sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018 By: Fred

{clube-do-e-livro} Livros do Catolicismo

HISTÓRIA DA IGREJA
Dom Bosco, santo fundador dos Salesianos, recebeu de Deus um carisma especial no trato com os jovens, aos quais dedicou toda sua vida.
Dentre os muitos escritos de Dom Bosco, que infelizmente não são divulgados, mesmo pela Editora Salesiana, como se esperaria, está a "História Eclesiástica", que
na sua linguagem simples, direta e dinâmica, elaborada pelo santo para ser agradável ao leitor jovem, incrivelmente, é ainda hoje, após quase 140 anos, atual no
seu objetivo.
Por esta razão foi ela, a <<História Eclesiástica de Dom Bosco>>,  a nossa escolhida para ilustrar a página HISTÓRIA DA IGREJA  do "Duc in altum!", mesmo que para
isso tenhamos tido que esperar 6 anos, desde a fundação do site, para encontrarmos um exemplar do livro de Dom Bosco.
 
Querido pai Dom Bosco,
pedimos vossa intercessão para que
a transcrição da vossa "História Eclesiástica"
possa, ainda hoje, servir de instrumento para instruir e
inflamar os corações jovens, de todas as idades, ao amor à
Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.
Amém.
8 de maio de 2008.
 
 
Dom Bosco - HISTÓRIA ECLESIÁSTICA
 
Aprovação
 
De s. Excia. Revma. o Sr. Arcebispo de Turim
 
Tendo nós lido e atentamente examinado o "Compêndio de História Eclesiástica" escrito pelo muito Reverendo Padre João Bosco, fundador da Congregação de São Francisco
de Sales, e tendo-o achado muito oportuno e apto para dar os conhecimentos suficientes de uma coisa tão necessária hoje em dia, como é a História de Jesus Cristo,
a todos aqueles que por qualquer motivo não podem dedicar-se a um estudo mais profundo e vasto da mesma, não só o aprovamos, mas também ardorosamente o recomendamos
a todas aquelas pessoas que têm zelo por nossa Santa Religião, e particularmente a todos os professores de escola, e a todos os que se dedicam a instruir de modo
cristão a mocidade.
 
Turim, Seminário São José, 1872.
Lourenço Arcebispo
 
Noções preliminares
 
História Eclesiástica e suas divisões - Igreja Católica - Hierarquia da Igreja: Papa, Cardeais, Bispos, Padres. Párocos - Concílios: gerais, nacionais, provinciais
e diocesanos.
 
I. Histórias Eclesiástica e suas divisões - História Eclesiástica é a narração dos fatos que tem relação com a Igreja Católica, fundada por nosso divino Redentor
Jesus Cristo, acompanhada das razões que explicam esses mesmos fatos. A história se distingue da crônica; esta registra simplesmente os fatos segundo a ordem cronológica
em que sucederam, aquela intercala a relação dos fatos com as observações que melhor os aclaram e explicam, para poder deste modo deduzir utilíssimos conhecimentos
e ensinamentos práticos. A história se divide em seis idades, determinadas pelas épocas em que aconteceu algum fato extraordinário ou alguma mudança notável nos
costumes.
 
A primeira época data desde a fundação da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, e se estende até a conversão do Imperador Constantino o Grande, acontecida no ano
312 da era cristã.
 
A segunda época começa com a conversão de Constantino e chega até a aparição do Maometismo no ano 622.
 
A terceira época vai desde a aparição do Maometismo até o II concílio de Latrão em 1215.
 
A quarta época inicia-se com a celebração deste Concílio e vai até a reforma de Lutero em 1517.
 
A quinta época começa com a reforma de Lutero e chega até a morte de Pio VI em 1799.
 
A sexta época começa com a morte de Pio VI e chega até o Concílio Vaticano I em 1869-70.
 
II. Igreja Católica - A Igreja Católica é a congregação dos que professam  na íntegra a fé e a doutrina de Jesus Cristo, e respeitam a autoridade do Soberano Pontífice,
constituído pelo mesmo Jesus Cristo como Vigário e supremo Chefe visível da Igreja.
 
III. Hierarquia da Igreja - Nesta congregação de fiéis existe uma hierarquia eclesiástica, isto é, uma ordem de ministros sagrados estabelecidos para conservar,
propagar e governar a mesma Igreja. Esta Hierarquia em parte foi instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo e completada pela Igreja, no exercício da faculdade que
recebeu das mãos do mesmo. Nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu: 1º. O Papa, que é o Bispo dos Bispos. 2º. Os Bispos, que além do poder de consagrar o Corpo e Sangue
do Redentor e perdoar os pecados, tem a faculdade de comunicar a outrem o mesmo poder, consagrando os Sacerdotes. 3º. Os Sacerdotes, que podem consagrar o Corpo
e o Sangue de Jesus Cristo e redimir os pecados, porém não podem transmitir a outrem este poder. 4º. Os Diáconos ou ministros, que devem ajudar os Bispos e os Sacerdotes
no desempenho do seu sagrado ministério.
 
A Igreja estabeleceu: 1º. Dividir em certa maneira, em várias ordens as atribuições dos diáconos, ajuntando os subdiáconos, acólitos, leitores, exorcistas e hostiários.
2º. Que entre os Sacerdotes, alguns tivessem o cuidado de alguma parte da Diocese; isto é, do rebanho confiado aos cuidados do Bispo, dando-lhes o nome e ofício
de Párocos, dividindo assim a Diocese em Paróquias. 3º. Que os Bispos tivessem o governo de uma Diocese, e que as Dioceses fossem reunidas em Províncias, presididas
por um Arcebispo, com jurisdição sobre os Bispos da mesma Província, chamados sulfragâneos. 4º. Que em alguns reinos e impérios houvesse, à frente de várias Províncias,
um Bispo Primaz ou Patriarca, do qual depende os mesmos Arcebispos e as Províncias por eles governadas. 5º. Finalmente que os Bispos das cidades mais circunvizinhas
de Roma, capital do Catolicismo, e os Sacerdotes e Diáconos adidos às principais Igrejas da Cidade Eterna formassem como o Senado do Soberano Pontífice, quanto ao
privilégio de eleger o Papa, e ajudassem a este na administração da Igreja Universal. A estes foi dado o nome de Cardeais porque todos eles tomam o título de uma
Igreja a cujo serviço se acham ligados como portas de um edifício a seus gonzos (em latim cardines).
 
De modo que a Hierarquia instituída por Jesus Cristo e completada mais tarde pela Igreja, compõe-se:
1º. do Papa;
2º. dos Cardeais;
3º. dos Patriarcas;
4º. dos Arcebispos;
5º. dos Bispos;
6º. dos Sacerdotes (Presbíteros);
7º. dos Diáconos;
8º. dos Subdiáconos (extinto pelo Papa Paulo VI, através do Motu Proprio Ministeria Quaedam de 15 de agosto de 1972);
9º. dos Acólitos e Leitores (incluso nos Diáconos)
 
IV. Concílios - Os Concílios são assembléias de Bispos, convocadas para tratar das questões religiosas e falar sobre as mesmas. Os Concílios podem ser: Ecumênicos
ou Gerais, Nacionais e Provinciais.
 
Concílio Ecumênico é a reunião de todos, ou de uma grande parte dos Bispos da Igreja Católica, aos quais convoca e preside pessoalmente ou por delegação, o mesmo
Sumo Pontífice. O Concílio Geral decide em última instância as controvérsias religiosas e ditas leis gerais para toda Igreja; porém, nem as sentenças, nem as leis
do Concílios Gerais tem força alguma, antes de serem aprovadas pelo Papa; de modo que, o Concílio Geral legitimamente congregado representa toda a Igreja Universal;
e suas sentenças, quando trazem a aprovação do Papa, sendo infAliveis, deverão ser tidas como artigos de fé.
 
O Concílio Nacional é a reunião dos Bispos de uma nação ou de um reino, convocados pelo Patriarca ou pelo Primaz, ou mesmo por um Bispo da Província, nomeado para
este efeito pelo Sumo Pontífice.
 
O Concílio Provincial é a reunião dos Bispos de uma mesma Província, convocados pelo Metropolitano, isto é, pelo Arcebispo, ou mesmo por outro Bispo coprovinciano,
delegado pelo Soberano Pontífice.
 
Também existem os Concílios Diocesanos, que consistem na reunião de todos os Párocos e demais eclesiásticos eminentes de uma Diocese, convocados por seu Bispo. Advirta-se,
entretanto, que toda autoridade destes Concílios em resolver questões religiosas, ou ditar sentenças relacionadas com elas, compete exclusivamente ao Bispo; em quanto
que nos Concílios Gerais, Nacionais e Provinciais todos os Bispos congregados têm a faculdade de proferir um juízo deliberativo. Nos Concílios Diocesanos os Párocos
são simples conselheiros, nos demais Concílios, os Bispos são juízes.
 
Primeira Época
Desde a fundação da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, até a conversão de Constantino, o Grande. (ano 312 da era cristã).

 
CAPÍTULO I
 
Maria Santíssima e São José - Nascimento do Salvador - Adoração dos Reis Magos - Degolação dos Inocentes - A Sagrada Família no Egito - Disputa com os Doutores -São
João Batista - Batismo de Jesus.
 
Maria Santíssima e São José - Aproximava-se o tempo para os quais os profetas tinham fixado a vinda do Salvador: todo o mundo esperava um mestre que, baixando do
Céu, trouxesse à terra uma regra segura para discernir a verdade do erro e reformar assim os costumes depravados dos homens. Depois de 4.000 anos de contínuos suspiros,
Deus decretou o cumprimento do mistério da Redenção. Uma Virgem chamada Maria, foi a mulher venturosa que Deus escolheu para ser mãe de seu Divino Filho. São Joaquim
e Santa Ana, ambos descendentes da real estirpe de Davi, e da Tribo de Judá, foram os pais de Maria. Sendo já velhos, e faltando-lhes prole, dirigiram ao Céu suas
orações, e o Senhor os ouviu, concedendo-lhes uma filha a que chamaram Maria. Aos três anos de idade foi esta apresentada ao Templo, para que, juntamente com as
outras virgens, no exercício da piedade e do trabalho se preparasse desde então para ser digna mãe do Salvador do mundo. (São João Damasceno)
 
Tendo chegado à idade de tomar estado, respondendo a uma voz celeste, foi desposada com São José, varão santíssimo, oriundo de Nazaré, o qual viveu com ela como
se fosse uma irmã.
 
Depois de breve tempo, o Arcanjo Gabriel foi enviado para anunciar a Maria a sublime dignidade de mãe de Deus. Certificada Maria que tudo era obra do Espírito Santo
submeteu-se à Vontade do Altíssimo, dizendo ao Anjo: Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.
 
Nascimento do Salvador - Corria o ano 4.000 da criação do mundo e Herodes, chamado o Grande, reinava na Judéia. Maria Santíssima e São José, obedecendo às ordens
do Imperador Romano,  César Augusto, se transportaram para Belém, pequena cidade da Judéia para inscreverem seus nomes nos registros do império. Estando as casas
da Cidade cheias de forasteiros, tiveram de sair daí e alojar-se em uma gruta que servia de estábulo, onde se achavam dois animais.
 
Em tão humilde local, à meia-noite de 25 de dezembro, nasceu o Senhor do Céu e da terra. Nesse mesmo instante, um anjo revestido de luz deslumbrante, anunciou a
boa nova a uns pastores que velavam guardando seus rebanhos, enquanto que uma multidão de anjos fazia ressoar nos ares aquelas palavras celestiais: "Glória Deus
nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade". Os pastores cheios de admiração por tão insólitos portentos, correram pressurosos a Belém e encontraram ali
o celestial Menino.
 
Depois de o haverem adorado e reconhecido como seu verdadeiro Deus e Salvador, cheios de alegria voltaram a seus rebanhos bendizendo ao Altíssimo. Aos oito dias
de seu nascimento o Menino foi circuncidado e foi lhe posto o adorável nome de Jesus, que quer dizer Salvador, como o tinha ordenado o anjo antes do seu nascimento.
 
Adoração dos Reis Magos - Algum tempo depois, alguns sábios do Oriente, guiados por uma estrela prodigiosa, que então apareceu em suas regiões, dirigiram-se à Jerusalém
para adorar o recém-nascido Messias. Chegando à Jerusalém perguntaram a Herodes onde havia nascido o rei dos Judeus. A tão estranha pergunta perturbou-se Herodes;
reuniu em Concílio os Príncipes e Sacerdotes e os Doutores da Lei e lhes perguntou onde havia de nascer o Messias. A Assembléia declarou que devia nascer em Belém
de Judá, segundo a profecia de Miquéias, que, falando do nascimento do Messias, disse: " E tu, ó Belém de Judá, não és a menor entre as principais de Judá, porque
de ti nascerá o chefe que governará meu povo de Israel." Com tais informações saíram de Jerusalém os piedosos Reis e acompanhando o curso da estrela milagrosa chegaram
onde se achava o divino Infante, e humildemente prostrados ofereceram-lhe ouro, incenso e mirra. Em seguida, avisados por um Anjo, regressaram por outro caminho
a sua pátria.
 
Degolação dos Inocentes e fuga para o Egito - Herodes ao despedir os Reis recomendou-lhes encarecidamente que passassem por seu palácio e o inteirassem de quanto
se referia ao novo rei, com o fim, porém, de fazê-lo perecer, temendo que crescendo o despojasse do seu trono. Mas, tendo esperado inutilmente pela volta dos reis,
e presumindo por ventura alguma coisa do acontecido no templo, agitado por mil suspeitas, lavrou um decreto em que ordenava a degolação de todos os meninos que não
tendo chegado ainda aos dois anos de idade se achassem em Belém e suas circunvizinhaças. Deus, porém, enviou um anjo que comunicou em sonhos a José as brutais disposições
de Herodes, pelo que José fugiu para o Egito com Maria e o Menino. Daí só voltou depois que o anjo anunciou a morte de Herodes. Havendo morrido Herodes, a Sagrada
Família regressou a Nazaré, sua pátria, cumprindo-se assim a profecia de Oséias que havia dito em nome de Deus: Desde o Egito eu chamei meu filho. (Oséias, cap.
2)
 
Disputa com os Doutores - José e Maria juntamente com Jesus, viviam tranquilos em sua pátria, ganhando o pão com o trabalho de suas mãos. Na idade de doze anos,
tendo ido Jesus com seus pais a Jerusalém para celebrar a Páscoa, perdeu-se. José e Maria debulhados em pranto, procuraram-no por três dias com incrível ansiedade;
finalmente puderam encontra-lo no templo enquanto disputava com os Doutores da lei aos quais causava grande admiração com suas sábias perguntas e respostas. Vendo-o
Maria lhe disse: "Filho porque procedeste assim conosco? Vê como teu pai e eu angustiados te procurávamos". Jesus lhe respondeu: "Porque me procuráveis? Não sabíeis
que nas coisas que são de meu pai me convém estar?" É este o último fato que nos narra o Evangelho da infância de Jesus, que depois de regressar a Nazaré, submisso
e obediente a Maria e a São José, se ocupou nos humildes trabalhos de simples artesão, até aos 30 anos de idade.
 
São João Batista - Quando o anjo anunciou a Maria a sublime dignidade de Mãe de Deus, disse-lhe também que sua prima Isabel, apesar de sua avançada idade, daria
luz um filho destinado por Deus para preparar a receberem o Messias. Maria, sabedora, pela revelação de um anjo, das maravilhas que Deus estava obrando na pessoa
de sua prima Isabel, foi logo a sua casa visitá-la e esteve com ela três meses.
 
Seis meses antes do nascimento do Salvador, Isabel deu à luz o filho prometido que recebeu o nome de João ao qual se acrescentou mais tarde o apelido de Batista,
porque batizava as multidões. Este menino foi o precursor do Messias. Para fugir aos tumultos do século, retirou-se, ainda muito criança à soledade do deserto onde
levou uma vida angélica; seu alimento se compunha de gafanhotos e mel silvestre e não tinha outra vestimenta além da pele de um cameio e um cinturão de couro. Estava
João pelos trinta anos de idade quando recebeu ordem do Senhor de ir às margens do Jordão para pregar a penitência e anunciar a chegada do Messias. Todos corriam
para ouvir seus sermões e muitos recebiam o batismo.
 
Batismo de Jesus - Jesus aos 30 anos de idade saiu de Nazaré para chegar às margens do Jordão, e receber também Ele o batismo. São João como nunca o tinha visto,
não o conhecia ainda; entretanto iluminado pelo Espírito Santo, correu a seu encontro nas margens do Jordão, gritando para a multidão que o acompanhava: "Eis aqui
o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo". Falando em seguida a Jesus, disse-lhe: "Tu queres que eu te batize, entretanto eu sou quem deveria ser batizado
por ti". Respondeu-lhe Jesus: "Deixa agora porque assim nos convém observar toda justiça". Chegou São João e o batizou. Terminada a augusta cerimônia, abriram-se
de repente os céus, e o Espírito Santo em forma de pomba, desceu sobre a cabeça de Jesus Cristo, fazendo ouvir ao mesmo tempo uma voz que disse: "Este é meu dileto
filho, em quem pus as minhas complacências". Deste modo, Jesus foi proclamado solenemente verdadeiro filho de Deus, enviado para salvar os homens.
 
CAPÍTULO II
 
Vocação dos Apóstolos - Igreja de Jesus Cristo - São Pedro chefe da Igreja - Explicações - Portas do Inferno - Chaves do Paraíso - Primado de São Pedro e de seus
sucessores - Infalibilidade dos Sumos Pontífices.
 
Vocação dos Apóstolos - Na idade de trinta anos começou o Salvador a pregar sua doutrina. Seus estupendos milagres assombravam as turbas que pasmadas o seguiam por
toda parte. Pra o êxito de seus fins sacrossantos escolheu Jesus, de entre seus adidos, doze homens aos quais chamou Apóstolos. Eis aqui seus nomes: Pedro e seu
irmão André, Tiago - o maior, João - Evangelista, Filipe, Bartolomeu, Matheus, Thomé, Tiago - o menor, Simão - o zeloso, Judas Tadeu e Judas Iscariotes. Este último
foi quem mais tarde traiu o seu divino Mestre. Estes Apóstolos eram uns pobres e simples pescadores, e Jesus Cristo lhes confiou o depósito da fé e os enviou a pregar
o Evangelho por todo o mundo, afim de que, como observa Santo Ambrósio, a conversão do mundo não fosse atribuída à sabedoria ou ao poder ao poder dos homens, senão
unicamente à divina virtude . (Santo Ambrósio in C. VI, Lucas)
 
Igreja de Jesus Cristo - Por Igreja de Jesus Cristo se entende a congregação dos fiéis cristãos espalhados por toda a terra, que vivem debaixo da obediência do Papa,
isto é, do Sumo Pontífice de Roma. Chama-se Igreja de Jesus Cristo, porque Ele mesmo a fundou durante sua peregrinação sobre a terra, e porque saiu de seu abrasado
Coração e foi consagrada e santificada com seu Sangue; chama-se também assim porque todos os filhos da Igreja constituem uma só pessoa com Jesus Cristo por meio
da fé, da esperança e da caridade.
 
Jesus Cristo a encheu de seu Espírito Santo a quem enviou para que permanecesse com ela e lhe ensinasse toda a verdade até à consumação dos séculos. Os Apóstolos
foram os primeiros mestres e propagadores da Igreja; e a todos eles, em diversas ocasiões, dirigiu Jesus estas palavras: "Não fostes vós quem me escolhestes; mas
eu vos escolhi e vos coloquei para que vades e produzais frutos; e que vosso fruto permaneça. Foi-me dado todo o poder no Céu e na terra: assim como meu Pai celeste
me enviou, assim também eu vos envio. O que desatardes na terra, será também desatado no Céu. Aos que perdoardes os pecados serão perdoados; e aos que os retiverdes,
serão retidos... Quem vos ouve, a mim ouve, quem vos despreza, despreza a mim e a quem me enviou. Quando comparecerdes em presença dos reis e governadores, não vos
preocupeis com o que deveis responder. O Consolador, o Espírito Santo que meu Pai enviará em meu nome, Ele vos ensinará todas as coisas. Ele vos dará ciência e saber
a que não poderão resistir nem contradizer todos os vossos adversários. Ide pois, eu sou o que vos envia: pregai o Evangelho a toda criatura ensinando e batizando
em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo. O que crer e for batizado será salvo, porém o que não crer será condenado... Eu subo a meu Pai celeste, mas não vos
deixo sós e permanecerei convosco todos os dias até a consumação dos séculos". Com estas palavras instituiu Jesus Cristo a grande Sociedade religiosa, ou a Igreja
cuja administração, como se tem visto, confiou aos Apóstolos aos quais prometeu sua assistência contínua até o fim dos séculos.
 
São Pedro chefe da Igreja - O Salvador para demonstrar a necessidade de uma autoridade suprema na Igreja, a comparou sucessivamente a um reino e a uma república
bem administrados, à fazenda de um grande Senhor, e a uma númerosa família, coisas todas que não podem subsistir sem uma autoridade que governe e dite leis, vele
sobre sua observância, reprima aos rebeldes e recompense aos que as observam. O mesmo se dá com a Igreja Católica: chefe absoluto, supremo e invisível da Igreja
é Jesus Cristo, seu fundador: e chefe visível instituído pelo próprio Jesus Cristo é São Pedro. De entre os Apóstolos, disse São Jerônimo, escolheu Jesus a São Pedro
para dar-lhe a preeminência  sobre todos os outros, afim de que a autoridade divinamente instituída, desvanecesse de antemão todo pretexto de discórdia e de cisma.
 
Eis aqui como São Pedro foi instituído Chefe Supremo da Igreja:
 
Estando Jesus Cristo certo dia nos confins de Cesárea de Felipe, depois de ter orado, por algum tempo, perguntou a seus Apóstolos: "Que dizem de mim os homens? Um
Apóstolo respondeu dizendo: Alguns dizem que sois o Profeta Elias". Outro replicou: "Disseram-me muito que éreis Jeremias ou João Batista ou algum dos profetas que
tinha ressuscitado". O Salvador torna a perguntar: "Porém vós, quem dizeis que eu sou?" Tomando então a palavra Simão Pedro disse: "Vós sois o Filho do Deus vivo
que veio a este mundo". Disse-lhe então Jesus: "És bem-aventurado, Simão, filho de João; porque o que disseste não te foi revelado pelos homens senão por meu Pai
celeste; eu e de digo que és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela. E a ti darei as chaves das portas
do Céu e tudo o que ligares na terra será ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será também desligado no Céu". (Mat. C. 16)
 
Explicações - Estes fatos e estas palavras merecem alguma explicação. Pedro permaneceu silencioso enquanto Jesus não deu a conhecer senão o desejo de saber o que
diziam os homens acerca de sua pessoa; mas quando convidou os Apóstolos para exporem seu modo de pensar, Pedro, no mesmo instante falou, como se falasse em nome
de todos, porque ele já gozava de certa primazia ou superioridade sobre os demais companheiros. Pedro, pois, divinamente inspirado, disse: Vós sois o cristo: que
era o mesmo de dizer: Vós sois o Messias prometido por Deus, que veio para salvar os homens. Filho de Deus vivo: ele aplica a Deus o epíteto de vivo, para diferenciá-lo
das falsas divindades dos idólatras, que sendo fabricadas pelas mãos dos homens, não tem vida. Isto também equivalia a dizer: Vós sois o verdadeiro Filho de Deus,
o Filho do Pai Eterno, e por isso sois com Ele Criador e Senhor absoluto de todas as coisas. Em seguida Jesus Cristo, com o fim de premiá-lo por sua fé, chamou-o
de bem-aventurado, dando-lhe depois os motivos porque desde o dia que o havia seguido, lhe tinha mudado o nome de Simão pelo de Pedro, assim falando: "Tu és Pedro
e sobre esta pedra, edificarei a minha Igreja". Do mesmo modo Deus mudou o nome de Abrão para Abraão quando estabeleceu que ele seria o pai de todos os crentes;
o de Sarai em Sara quando lhe prometeu o nascimento prodigioso de um filho; e o de Jacó em Israel quando lhe garantiu que de sua estirpe nasceria o Salvador.
 
Jesus outrossim chamava bem-aventurado a São Pedro, porque tudo o que este tinha dito não lhe tinha sido revelado pelos homens, senão por seu Pai celeste. Aqui transluz
a divina assistência à pessoa de São Pedro desde o mesmo instante em acabava de ser eleito o chefe da Igreja; assistência que continuou por toda a sua vida e que
continuará nos romanos Pontífices até a consumação dos séculos.
 
Jesus disse em seguida: "Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Com estas palavras quis dizer: Tu, ó Pedro serás na Igreja o que nos edifícios são os alicerces;
os alicerces constituem a parte principal, a mais indispensável de uma casa, visto sobre eles descansar todo o edifício; assim também tu, ó Pedro serás o fundamento
da minha Igreja, isto é, exercerás nela a autoridade suprema que te outorgo, a Igreja se conserve, e permaneça firme e inabalável. Sobre ti, a quem eu chamei Pedro,
como sobre uma rocha e uma pedra firmíssima, por minha virtude eterna, eu levanto o edifício eterno da minha Igreja, que descansando sobre ti, será forte e invencível
contra todos os ataques de seus inimigos.
 
assim como não há edifício sem base, assim também não há Igreja sem Pedro. Uma casa sem alicerce não pode ser erguida, e se o é, precipita-se ao primeiro impulso;
assim também toda a Igreja que se quiser erigir sem Pedro não poderá erguer-se, e se o fizer cairá ao primeiro sopro. Nos edifícios as partes que não descansam sobre
os alicerces desabam e caem, assim também na minha Igreja todo aquele que se separa de Pedro precipita-se no erro e se perde.
 
Portas do Inferno - As portas do Inferno são constituídas pelo poder de Satanás e representam as perseguições, as heresias, os erros, os esforços e as artimanhas
que emprega o demônio para deitar por terra a Igreja. Todas estas potências infernais, juntas ou separadas poderão, sim, declarar guerra aberta à Igreja, obriga-la
a estar sempre sob as armas, e por no caminho da perdição os que não forem suficientemente humildes, mortificados e vigilantes na oração; mas nunca poderão vencê-la,
antes com todos os seus esforços não conseguirão mais do que aumentar a glória da Esposa do Redentor.
 
Chaves do Paraíso - Jesus Cristo disse finalmente: "Eu te darei as chaves do reino dos céus". As chaves são o símbolo do poder. Quando o vendedor de uma casa entrega
as chaves ao comprador dá-lhe com elas a posse plena e absoluta da mesma casa; assim também quando se apresentam a um Rei as chaves de uma cidade simboliza-se com
isto que a cidade  o reconhece como Soberano; assim pois o haver entregue Nosso Senhor a Pedro as chaves do Reino dos Céus significa que ele foi feito dono, príncipe
e governador supremo da Igreja. Por isso Nosso Senhor Jesus Cristo continuou dizendo a Pedro: "Tudo o que atares na terra será atado no Céu; e tudo o que desatares
na terra também será desatado no Céu".
 
Estas palavras põem em manifesto a suprema autoridade que foi dada a São Pedro; autoridade que obriga a consciência dos homens com decretos e leis em ordem a seu
bem espiritual e eterno; e por meio da qual se absolvem os pecados e as penas que impedem conseguir esse mesmo bem espiritual e eterno. É bom notar aqui que também
os outros Apóstolos receberam de Jesus Cristo a faculdade de atar e desatar (Mt. c. 17). Mas esta faculdade não lhes foi conferida senão depois de terem sido ditas
a São Pedro as palavras magníficas que precedem, para que compreendessem que sua autoridade devia permanecer subordinada à de São Pedro, que foi feito seu príncipe
e seu chefe, o qual também fora encarregado de conservar a unidade da fé e da moral. Por isto os demais Apóstolos e todos os Bispos que lhes sucedem devem depender
de Pedro e dos Papas que também lhe sucedem para assim permanecerem perpetuamente unidos a Jesus Cristo, que do Céu assistirá seu Vigário e toda a Igreja até o fim
dos séculos.
 
Primado de São Pedro e de seus sucessores - Tendo ressuscitado o Salvador, antes de subir ao Céu, entregou de fato a São Pedro a faculdade que lhe havia prometido.
Aparecendo a seus discípulos no lago de Genesaré, depois de ter tomado com eles algum alimento para que melhor se assegurassem de sua ressurreição, dirigiu-se a
Pedro e disse: "Simão filho de João, me amas tu?" "Senhor, respondeu Pedro, Vós bem sabeis que eu vos amo" Jesus lhe disse: "Apascenta meus cordeiros". O Senhor
tornou a perguntar: "Simão filho de João, me amas tu?" "Senhor, respondeu incontinente São Pedro, Vós bem o sabeis que vos amo". Jesus lhe disse: "Apascenta meus
cordeiros". Jesus lhe perguntou pela terceira vez: "Simão Pedro, me amas tu mais do que estes?" Pedro, vendo que o interrogava três vezes sobre o mesmo assunto,
perturbou-se. Nesse momento lembrou-se das promessas que outra vez lhe tinha feito e a que tinha faltado, temeu por isto que Jesus Cristo não gostasse de seus protestos,
como se quisesse predizer-lhe coisas futuras. assim, pois, com a maior humildade, afirmou: "Senhor, Vós sabeis tudo, meu coração vos é manifesto e por isso Vós também
sabeis que vos amo." São Pedro naquele momento, estava seguro da sinceridade de seus afetos, mas não o estava igualmente para o futuro. Jesus que bem sabia o desejo
que São Pedro tinha de amá-lO, e a fraqueza de seus afetos, consolou-o dizendo: "Apascenta minhas ovelhas".
 
Com estas palavras Jesus Cristo constitui São Pedro príncipe dos Apóstolos, pastor universal da Igreja e de todos os cristãos; porque todos os fiéis cristãos, espalhados
por todas as partes do mundo e simbolizados pelos cordeiros, devem estar sujeitos ao chefe da Igreja, como os cordeiros estão a seus pastores; e as ovelhas simbolizadas
pelos Bispos e demais ministros sagrados, posto que dão alimento da doutrina celestial aos fiéis cristãos, devem fazê-lo estando sempre em boa harmonia, unidos e
submissos ao Supremo Pontífice, Vigário de Jesus Cristo na terra.
 
Apoiados nestas palavras de Jesus Cristo, os católicos têm acreditado como verdade de fé que São Pedro foi constituído por Jesus Cristo, seu Vigário na terra, e
chefe supremo e visível da Igreja, e que recebeu d'Ele a plenitude da autoridade sobre os demais Apóstolos e sobre todos os fiéis.
 
É claro, pois, que a autoridade de Pedro deve durar enquanto durar a Igreja, isto é, até o fim dos séculos, pois que é certo que os alicerces devem durar o mesmo
tempo que dura o edifício que sobre ele descansa; e por isso, depois de Pedro, sua autoridade passará a seus sucessores, que são os Romanos Pontífices. Esta verdade
se acha explicitamente exposta em centenas de documentos da antiguidade cristã, e, entre outros, encontra-se formalmente declarada no Concílio Florentino nas seguintes
palavras: "Nós definimos que a anta Sé Apostólica, e o Romano Pontífice é o sucessor do Príncipe dos Apóstolos, o verdadeiro Vigário de Cristo, o chefe supremo de
toda Igreja, o mestre e o pai de todos os cristãos: e que a ele, na pessoa do bem-aventurado Pedro, foi dado, por Nosso Senhor Jesus Cristo, pleno poder de apascentar,
reger e governar a Igreja universal.
 
Infalibilidade dos Sumos Pontífices - Querendo São Pedro corresponder a tantas provas de benevolência, e demonstrar ao mesmo tempo sua gratidão ao Divino Salvador,
havia declarado várias vezes que estava pronto a dar sua vida por Ele. Não obstante isto, o Divino Mestre o advertiu que não confiasse em suas próprias forças, mas
sim no auxílio da divindade. Disse-lhe em seguida que cairia por fraqueza, assegurando-lhe sem embargo que depois se levantaria; encarregou-o de cuidar de seus irmãos
e de conservá-los firmes na fé: "Tenho pedido por ti, ó Pedro, disse-lhe Jesus, para que não falte tua fé; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos". <<Rogavi
pro te, Petre, ut non deficiat fides tua, et tu aliquando conversus confirma fratres tuos.>> (Luc. Cap. 22)
 
Com estas palavras o divino Salvador prometeu uma particular assistência ao chefe da Igreja, em virtude da qual nunca faltará sua fé, antes ao contrário contribuirá
para fortalecer aos demais pastores. Com elas assegurou a São Pedro o dom da infalibilidade, isto é, o preservou do perigo de errar nas coisas que concernem à fé
e aos costumes; porque disse a São Pedro que tinha pedido para que nunca faltasse sua fé: assim sendo, quem poderá por em dúvida que a oração de Jesus Cristo tenha
sido ouvida? E certamente nosso divino Salvador, assegurou a São Pedro que sua prece tinha sido plenamente escutada: por isso como legítima consequência o encarregou
de confirmar na fé os demais Apóstolos. Não se pode, pois, por em dúvida a infalibilidade de Pedro e de seus sucessores, sem afirmar que não foi ouvida a oração
do Salvador, absurdo que nunca poderá ser afirmado por um católico. Apoiados pois, os católicos de todos os tempos e de todos os lugares, nesta promessa de Jesus
Cristo, sempre tem acreditado com muito poucas exceções, que o Romano Pontífice, como sucessor de São Pedro, é infalível nas sentenças que profere em matéria de
fé e de moral. Esta verdade foi depois definida na sessão 11ª do Concílio do Vaticano (Vaticano I), como um artigo que devia necessariamente ser acreditado para
se obter a salvação eterna.
 
Eis as suas palavras: " Nós definimos, que o Romano Pontífice quando fala ex cathedra, isto é, quando no exercício do cargo de pastor e mestre de todos os cristãos,
por sua suprema autoridade apostólica, define alguma doutrina acerca da fé ou dos costumes para norma de toda a Igreja pela divina assistência que lhe foi prometida
na pessoa do Bem-aventurado Pedro, goza da mesma infalibilidade, que o divino Redentor quis dar à Igreja nas definições das doutrinas acerca da fé ou dos costumes.
Pelo que estas definições do Romano Pontífice são por si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis. Que se alguém ousar contradizer esta nossa definição,
do que Deus nos guarde, seja excomungado".
 
CAPÍTULO III
 
Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo; os Apóstolos no Cenáculo - Vinda do Espírito Santo - Primeira pregação de São Pedro - Primeiro milagre de São Pedro - Primeiros
Cristãos e primeiros diáconos - Perseguição em Jerusalém - Martírio de Santo Estevão e São Tiago Maior; São Pedro livre do cárcere.
 
Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo; os Apóstolos no Cenáculo - O Salvador empregou os três últimos anos de sua vida mortal na pregação do Evangelho, observando
rigorosamente todos os preceitos e conselhos que impunha aos outros, e confirmando sua doutrina com os maiores milagres. Dava vista aos cegos, ouvidos aos surdos,
a palavra aos mudos, a saúde aos enfermos, e a vida aos mortos; porém a nação judaica correspondeu a tão assinalados benefícios com a mais negra ingratidão, e com
suas ameaças e gritos impeliu Pilatos a condená-lo à morte, e morte de Cruz. Jesus permaneceu cerca de três dias no sepulcro, ao cabo dos quais ressuscitou glorioso
e triunfante. Deteve-se ainda quarenta dias com seus Apóstolos para melhor os confirmar na fé e esclarecer-lhes as coisas tocantes ao Reino de Deus. Dando assim
cabal cumprimento à obra de redenção do gênero humano, estando no cume do Monte das Oliveiras, subiu aos Céus, em presença dos Apóstolos e de sua querida Mãe. Os
discípulos obedecendo às ordens que tinham recebido de seu divino Mestre, voltaram à Jerusalém e aí se retiraram para o Cenáculo: (chama-se assim um salão que servia
de refeitório ao dono da casa, mas que por obra dos Apóstolos foi transformado no primeiro templo cristão.) Ali juntamente com Maria Santíssima e outros fiéis, cujo
número chegava a aproximadamente 120, perseveravam na oração, esperando a vinda do Espírito Santo, como Jesus Cristo lhes havia prometido.
 
Naquela santa comunidade São Pedro, pela primeira vez usou daquela suprema autoridade de que o havia investido Jesus quando o constituiu chefe da sua Igreja: dirigindo-se,
pois, à multidão ali reunida disse: "Varões irmãos; era necessário que se cumprisse a Escritura que predisse o Espírito Santo pela boca de Davi acerca de Judas que
foi o chefe dos que prenderam Jesus. Mas ele já recebeu recompensa de sua iniquidade: enforcando-se em uma árvore, rebentou pelo meio e se derramaram todas suas
entranhas; porém como foi predito que outro devia substituí-lo no Apostolado, é mister que elejamos a um dos que permaneceram conosco durante todo tempo que o Senhor
viveu em nossa companhia."
 
Todos aprovaram unânimes a proposta do príncipe dos Apóstolos, e lhe apresentaram dois varões conhecidos por sua virtude e santidade: chamavam-se um Matias e outro
Barnabé. Depois de ter pedido ao Senhor que desse conhecer qual dos dois havia escolhido para seu Apóstolo, deitaram a sorte e esta caiu sobre Matias que foi agregado
aos Apóstolos.
 
Vinda do Espírito Santo - Já haviam passado dez dias da Ascensão do Salvador, e então justamente a nação judaica celebrava a festa de Pentecostes, isto é, o dia
quinquagésimo da saída do povo de Israel, do Egito.
 
Os Apóstolos juntamente com os demais discípulos continuaram no seu retiro perseverando na oração; pelas nove horas da manhã, ouviu-se de repente um estrondo, assim
como o sibilo de um vento impetuoso, e ao mesmo tempo apareceram chamas semelhantes a línguas de fogo, que foram pousar visivelmente sobre a cabeça de cada um deles.
Desde esse momento todos ficaram cheios dos dons do Espírito Santo e começaram a falar diversas línguas que antes ignoravam, das quais se valeram para publicar as
maravilhas neles operadas e ensinar as verdades do Evangelho.
 
Primeira pregação de São Pedro - Achava-se então Jerusalém cheia de um grande número de judeus que tinham vindo para celebrar a festa de Pentecostes. Muitos dos
que tinham ouvido o estrondo daquele vento impetuoso se dirigiam no mesmo instante para o Cenáculo, e ouvindo aos Apóstolos, antes homens rudes e ignorantes, falarem
ao mesmo tempo idiomas de tantas nações, não sabiam compreender o que estavam vendo. São Pedro  conhecido até então como um pobre pescador, depois de recebido o
Espírito Santo, sentiu-se cheio de tal força e valor, que não hesitou em apresentar-se ao público e pregar a divindade de Jesus Cristo aos mesmos que poucos dias
antes a gritos o tinham condenado à morte.
 
"Irmãos, lhes disse, ouvi com atenção minhas palavras. O que vedes é o cumprimento da profecia de Joel: sucederá nos dias futuros, disse o Senhor, que eu derramarei
meu Espírito sobre todos os homens, e profetizarão vossos filhos e vossas filhas, e vossos jovens terão visões, e vossos anciãos terão sonhos. Todo aquele que invocar
o nome do Senhor será salvo.Varões de Israel, ouvi! A Jesus Nazareno, varão provado por Deus no meio de vós, com virtudes e prodígios, e sinais que Deus obrou por
Ele no meio de vós, como também vós o sabeis: a este que por determinado conselho e presciência de Deus vos foi entregue, matastes crucificando-o pelas mãos dos
malvados. Deus porém o ressuscitou porque Davi disse dele: Não deixarás minha alma no sepulcro, nem permitirás que teu Santo veja a corrupção. Davi não falava de
si próprio, porque morreu e foi enterrado, e seu sepulcro está no meio de nós até hoje. Sendo pois profeta, e sabendo que com juramento havia Deus jurado que um
de sua estirpe se assentaria em seu trono, prevenindo-lhe falou da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não foi deixado no sepulcro, nem sua carne viu
a corrupção. A este Jesus ressuscitou Deus, do que somos testemunhas todos nós. assim exaltado pela destra de Deus e tendo recebido de seu Pai a promessa do Espírito
Santo, derramou este sobre nós, assim como vedes e ouvis. Saiba logo toda casa de Israel com maior certeza que Deus fez Senhor e Salvador de todos, a este Jesus,
a quem vós crucificastes".
 
Este admirável discurso, fecundado pela graça de Deus, deu como resultado a conversão de umas três mil pessoas.
 
Primeiro milagre de São Pedro -  Na tarde desse mesmo dia, São Pedro e São João se dirigiam ao templo para fazer oração. Chegando à porta da Casa do Senhor, reparou
São Pedro num infeliz coxo de nascimento, que não podendo servir-se de suas pernas, para ali fazia-se levar todos os dias pra pedir esmola. São Pedro compadecido
dele, o olhou e disse-lhe: " Não tenho prata nem ouro, mas dou-te o que tenho: Em nome de Jesus Nazareno levanta-te e anda". O coxo se levantou; no mesmo instante
se consolidaram as pernas e cheio de alegria começo a caminhar.
 
Em um momento correu pela cidade toda a fama de semelhante milagre, e o povo aglomerou-se ao redor de São Pedro para ouvi-lo falar, aproveitou-se da ocasião para
pregar pela segunda vez, e o fez com tanta eficácia que mais de cinco mil pessoas, sem contar as mulheres e as crianças, decidiram-se a receber o batismo. Deste
modo a Igreja, em breve tempo, pode reunir em seu seio mais de oito mil fiéis, número que foi crescendo desde aquele dia. (Ano 30).
 
Primeiros Cristãos e primeiros diáconos - Maravilhosa era a vida que levavam os primeiros cristãos. Achavam-se estes de tal sorte unidos entre si, que conforme expressão
da Sagrada Escritura, formavam um só coração e uma só alma. Não havia nobres entre eles, porque os ricos vendiam suas propriedades e entregavam o dinheiro aos Apóstolos
para que repartissem conforme as necessidades de cada um; escutavam com grande cuidado a Palavra de Deus; eram perseverantes na oração e assistiam com muita frequência
à fração do pão, isto é, à participação da Sagrada Eucaristia. assim era com esses homens, há pouco intemperantes, ambiciosos, avarentos e voluptuosos, ao conhecerem
as verdades do Evangelho, confortados pela graça divina, se tornavam humildes e mansos de coração, castos, mortificados, desprendidos dos bens terrestres e dispostos
a dar a vida pelo nome de Jesus. Aumentando em seguida prodigiosamente o número dos crentes, os Apóstolos já não podiam atender as todas as necessidades que reclamava
a sociedade nascente. Por isso determinaram nomear, conforme as instruções que tinham recebido do Divino Mestre, sete diáconos ou ministros auxiliares, escolhendo-os
entre os que se sobressaiam em virtude e graça do Espírito Santo. Repartir as esmolas, cuidar das viúvas e dos órfãos, assistir aos ágapes, eram atribuições dos
Diáconos, que em certas circunstâncias também podiam administrar o Sacramento do Batismo, e distribuir a Santa Eucaristia; mais tarde se lhes confiou igualmente
a pregação da Palavra divina.
 
Perseguição em Jerusalém - Conquanto os Apóstolos pregassem a religião mais pura e santa que jamais viram os séculos, não obstante, desde o princípio da sua pregação,
tiveram de lutar com gravíssimas dificuldades, suscitadas especialmente por parte dos judeus. O povo em massa abraçava a fé e também muitíssimos magnatas; porém
os chefes da Sinagoga e os Fariseus, insensíveis aos milagres, à inocência de vida, e à santidade da doutrina dos Apóstolos e seus discípulos, declararam contra
eles a mais encarniçada perseguição. Começaram por atacar os Apóstolos; mas vencidos por eles, os denunciaram às autoridades que os mandaram açoitar cruelmente e
lhes proibiram a pregação da doutrina de Jesus Cristo. Os Apóstolos responderam com sossego e valor: "É mister obedecer a Deus antes que aos homens". Contentes porque
foram julgados dignos de padecer por seu Mestre, adquiriram novas forças; os mesmos açoites lhes inspiravam novos brios e valor.
 
Martírio de Santo Estevão e São Tiago Maior; São Pedro livre do cárcere - Santo Estevão, um dos sete diáconos, foi a primeira vítima desta perseguição, sendo ao
mesmo tempo o primeiro mártir da fé. Distinguia-se dentre os outros, pelos muitos milagres que fazia entre o povo e por seu extraordinário saber. Os judeus queriam
disputar com ele sobre o Evangelho, porém sempre ficavam confundidos porque ninguém podia resistir ao Espírito Santo que falava por sua boca. Por isto se irritaram
tanto seus inimigos que o arrastaram fora da cidade e o apedrejaram. Enquanto caia sobre ele uma chuva de pedras, imitando seu Divino Mestre, orava pelos que o apedrejavam
dizendo: "Ó Senhor Jesus, perdoa-lhes este pecado", e assim falando, dormiu no Senhor. Chama-se Protomártir, porque foi o primeiro mártir da Igreja que deu a vida
por amor a Jesus Cristo. Pouco depois por ordem de Herodes cortaram a cabeça de São Tiago. Vendo esse rei que perseguindo os cristãos agradava aos judeus, também
mandou por em prisão São Pedro, para dar-lhe a morte depois das solenidades da Páscoa; porém um anjo enviado por Deus o livrou milagrosamente na noite que precedia
o dia do suplício. assim ficaram burlados os planos de Herodes.
 
O primeiro perseguidor dos Cristãos sobreviveu pouco tempo aos mártires que havia sacrificado. Acometido de agudíssimas dores intestinais, deixou de existir no mesmo
momento em que vis aduladores proclamavam suas glórias chegando a ponto de o chamarem deus.
 
CAPÍTULO IV
 
São Paulo e sua conversão - Santa Tecla - Cornélio o Centurião abraça a fé - Simão Mago.
 
São Paulo e sua conversão - Com a morte de Herodes cessou por algum tempo a perseguição de Jerusalém. Por este mesmo tempo realizou-se a conversão de São Paulo m
dos mais cruéis perseguidores dos cristãos, conhecido até então pelo nome Saulo. Era ele natural de Tarso, capital da Cilícia; seus pais eram judeus da tribo de
Benjamin. Dotado de engenho preclaro e de um caráter ardente e empreendedor, foi enviado a Jerusalém para seguir seus estudos sob a direção de um célebre doutor
da lei chamado Gamaliel. Este era Fariseu, isto é, pertencia àquela seita de judeus que se dedicavam especialmente à observância e ao estudo profundo da lei, enquanto
que sua piedade não era mais do que uma simples exterioridade.São Paulo teve parte na morte de Santo Estevão, pois que ele guardava as roupas dos que o apedrejavam;
por isto, como observa Santo Agostinho, era de certo modo tão culpável quanto os que apedrejaram. Mas Santo Estevão morrendo rogara por ele, e Deus, que é dono dos
corações, e querendo pode transformar um Tigre feroz num mansíssimo cordeiro, ouviu a oração do primeiro mártir e obrou aquele grande milagre da conversão de Saulo.
Eis como se realizou: com o fim de perseguir os cristãos com maior autoridade e com maior êxito, Saulo conseguira cartas do grande Sacerdote de Jerusalém, em que
era autorizado a se por à frente de certo número de soldados para ir em busca dos cristãos na cidade de Damasco e levá-los a Jerusalém atados com cordas. Cheio de
ódio e furor já havia percorrido a maior parte da viagem, quando de repente viu-se rodeado de uma luz mais brilhante que a do Sol e ouviu uma voz que lhe disse:
" Saulo, Saulo, porque me persegues"? Saulo ferido por aquelas palavras como por um raio, caiu por terra e com voz trêmula, respondeu: "Quem sois vós, Senhor?" A
voz continuou: " Eu sou Jesus a quem tu persegues. É duro para ti recalcitrares contra o aguilhão". "Que quereis que eu faça, Senhor?" Perguntou Saulo. "Levanta-te,
acrescentou a voz, entra em Damasco, e ali ser-te-á dito o que hás de fazer". Saulo levantou-se e abrindo os olhos conheceu que estava cego, de modo que teve que
fazer-se levar à cidade por seus companheiros. Ali recebeu o Batismo das mãos de um discípulo chamado Ananias. Enquanto se lhe administrava este Sacramento, caíram
de seus olhos umas como escamas e tornou a ver como dantes; então cheio de gratidão para com Deus, começou a pregar com grande zelo o Evangelho.
 
Os que tinham conhecido o furor de Paulo em perseguir os cristãos ficaram admirados à vista daquela mudança tão repentina; porém ele, vencendo todo respeito humano,
não prestava ouvido ao que dizia o povo e discutia com os judeus, provando-lhes com a Sagrada Escritura e com os milagres, que Jesus Cristo era o Messias prometido
pelos profetas, enviado por Deus para salvar os homens. A Igreja Católica comemora anualmente a 25 de janeiro o portentoso acontecimento da conversão de São Paulo.
 
Santa Tecla - Entre os primeiros frutos da pregação de São Paulo conta-se a conversão de Santa Tecla, que sofreu grandes e atrozes tormentos por confessar sua fé.
Conquanto por virtude divina, eles não lhe causassem a morte, considera-se entretanto, como a primeira mulher que ganhou a palma do martírio. Nasceu em Icônio, de
pais nobres; na idade de 18 anos foi prometida a um jovem rico daquela cidade; porém ouvindo ela os sermões de São Paulo enamorou-se de tal modo da virtude da virgindade,
que renunciou de bom grado àquela vantajosa oferta. O jovem que pretendia a sua mão empregou todos os meios a seu alcance para fazê-la mudar de propósito; mas em
vão. Vendo-se enganado transformou seu amor puramente sensual em ódio, e conseguiu fazer padecer à Santa virgem os mais cruéis tormentos porque ela professava a
fé cristã. Foi atirada à fogueira ardente; porém fazendo o sinal da Cruz caiu do céu uma prodigiosa chuva que apagou o fogo. Atiraram-na depois aos touros, às feras
e, por virtude divina sempre saiu intacta de todos os tormentos. Depois disto ainda viveu em paz por muitos anos, em sua pátria, até que cheia de méritos subiu ao
seu Esposo Celeste na idade de noventa anos.
 
Cornélio o Centurião abraça a fé - A maior parte dos que até então tinham abraçado a fé eram judeus, ou gentios que já tinham começado a pertencer ao povo judeu
submetendo-se à circuncisão. Mas, querendo Deus chamar todas as nações ao conhecimento da verdadeira religião segundo as divinas promessas, começou por derramar
suas bênçãos sobre a família de um Centurião romano chamado Cornélio. Morava ele em Cesaréia, cidade marítima do Mediterrâneo; era amado de todos por sua probidade,
temia a Deus, fazia abundantes esmolas, e orava frequentemente. Um dia enquanto estava em oração, apareceu-lhe um anjo e lhe disse: "Tuas orações e tuas esmolas
subiram até o Trono de Deus. Eis o que deves fazer: manda alguém à cidade de Jope em busca de Simão apelidado Pedro. Ele te ensinará o que deves fazer para salvar-te".
assim que acabou de ouvir estas palavras, Cornélio enviou três de seus servos a Jope. Já estavam eles perto da cidade quando Deus por meio de uma visão fez conhecer
a Pedro que tanto os judeus como os gentios eram chamados a seguir o Evangelho; por isto o Príncipe dos Apóstolos partiu sem hesitar no outro dia com eles. Durante
esse tempo o piedoso Cornélio reunira em sua casa os amigos e conhecidos para receber o Santo Apóstolo; e apenas o viu, ajoelhou-se humildemente em sua presença.
Pedro o levantou, entrou com ele em sua casa e começou a instruir na fé todos os que se achavam ali reunidos. Aida estava falando, quando o Espírito Santo baixou
em forma sensível sobre seus ouvintes e lhes comunicou o dom das línguas, do mesmo modo que havia acontecido no Cenáculo de Jerusalém. Por este motivo, Pedro incontinente
os batizou e foram estes os primeiros gentios batizados sem ter sido antes circuncidados.
 
Simão Mago - Acredita-se que o primeiro que começou a difundir erros contra a fé cristã, foi um samaritano chamado Simão, e apelidado de Mago pelos sortilégios que
operava para enganar o povo. Fingindo-se sequaz do Evangelho, conseguiu ser batizado; em seguida apresentou-se a São Pedro para comprar com dinheiro o poder de fazer
milagres do mesmo modo que ele os fazia. Negou-se Pedro horrorizado e lhe respondeu: "teu dinheiro pereça contigo, porque com ele acreditaste poder comprar os dons
do Espírito Santo". Por isso declarou-se inimigo dos cristãos e empregou toda espécie de artes e engano para opor-se aos progressos da fé. Também foi a Roma para
semear seus erros entre aquele povo mergulhado ainda na idolatria; mas querendo dar provas de seu poder elevando-se no ar sustentado visivelmente pelos demônios,
São Pedro e São Paulo fizeram oração a Deus, e o infeliz Simão caiu vertiginosamente em terra e se fez em pedaços pondo-se em manifesto a impostura.
 
CAPÍTULO V
 
Separação dos Apóstolos e seu Símbolo de Fé - Livros do Novo Testamento - Morte de Maria Santíssima - Milagres de São Pedro - Concílio de Jerusalém - Perseguição
de Nero - Martírio de São Pedro e São Paulo.
  
Separação dos Apóstolos e seu Símbolo de Fé - Os Apóstolos começaram a pregar o Evangelho na Judéia, não separando-se muito uns dos outros; porém quando reconheceram
que tinha chegado o tempo de levar a luz da verdade a todas as nações, determinaram, separar-se, repartindo-se o mundo, por assim dizer, escolhendo uma parte cada
um para exercer o ministério apostólico. antes porém de fazê-lo, reuniram-se e de comum acordo fizeram um compêndio da Religião cristã, que chegou até nós sob o
nome de Símbolo dos Apóstolos e se chama comumente o CREDO. Depois de feito isto, separaram-se para levar o Evangelho a todas as nações. São Pedro ficou cerca de
três anos em Jerusalém, e obrigado pela perseguição, transladou-se para a Antioquia, que era então a capital do Oriente. Nesta cidade cresceu tanto o número dos
fiéis, que para distingui-los dos outros começaram a chamá-los cristãos, que quer dizer sequazes de Jesus Cristo. Desde Antioquia São Pedro ia pregar nas cidades
e povoações vizinhas e depois de sete anos, isto é, no ano 42 da era cristã, foi a Roma. São Paulo levou a fé à Arábia, Ásia Menor, à Macedônia e à Grécia, e depois
foi unir-se a São Pedro na capital do Império Romano. São Tomé pregou em Jerusalém, entre os Partos e nas Índias; São João Evangelista deteve-se especialmente na
Ásia Menor; Santo André evangelizou os Citas e obteve a Palma do martírio em Patras cidade da Grécia; São Felipe foi a Ásia Menor; São Bartolomeu à Armênia, onde
padeceu um martírio atroz, sendo esfolado vivo; São Matheus trabalhou muito para a conversão dos Etíopes e foi coroar seu apostolado com o martírio na Pérsia. São
Tiago, o maior, evangelizou a Judéia e também a Espanha. São Judas Tadeu pregou a fé na Arábia, na Mesopotâmia e na Armênia. assim depois de trinta anos da primeira
pregação do Evangelho por São Pedro em Jerusalém, o verdadeiro Deus tinha adoradores em todas as partes do mundo até então conhecido.
 
Livros do Novo Testamento - Nosso Senhor Jesus Cristo, depois de haver pregado de viva voz sua doutrina, subiu aos Céus sem deixá-la escrita nem reunida em livro
algum ditado por Ele. Por que o fez assim? Para nos ensinar que Ele tinha feito depositários de sua doutrina os Apóstolos, isto é, a Igreja que devia depois explicá-la
aos fiéis: ensinando-nos também que o principal instrumento da sua palavra devia ser a viva voz da sua Igreja. Com efeito, nos primeiros tempos, durante o curso
de não poucos anos, o santo Evangelho foi conservado, ensinado e professado tão somente por meio da palavra viva dos Apóstolos e dos primeiros crentes.  Nosso Senhor
Jesus Cristo querendo, por outra parte, que ao menos uma grande parte da sua doutrina fosse confiada à palavra escrita, por inspiração divina moveu alguns dos Apóstolos
e primeiros discípulos a por escrito sua vida e doutrina; e os livros por eles escritos formam juntos o que nós chamamos de Novo Testamento. Foram estes escritos:
os quatro Evangelhos, escritos por São Matheus, São Marcos, São Lucas e São João; os Atos dos Apóstolos; as quatorze epístolas de São Paulo, duas de São Pedro, uma
de São Tiago, uma de São Judas, e finalmente, três epístolas e o Apocalipse de São João. Estes livros sempre têm sido conservados em grande veneração por todos os
cristãos, pois que foram inspirados por Deus. Sem embargo, como já foi dito, não se acham neles todos os feitos da vida de Jesus Cristo, nem todas as verdades ensinadas
por Ele. As verdades não escritas foram ensinadas e transmitidas pelos Apóstolos e seus sucessores como um sagrado depósito que se chama Tradição divino-apostólica.
A Tradição divino-apostólica contém as verdades que não se encontram escritas nos livros sagrados, a interpretação destes mesmos livros: por isso, quando a Igreja
define um artigo de fé que não está manifesto na sagrada Escritura, o tira desse depósito chamado Tradição. Daí se tirou o dogma da Imaculada Conceição da Bem-aventurada
Virgem Maria e da infalibilidade Pontifícia.
 
Morte de Maria Santíssima - O Doutor da Igreja São João Damasceno narra nestes ou semelhantes termos a morte ou assunção de Maria Santíssima desta vida mortal para
a glória do Céu, que se acredita tenha-se dado aos 62 anos de sua idade e doze depois da Ascensão do seu divino Filho.
 
Tendo chegado o tempo em que Deus queria livrar deste desterro a Rainha dos Anjos, os Apóstolos que se achavam dispersos em diversas partes do mundo pregando o Evangelho,
por virtude angélica encontraram-se todos reunidos em Jerusalém ao redor do leito de Maria juntamente com São Dionísio, bispo de Atenas e de São Timóteo, bispo de
Éfeso. Maria exalou seu último suspiro, não de dor, mas de puro amor de Deus, à semelhança de quem docemente adormece. No mesmo instante ouviu-se naquela habitação
uma salmodia celestial, cujos ecos ressoaram por três dias e ainda continuaram enquanto se levava em procissão seu corpo para o horto de Getsêmani para ser enterrado.
São Tomé não se achava presente quando se deu a preciosa morte de Maria, e tendo chegado ao terceiro dia, pediu  por favor, já que não podia vê-la viva, que ao menos
se lhe permitisse, por uma vez mais venerar seu santo corpo. Com este fim se dirigiu com os outros Apóstolos ao sepulcro: quando chegaram, já tinham cessado os cânticos
celestiais; abriram-no, olharam-no, porém não viram ali o corpo de Maria, mas somente os panos em que o tinham envolvido, os quais ainda exalavam perfumado odor.
Cheios de admiração não puderam acreditar noutra coisa senão que o Deus Verbo, o Senhor da glória, o mesmo que setinha comprazido de encarnar-se na própria pessoa
da Virgem Maria, e tinha-se feito homem conservando intacta a virgindade de sua Mãe, também se tinha comprazido em honrar o seu corpo imaculado depois de sua morte,
conservando-o incorrupto e transportando-o para o Céu antes da ressurreição comum e universal. A Santa Igreja celebra todos os anos, no dia 15 de agosto, a Solenidade
desta maravilhosa Assunção de Maria.
 
Milagres de São Pedro - Os meios principais de que se serviam os Apóstolos para confirmar a doutrina que pregavam era a santidade de vida e os milagres. Os que faziam
São Pedro eram tantos e tão ruidosos que não só no número como em grandeza excediam aos do próprio Redentor: curava os enfermos de toda a classe, que a ele levavam
em tão grande número que quase se tornava impossível aproximar-se dele. Por conseguinte nas praças e nas ruas e em qualquer parte por onde passava levavam-lhe grande
número de enfermos, afim de ao menos os tocasse sua sombra, pois era suficiente para curá-los. Entre outros é maravilhoso o milagre que operou em Jope ressuscitando
uma Santa matrona anciã, chamada Tabita, comumente conhecida pelo nome de mãe dos pobres. Tendo enviuvado, empregou suas grandes riquezas em socorrer os necessitados.
Aflitos estes por terem perdido nela a sua mãe, foram à procura de São Pedro para que viesse ressuscitá-la. Este acudiu logo, e ao chegar à casa da defunta, viu-se
rodeado por uma multidão de pobres, mergulhados na mais profunda dor, os quais lhe mostravam os vestidos e os calçados que Tabita lhes tinha dado para se cobrirem.
Pedro chorou com eles e, cheio de confiança em Deus, aproximou-se do cadáver e disse em voz alta: " Tabita levanta-te!". No mesmo instante Tabita abriu os olhos
e sentou-se. Quando se divulgou a notícia deste milagre, muitos daqueles cidadãos converteram-se à verdadeira fé.
 
Concílio de Jerusalém - Desde o tempo dos Apóstolos quando suscitavam-se questões concernentes à religião, apelava-se para o Chefe da Igreja. Este, nos assuntos
de maior importância e quando achava conveniente, reunia os demais Apóstolos e também os principais eclesiásticos para que lhe ajudassem a conhecer a vontade do
Senhor ou a promulgar e por imediatamente em execução as resoluções que se tomavam.
 
a Sagrada Escritura recorda três reuniões especiais dos Apóstolos em Jerusalém, celebradas com o fim de tratar de alguns assuntos concernentes ao bem dos fiéis:
a primeira vez se reuniram afim de prepararem-se para receber o Espírito Santo, e eleger a São Matias em lugar do traidor Judas; a segunda para escolher os sete
Diáconos; e a terceira, que foi a que se chamou propriamente Concílio, e que serviu de certo modo de modelo aos Concílios que foram celebrados posteriormente  pela
Igreja, foi convocado para se decidir se já tinha chegado o tempo de suprir as cerimônias da lei mosaica, entre as quais se acham a circuncisão e a abstinência de
carne de certos animais. Suscitou-se a questão na cidade de Antioquia, cujo fiéis delegaram a São Paulo e São Barnabé para que fosse consultar a São Pedro, que se
achava então em Jerusalém.
 
São Pedro para definir mais formalmente o ponto, convocou os demais Apóstolos e Eclesiásticos que se achavam em Jerusalém; e tendo se reunido, ele como chefe, pastor
supremo e vigário de Jesus Cristo na terra, propôs a questão, falou acerca do que devia estabelecer-se, e depois de um longo e animado discurso pronunciou a sentença
à qual todos aderiram começando por São Tiago o Menor. Em seguida foi formulado o decreto que devia ser enviado a todos os fiéis, e que é do teor seguinte: "Aprouve
ao Espírito Santo e a nós outros, que não vos se impusesse mais carga do que a necessária, que vos abstenhais do sacrificado aos ídolos, do sangue, do sufocado,
da fornicação, das das quais coisas abstendo-vos, obrareis bem".
 
Convém notar aqui que sendo a fornicação um pecado gravíssimo, proibido pela própria lei natural e pelo sexto preceito do decálogo, parece que não era necessário
renovar a proibição: porém, acreditou-se necessário proibi-la novamente de maneira mais explícita e clara porque os gentios que abraçavam a fé, antes de receberem
as luzes do Santo Evangelho acreditavam que a fornicação não era pecado: tanto se lhes tinha ofuscado a luz da razão! Depois deste discurso já não teve vigor o preceito
da antiga lei (ano 51).
Perseguição de Nero -  No reinado dos imperadores romanos dos três primeiros séculos, desencadearam-se cruéis e sangrentas perseguições contra os cristãos, com o
fim de impedir os progressos do Evangelho; as principais chegam ao número de dez. Para compreender as causas das perseguições é mister advertir, que no império romano
era rigorosamente proibido pregar ou professar novas crenças que não fossem aprovadas pelo Estado: por conseguinte todos os que pregavam ou professavam o Evangelho,
nos países submetidos aos Romanos, expunham-se a um evidente perigo de morte. outra causa destas perseguições era também a freqüente confusão que havia entre cristãos
e judeus, pois a estes últimos queriam destruir. Mas o principal pretexto era constituído pelas graves calúnias com que os pagãos, e especialmente os sacerdotes
dos ídolos acusavam os cristãos para torná-los odiosos diante das autoridades civis. Por estas razões foi perseguida a fé com encarniçamento logo que começou a ser
pregada em Roma. Nero, chamado na História o verdugo do gênero humano, fez incendiar Roma somente pelo prazer de vê-la arder. Este fato, como é de supor-se, excitou
contra ele grande indignação, e este para se ver livre de semelhante crime, culpou aos cristãos e os condenou à morte. Em muito concorreu para que aumentasse sempre
mais o ódio contra os sequazes de Jesus Cristo, o ter as orações de São Pedro e São Paulo causado a ruína de Simão o Mago, e obtido a conversão de muitos do próprio
palácio imperial. Irritado contra eles, o imperador, como leão furioso contra um rebanho de cordeiros, inventou os mais cruéis suplícios para os atormentar, e chegou
a tal ponto sua crueldade, que os próprios pagãos, compadecidos dos cristãos, censuravam seus atos. Com efeito, por um excesso de crueldade, até então desconhecida,
fez cobrir alguns com peles de feras para arrojá-los depois a cães esfaimados e a outros os fez envolver em trapos, coberto de piche e enxofre e atados depois a
postes os fazia acender durante a noite para servirem de luminárias nos jogos dos circos.
Martírio de São Pedro e São Paulo - Os dois mártires mais insígnes da perseguição de Nero foram os príncipes dos Apóstolos, São Pedro e São Paulo. Conhecendo a violência
da perseguição, correram a Roma para administrar os consolos da religião e assistir aos que se achavam em perigo de perder a fé. Acreditando Nero que com a morte
dos chefes dos cristãos eles se dispersariam e já não se falaria deles no mundo, mandou buscá-los e encarcera-los na prisão Mamertina, a mais escura de Roma, que
se achava ao pé do Capitólio. Apesar de metidos em algemas não deixaram os Apóstolos de trabalhar para a salvação das almas, por meio dos sermões converteram os
dois carcereiros Processo e Martiniano e mais quarenta e cinco companheiros seus.
Estes receberam o batismo com água que, a mandado de São Pedro, brotou milagrosamente num canto da prisão, e que ainda em nossos dias continua brotando; todos eles
morreram mártires. Sabedor destas novas, irritou-se ainda mais Nero; ordenou que se desse a morte aos dois Apóstolos, mandando que São Pedro fosse crucificado e
São Paulo decapitado. São Pedro, por humildade, pediu que o crucificassem de cabeça para baixo, e ganhou a palma do martírio no ano 67 da era vulgar, na idade de
86 anos. Sepultaram-no no Vaticano, no mesmo lugar onde,depois, Constantino edificou a grande Basílica de São Pedro. No mesmo dia em que são Pedro subiu ao Céu,
São Paulo foi levado a três milhas de Roma para um lugar denominado Águas Sálvias, onde lhe cortaram a cabeça. Esta caindo por terra, deu três saltos, e em cada
um dos lugares onde tocou, brotaram outras tantas fontes que existem ainda hoje.
 
CAPÍTULO VI
 
São Lino Papa - Morte de Nero - Ruína de Jerusalém e dispersão dos Judeus - Trabalhos e martírio de São Lino.
 
São Lino Papa - Devendo a Igreja de Jesus Cristo durar até a consumação dos séculos e receber em seu seio materno todos os que quisessem se abrigar nele, também
devia ter em todos os tempos um chefe visível que visivelmente a governasse, por isso alguém devia substituir São Pedro no governo da Igreja Universal! O primeiro
sucessor de São Pedro foi São Lino, de Volterra, cidade da Toscana. Enviado a Roma por seus pais para cultivar os estudos, teve a felicidade de ouvir São Pedro que
nesse tempo tinha começado a pregar o Evangelho naquela cidade. instruído na fé por mestre tão distinto, tornou-se muito depressa fervoroso cristão. A virtude, a
ciência e o zelo do discípulo influíram para que São Pedro o consagrasse sacerdote e o escolhesse para companheiro nas suas apostólicas peregrinações. Acredita-se
que quando São Pedro foi ao Concílio de Jerusalém, sagrou bispo a São Lino e o nomeou seu vigário em Roma, enquanto durava sua ausência. à sua volta confiou-lhe
uma importante missão na Gália, que ainda se achava mergulhada na idolatria. Chegando este a Besançon, encontrou próximo às portas da cidade um tribuno chamado Arnósio
o qual lhe falou do seguinte modo: "- Quem és tu e donde vens? - Venho de Itália, respondeu Lino. E para onde vais? - Vim aqui para pregar a religião de Jesus Cristo.
- Que religião é essa?" Lino começou então a falar-lhe da verdadeira fé; desejando porém o tribuno que sua família também ouvisse o novo missionário, levou-o à sua
casa. Ouvindo-o, todos se converteram e a casa de Arnósio se transformou em Igreja. Rebentando pouco depois a perseguição de Nero, Lino voltou a Roma para ajudar
a São Pedro a quem efetivamente acompanhou no cumprimento dos deveres do santo ministério e depois governou a Igreja, durante a prisão dos Príncipes dos Apóstolos.
Também acompanhou ao martírio o seu querido mestre, e depois de sua morte, com a cooperação de São Marcelo e outros fiéis, entre os quais se faz menção de um chamado
Apuleio, o sepultou aos pés do monte Vaticano, junto ao circo de Nero, como lugar mais seguro. Isto prova que entre os comensais deste perseguidor havia cristãos
ocultos, muito fervorosos e poderosos. Acreditasse que São Pedro receando que a Igreja, naqueles tempos calamitosos, ficasse sem pastor, nomeou aos santos Lino,
Cleto, Clemente, e Anacleto para que sucessivamente fizessem suas vezes no pontificado; de acordo com isto São Lino sucedeu a São Pedro no ano 67 da nossa era. Durante
seu pontificado deram-se muitos acontecimentos, entre os quais os mais notáveis são a morte de Nero e a destruição de Jerusalém.
 
Morte de Nero - Este tirano depois de ter posto em jogo toda sorte de crueldades contra os cristãos, caiu no desprezo dos seus súditos, que se rebelaram contra ele
e proclamaram outro imperador chamado Galba. Esta nova causou tal espanto a Nero que fora de si arrojou à terra a mesa sobre que comia, quebrou em mil pedaços os
vasos de grande valor, e deu com a cabeça contra as paredes da casa. Quando lhe foi levada mais tarde, a notícia de que o Senado o tinha condenado à morte, fugiu
de seu palácio durante a noite, começou a correr pela cidade implorando o socorro dos seus amigos; porém estes o rechaçaram, porque os malvados não têm verdadeiros
amigos. Buscando ainda algum meio de salvação, cobriu-se de um grande manto, e montado em um cavalo passou despercebido entre seus inimigos, ao mesmo tempo em que
por todas as partes ouvia-se o grito de "morte a Nero!". Chegando à casa de campo de seu criado chamado Fauno, tratou de esconder-se; porém vendo que ali estava
rodeado de soldados, não sabendo o que fazer para não morrer em público, suicidou-se atravessando a garganta com um punhal. assim morreu esse monstro, cruel entre
os mais cruéis tiranos, e autor da primeira das dez grandes perseguições suscitadas pela política romana contra os cristãos (ano 71 da nossa era).
 
Ruína de Jerusalém e dispersão dos Judeus - A destruição de Jerusalém é um dos acontecimentos mais terríveis que se registram nas páginas da história. Os profetas
tinham predito, com muitos séculos de antecipação, que os Judeus, por sua obstinação por desprezar o Evangelho, e como castigo do deicídio que tinham cometido na
pessoa do Salvador, seriam expulsos dos seus países e viveriam dispersos por todo o mundo, sem rei, sem templos e sem sacerdotes, Jesus em termos ainda mais claros,
também tinha vaticinado que os judeus seriam sitiados em Jerusalém e reduzidos a uma penúria inaudita; que se destruiria sua cidade, se incendiaria seu templo, e
que se dispersaria seu povo; e acrescentou ainda que todas essas coisas se cumpririam antes que morresse aquela geração a que ele falava.
 
Deus, infinitamente, misericordioso, quis avisar mais uma vez aquele povo por meio da pregação, das admoestações dos Apóstolos, e de muitos sinais espantosos que
nos narram vários historiadores entre eles alguns judeus. José Flavio, por exemplo, judeu douto, que teve grande parte naqueles desastres, conta, entre outras coisas,
que no dia de Pentecostes se fez ouvir uma voz no templo, que sem se saber de onde saia, fazia ressoar estas palavras: "saiamos daqui, saiamos daqui". Um homem chamado
Anano que tinha ido da roça a Jerusalém para assistir à festa dos Tabernáculos, ainda antes de que se falasse da guerra, começou a gritar de improviso pelos ângulos
da cidade: "Ai do Templo, ai de Jerusalém! voz do oriente, voz do ocidente, voz dos quatro ventos; ai do Templo, ai de Jerusalém!" Foi preso, encarcerado, e açoitado
quase até a morte; porém nem assim deixou de gritar pela cidade em voz alta as mesmas palavras durante três anos, até que um dia correndo sobre os muros, enquanto
gritava: "Ai de mim mesmo!" foi ferido por uma pedra e morreu.
 
Certa vez, pelas nove da noite resplandeceu ao redor do templo e do altar uma luz tão viva, que pelo espaço de meia hora pareceu estar em pleno dia; outra vez uma
porta do templo, de bronze tão pesada que para move-la eram precisos vinte homens, achou-se aberta por si, e sem que ninguém a tocasse. Alguns dias depois, em todas
as povoações circunvizinhas viram-se no ar, ao redor de Jerusalém, exércitos em ordem de batalha, que cercavam e davam sinais de querer tomá-la de assalto. Apareceu
também um cometa que dardejava chamas com raios, e uma estrela em forma de espada que permaneceu um ano no mesmo lugar, tendo sempre a ponta voltada para a cidade.
Estes sinais pressagiaram que deviam cair sobre Jerusalém graves e iminentes desastres. Com efeito, os romanos sob o mando sucessivo de Vespasiano e de Tito foram,
sem saber, os instrumentos de que se valeu a ira de Deus para cumprir seus desígnios. A Nero, como já foi dito, sucedeu um imperador chamado Galba e a este, outro
chamado Vitélio; ambos foram despojados do trono por seus próprios vícios e sua tirania, e se proclamou em seu lugar a um grande general chamado Vespasiano, Este
amava a justiça, quanto podia amá-la um imperador idólatra, e era querido por todos por sua afabilidade e valor. O próprio Nero já o havia enviado para combater
os judeus; porém quando o elegeram imperador, ele deixou seu filho sob os muros de Jerusalém para que continuasse a guerra, enquanto voltava à Roma.
 
Ainda viviam muitos dos que se achavam presentes à morte do Salvador, quando os exércitos romanos foram sitiar Jerusalém. Como o sítio começasse naqueles mesmos
dias em que se achavam ali reunidos um grande número de judeus que tinham acudido de toda a Palestina e dos países limítrofes para celebrar as festas da Páscoa,
aconteceu que achando-se aquela desgraçada cidade cheia de gente, de pronto começassem a faltar alimentos, chegando a tal extremo a fome que seus habitantes arrancavam-se
uns aos outros das mãos as coisas mais imundas para não morrer. Houve mães que naquele estado de desespero, (coisa horrível!) chegaram a alimentar-se de seus próprios
filhos. Tomada de assalto a cidade, foram mortos um milhão e cem mil judeus, e outros tantos foram reduzidos à escravidão. Estes como não fossem vendidos, por não
haver compradores para tão grande número de escravos, foram em parte doados e outros mortos porque não havia quem os quisesse nem de graça. Destruídas em grande
parte as casas e queimado o templo, todo o povo que se pode salvar da morte ou da escravidão dispersou-se pelas demais cidades; contudo a total dispersão dos judeus
não se realizou até princípios do segundo século. O Papa São Lino pode ver os infelizes judeus escravizados por Tito, chegarem a Roma aos montões, par serem condenados
a penosíssimos trabalhos, entre outros o de erigir um arco do triunfo a seu vencedor. Ainda vê-se presentemente o candelabro com sete braços, tirado do templo de
Jerusalém e o magnífico anfiteatro chamado de Flávio Tito, cujas ruínas admiráveis ainda existem em Roma, e é conhecido sob o nome de Coliseu.
 
São Lino valeu-se deste terrível acontecimento para confirmar na fé os judeus, que se tinham convertido e para atrair a ela os menos obstinados no erro.
 
Trabalhos e martírio de São Lino - São Lino durante dez anos de seu pontificado, além do que trabalho na pregação e propagação do Evangelho, aplicou-se com zelo
em combater os erros de Menandro, Corinto e seus sectários, declarando que não pertencia à Igreja de Jesus Cristo aquele que seguisse seus erros monstruosos.
 
Ainda que tenham sido aqueles tempos de muito fervor, havia alguns que iam à Igreja vestidos como para ir ao teatro; São Lino em vista disto, renovou o preceito
de São Paulo, e estabeleceu que todos deviam ir à Igreja com modéstia, e as mulheres com a cabeça coberta. O zelo e doutrina deste Pontífice enchiam todos de admiração;
o seu nome só, fazia emudecer os demônios,  e com o sinal da Cruz curava frequentemente obstinadas enfermidades. Um homem que havia ocupado o consulado tinha uma
filha perturbada pelo espírito maligno e outros males; recorreu ao nosso santo, e este a curou com o Sinal da Cruz; porém como os sacerdotes dos ídolos diziam que
este milagre injuriava aos deuses, obrigaram ao tímido Saturnino, assim chamava-se o pai da menina, a condenar à morte o santo Pontífice. Este depois de ficar algum
tempo no cárcere, foi decapitado a 23 de setembro do ano 80.
 
 
 
CAPÍTULO VII
 
São Cleto, Segunda Perseguição - São Clemente e o Cisma de Corinto - Terceira Perseguição - Desterro e martírio de São Clemente.
 
São Cleto, Segunda Perseguição - Os cristãos gozavam de alguma tranqüilidade no reinado de Tito e de Vespasiano, posto que ainda não tivessem sido revogados os sangrentos
decretos de Nero pelos quais todo aquele que tinha alguma autoridade podia perseguir, a seu capricho, os fiéis de Jesus Cristo.
 
Domiciano, a quem a história apelida de segundo Nero, ordenou que vigorassem novamente, e com maior rigor as leis de perseguição. No seu reinado São Cleto governou
a Igreja doze anos. Este Pontífice nasceu em Roma, e ali o instruiu São Pedro na fé; trabalhou muito durante o pontificado deste e o de São Lino. Entre as obras
que se lhe atribuem, acha-se a divisão da cidade de Roma em 25 quartéis ou secções; em cada uma das secções estabeleceu um sacerdote ou na sua falta um diácono,
para que cuidasse das necessidades espirituais e temporais dos fiéis. Achava-se ocupado em propagar o Evangelho dentro e fora da cidade de Roma, quando Domiciano
ordenou que se buscasse o chefe dos cristãos e que se lhe desse a morte. A impaciência do tirano em dar-lhe a morte poupo-lhe muitos e grandes suplícios; martirizaram-no
no ano de 93. Autores dignos de fé dizem que São Cleto foi o primeiro que usou a fórmula: <<Saúde e benção apostólica>>, com que os Papas soem começar suas cartas.
 
São Clemente e o Cisma de Corinto - O quarto Pontífice é São Clemente; este era filho de um Senador romano chamado Faustino. Foi eleito para governar a Igreja depois
do martírio de São Cleto. Entre as belas instituições deste Pontífice conta-se a dos notários ou escreventes, que se encarregavam de escrever com o maior cuidado
a ordem dos sofrimentos dos mártires, e de todas as coisas que eles diziam ou faziam em presença dos juizes ou dos imperadores: esses escritos chamavam-se "Atas
dos mártires". Causou-lhe muitos trabalhos e sofrimentos o cisma de Corinto, onde as discórdias intestinas tinham chegado a tal ponto que muitos dos fiéis, negando-se
a acatar a autoridade da igreja, pretendiam eleger e consagrar sacerdotes à sua vontade. Crescendo o mal, pensou-se em apelar para a Igreja de Roma, mãe e mestra
de todas as outras Igrejas, por uma extensa carta dirigida ao Sumo Pontífice. São Clemente depois de ter lido, respondeu aos Coríntios outra que constitui um importante
documento da antiguidade cristã, e que como tal convém seja conhecida em seus pontos principais: " À Igreja de Deus que está em Roma, à de Corinto e aos chefes que
são chamados e santificados pela vontade de Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a graça do Senhor onipotente se aumente sempre em vós." Fala-lhes em seguida da
paciência, da doçura e dos benefícios de Deus criador, e continua da maneira seguinte: " Se considerarmos quanto Deus está próximo de nós, e como nenhum pensamento
pode ficar-lhe oculto, devemos certamente tratar de não fazer o que é contrário à sua Divina Vontade, e sujeitarmo-nos ao que Ele colocou sobre nós: devemos refrear
nossa língua e dominá-la com o amor do silêncio." Segue recomendando-lhes que fujam do ócio e da moleza porque somente quem trabalha tem direito à vida, e continua
assim: "Portanto devemos fazer com zelo todo o bem que pudermos, porque Deus Criador se compraz em nossas obras. Cada um permaneça na ordem e no grau em que Deus
por sua bondade o colocou. O fraco respeite o mais forte, o rico socorra o pobre, e o pobre bendiga a Deus pelo modo com que o provê. O sábio faça conhecer a sua
sabedoria não por palavras, porém por boas obras. O humilde não fale com jactância de si mesmo, nem faça alarde de suas ações. Quem for casto não se orgulhe, pois
o dom da castidade não provém dele. Os grandes não podem existir sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes. No corpo humano a cabeça nada pode sem os pés,
nem os pés sem a cabeça. O corpo não pode passar sem o serviço dos mais pequenos membros". Expõe em seguida as virtudes e as obrigações próprias de todo o cristão
para conservar mutuamente a caridade, e passa a fazer-lhes esta doce admoestação. "Porque há entre vós divisões e rixas? Acaso não temos todos igualmente o mesmo
Deus, o mesmo Jesus Cristo, o mesmo Espírito de graça derramado sobre nós, a mesma vocação em Jesus Cristo? Porque pois sendo seus membros fazemos guerra ao nosso
próprio corpo? Somos tão insensatos que esquecemos que uns somos membros dos outros? Vossa divisão, ó fiéis! Tem desanimado alguns, pervertido muitos e nos tem mergulhado
a todos na aflição. Cesse depressa este escândalo, prostremo-nos aos pés do Senhor; supliquemo-lhe com abundantes lágrimas, que nos perdoe e restabeleça a caridade
fraterna."
 
Os Coríntios tinham mandado à Roma um fervoroso cristão chamado Fortunato, para que expusesse à Santa Sé a triste divisão daquela cidade. São Clemente encarregou
o mesmo mensageiro e mais quatro pessoas que levavam a carta, recomendando-lhes que voltassem logo. Concluía a carta dizendo: "Mandai-nos o quanto antes, em paz
com alegria Claudia, Efebo, Valério e Vitão, que vos enviamos com Fortunato para que nos tragam quanto antes a notícia da tão desejada, e por nós tão suspirada,
paz e concórdia; deste modo nós também, mais prontamente gozaremos de vossa tranqüilidade." A carta impressionou tanto o ânimo dos Coríntios , que arrependendo-se
de suas faltas, reconciliaram-se com seus pastores, pediram perdão e veneraram todos as palavras do Vigário de Jesus Cristo que se achava em Roma.
 
Terceira Perseguição - o imperador Trajano, embora elogiado por alguns historiadores, como príncipe sábio e clemente, foi o autor da terceira perseguição. Estamos
certos disto por sua resposta a Plínio, o moço, governador da Bitínia. Escrevera-lhe este uma carta, consultando-o qual a conduta que deveria ter para com os cristãos,
Toda a sua culpa, lhe dizia, consiste em cantar hinos em honra de Cristo; são eles númerosíssimos e os há de idade e condição, nas cidades e nos campos, de forma
que os templos de nossos deuses têm ficado quase desertos. Por outra parte sua conduta é pura e inocente; porém sua pertinácia em não querem acatar as ordens do
imperador no que diz respeito à religião, é bastante para fazê-los dignos do maior castigo.
 
Tal é testemunho que dava um perseguidor dos cristãos do seu número e de sua santidade, Trajano lhe respondeu que não era necessário pena de morte, segundo a lei,
toda vez que fossem acusados ou conhecidos; resposta absurda, porque se os cristãos eram culpados, porque não se devia persegui-los? E se eram inocentes, porque
deviam ser castigados com pena de morte?
 
Desterro e martírio de São Clemente - Entre os mártires que padeceram o martírio no reinado de Trajano, conta-se o Pontífice São Clemente. Como pertencia ele a família
nobre, o imperador quis ter para com ele algumas condescendências; aduziu razões, promessas e ameaças para induzi-lo a abandonar a fé, porém tudo foi em vão. Irritado
o imperador o condenou às minas de Quersoneso Táurico, chamado hoje Criméia. Depois de uma viagem longa e penosíssima, chegou o santo Pontífice ao lugar de seu desterro,
e foi obrigado a trabalhar com uma turma de malfeitores. Muito o consolou a nova de que no meio dos condenados àqueles trabalhos achavam-se cerca de dois mil cristãos,
somente culpados de publicamente terem professado sua fé, os quais desejavam ter entre si um ministro sagrado da Religião.
 
O Pontífice ocupou-se logo de ajudá-los e de prodigalizar-lhe os auxílios da religião, e mitigou não pouco os seus sofrimentos com o seguinte milagre: como não havia
água naqueles lugares, deviam transportá-la com grande trabalho de mais de uma milha de distância. À vista disto, São Clemente rogou a Deus por eles e no mesmo instante,
como nos tempos de Moisés, brotou ali mesmo uma fonte perene de água cristalina, que satisfez as necessidades dos cristãos e dos pagãos. Semelhante milagre operado
em presença de tão grande multidão, comoveu aqueles infelizes desterrados, e um grande número de infiéis abraçou a fé. O imperador, inteirado deste fato, escreveu
ao governador do Quersoneso, ordenando-lhe que reprimisse e fizesse voltar à idolatria os recém-convertidos; porém eles preferiram perder a vida antes de abandonar
sua fé. Ao mesmo Pontífice, que era seu chefe, ataram uma barra de ferro ao pescoço e o atiraram ao Mar Negro. assim concluiu gloriosamente sua vida o quarto Pontífice.,
depois de ter governado a Igreja durante nove anos (anos 100). Conta lenda antiga, que as águas do mar, depois da morte de São Clemente, se retiraram três milhas
para dentro, deixando ver aos fiéis na praia um pequeno templo de mármore que encerrava o corpo do santo mártir. Confirma esta tradição uma pintura antiqüíssima
descoberta há anos em Roma, no subterrâneo da Igreja de São Clemente. (V. s. Efrem Siro).
 
CAPÍTULO VIII
 
Santo Anacleto - São Simeão de Jerusalém - Santo Inácio de Antioquia.
 
Santo Anacleto - No pontificado de Santo Anacleto sucessor de São Clemente, continuavam os estragos da perseguição. O imperador, muito ligado à idolatria, ocupava-se
ele próprio, de vez em quando a interrogar os cristãos, com o fim de confundi-los, e os ameaçava com os mais horríveis tormentos e com a morte mais dolorosa para
faze-los prevaricar. Em tão difíceis circunstâncias São Anacleto empregou os maiores esforços já para que permanecessem firmes na fé os condenados ao martírio, já
para refutar as heresias e preparar missionários para enviar em propaganda do Evangelho. Entre as coisas que fez, conta-se a de ter escolhido um lugar particular
no Vaticano, perto do túmulo de São Pedro, que destinou para sepultura dos Papas, fez além disso edificar uma capela sobre o túmulo dos Príncipe dos Apóstolos com
esta inscrição: In memoriam Beati Petri construxit. Esta pequena Igreja, ampliada mais tarde, é o famoso templo de São Pedro no Vaticano. Santo Anacleto depois de
doze anos de pontificado, terminou seus dias com o martírio. Cortaram-lhe a cabeça por ter ficado firme na fé, no ano 112.
 
São Simeão de Jerusalém - Poucos anos depois de Santo Anacleto concluía também sua carreira mortal São Simeão, bispo de Jerusalém. Durante vários dias fizeram-lhe
padecer horríveis tormentos; porém sendo vão todos esforços que faziam, Trajano o condenou a ser crucificado, tendo 120 anos de idade. assim a última das testemunhas
de vista de nosso Redentor padeceu um mesmo gênero de morte. (ano 114).
 
Santo Inácio de Antioquia - Santo Inácio, bispo de Antioquia era, havia 40 anos, a admiração da grei, que com grandes cuidados conservava na fé no meio das mais
sangrentas perseguições. Trajano que se achava então no Oriente, quis discutir com ele sobre a Religião, porém ficando confundido, ordenou que o prendessem e o conduzissem
à Roma afim de servir no anfiteatro de Flávio, de espetáculo público ao povo, e ser depois pasto das feras. Ouviu Inácio sua sentença com transporte de alegria,
porque ardia de desejo de morrer por Jesus; porém temendo que os fiéis de Roma, por meio de suas orações, obtivessem de Deus a graça que as feras não o devorassem,
escreveu-lhes uma carta muito comovedora, pedindo-lhes que não se opusessem a que ele fosse esmagado quanto antes entre os dentes das feras, como o trigo na roda
do moinho, para que pudesse assim ser digno de reunir-se o mais depressa, qual alvo pão, a Jesus Cristo por todos os séculos.
 
Esta carta que contém palavra as mais honrosas para a Igreja de Roma assim principia: "Inácio, chamado também Teóforo, à Igreja que conseguiu misericórdia na magnificência
do Pai Altíssimo, e de Jesus seu Filho unigênito; à Igreja querida e iluminada pela vontade d'Aquele que quer todas as coisas segundo a caridade de Jesus Cristo
nosso Deus; a qual também preside no lugar das regiões dos Romanos; digna de Deus, digna por decoro, digna de ser chamada bem-aventurada, digna de louvor, digna
de obter tudo o que deseja, castamente digna,que preside à ordem universal da caridade, adornada com o nome de Cristo e do Pai que eu também saúdo em nome de Jesus
Cristo Filho do Pai; aos que, segundo a carne e o espírito, estão unidos em todos os seus mandamentos, cheios da graça de Deus indivisivelmente, e limpos de toda
cor estranha, desejo abundantíssima e incontaminada saúde em Jesus Cristo nosso Deus." Além desta escreveu outras seis cartas cheias de máximas de fé e de caridade;
que formam um dos mais preciosos documentos da antiguidade cristã. Chegando à Roma foi conduzido para o anfiteatro e atirado às feras, que o dilaceraram logo, não
deixando dele mais do que alguns ossos.Estes restos de seu corpo precioso foram levados para Antioquia e depois devolvidos para Roma onde hoje se veneram na Igreja
de São clemente. Seu martírio teve lugar no ano 107. Depois de conhecido isto quem se atreverá a elogiar a |Trajano, como filósofo justo e clemente? E quem não o
colocará antes no catálogo destes tiranos cruéis, violadores dos mais sagrados direitos da justiça?
 
CAPÍTULO IX
 
Santo Alexandre 1º em presença de Aureliano - Interrogatório de Santo Alexandre - Martírio de Santo Alexandre e seus companheiros.
 
Santo Alexandre 1º em presença de Aureliano - A Santo Anacleto sucedeu o Papa São Evaristo, natural de Belém, que ocupou o trono pontifício cerca de nove anos, sendo
martirizado no ano de 121. A este sucedeu Santo Alexandre que, ainda muito jovem, pregava com tal eficácia que chegou a converter o prefeito de Roma, chamado Hermetes,
sua família e 1250 criados seus. Chegada a notícia aos ouvidos do imperador, este irritou-se muitíssimo com ele, e desde a cidade de Selêucia, onde se achava então,
mandou a Roma o conde Aureliano para que condenasse à morte todos os cristãos que descobrisse. Os primeiros encarcerados foram o prefeito e o Pontífice. Fizeram-lhes
minuciosíssimos, longos e violentos interrogatórios; experimentou-se o cárcere, a fome, a sede, o ferro e o fogo, porém em vão; antes a pregação e os milagres que
em todas as partes fazia o santo Pontífice contribuíam para trazer novas almas à fé.
 
Interrogatório de Santo Alexandre - "Eu quisera, lhe disse Aureliano, que me fizesses conhecer os mistérios de tua religião, e o prêmio pelo qual deixas tirar a
vida com tanta indiferença.
Alexandre respondeu: "O que queres saber é coisa santa, e Jesus nos proíbe falar das verdades da fé aos que desejam saber não para acreditar nelas, porém para escarnecê-las.
Não é conveniente, dizia o Salvador, dar as coisas santas aos cães e atirar as pedras preciosas aos porcos."
    - Como sou eu um cão? Replicou Aureliano encolerizado.
    - Tua sorte é inferior à dos brutos, respondeu Alexandre; pois estes, sendo irracionais, não podem venerar as verdades da fé que eles não conhecem, ao passo
que o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, se recusa conhecê-las ou as despreza, ofende ao Criador, e pagará sua culpa não só com as penas desta vida, mas
também com as chamas eternas do inferno.
    - Responde ao que te pergunto: se assim não o fizeres condeno-te aos tormentos.
    - Aquele que quer instruir-se na Religião de Jesus cristo deve fazê-lo com humildade e não com ameaças.
    - Responde ao que te pergunto, e lembra-te que te achas em presença de um Juiz cujo poder é temido em todo o mundo.
    - Aquele que se jacta de seu poder, está perto de perdê-lo.
    - Infeliz! Tuas palavras e tua audácia serão castigadas com atrozes tormentos.
    - Nada fazes de novo fazendo-me atormentar. Porque, qual homem inocente que pode sair com vida de tuas mãos? Junto de ti, unicamente vivem tranqüilos os que
renegam a Nosso Senhor Jesus Cristo; eu que espero morrer e padecer por Ele, certamente serei atormentado e morto, como o foram o glorioso Hermete e o intrépido
Quirino, e todos aqueles que passaram com valor por meio de tormentos para chegar por eles à vida eterna.
    - Qual a razão que te impele à extravagância de deixar-te matar antes que obedecer às minhas ordens?
    - Já to disse e repito: não é lícito dar aos cães as coisas santas.
    - Voltas a me chamar de cão? Basta já de palavras; passemos aos tormentos.
    - Não temo os tormentos que passam, porém sim aqueles que tu não temes, isto é, os tormentos do inferno que não se acabarão jamais.
 
Compreendeu então Aureliano que falava inutilmente; por isso ordenou que despissem Alexandre e que o estendessem sobre o ecúleo (instrumento de tortura). Açoitaram-no
com varas e o dilaceraram com unhas de ferro.
 
Enquanto suas carnes caiam em pedaços, punham tochas acesas debaixo de suas chagas; pareciam no entanto que aqueles agudos e penosos sofrimentos não serviam senão
para aumentar as ânsias que o santo Pontífice tinha de padecer.
    - Porque não te queixas? Perguntou-lhe admirado Aureliano. Qual a razão do teu silêncio?
    - Quando o cristão reza, fala com Deus, e quando pensa n'Ele esquece tudo que aqui em baixo se padece.
    - Responde a tudo que te pergunto e farei suspender teus tormentos.
    - Estulto! Faze o que queres; não temo tua crueldade.
    - Considera ao menos tua idade, ainda não tem 30 anos, e já queres privar-te da vida?
    - Tem antes mais compaixão de tua alma; pois se eu perco o corpo, salvo a alma, porém se tu perdes a alma, com ela tudo perderás par sempre.
 
Martírio de Santo Alexandre e seus companheiros - Depois de ameaças, interrogatórios e tormentos inúteis, Aureliano ordenou se acendesse uma fogueira. Quando as
chamas chagaram à sua maior intensidade, mandou que atassem juntos Alexandre e Evêncio, e os atirassem nas chamas. Quis também o imperador que um sacerdote chamado
Teódulo se achasse presente ao suplício de seus companheiros para atemorizá-lo. Alexandre vendo-o triste, gritou em alta voz: "irmão Teódulo, vem aqui tu também,
porque o quarto companheiro, isto é, aquele anjo que apareceu aos três meninos judeus no forno da Babilônia, se acha também conosco." Então Teódulo se atirou à fogueira.
Deus operou então o mesmo milagre que fizera no tempo de Nabucodonosor, pois o fogo perdeu seu poder e não fez dano algum àqueles campeões de fé. Eles vendo-se tão
prodigiosamente defendidos, puseram-se a cantar: "Ó Senhor, tu nos hás provado com fogo, e tendo-nos purificado de nossos pecados com tua misericórdia, já não encontraste
em nós nenhuma iniqüidade".
 
Furiosamente encolerizado, Aureliano ordenou que tirassem da fogueira Evêncio e Teódulo e que se lhes cortasse logo a cabeça e a Alexandre fez introduzir tantas
pontas de ferro no corpo que em pouco tempo exalou o último suspiro. Este martírio teve lugar a 3 de maio de 132.
 
CAPÍTULO X
 
Quarta perseguição - São Policarpo em Roma - Santa Felicidade e seus filhos - Heresia de Montano.
 
Quarta perseguição - Esta perseguição se atribui em grande parte às calúnias que se espalharam contra os cristãos. Cometeram-se nela tais violências que muitas vezes
os próprios verdugos se horrorizavam da atrocidade dos tormentos com que os martirizavam, e com grande repugnância cumpriam o bárbaro ofício que se lhes confiava.
Governava então a Igreja Pio I que, depois de ter empregado os nove anos do seu pontificado em combater as heresias, em animar os mártires e promover as necessidades
da cristandade, fez-se credor da palma do martírio. Cortaram-lhe a cabeça no ano 167. Conta-se entre os mais célebres mártires desta perseguição um jovenzinho chamado
Germânico que animava os outros com o seu exemplo. Antes de expô-lo às feras tentou o juiz seduzi-lo; porém o magnânimo menino disse que preferia antes perder mil
vidas, que conservar uma à custa de sua inocência; e dirigindo-se para um leão que se arrojava contra ele, terminou sua vida na boca daquele furioso animal apressurando-se
a sair deste mundo para chegar o quanto antes ao Céu.
 
São Policarpo em Roma - Chegando ao conhecimento de São Policarpo, discípulo de São João Evangelista e bispo de Smirna, a notícia do grande número de hereges que
tinham ido à Roma, dirigiu-se ele também para esta cidade no pontificado de São Aniceto, sucessor de São Pio I com o fim de dissipar seus erros. Sua ida à Roma foi
muito oportuna, porque tendo sido ele um dos que conversaram com os Apóstolos, gozava sobre todos de uma grande autoridade, e como disse Santo Irineu, muitos dos
que se tinham deixado seduzir pelos erros de Valentim e de Marcião voltaram para a Igreja de Jesus Cristo, mediante a eficácia de sua palavra. Persuadido o herege
Marcião de que alcançaria uma grande vitória podendo contar o santo bispo como um de seus sectários, tratou de ganha-lo; e com este fim se lhe apresentou um dia
e lhe disse com audácia: "Cognoscis nos?" Conhece-me, sabes quem eu sou? "Sim, respondeu-lhe incontinente Policarpo, conheço-te muito bem, e sei quem és Marcião,
primogênito de Satanás".
 
Um dos principais pontos a que se dirigia o zelo de Policarpo, era o de segregar os católicos dos hereges para que permanecesse pura a fé dos primeiros. Eusébio
de Cesárea acrescenta que São Policarpo foi a Roma também para  conferenciar com o Sumo Pontífice sobre algumas coisas concernentes ao bem da Igreja, conferências
que terminaram com caridade de ambas as partes. Também foi à Cidade Eterna para determinar com o Papa, se devia se celebrar o dia da Páscoa no primeiro domingo,
depois da lua cheia de março, como se tinha celebrado desde o tempo dos Apóstolos, ou antes do mesmo dia da lua de março, como se fazia em algumas Igrejas da Ásia.
Aniceto, ainda que desejasse uniformidade em toda Igreja, julgou oportuno não desgostar aos bispos da Ásia, e tolerou que naqueles países se celebrasse a Páscoa
no dito Plenilúnio. Essa tolerância tinha por fim contentar aos judeus recém-convertidos à fé. (Euseb. liv. 4.º). Aniceto deu prova de grande veneração à santidade
e doutrina de São Policarpo, pois permitiu-lhe que celebrasse a Santa Missa vestido de pontifical e administrasse do mesmo modo a comunhão aos fiéis.
 
Durante sua estada em Roma, soube Policarpo que a perseguição tinha tornado a recrudescer em sua diocese; por isso apressou-se em voltar ao seu rebanho. Pouco tempo
depois de ter chegado, foi preso pelos perseguidores e levado ao cárcere. Às  palavras do juiz que o exortava a que renegasse Jesus Cristo e o amaldiçoasse, respondeu:
"Há 86 que me consagrei a sue divino serviço e nunca recebi dele injúria alguma. Como queres tu que maldiga meu Rei e Salvador?" Depois de muitos sofrimentos foi
condenado às chamas em que consumou seu heróico sacrifício.
 
Santa Felicidade e seus filhos - Santa Felicidade verdadeiro modelo das mães cristãs, pertencia a uma das principais famílias de Roma. Enviuvando resolveu dedicar-se
unicamente à sua santificação e à seus filhos. Acusada como cristã foi conduzida perante o prefeito público, que lançou mão de toda sorte de indústrias para fazê-la
prevaricar. "O Espírito de Deus, respondia a santa, me faz superior a todo engano e sedução, e enquanto viva não poderás vencer-me, porque se tu me tiras a vida,
morrendo eu será muito mais gloriosa a minha vitória. No dia seguinte o prefeito fez conduzir Felicidade e seus filhos a seu tribunal, e disse à mãe: "Se a ti não
importa a vida, compadece-te ao menos de teus filhos"; porém ela respondeu-lhe: "A compaixão que tu pedes seria atroz crueldade". Voltando-se logo a seus filhos
e mostrando-lhes o céu, disse-lhes: "Vede lá em cima, lá vos espera Jesus Cristo com seus santos, que vos têm aberto o caminho. Mostrai-vos agradecidos a tão magnânimo
remunerador, e combatei com um valor digno do prêmio que se vos promete".
 
O prefeito a fez esbofetear, chamou em seguida seus sete filhos, que, depois de confessar Jesus Cristo com firmeza heróica, morreram um depois do outro em horríveis
tormentos. A mãe assistiu com intrepidez a seu martírio, animando-os a perseverar na fé. Por último cortaram-lhe também a cabeça e misturou assim seu sangue com
o de seus filhos na terra, para ir reunir-se com eles na glória do Céu. Pouco depois o Papa Aniceto também sofreu o martírio. Cortaram-lhe a cabeça no ano de 175.
 
Heresia de Montano - Montano começou a propagar sua heresia no pontificado de Santo Aniceto. Nascido na Frigia e educado na religião cristã foi tomado do espírito
da vaidade, e desejou ardentemente ser Bispo; porém como se lhe negasse esta dignidade por sua má conduta, rebelou-se contra a Igreja e começou a pregar mil torpezas.
 
Suas extravagâncias chegaram a tal ponto que se vendeu ao demônio, o qual o possuía realmente. Acompanhava-o duas mulheres dissolutas e endemoniadas como ele; uma
se chamava Prisca e outra Maximila.
 
Convocou-se na Ásia uma reunião de Bispos e Sacerdotes que depois de um maduro exame, condenou como herege Montano e seus sectários. Então o astuto Montano dirigiu-se
a Roma com suas falsas profetizas e conseguiu seduzir vários cristãos incautos; foi tão audaz que se apresentou ao próprio Aniceto para se fazer agregar ao Clero
Romano. Conhecendo o Pontífice a sua hipocrisia, excomungou-o como já o tinham feito os Bispos da Ásia. Depois disto Montano e suas profetizas, cedendo ao espírito
maligno, se estrangularam por suas próprias mãos.
 
CAPÍTULO XI
 
Legião fulminante - São Fotino - Heresia de Marcos e a confissão dos pecados.
 
Legião fulminante - A São Aniceto sucedeu São Sotero que se distinguiu muito pelos benefícios que fez aos romanos e a todos os fiéis da cristandade. Durante seu
pontificado, fez Deus um milagre que foi causa de que o imperador Marco Aurélio olhasse com melhores vistas aos cristãos. Achava-se este príncipe em guerra com uns
povos bárbaros, quando estes o cercaram entre as áridas montanhas da Boêmia; seu exército estava rodeado de todas as partes e a falta de água punha seus soldados
em iminente perigo de morrer de sede. Afortunadamente achavam-se naquele exército muito cristãos, que sabendo que o Evangelho diz, que se deve recorrer a Deus em
todas as necessidades da vida, puseram-se a rezar na presença do inimigo. Este, vendo-os como em um estado de imobilidade enquanto rezavam, pensou que chegara o
momento oportuno para atacar; porém no mesmo instante cobriu-se o Céu de nuvens e caiu uma chuva abundantíssima ali onde estavam os romanos, ao mesmo tempo que uma
espantosa chuva de pedras acompanhada de freqüentes raios caiu sobre os bárbaros e os dispersou deixando um grande números de mortos e a vitória aos romanos. Estes
já estavam a ponto de render-se pela grande sede que sofriam; mas sentindo chover, levantaram seus olhos para o céu afim de dar graças a Deus, e conjuntamente com
a água receberam novas forças e valor. Narram este acontecimento todos os escritores cristãos e gentios daquele tempo. (V Capitolino, Decio, Tertuliano). O imperador
reconheceu que este favor foi devido às orações dos cristãos, e para conservar sua memória fez esculpir o fato em baixo relevo em uma coluna de mármore que se levantou
em Roma, e que ainda existe e se conhece com o nome de Coluna Antonina. Também escreveu uma carta ao senado, participando-lhe o acontecimento e proibiu ao mesmo
tempo que se perseguissem os cristãos; porém depressa esqueceu o imperador o favor que recebera.
 
São Fotino - Alguns anos mais tarde se atiçou novamente a perseguição, e muitos cristãos receberam a coroa do martírio. Entre estes distingue-se São Fotino, Bispo
de Lion. Este fora enviado pelo Papa às Galias juntamente com outros eclesiásticos, para pregar o Evangelho. Havia já quarenta anos que ocupava aquela sede, quando
seus zelo e os progressos que fazia a palavra de Deus, atraiam para ele a inveja e o ódio dos idólatras. Ainda que enfermo e sem forças arrastaram-no ao tribunal
do prefeito e depois de ter sustentado com heróica firmeza um penoso interrogatório, conseguiu a palma do martírio aos 90 anos de idade.
 
Heresia de Marcos e a confissão dos pecados - Entre os mais famosos sectários de Valentim, já citados mais atrás, distingue-se o herege Marcos, homem muito astuto
e prático na arte de enganar. Jatava-se de possuir o poder de Deus, e também ao de conceder aos outros o poder de fazer milagres, e conhecer o futuro. Levando uma
vida devota em aparência, ganhou a estima de muitos que se deixaram arrastar a cometer os maiores excessos de impiedade e libertinagem. Alguns dos enganados tendo
mais tarde conhecido o mal em que haviam caído, renunciaram a Marcos e voltaram para a Igreja Católica. "Marcos, disse São Irineu, adotou certas artes para acender
as paixões e fascinar... algumas mulheres, que voltando mais tarde para Igreja de Deus o confessaram..., de modo que, certa pessoa da Ásia também caiu nesta desgraça...
porque sua mulher... tendo sido pervertida por este mágico... depois tendo se convertido, não cessou de confessar entre lágrimas e gemidos durante o resto de sua
vida, o pecado cometido". (Santo Irineu, lib. 1, c. 13). Este é um dos fatos da Igreja primitiva, que nos dá a conhecer como já existia então a prática da confissão
sacramental e a crença de que esta tinha sido instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, em virtude da capacidade que tinha dado aos Apóstolos de perdoar os pecados.
(São João, 20). Dão-nos outra prova desta santa prática as multidões de fiéis que, a contar do tempo dos Apóstolos, iam desde Éfeso ajoelhar-se aos pés dos sagrados
ministros, confessando e declarando seus feitos. (Atos dos Apóstolos, 19).
 
CAPÍTULO XII
 
Santo Eleutério e os mártires de Lion - São Irineu em Roma - Fim de Marcião e de outros hereges - Conversão dos Bretões ao cristianismo.
 
Santo Eleutério e os mártires de Lion - Depois do martírio de São Sotero foi eleito para governar a Igreja São Eleutério de Nicópolis, cidade da Grécia. No princípio
de seu pontificado, os cristãos de Lion que se achavam presos e carregados de cadeias por confessar sua fé, escreveram-lhe uma carta, e para que fosse mais aceita
ao pontífice, enviaram-na por Santo Irineu, discípulo de Policarpo a quem este tinha enviado às Galias para que ajudasse São Fotino na pregação do Evangelho. O fim
da carta era pedir ao Papa que se dignasse interpor seus bons ofícios para restituir a paz à Igreja, que então se achava dividida por Montano e seus sectários, dando
assim conhecer que os cristãos de Lion reconheciam a eficácia da autoridade do Romano Pontífice sobre toda a Igreja. Nela também se recomendava São Irineu como um
sacerdote adornado de preclaras virtudes pois assim dizia: "desejamos que tu, ó Padre Eleutério, sempre e em todas as coisas te portes bem no Senhor. Temos exortado
o nosso colega e irmão Irineu para que te levasse esta carta, e te rogamos que nos permitas que to recomendemos como zelador da lei de Cristo. Se nós opinássemos
que o grau augenta a santidade, to recomendaríamos como sacerdote da Igreja, pois que ocupa esse cargo". (Euseb. H. Ecl., 5. c. 4).
 
São Irineu em Roma - A estada de Irineu em Roma não ficou sem resultado. Pouco tempo antes de sua chegada, o pontífice tinha deposto a dois sacerdotes da Igreja
romana, chamados Blasto e Florino, por terem caído na heresia de Simão Mágico, que ensinava que Deus é autor do mal. Santo Irineu teve ocasião de falar com eles
e empregou todos os meios que estavam ao seu alcance para trazê-los a melhores sentimentos. Escreveu mais tarde uma carta em forma de livro, na qual refutando seus
erros, demonstrava que Deus, fonte de toda a santidade, não pode absolutamente ser autor do mal, conforme aquelas palavras da Escritura: "Não sois um Deus que ama
a iniqüidade. (Salmo, 5).
 
À vista das recomendações e dos louvores que o clero e o povo de Lion faziam da santidade e zelo de Santo Irineu, o Sumo Pontífice o consagrou Bispo daquela cidade.
Ali se ocupou com a maior solicitude, em difundir o Evangelho por palavra e por escrito.  Um de seus escritos, intitulado "Contra as heresias" chegou até nós.
 
O Santo Bispo afirma nele a necessidade que temos de estar unidos com a Igreja Romana, se quisermos ser católicos; e diz ainda, que para saber a verdade, conviria
recorrer às igrejas fundadas e governadas pelos Apóstolos; porém sendo muito árdua esta tarefa de consultá-las uma por uma, é suficiente recorrer por todas à Igreja
maior, mais antiga, e mais conhecida no mundo, isto é, à igreja fundada em Roma pelos gloriosos Apóstolos São Pedro e São Paulo, pois conserva a tradição recebida
de seus fundadores e tem chegado até nós por uma sucessão não interrompida. Com isso confundimos a todos que abraçam o erro por amor próprio, por vanglória, por
cegueira ou por qualquer outra causa: é pois necessário que toda a Igreja, isto é, os fiéis de todos os lugares, se dirijam a esta igreja, pois que por motivo de
sua principal preeminência, nela sempre conservou-se a tradição que deriva dos Apóstolos.
 
Fim de Marcião e de outros hereges - Marcião, como todos os outros chefes de heresias, era de uma conduta inexplicável. Tão pronto se arrependia de suas torpezas
como se manchava com elas difundindo seus erros; por isso São Eleutério o expulsou definitivamente da comunidade dos fiéis. Passado algum tempo, fingiu novamente
voltar ao seio da Igreja, e fez uma exomologese pública, isto é, uma confissão de seus crimes; porém em lugar de apresentar ao pontífice almas convertidas, julgou
mais conveniente levar-lhe a soma de 25 mil francos, como um castigo e resgate de seus pecados, acreditando seduzi-lo e atraí-lo a seu partido; mas o santo pontífice,
verdadeiro discípulo de São Pedro, recusou o dinheiro, e o rechaçou dizendo-lhe: "Eu quero almas e não riquezas", e não levantou-lhe a excomunhão. A morte não tardou
muito a arrebatar deste mundo a Marcião obrigando-o a apresentar-se perante o tribunal de Deus. A mesma excomunhão caiu também sobre Valentim e Cerdão que terminaram
miseravelmente seus dias. Ainda estão em Roma os sectários de Montano, que na confiança de poder enganar o povo com excessos de penitência exterior, tinham introduzido
a prática das três quaresmas, juntando-lhes fins supersticiosos. Santo Eleutério, para ter de sobre-aviso os fiéis, confirmou a condenação que tinha pronunciado
Santo Anacleto contra eles e definiu que todos os alimentos, em si, eram lícitos, porque todos foram criados por Deus em benefício do homem. Esse decreto em forma
de carta, se dirigia especialmente aos fiéis da Galia que mandaram a Roma Santo Irineu para consultar sobre as citadas sobreditas dúvidas. (Barc. sec. 2).
 
Conversão dos Bretões ao cristianismo - Durante o pontificado de Santo Eleutério, no reinado de Cômodo, a Igreja de Jesus Cristo gozou de suficiente paz. Este imperador,
ainda que inimigo dos cristãos, ocupou-se de outros assuntos relativos a seus estados, sem imiscuir-se na religião; por isso a fé cristã pode dilatar-se e levar
seu influxo benéfico até os mais longínquos paises.
 
A ilha da Grã-Bretanha (que como veremos, chamou-se depois Inglaterra), recebeu neste tempo o Evangelho. Acredita-se que os primeiros germens do cristianismo foram
levados à aqueles habitantes por José de Arimatéia que para ali fora com o fim de pregar com alguns companheiros; porém as superstições pagãs e as longas guerras
os sufocaram de tal modo que quase não deixaram fruto algum. Existiu porém, neste tempo um rei daquela nação chamado Lúcio, que tinha sido deixado ali pelos romanos
como príncipe tributário, e que resolveu-se fazer-se cristão, admirado da santidade de alguns cristãos que foram àqueles países, e recordando o que seus antecessores
haviam dito, ou quiçá deixado escrito sobre a religião católica.
 
Neste objetivo mandou ao Papa Santo Eleutério dois embaixadores com uma carta, em que pedia-lhe mandasse alguns missionários, para que pregassem o Santo Evangelho
a seu povo. O Sumo Pontífice recebeu com bondade os embaixadores, e correspondeu aos desejos do rei enviando-lhe como apóstolos os sacerdotes Fugácio e Damião.
 
Lúcio os recebeu com transportes de alegria; instruíram-no estes na fé conjuntamente com a rainha, a família real e muitos do povo, e deram-lhes o batismo, estabelecendo
assim o cristianismo naquela ilha. (V. Gildas e o veneravel Beda, hist. C. 1)
 
Não sobreviveu muito Santo Eleutério à conversão dos Bretões. Consumido pela idade, e pelos sofrimentos anexos a seu ministério, foi gozar da verdadeira felicidade
no ano 193 depois de um pontificado de mais de quinze anos.
 
 
CAPÍTULO XIII
 
São Vitor e Tertuliano - Os dois Teódotos - Septimio Severo e quinta perseguição - Martírio de São Vitor, Irineu, Felicidade e Perpétua - São Zeferino e o herege
Natal.
 
São Vitor e Tertuliano - São Vitor I, Áfricano, sucedeu a São Eleutério no ano de 193. Em princípios de seu pontificado foi a Roma Tertuliano, homem de grande engenho,
conhecido já pelos seus escritos cheios de profunda doutrina, benemérito da religião cristã por tê-la defendido vigorosamente contra os idólatras e os hereges, e
por ter cientificamente exposto algumas de suas doutrinas. Porém quer porque São Vitor não lhe desse o bispado de Cartago, que segundo parece ele desejava, quer
porque o mesmo romano pontífice condenasse, a heresia de Montano, para o qual ele já começava a inclinar-se, o certo é que saiu de Roma irritado, e voltando  à sua
pátria declarou-se abertamente contra  a Igreja. Tremamos  pela queda de Tertuliano, e nos persuadamos de que não é a ciência que faz os santos, porém sua humildade
e submissão aos nossos legítimos superiores, especialmente ao vigário de Jesus Cristo. Achando-se Tertuliano despido destas duas virtudes, caiu em heresia e morreu,
quanto é possível conjeturar, sem dar sinais de arrependimento.                      
 
Os dois Teódotos - Dois hereges, ambos chamados Teódoto, deram muito trabalho ao novo pontífice. Um deles se apelidava Teódoto. Nascera em Bizâncio, cidade que mais
tarde chamou-se Constantinopla. Ainda que dedicado aos misteres de seu ofício, comerciante de peles, era, contudo, muito instruído nas Sagradas Escrituras. Tendo
sido acusado como cristão na perseguição de Marco Aurélio, ofereceu-se denodadamente a sofrer o martírio; porém infelizmente não sentiu-se com ânimo bastante para
sustentar com fatos o que afirmava com palavras, e negando sua fé, perdeu a coroa com que foram cingidos seus companheiros. Para fugir ao opróbrio em que tinha caído,
foi a Roma, pensando que viveria ali desconhecido; porém o badão de sua ignomínia nunca abandono o culpado; reconhecido pelos romanos, todos fugiam e ninguém queria
participar com ele nas coisas sagradas. Irritadíssimo por isto Teódoto, começou a pregar claramente o erro, ensinando que Jesus Cristo não era Deus, o que equivalia
a negar o Evangelho e a todas as verdades. Uniu-se a este outro herege igualmente chamado Teódoto, ourives de profissão. Como é de supor-se, ó leitor, dois operários,
peleiro um, e outro ourives, deviam ter poucos sectários! Porém não foi assim, porque a novidade, quando afaga as paixões, sempre atrai aos incautos e aos ignorantes;
por isso foram muitos os sectários dos dois Teódotos, que se chamaram depois Teodocianos, devido ao nome de seus autores.  São Vitor dirigiu suas solicitudes contra
eles; condenou sua heresia, excomungou seus autores, e declarou que já não pertenciam à Igreja de Jesus Cristo todos os que seguissem os erros desses dois desgraçados.
 
Desta maneira a Igreja Católica triunfava da heresia e dava a conhecer ao mundo a verdade daquelas palavras que dirigiu Jesus Cristo a São Pedro, nele a  todos seus
sucessores: Roguei por ti, ó Pedro, para que não desfaleças na fé! (V. Eusébio, lib. 5).
 
Septimio Severo e a quinta perseguição - A perseguição de Septimio Severo, que é a quinta contra os cristãos, começou no ano de 202. Atribui-se sua origem ao terem
os cristãos se recusado a tomar parte em certa festa dos deuses, pelo que os pagãos os acusaram ao imperador, dizendo-lhe que eram eles seus maiores inimigos. Este,
demasiado crédulo em os escutar, ordenou que todos os cristãos deviam jurar pelo nome do imperador e oferecer-lhe honras divinas. Negando os cristãos a obedecer-lhe,
foi declarada aberta a perseguição. Tertuliano afirma que as cruzes, o ferro e o fogo, a água fervendo, as espadas e as feras se achavam todos os dias em exercício
contra os cristãos para fazê-los apostatar ou dar-lhes a morte, caso permanecessem firmes na fé.
 
Martírio de São Vitor, Irineu, Felicidade e Perpétua - No meio de tantos males, São Vitor trabalhou sem descanso, até que abatido pelas fadigas e pela idade depois
de um pontificado de mais de dez anos, ganhou a palma do martírio no ano de 203 a 28 de julho.
 
A perseguição estendeu-se também nas Galias principalmente em Lion, onde São Irineu selou com seu sangue seu trabalhoso ministério. Sabendo o Imperador que a cidade
permanecia firme na fé por obra de seu zeloso pastor, ordenou que fosse cercada de soldados e que se matassem os cidadãos. A matança foi geral, e uma inscrição antiga
que ainda existe em Lion, nos diz que o número dos mártires subiu aos dezenove mil, sem contar as mulheres e as crianças. Não foi menos violenta a perseguição em
Cartago, onde Santa Perpétua e Santa Felicidade, acompanhadas de um grande número de mártires, foram morrer com tanta alegria que só pode ser inspirada por aquele
Deus por cujo amor davam sua vida.
 
 São Zeferino e o herege Natal - São Zeferino, sucessor de São Vitor, teve o consolo de se conciliar com a Igreja o herege Natal. Este já tinha confessado valorosamente
sua fé em presença dos juízes; porém posto em liberdade, deixou-se seduzir por uma soma considerável de dinheiro que lhe ofereceram os Teodocianos, dos quais se
havia feito chefe. Porém Jesus Cristo para não permitir que já tinha confessado sua fé, apareceu-lhe repetidas vezes em sonho, repreendendo-o do seu enorme crime.
Não fazendo Natal muito caso destas aparições, uma noite foi bruscamente açoitado por mão invisível. Este prodigioso castigo trocou-se para ele em medicina saudável,
pois que na manhã seguinte se vestiu com um saco, cobriu a cabeça de cinza e foi ajoelhar-se aos pés do Papa, e derramando lágrimas confessou todos os seus pecados.
Em seguida, abraçando os joelhos de quantos que se achavam presentes, clérigos e leigos, mostrou-lhes os sinais dos açoites com que tinha castigado e as cicatrizes
das chagas recebidas por confessar o nome de Jesus, e pediu com grande humildade a clemência da Igreja e a misericórdia divina. Semelhante prodígio, que, que se
tivesse tido lugar em Sodoma, disse Eusébio de Cesaréia, teria levado a fazer penitência todos os habitantes daquela infeliz cidade, comoveu todos os circunstantes.
O Pontífice recebeu com carinho a Natal, absolveu-o da excomunhão e o admitiu  novamente à comunhão dos fiéis.
 
Este fato nos demonstra claramente, como desde os primeiros tempos da Igreja se acreditou que aquele que apostatava caindo na heresia, se arrependia-se de sua falta
e desejava entrar novamente para Igreja devia ir a Roma para reconciliar-se com o Chefe supremo da religião e receber a absolvição do delito. O Papa São Zeferino
morreu pela fé no ano 220 depois de quase dezoito anos de glorioso pontificado.
 
CAPÍTULO XIV
 
Igreja de Santa Maria em além do Tevere - Cemitérios e túmulos - Catacumbas e Criptas - Martírio do Papa São Calixto.
 
Igreja de Santa Maria em além do Tevere - Três coisas especialmente fazem glorioso o pontificado de São Calixto, sucessor de São Zeferino: a basílica de Santa Maria,
o cemitério chamado de São Calixto e seu martírio. Comecemos pela basílica Transtiberina.
 
Conta uma antiga tradição, que em uma parte de Roma no dia do nascimento do Salvador, brotou prodigiosamente uma fonte de azeite, que continuou saindo todo aquele
dla. Os cristãos que conservavam viva a lembrança daquele prodígio, costumavam reunir-se ali para fazer suas práticas de piedade; porém alguns homens maus em seguida
levantaram naquele lugar uma casa de dissolução. Abriram também algumas tavemas, e para chamar o povo exerciam ali toda sorte de especulações. Os pagãos faziam isto
com tanto maior ousadia, por quanto os fiéis eram ainda o alvo dos insultos de todos. Porém tendo morrido a imperador Heliogábalo, por felicidade sucedeulhe outro
chamado Alexandre Severo que não os perseguiu, antes porém em princípio de seu reinado os favoreceu de diferentes modos. Amava sua religião; ate mandou colocar uma
imagem de Jesus Cristo em seu palácio, e alguns pensam que reconheceu e professou ocultamente a fé.
 
Os cristãos, depois de terem pedido repetidas vezes àqueles tabemeiros que não continuassem molestando-os, contando com o favor do imperador, apresentaram-lhe mais
queixa: o mesmo fizeram os pagãos. Ambos os partidos pretendiam que o imperador decidisse a quem deles devia entregar aquele lugar: os cristãos na defesa de sua
religião, e os tabemeiros em proveito de seus interesses.
 
O imperador ouviu com atenção uns e outros e depois perguntou: "Que Deus é que ali se quer adorar?" Responderam-lhe: "é o Deus dos cristãos." O imperador tomou:
"é melhor que esse lugar seja destinado ao culto de qualquer Deus, do que ficar em mãos de tabemeiros." Por causa destas palavras os tabemeiros retiraram-se e deixaram
livres os cristãos. Esta nova consolou muito a São Calixto, que para demonstrar sua gratidão para com Deus por tão grande benefício, animou os fiéis a levantar naquele
mesmo lugar uma Igreja que foi a primeira que se construiu publicamente em Roma em honra da Bemaventurada Virgem Maria: e para conservar a memória do milagre do
azeite, quis que se dedicasse ao nascimento de Jesus para honrar assim o nome de Jesus, o qual, a semelhança do azeite, comunica suas graças e benção aos nossos
corações. Esta Igreja se considerou em seguida como uma das primeiras basílicas de Roma, próximo do altar mór ainda se vê um pequeno furo revestido de mármore, que
mostra o lugar do prodígio. (V. Baronio ano 224 Boll. 14 de Outubro.)
 
Cemetérios e Túmulos - A memória dos mortos sempre foi considerada sagrada por todos os povos antigos e modernos, quer bárbaros quer civilizados. Esse afã em respeitar
e fazer respeitar as cinzas dos defuntos nasce da convicção que todos temos de que depois da morte aguarda à alma uma eternidade feliz ou desgraçada, conforme seu
mérito, tendo também o corpo de ressuscitar um dia, para voltar a reunir-se à alma para juntos gozarem ou padecerem eternamente.
Antigamente havia uma lei, entre os Romanos, que proibia sepultar os cadáveres dentro da cidade; por isso os sepultavam no campo e mata, às vezes depois de terem
sido queimados ou reduzidos a cinza. Os cristãos, que sempre abominaram este desumano costume de queimar com fogo os corpos de seus semelhantes, especialmente se
eram seus irmãos pelo batismo, prepararam lugares nos arredores da cidade, que se chamaram cemitérios, túmulos, catacumbas e criptas onde sepultavam os cadáveres
dos fiéis.                       .
 
A palavra cemitério deriva-se do grego e significa dormitório: com este nome os cristãos dão a conhecer de uma maneira muito sensível sua fé na ressurreição universal
de todos os corpos, no fim do mundo, para ir gozar de uma nova vida. Por isso eles não consideravam os cadáveres sepultados em tais lugares como mortos para sempre,
porém tão somente como dormindo, devendo despertar um dia, ao som da trombeta dos anjos. Quão doce, quão consoladora e sublime é esta palavra cemitério, nome que
damos ao lugar onde se sepultam os que morrem na paz de Jesus Cristo! Só esta palavra basta para mostrar a diferença que há entre a Igreja do Salvador, na qual tudo
é vida e esperança de vida, e o paganismo e o protestantismo nos quais tudo é morte. Com a palavra túmulo, tão frequentemente usada na antiguidade, costumavam-se
indicar os lugares onde se colocavam os corpos dos mártires, para os quais se faziam escavações particulares.
 
Catacumbas e Criptas - Catacumba também é uma palavra grega que entre nós quer dizer perto dos subterrâneos, porque os sepulcros dos cristãos em alguns lugares,
e especialmente em Roma, foram estabelecidos em caminhos feitos de baixo da terra com o fim de receberem os corpos dos fiéis. Como frequentemente se faziam estas
escavações próximas de certos lugares donde se extraia uma qualidade de areia, chamada porcelana, que servia para a composição do cimento, às vezes as catacumbas
e os cemitérios chamavam-se também arenários. As catacumbas, porém ainda que estivessem por baixo ou por cima das escavações, contudo eram coisas mui diversas. A
catacumba chamada de São Calixto, tomou o nome deste Papa pelas muitas obras que nela fez executar.
 
Sobre uma lápide de mármore colocada na entrada deste cemitério lê-se o seguinte: "este é o cemitério do inclito pontífice São Calixto Papa e mártir. Todo aquele
que confessado e arrependido de seus pecados entrar nele obterá inteira remissão de seus pecados; e isto pelos méritos dos cento e setenta mil gloriosos mártires,
e quarenta e seis Pontífices cujos corpos aqui em paz descansam. Eles, sofrendo grandes tribulações neste mundo, fizeram-se herdeiros da glória do Senhor, em cujo
nome aceitaram a morte." (Boll. do dia 14 Outubro.)
 
Nestes subterrâneos encontram-se aposentos aos quais se dá o nome de Criptas, outra palavra grega que significa escondidas. Esses eram os oratórios dos primeiros
cristãos, quando, por causa das perseguições, não podiam-se reunir publicamente, e eram obrigados a esconder-se. Em certos dias e horas marcadas reuniam-se ali para
assistir a santa Missa, ouvir a palavra de Deus, receber o sacramento da penitência, receber a sagrada Eucaristia e fazer as demais práticas religiosas. 0 santo
sacríficio oferecia-se geralmente sobre o túmulo de um mártir que fazia pouca tempo tinha morrido pela fé.
 
Martírio de São Calixto - Durante o pontificado de São Calixto a Igreja não teve de sofrer nenhuma perseguição geral, porque  imperador Alexandre Severo se mostrava
benévolo para com os cristãos. Segundo parece venerava a Jesus Cristo, como digno de honras divinas, e conservava sua imagem em um pequeno templo que tinha em seu
palácio, e teria feito edificar um templo público ao Deus dos cristãos, se os pagãos não lhe tivessem feito observar que assim fazendo, ficariam desertos os templos
dos deuses. Não obstante achando-se ele fora de Roma, pereceram muitos cristãos, entre os quais se conta São Calixto vítima de uma insurreição popular. Posto em
prisão, como chefe dos cristãos, foi açoitado com varas, quase até receber a morte; atiraram-no depois por uma janela e com uma pedra ao pescoço afundaram-no em
um poço. Este martírio teve lugar pelo ano de 227. Próximo da basílica de Santa Maria em além do Tevere, acha-se ainda o poço em que atiraram o nosso santo (V. Artaud
em S Cal.)
 
CAPÍTULO XV
 
São Urbano e Santa Cecilia - Seu martírio.
 
São Urbano e Santa Cecilia - A São Calixto sucedeu São Urbano que pertencia a uma rica e nobre família romana. Desde simples sacerdote tinha trabalhado com zelo
pela fé durante o pontificado de seus três antecessores. Acusaram-no várias vezes como cnstão; levaram-no ao cárcere e perante os juizes; porém sempre venceu todos
os sofrimentos, confessando intrepidamente a Jesus Cristo. Sua eleição para o pontificado teve lugar no ano 227. Enquanto se achava empenhado em ordenar a disciplina
da Igreja, voltou a tomar vulto a persiguição de Alexandre Severo. Urbano prevendo o grave perigo que corria se continuasse cumprindo publicamente o sagrado ministério,
escondeu-se nas catacumbas onde viveu ignorado dos perseguidores, porém conhecido dos Cristãos, que podiam recorrer a ele em todas as suas necessldades. Entre os
que instruiu na fé achava-se uma dama romana, chamada Cecilia, que desde o momento em que recebeu o Batismo, concebeu tal amor à virtude, que fez voto a Deus de
sua virgindade. Para guardar dignamente esta virtude, recomendava-se com frequência ao seu Anjo da Guarda que muitas vezes aparecia-lhe visivelmente. Na idade de
vinte anos, seus pais quiseram obrigá-la a casar-se com um jovem muito rico chamado Valeriano; porém chegando o dia das bodas, Cecilia chamou ao jovem a quem tinha
sido prometida e disse-lhe:                        .
- Valeriano; eu tenho um anjo que zela por meu corpo, porque está consagrado a Deus; ai de ti se te atreves a profaná-lo!             
 
Valeriano que desejava ver o anjo, respondeu-lhe:
- Só acredito no que me dizes, se eu vir o anjo de que me falas.                           
- Para ver este anjo tens de puriflcar-te, e acreditar que há um só Deus vivo e verdadeiro.
- 0 que devo fazer para purificar-me?
- Há um homem que sabe punflcar os outros fazê-los capazes de ver os anjos. Vai à via Apia a três milhas desta cidade, ali encontraras uma reunião de pobres, pergunta-lhes
onde vive o velho Urbano; ele te purificará por meio de uma água misteriosa, e depois verás o anjo.              
 
Valeriano foi no mesmo instante procurar São Urbano e lhe expos tudo o que Cecilia lhe dissera. O Pontífice o recebeu com bondade, e deu graças a Deus com as seguintes
palavras: "ó Senhor Jesus, verdadeiro Pastor e Redentor das almas! Abençoai vossa serva Cecilia que, qual abelha industriosa trabalha para vos servir, pois que seu
prometido de leão furioso transformou-se em manso cordeiro. Agora dignai-vos, Senhor, completar vossa obra e fazer que seu coração se abra à graça, e Vos conheça
a vós sumo Criador, renuncie ao demônio, às pompas e aos ídolos."
 
Enquanto o Papa assim falava, apareceu São Paulo Apóstolo sob o aspecto de um venerando ancião, e disse a Valeriano: "lê o livro que te entrego e se tiveres fé serás
purificado e verás o anjo de que te falou Cecilia." Valeriano abriu o livro tremendo e leu estas palavras: "Há um só Deus Pai de todas as coisas, Senhor de tudo,
que a todos nós govema."
- Acreditas no que leste? Perguntou-lhe São Paulo.
- Sim, e o creio firmemente. Dizendo estas palavras, desapareceu o ancião. Então Urbano animou Valeriano, instruiu-o nos mistérios da Religião, administrou-lhe em
seguida o batismo, e depois de ter passado com ele a noite em oração, disse-lhe que voltasse para ver Cecilia. Foi Valeriano e a encontrou rezando, tendo a seu lado
o anjo do Senhor em forma humana. Trazia em suas maos duas coroas entrelaçadas com rosas e assucenas, pôs uma delas sobre a cabeça de Cecilia e a outra sobre de
Valeriano, dizendo-lhes:
- Trabalhai, jovens, para conservar estas coroas com pureza de coração e santidade de vida. Trouxe-as do jardim do Paraiso: estas flores jamais murcharão. Agora,
Valeriano, venho da parte de Jesus para te conceder tudo o que pedires.
- Anjo de Deus! Exclamou Valeriano, não te peço mais do que a conversão de meu irmão Tibúrcio.
- Ser-te-a concedido o que pedes, respondeulhe o anjo; da mesma maneira que Cecilia te converteu a fé, tu converterás teu irmão Tibúrcio e ambos alcançareis a palma
do martírio; e assim dizendo, desapareceu.
 
Valeriano contou a seu irmão Tibúrcio as maravilhas que tinha visto, e depois o conduziu
ao Papa Urbano que o instruiu na fé e administrou-lhe batismo.
 
Martírio de Santa Cecilia e de seus companheiros - Quando chegaram aos ouvidos de Almáquio, prefeito de Roma, as novas da conversão e do zelo de Valeriano e Tibúrcio,
chamou-os a sua presenga e fez-lhes um sem número de perguntas; porém, confundido com suas sabias respostas e não sabendo que partido tomar, disse-lhe um de seus
acessores para tira-lo das dificuldades. "Condenai-os ambos à morte e ficai com seus bens." Seguindo este conselho, Almáquio os mandou levar ao templo de Júpiter,
para serem ali decapitados se não oferecessem incenso a uma divindade. Maximo, secretário do prefelto, acompanhava-os ao lugar do suplício com uma escolta de soldados;
contemplando, porém, aqueles nobres jovens indo à morte como se fossem para um grande festim, sentiu-se também ele com desejos de abraçar a fé. Com o fim, pois,
de que o instruissem na Religião, levou-os à sua casa, onde a graça de Deus o venceu de tal modo que ele, sua família e outros acreditaram em Jesus Cristo. Tendo
ido ali durante a noite o Papa Urbano com outros sacerdotes e Santa Cecilia, e encontrando-os suficientemente instruídos, lhes administrou logo o batismo. Poucos
minutos depois chegou o verdugo, que com transporte de furor cortou a cabeça aos dois irmãos Valeriano e Tlburcio, cujas almas voaram a habitar etemamente o Céu.
Nesse mesmo dia recebia Máximo a coroa do maríirio.
 
o prefeito, não encontrando dinheiro algum na casa de Tiburcio e Valeriano, voltou seu furor contra Urbano e Cecilia; e não podendo encontrar Urbano, enviou seus
esbirros à casa de Cecilia.
 
Esta, porém, que se tinha transformado em apóstola de Jesus Cristo, falou-lhes de tal modo, que os converteu a fé: em seguida mandou chamar Urbano que lhes administrou
os sacramentos do batismo e da confirmação. Quase chega a quatrocentos o número das pessoas que se batizaram nessa ocasião, entre soldados e outra gente. Ao chegar
ao conhecimento de Almáquio a conversão dos seus próprios emissários, mandou que conduzissem Cecilia ao seu tribunal, e começou por convida-la a que não se obstinasse,
a Santa, porém, respondeu-lhe:
 
- Eu me considero ditosa em confessar Jesus Cristo em qualquer lugar e a despeito de todos os perigos: não tenho medo de poder algum contrário as leis do meu Deus

 
- Ignoras acaso que nossos invictos imperadores e nossas leis castigam com a morte aos que se declaram cristãos, ao passo que premiam com muita liberalidade aos
que renegam sua Religião?
 
- Vós e vossos imperadores cometeis um erro indizível; e a lei que proclamais não prova mais do que uma só coisa, é e que vós sois cruéis e nós inocentes, porque
se o nome do cristão fosse um crime, nós mesmos fariamos o que pudessemos para nega-lo.
 
- Vamos, donzela miserável, não sabes que nossos invictos príncipes puseram em minhas mãos o poder de vida e morte? Como te atreves a falarme com tanta arrogância?
 
- Falei-te com firmeza e não com arrogância; além disso disseste que teus príncipes deramte o poder da vida e morte; isto é falso. Tu não tens mais do que o poder
de dar a morte; podes tirar a vida aos vivos, porém não a podes dar aos mortos.
 
- Acaba; deixa teu atrevimento; sacrifica aos deuses e salva tua vida. Ali tens no pretório as estatuas que deves incensar.
 
- Como é isto, prefeito? Até falta-te o sentido da vista? Eu não vejo aqui mais do que pedras, bronzes e algum outro metal; estes por certo são divindades. Apalpa
essas estátuas se e que as ves, e sentirás que são corpos, porém não espíritos, que não merecem mais honra do que a de serem atiradas ao fogo. Quanta a mim, creio
que somente Jesus Cristo é o que pode livrar minha alma do fogo etemo.
 
Almáquio para evitar tumúltos no povo que amava muito Cecilia por suas obras de caridade, mandou que se the desse a morte ocultamente em sua casa. Os verdugos atiram-na
dentro de uma estufa, que era uma espécie de aposento para tomar banhos a vapor, e aqueceram-na bastante para faze-la morrer sufocada; Cecilia, porém, não só saiu
ilesa se não que Deus a confortou com sua prodigiosa presença como ja o tinha feito com os três meninos no fomo de Babilônia. Ao saber isto, Almáquio ordenou que
imediatamente lhe cortassem a cabeça; porém, como não pudesse o verdugo nem ao terceiro golpe separa-la do tronco ficou ali Cecilia três dias agonizando e nadando
em seu proprio sangue. Os pobres que tinham gozado de seus beneficios, com muitos outros cristãos, sem se importarem com o perigo a que se expunham iam valorosamente
visita-la, e ela os exortava a que fossem constantes na fé. São Urbano também correu pressuroso a assisti-la durante aqueles prolongados sofrimentos, e ela vendo
junto a si o Vigário deo Jesus Cristo exclamou: "Beatíssimo Padre, dou graças a Deus, que em sua grande misericórdia dignou-se ouvir minha oração. Eu lhe tinha pedido
que me desse ainda três dias de vida para que pudesse ser consolada com vossa presença e recomendar-vos ao mesmo tempo algumas coisas. Peço-vos, pois, que cuideis
de meus pobrezinhos, dai-lhes tudo que encontrardes em minha casa; esta transformai em Igreja para que possa servir para sempre aos fiéis, que ali se queiram reunir
para cantar as glórias do Senhor." Dizendo estas palavras, sua alma voou ao céu a 22 de Novembro do ano 232, poucos meses antes da morte de São Urbano. A casa de
Cecilia converteu-se realmente em capela, onde se ve ainda a estufa dentro da qual se queria sufocar esta santa virgem.
 
Martírio de São Urbano e de seus companheiros - Depois do martlrio de Santa Cecilia, São Urbano voltou as catacumbas; mas tendo sido descoberto pelos perseguidores,
foi conduzido também ao tribunal de Almáquio, juntamente com três diáconos e dois sacerdotes. Sendo vãos todos os esforços que aquele fez para convence-los a incensar
Júpiter, ordenou que os metessem em um escuro calabouço. Tiraram-os dai quatro vezes para os levar ante o tribunal do prefeito, onde foram interrogados e atormentados.
0 carcereiro Anolino, comovido pela firmeza de Urbano em suportar os tormentos, converteu-se, recebeu o batismo das mãos de São Urbano e pouco depois cortaram-lhe
a cabeça.
 
Cansado, Almáquio disse a Carpásio seu emissário: "Conduzam estes pela última vez ao templo de Júpiter e se não oferecerem incenso, corte-se-lhes logo a cabeça."
0 mesmo quis acompanha-los com uma multidão de soldados. Os santos confessores, para manifestar a alegria que inundava seus corações, puseram-se a cantar: "Ó Senhor!
Temos sido inundados de consolação confessando publicamente vossa santa lei; nossos corações estãos cheios de alegria qual não estariam gozando de todas as riquezas
do mundo."
 
assim que Urbano viu a estátua de Júpiter, apoderou-se dele uma dor profunda, pelas abominações que diante dela se cometiam, e disse em voz alta: "Destrua-te o poder
de nosso Deus"; e ao pronunciar estas palavras, caiu por terra a estátua, como ferida por um raio, e se reduziu a pó. Ao mesmo tempo cairam mortos os sacerdotes,
que em número de vinte e dois, ministravam o fogo para o sacrifício.
Ao ver esse espetáculo, fugiram os soldados, e o próprio Almáquio espantado foi esconder-se em sua casa. Depois de algum tempo, ao considerar o fato, não sabia dar-se-lhe
a razão de como sua ciência, com seu poder, com suas ameaças e suplícios não tinha podido induzir Urbano a que oferecesse incenso aos deuses. Para isso mandou-os
trazer pela última vez ante seu tribunal e lhes disse:
- Ate quando abusarei de minha paciência, seguindo essa arte mágica? Acreditais talvez que ela sirva para vos livrar de minhas mãos?
 
Eles responderam-lhe: Sabemos que nosso Deus é poderoso. Se Ele quiser, pode livrar-nos de ti como livrou os meninos hebreus das mãos de Nabucodonosor e do fomo
ardente. E se nos acha dignos d'Ele, e não quer nos livrar, garantimos-te que para nós será uma glória o dar a vida pelo nosso Criador; porém nunca obedeceremos
as tuas ordens injustas.
Tendo perdido Almáquio toda esperança de os poder persuadir, mandou que os estendessem por' terra e os açoitassem por muito tempo. Foi tão cruel este castigo que
um dos diáconos morreu entre os tormentos. São Urbano os animava e exortava a que não se assustassem com as penas passageiras, pois ver-se-lam livres das penas do
infemo que nunca acabam e ganhariam a glória etema do céu. Vendo Almáquio que os açoites não produziam efeito algum, ordenou que os esfolassem com afiados garfos
de ferros, de modo que suas cames caiam em pedaços. Entretanto os verdugos tiraram com tal furor do tribunal a dias depois Almáquio mandou levar Urbano e seu clero
ao templo de Diana, para que fossem ali decapitados. Conhecendo que finalmente iam terminar seus sofrimentos, disse a seus companheiros:
- Coragem, meus filhos, o Senhor nos chama dizendo-nos: "Vinde a mim todos os que estais atribulados e oprimidos, que eu vos aliviarei." Até agora nós o temos visto
somente como num espelho, porém já estamos próximos de ve-lo face a face.
 
Ao chegar ao lugar do suplício, estando impacientes para sofrer o martírio, disseram todos a uma voz aos seus verdugos: "Fazei logo o que quiserdes." 0 santo Pontífice
deu-lhes a benção apostólica, e depois de terem feito todos o sinal da cruz, ofereceram a Deus suas vidas rogando desta maneira: "ó Senhor dignai-vos receber-nos
segundo vossas promessas, para que possamos viver
por Vós, e com vosso adjuntório possamos chegar à posse daquela glória que em vosso reino se goza por todos os séculos." Dizendo estas palavras, ajoelharam-se e
lhes foi cortada a cabeça. Este fato teve lugar a 25 de Maio do ano 233.
 
CAPÍTULO XVI
 
Sexta perseguição - São Ponciano, São Antero e Santa Barbara - Morte de Maximino - Sétima perseguição e São Fabiano - Fim da sétima perseguição - São Gregório Taumaturgo
- São Paulo, primeiro eremita.
 
Sexta perseguição - A tolerância de Alexandre para com os cristãos, foi um motivo para que Maximino, seu assassino e sucessor, os odiasse com mais encarniçamento.
Com o fim de ter um pretexto para persegui-los, lhes atribuia a derrota de seus exércitos, a peste, a carestia, os terremotos e outras coisas que naqueles tempos
desolavam o império romano, como se esses males fossem o efeito da cólera dos deuses pela toleâancia que se tinha para com os fiéis de Cristo.
 
Porém o fato que mais excitou a indignação do imperador, foi o santo valor de um de seus soldados. Quando Maximino foi proclamado imperador fez, conforme se costumava
então alguns presentes a seus soldados. Todos os homens que compunham o exército, deviam aparecer perante ele, para receber aqueles dons, com uma coroa de louro
na cabeça; mas um dos soldados, suspeitando que essa prática, naquelas circunstâncias, importava um sinal de idolatria, levou a coroa na mãos. Perguntando-lhe um
oficial a razão daque
 
singularidade, respondeu-lhe: "Sou cristão e minha religião me proibe levar na cabeça vossa coroa se fazendo, assim pudesse, eu parecer Idólatra." Tiraram-lhe no
mesmo instante o uniforme militar e levaram-no preso. Alguns fiéis pensavam que se podia levar tal coroa como sinal de festa civica sem incorrer em culpa alguma.
Nesta ocasião Tertuliano escreveu um livro intitulado: Da coroa do soldado; nele demonstra que naquele caso tal cerimônia era um ato de idolatria, e como tal ilícito,
pois é fora de dúvida que muitas vezes, a moralidade das ações depende da interpretação exterior que lhes dão os homens.
 
São Ponciano, São Antéro e Santa Barbara - Maximino decretou no mesmo instante uma perseguição contra todos os cristãos. Quando porém soube que estes constituiam
uma grande parte de seus suditos, limitou-se a proibir que se abraçasse a religião que eles professavam, e ao mesmo tempo deu ordens para que se desse morte particularmente
aos Bispos, pois que eles eram os autores dos progressos do cristianismo. A vtima principal do furor de Maximino foi São Ponciano. Desterraram-no para a pequena
ilha de Tavolara na Sardenha, e depois de dois anos de cadeia e sofrimentos, condenaram-no a morrer a pauladas. Sua morte teve lugar no ano 238. Sucedeu-lhe Santo
Antero, ao qual cortaram a cabeça depois de um mês de pontificado.
Santa Barbara foi primeiramente provada com cruéis tormentos da parte de seu desnaturado pai e mais tarde condenada a morte na cidade de Nicomedia.
 
A perseguição teria sido muito mais longa se Deus não tivesse tirado do mundo  seu autor. Achava-se ele sitiando a cidade da Aquila que tinha rebelado e lhe havia
fechado as portas. Tendo-o levado o assalto várias vezes, porém em vão, atribuia a seu soldados os seus infelizes insucessos, e deixando-se levar pelo seu furor,
entregava-se a atos brutais contra os mesmos. Alguns deles, cansados de tanto maus tratos, atiraram-se sobre ele e o assassinaram em sua tenda.
 
Sétima perseguição e São Fabiano - A sétima perseguição suscitada pelo imperador Décio, foi uma das mais sanguinolentas. Êmulo de seus predecessores, Décio publicou
um edito que foi executado com o maior rigor. Os açoites, os garfos de ferro, o fogo, as feras, a pez fervente, as tenazes incandescentes, tudo foi posto em obra
para atormentar os confessores da fé.
 
É tão grande o número dos que padeceram o martírio nesta perseguição, que seria impossível numera-los. Distinguiam-se especialmente São Poliuto na Armênia, Santo
Alexandre bispo da Capadócia, o magnanimo São. Piônio, sacerdote da Igreja de Smirna, Santa Águeda de Catânia, Santa Vitória de Toscana e São Fabiano. Este Pontífice
trabalhou muito pela fé, até que finalmente o denunciaram como chefe dos cristãos. Depois de longos e graves padecimentos, cortaram-lhe a cabeça a 20 de Janeiro
do ano 253; governou a Igreja cerca de 13 anos.
 
São Cipriano, tendo recebido do clero de Roma a relação da morte de São Fabiano, ao responderlhe, expressou nestes termos: "Já havia corrido entre nós a notícia
de que o Pontífice Fabiano tinha morrido; e, enquanto vagava incerta esta nova, recebi uma carta que me dá todas as minúcias de sua gloriosa morte. Muito me regozijei
em meu coração por ter ele coroado tão gloriosamente as fadigas de seu apostólico ministério. Vós também deveis por esse motivo vos alegrar muito comigo. Desse modo
a memória gloriosa do vosso bispo, será de glória para vós, e para nós um belíssimo exemplo de constância na fé e na virtude." (s. Cip., Ep. 4).
 
A perseguição de Décio cessou tão somente com sua morte. Enquanto combatia contra os bárbaros do Danubio, tendo por segura a vitória, intenou-se inconsideradamente
em um pantano para ter melhor a sua vista os inimigos; porém oprimido pelo furor dos combatentes, pereceu miseravelmente afogado naquele pantano. Ano 253.
 
São Gregório Taumaturgo - Enquanto os mártires, sacrificando sua vida no meio de tormentos atrocíssimos, davam testemunho da verdade de sua fé, outras maravilhas
eram operadas por outros heróis do cristianismo pela prática da virtude e por grandes prodígios. Entre estes sobressai São Gregório, chamado Taumaturgo, isto é,
fazedor de milagres. Era sua patria Neo-Cesareia, no Ponto, e descendia de familia nobre. Na morte de seus pais desprezou os cargos honrosos que se lhe ofereciam,
distribuiu sua fortuna aos pobres e, não confiando senão na Providência, retirou-se para a solidão afim de ai terminar seus dias num retiro. Mas suas preclaras virtudes
atraiam-lhe as admirações do publico, que queria proclama-lo bispo, porém ele, espantado em presenc;a so da idéia de tão alta dignidade, mudou de moradia e andou
errante de deserto em deserto. Encontraram-no sem embargo e, apesar da sua repugnância foi eleito bispo de sua patria (Ano 250).  
 
É impossível narrar aqui tudo o que fez o santo Bispo em prol do rebanho que lhe foi confiado.
 
Os Sahtos Padres comparam-no a Moisés e aos profetas pelo dom de profecia e de milagres, e aos apostólos pela virtude, zelo e trabalhos, e especialmente pela multidão
de prodígios operados por ele. Com uma oração livrou seu povo de uma mortandade que horrivelmente o dizimava; com uma ordem dada mudou para outro lugar um monte
que estorvava a ereção de uma Igreja, e servindose do mesmo recurso secou um pantano que era causa de uma discordia fraterna. Um rio inundava e devastava os campos
causando grandíssimos estragos; corre o Santo para  lugar do desastre, finca na margem do rio o bastão em que se apoia, o qual logo transforma-se numa árvore verde
e frondosa que serve de limite ao rio.
 
Estando proximo a morte, perguntou quantos infieés ainda existiam em Neo-Cesareia, e como se lhe respondesse que ainda havia dezessete, disse: "Graças sejam dadas
a Deus; pois esse era justamente o número de fiéis quando fui eleito bispo." Morreu no ano 268.
 
São Paulo, primeiro eremita - Os estragos que a perseguição causou entre os cristãos foram, causa de que muitos deles seguissem o conselho do Salvador e fugissem
das povoações onde a perseguição tomava maior incremento, para ir buscar um asilo nas vastas solidões que se estendem naquela parte do Alto Egito, chamada Tebaida,
na Palestina e na Siria.
 
o primeiro eremita, isto é,  primeiro que foi , conhecido entre aqueles solitários, foi São Paulo. Este nasceu perto de Tebas no ano 229. Ali vivia levando uma vida
cristã. Sua juventude, suas riquezas e seu nascimento não foram capazes de seduzi-lo, pois só amava a virtude; porém sua humildade que lhe fazia temer expor-se aos
tormentos, induziu-o primeiramente a esconder-se numa casa de campo, e depois a retirar-se para as partes mais remotas do deserto (Ano 250). Deus que o guiava, fez-lhe
encontrar uma rocha em que a natureza tinha formado uma espécie de aposento, belamente iluminado por uma abertura na parte superior. Do alto da montanha brotava
uma fonte de água cristalina, que alimentava um claro regato que tornava mais amena aquela solidão. Nutria-se o Santo com os frutos de uma palmeira que sombreava
a entrada da gruta, até que o Senhor, servindo-se de um corvo,  fez chegar a suas mãos meio pão cotidiano, alimento mais próprio para sua avançada idade. Ali viveu
Paulo noventa e dois anos, sem outra companhia do que a das feras e quase desdeconhecido dos homens. Pouco tempo antes de sua morte, Deus lhe fez conhecer o grande
Abade Santo Antão, que havia levado, igualmente, durante muitos anos uma vida solitária em outra parte daquele deserto. Sua morte teve lugar aos 113 anos de idade
e no ano 342 de nossa era.
 
CAPÍTULO XVII
 
Origenes - Sede romana vacante Lapsos - Sacrificados - Turificados - Idólatras - Libeláticos - Mártires - Confessores Imigrado - Professores
 
Origenes - 0 célebre Origenes nasceu em Alexandria do Egito. Leonidas seu pai, cristão muito fervoroso, o educou com solicitude no santo temor de Deus, e desde a
mais tenra idade o iniciou no estudo das divinas Escrituras. Tinha talvez dezessete anos quando seu pai, no imperio de Sétimio Severo, foi preso pela fé. Sabendo-o
Origenes, queria a todo o custo ir ao martírio com ele, e era tal seu ardor, que sua mãe para impedir viu-se obrigada a esconder suas roupas, pondo-o assim na necessidade
de desistir de seu propósito. Escreveu, não obstante, a seu pai uma carta formosíssima exortando-o a dar de bom grado sua vida pela fé, sem se deixar intimidar nem
afligir-se por coisa alguma. Morto Leonidas, foram confiscados seus bens conforme costume, deixando sua família na miséria. Então Origenes, jovem como era, começou
a dar lições de gramática e de literatura, para sustentar sua mãe e seus irmãos. Mais tarde o bispo de Alexandria ofereceu um campo vasto ao seu grande engenho,
confiando-lhe a cadeira de Catequista naquela famosa escola do cristianismo, contando ele apenas dezoito anos.
 
Desejoso de compreender quanto melhor pudesse a doutrina de Jesus Cristo, fez uma viajem , a Roma, no ano 221, para observar atentamento os ensinos e costumes daquela
Igreja, que ele chamava principal e mestra das outras Igrejas. De volta a sua patria, continuou a dar lições e fez tais progressos nas ciências, que, conforme narra,
a história, parece-nos um portento. Não se compreende, por exemplo, como pudesse um só homem ditar, durante várias horas consecutivas de dia e de noite, para sete
copistas ao mesmo tempo, coisas diversas e da mais alta e sublime teologia; nem como pudesse compor tantos livros de erudicão bíblica e eclesiastica, enquanto conferenciava
ao mesmo tempo com uma turba de doutos e literatos, que recorriam a ele pedindo luzes e conselhos. Sua fama se tinha estendldo tanto, que ninguém ia a Alexandria,
cristão ou pagão, sem que fosse visitá-lo. Os bispos o convldavam, e posto que não estivesse investido do caráter sacerdotal, faziam-no pregar; finalmente o bispo
de Jerusalém o ordenou sacerdote. Maméia, mãe de Alexandre Severo, que se pensa ter recebido o batismo, serviu-se muito de seus conselhos e de suas luzes. 0 imperador
Filipe e sua esposa Severa tliveram relações com Origenes, que dirigiu a cada um deles uma carta cheia de conselhos sublimes e de sentimentos de piedade.
 
Fim de Origenes - Não obstante estar no fim da vida, teve de padecer graves tribulações, motivadas por certas doutrinas erroneas, que lhe escaparam talvez inadvertidamente
ao ditar suas
obras.
 
Tais são: os Comentários sobre as Santas Escrituras, os livros contra o filósofo Celso, e muito especialmente o que tem por título Periárcon, isto é, dos Princípios.
Por outra parte quase não se pode por em dúvida que os hereges tlvessem falsificado aqui e acolá alguns pontos dos seus escritos, e que a falsificação teve lugar
ainda em vida de Origenes, pois que ele mesmo se queixava disto. O certo é que ele entendia viver e morrer como católico, e que por isso dirigiu uma carta ao Papa
São Fabiano, a qual não chegou até nós; porém sabemos conforme o testemunho de São Jerônimo (Ep. 74) que ainda a pode ler, que nela dava a conhecer seu arrependimento
pelos erros em que tinha caído. Quanto aos dogmas da Unidade e Trmdade de Deus, da Encanação de nosso dIvino Salvador, do sacrifício da santa Missa, do sacramento
da Confissão, da invocacão dos Santos, e da hierarquia da Igreja. Origenes foi um testemunho de muita importância para a doutrina cristã no terceiro século. Este
insígne doutor sofreu muito na perseguição de Décio em que foi carregado de cadeias, encerrado em um cárcere, e sujeito a graves tormentos. Mas mesmo no cárcere
não cessava de escrever cartas a seus discípulos, recomendando-lhes que perseverassem na fé. Morreu na cidade de Tiro aos 69 anos de idade no ano 253.
 
Alguns bispos, ainda em vida de Origenes; iniciaram contra ele uma perseguição, por que se deixara ordenar pelo bispo de Jerusalém sem ter conseguido antes licença
do seu próprio bispo, que era o de Alexandria; e também porque tinha compreendido e práticado mal as palavras de Jesus Cristo relativamente à castidade perfeita
(Sao Mat., cap. 19.). São Jerônimo, conquanto combata acerbamente os erros de Origenes, fala muito sobre suas virtudes, e deixa entrever grande esperança em relação
a sua etema salvação.
 
Sede romana vacante - 0 assanhamento contra os cristãos durante a perseguição de Décio, foi a dolorosa causa de não se poder eleger o novo Papa senão dezesseis meses
depois da morte de São Fabiano; e isso porque o jmperador preferia, conforme diz São Cipriano, ter antes um competidor no império, do que ter em Roma um sacerdote
de Deus. Isto nos demonstra como já conhecia Décio quão grande era a autoridade que tinha o bispo de Roma sobre toda a Igreja. Esse espaço de tempo chamou-se Sede
vacante, porque não havia nenhum Papa. Quase se pode dizer que é o tempo mais longo da história eclesiástica, durante o qual faltou Pontífice à Santa Sé. Representava
então o Chefe visível da Igreja o clero romano, que, como observa São Cipriano, tomou temporariamente as rédeas do govemo; e com efeito os diversos paises da cristandade,
em suas graves necessidades espirituais, continuaram a recorrer a Igreja de Roma, ainda em tempo de Sede vacante.
 
Os inauditos tormentos que se puseram em prática durante esta perseguição fizeram prevaricar muitos fiéis, e São Cipriano nos diz os motivos dessas deploráveis defeções.
Muitos fiéis eram demasiado apegados aos bens da terra e as riquezas lhes ataram de tal modo os pés, que quando chegou o tempo de correr valorosamente para o martírio,
acharam-se enlaçados e calram miseravelmente negando a Jesus Cristo.
 
Lapsos - Aos que prevaricavam davam-se vários nomes. Chamavam-se lapsos em geral os que de qualquer maneira tivessem negado a fé, porque do estado de filhos de Deus,
a que tinham sido elevados pelo batismo, tinham caido miseravelmente para ser escravos de satanás, perdendo todo o direito a felicidade do céu.

Sacrificados - Os lapsos costumavam chamar-se sacrificados, quando tinham sacrificado aos ídolos, ou comido alguma coisa oferecida aos mesmos; pois que naquele infortunado
tempo de prevaricação somente o comer essas coisas era considerado pelos gentios como sinal de ter negada a fé.
 
Turijicados - Chamavam-se os que para fugir os tormentos, consentiam em queimar incenso aos idolos ainda que sem fazer ato algum de idolatria.
 
Idólatras - Eram os que por meio de sacrifícios ou de palavra declaravam ter renegado a fé católica para adorar os deuses.
 
Libeláticos - Compreendiam-se debaixo deste nome aqueles que tinham em seu poder uma carta dos magistrados; bastando-lhes mostrá-la para que fossem postos em liberdade.
Os libeláticos se dividiam em duas classes: uns eram os que, entregando certa quantia de dinheiro, conseguiam uma carta em que se declarava que tinham sacrificado
aos ídolos, ainda que não fosse verdade; e os outros eram os que pagavam para obter um certificado em que nada se dizia do que tinham feito ou dito e somente se
notificava aos soldados e juízes que não os incomodassem. A conduta dos libeláticos da primeira classe foi altamente reprovada pela Igreja, pois ainda que fosse
verdade que eles nada dissessem ou fizessem contrário a fé, contudo fazia crer aos pagãos que a haviam negado. Tinham feito escrever além disso naquela carta uma
mentira injuriosa a Nosso Senhor Jesus Cristo, que disse: "Aquele que se envergonhar de confessar-me diante dos homens, me envergonharei eu de confessá-lo diante
de meu Pai celeste". (Luc., 9-26). Mas os da segunda categoria não foram condenados pela Igreja, porque não faziam mais do que comprar com dinheiro o privilégio
de não se lhes molestar.
 
Mártires - assim como aos que abandonaram a fé davam-se vários nomes que indicavam sua fraqueza e culpa, também aos que com animo varonil padeciam por Jesus Cristo
davam-se títulos gloriosos, conforme o modo e o tempo em que confessavam a fé, e suportavam os trabalhos das perseguições. Chamavam-se mártires os que constantemente
toleravam os suplícios pela fé ainda que não morressem nos tormentos. Por isto costuma-se chamar mártir a São Joao Evangelista, porque, para confessar sua fé, foi
arrojado, em Roma, numa caldeira de azeite fervendo, da qual saiu milagrosamente intato. Morreu muitos anos depois na paz do Senhor. Do mesmo modo chama-se mártir
a Santa Técia pelos muitos e atrozes suplícios que padeceu por Jesus, ainda que não morresse neles; pois terminou sua vida pacificamente. Também merece o nome de
mártir aquele que padece pela fé, ainda que não morra no suplício; porque a palavra mártir significa testemunha e os mártires, confessando fé entre os sofrimentos
do cárcere, das cadeias e dos suplícios, dão público testemunho da verdade da religião católica.
 
Confessores - Chamavam-se assim os que confessavam em presença dos juízes seu caráter de cristãos, com perigo próximo de serem atormentados e mandados à morte, ainda
que às vezes não sofressem mais do que o cárcere.
 
Extorres - Extorres é uma palavra latina que slgnifica imigrado, nome que se dava aos que temendo não suportar os tormentos abandonavam suas riquezas, sua pátria,
seus pais e amigos e iam estabelecer-se em paises estrangeiros. Estes davam testemunho de sua fé antes com fatos do que com palavras, seguindo o conselho de Jesus
Cristo que disse: "Quando fordes perseguidos numa cldade, fugi para outra".
 
assim o fizeram São Paulo, primeiro eremita, São Atanasio bispo de Alexandria e outros.
 
Professores - Eram estes os que levados pelo amor de Deus animados pelo desejo de morrer pela fé, ofereciam-se espontaneamente aos verdugos e arrostavam todo genero
de tormentos. Entre estes tão somente são dignos de admiração e glória os que chegavam a este excesso de heroísmo, guiados por uma graça especial do Espírito Santo;
porém os que o fizeram levados unicamente por certo entusiasmo, ou por tal ímpeto da natureza, tonaram-se culpados; pelo que a Igreja mais os reprovou como audazes,
de que os louvou como fervorosos.
 
CAPÍTULO XVIII
Cisma de Novaciano - Primeiro anti-Papa - Interrogatório de São Cornélio - Prisão e martírio de São Cornélio.
Cisma de Novaciano - 0 autor do primeiro cisma ou, o que significa a mesma coisa primeiro rompimento da unidade da Igreja Católica, foi Novaciano. Um tal Novato
de Cartago, tinha semeado a discordia naquela Igreja, enquanto São Cipriano se achava desterrado pelas perseguições. Cioso de gloria, Novato dirigiu-se a Roma para
espalhar seus erros; ali se encontrou com Novaciano que desejava ser Papa em lugar de São Cornélio. Novaciano durante sua mocidade, sendo ainda idólatra, tinha sido
possesso pelo demonio; porém livre já dele pelos exorcismos, determinou abraçar a fé. Enquanto era catecumeno e se fazia instruir no Evangelho, enfermou e se lhe
administrou o Batismo estando na cama. Tendo melhorado, não recebeu  sacramento da Confirmação, nem as demais cerimônias do Batismo, que tinham sido postergadas
porque parecia muito inconstante na Religião. Conseguiu não obstante, fazer-se ordenar sacerdote, contra o costume de então de não ordenar aos que tinham sido batizados
na cama por motivo de grave enfermidade.
Sobrevindo a perseguição, Novaciano ficou encerrado em sua casa. Os diáconos o convidavam para que saisse assistir a seus irmãos que perigavam, porém ele deixando-se
arrastar pela cólera, separou-se deles dizendo que já não queria ser sacerdote. Novato, que não desejava mais do que encontrar um homem turbulento, juntou-se com
ele e começou a ensinar o contrário do que até então tinha ensinado. Em Cartago tinha sustentado que se deviaa absolver aos apóstatas e agora em Roma se doia da
demasiada facilidade com que se lhes permitia fazer penitência.
Primeiro anti-Papa - Cornélio foi eleito Papa a despeito das dificuldades de Novato e de seus amigos. Novaciano vendo burladas suas esperanças, protestou que não
tinha ambicionado o pontificado; porém suas obras, prontamente, desmentiram sua asserção. Quando viu Cornélio na posse da Santa Sé, associou-se a Novato com o fim
de excitar tumúltos.
Querendo ser Papa a todo custo, reunio em Roma alguns bispos, e tendo conseguido encerrá-los em sua casa, a altas horas da noite, com ameaças os obrigou a consagrá-lo,
como se a Sede Romana se achasse vaga. Deste modo se efetuou a ordenação de Noviciano, primeiro anti-Papa e primeiro chefe do cisma, na Igreja Católica.
Ao cisma juntou a heresia, afirmando que a Igreja não podia dar a paz nem absolver aos que tinham caido em tempo de perseguição, ainda que fizessem penitência de
seu pecado e suplicassem à Igreja que lhes perdoasse em nome de Jesus Cristo. Condenava também as segundas núpcias, motivo pelo qual seus discípulos foram chamados
cátaros, isto é, puros ou puritanos, porque vestiamse de branco, afetando observar a virtude da continência, a qual por outra parte ultrajavam escandalosamente.
 
Novaciano para ligar mais seus setários no cisma, ao administrar-lhes a santa Eucaristia, tomava-os pelas duas mãos e os fazia jurar nestes termos: "Jura-me pelo
corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo não abandonar-me jamais para voltar a Cornélio"; e tão somente aos desgraçados que respondiam: "Não voltarei a Cornélio",
dava sacrilegamente a santa hóstia e lhes permitia enguli-la.
 
Interrogatório de São Cornélio - A perseguição, que ainda continuava fazendo estragos, e as turbulencias suscitadas por Noviciano, obrigaram ao Pontífice Cornélio
a retirar-se de Roma e refugiar-se em Civitaveccia; onde eram tantas as cartas que diariamente escrevia, e a afluência de gente que de todas as partes a ele acudia,
que parecia ter-se translalado Roma para ali. Foi este o motivo pelo qual o imperador mandou voltar Cornélio a capital afim de pedir-lhe contas das desordens que,
seguindo dizia ele, diariamente suscitava. Mandou que comparecesse a sua presença durante a noite e 0 interrogava da maneira seguinte:
- Padece-te, ó Cornélio, que fazes o que deves? Qual a razão que te leva a não respeitar nossos deuses, e a não temer minhas ameaças, escrevendo, ao contrário cartas
aos inimigos da república, em prejuízo da mesma?
Cornélio lhe respondeu com calma: - As cartas que tenho escrito, e as respostas que recebi, em nada afetam os interesses da república; tão somente falam de Jesus
Cristo meu Deus. Posso garantir-te que tudo o que tenho dito e feito não tem outro fim se não a salvação das almas.
O imperador mandou que se tirasse o Papa de sua presença e que se açoitasse seu rosto com um manojo de cordas, em cujas extremidades se haviam atado bolinhas de
chumbo: ut os ejus plumbatis coederetur. (Acta mart. s. Com.).
Prisão e martírio de São Cornélio - Logo mandou o imperador que conduzissem Cornélio ao cárcere, onde a divina Providência dispos que convertesse a fé o seu carcereiro
chamado Cereal. Movido este pela santidade que o Vigário de Jesus Cristo manifestava em suas palavras e em suas obras pediu-lhe que fosse a sua casa para visitar
sua mulher Salústia, que havia quinze anos jazia parAlitica no leito. Consentiu Cornélio e foi a sua casa, acompanhado de seus sacerdotes e um leitor; e levantando
os olhos para o céu, rezou da seguinte maneira: "Senhor Deus, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, vós que em vossa grande misericordia tendes baixado
do céu à terra para nos salvar a todos miseráveis pecadores, restitui sua primeira saúde a esta serva enferma, e tende miserlcórdia dela como tivestes do cego de
nascimento de que nos fala o Evangelho, para dar a conhecer vossa glória e exaltar vosso santo nome". Em seguida tomando-a pela mão lhe disse: "Em nome de Jesus
Nazareno levanta-te e caminha"; e assim como o cego de nascimento obteve a vista às palavras do Salvador, assim também Salústia, perfeitamente curada, se levantou
exclamando em alta voz: "Verdadeiramente Jesus Cristo é Deus e Filho de Deus". E iluminada pela graça do Senhor, disse a São Cornélio: "Peço-te por amor a Jesus
Cristo que nos administres o batismo"; e dizendo isto, foi buscar água e a deu ao Pontífice para que a batizasse, dando então os primeiros passos depois de quinze
anos de parAlitica. Muitos soldados e os mesmos carcereiros, testemunhas deste milagre, pediram que se lhes administrasse o batismo. assim o fez Cornélio depois
de te-los iniciado suficientemente. e para agradecer dignamente ao Senhbr, ofereceu por eles o sacrificium laudis, isto é, o santo sacrifício da Missa, e todos eles
participaram do corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Tendo noticia o Imperador de tudo que tinha acontecido em casa de Cereal, encheu-se de indignação, e ordenou que se levassem todos aqueles cristãos à via Apia, para
que fizessem um sacrifício a Marte sob pena de morte ao que se negasse fazê-lo.
 
Durante o caminho, encontrou São Cornélio o Arcediago Estevão e lhe recomendou que distribuisse aos pobres o pouco dinheiro que ainda ficava à disposição da Igreja.
Ao chegar ao lugar designado, os guardas vendo que eram inúteis todos os seus esforços, cumpriram as ordens recebidas. Ao santo Pontífice cortaram a cabeça a 14
de setembro do ano 255, depois de ter governado a santa Sé cerca de dois anos. Cereal, Salústia e mais outros vinte, foram martirizados na mesma ocasião.


 
CAPÍTULO XIX
 
São Xisto II e os Sabelianos - Oitava perseguição; São Xisto e São Lourenço - Martírio de São Cipriano - O jovenzinho Cirilo - Morte de Valeriano. - Aureliano e
a nona perseguição - Heresia de Manes.
 
São Xisto II e os Sabelianos - A São Cornélio sucedeu São Lúcio que ocupou a santa Sé somente dezesseis meses, pois caiu sobre ele a espada da perseguição. À sua
morte foi eleito São Estevão que também sofreu o martírio depois de três anos de pontificado. Sucedeu-lhe no trona de São Pedro Xisto II, ateniense, que permaneceu
nele um ano somente. o que mais ocupou seu zelo foi a heresia dos Sabelianos, chamada assim por Sabélio, que foi seu autor.
 
Nasceu este em Tolemaida e começou a espalhar seus erros no ano 250. Entre outras extravagâncias dizia que não havia distinção real entre as três pessoas da Santísslma
Trindade, e que o Pai era a mesma pessoa que o Filho e o Espírito Santo.
                                                   
São Dionisio, bispo de Alexandria, foi  primeiro a declarar-se contra os novos erros. A princípio os combateu energicamente com palavras, porém mais tarde pos por
escrito a doutrina dos Sabelianos e sua refutação, e a enviou ao mesmo Sumo Pontífice em forma de carta. São Dionisio escreveu também outra carta a São Xisto para
consulta-lo sobre algumas questões difíceis. "Apresentou-se-me um caso, disse-lhe, sobre  qual não me atrevo a pronunciar um juízo definitivo, pois tenho medo de
enganar-me. Consilium quaero, tuamque vehementer exposco sententiam. Peço conselho e com vivas instâncias solicito que deis vossa sentença a respeito".
 
O Pontífice examinou o caso e conheceu que as razões expostas davam lugar a verdadeiras dúvidas sobre a validade do batismo administrado por certos hereges, atendendo
ao modo pelo qual o adminlstravam; por isso respondeu que se devia renovar esse Sacramento debaixo de condição, não porque o tivesse administrado um herege, porém
porque parecia terem-se omitido coisas essenciais.(V. Bor.).
 
É esta a regra que ainda segue a Igreja católica, quando recebe em seu gremio aos que foram batizados quando professavam a heresia. Posto que ela considere válido
o batismo administrado como o instituiu Jesus Cristo, contudo, quando há dúvidas razoáveis de que esse procedimento não tem sido observado, então temendo a Igreja
que esse batismo tenha sido invalidamente administrado o faz administrar novamente debaixo de condição.
 
Oitava perseguição; São Xisto e São Lourenço - A oitava perseguição nasceu da estulta promessa que fizeram a Valeriano os sacerdotes dos ídolos, em que lhe asseguravam
uma grande vitória sempre que aniquilasse o cristianismo.
 
Entre os mártires mais ilustres desta perseguição conta-se São Xisto II Papa, e São Lourenço. Aquele denodado Pontífice, depois de ter sido preso e insultado, e
ter sofrido fome e sede, e depois de ter mostrado grande flrmeza em presença dos juízes e do próprio imperador, foi finalmente condenado à morte. Enquanto o conduziam
para o suplício, seu diacono São Lourenço o acompanhava soluçando: "Para onde ides, Santo Padre, lhe dizia, sem o vosso ministro ... ?" Ele lhe respondeu: "Tem coragem;
daqui a três dias me seguirás. A mim que sou velho, convém uma luta menos dura, porém a ti que és jovem, esta se preparando um combate mais atroz. Reparte entretanto
com os pobres as riquezas que te foram confiadas". Coroou seus trabalhos sendo decapitado no ano 264.
 
O que predissera o Papa em relação a seu diácono verificou-se pontualmente. Tendo ordenado o prefeito de Roma a São Lourenço que lhe entregasse naquele instante
os tesouros da Igreja, o santo diácono respondeu-lhe que estes já não estavam em seu poder, pois tinham sido distribuídos entre os pobreSão Indignado o tirano ao
receber esta resposta, fez-lhe padecer horríveis tormentos, e para acabar com ele, fe-lo deitar sobre uma grelha incandescente o valoroso mártir parecia insensível
a dor, pois passado algum tempo disse ao tirano: "Se queres, faz-me virar do outro lado pois ja estou bastante assado deste"; e depois que o voltaram acrescentou:
"Ja estão minhas carnes bastante cozidas; se gostas, podes comer delas" e ficou nesta firmeza até o último suspiro. Seu martírio causou tal impressão que vários
senadores romanos consideravam-se muito honrados em levar o cadáver sobre seus ombros até o cemitério de Ciríaco no Campo Verano. Ali foi sepultado, e nesse mesmo
lugar Constantino lhe erigiu mais tarde uma basílica que ainda existe.
 
Martírio de São Cipriano - São Cipriano também foi um dos mártires da oitava perseguição. Nascldo em Cartago de pais ricos, porém pagãos, por divina disposição encontrou
um amigo que lhe fez conhecer as verdades da fé. Reconheceu-as Clpriano e recebeu o batismo; vendeu logo todos os seus bens, dlstribuiu seu valor aos pobres, e retirou-se
do mundo. Conhecida sua santidade e engenho, apesar de sua resistência, foi elevado com aplauso geraJ à cadeira episcopal de sua pátria. É impossível dlzer tudo
o que fez para propagar o Evangelho, refutar de viva voz, com escritos e com milagres aos hereges, e animar ao martírio. Acusado como cristão e chefe dos cristãos,
foi condenado a morte. Ao saber da noticia exclamou: "Graças a Deus, que se dignou livrarme do cárcere do meu corpo". Chegando ao lugar do suplício, despiu-se com
tanta serenidade de seu manto e hábitos eplscopais, que o verdugo vacilava em cumprir seu sagrento ofício. O mártir o animou ordenando que lhe pagassem vinte e cinco
moedas e ele mesmo ajudou vendar os próprios olhos. Cortaram-lhe a cabeça a 14 de Setembro do ano 258, exatamente no dia, em que um ano antes tiha predlto que seria
mártirizado.
 
O jovenzinho Cirilo - O jovenzinho Cirilo também gloriflcou publicamente em Cesareia da Capadócia o nome de Jesus Cristo. Ainda que expulso da casa paterna e privado
de tudo, permaneceu firme na fé; o juiz o chamou a seu tribunal e tratou de convencê-lo com lisonjas oferecendo-se como mediador entre ele e seus pais. "Eu experlmento
um verdadeiro prazer, respondeu o menino com valor, em sofrer desprezos e desdem, expulso de minha casa, sei que me espera outra infinitamente melhor; e a morte
que tu encaras como o mais terrível dos males, é para mim a porta que me conduzirá à glória". o juiz para assustá-lo fingiu faze-lo atormentar; porém longe de subir-lhe
as cores ao rosto, ele mesmo dirigiu-se para o fogo no qual o queriam atirar. Quando o tiraram dai e tornaram a levá-lo a presença do juiz, lhe disse: "Tirano, tu
me injuriaste tirando-me a morte. Ferro e fogo, eis todos os dons que te peço", Os que se achavam presentes choravam ao ouvi-lo assim falar; porém ele lhes disse:
"Em vez de chorar deverieis alegrar-vos comigo e participar do meu triunfo. Vós ignorais que reino se me há preparado; e que felicidade me espera": e ficou firme
nestas admiráveis disposições até a morte.
 
Morte de Valeriano - A promessa dos sacerdotes idólatras a Valeriano, de que alçaria uma assinalada vitória contra os Persas, não se viu realizada; antes, sofreu
ele uma derrota em que caiu nas mãos de Sapor, rei daquela nação, o feroz persa fe-lo carregar de cadeias, depondo-lhe as vestimentas imperiais, e quando montava
a cavalo, obrigava-o a prostrar-se diante dele, e pisava-lhe o pescoço para que servisse de estribo. Finalmente ordenou que o esfolassem vivo: e que seu corpo esfolado
e sua pele tingida de vermelho se conservasse como opróbio desse perseguídor dos cristãos. Deus quis manifestar assim sua justiça. A maldição divina caiu também
sobre toda a descendêncla de Valeriano, pois seu filho, aclamado imperador após sua morte, foi morto pelo exército de Ilíria. Sucedeu-lhe Galiena que também foi
assassinado; e o filho de Galieno e seu irmão foram precipitados do alto do Capitólio. assim extinguiu-se completamente a estirpe daquele tirano.
 
Aureliano e a nona perseguição - Atribuese a Aureliano a nona das grandes perseguições suscitadas contra a fé de Jesus Cristo. Este imperador, a princípio se mostrou
favorável aos cristãos, e nos dá provas disso o seguinte fato: Paulo de Samosata, que tinha sido deposto de sua sede em Antioquia, recusava-se a entregar a seu sucessor
o palácio episcopal. Depois de inúteis instâncias, os católicos apresentaram suas queixas a Aureliano, que tendo examinado a questão, deu a respeito desta memorável
sentença: "Entregue-se a casa episcopal ao designado para ocupa-la pelos prelados itaianos de religião cristã, e pelo pontífice romano", isto é, o bispo de Roma
e seu clero, Esta sentença nos dá a conhecer duas coisas de suma importância: a saber, que a veneração dos fiéis para com o Pontífice romano, como chefe supremo,
era tão notória naqueles tempos que nem os próprios gentios a desconheciam; pois Aureliano viu que para fazer justiça aos cristãos de Antioquia, em coisas concernentes
a seus interesses religiosos, era o caminho mais curto remiti-las ao juízo do Papa, prometendo fazer executar sua sentença, e também nos demonstra o erro em que
se achavam os que pretendiam que a Igreja não possuia nos pnmeiros tempos bens de raízes.
 
Instigado este imperador pelos pagãos, achava-se a ponto de firmar um terrível decreto contra os cristãos, porém aterrorizado por um raio caido a seus pés, suspendeu
por momentos semelhante edito, ainda que o firmou pouco depois. Passado algum tempo, foi Aureliano assassinado por seu secretário, e assim concluiu a perseguição.
Ano 275.
 
