nunca existiu nenhuma mulher como Dora, que era
uma menina. A noite est� cheia de estrelas que se relletem no mar
calmo. A voz do negro parece se dirigir �s estrelas, como que h�
pranto na sua voz cheia. Ele tamb�m procura a amada que fugiu na
noite da Bahia. Pedro Bala pensa que a estrela que � Dora talvez ande
agora correndo sobre as ruas, becos e ladeiras da cidade a procur�-lo.
Talvez o pense numa aventura nas ladeiras. Mas hoje n�o s�o os
Capit�es da Areia que est�o metidos numa bela aventura. S�o os
condutores de bonde, negros fortes, mulatos risonhos, espanh�is e
portugueses, que vieram de terras distantes. S�o eles, que levantam os
24�
t': * :? * o Joac, AOo : ' * c? * o
bra�os e gritam iguais aos Capit�es da Areia. A greve se soltou na
c,idade. � uma coisa bonita a greve, � a mais bela das aventuras. Pedro
Bala tem vontade de entrar na greve, de gritar com toda a for�a do seu
peito, de apartear os discursos. Seu pai fazia discursos numa greve,
uma bala o derrubou. Ele tem sangue de grevista. Demais a vida da rua
o ensinou a amar a liberdade. A can��o daqueles presos dizia que a
liberdade � como o sol: o bem maior do mundo. Sabe que os grevistas
lutam pela liberdade, por um pouco mais de p�o, por um pouco mais
de liberdade. � como uma festa aquela luta.
Os vultos que se aproximam o fazem levantar desconfiado. Mas
logo reconhece a figura enorme do estivador Jo�o de Ad�o. Junto a ele
vem um rapaz bem vestido, mas com os cabelos despenteados. Pedro
Bala tira o bon�, fala para Jo�o de Ad�o:
- Tu hoje ganhou viva, hein?
Jo�o de Ad�o ri. Distende seus m�sculos, seu rosto est� aberto
num sorriso para o chefe dos Capit�es da Areia:
- Capit�o Pedro, eu quero apresentar a tu o companheiro
Alberto.
O rapaz estende a m�o para Pedro Bala. O chefe dos Capit�es da
Areia limpa primeiro sua m�o no palet� rasgado, depois aperta a do
estudante. Jo�o de Ad�o est� explicando:
- � um estudante da Faculdade, mas � um companheiro da
gente.
Pedro Bala olha sem desconfian�a. O estudante sorri:
- J� ouvi falar muito em voc� e em seu grupo. Voc� � um
batuta...
- A gente � macho, sim responde Pedro Bala.
Jo�o de Ad�o se aproxima mais:
- Capit�o, a gente tem que conversar com tu. Tem um assunto
com tu. Um tro�o s�rio. Aqui o companheiro Alberto...
- Vamos para dentro? fala Pedro Bala.
Acordam Jo�o Grande ao passar. O negro olha com desconfian�a
o estudante, pensa que � um policia, levanta um pouco o punhal por
detr�s do bra�o. S� Pedro Bala v� e fala:
- � um amigo de Jo�o de Ad�o. Vem com a gente, Grande.
d6
# O C? * :.'! Crn7lEs a Am #  : O * ;'!
V�o os quatro. Sentam num canto. Alguns dos Capit�es da Areia
acordam e espiam o grupo. O estudante olha o trapiche, as crian�as
que dormem. Treme como se um vento frio tivesse passado pelo seu
corpo:
- Qne horror!
Mas Pedro Bala est� dizendo a Jo�o de Ad�o:
- Qne coisa porreta a greve! Nunca vi coisa t�o bonita. � como
uma festa...
#
- A greve � a festa dos pobres... diz o estudante.
A voz de Alberto � mansa e boa. Pedro Bala o escuta enlevado,
como se fosse a voz de um negro cantando uma can��o no mar.
- Meu pai morreu numa grev,,e, tu sabe? Pergunte a Jo�o de
Ad�o, se est� duvidando...
- Foi uma morte bonita fala o estudante. - Ele foi um
campe�o da sua classe. N�o foi o Loiro?
O estudante sabe o nome de seu pai. Seu pai foi um campe�o...