Heresia de Manes - A heresia dos maniqueus é assim chamada por causa do seu autor, Manes. Nascido escravo na Persia, resgatou-o uma viúva cuidadosa, que não tendo
filhos, o adotou e nomeou herdeiro de suas grandes riquezas. Entre as demais coisas que herdou, encontrou Manes um livro de que tirou as estravagâncias mais infames.
Acreditando com isto ter-se tornado um homem divino, chamava-se paraclito, isto é, luz do genero humano; ensinava que existem dois deuses, um born e autor do bern,
e outro mau e autor do mal.
 
Proscrevia a esmola, os Sacramentos, o culto das santas imagens e negava a Encarnação de Jesus Cristo. Tendo a cabeça cheia de ridicularias, pretendeu também fazer
milagres, e se ofereceu para curar o filho de seu rei perigosamente enfermo; porém o menino morreu e o impostor foi preso. Tendo conseguído iludir a vigilância de
seus carcereiros, fugiu do cárcere, retirou-se do reino e para dar crédito a seus erros foi disputar com o bispo de Cesareia, e mais tarde com São Trifônio; porém
ambos o confundiram e o cubriram de vergonha. O povo, irritado por suas blasfemias, ameaçou apedrejá-lo; então ele fugiu e voltou a Persia, onde caiu em mãos do
rei, que ordenou que o esfolassem vivo. Seu corpo foi atirado as feras, e sua pele foi colocada em uma porta da cidade. (277). Mas desgraçadamente não morreu com
ele o sistema de suas absurdas doutrinas; e a seita dos maniqueus se propagou de tal modo, que dez séculos mais tarde, ainda causou grandíssimos trabalhos à Igreja.
 
CAPÍTULO XX
 
São Caio e a décima perseguição - São Marcelino e a legião tebana - Martírio da mesma - Era dos mártires - Decreto de Diocleciano - Fim desgraçado desse príncipe.
São Caio e a décima perseguição - A São Xisto II sucedeu São Dionisio que governou a Igreja onze anos e três meses. A este sucedeu São Felix, que ocupou cerca de
três anos a sede de São Pedro Em sua morte subiu ao trono pontifício Santo Eutiquiano, que o ocupou durante oito anos e dez meses; ambos morreram mártires. Depois
do martírio de Santo Eustaquiano, elegeram Papa a São Caio, sobrinho do Imperador Diocleciano. Nascera em Solona cidade marítima do Adriático, de pais nobres e ricos;
foi enviado a Roma para cursar seus estudos. Tendo tido ali ocasião de conhecer o Evangelho se fez cristão e mais tarde abraçou o estado eclesiástico. Trabalhou
muito nos pontificados de São FelIx e de Santo Eutiquiano, e quando este último ganhou a palma do martírio, o elegeram para para lhe suceder, no ano 283. Durante
o segundo ano de seul pontificado (284) rebentou a perseguição de Diocleciano, que foi a mais sanguinolenta de todas as que a precederam. São Caio, como, sobrinho
do imperador, não dleixou de o repreender vivamente; porém em vão, porque o imperador, para captar as simpatias dos pagãos, renovou o decreto imperial, no qual declarava
que a idolatria era a única religião do império. Acrescentava-se nesse decreto que não podia se fazer compra nem venda, sem primeiro oferecer incenso aos ídolos.
Para este fim foram colocadas pequenas estatuas, representando idolos, em todas as esquinas dos palacios, das ruas, das praças, perto dos poços, das fontes e dos
negócios de comestíveis, e nada podia se comprar sem sacrificar antes àquele pequeno idolo.
Caio, durante o curso dos quatro primeiros anos de seu pontificado, pode permanecer com suficiente segurança em casa de Gabinio, seu irmão; porém quando tomou incrementos
a perseguição, ele também teve de esconder-se nas grutas e nas catacumbas, para poder cumprir os ofícios de seu sagrado ministério. Saia dali com muita frequencia
para socorrer os que perigavam na fé. Ainda que Diocleciano desejasse acabar com os cristãos, repugnava-lhe contudo condenar Caio, pois, sendo seu parente, dele
cuidara durante sua infância. Via além disso em Caio um homem de grandes virtudes e como tal sempre o tinha amado e venerado; mas, tão grande era o ódio que concentrava
contra a religião cristã que finalmente decidiu-se a pronunciar também contra ele a sentença de morte. Para salvar ao menos as aparências e não passar por verdugo
de sua familia, mandou que se executasse a sentença ocultamente e de noite. assim foi mártirizado São Caio, depois de mais de doze anos de pontificado, no ano 29ó.
 
São Marcelino e a legião tebana - Tendo morrido São Caio, sepultou seu precioso cadáver um sacerdote chamado Marcelino, o mesmo que lhe sucedeu no pontificado. Em
principios de seu pontificado foram a Roma os soldados da legião tebana sob o comando de São Maurício. Chama-se assim essa legião, porque os soldados que a compunham
costumavam se convocar e reunir em Tebas, célebre cidade do Egito. Devendo dar-se começo a uma guerra perigosa contra os Bagáudos, povos da Galia, Maximiano, que
tinha sido criado por Diocleciano seu colega no império, chamou do oriente essa legião, que se distinguia no exército romano por seu valor e fidelidade. Ao ir a
Italia aqueles soldados passaram por Jerusalém, onde muitos deles que eram catecumenos receberam o batismo administrado por São Lambda, bispo daquela cidade. (V.
Bar. An. 297).
 
Chegando a Roma se apresentaram ao Papa, e pediram que administrasse a confirmação aos que ainda não a tinham recebido. O santo pontífice depois de certificado que
se achavam suficientemente instruídos, administrou-lhes esse Sacramento e, ao concluir a sagrada cerimônia, lhes falou do seguinte modo: "Meus filhos, ide, e para
onde fordes, dai-vos a conhecer por verdadeiros soldados de Jesus Cristo, prontos a morrerr em qualquer tempo, antes que manchar a pureza dessa fé que há pouco acabais
de receber". (Bar. luqar citado) .
 
Martírio da legião tebana - Saindo de Roma, atravessaram a Italia, e passando os Alpes Apeninos, ali onde se levanta agora o grande São Bernardo, foram unir-se com
Maximiano, que com o resto do exército os estava esperando nas planícies de Valés, perto de uma cidade chamada então Otoduro e hoje Martigny. Vendo Maximiano que
naquela região havia muitos cristãos, quis que todos os seus soldados o ajudassem a persegui-los e a dar-lhes a morte, e entretanto participassem dos sacrifícios
que por sua ordem se ofereciam as divindades do império. Três coisas exigia pois incontinente Maximiano: que todo o exército fizesse um sacrifício aos deuses; que
jurasse fidelidade ao Imperador, invocando seus ídolos e finalmente que todos prometessem ir em busca dos cristãos para os condenar a morte como inimigos dos deuses
do império. Os soldados idólatras obedeceram sem demora, porém assim não se deu relativamente aos valentes tebanos. Quando chegou aos ouvidos de Maurício, seu chefe
esta resolução, resolveu juntamente com todos os seus soldados, resistir a estas ordens injustas. Ele com sua legião se achava a umas dez milhas do lugar onde estava
Maximiano Augusto, em lugar chamado Agauno, hoje São  Mauricio, perto do grande São Bernardo. Informado Maximiano de sua resistência, ordenou que a legiãoo tebana
fosse a primeira a executar sua ordem, ameaçando com os efeitos de sua cólera aos que desobedecessem. Todos os tebanos responderam a uma voz: Christiana religione
impedimur; a religião cristã no-lo proibe. Enraivecido o imperador por tão desdenhosa resposta, mandou que fosse dizimada a legião isto é, que de dez se sorteasse
um para lhe dar a morte. A legião foi dizimada, mas os que ficaram vivos não perderam a coragem; por isso Maximiano mandou-a dizimar pela segunda vez. E aqueles
heróis, longe de se oporem, submeteramse com alegria a tão cruel carnificina; e até os que sobreviviam invejavam a sorte de seus companheiros mortos pela fé. Como
todos, porém, permanecessem firmes nela o imperador ordenou luma matança geral; em cumprimento de suas órdens o exército rodeou a legião que se compunha de uns óóóó
soldados e os passou pelas armas. Este fato deu-se aos 22 de Setembro do ano 297. São Avito, bispo de Viena em França, fazendo o panegírico dessa legião de soldados,
disse que nenhum deles se condenou porque todos morreram por Jesus Cristo.
Era dos mártires - Havia já dezoito anos que Diocleciano governava o império, e ainda que durante esse espaço de tempo, sempre tivessem sido perseguídos os cristãos,
contudo a perseguição se achava muito longe de ter chegado àquele espantoso estado de crueldade que alcançou durante os últimos anos do reinado de Diocleciano. Ao
findar o ano 302 achava-se este em Nicomedia com Galério, que já tinha sido criado Cesar do império do Oriente. Animado este por um ódio implacável contra a religião
de Cristo, dizia ao jmperador: "Ja é tempo de acabarmos com esses miseráveis cristãos; é gente obstinada, e enquanto houver um deles sobre a terra, existirá uma
semente de desventura para o império". Diocleciano de idade já avançada, posto que detestasse os cristãos, tivera não obstante de admirar muitas vezes a sua fidelidade
e virtude heróica. Representavam-selhe as belas qualidades de seu irmo São Gabinio, de seus sobrinhos São Caio Papa, Cláudio, Máximo e outros muitos companheiros
seus que ele mesmo tinha condenado a morte. Recordava além disso as virtudes de Cromácio, prefeito de Roma, de Sebastião, general de seus exércitos, e de outros
muitos heróis mortos pela fé. Ainda era recente o fato da legião tebana, mártirizada por seu colega Maximiano. Tão pouco ignorava ele imperador que sua consorte
Serena, Valéria sua filha e outros da corte, muito queridos dele, eram cristãos. Por todas essas razões, respondia a Galério, que não era prudente voltar a perturbar
a paz do império e derramar rios de sangue. Por outra parte, acrescentava, com os suplícios não conseguiremos nada, porque os cristãos nada mais desejam do que morrer.
Galério consultou a opinião dos ministros do Estado, que, para não lhe desagradarem, votaram pela perseguição. Hesitando ainda o imperador, quis que se consultasse
o oráculo de Apolo. Este respondeu: "Os justos espalhados sabre a terra me impedem de falar". Perguntou-se aos sacerdotes dos ídolos quem eram os justos, e estes
disseram que com esse nome se designavam os cristãos.
Novo decreto contra os cristãos - Em vista disto, Diocleciano firmou o fatal decreto de extermínio universal de todos os cristãos, com a data de 23 de Fevereiro
de 303. Entre outras iniquidades, ordenou o seguinte: "Sejam arrasadas as igrejas dos cristãos, queimados os seus livros; qualquer de nossos súditos reconhecido
como cristão, seja despojado imediatamente de suas riquezas, de suas dignidades e seja condenado a morte. Também poderá ser ele citado e apresentado perante os tribunais,
mas ele não poderá citar nem chamar a juízo; nem terá direito de pedir que se lhe restitua o roubado, nem de pedir satisfaçãoo por injúrias ou por ultraje. Os escravos
que obtiveram liberdade, se forem cristãos, voltarão a ser cativos".
Em força deste edito infernal, os cristãos, estavam fora da lei; isto é, já não podiam gozar do apoio da autoridade civil; de modo que qualquer pessoa podia impunemente
insultá-los, desprezálos, despojá-los, roubá-los, sem que eles de modo algum pudessem defender-se. Um decreto especial mandava que se atirassem as chamas todos os
seus livros, e havia pena de morte para aquele em cuja casa ou pessoa se encontrasse um livro da religião cristã.
Um terceiro decreto, dirigido especialmente contra os bispos e sacerdotes, dizia que estes deviam ser procurados com preferência para serem condenados a morte. Maximiano
confirmou no Ocidente tudo o que o seu colega estabelecera na parte oriental do império.
Efeitos dessa perseguição - Essa perseguição não conseguiu o resultado que esperavam os idólatras, e o que alcançaram com ela unicamente, foi dar a conhecer mais
e mais a divindade de nossa santa religião, pois que os cristãos de todo o império preferiram sofrer todos os tormentas e derramar seu sangue, antes que renunciar
a sua fé. O Céu se povoou de santos mártires, a Igreja resplandeceu pela virtude heróica de seus filhos, e os que por temor dos sofrimentos apostataram, ao terminar
a perseguição, fazendo sincera penitência, voltaram ao seio de sua mãe, a Igreja; de modo que os esforços de Satanás para destruir a religião de Jesus Cristo não
serviram senão para tornar mais brilhante o seu triunfo. Nesses supremos momentos o Papa Marcelino se rodeou de varões peritos em pregar com zelo e integridadea
as verdades do Evangelho, e com eles trabalhou heroicamente até que lhe cortaram a cabeça, a 26 de Abril do ano 304.
Fim de Diocleciano - Tendo firmado Diocleciano, o sanguinolento decreto transcrito anteriormente, começaram a cair sobre ele várias desgraças. Galério que o tinha
instigado a perseguir os cristãos, rebelou-se, ameaçando-o com a morte se não abdicasse. Diocleciano fatigado pela idade e pelos trabalhos, cedendo as ameaçadoras
instancias de seu filho adotivo, renunciou ao trono e se retirou para Solona, sua pátria. Mas a mão de Deus que pesava sobre ele, o acompanhou por todas as partes;
perdeu quase completamente a uso da razão, e restaram-lhe tão somente as luzes suficientes para sentir todo o peso de seu envelhecimento. Apoderou-se dele um humor
acre, que o foi consumindo pouco a pouco; languído, triste, continuamente agitado, já não tomava quase alimento; tornava-se-lhe impossível descansar de dia e dormir
de noite. Frequentemente se encontrava chorando como uma criança. Oprimido pelos seus sofrimentos e pelos açoites da vinganga divina, entregou-se aos mais violentos
arrebatamentos, e cego por sua cólera, se golpeava, ou se atirava ao chão, dando horrorosos gritos. Finalmente não podendo mais carregar uma vida tao miserável,
terminou-a com um último crime, deixando-se morrer de fome. Ano 313.
 
CAPÍTULO XXI
 
São Marcelo - Morte de Galério - Princípios de paz no Oriente - Disciplina eclesiástica desta Primeira Época - Século primeiro - Século segundo - Século terceiro.
 
São Marcelo - Foi eleito este Papa para suceder a São Marcelino, e governou com muito zelo a Igreja, durante cinco anos. Sagrou varios bispos, entre os quais figura
São Emígdio, a quem enviou a pregar em Ascoli, Piceno, e foi o primeiro bispo daquela cidade, onde coroou seu apostolado com o martírio. Maxêncio, filho de Maximiano,
que estava de acordo com Galério para perseguir os cristãos, logo que soube que Marcelo era seu chefe, o mandou prender, e o ameaçou com a morte se não renunciasse
a sua dignidade e não sacrificasse aos ídolos. Recusando-se com grande constância a obedecer foi Marcelo condenado a servir nas cavalariças imperiais; porém o homem
de Deus, ainda no desempenho de tão baixo ofício, não deixava de prover a manutenção da fé. Depois de nove meses de cárcere, foram de noite seus clerigos, e tirando-o
daquele lugar, o conduziram a uma casa dos cristãos onde havia um oratório secreto. Achava-se este oratório em Roma, no lugar onde se levanta hoje a formosa Igreja
de São Marcelo. Ao saber disto, Maxêneio transformou a Igreja em estrebaria e tendo feito levar ali vários animais, condenou o Papa a servi-los. Ali, consumido pelos
trabalhos e sofrimentos, morreu pela fé no ano 309.
 
Morte de Galério - Galério morava glorioso na cidade de Sardes, quando, pouco depois do martírio de São Marcelo, cobriu todo seu corpo uma dolorosa chaga, aplicaram-lhe
remédios, porém o mal se resolveu numa vergonhosa gangrena. Chamaram-se médicos, e puseram-se em prática todos os recursos da medicina, mas sem chegar a resultado
algum. Enfurecido com isto, condenava a morte os próprios médicos. Ninguém podia se aproximar dele pelo cheiro desagradável que exalavam seus membros; finalmente
um médico cristãoo teve bastante coragem para falar-lhe nestes termos: "Recorda-te, ó principe, de tudo quanto fizeste contra os cristãos, e procura o remédio para
teus males no que foi sua causa". Vencido pelo excesso de suas doenças, aquele principe soberbo confessou como verdadeiro o Deus dos cristãos, reconheceu a santidade
de sua religião, que tinha até então sido odiada pelos imperadores romanos; e em seguida fez publicar um decreto que já não se devia perseguir os cristãos. Como
porém não fazia isto por se achar arrependido do mal que tinha feito, mas apenas pela atrocidade de suas dores, a mão do Senhor continuou pesando sobre ele e depois
de um ano de horrorosa enfermidade, morreu miseravelmente, caindo-lhe as carnes aos pedaços. (V. Bar. ano 311).
 
Princípios de paz no Oriente - Ainda que Galério o tivesse promulgado contra a vontade, aquele famoso decreto não deixou de produzir bons resultados. Ao ser promulgado
nas províncias do Oriente, foi como a primeira lei das autoridades romanas, que proibia perseguir os cristãos. E impossível significar com quanta alegria foi recebido
pelos fiéis, que puderam assim professar publicamente sua religião. Os desterrados voltaram a sua pátria, os presos saíram dos cárceres, os que tinham sido despojados
de seus bens, foram reintegrados em todos ou em parte, restituiram-se os cargos aos empregados, e deixaram-se todos em plena liberdade de levantar igrejas e participar
dos ritos públicos da religião.
 
Mas na Italia e especialmente em Roma onde governava Maxêncio, continuou a perseguição até que aprouve a divina Providência dar paz a sua Igreja e fazê-la resplandecer
e triunfar por meio de Constantino o Grande. É este o primeiro imperador romano que publicamente se declarou cristão e que com suas leis civis promoveu o estabelecimento
e a autoridade de nossa santa religião. Este acontecimento glorioso abre a Segunda Época da história eclesiástica.
 
Disciplina da Primeira Época - Século primeiro. - No Concílio de Jerusalém aboliu-se a circuncisão e as demais cerimônias da lei mosaíca. Os fiéis de Jesus Cristo
começaram a chamar-se cristãos na cidade de Antioquia. Atribue-se a São Pedro a instituição da tonsura clerical; porém esta ainda não se usava nos três primeiros
séculos, pois sendo perseguídos os eclesiásticos, ela os teria descoberto. Esta instituicão não se pode generalizar até os tempos de Constantino.
A observancia do domingo, em vez do sábado, e das festas do Natal, da Epifania, da Páscoa, da Ascensão, e de Pentecostes; o jejum da Quaresma, e das quatro temporas,
o uso da água benta, o sinal da cruz, os ágapes ou banquetes comuns de caridade, tudo isto foi atribuído a São Pedro.
São Lino renovou o preceito de São Paulo, ordenando que as mulheres entrassem na igreja com a cabeça coberta. Diz-se que o Papa São Cleto instituiu a fórmula Saúde
e benção apostólica, o Pax obis e o Dominus vobiscum, na santa Missa. São Clemente dividiu a cidade de Roma em sete seções ou paróquias, e em cada uma delas estabeleceu
um notário ou escrivão encarregado de recolher as atas dos mártires. Também atribue-selhe o Canon da Missa, isto é, as regras que a Igreja romana observa nas orações
e cerimônias do Santo Sacrifício, bem como a benção dos frutos da terra.
Século segundo - o Papa São Vitor estabeleceu que somente se administrasse o Batismo nas solenidades da Páscoa e de Pentecostes, e com água expressamente benta.
Ordenou também várias orações e o jejum das sextas-feiras em honra da paixão do Salvador. 
São Urbano, Papa, declarou que só os bispos são ministros ordinários do sacramento da confirmação, e que os bens eclesiásticos são de propriedade da Igreja por direito
divino.
O Papa São Ponciano estabeleceu que se cantassem os salmos na Igreja e que se rezasse o Confiteor no princípio da Missa.
O Papa São Fabiano designou um diácono em cada uma das sete paróquias de Roma para o cuidado dos pobres, e instituiu outros tantos subdiáconos para recolher as atas
dos mártires redigidas pelos notários de que já se fez menção, os quais assistiam aos interrogatórios e a morte dos campeões da fé.
Século terceiro - O Papa São Calixto estabeleceu três dias de jejum durante cada uma das quatro estações do ano, chamadas quatro têmporas.
O Papa São Lúcio introduziu o costume de vestir a dalmática e a tunicela durante os ofícios divinoSão Declarou excomungados os que usurpavam ou delapidavam os bens
da Igreja; decreto que confirmaram outros Pontífices e o Concílio de Trento.
O Papa São Estevão decretou que se benzessem, antes de usá-los, os sagrados hábitos e proibiu aos leigos o uso deles.
São Felix estabeleceu que, em quanto fosse possível, se celebrasse o santo sacrificio da Missa sobre os sepulcros e as relíquias dos mártires. Conserva-se ainda
este costume; pois põe-se sempre alguma relíquia dentro da pedra sagrada sobre a qual se celebra o santo sacrifício.
O Papa São Eutiquiano ordenou que se fizesse o Ofertório na Missa; e a benção do trigo, dos legumes e dos comestíveis. Também decretou que os cadáveres dos mártires
se enfeitassem o melhor que fosse possível com um vestido chamado colóbio, ou dalmática de cor encarnada.
 
SEGUNDA Época
Desde a conversão de Constantino no ano 312, até a origem do maometismo no ano 622. (abrange um período de 310 anos.)
 
CAPÍTULO I
 
Constantino, o Grande - Aparição da Cruz - O Lábaro - Entrada em Roma - São Melquíades O palácio e basílica de Latrão - Cisma dos donatistas - Carta de Constantino
- Concílio de Latrão - Morte de São Melquíades.
 
Constantino, o Grande - Era filho de Constantino Cloro e de Santa Helena. Após a morte de seu pai, que dominava a Grã-Bretanha e as Gálias na qualidade de Cesar,
foi proclamado imperador por seus soldados.
Conquanto não se achasse ainda instruído na fé, amava os cristãos, e dando-lhe estes provas de sua fidelidade em várias ocasiões, ordenou que cessasse a perseguição
na Grã-Bretanha e nas Gálias onde ele governava, e que dali em diante os cristãos fossem tratados como os demais cidadãos. Conseguiu este imperador grandes vitórias
entre as quais ocupa o primeiro lugar a que obteve contra Maxêncio, filho de Maximiano e seu sucessor no trono. Pelos vícios da avareza e da crápula se tinha tornado
Maxêncio desagradável a todos os bons, de modo que de todas as partes chamavam a Constantino para livra-los daquele tirano. Constantino não titubeou em tomar as
armas para combater contra o inimigo da humanidade e da religião. Foram formidáveis os preparativos de guerra que se fizeram de ambas as partes. Maxêncio, segundo
dizem os historiadores, tinha cento e sessenta mil homens a pé e dezoito mil a cavalo, ao passo que Constantino não tinha mais do que quarenta mil. A desigualdade
da força atemorizou algum tanto a Constantino: mas Deus serviu-se disso para apartá-lo do culto dos deuses impotentes, tirá-lo daquele perigo e trazê-lo ao conhecimento
do verdadeiro Deus.
Aparição da Cruz - Seu inimigo empregava as artes da magia para invocar em seu auxílio as potências infernais; mas ele, ao contrário, dirigiu-se ao verdadeiro Deus
que, embora confusamente conhecia como o Criador do céu e da terra, suplicando-lhe que se declarasse em seu favor. Ouviu-o Deus e operou um assinalado prodígio,
que a história não declara com suficiente precisão em que local se realizou. Alguns autores dizem que foi nos arredores de Turim, e esta opinião se acha confirmada
por uma pintura muito formosa que esta em Roma no palácio do Vaticano, na galeria chamada dos mapas geográficos. Eis como nos referem o fato os historiadores contemporâneos,
entre os quais Eusébio de Cesaréia, amigo de Constantino.
Marchava Constantino com seu exército depois do meio dia, quando de súbito viu descer do céu, do lado do sol, uma cruz luminosa que trazia esta inscrição: In hoc
signo vinces. - Com este sinal vencerás. - Ele e seu exército foram testemunhas daquele milagroso fenômeno que deixou a todos admirados. Constantino não compreendia
o que significava aquela cruz, e por isso Deus dignouse manifestá-lo com uma revelação.
Apareceu-lhe durante a noite Jesus Cristo trazendo na mão uma cruz igual a que tinha visto no dia precedente e ordenou-lhe que fizesse um estandarte semelhante,
o qual lhe serviria de segura defesa contra seus inimigos em tempo de guerra. Constantino executou logo o que lhe tinha sido ordenado e deu ao estandarte o nome
de lábaro.
O Lábaro - Segundo Eusébio, consistia o lábaro em uma longa lança revestida de ouro, atravessada em certa altura por um pedaço de madeira, formando todo ele uma
cruz. Da parte superior, mais acima dos braços pendia uma coroa resplandecente de ouro e ricas jóias e no centro ressaltava o monograma de Cristo, formado pelas
duas letras gregas iniciais dessa palavra. De cada braço da cruz pendia um pano de purpura, bordado a ouro e pedras preciosas, e na parte superior, debaixo da coroa
e do monograma, achava-se em ouro o busto de Constantino e seus dois filhos. Este trofeu da cruz foi o estandarte imperial. Deste modo os Romanos, que até então
tinham usado um estandarte particular chamado Labarum, coberto de imagens de falsas divindades, tomaram por bandeira a cruz de Jesus Cristo. Constantino substituindo
nele as imagens do paganismo pelo nome de Jesus Cristo apartou seus soldados de um culto ímpio, e os levou, sem esforços, a adorar o verdadeiro Deus. Este precioso
estandarte foi confiado a um corpo de cinquenta guardas, escolhidos entre os soldados mais religiosos e valentes, que deviam rodeá-lo, defendê-lo e carregá-lo alternadamente
sobre seus ombros.
Entrada de Constantino em Roma - Contando com a proteção do Céu, dirigiu-se Constantino animosamente a frente de seu exército para o lugar onde estavam acampadas
as tropas de Maxêncio. Seus soldados, ainda que inferiores em número, achavam-se impacientes para combater, pois contavam desde já com a vitória. Já tinha havido
um encontro em Suza, porém deu-se outra batalha mais importante na vasta planície que se estende entre Rivoli e Turim deixando ali dono do campo o piedoso imperador.
Com muito pouco trabalho apoderou-se de Milão, Brescia e outras cidades, que se entregaram a sua clemência, de modo que sem graves contratempos pode chegar até as
portas de Roma. Maxêncio enviou então contra ele seu exército, que se achava do outro lado do Tevere, e fez construir sobre este rio uma ponte levadiça de madeira,
dividida em duas partes, que facilmente se podiam unir e segurar por meio de grossas cordas, para que tirando-as se dividissem e Constantino e seu exército caissem
no rio e se afogassem, caso tentassem passar para o outro lado. Querendo além disso que os deuses lhe fossem propícios, lhes oferecia em sacrifício mulheres e crianças,
e enquanto corria ainda o sangue das vítimas, o bárbaro príncipe procurava nas entranhas daqueles infelizes o preságio de seu destino. Ao contrário Constantino preparou
seus soldados com a oração e, pondo sua confiança em Deus, iniciou o assalto cheio de valor.
Combateu-se com denodo de parte a parte; porém no fim se declarou a vitória em favor de Constantino. Ao ver Maxêncio mortos e dispersos os seus melhores oficiais,
tratou de salvarse fugindo; porém ao passar a ponte que ele mesmo fizera para prejudicar o seu inimigo, pelo ímpeto e multidão dos fugitivos romperam-se as amarras,
e caindo com seu cavalo no Tevere se afogou. No outro dia foi encontrado seu cadáver no lodo. Os romanos, vendo-se já livres daquele tirano, receberam com alegria
ao vencedor. Constantino ao entrar na cidade, deu graças a Deus pela vitória que tinha obtido, e mandou que a cruz, penhor da proteção do céu, atravessasse a cidade
e fosse arvorada no Capitólio para anunciar ao mundo o triunfo do Deus crucificado. Com a cruz adornou também o seu diadema, e proibiu que dai em diante servisse
de suplício aos malfeitores. Ano 312.
São Melquíades - O Pontífice São Melquíades teve a gloriosa sorte de receber em Roma o grande Constantino. Dizemos gloriosa, porque foi este, sem dúvida alguma,
um acontecimento da maior importância, pois os imperadores romanos, tendo conhecido desde esse tempo a santidade do cristianismo começaram a protegê-lo e a professá-lo
publicamente. Senhor de Roma, Constantino chamou do desterro os cristãos, pos em liberdade os presos e restituiu seus bens aos que deles tinham sido despojados.
O romano pontífice, perseguido até então, foi dai em diante objeto de reverência para o imperador cristão que, venerando nele o Deus a quem se reconhecia devedor
de suas vitórias e do império, quis provê-lo de tudo o que era necessário para seu decoro.
O palácio e a basílica de Latrão - O palácio de Latrão foi a primeira habitação que Constantino deu aos sumos Pontífices. Este edificio é muito célebre nos fatos
da Santa Sé, e se conserva ainda com grande esplendor. Deve o nome de Latrão a Pláucio Laterano, consul de Roma nos tempos de Nero, que o mandou edificar sobre o
monte Celio. Esteve em poder dos imperadores até Constantino que fixara sua morada nele; porém, querendo este religioso monarca oferecer aos Papas uma morada digna
do Vigário de Jesus Cristo deu a São Melquíades uma parte daquele grande edifício. Mais tarde fez inteira doação dele aos Papas, e mandou edificar a seu lado a grande
basílica de São Salvador de Latrão, chamada mais tarde São João, a qual costuma-se chamar mãe e cabeça das igrejas de Roma e de todo o mundo: Ecclesiarum urbis et
orbis mater et caput.
Cisma dos donatistas - No palácio de Latrão celebraram-se muitos concílios, sendo o primeiro o que se reuniu no pontificado de São Melquíades, contra os donatistas,
assim chamados do nome de Donato, um dos seus principais fatores. Nasceu esta seita no ano 311, em tempo de Ceciliano, bispo de Cartago. Distinguia-se este por ciência
e virtude; porém o acusaram de ter sido sagrado bispo de modo irregular e nulo; ja porque Felix, bispo de Aptunga, que o tinha sagrado, era considerado traidor,
ou réu de ter entregue os livros sagrados aos perseguidores, já porque no ato de sua sagraçao não se achava presente a número de bispos, que segundo sua opinião,
se requeria. Depois de muitas contendas, os adversários de Ceciliano elegeram outro bispo, chamado Majorino, porém todos os bons católicos se negaram a comungar
com o novo bispo intruso, e ficaram fiéis e submissos ao legítimo bispo Ceciliano. Dai nasceu o cisma, isto é, a separação; achavam-se de um lado os católicos com
Ceciliano seu chefe, e do outro lado as cismaticos tendo por cabeça Donato com o bispo intruso, Majorino. A desordem chegou a tal ponto, que os Donatistas resolveram
apelar para Constantino que se achava então nas Gálias. Este, para formar idéia clara do assunto, pediu ao governador da África uma relação detalhada do assunto,
e reuniu em seguida três bispos para conhecer o estado das coisas. Mas quando viu que se tratava de religião, respondeu que essa não era de sua competência, e que
como secular não podia dar seu juízo em relação aos ministros daquele Deus, por quem dentro em pouco devia ser julgado. Concluiu dizendo que tantos os acusadores
como os acusados escolhessem cada um dez bispos e fossem a Roma com Ceciliano e Majorino, que ali se discutiria tudo com o Papa São Melquíades; em juízo solene se
examinaria e julgaria definitivamente a questao.
Carta de Constantino a São Melquíades - Enquanto em cumprimento das ordens de Constantino, os convidados da África se preparavam para ir a Roma, o imperador escreveu
uma carta a São Melquíades concebida nestes termos: "por sucessivas cartas que me tem enviado de África meu proconsul Anolino, chegou a meu conhecimento que Ceciliano,
bispo de Cartago, é acusado, por seus colegas, de muitos delitos. Pelo que creio conveniente que Ceciliano vá a Roma com dez bispos dos que o acusaram e outros dez
que ele julgue necessários para esclarecer e defender sua causa. Além disso, para que possais estar plenamente informado do assunto em questão vos envio cópia das
cartas que Anolino me mandou da África contra os colegas de Ceciliano; e as envio com a minha firma para tirar todo o perigo de que possam ser adulteradas. Quando
as tiverdes lido com atenção e com o tino que vos distinguem, certamente sabereis como e com que modificações se deverá resolver esta questao. Quanto a mim, vos
asseguro que professo tanta estima e respeito para com a Igreja católica, que desejarla que nunca surgissem divisões entre vós, nem aparecessem princípios de discórdias.
A suma majestade do Soberano Senhor a vós e a vossos honrados ministros conserve por muitos anos. (Euseb. 1. 10, 15).
Ao receber esta carta, São Melquíades se esmerou em preparar todo o necessário para reunir o concílio; e para que tudo se discutisse profundamente e se sentenciasse
por juízes competentes além dos três bispos que mandou Constantino das Gálias, chamou a Roma outros quinze bispos da Italia.
Concílio de Latrão - Este imponente concílio, que foi o primeiro que se efetuou na basílica de Latrão, começou suas sessões a 2 de Outubro do ano 314. Depois de
longa discussão, confessou Donato que tinha renovado a sagrada ordenação a alguns que tinham caido em tempo de perseguição, coisas em todo tempo condenadas pela
Igreja; porque é dogma da fé que o valor destes sacramentos não depende da bondade daquele que os confere, e que o caráter que eles imprimem não se tira jamais,
Ao chegar a causa de Ceciliano, diz Optato de Mileto, interrogaram-se as testemunhas que Donato havia trazido, e estas confessaram que nada tinham de dizer contra
Ceciliano. São Melquíades depois de ter ouvido todas as opiniões, levantou-se e pronunciou a seguinte sentença: "Constando claramente que Ceciliano não é culpado
de pecado algum, nem mesmo segundo a opiniao dos que Donato trouxe para acusá-lo, e que este tão pouco pode convencê-lo de culpa alguma, julgo que deve ser reconduzido
a sua diocese e reintegrado em todos os seus direitos."
Morte de São Melquíades - São Melquíades não sobreviveu senão três meses a celebração do Concílio de Latrão. O mártirológio romano falando dele diz: "Teve muito
que padecer durante a perseguição de Maximiano e depois da volta da paz à sua Igreja dormiu tranquilamente no Senhor."
 
CAPÍTULO II
 
São Brás, bispo de Sebaste - Basílica de São Pedro no Vaticano - Ario e sua doutrina - Concílio de Nicéia. - Os arianos e São Atanásio - Morte de Ario - Invenção
da Cruz - Morte de Constantino.
São Brás, bispo de Sebaste - Após a morte de São Melquíades foi eleito São Silvestre romano de nascimento, para ocupar o lugar de São Pedro, como pastor da Igreja
universal. Coube-lhe a sorte de tomar o governo da Igreja enquanto era protegida por Constantino; porém também teve a dor de ver perseguídos os cristãos pelo imperador
Licinio que reinava no Oriente. Este tinha prometido a Constantino não os perseguir; porém faltou a sua palavra. A perseguição fez-se sentir especialmente em Sebaste,
cidade cuja sede episcopal achavase ocupada por São Brás, varão esclarecido por suas virtudes e milagres. Achava-se proximo ao martírio, quando se apresentou uma
mãe aflita que pos a seus pés o filho único, próximo a morte, sufocado por ter-se-lhe atravessado na garganta uma espinha de peixe. Brás enternecido fez breve oração,
e o menino ficou logo livre de todo tormento e perigo. Deste milagre se originou a devoção que os fiéis tem a São Brás contra males da garganta, como também a benção
que estes invocam no dia de sua festa.
Vendo o governador da cidade que o santo de nenhum modo queria sacrificar aos ídolos, ordenou que fosse atirado ao mar. Brás fez o sinal da cruz e começou a caminhar
por sobre as águas sem submergir; sentou-se logo sobre elas e convidou aos infiéis que fizessem o mesmo, se acreditavam que seus deuses tinham algum poder. Temerários
houve que tentaram fazê-lo; porém submergiram no mesmo instante. Depois destes claros sinais de constância e santidade Brás voltou a terra onde o governador, fê-lo
decapitar no ano 315.
Basílica de São Pedro no Vaticano - Constantino com o fim de dar maior esplendor ao cristianismo, erigiu muitas igrejas, entre as quais sobressaem a de São João
de Latrão a de São Paulo fora dos muros de Roma, e a Basílica de São Pedro no Vaticano chamada assim porque foi edificada aos pés da colina desse nome. Ainda que
sempre tida em grande veneração as relíquias do Príncipe dos Apóstolos, ali guardadas em um oratório secreto, não obstante durante os três primeiros séculos não
se lhes pode tributar a honra que mereciam erigindo-se-lhes uma Igreja pública; porém apenas cessaram as perseguições, o túmulo de São Pedro foi o santuário do mundo
cristão. Por isto o próprio imperador, para dar um testemunho público de honra ao primeiro vigário de Jesus Cristo, projetou erigir-lhe uma Igreja, conhecida sob
o nome de Basílica Constantiniana. De comum acordo com São Silvestre, estabeleceu que esta encerrasse em seu interior o pequeno templo edificado por São Anacleto
sobre essas relíquias o dia em que se deu princípio àquela santa obra, despiu-se Constantino do diadema imperial e das demais insígnias reais, e depois de ter-se
prostrado em terra, e feito uma humilde oração, tomou uma enxada e cavou no lugar onde deviam assentar os alicerces da nova Basílica, e encheu doze canastras com
a terra que se tinha extraído, as quais levou sobre seus ombros em honra dos doze Apóstolos. Desenterrou-se então o corpo de São Pedro e, na presença dos fiéis e
do clero, foi colocado por São Silvestre em uma grande caixa de prata fechada numa outra de bronze dourado que se achava fixa no chão.  A urna que guardava o sagrado
depósito tinha cinco pés de altura, cinco de largura e cinco de comprimento. No centro da tampa que a cobria, pos-se uma cruz de ouro de cento e cinquenta libras
de peso que trazia gravados os nomes de Santa Helena e de seu filho Constantino. Terminado este majestoso edifício e preparada a crípta ou aposento subterrâneo,
adornado de ouro e pedras preciosas, e rodeado de grande quantidade de lâmpadas, colocou-se nele o corpo de São Pedro, fechado na dita urna. São Silvestre  convidou
para esta sonidade muitos bispos e fiéis, e para excitá-los abriu os tesouros da Igreja e concedeu muitas indulgências. Foi extraordinário o concurso, e aquela função
serviu de exemplo  para a consagração das igrejas cristãs de então e dos séculos vindouros. Este acontecimento deu-se aos 18 de novembro do ano 324. A urna de São
Pedro fechada desta maneira, segundo parece, não se tornou a abrir. O sepulcro deste grande Apóstolo sempre foi sobremaneira venerado por todos os cristãos
Ario e sua doutrina - Nosso divino Salvador nos deixou dlto no Evangelho, que sua Igreja sempre seria perseguida,  e que o inferno poria em campo todas as suas más
artes para destruí-la, nunca, porém, poderia prevalecer contra ela. Os três primeiros séculos foram tempos de perseguições, de sangue e de estragos; mas a fé de
Jesus Cristo passou glorriosa e triunfante por entre esses desastres. À perseguição seguiu-se o triunfo e a paz, mas assim que pode respirar a Igreja, ao cessarem
as perseguições, acometeramna ferozmente a heresia e o cisma, especialmente por meio de um sacerdote de Alexandria chamado Ario. Era Ario homem ambicioso que se
achva disposto a cometer qualquer crime para satisfazer sua vaidade. Teve o atrevimento de pregar contra a divindade de Jesus Cristo afirmando que o Filho de Deus
não é igual ao Pai, mas sim criatura sua. Esta doutrina foi desprezada no mesmo instante com o horror que merecia, ouvindo-se reprovar em todas as partes essas impiedades
e blasfemias. Bispos e doutores se levantaram contra Ario com a voz e com escritos; encontrou não obstante partidários enganados por sua hipocrisia, e conseguiu
perturbar a Igreja em todas as partes
Concílio de Nicéia - Conhecendo o imperador os progressos da nova heresia, concordou com o Papa São Silvestre, em opor-se a ela, convocando um Concílio Ecumênico,
isto e, uma renião geral dos bispos. Nesse interim ordenou a todos os governadores de províncias que os provissem de todo o necessário para a viagem. o Pontífice
consentiu de born grado e resolveu que o Concílio se reunisse em Nicéia, cidade principal de Bitínia, chamada hoje Isnik, na Anatólia. Abriu-se o Concílio no ano
325 e achavam-se presentes 318 bispos. O Papa, não podendo ir pessoalmente, mandou para o representar a Ósio, bispo de Córdova, e dois sacerdotes romanos chamados
Vito e Vicente. Eram, pois, eles os legados do Papa, que deviam presidir em seu nome ao Concílio. foi uma reunião imponente, nunca vista e impossível de se descrever,
parte dos prelados que a compunham distinguia-se já por doutrina, santidade e milagres, e muitos deles traziam as cicatrizes dos tormentos que tinham sofrido na
última perseguição. No dia em que devia inaugurar o Concílio, reuniram-se todos os bispos em uma grande sala. Constantino, como sinal de respeito aos que se achavam
presentes, quis entrar por último, e não quis tomar assento até que o tivessem feito os demais.Tomou parte no Concílio, não como juiz, senão como protetor dos bispos
e para impeder que os hereges causassem turbulências.
Ario, que também tinha sido admitido atreveu-se a sustentar jactanciosamente sua blasfêmia em presença do concílio. Horrorizaram-se os Padres, e com argumentos tirados
dos Livros Sagrados e da Tradição provaram e definiram que Jesus Cristo é igual ao Pai e verdadeiro Deus, e que tem a mesma substância e a mesma natureza que o Pai.
Para exprimir este dogma, empregaram a palavra "consubstancial". Ósio como presidente do concílio e legado do Vigário de Jesus Cristo, compos uma profissão de fé
conhecida sob o nome de "Símbolo de Nicéia". Os bispos pronunciaram anátema contra Ario, e o imperador apoiou o juízo dogmático da Igreja com a força do braço secular,
desterrando o hereges e seus partidários. Tal foi a conclusão desta célebre reunião, cuja memória sempre será venerada pelos católicos, por ter constituído o primeiro
Concílio Geral da Igreja.
Os arianos e São Atanásio - Os arianos que tinham sido condenados no Concílio de Nicéia, para não serem desterrados, fingiram aceitar a decisão dos Padres, ao passo
que trabalhavam secretamente contra os católicos. São Atanásio bispo de Alexandria foi seu mais formidável adversário e a coluna que Deus pos para que servisse de
dique contra aqueles ímpios blasfemos de seu Filho. Nasceu em Alexandrla  no Egito, e ainda muito jovem, apenas diácono, tomou parte no Concílio de Nicéia onde deu
visíveis sinais de santidade, zelo e profunda doutrina. Morto o bispo São Alexandre, foi eleito com aplauso universal para ocupar seu posto.
Tendo ele reprimido a irnpiedade de Ario, de tal modo concitou contra si o ódio de todos os arianos, que desde então nunca mais deixaram de lhe armar insídias. E
como vissem que saiam baldados todos os esforços, dirigiram contra ele a arma costumada dos malvados, a calúnia. Em conciliábulo reunido em Tiro, os arianos apresentaram
a Santo Atanásio, que se achava presente, a mão de um morto, dizendo-lhe: "Eis aqui o que te condena. Conheces esta mão? É a mão daquele santo varão chamado Arsênio,
a quem tu mandaste dar a morte." Atanásio ficou algum tempo em silêncio, e dirigindo-se em seguida à assembléia, disse: "Recorda algum de vós as feições de Arsênio?"
Muitos responderam afirmativamente. Então Atanásio fez um sinal a Arsênio, que tinha feito ir ali para provar a sua inocência, e mandou-lhe que, deixando o manto
em que estava envolto, se adiantasse e mostrasse que estava vivo, e que possuia ambas as mâos. Em vista disto, aqueles ímpios caluniadores se cobriram de vergonha,
longe, porém, de se apaziguarem ante justificação tão evidente, se enfureceram ainda mais e, acrescentando calúnia a calúnia, obrigaram ao imperador a tirar Atanásio
de sua sede e à mão armada por outro em seu lugar. O santo prelado viu-se obrigado a salvar sua vida passando muitos anos em penoso desterro. Pode, é verdade, voltar
de vez em quando a Alexandria, porém teve de retirar-se novamente dali pela perseguição dos arianos: e para não cair em suas mãos viu-se forçado a ficar escondido
cinco anos em uma cisterna enxuta, e outros quatro meses no sepulcro de seu pai. Contudo não deixou por isto de refutar e combater por meio de cartas, livros e todos
os meios a seu alcance, a esses inimigos de Jesus Cristo; até que, voltando à sua sede, concluiu em paz sua vida no ano 373, tendo sido bispo durante 46 anos.
Morte de Ario - Ario, depois de ter causado males gravíssimos à Igreja, desejando abrir-lhe chagas  mais profundas ainda, fingiu emendar-se: para isso se apresentou
ao imperador, e com juramento lhe assegurou que acreditava em tudo o que ensinava a Igreja Católica. Receando Constantino algum engano disse-lhe: "se mentes, Deus
vingará teu perjúrio, entretanto podes voltar a ocupar teu cargo!". E deu ordens para que pudesse voltar ao exercício de seu ministério em Contantinopla. Os hereges
seus sectários, estavam sobremaneira contentes de poder levar Ario a tomar posse daquela Igreja, donde tinha sido expulso; e para que a reintegraçao fosse mais solene
estabeleceram que se realizaria no dommgo seguinte.
Um povo imenso acompanhava o obstinado herege que sentado em um carro elegantemen te adornado, tratava de aumentar sua pompa espraiando-se em fastidiosos e arrogantes
discursos; porém ali o esperava a divina vingança. Tendo chegado no meio de tanta glória, perto da Igreja onde devia dar-se a reintegraçao, apodera-se dele um repentino
terror, empalidece e treme agitado por violentos remorsos. Acometido ao mesmo tempo de horríveis dores de ventre e laceração de intestinos, morreu desesperado em
uma pública sentina, tendo caido com muito sangue uma parte de suas entranhas. Ano 336.
lnvenção da santa Cruz - o imperador Constantino, reconhecendo-se devedor à Cruz de suas vitórias, desejava ardentemente dar mostras especiais de veneração àquela
sobre qual dera sua vida o Salvador. Ardendo o coração de sua mãe santa Helena no mesmo desejo, posse de acordo com seu filho e com o romano Pontífice, e foi a Palestina
em busca desse tesouro, apesar da avançada idade de oitenta anos. Era muito difícil encontrá-la, porque os pagãos tinham amontoado muita terra no lugar onde se achava
o sepulcro e formado ali uma grande praça, erguendo no centro um templo a Venus; porém nada pode impedir que a piedosa princesa visse realizados seus desejos. Sabendo
pelos anciãos de Jerusalém, que se chegasse a encontrar o sepulcro, encontrar-se-la também a Cruz, fez logo derrubar o templo pagão e dar começo às escavações. Depois
de muito trabalho, desecobriu-se afinal a gruta do santo sepulcro, e a muito curta distância dele se acharam três cruzes, e em lugar separado encontrouse também
o letreiro que tinha sido posto na cruz do Salvador, com os cravos que tinharn perfurado suas mãos e seus pés. Mas, como se podia conhecer qual a verdadeira cruz?
Helena, a conselho de Macário bispo de Jerusalem, mandou levar as três cruzes à casa de uma mulher que desde longo tempo se achava atacada por uma incurável enfermidade.
Aproximaram sucessivamente as três cruzes, e ao mesmo tempo rogava-se ao Divino Salvador que fizesse conhecer qual delas tinha sido banhada com seu sangue. Estava
presente a imperatriz, e toda a cidade esperava com ansiedade o sucesso. As duas primeiras cruzes não causuram nenhum efeito na enferma, porém assim que se aplicou
a terceira, sentiu-se perfeitamente curada e se levantou no rnesrno instante. O historiador Sozomenos afirma que também sendo aplicada a um cadáver o ressuscitou
logo, o que se acha confirmado por São Paulino.  Cheia de alegria a santa rnulher, desprendeu uma parte da verdadeira cruz para a enviar a seu filho, e encerrando
o resto em uma caixa de prata, colocou-a nas rnãos do bispo Macário para que a depositasse na Igreja que Constantino tinha ordenado se levantasse no Santo Sepulcro.
Helena não viveu muitos anos depois de sua viagem a Jerusalem e cheia de merecimentos perante Deus e os homens, morreu pouco tempo depois, sendo honrada pela Igreja
como santa. A Igreja católica celebra todos os anos este prodigioso descobrimento no dia 3 de maio.
Morte de Constantino - Quanto rnais miserável foi a morte dos perseguidores da Igreja, tanto mais consoladora foi a morte desse protetor da fé. Vendo Constantino
os oficiais que choravam em derredor de seu leito de morte, disse-lhes: Eu vejo com olhos diferentes dos vossos a verdadeira felicidade; e, longe de afligir-me,
folgo muito porque chegou para mim o momento de gozar dela. Deu-lhes as ordens necessárias para que se conservasse a paz no império, fez-lhes jurar nunca empreenderiam
coisa alguma contra a Igreja, e com a paz dos justos morreu com 64 anos de Idade, 31 de reinado no ano 337 de nossa era. Antes de morrer dividira o império entre
seus filhos Constâncio e Constante. Sua morte foi chorada por todos, e embora seja verdade, que se lhe imputam alguns delítos que cometeu levado pela cólera ou engano
por falsas relações, o certo é que fez penitência deles e reparou seus escândalos vivendo vlrtuosa e exemplarmente.
 
CAPÍTULO III
Concílio de Rimini - Santo Antão, monge - Vida monastica - Juliano apóstata - Persegue os cristãos - Sua morte.
Concílio de Rimini - Constâncio filho e sucessor de Constantino no Oriente, favoreceu desgraçadamente o arianismo, e para fazê-lo triunfar, reuniu um concílio em
Rimini: porém todos os bispos, a uma voz, pronunciaram anátema contra os arianos. Não satisfazendo isto ao imperador, mandou um oficial seu ao concílio, o qual com
promessas e ameaças induziu a maior parte dos bispos a subscrever uma fórmula de fé, na qual não se achava a palavra consubstancial. Conquanto essa fórmula não fosse
herética, não exprimia, entretanto, com suficiência, a fé de Nicéia. Os aranos se jactaram muito com isso, como se com essa fórmula se tivesse adotado sua heresia,
porém os bispos que a tinham firmado quando conheceram o sentido perverso que lhe davam os hereges se opuseram a ela, e professaram seu apego à fé de Nicéia. O Papa
Libério unido aos blspos de todo o mundo, levantou a voz contra este escândalo, não servindo desta maneira nem a violência, nem a astúcia para obscurecer a fé católica.
Ano 359.
Santo Antão, monge - O primeiro e o mais célebre entre os solitários foi, como já se disse, São Paulo, porém a este não se considera como fundador da vida monástica,
porque não teve muitos discípulos, nem deu uma regra fixa para este genero de vida cristã; por isso geralmente se venera Santo Antão o Egípcio como fundador do monaquismo.
Observe-se que se chamavam monges ou solitários os religiosos que viviam separados um dos outros, e habitavam em celas ou cabanas e as vezes em cavernas, distantes
umas das outras, reunindo-se somente em certas ocasiões para orar juntos, assistir aos divinos ofícios, e receber instruções e avisos, ao passo que chamavamse cenobitas
os religiosos que viviam juntos, e dormiam debaixo do mesmo teto. Só com o correr dos tempos, monge e cenobita tiveram o mesmo significado.
Nasceu Antão no ano 252, de pais virtuosos e nobres, e passou sua primeira juventude na piedade mais exemplar. Na idade de dezoito anos, entrando certo dia na Igreja
em momento em que se lia este texto do Evangelho: "Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, depois vem e segue-me e terás um tesouro no
céu" , tomando estas palavras como ditas para si, deliberou segui-las fielmente, e dando tudo o que possuia aos pobres, abandonou seus pais e amigos, e retirou-se
as solidões da Tebáida. Ali deu principio a um método de vida o mais austero que se possa imaginar: servia-lhe de cama uma esteira ou a terra nua; alimentava-se
uma vez por dia depois do sol posto, e sua comida consistia em escasso pão e água, servindo-lhe de vestimenta, um cilício e um manto de couro. Depois de muitos anos
de vida muito austera, Deus lhe concedeu o dom de milagres, e isto lhe atraiu tal séquito de discípulos, que com grande assombro do mundo, povoaram imensos desertos
que pareciam inabitáveis, formando-se várias comunidades em algumas das quais se achavam até mil e mais monges. Estes valentes cristãos animados por tal mestre,
formavam um espetáculo não menos maravilhoso do que o dos mártires. Cheio de méritos e esclarecido pelos seus milagres, passou Antão a melhor vida no ano 357 aos
105 de idade. Sua vida foi escrita por Santo Atanásio.             
 
Vida monástica - A vida solitária ou monástica tinha por objeto observar a pobreza, a obediência, a castidade em seu grau mais perfeito, e fazer morrer totalmente
o homem às coisas do corpo para fazê-lo viver só para as do céu. Para consegui-lo empregava-se quatro meios: o trabalho, o jejum, a solidão e a oração. O trabalho
era muito penoso, e por isso ocasião contínua de áspera mortificação, consisti geralmente em fazer esteiras e cestos de junco, ou de palma, os quais vendiam dando
quase todo seu fruto aos pobres. Não comiam senão uma vez no dia e o fazlatm ao do sol, e isso durante todo o ano exceto os dia de domingo e o tempo pascal. Seu
alimento regularmente, compunha-se de ervas sem tempero algum, exceto o sal, e o azeite às vezes; uma ou outra vez também comiam tâmaras ou figos secos. Vida tão
austera em vez de debilitar suas forças, as aumentava de tal modo que muitos deles chegavam a uma avançada e florida velhice. Todos sabemos que São Paulo morrreu
aos 113 anos, São Antão viveu 105; São Macário de Nitra igualmente seu discípulo chegou aos 100 anos. Estes e outros exemplos de vigorosa velhice demonstram que
a vida sóbria e temperante é fonte de saúde e conserva vigorosamente as faculdades mentais. Muitos deles reuniam-se duas vezes ao dia para rezarem em comum, rectando
cada vez doze salmos, ao que seguia-se a leitura da História Sagrada; o resto do dia rezavam de per si, encerrados em uma cela. Outros, que vviam muito separados,
não acudiam a reunião senão aos domingos e dias festivos; os demais dias oravam a sós. Todos prestavam a seus superiores uma obediência ilimitada e perfeita, vendo
Deus na pessoa deles; por isso reinava entre eles a mais admirável união, concórdia e caridade.
 
Juliano Apóstata - Enfurecido Satanás pela queda da idolatria no império romano, tratou de voltar a ressuscitá-la por meio do imperador Juliano, chamado comumente
apóstata porque abandonou a religião cristã em que se tinha educado, e pos em campo todos os meios a seu alcance para destrui-la. Era Juliano filho de um irmão do
grande Constantino, e na morte de Constâncio como herdara ele todo o império, fez tudo o que pode para restabelecer o culto dos ídolos. Tendo predito Jesus Cristo
que não ficaria pedra sobre pedra do templo de Jerusalem, e tendo os fatos, como vimos, correspondido plenamente as suas palavras, propos-se Juliano a desmenti-lo
reedificando aquele templo célebre; porém a única coisa que conseguiu foi tirar a última pedra sem poder sequer lançar os alicerces. Logo que começou o edifício
não se tinham ainda assentado as primeiras pedras, quando sobreveio um espantoso terremoto que as vomitou do seio da terra, e as lançou contra os operários, especialmente
judeus. Muitos deles que tinham corrido para ali com frenético entusiasmo para ver se conseguiam reedificar seu antigo templo, morreram sepultados entre as ruínas,
deixando outros gravemente feridos. Tornou-se a tentar mais de uma vez a temerária empresa, e não se abandonou até que turbilhões de vento espalharam a areia, o
cal e os demais materiais. Mas o mais prodigioso e terrível a um tempo é que saiam dentre aquelas ruínas glóbulos de fogo que serpeando com a rapidez do relâmpago,
deitavam por terra os trabalhadores e os arrastavam consumindo muitos até os ossos e carbonizando outros, até ehegavam a alcançar a alguns judeus que estavam muito
longe e os sufocavam ou consumiam. Em vista de tão extraordinário milagre, não se atrevendo já ninguém aproximar-se daquele lugar, desistiu-se da empresa. Ano 363.
Perseguição de Juliano - Exasperado Juliano pelo mau êxito da reedificação do templo de Jerusalém, condensou todo o seu ódio contra os cristãos, aos quais teria
querido aniquilar se possível lhe fosse. Com este fim ajudava os hereges e os cismátlcos, dando-lhes toda sorte de liberdades ao passo que despojava o clero de todos
os seus bens e privilégios, dizendo em tom de zombaria, que não fazia mais do que fazê-los praticar a pobreza evangélica. Obrigava-os a pagar crescida soma para
reparar os templos dos ídolos e não confiava cargos públicos aos cristãos nem permitia que eles se defendessem perante os tribunais. "Vossa religião, dizia-lhes,
proibe os pleitos e as pendências. Proibiu finalmente aos cristãos que exercessem o ofício de mestres de escola ou de professores nas academias, dizendo que era
inútil o estudo das ciências e das letras aos que tão somente devem crer sem raciocinar.
Morte de Juliano - Este genero de perseguição teria sido muito mais funesto para a Igreja do que a crueldade de Nero e de Diocleciano, se Deus não tivesse derrubado
por terra os planos de Juliano com uma morte prematura. Tinha esse ido combater contra o rei da Pérsia com propósito de exterminar os cristãos assim que alcançasse
a vitória; porém a mão poderosa do Senhor desbaratou os atrevidos planos do apostata, e quando ele contava já com a vitória, uma flexa, cuja procedência se ignorava,
atravessou-lhe o coração. Ao fazer força para tira-la cortaram-se-lhe os dedos, e caiu desmaiado sobre seu cavalo.. Tlraramno dentre a multidão para curar a ferida;
porém tornando-se-lhe cada vez mais agudas as dores, dava gritos de desespero. Caindo em um paroxismo de raiva arrancava com a mão o sangue de sua ferida e atirando-o
para o céu exclamava: "Venceste, Galileu... venceste, Galileu", referindo-se com essas palavras a Jesus Cristo contra quem sempre tinha combatido. Obstinado na impiedade
morreu no ano 365, aos 31 anos de idade. Com ele caiu para sempre a idolatria no império romano. Jesus Cristo conseguiu novo triunfo e a Igreja Católica nova e muito
esplendida vitória.
 
CAPÍTULO IV
 
Santo Hilário - Santo Eusébio - Santo Ambrósio - Segundo Concílio Ecumênico e os Macedonianos - São Gregório Nazianzeno - São Basílio Magno - São Dámaso - São Jerônimo.
Santo Hilário. - Contra os esforços que a heresia e a perseguição faziam em prejuízo da fé, suscitou Deus uma série de homens célebres pela santidade e doutrina,
chamados comumente Doutores ou Mestres da Igreja. Estes pelo heroísmo de suas virtudes, pela profundidade de sua ciência e por zelo incansável, foram a salva-guarda
do Evangelho em várias partes do mundo. Um destes bispos e doutores insígnes foi Santo Hilário de Poitiers, que com justiça se pode chama-lo apóstolo das Gálias,
suscitado contra os arianos. Nascido de pais nobres, estes o instruíram em todos os ramos da literatura e das ciências e tanto aproveitou que ainda jovem, passava
por um dos oradores mais eloquentes. Apenas conheceu a religião cristã, recebeu o batismo e começou a praticá-la com o exercício das mais sublimes virtudes. A extraordinária
ciência e santidade que o adornavam foram motivo para que o nomeassem bispo de sua pátria; ele se opos quanto pode, e somente aceitou o honroso cargo quando conheceu
ser essa a vontade de Deus. A nova dignidade não produziu nele senão maior entusiasmo pela glória de Deus. Não poupou esforços ou fadigas para dar-se todo a todos
e ganhá-los todos a Jesus Cristo. Sua casa foi a casa dos pobres; para eles era tudo o que possuia. Pregava com tamanho fervor a palavra de Deus, que os gentios
e até os próprios arianos, em grande número naquelas regiões, corriam estupefatos a ele para que os instruísse nas verdades católicas. o imperador Constâncio, grande
protetor dos arianos, oprimia de mil modos os católicos, despojava-os de seus bens e os desterrava. Hilário, que se opos, qual forte muralha, a esse perseguidor,
chamou sobre si suas iras; por isso foi tirado de sua sede e desterrado para as mais longinquas regiões do Oriente. Hilário aproveitou essa ocasião para escrever
vários livros em defesa do Evangelho. o mais importante e o que traz o título de Tratado da Trindade, composto expressamente para refutar os arianos. Nele se estabelece
como regra !nfAlivel a doutrina de São Pedro, e falando dele assim se exprime: "Oh! Feliz fundamento da Igreja e pedra digna de que sobre ela a Igreja seja edificada,
para que quebre as portas do inferno e todos os vínculos da morte! ó bem-aventurado porteiro do paraíso, cuja sentença aqui na terra se transforma em juízo autorizado
no céu; de modo que as coisas atadas ou desatadas sobre a terra recebem plena confirmação também no céu!". Achou-se também Santo Hilário no conciliábulo de Selêucia,
que se reuniu no ano 359, convocado, por alguns bispos orientais infeccionados de arianismo. No meio de tantos inimigos da verdade, ele continuou em seu propósito
de provar a divindade de Jesus Cristo refutando ponto por ponto a seus adversários; porém indignado por suas blasfemias, abandonou aquele antro de Satanás e se apresentou
ao imperador Constâncio, em Constantinopla, para lhe fazer patente o perigo em que se achava a fé ortodoxa, porém como o imperador era ariano e favorecia o concilábulo
de Calcedonia, pediu Hilário permissão para disputar publicamente sobre a fé com seus adversários.   
Os arianos receando ser confundidos publicamente pelo Santo, se recusaram a conferenciar com ele, dizendo que não queriam tratar com um perturbador da paz; e para
sair do apuros, convenceram ao imperador que o fizesse voltar ao bispado de Poitiers. Sua entrada nas Gálias foi um verdadeiro triunfo, de todas as partes acorriam
para festejá-lo, e o Senhor quis fazer mais ilustre sua volta, obrando milagres, como o de ressuscitar a um menino morto sem receber o batismo. Apenas gozou um momento
de paz, se dedicou com o maior zelo a reparar a Igreja dos males que lhe tinham causado seus inimigos. também reuniu alguns Concílios, e tendo conseguido trazer
para o caminho da verdade os bispos seduzidos pelos hereges, pode com sua cooperação desarraigar a heresia dos arianos, de quase toda a Gália. escreveu muitos outros
livros cheios de erudição, livros que São Jerônimo encarece e declara isento de todo erro. Morreu no ano 269.
Santo Eusébio - Santo Eusébio, bispo de Vercelli, foi o primeiro que reuniu no Ocidente os eclesiásticos da cidade, para viverem juntos na qualidade de religiosos,
dando assim origem à instituição dos cônegos. Foi uma das principais salva-guardas da fé católica contra os arianos. Em um Concílio celebrado em Milão disputou com
eles com tanta solidez de argumentação, que confundidos não sabendo que partido tomar, dirigiram-se ao imperador e conseguiram fazê-lo desterrar. O santo soube aproveitar
o tempo de seu desterro para fortalecer os católicos do Oriente e Ocidente. Depois de ter sofrido fome, sede, açoites e outros ultrajes, tendo morrido o imperador
Constâncio, permitiuse-lhe voltar à sua diocese. A volta do magnanimo prelado, toda a Italia despiu-se das vestes de luto, lúgubres vestes mutavit, conforme a expressão
de São Jerônimo, porque a volta de Santo Eusébio era o triunfo da verdade católica. Quis Deus darlhe o prêmio que mereciam tantos padecimentos e fadigas, permitindo
que depois de governar em paz sua diocese por alguns anos, recebesse a coroa do martírio das mãos de alguns arianos, que lhe deram a morte apedrejando-o. Subiu ao
céu no ano 370.
Santo Ambrósio - Sem dúvida foi um dos bispos mais insígnes em doutrina e santidade, que floreceram na Igreja naqueles tempos. Achava-se presidindo em nome do imperador
os negócios civis da Ligúria e da Emilia, porém como surgissem discórdias em Milão motivadas pela eleição do bispo, enviou-o o imperador para ali afim de apaziguar
os animos. "Ide, disse-lhe aquele monarca, e regulai as coisas não como severo governador, mas com a caridade de bispo." Ao chegar àquela cidade, entrou entre os
amotinados e se esforçava em serenar os animos, quando um tenro menino que descansava nos braços da mãe, desprega a língua e grita: "Ambrósio nosso bispo; Ambrósio
nosso bispo." E tomando aquela voz como sinal da divina vontade, todos exclamaram: "Ambrósio é nosso bispo." E assim, apesar de sua grande repugnância, com aplauso
universal foi criado bispo de Milão no ano 374.
Escreveu muitos livros, sermões e cartas em defesa da religião e em favor da virgindade, da qual fez os maiores elogios, fundando em sua diocese vários conventos
de virgens. Para conhecer qual a verdadeira crença entre todas as que se chamam cristãs, dava Santo Ambrósio esta regra: "Onde esta Pedro (vivendo em seu sucessor),
ai esta a Igreja de Jesus Cristo: Ubi Petrus, ibi Ecclesia."  significando com isto que são verdadeiros cristãos somente os que estão unidos com o sumo Pontífice.
Este insígne Doutor descansou em paz no ano 397.
Segundo Concílio Ecumênico e os Macedonianos - O segundo Concílio Ecumênico é o primeiro Constantinopolitano, chamado assim porque foi o primeiro Concílio Ecumênico
celebrado em Constantinopla. Motivou este Concílio a heresia de Macedonio, que, à força de enredos, se tinha elevado a sé daquela capital. Os arianos atacavam a
divindade do Verbo; Macedonio, a do Espírito Santo. Era então imperador Teodósio o Grande, e regia a Igreja São Dámaso. Este douto Pontífice vendo ameaçada a fé,
convocou, de acordo com o piedoso monarca, um Concílio em Constantinopla, para que se combatessem os erros ali onde tinham nascido. O Concílio se reuniu no mês de
maio do ano 384, e concorreram a ele 150 bispos orientais. Foram condenados os erros de Macedonio e se confirmou o Símbolo de Niceia, ao qual se acrescentaram estas
palavras que dizem respeito a divindade do Espírito Santo: Creio no Espírito Santo, Senhor e vivificador... o qual juntamente com a Pai e com o Filho e adorado e
glorificado, o qual falou pelos profetas. Teodósio recebeu as decisões do Concílio como se fossem saídas da boca do próprio Deus e promulgou uma lei para que não
fossem desprezadas. Ainda que não constasse esta reuniao senão de bispos orientais, bastou, sem dúvida, a aprovação do Papa para dar-lhe toda autoridade de um Concílio
Ecumênico, de maneira que seus decretos constituem uma regra infalível de fé.
São Basílio Magno - São Basílio Magno nasceu no ano 319 em Cesaréia da Capadócia, de pais ilustres, nos quais a piedade pode se dizer foi hereditária. Seu pai também
chamado Basílio (santo), sua mãe santa Emélia, e especialmente sua avó santa Macrina se encarregaram de educá-lo na ciência e na piedade. Jovem ainda, mandaram-no
FALTAM PGs. 164 E 165 (previstas para 5.setembro.2009)
a um deserto; porém o bispo de Nazianzo prevendo que, por suas virtudes e profunda ciência, chegaria a ser um luminar da santa Igreja, o consagrou sacerdote apesar
da sua repugnância. Tendo-se depois ocupado com grande zelo em pregar contra os arianos, trouxe muitos deles à fé. Manifestando-se sempre cada vez mais nele por
meio dessas pregações, a santidade e a ciência, foi criado bispo ainda que tivesse fugido sempre dessa dignidade. Chamado à se episcopal de Constantinopla, empregou
sua palavra e escritos em combater a heresia dos Macedonianos, e conseguiu reconduzir toda a cidade à fé católica. Isto provocou a inveja de muitos; então ele por
amor à paz, renunciou ao bispado e se retirou para sua terra natal. Ali, em companhia de alguns solitádos, levou uma vida angélica. As mortificações, os jejuns,
as vigilias, as orações, o silêncio e a solidão ocupavam todos os momentos de sua vida. Escreveu sobre muitos assuntos em prosa e em verso com admirável piedade
e com tal elegância, que deixou muito aquém todos os seus contemporâneos. Finalmente, na idade de 60 anos, cheio de méritos, foi gozar a glória celeste. Ano 390.
São Dámaso - São Dámaso, espanhol, pontífice insígne por doutrina, prudência e virtude, tinha sucedido ao Papa Libério no ano 366. Devese a ele a convocação de segundo
Concílio Ecumênico. Edificou várias igrejas; entre elas a de São Lourenço em Roma; mandou que no fim dos salmos se acrescentasse o Gloria Patri; escreveu muitas
obras em prosa e verso, e chamou a Roma São Jerônimo para que lhe servisse de secretário nas cartas latinas. Por ordem de São Dámaso, o grande doutor traduziu do
hebráico para o latim os livros sagrados do Antigo Testamento, e corrigiu a tradução latina que já existia dos livros do Novo Testamento, fazendo-a mais conforme
e fiel com o texto grego.
São Dámaso que o tinha estimulado com palavras e exemplos a fazer estas obras maravilhosas em favor da Igreja, morreu octogenário no ano 384, depois de dezoito anos
de glorioso pontificado.
São Jerônimo - São Jerônimo nasceu na cidade de Estridon, na Dalmácia. Estudou em Roma, e depois de ter estado nas Gálias, foi a Constantinopla por-se sob a direção
de São Gregório Nazianzeno; dali passou ao deserto de Cálcida na Siria, onde levou uma vida muito austera, inteiramente dedicado ao estudo e à oração. Muito versado
no grego, no latim e no hebreu, foi suscitado por Deus para interpretar e explicar as divinas Escrituras, e por isto o venera a Igreja de um modo especial, dando-lhe
o título de Doutor Máximo. Sua tradução foi adotada pela Igreja, e é a mesma que, aprovada pelo Concílio de Trento, corre ainda em mãos dos Cristãos sob o nome de
Vulgata. Quanto aos salmos, se usou sempre e ainda se continua usando a tradução latina do tempo dos Apostólos. Os hereges, tendo conhecido a profundidade de seu
engenho, não pouparam meios para ganhá-lo; ele, porém, para certificar-se de não cair em erro, consultava com frequência a Santa Sé e com este fim escreveu diferentes
cartas a São Dámaso. Entre estas é particularmente memorável aquela em que o santo doutor, cansado já pelo tédio que the causavam as dlferentes facções que dividiam
a igreja da Antioquia, dizia: "Querendo me certificar de estar com Jesus Cristo, me uno a comunhão de Vossa Santidade, isto é, a cadeira de São Pedro; Eu sei que
a Igreja está edificada sobre este fundamento; todo aquele que come do cordeiro fora desta casa é profano; todos os que não se refugiaram na arca de Noé, pereceram
no dilúvio. Combato qualquer outra doutrina, porque quem não recolhe convosco, espalha, isto é, quem não está com Jesus Cristo está com o anti-Cristo. (Ep. 14 ad
Dam.).
Empregou toda a vida em compor livros para instruir os fiéis e combater os hereges; de sorte que, de todas as partes recorriam ,a ele nas questões mais difíceis.
Escrevia com tal veemência contra os hereges que suas sentenças pareciam raios. Para evitar as insídias de seus inimigos e para preparar-se melhor para a morte,
saiu de Roma e foi a Belem onde Santa Paula, dama romana, havia construído dois conventos; um para homens e outro para mulheres.
Ali consumido pela penitência e trabalhos, descansou no Senhor na idade de oitenta e nove anos. Ano 420.
 
CAPÍTULO V
Donatistas e Santo Agostinho - Pelágio e seus erros - Morte de Santo Agostinho - Nestório e o terceiro Concílio Ecumênico - Fim de Nestório - Êutiques e o quarto
Concílio Ecumênico.
Donatistas e Santo Agostinho - Os Donatistas que tinham sido condenados solenemente no Concílio de Latrão, no pontificado de São Melquíades, sossegaram por algum
tempo; porém pouco depois voltaram mais furiosos que antes. Apoderaram-se a mão armada das igrejas, saquearam e destruiram os altares e os demais objetos sagrados,
e sua impiedade chegou até batizarem de novo, e à força a  os que ja tinham sido batizados, tratando cruelmente os que não queriam consentir nisso. A Providência,
porém, suscitou, na pessoa de santo Agostinho, um bispo esclarecido por sua santidade e doutrina, que devia vencê-los juntamente com outros hereges.
Nasceu em Tagaste cidade da África no ano 354, e durante a juventude levou uma vida desregrada. Deus, porém, que o chamava para grandes coisas, ouviu as orações
de sua mãe Santa Monica, e o atraiu a si de um modo extraordinário. Tendo ido a Milão, chamado p~eo imperador para dar lições públicas de eloquência, ia com frequencia,
por mera curiosidade, Quvir Santo Ambrósio, que tinha fama de grande orador. Enquanto a graça divina ia abrindo caminho em seu coração um fato maravilhoso o resolveu
a fazer-se definitivamente cristão. Passeava um dia em um jardim, quando ouviu uma voz que vinha do céu e que dizia: "Agostinho, Agostinho, toma e lê" Admirado por
estas palavras dirige-se maquinalmente para uma mesa, toma o primeiro livro que lhe cai à mão, abre-o e encontra aquelas palavras de São Paulo, que dizem: "Nem os
impudicos, nem os gulosos alcançarão o Reino dos Céus." Desde esse momento mudou-se o coração de Agostinho, e convencido da vaidade das grandezas humanas, resolveu
fazer-se cristão. Na idade de trinta anos recebeu em Milão o batismo das mãos de santo Ambrósio. Quando voltou a África se dedicou a oração e ao estudo, e progrediu
tanto na ciência e na virtude, que foi ordenado sacerdote e depois bispo de Hipona. Trabalhou sem descanso para fazer voltar os donatistas para o seio da Igreja,
e conseguiu converter grande número deles. Mas os que permaneceram no erro, mais enfurecidos que nunca, armaram insídias contra ele, e teria sido vítima de sua perfidia,
se o não tivesse salvo uma especial proteção do céu. Os bispos católicos, aflitos por esses males, propuseram aos hereges uma conferência pública. Por isso todos
os bispos da África, donatistas ou católicos, receberam a ordem de ir a Cartago. Para abreviar as discussões e deixar livre o campo a todos para que expusessem suas
razões, escolheram sete bispos de ambas as partes, para que conferenciassem entre si em nome de todos. Santo Agostinho foi um dos eleitos para defender a causa dos
católicos. Depois de estar inteirado da questão, apoiado na autoridade dos livros santos, provou à evidência que o bispo legítimo de Cartago era Ceciliano, que era
válida sua ordenação e feita conforme todas as leis da Igreja, que por conseguinte não havia motivo algum para romper a unidade da Igreja, e que não restava outro
recurso aos donatistas, para entrar no caminho da salvação, que o de voltar para o seio da Igreja Católlca. Os bispos cismaticos nada tiveram a opor, e os povos
que tinham confundido ate então o erro com a verdade, voltaram em grande parte, depois desta reunião, ao seio da Igreja. Ano 411.
Pelágio e seus erros - Já se tinham extinto quase completamente os donatistas, quando apareceu a heresia de Pelágio. Nascido na GraBretanha de pais obscuros, abraçou
hipocritamente a vida monástica na qualidade de leigo. Indo a Roma pode grangear a estima de algumas pessoas honradas. Seu erro principal consistia em negar o pecado
original e a necessidade da graça para fazer obras dignas de recompensa. Esta novidade foi incontinente vigorosamente refutada por Santo Agostinho, a cujas instâncias
se convocou um Concílio em Cartago, no qual se condenou a Pelágio, e seus sectários. Os bispos desse Concílio escreveram ao romano Pontífice Inocêncio I pedindo-lhe
que se dignasse confirmar a sentença que eles tinham dado com a autoridade da Sé Apostólica o Papa lhes respondeu benignamente, elogiando-os porque tinham seguido
a prática observada sempre e em todas as partes, isto é, não considerar por definida coisa alguma, ainda que se tratasse das províncias mais longinquas, antes de
ter sido enviada a Santa Sé... Concluia confirmando com um decreto a sentença que estes tinham dado, excomungando os bispos pelagianos. Ano 417.
 
Os pelagianos, obstinando-se no erro foram condenados por outro Concílio, cujas atas igualmente se enviaram ao Papa para que as confirmasse, o qual assim o fez.
Depois deste decreto, Santo Agostinho dava a causa por terminada e dizia: "Relativamente a isto, já enviamos dois concílios a Sé Apostólica: esta respondeu; está
pois concluida a causa; queira Deus que também se acabe o erro".  Não se cumpriu o desejo de Santo Agostinho. Pelágio e seus partidários tiraram a máscara e apelaram
para um Concílio Geral; porém Santo Agostinho continuava afirmando, que para condenar um erro não era de absoluta necessidade um Concílioo Ecumênico, pois bastava
a sentença dos concílios particulares, confirmado pelo Sumo Pontífice. Por isso exprobrava energicamente aos
pelagianos, que, por não terem conseguido infeccionar a Igreja com a pestilência de sua heresia, queriam ao menos perturbá-la, obrigando a que se reunissem os bispos
em Concílio Geral. Deste modo foram rechassados os hereges; Pelágio, porém, obstinado sempre em seu erro, andou errante por vários paises, até que sem se saber onde,
nem como, desapareceu no ano 420.
 
Morte de Santo Agostinho - Santo Agostinho não foi somente martelo dos donatistas e dos pelagianos, senão também dos hereges maniqueus. Esforçavam-se estes, naquele
tempo, em corromper a Igreja. O Santo Doutor enquanto viveu, combateu-os vigorosamente com sua palavra e com escritos. Finalmente depois de ter consumido sua vida
no cumprimento de seu sagrado ministério, na austelidade e nas penitências, chegou ao termo de seus dias em um tempo em que o mundo se achava muito agitado pelos
transtornos políticos e religiosos.
 
Os Vândalos, depois de terem invadido e entregue a sangue e fogo a maior parte da África, sitiaram estreitamente a mesma cidade de Hipona. Reflexionando Santo Agostinho
nos males que aguardavam as almas que lhe foram confiadas, se caisse a cidade em mãos dos bárbaros, pediu a Deus que a livrasse daquele sitio, ou que desse ao menos
a seus cidadãos forças suficientes para suportar com paciência cristã tão grande flagelo e suas tristes consequências, aceitando sua própria vida em expiação de
seus pecados e dos do povo. Deus o ouviu e dali a pouco apoderou-se dele grave enfermidade. Este grande varão, ao aproximar-se de seus últimos momentos, sentia profundo
pesar pelos anos que tinha vivido ofendendo a Deus. "Tenho-Vos conhecido demasiado tarde, Ó meu Deus, exclamava, demasiado tarde comecei a amar-vos, ó bondade suma
de meu Deus." Mandou copiar. e colocar diante de si, na parede, os salmos penitenciais, e os lia muitas vezes na sua cama banhado em lágrimas; e para poder rezar
e chorar seus pecados com maior liberdade durante os últimos dez dias pediu aos bispos, sacerdotes e aos demais amigos que se achavam presentes, que o deixassem
só em seu quarto, e que ninguém entrasse nele senão para levar-lhe o alimento ou os médicos para visitá-lo. No último dia não podendo já ler nem rezar, chamou a
seus amigos para que rezassem em voz alta ao redor de seu leito; repetia Agostinho as orações, e quando cessaram os lábios de rezar, sua alma já se achava no seio
do Criador, gozando daquela felicidade, para cuja conquista havia empregado a maior parte da vida. Morreu aos 28 de agosto de 430 na idade de setenta e seis anos,
tendo empregado quarenta no serviço da Igreja, primeiro como sacerdote e depois como Bispo. Com razão se chama luminar fulgentíssimo da Igreja, modelo dos teólogos,
mestre de caridade, especial defensor da graça e martelo dos hereges.
Seu apego à Igreja Católica igualava a sua vasta ciência. "Eu não acreditaria nem no Evangelho, escrevia, se a isso não me persuadisse a autoridade da Igreja Católica."
Deplorando em outra parte, a desgraça dos que viviam fora do selo da Igreja Católica, exclamava: "Aquele que se separa da Igreja Católica, ainda supondo que seja
boa a sua vida, nunca possuirá a vida eterna; antes cairá sobre ele a cólera de Deus, unicamente pelo crime de se achar separado da unidade de Jesus Cristo. A bondade
e a probidade que não respeitam a Igreja é refinada hipocrisia."
 
Terceiro Concílio Ecumênico - Nestório - O terceiro Concílio geral é o de Éfeso chamado assim porque reuniu-se na cidade desse nome chama-se também Concílio de Maria,
porque nele se definiu que Maria é verdadeira Mãe de Deus e porque se reuniram os Padres em uma Igreja que a ela estava dedicada. Convocou-se este Concílio para
condenar as impiedades e blasfêmias de Nestório, bispo de Constantinopla, que de pastor se transformou em lobo rapace, pregando e afirmando que se acham em Jesus
Cristo duas pessoas, isto é, dois filhos, o Filho de Deus ou seja o Verbo, e o filho do homem, ou Cristo. Deste primeiro erro nascia outro, segundo o qual não se
devia, nem absolutamente se podia chamar a Maria mãe de Deus senão mãe do Cristo que, na sua opinião não passava de um simples homem; não era pois Deípara senão
Christípara. Estas blasfêmias causaram tal horror entre os cristãos, que ouvindo-as pela primeira vez na Catedral de Constantinopla fugiram da Igreja. Sabedor disto
São Cirilo, patriarca de Alexandria, escreveu uma carta cheia de caridade a Nestório esmerando-se em persuadí-lo a que desistisse de erro tão ímpio; porém o soberbo
Nestório respondeu-lhe com insolências. Então São Cirilo, seguindo o antigo costume das igrejas, como ele mesmo diz, denunciou a São Celestino I os erros de Nestório,
pedindo-lhe que, valendo-se de sua autoridade, providenciasse com algum remédio contra aqueles males. O Papa examinou a questão, e achando falsa e contrária à fé
da Igreja a doutrina de Nestório, primeiramente o admoestou e depois ameaçou com a excomunhão se não se retratasse. De nada serviram as súplicas nem as ameaças.
O manso Pontífice quis tentar a última prova para convencer ao obstinado Nestório,  convocou um Concílio Geral em Éfeso ao qual não podendo presidir em pessoa, delegou
entre outros representantes, a São Cirilo.
 
Abriu-se o Concílio a 22 de junho do ano 431 achando-se presentes cerca de 200 bispos. Condenaram os erros de Nestório e com grande alegria dos fiéis, se definiu
que em Jesus Cristo há uma só pessoa que é a divina, e que a Santíssima Virgem é verdadeiramente a Mãe de Deus, o que proporcionou grande alegria a todos os fiéis.
Para propagar e conservar a memória desta definição, compuseram os Padres do Concílio a segunda parte da Ave Maria, oferecendo deste modo um meio fácil e simples
de honrar e professar a divina Maternidade de Maria.
 
Fim de Nestório - Nestório não querendo emendar-se, nem cessar de levantar discórdias, foi excomungado, e logo desterrado para o Egito pelo Imperador Teodósio. Ali
se apoderou dele horrível enfermidade que reduziu seu corpo a podridão, e a sua língua, que tinha blasfemado da Mãe de Deus, apodreceu, e vivendo ainda ele foi consumida
pelos bichos. Objeto de maldição e espanto, morreu no ano 440.
 
Eutiques e o quarto Concílio Ecumênico - Apareceu neste tempo uma nova heresia suscitada por Eutiques, superior de um convento de monges perto de Constantinopla.
Erguera ele a voz para combater a heresia de Nestório porém levado por um zelo mais entusiástico que iluminado, caiu no erro contrário. Nestório tinha ensinado que
em Jesus Cristo há duas naturezas e duas pessoas, e ainda que Eutiques admitisse o contrário que em Jesus Cristo há uma só pessoa,
 
FALTAM AS PÁGs. 176 E 177 (previstas para 5.setembro.2009)
 
CAPÍTULO VI
 
FALTAM AS PÁGs. 176 E 177 (previstas para 5.setembro.2009)
 
confiado na proteção do céu, saiu, vestido de hábitos pontificais ao encontro de Átila perto de Mântua, onde o rio Míncio deságua no Pó. O altivo guerreiro, ainda
que bárbaro e idólatra, recebeu-o cortesmente; e depois de tê-lo ouvido, aceitando sem mais as condições propostas, tornou a passar os Alpes, deixando a Itália em
paz. Admiraram-se os soldados de Átila vendo em seu general aqueles insólitos atos de obséquio: "Como é possível, diziam, que nosso chefe se humilhasse tanto diante
de um homem só, quando o não têm aterrorizado formidáveis exércitos?" Ele porém respondeu-lhes que enquanto falava com o romano Pontífice, viu sobre ele uma personagem
vestida com hábito sacerdotal, que empunhava uma espada desembainhada, ameaçando ferí-lo se não obedecesse a Leão.
                            
Este Pontífice, depois de ter escrito e trabalhado muito em benefício da Igreja, cheio de méritos perante Deus e os homens, foi receber a recompensa no ano 401,
após 21 anos de glorioso pontificado.
 
São Máximo de Turim - São Máximo bispo de Turim, é muito conhecido na história pela santidade de sua vida, por seus escritos e sobretudo por seus sermões, que constituem
ainda agora um dos ornamentos do breviário romano. Combateu. com ardor os erros de Nestório e de Eutiques, e era tido em tão alta estima, que no Concílio romano,
celebrado sob o Papa Hilário, sucessor de São Leão, ocupava o primeiro assento depois do Pontífice. Trabalhou muito para não permitir que a heresia invadisse o Piemonte,
e para desarraigar a superstição dos pagãos, que ainda existiam em Turim, e lugares vizinhos. Era tão caritativo para com os pobres que, se algum estrangeiro perguntasse
pela casa do bispo, respondiam-lhe que podia entrar com confiança na casa que visse rodeada de mendigos, pois essa seria certamente a casa do bispo. Sustentava e
promovia uma terníssima devoção para com a Mãe de Deus e falava dela com muito zelo em seus sermões, afirmava que esta fora achada digna de ser morada do Filho de
Deus antes por sua graça original do que por suas virtudes. Conta-se este santo entre os mais doutos escritores da Igreja. Descansou no Senhor no ano 474 mais ou
menos.
São Gelásio Papa - São Gelásio, romano, eleito para no ano 652, é muito conhecido por suas instituições em pról da Igreja. Reuniu em Roma um Concílio ao qual assistiram
muitos bispos; nele se declarou quais os livros autênticos do Antigo e do Novo Testamento e quais os apócrifos; recomendou a honra em que se devem ter os quatro
concílios ecumênicos de Nicéia, Constantinopla e de Calcedênia; compôs um catálogo das obras dos santos padres e dos escritores eclesiásticos; mandou publicar um
livro chamado Sacramentale, no qual se acha a ordem de quase todas as missas que temos no missal romano e a fórmula para dar as bênçãos (missal anteror ao Concílio
Vaticano II).
Aboliu as festas lupercais que se celebravam em Roma, no mês de fevereiro, em honra do deus Pan, e em lugar delas mandou celebrar a festa da Purificação, como já
se fazia em muitos paises; por último confirmou o antigo costume de conferir as ordenações aos eclesiásticos nas quatro têmporas. Ainda que se achasse elevado à
primeira dignidade do mundo, levava entretanto  uma vida pobre, praticando rigorosa austeridade; dava de comer a todos os pobres que conhecia e ele mesmo os servia
na mesa. O tempo que lhe deixavam livre suas ocupações, empregava-o na oração ou em piedosos colóquios com os mais dignos servos do Senhor. Morreu santamente no
ano 496.
 
CAPÍTULO VII
São Bento e o monte Cassino - Feitos memoráveis deste santo - Os três capítulos de Nestório e o quinto Concílio Ecumênico.
São Bento e o monte Cassino - A vida monástica iniciada por São Paulo primeiro eremita e alentada, propagada e vinculada a determinadas regras por Santo Antão na
Tebáida, aplicada ao clero por São Eusébio de Vercelli e espalhada na África por Santo Agostinho, recebeu por obra de São Bento na Itália e em toda a Europa ocidental,
um regulamento fixo e uma difusão assombrosa. Este astro luminoso da Igreja nasceu em Núrcia no ducado de Spoleto. Enviado a Roma para seguir seus estudos encheu-se
de tal espanto vendo a corrupção de seus companheiros, que na idade de quinze anos decidiu-se a abandonar o mundo e a retirarse em uma profunda cavena a quarenta
milhas da cidade. Deus, porém, que o destinava para maiores coisas, permitiu que o encontrassem muitos de seus companheiros e condiscípulos que atraídos por sua
virtudes e milagres, iam em grande número visitá-lo. As famílias romanas se consideravam ditosas em confiar-lhe a educação de seus filhos, e lhe consagravam tanto
afeto que já não queriam separar-se dele; por isso teve de edificar doze mosteiros para os receber. (Ano 528). O mais célebre entre estes é o do Monte Cassino, no
reino de Nápoles, centro da ordem de São Bento. Quando se estabeleceu ali o Santo, ainda existia sobre o monte um templo dedicado a Apolo, deus adorado pelos habitantes
daqueles arredores. São Bento quebrou o ídolo e o altar e converteu aquele povo à verdadeira fé. Ano 529.
 
Feitos memoráveis deste Santo - Fez Deus brilhar a santidade de seu servo com o dom de profecia e de milagres. Não podendo os invejosos sofrer suas correções e ocultar
os remorsos que despertava a vista de sua santa vida, deliberaram matá-lo secretamente. Para este fim, ao sentar-se certo dia na mesa, ofereceram-lhe de beber em
um copo que continha vinho envenenado; mas como o santo abade costumava fazer o sinal da cruz, antes de tomar alimento, mal acabou de fazer este sinal augusto, quebrou-se
o copo com estrépito, como se tivesse sido ferido por uma pedra. Pondose então de pé disse-lhes com semblante sereno e tranquilo: "Perdôe Deus o vosso pecado", e
saiu. Em outra ocasião, achando-se em presença de numeroso povo, somente com o sinal da cruz, ressuscitou a um morto que ficara esmagado debaixo das ruínas de uma
montanha. A Tótila, rei dos Godos, que tinha ouvido contar os prodígios que fazia Bento, vieram desejos de presenciar algum milagre, e com este fim mandou-lhe dizer
que desejava visitá-lo; porém em vez de ir ele em pessoa, enviou um de seus capitães vestido com as insígnias reais e acompanhado de seus oficiais. Apenas o avistou
o santo disse-lhe: "Depõe, meu filho, o hábito que vestes, pois não te pertence". Quando soube isto, Tótila foi ele mesmo ao santo, e assim que o viu, prostrou-se
por terra e ali. ficou até que Bento foi levantá-lo; este lhe predisse as vitórias que devia ganhar e a ano preciso de sua morte. O santo, seis dias antes de sua
morte, predita a seus discípulos, quis que lhe, preparassem a sepultura. No último dia de sua enfermidade pediu que o levassem. à Igreja para receber a Eucaristia;
e pouco depois, reclinando sua cabeça em um de seus discípulos, levantando as mãos ao céu, entregou tranquilamente sua alma ao Senhor no ano 543.
São Bento deixou uma regra admirável que abraçaram mais tarde quase todos os cenobitas do ocidente. Multiplicaram-se de tal modo os monges beneditinos, que alguns
séculos depois não havia cidade ou vila da Europa em que não se tivesse levantado. algum mosteiro. Tão grande é o bem que estes fazem à Igreja, que só Deus o pode
calcular.
Quinto Concílio Ecumênico e os três Capítulos - O quinto Concílio Ecumênico é o segundo Constantinopolitano, assim chamado por ser o segundo celebrado em Constantinopla.
Convocou-se para examinar os três livros, comumente chamados Os três capítulos com os quais pretendiam os Nestorianos justificar seus erros. O primeiro destes escritos
se referia à pessoa e aos escritos de Teodoro de Mopsuéstia, do qual Nestório tinha tirado sua doutrina; o segundo continha: escritos de Teodoreto bispo de Cirne,
onde havia alguma coisa contra São Cirilo; e o terceiro consistia numa carta de Ibas, bispo de Edessa, escrita a um herege da Pérsia chamado Mari, igualmente infecta
de nestorianismo. As três obrazinhas, posto que condenáveis, não o tinham sido no Concílio de Calcedônia em consideração a seus autores, dois dos quais, (Teodoro
e Ibas presentes no Concílio), tinham feito profissão de fé sinceramente católica. Pois bem, esta atenção era considerada pelos Nestorianos como uma aprovação dos
ditos capítulos e consequentemente também dos erros que neles se professavam.
Neste estado de coisas pareceu conveniente reprovar expressamente estas três obras para tirar todo pretexto aos ditos hereges. Celebrou-se um Concílio no ano 553,
ao qual, por outra parte, não puderam intervir os bispos do Ocidente pela prepotência exercida contra eles pelo imperador Justiniano; por isso se apresentaram só
165 bispos, e estes quase em sua totalidade orientais. Foram examinados neste Concílio os três capítulos e condenados como contrários à fé: condenaram também de
novo as doutrinas de Nestório e de Êutiques e alguns outros erros que se achavam nas obras de Orígenes. Conquanto este Concílio, por si não possa ser chamado ecumênico,
tendo obtido, contudo, a aprovação e confirmação do Papa Virgílio, foi recebido e venerado como tal pela Igreja. Isto claramente confirma como desde a mais remota
antiguidade se fazia consistir o valor dos Concílios, principalmente na autoridade do Papa. Também é bom notar aqui que este Concílio nos oferece uma brilhante prova
do direito que em todo tempo tem exercido a Igreja, de condenar os maus escritos, de dar seu parecer sobre o sentido dos livros e exigir que seus filhos respeitem
suas sentenças como o têm feito neste Concílio.
 
CAPÍTULO VIII
 
São Gregório o Grande - Missões na Inglaterra - Feitos memoráveis de São Gregório e sua morte - Disciplina e estado da Igreja nesta época.
 
São Gregório o Grande - São Gregório I, chamado o Grande por sua extraordinária santidade, eloquência e sabedoria, nasceu em Roma de pais nobres e ricos. Por seu
admirável talento ocupou os principais cargos do Estado: conhecendo porém que as ocupações mundanas lhe roubavam os afetos do coração, renunciou a todas as suas
dignidades, vendeu a todos os bens, distribuiu o total entre os pobres e outras obras de caridade abraçando a vida monástica. Era tão grande sua humildade, que foi
necessário obrigá-lo, para se ordenar sacerdote. Tendo falecido em uma peste o Papa Pelágio II, os Romanos unânimes elegeram a Gregório para suceder-lhe. Espantado
este ao ouvir tal noticia, fugiu e foi esconder-se em um bosque; mas uma coluna de fogo descobriu ao povo romano, e por último se viu obrigado a aceitar a dignidade
pontifícia. Ano 590.
 
Missões na Inglaterra - Um dos primeiros pensamentos do novo pontífice foi o restabelecimento do cristianismo na ilha da Grã-Bretanha, chamada hoje com o nome de
Inglaterra, pelos Anglos que se apoderaram dela em união com os Saxões pelo ano de 450. Como estes eram idólatras, aboliram completamente a religião e restabeleceram
a idolatria. São Gregório enviou quarenta religiosos sob as ordens de seu discípulo Santo Agostinho, para pregarem a fé. Apenas os santos missionários começaram
a pregação, converteu-se à fé grande número de idólatras. O rei de Kent (Cantuária), os magnatas de sua côrte e quase todos seus súditos em breve abraçaram a fé.
Querendo o pontífice dar forma estável àquela cristandade, criou ali uma hierarquia de doze bispos, nomeando arcebispo ao mesmo Santo Agostinho. A santidade dos
missionários e os milagres que por todas as partes os acompanhavam multiplicaram de tal modo as conversões, que perto da cidade de Cantuária receberam o batismo
no espaço de um só dia cerca de dez mil pessoas. Tomando-se, por conseguinte, sensível cada vez mais a falta de sagrados ministros que conhecessem bem o idioma e
os costumes do país, quis o Papa que fosse enviados a Roma jovens ingleses, com o fim de se instruirem nas ciências sagradas e na piedade, e pudessem voltar a seu
pais sagrados sacerdotes. assim no espaço de 80 anos foi convertida esta grande ilha a Jesus Cristo merecendo São Gregório o nome de apóstolo da Inglaterra. Igual
solicitude empregou em benefício da Espanha e da Itália, esta última se achava então ocupada pelos Longobardos, em sua maior parte arianos ou idólatras.
 
Outros fatos memoráveis de São Gregório - Excede a toda ponderação o que este pontífice disse, escreveu, e fez em benefício da Igreja. Pode-se dizer obra dele o
antifonário e o breviário que se usa hoje. Em uma epidemia que afligiu Roma, muitos morriam no ato de espirrar ou bocejar; São Gregório estabeleceu que se usasse
a palavra Ave (Deus te salve) para os primeiros e que aos segundos se fizessem cruzes ,sobre a boca; estes sinais exteriores feitos com fé serviram de eficaz remédio
para curar aos que eram molestados por aquela enfermidade. Instituiu as Ladainhas dos Santos, a procissão do dia de São Marcos e ordenou que não se dissesse a Aleluia
desde Septuagésima até a Páscoa. Foram realizados por suas mãos vários milagres e, entre eles, o seguinte que tem relação com o SS. Sacramento: Achava-se o santo
celebrando, quando na ocasião de dar a comunhão a uma matrona que duvidava da verdade deste sacramento tomou a santa hóstia visivelmente a forma de carne. Finalmente
depois de ter ocupado quase quatorze anos a Santa Sé, morreu no ano 604, aos 64 anos de idade.
Disciplina desta Segunda Época - Já no século quarto São Paulo; o eremita, costumava contar suas orações com três pedrinhas, assim como nós fazemos com as contas
do Rosário. Observava-se grande rigor para com os pecadores que voltavam à penitência. Estes eram divididos em quatro classes, a saber: Gementes, Ouvintes, Prostrados
e Consistentes. Os Gementes vestiam um saco e choravam seus pecados no átrio da Igreja, durante as sagradas funções, encomendando-se as orações dos que entravam;
os ouvintes eram admitidos na Igreja perto da porta, e saiam com os catecúmenos depois de terem ouvido o sermão e o evangelho; os Prostrados ficavam ajoelhados e
se lhes permitia receber várias bençãos dos sacerdotes porém deviam sair ao ofertório; os Consistentes já podiam ouvir a Missa, mas não comungar.
Passava-se o tempo da penitência guardando rigoroso jejum; frequentemente consistia este em pão e água; rezavam sem cessar, ou dormiam sobre a terra núa. O pecador
também devia submeter-se por muitos anos a esta disciplina antes que fosse admitido à sagrada comunhão; tamanho era o horror que se tinha ao pecado!
No quinto século São Zósimo, Papa, estabeleceu que se concedesse também às paróquias a faculdade de benzer o círio pascoal que não se podia acender então a não ser
nas grandes Basílicas. São Felix II ordenou que somente os bispos pudessem sagrar as Igrejas novas. São Mamerto, bispo de Viena, na França, introduziu em suas dioceses
as procissões, chamadas das Rogações, nos três dias que precedem a festa da Ascensão, durante os quais também se costumava jejuar; mais tarde São Leão III prescreveu
esta prática para toda a Igreja.
No sexto século, São Gregório decretou que se começasse o jejum quaresmal pondo as sagradas cinzas sobre a cabeça dos fiéis. Os meninos que se julgavam aptos para
os ofícios da Igreja, eram educados geralmente em colégios especiais ou nos mosteiros, vestidos com o hábito clerical. O Papa Sabiniano propagou na Igreja o uso
dos sinos, já introduzido por São Paulino de Nola.
Todos os eclesiásticos e todas as Igrejas gozavam de imunidade; não estavam ligados ao juízo dos seculares, e dependiam tão somente do foro eclesiástico. Este direito
que deriva do mesmo Jesus Cristo, tinha sido reconhecido por Constantino e pelos imperadores cristãos que lhe sucederam.
Estado da Igreja - O Estado da Igreja durante esta Segunda Época foi assáz glorioso. Os Papas dos três primeiros séculos coroaram seus trabalhos com o martírio;
assim também seguiram seu exemplo uma multidão de cristãos que derramaram seu sangue pela fé. Quase todos os mesmos pontífices desta segunda época se contam no número
dos santos já por trabalhos que tiveram de vencer e também pelas leis com que explicaram e defenderam a doutrina da Igreja. A par dos pontífices defenderam a fé
contra os hereges muitos santos doutores, escritores eclesiásticos, monges, penitentes, virgens e confessores, os quais com sua ciência e santidade formaram uma
das épocas mais luminosas da Igreja. Os Francos, que pareciam os mais apegados à superstição, também receberam o batismo, seguindo o exemplo de seu rei Clovis. Os
Longobardos que se tinham estabelecido novamente no Piemonte e na Lombardia e deixavam entrever grande apego ao Arianismo e à idolatria, finalmente todos abraçaram
a fé católica, levados a fazê-lo especialmente pela conversão de Agilulfo duque de Turim e mais tarde rei dos Longobardos. Este príncipe excitado por sua esposa
Teodolinda, mulher piedosa e muito religiosa, rechassou a heresia e abraçou a verdadeira fé, pondo em prática todos os meios a seu alcance para fazê-la florescer.
Com o fim de garantir a paz em seus estados, expulsou deles os arianos e os pagãos que se tinham mostrado turbulentos; e de acordo com São Columbano, fundou o célebre
mosteiro de Bóbio. Tendo devoção especial para com São João Batista, escolheu-o como padroeiro de seus estados e consagrou-lhe a catedral de Turim no mesmo lugar
onde se levanta a basílica metropolitana. Agilulfo morreu no ano 615.
 
TERCEIRA Época
Desde o estabelecimento do maometismo no ano de 622, até a celebração do IV Concílio de Latrão no ano 1215. (abrange um período de 593 anos.)
 
CAPÍTULO I
 
Maomé e sua religião - Milagre da Santa Cruz São Isidoro de Sevilha - Os Monotelistas e o Papa São Martinho I - Sexto Concílio Ecumênico.
Maomé e sua religião - Nasceu este famoso impostor em Meca, cidade da Arábia, de família pobre, de pai gentio e mãe judia. Errando em busca de fortuna, encontrou-se
com uma viúva negociante em Damasco, que o nomeou seu procurador e mais tarde casou-se com ele. Como era epilético, soube aproveitar-se desta enfermidade para provar
a religião que tinha inventado e afirmava que suas quedas eram outros tantos êxtases, durante os quais falava com o arcanjo Gabriel. A religião que pregava era uma
mistura de paganismo, judaísmo e cristianismo. Ainda que admita um só Deus, não reconhece a Jesus Cristo como filho de Deus, mas como seu profeta. Como dissesse
com jactância que era superior ao divino Salvador, instavam com ele para que fizesse milagres como Jesus fazia; porém ele respondia que não tinha sido suscitado
por Deus para fazer milagres, mas para restabelecer a verdadeira religião mediante a força. Ditou suas crenças em árabe e com elas compilou um livro que chamou Alcorão,
isto é, livro por excelência; narrou nele o seguinte milagre, ridículo em sumo grau. Disse que tendo caído um pedaço da lua em sua manga, ele soube fazê-la voltar
a seu lugar; por isso os maometanos tomaram por insígnia a meia lua. Sendo conhecido por homem perturbador, seus concidadãos trataram de dar-lhe morte; sabendo disto
o astuto Maomé fugiu e retirou-se para Medina com muitos aventureiros que o ajudaram a apoderar-se da cidade. Esta fuga de Maomé se chamou Egira, isto é, perseguição;
e desde então começou a era muçulmana, correspondente ao ano 622 de nossa era. O Alcorão está cheio de contradições, repetições e absurdos. Não sabendo Maomé escrever,
ajudaram-no em sua obra um judeu e um monge apóstata da Pérsia chamado Sérgio. Como o maometismo favorecesse a libertinagem teve prontamente muitos sequazes; e como
pouco depois se visse seu autor à frente de um formidável exército de bandidos, pode com suas palavras e ainda mais com suas armas introduzi-lo em quase todo o Oriente.
Maomé depois de ter reinado nove anos tiranicamente, morreu na cidade de Medina no ano 632.
Milagre da Santa Cruz - Tendo Santa Helena encontrado o Santo madeiro da cruz fez depositar uma parte dele na igreja da Anastásia, isto é, na Ressurreição, levantada
no monte Calvário. Ali ficou cerca de trezentos anos, até que Cósroes, rei da Pérsia, indo a Jerusalém, despojou a cidade de todos os ornamentos preciosos. Quando,
porém, o imperador Heráclito venceu os Persas obrigou-os entre outras coisas a que restituíssem essa preciosa relíquia que fora roubada quatorze anos antes. Cheio
de alegria o imperador, por ter voltado a recuperar tão valioso tesouro, ordenou uma grande festa na qual quis ele mesmo revestido com as insígnias reais levar a
Santa Cruz ao Calvário; mas ao chegar ao pé do monte, foi detido por força invisível que crescia à medida que fazia esforços para caminhar para diante. Todos os
que se achavam presentes admiravam com assombro o fato, quando o bispo de Jerusalém falou ao rei do modo seguinte: "Atendei bem, ó príncipe! Que com vossas reais
vestimentas talvez mui pouco imiteis a pobreza e humildade de Cristo quando carregava com essa mesma cruz".
Ouvindo isto se despojou o imperador das insígnias de sua dignidade e humildemente vestido, com a cabeça descoberta e pés descalços, voltou a por sobre seus ombros
a sagrada carga, que sem a menor dificuldade levou então até o cume do Calvário e depositou no lugar mesmo onde a tinham levantado quando crucificaram o Salvador.
Este fato aconteceu no ano 629, a 14 de setembro.
Costumava-se celebrar nesse mesmo dia uma festa em honra da Santa Cruz, talvez por ter sido esse o dia em que tão augusto sinal apareceu a Constantino. Em memória
do novo milagre tornou-se esta festa muito mais solene e chamou-se Exaltação da Santa Cruz.
São lsidoro de Sevilha - Entre os gloriosos heróis, que com sua doutrina e santidade sustentaram a fé na Espanha é digno de menção São Isidoro, bispo e doutor da
Santa Igreja. Nascera ele em Cartago de família ilustre por sua nobreza e piedade; com efeito, pelo sangue era unido aos monarcas de Espanha ao passo que dois de
seus irmãos, Leandro, bispo de Sevilha e Fulgêncio, bispo de Cartagena e sua irmã Florentina, mereceram a honra dos altares. Educado por seus santos irmãos em mui
breve tempo foi um modelo das mais altas virtudes; tornou-se célebre também por seus conhecimentos nas letras latinas, gregas e hebráicas.
Como os Godos, senhores da Espanha, se achavam contaminados pelo arianismo, aplicou-se o santo com tal ardor em combater essa heresia que pouco faltou para que lhe
não dessem a morte.
Falecido Leandro, seu irmão, apesar das oposições feitas, foi eleito para seu sucessor. São Gregório Magno, além de confirmar a sua eleição honrou-o ainda com o
pálio, nomeando-o Vigário Apostólico de toda a Espanha. Exerceu o seu apostólico ministério levando uma vida mais angélica que humana. Era humilde, paciente e misericordioso
com todos; Solícito em revigorar a disciplina eclesiástica e incansável em pregar. Promoveu as instituições monásticas, dando-lhes excelentes regras; construiu muitos
mosteiros, edificando vários colégios, onde ele mesmo ensinava, reunindo assim muitos discípulos, que imitaram suas heróicas virtudes.
Entre estes se contam São Ildefonso, bispo de Toledo e São Bráulio, de Saragoza, ambos luminares da igreja espanhola.
Presidiu ainda o IV Concílio de Toledo, o mais célebre da Espanha; convocou outro em Sevilha, onde foram condenados os acéfalos, que ameaçavam infestar aquelas regiões.
Depois de quarenta anos de episcopado, em que quase extinguira o arianismo, e depois de ter predito publicamente a sua morte e a invasão dos Sarracenos, na Espanha,
foi para o céu, aos oitenta anos de idade, no ano 636.
Ganhou tal fama de santidade e doutrina que dezesseis anos após sua morte mereceu ser proclamado pelos 50 bispos do Concílio que se reunira então em Toledo, doutor
egrégio e novo lustre da Santa Igreja.
Compara-se a São Gregório o Grande por suas virtudes, iguala-se a Santo Agostinho e São Jerônimo por seus escritos e diz-se que foi enviado do céu para instruir
a Espanha, em lugar de São Tiago apóstolo que foi o primeiro pregador do Evangelho naquelas regiões. Femando I, rei de Castela, edificou um magnífico templo em sua
honra e fez depositar nele seu corpo, glorificado por milagres e venerado com grande devoção.
Os Monotelitas e o Papa São Martinho - A heresia de Montano foi um dos erros de Êutiques, isto é, daqueles que sustentavam que em Jesus Cristo há uma só vontade
e uma só operação, ao passo que a Igreja Católica sempre ensinou que em Jesus Cristo há uma só pessoa e duas naturezas, a divina e a humana, tendo cada uma sua vontade
e sua operação própria; de sorte que há em Jesus Cristo duas vontades e duas operações, isto é, a vontade e a operação divina, a vontade e a operação humana. Chefes
dos monotelitas foram Sérgio e Pirro, patriarcas ambos, o primeiro de Constantinopla e o segundo de Alexandria. Estes hereges empregaram toda a sorte de meios para
arrastar o Papa Honório I a seu erro, pois os favorecia o imperador Constante. Para este fim escreveu Sérgio uma carta ao Papa em que lhe dizia que, em vista da
efervescência de opiniões, seria coisa muito prudente proibir que se afirmasse, haver em Jesus Cristo uma só vontade e operação ou duas, e que se impusesse silêncio
a respeito. Respondeu-lhe o Papa com duas cartas em que expunha claramente a doutrina católica; porém, não tendo advertido o laço que lhe havia armado Sérgio, aprovou
como prudente o silêncio aconselhado por este. Não há dúvidas que o Papa teria condenado expressamente estes hereges, se antes de sua morte tivesse podido ver os
progressos de seus erros e a maldade com que se interpretaram as cartas que ele tinha escrito. Isto o fizeram seus sucessores, e São Martinho I, especialmente, que
desejando por um dique à difusão destes erros, os condenou definitivamente, dando nisto prova de grande valor, porque irritado o imperador, mandou a Roma um capitão
para matar o Papa ou levá-lo preso a Constantinopla. O ímpio capitão, chegando a Roma, manda a um seu escudeiro que entre na Igreja de Santa Maria maior e mate ao
pontífice, enquanto se achava celebrando o Santo Sacrifício. Obedece o sicário; porém ao por os pés nos umbrais do templo, perdeu repentinamente a visão. Não obstante
isto, apoderaram-se do Papa, arrastaram-no vergonhosamente para Constantinopla, e este concluiu seus dias desterrado no Quersoneso, no ano 655, mártir da fé de Jesus
Cristo. Pouco tempo depois, Constante recebeu o castigo que merecia, sendo assassinado por um seu criado enquanto o servia num banho. Sucedeu-lhe seu filho Constantino
chamado Pugonato, bom príncipe e sinceramente católico.
Sexto Concílio Ecumênico - Desejando o novo imperador reparar de algum modo os graves males ocasionados por seu pai à religião, escreveu uma carta ao Papa santo
Agatão, pedindo-lhe que, no uso de sua autoridade, se dignasse convocar um Concílio em Constantinopla. O Papa, que não desejava outra coisa, reuniu no ano 680, o
sexto Concílio Ecumênico, terceiro Constantinopolitano. A abertura teve lugar a 7 de novembro desse mesmo ano a ele concorreram mais de 160 bispos, presididos pelos
legados do Papa. Depois de um maduro exame foram condenados os erros dos Monotelitas, e se definiu, como tinha ensinado constantemente a Igreja, que se devia crer
como verdade de fé, que há em Jesus Cristo duas vontades e duas operações, a vontade e a operação divina e a vontade e a operação humana. Escreveram logo ao Papa
o que se tinha feito no Concílio, pedindo-lhe sua aprovação e confirmação. É bom saber que este Concílio de que se servem os adversários dos Papas para combater
a infalibilidade Pontifícia, nos oferece ao contrário uma prova luminosa do acatamento à autoridade e superioridade do romano Pontífice nos Concílios. Com efeito,
nessa ocasião, chamava-se a Agatão, santíssimo arcebispo da Apostólica e suprema Sé de Roma. Suas cartas foram recebidas e acatadas pelos padres do Concílio, como
ditadas pelo Espírito Santo por boca do bem-aventurado Pedro. O que mais se pode exigir? Até a mesma definição de fé foi por eles feita inteiramente conforme às
cartas de Santo Agatão e com suas mesmas palavras, afirmando que eles não tinham feito mais do que seguir a doutrina do Papa que era a mesma dos Apóstolos. Na carta
sinodal que lhe dirigiram depois de se ter encerrado o Concílio, para que desse sua aprovação, falam-lhe nestes termos: "A ti como primeira sede da Igreja universal,
fundada sobre a pedra firme da fé, remetemos o que se há de fazer... pedimos à tua paternal santidade, confirme nossa definição de fé com teus veneráveis rescritos."
 
CAPÍTULO II
Os lconoclastas - Sétimo Concílio Ecumênico - São João Damasceno.
Os lconoclastas -, Logo que a Igreja acabava de condenar uma heresia, o demônio suscitava outra em menoscabo da fé. Aos monotelitas sucederam os Iconoclastas, isto
é, quebradores das sagradas imagens. Diziam estes, como ainda hoje dizem os protestantes, que de nenhum modo se devem venerar as sagradas imagens, e conforme isto,
não só as desprezavam, como também as quebravam quando podiam fazê-lo. Esta heresia deu ocasião a muitos males, porque foi protegida pelos imperadores Leão Isáurico,
Constantino Coprônimo e Leão IV. Estes, para propagá-la mais, tornaram a usar contra os cristãos inauditas crueldades. Mas Deus vingou o ultraje feito a seus santos,
ferindo, com morte infelicíssima os autores desta perseguição.
Sétimo Concílio Ecumênico - Ao subir ao trono a piedosa imperatriz Irene, animada pelo desejo de restabelecer o culto católico, pediu ao Papa Adriano I que convocasse
um concílio. O Pontífice consentiu e no ano 786 realizou-se a abertura do Concílio em Constantinopla, donde foi transladado no ano seguinte para Nicéia por causa
de uma sublevação das guardas imperiais infectas de heresia. Este é o sétimo concílio ecumênico, chamado segundo de Nicéia porque, como o primeiro, foi celebrado
na cidade deste nome. Foi condenada nele a impiedade dos Iconoclastas por 350 bispos presididos pelos legados do Papa, os quais declararam, que era uma prática lícita
e piedosa honrar as imagens de Jesus Cristo, da Virgem e dos Santos e que era coisa muito útil colocá-las também nas ruas públicas. assim, pois, podem os protestantes
ver condenados pela Igreja seus erros, setecentos anos antes que eles nascessem para dar nova vida a esta velha heresia.
São João Damasceno - São João Damasceno, ou da cidade de Damasco, foi o campeão que Deus opôs aos Iconoclastas. Nascido de família nobre, foi instruído nas ciências
sagradas e profanas. Jovem ainda renunciou à avultada herança paterna, e abraçou a vida monástica. Do deserto em que se achava, combateu aos Iconoclastas, demonstrando
com argumentos tirados da Sagrada Escritura e da Tradição que as santas imagens sempre foram honradas pela Igreja; e que os cristãos não tributam culto de adoração
às relíquias ou imagens, mas sim que as veneram somente não tendo o propósito, fazendo assim, de adorar o objeto material ou as criaturas, mas sim a quem é Senhor
e Criador delas. O imperador Leão irritou-se muito com estes escritos, e não podendo ter São João em suas mãos, caluniou-o vilmente perante o príncipe muçulmano,
de quem era súdito e em cuja corte ocupava o emprego de secretário. Para fazêlo aparecer réu de traição, fez chegar a este príncipe uma carta falsa, na qual apresentava
o santo como culpado, e acusava-o de tramar uma conjuração. O príncipe em seu primeiro arrebatamento de furor, fez-lhe cortar a mão direita; porém na noite seguinte
por um milagre da Bem-aventurada Virgem Maria, tornou a unir-se ao braço, de maneira que se desenganou o maometano, e somente deixou ao imperador a vergonha de uma
atrocidade sem fruto. Então este desafogou sua cólera matando a muitos cristãos que a Igreja honra como mártires. São João Damasceno terminou em paz sua vida pelo
ano de 780. Considera-se como o modelo dos teólogos; e sua maneira de tratar as questões, que se chama método escolástico, foi seguida mais tarde no ensino da teologia.
 
CAPÍTULO III
Carlos Magno - Domínio temporal dos Papas Os mártires de Bagdá - São Leão VI - Perseguição na Espanha - Heresia de Godescalco - Cisma de Fócio - Oitavo Concílio
Ecumênico.
Carlos Magno - Entre os reis escolhidos pela Providência para beneficiar de um modo especial a humanidade e a Religião deve-se certamente contar Carlos Magno, filho
de Pepino, rei de França. Tendo os Longobardos devastado a Itália, despojaram de seu patrimônio aos pontífices, fazendo-lhes vis insultos. Pelos fins do século oitavo,
governando a Igreja São Leão III, chegaram as coisas a tal ponto, que dois miseráveis tiveram o atrevimento de atirar-se sobre o Papa, e fazer-lhe graves feridas.
Carlos Magno tendo-se feito protetor da Igreja, dirigiu-se para a Itália à frente de poderoso exército; passou o monte Cenis, derrotou, a poucas milhas de Susa,
ao rei Desidério, que queria impedir-lhe o passo, restabeleceu a observância das leis por onde passava, e chegou finalmente a Roma. Carlos Magno ignorava por certo
a recepção esplêndida que aquela cidade estava-lhe preparando. Adiantaram-se para recebê-lo o Papa, os príncipes, os barões romanos e franceses e uma multidão imensa
de povo. Era dia de Natal, e o Papa, enquanto celebrava a Missa, disse em voz alta: "A Carlos piíssimo, augusto, coroado por Deus, grande e pacífico imperador, vida
e vitória!" Todos os presentes repetiram por três vezes em voz alta as mesmas palavras. Fora de si Carlos Magno por aquelas inesperadas aclamações, não sabia o que
dizer nem fazer. Então o Pontífice o consagrou Rei e pôs-lhe na cabeça a coroa imperial. Ano 800.
Carlos Magno sobreviveu 14 anos àquele dia memorável, empregando-os todos em benefício de seus povos e da Religião. Cumulado de glória, e passavam eles as noites
inteiras confessando aos que deviam combater no dia seguinte.
Domínio temporal dos Papas - Entre as grandes obras de Carlos Magno deve-se enumerar a de ter restituído ao Romano Pontífice o domínio temporal que quase em sua
totalidade tinha sido invadido por Desidério, rei dos Longobardos. Entende-se por domínio temporal dos Papas o poder civil que o acatamento voluntário dos povos
deu aos Sumos Pontífices sobre considerável parte da Itália, compreendendo também a cidade de Roma. Nos primeiros tempos do cristianismo os fiéis que possuíam alguma
coisa a levavam aos pés dos Apóstolos para se servirem dela segundo suas necessidades, dando uma parte aos pobres, e provendo o sustento dos ministros sagrados.
A Igreja, porém não deve tratar somente do sustento material dos ministros sagrados, senão também do bem moral de todos os cristãos espalhados em todas as partes
do mundo. Daí nasce a necessidade de que a Igreja possua um lugar, em que possa com plena liberdade ensinar a verdade e exercer seu ministério com independência
de outro poder civil qualquer. Jesus Cristo foi crucificado porque anunciava com inteira liberdade o Evangelho; os Apóstolos que o pregaram com igual franqueza foram
martirizados, e todos os Papas que precederam a Constantino morreram para defender sua fé; e isto por quê? Porque lhes faltava, um lugar a propósito, donde pudessem
proclamar a verdade sem depender da vontade de outros.
Constantino o Grande convenceu-se logo, apenas conheceu o cristianismo, de que os Romanos Pontífices deviam ser livres no exercício de seu apostólico ministério:
por isso subministrou-lhes meios materiais para viver, e deu ao Papa o palácio de Latrão e vastíssimas possessões. Considerasse este como o primeiro domínio dos
Papas. Em seguida este imperador transladou seu trono para Constantinopla; desde então começou a ser Roma não já a capital de todo o império romano, senão a capital
de um território que pouco a pouco foi propriedade do Papa e da Igreja. Ligaram-se a Roma as cidades de Ancona, Umana, Pésaro, Fano e Rimini, que por serem cinco
se chamaram Pentápolis. Quando o imperador Leão Isáurico se declarou, como já se disse, contra as sagradas imagens, pretendia que o Sumo Pontífice Gregório II as
fizesse em pedaços na mesma cidade de Roma, e dispersasse as relíquias dos mártires, negando assim a intercessão dos santos perante Deus em proveito nosso, Gregório
negou-se com firmeza a obedecer; então Leão enviou perfidamente a Roma alguns sicários para que lhe dessem morte aleivosa e despojassem as igrejas; porém o povo
romano defendeu a pessoa do Papa, e rechaçou com as armas os soldados imperiais. Depois deste fato o senado e o povo se declararam independentes de um tirano herege
e perseguidor, e se puseram da parte dos Papas para que os socorresse e fizesse justiça. Em princípios do século VIII o domínio temporal dos Papas já se achava pacificamente
constituído por acatamento voluntário dos povos, e por aprovação tácita senão expressa, dos soberanos. Roma com seus territórios forma um estado suficientemente
grande para a Igreja e para que os Papas gozem de independência em sua casa: porém bastante pequeno ao mesmo tempo para que estes não possam chegar a ser grandes
potentados como os da terra. Por conseguinte os reis de França, Pepino e Carlos Martelo, não deram aos Papas todos os seus domínios temporais, mas somente algumas
cidades, e Carlos Magno defendeu, reconheceu e confirmou solenemente tais doações.
Reconheçamos pois que o domínio temporal é necessário aos Papas, para que possam exercer livremente o seu augusto ministério, e sobretudo proclamar a verdade a todos
os homens, ainda que sejam capitais inimigos do Evangelho; para que possam também obrigar a todos, inclusive príncipes e soberanos, a honrar as leis de Deus e da
Igreja: por último para que se achem em atitude de oferecer a todos os homens do mundo um meio seguro, para melhor dizer, o meio mais acertado para acudir ao Pai
universal dos homens, e de ir, quando melhor lhes aprouver, visitar e reverenciar ao Vigário de Jesus Cristo. Assim, pois, este governo civil da Santa Sé, não pertence
absolutamente a nenhum outro soberano, nem ainda aos habitantes dos Estados Romanos, senão que realmente é propriedade dos católicos do mundo inteiro, que, quais
filhos afetuosos, sempre concorreram e ainda tem obrigação de concorrer, para conservar a manter a liberdade e independência de seu Pai espiritual, do Chefe visível
do cristianismo.
Os mártires de Bagdá - Tendo-se declarado naquele tempo uma guerra sanguinolenta entre Teófilo, imperador de Constantinopla, e o Califa, foram presos muitos cristãos
e conduzidos à Bagdá cidade que se ergue hoje onde se achava a antiga Babilônia. Tentou-se primeiramente fazê-los prevaricar; porém tendo permanecido firmes na fé
foram atados e postos em escuros calabouços. Todo o seu alimento consistia em escasso pão e água, e dormiam sobre a terra nua, cobertos de miseráveis andrajos. Alguns
sedutores exortavaos a abandonar a Jesus Cristo para seguir a Maomé; mas aqueles generosos confessores respondiam em alta voz a suas exortações: "Seja anatematizado
Maomé e sua doutrina." Enfurecidos por isto os Muçulmanos, os encarceraram amarrando-lhes as mãos por detrás das costas e os levaram assim às margens do no Tigre,
onde em número de 42 coroaram com o martírio sete anos de penosíssimo cárcere. Ano 845.
São Leão IV - Contam-se entre as calamidades daqueles tempos as correrias dos Sarracenos, que, vindos do Oriente para os paises ocidentais, infestavam também a Itália
causando gravíssimos males por todo o lugar, onde passavam. ,Aflito o Papa Leão IV, porque muitos fiéis, despojados de seus bens, se viam obrigados a errar nos bosques,
pos em campo toda sorte de esforços para ajudá-los; e para assegurar a cidade de Roma contra a ferocidade daqueles inimigos fez construir uma série de casas entre
Castelo Sant' Angelo e o Vaticano murou-as e as incorporou ao resto da Cidade da qual as separava o Tevere. Esta nova parte foi chamada cidade Leonina ou Leópolis
em honra do Pontífice que a edificára. São Leão IV também fundou e restabeleceu muitos mosteiros decorou e dotou grande número de Igrejas e foi muito pródigo em
esmolas públicas e privadas Sua santidade foi assinalada com prodígios: extinguiu com efeito, com o sinal da cruz, um terrível incêndio que se tinha ateado em Roma,
e com breve oração matou uma horrível serpente, que com suas picadas venenosas causava a morte a muitos cidadãos. Morreu no ano 855 depois de oito anos de pontificado
e se conta no número dos Santos.
Perseguição na Espanha - Foi causa desta terrível perseguição um desventurado cristão que se tinha feito judeu. Este fez acreditar aos muçulmanos que acabavam de
se estabelecer na Espanha, que seu estado correria grave perigo se não obrigassem os cristãos a se fazerem judeus ou muçulmanos. Renovaram-se então os espetáculos
de heroísmo dos primeiros séculos da Igreja. Homens, mulheres, crianças, eclesiásticos e leigos ilustraram a fé, fazendo os mais heróicos sacrifícios. Entre os mártires
desta perseguição é célebre São Perfeito. Perguntando-lhe um dia o que pensava de Jesus Cristo e de Maomé, respondeu: "Jesus Cristo é Deus bendito sobre todas as
coisas; Maomé é um daqueles sedutores que, segundo predisse o Evangelho, serão precipitados com seus sequazes nos abismos eternos." Mal acabou de pronunciar estas
palavras; os infiéis arrojaram-se ferozmente sobre ele e o decapitaram. Muitas mulheres tiveram tamanha coragem que se ofereceram espontaneamente aos verdugos, não
as intimidando nem o fogo nem o ferro, que para elas havia sido preparado.
Mitigou-se um tanto esta perseguição pelo terrível golpe de vingança divina sobre Aderramen II, seu ator. Achava-se este sobre um terraço recreando-se com o espetáculo
da multidão de mártires que queria oferecessem sacrifícios, quando de súbito lhe sobreveio um acidente que o deixou sem vida. Não obstante isto, Maomé seu filho
continuou a perseguição que durou 60 anos, isto é, desde o ano 822 até o ano 882. Somente na cidade Caradigna foram degolados em um só dia mais de duzentos monges,
cujo sepulcro se tornou glorioso por um fato extraordinário que ainda hoje se renova. O pavimento debaixo do qual se guardam as suas relíquias, vê-se todos os anos
transpirar sangue vivo no aniversário do dia em que conseguiram a coroa do martírio.
Heresia de Godescalco - Entre os males que afligiram a Igreja no século nono, conta-se a heresia de Godescalco. Estimulado por sua vanglória, fez-se, monge beneditino
na cidade de Orbais, diocese de Soissom, esperando nesciamente conseguir honras e riquezas na profissão religiosa. Excitado, porém, pelo desejo de mais ampla liberdade,
saiu do convento e andou errante pela Itália, ensinando que Deus predestinou inevitavelmente uns para a glória e outros para o inferno; que Deus não quer que todos
se salvem, e outros erros deste jaez.
Notingo, bispo de Verona, foi um dos primeiros a denunciar seus seguidores sendo logo condenados em diferentes concílios por muitos insígnes prelados. Seu bispo
metropolitano, Incmaro de Reims, fez tudo o que pode para trazêlo a melhores sentimentos: porém trabalhou em vão; por isto foi degredado, desterrado e mais tarde
preso, mas não deixou o herege de sustentar suas impiedade até a morte. Seus erros foram depois de muitos séculos reproduzidos por Lutero e Calvino.
 Cisma de Fócio - Mal se tinham apaziguado no Ocidente as turbulências suscitadas por Godescalco e outros hereges, apareceu o fatal cisma grego; que foi causa de
que a maior parte dos cristãos da igreja oriental começasse a se separar da unidade da Igreja Católica, da qual desgraçadamente ainda permanecem separados, não tendo
sido suficientes para atraí-los os carinhosos esforços dos Romanos Pontífices. Fócio, seu autor, recebera da natureza, junto com raro talento, uma índole vaidosa
e ardente; esta e os laços de parentesco que o uniam ao imperador do Oriente influíram para que se abrisse caminho para os cargos de primeiro escudeiro e primeiro
secretário imperial. Sua nova dignidade, suas abundantes riquezas e sua vasta erudição fizeram-lhe crer que ninguém era mais digno do que ele para ocupar o patriarcado
de Constantinopla. Ocupava então aquela sé Santo Inácio, homem de grande virtude e elevado saber. Este não cessava de censurar o escandaloso procedimento do imperador
Bardas, a quem recusara dar a santa comunhão em uma solenidade. Soube Fócio aproveitar-se dos vícios e da cólera do soberano contra Inácio, ao qual, com efeito,
por meio de fraude e de prepotência, conseguiu retirar daquela sé, e desterrar. Despojouse logo Fócio dos hábitos seculares fez-se monge no mesmo dia, no outro dia
fizeram-no leitor, ao terceiro dia subdiácono, ao quarto diácono, ao quinto sacerdote, ao sexto bispo e patriarca de Constantinopla. Ano 858.
 
Mas sabendo muito bem que sua eleição não seria válida, se não a confirmasse o Papa, escreveu ao Pontífice Nicolau I uma carta, em que por meio de mentiras tratava
de caluniar a Santo Inácio e de justificar-se a si próprio para ganhar o favor do Pontífice. Mas este, conhecedor de seus manejos deixou em sua sé santo Inácio que
fora tratado barbaramente, e declarou que Fócio era um intruso, absolutamente indigno de ocupar o patriarcado de Constantinopla em lugar de Inácio. Estava preparando
a condenação daquele cismático quando Deus o chamou a Si para recompensá-lo de suas fadigas.
 
Oitavo Concílio Ecumênico - Adriano II pos em campo o que seu antecessor tinha idealizado, com o fim de sufocar o cisma nos seus princípios, e convocou um concílio
em Constantinopla, que é o oitavo ecumênico. Fócio foi citado para se apresentar; porém não o permitiu sua consciência culpável; por isso foi preciso levá-lo ali
a força. Quando lhe foi perguntado porque se atribuía o caráter de chefe da Igreja universal, (pois esta era sua principal pretensão) não respondeu, ou limitou-se
a dar algumas respostas insolentes. Em vista disso os Padres do Concílio e os legados do Papa o excomungaram, e foi desterrado por ordem do imperador, ao passo que
se restitui a Santo Inácio sua primeira dignidade. Ano 870.                              
Todavia, quando morreu santo Inácio, Fócio conseguiu, à força de enganos, introduzir-se de novo na sé donde tinha sido expulso. Desde a transladação da capital do
Império de Roma para Constantinopla, os bispos desta cidade pouco a pouco chegaram a ter autoridade sobre a Tracia, a Ásia e o Ponto, e até pretenderam o título
de Patriarca ecumênico, isto é, universal. Os Papas se opuseram a tais pretensões, pois era querer igualar-se ao Romano Pontífice. A vaidade porém dominou a muitos
daqueles patriarcas e o orgulho dos imperadores do Oriente não deixou esquecer esse título que o mesmo Fócio, em sua ambição, quis tomar. Este durou pouco tempo,
porque encerrado finalmente em um mosteiro, morreu nele impenitente no ano 891.
 
CAPÍTULO IV
 
Século décimo - Progressos da fé - São Bruno São Romualdo - Heresia de Estevão e de Lisóio.
 
Século décimo - O décimo século da Igreja foi assinalado por muitos deploráveis acontecimentos, devidos à prepotência exercida em Roma pelo conde Adalberto e por
suas filhas Marósia e Teodora. Estas duas ambiciosas mulheres introduziram no Pontificado, por meio da força, os de seu partido, sem Consideração alguma a sua virtude
e doutrina. Por isso, muitas vezes, fizeram-se eleições nas quais, homens de pouca ciência e de não muito bons costumes eram preferidos a outros que por doutrina
e santidade eram os únicos que mereciam ser eleitos. Deve-se por outra parte notar, que muitas coisas que se referem aos papas desta época, teem sido exageradas
por historiadores posteriores e pouco inclinados à Igreja. Um cuidadoso estudo da história deste século pôs em claro que a calúnia e a maldade levaram vários escritores
a falar mal de alguns Papas, que autores imparciais acharam dignos dos maiores elogios. Igualmente deve-se fazer sobressair a especial assistência que prestou Deus
a sua Igreja, posto que neste século, não houvesse heresia ou cisma, contra o qual fosse necessário convocar um concilio universal.
 
Progressos da fé - Neste mesmo século muitas nações abraçaram o Evangelho. Os Polacos com o seu duque Micislau converteram-se ao cristianismo; o mesmo fizeram os
Húngaros, que depois de terem saqueado horrivelmente as igrejas cristãs, foram convertidos por São Estevão seu rei, que por isto é chamado o apóstolo da Hungria.
Este monarca era muito devoto da Mãe do Salvador, sob cujo patrocínio pôs sua pessoa e seu reino, exemplo que seguiram mais tarde Luiz XIII, rei de França; Carlos
Manoel II, duque de Sabóia, e a república de Genova. Também abraçam a fé de Cristo os Dinamarqueses os Turcos, os Normandos com seu feroz chefe Rolon à frente, e
os Russos; no mesmo tempo suscitava Deus nos paises já cristãos, homens esclarecidos por sua santidade, para conservar e aumentar neles a fé.
 
São Bruno - Pelo fim do século nono e no princípio do décimo os Sarracenos e os Longobardos tinham assolado os mosteiros da Itália e da Espanha, ao passo que na
França a guerra civil e os Normandos saqueavam os mosteiros e dispersavam os religiosos que os habitavam. Via-se por isso um grande número de monges expulsos de
seus claustros andar errando de um a outro país e de uma a outra cidade em busca de asilo e entregues à maior miséria. São Bruno tratou de prover a estas necessidades
públicas.
 
Nascido na Borgonha de família nobre, para evitar os perigos do mundo, entrou na ordem beneditina e fez maravilhosos progressos nas ciências e na virtude. Era superior
da abadia de Aniano, quando o duque de Aquitânia, Guilherme o Piedoso, o convidou a que fosse aos seus estados procurar um lugar adaptado para uma fundação religiosa.
Bruno escolheu um deserto perto da cidade de Cluny, donde proveio o nome da nova abadia. Quando Bruno a fundou, foi seguido somente por doze companheiros, porém
pouco a pouco a estes se uniram outros, que sob suas ordens foram fundar outros conventos e abadias. assim formou-se a famosa congregação de Cluny, donde saíram
tantos homens esclarecidos por doutrina, santidade e milagres. Morreu Bruno no ano 927 com o consolo de ver florescer a observância entre seus religiosos. Alguns
martirológios o chamam bem-aventurado; outros lhe dão o título de santo. (V. Moroni art. Cluny e Cong. Cluniac.)
 
São Romualdo - Nasceu este santo em Ravena no ano 956, e desde jovem sentiu-se prodigiosamente levado a abandonar o mundo e a fazer-se religioso no mosteiro de Santo
Apolinário, próximo da sua cidade natal. Sua vida era mortificação contínua; trabalhava sem descanso durante o dia, e passava as noites inteiras em oração. Cingia
seu corpo um áspero cilício. Possuía o dom da profecia, conhecia o interior dos corações e dava a conhecer a muitos as culpas que tinham cometido em segredo, com
o que conseguiu converter a muitos obstinados pecadores. Desejando ganhar a palma do martírio, pôs-se em marcha para a Hungria a fim de levar ali a luz do evangelho;
porém não o quis Deus, enviando-lhe uma enfermidade que lhe reaparecia sempre que queria pôr-se novamente em marcha. Retornou à Toscana, a um vale dos Apeninos onde
lançou os alicerces do célebre mosteiro dos Camaldulenses, assim chamado porque então eram conhecidas aquelas terras por Campos de Maldo, nome do seu dono. Consumido
pelos trabalhos e austeridades, tendo predito muito antes a hora de sua morte, voou ao céu São Romualdo no ano 1027 para receber a eterna recompensa. Seu corpo se
conservava ainda incorrupto quatrocentos e vinte anos depois de sua morte.
 
Heresia de Estevão e de Lisóio - Nos princípios do século onze, tentou Satanás dar nova vida à heresia dos maniqueus, os quais, como já dissemos, ensinavam que há
dois deuses, um bom e outro mau. Começou-se a manifestar o funesto erro em Orleans, cidade de França, e eram seus mais célebres propagadores Estevão e Lisóio. Como
eram tidos estes no conceito de homens doutos e virtuosos, puderam em mui pouco tempo difundir tão monstruosa heresia. Para dar alguma idéia de suas torpezas, é
suficiente recordar o que eles faziam em suas reuniões. Reuniam-se de noite em determinado lugar; quando se achavam todos presentes, tomava cada um deles uma luz
na mão e recitavam juntos ladainhas em que invocavam os demônios, até que aparecia um, dentre eles, sob as formas de um pequeno animal. Então entregavam-se a toda
sorte de excessos: tomavam um menino de oito dias, o atiravam no meio de uma grande fogueira em sacrifício aos demônios, e ajuntavam depois as cinzas que deviam
servir de viático para os enfermos. Foram acusados ao rei de França que mandou se apresentassem perante um concílio convocado em Orleans; ali se reuniram muitos
bispos que unanimemente condenaram tais hereges e seus erros. Estevão e Lisóio porém, obstinando-se no erro, foram excomungados e queimados vivos por ordem do rei.
Sendo ameaçados com o fogo, zombaram dele dizendo que não lhes causaria dano algum, mas quando viram que os demônios, em que confiavam, tinham perdido suas forças,
e que as chamas realmente os queimavam, começaram a gritar que tinham sidos enganados. Então acudiu gente, mas era demasiado tarde, porque a força do fogo reduzira
a cinzas até seus ossos.
 
CAPÍTULO V
São Leão IX - Berengário e sua retratação - São Pedro Damião - São Gregório VII - Morte e milagres de São Gregório VII.
São Leão IX - São Leão, chamado antes Bruno, nasceu no ano 1002, de real família alsaciana. Fez tais progressos nas ciências, que na idade de vinte e quatro anos
foi consagrado bispo de Toul. Para não perder um só momento de tempo, distribuia-o entre a oração, a leitura de bons livros, o estudo, a visita aos hospitais e a
instrução aos pobres, método que seguiu toda sua vida. Tendo falecido o Papa Damaso II, foi eleito para substituí-lo sob o nome de Leão IX. Teve muito que trabalhar
para combater a heresia de Berengário que negava a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo na Eucaristia. São Leão, depois de tê-la condenado, foi em pessoa a
Verceli para assistir a um concílio que esta cidade convocara. Condenou-se nele o herege e seus escritos, condenou-se também e foi lançado ao fogo um livro de João
Scoto Erígenes, isto é, Holandês por estar cheio de erros contrários à fé. Depois de ter apaziguado estas turbulências, recebeu Leão uma carta do Patriarca de Constantinopla,
chamado Miguel Cerulário, que acusava a Igreja romana porque celebrava a missa com pão ázimo, isto é, sem fermento: jejuava aos sábados, deixava o Alleluia desde
a Septuagésima até a Páscoa. Respondeu-lhe São Leão com muita caridade, observando-lhe que eram estas coisas de mera disciplina e que por isto não davam motivo algum
razoável para causar cisma na Igreja. O soberbo patriarca só buscava pretextos para subtrair-se à autoridade do romano pontífice; por isso, fechando os olhos à luz
da verdade, renovou o cisma de Fócio que, consumado alguns séculos depois separou a igreja grega da igreja latina, isto é, da Igreja Católica (1034). Este foi o
último ano de São Leão. O Santo Pontífice, vendo aproximar-se seu fim, quis que o levassem à basílica vaticana à beira do túmulo, onde pronunciou um discurso comovedor.
Em seguida, depois de ter recebido o viático e os demais confortos da religião morreu, aos 52 anos de idade.
Berengário e sua retratação - Berengário de quem já falamos, era arcediago da igreja de Angers, e foi o primeiro que se atreveu a negar formal e publicamente a presença
real de Nosso Senhor Jesus Cristo na Eucaristia. Confundido muitas vezes nas discussões, declarando que se retratava de seus erros, em seguida tornava a recair neles.
Depois de uma série de retratações e recaídas, entrou finalmente em si mesmo, converteu-se devéras e passou os últimos anos de sua vida fazendo penitência. Apesar
disto, quando estava em ponto de morte, temia os juízos divinos e exclamava chorando: "Confio que o Senhor não se negará a receber-me em sua glória em vista da penitência
que me inspirou; porém temo a sua justiça por causa daqueles a quem eu perverti com meus escândalos." Ano 1088.
São Pedro Damião - Enquanto Berengário escandalizava a Igreja, edificava-a um grande santo; era Pedro Damião, natural de Ravena, o qual desde menino já havia deixado
entrever maravilhosa inclinação para o estado eclesiástico. Achando certo dia uma moeda de preta, apesar de que tivesse dela grande necessidade e lhe faltasse o
necessário sustento, quis levá-la logo a um sacerdote, pedindo-lhe para celebrar uma missa por alma de seu pai. Deus recompensou a generosa ação inspirando a um
irmão seu para se encarregar dele.
Mandou-o estudar em Parma onde muito depressa foi um dos mais hábeis preceptores. Este ministério proporcionava-lhe ocasião de ser pródigo para com os pobres, a
quem recebia com alegria em sua casa e servia com suas próprias mãos, pois via a Jesus Cristo debaixo de seus andrajos. O mundo, porém, não era para ele; por isso
decidiu-se a ir para uma ermida nas faldas dos Apeninos na Umbria onde viveu uma vida verdadeiramente angélica. Jejuava todos os dias a pão e água; às vezes passava
três dias sem tomar alimento; caminhava descalço, açoitava-se até ao sangue, golpeava com frequência o peito, orava com os braços abertos, dormia pouco e deitado
sobre uma esteira estendida no chão. Com seu pesar foi nomeado abade de um mosteiro, que administrou santamente; fundou vários outros, procurando insinuar em todos
os corações três máximas fundamentais: Caridade recíproca, solidão e humildade. Tivera desejado passar toda sua vida em tranquila solidão; porém o Papa Estevão IX
obrigou-o a aceitar a dignidade de cardeal e de bispo de Ostia. Neste cargo que ocupou sob o pontificado de sete Papas, resolveu os assuntos mais intrincados da
Igreja com o maior êxito, conseguiu com seu infatigável zelo, vantagens consideráveis para toda a Igreja e para a da Itália especialmente. Empregou especial solicitude
em combater valorosamente os simoníacos e os libertinos daqueles tempos e em promover a disciplina do clero. Ao voltar de uma legação sobreveio-lhe em Faenza violenta
febre que o levou ao sepulcro. Ano 1072.
São Pedro Damião deixou muitos escritos utilíssimos pelo que é contado entre os doutores da Igreja.
São Gregório VII - Depois da morte de São Pedro Damião, subiu à cadeira de São Pedro um dos maiores Papas que têm governado a Igreja: foi São Gregório VII, chamado
antes Hildebrando. Desde seus primeiros anos profetizou sua futura grandeza, pois ainda menino e sem nenhum conhecimento, estando certo dia a brincar com serragens
em uma carpintaria, formulou estas palavras de David: Dominarás de um a outro mar.
Vestiu o hábito dos monges beneditinos em Cluny; passou mais tarde para o mosteiro de São Paulo perto de Roma, onde sua doutrina, santidade, perspicácia e firmeza
o tornaram merecedor da dignidade cardinalícia, e foi, em toda a extensão da palavra, um poderoso sustentáculo da Santa Sé sob o pontificado de seus cinco antecessores.
Trataram muitas vezes de elevá-lo à cadeira Papal, porém ele sempre se recusou humildemente, até que, a seu pesar, no ano 1073 viu-se obrigado a aceitá-la. Dominou
realmente de um a outro mar e, como o sol, espalhou seus raios benéficos em proveito de toda a Igreja. Trabalhou com denodo para extirpar o vício da simonia, confundir
os hereges, reformar a disciplina eclesiástica e defender os direitos da Santa Sé apostólica. Empregou grande zelo contra Henrique IV, rei dissoluto e cruel da Alemanha,
que desperdiçava as rendas da Igreja em festas e donativos aos soldados que tinha alistado contra a religião, encarcerava e matava os sacerdotes e bispos que se
opunham às suas crueldades e sacrilégios. São Gregório conservou firme e imóvel contra ele a imunidade eclesiástica o excomungou e depôs, desligando todos os seus
súditos da obrigação do juramento. Depois disto os sectários de Henrique e os cúmplices de suas maldades foram castigados de modo visível pela divina Justiça. O
mesmo Henrique, abandonado por todos, foi despojado do império por seu filho, e concluiu seus dias morrendo repentinamente.
Morte e milagres de São Gregório VII - Este incomparável Pontífice, depois de ter renovado a face do mundo por meio de sua ciência e piedade, para evitar as tramas
do ímpio Henrique, retirou-se de Roma e foi a Salerno, onde caiu gravemente enfermo. Antes de expiar prometeu que, quando mediante os méritos de Jesus Cristo chegasse
ao céu, a todos recomendaria vivamente ao Senhor. Pronunciou estas palavras: "Amei a Justiça e odiei a iniquidade; por isso morro no desterro". Descansou no Senhor
a 25 de Maio do ano 1085, depois de doze anos de glorioso pontificado.
Deus confirmou sua santidade com muitos milagres, entre os quais se nota o seguinte: Enquanto se achava o santo disputando com um homem que lhe negava ser réu de
simonia, mandou-lhe que firmasse sua palavra rezando Gloria Patri; porém começando-o por três vezes nunca pode pronunciar as palavras et Spiritui Sancto, porque
era culpado dos delitos que se lhe imputavam. Outra ocasião enquanto celebrava a santa Missa, viu-se baixar do céu uma pomba que, indo pousar no ombro direito de
Gregório, cobriu-lhe a cabeça com suas asas. Com o sinal da Santa Cruz apagou um incêndio que se tinha ateado em Roma. Seu corpo cinquenta anos depois de sua morte,
foi encontrado ainda inteiro com os ornamentos pontificais.
 
CAPÍTULO VI
 
São Bruno - Libertação dos Santos Lugares - Santo Anselmo bispo e doutor - São lsidro, o lavrador.
São Bruno - Nasceu São Bruno em Colônia de família ilustre, e fez tais progressos na ciência e na virtude, que ainda muito jovem, tornou-se credor de cargos muito
elevados. Querendo, porém, abandonar o mundo e entregar-se inteiramente a Deus, partiu com seis companheiros e subiu com eles a altíssima e mui escabrosa montanha
de Grenoble, chamada Cartuxa. No meio daqueles montes rodeados de precipícios, e de penhascos espantosos, fundou a ordem dos Cartuxos, assim chamada pelo lugar onde
teve princípio. A nova ordem se difundiu rapidamente por toda a Europa. O Papa Urbano II queria nomear a Bruno arcebispo de Reggio; ele porém não quis nunca aceitar
essa dignidade. Permitiu-lhe então o Pontífice que se retirasse para a Calábria com alguns companheiros, onde fundou outro mosteiro chamado a Torre. Morreu no ano
1101.
Libertação dos Santos Lugares - Os Santos Lugares, que por suma desgraça e ludíbrio da cristandade, se achavam desde mais de cinco séculos em poder dos maometanos,
foram libertados por meio das Cruzadas, isto é, exércitos reunidos pelos príncipes da Europa. O iniciador desta grande obra foi um simples sacerdote da diocese de
Amiens, chamado Pedro, e apelidado o eremita por sua vida solitária. Fazendo uma peregrinação a Jerusalém, comoveu-se vivamente ao ver mesquitas e estábulos em redor
da Igreja do Santo Sepulcro, e ao contemplar todos os lugares santificados pelo nascimento, vida, milagres, pregação, morte, sepultura, ressurreição e ascensão do
Salvador, em poder dos infiéis e de mil modos profanados. Ao chegar a Roma apresentou-se a Urbano II, e pintou tão ao vivo o triste estado daqueles lugares, que
o Pontífice se propôs lançar mão de todos os meios para libertá-los de semelhante profanação. Pedro, alentado assim pela aprovação do Papa, em breve tempo animou
as potências européias a que se armassem para levar a cabo aquela santa e grande empresa. Os que se alistavam tomavam por divisa uma cruz de lã encarnada que faziam
colocar sobre o ombro direito, donde o nome de cruzados. Ao chegar o exército cristão perto de Jerusalém, sitiou a cidade e assaltou os inimigos com tal ímpeto e
com tanto valor, que depois de cinco semanas de combate, se apoderou da cidade, expulsando de lá os inimigos e fez desaparecer todas as imundícies que desonravam
aqueles santos lugares. Os fieis em agradecimento ao divino favor tomaram vestidos de penitentes, e com os pés descalços foram visitar os lugares consagrados pelos
padecimentos do Salvador. Fizeram logo uma festa esplêndida sagrando ao valente e piedoso capitão Godofredo de Bouillon, duque de Lorena, como rei e soberano do
reino de Jerusalém. Em sinal de reverência a Jesus, Godofredo jamais quis levar a coroa naquela cidade. Em seguida, para honrar o culto divino, fundou ali um cabido
de cônegos, fez um mosteiro no vale de Josafá e levantou muitas Igrejas às quais ofereceu preciosos dons. (1099).
Com o fim de por dique aos infiéis que molestavam os cristãos, muito capitães se consagraram ao serviço do Senhor, formando e instituindo para tal fim a ordem dos
Hospitaleiros de São João. Seu ofício consistia em assistir aos enfermos, servindo-lhes com suas próprias mãos, como criados, e combater valorosamente pela causa
da Religião. Esta ordem chamou-se mais tarde Cavaleiros de Malta porque tinham fixado moradas nessa ilha desde o ano 1530.
Santo Anselmo, bispo e doutor - Nasceu Santo Anselmo em Aosta de pais nobres no ano 1033. Desde pequeno deixou vislumbrar grande ardor para o estudo e para a virtude.
Aos quinze anos espantado já com os perigos que encontrava no século, queria fazer-se monge; porém seu ardor juvenil e alguns falsos companheiros, lhe fizeram retardar
a execução de seu santo propósito seguindo por algum tempo as máximas do mundo. Mas iluminado pela graça divina, abandonou as vaidades mundanas, vendeu todos seus
bens, e retirou-se para a abadia de Bec em França sob a observância das regras de São Bento. Ajudado ali e instruído pelo célebre Lanfranco, fez tais progressos
na virtude, na filosofia e na teologia, que depois de três anos foi eleito prior. Este novo cargo serviu-lhe de estímulo para andar com maior ardor no caminho da
perfeição. Empregava o dia nos exercícios monásticos e em instruir os outros e de noite, depois de muito breve descanso, ocupava-se na meditação das verdades eternas
e em responder aos que por carta lhe pediam conselhos. À imitação do Salvador, entretinha-se com predileção em instruir as crianças. Tinha como regra que na educação
dos pequeninos não se deve empregar demasiado rigor, nem se deve levar ao cumprimento do dever à força de castigos, porque dizia, acontece com eles o que se dá com
as tenras plantas que, cercadas com demasiada estreiteza, ficam sufocadas e não produzem frutos.
Sua ciência profunda unida à eminente santidade, grangeou-lhe as simpatias e o carinho dos reis, dos bispos e do pontífice São Gregório VII, que, oprimido pelos
poderosos do Século, recomendavase a suas orações juntamente com sua Igreja. Morto Lanfranco, que fora nomeado arcebispo de Cantuária, sucedeu-lhe Anselmo. O rei
Guilherme, porém, que tinha promovido sua eleição, começou desde logo a persegui-lo, pretendendo se intrometer nos assuntos eclesiásticos. O santo Arcebispo se opôs
com firmeza. Despojado de todos os seus bens e obrigado a por a salvo sua vida por meio do desterro, foi a Roma junto do pai comum dos fiéis que era então Urbano
II. O Papa o cumulou de louvores e de graças e valeu-se dele em muitos e importantes negócios. Dali a pouco morreu o rei Guilherme e sucedeu-lhe Henrique. Um dos
primeiros atos do seu governo foi chamar imediatamente o nosso santo para a Inglaterra; porém, pouco depois o mesmo o desterrou de novo cruelmente. No meio daquelas
continuas aflições, o santo costumava dizer que nada temia no mundo senão o pecado. "Se de um lado, dizia, visse eu o pecado, e de outra parte as penas do inferno,
escolheria de preferência estas antes que cometer um pecado".
Estas últimas perseguições não duraram muito, pois que dois anos depois, quando parecia que as coisas se tinham novamente regularizado com o rei dormiu no Senhor
na idade de 76 anos. Deixou fama de grande santidade e de operador de milagres em vida e depois de morto (1109). Sua santidade e sua vasta e profunda doutrina fizeram
que fosse enumerado entre os doutores da Igreja.
Santo Isidro, o lavrador - No seio da Igreja católica todos, Seja qual for a sua condição, podem chegar a possuir a perfeição das virtudes; bem o dá a conhecer assim
um pobre lavrador chamado Isidro, que se distinguiu naquele século. Nasceu em Madri de pais pobres, e ainda que se visse obrigado a ganhar o sustento com o trabalho
de suas mãos, conservou-se sempre fervoroso no serviço do Senhor. Costumava levantar-se de manhã muito cedo, e, antes de trabalhar, ia todos os dias ouvir a santa
Missa. Era muito devoto da Virgem, e, já caminhando pelas ruas, já trabalhando no campo, rezava sempre a Ave Maria, sua oração favorita. Alguns invejosos acusaram-no
a seu amo, dizendo-lhe que para cuidar de suas devoções descuidava a cultura dos campos. Este então tratou de surpreendê-lo; mas qual não foi sua surpresa quando,
ao chegar junto de seu servo, viu dois arados que aravam com Isidro! Perguntando de quem eram aqueles dois arados que tinham desaparecido à sua chegada, Isidro respondeu-lhe:
"Eu não conheço outro auxílio senão o de Deus a quem invoco no princípio de meus trabalhos, e nunca o perco de vista durante o dia". Conheceu então o amo a santidade
de seu servo, e vendo os campos bem cultivados, o exortou a perseverar em suas santas práticas. Cheio de caridade para com os órfãos, dava-lhes tudo o que sobrava
de seu escasso alimento. Passou toda sua vida entre pobres agricultores e morreu no ano 1130, Em pouco tempo operaram-se muitos milagres em seu sepulcro; por isso
o clero e os magistrados foram ao cemitério comum com o fim de transportar o corpo do glorioso lavrador para lugar mais honroso. Nessa ocasião deu-se um fato assaz
extraordinário; porque ao dar o primeiro golpe para exumá-lo, todos os sinos tocaram de per si e não pararam até se concluir a cerimônia.
 
CAPÍTULO VII
Nono e décimo Concílio Ecumênico - São Bernardo - Milagres e morte - São Tomás de Cantuária - Heresia dos Valdenses - Undécimo Concílio Ecumênico.
Nono Concílio Ecumênico - O nono Concílio Ecumênico foi celebrado também em Roma, na Igreja de São João de Latrão; por isso chamou-se Lateranense. Convocou-o Calixto
II no ano 1123 e intervieram nele mais de 300 bispos e mais de 600 abades, sob a presidência do mesmo pontífice. O fim principal deste concílio era restabelecer
a paz e concórdia entre o sacerdócio e o império, perturbada pelas chamadas investiduras. Os imperadores da Alemanha pretendiam imiscuir-se nos assuntos religiosos,
especialmente na eleição dos bispos e abades, e na adjudicação da dignidade episcopal ou abacial, o que se chamava investir. Acontecia frequentemente que, pela usurpação
destes direitos, elegiam-se pessoas indignas e às vezes indigníssimas por sua ignorância e péssima conduta, com grande escândalo dos fieis. Os Papas tinham levantado
várias vezes a voz contra estes abusos, porém em vão, pois os mesmos imperadores tomaram as armas e passaram a cometer violências contra eles. O Papa Calixto, cheio
de zelo e valor, querendo a todo custo remediar tamanho mal, depois de ter trazido Henrique V a melhores sentimentos, reuniu o dito concílio. Ali conseguiu o imperador
ser absolvido da excomunhão em que tinha incorrido, e submeteu-se humildemente à Igreja jurando que já não tomaria parte nas investidas deixando assim livre a Igreja
na eleição de seus ministros. Condenaram-se igualmente as ordenações feitas pelo herege Bordino, que se proclamara anti-Papa. O concílio convidou por último os cristãos
a expulsarem de Jerusalém aos Sarracenos, que tinham voltado novamente, e da Espanha aos Mouros, ferozes inimigos do cristianismo, que se tinham apoderado daquele
reino.
Décimo Concílio Ecumênico - Ainda não tinham passado dezesseis anos da celebração do mencionado concílio, quando o Papa Inocêncio II julgou conveniente reunir outro
no mesmo palácio de Latrão. Abriu-se em 1º de Abril do ano 1139. Assistiram a ele mil bispos e outros tantos abades presididos pelo mesmo pontífice, que, como escreve
um historiador daqueles tempos, compareceu entre aqueles santos prelados como o mais venerável de todos, tanto pela majestade que Resplandecia em seu rosto e pelos
oráculos que saiam de sua boca, como por sua suprema autoridade. O concílio foi celebrado para por um remédio às desordens causadas pelo anti-Papa Anacleto, chamado
Pedro de Leão, e condenar vários erros que tinham surgido contra a fé. Entre estes merece mencionar a heresia de Tanquelino, leigo muito astuto, que fingindo santos
costumes, soube enganar os simples e levá-los à prática das mais vergonhosas obscenidades. Considerava-se igual a Jesus Cristo; negava os sacramentos e ensinava
que os bispos nada eram mais do que os leigos.
Foram condenados também os erros de Pedro de Bruis e Arnaldo de Brescia, os quais, além de levarem vida escandalosa, desprezavam o santo sacrifício da Missa, a invocação
dos santos, o batismo das crianças, a tradição e os escritos dos santos Padres. A justiça de Deus confirmou visivelmente a condenação destes hereges. Com efeito:
Pedro de Bruis, depois de cinco anos de roubos e delitos, foi vítima do furor do povo, que, horrorizado por suas blasfêmias, o atirou dentro das chamas que ele próprio
preparara para queimar um monte de cruzes que tinha derribado. Arnaldo, inimigo acérrimo do poder temporal dos Papas, não cessando de vomitar calúnias contra a igreja,
atreveu-se a ir a Roma onde por ódio ao pontífice tentou fazer assassinar a um cardeal. Temendo em seguida a pena que merecia seu crime, fugiu de Roma; ao chegar
porém a Toscana, foi preso e condenado às chamas pelo poder civil. São Bernardo em carta escrita ao Papa sobre Arnaldo de Brescia e Abelardo seu mestre, disse que
estes se uniram e se puseram de acordo para uma conjuração secreta contra Jesus Cristo e contra sua Igreja; em seguida relata-lhe seus erros. Arnaldo morreu obstinado
no erro; mas Pedro Abelardo foi a Roma e submeteu-se à santa Sé. Dali voltou à França, reconciliou-se com São Bernardo, e para tratar melhor da salvação de sua alma,
encerrouse em um convento dependente de Cluny, onde depois de passar alguns anos fazendo penitência, com edificação daqueles religiosos, morreu no Senhor no ano
1142, aos 63 de idade.
São Bernardo, abade e doutor - São Bernardo, abade de Claraval, é certamente um dos astros mais luminosos da Igreja. Nasceu em Fontainas na Borgonha. Ainda pequeno,
sentia tal ternura para com a Santíssima Virgem, que só ao ouvir pronunciar seu nome, dava sinais de prazer e alegria. Tudo fazia com gosto contanto que se lhe dissesse:
"Isto agrada a Maria'" e desejava fazer o contrário quando se lhe dizia: "Isto desagrada a Maria." Embora as raras e nobres qualidades de sua pessoa e as ainda mais
seu engenho surpreendente lhe abrissem caminho para as mais altas dignidades, a tudo renunciou para abraçar o estado religioso no mosteiro de Cister. Seu exemplo
suscitou-lhe tantos discípulos, que tiveram de fundar outros mosteiros entre os quais se achava o de Assêncio. Era este lugar uma espantosa guarida de ladrões, e
pelo nome e celebridade de Bernardo se chamou em seguida Claraval. Poucos eram os jovens com quem falava o santo, que não se alistassem na sua milícia Espiritual.
Muitos nobres mancebos seguiram os incentivos de sua extraordinária santidade. Um seu tio, sua Irmã, seus cinco irmãos, e seu próprio pai fizeram-se religiosos e
morreram como santos.
Milagres e morte - A santidade de Bernardo achava-se confirmada por frequentes e ruidosos milagres. Com o sinal da cruz curou um bispo que estava prestes a morrer;
também curou, em presença de grande multidão, a uma mulher, um menino e uma menina aleijados. Dava por todas as partes a vista aos cegos e o ouvido aos surdos, a
palavra aos mudos, a saúde aos enfermos e conhecia os segredos mais íntimos do coração. E ainda que suas rígidas penitências debilitassem sua saúde, estava, não
obstante, sempre pronto para confessar, pregar e empreender viagens a fim de cumprir difíceis missões, e pacificar príncipes e nações. No meio destes vários e gravíssimos
negócios nunca deixava as orações e meditações de costume. Estando um dia na Igreja catedral de Spira, arrebatado em êxtase, pôs-se a cantar no meio do povo e do
clero: o clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria. Estas palavras agradaram tanto, que a Igreja acrescentou-as à Salve Regina, com que costuma honrar a augusta Mãe do
Salvador.
Quando se espalhou a notícia da perigosa enfermidade de São Bernardo, de todas as partes acudiam pessoas a Claraval unicamente com o fim de ver pela última vez esse
portento de sabedoria. Bispos e abades tinham-se reunido em redor dele para receber sua bênção e assistir à sua ditosa morte. Dormiu Bernardo no Senhor, nos braços
de seus religiosos, no ano 1153, aos sessenta e três de idade. Por causa dos muitos milagres que se operavam sobre seu sepulcro, apenas vinte anos depois de sua
morte, Alexandre II o inscreveu no número dos santos, e o sumo Pontífice Pio VIII no ano 1830 o contou entre os doutores da santa Igreja.
São Tomás de Cantuária - A Inglaterra, terra fecunda em santos, contou neste século, entre os muitos luminares da fé, a Santo Tomás, arcebispo de Cantuária. Nascido
em Londres de nobres e piedosos pais, demonstrou, desde menino, tanto amor para com a verdade, que não podia sofrer que se faltasse a ela nem por gracejo. Seus talentos
e suas virtudes o tornaram mui querido a Teobaldo, arcebispo de Cantuária, que o ordenou sacerdote e mais tarde arcediago de sua catedral. Sua aptidão para manejo
dos grandes negócios lhe mereceu o cargo de conselheiro, ou primeiro ministro de estado. São Tomás exerceu este cargo com plena satisfação de todo o reino, e muito
em particular, do rei, que o favoreceu de tal modo que nada queria que se fizesse sem ordem sua. Morto o arcebispo, elegeram a Tomás para lhe suceder. Não podendo
subtrair-se a este cargo tão pesado, abandonou todas as pompas, cingiu um grande cilício em suas desnudadas carnes e vestiu o hábito monástico. Costumava passar
as noites em oração e na leitura dos livros santos ao passo que de dia dedicava-se a obras de beneficência e a reformar os costumes do clero e do povo. Exemplar
no ofício de chanceler, mostrou-se firme e invicto no ministério episcopal, e com ânimo varonil resistiu ao próprio rei, que de diferentes modos o perseguia cruelmente.
Tomás teve de experimentar por muitos anos os rigores do desterro, até que, acalmando-se as iras do príncipe, voltou a sua sede episcopal.
Como continuasse, porém, sempre pregando contra as desordens públicas e privadas, acusaram-no perante o rei, o qual não cessou de armarlhe insídias; e queixava-se
a seus cortesãos de que já não podia ter paz enquanto vivesse o arcebispo. Ouvindo isto alguns de seus satélites, pensando fazer coisa agradável ao soberano, foram
às escondidas a Cantuária, e acometeram ao bispo enquanto se achava na igreja rezando vésperas. Querendo seus clérigos fechar as portas do templo, impediu-os dizendo-lhes:
"A Igreja de Deus não se deve guardar como as fortalezas das cidades; eu de bom grado morrerei pela causa de Deus e da sua Igreja. Não peço senão esta graça, que
meu sangue lhe restitua a paz e a liberdade que lhe querem tirar". Pondo-se logo em oração e encomendando a Deus sua igreja, ofereceu sua cabeça ao ferro do verdugo
com a mesma firmeza e constância com que tinha resistido às iníquas leis do rei. Morreu mártir no ano 1171. Tendo-se operado mais tarde muitos milagres mediante
sua intercessão, o pontífice Alexandre III, três anos depois de sua morte, o colocou no cânon dos santos.
Heresia dos Valdenses - Os hereges chamados Valdenses começaram neste século a perturbar a Igreja. Devem nome e origem a Pedro Valdo, comerciante de Lion. Achando-se
este em um banquete (Ano 1160), um seu amigo caiu morto a seu lado. Horrorizado com o fato, começou a exortar seus companheiros à pobreza voluntária; porém deixando-se
levar pela imaginação, excedeu os limites e deu-se a pregar contra as riquezas que possui a Igreja, afirmando que o clero está obrigado a viver pobre e que não pode
possuir bens sem cometer pecado. Deste erro extravagante passou a reprovar o culto das sagradas imagens, a confissão auricular, a extrema unção, as indulgências
e o purgatório. Ameaçado em sua pátria saiu dela, e foi à Sabóia em companhia de alguns vagabundos; passou dali para Lucerna, perto de Pinerolo, onde ele e seus
sectários tomaram o nome de Barbudinhos. Tendo sido refutados várias vezes seus erros, tornaram-se mais orgulhosos e por isso foram condenados no undécimo concílio
ecumênico. Estes, contudo, até o século dezesseis ficaram mais ocultos; não tinham igrejas próprias, porém frequentavam as dos católicos e, quando podiam confundir-se
com eles, pediam e recebiam todos os sacramentos da Igreja católica. Mas surgindo em Genebra a heresia de Calvino, pensou este homem astuto que ganharia muito mais
se unindo aos Valdenses, que, cedendo a seu convite, abraçaram seus erros e desde então Valdenses identificaram-se com Calvinistas sendo eles, portanto muito diferentes
dos primitivos Valdenses, sectários de Pedro Valdo.
Undécimo Concílio Ecumênico - Convocou este concílio o Papa Alexandre III no ano 1179 com o fim de condenar as Valdenses e outros hereges, e tratar também de alguns
assuntos concernentes ao bem da Igreja. Foi este o undécimo Concílio Geral e o terceiro de Latrão; tomaram parte nele 302 bispos. Seu fim principal foi estabelecer
um meio conveniente para evitar toda sorte de desordens e cismas na eleição dos Papas. O Papa Nicolau II no ano 1059 a fim de obviar estes perigos, tinha reservado
o direito de eleger o Papa somente aos cardeais; mas estes não concordando às vezes sobre a pessoa que tinham de nomear, acontecia que se elegiam ao mesmo tempo
vários anti-Papas. Em vista disto, o concílio presidido pelo mesmo Alexandre, decretou que, dado o caso em que os cardeais não se achassem de acordo na eleição do
pontífice, se reconheceria por legítimo o que tivesse obtido as duas terças partes de votos, e que se aquele que obtivesse a outra terça parte quisesse se declarar
Papa, ficaria excomungado juntamente com seus instigadores. Este concílio condenou, como ficou dito, os Valdenses juntamente com os Cátaros, os Patarinos e outros
hereges.
 
CAPÍTULO VIII
Frederico Barba-Roxa - São João da Mata - Ritos e leis disciplinares desta época.
Frederico Barba-Roxa - O imperador da Alemanha, Frederico, chamado Barba-Roxa pela cor de sua barba, perturbou durante muitos anos a paz da Igreja. Depois de ter
incendiado e reduzido a um monte de ruínas as cidades de Suza, Chieri, Asti e Milão, convocou um concílio e elevou à dignidade pontifícia um anti-Papa excomungado
por Alexandre III. Cheio de ira contra o legítimo pontífice, resolveu marchar sobre Roma para vingar-se cruelmente; porém uma terrível epidemia que fez perecer a
maior parte de seus soldados, obrigou-o a desistir da empresa. Então determinou dirigir suas armas contra Alexandria da Palha, cidade que o mesmo pontífice tinha
mandado edificar para libertar a si e a Itália de suas iras. Sitiou a cidade e quis tomá-la de assalto, mas foram vãos todos os seus esforços. Derrotado pouco depois
pelos confederados italianos, na memorável batalha de Lenhano, julgou conveniente humilhar-se e ir pedir perdão ao Papa. Este o recebeu com bondade e levantou-lhe
a excomunhão. Frederico, em penitência de seus pecados, foi com seu exército para Palestina, a fim de reconquistar a Jerusalém, mas depois de muitas e gloriosas
vitórias, morreu no ano 1199, em um rio da Cilícia, onde fora tomar banho.
São João da Mata - Achando-se naqueles tempos grande número de cristãos escravizados entre os Turcos, especialmente nas costas da África chamada Berbéria, suscitou
Deus, para ir em seu auxílio, a São João, nascido em Mata, cidade da Espanha.
Enquanto se achava celebrando a santa Missa em Paris, apareceu-lhe um anjo que descansava suas mãos sobre dois escravos. Conheceu por isto ser vontade de Deus que
ele se consagrasse ao resgate dos escravos que tinham caído em poder dos infiéis. Mas para certificar-se melhor da vontade do céu, foi ter com São Felix de Valois,
que também levava uma santa vida no deserto. Este santo que tivera a mesma visão, reuniu-se a São João e ambos foram a Roma pedir ao Papa aprovasse uma ordem que
tivesse por fim o resgate dos escravos, podendo-se entregar os próprios religiosos em troca da pessoa que se quisesse resgatar, toda vez que não se pudesse consegui-lo
com dinheiro. O Papa Inocêncio III, que ocupava então a Santa Sé, e que tinha tido igual visão celebrando a santa Missa, não titubeou em aprovar a nova ordem. (1198).
Fundou São João muitas casas de zelosíssimos religiosos e fez duas vezes viagem a Tunis com o fim de exercer ali suas obras de caridade. Irritados por isto os muçulmanos,
ultrajaram-no de diferentes maneiras, e finalmente puseram-no sobre um batel ao qual tinham tirado o leme e as velas, para que perecesse no meio do mar. O santo
porém com o crucifixo na mão começou a cantar glórias a Deus, ao passo que o barco guiado pela divina Providência, em poucos dias chegou ao porto de Óstia na Itália,
trazendo a bordo cento e vinte escravos que ele tinha resgatado. Abatido pelos males sofridos nesta viagem e pelas austeridades de sua vida, morreu João em Roma
no ano 1212.
Ritos e leis disciplinares desta época - No ano 690, por celestial aviso, erigiu-se um altar em Roma, para onde se transladaram as relíquias de s. Sebastião, com
o fim de debelar uma horrível epidemia que no mesmo instante cessou.
No século oitavo, estabeleceu-se como regra geral para ser observada indistintamente por todos os cristãos e em todos os casos, (excetuando o de enfermidade grave)
que ninguém pudesse receber a Santa Eucaristia senão em jejum. Esta lei existia desde o tempo dos Apóstolos; mas como estava sendo esquecida ou descuidada, renovou-se
mais severamente, sendo declarado réu de sacrilégio o que se atrevesse a violá-la.
Foram instituídas várias confrarias em sufrágio das almas dos defuntos, e começou a se recitar o ofício da Bem-aventurada Virgem. No século nono, Gregório IV ordenou
que a solenidade de todos os Santos, já introduzida em Roma no século sétimo, se celebrasse em toda a Igreja em honra de todos os Santos, o que até então não se
fazia a não ser em relação aos mártires.
No ano 893, João XV registrou nos fastos dos santos a Santo Ulderico, bispo de Augusta, com rito público e solene, com bula chamada de canonização; o que, segundo
parece, nunca se fizera antes, porque os santos eram então canonizados em sua própria diocese por voz do povo e decreto do bispo, ou por decreto de todos os bispos
da província eclesiástica à qual pertenciam.
No século décimo o bem-aventurado Hermano compôs a Salve Regina, até as palavras nobis ostende. São Bernardo acrescentou, como já dissemos, o clemens, o pia, o dulcis
Virgo Maria. As últimas palavras: Dignare me landare te, Virgo sacrata, etc., afirma-se, pertencem a São Domingos. Introduziu-se em toda a Igreja a solene comemoração
dos fiéis defuntos no segundo dia de novembro. A respeito disto é digno de lembrar-se o presente feito à Igreja de Santa Maria de Pinerolo, em 1064 pela princesa
Adelaide de Sabóia, marquesa de Suza, em sufrágio da alma de seus pais e particularmente do marquês Odon seu esposo.  
No ano 1136, a Igreja começou a celebrar solenemente a festa da Conceição de Maria Santíssima. s. Bernardo se opôs a isto a princípio não porque lhe desagradasse
que se desse este maior grau de honra a Maria, porém porque desejava que antes se consultasse a Santa Sé, sem cuja intervenção não queria se tomasse determinação
alguma de interesse geral para a Igreja.
 
QUARTA ÉpocA
Desde o IV Concílio de Latrão, XII ecumênico, no ano 1213, até os princípios da Reforma de Lutero no ano 1517. (abrange um período de 304 anos.)
 
CAPÍTULO I
Quarto Concílio de Latrão - São Domingos e a ordem dos Pregadores - Ordem Franciscana.
Quarto concílio de Latrão - Inaugurou-se o século treze com o duodécimo concílio ecumênico, que é o quarto de Latrão. Este concílio, convocado pelo Papa Inocência
III, reuniu-se em Roma no ano 1215, e intervieram nele 573 bispos e 800 abades. Os decretos que nele foram emanados tiveram tal importância, que se considerou a
celebração deste concílio como um fato digno de assinalar época na história eclesiástica. A principal causa que o motivou foi a heresia dos Albigeneses, assim chamados
porque começaram a difundir seus erros na província de Albi, em França. Esta heresia era um conjunto de todas as que tinham aparecido nos séculos anteriores, e ensinava,
entre outras extravagâncias, como os Maniqueus" que existem dois princípios criadores, Deus e Satanás; que o primeiro criara as almas e o segundo os corpos. Repeliam
a autoridade da Igreja e os Sacramentos, vomitavam blasfêmias contra Jesus Cristo e Maria Santíssima, e tinham, além disto, costumes muito relaxados. Como não bastassem
as palavras para difundir esta impiedade, punham em obra toda sorte de violências; derrubavam templos, destruíam altares; ameaçavam e matavam a todos os que não
queriam seguir suas doutrinas. Não sendo suficientes para pôr um dique a tantas desordens, nem o zelo de São Domingos, exercido por meio de seus sermões, nem o fervor
militar de Simão de Montfort, julgou-se necessária a convocação do dito concílio. Foram condenados nele os erros dos Albigenses, e, por lei do mesmo, obrigou-se
a todos os príncipes e soberanos a purificar seus domínios da infecção destes hereges turbulentos, sob pena de perderem sua autoridade e todos os seus direitos.
Também se tratou nele de alguns pontos da doutrina católica, especialmente sobre a santa Eucaristia. A este respeito foi definido que, depois de pronunciadas pelo
sacerdote as palavras da consagração, cessa de existir a substância de pão e vinho, para se converter na substância do corpo e sangue de Jesus Cristo. Para enunciar
com maior precisão esta verdade da fé, empregou-se pela primeira vez a palavra transubstanciação. Como naqueles tempos, muitos cristãos se entibiassem muito na piedade,
e passassem anos inteiros sem se aproximar dos sacramentos da confissão e da comunhão, foi ordenado que todos, ao chegar ao uso da razão. deviam confessar-se ao
menos uma vez por ano, e receber a comunhão pela Páscoa, cada um em sua paróquia. Foi decretado também que aquele que não cumprisse esse preceito, fosse impedido
de entrar na Igreja, e que, depois de morto, (morrendo impenitente) se lhe negasse sepultura eclesiástica. Esta lei, ao passo que demonstra a clemência da Igreja
que se contentou com o menos possível, é também muito justa, porque é fora de dúvida que já não merece o nome, e se torna indigno de gozar dos direitos de cristão,
aquele que não se aproxima de tais sacramentos.
São Domingos e a ordem dos Pregadores - São Domingos foi escolhido de maneira especial pela Providência para combater aos Albigenses. Nascido na Espanha de nobre
família, concluiu seus estudos fazendo assombrosos progressos na ciência e na virtude. Enviado pelo Papa, com outros missionários, para defender a fé contra os Albigenses,
os combateu denodadamente, e Deus confirmou sua pregação com brilhantes milagres. Eis aqui um dos principais: Tendo o santo transcrito algumas passagens da sagrada
Escritura que mais diziam respeito aos hereges, lhas entregou para que as considerassem atentamente. Reuniram-se estes de noite em forma de concílio e depois de
ter lido um deles o escrito de São Domingos, disse-lhe outro: "Atira-o ao fogo; se arder, é sinal que nossa crença é verdadeira; se não, será a dos católicos". Atiraram
o papel às chamas; porém, com admiração de todos, saiu intacto, como dantes. "Atira-o ao fogo de novo, e melhor se conhecerá a verdade". assim se fez, porém o papel
de novo ficou ileso. Atiraram pela terceira vez, e pela terceira vez saiu perfeito.
Vendo São Domingos a necessidade de operários evangélicos, para combater a heresia, conservar a fé e retemperar o espírito cristão nos católicos, fundou uma ordem
que se chamou de São Domingos, conforme o nome de seu fundador, e dos Pregadores pelo fim principal que estes têm de dedicar-se à pregação. Dedicaram-se estes a
princípio a combater a heresia dos Albigenses, porém mais tarde se estenderam por todos os paises cristãos, pregando e trabalhando sem descanso para dilatar o reino
de Deus. Inocêncio III antes, e no ano seguinte Honório III, (1216), aprovaram esta ordem. Como causasse profunda magoa a São Domingos ver o grande número de donzelas,
que por falta de mestres católicos e de casas de educação de igual gênero, frequentavam as escolas dos Albigenses, fundou uma segunda ordem, chamada de freiras Dominicanas,
as quais, ao mesmo tempo que trabalhavam para sua própria santificação, faziam o possível para arrancar as meninas cristãs dentre as garras de heresia. Mas como
muitas pessoas não podiam ir se encerrar no claustro, fundou outra ordem, chamada dos Terceiros. Homens e mulheres de toda idade e condição podem professar nesta
ordem ainda estando no século, sem fazer votos. A princípio chamou-se milícia de  Jesus Cristo, e devia enfrentar a heresia com todos os meios possíveis. Mais tarde
chamou-se ordem terceira da penitência ou dos penitentes, porque os que se inscrevem nela se propõem levar um método de vida perfeita, que se aproxime o quanto possível,
ao que se leva no interior dos conventos.
Atribue-se a São Domingos a instituição do Rosário, por inspiração que teve da mesma Virgem Maria que aparecendo-lhe em uma capela da Apúlia, mandou-lhe que pregasse
esta devoção como arma formidável contra a impiedade. Os fatos corresponderam às promessas, porque com a eficácia dessa devoção foram vencidos os Albigenses. Esta
prática se tornou universal, e foi como um grande auxiliar da Igreja Católica. Não se pode dizer, quão grande é o bem feito à Igreja, e quanto o mal, que por ela
se tem evitado. Além dos milagres já mencionados, ressuscitou este santo a três mortos, em presença de muito povo. Achando-se próximo à morte, fez com que o deitassem
sobre cinza; e chamando a seus religiosos, disse-lhes: "Com a castidade e pobreza sereis agradáveis a Deus e úteis à Igreja". Morreu em Bolonha no ano 1221, experimentando
o doce consolo de ver seus religiosos produzirem em todo o mundo frutos de graça e de bênção.
Ordem Franciscana - Se São Domingos com a ordem dos Pregadores prestou à Igreja um poderosíssimo adjutório, não foi menos eficaz o que prestou São Francisco de Assis,
instituindo a religião dos Frades menores, chamados vulgarmente Franciscanos. Seu nome primitivo era João, e foi chamado Francisco porque falava bem a língua francesa.
Desde seus primeiros anos deixou entrever sua grande caridade para com os pobres, pois se impusera uma lei de nunca recusar uma esmola, quando lhe fosse pedida pelo
amor de Deus. Encontrando um dia um homem de boa família, porém muito pobre e mal vestido, despiu o traje novo que levava e o obrigou a que o vestisse. Indignado
o pai, porque Francisco não queria seguir suas vistas mundanas, deserdou-o expulsando-o de sua casa. "Pois bem, dizia Francisco, já que me abandona o pai que tenho
na terra, direi de agora em diante, com mais confiança: Pai nosso que estais no céu". Saiu logo da cidade de Assis e dedicou-se ao serviço dos leprosos e ao exercício
das obras de misericórdia, fixando morada perto de uma igreja consagrada a Nossa Senhora dos Anjos, chamada também da Porciúncula, nome do lugar onde estava situada.
Apesar da rigidez de sua vida e da austeridade que professava, viu-se muito depressa à frente de numerosos discípulos, animados de seu mesmo espírito.
Levado pelo zelo de salvar almas, dirigiu-se ao Egito, para conseguir a palma do martírio, e se apresentou ao próprio Sultão para pregar-lhe a Jesus Cristo; ali,
porém em vez de lhe darem a morte, o cumularam de honras e lhe deram os maiores sinais de veneração. De volta à Europa, fundou muitos conventos, entre os quais figuram
um em Chieri e outro em Turim, pois as cidades da Itália tratavam à pórfia de ter entre elas discípulos de homem tão santo. Continuou regendo a santa ordem até sua
morte gloriosa, que aconteceu no ano 1226. Dois anos antes de morrer recebeu uma grande graça que anteriormente a ninguém fora concedida. Foi a de ter as mãos e
os pés atravessados milagrosamente por cravos e o lado milagrosamente aberto por obra de um Serafim que lhe apareceu; assim Francisco era a imagem de Jesus Crucificado.
 No ano 1221, fundou São Francisco sua segunda ordem para as donzelas que desejassem levar uma vida devota e retirada. As freiras franciscanas são chamadas também
Clarissas, do nome de santa Clara, que foi sua primeira superiora. Para que o fruto da nova ordem se pudesse estender a maior número de fiéis, estabeleceu São Francisco
outra para as pessoas que vivem no século, chamada dos terceiros, a qual também se propagou maravilhosamente por todo o mundo.
 
CAPÍTULO II
 
Santo Antonio de Pádua. - Os Servos de Maria - Décimo terceiro Concílio Ecumênico - São Luiz, rei de França - Festa do Corpo de Deus.
Santo Antonio de Pádua - Entre os primeiros discípulos de São Francisco sobressai Santo Antonio de Pádua, glória de sua ordem e esplendor de seu século. Nasceu em
Lisboa, e aos quinze anos abraçou a ordem de santo Agostinho; porém chegando a Coimbra os corpos de cinco franciscanos, martirizados em Marrocos, sentiu-se arder
em desejos de entrar na mesma ordem para conseguir mais facilmente a palma do martírio. Pondo-se em Viagem para ir pregar o Evangelho aos Sarracenos, sobreveio-lhe
violenta enfermidade, que lhe fez tomar a resolução de voltar à Espanha. Mas Deus dispôs que fosse à Itália, e que depois passasse à cidade de Pádua, da qual tomou
o nome. Começou a pregar ali e nos lugares circunvizinhos com tanta eficácia, que todos ficaram admirados do imenso poder de sua palavra. Conta-se que para ouvi-lo,
saíam de noite os habitantes da cidade e iam apinhar-se na Igreja, e que os camponeses abandonavam seus campos, os empregados e trabalhadores suas ocupações para
poderem ouvi-lo.
 Os milagres, a unção, e fervor, a dignidade, mais angélica que humana, com que pregava, atraiamlhe tão grande número de ouvintes, que muitas vezes se via obrigado
a pregar em campo aberto, vendo reunido em seu redor até trinta mil pessoas. Deus o chamou para gozar do prêmio celeste no ano 1231, aos 36 anos de sua idade. Pelo
extraordinário número de milagres que se operaram em seu sepulcro, poucos meses depois de sua morte, foi contado no número dos santos.
 
Os Servos de Maria - Pouco depois da morte de São Domingos e de São Francisco teve a Igreja um novo ornamento na ordem dos Servitas ou Servos de Maria. Eis a sua
origem: Havia na cidade de Florença uma irmandade chamada dos Laudenses, cujos membros se propunham honrar particularmente a, Santíssima Virgem, rezando e cantando
suas glórias. Sete dos principais patrícios da cidade, membros dessa irmandade, enquanto se achavam reunidos em uma igreja, no dia da Anunciação do ano 1233, viram
aparecer-lhes a Mãe de Deus, que os exortou a abraçar um método de vida mais perfeita. Resolveram imediatamente fazê-lo e, seguindo o conselho do bispo de Florença
retiraram-se para uma pequena casa no campo para viverem ali no retiro, na oração, e na mortificação. Havia passado um ano quando tiveram de voltar à cidade para
consultar de novo o bispo acerca de seu estado. Já era tanta sua reputação de santidade, que todo o povo acudiu para vê-los; porém o que mais chamou a atenção naquela
circunstância foi que as criancinhas receberam o uso da palavra e todas gritaram à porfia, apontando para eles: Eis os servos de Maria. Entre aqueles inocentes se
achava São Filipe Benício, que não tinha ainda cinco meses, e que foi, no decurso do tempo, ornamento da nova ordem. Seria demasiado difícil exprimir por palavra
o gozo que experimentaram aqueles penitentes ao serem chamados de uma maneira tão maravilhosa servos da Mãe de Deus. Por isso resolveram dedicar-se inteiramente
a seu culto, porém, vendo-se continuamente molestados pelo grande número de pessoas que iam visitá-los, estabeleceram-se no cume do monte Senario lugar muito alto
da Toscana. Indicou-lhes também o hábito que deviam trazer como sinal de que estavam consagrados a esta aflita Mãe.
Aqueles santos solitários, receberam com o maior respeito as ordens de sua protetora e, guiados e aconselhados pelo bispo, deixaram o hábito de cor de cinza e revestiram-no
de cor preta, que foi desde então, o hábito próprio da ordem dos Servitas. Continuaram praticando o mesmo gênero de vida e, em pouco tempo, mereceram a aprovação
de São Pedro, mártir dominicano, uma das mais célebres personagens de seu século. Estando em Florença este grande servo de Deus e ouvindo falar dos penitentes do
monte Senario, quis julgar de per si mesmo se devia dar crédito a tudo o que publicava a fama sobre suas virtudes. Vi-os, com efeito, e ficou tão persuadido de sua
santidade que lhes dedicou uma santa amizade. Apareceu-lhe também a Santíssima Virgem e o certificou com uma visão, de que ela escolhera a Bonfiglio e a seus companheiros,
para que se consagrassem especialmente a seu serviço e participassem das dores amargas que ela tinha sofrido; e como eles deviam fundar uma ordem, que teria por
fim honrá-la e promover sua glória.
Animados por semelhantes oráculos, aqueles humildes solitários, que a princípio se tinham proposto não receber discípulos, resolveram instituir a ordem dos Servitas,
particularmente com o fim de cumprir com os deveres de uma sociedade religiosa. Abraçaram a regra de santo Agostinho, que seguem ainda hoje. Aprovou primeiramente
o novo instituto o arcebispo de Florença e, pouco depois, foi definitivamente aprovado pela Santa Sé. Os servos de Maria propagaram-se muito rapidamente na Itália,
onde já possuíam bom número de casas. Também fundaram institutos em outras partes da Europa, e ainda se encontram conventos destes religiosos nos estados onde foram
suprimidas as ordens monásticas. Aqueles sete bem-aventurados fundadores dos Servitas chamam-se, Bonfiglio, Manetti, Dell'Antella, Amadeu, Uguccione, Sostegno e
Falconieri. Os fervorosos Servos de Maria continuavam caminhando a grandes passos no caminho da perfeição, e concluíram santamente sua carreira neste mundo no monte
Senario, à exceção do bem-aventurado Aleixo Falconieri que chegou até cento e dez anos de idade e morreu em Florença.
Décimo terceiro Concílio Ecumênico - Tendo neste tempo Frederico II, imperador da Alemanha, perturbado gravemente a paz da Igreja, pensou o sumo pontífice Inocêncio
IV em convocar um concílio geral em Lion. Foi o primeiro nessa cidade, e realizou-se no ano 1245. Presidiu-o o pontífice pessoalmente, e se acharam presentes a ele
140 bispos. O principal fim que deu razão à convocação deste concílio foi remediar os graves danos ocasionados à Igreja pelo imperador Frederico. Este, em sua mocidade
tinha recebido assinalados benefícios do Papa Inocêncio III; porém, com o correr dos anos, tornara-se ímpio e cruel. Depois de ter cometido muitas violências contra
os bispos e os sacerdotes, armou insídias ao próprio Pontífice, que, perseguido em sua cidade, viu-se obrigado a refugiar-se em França. Foi convidado Frederico para
assistir ao concílio, porém recusou-se. Examinadas pelos padres suas maldades, foi achado réu de perjuro, por ter violado o juramento que prestara de ir libertar
os santos lugares e réu de sacrilégio por ter furtado os bens da Igreja, e proibido aos bispos do império de ir ao concílio, encarcerando aos que iam a ele. Acharam-no
também culpado de heresia. Por estas três culpas, o concílio o excomungou, o depôs e privou de todas as suas honras e dignidades. Desde então pareceu que o imperador
se achava ferido pela cólera do céu, e já não conseguiu senão derrotas. Morreu, pouco tempo depois, vítima de cruéis remorsos. Também foi ordenado, neste concílio,
que os cardeais trouxessem barrete encarnado, para indicar que sempre se achavam prontos a trabalhar para a Igreja e a derramar seu sangue toda vez que assim fosse
necessário. Mais tarde usouse também a cor de púrpura nas batinas e outras insígnias de sua dignidade. No fim do concílio decidiu-se a armar uma cruzada, sob o comando
de São Luiz, rei da França, para libertar a terra santa do poder dos Turcos.
São Luiz, rei de França - Este rei da França, órfão aos 11 anos, foi educado santamente por sua mãe e regente, a ótima rainha Branca. Foi isto causa de, no trono
e no meio do fausto mundano, dar ele exemplo da castidade piedade, humildade, fortaleza, generosidade e todas as outras virtudes cristãs. Abrigando a esperança de
poder libertar a terra santa que tinha tornado a cair em poder dos Turcos, passou ao Egito para combater ao Sultão em sua própria terra, com numeroso exército. Mas
depois de gloriosas vitórias, seu exército foi quase destruído pela peste, e ele mesmo caiu em poder dos inimigos. Durante este tempo deu provas de paciência heróica.
Sendo resgatado, foi à Palestina, e ficou ali quatro anos remindo os cristãos que tinham sido escravizados pelos Turcos, e fazendo reedificar e armar as cidades
e fortalezas que naquela terra possuíam os cristãos. Ao voltar à França providenciou eficazmente para a reta administração da Justiça e para o incremento da religião,
promovendo constantemente o bem e a glória do seu povo. Pelo Impulso de sua piedade tentou levar a cabo uma cruzada contra os Turcos e com este fim desembarcou,
à frente de numeroso exército, nas costas setentrionais da África, sitiou Tunis e, apoderou-se do castelo; mas teve de sucumbir vítima da peste e morreu no acampamento
a 25 de agosto, aos 55 anos de idade. Ao aproximar-se de seus últimos momentos recebeu o santo viático. Como lhe perguntasse o sacerdote que lho administrava se
acreditava que Jesus se achava presente na santa hóstia, respondeu: Não acreditaria melhor, ainda que o visse em todo seu esplendor, como quando subiu ao céu". Em
seus últimos momentos fez-se colocar sobre cinza e com os braços cruzados sobre o peito e os olhos voltados para o céu, pronunciou aquelas palavras do salmo; Senhor,
eu entrarei em vossa casa, vos adorarei em vosso santo templo, e glorificarei vosso santo nome. Isto se deu no ano 1270. Canonizou-o o Papa Bonifácio VIII no ano
1297.
Festa do Corpo de Deus - Quanto mais se combatia o dogma da presença real, tanto mais crescia entre católicos o fervor para com Jesus Sacramentado. Este foi o motivo
que levou as bem-aventuradas Juliana e Eva de Liège e a outras pessoas piedosas a iniciar a solene festa de Corpo de Deus. Um milagre acontecido em Bolsena foi o
que deu o último impulso ao sumo Pontífice decidindo-o a instituir esta grande solenidade. Aconteceu que um sacerdote alemão, que padecia de tentação contra a presença
real de Jesus Cristo na Santíssima Eucaristia, enquanto se achava celebrando a santa Missa na igreja paroquial, viu que a hóstia consagrada derramava Sangue vivo,
molhando com ele o corporal, as toalhas e algumas chapas de mármore que se achavam no solo. O Papa Urbano IV, em vista deste milagre e das revelações contínuas que
se davam, decretou, no ano 1264, que se celebrasse aquela solenidade em todo o mundo cristão. Santo Tomás de Aquino, a pedido do Papa, compôs o ofício que ainda
hoje (final do século XIX) está em uso.
 
CAPÍTULO III
 
São Tomas de Aquino - São Boaventura - Segundo Concilio de Lion - O jovem Vicente Verner - São Celestino.
São Tomas de Aquino - Entre os santos que brilharam neste tempo por grande saber e virtude, merecem singular menção os doutores. São Boaventura, toscano, e Santo
Tomas de Aquino. Este último, nascido, de nobre família napolitana aos cinco anos de idade entrou para ser educado no convento dos Beneditinos do Monte Cassino.
Mais tarde, ao manifestar seus desejos de se consagrar a Deus na ordem dos Pregadores, os parentes para impedi-lo encerraram-no em um calabouço. Pessoas infames
tentaram-no ali gravemente para ver se lhe faziam perder a pureza, porém saiu Tomas vencedor, afugentando-as com um tição aceso. Saindo do cárcere, foi a Paris,
onde estudou teologia sob a direção do célebre Alberto Magno. Ainda que fizesse maravilhosos progressos nas Ciências e na piedade, sabia ocultar de tal sorte seu
talento, que seu silêncio era julgado necessidade, pelo que seus condiscípulos chamavam-lhe boi mudo. Mas o mestre, que bem o conhecia, dizia aos que mofavam dele,
que algum dia os sábios mugidos do boi mudo ressoariam em toda a terra. Aos 25 anos tomou a seu cargo a cadeira de filosofia e teologia na universidade de Paris.
Os ouvintes que corriam para aprender em tão célebre mestre, apelidaram-no o Anjo das Escolas.
Certo dia, estando em Nápoles, falou-lhe a Imagem de Jesus Cristo e disse-lhe: "Tomas tens escrito bem de mim; que prêmio desejas?", Respondeu-lhe: "A Ti somente,
ó meu Deus!" Sentado um dia à mesa de São Luiz rei da França, recordando uma questão teológica, encontrou de pronto a solução e dando um golpe com a mão sobre a
mesa, exclamou: "Achei o argumento contra Manés". Lembrando-lhe seu superior que se achava em presença do rei, pediu humildemente perdão; porém o príncipe chamou
logo um secretário, a quem ordenou escrevesse os argumentos do Santo Doutor. Ofereceram-lhe o arcebispado de Nápoles, que ele por humildade jamais quis aceitar.
O Papa Gregório o convidou para o concílio ecumênico que devia reunir-se em Lion. O santo já se encaminhava para aquela cidade, ao chegar, porém, ao mosteiro de
Fossanova adoeceu pediu o viático e completamente absorto em pensamentos celestiais, descansou no Senhor no ano 1274 aos 49 de idade.
 
São Boaventura - Boaventura chamou-se João até os quatro anos. Nessa idade foi curado de grave enfermidade pelas orações de São Francisco, que, ao vê-lo são, exclamou:
Ó boa ventura! Desde então o menino se chamou Boaventura. Aos vinte e um anos professou as regras de São Francisco. Alexandre de Rales, seu mestre admirando a candura
e inocência de seus costumes, costumava dizer: "Parece não ter entrado em Boaventura o pecado de Adão". Conhecido o talento e a rara prudência que o adornavam, foi
eleito geral de sua ordem. Em seguida o Papa Clemente IV o elevou ao arcebispado de Iorque. na Inglaterra, porém fez o santo tantas instâncias junto ao Papa, que
este o dispensou de tal encargo. Gregório X o obrigou a aceitar a dignidade de cardeal e de bispo de Albano. Quando lhe Comunicaram a notícia, acharam-no lavando
o material da cozinha. Continuou em sua tarefa como se nada tivesse acontecido; tomou depois a carta e tendo-a examinado, prorrompeu em sinais de repugnância, e
só para obedecer ao Papa aceitou a dignidade que este lhe propusera. O mesmo Pontífice ordenou-lhe que se preparasse sobre as matérias do concílio de Lion. Falou
nele na segunda e terceira sessão, porém depois da quarta foi surpreendido por uma enfermidade que em pouco tempo causou-lhe a morte. Morreu no ano de 1274, aos
53 anos de idade.
 
Tendo ido visitá-lo um dia seu grande amigo são Tomas de Aquino, achou-o escrevendo a vida de São Francisco. "Que não o interrompam, disse: deixemos que um santo
escreva a vida de outro santo". Em outra ocasião perguntou-lhe o mesmo, onde tinha aprendido aquelas coisas admiráveis que ensinava em seus escritos: e ele apontando
para o crucifixo respondeu-lhe: "Eis o livro onde aprendo o que ensino".
Segundo Concílio de Lion - O XIV concílio geral, II de Lion, foi convocado na cidade deste nome, no mês de maio do ano de 1274. Principal fim deste Concílio era
a reunião da Igreja grega cismática com a Igreja católica. Já havia quatro séculos que a Igreja grega, como já dissemos, por obra de Fócio, se tinha separado da
Santa Sé apostólica. Ainda que pouco depois tivesse voltado à unidade, todavia pela soberba de Miguel Cerulário, patriarca de Constantinopla, tornou a separar-se
completamente da obediência ao romano Pontífice. Porém Deus, no século XIII a chamou de novo à verdade por meio de gravíssimos castigos. Ameaçavam-na continuamente
os Turcos e para não cair em suas mãos, necessitava da assistência do Papa. Por isto, o Imperador Miguel Paleólogo mandou uma carta por um legado seu, ao bem-aventurado
Gregório X, protestando que ele e todos os seus súbditos desejavam tornar a fazer parte da unidade católica. Alegrou-se muitíssimo o Papa e, para que se tratasse
o assunto com a maior, circunspeção, convocou o Concílio de Lion. Assistiram a ele, além dos patriarcas latinos, os representantes do Imperador de Constantinopla
e vários patriarcas e bispos orientais, 500 bispos e 1070 abades e insígnes teólogos. Os Gregos abjuraram seus erros, declararam acreditar que o Espírito procede
não somente do Pai senão também do Filho, admitiram a existência do purgatório, a validade do Sacramento da Eucaristia consagrada com pão ázimo, e confessaram finalmente,
que o romano Pontífice é o verdadeiro e legítimo sucessor de São Pedro, e que é impossível se salvar quem não permanecer unido a ele. O Papa que presidia o Concilio
em pessoa, vendo voltar ao redil de Jesus Cristo, a tantos filhos extraviados, em um transporte de alegria, entoou um solene Te Deum, que a uma voz cantaram todos
os presentes.
O jovem Vicente Verner - Naqueles tempos aconteceu um fato atroz que deu a conhecer quanto ódio abrigavam os Judeus contra nossa santa religião. Um jovem camponês
de Treves (França) chamado Vicente Verner, tinha-se empregado, na idade de 15 anos, com alguns judeus de Vesel, para trabalhar a pagamento em uma adega. Um dia a
mulher que caritativamente lhe dava morada lhe disse: "Verner, chegou a sexta-feira santa, os judeus te vão matar". O inocente jovem respondeu-lhe: "Eu não posso
viver senão trabalhando; minha vida está nas mãos do Senhor." Na quinta-feira santa confessou e comungou e depois voltou para seu trabalho. Os judeus desceram com
ele à adega: puseram-lhe uma bola de chumbo na boca para não se ouvirem os gritos, e em seguida ataram-no a um pau de cabeça para baixo, para que vomitasse a santa
Hóstia; porém não podendo consegui-lo, açoitaram-no cruelmente. Abriram-lhe logo as veias e o espremeram com tenazes para que saísse todo o sangue de seu corpo.
Foi conservado suspenso no ar durante três dias, já pelas pernas, já pela cabeça, até que exalou o último suspiro. Isto se deu no ano 1287. Seu cadáver ainda que
enterrado em uma gruta, foi descoberto por luz portentosa que apareceu no lugar onde se achava sepultado. Foi tirado dali e com a honra devida, enterrado em uma
capela. Martírio parecido a este sofreu em Damasco o Pe. Tomas de Sardenha, nos últimos anos do pontificado de Gregório XVI.
 
São Celestino V - Foi São Celestino um dos Papas que deram mui singular exemplo de humildade. Nascido em Sulmona; desde jovem dedicou-se inteiramente à contemplação
das coisas celestiais e ao exercício da penitência. Depois de ter levado setenta anos de vida austera e penitente, em um deserto tiraram-no, quase à força, dali
no ano 1294 para torná-lo Papa em lugar de Nicolau IV que falecera em 1292. De todas as partes acudiam as multidões para verem o novo Pontífice, que com a fama de
suas virtudes e milagres atraia a admiração de todos. Mas cinco meses depois de ocupar o trono pontifício, levado por sua humildade e amor ao retiro, renunciou ao
Papado, coisa nunca vista até então; e apesar das vivas instâncias dos cardeais, quis tornar a vestir os humildes hábitos de anacoreta; no fim de dez meses morreu
em Sulmona, na Campania, com fama de santidade. Ano 1296. Foi ele fundador dos monges chamados Celestinos.
 
CAPÍTULO IV
 
Jubileu - Décimo quinto concílio geral – Flagelantes - Santa Brígida - Santa Catarina de Sena.
 
Jubileu - Era tradição constante entre os cristãos que, indo a Roma no ano secular para visitar a Igreja de s. Pedro e as outras principais basílicas, ficavam perdoados
todos os seus pecados. No ano 1300, foi tão grande o concurso, que pareceu se tivessem aberto ali as portas do céu. Muitos peregrinos por causa do aperto de tamanha
multidão, pereciam esmagados ao passar a ponte de Sant'Angelo para ir ao Vaticano. Então o papa Bonifácio VIII, reuniu todas as notícias anteriores e publicou uma
bula, em que, depois de indicar a origem e o fim do jubileu, concedeu indulgência plenária a todos os fiéis que confessados e arrependidos visitassem as quatros
basílicas principais; indulgência que se devia renovar cada cem anos. Uma pintura, obra do célebre Giotto que vivia naquele tempo, e que ainda existe na basílica
de Latrão, representa o Papa Bonifácio VIII no ato de publicar dita bula. Clemente VI querendo imitar o jubileu dos judeus, limitou o tempo a 50 anos para que participassem
dele maior número de fiéis. Urbano IV considerando ainda que este prazo era demasiado longo, o reduziu a 33 anos. Mais tarde Xisto IV o diminuiu ainda mais, reduzindo-o
a 25. Às vezes concedem os Papas jubileus por extraordinárias necessidades da Igreja. Em outros tempos, nas épocas de jubileu, acorria a Roma grande multidão de
fiéis; mas agora, os sumos pontífices permitem aos católicos que gozem do jubileu em seus próprios paises.
 
Décimo quinto concílio geral - Ao Papa Bonifácio VIII sucedeu Benedito XI, e a este Clemente V, que convocou, no ano 1311, um Concílio geral na cidade de Viena,
em França. Tomaram parte nele mais de 300 bispos sem contar um número enorme de prelados inferiores. Foi presidido pela Papa em pessoa, que para isso partiu de sua
residência em Avignon. O que principalmente motivou a reunião deste concílio, foram os erros dos Templários. Esta ordem militar instituída em Jerusalém no tempo
das cruzadas, tinha tomado esse nome pela habitação que fizera construir perto do templo levantado sobre o sepulcro de Nosso Senhor. Tinham os Templários por ofício
defender a Terra Santa, mas depois de terem prestado importantes serviços à Igreja, degeneraram miseravelmente; muitos deles foram acusados dos mais horríveis sacrilégios
e desenfreada licença. Por isso o concílio de Viena, tendo ouvido e examinado as acusações apresentadas contra eles, e achando-as bem fundadas, suprimiu a ordem
e mandou que transmitissem todas as suas propriedades aos cavaleiros de Malta. Foram condenados também outros hereges; entre eles os chamados Beguardos, a Beguinas,
e os Irmãozinhos, que junto com a fé cristã, tinham infringido os bons costumes. Para paralisar mais e mais a impiedade dos hereges que afirmavam que não se devia
tributar culto divino à Eucaristia, tornou a confirmar o concílio o decreto de Urbano IV; o qual prescrevia, que se celebrasse em todo o mundo e com o maior esplendor
a solenidade do Corpo de Deus. Declarou-se também inocente a memória do Papa Bonifácio VIII, que fora acusado injustamente de heresia por Felipe o Belo, rei de França.
Não satisfeito este de ter perseguido de diferentes modos ao santo pontífice em vida, tão pouco o queria deixar descansar em paz depois de morto, infamando seu nome.
Tratou-se finalmente no concílio, de iniciar uma nova expedição à Terra Santa contra os Turcos.
 
Flagelantes - Como se achasse oprimida a Itália por graves calamidades, despertou-se singular entusiasmo de penitência para aplacar a cólera de Deus. Grandes multidões
de gente andavam pelas ruas em procissão, para rezar, e se açoitavam até tirar sangue com o fim de implorar a misericórdia do Senhor. Para que tivesse maior êxito
esta obra de penitência, formaram-se irmandades, cujo fim era rezar e açoitar-se publicamente; donde tomaram o nome de flagelantes. Semelhante entusiasmo dilatou-se
rapidamente no Piemonte e em toda Itália, produzindo em todas as partes grandes frutos espirituais. Não tendo, porém, o Papa nem os bispos aprovado semelhante instituição,
degenerou mui depressa em superstição, e pouco depois em heresia. Entre outras extravagâncias, sustentavam os flagelantes que ninguém poderia alcançar o perdão dos
pecados, se não se sujeitasse àquela maceração e penitência, proveitosa também, segundo eles para os condenados. Clemente VI condenou formalmente esta heresia, e
dirigiu-se, por meio de cartas, a muitos bispos e príncipes seculares, exortando-os a combater aqueles erros e a dissolver reuniões dos que os professavam. Ano 1349.
Santa Brigida - O século décimo quarto teve um exemplo claríssimo de virtude em Santa Brígida, descendente da real família da Suécia. Na idade de sete anos já deu
a conhecer tal desejo de chegar à perfeição, que admirava a todos. Aos dez anos não podia pensar na paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sem sentir-se comovida até
derramar lágrimas. Seu pai, a seu pesar, a fez contrair matrimônio com um príncipe; porém neste novo estado continuou cumprindo com maior fervor ainda suas práticas
de piedade, e induzindo a seu esposo a que fundasse um hospital próximo à casa em que viviam, encarregandose ela própria de cuidar dos enfermos e proverlhes o que
necessitavam. Ia diariamente visitá-los, e todos os dias fazia assentarem-se doze deles a uma mesa e os servia com suas mãos. Morto seu esposo, não pensou senão
em Deus, em sua alma, e no Paraíso. Cingia suas carnes um áspero cilício composto de pungentes correntezinhas de ferro, servindo-lhe de cama, ainda mesmo no rigor
do inverno, umas taboas de madeira. Jejuava quatro vezes na semana, e na sexta-feira a pão e água. Passava a maior parte da noite em oração, confessava-se com frequência
e comungava todos os dias. Levada por um espírito de viva fé, empreendeu a trabalhosa peregrinação aos Santos Lugares: porém à sua volta adoeceu gravemente em Roma
e no ano 1375 entregou placidamente sua alma ao Senhor, tendo 71 anos de idade. Santo Antonino refere muitos milagres operados por Santa Brigida, entre outros a
ressurreição de dez mortos. Deixou-nos também esta santa oito livros de revelações, que foram elogiados pelos padres do concílio de Basiléia.
Santa Catarina de Sena - Outra santa de vida muito maravilhosa foi santa Catarina de Sena. Na idade de 5 anos já era chamada a santinha. A solidão, a oração e a
abstinência formavam todas suas delícias. Abstinha-se do uso da carne e do vinho, e só se alimentava de ervas cruas. Duas taboas nuas serviam-lhe de cama, de mesa
e de cadeira. Uma pesada corrente de ferro servia-lhe de cilício. Não dormia mais do que algumas horas durante a noite e passava o resto no trabalho e na oração.
Esteve desde o princípio da quaresma até a festa da Ascensão sem tomar mais alimento do que a santa Eucaristia. Possuía conhecimentos maravilhosos; sabia profundamente
a teologia, a filosofia e o que ainda mais admira, é que também entendia do governo dos estados. Indubitavelmente sua ciência não podia ser senão inspirada. Amava
em extremo sua pátria; esse amor foi o que a levou a ir a Avignon, para tratar com Gregório XI, sobre a reconciliação dos Florentinos que se tinham rebelado contra
a Igreja. O Papa e os cardeais receberam-na com grande respeito e fizeram-na árbitro da paz entre seus concidadãos. Mas a glória que lhe deu maior lustre foi a de
ter contribuído poderosamente para a volta dos Papas de Avignon à sua legítima morada de Roma. Enviada pelo Papa para tratar de alguns assuntos com a Rainha de Nápoles,
caiu enferma em Roma no ano 1380, e entregou ali sua alma a seu celestial Esposo. Suas visões celestiais e as graças singulares que a adornaram, são extraordinárias
entre os mesmos santos, e demonstram até que ponto pode uma alma chegar a ser aceita ao Senhor.
 
CAPÍTULO V
 
Residência dos Papas em Avignon - Os Papas em Avignon - Grande cisma do Ocidente - Wicleff - Hussitas - O imperador Wenceslau e São João Nepomuceno - Décimo sétimo
Concílio Ecumênico.
Residência dos Papas em Avignon - A antiga sede do romano pontífice, onde São Pedro, divinamente inspirado, colocou o centro de toda a Igreja e do orbe católico,
é Roma. Desde São Pedro até o ano 1305 nunca saíram dela os Papas, senão obrigados pela violência ou pela perseguição. E nesse caso logo que se viam livres, voltavam
à cidade que, pelos seus monumentos religiosos, pelos mártires nela sacrificados pelos santos que a ilustraram, e pelos milagres de que foi testemunha em todos os
tempos, com justo título adquiriu o direito de ser a capital do mundo cristão. Neste ano (1305), porém, uma série de tristes acontecimentos obrigou ao Papa a se
retirar de Itália e fixar sua residência em Avignon, cidade que se acha na parte da França, chamada condado Venosino. Foi causa principal disto o rei de França e
de Nápoles, chamado Filipe o Belo, que muito bem merece o nome de açoite da Igreja. Este queria, como fica dito, imiscuir-se nas coisas da religião, mas como o pontífice
se opunha a seus perversos desígnios, a fez sair de Roma. Queria que o Papa fixasse sua morada em França para depender dele, fazendo-se assim Filipe, de certo modo,
dono da Igreja. A morte de Benedito XI a Santa Sé esteve vacante quase um ano, sendo depois eleito Clemente V, francês, que foi coroado em Lion no ano 1305. Como
continuassem em Roma as discórdias e prepotências, e não estivesse ali segura a liberdade, nem a vida dos Papas e dos concidadãos, o novo pontífice julgou conveniente
estabelecer sua residência em Avignon.
Os Papas em Avignon - Avignon foi, pois, a sede dos romanos pontífices durante setenta anos. Compara-se este tempo com a escravidão que padeceram, por igual número
de anos, os judeus em Babilônia, conhecida sob o nome de escravidão babilônica. A Itália, com efeito, não tendo já o Papa, perdeu seu esplendor, e Roma chegou ao
cúmulo da desventura. Guerras civis, matanças, saques, violação das Igrejas, monumentos preciosos arruinados, queimados ou vendidos por preço vil, todas as obras
de arte abandonadas, morta a indústria, paralisado o comércio, pobreza, fome e trabalhos nos dão uma idéia vaga do que foi Roma sem os Papas. Os habitantes, para
salvarem suas vidas e não morrerem de fome, imigravam para outros paises em busca de refúgio mais seguro. assim pois a gloriosa cidade dos Cesares quase se transformou
em deserto; nas ruas e nas formosas praças dos Romanos brotava a erva como nos campos. Então se sentiu a necessidade de voltarem os Papas a Roma, não só para o bem
da cidade como também para a tranquilidade e paz do mundo. Por isso, de todas as partes se dirigiam ardentes súplicas aos Papas, para que tornassem a fixar sua regular
residência em Roma. O célebre Petrarca e mais ainda santa Catarina de Sena, tiveram grande parte nesse extraordinário acontecimento. Finalmente o pontífice Gregório
XI, deu por cumprido o desejo de todos os bons e voltou para o antigo domicilio dos Papas. Esta gloriosa volta foi acolhida com aplauso universal e celebrada com
grande festa. Ano 1377.
Grande cisma do Ocidente - Haviam já passado quatorze séculos sem que a Igreja fosse perturbada por algum rompimento religioso, quando infelizmente estalou o chamado
cisma do Ocidente. Este durante quarenta anos, trouxe os povos e reinos católicos divididos entre si, pois reconheciam a um Papa uns e o outro Papa outros; donde
se pode coligir quantos males se seguiram para a Religião. Deu origem a este cisma o fato seguinte:
Gregório XI, o animoso pontífice que tornara a estabelecer a sede apostólica na cidade eterna, cessou de viver no ano 1378. Ao eleger o pontífice que lhe devia suceder,
uma multidão de descontentes, receiosa de que o novo Papa voltasse à França, amotinou-se ante o conclave, pedindo que por nenhum motivo se elegesse um Papa francês,
e que o eleito prometesse estabelecer sua sede em Roma. Os cardeais congregados responderam que nada podiam prometer, porque em assuntos de tal importância não se
devia buscar mais do que a vontade de Deus. A eleição recaiu sobre o arcebispo de Bari, chamado Bartolomeu Prignano, que se chamou Urbano VI. Mas os inimigos da
paz fizeram desordens e, ameaçando de morte ao Papa e aos cardeais, os obrigaram a se refugiarem na fortaleza de Castel Sant'Angelo, e em casas particulares, ou
a fugir de Roma. Apaziguados aqueles tumultos, já tinha o novo pontífice começado a ocupar-se do bem da Igreja, quando doze cardeais franceses e outros quatro de
diferentes nacionalidades, proclamaram outro Papa, francês de nação, que sob o nome de Clemente XIII estabeleceu sua residência em Avignon. A morte destes dois pontífices
foram eleitos sucessores para ambos, e até chegou a haver três Papas ao mesmo tempo, isto é, Gregório XII, João XXIII e Benedito XIII.     
 
Muitos males sobrevieram à Igreja neste cisma, porque, conquanto um grande número de católicos reconhecesse como Papa o que fora eleito em Roma, contudo, elegendo-se
outro em Avignon, o mundo católico achava-se dividido em duas partes. Os soberanos arrogavam-se, além disso, o direito de declarar a qual dos dois seus súditos deviam
considerar como Papa; e frequentemente impediam-lhes de conhecer qual era o Papa legítimo. Para remediar a tantos males foram convocados os concílios de Pisa, de
Basiléia, de Constança e de Florença.
 
Permitiu Deus que este cisma afligisse a Igreja, como se disse, por quarenta anos, isto é, até que no concílio de Constança renunciando ao pontificado Gregório XII
João XXIII e Benedito XIII, foi eleito o cardeal Othon Colonna que tomou o nome de Martinho V. Este fato aconteceu no ano 1417.
 
Ainda que este cisma tenha sido uma calamidade gravíssima para a Igreja, contudo a Divina Providência cuidou de que nenhum destes pontífices ensinasse coisa contrária
à fé ou aos costumes. Deste cisma, nada se pode deduzir, pois, contra a infalibilidade do romano Pontífice, e não constitui senão uma prova de que a Igreja Católica
é obra de Deus, não dos homens.
Wicleff - Enquanto o cisma dividia a Igreja, esforçava-se a heresia por aniquilá-la. João Wicleff, assim chamado pelo nome da cidade da Inglaterra onde nasceu, foi
o corifeu dos hereges daqueles tempos. Ornado de não mediano talento, porém cheio de vanglória, abraçou o estado eclesiástico, confiado em que o sagrariam bispo.
Vendo, porém, desvanecidas suas esperanças, rebelou-se contra a Igreja. O bispo de Cantuária e os outros bispos ingleses combateram e condenaram logo a impiedade
do heresiarca e de seus sectários. Gregório XI aprovou a sentença destes contra Wicleff, e pouco depois o condenaram de novo no concílio de Constança. Porém Wicleff
seguindo o exemplo dos outros hereges, em vez de humilhar-se, inflamou-se em cólera, e deu-se a vomitar blasfêmias contra o Papa, os bispos e particularmente contra
o arcebispo de Cantuária, que em consequência disso foi barbaramente assassinado.
 
Deus porém não deixou impunes aos que se atreveram a ultrajar seus ministros, pois dos que assassinaram ao prelado, alguns ficaram loucos e outros foram condenados
à morte pelas autoridades civis. O mesmo Wicleff, enquanto se achava pregando sarcasticamente contra São Tomas de Cantuária, foi surpreendido por uma terrível paralisia,
que, ocasionando-lhe mortais convulsões, o deformou e retorceu-lhe a boca que fora instrumento de tantas blasfêmias. Enraivecido por não poder já falar, morreu desesperado
no ano 1385.
 
Hussitas - Os erros de Wicleff passaram da Inglaterra para a Boêmia e originaram a heresia de João HuSS. Chamava-se assim pelo nome da cidade da Boêmia onde nascera.
Tendo concluído seus estudos em Praga, começou a espalhar os erros de Wicleff, pelos quais se combatiam as leis da Igreja, a autoridade do Papa, e outros artigos
da fé. Citado a comparecer ante o concílio de Constança concordou com isso, e declarou por escrito que queria que o castigassem sempre que pudesse ser convencido
de que havia caído em erro. O imperador Sigismundo, com o fim de facilitar os meios para se desculpar, deu lhe um salvo-conduto. Logo que chegou a Constança, mui
longe de acatar o juízo da Igreja, recusou retratar-se. Não houve herege com quem se usassem maiores contemplações. Os padres do concílio, o imperador, e todos enfim,
pública e privadamente empregaram toda sorte de meios para convencê-lo. Mas como se mostrasse cada vez mais obstinado no erro, conduziram-no à praça pública, e ali
o despojaram de seus vestidos sacerdotais e o degradaram. O duque o entregou em seguida aos ministros da justiça, que, conforme às leis do império fizeram-no perecer
entre as chamas. Ano 1414.
 
Discípulo de Wicleff e colega de João Huss na heresia, foi também Jerônimo de Praga, que como se obstinasse também na impiedade, foi como ele condenado às chamas
pelo poder secular. Ano 1415.
 
Os Hussitas, depois da morte de seus corifeus, ainda causaram algumas leves turbulências; porém passado algum tempo, muitos deles reconhecendo-se culpados, abjuraram
a heresia e prometeram obedecer ao Papa, que, em vista disso, os absolveu das censuras em que tinham incorrido. Ano 1436.
 
O imperador Wenceslau e São João Nepomuceno - Naquele mesmo tempo viu-se ocupar um dos tronos da Alemanha, a crueldade confraternizada com a prepotência, com o fim
de tornar a um santo sacerdote traidor de seu ministério. Mas alentado este pela divina graça, resistiu heroicamente àquele cruel monarca, e foi o primeiro a receber
a palma do martírio por ter guardado o sigilo da confissão sacramental. Reinava na Boemia Wenceslau IV, homem feroz, a quem sempre acompanhava um verdugo, para que
se chegasse a ter sede de sangue, pudesse logo acalmá-la matando ao primeiro que encontrasse. Dispusera de tal modo de um aposento que, embora parecesse estar firme
ao dar um golpe com o pé, se afundava em um rio. Serviu-se deste meio para matar a muitos e insígnes personagens. Escreveram um dia em seu aposento: Wenceslau, segundo
Nero, porém ele em vez de envergonhar-se, escreveu a lápis mais abaixo: Se não fui, sê-lo-ei. Certo dia, porque não lhe agradou uma comida que lhe apresentaram na
mesa, mandou que assassem logo ao cozinheiro naquele mesmo lugar onde tinha feito cozinhar aquela comida. Em suas ímpias extravagâncias chegou até a pretender que
São João Nepomuceno lhe fizesse conhecer os pecados que lhe revelara em confissão a rainha. O fiel ministro de Jesus Cristo respondeu-lhe que, ainda que o ameaçasse
de morte, de nenhum modo o induziria a violar no mínimo o sigilo sacramental. O rei, por algum tempo, tentou-o com blandícias, porém um dia como se mostrasse mais
decidido que nunca em obrigá-lo a revelar-lhe os segredos de sua esposa, e como achasse o santo firme em sua negativa, o fez encerrar em uma das salas do palácio
real e aí o submeteu ocultamente aos mais horríveis tormentos. Saindo o santo mui maltratado do palácio, preparou-se para a morte e com este fim foi a um santuário
da Santíssima Virgem para implorar seu socorro. Ao voltar a Praga, vendo-o o rei de sua janela, o fez vir à sua presença e o intimou de novo lhe revelasse o segredo;
porém permanecendo ele firme em sua negativa, mandou-o atirar imediatamente ao rio Moldava. Enquanto o corpo do mártir era levado pelas ondas, foi visto com uma
coroa de estrelas ao redor da cabeça. Por isso os cônegos da catedral deram-lhe honrosa e solene sepultura. Assistiu a seu enterro grande multidão de povo. Muitos
milagres foram operados sobre seu túmulo, e o Papa Benedito XIII colocou-o no número dos santos. Pouco tempo depois morreu Wenceslau e foi dar conta a Deus de suas
crueldades e sacrilégios.
Décimo sétimo Concílio Ecumênico - Os orientais, que no segundo concilio de Lion tinham entrado de novo no seio da Igreja católica, e dela tinham tornado a separar-se,
deixavam entrever novamente vivos desejos de restabelecer a união, porque sentiam outra vez a necessidade do socorro do Papa contra os Turcos. Foi este um dos motivos
que determinaram a convocação do concílío geral de Florença, que é o XVII ecumênico. Convocou-o Martinho V, no ano de 1431, na Cidade de Basiléia mais tarde, seu
sucessor Eugênio IV o transladou para Ferrara, e dali, por motivo da peste, no ano 1493 foi transladado para Florença.
Assistiram a ele pessoalmente o imperador João leólogo, o patriarca de Constantinopla e outros prelados, contando-se entre latinos e gregos, mais de 140 bispos e
muitas outras personagens, presididas pelo próprio Pontífice. Foram tratados os pontos da controvérsia e os padres latinos e gregos de pleno acordo declararam que
era doutrina revelada nos livros santos e contida na tradição, que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho; que é válida a consagração da Santíssima Eucaristia
com pão ázimo; que as almas dos que morrem estando na graça de Deus e livres de toda dívida vão imediatamente ao paraíso, e que ao contrário vão logo para o inferno,
se estão manchadas de pecado mortal; que se estão em graça de Deus, porém ainda não acabaram de pagar suas dívidas à divina justiça, vão para o purgatório; que é
o Papa o vigário de Jesus Cristo e sucessor de São Pedro, o chefe de toda a Igreja, o pai, e mestre de todos os cristãos, e que a ele deu Jesus Cristo na pessoa
de São Pedro, pleno poder de apascentar reger e governar a Igreja universal. Por isso, no dia 6 de Junho, depois do Papa Eugênio celebrar a santa Missa, foi lido
o decreto da União, firmado pelo Papa, pelos cardeais, pelos bispos e prelados gregos e latinos, e pelo próprio imperador, que o fez, todavia, debaixo de outra fórmula.
Tudo deixava esperar que a união estabelecida com tanta solenidade tivesse de durar para sempre. Vã esperança! De volta a Constantinopla os gregos desdisseram-se
de tudo o que tinham feito em Florença e seu cisma ainda continua em nossos dias. Deus porém não deixou sem castigo tão culpável cegueira porque no ano 1453, treze
anos depois de ter violado a união, o grande Sultão Maomé II sitiou a cidade de Constantinopla e apoderou-se dela de assalto. Durou três dias o saque, durante os
quais foram cometidas as mais horríveis crueldades. Os soldados matavam quantas pessoas encontravam, demoliam as igrejas, destruíam os altares, profanavam os mosteiros
e tudo passavam a sangue e fogo. assim aquela igreja que não quis reconhecer a São Pedro que a tratara como pai, caiu sob o sucessor de Maomé, que a tratou como
tirano.

 
CAPÍTULO VI
 
Milagre do Santíssimo Sacramento em Turim - Maomé II - Descobrimento do novo mundo - São Francisco de Paula - Décimo oitavo Concílio Ecumênico - Disciplina dessa
época.
Milagre do Santíssimo Sacramento em Turim - A história eclesiástica, como já vimos, conta muitos milagres, operados por Deus, confirmando a presença real de Jesus
Cristo na SS. Eucaristia. Um destes aconteceu em Turim tão pública e solenemente, que mereceu esta cidade o título de Cidade do Sacramento. Ao anoitecer do dia 6
de junho de 1453, passavam por Turim alguns ladrões, que conduziam um jumento carregado de mercadorias. Vinham de Exilles, lugar perto de Susa, que por graves revezes
ocasionados pela guerra, tinha sido saqueado. Atreveram-se a roubar até mesmo uma igreja e levaram até a custódia com a santa Hóstia, que com outros objetos, se
achava sobre o jumento. Enquanto atravessavam aqueles ímpios a cidade de Turim, ao chegarem em frente da igreja de São Silvestre, empacou o animal, parou e caiu
no chão. Os que o conduziam davam-lhe fortes pancadas para fazê-lo levantar e andar, porém debalde. Neste ínterim, rompem-se as ligaduras de um pequeno embrulho,
levanta-se no ar o vaso sagrado, e aparece a Hóstia santa, mais resplandecente que o sol, em presença de todos os que se achavam ali reunidos. Avisado o bispo Ludovico,
da família dos marqueses de Romagnano, acode com o clero com grande acompanhamento de povo e em sua presença, abre-se e cai a custódia, ficando radiante no ar a
Hóstia Divina. Então de todas as partes ouve-se a multidão exclamar: Ficai conosco, ó Senhor! Novo prodígio! A Santa Hóstia, que até então tinha ficado elevada no
ar, descendo pouco a pouco até o cálice que preparara o bispo, é levada solenemente à catedral. No lugar onde se deu esse prodígio foi levantada a igreja do Corpo
de Deus. Eis donde teve origem a devoção dos Turineses ao SS. Sacramento. Para conservar e aumentar esta devoção, o arcebispo Luiz Franzoni instituiu em Turim as
Quarenta Horas perpétuas que se sucedem alternativamente em cada uma das igrejas da cidade, e nunca falta um núcleo de almas escolhidas que adore a Jesus Sacramentado
exposto à veneração pública.
Maomé II - Este príncipe, instrumento da vingança divina, em seus trinta anos de reinado não cessou um momento de perseguir os cristãos. Depois de ter saqueado Constantinopla,
como já vimos, e subjugado o império do Oriente, dirigiu-se até a Itália à frente de formidável exército, com o fim de matar a todos que não aceitassem a religião
dos Turcos. Apoderou-se da cidade de Otranto, e fez passar pelas armas a todos os seus habitantes. O arcebispo, que revestido com os hábitos pontificais, animava
ao povo que ficasse firme na fé, foi preso e dividido em duas partes com uma serra de madeira. A notícia da espantosa invasão daqueles bárbaros, tremeu toda a Itália.
Deus, porém, que não permite que as tribulações sejam superiores às nossas forças, socorreu de uma maneira inesperada a sua Igreja aflita, tirando do mundo o autor
de tantos males. Feriu a Maomé um tumor contagioso que, fazendo-o sofrer dores agudíssimas, lhe causou a morte. Ano 1487.
Descobrimento do novo mundo - Três eram as partes do mundo que até então se conheciam: Ásia, África e Europa. Começou-se a descobrir a quarta, isto é a América,
que em extensão é quase igual às duas últimas reunidas, pelo fim do décimo quinto século. O primeiro gênio que se atreveu a afrontar mares imensos e desconhecidos,
com o fim de ir em busca de outro hemisfério foi o genovês Cristóvão Colombo. Reflexivo e inteligente por natureza, persuadiu-se, vendo o sol todo dia esconder-se
no horizonte, de que ao outro lado do oceano deviam existir terras habitadas por seres inteligentes, pelo que concebeu o atrevido pensamento de ir descobri-las.
Manifestando sua resolução a vários príncipes, a princípio trataramno estes de visionário. Unicamente o rei de Espanha entregou-lhe, e não com a melhor vontade,
o mando de três navios com o pomposo titulo de Almirante do oceano e vice-rei dos reinos que conquistasse. No ano 1492 partiu Colombo em direção do ocidente por
mares que, segundo se pensava, até então ninguém se tinha atrevido a navegar. Em sua viagem, ora feliz, ora adversa, teve de lutar terrivelmente não só contra os
elementos, senão também e muito mais ainda, contra os homens de sua tripulação que, espantados muitas vezes pelas dificuldades, e temendo morrer de fome ou perecer
no mar, queriam a todo custo voltar. Rebelando-se contra seu comandante, concordaram em matá-lo para se livrar dele e voltar à Espanha. Nesta ocasião porém avistam
terras desconhecidas e gentes novas, e todos os corações se enchem de alegria. Cinco anos mais tarde, o florentino Américo Vespuccio foi mais adiante do que tinha
ido Colombo e deu, ainda que com prejuízo da fama deste, o nome de América àquele imenso pais. O novo mundo ofereceu campo vasto aos obreiros evangélicos. O primeiro
destes foi o monge beneditino Bueil, que no ano 1493, acompanhado de doze sacerdotes, levou a luz do Evangelho àquelas nações, que jaziam até então nas sombras da
morte. Muitos viajantes que iam àquelas regiões pela avidez do dinheiro, cometiam espantosas crueldades; porém os ministros do Evangelho, levados unicamente pelo
desejo de ganhar almas para Deus, converteram tão grande número de índios e plantaram ali de tal modo a fé, que a abraçou e ainda a conserva grande parte da América
meridional. O zelo de todos os bispos desta parte da América para com a santa Sé de Pedro resplandeceu admiravelmente no concílio do Vaticano.
São Francisco de Paula - Pelos fins deste século, floresceu na Itália meridional São Francisco de Paula cuja vida foi uma série maravilhosa de virtudes e milagres.
Consistia sua cama em uma pedra, seu alimento em ervas, raízes e um pouco de água, e seu vestido em um cilício armado de pontas de ferro. Bastava-lhe ver um crucifixo
para arrebatar-se em êxtase. Quando ouvia falar de Maria, corriam-lhe pelo rosto lágrimas de ternura. Fundou uma ordem que por humildade quis se chamasse dos Mínimos,
a qual em curto tempo estendeu-se na Itália, França, Alemanha, na Espanha e até nos paises do novo mundo. A propagação rápida desta ordem foi efeito da santidade
e milagres do fundador, e também da virtude de seus discípulos. Parecia que Deus lhe tivesse dado domínio sobre os elementos. Avisado de que se achava próximo a
cair um forno de cal devorado pelas chamas, corre sem demora ao lugar do sinistro, entra no fogo, e ali fica até que, composta a fenda aberta, impede a ruína do
forno. Um enorme penhasco, desprendido do cume de um monte, rola pela ladeira abaixo ameaçando destruir seu convento; levanta Francisco suas mãos para o céu, e aquela
mole pesada se detem no meio de seu caminho. Estando sem água um grande número de trabalhadores, faz brotar uma fonte que não mais se esgota. O dono de uma embarcação,
demasiado ávido de dinheiro, recusa-se a levá-lo de graça; em vista disto, estende o santo seu manto sobre as águas, coloca-se sobre ele com seus companheiros, e
nesta nova espécie de navio, atravessa o estreito da Sicília. Uma sua irmã, não quer dar licença a seu próprio filho para se fazer religioso; o menino morre mas
Francisco manda que tragam o cadáver chama-o de novo a vida, e faz dele um fervoroso discípulo seu. Conhecia as coisas presentes, passadas e futuras e penetrava
os segredos mais íntimos dos corações. As austeridades que praticava este homem extraordinário, em lugar de lhe abreviar a vida, prolongaram-na até noventa anos.
Tendo ido à França, ali passou desta vida para a outra na quinta-feira santa do ano de 1507.
Décimo oitavo Concílio Ecumênico - A Igreja católica, sempre solícita em excogitar novos meios para combater o pecado sobre a terra e promover a virtude, convocou,
em princípios do décimo sexto século, um concílio ecumênico, que se reuniu em Roma, no palácio de Latrão e foi presidido pelo Papa Julio II. Começou-se no ano 1512,
foi continuado por Leão X, encerrou-se no ano 1517. É este o quinto concílio de Latrão e o décimo oitavo geral. Estiveram nele 114 bispos, além dos cardeais e muitos
abades. Celebrou-se para remediar às muitas desordens com que ameaçava a Igreja uma reunião de prelados indignos, protegida pelos príncipes seculares, reunião conhecida
comumente com o nome de Concílio de Pisa, por causa da cidade onde foram celebradas as sessões. Tinha determinado também o concílio abolir uma lei francesa, conhecida
sob o nome de Pragmática sanção.           
Compunha-se esta lei de 23 artigos, redigidos em uma reunião projetada no ano 1438 pelas mais influentes personagens eclesiásticas e seculares da França. Havia nela
várias coisas contrárias à Igreja, e entre outras se afirmava que um concílio ecumênico é superior ao Pontífice romano o que se acha em aberta contradição com o
Evangelho, porque Jesus Cristo estabeleceu o Papa como chefe da Igreja e não ao concílio. Tendo sido fulminado com a excomunhão o conciliábulo de Pisa, vários de
seus membros retrataram-se e tornaram a fazer parte da Igreja. Condenou-se a Pragmática, e também foi decretada uma expedição contra os Turcos. Tratou-se igualmente
da questão dos Monte-Pios e se decidiu que e licita sua instituição, e que se pode auferir um interesse módico pelo dinheiro que se empresta sobre penhores, pois,
este interesse é necessário para compensar os gastos destes bancos. Para impedir os abusos da imprensa, que inventada no ano 1438, já começava desde então a ser
um meio de difusão rápida de bons e maus escritos, foi proibido que se publicasse a Sagrada Escritura e todo livro que a interpretasse, ou contivesse coisas que
sob qualquer respeito, tivessem relação com a Religião e a moral, se não fossem examinadas e aprovadas pela autoridade eclesiástica. Deve-se aqui notar que nem então,
nem nunca a Igreja proibiu a publicação de livros bons e úteis à ciência, à religião e à moral muito ao contrário sempre a promoveu e difundiu por todos os meios
a seu alcance; e somente proibiu se publicassem escritos nocivos à fé, ou perigosos para a moral.
Até os próprios pagãos não deixavam a seus escritores a liberdade de publicar o que quisessem. Os gregos fizeram queimar em presença do povo os livros de Pitágoras,
por irreligiosos, Roma, no tempo da república, proibiu e destruiu os livros das Bacantes em que se ensinavam práticas abomináveis; e César Augusto castigou com o
desterro a Ovídio, um dos mais célebres poetas daquela época, por ter composto um poema licencioso. A Igreja, pois, que deve velar, não só pelo bem da Religião,
como também pelo da sociedade civil, ao passo que concede plena liberdade à boa imprensa, tem o direito e o dever de por um freio à má. Todos os homens de inteligência
e de coração devem, pois, agradecer-lhe o poderoso obstáculo que ela opõe à publicação dos maus escritos.
Leis disciplinares da quarta época - No século décimo terceiro, Inocêncio III compôs, como comumente se pensa, o Stabat Mater dolorosa e o Veni Creator Spiritus;
introduziu-se também o piedoso costume de tocar as Ave Marias pela manhã, ao meio dia e à noite para excitar os fiéis a avivarem sua fé no mistério da Encarnação
e recorrer à augusta Mãe do Salvador nas principais horas do dia. Mitigou-se a lei do jejum, deu-se começo ao uso da consoada, isto é, pequena refeição da tarde,
que se introduziu insensivelmente; também se tolerou o uso do peixe e vinho em tempo quaresmal, por quanto se crê que antes desta época os fiéis se abstinham de
um e de outro.
No século décimo quarto condenou-se o erro dos que negavam serem sete os Sacramentos da nova lei. Neste mesmo século foi instituída a festa da Visitação de Maria
SS. a Santa Isabel.
No século décimo quinto o Papa Paulo II deu aos cardeais, como distintivo, o hábito encarnado, isto é, a púrpura como já vimos. Calixto III mandou que no futuro
se celebrasse com rito mais solene a Transfiguração do Senhor, em memória da assinalada vitória que se conseguiu no ano 1455 contra Maomé II, sob os muros de Belgrado.
 
QUINTA ÉpocA
Desde os princípios da reforma de Lutero no ano 1517, até a morte de Pio VI no ano 1799. (abrange um período de 282 anos.)
 
CAPÍTULO I
Quinta época - Lutero – Calvino – Cisma Anglicano.
Quinta época – Nesta época foi a Igreja tão fortemente combatida, que parecia já tivesse chegado o tempo do Anticristo; porém, não obstante isto, conseguiu novos
triunfos. Acomete-a um dilúvio de hereges, e muitos de seus ministros, em vez de defendê-la, se rebelam contra ela e abrem-lhe profundas feridas. Unem-se a estes
os Príncipes seculares que a oprimem com o ferro, com a devastação e o sangue. O demônio se esconde debaixo do manto de sociedades secretas e de uma filosofia mundana
e sedutora, mas falsa e corruptora: excita rebeliões, e suscita perseguições sanguinolentas. Deus porem, desvanece os esforços do inferno e os faz servir para sua
glória. Novas ordens religiosas, missionários incansáveis, pontífices grandes pela santidade, zelo e sabedoria,  unidos todos em um só coração e em uma só mente,
e fortalecidos pelo braço do Todo Poderoso defendem heroicamente a verdade e levam a luz do Evangelho até os últimos limites da terra, conseguindo a Igreja novas
conquistas e ainda mais gloriosas vitórias.
Lutero - Lutero foi o primeiro a levantar a bandeira da rebelião contra a fé católica, e foi o principal autor dos males que amarguraram a Igreja neste tempo. Com
seu sistema perverso de submeter a palavra de Deus ao exame e juízo de cada um, causou mais dano à religião católica, do que todos os hereges da idade passada; de
maneira que, com justiça, se pode chamar este apóstata, o primeiro precursor do Anticristo. Nascido em Eisleben Saxônia, e filho de um pobre mineiro manifestou desde
sua mais tenra idade, um gênio muito atrevido. A morte de um condiscípulo, que caiu a seu lado fulminado por um raio, induziu-o a entrar na ordem de santo Agostinho.
Por algum tempo pareceu mergulhado em profundas meditações, e agitado por escrúpulos e temores; porém, descobriu finalmente o orgulho que se abrigava em seu coração;
declarando-se contra a autoridade do pontífice romano, saiu do claustro e já não houve meio de dominá-lo. Oprimir aos outros com calunias e tiranias, ridicularizar
e desprezar das coisas mais augustas e santas; soberba, desregramento, ambição, petulância, cinismo grosseiro e brutal, crápula, intemperança, desonestidade, eis
os dotes característicos deste corifeu do protestantismo. (Nat. A. Gott, etc.). No ano de 1869 levantaram-lhe na Alemanha uma estátua qual insígne benfeitor da humanidade!!!
No ano 1517, começou a pregar contra as indulgências, portanto, contra o Papa e progredindo na impiedade, formulou uma doutrina que, quer se considere em si mesma,
quer em suas consequências lógicas e práticas, contamina tudo o que é sagrado, destrói a liberdade do homem, faz a Deus autor do pecado, e reduz ao homem ao estado
dos brutos. Entre suas impiedades, é bastante lembrar que, conforme ele afirmava, o homem mais virtuoso, se não acredita firmemente achar-se entre os eleitos, é
condenado; e que pelo contrário, o homem mais miserável, irá diretamente ao paraíso, se acredita unicamente que há de salvar-se pelos merecimentos de Jesus Cristo.
Tão abominável doutrina foi condenada logo pelo Papa Leão X; todavia Lutero mandou atirar ao fogo publicamente a bula. As Universidades católicas e todos os doutores
clamaram contra aquela impiedade e heresia; mas Lutero desprezou-os, e persistiu em sua revolta. Ainda que ligado por votos solenes, casou-se com Catarina de Bore,
religiosa de um mosteiro de Mísnia. Teve desgraçadamente muitos sectários, que, sob o nome de protestantes, tomaram armas e devastaram todas as regiões onde lhes
foi dado penetrar. Levavam escrito em seus estandartes: Antes turcos que papistas. Ao pensar algumas vezes nos grandes males que causava a nova reforma exclamava:
"Só tu serás douto? Todos os que te precederam enganaram-se? Tantos séculos teem ignorado o que tu sabes? Que acontecerá se te enganas e arrastas contigo a tantos
para a condenação?" Eram estes os gritos de sua consciência que, a seu pesar, protestava contra suas impiedades; contudo não bastavam para fazê-lo voltar ao bom
caminho.
Calvino - Foi Calvino um célebre sectário de Lutero, natural da Picardia; mas, antes de se associar a ele, preferiu fazer-se chefe de outro protestantismo. Filho
de pobre seleiro e falto de recursos, foi socorrido por um bispo, que compadecido dele, o fez seguir a suas expensas a carreira dos estudos. Esperava conseguir um
benefício eclesiástico; como, porém, lho negassem por seus desenfreados costumes protestou que tomaria vingança e que daria que falar por quinhentos anos. Seguindo
as pegadas de Lutero adotou completamente suas máximas perversas. Não queria Papa nem bispos, nem sacerdotes, nem festas, nem funções de igreja. Na cidade de Noyon
foi condenado por ter cometido um delito nefando, e somente graças à intercessão do bispo, comutaram essa pena na de ser marcado com um ferro ardente. Acumulando
depois delitos sobre delitos, devia ser levado preso, porém descendo por uma janela, trocou sua roupa com a de um camponês, e fugiu. Enquanto fugia, encontrou-se
com um sacerdote que o exortou a que reparasse o dano que causara a si mesmo e voltasse ao seio da Igreja católica; ele respondeu-lhe: "Se tivesse de recomeçar não
deixaria a religião dos meus pais, porém agora já estou empenhado e quero continuar até a morte."
Estabeleceu residência especialmente em Genebra, que foi o centro da sua seita, e ali procedeu como verdadeiro tirano. Negando aos outros o direito que se arrogara
de alterar e corromper a doutrina católica, fez morrer nas chamas a Miguel Servet, porque tinha ensinado uns erros contrários ao mistério da SS. Trindade. Por suas
tiranias foi expulso de Genebra, mas à força de enredos, conseguiu voltar e mandar a seu bel prazer. Como avassalasse todas as categorias de cidadãos, governou a
cidade despoticamente e prorrompeu em impiedades contra a religião, até que chegou também para ele o tempo de apresentar-se ante o juiz supremo. Surpreendido por
uma enfermidade ulcerosa, exalavam seus membros um mau cheiro insuportável. Frenético e enraivecido contra sua doença invocava os demônios para virem livrá-lo. Mas
aumentando cada vez mais suas angústias, detestava a vida passada e amaldiçoava sua doutrina e seus escritos. Em semelhante estado de desespero, compareceu a presença
de Jesus Cristo juiz, para dar-lhe contas dos milhões de almas que por sua causa já se tinham perdido eternamente e das que ainda se iam perder. Ano 1564.
 
Cisma Anglicano - O cisma anglicano foi motivado por Henrique VIII, rei da Inglaterra. Esse infeliz príncipe, depois de vinte anos de matrimônio com Catarina de
Aragão, queria repudiá-la para contrair segundas núpcias com Ana Bolena. Opôs-se a isto o Sumo Pontífice, afirmando que não podia contrair um segundo matrimônio
por ser válido o primeiro contraído com Catarina, ainda viva. Henrique, cego pela paixão, subtraise à autoridade do Papa, e proclama-se chefe da Igreja da Inglaterra.
Desprezou as admoestações de Roma e perseguiu o clero despojando-o de seus bens, saqueando as igrejas, destruindo todos os mosteiros e finalmente casou-se com a
intrigante Ana Bolena. Isto deu-se no ano 1532.
 
Deste modo a Inglaterra, que na história é conhecida com o nome de terra dos santos, vários dos seus príncipes são venerados nos altares, tornou-se desde então inimiga
do catolicismo. Henrique, casado com Ana, não tardou em enfastiar-se dela, e mandou cortar-lhe a cabeça. Casou-se sucessivamente com outras quatro; uma delas morreu,
outra foi repudiada, a terceira condenada ao cadafalso e a quarta correu grande perigo de sofrer o mesmo gênero de morte, porém foi bastante sagaz para salvar-se
com um engano. Ainda que muitos nobres prelados se submetessem à sua tirania, houve, todavia, corações generosos, que para se oporem a ele fizeram-se mártires da
santa fé. Sobe a 460 o número de eclesiásticos que condenou ao suplício. Célebres entre os outros, são o cardeal João Fisher, bispo de Rochester e mestre de Henrique,
e o ilustre Tomas Moore, chanceler e ministro de Estado. Este último, privado do seu emprego, despojado de todos os seus bens, e encerrado em uma prisão, foi condenado
ao atroz suplício dos traidores do Estado, que foi comutado pelo de decapitação. Sua esposa, para induzi-lo a ceder à vontade do soberano, foi visitá-lo no cárcere,
e pôs em campo toda indústria possível para convencê-lo a que se salvasse a si mesmo e a sua família. Ele, porém, lhe falou intrepidamente desta maneira: "Dize-me,
mulher, se renunciando à minha fé, eu recuperasse juntamente com minhas riquezas minha primeira dignidade, quantos anos poderia eu gozar delas? "Talvez vinte anos",
respondeu sua tímida consorte. "Pois bem!" Acrescentou o magnânimo Tomas, "queres tu que por vinte anos perca uma eternidade de gozos no céu, e me condene a uma
eternidade de tormentos no inferno?"
Ao subir ao cadafalso, protestou publicamente que morria pela fé católica, e depois tendo rezado o Miserere, deceparam-lhe a cabeça (Ano 1534). A justiça divina
não tardou muito em ferir o ímpio e o luxurioso Henrique. Este morreu no ano 1547, entre os mais atrozes remorsos de consciência e separado da Igreja Católica.
 
Sucedeu-lhe no trono seu filho Eduardo de dez anos de idade. Seu tutor o duque de Sommerset, fez declarar logo o protestantismo como religião do Estado, e fez desaparecer
aquele resto de catolicismo que ainda havia deixado Henrique. Mas falecendo Eduardo aos dezesseis anos, sucedeu-lhe sua mãe Maria, filha de Catarina, que restituiu
o reino à fé católica. Esta ocupou somente cinco anos o trono, e à sua morte, no ano 1558, lhe sucedeu Elizabeth, filha de Ana Bolena. Achando-se apaixonada pela
heresia calvinista e querendo governar com inteira independência de todo princípio de fé e de justiça, revoltou-se e fez revoltar-se de novo todo o reino contra
a obediência ao vigário de Jesus Cristo. Desde então a Inglaterra foi, e desgraçadamente é ainda um reino protestante, ainda que presentemente, não haja ali menos
de dois milhões de católicos.
 
CAPÍTULO II
 Novas ordens religiosas – Barnabitas – Capuchinhos – São Caetano e os Teatinos - São João de Deus e os Fate-bene fratelli – São Jeronimo Emiliano e os Somascos
- Santo lnácio de Loiola - Adoração das quarenta horas – Fim de Lutero - Carlostadio - O imperador Carlos V.
Novas ordens religiosas - Enquanto os hereges se esforçavam para destruir a Igreja, a Divina Providência suscitava novas sociedades de religiosos e uma multidão
de doutores, que com suas fadigas apostólicas, com sua santidade e com suas obras cheias de erudição cristã fizeramna florescer em todas as partes do mundo. A 0rdem
dos Teatinos, a dos Barnabitas, dos Capuchinhos, dos Somascos, dos Fate-bene fratelli, e muitas outras congregações religiosas, a instituição das quarenta horas,
a celebração do Concílio de Trento, São Caetano, São Jerônimo Emiliano, São João de Deus, São Tomas de Vilanova, Santo Inácio de Loiola, São Francisco Xavier, São
Pedro de Alcântara, São Filipe Neri, São Pio V, Santa Teresa, São Carlos Borromeu, São Francisco de Sales e muitos outros repararam gloriosamente os danos causados
a religião.
Barnabitas - A congregação dos Clérigos Regulares de São Paulo, chamados também Barnabitas, foi instituída no ano 1530 por Santo Antonio Maria Macarias, sacerdote
de Cremona e pelo venerável Bartolomeu Ferraria e Tiago Antonio Morigia, nobres cidadãos de Milão. Seu fim era promover com o exemplo e com toda a espécie de obras,
próprias do ministério eclesiástico, a reforma dos costumes no clero e no povo. Foram chamados Clérigos Regulares de São Paulo porque escolheram a este grande apóstolo
por patrono especial, cujas virtudes e zelo em conseguir a salvação das almas tratavam de imitar. Foram chamados mais tarde Barnabitas, por causa da igreja de São
Barnabé em Milão, que eles estavam encarregados de oficiar. Sua congregação foi aprovada por Clemente VII, no ano 1533.
A princípio, não tencionavam estabelecer-se a não ser em Milão; porém logo, por conselho e obra de São Carlos Borromeu, seu grande protetor, começaram a se estabelecer
em Monza, em Vercelli e em muitas outras cidades da Itália. Até princípios do século XVII os Barnabitas limitaram-se às obras que mais de perto pertencem ao ministério
eclesiástico, como seja a reza do ofício em coro, a pregação e a administração dos Sacramentos; porém mais tarde, dedicaram-se também à instrução e educação da mocidade,
abrindo escolas públicas e colégios em muitas cidades da Itália e França. Animou-os a dar este passo, São Francisco de Sales, que no ano 1612, os chamou de Milão
onde estavam, para dirigir o colégio de Anecy. O bem-aventurado Alexandre Sauli, bispo de Pavia, o venerável Carlos Pescapé bispo de Novara, o venerável Cosme Dossana,
bispo de Tortona, Guerini, amigo e sucessor de São Francisco no bispado de Genebra, Recrósio, bispo de Niza, Gattinara, arcebispo de Turim, pertencem à ordem dos
Barnabitas. Pertenceram ainda a ela os cardeais: Morigia, arcebispo de Florença; o célebre Gerdil, Fontana, Lambruschini, arcebispo de Gênova, Cadolini bispo de
Ancona, elevado depois à sagrada púrpura pelo sumo pontífice Pio IX, no ano 1866.
Capuchinhos - A ordem dos capuchinhos que é um ramo da grande ordem Franciscana foi fundada pelo venerável padre Mateus de Bassi chamado assim por causa do castelo
deste nome no ducado de Urbino.
Desejava este ardentemente ver florescer na ordem de São Francisco aquela perfeita observância da regra professada e estabelecida pelo fundador. Rezava muito com
este fim; até que apareceu-lhe reiteradas vezes São Francisco, com um hábito grosseiro, com um capuz acabado em ponta e unido com o hábito, e um escapulário, intimou-o
que observasse a regra vestido daquela maneira. assim o fez Mateus; mas, para estar isento de toda a ilusão, resolveu ir a Roma para obter a aprovação do Vigário
de Jesus Cristo que era Clemente VII. "Beatíssimo Padre, disse-lhe ele, sou um pobre sacerdote pertencente à ordem dos Frades Menores, e nada me interessa tanto
como o cumprimento daquela regra que um dia, com voto solene, prometi a Deus observar, e imitar em quanto for possível a minhas fracas forças, a vida de nosso seráfico
padre, muito descuidada hoje em dia. Depois de muitas orações compreendi ser vontade de Deus que, com este modo de vestir, me submetesse eu mesmo à observância regular
do hábito e da vida perfeita de meu seráfico padre". A franqueza e o candor destas palavras persuadiram ao Papa do verdadeiro zelo do padre Mateus e da divina inspiração
que o guiava; por isso outorgou-lhe benignamente o que pedia, e fez extensiva a mesma faculdade a todos os que quisessem observar com mais perfeição a regra, vivendo
daquele modo, e habitando em lugares solitários. Ano 1524.
Finalmente, no ano 1528, o mesmo Clemente VII, erigiu a nova instituição em congregação religiosa, sob o nome de Frades Menores eremitas; nome, que muito prontamente,
a voz pública mudou pelo de capuchinhos, devido a forma do capuz que traziam. Mateus foi primeiro geral da ordem; porém, pouco depois quis abandonar o cargo para
preparar-se melhor para a morte. Concluiu seus dias em Veneza, com fama de santidade e milagres. Em vista do hábito grosseiro dos capuchinhos, de sua austeridade,
de sua pobreza, e de sua pregação popular, cheia de espírito evangélico; vista abnegação e desprendimento com que publicamente se consagravam ao serviço dos enfermos
nos hospitais, especialmente em tempos de epidemia grangearam a estima e o apreço universal, e em pouco tempo seus conventos multiplicaram-se em toda Europa. O Piemonte
deve a seu zelo e trabalhos a volta à fé católica de várias povoações dos Alpes, que foram infeccionados pela heresia calvinista.
São Caetano e os Teatinos - Vicenza, cidade do território Veneziano, é a pátria de São Caetano, fundador dos Teatinos. Logo que nasceu, sua mãe o ofereceu à SS.
Virgem Maria, à qual muito agradou a oferta. Caetano, por sua parte, mostrou-se digno de sua augusta protetora. Nada admirava tanto nele como a ternura para com
os pobres, aos quais distribuiu as riquezas que recebera de seus pais. Como, porém, não bastassem estas para as necessidades daqueles, ele mesmo ia pedindo de porta
em porta para provê-los do quanto necessitassem. Sua vida angélica foi motivo para que todos o apontassem com o nome de Santo. Graduado em Pavia em ambos os direitos,
foi a Roma, onde o Papa confiou-lhe o cargo de protonotário apostólico. Ordenado sacerdote, tornou-se um serafim por seu amor a Deus. Para preparar-se a celebrar
a Santa Missa, empregava horas inteiras de meditação; às vezes passava até oito horas rezando. Fundou, à custa própria, vários hospitais, servindo ele mesmo com
grande zelo aos enfermos e administrando-lhes com suas próprias mãos quanto lhes era necessário, ainda que sua enfermidade fosse contagiosa. Por seu zelo ardente
em cuidar da salvação de seu próximo, foi chamado o caçador de almas. Não podendo só ele cumprir com todas as obras que constituíam o objeto constante de sua caridade,
uniu-se a alguns zelosos companheiros com quem começou a levar vida comum. Dai teve princípio a ordem dos clérigos regulares, aos quais mandou São Caetano, que abandonassem
todo terreno, que não tivessem rendas, nem andassem mendigando subsídios, senão que só vivessem de esmolas espontaneamente oferecidas. Clemente VII, tendo examinado
as regras do novo instituto, incluiu-o no número das ordens religiosas. São Caetano, Pedro Caraffa e mais dois companheiros, pronunciaram seus votos solenes diante
do altar mór de São Pedro, no Vaticano dando assim princípio à congregação dos clérigos regulares que, por terem escolhido como primeiro superior ao bispo de Teane,
foram chamados Teatinos. No saque de Roma, que se deu no ano 1527 pelo exército de Carlos V, sob o comando do condestável de Bourbon, a nascente ordem correu perigo
de perecer. O próprio Caetano foi cruelmente tratado, com o fim de obrigá-lo a entregar os tesouros, que já tinha repartido entre os pobres. Posto que atormentado
e encarcerado, perseverou em seu teor de vida, confiando somente em Deus, que nunca abandona a ninguém. Promoveu muito especialmente São Caetano o respeito para
com as coisas santas, a observância das cerimônias do culto divino a comunhão frequente, a assistência aos enfermos e a instrução do povo. Pelo grande fervor com
que orava, com frequência era arrebatado em estases; tinha o dom da profecia e o de penetrar os corações. Em Roma, na noite de Natal, mereceu receber em suas mãos
ao Menino Jesus, que lhe foi entregue pela mesma Virgem. Indo depois a Nápoles, ficou tão aflito pelas ofensas que se faziam a Deus em uma sedição, que caiu mortalmente
enfermo. Consolado por uma visão celestial, voou ao céu no ano 1547. Seu corpo ainda se venera, com grande concurso de fiéis, em Nápoles, na Igreja de São Paulo.
São João de Deus e os Fate-bene fratelli - São João de Deus nasceu em Monte Maior, em Portugal, de pais pobres, vendo-se obrigado por isto, desde jovem, a ganhar
o pão com o trabalho de suas mãos. Por boa ventura tendo ouvido um dia pregar o Padre Ávila sobre as vaidades da terra, ficou tão penetrado de suas palavras, que
se fingiu louco para fazer-se desprezar, e como tal foi levado a uma casa de saúde. Mas conhecido seu fingimento e tendo saído dali, dedicou-se a recolher pobres
enfermos, estabelecendo para isto um hospital em Granada. Carecendo de meios para mantê-los, ocupava-se de dia em prover a sua assistência, e de noite, com dois
sacos ao ombro, andava pedindo esmolas e gritava em voz alta: "Fazei o bem, irmãos, a vós mesmos." Daí tomou o nome de Fate-bene fratelli sua ordem hospitaleira.
Cheio de méritos descansou João no Senhor no dia 8 de março do ano 1550. Poucos anos depois, s. Pio V expediu uma bula, em que punha a congregação entre as ordens
religiosas. Pelo grande benefício que faziam aos enfermos e moribundos, os Fatebene fratelli foram chamados à Espanha, à Itália, à Alemanha e até à América. Este
instituto religioso, depois de 254 anos de existência contava já sob sua direção, mais de 295 hospitais, com 9208 camas, cuidados por não menos de 3469 irmãos. Porém
o feliz desenvolvimento desta ordem foi desgraçadamente interrompido pelos transtornos políticos que se produziram no princípio deste século, ao suprirem-se todas
as ordens regulares. Ainda que a ordem dos Fate-bene fratelli ainda exista, e faça muito bem, sempre em vista do fim que lhe deu seu fundador, contudo, seu número
diminuiu muito. Apesar disto, eles tem sido e serão sempre verdadeiros benfeitores da parte abandonada da humanidade. Seu fim único é o que lhes deu seu santo fundador,
isto é, cuidar dos enfermos, e, em quanto é compatível com seu estado de leigos, ao passo que socorrem o corpo, nada esquecem para que seus doentes se disponham
da melhor maneira possível para receber os últimos auxílios de nossa santa religião.
São Jerônimo Emiliano e os Somascos - São Jerônimo Emiliano, fundador dos Somascos, foi amigo e contemporâneo de São Caetano de Tiene. Nascido em Veneza, de nobre
família, mostrou desde seus primeiros anos inclinação para a virtude, mas como no terceiro lustro de sua vida, se dedicasse à milícia, desgraçadamente deixou-se
levar pela dissipação. Em tempos aziagos para a República de Veneza, encarregaram-no da defesa de Castello Nuovo, perto de Treviso; porém, tendo o inimigo tomado
a fortaleza, feito prisioneiro, meteram-no em prisão, cumulando-o de ultrajes. Privado de socorros humanos, e esperando a morte daí a momentos, dirigiu-se a Deus
chorando amargamente suas faltas, e fez promessa à Rainha do Céu que faria eficaz reparação delas logo que conseguisse a liberdade. Ouviu-o esta Mãe de misericórdia,
apareceu-lhe, livrou-o das cadeias e o levou são e salvo a Treviso, fazendo-o passar por entre seus inimigos, enquanto estes se esmeravam em impedir toda comunicação
externa.
 
Vendo-se tão prodigiosamente solto, correu logo a uma igreja da Bem-aventurada Virgem Maria, suspendeu numa parede as cadeias que ainda trazia ao pescoço, e voltando
para Veneza, renunciou a todas as doçuras e comodidades da vida para ganhar almas a Deus. Domava seu corpo com jejuns e cilícios; e em uma carestia que afligiu a
Itália, no ano 1548, vendeu até os móveis de sua casa para socorrer aos pobres. Sucedendo à carestia a peste, transformou sua casa em hospital. Atacado ele mesmo
pela doença fatal, pediu a Deus saúde para poder fazer maior penitência de seus pecados; acedeu o Senhor a seu pedido, e melhorou. Vendo por toda parte crianças
órfãs e reduzidas aos últimos extremos da miséria, fez-se pai de todas; recebeu-os em sua casa, e ele mesmo os educou. O mundo se admirava de ver a um nobre senador,
a um capitão, vestido tão miseravelmente e feito pai dos órfãos. Mas sua caridade não se limitou a Veneza somente, senão que também fundou casas e hospícios em Brescia,
Bérgamo, Como, Milão, e em outras muitas cidades. Chegado a Somasco, pequeno povoado a curta distância de Bérgamo, fixou ali residência para si e para os seus, daí
o nome de Somasco que tem a congregação por ele fundada. Crescendo e propagando-se, encarregou-se a congregação também, para maior utilidade da Igreja, da instrução
da mocidade nos seminários e colégios. Em seguida tendo encontrado Jerônimo uma cova no cume de um monte perto de Somasco escondeu-se ali; e lacerando seu corpo
com disciplinas, passava dias inteiros sem tomar alimentos; fazia sua oração durante quase toda a noite e somente tomava algum descanso sobre uma pedra nua. No lugar
mais escondido daquela cova, brotou, de uma pedra dura, graças às suas orações, uma fonte que ainda existe, cuja água levada a diferentes regiões, as mais das vezes
restitui a saúde aos enfermos. Finalmente, em uma epidemia que infestou aqueles lugares, achando-se ele servindo aos enfermos e carregando sobre seus próprios ombros
os cadáveres para lhes dar sepultura, foi surpreendido por aquele mesmo mal e expirou no ósculo do Senhor, no ano de 1557, aos cinquenta e seis de idade.
Santo Inácio de Loiola - Santo Inácio, espanhol, seguiu até a idade de vinte e um anos a carreira das armas. Fraturando uma perna no sítio de Pamplona, e sendo muito
longa sua cura, pediu algum livro de cavalaria para passar o tempo. Como, porém, não se encontrasse nenhum desse gênero no lugar em que se achava, deram-lhe a vida
de Jesus Cristo e dos santos. Começou a folhear o livro com má vontade, porém como trabalhasse nele a graça, encontrou nos exemplos que ali se narravam, coisas maiores
que todos os heroísmos dos conquistadores, dos cavaleiros, e dos capitães, contados nas histórias de cavalaria. Depois de algumas lutas entre o espírito e a carne,
tomou a resolução de imitá-los e de se fazer santo. Foi desde então sua vida um conjunto de feitos maravilhosos pela constância, zelo e atos heróicos de virtude.
No ano 1534 fundou a Companhia de Jesus, justamente considerada como um dos baluartes levantados por Deus para resistir aos ataques dos novos hereges, e dos mais
poderosos exércitos espirituais para propagar a fé nos paises estrangeiros. santo Inácio estabeleceu sua principal residência em Roma, e ali empregou o resto da
vida em consolidar sua instituição. Teve a consolação de vê-la aprovada pelos Sumos Pontífices, e seus filhos, levarem frutos de graças e de bençãos, a todas as
partes do mundo. Cheio de méritos, esclarecido por virtudes e milagres, descansou no Senhor do ano 1556, sexagésimo quinto de sua idade.
 
Entre os mais célebres discípulos de santo Inácio assinala-se São Francisco Xavier, que, pelos grandes trabalhos sofridos, pelos muitos milagres operados pelo prodigioso
número de infiéis convertidos, mereceu o glorioso título de Apóstolo das Índias.
Adoração das Quarenta Horas - Esta prática, à qual se deve a conversão de grande número de pecadores e o progresso na virtude de muitos santos, teve princípio, segundo
se pensa, em Milão, no ano 1534. Por causa das discórdias que apareceram entre Francisco I, rei da França, e o imperador Carlos V, os dois exércitos inimigos tinham
convertido as planícies de Milão em campo de batalha, faltando pouco para que a mesma cidade e as demais povoações circunvizinhas, fossem miseravelmente expostas
à licença, rapinas, incêndios e estragos dos soldados franceses, espanhóis, e alemães. Naqueles calamitosos tempos o Padre José de Fermo, capuchinho, divinamente
inspirado, exortou os Milaneses a expor sobre o altar, pelo espaço de quarenta horas consecutivas, o SS. Sacramento, em memória do tempo que Nosso Senhor Jesus Cristo
esteve no sepulcro, assegurandolhes que se assim o fizessem, ver-se-iam livres da invasão inimiga. Foi ouvida a palavra do piedoso pregador, e tudo se deu como havia
predito. Reconciliaram-se os dois monarcas e a paz tão suspirada voltou àquelas devastadas regiões dos Milaneses. Os sumos pontífices enriqueceram esta devoção com
muitas indulgências, e em curto espaço de tempo, se propagou em todo o mundo católico, de tal sorte, que em muitas cidades populosas, foi instituída a adoração perpétua,
isto é, a exposição do SS. Sacramento, distribuída de tal maneira, que, todos os dias do ano, há em alguma igreja da mesma cidade, exposição das Quarenta horas.
(Ben. XIV, Bov.)
Fim de Lutero - Este miserável apóstata depois de ter desprezado todo argumento e toda autoridade, e depois de ter queimado a bula do Papa que o condenara, não cessou
de pregar a rebelião contra a Igreja e contra os príncipes. Refutado em repetidas ocasiões por palavra e por escrito, não sabendo já como se defender, apelou para
um concílio geral. Convidado para assistir a ele, negou-se a princípio, porém logo respondeu enfurecido: "Irei ao concílio, e que me cortem a cabeça se não souber
defender minhas opiniões contra todo o mundo." Mas o infeliz teve de ir defendê-las em presença do juiz divino. Certo dia depois de uma ceia opípara, acometeram-no
fortes dores de estômago; levaram-no logo para a cama, porém as dores se tornavam cada vez mais atrozes. Cheio de cólera e vomitando horríveis blasfêmias, acabou
miseravelmente a vida. Diz-se que, momentos antes de expirar, exclamou, olhando para o céu através de uma janela: "Tudo está acabado para mim, pois, formoso céu,
jamais te tornarei a ver!"
Morte semelhante a esta foi no nosso tempo a do infeliz apóstata Luiz Desanctis. Resolvera pregar em Florença, durante o concílio do Vaticano, uma série de conferências
contra os dogmas da Igreja católica; deviam estas começar a 17 de janeiro de 1870. À tarde, do dia 31 de dezembro de 1869, enquanto se achava exaltando com seus
amigos, depois de uma ceia suculenta, o êxito que esperava alcançar, foi surpreendido por fortes dores dos intestinos, seguidas de hemorragia de sangue. Levado à
cama, ainda pode dizer: "Empreendi um mau trabalho; temos de nos separar"; e dito isto, compareceu ante o tribunal de Deus.
Carlostádio - Carlostádio, professor de teologia em Wittemberg, era um dos mais zelosos partidários de Lutero; como, porém, se opusesse a algumas inovações deste,
foi obrigado a abandonar sua pátria e refugiar-se em Ormeionda, cidade da Saxônia. Ali começou a censurar acremente a conduta de Lutero, o que deu motivos a escândalos
e sublevações populares, de maneira que, o Eleitor de Saxônia, viu-se obrigado a enviar ali a Lutero para restabelecer a paz. Pelo caminho Lutero pregou em Jena,
em presença de Carlostádio, a quem não deixou de chamar de ignorante e sedicioso. Ao sair do sermão foi Carlostádio vê-lo no hotel do Urso Negro, onde se hospedara.
Ali, depois de ter-se defendido relativamente ao qualificativo de sedicioso, que lhe dera, declarou-lhe que não podia concordar com ele em relação à doutrina da
presença real. Lutero então, com ar de desagrado, desafiou-o a que o refutasse por escrito, e prometeu-lhe um florim de ouro sempre que o fizesse. Carlostádio aceitou
o desafio e ambos beberam, brindando um à saúde do outro. assim se declarou a guerra entre os dois apóstolos da reforma. Carlostádio ao separar-se de Lutero disse-lhe:
"Oxalá pudesse eu ver-te enforcado." "Pois eu, respondeu-lhe Lutero, desejaria que quebrasses a cabeça antes de sair da cidade!" Lutero foi muito mal recebido em
Ormeionda, e pouco faltou, para que por instigação de Carlostádio, não o matassem. Lutero queixou-se disto ao Eleitor, e Carlostádio viu-se obrigado a refugiar-se
na Suíça, onde Zuinglio e Ecolampádio tomaram sua defesa. Dali teve origem à seita dos sacramentários, assim chamada porque, contra Lutero, negavam a presença real.
A memória de homens de tão infames costumes, tais como Lutero e Calvino, devera-se sepultar no esquecimento como se faz com a dos homens abomináveis; porém como
sua doutrina dá livre expansão às paixões, tiveram e ainda tem muitos sectários que a professam.
O imperador Carlos V - Carlos V, depois de ter satisfeito sua desenfreada ambição com quarenta anos de esplêndidas vitórias, quis finalmente ir em busca de um reino
em que pudesse achar a paz do coração, que buscara em vão até então nas riquezas mundanas. Com esta intenção renunciou à dignidade real e outros títulos e, desejando
reparar as culpas graves que tinha cometido, retirouse para um convento dos padres Jerônimos, na Espanha, e ali passou o resto de sua vida no retiro e nos exercícios
de piedade. Assistia aos ofícios divinos, comungava com frequência, e disciplinava-se com os monges. Às vezes, por estranho capricho; fazia celebrar seus funerais
como se tivesse falecido, com o fim de ter mais viva a lembrança de que estava morto para o mundo. Depois de ter passado dois anos no retiro e na penitência, morreu
no ano de 1558, e foi dar contas a Deus da frieza com que se opôs ao protestantismo que teria podido sufocar em seu nascimento; como também do sacrílego escândalo
que deu ao mundo, saqueando Roma e encarcerando a Clemente VII.
 
CAPÍTULO III
 
Concílio Tridentino (Concílio de Trento) - São Pio V – Santa Teresa – São Carlos Borromeu – São Luiz Gonzaga.
Concílio Tridentino (Concílio de Trento) - A guerra encarniçada que os protestantes tinham declarado a Igreja, e a necessidade urgente de reanimar no clero e no
povo a santidade dos costumes, tornavam necessária a convocação de um concílio ecumênico. Convocou-o, efetivamente, o Papa Paulo III, em Trento, cidade do Tirol
italiano, donde, tomou o nome de Concílio Tridentino. Este é o décimo nono concílio ecumênico. Durou mais de dezoito anos, por ter sido interrompido diversas vezes,
por causa da epidemia ou das guerras. Abriu o concílio o Papa Paulo III, no ano 1545; foi continuado sob Júlio III, e levado a feliz termo, no ano 1563, no pontificado
de Pio IV, graças ao zelo do infatigável São Carlos Borromeu.
Presidiram-no os Papas por meio de seus legados, e tomaram parte nele muitos prelados e insígnes teólogos. À sua conclusão se achavam presentes 255 padres, isto
é, 4 legados, 2 cardeais, 3 patriarcas, 25 arcebispos, 168 bispos, 7 abades, 39 procuradores de padres ausentes e 7 superiores gerais de ordens religiosas. O fim
principal deste concílio era condenar e refrear as heresias de Lutero, Calvino e outros hereges daqueles tempos, E fazer igualmente novas leis disciplinares concernentes
particularmente ao clero. Convidaram também para assisti-lo aos protestantes, e foi-lhes dado plena liberdade para discutir e garantias plenas de que não seriam
molestados, porém nenhum deles se apresentou, porque as trevas fogem da luz, e quem está interessado em sustentar o que e falso, teme ser convencido da verdade.
Foram condenados todos os erros inventados e suscitados naquela idade por Satanás, porém não se condenou herege algum pessoalmente, indicando seu nome. Foram dados
muitos decretos dogmáticos relativamente à graça, aos sacramentos, ao purgatório às indulgências e a outros pontos de fé e foram estabelecidos muitos preceitos de
moral cristã. Celebraram-se 25 sessões, em que se encerra a doutrina e a disciplina de quase todos os concílios celebrados anteriormente. Neste, o Espírito Santo
iluminou de tal modo sua Igreja que ao redigir as definições dogmáticas, e ao expor a doutrina católica, foram previstos os erros que pudessem ser suscitados no
futuro. Mui dificilmente, pois, aparecerão heresias, que direta ou indiretamente não tenham já sido condenadas neste concílio. Com o fim de não se interpretarem
mal as decisões do Concílio Tridentino, instituiu a Santa Sé uma congregação chamada: Congregação do Santo Concilio de Trento, composta de cardeais e prelados, para
velar para que não se violem os cânones e decretos, e para definir sua interpretação nos casos de controvérsia.
São Pio V - Ao Papa Pio IV morto no ano 1565, sucedeu São Pio V, um dos pontífices mais ilustres que ocuparam o trono de São Pedro. Nascido em Bosco, perto de Alexandria,
no Piemonte, na idade de doze anos encontrou-se por casualidade com dois religiosos Dominicanos, os quais, admirados da precocidade do menino, o levaram para seu
convento. Ali progrediu tanto na ciência e na virtude, que, a seu pesar, o Papa o quis chamar a seu lado para servir-se dele em muitos assuntos da Igreja. Primeiramente
o fez cardeal e depois o nomeou bispo de Mondovi. Sua pureza de costumes e a energia com que pregava, unidas à sua rígida mortificação, atraíram para a fé a muitos
hereges, converteram obstinados pecadores e remediaram gravíssimas desordens.
Foi eleito Papa a 7 de janeiro do ano 1566.
Pode-se dizer, que bastaram os seis anos de seu pontificado, para mudar o aspeto do mundo. Ao passo que os hereges causavam enormes males às almas na Alemanha, na
França e nos Paises Baixos, ele, com a palavra, com seus escritos, e com a obra de zelosos missionários, combateu os erros e conservou a pureza da fé. Acometido
por uma enfermidade que lhe causava agudíssimas dores, não proferia senão estas palavras:
"Senhor, aumentai meu mal, mas igualmente a minha paciência." Já próximo à morte repetia com frequência: "Estou cheio de prazer, pois alimento a esperança de entrar
preparado na casa do Senhor." Este grande santo pontífice morreu no ano 1572. Tinha muita devoção à Mãe do Salvador; e para eternizar a memória da insígne e esplêndida
vitória alcançada por sua intercessão no ano 1571, pelos Cristãos contra os Turcos, nas águas de Lepanto, instituiu a festa do SS. Rosário e mandou que nas Ladainhas
Lauretanas se acrescentassem as palavras: Auxilium Christianorum, ora pro nobis.
Santa Teresa - Santa Teresa nasceu em Ávila, cidade da Espanha. Os cuidados que lhe prodigalizaram seus pais contribuíram eficazmente para elevá-la a um grau heróico
de virtude. Como agradassem muito a seu pai os livros de piedade, fazia, dando um belo exemplo, ler todos os dias a vida, de algum santo no seio da família. As atas
dos mártires que tinham derramado seu sangue pela fé, produziram tão viva impressão em Teresa, que aos sete anos de Idade fugiu secretamente de casa com o irmãozinho,
para ir em busca do martírio, porém, tendo-os encontrado um seu tio, os trouxe a casa paterna. A consideração de uma eternidade feliz ou desgraçada fazia-a exclamar
com frequência: "Como! Para sempre feliz? Como! Padecer para sempre?" Este pensamento a fez tomar a resolução de se santificar, ou antes, de fazer quanto estivesse
em seu poder para chegar ao mais alto grau de santidade. Construiu no Jardim, com ramos de árvores, uma pequena cela, onde se retirava para rezar.
Crescida já, entrou para o mosteiro das Carmelitas, que fez voltar mais tarde a seu primitivo rigor e fundou muitos outros, em que se mostrou luminoso modelo de
perfeição cristã. Cilícios, disciplinas, orações, contemplações, frequentes colóquios com Jesus, eis as coisas que se admiram no decurso de sua vida. Com muita frequência
ouvia-se-lhe exclamar: "Divino esposo, ou aumentai a capacidade do meu coração, ou ponde termo às vossas graças!" Gozava tanto nos sofrimentos que repetia com frequência:
"Ou padecer, ou morrer por vós, meu Jesus! Aut pati, aut mori". Ao chegar ao termo de sua vida dizia: "Já é tempo, ó meu Deus, de vos ver, pois tanto me há consumido
este desejo". Entregou sua alma ao Criador no ano 1582.
São Carlos Borromeu - Este brilhantismo luminar da Igreja, nasceu em Arona, nas margens do Lago Maior. Um resplendor celestial que rodeou e iluminou o lugar de seu
nascimento, pressagiava que havia de ser um grande santo. Jovem ainda, fugia da companhia dos mundanos e dos que se mostravam vãos em suas ações ou imodestos em
suas palavras. Fazer pequenos altares, adorná-los, rezar diante deles, imitar as cerimônias da santa Igreja, eram seus melhores divertimentos. Tanto em Milão como
em Pavia, onde cursou seus estudos não conheceu senão dois caminhos, o da Igreja e o da escola. Um santo sacerdote, ao contemplar seu devoto comportamento, exclamou:
"Este jovem será um dia o reformador da disciplina na Igreja". Na idade de 23 anos apenas foi feito cardeal e nomeado arcebispo de Milão. Seu zelo no ministério
episcopal, sua caridade e fervor em tudo o que podia ser de utilidade para as almas, os trabalhos que venceu e seus numerosos escritos foram bastantes para fazer
dele uma das mais firmes colunas da Igreja. Foi ele quem trabalhou com grande ardor para se levar a termo, secundando o ardente desejo de todos, a obra do Concílio
de Trento. Em seguida, com o fim de promover a publicação e a aplicação prática dos decretos do mesmo, convocou vários concílios provinciais e sínodos diocesanos
por cujo meio desarraigou não poucas desordens de sua vastíssima diocese e das de seus sufragâneos da Lombardia. Tendo uma espantosa epidemia infestado a cidade
de. Milão se fez Carlos o pai de todos. Vítima da caridade, considerava a morte como um prêmio; por isso não descansava de dia nem de noite levando a todas as partes
palavras de confiança, de amor e de consolação. Ele mesmo às vezes, administrava os sacramentos aos atacados da peste, e quisera estar continuamente com eles para
servir-lhes se não lho impedissem seus eclesiásticos que temiam que a peste privasse a diocese de seu pai e pastor.
Trabalhava sem descanso, tomava alimento mui escasso e frequentemente comia a cavalo para não perder tempo. Em um só dia deu em esmolas uma herança de 40 mil escudos
de ouro em outra ocasião deu 20 mil. Não se pode conceber como um só homem tenha podido efetuar tantas e tão grandes empresas. Gasto pelos trabalhos e pelas austeridades,
sentindo chegar seu fim, pediu que o deitassem sobre um cilício e que o cobrissem de cinza. Depois de algumas horas de pacífica agonia, voou ao céu, tendo somente
47 anos de idade para receber o prêmio eterno de que se tinha feito credor com suas virtudes. (Ano 1584).
São Luiz Gonzaga - Enquanto se achava São Carlos fazendo a visita pastoral de sua diocese, apresentaram-lhe um tenro jovem, chamado Luiz cuja santidade angelical
percebeu logo o santo arcebispo. Este jovem, primogênito dos marqueses de Gonzaga, nasceu em Castiglione. Chama-se angélico pela candura de seus costumes e pela
união fervorosa de sua alma com Deus. Aos quatro anos já amava tanto a solidão, que com frequência se escondia em algum canto de sua casa ou em qualquer lugar oculto,
e ali, de joelhos, com as mãos juntas orava com grande fervor. A devoção acrescentou austeras penitências. Nunca se aproximava do fogo para se aquecer por mais frio
que fizesse e por mais cruel que fosse a estação; jejuava com tal rigor, que com frequência reduzia seu alimento ao peso de uma onça por dia. Punha pedaços de madeira
na cama para atormentar-se também durante o sono; açoitava-se, às vezes, de tal modo que seus vestidos e a terra ficavam salpicados de sangue e cingia suas carnes
com cinturões armados de rodas de esporas. Tendo entrado para a Companhia de Jesus levou a penitência, a virtude e o fervor até o heroísmo. Desejava ardentemente
morrer mártir e alcançou efetivamente em Roma o martírio da caridade. Aparecendo nesta cidade uma horrível epidemia, pediu permissão a seus superiores para ir servir
aos infectos da peste, e ele também foi vítima da doença fatal. Conhecendo que se aproximava seu fim, exclamava cheio de alegria: "Quão bela notícia me deu o médico!
Dentro de oito dias estarei no paraíso!" E dizia a outros: "Vamos ao paraíso, cantai um Te Deum por mim". Faltando-lhe a palavra e fazendo esforços para pronunciar
o Santíssimo nome de Jesus, adormeceu docemente no Senhor em 1591, aos 23 anos e 6 meses de idade. Foi beatificado pelo Papa Paulo V, no ano de 1612, em vida ainda
de sua mãe, a qual conseguiu assim o melhor prêmio que podia esperar pela boa educação que lhe dera. Canonizou-o, mais tarde, o Papa Bento XIII que o propôs como
modelo e o declarou protetor da juventude.
 
CAPÍTULO IV
 
Henrique IV - São Filipe Neri - O venerável Ancina - Perseguição no Japão - O pequeno Pedro, mártir - Cesar de Bus e os Doutrinários - São Camilo e os ministros
dos enfermos - Santa Rosa de Lima - São Francisco de Sales e o Chablais
Henrique IV - O calvinismo tinha feito rápidos progressos em França, especialmente por culpa de seus reis; e até tentou, por meio de Henrique IV, sucessor de seu
cunhado Henrique III, e chefe da facção calvinista, sentar-se no trono para infeccionar e corromper toda a nação. Porém, Deus preservou a França de semelhante desgraça,
que teria sido a mais deplorável de todas, fazendo com que Henrique conhecesse e abraçasse a verdadeira religião. Este, primeiramente se instruiu bem nos dogmas
que ensina a santa Igreja católica, depois mandou comparecer à sua presença os ministros protestantes e perguntou-lhes se acreditavam que ele podia salvar-se na
Igreja romana. Estes, depois de refletir seriamente, responderam-lhe que sim. "Pois então, disse ele muito sabiamente, porque vós a abandonastes? Se os católicos
afirmam que ninguém pode salvar-se em vossa seita; e vós afirmais que na deles pode-se conseguir a salvação, parece-me mais conforme à razão seguir o caminho mais
seguro, e preferir aquela religião em que, segundo o sentir comum, eu posso salvar-me". Dessa maneira o rei abjurou solenemente o calvinismo, recebeu do Papa a absolvição
das censuras em que tinha incorrido, e trabalhou para fazer florescer a Religião em seus estados. Ano 1593.
São Filipe Neri - Entre as maravilhas do décimo sexto século, conta-se São Filipe Neri, florentino. Levado pelo desejo de entregar-se inteiramente a Deus, abandonou,
ainda que filho único, o lar paterno, renunciou aos avultados bens de um seu tio que o queria nomear herdeiro, e foi a Roma. Ajudado por um caridoso cavalheiro,
pode seguir ali seus estudos e chegar ao sacerdócio. Desejava ardentemente ir a longínquas missões para conseguir a palma do martírio; porém Deus manifestou-lhe
que o lugar destinado para sua missão, era a mesma cidade de Roma, onde se achava. Começou, portanto, a exercer o ministério sacerdotal com toda classe de pessoas,
especialmente com os meninos abandonados. Procurava-os por toda a cidade, e os levava para sua casa, ou antes, ao jardim de alguma casa religiosa ou de pessoas caridosas,
e ali, com amenos entretenimentos e diversões arredava-os do perigo de contraírem maus hábitos e os instrui a nas verdades da fé. assim começou a congregação do
Oratório, que tem por fim principal manter a fé e a piedade nas classes operárias, especialmente na mocidade. O Senhor confirmou a santidade de Filipe com muitas
maravilhas. Achava-se tão inflamado do amor de Deus, que o ouviam exclamar: "Basta, Senhor, basta, porque morro de amor". Orando, ou celebrando a santa Missa era
visto muitas vezes rodeado de vivo esplendor. Um dia enquanto se achava distribuindo esmolas aos pobres, deu-a também a um anjo sob as aparências de mendigo. Era
tão zeloso guarda da virgindade, que até pelo cheiro conhecia quem era ornado desta virtude, e quem contaminado do vício contrário. Curou a muitos enfermos, e ressuscitou
a um morto. Finalmente; aos 80 anos de idade, consumido pelas fadigas e pelo amor divino, foi unir-se para sempre a seu Deus, no mesmo dia e hora em que tinha predito.
Ano 1595.
O Venerável Ancina - Um dos primeiros e mais ilustres discípulos de s. Filipe Neri, foi João Juvenal Ancina, nascido em Fossano no ano 1545. Cursou seus estudos
em Montpelier, em Mondovi, em Turim, e em Pádua. Ilustrado com muitos conhecimentos, ocupou por algum tempo a cadeira de medicina na universidade de Turim. Tendo,
porém renunciado ao mundo e entrado no Oratório de Roma, tornou-se modelo perfeito de virtudes religiosas. Mandou-o São Filipe a Nápoles para cooperar na fundação
de sua congregação; ali trabalhou Ancina por dez anos com tanta atividade no ministério eclesiástico, que ganhou a estima de todos. Elevado pelo sumo Pontífice à
dignidade episcopal de Saluzzo, resistiu por alguns meses, porém finalmente submeteu-se a tão pesado encargo. Entrou em sua diocese no ano de 1602, e, em breve tempo,
a santificou com suas incessantes fadigas, com seu exemplo e com seu zelo. Morreu o santo bispo a 31 de agosto do ano 1604, envenenado por um infeliz, a cujas maldades
se opunha. A 29 de Janeiro de 1870, Pio IX declarou que todas as virtudes do Pe. Ancina, tinham chegado ao grau heróico.
Perseguição no Japão - Enquanto era Deus glorificado em seus santos em todas as partes do mundo suscitava o inferno, no Japão, uma perseguição longa e cruel. Via-se
neste vasto império, trazido a fé pelos suores e fadigas de São Francisco Xavier, crescer diariamente o número de crentes e aumentar de modo extraordinário a Piedade
o fervor. Quando, porém subiu ao trono do Império Taicosama, quis afastar do seu reino uma religião que contradizia a suas brutais paixões. Pelo que castigava com
o desterro e até com a morte, a quem não renunciasse ao Evangelho. Começou a perseguição na mesma corte imperial, e Ucondono, general-chefe do exército, foi a primeira
vítima. Os Jesuítas, os Franciscanos e os Agostinianos, caíram logo sob seus ferozes golpes. Mas nem por isso deixou de triunfar a graça de Deus, e ainda então se
viram os exemplos de heroísmo dos primeiros séculos da Igreja. Velhos e Jovens, nobres e plebeus, arrostavam com tal firmeza os mais atrozes tormentos, que o imperador
viu-se forçado a dizer: "Há verdadeiramente alguma coisa de extraordinário na constância dos Cristãos". As próprias mulheres preparavam seus vestidos de festa para
honrar o dia de seu triunfo, pois, assim com transportes de júbilo chamavam o dia marcado para o martírio.
Conduziam, certo dia ao suplício a três tenros jovens, entre os quais se achava um, de doze anos, chamado Luiz, o qual comoveu de tal maneira ao verdugo, que este
se prontificou em pô-lo em liberdade e lhe fez as mais lisonjeiras promessas. Luiz, porém, respondeu-lhe: "Guardai para vós essa compaixão que mostrais para comigo,
e tratai, antes de conseguir a graça do batismo, sem o qual não podereis evitar uma eternidade de sofrimentos". Foram empregados os mesmos ardis com outro chamado
Antonio, e prometeram-lhe honras e riquezas da parte do Imperador. "Não, não, respondeu sem demora, o amor da fortuna: não tem para mim mais Eficácia do que os suplícios
eternos; a maior felicidade que posso ter, é a de morrer na cruz por um Deus, que morreu nela por mim". Ao chegar ao lugar do suplício, aqueles magnânimos jovens
entoaram cheios de alegria o salmo Laudate pueri Lominum; e foram crucificados com outros vinte e seis mais, mostrando uma firmeza que fazia estremecer aos próprios
verdugos. Ano 1597.
O pequeno Pedro, mártir - Entre aqueles confessores da fé, encheu a todos de assombro um menino de seis anos, natural de Tingo, que se chamava Pedro. Seu pai já
tinha sido condenado à morte e Pedro estava compreendido no mesmo decreto. O terno menino ao ouvir ler a sentença, exclamou: "Oh! Quanto me agrada isso!" Esperou
com impaciência que lhe vestissem o melhor traje, e logo, cheio de alegria, tomou pela mão o mandarim e se dirigiu ao lugar do suplício. O primeiro objeto que se
apresentou ante seus olhos foi o corpo de seu pai, nadando ainda em seu mesmo sangue. Não mostrando a menor admiração, aproxima-se do cadáver, prostra-se, junta
suas inocentes mãozinhas, abaixa a cabeça e tranquilamente espera o golpe da morte. Ante aquele espetáculo, levanta a multidão um confuso clamor, e não se ouvem
senão gemidos e prantos. O próprio verdugo comovido, atira sua espada e sai soluçando. Substituem-no outros dois e se comovem igualmente. Foi, pois, necessário recorrer
a um escravo, que com mão trêmula e inexperiente, descarregou tal quantidade de golpes sobre o pescoço e ombros da terna vítima, que a despedaçou.
Cesar de Bus e os Doutrinários - O venerável Cesar de Bus foi destinado pela Providência para instituir a congregação da Doutrina Cristã. Nascido na cidade de Cavaglion,
de nobre família francesa, dedicou-se desde jovem à perigosa carreira das armas. O mundo ganhou-o e o infeliz Cesar seguiu perdidamente suas máximas até que, iluminado
pela divina graça, reconheceu que o mundo era enganador e que só Deus é o verdadeiro remunerador das boas ações. Não fazendo caso algum das burlas de seus camaradas
começou a praticar com grande zelo as obras de misericórdia para com os pobres e os enfermos, e empregou toda sorte de meios para instruí-los nas verdades da fé.
Para tirar proveito de sua santa empresa, e não ter nada que ver com o mundo nem com suas máximas perversas, consagrou-se a Deus no estado eclesiástico. Pôs-se logo
a trabalhar com zelo no sagrado ministério e mui depressa seu coração se encheu de amargura, vendo que, por falta de instrução religiosa, a heresia e a revolução
ameaçavam invadir a França. Foi então que concebeu o desígnio de fundar uma sociedade, cujos membros se dedicassem com voto especial a ensinar o catecismo. Para
isso escolheu certo número de zelosos companheiros e deu princípio em Avignon, no ano 1592, à congregação dos Doutrinários, ou da Doutrina cristã. O arcebispo da
cidade trabalhou eficazmente para conseguir que a santa Sé aprovasse a congregação, pois não podia deixar de ser recebida com júbilo uma instituição, cujo principal
fim era ensinar a doutrina. cristã as crianças e aos adultos, seja nos catecismos ou na pregação, em ocasião de tríduos, novenas, mlssões, seja no governo das paróquias.
Deus quis provar a santidade de seu servo com longa e penosa enfermidade, que suportou com resignação heróica. Finalmente, depois de doze anos de dolorosa cegueira,
descansou no Senhor, no ano 1607, aos 63 anos de idade, no dia mesmo que tinha predito. Depois da morte de seu fundador, a Congregação continuou fazendo rápidos
progressos na França e na Itália.
São Camilo e os Ministros dos enfermos – São Camilo de Lelis é o fundador da maravilhosa instituição dos Ministros dos enfermos. Ainda antes de nascer viu-o sua
mãe em sonhos com uma cruz no peito, guiando a outros meninos que traziam o mesmo sinal. Em sua primeira idade seguiu a carreira militar e deixou-se avassalar miseravelmente
pelos vícios; porém Deus, que o chamava para grandes coisas, compadeceu-se dele, e aos 25 anos de idade, fez conhecer tão vivamente a Camilo o estado de sua alma,
e conceber tão grande horror pelo pecado, que naquele mesmo dia foi confessar-se e começou vida penitente, em que permaneceu até sua morte. Por ter-se-lhe aberto
uma dolorosíssima chaga na perna, foi a Roma, ao hospital dos incuráveis; conhecido aí seu mérito, confiou-se-lhe a administração do estabelecimento. Reputando-se
qual servo de todos, exercia os mais humildes trabalhos, fazendo-se tudo para todos em todas as coisas, especialmente quando se tratava de assistir aos moribundos.
Acabando de ver que no exercício daquele caridoso ministério lhe fora de suma utilidade o conhecimento das ciências, vencendo todo respeito humano, se pos na idade
de trinta anos, a estudar com os meninos os primeiros elementos da gramática. Ordenado sacerdote, chamou em seu auxílio a outros companheiros, e assim deu princípio
à Congregação dos ministros dos enfermos aprovada por Paulo V, no ano 1568.  
Quis Deus, por meio de sinais sobrenaturais, dar a conhecer quanto lhe agradava esta nova instituição. São Filipe Neri, confessor de Camilo, assegurou ter visto
anjos que apontavam aos discípulos do santo as palavras que tinham de dizer enquanto assistiam aos moribundos. Brilhou particularmente sua excessiva caridade quando
Roma se achou assolada por terríveis açoites da carestia e da peste. Centenas de pobres abandonados foram pelo santo socorridos em suas necessidades espirituais
e temporais. Ardia nele tanta caridade, que parecia um anjo revestido de carne, tanto que até mereceu receber o socorro dos anjos em vários perigos de sua vida.
Consumido pelos jejuns, pelos trabalhos e por cinco enfermidades diferentes, chamadas por ele as misericórdias do Senhor, fortalecido com todos os sacramentos morreu
em Roma no ano 1614, sexagésimo quinto de sua idade, na hora por ele predita.
Santa Rosa de Lima - Ao passo que se multiplicavam os mártires no Japão e que se enriquecia a Igreja com novas palmas e coroas, na América Meridional, santificada
pela fé católica, começava a resplandecer a candura da virgindade. A primeira flor virginal foi santa Rosa de Lima. A graça precedeu nela a idade, e em tão alto
grau, que aos cinco anos fez voto de perpétua virgindade. Já crescida, para que não a pedissem em matrimônio, cortou seus formosos e louros cabelos. Durante o tempo
quaresmal chegava a tal extremo o Jejum, que não tomava mais que cinco gomos de laranja por dia.
 
Ao vestir o hábito da ordem terceira de São Domingos, redobrou seu fervor e suas austeridades. Um cilício armado de agudas pontas cingia suas carnes; dia e noite
trazia um véu tecido de agudíssimos espinhos; formava sua cama um monte de nodosos ramos onde tomava muito breve descanso o resto do tempo passava em oração e fazendo
obras de caridade. Foi muito atribulada por longa e cruel enfermidade que suportou com alegria por amor de Jesus crucificado. Apareceulhe uma vez seu celestial esposo
e disse-lhe: "Rosa de meu coração, tu és minha esposa". Cheia de méritos, foi ao céu receber a coroa das virgens, no ano 1619 aos 31 anos de idade.
São Francisco de Sales e o Chablais - São Francisco de Sales foi suscitado pela Providência para combater, e, até se pode dizer, para destruir a heresia de Calvino
e Lutero, na parte da Sabóia chamada Chablais, que tinha sido infetada por seus erros monstruosos. Apelida-se de Sales por assim chamar-se o castelo de Sabóia onde
nasceu. Tendo-se entregado inteiramente a Deus desde jovem e conservando zelosamente sua virginal candura, formou seu coração em todas as virtudes especialmente
na doçura e mansidão. Não sem ter superado antes graves obstáculos da parte de seu pai, renunciou aos sedutores afagos do mundo e se consagrou ao ministério dos
altares.
Impelido pela voz de Deus, que o chamava para obras extraordinárias, partiu para o Chablais, sem outras armas que as da caridade. À vista das igrejas arruinadas,
dos mosteiros destruídos, das cruzes arrancadas, enchendo-se de santo zelo dedica-se logo ao apostolado. Alvoroçam-se os hereges, e tratam de matá-lo; porém ele
com paciência, com sermões, com escritos e com milagres, apazigua aos tumultuosos, ganha os assassinos, desarma o inferno e a fé católica triunfa com tanto esplendor,
que em pouco tempo somente no Chablais, converteu ao seio da Igreja a mais de setenta e dois mil hereges. Divulgada a fama de sua santidade, fizeram-no, a seu pesar,
bispo de Genebra, ainda que residisse em Annecy; como se achasse aquela cidade em mãos dos calvinistas redobrou seu zelo, não se recusando a cumprir, quando era
necessário, com os ofícios mais humildes do ministério eclesiástico. Depois de uma vida inteiramente consagrada à maior glória de Deus, apreciado dos povos, honrado
pelos príncipes, amado pelos sumos pontífices, e respeitado pelos próprios hereges entregou a alma a Deus em Lion, na habitação do Jardineiro do mosteiro da Visitação
onde quisera hospedar-se no dia dos santos Inocentes do ano 1628. São Francisco de Sales é o fundador das Freiras da Visitação, no recinto de cujos mosteiros quis
que fossem aceitas as senhoras que em razão de idade ou de enfermidade não fossem recebidas em outros mosteiros. Esta ordem conta hoje cerca de 200 casas espalhadas
em várias partes do mundo.
 
CAPÍTULO V
Jansênio - Novas crueldades no Japão - Castigo dos perseguidores – São José Calazans e as Escolas pias - São Vicente de Paulo e os Lazaristas - Reforma dos Trapistas
- História do Galicanismo - Progresso do Evangelho no Novo Mundo.
Jansênio - Depois da solene condenação do protestantismo no concílio de Trento, pode gozar a Igreja de alguma paz até que apareceu o Jansenismo, heresia que deve
seu nome a Cornélio Jansênio, seu autor. Natural de Accoy na Holanda e filho de pobres artistas, foi por um caridoso barbeiro guiado na carreira dos estudos. Mas,
para sua primeira desgraça, contraiu amizade com um tal De-Vergel, conhecido na história sob o nome de Abade de São Cirano. Uniu-se a isto o ensino do Dr. Janson,
o qual se esmerava em infundir em seus discípulos a doutrina de Baio, doutor da Universidade de Lovaina, condenado pela Igreja. Não obstante isto, como Jansênio
ocultava seus erros, e parecia bastante douto nas ciências sagradas e mui apto em fazer obras de caridade, foi nomeado bispo de Iprés no ano 1636. Foi curto seu
episcopado, porque dois anos depois morreu de peste, aos 53 ele idade.
Os erros de Jansênio, que em maior parte são em relação à graça, à liberdade, ao pecado original, ao mérito e demérito, estão espalhados em diferentes partes de
suas obras, mas especialmente em seu famoso livro chamado Augustinus. Pretendeu expor nele as doutrinas genuínas daquele santo doutor; alterando, porém, o sentido
delas, o que na realidade expôs foi a substância do calvinismo sob as aparências de uma doutrina estritamente católica. Ensinava, entre outras causas, que Deus impõe
às vezes preceitos impossíveis, e que ao mesmo tempo nega a graça necessária para cumpri-los. Contudo não imprimiu Jansênio seu livro enquanto viveu; mas ao morrer,
dispôs que se imprimisse, declarando, entretanto, que o submetia ao juízo da Santa Sé. Antes de expirar pronunciou o seguinte protesto: "Sei que o Papa é o sucessor
de São Pedro e o depositário fiel do tesouro da Igreja; quero, pois, viver e morrer na fé e em comunhão com a cadeira do sucessor do príncipe dos apóstolos, do vigário
de Jesus Cristo, do chefe dos pastores, do pontífice da Igreja universal". Segue-se dai que os erros de Jansênio devem ser efeito, antes da imprudência que da malícia.
Seus sectários, porém, longe de seguir o exemplo de seu mestre na submissão, tornaram-se orgulhosos e soberbos; ainda que condenados em diferentes vezes se mostraram
cada vez mais obstinados. Por isso tal heresia durou longo tempo e causou gravíssimos males à Igreja porque com mil subterfúgios e enganos achou modo de encobrir-se
com o manto do catolicismo.
Novas barbaridades no Japão - A perseguição suscitada contra os cristãos por Taicosama, pareceu apaziguar-se algum tanto com sua morte e a de seus sucessores. Porém
no reinado de Hogun-Sama e de seu filho, recrudesceu ainda mais, e tornou-se mui atroz. Foram postas em obra, para fazer apostatar os cristãos todas as barbaridades
que se puderam inventar. A uns, arrancavam as unhas, a outros furavam os braços e as pernas com verrumas; a muitos metiam sovelas por debaixo das unhas, e repetia-se
o tormento durante vários dias consecutivos; suspendiam-os sobre poços cheios de víboras; atavam em seus narizes canos e tubos cheios de enxofre ou de outras matérias
de cheiro insuportável, e logo ateavam fogo nelas, e sopravam para fazer fumaça e afogá-los, causando assim sufocações, convulsões e dores indizíveis. Mas não parava
ali sua crueldade, pois metiam dentro de seus corpos canos pontiagudos, e suspendendo-os, flagelavam até descobrir-lhes os ossos. Para lacerar ao mesmo tempo o corpo
e o coração das mães, davam golpes nelas com as cabeças dos próprios filhos, agarrados nos pés pelos verdugos, que, tanto mais aumentavam sua crueldade quanto mais
agudos eram os gritos daquelas inocentes vítimas. Desde o ano 1597 até 1650, calcula-se que foram martirizados mais de um milhão e duzentos mil fiéis, e com tal
gênero de tormentos que em sua comparação, a pena do fogo era considerada como uma mercê.
Castigo dos perseguidores - A justiça de Deus, porém, não deixou, como nos primeiros séculos da Igreja, de se manifestar contra os autores de tão horrenda perseguição.
Um daqueles sobre o qual mais se fez sentir, foi Brogondono, príncipe da Himbra, que a todos tinha excedido em crueldades. Ao sair de uma conferência, em que se
tinha decidido exterminar o cristianismo, foi surpreendido por agudas dores intestinais que o faziam dar horrorosos gritos e sofrer espantosas contorções. Causava
horror ver a agitação de seu corpo, as espumas que lançava pela boca, os gritos que dava e as instâncias que fazia para tirarem de sua presença a um cristão armado
de uma foice que, segundo dizia, se achava diante dele ameaçando-o continuamente. Cairam-lhe todos os dentes, e acendeu-se-lhe um fogo tão abrasador em seu corpo,
que parecia ferver o sangue de suas veias e a medula de seus ossos. Conduziram-no a um banho de água quente onde fizera perecer a muitos cristãos; porém, apenas
o mergulharam nele, ficou como cozido e morreu miseravelmente. Outros muitos perseguidores terminaram sua vida de modo a perceber-se que se viu claramente neles
o sinal da ira de Deus. Todavia, a perseguição não cessou senão quando se acreditou, que mortos já todos os ministros do santuário e extinto o clero, também se tinham
extinguido todos os cristãos. Mas estavam muito enganados. A fé cristã se manteve naquele império ainda sem eclesiásticos; e poucos anos há, tendo novamente entrado
os missionários naqueles paises, encontraram com admiração, famílias e povos de bastante consideração, inteiramente cristãos.
São José Calazans e as Escolas Pias - Escolheu Deus na pessoa de São José Calazans, um poderoso sustentáculo para a mocidade ameaçada. Nascido em Pedralta, na Espanha,
de família nobre, deu desde seus primeiros anos, claros sinais de sua futura caridade para com os meninos, e do cuidado especial que teria com eles, pois, desde
então, costumava reuni-los em redor de si, ensinar-lhes as orações e os mistérios da fé leva-los à igreja e a receber os santos sacramentos. Ordenado sacerdote,
depois de sérios estudos, correu pregando durante oito anos, diferentes províncias de Espanha. Porém avisado por visões celestiais, foi a Roma no ano 1592. Ali,
além de macerar seu corpo com jejuns, vigílias e outras austeridades, dedicou-se com ardor admirável a instruir aos meninos, a visitar e consolar os enfermos, e
aliviar aos mais abandonados. Em uma grande mortandade associou-se com Camilo de Lelis para servir aos doentes de peste. Mas, fazendo-lhe Deus conhecer que sua missão
era para os meninos pobres, para eles dirigiu suas solicitudes. Para ter herdeiros de seu zelo e caridade, instituiu, sob a proteção da Santa Virgem, uma Congregação
de religiosos, chamada dos Escolápios, pela união das duas palavras Escolas pias.
A nova congregação começava já a produzir frutos de bênção, quando o demônio se atirou furiosamente contra ela para destruí-la. O santo instituidor a susteve com
incríveis trabalhos, e exercitando de tal maneira sua paciência, que era por todos chamado um novo Jó. Ainda que Superior geral, continuou como antes, varrendo seu
quarto, limpando roupas e estendendo a cama. Nada descuidava do que pudesse contribuir para o bem de seus pobres meninos; acompanhava-os nas diversas ruas da cidade
até suas respectivas casas; ouvia-os a qualquer hora do dia, e achava-se sempre pronto para socorrê-los em todas as suas necessidades espirituais e temporais. Apesar
de sua débil saúde, perseverou durante 40 anos neste trabalhoso ministério. Costumava recomendar a todos a devoção à Bem-aventurada Virgem Maria, que foi para ele
objeto de particular veneração durante o curso de toda sua vida. Um dia, enquanto rezava com seus queridos meninos, apareceu-lhe a Santa Virgem com o menino Jesus,
em atitude de abençoá-los. Aos 80 anos de idade teve de padecer muitas aflições por parte de três religiosos, dois deles de sua congregação. Caluniado e levado ante
os tribunais, foi deposto do cargo de superior geral; porém, Deus o sustentou com sua graça e com seus celestiais favores. Esclarecido com o dom das profecias e
milagres e da penetração dos corações, morreu em Roma, aos 92 anos de idade, depois de ter predito o restabelecimento e incremento da sua ordem, que se achava quase
extinta então. Morreu a 25 de agosto do ano 1648. Seu coração e sua língua achavam-se ainda incorruptos 100 anos depois de sua morte.
São Vicente de Paulo e os Lazaristas - A caridade cristã, que já tinha operado tantas maravilhas, devia produzir outras novas, e sob certos aspetos ainda mais admiráveis,
na pessoa de São Vicente de Paulo. De humilde pastorzinho, tornou-se pelo estudo e pela virtude, digno do sacerdócio; caiu depois em poder dos Turcos e mais tarde
foi, em Paris, vítima de uma calúnia. assim aprendeu a compadecer-se das misérias dos homens. Entregue completamente ao exercício da caridade, não havia infortúnio
que não socorresse. Cristãos oprimidos pela escravidão, crianças expostas, jovens licenciosos, religiosos desamparados, mulheres caídas, peregrinos enfermos, artistas
inválidos, loucos e mendigos, todos provaram os efeitos da caridade de Vicente. Para manter em seu primeiro vigor as obras de caridade, que ia fundando, instituiu
a Congregação dos sacerdotes da Missão, apelidados Lazaristas, por assim chamar-se a casa de São Lázaro em Paris, onde a princípio viveram. Dilatou-se esta por todas
as partes do mundo com enorme proveito da cristandade. Também fundou a Congregação das Filhas da Caridade cujo fim principal foi, a princípio, a assistência dos
enfermos nos hospitais; porém mais tarde, consagraram-se ao serviço de qualquer instituição onde a caridade precisasse de seu trabalho, tais como escolas, asilos,
casa de repouso, cárceres e estabelecimentos para órfãos. Esclarecido por virtudes e milagres, passou Vicente para melhor vida, no ano 1660, aos 80 anos de idade.
Os hereges, e até os próprios ateus, não podendo negar um tributo de admiração a São Vicente de Paulo, colocaram sua estátua no Panteon dos homens beneméritos da
pátria; e Voltaire, o grande mestre da impiedade, tinha grandes elogios para com as Irmãs da caridade.
Reforma dos Trapistas - A Congregação dos Trapistas foi fundada no século XII por São Roberto sob a observância da regra de São Bento. Deve seu nome à Abadia principal
da Diocese de Sez, em França, situada em um grande vale coroado de colinas e montanhas. Durante muitos anos floresceu de tal modo a observância religiosa, que saiu
dali um grande número de santos; porém com o andar do tempo, introduziu-se nela tal relaxamento, que no século XVII já tinha perdido completamente seu antigo esplendor.
Deus, porém, suscitou, na pessoa de um douto e rico eclesiástico chamado João de Rance, um austero restaurador da primitiva observância. Tinha este, por certo tempo,
empregado seu saber e suas riquezas em favor do jansenismo, por cujo motivo levava uma vida mundana e repreensível. Compadeceu-se Deus dele. A morte repentina de
um seu parente, e o ter escapado prodigiosamente de um tiro de fuzil, fizeram-no entrar em si, e pensar no juízo divino, ante o qual todos os homens se devem apresentar.
Renunciou, pois, às vaidades do século, abjurou os sofismas do jansenismo, repartiu entre os pobres seus haveres, e vestiu o hábito do Cistér na Trapa. Feito pouco
depois superior da Abadia, dedicou-se com ânimo resoluto a remediar os abusos que nela se tinham introduzido, e com, seu exemplo e autoridade, conseguiu fazer tornar
a observância a seu antigo esplendor.
Eis uma idéia da vida dos Trapistas, em sua solidão. Sofrem muito frio no inverno porque tem sempre a cabeça descoberta e nunca se aquecem ao fogo. Padecem muito
calor no verão, pois nem limpam o suor do rosto Levantam-se a meia noite durante todo o curso do ano, e não se deitam até anoitecer. Nunca se encostam quando estão
assentados. Durante oito meses contínuos comem uma só vez ao dia; renunciam ao uso do vinho, da carne, do peixe, dos ovos, da manteiga e do azeite. Trabalham sem
descanso e em obras mui pesadas; durante as grandes solenidades salmodiam pelo espaço de doze horas; nas festividades comuns; onze, e nunca menos de oito nos demais
dias do ano. Um grosso e basto pano lhes serve de hábito no verão e no inverno. Dormem sobre tábuas nuas, observam rigoroso silêncio toda a vida, e renunciam às
notícias do século, de seus pais e amigos, demonstrando assim com os fatos, que estão realmente mortos para o mundo.
 
João de Rancé, depois de passados quarenta anos nesta penitência, morreu octogenário, no ano 1700, com a consolação de ver florescer a observância religiosa, em
seu maior auge, em toda sua congregação.
História do Galicanismo - Para ter uma idéia clara do Galicanismo ou das liberdades galicanas ou como outros dizem, da igreja galicanas, é bom remontar à sua origem.
Alguns querem fazê-la subir até os tempos apostólicos, enquanto outros pretendem que estas liberdades foram decretadas pelo rei São Luiz. Estas asserções, porém,
carecem de fundamento. O princípio do Galicanismo acha-se ligado à Pragmática Sanção do ano 1438, solenemente abolida no ano 1516, por uma concordata entre o sumo
pontífice Leão X e Francisco I. Estes princípios do Galicanismo foram mais tarde, no ano de 1682, reduzidos a verdadeiro sistema religioso em desprezo da Igreja,
sob o reinado de Luiz XIV. Este príncipe teve um reinado mais longo do que qualquer outro soberano conhecido. Efetivamente regeu os destinos da França desde o ano
1643 até 1715. Teve a mania de imiscuir-se nos assuntos religiosos, e quis, entre outras coisas, reunir os eclesiásticos mais ilustres de seus Estados, para por
um limite ao poder do Sumo Pontífice, Chefe da Igreja; como se este que recebeu do Salvador a plenitude de autoridade sobre os cristãos do mundo inteiro, tivesse
de deixá-la restringir por um monarca, cujos poderes se limitavam ao reino de França. Achavam-se, pois, naquela assembléia, reunida. em Paris, 35 bispos e 25 deputados,
e proclamaram os quatro artigos que constituem a base da chamada Igreja galicana. O quarto desses artigos assim se exprime: "Ainda que o Pontífice tenha a parte
principal nas questões de fé, e seus decretos digam respeito a todas as igrejas e a cada uma delas em particular, contudo, pode seu juízo ser corrigido se não aderir
a ele o consentimento da Igreja". Só este artigo, derruba em sua base o catolicismo, porque põe em dúvida tudo o que fizeram os Papas desde São Pedro em diante.
Dai se originaram guerras obstinadas contra a Santa Sé. Os sumos pontífices condenaram o Galicanismo, ao passo que os reis e muitos bispos franceses tomaram com
tenacidade sua defesa. Finalmente, ao definir o Concílio Vaticano, que o Romano Pontífice é infalível nas coisas concernentes à fé e aos costumes, deu fim às turbulências
que agitaram a Igreja durante duzentos anos. Os bispos de França, reunidos neste concílio com os bispos de todo o mundo, ao declararem infalível o Romano Pontífice,
condenaram o Galicanismo com todas as consequências que se pretendiam tirar dos quatro artigos principais das liberdades galicanas.
Progresso do Evangelho no Novo mundo - Quando os ministros católicos pisaram pela primeira vez aquelas vastíssimas regiões que formam o novo mundo, encontraram dificuldades
para a pregação do Evangelho e para a conversão dos selvagens; porém, quando pela ferocidade destes, foram mortos alguns missionários e começou a correr o sangue
dos mártires, viu-se logo que o derramamento de sangue seria como nos primeiros tempos da Igreja, semente fecunda de novos cristãos. Aqueles povos entregues desde
tantos séculos à embriaguez, à luxúria, ao roubo, e o que mais espanta, acostumados a comer carne humana, à medida que recebiam a luz do Evangelho, depunham sua
ferocidade, tornavam-se castos, sóbrios, piedosos, e prontos também para, derramar seu sangue por Jesus Cristo. Desde o golfo do México até o estreito de Magalhães,
nas terras banhadas pelo Maranhão e Orenoco, de três mil a três mil e seiscentas milhas, nos lugares pantanosos e nas inacessíveis montanhas dos Mossas, dos Quiquitos,
dos Baceros, e até dos Quirinanos, para o outro lado do Taman; entre os Guaranis e outros povos antropófagos, ressoou cheio de encantos, o nome de Jesus. assim,
pois, de um extremo a outro do novo mundo, renovaram-se os floridos tempos da igreja primitiva. Ano 1700.
 
CAPÍTULO VI
Irmãos das Escolas cristãs - Bento XIV. - São Paulo da Cruz e os Passionistas - Origem dos franco-maçons - Filosofia moderna - Voltaire e Rousseau.
Irmãos das Escolas Cristãs - A Igreja católica, à imitação de seu divino esposo, pos sempre especial empenho em educar as crianças e formá-las desde pequenas à virtude.
Entre a multidão de seus filhos que, inflamados neste espírito de caridade, se dedicaram de modo especial à educação da juventude, distinguiu-se o venerável João
Batista de la Salle, de Reims. Unia este, a uma vida pura e inocente tal inclinação e amor para a ciência e para a virtude, que desde muito jovem foi nomeado cônego,
doutor em teologia, e mais tarde, ordenado sacerdote. Cuidadoso em adquirir uma dignidade segura e imperecível no paraíso, renunciou ao cargo de cônego, distribuiu
quarenta mil francos de patrimônio entre os mosteiros, e dedicou-se a recolher meninos pobres e abandonados, para instruí-los na santa fé. Não podendo só ele levar
a cabo uma obra de tanta importância, chamou em seu auxilio outros companheiros, nos quais infundiu seu espírito. Desta maneira principiou a instituição dos Irmãos
das Escolas cristãs que tem por fim exclusivo a educação cristã dos meninos da classe pobre ou menos acomodada da sociedade. Esclarecido por virtude e milagres,
morreu em odor de santidade, no ano 1719, Bento XIII, considerando o grande bem que a juventude lucrava por obra desta sociedade, a enumerou entre as congregações
aprovadas pela Igreja. Gregório XVI, a pedido de muitos bispos católicos, declarou venerável a LaSalle iniciando a causa de sua beatificação. Leão XIII solenemente
o beatificou, canonizando-o no ano jubilar de 1900. O sábio fundador proibiu aos que entravam na congregação, o estudo das línguas clássicas e a ordenação sacerdotal,
para ficarem firmes na sua vocação que consiste unicamente em educar as crianças das classes elementares. Por esse motivo foram chamados, ainda que sem razão, Ignorantelli.
Bento XIV - Bento XIV foi um dos maiores pontífices que governaram a Igreja, e enquanto forem honradas a ciência e a religião, seu nome será celebrado. Eleito Papa
no ano 1740, empregou os dezoito anos de seu pontificado em combater os hereges e desfazer as tramas que os franco-maçons e os falsos filósofos urdiam contra a Religião.
Também teve muito que trabalhar para defender e sustentar os direitos da Igreja, pacificar potências inimigas, propagar e firmar a fé nas missões estrangeiras. Escreveu
muitos livros cheios de ciência e erudição; entre outros os da beatificação e canonização dos santos, das festas de Nosso Senhor Jesus Cristo da Bem-aventurada Virgem
Maria, do Sínodo diocesano, das instituições eclesiásticas e outras obras todas que merecidamente deram-no a conhecer como pontífice douto, infatigável, e promotor
das sagradas ciências. Chorado não só pelos católicos, senão também pelos hereges, morreu no ano de 1758.
São Paulo da Cruz e os Passionistas - Ovada, pequena cidade do Piemonte, sempre será célebre por ter sido a pátria de São Paulo da Cruz.. Um maravilhoso resplendor,
que durante o seu nascimento iluminou o aposento materno, foi presságio da santidade a que Deus o chamava. Menino ainda, tendo caído em um rio, salvou-o a Virgem
Maria milagrosamente. Possuído de um grande amor para com Jesus crucificado, fazia consistir todas as suas delícias na meditação da sua dolorosa paixão. Achava gozo
em macerar seu corpo com açoites, vigílias e jejuns; às sextas feiras não tomava outra bebida senão um pouco de vinagre misturado com fel. Para entregar-se todo
a Deus e servi-lo com os afetos mais puros de seu coração, renunciou aos prazeres, às riquezas e aos cargos mundanos. Revestido por seu bispo de um grosseiro hábito
que trazia impresso no peito letras e emblemas da paixão do Salvador, retirou-se para Castelazzo perto de Alexandria, a fim de levar vida penitente. Ali, inspirado
por Deus, escreveu em seis dias as regras dos Passionistas, que tomaram este nome porque, além dos três votos de castidade pobreza e obediência, fazem outro mais,
pelo qual se impõem despertar nos fiéis a memória da paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Causa admiração ver as regras que escreveu, tão cheias do espírito do Senhor
e de profunda sabedoria, tanto mais se consideramos que nosso santo não contava então mais de 26 anos e nunca tinha lido regras de outras religiões. Ainda que simples
leigo, por mandato do bispo, prestavase a catequizar os meninos e os adultos com grande proveito das almas. Aconselharam-no em Roma, a que estudasse teologia; mais
tarde foi ordenado sacerdote pelo Papa Bento XIII.
Tendo-se retirado com alguns companheiros para a solidão do monte Argentario, na Toscana, apareceu-lhe a Bem-aventurada Virgem, mostrando um hábito de cor escura;
decorado com as insígnias da paixão de seu Filho. Tomando isto por sinal claro da vontade do céu, lançou ali mesmo os fundamentos de uma nova congregação.
Teve de trabalhar muito para estabelecê-la, mas, depois de receber a aprovação da Santa Sé, sua congregação cresceu prodigiosamente e produziu abundantíssimos frutos.
Também instituiu em Castelazzo um mosteiro de sagradas virgens chamadas Passionistas. A vida destes novos apóstolos consistia em fazer missões, especialmente entre
a gente humilde do campo. assim sustentou a muitos no caminho da virtude, fez voltar ao bom caminho inumeráveis pecadores e conquistou muitos hereges. Consistia
a maior força de seus sermões, na narração da paixão de Jesus Cristo que fazia derramando muitas lágrimas e com extraordinário proveito de seus ouvintes. Um dia,
enquanto se achava pregando, ouviu-se uma voz celestial que lhe sugeria as palavras; outras vezes ouviam-se seus discursos na distância de muitos quilômetros. Seu
coração se achava tão inflamado no amor de Deus, que a parte da camisa que o cobria, encontrava-se muitas vezes como queimada, e suas costelas apareciam visivelmente
arqueadas. Celebrando a Missa, via-se com frequência arrebatado em êxtase, e às vezes com o corpo levantado do chão. Brilhou também pelo dom das profecias e das
línguas, pelo poder sobre os demônios, pelo conhecimento dos segredos do coração e pela graça de curar enfermidades. Apesar de tão austero método de vida, chegou
a uma longa e florida velhice. Já próxima sua morte, predisse os graves acontecimentos que Pio VI tinha de sofrer durante seu longo pontificado. Deixando aos seus
em testamento utilíssimos avisos, fortalecido por uma visão celestial morreu em Roma no dia predito por ele, no ano 1775, aos 82 de idade. Pio IX colocou-o no número
dos bem-aventurados, e mais tarde, como resplandecesse sempre mais pelo número de seus milagres, o inscreveu no catálogo dos santos.
franco-maçons - Costuma-se dar o nome de franco-maçons, a uma seita de homens, que para poder satisfazer com toda a liberdade suas paixões, empregam toda a sorte
de meios para combater a Religião e as autoridades civis. Os primeiros são chamados adeptos ou principiantes, e a estes não se manifesta a maçonaria senão como uma
sociedade filantrópica e de socorro mútuo. Muitas das que trazem este nome, como também outras de operários, pertencem a esta seita, embora o ignorem seus afilhados.
À medida que vão subindo de grau os levam-no ao ateísmo, à negação de toda religião, da alma, da eternidade, e lhes ensinam a por toda a sua felicidade nos gozos
da vida presente. Daí a razão porque a mocidade se deixa seduzir mais facilmente, e porque os franco-maçons desprezam os auxílios da religião, tanto em vida como
na morte. Suas reuniões costumam ser chamadas conventículos, e o lugar secreto onde se reúnem, Loja maçônica. Acredita-se que é muito antiga a origem da maçonaria;
alguns a fazem remotar até os magos do Egito dos tempos de Moises; porém, ainda que desde mui remotos tempos tenham existido sociedades secretas, cujo fim é a Impiedade
e a satisfação das paixões, contudo, a maçonaria de nossos dias não deve sua origem a muitos séculos atrás, pois, no princípio de século passado (séc. XVIII), Darvent-Water
estabeleceu a primeira Loja na Inglaterra, e mais tarde se fundaram outras em França e em toda a Europa. Uma parte de sua doutrina parece a do herege Manes, cujos
segredos e cerimônias adotaram. É um conjunto de panteísmo, materialismo, e ateísmo. Antes de admitir em seu seio a uma pessoa, fazem-lhe proferir estas palavras:
"Jura, e perjura que nunca violarás o segredo". Confirma-se este segredo por um juramento tão severo, que ao pai está rigorosamente proibido revelá-lo a seu filho
o filho a seu pai, o Irmão a irmã, a irmã ao irmão! Loucura da mente humana! Querem destruir a Deus e a Religião, e por esta mesma Religião se obrigam com juramento
ao mesmo Deus que pretendem destruir.
Clemente XII e Bento XIV condenaram, a estes fanáticos, e excitaram os soberanos para os expulsarem de seus estados. Desgraçadamente, os reis e os príncipes, se
não foram seus cúmplices, foram demasiado negligentes no cumprimento das ordens do pontífice, e muitos deles já pagaram a pena de sua culpa, porque os franco-maçons
com suas reuniões secretas, causaram e ainda causam males imensos à Religião, aos governos civis e às famílias, e pode-se dizer que são a peste do gênero humano.
Os que hoje se chamam Livres Pensadores pertencem à maçonaria! Desgraçados, os que se deixam prender nesta rede infernal.
Filósofos modernos - Outro exército posto ao serviço do espírito das trevas, e cujos adeptos pertencem em sua maior parte à maçonaria, é o dos falsos filósofos modernos.
Estes, ou são racionalistas, porque afirmam que querem seguir a luz pura da razão natural e desprezam todo o sobrenatural e toda autoridade religiosa, ou, o que
é pior ainda, negam tudo que é espírito, e não admitem outro conhecimento além da matéria. É difícil definir quais são suas doutrinas, porque não as têm. Quem ler
atentamente seus escritos, concluirá deles, que, negar a verdade, denegrir a virtude, dar impulso ao crime, arrancar do coração humano a doce esperança de alcançar
a felicidade de outra vida, é o fim substancial da decantada filosofia moderna. Os franco-maçons maquinavam secretamente; os filósofos deram-lhes as mãos e cooperaram
com sua obra em escritos públicos e com a prática de sua doutrina. Os patriarcas destes incrédulos foram Voltaire e Rousseau.
Voltaire - O fim funesto de Voltaire e Rousseau prova que Deus às vezes também se vinga dos ímpios na vida presente. Voltaire nasceu em Chatenay, pequena cidade
da França; seu verdadeiro nome e Francisco Maria Arouet. Seu pai o chamou Voltaire por ter-lhe dado algumas propriedades que tinham este nome. Cursou os estudos
em um colégio de Jesuítas onde manifestou engenho vivo, porém soberbo, e muita obstinação em suas idéias. Certo dia, um professor seu, espantado pela audácia de
seus raciocínios, exclamou: Este será o precursor da incredulidade na França. Terminado o curso dos estudos literários seu pai queria dedicá-lo aos ofícios civis,
porém Voltaire recusou e deu-se a escrever sátiras e livros imorais. Não há obscenidade à que não se tenha entregado, ou que ao menos, não tenha tratado de descrever
com as mais vivas cores por meio de seus escritos. Isto lhe causou tais inimizades e discórdias, que foi preso várias vezes e finalmente desterrado. Como a santidade
do Evangelho condenasse sua vida licenciosa, atirou-se com ódio feroz contra a religião e especialmente contra Jesus Cristo seu autor. Depois de ter cogitado mil
meios para convencer a todos que ele não acreditava em nada, teve o atrevimento sacrílego de escrever a seu amigo d'Alambert esta blasfêmia: "Ainda vinte anos e
daremos cabo de Deus" (25 de fevereiro de 1758). Enganou-se, porém, porque vinte anos mais tarde, e precisamente a 25 de fevereiro, foi surpreendido por um vômito
violento, e ele esqueceu logo sua incredulidade. Mandou chamar o cura de São Sulpício com quem se confessou e se retratou autenticamente de sua impiedade e de seus
escândalos. Livre já do perigo, voltou à impiedade; porém daí a pouco tempo caiu novamente enfermo para não melhorar. Pediu um confessor, porém seus amigos impediram
a este chegar-se à cama do infeliz moribundo. Então Voltaire, enfurecido, começou a gritar: "Estou, pois, abandonado de Deus e dos homens!" Ora invocava ao senhor,
ora blasfemava-O; agitava-se em contorções e acabou por morrer nos horrores do desespero. Ano 1778. (Lepan e Ebel, vida de Voltaire).
Rousseau - Poucos meses depois de ter falecido Voltaire, deixava de existir outro famoso incrédulo de Genebra, chamado João Jacques Rousseau. Seu pai, relojoeiro
de profissão, queria que seu filho aprendesse a gravar; mas pelo contrário não aprendeu senão a mentir e a roubar. Fugindo da casa paterna, refugiou-se na Sabóia
em casa de um sacerdote, que o recomendou à caridade do Bispo de Anecy. Vendo este que tinha Rousseau aptidões para se instruir na Religião, mandou-o à sua custa
para a casa de catecúmenos em Turim, onde efetivamente abjurou o protestantismo e abraçou a fé católica. Depois de alguns meses saiu do Colégio e empregou-se como
lacaio do Conde Solano. Por causa da sua inconstância, ocupou por pouco tempo este emprego e voltou para Anecy. Aí uma pessoa caridosa o pôs no Seminário para fazê-lo
estudar e seguir a carreira eclesiástica, à qual, segundo dizia ele, queria se consagrar. Mas foi expulso por sua inaptidão para os sagrados estudos e por sua má
conduta. Não tendo tão pouco bom êxito nos estudos literários, dedicou-se à leitura de novelas que lhe encheram a cabeça de idéias estranhas e ímpias. Como possuísse
certa vivacidade em expor seus pensamentos, acreditou que isto bastava para ser um grande filósofo, e começou a tratar toda classe de argumentos sagrados e profanos.
Como a fé cristã lhe impedisse continuar em seus escândalos, renegou toda verdade sobrenatural e enquanto viveu, procedeu como um incrédulo. Dizia com jactância
que nenhum dos homens tinha sido feito como ele; ainda mais, em sua necedade até chegara a desafiar ao Juiz eterno para encontrar um homem melhor e mais valente
do que ele. Surpreendido por um temor pânico, parecia-lhe ver espetros e homens que incessantemente o ameaçavam de morte; desesperado por isso envenenou-se. Diz-se
que, para subtrair-se ao efeito lento do veneno, acelerou sua morte com um tiro de pistola. (3 de junho de 1778).
O autor da vida de Rousseau conclui com estas palavras: "Este homem que se jactava de empregar toda sua vida em publicar a verdade, deixou um grande número de escritos,
nos quais não aparece nem uma só verdade que possa justificar o autor ante o gênero humano".
 
CAPÍTULO VII
Santo Afonso e os Redentoristas - Supressão dos Jesuítas. - Perseguição francesa - Robespierre - Pio VI.
Santo Afonso e os Redentoristas - Enquanto Voltaire e Rousseau infestavam o mundo com seus escritos ímpios, serviu-se Deus do glorioso Afonso Maria de Ligório para
iluminar e santificar aos povos. Nasceu em Nápoles no ano de 1696, e desde sua juventude manifestou-se qual luminoso modelo de virtude. Era mui exato no cumprimento
de todos os seus deveres, especialmente religiosos, comungava toda semana e ainda com maior frequência, e visitava todos os dias o SS. Sacramento. Aos 16 anos já
se achava graduado doutor em ambos os direitos e dedicava-se ao exercício da advocacia. Vendo, porém, frustradas suas esperanças de vencer uma causa, determinou
abandonar o mundo e consagrar-se a Deus no estado eclesiástico. Pregava com grande fervor, e seu próprio pai a primeira vez que o ouviu, exclamou vivamente comovido:
"Meu. filho me fez conhecer a Deus". Para formar obreiros evangélicos penetrados de seu mesmo espírito de zelo e caridade, fundou a congregação dos Redentoritas
ou do Redentor, a qual tem por fim principal instruir a gente rude, especialmente os habitantes do campo. Ainda que a seu pesar, Clemente XIII o nomeou bispo de
Santa Águeda dos Godos no ano 1762. Desde então dedicou-se Afonso inteiramente à pregação, à confissão, à oração e ao jejum. Deus deu a conhecer sua santidade por
muitos milagres. Em certa ocasião, enquanto pregava sobre a devoção à SS. Virgem, foi elevado a uma grande altura, e uma imagem de Maria apareceu radiante de luz
celestial iluminando prodigiosamente o rosto do santo pregador. Em vista deste espetáculo, todo o povo exclamou: "Misericórdia, milagre!" e em toda a igreja ressoaram
gemidos e soluços. Uma manhã, depois de celebrada a santa Missa, foi arrebatado em êxtase e ficou neste estado até o dia seguinte. Voltando a si em presença de muitas
pessoas, disse-lhes: "Vós não sabeis tudo ... fui assistir ao Papa, que acaba de morrer". Era Clemente XIV que de fato morrera nesse momento. Tudo aconteceu como
ele tinha dito. Pobre, sóbrio, penitente e austero para consigo mesmo, era doce para com os outros e mui caridoso para os pobres. Em uma carestia que afligiu Nápoles,
vendeu todos seus bens e distribuiu sua importância entre os necessitados. Esclarecidos por milagres, profecias e penetração das conciências, morreu no ano 1787,
aos noventa anos de idade.
É Santo Afonso autor de muitas obras, entre as quais se acha sua teologia moral, obra cheia de erudição, o diretório dos ordenandos, a Explicação do decálogo, a
História e refutação das heresias, as Vitórias dos Mártires, a Freira Santa, os Sermões; as Glórias de Maria, e o Amor da alma, a Visita ao SS. Sacramento; as Máximas
eternas e outras muitas. O exercício de todas as virtudes em seu mais alto grau durante toda sua vida, e a extraordinária erudição que manifesta em todos seus escritos,
considerado como martelo contra os Jansenistas e os incrédulos, foram motivo para que se proclamasse doutor da santa Igreja por decreto de 23 de março do ano 1871.
Supressão dos Jesuítas - São as corporações religiosas como exércitos da Igreja espalhados nas diferentes partes do mundo. Por isso, quando se quer combater a Religião,
costuma-se começar pelos regulares; segue depois o clero secular, os bispos e por último o chefe supremo da Igreja. Os primeiros a serem feito alvos da perseguição
foram geralmente os Jesuítas. A meado do século XVIII os franco-maçons e os mestres da incredulidade, vendo neles um grande obstáculo a seus fins, inventaram e lhes
imputaram toda espécie de calúnias. assim conseguiram fazê-los expulsar de Portugal, da Franca, da Espanha e de outros reinos; e empenharam-se ante os governos civis,
para obrigar o sumo Pontífice a suprimi-los, ameaçando-o com males gravíssimos se resistisse a seus desejos. Por isso, o Papa a seu pesar, acreditando que livraria
a Igreja de maiores males, suprimiu toda a ordem no ano de 1774. Mas em pouco tempo, muitos soberanos desejaram que os ditos religiosos voltassem a seus estados
para cuidar da juventude, pregar e cumprir os outros deveres do ministério eclesiástico. Por isso, o Papa Pio VI começou por permitir que os Jesuítas permanecessem
na Rússia, e que pudessem viver juntos em outras partes, sempre que assim o desejassem os soberanos. O sumo pontífice Pio VI, em vista do grande benefício que a
Companhia de Jesus tinha feito, e do que ainda prometia fazer no futuro, tornou a restabelecê-la e colocá-la entre as ordens religiosas outorgando-lhe aqueles favores
e privilégios que a Igreja costuma conceder, para que seus institutos possam subsistir e trabalhar no campo evangélico, conforme o fim para que foram fundados.
Perseguição francesa - Os franco-maçons, depois da supressão dos Jesuítas, puderam com maior facilidade desfazer-se dos demais religiosos, abolir em França toda
autoridade civil, matar a seu próprio soberano, e apoderar-se eles mesmos do poder. Entre outras causas, exigiam de seus súditos um juramento contrário às regras
da fé, o qual não podendo ser admitido pelos bons, motivou uma cruel perseguição. Milhares de cidadãos foram afogados ou guilhotinados sem processo algum, reservando-se
aqueles bárbaros processá-los depois, para saber se os que morreram eram culpados ou inocentes. Segundo o costume, a perseguição assanhouse, de modo especial, contra
os eclesiásticos. Estes heróis magnânimos, êmulos dos mártires da Igreja primitiva, mostraram-se prontos a sofrer todo gênero de suplícios. Alguns foram desterrados,
outros presos ou condenados ao patíbulo. Um verdugo, ao ver entre a multidão um que parecia sacerdote, dirige-se a ele e lhe pergunta:  
- És sacerdote?
- Sim, responde; é esta a minha glória.
- Juraste?
- Jurar! Horroriza-me só pensar nessa palavra!
- O Juramento ou morte; juras ou morres.
- Juro aborrecer esse juramento ímpio e sacrílego; mata-me ... te perdôo. - E dizendo isto caiu por terra coberto de feridas.
Aqueles monstros sedentos de sangue humano, entravam nos claustros, nas congregações e nos seminários, prendiam e estrangulavam a todos os que encontravam na sua
passagem. Aboliram os dias consagrados à religião, mudaram o nome das semanas, dos meses, e dos anos; prostraram por terra toda a autoridade, e o rei Luiz XVI foi
deposto, preso e decapitado. As igrejas foram profanadas e destruídas; as cruzes, as relíquias, os vasos sagrados, os próprios sacrossantos mistérios, sacrilegamente
pisados, e nos altares do Deus vivo, onde se devia celebrar a santa Missa, foi colocada uma mulher infame e adorada como a deusa razão. Tudo era sangue e estragos;
havia ameaça de morte para quem ainda desse a conhecer que professava a religião católica. Os esforços dos ímpios, porém, infringiram-se contra aquela pedra, sobre
a qual Jesus Cristo fundara sua Igreja. Entre tantos desastres a religião foi duramente provada; porém não pereceu.
Robespierre - Maximiliano Robespierre foi o primeiro autor da perseguição francesa e dos graves males de que esta foi causa. Nasceu na cidade de Arras e seguiu a
carreira de advogado; orador excelente, mas sem entranhas, facilmente conseguiu fazer-se chefe do partido sanguinário. Experimentava um grande prazer em condenar
homens e mulheres à guilhotina, e gostava de vê-las morrer em grande número nas mãos dos verdugos. Diz-se que este monstro infame se alimentava de carne humana,
e que se ufanava em trazer calçados feitos da pele de suas vítimas. Quis a Providência de Deus que tantas impiedades fossem castigadas, também aqui na terra com
uma morte que mostrasse visivelmente os sinais de sua vingança. Robespierre depois de ter feito assassinar a seu soberano, exerceu durante 18 anos tiranias inauditas;
finalmente chegou a ser odiado pelos mesmos que o aplaudiam; instauraram contra ele um processo e foi condenado à guilhotina. Para evitar a afronta de morrer publicamente,
qual outro Nero disparou contra si uma pistola; a bala atravessou-lhe o queixo, mas não morreu. Definhou algum tempo no cárcere, sofrendo horrivelmente, até que
levado à praça pública, entre os insultos da plebe, cortaram-lhe a cabeça no ano de 1794.
Pio VI - Ao Papa Clemente XVI sucedeu Pio VI, que, depois de Pio IX e Leão XIII, foi o Papa que teve mais longo pontificado, mas cheio de desgostos e amarguras.
Eleito no ano de 1775, cumpriu com zelo infatigável as funções de supremo Pastor, consolando a uns, ajudando a outros e animando todos a permanecerem firmes na fé.
Durante seus últimos anos de pontificado teve de sofrer toda sorte de crueldades, perseguições, e insultos da parte dos Franceses. Dirigidos estes por Napoleão I,
invadiram a Itália e depois de terem despojado e profanado os mais venerandos santuários, entraram em Roma para apoderar-se do Papa, abusando da palavra que tinham
dado de não insultar a Roma, nem a seu soberano. Achava-se o Papa celebrando os divinos ofícios, vestido pontificalmente, quando levaram a seu conhecimento a abolição
de sua autoridade civil; ao mesmo tempo lhe tiraram suas guardas romanas e as substituíram por soldados franceses. O general Berthier teve o atrevimento de querer
vestir o Papa de repuplicano, pondo-lhe uma insígnia tricolor; porém o magnaneme Pontífice lhe respondeu: "Eu não conheço outra insígnia senão aquela com que fui
honrado pela Igreja. Podeis oprimir meu corpo mas minha alma é superior a todo atentado... Podeis queimar e destruir as habitações dos vivos e o túmulo dos mortos,
a religião, porém, é eterna; ela existirá depois de vós, como existiu antes; e seu reinado durará até a consumação dos séculos ... " Ano 1798.
 
CAPÍTULO VIII
Perseguição em Roma - Rapto e padecimentos de Pio VI - Sua morte gloriosa - Regras disciplinares desta época.
Perseguição em Roma - Declarada a destronização do Papa, os comissários franceses se apoderaram de sua pessoa e deram começo ao saque do palácio pontifício. As bibliotecas
preciosas e raras ali existentes, foram vendidas por preço vil depois de terem sido quebradas as estantes e armários que as continham. Vendo-se burlados por não
achar o ouro, nem as jóias que ali esperavam encontrar, apresenta-se o calvinista Haller ao Papa e diz-lhe em tom de ameaça: "A república romana vos intima que me
entregueis já vossos tesouros: dai-mos pois". - "Eu não possuo tesouro algum". "Não ostentais dois formosos anéis nesse dedo?" Entregou-lhe um deles o Papa, dizendo-lhe:
"Não posso entregar-vos o outro, porque deve passar a meus sucessores". Eram o anel do pescador que costumam usar os Papas para firmar ou selar os papéis de maior
importância. Mas foi necessário que também fizesse entrega dele. Os cardeais, os bispos e outros prelados foram encarcerados ou desterrados. assim a Igreja Romana
insultada em seu chefe e em seus membros, achava-se exposta a uma perseguição tão injusta como cruel; e em vez de se ouvirem em Roma as glórias de Deus, como quando
se achava em poder do Papa, viam-se em suas ruas procissões obcenas, e se cantavam hinos à mais desenfreada licença.
Rapto e padecimentos de Pio VI - O perseguido, porém sempre grande Pontífice, em vista de sua avançada idade de 80 anos, de sua saúde alquebrada e de suas doenças,
deixava entrever um grande desejo de morrer em Roma, e não queria obedecer à ordem de partir. Mas o bárbaro Haller replicava: "Eu não ouço razão nem pretexto algum.
Se não quiserdes partir por amor, vos faremos partir por força". Na espantosa noite de 28 de fevereiro de 1798, durante uma horrenda tempestade, encerrado em miserável
carro, privado de seus ministros e entregue em mãos de dois comissários, o Papa foi tirado secretamente de Roma para não voltar mais. Levaram-no primeiramente a
Monterosso, depois a Viterbo, dali a Sena, e finalmente a um convento de Cartuxos perto de Florença. Era conduzido escravo por seus inimigos, os quais buscavam todos
os meios para que não fosse conhecido. Sem embargo, por todas as partes onde passava recebia as mesmas honras como se o levassem em triunfo. Sacerdotes e leigos,
ricos e pobres, homens e mulheres, velhos e moços, sãos e enfermos, ocupavam em todas as partes, campos e caminhos, subiam às árvores, e com as mãos juntas e de
joelhos pediam a bênção ao glorioso prisioneiro. Visitaram-no na Cartuxa de Florença o rei Manoel IV e a venerável Clotilde, rainha de Sardenha. Ambos se ajoelharam
a seus pés, apesar dos esforços que fizera o Papa para levantá-los. "Neste ditoso momento: disse o rei, eu esqueço todas as minhas desgraças, já não me queixo de
ter perdido o trono; tudo eu encontro a vossos pés". Querido príncipe, respondeu o Papa, tudo é vaidade exceto amar e servir a Deus. Levantemos, nossos olhos para
o céu; ali nos esperam tronos que nos não poderão tirar". "Vinde conosco à Sardenha, dizia-lhe a piedosa rainha, ali encontrareis em vossos filhos o respeito que
merece tão terno Pai". Porém, como podia livrarse das mãos daqueles ladrões? A 27 de março de 1799, tiram o Papa de Florença e levam-no, durante quatro meses seguidos,
de aldeia em aldeia, passando montes e pousando em cabanas, à mercê de uns homens que lhe faziam padecer toda espécie de martírios. Perto de Turim viu-se o carro
obrigado a estacar, pois lhe estorvara o passo a multidão de fiéis que acudia a receber a bênção Papal. Os desnaturados comissários franceses que o acompanhavam,
quiseram que continuasse a viagem, ainda que por um ataque de paralisia ficasse já imóvel a metade de seu corpo. Finalmente a 14 de julho chegou a Valença, termo
de sua viagem, lugar de sua prisão e fim de sua vida.
Morte de Pio VI - Depois de tantas viagens e fadigas, depois de tantos trabalhos e insultos, de tantos transtornos, devia receber este ilustre mártir a recompensa
devida a seus padecimentos. O arcebispo Spina, ao aproximar-se para administrar-lhe o santo Viático, perguntou-lhe se em presença de Jesus Cristo perdoava a seus
inimigos. Ao ouvir estas palavras, o santo pontífice levantou seus olhos para o céu, e fitando-os logo em um crucifixo que sempre tinha em sua mão: "De todo coração,
respondeu, de todo coração". E chamando em seu derredor todas as pessoas da casa, abençoou-as enquanto se achavam de joelhos e chorosos, com a tríplice e última
bênção. Pediu que lessem as orações dos agonizantes, que acompanhou devotamente. Conservando sempre a mesma serenidade de rosto, dormiu no Senhor aos 81 anos de
idade, a 29 de agosto de 1799, depois de 24 anos e meio de pontificado. Quando se espalhou a notícia de sua morte, correu o povo, em massa, à capela onde se achava
o cadáver. Todos queriam possuir alguma coisa que tivesse pertencido ao santo Pontífice. Buscavam com avidez suas vestes, seus cabelos e outros objetos que lhe haviam
pertencido e, não, encontrando já coisa alguma, punham sobre o féretro medalhas, véus, paninhos, livros, rosários, e os levavam para suas casas como relíquias. Entre
as orações, os votos, a alegria e tristeza ouvia-se exclamar por toda parte: "É um mártir! É um mártir!" Em seu sepulcro escreveram o seguinte epitáfio:
AQUI JAZ PIO VI PONTÍFICE MÁXIMO CHAMADO NO SÉCULO JOÃO ANGELO DE CESENA O QUAL NA DURAÇÃO DO PONTIFICADO EXCEDEU A TODOS OS OUTROS PONTÍFICES GOVERNOU A IGREJA
XXIV ANOS, VI MESES E XIV DIAS SANTAMENTE MORREU EM VALENÇA EM UMA FORTALEZA ONDE ESTAVA GUARDADO COMO PRISIONEIRO DOS FRANCESES, HOMEM DE MARAVILHOSA FORÇA DE ANIMO
E DE CONSTÂNCIA  EM VENCER OS MAIS PENOSOS  TRABALHOS.
Regras disciplinares da quinta época - No século XVI publicou Paulo IV um índice dos livros proibidos. São Pio V ordenou que todos os anos no primeiro domingo de
outubro se celebrasse a festa do Santíssimo Rosário. Gregório VII empreendeu a correção do calendário Romano, deixando onze dias no mês de outubro do ano 1582. Isto
fez, porque não se havia observado até então com suficiente precisão, que nosso globo emprega em dar sua volta anual ao redor do sol 365 dias e 6 horas menos alguns
minutos; depois de alguns séculos a soma destes minutos chegou a formar 11 dias a mais, e o ano já não ia de acordo com a revolução do nosso globo. Por isto se transportou
o equinócio da primavera de 11 a 21 de março. Desde então todo o mundo cristão, excetuando a Rússia, começou a usar o calendário gregoriano. Urbano VIII reduziu
o breviário a melhor forma e deu aos cardeais o título de eminência. Clemente XIII, no ano de 1759, ordenou que nos domingos que não tivessem prefácio próprio, se
dissesse o da Santíssima Trindade.
 
SEXTA ÉpocA
Desde a morte de Pio VI no ano 1799, até Concílio Vaticano, no ano 1870. (Encerra um período de 282 anos.)
 
CAPÍTULO I
Pio VII - Desavenças com Napoleão - Prisão de Pio VII.
Pio VII - Quando se deu a morte de Pio VI, os repuplicanos franceses tinham-se assenhoreado de Roma e de toda a Itália. O chefe da Igreja morrera no desterro, os
membros do sacro Colégio achavam-se encarcerados ou dispersos; como se poderia eleger um pontífice? Não temamos; Deus que governa sua Igreja, saberá inutilizar os
esforços dos homens. Efetivamente dali a pouco um exército austríaco ataca os franceses, expulsa-os de Roma e da Itália e os encerra em um estreito desfiladeiro
entre a Ligúria e o Piemonte. Postos então em liberdade os cardeais, se reunem em Veneza e elegem para ocupar o trono de São Pedro ao cardeal Chiaramonti de Cesena,
que tomou o nome de Pio VII. Dirige-se este a Roma e toma de novo, com a maior solenidade, posse do poder temporal que lhe dera Deus para conservar a independência
de seu ministério, entre as homenages e as felicitações dos soberanos. Logo que os Austríacos cumpriram sua missão, travou-se a batalha de Marengo, e apesar de seu
número e valor, são derrotados e desaparecem da cena. Prova evidente de que Deus lhes deu no primeiro encontro a vitória somente para o bem da Igreja, isto é, para
que se pudesse eleger o novo Papa e tomasse novamente posse de Roma. Ano 1800.
Desavenças entre Pio VII e Napoleão - Cansada já a França de seus tiranos nomeou cônsul a Napoleão Bonaparte, que manifestava vontade e valor suficientes para restabelecer
a ordem naquele reino mergulhado em tanta confusão. Cessa então a guilhotina, mitiga-se muito a perseguição, extingue-se o cisma constitucional e a França entra
de novo na unidade católica. Bonaparte, porém, estimava talvez a religião somente enquanto servia a suas ambições. Firmou efetivamente uma concordata com o romano
pontífice, que foi violada no ato mesmo de sua publicação, pois a acompanhou de certos artigos, chamados orgânicos, que contrastam com a própria concordata. Tendo-se
feito proclamar imperador, pediu ao Papa que fosse a Paris para sagrá-lo. Pio VII titubeou longo tempo, e não se resolveu a ir senão abrigando a esperança de reprimir
graves desordens e impedir muitos males que ameaçavam a Igreja. Por esse motivo saiu de Roma no ano 1804 e depois de ter atravessado a França, entre grandíssimas
honras e aplausos, entrou em Paris e pos a coroa imperial sobre a cabeça de Napoleão. Este correspondeu à condescendência do Papa com monstruosa ingratidão. Para
conseguir que o Papa o coroasse, protestou que queria ser filho obedientíssimo da Santa Sé; porém assim que foi coroado escreveu cartas injuriosas ao Papa, e poucos
anos mais tarde fez marchar suas tropas sobre Roma.
Depois da paz dada à Igreja por Constantino o Grande, Constante II protetor dos hereges monotelitas, foi o primeiro dos imperadores que, usando da violência, tirou
de Roma ao sumo Pontífice, Napoleão quis ser o segundo. Pretendia este que o Papa lhe outorgasse coisas contrárias aos direitos da Igreja e ao bem da religião. Tendo-se
recusado a isto o Papa, o imperador assalta Roma, apodera-se dela, rouba as obras principais de maior preço, entra à viva força no palácio Papal, desterra ou faz
encarcerar a seus ministros, bispos ou cardeais, e encarrega ao general Radet da empresa sacrílega de se apoderar do Papa. Durante a noite um corpo de soldados escala,
quais ladrões noturnos, o palácio pontifício, derrubam a machadas as portas, quebram as janelas e penetram no aposento do sucessor de São Pedro. Radet rodeado dos
seus, ordena ao pontífice que saia imediatamente de Roma. Pio VII levanta os olhos para o céu e cheio de confiança n'Aquele que assiste a Igreja, entrega-se assim
como estava nas mãos de seus inimigos, que o prendem com chave em um coche entre guardas, como se costuma fazer com os malfeitores. Ano 1809.
Prisão de Pio VII - O mortal Pio VII, durante seus cinco anos de cativeiro, mostrou-se sempre intrépido confessor da fé. Durante a viagem aconteceram vários acidentes.
Perto de Florença, por inexperiência dos cocheiros, virou com ímpeto o coche ao passar sobre uma elevação de terra e o Santo Padre caiu debaixo das rodas e teria
sido esmagado, se Deus não o protegesse. Ficou três anos prisioneiro em Savona, e depois (1812) ordenaram-lhe que partisse para Fontainebleau, em França. Trataram-no
durante o caminho com os modos mais bárbaros, obrigando-o a viajar dia e noite sem lhe permitir sair do veículo. Isto foi causa de arruinar sua saúde e estar a ponto
de morrer. Ao aproximar-se de Turim, parecia que tinha chegado o fim de sua viagem, e no Monte Cenis lhe administraram a extrema unção, não obstante isto, não pode
gozar de um momento de descanso. Chegado a Fontainebleau, separado dos seus conselheiros, rodeado por pessoas que tinham sacrificado sua fé e seu pudor ao despotismo
de Napoleão, oprimido por ameaças, e segundo contam, até pelos golpes do ambicioso Imperador, assinou um escrito pelo qual deixava a nomeação dos bispos, isto é,
dos pastores das almas, em mãos do poder civil. Mas arrependido logo do feito, revogou valorosamente o que firmara, e triunfou a fé.
Sua volta a Roma - Não podendo Napoleão seduzir o Papa a fim de secundar seus malvados propósitos, e como começassem de outra parte a sair-lhe mal suas empresas
militares, achou conveniente restituir à liberdade àquele que de maneira alguma tinha podido vencer. O intrépido pontífice Pio VII, depois de cinco anos de prisão,
de trabalhos, de ultrajes e de insultos, saiu finalmente de Fontainebleau para voltar à sua sé de a 23 de janeiro de 1814. Ao passar uma ponte sobre o Rodano entre
Beaucoure e Tarascon, ensurdecido pelos gritos de alegria com que o povo saudava ao Santo Padre em sua passagem, o coronel Lagone perguntou: "Que farieis se passasse
por aqui o imperador? - Dar-lhe-iamos de beber", responderam a uma voz, mostrando o rio que corria a seus pés. Depois de quatro meses de viagem, entrou Pio VII solenemente
na cidade eterna, com indizível alegria de Roma e de todos os bons.
 
CAPÍTULO II
Queda de Napoleão - Seus últimos dias - Morte de Pio VII.
Queda de Napoleão - A história nos demonstra claramente que o favorecer a religião é o princípio da grandeza dos soberanos, e que ao contrário, persegui-la é causa
de sua ruína. Napoleão não o queria crer, porém os fatos lhe provaram. Seu imenso poder fazia tremer a toda Europa e era seu nome temido em todo o mundo. Quando
soube que Pio VII o queria excomungar por suas violências contra a Igreja e seus ministros, dizia em tom de mofa: "Pensa talvez o Papa que a excomunhão fará cair
as armas das mãos de meus soldados?" Porém as censuras da Igreja, tarde ou cedo, produzem inexoravelmente seu efeito. A ambição levou de fato a Napoleão até as extremidades
da Rússia, onde os quatrocentos mil homens, que compunham seu exército, morreram em sua maior parte pelo ferro, pela fome ou pelo frio. O general Ségur, um dos chefes
daquele formidável exército, deixou escrito: "Os soldados mais valentes, gelados de frio, já não podiam segurar as armas e estas caíam lhes das mãos." Sublevou-se,
entretanto, a Europa contra Napoleão como contra um inimigo comum. Os mesmos que, por meio da força, se tinham aliado a ele, o abandonam arrojam-no da Alemanha,
da Espanha e da Suiça; perseguem-no seus inimigos e penetram, em sua perseguição, até o coração da França. Feito prisioneiro e conduzido a Fontainebleau, naquele
mesmo palácio onde tinha guardado preso o Santo Padre, e naqueles mesmos lugares onde tinha acabrunhado de angústia e de dor ao Vigário de Jesus Cristo vê-se obrigado
a subscrever a ata de sua abdicação.
Últimos dias de Napoleão - Ainda que Napoleão durante o tempo de sua prosperidade tivesse perseguido a Religião na pessoa de seu Chefe visível, contudo, quando se
acalmou nele a ambição e pode refletir sobre a vaidade das grandezas humanas, parece que caiu em si e reconheceu seus erros. Pio VII depois de lhe ter perdoado sinceramente,
se interpôs ante os Ingleses para mitigarem as penas de seu cativeiro; e para despertar sentimentos religiosos no coração daquele filho extraviado, enviou-lhe um
eclesiástico para absolvê-lo das censuras e o guiasse no cumprimento de seus deveres religiosos. Reconheceu então Napoleão a mão do Senhor que o tinha humilhado
e vendo próximo seu fim, exclamava: "Eu nasci na religião católica, desejo ardentemente cumprir os meus deveres e receber os socorros que ela oferece." Depois de
ter recebido os últimos sacramentos, pronunciou estas palavras: "Estou satisfeito, eu precisava disto; eu não pratiquei a religião no trono porque o poder transtorna
aos homens, porém sempre conservei a fé; eu queria que ficasse sempre escondida, mas isto era fraqueza; agora desejo por ela glorificar a Deus." Morreu aos 5 de
maio do ano 1821.
Atribuía Napoleão sua queda aos ultrajes feitos ao Chefe da Igreja: "O Papa, costumava dizer, não tem exércitos; porém é uma potência formidável. Tratai-o como se
tivesse atrás de si duzentos mil homens, sob as armas." Outras vezes costumava acrescentar: "O catolicismo é a religião do poder e da sociedade. A religião católica
é uma mãe de paz e de amor." (Memórias de Santa Helena).
Morte de Pio VII - Pio VII, de volta de seu cativeiro, empregou o resto de seus dias em reparar os danos que as lojas maçônicas e Napoleão tinham causado à Igreja.
Entre outras coisas aprovou a obra da pregação da Fé, que tem por fim socorrer aqueles animosos sacerdotes, que abandonam sua pátria, riquezas, pais e amigos, e
vão a missões estrangeiras, unicamente para ganhar almas a Jesus Cristo. Tinha oitenta e um anos de idade, quando por uma queda em seus próprios aposentos quebrou
um fêmur. Fortalecido com todos os auxílios da religião e cheio de merecimentos entregou sua alma a Deus a 20 de agosto de 1823 no ano vigésimo quarto de seu pontificado.
Vítima de uma longa série de injustiças, cansou a seu inimigo com sua paciência e honrou a religião com sua nobre firmeza.   
Contam-se deste pontífice muitos fatos prodigiosos; entre outros um que se refere a Pio IX, chamado então João Maria Mastai, dos condes de Ferretti. Como não pudesse
este seguir a carreira eclesiástica por sofrer de epilepsia, recomendou-lhe o santo pontífice que fizesse uma novena à Santíssima Virgem, ao passo que ele também
rezaria na santa missa por ele. Concluída a novena, voltou o jovem Mastai, e o pontífice pondo a mão sobre sua cabeça, disse-lhe: "Tranquilizai-vos, já não padecereis
mal algum." Efetivamente ficou perfeitamente curado.
 
CAPÍTULO III
Leão XII e Pio VIII - A Igreja Ortodoxa da Rússia - Perseguição contra os católicos nesse império - Gregório XVI e o imperador Nicolau.
Leão XII e Pio VIII - Sucedeu a Pio VII o cardeal Anibal de Genga, natural de Espoleto o qual tomou o nome de Leão XII. Seu pontificado durou cinco anos e cinco
meses incompletos. Amava muito aos pobres e o mesmo dia em que o coroaram preparou-lhes um esplêndido jantar no Vaticano. Tomou muito a peito o cuidado dos institutos
de beneficência pública, aos quais visitava" com frequência e provia de todo o necessário. Ia às vezes visitar, sem aviso prévio as igrejas e os hospitais, para
certificar-se se as pessoas ali empregadas cumpriam seus deveres com regularidade. No ano do jubileu (1825) beatificou a quatro servos de Deus, isto é: a Agostinho
Juliano e a Angelo de Acri da ordem de São Francisco, a Afonso Rodriguez, jesuíta, e a Hipólito Galantini, fundador da Congregação da doutrina cristã. Certo dia,
enquanto ainda gozava de boa saúde, disse a um de seus familiares: "Daqui a alguns dias já não nos veremos mais." Os fatos demonstram a verdade de sua predição.
Tendo enfermado, pediu os últimos sacramentos e depois de algumas horas de, tranquila agonia, descansou no seio de seu Criador. Ano 1829.
O Cardeal Castiglioni que sucedeu a Leão XII, sob o nome de Pio VIII, morreu santamente aos vinte meses de seu pontificado. Sucedeu-lhe o Cardeal Mauro Capellani
de Belluno, da ordem de São Bento, que se chamou Gregório XVI. Ano 1831.
Igreja ortodoxa da Rússia - Entre os muitos acontecimentos que se desenrolaram sob o pontificado de Gregório XVI, merece particular menção o que se refere à chamada
igreja russa ortodoxa. Ortodoxo é aquele que pensa com retidão. Pois bem, a Igreja católica que conserva e prática o santo Evangelho, tal como o ensinava Jesus Cristo,
e a única que pensa e sente retamente; logo ela só se deve chamar ortodoxa. Heterodoxo quer dizer, ao contrário, o que pensa ou sente diversamente; por isso a igreja
russa, cismática e herética, deve chamar-se heterodoxa, porque pensa e crê diversamente do reto e verdadeiro.
Para fazermos uma idéia precisa sobre a origem da igreja russa, devemos recordar que pouco depois da celebração do Concílio ecumênico de Florença, no ano 1439, e
precisamente em princípio do século décimo sexto, começou o cisma russo, sob o imperador Basílio III. Este, procedendo, com completa independência da Santa Sé, elegeu
um patriarca na cidade de Moscou, e decretou que unicamente a este patriarca deviam obedecer todas as outras igrejas de seu império. Mais de uma vez trabalharam
os Papas para restituir este reino vastíssimo ao rebanho de Jesus Cristo, porém sempre durou pouco a conciliação. Finalmente, o imperador Pedro, o Grande, vendo
que as desordens políticas diariamente cresciam pela falta de um chefe supremo nos assuntos religiosos, depois de ter trabalhado inutilmente para induzir ao patriarca
e aos bispos, a que se submetessem ao pontífice romano, deliberou acrescentar à coroa Imperial o poder de soberania suprema, fazendo-se desta maneira ele ,mesmo,
Papa e juiz em todos os assuntos religiosos. Por isso no ano 1720, transladou a capital do império para São Petersburgo, e a erigiu como centro da autoridade civil
e religiosa, e estabeleceu uma liturgia sob o nome de Estatuto Eclesiástico, onde se acham contidos os mesmos erros de Fócio.
Estabelece como base de seu estatuto uma inteira liberdade de consciência. São admitidas neste império todas as seitas cristãs, o maometismo é até a própria idolatria.
E com o fim de retrair cada vez mais seus súbditos da obediência ao Pontífice romano, ordenou que não se desse cargo político ou religioso a pessoa alguma que não
pronunciasse este juramento: "Confesso e confirmo sob juramento, que o juiz supremo da autoridade religiosa é nosso monarca, senhor absoluto de todas as Rússias."
Os soberanos da Rússia, chamados autocratas ou senhores absolutos, deixaram por algum tempo aos católicos a liberdade de praticar sua religião; porém paulatinamente
pretenderam mandar sobre as consciências, de tal sorte que no pontificado de Gregório XVI, chegaram a uma perseguição aberta.
Perseguição na Rússia - No ano de 1825 subiu a ocupar o trono das Rússias Nicolau I, homem digno de elogio sob muitos respeitos. A mania, porém, de constituir-se
juiz supremo em matérias religiosas tinha-o induzido a oprimir a seus súditos católicos, cujo número passava de quinze milhões. Começou fazendo crer que de acordo
com o Papa, suprimia o ensino entre os católicos, e os obrigava a frequentar as escolas cismáticas; em seguida proibiu a seu súditos cismáticos fazerem-se católicos
e aos católicos pregar sua religião e professá-la publicamente. Feito isto, pôs-se de acordo com três bispos católicos entregues às vaidades e amantes das riquezas,
os quais seduzidos por ele, apostataram, e em consequência dessa sacrílega submissão mandou o imperador que todos os outros usassem em suas respectivas dioceses,
os ritos, breviários, missões e práticas religiosas seguindo a liturgia do império.
Muitos sacerdotes, párocos e bispos, se declararam contra semelhante impiedade, porém foram logo depostos, despojados de seus bens, encerrados em horrendos calabouços,
ou desterrados para a Sibéria, o que equivalia a condená-los a morrer de frio ou a força de sofrimentos. Embora ficassem privadas as dioceses de seus bispos, o povo
permaneceu por algum tempo firme na fé, mesmo no meio das perseguições, de sorte, que muitos morreram por confessá-la; porém, tendo ficado como ovelhas sem pastor,
muitos caíam no cisma; na Rutênia e na Lituânia, prevaricaram miseravelmente uns três milhões. No ano de 1839, festejava-se com solenidade no império russo esta
deplorável apostasia, ao passo que os católicos do mundo inteiro choravam tamanho mal e rogavam a Deus que se compadecesse da Rússia.
Gregório XVI e Nicolau da Rússia - Enquanto durou esta perseguição, Gregório XVI não poupou meios, para opor a tão grave mal os remédios que podia. Escreveu aos
bons animando-os; lançou em rosto aos bispos sua traição, e mandou numerosos súditos aos que tinham sido despojados. Com este fim fez uma alocução em que censurou
a crueldade e a injustiça daquele governo e do próprio Nicolau. Tendo feito este imperador uma viagem à Itália, quis visitar duas vezes aquele homem, que embora
inerme, fazia, contudo, tremer com sua palavra os mais poderosos monarcas da terra. O digno vigário de Jesus Cristo acolheu com as devidas considerações ao poderoso
monarca. Falaram largo tempo de coisas concernentes à religião. Admirou Nicolau a sabedoria e virtude do pontífice; porém se escusou dizendo que motivos políticos
o tinham levado a tomar aquelas graves deliberações contra os católicos. O santo Padre lhe disse com gravidade: "Príncipe, a política foi feita para o tempo, a religião
para a eternidade. Dia virá em que ambos nos apresentaremos a Deus para lhe prestarmos conta de nossas obras. Eu, como mais avançado em anos, serei indubitavelmente
o primeiro; porém não me atreveria por certo a sofrer as vistas de meu Juiz se não tomasse hoje a defesa da religião que me foi confiada e que vós oprimes. Príncipe,
Deus criou os reis para serem pais e não tiranos dos povos que lhes obedecem". Estas palavras repercutiram com espanto nos ouvidos e no coração de Nicolau. Saiu
perturbado da presença do pontífice e se comoveu até derramar lágrimas. Prometeu dar aos católicos liberdade de professar sua Religião, e de manter relações com
a Santa Sé. Iniciou além disso uma concordata com Roma em que se estabeleciam diversos bispados, com jurisdição livre. A morte de Gregório, em 1º de Janeiro de 1846
interrompeu as negociações que foram levadas mais tarde a feliz termo por Pio IX. Em pouco tempo, porém, tornou-se a acender o ódio que a Rússia sempre nutrira contra
a fé católica.
 