Todos o conhecem. Teve uma morte bonita, morreu numa greve, a
greve � a festa dos pobres... Escuta a voz do estudante:
- Voc� acha a greve bonita, Pedro?
- Companheiro, esse � um porreta diz Jo�o de Ad�o. - Tu
n�o conhece os Capit�es da Areia nem Capit�o Pedro... � um
companheiro...
Companheiro... Companheiro... Pedro Bala acha a palavra mais
bonita do mundo. O estudante diz como Dora dizia a palavra irm�o.
- Pois companheiro Pedro, a gente precisa de voc� e do seu
grupo.
- Pra qu�? pergunta Jo�o Grande curioso.
Pedro Bala apresenta: ,
- Este negro � Jo�o Grande, um negro bom. Qnem for bom �
igual a Jo�o Grande, melhor n�o �...
Alberto estende a m�o ao negro. Jo�o Grande fica um momento
indeciso, n�o est� acostumado a apertos de m�o. Mas logo aperta
aquela m�o, meio encabulado. O estudante novamente diz:
47
.: * `.: * A JOkGE AMADO � * `.: *
- Voc�s s�o uns batutas...
De repente, interessado, pergunta:
- � verdade que Volta Seca foi um de voc�s?
- Um dia a gente tira ele da cadeia.. . - � a resposta de Bal
O estudante olha meio espantado. D� uma espiada pelo trapicl
Jo�o de Ad�o faz um sinal como que lembrando: Eu n�o !he dizia
Pedro Bala quer conversar sobre a greve, saber o que querem de
- � pra greve que precisa da gente?
- Se for? perguntou o estudante.
- Se for pra ajudar os grevistas, tou decidido. Pode contar �o
a gente.. . levanta-se, est� um rapazola, o rosto disposto para a Im
- Tu n�o v�... come�a a explicar Jo�o de Ad�o.
Mas cala, porque o estudante est� falando:
- A greve est� indo muito em ordem. N�s queremos fazer
coisas com muita ordem, porque assim venceremos e os oper�ru
conseguir�o o aumento. N�s n�o queremos armar barulho, querem
mostrar que os operfirios s�o capazes de disciplina. (Uma pena, pen
Pedro Bala, que ama os barulhos.) Mas acontece que os diretores c
Companhia andam contratando fura-greves para trabalhar amanh
Se os oper�rios dissolverem os grupos de furadores de greve, dati
margem a que a policia intervenha e est� todo o trabalho perdido.
Ent�o o comanheiro Jo�o de Ad�o lembrou de voc�s...
- Pra debandar os fura-greve? T� certo diz Bala alegr�ssim
O estudante pensa na discuss�o daquela noite na organiza��
Qnando Jo�o de Ad�o fizera a proposta de chamar os Capit�es i
Areia, muitos companheiros tinham se declarado contra. Sorriam i
id�ia. Jo�o de Ad�o s� dizia:
- Voc�s n�o conhece os Capit�es da Areia.
Aquilo, aquela confian�a, impressionara Alberto e alguns outrc
Por fim a id�ia venceu, n�o perderiam nada em tentar. Agora es
satisfeito de ter vindo. E na sua cabe�a j� fazia planos para aproveit
na luta os Capit�es da Areia. Para quanta coisa n�o serviriam aquel
meninos esfomeados e mal vestidos? Lembrava-se de outros exen
plos, da luta antifascista na It�lia, os meninos de Lusso. Sorria pa
' Pedro Bata. Explicou o plano: os furadores de greve viriam pe
' ?48
* o : * ;-? CAllTjEb DA �ItEIA * :: o * ;::
madrugada para os tr�s grandes dep�sitos de bondes para tomar conta
dos carros. Os Capit�es da Areia deviam se dividir em tr�s grupos,
guardar as entradas dos tr�s dep�sitos. E impedir, fosse como fosse,
que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha.
Pedro Bala assentia com a cabe�a. Virou para Jo�o de Ad�o:
- Se Sem-Pernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui...
#
Depois se lembra de Professor:
- Professor inventava um plano bom num minuto... Depois
fazia um desenho da briga. Agora t� no Rio.
- Quem �? pergunta o estudante.
- Um chamado Jo�o Jos�, que a gente tratava de Professor
Agora t� pintando quadro no Rio.
- � o pintor Jo�o Jos�?