CAPÍTULO IV
Eleição de Pio IX - Anistia e aplausos - Revolução em Roma - Pio IX em Gaeta - República Romana - Roma liberta - Volta do Sumo Pontífice à Roma.
Eleição de Pio IX - Um dos maiores pontificados e dos mais esplêndidos, é sem dúvida alguma o de Pio IX. Nasceu em Sinigaglia no ano de 1792, da família dos condes
Mastai Ferretti e se chamou João Maria. Jovem ainda, tinha ido a Roma para alistar-se no exército pontifício; porém sua abalada saúde impediu-lhe a realização de
seu desígnio. Mas Deus que o chama para grandes coisas, o curou como temos visto, para que pudesse alistar-se na milícia sacerdotal. Desde jovem já brilhava em João
todo gênero de virtudes; a devoção à Bem-aventurada Virgem formava todas as suas delícias. Digno ministro de Jesus Cristo prontamente conheceu a grande necessidade
que tem a juventude de ser educada; e para este fim consagrou os primeiros trabalhos de seu grande ministério. Tomou conta em Roma da direção e administração de
dois grandes institutos, conhecido um sob o nome de Tata Giovanni e outro de São Miguel em Ripagrande, onde se albergam centenas de meninos pobres. Uma difícil missão
levada a cabo no Chile por comissão de Pio VIII demonstrou o grande talento e a rara habilidade que possuía no manejo dos grandes negócios. À sua volta do Chile
foi nomeado bispo, e finalmente no ano 1840 criado cardeal. A morte de Gregório foi, quase, por unanimidade de votos, proclamado pontífice a 16 de junho de 1846
dois dias depois de terem entrado para o conclave os Cardeais, e tomou o nome de Pio IX. Para narrar devidamente os feitos deste incomparável pontífice seriam necessários
muitos e avultados volumes; limitaremo-nos, pois, a indicar alguns.
Anistia e aplausos - Assinalou Pio IX sua eleição com um ato de clemência por meio de uma anistia, isto é, de um perdão geral, a todos os que durante o pontificado
de Gregório XVI se tinham tornado culpados de rebelião contra o estado. Assim, pois, muitos desterrados e muitos presos puderam livremente voltar ao seio de suas
famílias. Introduziu igualmente algumas reformas no governo civil de seus Estados. Estes atos de clemência fizeram ressoar seu nome em todas as partes acompanhado
de um sem número de aplausos. Alegravam-se os bons com aqueles sinais de obséquio ao supremo pastor da Igreja, porém os malvados guiados pela estranha idéia de formar
uma Jovem Itália, ou o que é o mesmo, uma república italiana, aproveitaram-se daqueles mesmos favores em seu prejuízo. Muitos dos que já tinham perturbado a paz
em outros paises, foram a Roma e sob o pretexto de unir seus aplausos aos que todo o mundo tributava ao grande Pio IX, faziam o possível para induzi-lo a declarar
guerra à Áustria. Sendo o Papa pai espiritual de todos os fiéis, nunca poderá resolver-se a declarar guerra, senão em defesa da religião ou de seu povo; porque os
soberanos e os povos, a quaisquer pais que pertençam são sempre seus filhos. "Saiba o mundo que nós amamos a independência da Itália, porém nunca nos deixaremos
levar a uma declaração de guerra ou a derramar sangue para consegui-la." Fez, pois, o Papa tudo o que convinha a seu ofício de pai.
Revolução em Roma - Em vista disto, os autores dos aplausos, os que tinham levantado estrondosos vivas, começaram por pedir reformas, logo outro governo, e em seguida
a dar gritos de morte ao soberano da cidade eterna. O Santo Padre para tentar um último remédio, outorgou favores e chamou a Roma o conde Pellegrino Rossi, hábil
político, e nomeou-o presidente de seus ministros, recomendando-lhe que se esforçasse para conservar a ordem de paz. Inútil remédio. O conde Rossi foi assassinado,
entre espantosos gritos, no mesmo momento que ia entrar no palácio da Chancelaria, onde se achava então a Câmara dos deputados, desarmam os guardas do Quirinal,
apunhalam a um sacerdote chamado Ximenes, e um tiro de pistola faz cair morto a monsenhor Palma, secretário de Pio IX. assim, pois, viu o Papa derramar-se o sangue
de seus familiares nas salas de seu próprio palácio, e sua pessoa em perigo de cair em mãos daqueles revolucionários, a quem não espantava delito algum. Vendo, pois,
o pontífice desconhecida a independência de sua autoridade, ameaçada sua vida, mal seguros os cardeais e os empregados públicos que permaneciam fiéis à sua pessoa,
tomou a resolução de fugir. Mas como subtrair-se a seus inimigos que guardavam todas as saídas do Quirinal? Deus assiste a seu vigário e não abandona sua causa,
que é a da Igreja.
Pio IX em Gaeta - Ajoelha-se Pio IX diante de um crucifixo e reza; em seguida se levanta veste-se à secular e confia sua salvação à divina Providência. Já noite,
acompanhado por um só criado, desce a um porão e por uma espécie de subterrâneo, se dirige a um lugar determinado onde o esperava o conde Spauer, ministro da Baviera.
Sobe com ele ao coche e fazendo correr os cavalos chegam felizmente a Gaeta, antes de saberem de sua fuga. Tinham-no já precedido nessa cidade, o cardeal Antonelli
e outros prelados que o esperavam. Quando correu a notícia de que o Papa se achava em Gaeta, tornou-se esta cidade, qual nova Roma, centro da Religião, e para ali
se dirigiram os fiéis de todo o mundo. Ditoso o rei de Nápoles, por abrigar a semelhante hóspede, lhe prodigalizou toda espécie de cuidados, e não poupou meios para
prover de todo o necessário ao Papa e aos que o acompanhavam. Ficou Pio IX dezesseis meses em Gaeta, não se descuidando do bem Universal da Igreja. Deu entre outras
coisas, solene prova de veneração para com a Mãe do Salvador, dirigindo uma carta aos bispos de todo o mundo, em que os convidava, para que unidos com seus fiéis,
pedissem e manifestassem seu modo de pensar sobre a conceição imaculada da Santíssima Virgem, de que logo falaremos.
O chefe da religião, despojado assim de seus estados, e obrigado a fugir com tanta precipitação de sua sede, achava-se em verdadeiras angústias para prover a si
e aos seus, e ter correspondência com todo o mundo. Em vista disto, os católicos, com afeto de filhos, procuraram o melhor meio para acudir em socorro de seu pai,
já com grandes, já com pequenas somas de dinheiro a que chamaram como nos antigos tempos, óbulo, ou dinheiro de São Pedro, porque tem por fim socorrer ao chefe da
religião e sucessor daquele santo apóstolo no governo da Igreja. O óbulo de São Pedro é ainda o meio com que hoje se provê às grandes estreitezas do chefe supremo
da Igreja.
República em Roma - Quando se soube em Roma da fuga do Papa, uma dor imensa feriu o coração de todos os bons. Mas os inimigos da ordem, acreditando que tinha chegado
ao apogeu da fortuna, reuniram-se e por um ato sacrílego, constituíram em Roma uma República, dirigida por um triunvirato, isto é, por três chefes: Mazzini, Armellini
e Saffi. Estes declararam o Papa privado de todo o poder soberano, e se constituíram árbitros de toda autoridade. O primeiro ato de seu governo foi impor tributos,
por em circulação uma quantidade imensa de papel moeda, e se apropriar de uma grande parte dos bens da Igreja. Sinos da igreja, cálices, píxides, custódias, turíbulos,
e todos os objetos de ouro e prata, foram roubados para com eles fazer dinheiro. Vários sacerdotes religiosos foram assassinados; doze deles morreram em um só dia
debaixo dos golpes de punhal. Mosteiros e conventos foram violados e profanados, e não curto número de sagrados ministros barbaramente estrangulados. Corramos porém
um véu sobre tanta iniquidade.
Roma livre - O céu não podia permitir que se continuassem a cometer impunemente tantas iniquidades. As potências católicas, quais carinhosos filhos resolveram acudir
em socorro do pai comum, cuja sé de natural está em Roma. Espanha, Nápoles, Áustria, Baviera e França põem-se de acordo para libertar Roma; e enquanto a Áustria
conserva a autoridade do Papa na parte principal dos Estados pontifícios, a França, ainda que república, encarrega-se de expulsar de Roma aqueles rebeldes. Com este
fim uma companhia de valorosos franceses marchou diretamente sobre Roma, que teriam podido tomar mais prontamente do que o fizeram, se tivessem querido por em obra
todos os meios violentos de que podiam dispor; porém como quisessem salvar da destruição os monumentos preciosos da cidade, e mais ainda, evitar o derramamento de
sangue, em quanto lhes fosse possível, empregaram três meses em apoderar-se dela. Os sitiados levaram a cabo proezas dignas de melhor causa. Encarniçadas lutas;
conquista e reconquista de uma mesma posição por ambas as partes, sem nenhuma dar-se por vencida antes de sucumbir. Finalmente, a 29 de junho, dia dedicado ao príncipe
dos apóstolos, fizeram os franceses tão forte assalto à cidade, que rechaçados os inimigos, ficou Roma em seu poder. É fácil imaginar qual a alegria dos Romanos,
quando se viram livres daqueles revolucionários e puderam novamente gozar de paz e tranquilidade, dedicarse ao comércio, tornar a abrir os conventos, as igrejas,
e praticar de novo pacificamente sua religião.
Volta de Pio IX - A notícia da libertação de Roma chegou logo aos ouvidos do Sumo Pontífice, que profundamente comovido exclamou: "Deus seja bendito, agora cessa
o derramamento de sangue entre meus filhos." Muitos desejavam que voltasse imediatamente para Roma; porém as pessoas prudentes aconselhavam-no que protelasse sua
volta. Esta não se verificou até o dia 12 de abril de 1850. Houve naquele dia tal concurso de povo, tais transportes de alegria, que talvez não se visse coisa igual
desde que Pio VII entrou de novo em Roma depois de sua prisão. O afortunado Pontífice dirigiu-se antes de tudo à basílica de São Pedro para dar graças a Deus pela
paz dada à Igreja, em seguida, com aquele zelo e carinho que lhe eram próprios, começou a cicatrizar as profundas chagas causadas pelos repuplicanos à Religião e
ao Estado.
 
CAPÍTULO V
A Imaculada Conceição – A propagação da fé - O Pe. João de Triora - Carlos Corney - Gabriel Perboire - Liberdade Cristã na China – 0rdens Religiosas.
A Imaculada Conceição - Logo que o Papa voltou à sua sede, chegaram-lhe de todas as partes do mundo os votos dos bispos atestando a crença geral de que Maria sempre
tinha sido preservada do pecado original, e que era uma das maiores aspirações de seus diocesanos que se definisse dogmaticamente esta verdade. O pontífice estabeleceu
então uma comissão de doutos teólogos e cardeais; mais tarde concedeu um jubileu de três meses, para excitar aos fiéis a dirigir a Deus ardentes votos, e convidou
finalmente que fossem a Roma todos os bispos, que facilmente pudessem ir. Depois de uma discussão esmerada e profunda, se achou que era doutrina conforme às sagradas
escrituras, constantemente manifestada pela tradição, isto é, na sagrada liturgia, nos escritos dos santos padres, nos decretos dos sumos pontífices, e no sentimento
geral de todos os cristãos, que Maria tinha sido concebida sem mancha original, e que era coisa muito conveniente que se definisse essa doutrina como artigo de fé.
Pio IX depois de novas súplicas, julgou que já tinha chegado o tempo de proceder à tão anelada definição; e assistido pelos cardeais, pelos patriarcas e por um grande
número de arcebispos e bispos em presença de multidão imensa de sacerdotes e leigos, a 8 de dezembro de 1854, dia consagrado a Maria Imaculada, antes de celebrar
a santa Missa, pronunciou este decreto na basílica vaticana: "É doutrina revelada por Deus que a Bem-aventurada Virgem Maria desde o primeiro instante de sua conceição
foi preservada de toda mancha da culpa original por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em consideração aos méritos de Jesus Cristo. Salvador do gênero
humano; e por isso todos os fiéis devem crer nela firme e constantemente".
Em virtude desta definição desapareceu toda a dúvida acerca deste privilégio da Mãe de Deus. Com esta definição não introduziu o pontífice uma nova crença; só declarou
dogmaticamente uma verdade revelada por Deus e acreditada já desde os primeiros tempos da Igreja.
A Obra da Propagação da fé - Entre as maravilhosas instituições deste século conta-se a obra da Propagação da fé. Tendo Napoleão I suprimido os conventos e os mosteiros,
despojado as igrejas e se apropriado dos bens sagrados, faltavam os meios para ajudar àqueles animosos sacerdotes, que, levados pelo desejo de salvar almas, iam
a longínquos paises. Pois bem, Deus para prover a uma coisa tão necessária como as missões, inspirou um meio eficaz que já produziu assombrosos efeitos. No mês de
maio de 1822 uma jovenzinha de Lion convidara a alguns amigos e parentes seus a reunirem para fazerem pequenas ofertas semanais e juntar assim algum subsídio em
proveito das missões. A obra era mui simples, santo o seu fim e por isso, Deus a abençoou. A oferta que se devia fazer não era e não é mais de cinco centésimos (um
vintém) semanais; o que a faz se obriga a rezar um Pai Nosso e uma Ave Maria. De cada dez associados, um recebe o óbulo semanal e em troco se lhes oferece a leitura
dos Anais das Missões que se imprimem de dois em dois meses. Sendo tão pequenas as ofertas, todos podem fazê-las. Por isso, ricos e pobres, patrões e criados, homens
e meninos se inscreveram imediatamente na nova obra. Como já se disse, Pio VII a recomendou com sua autoridade apostólica, e os outros sumos pontífices a enriqueceram
com muitas indulgências.
Gregório XVI e Pio IX foram mui zelosos promotores desta obra, que com a bênção do Vigário de Jesus Cristo cresceu maravilhosamente e se difundiu por toda a terra.
Imprimem-se os anais em grande quantidade e em todos os idiomas, e se recolhem todos os anos mais de cinco milhões de francos. Com este socorro já se converteram
à fé muitos milhões de idólatras.
Espécie de apêndice da obra da propagação da fé é a Santa Infância, chamada assim porque foi posta sob a especial proteção do Menino Jesus, e tem por fim resgatar
as crianças pobres naqueles paises em que como na China, são barbaramente vendidos e com frequência atirados no meio das praças para servir de pasto aos animais
imundos. Obrigam-se todos os associados a pagar cinco centésimos por mês e rezar uma Ave Maria e uma jaculatória a Maria Santíssima e a São José. O sumo pontífice
Pio IX, considerando a grande utilidade que a nova obra traria à religião, aprovou-a em cartas apostólicas de 16 de julho de 1856 e a enriqueceu com muitos privilégios
e indulgências.
O Padre João de Triora - Deus, senhor do coração dos homens, ao passo que inspira em uns o zelo para promover sua glória em nossos paises, infunde em outros o valor
heróico de abandonar a pátria, parentes e amigos para empreender longas e perigosas viagens, cujo termo é geralmente o martírio. Somente a Itália conta uns dois
mil destes obreiros evangélicos que presentemente trabalham sem descanso pela fé. Daremos a este respeito algumas breves notícias.
Começaremos pelo Padre João Francisco, natural de Triora, perto das costas da Ligúria. Depois de ter cursado seus estudos em Roma, partiu para as missões estrangeiras.
No ano de 1800, depois de ter padecido grandes trabalhos, sofrimentos e perigos, chegava a Macau, cidade das fronteiras da China. No ano seguinte passou as fronteiras
do Celeste Império, ainda que houvesse ameaça de morte para quem pregasse ou professasse naquele império a religião cristã. Não obstante isto, pode durante 15 anos
pregar, catequizar, administrar os santos sacramentos, batizar as crianças e assistir os moribundos espalhados naquelas vastas regiões sem chegar a ser reconhecido
pelas autoridades civis. Porém depois de ter sofrido fome, sede, fadigas de toda espécie, foi finalmente descoberto e denunciado aos mandarins. Arrastaram-no enquanto
celebrava a santa Missa vestido com os hábitos sagrados; levaram-no em presença de diferentes tribunais, e o ameaçaram com tormentos e a morte, se não renunciasse
a sua fé. Ele, porém, confessou com denodo que era cristão e que estava pronto a morrer mil vezes antes que dizer ou fazer coisa alguma contraria à fé de que era
ministro. Queriam obrigá-lo entre outras coisas, a pisar o Crucifixo; porém não podendo os verdugos induzi-lo a tornar-se réu de tão horrível sacrilégio, punham
eles mesmos por meio da força os pés da vítima sobre a imagem adorável de nosso Redentor. Em vista desse ato de violência horrorizado o santo exclamou: "Não sou
eu quem pisa este santo crucifixo, porém vós que com a violência me arrastais sobre ele". Fizeramno padecer vários tormentos e finalmente depois de atarem-no a um
pau, o enforcaram. Na sentença proferida contra ele se dizia que ia ser condenado à morte porque tinha pregado a fé católica. Não se podia pronunciar mais gloriosa
sentença contra este animoso missionário. Seu martírio deu-se no dia 15 de agosto de 1815. (V. Museu das Missões, ano V).
Carlos Corney e Gabriel Perboire - Assinala-se a França entre as nações católicas em ministrar pregadores às missões estrangeiras e aumentar as fileiras dos mártires
da idade moderna. Indicaremos alguns. O venerável Carlos Corney, sacerdote da missão de Vicente de Paulo, saiu de Paris no ano de 1830 e no seguinte unia-se a seus
companheiros na China. Trabalhou para a conversão daqueles idólatras até o ano de 1837, em que foi descoberto e condenado à morte. Seu martírio foi bastante cruel.
Estendido em terra, cinco verdugos ligaram estreitamente suas mãos e pés em quatro paus e puseram sua cabeça entre duas estacas fincadas na terra. A um sinal dado,
um verdugo corta com um só golpe a cabeça do santo mártir, ao passo que os outros fazem o mesmo com os braços e os pés, dividindo-o em quatro partes. Este martírio
deu-se a 20 de setembro tendo Corney apenas 28 anos de idade.
Gabriel Perboire, seu irmão em religião, depois de seis anos de trabalhos e fadigas, foi acusado porque pregava o Evangelho e por isso condenado à morte. Fizeram-no
padecer prisão penosíssima, submetendo-o ao tormento das varas e a degradantes interrogatórios, seguidos de mil espantosas ameaças e sedutoras promessas. Ele, porém,
venceu com intrepidez todos estes males e coroou seus sofrimentos com a crucifixão, suplício que padeceu contente e com coragem por amor de Jesus Cristo morto por
ele na cruz. 11 de setembro de 1840.
Liberdade cristã na China* - Os cristãos da China continuaram ainda sendo perseguidos por vários anos; porém a perseguição de nenhum modo entibiava o zelo dos missionários,
posto que ir pregar o Evangelho equivalia a expor-se ao martírio. Finalmente teve Deus piedade daquela infeliz nação e dispôs que a Europa fosse por termo a tanta
barbaridade. No ano de 1858, depois de muitas fadigas, despesas e guerras, a França e a Inglaterra conseguiram passar os limites do Celeste Império. Este fato demonstra
a todas as luzes, de quanto a civilização européia, que é fruto do cristianismo, sobrepuja à da China, produzida pelo paganismo, porque poucos milhares de Franceses
e Ingleses alcançaram vitória e ditaram leis a um império de 400 milhões de habitantes. A França e a Inglaterra vitoriosas contra a China concluíram um tratado que
contém, entre outros os seguintes artigos:
 
1º Todos os portos do império Chinês se abrirão ao comércio livre dos estrangeiros, que habitando em ditos portos, poderão gozar dos mesmos direitos que os Chineses,
submetendo-se às leis do pais, sob a proteção de seus respectivos consules.
2º A religião cristã poderá ser exercitada em todo o Celeste Império.
3º Residirão em Pequim embaixadores europeus, ao passo que se mandará um embaixador chinês a Paris e outro a Londres.
Desta maneira depois de trezentos anos de perseguição, o sangue dos mártires, com produzir novos cristãos finalizou naquele imenso império a perseguição legal contra
a Igreja Cristã. Os missionários puderam sair dos lugares escondidos, mostrar-se publicamente, reunir os cristãos dispersos, levantar igrejas, abrir escolas, casas
de órfãos e hospitais. Diariamente acodem em seu auxílio novos missionários. Estabeleceram-se já ali muitos bispados, e na própria cidade de Pequim, capital do império,
reside um bispo católico, que exerce com a maior solenidade e publicamente, e às vezes com assistência das autoridades civis, as augustas cerimônias de nossa Santa
Religião.
*(Com a Revolução Comunista na China, processo que se iniciou em 1927 e culminou com a instauração do comunismo neste pais, a perseguição religiosa reiniciou e persiste
até os dias de hoje).
Ordens religiosas - Depois de queda de Napoleão I puderam os religiosos voltar a seus antigos domicílios e trabalhar de novo no campo evangélico, e ir às missões
estrangeiras tanto na Europa como nas demais partes do mundo. Mas como por outra parte as antigas ordens não podiam voltar a seu primitivo rigor, suscitou Deus novas
ordens e novas congregações que as suprissem em parte e satisfizessem às necessidades a que aquelas já não podiam acudir. Leão XII aprovou, no ano de 1826, a Congregação
dos Oblatos de Maria, fundada por dois piedosos e doutos sacerdotes, Lanteri de Cuneo e Reinaudi de Carignano. No ano de 1836 foram aprovadas as religiosas chamadas
Fiéis Companheiras de Jesus, cujo fim era a educação religiosa e civil das meninas; entre o grande número de suas casas, havia uma mui florescente em Turim.
O Instituto de caridade fundado pelo douto escritor Pe. Antonio Rosmini foi aprovado como ordem religiosa pelo Papa Gregório XVI no ano de 1839.
O mesmo Gregório, nos últimos anos de seu pontificado, aprovou o instituto de Sant'Ana e o das Penitentes de Santa Maria Madalena, fundados pela marquesa Júlia Barolo,
muito célebre em Turim por suas obras de caridade.
Os seguintes institutos foram aprovados pelo sumo pontífice Pio IX:    
1º As Filhas da Imaculada Conceição.
2º As Irmãs da Bem-aventurada Virgem Maria do Retiro.
3º As Irmãs de Santa Marta.
4º As Irmãs do SS. Salvador.
5º As Irmãs da Bem-aventurada Virgem do Bom Conselho.
6º E finalmente (1º de Março de 1869) a Congregação de São Francisco de Sales (ou Salesianos), fundada em Turim com o fim de promover a educação cristã, científica
e literária da juventude, especialmente por meio dos oratórios festivos e das casas de beneficência.
 
CAPÍTULO VI
Beatificação dos mártires do Japão - Concílio do Vaticano - Sessão quarta - Fato único na História da Igreja.
Beatificação dos mártires do Japão - Será sempre de grata memória para os fiéis o dia 8 de junho de 1862, em que 26 heróis da fé, martirizados no Japão há cerca
de três séculos, foram elevados à honra dos altares. Falamos, a seu tempo, da sanguinolenta perseguição de Taicosama e do grande número de cristãos que foram coroados
com o martírio. Aqui tão somente acrescentaremos que, depois de terem sofrido muitos trabalhos nas prisões e nas viagens; depois de terem passado fome; sofrimentos
e golpes de toda espécie, chegaram finalmente à cidade de Nagasaki lugar preparado para seu suplício. Querendo ensaiar ainda uma prova para lhes infundir temor,
mostrou-se-lhes um outeiro sobre o qual se achavam preparadas 26 cruzes. Ao recordar, em presença desse espetáculo, que a cruz tinha trazido a salvação ao gênero
humano, e que dentro em pouco abriria-lhes as portas do céu, encheram-se de grande alegria. Um deles chamado Antonio, falou no lugar do suplício a seus pais, que
lhe faziam grandes promessas para excitá-lo a renegar a Jesus Cristo: "Vós me prometeis bens terrenos, Jesus Cristo, bens celestiais aqueles duram breve tempo, estes
são eternos". Entregou-lhes em seguida a túnica que levava e correu a abraçar a cruz. Posto cada um deles em uma cruz foram transpassados por uma lança, conforme
o costume japonês. Assistia ao suplício uma multidão de pagãos e de cristãos, aos quais os mártires ainda na cruz pregavam a Jesus Cristo. Para prova de sua santidade
se deram, durante sua crucificação, vários sinais prodigiosos. Constando com argumentos irrefutáveis que aqueles heróis derramaram seu sangue pela fé, e se operaram
sobre seus sepulcros, graças à sua intercessão, muitos milagres, Pio IX inscreveu-os no catálogo dos santos mártires.
Concílio Vaticano - Depois do Concilio Tridentino passaram-se mais de trezentos anos sem que houvesse necessidade de convocar nenhum concílio ecumênico. Todas as
questões e erros surgidos nesse período foram examinados, julgados e condenados pelo Chefe supremo da Igreja, pois ele recebeu de Jesus Cristo plena e ilimitada
autoridade sobre o que concerne ao bem espiritual e eterno dos cristãos. O Salvador disse a São Pedro: "Tudo o que atares na terra também será atado no Céu; e tudo
o que desatares na terra também será desatado no Céu". Mas as doutrinas errôneas destes últimos tempos, que alguns insidiosamente tratam de inserir na religião,
ainda mais, os chamados filósofos modernos, as diferentes formas de sociedades secretas, a maçonaria, o socialismo, os livre-pensadores, os espíritas e outras seitas
semelhantes se apoderaram de tal sorte do coração e da mente dos homens, que o romano Pontífice Pio IX julgou necessária a convocação de um concilio ecumênico.
Com este fim, seguindo o exemplo de seus antecessores, que nos mais graves momentos costumavam reunir em volta de si os bispos católicos postos pelo Espírito Santo
para governar a Igreja de Deus, determinou a convocação de um concilio que deveria reunir-se na Basílica Vaticana, e por isso chamou-se Primeiro Concílio Vaticano.
Foram inauguradas as sessões a 8 de dezembro de 1869, achando-se presentes cerca de 700 pessoas entre bispos, cardeais, abades, gerais de ordens religiosas e insígnes
teólogos. Na primeira e segunda sessão fez-se a introdução e a profissão de fé. Mas na terceira sessão, depois de terem os Padres exposto a doutrina da Igreja acerca
de Deus criador de todas as coisas, da necessidade de crer em todas as verdades reveladas por Deus, que se devem crer firmemente, ainda que não se possam compreender,
condenaram vários erros. Entre outras definições fizeram a seguinte em confirmação da divindade dos livros sagrados: "Se alguém não receber por sagrados e canônicos
todos os livros da sagrada escritura com todas as suas partes, como os enumerou o santo Concílio Tridentino, ou negar que são divinamente inspirados, seja excomungado".
Sessão Quarta - Sempre será memorável nos fatos da Igreja a quarta sessão do concilio Vaticano. Depois de se ter exposto a doutrina católica sobre a instituição
do primado apostólico na pessoa do Bem-aventurado Pedro, e a perpetuidade dele mesmo nos Papas que lhe sucederem, cuja autoridade devia se estender a todos os tempos,
a todos os paises, a todas as coisas concernentes à religião, a todos os cristãos, (seculares, sacerdotes e bispos), da terra, passou-se enfim à grande questão do
magistério infalível do romano Pontífice. O glorioso Pio IX, depois de aprovada pelos Padres, proclamou esta importante verdade com as seguintes palavras:
<<Esta Santa Sé tem acreditado sempre, o costume permanente da Igreja o prova, e os mesmos Concílios Ecumênicos, sobretudo aqueles em que o Oriente convinha com
o Ocidente na união da fé e da caridade, tem declarado que o poder supremo do magistério está compreendido na primazia apostólica, que o romano Pontífice possui
sobre a Igreja universal em sua qualidade de sucessor do Pedro, Príncipe dos Apóstolos. Por isso os Padres do quarto Concílio de Constantinopla, seguindo as pegadas
de seus predecessores, promulgaram esta solene profissão de fé: - A primeira condição para a salvação consiste em guardar a regra da verdadeira fé. E que a palavra
de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja", não pode falhar, o confirmam os fatos, pois sempre na Santa Sé se tem conservado
imaculada a religião, e se tem ensinado a santa doutrina. Desejando, pois, não separarmo-nos em coisa alguma de sua fé e de sua doutrina, esperamos ser dignos de
permanecer na única comunhão que prega a Sé Apostólica, na qual permanece a completa e verdadeira solidez da religião cristã. - Com aprovação do segundo Concilio
de Lion, os gregos professavam: Que a santa Igreja romana tem soberania e primazia sobre a Igreja católica universal, principado que esta reconhece em verdade e
humildade, como recebido, com a plenitude do poder, do Senhor mesmo na pessoa do Bem-aventurado Pedro, Príncipe e cabeça dos Apóstolos, de que é sucessor o Pontífice
romano; e assim como ela esta obrigada, mais que qualquer outra, a defender a verdade da fé, assim também quando se suscitam questões relativas à fé, essas questões
devem ser resolvidas por seu juízo. - Finalmente, o Concilio de Florença definiu: Que o Pontífice romano é o verdadeiro Vigário de Jesus Cristo, chefe de toda Igreja,
Pai e Doutor de todos os cristãos, e que a ele, na pessoa do Bem-aventurado Pedro, foi dado por Nosso Senhor Jesus Cristo o pleno poder de reger e governar a Igreja
universal.
Para cumprir os deveres deste cargo pastoral, nossos predecessores tem trabalhado sempre ardentemente em propagar a salutar doutrina de Cristo entre todos os povos
da terra, e tem velado com igual solicitude em conservá-la pura e sem alteração em todas as partes onde tem sido recebida. Por isso, os bispos de todo universo,
ora dispersos, ora congregados em Sínodos, conforme o costume constante das igrejas e a forma da antiga regra, tiveram sempre cuidado de mostrar a esta Sé apostólica
os perigos que se apresentavam, sobretudo em pontos de fé, afim de que os danos causados à fé, encontrassem seu soberano remédio, precisamente onde a fé não pode
sofrer demérito. Os romanos Pontífices por sua vez, conforme aconselhava a condição dos tempos e das coisas, umas vezes convocando Concílios Ecumênicos, outras consultando
a Igreja dispersa no universo, já por Sínodos particulares, já por outros meios que a Providência lhes ministrava, definiram que era necessário manter sempre o que,
com o adjutório de Deus, tinham reconhecido ser conforme com as Sagradas Escrituras a com as tradições apostólicas. Com efeito, não foi prometido o Espírito aos
sucessores de Pedro, para publicarem, segundo suas revelações, uma nova doutrina, mas sim para que, com sua assistência, guardassem santamente, e expusessem fielmente
a revelação transmitida pelos Apóstolos, isto é, o depósito da fé. Todos os veneráveis Padres abraçaram e todos os santos Doutores ortodoxos tem respeitado e seguido
sua doutrina apostólica, sabendo perfeitamente que esta Sé de Pedro permanece sempre isenta de todo o erro, segundo esta divina promessa feita pelo Senhor, Salvador
nosso, ao príncipe de seus discípulos: "Eu tenho rogado por ti, para que tu não vaciles, e tu quando estiveres convertido, confirma a teus irmãos". O dom da verdade
e da fé que não vacila, foi, pois, divinamente concedido a Pedro e a seus sucessores nessa Cátedra, afim de que desempenhassem seu eminente cargo para a salvação
de todos: afim de que toda a grei de Cristo, apartada por eles dos pastos venenosos do erro fosse nutrida da doutrina celestial, afim de que, deixada toda causa
de cisma se conserve a Igreja toda inteira na unidade, e que firmada em seus fundamentos se mantenha indestrutível contra as portas do inferno. Na presente época,
porém, quando existe mais do que nunca necessidade da salutar eficácia do cargo apostólico, e em que se acham tantos homens empenhados em rebaixar sua autoridade,
Nós pensamos ser absolutamente necessário afirmar solenemente a prerrogativa que o Unigênito Filho de Deus dignou-se unir ao supremo ofício pastoral.
Por isso, Nós unindo-nos fielmente à tradição que remonta ao princípio da fé cristã, para a glória de Deus, Salvador nosso, e exaltação dos povos cristãos, ensinamos
e definimos, com aprovação do Sagrado Concílio, que é um dogma divinamente revelado: "Que o Romano Pontífice, quando fala ex-cathedra, isto é, desempenhando o cargo
de Pastor e Doutor de todos os cristãos em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define que uma doutrina sobre a fé ou sobre os costumes deve ser professada
pela Igreja universal, goza plenamente pela divina assistência que está prometida na pessoa do Bem-aventurado Pedro, daquela infalibilidade da qual o divino Redentor
quis que sua Igreja estivesse provida ao definir sua doutrina quanto à fé e aos costumes; e por conseguinte, que as definições do romano pontífice, são por si mesmas
irreformáveis, e não em virtude do consentimento da Igreja. Se pois alguém, o que Deus não permita, tiver a temeridade de contradizer a esta definição, seja excomungado.">>
Assim a 18 de julho de 1870, definia-se como artigo de fé, que o Pontífice romano é infalível, quando fala de coisas tocantes à fé e aos costumes.
Fato único da história da Igreja - Entre as maravilhas que admirou o mundo em Pio IX, acha-se a de ter excedido a todos seus predecessores na duração do pontificado.
São Pedro que tinha ido a Roma cerca de dez anos depois da morte do Redentor, ocupou aquela sede 25 anos, 2 meses e 7 dias. Nenhum pontífice alcançou depois dele
tal espaço de tempo, de maneira que era geralmente recebida a tradição de que nenhum Papa alcançaria os anos de Pedro: "Non videbis dies Petri". Antes muitos acreditam
que se cantavam estas palavras a todos os pontífices em sua consagração; porém como não se encontram em nenhum cerimonial da coroação dos Papas, duvidase do fato.
Contudo não tendo nenhum Papa alcançado os anos de Pedro, era considerado por todos como verdade histórica. A glória excepcional de alcançar ou antes de exceder
os anos de Pedro estava reservada a Pio IX*.
A 16 de junho de 1871 completava-se o XXV aniversário de seu pontificado. Comoveu-se o mundo, e todas as partes se preparavam de mil diferentes modos para atestar
ao pontífice sua alegria e sua veneração. Secundando o Papa a aspiração dos corações católicos, dirigiu uma encíclica a todos os Bispos, para que convidassem aos
povos a dar graças a Deus por ter-lhe concedido tão longo pontificado; e abriu ao mesmo tempo os tesouros das santas indulgências. É impossível imaginar maior solenidade.
Parecia que o espírito do Senhor tinha invadido todos os corações para impeli-las a festejar o Pai comum de todos os crentes. Desde a mais humilde aldeia até a mais
ilustre cidade, os próprios protestantes, hereges e o grão Sultão, todos compartilharam daquele grande dia.
*(A data real do martírio de São Pedro, de acordo com um cruzamento de datas feito pela arqueóloga italiana Margherita Guarducci  seria 13 de outubro de 64 d.C..
Como Jesus morreu com 33 anos e se considerarmos o nascimento da Igreja e inicio do pontificado de São Pedro, no dia de Pentecostes, no mesmo ano da morte de Jesus,
podemos concluir que a duração do pontificado do Primeiro Papa foi de aproximadamente 31 anos, ou ainda se considerarmos o início de seu pontificado como sendo quando
Jesus o escolheu como Apóstolo, no início de sua Vida Pública, e o renomeou de "Pedro". Então,  teria tido um papado de aproximadamente 34 anos. Portanto o pontificado
de Pio IX que durou 31 anos, 7 meses e 22 dias, pode ou não ter superado o de São Pedro.)
 
CAPÍTULO VII
Morte de Pio IX - Eleição de Leão XIII - Estado presente da Igreja - Ensinos da história Eclesiástica.
Morte de Pio IX - Os transportes de alegria dos católicos pela ocorrência do XXV aniversário de pontificado de Pio IX, renovaram-se ao festejarem o quinquagésimo
da celebração de sua primeira missa; porém o de seu Jubileu Episcopal excedeu a todos os demais acontecimentos da História Eclesiástica, e a tudo o que é possível
legar à posteridade. Basta dizer que no ano de 1877, fiéis cristãos de toda idade e condição, partiam das mais longínquas regiões de terra para irem venerar ao chefe
da Igreja e levar a seus pés quanto possuíam de mais precioso em trabalhos de arte, em ouro, em prata ou em trabalhos científicos.
Mas a vida do homem é limitada. Pio IX, pela firmeza de sua fé, por sua caridade, por sua benevolência, por seus conselhos e por sua mansidão, tinha-se tornado a
delícia do mundo, e dos corações. Os próprios heterodoxos o consideravam qual amigo, pai, irmão, e benfeitor. Já corria o ano octogésimo sexto de sua idade e ainda
conservava grande lucidez de espírito e seu ânimo viril. No mês de novembro do dito ano enfermou gravemente, porém pode melhorar e tornar a atender às audiências
do costume, e dirigir aquelas pequenas práticas, que formaram sempre uma das glórias do seu pontificado. Porém à tarde de 6 de fevereiro de 1878 manifestaram-se
vários sintomas de febre no venerando Pontífice. Agravou-se o mal durante a noite, na manhã seguinte administraram-lhe os consolos da Religião, que recebeu com os
sinais de santo fervor, que todos podem imaginar. Ao anoitecer de 7 de fevereiro, entregou Pio IX sua formosa alma ao Criador. Voou a receber a merecida coroa dos
justos e a gozar de presença da Imaculada Rainha do céu que tanto tinha honrado no curso de sua vida.
Eleição de Leão XIII - Quando se espalhou a notícia da morte de Pio IX comoveram-se todos os cristãos. A dor foi imensa e geral em todos os paises, pode-se dizer,
em todas as famílias. Somente a eleição de um digno sucessor pode consolar o coração dos católicos. Experimentou-se este consolo na eleição de Leão XIII ao trono
pontifício. Concluídos os funerais do falecido Pontífice, os cardeais em número de 64 reuniram-se em conclave no palácio Vaticano, e 36 horas depois estava feita
a eleição de uma maneira inesperada, recaindo ela no cardeal Joaquim Pecci, já notoriamente conhecido por sua grande ciência e virtude, e por sua prudência singular
no manejo dos grandes negócios.
Nascido na pequena povoação de Carpineto, perto de Anagni, a 2 de março de 1810, da nobre família Pecci, fez a esplêndida carreira nos estudos e ocupou honrosos
cargos na Igreja. Gregório XVI preconizou-o Arcebispo de Perugia em janeiro de 1846 e Pio IX o criou cardeal no consistório de 19 de dezembro de 1853. A 21 de setembro
de 1877 o mesmo Pio IX o chamou a Roma para exercer o ofício de Camerlengo. Achava-se no conclave revestido com esta dignidade, quando todos os cardeais, vendo nele
todas as virtudes necessárias para um grande Pontífice, proclamaram-no sucessor de Pio IX a 20 de fevereiro de 1878. Êmulo de seu predecessor, na firmeza, na afabilidade,
na caridade e na prudência, seguiu inalteravelmente seus princípios e nobres exemplos. Entabulou relações com as potências estrangeiras, obtendo vantagens para a
religião.
As missões estrangeiras formaram um dos maiores objetos de seu paternal zelo. Dão prova disto a hierarquia e o episcopado ereto na República Oriental do Uruguai.
A república do Paraguai que desde muitos anos se achava aflita por sanguinolentos desastres e pela guerra civil, ouviu fielmente a voz do Pontífice de Roma e recebeu
seu Núncio, preparando assim um campo vasto e uma copiosa messe aos obreiros evangélicos. Todos os católicos aplaudiram a eleição do novo Vigário de Jesus Cristo
e unânimes rogaram a Deus que lhe concedesse longos anos de vida; aplanasse as dificuldades que encontrasse e o ajudasse a carregar a cruz inseparável do universal
governo da Igreja. Oxalá pudessem vê-lo triunfar em todas as nações, em todos os povos! Teve este pontífice a consolação de ver o mundo em paz, e todos crentes permanecerem
fiéis aos divinos preceitos e formarem um só rebanho ao redor de um só pastor na terra, para que todos juntos um dia chegassem a gozar da imensa felicidade do Céu.
Ensinamentos da História Eclesiástica - Apresenta-nos a História Eclesiástica alguns ensinamentos, que nos servem de consolo em nossa carreira mortal.
1º Que a Igreja Católica é filha de Deus Pai, esposa de Jesus Cristo e o templo do Espírito Santo; pois somente com o auxílio de Deus pode se sustentar, propagar
e crescer no meio de tantos e tão grandes contrastes, que durante dezenove séculos se tem suscitado contra ela.
2º Que não nos devemos maravilhar das guerras dirigidas contra a Igreja. Uma só é a causa de todas estas guerras: o ódio do espírito das trevas contra Jesus Cristo.
3º Prova evidente da divindade da Igreja Católica, é que nunca se viu que um católico para levar vida mais perfeita, abandonasse sua crença para se fazer Judeu,
mulçumano, herege; e os incrédulos abraçaram a fé católica para assegurar sua salvação.
4º Constitui outra prova da divindade da Igreja católica, que no ponto de morte muitos infiéis hereges e incrédulos fizeram instâncias para entrar no seio da Igreja,
ao passo que naquele instante fatal nenhum católico tratou de fazer-se herege. mulçumano, ou incrédulo para salvar sua alma.
5º Que a Igreja Católica está fundada na autoridade do Sumo Pontífice, se conserva e propaga somente em virtude da fé e reverência que se professa a esta autoridade;
e que, por conseguinte, é coisa de suma importância propagar e aumentar a submissão e o respeito ao Papa, cuja autoridade é infalível.
6º Que todos os cismáticos, os hereges e os protestantes, encontram, examinando a história, o dia em que tiveram princípio seus erros e em que começou a série de
seus mestres; entre eles e o tempo em que viveu Jesus Cristo na terra passa uma distância mais ou menos longa; de sorte que nenhum deles pode ter recebido de Jesus
Cristo sua doutrina, nem ter sucedido aos apóstolos. A história, pelo contrário, nos demonstra que o Pontífice Leão XIII, chefe da Igreja Católica, por uma série
não interrupta de Papas, remonta de um a outro antecessor, até chegar a São Pedro, príncipe dos Apóstolos, constituído Pastor supremo pelo próprio Salvador. Por
isso só a Igreja Católica é a Igreja de Jesus Cristo cuja doutrina foi pregada pelos apóstolos. Quanto às demais crenças, ainda que se arroguem o nome de Igrejas
cristãs, não são Igrejas de Jesus Cristo, porém Igrejas do heresiarca ou chefe da seita, de quem cada uma delas se originou.
7º Finalmente, ainda que vejamos a Igreja perseguida, devemos permanecer firmes na fé e nos ensinos desse supremo Pastor. Procuremos, pois, conservar e aumentar
em nós o espírito de fé, de esperança e de caridade na terra para merecermos um dia participar da glória, que Deus reserva aos verdadeiros católicos na bem-aventurada
eternidade.
(Dom Bosco, o autor, morreu no dia 31 de janeiro de 1888, ainda no pontificado de Leão XIII. Foi canonizado pelo Papa Pio XI em 1º de abril de 1934).DADOS DE COPYRIGHT

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."




LIVRO DA VIDA

SANTA TERESA nasceu em Ávila em 1515. De boa família, ela entrou para o convento carmelita da Encarnação, em Ávila, quando tinha 21 anos. Após ter sido separada de sua família, se tornou freira.

Na meia-idade, resolveu fundar um convento sob regra carmelita. Depois de muitas dificuldades, o convento de São José de Ávila foi aberto em 1562, a primeira casa das carmelitas reformadas ou "descalças". Durante os vinte anos seguintes ela viajou por toda a Espanha fundando dezessete conventos no total, frequentemente em condições muito duras.

Santa Teresa combinou a vida religiosa contemplativa com uma vida de grande atividade e registrou ambos os aspectos em livro. O mais importante de seus escritos é o Livro da Vida, sua autobiografia até os 52 anos, escrito a pedido de seus confessores; Caminho da perfeição, para educar suas próprias monjas; o Livro das fundações, relato elevado do estabelecimento de seus conventos, e O castelo interior. Ela morreu em Alba de Tormes em 1582.

MARCELO MUSA CAVALLARI nasceu em São Paulo em 1960. É formado em Letras (latim e grego) pela Universidade de São Paulo. Autodidata, aprendeu espanhol, francês e italiano por conta própria. Trabalha como jornalista desde o final da década de 1980. Foi redator e subeditor na Folha de S.Paulo e editor de Internacional na revista Época. Sua primeira tradução foi publicada na Folha em 1984: um documento da Congregação para a Doutrina da Fé sobre a Teologia da Libertação. O texto, traduzido do italiano, era assinado pelo então prefeito da congregação, o cardeal Joseph Ratzinger, que viria a se tornar o papa Bento XVI.

Católico praticante, travou contato desde cedo com autores espanhóis do século XVI, como Santa Teresa, São João da Cruz e frei Luís de León. A leitura das obras desses religiosos permitiu que se familiarizasse com o espanhol da Contrarreforma.

J. M. COHEN traduziu nove livros para a Penguin Classics; obras de Cervantes, Díaz, Galdós, Montaigne, Pascal, Rabelais e Rousseau. Também editou as antologias Latin American Writing Today (Literatura Latino-Americana Atual), Writers in New Cuba (Escritores da Nova Cuba), o Penguin Book of Spanish Verse (Livro Penguin de Poesia Espanhola) e o livro Penguin de Comic and Curious Verse (Poesia Cômica e Curiosa). Compilou o Penguin Dictionary of Quotations (Dicionário Penguin de Citações), o Penguin Book of Modern Quotations (Dicionário Penguin de Citações Modernas) e publicou A History of Western Literature (Penguin, 1956) (História da Literatura Ocidental). J. M. Cohen morreu em 1989. O obituário do Times descreveu-o como "um dos últimos grandes homens de letras ingleses", e o Independent escreveu que "sua influência será sentida por gerações".

FREI BETTO (Carlos Alberto Libânio Christo) nasceu em 1944, em Belo Horizonte (MG). Filho de pai e mãe escritores, estudou jornalismo, antropologia, filosofia e teologia. É frade dominicano e escritor, autor de mais de cinquenta livros, publicados no Brasil e no exterior.

Militante de esquerda desde a juventude e adepto da Teologia da Libertação, foi perseguido pelo regime militar e preso duas vezes: a primeira por quinze dias, em 1964, e a segunda por quatro anos, entre 1969 e 1973. A memória da experiência na cadeia durante os tempos mais duros da ditadura, a participação na resistência contra o regime e a luta contra a tortura inspiraram um de seus livros mais importantes, Batismo de fogo (1982, Prêmio Jabuti), que ganhou adaptação cinematográfica em 2006, com direção de Helvécio Ratton.

Recebeu inúmeros prêmios, nacionais e internacionais, por sua atuação como ativista social e por suas obras literárias: Juca Pato de Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores (1986), APCA de Melhor Obra Infantojuvenil por A noite em que Jesus nasceu (1998), a medalha Chico Mendes de Resistência (1998), concedida pelo grupo Tortura Nunca Mais por sua luta em prol dos direitos humanos, o troféu Paulo Freire de Compromisso Social (2000), prêmio da Unesco como uma das 13 Personalidades da Cidadania (2005), e o Jabuti de Crônicas e Contos por Típicos tipos — perfis literários (2005).

SANTA TERESA D'ÁVILA

Livro da vida

Tradução e notas de

MARCELO MUSA CAVALLARI

Prefácio de

FREI BETTO

E introdução de

J. M. COHEN


Sumário

A sedução de Teresa — Frei Betto

Introdução — J.M. Cohen

Nota do tradutor

LIVRO DA VIDA

Notas

Outras leituras

A sedução de Teresa

FREI BETTO

Teresa entrou em minha vida como boia de salvação em meio à turbulência de uma crise de fé, em 1965. Naquele ano, abandonei a militância estudantil, decidido a ingressar no noviciado da Ordem Dominicana, em Belo Horizonte. O contraste entre o movimento estudantil; a prisão sofrida em junho de 1964, à raiz do golpe militar; o ingresso no curso de Jornalismo da Universidade do Brasil; a intensa vida cultural no Rio, onde morava desde 1962; as constantes viagens pelo Brasil... e o "tempo de deserto" do noviciado dominicano, recluso num convento, entregue à vida de oração, deram um nó cego em minha fé cristã.

Entrei em processo de descrença. Minha fé perdeu, aos poucos, a nitidez de seus contornos, como uma paisagem progressivamente ensombrada pelo cair da noite... a "noite escura", descrita por são João da Cruz, discípulo de Teresa.

Disposto a abandonar a vida religiosa, consultei meu diretor espiritual, frei Martinho Penido Burnier. Sábio, indagou-me: "Se estivesse caminhando à noite numa floresta e a pilha de sua lanterna acabasse, o que faria? Seguiria adiante ou esperaria amanhecer?". Respondi o óbvio. Frente à minha expectativa de alvorada, sugeriu-me a leitura das obras de Teresa d'Ávila.

Dispensado de participar das orações comunitárias, dediquei-me à leitura meditativa (pois Teresa não merece apenas ser lida, precisa ser sorvida) de sua obra completa: Livro da vida, Caminho da perfeição, Moradas do castelo interior e o Livro das fundações, sem deixar de apreciar seus poemas e cartas. Como toda leitura é uma experiência dialogal, aos poucos percebi que, através de Teresa, Deus me seduzia, revelava-se como o Amor apaixonado do Cântico dos Cânticos. Como fizera com Gomer, mulher do profeta Oseas, Ele me "falava ao coração".

Graças a ela, compreendi que, ao mudar de lugar social, ocorrera em mim uma mudança de atitude teologal: a fé sociológica, forjada por influência familiar e escolar, cedia espaço a uma fé personalizada, centrada na relação amorosa. Em suma, Teresa me ensinou que Deus não se exilou no Céu; ao contrário, habita o coração humano.

CONTEXTO DE TERESA

Teresa de Ávila (1515-82) povoa o inconsciente coletivo da cultura ocidental. Há inúmeras obras de arte inspiradas nela — da escultura de Bernini na igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma — na qual aparece em êxtase, flechada por um anjo —, ao filme Teresa de Jesús, do diretor espanhol Ray Loriga. Em torno de sua figura multiplicam-se os ensaios e as teses acadêmicas, sobretudo na área da psicanálise, como é o caso do Seminário de Lacan sobre o tema "Deus e a jouissance de A mulher".

Feminista avant la lettre, esta monja carmelita do século XVI, ao revolucionar a espiritualidade cristã, incomodou as autoridades eclesiásticas de seu tempo, a ponto de o núncio papal na Espanha, dom Felipe Sega, denunciá-la, em 1578, como "mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz". Se escapou de ser queimada como "bruxa" na fogueira da Inquisição, foi graças aos teólogos que ousaram confirmar a ortodoxia de seus escritos. Há que atinar para o contexto da época, quando eram frequentes acusações contra mulheres tidas como visionárias e iluminadas. Foi o caso de Madalena da Cruz, processada em 1546 pela Inquisição de Córdoba.

Numa Espanha ainda submetida ao medievalismo tardio, onde a mulher devia se calar, Teresa ousou se manifestar; fez teologia a partir de sua vivência, desafiando uma Igreja que só admitia a elaboração teológica de homens formados por rígidos critérios acadêmicos sob severa vigilância das autoridades eclesiásticas (leia-se: Inquisição).

Teresa vivia sob suspeição: por ser mulher; judia-conversa ou cristã-nova; e visionária... Seus detratores identificavam em suas obras vestígios do "perigo luterano" e da voga de alumbramento. Em socorro a ela, o teólogo dominicano Domingo Báñez escreve, em julho de 1575, a respeito do Livro da vida: "Só uma coisa há a observar neste livro, e com razão; basta analisar bem: ele contém muitas revelações e visões, das quais se deve recear, sobretudo em mulheres [...]. Mas nem por isso haveremos de tornar regra geral que todas as revelações e visões provêm do demônio".

Apesar disso, Alonso de la Fuente, inquisidor, em 1591 qualificou de "heréticos" os escritos de Teresa: "A autora deste livro (Livro da vida) descreve a história de sua vida em conversações e virtudes, alegando que assim lhe ordenaram seus confessores. Ora, entre muitas palavras de significado humilde, diz um milhão de vaidades, a saber: que por suas orações muitos se converteram; que falando com ela muitas pessoas receberam graças do Senhor; que tal e tal pessoa douta beberam de sua ciência; que todos a estimavam muito; que convertia muitos pregadores [...] e outras leviandades que nos fazem suspeitar do espírito de vaidade que a envolveu. E disso todo o livro está repleto".

REVOLUÇÃO COPERNICANA

Toda a atividade de Teresa, como fundadora de conventos de mulheres consagradas à contemplação dos mistérios divinos, passa-se na Espanha abalada pelos estertores da sociedade medieval teocêntrica, frente ao advento da modernidade antropocêntrica. A velha teologia escolástica-especulativa cedia lugar a uma teologia mais experimental. Também em Teresa desponta o "sujeito moderno", na conquista de um si mesmo pessoal, aberto ao infinito e à transcendência. Na espiritualidade cristã, ela equivale ao que significam Copérnico na astronomia e Leonardo da Vinci nas artes plásticas.

Esta é a revolução copernicana operada pela monja nascida em Ávila: arrancou Deus dos píncaros celestiais e O situou no cerne da alma. Deus deixou de ser um conceito (teológico), forjado à luz de categorias (pagãs) gregas, para se tornar uma experiência (teologal) vivida como intensa paixão amorosa.

Em Teresa, o Deus-juiz, atento aos nossos pecados, cede lugar ao Deus-Pai misericordioso; as portas do Inferno se fecham diante da força abrasadora do amor; o enigma da morte se transforma na expectativa de mergulho na plenitude.

Teresa, nesse sentido, imitou Jesus. Imerso numa cultura judaica que se recusava a pronunciar o nome de Deus, Jesus a Ele se referia na linguagem da intimidade familiar — abba (um dos raros vocábulos aramaicos que figuram nos evangelhos) e que significa "meu pai querido" (Marcos 14,36).

Esse amor ao Absoluto, essa intimidade com o Transcendente, é o que transparece nesta autobiografia espiritual da monja carmelita. Autodidata, Teresa escrevia como sentia, mais com a pele que com a cabeça, ou melhor, descrevia suas experiências sem se preocupar em dar-lhes fundamentação teológica, assim como a amante luta com as palavras para balbuciar o indizível, a relação inefável com o Amado.

O leitor tem em mãos, diante dos olhos e do coração, uma obra-prima que retrata o itinerário espiritual de uma mulher de 47 anos. A linguagem barroca e a sintaxe elíptica — aqui em esmerada tradução de Marcelo Musa — exigem atenção para que se possa desfrutar a riqueza e a beleza dessa alma que se desnuda sem pudor e nos convida à plenitude da felicidade que, na poesia de João da Cruz, consiste em vencer a "noite" que une "Amado com amada, amada já no Amado transformada".

O papa Paulo VI concedeu a Teresa d'Ávila, em 1970, o título de "doutora da Igreja". Foi a primeira mulher a receber tal honraria. Merecidamente.

Introdução

J.M. COHEN

1

A autobiografia de Santa Teresa é a história da entrada de uma mulher notável na vida religiosa e ao mesmo tempo uma obra-prima literária que, depois de Dom Quixote, é o clássico em prosa mais lido da Espanha. É um trecho de autorrevelação sincera, escrito na mais vívida e natural prosa coloquial. A própria santa afirma que a obra foi redigida, primeiramente, a pedido de seus confessores, que solicitaram um relato de suas experiências raras para circular entre religiosos de vocação semelhante. Também precisavam dele, numa época em que acusações de heresia eram frequentes, como prova positiva da completa ortodoxia e obediência incondicional aos ensinamentos de Santa Teresa e aos mandamentos da Igreja. Apesar de ela mesma se queixar de não ter tempo nem prazer em realizar tal tarefa, e que seria melhor ocupar-se fiando ou fazendo tarefas domésticas em seu convento pobre, era, sem dúvida alguma, uma escritora nata, para quem as palavras vinham rápida e livremente, e que sentia nelas o prazer de um artesão.

O livro que temos hoje fornece um relato da vida de Teresa até os seus cinquenta anos, em 1565, mas é certo que começou a ser escrito sete ou oito anos antes da data em que foi pedido por seus confessores, e foi de início dirigido para aqueles quatro amigos espirituais próximos, a quem ela se refere no capítulo 16 como seus companheiros membros "dos Cinco". A maior parte do livro foi, na verdade, escrita em Toledo, durante o tempo em que Teresa esteve lá como convidada da rica doña Luisa de La Cerda, sobre quem nos conta no capítulo 34. Em sua forma completa, porém, a obra começou a passar de mão em mão no começo de 1565, e logo o padre Báñez, confessor da santa na época e seu amigo e aliado constante, repreendeu-a por ter colocado a obra em circulação livremente demais. Ele percebeu, porém, que a culpa não era dela. A Espanha da época estava extremamente interessada nessa reformadora de conventos ativa e franca.

Muito do sucesso imediato do livro foi resultado de sua boa escrita. Os pensamentos de Teresa pareciam se vestir naturalmente em linguagem simples, direta e expressiva. Mesmo quando descreve um estado de consciência difícil ou um evento sobrenatural muito raro, ela nunca falha em achar as palavras usuais acertadas, as metáforas simples de todo dia que deixarão o texto claro para os leitores cujas vidas nunca se elevaram a tais níveis. Sua linguagem flui, assim como a de Cervantes, qual uma boa conversa; e ela também compartilha com Cervantes o gosto por provérbios e ditados populares expressivos. Teresa foi uma mulher que não leu muito. A imitação de Cristo e As confissões de Santo Agostinho eram dois dos poucos livros que conhecia bem. Em sua juventude, como nos conta, também gostava dos romances de cavalaria e talvez lesse baladas e poesia popular. Quase não entendia latim; qualquer citação em latim que ocorre na Vida é escrita tão foneticamente que é quase irreconhecível. Seu vocabulário, portanto, é o de uma pessoa simples; todas as palavras solenes são suspeitas para ela. Até muitos dos termos religiosos estão indiscriminadamente juntos em sua mente sob o título de "teologia mística", uma ciência teórica sobre a qual se confessava ignorante.

Se o latim escrito por Teresa segue suas próprias regras fonéticas, o mesmo acontece com sua escrita em espanhol. Sua pontuação era fraca, a ponto de até não existir, e esse defeito foi apenas imperfeitamente corrigido por seus editores. Raramente não entendemos o que está dizendo, mas somos com frequência confundidos pela sintaxe de suas frases, que tem orações não relacionadas em abundância. Não parece que ela tenha relido o que escreveu. Diversas vezes no decurso de A vida observa que pode já ter mencionado alguma coisa antes. Não lhe ocorreu que poderia ter voltado para conferir. Nunca verificava as datas e frequentemente perdia o fio da sua narrativa quando seguia uma digressão importante que atraía seu interesse exaustivo.

Apesar de ser uma escritora nata e mestre da metáfora, do provérbio e da imagem falada, Teresa ainda não era, nesta que é a primeira de suas obras, uma especialista em construção literária. Quando se pôs a descrever os eventos tanto interiores quanto exteriores de sua vida, estava preocupada sobretudo em contar sobre sua conversão para a vida contemplativa, aos quarenta anos, e seu subsequente progresso nela. Não se contentou, portanto, em seguir uma linha puramente autobiográfica por muito tempo. Ela faz isso nos dez primeiros capítulos, embora não se detenha em grandes detalhes sobre qualquer evento do mundo, ou dê mais do que uma breve descrição das pessoas que conheceu. Há escassos nomes próprios, ela se refere à maioria de seus amigos meramente como "um primo meu" ou "um certo jesuíta letrado que era meu confessor", ou meramente "uma irmã no convento em que eu estava". No entanto, esses personagens praticamente anônimos com frequência ganham vida em uma única linha.

Teresa não era uma intelectual fria e se envolvia rapidamente na vida e nos problemas de qualquer pessoa com quem entrava em contato. Nós a vemos convencer um padre que estava vivendo no pecado a jogar fora o amuleto com o qual sua amante o havia "enfeitiçado" e a corrigir seus hábitos. Também descobrimos, mais à frente, a apreensão com a qual vários outros sacerdotes a viam quando começavam a ouvir suas confissões. Eles tinham muito medo de que ela se apegasse a eles no sentido mundano: uma suspeita que ela achava bastante absurda. Ainda assim, muitas passagens em suas obras e cartas atestam o calor de suas afeições e, bem no fim da vida, não se envergonhou de confessar sua profunda decepção quando um velho amigo não a acompanhou em uma viagem. "Devo confessar ao senhor, padre", escreveu a ele, "que a carne é fraca, e sentiu isso mais do que eu deveria desejar — de fato bastante."

Quando Teresa atingiu aquele ponto de sua autobiografia em que a vida contemplativa se tornou sua verdadeira vocação — o momento que ela considera ser sua segunda conversão —, quebra sua narrativa e, por uma dúzia de capítulos, estende-se sobre as diferenças entre os estágios sucessivos das orações mentais. Essa seção do livro é construída a partir de seu famoso símile das "Águas", e somente após terminar de explorá-lo retorna à história de sua vida, para contar sobre seu encontro com alguns jesuítas que foram capazes de confirmar a validade de suas experiências espirituais, que todos os seus confessores anteriores tinham colocado em questão. Mas logo volta a divagar a respeito das "locuções" (palavras sobrenaturais que caem sobre os ouvidos com a autenticidade de uma fala real); e por mais cinco capítulos lida exclusivamente com sua vida interior, não passando até o capítulo 29 para a história de sua primeira fundação, a do Convento de São José, em Ávila, e para as reformas que inaugurou na constituição do seu próprio ramo da Ordem das Carmelitas, as Descalças.

Nos últimos oito capítulos de Teresa, o equilíbrio entre eventos interiores e exteriores é finalmente alcançado, e a deixamos, no final do livro, aparentemente determinada a ter uma vida de afastamento austero do mundo. Na verdade, A vida de Teresa termina assim que ela cruza o momento decisivo entre os anos de empenho espiritual e aqueles em que combinou a vida religiosa com uma de grande atividade pública. Nesses anos finais, escreveu dois livros tão bons quanto este: o Livro das fundações, em que conta a história de suas viagens e das dezesseis casas que fundou depois de São José, e Castelo interior, também chamado Moradas, uma análise de orações interiores e estágios espirituais que é, provavelmente, sua obra-prima. Mas para leitores que não aceitam inquestionavelmente o dogma católico romano ou as crenças sobre a vida religiosa que ela seguia, a autobiografia é o livro mais interessante e acessível. Nele, vemos como uma mulher de vontade própria e histericamente desequilibrada, que parecia estar a caminho de se tornar uma freira mundana do tipo convencional, foi completamente transformada por experiências profundas. Em um primeiro momento, parece ter visto seus votos como não mais do que um seguro contra a perda total de sua alma. Tinha medo disso assim como tinha, quando mais nova, de perder sua reputação. Mas, em todo o resto, o impulso que a havia levado ainda menina a se dedicar à vida religiosa tinha quase desaparecido. O modo como ganhou força para combater sua própria instabilidade, e cresceu gradualmente, quase sem a ajuda de seus confessores ignorantes, para entender e avaliar as experiências espirituais que aconteceram com ela, é o tema central do livro. Nós a vemos impelida por forças que não podia nem fingir controlar; conforme ela as vai descrevendo, é possível descobrir algo sobre a natureza dessas forças. Pois Teresa nunca deixou de lembrar, enquanto escrevia, aqueles que eram apenas principiantes no caminho espiritual ao longo do qual ela progrediu de modo tão vertiginoso.

Teresa é, portanto, a melhor dentre os escritores místicos para aqueles que não aceitam ou não entendem a relação entre Deus e o homem em que místicos de todas as épocas e países acreditam. Ela procura explicar tudo o que pode, e discorre mais sobre os primeiros estágios do que sobre os últimos. Alguns de seus escritos são dirigidos às noviças de seus conventos, mas, aqui, o público que tem em mente é composto por aqueles vários padres e leigos que ela conhecia e cujas dignidades superficiais haviam há muito deixado para trás seu desenvolvimento espiritual. É por essa razão que A vida deu tão certo. Seu pupilo, São João da Cruz, é um escritor mais poético e brilhante, e possivelmente também uma pessoa de experiências religiosas mais profundas, mas que tem pouco a dizer aos principiantes, está sempre nas alturas.

Teresa começa com um retrato dela mesma como sendo alguém que não tinha uma vocação verdadeira. Quando jovem, tentou avançar na oração de meras petições e da recitação do ofício para o estágio de contemplação interior. Ela havia tentado acalmar sua mente agitada e entrar em contato com uma realidade mais profunda. Mas sem a ajuda de alguém que já tivesse trilhado esse caminho, lamentavelmente havia fracassado. Atacada por vômitos, espasmos cardíacos, cólicas, paralisia parcial e abatida por dores que eram provavelmente funcionais, e não orgânicas, foi obrigada a desistir de seus exercícios espirituais, parar de rezar e deixar temporariamente seu convento em busca de cura. Podemos suspeitar que em suas práticas ascéticas não guiadas, ela tenha se sujeitado a esforços excessivos, e que sua atitude em relação à oração em geral era esperar resultados em forma de visões, discursos e outras "doçuras", em vez de trabalhar, como aprendeu depois, sem pensar nas recompensas. Sua doença parece, de qualquer forma, mais explicável redigida nessas linhas do que em quaisquer termos médicos.

Teresa parece ter se sentido a vida inteira dominada pelo sentimento de sua própria maldade, o que pode ter contribuído para seu estado lamentável. Esse hábito de autorreprovação, que nosso século aprendeu a considerar patológico, atua como um refrão constante em seus escritos. Em todos os capítulos ela reprisa seu desmerecimento. Quando confessa, no começo do livro, frivolidades infantis, tais como o gosto por perfumes e roupas bonitas, gostar de mexericos e o hábito de procurar companhias tagarelas, chega perto de afastar a simpatia do leitor moderno. Se uma importância tão desproporcional deve ser atribuída a essas falhas insignificantes e comuns, quão desumanamente desoladores devem ser os primeiros passos no caminho de Deus! Então, quando a santa manifesta sua surpresa por ainda ter um apego mundano à irmã, o leitor contemporâneo provavelmente vai ficar ainda mais surpreso. Para ele, pode parecer que a vida espiritual não pode, pelo menos atualmente, ser vivida em isolamento do mundo, das suas obrigações e emoções, e que o que ela demanda não é uma mudança de circunstâncias, mas uma mudança de coração ou atitude.

Teresa, como foi observado, era uma mulher de fortes emoções. Sua família teve papel importante em sua existência, desde seu pai, a quem, nos últimos anos da vida dele, não ousou confessar sua deserção das orações, até sua sobrinha, a pequena Teresa, que se tornou uma de suas freiras aos dezesseis anos, acompanhou-a em algumas de suas viagens mais difíceis e, finalmente, atuou como sua secretária. A luta de Teresa para se livrar dos laços mundanos foi difícil, e longe de ser bem-sucedida.

Também suas referências aos heréticos, aos malvados luteranos que eram, o modo como ela via as coisas, aliados próximos do diabo, nos deixam espantados. O estreitamento de seu ponto de vista não era de nenhuma forma menor do que aquele dos inquisidores que, naquele tempo, condenavam judeus à fogueira por preferirem sua própria fé, que também havia produzido seus místicos, ao cristianismo ao qual seus pais haviam sido convertidos à força. Contra tal intolerância, nem Teresa nem João da Cruz levantaram o menor protesto; nem sequer suspeitavam que, nas mesmas cidades em que andavam, místicos maometanos, menos rígidos e exclusivistas em suas crenças do que eles, haviam florescido nos dias dos emirados mouros.

2

É necessário descontar as facetas do pensamento de Teresa que a separam do mundo moderno e também dos místicos menos dogmáticos do Oriente, de Platão e Plotino, dos padres da Igreja grega. Se tivesse visto as coisas como eles viam, Teresa teria atraído sobre si acusações de heresia, como as que foram recebidas pelo grande místico do século XIV, mestre Eckhart. Seguiu seu caminho sob a sombra do dogma da sua Igreja, e por insistir nele acabou formando inconscientemente as imagens de suas visões e locuções para servir ao seu ensino. Com frequência declarava que se sua experiência ensinasse a ela uma coisa e a Igreja outra, ela estava do lado da autoridade.

Evidentemente, a mente visionária deve moldar as formas inefáveis que chegam ao interior dos olhos e ouvidos; sem uma tradução para a linguagem da mente discursiva e das emoções comuns, elas não poderiam ser expressas. Teresa usa as convenções mais naturais a ela, as da Contrarreforma. Quando Cristo aparece para ela, ele toma a forma de uma figura que ela conhece; e os pequenos diabos que ela manda voar com espirros de água benta são os pequenos negros feios que viu esculpidos em bancos de igreja ou capitéis de colunas. Seu entendimento psicológico, por outro lado, é completamente autêntico. Em sua análise dos pensamentos e imaginações cuja perpétua agitação era um empecilho para as visões, e em sua explicação simbólica em termos das diferentes Águas da união emocional que pode ficar entre uma profundidade interna e uma externa — o que, para ela, é a união da alma com Deus —, é absolutamente fiel à sua experiência. Seus confessores a levaram a acreditar em visões que apareciam diante do olho físico e palavras que soavam no verdadeiro ouvido. Mas o que encontrou não foi nada disso, e ela disse isso. De novo, foi avisada sobre as atividades da imaginação, e muitas de suas experiências foram tomadas como imaginárias, ou mesmo como tentações de origens diabólicas. Mas em seus momentos de êxtase ela era capaz de ver os verdadeiros trabalhos de sua imaginação e de seu intelecto habitual, ficando primeiro tranquilizada pelo impacto desse novo estado, mas depois voltando e tentando interrompê-lo. Teresa era uma analista bastante arguta de estados exaltados, com quem se pode aprender muito sobre essas características da mente, hoje indiscriminadamente unidos sob o nome genérico de inconsciente. Ela sabia o que era verdadeiro e o que não era, e isso ela também disse.

O inconsciente, em sua conotação mais limitada, faz incursões ocasionais nos pensamentos de Teresa. Há uma visão do inferno como uma passagem estreita barrenta que levava a um armário em uma parede que é puro Kafka. Teresa foi assombrada por essas visões horríveis, e também atormentada, durante toda sua vida, por sintomas persistentes da doença que quase a matou quando jovem. Mas, muito mais constantemente, foi transportada para estados longe daqueles que o homem comum vivencia. Nesses casos ela sabia, como se tivesse sido dito pela própria voz de Deus, o que deveria fazer e dizer em qualquer situação. A fundação de São José foi levada a cabo por essa inspiração divina, assim como a escrita de grande parte da Vida e de seus outros trabalhos. Ela mesma não sabia como explicar suas experiências mais elevadas, mas deixou para Deus explicá-las por meio dela. Existem várias descrições de suas colegas freiras de momentos em que a viram com feições radiantes, escrevendo como se estivesse recebendo um ditado celestial. Mas nem todos os estados sobrenaturais que possuíram Teresa eram igualmente bem recebidos por ela. Ela mesma diz como, em suas orações, era levantada no ar, para sua própria consternação e para susto das irmãs que rezavam a seu lado no coro.

Essas levitações misteriosas foram acompanhadas, depois de sua morte, por uma igualmente misteriosa incorruptibilidade do seu corpo. Ambos são fenômenos bem conhecidos que acontecem nas histórias de muitos santos e somente podem ser atribuídos a alguma mudança real na estrutura física que acontece ao mesmo tempo que uma transformação espiritual. No caso de Teresa, o cheiro que cercou seu corpo incorrupto levou a resultados desastrosos. Na investida selvagem para adquirir relíquias sagradas, vários de seus membros foram arrancados de seu cadáver. Seu velho amigo, o padre Gracián, que pouco antes a tinha desapontado deixando de acompanhá-la em uma viagem, inaugurou seu desmembramento cortando uma de suas mãos.

3

Os eventos da vida de Teresa até seu quinquagésimo ano estão contados, embora não com perfeita exatidão, na autobiografia. Alguns fatos e datas, no entanto, são necessários para tornar claros muitos pontos que ela deixou imprecisos. Ela nasceu nas proximidades da pequena cidade castelhana fortificada de Ávila, que havia sido uma fortaleza cristã durante as guerras dos mouros, em 28 de março de 1515, e recebeu o nome de Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada. Era uma mistura de sangue judeu e cristão, sendo seu avô Juan Sánchez de Toledo um judeu convertido relapso. Veio de uma família grande, filha da segunda mulher do pai. A morte precoce da mãe, o casamento da irmã, a entrada como interna, aos dezesseis anos, no colégio administrado pelas irmãs agostinianas locais, nos são contados na autobiografia. Provavelmente, tinha 21 anos quando recebeu o hábito carmelita, e por cerca de 25 depois disso se empenhou em uma contínua "luta e discórdia entre conversar com Deus e com a sociedade do mundo". O consequente colapso de sua saúde é descrito detalhadamente por ela mesma. Aos 25 anos, parece ter sido uma completa inválida, e foi somente aos quarenta anos que os principais sintomas de sua doença desapareceram. Em algum momento durante esse intervalo de tempo ela descobriu, como nos conta, o trabalho de Francisca de Osuna, uma franciscana espanhola que foi sua contemporânea, apesar de vinte anos mais velha, sobre a prática do primeiro estágio da vida contemplativa, a oração do silêncio. Mas, na época da morte do pai, em 1543, parece que, pelo menos temporariamente, ela abandonou seus esforços para alcançá-la. Foi apenas em 1555, quando já tinha quarenta anos, que algumas novas tentativas esporádicas deram fruto. Foi então que ela leu pela primeira vez as Confissões, de Santo Agostinho, o que jogou uma luz sobre suas próprias experiências, e foi nessa época que começou a se encontrar com os jesuítas que tinham acabado de fundar uma faculdade em Ávila.

As discussões de Teresa com seus antigos confessores, essa aquisição de novos amigos, seu avanço ao estágio de "visão intelectual" e o começo de seu movimento de reforma, que preenchem os anos entre 1557 e 1562, estão inteiramente descritos na autobiografia, o que também nos diz algo sobre os processos de sua composição. Ela foi, como já se disse, completada, em sua forma final, no fim de 1565, e nas últimas páginas fala sobre sua vida como se tivesse se passado em um sonho. Suas experiências sobrenaturais eram a realidade, os eventos externos não a comoviam nada. Sua preocupação dileta parece ter sido a instrução de suas treze freiras de São José, para quem escreveu seu segundo livro, Caminho de perfeição. Ao mesmo tempo, começou também a escrever mais integralmente sobre seu desenvolvimento espiritual precoce em uma série de "Relações", destinadas, como Livro da vida, a serem lidas por seus confessores.

No ano de 1567, Teresa foi impelida a continuar com seu trabalho de reforma e começar uma série de novas fundações, das quais a última seria feita nos últimos meses de sua vida. Longe de se aposentar em uma existência contemplativa, foi violentamente lançada a uma vida de grande atividade. Mas assim que soube com certeza que a vontade de Deus era de que São José fosse fundado e prosperasse apesar de qualquer obstáculo, também foi tomada pela certeza de que o crescimento da Ordem das Carmelitas Descalças e por fim a separação da ordem não reformada era uma tarefa divinamente determinada. As dificuldades que encontrou eram ainda maiores do que aquelas de sua primeira fundação; e sua vontade em combatê-las, ainda mais resoluta. A história desse trabalho, das incontáveis dificuldades encontradas e das repetidas jornadas envolvidas é contada em seu Livro das fundações, e ilustrada complementarmente pelas muitas cartas que foram preservadas dessa fase de sua vida. Do período coberto pela autobiografia quase nada sobreviveu, mas, de 1573 em diante, ela correspondeu-se constantemente com uns tantos eclesiásticos, com freiras de sua ordem, e com alguns homens e mulheres importantes a quem pediu ajuda na forma de doações e assistência no combate aos ataques que ela e sua ordem sofriam. A maioria desses ataques estava nas mãos de religiosos conservadores, mas, em certa ocasião, encontrou um inimigo mais difícil, sob a forma de um famoso benfeitor. A princesa de Eboli, uma mulher rica de moral duvidosa que tinha a reputação de ser amante do rei, destruiu uma das casas de Teresa quando resolveu fixar residência lá num ataque histérico de luto pela morte do marido. Teresa e suas freiras foram obrigadas a se retirar.

A escrita de Fundações foi seguida pela de Castelo interior, uma amplificação dos capítulos de A vida que descreve o progresso da alma nos termos de várias "Águas". Esse livro, que desenvolve outra metáfora, a das sete "Moradas" da alma, é mais maduro em sua experiência do que A vida, e mais uniforme em sua composição. Foi escrito com grande pressa em 1577, como resultado de uma visão que veio a Teresa na véspera da festa da Santíssima Trindade daquele ano.

De 1568 em diante, Teresa ganhou muita força com a formação da companhia dos frades descalços que aceitaram sua reforma, cujo chefe era seu amigo e pupilo Juan de Yepes (1542-91), conhecido por nós como São João da Cruz. Ele se tornou diretor espiritual de São José em 1572, mas foi perseguido e jogado na prisão por seus irmãos não reformados um ano depois. Foi submetido a grandes sofrimentos e permaneceu em cativeiro por quase um ano. A própria Teresa foi, em algumas ocasiões, forçada a recorrer à mais alta autoridade na região, o próprio Filipe II, para salvá-la de tratamento similar. Carmelitas não reformadas lutaram muito, com apoio eclesiástico, para reprimir os descalços, mas Roma e o Tribunal, assim como muitas pessoas da nobreza, estavam do lado de Teresa.

Teresa lidou, durante toda vida, principalmente com os grandes, diante de quem ela se colocava como igual. Apesar de sua relutância inicial de assumir cargos ou responsabilidades, uma vez que o fez sentiu-se orgulhosa de sua reputação como organizadora respeitável e boa mulher de negócios. Quando negociava um terreno para uma de suas novas fundações, tinha o cuidado de se prevenir contra qualquer possível interferência do senhorio que poderia, um dia, pôr em perigo a liberdade de ação da prioresa; e ao atrair e selecionar noviças com dotes suficientes para colocar seus conventos em uma posição sólida, tomava cuidado para não incluir algum passageiro no sentido espiritual. Cada uma de suas freiras, dizia, deve ser apta a ser prioresa.

Teresa não era só uma mulher de negócios firme, era também uma conspiradora nata; pode-se ver o deleite com o qual, durante a perseguição de suas casas reformadas, cunhava nomes fictícios para seus amigos, para o caso de suas cartas caírem nas mãos da facção não reformada — a quem ela chama de "gafanhotos", em contraste com a sua própria ordem, as "borboletas". Mas em nenhum momento, nem no ápice de seus problemas, mostra, em suas cartas ou nas Fundações, qualquer sinal de maldade ou ódio real de seus rivais. É verdade que, quando expunha alguma história de manha espiritual por parte de uma freira, ou alguma tentativa de receber mais atenção de seu superior do que deveria, ela fala sobre sua própria natureza maldosa. Mas, mesmo quando era impiedosa na crítica a suas "filhas", ou opunha-se a algum eclesiástico hostil, nunca se perdia nas ofensas pessoais e difamações que são a moeda corrente das rivalidades mundanas.

"Uma das coisas que me faz feliz aqui", escreveu de sua fundação em Sevilha, "é que não há nenhuma insinuação daquele absurdo sobre a minha suposta santidade. Isso permite que eu viva e saia por aí sem medo de que a torre ridícula da imaginação deles caia sobre mim." Um ou dois anos depois, está se cumprimentando por estar apenas começando a ser uma verdadeira freira.

Mesmo assim, o mundo continuou acreditando que Teresa era santa e, em 1622, apenas 45 anos após sua morte, ela foi canonizada. Em 1814, quando a Espanha, com a ajuda de seus aliados ingleses, expulsava seus conquistadores franceses, ela foi proclamada a santa nacional do país.

maio de 1956

Nota do tradutor

Não é fácil entender Santa Teresa D'Ávila. O radicalismo de seu compromisso religioso, que vê como pecados gravíssimos o simples apego à família e o gosto por conversar com as amigas, por exemplo, ou que luta contra a opinião de autoridades religiosas para estabelecer seu mosteiro de São José de Ávila na pureza e rigor da regra carmelita antiga, é algo muito distante da experiência contemporânea.

Tentar entender Santa Teresa, no entanto, vale a pena. O esforço começou com Teresa de Ahumada, ou com Madre Teresa de Jesus, a própria futura santa. Diante de uma experiência incomum — a experiência direta de Deus —, Santa Teresa demorou a entender exatamente o que estava acontecendo com ela. Assim como demorou a compreender a extensão do compromisso que seus votos religiosos exigiam. São essa experiência e esse aprendizado que ela tenta elucidar quando escreve o Livro da vida.

Ela não escreve, porém, por vontade própria. Santa Teresa escreve a pedido de seus confessores, sabendo que seu manuscrito será mostrado à Inquisição para que se sancionem como legítimas — essa é a esperança — suas experiências místicas. A Espanha do século das controvérsias religiosas disparadas pela Reforma de Lutero está às voltas com o fenômeno dos "iluminados", pseudomísticos que desestabilizam a hierarquia da Igreja. Teresa não quer ser confundida com um deles. E teme despertar as antipatias num país em que o papel da mulher não era o de escritora ou mestra. Também precisa afirmar a pureza de seu catolicismo, já que é neta de um rico comerciante judeu convertido por parte de pai, ainda que seja "cristã velha" por parte da família abastada de criadores de gado de sua mãe. Por isso Santa Teresa escreve com cuidado. Afirma ser muito mais ignorante do que de fato é. O simples fato de saber ler desde menina já a poria acima da maior parte das mulheres, e dos homens, de seu tempo. Mas ela conhece e compreende bem a literatura religiosa e laica de sua época.

O texto do Livro da vida revela uma Santa Teresa apreensiva com a recepção que seu manuscrito possa receber por parte das autoridades, mas também revela uma mulher muito segura da autenticidade e importância de seu contato íntimo com Deus. Mesmo sabendo que seu manuscrito chegará às mãos das autoridades — embora finja pensar, ao longo dele, que apenas seus confessores o lerão —, Santa Teresa sabe igualmente que outras pessoas, já muito influenciadas por ela na época da redação do livro, o lerão. Serão pessoas leigas que se aproximam dela para instrução, e especialmente as religiosas de seus conventos reformados. Ora dirigindo-se a Deus, ora a seus confessores, ora a suas religiosas, a prosa da Santa mistura um tom de conversa de freira, a dicção dos romances de cavalaria — que lia quando criança e que usa especialmente para se dirigir diretamente a Jesus —, e a mais elevada Teologia Mística da qual Santa Teresa é uma das maiores mestras. Embora diga que nem sabe direito se é esse — teologia mística — o nome daquilo que ensina.

O que Santa Teresa tem a dizer, sua experiência muito particular, ainda não está cristalizado na época em que escreve. Nem a língua em que o vai dizer. O espanhol literário é uma língua ainda muito próxima de sua origem. Basta lembrar que o Dom Quixote de Cervantes, o primeiro monumento puramente literário da língua espanhola, foi escrito quase cinquenta anos depois do Livro da vida. Santa Teresa é uma das primeiras mestras também da língua espanhola.

O espanhol do Livro da vida é uma língua maleável, usada até seus limites ainda pouco definidos para "falar daquilo que não se pode dizer". Isso dificulta a tarefa de um tradutor. Para dar um exemplo, Santa Teresa não pontuou seu manuscrito com nada além de pontos e travessões. Por isso, algumas frases resultam quase incompreensíveis. Frei Luis de León, na primeira edição do Livro da vida, que organizou em 1588, estabeleceu uma pontuação mais de acordo com as normas gramaticais, e que vem sendo seguida pela maioria dos editores posteriores.

Mesmo assim, o texto de Santa Teresa apresenta pontos de difícil elucidação. Alguns tradutores optam por torná-lo mais claro e direto do que ele realmente é. Outros, especialmente os ligados à ordem carmelita de Santa Teresa, traduzem o texto do Livro da vida à luz dos quase quinhentos anos de discussão e interpretação da espiritualidade teresiana de que são herdeiros e praticantes. Esta tradução tenta apenas pôr em português o que está no livro de Santa Teresa.

Não se trata de um livro escrito com calma por uma religiosa confortavelmente estabelecida como autoridade espiritual amplamente reconhecida, status que Santa Teresa levou muito tempo para obter. É um documento que brota ao mesmo tempo que a santa está travando suas mais difíceis batalhas na reforma da Ordem Carmelita. Apenas a fundação do primeiro dos mosteiros reformados está narrada no Livro da vida. A tarefa ainda se prolongaria por décadas, sempre em meio a oposição e dificuldades de toda sorte. Além da ameaçadora desconfiança que suas visões e contatos com Deus despertam.

O destino do livro, assim como o texto dele, atestam a maneira atribulada em que foi escrito. A primeira redação do que viria a ser o Livro da vida foi concluída em 1562 e entregue ao padre García de Toledo. Escrito por ordem do padre dominicano Pedro Ibáñez, esse original não existe mais. Uma nova versão, maior, foi feita, incluindo a história da fundação do convento de São José de Ávila. Essa versão recebeu um tratamento mais elaborado, tendo sido dividida em capítulos a que a santa deu títulos — alguns dos quais curiosamente autoelogiosos, nos quais parece que alguma outra pessoa escreve em terceira pessoa sobre o texto de Santa Teresa. Essa versão, que teve os parágrafos numerados, é a base da primeira edição, feita apenas depois da morte de Santa Teresa. O título da obra consagrado ao longo dos séculos é Livro da vida, mas não foi dado pela própria autora. Em sua correspondência, Santa Teresa se refere a ele simplesmente como livro grande ou minha alma. Numa carta a Pedro de Castro y Nero ela diz: "Intitulei esse livro Sobre as misericórdias de Deus", mas essa designação não consta dos manuscritos.

Para a presente tradução, foi usada a oitava edição das Obras completas de Santa Teresa de Jesus, a cargo dos frades carmelitas Efren de la Madre de Dios e Otger Steggink, publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos de La Editorial Católica em Madri, em 1986. Também foi consultada a 14a edição preparada por Dámaso Chicharro para a coleção Letras Hispánicas da Editora Catedra, Madri, de 2006.

MARCELO MUSA CAVALLARI

Livro da vida

Vida da madre Teresa de Jesus escrita por sua própria mão, com uma aprovação do padre M. Fr. Domingo Báñez, seu confessor e catedrático em Salamanca.1

A vida da madre Teresa de Jesus, e algumas das dádivas que Deus lhe fez, escrita por ela mesma por ordem de seu confessor,2 a quem a envia e dedica, e diz assim:3

JHS

1. Quisera eu que, assim como me mandaram e deram grande liberdade para escrever o modo de oração e as dádivas que o Senhor me fez, tivessem dado para, muito minuciosamente e com clareza, dizer os meus pecados e vida ruim. Teria me dado grande consolo. Mas não quiseram, antes me restringiram muito nesse caso.

E por isso peço, por amor do Senhor, tenha diante dos olhos quem ler este discurso sobre a minha vida, que fui tão ruim que não achei santo, dos que se voltaram para Deus, com quem me consolar. Porque vejo que, depois que o Senhor os chamava, não tornavam a ofendê-lo. Eu não só tornava a ser pior, como parece que me esforçava em resistir às dádivas que Sua Majestade me fazia. Como quem se visse obrigado a servir mais e sabia não ser capaz de pagar um mínimo daquilo que já devia.

2. Seja bendito para sempre, pois tanto me esperou, quem de todo meu coração suplico que me dê a graça para que, com toda claridade e verdade, eu faça esse relato que meus confessores me mandam. E que também o Senhor, eu sei, quer há muitos dias, mas eu não tinha me atrevido. E que seja para glória e louvor seu, e para que, daqui para a frente, conhecendo-me eles melhor, ajudem a minha fraqueza para que eu possa servir algo do que devo ao Senhor, a quem louvem sempre todas as coisas, amém.

CAPÍTULO 1

EM QUE TRATA DE COMO COMEÇOU O SENHOR A DESPERTAR ESTA ALMA EM SUA INFÂNCIA PARA COISAS VIRTUOSAS E A AJUDA QUE É PARA ISSO SEREM VIRTUOSOS OS PAIS

1. Ter pais virtuosos e tementes a Deus me teria bastado, se eu não fosse tão ruim, junto com o que o Senhor me favorecia para ser boa. Era o meu pai amante de ler bons livros, e, assim, tinha-os em espanhol para que os lessem seus filhos. Com o cuidado que minha mãe tinha de fazer-nos rezar e nos pôr a ser devotos de Nossa Senhora e de alguns santos, começou a despertar-me com a idade — me parece — de seis ou sete anos.

2. Ajudava-me não ver em meus pais tendência a não ser para a virtude. Tinham muitas.

Meu pai1 era de muita caridade com os pobres e pena dos enfermos, e também dos criados. Tanta que nunca se conseguiu convencê-lo a ter escravos, porque tinha muita pena deles. E estando uma vez em casa uma escrava de um irmão dele, tratava-a como a seus filhos. Dizia que, porque não era livre, não aguentava de tanta pena. Era de grande verdade. Jamais alguém o viu blasfemar ou resmungar. Muito recatado.

3. Minha mãe2 também tinha muitas virtudes e passou a vida com muitas doenças. Enorme recato. Mesmo sendo de grande beleza, nunca se ouviu dizer que se desse ocasião em que ela fizesse caso dela. Pois, mesmo tendo morrido aos 33 anos, já seus trajes eram de uma pessoa de muito mais idade. Muito afável e de grande inteligência. Foram grandes as dificuldades que passaram no tempo que viveu. Morreu muito cristãmente.

4. Éramos três irmãs e nove irmãos. Todos pareciam os pais — pela bondade de Deus — em ser virtuosos, a não ser eu, ainda que fosse a mais querida por meu pai. E antes de começar a ofender a Deus, parece que ele tinha alguma razão, porque me dá desgosto quando me lembro das boas inclinações que o Senhor me tinha dado, e de como eu soube aproveitar mal delas.

5. Pois meus irmãos em nada me prejudicavam a servir a Deus. Tinha um3 quase da minha idade. Juntávamos ambos a ler vidas de santos. Pois era o de quem eu mais gostava, embora tivesse grande amor a todos e eles a mim. Quando via os martírios que, por Deus, as santas passavam, parecia-me que pagavam pouco pelo ir gozar de Deus, e eu desejava muito morrer assim. Não por amor que eu julgasse ter-lhe, mas sim para ir gozar tão depressa os grandes bens que lia haver no céu. E juntava-me a esse meu irmão para tratar de que jeito haveria para isso. Combinávamos de ir à terra de mouros, pedindo, pelo amor de Deus, que lá nos decapitassem. E me parece que o Senhor nos daria coragem em tão tenra idade, se víssemos algum jeito, mas ter pais nos parecia o maior obstáculo. Espantava-nos muito no que líamos dizer que pena e glória eram para sempre. Acontecia-nos ficar muito tempo falando disso e gostávamos muito de dizer muitas vezes: para sempre, sempre, sempre! Ao pronunciar isso muito tempo, agradava ao Senhor que ficasse impresso nessa minha infância o caminho da verdade.

6. Depois que vi que era impossível ir aonde nos matassem por causa de Deus, planejávamos ser ermitãos. E numa horta que havia nessa casa tentávamos, como podíamos, fazer ermidas, erguendo umas pedrinhas, que logo caíam e assim não encontrávamos remédio em nada para nosso desejo. E agora me enche de piedade ver como Deus me dava tão prontamente o que eu perdi por minha culpa. Dava esmola como podia, e podia pouco. Procurava a solidão para rezar minhas devoções, que eram muitas, em especial o rosário, de que minha mãe era muito devota e assim nos fazia ser. Gostava muito, quando brincava com outras meninas, de brincar de mosteiros, como se fôssemos monjas. E eu, parece-me, desejava ser, ainda que não tanto quanto as coisas que disse.

7. Lembro-me que, quando morreu minha mãe, eu tinha a idade de doze anos,4 ou um pouco menos. Assim que comecei a entender o que havia perdido, fui, aflita, até uma imagem de Nossa Senhora e supliquei a ela, com muitas lágrimas, que fosse minha mãe. Parece-me que, ainda que tenha sido feito com simplicidade, me valeu, porque reconhecidamente encontrei essa Virgem soberana em tudo quanto encomendei a ela, e, por fim, ela me voltou para si. Incomoda-me agora ver e pensar no que deu não ter eu ficado inteiramente nesses bons desejos com que comecei.

8. Oh, meu Senhor! Já que parece terdes determinado que eu me salve, queira Vossa Majestade que seja assim, e, tendo dado tantas dádivas quanto me destes, não teria sido melhor — não para meu benefício, mas por respeito a Vós — que não se tivesse sujado tanto uma casa em que haveríeis de morar? Incomoda-me, Senhor, dizer isso, porque sei que foi minha toda a culpa, porque não me parece que faltou a Vós fazer nada para que desde tenra idade fosse toda vossa. Quando vou me queixar de meus pais, também não posso, porque não via neles senão todo o bem e o cuidado com o meu bem.

Pois passando dessa idade, em que comecei a entender as graças de natureza que o Senhor havia me dado — que, pelo que diziam, eram muitas —, quando por elas teria que dar graças, passei a me servir de todas para ofendê-Lo, como direi agora.

CAPÍTULO 2

TRATA DE COMO FOI PERDENDO ESSAS VIRTUDES E COMO IMPORTA, NA INFÂNCIA, CONVIVER COM PESSOAS VIRTUOSAS

1. Parece-me que começou a me fazer muito mal o que agora direi. Penso algumas vezes que mal fazem os pais que não procuram que seus filhos sempre vejam coisas de virtude de todas as maneiras. Porque, apesar de minha mãe ser assim como disse, do bom eu não peguei tanto — ao chegar ao uso da razão. Na verdade quase nada. E o mau me prejudicou muito. Era ela amante de livros de cavalaria e não lhe causava tanto mal esse passatempo quanto causou a mim, porque não descuidava de seu trabalho. Ao contrário, nos desdobrávamos para ter tempo de lê-los. E talvez os lesse para não pensar nas grandes dificuldades que tinha, e ocupar seus filhos para que não andassem perdidos em outras coisas. Isso desagradava tanto a meu pai que era preciso tomar cuidado para que não o visse. Eu comecei a ficar com o hábito de lê-los, e aquela pequena falta que vi nela começou a esfriar meus desejos e começar a descuidar do resto. E não me parecia que fosse errado gastar tantas horas do dia e da noite em ocupação tão vã, ainda que escondida de meu pai. Era tão forte o que me encantava nisso que, se não tivesse um livro novo, não me parece que estivesse contente.

2. Comecei a me vestir bem e a desejar agradar por ser bonita, ocupando-me muito das mãos e dos cabelos, e perfumes e todas as vaidades que podia ter, que eram muitas, porque eu era muito zelosa. Não tinha má intenção, porque não queria que ninguém ofendesse a Deus por minha causa. Durou-me muitos anos a muita dedicação aos cuidados exagerados com a beleza e coisas que me parecia que não eram nenhum pecado. Agora vejo como devia ser mal.

Tinha alguns primos-irmãos, porque outros não tinham licença para entrar na casa de meu pai, que era muito cauteloso. E quisera Deus que tivesse sido com esses também. Porque agora vejo o perigo que é conviver, na idade em que vão começar a se criar as virtudes, com pessoas que não percebem a vaidade do mundo e, antes, instigam a entrar nele. Eram quase da minha idade, pouco maiores do que eu. Andávamos sempre juntos. Gostavam muito de mim e eu conversava sobre todas as coisas que lhes alegravam, e ouvia os casos de suas predileções e suas criancices nada boas. E o pior foi mostrar-se a alma ao que foi causa de todo seu mal.

3. Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos pais que, nessa idade, tivessem grande cuidado com as pessoas que convivem com seus filhos, porque aí há muito mal. Pois a nossa natureza vai antes para o pior do que para o melhor. Assim aconteceu a mim, que tinha uma irmã1 de muito mais idade do que eu, de cuja modéstia e bondade — que tinha muita — eu não tomava nada, e tomei todo dano de uma parenta que frequentava muito nossa casa. Era de modos tão levianos que minha mãe tinha tentado evitar que frequentasse nossa casa. Parece que adivinhava o mal que por ela me havia de vir. Mas eram tantas as ocasiões que ela tinha para nos visitar que minha mãe não conseguiu.

4. A esta que digo, me afeiçoei. Com ela eram as minhas conversas e fofocas, porque me ajudava em todas as coisas de passatempo que eu queria. E também me apresentava outras e contava de suas fofocas e vaidades. Até começar a conviver com ela, quando tinha a idade de catorze anos — e creio que até mais, para ter amizade comigo — digo — e me contar as coisas dela —, não me parece que havia abandonado a Deus por culpa mortal nem perdera o temor a Deus, ainda que tivesse temor maior por minha honra. Tive forças para não a perder de todo e não me parece que, nisso, por nada no mundo eu me modificaria, e não havia amor por pessoa alguma do mundo que a isso me fizesse ceder. Tivesse eu tido essa força para não ir contra a honra de Deus, assim como minha natureza me dava força para não a perder naquilo em que me parecia estar a honra do mundo! E não via que eu a perdia de muitos outros jeitos! Em amar vaidosamente esta honra, chegava a extremos. Os meios que me eram necessários para guardá-la, não usava. Só a não perdê-la de todo é que dava grande importância.

Meu pai e minha irmã lamentavam muito essa amizade. Por causa dela me repreendiam muitas vezes. Como não podiam tirar dessa parente as oportunidades de entrar em casa, não adiantavam seus esforços, porque minha sagacidade para qualquer coisa má era grande.

5. Espanta-me, às vezes, o dano que faz uma má companhia, e se eu não tivesse passado por isso não poderia acreditar. Especialmente no tempo da mocidade, deve ser maior o mal que faz. Gostaria que aprendessem com meu exemplo os pais, a fim de prestar muita atenção nisso. E foi assim que, de tal maneira mudou-me essa companhia, que da natureza e da alma virtuosas não me deixou quase nada. E me parece que imprimia em mim suas condições, ela e outra que tinha o mesmo tipo de passatempo.

Por isso entendo o grande proveito que traz uma boa companhia e tenho certeza de que, se tivesse convivido naquela idade com pessoas virtuosas, estaria toda na virtude. Porque se tivesse tido nessa idade quem me ensinasse a temer a Deus, a alma iria ganhando força para não cair. Depois, abandonado totalmente esse temor, ficou só o de perder a honra, que, em tudo o que eu fazia, me deixava atormentada. Pensando que ninguém fosse ficar sabendo, me atrevia a muitas coisas tanto contra essa honra quanto contra Deus.

6. No começo estragaram-me as coisas que me diziam — pelo que me parece. Mas não devia ser da parente a culpa, mas minha. Porque, depois, minha malícia bastava para o mal, junto com o fato de ter criadas, porque para todo o mal achava eu nelas um bom instrumento. Pois se alguma fosse de dar bons conselhos, talvez me tivesse sido proveitoso. Mas o interesse as cegava, como a mim o gosto. Porém nunca tinha inclinação para muito mal — porque coisas desonestas naturalmente me desagradavam. Só para gastar o tempo numa boa conversa. Mas, dada a ocasião, o perigo estava à mão, e eu punha nele meu pai e meus irmãos. Do qual me livrou Deus de tal modo que bem parecia procurar, contra minha vontade, que eu não me perdesse de todo. Ainda que nada pudesse ter sido tão secreto que não tivesse havido grande perda em minha honra e suspeita em meu pai. Porque me parece que não andava nessas vaidades três meses, quando me levaram para um mosteiro que havia nesse lugar,2 onde se educavam pessoas semelhantes a mim, ainda que não tão ruins em seus costumes quanto eu. E isso foi feito com grande discrição, de modo que só eu e alguns parentes sabíamos o motivo. Porque aguardaram uma conjuntura que não pareceria uma novidade: porque ter minha irmã3 se casado e eu ficado sozinha, sem mãe, não era bom.

7. Era tão grande o amor que meu pai tinha por mim, e tanta a minha dissimulação, que ele não conseguia acreditar em tantas coisas más de mim, e assim não fiquei em desgraça com ele. Como foi breve o tempo, ainda que ele soubesse um pouco, não podia dizer com certeza. Porque, como eu temia tanto perder a honra, todos os meus esforços eram para que fosse segredo, e não dava atenção que não podia sê-lo para quem tudo vê. Oh, meu Deus, que mal causa no mundo fazer pouco disso e pensar que possa haver coisa contra Vós que seja secreta! Tenho certeza de que se evitariam grandes males se entendêssemos que o negócio não é tomar cuidado com os homens, mas sim tomar cuidado em não desagradar a Vós.

8. Os primeiros oito dias eu senti muito. E mais a suspeita que tive de que se havia descoberto minha frivolidade do que o estar ali. Porque eu já andava cansada, e não deixava de ter grande temor a Deus, quando o ofendia, e procurava confessar-me logo.

Tinha um desassossego que, em oito dias — e até menos, creio —, estava muito mais contente do que na casa do meu pai. Todas estavam contentes comigo, porque nisso o Senhor me dava a graça: em agradar onde quer que eu fosse, e assim eu era muito querida. E embora já estivesse inimicíssima de ser monja, alegrava-me ver tão boas monjas, pois o eram muito as daquela casa, e de grande honestidade e religião e recato.

9. Mesmo com tudo isso, não deixava o demônio de me tentar, e procurar, as pessoas de fora, meio de me desassossegar com recados. Como não havia oportunidade, logo se acabou. E começou a minha alma a voltar a se acostumar com o bem da minha primeira idade. E via a grande dádiva que faz Deus a quem Ele põe na companhia dos bons. Parece-me que andava Sua Majestade buscando e rebuscando por onde poderia me virar para Si. Bendito sejais Vós, Senhor, que tanto me aguentou! Amém.

Uma coisa eu tinha, que parece que me podia servir de desculpa, se não tivesse tantas culpas. Era o convívio com quem, por via de casamento, me parecia que eu poderia acabar bem. Informada por aquele com quem me confessava e outras pessoas, em muitas coisas me diziam que eu não ia contra Deus.

Dormia uma monja4 com as que éramos leigas, por meio de quem quis o Senhor começar a dar-me luz, como direi agora.

CAPÍTULO 3

EM QUE TRATA DE COMO A BOA COMPANHIA CONTRIBUIU PARA TORNAR A DESPERTAR SEUS DESEJOS E DE QUE MANEIRA COMEÇOU O SENHOR A DAR A ELA ALGUMA LUZ SOBRE O ENGANO EM QUE ESTIVERA

1. Então, começando a gostar da boa e santa conversa dessa monja, alegrava-me ouvir quão bem ela falava de Deus, porque era muito sensata e santa. Isso, parece-me, nunca deixei de gostar de ouvir. Começou a me contar como tinha vindo a ser monja só por ler no Evangelho: "Muitos são os chamados e poucos os escolhidos".1 Dizia-me que prêmio dava o Senhor aos que tudo deixam por Ele.

Começou essa boa companhia a expulsar os costumes que havia feito a má, e a voltar a pôr em meu pensamento desejos das coisas eternas e a tirar um pouco a grande inimizade que tinha com a ideia de ser monja, que havia se tornado enorme em mim. E se eu via alguma monja com lágrimas quando rezava, ou outras virtudes, tinha muita inveja dela. Porque era tão duro meu coração nesse caso que, se lesse toda a Paixão, não derramaria uma lágrima. Isto me dava tristeza.

2. Fiquei um ano e meio nesse mosteiro, muito melhorada. Comecei a rezar muitas orações vocais e a pedir a todas que me encomendassem a Deus. Que Ele me desse o estado em que o havia de servir. Mas ainda queria que não fosse monja, que esse não fosse do agrado do Senhor me dar esse estado, ainda que também tivesse medo de me casar.

Ao cabo desse tempo que fiquei ali, já tinha mais simpatia por ser monja, ainda que não naquela casa, por causa das coisas mais virtuosas que, depois entendi, elas tinham. Porque me pareciam extremos exagerados. E havia algumas das mais moças que me apoiavam nisso. Mas, se todas fossem do mesmo parecer, muito me teria aproveitado. Eu também tinha uma grande amiga em outro mosteiro,2 e isso era parte da razão de não ser monja, se houvesse de ser, a não ser onde ela estava. Cuidava mais da satisfação dos meus sentidos e da minha frivolidade que do bem da minha alma.

Esses bons pensamentos de ser monja ocorriam-me algumas vezes e logo me deixavam e não conseguia me decidir a sê-lo.

3. Nesse tempo, ainda que eu não andasse descuidada de emendar-me, estava mais desejoso o Senhor de me dispor para o estado que me seria melhor. Deu-me uma grande doença e tive que voltar para a casa de meu pai.

Ficando boa, levaram-me à casa de minha irmã,3 que morava em uma aldeia, para vê-la, porque era extremo o amor que tinha por mim e, por sua vontade, eu não sairia de perto dela. E seu marido também me amava muito — ao menos mostrava-me todo o carinho — e até isso eu devo mais ao Senhor: que em toda parte sempre tive. E tudo Ele servia sendo eu quem sou.

4. Ficava no caminho um irmão4 de meu pai, muito prudente e de grandes virtudes, viúvo, a quem andava o Senhor dispondo para Si, pois em sua velhice deixou tudo o que tinha e virou frade e acabou de uma maneira que, creio, goza de Deus. Quis que ficasse com ele uns dias. Sua atividade eram bons livros em espanhol, e sua conversa era — mais comumente — sobre Deus e a vaidade do mundo. Fazia-me ler para ele e, ainda que não gostasse de seus livros, fingia que sim, porque nisso de agradar aos outros tinha extremos, mesmo que a mim causasse incômodo. Tanto que, aquilo que em outras teria sido virtude, em mim foi uma falta grave, porque eu andava, muitas vezes, sem discernimento.

Oh, valha-me Deus, por que meios andava Sua Majestade me dispondo para o estado em que quis servir-se de mim, que, sem eu querer, me forçou a me esforçar. Seja bendito para sempre, amém.

5. Ainda que tenham sido poucos os dias que fiquei, com a força que faziam em meu coração as palavras de Deus, tanto lidas quanto ouvidas, e a boa companhia, cheguei a ir entendendo a verdade de quando era pequena: de que tudo não era nada. E a vaidade do mundo. E como acabava logo. E a temer, se tivesse morrido, ir para o inferno. E mesmo não conseguindo que minha vontade se inclinasse para ser monja, vi ser melhor e mais seguro estado e, assim, pouco a pouco, decidi forçar-me a tomá-lo.

6. Nessa batalha fiquei três meses, forçando-me a mim mesma com esse argumento: os trabalhos e a pena de ser monja não poderiam ser maiores do que os do purgatório, e eu havia bem merecido o inferno. Não era grande coisa passar o tempo que vivesse como no purgatório e, depois, ir direto para o céu, pois esse era meu desejo.

E nesse movimento de tomar esse estado movia-me mais, parece-me, um temor servil do que o amor. Insinuava o demônio que eu não conseguiria aguentar os rigores da vida religiosa, por ser tão mimada. Eu me defendia disso com os sofrimentos que passou Cristo, porque não era grande coisa que eu passasse alguns por Ele. Que Ele me ajudaria a passá-los devo ter pensado, mas disso, depois, eu não me lembro. Passei muitas tentações naqueles dias.

7. Tinham-me dado, junto com umas febres, uns grandes desmaios, pois sempre tive pouca saúde. Deu-me a vida o fato de ter já ficado amiga de bons livros. Lia as Epístolas de São Jerônimo,5 que me davam coragem, de sorte que decidi dizer a meu pai, o que era quase como tomar o hábito, porque era tão ciosa da minha honra que me parece que não voltaria atrás de maneira alguma, uma vez que tivesse dito. Ele me amava tanto que de nenhuma forma pude convencê-lo, nem foram suficientes os pedidos de pessoas que procurei para que falassem com ele. O máximo de que se pode convencê-lo foi que, quando acabassem os seus dias, eu faria o que quisesse. Eu já temia por mim e pela minha fraqueza voltar atrás, e, assim, não me pareceu que me convinha isso. E procurei outros meios, como agora direi.

CAPÍTULO 4

DIZ COMO AJUDOU-A O SENHOR A FORÇAR-SE A TOMAR O HÁBITO, E AS MUITAS DOENÇAS QUE SUA MAJESTADE COMEÇOU A LHE DAR

1. Nesses dias, em que lidava com essas decisões, havia persuadido um irmão1 meu a se tornar frade falando-lhe da vaidade do mundo. E combinamos os dois ir um dia, de manhã bem cedo, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga, que era a quem eu tinha muita afeição. Embora nessa decisão final eu já estivesse de tal jeito que a qualquer mosteiro que pensasse servir mais a Deus ou que meu pai quisesse, eu iria. Porque já prestava mais atenção ao remédio da minha alma, e, do descanso, não fazia nenhum caso. Lembro-me, e me parece que com verdade, que, quando saí da casa de meu pai, não creio que será maior o sentimento quando eu morrer. Porque me parecia que cada osso se me arrancava por si mesmo, pois, como eu não tinha amor de Deus que tirasse o amor pelo pai e parentes, era tudo fazendo um esforço tão grande que, se o Senhor não me tivesse ajudado, não bastariam as minhas considerações para ir adiante. Aqui me deu ânimo contra mim, de maneira que pus mãos à obra.

2. Tomando o hábito,2 logo me deu o Senhor a entender como favorece a quem faz força contra si para servir-lhe, o que ninguém percebia em mim, só uma enorme vontade. Na hora me deu uma alegria tão grande ter aquele estado que nunca mais me faltou, até hoje, e mudou Deus a secura que eu tinha na alma em enorme ternura. Davam-me prazer todas as coisas da vida religiosa. E é verdade que estava, às vezes, varrendo nas horas que eu costumava ocupar em me enfeitar e arrumar. E, lembrando-me de que estava livre daquilo, me dava um novo prazer, que eu não podia entender de onde vinha.

Quando me lembro disso, não há coisa que se pusesse em minha frente, por mais difícil que fosse, que eu tivesse dúvida em enfrentar. Porque já tenho experiência em muitas coisas que, se me ajudo no princípio a me decidir a fazê-lo, ainda nesta vida o paga Sua Majestade por vias que só quem desfruta disso entende. Pois, sendo só para Deus, até começar, Ele quer — para que mais mereçamos — que a alma sinta aquele medo, e quanto maior, se se sai bem com ele, maior o prêmio e mais saboroso se faz depois.3

Isso tenho por experiência, como disse, em muitas coisas bastante sérias e assim jamais aconselharia — se fosse pessoa de dar opinião — que, quando uma inspiração ocorre muitas vezes, se deixe por medo de pôr mãos à obra. Que vá a descoberto, só com Deus, não deve ter medo de que se sairá mal, porque Ele é poderoso para tudo. Seja bendito para sempre, amém.

3. Bastariam, oh, sumo Bem e descanso meu!, as dádivas que me tínheis feito até aqui, de trazer-me por tantos rodeios vossa piedade e grandeza a estado tão seguro e a uma casa onde havia tantas servas de Deus, de quem eu poderia aprender, para ir crescendo em seu serviço. Não sei como hei de passar daqui, quando me lembro da maneira de minha profissão e a grande determinação e alegria com que a fiz e o casamento que fiz convosco. Isso eu não consigo dizer sem lágrimas. E teriam que ser de sangue e partir-me o coração e não seria muito sentimento pelo que depois vos ofendi. Parece-me agora que eu tinha razão em não querer tão grande dignidade, já que tão mal haveria de usá-la.

Mas Vós, meu Senhor, quisestes — quase vinte anos usei mal desta dádiva — ser o ofendido, para que eu fosse melhorada. Parece, Deus meu, que prometi não cumprir nada do que vos havia prometido, ainda que, na época, não fosse essa minha intenção. Mas vejo serem tais as minhas obras, depois, que não sei que intenção tinha. Para que mais se veja quem Vós sois, Esposo meu, e quem sou eu. Porque é verdade, com certeza, que, muitas vezes, ameniza o sentimento de minhas grandes culpas a alegria que me dá entender a multidão de vossas misericórdias.

4. Em quem, Senhor, podem resplandecer como em mim, que tanto escureci com minhas más obras as grandes dádivas que começastes a fazer-me? Ai de mim, Criador meu, que, se quero dar desculpa, não tenho nenhuma, nem ninguém tem a culpa a não ser eu! Porque se tivesse pagado algo do amor que começastes a me mostrar, não o poderia empregar em ninguém, senão em Vós, e com isso se remediava tudo. Como não o mereci nem tive tanta sorte, valha-me agora, Senhor, vossa misericórdia.

5. A mudança da vida e das comidas me fez mal à saúde. Tanto que, ainda que a alegria fosse muita, não bastou. Começaram a aumentar os meus desmaios e me deu uma dor no coração tão enorme que causava espanto a quem via, e outros muitos males juntos. E assim passei o primeiro ano com saúde muito ruim, ainda que não me pareça que tenha ofendido muito a Deus nele. E como era a dor tão grande que quase me privava dos sentidos sempre — e às vezes ficava sem eles de todo —, era grande a diligência que empregava meu pai em procurar remédio. E como não o deram os médicos daqui, procurou me levar a um lugar4 que tinha muita fama de que curavam ali outras doenças e assim, disseram, fariam com a minha. Foi comigo essa amiga que eu disse que tinha na casa, que era antiga.5 Na casa em que era monja não se prometia clausura.

6. Estive lá quase um ano, e três meses dele sofrendo um tormento tão enorme nos tratamentos tão fortes que me deram que não sei como aguentei. E, enfim, ainda que eu os tenha aguentado, não os pode aguentar meu corpo, como vou contar.

Devia começar o tratamento no princípio do verão, e eu fui no princípio do inverno. Todo esse tempo fiquei na casa da irmã que eu disse que morava na aldeia esperando o mês de abril, porque lá era perto, e para não ficar indo e vindo.

7. Quando fui, me deu aquele meu tio — que eu disse que morava no caminho — um livro. Chamava-se Terceiro abecedário6 e tratava de ensinar oração de recolhimento. E, embora nesse primeiro ano tenha lido bons livros, porque não quis mais usar outros, porque já entendia o dano que me haviam causado, não sabia como proceder em oração nem como recolher-me. Assim, gostei muito dele e me decidi a seguir aquele caminho com todas as minhas forças. E como o Senhor já me havia dado o dom das lágrimas e eu gostava de ler, comecei a ter instantes de solidão e a me confessar amiúde e começar aquele caminho, tendo aquele livro por mestre. Porque eu não achei mestre — digo confessor — que me entendesse, ainda que tenha buscado, por vinte anos depois disso que conto, o que me causou muito dano por voltar muitas vezes atrás e até para de todo perder-me. Porque, se tivesse achado, me ajudaria até a sair de ocasiões que tive para ofender a Deus.

Começou Sua Majestade a fazer-me tantas dádivas nesses começos que ao fim desse tempo que estive ali (e que foram quase nove meses nesta solidão, ainda que não tão livre de ofender a Deus como o livro me dizia. Mas essa parte do livro eu passava por cima: parecia-me quase impossível tanta vigilância. Eu a tinha para não cometer pecado mortal, e quisera Deus que tivesse tido sempre. Dos venais fazia pouco-caso, e foi isso que me destruiu) começou o Senhor a me presentear tanto por esse caminho que me fazia a dádiva de me dar oração de quietude. E, às vezes, chegava à união, ainda que eu não entendesse o que era nem uma nem outra. Nem o muito que eram de apreciar, porque creio que me teria sido um grande bem entendê-lo. É verdade que durava tão pouco isso de união, que não sei se dava tempo para uma Ave-Maria. Mas ficava com efeitos tão grandes que, mesmo não tendo nesse tempo vinte anos, parece-me que tinha o mundo sob os meus pés e assim me lembro que tinha pena dos que seguiam o mundo, mesmo que fosse em coisas lícitas.

8. Tentava o mais possível trazer Jesus Cristo, nosso Bem e Senhor, dentro do meu momento presente. E esta era a minha maneira de oração: se pensava em algum dos passos,7 eu o representava interiormente, ainda que o maior tempo eu gastava lendo bons livros, que era a minha única recreação. Porque não me deu Deus talento para discorrer com o entendimento, nem para me beneficiar com a imaginação, que tenho tão lerda, que, até para pensar e representar em mim a Humanidade do Senhor — como procurava fazer — nunca conseguia. E, ainda que por essa via de não poder trabalhar com o entendimento alguns cheguem mais rápido à contemplação, se perseveram, é muito trabalhoso e penoso. Porque, se falta ocupação para a vontade e o ter em que se ocupe em coisa presente o amor, fica a alma como sem arrimo nem ocupação. E dão muita tristeza a solidão e a secura. E enorme combate, os pensamentos.

9. Às pessoas que têm essa disposição convém maior pureza de consciência do que às que podem trabalhar com o entendimento. Porque quem pensa no que é o mundo e no que deve a Deus, e no muito que Ele sofreu e o pouco que lhe serve e o que Ele dá a quem o ama, tira doutrina para defender-se dos pensamentos e das ocasiões de pecado e perigos. Mas quem não pode se aproveitar disso tem mais perigos e convém a esse ocupar-se muito em leitura, pois por si não pode tirar nenhuma doutrina. É tão penosa essa maneira de proceder que, se o mestre pressiona para que seja sem leitura, que ajuda muito no recolhimento — a quem procede dessa maneira é necessária, ainda que seja pouco o que leia, no lugar da oração mental que não consegue manter. Ia dizendo que, se sem essa ajuda fazem-no ficar muito tempo na oração, será impossível durar muito nela. E fará mal à sua saúde se insistir, porque é uma coisa penosa demais.

Agora me parece que foi do agrado do Senhor que eu não achasse quem me ensinasse, porque teria sido impossível — me parece — perseverar dezoito anos que passei nesse esforço e nessas grandes securas, por não poder, como disse, pensar discursivamente. E todos esses anos, se não fosse acabando de comungar, jamais ousava começar a manter oração sem um livro. Temia a minha alma estar sem ele na oração, tanto quanto se fosse lutar com muita gente. Com esse remédio, que era como uma companhia e um escudo em que haveria de receber os golpes dos muitos pensamentos, ficava consolada. Porque a secura não era habitual, mas ocorria sempre que me faltava um livro, porque logo se dispersava a alma e os pensamentos iam perdidos. Com a leitura eu os começava a recolher e, como por afagos, conduzia a alma. E, muitas vezes, abrindo o livro, não era preciso mais. Outras vezes, lia pouco, outras, muito, conforme a dádiva que o Senhor me fazia.

10. Parecia-me, nesse começo que conto, que ter eu livros era como ter solidão, que não haveria perigo que me tirasse de tanto bem. E, creio, com a ajuda de Deus teria sido assim, se tivesse mestre ou pessoa que me avisasse a fugir das ocasiões de pecado no início e me fizesse sair delas, se eu entrasse, rapidamente. E, se o demônio me atacasse abertamente, naquela época, parecia-me que de maneira nenhuma eu voltaria a pecar gravemente. Mas ele foi tão sutil, e eu tão ruim, que toda a minha determinação foi de pouco proveito. Ainda que de muito os dias que servi a Deus, por poder aguentar as terríveis doenças que tive com tão grande paciência como Sua Majestade me deu.

Muitas vezes pensei espantada na grande bondade de Deus e deliciou-se minha alma em ver sua grande magnificência e misericórdia. Seja bendito por tudo, porque vi com clareza não deixar sem me pagar, ainda nesta vida, nenhum bom desejo. Por ruins e imperfeitas que fossem minhas obras, esse meu Senhor as ia melhorando e aperfeiçoando e dando valor, e os males e os pecados logo os escondia. Mesmo os olhos de quem os viu permite Sua Majestade que se ceguem e os tira de sua memória. Doura as culpas, faz com que resplandeça uma virtude que o próprio Senhor põe em mim, quase me forçando a tê-la.

11. Quero pensar no que me mandaram. Digo que se tivesse que dizer em detalhe a maneira como o Senhor se comportava comigo nesse começo, teria sido necessário outro entendimento, não o meu, para saber avaliar o que nesse caso lhe devo e a minha grande ingratidão e maldade, pois tudo isso eu esqueci. Seja para sempre bendito quem tanto me aguentou. Amém.

CAPÍTULO 5

PROSSEGUE NAS GRANDES DOENÇAS QUE TEVE E A PACIÊNCIA QUE O SENHOR LHE DEU NELAS E COMO ELE TIRA DOS MALES BENS COMO SE VERÁ EM UMA COISA QUE LHE ACONTECEU NESSE LUGAR A QUE FOI PARA SE CURAR

1. Esqueci de dizer como no ano do noviciado passei grandes desassossegos com coisas que, em si, tinham pouca importância, mas culpavam-me sem eu ter culpa muitas vezes. Eu levava isso com muita aflição e imperfeição, ainda que, com a grande alegria que tinha de ser monja, eu aguentasse tudo. Como me viam procurar a solidão e me viam chorar por meus pecados algumas vezes, pensavam que era descontentamento, e assim diziam.

Era apegada a todas as coisas da vida religiosa, mas não a suportar algo que me parecesse menosprezo. Gostava de ser estimada. Era cuidadosa em tudo o que fazia. Tudo me parecia virtude, ainda que isso não seja desculpa, porque em relação a tudo eu sabia procurar meu contentamento e, assim, não há a ignorância que tira a culpa. Alguma desculpa eu tinha por não estar o mosteiro fundado em muita perfeição. Eu, como era ruim, ia pelo que via errado e deixava de lado o bom.

2. Estava então doente uma monja de uma gravíssima doença e muito aflita, porque havia umas bocas que se lhe haviam feito no ventre por causa de obstruções, por onde se derramava tudo o que comia. Morreu logo disso. Eu via todas temerem aquele mal. A mim dava grande inveja a paciência dela. Pedia a Deus que, dando-a também a mim, desse-me as doenças que lhe aprouvesse. Não temia, parece-me, nenhuma, porque estava tão disposta a ganhar bens eternos, que me determinava a ganhá-los por quaisquer meios. E espanto-me, porque ainda não tinha, a meu parecer, amor a Deus, como depois que comecei a ter oração me parece que tive. Tinha só uma luz para parecer-me de pouco valor tudo o que se acaba, e de muito preço os bens que se podem ganhar com isso, porque são eternos.

Também nisso ouviu-me Sua Majestade, porque antes de dois anos estava de tal maneira que, ainda que não aquele tipo de mal, creio que não foi menos penoso e trabalhoso o que por três anos tive, como direi agora.

3. Vindo o momento que eu estava esperando no lugar que disse em que esperava com minha irmã para curar-me, levaram-me, com muito cuidado pelo meu conforto, meu pai e minha irmã, e aquela monja minha amiga que havia saído comigo, porque era muito o que ela me amava. Aqui começou o demônio a descompor minha alma, ainda que Deus tenha tirado disso grande bem.

Havia uma pessoa da Igreja, que morava naquele lugar aonde fui me curar, de muito alta nobreza e inteligência. Era letrado, ainda que não muito. Comecei a me confessar com ele,1 porque sempre fui amiga das letras, ainda que grande dano me tenham causado confessores semiletrados. Porque não os tinha tão letrados como gostaria.

Vi por experiência que é melhor — sendo virtuosos e de hábitos santos — não ter nenhum estudo. Porque nem eles confiam em si, sem perguntar a quem o tenha bom, nem eu confiava. E um bom letrado nunca me enganou. Os outros também não deviam querer me enganar, apenas não sabiam muito. Eu achava que sim, e que não era obrigada a fazer mais do que acreditar neles, já que o que me diziam era mais relaxado e de mais liberdade. Porque se fosse algo rigoroso, eu sou tão ruim que procuraria outros. O que era pecado venial diziam-me que não era nada. O que era gravíssimo mortal, que era venial. Isso me causou tanto dano que não é muito que eu o diga aqui para avisar os outros contra tão grande mal. Porque diante de Deus vejo que não é desculpa para mim, porque bastava não serem as coisas boas por natureza para que eu me guardasse delas. Creio que Deus permitiu, por causa de meus pecados, que eles se enganassem e enganassem a mim. Eu enganei a outras muitas por dizer-lhes o mesmo que haviam dito a mim.

Fiquei nessa cegueira, creio, mais de dezessete anos, até que um padre dominicano,2 grande letrado, me desfez o engano em algumas coisas, e os da Companhia de Jesus de todo me fizeram temer tanto mostrando-me como eram graves tão maus princípios, como direi depois.

4. Começando então a me confessar com este que digo,3 ele se afeiçoou muito a mim, porque naquela época eu tinha pouco para confessar, comparado com o que depois tive. Nem tinha tido depois de monja. Não foi a afeição dele má, mas, por demasiada, a afeição veio a não ser boa. Eu tinha me convencido de que não decidiria por nada a fazer algo contra Deus que fosse grave, e ele também me assegurava a mesma coisa, e assim conversávamos muito.

Minhas conversas então — com o embevecimento de Deus que eu levava — o que mais me agradava era conversar coisas d'Ele. E como era muito menina, causava confusão nele ver isso. E com o grande afeto que tinha por mim começou a contar-me sua perdição. E não era pouca, porque havia quase sete anos estava em um estado muito perigoso pela afeição e relações com uma mulher daquele mesmo lugar. E mesmo assim ele dizia missa. Era uma coisa tão pública que tinha perdido a honra e o bom nome e ninguém ousava lhe falar disso. A mim isso deu grande pena porque eu gostava muito dele. Pois eu tinha esta grande leviandade e cegueira, que me parecia uma virtude ser agradecida e leal a quem gostasse de mim. Maldita seja essa lei que se estende até ser contra a de Deus! É um desatino que se pratica no mundo e que me desatina: porque devemos todo o bem que nos fazem a Deus, e consideramos virtude, ainda que vá contra Ele, não quebrar uma amizade. Oh cegueira do mundo! Aprouvesse a Vós, Senhor, que eu fosse ingratíssima com todo ele e convosco não fosse nem um pouco. Mas foi tudo ao contrário, por meus pecados.

5. Procurei saber e informar-me mais com pessoas de sua casa. Soube mais da perdição e vi que o pobre não tinha tanta culpa, porque a infeliz da mulher lhe tinha posto feitiços com um idolozinho de cobre que lhe havia pedido que trouxesse, por amor dela, ao pescoço, e ninguém havia podido tirar.

Eu decididamente não acredito que seja verdade isso de feitiços. Mas direi o que eu vi, para admoestação de que se protejam os homens de mulheres que querem ter esse tipo de relação, e creiam que, uma vez que elas perdem a vergonha de Deus — porque elas mais do que os homens são obrigadas a ser honestas —, em nenhuma coisa nelas podem confiar, pois, a fim de levar adiante sua vontade e aquela afeição que o demônio lhes instila, não prestam atenção em nada. Ainda que eu tenha sido tão ruim, em nada desse tipo eu caí nem jamais pretendi fazer mal. Nem, mesmo que pudesse, teria querido forçar a vontade de alguém para que gostasse de mim, porque me protegeu o Senhor disso. Mas, se tivesse permitido, teria feito o mal que fazia no resto porque em nada se deve confiar.

6. Então, depois que soube disso, comecei a mostrar-lhe mais amor. Minha intenção era boa, a obra má. Pois para fazer o bem, por maior que seja, não devia fazer um pequeno mal. Conversava muito com ele sobre Deus. Isto devia ajudá-lo, ainda que, creio, ajudou mais no caso ele gostar muito de mim. Porque, para me agradar, me deu o idolozinho, o qual eu mandei logo jogar no rio.

Tirado este, começou — como quem acorda de um longo sono — a ir se lembrando de tudo o que havia feito naqueles anos e, espantando-se consigo mesmo, sofrendo por sua perdição, começou a ter aversão a ela. Nossa Senhora devia ajudá-lo muito, porque era muito devoto de sua Concepção e no dia dela celebrava com solenidade. No fim deixou completamente de ver a mulher e não se cansava de dar graças a Deus por lhe haver dado a luz.

Ao fim de exatamente um ano desde o primeiro dia que o vi, morreu. E tinha estado muito a serviço de Deus, porque aquela afeição grande que tinha por mim nunca achei que fosse má, ainda que pudesse ter sido mais pura. Mas também houve ocasiões em que, se não se mantivesse muito diante de Deus, teria havido ofensas suas mais graves. Como eu disse, coisa que eu entendesse ser pecado mortal não a teria feito na época. E parece que lhe ajudava a ter amor por mim ver isso. Porque creio que todos os homens devem ser mais amigos de mulheres que veem inclinadas à virtude. E mesmo para o que aqui no mundo pretendem, devem elas ganhar mais com eles dessa forma, como direi depois.

Tenho certeza de que ele está a caminho da salvação. Morreu muito bem e muito quitado daquela ocasião de pecado. Parece que quis o Senhor que por esses meios se salvasse.

7. Fiquei naquele lugar três meses em enorme sofrimento, porque o tratamento foi mais rude do que suportava a minha compleição. Depois de dois meses, por causa dos remédios, minha vida estava quase acabada e a gravidade da dor no coração que fui curar era muito mais intensa. E, às vezes, parecia-me que dentes afiados o prendiam, tanto que se temeu que fosse raiva. Com a falta de vigor — porque com grande enjoo não conseguia comer nada a não ser líquidos —, febre alta contínua e tão desgastada, porque por quase um mês me haviam dado purgante todo dia, eu estava tão depauperada que meus nervos começaram a encolher com dores tão insuportáveis que dia e noite eu não tinha nenhum sossego. Uma tristeza muito profunda!

8. Com esse resultado voltou meu pai a me trazer aonde tornaram a me ver os médicos. Todos me desenganaram, porque o que diziam sobre toda essa dor é que eu estava tuberculosa. Com isso eu pouco me importava, as dores é que me cansavam, porque eram dos pés à cabeça. Porque os nervos são intoleráveis, segundo diziam os médicos, e como todos se encolhiam era um duro tormento — se eu não o tivesse, por minha culpa, desperdiçado. Nessa dureza não andei mais do que três meses, pois parecia impossível aguentar tantas dores juntas.

Agora me espanto e tenho por grande dádiva do Senhor a paciência que Sua Majestade me deu, que se viu claramente vir d'Ele. Muito útil foi, para mantê-la, ter lido a história de Jó nos Morais de são Gregório,4 pois parece que preveniu o Senhor com isso, e com eu ter começado a manter oração, para que eu pudesse levar tudo com tanta resignação. Toda minha conversa era com Ele. Tinha sempre essas palavras de Jó no pensamento e as dizia: "Já que recebemos os bens da mão do Senhor, por que não suportaremos os males?". Isso, parece, me dava força.

9. Chegou a festa de Nossa Senhora de Agosto. Até então, desde abril, tinha sido um tormento, ainda que, nos últimos meses, maior. Apressei-me a me confessar, porque sempre fui muito amiga de me confessar frequentemente. Pensaram que era medo de morrer e, para não me causar sofrimento, meu pai não deixou. Oh amor exagerado da carne, que ainda que seja de um pai tão católico e tão sensato — e ele era muito —, pois não foi por ignorância, podia ter me causado grande dano!

Naquela noite me deu uma crise que durou, ficando eu sem sentidos, quatro dias, mais ou menos. Nisso me deram o Sacramento da Unção e a toda hora e momento pensavam que eu morria e não faziam nada a não ser rezar o Credo, como se eu estivesse entendendo alguma coisa. Tinham-me às vezes por tão morta que até cera achei depois nos meus olhos.

10. A aflição do meu pai era grande por não ter me deixado confessar. Clamores e orações a Deus, muitas. Bendito seja o que quis ouvi-las, que tendo por um dia e meio a sepultura já aberta em meu mosteiro esperando o corpo, e feitas as exéquias por um de nossos frades de fora daqui, quis o Senhor que eu voltasse a mim. Logo quis me confessar. Comunguei com muitas lágrimas. Mas na minha opinião não eram só pelo sentimento e a dor de haver ofendido a Deus, o que teria bastado para me salvar, se não tivesse ainda como desculpa o engano que trazia do que me haviam dito não ser algumas coisas pecado mortal — o que com certeza vi depois que eram. Como as dores eram insuportáveis, com o que fiquei com os sentidos abalados, ainda assim a confissão foi completa, no meu parecer, de tudo o que entendi ter ofendido a Deus. Porque essa dádiva me fez Sua Majestade, entre outras, que nunca, depois que comecei a comungar, deixei nada por confessar que eu pensasse que era pecado. Ainda que fosse venial, não deixava de confessar. Mas sem dúvida me parece que andava longe minha salvação, se então tivesse morrido, por serem os confessores tão pouco letrados, por uma parte, e, por outra, ser eu tão ruim em muitas coisas.

11. É verdade, com certeza, que me parece que estou com tão grande espanto chegando aqui e vendo como, me parece, o Senhor me ressuscitou. Estou quase tremendo, dentro de mim. Parece-me que teria sido bom, oh alma minha, que tivesses visto o perigo de que o Senhor te tinha livrado. Porque, já que não deixavas de ofendê-lo por amor, deixaria por medo, pois Ele poderia outras mil vezes te matar em estado mais perigoso. Creio que não exagero em dizer outras mil, ainda que ralhe comigo quem mandou que eu moderasse a conta dos meus pecados, e eles vão aqui muito embelezados. Por amor de Deus peço-lhe que não tire nada de minhas culpas, pois assim se vê mais a magnificência de Deus e o que suporta por uma alma. Seja bendito para sempre. Queira Deus que antes eu me consuma que o deixe outra vez de amar.

CAPÍTULO 6

TRATA DO MUITO QUE DEVEU AO SENHOR POR DAR-LHE RESIGNAÇÃO EM TÃO GRANDES SOFRIMENTOS E COMO TOMOU POR INTERCESSOR E ADVOGADO O GLORIOSO SÃO JOSÉ, E O MUITO QUE LHE FOI PROVEITOSO

1. Fiquei, depois desses quatro dias de crise, de uma maneira que só o Senhor pode saber os insuportáveis tormentos que sentia em mim. A língua feita em pedaços de tanto mordê-la. A garganta, por não haver passado nada nela e pela grande fraqueza, me sufocava, e nem água podia passar. Parecia-me que eu estava toda desconjuntada, com um enorme desatino na cabeça, toda encolhida, feito um novelo — porque deu nisso o tormento daqueles dias —, sem poder mexer mais do que se eu estivesse morta. Nem o pé, nem a mão, nem a cabeça, se não me mexessem por mim. Só um dedo, me parece, eu conseguia controlar da mão direita. Como não podiam encostar em mim, porque tudo doía tanto que eu não aguentava, me manejavam em um lençol. Uma irmã numa ponta e outra na outra.

Isso foi até a Páscoa. Só me mantinha porque, se não encostassem em mim, as dores cessavam muitas vezes e, à custa de descansar um pouco, me dava por boa. Eu tinha medo de que me faltasse a paciência e, assim, fiquei muito contente de me ver sem dores tão agudas e contínuas, ainda que os fortes calafrios das febres quartãs duplas1 com que fiquei, fortíssimas, eram insuportáveis. Um desgosto enorme.

2. Dei-me logo pressa em ir ao mosteiro, e me fiz levar assim mesmo. A que esperavam morta receberam com alma. Mas o corpo, pior do que morto, dava pena de ver. A magreza extrema nem se pode dizer, que eu só tinha os ossos já.

Digo que ficar assim durou mais de oito meses. O estar paralisada, ainda que fosse melhorando, quase três anos. Quando comecei a andar de gatinhas, louvava a Deus. Por tudo passei com grande resignação e, se não fosse esse começo, com grande alegria. Porque tudo me parecia nonadas, comparado com as dores e o tormento do princípio. Estava muito conformada à vontade de Deus, mesmo que Ele me deixasse desse jeito para sempre.

Parece-me que toda minha ânsia por sarar era para estar a sós em oração, como estava acostumada, porque na enfermaria não havia jeito. Confessava-me muito frequentemente. Falava muito de Deus, de maneira que edificava a todas, e espantavam-se com a paciência que o Senhor me dava. Porque, se não viesse da mão de Sua Majestade, parecia impossível poder aguentar tanta dor com tanta alegria.

3. Foi uma grande coisa me fazer a dádiva na oração que me havia feito, porque essa me fazia ver que coisa era amá-lo. Porque naquele pouco tempo, vi essas novas virtudes em mim, ainda que não fortes, já que não bastaram para me sustentar na justiça: não falar mal de ninguém por pouco que fosse. Mas o normal era evitar toda murmuração,2 porque tinha muito claro diante de mim não querer dizer de outra pessoa o que não queria que dissessem de mim. Levava isso extremamente a sério nas ocasiões que havia, ainda que não tão perfeitamente que, algumas vezes, quando se davam grandes ocasiões, não se quebrasse um pouco. Mas o normal era isso. E, assim, persuadia tanto a isso as que moravam e conversavam comigo que tomaram esse costume. Tornou-se conhecido que, onde eu estivesse, elas tinham as costas seguras e assim também em relação às que eu tinha amizade e parentesco e ensinava, ainda que em outras coisas tenho bem que prestar contas a Deus do mau exemplo que lhes dava. Queira Sua Majestade perdoar-me, pois de muitos males eu fui a causa, ainda que não com intenção tão má quanto, depois, resultava a obra.

4. Ficou-me o desejo de solidão. Tornei-me amiga de conversar e falar sobre Deus, pois, se eu achava com quem, mais alegria e diversão me dava que toda a polidez — ou grosseria, melhor dizendo — da conversa do mundo. Comungar e confessar muito frequentemente e desejá-lo. Amiguíssima3 de ler bons livros. Um grandíssimo arrependimento ao ofender a Deus, que muitas vezes me lembro de que não ousava fazer orações, porque temia a enorme tristeza que haveria de sentir por lhe ter ofendido. Como um grande castigo. Isso foi crescendo depois a tal extremo que não sei a que compare esse tomento. E não era jamais por medo, nem pouco nem muito, mas, como me recordava dos presentes que o Senhor me dava na oração, e o muito que lhe devia, e via quão mal eu pagava, não podia suportar. E incomodavam-me ao extremo as muitas lágrimas que chorava por culpa, quando via minha pouca emenda, pois não bastavam nem as decisões nem o esforço em que me via para não tornar a cair, pondo-me na ocasião de pecado. Pareciam-me lágrimas enganosas e parecia-me depois maior a culpa porque via a grande dádiva que me fazia o Senhor ao me dá-las e dar-me tão grande arrependimento. Procurava me confessar logo e, a meu ver, fazia o que podia para voltar à graça. Estava todo o mal em não arrancar pela raiz as ocasiões, e nos confessores, que me ajudavam pouco. Porque, se dissessem o perigo em que andava e que tinha obrigação de não ter aquele comportamento, sem dúvida creio que me corrigiria. Porque de maneira alguma teria aguentado andar em pecado mortal um só dia, se eu tivesse sabido que era pecado mortal.

Todos esses sinais de temor a Deus me vieram com a oração, e o maior era ir tudo envolto em amor, porque eu não tinha em mente o castigo. Todo o tempo em que estive tão mal mantive firme a guarda quanto a pecados mortais. Oh, valha-me Deus, pois eu desejava a saúde para mais servi-lo e foi a causa de todo o meu dano!

5. Assim que me vi tão paralisada e com tão pouca idade, e o jeito como me haviam deixado os médicos da terra, decidi invocar os do céu para que me curassem. Porque ainda desejava a saúde, ainda que com muita alegria levasse a doença, e pensava às vezes que, se estando boa me havia de condenar, melhor era estar assim. Mas ainda pensava que serviria muito mais a Deus com saúde. Esse é o nosso engano, não nos abandonar de todo ao que o Senhor faz, porque Ele sabe melhor o que nos convém.

6. Comecei a fazer devoções de missas e coisas muito apropriadas de orações — que nunca fui amiga de outras devoções que fazem algumas pessoas, em especial mulheres, com cerimônias que eu não podia tolerar e a elas causava devoção. Depois se veio a entender que não convinham, porque eram supersticiosas. E tomei por advogado e senhor ao glorioso são José, e encomendei-me muito a ele. Vi com clareza que, assim dessa necessidade como de outras maiores de honra e perda de alma, esse pai e senhor meu me tirou melhor do que eu sabia pedir. Não me lembro até agora de ter-lhe pedido coisa que tenha deixado de fazer. É coisa que espanta as grandes dádivas que me fez Deus por meio desse bem-aventurado santo. Dos perigos que me livrou, assim do corpo como da alma. Porque a outros santos deu o Senhor graça para socorrer em uma necessidade, mas esse glorioso santo tenho experiência que socorre em todas, e quer o Senhor dar-nos a entender que, assim como lhe foi sujeito na terra — porque como tinha o nome de pai, sendo preceptor, podia mandar nele —, também no céu faz tudo quanto lhe pede. Isso viram algumas outras pessoas a quem eu dizia para se encomendar a ele, também por experiência, e assim há muitas que lhe são devotas há pouco, tendo experimentado essa verdade.

7. Procurava eu fazer sua festa com toda a solenidade que podia, mais cheia de vaidade que de espírito, querendo que se fizesse muito caprichadamente e bem, ainda que com boa intenção. Mas havia mal — se é que algum bem dava-me o Senhor graça que eu fizesse — porque era cheia de imperfeições e muitas faltas. Para o mal e capricho e vaidade tinha eu grande manha e diligência. O Senhor me perdoe!

Quereria eu persuadir todos a ser devotos desse glorioso santo, pela grande experiência que tenho dos bens que alcança de Deus. Não conheci uma pessoa que lhe seja devota de verdade e faça determinados serviços que não se veja mais beneficiada na virtude. Porque beneficia grandemente as almas que a ele se encomendam. Parece-me que, já há alguns anos, todo ano em seu dia peço uma coisa, e sempre a vejo cumprida. Se for um pouco torto o pedido, ele o endireita para meu maior bem.

8. Se eu fosse pessoa que tivesse autoridade de escrever, de bom grado me estenderia a dizer com muito detalhe as dádivas que fez esse glorioso santo a mim e a outras pessoas. Mas para não fazer mais do que me mandaram, em muitas coisas serei mais breve do que quereria, em outras, mais longa porque é preciso. No fim, será como quem, em tudo o que é bom, tem pouco discernimento. Só peço, por amor de Deus, que experimente quem não acredita em mim e verá por experiência o grande bem que é encomendar-se a esse glorioso Patriarca e ter devoção a ele. Em especial pessoas de oração sempre teriam de ser afeiçoadas a ele, porque não sei como se pode pensar na Rainha dos Anjos, no tempo que tantas coisas passou com o Menino Jesus, e não dar graças a são José pelo bem que lhes ajudou. Quem não achar mestre que lhe ensine oração, tome esse glorioso santo por mestre e não errará o caminho.

Queira Deus que eu não tenha errado em me atrever a falar dele. Porque, ainda que declare ser devota dele, nos serviços e em imitá-lo sempre falhei. Pois ele, sendo quem é, fez de maneira que eu pudesse me levantar e andar e não ficar paralisada. E eu, sendo quem sou, usei mal essa dádiva.

9. Quem diria que eu haveria de cair tão depressa depois de tantos presentes de Deus, depois de ter Sua Majestade começado a me dar virtudes que, elas mesmas, me despertavam para servi-lo? Depois de me ter visto quase morta e em tão grande perigo de ser condenada. Depois de me ter ressuscitado de corpo e alma, a ponto de que todos os que me viam se espantavam de ver-me viva! Que é isso, Senhor meu? Temos de viver tão perigosa vida? Pois estou escrevendo isso e me parece que, com vosso favor e por vossa misericórdia, poderia dizer o mesmo que São Paulo, ainda que não com aquela perfeição: que não vivo eu já, mas Vós, Criador meu, viveis em mim.4 Pois há alguns anos, pelo que posso perceber, me segurais pela mão, e me vejo com desejos e determinação — de alguma maneira provados por experiência nesses anos, em muitas coisas — de não fazer nenhuma coisa contra vossa vontade, por pequena que seja, ainda que sem perceber deva fazer muitas ofensas a Vossa Majestade. E também me parece que não se me oferecerá coisa por vosso amor que com grande determinação deixe de fazer, e em algumas me tendes ajudado para que me saia bem nelas. E não quero o mundo nem nada dele, nem me parece me dar alegria coisa que se afaste de Vós, e o resto me parece pesada cruz. Posso bem me enganar, e assim pode ser que eu não tenha isso que disse, mas bem vedes Vós, meu Senhor, que — ao que eu possa entender — não minto, e temo — e com muita razão — se me haveis de voltar a deixar. Porque já sei para o que basta minha força e pouca virtude em não estando Vós e me dando virtude sempre e me ajudando a não vos deixar. E queira Vossa Majestade que, mesmo agora, não esteja eu abandonada por Vós, parecendo-me tudo isso de mim. Não sei como queremos viver, pois é tudo tão incerto! Parecia-me já, Senhor meu, impossível deixar-vos tão de todo a Vós como tantas vezes deixei. Não posso deixar de temer, porque, afastando-vos um pouco de mim, eu ia ao chão. Bendito sejais para sempre que, ainda que vos deixava eu, não me deixastes tão de todo que eu não voltasse sempre a me levantar ao dar-me Vós a mão. E muitas vezes, Senhor, não a queria, nem queria entender como muitas vezes me chamáveis de novo, como direi agora.

CAPÍTULO 7

TRATA DOS TERMOS EM QUE FOI PERDENDO AS DÁDIVAS QUE O SENHOR LHE HAVIA FEITO, E QUÃO PERDIDA VIDA COMEÇOU A TER. DIZ OS DANOS QUE HÁ EM NÃO SEREM MUITO FECHADOS OS MOSTEIROS DE MONJAS

1. Pois assim comecei, de passatempo em passatempo, de vaidade em vaidade, de ocasião em ocasião, a meter-me tanto em ocasiões de pecado muito grandes e a andar tão estragada minha alma em muitas vaidades, que eu já tinha vergonha de voltar a me aproximar de Deus em tão particular amizade como é a conversa da oração. E ajudou-me a isso o fato de que, como cresceram os pecados, começou a me faltar o gosto e o prazer nas coisas de virtude. Eu via muito claro, Senhor meu, que faltava isso a mim por faltar eu a Vós. Esse foi o mais terrível engano que o demônio me podia fazer sob o véu de parecer humildade, pois comecei a temer ter oração, por ver-me tão perdida. E parecia-me que era melhor andar como muitos — pois em ser ruim eu era das piores — e rezar só o que era obrigada, e vocalmente, do que ter oração mental e gozar da intimidade com Deus aquela que merecia estar com os demônios e que enganava as pessoas porque no exterior tinha boa aparência. E, assim, não era culpa da casa onde eu estava. Porque com minha manha procurava que tivessem boa opinião de mim, ainda que não deliberadamente, fingindo cristianismo, porque nisso de hipocrisia e vanglória, glória a Deus, não me lembro de jamais tê-lo ofendido — que eu saiba. Porque me aparecendo o primeiro movimento nessa direção me dava tanta tristeza que o demônio saía perdendo e eu ganhando. E, assim, nisso sempre me tentou muito pouco. Talvez, se Deus permitisse que me tentasse nisso com tanta força quanto em outras coisas, também cairia, mas Sua Majestade até agora me protegeu disso — seja bendito para sempre. Na verdade me pesava muito que tivessem boa opinião sobre mim, já que eu conhecia o meu segredo.

2. Esse não me ter por tão ruim vinha do fato de as monjas me verem, tão nova e em tantas ocasiões de pecado, afastar-me muitas vezes para, em solidão, rezar e ler. Viam-me falar muito de Deus, amiga de fazer pintar sua imagem em muitos lugares, ter um oratório e procurar para ele coisas que aumentassem a devoção, não maldizer, e outras coisas desse tipo que tinham aparência de virtude. E eu, por ser vaidosa, sabia me fazer estimar nas coisas que no mundo se costumam ter por estima. Com isso me davam tanta ou mais liberdade que às muito antigas e tinham grande segurança a meu respeito. Porque tomar liberdades ou fazer coisas sem licença — digo por buracos, ou através das paredes, ou de noite — nunca, me parece, poder-se-ia conseguir comigo falar desse jeito num mosteiro, nem o fiz, porque me segurou o Senhor com sua mão. Parecia-me — pois com atenção e determinação eu contemplava muitas coisas — que pôr a honra de tantas em perigo, por ser eu tão ruim sendo elas boas, era muito malfeito. Como se as outras coisas que eu fazia fossem boas. Na verdade o mal que eu fazia, ainda que fosse muito, não era tão deliberado quanto esse seria.

3. Por isso me parece que a mim causou grande dano não estar em mosteiro fechado. Porque a liberdade que as que eram boas podiam ter com bondade, pois não deviam mais — já que não se prometia clausura — a mim, que sou ruim, teria levado certamente ao inferno, se com tantos remédios e meios o Senhor, com dádivas muito particulares suas, não me tivesse tirado desse perigo. E assim me parece que é grandíssimo perigo um mosteiro de mulheres com liberdade e mais me parece uma trilha para caminharem para o inferno as que quiserem ser ruins, do que remédio para suas fraquezas.

Não se tome isso pelo meu mosteiro, porque há tantas monjas lá que servem de verdade e com muita perfeição ao Senhor, que não pode Sua Majestade deixar — segundo sua bondade — de favorecê-las. E não é dos muito abertos e nele se guarda toda a vida religiosa, mas falo de outros que sei e vi.

4. Digo que me dá muita pena, que é necessário o Senhor fazer muitos chamados particulares — e não uma vez, mas muitas — para que as monjas se salvem, uma vez que estão autorizadas as honras e recreações do mundo. E está tão mal entendido aquilo a que estão obrigadas que, queira Deus, não tomem por virtude o que é pecado, como muitas vezes eu fazia. E há uma dificuldade tão grande em fazer entender isso que é necessário que o Senhor ponha muito de verdade sua mão aí.

Se os pais seguissem meu conselho, já que não querem dar atenção a colocar suas filhas onde vão pelo caminho da salvação, mas sim onde estarão com mais perigo do que no mundo, que olhem pelo que importa à sua honra e queiram mais casá-las muito baixamente do que pô-las em mosteiros semelhantes se não forem de inclinação muito boa — e queira Deus que tenham proveito. Ou mantenha-as em sua casa, porque se elas quiserem ser ruins ali, não poderão se esconder, a não ser por pouco tempo, mas em mosteiros assim, muito. E no fim o Senhor descobre e ela não só dana a si, mas a todas. E às vezes as pobrezinhas não têm culpa, porque se deixam levar pelo que encontram. E é pena, porque muitas que querem se afastar do mundo e, pensando que vão servir ao Senhor e se afastar de todos os perigos do mundo, se veem em dez mundos juntos e não sabem como se valer e remediar, pois a mocidade, os sentidos e o demônio convidam-nas e as inclinam a seguir algumas coisas que são do próprio mundo, e ela vê que ali, por assim dizer, as consideram boas. Parece-me, em parte, como os infelizes dos hereges, que querem se cegar e considerar que é bom aquilo que seguem. E creem nisso, assim, sem crer, porque dentro de si têm quem lhes diga que é mal.

5. Oh, grandíssimo mal, grandíssimo mal de religiosos — não falo agora mais das mulheres que dos homens — onde não se guarda a vida religiosa! Em mosteiro onde há dois caminhos: de virtude e vida religiosa, e falta de vida religiosa, e nesses caminhos quase todos andam por igual, disse mal, antes não por igual, pois por nossos pecados caminha-se mais o mais imperfeito, e como há mais dele, é mais favorecido, usa-se tão pouco o da verdadeira vida religiosa que o frade ou a monja que vai começar a seguir de verdade sua vocação mais deve temer os próprios companheiros de sua casa do que a todos os demônios. E mais cautela e dissimulação há de ter para falar da amizade que deseja ter com Deus do que para falar em outras amizades e vontades que o demônio ordena nos mosteiros. E não sei de que nos espantamos que haja tantos males na Igreja, já que os que haviam de ser modelos de onde todos copiassem as virtudes têm tão apagada a obra que o espírito dos santos passados deixou nas ordens religiosas. Queira a Divina Majestade pôr remédio nisso, como se vê que é preciso, amém.

6. Pois, começando eu a ter essas conversas — já que via que eram usuais —, não me parecia que havia de vir à minha alma o dano e a distração que depois entendi serem semelhantes hábitos. Parecia-me que uma coisa tão geral, como é esse visitar muito os mosteiros, não faria mais mal a mim do que às outras, que eu via serem boas — e não dava atenção a que elas eram muito melhores e o que em mim foi perigo em outras não seria tanto. Porque algum perigo duvido eu que deixe de haver, ainda que seja só o de gastar mal o tempo. Estando eu com uma pessoa, bem no início de conhecê-la, quis o Senhor dar-me a entender que não me convinham aquelas amizades, e avisar-me e dar-me luz em tão grande cegueira. Manifestou-se a mim Cristo com muita severidade dando-me a entender o que naquilo o incomodava. Vi com os olhos da alma mais claramente do que poderia ter visto com os do corpo, e ficou tão marcado em mim que faz mais de 26 anos e parece que o tenho presente. Eu fiquei muito assustada e agitada e não queria mais ver a pessoa com quem estava.

7. Causou-me muito dano não saber que era possível ver alguma coisa se não fosse com os olhos do corpo. E o demônio me ajudou a acreditar nisso, e achar que era impossível, e que estava fantasiando e que podia ser o demônio e outras coisas desse tipo. Embora sempre me ficasse um parecer que era Deus e que não era fantasia. Mas, como não satisfazia o meu gosto, eu me desmentia a mim mesma. E, como não ousei falar com ninguém, e voltou a haver, depois, grande importunação, assegurando-me de que não era mal eu ver semelhante pessoa nem perdia a honra, antes ganhava-a, voltei à mesma convivência, e até, em outros tempos, a outras, porque foram muitos anos os que tomou esta recreação pestilencial. Não me parecia — enquanto estava nisso — tão mal quanto era, ainda que às vezes visse claramente que não era bom. Mas nenhuma companhia me causou a distração que essa de que falo, porque eu tinha muita afeição a ela.

8. Estando uma outra vez com a mesma pessoa, vimos vir até nós — e outras pessoas que estavam ali também viram — uma coisa que parecia um sapo grande com muito mais agilidade do que eles costumam ter. Da parte que ele veio não posso entender como pudesse haver um bicho nojento daquele no meio do dia. Nem nunca houve. E o efeito que causou em mim me parece que não era sem mistério, nem eu esqueci isso jamais. Oh, grandeza de Deus, e com quanto cuidado e piedade Vós estáveis me avisando de todas as maneiras e como eu aproveitei pouco.

9. Havia ali uma monja que era minha parente, antiga1 e grande serva de Deus e de muita observância na vida religiosa. Ela também me alertava às vezes. E eu não só não acreditava nela, como me aborrecia e me parecia que ela se escandalizava sem ter por quê. Disse isso para que se entenda minha maldade e a grande bondade de Deus e quanto eu tinha merecido o inferno por tão grande ingratidão. E também porque, se o Senhor mandar e for servido que, em algum tempo, alguma monja leia isso, aprenda com meu exemplo, e peço eu, por amor de nosso Senhor, fuja de semelhantes recreações. Queira Sua Majestade que saia do engano por mim, alguma de quantas enganei, dizendo-lhes que não era mal e dizendo seguro tão grande perigo com a cegueira que eu tinha. Porque não queria enganá-las de propósito, mas, pelo mau exemplo que lhes dei — como disse —, fui causa de muitos males não pensando que fazia tanto mal.

10. Estando eu mal naqueles primeiros dias, antes que conseguisse me valer, me dava enorme desejo de ser de valia para os outros. Tentação muito comum entre os que começam, ainda que a mim não tenha me saído bem. Como amava muito meu pai, desejava-lhe o bem que eu parecia ter por ter oração — porque me parecia que nesta vida não poderia haver maior bem do que ter oração. E, assim, por rodeios, como pude, comecei a tentar fazer com que ele a tivesse. Dei-lhe livros para esse propósito. Como era muito virtuoso, como eu disse, assentou tão bem nele essa prática que em cinco ou seis anos — me parece que seria — estava tão adiantado que eu louvava muito ao Senhor, e dava-me grandíssimo consolo. Eram enormes as dificuldades de todos os tipos que teve. Todas atravessou com imensa resignação. Ia muitas vezes me visitar, porque se consolava em conversar sobre as coisas de Deus.

11. Já depois de eu andar tão distraída e sem ter oração, como pensava que era o caminho que devia seguir, não pude aguentar sem tirá-lo do engano. Porque fiquei um ano ou mais sem ter oração, parecendo-me que isso era humildade maior. E esta, como contarei depois, foi a maior tentação que tive, pois por ela ia conseguir me perder. Porque com a oração, um dia ofendia a Deus, mas voltava em outros a me recolher e afastar-me mais da ocasião de pecado. Como o bendito homem tinha interesse nisso, era duro para mim vê-lo tão enganado pensando que eu tratava com Deus como costumava antes. E disse-lhe que já não tinha oração, ainda que não a causa. Apresentei-lhe como inconveniente minhas doenças, pois, ainda que tivesse sarado daquela tão grave, sempre, até agora, as tive e tenho bem grandes. Mesmo que, de uns tempos para cá, não com tanta gravidade. Mas não me deixam, doenças de muitos tipos. Em especial tive durante vinte anos vômitos pela manhã, que até depois de meio-dia me acontecia não poder fazer o desjejum, algumas vezes até mais tarde. Depois, aqui, como comungo com mais frequência, é à noite, antes de dormir, com muito mais desgosto, que eu tenho que causá-los com plumas ou outras coisas. Porque, se deixo, é muito maior o mal que sinto. E quase nunca estou, a meu parecer, sem muitas dores, e às vezes bem graves, especialmente no coração. Ainda que o mal que me acometia muito continuamente seja agora só muito de vez em quando. Da paralisia grave e das doenças de febre que costumava ter muitas vezes, me acho boa há oito anos. Esses males me incomodam já tão pouco que muitas vezes me alegram, parecendo-me que em algo se serve ao Senhor.

12. E meu pai acreditou que era essa a causa, já que ele não falava mentiras e, considerando nosso relacionamento, não haveria eu de mentir. Disse-lhe, para que mais acreditasse em mim — pois bem via eu que não tinha desculpa —, que já fazia muito por estar no coro. Ainda que tampouco fosse causa suficiente para deixar coisas que não necessitam de força corporal para ser feitas, mas apenas amar e o costume. Pois o Senhor dá sempre oportunidade, se queremos. Digo "sempre", pois, ainda que para muitos as ocasiões e mesmo as doenças impeçam por alguns períodos os momentos de solidão, não deixa de haver outros períodos em que há saúde para tanto. E na própria doença e nas ocasiões é verdadeira oração, quando é alma que ama, oferecer as próprias ocasiões e doenças e recordar-se daquele por quem passa as dificuldades e conformar-se com Ele e mil outras coisas que se podem oferecer. Aqui age o amor, porque não é à força que se há de ter oração quando tem tempo de solidão e no resto não ter oração alguma. Com um pouquinho de cuidado grandes bens se acham no tempo que, com trabalhos, aflições, sofrimentos, o Senhor nos tira do tempo da oração, e assim eu os tinha achado quando tinha boa consciência.

13. Mas ele, com a opinião que tinha sobre mim e o amor que tinha por mim, acreditou em tudo. Teve até pena de mim. Porém como ele já estava em estado tão elevado, já não ficava tanto tempo comigo, mas, logo que havia me visto, ia embora. Porque dizia que era perda de tempo. Como eu o gastava com outras frivolidades, não me importava que fosse.

Não foi só com ele, mas algumas outras pessoas tentei fazer com que tivessem oração. Mesmo andando eu nessas vaidades, quando as via amigas de rezar, dizia-lhes como teriam meditação e ajudava-as e dava-lhes livros. Porque esse desejo de que outros servissem a Deus, desde que comecei oração — como disse — eu tinha. Parecia-me que, já que eu não servia ao Senhor como gostaria, que não se perdesse o que Sua Majestade me havia dado a entender e que outros lhe servissem por mim. Digo isso para que se veja a grande cegueira em que estava, que me deixava perder a mim e procurava ganhar a outros.

14. Nesse tempo deu no meu pai a doença de que morreu. Durou alguns dias. Eu fui tratar dele, estando mais doente na alma do que ele no corpo, em muitas vaidades, ainda que não de maneira que — tanto quanto sabia — estivesse em pecado mortal durante todo esse tempo mais perdido que conto, porque, sabendo eu, de jeito nenhum teria estado.

Tive muito trabalho em sua doença, creio que o servi um pouco do que ele passou com as minhas. Como estava bastante mal, me esforçava. E, já que com o faltar-me ele, faltaria toda minha alegria e prazer — porque em um ser só as tinha —, tive tanta força para não mostrar-lhe tristeza e ficar, até que morreu, como se não sentisse nada, parecendo-me que se me arrancava a alma quando via acabar sua vida, porque o amava muito.

15. Foi coisa de louvar o Senhor a morte que morreu. E a vontade que tinha de morrer, os conselhos que nos dava depois de ter recebido a extrema-unção, o encarregar-nos de o encomendar a Deus e pedir misericórdia por ele e que sempre servíssemos a Deus, que prestássemos atenção que tudo se acaba. E com lágrimas nos falava da grande tristeza que tinha por não lhe haver servido ele, que tinha querido ser frade, e digo, teria sido dos mais rigorosos que houvera.

Tenho certeza de que quinze dias antes o Senhor deu a entender a ele que não haveria de viver. Porque antes, ainda que estivesse mal, não pensava nisso. Depois, mesmo com grande melhora e de dizê-lo os médicos, nenhum caso fazia disso, mas só pensava em ordenar sua alma.

16. Foi seu principal mal uma dor enorme nas costas que não o abandonava. Algumas vezes doía tanto que o afligia muito. Eu lhe disse que, já que era tão devoto de quando o Senhor levava a cruz às costas, que pensasse que Sua Majestade queria dar-lhe sentir algo do que havia passado com aquela dor. Consolou-se tanto que me parece que nunca mais o ouvi se queixar. Ficou três dias muito sem consciência. No dia em que morreu, devolveu-a o Senhor a ele tão inteira que nos espantávamos, e a manteve até que, na metade do Credo, dizendo-o ele mesmo expirou.2 Ficou como um anjo. Assim me parecia a mim que ele era — maneira de dizer — em alma e disposição, pois a tinha muito boa. Não sei para que disse isso, se não for para culpar mais minha vida ruim depois de ter visto tal morte e conhecido tal vida, porque, por parecer-me um pouco a um tal pai, havia eu de melhorar. Dizia seu confessor — que era um dominicano, muito grande letrado3 — que não duvidava de que ele fosse direto para o céu, porque havia alguns anos que ouvia sua confissão e louvava sua limpeza de consciência.

17. Esse padre dominicano, que era muito bom e temente a Deus, me foi de grande proveito. Porque me confessei com ele e ele tomou a si fazer bem à minha alma com cuidado e me fazer entender a perdição que trazia. Fazia-me comungar a cada quinze dias. E, pouco a pouco, começando a me relacionar com ele, contei-lhe de minha oração. Disse-me que não a deixasse, que de nenhuma maneira me poderia fazer nada senão bem. Comecei a voltar a ela, ainda que não a deixar as ocasiões de pecado, e nunca mais a deixei. Levava uma vida penosíssima, porque na oração compreendia mais minhas faltas: de um lado, Deus me chamava, de outro, eu seguia o mundo. Parece que queria juntar esses dois contrários — tão inimigos um do outro —, como são a vida espiritual, e alegrias e prazeres e passatempos dos sentidos.

Na oração tinha grande trabalho porque não ia o espírito como senhor, mas como escravo. E, assim, não podia me fechar dentro de mim, que era o modo de proceder que tinha na oração, sem fechar junto comigo mil vaidades.

Passei muitos anos assim e agora me espanto: que coisa me permitiu não abandonar a um ou a outro? Bem sei que deixar a oração já não estava em minhas mãos, porque me segurava com as suas aquele que me queria para fazer maiores dádivas.

18. Oh, valha-me Deus, se tivesse que dizer as ocasiões de pecado de que durante esses anos Deus me tirava, e como eu voltava a me meter nelas e dos perigos de perder de todo o crédito de que me livrou! Eu a fazer obras para descobrir quem era, e o Senhor a encobrir os males e descobrir alguma virtude, se é que a tinha, e fazê-la grande aos olhos de todos. De maneira que sempre me tinham em alta conta, porque, ainda que algumas vezes se traíssem minhas vaidades, como viam outras coisas que lhes pareciam boas, não acreditavam.

É que o Sabedor de todas as coisas já tinha visto que era preciso ser assim, para que, depois, nas coisas que eu falava de seu serviço, me dessem algum crédito. E sua soberana largueza olhava não os grandes pecados, mas, muitas vezes, os desejos que eu tinha de servir-lhe e a tristeza por não ter em mim força para tudo pôr em obra.

19. Oh, Senhor de minha alma, como poderei enaltecer as dádivas que nesses anos me fizestes! E como no tempo em que eu mais vos ofendia em breve me dispúnheis com grandíssimo arrependimento para que gozasse de vossos presentes e dádivas! Na verdade, escolhíeis, Rei meu, o mais delicado e penoso castigo que para mim poderia existir, como quem entendia bem o que me havia de ser mais penoso. Com grandes presentes castigáveis meus delitos.

E não creio que diga desatinos, ainda que fosse bom que eu estivesse desatinada, trazendo a minha memória agora de novo minha ingratidão e maldade. Era tão mais penoso para minha condição receber dádivas, quando tinha caído em graves culpas, do que receber castigos. Porque uma só das dádivas me parece, é verdade, me desfazia e confundia mais e desanimava do que muitas enfermidades com outros muitos trabalhos juntos. Porque os sofrimentos eu via que merecia, e me parecia que assim pagava alguma coisa dos meus pecados, ainda que fosse pouco, já que eles eram muitos. Mas ver-me receber de novo dádivas tendo pagado tão mal as já recebidas é um gênero de tormento para mim terrível e, creio, para todos os que tiveram algum conhecimento ou amor de Deus, e esse por uma condição virtuosa podemos daqui tirar. Aí estavam minhas lágrimas e meu desgosto de ver o que sentia, vendo-me de sorte que estava em véspera de tornar a cair, ainda que meus desejos e determinações então — por aquele período digo — estivessem firmes.

20. Grande mal é uma alma solitária entre tantos perigos. Parece-me que, se eu tivesse com quem conversar tudo isso, me ajudaria a não voltar a cair, por vergonha, se quiser, já que não a tinha de Deus. Por isso eu aconselharia aos que têm oração, especialmente no início: procurem amizade e relações com pessoas que vivam a mesma coisa. É uma coisa importantíssima, ainda que não seja senão ajudar-se uns aos outros com suas orações, quanto mais que há muito mais ganhos! E eu não sei por que, já que de conversas e vontades humanas, ainda que não sejam muito boas, procuram-se amigos com quem descansar e para ter mais gosto ao contar aqueles prazeres frívolos, não se há de permitir que quem comece de verdade a amar a Deus e a servir-lhe converse com algumas pessoas sobre seus prazeres e esforços, pois de tudo tem quem tem oração.

Porque se é de verdade a amizade que quer ter com Sua Majestade, não tenha medo de vanglória. E quando o primeiro movimento lhe acometer, saia dele com mérito. E creio que aquele que conversar com essa intenção, tirará proveito, ele e os que o ouvirem, e sairá mais ensinado. E ainda, sem saber como, ensinará a seus amigos.

21. O que se vangloriar por falar disso, também o fará por ouvir missa com devoção, se o virem, e em fazer outras coisas que, sob pena de não ser cristão, tem que fazer e não se vão abandonar por medo de vanglória. Pois é tão importantíssimo isso para almas que não estejam fortalecidas na virtude, já que têm tantos contrários e amigos para incitar ao mal, que não sei como o enaltecer o suficiente.

Parece-me que o demônio usou esse ardil: que se escondam tanto para que não se descubra que de verdade querem amar e agradar a Deus, como incitou a que se descubram outras vontades desonestas, que, de tão usadas, já parece que tomam por elegância e se publicam as ofensas que neste caso fazem a Deus.

22. Não sei se digo desatinos. Se são, o senhor4 os corte, e se não são, suplico-lhe que ajude minha simplicidade acrescentando aqui muito. Porque andam as coisas de Deus tão fracas que é preciso defenderem-se uns aos outros os que o servem para ir em frente. E para esses há poucos olhos e, se um começa a se dedicar a Deus, há tantos que murmuram, que é preciso buscar companhia para defender-se até que já estejam fortes e não lhes incomode o sofrer. Senão, ver-se-ão em grande aperto.

Parece-me que deve ser por isso que costumavam alguns santos ir para os desertos. E é um gênero de humildade não confiar em si, mas crer que Deus o ajudará por aqueles com quem conversa. E a caridade cresce ao ser comunicada. E há mil bens dos quais não ousaria falar se não tivesse grande experiência do muito que vai com isso.

É verdade que sou mais fraca e ruim do que todos os nascidos. Mas creio que não perderá quem, humilhando-se, ainda que seja forte, não acredite em si, e creia nisso em quem tem experiência. De mim, sei dizer que, se o Senhor não me tivesse revelado essa verdade e dado meios para que eu muito frequentemente conversasse com pessoas que têm oração, caindo e levantando iria dar no inferno. Porque para cair tinha muitos amigos que ajudavam. Para levantar achava-me tão só que agora me espanto como não ficava sempre caída, e louvo a misericórdia de Deus, que era só Ele quem me dava a mão. Bendito seja para sempre e sempre, amém.

CAPÍTULO 8

TRATA DO GRANDE BEM QUE LHE FEZ NÃO SE AFASTAR DE TODO DA ORAÇÃO PARA NÃO PERDER A ALMA E QUE EXCELENTE REMÉDIO É PARA GANHAR O PERDIDO. PERSUADE A QUE TODOS A TENHAM. DIZ COMO É TÃO GRANDE GANHO E QUE, AINDA QUE VOLTEM A DEIXÁ-LA, É UM GRANDE BEM USAR POR ALGUM TEMPO DE UM TÃO GRANDE BEM

1. Não sem motivo ponderei tanto esse tempo da minha vida, pois bem sei que não dará gosto a ninguém ver coisa tão ruim. Por certo quereria que me tivessem aversão os que lerem isto ao ver uma alma tão pertinaz e ingrata com quem lhe deu tantas dádivas. E quisera ter permissão para dizer as muitas vezes que, nesse tempo, faltei a Deus por não estar escorada nessa forte coluna da oração.

2. Passei por esse mar tempestuoso quase vinte anos com essas quedas e com levantar-me, e mal — pois tornava a cair —, e numa vida tão baixa em perfeição que quase nenhum caso fazia de pecados veniais. E os mortais, ainda que os temesse, não era como devia ser, porque não me afastava dos perigos. Sei dizer que é uma das vidas mais tristes que, parece-me, se podem imaginar. Porque nem eu gozava de Deus, nem tinha alegria no mundo. Quando estava nas alegrias do mundo, ao lembrar-me do que devia a Deus, era com tristeza. Quando estava com Deus, os prazeres do mundo me desassossegavam. Isso é uma guerra tão penosa que não sei como se pode aguentá-la um mês, quanto mais tantos anos.

Contudo vejo claramente a grande misericórdia que o Senhor teve comigo. Já que tinha que conviver com o mundo, que tivesse coragem para ter oração. Digo coragem porque não sei para que coisa, de quantas há no mundo, é preciso maior do que para viver em traição ao Rei e saber que Ele o sabe e nunca tirar isso de diante dos olhos. Porque, embora sempre estejamos diante de Deus, parece-me ser de outra maneira para os que vivem em oração, porque estão vendo que os olha, pois os demais pode ser que fiquem alguns dias sem nem lembrar que Deus os vê.

3. É verdade que nesses anos houve muitos meses — e creio que alguma vez um ano — em que me guardava de ofender ao Senhor e me entregava muito à oração e tomava algumas e grandes providências para não vir a ofendê-lo. Para que tudo o que eu escrevo vá dito com toda a verdade é que falo agora disso. Mas lembro-me de poucos desses dias bons e, assim, deviam ser poucos os bons, e muitos os ruins. Poucos dias se passavam sem eu ter períodos longos de oração, se não fosse por estar muito doente ou muito ocupada. Quando estava mal, ficava melhor com Deus. Procurava fazer com que as pessoas com as quais convivia também estivessem e suplicava ao Senhor. Falava muitas vezes d'Ele. Assim, se não pelo ano que já disse, nos 28 anos desde que comecei oração, mais de dezoito passei nessa batalha e contenda de viver com Deus e com o mundo. Nos outros que agora me ficam por contar, mudou-se a causa da guerra, ainda que ela não tenha sido pequena. Mas desde que estou, pelo que penso, a serviço de Deus e com conhecimento da vaidade do mundo, tudo tem sido suave, como direi depois.

4. O motivo pelo qual contei tanto sobre isso é, como já disse, para que se veja a misericórdia de Deus e minha ingratidão. O outro é para que se entenda o grande bem que faz Deus a uma alma que Ele dispõe a ter oração com vontade, ainda que não esteja tão disposta quanto é preciso. E como, se nela persevera, através de pecados e tentação e quedas e mil maneiras que ponha o demônio, no fim, tenho por certo, o Senhor a leva a um porto de salvação, como, ao que parece agora, me levou a mim. Queira Sua Majestade que eu não volte a me perder.

5. O bem que tem quem se exercita em oração, há muitos santos e bons que o escreveram. Oração mental, digo. Glória a Deus por isso! E se não fosse isso, ainda que eu seja pouco humilde, não seria tão soberba que ousasse falar.

Daquilo em que tenho experiência, eu posso falar e é que: por mais males que faça quem a tenha começado, não a deixe, pois é o meio pelo qual voltará a se emendar e sem ela será muito mais difícil. E não a tente o demônio, da maneira como tentou a mim, a deixá-la por humildade. Creia que não podem falhar as palavras d'Ele. Que nos arrependendo de verdade e decidindo-nos a não O ofender, volta à amizade em que estava e a fazer as dádivas que antes fazia, e às vezes muito mais, se o arrependimento merecer. A quem não começou, por amor do Senhor eu peço que não se prive de tanto bem. Aqui, não precisa ter medo, mas só desejar. Porque, no caso de não ir adiante nem se esforçar a ser perfeito, a ponto de merecer os gostos e as delícias que Deus dá a esses que avançam, por menos que ganhe, irá compreendendo o caminho para o céu. E se perseverar, confio na Misericórdia de Deus, pois ninguém o tomou como amigo que Ele não pagasse.1 Pois não é outra coisa a oração mental, a meu parecer, senão conviver em amizade, estando muitas vezes conversando a sós com aquele que sabemos que nos ama. E até, se não o amam, é porque, para ser verdadeiro o amor e para que dure a amizade, devem se encontrar as condições. A do Senhor já se sabe que não pode ter falha. A nossa é ser viciosa, sensual, ingrata. Assim, não se pode conseguir amá-lo tanto, porque não é da condição de vocês. Mas vendo o muito que importa para vocês ter a amizade d'Ele e o muito que ama vocês, superam essa pena de ficar muito tempo com quem é tão diferente de vocês.

6. Oh, bondade infinita de meu Deus, pois me parece que vejo a vocês e me vejo a mim desse jeito! Oh, delícia dos anjos, que toda me quereria, quando vejo isso, desfazer-me por amar-vos. Como é certo que suportais aqueles que suportam que estejais com eles!2 Oh, que bom amigo fazeis, Senhor meu. Como o vais regalando e suportando. E como esperais que se faça de vossa condição enquanto suportais a dele! Levais em conta, meu Senhor, os momentos que vos ama e com um instante de arrependimento esqueceis o que vos ofendeu! Vi claramente por mim e não vejo, Criador meu, por que todo mundo não procura se aproximar de Vós por essa amizade particular. Os maus, que não são de vossa condição, para que os façais bons. Para que com isso possam suportar que estejais com eles, pelo menos duas horas por dia. Mesmo que eles não estejam convosco sem mil revoltas de preocupações e pensamentos do mundo, como eu fazia. Por esse esforço que fazem em querer estar em tão boa companhia — vede que nisso, no início, não conseguem mais do que querer, nem depois, às vezes — forçais Vós, Senhor, os demônios, para que não os ataquem e cada dia tenham menos força contra eles e a dais a eles para vencerem os demônios.

Sim, pois não matais a ninguém — Vida de todas as vidas! — dos que confiam em Vós e dos que vos querem como amigo. Ao contrário, sustentais a vida do corpo com mais saúde e a dais à alma.

7. Não entendo isto que temem os que temem começar oração mental, e não sei o que temem. Bem faz o demônio de pôr medo para nos fazer mal de verdade, se com os medos me fizer não pensar naquilo em que ofendi a Deus e no muito que lhe devo, e em que há o inferno e há a glória, e nos grandes sofrimentos e dores que passou por mim.

Essa era toda a minha oração e foi enquanto andei nesses perigos e nisso estava o meu pensamento o quanto eu podia. E muitas e muitas vezes, durante alguns anos, cuidava mais de desejar que acabasse a hora que tinha para ficar comigo e escutar quando dava o relógio, do que em coisas boas. E muitas vezes não sei que penitência grave me poderiam dar que eu não enfrentasse mais de bom grado do que me recolheria para ter oração.

E é certo que era tão insuportável a força que o demônio me fazia, ou meu mau hábito, para que não fosse à oração e a tristeza que me dava entrando no oratório, que era preciso ajudar-me de toda minha coragem para forçar-me, e, no fim ajudava-me o Senhor. E dizem que eu não tenho pouca coragem e viu-se que Deus me deu mais do que de mulher. Mas eu a empreguei mal. E depois que me havia feito essa violência me achava com mais quietude e prazer do que algumas vezes em que tinha desejo de rezar.

8. Pois se uma coisa ruim como eu tanto tempo o Senhor aguentou — e se vê claramente que por isso se remediaram meus males —, que pessoa, por má que seja, poderá temer? Porque por muito que o seja, não o será tantos anos depois de receber tantas dádivas do Senhor. Nem quem poderá não confiar, já que a mim tanto aguentou, só porque eu desejava e procurava algum lugar e tempo para que estivesse comigo? E isso muitas vezes sem vontade, por grande força que fazia contra mim, ou o Senhor mesmo a fazia. Uma vez que, aos que não o servem, antes o ofendem, faz tão bem a oração e lhes é tão necessária e ninguém pode achar de verdade dano que possa fazer que não fosse maior o não tê-la, os que servem a Deus e querem servir por que haverão de deixá-la? Com certeza, se não for para passar com mais dificuldade as dificuldades da vida, eu não posso entender. E para fechar a Deus a porta para que por ela não lhes dê alegria. Certamente tenho pena deles que a sua custa servem a Deus. Porque aos que vivem na oração, o próprio Senhor lhes paga o custo, pois, por um pouco de trabalho, dá gosto para que com ele atravessem as dificuldades.

9. Uma vez que desses gostos que o Senhor dá aos que perseveram na oração se falará muito, não digo nada aqui. Só digo que, para essas dádivas tão grandes que me fez, a porta é a oração. Fechada essa, não sei como as fará. Porque, ainda que queira entrar a deliciar-se com uma alma e deliciá-la, não tem por onde, pois a quer só e limpa e com desejos de receber as dádivas. Se lhe pomos muitos tropeços e não pomos esforço nenhum em tirá-los, como há de vir a nós? E queremos que nos faça Deus grandes dádivas!

10. Para que vejam sua misericórdia e o grande bem que foi para mim não ter deixado a oração e a leitura, direi aqui — pois é tão importante entender — a artilharia que dá o demônio a uma alma para ganhá-la, e o artifício e a misericórdia com que o Senhor procura tomá-la para si e protejam-se dos perigos de que eu não me protegi. E acima de tudo, por amor de nosso Senhor e pelo grande amor com que anda granjeando voltar-nos para Ele, peço eu que se guardem das ocasiões de pecado. Porque postos nelas não há como confiar onde tantos inimigos nos combatem e tantas fraquezas há em nós para nos defendermos.

11. Quisera eu saber ilustrar o cativeiro em que, nesses tempos, mantinha minha alma. Porque bem entendia eu que era escrava e não conseguia entender do quê. Nem podia acreditar de todo que aquilo que meus confessores não consideravam tão grave fosse tão mal quanto eu sentia na minha alma. Disse-me um, indo eu procurá-lo com um escrúpulo, que, ainda que eu tivesse uma contemplação elevada, não eram um inconveniente para mim as ocasiões e as conversas. Isso era já no fim, pois eu ia, com o favor de Deus, afastando-me mais dos perigos grandes. Mas não saía de todo da ocasião de pecado. Como me viam com bons desejos e ocupação de oração parecia-lhes que eu fazia muito. Mas percebia minha alma que não era fazer o que era obrigada a quem eu devia tanto. Tenho pena dela agora pelo muito que passou e pelo pouco socorro que tinha de todas as partes, a não ser de Deus, e a muita saída que davam para seus passatempos e alegrias com dizer que eram lícitos.

12. O tormento nos sermões, então, não era pequeno. E eu era grande entusiasta deles. De maneira que, se via alguém pregar com espírito e bem, me tomava de um amor particular por ele, sem que eu procurasse isso, e não sei quem o punha em mim. Quase nunca me parecia tão ruim um sermão que não o ouvisse de boa vontade, ainda que no dizer dos outros que o ouviam não pregasse bem. Se fosse bom, era para mim uma recreação muito especial. De falar de Deus ou de ouvir sobre Ele quase nunca me cansava, e isto depois que comecei oração. Por um lado tinha uma grande consolação nos sermões, por outro, me atormentavam. Porque aí eu entendia que não era a que eu devia ser, de muitos pontos de vista. Suplicava ao Senhor que me ajudasse, mas devia falhar — pelo que me parece agora — por não pôr em todas as coisas a confiança em Sua Majestade e perdê-la completamente em mim. Buscava remédio, fazia esforços, mas não devia entender que tudo era de pouco proveito se, tirada totalmente a confiança em nós, não a pomos em Deus. Desejava viver — pois bem entendia que não vivia, mas sim que pelejava com uma sombra de morte — e não havia quem me desse vida, e eu não a podia tomar. E quem me podia dá-la tinha razão de não me socorrer, pois tantas vezes me havia virado para si e eu o havia deixado.

CAPÍTULO 9

TRATA DOS MEIOS PELOS QUAIS O SENHOR COMEÇOU A DESPERTAR SUA ALMA E DAR-LHE A LUZ EM TREVAS TÃO GRANDES E A FORTALECER SUAS VIRTUDES PARA QUE NÃO O OFENDESSE

1. Pois já andava minha alma cansada e, ainda que quisesse, não a deixavam descansar os costumes ruins que eu tinha. Aconteceu-me que, entrando um dia no oratório, vi uma imagem que tinham levado para lá para guardar. Tinha sido trazida para uma celebração que se fazia em casa. Era de Cristo muito chagado e tão piedosa que, ao olhá-la, me perturbei toda de vê-lo assim, porque representava bem o que passou por nós. Foi tanto o que senti do mal que havia agradecido aquelas chagas, que meu coração parecia que ia se quebrar. Joguei-me junto a Ele com enorme derramar de lágrimas, suplicando-lhe que me fortalecesse de uma vez para não mais o ofender.

2. Eu era muito devota da gloriosa Madalena. Muitas e muitas vezes pensava em sua conversão. Especialmente quando comungava. Pois, como sabia que estava ali com certeza o Senhor dentro de mim, punha-me a seus pés, parecendo-me que minhas lágrimas não eram de se desprezar.1 E não sabia o que dizia, pois muito fazia quem por mim consentia que eu as derramasse, já que tão depressa me esquecia daquele sentimento. E encomendava-me a essa gloriosa santa para que me alcançasse o perdão.

3. Mas essa última vez, da imagem que conto, me parece que me aproveitou mais, porque estava já muito desconfiada de mim e punha toda a confiança em Deus. Parece-me que lhe disse então que não iria me levantar dali até que Ele fizesse o que eu suplicava. Creio com certeza que me foi proveitoso porque fui melhorando muito desde então.

4. Tinha esta maneira de rezar: já que, como não podia discorrer no entendimento, procurava representar a Cristo dentro de mim, e achava-me melhor — ao que me parece — nos lugares em que eu o via mais só. Parecia-me que, estando só e aflito como uma pessoa necessitada, como a pessoa necessitada haveria de me aceitar. Tinha muitas dessas simplicidades. Em especial me achava muito bem na oração do Horto.2 Ali eu o acompanhava. Pensava naquele suor e na aflição que tinha tido ali. Se pudesse, desejava limpar aquele suor tão penoso. Mas lembro-me de que jamais ousava me decidir a fazê-lo, quando meus pecados me pareciam tão graves. Ficava ali com Ele o mais que me deixassem os meus pensamentos, porque eram muitos os que me atormentavam.

Por muitos anos, na maioria das noites, antes de dormir — quando para dormir me encomendava a Deus — sempre pensava um pouco nesse passo da oração do Horto. Mesmo antes de ser monja, porque tinham me dito que assim se ganhavam muitos perdões. E tenho para mim que, por esse meio, ganhou muito a minha alma, porque comecei a ter oração sem saber o que era e logo o costume tão comum me fazia não deixar isso, assim como não deixava de me benzer para dormir.

5. Voltando então ao que dizia do tormento que me davam meus pensamentos, esse modo de proceder sem discurso da inteligência tem este: a alma tem que estar muito ganha ou perdida. Digo perdida a concentração. Em tirando proveito, tira muito proveito, pois trata-se de amar. Mas para chegar lá é a muito custo, salvo para as pessoas que o Senhor quer fazer chegar muito em breve à oração de quietude, e eu conheço algumas. Para as que vão por esse caminho é bom um livro para se recolherem rapidamente. Para mim também ajudava ver o campo, ou água, flores. Nessas coisas achava eu memória do Criador, quero dizer, me despertavam e recolhiam e serviam de livro. E na minha ingratidão e pecados. Nas coisas do céu e em coisas elevadas era meu entendimento tão grosseiro que nunca, nunca as pude imaginar, até que por outro modo o Senhor as tornou presentes para mim.

6. Tinha tão pouca habilidade para representar coisas com o entendimento que, se não fosse o que via, não me adiantava nada a imaginação, como fazem outras pessoas que conseguem fazer representações onde se recolhem. Eu só podia pensar em Cristo como homem. Mas é dessa forma que nunca o pude representar em mim, por mais que tivesse lido sobre sua beleza e visse imagens, a não ser como quem está cego, ou no escuro, e, ainda que fala com uma pessoa e percebe que está com ela, porque sabe com certeza que ela está ali, quer dizer, ouve e crê que ela está ali, mas não a vê. Dessa maneira acontecia comigo quando pensava em nosso Senhor. Por causa disso era tão amiga de imagens. Infelizes os que por sua culpa perdem esse bem! Parece bem que não amam ao Senhor, porque, se o amassem, ficariam alegres de ver seu retrato, como mesmo aqui no mundo dá alegria ver o retrato de quem se quer bem.

7. Nesse tempo me deram as Confissões, de Santo Agostinho. Parece que o Senhor o ordenou porque eu nunca as procurei nem nunca as tinha visto. Eu sou muito afeiçoada a Santo Agostinho, porque o mosteiro em que estive como secular era da sua ordem. E também por ter sido pecador, pois nos santos que depois de sê-lo o Senhor fez voltar a si eu achava muito consolo, parecendo-me que neles eu haveria de encontrar ajuda. E eu, da maneira como os havia o Senhor perdoado, poderia fazer a mim. Só uma coisa me desconsolava, como disse, pois a eles o Senhor chamou uma só vez e não tornaram a cair, e comigo eram já tantas que me desanimava. Mas, considerando o amor que tinha por mim, voltava a me animar, pois nunca duvidei de sua misericórdia. De mim, duvidei muitas vezes.

Oh, valha-me Deus, como me espanta a dureza que teve minha alma tendo tantas ajudas de Deus! Faz-me ficar temerosa o pouco que conseguia comigo e quão amarrada me via para não me decidir a dar-me toda a Deus.

8. Quando comecei a ler as Confissões, parecia que me via ali. Comecei a encomendar-me muito a esse glorioso santo. Quando cheguei à sua conversão e li como ouviu aquela voz no Horto, parecia-me que o Senhor a havia dado a mim. Era o que sentia no coração. Fiquei muito tempo de um jeito que me desfazia em lágrimas comigo mesma em grande aflição e desânimo.

Oh, como sofre uma alma, valha-me Deus, por perder a liberdade que devia ter de ser senhora, e quantos tormentos padece! Eu me admiro agora de como podia viver em tanto tormento. Seja louvado Deus que me deu vida para sair de morte tão mortal!

9. Parece-me que ganhou grandes forças minha alma, da Divina Majestade, e que devia ouvir meus clamores e ter pena de tantas lágrimas. Começou a crescer em mim o apego a ficar mais tempo com Ele e tirar os olhos das ocasiões de pecado, porque, deixadas estas, logo voltava a amar Sua Majestade, pois bem entendia eu — no meu parecer — que o amava, mas não entendia em que consiste o amar de verdade a Deus como haveria de entender. Não me parece que eu conseguia me dispor a querer servi-lo quando Sua Majestade começava a voltar a presentear. Parece que aquilo que os outros procuram com grande trabalho adquirir, insistia o Senhor comigo para que eu quisesse receber. Pois era já nesses últimos anos dar-me prazeres e presentes. Suplicar eu que me os desse, ou ternura na piedade, jamais me atrevi a isso. Só pedia que me desse a graça para não o ofender e me perdoasse os grandes pecados. Como eu os via tão grandes, mesmo desejar presentes e prazeres nunca, conscientemente, ousava. Muito, me parece, fazia sua piedade e com verdade tinha muita misericórdia comigo em consentir-me estar diante dele e trazer-me à sua presença, pois via eu que, se ele não procurasse tanto, eu não viria.

Só uma vez na minha vida me lembro de pedir-lhe um gosto, estando com muita secura. E assim que percebi o que fazia fiquei tão confusa que o próprio desânimo de me ver tão pouco humilde me deu o que havia me atrevido a pedir. Eu bem sabia que era lícito pedir, mas parecia-me que isso era para os que estão preparados depois de ter procurado o que é a verdadeira devoção com todas as suas forças, que é: não ofender a Deus e estar dispostos e determinados a todo o bem. Parecia-me que aquelas minhas lágrimas eram coisas de mulher e sem força, pois não alcançava com elas o que desejava.

Apesar de tudo, creio que me valeram. Porque, como ia dizendo, em especial nessas duas vezes de tão grande compunção delas e desânimo do meu coração, comecei mais a dar-me à oração e a viver menos em coisas que me prejudicassem, ainda que não as deixasse de todo. Mas, como disse, foi me ajudando Deus a desviar-me. Como Sua Majestade não estava esperando em mim senão alguma condição, foram crescendo as dádivas espirituais da maneira que direi. Coisa não usada dá-las o Senhor a não ser aos que têm mais limpeza de consciência.

CAPÍTULO 10

COMEÇA A DECLARAR AS DÁDIVAS QUE O SENHOR LHE FAZIA NA ORAÇÃO, E NO QUE PODEMOS NÓS NOS AJUDAR, E O MUITO QUE IMPORTA QUE ENTENDAMOS AS DÁDIVAS QUE O SENHOR NOS FAZ. PEDE ÀQUELE1 A QUEM ISSO ENVIA QUE, DAQUI PARA A FRENTE, SEJA SECRETO O QUE ESCREVER, JÁ QUE A MANDAM DIZER TÃO MINUCIOSAMENTE AS DÁDIVAS QUE LHE FAZ O SENHOR

1. Tinha eu algumas vezes, como disse, ainda que com muita brevidade passasse, um começo do que agora direi. Acontecia-me nessa representação que fazia de me pôr ao lado de Cristo de que falei, e também algumas vezes, lendo, vir inesperadamente um sentimento da presença de Deus que de maneira nenhuma eu podia duvidar de que estivesse dentro de mim ou eu mergulhada n'Ele. Isso não era como uma visão. Creio que chamam de "teologia mística". Suspende a alma de maneira que parece estar toda fora de si. A vontade ama. A memória me parece estar quase perdida. O entendimento não discorre, a meu parecer, mas não se perde. Mas, como digo, não opera, antes fica como espantado com o muito que entende. Porque quer Deus que ele entenda que, daquilo que Sua Majestade lhe apresenta, não entende coisa alguma.

2. Primeiro tinha tido durante muito tempo uma ternura que, me parece, algo dela se pode procurar: um prazer que nem é bem todo dos sentidos, nem bem é espiritual. Tudo é dado por Deus, mas parece que para isso nos podemos ajudar muito ao considerar nossa baixeza e a ingratidão que temos com Deus, o muito que fez por nós, sua Paixão com tão graves dores, sua vida tão afligida. Ao deleitarmo-nos em ver suas obras, sua grandeza, o tanto que nos ama. Muitas outras coisas, que, quem com cuidado quer aproveitar, tropeça muitas vezes nelas, mesmo que não ande com muita atenção. Se com isso há algum amor, regala-se a alma, enternece-se o coração, vêm as lágrimas. Algumas vezes parece que as arrancamos à força, outras parece que o Senhor faz de modo a que não possamos resistir. Parece que nos paga Sua Majestade aquele cuidadinho com um dom tão grande, como é o consolo que dá a uma alma ver que chora por tão grande Senhor. E não me espanto, pois sobra razão para consolar-se. Aí se delicia, aí se alegra.

3. Parece-me boa esta comparação que agora me ocorre: que são estes gozos de oração como devem ser os daqueles que estão no céu. Pois, como não viram mais do que o que o Senhor — conforme o que merecem — quer que vejam, e veem seus poucos méritos, cada um fica contente com o lugar em que está, apesar de haver tão enorme diferença entre os diferentes gozos no céu. Muito mais do que aqui há de uns gozos espirituais a outros, que já é enorme.

E verdadeiramente, uma alma em seus princípios, quando Deus lhe faz essa dádiva, quase lhe parece que não há mais o que desejar e se dá por bem paga de tudo quanto serviu. E sobra-lhe razão. Pois uma lágrima dessas que, como digo, quase temos que procurar — ainda que sem Deus não se faça coisa alguma — não me parece que com todos os trabalhos do mundo se possa comprar, porque se ganha muito com elas. E que maior ganho do que ter algum testemunho de que contentamos a Deus?

4. Assim, quem chegar aqui louve-o muito e saiba-se grande devedor, porque já parece que Deus o quer para sua casa e escolhido para seu reino, se Ele não voltar atrás. Não se importe com certas humildades que existem, de que penso tratar, pois parece humildade não perceber que o Senhor vai dando dons. Entendamos bem, bem, como é isso: Deus nos dá os dons sem nenhum merecimento nosso. Porque, se não reconhecemos que recebemos, não despertamos para amar.

E é coisa muito certa que, quanto mais vemos que estamos ricos, mesmo sabendo que somos pobres, mais proveito tiramos, e ainda mais verdadeira a humildade. O resto é acovardar o ânimo a achar que não é capaz de grandes bens, se, ao começar o Senhor a dá-los, começa a atemorizar-se com medo de vanglória. Creiamos que quem nos dá os bens nos dará a graça para que, começando o demônio a tentar-lhe dessa maneira, entenda e fortaleça-se para resistir, digo, se andarmos com simplicidade diante de Deus, pretendendo contentar só a ele, e não aos homens.

5. É uma coisa muito clara que amamos mais a uma pessoa quando nos lembramos muito das boas obras que nos faz. Pois se é lícito, e tão meritório que conservemos a memória que recebemos de Deus o ser, e que nos criou do nada, e que nos sustenta, e todos os demais benefícios de sua morte e sofrimentos, pois muito antes que nos criasse os havia feito por cada um dos que agora vivem, por que não será lícito que eu entenda e veja e pense muitas vezes que antes costumava falar sobre vaidades e que agora me deu o Senhor que não queira falar senão dele? Tenho aqui uma joia que, lembrando-nos de que é dada, e já a possuímos, forçosamente convida a amar, pois todo o bem da oração se funda na humildade. Pois o que será quando virem em seu poder outras joias mais preciosas, como as que já receberam alguns servos de Deus, de menosprezo do mundo e até de si mesmos? É claro que vão se considerar mais devedores e mais obrigados a servir e entender que não tínhamos nada disso e a conhecer a largueza do Senhor. Pois a uma alma tão pobre e ruim e de nenhum merecimento como a minha, a que bastava a primeira dessas joias e sobrava para mim, quis me dotar de mais riquezas do que eu saberia desejar.

6. É preciso tirar forças de novo para servir e procurar não ser ingrato. Porque com esta condição dá o Senhor as joias: se não usarmos bem do tesouro e do grande estado em que nos põe, voltará a tomá-lo de nós. E ficaremos muito mais pobres e dará Sua Majestade as joias a quem brilhe e tire proveito delas para si e para os outros.

Então, como vai tirar proveito e gastar com largueza quem não sabe que está rico? É impossível — por causa de nossa natureza, na minha opinião — ter ânimo para coisas grandes quem não percebe estar favorecido por Deus. Porque somos tão miseráveis e tão inclinados às coisas da terra que mal poderá ter aversão de fato pelas coisas daqui com grande desprendimento quem não sabe ter alguma prenda das coisas de lá. Porque com esses dons é onde o Senhor nos dá a fortaleza, que por nossos pecados perdemos. E pouco desejará uma pessoa que todos fiquem descontentes com ela e tenham aversão a ela e todas as demais virtudes que têm os perfeitos, se não tiver alguma prenda do amor que Deus lhe tem, e, juntamente, fé viva. Porque é tão morta nossa natureza que vamos pelo que vemos presente. E, assim, são os próprios favores que despertam a fé e a fortalecem.

Aqui pode ser que eu — como sou tão ruim — julgue por mim. Pois haverá outros que não tenham necessidade de mais do que a verdade da fé para fazer obras muito perfeitas. Já eu, como miserável, de tudo tive necessidade.

7. Eles o dirão. Eu digo o que se passou comigo como me mandam. E se não estiver bom, riscará aquele a quem envio, que saberá perceber melhor do que eu o que está mal. A quem suplico, por amor do Senhor, publiquem o que disse até agora de minha vida ruim e de meus pecados. Desde já, dou licença, e a todos os meus confessores, pois é a eles que isso vai. E, se quiserem, ainda durante a minha vida. Para que não engane mais o mundo, que pensa que há em mim algum bem. E certamente, certamente, digo com verdade, pelo que agora sei de mim, me dará grande consolo.

Para o que daqui para a frente eu disser, não a dou. Nem quero, se a mostrarem a alguém, que digam quem é, com quem aconteceu, nem quem escreveu. Pois por isso não digo o meu nome nem o de ninguém. Apenas escrevo da melhor maneira possível para não ser reconhecida e assim peço pelo amor de Deus. Bastam pessoas tão letradas e sérias para autorizar alguma coisa boa, se o Senhor me der a graça para dizê-la. Pois se for boa, será dele e não minha, por ser eu sem estudo nem boa vida, nem informada por letrado ou por qualquer pessoa. Só quem me manda escrever sabe que escrevo e no momento não está aqui. Escrevo quase roubando o tempo e com pena, porque me impede de fiar e estou em casa pobre e com muitas ocupações. Assim, ainda que o Senhor me tivesse dado mais habilidade e memória, ainda que com essa eu pudesse tirar proveito do que ouvi ou li, é pouquíssima a que tenho. Assim, se disser algo bom, é porque o Senhor o quer para algum bem. O que for mau será por mim, e o senhor o cortará.

E para uma coisa ou para outra nenhum proveito trará dizer o meu nome. Em vida está claro que não se há de dizer o que de bom, na morte não há por que, a não ser para perder a autoridade e não dar nenhum crédito por ser dito por pessoa tão baixa e tão ruim.

8. E por pensar que o senhor fará isso que pelo amor do Senhor lhe peço, e também os demais que hão de ler, escrevo com liberdade. De outra maneira seria com grande escrúpulo. Fora contar meus pecados, pois para isso não tenho escrúpulo nenhum. Para o resto, basta ser mulher para baixar-me as asas, quanto mais sendo mulher e ruim.

E assim, o que for além de contar simplesmente o decurso da minha vida, tome o senhor para si, já que tanto me importunou para que escrevesse alguma declaração das dádivas que me faz Deus na oração, se for conforme a nossa santa fé católica. E se não for, queime logo, que a isso me submeto. E direi o que se passa comigo para que, no caso de ser conforme à fé, possa ser de algum proveito ao senhor. E, se não, tirará o senhor minha alma do engano, para que não ganhe o demônio onde me parece que eu estou ganhando. Pois já sabe o Senhor, como direi depois, que sempre tentei achar quem me esclarecesse.

9. Por mais claro que eu queira contar essas coisas de oração, será bem obscuro para quem não tiver a experiência. Alguns impedimentos eu contarei que a meu entender impedem ir adiante nesse caminho e outras coisas em que há perigo. Sobre isso o Senhor me ensinou por experiência. E depois conversei com grandes letrados e pessoas espirituais de muitos anos e viram que em apenas vinte e sete anos em que tenho oração, mesmo andando com tantos tropeços e tão mal nesse caminho, me deu o Senhor, me deu Sua Majestade, a experiência de outros que, por quarenta e sete anos, sempre em penitência e virtude caminharam por ele.

Seja bendito por tudo e sirva-se de mim, por quem Sua Majestade é. Pois bem sabe meu Senhor que não pretendo outra coisa com isso a não ser que ele seja louvado e engrandecido um pouquinho por ver que, em uma fossa tão suja e malcheirosa, fez um jardim de tão suaves flores. Queira Sua Majestade que, por minha culpa, não as torne eu a arrancar e volte a ser o que era. Isso peço eu, por amor do Senhor, que peça o senhor, pois sabe quem eu sou com mais clareza do que aqui me deixou dizer.

CAPÍTULO 11

DIZ ONDE ESTÁ A FALHA DE NÃO AMAR A DEUS COM PERFEIÇÃO EM POUCO TEMPO. COMEÇA A DECLARAR, POR UMA COMPARAÇÃO QUE PROPÕE, QUATRO GRAUS DE ORAÇÃO. VAI TRATANDO AQUI DO PRIMEIRO. É MUITO PROVEITOSO PARA OS QUE COMEÇAM E PARA OS QUE TÊM GOSTO PELA ORAÇÃO

1. Bem, falando agora dos que começam a ser servos do amor, pois não me parece outra coisa decidirmo-nos a seguir, por este caminho de oração, a quem tanto nos amou, é uma dignidade tão grande que me deleito estranhamente ao pensar nela. Porque o temor servil logo vai embora, se neste primeiro estado vamos como temos que ir. Oh, Senhor da minha alma e Bem meu! Por que não quisestes que, decidindo uma alma amar-vos ao fazer o que pode em deixar tudo para melhor se empregar nesse amor de Deus, logo gozasse de subir a ter esse amor perfeito? Disse mal. Devia dizer e queixar-me de por que não o queremos nós, já que toda a falha é nossa em não gozar logo de tão grande dignidade, já que, chegando a ter com perfeição esse verdadeiro amor de Deus, ele traz consigo todos os bens. Somos tão avaros e tão tardios em nos dar por inteiro a Deus que, como Sua Majestade não quer que gozemos de coisa tão preciosa sem grande preço, não conseguimos nos dispor.

2. Bem vejo que não há com que se possa comprar tão grande bem na terra. Mas se fizéssemos o que podemos para não nos apegar a nada dela, e, ao contrário, todo nosso cuidado e nossas conversas fossem do céu, creio eu, sem dúvida, que muito depressa nos daria esse bem. Se depressa nos dispuséssemos como alguns santos fizeram. Mas parece-nos que damos tudo, e, na verdade, oferecemos a Deus a renda ou os frutos e ficamos com a raiz e a propriedade. Decidimos ser pobres — e isso é de grande mérito — mas muitas vezes voltamos a ter preocupações e tomamos providências para que não nos falte não apenas o necessário, mas o supérfluo, e para arranjar os amigos que no-lo deem. E tomamos mais cuidado — e porventura corremos mais perigo — para que não nos falte nada, do que tomávamos antes ao possuir negócios.

Parece também que abandonamos a honra por ser religiosos ou em ter já começado a vida espiritual e a seguir perfeição, e não tocaram em um ponto da nossa honra, quando não nos lembramos de que já a demos a Deus e queremos voltar a nos elevar com ela e tomá-la — como dizem — em nossas próprias mãos depois de tê-lo feito senhor dela. Assim são todas as outras coisas.

3. Bela maneira de procurar o amor de Deus! E logo o queremos às mancheias, como se diz. Manter nossos gostos, já que não procuramos efetuar nossos desejos e não conseguimos elevá-los da terra, e, junto com eles, muitas consolações espirituais, não vai bem. Nem me parece que seja compatível uma coisa com a outra. Assim, porque não conseguimos nos dar por inteiro, não nos é dado por inteiro esse tesouro. Queira Deus que, gota a gota, no-lo dê Sua Majestade, ainda que seja custando-nos todos os trabalhos do mundo.

4. Muito grande misericórdia faz a quem dá graça e ânimo para se decidir a procurar com todas as suas forças esse bem. Porque, se perseverar, não se nega Deus a ninguém. Pouco a pouco Ele vai habilitando o ânimo para que saia com essa vitória. Digo ânimo, porque são tantas as coisas que o demônio põe na frente no começo para que não se comece de fato! Como quem conhece esse caminho e o dano que por ele vem a ele, demônio, não só em perder aquela alma, mas muitas. Se aquele que começa se esforça, com o favor de Deus, para chegar ao cume da perfeição, creio que jamais vai sozinho para o céu. Sempre leva muita gente atrás de si. Como a um bom capitão, Deus lhe dá quem vá em sua companhia. Põe-lhes tantos perigos e cuidados na frente, que não é preciso pouco ânimo para não voltar atrás, mas muito, e muito favor de Deus.

5. Então, falando dos começos dos que já estão decididos a seguir esse caminho e a sair nessa empreitada, pois do resto do que comecei a dizer sobre teologia mística, creio que se chama assim, falarei mais adiante, nesses começos está todo o maior trabalho. Porque são eles que trabalham, e o Senhor dá a riqueza. Pois nos outros graus de oração a maior parte é gozo. Embora calouros, intermediários e avançados, todos levam suas cruzes, ainda que diferentes. Pois pelo caminho pelo qual foi Cristo, hão de ir os que o seguem, se não quiserem se perder. E benditos trabalhos que já nesta vida tão sobejamente se pagam!

6. Terei que me valer de alguma comparação, ainda que eu as quisesse evitar, por ser mulher e escrever simplesmente o que me mandam. Mas essa linguagem de espírito é tão ruim de expressar aos que não são letrados, como eu, que terei que procurar algum meio. E pode ser que poucas vezes saia bem a comparação. Servirá para divertir o senhor ao ver tanta incapacidade.

Parece-me agora que li ou ouvi essa comparação. Já que tenho memória ruim, não sei onde nem a propósito de que, mas para o meu de agora me basta. Tem que fazer de conta, aquele que começa, que começa a fazer um jardim em terra muito infértil, cheia de ervas daninhas, para que nele se deleite o Senhor. Sua Majestade arranca as ervas daninhas e há de plantar as boas.

Façamos de conta então que isso já foi feito quando se decide uma alma a ter oração e vai começar a usá-la. E, com a ajuda de Deus, temos que procurar, como bons jardineiros, fazer com que cresçam essas plantas. E ter o cuidado de regá-las para que não se percam, mas venham a dar flores que deem de si muito aroma para recrear a este Senhor nosso e, assim, venha muitas vezes a se deleitar nesse jardim e a alegrar-se entre essas virtudes.

7. Então vejamos agora de que maneira se pode regá-lo, para que saibamos o que temos que fazer e o trabalho que nos há de custar. Se é maior do que o lucro e por quanto tempo se há de manter.

Parece-me que se pode regar de quatro maneiras: ou puxando a água de um poço, o que nos dá grande trabalho; ou com uma roda-d'água e canaletas, que se move por uma manivela — eu já tirei água assim algumas vezes —: dá menos trabalho e tira mais água; ou de um rio ou riacho: isso rega muito melhor, pois fica a terra mais farta de água e não há necessidade de regar com tanta frequência e dá muito menos trabalho ao jardineiro; ou com muita chuva, pois rega o Senhor sem nenhum trabalho nosso e é, sem comparação, muito melhor do que tudo o que foi dito.

8. Agora, então, aplicadas essas quatro maneiras de fornecer água de que se vai sustentar esse jardim — porque sem ela há de se perder —, é o que para mim vem ao caso. E pareceu-me que se poderá dizer algo sobre os quatro graus de oração em que o Senhor, por sua bondade, pôs algumas vezes minha alma. Queira sua bondade que eu atine com dizer de uma maneira que seja proveitosa para uma das pessoas que me mandaram escrever,1 pois em quatro meses o Senhor a levou muito mais adiante do que eu em dezessete anos. Ele se dispôs melhor e, assim, sem trabalho seu, rega esse horto com essas quatro águas, ainda que a última não lhe seja dada senão em gotas. Mas vai de uma maneira que logo vai navegar nela, com a ajuda do Senhor. E eu vou gostar que ele ria, se lhe parecer desatino essa maneira de dizer.

9. Dos que começam a ter oração podemos dizer que são os que tiram água do poço, o que é muito trabalhoso para eles, como disse. Porque vão se cansar de recolher os sentidos. Como estão acostumados a usá-los prodigamente, é muito trabalho. Vão precisar ir se acostumando a não se importar com ver ou ouvir, mesmo nas horas da oração, mas sim com estar em solidão e, apartados, pensar em sua vida passada. Ainda que isso todos, principiantes e veteranos, vão ter que fazer muitas vezes, há de se pensar nisso mais e menos, como direi depois.

No começo causa tristeza, pois ainda não conseguem entender que se arrependem dos pecados. E, sim, o fazem, já que decidem servir a Deus tão de verdade. Terão que procurar tratar da vida de Cristo, e cansa-se a inteligência com isso.

Até aqui podemos ir nós mesmos. Entenda-se: com o favor de Deus. Pois sem este já se sabe que não podemos ter sequer um bom pensamento. Isso é começar a tirar a água do poço. E também queira Deus que deseje manter o poço com água. Mas ao menos não fica essa tarefa para nós que já vamos tirá-la e fazemos o que podemos para regar essas flores. E Deus é tão bom que, quando, pelo que Sua Majestade sabe — porventura para grande proveito nosso —, quer que esteja seco o poço, fazendo nós o que está a nosso alcance como bons jardineiros, sem água Ele sustenta as flores e faz crescer as virtudes. Chamo de "água" aqui as lágrimas, e, ainda que você2 não as tenha, a ternura e o sentimento interior de devoção.

10. Pois o que fará aqui aquele que vê que, em muitos dias, não há senão secura e insipidez e tanta má vontade para vir tirar água que abandonaria tudo, se não se lembrasse de dar prazer e prestar serviço ao Senhor do jardim e almejasse não perder todo o serviço já feito e também o que espera ganhar do grande trabalho que é jogar muitas vezes o balde no poço e tirá-lo sem água? E muitas vezes lhe acontecerá ainda que os braços não se ergam para isso. Nem poderá ter um bom pensamento, pois este trabalhar com o entendimento entenda-se que é tirar água do poço.

Então, como ia dizendo, o que fará aqui o jardineiro? Alegrar-se-á e consolar-se-á e terá por enorme dádiva trabalhar no jardim de tão grande Imperador. E já que sabe que o contenta naquilo, e seu intuito não há de ser contentar a si próprio, mas a Ele, louve-o muito, que lhe mostra tanta confiança, pois vê que, sem pagar-lhe nada, tem grande cuidado com o que lhe encomendou. E ajude-lhe a levar a cruz, e pense que toda a vida viveu com ela e não queira aqui seu reino, nem deixe jamais a oração. E assim se decida, ainda que por toda a vida lhe dure essa secura, a não deixar Cristo cair com a cruz. Tempo virá em que será pago de uma vez. Não tenha medo de que se perca o trabalho. Serve a bom amo, olhando por ele está. Não faça caso dos maus pensamentos. Atente a que também os apresentava o demônio para são Jerônimo no deserto.3

11. Esses trabalhos têm seu preço. Pois, como quem passou por eles durante muitos anos — pois quando tirava uma gota desse bendito poço pensava que Deus me fazia uma dádiva —, sei que são enormes. E me parece que é preciso mais ânimo do que para muitos trabalhos do mundo. Mas vi claramente que Deus não deixa sem grande prêmio, mesmo nesta vida. Porque é assim, sem dúvida, que com uma hora das que, depois, o Senhor me deu de gosto de si, aí me parece que ficam pagas todas as agonias que para me sustentar na oração por muito tempo passei.

Tenho para mim que o Senhor quer dar, muitas vezes no começo e outras no fim, esses tormentos e essas muitas tentações que se oferecem, para provar aqueles que o amam, e saber se poderão beber o cálice e ajudar-lhe a levar a cruz, antes que se ponham sobre eles grandes tesouros. E para nosso bem creio que nos quer Sua Majestade levar por aí para que entendamos bem o pouco que somos. Como são de grande dignidade as dádivas de depois, quer que primeiro vejamos por experiência nossa miséria antes que no-las dê, para que não nos aconteça o mesmo que a Lúcifer.4

12. Que fazeis, Senhor meu, que não seja para maior bem da alma que entendeis que já é vossa e que se põe em vosso poder para seguir-vos por onde fordes até a morte de cruz e que está determinada a vos ajudar a levá-la e a não vos deixar só com ela?

Quem vir em si essa determinação, não, não tem que temer. Gente espiritual não tem por que se afligir. Já posta em grau tão alto como é o de querer tratar com Deus a sós e abandonar todos os passatempos do mundo, o principal está feito. Louvem por isso a Sua Majestade e confiem em sua bondade, que nunca faltou a seus amigos. Vendados os olhos para não pensar por que dá àquele de tão poucos dias devoção e não a mim de tantos anos, creiamos que é tudo para nosso bem. Guie Sua Majestade por onde quiser. Já não somos nossos, mas seus. Grande dádiva nos faz em querer que queiramos capinar em seu jardim. E estamos ao lado do Senhor do jardim, pois sem dúvida está conosco. Se ele quer que cresçam essas plantas e flores, a uns dando a água que tiram desse poço, a outros sem ela, que me importa? Fazei Vós, Senhor, o que quiserdes. Não vos ofenda eu. Não se percam as virtudes, se já me destes, só por vossa bondade, alguma. Quero padecer, Senhor, porque Vós padecestes. Cumpra-se em mim, de todas as maneiras, a vossa vontade. E não agrade a Vossa Majestade que coisa de tão alto preço como vosso amor se dê a gente que vos serve só pelos prazeres.

13. Há que se notar muito — e digo porque sei por experiência — que já andou boa parte do caminho a alma que, nesse caminho de oração, começa a percorrer com determinação e consegue não fazer muito caso, nem se consolar ou se desconsolar muito por faltarem esses prazeres e ternura ou por os dar o Senhor. E não tenha medo de que vai voltar atrás, ainda que na maior parte das vezes tropece, porque está iniciado o edifício sobre fundamento firme. Sim, pois não está o amor de Deus em ter lágrimas nem esses gostos e ternura — que, na maior parte do tempo, desejamos e com os quais nos consolamos —, mas sim em servir com justiça e fortaleza de alma e humildade. A mim isso parece mais receber que dar nós mesmos alguma coisa.

14. Para mulherzinhas como eu, fracas e com pouca fortaleza, me parece que convém, como Deus agora faz comigo, conduzir com presentes para que possa suportar alguns trabalhos que Sua Majestade quis que eu tenha. Mas a servos de Deus, homens de peso, letrados, inteligentes, que vejo fazerem tanto caso de que Deus não lhes dá devoção, me dá desgosto ouvir. Não digo que não a tomem, se Deus a der, e a considerem muito, porque então verá Sua Majestade que convém. Mas que, quando não a tiverem, não desanimem e entendam que não é necessária, uma vez que Sua Majestade não a dá, e sigam senhores de si. Creiam que é uma falha. Eu provei e vi. Creiam que é imperfeição. E não é andar com liberdade de espírito, mas sim andar fracos para serem atacados.

15. Não digo isso tanto pelos que começam, ainda que eu dê muito peso a isso, porque importa muito que comecem com essa liberdade e determinação, mas pelos outros. Pois haverá muitos que começaram e nunca conseguem acabar. E creio que é parte importante disso não abraçar a cruz desde o começo, pois andarão aflitos, parecendo-lhes que não fazem nada. Deixando de operar o entendimento, não aguentam. E talvez então a vontade engorda e ganha força e eles não entendem.

Temos que pensar que o Senhor não presta atenção nessas coisas que, ainda que a nós pareçam faltas, não são. Já conhece Sua Majestade nossa miséria e baixeza natural melhor do que nós mesmos, e sabe que essas almas já desejam pensar sempre nele e amá-lo. Essa determinação é o que quer. Essa outra aflição que nos damos não serve para mais do que inquietar a alma. E se alguém havia de ser incapaz de aproveitar uma hora, que dirá quatro. Porque muitas e muitas vezes (eu tenho enorme experiência disso e sei que é verdade porque examinei com cuidado e tratei disso depois com pessoas espirituais) vem de indisposição corporal. Pois somos tão miseráveis que participa essa encarcerada dessa pobrezinha dessa alma das misérias do corpo. E as mudanças do tempo e as reviravoltas dos humores muitas vezes fazem com que, sem culpa sua, não possa fazer o que quer, mas sim que padeça de todas as maneiras. E quanto mais a querem forçar nesses períodos, pior é e mais dura o mal. Que haja, pois, discernimento quando se trata disso e não afoguem a coitada. Entendam que estão doentes. Mude-se a hora da oração e muitas vezes será questão de alguns dias. Passem como puderem esse desterro, pois grande má sorte de uma alma que ama a Deus é ver que vive nessa miséria e que não pode o que quer por ter um tão mau anfitrião como esse corpo.

16. Disse "com discernimento" porque alguma vez o demônio agirá. E, assim, não é bom nem sempre deixar a oração — quando haja grande distração e perturbação do entendimento —, nem sempre atormentar a alma para o que não pode.

Há outras coisas exteriores como obras de caridade e leitura, ainda que às vezes também não estará disposta a isso. Sirva-se então ao corpo por amor de Deus para que, muitas outras vezes, sirva ele à alma. E tome alguns passatempos sadios: conversas que o sejam, ou ir ao campo. Como aconselhar o confessor. E em tudo é uma grande coisa a experiência, que dá a entender o que nos convém e em tudo se serve a Deus. Suave é seu jugo5 e é grande negócio não trazer a alma arrastada, como dizem, mas levá-la com sua suavidade para seu maior proveito.

17. Assim, torno a avisar — e ainda que o diga muitas vezes não há problema — que de secura, de inquietude e distração nos pensamentos, ninguém se oprima e aflija. Se quiser ganhar liberdade de espírito e não andar sempre atribulado, comece a não se assustar com a cruz e verá como também a ajuda a levar o Senhor. E verá com que alegria anda e o proveito que tira de tudo. Porque já se vê que, se o poço não mana, nós não podemos pôr a água. É verdade que não temos que ficar descuidados, para, quando houver água, tirá-la, porque então já quer o Senhor por esse meio multiplicar as virtudes.

CAPÍTULO 12

PROSSEGUE NESSE PRIMEIRO ESTADO. DIZ ATÉ ONDE PODEMOS CHEGAR, COM O FAVOR DE DEUS, POR NÓS MESMOS, E O DANO QUE É QUERER, ANTES QUE O SENHOR O FAÇA, ELEVAR O ESPÍRITO A COISAS SOBRENATURAIS

1. O que eu pretendi dar a entender no capítulo passado — ainda que tenha me desviado para outras coisas por me parecerem muito necessárias — é dizer o que podemos nós mesmos obter, e como, nessa primeira devoção, podemos nós nos ajudar um pouco. Porque pensar e esquadrinhar o que o Senhor passou por nós nos move à compaixão, e é saborosa essa pena, e essas lágrimas que procedem daí. E pensar na glória que esperamos e no amor que o Senhor teve por nós e em sua ressurreição move-nos ao gozo, que não é de todo espiritual, nem sensual, mas é gozo virtuoso e a pena, muito meritória.

Dessa mesma maneira são todas as coisas que causam uma devoção adquirida em parte com o entendimento, ainda que não se possa merecê-la nem ganhá-la se não a der Deus. Está muito bem, para uma alma que não foi erguida até aqui, não tentar subir ela mesma. E dê-se muita atenção a isso, porque não fará avançar nada, a não ser sua perda.

2. Pode a alma, nesse estado, fazer muitos atos para se decidir a fazer muito por Deus e para despertar o amor. Outros, para ajudar a crescer a virtude, conforme o que diz um livro chamado Arte de servir a Deus,1 que é muito bom e apropriado para os que estão nesse estado, porque trabalha o entendimento. Pode-se imaginar-se diante de Cristo e acostumar-se e enamorar-se muito de sua sagrada Humanidade e trazer-lhe sempre consigo e falar com Ele, pedir-lhe por suas necessidades e queixar-se de seus trabalhos, alegrar-se com Ele em suas alegrias e não esquecê-lo por causa delas. Sem procurar orações compostas, mas sim palavras conformes a seus desejos e necessidades. É uma excelente maneira de avançar e muito rápida. E quem trabalhar para trazer consigo essa preciosa companhia e se aproveitar muito dela e de verdade tomar amor a esse Senhor a quem tanto devemos, eu o considero bem avançado.

3. Para isso não nos há de importar o não ter devoção, como disse, mas sim agradecer ao Senhor que nos deixa desejosos de contentá-lo, ainda que sejam magras as obras. Esse modo de trazer Cristo conosco é proveitoso em todos os estados. E é um meio seguríssimo para ir avançando e chegar em breve ao segundo grau de oração, e para os veteranos andarem mais seguros dos perigos que o demônio pode pôr.

4. Então isso é o que podemos. Quem quiser passar daqui e erguer o espírito a sentir prazeres que não lhe são dados, irá perder uma coisa e outra, na minha opinião, porque é sobrenatural. E, perdido o entendimento, fica a alma deserta e com muita secura. E como todo esse edifício se funda na humildade, quanto mais perto de Deus, mais adiante há de ir essa virtude, senão está tudo perdido. E parece algum tipo de soberba querermos nós mesmos subir mais alto, pois Deus já faz demais, pelo que somos, ao nos aproximar de si.

Não se deve entender que digo isso sobre elevar o pensamento a pensar coisas altas do céu ou de Deus, e as grandezas que há lá e sua grande sabedoria. Porque, ainda que eu nunca o tenha feito (pois não tinha habilidade, como disse. E me via tão ruim que me fazia Deus a dádiva de entender a verdade de que, até para pensar coisas da terra, não era pouco meu atrevimento, quanto mais seria para pensar nas do céu), outras pessoas tirarão proveito. Especialmente se tiverem estudo, que é um grande tesouro para essa prática, na minha opinião, se for com humildade. De uns dias para cá, vi por alguns letrados que começaram há pouco e avançaram muito. E isso me faz ter grande vontade de que muitos fossem espirituais, como direi adiante.

5. O que eu digo, então, "não se elevem sem que Deus os eleve", é linguagem do espírito. Entender-me-á quem tiver alguma experiência, pois eu não sei mais o que dizer, se até agora não se entendeu. Na mística teologia que comecei a dizer, perde-se por usar o entendimento, porque Deus o suspende, como direi mais, depois, se souber e Ele me der, para isso, seu favor. Nem presumir nem pensar em elevarmo-nos nós mesmos é o que digo que não se faça. Nem deixe de trabalhar com o entendimento, porque ficaremos bobos e frios e não faremos nem uma coisa nem outra. Porque quando o Senhor o suspende e faz parar, dá-lhe com o que se espante e se ocupe. E dá-lhe que, sem raciocinar, entenda mais no tempo que leva para rezar um Credo do que nós podemos entender em todos os nossos esforços da terra em muitos anos. Ocupar as potências da alma e pensar em fazê-las ficar quietas é um desatino.

E volto a dizer que, mesmo que não se perceba, não é de grande humildade, ainda que não com culpa. Com pena, sim, pois será trabalho perdido. E fica a alma com um desgostinho, como quem vai saltar e lhe seguram por trás, pois parece que já empregou a força e se vê sem efetuar o que com ela queria fazer. E no pouco avanço em que fica verá, quem quiser ver, esse pouquinho de falta de humildade de que falei. Porque isso tem de excelente essa virtude: não há obra que ela acompanhe que deixe a alma desgostosa.

Parece-me que me fiz entender. Talvez só para mim. Abra o Senhor os olhos dos que lerem com a experiência, pois — por pouca que seja — logo entenderão.

6. Por muitos anos eu lia muitas coisas e não entendia nada delas. E por muito tempo, embora me desse Deus a experiência, não sabia dizer uma palavra para explicá-la. E não me custou isso pouco trabalho. Quando Sua Majestade quer, em um instante ensina tudo, de modo que eu me espanto. Uma coisa posso dizer de verdade: mesmo falando com muitas pessoas espirituais que me queriam fazer entender o que o Senhor me dava, para que eu soubesse explicar, era tanta minha lentidão que não aproveitava nem pouco nem muito. Ou queria o Senhor, como Sua Majestade foi sempre o meu mestre — seja bendito para sempre porque grande embaraço é poder dizer isso com verdade —, que eu não tivesse ninguém a agradecer. E sem querer nem mesmo pedir, porque nisso não fui nada curiosa — e teria sido virtude sê-lo —, mas fui-o em outras vaidades, dava-me Deus num instante entender com toda a clareza para saber explicar. De modo que se espantavam, e eu mais do que meus confessores, porque conhecia melhor minha incapacidade. Isso aconteceu há pouco e, assim, o que o Senhor não me mostrou, eu não procuro, a não ser o que se refere à minha consciência.

7. Torno outra vez a avisar que é muito importante não elevar o espírito se o Senhor não o elevar. Que coisa é, entende-se logo. Em especial para mulheres é pior, pois poderá o demônio causar alguma ilusão. Ainda que eu tenha certeza de que não consente o Senhor que se prejudique a quem com humildade procura se aproximar dele. Antes tirará mais proveito e ganho onde o demônio pensar que o fará perder.

Por ser esse caminho o mais usado pelos iniciantes e serem muito importantes os avisos que dei, me estendi tanto. E terão isso escrito em outros lugares muito melhor, eu confesso, e é com confusão e vergonha que escrevi, ainda que não tanta quanto deveria ter. Seja o Senhor bendito por tudo que a uma como eu quer e consente que fale de coisas suas, tais e tão elevadas.

CAPÍTULO 13

PROSSEGUE NESSE PRIMEIRO ESTADO E AVISA SOBRE ALGUMAS TENTAÇÕES QUE O DEMÔNIO COSTUMA PÔR ALGUMAS VEZES. DÁ CONSELHO PARA ELAS. É MUITO PROVEITOSO

1. Ocorreu-me dizer algumas tentações que vi haver no princípio — e algumas eu tive — e dar alguns avisos sobre coisas que me parecem necessárias. Pois bem, procure no princípio andar com alegria e liberdade. Porque há algumas pessoas que parece que se lhes há de ir embora a devoção se se descuidarem um pouco. É bom andar com medo de si, para não confiar nada em se pôr em ocasião em que se costuma ofender a Deus. Isso é muito necessário, até estarmos inteiros na virtude. E não há muitos que possam estar tanto que, em ocasiões propícias à sua natureza, se possam descuidar. Pois sempre, enquanto vivemos, até por humildade, é bom conhecer nossa miserável natureza. Mas há muitas coisas em que se aceita, como disse, ter recreação. Até para tornar a oração mais forte. Em tudo isso é preciso discernimento.

2. Ter grande confiança, porque convém muito não apoucar os desejos, mas sim crer em Deus. Pois, se nos esforçamos, pouco a pouco, ainda que não seja logo, poderemos chegar ao que muitos santos, com seu favor, chegaram. Porque se eles nunca se decidissem a desejá-lo e, pouco a pouco, a pôr mãos à obra, não teriam subido a tão alto estado. Ama Sua Majestade e é amigo de almas cheias de coragem, quando vão com humildade e nenhuma confiança em si. E não vi nenhuma dessas que fique embaixo no caminho, nem nenhuma alma covarde — com amparo de humildade — que em muitos anos ande o que essas outras em muito poucos. Espanta-me o muito que faz nesse caminho animar-se a grandes coisas. Ainda que depois não tenha forças, a alma dá um voo e chega a muito. Ainda que — como uma avezinha que tem má plumagem — canse e pare.

3. Em outros tempos, tinha diante de mim muitas vezes o que diz São Paulo, que tudo se pode em Deus.1 Em mim eu bem sabia que não podia nada. Isso me valeu. E o que diz Santo Agostinho: "Dá-me Senhor o que me mandas, e manda o que quiseres".2 Pensava muitas vezes que não tinha perdido nada são Pedro ao se atirar no mar, ainda que depois tenha tido medo.3

Essas primeiras determinações são uma grande coisa, ainda que, nesse primeiro estado, seja mais necessário avançar detendo-se, e amarrados ao discernimento e parecer de um mestre. Mas tem que ver que seja mestre tal que não lhes ensine a ser sapos, nem se contente em ensinar a alma a só caçar lagartixas. Sempre a humildade à frente para saber que não hão de vir essas forças das nossas.

4. Mas é preciso entender como há de ser essa humildade. Porque creio que o demônio faz muito dano para não ir muito adiante gente que tem oração fazendo-lhes entender mal a humildade. Fazendo com que nos pareça soberba ter grandes desejos e querer imitar os santos e desejar ser mártires. Em seguida nos diz ou faz entender que as coisas dos santos são para admirar, mas não para fazer, nós que somos pecadores. Isso eu também digo, mas temos que ver o que é para se espantar e o que é para imitar. Porque não seria bom se uma pessoa magra e enferma se pusesse em muitos jejuns e penitências ásperas indo para um deserto onde nem conseguisse dormir, nem tivesse o que comer, ou coisas semelhantes. Mas seria bom pensar que podemos nos esforçar, com o favor de Deus, para ter um grande desprezo pelo mundo, um não estimar as honras, um não estar preso à riqueza. Pois temos um coração tão mesquinho, que parece que nos vai faltar o chão por querermos nos descuidar um pouco do corpo e dar a ele espírito. Logo, parece que ajuda o recolhimento manter muito bem o que é necessário, porque as preocupações inquietam a oração. Por isso me entristece que tenhamos tão pouca confiança em Deus e tanto amor-próprio que nos inquiete essa preocupação. E, assim, onde está tão pouco desenvolvido o espírito desse jeito, umas ninharias nos dão tão grande trabalho como a outros, coisas grandes e de grande importância. E em nossa mente nos julgamos espirituais!

5. Parece-me agora essa maneira de caminhar um querer combinar corpo e alma para não perder aqui o descanso e gozar lá de Deus. E assim será, se se anda na justiça e prosseguimos assíduos na virtude, mas é passo de galinha. Nunca com isso se chegará à liberdade de espírito. É uma maneira de proceder muito boa, parece-me, para o estado dos casados, que hão de ir conforme sua vocação. Mas para outro estado, de jeito nenhum quero essa maneira de avançar, nem me farão acreditar que é boa, porque eu a provei e estaria assim para sempre se o Senhor, por sua bondade, não me mostrasse outro atalho.

6. Ainda que nisso de desejos eu sempre tenha tido grandes. Mas procurava isso que disse: ter oração, mas viver a meu prazer. Acredito que, se tivesse tido quem me pusesse a voar, me teria aplicado mais para que esses desejos virassem obra. Mas há — por nossos pecados — tão poucos mestres, tão contados, que não sejam excessivamente cautelosos neste caso, que creio que é grande causa para que os que começam não avancem mais depressa a grande perfeição. Porque o Senhor nunca falha, nem é culpa d'Ele. Nós somos os faltosos e miseráveis.

7. Também se podem imitar os santos em procurar a solidão e o silêncio e outras muitas virtudes, pois não matarão esses nossos corpos negros, que querem tudo tão arranjado para si que desconcertam a alma. E o demônio ajuda muito a tornar-lhes inábeis quando vê um pouco de temor. Não precisa de mais para nos fazer pensar que tudo nos vai matar e prejudicar a saúde. Até ter lágrimas nos faz ter medo de ficarmos cegos. Eu passei por isso, e por isso sei. E não sei eu que melhor visão e saúde podemos desejar do que perdê-las por essa causa.

Como sou muito doente, até me decidir a não fazer caso do corpo nem da saúde, sempre estive amarrada, sem valer nada. E agora faço bem pouco, mas como quis Deus que eu entendesse esse ardil do demônio, quando ele me punha diante dos olhos perder a saúde, dizia eu: "não é grande coisa que eu morra"; se o descanso: "já não preciso de descanso, mas de cruz", e assim em outras coisas. Vi claramente que em muitas, muitas coisas, ainda que eu seja de fato bastante doente, era tentação do demônio ou frouxidão minha. Pois, desde que não estou mais tão cuidada e mimada, tenho muito mais saúde. Assim, é muito importante no início de começar oração não apavorar os pensamentos, e creiam-me, porque sei por experiência. E para que aprendessem com meu exemplo, também poderia ser útil falar dessas minhas faltas.

8. Outra tentação é, em seguida, muito comum. É desejar que todos sejam muito espirituais quando se começa a provar o sossego e o ganho que isso é. Desejá-lo não é mau. Tentá-lo poderia não ser bom, se não houver muito discernimento e dissimulação para não se fazer de maneira que pareça que ensinam. Porque quem tiver de fazer algum avanço nesse caso é preciso que tenha as virtudes muito fortes para não causar tentação nos outros. Aconteceu comigo — e por isso sei — quando, como disse, procurava fazer com que outros tivessem oração. Pois como, por uma parte, me viam falar grandes coisas sobre o imenso bem que era ter oração, e, por outra parte, me viam com grande pobreza de virtudes, ter eu oração fazia com que ficassem tentadas e desatinadas. E com muita razão, pois depois me vieram dizer. Porque não sabiam como se podia conciliar uma coisa com a outra. E a causa era não considerarem mau o que, em si, o era, por ver que eu fazia algumas vezes, já que parecia haver algo bom em mim.

9. E isso faz o demônio, pois parece se aproveitar das virtudes boas que temos para autorizar no que puder o mal que pretende. Pois por pouco que seja, quando é em uma comunidade, deve ganhar muito, quanto mais porque o que eu fazia de mau era muito. E assim em vários anos só três4 se aproveitaram do que eu lhes dizia, e depois que o Senhor já havia me dado mais força na virtude, aproveitaram em dois ou três anos muitas, como direi depois.

E sem isso há outro grande inconveniente, que é perder a alma. Porque o principal que temos que procurar no princípio é só ter cuidado de si, sozinha, e fazer de conta que não há na terra nada a não ser Deus e ela e isso é o que convém muito.

10. Dá outra tentação, e todas vão com um zelo de virtude que é preciso entender e ir com cuidado: tristeza pelos pecados e faltas que veem nos outros. O demônio convence que é só a tristeza de querer que não ofendam a Deus e por causar-lhe pesar por sua honra e logo quererem remediar isso. Inquieta isso tanto que impede a oração. E o maior dano é pensar que é virtude e perfeição e grande zelo de Deus. Deixo de lado as preocupações que dão os pecados públicos — se os tiver por costume — de uma congregação, ou danos à Igreja dessas heresias, onde vemos se perderem tantas almas, pois esta preocupação é muito boa e, como é boa, não inquieta.

Então o seguro para uma alma que tiver oração será descuidar-se de tudo e de todos e só ter conta consigo e com contentar a Deus. Isso convém muitíssimo, porque se tivesse que dizer os erros que vi acontecer confiando na boa intenção! Procuremos então sempre olhar as virtudes e coisas boas que virmos nos outros e tapar os defeitos deles com nossos grandes pecados. É uma maneira de agir que, ainda que não se faça logo com perfeição, vem a ganhar uma grande virtude que é considerar todos como melhores do que nós. E começa-se a ganhar por aqui, com o favor de Deus que é necessário em tudo — e quando falta são inúteis todos os esforços —, e suplicar-lhe que nos dê essa virtude. Porque, uma vez que fizermos esses esforços, Ele não falta para ninguém.

11. Atentem também para esse aviso os que raciocinam muito com o entendimento, tirando muitas coisas de uma coisa e muitos conceitos. Porque aos que não podem trabalhar com ela — como eu — não é preciso avisar, a não ser para que tenham paciência até que o Senhor lhes dê com que se ocupar. E luz, pois eles podem pouco por si, já que mais lhes atrapalha a inteligência do que ajuda.

Voltando então aos que raciocinam, digo que não passem todo seu tempo nisso. Porque ainda que seja muito meritório, não lhes ocorre — como é uma oração saborosa — que não haverá domingo nem período que não seja de trabalho. Logo lhes parece perdido o tempo e tenho eu por muito bem ganha essa perda. Mas, como disse, imaginem-se diante de Cristo e, sem cansaço da inteligência, fiquem falando e se deliciando com ele, sem se cansar em compor razões, a não ser apresentar necessidades e a razão que Ele teria para não nos suportar ali. Uma coisa em um tempo, outra em outro, para que não se canse a alma de comer sempre a mesma iguaria. Essas são muito gostosas e proveitosas. Se o paladar se acostuma a comê-las, trazem consigo grande sustento para a alma e muito lucro.

12. Quero me estender mais, porque essas coisas de oração todas são difíceis e, se não se acha um mestre, muito ruins de entender. E isso faz com que, ainda que quisesse resumir, e bastaria para a inteligência boa de quem me mandou escrever essas coisas de oração só tocar nelas, minha inabilidade não dê lugar a dizer em poucas palavras uma coisa que tanto importa explicar bem. Porque — como eu passei por tanta coisa — tenho pena dos que começam só com os livros, pois é uma coisa estranha quão diferentemente, depois de experimentado, se vê.

13. Então, voltando ao que dizia, ponhamo-nos a pensar num passo da Paixão, digamos o de quando estava o Senhor na coluna. Vai a inteligência procurando as causas que ali dá a entender, as dores grandes e o sofrimento que Sua Majestade teria naquela solidão e muitas outras coisas que, se a inteligência for trabalhadora, poderá tirar daqui, ou se for letrado. É o modo de oração em que hão de começar, e de avançar e de acabar todos. E é muito excelente e seguro caminho, até que o Senhor os leve a outras coisas sobrenaturais.

Digo "todos" porque há muitas almas que aproveitam mais outras meditações do que a sagrada Paixão. Pois assim como há muitas moradas no céu, há muitos caminhos. Algumas pessoas tiram muito proveito de se considerar no inferno e outras, no céu — e se afligem de pensar no inferno —, outras, na morte. Algumas, se forem ternas de coração, desanimam muito de pensar sempre na Paixão e se deleitam e tiram proveito em contemplar o poder e a grandeza de Deus nas criaturas e no amor que teve por nós e que se manifesta em todas as coisas. E é uma admirável maneira de proceder, não abandonando sempre a Paixão e vida de Cristo, que é de onde nos veio e vem todo bem.

14. Precisa de conselho o que começa para ver o que aproveita mais. Para isso é muito necessário o mestre, se for experiente. Porque, se não for, pode errar muito e levar uma alma sem entendê-la nem deixá-la entender a si mesma. Porque como sabe que é grande mérito estar submetida a um mestre, ela não ousa sair do que ele lhe manda.

Topei com algumas almas encurraladas e aflitas, por não ter experiência quem as ensinava, que me deram pena. E alguma que já não sabia o que fazer de si, porque, não entendendo os mestres o espírito, afligem a alma e o corpo e estorvam o aproveitamento. Uma conversou comigo dizendo que o mestre a mantinha atada havia oito anos de maneira que não a deixava sair do conhecimento próprio. E o Senhor já a tinha em oração de quietude e, assim, passava muito sofrimento.

15. E ainda que isso de conhecimento próprio nunca se deve deixar. Nem há alma, nesse caminho, tão gigante que não tenha necessidade, muitas vezes, de voltar a ser criança e mamar. E jamais se esqueça disso, talvez eu diga mais vezes, porque é muito importante. Porque não há estado de oração tão elevado que muitas vezes não seja necessário voltar ao princípio. E isto dos pecados e do conhecimento próprio é o pão com que se devem comer todas as iguarias, por mais delicadas que sejam, nesse caminho de oração. E sem este pão não se poderiam sustentar. Mas há de se comer com medida, pois, depois que uma alma se vê já entregue e percebe claramente que não tem nenhuma coisa boa por si, e se envergonha diante de tão grande Rei, e vê o pouco que lhe paga pelo muito que lhe deve, que necessidade há de gastar tempo aqui? Devemos ir para outras coisas que o Senhor põe diante de nós. E não há razão para deixá-las, pois Sua Majestade sabe melhor que nós o que nos convém comer.

16. Assim, é muito importante ser o mestre esclarecido — digo, com bom entendimento — e que tenha experiência. Se junto com isso tiver estudo, será um ótimo negócio. Mas se não se puderem achar essas três coisas juntas, as duas primeiras importam mais, porque letrados se podem procurar para comunicar-se com eles quando houver necessidade.

Digo que no princípio, se não têm oração, têm pouco proveito as letras. Não digo que não conversem com letrados, porque espírito que não tenha começado na verdade eu quereria mais que ficasse sem oração. E é grande coisa a erudição, porque essa nos ensina, aos que sabemos pouco, e nos dão luz, e, aproximados das verdades da Sagrada Escritura, fazemos o que devemos. De devoções bobas Deus nos livre.

17. Quero me explicar mais, porque acho que me meto em muitas coisas. Sempre tive esse defeito de não saber me fazer entender — como já disse — a não ser à custa de muitas palavras. Começa uma monja a ter oração. Se um simplório a dirige e encasqueta, fará com que ela ache melhor obedecer a ele do que a seu superior. E sem malícia sua, pensando que acerta. Porque se não é religioso, parecerá a ele que é assim. E se é mulher casada, dirá a ela que é melhor, mesmo quando tem que pensar em sua casa, ter oração, ainda que desagrade seu marido. De forma que não sabe ordenar o tempo nem as coisas para que andem conforme a verdade. Por faltar-lhe a luz, não a dá aos outros, ainda que queira.

E mesmo que para isso pareça não ser necessário ter estudo, minha opinião sempre foi, e será, que qualquer cristão procure conversar com quem o tenha, se puder, e quanto mais, melhor. E os que andam no caminho de oração têm maior necessidade disso, e quanto mais espirituais forem, mais necessidade.

18. E não se engane dizendo que letrados sem oração são para quem não tem oração. Eu conversei com muitos, porque de uns anos para cá busquei isso com maior necessidade, e sempre fui amiga deles, pois, ainda que alguns não tenham experiência, não têm aversão ao espírito nem o ignoram. Porque na Sagrada Escritura de que tratam sempre encontram as verdades do bom espírito. Tenho para mim que uma pessoa de oração que converse com letrados, se ela não quiser se enganar, não a enganará o demônio com ilusões. Porque creio que os demônios temem muito as letras humildes e virtuosas e sabem que serão descobertos e sairão perdendo.

19. Disse isso porque há opiniões de que não são os letrados para gente de oração, se não tiverem espírito. Já disse que é preciso um mestre espiritual. Mas, se esse não é letrado, é um grande inconveniente. E será de muita ajuda conversar com eles, se forem virtuosos. Ainda que não tenham espírito serão de grande proveito para mim. Deus os fará saber o que têm que ensinar e até os tornará espirituais, para que nos sejam de maior proveito. E isso eu não digo sem ter provado e sem ter acontecido comigo com mais de dois.

Digo que, para entregar-se uma alma por inteiro a ficar sujeita a um só mestre, erra muito em não procurar um que seja assim, se for religioso, uma vez que deve submeter-se a seu prelado. Pois talvez faltem a esse todas as três coisas — o que não será pequena cruz — sem que ele, por sua vontade, tenha submetido seu entendimento a alguém que não a tem bom. Ao menos eu não consegui me convencer a isso, nem me parece que convenha. Então, se é secular, louve a Deus, pois pode escolher a quem há de estar sujeito e não perca essa virtuosa liberdade. Antes fique sem nenhum mestre até encontrá-lo, pois o Senhor o dará, desde que tudo esteja baseado na humildade e com desejo de acertar. Eu o louvo muito, e as mulheres e os que não sabem letras lhe devíamos sempre dar infinitas graças por haver quem, com tanto trabalho, alcançou a verdade que os ignorantes ignoram.

20. Espanta-me, muitas vezes, nos letrados, os religiosos especialmente, o trabalho com que ganharam o que eu, sem nenhum além de perguntar a eles, aproveitei. E há pessoas que não querem se aproveitar disso! Não o queira Deus! Vejo-os sujeitos aos trabalhos da vida religiosa, que são grandes, com penitência, com comer mal, submetidos à obediência — que algumas vezes é para mim grande dificuldade, com certeza —, com isso, com dormir mal, só trabalho, só cruz. Parece-me que seria um grande mal que tanto bem alguém, por sua própria culpa, perca. E pode ser que pensemos, alguns, que estamos livres desse trabalho e nos dão já guisado — como dizem — e vivemos à vontade, que, por ter um pouco mais de oração, levamos vantagem sobre tantos trabalhos.

21. Bendito sejais Vós, Senhor, que tão inábil e sem proveito me fizestes! Muito mais vos louvo, porque despertais a tantos que nos despertem. Teria que ser muito contínua nossa oração por esses que nos dão luz. O que seríamos sem eles, entre tão grandes tempestades como agora tem a Igreja? Se houve alguns ruins, mais resplandecerão os bons. Queira o Senhor mantê-los em sua mão e ajude-os para que nos ajudem, amém.

22. Saí muito do propósito do que comecei a dizer. Mas tudo vem ao caso para os que começam, que comecem um caminho tão elevado de maneira a ir pelo verdadeiro caminho.

Então, voltando ao que dizia sobre pensar em Cristo na coluna, é bom meditar um pouco e pensar nas penas que teve ali, e por que as teve, e quem é o que as teve, e o amor com que passou por elas. Mas que não se canse sempre andando em busca disso. Mas que esteja ali com ele, calado o entendimento. Se puder, faça-o ver que o vê, e o acompanhe e fale e peça e se humilhe e se delicie com Ele, e lembre-se de que não merecia estar ali. Quando conseguir fazer isso, ainda que seja no princípio de começar oração, tirará grande proveito. E traz grandes proveitos essa forma de oração. Ao menos é o que achou minha alma.

Não sei se acerto ao dizê-lo, o senhor verá. Queira Deus que eu acerte em alegrá-lo sempre, amém.

CAPÍTULO 14

COMEÇA A EXPLICAR O SEGUNDO GRAU DE ORAÇÃO, QUE JÁ É DAR O SENHOR À ALMA SENTIR GOSTOS MAIS PARTICULARES. EXPLICA-O PARA FAZER ENTENDER COMO JÁ SÃO SOBRENATURAIS. É MUITO DIGNO DE NOTA

1. Então já ficou dito o trabalho com que se rega esse jardim, e com quanta força dos braços, tirando água do poço. Falemos agora do segundo modo de tirar a água que o Senhor do jardim ordenou, para que com o engenho de uma roda e canais tire o jardineiro mais água com menos trabalho e possa descansar sem estar continuamente trabalhando. Então, desse modo, aplicado à oração que chamam de quietude, é que agora quero tratar.

2. Aí começa a se recolher a alma. Já toca aí alguma coisa sobrenatural, porque de jeito nenhum ela pode ganhar aquilo por esforços que faça. É verdade que parece que por algum tempo se cansou a mover a roda e trabalhar com o entendimento e se encheram os canais. Mas neste caso a água está mais no alto e assim se trabalha muito menos do que tirando-a do poço. Digo que está mais perto a água porque a graça se dá mais claramente a conhecer à alma. Trata-se de recolherem-se as potências da alma dentro de si para gozar daquela alegria com mais gosto. Mas não se perdem, nem dormem. Só a vontade se ocupa, de um modo que — sem saber como — se cativa. Só dá consentimento para que a encarcere Deus, como quem bem sabe ser cativo de quem ama. Oh, Jesus e Senhor meu, quanto nos vale aqui vosso amor! Porque esse mantém o nosso tão atado que não deixa liberdade para amar, naquele momento, a outra coisa senão a Vós.

3. As outras duas potências ajudam a vontade para que se vá tornando hábil para gozar de tanto bem. Embora, às vezes, mesmo estando unida a vontade, acontece de atrapalharem muito. Mas então não faça caso delas. Fique em seu gozo e em sua quietude. Porque se quiser recolhê-las, todas se perderão, pois são, então, como pombas que não se contentam com a ração que o dono do pombal lhes dá sem que elas tenham trabalho, e vão procurar comida em outro lugar. E acham tão pouco que voltam. E assim vão e vêm, para ver se a vontade lhes dá um pouco daquilo de que goza. Se o Senhor quer, joga-lhes ração e elas param. E, se não, voltam a procurar. E devem pensar que trazem proveito à vontade. E, às vezes, querendo a memória ou a imaginação representar para ela o que ela goza, lhe causarão dano. Então tenha cuidado para lidar com elas como direi.

4. Bem, tudo isso que se passa aqui é com enorme consolo e com tão pouco trabalho, que a oração não cansa, ainda que dure muito tempo. Porque o entendimento age aqui muito passo a passo. E tira muito, muito mais água do que tirava do poço. As lágrimas que Deus dá aqui já são com gozo. Ainda que se sintam, não são buscadas.

5. Esta água de grandes bens e dádivas que o Senhor dá aí faz crescer as virtudes muito mais, sem comparação, do que na oração passada. Porque a alma já se vai erguendo de sua miséria e já se lhe dá um pouco de noção dos prazeres da glória. Isso, creio, faz com que ela cresça mais e chegue mais perto da verdadeira virtude de onde vêm todas as virtudes, que é Deus. Porque Sua Majestade começa a se comunicar a essa alma e quer que sinta como se comunica.

Começa ela logo, chegando a esse ponto, a perder a cobiça pelas coisas e as poucas graças daqui, porque vê claramente que um momento daquele gozo não se pode ter aqui. E não há riquezas, nem propriedades, nem honras, nem deleites que bastem para dar o que um piscar de olhos dessa satisfação dá, porque é verdadeira e se vê que nos satisfaz. Porque os prazeres daqui, me parece uma maravilha que percebamos onde está essa satisfação. Porque nunca falta um "sim e não". Aí tudo é "sim", durante aquele tempo. O "não" vem depois, por ver que se acabou e não pode voltar a recuperar, nem sabe como. Porque se se faz em pedaços graças a penitências e oração e todas as outras coisas, se o Senhor não quiser dar, pouco adianta. Quer Deus, por sua grandeza, que essa alma entenda que já não precisa enviar mensageiros, mas sim falar ela mesma com Ele, e não em voz alta porque já está tão perto dele que apenas movendo os lábios a entende.

6. Parece impertinente dizer isso, já que sabemos que sempre nos entende e está conosco. Quanto a isso não há dúvida de que é assim. Mas esse Imperador e Senhor nosso quer que saibamos, nesse ponto, que nos entende e o que causa a sua presença. E que saibamos que quer particularmente começar a operar na alma, na grande satisfação interior e exterior que lhe dá e na diferença que — como já disse — há entre esse deleite e satisfação e os daqui, pois parece que se enche o vazio que, por nossos pecados, tínhamos feito na alma.

É no mais íntimo dela, essa satisfação. E não sabe por onde nem como veio a ela. Nem, muitas vezes, sabe o que fazer, nem o que querer, nem o que pedir. Tudo, parece, acha junto e não sabe o que achou, e nem eu mesma sei como explicar, porque para muitas coisas seria necessário erudição. Porque aqui iria bem explicar o que é auxílio geral ou particular, pois há muitos que o ignoram e com este auxílio particular quer o Senhor que a alma quase lhe veja pela vista dos olhos, como dizem. E também para muitas coisas que ficarão erradas seria necessária a erudição. Mas como vão ver o manuscrito pessoas que saberão se houver erro, fico despreocupada. Porque assim de erudição como de espírito sei que posso ficar, indo às mãos de quem vai, pois entenderão e cortarão o que for ruim.

7. Então, queria fazer entender isso porque são começos. E quando o Senhor começa a fazer essas dádivas, a própria alma não as entende, nem sabe o que fazer de si. Porque se a levar Deus pelo caminho do temor, como fez comigo, será com grande trabalho, se não houver quem a entenda. E é para ela um grande gosto ver-se retratada, pois então vê claramente aonde vai por ali. E é um grande bem saber o que deve fazer para ir progredindo em qualquer estado desses. Porque eu passei por muitas coisas e perdi muito tempo por não saber o que fazer. E tenho muita pena das almas que se veem sozinhas quando chegam a esse ponto. Porque ainda que eu tenha lido muitos livros espirituais, mesmo que toquem no que vem ao caso, explicam muito pouco. E se não for uma alma muito experimentada, mesmo explicando muito, terá muito o que fazer para entender.

8. Quereria muito que o Senhor me favorecesse para expor os efeitos que produzem na alma essas coisas que já começam a ser sobrenaturais, para que se saiba pelos efeitos quando é o espírito de Deus. Digo, saiba conforme o que aqui se pode saber, ainda que seja sempre bom que ande com temor e recato. Pois, ainda que seja de Deus, algumas vezes o demônio pode se transfigurar em anjo de luz e, se não for uma alma muito experimentada, não perceberá. E tão exercitada que, para perceber isso, é preciso chegar ao cume da oração.

Ajuda-me pouco o pouco tempo que tenho — e assim é preciso Sua Majestade fazê-lo — porque devo caminhar com a comunidade e com outras muitas ocupações, uma vez que estou numa casa que está começando agora,1 como se verá depois. E, assim, é sem ter muito tempo para sentar que escrevo, mas aos pouquinhos. E queria ter tempo, porque quando o Senhor dá espírito, expõe-se com facilidade e melhor. Parece como quem tem um modelo na frente, de onde copia o trabalho. Mas se falta o espírito, não se harmoniza essa linguagem mais do que se fosse uma algaravia, por assim dizer, ainda que tenham se passado muitos anos e oração. E assim me parece uma enorme vantagem, quando escrevo, estar nele. Porque vejo claramente que não sou eu quem diz, que nem ordeno com a inteligência nem sei depois como acertei em dizê-lo. Isso me acontece muitas vezes.

9. Agora voltemos à nossa horta e jardim e vejamos como começam essas árvores a se fecundarem para florescer e dar, depois, fruto, e as flores e os cravos a mesma coisa para dar aroma. Agrada-me essa comparação porque muitas vezes no meu início (e queira o Senhor que eu tenha agora começado a servir à Sua Majestade. Digo início do que direi daqui para a frente sobre a minha vida) era um grande deleite para mim considerar ser a minha alma um jardim e que o Senhor passeava nele. Suplicava-lhe que aumentasse o aroma das florzinhas de virtude que começavam, pelo que parecia, a querer brotar. E que fosse para sua glória e as sustentasse — pois eu não queria nada para mim — e cortasse as que quisesse, pois já sabia que iam brotar outras melhores. Digo "cortar", porque vêm momentos na alma em que não há memória desse jardim. Tudo parece estar seco e parece que não haverá água para sustentá-lo. Nem parece que houve jamais na alma alguma coisa de virtude. Passa-se muito trabalho, porque quer o Senhor que pareça ao pobre jardineiro que tudo o que ele fez para sustentá-lo e regá-lo está perdido. É então o verdadeiro capinar e arrancar pela raiz as ervinhas, ainda que sejam pequenas, que ficaram ruins, sabendo que não há esforço que baste se Deus nos tirar a água da graça. E ter em pouca conta nosso nada, e até menos que nada. Ganha-se aqui muita humildade. Voltam de novo a crescer as flores.

10. Oh, Senhor meu e Bem meu! Não posso dizer isso sem lágrimas e grande prazer de minha alma! Que queirais Vós, Senhor, ficar assim conosco, e estais no Sacramento, que com toda verdade se pode crer, porque é, e com grande verdade podemos fazer essa comparação, e se não for por culpa nossa, podemos gozar convosco e vos alegrais conosco, pois dizeis ser vosso deleite estar com os filhos dos homens.2

Oh, Senhor meu, o que é isso? Sempre que ouço essa palavra me dá grande consolo, mesmo quando eu estava muito perdida. É possível, Senhor, que haja alma que chegue a que Vós façais dádivas semelhantes e presentes, e chegue a saber que vos alegrais com ela, que vos torne a ofender depois de tantos favores e de tão grandes mostras do amor que tendes por ela, de que não se pode duvidar porque se vê claramente a obra? Sim, há, com certeza, e não uma vez, mas muitas, que sou eu. E queira vossa bondade, Senhor, que seja só eu a ingrata e a que tenha feito tão grande maldade e tenha tido tão excessiva ingratidão. Porque até dela vossa infinita bondade já tirou algum bem. E quanto maior o mal, mais resplandece o bem de vossas misericórdias. E com quanta razão posso eu para sempre cantá-las!3

11. Suplico-vos, Deus meu, que seja assim e que eu as cante sem fim, já que houvestes por bem fazê-las tão enormes comigo que espantam aos que as veem e me tira de mim muitas vezes para louvar-vos, pois estando em mim, sem Vós, não poderia, Senhor meu, nada, a não ser voltar a ser cortadas essas flores desse jardim, de maneira que essa terra miserável voltasse a servir de fossa como antes. Não o permitais, Senhor, nem queirais que se perca uma alma que com tantos trabalhos comprastes e tantas vezes de novo voltastes a resgatar e tirar dos dentes do dragão assustador.

12. O senhor me perdoe, pois me desvio do assunto. E como falo a propósito de mim, não se espante, pois é como a alma toma o que se escreve, e, às vezes, faz bem de parar em louvores a Deus, quando se apresenta, escrevendo, o muito que lhe deve. E não creio que dará desgosto ao senhor porque entre nós dois, me parece, podemos cantar a mesma coisa, ainda que de maneiras diferentes, já que é muito mais o que eu devo a Deus, porque me perdoou mais, como sabe o senhor.

CAPÍTULO 15

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA E DÁ ALGUNS AVISOS DE COMO SE DEVE COMPORTAR NESSA ORAÇÃO DE QUIETUDE. TRATA DE COMO HÁ MUITAS ALMAS QUE CHEGAM A TER ESSA ORAÇÃO E POUCAS QUE PASSAM ADIANTE. SÃO MUITO NECESSÁRIAS E PROVEITOSAS AS COISAS DE QUE AQUI SE TRATA

1. Agora voltemos ao assunto. Essa quietude e recolhimento da alma é uma coisa que se sente muito na satisfação e paz que nela se apresenta com enorme alegria e sossego das potências e muito suave deleite. Parece-lhe — já que não chegou mais longe — que não sobra o que desejar e que de boa vontade diria com são Pedro que seria ali sua morada.1 Não ousa agitar-se nem sair do lugar, pois lhe parece que aquele bem vai lhe escapar das mãos. Nem respirar quereria, às vezes. Não entende a pobrezinha que, já que não pôde fazer nada para trazer a si aquele bem, menos ainda poderá fazer para interrompê-lo enquanto o Senhor não quiser.

Já falei que, nesse primeiro recolhimento e quietude, não estão ausentes as potências da alma. Mas ela está tão satisfeita com Deus que, enquanto aquilo durar, ainda que as potências se desbaratem, como a vontade está unida com Deus, não se perde a quietude e o sossego. Antes volta ela pouco a pouco a recolher o entendimento e a memória. Porque, mesmo que ela não esteja totalmente envolvida, está tão bem ocupada sem saber como, que — por mais esforço que elas façam — não podem tirar dela sua alegria e seu gozo. Antes, muito sem trabalho, se vai ajudando para que essa centelhinha de amor de Deus não se apague.

2. Queira Sua Majestade me dar graça para que eu faça entender bem isso, porque há muitas, muitas almas que chegam a esse estado e poucas as que passam adiante, e não sei quem tem a culpa. Com certeza não é culpa de Deus, pois já que Sua Majestade faz a dádiva de que se chegue a esse ponto, não creio que cessaria de fazer muitas mais a não ser por nossa culpa.

É muito importante que a alma que chega aqui conheça a dignidade grande em que está, e a grande dádiva que lhe fez o Senhor. E como, com boa razão, não havia de ser da terra. Porque parece que a bondade d'Ele já a faz vizinha do céu, se não ficar por culpa sua. E desventurada será se voltar atrás. Eu penso que será para ir para baixo — como eu ia, se a misericórdia do Senhor não me tivesse virado — porque, na maior parte das vezes, será por culpas graves, ao que me parece, e nem é possível deixar tão grande bem sem grande cegueira vinda de muito mal.

3. E assim peço eu, por amor do Senhor, às almas a quem Sua Majestade fez a tão grande dádiva de chegar a esse estado, que se conheçam e tenham-se em alta conta, numa humilde e santa presunção, para não voltar às panelas do Egito.2

E se por sua fraqueza e maldade e natureza ruim e miserável caírem — como eu fiz —, tenham sempre diante dos olhos o bem que perderam. E suspeitem e andem com temor, pois têm razão para temer, de que, se não voltarem à oração, irão de mal a pior. Esta eu chamo de verdadeira queda, a que repudia o caminho pelo qual ganhou tanto bem, e com essas almas falo. Não digo que não vão ofender a Deus e cair em pecados, ainda que fosse motivo para se guardar muito deles quem começou a receber essas dádivas, mas somos miseráveis. O que aconselho muito é que não deixe a oração, pois ali entenderá o que faz e ganhará arrependimento do Senhor e fortaleza para levantar-se. E acredite, acredite que, se se afastar dessa, corre, na minha opinião, perigo. Não sei se entendo do que falo, porque — como disse — julgo por mim.

4. É então essa oração uma centelhinha do seu verdadeiro amor que o Senhor começa a acender na alma. E quer que a alma vá entendendo que coisa é esse amor, com júbilo. Essa quietude e recolhimento e centelhinha, se for espírito de Deus e não prazer dado pelo demônio ou procurado por nós mesmos (ainda que, para quem tem experiência, seja impossível não saber logo que não é coisa que se possa obter. Mas essa nossa natureza é tão sôfrega de coisas saborosas que experimenta tudo. Fica, porém, muito fria bem rápido, porque, por muito que queira começar a fazer arder o fogo para atingir esse gosto, não parece que faz outra coisa a não ser jogar água para extingui-lo); então, essa centelhinha colocada por Deus, por pequena que seja, faz muito barulho. E se não a extingue por sua culpa, ela é que começa a acender o grande fogo que faz brotar de si chamas, como direi no lugar apropriado, do enorme amor de Deus que Sua Majestade faz que as almas perfeitas tenham.

5. Essa centelha é um sinal ou um penhor que Deus dá a essa alma, de que já a escolheu para grandes coisas, se ela se preparar para recebê-las. É um grande dom, muito maior do que eu poderia dizer. É uma grande pena para mim, porque — como digo — conheço muitas almas que chegam aqui, mas que passem daqui, como têm que passar, são tão poucas que me dá vergonha dizer. Não digo que haja poucas, pois deve haver muitas, pois por algum motivo nos sustenta Deus. Falo do que vi. Quereria muito aconselhá-las a prestar atenção em não esconder o talento, já que parece que Deus quer escolhê-las para proveito de muitas outras, especialmente nesses tempos em que são necessários amigos fortes de Deus para sustentar os fracos. E os que perceberem essa dádiva em si, considerem-se tais, se souberem responder com as leis que a boa amizade mesmo no mundo pede. E, se não, como já disse, temam e tenham medo para que não façam mal a si mesmos, e queira Deus que seja só a si mesmos!

6. O que deve fazer a alma nos períodos dessa quietude não é mais do que agir com suavidade e sem ruído. Chamo de "ruído" ficar buscando com o entendimento muitas palavras e considerações para dar graças por esse benefício e amontoar seus pecados e defeitos para ver que não o merece. Tudo isso se move aqui e o entendimento imagina e a memória se agita. E, com certeza, essas potências me cansam, às vezes, pois, mesmo tendo pouca memória, não consigo subjugá-la. A vontade, com sossego e delicadeza, entenda que não se negocia bem com Deus à força dos braços. Esses são como umas achas de lenha grandes postas sem cuidado de modo a abafar essa centelha, e saiba-o, e com humildade diga: Senhor, o que posso eu aqui? O que tem a ver a serva com o Senhor e a terra com o céu? Ou palavras de amor que ocorrem aqui. Muito apoiada em saber que é verdade o que diz e não faça caso do entendimento que é um importuno. E se a vontade quiser comunicar a ele aquilo de que goza ou se esforça para recolher o entendimento, pois muitas vezes se verá nessa união da vontade e nesse sossego, mas com o entendimento muito desbaratado, vale mais que o deixe, do que ir atrás dele. Mas a vontade, ia eu dizendo, fique gozando daquela dádiva, e recolhida como uma abelha sábia, porque, se nenhuma entrasse na colmeia, mas, levando umas às outras todas se fossem, mal se poderia fazer o mel.

7. Assim perderá muito a alma que não tiver cuidado com isso. Especialmente se a inteligência for aguçada, pois, quando começa a ordenar imagens e procurar razões em insignificâncias, se forem bem-compostas, achará que faz alguma coisa. A razão que se deve entender aqui é perceber com clareza que não há nenhuma para que Deus nos faça tão grande dádiva, a não ser sua bondade. E é ver que estamos tão perto e pedir a Sua Majestade dádivas e rogar-lhe por sua Igreja e pelos que se encomendaram a nós e pelas almas do purgatório, não com ruído de palavras, mas sim com o sentimento de desejar que nos ouça. É oração que abarca muito e alcança-se mais do que por muito refletir a inteligência. Desperte em si a vontade algumas razões para avivar esse amor, das quais a própria razão se utilizará ao ver-se tão melhorada, e faça alguns atos amorosos que fará por aquele a quem tanto deve, sem — como disse — admitir ruído da inteligência em procurar grandes coisas. Vêm mais ao caso aqui umas palhinhas postas com humildade, e serão menos do que palha se as pusermos nós mesmos, e a ajudarão a acender mais do que muita lenha de razões muito doutas, na nossa opinião, que no tempo que se leva para rezar um Credo a abafarão.

Isso é bom para os letrados que me mandam escrever, porque, pela bondade de Deus, todos chegam aqui e pode ser que se gaste o tempo em aplicar Escrituras. E ainda que não deixem de ser de muito proveito as letras, antes e depois, aqui, nesses momentos de oração, pouca necessidade há delas, na minha opinião, se não for para enfraquecer a vontade. Porque o entendimento fica, então, ao ver-se perto da luz, com enorme claridade. Até eu, mesmo sendo quem sou, pareço outra.

E é assim que me aconteceu, estando nessa quietude, mesmo não entendendo quase nada do que rezo em latim, especialmente do Saltério, não só entender o verso como se estivesse em espanhol, mas ir adiante e entender o que o espanhol queria dizer.

Deixemos de lado se tiverem que pregar ou ensinar, pois então é bom se valer daquele bem para ajudar os pobres de pouco saber como eu. Pois é uma grande coisa a caridade e este fazer progredir as almas sempre, indo com simplicidade por Deus.

8. Assim, nesses períodos de quietude, deixe-se descansar a alma com seu descanso. Fiquem as letras de lado. Tempo virá em que sejam proveitosas ao Senhor e as tenham em tão alta conta que por nenhum tesouro quereriam deixar de tê-las, só para servir a Sua Majestade, porque ajudam muito. Mas diante da Sabedoria infinita, creiam-me que vale mais um pouco de esforço de humildade e um ato dela do que toda a ciência do mundo. Aqui não há o que discutir, mas basta conhecer o que somos com franqueza, e com simplicidade apresentar-nos diante de Deus, que quer que a alma se faça boba — como na verdade ela é diante de sua presença —, já que Sua Majestade se humilha tanto que a tolera junto de si, sendo nós o que somos.

9. Também se move a inteligência a dar graças muito compostas. Mas a vontade, com sossego, com um não ousar erguer os olhos como o publicano,3 faz mais ação de graças do que o entendimento, ao transtornar a retórica, pode fazer.

Enfim, aqui não se deve deixar de todo a oração mental, nem algumas palavras, mesmo ditas em voz alta, se quiserem algumas vezes ou puderem, porque se a quietude for grande, mal se poderá falar a não ser com muito esforço.

10. Sente-se, me parece, quando é espírito de Deus ou procurado por nós, com o começo de devoção que dá Deus. Quando queremos, como já disse, passar nós mesmos a essa quietude da vontade, não faz efeito nenhum, acaba logo, deixa secura.

Se for do demônio, alma exercitada, parece-me, perceberá. Porque deixa inquietação e pouca humildade e pouco preparo para os efeitos que causa o que vem de Deus. Não deixa luz no entendimento nem firmeza na verdade. Pode fazer pouco dano ou nenhum, aí, se a alma endereçar seu deleite e a suavidade que sente ali, a Deus, e puser n'Ele seus pensamentos e desejos, como foi aconselhado. Não pode ganhar nada o demônio. Antes Deus permitirá que, com o próprio deleite que o demônio causa na alma, perca muito, porque esse ajudará a fazer com que a alma, como pensa que se trata de Deus, venha muitas vezes à oração com cobiça d'Ele. E se for uma alma humilde, e não curiosa nem interessada em deleites, ainda que sejam espirituais, mas amiga de cruz, fará pouco caso do gosto que o demônio dá, o que não poderá fazer se for espírito de Deus, porém, ao contrário, tê-lo em muito grande conta. Mas coisa que ponha o demônio, como ele é todo mentira, ao ver que a alma com o gosto e deleite se humilha (pois nisso há de importar muito, em todas as coisas de oração e gostos, procurar sair humilde), não voltará muitas vezes o demônio, vendo sua derrota.

11. Por isso, e por muitas outras coisas, eu avisei no primeiro modo de oração, na primeira água, que é grande negócio começar as almas oração começando a desprender-se de todo tipo de alegria e entrar determinadas só a ajudar Cristo a levar a cruz. Como bons cavaleiros que, sem soldo, querem servir a seu rei, pois o têm bem seguro. Os olhos no verdadeiro e eterno reino que pretendemos ganhar. É muito grande coisa trazer isso sempre diante dos olhos. Especialmente no começo, porque, depois, se vê tão claramente, que antes é preciso esquecer para poder viver, do que trazer na memória o pouco que dura tudo e como não é tudo nada e a ninharia que se vai considerar o descanso.

12. Parece que isso é uma coisa muito baixa, e assim é de verdade, que os que estão avançados em mais perfeição tomariam como afronta e entre si se envergonhariam se as pessoas pensassem que deixam os bens deste mundo porque vão acabar. Ao contrário, ainda que durassem para sempre, alegram-se em deixá-los por causa de Deus. E quanto mais perfeitos forem e quanto mais durarem mais se alegram em deixá-los. Aí, nesses, já cresceu o amor e é ele que opera. Mas para os que começam é coisa importantíssima — e não a considerem baixa, pois é grande bem que se ganha — e por isso eu aconselho tanto. Pois será necessário para eles, mesmo nos muito elevados na oração, alguns tempos em que os quer provar Deus e parece que Sua Majestade o deixa. Pois, como já disse — e não quereria que isso fosse esquecido —, nesta vida que vivemos a alma não cresce como o corpo, ainda que digamos que sim, e, de fato, cresça. Mas um menino, depois que cresce e deita um bom corpo e já tem corpo de homem, não volta a decrescer e ter um corpo pequeno. Aí o Senhor quer que sim, pelo que vi por mim, pois não sei por nenhum outro motivo. Deve ser para humilhar-nos, para nosso grande bem e para que não descuidemos enquanto estivermos neste desterro, pois aquele que estiver mais no alto mais deve temer e menos deve confiar em si.

Há vezes em que, para livrar-se de ofender a Deus, mesmo esses cuja vontade já está tão posta na de Deus que, para não fazer uma imperfeição, deixar-se-iam atormentar e passariam por mil mortes, para não cometer pecados — conforme se veem combatidos por tentações e perseguições —, precisam usar das primeiras armas da oração e voltar a pensar que tudo se acaba e que há céu e inferno e outras coisas desse tipo.

13. Voltando, então, ao que dizia, é um grande fundamento, para se livrar dos ardis que arma o demônio, começar com a determinação de levar caminho de cruz desde o princípio e não desejar alegrias, já que o próprio Senhor nos mostrou esse caminho de perfeição dizendo: "Toma tua cruz e segue-me". É o nosso modelo. Não tem o que temer quem, só para agradá-lo, seguir seus conselhos.

14. No aproveitamento que virem em si entenderão que não é o demônio, pois, ainda que voltem a cair, fica um sinal de que esteve aí o Senhor, que é levantar-se depressa, e estas coisas que agora direi. Quando é o espírito de Deus, não é preciso ficar rastreando coisas de onde tirar humildade e embaraço. Porque o próprio Senhor as dá, de maneira bem diferente da que nós podemos ganhar com nossas consideraçõezinhas, que não são nada em comparação com uma verdadeira humildade, com a luz que mostra aí o Senhor, que causa um embaraço que nos faz desfazer. Isto é uma coisa muito conhecida: o conhecimento que Deus dá para que conheçamos que nenhum bem temos por nós mesmos, e quanto maiores as dádivas, mais conhecemos. Dá um grande desejo de ir adiante na oração e não a deixar por nenhum infortúnio que venha a suceder. A tudo se oferece a alma. Uma segurança de que há de salvar-se com humildade e temor. Joga logo fora o temor servil da alma e põe o fiel em um temor muito mais maduro. Vê que começa um amor com Deus muito sem interesse seu. Deseja períodos de solidão para gozar mais daquele bem. Enfim, para não me cansar, é um princípio de todos os bens. Um estar já as flores numa situação que não lhes falta quase nada para brotar. E isso verá muito claramente a alma e de jeito nenhum, então, poderá se convencer de que não esteve Deus com ela, até que volte a se ver com quebras e imperfeições, pois então teme tudo. E é bom que tema, ainda que existam almas para as quais é muito mais proveitoso crer com certeza que é Deus, do que seriam todos os temores que se possam pôr nela. Porque, se for amorosa e agradecida, mais a faz voltar-se para Deus a memória da dádiva que Ele fez, do que todos os castigos do inferno que lhe mostrem. Ao menos à minha, mesmo tão ruim, isso acontecia.

15. Porque os sinais do bom espírito se irão dizendo, mas como a quem muito trabalho custa tirá-los a limpo, não digo agora aqui. Creio, com o favor de Deus, atinarei algo nisso. Porque, à parte a experiência, na qual aprendi muito, sei-o por alguns letrados muito letrados e pessoas muito santas, a quem é razoável dar crédito. E não andem as almas tão desanimadas, quando chegarem aqui pela bondade do Senhor, como andei eu.

CAPÍTULO 16

TRATA DO TERCEIRO GRAU DE ORAÇÃO E VAI EXPLICANDO COISAS MUITO ELEVADAS E O QUE PODE A ALMA QUE CHEGA AQUI E OS EFEITOS QUE PRODUZEM ESSAS DÁDIVAS TÃO GRANDES DO SENHOR. É MUITO PARA ELEVAR O ESPÍRITO EM LOUVORES A DEUS E PARA GRANDE CONSOLO DE QUEM CHEGAR AQUI

1. Vamos agora falar da terceira água com que se rega este jardim, que é água corrente de rio ou de fonte, com que se rega com muito menos trabalho, ainda que se tenha algum para encaminhar a água. Quer o Senhor aqui ajudar o jardineiro de uma maneira que é Ele, quase, o jardineiro e quem faz tudo. É um sono das potências, que nem se perdem de todo, nem sabem como operam. O gosto, a suavidade e o deleite é mais sem comparação do que o anterior. É que dá água até o pescoço dessa alma — água da graça — e já não pode ir em frente, nem sabe como, nem voltar atrás. Quereria gozar de enorme glória. É como alguém que está com a vela na mão, a quem falta pouco para morrer a morte que deseja: está gozando naquela agonia o maior deleite que se pode dizer. Não me parece que seja outra coisa senão um morrer quase de todo para todas as coisas do mundo e estar gozando de Deus. Não sei como dizer ou como explicar em outros termos, nem, então, sabe a alma o que fazer. Porque nem sabe se fala ou se cala. Nem se ri, nem se chora. É um glorioso desatino, uma celestial loucura onde se aprende a verdadeira sabedoria e é uma deleitosíssima maneira de a alma se regozijar.

2. E assim é que me deu o Senhor em abundância essa oração, creio, há cinco ou seis anos. Muitas vezes. E eu não a entendia nem saberia falar dela. E assim tinha decidido, tendo chegado a este ponto, dizer muito pouco ou nada. Bem percebia eu que não era união total de todas as potências e que era mais do que a passada, muito claramente. Mas eu confesso que não conseguia determinar nem entender essa diferença. Creio que, pela humildade que o senhor teve em querer se valer de uma parvoíce tão grande como a minha, me deu o Senhor hoje, acabando eu de comungar, essa oração, e sem poder eu ir em frente. E me expôs essas comparações e mostrou a maneira de dizer e o que há de fazer aqui a alma, que, com certeza, eu me espantei e entendi, aqui, em um instante. Muitas vezes ficava assim como desatinada e embriagada neste amor e jamais tinha conseguido entender como era. Bem sabia que era Deus, mas não conseguia entender como operava aqui. Porque de fato, de verdade, estão quase totalmente unidas as potências, mas não tão absorvidas que não operem. Gostei extremamente de ter entendido isso agora. Bendito seja o Senhor que me agradou assim!

3. Só têm habilidade, as potências, para ocupar-se todas com Deus. Parece que não ousa se mexer nenhuma nem as podemos mover, se com muito esforço quisermos nos desviar. E me parece que, mesmo assim, não se poderia então de todo fazer isso. Dizem-se aqui muitas palavras de louvor a Deus, sem coordenação, se o próprio Senhor não as coordenar. Pelo menos o entendimento não vale nada aqui. A alma quereria soltar a voz em louvores e fica que não cabe em si: um desassossego gostoso.

Já, já se abrem as flores, já começam a dar perfume. Aqui quereria a alma que todos a vissem e percebessem sua glória para louvor de Deus, e que a ajudassem, e dar-lhes parte de seu gozo, porque não aguenta regozijar-se tanto. Parece-me que é como a que diz o Evangelho que queria chamar ou chamava suas vizinhas.1 Isso, me parece, devia sentir o admirável espírito do profeta Davi, quando tangia e cantava com a harpa em louvor a Deus. Desse rei glorioso eu sou muito devota, e quereria que todos fossem, especialmente os que somos pecadores.

4. Oh, valha-me Deus! Como é uma alma quando está assim! Toda ela quereria transformar-se em línguas para louvar o Senhor. Diz mil desatinos santos, atinando sempre a contentar quem a mantém assim. Eu conheço uma pessoa2 que, mesmo não sendo poeta, lhe acontecia fazer de repente poemas muito sentidos explicando bem sua pena. Não feitos por sua inteligência, mas sim para usufruir mais a glória que uma tão saborosa pena lhe dava, queixava-se dela a seu Deus. Todo o seu corpo e alma quereriam se despedaçar para mostrar o gozo que com essa pena se sente. O que se poderia apresentar então de tormentos que não lhe fosse saboroso passar por seu Senhor? Vê claramente que não faziam nada os mártires por sua parte em passar tormentos, pois sabe bem a alma que vem de outra parte a fortaleza. Mas o que sentirá de voltar a ter juízo para viver no mundo e ter que tomar os cuidados e cumprir as obrigações dele?

Então não me parece que eu tenha feito elogio que não fique baixo nesse modo de gozo de que o Senhor quer que uma alma goze neste desterro. Bendito sejais para sempre, Senhor! Louvem-vos todas as coisas para sempre, Senhor! Queirais agora, Rei meu, suplico-vos eu, já que, quando escrevo isto, não estou fora dessa santa loucura celestial por vossa bondade e misericórdia — pois tão sem méritos meus me fazeis esta dádiva —, que, ou estejam todos com quem eu falar loucos pelo vosso amor, ou permitais que eu não fale com ninguém. Ou ordenai, Senhor, que já não seja da minha conta nenhuma coisa do mundo. Ou tirai-me dele. Já não pode, Deus meu, esta vossa serva suportar tantas aflições como as que lhe vêm de ver-se sem Vós. Se tem que viver, não quer descanso nessa vida nem se Vós o derdes. Quereria já esta alma ver-se livre. Comer mata-a. Dormir a angustia. Vê que se passa o tempo de sua vida em passá-la em regalos e que nada pode regalá-la fora de Vós. Parecer que vive contra sua natureza, uma vez que já não quereria viver em si, mas em Vós.

5. Oh, verdadeiro Senhor e glória minha! Que delgada e pesadíssima cruz tendes preparada para os que chegam a este estado! Delgada, porque é suave. Pesada porque há vezes em que não há paciência que a aguente, e não se quereria jamais se ver livre dela se não fosse para ver-se já convosco. Quando se lembra de que não vos serviu em nada e que vivendo poderia servir-vos, quereria carregar uma muito mais pesada e nunca, até o fim do mundo, morrer. Não conta nada seu descanso em troca de fazer-vos um pequeno serviço. Não sabe o que desejar. Ou melhor, entende bem que não deseja outra coisa senão a Vós.

6. Oh, meu filho, que é tão humilde que assim quer se chamar aquele a quem isso vai dirigido e me mandou escrever, sejam só para o senhor algumas coisas em que vir que saio dos limites. Porque não há razão que baste para eu não sair dela quando a tira o Senhor de mim. Nem creio que seja eu quem fala desde que, esta manhã, comunguei. Parece que sonho o que vejo e quereria ver apenas enfermos deste mal em que estou eu agora. Suplico ao senhor sejamos todos loucos por amor daquele que por nós foi chamado de louco.

Já que o senhor diz que gosta de mim, gostaria que me mostrasse dispondo-se para que Deus lhe faça essa dádiva. Porque vejo muito poucos que não veja com demasiado juízo para o que lhes compete. Pode ser que eu tenha mais do que todos, o senhor não me consinta isso, meu pai, pois também o é, sendo filho, já que é meu confessor a quem confiei minha alma. Tire-me do engano com a verdade, pois usam-se muito pouco essas verdades.

7. Queria que fizéssemos este acerto os cinco que no momento nos amamos em Cristo:3 que, assim como outros nestes tempos se juntam em segredo contra Sua Majestade e para ordenar maldades e heresias, procurássemos juntar-nos algumas vezes para tirar uns aos outros dos enganos e dizer o que poderíamos emendar em nós e alegrar mais a Deus. Pois não há quem conheça tão bem a si como conhecem aqueles que nos veem, se for com amor e cuidado de nos beneficiar. Digo "em segredo", porque já não se usa essa linguagem. Até os pregadores vão compondo seus sermões para não desagradar. Boa intenção hão de ter, e a obra também o será. Mas assim poucos se emendam. Mas como não são muitos os que por causa dos sermões deixam os vícios públicos? Sabe o que me parece? Porque têm muito juízo os que pregam. Não estão sem ele, com grande fogo de amor de Deus como estavam os apóstolos, e, assim, aquece pouco essa chama. Não digo que deva ser tanta quanto eles tinham, mas queria que fosse mais do que vejo. Sabe o senhor o que deve ter muito peso? Ter já aversão à vida e em pouca estima a honra. Porque não importava mais aos apóstolos — em troca de dizer uma verdade e sustentá-la para glória de Deus — ganhar tudo ou perder tudo. Pois quem de verdade arrisca tudo por Deus leva igualmente uma e outra coisa. Não digo que eu seja assim, mas queria ser.

8. Oh, grande liberdade é considerar cativeiro ter que viver e conviver conforme as leis deste mundo! Pois como se consegue esta liberdade do Senhor, não há escravo que não arrisque tudo para se resgatar e voltar à sua terra. E já que este é o verdadeiro caminho, não se deve parar nele, pois nunca chegaremos a ganhar tão grande tesouro até que se acabe nossa vida. O Senhor nos dê para isso seu favor.

Risque o senhor isso que disse, se lhe parecer bem, e considere como uma carta para si, e perdoe-me, porque fui muito atrevida.

CAPÍTULO 17

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA DE EXPLICAR ESSE TERCEIRO GRAU DE ORAÇÃO. ACABA DE EXPLICAR O DANO QUE CAUSAM AQUI A IMAGINAÇÃO E A MEMÓRIA

1. Está razoavelmente dito este modo de oração e o que há de fazer a alma, ou, melhor dizendo, o que Deus faz nela. Pois é Ele, já, que assume o ofício de jardineiro e quer que ela tire folga. A vontade só consente aquelas dádivas de que goza, e deve se oferecer a tudo o que nela quiser fazer a verdadeira sabedoria. Porque é preciso coragem, com certeza, porque é tão grande o gozo que parece às vezes que não falta um instante para a alma acabar de sair deste corpo. E que morte feliz seria!

2. Aqui me parece que vai bem, como se disse ao senhor, deixar-se de todo nos braços de Deus: se quiser levá-la ao céu, vá; se ao inferno, não tem problema, desde que vá com seu Bem; se a vida acabar totalmente, é isso que quer; se for para viver mil anos, isso também. Faça Sua Majestade como com uma coisa que lhe pertence, já não é sua, de si mesma, a alma. Foi dada totalmente ao Senhor. Despreocupe-se de tudo.

Digo que, em oração tão alta quanto essa, quando Deus a dá à alma, ela pode fazer tudo isso e muito mais, esses são seus efeitos. E ela entende que o faz sem nenhum cansaço do entendimento. Só me parece que ela fica um pouco espantada com quanto o Senhor é bom jardineiro e não quer que ela tenha trabalho nenhum, mas apenas que se deleite em começar a cheirar as flores. Pois numa proximidade dessas, por pouco que dure, como se trata de um tal jardineiro, o criador da água, afinal, Ele a dá sem medida. E o que a pobre da alma com trabalho talvez de vinte anos de cansar o entendimento não conseguiu acumular, faz esse jardineiro celestial em um instante. E cresce a fruta e amadurece de maneira que a alma pode se sustentar com seu jardim, se o Senhor quiser. Mas Ele não permite que a alma reparta a fruta até que esteja tão forte com o que comeu dela que não a desperdice só em degustações sem tirar proveito nenhum. Nem mesmo se pagasse aquele a quem ela a der, mas quer sim que a alma a mantenha. E que não dê de comer à sua custa, pois talvez fique morta de fome.

Isso fica bem entendido por tais inteligências1 e saberão aplicá-lo melhor do que eu saberei dizer, e me canso.

3. Por fim, o fato é que as virtudes ficam agora tão mais fortes do que na oração de quietude anterior, que a alma não pode ignorá-las, porque se vê outra e não sabe como. Começa a operar por si mesma grandes coisas com o aroma que as flores dão. Pois o Senhor quer que se abram para que ela veja que tem virtudes, ainda que veja muito bem que não as tinha ela mesma, nem conseguiu ganhar em muitos anos, e que naquele pouquinho o jardineiro celestial as deu.

Aqui é muito maior a humildade, e mais profunda, do que a anterior. Tanto que a alma se tranquiliza. Porque vê mais claramente que não fez nada, a não ser consentir que o Senhor fizesse dádivas e a vontade as abraçasse.

Parece-me esse modo de oração união muito evidente de toda a alma com Deus, só que parece que Sua Majestade quer dar licença às potências para que entendam e se regozijem com o muito que opera ali.

4. Acontece às vezes, e muitas e muitas vezes, estando unida a vontade (para que o senhor veja que isso pode acontecer e perceba quando tiver. Ao menos a mim, deixou-me tonta, e por isso falo disso aqui): vê-se claramente e compreende-se que a vontade está atada e regozijando-se. Digo que "vê-se claramente" e está em muita quietude só a vontade. Por outro lado, estão o entendimento e a memória tão livres que podem tratar de negócios e se envolver em obras de caridade.

Isso, ainda que pareça tudo uno, é diferente da oração de quietude de que falei. Em parte porque lá a alma fica que não quer se mexer gozando daquele ócio santo de Maria. Nesta oração também pode ser Marta,2 de forma que está quase operando juntamente em vida ativa e contemplativa. E pode compreender sobre obras de caridade e afazeres que convenham a seu estado e ler, ainda que não de todo esteja senhor de si e percebe bem que a melhor parte da alma está em outro extremo. É como se estivéssemos falando com alguém e, de outro lado, outra pessoa falasse conosco, de modo que nem bem estaremos com uma nem com outra. É uma coisa que se sente muito claramente e dá muita satisfação e alegria quando se a tem. E é uma disposição muito grande para que, tendo tempo de solidão e desocupação dos afazeres, venha a alma a uma quietude muito sossegada. É ir como uma pessoa que está satisfeita, que não tem necessidade de comer. Ao contrário, tem o estômago satisfeito, de forma que não encararia qualquer iguaria, mas não está tão farta que, se vê que ela é boa, deixe de comer de muito boa vontade. Assim, não a satisfaz nem quereria então alegria do mundo, porque em si tem o que a satisfaz mais: maiores alegrias de Deus desejos de satisfazer Seu desejo, de regozijar-se mais, de estar com Ele. É isso o que quer.

5. Há uma outra forma de união que ainda não é união completa, mas é mais do que a que acabo de dizer e não tanto como a que se disse sobre esta terceira água.

O senhor gostará muito de que o Senhor lhe dê todas, se é que já não as tem, de achar isto escrito e entender o que é. Porque uma dádiva é dar o Senhor a dádiva, e outra é entender que dádiva é, e que graça. Outra é saber falar dela e fazer entender como é. E ainda que não pareça, é mais necessária do que a primeira, para não ficar a alma confusa e medrosa e ir com mais coragem pelo caminho do Senhor deixando debaixo dos pés todas as coisas do mundo. É um grande avanço entender isso e uma dádiva, por cada uma ser razão para que louve o Senhor quem a tem. E, quem não tem, porque a deu Sua Majestade a algum dos que vivem para proveito nosso.

Agora, então, acontece muitas vezes esse modo de união de que quero falar, especialmente a mim, pois me faz Deus essa dádiva deste tipo muito, muito. Pois Deus toma a vontade e também o entendimento, me parece, porque não raciocina, mas fica ocupado em fruir de Deus. Como quem está olhando e vê tanto que não sabe para onde olhar. Em uma coisa e outra se perde a vista, a ponto de não poder dar notícia de coisa alguma. A memória fica livre, e junto com a imaginação deve ser. E ela, quando se vê sozinha, é para louvar a Deus a guerra que move e o modo como tenta desassossegar tudo. A mim, me deixa cansada e eu me aborreço com ela, e muitas vezes suplico ao Senhor que tire ela de mim nesses períodos, se vai me estorvar tanto. Às vezes digo a Ele: "Quando, meu Deus, vai estar finalmente unida toda a minha alma em vosso louvor, e não aos pedaços, sem poder se valer?". Aqui vejo o mal que nos causa o pecado, já que nos sujeitou dessa forma a não fazer o que queremos, que é estar sempre ocupados em Deus.

6. Digo que me acontece às vezes — e hoje foi uma e, assim, tenho bem fresco na memória — ver minha alma se desmanchar por ver-se unida onde está a melhor parte, e vejo ser impossível, porque a memória e a imaginação movem uma tal guerra contra ela que não a deixam prevalecer. E como faltam as outras potências, não conseguem, mesmo para fazer o mal, nada. Fazem muito para desassossegar. Digo que não "para fazer o mal" porque não têm força nem param em coisa alguma. Como a inteligência não a ajuda em nada com o que se lhe apresenta, a memória não para em nada, indo de uma coisa a outra. Não parece ser outra coisa senão uma dessas mariposas da noite, importunas e desassossegadas. Anda de um lado a outro assim. Essa comparação, parece-me, vem bem ao ponto, porque, ainda que não tenha força para fazer nenhum mal, importuna aos que a veem.

Para isso não sei que remédio há, pois até agora Deus não me deu a conhecer. De boa vontade o tomaria eu, pois me atormentam, como disse, muitas vezes. Mostra-se aqui nossa miséria, e muito claramente o grande poder de Deus, porque essa, que fica solta, muito nos prejudica e cansa, e as outras, que estão com Sua Majestade, é o descanso que nos dão.

7. O último remédio que encontrei, ao cabo de ter me cansado muitos anos, é o que disse na oração de quietude: que não se faça caso dela mais do que de um louco. Antes, deixe-se ela com sua mania que só Deus pode tirar e, afinal, aí fica por ser escrava. Temos que aguentar com paciência como fez Jacó com Lia, pois grande dádiva nos faz Deus de que nos regozijemos com Raquel.3

Digo que "fica escrava" porque, no fim, não consegue — por mais que faça — trazer para si as outras potências. Antes, elas é que, sem nenhum trabalho, fazem-na vir muitas vezes a si. Às vezes Deus resolve ter pena de vê-la tão perdida e desassossegada, com desejo de estar com as outras e consente que se queime no fogo daquela vela divina onde as outras estão já tornadas pó, perdido seu ser natural, quase estando sobrenatural, gozando de tão grandes bens.

8. Em todas essas maneiras que falei dessa última água de fonte, é tão grande a glória e o descanso da alma que, muito evidentemente, daquele gozo e deleite participa4 o corpo. Isso: "muito evidentemente". E as virtudes ficam muito aumentadas, como já disse.

Parece que quis o Senhor explicar esses estados em que a alma se vê, na minha opinião, o máximo que entre nós se pode entender. Converse o senhor com pessoa espiritual que tenha chegado até esse ponto e tenha erudição. Se lhe disser que está bom, creia que foi Deus que o disse e tenha em muita consideração Sua Majestade. Porque — como disse — passando o tempo se alegrará muito de entender o que é, enquanto não lhe der a graça para entender, ainda que dê a de fruir. Quando Sua Majestade der a primeira, com sua inteligência e erudição, entenderá pelo que está aqui. Seja louvada por todos os séculos dos séculos, amém.

CAPÍTULO 18

EM QUE TRATA DO QUARTO GRAU DE ORAÇÃO. COMEÇA A EXPLICAR DE UMA MANEIRA EXCELENTE A GRANDE DIGNIDADE QUE O SENHOR PÕE NA ALMA QUE ESTÁ NESSE ESTADO. É PARA ANIMAR MUITO OS QUE TRATAM DE ORAÇÃO. PARA QUE SE ESFORCEM PARA CHEGAR A TÃO ALTO ESTADO, POIS PODE-SE ALCANÇÁ-LO NA TERRA, AINDA QUE NÃO POR MERECÊ-LO, MAS SIM PELA BONDADE DO SENHOR. LEIA-SE COM DISCERNIMENTO, PORQUE SE EXPLICA DE UM MODO MUITO DELICADO E TEM MUITAS COISAS NOTÁVEIS

1. O Senhor me ensine as palavras com que se possa dizer algo da quarta água. É bem necessário seu favor, mais ainda do que para a anterior. Porque nela a alma ainda sente que não está morta de todo, podemos dizer assim, já que está morta para o mundo. Mas, como disse, tem os sentidos para perceber que está nele e sentir sua solidão, e aproveita-se do exterior para fazer entender o que sente, ao menos por sinais.

Em toda a oração e tipos dela de que já se falou, em alguma coisa trabalha o jardineiro, ainda que nessas últimas o trabalho ande acompanhado de tanta glória e consolo da alma que ele jamais quereria sair dele e, assim, não sente como trabalho, mas como glória. Aqui não há sentir, mas apenas fruir, sem entender o que se frui. Entende-se que se frui um bem, no qual, juntos, se incluem todos os bens, mas não se compreende esse bem. Ocupam-se todos os sentidos nesse fruir, de maneira que não fica nenhum desocupado para poder ocupar-se em outra coisa exterior nem interiormente.

Antes, dava-se licença a eles para que, como digo, dessem alguma mostra do grande gozo que sentem. Aqui a alma regozija-se mais, sem comparação, e pode dar a perceber muito menos, porque não fica poder no corpo nem a alma o tem para poder comunicar aquele gozo. Naquele momento, tudo seria um grande entrave e tormento e estorvo de seu descanso. E digo que, se for união de todas as potências, ainda que quisesse — enquanto está nisso, digo —, não conseguiria. E, se conseguir, já não será união.

2. O como é esta que chamam união e o que é, eu não sei explicar. Na teologia mística se explica. Eu não saberei nomear os vocábulos, nem sei entender o que é mente, tampouco que diferença têm alma ou espírito. Tudo me parece uma coisa só. Se bem que, às vezes, a alma sai de si mesma, à maneira de uma fogueira que está ardendo e com chamas e, às vezes, essa fogueira cresce com ímpeto. Essa chama sobe muito acima da fogueira, mas não por isso é uma coisa diferente, mas sim a mesma chama que está na fogueira. Isso os senhores entenderão — pois eu não sei dizer melhor — com sua erudição.

3. O que eu pretendo explicar é o que a alma sente quando está nessa divina união. O que é união já está entendido, pois são duas coisas divinas fazer-se uma. Oh, Senhor meu, que bom sois! Bendito sejais para sempre! Louvem-vos, Deus meu, todas as coisas, pois nos amastes de tal maneira que podemos com verdade falar dessa comunicação que mesmo neste desterro tendes com as almas. E mesmo com as que são boas é uma grande liberalidade e magnanimidade vossa, meu Senhor, que dais como quem sois. Oh, liberalidade infinita, quão magníficas são vossas obras!1 Espanta a quem não tem a inteligência tão ocupada com as coisas da terra que não tenha nenhuma para entender verdades. Agora, que façais a almas que tanto vos ofenderam dádivas tão elevadas, com certeza para mim isso ultrapassa a inteligência. E quando venho a pensar nisso, não consigo seguir em frente. Onde se poderá ir que não seja voltar para trás? Porque não sabe como dar-vos graças por tão grandes dádivas. Eu me socorro às vezes dizendo disparates.

4. Acontece muitas vezes, quando acabo de receber essas dádivas ou começa Deus a me fazê-las, pois, estando nelas, já disse que não há como conseguir fazer nada, dizer: Senhor, olhai o que fazeis, não esqueçais tão depressa tão grandes males meus. Ainda que para me perdoar os esquecestes, para pôr limite às dádivas suplico-vos que vos lembreis. Não ponhais, Criador meu, tão precioso licor em copo tão quebrado, pois já vistes de outras vezes que eu volto a derramá-lo. Não ponhais semelhante tesouro onde ainda não está, como deve estar, perdida toda a cobiça de consolações da vida, pois o gastará mal gasto. Como dais a força dessa cidade e a chave da fortaleza a um alcaide tão fraco que, ao primeiro combate do inimigo, deixa-o entrar dentro? Não seja tão grande o amor, oh Rei eterno, que ponhais em risco joias tão preciosas. Parece, meu Senhor, que assim se dá ocasião para que sejam tidas em pouca conta, já que as pondes em poder de uma coisa tão ruim, tão baixa, tão fraca e miserável e de tão pouca importância que, ainda que trabalhe com vosso favor para não as perder, e não é necessário pouco favor, sendo como sou, não consegue beneficiar ninguém com elas. Enfim, mulher, e não boa, mas ruim. Parece que não só se escondem os talentos, mas se sepultam pondo-os em terra tão malcuidada. Não costumais fazer, Senhor, semelhantes liberalidades e dar tais dádivas a uma alma a não ser que beneficie a muitas. Já sabeis, meu Deus, pois suplico com toda boa vontade e de coração, e já supliquei várias vezes, e considero um bem perder o maior bem da terra para que Vós façais isso a quem aproveite melhor esse bem para que cresça vossa glória.

5. Dizer essas e outras coisas me aconteceu muitas vezes. Depois eu via minha burrice e pouca humildade, porque o Senhor sabe bem o que convém e sabe que não havia forças em minha alma para salvar-se, se Sua Majestade, com tantas dádivas, não as pusesse nela.

6. Também pretendo explicar as graças e efeitos que ficam na alma e o que ela pode fazer por si mesma, ou se tem alguma função em chegar a tão grande estado.

7. Acontece vir uma elevação do espírito ou junção com o amor celestial. No meu entender, a união é diferente da elevação nessa mesma união. A quem não tiver provado da última parecerá que não. Mas, na minha opinião, mesmo sendo tudo uno, opera o Senhor de maneiras diferentes. E muito mais quanto ao crescimento do desprender-se das criaturas no voo do espírito. Vi muito claramente ser uma dádiva particular, ainda que — como digo — seja tudo uno, ou pareça ser. Mas um fogo pequeno também é fogo, como um grande, e já se vê a diferença que há entre um e outro. Em um fogo pequeno, antes que um ferro pequeno se faça brasa, passa muito tempo. Mas se o fogo for grande, ainda que o ferro seja maior, em muito pouquinho perde totalmente seu ser, parece. Assim me parece nessas duas maneiras de dádivas do Senhor e sei que quem tiver chegado ao arrebatamento entenderá bem. Se não tiver experimentado, vai lhe parecer desatino. E pode bem ser, porque alguém como eu querer falar de tal coisa, e explicar algo sobre aquilo que parece ser impossível até mesmo haver palavras com que começar, não é de estranhar que cause desatino.

8. Mas creio no Senhor, pois sabe Sua Majestade que, depois de obedecer, minha intenção é atrair as almas com um bem tão alto que me ajudará nisso. Não direi nada que não tenha experimentado muito. Assim é que, quando comecei a escrever sobre essa última água, parecia-me impossível saber tratar disso mais do que falar grego, pois é difícil assim. Com isso, deixei a coisa e fui comungar. Bendito seja o Senhor que favorece assim os ignorantes! Oh, virtude de obedecer que podes tudo! Clareou Deus minha inteligência umas vezes com palavras e outras pondo diante de mim como havia de dizer. Como fez na oração anterior, Sua Majestade parece querer dizer o que eu não consigo nem sei.

Isso que digo é a inteira verdade e, assim, o que for bom é a sua doutrina. O mau, está claro, é do oceano de males que eu sou. E assim digo que, se houver pessoas que tenham chegado às coisas de oração de que o Senhor fez dádiva a esta miserável — pois deve haver muitas — e quiserem conversar comigo sobre essas coisas, parecendo-lhes que estão desencaminhadas, o Senhor ajudará sua serva a ir avançando com Sua verdade.

9. Agora, falando dessa água que vem do céu, para, com sua abundância, encher e fartar todo o jardim de água, se, havendo necessidade, nunca deixar de dá-la o Senhor, já se vê que descanso terá o jardineiro. E se não houver inverno, mas ficar o tempo sempre temperado, nunca faltarão flores e frutas. Já se vê o deleite que teria. Mas enquanto vivemos é impossível. Sempre terá que haver cuidado para, quando faltar uma água, procurar a outra. Esta do céu vem muitas vezes quando o jardineiro está mais despreocupado. É verdade que, no começo, quase sempre é depois de longa oração mental, pois de um degrau a outro vem o Senhor a tomar essa avezinha e colocá-la no ninho para que descanse. Como a viu voar por um longo período, procurando com inteligência e vontade e com todas as suas forças buscar a Deus e alegrá-lo, quer dar-lhe o prêmio nesta vida mesmo. E que grande prêmio, pois basta um momento para que fiquem apagados todos os trabalhos que pode haver nela!

10. Estando assim a alma buscando a Deus, sente, com um deleite enorme e suave, quase desfalecer-se toda, com um jeito de desmaio, pois vai faltando o fôlego e todas as forças corporais de modo que, se não for com muito esforço, não conseguirá nem mesmo mexer as mãos. Os olhos se fecham sem querer fechá-los ou, se os mantém abertos, não vê quase nada. Nem, se ler, consegue dizer a letra e quase nem atina a reconhecê-la bem. Vê que há letra, mas, como a inteligência não ajuda, não sabe lê-la, mesmo que queira. Ouve, mas não entende o que ouve. Assim, não se beneficia em nada dos sentidos, a não ser para não conseguir deixá-la a seu prazer, e, assim, antes a prejudicam. Falar seria demais, porque não atina com formar as palavras. Nem tem força, mesmo que atinasse, para poder pronunciá-la, porque toda força exterior se perde e aumentam as da alma para poder fruir sua glória. O deleite exterior que se sente é grande e muito conhecido.

11. Essa oração não causa dano, por mais longa que seja. Pelo menos a mim nunca causou. Nem me lembro de fazer-me alguma vez o Senhor essa dádiva, por pior que estivesse, que me sentisse mal. Antes, ficava com uma grande melhora. Mas que mal pode fazer um bem tão grande? As operações exteriores são uma coisa tão evidente que não se pode duvidar de que tenha havido uma grande ocasião, já que tirou as forças dessa forma com tanto deleite para deixá-las maiores.

12. É verdade que no início passa em tão pouco tempo — ao menos a mim acontecia assim — que esses sinais exteriores e essa falta dos sentidos nem se dá tanto a perceber, quando passa depressa. Mas muito se percebe, pela sobra das dádivas, que foi grande a claridade do sol que esteve ali, já que a derreteu tanto. E note-se que — na minha opinião —, por mais longo que seja o espaço de tempo que fica a alma nessa suspensão de todas as potências, é bem curto. Se ficar meia hora é muito, muito. Eu nunca fiquei tanto tempo, parece-me. É verdade que mal se pode sentir o tempo que se fica, já que não se sente nada. Mas digo que, de cada vez é muito pouco tempo sem voltar a si alguma potência. A vontade é a que mantém a firmeza, mas as outras logo voltam a importunar. Como a vontade está tranquila, volta a suspendê-las, e ficam mais um pouco, depois voltam a viver.

13. Nisto podem se passar algumas horas de oração, e passam-se. Começando as duas potências a se embriagar e saborear aquele vinho divino, voltam com facilidade a se perder para ganhar muito mais. E acompanham a vontade e se deliciam todas as três. Mas este estar de todo perdidas e sem nenhuma imaginação em nada — pois, no meu entender, também ela se perde totalmente — digo que é por pouco tempo, ainda que não totalmente voltem a si que não possam ficar algumas horas como desatinadas, voltando de tempos em tempos a tomá-las Deus consigo.

14. Agora vamos ao interior do que a alma sente aqui. Diga-o quem o souber, pois não se pode entender, quanto mais dizer! Estava eu pensando, quando quis escrever isso, tendo acabado de comungar e de estar nessa mesma oração sobre a qual escrevo, no que fazia a alma durante aquele tempo. Disse-me o Senhor essas palavras: "Desfaz-se toda, filha, para pôr-se mais em mim. Já não é ela quem vive, mas sim Eu. Como não pode compreender o que entende, é não entender entendendo".

Quem tiver experimentado vai entender alguma coisa disso, porque não se pode dizer com mais clareza, por ser tão obscuro o que se passa ali. Só posso dizer que se imagina estar junto de Deus e fica uma certeza que, de maneira nenhuma, se pode deixar de crer. Aqui faltam todas as potências e ficam suspensas de um modo que, de modo nenhum, como eu disse, se percebe que operam. Se estava pensando num passo da Paixão, perde-se da memória assim, como se nunca tivesse tido lembrança dele. Se lendo, não há compreensão nem atenção no que lê. Se rezar, tampouco. Assim, essa borboletinha importuna da memória queima suas asas aí. Não pode mais bulir. A vontade tem que estar bem ocupada em amar, mas não entende como ama. O entendimento, se entende, não entende como entende. Ao menos não consegue compreender nada do que percebe. A mim não parece que entende porque — como digo — não se entende. Eu não consigo entender isso.

15. Aconteceu-me uma ignorância no princípio, pois não sabia que Deus estava em todas as coisas. E como me parecia estar tão presente, parecia-me impossível. Deixar de acreditar que estava ali eu não podia, por me parecer que havia percebido quase com clareza estar ali sua presença própria.

Os que não tinham erudição me diziam que Ele estava só por meio da graça. Eu não podia acreditar, porque — como disse — parecia estar presente e assim ficava aflita. Um grande letrado da Ordem do glorioso são Domingos2 me tirou essa dúvida, pois me disse estar presente e como se comunicava conosco, de modo que me consolou muito. É de notar e entender que sempre essa água do céu, esse enorme favor do Senhor, deixa a alma com enormes ganhos, como direi agora.

CAPÍTULO 19

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA. COMEÇA A EXPLICAR OS EFEITOS QUE PRODUZ NA ALMA ESSE GRAU DE ORAÇÃO. EXORTA MUITO A QUE NÃO VOLTEM ATRÁS, AINDA QUE DEPOIS DESSA DÁDIVA VOLTEM A CAIR, NEM DEIXEM A ORAÇÃO. FALA DOS DANOS QUE VIRÃO POR NÃO SE FAZER ISSO. É PARA TER MUITO EM CONTA E DE GRANDE CONSOLAÇÃO PARA OS FRACOS E PECADORES

1. Fica a alma por essa oração e união com enorme ternura, de modo que quereria se desfazer, não de tristeza, mas sim de lágrimas de regozijo. Acha-se banhada nelas sem sentir nem saber quando nem como as chorou, mas dá-lhe grande deleite ver aplacado aquele ímpeto do fogo com uma água que o faz crescer mais.

Isso parece uma algaravia, mas é assim que se passa. Aconteceu-me algumas vezes no término de oração estar tão fora de mim, que não sabia se era sonho ou se acontecia de verdade a glória que eu havia sentido. E ao ver-me cheia de água que sem tristeza destilava, com tanto ímpeto e presteza que até parecia que aquela nuvem do céu a jogava de si, via que não tinha sido sonho. Isso era no começo, pois passava depressa.

2. Fica a alma tão valente, que, se naquele momento fizessem-na em pedaços por Deus, seria para ela um grande consolo. Aí estão as promessas e decisões heroicas, a vivacidade dos desejos, o começar a abominar o mundo e ver muito claramente sua vaidade. Está muito mais avançada, e altamente, do que nas orações anteriores. E a humildade, muito mais crescida. Porque vê claramente que, para aquela excessiva dádiva, e grandiosa, não houve providência sua, nem tomou parte em trazê-la ou mantê-la. Vê-se claramente indigníssima, porque, em um cômodo em que entra muito sol não há nem teia de aranha escondida. Vê sua miséria. Está tão longe a vanglória que não lhe parece que poderia tê-la, porque salta aos olhos o pouco ou nada que pode. Pois ali quase nem houve consentimento. Parece, sim, que, ainda que não quisesse, se fecharia a porta para todos os sentidos para que pudesse gozar mais do Senhor. Fica sozinha com Ele, que há de fazer senão amá-lo? Não vê nem ouve, a não ser com muito esforço. Há pouco a agradecê-la. Sua vida passada se lhe apresenta, depois, e a grande misericórdia de Deus, com grande verdade e sem haver necessidade de que a inteligência vá à caça, pois ali vê já cozido o que há de comer e entender. Vê por si mesma que merece o inferno e que a castigam com a glória. Desfaz-se em louvores a Deus. E eu quereria me desfazer agora. Bendito sejais, Senhor meu, pois tirais de lodo tão sujo quanto eu água tão clara que serve para vossa mesa! Sede louvado, oh, delícia dos anjos, pois quereis erguer assim um verme tão vil!

3. Permanece algum tempo esse avanço da alma. Já pode, desde que entenda claramente que a fruta não é sua, começar a reparti-la e não faltará para si. Começa a dar sinais de alma que guarda tesouros do céu, e a ter desejo de reparti-los com outros, e suplicar a Deus que não seja só ela a rica. Começa a ser proveitosa para os que estão próximos, quase sem perceber nem fazer nada por si. Eles percebem, porque as flores já têm tão crescido o aroma que os faz desejar aproximar-se delas. Percebem que tem virtudes e veem a fruta que é apetitosa e quereriam ajudá-la a comer.

Se essa terra está muito cavada por trabalhos e perseguições e murmurações e doenças — pois poucos devem chegar a esse ponto sem isso — e se está lavrada graças a ir muito desapegada do interesse próprio, a água a embebe tanto que quase nunca seca. Mas se for terra que ainda está na terra e com tantos espinhos quanto eu estava no começo, e ainda não tirada das ocasiões de pecado, nem tão agradecida como merece uma dádiva tão grande, a terra volta a secar. E se o jardineiro se descuidar e o Senhor não voltar a querer chover só por sua bondade, dê por perdida a horta, pois assim me aconteceu algumas vezes. Porque, com certeza, me espanto e, se não tivesse se passado comigo, não conseguiria acreditar.

Escrevo isso para consolo das almas fracas como a minha. Que nunca desesperem nem deixem de confiar na grandeza de Deus. Ainda que, depois de tão elevadas — como é tê-las levado o Senhor a esse ponto —, caiam, não desanimem, se não quiserem se perder totalmente, pois as lágrimas ganham tudo. Uma água atrai a outra.

4. Uma das coisas graças às quais me animei — sendo eu quem sou — a escrever isso e dar conta da minha vida ruim e das dádivas que me fez o Senhor sem eu o servir, mas sim ofendê-lo, foi essa. Por certo eu queria aqui ter grande autoridade para que acreditassem em mim nisso. Ao Senhor suplico que Sua Majestade a dê a mim.

Digo que não desanime ninguém que tenha começado a ter oração dizendo: "se voltar a ser mau, é pior ir em frente com a prática dela". Eu creio que sim, se deixar a oração e não se emendar do mal. Mas, se não a deixar, acredite que ela o levará a porto de luz.

Nisso me deu grande combate o demônio e passei tanto tempo em achar que era pouca humildade ter oração sendo tão ruim que, como já disse, deixei-a por um ano e meio. Pelo menos um ano, pois do meio eu não me lembro bem. E não teria sido, e não foi, mais do que meter-me eu mesma no inferno, sem ter necessidade de demônios que me fizessem ir. Oh, valha-me Deus, que cegueira tão grande! E como acerta bem o demônio para seu propósito em pesar a mão aqui! O traidor sabe que terá perdido a alma que mantiver a oração com perseverança. E sabe que todas as quedas que a faz dar a ajudam, por bondade de Deus, a dar, depois, um salto maior no que é serviço a Ele. Alguma coisa o demônio perde nisso.

5. Oh meu Jesus! O que é ver uma alma que chegou até aqui caída em um pecado quando Vós, por vossa misericórdia, voltais a lhe dar a mão e a levantais! Como conhece a multidão de vossas grandezas e misericórdias e sua miséria! Aí está o desfazer-se de verdade e conhecer vossas grandezas. Aí o não ousar erguer os olhos. Aí está o levantá-los para saber o que vos deve. Aí se torna devota da Rainha do Céu, para que ela vos aplaque. Aí evoca os santos que caíram depois de Vós os terdes chamado, para que a ajudem. Aí está o parecer amplo tudo o que dais, porque vê que não merece a terra que pisa. O acudir aos Sacramentos. A fé viva que aqui lhe fica por ver a virtude que Deus pôs neles. O louvar-vos, porque deixastes um remédio e unguento tal para nossas chagas, que não as fecha, mas, sim, tira totalmente. Espanta-se por isso. E quem, Senhor de minha alma, não se há de espantar com misericórdia tão grande e dádiva tão crescida a uma traição tão feia e abominável? Não sei como não se me parte o coração quando escrevo isso, porque sou ruim.

6. Com essas lagriminhas que aqui choro, dadas por Vós — água de tão mau poço, no que vem da minha parte —, parece que vos faço o pagamento de tantas traições, sempre fazendo males e tentando desfazer as dádivas que me fizestes. Ponde Vós, Senhor meu, valor nelas. Clareai água tão turva. No mínimo para que não dê a alguém a tentação de julgar — como deu a mim — pensando: por que, Senhor, deixais pessoas muito santas, que sempre vos serviram e por Vós trabalharam? Criadas na vida religiosa e sendo religiosas, não como eu, que não tinha de religiosa mais do que o nome. E se vê claramente que não fazeis a elas as dádivas que fazeis a mim. Bem via eu, meu Bem, que guardais para elas o prêmio para dá-lo de uma vez, e que minha fraqueza tem necessidade disso. Já eles, por serem fortes, vos servem sem prêmio e Vós os tratais como gente esforçada e não interesseira.

7. Mas, com tudo isso, sabeis Vós, Senhor meu, que eu clamava muitas vezes diante de Vós, desculpando as pessoas que murmuravam contra mim, porque me parecia que tinham razão de sobra. Isso já era, Senhor, depois que me seguráveis por vossa bondade para que não vos ofendesse tanto, e eu já estava me desviando de tudo o que me parecia que podia desgostar-vos. Pois fazendo eu isso, começastes, Senhor, a abrir vossos tesouros para vossa serva. Parece que não esperáveis outra coisa, a não ser que houvesse vontade e preparação em mim para receber-vos. Então, rapidamente começastes não só a dá-los, mas também a querer que notassem que dáveis.

8. Percebido isso, começou-se a ter boa opinião sobre aquela que todos ainda não tinham entendido bem quão má era, ainda que muita coisa transparecesse. Começou a murmuração e a perseguição de repente e — na minha opinião — com muito motivo. E assim eu não pegava inimizade com ninguém, antes suplicava a Vós que vísseis como elas tinham razão. Diziam que eu queria me fazer de santa e que inventava novidades. Não tendo chegado, então, nem de longe a cumprir toda a minha regra. Nem chegava perto das muito boas e santas monjas que havia em casa. Nem chegarei, creio, se Deus, por sua bondade, não fizer tudo por sua conta. Mas sim que eu estava lá para tirar o bom e pôr costumes que não o eram. Ao menos, fazia o que podia para pô-los, e no mal podia muito. Assim, sem culpa sua, me culpavam. Não digo que fossem só as monjas, mas também outras pessoas. Descobriam verdades sobre mim porque Vós permitíeis.

9. Uma vez, rezando as horas, no tempo em que, às vezes, tinha essa tentação, cheguei ao verso que diz: "Justus es, Domine, e teus juízos".1 Comecei a pensar que grande verdade era. Porque, nisso, não tinha nunca o demônio força para me tentar, de maneira que eu duvidasse de que Vós tendes, meu Senhor, todos os bens. Nem de nenhuma coisa da fé. Antes me parecia que, quanto mais sem caminho natural eram as coisas da fé, mais firme eu as tinha, e me davam grande devoção. Em ser Todo-poderoso ficavam resumidas para mim todas as grandezas que Vós fizestes. E disso — como disse — jamais tinha dúvidas.

Oh, pensando então como, com justiça, permitíeis a muitas, pois havia — como já disse — muitas que eram muito vossas servas, e que não tinham os presentes e as dádivas que fazíeis a mim, sendo eu quem era, respondestes-me, Senhor: "Serve-me tu a mim, e não te metas nisso". Foi a primeira palavra que vos ouvi dizer-me, e, assim, assustou-me muito.

Porque depois explicarei essa maneira de ouvir, junto com outras coisas. Não falo disso aqui porque é fugir do assunto e creio que já saí muito. Eu quase não sei o que disse. Não tem outro jeito, meu filho, a não ser que o senhor tem que aguentar essas interrupções. Porque, quando vejo o que Deus aguentou de mim, e me vejo neste estado, não é grande coisa que eu perca o tino do que digo e deva dizer. Queira o Senhor que sejam sempre esses meus desatinos e já não permita Sua Majestade que eu tenha poder para ser contra Ele em algum momento, antes me consuma neste em que estou.

10. Já basta, para ver suas grandes misericórdias, que não uma, mas muitas vezes perdoou tanta ingratidão. A são Pedro foi uma, a mim, muitas. E com razão me tentava o demônio a não pretender amizade estreita com Aquele a quem eu tratava tão publicamente com inimizade. Que cegueira tão grande a minha, Senhor! Onde eu pensava, meu Senhor, encontrar remédio senão em Vós? Que disparate fugir da luz para andar sempre tropeçando! Que humildade tão orgulhosa inventava em mim o demônio: afastar-me de estar apoiada na coluna e no báculo que havia de me sustentar, para não sofrer uma queda tão grande! Agora faço o sinal da cruz, e não me parece que tenha corrido perigo tão perigoso como essa invenção que o demônio me ensinava pelo caminho da humildade. Punha-me no pensamento: como uma coisa tão ruim e tendo recebido tantas dádivas, haveria de me aproximar da oração? Que me bastava rezar o que devia, como todas. Que, já que nem isso eu fazia bem, como queria fazer mais? Que era falta de respeito e fazer pouco das dádivas de Deus.

Era bom pensar e entender isso. Mas, pôr isso em prática foi o maior dos males! Bendito sejais Vós, Senhor, que me remediastes assim!

11. Me parece o princípio da tentação que fazia a Judas, só que não ousava o traidor agir tão às claras. Mas ele viria, pouco a pouco, a dar comigo onde deu com ele. Atentem para isso, pelo amor de Deus, todos os que falam de oração. Saibam que, no tempo em que estive sem ela, era muito mais perdida a minha vida. Veja-se que bom remédio me dava o demônio e que graciosa humildade: um desassossego grande em mim. Mas como haveria de sossegar minha alma? Afastava-se a coitada de seu sossego, tinha presentes as dádivas e os favores, via serem asco as alegrias daqui. Como pude passar por isso me espanta.

Era com esperança que eu nunca pensava em deixar de estar decidida a voltar à oração, pelo que me lembro agora, porque isso já deve fazer mais de vinte anos. Mas esperava para estar muito limpa de pecados. Oh, que mal encaminhada ia nessa esperança! Até o dia do juízo me manteria nela o demônio, para dali levar-me ao inferno.

Então, tendo oração e leitura — pois via as verdades e o caminho ruim em que andava — e importunando o Senhor com lágrimas muitas vezes, era tão ruim que não conseguia me valer. Afastada disso, punha-me em passatempos e ocasiões de pecado e poucas ajudas, e, ousarei dizer, nenhuma ajuda a não ser para cair. O que eu esperava, senão aquilo que disse?

12. Creio que tem muito mérito diante de Deus um frade de são Domingos,2 grande letrado, pois ele me despertou desse sono. Ele me fez, como creio que já disse, comungar de quinze em quinze dias. E o mal já não era tanto. Comecei a voltar a mim, ainda que não deixasse de fazer ofensas ao Senhor. Mas, como não havia perdido o caminho, ainda que pouco a pouco, caindo e levantando, ia por ele. E aquele que não deixa de andar e ir em frente, ainda que demore, chega. Parece-me que perder o caminho não é outra coisa que deixar a oração. Deus nos livre, por quem Ele é!

13. Fica aqui entendido — e repare bem pelo amor de Deus — que, ainda que Deus chegue a fazer tão grandes dádivas a uma alma, não confie ela em si, pois pode cair, nem se ponha em ocasião de pecado de maneira nenhuma.

Observe-se muito, pois é muito importante. O engano que pode fazer o demônio aí, depois, ainda que a dádiva seja certamente de Deus, é aproveitar-se o traidor da própria dádiva, como puder, e de pessoas não maduras na virtude, nem mortificadas, nem desapegadas. Porque nisso não ficam fortalecidas o quanto baste, como direi mais adiante, para se pôr em ocasiões e perigos, por grandes que sejam os desejos e a determinação que tenham.

14. É uma excelente doutrina essa, e não minha, mas ensinada por Deus. E, assim, quereria que pessoas ignorantes como eu a soubessem. Porque, ainda que esteja uma alma nesse estado, não deve confiar em si para sair em combate, porque já fará bastante em defender-se. Aí são necessárias armas para defender-se dos demônios. E a alma ainda não tem forças para lutar contra eles e pô-los debaixo dos pés, como fazem os que estão no estado de que falarei depois.

Esse é o engano com que o demônio pega, pois, quando se vê uma alma tão próxima de Deus, e vê a diferença que há entre o bem do céu e o da terra, e o amor que mostra o Senhor, desse amor nasce a confiança e segurança de não cair do estado de que goza. Parece-lhe que vê claramente o prêmio, que já não é possível deixar coisa que mesmo na vida é tão deleitosa e suave em troca de coisa tão baixa e suja como é o deleite. E com essa confiança tira o demônio a pouca que deve ter em si. E, como disse, põe-se nos perigos e começa, com zelo, a dar sem medida da fruta, crendo que não há o que temer por si. E isso não é com soberba, pois a alma entende bem que nada pode por si mesma, mas sim por muita confiança em Deus, porém sem discernimento, porque não vê que ainda tem só penugem. Pode sair do ninho, e Deus a tira dele, mas ainda não está pronta para voar, porque as virtudes ainda não estão fortes, nem tem a experiência para conhecer os perigos, nem sabe o dano que causa confiar em si.

15. Isso foi o que me destruiu. E para isso e para tudo há necessidade de mestre e conversa com pessoas espirituais. Bem creio que a alma que Deus faz chegar a esse estado, se não abandonar Sua Majestade muito totalmente, não deixará Ele de favorecer e não a deixará se perder. Mas quando cair, como disse, veja, veja pelo amor do Senhor, que não a enganem a deixar a oração, como faziam a mim com humildade falsa, como já disse e muitas vezes quereria dizer. Confie na bondade de Deus, que é muito maior do que todos os males que podemos fazer, e não se lembra de nossa ingratidão quando nós, reconhecendo-nos, queremos voltar à sua amizade, nem das dádivas que nos fez para castigar-nos por elas. Antes ajudam-no a nos perdoar mais depressa, como pessoas que já eram de sua casa e comeram, como se diz, de seu pão. Lembrem-se de suas palavras e vejam o que fez comigo, que me cansei de ofendê-lo antes que Sua Majestade deixasse de me perdoar. Nunca se cansa de dar, nem se podem esgotar suas misericórdias. Não nos cansemos nós de receber. Seja bendito para sempre, amém, e louvem-no todas as coisas.

CAPÍTULO 20

EM QUE TRATA DA DIFERENÇA QUE HÁ ENTRE UNIÃO E ARREBATAMENTO. EXPLICA QUE COISA É ARREBATAMENTO E DIZ ALGO SOBRE O BEM QUE TEM A ALMA QUE O SENHOR, POR SUA BONDADE, APROXIMA DELE. DIZ OS EFEITOS QUE PRODUZ. É ADMIRÁVEL

1. Quereria saber explicar, com o favor de Deus, a diferença que há entre união e arrebatamento ou elevação ou voo de espírito ou arroubo, pois é tudo uma coisa só. Digo, esses nomes diferentes todos são uma coisa só e também se chama êxtase. É grande a vantagem que leva sobre a união. Causa efeitos muito maiores e outras muitas operações. Porque a união parece no princípio, no meio e no fim ser no interior. E é. Mas, assim como esses outros fins são em mais alto grau, produzem os efeitos interior e exteriormente. Explique-o o Senhor, como fez com o resto, pois, com certeza, se Sua Majestade não me tivesse dado a entender por que meios e maneiras se pode dizer algo, eu não teria sabido.

2. Consideremos agora que esta última água é tão copiosa que, se não fosse por não o consentir a terra, poderíamos acreditar que está conosco essa nuvem da grande Majestade por aqui na terra. Mas quando agradecemos esse grande bem, valendo-nos de obras segundo nossas forças, colhe o Senhor a alma, digamos agora, da mesma maneira que as nuvens colhem os vapores da terra, e ergue-a toda daí. Ouvi dizer isso assim, que as nuvens colhem os vapores, ou o sol.1 E sobe a nuvem ao céu e leva-a consigo e começa a mostrar-lhe coisas do reino que preparou para ela. Não sei se a comparação se encaixa, mas o fato é assim, de verdade.

3. Nesses arrebatamentos parece que a alma não anima o corpo e assim se sente muito faltar o calor natural dele. Vai esfriando, ainda que com enorme suavidade e deleite.

Aí não adianta nada resistir. Já na união, como estamos na nossa terra, há meios. Ainda que com sacrifício e força, pode-se quase sempre resistir. Nesses arrebatamentos, na maior parte das vezes, não há meio algum. Antes, muitas vezes sem o pensamento prevenir, nem ser de nenhuma ajuda, vem um ímpeto tão acelerado e forte que você2 vê e sente levantar-se essa nuvem ou essa águia poderosa e colher você com suas asas.

4. E digo que você compreende e se vê levar e não sabe para onde. Porque ainda que seja com deleite, a fraqueza de nossa natureza faz ter medo no começo. E é necessária uma alma determinada e valorosa — muito mais do que para o que já foi dito — para arriscar tudo, venha o que vier, e deixar-se nas mãos de Deus e ir aonde nos levarem de bom grado. Porque levam, ainda que apesar de você. E é tão extremo que muitas, muitas vezes eu quereria resistir. E ponho todas as minhas forças, em especial algumas vezes em que ocorre em público, e, outras muitas, em segredo, temendo ser enganada. Algumas vezes conseguia algo, com grande exaustão, como quem lutasse com um gigante forte. Ficava depois cansada. Outras vezes era impossível, levava-me a alma e, quase corriqueiramente, até a cabeça depois dela, sem que eu pudesse segurá-la e algumas vezes o corpo todo, até levantá-lo.

5. Isso foi poucas vezes. Porque como uma vez foi onde estávamos juntas no coro e prestes a comungar, estando de joelhos, dava-me enorme aflição, porque me parecia uma coisa muito extraordinária e que logo haveria muito comentário. Assim, mandei às monjas, porque isso foi agora depois que tenho ofício de priora, que nada dissessem. Outras vezes, quando começava a ver que o Senhor ia fazer o mesmo, e uma vez foi estando senhoras importantes, pois era a festa da Vocação,3 durante um sermão, largava-me no chão e aproximavam-se para segurar meu corpo e mesmo assim dava para ver. Supliquei muito ao Senhor que não me quisesse mais dar dádivas que tivessem sinais exteriores, porque eu já estava cansada de que se reparasse tanto em mim e que aquela dádiva podia Sua Majestade fazer sem que se percebesse. Parece que, por sua bondade, houve por bem ouvir-me, pois nunca mais, até agora, tive isso. É verdade que faz pouco tempo.

6. Assim, parecia-me, quando queria resistir, que de debaixo dos pés me levantavam forças tão grandes que não sei com que comparar. Pois era com muito mais ímpeto do que essas outras coisas de espírito e, assim, ficava em pedaços. Porque é uma luta grande e, no fim, adianta pouco, quando o Senhor quer, pois não há poder contra seu poder. Outras vezes ele decide se contentar com que vejamos que quer fazer a dádiva e que não é por causa de Sua Majestade que ela falta. E resistindo-se por humildade, deixa os mesmos efeitos que deixaria se se consentisse de todo.

7. Para aqueles a quem faz isso, são grandes esses efeitos. Primeiro, mostram o grande poder do Senhor e como não tomamos parte, quando Sua Majestade quer, em controlar tanto o corpo quanto a alma, nem somos senhores deles. Antes vemos que — ainda que nos pese — há um superior e que essas dádivas são dadas por Ele e que nós não podemos nada em nada, e imprime-se muita humildade. E eu até confesso que me deu muito medo. No começo, enorme. Porque ver levantar-se assim um corpo da terra! Pois, ainda que o espírito o leve atrás de si e seja com grande suavidade, se não se resistir, não se perdem os sentidos. Ao menos eu ficava em mim, de maneira que podia perceber que era levada. Mostra-se uma majestade de quem pode fazer aquilo que arrepia os cabelos. E fica um grande temor de ofender a um tão grande Deus. Isso envolto em enorme amor, que se toma de novo a quem vemos ter um amor tão grande por um verme tão podre, pois não parece que se contenta em levar tão de verdade a alma para si, mas quer o corpo, mesmo sendo tão mortal e de terra tão suja por tantas ofensas que se fizeram.

8. Também deixa um desapego estranho que eu não conseguirei dizer como é. Parece-me que posso dizer que é diferente de alguma maneira — digo, é maior do que essas outras coisas só de espírito. Porque, ainda que nelas esteja-se, quanto ao espírito, com todo o desapego das coisas, aqui parece querer o Senhor que o próprio corpo participe. E faz-se uma estranheza nova para com as coisas da terra. Fica muito mais penosa a vida.

Depois dá uma dor que nem podemos buscar por nós mesmos, nem, uma vez vinda, se pode tirar. Quisera muito explicar essa grande dor e creio que não conseguirei, mas direi algo, se souber.

9. Note-se que essas coisas são de agora, muito posteriores, depois de todas as visões e revelações sobre as quais escreverei. E depois do tempo que eu costumava ter oração, quando o Senhor me dava tão grandes prazeres e presentes.

Agora, já que isso não cessa, às vezes, na maior parte delas, o mais comum é essa dor sobre a qual falarei. Pode ser maior ou menor. De quando é maior, quero falar agora. Porque, ainda que mais adiante eu vá falar desses grandes ímpetos que me dava quando o Senhor quis me dar os arrebatamentos, eles não têm mais a ver do que uma coisa muito corporal tem a ver com uma muito espiritual, e creio que não exagero. Porque aquela dor parece, ainda que a alma a sinta, ser em companhia do corpo. Ambos participam dela, parece, e não é com um desamparo tão extremo quanto nesta, para a qual — como disse — não contribuímos. Antes, muitas vezes vem fora de hora um desejo que eu não sei como se move. E desse desejo, que penetra a alma toda em um instante, começa a se cansar tanto, que sobe muito acima de si e de tudo o que foi criado. E Deus a põe como em um deserto, tão afastada de todas as coisas que, por muito que ela se esforce, não lhe parece que haja na terra nenhuma que a acompanhe. Nem ela quereria que acompanhasse, mas gostaria, isso sim, de morrer naquela solidão. Que falem com ela e ela queira fazer toda a força possível para falar, adianta pouco, pois seu espírito, por mais que ela faça, não se retira daquela solidão. E, ao mesmo tempo que parece que Deus está longíssimo, às vezes comunica suas grandezas pelo modo mais estranho que se possa pensar. E, assim, não se sabe dizer. Nem acredito que acreditará, nem entenderá, a não ser aquele que tiver passado por isso. Porque não é a comunicação para consolar, mas sim para mostrar a razão que tem de se cansar de estar ausente de bem que em si tem todos os bens.

10. Com essa comunicação cresce o desejo e o extremo de solidão em que se vê. Com uma dor tão aguda e penetrante que, ainda a alma posta naquele deserto, ao pé da letra se pode dizer então (e talvez o tenha dito o real Profeta4 estando na mesma solidão. Só que, como se tratava de um santo, Deus lhe daria sentir de maneira mais excessiva): "Vigilavi ed fatus sun sicud passer solitarius yn tecto".5 E assim me lembro desse verso, então, que parece que eu o vejo em mim. E consola-me ver que outras pessoas sentiram um tão grande extremo de solidão, ainda mais pessoas tais. Assim, parece que a alma está não em si, mas no teto ou no telhado de si mesma e de todas as coisas criadas. Porque até acima da parte mais superior da alma me parece que está.

11. Outras vezes parece que a alma anda como se necessitadíssima, dizendo e perguntando a si mesma: "Onde está teu Deus?".6 Veja-se que a tradução desses versos eu não sabia bem qual era. E depois que compreendi, consolei-me de que o Senhor os tivesse trazido à minha memória sem que eu os procurasse. Outras vezes me lembrava do que diz São Paulo, que está crucificado para o mundo.7 Não digo eu que isso seja assim, que eu já veja isso. Mas parece-me que a alma fica assim, pois nem lhe vem o consolo do céu e nem está nele. Nem quer que venha da terra e nem está nela. Mas, sim, como crucificada entre o céu e a terra, padecendo sem vir a ela socorro de nenhum lado. Porque o que vem do céu, que é, como já disse, uma notícia de Deus, tão admirável, muito acima de tudo o que podemos desejar, é para maior tormento. Porque aumenta o desejo de modo que — ao que me parece — a grande dor tira os sentidos, embora fique pouco tempo sem eles. Parecem trânsitos da morte, salvo que esse padecer traz consigo uma alegria tão grande que eu não sei com que compará-la. É um duro martírio saboroso. Então, de tudo o que a alma possa imaginar da terra, ainda que seja o que costuma ser a coisa mais saborosa, nada admite, logo, parece, joga para longe de si. Bem sabe que não quer senão a seu Deus, mas não ama nada em particular d'Ele, mas todo inteiro o quer, e não sabe o que quer. Digo "não sabe" porque a imaginação não representa nada. Nem, ao que me parece, durante muito tempo que está assim, operam as potências. Assim como na união e no arrebatamento é o gozo, aqui é a dor que as suspende.

12. Oh, Jesus, quem poderia explicar isso bem ao senhor, até para que o senhor me dissesse o que é, porque é nisso que agora anda sempre a minha alma! O mais comum é que, vendo-se desocupada, seja posta nessas ânsias de morte. E tem medo quando vê que começam, porque não vai morrer. Mas, quando chega a isso, o tempo que tivesse que viver quereria viver nesse padecer, ainda que seja tão excessivo que quem está sujeito a ele mal o consegue levar. E, assim, algumas vezes perco o pulso quase, segundo dizem as pessoas que às vezes se aproximam de mim, dentre as irmãs que entendem já um pouco mais sobre isso. E os membros muito abertos e as mãos tão rígidas, que eu não consigo às vezes juntá-las, e assim me ficam dores até o dia seguinte nos pulsos e no corpo e me parece que me desconjuntaram.

13. Eu bem que penso alguma vez o Senhor há de haver por bem, se continua como agora, acabar de acabar a vida, pois — ao que me parece — é suficiente para isso uma tão grande dor, apenas não o mereço eu. Toda a ânsia é de morrer, então. Nem me lembro do purgatório, nem dos pecados que cometi, pelos quais mereceria o inferno. Esqueço-me de tudo naquela ânsia de ver a Deus e aquele deserto e solidão parecem melhores do que toda a companhia do mundo. Se alguma coisa pudesse dar consolo, seria conversar com quem tivesse passado por esse tormento. E ver que, ainda que se queixe dele, ninguém, parece, vai acreditar nela!

14. Também a atormenta ser tão crescida essa dor, que não quereria solidão, como nas outras, nem companhia, mas sim alguém com quem se pudesse queixar. É como alguém que está com a corda no pescoço e está sufocando, que procura tomar fôlego. Assim me parece que esse desejo de companhia é nossa fraqueza, pois, como a dor nos põe em perigo de morte (o que, sim, ela faz. Eu me vi nesse perigo algumas vezes com grandes doenças e ocasiões — como já contei — e creio que poderia dizer que este é tão grande como os outros), assim o desejo que a alma e o corpo têm de não se separar é o que pede socorro para tomar fôlego. E falando, queixando-se e divertindo-se, busca remédio para viver. Muito contra a vontade do espírito, que não quereria sair dessa dor.

15. Não sei se atino com o que digo, ou se sei dizer. Mas, com toda minha convicção, é assim que acontece. Veja o senhor que descanso se pode ter nessa vida. O que eu tinha — que era a oração e a solidão, porque ali me consolava o Senhor — é já, mais frequentemente, esse tormento. E é tão saboroso e a alma vê que é de preço tão alto que já o quer mais do que a todos os presentes que costumava ter. Parece-lhe mais seguro, porque é caminho de cruz. E tem em si um prazer de muito valor, porque não reparte com o corpo a não ser a dor. A alma é que padece e regozija-se sozinha com o gozo e a alegria que dá esse padecer. Eu não sei como pode ser isso, mas assim se passa, pois, parece-me, não trocaria essa dádiva que o Senhor me faz (que é bem de sua mão — como já disse — e nada adquirido por mim, porque é muito, muito sobrenatural) por todas as que depois direi. Não digo juntas, mas sim tomadas cada uma por si.

E não deixe de se lembrar que isso é agora, depois de tudo o que vai escrito neste livro, e no que me mantém o Senhor agora. Digo que esses ímpetos foram depois das dádivas que aqui vão ditas, que o Senhor me fez.

16. Estando eu, no início, com medo, como me acontece quase em cada dádiva que me faz o Senhor, até que, indo adiante, Sua Majestade me reassegura, disse-me que não tivesse medo. E que tivesse em conta mais essa dádiva do que todas as que me havia feito, pois nessa dor se purificava a alma. E se lavra ou purifica como o ouro no crisol, para poder pôr melhor os esmaltes de seus dons, e que se purgava ali o que deveria estar no purgatório. Eu percebia bem que era uma grande dádiva, mas fiquei com muito mais segurança, e meu confessor me diz que é bom. E ainda que tenha tido medo, por eu ser tão ruim, nunca pude acreditar que era mau. Antes, o bem tão superabundante me fazia ter medo, lembrando-me de quão mal eu o tinha merecido. Bendito seja o Senhor, que é tão bom!

17. Parece que saí do assunto, porque comecei a falar de arrebatamentos e isso de que falei é ainda mais do que arrebatamento e, assim, deixa os efeitos que eu disse.

18. Agora voltemos ao arrebatamento, sobre o que nele é mais comum. Digo que muitas vezes me parecia que deixava o meu corpo tão leve que todo o peso dele tirava, e às vezes era tanto que eu quase não percebia estar pondo os pés na terra.

Então, quando está no arrebatamento, o corpo fica como morto, sem poder nada por si mesmo, muitas vezes, e do jeito que o toma, fica: se em pé, se sentado, se as mãos abertas, se fechadas. Porque, ainda que poucas vezes, se perdem os sentidos, algumas vezes me aconteceu perdê-los totalmente. São poucas e por pouco tempo. Mas o normal é se turbar. E ainda que não consiga fazer nada sozinha quanto ao exterior, não deixa de perceber e ouvir como se fosse uma coisa de longe. Não digo que perceba e ouça quando está no alto do arrebatamento (digo alto, sobre os tempos que se perdem as potências porque estão muito unidas com Deus), pois então não vê, nem ouve, nem sente, ao que me parece. Mas, como disse na oração de união anterior, essa transformação da alma totalmente em Deus dura pouco. Mas isso que dura, nenhuma potência se sente nem sabe o que se passa ali. Não deve ser possível entender enquanto vivemos na terra. Ao menos não o quer Deus, pois não devemos ser capazes disso. Isso eu vi por mim mesma.

19. O senhor me perguntará como dura, às vezes, tantas horas o arrebatamento, e muitas vezes. O que acontece comigo é que — como já disse sobre a oração anterior — experimenta-se o gozo com intervalos. Muitas vezes a alma mergulha ou, para dizer melhor, mergulha-a o Senhor em si e, mantendo-a assim um pouco, só a vontade permanece. Parece-me que o bulício das duas outras potências é como o que tem a linguazinha desses relógios de sol, que nunca para. Mas, quando quer, o Sol de Justiça as faz deterem-se. Digo que isso é por pouco tempo. Mas como foi grande o ímpeto e o levantamento do espírito, e ainda que essas potências voltem a bulir, a vontade fica mergulhada. E faz, como senhora do conjunto, aquela operação no corpo para que, já que as outras duas potências buliçosas querem estorvar, não a estorvem também os sentidos, que, dos inimigos, são os menores. E na maior parte do tempo ficam fechados os olhos, ainda que não queiramos fechá-los, e se ficam abertos alguma vez — como já disse —, não atinam nem discernem o que veem.

20. Aqui é muito menos o que pode fazer por si, para que quando voltarem a se juntar as potências não haja tanto o que fazer. Por isso, aquele a quem o Senhor der isso não se desconsole quando vê o corpo atado assim por muitas horas, e às vezes a inteligência e a memória desviadas. É verdade que o mais comum é elas estarem embebidas em louvores de Deus ou em querer compreender e entender o que aconteceu com elas. E mesmo para isso não estão bem acordadas, mas sim como uma pessoa que dormiu e sonhou muito e ainda não acabou de despertar.

21. Explico-me tanto em relação a isso, porque sei que há agora — até neste lugar8 — pessoas a quem o Senhor faz essas dádivas. E se os que as governam não passaram por isso, talvez lhes pareça que elas devem estar como mortas no arrebatamento, em especial se não forem letrados, dá pena o que se sofre com os confessores que não entendem, como direi depois.

Talvez eu não saiba o que digo. O senhor entenderá, se atino em alguma coisa, pois o Senhor já lhe deu experiência disso, ainda que, como não é de muito tempo, talvez o senhor não a tenha considerado tanto quanto eu. Assim, ainda que eu tente muito, por longos períodos não há força no corpo para poder se mexer. A alma levou todas consigo.

Muitas vezes fica são — ele que estava bem enfermo e cheio de grandes dores — e com mais habilidade, porque é uma coisa grande o que ali se dá. E o Senhor quer algumas vezes — como digo — que o corpo aproveite, pois já obedece ao que quer a alma. Depois que volta a si, se tiver sido grande o arrebatamento, acontece de andar um dia ou dois, e até três, tão absortas as potências ou tão abobadas, que não parece que está em si.

22. Aí vem o tormento de ter que voltar a viver. Aí nasceram as asas para voar bem. Já caiu a penugem. Aí já se levanta totalmente a bandeira de Cristo, pois não parece outra coisa senão que o alcaide dessa fortaleza sobe, ou o elevam, à torre mais alta, para hastear a bandeira por Deus. Olha para os de baixo como quem está a salvo. Já não teme os perigos, antes os deseja, como quem, de certa maneira, tem ali segurança da vitória. Vê-se aí muito claramente o pouco que se deve estimar tudo o que é daqui e o nada que é. Quem está no alto enxerga muitas coisas. Já não quer querer, nem quereria ter livre-arbítrio e isso pede ao Senhor. Dá a Ele as chaves da sua vontade.

Eis aí o jardineiro feito alcaide. Não quer fazer outra coisa a não ser a vontade do Senhor. Nem quer ser senhor de si, nem de nada, nem de uma uva desse jardim, mas sim que, se houver nele algo de bom, que Sua Majestade reparta. Pois desse ponto em diante não quer coisa própria, mas sim que se faça tudo conforme a glória e a vontade d'Ele.

23. De fato, passa-se assim tudo isso, de verdade, se os arrebatamentos forem verdadeiros, pois a alma fica com os efeitos e os proveitos que foram ditos. E se não forem esses, eu duvidaria que é da parte de Deus. Antes teria medo de que fossem os desvarios de que fala são Vicente.9 Isso eu sei e vi por experiência: ficar a alma totalmente senhora de si e com liberdade em uma hora ou menos, a ponto de não conseguir se reconhecer. Bem vê que não é por si mesma, nem sabe como lhe foi dado tão grande bem, mas percebe claramente o enorme proveito que cada arroubo desses lhe traz.

Não há quem acredite, se não tiver passado por isso. E assim não acreditam na pobre alma, como a viram tão ruim, tão depressa pretender coisas tão valorosas. Porque logo ela dá para não se contentar em servir pouco ao Senhor, mas sim no máximo que puder. Pensam que é tentação e disparate. Se entendessem que não nasce dela, mas do Senhor a quem já deu as chaves de sua vontade, não se espantariam.

24. Tenho para mim que uma alma que chega a esse estado já não fala nem faz nada por si mesma, mas, de tudo o que tem que fazer, cuida esse soberano Rei. Oh, valha-me Deus, pois se vê claramente aqui a explicação do verso e como se entende que tinham razão e a terão todos em pedir asas de pomba!10 Entende-se claramente que é voo, o que dá o espírito para erguer-se acima de todas as coisas criadas. E de si mesmo em primeiro lugar. Mas é voo suave, é voo deleitoso, voo sem ruído.

25. Que soberania tem uma alma que o Senhor faz chegar até aqui, pois vê tudo sem estar enredada! Como está longe do tempo em que esteve enredada! Como está espantada de sua cegueira! Como está penalizada daqueles que estão nela, especialmente se for gente de oração a quem Deus já presenteia! Quereria gritar para mostrar como estão enganados. E até faz assim, às vezes, e chovem mil perseguições em sua cabeça. Consideram-na pouco humilde, e acham que quer ensinar às pessoas de quem deveria aprender, especialmente se for mulher. Aí vem a condenação — e com razão —, porque não sabem o ímpeto que a move, pois às vezes não pode se conter, e não aguenta não tirar do engano aqueles a quem quer bem e deseja ver soltos da prisão — pois não lhe parece ser menos do que isso — dessa vida em que ela esteve.

26. Desanima-se do tempo em que prestou atenção em questões de honra e do engano que cometia em acreditar que era honra o que o mundo chama de honra. Vê que é uma enorme mentira, que todos estamos nela. Entende que a verdadeira honra não é mentirosa, mas verdadeira, tendo como alguma coisa o que é alguma coisa, e o que não é nada, como nada. Pois é tudo nada e menos do que nada o que se acaba e não alegra a Deus.

27. Ri-se de si mesma, do tempo em que tinha em alguma conta o dinheiro e a cobiça dele, ainda que, disso, acredito que nunca — e assim é, de verdade — confessei ser culpada. Grande culpa era considerar o dinheiro alguma coisa. Se com ele se pudesse comprar o bem que agora vejo em mim, teria em alta conta o dinheiro. Mas vê que, esse bem, ganha-se abandonando tudo. O que é que se compra com o dinheiro que desejamos? É coisa cara? É coisa durável? Ou, para que a queremos? Um pesado sossego se busca, pois nos custa tão caro. Muitas vezes se busca com ele o inferno, e compra-se fogo eterno e castigo sem fim. Oh, se todos dessem para considerar o dinheiro como terra sem proveito, como o mundo ficaria em harmonia, como ficaria sem tribulações! Com que amizade todos se tratariam, se não houvesse interesse de honras e dinheiro. Tenho para mim que tudo se remediaria.

28. Vê a grande cegueira dos prazeres, e como compra trabalhos com eles, mesmo para esta vida, e desassossego. Que inquietação! Quão pouca alegria! Quanto trabalho em vão!

Aqui não vê apenas as teias de aranha de sua alma e os pecados grandes, mas um pozinho que haja, por pouco que seja, porque o sol está muito claro. E assim, por muito que trabalhe uma alma para se aperfeiçoar, se esse Sol a toma de verdade, vê-se toda muito turva. É como a água que está num copo, pois se o sol não bater, fica muito límpida, mas, se bater, vê-se que está toda cheia de sujeira.

Essa comparação é ao pé da letra. Antes de estar a alma nesse êxtase, parece que tem cuidado em não ofender a Deus e que, segundo suas forças, faz o que pode. Mas, tendo chegado aqui, onde bate esse Sol de Justiça que a faz abrir os olhos, vê tantas manchas que quereria voltar a fechá-los. Porque ainda não é tão filha dessa águia poderosa para que possa olhar esse Sol cara a cara. Mas, por pouco que tenha os olhos abertos, vê-se toda turva. Lembra-se do verso que diz: "Quem será justo diante de Ti?".11

Quando olha esse divino Sol, ofusca-lhe a claridade. Quando olha para si, o barro tapa seus olhos: cega está essa pombinha. Assim, acontece muitas e muitas vezes de ficar cega assim, totalmente, absorta, desvanecida por tantas grandezas que vê. Aí ganha-se a verdadeira humildade, para não se importar nem um pouco em falar bem de si ou que falem os outros. O Senhor reparte a fruta do jardim e não ela, e assim não pega nada em suas mãos. Todo o bem que tem dirige-se a Deus. Se diz algo por si, é para glória d'Ele. Sabe que ela não tem nada ali, e ainda que quisesse não poderia ignorar isso. Porque vê com os próprios olhos que, ainda que lhe pese, faz com que se fechem para as coisas do mundo e se mantenham abertos para entender verdades.

CAPÍTULO 21

PROSSEGUE E TERMINA ESSE ÚLTIMO GRAU DE ORAÇÃO. DIZ O QUE SENTE A ALMA QUE ESTÁ NELE POR TER QUE VOLTAR A VIVER NO MUNDO E FALA SOBRE A LUZ QUE DÁ O SENHOR SOBRE OS ENGANOS QUE HÁ NELE. CONTÉM BOA DOUTRINA

1. Terminando, então, aquilo em que estava, digo que não é necessário aqui o consentimento dessa alma. Já foi dado, e sabe que, por sua vontade, se entregou em suas mãos e que não pode enganá-lo porque Ele sabe tudo. Não é como aqui, onde se passa a vida toda cheia de enganos e dubiedades. Quando você acha que ganhou a vontade de uma pessoa, pelo que ela mostra a você, percebe que é tudo mentira. Não há quem viva em tanta tribulação. Especialmente quando há algum interesse em jogo, mesmo que pouco. Bem-aventurada a alma que o Senhor leva a perceber verdades! Oh, que estado, esse, para os reis! Como valeria muito mais para eles procurá-lo, em vez de buscar grandes domínios! Que retidão haveria nos reinos! Que males se evitariam e já teriam sido evitados! Desse modo não se tem medo de perder a vida e a honra por amor de Deus. Que grande bem para quem tem mais obrigação de cuidar da honra do Senhor, do que todos os que são menos, já que são os reis que eles seguirão! Por um instante de aumento na fé e de ter dado luz sobre alguma coisa para os hereges, perderia mil reinos, e com razão. Um reino que não se acaba é um outro tipo de ganho, pois com uma só gota desta água que a alma prove parecerá um asco para ela tudo o que há por aqui. O que será, então, quando for totalmente mergulhada?

2. Oh, Senhor, se me désseis condição de dizer isso com clareza, não acreditariam em mim — como fazem com muitos que sabem falar de outra maneira que eu. Mas, pelo menos, eu me satisfaria. Parece-me que teria em pouca conta a vida em troca de explicar uma só verdade destas. Não sei depois o que faria, porque não dá para confiar em mim. Mesmo sendo quem sou, me dá um grande ímpeto, que me consome, de dizer isso aos que mandam. Já que não posso mais do que isso, volto-me a Vós, Senhor, a pedir-vos remédio para tudo. E Vós bem sabeis que eu, de muito boa vontade, me despojaria de todas as dádivas que me fizestes, em troca de ficar em estado em que não vos ofendesse, e as daria aos reis. Porque sei que, então, seria impossível consentir coisas que agora se consentem e deixar de haver enormes bens.

3. Oh, Deus meu, dai-lhes a entender a que estão obrigados, já que Vós os assinalastes na terra de tal maneira que até ouvi dizer que há sinais no céu quando levais a algum. Com certeza isso me desperta a devoção, pois Vós quereis, Rei meu, que até nisso entendam que vos devem imitar em vida, pois de alguma maneira há um sinal no céu em sua morte,1 como quando Vós morrestes.

4. Sou muito atrevida. Rasgue isso, se parecer que está ruim, e creia-me que eu falaria melhor em pessoa, se eu pudesse ou achasse que os reis acreditariam em mim, porque eu os encomendo muito a Deus e quereria que fosse proveitoso. Arriscar a vida consegue tudo, a tal ponto que eu desejo muitas vezes estar sem ela. E seria baixo preço arriscar para ganhar muito, pois já não há quem viva vendo com os próprios olhos o grande engano em que vamos e a cegueira de que sofremos.

5. Chegada uma alma a esse ponto não tem só desejos de Deus: Sua Majestade lhe dá forças para transformá-los em obras. Não se apresenta a ela nenhuma coisa em que crê servir a Deus a que não se lance. E não faz nada de mais, porque — como disse — vê claramente que tudo é nada, a não ser contentar a Deus. O duro é que não há o que se ofereça às que são de tão pouco proveito quanto eu. Sede servido, Bem meu, em que eu possa pagar algum tostão do muito que vos devo. Ordenai, Senhor, como vos agradar, como esta serva vos há de servir em alguma coisa. Outras eram mulheres também, mas fizeram coisas heroicas por amor de Vós. Eu não sirvo para nada além de falar e, assim, Vós não quereis, Senhor meu, pôr-me em obras. O quanto hei de servir-vos vai-se todo em palavras e desejos, e até para isso não tenho liberdade, porque talvez falhasse em tudo. Fortalecei minha alma e disponde-a primeiro, Bem de todos os bens e Jesus meu, e ordenai logo os modos pelos quais eu faça algo por Vós, pois não há quem aguente receber tanto e não pagar nada. Custe o que custar, Senhor, não queirais que eu vá diante de Vós de mãos tão vazias, porque conforme as obras é que se há de dar o prêmio. Aqui está minha vida, aqui está a minha honra e minha vontade. Tudo vos dei. Sou vossa. Disponde de mim conforme a vossa vontade. Bem sei o pouco que posso, Senhor. Mas aproximada de Vós, erguida a esta atalaia de onde se veem verdades, não vos separando de mim, tudo poderei. Pois se vos separardes, por pouco que seja, irei para onde estava antes, que era o inferno.

6. Oh, o que é uma alma que se vê nesse ponto ter que voltar a conversar com todos, a olhar e ver essa farsa dessa vida tão mal-arranjada, em gastar o tempo a cumprir as obrigações para com o corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa. Não sabe como fugir. Vê-se acorrentada e presa. Então sente mais verdadeiramente o cativeiro que carregamos com o corpo e a miséria da vida. Entende como tinha razão São Paulo em suplicar a Deus que o livrasse dela.2 Grita com ele, pede a Deus liberdade, como disse outras vezes, mas aí é com ímpeto tão grande que parece que a alma quer sair do corpo para buscar essa liberdade, já que não a tiram. Anda em terra alheia como vendida, e o que mais a desanima é não achar muitos que se queixem como ela e peçam a mesma coisa. Antes o mais comum é desejar viver. Oh, se não fôssemos apegados a nada, nem tivéssemos posto nossa alegria em coisas da terra, como o tormento de viver sempre sem Ele atenuaria o medo da morte com o desejo de gozar a vida verdadeira!

7. Às vezes penso: quando uma como eu, com uma caridade tão morna e tão incerto o descanso verdadeiro por não tê-lo merecido minhas obras, muitas vezes sinto tanto ver-me neste desterro, qual devia ser o sentimento dos santos? O que deviam passar São Paulo e a Madalena e outros semelhantes em quem tão crescido estava esse fogo do amor de Deus? Devia ser um martírio contínuo. Parece-me que quem me dá algum alívio e com quem não me canso de conversar são as pessoas que acho com esses desejos. Digo desejos com obras. Digo obras porque há pessoas que, em sua própria opinião, estão desapegadas e assim anunciam, e assim deveria ser porque seu estado pede isso e os muitos anos que já começaram caminho de perfeição. Mas conhece bem esta alma de longe os que são da boca para fora e os que já confirmaram essas palavras com obras, porque entendeu o pouco proveito que fazem uns e o muito que fazem os outros. E é coisa que quem tem experiência vê muito claramente.

8. Então, ditos já esses efeitos que fazem os arrebatamentos que são do espírito de Deus, é verdade que há maiores e menores. Digo menores porque, no começo, ainda que se produzam esses efeitos, não estão experimentados com obras e não se pode perceber, assim, que os têm. E também vai crescendo a perfeição e procurando que não haja nem lembrança de teia de aranha e isso requer algum tempo. E quanto mais cresce o amor e a humildade na alma, mais aroma dão por si mesmas essas flores de virtudes, para si e para os outros. É verdade que o Senhor pode operar na alma durante um arroubo desses de maneira que fique pouco para a alma trabalhar em adquirir perfeição. Porque ninguém poderia acreditar, se não experimentasse, o que o Senhor dá a ela aí. Pois não há providência nossa que chegue a isso, na minha opinião. Não digo que, com o favor do Senhor, servindo-se por muitos anos de todos os meios sobre os quais escrevem os que escreveram sobre oração, seus princípios e métodos, não cheguem à perfeição e a muito desapego com grandes trabalhos. Mas não em tão pouco tempo como, sem nenhum esforço nosso, opera o Senhor aí, e tira com determinação a alma da terra e lhe dá soberania sobre o que há nela. Ainda que nessa alma não haja mais merecimento do que havia na minha, e não posso exagerar isso, porque o meu merecimento era nenhum.

9. O porquê de Sua Majestade fazê-lo é porque quer e, como quer, faz. E ainda que não haja na alma disposição, Ele a dispõe para receber o bem que Sua Majestade lhe dá. Assim, nem sempre os dá porque mereceram por cuidar bem do jardim — ainda que seja muito certo que a quem faz isso bem e procura desapegar-se, Ele não deixa de presentear —, mas sim porque é sua vontade mostrar sua grandeza, às vezes, na terra que é pior, como já disse. E prepara-a toda para o bem, de maneira que parece que ela já não toma parte, de certa maneira, em voltar a viver nas ofensas de Deus em que costumava viver. Tem o pensamento tão habituado a entender o que é a verdadeira verdade, que todo o resto lhe parece brincadeira de criança. Ri consigo mesma, muitas vezes, quando vê pessoas graves de oração e de vida religiosa fazer muito caso de questões de honra que essa alma tem já debaixo dos pés. Dizem que é discernimento e autoridade de seu estado para maior bem. Ela sabe muito bem que teriam mais proveito em um dia que dispensassem aquela autoridade de estado por amor de Deus, do que se ficassem com ela por dez anos.