Esse mesmo fez Bala.
- Eu sempre pensei que fosse lenda essa hist�ria. Sabe que ele
� um companheiro bom?
- Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com
for�a.
O estudante fazia planos sobre os Capit�es da Areia. Agora Pedro
Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer. O estudante
est�va entusiasmado com as palavras do moleque. Qnando terminou
de explicar, Bala resumiu tudo nestas palavras:
- A greve � a festa dos pobres. Os pobres � tudo companheiro,
companheiro da gente.
- Voc� � um batuta disse o estudante.
- Vai ver como a gente acaba com os traidor.
Explicava a Alberto:
- Eu vou com um grupo pro dep�sito maior. Jo�o Grande vai
com outro. Barand�o com o terceiro para o menor. N�o entra
ningu�m. A gente sabe fazer. Tu vai ver...
- Eu estarei l� para ver fez o estudante. - Ent�o, �s quatro
horas da madrugada?
- T� certo.
O estudante faz um gesto.
;'� * C' * o JoacE Awco ��' * r? * o
- At� logo, companheiros...
Companheiros... Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ningu�m
dorme mais no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas.
Na madrugada que nasce, as estrelas come�am a desaparecer do
c�u. Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de
Dora que o alegra. Companheira... Tamb�m ela tinha sido uma
companheira boa. A palavra brinca na suaboca, � a palavra mais bonita
que ele j� viu. Pedir� a Boa-V'ida que fa�a um samba dela, um samba
para um negro cantar � noite no mar. V�o como se fossem para um
festa. Armados com as mais diversas armas: navalhas, punhais
peda�os de pau. V�o para uma festa, porque a greve � a festa do;
pobres, repete Pedro Bala para si mesmo.
No p� da ladeira da Montanha se dividem em tr�s grupos. Jo�c
Grande chefia um, Barand�o vai com outro, o maior vai com Pedrc
Bala. V�o para uma festa. A primeira festaverdadeira que t�m aquela
crian�as. Ainda assim � uma festa de homens. Mas � uma festa do
pobres, dos pobres como eles.
A madruada � fria. Na esquina do dep�sito, quando Pedro Bal
est� colocando os meninos, Alberto se aproxima dele. Pedro se volta
o rosto sorridente. O estudante fala:
- Eles j� v�m, companheiro.
- Espera pra ver.
Agora � o estudante quem sorri. Evidentemente est� entusiasma
do com os meninos. Pedir� � organiza��o para trabalhar com eles. Ir�
fazer muitas coisas juntos.
Os fura-greves v�m num grupo cerrado. Um americano 0
chefia com a cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. D
sombra, dos becos, ningu�m sabe de onde, como dem�nios fugidos d
inferno, surgem meninos esfarrapados e de armas na m�o. Punhai;
navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo dos fura-greves p�ra. Log
250
* o C.� * ;-; CAtIT�ES DA AtEIA * :? o * ;::
os dem�nios se atiram, � um bolo s�. S�o em n�mero maior que o
grupo de fira-greves. Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem
pauladas, alguns j� fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a
ajuda de outro o soqueia. Os fura-greves pensam que s�o dem�nios
fugidos do infemo.
A gargalhada livre e grande dos Capit�es da Areia ressoa na
madrugada. A greve n�o � furada.
Tamb�m Jo�o Grande e Barand�o s�o vitoriosos. O estudante ri
com eles a gargalhada dos Capit�es da Areia.
#
No trapiche diz para alegria dos meninos:
- Voc�s s�o os mais batutas que eu j� vi...
- Companheiros, companheiros diz Jo�o de Ad�o.
Diz o vento que passa, diz a voz do cora��o de Pedro Bala. � como
a m�sica de uma can��o cantada por um negro:
- Companheiros.
J r rrr t cvo
r  I l I   Jl
DEPOIS DE TERMINADA A GREVE O ESTUDANTE CONTINUA A VIR
ao trapiche.Mant�m longas conversas com Pedro Bala, transforma os
Capit�es da Areia numa brigada de choque.
2�1
c-, * :: * o oE  :' * :: *
Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile, o bon� desabado sobr
os olhos, assoviando, enquanto arrasta os p�s no ch�o. Uma vo
exclama:
- Bala!
Se volta. O Gato est� elegant�ssimo na sua frente. Uma p�rola n
gravata, um anel no dedo m�nimo, roupa azul, chap�u de feltr
quebrado num jeito malandro:
- � tu, Gato?
- Vamos sair daqui.
Entram numa rua sem movimento. Gato explica que chegou d
Ilh�us h� poucos dias. Q,ue arrancou um bocado de dinheiro de l;
Est� um homem e todo perfumado e elegante:
- Qnase n�o te conhe�o... diz Pedro Bala. - E Dalva?
- Ficou amigada com um coronel. Mas eu j� tinha deixado eh
Agora tenho uma moreninha do balacobaco...
- E aquele anel�o que Sem-Pernas fazia tro�a?...
Gato ri:
- Empurrei por quinhent�o num coronel cheio da nota... 1
bicho engoliu sem gritar...
Conversam e riem. Gato pergunta not�cia dos outros. Diz qv
no dia seguinte embarcar� para Aracaju com a morena, pois
a��car est� lindo dinheiro. Pedro Bala o v� ir embora tod
elegante. Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo n
trapiche, talvez n�o fosse um ladr�o. Aprenderia com Alberto,
estudante, o que ningu�m soubera lhe ensinar. Aquilo que Profe;
sor como que adivinhara.
A revolu��o chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito n
noites do trapiche. � uma voz poderosa dentro dele, poderosa con
a voz do mar, como a voz do vento, t�o poderosa como uma voz se
compara��o. Como a voz de um negro que canta num saveiro o sam)
que Boa-Vida fez:
Companheiros, chegou a hora...
J
l: * y.  rAPIT�ES DA AREIA * '.: � *
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu cora��o.
Ajudar a �nudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa
a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da
religi�o ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ru�do dos bondes
onde v�o os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do
cais, do peito dos estivadores, de Jo�o de Ad�o, de seu pai morrendo
num com�cio, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos
canoeiros. Uma voz que vem do grupo quejoga a luta da capoeira, que
vem dos golpes que o Qnerido-de-Deus aplica. Uma voz que vem
mesmo do padre Jos� Pedro, padre pobre de olhos espantados diante
do destino terr�vel dos Capit�es da Areia. Uma voz que vem das
filhas-de-santo do candombl� de Don'Aninha, na noite que a pol�cia
levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capit�es da Areia. Que
vem do reformat�rio e do orfanato. Que vem do �dio do Sem-Pernas
se atirando do elevador para n�o se entregar. Qne vem no trem da
Leste Brasileira, atrav�s do sert�o, do grupo de Lampi�o pedindo
justi�a para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo
escolas e liberdade para a cultura. Q.ue vem dos quadros de Professor,
onde meninos esfarrapados lutam naquela exposi��o da rua Chile.
ue vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus
viol�es, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos
os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra
btinita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que
#
convida para a festa da luta. Q,ue � como um samba alegre de negro,
como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembran-
�a de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como avoz
de Deus chamava Pirulito, a voz do �dio o Sem-Pernas, como a voz
dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampi�o. Voz
poderosa como nenhuma outra. Porque � uma voz que chama para
lutar por todos, pelo destino de todos, sem exce��o. Voz poderosa
como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os
lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar l� fora
e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que
o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da
cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem
maior do mundo, bem que � igual ao sol, mesmo maior que o sol: a
liberdade. A cidade no dia de primavera � deslumbradoramente bela.
Uma voz de mulher canta a can��o da Bahia. Can��o da beleza da
2�3
c- * C� * o Jor, ewwo c:a * o * o
Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas cal�adas de pedra.
Can��o da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma
voz o chama: voz que traz para a can��o da Bahia, a can��o da
liberdade. Vac poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da
Bahia, voz da liberdade. A revolu��o chama Pedro Bala.
Pedro Bata roi aceito na ozganiza� no mesmo dia em que Jo�o
Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do L�ide.
No cais d� adeus ao negro, que parte para a sua primeira viagem. Mas
n�o � um adeus como aqueles que dera aos outros que partiram antes�
N�o � mais um gesto de despedida. � um gesto de sauda��o ao
companheiro que parte:
- Adeus, companheiro.
Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capit�es
da Areia. O destino deles mudou, tudo agora � diverso. Interv�m em
com�cios, em greves, em lutas obreiras. O destino deles � outro. A luta
mudou seus destinos.
Ordens vieram para a orl;aniza��o dos mais altos dirigentes. Q,ue
Alberto ficasse com os Capites da Areia e Pedro Bala fosse organizar
os f ndios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque tamb�m. E
que depois continuasse a mudar o destino das outras crian�as abando-
nadas do pa�s.
pedro Bala entra no trapiche. A noite cobriu a cidade. A voz do
negro canta no mar. A estrela de Dora brilhaquase tanto quanto alua
uo c�u mais lindo do mundo. Pedro Bala entra, olha as crian�as�
Barand�o vem para junto dele, agora tem 15 anos o negrinho.
?54
* o C: * ;- �AllT�ES DA �tEIA *  : o * ;-�
Pedro Bala olha. Est�o deitados, alguns j� dormem, outros
rnnversam, fumam cigarros, riem a grande gargalhada dos Capit�es
da Areia. Bala re�ne a todos, bota Barand�o junto de si:
- Gentes, agora eu vou embora, vou deixarvoc�s. Vou embora,
Barand�o agora fica o chefe. Alberto vem sempre ver voc�s, voc�s
devem fazer o que ele diz. E todo mundo ou�a: Barand�o agora � o
chefe.
O negrinho Barand�o fala:
- Gentes, Pedro Bala vai embora. V'ma Pedro Bala!...
Os punhos dos Capit�es da Areia se levantam fechados.
- Bala! Bala! gritam numa despedida.
Os gritos enchem a noite, calam a voz do negro que canta no mar,
estremecem o c�u de estrelas e o cora��o de Pedro. Punhos fechados
de crian�as que se levantam. Bocas que gritam se despedindo do chefe:
8a1a1 Bala!
Barand�o est� na frente de todos. Ele agora � o chefe. Pedro Bala
parece ver Volta Seca, Sem-Pernas, Gato, Professor, Pirulito, Boa-
V'ida, Jo�o Grande e Dora, todos ao mesmo tempo entre eles. Agora
o destino deles mudou. A voz do negro no mar canta o samba de Boa-
V'rda:
Companheiros, vamos pra Iuta...
De punhos levantados, as crian�as sa�dam Pedro Bala, que parte
para mudar o destino de outras crian�as. Barand�o grita na frente de
todos, ele agora � o novo chefe.
De longe, Pedro Bala ainda v� os Capit�es da Areia. Sob a lua,
num velho trapiche abandonado, eles levantam os bra�os. Est�o em
#
p�, o destino mudou.
Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como
clarins de guerra.
a5
 * ! : * � ORGE AMADO   * ` : *
a r r J /i' rc r  r'   lI:'� rl/   
ANOS DEPOIS OS JORNAIS DE CLASSE, PEQUENOS JORNAIS, DOS QU
v�rios n�o tinham exist�ncia legal e se imprimiam em tipogra�
clandestinas, jomais que circulavam nas f�bricas, passados de m
em m�o, e que eram lidos � luz de fif�s, publicavam sempre not�c:
sobre um militante prolet�rio, o camarada Pedro Bala, que esta
perseguido pela policia de cinco estados como organizador de grev
como dirigente de pattidos ilegais, como perigoso inimigo da ordf
estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no a
que foi todo ele uma noite de terror, esses jomais (�nicas bocas 9
ainda falavam) clamavam pela liberdade de Pedro Bala, lider da ,
classe, que sekncontrava preso numa col�nia.
E, no dia em que ele fugiu, em in�meros lares, na hora pobre
jantar, rostos se iluminaram ao saber da not�cia. E, apesa:r de que
fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria p;
Pedro Bala, fugitivo dapolicia. Porque a revolu��o � umap�tria e m
fam�lia.
FIM
Na casa mal-assombrada de Doninha Quaresma (existiam I
tijas enterradas e a alma de Doninha), hoje do Capit�o, na;
de Eat�ncia. Sergipe, mar�o de 937.
A bordo do Rakuyo Maru, subindo a costa da Am�rica do
pelo Pac�fico, em caminho do Mbeico,junho de 937.
5b

  

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 Bezerra

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PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL

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