10. Assim vive uma vida trabalhosa e sempre com cruz, mas vai com grande crescimento. Quando parece àqueles que convivem com ela que está no auge, depois de um pouco está muito melhorada, porque Deus a vai favorecendo sempre mais. É uma alma sua. É Ele que a tem já a seu cargo e, assim, brilha. Porque parece que a está sempre guardando de modo assistente3 para que não o ofenda, e favorecendo-a e despertando-a para que lhe sirva.

Tendo chegado minha alma a ponto de que Deus lhe fizesse essa dádiva tão grande, cessaram os meus males, e me deu o Senhor fortaleza para sair deles. E não me fazia mais estar em ocasião de pecado. E com gente que costumava me distrair, era como se não estivesse. Antes me ajudava o que costumava me causar dano. Tudo me servia de meio para conhecer mais a Deus e amá-lo e ver o que devia a Ele e sentir pesar por quem eu havia sido.

11. Eu sabia bem que aquilo não vinha de mim, nem havia ganhado aquilo com meu esforço, pois até não tinha tido tempo para tanto. Sua Majestade me havia dado fortaleza para isso só por sua bondade.

Até agora, desde que o Senhor começou a me fazer essa dádiva desses arrebatamentos, tem crescido sempre a fortaleza. E, por sua bondade, tem me segurado pela mão para que eu não volte atrás. Nem me parece, quando é assim, que faço nada, quase, de minha parte, mas entendo claramente que é o Senhor que opera. E por isso me parece que as almas a quem o Senhor faz essas dádivas, avançando com humildade e temor, entendendo sempre que é o próprio Senhor que o faz, e nós mesmos não fazemos quase nada, poderiam se colocar entre todo tipo de pessoas. Ainda que sejam as mais distraídas e viciosas, não lhes fará caso, nem a abalarão em nada. Antes, como disse, isso a ajudará e será meio de tirar muito maior aproveitamento. São, já, almas fortes, que o Senhor escolhe para serem de proveito a outras, ainda que essa fortaleza não venha delas mesmas. Pouco a pouco, aproximando o Senhor uma alma desse estado, vai comunicando a ela segredos muito grandes.

12. Aí se dão as verdadeiras revelações, nesse êxtase. E as grandes dádivas e visões. E tudo se aproveita para tornar humilde e fortalecer a alma. E fazer com que tenha em menor consideração as coisas desta vida e conheça mais claramente as grandezas do prêmio que o Senhor preparou para os que o servem. Queira Sua Majestade que a enorme largueza que teve com esta miserável pecadora contribua para que os que lerem isto se esforcem e criem coragem de deixar tudo totalmente por Deus. Já que Sua Majestade paga tão plenamente, que ainda nesta vida se vê claramente o prêmio e o ganho que têm aqueles que o servem, o que será na outra?

CAPÍTULO 22

EM QUE TRATA SOBRE QUÃO SEGURO CAMINHO É, PARA OS CONTEMPLATIVOS, NÃO ERGUER O ESPÍRITO A COISAS ALTAS SE O SENHOR NÃO O ERGUER, E COMO HÁ DE SER O MEIO PARA A MAIS ELEVADA CONTEMPLAÇÃO A HUMANIDADE DE CRISTO. FALA DE UM ENGANO EM QUE ELA ESTEVE POR UM TEMPO. É MUITO PROVEITOSO ESTE CAPÍTULO

1. Quero dizer uma coisa que, na minha opinião, é importante. Se parecer bem para o senhor, servirá de aviso, pois pode ser que haja necessidade. Porque em alguns livros que foram escritos sobre oração diz-se que, ainda que a alma não possa por si mesma chegar a esse estado — porque é tudo obra sobrenatural que o Senhor opera nela —, poderia ajudar-se elevando o espírito acima de todas as coisas criadas e erguendo-o com toda a humildade, depois de muitos anos que tenha ido pela vida purgativa e progredindo pela iluminativa.

Eu não sei bem por que dizem "iluminativa". Entendo que é sobre os que vão progredindo. E avisam muito para que afastem de si toda imaginação corpórea e que se aproximem de contemplar a Divindade. Porque dizem que, mesmo que seja a Humanidade de Cristo, aos que chegam a ponto tão avançado, ela atrapalha ou impede a contemplação mais perfeita. Citam o que disse o Senhor aos Apóstolos1 sobre a vinda do Espírito Santo — digo, quando subiu aos céus — para esse propósito.

A mim me parece que, se tivessem a fé, como tiveram depois que veio o Espírito Santo, de que era Deus e homem, não lhes atrapalharia. Porque não se disse isso à Mãe de Deus, ainda que ela o amasse mais que todos.

É que parece a esses autores que, como toda essa obra é do espírito, qualquer coisa corpórea pode estorvá-la ou impedir. E que considerar de maneira direta que Deus está em toda parte e ver-se mergulhado n'Ele é o que devem procurar.

O que me parece bem, às vezes. Mas afastar-se totalmente de Cristo, e que esse divino Corpo entre na conta de nossas misérias e de todas as coisas criadas não posso aguentar. Queira Sua Majestade que eu sabia me fazer entender.

2. Não os estou contradizendo, porque são letrados e espirituais, e sabem o que dizem e por muitos caminhos e vias Deus leva as almas. Quero dizer agora como levou a minha — no resto não me intrometo — e no perigo em que me vi por querer me amoldar ao que lia. Acredito bastante que quem chegar a ter união e não passar adiante, digo a arrebatamentos e visões e outras dádivas que Deus faz às almas, teria o que foi dito como o que há de melhor. E se eu tivesse ficado nisso, creio que nunca teria chegado ao de agora, porque, na minha opinião, é um engano. Pode bem ser que seja eu a enganada, mas direi o que me aconteceu.

3. Como eu não tinha mestre e lia esses livros, pelos quais pouco a pouco eu pensava saber alguma coisa (depois percebi que, se o Senhor não tivesse me mostrado, eu poderia ter aprendido pouco com os livros, porque era nada o que eu sabia até que Sua Majestade por experiência me fez entender. Eu nem sabia o que fazia), começando a ter alguma coisa de oração sobrenatural, quero dizer, de quietude, procurava desviar toda coisa corpórea, ainda que eu não ousasse ir erguendo a alma, pois, como eu era sempre tão ruim, via que seria atrevimento. Mas parecia-me sentir a presença de Deus, como de fato acontece, e procurava ficar recolhida com ele. E é oração saborosa, se Deus ajuda, e grande o deleite.

E quando se vê aquele ganho e aquele prazer, já não havia quem me fizesse voltar à Humanidade; antes, de fato, me parecia que seria um impedimento.

Oh Senhor de minha alma e Bem meu, Jesus Cristo crucificado! Não me lembro nem uma vez dessa opinião que tive sem que fique triste. E me parece que cometi uma grande traição, ainda que por ignorância.

4. Eu tinha sido tão devota em toda a minha vida de Cristo (porque isso já era depois — digo, depois, mas antes que o Senhor me tivesse feito essas dádivas de arrebatamentos e visões — e durou muito pouco ser dessa opinião em tal extremo) e, assim, sempre voltava ao meu costume de me alegrar com o Senhor, especialmente quando comungava. Quisera eu trazer sempre diante dos olhos seu retrato e imagem, já que não podia trazê-lo esculpido na alma como queria.

É possível, Senhor meu, que tenha cabido em meu pensamento, por uma hora sequer, que Vós me havíeis de impedir um bem maior? De onde me vieram todos os bens, senão de Vós? Não quero pensar que tive culpa nisso, porque me entristeço muito. Pois com certeza era ignorância, e assim quisestes Vós, por vossa bondade, remediá-la, dando-me quem me tirasse desse erro. E, depois, fazendo com que eu Vos visse tantas vezes, como direi adiante, para que entendesse com mais clareza quão grande erro era. E que eu o dissesse a muitas pessoas, pois eu o disse. E para que eu pusesse isso agora aqui.

5. Tenho para mim que a causa de não aproveitarem mais muitas almas e não chegarem a uma liberdade de espírito muito grande, quando chegam a ter oração de união, é por isso. Parece-me que há duas razões em que posso fundamentar meu argumento. E, talvez, não esteja dizendo nada, mas o que disser, eu vi por experiência, pois se encontrava muito mal a minha alma até que o Senhor deu luz a ela. Porque todos os seus gozos eram aos goles, e, saída dali, não se achava na companhia que, depois, para sofrimentos e tentações, achava.

Uma razão é que vai nisso um pouco de pouca humildade, tão dissimulada e escondida que não se percebe. E quem será o soberbo e miserável, como eu, que, quando tiver trabalhado toda a sua vida com quantas penitências e orações e perseguições se puderem imaginar, não se dê por muito rico e por muito bem pago, quando o Senhor lhe consentir estar ao pé da cruz como são João? Não sei em que mente cabe não se contentar com isso, a não ser na minha, que de todas as maneiras se perdeu no que devia ganhar.

6. Então, se não se aguenta sempre a condição ou a doença, por ser penoso pensar na Paixão, quem nos impede de estar com Ele depois de ressuscitado, uma vez que tão perto o temos no Sacramento, onde está já glorificado, e não o veremos tão aflito e feito em pedaços, derramando sangue, cansado pelos caminhos, perseguido por aqueles a quem fazia tanto bem, não crido pelos apóstolos? Porque com certeza não há quem aguente pensar todas as vezes em tantos sofrimentos como Ele passou. Ei-lo aqui sem sofrimento, cheio de glória, dando força a uns, animando a outros, antes de subir aos céus, companheiro nosso no Santíssimo Sacramento. Parece que não esteve em seu poder afastar-se de nós nem por um momento. E que tenha estado no meu afastar-me de Vós, Senhor meu, para mais vos servir! Pois quando vos ofendia, eu não vos conhecia, mas que, conhecendo-vos, pensasse ganhar mais por esse caminho! Oh, que mau caminho percorria, Senhor! Parece-me até que ia sem caminho, se Vós não me tivésseis feito voltar a ele, pois ao ver-vos junto a mim, vi todos os bens. Não me vieram tormentos que, olhando para Vós do jeito que estivestes diante dos juízes, não se tenham tornado bons de sofrer. Com tão bom amigo presente, com tão bom capitão, que se pôs primeiro no sofrimento, tudo se pode aguentar: é ajuda e dá forças, nunca falta, é amigo verdadeiro. E eu vejo claramente — e vi depois — que, para contentar a Deus e para que nos faça grandes dádivas, Ele quer que seja por mãos dessa Humanidade sacratíssima, em quem Sua Majestade disse que se deleita. Muitas e muitas vezes eu vi isso por experiência. O Senhor me disse. Vi claramente que temos que entrar por essa porta, se quisermos que a soberana Majestade nos mostre grandes segredos.

7. Assim, não queira o senhor, padre, outro caminho, ainda que esteja no ápice da contemplação. Por aí vai com segurança. Esse Senhor nosso é aquele por quem nos vêm todos os bens. Ele o ensinará. Olhando sua vida, será o melhor modelo. O que mais queremos de um tão bom amigo ao lado, que não nos deixará nos trabalhos e nas tribulações, como fazem os do mundo? Bem-aventurado quem o amar de verdade e sempre o trouxer junto de si. Olhemos o glorioso São Paulo, pois não parece que lhe saía da boca Jesus. Como quem o tinha sempre bem no coração. Eu observei com cuidado, depois que percebi isso em alguns santos, grandes contemplativos, e não iam por outro caminho: são Francisco dá mostra disso nas chagas; santo Antônio de Pádua, o Menino; são Bernardo se deleitava na Humanidade; santa Catarina de Siena, muitos outros, o senhor saberá melhor do que eu.

8. Isso de se afastar do corpóreo deve ser bom, com certeza, pois gente tão espiritual o diz. Mas, na minha opinião, há de ser estando a alma muito avançada, porque, até então, está claro que se deve buscar ao Criador pelas criaturas. Tudo é como a dádiva que o Senhor faz a cada alma. Nisso eu não me intrometo. O que eu queria explicar é que não há de entrar nessa conta a sacratíssima Humanidade de Cristo. E entenda-se bem esse ponto, que eu quereria saber explicar.

9. Quando Deus quer suspender todas as potências, como vimos nos modos de oração que ficam ditos, está claro que, ainda que não queiramos, se tira essa presença. Então vai em boa hora. Feliz perda essa, pois é para mais gozar daquilo que nos parece que se perde. Porque então emprega-se toda a alma em amar a quem a inteligência trabalhou para conhecer. E ama o que não compreendeu. E goza daquilo de que não poderia gozar tão bem se não fosse perdendo-se a si mesma, para, como disse, ganhar-se mais. Mas que nós mesmos, com manha e com cuidado, nos acostumemos a não procurar com todas as nossas forças trazer sempre diante de si — e quisesse o Senhor que fosse sempre — essa sacratíssima Humanidade, isso eu digo que não me parece bem e que é andar a alma no ar, como dizem. Porque parece que não tem apoio, por muito que lhe pareça que está plena de Deus. É uma grande coisa, enquanto vivemos e somos humanos, trazer-lhe humano diante dos olhos. Pois este é o outro inconveniente que digo que há. O primeiro, já comecei a dizer, é um pouco de falta de humildade de querer erguer-se a alma antes que o Senhor a eleve, e não se contentar em meditar coisa tão preciosa, e querer ser Maria, antes que tenha trabalhado com Marta.2 Quando o Senhor quiser que seja, mesmo que seja desde o primeiro dia, não há o que temer. Mas sejamos nós comedidos, como creio que já disse uma outra vez. Esse fiapinho de pouca humildade, ainda que pareça não ser nada, para quem quer avançar na contemplação, causa muito dano.

10. Voltando ao segundo ponto, nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra — e tão na terra quanto eu estava — é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal. Ainda que algumas vezes a alma saia de si, ou ande muitas vezes tão plena de Deus que não tem necessidade de coisa criada para colhê-la, isso não é tão comum. Nos afazeres e perseguições e tormentos, quando não se pode ter tanta quietude, e em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia. E tendo o hábito, é muito fácil achá-lo junto a si, ainda que vezes virão em que nem um nem outro se possa. Para isso é bom o que eu já disse: não nos expor a procurar consolações de espírito. Venha o que vier, abraçados à cruz, será coisa grande. Desertado ficou esse Senhor de toda a consolação. Sozinho o deixaram em meio aos tormentos. Não o deixemos nós, pois, para subir mais. Ele nos dará melhor mão do que nossa iniciativa, e se ausentará quando vir que convém e que quer o Senhor tirar a alma de si, como eu disse.

11. Alegra muito a Deus ver uma alma que, com humildade, põe como terceiro a seu Filho e o ama tanto que, ainda querendo Sua Majestade elevá-lo a uma contemplação muito grande — como já disse — sabe-se indigna, dizendo com são Pedro: "Afastai-vos de mim, Senhor, porque sou um homem pecador".3 Eu provei disso. Desta forma levou Deus minha alma. Outros irão, como já disse, por outro atalho.

O que eu aprendi é que todo o alicerce da oração funda-se em humildade, e que quanto mais se abaixa uma alma na oração, mais a eleva Deus. Não me lembro de ter me feito dádiva muito notável, das que adiante falarei, que não fosse estando eu aniquilada por ver-me tão ruim. E até procurava Sua Majestade fazer-me entender coisas para ajudar-me a me conhecer, pois eu não saberia imaginá-las. Tenho para mim que, quando a alma faz de sua parte algo para se ajudar nessa oração de união, ainda que lhe pareça que é com proveito, como coisa não bem fundada voltará muito depressa a cair. E tenho medo de que nunca chegará à verdadeira pobreza de espírito, que é não procurar consolo nem prazer na oração — pois os da terra já foram deixados —, mas sim consolação nos tormentos por amor d'Ele que sempre viveu neles, e ficar quieta neles e na secura. Ainda que se sinta alguma coisa, não é para dar a inquietação e a tristeza que dá a algumas pessoas que, se não estiverem sempre trabalhando com o entendimento e com ter devoção, pensam que estará tudo perdido. Como se por seu trabalho merecessem tanto bem. Não digo que não se procurem essas coisas e estejam com cuidado diante de Deus, mas que se não puderem ter nem mesmo um bom pensamento, como de uma outra vez disse, não se matem. Servos sem utilidade somos, o que é que pensamos poder?

12. O Senhor quer mais é que reconheçamos isso e andemos transformados em asninhos para puxar a roda-d'água de que falamos. Porque, ainda que de olhos fechados e não sabendo o que fazem, tirarão mais água do que o jardineiro com todo seu esforço. Com liberdade se deve andar nesse caminho, postos nas mãos de Deus. Se Sua Majestade quiser nos elevar a ser de sua câmara e intimidade, devemos ir de boa vontade. Se não, é servir em ofícios baixos e não sentar no melhor lugar, como eu já disse algumas vezes. Deus tem mais cuidado do que nós e sabe para que serve cada um. De que adianta governar-se a si quem já deu toda a sua vontade a Deus? Na minha opinião, é muito menos aceitável aí do que no primeiro grau de oração e causa muito mais dano. São bens sobrenaturais. Se alguém tem voz ruim, por muito que se esforce para cantar, não a tornará boa. Se Deus a quiser dar, não há necessidade de gritar antes. Então, peçamos sempre que nos faça dádivas, rendida a alma, confiando na grandeza de Deus. Já que para estar aos pés de Cristo lhe dão licença, que procure não sair dali. Fique como quiser. Imite a Madalena, que, assim que estiver forte, Deus a levará ao deserto.

13. Assim, o senhor, padre, até que ache quem tenha mais experiência do que eu e saiba mais, fique nisso. Se forem pessoas que estão começando a saborear Deus, não acredite nelas, pois lhes parece que lhes traz mais proveito e têm mais gosto ajudando-se. Oh, quando Deus quer, como se manifesta sem essas ajudazinhas! Pois, por mais que façamos, arrebata o espírito como um gigante pegaria uma palha, e não há resistência que baste. Que maneira de crer, pois espera que o sapo voe por si mesmo quando quiser! E me parece ainda mais difícil e pesado de se erguer o nosso espírito do que um sapo, porque está carregado de terra e de mil impedimentos. E adianta-lhe pouco querer voar, porque, ainda que seja mais da sua natureza do que da do sapo, já está tão metido na lama que perdeu essa natureza por sua culpa.

14. Quero então concluir com isto: sempre que se pense em Cristo, recordemo-nos do amor com que nos fez tantas dádivas, e de quão grande nos mostrou ser o amor que nos tem ao dar-nos uma tal prenda. Pois amor gera amor. E ainda que estejamos bem no começo e sejamos muito ruins, procuremos ir olhando sempre para isso e despertando-nos para amar. Porque, se uma vez nos fizer o Senhor a dádiva de que se grave no coração esse amor, tudo nos será fácil e faremos obras muito rapidamente e muito sem esforço. Sua Majestade nos dê esse amor — já que sabe o muito que nos convém — pelo amor que Ele teve por nós e por seu glorioso Filho, que, com tanto custo, no-lo mostrou, amém.

15. Eu gostaria de perguntar uma coisa ao senhor: como, ao começar o Senhor a fazer dádivas tão elevadas a uma alma, como é o pô-la em perfeita contemplação, já que com razão devia ficar logo totalmente perfeita (com razão, sim, com certeza, porque quem recebe dádiva tão grande não deveria mais querer consolos da terra), então, por que, no arrebatamento e quando a alma já está mais habituada a receber dádivas, parece que a dádiva traz consigo efeitos tão mais elevados, e, quanto mais habituada, mais desapegada fica? Já que em um instante que o Senhor se aproxima poderia deixá-la santificada, como, depois, passando o tempo, deixa-a o Senhor com maior perfeição nas virtudes?

Isso é o que eu quero saber, pois não sei. Mas sei bem que é diferente o que Deus deixa de fortaleza quando, no princípio, não dura mais do que um piscar de olhos e quase não se sente, a não ser nos efeitos que deixa, ou quando dura mais tempo essa dádiva. E ocorre-me muitas vezes se não seria o não se dispor logo totalmente a alma, até que o Senhor, pouco a pouco, acostuma-a, e a faz decidir-se e dá forças masculinas para que jogue de uma vez tudo no chão. Como fez com a Madalena, rapidamente, faz com outras pessoas, conforme o que elas fazem para deixar Sua Majestade fazer. Não conseguimos acreditar que, ainda nesta vida, Deus dá a cento por um.4

16. Eu também pensava nesta comparação: embora seja tudo uma coisa só que se dá a quem vai mais além do que o princípio, é como uma iguaria da qual comem muitas pessoas. Para as que comem um pouquinho, fica só o sabor bom por um tempo. Às que comem mais, ajuda a sustentar. Às que comem muito, dá vida e força. E tantas vezes se pode comer e tão fartamente dessa iguaria de vida, que já não comem coisa que lhes saiba bem, a não ser ela. Porque veem o bem que faz, e já tomaram tanto gosto pela suavidade dela, que prefeririam não viver mais a ter que comer outras coisas, que não servem para nada a não ser tirar o gosto bom que a iguaria boa deixou.

Também uma companhia santa não traz tanto seu proveito em um dia, mas em muitos. E podem ser tantos os que passemos com ela, que poderemos ser como ela, se Deus nos favorecer. E, no fim, tudo está no que Sua Majestade quer e a quem quer dá-lo. Mas muito importa decidir-se, quem já começa a receber essa dádiva, a desapegar-se de tudo e a tê-la na devida conta.

17. Também me parece que Sua Majestade anda a testar quem o quer, se um, se outro, revelando com deleite tão supremo quem Ele é, para avivar a fé — se estiver morta — daquilo que nos há de dar, dizendo: "Olha, pois isto é uma gota do mar enorme de bens", para não deixar nada por fazer com os que ama. E quando vê que o recebem, aí dá e se dá. Quer a quem o quer. E que bem querido e que bom amigo!

Oh, Senhor de minha alma, e quem teria palavras para fazer entender que dais aos que confiam em Vós, e que perdem os que chegam a esse estado e permanecem consigo mesmos! Vós não quereis isso, Senhor, já que mais que isso fazeis, pois vindes a uma pousada tão ruim como a minha. Bendito sejais para sempre e sempre!

18. Volto a suplicar ao senhor que essas coisas que escrevi sobre oração, se tratar delas com pessoas espirituais, que o sejam. Porque, se não souberem mais do que um caminho, ou se tiverem ficado no meio, não poderão atinar com isso. E há algumas que Deus logo leva por caminho muito elevado e parece a elas que os outros poderão tirar proveito ali e acalmar a inteligência e não se aproveitar de meios das coisas corpóreas, mas ficarão secos como um pau. E alguns que tenham tido um pouco de quietude logo pensam que, como têm uma coisa, podem fazer a outra. E, em lugar de avançar, regridem, como eu já disse. Assim, em tudo é necessário ter experiência e discernimento. O Senhor no-las dê, por sua bondade.

CAPÍTULO 23

EM QUE VOLTA A TRATAR DO CURSO DE SUA VIDA E COMO COMEÇOU A FALAR DE MAIOR PERFEIÇÃO E POR QUE MEIOS. É MUITO PROVEITOSO PARA AS PESSOAS QUE TRATAM DE GOVERNAR ALMAS QUE TÊM ORAÇÃO SABEREM COMO DEVEM AGIR NO COMEÇO, E O PROVEITO QUE LHE FEZ SABER LEVÁ-LA

1. Agora quero voltar aonde deixei minha vida — pois me detive, creio, mais do que devia me deter — para que se entenda melhor o que está por vir. É um outro livro novo daqui para a frente, digo, outra vida nova. A de até aqui era minha. A que vivi desde que comecei a explicar essas coisas de oração é a que vivia Deus em mim, pelo que me parecia. Porque eu sei que era impossível sair em tão pouco tempo de tão maus costumes e obras. Seja o Senhor louvado, pois me livrou de mim.

2. Começando, então, a deixar as ocasiões de pecado e dedicar-me mais à oração, começou o Senhor a fazer-me as dádivas como quem desejasse — pelo que me pareceu — que eu as quisesse receber.

Começou o Senhor a me dar muito costumeiramente oração de quietude, e muitas vezes de união, que duravam longo tempo. Como nesse tempo havia acontecido grandes ilusões em mulheres1 e enganos que lhes havia feito o demônio, sendo grande o deleite e suavidade que eu sentia, e muitas vezes sem poder evitar, comecei a ter medo. Ainda que visse em mim, por outro lado, uma enorme segurança de que era Deus. Especialmente quando estava na oração e via que ali eu ficava muito melhorada e com mais fortaleza. Mas, distraindo-me um pouco, voltava a ter medo. E pensava se o demônio queria, fazendo-me achar que aquilo era bom, suspender o entendimento para tirar-me a oração mental e fazer com que eu não pudesse pensar na Paixão, nem me aproveitar do entendimento, o que, como eu não entendia, me parecia a maior perda.

3. Mas como Sua Majestade já queria dar-me luz, para que não o ofendesse e soubesse o muito que lhe devia, cresceu de tal modo esse medo que me fez procurar com diligência pessoas espirituais com quem conversar, pois eu já tinha notícias de algumas. Porque tinham vindo aqui os da Companhia de Jesus, a quem eu — sem conhecer nenhum — era muito afeiçoada, só por saber o modo de vida e de oração que levavam. Mas não me achava digna de falar com eles, nem forte para obedecê-los, e isso me fazia ter mais medo. Porque conversar com eles e ser quem eu era, era para mim uma coisa dura.

4. Fiquei nisso por algum tempo, até que, com muita carga de artilharia contra mim, pela qual passei, e temores, me decidi a conversar com uma pessoa espiritual. Para perguntar a ela o que era a oração que eu tinha e que me desse luz, se estivesse errada, e fazer todo o possível para não ofender a Deus. Porque a falta de fortaleza que via em mim — como já disse — me deixava muito tímida.

Que grande engano, valha-me Deus, pois por querer ser boa, afastava-me do bem! O demônio deve investir muito nisso no começo da virtude. Porque eu não podia comigo. Ele sabe que todos os recursos de uma alma estão em conversar com amigos de Deus, e, assim, não havia meio para que eu me decidisse a isso. Esperava emendar-me primeiro — como quando deixei a oração — e talvez nunca o tivesse feito, porque já estava tão caída em coisinhas de mau costume que não conseguia entender que eram más, e tinha necessidade de outros e de que me dessem a mão para me levantar. Bendito seja o Senhor, pois, no fim, a dele foi a primeira.

5. Quando eu vi que avançava tanto meu medo, porque crescia a oração, pareceu-me que havia nisso algum grande bem ou enorme mal. Porque eu percebia bem que já era coisa sobrenatural o que eu tinha. Porque algumas vezes não conseguia resistir, e tê-lo quando eu queria, era inútil.

Pensei comigo que não haveria remédio se não procurasse manter a consciência limpa e me afastar de toda ocasião de pecado, ainda que fosse de pecados venais. Porque, se fosse espírito de Deus, estava claro o ganho, se fosse demônio, tentando eu manter contente ao Senhor e não o ofendendo, pouco dano poderia me causar, antes ele é que sairia perdendo. Determinada a isso e suplicando sempre a Deus que me ajudasse, tentando fazer o que disse por alguns dias, vi que minha alma não tinha força para sair-se com tanta perfeição sozinha, por algumas afeições que tinha a coisas que, ainda que, em si, não fossem más, bastavam para estragar tudo.

6. Falaram-me de um clérigo letrado2 que havia nesse lugar, que o Senhor começava a tornar conhecido das pessoas por sua bondade e por sua vida boa. Eu o procurei por meio de um santo cavalheiro3 que há nesse lugar. É casado, mas de vida tão exemplar e virtuosa, e de tanta oração e caridade, que nele todo resplandece a sua bondade e perfeição. E com muita razão, porque um grande bem veio a muitas almas por meio dele, por ter tantos talentos, que, mesmo não o ajudando seu estado, não pode deixar de usá-los. Tem muita inteligência e é muito suave com todos. Sua conversa não é pesada, e é tão suave e graciosa, além de ser reta e santa, que dá grande alegria a quem com ele conversa. Tudo ordena para grande bem das almas com que convive, e não parece ter outro empenho que não seja o de fazer a todos que vê o que pode, e contentar a todos.

7. Pois esse bendito e santo homem, com sua capacidade, parece-me que foi o princípio de que minha alma se salvasse. Sua humildade me espanta, pois tem — acredito eu — pouco menos de quarenta anos de oração (não sei se são dois ou três menos), e leva toda a vida de perfeição que seu estado permite. Porque tem uma mulher4 que é tão grande serva de Deus e de tanta caridade que, por ela, não se perde. Enfim, como uma mulher de quem Deus sabia que havia de ser tão grande servo seu, e a escolheu. Parentes dele estavam casados com parentes meus e também tinha muita comunicação com outro grande servo de Deus que estava casado com uma prima minha.5

8. Por essa via procurei fazer com que viesse falar comigo esse clérigo de que falei, tão servo de Deus, e que era muito amigo dele, com quem pensei confessar-me e ter como mestre. Então, trazendo-o para que falasse comigo, e eu numa enorme confusão de me ver na presença de homem tão santo, falei um pouco de minha alma e oração, porque ele não quis ouvir minha confissão. Disse que era muito ocupado, e assim era.

Começou com santa determinação a levar-me como se eu fosse forte. Com razão, pois eu deveria ser, de acordo com a oração que ele viu que eu tinha, para que não ofendesse de nenhuma maneira a Deus. Eu, quando vi sua determinação tão rápida nas ninharias que, como disse, eu não tinha fortaleza para deixar logo com tanta perfeição, afligi-me. E quando vi que tomava as coisas de minha alma como coisa que de uma vez só daria por acabada, eu via que era necessário muito mais cuidado.

9. Por fim, percebi que não era pelos meios que ele me dava que eu haveria de me remediar, porque eram para alma mais perfeita. E eu, ainda que nas dádivas de Deus estivesse avançada, estava muito no princípio nas virtudes e na mortificação. E com certeza, se não tivesse que falar com ele nunca mais, creio que nunca medraria minha alma. Porque a aflição que me dava ver que eu não fazia — e nem era capaz, parece — o que ele me dizia bastava para perder a esperança e abandonar tudo.

Às vezes me maravilho de como, sendo uma pessoa que tem uma graça particular para se aproximar das almas, não foi capaz de entender a minha e nem quis se encarregar dela. E vejo que foi tudo para meu maior bem. Para que eu conhecesse e conversasse com gente tão santa quanto a da Companhia de Jesus.

10. Dessa vez ficou combinado com esse cavalheiro santo que viesse às vezes me ver. Aí se viu sua grande humildade: querer conviver com pessoa tão ruim quanto eu. Começou a visitar-me e a animar-me e dizer-me que não pensasse que, em um dia, havia de me afastar de tudo. Que pouco a pouco Deus o faria. Que ele mesmo havia passado alguns anos em coisas bem triviais, que ele não tinha conseguido largar por si mesmo. Oh, humildade, que fazes grandes bens onde estás e aos que se aproximam de quem tem! Contava-me esse santo, pois, na minha opinião, com razão posso dar-lhe esse nome, suas fraquezas, pois a ele, com sua humildade, pareciam ser para meu remédio. E levando em conta seu estado, de casado, não eram faltas nem imperfeições, e, levando em conta o meu, de religiosa, era enorme imperfeição mantê-las.

Eu não digo isso sem propósito, ainda que pareça que me estendo em minúcias. Mas elas importam tanto para começar a fazer progredir uma alma e levá-la a voar — pois ainda não tem penas, como dizem — que ninguém acreditará, a não ser quem tenha passado por isso. E, por esperar eu em Deus que o senhor, padre, há de ser de proveito para muitas almas, falo disso aqui. Pois toda a minha salvação foi esse cavalheiro saber curar-me e ter humildade e caridade para ficar comigo, e sofrimento de ver que eu não me emendava de todo. Ia com discernimento, pouco a pouco dando jeito de vencer o demônio. Eu comecei a ter um grande amor por ele, e não havia para mim maior descanso do que os dias em que o via, ainda que fossem poucos. Quando ele demorava, logo me afligia muito, parecendo-me que por eu ser tão ruim ele não vinha.

11. Conforme ele foi percebendo minhas imperfeições tão grandes, até seriam pecados (ainda que, depois que comecei a conviver com ele estivesse mais emendada), e quando lhe contei as dádivas que Deus me fazia para que me esclarecesse, disse-me que não combinava uma coisa com a outra. Que aqueles presentes eram já para pessoas muito avançadas e mortificadas. Que não podia deixar de ter muito medo, porque lhe parecia que, em algumas coisas, era espírito mau — ainda que não conseguisse se decidir —, mas que eu pensasse tudo o que entendia de minha oração e dissesse a ele. E era muito trabalho, pois eu não sabia dizer nada sobre o que era minha oração. Porque essa dádiva de saber entender o que é, e saber dizê-lo, faz pouco tempo que Deus me deu.

12. Quando ele me disse isso, com o medo que eu tinha, foram grandes minha aflição e minhas lágrimas. Porque, com certeza, eu queria alegrar a Deus. E não consegui me convencer de que fosse o demônio. Mas tinha medo de que, por meus grandes pecados, Deus me cegasse para que eu não percebesse.

Olhando nos livros para ver se saberia falar da oração que tinha, achei em um que chamam de A subida do monte,6 no que toca à união da alma com Deus, todos os sinais que eu tinha naquele não pensar nada. Pois isso era o que eu mais dizia: que não podia pensar nada quando tinha aquela oração. E marquei com linhas que partes eram e dei o livro para que ele e o outro clérigo de que falei, santo e servo de Deus, olhassem e me dissessem o que devia fazer. E que se lhes parecesse deixaria totalmente a oração. Pois para que iria eu me meter nesses perigos, já que depois de quase vinte anos que eu a tinha não saíra ganhando nada, a não ser enganos do demônio? Que era melhor não a ter. Ainda que isso também fosse duro para mim, porque eu já tinha experimentado como ficava minha alma sem oração.

Assim, eu via ser tudo penoso. Como quem está dentro de um rio e a qualquer parte que vá dele tem mais medo do perigo e já está quase se afogando. Esse é um tormento muito grande. E como esses eu passei muitos, como direi mais adiante, porque ainda que pareça que não importa, talvez seja proveitoso saber como deve ser provado o espírito.

13. E é grande, com certeza, o trabalho por que se passa, e é preciso tento, especialmente com as mulheres, porque é grande nossa fraqueza e poderia vir muito mal dizendo muito diretamente a elas que é o demônio. Antes deve-se olhar tudo muito bem e afastá-las dos perigos que pode haver e avisá-las em segredo para que tomem muito cuidado e o tenham também eles, pois convém.

E nisso eu falo como alguém a quem custou muito trabalho não ter tido algumas pessoas com quem tivesse conversado sobre minha oração. Perguntando a uns e a outros me causaram, por bem, grande dano, pois se divulgaram coisas que estavam bem secretas — já que não são para todos — e parecia que eu é que as divulgava. Creio que sem culpa dessas pessoas o Senhor permitiu isso para que eu padecesse. Não estou dizendo que eles falavam do que eu conversava com eles na confissão. Mas como eram pessoas a quem eu prestava conta, por meus temores, para que me esclarecessem, parecia-me que deviam ficar caladas. Mesmo com tudo isso, eu nunca ousava calar coisa alguma a pessoas semelhantes.

Então eu digo que aconselhe com muito discernimento, animando-as e aguardando o tempo devido, pois o Senhor as ajudará, como fez a mim. E se não, enorme dano teria me causado, por ser temerosa e medrosa. Com a doença séria do coração que eu tinha, espantou-me como não me fez muito mal.

14. Então, quando dei o livro, e fiz junto o relato da minha vida e dos meus pecados o melhor que pude (não em confissão, por ser ele secular, mas dei bem a entender quão ruim eu era), os dois servos de Deus olharam com grande caridade e amor o que me convinha.

Vinda a resposta, que eu com muito medo esperava, e tinha me encomendado a muitas pessoas que me encomendassem a Deus, e eu com muita oração naqueles dias, com grande aflição veio a mim e disse-me que no parecer de ambos era o demônio. E que o que convinha era conversar com um padre da Companhia de Jesus, pois quando eu o chamasse dizendo que tinha necessidade, viria. E que eu desse conta de toda a minha vida por uma confissão geral e desse conta de minha condição, e tudo com muita clareza, pois pela virtude do sacramento da confissão Deus daria a ele mais luz, pois eram muito experientes em coisas do espírito. E que eu não saísse do que ele dissesse em relação a todas as coisas, porque estava em grande perigo, se não tivesse quem me governasse.

15. A mim isso deu tanto medo e tristeza que não sabia o que fazer. Só chorava. E estando eu num oratório, muito aflita, não sabendo o que ia ser de mim, li em um livro — e parece que o Senhor o pôs em minhas mãos — em que São Paulo dizia que Deus era muito fiel, pois nunca consentia aos que o amavam ser enganados pelo demônio.7 Isso me consolou muitíssimo.

Comecei a tratar da minha confissão geral e pôr por escrito todos os males e bens. Um discurso da minha vida o mais claramente que eu entendia e sabia, sem deixar nada por dizer. Lembro-me que, quando vi, depois que escrevi, tantos males e quase nenhum bem, me deu uma aflição e um desânimo enormes. Também me incomodava que me vissem, em casa, conversar com gente tão santa como os da Companhia de Jesus. Porque conservava minha ruindade e parecia-me que ficava mais obrigada a não ser ruim e a afastar-me de meus passatempos, e que, se não fazia isso, era pior. E assim tentei com a sacristã e com a porteira que não dissessem a ninguém. Não adiantou muito, porque acertou de estar à porta quando os da Companhia me chamaram justamente quem contou para todo o convento. Mas que embaraços põe o demônio e que temores para quem quer se aproximar de Deus!

16. Conversando com aquele servo de Deus8 — pois ele o era muito e bem prudente — sobre toda a minha alma, como quem conhecia bem essa linguagem, me explicou o que era e me animou muito. Disse ser espírito de Deus, muito evidentemente. E que era necessário voltar novamente à oração, porque não estava bem fundada e eu não tinha começado a entender a mortificação. E assim era, pois até a palavra parece que eu não entendia. E que, de maneira nenhuma, deixasse a oração, antes, me esforçasse muito, uma vez que Deus me fazia dádivas tão particulares. Que o que sabia eu, se por meu intermédio queria o Senhor fazer o bem a muitas pessoas? E outras coisas, que parece que profetizou o que depois o Senhor fez comigo. Disse que eu teria muita culpa se não correspondesse às dádivas que Deus me fazia. Em tudo me parecia que falava nele o Espírito Santo, para curar minha alma, conforme ia se gravando nela.

17. Causou-me grande confusão. Levou-me por meios que parecia que me transformavam totalmente em outra. Que grande coisa é entender uma alma! Disse-me para ter todo dia oração em um passo da Paixão. E que me aproveitasse desse passo e que não pensasse em nada a não ser na Humanidade. E que, àqueles recolhimentos e prazeres, eu resistisse o quanto pudesse, de maneira a não dar lugar a eles até que ele me dissesse outra coisa.

18. Deixou-me consolada e fortalecida, e o Senhor, que me ajudou e a ele, para que entendesse minha condição e como devia me governar. Fiquei decidida a não sair do que ele me mandasse em coisa alguma, e assim fiz até hoje. Louvado seja o Senhor que me deu a graça de obedecer a meus confessores, ainda que imperfeitamente — como eu disse — eu os tenha seguido. Evidente melhora começou a ter minha alma, como direi agora.

CAPÍTULO 24

PROSSEGUE NO QUE HAVIA COMEÇADO E DIZ COMO FOI PROGREDINDO A ALMA DEPOIS QUE COMEÇOU A OBEDECER, E O POUCO QUE ADIANTAVA RESISTIR ÀS DÁDIVAS DE DEUS, E COMO SUA MAJESTADE AS IA DANDO MAIS COMPLETAS

1. Minha alma saiu tão branda dessa confissão que me parecia que não havia nada a que eu não me dispusesse. E assim comecei a fazer mudanças em muitas coisas, ainda que o confessor não estivesse me apressando, antes parecia que fazia pouco-caso de tudo. E isso me movia mais, porque ele me conduzia pelo meio do amar a Deus, e como que deixava liberdade e não pressão se eu não me dispusesse por amor.

Fiquei assim quase dois meses, fazendo tudo em meu poder para resistir aos presentes e dádivas de Deus. Quanto ao exterior, via-se a mudança, porque o Senhor já começava a me dar ânimo para passar por algumas coisas que as pessoas que me conheciam, até na própria casa, diziam parecer extremos. Comparado ao que eu fazia antes, tinham razão, pois era extremo, mas ao que eu era obrigada pelo hábito e pela profissão religiosa que tinha feito, ficava aquém.

2. Desse resistir aos gostos e presentes de Deus, ganhei o ensinar-me Sua Majestade. Porque antes me parecia que, para me dar presentes na oração, era necessário muito recolhimento e eu quase não ousava me mexer. Depois vi o pouco que vinha ao caso. Porque, quanto mais eu procurava me distrair, mais me cobria o Senhor daquela suavidade e glória, que me parecia que me rodeavam toda e que por nenhum lado eu poderia fugir, e era assim.

Eu tomava tanto cuidado que causava tristeza. O Senhor tinha maior cuidado ainda nesses dois meses em fazer-me dádivas e a revelar-se muito mais do que costumava, para que eu entendesse que não estava mais em minhas mãos.

Comecei novamente a ter amor à sacratíssima Humanidade. Começou a se assentar a oração como um edifício que já tinha alicerce. E eu, a afeiçoar-me a mais penitência, de que eu andava descuidada por serem tão graves minhas doenças. Disse-me aquele homem santo que me confessou que algumas coisas não poderiam me causar dano. Que talvez Deus me desse tantos males porque eu não estava fazendo penitência e queria dá-la a mim Sua Majestade. Mandava-me fazer algumas mortificações não muito gostosas para mim. Eu fazia tudo, porque me parecia que o Senhor é que mandava e dava a ele a graça para que mandasse de maneira que eu obedecesse. Minha alma andava já sentindo qualquer ofensa que fizesse a Deus, por menor que fosse, de maneira que, se vestia alguma coisa supérflua, não conseguia recolher-me até que a tirasse. Fazia muitas orações para que Deus me segurasse em sua mão. Já que eu convivia com seus servos, que ele me permitisse não voltar atrás, pois me parecia que seria um grande delito e que eles haveriam de perder crédito por minha causa.

3. Nesse tempo veio a esse lugar o padre Francisco,1 que era duque de Gandia e havia alguns anos que, deixando tudo, tinha entrado para a Companhia de Jesus. O meu confessor procurou — e também o cavalheiro que eu disse que tinha vindo me visitar — que falasse com ele e desse conta da oração que eu tinha, porque sabia que ele estava à frente em ser muito favorecido e presenteado por Deus, que, como a alguém que tinha deixado muito por Ele, já nessa vida lhe pagava. Então, depois que me ouviu, disse que era espírito de Deus e que lhe parecia que não era bom eu resistir mais, que até então estava bem feito, mas que sempre começasse a oração em um passo da Paixão. E que, se, depois, o Senhor me levasse o espírito, não resistisse, mas deixasse levá-lo Sua Majestade, não procurando isso eu mesma. Como quem já estava muito mais adiantado, deu o remédio e o conselho, pois tem muito efeito nisso a experiência. Disse que já seria erro eu resistir mais. Eu fiquei muito consolada, e o cavalheiro também se alegrava muito que tivessem dito que era de Deus, e sempre me ajudava e dava conselhos no que podia, o que era muito.

4. Nesse tempo mudaram meu confessor de um lugar para outro, o que eu senti muitíssimo, porque pensei que havia de voltar a ser ruim e não me parecia possível achar outro como ele. Minha alma ficou como num deserto, muito desconsolada e temerosa. Não sabia o que fazer de mim. Uma parenta minha procurou levar-me à sua casa e eu procurei ir logo procurar outro confessor entre os da Companhia.

O Senhor quis que eu começasse a travar amizade com uma senhora2 viúva de muito altas estirpe e oração, que conversava muito com eles. Fez-me confessar com seu confessor e fiquei na casa dela vários dias. Morava perto. Eu me alegrava por conversar muito com eles, pois só de perceber a santidade de sua conversa era grande o proveito que minha alma sentia.

5. Esse padre3 começou a me pôr em maior perfeição. Dizia-me que, para alegrar totalmente a Deus, eu não devia deixar nada por fazer. Agia também com grande perícia e brandura, porque minha alma ainda não estava nada forte, mas muito tenra, especialmente para deixar algumas amizades que tinha, ainda que não ofendesse a Deus com elas. Era muita afeição e parecia-me que seria ingratidão deixá-las. E, assim, dizia que, já que não ofendia a Deus, por que haveria de ser ingrata? Ele me disse que me encomendasse a Deus uns dias e rezasse o hino "Veni Creator"4 para que Ele me desse luz sobre o que seria melhor.

Tendo estado um dia em muita oração e suplicando ao Senhor que me ajudasse a alegrá-lo em tudo, comecei o hino. E, estando a dizê-lo, veio-me um arrebatamento tão súbito que quase me tirou de mim, coisa de que não pude duvidar, porque foi muito evidente.

Foi a primeira vez que o Senhor me fez essa dádiva de arrebatamento. Ouvi essas palavras: "Já não quero que tenhas conversas com homens, mas sim com os anjos". A mim, causou grande espanto, porque o movimento da alma foi grande. E muito no espírito me foram ditas essas palavras e, assim, me deu medo, ainda que, por outro lado, grande consolo, que ficou comigo, passado o medo que, me parece, a novidade causou.

6. Isso se cumpriu bem, pois nunca mais pude assentar em amizade, nem ter consolação, nem amor particular, a não ser por pessoas que percebo terem amor a Deus e procuram servi-lo. E não é algo que está em meu poder. Nem me importa se são parentes ou amigos. Se não percebo isso, ou se não for pessoa de oração, é uma penosa cruz para mim conversar com alguém. Isso é assim, parece-me, sem nenhuma falha.

7. Desde aquele dia eu fiquei tão animada para deixar tudo por Deus. Como se Ele tivesse querido, naquele momento — e não me parece que foi mais do que um momento —, tornar outra a sua serva. Assim, não foi preciso mandar mais em mim. Pois, como meu confessor me via tão apegada a isso, não tinha ousado dizer terminantemente que o fizesse. Devia esperar que o Senhor operasse, como fez. E nem eu pensei em sair daquilo, porque eu mesma já havia tentado e era tanta tristeza que me dava. Pois eu deixava as amizades como uma coisa que me parecia não ser inconveniente. Já aí, o Senhor me deu liberdade e força para realizá-lo. Assim eu disse ao meu confessor e deixei tudo, conforme ele mandou. Foi de grande proveito para quem convivia comigo ver em mim essa determinação.

Seja Deus bendito para sempre, pois em um instante me deu a liberdade que eu, com todos os esforços que tinha feito havia muitos anos, não pude alcançar por mim mesma, fazendo muitas vezes tanta força que me custava muito para a saúde. Como foi feito por quem é poderoso e Senhor verdadeiro de tudo, não me causou tormento algum.

CAPÍTULO 25

EM QUE TRATA DO MODO E DA MANEIRA COMO SE ENTENDEM ESSAS FALAS QUE DEUS DIZ À ALMA SEM SE OUVIR, E DE ALGUNS ENGANOS QUE PODE HAVER NISSO, E COMO SE RECONHECERÁ, QUANDO FOR. É DE MUITO PROVEITO PARA QUEM SE VIR NESSE GRAU DE ORAÇÃO, PORQUE SE EXPLICA MUITO BEM, E É DE GRANDE DOUTRINA

1. Parece-me que seria bom explicar como é esse falar que Deus dá à alma e o que ela sente, para que o senhor, padre, entenda. Porque desde essa vez que disse que o Senhor me fez essa dádiva até agora, é muito comum, como se verá no que está por dizer. São palavras muito bem formadas, porém com os ouvidos corporais não se ouvem. Mas entende-se muito mais claramente do que se se ouvissem. E deixar de entender, ainda que se resista muito, está além das forças. Porque no mundo, quando não queremos ouvir, podemos tapar os ouvidos ou prestar atenção em outra coisa de maneira que, ainda que se ouça, não se entenda. Nessa conversa que tem Deus com a alma não há remédio algum, mas, apesar de mim, me fazem escutar e estar o entendimento tão inteiro para compreender o que Deus quer que entendamos, que não adianta querer ou não querer. Porque aquele que pode tudo quer que entendamos, vai se fazer o que quer e mostra ser senhor verdadeiro de nós. Disso tenho muita experiência, porque me durou quase dois anos a resistência, com o grande medo que tinha, e agora ainda o experimento às vezes, mas de pouco adianta.

2. Eu quereria explicar os enganos que pode haver aqui. Ainda que, para quem tem muita experiência, parece-me que serão poucos ou nenhum, mas terá que ser muita a experiência. E quereria explicar a diferença que há quando é espírito bom ou quando é mau. Ou como pode ser, também, apreensão do próprio entendimento — o que poderia acontecer — ou falar o próprio espírito a si mesmo. Isso eu não sei se pode acontecer, mas hoje mesmo me pareceu que sim. Quando é de Deus, tenho bem provado, por muitas coisas que me foram ditas dois e três anos antes e todas se cumpriram, e, até agora, nenhuma se revelou mentira, e outras coisas em que se vê claramente ser espírito de Deus, como depois se dirá.

3. Parece-me que uma pessoa poderia, estando a encomendar alguma coisa a Deus com grande afeto e temor, parecer-lhe que ouve alguma coisa, sobre se ocorrerá ou não o que pede. E é muito possível, ainda que a quem tenha escutado desse outro jeito, verá claramente do que se trata, porque é muito grande a diferença. E se for uma coisa que o entendimento fabrica, por mais engenhoso que esteja, percebe que ela é que ordena algo e que fala. Pois não é diferente de alguém ordenar uma conversa ou escutar o que outro lhe diz. Verá, o entendimento, que não escuta, então, porque trabalha. E as palavras que ele fabrica são como uma coisa surda, fantasiada, e não com a claridade destas outras. E aqui está em nosso poder tanto nos distrair quanto calar quando falamos. Neste outro caso não há meios.

E outro sinal, maior do que todos, é o entendimento, que não faz nenhuma operação. Porque esta outra, que fala o Senhor, são palavras e obras. E ainda que as palavras não sejam de devoção, mas sim de repreensão, dispõe de uma vez a alma, e a torna hábil, e enternece e dá luz, e agrada e acalma. E se estava com secura, ou alvoroço, ou desassossego, tira como se fosse com a mão, e até melhor, pois parece que o Senhor quer que se perceba que é poderoso e que suas palavras são obras.

4. Parece-me que há a diferença que há se nós falamos ou ouvimos, nem mais nem menos. Porque o que eu falo — como já disse — vou ordenando com o entendimento o que digo. Mas, se falam comigo, não faço mais do que ouvir, sem nenhum trabalho. Um acontece como uma coisa que não podemos determinar bem se é de verdade, como alguém que está meio adormecido. Este outro é uma voz tão clara que não se perde uma sílaba do que se diz. E acontece ser em momentos em que o entendimento e a alma estão tão alvoroçados e distraídos que não acertariam em compor um bom arrazoado e acham já cozidas grandes sentenças que são ditas a ela, e que ela — mesmo estando muito recolhida — não conseguiria entender. E à primeira palavra — como ia dizendo — mudam-na toda. Especialmente se está em arrebatamento, já que as potências estão suspensas. Como poderia entender coisas que não haviam vindo à memória mesmo antes? Como viriam então, pois quase não age e a imaginação está como se abobada?

5. Entenda-se que quando se veem visões ou se ouvem essas palavras, na minha opinião, nunca é em momentos em que a alma está unida no próprio arrebatamento. Pois nesses momentos, como já deixei explicado, creio, na segunda água, perdem-se totalmente essas potências e, ao que me parece, ali não se pode ouvir nem escutar. Está toda em outro poder, e, nesse período, que é muito breve, não me parece que o Senhor deixe alguma liberdade a ela para nada. Passado esse breve tempo que fica ainda no arrebatamento a alma, é isso que ia dizendo. Porque ficam as potências de maneira tal que, ainda que não estejam perdidas, não operam quase nada. Estão como que absortas e incapazes de compor raciocínios. Há tantos meios de entender a diferença que, se alguém se enganar, não será muitas vezes.

6. E digo que, se uma alma é experiente e está atenta, verá muito claramente. Porque, fora outras coisas, pelas quais se vê o que eu disse, nenhum efeito fazem nem a alma o admite — porque este outro, admite-se ainda que não queiramos — e nem dá crédito. Antes, percebe que são devaneios do entendimento. É quase como não se faria caso de uma pessoa que você sabe estar num frenesi. Este outro é como se ouvíssemos uma pessoa muito santa ou erudita e de grande autoridade, pois sabemos que não há de mentir para nós. E ainda é baixa essa comparação, porque trazem às vezes consigo essas palavras uma majestade que, sem nos lembrar de quem as diz, se forem de repreensão, fazem tremer, e se forem de amor, nos desfazem em amar. E são coisas, como já disse, que estavam bem longe da memória. E tão depressa se dizem sentenças tão grandes que seria preciso muito tempo para ordená-las e de maneira alguma, me parece, pode-se ignorar não ser coisa fabricada por nós mesmos.

De maneira que não preciso me deter nisso porque seria espantoso, me parece, se houvesse engano, para uma pessoa exercitada, se ela mesma não quiser, de propósito, se enganar.

7. Aconteceu-me muitas vezes, se tenho alguma dúvida, não acreditar no que é dito e pensar se não fui eu que botei na cabeça. Isso depois de acontecido, porque no momento em que se ouve é impossível. E, depois de muito tempo, ver cumprido o que me foi dito. Porque o Senhor faz com que fique na memória, de tal modo que não se pode esquecer. Já o que é do entendimento é como um primeiro movimento do pensamento, que passa, e do qual se esquece. Este outro é como uma obra que, ainda que se esqueça de alguma coisa e passe o tempo, não será totalmente que se perca a lembrança do que, enfim, se disse. A não ser que passe muito tempo, ou forem palavras de favor, ou de doutrina. Mas de profecia, parece-me, não há como esquecer, ao menos comigo, ainda que eu tenha pouca memória.

8. E volto a dizer que, a não ser que uma alma seja tão desalmada que queira fingir — o que seria muito mau — e dizer que ouve não sendo assim, parece-me que não dá para deixar de ver claramente que ela mesma manda e fala consigo mesma, se entendeu o espírito de Deus. Porque senão, poderá ficar toda a sua vida nesse engano e parecer-lhe-á que ouve, ainda que eu não saiba como. Ou esta alma quer ouvir ou não. Se está se aniquilando por causa do que ouve e de nenhuma maneira quereria ouvir, por mil temores e outras muitas causas que há para ter desejo de ficar quieta em sua oração, como dá espaço para que seu entendimento componha argumentos? É necessário tempo para isso. Aqui, sem perder tempo nenhum, ficamos ensinadas e ouvem-se coisas que parece ser necessário um mês para compor. E o próprio entendimento e a alma ficam espantados com algumas coisas que se ouvem.

9. Isso é assim, e quem tiver experiência verá que é ao pé da letra tudo o que eu disse. Louvo a Deus porque eu soube dizer desse modo. E termino com isso: parece-me que, sendo do entendimento, poderíamos ouvir quando quiséssemos, e cada vez que estivéssemos em oração poderia parecer que ouvíamos. Mas neste outro não é assim. Passo muitos dias em que, ainda que quisesse ouvir algo, é impossível. E muitas vezes, quando não quero, tenho que ouvir.

Parece-me que, para quem quisesse enganar os outros, dizendo que ouve de Deus o que é de si próprio, pouco custaria dizer que ouve com os ouvidos corporais. E assim é, certamente, com verdade, porque eu jamais pensei que houvesse outra maneira de ouvir ou de escutar até que vi por mim mesma. E assim, como disse, me dá muito trabalho.

10. Quando é demônio, não só não deixa bons efeitos, como deixa maus. Isso me aconteceu não mais de duas ou três vezes e logo fui avisada pelo Senhor que era demônio. Fora a grande secura que fica, é uma inquietação na alma como em outras muitas vezes em que o Senhor permitiu que eu tivesse grandes tentações e tormentos da alma de diversas maneiras. E ainda que me atormente muitas vezes, como direi adiante, é uma inquietação que não se consegue entender de onde vem. Ao contrário, parece que a alma resiste e se alvoroça e se aflige sem saber por que, porque o que ele diz não é mau, mas bom. Penso que um espírito percebe o outro. O gosto e o prazer que o demônio dá, na minha opinião, é muito diferente. Ele poderia enganar com esses prazeres a quem não tiver tido outros de Deus.

11. Falo de gostos de verdade. Uma suave recreação, forte, marcada, prazerosa, tranquila. Porque umas devoçõezinhas da alma, de lágrimas e outros sentimentos pequenos, que ao primeiro soprinho de perseguição se perdem essas florzinhas, eu não chamo de devoções, ainda que sejam um bom começo e sentimentos santos. Mas não para discernir esses efeitos de bom espírito ou mau. E, assim, é bom andar sempre com grande atenção, porque quando acontece com pessoas que não estão adiantadas na oração até esse ponto, facilmente poderiam ser enganadas, se tivessem visões ou revelações. Eu nunca tive nada dessas últimas até Deus ter me dado, só por sua bondade, oração de união. A não ser a primeira vez de que falei, que faz muitos anos, em que vi Cristo. Quisera Sua Majestade que eu tivesse entendido que era visão verdadeira, como depois entendi, pois não me teria sido pouco bem. Nenhuma suavidade fica na alma, mas fica com jeito de assustada e com grande desgosto.

12. Tenho por muito certo que o demônio não enganará — nem permitirá isso Deus — a uma alma que em nenhuma coisa confia em si e está fortalecida na fé, que saiba de si que, por um ponto da fé, morrerá mil mortes. E com esse amor pela fé que logo Deus infunde, que é uma fé viva, forte, procura sempre andar conforme ao que a Igreja mantém, perguntando sempre a uns e a outros, como quem já tomou firme assento nessas verdades. E não a afastariam quantas revelações puder imaginar — ainda que visse os céus abertos — daquilo que a Igreja mantém.

Se alguma vez visse vacilar seu pensamento quanto a isso ou se parasse dizendo: "Já que Deus me diz isso, bem poderia ser verdade, como o que dizia aos santos". Não digo que acredite nisso, mas que o demônio comece a tentá-la por um primeiro movimento, pois parar nisso já se vê que é muito mal. Mas, mesmo esses primeiros movimentos, nesses casos, creio que não virão, se a alma estiver tão forte quanto a faz Deus às pessoas a quem dá essas coisas. Pois lhe parece que destruiria os demônios por uma muito pequena das verdades que a Igreja mantém.

13. Digo que, se não vir em si essa grande fortaleza e não vir que a ajuda a devoção ou visão, não tenha por coisa segura. Porque, ainda que não se sinta logo o dano, pouco a pouco poderia se tornar grande. Pois, pelo que eu vejo e sei por experiência, a crença de que é Deus fica conforme estiver tudo de acordo com a Sagrada Escritura. E quando se afasta um tantinho disso, muito mais certeza, sem comparação, me parece, teria de que é demônio do que agora tenho de que é de Deus, por maior que seja a que tenha. Porque então não é preciso ficar procurando sinais nem que espírito seja, já que esse sinal é tão claro para crer que é demônio. Se, então, todo mundo me garantisse que é Deus, eu não acreditaria.

O fato é que, quando é demônio, parece que se escondem todos os bens e fogem da alma, conforme ela fica desabrida e alvoroçada e sem suavidade. Parece-me que quem tem experiência do bom espírito entenderá.

14. Contudo, o demônio pode fazer mil embustes e, assim, não há coisa nisso tão certa que não seja mais certo ter medo e andar sempre com atenção e ter mestre que seja letrado e não deixar de falar nada a ele. Com isso, nenhum mal pode ocorrer, ainda que a mim muitos tenham vindo por esses medos exagerados que têm algumas pessoas.

Especialmente me aconteceu uma vez em que se haviam juntado muitos a quem eu dava muito crédito — e tinha razão em dar. Ainda que eu já não conversasse senão com um deles, e quando ele mandava eu falava com outros, uns com os outros conversavam muito sobre remediar-me, pois tinham muito amor por mim e temiam que eu fosse enganada. Eu também tinha enorme temor quando não estava na oração, pois estando nela e fazendo-me o Senhor alguma dádiva, logo me assegurava.

Creio que eram cinco ou seis,1 todos muito servos de Deus. E meu confessor disse-me que todos estavam convencidos de que era demônio, que eu não comungasse tão amiúde e que procurasse me distrair de modo que não tivesse chance de ficar em solidão. Eu era medrosa ao extremo, como já disse. Ajudava nisso a doença do coração. Pois muitas vezes eu não ousava ficar sozinha num cômodo durante o dia. Ao ver que tantos afirmavam isso e eu não conseguia acreditar, tive grande escrúpulo, parecendo-me pouca humildade. Porque todos eram, sem comparação, de vida melhor do que a minha e letrados. Então, como não havia de acreditar? Forçava-me o quanto podia para acreditar neles e pensava na minha vida ruim e, de acordo com isso, deviam dizer a verdade.

15. Saí da igreja com essa aflição e entrei em um oratório afastada de comungar muitos dias, forçada a deixar a solidão, que era todo o meu consolo, sem ter ninguém com quem conversar, porque estavam todos contra mim. Uns pareciam zombar de mim quando falava disso, como se fosse algo que eu desejasse ardentemente. Outros diziam que era claramente o demônio. Só o confessor que, ainda que concordasse com eles para provar-me, como depois eu soube, sempre me consolava e dizia que, ainda que fosse demônio, não ofendendo eu a Deus, não podia me fazer nada. Que ele me deixaria se eu pedisse muito a Deus. E ele e todas as pessoas de quem era confessor pediam muito, e outras muitas e todas as que eu sabia que eram servos de Deus, para que Sua Majestade me levasse por outro caminho. E isso durou não sei se uns dois anos, que era um contínuo pedir ao Senhor.

16. Nenhum consolo me bastava quando pensava que tantas vezes havia de falar comigo o demônio. Porque, por causa de eu não usar horas de solidão para a oração, durante a conversa o Senhor me fazia recolher-me e, sem eu poder evitar, me dizia o que queria e, ainda que me pesasse, eu tinha que ouvir.

17. Então, estando sozinha, sem ter ninguém com quem descansar, nem podia rezar nem ler. Estava como uma pessoa assustada por tanta tribulação e medo de que me havia de enganar o demônio. Toda alvoroçada e cansada, sem saber o que fazer de mim. Nessa aflição tinha me visto algumas, muitas vezes, ainda que não me parece que nenhuma tão extrema. Estive assim por quatro ou cinco horas, pois consolo do céu ou da terra não havia para mim, ao contrário, o Senhor me deixou padecer, temendo mil perigos.

Oh, Senhor meu, como sois Vós o amigo verdadeiro, e quão poderoso! Quando quereis podeis, e nunca deixais de querer, se vos querem! Louvem-vos todas as coisas, Senhor do mundo! Oh, quem bradará por si mesmo quão fiel sois a vossos amigos! Todas as coisas falham. Vós, Senhor de todas elas, nunca falhais. É pouco o que deixais padecer a quem vos ama. Oh, Senhor meu, quão delicada e polida e gostosamente sabeis tratá-los! Oh, se alguém nunca tivesse se dedicado a amar senão a Vós! Parece, Senhor, que provais com rigor a quem vos ama, para que no extremo do tormento perceba o extremo maior de vosso amor. Oh, Deus meu, quem teria entendimento e erudição e palavras novas para explicar vossas obras como as entende a minha alma! Falta-me tudo, Senhor meu. Mas, se Vós não me desamparar, não faltarei eu a Vós. Levantem-se contra mim todos os letrados, persigam-me todas as coisas criadas, atormentem-me os demônios, não me falteis Vós, Senhor, pois já tenho a experiência do lucro que tirais para quem só em Vós confia.

18. Então, estando nesse cansaço (ainda não tinha começado a ter nenhuma visão nessa época), só estas palavras bastavam para tirá-lo de mim e tirar-me de tudo: "Não tenhas medo, filha, Eu sou e não te desampararei, não temas".2

Parece-me que, como eu estava, seriam necessárias muitas horas para que me persuadissem a sossegar e ninguém seria suficiente. Eis-me aqui sossegada só com essas palavras, com fortaleza, com coragem, com segurança, com tranquilidade e luz, pois num instante vi minha alma mudada e me parece que discutiria com todo mundo que era Deus. Oh, que bom Deus! Oh que bom Senhor e que poderoso! Não dá só o conselho, mas dá o remédio. Suas palavras são obras. Oh, valha-me Deus, e como fortalece a fé e aumenta o amor!

19. É assim, com certeza, que muitas vezes me lembrava de quando o Senhor mandou aos ventos que ficassem quietos no mar, quando se ergueu a tempestade3 e eu dizia assim: quem é esse que dessa maneira lhe obedecem todas as minhas potências, e dá luz em tão grande escuridão e em um instante, e torna brando um coração que parecia de pedra, dá água de lágrimas suaves onde parecia haver secura havia muito tempo? Quem põe esses desejos? Quem dá essa coragem? Pois aconteceu-me pensar: do que tenho medo? O que é isso? Eu desejo servir esse Senhor. Não pretendo outra coisa senão contentá-lo. Não quero contentamento nem descanso nem outro bem a não ser fazer sua vontade. Pois estava bem certa disso, na minha opinião, para poder afirmá-lo.

Já que esse Senhor é poderoso, como vejo que é, e sei que é, e que são seus escravos os demônios — e disso não há dúvida, pois é artigo de fé —, sendo eu serva desse Senhor e Rei, que mal podem eles fazer a mim? Por que não hei de ter fortaleza para combater contra o inferno inteiro? Pegava uma cruz nas mãos e parecia verdadeiramente dar-me Deus coragem. E me vi outra em pouco tempo, pois não temeria engalfinhar-me com eles. Parecia-me que, facilmente, com aquela cruz, venceria todos. E assim disse: "Agora venham todos, pois sendo serva do Senhor quero ver o que podem me fazer".

20. Sem dúvida me parecia que tinham medo, porque eu fiquei sossegada e tão sem medo de todos eles, pois me foram tirados todos os medos que costumava ter. Até hoje, porque, ainda que algumas vezes eu os visse, como direi depois, nunca mais, quase, tive medo deles. Parecia mais que eles tinham medo de mim. Ficou-me um poder contra eles, bem dado pelo Senhor de todos os poderes, que não me incomodam eles mais do que moscas. Parecem-me tão covardes que, vendo que se os tem em pouca consideração, não lhes resta força.

Não sabem esses inimigos atacar diretamente, mas só a quem veem que se rende a eles, ou quando Deus o permite para maior bem de seus servos que os tentem e atormentem. Quisera Deus que tivéssemos medo de quem devemos temer e entendêssemos que pode nos vir maior dano de um pecado venial que de todo o inferno junto, pois é assim.

21. Que assustados nos trazem esses demônios por querermos nos assustar com outros apegos a honras e riquezas e prazeres! Porque então, juntos eles e nós mesmos, que nos somos contrários, amando e querendo o que devíamos rejeitar, muito dano nos farão. Porque com nossas próprias armas fazemos com que pelejem contra nós, pondo nas mãos deles aquelas com que deveríamos nos defender.

Essa é a grande lástima. Mas se tudo rejeitarmos por Deus e nos abraçarmos à cruz e tratarmos de servi-lo de verdade, foge o demônio dessa verdade como se de uma pestilência. É amigo de mentiras e é a própria mentira: não fará pacto com quem anda na verdade. Quando ele vê o entendimento obscurecido, ajuda lindamente a que sejam destruídos os olhos. Porque se vê alguém já cego a ponto de pôr seu descanso em coisas vãs, e tão vãs que parecem brincadeira de criança as coisas deste mundo, já ele vê que se trata de uma criança, que se comporta como tal. E atreve-se a lutar o demônio com ele muitas e muitas vezes.

22. Queira Deus que eu não seja uma dessas, mas favoreça-me Sua Majestade para ter por descanso o que é descanso e por honra o que é honra e por deleite o que é deleite e não tudo ao contrário e uma figa para todos os demônios! Porque eles terão medo de mim. Não entendo esses medos: "Demônio! Demônio!", onde podemos dizer "Deus! Deus!", e fazê-lo tremer. Sim, pois já sabemos que ele não pode se mexer se Deus não permitir. O que é isso? Sem dúvida tenho mais medo dos que temem tanto o demônio do que dele mesmo. Porque ele não pode me fazer nada, e esses outros, especialmente se forem confessores, inquietam muito, e passei alguns anos de tão grande tormento que agora me espanto de como pude aguentar. Bendito seja o Senhor que tão de verdade me ajudou!

CAPÍTULO 26

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA. VAI EXPLICANDO E CONTANDO COISAS QUE LHE ACONTECERAM, QUE A FAZIAM PERDER O MEDO E AFIRMAR QUE ERA BOM ESPÍRITO O QUE FALAVA COM ELA

1. Tenho como uma das grandes dádivas que me fez o Senhor essa coragem que me deu contra os demônios. Porque uma alma andar acovardada e temerosa de qualquer coisa, a não ser de ofender a Deus, é um enorme inconveniente. Já que temos um Rei todo-poderoso e tão grande Senhor que pode tudo e a todos sujeita, não há o que temer, andando — como já disse — em verdade diante de Sua Majestade e com a consciência limpa. Para isso, como disse, quereria eu todos os temores: para não ofender nem por um instante a quem, no mesmo instante, pode nos desfazer. Pois, contente Sua Majestade, não há quem seja contra nós que não leve as mãos à cabeça.

Poderá dizer-se que é assim, mas quem será essa alma tão reta que o contente de todo? E por isso tem medo. Não a minha, com certeza, que é muito miserável e sem proveito e cheia de mil misérias. Mas Deus não age como as pessoas, pois entende nossas fraquezas, porém por grandes sinais a alma sente em si se o ama de verdade. Porque para as que chegam a esse estado, o amor não anda dissimulado como no começo, mas sim com tão grandes ímpetos e desejo de ver a Deus, como direi depois e já disse. Tudo cansa, tudo desanima, tudo atormenta. Se não for com Deus ou por Deus, não há descanso que não canse, porque se vê ausente de seu verdadeiro descanso e, assim, é uma coisa muito clara que, como disse, não se passa despercebidamente.

2. Aconteceu-me outras vezes ver-me em tão grandes tribulações e murmurações sobre um certo negócio que depois contarei, em quase todo lugar em que estivesse e em minha ordem, e aflita com muitas ocasiões que havia para me inquietar e dizer-me o Senhor: "Do que tens medo? Não sabes que sou todo-poderoso? Eu cumprirei o que te prometi". E assim se cumpriu bem depois. E eu ficava logo com uma fortaleza que, de novo, me parece, me teria posto a empreender outras coisas, ainda que me custassem mais tormentos, para servi-lo, e me poria de novo a padecer.

Isso foi tantas vezes que não poderia contar. Muitas foram aquelas em que me fazia repreensões e faz, quando cometo imperfeições, que bastam para destruir uma alma. Ao menos trazem consigo o emendar-se, porque Sua Majestade — como disse — dá o conselho e o remédio. Outras vezes, traz-me à memória meus pecados passados. Especialmente quando o Senhor quer me fazer alguma dádiva notável, pois parece que a alma já se vê no verdadeiro juízo, porque apresentam-lhe a verdade com conhecimento tão claro que não sabe onde se enfiar. Em outras, avisa-me de alguns perigos meus e de outras pessoas, coisas ainda por acontecer, três ou quatro anos antes, muitas, e todas se cumpriram. Poderia contar algumas. Assim, há tantas maneiras de entender que é Deus que não se pode ignorar, na minha opinião.

3. O mais seguro é (eu faço assim, e sem isso não teria sossego, nem é bom que as mulheres o tenhamos, já que não temos instrução), e aqui não pode haver mal, mas sim muito proveito, como muitas vezes me disse o Senhor: que não deixe de comunicar toda a minha alma e as dádivas que o Senhor me faz, ao confessor, e que este seja letrado, e que eu o obedeça. E isso muitas vezes.

Eu tinha um confessor1 que me mortificava muito e às vezes me afligia e me dava grande trabalho, porque me inquietava muito, e foi ele quem mais me trouxe proveito, pelo que me parece. E ainda que eu tivesse muito amor por ele, tinha algumas tentações de deixá-lo, e me parecia que me impediam aquelas tristezas que me dava pela oração. Toda vez que estava decidida a isso, ouvia logo que não o fizesse, e ouvia uma repreensão que me aniquilava mais do que tudo o que o confessor fazia. Algumas vezes eu desanimava: questão de um lado e repreensão de outro, e de tudo eu tinha necessidade, por ter pouco subjugada a minha vontade. Disse-me uma vez que não era obediência se não estivesse disposta a sofrer. Que pusesse logo os olhos no que Ele tinha padecido e tudo se tornaria fácil para mim.

4. Aconselhou-me uma vez um confessor que tinha ouvido minhas confissões no começo, que, já que estava provado ser bom espírito, que me calasse e já não prestasse contas a ninguém, porque o melhor era calar essas coisas. A mim não pareceu mau, porque me incomodava tanto cada vez que as contava ao confessor, e era tanta a minha vergonha, que, muito mais do que confessar pecados graves, me incomodava, às vezes. Especialmente se fossem as dádivas grandes, parecia-me que não acreditariam e que zombavam de mim. Incomodava-me tanto isso, pois me parecia ser desrespeito com as maravilhas de Deus. E por isso queria calar. Entendi então que tinha sido muito mal aconselhada por aquele confessor, pois de nenhuma maneira devia calar alguma coisa a quem me confessava, porque nisso havia grande segurança, e fazendo o contrário poderia acontecer de me enganar alguma vez.

5. Sempre que o Senhor me ordenava uma coisa na oração, se o confessor me dizia outra, tornava o próprio Senhor a dizer que o obedecesse. Depois, Sua Majestade o virava para que tornasse a mandar o mesmo que Ele.

6. Quando tiraram muitos livros em espanhol para que eu não os lesse, eu senti muito, porque ler alguns me distraía, e não poderia mais, porque só deixaram em latim. Disse-me o Senhor: "Não fiques triste que eu te darei um livro vivo". Eu não conseguia entender por que me tinha dito isso, porque ainda não tinha visões. Depois, bem poucos dias depois, entendi muito bem, porque tive tanto em que pensar e recolher-me no que via presente e teve tanto amor o Senhor comigo para me ensinar de muitas maneiras, que muito pouca ou quase nenhuma necessidade tive de livros. Sua Majestade foi o livro verdadeiro onde vi as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso o que se há de ler e fazer de um modo que não se pode esquecer! Quem vê o Senhor coberto de chagas e aflito com perseguições que não as abrace e as ame e as deseje? Quem vê algo da glória que dá aos que o servem que não saiba que é tudo ninharia o quanto se possa fazer e sofrer, já que um tal prêmio esperamos? Quem vê os tormentos que passam os condenados que não se tornem deleites os tormentos daqui, em comparação, e saibam o muito que devem ao Senhor por tê-los livrado tantas vezes daquele lugar?

7. Pelo fato de que, com o favor de Deus, se dirá mais sobre algumas coisas, quero ir em frente no desenrolar da minha vida. Queira o Senhor que eu tenha sabido explicar-me nisso que disse. Creio que, quem tiver experiência, entenderá e verá que atinei em dizer algo. Quem não, não me espantarei se lhe parecer tudo um desatino. Basta dizê-lo eu para ficar desculpado, e eu não culparei a quem o disser. O Senhor me deixe atinar em cumprir sua vontade. Amém.

CAPÍTULO 27

EM QUE TRATA DE OUTRO MODO PELO QUAL ENSINA O SENHOR À ALMA E SEM FALAR COM ELA DÁ A ENTENDER SUA VONTADE DE UMA MANEIRA ADMIRÁVEL. TRATA TAMBÉM DE EXPLICAR UMA VISÃO E GRANDE DÁDIVA NÃO IMAGINÁRIA QUE O SENHOR FEZ A ELA. É MUITO NOTÁVEL ESTE CAPÍTULO

1. Então, voltando ao relato da minha vida, com essa aflição de penas e com grandes orações, como disse que se faziam para que o Senhor me levasse por outro caminho que fosse mais seguro, já que esse me diziam que era tão suspeito.1 É verdade que, ainda que eu pedisse a Deus, por mais que eu quisesse desejar outro caminho, como eu via tão melhorada a minha alma, a não ser em algumas vezes em que estava muito desanimada pelas coisas que me diziam e medos que me punham, não estava em meu poder desejar isso, ainda que sempre pedisse. Eu me via outra em relação a tudo. Não conseguia, mas punha-me nas mãos de Deus. Ele sabia o que me convinha, que cumprisse em mim o que era a sua vontade em tudo. Via que esse caminho levava ao céu, e que antes ia para o inferno. Não conseguia me forçar a desejar isso, ou acreditar que era o demônio. Eu fazia o quanto podia para crer e desejar, mas não estava em meu poder. Oferecia o que fazia, se fosse alguma boa obra, para isso. Recorria a santos de que era devota para que me livrassem do demônio. Andava em novenas, encomendava-me a santo Hilarião, a são Miguel Arcanjo, por quem, por isso, adquiri novamente devoção, e muitos outros santos eu importunava para que me mostrasse o Senhor a verdade, digo, para que conseguissem isso de Sua Majestade.

2. Ao cabo de dois anos que andava com toda essa minha oração e outras pessoas com a intenção dita, ou que o Senhor me levasse por outro caminho, ou mostrasse a verdade, porque eram muito frequentes as falas que eu disse que me fazia o Senhor, aconteceu isto: estando em um dia do glorioso são Pedro em oração, vi junto a mim, ou senti, melhor dizendo, pois com os olhos do corpo nem com os da alma eu não vi nada, mas pareceu-me que estava junto a mim Cristo e via ser Ele quem falava comigo, me parecia. Eu, como andava ignorantíssima de que podia haver semelhante visão, deu-me grande medo, no começo, e não fazia nada além de chorar, ainda que, dizendo-me uma só palavra para assegurar-me, ficava como costumava, calma e com alegria e sem nenhum temor. Parecia-me que andava sempre a meu lado Jesus Cristo e, como não era visão com imagens, não via de que forma. Mas parecia estar sempre do meu lado direito, sentia muito claramente, e que era testemunha de tudo o que eu fazia e que em nenhuma vez que eu me recolhia um pouco, ou não estivesse muito distraída, podia ignorar que estava junto de mim.2

3. Logo fui a meu confessor, muito desanimada, contar-lhe. Perguntou-me de que forma eu o via. Eu disse que não via. Perguntou-me como eu sabia que era Cristo. Eu lhe disse que não sabia como, mas não podia deixar de saber que estava junto de mim e via claramente e sentia e que o recolhimento da alma era muito maior do que em oração de quietude e muito contínuo e que os efeitos eram muito diferentes do que costumava ter e que era uma coisa muito clara. Não fazia nada além de comparações para me fazer entender. E, com certeza, para esse modo de visão, na minha opinião, não há nada que se encaixe muito. Como é das mais elevadas, conforme depois me disse um santo homem de grande espírito chamado frei Pedro de Alcântara,3 de quem depois farei mais menções, e me disseram outros grandes letrados, e que é, de todas, aquela onde menos o demônio pode se intrometer, não há termos para falar dela aqui no mundo nós, as que pouco sabemos, pois os letrados a explicarão melhor. Porque se digo que nem com os olhos do corpo nem com os da alma o vejo, porque não é uma visão por imagens, como sei e afirmo que está junto de mim com mais clareza do que se o visse? Porque dizer que parece uma pessoa que está no escuro, que não vê a outra que está junto a ela, ou se for cega, não vai bem. Alguma semelhança tem, mas não muita, porque nesse caso sente-se com os sentidos, ou a ouve falar ou se mexer, ou a toca. Aqui não há nada disso, nem se vê escuridão, mas se apresenta para a alma por uma noção mais clara do que o sol. Não digo que se veja sol, nem claridade, mas sim uma luz que, sem ver luz, ilumina a inteligência para que a alma goze de tão grande bem. Traz consigo grandes bens.

4. Não é como uma presença de Deus que se sente muitas vezes — especialmente quem tem oração de união e quietude —, pois parece, começando a ter oração, que achamos com quem falar, e parece que sabemos que nos ouve pelos efeitos e sentimentos espirituais que sentimos, de grande amor e fé e outras determinações com ternura.

Essa grande dádiva é de Deus, e tenha-a em alta conta todo aquele a quem Ele a tiver dado, porque é oração muito elevada. Mas não é visão, porque sabe-se que Deus está ali pelos efeitos que — como disse — causa na alma, pois daquele modo quer Sua Majestade dar-se a sentir. Neste outro caso vê-se claramente que está aqui Jesus Cristo, filho da Virgem. Nesta outra oração apresentam-se certas influências da Divindade. Aqui, junto com essas, vê-se que nos acompanha e quer fazer dádivas também a Humanidade sacratíssima.

5. Então perguntou-me o confessor: quem disse que era Jesus Cristo? Ele me disse muitas vezes, respondi, mas antes que me dissesse, gravou-se no meu entendimento que era ele, e antes disso me dizia e não o via. Se uma pessoa que eu nunca tivesse visto, mas apenas tivesse ouvido notícias dela, viesse falar comigo estando eu cega ou numa grande escuridão e me dissesse quem era, eu acreditaria. Mas não poderia afirmar tão decididamente que era aquela pessoa como se a tivesse visto. Aqui sim, pois, sem ver, grava-se com uma noção tão clara que não parece que se possa duvidar. Pois o Senhor quer que esteja tão esculpido na inteligência, que não se pode duvidar. Menos até do que daquilo que se vê. Porque nisso às vezes fica uma suspeita de que estamos vendo coisas. Lá, ainda que de imediato dê essa suspeita, fica, por outro lado, grande certeza, e não tem força a dúvida.

6. Também é assim nessa outra maneira pela qual Deus ensina a alma e fala com ela sem falar, da maneira como ficou dito. É uma linguagem tão do céu que aqui mal se pode explicar, por mais que queiramos contar, se o Senhor não ensinar por experiência. Põe o Senhor o que quer que a alma entenda na parte muito interior da alma, e ali o apresenta sem imagem nem forma de palavras, mas ao modo dessa visão que foi dita. E repare-se muito nessa maneira de Deus fazer que uma alma entenda o que Ele quer, e grandes verdades e mistérios. Porque muitas vezes é assim que entendo quando o Senhor me explica alguma visão que quer Sua Majestade me apresentar. E parece-me, por essas razões, que é onde menos pode o demônio se intrometer. Se elas não são boas, devo estar enganada.

7. É uma coisa tão do espírito essa maneira de visão e de linguagem, que não há nenhuma agitação nas potências nem nos sentidos, ao que me parece, por onde o demônio possa tirar vantagem. Isso é assim algumas vezes e com brevidade, pois em outras parece-me que não estão suspensas as potências nem tirados os sentidos, mas muito em si, pois não é sempre em contemplação, mas muito poucas vezes. Mas nessas em que é, como ia dizendo, nós não agimos nada nem fazemos nada: tudo parece obra do Senhor. É como quando já está posto o alimento no estômago sem comê-lo, nem sabemos nós como se pôs ali, mas sabe-se bem que está. Ainda que nesse caso não se saiba que alimento é nem quem o pôs. Aqui sim, sabe-se quem pôs, mas como se pôs não sei, pois nem se vê nem se ouve nem jamais me tinha movido a desejá-lo nem tinha vindo a mim notícia de que isso podia acontecer.

8. Na fala que dissemos antes, Deus faz o entendimento prestar atenção, ainda que não queira, para entender o que se diz, pois lá parece que a alma tem ouvidos com que ouve e que a fazem escutar, e faz com que não se distraia. Como alguém que ouvisse bem e a quem não se consentisse tapar os ouvidos e lhe falassem de perto em voz alta. Ainda que não quisesse, ouviria. E, afinal, faz alguma coisa, já que está atento, ouvindo o que lhe falam. Aqui, nenhuma coisa, pois mesmo esse pouco que é só escutar, que fazia no passado, lhe é tirado. Encontra tudo cozinhado e comido. Não tem nada mais a fazer do que aproveitar. Como alguém que, sem se empenhar nem ter trabalhado nada para saber ler, e tampouco tivesse estudado nada, achasse toda a ciência sabida já em si, sem saber como nem por onde, já que nunca tinha trabalhado nem mesmo para aprender o abecê.

9. Essa última comparação me parece que explica algo desse dom celestial. Porque a alma se vê, em um instante, sábia. E tão explicado o mistério da Santíssima Trindade e de outras coisas muito elevadas, que não há teólogo com quem não se atrevesse a discutir a verdade dessas grandezas. Fica tão espantada de que baste uma dádiva dessas para mudar uma alma inteira e fazê-la não amar outra coisa senão aquele que ela vê que, sem trabalho algum seu, a faz capaz de tão grandes bens e comunica-lhe segredos e conversa com ela com uma amizade e um amor que não se consegue descrever. Porque faz algumas dádivas que consigo trazem suspeita, por ser tão admiráveis e feitas a quem tão pouco as mereceu, e, se não tiver fé muito viva, não poderá acreditar. E assim eu penso em falar de poucas das que o Senhor me fez — se não me mandarem fazer outra coisa —, a não ser algumas visões que podem ser aproveitadas para alguma coisa, ou para que, aquele a quem o Senhor as der, não se assuste por lhe parecer que é impossível, como eu fazia, ou para explicar-lhe o modo e o caminho por onde o Senhor me levou, que é o que me mandam escrever.

10. Voltando então a essa maneira de entender, o que me parece é que quer o Senhor, de todas as maneiras, que essa alma tenha alguma notícia do que se passa no céu. E parece-me que, assim como lá se entende sem falar (o que eu nunca soube com certeza até que o Senhor por sua bondade quis que eu visse e me mostrou em um arrebatamento), assim também aqui, pois se entendem Deus e a alma apenas com querer Sua Majestade que se entendam, sem outro artifício. Para fazer entender o amor que têm esses dois amigos. É como aqui: se duas pessoas se amam muito e têm bom entendimento, mesmo sem sinais, parece que se entendem apenas com o olhar. Isso deve se passar neste caso, pois sem vermos, olham-se fixamente esses dois amantes, como diz o Esposo à Esposa nos Cantares,4 pelo que creio. Ouvi dizer que é assim.

11. Oh, benignidade admirável de Deus, que assim vos deixais olhar por uns olhos que tão mal olharam como os da minha alma! Fiquem já, Senhor, desde esta vida, acostumados a não olhar coisas baixas e que não lhes contente coisa alguma fora de Vós. Oh, ingratidão dos mortais, até quando há de durar? Pois eu sei por experiência que é verdade isso que digo, e que é a menor parte do que podeis fazer a uma alma que trazeis a esse ponto o que se pode dizer. Oh, almas que começaram a ter oração e as que têm verdadeira fé, que bens podem buscar ainda nesta vida — deixemos de lado o que se ganha para a vida sem fim — que seja como o menor destes?

12. Vejam que é seguro, assim que se dá Deus aos que deixam tudo por ele. Não faz acepção de pessoas. A todos ama. Ninguém tem desculpa, por pior que seja, já que faz assim comigo trazendo-me a um tal estado. Vejam que o que digo não é nem uma amostra do que se pode dizer. Só vai dito aqui o que é necessário para se fazer entender esse modo de visão e dádiva que faz Deus à alma. Mas não posso dizer o que se sente quando o Senhor dá a ela entender segredos e grandezas suas, o deleite tão acima dos que aqui se podem entender, que, com muita razão, faz repugnar os prazeres da vida que são lixo todos eles juntos. É um nojo trazê-los aqui a alguma comparação, ainda que fosse para gozar deles sem fim, e desses que dá o Senhor só uma gota de água do grande rio caudaloso que está preparado para nós.

13. É uma vergonha, e eu com certeza a tenho por mim e, se pudesse haver desonra no céu, eu estaria ali mais desonrada do que ninguém. Por que havemos de querer tantos bens e prazeres e glórias sem fim tudo à custa do bom Jesus? Nem sequer choraremos com as filhas de Jerusalém, já que não o ajudamos a levar a cruz como o Cireneu?5 Com prazeres e passatempos é que iremos gozar do que Ele ganhou para nós à custa de tanto sangue? É impossível. E com grandes honras pensamos remediar um desprezo como o que ele sofreu para que nós reinemos para sempre? Não leva a lugar nenhum. Errado, errado é esse caminho, nunca chegaremos lá.

Brade o senhor6 essas verdades, já que Deus tirou de mim essa liberdade. Por mim, quereria bradá-las sempre. Mas ouviu-me e tão tarde entendi a Deus — como se verá pelo escrito — que é para mim um grande embaraço falar disso, e, assim, quero calar-me. Só direi o que algumas vezes penso. Queira o Senhor me trazer ao ponto em que eu possa gozar desse bem.

14. Que glória adicional será e que alegria para os bem-aventurados que já gozam disso, quando virem que, ainda que tarde, não lhes ficou nada por fazer por Deus do que era possível, nem deixaram de dar nada a Ele de todas as maneiras que puderam, conforme suas forças e estado, e quem podia mais deu mais! Que rico se encontrará aquele que deixou todas as riquezas por Cristo! Que honrado o que não quis honra por causa d'Ele, mas sim gostava de se ver muito diminuído! Que sábio o que se alegrou de que o considerassem louco, pois chamaram assim a própria Sabedoria! Como há poucos agora, por causa de nossos pecados! Parece que já acabaram os que as pessoas consideravam loucos por vê-los fazer obras heroicas de verdadeiros amadores de Cristo. Oh, mundo, mundo, como vais ganhando honra por haver poucos que te conheçam!

15. Mas pensamos que se serve mais a Deus sermos tidos por sábios e discretos! Assim, assim deve ser, conforme se entenda a discrição. Logo nos parece ser pouco edificante não andar com muita compostura e autoridade, cada um no seu estado. Até frade, clérigo e monja vestir coisa velha e remendada nos parece ser uma novidade e causar escândalo aos fracos. E mesmo ficar muito recolhidos e ter oração, do jeito que está o mundo e tão esquecidas as coisas de perfeição de grandes ímpetos que os santos tinham. Penso que soma mais dano às desventuras que ocorrem nestes tempos. Pois não causaria escândalo a ninguém os religiosos se fazerem entender por obras, do mesmo modo que dizem com palavras, a pouca conta em que se há de ter o mundo. Pois desses escândalos o Senhor tira grandes proveitos e, se uns se escandalizam, outros se remordem. Se ao menos houvesse um esboço do que se passou com Cristo e os apóstolos, já que agora, mais do que nunca, é necessário!

16. E que bem nos levou agora Deus no bendito frei Pedro de Alcântara! O mundo já não suporta tanta perfeição. Dizem que a saúde das pessoas é mais fraca e já não vivemos nos tempos passados. Esse santo homem era desse tempo. Estava saudável no espírito como em outros tempos e, assim, tinha o mundo debaixo de seus pés. Pois, ainda que não se ande descalço nem se faça penitência tão dura como ele, há muitas coisas — como já disse outras vezes — para pisar o mundo. E o Senhor mostra-as quando vê coragem. E que grande coragem deu Sua Majestade a esse santo de que falo, para fazer durante 47 anos penitência tão dura, como todos sabem.

17. Quero falar algo sobre ela que sei que é totalmente verdade. Disse-me a mim e a outra pessoa7 com quem era pouco reservado (e a mim o amor que me tinha era a causa, porque quis o Senhor que ele o tivesse para me defender e me encorajar num tempo de muita necessidade, como já disse e direi), parece-me que foram quarenta anos que me disse em que dormiu só uma hora e meia entre a noite e o dia, e que esse era o maior trabalho de penitência que tinha tido no começo: o de vencer o sono, e para isso estava sempre ou de joelhos ou em pé. O tempo que dormia, era sentado, e a cabeça apoiada numa madeirinha que tinha fincado na parede. Deitado, ainda que quisesse, não conseguia, porque sua cela — como se sabe — não era maior do que quatro pés e meio. Em todos esses anos, jamais pôs o capuz, por mais que fizesse sol ou chovesse, nem nada nos pés, nem roupa, a não ser um hábito de tecido rústico, sem mais nada sobre as carnes, e esse era tão justo quanto podia aguentar, e uma capa do mesmo tecido por cima. Dizia-me que, nos dias de grande frio, tirava-o e deixava a porta e a janela da cela abertas para, pondo depois a capa e fechando a janela, contentar o corpo para que, com mais abrigo, sossegasse. Comer dia sim dia não era muito comum. E perguntou-me com que eu me espantava, pois era muito possível para quem estivesse acostumado a isso. Um companheiro seu me disse que acontecia de ele ficar oito dias sem comer. Devia ser estando em oração, porque tinha grandes arrebatamentos e ímpetos de amor de Deus, do que uma vez fui testemunha.

18. Sua pobreza e mortificação eram extremas na mocidade, pois me disse que havia acontecido ficar três anos numa casa de sua ordem e não conhecer nenhum frade, a não ser pela voz, porque nunca erguia os olhos e, assim, não sabia ir aos lugares a que tinha que ir, mas ia atrás dos frades. Isso lhe acontecia nos caminhos. Nunca olhava para mulheres, isso por muitos anos. Dizia-me que já não lhe importava mais ver do que não ver. Mas era muito velho quando vim a conhecê-lo e tão grande sua fraqueza que não parecia feito de outra coisa senão raízes de árvores.

Com toda essa santidade era muito afável, ainda que de poucas palavras, se não lhe perguntassem nada. Nessas ocasiões era muito agradável, porque tinha um entendimento lindo. Outras coisas muitas queria dizer, mas tenho medo de que o senhor me pergunte para que me meto nisso e, por isso, não escrevi. E assim deixo-o com dizer que seu fim foi como sua vida, pregando e admoestando seus frades. Quando viu que já se acabava, disse o salmo de "Letatun sun yn is que dita sun miqui",8 e, ficando de joelhos, morreu.

19. Depois quis o Senhor que eu o veja mais do que em vida, aconselhando-me em muitas coisas. Eu o vi muitas vezes com enorme glória. Disse-me na primeira vez que apareceu para mim, como era bem-aventurada a penitência que tão grande prêmio tinha merecido e muitas outras coisas. Um ano antes de morrer, apareceu-me estando ausente e soube que ia morrer e eu o avisei, estando a algumas léguas daqui. Quando espirou, apareceu para mim e disse que ia descansar. Eu não acreditei e contei a algumas pessoas e dali a oito dias veio a notícia de que estava morto, ou tinha começado a viver para sempre, melhor dizendo.

20. Eis aqui acabada essa aspereza de vida com tão grande glória. Disse-me uma vez o Senhor que não lhe pediriam alguma coisa em seu nome que não ouvisse. Muitas que eu lhe encomendei que pedisse ao Senhor vi cumpridas. Seja bendito para sempre, amém.

21. Mas o que estou falando para despertar no senhor o não dar valor nenhum a coisas desta vida? Como se o senhor não soubesse ou não estivesse já decidido a deixar tudo e pôr mãos à obra! Vejo tanta perdição no mundo que, ainda que não adiante mais dizer, cansar de escrever é para mim um descanso, pois tudo o que digo é contra mim. O Senhor me perdoe o que, neste caso, eu o ofendi, e o senhor, padre, me perdoe, pois canso-o sem propósito. Parece que quero que faça penitência pelo que nisso eu pequei.

CAPÍTULO 28

EM QUE TRATA DAS GRANDES DÁDIVAS QUE LHE FEZ O SENHOR E COMO APARECEU A ELA PELA PRIMEIRA VEZ. EXPLICA O QUE É VISÃO IMAGINÁRIA. FALA DOS GRANDES EFEITOS E SINAIS QUE DEIXA, QUANDO É DE DEUS. É MUITO PROVEITOSO CAPÍTULO E MUITO NOTÁVEL

1. Voltando ao nosso assunto, passei alguns dias, poucos, com essa visão muito contínua e causava-me tanto proveito que não saía da oração. E mesmo quando o fazia, procurava que fosse de modo que não desagradasse ao que claramente via que estava como testemunha. E ainda que às vezes tivesse medo, pelo muito que me diziam, durava pouco o temor, porque o Senhor me dava segurança.

Estando um dia em oração, quis o Senhor mostrar-me só as mãos, com tão enorme formosura que eu não a conseguiria enaltecer. Deu-me muito medo porque qualquer novidade me dá muito, no começo de qualquer dádiva sobrenatural que o Senhor me faça. Depois de poucos dias vi também aquele divino rosto, que me deixou totalmente absorta, parece-me. Eu não conseguia entender por que o Senhor se mostrava assim, pouco a pouco — já que depois me faria a dádiva de que eu o visse inteiro —, até, depois, entender que ia Sua Majestade me levando conforme minha fraqueza natural. Seja bendito para sempre! Porque tanta glória junta, uma pessoa tão baixa e ruim não poderia aguentar, e, como quem sabia disso, ia o piedoso Senhor dispondo.

2. Parecerá ao senhor que não seria necessário muito esforço para ver mãos e rosto tão belos. São tão belos os corpos glorificados que a glória que trazem consigo, ver coisa tão sobrenatural, tão bela, desatina. E, assim, me dava tanto medo que me confundia toda e alvoroçava, ainda que depois ficasse com certeza e segurança e com tais efeitos que logo perdia o medo.

3. Em um dia de São Paulo, estando na missa, apresentou-se a mim toda esta Humanidade sacratíssima do modo como se costuma pintar ressuscitado, com tanta formosura e majestade como escrevi particularmente ao senhor quando me mandou. E me senti muito mal, porque não se pode dizer nada que não seja desfazer a imagem. Mas já o disse o melhor que pude e, assim, não há por que voltar a dizê-lo aqui. Só digo que, se não houvesse outra coisa para deleitar a vista no céu a não ser a grande formosura dos corpos glorificados, seria enorme glória. Especialmente ver a Humanidade de Jesus Cristo, nosso Senhor, mesmo aqui onde Sua Majestade se mostra de acordo com o que pode aguentar nossa miséria. Como será lá, onde se goza totalmente de tal bem?

4. Essa visão, ainda que seja imaginária,1 eu nunca vi com os olhos corporais, nem nenhuma outra, mas sim com os olhos da alma. Dizem os que sabem mais do que eu, que é mais perfeita a passada do que esta, e esta muito mais do que as que se veem com os olhos corporais. Esta última dizem que é a mais baixa e onde mais ilusões pode causar o demônio, ainda que então eu não conseguisse entender isso. Mas desejava, já que se me fazia essa dádiva, que a visse com os olhos corporais, para que não me dissesse o confessor que eu fantasiava. E também depois que passava acontecia-me — e isso era logo, logo — pensar eu também isto: que eu tinha fantasiado, e desanimava por ter falado ao confessor, pensando se não o teria enganado. Isso era outro pranto e ia a ele e contava-lhe. Perguntava-me se me parecia assim, ou se tinha querido enganar. Eu lhe dizia a verdade, porque, no meu entender, eu não mentia, nem tinha pretendido tal coisa e nem, por nada nesse mundo, teria dito uma coisa no lugar de outra. Isso ele sabia bem e, assim, procurava tranquilizar-me, e eu me incomodava tanto de ir até ele com essas coisas que não sei como o demônio me punha na cabeça que eu fingia para atormentar a mim mesma. Mas o Senhor se apressou tanto em me fazer essa dádiva e explicar essa verdade, que bem depressa a dúvida de que seria fantasia me deixou. Depois disso vejo muito claramente minha bobeira. Porque se passasse muitos anos imaginando como figurar coisa tão bela, não conseguiria nem saberia, porque excede tudo o que se pode imaginar aqui, mesmo só a brancura e o brilho.

5. Não é um brilho que ofusca, mas uma brancura suave e um brilho infuso, que dá enorme prazer à vista e não a cansa, nem a claridade que se vê para ver essa beleza tão divina. É uma luz tão diferente da daqui! Parece uma coisa tão opaca a claridade do sol que vemos, em comparação com aquela claridade e luz que se apresenta para a vista, que não se quereria abrir os olhos depois. É como ver uma água muito clara que corre sobre cristal e reverbera nela o sol comparada a uma muito turva com tempo muito nublado e que corre por cima da terra. Não porque se representa sol, nem a luz é como a do sol. Parece, enfim, luz natural, e esta outra, uma coisa artificial. É luz que não tem noite, mas que, como é sempre luz, nada a turva. Enfim, é de tal modo que, por mais inteligência que uma pessoa tivesse em todos os dias da sua vida, não poderia imaginar como é. E Deus a põe diante tão depressa que nem daria tempo de abrir os olhos, se fosse preciso abri-los. Mas não faz diferença estarem abertos ou fechados quando o Senhor quer, pois, ainda que não queiramos, se vê. Não há distração que baste, nem há como resistir, nem basta empenho ou esforço para isso. Isso eu experimentei bastante, como contarei.

6. O que eu agora quereria dizer é o modo como o Senhor se mostra por essas visões. Não digo que explicarei de que maneira pode se dar o pôr essa luz tão forte no sentido interior, e, na inteligência, imagem tão clara, que parece que verdadeiramente está ali. Isso é para letrados. Não quis o Senhor fazer-me entender o como. E sou tão ignorante e tão rude de inteligência, que, ainda que muito me tenham querido explicar, ainda não consegui entender o como. E isso é certo, porque, mesmo que ao senhor pareça que eu tenha um entendimento vivo, eu não tenho, porque em muitas coisas experimentei isso. Ela não compreende mais do que o que lhe dão mastigado, como dizem. Algumas vezes espantava-se, quem me confessava, com as minhas ignorâncias. E nunca expliquei, nem mesmo queria, como Deus fez isso ou como pôde acontecer. E nem perguntava, ainda que — como já disse — de muitos anos para cá conversei com bons letrados. Se uma coisa era pecado ou não, isso sim. No resto não era necessário para mim mais do que pensar que Deus fez tudo. E via que não tinha com que me espantar, mas sim motivo para louvar e as coisas difíceis me causam devoção. E quanto mais dificultosas, mais devoção.

7. Direi, então, o que vi por experiência. O como o Senhor faz, dirá melhor o senhor, padre, e explicará tudo o que for obscuro e eu não souber dizer. Em algumas coisas parecia-me bem que era uma imagem o que eu via, mas em muitas outras não, mas sim que era o próprio Cristo, pela claridade com que aprouve a Ele mostrar-se a mim. Algumas vezes tão confuso que me parecia uma imagem. Não como os desenhos daqui, por mais perfeitos que sejam, porque já vi uns muito bons. É um disparate pensar que têm alguma semelhança um com o outro de alguma maneira. Nem mais nem menos do que tem uma pessoa viva com seu retrato, que, por melhor que tenha sido feito, não pode ser tão natural, pois — afinal — vê-se que é uma coisa morta.

8. Mas deixemos o que aqui vai bem e muito ao pé da letra. Não digo que seja uma comparação, pois nunca são tão cabais, mas verdade, pois há diferença entre o vivo e o pintado, nem mais nem menos. Porque, se for imagem, nessa visão, é imagem viva. Não homem morto, mas sim Cristo vivo. E faz entender que é homem e Deus, não como estava no sepulcro, mas como saiu depois de ressuscitado. E vem às vezes com tão grande majestade que não há quem possa duvidar de que é o próprio Senhor. Especialmente tendo acabado de comungar, pois já sabemos que está ali, pois no-lo diz a fé. Apresenta-se tão senhor daquela pousada que parece totalmente aniquilada a alma: vê-se consumir em Cristo.

Oh, Jesus meu, quem poderia explicar a majestade com que vos mostrais! E quão Senhor de todo o mundo e dos céus e de outros mil mundos e de um sem-número de mundos e céus que Vós tivésseis criado, entende a alma, pela majestade com que vos apresentais, porque para Vós não é nada ser Senhor disso.

9. Aí se vê claramente, meu Jesus, o pouco poder de todos os demônios em comparação com o vosso e como quem vos mantiver contente pode pisotear o inferno inteiro. Aí se vê a razão que tiveram os demônios de ter medo quando descestes ao limbo e tiveram que desejar outros mil infernos mais baixos para fugir de tão grande majestade. E vejo que quereis fazer a alma entender quão grande é, e o poder que tem, essa sacratíssima Humanidade junto com a Divindade. Aí se mostra bem o que será no dia do juízo ver essa majestade desse Rei e vê-lo rigoroso com os maus. Aí está a verdadeira humildade que deixa na alma por ver sua miséria, pois não a pode ignorar. Aí a confusão e o verdadeiro arrependimento dos pecados, pois — mesmo vendo que mostra amor — não sabe onde se enfiar e se aniquila inteira.

Digo que tem tão enorme força essa visão, quando o Senhor quer mostrar à alma uma grande parte de sua grandeza e majestade, que considero impossível (se o Senhor não a quisesse ajudar muito sobrenaturalmente com deixá-la em arrebatamento e êxtase, pois ao fruir desses, a capacidade de ver perde a visão daquela divina presença), seria, como ia dizendo, impossível qualquer pessoa aguentar. É verdade que se esquece depois? Tão gravada fica aquela majestade e formosura que não é possível esquecer, senão quando o Senhor quer que uma alma padeça uma secura e solidão grande, como direi adiante, porque então até de Deus parece que se esquece.

Fica a alma transformada em outra. Sempre embevecida. Parece-lhe que começa de novo o amor vivo de Deus em grau muito alto, no meu entender, pois ainda que a visão passada, de que falei, que apresenta Deus sem imagem, seja mais elevada, para perdurar na memória conforme a nossa fraqueza, para manter bem ocupado o pensamento, é uma grande coisa ficar representada e posta na imaginação tão divina presença. E vêm juntas essas duas maneiras de visão quase sempre. E até é assim que ocorrem, porque, com os olhos da alma vê-se a excelência e a formosura e a glória da santíssima Humanidade, e dessa outra maneira que se disse, faz-nos entender como é Deus e poderoso e que tudo pode e manda e tudo governa e tudo preenche o seu amor.

10. É muito, muito para se estimar essa visão, e sem perigo, me parece, porque pelos efeitos se sabe que aqui o demônio não tem força. Parece-me que três ou quatro vezes ele quis me apresentar dessa maneira o próprio Senhor por representação falsa: toma a forma da carne, mas não pode falsificá-la com a glória de quando é de Deus. Faz figuras para desfazer a visão verdadeira que a alma viu, mas dessa forma ela resiste por si mesma e se alvoroça e se desgosta e se inquieta, pois perde a devoção e o prazer que antes tinha e fica sem nenhuma oração. No começo isso — como disse — aconteceu três ou quatro vezes. É uma coisa tão diferentíssima que, mesmo quem tiver tido apenas oração de quietude creio que perceberá pelos efeitos que foram ditos nas falas. É uma coisa muito sabida e, se uma alma não quiser deixar-se enganar, não me parece que a enganará, se andar com humildade e simplicidade. Para quem tiver tido verdadeira visão de Deus, quase imediatamente se percebe, porque, ainda que comece com prazer e gosto, a alma os lança de si. E até, no meu entender, deve ser diferente o prazer e não mostra a aparência de amor puro e casto. Muito depressa dá a perceber quem é. Assim é que, onde houver experiência, o demônio não pode causar dano.

11. Então, ser isso imaginação é impossível. Com toda a impossibilidade, não há nenhum meio. Porque só a formosura e a brancura de uma mão estão acima de toda a nossa imaginação. Então, sem nos lembrar disso nem ter jamais pensado, ver em um instante coisas que não se poderiam compor em muito tempo com a imaginação, porque vai muito mais alto — como já disse — do que aqui podemos compreender, isso é impossível.

E se pudéssemos alguma coisa em relação a isso, mesmo assim se vê claramente por esta outra coisa que direi agora. Porque se fosse representado pela inteligência, deixando de lado que não faria as grandes operações que isso faz, não faria nenhuma outra. Porque seria como alguém que quisesse fingir que dormia e que estivesse acordado, porque ainda não veio o sono. Ele, por ter necessidade ou fraqueza na cabeça, deseja adormecer por si e faz seus esforços. E, às vezes, parece que consegue algo. Mas, se não for sono de verdade, não o revigorará nem dará forças à cabeça; antes, às vezes, ela fica mais desvanecida. Assim seria, em parte, neste caso: fica a alma desvanecida, mas não sustentada e forte, antes cansada e desgostosa. Aí não se pode elogiar o bastante a riqueza que fica, até para a saúde do corpo, e fica confortado.

12. Esse argumento, e outros, eu dava quando me diziam que era demônio e que eu estava fantasiando — o que aconteceu muitas vezes — e fazia comparações como podia e como o Senhor me fazia entender. Mas tudo adiantava pouco, porque como havia pessoas muito santas nesse lugar, e eu, em comparação com elas, era uma perdição, e não as levava Deus por esse caminho, logo havia o medo nelas de que meus pecados é que causavam as visões. Circulava de um para outro a notícia, pois vinham a saber sem que eu o dissesse a não ser a meu confessor e a quem ele me mandasse.

13. Eu disse a eles uma vez: se os que me diziam isso tivessem me dito que uma pessoa com quem eu tivesse acabado de falar e conhecesse muito não era ela, mas que eu me enganava, que eles sabiam, sem dúvida eu acreditaria mais neles do que naquilo que eu havia visto. Mas se essa pessoa me tivesse deixado algumas joias e tivessem ficado em minhas mãos como prendas de grande amor e que antes eu não tinha nenhuma e agora me via rica sendo pobre, eu não poderia acreditar, ainda que quisesse. E essas joias se poderiam mostrar, porque todos os que me conheciam viam claramente estar mudada em outra a minha alma. E assim dizia meu confessor, porque era muito grande a diferença em todas as coisas. E não era encoberta, mas, muito claramente, todos podiam ver. Porque, como antes eu era muito ruim, dizia que não conseguia acreditar que, se o demônio fazia isso para me enganar e me levar para o inferno, usasse um meio tão contrário como tirar-me os vícios e pôr virtudes e fortaleza, pois via claramente me tornar outra de uma vez com essas coisas.

14. Meu confessor,2 como disse — que era um padre bem santo da Companhia de Jesus —, respondia isso mesmo, segundo soube. Era muito discreto e de grande humildade. E essa humildade acarretou para mim grandes tormentos. Porque, sendo de muita oração e muito letrado, não confiava em si, já que o Senhor não o levava por esse caminho. Passou muitos e grandes tormentos comigo, de muitas maneiras. Soube que diziam a ele que me evitasse para que o demônio não o enganasse para acreditar em alguma coisa do que eu dizia. Levavam-lhe exemplos de outras pessoas. Tudo isso me desanimava. Tinha medo de que não teria com quem me confessar, mas que todos fugiriam de mim. Não fazia outra coisa senão chorar.

15. Foi providência de Deus ele perseverar em me ouvir, mas era tão grande servo de Deus que a tudo se disporia por Ele. E, assim, me dizia que não ofendesse a Deus, nem me afastasse do que ele me dizia, que não tivesse medo de que ele me faltasse. Sempre me animava e tranquilizava. Mandava sempre que eu não calasse coisa nenhuma e eu assim fazia. Ele me dizia que, fazendo eu isso, ainda que fosse o demônio, não me causaria dano, antes o Senhor tiraria o bem do mal que ele queria fazer à minha alma. Ele procurava aperfeiçoá-la em tudo que podia. Eu, como tinha tanto medo, obedecia-lhe em tudo, ainda que imperfeitamente, pois passou comigo mais de três anos em que me confessou com esses tormentos. Porque em grandes perseguições que tive e muitas coisas que permitia o Senhor que me julgassem mal, e em muitas estando eu sem culpa, com tudo isso vinham a ele e diziam que era culpado por mim, estando ele sem nenhuma culpa.

16. Teria sido impossível, se não tivesse tanta santidade — e o Senhor que o animava —, conseguir aguentar tanto. Porque tinha que responder àqueles a quem parecia que eu andava perdida e não acreditavam nele. E, por outro lado, tinha que me tranquilizar e me curar do medo que eu tinha. E o tornava maior. Tinha que me assegurar, por outro lado, por que a cada visão, sendo coisa nova, permitia Deus que ficassem em mim, depois, grandes medos. Tudo em mim procedia de eu ser tão pecadora, e tê-lo sido. Ele me consolava com muita piedade e, se ele acreditasse em si mesmo, eu não teria sofrido tanto. Pois Deus fazia-o entender a verdade em tudo, porque o próprio Sacramento dava-lhe luz, eu acredito.

17. Os servos de Deus, que não tinham segurança, conversavam muito comigo. Eu, como falava descuidadamente, algumas das coisas eles tomavam por intenção diferente. Eu gostava muito de um deles, porque minha alma devia infinitamente a ele e era muito santo. Dava-me grande pesar ver que ele não me entendia e ele desejava muito o meu progresso e que o Senhor me desse luz. E, assim, o que eu dizia, como ia dizendo, sem ter essa intenção, parecia a eles pouca humildade. Vendo alguma falta em mim, e viam muitas, logo tudo era condenado. Perguntavam-me algumas coisas, eu respondia com sinceridade e despreocupadamente. Logo parecia-lhes que eu queria ensiná-los e que me considerava sábia. Tudo chegava a meu confessor, porque, com certeza, eles desejavam meu proveito. E ele a me repreender. Isso durou muito tempo, afligida por todos os lados, mas, com as dádivas que me fazia o Senhor, por tudo eu passava.

18. Digo isso para que se saiba o grande tormento que é não haver quem tenha experiência nesse caminho espiritual, pois, se não me favorecesse tanto o Senhor, não sei o que teria sido de mim. Bastante coisa eu tinha para me tirar o juízo, e algumas vezes me via em condições em que não sabia o que fazer a não ser erguer os olhos para o Senhor. Porque contradição de muitos a uma mulherzinha ruim e fraca como eu, e medrosa, não parece nada, dito assim. Mas, tendo eu passado na vida enormes trabalhos, foi esse um dos maiores. Queira o Senhor que eu tenha servido a Sua Majestade alguma coisa com isso, pois de que o serviam aqueles que me condenavam e arguíam estou bem certa, e que era tudo para grande bem meu.

CAPÍTULO 29

PROSSEGUE NO QUE COMEÇOU E DIZ ALGUMAS GRANDES DÁDIVAS QUE LHE FEZ O SENHOR E AS COISAS QUE SUA MAJESTADE DIZIA PARA DAR SEGURANÇA A ELA E PARA QUE RESPONDESSE AOS QUE A CONTRADIZIAM

1. Saí muito do assunto, porque tratava de dizer as causas que há para ver que não é imaginação. Pois como poderíamos representar graças a esforço a Humanidade de Cristo e, ordenando com a imaginação, sua grande beleza? Não seria necessário pouco tempo, se tivesse que se parecer com ela em alguma coisa. Pode-se bem representá-la em imaginação e ficar olhando para ela um pouco de tempo, e os traços que tem e a brancura. E pouco a pouco ir aperfeiçoando-a e pedindo à memória aquela imagem. Isso, quem pode tirar dela, já que com o entendimento pode fabricá-la?

Naquilo de que falamos, não há nenhum desses meios, mas temos que olhá-la quando o Senhor a quer apresentar e como quer e o que quer. E não há tirar nem pôr, nem jeito para isso, por mais que façamos. Nem para ver quando queremos, nem para deixar de ver. Ao querer olhar alguma coisa particular, logo se perde Cristo.

2. Dois anos e meio durou o fato de ser muito comum que Deus me fizesse essa dádiva. Serão já mais de três que a tirou de mim, desse modo tão contínuo, com outra coisa mais elevada — como talvez eu diga depois. E com a visão d'Ele falando comigo e eu olhando aquela grande formosura e a suavidade com que fala aquelas palavras por aquela formosíssima e diviníssima boca. E outras vezes com severidade. E eu a desejar extremamente perceber a cor de seus olhos e de que tamanho eram, para que soubesse contar. Jamais mereci ver. Nem adianta tentar, antes perde-se a visão totalmente. Algumas vezes bem que me vejo olhar com piedade. Mas tem tanta força essa vista que a alma não consegue aguentá-la e fica em tão elevado arrebatamento que, para mais desfrutar de tudo, perde essa formosa visão.

3. Assim, não há o que querer e não querer. Claramente se vê que quer o Senhor que não haja senão humildade e confusão. É tomar o que nos der e louvar a quem dá.

Isso é assim em todas as visões, sem falhar nenhuma, pois nada se consegue, nem para ver menos nem mais, e nem faz nem desfaz nada o nosso empenho. Quer o Senhor que vejamos muito claramente que não é obra nossa, mas de Sua Majestade. Para que possamos muito menos ter soberba. Antes faz-nos ficar humildes e temerosos, vendo que, assim como o Senhor nos tira o poder de ver o que queremos, pode tirar-nos essas dádivas e a graça, e ficarmos totalmente perdidos. E faz com que sempre andemos com medo, enquanto vivermos neste desterro.

4. Quase sempre se me apresentava o Senhor assim, ressuscitado. E na Hóstia a mesma coisa, a não ser algumas vezes, para me dar forças se eu estivesse em tribulação, em que me mostrava as chagas. Algumas vezes na cruz e no Horto. E com a coroa de espinhos, poucas. E levando a cruz também algumas vezes, para — como ia dizendo — necessidades minhas e de outras pessoas, mas sempre a carne glorificada.

Muitas afrontas e trabalhos passei por dizê-lo, e muitos temores e muitas perseguições. Tão certo lhes parecia que eu tinha um demônio que algumas pessoas queriam me exorcizar. Pouco se me dava isso. Incomodava-me mais quando eu via que os confessores tinham medo de ouvir minha confissão ou quando sabia que falavam alguma coisa para eles. Contudo, jamais podia causar-me pesar ter visto essas visões celestiais. E não trocaria uma só vez delas por todos os bens e deleites do mundo. Sempre as tive como uma grande dádiva do Senhor e me parece um enorme tesouro. E o próprio Senhor me assegurava, às vezes. Eu me via crescer muito e amá-lo muito, muito. Ia queixar-me a ele desses tormentos. Sempre saía consolada da oração e com novas forças. A eles eu não ousava contradizer porque via que era tudo pior, pois lhes parecia pouca humildade. Conversava com meu confessor, ele sempre me consolava muito quando me via desanimada.

5. Como as visões foram crescendo, um deles, que antes me ajudava, que era com quem eu me confessava algumas vezes quando não podia o ministro, começou a dizer que era claro que era o demônio. Mandaram-me, já que não adiantava resistir, que sempre me benzesse quando viesse uma visão e fizesse figas, para que tivesse certeza de que era demônio e que com isso não viria. E que não tivesse medo, que Deus me protegeria e tiraria aquilo de mim.

Para mim isso era uma grande tristeza, porque, como não podia acreditar que fosse outra coisa senão Deus, era uma coisa terrível para mim. E tampouco podia — como disse — desejar que me deixasse. Mas, enfim, fazia tudo que mandavam. Suplicava muito a Deus que me livrasse de ser enganada. Isso sempre eu fazia e com muitas lágrimas, e a são Pedro e a São Paulo, pois me disse o Senhor — como a primeira vez que apareceu foi no dia deles — que me protegeriam para que não fosse enganada. E assim, muitas vezes os via do lado esquerdo bem claramente, ainda que não com visão por imagens. Eram esses gloriosos santos muito meus senhores.

6. Dava-me, esse fazer figas, grande tristeza, quando via essa visão do Senhor. Porque, quando o via presente, nem se me fizessem em pedaços eu poderia acreditar que era o demônio. E assim era uma forma de penitência grande para mim. E para não ficar me benzendo tanto, levava uma cruz na mão. Fazia isso quase sempre. As figas não tão continuamente, porque me incomodava muito. Lembrava-me das injúrias que lhe haviam feito os judeus e suplicava-lhe que me perdoasse, já que eu fazia aquilo para obedecer àquele que estava em seu lugar, e que não me culpasse porque eram os ministros que Ele tinha posto em sua Igreja. Dizia-me que não me importasse, que fazia bem em obedecer, mas que Ele faria com que se soubesse a verdade. Quando me tiraram a oração, pareceu-me que tinha se aborrecido. Disse-me que dissesse a eles que aquilo já era uma tirania. Dava-me razões para que entendesse que não era demônio. Sobre alguma falarei depois.

7. Uma vez, tendo eu a cruz na mão, pois a trazia em um rosário, tomou-a de mim com a sua e, quando tornou a me dá-la, era de quatro pedras grandes, muito mais preciosas do que diamantes, sem comparação. Porque quase não há comparação, com o que se vê sobrenaturalmente. Diamante parece uma cópia falsificada e imperfeita das pedras preciosas que se veem lá. Tinha as cinco chagas de muito linda feitura. Disse-me que assim a veria dali em diante, e assim acontecia que eu não via a madeira de que era, mas essas pedras. Porém não as via ninguém, só eu.

Ao começar a mandar-me passar por essas provas e resistir, era muito maior o crescimento das dádivas. Querendo me distrair, nunca saía da oração. Mesmo dormindo me parecia que estava nela, porque aí era crescer o amor e as tristezas que eu dizia ao Senhor, e o não poder aguentar. Nem estava em meu poder, ainda que eu quisesse e por mais que tentasse, deixar de pensar n'Ele. Contudo, obedecia quando podia, mas podia pouco ou nada nesse caso, e o Senhor nunca me tirou a oração. Mas, ainda que me dissesse que obedecesse, assegurava-me por outro lado e ensinava-me o que havia de dizer — e assim faz agora — e dava-me razões tão suficientes que, a mim, elas davam toda a segurança.

8. Há pouco tempo começou Sua Majestade a dar mais sinais de que era Ele, como tinha me prometido, fazendo crescer em mim um amor tão grande por Deus que eu não sabia quem o punha em mim, porque era muito sobrenatural e eu não o procurava. Via-me morrer de vontade de ver Deus e não sabia onde iria buscar essa vida, se não fosse com a morte. Davam-me ímpetos muito grandes desse amor, que, ainda que não fossem tão insuportáveis como os que disse de outra vez,1 nem de tanto valor, eu não sabia o que fazer de mim. Porque nada me satisfazia nem eu cabia em mim. Parecia-me que me arrancavam a alma. Oh, engenho soberano do Senhor, que arte tão delicada fazíeis com vossa escrava miserável! Vós vos escondíeis de mim e me afligíeis com vosso amor em uma morte tão saborosa que nunca a alma quereria sair dela.

9. Quem não tiver passado por esses ímpetos tão grandes, é impossível que possa entender. Pois não é um desassossego no peito, nem umas devoções que costumam ocorrer muitas vezes que parece que afogam o espírito, pois não cabem em si. Esta última é uma oração mais baixa e devem-se evitar essas agitações procurando recolhê-las dentro de si e aquietar a alma. Porque isso é como crianças que têm um choro tão acelerado que parece que vão sufocar e ao dar-lhes alguma coisa de beber param com aquele sofrimento exagerado. Assim é aqui: a razão intercede para encurtar a rédea, porque pode ser que contribua para essa agitação a própria natureza. Volte à consideração por temer que nem tudo é perfeito, mas que boa parte pode ser sensual, e acalme esse bebê com um presente de amor que o faça se mover para amar Deus por um caminho suave e não aos trancos, como se diz. Que recolham esse amor para dentro de si e não como caldeirão que cozinha demais porque se põe lenha sem discernimento e derrama tudo. Moderem, isso sim, a causa desse fogo e procurem apagar a chama com lágrimas suaves e não penosas, como são as desses sentimentos e causam muito dano. Eu as tive algumas vezes no começo, e deixavam minha cabeça perdida e o espírito muito cansado de modo que, por mais de um dia eu não conseguia retomar a oração. Assim, é preciso grande discernimento no começo para que tudo caminhe com suavidade e o espírito se mostre a trabalhar interiormente. O que for exterior, procure-se evitar muito.

10. Esses outros ímpetos são diferentíssimos. Não pomos nós a lenha, mas parece que, aceso já o fogo, de repente nos jogam dentro para que nos queimemos. Não procura a alma que doa essa ferida da ausência do Senhor, mas fincam uma seta no mais vivo das entranhas e do coração às vezes, que não sabe a alma o que tem nem o que quer. Sabe bem que quer a Deus, e que a seta parece que tinha uma erva para fazer a alma detestar a si mesma por amor desse Senhor, e querer perder de boa vontade a vida por Ele.

Não se pode enaltecer bastante nem dizer o modo como fere Deus a alma e a enorme dor que causa, e que faz com que ela não saiba de si. Mas essa dor é tão saborosa que não há prazer na vida que dê mais alegria. A alma quereria estar sempre morrendo desse mal.

11. Essa dor e glória juntas me deixavam desatinada, pois eu não podia entender como podia ser aquilo. Oh, o que é ver uma alma ferida! Pois digo que se entende a maneira como se pode dizer ferida por tão excelente causa e vê claramente que ela não se moveu na direção de que lhe pudesse vir esse amor. Mas do amor muito grande que o Senhor tem por ela parece que caiu de repente a centelha que a faz arder inteira. Oh, quantas vezes me lembro, quando estou assim, daquele verso de David: "Quemadmodun desiderad cervus a fontes aguarun",2 e me parece que vejo isso ao pé da letra em mim!

12. Quando isso não dá muito forte, parece que se aplaca um pouco, ao menos a alma busca algum remédio — porque não sabe o que fazer — com algumas penitências. E não se sentem mais, nem causa mais dor derramar sangue do que se o corpo já estivesse morto. Busca modos e maneiras de fazer algo que sinta por amor de Deus. Mas é tão grande a primeira dor que não sei que tormento corporal a tiraria. Como não está ali a cura, são muito baixos esses remédios para um mal tão elevado. Um pouco se aplaca e aguenta um pouco com isso, pedindo a Deus que lhe dê a cura para seu mal, e não vê nenhuma senão a morte, pois com essa pensa gozar de seu Bem totalmente.

Outras vezes dá tão forte que nem isso, nem nada pode fazer, pois corta todo o corpo. Nem os pés nem os braços consegue mexer. Antes, se estiver de pé, senta-se, como uma coisa jogada, e não consegue nem mesmo respirar. Só dá uns gemidos, não grandes, porque não consegue mais do que isso, mas que são grandes no sentimento.

13. Quis o Senhor que eu visse aqui algumas vezes essa visão: via um anjo junto de mim do lado esquerdo em forma corporal, o que não costumo ver, a não ser por maravilha. Ainda que muitas vezes se me apresentem anjos, é sem vê-los, mas com a visão passada, de que falei primeiro. Esta visão quis o Senhor que eu visse assim: não era grande, mas pequeno, muito bonito, o rosto tão aceso que parecia dos anjos muito elevados que parecem que se abrasam inteiros. Devem ser os que chamam de querubins, pois os nomes eles não me dizem, mas vejo bem que no céu há tanta diferença de uns anjos a outros, e de outros a outros, que eu não saberia dizer. Via em suas mãos um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e chegava às entranhas. Ao tirá-lo me parecia que as levava consigo e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar aqueles gemidos, e tão excessiva suavidade que põe em mim essa enorme dor que não há como desejar que se tire nem se contenta a alma com menos do que Deus. Não é uma dor corporal, mas espiritual, ainda que não deixe o corpo de participar em alguma coisa e até bastante. É uma corte tão suave que se passa entre a alma e Deus que suplico eu a sua bondade que a dê a experimentar a quem pensar que eu minto.

14. Os dias que isso durava eu ficava parecendo abobada. Não queria ver nem falar, mas abraçar-me a minha dor, que para mim era maior glória de quantas há no mundo criado. Isso tinha algumas vezes quando quis o Senhor que me viessem esses arrebatamentos tão grandes que, mesmo estando entre as pessoas, não conseguia resistir. Com muita aflição para mim começou a se tornar público. Depois que tenho esses arrebatamentos, não sinto essa aflição tanto, mas sim a que disse em outra parte antes — não me lembro em que capítulo3 —, pois é muito diferente em muitas coisas e de maior valor. Antes, começando essa pena de que falo agora, parece que arrebata o Senhor a alma e a põe em êxtase. Assim não dá tempo de sentir aflição e padecer, porque vem logo o gozo. Seja bendito para sempre, que tantas dádivas faz a quem tão mal responde a tão grandes benefícios.

CAPÍTULO 30

VOLTA A CONTAR O RELATO DE SUA VIDA E COMO REMEDIOU O SENHOR MUITO DE SEUS TORMENTOS LEVANDO-A AO LUGAR ONDE ESTAVA O SANTO HOMEM FREI PEDRO DE ALCÂNTARA, DA ORDEM DO GLORIOSO SÃO FRANCISCO. TRATA DE GRANDES TENTAÇÕES E TRABALHOS INTERIORES QUE PASSAVA ÀS VEZES

1. Então, vendo eu o pouco ou nada que podia fazer para não ter esses ímpetos tão grandes, também tinha medo de tê-los. Porque dor e alegria eu não conseguia entender como podiam estar juntos. Dor corporal e alegria espiritual eu já sabia que era bem possível. Mas tão excessiva dor espiritual e com tão enorme prazer, isso me desatinava. Também não parava de tentar resistir, mas conseguia tão pouco que às vezes me cansava. Amparava-me na cruz e queria me defender daquele que com ela nos amparou a todos. Via que ninguém me entendia, e que eu entendia isso muito claramente. Mas não ousava dizer a não ser ao meu confessor, porque isso teria sido dizer bem de verdade que não tinha humildade.

2. Quis o Senhor remediar grande parte de meu tormento — e, na época, todo — trazendo a esse lugar o bendito frei Pedro de Alcântara, de quem já fiz menção e contei algo sobre sua penitência, pois, entre outras coisas, certificaram-me que ele tinha levado durante cinco anos seguidos um silício de folha de lata. É autor de uns livros pequenos de oração de que agora se fala muito, em espanhol, porque, como alguém que a tinha praticado bem, escreveu muito proveitosamente para os que têm oração. Observou a primeira regra do bem-aventurado são Francisco com todo o rigor e as outras coisas que foram ditas ali.

3. Então, quando a viúva serva de Deus, de que falei, e minha amiga,1 soube que estava ali um tão grande homem, e sabia da minha necessidade, porque era testemunha das minhas aflições e me consolava muito. Porque era tão grande sua fé que não podia acreditar que não era espírito de Deus o que todos os demais diziam que era o demônio. E como é uma pessoa de muito grande inteligência e de muita discrição, e a quem o Senhor fazia muitas dádivas na oração, quis Sua Majestade dar-lhe luz naquilo que os letrados ignoravam. Meus confessores me davam licença para que desabafasse com ela algumas coisas, porque por muitas razões tinha a ver com ela. Referia-se a ela parte das dádivas que o Senhor me fazia com avisos muito proveitosos para sua alma.

4. Assim que soube, para que pudesse conversar melhor com ele, sem me dizer nada, obteve licença da minha provincial para que eu ficasse oito dias em sua casa, e nela e em algumas igrejas, falei com ele muitas vezes, nessa primeira vez que esteve aqui, porque depois, em diversas ocasiões, comuniquei a ele muitas coisas. Quando prestei contas, em resumo, da minha vida e maneira de agir na oração com a maior clareza que soube usar, pois isso tive sempre: falar com toda a clareza e verdade com aqueles a quem abro minha alma; até os primeiros movimentos queria que fossem conhecidos dele. E as coisas mais duvidosas e suspeitas eu alegava com argumentos contra mim. Assim, sem duplicidade e disfarce, falei-lhe de minha alma.

Quase desde o começo vi que me entendia por experiência, que era tudo o que era necessário. Porque então eu não sabia me compreender como agora para saber dizer, pois depois me deu Deus que saiba entender e falar das dádivas que Sua Majestade me faz. E era necessário que tivesse passado por isso quem me houvesse de entender totalmente e explicar o que era. Ele me deu enorme luz, porque, ao menos nas visões que não eram imaginárias, eu não conseguia entender o que poderia ser aquilo. E parecia-me que as que via com os olhos da alma tampouco eu entendia como podia ser, pois — como já disse — só das que se veem com os olhos corporais me parecia que se devia fazer caso, e essas eu não tinha.

5. Esse santo homem me deu luz em tudo e me explicou, e disse que eu não tivesse tristeza, mas que louvasse a Deus e estivesse tão certa que era espírito d'Ele, que, a não ser as verdades de fé, não poderia haver coisa mais verdadeira nem em que eu pudesse acreditar tanto. E ele se consolava muito comigo e fazia-me todo favor e dádiva. E sempre, depois, teve-me em alta conta e contava-me de suas coisas e atividades. E como me via com os desejos daquilo que ele já possuía por obra — pois Deus me dava esses desejos muito decididos — e me via com tanto ânimo, alegrava-se de conversar comigo. Porque para aqueles a quem o Senhor leva a esse estado não há prazer nem consolo que se iguale a topar com quem lhe parece que deu o Senhor um começo disso. Porque então eu não devia ter muito mais do que isso, ao que me parece, e queira Deus que eu tenha agora.

6. Teve enorme pena de mim. Disse que um dos maiores tormentos da terra era o que eu havia sofrido, que é a contradição dos bons. E que ainda me restava muito dele, porque eu sempre tinha necessidade, mas não havia nessa cidade quem me entendesse. Disse que falaria com o que ouvia minha confissão e a um dos que me causavam mais tormentos, que era esse cavalheiro casado de que já falei. Porque, como era quem tinha por mim maior bem-querer, movia-me toda a guerra. E é uma alma temerosa e santa, e como tinha me visto tão pouco tempo antes tão ruim, não conseguia sentir-se seguro.

E assim fez o santo homem, que falou com ambos. E deu as causas e as razões para que se assegurassem e não me inquietassem mais. O confessor tinha pouca necessidade. O cavalheiro, muita, pois ainda não bastou completamente, mas ajudou para que ele não me amedrontasse tanto.

7. Ficamos acertados que eu escreveria para ele sobre o que mais me acontecesse dali para a frente e de encomendar-nos muito a Deus, pois era tanta sua humildade que ele tinha em alguma conta as orações desta miserável, pelo que era grande meu embaraço.

Deixou-me com enorme consolo e alegria. E com a recomendação de que mantivesse a oração com segurança e não duvidasse de que era Deus. E, daquilo que eu tivesse alguma dúvida e para maior segurança, de tudo prestasse conta a meu confessor e, com isso, vivesse segura.

Mas tampouco conseguia ter essa segurança completamente, porque me levava o Senhor por um caminho de dar medo, como era o de crer que era demônio quando me diziam que era. Assim, nem medo nem segurança ninguém conseguia que eu tivesse de maneira a que eu pudesse dar mais crédito do que ao que o Senhor punha em minha alma. Assim, ainda que tenha me consolado e tranquilizado, não lhe dei tanto crédito para ficar totalmente sem medo. Especialmente quando o Senhor me deixava nos tormentos da alma de que agora falarei. Contudo fiquei — como disse — muito consolada. Não me fartava de dar graças a Deus e ao meu glorioso pai são José, pois me pareceu que ele o tinha trazido, porque frei Pedro de Alcântara era comissário-geral da Custódia de São José, santo a quem eu muito me encomendava, e a Nossa Senhora.

8. Acontecia-me às vezes — e até agora me acontece, ainda que não tantas vezes — ficar com enormes tormentos da alma junto com tormentos e dores no corpo, de males tão duros que eu não podia me conter.

Outras vezes tinha males corporais mais graves e, como não tinha os da alma, passava-os com muita alegria. Mas quando era tudo junto, era um tormento tão grande que me angustiava muito. De todas as dádivas que me havia feito o Senhor eu me esquecia. Só ficava uma memória, como de uma coisa que eu tivesse sonhado, para causar dor. Porque o entendimento entorpece-se, de modo que me fazia ficar com mil dúvidas e suspeitas, parecendo-me que eu não tinha sabido perceber e talvez fantasiasse. E era suficiente que eu ficasse enganada, sem enganar os bons. Parecia-me tão má para mim mesma que todos os males e heresias que se haviam levantado me parecia ser por meus pecados.

9. Essa é uma humildade falsa que o demônio inventava para me desassossegar e ver se conseguia levar uma alma ao desespero. Tenho já tanta experiência de que é coisa do demônio, que, como ele vê que eu o percebo, não me atormenta com isso tantas vezes quanto costumava. Vê-se claramente pela inquietação e desassossego com que começa. E o alvoroço que provoca na alma por todo o tempo que dura. E a escuridão e aflição que põe nela. A secura e a má disposição para a oração e para qualquer bem. Parece que afoga a alma e amarra o corpo para que de nada aproveite. Porque a humildade verdadeira, ainda que com ela a alma se reconheça ruim e cause dor ver o que somos, e ainda que avaliemos ser grande a nossa maldade, tão grande como se diz, e que se sinta de verdade, não vem com alvoroço, nem desassossega a alma nem a escurece nem dá secura. Antes a presenteia e é tudo ao contrário: com calma, com suavidade, com luz. É tristeza que, por outro lado, conforta ao ver quão grande dádiva lhe faz Deus em que tenha aquela tristeza e como é bem empregada. Dói-lhe ter ofendido a Deus. Por outro lado, sua misericórdia expande essa alma. Recebe luz para se embaraçar e louva a Sua Majestade porque a suportou tanto. Nessa outra humildade, que o demônio põe, não há luz para nenhum bem, tudo parece que Deus põe a ferro e fogo. Apresenta-lhe a justiça e, ainda que tenha fé de que há a misericórdia, porque o demônio não pode tanto que consiga fazer perder essa fé, é de uma maneira que não consola. Antes, quando olha para tanta misericórdia, ajuda-lhe a ter mais tormento, porque me parece que estava obrigada a fazer mais.

10. É uma invenção do demônio das mais penosas e sutis e dissimuladas que eu tenha percebido dele. E assim quereria avisar ao senhor para que, se por esse caminho ele o tentar, tenha alguma luz e o reconheça, se ele deixar entendimento para reconhecê-lo. Pois não pense que é uma questão de erudição e saber, pois, ainda que a mim falte tudo isso, depois que saio disso, percebo bem que é um desatino. O que entendi é que quer e permite o Senhor e lhe dá licença, como deu para tentar a Jó,2 ainda que comigo — como uma pessoa ruim — não seja com aquele rigor.

11. Aconteceu-me, e lembro-me de ser um dia antes da véspera de Corpus Christi, festa de que eu sou devota, ainda que não tanto quanto deveria. Dessa vez durou só até o dia. Outras duram oito, quinze dias e até três semanas, e não sei se mais, em especial durante as Semanas Santas, que costumavam ser meu festim de oração. Acontece-me às vezes que prende o entendimento de repente com coisas tão levianas, que em outras ocasiões eu teria rido delas. E a faz ficar transtornada com tudo o que ele quer. E a alma aprisionada ali, sem ser senhora de si nem poder pensar outra coisa além dos disparates que ele apresenta, que quase nem têm importância, não atam nem desatam, só servem para afogar a alma de uma maneira que ela não fica em si. E assim me ocorreu que os demônios parecem que jogam bola com a alma, e ela não é capaz de se livrar do poder deles. Não se pode dizer o que se sofre nesse caso. Ela anda a buscar amparo e Deus permite que não ache. Só permanece sempre a razão do livre-arbítrio, mas não clara. Quero dizer, estão quase tampados os olhos, como uma pessoa que muitas vezes foi a uma parte que, ainda que seja noite e esteja escuro, pela experiência passada sabe onde pode tropeçar, porque viu de dia, e protege-se daquele perigo. Assim é, para não ofender a Deus, pois parece que se caminha por hábito. Sem falar que a mantém o Senhor, que é o que realmente vem ao caso.

12. A fé fica então tão amortecida e adormecida quanto as demais virtudes, ainda que não perdida, pois acredita no que a Igreja sustenta. Mas da boca para fora e parece que, por outro lado, a apertam e entorpecem para que ela pareça que conhece a Deus quase como uma coisa de que ouviu falar de longe. Tem o amor tão morno que, se ouve falar d'Ele, escuta como uma coisa que crê ser o que é porque o diz a Igreja, mas não tem memória do que experimentou em si. Ir rezar ou ficar em solidão não é outra coisa senão mais angústia. Porque o tormento que sente em si, sem saber por que, é insuportável. Ao que me parece, é um pouco como ir para o inferno. E é assim mesmo, conforme o Senhor, em uma visão, me fez entender. Porque a alma queima-se em si mesma sem saber quem ou por onde lhe ateiam fogo, nem como fugir dele nem como o extinguir.

Querer remediar as coisas lendo é como se não soubesse ler. Uma vez aconteceu-me ir ler a vida de um santo para ver se me absorveria e para consolar-me com o que ele sofreu e li quatro ou cinco vezes outras tantas linhas e, mesmo sendo em espanhol, entendia menos delas depois do que antes de ter lido, e assim deixei o livro. Isso me aconteceu muitas vezes. Só que dessa eu me lembro em particular.

13. Ter, então, uma conversa com alguém é pior. Porque o demônio põe um espírito tão desagradável de ira que parece a todos que eu os quereria comer, sem que eu possa evitar. E parece que já é alguma coisa eu conseguir me segurar, ou o Senhor segura com sua mão quem está assim para que não diga nem faça contra seus próximos alguma coisa que os prejudique ou com a qual se ofenda a Deus.

Ir ao confessor, então! Com certeza! Porque muitas vezes me acontecia o que direi: apesar de serem tão santos como são aqueles com quem nesse tempo conversei e converso, diziam-me palavras e me repreendiam com tanta aspereza que, depois que eu as dizia, eles mesmos se espantavam e diziam que não estava em seu poder evitar. Porque, ainda que tivessem ficado muito mal por ter feito isso outras vezes, o que lhes dava pena e até escrúpulos depois, quando eu tinha tais tormentos de corpo e de alma, e tivessem se decidido a consolar-me com piedade, não conseguiam. Eles não diziam más palavras — digo, com as quais ofendessem a Deus —, mas as mais desagradáveis que se toleravam para um confessor. Deviam pretender mortificar-me, e, ainda que em outras vezes me alegrassem e eu estivesse disposta a suportá-las, naqueles momentos era um tormento.

Acontece então também parecer que os engano. Eu ia a eles e avisava-os de verdade para que se protegessem de mim, pois podia ser que os estivesse enganando. Eu sabia bem que de propósito não o faria, nem lhes diria mentiras, mas eu tinha medo de tudo. Uma vez um deles me disse que, quando percebesse a tentação, não tivesse aflição, pois, ainda que eu quisesse enganá-lo, ele teria senso para não se deixar enganar. Isso me deu grande consolo.

14. Às vezes — quase normalmente ou, ao menos, o mais frequentemente — acabando de comungar eu tinha um descanso. E até algumas vezes, aproximando-me do Sacramento, logo na hora ficava tão boa, de alma e de corpo, que me espanto. Não parece outra coisa a não ser que, num instante, se desfazem todas as trevas da alma e, saído o sol, reconhecia os absurdos em que tinha estado. Outras vezes, com apenas uma palavra que me dizia o Senhor, apenas dizendo: "Não fiques desanimada, não tenhas medo" — como eu já disse em outra oportunidade —, ficava totalmente curada. Ou vendo alguma visão, era como se não tivesse tido nada. Deliciava-me com Deus. Queixava-me a Ele de como consentia que eu padecesse tantos tormentos. Mas eles eram bem pagos, pois quase sempre, depois, eram as dádivas em grande abundância. Não me parece outra coisa senão que a alma sai do crisol como o ouro, mais refinada e purificada para ver em si o Senhor. E assim, esses tormentos se fazem pequenos, depois, apesar de parecerem insuportáveis. E se deseja voltar a sofrê-los, se o Senhor vai se servir mais deles. E ainda que haja mais tribulações e perseguições, desde que se as passem sem ofender a Deus, mas sim alegrando-se de padecer por Ele, tudo é para maior lucro, ainda que eu não os leve como se deve levar, mas sim muito imperfeitamente.

15. Outras vezes me vinham de outro tipo, e vêm. Imediatamente me parece que me tiram a possibilidade de pensar uma coisa boa nem de desejar fazê-la. Uma alma e um corpo totalmente inúteis e pesados. Mas não tenho, com isso, essas outras tentações e desassossegos. Tenho, sim, um desgosto, sem entender por que. E nada contenta a alma. Tentava fazer boas obras exteriores para ocupar-me meio à força e reconheço bem o pouco que é uma alma quando se esconde a graça. Não me causava muita dor, porque esse ver minha baixeza me dava alguma satisfação.

16. Outras vezes me acho de um jeito que tampouco uma coisa formada consigo pensar sobre Deus, nem sobre o bem, que seja com propriedade. Nem ter oração, ainda que esteja em solidão. Mas sinto que o conheço. O entendimento e a imaginação, percebo, são o que me atrapalha aqui, pois a boa vontade parece-me que está disposta a todo o bem. Mas esse entendimento está tão perdido que não parece outra coisa senão um louco furioso que ninguém consegue amarrar e eu não sou senhora dele para fazê-lo ficar quieto pelo tempo que leva para rezar um Credo. Algumas vezes rio-me e reconheço minha miséria e fico olhando para ele para ver o que vai fazer. E — glória a Deus — admiravelmente nunca é coisa má, mas indiferente: o que há para fazer aqui, ali, acolá. Reconheço mais, então, a enorme dádiva que me faz o Senhor quando mantém amarrado esse louco em perfeita contemplação. Vejo o que seria, se me vissem nesse desvario as pessoas que me tomam por boa. Tenho muita pena da alma por vê-la em tão má companhia. Desejo vê-la com liberdade, e assim digo ao Senhor: "Quando, meu Deus, chegarei a ver minha alma unida a louvar-vos de modo que gozem de Vós todas as potências? Não permitais, Senhor, seja jamais despedaçada, pois parece que cada pedaço anda para um lado".

Isso eu passo muitas vezes. Em algumas percebo bem que a pouca saúde corporal vem muito ao caso. Lembro-me, então, muito do mal que nos fez o primeiro pecado, pois daqui me parece que nos vem sermos incapazes de gozar de tanto bem. E devem ser os meus pecados, pois, se não tivesse tido tantos, estaria mais inteira no bem.

17. Passei também outro grande tormento: como parecia entender todos os livros que lia que falam de oração, e que já me havia dado aquilo o Senhor, pareceu-me que não tinha necessidade deles. E, assim, não os lia. Só as vidas dos santos, pois como eu me acho tão em falta no que eles serviam a Deus, isso parece que me traz proveito e me anima. Parecia-me muito pouca humildade pensar eu que havia chegado a ter aquela oração. E como não conseguia pensar outra coisa, dava-me muita aflição até que letrados e o bendito frei Pedro de Alcântara me disseram que não me importasse com nada. Bem vejo que no servir a Deus nem comecei — e que sou uma perfeição, a não ser nos desejos e em amar, pois nisso eu vejo bem que me favoreceu o Senhor para que eu possa servi-lo em alguma coisa. Parece-me bem que o amo, mas as obras me desconsolam, assim como as muitas imperfeições que vejo em mim.

18. Outras vezes me dá uma bobeira de alma — eu digo que é — que nem bem nem mal me parece que faço, mas ando atrás dos outros, como dizem, nem com aflição nem com glória, nem a da vida nem a da morte, nem prazer nem pesar, parece que não sinto nada. Parece-me que a alma anda como um burrico que pasta, que se sustenta porque lhe dão de comer e come quase sem sentir. Porque a alma nesse estado não deve ficar sem comer algumas grandes dádivas de Deus, já que em vida tão miserável não lhe pesa viver e passa por isso com indiferença, mas não se sentem movimentos nem efeitos para que perceba a alma.

19. Parece-me agora um navegar com um vento muito sossegado, que faz andar muito sem perceber como. Porque nessa outra maneira são tão grandes os efeitos que quase imediatamente vê a alma sua melhora. Porque logo se agitam os desejos e nunca consegue se satisfazer uma alma. Isso têm os grandes ímpetos de amor de que falei para aqueles a quem Deus os dá. É como umas fontezinhas que vi minar em que nunca para de fazer movimentos para cima a areia.

Natural me parece esse exemplo ou comparação das almas que chegam a esse ponto: sempre está bulindo, o amor, e pensando no que vai fazer. Não cabe em si, como não parece que caiba na terra aquela água, mas a jorra de si. Assim fica muito comumente a alma que não sossega nem cabe em si por causa do amor que tem. Já a tem ensopada dele. Quereria que bebessem os outros, já que a ela não faz falta, para que a ajudassem a louvar a Deus. Oh, quantas vezes me lembro da água-viva que deu o Senhor à Samaritana e, assim, gosto muito daquele evangelho. E com certeza é por isso que, sem entender esse bem como agora, desde muito criança gostava e suplicava muitas vezes ao Senhor que me desse aquela água e tinha-o escrito sempre, onde estivesse, num letreiro, a frase de quando o Senhor se aproximou do poço: "Domine, da miqui aguan".3

20. Parece também um fogo que é grande e que, para que não se apague, precisa que haja sempre o que queimar. Assim são as almas de que falo: ainda que seja muito custoso para elas, quereriam carregar lenha para que não parasse esse fogo. Eu sou de tal maneira que mesmo com palha que pudesse jogar nele me contentaria, e assim acontece às vezes, e muitas vezes. Em algumas, rio, em outras, me desanimo muito. O movimento interior me incita a que sirva em alguma coisa — já que não sirvo para mais — pondo raminhos e flores em imagens, em varrer, em montar um oratório, em umas coisas tão baixas que me causava embaraço. Se fazia alguma coisa de penitência, era tudo pouco e de tal maneira que, se não fosse o Senhor considerar a boa vontade, eu via que era sem nenhuma importância, e eu mesma zombava de mim.

Pois não têm pouca provação as almas a que Deus dá por sua bondade esse fogo de amor seu em abundância, não terem forças corporais para fazer alguma coisa por Ele. É uma tristeza bem grande, porque como lhe faltam forças para pôr alguma lenha nesse fogo, e ela morre por não se matar, parece-me que ela entre si se consome até as cinzas e desfaz-se em lágrimas e se queima e é muito tormento, ainda que seja saboroso.

21. Louve muito ao Senhor a alma a que fez chegar aqui e a que dá forças corporais para fazer penitência, ou deu letras e talento e liberdade para pregar e confessar e aproximar as almas de Deus, pois não sabe nem percebe o bem que tem, se não passou por experimentar o que é não poder fazer nada no serviço do Senhor e receber sempre muito. Seja bendito por tudo e deem-lhe glória os anjos, amém.

22. Não sei se faço bem de escrever tantas minúcias. Como o senhor tornou a me mandar que não me importasse com me estender nem deixasse nada de fora, vou falando com clareza e verdade do que me lembro. E não pode ser diferente de deixar muita coisa de lado, porque teria que gastar muito mais tempo, e tenho tão pouco, como já disse, para talvez não tirar nenhum proveito.

CAPÍTULO 31

TRATA DE ALGUMAS TENTAÇÕES EXTERIORES E APARIÇÕES QUE FAZIA O DEMÔNIO E DE TORMENTOS QUE LHE DAVA. TRATA TAMBÉM DE ALGUMAS COISAS MUITO BOAS PARA ADVERTÊNCIA DE PESSOAS QUE VÃO POR CAMINHO DE PERFEIÇÃO

1. Quero falar, já que falei de algumas tentações e perturbações interiores e secretas que o demônio me causava, de outras que fazia, quase públicas, em que não se podia ignorar que era ele.

2. Estava uma vez em um oratório e apareceu-me, na direção do lado esquerdo, uma figura abominável. Olhei especialmente a boca, porque falou comigo, e era assustadora. Parecia que lhe saía uma grande chama do corpo, pois estava toda clara, sem sombra. Disse-me assustadoramente que eu me tinha bem livrado de suas mãos, mas que ele me faria voltar a elas. Eu fiquei com muito medo e me benzi como pude, e ele desapareceu e voltou logo. Duas vezes isso aconteceu. Eu não sabia o que fazer e joguei água benta nele, naquela direção, e nunca mais voltou.

3. De outra vez ficou cinco horas me atormentando com dores tão terríveis e desassossego interior e exterior, que me parecia que eu não podia mais aguentar. As irmãs que estavam comigo estavam assustadas, sem saber o que fazer nem como me ajudar. Tenho por hábito, quando as dores e o mal corporal são muito intoleráveis, fazer como posso atos1 comigo mesma, suplicando ao Senhor, se aquilo o serve de alguma maneira, que me dê Sua Majestade paciência e que eu fique daquele jeito até o fim do mundo. Então, como daquela vez vi o padecer com tanto rigor, remediava-me com esses votos e decisões para poder aguentar.

4. Quis o Senhor que eu percebesse que era o demônio, porque vi a meu lado um negrinho muito detestável, arreganhando como um desesperado porque, onde pretendia ganhar, perdia. Eu, quando o vi, ri, e não tive medo, porque havia ali algumas irmãs comigo que não conseguiam fazer nada nem sabiam que remédio usar contra tanto tormento, pois eram grandes as pancadas que me fazia dar, sem que eu pudesse resistir, com o corpo, a cabeça e os braços. E o pior era o desassossego interior, pois de nenhuma forma eu conseguia ter sossego.

Não ousava pedir água benta para não dar medo nelas e para que não percebessem o que era. Tenho experiência de muitas vezes que não há coisa com a qual fujam mais para não voltar do que água benta. Da cruz também fogem, mas voltam. Deve ser grande a virtude da água benta. Para mim é uma particular e muito conhecida consolação que sente minha alma quando a tomo. O certo é que é muito comum eu sentir uma recuperação que eu não saberia explicar, como um deleite interior que me conforta a alma toda. Isso não é fantasia nem coisa que aconteceu uma vez só, mas muitas e muitas, e que eu olhei com bastante atenção. Digamos que é como alguém que estivesse com muito calor e sede e bebesse um jarro de água fria, pois parece que todo ele sente refrescar-se. Penso em que grande coisa é tudo o que está ordenado pela Igreja e dá-me grande prazer ver que têm tanta força aquelas palavras para pô-la assim na água, para que seja tão grande a diferença que fazem em relação à água que não é benzida.

5. Então, como não acabava o tormento, disse: se não fossem rir de mim, eu pediria água benta. Trouxeram e jogaram em mim e não adiantava. Joguei onde ele estava e num instante se foi e saiu de mim todo o mal, como se o tirassem de mim com a mão. Só que fiquei cansada, como se me tivessem dado muitas pauladas. Foi-me de grande proveito ver que, mesmo não sendo dele uma alma e um corpo, quando o Senhor dá licença, faz tanto mal o demônio. Que fará quando os possua como seus? Deu-me de novo vontade de me livrar de companhia tão ruim.

6. De outra vez, há pouco, aconteceu-me a mesma coisa, ainda que não tenha durado tanto e eu estivesse sozinha. Pedi água benta e as que entraram depois que já tinham ido embora, que eram duas monjas em quem bem se podia acreditar, pois de maneira nenhuma diriam mentira, sentiram um cheiro muito ruim, como de enxofre. Eu não senti. Mas durou algum tempo, de modo que elas perceberam.

De uma outra vez eu estava no coro e deu-me um grande ímpeto de recolhimento. Fui-me dali para que não percebessem, ainda que, ali perto, ouviram todas grandes pancadas onde eu estava. E eu ouvi perto de mim umas falas, como se combinassem algo, ainda que não tenha entendido o que. Era uma voz grossa. Mas eu estava tão em oração que não entendi nada e nem tive medo algum. Quase toda vez era quando o Senhor me fazia a dádiva de que, persuadida por mim, alguma alma progredisse.

7. E é certo que me aconteceu o que contarei agora. E disto há muitas testemunhas, especialmente quem agora ouve minhas confissões, pois viu isso escrito em uma carta. Sem dizer-lhe eu quem era a pessoa de quem era essa carta, bem sabia ele quem era. Procurou-me uma pessoa que, havia dois anos e meio, estava em pecado mortal, dos mais abomináveis que já escutei, e em todo esse tempo nem o confessava nem se emendava. E dizia missa. E ainda que ouvisse confissões dos outros, esse se dizia: como iria confessar uma coisa tão feia? E tinha grande desejo de sair disso e não conseguia se ajudar. A mim, me deu enorme pena, e ver que se ofendia a Deus de tal maneira me causou muita tristeza. Prometi a ele suplicar muito a Deus que o remediasse e fazer com que outras pessoas fizessem o mesmo, pois eram melhores do que eu, e escrevia a certa pessoa a quem ele me disse que podia dar as cartas. E assim foi que a primeira se confessou, pois quis Deus, por causa das muitas pessoas muito santas que haviam suplicado a Deus o que eu havia pedido, fazer com essa alma essa misericórdia. E eu, ainda que miserável, fazia o que podia, com muito cuidado. Escreveu-me que estava já com tanta melhora que havia dias em que não caía no pecado, mas que era tão grande o tormento que a tentação lhe dava, pois parecia estar no inferno pelo que ele padecia, que pedia que eu lhe encomendasse a Deus.

Eu o tornei a encomendar a minhas irmãs, por cujas orações devia o Senhor me fazer essa dádiva. E tomaram a peito essa tarefa. Era uma pessoa que ninguém podia atinar em quem era. Supliquei a Sua Majestade que se aplacassem aqueles tormentos e tentações, e que viessem aqueles demônios atormentar a mim, desde que eu não ofendesse em nada ao Senhor. E assim foi que passei um mês de enormes tormentos. Então foi que aconteceram essas duas coisas que eu contei.

8. Aprouve ao Senhor que deixassem a ele. Assim me escreveram, porque eu lhe disse o que passava ao longo desse mês. Ganhou força sua alma e ficou totalmente livre, a ponto de não se fartar de dar graças a Deus e a mim, como se eu tivesse feito alguma coisa. Mas é que o crédito que eu tinha, de que o Senhor me fazia dádivas, foi proveitoso para ele. Dizia que quando se via muito angustiado, lia minhas cartas e a tentação o deixava, e estava muito assustado do que eu havia padecido e como ele havia se livrado. E até eu me espantei e teria sofrido outros muitos anos para ver aquela alma livre. Seja louvado por tudo, pois pode muito a oração dos que servem ao Senhor, como creio eu que fazem nesta casa estas irmãs. Mas, como eu buscava isso, os demônios deviam se indignar mais comigo, e o Senhor, por meus pecados, permitia.

9. Nesse tempo também, numa noite, pensei que me sufocava. E quando jogaram muita água benta, vi ir embora grande multidão deles, como quem vai despencando ladeira abaixo. São tantas as vezes que esses malditos me atormentam e tão pouco o medo que eu tenho deles já, por ver que não podem se mover se o Senhor não lhes dá licença, que cansaria ao senhor e me cansaria se contasse.

10. O que foi contado sirva para que o verdadeiro servo de Deus dê pouca importância a esses espantalhos que esses demônios põem para dar medo. Saibam que, a cada vez que damos pouca importância a eles, ficam com menos força e a alma mais senhora de si. Sempre fica algum benefício, que, para não me estender, não digo. Só direi isto que me aconteceu numa noite das Almas.2

Estando em um oratório, tendo rezado um noturno e dizendo umas orações muito devotas — que ficam no final dele —, muito devotas, que temos em nosso breviário,3 pôs-se o demônio sobre o meu livro, para que eu não acabasse a oração. Eu me benzi e ele se foi. Tornando a começar, voltou. Creio que foram três vezes que comecei e, até que joguei água benta, não consegui acabar. Vi que saíram algumas almas do purgatório no mesmo instante, pois devia faltar pouco para elas, e pensei que talvez fosse isso que ele pretendia impedir.

Poucas vezes o vi tomando forma e muitas sem forma nenhuma, como na visão em que, sem forma, vê-se claramente que está ali, como já disse.

11. Quero também contar isto, porque me assustou muito: estando no dia da Trindade4 no coro de certo mosteiro e em arrebatamento, vi uma grande contenda de demônios contra anjos. Eu não conseguia entender o que queria dizer aquela visão. Antes que se passassem quinze dias entendeu-se bem por certa contenda que ocorreu entre gente de oração e muitos que não eram, e muito dano proveio à casa em que estava. Foi uma contenda que durou muito tempo e de grande desassossego.

Outras vezes via grande multidão de demônios ao redor de mim e parecia-me haver uma intensa claridade que me cercava toda e essa não permitia que eles se aproximassem de mim. Entendi que Deus me protegia para que não se aproximassem de mim de modo que me fizessem ofendê-lo. Pelo que vi em mim algumas vezes percebi que era visão verdadeira.

O fato é que percebi tão bem seu pouco poder que, se eu não for contra Deus, quase nenhum medo tenho deles. Porque não são nada as suas forças se não veem almas rendidas a eles e covardes, pois aí eles mostram seu poder. Algumas vezes, nas tentações que já contei, parecia-me que todas as vaidades e fraquezas de tempos passados voltavam a despertar em mim, e então tinha que me encomendar bem a Deus. Depois era o tormento de parecer-me que, já que me ocorriam aqueles pensamentos, devia ser tudo demônio, até que meu confessor me sossegava. Porque mesmo um primeiro movimento de maus pensamentos parecia-me que não deveria ter quem tantas dádivas recebia do Senhor.

12. Outras vezes me atormentava muito, e até agora me atormenta, que façam muito caso de mim, especialmente pessoas importantes, e que falem muito bem de mim. Com isso sofri e sofro muito. Olho logo para a vida de Cristo e dos santos e me parece que caminho ao contrário, pois eles não andavam senão em meio ao desprezo e às injúrias. Faz-me ficar temerosa e eu não ouso levantar a cabeça e nem quereria aparecer. Coisa que não faço quando tenho perseguições. Aí a alma anda tão soberana, ainda que o corpo sinta, e, por outro lado, anda aflita, e não sei como pode ser isso. Mas é assim que acontece. E então parece que a alma está em seu reino e põe tudo debaixo dos pés.

Algumas vezes dava-me, e durava alguns dias, e parecia ser virtude e humildade, por um lado, e agora vejo claramente que era tentação. Um frade dominicano, grande letrado, explicou-me bem. Quando pensava que essas dádivas que o Senhor me faz deviam servir a ser conhecidas publicamente, era tão exagerado o tormento que me inquietava muito a alma. Cheguei a um estado que, pensando nisso, eu me decidiria com mais boa vontade a ser enterrada viva que passar por isso. Assim, quando começaram esses grandes recolhimentos ou arrebatamentos a que eu não conseguia resistir, mesmo em público, ficava eu depois tão envergonhada que não queria aparecer onde qualquer pessoa me visse.

13. Estando uma vez muito cansada disso, perguntou-me o Senhor de que eu tinha medo. Que não podia haver nisso senão duas coisas: ou que murmurassem contra mim, ou que o louvassem. Dava a entender que os que criam louvariam, e os que não, condenavam-me sem culpa, e ambas as coisas eram lucro para mim e que eu não desanimasse. Isso me tranquilizou muito e me consolo muito quando me lembro.

Chegou a um ponto a tentação, que queria ir embora deste lugar e professar em outro mosteiro5 muito mais fechado do que aquele em que eu estava no momento, pois tinha ouvido falar muito bem dele. Também era da minha Ordem e muito distante. E isso era o que me consolava: ficar onde não me conhecessem. E nunca meu confessor deixou.

14. Tiravam muito da minha liberdade de espírito esses medos, que depois vim a entender que não eram a boa humildade, pois tanto inquietavam. E me mostrou o Senhor essa verdade: se eu estava tão convencida e certa de que não se tratava de nenhuma coisa boa minha, mas de Deus, assim como não me incomodava ouvir louvar outras pessoas, antes me alegrava e consolava muito ver que Deus se mostrava ali, tampouco me incomodaria que mostrasse em mim suas obras.

15. Também fui dar em outro exagero, que foi suplicar a Deus — e fazia-o em oração particular — que, quando para alguma pessoa se mostrasse algo bom em mim, que Sua Majestade lhe mostrasse meus pecados, para que visse o quanto era sem mérito meu que fazia dádivas, pois isso eu sempre desejo muito. Meu confessor me disse que não o fizesse. Mas até agora há pouco, se eu via uma pessoa que pensava muito bem de mim, por rodeios ou como pudesse, fazia saber meus pecados, e com isso parece que eu sossegava. Também me fizeram ter muito escrúpulo nisso.

16. Isso procedia não da humildade, na minha opinião, mas é que de uma tentação vinham muitas. Parecia-me que mantinha todos enganados, e ainda que seja verdade que andam enganados em pensar que há algum bem em mim, não era meu desejo enganá-los, nem nunca pretendi tal coisa, mas o Senhor, com algum objetivo, permite. E assim, até com os confessores, se não visse que era necessário, não conversaria nada, pois tinha muitos escrúpulos.

Todos esses temorezinhos e aflições e sombras de humildade sei eu agora que eram grande imperfeição e sei que era por não estar mortificada. Porque uma alma posta nas mãos de Deus não se importa se falam bem ou mal, se ela entende bem, bem entendido — quando o Senhor quiser fazer-lhe a dádiva de entender —, que não tem nada por si mesma. Confie em quem dá a ela, pois saberá por que torna tudo manifesto, e prepare-se para a perseguição, pois é garantido, nos tempos de hoje, quando o Senhor quer que se saiba de alguma pessoa que faz a ela semelhantes dádivas. Porque há mil olhos para uma alma dessas enquanto, para mil almas de outro feitio, não há nenhum.

17. Na verdade, não há poucas razões para temer, e esse devia ser meu medo. E não humildade, mas pusilanimidade. Porque bem pode se preparar uma alma que Deus permite que ande assim aos olhos do mundo, a ser mártir do mundo. Porque se ela não quiser morrer para ele, ele mesmo, mundo, a matará. Com certeza não vejo outra coisa nele que me pareça bem, a não ser o não consentir faltas nos bons que, graças às murmurações, aperfeiçoam-nos.

Digo que, se alguém não for perfeito, é preciso mais coragem para andar em caminho de perfeição, do que para ser subitamente mártir. Porque a perfeição não se alcança depressa, a não ser por aqueles a quem o Senhor quiser, por particular privilégio, fazer-lhe essa dádiva. O mundo, vendo-o começar, já o quer perfeito, e a mil léguas percebe uma falta. E que talvez, nele, seja virtude. Mas quem o condena faz aquilo mesmo por vício e assim o julga no outro. Não pode comer, nem dormir, nem respirar, como se diz. E quanto mais em alta conta o têm, mais devem esquecer que ainda estão no corpo. Por mais perfeita que tenham a alma, ainda vivem na terra, sujeitos a suas misérias, por mais que a mantenham debaixo dos pés. E assim, como digo, é preciso grande coragem porque a pobre alma ainda não começou a andar e já querem que voe. Ainda não venceu as paixões e querem que, em grandes ocasiões de pecado, estejam tão inteiras como eles leem que estavam os santos depois de confirmados na graça.

É para louvar a Deus o que se passa aí, e também para dar muita pena no coração, porque muitas almas voltam atrás, pois não sabem se valer as pobrezinhas. E assim teria feito a minha, creio, se o Senhor não fizesse, tão misericordiosamente, tudo por sua parte. E, até que, por sua bondade, tivesse disposto tudo, já verá o senhor que não houve em mim nada senão cair e levantar.

18. Quereria saber contar, porque creio que aqui se enganam muitas almas que querem voar antes que Deus lhes dê asas. Creio que já fiz antes essa comparação, mas fica bem aqui. Tratarei disso porque vejo muitas almas muito aflitas por essa causa. Quando começam com grandes desejos e fervor e determinação de ir adiante na virtude, e algumas quanto às coisas exteriores deixam tudo por Ele, ao ver em outras pessoas, que são mais crescidas, coisas muito grandes de virtudes que o Senhor dá a elas, que não são coisas que podemos tomar por nós mesmos, e veem todos os livros que foram escritos sobre oração e contemplação afirmar todas essas coisas que temos que fazer para subir a esse grau de dignidade e que elas não conseguem por si mesmas, desconsolam-se. Coisas como: não nos importar que falem mal de nós, antes ter maior alegria com isso do que quando falam bem; pouca estima pela honra; desapego dos parentes, pois, se não têm oração, não quereria nem falar com eles, antes cansam; e muitas outras coisas desse teor que me parece que Deus dará, porque me parece que já são bens sobrenaturais ou contrários a nossa inclinação natural.

Não desanimem. Esperem no Senhor, pois o que agora têm como desejo, Sua Majestade fará com que cheguem a ter de fato. Esperem com oração e fazendo por sua parte o que está a seu alcance. Porque é muito necessário para essa nossa fraca natureza ter grande confiança e não perder as forças, nem pensar que deixaremos de sair com vitória, se nos esforçarmos.

19. E, porque tenho muita experiência disso, direi algo ao senhor como conselho. Não pense, ainda que lhe pareça que sim, que já está ganha a virtude, se não a experimentar com seu contrário. E sempre temos que ficar desconfiados e não nos descuidar enquanto vivermos. Porque muita coisa pega rápido em nós, se — como digo — não estiver dada a graça toda para saber como são as coisas todas. E nesta vida nunca se tem tudo sem muitos perigos.

Parecia-me, até há pouco tempo, que não apenas não estava apegada a meus parentes, como até me cansavam. E, assim, era seguro que não conseguia conviver com eles. Deu-se um negócio de grande importância e tive que ficar com uma irmã minha6 de quem gostava muitíssimo, antes, embora na conversa, ainda que ela seja muito melhor do que eu, não me dava com ela. Porque como ela tem um estado diferente, pois é casada, a conversa não pode ser sempre sobre aquilo que eu quereria e eu ficava sozinha o maior tempo que podia. Vi que me atormentavam os tormentos dela. Muito mais do que os do meu próximo. E me preocupavam um pouco. Enfim, percebi que eu não estava tão livre como pensava e que ainda tinha necessidade de fugir das ocasiões de pecado, para que essa virtude que o Senhor havia começado a me dar fosse crescendo. E assim procurei fazer sempre, com o favor d'Ele desde então.

20. Em muito alta conta se deve ter uma virtude quando o Senhor começa a dá-la e nunca nos devemos pôr em perigo de perdê-la. Assim é em questões de honra e em muitas outras. Pois acredite o senhor que nem todos os que pensamos estar desapegados de tudo estão. E é necessário nunca descuidar disso. E qualquer pessoa que se ressinta por alguma questão de honra, se quiser progredir, acredite em mim e deixe para trás essa amarra, pois é uma corrente que não tem lima que rompa, a não ser Deus com oração e fazer muito de nossa parte. Parece-me um impedimento para esse caminho e me espanta o dano que causa.

Vejo algumas pessoas santas em suas obras, que fazem obras tão grandes que espantam as pessoas. Valha-me Deus! Por que ainda está na terra essa alma? Como não está no cume da perfeição? O que é isso? Quem está detendo quem faz tanto por Deus? Oh, é que tem um ponto de honra! E o pior é que não quer perceber que tem. E é porque às vezes o demônio a faz achar que é obrigada a mantê-la.

21. Então, creiam-me, creiam pelo amor de Deus nesta formiguinha que o Senhor quer que fale: se não tirarem essa lagarta, toda a árvore ficará estragada. Porque sobrarão algumas outras virtudes, mas todas carcomidas. Não é uma árvore bonita, mas uma que não medra nem deixa medrar aquelas que ficam junto dela. Porque a fruta, de bom exemplo que dá, não é nada sadia. Dura pouco. Muitas vezes eu digo que, por menor que seja o ponto de honra, é como cantar com o órgão, pois, uma nota ou um tempo que se erra desafina toda a música. É uma coisa que em toda parte causa danos à alma, mas neste caminho de oração é uma pestilência.

22. Andas procurando juntar-te a Deus por união, e queremos seguir seus conselhos de Cristo carregado de injúrias e testemunhos e queremos muito íntegra nossa honra e credibilidade? Não é possível chegar lá, pois não ficam no mesmo caminho. Aproxima-se o Senhor da alma quando nos esforçamos e procuramos perder muitas coisas de nosso direito. Dirão alguns: "Não tenho em que, nem se me oferece oportunidade". Eu creio que, quem tiver essa determinação, não quererá o Senhor que perca um tão grande bem. Sua Majestade arranjará tantas coisas em que ganhe essas virtudes que não quereria tantas. Mãos à obra.

23. Quero falar das ninharias e miudezas que eu fazia quando comecei. Ou de algumas delas. As palhinhas de que já falei, ponho no fogo, que não sou capaz de mais do que isso. O Senhor recebe tudo, seja bendito para sempre.

Entre minhas faltas tinha esta: sabia pouco do breviário e do que tinha que fazer no coro e como dirigi-lo, por puro descuido e por estar envolvida em coisas vãs. E via outras noviças que podiam me ensinar. Acontecia-me de não perguntar a elas para que não percebessem que eu sabia pouco. Logo se põe na minha frente o bom exemplo. Isso é muito comum. Desde que Deus abriu-me um pouco os olhos, mesmo sabendo, um tantinho de dúvida que tivesse, perguntava às meninas. Não perdi a honra nem o crédito. Ao contrário, quis o Senhor, pelo que me parece, dar-me, depois, uma memória melhor. Cantava mal. Incomodava-me muito se não tivesse estudado o que me pediam. E não para não fazer feio diante do Senhor, pois isso teria sido virtude, mas sim pelas muitas que me ouviam. E por puro orgulho me perturbava tanto que dizia muito pior do que sabia. Incomodava-me muito, no começo. Depois gostava disso. E assim é que, quando comecei a não me importar se perceberiam que eu não sabia, passei a dizer muito melhor. E a negra honra tirava de mim saber fazer isso que eu tinha como ponto de honra saber, pois cada um põe a honra naquilo que quer.

24. Com essas ninharias que não são nada — e eu não sou nada em grande medida, já que isso me atormentava — pouco a pouco vão se fazendo esforços e coisas pequeninas como essas, que sendo feitas por Deus dá-lhes Sua Majestade importância, Sua Majestade ajuda para coisas maiores. E assim em coisas de humildade me acontecia que, vendo que todas progrediam, menos eu — porque nunca servi para nada —, quando saíam do coro, recolher todos os mantos parecia-me ser um serviço àqueles anjos que ali louvavam a Deus, até que — não sei como — vieram a saber, pois me escondia muito. Porque minha virtude não chegava a querer que soubessem essas coisas. E não por humildade, mas para que não rissem de mim, já que eram tão ninharias.

25. Oh, meu Senhor, que vergonha é ver tantas maldades e contar uns grãozinhos de areia, em meio a tantos males, que nem levantava da terra a vosso serviço, mas ia tudo envolto em mil misérias! Não minava ainda de debaixo dessa areia a água da vossa graça para que a fizesse subir.

Oh, meu Criador, quem haveria de ter alguma coisa para contar, entre tantos males, que fosse de alguma importância, uma vez que conto as grandes dádivas que recebi de Vós! Assim, Senhor meu, não sei como meu coração pode aguentar, nem como poderá, quem ler isto, deixar de ter repulsa a mim, vendo tão mal aplicadas tantas enormes dádivas, e que não tenho vergonha de contar esses serviços, enfim, como meus. Sim, tenho, Senhor meu, mas não ter outra coisa a contar a meu favor me faz contar tão baixos inícios, para que tenha esperança quem os fizer grandes, pois, já que aqueles meus parece que o Senhor levou em consideração, levará em maior consideração a esses. Queira Sua Majestade me dar a graça para que eu não fique sempre no início.

CAPÍTULO 32

EM QUE TRATA DE COMO QUIS O SENHOR PÔ-LA, EM ESPÍRITO, EM UM LUGAR DO INFERNO QUE TERIA MERECIDO POR SEUS PECADOS. CONTA UMA MOSTRA DO QUE ALI SE APRESENTOU. COMEÇA A TRATAR DA MANEIRA COMO SE FUNDOU O MOSTEIRO, ONDE ESTÁ AGORA, DE SÃO JOSÉ

1. Depois de muito tempo que o Senhor tinha feito muitas das dádivas que contei e outras muito grandes, estando um dia em oração, achei-me, num instante, sem saber como, metida no inferno, parecia-me. Entendi que o Senhor queria que eu visse o lugar que os demônios tinham preparado para mim lá, e eu, merecido por meus pecados. Foi em brevíssimo tempo, mas, ainda que eu vivesse muitos anos, me parece impossível esquecer. Parecia-me, a entrada, um túnel muito comprido e estreito, como um forno muito baixo e escuro e apertado. O solo me pareceu de uma água como lodo muito sujo e de cheiro pestilencial, e muitos répteis maus nele. De um lado havia uma concavidade na parede, como um armário embutido, onde me vi enfiar, muito apertada.

2. Tudo isso era agradável à vista em comparação com o que senti ali. Isso que eu disse não faz justiça. Parece-me que, sobre isso, mesmo um começo de descrever como é não pode existir, nem se pode entender. Mas senti um fogo na alma, que eu não consigo perceber como se pode dizer a maneira como é. As dores corporais tão insuportáveis, que, mesmo tendo passado nessa vida dores gravíssimas e, segundo dizem os médicos, as maiores que se podem passar aqui (porque aconteceu-me de encolher todos os nervos quando fiquei paralisada, além de muitas outras dores de muitos tipos que tive e até algumas, como disse, causadas pelo demônio), tudo não é nada em comparação com o que senti ali. E ver que seriam sem fim e sem cessar jamais. Pois então, isso não é nada em comparação com a agonia da alma. Um aperto, um sufocamento, uma aflição tão sensível e com tão desesperada e aflita tristeza que não sei como explicar. Porque dizer que é como estar sempre arrancando a alma é pouco, porque ainda pareceria que outro é que acaba com a vida. Mas aí é a própria alma que despedaça. O fato é que não sei como descrever aquele fogo interior e aquele desespero além de tão graves tormentos e dores. Eu não via quem os causava em mim, mas sentia-me queimar e diminuir, pelo que me parecia, e digo que aquele fogo e aquele desespero interior é o pior.

3. Estando em lugar tão pestilencial, tão sem poder esperar consolo, não existia sentar-se ou deitar-se, nem havia espaço, já que me tinham posto nesse buraco na parede. Porque essas paredes, que são assustadoras para a vista, elas mesmas apertam e tudo sufoca. Não há luz, mas tudo são trevas escuríssimas. Eu não entendo como pode ser isto, pois, apesar de não haver luz, tudo o que à vista há de causar sofrimento, tudo se vê.

Não quis o Senhor, então, que visse mais de todo o inferno. Depois vi outra visão de coisas assustadoras, o castigo de alguns vícios. Quanto à vista, muito mais assustadores me pareceram, mas como não sentia a dor, não me deram tanto medo, pois nessa visão quis o Senhor que eu verdadeiramente sentisse aqueles tormentos e a aflição no espírito como se o corpo estivesse padecendo. Não sei como foi, mas percebi bem ser uma grande dádiva e que quis o Senhor que eu visse com meus próprios olhos de onde sua misericórdia me tinha livrado. Porque não é nada ouvir dizer, nem ter eu pensado outras vezes em diferentes tormentos. Ainda que poucas, pois, por medo, minha alma não tolerava bem isso. Nem que os demônios torturam, nem outros tormentos diferentes que li, não é nada comparado com esse tormento, porque é outra coisa. Enfim, é como um esboço da verdade, e o queimar-se aqui é muito pouco em comparação com esse fogo de lá.

4. Eu fiquei tão assustada, e ainda estou agora, escrevendo sobre isso, que, com haver já quase seis anos, me parece que o calor natural me falta, por medo, aqui mesmo onde estou. E assim, não me lembro de nenhuma vez em que tenha trabalhos e dores, que não me pareça ninharia tudo o que se pode passar aqui. E assim me parece, em parte, que nos queixamos sem motivo. E assim volto a dizer que foi uma das maiores dádivas que o Senhor me fez, porque me foi de muito proveito, tanto para perder o medo das tribulações e contradições desta vida, como para esforçar-me a padecê-las e dar graças ao Senhor que me livrou, pelo que agora me parece, de males tão perpétuos e terríveis.

5. Depois disso tudo aqui me parece fácil, como ia dizendo, em comparação com um momento que se tenha de aguentar o que eu ali padeci. Espanta-me como, tendo lido muitos livros em que se explica algo sobre as penas do inferno, não as temia nem as tinha como aquilo que são. Onde estava? Como podia me dar descanso algo que acarretava eu ir para tão mau lugar? Sede bendito, Deus meu, para sempre. E como se mostrou que me amáveis muito mais do que eu me amo! Quantas vezes, Senhor, me livrastes de cárcere tão tenebroso, e como eu voltava a meter-me nele contra a vossa vontade!

6. Por esse meio ganhei também a grande dor que me causam as muitas almas que se condenam, desses luteranos, especialmente, porque já eram, pelo batismo, membros da Igreja, e os ímpetos grandes de ser de proveito às almas. Pois me parece certo que, para livrar uma só de tão gravíssimos tormentos, passaria eu de boa vontade muitas mortes. Vejo que, se vemos aqui uma pessoa a quem queremos bem, especialmente se ela está com grande tormento ou dor, parece que nossa própria natureza nos convida à compaixão. E se for grande, nos angustia. Ver então uma alma no tormento dos tormentos por tempo sem fim, quem há de poder aguentar? Não há coração que o suporte sem grande tristeza. Porque aqui, mesmo sabendo que, enfim, vai acabar junto com a vida e tem um término, já nos move a tanta compaixão, não sei como podemos sossegar, vendo tantas almas quantas leva o demônio todo dia consigo.

7. Isso também me faz desejar que, numa coisa que tanto importa, não nos contentemos com menos do que fazer tudo o que pudermos de nossa parte. Não deixemos nada de lado, e queira o Senhor dignar-se a dar-nos graça para isso.

Quando penso que, ainda quando era tão má, tinha alguma preocupação com servir a Deus e não fazia algumas coisas que vejo que se engolem no mundo como quem não fizesse nada. E, enfim, passava grandes enfermidades e com muita paciência que o Senhor me dava. Eu não era inclinada a murmurar nem a falar mal de ninguém. Nem parece que podia querer mal a alguém, nem era cobiçosa nem inveja jamais me lembro de ter de uma maneira que fosse ofensa grave ao Senhor, e outras coisas que, ainda que eu fosse tão ruim, tinha temor a Deus a maior parte do tempo. E vejo onde já me tinham instalado os demônios. E é verdade que, conforme minhas culpas, ainda me parece que merecia mais castigo. Mas, com tudo isso, digo que era um castigo terrível e que é coisa perigosa contentarmo-nos e trazer em sossego e alegria a alma que anda caindo em pecado mortal a cada passo. Mas, por amor de Deus, tiremo-nos das ocasiões de pecado que o Senhor nos ajudará, como fez comigo. Queira Sua Majestade, que não me largue de sua mão para que eu não torne a cair, pois já vi aonde haveria de ir parar. Não permita o Senhor, por ser quem é Sua Majestade, amém.

8. Andando eu depois de ter visto isso e outras grandes coisas e segredos, pois o Senhor, por ser quem é, quis me mostrar algo da glória que será dada aos bons e da pena a ser dada aos maus, desejando um modo e uma maneira pelos quais pudesse fazer penitência por tanto mal e merecer algo para ganhar tanto bem, desejava fugir das pessoas e acabar de uma vez de me afastar do mundo. Não sossegava meu espírito, mas não era um desassossego inquieto e sim saboroso. Via-se bem que era de Deus e que Sua Majestade havia dado à alma calor para digerir outros alimentos mais gordos do que aqueles que comia.

9. Pensava no que poderia fazer por Deus e pensei que a primeira coisa era seguir o chamamento que Sua Majestade havia me feito a uma ordem religiosa, observando minha regra com a maior perfeição que pudesse. E ainda que na casa em que estava houvesse muitas servas de Deus e Ele era fartamente servido nela, por ter grande necessidade, as monjas saíam muitas vezes para ir a partes em que com toda a honestidade e religião se podia ir. E também não estava fundada em seu primitivo rigor a regra, mas observava-se conforme o que se fazia em toda a ordem, que é com a bula de relaxamento.1 E também havia outros inconvenientes, pois me parecia que tinha muitas regalias, por ser a casa grande e agradável. Mas esse inconveniente de sair, ainda que eu fosse das que o usava muito, já era bem grande para mim. Porque algumas pessoas a quem os prelados não podiam dizer não gostavam que eu estivesse em sua companhia e, importunados por elas, mandavam-me fazê-lo. E, assim, conforme iam ordenando, pouco podia ficar no mosteiro, porque o demônio em parte devia ajudar para que eu não estivesse em casa. Mas, ainda assim, como comunicava a algumas aquilo que os que conversavam comigo me ensinavam, tirava-se grande proveito.

10. Deu-se uma vez, estando eu com uma pessoa,2 perguntar ela a mim e a outras3 se não estaríamos dispostas a ser monjas à maneira das descalças, pois até era possível fazer um mosteiro. Eu, como andava com esses desejos, comecei a falar disso com aquela senhora, minha companheira viúva, de quem já falei, que tinha esse mesmo desejo. Ela começou a fazer projetos para dotar o mosteiro de uma renda, que agora vejo que não iam dar em muita coisa, mas o desejo que tínhamos disso nos fazia parecer que sim. Eu, porém, por outro lado, como era muito contente na casa em que estava, porque era muito do meu gosto e a cela em que estava instalada muito de minha conveniência, ainda me detinha. Contudo, combinamos de pedir muito a Deus.

11. Tendo comungado um dia, mandou-me muito Sua Majestade que eu tentasse com todas as minhas forças, fazendo-me grandes promessas de que não se deixaria de fazer o mosteiro, e que se serviria muito a Deus nele. E que se chamasse São José. E que, em uma porta, nos protegeria ele, e na outra, Nossa Senhora e que Cristo estaria conosco. E que seria uma estrela que emanaria de si um grande esplendor. E que, ainda que as ordens religiosas estivessem relaxadas, que eu não pensasse que se servia pouco a Deus nelas, pois o que seria do mundo se não fosse pelos religiosos? Que dissesse a meu confessor isso que me mandava. E que pedia Ele que não fosse contra isso nem me atrapalhasse nisso.

12. Essa visão teve tão grandes efeitos e foi de tal maneira essa fala que me dirigia o Senhor que eu não podia duvidar de que era Ele. Eu senti grandíssimo pesar porque em parte me foram apresentados os grandes desassossegos e trabalhos que me havia de custar e também porque eu estava contentíssima naquela casa. Então, ainda que eu não tratasse disso, não era com tanta determinação e certeza que seria feito. Aí me parece que punham pressão em mim e como estava começando uma coisa de grande desassossego, estava em dúvida sobre o que faria. Mas foram muitas as vezes em que o Senhor tornou a falar nisso, pondo diante de mim tantas causas e razões que eu via serem claras e que era sua vontade, que eu não ousei fazer outra coisa a não ser dizer para meu confessor. E disse-lhe por escrito tudo o que se passava.

13. Ele não ousou dizer-me decididamente que deixasse isso de lado, mas via que não trilhava um caminho conforme a razão natural, por haver pouquíssima ou nenhuma possibilidade em minha companheira, que era quem devia fazê-lo. Disse-me que conversasse sobre isso com meu prelado e, aquilo que ele fizesse, fizesse eu também. Eu não falava sobre essas visões com meu prelado, mas aquela senhora falou com ele que queria construir esse mosteiro. E o provincial4 reagiu muito bem a isso, pois é amigo de toda vida religiosa e deu-lhe todo o favor que foi necessário e disse a ela que ele aceitaria a casa.

Trataram da renda que teria de ter e de que nunca queríamos que fossem mais de treze irmãs, por muitos motivos. Antes que começássemos a tratar disso, escrevemos ao santo frei Pedro de Alcântara tudo o que se passava e aconselhou-nos que não deixássemos de fazer e deu-nos sua opinião sobre tudo.

14. Nem se havia começado a saber no lugar, quando não se poderá escrever brevemente a grande perseguição que caiu sobre nós: os ditos, as risadas, o dizer que era um disparate. A mim, que estava bem no meu mosteiro, e à minha companheira. Tanta perseguição que a deixou desanimada. Eu não sabia o que fazer. Em parte me parecia que tinham razão. Estando assim muito desanimada, encomendando-me a Deus, começou Sua Majestade a consolar-me e animar-me. Disse-me que, com isso, veria o que haviam passado os santos que haviam fundado as ordens religiosas, pois teria que passar por muito mais perseguição do que podia pensar. Que não nos importássemos. Dizia-me algumas coisas para que eu dissesse à minha companheira e o que mais me espantava é que logo ficávamos consoladas do que havia se passado e com coragem para resistir a todos. E assim é que, entre gente de oração e tudo, enfim, no lugar não havia quase ninguém que então não estivesse contra nós e a quem não parecesse um enorme disparate.

15. Foram tantos os comentários e o alvoroço em meu próprio mosteiro, que ao provincial pareceu difícil pôr-se contra todos e, assim, mudou de ideia e não quis aceitar a casa. Disse que a renda não era segura e era pequena e era muita a oposição. E em tudo parece que tinha razão e, enfim, deixou a ideia e não quis aceitar a casa. A nós, que já parecia que tínhamos recebido os primeiros golpes, deu-nos muito grande tristeza. Em especial deu a mim ver o provincial ser contra, pois, querendo ele, eu já tinha uma desculpa com todos. À minha companheira já não queriam absolver se não deixasse o projeto, porque, diziam, era obrigada a deixar o escândalo.

16. Ela procurou um grande letrado,5 muito grande servo de Deus, da Ordem de São Domingos, para dizer a ele e pô-lo a par de tudo. Isso foi antes ainda de o provincial ter deixado, porque em lugar nenhum tínhamos quem quisesse nos dar uma opinião e, assim, diziam que era tudo só das nossas cabeças. Fez um relato, essa senhora, de tudo e deu conta da renda que tinha de suas propriedades a esse santo homem, com muito desejo de que nos ajudasse, porque era o maior letrado que havia então no lugar e poucos havia mais letrados do que ele em sua ordem.

Eu disse a ele tudo o que pensávamos fazer e algumas das causas. Não lhe falei nada sobre revelação alguma, mas as razões naturais que me moviam, porque queria que nos desse sua opinião de acordo com elas. Ele nos pediu que déssemos oito dias de prazo para responder e perguntou se estávamos dispostas a fazer o que ele nos dissesse. Eu disse que sim, mas, ainda que dissesse isso e me parecesse que eu o faria, porque não via caminho naquele momento para levar adiante o projeto, nunca saía de mim uma segurança de que se havia de fazer. Minha companheira tinha mais fé. Nunca ela, por coisa nenhuma que lhe dissessem, se decidia a deixar o projeto.

17. Eu, ainda que — como ia dizendo — me parecesse impossível deixar de fazê-lo, creio de tal maneira ser verdadeira a revelação a ponto de não ir contra o que está na Sagrada Escritura ou contra as leis da Igreja que somos obrigadas a cumprir. Porque, ainda que me parecesse que era de Deus, se aquele letrado me dissesse que não podíamos fazer o mosteiro sem ofender a Deus e que iríamos contra a consciência, parece-me que logo me afastaria disso ou procuraria outro meio. Mas a mim não dava o Senhor outro meio senão esse.

Dizia-me depois esse servo de Deus que havia se encarregado disso com toda a determinação de fazer o possível para que nos afastássemos de fazer o mosteiro, porque já havia chegado a seu conhecimento o clamor do povo. E também a ele parecia desatino, como a todos. E, sabendo que tínhamos ido até ele, um cavalheiro mandou avisá-lo que prestasse atenção no que fazia, que não nos ajudasse. E que, começando a ver o que ia nos responder e a pensar no negócio e na intenção que tínhamos e o modo de acerto e de observância religiosa, assentou-se-lhe a ideia de que era muito a serviço de Deus e que não se devia deixar de fazer. E, assim, nos respondeu que nos apressássemos a concluí-lo. E disse a maneira e a planta que devia ter. E ainda que o patrimônio fosse pequeno, que em alguma coisa tinha que se confiar em Deus. Disse que quem o contradissesse deveria ir até ele, que ele responderia, e sempre nos ajudou assim, como contarei depois.

18. Com isso saímos muito consoladas. E com o fato de que algumas pessoas santas, que costumavam ser contra nós, ficavam já mais aplacadas, e algumas nos ajudavam. Entre elas estava o cavalheiro santo, de quem já fiz menção, pois, como lhe parecia que ia por um caminho de muita perfeição, por ser todo o nosso fundamento na oração, ainda que os meios lhe parecessem muito difíceis e sem jeito, rendia-se à opinião de que podia ser coisa de Deus, pois Ele mesmo, o Senhor, deve tê-lo movido. E assim fez ao Mestre6 que é o espelho do lugar todo, como pessoa que tem Deus em si para remédio e proveito de muitas almas, e já vinha a ajudar-me no negócio.

E, estando nesses termos e sempre com ajuda de muitas orações e tendo comprada já boa parte da casa, ainda que fosse pequena. Mas isso a mim não importava nada, pois me havia dito o Senhor que entrasse como pudesse, pois depois eu veria o que Sua Majestade fazia. E como vi! Assim, ainda que visse que era pequena a renda, tinha acreditado que o Senhor haveria de nos ordenar e favorecer por outros meios.

CAPÍTULO 33

AVANÇA NA MESMA MATÉRIA DA FUNDAÇÃO DO GLORIOSO SÃO JOSÉ. DIZ COMO MANDARAM QUE ELA NÃO SE ENVOLVESSE NELA E O PERÍODO EM QUE O ABANDONOU E ALGUMAS PROVAÇÕES QUE TEVE, E COMO A CONSOLAVA NELAS O SENHOR

1. Então, estando as coisas nesse estado e tão a ponto de completar-se que a qualquer momento se fariam as escrituras, foi quando o padre provincial mudou de opinião. Acredito que foi movido por ordenação divina, segundo me pareceu depois. Porque, como as orações eram tantas, o Senhor ia aperfeiçoando a obra e ordenando que se fizesse de outra maneira. Quando ele não quis aceitar, logo meu confessor mandou que eu não me envolvesse mais com isso, apesar de o Senhor saber os grandes trabalhos e aflições que até levar as coisas àquele estado me haviam custado. Como se abandonou e ficou assim, confirmou-se mais ser tudo um disparate de mulheres e cresceu a murmuração contra mim, mesmo tendo-o mandado, até então, o provincial.

2. Andava muito malquista em todo o mosteiro, porque queria fazer um mosteiro mais fechado. Diziam que eu as afrontava. Que ali também podia servir a Deus, já que havia outras melhores do que eu. Que eu não tinha amor à casa. Que era melhor procurar renda para ela do que para outro lugar. Umas diziam para me pôr na cadeia.1 Outras, bem poucas, tomavam em alguma coisa o meu partido.

Eu bem via que em muitas coisas tinham razão e às vezes dava a elas um desconto, ainda que, como não iria dizer o principal, que era o Senhor ter mandado, não sabia o que fazer, e assim calava outras vezes. Fazia-me Deus uma dádiva muito grande, pois tudo isso não me causava inquietação, antes deixei tudo com tanta facilidade e alegria como se não tivesse me custado nada. E isso ninguém conseguia acreditar, nem mesmo as pessoas de oração que conviviam comigo, mas pensavam que eu estava muito triste e envergonhada. E até meu confessor não conseguia acreditar. Eu, como me parecia que havia feito tudo o que tinha podido, parecia-me que não era mais obrigada ao que me havia mandado o Senhor, e ficava na casa onde estava muito alegre e à vontade. Mesmo não podendo nunca deixar de acreditar que havia de ser feito, eu já não via meios, nem sabia como nem quando, mas tinha certeza de que se faria.

3. O que me desanimou muito foi uma vez que meu confessor, como se eu tivesse feito alguma coisa contra sua vontade (também devia querer o Senhor que, daquela parte que mais me haveria de causar dor, não deixasse de vir provação) e assim, nessa multidão de perseguições, quando a mim parecia que dele viria o consolo, escreveu-me que eu logo veria que era tudo um sonho o que tinha acontecido. Que eu me emendasse dali para a frente para não querer fazer nada nem falar daquilo, já que via o escândalo que havia sucedido, e outras coisas, todas de causar tristeza.

Isso me deu maior tristeza do que todo o resto junto. Fiquei pensando se havia sido eu ocasião de pecado e tido culpa em que se ofendesse a Deus. E se essas visões eram uma ilusão. Pensei que toda a oração que tinha era um engano e que eu andava muito enganada e perdida. Angustiou-me isso em tal extremo que estava toda perturbada e com enorme aflição. Mas o Senhor, que nunca me faltou, pois em todas essas provações que contei muitas vezes me consolava e dava forças, e não há por que dizê-lo de novo aqui, me disse, então, que não desanimasse. Disse que eu já havia servido muito a Deus e não ofendido-o naquele negócio. Que fizesse o que me mandava o confessor em ficar calada por enquanto, até que fosse tempo de voltar àquilo. Fiquei tão consolada e alegre, que tudo me parecia nada, na perseguição que havia contra mim.

4. Com isso ensinou-me o Senhor o enorme bem que é passar por provações e perseguições por Ele, porque foi tanto o acréscimo que vi em minha alma de amor de Deus e outras muitas coisas que eu me espantava. E isso me faz não conseguir deixar de desejar provações. E as outras pessoas pensavam que eu estava muito envergonhada. E eu teria estado, sim, se o Senhor não me favorecesse a tal ponto com dádiva tão grande. Então começaram em mim maiores os ímpetos de amor a Deus — como já disse — e maiores arrebatamentos, ainda que eu ficasse quieta e não falasse para ninguém desses lucros. O santo homem dominicano2 não deixava de ter tanta certeza quanto eu de que se havia de fazer. E como eu não queria me envolver nisso para não ir contra a obediência a meu confessor, tratava disso com ele minha companheira e escreviam a Roma e faziam planos.

5. Também começou aqui o demônio, com uma ou outra pessoa, a tentar fazer que se soubesse que eu tinha visto alguma revelação nesse negócio. E me procuravam com muito medo para dizer-me que os tempos eram duros e que poderia ser que levantassem algo contra mim e fossem aos inquisidores.

A mim isso caiu como um gracejo e me fez rir. Porque nesse caso eu nunca tive medo, pois sabia bem de mim que em coisa de fé contra a menor cerimônia da Igreja que alguém viesse eu acompanhava. Por ela e por qualquer verdade da Sagrada Escritura me poria a morrer mil mortes. E disse que não tivessem medo disso, pois seria muito mau para minha alma se houvesse alguma coisa nela que fosse de sorte que me fizesse temer a Inquisição. Disse que, se eu pensasse que havia motivo, iria eu mesma procurá-la. E que se fosse algo armado, o Senhor me livraria e eu ficaria com lucro.

E falei disso com esse meu padre dominicano que, como disse, era tão letrado que podia dar-me segurança com o que ele me dissesse. E contei-lhe então todas as visões e o modo de oração e as grandes dádivas que me fazia o Senhor, com a maior clareza que pude. E supliquei a ele que olhasse com muita atenção e me dissesse se havia algo contra a Sagrada Escritura e o que tudo isso lhe parecia. Ele me deu muita segurança e, na minha opinião, foi-lhe proveitoso. Porque, ainda que ele fosse muito bom, dali em diante entregou-se muito mais à oração e se afastou para um mosteiro de sua ordem3 onde há muita solidão, para melhor poder se exercitar nisso. Ficou lá dois anos e tirou-o de lá a obediência — e ele sentiu muito —, porque tiveram necessidade dele, sendo a pessoa que era.

6. Eu, em parte, senti muito quando se foi — ainda que não o tenha estorvado — pela grande falta que me fazia. Mas entendi seu ganho. Porque, estando com muita tristeza com sua partida, me disse o Senhor que não a tivesse, porque ele ia bem guiado.

Veio de lá tão avançada sua alma e tão adiante em aproveitamento de espírito, que me disse, quando veio, que por nada quereria ter deixado de ir para lá. E eu também podia dizer o mesmo, porque aquilo que antes me dava de segurança apenas com sua erudição, agora fazia também com a experiência de espírito, pois tinha muito de coisas sobrenaturais. E trouxe-lhe Deus em um tempo em que viu Sua Majestade que ele seria necessário para ajudar na obra desse mosteiro que Sua Majestade queria que se fizesse.

7. Então estive nesse silêncio e não me envolvendo nem falando desse negócio por cinco ou seis meses. E nunca o Senhor mandou. Eu não sabia qual era a causa, mas não podia tirar do pensamento que se haveria de fazer.

Ao fim desse tempo, tendo-se ido daqui o reitor que estava na Companhia de Jesus, trouxe Sua Majestade para cá um outro,4 muito espiritual e de grande coragem e inteligência e de boa cultura, num tempo em que eu estava muito necessitada. Porque, como o que ouvia minha confissão tinha um superior, e eles têm em extremo essa virtude de não se mexer a não ser conforme a ordem de seu superior, ainda que ele entendesse bem meu espírito e tivesse desejo de que eu fosse muito adiante, não ousava se decidir em algumas coisas, por muitos motivos que para isso tinha. E meu espírito já estava com ímpetos tão grandes que me incomodava muito mantê-lo amarrado e, com tudo isso, não me afastava do que me mandavam.

8. Estando um dia com grande aflição por parecer-me que o confessor não acreditava em mim, disse-me o Senhor que não desanimasse, pois logo acabaria aquele tormento. Eu me alegrei muito pensando que era porque ia morrer logo e tinha muita alegria quando me recordava. Depois vi claramente que se tratava da vinda desse reitor de quem falo, porque, aquele tormento, nunca mais se ofereceu causa para que eu o tivesse. Por causa de o reitor que veio não ir pela trilha do ministro que era meu confessor. Antes dizia a ele que me consolasse e que não havia o que temer e que não me levasse por um caminho tão estreito. Que deixasse operar o espírito do Senhor, pois às vezes parecia que, com esses grandes ímpetos de espírito, não sobrava para a alma um jeito de respirar.

9. Fui ver esse reitor e mandou-me o confessor que conversasse com ele com toda liberdade e clareza. Eu costumava sentir uma grande oposição ao falar disso. E assim foi que, entrando no confessionário, senti no espírito um não sei quê, que nem antes nem depois me recordo de tê-lo sentido com ninguém, nem eu saberia dizer como foi. Nem por meio de comparações conseguiria. Porque foi um gozo espiritual e entendeu a minha alma que aquela alma havia de entendê-la e que se conformava com ela, ainda que — como ia dizendo — não entenda como. Porque se tivesse falado com ele ou me tivessem dado extensas notícias sobre ele, não seria de estranhar dar-me prazer perceber que ele haveria de me entender. Mas nem uma palavra eu a ele ou ele a mim tínhamos dito. Nem era uma pessoa de que eu tivesse antes alguma notícia. Depois eu vi bem que não se enganou o meu espírito, porque de todas as maneiras foi de grande proveito para mim e para a minha alma conviver com ele. Porque o convívio com ele é muito para pessoas que o Senhor já parece que mantém muito adiante, porque ele as faz correr e não andar a passo. E seu método é para desapegá-las de tudo e mortificá-las, pois para isso lhe deu o Senhor enorme talento, como também em muitas outras coisas.

10. Quando comecei a conviver com ele, logo entendi seu estilo e vi ser uma alma pura, santa e com um dom particular do Senhor para conhecer espíritos. Consolei-me muito. Depois que fazia pouco tempo que conversava com ele, tornou o Senhor a me pressionar para que voltasse a falar do negócio do mosteiro e que dissesse a meu confessor e a esse reitor muitos argumentos para que não me estorvassem. E alguns os faziam ter medo, porque esse padre reitor nunca duvidou de que era espírito de Deus, porque com muita atenção e cuidado considerava todos os efeitos. Depois de muitas coisas, não ousavam atrever-se a me estorvar.

11. Tornou meu confessor a dar-me licença para que aplicasse nisso tudo o que pudesse. Eu bem via o trabalho que me dava, por estar muito sozinha e ter pouquíssima possibilidade. Combinamos de tratar disso com todo o segredo e, assim, procurei fazer com que uma irmã minha, que vivia fora daqui,5 comprasse a casa e lavrasse a escritura como se fosse para ela com o dinheiro que o Senhor deu, por algumas vias, para comprá-la. Seria muito extenso contar como o Senhor foi provendo, porque eu levava em grande conta não fazer nada contra a obediência, mas sabia que, se dissesse aos meus prelados, estaria tudo perdido, como da vez anterior, e seria até pior.

Para ter o dinheiro, procurá-lo, fazer os contratos e fazê-lo render, passei por tantas provações, e algumas bem sozinha, que agora me espanto de como pude aguentar. Ainda que minha companheira fizesse o que podia, mas podia pouco, e tão pouco que era quase nada além de fazer as coisas em seu nome e com seu favor, e todo o resto do trabalho era meu. Algumas vezes, aflita, dizia: "Senhor meu, como me mandais coisas que parecem impossíveis? Pois, mesmo sendo mulher, mas se tivesse liberdade! Mas amarrada por tantos lados, sem dinheiro nem ter de onde tirá-lo, nem para Breve6 nem para nada, o que posso fazer, Senhor?".

12. Uma vez, estando em uma necessidade em que não sabia o que fazer, nem com que pagar uns funcionários, apareceu-me são José, meu verdadeiro pai e senhor, e me fez entender que não faltaria dinheiro, que os contratasse. E assim fiz, sem nenhum centavo, e o Senhor, por maneiras que espantavam os que ouviam falar disso, proveio.7

A casa era muito pequena, tanto que não parecia que tivesse jeito de ser um mosteiro, e queria comprar outra que ficava ao lado, também muito pequena, para fazer a igreja. Não tinha com que, nem havia maneira de comprar, nem eu sabia o que fazer. Acabando de comungar, um dia, disse-me o Senhor: "Já te disse que comece como puderes". E como numa exclamação também me disse: "Oh, cobiça do gênero humano, que até terra pensas que te vai faltar! Quantas vezes dormi no sereno por não ter onde me abrigar!". Eu fiquei muito assustada e vi que tinha razão. E fui até a casinha e desenhei-a e achei jeito de fazer, ainda que bem pequeno, um mosteiro completo. E não me preocupei mais em comprar outro lugar, mas procurei que se construísse nela de maneira que se pudesse viver, tudo tosco e sem construir, não mais do que o necessário para não ser perigoso à saúde. E assim se há de fazer sempre.

13. No dia de Santa Clara, indo comungar, ela me apareceu com muita formosura. Disse-me que me esforçasse e fosse adiante no que tinha começado, que ela me ajudaria. Eu tomei grande devoção a ela. E revelou-se ser tão verdade o que ela disse que um mosteiro8 da sua ordem que fica perto deste ajuda a nos sustentar. E o que foi mais importante: pouco a pouco trouxe esse desejo meu a tanta perfeição que a pobreza em que se mantinha a casa dessa bem-aventurada santa se mantém nesta e vivemos de esmolas. E não me custou pouco trabalho para que fosse com toda a firmeza e autoridade do Santo Padre9 que não se possa fazer outra coisa, nem jamais tenha renda. E o Senhor faz mais, e deve talvez ser a pedido dessa bendita santa, pois sem demanda nenhuma nos provê Sua Majestade muito fartamente do necessário. Seja bendito por tudo, amém.

14. Estando nesses mesmos dias o de Nossa Senhora da Assunção, em um mosteiro do glorioso são Domingos,10 estava pensando nos muitos pecados que em tempos passados tinha confessado naquela casa e na minha vida ruim. Veio-me um arrebatamento tão grande que quase me tirou de mim. Sentei-me e até me parece que não consegui ver a elevação11 nem ouvir missa. E depois senti escrúpulos por isso. Pareceu-me, estando assim, que via vestirem-me uma roupa de muita brancura e claridade. No começo não via quem me vestia, depois vi Nossa Senhora do lado direito e meu pai são José do esquerdo que me vestiam aquela roupa. Fez-me entender que já estava limpa dos meus pecados. Terminada de vestir, e eu com enorme prazer e glória, logo me pareceu tomar-me pelas mãos Nossa Senhora. Disse-me que eu lhe dava grande alegria em servir ao glorioso são José, que acreditasse que o que eu pretendia do mosteiro se faria e nele se serviria muito ao Senhor e a eles dois. Disse que não tivesse medo porque não haveria quebra disso jamais, ainda que a regra que aprovavam não fosse do meu agrado, porque eles nos protegeriam. E que seu Filho já havia prometido ficar conosco e que para sinal disso me dava aquela joia. Pareceu ter jogado no meu colo um colar de ouro muito bonito, presa a ele uma cruz de grande valor. Esse ouro e essas pedras são tão diferentes dos daqui que não têm comparação. Porque sua beleza é muito diferente do que podemos imaginar aqui, pois o entendimento não alcança entender de que era a roupa nem como imaginar o branco que o Senhor quer que se mostre, pois tudo o que é daqui parece um desenho a carvão, por assim dizer.

15. Era enorme a beleza que vi em Nossa Senhora, ainda que eu não tenha determinado nenhuma figura em particular, mas sim as feições do rosto todas juntas. Vestida de branco, com enorme brilho, não que ofusca, mas suave. Ao glorioso são José não vi tão claramente, ainda que vi bem que estava ali, como nas visões de que falei em que não se vê. Nossa Senhora me parecia muito menina.

Estando assim comigo um pouco, e eu com enorme glória e alegria, mais — na minha opinião — do que jamais havia tido e quisera nunca sair dela, pareceu-me que os via subir ao céu com grande multidão de anjos.

Eu fiquei muito sozinha, ainda que consolada e elevada e recolhida em oração e enternecida. E fiquei um tempo sem poder me mexer nem falar, mas quase fora de mim. Fiquei com um ímpeto grande de me desmanchar por Deus e com tais efeitos e tudo se passou de modo a que eu nunca pude duvidar, ainda que tentasse muito, de que fosse coisa de Deus. Deixou-me consoladíssima e com muita paz.

16. O que a Rainha dos Anjos falou sobre a regra é o que me fazia mal, por não dá-la à ordem, mas havia me dito o Senhor que não convinha dá-la a eles. Deu-me as causas pelas quais de maneira nenhuma convinha que eu o fizesse, mas que enviasse a Roma por certa via, que também me disse, que Ele faria que dali viesse garantia. E assim foi. Enviou-se por onde o Senhor me disse — pois nunca acabávamos de negociá-la — e tudo saiu muito bem. E para as coisas que aconteceram depois foi muito conveniente que se desse a regra ao bispo.12 Mas à época eu não o conhecia, nem sabia ainda que prelado seria. E quis o Senhor que fosse tão bom e favorecesse tanto esta casa quando foi necessário pela grande controvérsia que houve nela — como contarei depois — e para pô-la no estado em que está. Bendito seja Ele que assim fez tudo, amém.

CAPÍTULO 34

TRATA DE COMO, NESSE TEMPO, FOI CONVENIENTE QUE SE AUSENTASSE DESTE LUGAR. DIZ A CAUSA E COMO A MANDOU IR SEU PRELADO PARA CONSOLO DE UMA SENHORA MUITO IMPORTANTE QUE ESTAVA MUITO AFLITA. COMEÇA A TRATAR DO QUE LHE SUCEDEU LÁ E A GRANDE DÁDIVA QUE O SENHOR LHE FEZ DE SER O MEIO PELO QUAL SUA MAJESTADE DESPERTOU UMA PESSOA MUITO IMPORTANTE PARA SERVIR-LHE MUITO VERDADEIRAMENTE E QUE ELA TIVESSE DEPOIS FAVOR E AMPARO N'ELE. É MUITO NOTÁVEL

1. Então, por maior cuidado que eu tomasse para que não se percebesse, não conseguia fazer tão em segredo essa obra de maneira que não percebessem muito algumas pessoas: umas acreditavam, outras não. Eu tinha muito medo de que, vindo o provincial, se lhe dissessem algo sobre isso, iria me mandar não me meter nisso e logo estaria tudo encerrado.

O Senhor proveio desta maneira que se ofereceu em um lugar grande,1 a mais de vinte léguas daqui, onde estava uma senhora2 muito aflita por causa de lhe ter morrido o marido. Estava em tal estado que se temia por sua saúde. Teve notícias desta pecadorazinha, pois assim ordenou o Senhor que falassem bem de mim a ela, para outros bens que a partir daqui sucederam. Essa senhora conhecia muito bem o provincial e como era uma pessoa importante e soube que eu estava em um mosteiro de onde as monjas podiam sair, pôs-lhe o Senhor tão grande desejo de me ver, parecendo-lhe que se consolaria comigo, que não devia ser capaz de evitar. Ao contrário, procurou, de todo jeito que pôde, levar-me para lá, escrevendo ao provincial, que estava bem longe. Ele me enviou uma ordem com preceito de obediência que eu fosse depressa com outra companheira. Eu fiquei sabendo na noite de Natal.

2. Causou-me algum alvoroço e muita tristeza ver que, por pensar que havia em mim algum bem, me queria levar, pois, como eu me via tão ruim, não podia aguentar isso. Encomendando-me muito a Deus, fiquei durante todo o ofício de matinas, ou grande parte dele, em grande arrebatamento. Disse-me o Senhor que não deixasse de ir e que não desse ouvidos a opiniões, porque poucos me aconselhariam sem temeridade. Porque, ainda que eu tivesse provações, servir-se-ia muito a Deus, e que, para esse negócio do mosteiro convinha ausentar-me até que chegasse o Breve. Porque o demônio tinha armado uma grande trama, para quando voltasse o provincial. Que não tivesse medo de nada, pois Ele me ajudaria lá.

Eu fiquei muito fortalecida e consolada. Contei ao reitor. Ele disse que de maneira nenhuma deixasse de ir. Porque outros me diziam que era inaceitável, que era invenção do demônio para que lá me ocorresse algum mal, que voltasse a escrever ao provincial.

Eu obedeci ao reitor, e, com o que havia escutado na oração, ia sem medo, ainda que não sem enorme embaraço por ver a título de que me levavam e como se enganavam tanto. Isso me fazia importunar mais ao Senhor para que não me deixasse. Consolava-me muito o fato de que havia uma casa da Companhia de Jesus naquele lugar aonde eu ia. E, estando sujeita ao que me mandassem, como estava aqui, me parecia que ficaria com alguma segurança.

3. Quis o Senhor que aquela senhora se consolasse tanto que uma sensível melhora começou a ter e a cada dia se encontrava mais consolada. Isso foi tido como uma grande coisa, porque — como já disse — a tristeza a mantinha em grande aperto. E o Senhor devia estar fazendo isso por causa das muitas orações que faziam por mim as pessoas santas que eu conhecia, para que tudo corresse bem para mim. Ela era muito temente a Deus e tão boa que seu grande cristianismo supriu o que a mim faltava. Tomou grande amor por mim. Eu tinha muito amor por ela por ver sua bondade, mas quase tudo era uma cruz para mim. Porque as regalias me causavam grande tormento. E fazerem grande caso de mim me deixava com muito medo. Minha alma andava tão encolhida que eu não ousava me descuidar, nem descuidava o Senhor, porque, estando ali, fez-me enormes dádivas. E essas me davam tanta liberdade e me faziam tanto menosprezar tudo o que via — e quanto mais dádivas, mais — que não deixava de conversar com aquelas senhoras tão importantes, que para minha grande honra eu pude servir, com a liberdade que teria se fosse igual a elas.

4. Obtive um lucro muito grande e o dizia. Vi que era uma mulher e tão sujeita a paixões e fraquezas quanto eu. E a pouca consideração que se deve ter pelo estado senhorial e como, quanto maior for, mais preocupações e trabalhos tem. E uma preocupação de manter a compostura condizente com seu estado que não as deixa viver. Comer sem tempo e sem conveniência, porque tudo tem que ser conforme seu estado e não conforme as necessidades. Muitas vezes têm que comer os pratos mais de acordo com seu estado do que com o seu gosto.

Assim, repugnou-me totalmente o desejo de ser senhora — Deus me livre de pouca compostura! —, ainda que essa senhora, mesmo sendo uma das principais do reino, creio que há poucas mais humildes e é de muita simplicidade. Eu tinha pena dela, e tenho, por ver como muitas vezes age contra sua inclinação para cumprir com as obrigações de seu estado.

Nos criados, então, é pouco o que se deve confiar, ainda que ela tivesse bons criados. Não se deve falar mais com um do que com outro, senão aquele que se favorece vai ficar malquisto. Isso é uma servidão. A tal ponto que uma das mentiras que o mundo diz é chamar de senhores a pessoas semelhantes, pois não me parecem senão escravos de mil coisas.

5. Quis o Senhor que, no tempo em que passei naquela casa, melhoraram no servir a Sua Majestade as pessoas de lá. Ainda que eu não tenha estado livre de provações e algumas invejas que tinham algumas pessoas pelo muito amor que aquela senhora tinha por mim. Deviam, talvez, pensar que eu pretendia algum interesse. Devia permitir o Senhor que me dessem algum trabalho coisas semelhantes e outras de outro tipo, para que não me embevecesse na regalia que, por outro lado, eu tinha. E quis tirar-me de tudo com melhora da minha alma.

6. Estando eu ali, calhou de vir um religioso,3 pessoa muito importante com quem eu, ao longo de muitos anos, havia conversado algumas vezes. Estando na missa em um mosteiro de sua ordem, que ficava perto de onde eu estava, deu-me vontade de saber em que disposição estava aquela alma, pois eu desejava que fosse muito servo de Deus. E me levantei para falar com ele. Como eu já estava recolhida em oração, pareceu-me depois que seria perder tempo. Que tinha que me meter com aquilo? E tornei a me sentar. Parece-me que foram três, três vezes que isso me aconteceu. E, no fim, pôde mais o anjo bom do que o mal e fui chamá-lo e veio falar comigo em um confessionário. Comecei a fazer-lhe perguntas e ele a mim — porque havia muitos anos que não nos víamos — sobre nossas vidas. Eu comecei a dizer que a minha tinha sido de muitos trabalhos de alma. Fez muita questão de que lhe dissesse o que eram esses trabalhos. Eu lhe disse que não eram para ser sabidos nem para que eu os contasse. Ele disse que, já que o padre dominicano4 de quem falei sabia — que era muito amigo dele —, que logo ele diria e que eu não me importasse.

7. O fato é que, nem esteve nas mãos dele deixar de me importunar, nem nas minhas, me parece, deixar de contar a ele. Porque com todo o peso e a vergonha que eu costumava ter quando contava essas coisas, com ele e com o reitor de que falei não tive nenhum incômodo, antes me consolei muito. Contei sob confissão. Pareceu-me mais sensato do que nunca, ainda que eu sempre o tenha considerado de grande inteligência. Observei os grandes talentos e capacidade que tinha para progredir em tudo. Porque eu tenho isso de uns anos para cá: não vejo uma pessoa que me agrade muito que eu não queira logo vê-la dar-se totalmente a Deus, com uma tal ânsia que, às vezes, não consigo me controlar. E ainda que queira que todos o sirvam, com essas pessoas que me agradam é com grande ímpeto, e, assim, importuno muito o Senhor por elas. Com o religioso de que falo, aconteceu assim.

8. Pediu-me que o encomendasse muito a Deus. E não havia necessidade de dizê-lo, pois eu já estava de um jeito que não poderia fazer outra coisa. E vou aonde costumava fazer orações a sós, e começo a conversar com o Senhor, estando muito recolhida, com um estilo abobado com que muitas vezes, sem saber o que digo, converso, pois o amor é que fala e está a alma tão alheada que não olho para a diferença que haja entre ela e Deus. Porque o amor que Sua Majestade sabe que ela tem a faz esquecer de si. E lhe parece que ela está n'Ele, e, como uma coisa própria, sem divisão, fala desatinos. Lembro-me que disse-lhe isto, depois de pedir-lhe com muitas lágrimas que pusesse aquela alma a seu serviço muito verdadeiramente, pois, ainda que o considerasse bom, não me contentava: eu o queria muito bom. E assim disse: "Senhor, não me haveis de negar essa dádiva, vede que é bom esse sujeito para ser nosso amigo".

Oh, bondade e humanidade grande de Deus, como não olha as palavras, mas os desejos e a vontade com que se dizem! Como tolera que uma como eu fale a Sua Majestade tão atrevidamente! Seja bendito para sempre e sempre!

9. Lembro-me de que me deu naquela noite uma aflição grande por pensar se estava em inimizade com Deus e como eu não podia saber se estava em graça ou não. Não que eu desejasse saber, mas desejava morrer para não me ver em vida onde não estivesse segura como estaria se estivesse morta, porque não podia haver morte mais dura para mim do que pensar se tinha ofendido a Deus. E angustiava-me essa dor. Suplicava-lhe que não o permitisse, toda carinhosa e derretida em lágrimas. Então entendi que bem podia me consolar e estar certa de que estava em graça, porque um tal amor a Deus e fazer Sua Majestade aquelas dádivas e sentimentos que dava à alma não se coadunava com alma que estivesse em pecado mortal.

10. Fiquei confiante de que o Senhor faria o que eu lhe suplicava por essa pessoa. Disse-me que dissesse a ele umas palavras. Isso me incomodou muito, porque não sabia como dizê-las. Porque isso de dar recado a uma terceira pessoa — como já disse — é o que mais me incomoda sempre, em especial a alguém que eu não sabia como as tomaria, ou se zombaria de mim. Pus-me em grande opressão. No fim, fui tão persuadida que — ao que me parece — prometi a Deus não deixar de dizê-las, e, pela grande vergonha que tinha, escrevi e entreguei a ele.

11. Mostrou-se bem ser coisa de Deus na ação que realizaram nele essas palavras. Determinou-se muito de verdade dar-se à oração, ainda que não o tenha feito de imediato. O Senhor, como o queria para si, por meio de mim escrevia para dizer-lhe algumas verdades que, sem entendê-las eu, vinham tão a propósito que ele se espantava. E o Senhor devia dispô-lo para acreditar que era Sua Majestade. Eu, ainda que miserável, era muito o que suplicava ao Senhor que muito totalmente o voltasse a si e o fizesse se aborrecer com as alegrias e coisas da vida.

E assim — seja louvado para sempre! — o fez tão de fato que cada vez que fala comigo me deixa abobada. E se eu não tivesse visto, consideraria duvidoso em tão pouco tempo fazer-lhe tão crescidas dádivas e mantê-lo tão ocupado com Ele, pois já não parece que vive para outra coisa da terra. Sua Majestade o leve pela mão, pois se assim vai em frente, o que eu espero no Senhor que se fará, por ir muito fundado em conhecer-se, será um dos mais destacados servos seus e de grande proveito para muitas almas. Porque em coisas do espírito em pouco tempo tem muita experiência, pois esses são dons que dá Deus quando quer e como quer e não importam nem o tempo nem os serviços. Não digo que isso não importe muito, mas sim que, muitas vezes, não dá o Senhor em vinte anos a contemplação que a outros dá em um. Sua Majestade sabe a causa.

E é o engano, pois nos parece que pelos anos devemos saber o que de nenhuma maneira se pode alcançar sem experiência. E assim muitos erram — como já disse — em querer conhecer espírito sem tê-lo. Não digo que quem não tiver espírito, se for letrado, não deva governar a quem tenha, mas percebe-se, no exterior e no interior, que vai conforme a via natural, por obra do entendimento. E no sobrenatural que vê vá conforme a Sagrada Escritura. No resto, não se torture, nem pense entender aquilo que não entende, nem sufoque os espíritos, pois, quanto àquilo, um outro Senhor, maior, já os governa e não estão sem superior.

12. Não se espante nem lhe pareçam coisas impossíveis — tudo é possível para o Senhor —, mas procure fortalecer a fé e humilhar-se pelo fato de que, nessa ciência, o Senhor faz mais sábia a uma velhinha, talvez, do que ele, ainda que seja muito letrado. E com essa humildade aproveitará mais às almas e a si do que por se fazer contemplativo sem sê-lo. Porque, torno a dizer, que, se não tiver experiência, se não tiver muita, muita humildade em saber que não sabe e que não por isso é impossível, ganhará pouco e fará ganhar menos as pessoas com quem conversa. Não tenha medo de que, se tiverem humildade, o Senhor não permitirá que se engane nem um nem o outro.

13. Então, a esse padre de que falo, como em muitas coisas deu o Senhor experiência, procurou estudar tudo o que, por estudo, pôde nesse caso — pois é bom letrado —, e do que não entende por experiência, informa-se com quem a tem. E, além disso, ajuda-lhe o Senhor dando-lhe muita fé. E assim aproveitou muito e foi de muito proveito para algumas almas, e a minha é uma delas. Pois como o Senhor conhecia as provações em que me veria, parece que proveu Sua Majestade que, já que havia de levar a alguns que me governavam,5 ficassem outros que me ajudaram em grandes provações e fizeram grande bem. O Senhor o mudou quase todo, de modo que ele quase não se reconhece — por assim dizer. E deu forças corporais para a penitência que antes não tinha, ao contrário, era doente. E é corajoso para tudo o que é bom e outras coisas a tal ponto que parece ser um chamado muito particular do Senhor. Seja bendito para sempre.

14. Creio que todo o bem lhe vem das dádivas que o Senhor lhe fez na oração, porque não são postiços. Porque já em algumas coisas quis o Senhor que se tenha provado para sair delas como quem tem já conhecida a verdade do mérito que se ganha em sofrer perseguições. Espero na grandeza do Senhor que há de vir muito bem a alguns de sua ordem por ele e à própria ordem. Já se começa a perceber isso. Vi grandes visões e disse-me o Senhor algumas coisas dele e do reitor da Companhia de Jesus de quem falei, muito admiráveis, e de outros religiosos da Ordem de São Domingos, especialmente de um,6 de quem deu a entender o Senhor, também por obras em seu progresso espiritual, algumas coisas que antes eu havia percebido dele. Mas nesse de quem falo agora foram muitas.

15. Uma coisa quero contar agora aqui. Estava eu uma vez com ele em um locutório e era tanto o amor que minha alma e espírito percebia que ardia no dele, que eu estava quase pasma. Porque meditava as grandezas de Deus: em quão pouco tempo havia elevado uma alma a tão grande estado. Causava-me imenso embaraço porque eu o via escutar com tanta humildade o que eu lhe dizia sobre algumas coisas de oração. Como eu tinha pouca humildade, a ponto de falar assim com semelhante pessoa, o Senhor devia tolerar pelo grande desejo que eu tinha de vê-lo muito avançado. Causava-me tanto proveito estar com ele que parece que deixava minha alma com um novo fogo aceso para desejar servir o Senhor desde o início. Oh meu Jesus, o que faz uma alma abrasada em vosso amor! Como deveríamos avaliá-la bem e suplicar ao Senhor que a deixasse nesta vida!

16. Quem tem o mesmo amor andaria atrás dessas almas se pudesse. É uma grande coisa um doente achar outro doente do mesmo mal. Consola-se muito por ver que não está sozinho. Ajudam-se muito a padecer e até a merecer. Fazem-se excelentes apoios pessoas já determinadas a arriscar mil vidas por Deus e desejam que se lhes ofereça oportunidade em que perdê-las. São como soldados que, para ganhar os despojos e ficar ricos com eles, desejam que haja guerra. Perceberam que não o serão a não ser assim. É esse seu ofício, o trabalhar. Oh, é uma grande coisa quando o Senhor dá essa luz de entender o muito que se ganha ao padecer por Ele! Não se percebe bem isso até que se deixa tudo, porque quem está no mundo, é sinal de que o tem em alguma consideração. Então, se o tem em consideração, é forçoso que vai deixá-lo com pesar e assim já vai tudo imperfeito e perdido. Bem se vê aí que está perdido quem atrás de perdido anda. E que maior perdição, e que maior cegueira, que maior desventura que ter em alta conta o que não é nada?

17. Voltando então ao que dizia, estando eu em enorme prazer olhando aquela alma, pois me parece que o Senhor queria que visse claramente os tesouros que tinha posto nela, e vendo a dádiva que me tinha feito em que fosse por meio de mim — achando-me indigna dela — em muito maior consideração tinha eu as dádivas que o Senhor tinha feito a ele e mais na minha conta as punha do que se fossem para mim. E louvava muito ao Senhor por ver que Sua Majestade ia cumprindo meus desejos e tinha ouvido minha oração, que era despertar o Senhor pessoas semelhantes. Estando minha alma que já não podia aguentar em si tanto prazer, saiu de si e perdeu-se para ganhar mais. Perdeu os pensamentos, e por ouvir aquela língua divina em que parece que falava o Espírito Santo, deu-me um grande arrebatamento que me fez quase perder os sentidos, embora tenha durado pouco tempo. Vi a Cristo com enorme majestade e glória, mostrando grande alegria com o que ali se passava. E assim me disse. E quis que se visse claramente que em conversas semelhantes Ele sempre estava presente e o muito que se serve em que assim se deleitem em falar d'Ele.

De outra vez, estando longe desse lugar, vi-o com muita glória subir até os anjos. Por essa visão entendi que sua alma estava bastante avançada. E assim foi, pois tinham armado uma grande denúncia contra sua honra. Uma pessoa a quem ele tinha feito muito bem e remediado a honra e a alma dela. E ele passou por isso com grande alegria e fez outras obras muito a serviço de Deus e passou por outras perseguições.

18. Não me parece que convém agora dizer mais coisas. Se, depois, parecer ao senhor que convém, uma vez que as conhece, se poderão expor para glória do Senhor. De todas as que falei sobre profecias a respeito desta casa, e outras que falarei dela, e de outras coisas, todas se cumpriram. Algumas três anos antes que se soubessem — outras mais, outras menos — me dizia o Senhor. E eu sempre as dizia ao confessor e a essa amiga viúva com quem tinha liberdade de falar, como já disse. E ela, eu soube que as dizia a outras pessoas, e essas sabem que não minto. Nem me dê Deus tal oportunidade, pois em nenhuma coisa, quanto mais sendo tão importantes, falei eu a não ser toda a verdade.

19. Tendo morrido um cunhado7 meu muito subitamente, e estando eu com muita tristeza por não ter tido oportunidade de se confessar, foi-me dito em oração que havia de morrer assim minha irmã, que fosse para lá e tentasse fazer com que se preparasse para isso. Contei a meu confessor e, como não me deixava ir, ouvi a mesma coisa outras vezes. Quando ele viu isso, disse-me que fosse para lá, pois não se perderia nada. Ela estava em uma aldeia,8 e, como fui sem lhe dizer nada, fui esclarecendo-a como pude em todas as coisas. E a fiz se confessar muito frequentemente e em tudo desse conta de sua alma. Ela era muito boa e assim o fez.

Depois que havia quatro ou cinco anos que mantinha esse costume e muito boa conta de sua consciência, morreu sem ninguém a ver e sem poder se confessar. O bom foi que não fazia mais do que oito dias que tinha se confessado.

A mim deu grande alegria quando soube de sua morte. Esteve muito pouco no purgatório. Não seriam, me parece, oito dias quando, tendo acabado de comungar, me apareceu o Senhor e quis que visse como a levava para a glória. Em todos esses anos, desde que me foi dito até que morreu, não me esquecia do que me havia sido dado a perceber, nem a minha companheira, pois, assim que morreu minha irmã, veio até mim muito espantada de ver como se havia cumprido. Seja Deus louvado para sempre, que tanto cuidado tem das almas para que não se percam!

CAPÍTULO 35

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA DA FUNDAÇÃO DESTA CASA DE NOSSO GLORIOSO PAI SÃO JOSÉ. DIZ OS TERMOS PELOS QUAIS O SENHOR ORDENOU QUE VIESSE A GUARDAR NELA A SANTA POBREZA E A CAUSA POR QUE VEIO DA CASA DAQUELA SENHORA EM QUE ESTAVA E ALGUMAS OUTRAS COISAS QUE ACONTECERAM

1. Estando então com aquela senhora que disse, onde fiquei mais de meio ano, ordenou o Senhor que tivesse notícia de mim uma beata da nossa ordem, de mais de setenta léguas daqui, e acertou de vir para este lado e percorreu algumas léguas para falar comigo.1 Tinha-a movido o Senhor, no mesmo ano e mês que a mim, para fazer outro mosteiro dessa ordem. Quando lhe foi posto esse desejo, vendeu tudo o que tinha e foi a Roma para trazer o despacho para isso a pé e descalça.

2. É uma mulher de muita penitência e oração, e fazia-lhe o Senhor muitas dádivas, e lhe havia aparecido Nossa Senhora e mandado que o fizesse. Tinha tanta vantagem sobre mim em servir ao Senhor que eu tinha vergonha de estar diante dela. Mostrou-me os despachos que trazia de Roma, e, em quinze dias que esteve comigo, pusemos ordem na maneira como haveríamos de fazer esses mosteiros.

E até que eu falasse com ela, não tinha vindo até mim a notícia de que nossa Regra — antes que fosse relaxada — mandava que não se tivesse propriedade.2 Nem eu pretendia fundar um mosteiro sem renda, pois minha intenção era de que não tivéssemos preocupação com o que nos fosse necessário, e não olhava para as muitas preocupações que ter propriedade traz consigo. Essa bendita mulher, como o Senhor a ensinava, tinha entendido bem, apesar de não saber ler, o que eu, apesar de tanto ter andado lendo as Constituições, ignorava. E quando me disse, pareceu-me bom, ainda que tenha tido medo de que não iriam me consentir, mas sim dizer que fazia desatinos e que não fizesse uma coisa em que outras sofreriam por minha causa. Porque se fosse só eu, não me deteria nem um pouco. Antes, seria um grande prazer pensar em seguir os conselhos de Cristo nosso Senhor, porque grandes desejos de pobreza já me havia dado Sua Majestade. Assim, para mim eu não duvidava de que devia ser o melhor, porque havia dias em que eu desejava que fosse possível ao meu estado de religiosa andar pedindo pelo amor de Deus e não ter casa nem outra coisa. Mas tinha medo de que, se o Senhor não desse às outras esses desejos, viveriam descontentes. Temia também que fosse causa de distração, porque via alguns mosteiros pobres não muito recolhidos, e não via que não serem recolhidos era a causa de serem pobres, e não a pobreza a causa da distração. Porque esta não torna mais ricas, nem falha Deus jamais com quem o serve. Enfim, tinha fraca a fé, o que não fazia essa serva de Deus.

3. Apesar de que eu em tudo ouvia tantas opiniões, quase ninguém achava dessa opinião: nem confessor, nem letrados com quem conversava. Apresentavam-me tantos argumentos que eu não sabia o que fazer. Porque, como eu já sabia que era a Regra e via ser mais perfeito, não conseguia me convencer a ter renda. E ainda que algumas vezes me convenciam, voltando à oração e olhando Cristo na cruz tão pobre e nu, não conseguia suportar a ideia de ser rica. Suplicava-lhe com lágrimas que arranjasse as coisas de modo que me visse pobre como Ele.

4. Achava tantos inconvenientes para ter renda e via ser causa de tanta inquietação e até distração, que não fazia outra coisa senão discutir com os letrados. Escrevi ao religioso dominicano3 que nos ajudava. Enviou-me dois cadernos escritos de contradições e teologia para que não o fizesse e me dizia que havia estudado muito. Eu lhe respondi que se fosse para não seguir minha vocação e o voto que tinha feito de pobreza e os conselhos de Cristo, não queria me aproveitar de teologia, e nem ele me fizesse dádiva de suas letras nesse caso. Se achava alguma pessoa que me ajudava, alegrava-me muito.

Aquela senhora com quem estava nisso me ajudava muito. Alguns logo no começo diziam que lhes parecia bom, depois, quando olhavam melhor, achavam tantos inconvenientes que voltavam a fazer muita questão de que eu não fizesse desse jeito. Dizia a eles que, se mudavam de opinião tão depressa, queria ficar com a primeira.

5. Nesse tempo, a pedido meu, porque essa senhora não tinha visto o santo frei Pedro de Alcântara, quis o Senhor que ele viesse à casa dela. E como ele, que era bem amador da pobreza, conhecia bem a riqueza que havia nela, assim me ajudou muito e que de maneira nenhuma deixasse de levar meu plano adiante. Já com essa opinião a favor, como era alguém que melhor a podia dar por ter sabido graças a grande experiência, decidi não continuar procurando outras.

6. Estando um dia encomendando muito a Deus essa questão, me disse o Senhor que de maneira nenhuma deixasse de fazer o mosteiro pobre, que essa era a vontade de seu Pai e sua, que Ele me ajudaria. Foi com grandes efeitos em um grande arrebatamento, e de maneira nenhuma pude ter dúvida de que era Deus.

De outra vez disse-me que na renda estava a confusão, e outras coisas em louvor da pobreza, e assegurando-me que, a quem o servisse não faltaria o necessário para viver, e essa falta — como ia dizendo — por mim nunca temi.

Também virou o Senhor o coração do presentado,4 digo, do religioso dominicano, que eu disse que me escreveu para que não fizesse o mosteiro sem renda. Já eu fiquei muito contente por ter entendido isso e ter tais opiniões. Não me parecia que eu tivesse outra coisa senão toda a riqueza do mundo ao me decidir a viver por amor de Deus.

7. Nesse tempo meu provincial suspendeu a ordem e a obediência que me havia imposto de ficar ali e deixou à minha vontade que, se eu quisesse ir, podia, e se quisesse ficar, também, por certo tempo. Nesse tempo devia haver eleição no meu mosteiro e avisaram-me que muitas queriam dar-me aquele encargo de prelada, que para mim, só de pensar, era um tormento tão grande que eu, determinada a sofrer qualquer martírio por Deus, a este por arte nenhuma podia me persuadir. Porque, deixando de lado o grande trabalho, por serem muitas e muitas as razões pelas quais nunca fui amiga de nenhum cargo, antes sempre os recusei, parecia-me um grande perigo para a consciência. E assim, louvei a Deus por não me encontrar lá. Escrevi a minhas amigas para que não me dessem seus votos.

8. Estando muito contente por não me achar naquele barulho, disse-me o Senhor que de nenhuma maneira deixasse de ir, pois, já que queria cruz, uma boa me estava preparada, que não a jogasse fora, que fosse com coragem, que Ele me ajudaria, e que fosse logo. Eu desanimei muito e não fazia outra coisa senão chorar, porque pensei que a cruz era ser prelada e — como disse — não podia me persuadir a que fosse bom para a minha alma de maneira alguma, nem eu achava meios para isso. Contei ao meu confessor.5 Mandou que eu tentasse ir logo, pois estava claro que era maior perfeição, mas que, porque fazia grande calor e bastava eu estar lá para a eleição, ficasse ainda alguns dias, para que o caminho não me fizesse mal.

Mas o Senhor havia ordenado outra coisa e tive que fazer. Porque era tão grande o desassossego que eu tinha em mim e o não poder ter oração e parecer que faltava no que o Senhor havia mandado. Parecia-me que, como estava ali com prazer e com regalias, não queria ir oferecer-me ao trabalho. Que tudo meu com Deus não passava de palavras. Por que, podendo estar onde seria maior a perfeição, havia de deixar de ir? Se tivesse que morrer, morresse. E com isso um aperto na alma, um tirar-me o Senhor todo o gosto da oração. Enfim, eu estava em tal estado que era já um tormento tão grande que supliquei àquela senhora que houvesse por bem deixar-me vir, porque até meu confessor — quando me viu assim — me disse que fosse, que também a ele movia Deus como a mim.

9. Ela sentia tanto que eu a deixasse que era outro tormento, pois havia custado muito a ela convencer o provincial por importunações de vários tipos. Considerei muita coisa ela querer concordar com isso, dado o quanto sentia. Mas como era muito temente a Deus, e como eu lhe disse que se podia fazer grande serviço a Ele, e muitas outras coisas e dei-lhe esperança de que era possível tornar a vê-la, assim, com muita tristeza, ela houve por bem.

10. Já eu não tinha tristeza de vir, porque eu, entendendo que uma coisa era maior perfeição e serviço de Deus, com a alegria que me dá alegrá-lo, suportei a tristeza de deixar aquela senhora que eu via sentir tanto, e outras pessoas a quem devia muito, especialmente meu confessor que era da Companhia de Jesus e com quem eu me achava muito bem. Mas quanto mais consolo eu via que perdia por Deus, mais alegria me dava perdê-lo. Não conseguia entender como era isso, porque via claramente esses dois contrários: regozijar-me, alegrar-me pelo que me pesava na alma. Porque eu estava consolada e sossegada e tinha tempo de ter muitas horas de oração. Via que vinha para meter-me num fogo, pois o Senhor já tinha me avisado que vinha para suportar uma grande cruz. Ainda que eu nunca tenha pensado que seria tanto quanto depois vi. E, com tudo isso, vinha alegre e estava desapontada que já não estivesse metida na batalha, já que o Senhor queria que eu a travasse. E assim Sua Majestade me enviava forças e as punha na minha fraqueza.

11. Não conseguia, como ia dizendo, entender como podia ser isso. Pensei nesta comparação: se, possuindo eu uma joia ou coisa que me desse grande alegria, acontecesse de eu ficar sabendo que uma pessoa que eu amo mais do que a mim, e que desejo alegrar mais do que desejo descanso para mim, quer essa coisa, dar-me-ia grande alegria ficar sem a alegria que me dava o que eu possuía, para alegrar àquela pessoa. E como essa alegria de alegrá-la excede a minha própria alegria, tira a tristeza da falta que me faz a joia ou o que eu gosto, e de perder a alegria que me dava. De maneira que, ainda que eu quisesse ter tristeza por ver que deixava pessoas que tanto sentiam afastar-se de mim, por ser eu de natureza tão agradecida, aquilo que em outro tempo teria bastado para desanimar-me muito, agora, ainda que quisesse sentir tristeza, não conseguia.

12. Foi tão importante eu não demorar nem mais um dia no que tocava ao negócio desta bendita casa que não sei como poderia concluir-se se eu tivesse me detido.

Oh, grandeza de Deus! Muitas vezes me espanta quando penso e vejo quão particularmente queria Sua Majestade me ajudar para que se realizasse esse cantinho de Deus — pois creio que ele é isso. E morada em que Sua Majestade se deleita, como me disse uma vez, estando eu em oração, que era esta casa um paraíso de seu deleite. E assim parece que Sua Majestade escolheu as almas que iria trazer aqui, em cuja companhia vivo com muita perplexidade. Porque eu não saberia desejar tais para esse propósito de tanto rigor e pobreza e oração. E levam isso com uma alegria e um contentamento que cada uma delas se acha indigna de ter merecido vir para este lugar. Especialmente algumas que o Senhor chamou de muita vaidade e gala do mundo, onde poderiam ter ficado contentes de acordo com suas leis. E deu-lhes o Senhor contentamentos tão dobrados aqui, que elas claramente reconhecem que o Senhor deu a cento por um o que elas deixaram. E não se fartam de dar graças à Sua Majestade. Outras Ele mudou de bem para melhor. Às de pouca idade dá fortaleza e conhecimento para que não possam desejar outra coisa e para entendam que é viver em maior descanso, mesmo para as coisas da terra, estar afastadas de todas as coisas da vida. Às que são de mais idade e com pouca saúde dá forças e deu para que consigam aguentar a mesma aspereza e penitência que todas.

13. Oh, Senhor meu, como se manifesta que sois poderoso! Não é preciso buscar razões para o que Vós quereis, porque acima de toda razão natural fazeis tão possíveis as coisas que dai a entender que não preciso mais do que vos amar de verdade e deixar de verdade tudo por Vós, para que Vós, Senhor meu, torneis tudo fácil. Vem bem ao caso dizer aqui que fingis que há trabalho em vossa lei, porque eu não vejo isso, Senhor, nem sei como pode ser estreito o caminho que leva a Vós.6 Vejo que é um caminho real, não uma trilha. Caminho em que, quem se põe nele de verdade, vai mais seguro. Estão muito longe os portos e as rochas para cair, porque esses estão nas ocasiões de pecado. Trilha chamo eu, e muito ruim trilha e caminho estreito, o que tem de um lado um vale muito fundo onde se pode cair e, do outro, um despenhadeiro. Nem bem se descuidam já despencam e se fazem em pedaços. O que Vos ama de verdade, Bem meu, vai com segurança por amplo caminho real. Longe está o despenhadeiro. Nem bem tropeça um tantinho, já lhe dais, Senhor, a mão. Não basta uma queda, nem muitas, se tem amor a Vós e não às coisas do mundo, para se perder. Vai pelo vale da humildade.

14. Não consigo entender do que é que têm medo de pôr-se no caminho da perfeição. O Senhor, por ser quem é, nos faça entender quão má é a segurança em tão manifestos perigos como andar atrás das pessoas e como está a verdadeira segurança em ir muito à frente no caminho de Deus. Os olhos n'Ele, e não tenham medo de que se ponha esse sol de Justiça, nem que nos deixe caminhar de noite para nos perder, se não tivermos antes deixado a Ele.

15. Não têm medo de andar entre os leões, que parecem querer arrancar um pedaço, que são as honras e os deleites e as alegrias semelhantes, como o mundo as chama. Mas, aí, o demônio parece fazer que tenham medo de bichinhos. Mil vezes me espanto e dez mil quereria me fartar de chorar e dizer a todos a minha grande maldade e cegueira para que fosse de algum proveito para abrir-lhes os olhos. Abra-os aquele que pode, por sua bondade, e não permita que voltem a se cegar os meus, amém.

CAPÍTULO 36

PROSSEGUE NO ASSUNTO COMEÇADO E DIZ COMO SE ACABOU DE CONCLUIR E SE FUNDOU ESTE MOSTEIRO DO GLORIOSO SÃO JOSÉ, E AS GRANDES CONTROVÉRSIAS E PERSEGUIÇÕES QUE HOUVE, DEPOIS DE TOMAREM HÁBITO AS RELIGIOSAS, E AS GRANDES PROVAÇÕES E TENTAÇÕES QUE ELA PASSOU, E COMO DE TUDO A TIROU O SENHOR COM VITÓRIA E EM GLÓRIA E EM LOUVOR DELE

1. Tendo já partido daquela cidade, vinha muito contente pelo caminho decidindo-me a passar tudo o que agradasse ao Senhor com toda a vontade. Na mesma noite em que cheguei a esta terra, chega o despacho para o mosteiro e o Breve de Roma. E eu me espantei, e espantaram-se todos os que sabiam a pressa que o Senhor me havia dado para vir, quando souberam a grande necessidade que tinha disso e a conjuntura a que o Senhor me trazia. Porque encontrei aqui o bispo e o santo frei Pedro de Alcântara e outro cavalheiro1 muito servo de Deus, em cuja casa esse santo homem se hospedava, que era uma pessoa em cuja casa os servos de Deus encontravam apoio e acolhida.

2. Ambos conseguiram que o bispo2 aceitasse o mosteiro, o que não foi pouco, por ser mosteiro pobre. Mas era tão amigo de pessoas que via assim decididas a servir ao Senhor que logo se afeiçoou à ideia de favorecê-lo. E aprová-lo esse santo velho e insistir muito com uns e com outros para que nos ajudassem, foi o que resolveu tudo. Se eu não tivesse vindo a essa conjuntura — como já disse —, não sei como poderia ser feito, porque esteve pouco por aqui esse santo homem, pois creio que não foram oito dias, e esses, muito doente, e depois de muito pouco tempo levou-o o Senhor consigo.3 Parece que Sua Majestade o havia protegido até acabar esse negócio, pois havia muitos dias — não sei se mais de dois anos — que andava muito mal.

3. Tudo se fez sob grande segredo, porque, se não fosse assim, não se poderia fazer nada. Porque o povo estava insatisfeito com isso, como se revelou depois. Ordenou o Senhor que ficasse mal um cunhado4 meu com sua mulher longe daqui e em tanta necessidade que me deram licença para ficar com ele. E, com essa oportunidade, não se ficou sabendo de nada, ainda que algumas pessoas não deixassem de suspeitar de alguma coisa, mas ainda não acreditavam. Foi uma coisa de espantar, pois não esteve doente mais do que o que foi necessário para o negócio. E, sendo necessário que tivesse saúde para que eu me desocupasse e ele deixasse a casa desocupada, deu-a logo o Senhor, tanto que ele estava maravilhado.

4. Passei por grande provação tentando que uns e outros aceitassem, e com o doente, e com funcionários, para que se terminasse a casa com muita pressa, para que tivesse forma de mosteiro, pois faltava muito para terminar. E a minha companheira não estava aqui, pois nos pareceu melhor que estivesse ausente para dissimular melhor. E eu via que ia tudo rapidamente por muitas causas e uma era que a cada momento tinha medo de que me mandariam partir. Foram tantas as coisas de provações que tive, que me fizeram pensar se era esta a cruz. Ainda que me parecesse que era pouco para a grande cruz que eu tinha sabido pelo Senhor que ia passar.

5. Tudo acertado, então, o Senhor quis que, no dia de são Bartolomeu, tomassem hábito algumas,5 e se instalou o Santíssimo Sacramento, e com toda a autoridade e poder ficou pronto nosso mosteiro do gloriosíssimo pai são José, no ano de 1562. Fui eu a dar-lhes o hábito e outras duas monjas6 de nossa própria casa que calhou de estarem fora.

Como nessa casa em que se fez o mosteiro era aquela em que estava meu cunhado (pois, como eu disse, ele a tinha comprado para dissimular melhor o negócio), eu estava nela com licença. E não fazia nada que não fosse com a opinião de letrados, para não ir, em nenhum ponto, contra a obediência. E ao verem que era muito proveitoso para a ordem, por vários motivos, pois, ainda que eu fizesse em segredo e me guardasse de que meus prelados ficassem sabendo, diziam-me que podia fazê-lo. Porque, se me dissessem que era imperfeição, por menor que fosse, me parece que teria abandonado mil mosteiros, quanto mais um. Isso é certo. Porque, ainda que eu o desejasse para me afastar mais de tudo e levar minha profissão e minha vocação com maior perfeição e clausura, eu desejava de tal maneira que, no momento em que entendesse que era mais serviço ao Senhor abandonar totalmente o projeto, eu o faria — como disse da outra vez — com todo sossego e paz.

6. Então foi para mim como estar em glória ver instalar o Santíssimo Sacramento e que se remediaram quatro órfãs pobres — porque não eram recebidas com dote — e grandes servas de Deus. Porque isso se pretendeu no início: que entrassem pessoas que, com seu exemplo, fossem fundamento para que se pudesse efetuar o intento que tínhamos de muita perfeição e oração. E ver feita uma obra que tinha entendido ser para o serviço do Senhor e honra do hábito de sua gloriosa Mãe, pois essas eram minhas aspirações. E também me deu grande consolo ter feito o que o Senhor tanto me havia mandado, e outra igreja mais neste lugar, e de são José, que não havia. Não porque me parecesse que eu tivesse alguma coisa nisso, pois nunca me pareceu, nem parece. Entendo sempre que o Senhor é que faz, e o que era a minha parte saía com tantas imperfeições que vejo que antes deveria me desculpar do que agradecer. Mas era para mim um grande prazer ver que Sua Majestade me tinha tomado como instrumento — sendo eu tão ruim — para tão grande obra. Assim, fiquei com tão grande alegria que estava como fora de mim, com grande oração.

7. Terminado tudo, seria depois de umas três ou quatro horas, voltou a me dar uma batalha espiritual, como direi agora. Pôs-se diante de mim a dúvida se havia sido malfeito o que eu tinha feito. Se ia contra a obediência ter buscado sem que o provincial mandasse, pois bem me parecia que seria para ele algum desgosto, por causa de eu sujeitar o mosteiro ao ordinário, e não ter dito a ele antes. Ainda que, como ele não tinha autorizado e eu não conseguisse sua opinião, também me parecesse que, por outro lado, ele não se importaria. E se haviam de ter alegria as que ficavam aqui em tão grande rigor, se havia de lhes faltar o que comer, se tinha sido um disparate. Pensava: quem me havia metido nisso, já que eu tinha um mosteiro? Tudo o que o Senhor me havia mandado e todas as opiniões e orações que fazia dois anos que quase não cessavam, tudo tirado da minha memória como se nunca tivesse ocorrido. Só da minha opinião me lembrava, e todas as virtudes e a fé então suspensas em mim, sem ter eu força para que nenhum operasse e me defendesse de tantos golpes.

8. Também me punha na mente o demônio: como queria eu com tantas doenças me encerrar em uma casa tão rigorosa? Como aguentaria tanta penitência e deixava uma casa grande e agradável onde eu sempre tinha estado contente, e tantas amigas? Talvez as daqui não fossem do meu agrado, e eu tivesse me comprometido a muita coisa. Talvez eu estivesse desesperada e porventura o demônio tivesse pretendido isto: tirar-me a paz e a quietude e, assim, não poderia ter oração estando desassossegada, e perderia a alma. Coisas desse feitio juntas ele punha diante de mim, e não estava em minhas mãos pensar em outra coisa. E com isso, uma aflição e escuridão e trevas na alma que eu não sei descrever. Ao me ver assim, fui ver o Santíssimo Sacramento, ainda que não conseguisse encomendar-me a Ele. Parecia-me que estava com uma angústia como quem está em agonia de morte. Conversar com alguém não ousaria, porque nem confessor designado eu tinha.

9. Oh, valha-me Deus! Que vida tão miserável esta! Não há alegria segura nem coisa sem mudança. Havia tão pouquinho tempo que me parecia que eu não trocaria minha alegria por nenhuma da terra, e a mesma causa da alegria me atormentava agora de tal modo que eu não sabia o que fazer de mim. Oh, se olhássemos com discernimento as coisas da nossa vida! Cada um veria por experiência a pouca consideração em que se deve ter a alegria e a tristeza dela. Com certeza me parece que foi um dos duros períodos que passei na minha vida. Parece que o espírito adivinhava o que haveria de passar, ainda que não tenha chegado a ser tanto quanto isto, se tivesse durado.

Mas não deixou o Senhor padecer muito sua pobre serva, porque nunca deixou de me socorrer nas tribulações. E assim foi nessa, pois me deu um pouco de luz para ver que era o demônio, e para que pudesse perceber a verdade e que tudo era querer ele me assustar com mentiras. E assim comecei a recordar-me de minhas grandes decisões de servir ao Senhor e desejos de padecer por Ele. E pensei que, se havia de cumpri-los, não deveria andar à procura de descanso. E que, se tivesse provações, esse era o mérito, e se tivesse tristeza, desde que eu a tomasse para servir a Deus, me serviria de purgatório. De que tinha medo? Se desejava provações, que boas eram estas! Na maior oposição estava o lucro. Por que haveria de me faltar a coragem para servir aquele a quem tanto devia? Com essas e outras considerações, esforçando-me muito, prometi diante do Santíssimo Sacramento fazer tudo o que pudesse para ter licença para vir para esta casa e, podendo fazê-lo com boa consciência, prometer clausura.

10. Fazendo isso, num instante fugiu o demônio e me deixou sossegada e contente. E fiquei e tenho estado sempre assim. E tudo o que nesta casa se observa de fechamento e penitência e o resto para mim parece extremamente suave e pouco. A alegria é tão enorme que eu penso algumas vezes o que poderia escolher na terra que fosse mais saboroso? Não sei se isso contribui para eu ter muito mais saúde do que nunca, ou querer o Senhor — por ser necessário e correto que eu faça o mesmo que todas — dar-me esse consolo que eu possa fazê-lo, ainda que com trabalho. Mas as pessoas que conhecem minhas doenças se espantam por eu poder. Bendito seja o que dá tudo e em cujo poder podemos.

11. Fiquei bem cansada por tal contenda e fiquei rindo do demônio, pois vi claramente ser ele. Creio que o Senhor permitiu, por eu nunca ter sabido o que é descontentamento por ser monja nem um momento nos mais de 28 anos que sou, para que eu percebesse a grande dádiva que com isso me havia feito e o tormento de que me havia livrado. E também para que, se visse que alguma irmã estava descontente, não me espantasse e me apiedasse dela e soubesse consolá-la.

Passado então isso, quis depois de comer descansar um pouco. Porque durante toda a noite quase não tinha sossegado, nem, em outras, tinha deixado de ter trabalhos e preocupações, e todos os dias andava bem cansada. Como se tinha ficado sabendo em meu mosteiro e na cidade o que se havia feito, havia muito alvoroço pelos motivos que eu já disse, e parecia haver algum exagero. Logo a prelada enviou recado mandando eu ir para lá na hora. Eu, vendo sua ordem, deixo minhas monjas muito pesarosas, e vou logo. Vi bem que se me haviam de oferecer grandes provações, mas, como já estava feito, muito pouco me importava. Fiz uma oração suplicando ao Senhor que me favorecesse, e a meu pai são José que me trouxesse à sua casa, e ofereci a ele o que devia passar e, muito contente de que se oferecesse algo em que eu padecesse por Ele e pudesse servir, fui, apesar de ter achado que me iam pôr na cadeia. Mas, na minha opinião, dar-me-ia grande alegria, por não falar com ninguém e descansar um pouco em solidão, de que eu estava bem necessitada, porque estava moída de tanto andar com gente.

12. Quando cheguei e fiz meu relato à prelada, ela se aplacou um pouco e todas comunicaram ao provincial e a causa ficou para ser resolvida diante dele. Vindo ele, fui a julgamento com grande alegria por ver que sofria algo pelo Senhor, porque nem à Sua Majestade, nem à ordem eu achava que tinha ofendido nada nesse caso. Antes tentava fazer crescer a ordem com todas as minhas forças, pois todo o meu desejo era que se cumprisse sua regra com toda a perfeição. Lembrei-me do julgamento de Cristo e vi quão nada era aquele meu. Confessei minha culpa como muito culpada, e parecia ser assim para quem não conhecia todas as razões.

Depois de me ter feito uma grande repreensão, ainda que não com tanto rigor quanto merecia o delito pelo que muitos diziam ao provincial, eu não quis me defender, porque estava decidida a isso. Antes pedi que me perdoasse e castigasse e não ficasse mais bravo comigo.

13. Em algumas coisas eu via bem que me condenavam sem culpa. Porque me diziam que eu tinha feito aquilo para que me tivessem em alta conta e para ter nome e outras coisas semelhantes. Mas em outras percebia claramente que diziam a verdade: no fato de que eu era pior do que outras. E, já que eu não tinha observado a vida muito religiosa que se levava naquela casa, como pensava em observá-la em outra, com mais rigor? E que escandalizava o povo e levantava coisas novas.7 Tudo aquilo não me causava nenhum alvoroço nem sofrimento, ainda que eu mostrasse sofrer para não parecer que eu fazia pouco do que me diziam.

Afinal, mandou que eu desse meu depoimento diante das monjas, e tive que fazê-lo.

14. Como eu tinha quietude em mim e o Senhor me ajudava, dei meu depoimento de uma maneira tal que não achou o provincial, nem as que estavam ali, motivo para me condenar. E depois, a sós, falei com ele mais claramente e ficou muito satisfeito. E me prometeu — se eu fosse em frente —, uma vez sossegada a cidade, dar-me autorização para ir para o novo convento. Porque o alvoroço na cidade toda era grande como direi agora.

15. Depois de uns dois ou três dias juntaram-se alguns dos regedores e o corregedor e os do cabildo e todos juntos disseram que de maneira nenhuma se permitiria, pois adviria reconhecido dano à coisa pública. E tirariam o Santíssimo Sacramento e de maneira nenhuma tolerariam que continuasse. Fizeram juntar-se todas as Ordens para que dessem seu parecer. De cada uma, dois letrados. Uns calavam, outros condenavam. Ao final, concluíram que logo se desfizesse. Só um presentado8 da Ordem de São Domingos, ainda que fosse contra — não contra o mosteiro, mas contra a ideia de que fosse pobre —, disse que não era uma coisa que se pudesse desfazer assim. Disse que se verificasse bem, que havia tempo para isso. Disse que era um caso para o bispo, ou coisas dessa sorte que foram de grande proveito. Porque, apesar da fúria, foi decidido não levar a decisão a efeito logo. Era, enfim, porque tinha que ser, pois o Senhor se agradava e todos podiam pouco contra sua vontade. Davam suas razões e tinham um bom zelo e, assim, sem que ofendessem a Deus, faziam sofrer a mim e a algumas pessoas que apoiavam o mosteiro, pois havia algumas, e passaram por muita perseguição.

16. Era tanto o alvoroço do povo que não se falava de outra coisa. E todos a condenar-me e a ir ao provincial e ao meu mosteiro. Eu nenhuma tristeza sentia pelo que diziam de mim. Não mais do que se não dissessem. Mas tinha medo de que se desfizesse o mosteiro. Isso me dava uma grande tristeza e ver que perdiam crédito as pessoas que me ajudavam e ver a grande provação por que passavam, pois do que diziam de mim eu antes me alegrava. E se tivesse tido alguma fé, não teria tido nenhuma alteração, mas faltar algo em uma virtude basta para adormecer todas. E assim estive muito atormentada os dois dias em que houve essas juntas de que falei, no povoado. E estando bem desanimada me disse o Senhor: "Não sabes que sou poderoso? De que tens medo?". E me assegurou que não se desfaria o mosteiro. Com isso fiquei muito consolada.

17. Enviaram ao Conselho Real as informações. Veio uma provisão para que se fizesse um relato sobre como se tinha feito o mosteiro. E aqui começou um grande processo, porque representantes da cidade foram à Corte, e tiveram que ir da parte do mosteiro, e nem havia dinheiro nem sabia eu o que fazer. O Senhor proveu, pois nunca o meu padre provincial mandou que eu deixasse de me envolver nisso. Porque é tão amigo da virtude que, ainda que não ajudasse, não queria ficar contra. Não me deu licença, até ver em que pé ficaria, de vir para cá. Estas servas de Deus estavam sozinhas e faziam mais com suas orações do que com o tanto que eu andava negociando, ainda que tenha sido necessária muita diligência.

Às vezes parecia que faltava tudo. Especialmente um dia, antes que viesse o provincial, pois a priora me mandou que eu não falasse nada e era para deixar tudo. Eu fui a Deus e disse-lhe: "Senhor, essa casa não é minha. Para Vós foi feita. Agora que não há ninguém que negocie por ela, faça-o Vossa Majestade". Fiquei tão descansada e tão sem tristeza como se tivesse o mundo inteiro negociando por mim. E logo considerei o negócio seguro.

18. Um grande servo de Deus, sacerdote, que sempre me havia ajudado, amigo de toda perfeição, foi à Corte envolver-se no negócio e trabalhava muito. E o cavalheiro santo — que já mencionei — fazia muito nesse caso e de todas as maneiras ajudava. Passou por muitas provações e perseguições e sempre em tudo eu o considerava como um pai, e ainda o considero. E naqueles que ajudavam o Senhor punha tanto fervor que cada um tomava a coisa como própria, como se nisso estivesse sua vida e sua honra e não lhes importava nada além de ser coisa em que a eles parecia que se servia ao Senhor. Pareceu claramente que Sua Majestade ajudava ao Mestre9 de que falei, clérigo, que também era um dos que me ajudavam muito e a quem o bispo pôs, de sua parte, em uma junta grande que se formou. E ele estava sozinho contra todos e, no fim, os aplacou, dizendo-lhes certos meios que bastaram para que se entretivessem muito. Mas nenhum meio bastava para que não voltassem logo a empenhar a vida, como se diz, em desfazer o mosteiro. Esse servo de Deus de quem falo foi quem deu os hábitos às monjas e quem instalou o Santíssimo Sacramento, e viu-se em grande perseguição.

Durou esse ataque quase meio ano. Contar em detalhe as grandes provações seria longo.

19. Espantava-me o tanto a que se dava o demônio contra umas mulherzinhas e como parecia um grande dano ao lugar apenas doze mulheres e a priora, pois não haveriam de ser mais — digo, parecia aos que se opunham — e de vida tão restrita. Porque se fosse dano ou erro, seria para elas mesmas. Para mais dano ao lugar não parece que houvesse jeito, mas eles viam tantos jeitos que com boa consciência contradiziam isso. Chegaram até a dizer que, se tivesse renda, aceitariam e o mosteiro poderia seguir em frente. Eu já estava tão cansada de ver o trabalho por que passavam todos os que me ajudavam, mais do que o meu, que me parecia que não seria ruim — até que se acalmassem — ter renda e abandoná-la depois. E outras vezes, como sou ruim e imperfeita, me parecia que talvez o Senhor quisesse isso, já que sem ela não sairíamos disso, e já aceitasse esse acordo.

20. Estando em oração na noite anterior ao acordo, e já iniciada negociação, disse-me o Senhor que não o fizesse. Disse que, se começássemos a ter renda, não deixariam depois que a deixássemos, e algumas outras coisas. Na mesma noite me apareceu o santo frei Pedro de Alcântara, que já estava morto, e antes de morrer me escrevera — quando soube da grande perseguição e oposição que tínhamos — que se alegrava de que a fundação fosse com uma oposição tão grande, pois era sinal de que se serviria muitíssimo ao Senhor neste mosteiro, já que o demônio se empenhava tanto para que não se fizesse. E que de maneira nenhuma eu concordasse em ter renda. E ainda duas ou três vezes me persuadiu na carta e que, fazendo isso, tudo viria a ser feito como eu queria. Eu já o tinha visto duas vezes depois que morreu, e vi a grande glória que tinha. E assim não me deu medo, antes, alegrei-me muito. Porque sempre aparecia como corpo glorificado, cheio de grande glória, e dava-me enorme glória vê-lo. Lembro-me que me disse na primeira vez que o vi, entre outras coisas, o grande gozo que tinha e que feliz penitência tinha sido aquela que tinha feito, que lhe havia alcançado tão grande prêmio.

Por crer que já disse algo sobre isso, não digo aqui mais do que como, dessa vez, mostrou rigor comigo e só me disse que de nenhuma maneira aceitasse renda. E perguntou por que eu não queria aceitar seu conselho, e desapareceu depressa.

21. Eu fiquei assustada e logo no dia seguinte disse ao cavalheiro — que era quem em tudo acudia, e o que mais fazia nesse negócio — o que se passava e que não era para concordar de maneira nenhuma em ter renda, mas que fosse adiante o processo. Ele estava muito mais forte do que eu nessa posição e alegrou-se muito. Depois me contou quão de má vontade tratava do acordo.

22. Depois voltou a se levantar outra pessoa, e muito serva de Deus e com muito bom zelo. Já que estava em bons termos, disse que se pusesse na mão dos letrados. Aí eu tive grandes desassossegos. Porque alguns dos que estavam comigo concordavam, e foi esse o emaranhado de mais difícil digestão de todos os que fez o demônio. O Senhor ajudou em tudo, pois dito assim em resumo não se pode dar bem a entender o que se passou nos dois anos desde que foi iniciada esta casa até que se deu por terminada. Esse último meio ano, e o primeiro, foi o mais trabalhoso.

23. Então, aplacada um pouco a cidade, usou tão boa manha o padre presentado dominicano que nos ajudava! Ainda que não estivesse presente, mas o Senhor o tinha trazido num momento em que nos fez grande bem. E pareceu que Sua Majestade o havia trazido só para esse fim, pois ele me disse, depois, que não tinha tido por que vir, e ficou sabendo do processo por acaso. Ficou o tempo que foi preciso. Tendo ido de volta, procurou por algumas vias fazer com que o nosso padre provincial nos desse licença para eu vir para esta casa com algumas outras comigo, pois parecia quase impossível dá-la tão rápido, para rezar o ofício e ensinar às que ficavam aqui. Foi um enorme consolo para mim o dia que viemos.

24. Estando fazendo oração na igreja antes de entrar no mosteiro, estando quase em arrebatamento, vi a Cristo que com grande amor se mostrou a mim recebendo-me e pondo-me uma coroa e agradecendo o que eu havia feito por sua Mãe.

De outra vez, estando todas no coro em oração depois de Completas, vi Nossa Senhora com enorme glória, com um manto branco e debaixo dele parecia abrigar todas nós. Percebi quão alto grau de glória daria o Senhor às desta casa.

25. Tendo se iniciado a reza do ofício, foi muita a devoção que o povo começou a ter com esta casa. Foram recebidas mais monjas e começou o Senhor a mover os que mais nos tinham perseguido a nos favorecer muito e dar esmola. E, assim, aprovavam o que tanto tinham reprovado. E pouco a pouco se afastaram do processo e diziam que já percebiam ser obra de Deus, já que com tanta oposição Sua Majestade havia querido que fosse em frente.

26. E não há, no presente, ninguém a quem pareça que teria sido certo deixar de fazer o mosteiro. E, assim, têm em tanta conta prover-nos com esmolas, que sem haver demanda nem pedir a ninguém, desperta-os o Senhor para que nos enviem e vivemos sem que nos falte o necessário, e espero no Senhor que será assim sempre. Porque, como são poucas, se fizerem o que devem — como Sua Majestade agora lhes dá a graça para fazer —, estou segura de que não lhes faltará nem terão necessidade de ser cansativas nem de importunar a ninguém, pois o Senhor as terá em seu cuidado, como até agora. Pois é para mim enorme consolo ver-me metida aqui com almas tão desapegadas. Sua conversa é para entender como progredirão no serviço de Deus. A solidão é seu consolo, e pensar em ver alguém que não seja para ajudá-las a entender mais o amor de seu Esposo é trabalho para elas, ainda que sejam parentes próximos. E assim não vem ninguém a esta casa, a não ser quem trata disso. Porque nem as alegra, nem alegra a eles. Não é sua linguagem outra coisa senão falar de Deus e, assim, não entendem, nem as entende, a não ser quem fala a mesma linguagem.

Observamos a Regra de Nossa Senhora do Carmo, e, obedecida essa sem relaxamento, mas como a ordenou frei Hugo, cardeal de Santa Sabina, que foi dada no ano de 1248, no ano V do Pontificado do papa Inocêncio IV.

27. Parece-me que serão bem empregados todos os trabalhos por que se passou. Agora, ainda que tenha algum rigor, porque não se come carne nunca sem necessidade e há jejum de oito meses e outras coisas, como se vê na mesma primitiva Regra, de muitas coisas ainda fazem pouco as irmãs e observam outras coisas que, para cumprir essa regra com mais perfeição, nos pareceram necessárias. E espero no Senhor que há de avançar muito o que foi começado, como Sua Majestade me disse.

28. A outra casa que a beata de quem falei procurava fazer também o Senhor favoreceu e está instalada em Alcalá. E não faltou a ela muita oposição nem deixou de passar por grandes provações. Sei que se observa nela toda a vida religiosa conforme a essa primitiva Regra nossa. Queira o Senhor que seja tudo para glória e louvor seu e da gloriosa Virgem Maria, cujo hábito vestimos, amém.

29. Creio que o senhor vai se enfadar com o longo relato que fiz sobre este mosteiro. E ficou muito curto para as muitas provações e maravilhas que o Senhor realizou nisso e de que há muitas testemunhas que poderão jurar. E assim eu peço ao senhor, pelo amor de Deus, que se lhe parecer que deve riscar o resto do que aqui escrevi, o que toca a este mosteiro, o senhor conserve e, morta eu, dê às irmãs que aqui estiverem, pois animará muito a servir a Deus as que vierem e a procurar que não caia o que se começou, mas sim que vá sempre em frente, quando virem o muito que se empenhou Sua Majestade em fazê-la por meio de uma coisa tão ruim e baixa quanto eu.

30. E, já que o Senhor quis tão particularmente se manifestar em favorecer para que se fizesse, parece-me que fará muito mal e será muito castigada por Deus a que começar a relaxar a perfeição que o Senhor começou e favoreceu aqui para se levar com tanta suavidade. Pois vê-se muito bem que é tolerável e se pode levar sem cansaço e a grande instalação que têm para viver sempre nele as que, sozinhas, quiserem desfrutar de seu esposo Cristo. Pois é isto o que sempre haverão de pretender, e sós com Ele só, e não ser mais de treze. Porque isso eu aprendi por muitas opiniões que convém, e vi por experiência. Porque para levar o espírito que se leva e viver de esmola e sem demandas, não sustenta mais. E sempre creiam mais em quem com muito trabalho e oração de muitas pessoas procurou o que seria melhor para elas. E no grande contentamento e na alegria e na pouca provação que nesses anos que estamos nesta casa vemos ter todas, e com muito mais saúde do que costumavam, se verá ser isso o que convém. E a quem parecer áspero jogue a culpa em sua falta de espírito e não no que aqui se observa, já que pessoas delicadas e não saudáveis, porque têm o espírito, podem levar com tanta suavidade, e vão a outro mosteiro, onde se salvarão conforme seu espírito.

CAPÍTULO 37

TRATA DOS EFEITOS QUE PERMANECIAM QUANDO O SENHOR TINHA FEITO ALGUMA DÁDIVA A ELA. JUNTA A ISSO MUITO BOA DOUTRINA. DIZ COMO SE DEVE PROCURAR E TER EM ALTA CONTA GANHAR ALGUM GRAU A MAIS DE GLÓRIA E QUE POR TRABALHO NENHUM DEIXEMOS BENS QUE SÃO PERPÉTUOS

1. Faz-me mal falar mais sobre as dádivas que o Senhor me fez do que as que já foram ditas e já são excessivas para que se creia que Ele as fez a uma pessoa tão ruim. Mas para obedecer ao Senhor, que me mandou fazê-lo, e aos senhores, contarei algumas coisas para sua glória. Queira Sua Majestade seja proveitoso a alguma alma ver que, a uma coisa tão miserável, quis o Senhor favorecer assim. O que fará a quem o tiver servido de verdade? E animem-se todos a contentar Sua Majestade, já que, ainda nesta vida, dá tais prendas.

2. Primeiro: deve-se saber que, nessas dádivas que Deus faz à alma, há maior e menor glória. Porque em algumas visões excede tanto a glória, o gosto e o consolo em relação ao que dá em outras que me espanto de tanta diferença no gozo, já nesta vida. Por acontecer de ser tanta a diferença que há de gosto e prazer que dá Deus em uma visão ou em um arrebatamento, parece não ser possível poder haver mais a desejar por aqui. E assim, a alma não deseja e não pediria contentamento maior. Ainda que, depois que o Senhor me fez entender a diferença que há no céu entre o que desfrutam uns e o que desfrutam outros, quão grande é, bem vejo que aqui não há limite em dar quando o Senhor quer. E da mesma forma não quereria eu que houvesse em servir eu a Sua Majestade e empregar toda a minha vida e as minhas forças e saúde nisso. E não quereria, por culpa minha, perder nem um tantinho a mais de desfrute.

3. E digo que se me perguntassem o que eu quero mais: ficar com todas as provações do mundo até o fim dele e depois subir um pouquinho mais em glória, ou, sem nenhuma provação, ir para glória um pouco mais baixa, digo que de muito boa vontade pegaria todas as provações por um tantinho de desfrutar mais de entender as grandezas de Deus, já que vejo que quem mais o entende mais o ama e louva.

Não digo que não me contentaria e teria por muito sortuda de estar no céu, ainda que fosse no lugar mais baixo. Porque, para quem tinha um lugar tal no inferno, grande misericórdia me faria nisso o Senhor, e queira Deus que eu vá para lá e não olhe mais meus grandes pecados. O que estou dizendo é que, ainda que fosse com grande custo para mim, se pudesse, e o Senhor me desse a graça para trabalhar muito, não quereria, por culpa minha, perder nada. Miserável de mim que, com tantas culpas, tinha perdido tudo!

4. Há de se notar também que, em cada dádiva que o Senhor me fazia de visão ou revelação, ficava minha alma com algum grande lucro, e, com algumas visões, ficava com muito. De ver Cristo me ficou gravada sua enorme formosura e tenho-a gravada até hoje. Porque para isso bastava uma só vez, quanto mais tantas quantas o Senhor me fez essa dádiva! Fiquei com um proveito enorme e foi o seguinte. Eu tinha uma falha enorme da qual me vieram grandes danos e era esta: quando começava a perceber que uma pessoa gostava de mim e caía em minhas graças, me apegava tanto que a minha memória ficava amarrada pensando nele. Ainda que nunca fosse com intenção de ofender a Deus, mas alegrava-me ao vê-lo e ao pensar nele e nas coisas boas que via nele. Era uma coisa tão daninha que deixava minha alma muito perdida. Depois que vi a grande formosura do Senhor, não vi ninguém que, em comparação com Ele, tivesse boa aparência nem me interessasse. Pois, ao pôr um pouco os olhos da atenção na imagem que tenho em minha alma, fico com tanta liberdade nisso que, depois, tudo o que vejo aqui me parece que causa nojo em comparação com as excelências e graças que nesse Senhor eu vi. Nem há saber ou forma de regalo a que eu dê algum valor em comparação com o que é ouvir uma só palavra dita por aquela divina boca, quanto mais tantas quantas ouvi. E considero impossível, se o Senhor, por meus pecados, não permitir que se tire de mim essa memória, poder alguém ocupá-la de modo que, ao voltar a me lembrar um pouquinho desse Senhor, não fique livre.

5. Aconteceu-me com alguns confessores, porque eu sempre gosto muito dos que governam minha alma. Como eu os considero tão de verdade no lugar de Deus, parece-me que é sempre onde minha vontade mais se emprega. E como eu estava segura, mostrava-lhes meu agrado. Eles, como eram tementes e servos de Deus, tinham medo de que eu me apegasse de alguma maneira e me prendesse por amá-los, ainda que santamente, e mostravam-me seu desagrado. Isso foi depois que eu estava muito sujeita a obedecê-los, pois antes não tinha esse amor a eles. Eu ria comigo mesma por ver como estavam enganados, ainda que nem todas as vezes falasse tão claramente o pouco que me prendia a alguém que eu tinha em mim. Mas eu os tranquilizava e conversando comigo conheciam melhor o tanto que eu devia ao Senhor, pois essas suspeitas que tinham em relação a mim foi só no começo.

6. Teve início em mim muito maior amor e confiança nesse Senhor ao vê-lo como alguém com quem tinha conversa tão frequente. Via que, ainda que fosse Deus, era Homem, que não se assusta com as fraquezas dos homens, que entende nossa composição miserável, sujeita a muitas quedas por causa do primeiro pecado que Ele veio para reparar. Posso conversar como com um amigo, ainda que seja o Senhor, porque percebo que não é como os que aqui temos por senhores, que põem todo o senhorio em autoridades postiças: tem que ter hora para falar com eles, e pessoas designadas para falar com eles. Se for algum pobrezinho que precisa lhes falar, mais rodeios e favores e trabalho lhe há de custar para falar! Ou se for com o Rei! Aí não existe gente pobre e não nobre. Mas é perguntar quem são os mais próximos, e, para maior segurança, que não seja gente que despreza o mundo, porque essas falam verdades, pois não temem nem devem. Não são para o palácio, pois ali não são úteis, mas deve-se calar o que pareça mal, pois até pensar nisso não se deve ousar para não ser desfavorecido.

Oh, Rei de glória e Senhor de todos os reis, como não é o vosso reino montado com pauzinhos, já que não tem fim! Como não são necessários terceiros para Vós! Olhando vossa pessoa se vê logo que sois o único que mereceis que vos chamem de Senhor! Pela majestade que mostrais não é necessário gente de acompanhamento nem de guarda para que se reconheça que sois Rei. Porque aqui mal se reconhecerá um rei por si. Por mais que ele queira ser reconhecido como rei, não reconhecerão, porque não tem nada mais do que os outros. É necessário que se veja o motivo por que se deve acreditar nisso. E assim é correto que tenha essas autoridades postiças, porque, se não as tivesse, não o considerariam nada. Porque não parte dele o parecer poderoso, de outro tem que lhe vir a autoridade.

Oh, meu Senhor! Oh, meu Rei! Quem saberia agora representar a majestade que tendes? É impossível deixar de ver que sois um grande Imperador por Vós mesmo, pois assusta olhar essa majestade. Mas assusta mais, Senhor meu, ver junto com ela vossa humildade e o amor que mostrais a alguém como eu. Tudo se pode conversar e falar convosco como quisermos, perdido o susto inicial e o medo de ver Vossa Majestade. Apesar de ficar maior o medo de vos ofender. Mas não por medo do castigo, Senhor meu, porque esse nem se leva em conta, comparado com o medo de perder a Vós.

7. Eis aqui os proveitos dessa visão, sem contar outros, grandes, que deixa na alma. Se for de Deus, percebe-se pelos efeitos, quando a alma tem luz. Porque, como disse, muitas vezes o Senhor quer que fique nas trevas e não veja essa luz. E assim não é grande coisa que alguém que se veja tão ruim quanto eu tenha medo. Foi agora mesmo que me aconteceu ficar oito dias em que não parecia que estava em mim, nem conseguia reconhecer o que devo a Deus, nem lembrança das dádivas, mas tão abobada a alma, posta em não sei que nem como. Não em maus pensamentos, mas para os bons estava tão incapaz que ria de mim e gostava de ver a baixeza de uma alma quando não anda Deus operando nela sempre. Vê bem que não está sem Ele nesse estado, pois não é como nas grandes provações que eu disse que tenho às vezes. Mas, ainda que ponha lenha e faça esse pouco que pode por sua parte, não arde o fogo do amor. Por muita misericórdia é que se vê a fumaça para perceber que não está de todo morto. Volta o Senhor a acender, pois nessa situação uma alma, ainda que arrebente a cabeça de tanto soprar e em ajeitar a lenha, parece que tudo o abafa mais.

Creio que o melhor é render-se totalmente ao fato de que não pode nada por si só, e se envolver em outras coisas — como já disse — meritórias. Porque o Senhor tira dela a oração talvez para que perceba e saiba por experiência o pouco que pode por si.

8. É verdade que hoje eu me regalei com o Senhor e me atrevi a me queixar de Sua Majestade e lhe disse: "Como, meu Deus, não basta que me mantenhais nesta vida miserável, e que por amor de Vós passo por isso? E quero viver onde tudo é empecilho para desfrutar de Vós, ao contrário tenho que comer, dormir e negociar e conversar com todos e tudo eu aguento por amor de Vós. Então, sabendo, Senhor meu, que é um tormento enorme para mim, e que tão pouquinhos momentos me sobram para desfrutar de Vós, vos escondeis? Como se coaduna isso com vossa misericórdia? Como pode aguentar isso o amor que tendes por mim? Creio, Senhor, que, se fosse possível eu me esconder de Vós, como Vós de mim, penso e creio que, pelo amor que tendes por mim, não suportaríeis. Mas Vós ficais comigo e me vedes sempre. Não se aguenta isso, Senhor meu. Suplico-vos que vejais que causa ofensa a quem tanto vos ama".

9. Isso e outras coisas me ocorreu dizer, entendendo primeiro como era piedoso o lugar que eu tinha no inferno para o tanto que eu merecia. Mas às vezes desatina tanto o amor que eu não me aguento, mas, em meu juízo perfeito faço essas queixas e tudo o Senhor tolera. Louvado seja um tão bom Rei! Se nos aproximássemos dos da terra com esses atrevimentos! Eu até nem me maravilho que não se ouse falar com o rei, pois há razão para ter medo dele, e dos senhores que aparentam ser chefes. Mas o mundo já está de um tal jeito que a vida tinha que ser mais longa para aprender todos os detalhes e as novidades e os tipos de etiqueta que há, se se houvesse de gastar algum tempo dela também em servir a Deus. E eu me benzo ao ver o que se passa. O fato é que eu já não sabia como viver quando me enfiei aqui. Porque não se leva na brincadeira quando há um descuido em tratar as pessoas muito melhor do que merecem. Ao contrário, elas tomam tão como uma ofensa de verdade, que é preciso dar satisfação da sua intenção quando há — como ia dizendo — descuido. E ainda queira Deus que acreditem.

10. Volto a dizer que, com certeza, eu não sabia como viver. Porque uma pobre alma se vê fatigada: vê que lhe mandam que ocupe o pensamento sempre com Deus e que é necessário mantê-lo n'Ele para se livrar de muitos perigos. Por outro lado, vê que não vale a pena perder um minuto por minúcias mundanas, sob pena de não deixar de dar ocasião a que sejam tentados os que têm sua honra posta nessas minúcias. Andava desanimada e nunca parava de pedir desculpas, porque não conseguia, ainda que estudasse, deixar de cometer muitas faltas de etiqueta, que, como eu ia dizendo, não se considera pouca coisa no mundo.

E é verdade que na vida religiosa — pois com razão devíamos estar desculpados nisso — há desculpa? Não, pois dizem que os mosteiros devem ser corte e escola de boas maneiras. Eu, com certeza, não consigo entender isso. Pensei se algum santo disse que deveria ser corte para ensinar aos que quisessem ser cortesãos no céu e entenderam ao contrário. Porque ter esse cuidado quem é justo, que o tivesse continuamente em contentar a Deus e repudiar o mundo; que possa ter tão grande cuidado em contentar aos que vivem nele nessas coisas que mudam tanto, eu não sei como pode ser. Ainda se se pudesse aprender de uma vez, passava. Mas até para títulos de carta é preciso já que haja uma cátedra onde se aprenda como se deve fazer, por assim dizer. Porque uma hora se deixa em branco de um lado, outra hora de outro, a quem não se costumava tratar de magnífico, agora se deve tratar de ilustre.

11. Eu não sei aonde vai parar, porque ainda não tenho cinquenta anos e, nos anos que vivi, já vi tantas mudanças que não sei viver. Os que nascem agora, então, e viverem muito, que vão fazer? Com certeza eu tenho pena de gente espiritual que está obrigada a ficar no mundo por algumas finalidades santas. Pois é terrível a cruz que carregam por isso. Se pudessem combinar todos e fazer-se de ignorantes e querer que todos os tivessem como tal nessas ciências, de muito trabalho se poupariam.

12. Mas, em que bobeiras me meti! Para tratar das grandezas de Deus, vim a falar das baixezas do mundo. Já que o Senhor me fez a dádiva de tê-lo deixado, quero sair logo dele. Entendam-se lá os que sustentam com tanto trabalho essas ninharias. Queira Deus que na outra vida, que é sem mudanças, não as tenhamos que pagar. Amém.

CAPÍTULO 38

EM QUE TRATA DE ALGUMAS GRANDES DÁDIVAS QUE O SENHOR FEZ A ELA, TANTO EM MOSTRAR-LHE ALGUNS SEGREDOS DO CÉU QUANTO OUTRAS GRANDES VISÕES QUE SUA MAJESTADE HOUVE POR BEM QUE ELA VISSE, OS EFEITOS QUE DEIXAVAM NELA E O GRANDE BENEFÍCIO EM QUE FICAVA SUA ALMA

1. Estando, uma noite, tão mal que queria me dispensar de ter oração, peguei um rosário para me ocupar vocalmente, não procurando recolher a inteligência, ainda que, no exterior, estivesse recolhida em um oratório. Quando o Senhor quer, pouco adiantam esses esforços. Estive assim bem pouco tempo e veio-me um arrebatamento de espírito com tanto ímpeto que não deu para resistir a ele. Parecia-me estar posta no céu, e as primeiras pessoas que vi ali foram meu pai e minha mãe. E vi tão grandes coisas — em tão pouco tempo como o que levaria para dizer uma Ave-Maria — que fiquei bem fora de mim, parecendo-me muito excessiva dádiva. Isso de ser tão pouco tempo, pode ser que tenha sido mais, mas pareceu muito pouco. Tive medo de que fosse alguma ilusão, embora não me parecesse. Não sabia o que fazer porque tinha muita vergonha de ir ao confessor com isso. E não por ser humilde, na minha opinião, mas porque me parecia que ele haveria de zombar de mim e dizer: É São Paulo, agora, ou São Jerônimo, para ver coisas do céu! E por esses santos gloriosos terem tido coisas como essas dava-me mais medo e não fazia outra coisa senão chorar muito, porque não me parecia que havia alguma saída. Afinal, ainda que tenha me incomodado mais, fui ao confessor, porque não ousava jamais calar algo — por mais que me incomodasse dizê-la — pelo grande medo que tinha de ser enganada. Ele, quando me viu tão desanimada, consolou-me muito e disse muitas coisas boas para tirar-me da tristeza.

2. Ao longo do tempo, aconteceu-me, e acontece às vezes, isto: ia o Senhor me mostrando mais dos grandes segredos. Porque querer ver a alma mais do que se apresenta para ela não tem nenhuma serventia, nem é possível. E assim não via mais do que, a cada vez, queria o Senhor mostrar-me. Era tanto que a menor parte bastava para ficar espantada e muito beneficiada a alma em avaliar e ter em pequena conta todas as coisas da vida. Quisera eu poder fazer entender algo da menor parte do que eu entendia. E, pensando como poderia ser, acho impossível. Porque só a diferença que há desta luz que vemos para a que lá se mostra, sendo tudo luz, não há comparação. Porque a claridade do sol parece uma coisa muito esmaecida. Enfim, a imaginação — por mais sutil que seja — não alcança pintar ou desenhar como será essa luz nem nenhuma coisa das que o Senhor me fazia perceber com um deleite tão supremo que não se pode dizer, porque todos os sentidos regozijam-se em tão alto grau e suavidade, que não se pode exaltar o bastante e, assim, é melhor não dizer mais nada.

3. Tinha ficado assim uma vez por mais de uma hora, mostrando-me o Senhor coisas admiráveis, pois não me parece que saía do meu lado. Disse-me: "Vê, filha, o que perdem os que são contra mim. Não deixe de dizer a eles".

Ai, Senhor meu, e quão pouco adianta o que eu digo aos que seus feitos mantêm cegos, se Vossa Majestade não lhes der a luz! A algumas pessoas a que Vós a haveis dado, foi proveitoso saber vossas grandezas. Mas veem-nas, Senhor meu, mostradas a coisa tão ruim e miserável, que eu já considero muito que tenha havido alguém que acredite em mim. Bendito seja vosso nome e misericórdia, pois — ao menos para mim — notável melhora vi em minha alma. Depois, quisera ela ficar sempre e não voltar a viver, porque foi grande o desprezo que me ficou de tudo aqui. Parecia-me lixo, e vejo eu como nos ocupamos baixamente, os que nos detemos nisso.

4. Quando estava com aquela senhora de quem falei, aconteceu-me uma vez, estando eu mal do coração — porque, como já disse, eu o tive muito doente, ainda que já não o seja mais. Como ela era de grande caridade, fez-me pegar joias de ouro e pedra, pois ela as tinha de grande valor, especialmente uma de diamantes, avaliada em muito. Ela pensou que me alegrariam. Eu ficava rindo comigo mesma e sentindo pena de ver o que os homens estimam, lembrando-me do que tem guardado para eles o Senhor. E pensava quão impossível seria para mim, ainda que eu comigo mesma quisesse tentar, ter aquelas coisas em alguma conta, se o Senhor não me tirasse a lembrança das outras.

Isso é uma grande soberania para a alma. Tão grande que eu não sei se entenderá quem não a possui. Porque é o próprio e natural desapego, porque é sem esforço nosso. Deus faz tudo, pois mostra Sua Majestade essas verdades de maneira que ficam tão gravadas que se vê claramente que não poderíamos por nós mesmos, em tão pouco tempo, adquiri-las daquela maneira.

5. Fiquei também com pouco medo da morte, de quem eu sempre tive muito medo. Agora me parece uma coisa facílima para quem serve a Deus, porque num momento a alma se vê livre desse cárcere e em descanso. Pois este levar Deus o espírito e mostrar-lhe coisas tão excelentes nesses arrebatamentos parece-me que se assemelha muito ao que acontece quando uma alma sai do corpo, pois em um instante se vê em todo esse bem. Deixemos de lado as dores de quando se arranca a alma, pois deve-se fazer pouco-caso delas. E os que, de verdade, amarem a Deus e tiverem dado adeus às coisas desta vida, mais suavemente devem morrer.

6. Também me parece que foi de muito proveito para reconhecer nossa verdadeira terra e ver que somos peregrinos aqui. E é uma grande coisa ver o que há lá e saber onde havemos de viver. Porque se alguém tem que ir viver assentado em uma terra, é de grande ajuda, para aguentar o trabalho do caminho, ter visto a terra onde há de ficar muito descansado. E também para prestar atenção nas coisas celestiais e procurar que nossa conversa seja sobre lá, faz-se com mais facilidade.

Isso é um grande lucro, porque só de olhar o céu a alma recolhe-se. Porque, como o Senhor quis mostrar algo do que há lá, fica-se pensando. E me acontece às vezes ser os que me acompanham e aqueles com quem me consolo os que eu sei que vivem lá. E acontece parecer-me aqueles os vivos, e os que aqui vivem, tão mortos, que todo mundo me parece que não me faz companhia, especialmente quando tenho aqueles ímpetos.

7. Tudo me parece sonho, o que vejo — e que é uma brincadeira — com os olhos do corpo. O que eu já vi com os olhos da alma é o que ela deseja e, quando se vê longe, isso é o morrer. Enfim, é enorme a dádiva que faz o Senhor àquele a quem dá semelhantes visões, porque ajuda muito, e também a carregar uma pesada cruz, porque tudo não a satisfaz, tudo lhe bate no rosto. E se o Senhor não permitisse que às vezes se esquecesse, mesmo que volte a se recordar, não sei como se poderia viver. Bendito seja e louvado para sempre e sempre! Queira Sua Majestade, pelo sangue que seu filho derramou por mim, que, já que quis que eu entendesse algo dos grandes bens, e que começasse de algum modo a fruir deles, não me aconteça o mesmo que a Lúcifer,1 que, por culpa sua, perdeu tudo. Não o permita, por quem Ele é, pois não é pouco o medo que tenho às vezes. Ainda que, por outro lado, e muito comumente, a misericórdia de Deus me dá segurança, pois, já que me tirou de tantos pecados, não quererá soltar-me de sua mão para que me perca. Isso eu suplico ao senhor que sempre suplique a Ele.

8. Mas não são tão grandes as dádivas que contei, na minha opinião, quanto esta que contarei agora, por muitas causas e grandes bens que me ficaram e grande fortaleza na alma. Ainda que, vista cada coisa por si, são tão grandes que não é o caso de comparar.

9. Estava eu um dia, véspera do Espírito Santo.2 Depois da missa fui a uma parte bem afastada onde muitas vezes eu rezava e comecei a ler em um cartuxo3 sobre essa festa. E lendo os sinais que devem ter os que começam, os que progridem e os perfeitos para saber se está com eles o Espírito Santo, lidos esses três estados, pareceu-me, pela bondade de Deus, que Ele não deixava de estar comigo, pelo que eu podia perceber. Fiquei a louvá-lo, lembrando-me de outra vez em que o havia lido, quando estava bem carente de todos aqueles sinais, que eu vi muito bem, assim como agora percebia o contrário em mim. E, assim, reconheci que era uma dádiva grande a que o Senhor me tinha feito. E, assim, comecei a pensar no lugar que eu tinha merecido no inferno por meus pecados. E dava muitos louvores a Deus, porque me parecia que nem reconhecia minha alma, tão mudada eu a via.

10. Estando nessas considerações, deu-me um ímpeto grande, sem eu perceber a ocasião. Parecia que a alma queria sair do meu corpo porque não cabia em si nem se achava capaz de esperar tanto bem. Era um ímpeto tão excessivo que eu não conseguia fazer nada e, na minha opinião, era diferente de outras vezes: nem entendia o que tinha a alma, nem o que queria, tão alterada ela estava. Levantei-me, porque nem sentada não conseguia ficar, porque a força natural me faltava toda.

Estando eu nisso, veio sobre minha cabeça uma pomba, bem diferente das daqui, porque não tinha essas penas, mas sim as asas feitas de umas conchinhas que emitiam de si um grande brilho. Era maior do que uma pomba. Parece-me que eu ouvia o ruído que fazia com as asas. Estaria batendo as asas o tempo de uma Ave-Maria. A alma já estava de tal jeito que, perdendo-se de si, perdeu-a de vista. Sossegou-se o espírito com tão bom hóspede, pois, pelo que achava, a dádiva tão maravilhosa devia desassossegá-lo e assustá-lo. E quando começou a fruir dela, foi tirado o medo e começou a tranquilidade com o gozo, ficando em arrebatamento. Foi enorme a glória desse arrebatamento.

11. Fiquei a maior parte da Páscoa tão abobada e tonta que não sabia o que fazer de mim, nem como cabia em mim tão grande favor e dádiva. Não ouvia nem via, por assim dizer. Com enorme gozo interior. Desde aquele dia percebi ficar com enorme avanço em amor a Deus mais elevado e as virtudes muito mais fortalecidas. Seja bendito e louvado para sempre, amém.

12. De outra vez vi a mesma pomba sobre a cabeça de um padre da Ordem de São Domingos,4 só me pareceu que os raios e o brilho das mesmas asas se estendiam muito mais. Fez-me entender que ele haveria de trazer almas para Deus.

13. De outra vez vi Nossa Senhora pondo uma capa muito branca no presentado dessa mesma ordem de que falei algumas vezes. Disse-me que pelo serviço que havia prestado a ela por ajudar a que se fizesse esta casa lhe dava aquele manto. Em sinal de que protegeria a alma dele em pureza, dali para a frente, e que não cairia em pecado mortal. Eu tenho certeza de que foi assim, porque depois de poucos anos morreu,5 e sua morte, e o que viveu, foi com tanta penitência a vida, e a morte com tanta santidade que, pelo que se pode perceber, não há o que pôr em dúvida. Disse-me um frade que esteve presente a sua morte que ele, antes de expirar, lhe disse como estava com ele santo Tomás. Morreu com grande gozo e desejo de sair deste desterro. Depois apareceu para mim algumas vezes com muito grande glória e me disse algumas coisas. Tinha tanta oração que, quando morreu, apesar de, com a fraqueza, querer evitá-la, não conseguia, porque tinha muitos arrebatamentos. Escreveu-me pouco antes de morrer: que medo teria? Porque, quando acabava de dizer missa, ficava em arrebatamento muito tempo, sem poder evitar. Deus lhe deu, no fim, o prêmio pelo muito que ele o havia servido em toda sua vida.

14. Do reitor da Companhia de Jesus,6 de que algumas vezes fiz menção, vi algumas coisas de grandes dádivas que o Senhor lhe fazia, que, para não me estender, não ponho aqui. Aconteceu-lhe uma vez uma grande provação, em que foi muito perseguido e se viu muito aflito. Estando eu um dia ouvindo missa, vi Cristo na cruz quando erguiam a hóstia. Disse-me algumas palavras para que eu dissesse a ele como consolo e outras prevenindo-o do que estava por vir e pondo diante dele o que havia padecido por ele e que se preparasse para aguentar. Isso lhe deu muito consolo e coragem, e tudo se passou depois como o Senhor me disse.

15. Dos da ordem desse padre, que é a Companhia de Jesus, toda a ordem junta, vi grandes coisas: vi-os algumas vezes no céu com bandeiras brancas nas mãos e, como ia dizendo, outras coisas vi deles dignas de muita admiração. E, assim, tenho essa ordem em grande veneração, porque convivi muito com eles e vejo que sua vida se conforma com o que o Senhor me fez entender deles.

16. Estando uma noite em oração começou o Senhor a dizer-me algumas palavras trazendo-me à memória, por elas, quanto minha vida havia sido má. Causavam-me grande embaraço e tristeza, porque, ainda que não tenham sido ditas com severidade, causam um sentimento e uma tristeza que desmancham. E sente-se maior aproveitamento em nos conhecer com uma palavra dessas do que em muitos dias que pensemos em nossa miséria. Porque traz consigo esculpida uma verdade que não podemos negar. Apresentou-me as vontades que eu tinha tido com tanta vaidade, e disse-me que tivesse em alta conta que se pusesse n'Ele uma vontade que tão mal se havia gasto como a minha e aceitá-la Ele.

De outras vezes me disse que me lembrasse de quando eu tinha como honra ir contra a vontade d'Ele. Outras, que me lembrasse do que devia a Ele, pois, enquanto eu lhe dava os maiores golpes, estava Ele fazendo-me dádivas. Se cometia alguma falta, e não são poucas, a maneira como me faz Sua Majestade entender parece que me aniquila inteiramente. E, como tenho muitas, dá-se muitas vezes. Acontecia-me de me repreender o meu confessor, e eu querer me consolar na oração, e achar ali a verdadeira repreensão.

17. Voltando então ao que eu dizia. Quando começou o Senhor a trazer-me à memória minha vida ruim, ao voltarem as minhas lágrimas, como eu, então, não tinha feito nada, pelo que me parecia, pensei que talvez me quisesse fazer alguma dádiva. Porque é muito comum, quando recebo alguma dádiva particular do Senhor, ter-me primeiro aniquilado a mim mesma, para que veja mais claramente quão longe estão de eu merecê-las. Penso que deve fazê-lo o Senhor. Depois de pouco tempo, foi tão arrebatado meu espírito que quase me pareceu que estava totalmente fora do corpo. Ao menos não se percebe que se vive nele. Via a Humanidade sacratíssima com excessivamente mais glória do que jamais tinha visto. Mostrou-se a mim, por meio de uma noção admirável e clara, posto no peito do Pai. Isso eu não saberei dizer como é, porque, sem ver me pareceu que me vi na presença daquela Divindade. Fiquei tão espantada e de tal maneira que me parece que se passaram alguns dias que não conseguia voltar a mim. E sempre me parecia trazer presente aquela majestade do Filho de Deus, ainda que não fosse como a da primeira. Isso eu percebia bem, mas fica tão esculpido na imaginação que não se pode tirar de si por algum tempo, por mais breve que seja o tempo em que se tenha passado. E é grande o consolo e mesmo o progresso.

18. Essa mesma visão eu vi outras três vezes. É, na minha opinião, a mais elevada visão que o Senhor me fez a dádiva de ver, e traz consigo enormes proveitos. Parece que purifica a alma em grande maneira e tira a força quase totalmente dessa nossa sensualidade. É uma chama grande, que parece que abrasa e aniquila todos os desejos da vida. Porque já que eu, glória a Deus, não os tinha em coisas vãs, explicou-se-me bem aí como tudo era vaidade e quão vãs, e quão vãs as soberanias daqui. E é um ensinamento grande para erguer os desejos à pura verdade. Fica gravada uma reverência que eu não saberei dizer como, mas é muito diferente da que aqui podemos adquirir. Causa um grande espanto na alma ao ver como ousou, ou como alguém pudesse ousar, ofender uma Majestade tão enorme.

19. Devo ter falado algumas vezes desses efeitos de visões e outras coisas, mas já disse que há maior e menor aproveitamento. Desta, é enorme. Quando eu me aproximava da comunhão e lembrava daquela majestade enorme que tinha visto, e via que era Ele que estava no Santíssimo Sacramento, e muitas vezes quer o Senhor que eu o veja na Hóstia, meus cabelos se arrepiavam e parecia que eu me aniquilava inteira.

Oh, meu Senhor, mas se não encobrirdes vossa grandeza, quem ousará chegar tantas vezes a juntar uma coisa tão suja e miserável com tão grande Majestade?

Bendito sejais, Senhor! Louvem os anjos e todas as criaturas, pois medis as coisas com a nossa fraqueza, para que, gozando de tão supremas dádivas, não nos assuste vosso grande poder a ponto de que nem ousemos gozá-las, como gente fraca e miserável que somos.

20. Poderia nos acontecer o que a um lavrador, e isto eu sei com certeza que aconteceu assim: achou-se um tesouro e como era mais do que cabia em seu ânimo, que era pouco, vendo-se com ele deu-lhe uma tristeza que pouco a pouco veio a morrer de pura aflição e preocupação de não saber o que fazer com ele. Se não o tivesse achado todo de uma vez, mas fossem lhe dando pouco a pouco e sustentando com o tesouro, viveria mais alegre do que sendo pobre e não custaria sua vida.

21. Oh, riqueza dos pobres, que admiravelmente sabeis sustentar as almas e, sem que vejam tão grandes riquezas, pouco a pouco as vai mostrando! Quando eu vejo uma Majestade tão grande e disfarçada em coisa tão pequena como é a Hóstia, aqui comigo me admiro, depois, de sabedoria tão grande. E não sei como me dá o Senhor coragem e força para me aproximar dele. Se Ele, que me fez e faz tão grandes dádivas, não me desse, nem seria possível poder dissimular, nem deixar de dizer em voz alta tão grandes maravilhas. Então, o que sentirá uma miserável como eu, carregada de abominações e que com tão pouco temor a Deus gastou sua vida, de se ver aproximar-se desse Senhor de tão grande Majestade quando quer que minha alma o veja? Como há de juntar a boca, que tantas palavras disse contra o mesmo Senhor, àquele corpo gloriosíssimo, cheio de limpeza e piedade? Pois dói muito mais e aflige a alma por não ter servido a Ele, o amor que mostra aquele rosto de tanta beleza com uma ternura e afabilidade, pois a Majestade que se vê n'Ele infunde temor.

22. Mas o que poderia sentir eu que vi duas vezes isto que direi? Com certeza, Senhor meu e glória minha, estou para dizer que, de alguma maneira, nessas grandes aflições que sente a minha alma fiz algo em vosso serviço. Ai, que não sei o que digo, pois, quase sem falar, já escrevi isso! É porque me encontro perturbada e um pouco fora de mim ao ter trazido de volta à memória essas coisas. Teria dito bem, se esse sentimento viesse de mim, pois teria feito algo por Vós, Senhor meu. Mas, já que não pode haver bom pensamento se Vós não o dais, não há o que me agradecer. Eu sou a devedora, Senhor, e Vós o ofendido.

23. Aproximando-me uma vez para comungar, vi com os olhos da alma, mais claramente do que com os do corpo, dois demônios de muito abominável figura. Parecia-me que os chifres rodeavam a garganta do pobre sacerdote, e vi meu Senhor com a Majestade que disse, posto, na Forma como ia ser dada a mim,7 naquelas mãos que se via claramente que causavam ofensa a Ele. E entendi estar aquela alma em pecado mortal. O que seria, Senhor meu, ver vossa formosura entre figuras tão abomináveis? Eles estavam como que amedrontados e assustados diante de Vós, pois parecia que de boa vontade fugiriam se Vós os tivésseis deixado ir.

Causou-me tão grande perturbação que não sei como consegui comungar e fiquei com muito medo, parecendo-me que, se tivesse sido visão de Deus, não me permitiria Sua Majestade ver o mal que estava naquela alma. Disse-me o mesmo Senhor que rogasse por ele, e que tinha permitido para que eu entendesse a força que têm as palavras da consagração e como não deixa Deus de estar ali por pior que seja o sacerdote que as diz. E para que visse sua grande bondade, quando se põe naquelas mãos de seu inimigo, e tudo para o meu bem e de todos. Percebi bem o quanto estão os sacerdotes mais obrigados a ser bons do que os outros. E que coisa dura é tomar esse Santíssimo Sacramento indignamente e quanto o demônio é senhor da alma que está em pecado mortal. De muito grande proveito me foi e me deu grande conhecimento do que eu devia a Deus. Bendito seja para sempre e sempre.

24. De outra vez me aconteceu assim outra coisa que me assustou muito, muito. Estava em um lugar onde havia morrido uma certa pessoa que vivera muito mal, segundo eu soube, e muitos anos. Mas havia dois anos que tinha uma doença e em algumas coisas parece que andava emendado. Morreu sem confissão, mas, mesmo com tudo isso, não me parecia que seria condenado. Estando eu amortalhando o corpo, vi muitos demônios tomando aquele corpo e parecia que brincavam com ele e o torturavam. Causou-me um grande pavor, pois com garfos grandes arrastavam-no de um para o outro. Quando o vi ser levado para enterrar com a mesma honra e cerimônias que todos, eu estava pensando na bondade de Deus: como não queria que aquela alma fosse difamada, mas sim que ficasse oculto ser ela sua inimiga.

25. Eu já estava meio boba pelo que tinha visto. Em todo o ofício não vi mais demônios. Depois, quando puseram o corpo na sepultura, era tão grande a multidão que estava dentro para pegá-lo que eu estava fora de mim de ver e não era pouca a coragem necessária para dissimular. Pensava no que fariam daquela alma, quando se apossavam assim do triste corpo. Quisera Deus que isso que vi — coisa tão assustadora! — vissem todos os que estão em mau estado, pois me parece que seria uma grande coisa para fazê-los viver bem. Tudo isso me faz reconhecer mais o que devo a Deus e do que Ele me livrou. Andei muito temerosa até que conversei com meu confessor, pensando se não era ilusão do demônio para difamar aquela alma, ainda que ela não fosse tida como muito cristã. É verdade que, ainda que não tenha sido ilusão, sempre me dá medo quando me lembro.

26. Já que comecei a falar de visões de defuntos, quero dizer algumas coisas que o Senhor quis, nesse caso, que visse de algumas almas. Direi poucas, para abreviar e por não ser necessário mais, quero dizer, para algum proveito. Disseram-me que estava morto um provincial nosso, que tinha sido e, quando morreu, era de outra província,8 com quem eu havia conversado e a quem devia algumas boas obras. Era uma pessoa de muitas virtudes. Quando soube que estava morto, deu-me uma grande perturbação, porque temi por sua salvação, pois tinha sido prelado por vinte anos, coisa de que tenho muito medo, com certeza, por me parecer coisa muito perigosa ter a seu cargo almas. E com muito desânimo fui para um oratório. Disse todo o bem que eu havia feito na minha vida, o que seria bem pouco, e disse ao Senhor que suprissem os méritos d'Ele o que era necessário àquela alma para sair do purgatório.

27. Estando a pedir isso ao Senhor da melhor maneira que podia, parecia-me que saía do fundo da terra ao meu lado direito e vi-o subir ao céu com enorme alegria. Ele já era bem velho, mas eu o vi com a idade de trinta anos e até menos, pareceu-me, e com brilho no rosto. Foi muito rápida essa visão, mas fiquei consolada em tal ponto que nunca mais me pôde dar tristeza a morte dele. Mesmo vendo muitas pessoas muito desanimadas por causa dele, que era muito benquisto. Era tanto consolo que minha alma tinha, que nada me importava nem podia duvidar de que era boa visão, quer dizer, que não era ilusão. Havia não mais do que quinze dias que tinha morrido. Contudo, não descuidei de que o encomendassem a Deus nem de fazê-lo eu, só que não conseguia com aquela vontade que teria se não tivesse visto isso. Porque, quando o Senhor me mostra isso assim e depois eu quero encomendar as almas à Sua Majestade, parece-me, sem conseguir mais, que é como dar esmola ao rico. Depois soube — porque morreu longe daqui — a morte que o Senhor lhe deu, que foi de tão grande edificação que deixou a todos espantados com o reconhecimento e as lágrimas e humildade com que morreu.

28. Tinha morrido uma monja em casa havia pouco mais de um dia e meio, muito serva de Deus. Estando uma monja a dizer uma leitura de defuntos que se dizia por ela no coro, eu estava em pé para ajudá-la a dizer o versículo. Na metade da leitura eu a vi. Pareceu-me que saía a alma do lugar da visão passada e que ia para o céu. Essa não foi uma visão por imagens, como a anterior, mas como outras que contei. Mas não se duvida dela mais do que das que se veem.

29. Outra monja morreu na minha própria casa. De cerca de dezoito ou vinte anos. Sempre tinha sido doente e muito serva de Deus, amiga do coro e muito virtuosa. Eu com certeza pensei que não entraria no purgatório, porque eram muitas as doenças por que havia passado, pensei, ao contrário, que lhe sobravam méritos. Estando nas Horas antes que a enterrassem, fazia quatro horas que tinha morrido, percebi sair do mesmo lugar e ir para o céu.

30. Estando em um colégio da Companhia de Jesus, com as grandes provações que disse que tinha às vezes e ainda tenho da alma e do corpo, estava de tal sorte que até um bom pensamento, me parecia, eu não conseguia aceitar. Tinha morrido naquela noite um irmão daquela casa da Companhia e estando a encomendá-lo a Deus como podia e ouvindo missa de outro padre da Companhia por ele, deu-me um grande recolhimento e vi-o subir ao céu com muita glória e o Senhor com ele. Por particular favor percebi que ia Sua Majestade com ele.

31. Outro frade de nossa ordem, muito bom frade, estava muito doente, e estando eu na missa, deu-me um recolhimento e vi quando morreu e subiu ao céu sem entrar no purgatório. Morreu naquela hora que eu o vi, segundo soube depois. Eu me espantei de que não tivesse entrado no purgatório. Entendi que, por ter sido frade, pois havia observado bem sua profissão religiosa, tinham sido de proveito para ele as bulas da ordem para não entrar no purgatório.9 Não compreendo por que entendi isso. Parece-me que deve ser porque não está o ser frade no hábito, digo, em vesti-lo, para gozar do estado de maior perfeição que é ser frade.

32. Não quero contar mais dessas coisas porque, como já disse, não há por que. Mesmo que sejam muitas que o Senhor me fez a dádiva de ver. Mas não percebi, de todas as que vi, deixar de entrar no purgatório nenhuma das que vi a não ser a desse padre e do santo frei Pedro de Alcântara e o padre dominicano que fica dito. De alguns o Senhor quis que eu visse os graus de glória que têm, mostrando-me o lugar em que se localizam. É grande a diferença que há de um para outro.

CAPÍTULO 39

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA DE CONTAR AS GRANDES DÁDIVAS QUE FEZ A ELA O SENHOR. TRATA DE COMO PROMETEU FAZER PELAS PESSOAS O QUE ELA LHE PEDISSE. DIZ ALGUMAS COISAS NOTÁVEIS EM QUE FEZ SUA MAJESTADE ESSE FAVOR

1. Estando eu uma vez a importunar muito o Senhor para que desse a vista a uma pessoa com quem eu tinha obrigações, porque ela havia perdido quase totalmente a visão, eu tinha muita pena dela e temia que, por meus pecados, não me havia o Senhor de ouvir. Apareceu-me, como em outras vezes, e começou a me mostrar a chaga da mão esquerda. E com a outra tirava um cravo grande que estava enfiado nela. Parecia-me que, em volta do cravo, tirava a carne. Via-se bem a grande dor, o que me dava muita pena. E disse-me que quem havia passado aquilo por mim, que eu não duvidasse, faria melhor o que lhe pedisse. Disse que Ele me prometia que não haveria nenhuma coisa que eu lhe pedisse e Ele não fizesse. Que Ele já sabia que eu não pediria senão coisas conformes à sua glória e que, assim, faria isso que eu agora pedia. Que mesmo quando eu não o servia, olhasse eu que não tinha lhe pedido nada que não tivesse feito melhor do que eu sabia pedir. Que muito melhor o faria agora que sabia que eu o amava. Que não duvidasse disso.

Creio que não se passaram oito dias e o Senhor devolveu a vista àquela pessoa. Meu confessor logo soube disso. Pode ser que não tenha sido por minha oração, mas como eu tinha visto essa visão, ficou-me uma certeza e, pela dádiva feita a mim, dei ao Senhor as graças.

2. De outra vez estava uma pessoa muito enferma de uma doença muito penosa que, por ser não sei de que natureza, não designo aqui. Era uma coisa insuportável o que fazia dois meses que passava e estava num tormento em que se despedaçava. Foi vê-la meu confessor, que era o reitor de quem falei, e teve grande pena dela. E disse-me que, em todo caso, eu fosse visitá-la, pois era uma pessoa que eu podia visitar, por ser meu parente.1 Eu fui e isso me moveu a ter bastante piedade dele. E comecei muito importunamente a pedir sua saúde ao Senhor. Nisso vi claramente, com toda minha convicção, a dádiva que me fez. Porque logo no outro dia estava totalmente bom daquela dor.

3. Estava uma vez com enorme tristeza porque sabia que uma pessoa a quem devia muita obrigação queria fazer uma coisa muito contra Deus e contra a honra dela mesma e estava já muito decidida a isso. Era tanto o meu desânimo, que eu não sabia o que fazer. Um jeito para que ela desistisse parece que já não havia. Supliquei muito a Deus de coração que desse remédio, mas, até vê-la, não consegui aliviar minha tristeza. Fui, estando desse jeito, a uma ermida bem afastada das que há neste mosteiro e, estando em uma onde fica Cristo na Coluna,2 suplicando a Ele que me fizesse essa dádiva, ouvi que falava comigo em voz muito suave, como num sussurro. Eu me arrepiei toda, porque me deu medo e queria entender o que me dizia. Mas não consegui, porque passou muito rápido. Passado o meu medo, o que foi rápido, fiquei com um sossego e um júbilo e deleite interior tais que me espantei de que só ouvir uma voz, pois ouvi isso com os ouvidos corporais e sem entender uma palavra, fizesse tanto efeito na alma. Com isso vi que se havia de fazer o que eu pedia e assim foi que me foi tirada a tristeza por uma coisa que ainda não acontecera, como se eu a tivesse visto feita, o que aconteceu depois. Contei a meus confessores, pois tinha dois nessa época, muito letrados e servos de Deus.3

4. Eu sabia que uma pessoa tinha decidido muito de verdade servir a Deus e tinha tido alguns dias de oração, e nela fazia Sua Majestade muitas dádivas. E, por certas ocasiões de pecado, havia deixado a oração e até não se afastava dessas ocasiões e eram bem perigosas. A mim causou enorme tristeza, por ser uma pessoa de quem eu gostava muito e a quem devia. Creio que foi mais de um mês que não fiz outra coisa senão suplicar a Deus que tomasse essa alma para si. Estando um dia em oração, vi um demônio junto a mim que, com muita insatisfação, fez em pedaços uns papéis que tinha na mão. A mim isso deu grande consolo, pois me pareceu que se havia feito o que eu pedia. E assim foi, pois logo depois soube que tinha feito uma confissão com grande contrição e voltou-se tão de verdade a Deus que, espero em Sua Majestade, há de ir sempre em frente. Seja bendito por tudo, amém.

5. Isso de tirar nosso Senhor almas de pecados graves por eu suplicar e trazer outras a maior perfeição acontece muitas vezes. E de tirar almas do purgatório e outras coisas notáveis são tantas as dádivas que o Senhor fez a mim que seria cansar-me e cansar a quem o lesse se eu tivesse que contá-las. E muito mais em saúde de almas do que de corpos. Isso foi uma coisa muito notória e há muitas testemunhas. Logo, logo me causava muito escrúpulo, porque eu não podia deixar de acreditar que o Senhor fazia-o por minha oração — deixemos de lado ser o principal apenas a sua bondade —, mas já são tantas as coisas e tão vistas por outras pessoas, que não me causa tristeza acreditar nisso e louvo a Sua Majestade e causa-me confusão, porque vejo que fico mais devedora e faz-me, ao que me parece, crescer o desejo de servi-lo e aviva-se o amor.

6. E o que mais me espanta é que as que o Senhor vê que não convêm eu não consigo, ainda que queira, suplicar, a não ser com tão pouca força e espírito e cuidado que, por mais que queira me esforçar, é impossível, quando em outras coisas, que o Senhor fará, eu vejo que posso pedir muitas vezes e com grande importunação. Ainda que eu não tenha essa preocupação, parece-me que se mostra diante de mim.

É grande a diferença entre essas duas maneiras de pedir. E não sei como explicar. Porque, ainda que eu peça, pois não deixo de me forçar a suplicar ao Senhor, mesmo que não sinta em mim aquele fervor que em outras, ainda que me toquem muito, uma é como alguém que tivesse a língua travada. Pois ainda que queira falar não consegue, e se fala, é de um modo que vê que não o entendem. A outra é como quem fala claramente e desperto a quem vê que o escuta de boa vontade. Uma pede-se, digamos agora, como oração vocal, e a outra em contemplação tão elevada que o Senhor se mostra de uma maneira que se entende que nos compreende e que se alegra Sua Majestade por pedirmos e por fazer-nos uma dádiva.

Seja bendito para sempre que tanto dá e tão pouco lhe dou eu. Porque o que faz, Senhor meu, quem se desfaz toda por Vós? E quanto, quanto, quanto, e outras mil vezes posso dizer, me falta para isso! Por isso não quereria viver, ainda que haja outras causas. Porque não vivo conforme ao que devo a Vós. Com quantas imperfeições me vejo! Com que frouxidão em servir-vos! Com certeza me parece, às vezes, que quereria estar sem sentidos para não perceber tanto mal em mim. O que pode fazê-lo, remedeie!

7. Estando na casa daquela senhora de que falei, onde era preciso estar com cuidado e considerar sempre a vaidade que trazem consigo todas as coisas da vida, porque era muito estimada e muito elogiada e me ofereciam muitas coisas a que eu bem poderia me apegar, se olhasse para mim. Mas olhava para o que tem a verdadeira vista a não me soltar de sua mão.

8. Agora que falo em verdadeira vista, lembro-me dos grandes trabalhos por que passam pessoas que o Senhor aproximou de reconhecer o que é verdade, nessas coisas da terra, onde se esconde tanto, como o Senhor me disse uma vez. Pois muitas coisas das que escrevo aqui não são da minha cabeça, mas as dizia esse meu Mestre celestial. E porque nas coisas que eu expressamente digo "isso ouvi", ou "me disse o Senhor", tenho muitos escrúpulos em pôr ou tirar uma só sílaba que seja. Assim, quando não me recordo bem de tudo, digo como se fosse por mim, ou porque outras coisas também serão por mim. Não chamo de meu o que é bom, pois já sei que não há nada bom em mim, a não ser o que tão sem merecer me deu o Senhor. Mas chamo "dito por mim" o que não foi dado a ouvir em revelação.

9. Mas, ai, Deus meu, como mesmo nas coisas espirituais queremos muitas vezes entender as coisas segundo nosso parecer e muito distorcidas da verdade. Como nas coisas do mundo. E parece-nos que temos que contar nosso aproveitamento pelos anos que temos algum exercício de oração. E ainda parece que queremos pôr medida a quem sem nenhuma dá seus dons quando quer. E pode dar em meio ano mais para um do que para outro em muitos! E é uma coisa, essa, que tenho visto tanto, por muitas pessoas, que me espanto de como podemos nos deter nisso.

10. Creio que não ficará nesse engano quem tiver talento para conhecer espíritos e a quem o Senhor tiver dado humildade verdadeira: pois esse julga pelos efeitos e decisões e amor, e o Senhor lhe dá luz para que o reconheça. Para isso, olha o avanço e aproveitamento das almas, e não os anos. Pois em meio ano alguém pode ter alcançado mais do que outro em vinte. Porque, como ia dizendo, o Senhor dá a quem quer e até a quem mais se dispõe. Porque eu vejo vir agora a esta casa umas mocinhas4 que são de pouca idade e tocando-as Deus e dando-lhes um pouco de luz e amor, quer dizer, em pouco tempo de lhes ter dado algum presente, não esperaram, nem nada as impediu, sem se ocupar com o de comer, uma vez que se encerram para sempre nesta casa sem renda, como quem não valoriza a vida por causa daquele que sabem que as ama. Deixam tudo. Nem querem ter vontade. Nem lhes ocorre que podem ter descontentamento com tanta clausura e rigor: todas juntas se oferecem em sacrifício a Deus.

11. Com quanto de boa vontade eu lhes cedo aí a vantagem! E devia andar envergonhada diante de Deus, porque o que o Senhor não conseguiu comigo em tão grande quantidade de anos como há desde que comecei a ter oração e começou a me fazer dádivas, consegue com elas em três meses e até com alguma em três dias, além de fazer para elas menos do que fez para mim, ainda que as pague bem Sua Majestade. Com muita certeza não estão descontentes pelo que fizeram por Ele.

12. Para isso quereria que nos lembrássemos dos muitos anos que temos de profissão e, as pessoas que os têm, de oração. Não para desanimar aos que em pouco tempo vão mais longe fazendo-os voltar atrás para que andem no mesmo passo que nós. E aos que voam como águias com as dádivas que lhes faz Deus, querer fazê-los andar como frangos presos. Mas sim para que ponhamos os olhos em Sua Majestade e, se os olharmos com humildade, dar-lhes corda, pois o Senhor, que lhes faz tantas dádivas, não os deixará despencar. Confiam eles mesmos em Deus, que para isso lhes é de proveito a verdade da fé que conhecem, e não confiaremos neles nós? Ao contrário, queremos medi-los por nossa medida segundo nossa pouca coragem? Não assim, mas sim, se não alcançamos seus grandes efeitos e determinação, porque sem experiência mal se consegue entender, humilhemo-nos e não os condenemos. Pois, parecendo que visamos o proveito deles, desperdiçamos o nosso e perdemos essa oportunidade que o Senhor oferece para humilhar-nos e para que entendamos o que nos falta. E quão mais desapegadas e próximas de Deus devem estar essas almas que as nossas, já que tanto Sua Majestade se aproxima delas.

13. Não entendo outra coisa, nem quereria entender, a não ser que eu quereria mais oração de pouco tempo que produz efeitos muito grandes, que logo se percebem, pois é impossível que os haja para deixar tudo por Deus sem grande força de amor, do que oração de muitos anos que nunca conseguiu decidir-se mais no fim do que no começo a fazer uma coisa que seja por Deus. Salvo se umas coisinhas miúdas como sal, que não têm peso nem importância, que parece que um pássaro poderia levar no bico, tivermos por grande efeito e mortificação. Pois fazemos caso de algumas coisas que fazemos pelo Senhor que é uma lástima que as percebamos, ainda que se fizessem muitas. Eu sou assim e esquecerei as dádivas de Deus a cada passo. Não digo que não as levará muito em consideração Sua Majestade, de acordo com sua bondade. Mas eu quereria não fazer caso delas, nem ver que as faço, já que não são nada. Mas perdoai-me, Senhor meu, e não me culpeis, pois com algo tenho que me consolar, já que não vos sirvo em nada. Pois se vos servisse em coisas grandes, não faria caso das ninharias. Bem-aventuradas as pessoas que vos servem com obras grandes! Se ter inveja delas e desejar isso for levado em conta, não ficaria muito atrás em contentar-vos. Mas não valho nada, Senhor meu. Dai-me Vós a coragem, já que tanto me amais.

14. Aconteceu um dia desses que, ao chegar um Breve de Roma para não poder ter renda este mosteiro,5 terminou tudo, e parece-me que custou algum trabalho. Estando consolada por ver tudo assim concluído e pensando nos trabalhos que tinha tido e louvando ao Senhor que em algo tinha querido servir-se de mim, comecei a pensar nas coisas que tinha passado. E foi assim que, em cada uma das que pareciam que eram algo que eu havia feito eu achava tantas faltas e imperfeições, e às vezes pouca coragem e em muitas pouca fé. Porque até agora, que vejo tudo cumprido do que o Senhor me disse que faria sobre esta casa, nunca conseguia crer decididamente, e tampouco conseguia duvidar.

Não sei como era isso. É que muitas vezes por um lado me parecia impossível, por outro não conseguia duvidar, quero dizer, acreditar que não seria feito. Enfim, achei ter o Senhor feito todo o bom de sua parte e o mau, eu. E assim deixei de pensar nisso e não quereria me recordar para não tropeçar em tantas faltas minhas. Bendito seja Ele que de todas tira o bem quando quer. Amém.

15. Então, ia dizendo que é perigoso ir contando os anos que se teve de oração, pois ainda que haja humildade, parece que pode ficar um não sei quê de parecer que se merece algo pelo tempo servido. Não digo que não merecem e que não será bem pago. Mas qualquer espiritual a quem pareça que, pelos muitos anos que teve oração, merece esses presentes do espírito, tenho certeza de que não subirá até o topo. Já não é demais que tenha merecido que Deus o segure pela mão para não fazer as ofensas que antes de ter oração fazia? Mas que lhe mova ação por sua paga, como dizem? Não me parece profunda humildade. Pode ser que seja, mas considero atrevimento, já que eu, apesar de ter pouca humildade, não me parece que jamais tenha ousado. Pode ser que, como nunca o servi, nunca pedi. Talvez se o tivesse feito, quereria mais que todos que o Senhor me pagasse.

16. Não digo que não vá crescendo uma alma e não pagará Deus, se a oração tiver sido humilde. Mas que se esqueçam esses anos, pois é tudo um nojo o que podemos fazer em comparação com uma gota de sangue das que o Senhor derramou por nós. E, se ao servir mais ficamos mais devedores, que é que pedimos, já que se pagamos um maravedi da dívida voltam a nos dar mil ducados?6 Por amor de Deus, deixemos esses julgamentos que são d'Ele. Essas comparações sempre são más, mesmo nas coisas daqui. O que serão, então, naquilo que só Deus sabe? E isso mostrou bem Sua Majestade quando pagou tanto aos últimos quanto aos primeiros.7

17. Foi em tantas vezes que escrevi essas três páginas ao longo de três dias, porque tive e tenho, como já disse, pouco tempo, que tinha me esquecido do que comecei a contar. Era esta visão: vi-me em oração sozinha num campo grande, ao redor de mim pessoas de diferentes tipos me cercavam. Todas, parecia-me, tinham armas nas mãos para ferir-me: umas, lanças; outras, espadas; outras, adagas; e outras, estoques muito grandes. Enfim, eu não podia sair por nenhum lado sem que me pusesse em perigo de morte. E sozinha, sem achar uma pessoa do meu lado. Estando meu espírito nessa aflição, pois não sabia o que fazer de mim, ergui os olhos ao céu e vi Cristo, não no céu, mas acima de mim bem alto no ar. E estendia a mão em minha direção e dali me favorecia de um modo que eu não temia mais todas as outras pessoas, nem eles, ainda que quisessem, podiam me causar dano.

18. Parece sem fruto essa visão e me foi de enorme proveito. Porque me fez entender o que significava e pouco depois me vi quase sob aquele ataque e reconheci ser aquela visão um retrato do mundo, pois tudo o que há nele parece que tem armas para ferir a triste alma. Deixemos de lado os que não servem muito ao Senhor, e honras e riquezas e prazeres e outras coisas semelhantes, pois está claro que, quando não se toma cuidado, se vê enredada. Ao menos tentam, todas essas coisas, enredar. Mas falo de amigos e parentes e, o que mais me espanta, pessoas muito boas. Por todos me vi depois tão pressionada, pensando eles que faziam um bem, que não sabia como me defender nem o que fazer.

19. Oh, valha-me Deus! Se eu dissesse as maneiras e variedades de provações que tive, mesmo depois do que foi contado atrás! Como seria grande advertência para repudiar tudo totalmente! Foi a maior perseguição, me parece, por que passei! Digo que me vi às vezes tão pressionada por todos os lados, que só encontrava remédio em erguer os olhos ao céu e chamar a Deus. Lembrava-me bem do que tinha visto nessa visão. E foi de muito grande proveito para mim para não confiar muito em ninguém, porque não há quem seja constante, a não ser Deus. Sempre, nessas grandes provações, me enviava o Senhor, como me mostrou, uma pessoa de sua parte que me desse a mão, como tinha me mostrado nessa visão. Sem ir apegada a nada além de contentar ao Senhor, pois era para sustentar esse pouquinho de virtude que eu tinha em desejar servir-vos. Sede bendito para sempre!

20. Estando uma vez muito inquieta e alvoroçada, sem poder me recolher e em batalha e contenda, indo meu pensamento a coisas que não eram perfeitas — ainda não estava, me parece, com o desapego que devo — quando me vi assim tão ruim, tive medo de que as dádivas que o Senhor me havia feito eram ilusões. Estava, enfim, com uma escuridão grande na alma. Estando com essa pena, começou a falar comigo o Senhor e disse-me que não desanimasse, pois, vendo-me assim, entenderia a miséria que era se Ele se afastava de mim e que não havia segurança enquanto vivêssemos nesta carne. Fez-me entender quão bem empregada é esta guerra e contenda por tal prêmio, e pareceu-me que o Senhor tinha pena dos que vivemos no mundo. Mas que não pensasse eu que tinha sido esquecida, pois jamais me deixaria, mas que era preciso que eu fizesse o que estava a meu alcance fazer. Isso me disse o Senhor com uma piedade e um carinho, e com palavras em que me fazia muita dádiva e não há por que dizê-las.

21. Estas me disse o Senhor muitas vezes, mostrando-me grande amor: "Já és minha, e Eu sou teu". As que eu sempre tenho o costume de dizer e, ao que me parece, digo com verdade são: "Que me importa, Senhor, de mim, senão de Vós?". São para mim essas palavras e carinho tão enorme embaraço, quando me lembro de quem sou, que, como creio que disse outras vezes, e agora digo às vezes a meu confessor, mais coragem, me parece, é necessária para essas dádivas do que para passar por enormes provações.

Quando passa, fico quase esquecida das minhas obras, a não ser por um mostrar-se a mim que sou ruim, sem conhecimento discursivo, que também me parece às vezes sobrenatural.

22. Dá-me algumas vezes uma vontade de comungar tão grande que não sei se conseguiria exagerá-la. Aconteceu-me numa manhã em que chovia tanto que parecia que não dava para sair de casa. Estando eu fora dela, estava já tão fora de mim com aquele desejo que, ainda que me pusessem lanças no peito, passaria através delas, quanto mais água. Quando cheguei à igreja, deu-me um arrebatamento grande. Pareceu-me ver abrir-se os céus. Não uma entrada como de outras vezes tinha visto. Mostrou-se-me o trono que disse ao senhor que vi outras vezes, e outro em cima dele, onde, por uma noção que não sei dizer, ainda que não tenha visto, percebi estar a Divindade. Parecia-me que o sustentavam uns animais. Parece-me que ouvi uma descrição desses animais. Pensei que talvez fossem os evangelistas. Mas como era o trono, e quem estava nele eu não vi, só uma grande multidão de anjos. Pareceram-me, sem comparação, de muito maior beleza do que os que vi no céu. Pensei se eram serafins ou querubins, porque são muito diferentes no esplendor, que parecia ter chamas. É grande a diferença, como disse. E a glória que senti em mim então não se pode descrever nem mesmo dizer, nem poderá pensar nela quem não tiver passado por isso.

Percebi estar ali tudo o que se pode desejar junto, e não vi nada. Disseram-me, e não sei quem, que o que ali eu poderia fazer era entender que não podia entender nada e ver o nada que era tudo em comparação com aquilo. É assim que se envergonhava minha alma depois de ver que poderia se deter em alguma coisa criada, quanto mais apegar-se a ela, porque tudo me parecia um formigueiro.

23. Comunguei e fiquei na missa. Não sei como consegui. Pareceu-me que tinha sido muito pouco tempo. Assustei-me quando bateu o relógio e vi que tinha passado ali duas horas naquele arrebatamento e glória. Espantava-me, depois, como, tendo me aproximado desse fogo que parece que vem de cima, de verdadeiro amor de Deus, porque por mais que queira e se desfaça por ele, se não for quando Sua Majestade quer, como disse outras vezes, não contribuo em nada para ter nem uma centelha dele, parece que consome o homem velho de faltas e tibieza e miséria e, da maneira como faz a ave fênix — segundo li — e da própria cinza, depois que se queima, sai outra, assim fica outra a alma depois. Com desejos diferentes e grande fortaleza. Não parece ser a de antes, mas começa com nova pureza o caminho do Senhor. Suplicando eu a Sua Majestade que fosse assim, e que de novo começasse a servi-lo, me disse: "Boa comparação fizeste. Veja que não te esqueças dela para tentar melhorar-te sempre".

24. Estando uma vez com a mesma dúvida que disse há pouco, se eram essas visões de Deus, me apareceu o Senhor e me disse com severidade: "Oh, filhos dos homens, até quando sereis duros de coração?". Disse que examinasse bem em mim uma coisa: se tinha me dado totalmente a Ele ou não. Pois se tivesse e fosse d'Ele que cresse que não me deixaria perder.

Eu desanimei muito com aquela exclamação. Com grande carinho e ternura voltou a me dizer que não desanimasse, pois já sabia que, por mim, não deixaria de me dispor a tudo que fosse seu serviço. Que se realizaria tudo o que eu queria e assim se fez o que então eu suplicava. Que visse o amor que ia aumentando em mim a cada dia para amá-lo, pois nisso veria não ser o demônio. Que não pensasse que o Senhor permitia que tivesse tanta influência nas almas de seus servos, e que "te pudesse dar a clareza de entendimento e a quietude que tens". Fez-me entender que, tendo dito tantas e tais pessoas que era Deus, faria mal em não acreditar.

25. Estando uma vez a rezar o salmo do "Quincunque vul",8 me foi dado entender a maneira como era um só Deus e três Pessoas tão claramente que me assustei e consolei muito. Foi de enorme proveito para conhecer mais a grandeza de Deus e suas maravilhas e para quando penso ou se fala da Santíssima Trindade, parece que entendo como pode ser e é para mim grande alegria.

26. Em um dia da Assunção da Rainha dos Anjos e Senhora nossa, quis o Senhor fazer-me esta dádiva. Em um arrebatamento me foram mostradas sua subida ao céu e a alegria e solenidade com que foi recebida e o lugar onde está. Dizer como foi isso eu não saberia. Foi enorme a glória que meu espírito teve por ver tanta glória. Fiquei com grandes efeitos e me foi de grande proveito para fazer-me desejar mais passar por grandes provações. E ficou-me um grande desejo de servir a essa Senhora, que tanto o mereceu.

27. Estando em um colégio da Companhia de Jesus,9 e estando a comungar os irmãos daquela casa, vi um pálio muito bonito sobre suas cabeças. Vi isso duas vezes. Quando outras pessoas comungavam, não o via.

CAPÍTULO 40

PROSSEGUE NA MESMA MATÉRIA DE DIZER AS GRANDES DÁDIVAS QUE O SENHOR LHE FEZ. DE ALGUMAS SE PODE TIRAR MUITO BOA DOUTRINA, POIS ESSE FOI, SEGUNDO DISSE, SEU PRINCIPAL INTENTO, DEPOIS DE OBEDECER: EXPOR AS QUE SÃO DE PROVEITO PARA AS ALMAS. COM ESTE CAPÍTULO ACABA O RELATO DE SUA VIDA QUE ESCREVEU. SEJA PARA A GLÓRIA DO SENHOR, AMÉM

1. Estando uma vez em oração, era tanto o deleite que sentia em mim que, como sou indigna de tal bem, comecei a pensar em como merecia mais estar no lugar que tinha visto estar preparado para mim no inferno, pois — como já disse — nunca esqueço a maneira como me vi ali. Começou, com essa consideração, minha alma a inflamar-se mais e veio um arrebatamento de espírito de tipo que eu não sei dizer. Pareceu-me estar metida e cheia daquela majestade que percebi outras vezes. Nessa majestade me foi dado entender uma verdade, que é a completude de todas as verdades. Não sei dizer como, porque não vi nada. Disseram-me, sem que eu visse quem, mas percebi bem ser a própria Verdade: "Não é pouco isso que faço por ti, pois é uma das coisas em que muito me deves. Porque todo o dano que vem ao mundo é por não conhecer as verdades da Escritura com verdade clara. Não passará um til dela".

A mim me pareceu que eu sempre havia acreditado nisso e que todos os fiéis acreditavam. Disse-me: "Ai, filha, como são poucos os que me amam com verdade! Pois se me amassem não esconderia deles meus segredos. Sabes o que é amar-me de verdade? Entender que o que não é agradável a mim é tudo mentira. Com clareza verás isso, que agora não entendes como é benéfico para a tua alma".

2. E assim vi, seja o Senhor louvado. Porque o que vejo por aqui que não vai dirigido ao serviço de Deus me parece tanta vaidade e mentira que eu não saberia dizer como percebo isso, nem a pena que tenho dos que vejo estar na escuridão quanto a essa verdade. E há, junto com isso, outros lucros que direi aqui e muitos não saberei dizer. Disse-me o Senhor aí uma palavra de enorme favor. Eu não sei como foi isso, porque não via nada. Mas fiquei de um modo que tampouco sei dizer, com enorme fortaleza, e muito de verdade, para cumprir com todas as minhas forças a menor parte da Escritura divina. Parece-me que nada apareceria na minha frente que eu não enfrentasse.

3. Ficou-me uma verdade esculpida dessa divina Verdade que se mostrou a mim, sem saber como nem o que. Ela me faz ter uma nova reverência a Deus, porque dá noção de sua majestade e poder de uma maneira que não se pode dizer: sei entender que é uma grande coisa. Ficou-me uma muito grande vontade de não falar senão de coisas muito verdadeiras, que vão à frente do que por aqui no mundo se conversa e, assim, comecei a ter tristeza de viver nele. Deixou-me uma grande ternura, e carinho e humildade. Parece-me que, sem eu entender como, aí me deu o Senhor muito.

Não fiquei com nenhuma suspeita de que fosse ilusão. Não vi nada, mas entendi o grande bem que há em não fazer caso de coisa que não seja para nos aproximar mais de Deus. E assim entendi o que é andar uma alma em verdade diante da própria Verdade. Isso que entendi é dar-me o Senhor a entender que Ele é a própria Verdade.

4. Tudo o que disse, algumas vezes entendi falando Ele comigo, e outras sem falar, com maior clareza do que algumas coisas que me eram ditas por palavras. Entendi enormes verdades sobre essa Verdade. Mais do que se muitos letrados me tivessem ensinado. Parece-me que de maneira nenhuma me poderiam fazer gravar assim, nem tão claramente me seria dado entender a vaidade deste mundo. Essa verdade que digo que me foi dado entender é em si mesma verdade. E é sem princípio nem fim, e todas as demais verdades dependem dessa verdade, como todos os demais amores, desse amor, e todas as demais grandezas, dessa grandeza, ainda que isso esteja dito de modo obscuro para a clareza com que o Senhor quis que a mim se desse a entender. E como se mostra o poder dessa Majestade, já que em tão pouco tempo deixa tão grande lucro e tais coisas gravadas na alma!

Oh, grandeza e majestade minha! Que fazeis, Senhor todo-poderoso? Olhai a quem fazeis tão supremas dádivas! Não vos lembrais de que esta alma foi um abismo de mentiras e um oceano de vaidades, e tudo por minha culpa, pois, apesar de me haverdes dado por natureza repúdio à mentira, eu mesma me fiz falar mentira em muitas coisas? Como se aguenta, Deus meu, como se coaduna tão grande favor e dádiva com quem tão mal os mereceu?

5. Estando uma vez rezando as Horas com todas as irmãs, de repente se recolheu minha alma e pareceu-me ser toda um espelho claro, sem ter molduras nem lado, nem alto nem baixo que não estivesse clara, e no centro dela me foi mostrado Cristo nosso Senhor, como costumo vê-lo. Parecia que em todas as partes de minha alma eu o via claramente como em um espelho, e também esse espelho — não sei dizer como — estava esculpido todo no próprio Senhor por uma comunicação que não saberei dizer, muito amorosa. Sei que essa visão me foi de grande proveito, a cada vez que me lembro, especialmente quando acabei de comungar.

Foi-me dado entender que estar uma alma em pecado mortal é cobrir esse espelho com uma grande névoa e ficar muito negro, e, assim, não se pode mostrar nem ver esse Senhor, ainda que esteja sempre presente dando-nos o ser. E entre os hereges é como se o espelho fosse quebrado, porque é muito pior do que escurecido. É muito diferente a maneira como se vê do que se diz, porque mal se pode explicar. Mas foi de grande proveito para mim e grande pena das vezes que, com minhas culpas, escureci minha alma para não ver esse Senhor.

6. Pareceu-me proveitosa essa visão para pessoas de recolhimento, para ensinar a meditar no Senhor no mais interior de sua alma, pois é meditação que mais se apega e mais frutífera do que ir buscar Deus fora de si — como falei outras vezes — e em alguns livros está escrito. Especialmente o diz o glorioso Santo Agostinho,1 pois nem nas praças, nem nas alegrias, nem em nenhuma parte onde o procurava o encontrava como o encontrava dentro de si. E é muito claro que isso é melhor, e não é preciso ir ao céu, nem mais longe do que nós mesmos, porque de outro jeito cansa o espírito e distrai a alma e não com tanto fruto.

7. Uma coisa quero avisar aqui, no caso de alguém a ter. É que acontece um grande arrebatamento que, passado aquele período em que a alma está em união, em que mantém as potências totalmente absorvidas, e isso dura pouco, como já disse, fica a alma recolhida e até no exterior não consegue voltar a si, mas ficam as duas potências, memória e inteligência, quase num frenesi, muito desatinadas.

Isso eu digo que acontece às vezes, especialmente no início. Penso que talvez isso proceda de nossa fraqueza natural não poder aguentar tanta força de espírito e enfraquece a imaginação. Sei que acontece a algumas pessoas. Acharia bom que se forçassem a deixar, por então, a oração e recuperassem em outro tempo aquilo que perdem. Que não seja junto, porque poderá vir a ser muito mal. E eu tenho experiência disso e de quão acertado é ver de quanto é capaz nossa saúde.

8. Em tudo isso é necessário experiência e um mestre, porque, chegando a alma a esse ponto, muitas coisas se apresentarão sobre as quais é necessário alguém com quem conversar. E se, procurando, não encontrar alguém, o Senhor não faltará, já que não faltou a mim, sendo eu quem sou. Porque creio que há poucos que tenham chegado à experiência de tantas coisas. E se não a tiver, será demais dar remédio sem se inquietar e afligir. Mas isso também o Senhor levará em conta e por isso é melhor conversar — como já disse outras vezes. Mesmo o que digo agora já disse outras vezes, mas não me lembro bem e vejo que é muito importante. Especialmente se forem mulheres, é bom conversar com seu confessor e que seja o confessor um mestre. E há muito mais mulheres do que homens a quem o Senhor faz essas dádivas, e isso ouvi do santo frei Pedro de Alcântara — e também vi eu mesma —, pois dizia que aproveitavam muito mais desse caminho do que os homens. E dava para isso excelentes explicações, mas não há por que dizê-las aqui, todas a favor das mulheres.

9. Estando uma vez em oração, mostrou-se a mim muito rapidamente como se veem em Deus todas as coisas e como as tem todas em si. Foi sem que eu visse uma coisa formada, mas foi com toda a clareza. Saber escrever sobre isso não sei, mas ficou muito gravado na minha alma e é uma das grandes dádivas que o Senhor me fez e das que mais me fizeram embaraçar-me e envergonhar-me, lembrando-me dos pecados que cometi. Creio, se o Senhor tivesse querido que visse isso em outro tempo, e se os que o ofendem vissem, que não teriam coragem nem atrevimento para fazê-lo. Pareceu-me, digo já sem poder me firmar em nada, que não vi nada. Mas algo se deve ver, já que eu poderei fazer uma comparação. Mas é por um modo tão sutil e delicado que o entendimento não deve ser capaz de alcançar. Ou eu não sei me entender nessas visões que não parecem imaginárias e em algumas delas algo de imagem deve haver. Mas como ocorrem no arrebatamento, as potências não sabem depois dar forma ao modo como o Senhor mostra algo ali e quer que desfrutemos.

10. Digamos ser a Divindade como um diamante muito claro, muito maior que o mundo todo, ou um espelho, à maneira do que falei da alma na outra visão. Só que é de uma forma tão mais elevada que eu não saberei dar o devido valor. E tudo o que fazemos se vê nesse diamante, sendo de uma maneira que ele encerra tudo em si, porque não há nada que saia fora dessa grandeza.

Coisa espantosa foi para mim em tão breve tempo ver tantas coisas juntas aí nesse claro diamante. E tristíssima, cada vez que me lembro de ver que coisas tão feias se mostravam naquela limpeza de claridade, como eram os meus pecados. E assim é que, quando me lembro, eu não sei como consigo levar. E fiquei então tão envergonhada que não sabia onde me enfiar. Oh, se alguém pudesse fazer entender isso os que cometem pecados muito feios e desonestos! Para que se lembrem de que não são ocultos, e que com razão se incomoda Deus, uma vez que acontecem tão na presença de Sua Majestade e tão desrespeitosamente nos comportamos diante d'Ele!

Vi bem o quanto se merece o inferno por uma só culpa mortal. Porque não se pode entender quão enormemente grave coisa é praticá-la diante de tão grande Majestade. E quão distante de quem Ele é são essas coisas. E assim se vê melhor sua misericórdia, já que sabendo nós tudo isso, Ele nos suporta.

11. Fez-me considerar: se uma coisa como essa deixa assim assustada a alma, o que será no dia do juízo, quando essa Majestade claramente se revelará e veremos as ofensas que fizemos?

Oh, valha-me Deus, que cegueira essa que venho carregando! Muitas vezes me espantei com isso que escrevi, e não se espante o senhor senão com que vivo vendo essas coisas e olhando para mim. Seja bendito para sempre quem tanto me tolerou.

12. Estando uma vez em oração com muito recolhimento e suavidade e quietude, parecia-me estar rodeada de anjos e muito perto de Deus. Comecei a suplicar a Sua Majestade pela Igreja. Fez-me entender o grande proveito que faria uma ordem nos últimos tempos com a fortaleza que os membros dela sustentarão a fé.2

13. Estando uma vez a rezar perto do Santíssimo Sacramento, apareceu-me um santo cuja ordem3 tem estado um pouco caída. Tinha nas mãos um livro grande. Abriu-o e disse-me que lesse umas letras que eram grandes e muito legíveis. E diziam assim: "Nos tempos vindouros florescerá esta ordem. Haverá muitos mártires".

14. De outra vez, estando em Matinas no coro, se apresentaram e puseram-se diante de mim seis ou sete, me parece que seriam, dessa mesma ordem, com espadas nas mãos. Penso que com isso se dá a entender que defenderão a fé. Porque de outra vez, estando em oração, meu espírito foi arrebatado: pareceu-me estar em um grande campo, onde muitos combatiam, e esses dessa ordem pelejavam com grande fervor. Tinham os rostos bonitos e muito ardentes, e derrubavam muitos no solo, vencidos, a outros, matavam. Parecia-me, essa batalha, contra os hereges.

15. A esse glorioso santo vi algumas vezes e me disse algumas coisas e agradeceu-me a oração que faço por sua ordem, prometendo-me encomendar-me ao Senhor. Não nomeio as Ordens: se o Senhor quiser que se saiba, dirá, para que não se ofendam as outras. Mas cada ordem devia procurar, ou cada um dentro delas por si, que por seu meio o Senhor fizesse tão feliz sua ordem que, em tão grande necessidade como agora tem a Igreja, servissem a Ele. Felizes as vidas que se acabarem nisso!4

16. Pediu-me uma pessoa uma vez que suplicasse a Deus para que lhe desse a entender se seria serviço a Ele aceitar um episcopado. Disse-me o Senhor, tendo eu acabado de comungar: "Quando entender com toda a verdade e clareza que a verdadeira soberania é não possuir nada, então poderá aceitar",5 dando a entender que deve estar muito longe de desejar ou querer quem tiver que aceitar prelazias. Ou ao menos deve estar longe de procurá-las.

17. Essas dádivas e outras muitas fez o Senhor, e faz muito continuamente a esta pecadora, que me parece que não há razão para contar. Pelo que foi dito, então, pode-se entender minha alma e o espírito que o Senhor me deu. Seja bendito para sempre, que tanto cuidado teve comigo.

18. Disse-me uma vez, consolando-me, que não desanimasse — isso com muito amor —, pois nesta vida não poderíamos estar sempre em um ser. Disse-me que umas vezes eu teria fervor, outras, estaria sem ele. Umas com desassossegos, outras com quietude e tentações, mas que esperasse nele e não tivesse medo.

19. Estava um dia pensando se seria apego alegrar-me com quem converso sobre minha alma e ter amor a eles e aos que vejo ser muito servos de Deus, pois me consolava com eles. Disse-me que, se a um doente que está em perigo de morte parecer que um médico lhe dá a saúde, não será virtude deixar de agradecer a ele e deixar de amá-lo. Que teria feito, se não fosse por essas pessoas? Que a conversa com os bons não causava dano, mas que sempre fossem minhas palavras sensatas e santas, e que não deixasse de conversar com eles, pois seria antes proveito que dano. Consolou-me muito isso, porque às vezes, parecendo-me que era apego, queria não conversar com eles de todo. Sempre, em todas as coisas, me aconselhava esse Senhor, até para dizer-me como devia lidar com os fracos e com algumas pessoas. Jamais se descuida de mim.

20. Às vezes estou desanimada de ver-me tão pouco a serviço d'Ele e de ver que forçosamente terei que gastar tempo com corpo tão fraco e ruim como o meu, mais do que eu quereria.

Estava uma vez em oração e veio a hora de ir dormir. Eu estava com muitas dores e precisava vomitar muito frequentemente. Quando me vi tão amarrada a mim, e o espírito querendo tempo para si, vi-me tão desanimada que comecei a chorar muito e afligir-me. Isso não foi uma vez só, mas — como ia dizendo — muitas. E me parece que me dava um desgosto contra mim mesma, de modo que naquelas ocasiões eu me repugnava. Mas o normal é entender que não tenho repugnância por mim mesma, nem falto ao que vejo que me é necessário. E queira o Senhor que eu não tome muito mais do que é preciso, pois isso é bem capaz que eu faça.

Dessa vez que ia dizendo, estando nessa tristeza, apareceu-me o Senhor e me agradou muito, e me disse que fizesse essas coisas por amor a Ele e que passasse por elas, pois minha vida era agora necessária. E, assim, me parece que nunca me vi em tristeza depois que fiquei determinada a servir com todas as minhas forças a esse Senhor e consolador meu, que, ainda que me deixasse padecer um pouco, não deixava de me consolar, de maneira que não faço nada demais por desejar provações. E, assim, agora não me parece que haja para o que viver, senão para isso e é o que com mais vontade peço a Deus. Digo-lhe, às vezes, com toda a vontade: "Senhor, ou morrer ou sofrer, não vos peço outra coisa para mim". Dá-me consolo ouvir o relógio porque me parece que me aproximo um pouquinho mais de ver Deus porque vejo ter passado mais aquela hora da minha vida.

21. De outras vezes estou de uma maneira que nem me sinto viver nem me parece que tenho vontade de morrer, a não ser com uma tibieza e uma escuridão em tudo. Como disse que tenho muitas vezes em grandes provações. O Senhor quis se soubessem publicamente essas dádivas que Sua Majestade me faz, como me disse, já há alguns anos que haveria de fazer. Desanimei muito com isso e até agora não foi pouco o que passei, como o senhor sabe, porque cada um o interpreta como lhe parece. Foi um consolo para mim não ter sido por minha culpa que elas se tornaram conhecidas. Porque ao não dizer senão a meus confessores ou a pessoas que sabia que por eles sabiam, tive grande cuidado, em extremo. E não por humildade, mas porque — como já disse — até aos próprios confessores me incomodava dizer. Já agora, glória a Deus, ainda que muito murmurem, e com bom zelo, e outros tenham medo de conversar comigo e até ouvir minha confissão, e outros me digam muitas coisas, como entendo que por esse meio quis o Senhor remediar muitas almas, porque vi muito claramente e me recordo do muito que por uma só alma passaria o Senhor, muito pouco me importa tudo. Não sei se contribui para isso ter Sua Majestade me enfiado nesse lugarzinho tão fechado, e onde pensei que, como uma coisa morta, já não houvesse lembrança de mim. Mas não foi tanto como teria querido, pois tenho que forçosamente falar com algumas pessoas. Mas como não estou onde me vejam, parece que o Senhor já houve por bem lançar-me a um porto, que, espero em Sua Majestade, será seguro, por estar já fora do mundo e entre pouca e santa companhia. Olho como se de cima e importa-me já bem pouco que digam ou que saibam.

22. Daria mais importância a que se aproveite um pouquinho uma alma, que a tudo que se possa dizer de mim. Pois, desde que estou aqui, quis o Senhor que todos os meus desejos parem nisso. E deu-me um jeito de sonho na vida, que quase sempre parece que estou sonhando o que vejo: nem alegria nem tristeza, que seja muita, vejo em mim. Se alguma dessas me dá algumas coisas, passa com tanta rapidez que eu me maravilho, e deixa a sensação de uma coisa com que se sonhou. E isso é a inteira verdade, porque ainda que depois eu queira me alegrar com aquele contentamento, ou pesar-me com aquela tristeza, não está em minhas mãos. Mas é como seria para uma pessoa sensata ter tristeza ou alegria por um sonho que sonhou. Porque o Senhor já despertou minha alma daquilo que, por não estar eu mortificada nem morta para as coisas do mundo, me havia causado sentimentos, e não quer o Senhor que eu me torne a cegar.

23. Dessa maneira vivo agora, senhor e padre meu. Suplique o senhor a Deus que, ou me leve consigo, ou me dê como lhe sirva. Queira Sua Majestade que isto que aqui está escrito seja de algum proveito para o senhor, pois, por causa do pouco tempo, foi trabalhoso. Mais feliz seria o trabalho se eu tiver acertado em dizer algo pelo que se louve, mesmo que só uma vez, o Senhor, pois com isso me daria por paga, ainda que o senhor logo queime esse escrito.

Não quereria que fosse sem que o vissem três pessoas que o senhor sabe, já que foram e são meus confessores. Porque, se estiver mal, é bom que percam a boa opinião que têm de mim. Se estiver bom, são bons e letrados, sei que verão de onde vem e louvarão a quem o fez por mim.

Sua Majestade mantenha sempre o senhor em sua mão e faça do senhor um tão grande santo que com seu espírito o senhor ilumine esta miserável pouco humilde e muito atrevida que ousou decidir escrever coisas tão elevadas.

Queira o Senhor que eu não tenha errado nisso, tendo a intenção e o desejo de acertar e obedecer, e que por mim se louve algo o Senhor, que é o que há muitos anos suplico. E como me faltam para isso as obras, atrevi-me a compor essa minha disparatada vida, ainda que não gastando nela mais cuidado ou tempo do que o necessário para escrevê-la, mas sim expondo o que se passou comigo com toda a simplicidade e verdade que pude.

Queira o Senhor, pois é poderoso, e se quer, pode, queira que em tudo acerte eu a fazer sua vontade, e não permita que se perca esta alma que com tantos artifícios e maneiras e tantas vezes tirou Sua Majestade do inferno e atraiu para si. Amém.

EPÍLOGO1

JHS

1. O Espírito Santo esteja sempre com o senhor, amém. Não seria mal exagerar este serviço que prestei ao senhor para obrigá-lo a ter muita preocupação em encomendar-me a nosso Senhor. Pelo que passei em ver-me descrita e trazer à memória tantas misérias minhas, bem poderia. Ainda que, com verdade, possa dizer que senti mais por escrever as dádivas que o Senhor me fez do que as ofensas que eu fiz à Sua Majestade.

2. Eu fiz o que o senhor me mandou ao estender-me, na condição que o senhor faça o que me prometeu de rasgar o que lhe parecer ruim.

3. Não havia terminado de lê-lo depois de escrito, quando o senhor mandou buscá-lo. Pode ser que algumas coisas estejam mal explicadas e outras expostas duas vezes, porque foi tão pouco tempo que tive que não podia voltar para ver o que escrevia. Suplico ao senhor que o corrija e mande copiar — se for para ser levado ao padre mestre de Ávila2 —, porque alguém poderia reconhecer a letra.

4. Eu desejo muito que se faça com que ele leia, já que com esse intento comecei a escrevê-lo. Porque, se parecer a ele que vou por bom caminho, ficarei muito consolada, pois já não resta nada para fazer que esteja em minhas mãos. Em tudo faça o senhor como lhe parecer melhor e veja que está obrigado a quem assim lhe confia sua alma. A do senhor eu encomendarei eu por toda a vida a nosso Senhor. Por isso, apresse-se em servir à Sua Majestade para fazer dádiva a mim, já que o senhor verá, pelo que vai aqui, quão bem se emprega em dar-se por inteiro — como o senhor começou a fazer — a quem tão sem medida se dá a nós. Seja bendito para sempre, e espero em sua misericórdia que nos veremos onde mais claramente o senhor e eu vejamos as grandezas que fez conosco e para sempre e sempre o louvemos, amém.

Acabou-se este livro em junho do ano de 1562.

Por esta data se entende a primeira vez que escreveu madre Teresa de Jesus, sem divisão em capítulos. Depois fez esta cópia e acrescentou muitas coisas que aconteceram depois dessa data, como a fundação do mosteiro de São José de Ávila, como aparece na folha 169.3

Frei Domingo Báñez

Notas

Vida da madre Teresa de Jesus escrita por sua própria mão, com uma aprovação do padre M. Fr. Domingo Báñez, seu confessor e catedrático em Salamanca.

1 Título adicionado ao manuscrito de Santa Teresa, que não pôs nenhum título em sua obra.

2 O padre García de Toledo.

3 Título da primeira edição, de 1588, preparada por frei Luis de León e editada por Guillermo Foquel.

CAPÍTULO 1

1 Alonso Sánchez de Cepeda.

2 A segunda mulher de Sánchez, Beatriz de Ahumada.

3 Rodrigo, na verdade quatro anos mais velho do que ela.

4 Beatriz de Ahumada morreu poucos meses depois de novembro de 1528, data de seu testamento. Santa Teresa nasceu em 28 de março de 1515 e tinha, portanto, treze ou catorze anos.

CAPÍTULO 2

1 María de Cepeda, filha do primeiro casamento de Alonso de Cepeda com Catalina del Peso y Henao, nascida em 1506.

2 O mosteiro de monjas agostinianas Santa María de Gracia, fora dos muros da cidade de Ávila.

3 María, meia-irmã de Santa Teresa, casada com Martín de Guzmán y Barrientos em 1531.

4 María de Briceño y Contreras (1498-1584), à época mestra das moças de piso, como se chamavam as leigas que viviam no convento, como Santa Teresa.

CAPÍTULO 3

1 Evangelho segundo São Mateus, capítulo 20, versículo 16.

2 Juana Suárez ou Juárez, monja do Convento das Carmelitas da Encarnação de Ávila.

3 María, casada com Martín de Guzmán y Barrientos, morava em Castellanos de la Cañada.

4 Pedro Sánchez de Cepeda, morador da aldeia de Hortigosa.

5 Havia uma tradução em espanhol, de Juan de Molina, editada em 1532.

CAPÍTULO 4

1 Antonio de Ahumada, que foi frade dominicano por algum tempo, ou o meio-irmão Juan de Ahumada (segundo a BAC).

2 Em 2 de novembro de 1536, aos 21 anos, no Mosteiro da Encarnação de Ávila. Santa Teresa havia entrado no convento, depois de fugir de casa, exatamente um ano antes.

3 A solução para esse período inteiro que traduzimos é a de frei Luis de León para a primeira edição do Livro da vida, de 1588, seguida pela maioria dos editores posteriores. Apenas pusemos como última sentença do período o que Luis de León pôs entre parênteses no meio da frase anterior. O sentido parece ser: quando se quer fazer alguma coisa que seja ligada a Deus, Ele põe um pouco de medo na pessoa antes de ela começar para que, começando e levando a cabo aquilo a que se propôs, o prêmio dado por Deus seja maior e mais pleno de gozo.

4 Becedas, um lugarejo da província de Ávila a cerca de quinze quilômetros da capital.

5 Isto é, professa, e não noviça, como Santa Teresa.

6 Na verdade, Tercera parte del libro llamado abecedario espiritual, do franciscano Francisco de Osuna, publicado pela primeira vez em 1527.

7 Da Paixão de Cristo.

CAPÍTULO 5

1 Chamava-se Pedro Hernández.

2 Padre Vicente Barrón, teólogo dominicano que foi confessor do pai de Santa Teresa.

3 O padre Hernández.

4 Los morales de san Gregorio, papa, doctor de la Iglesia; tradução espanhola de Alonso Álvarez de Toledo, publicada em Sevilha em 1514 e 1527.

CAPÍTULO 6

1 No léxico médico espanhol do século XVI, febres quartãs duplas eram as que se repetiam dois dias com um de intervalo.

2 Murmuração, no sentido de reclamar ou se queixar em voz quase inaudível, para si mesmo, tem um significado religioso profundo. É um pecado contra a Providência Divina porque revela insatisfação com as situações dadas por Deus. A fonte é Números, capítulo 14, versículo 27, trecho em que D us, falando a Moisés sobre os judeus que se queixam das condições duras da travessia do deserto, diz: "Até quando murmurará contra mim essa péssima multidão?".

3 Santa Teresa usa normalmente a forma culta espanhola amicísima, mas usa também esse e vários outros vulgarismos ao longo do livro.

4 Epístola de São Paulo aos gálatas, capítulo 2, versículo 20.

CAPÍTULO 7

1 Antiga no mosteiro, isto é, já com os votos perpétuos.

2 Alonso de Ahumada morreu em 24 de dezembro de 1543.

3 O padre Vicente Barrón.

4 O padre García de Toledo, a quem se dirigia o manuscrito em um dos estágios de sua redação.

CAPÍTULO 8

1 "Que Ele não pagasse" (que no se lo pagase, no original espanhol) foi acrescentado por frei Luis de León para a primeira edição (1588). Há quem acredite que a frase teria um sentido sem o acréscimo. Significaria algo como: "Ninguém toma Deus como amigo, mas há que se aproximar dele com a oração e a perseverança".

2 O padre Domingo Báñez adicionou um "no" (não) nessa frase, que ficou: "Como é certo que suportais aqueles que não suportam que estejais com eles!". Vários editores adotam a interpolação do padre Báñez, mas a primeira frase é plenamente compreensível e não há por que pensar que Santa Teresa não tenha querido dizer o que disse nela.

CAPÍTULO 9

1 Santa Teresa alude à tradição popular do catolicismo que identifica Maria Madalena à mulher anônima que lava os pés de Jesus com suas lágrimas no Evangelho segundo São Lucas, capítulo 7, versículos 36 a 50, e no Evangelho segundo São Mateus, capítulo 26, versículos 6 a 13.

2 Santa Teresa alude à cena dos Evangelhos em que Jesus reza solitário no Horto das Oliveiras, local em que foi preso dando início à sua Paixão.

CAPÍTULO 10

1 O padre García de Toledo.

CAPÍTULO 11

1 O padre Pedro Ibáñez, segundo anotação do padre Gracián à margem de seu exemplar do livro. A maioria dos estudiosos contemporâneos, no entanto, crê que Santa Teresa se refere aqui ao padre García de Toledo, seu confessor.

2 Santa Teresa usa nessa frase a segunda pessoa do singular, forma coloquial de tratamento em sua época. Não se dirige, portanto, a nenhum dos padres aos quais endereçou o manuscrito, a quem trata sempre de "vuestra merced", tratamento formal equivalente ao "senhor" do português do Brasil de hoje.

3 Refere-se à epístola no 22 de São Jerônimo, a Eustóquio, em que o santo recorda seus sofrimentos ao lembrar dos prazeres da vida em sua solidão no deserto. Santa Teresa pode ter lido a edição das cartas de São Jerônimo feita em Sevilha em 1532.

4 Segundo a tradição dos padres da Igreja, interpretando Isaías, capítulo 14, versículos 12 a 14, Lúcifer, criado por Deus na forma de anjo, foi precipitado do céu e se tornou o príncipe dos demônios por se recusar, orgulhoso de sua natureza superior de anjo, a servir ao homem por ordem de Deus.

5 Evangelho segundo são Mateus, capítulo 11, versículo 30.

CAPÍTULO 12

1 Do franciscano Alonso de Madri, publicado pela primeira vez em Sevilha em 1521.

CAPÍTULO 13

1 Epístola de São Paulo aos filipenses, capítulo 4, versículo 13.

2 Santo Agostinho, Confissões, capítulo XXIX.

3 Evangelho segundo São Mateus, capítulo 14, versículo 30.

4 María de San Pablo, Ana de los Angeles e María de Cepeda, segundo anotação do padre Gracián.

CAPÍTULO 14

1 O Convento de São José de Ávila, cuja fundação, em 24 de agosto de 1562, será narrada mais adiante.

2 Provérbios, capítulo 8, versículo 31.

3 Salmo 88, versículo 1.

CAPÍTULO 15

1 Evangelho segundo São Mateus, capítulo 17, versículo 4.

2 Êxodo, capítulo 16, versículo 3: "Os filhos de Israel disseram-lhe: 'Antes fôssemos mortos pela mão de Iaweh na terra do Egito, quando estávamos sentados junto à panela de carne e comíamos pão com fartura'" (trad. Bíblia de Jerusalém).

3 Evangelho segundo São Lucas, capítulo 18, versículo 13.

CAPÍTULO 16

1 Refere-se às parábolas em que se conta da mulher que achou uma ovelha perdida e chama as amigas para celebrar, e outra que encontra uma moeda que perdera e chama as vizinhas para comemorar. Evangelho segundo São Lucas, capítulo 15, versículos 6 e 9.

2 Provável alusão a ela mesma e talvez também a São João da Cruz.

3 Santa Teresa, os padres Domingo Báñez, Gaspar Daza, Francisco de Salcedo, mais uma de três pessoas: o padre García de Toledo, o padre Ibáñez ou Guiomar de Ulloa.

CAPÍTULO 17

1 Santa Teresa dirige-se aos padres a quem endereça seu manuscrito.

2 Referência à passagem evangélica sobre Maria e Marta, irmãs de Lázaro que Jesus visita. Maria fica junto de Jesus escutando-o, enquanto Marta cuida dos afazeres que a recepção de seu hóspede acarreta.

3 Santa Teresa alude à história de Jacó que, para se casar com Raquel, serviu Labão, pai dela, por sete anos. Ao cabo do tempo combinado, foi-lhe dada a mão de Lia. Jacó teve que prometer trabalhar mais sete anos para se casar com Raquel. Gênesis, capítulo 29, versículos 15 a 30.

4 As concordâncias de Santa Teresa são idiossincráticas e muito frequentemente desrespeitam a gramática. A maior parte delas foi regularizada na tradução em benefício da fluência da leitura. Neste caso, no entanto, o pronome singular aplicado a "gozo e deleite" parece claramente indicar que Santa Teresa está usando os dois substantivos para designar uma única sensação que seria um misto dos dois.

CAPÍTULO 18

1 Referência ao Salmo 91, versículo 6, e Salmo 103, versículo 24.

2 O padre Vicente Barrón, segundo nota do padre Gracián.

CAPÍTULO 19

1 Referência ao Salmo 118, versículo 137: "Justus es, Domine, et rectum iudicium tuum" (Sois justo, Senhor, e retos, os vossos juízos).

2 Frei Vicente Barrón.

CAPÍTULO 20

1 Esta frase está escrita à margem do manuscrito. Frei Luis de León não a incluiu em sua edição.

2 Novamente Santa Teresa não se dirige ao confessor a quem endereçou o manuscrito, a quem chama sempre de senhor.

3 Festa do santo a que estava dedicado o convento, são José.

4 O rei David, autor de salmos.

5 Salmo 101, versículo 8. O texto correto em latim é: "Vigilavi et factus sum sicut passer solitarius in tecto" (Velei e me tornei como o pardal solitário no telhado).

6 Salmo 41, versículo 4.

7 Gálatas, capítulo 6, versículo 14.

8 Ávila.

9 São Vicente Ferrer, Tractatus de Vita Spirituali, editado em tradução espanhola em 1510.

10 Salmo 54, versículo 7.

11 Salmo 142, versículo 2.

CAPÍTULO 21

1 Na morte de Filipe, o Belo, em 1506, viram-se esses sinais em Tudela, segundo relatos bem conhecidos na época de Santa Teresa.

2 Epístola aos romanos, capítulo 7, versículo 24.

3 O original espanhol asistentemente é, a partir do uso de Santa Teresa, uma palavra com sentido preciso no vocabulário místico e significa algo como "com o auxílio divino direto".

CAPÍTULO 22

1 Evangelho segundo São João, capítulo 16, versículo 7.

2 Evangelho segundo São Lucas, capítulo 10, versículo 42.

3 Evangelho segundo São Lucas, capítulo 5, versículo 8.

4 Alusão ao Evangelho segundo São Marcos, capítulo 10, versículos 29 e 30.

CAPÍTULO 23

1 Muitos casos de falsas visionárias haviam sido investigados pela Inquisição no tempo de Santa Teresa. O mais notável foi o de Magdalena de la Cruz, abadessa das clarissas de Córdoba, condenada por deliberadamente se fazer passar por visionária em 1541.

2 Mestre Gaspar Daza, padre de Ávila morto em 1592.

3 Francisco de Salcedo.

4 Mencia del Águila, parente distante de Santa Teresa.

5 Alonso Álvarez Dávila, casado com Mencia de Salazar.

6 Subida del monte Sión, do frei Bernardino de Laredo, de 1535.

7 Primeira epístola de São Paulo aos Coríntios, capítulo 10, versículo 13.

8 Padre Diego de Cetina (1531-72).

CAPÍTULO 24

1 São Francisco de Borja, comissário da Companhia de Jesus na Espanha. Propõem-se as datas de 1554 ou 1555 para a visita citada por Santa Teresa. São Francisco de Borja e são Pedro de Alcântara são os únicos contemporâneos de Santa Teresa que ela cita nominalmente.

2 Guiomar de Ulloa. Conheceu Santa Teresa por intermédio de uma irmã e de duas de suas filhas, professas no Convento da Encarnação de Ávila. Guiomar de Ulloa teve como diretor espiritual São João da Cruz e ajudou Santa Teresa em suas fundações. Também escreveu uma memória sobre Santa Teresa que serviu de base para a primeira biografia da santa, escrita pelo padre Francisco de Ribera em 1590.

3 Padre Juan de Prádanos (1528-97).

4 Hino da missa do dia de Pentecostes que pede a vinda e o auxílio do Espírito Santo.

CAPÍTULO 25

1 O confessor a quem Santa Teresa se refere parece ser o padre Prádanos, ou o padre Baltazar Álvarez. Os demais seriam Gonzalo de Aranda, Alonso Álvarez Dávila, o mestre Daza e Francisco Salcedo.

2 A expressão "Eu sou", nessa ordem, alude à maneira como Jesus falava de si e ecoa a expressão "Eu sou Aquele que Sou" usada por Deus ao responder a Moisés que nome devia usar para identificá-lo, em Gênesis, capítulo 3, versículo 14.

3 Evangelho segundo São Mateus, capítulo 8, versículo 26.

CAPÍTULO 26

1 O padre jesuíta Baltazar Álvarez (1533-80).

CAPÍTULO 27

1 Essa frase é um dos muitos exemplos de anacolutos de Santa Teresa. Frei Luis de León, em sua edição princeps, alterou a frase para: "Então, voltando ao relato de minha vida, estava com grande aflição...", acrescentando o verbo "estava". As boas edições modernas são fiéis ao manuscrito.

2 Essa visão deve ter se dado em 29 de junho, dia de são Pedro de 1560.

3 São Pedro de Alcântara (1499-1562) foi um reformador da Ordem de São Francisco. Orientou Santa Teresa na fundação do Convento de São José de Ávila.

4 Cantar dos Cantares, capítulo 6, versículo 9.

5 Alusão a Simão Cireneu, forçado pelos soldados romanos a carregar a cruz de Jesus, e às mulheres que choravam à passagem de Jesus rumo ao Calvário, como narrado no Evangelho de São Lucas, capítulo 23, versículos 26 a 28.

6 Dirige-se ao padre García de Toledo.

7 María Díaz, órfã que vivia na casa de Guiomar de Ulloa, onde conheceu Santa Teresa. Era discípula de São Pedro de Alcântara.

8 Laetatus sum in his qui dicta sunt mihi (Alegrei-me no que me foi dito), Salmo 121, versículo 1.

CAPÍTULO 28

1 Isto é, por meio de imagens.

2 Padre Baltazar Álvarez (1533-80). Foi confessor de Santa Teresa de 1559 a 1564.

CAPÍTULO 29

1 No capítulo 20.

2 Salmo 42, versículo 1: "Quemadmodum desiderat cervus ad fontes aquarum" (Como o cervo deseja as fontes das águas).

3 No capítulo 20.

CAPÍTULO 30

1 Guiomar de Ulloa, de quem se falou no capítulo 24.

2 Livro de Jó, capítulos 1 e 2.

3 Domine, da mihi aquam (Senhor, dá-me água). Evangelho segundo São João, capítulo 10, versículo 45.

CAPÍTULO 31

1 Atos no sentido de oração em que o fiel declara sua fé, seu arrependimento etc.

2 Festa de Finados.

3 Livro de orações que os religiosos têm que rezar em horas determinadas do dia.

4 Isto é, a festa da Santíssima Trindade, celebrada na liturgia católica no primeiro domingo depois de Pentecostes.

5 Possivelmente o Mosteiro da Encarnação, em Valência, fundado em 1502.

6 Parece tratar-se de sua irmã mais nova, Juana de Ahumada, que, com seu marido Juan de Ovalle, ajudou muito a Santa Teresa na fundação do Convento de São José de Ávila.

CAPÍTULO 32

1 O papa Eugênio IV deu a bula relaxando a regra da Ordem das Carmelitas em 15 de fevereiro de 1432.

2 María de Ocampo, filha de Diego de Cepeda, primo de Santa Teresa, e Beatriz de la Cruz. María de Ocampo tornou-se monja no Mosteiro de São José.

3 As integrantes do grupo de discípulas de Santa Teresa com quem ela conversava em sua cela no Mosteiro da Encarnação. Conhecem-se várias delas, como Beatriz e Leonor de Cepeda, Inés de Tapia, Juana Juárez e outras. As descalças de que se fala seriam as Descalças Reais de Madri.

4 O padre Ángel de Salazar.

5 Padre Pedro Ibáñez.

6 Gaspar Daza, de quem Santa Teresa falou no capítulo 23.

CAPÍTULO 33

1 A cadeia era uma cela escura que ainda existe no Mosteiro de Encarnação em Ávila.

2 Padre Pedro Ibáñez.

3 O Convento de Trianos, em León, de dominicanos contemplativos.

4 O reitor que deixou Ávila foi o padre Dionisio Vásquez, substituído pelo padre Gaspar de Salazar.

5 Juana de Ahumada, que vivia com o marido, Juan de Ovalle, em Alba de Tormes.

6 Documento papal necessário para a fundação de um mosteiro ou ordem religiosa.

7 Lorenzo de Cepeda, irmão de Santa Teresa, foi quem ajudou com seu dinheiro na construção do Mosteiro de São José.

8 O convento das clarissas de Ávila, conhecido popularmente à época como "das gordinhas".

9 Foram necessários três documentos papais para que se estabelecesse definitivamente, de acordo com os planos de Santa Teresa, o Convento de São José. O primeiro foi um breve dado em 7 de fevereiro de 1562. Em dezembro do mesmo ano foi dado um segundo documento, e o terceiro, uma bula que deu caráter definitivo aos anteriores, é de 17 de julho de 1565.

10 Santo Tomás de Ávila.

11 Momento da liturgia em que o sacerdote ergue a hóstia consagrada.

12 Dom Álvaro de Mendoza.

CAPÍTULO 34

1 Toledo.

2 Luisa de la Cerda, viúva de Antonio Arias Pardo e filha do duque de Medinaceli, que, depois, apoiou decisivamente a reforma de Santa Teresa.

3 Padre García de Toledo, dominicano, neto dos condes de Oropesa e sobrinho do vice-rei do Peru.

4 O padre Pedro Ibáñez.

5 São Pedro de Alcântara, morto em 18 de outubro de 1562, e o padre Pedro Ibáñez, morto em 13 de junho de 1565.

6 O padre Pedro Ibáñez ou, talvez, o padre Domingo Báñez.

7 Martín de Guzmán y Barrientos, casado com María de Cepeda.

8 Castellanos de Cañadas.

CAPÍTULO 35

1 Trata-se de María de Jesús Yepes. Depois de ficar viúva muito jovem, entrou para a Ordem das Carmelitas e, mais tarde, fundou, em Alcalá, o Convento da Imagem.

2 A Regra dizia: "Nenhum irmão tenha nada em propriedade, mas todas as coisas sejam comuns a todos". O papa Gregório IX, em 1229, estabeleceu a interpretação de que a proibição de ter propriedades valia também para o mosteiro e assim foi aplicada a regra até o seu relaxamento no século XV.

3 Ibáñez.

4 Presentado é o título que se dá aos licenciados em teologia entre os dominicanos.

5 Padre Pedro Domenech, reitor da Companhia de Jesus em Toledo.

6 Citações não literais do Salmo 93, versículo 20, e do Evangelho segundo São Mateus, capítulo 7, versículo 14.

CAPÍTULO 36

1 Juan Velázquez Dávila.

2 Dom Álvaro de Mendoza.

3 São Pedro de Alcântara morreu no dia 18 de outubro de 1562 em Arenas, Ávila.

4 Juan de Ovalle.

5 Antonia Henao, que passou a se chamar Antonia del Espiritu Santo; María de la Paz, que se tornou María de la Cruz; Ursula de Revilla, que passou a ser Ursula de los Santos, e María de Ávila, desde então María de San José. A profissão se deu no dia 24 de agosto de 1562.

6 Inés e Ana de Tapia, primas de Santa Teresa. No novo mosteiro passariam a se chamar Inés de Jesús e Ana de la Encarnación.

7 "Levantar coisas novas" era o termo usual na Espanha com o qual a Inquisição acusava os "iluminados" espanhóis, assim como a luteranos e membros de outras igrejas da reforma.

8 O padre Domingo Báñez que, no manuscrito do livro de Santa Teresa, lido a mando da Santa Inquisição, escreveu: "Isso foi no ano de 1562. Eu estive presente e dei esse parecer. E quando escrevo isso é o ano de 1575, 2 de maio, e essa madre fundou nove mosteiros com grande observância religiosa".

9 Gaspar Daza.

CAPÍTULO 38

1 Uma interpretação de Isaías, capítulo 14, versículos 12 a 15, deu origem à tradição católica segundo a qual Lúcifer, criado como um anjo, foi expulso do céu e se tornou o príncipe dos demônios por se recusar, movido pelo orgulho, a obedecer a Deus e servir ao homem.

2 Véspera de Pentecostes.

3 Ludolfo da Saxônia, monge cartuxo. O livro era Vida de Cristo, cuja primeira edição foi feita em 1503 em Alcalá.

4 Seria o padre Pedro Ibáñez.

5 Ibáñez morreu em 2 de fevereiro de 1565.

6 Gaspar de Salazar ou Baltasar Álvarez.

7 Isto é, na hóstia.

8 Gregorio Fernández, que morreu provincial da Andaluzia em 1561.

9 Segundo a tradição, à morte de Clemente V (1314), no conclave que durou dois anos e três meses, a Santíssima Virgem apareceu ao cardeal Jaime Duesa, muito devoto a ela, e anunciou-lhe que seria papa com o nome de João XXII, e acrescentou: "Quero que anuncie aos carmelitas e a seus confrades: os que usarem o escapulário, guardarem a castidade conforme seu estado, e rezarem o ofício divino — ou os que não saibam ler se abstenham de comer carnes nas quartas-feiras e sábados —, se forem ao purgatório Eu farei que o quanto antes, especialmente no sábado seguinte à sua morte, tenham suas almas levadas para o céu".

CAPÍTULO 39

1 O padre Gracián afirma que era o primo-irmão de Santa Teresa, Pedro Mejía.

2 Essa ermida fora construída num pombal da propriedade em que se fez o Mosteiro de São José de Ávila. Na ermida, Santa Teresa mandou pintar a imagem de Jesus sendo flagelado dando as instruções de como devia ser representada a figura de Cristo.

3 Os padres García de Toledo e Pedro Báñez.

4 Isabel de San Pablo, María Bautista e María de San Jerónimo eram muito jovens quando entraram para o Mosteiro de São José de Ávila.

5 Santa Teresa recebeu em 5 de dezembro de 1562 um Breve de pobreza. Em 17 de julho 1565 uma bula do papa Pio IV concedia definitivamente ao Mosteiro de São José de Ávila o direito de viver sem renda.

6 O maravedi era a unidade monetária da Espanha no século XVI. Um ducado, uma moeda de ouro de cerca de três gramas, valia 375 maravedis (Charles P. Kindleberger, A financial history of Western Europe).

7 Evangelho segundo São Mateus, capítulo 20, versículo 12.

8 Oração ao Espírito Santo atribuída a Santo Atanásio, que começa, em latim, com a expressão "Quicumque vult" (quem quer que queira).

9 San Gil de Ávila.

CAPÍTULO 40

1 Santa Teresa se refere a uma compilação apócrifa atribuída a Santo Agostinho publicada em Valladollid em 1511 pela primeira vez sob o título Meditaciones, soliloquio y manual.

2 Segundo o padre Gracián, que anotou o manuscrito, trata-se da Ordem de São Domingos. Para o padre Ribera, biógrafo de Santa Teresa, ela se refere à Companhia de Jesus. Essa passagem foi uma das examinadas pela Inquisição por suspeita de heterodoxia.

3 São Domingos, segundo o padre Gracián.

4 Segundo o padre carmelita Jerónimo de San José (1587-1654), cronista de sua ordem, Santa Teresa não se referia nessas passagens à Ordem de São Domingos, mas sim à dos próprios carmelitas que ela começara a reformar. O santo que apareceu em visão a ela não seria, portanto, São Domingos, mas santo Alberto da Sicília. Isso teria sido dito pela própria Santa Teresa ao frei Ángel de San Miguel, um dos discípulos da santa depois da reforma da ordem carmelita masculina.

5 Tratar-se-ia do inquisidor Francisco de Soto y Salazar, mais tarde bispo de Salamanca.

EPÍLOGO

1 Este epílogo-carta está endereçado ao padre García de Toledo ou, segundo alguns autores, ao mestre de Daza.

2 São João de Ávila (1500-69), padre, pregador e místico que examinou o manuscrito de Santa Teresa.

3 A nota de Báñez refere-se à numeração de folhas do manuscrito. Depois dessa nota, Báñez acrescentou ao manuscrito seu parecer destinado à Santa Inquisição aprovando o livro de Santa Teresa. A data desse parecer é 1575.

Outras leituras

Santa Teresa de Ávila, de Angela Senra, São Paulo, Brasiliense, 1983.

Leitura psicanalítica de Teresa de Ávila, de Denis Vasse, São Paulo, Loyola, 1994.

Teresa, namorada de Jesus, Deonísio da Silva, São Paulo, A Girafa, 2005.

Santa Teresa de Jesús y la inquisición española, E. Llamas, Madri, CSIC, 1972.

Teresa de Ávila, ébria de Deus, de Isaure de Saint Pierre, São Paulo, Martins Fontes, 1992.

Mística y Subversiva — Teresa de Jesús, de Juan Antonio Marcos, Madri, Editorial de Espiritualidad, 2001.

Santa Teresa de Jesús, doctora para una Iglesia en crisis, de P. Daniel de Pablo Maroto, Burgos, Editorial Monte Carmelo, 1981.

Santa Teresa, la oración y la contemplación, de Pablo M. Bernardo, Madri, Paulinas, 1977.

Teresa, a santa apaixonada, de Rosa Amanda Strausz, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005.

Teresa de Ávila, de Rosa Rossi, Rio, José Olympio, 1984.

Obras completas de Teresa de Jesus, São Paulo, Loyola, 1995.

Demorar-se com Deus. Orar com João da Cruz, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux, Edith Stein, de Waltrand Herbstrith, São Paulo, Loyola, 1987.

Teresa de Ávila, de Walter Nigg, São Paulo, Loyola, 1981.

Copyright da introdução © 1957 by J.M. Cohen
Copyright do prefácio © 2010 by Frei Betto

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

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Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (USA) Inc.

TÍTULO ORIGINAL
Libro de la vida

CAPA E PROJETO GRÁFICO PENGUIN-COMPANHIA
Raul Loureiro, Claudia Warrak

PREPARAÇÃO
Cecília Ramos

REVISÃO
Daniela Medeiros
Ana Maria Barbosa

ISBN: 978-85-63397-62-1

Todos os direitos desta edição reservados à
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando
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nível."

Índice
LIVRO PRIMEIRO
CAPÍTULO I - Louvor e Invocação
CAPÍTULO II - Deus está no homem, e este em Deus
CAPÍTULO III - Onde está Deus?
CAPÍTULO IV - As perfeições de Deus
CAPÍTULO V - Súplica
CAPÍTULO VI - Os primeiros anos
CAPÍTULO VII - Os pecados da primeira infância
CAPÍTULO VIII - As primeiras palavras
CAPÍTULO IX - Estudos e jogos
CAPÍTULO X - Amor ao jogo
CAPÍTULO XI - O batismo diferido
CAPÍTULO XII - Ódio ao estudo
CAPÍTULO XIII - Gosto pelo latim
CAPÍTULO XIV - Aversão ao grego
CAPÍTULO XV - Oração
CAPÍTULO XVI - O mal da mitologia
CAPÍTULO XVII - Êxitos escolares
CAPÍTULO XVIII - Leis gramaticais, lei de Deus
CAPÍTULO XIX - Mau perdedor
CAPÍTULO XX - Ação de graças
LIVRO SEGUNDO
CAPÍTULO I - A adolescência
CAPÍTULO II - As primeiras paixões
CAPÍTULO III - Cegueira do pai, cuidados da mãe
CAPÍTULO IV - O furto das pêras
CAPÍTULO V - A causa do pecado
CAPÍTULO VI - O crime gratuito
CAPÍTULO VII - Ação de graças
CAPÍTULO VIII - O prazer da cumplicidade
CAPÍTULO IX - O prazer do pecado
CAPÍTULO X - Deus, o sumo bem
LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO I - O gosto do amor
CAPÍTULO II - A paixão dos espetáculos
CAPÍTULO III - O estudo da retórica e os demolidores
CAPÍTULO IV - O Hortênsio de Cícero
CAPÍTULO V - A desilusão das escrituras
CAPÍTULO VI - A sedução do maniqueísmo
CAPÍTULO VII - Alguns erros dos maniqueus
CAPÍTULO VIII - Moral e costume
CAPÍTULO IX - Pecados e imperfeições
CAPÍTULO X - Ridicularias dos maniqueus
CAPÍTULO XI - O sonho de Mônica
CAPÍTULO XII - Uma profecia
LIVRO QUATRO
CAPÍTULO I - Dos dezenove aos vinte e oito anos
CAPÍTULO II - Professor de retórica
CAPÍTULO III - A atração da astrologia
CAPÍTULO IV - A morte do amigo
CAPÍTULO V - O conforto das lágrimas
CAPÍTULO VI - Inconsolável
CAPÍTULO VII - De Tagaste para Cartago
CAPÍTULO VIII - O consolo do tempo e da amizade
CAPÍTULO IX - O amigo de Deus
CAPÍTULO X - As mentiras da beleza
CAPÍTULO XI - A verdade de Deus
CAPÍTULO XII - O amor em Deus
CAPÍTULO XIII - O problema do belo
CAPÍTULO XIV - Razões de uma dedicatória
CAPÍTULO XV - Os primeiros livros
CAPÍTULO XVI - As dez categorias de Aristóteles
LIVRO QUINTO
CAPÍTULO I - Oração
CAPÍTULO II - Os que fogem de Deus
CAPÍTULO III - Fausto e o maniqueísmo
CAPÍTULO IV - Ciência e ignorância

CAPÍTULO V - Loucuras de Manés
CAPÍTULO VI - A eloqüência de Fausto
CAPÍTULO VII - Desilusão
CAPÍTULO VIII - Viagem a Roma
CAPÍTULO IX - Enfermo
CAPÍTULO X - Agostinho e os erros dos maniqueus
CAPÍTULO XI - Desculpas dos maniqueus
CAPÍTULO XII - Os estudantes de Roma
CAPÍTULO XIII - Viagem a Milão, Santo Ambrósio
CAPÍTULO XIV - Catecúmeno
LIVRO SEXTO
CAPÍTULO I - Esperanças
CAPÍTULO II - Obediência de Mônica
CAPÍTULO III - Primeiras conquistas
CAPÍTULO IV - O espírito da letra
CAPÍTULO V - Os mistérios da Bíblia
CAPÍTULO VI - Alegria de bêbado
CAPÍTULO VII - Alípio
CAPÍTULO VIII - A atração do anfiteatro
CAPÍTULO IX - Alípio, ladrão a contragosto
CAPÍTULO X - Os três amigos
CAPÍTULO XI - Entre Deus e o mundo
CAPÍTULO XII - Casar ou não?
CAPÍTULO XIII - O pedido de casamento
CAPÍTULO XIV - Um projeto desfeito
CAPÍTULO XV - A separação da amante
CAPÍTULO XVI - A aproximação de Deus
LIVRO SÉTIMO
CAPÍTULO I - A idéia de Deus
CAPÍTULO II - Objeção contra o maniqueísmo
CAPÍTULO III - Deus e o mal
CAPÍTULO IV - A substância de Deus
CAPÍTULO V - A origem do mal
CAPÍTULO VI - O absurdo dos horóscopos

CAPÍTULO VII - Ainda a origem do mal
CAPÍTULO VIII - A piedade de Deus
CAPÍTULO IX - Agostinho e o neoplatonismo
CAPÍTULO X - A descoberta de Deus
CAPÍTULO XI - Deus e as criaturas
CAPÍTULO XII - O mal e o bem da criação
CAPÍTULO XIII - Os louvores da criação
CAPÍTULO XIV - Recapitulação
CAPÍTULO XV - Deus e a criação
CAPÍTULO XVI - Onde está o mal
CAPÍTULO XVII - Caminho para Deus
CAPÍTULO XVIII - A senda da humildade
CAPÍTULO XIX - A doutrina do verbo
CAPÍTULO XX - Do platonismo às Escrituras
CAPÍTULO XXI - A verdade das escrituras
LIVRO OITAVO
CAPÍTULO I - Hesitações
CAPÍTULO II - Visita a Simpliciano. Conversão de Vitorino
CAPÍTULO III - A alegria das coisas perdidas
CAPÍTULO IV - A conversão dos grandes
CAPÍTULO V - As duas vontades
CAPÍTULO VI - A narração de Ponticiano
CAPÍTULO VII - A reação de Agostinho
CAPÍTULO VIII - Luta espiritual
CAPÍTULO XI - A desobediência da vontade
CAPÍTULO X - Contra os maniqueus
CAPÍTULO XI - Últimas resistências
CAPÍTULO XII - A conversão
LIVRO NONO
CAPÍTULO I - Colóquio
CAPÍTULO II - Adeus ao magistério
CAPÍTULO III - Dois amigos
CAPÍTULO IV - A doçura dos salmos
CAPÍTULO V - O conselho de Ambrósio

CAPÍTULO VI - Batismo de Agostinho. Seu filho Adeodato
CAPÍTULO VII - O canto dos fiéis - Os corpos de São Gervásio e de São Protásio
CAPÍTULO VIII - Mônica
CAPÍTULO IX - Esposa e mãe exemplar
CAPÍTULO X - O êxtase de Óstia
CAPÍTULO XI - A morte de Mônica
CAPÍTULO XII - As lágrimas negadas
CAPÍTULO XIII - Preces pela mãe morta
LIVRO DÉCIMO
CAPÍTULO I - Finalidade do livro
CAPÍTULO II - O que é confessar a Deus
CAPÍTULO III - Por que se confessar aos homens?
CAPÍTULO IV - O fruto das confissões
CAPÍTULO V - A ignorância do homem
CAPÍTULO VI - Quem é Deus?
CAPÍTULO VII - Deus e os sentidos
CAPÍTULO VIII - O milagre da memória
CAPÍTULO IX - A memória intelectual
CAPÍTULO X - Memória dos sentidos
CAPÍTULO XI - Idéias inatas
CAPÍTULO XII - A memória e as matemáticas
CAPÍTULO XIII - A memória da memória
CAPÍTULO XIV - A lembrança dos sentimentos
CAPÍTULO XV - A memória das coisas ausentes
CAPÍTULO XVI - A memória do esquecimento
CAPÍTULO XVII - Deus e a memória
CAPÍTULO XVIII - A memória das coisas perdidas
CAPÍTULO XIX - A memória das lembranças
CAPÍTULO XX - A memória da felicidade
CAPÍTULO XXI - A memória do que nunca tivemos
CAPÍTULO XXII - A verdadeira felicidade
CAPÍTULO XXIII - Felicidade e verdade
CAPÍTULO XXIV - Deus e a memória
CAPÍTULO XXV - Recapitulação

CAPÍTULO XXVI - Onde encontrar Deus?
CAPÍTULO XXVII - Solilóquio de amor
CAPÍTULO XXVIII - A vida do homem
CAPÍTULO XXIX - Esperança em Deus
CAPÍTULO XXX - Sonho e voluptuosidade
CAPÍTULO XXXI - A intemperança
CAPÍTULO XXXII - Os prazeres do olfato
CAPÍTULO XXXIII - Os prazeres do ouvido
CAPÍTULO XXXIV - O prazer dos olhos
CAPÍTULO XXXV - A curiosidade
CAPÍTULO XXXVI - O orgulho
CAPÍTULO XXXVII - A tentação do orgulho
CAPÍTULO XXXVIII - A vanglória
CAPÍTULO XXXIX - O amor-próprio
CAPÍTULO XL - À procura de Deus
CAPÍTULO XLI - Deus e a mentira
CAPÍTULO XLII - Os neoplatônicos e o caminho para Deus
CAPÍTULO XLIII - Cristo, o único mediador
LIVRO DÉCIMO- PRIMEIRO
CAPÍTULO I - Finalidade das confissões
CAPÍTULO II - A inteligência das Escrituras
CAPÍTULO III - O que disse Moisés
CAPÍTULO IV - O céu e a terra
CAPÍTULO V - A palavra e a criação
CAPÍTULO VI - Como falou Deus?
CAPÍTULO VII - A palavra coeterna
CAPÍTULO VIII - A verdadeira luz
CAPÍTULO IX - A voz do Verbo
CAPÍTULO X - Que fazia Deus antes da criação
CAPÍTULO XI - Tempo e eternidade
CAPÍTULO XII - Deus antes da criação
CAPÍTULO XIII - O tempo antes da criação
CAPÍTULO XIV - Que é o tempo?
CAPÍTULO XV - Tempo longo, tempo breve

CAPÍTULO XVI - A medida do presente
CAPÍTULO XVII - O passado e o presente
CAPÍTULO XVIII - As previsões
CAPÍTULO XIX - Oração
CAPÍTULO XX - Conclusão
CAPÍTULO XXI - A medida do tempo
CAPÍTULO XXII - O enigma
CAPÍTULO XXIII - O tempo e o movimento
CAPÍTULO XXIV - O tempo, medida do movimento
CAPÍTULO XXV - Prece
CAPÍTULO XXVI - O tempo, distensão da alma
CAPÍTULO XXVII - A medida do passado
CAPÍTULO XXVIII - A medida do futuro
CAPÍTULO XXIX - A eternidade de Deus
CAPÍTULO XXX - Deus e o tempo
CAPÍTULO XXXI - Conclusão
LIVRO DÉCIMO-SEGUNDO
CAPÍTULO I - Prece
CAPÍTULO II - O céu do céu
CAPÍTULO III - As trevas sobre o abismo
CAPÍTULO IV - A matéria informe
CAPÍTULO V - Sua natureza
CAPÍTULO VI - Em que consiste
CAPÍTULO VII - A criação do nada
CAPÍTULO VIII - A terra invisível
CAPÍTULO IX - A criação do tempo
CAPÍTULO X - Invocação à verdade
CAPÍTULO XI - As criaturas e o criador
CAPÍTULO XII - A criação e a eternidade
CAPÍTULO XIII - O céu e a terra em Gênesis
CAPÍTULO XIV - A profundidade das Escrituras
CAPÍTULO XV - O que dizem seus inimigos
CAPÍTULO XVI - Outros adversários das Escrituras
CAPÍTULO XVII - Opiniões diversas sobre o céu e a terra

CAPÍTULO XVIII - Outras interpretações
CAPÍTULO XIX - A verdade
CAPÍTULO XX - O princípio e suas interpretações
CAPÍTULO XXI - A terra invisível
CAPÍTULO XXII - Objeções
CAPÍTULO XXIII - A opinião de Agostinho
CAPÍTULO XXIV - Qual a verdade?
CAPÍTULO XXV - Os diversos partidos
CAPÍTULO XXVI - Agostinho no lugar de Moisés
CAPÍTULO XXVII - Os diversos sentidos da Escritura
CAPÍTULO XXVIII - Divergências
CAPÍTULO XXIX - Dificuldades
CAPÍTULO XXX - Espírito de caridade
CAPÍTULO XXXI - O Gênesis e seu autor
CAPÍTULO XXXII - Oração
LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO
CAPÍTULO I - Invocação
CAPÍTULO II - A criação e a bondade de Deus
CAPÍTULO III - A luz
CAPÍTULO IV - A bondade criadora
CAPÍTULO V - A trindade
CAPÍTULO VI - O espírito sobre as águas
CAPÍTULO VII - As águas sem substância
CAPÍTULO VIII - À luz que ilumina as trevas
CAPÍTULO IX - O amor de Deus
CAPÍTULO X - Os dons de Deus
CAPÍTULO XI - O homem e a trindade
CAPÍTULO XII - A criação e a Igreja
CAPÍTULO XIII - Nós e a luz
CAPÍTULO XIV - Esperança
CAPÍTULO XV - Símbolos
CAPÍTULO XVI - Deus, fonte de luz
CAPÍTULO XVII - As águas amargas
CAPÍTULO XVIII - Meditação

CAPÍTULO XIX - Ainda a terra seca
CAPÍTULO XX - Os répteis e as aves
CAPÍTULO XXI - A alma viva
CAPÍTULO XXII - Sentido místico da criação do homem
CAPÍTULO XXIII - O julgamento do homem espiritual
CAPÍTULO XXIV - Crescei e multiplicai-vos
CAPÍTULO XXV - Os frutos da terra
CAPÍTULO XXVI - O dom e o fruto
CAPÍTULO XXVII - Peixes e cetáceos
CAPÍTULO XXVIII - A bondade da criação
CAPÍTULO XXIX - A palavra de Deus e o tempo
CAPÍTULO XXX - Erro dos maniqueus
CAPÍTULO XXXI - A luz do espírito divino
CAPÍTULO XXXII - A criação
CAPÍTULO XXXIII - A matéria e a forma
CAPÍTULO XXXIV - Alegoria da criação
CAPÍTULO XXXV - Prece
CAPÍTULO XXXVI - O repouso de Deus
CAPÍTULO XXXVII - O repouso da alma
CAPÍTULO XXXVIII - O descanso de Deus
DE MAGISTRO (DO MESTRE)
CAPÍTULO I - FINALIDADE DA LINGUAGEM
CAPÍTULO II - O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓ PELAS
PALAVRAS
CAPÍTULO III - SE É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA SEM O EMPREGO DE
UM SINAL
CAPÍTULO IV - SE OS SINAIS SE MOSTRAM COM SINAIS
CAPÍTULO V - SINAIS RECÍPROCOS
CAPÍTULO VI - SINAIS QUE SIGNIFICAM A SI MESMOS
CAPÍTULO VII - RESUMO DOS CAPÍTULOS ANTERIORES
CAPÍTULO VIII - NÃO SE DISCUTEM INUTILMENTE ESTAS QUESTÕES. ASSIM,
PARA RESPONDER ÀQUELE QUE INTERROGA, DEVEMOS DIRIGIR A MENTE,
DEPOIS DE PERCEBER OS SINAIS, ÀS COISAS QUE ESTES SIGNIFICAM
CAPÍTULO IX - SE DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU O CONHECIMENTO

DELAS, AOS SINAIS
CAPÍTULO X - SE É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS. AS COISAS NÃO SE
APRENDEM PELAS PALAVRAS
CAPÍTULO XI - NÃO APRENDEMOS PELAS PALAVRAS QUE REPERCUTEM
EXTERIORMENTE, MAS PELA VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE
CAPÍTULO XII - CRISTO É A VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE
CAPÍTULO XIII - A FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRAR SEQUER
O PENSAMENTO DE QUEM FALA
CAPÍTULO XIV - CRISTO ENSINA INTERIORMENTE, O HOMEM AVISA
EXTERIORMENTE PELAS PALAVRAS
PERFIL BIOGRÁFICO - SANTO AGOSTINHO (354-430)
A perdição da alma reside em algumas peras
Onde está a felicidade?
O mestre da eloqüência e um bêbado trilham caminhos iguais
Uma canção de criança pode mudar uma vida
A meditação se inspira no murmúrio da água
O apelo da multidão: um pastor para enfrentar os leões vorazes
É preciso paciência diante de olhos em chamas
A espada dos bárbaros é a cólera dos antigos deuses
Entre vários é preciso escolher
Uma árvore tem folhas verdes. Como serão os frutos?
O lugar do pastor é à frente do rebanho
Todo conhecimento reside em Deus e na alma

LIVRO PRIMEIRO

CAPÍTULO I - Louvor e Invocação

És grande, Senhor e infinitamente digno de ser louvado; grande é teu poder, e
incomensurável tua sabedoria. E o homem, pequena parte de tua criação quer
louvar-te, e precisamente o homem que, revestido de sua mortalidade, traz em si
o testemunho do pecado e a prova de que resistes aos soberbos. Todavia, o
homem, partícula de tua criação, deseja louvar-te.

Tu mesmo que incitas ao deleite no teu louvor, porque nos fizeste para ti, e nosso
coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso.

Concede, Senhor, que eu bem saiba se é mais importante invocar-te e louvar-te,
ou se devo antes conhecer-te, para depois te invocar. Mas alguém te invocará
antes de te conhecer?

Porque, te ignorando, facilmente estará em perigo de invocar outrem. Porque,
porventura, deves antes ser invocado para depois ser conhecido? Mas como
invocarão aquele em que não crêem?

Ou como haverão de crer que alguém lhos pregue?

Com certeza, louvarão ao Senhor os que o buscam, porque os que o buscam o
encontram e os que o encontram hão de louvá-lo.

Que eu, Senhor, te procure invocando-te, e te invoque crendo em ti, pois me
pregaram teu nome. Invoca-te, Senhor, a fé que tu me deste, a fé que me
inspiraste pela humanidade de teu Filho e o ministério de teu pregador.

CAPÍTULO II - Deus está no homem, e este em Deus

E como invocarei meu Deus, meu Deus e meu Senhor, se ao invocá-lo o faria
certamente dentro de mim? E que lugar há em mim para receber o meu Deus, por
onde Deus desça a mim, o Deus que fez o céu e a terra? Senhor, haverá em mim
algum espaço que te possa conter? Acaso te contêm o céu e a terra, que tu
criaste, e dentro dos quais também criaste a mim? Será, talvez, pelo fato de nada
do que existe sem Ti, que todas as coisas te contêm? E, assim, se existo, que

motivo pode haver para Te pedir que venhas a mim, já que não existiria se em
mim não habitásseis?

Ainda não estive no inferno, mas também ali estás presente, pois, se descer ao
inferno, ali estarás.

Eu nada seria, meu Deus, nada seria em absoluto se não estivesses em mim; talvez
seria melhor dizer que eu não existiria de modo algum se não estivesse em ti, de
quem, por quem e em quem existem todas as coisas? Assim é, Senhor, assim é.
Como, pois, posso chamar-te se já estou em ti, ou de onde hás de vir a mim, ou a
que parte do céu ou da terra me hei de recolher, para que ali venha a mim o meu
Deus, ele que disse: Eu encho o céu e a terra?

CAPÍTULO III - Onde está Deus?

Porventura o céu e a terra te contêm, porque os enches? Ou será melhor dizer que
os enches, mas que ainda resta alguma parte de ti, já que eles não te podem
conter? E onde estenderás isso que sobra de ti, depois de cheios o céu e a terra?
Mas será necessário que sejas contido em algum lugar, tu que conténs todas as
coisas, visto que as que enches as ocupas contendo-as? Porque não são os vasos
cheios de ti que te tornam estável, já que, quando se quebrarem, tu não te
derramarás; e quando te derramas sobre nós, isso não o fazes porque cais, mas
porque nos levantas, nem porque te dispersas, mas porque nos recolhes.

No entanto, todas as coisas que enches, enche-as todas com todo o teu ser; ou
talvez, por não te poderem conter totalmente todas as coisas, contêm apenas
parte de ti? E essa parte de ti as contêm todas ao mesmo tempo, ou cada uma a
sua, as maiores a maior parte, e as menores a menor parte? Mas haverá em ti
partes maiores e partes menores? Acaso não estás todo em todas as partes, sem
que haja coisa alguma que te contenha totalmente?

CAPÍTULO IV - As perfeições de Deus

Que és, portanto, ó meu Deus? Que és, repito, senão o Senhor Deus? Ó Deus
sumo, excelente, poderosíssimo, onipotentíssimo, misericordiosíssimo e justíssimo.

Tao oculto e tão presente, formosíssimo e fortíssimo, estável e incompreensível;
imutável, mudando todas as coisas; nunca novo e nunca velho; renovador de todas
as coisas, conduzindo à ruína os soberbos sem que eles o saibam; sempre agindo e

sempre repouso; sempre sustentando, enchendo e protegendo; sempre criando,
nutrindo e aperfeiçoando, sempre buscando, ainda que nada te falte.

Amas sem paixão; tens zelos, e estás tranqüilo; te arrependes, e não tens dor; te
iras, e continuas calmo; mudas de obra, mas não de resolução; recebes o que
encontras, e nunca perdeste nada; não és avaro, e exiges lucro. A ti oferecemos
tudo, para que sejas nosso devedor; porém, quem terá algo que não seja teu, pois,
pagas dívidas que a ninguém deves, e perdoas dívidas sem que nada percas com
isso?

E que é o que até aqui dissemos, meu Deus, minha vida, minha doçura santa, ou
que poderá alguém dizer quando fala de ti? Mas ai dos que nada dizem de ti, pois,
embora seu muito falar, não passam de mudos charlatães.

CAPÍTULO V - Súplica

Quem me dera descansar em ti! Quem me dera que viesses a meu coração e que o
embriagasses, para que eu me esqueça de minhas maldades e me abrace contigo,
meu único bem! Que és para mim? Tem piedade de mim, para que eu possa falar.
E que sou eu para ti, para que me ordenes amar-te e, se não o fizer, irar-te contra
mim, ameaçando-me com terríveis castigos? Acaso é pequeno o castigo de não te
amar? Ai de mim! Dize-me por tuas misericórdias, meu Senhor e meu Deus, que és
para mim? Dize a minha alma: Eu sou a tua salvação. Que eu ouça e siga essa voz
e te alcance. Não queiras esconder-me teu rosto. Morra eu para que possa vê-lo
para não morrer eternamente.

Estreita é a casa de minha alma para que venhas até ela: que seja por ti dilatada.
Está em ruínas; restaura-a. Há nela nódoas que ofendem o teu olhar: confesso-o,
pois eu o sei; porém, quem haverá de purificá-la? A quem clamarei senão a ti?
Livra-me, Senhor, dos pecados ocultos, e perdoa a teu servo os alheios! Creio, e
por isso falo. Tu o sabes, Senhor. Acaso não confessei diante de ti meus delitos
contra mim, ó meu Deus? E não me perdoaste a impiedade de meu coração? Não
quero contender em juízos contigo, que és a verdade, e não quero enganar-me a
mim mesmo, para que não se engane a si mesma minha iniqüidade. Não quero
contender em juízos contigo, porque, se dás atenção às iniqüidades, Senhor, quem,
Senhor, subsistirá?

CAPÍTULO VI - Os primeiros anos

Permita, porém, que eu fale em presença de tua misericórdia, a mim, terra e cinza;
deixa que eu fale, porque é à tua misericórdia que falo, e não ao homem, que de
mim escarnece. Talvez também tu te rias de mim, mas, voltado para mim, terás
compaixão.

E que pretendo dizer-te, Senhor, senão que ignoro de onde vim para aqui, para
esta não sei se posso chamar vida mortal ou morte vital? Não o sei. Mas
receberam-me os consolos de tuas misericórdias, conforme o que ouvi de meus pais
carnais, de quem e em quem me formaste no tempo, pois eu de mim nada recordo.
Receberam-me os consolos do leite humano, do qual nem minha mãe, nem minhas
amas enchiam os seios; mas eras tu que, por meio delas, me davas aquele
alimento da infância, de acordo com o seu desígnio, e segundo os tesouros
dispostos por ti até no mais íntimo das coisas.

Também por tua causa é que eu não queria mais do que me davas; por tua causa é
que minhas amas queriam dar-me o que tu lhes davas, pois elas, movidas de sadio
afeto, queriam dar-me aquilo que abundavam graças a ti, já que era um bem para
elas ou delas receber aquele bem, embora realmente não fosse delas, meros
instrumentos, porque de ti procedem, com certeza, todos os bens, ó Deus, e de ti,
Deus meu, depende toda minha salvação.

Tudo isto vim a saber mais tarde, quando me falaste por meio dos mesmos bens
que me concedias interior e exteriormente. Porque então as únicas coisas que fazia
era sugar o leite, aquietar-me com os afagos e chorar as dores de minha carne.

Depois também comecei a rir, primeiro dormindo, depois acordado. Isto disseram
de mim, e o creio, porque o mesmo acontece com outros meninos, pois eu não
tenho a menor lembrança dessas coisas.

Pouco a pouco comecei a me dar conta de onde estava, e a querer dar a conhecer
meus desejos a quem os podia satisfazer, embora realmente não o pudessem,
porque meus desejos estavam dentro, e eles fora; e por nenhum sentido podiam
entrar em minha alma. Assim, agitava os braços e dava gritos e sinais
semelhantes a meus desejos, os poucos que podia e como podia, embora não
fossem de fato sua expressão. Mas, se não era atendido, ou porque não me
entendessem, ou porque o que desejava me fosse prejudicial, eu me indignava com
os adultos, porque não me obedeciam, e sendo livres, por não quererem me servir;
e deles me vingava chorando. Assim são as crianças que pude observar; e que eu
também fosse assim, mais me ensinaram elas, sem o saber, do que os que me

criaram, sabendo-o.

Minha infância morreu há muito tempo, mas eu continuo vivo. Mas, dize-me,
Senhor, tu que sempre vives, e em quem nada falece – porque existias antes do
começo dos séculos, e antes de tudo o que há de anterior, e és Deus e Senhor de
todas as coisas; e esse encontram em ti as causas de tudo o que é instável, e em ti
permanecem os princípios imutáveis de tudo o que se transforma, e vivem as
razões eternas de tudo o que é transitório – dize-me a mim, eu to suplico, ó meu
Deus, diz-me, misericordioso, a mim que sou miserável, dize-me: porventura a
minha infância sucedeu a outra idade minha, já morta? Será esta aquela que vivi
no ventre de minha mãe? Porque também desta me revelaram algumas coisas, e
eu mesmo já vi mulheres grávidas.

E antes desse tempo, minha doçura e meu Deus, que era eu? Fui alguém, ou era
parte de alguma coisa? Dize-mo, porque não tenho quem me responda, nem meu
pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minha memória. Acaso te
ris de mim, porque desejo saber estas coisas, e me mandas que te louve e te
confesse pelo que conheci de ti?

Eu te confesso, Senhor dos céus e da terra, louvando-te por meus princípios e por
minha infância, de que não tenho memória, mas que, por tua graça, o homem pode
conjectura de si pelos outros, crendo em muitas coisas, ainda que confiado na
autoridade de humildes mulheres.

Então eu já existia, já vivia de verdade; e, já no fim da infância procurava sinais
com que pudesse exprimir aos outros as coisas que sentia. Com efeito, de onde
poderia vir semelhante criatura, senão de ti, Senhor? Acaso alguém pode ser
artífice de si mesmo? Porventura existirá algum outro manancial por onde corra
até nos o ser e a vida, diferente da que nos dais, Senhor, tu em quem ser e vida
não são coisas distintas, porque és o Sumo Ser e a Suprema Vida? Com efeito, és
sumo, e não te mudas, nem caminha para ti o dia de hoje, apesar de caminhar por
ti, apesar de estarem em ti com certeza todas estas coisas, que não teriam
caminho por onde passar se não as contivesses. E porque teus anos não fenecem,
teus anos são um perpétuo hoje. Oh! Quantos dias nossos e de nossos pais já
passaram por este teu hoje, e dele receberam sua duração, e de alguma maneira
existiram, e quantos passarão ainda, e receberão seu modo, e seu ser? Mas tu és
sempre o mesmo, e todas as coisas de amanhã e do futuro, e todas as coisas de
ontem e do passado, nesse hoje as fazes, nesse hoje as fizeste.

Que importa que alguém não entenda essas coisas? Que este alguém se ria, e
diga: que é isto? Que se ria assim, e que prefira encontrar-te sem indagação do
que, indagando, não te encontrar.

CAPÍTULO VII - Os pecados da primeira infância

Escuta-me, ó meu Deus! Ai dos pecados dos homens! E quem isto te diz é um
homem, e tu te compadeces dele porque o criaste, e não foste autor do pecado
que nele existe.

Quem me poderá lembrar o pecado da infância, já que ninguém está diante de ti
limpo de pecado, nem mesmo a criança cuja vida conta um só dia sobre a terra?
Quem mo recordará?

Acaso alguma criança pequena de hoje, em quem vejo a imagem do que não
recordo de mim? E em que eu poderia pecar nesse tempo? Acaso por desejar o
peito da nutriz, chorando? Se agora eu suspirasse com a mesma avidez, não pelo
seio materno, mas pelo alimento próprio da minha idade, seria justamente
escarnecido e censurado. Logo, era então digno de repreensão o meu proceder;
mas como não podia entender a censura, nem o costume nem a razão permitiam
que eu fosse repreendido. Prova está que, ao crescermos, extirpamos e afastamos
de nós essa sofreguidão; e jamais vi homem sensato que, para limpar uma coisa
viciosa, prive-a do que tem de bom.

Acaso, mesmo para aquela idade, era bom pedir chorando o que não se me podia
dar sem dano, indignar-me acremente com as pessoas livres que não se
submetiam, assim como as pessoas respeitáveis, e até com meus próprios pais, e
com muitos outros que, mais sensatos, não davam atenção aos sinais de meus
caprichos, enquanto eu me esforçava por agredi-los com meus golpes, quanto
podia, por não obedecerem às minhas ordens, que me teriam sido danosas?

Daqui se segue que o que é inocente nas crianças é a debilidade dos membros
infantis, e não a alma.

Certa vez, vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido
e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. Quem não terá testemunhado
isso? Dizem que as mães e as amas tentam esconjurar este defeito com não sei
que práticas. Mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a
fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está tão necessitado do

mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento? Mas costuma-se
tolerar indulgentemente essas faltas, não porque sejam insignificantes, mas
porque espera-se que desapareçam com os anos. Por isso, sendo tais coisas
perdoáveis em um menino, quando se acham em um adulto, mal as podemos
suportar.

Assim, pois, meu Senhor e meu Deus, tu que me deste a vida e corpo, o qual
dotaste, como vemos, de sentidos e proviste de membros, adornando-o de beleza
e de instintos naturais, com os quais pudesse defender sua integridade e
conservação, tu me mandas que te louve por esses dons e te confesse e cante teu
nome altíssimo. Serias Deus onipotente e bom ainda que só tivesses criado apenas
estas coisas, que nenhum outro pode fazer senão tu, ó Unidade, origem de todas
as variedades, ó Beleza, que dás forma a todas as coisas, e com tua lei as ordenas!

Tenho vergonha, Senhor, de ter de somar à vida terrena que vivo aquela idade
que não recordo ter vivido, na qual acredito pelo testemunho de outros, por vê-lo
assim em outras crianças, embora essa conjectura mereça toda a fé. As trevas em
que está envolto meu esquecimento a seu respeito assemelham-se à vida que vivi
no ventre de minha mãe.

Assim, se fui concebido em iniqüidade, e se em pecado me alimentou minha mãe,
onde, suplico-te, meu Deus, onde, Senhor, eu, teu servo, onde e quando fui
inocente? Mas eis que silencio sobre esse tempo. Para que ocupar-se dele, se dele
já não conservo nenhuma lembrança?

CAPÍTULO VIII - As primeiras palavras

Acaso não foi caminhando da infância até aqui que cheguei à puerícia? Ou melhor,
esta veio a mim e suplantou à infância sem que esta fosse embora, pois, para onde
poderia ir?

Contudo deixou de existir, porque eu já não era um bebezinho que não falava, mas
um menino que aprendia a falar. Disso me recordo; mas como aprendi a falar, só
mais tarde é que vim a perceber. Não mo ensinaram os mais velhos apresentando-
me as palavras com certa ordem e método, como logo depois fizeram com as
letras; mas foi por mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus,
quando queria manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários
movimentos do corpo, a fim de que atendessem meus desejos; e também ao ver
que não podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos

aqueles a quem me dirigia.

Assim, pois, quando chamavam alguma coisa pelo nome, eu a retinha na memória
e, ao se pronunciar de novo a tal palavra, moviam o corpo na direção do objeto,
eu entendia e notava que aquele objeto era o denominado com a palavra que
pronunciavam, porque assim o chamavam quando o desejavam mostrar.

Que esta fosse sua intenção, era-me revelado pelos movimentos do corpo, que são
como uma linguagem universal, feita com a expressão rosto, a atitude dos
membros e o tom da voz, que indicam os afetos da alma para pedir, reter, rejeitar
ou evitar alguma coisa. Deste modo, das palavras usadas nas e colocadas em
várias frases e ouvidas repetidas vezes, ia eu aos poucos notando o significado e,
domada a dificuldade de minha boca, comecei a dar a entender minhas vontades
por meio delas.

Foi assim que comecei a comunicar meus desejos às pessoas entre as quais vivia, e
entrei a fazer parte do tempestuoso mundo da sociedade, dependendo da
autoridade de meus pais e obedecendo às pessoas mais velhas.

CAPÍTULO IX - Estudos e jogos

Ó meu Deus, meu Deus! Que de misérias e enganos não experimentei então,
quando se me propunha, em criança, como norma de bem viver, obedecer os
mestres que me instigavam a brilhar neste mundo, e me ilustrar nas artes da
língua, fiel instrumento para obter honras humanas e satisfazer a cobiça!
Mudaram-me à escola, para que aprendesse as letras, nas quais eu, miserável,
desconhecia o que havia de útil. Contudo, se era preguiçoso para aprendê-las, era
fustigado, num sistema louvado pelos mais velhos; muitos deles, que levavam esse
gênero de vida antes de nós, nos traçaram caminhos tão dolorosos pelos quais
éramos obrigados a caminhar, multiplicando assim o trabalho e a dor aos filhos de
Adão.

Mas, por sorte, encontrei homens que te invocavam, Senhor, e com eles aprendi a
te sentir, quanto possível, como a um Ser grande que podia escutar-nos e vir em
nosso auxílio, embora sem a percepção dos sentidos. Ainda menino, pois, comecei a
invocar-te como refúgio e amparo e, para te invocar, desatei os nós de minha
língua; e, embora pequeno, te rogava já com grande fervor para que não me
açoitassem na escola. E quando não me escutavas, o que servia para meu proveito
os mestres, assim como meus próprios pais, que certamente não desejavam o meu

mal, riam-se daquele castigo, que então era para mim grave suplício.

Porventura, Senhor, haverá alguma alma tão grande, unida a ti com tão ardente
afeto, pois isto também pode ser produzido pela estultice – repito, uma alma que
alcance tal grandeza de ânimo que despreze os cavaletes e garfos de ferro, e os
demais instrumentos de martírio – para fugir dos quais se te dirigem súplicas de
todas as partes do mundo? Haverá uma alma que assim os despreze – rindo-se dos
que têm deles tanto horror – como se riam nossos pais dos tormentos que éramos
castigados por nossos mestres quando meninos? Porque, na verdade, não os
temíamos menos, nem te rogávamos com menor fervor para que nos livrasses
deles.

Contudo, pecávamos por negligencia escrevendo ou lendo, estudando menos do
que nos era exigido; e não era por falta de memória ou de inteligência, que para
aquela idade, Senhor, me deste de modo suficiente, senão porque eu gostava de
brincar, embora os que nos castigavam não fizessem outra coisa. Mas os jogos dos
mais velhos chamavam-se negócios, enquanto que os dos meninos eram por eles
castigados, sem que ninguém se compadecesse de uns e de outros, ou melhor, de
ambos. Um juiz sensato poderia aprovar os castigos que eu, menino, recebia
porque jogava bola, e porque com este jogo atrasava o aprendizado das letras,
com as quais, adulto haveria de jogar menos inocentemente?

Acaso fazia outra coisa naquele que me castigava? Se nalguma questiúncula era
vencido por algum colega seu, não era mais atormentado pela cólera e pela inveja
do que eu, quando uma partida de bola era vencido por meu companheiro?

CAPÍTULO X - Amor ao jogo

Contudo, Senhor meu, ordenador e criador da natureza, mas do pecado somente
ordenador, eu pecava; pecava desobedecendo as ordens de meus pais e mestres,
uma vez que podia no futuro fazer bom uso das letras que desejavam me ensinar,
qualquer que fosse sua intenção.

E não era desobediente para me ocupar de coisas melhores, mas por amor ao jogo;
buscava nos combates orgulhosas vitórias; deleitava-me com histórias frívolas,
com as quais incentivava sempre mais minha curiosidade. Igualmente curiosos,
meus olhos se abriam sempre mais para os jogos e espetáculos dos adultos, jogos
que dão tao grande dignidade a quem os oferece, que quase todos desejam as
mesmas dignidades para seus filhos. Contudo, gostam de os castigar se com tais

espetáculos fogem dos estudos, por meio dos quais desejam que eles venham um
dia a oferecer espetáculos semelhantes. Senhor, olha misericordiosamente para
essas coisas, e livra-nos delas a nós que já te invocamos; mas livra também aos
que ainda não te invocam, a fim de que te invoquem, e sejam igualmente
libertados.

CAPÍTULO XI - O batismo diferido

Ainda menino, ouvi falar da vida eterna, que nos está prometida pela humildade
de Jesus, nosso Senhor, que desceu até nossa soberba; e fui marcado com o sinal
da cruz, sendo-me dado saborear de seu sal logo que saí do ventre de minha mãe,
que sempre esperou muito em ti.

Tu viste, Senhor, que numa ocasião, ainda menino, atacou-me repentinamente um
dor de estômago que me abrasava, e que me aproximou da morte. Tu viste
também, meu Deus, pois já me tinhas sob tua guarda, com que fervor de espírito e
com que fé pedi à piedade de minha mãe, e da mãe de todos nós, tua Igreja, o
batismo de teu Cristo, meu Deus e Senhor. Perturbou-se minha mãe carnal, pois
que me criava com mais amor em seu casto coração em tua fé para a vida eterna
e, solícita, já havia cuidado de que me iniciasse e purificasse com os sacramentos
da salvação, confessando-te, ó meu Senhor Jesus, em remissão de meus pecados,
quando, de repente, comecei a melhorar. Em vista disso, diferiu-se minha
purificação, considerando que seria impossível, se eu vivesse, que não me tornasse
a manchar; pois a culpa dos pecados cometidos depois do batismo é muito maior e
mais perigosa.

Nesta época eu já tinha fé verdadeira, juntamente com minha mãe e com todos da
casa, à exceção de meu pai, que, porém, não pôde vencer em mim a ascendência
da piedade materna, para que deixasse de acreditar em Cristo, tal como ele não
acreditava; minha mãe, solícita, cuidava de que tu, meu Deus, fosses mais pai para
mim do que ele, e a ajudavas a triunfar do marido, a quem servia melhor, porque
nele te servia a ti e a tuas ordens.

Mas, meu Deus, suplico-te que me mostres, se te apraz, por que motivo se diferiu
então meu batismo; se foi ou não para meu bem que me soltaram as rédeas do
pecado. Por que razão ainda hoje se diz de uns e de outros, como ouvimos em
muitos lugares: "Deixe que faça o que quiser, porque ainda não está batizado" –
embora não digamos da saúde do corpo: "Deixe que receba ainda mais feridas,
porque ainda não está curado?"

Quanto melhor teria sido para mim receber logo a saúde, e que meus cuidados e
os dos meus fossem empregados em conservar intacta debaixo da tua proteção a
saúde da minha alma, que me havias concedido! Melhor fora, certamente; porém,
como minha mãe, sem dúvida, já previa quantas e quão grandes ondas de
tentações me ameaçariam depois da meninice, preferiu expor-me a elas como
terra grosseira que depois receberia forma, do que expor-me já como imagem tua.

CAPÍTULO XII - Ódio ao estudo

Nesta minha infância, na qual eu tinha menos que temer por mim do que em
minha adolescência, eu não gostava dos estudos, e odiava que a eles me
obrigassem. Contudo, era coagido, e me faziam grande bem. Quem não procedia
bem era eu, que não estudava a não ser constrangido, pois ninguém faz bem o que
faz contra a vontade, mesmo que seja bom o que faz.

Tampouco os que obrigavam a estudar agiam corretamente; antes, todo o bem
que eu recebia vinha de ti, meu Deus, porque eles não tinham outro fim ao me
obrigarem a estudar senão saciar o apetite de abundante miséria e de gloria
ignominiosa. Mas tu, Senhor, que tens contados os cabelos de nossa cabeça,
usavas do erro de todos os que me coagiam a estudar para minha utilidade; e
usavas da minha falta de vontade de estudar para meu castigo, de que
certamente eu já era digno, sendo ainda tão pequeno, e tao grande pecador.

Assim, convertias em bem o mal que eles me faziam, e dos meus pecados, me
davas justa retribuição, porque é teu desígnio, e assim acontece, que toda alma
desordenada seja castigo de si mesma.

CAPÍTULO XIII - Gosto pelo latim

Porque odiava eu as letras gregas, que me ensinavam quando eu era criança? Não
o sei, e nem agora o posso explicar. Em compensação, as letras latinas me
apaixonavam, não as ensinadas pelos professores primários, mas a que é explicada
pelos chamados gramáticos, porque aquelas primeiras, com as quais se aprende a
ler, a escrever e a contar, não me foram menos pesadas e insuportáveis que as
gregas. Mas donde podia proceder essa aversão, senão do pecado e da vaidade da
vida, porque eu era carne e vento que caminha e não volta?

Aquelas primeiras letras, pelas quais podia, como ainda faço, chegar e ler tudo o
que há escrito e a escrever tudo o que quero, eram melhores e mais úteis que

aquelas outras nas quais me obrigavam a decorar os erros de um tal Enéias,
esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor,
enquanto isso, eu, miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos
enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida!

Na verdade, que pode haver de mais miserável do que um infeliz que não se
compadece de si mesmo e que, chorando a morte de Dido por amor de Enéias, não
chora sua própria morte por falta de amor a ti, ó Deus, luz de meu coração, pão
interior de minha alma, virtude fecundante de meu pensamento? Não te amava;
prevaricava longe de ti, e ouvia de todas as partes: "Muito bem! Muito bem!" –
porque a amizade deste mundo é adultério contra ti; e se aclamam a alguém
dizendo: "Muito bem! Muito bem!" – é para que este não se envergonhe de ser
assim. Eu não chorava estas faltas, chorava a morte de Dido "que se suicidou com
a espada", eu procurava as últimas de tuas criaturas, abandonando-te a ti, como
terra que eu era, atraída pela terra. Se então me proibissem a leitura de tais
coisas, me afligiriam por não ler aquilo que me comovia até a dor.

Não obstante, semelhante loucura é considerada como coisa mais nobre e
proveitosa que as letras pelas quais aprendemos a ler e a escrever.

Mas agora, meu Deus, grite em minha alma tua verdade, e diga: Não é assim, não
é assim, antes, aquela primeira instrução é absolutamente superior; pois eu
preferiria esquecer todas as aventuras de Enéias, e outras histórias semelhantes,
do que o saber ler e escrever. Sei que nas escolas dos gramáticos pendem cortinas
às portas; porém, servem menos para velar o segredo que para encobrir o erro.

Não gritem contra mim aqueles mestres a quem já não temo, enquanto confesso a
ti os desejos de minha alma, e aborreço dos meus maus caminhos, a fim de amar os
teus. Não gritem contra mim os comerciantes da gramática, pois, se eu os
interrogar sobre se é verdade que Enéias veio uma vez a Cartago, como afirma o
poeta, os néscios responderão que não sabem, e os sábios negarão o fato. Porém,
se lhes perguntar como se escreve o nome de Enéias, todos os que estudaram me
responderão a mesma coisa, de acordo com a convenção com que os homens
fixaram o valor das letras do alfabeto.

Do mesmo modo, se lhes perguntar o que seria mais prejudicial para a vida
humana: esquecer o ler e o escrever, ou todas as ficções dos poetas, quem não vê
o que logo responderia aquele que não estivesse de tudo esquecido de ti? Pequei,
pois, em minha infância, ao preferir vãos aos proveitosos, ou para dizer melhor, ao

amar àqueles e ao odiar a estes; era para mim uma cantiga odiosa aquele "um e
um, dois; dois e dois, quatro; enquanto considerava espetáculo encantador a
história do cavalo de madeira cheio de guerreiros e o incêndio de Tróia, "e até a
sombra de Creuza".

CAPÍTULO XIV - Aversão ao grego

Por que então aborrecia eu a literatura grega na qual se cantam tais coisas?
Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na
sua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo
ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mim
com relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma
língua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas
gregas.

Eu ainda não conhecia nenhuma palavra daquela língua, e já me obrigavam com
veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu,
ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um
pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam
e as alegrias dos que brincavam, sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi,
sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração desejoso de dar
à luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas
palavras, não dos que as ensinavam, mas do que falavam, em cujos ouvidos ia eu
depositando quanto sentia.

Por aqui se evidencia claramente que, para instruir, tem mais eficácia e
curiosidade livre do que a necessidade inspirada pelo medo. Contudo, os excessos
da curiosidade encontram nessa violência um freio segundo tuas leis, ó Deus; que
desde as palmatórias dos mestres até os tormentos dos mártires sabem dosar suas
salutares amarguras, que nos reconduzem a ti do seio do pernicioso deleite que de
ti nos apartara.

CAPÍTULO XV - Oração

Ouvi, Senhor, minha oração, para que não desfaleça minha alma sob a tua lei, nem
me canse em confessar tuas misericórdias, com as quais me arrancaste de meus
perversos caminhos; que tua doçura sobrepuje todas as doçuras que segui, e assim
te ame fortissimamente, e abrace tua mão com toda minha alma, e me livres de
toda a tentação até o fim dos meus dias.

Pois é, Senhor, meu rei e meu Deus, e a ti consagro quanto falo, escrevo, leio e
conto, pois quando aprendia aquelas futilidades, tu eras o que me davas a
verdadeira disciplina, e já me perdoaste os pecados de deleite cometidos naquelas
vaidades. Muitas palavras úteis aprendi nelas, é verdade; porém, estas também
se podem aprender em estudos sérios, e este é o caminho seguro pelo qual
deveriam encaminhar as crianças.

CAPÍTULO XVI - O mal da mitologia

Ai de ti, torrente dos hábitos humanos! Quem há que te resista? Quando te
secarás? Até quando irás arrastar os filhos de Eva a esse mar imenso e tenebroso,
que apenas logram passar os que embarcam sobre o lenho da cruz? Acaso não foi
em ti que li a fábula de Júpiter que troveja e adultera? É verdade que não podia
fazer tais coisas ao mesmo tempo, mas assim se representou para autorizar a
imitação de um verdadeiro adultério com o encantamento de um falso trovão.
Contudo, qual é o professor de pênula capaz de ouvir com paciência a um homem
nascido do mesmo pó que clama e diz: "Homero imaginava essas ficções e atribuía
aos deuses os vícios humanos; porém, eu preferiria que atribuísse a nós as
qualidades divinas". Com mais verdade se diria que Homero imaginou tudo isso,
atribuindo qualidades divinas a homens corrompidos, para que os vícios não
fossem considerados como tais, e para que todo aquele que os cometesse
parecesse que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos.

E contudo, ó torrente infernal, em ti se precipitam os filhos dos homens, com o
dinheiro gasto para aprender tais coisas. E consideram acontecimento importante
representá-lo, publicamente no Foro, à vista das leis que concedem aos mestres
um prêmio, além de seus salários particulares.

E ferindo os rochedos de tuas margens, gritas dizendo: "Aqui se aprendem as
palavras; aqui se adquire a eloqüência, tao necessária para persuadir e explicar os
pensamentos; não poderíamos pois aprender as palavras: chuva de ouro, regaço,
templo celeste, logro e outras mais, escritas em determinada passagem, se
Terêncio não nos apresentasse um jovem perdido que se propõe a imitar a luxúria
de Júpiter? Contemplava ele uma pintura mural "na qual se representava o
mesmo Júpiter no momento em que, segundo dizem, descia como chuva de ouro
sobre o regaço de Dânae, para lograr assim à pobre mulher".

E vede como se excitava à luxúria a vista de tão celestial mestre:

- Mas que deus fez isto? – diz.

- Nada menos que aquele que faz retumbar a abóbada do céu com enorme trovão!

- E eu, homenzinho, não haveria de fazer o mesmo?

- Fi-lo, sim, e com muito gosto.

De modo algum se aprendem com semelhante torpeza aquelas palavras; antes,
essas palavras levam mais atrevidamente a cometer a mesma devassidão. Não
incrimino as palavras, que são como vasos seletos e preciosos, mas condeno o
vinho do erro que mestres ébrios nos davam a beber nelas e, se não o
bebêssemos, éramos açoitados, sem que pudéssemos apelar para juiz mais sóbrio.

E, não obstante, meu Deus, cuja presença me protege desta lembrança, confesso
que aprendi estas coisas com gosto e que, miserável, nelas me comprazi, sendo por
isso chamado menino de grandes esperanças.

CAPÍTULO XVII - Êxitos escolares

Permite-me, Senhor, que diga também algo de meu talento, dádiva tua, e dos
desatinos em que o empregava. Propunha-se-me como desafio – coisa mui
preocupante para minha alma, tanto pelo louvor ou descrédito, como por medo
dos açoites – que repetisse as palavras de Juno, irada e ressentida por não podem
"afastar da Itália ao rei dos troianos", embora jamais tenha sabido que tivessem
sido pronunciadas por Juno. Mas obrigavam-nos a errar seguindo os passos das
ficções poéticas, e a repetir em prosa o que o poeta havia dito em verso. Era mais
elogiado aquele que, conforme a dignidade da pessoa representada, soubesse
pintar com mais vivacidade e semelhança, e revestir com palavras mais
apropriadas seus afetos de ira ou de dor.

Mas qual o proveito disso – ó vida verdadeira, meu Deus – de que me servia ser
aplaudido por minha declamação mais que todos os meus coetâneos e
condiscípulos? Não era tudo aquilo fumo e vento? Acaso não havia outra coisa em
que exercitar meu talento e minha língua? Teus louvores, Senhor, teus louvores,
consignados nas Escrituras, poderiam soerguer a frágil planta de meu coração, e
eu não teria sido arrebatado pela vaidade de vãs quimeras, presa imunda das
aves. Com efeito, há diversas maneiras de oferecer sacrifício aos anjos rebeldes.

CAPÍTULO XVIII - Leis gramaticais, lei de Deus

Mas, por que admirar-se que eu me deixasse arrastar pelas vaidades e me afastar
de ti, meu Deus, se me propunham como exemplos para imitar a uns homens que
se, ao contar alguma boa ação, deslizassem nalgum barbarismo ou solecismo
cobriam-me de críticas e, pelo contrário, que eram elogiados por narrar suas
torpezas com palavras castiças e apropriadas, de modo eloqüente e elegante, e
que os inchavam de vaidade?

Tu vês, Senhor, estas coisas, e te calas compassivo, paciente, cheio de misericórdia
e verdade. Mas te calarás para sempre? Arranca, pois, agora deste espantoso
abismo a alma que te busca sedenta de teus deleites, e que te diz de coração:
Busquei, Senhor, teu rosto; teu rosto, Senhor, buscarei ainda. Longe está de teu
rosto quem anda ocupado com afetos tenebrosos, porque não é com os pés carnais,
nem cobrindo distâncias que nos aproximamos ou nos afastamos de ti. Porventura
aquele teu filho menor procurou cavalos, ou carros, ou naves, ou voou com asas
invisíveis, ou viajou a pé para alcançar aquela região longínqua onde dissipou o
que lhes havia dado, ó Pai, meigo ao lhe entregar a substância, e mais carinhoso
ainda ao recebê-lo andrajoso? Assim, pois, viver nas paixões da luxúria, é o mesmo
que viver em paixões tenebrosas, é viver longe de teu rosto.

Olha, meu Senhor e meu Deus, é vê paciente, como costumas ver, de que modo
diligente os filhos dos homens observam as regras de ortografia recebidas dos
primeiros mestres, e desprezam as leis eternas de salvação perpétua recebidas de
ti; de tal modo que, se alguns dos que sabem ou ensinam as regras antigas dos
sons pronunciasse a palavra homo, sem aspirar a primeira letra, desagradaria
mais aos homens do que se, contra teus preceitos, odiasse a outro homem, sendo
este homem.

Como se o homem pudesse ter inimigo mais pernicioso que o ódio com que se irrita
contra si mesmo, ou como se pudesse causar a outrem maior dano, perseguindo-o,
do que causa a seu próprio coração odiando! Com certeza, não nos é mais íntima a
ciência das letras do que a consciência, que manda não fazer a outrem o que não
queremos que não nos façam.

Oh! Como és misericordioso, tu, que habitando silencioso nos céus, Deus grande e
único, espalhas com lei infatigável cegueiras vingadoras sobre as paixões ilícitas!
Quando o homem, aspirando à fama de eloqüente, ataca a seu inimigo com ódio
feroz diante do juiz, rodeado de grande multidão de homens, toma todo o cuidado

para que, por um lapsus linguae, não se lhe escape um inter ominibus, sem aspirar
o h, sem cuidar que com o furor de seu ódio se tire um homem de entre os homens.

CAPÍTULO XIX - Mau perdedor

À beira de tal lodaçal jazia eu, pobre criança, sendo esta a arena em que me
exercitava, temendo mais cometer um barbarismo de linguagem do que cuidando
de não invejar, se o cometia, aqueles que o tinham evitado.

Digo e confesso diante de ti, meu Deus, essas misérias, que me angariavam o
louvor daqueles cuja simpatia equivalia para mim a uma vida honesta, pois não
via o abismo pois não via o abismo de torpeza em que tudo isso me lançara, longe
dos teus olhos. A teus olhos quem era mais repelente do que eu? E eu até
desagradava tais homens, enganando com infinidade de mentiras a meus criados,
mestres e pais por amor dos jogos, por gosto de ver espetáculos frívolos e o desejo
inquieto de os imitar.

Também cometia furtos na despensa e na mesa de meus pais, ora impelido pela
gula, ora para ter de dar aos meninos para brincar com eles, folguedos que os
deleitavam tanto quanto a mim, e que eles me faziam pagar. No jogo,
frequentemente, conseguia vitórias fraudulentas, vencido pelo desejo de me
sobressair. Contudo, nada havia que eu quisesse mais evitar e que eu
repreendesse mais atrozmente se o descobrisse em outros, que o mesmo eu fazia
aos demais.

Se acaso eu era o prejudicado, e o acusado ficava furioso, eu não cedia. Será esta a
inocência infantil? Não, Senhor, não o é, eu to confesso, meu Deus. Porque essas
mesmas coisas que se fazem com os criados e mestres por causa de nozes, bolas e
passarinhos, se avultam na maioridade com os magistrados e reis por causa de
dinheiro, palácios e servos, do mesmo modo que à palmatória sucedem-se maiores
castigos.

Assim, quando tu, nosso rei, disseste: Delas é o reino do céus – quiseste sem
dúvida louvar na pequenez de sua estatura um símbolo de humildade.

CAPÍTULO XX - Ação de graças

Contudo, Senhor, graças te sejam dadas, excelso e ótimo criador e ordenador do
universo, nosso Deus, mesmo que te limitasses a me fazer apenas menino. Porque

então, eu já existia, vivia, sentia, cuidava da minha integridade, eco de tua
profunda unidade, fonte de minha existência.

Guardava também, com o secreto instinto, a integridade dos meus outros
sentidos, e deleitava-me com a verdade nos pequenos pensamentos que formava
sobre coisas pequenas.

Não queria ser enganado, tinha boa memória, e me ia instruindo com a
conversação. Alegrava-me com a amizade, fugia à dor, ao desprezo, à ignorância. E
não seria isto, em tal criatura, digno de admiração e de louvor? Pois todas essas
coisas são dons do meu Deus, que eu não dei a mim mesmo. E todos são bons, e
tudo isso constitui o meu eu.

O que me criou, portanto, é bom, e ele próprio é o meu bem; a ele louvo por todos
estes bens que integravam meu ser de criança. Eu pecava em buscar em mim
próprio e nas demais criaturas, e não nele, os deleites, grandezas e verdades; por
isso caia logo em dores, confusões e erros.

Graças a ti, minha doçura, minha esperança e meu Deus, graças a ti por teus dons;
que eles fiquem em ti conservados. Assim me guardarás também a mim, e
aumentarão e aperfeiçoarão os dons que me deste, e eu estarei contigo, porque
também me deste a existência.

LIVRO SEGUNDO

CAPÍTULO I - A adolescência

Quero recordar minhas torpezas passadas e as degradações carnais de minha
alma, não porque as ame, mas por te amar, ó meu Deus. É por amor de teu amor
que o faço, percorrendo com a memória amargurada, aqueles meus perversos
caminhos, para que tu me sejas doce, doçura sem engano, ditosa e eterna doçura.
Resgata-me da dispersão em que me dissipei quando, afastando-me de tua
unidade, me desvaneci em muitas coisas.

Tempo houve de minha adolescência em que ardi em desejos de me fartar dos
prazeres mais baixos, e ousei a bestialidade de vários e sombrios amores, e se
murchou minha beleza, e me transformei em podridão diante de teus olhos, para
agradar a mim mesmo e desejar agradar aos olhos dos homens.

CAPÍTULO II - As primeiras paixões

E que me deleitava, senão amar e ser amada? Mas eu não era moderado, indo de
alma para alma de acordo com os sinais luminosos da amizade, pois, da lodosa
concupiscência de minha carne e do fervilhar da puberdade levantava-se como que
uma névoa que obscurecia e ofuscava meu coração, a ponto de não discernir a
serena amizade da tenebrosa libido. Uma e outra, confusamente, me abrasavam;
arrastavam minha fraca idade pelo declive íngreme de meus apetites, afogando-
me em um mar de torpezas. Tua ira se acumulava sobre mim, e eu não o sabia.
Ensurdeci com o ruído da cadeia de minha mortalidade, e cada vez mais me
afastava de ti, e tu o consentias; e me agitava, e me dissipava, e me derramava e
fervia em minha devassidão, e tu te calavas – ó alegria que tão tarde encontrei! –
tu te calavas então, e eu ia cada vez mais para longe de ti, sempre atrás de
estéreis sementes de dores, com vil soberba e inquieto cansaço.

Oh! Se alguém refreasse aquela minha miséria, para que fizesse bom uso da fugaz
beleza das criaturas inferiores; limitasse suas delicias, a fim de que as vagas
daquela minha idade rompessem na praia do matrimonio, já que de outro modo
não podia haver paz – contendo-se nos limites da geração, como prescreve tua lei,
Senhor, tu que crias o gérmen transmissor de nossa vida mortal, e que com mão
bondosa podes suavizar a agudeza dos espinhos, que mantiveste fora do paraíso!
Porque tua onipotência está perto de nós, mesmo quando vagueamos longe de ti.

Pelo menos eu deveria atender com mais diligencia à voz de tuas nuvens: Também
eles sofrerão as tribulações da carne; mas eu quisera poupar-vos; e bom é ao
homem não tocar em mulher; o que está sem mulher pensa nas coisas de Deus, de
como o há de agradar; mas o que está ligado pelo matrimonio pensa nas coisas do
mundo, e em como há de agradar à mulher.

Estas são as palavras que eu deveria ter ouvido mais atentamente; e, eunuco pelo
amor ao reino de Deus, teria suspirado mais feliz por teus abraços.

Mas eu, miserável, tornei-me em torrente, seguindo o ímpeto de minha paixão, te
abandonei e transgredi a todos os teus preceitos, sem porém, escapar de teus
castigos. E quem o poderia dentre os mortais? Sempre estavas ao meu lado,
irritando-se misericordiosamente comigo, e aspergindo com amaríssimos desgostos
todos os meus gozos ilícitos, para que eu buscasse a alegria sem te ofender e,
quando a achasse, de modo algum fosse fora de ti, Senhor.

Fora de ti, que impões a dor em mandamento, e feres para sarar, e nos tiras a
vida para que não morramos sem ti.

Mas onde estava eu? Oh! Quão longe, exilado das delicias de tua casa naqueles
meus dezesseis anos de idade carnal, quando esta empunhou seu cetro sobre mim,
e eu me rendi totalmente a ela, à fúria da concupiscência que a degradação
humana legítima, porém, ilícita, de acordo com as tuas leis.

Nem mesmo os meus cogitaram em me sustentar na queda, pelo casamento, ao
ver-me cair; cuidavam apenas que eu aprendesse a compor discursos magníficos e
a persuadir com a palavra.

CAPÍTULO III - Cegueira do pai, cuidados da mãe

Nesse mesmo ano tive de interromper meus estudos, quando voltei de Madaura,
cidade vizinha, onde fora estudar literatura e oratória, enquanto se faziam os
preparativos necessários para minha viagem mais longa a Cartago, levado mais
pela ambição de meu pai que pelos seus parcos bens, pois, era mui modesto
cidadão de Tagaste.

Mas, a quem conto eu estes fatos? Certamente, não a ti, meu Deus, mas em tua
presença conto estas coisas aos da minha estirpe, ao gênero humano, ainda que
estas páginas chegassem às mãos de poucos. E para que então? Para que eu, e

quem me ler, pensemos na profundeza do abismo de onde temos de clamar por ti?
E que há de mais próximo a teus ouvidos que o coração contrito e a vida que
procede da fé?

Quem então não cumulava a meu pai de louvores, pois excedendo até seus
deveres familiares, gastava com o filho o necessário para tão longa viagem por
causa de seus estudos?

Porque muitos cidadãos, muito mais ricos do que ele, não mostravam para com os
filhos igual cuidado.

Contudo, este mesmo pai não se importava de saber se eu crescia para ti, ou que
fosse casto, contanto que fosse deserto; mas antes eu era deserto, por carecer de
teu cultivo, ó Deus, único, verdadeiro e bom senhor de teu campo, o meu coração.

Porém, no meu décimo-sexto ano foi necessária uma interrupção em meus estudos
por falta de recursos familiares e, livre da escola, passei a viver com meus pais.
Avassalaram então minha cabeça os espinhos de minhas paixões, sem que
houvesse mãos que os arrancassem.

Pelo contrário, meu pai, certo dia, percebendo ao banho sinais de minha
puberdade e vendo-me revestido de inquieta adolescência, como se já se alegrasse
pensando nos netos, foi contá-lo alegre à minha mãe. Alegria esta gerada pela
embriaguez com que este mundo esquece de ti, seu criador, e em teu lugar ama
tua criatura; embriaguez que nasce do vinho sutil de sua perversa e mal inclinada
vontade para as coisas baixas.

Mas, nessa época, já tinhas começado a levantar, no coração de minha mãe, teu
templo e os alicerces de tua santa morada; meu pai não era mais que catecúmeno,
recente ainda. Por isso minha mãe perturbou-se com santo temor. Embora eu
ainda não fosse batizado, temia que eu seguisse as sendas tortuosas por onde
andam os que te voltam as costas, e não o rosto.

Ai de mim! Como me atrevo a dizer que te calavas quando me afastava de ti?
Seria verdade que então te calavas comigo? E de quem eram, senão tuas, aquelas
palavras que pela boca de minha mãe, tua serva fiel, sussurraste em meus
ouvidos, embora nenhuma delas penetrasse no meu coração, para que a
cumprisse?

Lembro bem que um dia me admoestou em segredo, com grande solicitude, que
me abstivesse da luxúria e, sobretudo, que não cometesse adultério com a mulher
de ninguém.

Porém, esses conselhos pareciam-me próprios de mulheres, e eu me envergonharia
de segui-los.

Mas, na realidade, eram teus, embora eu não o soubesse, e por isso julgava que te
calavas, e que era ela quem me falava; e eu te desprezava em tua serva, eu, seu
filho, filho de tua serva e servo teu, a ti que não cessavas de me falar pela sua
boca.

Mas eu não o sabia, e me precipitava com tanta cegueira, que me envergonhava
entre os companheiros de minha idade, de ser menos torpe do que eles. Os ouvia
jactar-se de suas maldades, e gloriar-se tanto mais quanto mais infames eram;
assim eu gostava de fazer o mal, não só pelo prazer, mas ainda por vaidade. O que
há de mais digno de vitupério do que o vicio? E, contudo, para não ser
escarnecido, tornava-me mais viciado e, quando não houvesse cometido pecado
que me igualasse aos mais perdidos, fingia ter feito o que não cometera, para que
não parecesse mais abjeto quanto mais inocente, e tanto mais vil quanto mais
casto.

Eis com que companheiros andava eu pelas graças de Babilônia, revolvendo-me na
lama, como em cinamomo e ungüentos preciosos. E, para que todo esse lodo me
pegasse bem firme, subjugava-me o inimigo invisível, e me seduzia, por ser eu
presa fácil da sedução.

Nem então minha mãe carnal, que já fugira do meio da Babilônia, mas que em
outras coisas caminhava mais devagar, cuidou – como fizera ao aconselhar-me a
castidade – de conter com os laços do matrimonio aquilo de que seu marido lhe
falara a meu respeito. Já percebera ela que me era pestilencial, e que mais
adiante me seria perigoso – já que essa paixão não podia ser cortada pela raiz.
Não pensou nisso, digo, por temer que o vínculo matrimonial frustrasse a
esperança que sobre mim acalentava; não a esperança da vida futura, que ela já
tinha posto em ti, mas a esperança das letras que ambos, meu pai e minha mãe,
desejavam ardentemente; meu pai, porque não pensava quase nada de ti, mas
apenas ambições vãs a meu respeito; minha mãe, porque considerava que tais
tradicionais estudos das letras não só não me seriam de estorvo, sendo de não
pouca ajuda para chegar a ti. Assim julgo eu, agora, enquanto me é possível pela

lembrança, o caráter de meus pais.

Por isso, soltavam-me as rédeas para o jogo mais do que o permite uma moderada
severidade, deixando-me cair na dissolução de várias paixões; e de todas surgia
uma obscuridade que me toldava, ó meu Deus, a luz da tua verdade; e, por assim
dizer, de meu corpo, brotava minha iniqüidade.

CAPÍTULO IV - O furto das pêras

É certo, Senhor, que tua lei pune o furto, lei tão arraigada no coração dos homens
que nem a própria iniqüidade pode apagar. Que ladrão há que suporte com
paciência que o roubem? Nem o rico tolera isto a quem o faz forçado pela
indigência. Também eu quis roubar, e roubei não forçado pela necessidade, mas
por penúria, fastio de justiça e abundância de maldade, pois roubei o que tinha em
abundância, e muito melhor. Nem me atraía ao furto o gozo de seu resultado, mas
atraía-me o furto em si, o pecado.

Nas imediações de nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem
pelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite – pois até então
ficaríamos jogando nas eiras, de acordo com nosso mau costume – dirigimo-nos ao
local, eu e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E
levamos grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aos
porcos, embora comêssemos alguns; nosso deleite era fazer o que nos agradava
justamente pelo fato de ser coisa proibida.

Aí está meu coração, Senhor, meu coração que olhaste com misericórdia quando se
encontrava na profundeza do abismo. Que este meu coração te diga agora que era
o que ali buscava, para fazer o mal gratuitamente, não tendo minha maldade
outra razão que a própria maldade. Era hedionda, e eu a amei; amei minha morte,
amei meu pecado; não o objeto que me fazia cair, mas minha própria queda. Ó
torpe minha alma, que saltando para fora do santo apoio, te lançavas na morte,
não buscando na ignomínia senão a própria ignomínia?

CAPÍTULO V - A causa do pecado

Todos os corpos formosos, o ouro, a prata, e todos os demais têm, com efeito, seu
aspecto atraente. No contato carnal intervém grandemente a congruência das
partes, e cada um dos sentidos percebe nos corpos certa modalidade própria.
Também a honra temporal e o poder de mandar e dominar têm seu atrativo, de

onde nasce o desejo de vingança.

Todavia, para obtermos estas coisas, não é necessário abandonarmos a ti, nem nos
desviar de tua lei. Também a vida que aqui vivemos tem seus encantos, por certa
beleza que lhe é própria, e pela harmonia que tem com as demais belezas
terrenas. Cara é, finalmente, a amizade dos homens pela união que une muitas
almas com o doce laço do amor.

Por todos estes motivos, e outros semelhantes, pecamos quando, por propensão
imoderada para os bens ínfimos, são abandonados os melhores e mais altos, como
tu, Senhor, nosso Deus, tua verdade e tua lei.

É verdade que também esses bens ínfimos têm seus deleites, porém, não como os
de Deus, criador de todas as coisas, porque nele se deleita o justo, e nele acham
suas delicias os retos de coração.

Portanto, quando indagamos a causa de um crime, não descansamos até averiguar
qual o apetite dos bens chamados ínfimos, ou que temor de perdê-los foi capaz de
provocá-lo. Sem dúvida são belos e atraentes, embora, comparados com os bens
superiores e beatíficos, sejam abjetos e desprezíveis. Alguém comete um
homicídio. Por que? Porque desejou a esposa do morto, ou suas terras, ou porque
quis roubar alguma coisa, ou então, ferido, ardeu em desejos de vingança. Por
acaso cometeria o crime sem motivo, apenas pelo gosto de matar? Quem pode
acreditar em semelhante coisa?

Mesmo de Catilina, homem sem entranhas e muito cruel, de quem se disse que era
mau e cruel sem razão, acrescenta o historiador um motivo: "Para que a
ociosidade não embotasse suas mãos e sentimento".

Todavia, se indagares porque agia assim, dir-te-ei que mediante o exercício de
crimes, depois de tomada a cidade, conseguisse honras, poderes e riquezas,
libertando-se do medo das leis e das dificuldades da vida, causados pela pobreza
de seu patrimônio e a consciência de seus crimes. Logo, nem o próprio Catilina
amava seus crimes, mas aquilo por cujo motivo os cometia.

CAPÍTULO VI - O crime gratuito

Que amei, então, em ti, ó meu furto, crime noturno dos meus dezesseis anos? Não
eras belo, já que eras furto. Mas, por acaso és algo para que eu fale contigo? Belas

eram as pêras que roubamos, por serem criaturas tuas, ó formosíssimo Criador de
todas as coisas, bom Deus, Deus sumo, meu bem e meu verdadeiro bem; belas
eram aquelas pêras! Porém, não eram elas que apeteciam minha alma depravada.
Eu as tinha em abundância, e melhores. Colhi-as da árvore só para roubar; tanto
que, tão logo colhidas, joguei-as fora, saboreando nelas apenas a iniqüidade, com
que me regozijava. Se alguma delas entrou em minha boca, somente o crime é que
lhe deu sabor.

E agora pergunto, meu Deus: que é que me deleitava no furto? Pois não encontro
nenhuma beleza nele. Já não falo da beleza que reside na justiça e na prudência,
nem sequer da que resplandece na inteligência do homem, na memória, nos
sentidos ou na vida vegetativa; nem da que brilha nos magníficos astros em suas
órbitas, ou na terra e no mar, cheios de criaturas, que nascem para sucederem
umas às outras; nem sequer da defeituosa e sombria formosura dos vícios
enganadores.

O orgulho imita a altura; mas só tu, Deus excelso, estás acima de todas as coisas. E
a ambição, que busca, senão honras e glorias, quanto tu és o único sobre todas as
coisas e ser honrado e glorificado eternamente? A crueldade dos tiranos quer ser
temida; porém, quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, porém,
quem há de ser temido senão Deus, a cujo poder ninguém, em tempo algum ou
lugar, nem por nenhum meio pode subtrair-se e fugir? As carícias da volúpia
buscam ser correspondidas; porém, não há nada mais carinhoso que tua caridade,
nem que se ame de modo mais salutar que tua verdade, sobre todas as coisas
formosa e resplandecente. A curiosidade sugere amor à ciência, enquanto só tu
conheces plenamente todas as coisas. Até a própria ignorância e estultícia cobrem-
se com o nome de simplicidade e inocência; das quais não acham nada mais simples
do que tu. E que pode haver mais inocente do que tu, pois, até mesmo o castigo
dos maus lhes vem de seus pecados? A indolência gosta do descanso; porém, que
repouso seguro pode haver fora do Senhor? O luxo gosta de ser chamado de
fartura; mas só tu és a plenitude e a abundância inesgotável de eterna suavidade.
A prodigalidade veste-se com a capa da liberalidade; porém, só tu, és verdadeiro e
liberalíssimo doador de todos os bens. A avareza quer possuir muitas coisas;
porém, só tu as possui todas. A inveja litiga acerca de excelências; porém, que há
mais excelente do que tu? A ira busca a vingança; e que vingança mais justa do
que a tua? O temor aborrece as coisas repentinas e insólitas, contrárias ao que se
ama ou se deseja manter seguro; mas haverá para ti algo de novo e repentino?
Quem poderá separar de ti o que amas? E onde, senão em ti, se encontra
inabalável segurança? A tristeza definha com a perda das coisas com que a cobiça
se deleita, e não quer que se lhe tire nada, como nada pode ser tirado de ti.

Assim peca a alma, quando se aparta e busca fora de ti o que não pode achar puro
e ilibado senão quando se volta novamente para ti. Perversamente te imitam
todos os que se afastam de ti e se levantam contra ti. Porém, mesmo imitando-te,
mostram que és o criador de toda criatura e que, portanto, não existe lugar onde
alguém se possa afastar de ti de modo absoluto.

Que amei, então, naquele furto, e no que imitei, viciosa e imperfeitamente, a meu
Senhor?

Acaso foi o gosto de agir pela fraude contra a tua lei, já que não o podia fazer por
força, simulando, cativo, uma falsa liberdade ao fazer impunemente o que estava
proibido, imagem tenebrosa de tua onipotência?

Eis aqui o servo que, fugindo do seu senhor, seguiu uma sombra. Ó podridão! Ó
monstro da vida e abismo da morte! Como pôde agradar-me o ilícito, e não por
outro motivo, senão porque era ilícito?

CAPÍTULO VII - Ação de graças

Como agradecerei ao Senhor por poder recordar todas estas coisas sem que minha
alma sinta medo algum? Amar-te-ei, Senhor, e dar-te-ei graças, e confessarei teu
nome, pois me perdoaste tantas e tão nefandas ações. Devo à tua graça e
misericórdia teres-me dissolvido os pecados como gelo, como também todo o mal
que não pratiquei. De fato, de que pecados não seria capaz, eu que amei
gratuitamente o erro?

Confesso que todos já me foram perdoados; o mal cometido voluntariamente, e o
que deixei de fazer pela tua graça. Quem dentre os homens, conhecendo tua
fraqueza, poderá atribuir às próprias forças sua castidade e inocência para amar-te
menos, como se tivesse menor necessidade de tua misericórdia, com a qual
perdoas os pecados aos que se convertem a ti?

Aquele, pois, que, chamado por ti, seguiu tua voz e evitou todas estas coisas que
lê de mim, e que eu recordo e confesso, não se ria de mim por haver sido curado
pelo mesmo médico que o preservou de cair enfermo, ou melhor, de que adoecesse
tanto. Antes, esse deve amar-te tanto e ainda mais do que eu, porque o mesmo
que me curou de tantas e tão graves enfermidades, esse mesmo o livrou de cair no
pecado.

CAPÍTULO VIII - O prazer da cumplicidade

CAPÍTULO VIII - O prazer da cumplicidade

E que fruto colhi eu, miserável, daquelas ações que agora recordo com rubor?
Sobretudo daquele furto, em que amei o próprio furto, e nada mais? Nenhum, pois
o furto, em si nada valia, ficando eu mais miserável com ele. Todavia, é certo que
eu sozinho não o teria praticado – a julgar pela disposição de meu ânimo na
ocasião; - não, de modo algum; eu sozinho não o faria.

Portanto, apreciei também na ocasião a companhia daqueles com quem o cometi.
Logo, também é certo que apreciei algo mais além do furto; embora não amasse
de fato nada mais, pois também essa cumplicidade era nada.

Mas, que é esta, na verdade? E quem mo poderá ensinar, senão o que ilumina
meu coração e rasga minhas sombras? De onde vem à minha alma a idéia destas
indagações, desta discussão e considerações? Se eu então amasse as pêras que
roubei, e quisesse apenas seu desfrute, podia tê-las roubado sozinho, se isso
bastasse. Poderia fazer a iniqüidade pela qual chegaria meu deleite sem
necessidade de excitar o prurido da minha cobiça com a conivência de almas
cúmplices.

Porém, como não achava deleite algum nas pêras, colocava este no próprio
pecado, que consistia na companhia dos que pecavam comigo.

CAPÍTULO IX - O prazer do pecado

E que sentimento era aquele de minha alma? certamente, assaz torpe e eu um
desgraçado por alimentá-lo. Mas, que era na realidade? E quem há que conheça os
pecados? Era como um riso, como que a fazer-nos cócegas no coração, provocado
por ver que enganávamos aos que não suspeitavam de nós tais coisas, e porque
sabíamos que haviam de detestá-las.

Porém, por que me deleitava o não perpetrar sozinho o roubo? Acaso alguém se ri
facilmente quando está só? Ninguém o faz, é verdade; porém, também é verdade
que às vezes o riso tenta e vence aos que estão sós, sem que ninguém os veja,
quando se oferece aos sentidos ou à alma algo extraordinariamente ridículo.
Porque a verdade é que eu sozinho nunca teria feito aquilo; não, eu sozinho jamais
faria aquilo. Tenho viva, diante de mim, meu Deus, a lembrança daquele estado de
alma, e repito que eu sozinho não teria cometido aquele furto, do qual não me
deleitava o objeto, mas a razão do roubo, o que, sozinho, não me teria agradado

de modo algum, nem eu o teria feito.

Ó amizade inimiga! Sedução impenetrável da alma, vontade de fazer o mal por
passatempo e brinquedo, apetite do dano alheio sem proveito algum e sem desejo
de vingança!

Só porque sentimos vergonha de não ser sem-vergonha quando ouvimos; "Vamos!
Façamos!".

CAPÍTULO X - Deus, o sumo bem

Quem desatará este nó, tão enredado e emaranhado? Como é asqueroso! Não
quero voltar para ele os olhos, não quero vê-lo. Só a ti quero, justiça e inocência,
tão bela e graciosa aos olhos puros, e com insaciável saciedade. Só em ti se acha o
descanso supremo e a vida imperturbável. Quem entra em ti, entra no gozo do seu
Senhor, e não temerá, e estará perfeitamente bem no sumo bem. Eu me afastei de
ti e andei errante, meu Deus, mui longe de teu esteio em minha adolescência, e
cheguei a ser para mim mesmo uma região de esterilidade.

LIVRO TERCEIRO

CAPÍTULO I - O gosto do amor

Cheguei a Cartago, e por toda parte fervilhava a sertã de amores impuros. Ainda
não amava, mas já gostava de amar; secretamente sedento, aborrecia a mim
próprio por não me sentir mais indigente de amor. Gostando do amor buscava o
que amar, e odiava a segurança e os meus caminhos sem perigos, porque tinha
dentro de mim fonte de alimento interior, de ti mesmo, ó meu Deus. Eu não sentia
essa fonte como tal; antes, estava sem apetite algum dos manjares incorruptíveis,
não porque estivesse saciado deles, mas porque, quanto mais vazio, tanto mais
enfastiado me sentia.

E por isso minha alma não estava bem e, ferida, voltava-se para fora de si, ávida
de se roçar miseravelmente às coisas sensíveis; se porém não tivessem alma, não
seriam certamente amadas.

Amar e ser amado era para mim a coisa mais doce, sobretudo se podia gozar do
corpo da criatura amada. Deste modo manchava com torpe concupiscência a fonte
da amizade, e obscurecia seu candor com os vapores infernais da luxúria. E apesar
de tão torpe e impuro, desejava com afã e cheio de vaidade, passar por afável e
cortês.

Caí por fim no amor, em que desejava ser colhido. Porém, ó meu Deus,
misericórdia minha, quanto fel não misturaste àquela suavidade, e quão bom foste
ao fazê-lo! Fui amado, e cheguei secretamente aos laços do prazer, e me deixei
alegremente enredar com trabalhosos laços, para ser logo açoitado com as varas
de ferro ardente do ciúme, das suspeitas, dos temores, das iras e das contendas.

CAPÍTULO II - A paixão dos espetáculos

Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios das imagens de minhas misérias e
de alimento para o fogo de minha paixão. Mas, por que quer o homem condoer-se
ao contemplar coisas tristes e trágicas, que de modo algum gostaria de suportar?
Contudo, o espectador deseja sofrer com elas, e até essa mesma dor é seu deleite.
Que é isso, senão rematada loucura? De fato, tanto mais se comove alguém com
elas quanto menos livre se está de tais afetos, embora chamemos de misérias os
sofrimentos próprios, e de compaixão a comiseração do mal alheio.

Porém, que compaixão pode haver em coisas fictícias e representadas? Nelas não
se incita o espectador a que socorra a alguém, senão que o mesmo é convidado
apenas à angústia, apreciando tanto mais o autor daquelas histórias quanto maior
é o sentimento que elas nos inspiram. De onde resulta que, se tais desgraças
humanas – quer das histórias antigas, quer sejam inventadas – são representadas
de forma a não se excitarem sofrimento ao expectador, este sai aborrecido e
murmurando; se porém, pelo contrário, é levado à tristeza, fica atento e chora
satisfeito.

Quer isso dizer que amamos as lágrimas e a dor? Sem dúvida que todo homem
busca o gozo; mas como não agrada a ninguém ser miserável, e sendo grato a
todos ser misericordioso, e como a piedade é inseparável da dor, não seria esta a
causa verdadeira para que apreciemos essas emoções dolorosas?

Também isso provém da amizade. Mas para onde se dirige? Para onde vai? Por
que se atira à torrente da pez ardente, às vagas horrendas de negras leviandades
em que a amizade se transforma voluntariamente, afastada e privada de sua
celestial serenidade que o homem repudia?

Deve-se, pois, repelir a compaixão? De modo algum. Convém, pois, que alguma vez
se amem as dores. Mas evita nisso a impureza, ó minha alma, sob proteção de
Deus, do Deus de nossos pais, louvado e exaltado por todos os séculos; cuidado
com a impureza. Porque nem agora me fecho a tal compaixão. Mas naquele tempo
comprazia-me no teatro com os amantes, quando eles se gozavam em suas
torpezas – embora estas não passassem de encenações. E quando um deles se
perdia, eu quase piedosamente me contristava, e sentia prazer numa e noutra
coisa.

Hoje, porém, tenho mais compaixão do homem que se alegra em seus vícios, que
do que sofre pela perda de um prazer funesto ou pela perda de uma mísera
felicidade. Esta misericórdia é certamente mais verdadeira, mas nela a dor não
encontra nenhum prazer. E embora seja certo que se aprove quem por caridade se
compadece do miserável, contudo, quem é fraternalmente compassivo preferiria
que não houvesse razões para se compadecer. Porque assim como não é possível
que exista uma benevolência malévola, tampouco o é que haja miseráveis para
deles se compadecer.

Há, pois, dores que merecem compaixão, porém, nenhuma que mereça amor. Por
isso tu, Deus, que amas as almas muito mais elevadamente que nós, te

compadeces delas de modo muito mais puro, porque não sentes nenhuma dor. Mas
quem será capaz de chegar a isso?

Mas eu, desventurado, amava então a dor, e buscava motivos para senti-la.
Naquelas desgraças alheias, falsas e mímicas, agradava-me tanto mais a ação do
ator, e me mantinha tanto mais atento quanto mais copiosas lágrimas me fazia
derramar.

Mas, que admira que eu, infeliz ovelha transviada de teu rebanho, por não aceitar
tua proteção, estivesse atacado de ronha asquerosa? De aqui nasciam, sem
dúvida, os desejos daquelas emoções de dor que, todavia, não queria que fossem
muito profundas em mim, porque não desejava padecer coisas como as que via
representadas. Comprazia-me que aquelas coisas, ouvidas ou fingidas, me
tocassem só superficialmente. Mas, como acontece aos que coçam a ferida com as
unhas, terminava por provocar em mim mesmo um tumor abrasador, podridão e
pus repelente.

Tal era minha vida. Mas, seria isto vida, meu Deus?

CAPÍTULO III - O estudo da retórica e os demolidores

Entretanto, tua misericórdia, fiel, de longe pairava sobre mim. Em quantas
iniqüidades não me corrompi, meu Deus, levado por sacrílega curiosidade que,
separando-me de ti, conduzia-me aos mais baixos, desleais e enganosos serviços
aos demônios, a quem sacrificava minhas más ações, sendo em todas flagelado com
duro açoite por ti!

Também ousei apetecer ardentemente e procurar meios para conseguir os frutos
da morte na celebração de teus mistérios, dentro dos muros de tua igreja. Por isso
me açoitaste com duras penas, que nada eram comparadas com minhas culpas, ó
Deus, misericórdia infinita, e meu refúgio contra os terríveis malfeitores, com os
quais vaguei de cabeça erguida, afastando-me cada vez mais de ti, preferindo
meus caminhos aos teus, amando a liberdade fugitiva!

Os estudos a que era entregue, que se denominavam honestos ou nobres, tinham
por objetivo as contendas do foro, nas quais deveria me distinguir com tanto
maior louvor quanto mais hábeis fossem as mentiras. Tal é a cegueira dos homens,
que até de sua própria cegueira se gloriam!

Eu já conseguira, naquele tempo, ser o primeiro da escola de retórica, e por isso
me vangloriava soberbamente, e me inflava de orgulho. Contudo, tu sabes,
Senhor, que eu era muito mais sossegado que os demais, e totalmente alheio às
turbulências dos eversores – ou demolidores – nome sinistro e diabólico que eles
consideravam distintivo de urbanidade, entre os quais vivia com imprudente
pudor por não pertencer a seu grupo. É verdade que andava com eles, e que me
deleitava, às vezes, com sua amizade, porém, sempre aborreci o que faziam, como
as troças e a insolência com que surpreendiam e ridicularizavam a timidez dos
novatos, sem outra finalidade senão rir de suas trapalhadas, fazendo disso
alimento para suas malévolas alegrias. Nada há mais parecido a estas ações que
as dos demônios, pelo que nenhum nome lhes cai melhor que o de eversores ou
demolidores, por serem eles transformados e pervertidos totalmente pelos
espíritos malignos, que assim os burlam e enganam, sem que o saibam, justamente
no que eles gostam de ludibriar ou enganar os demais.

CAPÍTULO IV - O Hortênsio de Cícero

Entre essa gente estudava eu, em tão tenra idade, os livros da eloqüência, na qual
desejava sobressair com o fim condenável e vão de satisfazer à vaidade humana.
Mas, seguindo o programa usado no ensino desses estudos, cheguei a um livro de
Cícero, cuja linguagem, mais do que seu conteúdo, quase todos admiram. Esse livro
contém uma exortação à filosofia, e se chama Hortênsio. Esse livro mudou meus
sentimentos, e transferiu para ti, Senhor, minhas súplicas, e fez com que
mudassem meus votos e desejos. Subitamente, tornou-se vil a meus olhos toda vã
esperança, e com incrível ardor de meu coração suspirava pela sabedoria imortal,
e comecei a me reerguer para voltar a ti. Não era para limar a linguagem –
aperfeiçoamento que, parece, eu compraria com o dinheiro de minha mãe, naquela
idade de meus dezenove anos, fazendo dois que morrera meu pai – não era,
repito, para limar o estilo que eu me dedicava à leitura daquele livro, nem era seu
estilo o que a ela me incitava, mas o que ele dizia.

Como ardia, meu Deus, como ardia meus desejos de voar para ti das coisas
terrenas, sem que eu soubesse o que obravas em mim! Porque em ti está a
sabedoria, pela qual aquelas páginas me apaixonavam. Não faltam os que nos
iludam servindo-se da filosofia, colocando ou encobrindo seus erros com nome tão
grande, tão doce e honesto. Mas quase todos os que assim fizeram em seu tempo
e em épocas anteriores, são apontados e refutados nesse livro. Também se
encontra ali bem claro aquele salutar aviso de teu Espírito, dado por meio de teu
servo bom e piedoso (Paulo): Vede que ninguém vos engane com vãs filosofias e
argúcias sedutoras, de acordo com a tradição dos homens e os ensinamentos deste

mundo, e não de acordo com Cristo, porque é nele que habita corporalmente toda
a plenitude da divindade.

Mas então – tu bem o sabes, luz de meu coração – eu ainda não conhecia o
pensamento de teu Apóstolo. Só me deleitava naquelas palavras de exortação, o
fato de me excitarem fortemente, inflamando-me a amar, a buscar, a conquistar, a
reter e a abraçar não a esta ou àquela seita, senão à própria Sabedoria, onde
quer que estivesse. Só uma coisa me arrefecia tão grande ardor: não ver ali o
nome de Cristo. Porque este nome, Senhor, este nome de meu Salvador, teu filho,
por tua misericórdia eu o bebera piedosamente com o leite materno, e o
conservava, no mais profundo do meu coração, em alto apreço; e assim, tudo
quanto fosse escrito sem este nome, por mais verídico, elegante e erudito que
fosse, não me arrebatava totalmente.

CAPÍTULO V - A desilusão das escrituras

Em vista disso, decidi dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer.
Vi ali algo encoberto para os soberbos e obscuro para as crianças, mas humilde a
princípio e sublime à medida que se avança o velado de mistérios; e eu não estava
disposto a poder entrar nela, dobrando a cerviz à sua passagem. Contudo, ao fixar
nela a atenção, não pensei o que agora estou dizendo, mas simplesmente me
pareceu indigna de ser comparada com a majestade dos escritos de Cícero. Meu
orgulho recusava sua simplicidade, e minha mente não lhe penetrava o íntimo.
Contudo, a agudeza desta visão haveria de crescer com os pequenos; mas eu de
nenhum modo queria ser criança e, enfatuado de soberba, considerava-me grande.

CAPÍTULO VI - A sedução do maniqueísmo

Deste modo vim cair com uns homens que deliravam orgulhosos, demasiado
carnais e loquazes; em sua boca havia laços diabólicos e engodo pegajoso feito com
as silabas de teu nome, do nosso Senhor, Jesus Cristo, e do nosso Paráclito e
Consolador, o Espírito Santo. Estes nomes nunca saíam de seus lábios, porém, só
no som e ruído da boca, pois de resto, seu coração estava vazio de toda verdade.

Diziam: "Verdade! Verdade!" – e, incessantemente, falavam-me da verdade, que
nunca existiu neles; antes, diziam muitas falsidades, não apenas de ti, que és
verdade por excelência, mas também dos elementos deste mundo, criação tua.
Sobre isso, mesmo quando os filósofos diziam a verdade, tive de ultrapassá-los nos
raciocínios por amor de ti, ó pai sumamente bom, beleza de todas as belezas!

Ó verdade, verdade! Quão intimamente suspiravam por ti as fibras da minha
alma, quando eles te faziam soar ao meu redor frequentemente e de muitos
modos, embora apenas com as palavras e em seus muitos e volumosos livros. Estes
eram as bandejas nas quais, estando eu faminto de ti, serviam-me em teu lugar o
sol e a lua, formosas obras de tuas mãos, porém, obras tuas, e não a ti, nem
sequer das principais. De fato, tuas obras espirituais são superiores a estas
corporais, ainda que estas sejam brilhantes e celestes. Mas eu tinha sede e fome
não daquelas primeiras, mas de ti mesmo, ó verdade, na qual não há mudança
nem obscuridade momentânea!

E eles serviam-me nessas bandejas esplendidas ficções, de acordo com as quais
teria sido melhor amar a este sol, verdadeiro pelo menos aos olhos, em lugar
daquelas falsidades que pelos olhos do corpo enganavam o entendimento.

Contudo, como as tomava por ti, alimentava-me delas, não certamente com
avidez, porque não tinham o teu gosto – pois não eras aqueles vãos fantasmas –
nem me nutria com elas, antes sentia-me cada vez mais debilitado. A comida que
se toma em sonhos, não obstante ser muito semelhante à do estado de vigília, não
alimenta aos que dormem, porque estão dormindo. Aquilo, porém, em nada era
semelhantes a ti, como agora me certificou a verdade, pois que eram fantasmas
corpóreos ou falsos corpos; comparados com eles, são mais reais estes corpos –
celestes ou terrestres – que vemos com os olhos da carne assim como os vêem os
animais e as aves.

Vemos estas coisas, e são mais reais do que as conjecturas sobre outros corpos
grandiosos, que, por sua vez, que, por sua vez, quando as imaginamos, são mais
reais do que quando por meio delas conjeturamos outras maiores e infinitas, que
de modo algum existem. Com tais quimeras me alimentava eu, então, e por isso
não me saciava.

Mas tu, meu amor, em quem desfaleço para me tornar forte, nem és estes corpos
que vemos, mesmo no céu; nem os outros que não vemos, porque és o Criador e os
ocultaste, e não os consideras como as obras primas de tua criação.

Oh! Quão longe estavas daquelas minhas quimeras, fantasmas de corpos que
jamais existiram em comparação, são mais reais as imagens dos corpos existentes;
e, mais reais ainda essas imagens, esses mesmos corpos, os quais, todavia, não são
tu! Mas também não és a alma que dá vida aos corpos – mas é a vida das almas, a
vida das vidas, que vives, imutável, por ti mesma; a vida de minha alma.

Mas onde estavas então para mim? e quão longe peregrinava eu, longe de ti,
privado até as bolotas com que eu alimentava os porcos! Quão melhores eram as
fábulas dos gramáticos e poetas que todos aqueles enganos! Porque os versos, a
poesia e a fábula de Medeia soando pelo ar são certamente mais úteis que os
cinco elementos do mundo em seus mil disfarces, conforme os cinco antros de
trevas, que não existem, mas que matam a quem nele acredita. Porém, versos e
poesia eu os posso converter em iguaria para meu espírito e, quanto ao vôo de
Medeia, se o recitava bem, não lhe afirmava veracidade e, se me agradava ouvi-
lo, não lhe dava crédito. Mas – ai de mim! – eu acreditei naqueles erros dos
maniqueístas.

Ai de mim, por que degraus fui descendo até a profundidade do abismo, exaurido e
devorado pela falta de verdade quando te buscava! E tudo isso, meu Deus – a
quem me confesso porque te compadeceste de mim quando ainda não te conhecia
– tudo por buscar-te, não com a inteligência – com a qual quiseste que eu fosse
superior aos animais – mas com os sentidos da carne. E tu estavas dentro de mim,
mais profundo do que o que em mim existe de mais íntimo, e mais elevado do que
o que em mim existe de mais alto.

Assim encontrei aquela mulher insolente e sem prudência – enigma de Salomão –
que, sentada em uma cadeira à porta de sua casa, diz aos que passam: Comei à
vontade dos pães escondidos, e bebei da doçura da água roubada, a qual me
seduziu por andar eu vagando fora de mim, sob o império da vista carnal,
ruminando em meu íntimo o que meus olhos haviam devorado.

CAPÍTULO VII - Alguns erros dos maniqueus

Não conhecia eu outra realidade – a verdadeira – e me sentia como que movido
por um aguilhão a aceitar a opinião daqueles insensatos impostores quando me
perguntavam de onde procedia o mal, se Deus estava limitado por forma
corpórea, se tinha cabelos e unhas, e se deviam ser considerados justos os que
tinham várias mulheres simultaneamente, e os que causavam a morte de outros
ou sacrificavam animais.

Eu, ignorando essas coisas, perturbava-me com essas perguntas. Afastando-me da
verdade, parecia-me encaminhar para ela, porque não sabia que o mal é apenas
privação do bem, até chegar ao seu limite, o próprio nada. E como poderia ter eu
tal conhecimento, se com os olhos não conseguia ver mais do que corpos, e com a
alma não ia além de fantasmas?

Tampouco sabia que Deus é espírito, que não tem membros dotados de
comprimento ou largura, nem quantidade material alguma, porque a quantidade
ou matéria é sempre menor na parte que no todo e, mesmo que fosse infinita,
sempre seria menor em uma parte definida por um espaço determinado do que em
sua infinitude, não podendo estar toda inteira em todas as partes, como o espírito,
como Deus.

Ignorava totalmente o princípio de nossa existência, que há em nós, e pelo qual a
Escritura nos chama de imagem e semelhança de Deus.

Não conhecia tampouco a verdadeira justiça interior, que não julga pelo costume,
mas pela lei retíssima do Deus onipotente. Por ela se hão de formar os costumes
dos países conforme os mesmos países e tempos, e sendo a mesma em todas as
partes e tempos, não varia de acordo com as latitudes e as épocas; lei essa
segundo a qual foram justos Abraão, Isaac, Jacó e Davi, e todos os que são
louvados pela boca de Deus. Os ignorantes, julgando as coisas de acordo com a
sabedoria humana, e medindo a conduta alheia pela própria, os julgam iníquos. É
como se um ignorante em armaduras, não sabendo o que é próprio de cada
membro, quisesse cobrir a cabeça com a couraça e os pés com o elmo, e se
queixasse de que as peças não se lhe adaptem convenientemente. Ou como se
alguém se queixasse de que, em determinado dia considerado feriado do meio-dia
em diante, não lhe permitissem vender a mercadoria à tarde, como acontecera
pela manhã; ou porque vê que na mesma casa permite-se a um escravo qualquer
tocar no que não é permitido ao copeiro; ou porque não se permite fazer diante
dos comensais o que se faz atrás de uma estrebaria; ou, finalmente, se indignasse
porque, sendo uma a casa e uma a família, não se atribuíssem a todos as mesmas
coisas.

Tais são os que se indignam quando ouvem dizer que em outros tempos se
permitiam aos justos coisas que não se lhe permitem agora, e que Deus mandou
àqueles uma coisa e a estes outra, conforme os tempos, servindo uns e outros à
mesma norma de santidade. E, contudo, é bem visível que no mesmo homem, no
mesmo dia e na mesma hora e na mesma casa, o que convém a um membro não
convém a outro; e aquilo que há pouco era licito, já não o é mais; e que o que se
concede em uma parte, é justamente proibido e castigado em outra.

Diremos, por isso, que a justiça é vária e inconstante? O que acontece é que os
tempos a que ela preside não caminham no mesmo passo, porque são tempos. Mas
os homens, cuja vida terrestre é breve, por não saberem harmonizar as causas dos
tempos idos, e das gentes que não viram nem conheceram, com as que agora

vêem e experimentam e, como também vêem facilmente o que no mesmo corpo,
na mesma hora e lugar convém a cada membro, a cada tempo, a cada parte e a
cada pessoa, escandalizam-se com as coisas daqueles tempos, enquanto aceitam as
de agora.

Ignorava eu então estas coisas e não as refletia e, embora de todos os lados me
ferissem os olhos, eu não as via. Quando declamava algum poema, não me era
lícito por um pé em qualquer outra parte do verso, senão em uma espécie de
metro uns e em outra outros, e em um mesmo verso não podia meter em todas as
partes o mesmo pé; e a própria arte da prosódia, apesar de mandar coisas tão
distintas, não era diversa em cada parte, senão uma só e coerente.

Contudo, não via como a justiça, à qual serviram aqueles varões bons e santos,
pudesse conter simultaneamente, de modo mais belo e sublime, preceitos tão
diversos, sem variar em sua essência, apesar de não mandar ou distribuir aos
diferentes tempos todas as coisas simultaneamente, mas a cada um as que lhe são
próprias. E, cego, censurava àqueles piedosos patriarcas, que não só usavam do
presente como Deus lhes mandava e inspirava, mas também prediziam o futuro
conforme Deus lhes revelava.

CAPÍTULO VIII - Moral e costume

Acaso será em alguma parte e momento injusto amar a Deus de todo o coração,
com toda a alma e com todo o entendimento, e amar ao próximo como a nós
mesmos? Por isso, todos os pecados contra a natureza, como o foram os do
sodomitas, hão de ser detestados e castigados sempre e em toda a parte, pois,
mesmo que todos os cometessem, não seriam menos réus de crime diante da lei
divina, que não fez os homens para usar tão torpemente de si; de fato viola-se a
união que deve existir com Deus quando a natureza, da qual ele é autor, se
mancha com a depravação das paixões.

Com relação aos pecados que são contra os costumes humanos, também hão de ser
evitados de acordo com a diversidade dos costumes, a fim de que o pacto mútuo
entre os povos e nações, firmado pelo costume ou pela lei, não seja quebrado por
nenhum capricho de cidadão ou forasteiro, porque é indecorosa a parte que não se
acomoda ao todo.

Todavia, quando Deus ordena algo contra tais costumes ou pactos, sejam quais
forem, deve ser obedecido, embora o que mande nunca tenha sido feito; e se não

foi cumprido, deve ser restaurado, e se não estava estabelecido, deve-se
estabelecer. Se é lícito a um rei mandar na cidade que governa coisas que
ninguém antes dele e nem ele próprio havia mandado, e se não é contra o bem da
sociedade obedecê-lo, antes o seria o não obedecê-lo – por ser pacto básico de
toda sociedade humana obedecer a seus reis – quanto mais deveria ser Deus
obedecido sem titubeios em tudo que mandar, como rei do universo? Porque,
assim como entre os poderes humanos o maior poder se antepõe ao menor, para
que este lhe preste obediência, assim Deus antepõe-se a todos.

O mesmo se deve dizer dos crimes perpetrados com desejo de causar o mal, quer
por agressão, quer por injúria; e ambas as coisas, ou por desejo de vingança, como
ocorre entre inimigos, ou por alcançar algum bem sem trabalhar, como o ladrão
que rouba ao viajante; ou para evitar algum mal, como acontece com o que teme;
ou por inveja, como quando um miserável quer mal ao que é mais feliz, ou ao que
conseguiu riquezas, temendo ser igualado ou que já lhe sejam iguais; ou
unicamente pelo prazer de ver o mal alheio, como acontece com o espectador dos
combates dos gladiadores, ou com o que se ri e zomba dos outros.

Tais são os princípios ou fontes de iniqüidade, que nascem da paixão de mandar, de
ver ou de sentir, quer de uma só dessas paixões, ou de duas, ou de todas juntas.
Razão por que se vive do mal, ó Deus altíssimo e dulcíssimo, contra o saltério de
dez cordas, teu decálogo.

Mas, que pecado pode atingir a ti, que não és atingido pela corrupção? Ou que
crimes podem ser cometidos contra ti, a quem ninguém pode causar dano? O que
vingas são os crimes que os homens cometem contra si, porque, mesmo quando
pecam contra ti, agem impiamente contra suas próprias almas, e sua iniqüidade
engana-se a si própria, quer corrompendo e pervertendo sua natureza – feita e
ordenada por ti – quer usando imoderadamente das coisas permitidas, ou até
desejando imoderadamente as não permitidas, pelo uso daquilo que é contra a
natureza.

Pecam também os que com o pensamento e a palavra se revoltam contra ti, dando
coices contra o aguilhão; ou quando, uma vez quebrados os limites da sociedade
humana, alegram-se audaciosamente com as facções ou desuniões, de acordo com
as suas simpatias ou antipatias. E tudo isso o homem faz quando és abandonado,
fonte da vida, único e verdadeiro criador e senhor do universo, e com orgulho
egoísta ama-se uma parte do todo como se fosse o todo.

Essa a razão pela qual só se pode voltar para ti com piedade humilde, para assim
nos purificares nossos maus costumes; pela piedade te mostras propício com os
pecados dos que te confessam, e ouves os gemidos dos cativos, e nos livras dos
grilhões que nós mesmo forjamos, contanto que não ergamos contra ti os chifres
de uma falsa liberdade, quer arrastados pela cobiça de mais haveres, quer pelo
temos de perder tudo, preferindo nosso próprio egoísmo a ti, Bem de todos.

CAPÍTULO IX - Pecados e imperfeições

Mas, entre tantas maldades, crimes e iniqüidades, estão os pecados dos que
progridem, pecados que os homens de bom juízo vituperam, segundo a regra da
perfeição, e louvam pela esperança de frutos futuros, como o verde é promissor
das colheitas.

Há outras ações semelhantes a ações maldosas ou a delitos, e que não são
pecados, porque nem te ofendem a ti, Senhor, nosso Deus, nem tampouco à
sociedade humana; como por exemplo quando procuramos coisas convenientes
para o uso da vida e às circunstâncias, sem que se saiba se essa busca é cobiça, ou
quando castigamos a alguém como desejo de que se corrija, fazendo uso do poder
ordinário, e não se sabe se o fazemos por vontade de mortificar.

Por isso, muitas ações que parecem condenáveis aos homens, são aprovadas por
teu testemunho; e muitas, louvadas pelos homens, são condenadas por teu
testemunho, porque muitas vezes as aparências do ato diferem das intenções do
seu autor, assim como circunstâncias ocultas do tempo.

Mas quando ordenas, algo insólito e imprevisto, mesmo que o tenhas proibido
uma vez, mesmo que escondas por algum as razões do teu mandamento, mesmo
que seja contra as convenções de alguns homens da sociedade, quem pode duvidar
de que se há de obedecer, sendo que só é justa a sociedade humana que te
obedece? Felizes dos que sabem o que tu ordenaste, porque os que te servem
fazem tudo o que mandas, ou porque assim o exige o tempo presente, ou para
preparar o futuro.

CAPÍTULO X - Ridicularias dos maniqueus

Desconhecendo eu essas verdades, ria-me de teus santos e profetas. Mas, que
fazia eu quando me ria deles, senão dar motivo para que te risses de mim? deixei-
me cair insensivelmente, aos poucos, em tais extravagâncias, a ponto de acreditar

que o figo, quando colhido, chora lágrimas de leite junto com a mãe figueira, e que
se um "santo" da seita comesse o tal figo, colhido não por seu delito, mas de
outrem, misturando-o em suas entranhas, gemendo e arrotando enquanto rezava,
exalaria anjos e até mesmo partículas de Deus, partículas essas do verdadeiro
Deus que ficariam cativas para sempre naquele fruto se não fossem libertadas
pelos dentes e pelo estômago do "santo eleito"!

Também acreditei, pobre de mim, que se devia ter mais misericórdia com os frutos
da terra que com os homens para os quais foram criados. Pois, se algum faminto,
que não fosse maniqueísta me pedisse de comer, parecia-me que atendê-lo era
como merecer, por aquele bocado, a pena de morte.

CAPÍTULO XI - O sonho de Mônica

Mas estendeste tua mão do alto, e arrancaste minha alma deste abismo de
trevas, enquanto minha mãe, tua fiel serva, chorava-me diante de ti muito mais
do que as outras mães costumam chorar sobre o cadáver dos filhos, pois via a
morte de minha alma com a fé e o espírito que havia recebido de ti. E tu a
escutaste, Senhor, tu a ouviste e não desprezaste suas lágrimas que, brotando
copiosas, regavam o solo debaixo de seus olhos por onde fazia sua oração; sim, tu a
escutaste, Senhor. Com efeito, donde podia vir aquele sonho, com que a
consolaste, ao ponto de me admitir em sua companhia e mesa, fato que havia me
negado porque aborrecia e detestava as blasfêmias do meu erro?

Nesse sonho viu-se de pé sobre uma régua de madeira; e um jovem
resplandecente, alegre e risonho que vinha ao seu encontro, triste e amarga. Este
lhe perguntou a causa de sua tristeza e lágrimas diárias, não por curiosidade,
como sói acontecer, mas para instruí-la; e respondendo-lhe ela que chorava a
minha perdição, mandou-lhe, para sua tranqüilidade, que prestasse atenção e
visse por onde ela estava também estaria eu. Apenas olhou, viu-me junto de si, de
pé sobre a mesma régua.

De onde veio este sonho, senão dos ouvidos que tinhas atentos a seu coração, ó
Deus bom e onipotente, que cuidas de cada um de nós como se não tivesses outro
para cuidar, zelando de todos como de cada um!

E como explicar o que se segue? Contou-me minha mãe esta visão, e querendo-a
eu persuadir de que significava o contrário, e que não devia desesperar de ser
algum dia o que eu era, isto é, maniqueísta, ela, sem nenhuma hesitação, me

respondeu: "Não; não me foi dito: onde ele está ali estarás tu, mas onde tu estás
ali estará ele também".

Confesso, Senhor, e muitas vezes disse que, pelo que me recordo, me abalou mais
esta tua resposta pela solicitude de minha mãe, imperturbável diante de
explicação falsa e ardilosa, e por ter visto o que se devia ver – e que eu
certamente não veria sem que ela o dissesse – que o mesmo sonho com o qual
anunciaste a esta piedosa mulher com tanta antecedência, a fim de consolá-la em
sua aflição presente, uma alegria que só havia de se realizar muito tempo depois.

Seguiram-se, efetivamente, quase nove anos, durante os quais continuei a me
revolver naquele abismo de lodo e trevas de erro, afundando-me tanto mais
quanto mais esforços fazia para me libertar. Entretanto, aquela piedosa viúva,
casta e sóbria como as que tu amas, já um pouco mais alegre com a esperança,
porém, não menos solícita em suas lágrimas e gemidos, não cessava de chorar por
mim em tua presença em todas as horas de suas orações; e suas preces eram
aceitas a teus olhos, mas deixava-me ainda revolver-me e envolver-me naquela
escuridão.

CAPÍTULO XII - Uma profecia

Nessa mesma ocasião deste à minha mãe outra resposta, de que ainda me lembro
– pois passo em silencio muitas circunstâncias, pela pressa que tenho de chegar
àquelas que te devo confessar com mais urgência, ou porque não as recordo –
deste-lhe outra resposta por meio de um teu bispo, educado em tua Igreja e
exercitado em tuas Escrituras. Como ela pedisse que se dignasse falar comigo, para
refutar meus erros e desenganar-me de minhas más doutrinas e ensinar-me as
boas – pois assim fazia com quantos julgava idôneos – ele negou-se com muita
prudência, como pude verificar depois; respondeu-lhe que eu estava incapacitado
para receber qualquer ensinamento, por estar enfatuado com a novidade da
heresia maniqueísta, e por haver criado embaraço a muitos ignorantes com
algumas questões fáceis, como ela mesma lhe relatara.

"Deixe-o – disse – e unicamente ore por ele ao Senhor! Ele mesmo, lendo os livros
dos hereges, descobrirá o erro e reconhecerá sua grande impiedade". – Ao mesmo
tempo contou-lhe que, quando criança, sua mãe, seduzida pelo erro, entregara-o
aos maniqueus, chegando não só a ler, mas a copiar quase todas as suas obras; e
que ele mesmo, sem necessidade de que ninguém o contestasse ou convencesse,
chegara a perceber a falácia daquela doutrina, abandonando-a enfim.

Depois de assim falar, minha mãe não se aquietava, instando com maiores rogos e
mais copiosas lágrimas a que me visitasse, para discutir comigo sobre o tal
assunto. O bispo, já com certo enfado de sua insistência, lhe disse: "Vai-te em paz,
mulher, e continua a viver assim, que não é possível que pereça o filho de tantas
lágrimas" – palavras que ela recebeu como vindas do céu, segundo me recordava
muitas vezes em seus colóquios comigo.

LIVRO QUATRO

CAPÍTULO I - Dos dezenove aos vinte e oito anos

Durante esse período de nove anos – dos dezenove até os vinte e oito anos – fui
seduzido e sedutor, enganado e enganador, conforme minhas muitas paixões;
publicamente, com aquelas doutrinas que se chamam liberais; ocultamente, com o
falso nome de religião, mostrando-me aqui soberbo, ali supersticioso, e em toda
parte vaidoso. Ora perseguindo a aura da gloria popular até os aplausos do
teatro, os certames poéticos, os torneios de coroas de feno, as bagatelas de
espetáculos e a intemperança da luxúria; ora, desejando muito purificar-me dessas
imundícies, levando alimento aos chamados "eleitos" e "santos", para que na
oficina de seu estômago fabricasse anjos e deuses que me libertassem. Tais coisas
seguia eu e praticava com meus amigos, iludidos comigo e por mim.

Riam-se de mim os arrogantes, e os que ainda não foram prostrados e
salutarmente esmagados por ti, meu Deus; mas eu, pelo contrário, hei de
confessar diante de ti minhas torpezas para teu louvor. Permite-me, te suplico, e
concede-me que me lembre fielmente dos desvios passados de meu erro, e que eu
te sacrifique uma vítima de louvor.

De fato, sem ti, que sou eu para mim mesmo senão um guia que conduz ao
abismo? Ou que sou eu, quando tudo me corre bem, senão uma criança que suga o
leite, e que se alimenta de ti, alimento incorruptível? E que é o homem, seja ele
quem for, se é homem?

Riam-se de nós os fortes e poderosos, que nós, débeis e pobres, confessaremos teu
santo nome.

CAPÍTULO II - Professor de retórica

Naqueles anos eu ensinava retórica e, movido pela cobiça, vendia a arte de vencer
pela loquacidade. Contudo, bem sabes, Senhor, que preferia ter bons discípulos,
dos que se chamam

"bons", aos quais ensinava sem rodeios a arte de enganar, não para que usassem
dela contra a vida de um inocente, mas para algum dia defender algum culpado.
Mas, ó Deus, tu me viste de longe vacilar sobre um caminho escorregadio, viste
brilhar, entre espesso fumo, os fulgores da boa fé que eu demonstrava ao ensinar

àqueles amantes da vaidade, àqueles pesquisadores de mentiras, eu, seu irmão e
semelhante.

Por essa mesma época tive em minha companhia uma mulher, não reconhecida
pelo chamado matrimônio legítimo, mas procurada pelo inquieto ardor de minha
paixão imprudente; mas era só uma, e eu lhe era fiel. E assim experimentei
pessoalmente a distância que há entre o amor conjugal contraído com o fim de ter
filhos, e o amor lascivo, no qual a prole também nasce, mas contra o desejo dos
pais, embora, uma vez nascida, os obrigue a amá-la.

Lembro-me também de que, querendo participar de um certame de poesia, um
arúspide mandou-me indagar que dádiva lhe daria para eu sair vencedor. Mas eu,
que abominava aqueles nefandos sortilégios, respondi-lhe que não consentiria que
se matasse uma mosca para obter a vitória, mesmo que o prêmio fosse uma coroa
de ouro incorruptível; sabia eu que ele teria de matar animais em seus sacrifícios,
julgando com tais honras assegurar para mim os votos do demônio.

Mas, confesso, Deus de meu coração, que se repudiei tal crime, não o fiz por amor
da tua pureza. Pois ainda não sabia te amar, eu, que sabia conceder apenas
esplendores corpóreos.

Não é pois verdade que a alma que suspira por semelhantes fábulas não se
aniquila longe de ti, e se apóia na falsidade, e se apascenta de vento? Mas eis
que, não querendo que se oferecessem sacrifícios aos demônios, eu mesmo me
sacrificava a eles com aquela superstição. Com efeito, que significa apascentar
ventos, senão apascentar os espíritos diabólicos, isto é, tornarmo-nos, por nossos
erros, objeto de seu riso e escárnio?

CAPÍTULO III - A atração da astrologia

Por isso, não cessava de consultar os impostores chamados matemáticos, já que
estes não usavam em suas adivinhações de quase nenhum sacrifício, nem dirigiam
preces a nenhum espírito o que, consequentemente, é condenado e repelido com
razão pela piedade cristã e verdadeira. Porque o bom é confessar-te, Senhor, e
dizer-te: Tem misericórdia de mim, e cura minha alma, porque pecou contra ti, e
não abusar da tua indulgência para pecar mais livremente, mas ter sempre
presente a sentença do Senhor: Eis-te curado: não peques mais, para que te não
suceda algo pior – Estas palavras, cujo efeito salutar os astrólogos querem
destruir, dizendo: "O impulso de pecar vem dos céus; foi Vênus, Saturno ou Marte

que fizeram isto" – e tudo para que o homem, que é carne, e sangue, e soberba
podridão, se sinta sem culpa, e atribua esta ao criador e ordenador do céu e das
estrelas. E quem é este, senão tu, nosso Deus, suavidade e fonte de justiça, que
dás a cada um de acordo com suas obras, e não desprezas ao coração contrito e
humilhado?

Havia então um varão muito sábio, peritíssimo na arte médica, na qual era
celebre; sendo procônsul, pôs com suas próprias mãos sobre minha cabeça insana a
coroa da vitória do concurso; foi como procônsul, e não como médico, porque
daquela minha enfermidade só tu me podias sarar, pois resistes aos soberbos e dás
tua graça aos humildes.

Contudo, deixaste acaso de cuidar de mim também por meio daquele ancião? Ou
talvez desistisse de curar minha alma? Tendo-me familiarizado muito com ele,
passei a ser assistente assíduo e freqüente de suas conversas, que eram
agradáveis e graves, não pela elegância da linguagem, mas pela vivacidade das
sentenças. Assim que ficou sabendo, por conversa, que eu me dedicava à leitura
dos livros dos astrólogos, admoestou-me benigna e paternalmente a que os
deixasse, e a que não gastasse inutilmente nessas quimeras meus cuidados e
trabalho, que melhor empregaria em coisas úteis. Acrescentou que também ele
havia cultivado aquela arte, a ponto de querer adotá-la, em sua juventude, como
profissão para ganhar a vida, pois, se havia entendido Hipócrates, podia também
entender aqueles livros; por fim, deixara aqueles estudos pelos da medicina, por
causa da sua falsidade, não querendo, como homem sério, ganhar o pão
enganando os outros. "Mas tu, disse-me ele – que tens para manter entre os
homens tuas aulas de retórica, segues essas mentiras não por necessidade, mas
por mera curiosidade; mais um motivo para que acredites no que te digo, pois
cuidei de aprendê-la tão perfeitamente que quis viver apenas de seu exercício".

Indaguei-lhe então por que muitas das coisas prognosticadas pela tal ciência se
revelavam verdadeiras, respondeu-me, como pôde, que a força do acaso está
espalhada por toda a natureza. "Se alguém – dizia ele – consultando as vezes as
páginas de um poeta qualquer, encontra um verso que, apesar do poeta pensar
em coisas muito diversas quando o compôs, adapta-se admiravelmente ao assunto
que o preocupa; assim pois nada tem de estranho que a alma humana, movida por
instinto superior, inconsciente do que se passa no seu íntimo, diga, não por arte,
mas por sorte, algo que corresponda aos atos e gestos do consulente".

E isto, Senhor, me ensinou ele, ou melhor, me ensinaste por teu intermédio, e
delineaste em minha memória o que eu mesmo mais tarde devia procurar. Mas

então, nem ele, nem meu caríssimo Nebrídio, jovem muito bom e casto, que
zombava de toda aquela arte divinatória, puderam me convencer a abandoná-la,
porque ainda impressionava-me mais a autoridade daqueles autores. Não tinha eu
encontrado ainda o argumento evidente que procurava, que me demonstrasse
sem ambigüidade que os presságios acertados dos astrólogos são obra da sorte ou
casualidade, e não da arte de observar os astros.

CAPÍTULO IV - A morte do amigo

Por aqueles anos, quando comecei a ensinar em minha cidade natal, conheci um
amigo, a quem amei em demasia por ser meu companheiro de estudos, de minha
idade, e por estarmos ambos na flor da juventude. Juntos fomos criados quando
crianças, juntos íamos à escola, juntos havíamos brincado. Mas nessa época não
era amigo tão íntimo como o foi depois, embora também não o fosse tanto quanto
o exige a verdadeira amizade, uma vez que esta só existe entre os que unes por
meio da caridade, derramada em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi
dado.

Contudo, aquela amizade, aquecida ao calor de estudos semelhantes era-me
sumamente grata. Consegui até afastá-lo da verdadeira fé, pouco profunda e
arraigada em sua adolescência, arrastando-o para as fábulas supersticiosas e
prejudiciais, razão das lágrimas de minha mãe.

Esse homem já errava em espírito comigo, e minha alma não podia viver sem ele.

Mas eis que, seguindo de perto no encalço de teus servos fugitivos, ó Deus das
vinganças, que és a um tempo fonte de misericórdia, e nos converte a ti por
estranhos caminhos, eis que tu o arrebataste desta vida, quando eu apenas havia
gozado um ano de sua amizade, mais doce para mim que todas as doçuras da
minha vida.

Quem poderá enumerar teus louvores, mesmo limitando-se ao que experimentou
em si mesmo? Que fizeste então, meu Deus! E quão impenetrável é o abismo de
teus juízos! Lutando meu amigo contra a febre, ficou por muito tempo sem
sentidos, banhado no suor da morte; e, como temessem por sua vida, batizaram-no
sem que ele o soubesse, com o que não me importei, convencido que estava de
que seu espírito reteria melhor aquilo que eu lhe havia inculcado do que o sinal
que recebera sobre o corpo inconsciente.

A realidade, contudo, foi muito outra. Melhorando, e estando fora de perigo, logo
que lhe pude falar – e o fiz logo que ele o pôde, e como dependíamos mutuamente
um do outro eu não me afastava do seu lado – tentei rir-me em sua presença do
batismo, julgando que também ele zombaria comigo de um batismo recebido sem
conhecimento nem sentidos, mas ele já sabia que o havia recebido. Olhando-me
então com horror, como a um inimigo, admoestou-me com admirável e repentina
franqueza, dizendo-me que se queria continuar a ser seu amigo deixasse de tais
palavras. Admirado e perturbado, reprimi toda minha emoção, esperando que
convalescesse primeiro, para, recobradas as forças, estar disposto a discutir
comigo o que quisesse. Mas tu, Senhor, livraste-o de minha louca amizade,
guardando-o em ti para o meu consolo, pois, poucos dias depois, na minha
ausência, voltaram-lhe as febres e morreu.

Que dor fez anoitecer o meu coração! Tudo o que via era morte para mim. A
pátria me era um suplício, e a casa paterna tormento insuportável, e tudo o que o
lembrava transformava-se para mim em crudelíssimo martírio. Buscavam-no por
toda parte meus olhos, e o mundo não mo devolvia. Cheguei a odiar todas as
coisas, porque nada o continha, e ninguém mais me podia dizer como antes,
quando chegava depois de alguma ausência: "Ali vem ele". Transformara-me
mesmo num grande problema. Perguntava à minha alma porque andava triste, e
se perturbava tanto, e ela não sabia o que responder-me. E se eu lhe dizia:
"Espera em Deus" – minha alma não me obedecia, e com razão, porque para mim,
era mais real e melhor o amigo querido que perdera, que o fantasma em que
mandava tivesse esperança. Só o pranto me era doce. Ocupava o lugar de meu
amigo nas delicias de meu coração.

CAPÍTULO V - O conforto das lágrimas

E agora, Senhor, que essas coisas já passaram, agora que o tempo sarou minha
ferida, poderei ouvir de ti, que és a própria verdade, aproximando o ouvido de
meu coração de tua boca, o motivo por que o pranto é doce aos desgraçados?
Acaso, mesmo presente em toda parte, repeliste para longe de ti nossa miséria,
permanecendo imutável em ti, enquanto deixas que nos envolvamos em nossas
provações? E, contudo, se nossos lamentos não chegarem a teus ouvidos, não
haverá para nós esperança alguma.

Mas, por que motivo dos gemidos, do choro, dos suspiros e das queixas colhe-se
como fruto doce do amargor da vida? Esperamos que nos ouça? Virá daí a doçura?
Isso acontece na oração que leva em si o desejo de chegar a ti; porém, poder-se-á
dizer o mesmo da dor da perda ou do pranto que então me avassalavam?

Eu não esperava ressuscitar meu amigo com minhas lágrimas, mas limitava-me a
me condoer e a chorar minha miséria, pois eu havia perdido minha alegria.

Ou será que o pranto, que é amargo em si mesmo, se torna um deleite quando,
pelo fastio, aborrecemos os prazeres que antes nos eram gratos?

CAPÍTULO VI - Inconsolável

Mas para que falar dessas coisas, se agora não é tempo de investigar, mas de me
confessar a ti? Eu era miserável, como o é toda alma prisioneira do amor pelas
coisas temporais; se sente despedaçar quando as perde, sentindo então sua
miséria, que a torna miserável antes mesmo de as perder. Assim é como eu era
então e, chorando muito amargamente, descansava na amargura. E como era
miserável! Contudo, mais que o amigo caríssimo, eu amava minha vida miserável,
porque embora desejasse mudá-la, não queria perdê-la como ao amigo, não sei se
gostaria de perdê-la por ele, como se conta de Orestes e Pílades – se não é ficção –
que queriam morrer um pelo outro, porque para eles viver separados era pior que
a morte. Mas não sei que novo sentimento nascera em mim, muito contrário a
este: sentia pesado tédio de viver, e ao mesmo tempo tinha medo de morrer.
Creio que quanto mais amava o amigo tanto mais odiava e temia a morte, como
inimigo feroz que mo havia arrebatado; pensava que ela acabaria de repente com
todos os homens, como o fizera com ele. Este era meu estado de espírito, pelo que
me lembro.

Meu Deus, eis aqui meu coração, ei seu conteúdo! Olha para o meu passado,
porque sei, esperança minha, que me purificas da impureza desses afetos, atraindo
para ti meus olhos, e libertando meus pés dos laços que me aprisionavam.
Maravilhava-me de que sobrevivessem os outros mortais a seus amados se nunca
houvessem de morrer; e mais me maravilhava ainda de que, morto ele, eu
continuasse a viver, porque eu era outro ele. Bem disse um poeta quando chamou
ao amigo "metade da sua alma". E eu senti que minha alma e a sua não eram mais
que uma em dois corpos, e por isso causava-me horror a vida, porque não queria
viver pela metade; e ao mesmo tempo tinha muito medo de morrer, para que não
morresse de todo aquele a quem eu tanto amara.

CAPÍTULO VII - De Tagaste para Cartago

Ó loucura, que não sabe amar os homens humanamente! Ó homem insensato, que
sofre desmedidamente os reveses humanos! Assim era eu então, e assim agitava-

me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não encontrava descanso nem conselho.
Trazia a alma em farrapos e ensangüentada, indócil ao meu governo, e eu não
encontrava lugar onde a pudesse depor. Nem os bosques amenos, nem os jogos e
cantos, nem os lugares suavemente perfumados, nem os banquetes suntuosos,
nem os prazeres da alcova e do leito, nem, finalmente, os livros e os versos
podiam dar-lhe descanso. Tudo me causava horror, até a própria luz. Tudo o que
não era o que ele era, era-me insuportável e odioso, exceto gemer e chorar, pois,
somente nisto achava algum repouso. E se minha alma deixava de chorar, logo
pesava sobre mim o grande fardo da desgraça.

A ti, Senhor, deveria ser elevada, para ter cura. Eu o sabia, mas não o queria nem
podia.

Tanto mais que, ao pensar em ti, não tinha em mente algo sólido e firme, mas um
fantasma, o meu erro. Se nele tentava descansar minha alma, logo deslizava como
quem pisa em falso, e caía de novo sobre mim. Eu era para mim mesmo uma infeliz
morada, na qual era ruim e da qual não podia sair. E para onde iria meu coração,
fugindo de si mesmo? Para onde fugir de mim mesmo?

Para onde não me seguiria?

Por isso fugi de minha pátria, porque meus olhos buscariam menos meu amigo
onde não estavam acostumados a vê-lo. E assim me fui de Tagaste para Cartago.

CAPÍTULO VIII - O consolo do tempo e da amizade

O tempo não corre debalde, nem passa inutilmente sobre nossos sentidos; antes,
causa na alma efeitos maravilhosos. Assim vinha e passava, dias após dias, e
passando deixava em mim novas esperanças e novas recordações; pouco a pouco
restituía-me a meus prazeres de outrora, a que ia cedendo minha dor.
Substituíam-na não novas dores, mas sementes de novas dores.

Mas, por que me penetrara aquela dor tão profundamente, até o mais íntimo de
meu ser, senão porque derramei minha alma sobre a areia, amando a um mortal
como se não o fora? O que mais me confortava e alegrava eram sobretudo as
consolações de outros amigos, com os quais partilhava o amor para o que amava
tem teu lugar, isto é, uma fábula enorme, uma longa mentira, cujo contato impuro
corrompia nossa mente, arrastada pelo prurido de ouvir aquilo que a agradava;
fábula esta que não morria para mim, ainda que morresse algum de meus amigos.

Outros prazeres havia neles que cativavam mais fortemente minha alma, como
conversar, rir, agradar-nos mutuamente com amabilidade, ler juntos livros bem
escritos, gracejar uns com os outros e divertir-nos juntos; às vezes discutir, mas
sem ódio, como quando discordamos de nós mesmos para, com tais discórdias
muito raras, temperar as muitas conformidades; ensinar ou aprender
reciprocamente muitas coisas, suspirar impacientes pelos ausentes e receber
alegres os recém-chegados. Estes sinais, e outros semelhantes, que procedem de
corações que se amam, e que se manifestam no rosto, na fala, nos olhos, e em mil
outros gestos graciosos, inflamavam nossas almas, como em uma centelha, fazendo
de muitas uma só.

CAPÍTULO IX - O amigo de Deus

É isto o que se ama nos amigos; e de tal modo se ama, que a consciência humana
se julga culpada se não ama ao que a ama, ou se não retribui amor com amor
procurando na pessoa do amigo apenas o sinal exterior de sua benevolência. Daqui
o pranto do luto quando morre um amigo, as trevas de dores, e as lágrimas que
inundam o coração quando a doçura se transforma em angústia, e a morte dos que
morrem na morte dos que vivem.

Bem-aventurado o que te ama, Senhor, e ama ao amigo em ti, e ao inimigo por
amor a ti; só não perde o amigo quem tem a todos por amigos naquele que nunca
se perde. E quem é este, senão nosso Deus, o Deus que fez o céu e a terra, e os
enche, porque, enchendo-os, os criou?

Ninguém, Senhor, te perde senão o que te abandona. Mas, quem te deixa, para
onde vai, ou para onde foge, senão de ti benévolo para ti irado? Onde não achará
tua lei para seu castigo? Porque tua lei é a verdade, e a verdade és tu mesmo.

CAPÍTULO X - As mentiras da beleza

Ó Deus das virtudes! Converte-nos e mostra-nos tua face, e seremos salvos!
Porque, para onde quer que se volte a alma humana, onde quer que se estabeleça
fora de ti, sempre encontrará dor, mesmo que sejam as belezas que estão fora de
ti e fora de si mesma; e todavia, estas nada seriam se não existissem em ti. Elas
nascem e morrem; e, nascendo, começam a existir, e crescem para alcançar a
perfeição e, uma vez perfeitas, começam a envelhecer e morrem. Embora nem
tudo envelheça, tudo perece. Logo, quando os seres nascem e se esforçam para
existir, quanto mais depressa crescem para existir, tanto mais se apressam para

deixar de existir. Esta é a sua condição. Eis tudo o que lhes deste, porque são
partes de coisas que não existem simultaneamente mas, morrendo e sucedendo-se
umas às outras, formam o conjunto de que são partes.

Assim forma-se também nosso discurso, por meio dos sinais sonoros; este nunca se
realizaria se uma palavra não se extinguisse, depois de pronunciadas suas sílabas,
para dar lugar à seguinte.

Que minha alma te louve por tudo isto, ó Deus, criador de todas as coisas; mas não
se pegue a elas com o visco do amor dos sentidos, pois também elas caminham
para o não-ser, e dilaceram a alma com desejos pestilenciais, e ela quer existir e
gosta de descansar nas coisas que ama. Mas nelas não acha onde, porque as coisas
não são estáveis. Elas são fugazes, e quem poderá segui-las com os sentidos da
carne? Ou quem as pode alcançar, mesmo estando presentes? Lento é o sentido da
carne, por ser da carne, mas essa é a sua condição. É suficiente para o que foi
criado, mas não o é para reter o curso das coisas, do princípio que lhes foi fixado,
até o fim que lhes foi designado, porque em teu Verbo, que as criou, ouvem estas
palavras:

"Daqui até ali".

CAPÍTULO XI - A verdade de Deus

Não seja vã, ó minha alma, nem ensurdeças o ouvido do coração com o tumulto de
tua vaidade. Ouve também : o próprio Verbo clama que voltes, porque só acharás
repouso imperturbável lá onde o amor não é abandonado, se ele não nos
abandona antes. Eis que as coisas passam para ceder lugar as outras, e para que
assim se forme este universo inferior, de todas as suas partes. "Mas, por acaso,
afasto-me de um lugar para outro? – diz o Verbo de Deus

– Fixa nele tua morada, confia a ele tudo o que dele recebeste, alma minha, já
cansada de tantos enganos. Confia à Verdade quanto da Verdade recebeste, e
nada perderás; antes, tua podridão reflorescerá e serão curadas todas as tuas
fraquezas, e serão retomadas e renovadas, estreitamente unidas a ti, tuas partes
inconscientes; e já não te arrastarão para a ladeira por onde descem, mas
permanecerão contigo para sempre onde está Deus, eterno e imutável.

Por que, perversa, segues o apelo de tua carne? Seja esta, convertida a te seguir.
Tudo o que por ela sentes é parte, mas ignoras o todo de que é parte, ainda que

te dê prazer. Mas, se os sentidos de tua carne fossem idôneos para compreender o
todo, e se, para teu castigo, não tivessem sido justamente limitados a
compreender apenas partes do universo, certamente desejarias que passasse tudo
o que presentemente existe, para melhor desfrutar do conjunto.

O que falamos também ouves com os ouvidos da carne, e com certeza não queres
que as sílabas se detenham, mas que voem, para que outras lhes sucedam, e assim
ouvires o conjunto.

O mesmo acontece com todas as coisas que compõem um todo, quando essas
partes constituintes não existem simultaneamente; há mais encanto no todo do
que nas partes percebidas separadamente. Mas melhor do que todas elas, é o que
as fez, que é nosso Deus, que não passa, porque nada vem depois dele.

CAPÍTULO XII - O amor em Deus

Se te agradam os corpos, louva a Deus neles, e dirige teu amor para teu artífice,
para não o desagradar nas mesmas coisas que te agradam.

Se te agradam as almas, ama-as em Deus, porque, embora mutáveis, se fixas nele,
terão estabilidade; de outro modo, passariam e pereceriam. Ama-as, pois, nele, e
arrasta contigo até ele quantas almas puderes, dizendo-lhes: "Amemo-lo". Porque
ele criou estas coisas, e não está longe; ele não as fez para depois ir embora, mas
dele procedem e nele estão. E ele está onde aprecia a verdade: no mais íntimo do
coração; mas o coração errante se afastou dele.

Voltai, pecadores, ao coração, e ligai-vos àquele que é vosso criador. Firmai-vos
nele, e estareis firmes; descansai nele, e estareis descansados. Para onde ides por
esses ásperos caminhos? Para onde ides? O bem que amais, dele procede, mas só é
bom e suave quando se dirige a ele; porém, será justamente amargo se,
abandonando a Deus, amardes injustamente o que dele procede. Por que continuai
por caminhos difíceis e trabalhosos? O descanso não está onde o buscais. Buscais a
vida feliz na região das trevas: não está lá. Como achar a vida bem-aventurada
onde nem sequer há vida?

Ele, nossa vida real veio até nós; sofreu nossa morte, e a suplantou com a
abundância de sua vida; com voz de trovão clamou para que voltássemos a ele,
para o lugar escondido de onde veio até nós, passando primeiro pelo seio de uma
virgem, onde se desposou com ele a natureza humana, carne mortal, para não

ficar sempre mortal.

Dali, como o esposo que sai do tálamo, deu saltos como um gigante, para correr
seu caminho. E não se deteve; correu clamando com suas palavras, com suas obras,
com sua própria morte, com sua vida, com sua descida aos ínferos e com sua
ascensão, clamando para que voltássemos a ele. Se ele se afastou de nossa vista,
foi para que entremos em nosso coração, e ali o encontremos; se partiu, ainda está
conosco. Não quis ficar por muito tempo entre nós, mas não nos abandonou.
Retirou-se de onde nunca se afastou, pois o mundo foi criado por ele, e no mundo
estava, e ao mundo veio para salvar os pecadores. E a ele se confessa minha alma,
a ele que a cura e contra quem pecou.

Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração? Será possível que, depois
de ter a vida descido até vós, não queirais subir e viver? Mas para onde subis,
quando vos ergueis e abris vossa boca no céu? Descei para subir, para subir até
Deus, já que caístes levantando-vos contra Deus.

Dize-lhes isto, minha alma, para que chorem neste vale de lágrimas, e assim os
arrebates contigo para Deus, pois, ao dizer estas palavras ardendo em chamas de
caridade, é o espírito divino que te inspira.

CAPÍTULO XIII - O problema do belo

Então eu ignorava tais coisas – e por isso amava belezas terrenas. Caminhava
para o abismo, dizendo a meus amigos: "Será que amamos algo que não é belo? E
que é o belo? E que é a beleza? Que é que nos atrai e apega às coisas que
amamos? Pois, com certeza, se nelas não houvesse certa graça e formosura, não
nos atrairiam.

E eu observava e via que num mesmo corpo uma coisa era o todo, harmonioso e
belo, e outra o que lhe era conveniente, sal aptidão de se ajustar de maneira
perfeita a alguma coisa como, por exemplo, a parte do corpo em relação ao
conjunto, o calçado em relação ao pé, e outras similares. Esta consideração brotou
em minha alma do íntimo de meu coração, e escrevi alguns livros sobre o belo e o
conveniente, creio que dois ou três – tu o sabes, Senhor – pois já me esqueci, e
não os tenho mais porque se me extraviaram não sei como.

CAPÍTULO XIV - Razões de uma dedicatória

Mas, meu Senhor e meu Deus, qual o motivo de dedicar esses livros a Hiério,
orador de Roma? Não o conhecia, apreciando-o apenas pela fama de sua doutrina,
que era grande, e por alguns ditos seus, que ouvira, e que me agradaram. Mas
dele gostava principalmente porque ele agradava aos outros, que lhe tributavam
grandes elogios, admirados de que um sírio, educado na eloqüência grega,
chegasse a orador admirável na latina, e grande conhecedor de todos os assuntos,
ligados à filosofia. Assim, ouve-se louvar a um homem, e, embora ausente, começa-
se a amá-lo. Entrará o amor no coração do que ouve pela boca do que louva? É
certo que não, mas o amor de um se inflama com amor do outro. Por isso se ama
ao que é louvado; mas só quando se está persuadido de que o louvor vem de
coração sincero, ou quando o louvor é inspirado pelo amor.

Assim pois amava eu então aos homens, pelo juízo dos homens, e não pelo teu,
meu Deus, em quem ninguém se engana. Contudo, por que não o louvava como se
louva a uma auriga famoso ou a um caçador afamado pelas aclamações do povo,
mas de modo mais distinto e mais ponderado, tal como eu gostaria de ser
louvado?

Certamente, eu não gostaria de ser louvado e amado como os comediantes,
embora eu também os ame e louve; antes, preferiria mil vezes, permanecer
desconhecido a ser louvado dessa maneira, e mesmo ser odiado a ser amado
assim. De que modo convivem em uma alma gostos tão vários e diversos? Como é
que amo em outro o que rejeitaria e afastaria para longe de mim, sendo ambos
homens? Aprecia-se um bom cavalo, sem que se queira ser um cavalo, se isso fosse
possível. Mas de um histrião não se pode dizer o mesmo, pois tem a mesma
natureza que nós. Logo, amo em um homem o que teria horror de ser, embora
também eu seja homem?

Grande abismo é o homem, cujos cabelos tu, Senhor, tens contados; e não se perde
um sem que tu o saibas; e, contudo, mais fáceis de contar são seus cabelos que
suas paixões e os movimentos de seu coração.

Mas aquele orador era do número dos que eu amava a ponto de desejar ser como
ele; mas eu andava errante por meu orgulho e era arrastado por toda espécie de
vento, embora em segredo fosse governado por ti. E como sei, e como te confesso
com tanta certeza que o amava mais por amor dos que o louvavam do que pelos
méritos que lhe valiam esses louvores?

Se em vez de o louvarem aquelas mesmas pessoas o criticassem, e se me

contassem dele as mesmas coisas, mas com censura e desprezo, certamente não
me entusiasmaria por ele; não obstante, os fatos não seriam diferentes e nem o
homem outro, mas unicamente os sentimentos dos narradores.

Eis onde jaz enferma a alma que ainda não se apoiou na firmeza da verdade. É
levada e trazida, atirada e rechaçada, segundo os sopros das línguas que ventam
dos peitos dos que opinam! E de tal modo a luz lhe é toldada, que não distingue a
verdade, apesar de estar ela à nossa vista.

Para mim era importante que aquele homem conhecesse minhas palavras e meus
trabalhos. Se ele os aprovasse, me entusiasmaria ainda mais por ele; mas se os
reprovasse, meu coração fútil e vazio de tua firmeza, se lastimaria. Contudo, meu
prazer era pensar e refletir no problema do belo e do conveniente, assunto do
livro que lhe dedicara, admirando-o na minha imaginação, mesmo que ninguém
mais o louvasse.

CAPÍTULO XV - Os primeiros livros

Mas não atinava com a chave de tuas artes em tão grandes obras, ó Deus
onipotente, único criador de maravilhas. Vagava minha alma pelas formas
corpóreas, e definia o belo como o que agrada por si mesmo, e o conveniente como
o que agrada por sua acomodação a outra coisa, e apoiava essa distinção com
exemplos tomados dos corpos.

Daqui passei à natureza da alma, mas o falso conceito que tinha das coisas
espirituais não me permitia perceber a verdade. A própria força da verdade
saltava-me aos olhos, mas logo eu afastava da realidade incorpórea meu espírito
inquiridor, voltando-me para as figuras, as cores e as grandezas materiais. E como
não podia ver nada semelhantes na alma, julgava que tampouco seria possível ver
minha alma.

Mas, como eu amava a paz da virtude, e aborrecia a discórdia do vício, notava
naquela certa unidade e neste certa desunião; parecia-me que residisse nessa
unidade a alma racional, a essência da verdade e do sumo bem. Na desunião, via
eu não sei que substância de vida irracional e a natureza do sumo mal, que não
era apenas substância, mas também verdadeira vida. Todavia não procedia de ti,
meu Deus, de quem procedem todas as coisas. E chamava àquela unidade mônada,
como alma sem sexo, e a esta multiplicidade díada, como a ira nos crimes, a
concupiscência nas paixões, sem saber o que dizia. Ignorava então, ainda não havia

aprendido que o mal não é substância alguma, nem que nosso espírito não é o bem
soberano e imutável.

Assim como se cometem crimes quando o movimento do espírito é vicioso e se
atira insolente e turbulento, e se cometem infâmias quando o afeto da alma, fonte
dos prazeres carnais, é imoderado, assim os erros e falsas opiniões contaminam a
vida se a alma racional está viciada, como estava a minha então. Ignorava que ela
deveria ser ilustrada por outra luz para participar da verdade, por não ser da
mesma essência da verdade, porque tu, Senhor, alumiarás minha lâmpada; tu,
meu Deus, iluminarás minhas trevas, e todos participamos de tua plenitude,
porque és a luz verdadeira que ilumina a todo homem que vem a este mundo, e
porque em ti não há mudança nem a momentânea obscuridade.

Eu me esforçava para me aproximar de ti, mas tu me repelias para que
experimentasse a morte, pois resistes aos soberbos. E que maior soberba haveria
que afirmar, com inaudita loucura, que eu era da mesma natureza que tu? Porque,
sendo eu mutável, e reconhecendo-me tal – pois, se queria ser sábio, era para
fazer-me de menos para mais perfeito – preferia, contudo, julgar mutável a ti do
que não ser o que tu és. Eis aqui por que era repelido, e por que resistias à minha
soberba cheia de vento.

Eu não imaginava mais que formas corpóreas; carne, acusava a carne; espírito
errante, não conseguia voltar para ti, nem em mim, nem nos corpos; não eram
sugeridas por tua verdade, mas imaginadas por minha vaidade, de acordo com os
corpos. E dizia aos pequeninos teus fiéis concidadãos, dos quais eu, ignaro, ainda
exilado, dizia-lhes eu, tagarela inepto: "Por que a alma, criatura de Deus, se
engana?" Mas não queria que dissessem: "E por que Deus se engana?" E defendia
antes que tua substância imutável era obrigada a errar, para não confessar que a
minha, mutável, se desencaminhara espontaneamente, ou que era castigada pelo
erro.

Teria eu vinte e seis ou vinte e sete anos quando escrevi essas coisas, revolvendo
dentro de mim apenas imagens corporais, cujo ruído aturdia os ouvidos do meu
coração. Buscava eu aplicá-los – ó doce verdade – à tua melodia interior, quando
meditava sobre o belo e o conveniente. Meu desejo era estar diante de ti, e ouvir
tua voz, e alegrar-me intensamente com a voz do esposo, mas não o podia, porque
o alarido do meu erro me arrebatava para fora e, sob o peso de minha soberba,
caía no abismo. Pois ainda não davas gozo e alegria a meus ouvidos, nem
exultavam meus ossos, porque ainda não haviam sido humilhados.

CAPÍTULO XVI - As dez categorias de Aristóteles

E que lucro me trazia, tendo eu vinte anos de idade, mais ou menos, e chegando-
me às mãos a obra de Aristóteles, intitulada As Dez Categorias – que meu mestre,
o retórico de Cartago, e outros, considerados doutos, citavam com grande ênfase e
ponderação, fazendo-me suspirar por ela como por algo grandioso e divino – de
que me servia ler essa obra e compreendê-la sozinho? Falando com outros, que
afirmavam ter conseguido entendê-la só por meio de mestres eruditíssimos, que
lha haviam explicado não apenas com palavras, mas também com figuras pintadas
na areia, nada me souberam dizer que eu já não tivesse entendido em minha
leitura particular.

Parecia-me que essa obra falava com muita clareza das substâncias, como o
homem, e das coisas que nelas se encerram, como a forma do homem; a estatura,
quantos pés mede; o parentesco, de quem é irmão; onde se encontra, quando
nasceu; se está de pé, sentado, calçado ou armado; se faz alguma coisa ou se
padece de alguma coisa, e, enfim, uma infinidade de relações que se contêm nestes
nove gêneros, dos quais citei alguns exemplos, ou no próprio gênero da substância,
que são também inumeráveis os que encerra.

De que me aproveitava tudo isso, se até me prejudicava? Julgando que naqueles
dez predicamentos se achavam compreendidas, de modo absoluto, todas as coisas,
esforçava-me por compreender também a ti, meu Deus, Ser maravilhosamente
simples e imutável, como se fosses subordinado à tua grandeza e formosura, como
se estas estivessem em ti como em seu sujeito, como se fosses um corpo; tua
grandeza e beleza são porém uma mesma coisa contigo, ao contrário dos corpos,
que não são grandes ou belos por serem corpos, pois, embora fosses menores e
menos belos, nem por isso deixariam de ser corpos.

Era pois falso o que pensava de ti, e não verdade; ilusões de minha miséria, e não
representação sólida de tua beleza. Havias ordenado, Senhor, e assim se cumpria
em mim tua vontade, que a terra me produzisse abrolhos e espinhos, e que eu só
conseguisse meu pão à custa de trabalho.

De que me aproveitava também ler e compreender por mim mesmo todos os
livros que pude ter nas mãos sobre as artes chamadas liberais, se eu era então
escravo de minhas más inclinações? Comprazia-me em sua leitura, sem atinar de
onde vinha quanto de verdadeiro e certo achava neles; eu estava de costas para a
luz, e o rosto, para os objetos iluminados, e por isso meus olhos, que os viam

iluminados, não recebiam luz.

Tu sabes, Senhor, meu Deus, como sem ajuda de mestre, aprendi tudo o que li,
quanto às leis da retórica, da dialética, da geometria, da música e da matemática,
porque também a vivacidade da inteligência e a agudeza da intuição são dons
teus. Mas não te oferecia por eles sacrifício algum, e por isso causavam-me mais
dano do que proveito. Insisti em me apoderar da melhor parte da minha herança,
e não guardei em ti minha força, mas afastei-me de ti para uma região longínqua,
a fim de dissipá-la entre as meretrizes de minhas paixões.

De que me serviam dons tão preciosos, se não usava bem deles? Só compreendi
que aquelas artes eram tão difíceis de entender, mesmo para os estudiosos e
sábios, quando me esforçava para expô-las: entre eles, o mais destacado era o que
me compreendia menos vagarosamente.

Mas qual o fruto disso, se eu te concebia, Senhor meu Deus, ó Verdade, como um
corpo luminoso e infinito, e eu como uma parcela desse corpo? Que rematada
perversidade! Assim era eu; não me envergonho agora, meu Deus, de confessar
tuas misericórdias para comigo, e de te invocar, já que não me envergonhei então
de proferir ante os homens tais blasfêmias e de ladrar contra ti. De que me
aproveitava, repito, a inteligência ágil para entender aquelas ciências, e para
explicar com clareza tantos livros complicados, sem que ninguém mos houvesse
explicado, se errava monstruosamente na piedade com sacrílega torpeza? E que
prejuízo sofriam teus pequeninos em serem de menor inteligência, se não se
afastavam de ti, para que, seguros no ninho da tua Igreja, se cobrissem de penas,
e lhes alimentassem as asas da caridade com o sadio alimento da fé?

Ó Deus e Senhor nosso! Esperemos, ao abrigo de tuas asas; protege-nos, leva-nos!
Tu levarás os pequeninos, e até escarnecidos tu os levarás, nossa firmeza só é
firmeza quando está em ti; mas quando depende de nós, então é debilidade. Nosso
bem vive sempre em ti, e somos perversos porque nos afastamos de ti. Voltemos
já, Senhor, para não nos aniquilarmos, porque em ti vive nosso bem, sem
deficiência alguma; sem medo de não o encontrar quando voltarmos para nossa
origem e, embora ausentes, nem por isso desaba nossa casa, tua eternidade.

LIVRO QUINTO

CAPÍTULO I - Oração

Recebe, Senhor, o sacrifício de minhas Confissões por meio da minha língua, que tu
formaste e impeliste a confessar teu nome. Cura todos os meus ossos, e que eles
proclamem: Senhor, quem haverá semelhante ai ti? Na verdade, quem se dirige a
ti, nada te informa do que ocorre em si, porque não há coração fechado que se
possa subtrair a teu olhar, nem dureza de homem que possa repelir tua mão. Ao
contrário, a abrandas quando queres, ou para compadecer-te, ou para castigar;
não há quem se esconda de teu calor. Mas, que minha alma te louve para que te
ame, a confesse tuas misericórdias para que te louve. Toda a criação não cala teus
contínuos louvores, nem os espíritos todos, com sua boca voltada para ti, nem os
animais e coisas corporais, pela boca dos que os contemplam. Assim, apoiando-se
em tua criação, nossa alma se levanta de sua franqueza, e chega a ti, seu
admirável criador, onde encontrará rejuvenescimento e verdadeira fortaleza.

CAPÍTULO II - Os que fogem de Deus

Afastem-se e fujam de ti os irrequietos e os pecadores. Tu os vês e distingues suas
sombras. E eis que, apesar deles, todas as continuam belas; somente eles são feios.
E que damos te poderiam causar? Ou em que poderia desonrar teu império, justo
e íntegro desde os céus até as coisas mais ínfimas? E para onde fugiram, ao fugir
de tua presença? E em que lugar não os encontrarás? Fugiram, sim, para não ver-
te a ti, que os estás vendo, mas deparam contigo, que não abandonas nada do que
criaste; tropeçaram contigo, injustos, e justamente são castigados; subtraindo-se á
tua brandura, ofenderam tua santidade, e caíram sob teus rigores.

Evidentemente eles ignoram que estás em toda parte, que nenhum lugar te
limita, e que só tu estás presente mesmo nos que se afastam de ti.

Que se convertam, pois, e te busquem, porque não abandonas tua criatura, como
elas abandonaram a seu Criador. Que se convertam, e logo estarás em seus
corações, nos corações dos que te confessam, dos que se lançam em ti, dos que
choram em teu regaço depois de percorrerem penosos caminhos. E tu, bondoso,
enxugarás suas lágrimas; e chorarão ainda mais, mas serão felizes por chorar,
porque és tu, Senhor, e nenhum homem de carne e sangue, tu, Senhor, que os
criaste, que os consolas e robusteces.

E onde estava eu quando te buscava? Certamente, estavas diante de mim, mas eu
me havia afastado de mim mesmo, e não me encontrava, e muito menos de ti!

CAPÍTULO III - Fausto e o maniqueísmo

Falarei, na presença de meu deus, do ano vigésimo-nono de minha vida. Já havia
chegado a Cartago um dos bispos maniqueus, chamado Fausto, grande laço do
demônio, no qual caíam muitos pelo encanto sedutor de sua eloqüência. Apesar de
ser exaltada por mim, eu a sabia contudo discernir das verdades que desejava
conhecer. Não era o prato do estilo que eu considerava, mas o alimento doutrinal
que nele me era servido por aquele famoso Fausto, tao reputado entre os seus.

Antecedera-o a fama de homem erudito em toda espécie de ciência, e
particularmente instruído nas artes liberais. E como eu tinha lido muitas teorias
dos filosofo, e as guardava na memória, quis comparar algumas destas com as
grandes fábulas do maniqueísmo. Pareciam-me mais prováveis as doutrinas
daqueles que chegaram a conhecer a ordem do mundo, embora não tivessem
encontrado a seu Criador. Porque tu és grande, Senhor, e pondes os olhos nas
coisas humildes, e as elevadas as conheces de longe, e não te aproximas senão dos
contritos de coração. Nem és encontrado pelos soberbos, ainda que sua curiosa
perícia seja capaz de contar as estrelas do céu e as areias do mar; seja capaz de
medir as regiões do céu e de investigar o curso dos astros.

Com a inteligência e o engenho que lhes deste investigam os segredos do mundo,
e descobriram muitos deles; predisseram com muitos anos de antecedência os
eclipses do sol e da lua, no dia e hora em que hão de suceder, sem que nunca lhes
falhasse o cálculo, acontecendo sempre tal e como haviam anunciado. Deixaram
ainda por escrito as leis por eles descobertas, as quais ainda hoje se lêem, e de
acordo com elas se prediz em que ano, e em que mês do ano, e em que dia do mês,
e em que hora do dia, e em que parte de sua luz se hão de eclipsar o sol e a lua; e
tudo acontece como está predito.

Admiram-se disto os ignorantes, e pasmam. Os sábios gloriam-se disso, e se
desvanecem, e com ímpia soberba afastam-se e se eclipsam de tua luz. E, prevendo
com exatidão o eclipse vindouro do sol, não vêem o seu, que já está presente. Não
procuram religiosamente saber de onde lhes vem o talento com que investigam
essas coisas e, achando que tu as criaste, não se entregam a ti, para que conserves
o que lhes deste, nem se te oferecem em sacrifício, como se tivessem feito a si
mesmos; nem dão morte às suas soberbas, que alçam vôo como aves do céu; nem
às suas insaciáveis curiosidades que, como peixes do mar, passeiam pelas secretas

sendas do abismo; nem às suas luxúrias, que os igualam aos animais do campo, a
fim de que tu, ó Deus, fogo devorador, destruas estas suas preocupações de morte,
e os torne a criar para uma vida imortal.

Mas não conheceram o caminho, o teu Verbo, por quem fizeste as coisas que
numeram, e a eles próprios que as numeram, e os sentidos com que percebem as
coisas que numeram, e a mente graças à qual as numeram. Tua sabedoria escapa
aos números. Teu Filho Unigênito se fez para nós sabedoria, justiça e santificação,
e foi contado entre nós, e pagou tributo a César. Não conheceram este caminho,
por onde desceriam de seu orgulho até ele, e por ele subiriam até ele; não
conheceram, digo, este caminho, e se julgaram mais elevados e resplandecentes
que estrelas, e assim vieram a rolar por terra, e seu coração insensato se
obscureceu.

Dizem muitas coisas verdadeiras acerca das criaturas; mas, como não procuram
piedosamente a Verdade, isto é, o autor da Criação, não o encontram; e, se o
encontram reconhecendo-o por Deus, não o honram como a Deus, nem lhe dão
graças. Antes, se desvanecem em seus pensamentos, e se dizem sábios, atribuindo
a si próprios o que é teu.

Atribuem a ti, com perversa cegueira, suas mentiras, a ti, que és a própria
Verdade; alteram a glória de um Deus incorruptível, concebendo-a à semelhança e
imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes, das serpentes. E
convertem tua verdade em mentira, e adoram e servem antes à criatura do que
ao Criador.

Eu porém guardava muitas de suas opiniões verdadeiras acerca das criaturas, cuja
explicação encontrava nos números, na ordem dos tempos e no testemunho visível
dos astros; comparava-as com os ensinamentos de Manés, que escreveu sobre
essas matérias numerosas e delirantes loucuras, sem achar nenhuma explicação
para os solstícios e equinócios, os eclipses do sol e da lua, e para outras coisas,
enfim, das quais tomara conhecimento pelos livros da sabedoria profana.

Contudo, exigia-me que acreditasse nessas doutrinas, embora não concordassem
absolutamente com meus cálculos e com o que meus olhos testemunhavam.

CAPÍTULO IV - Ciência e ignorância

Senhor, Deus da verdade, acaso te agradará quem conhecer essas coisas? Infeliz

do homem que, conhecendo-a todas, te ignora ti; mas feliz de quem te conhece,
embora as ignore!

Quanto ao que conhece a ti e a elas, este não é mais bem-aventurado por causa de
seu saber, mas só é feliz por ti, se, conhecendo-te, te glorifica como Deus, e te dá
graças, e não se desvanece em seus pensamentos.

É melhor aquele que reconhece estar na posse de uma árvore e te dá graças por
sua utilidade, embora ignore quantos côvados tem de altura e de largura, que o
que a mede, e conta todos os seus ramos, mas não a possui, nem conhece, nem
ama a seu Criador. Assim o homem fiel, a quem pertencem todas as riquezas do
mundo, e que, nada possuindo, possui tudo, por estar unido a ti, a quem servem
todas as coisas – embora desconheça até o curso das estrelas da Ursa – e seria
insensatez duvidar – é certamente melhor do que o que mede os céus, conta as
estrelas e pesa os elementos, mas despreza a ti, que dispuseste todas as coisas em
número, peso e medida.

CAPÍTULO V - Loucuras de Manés

Mas, quem pediu a esse Manés que escrevesse sobre coisas cujo conhecimento não
é necessário à piedade? Tu disseste ao homem: Vê que a piedade é a sabedoria.
Manés podia muito bem ignorar essa piedade ainda que fosse muito instruído nas
ciências profanas. Mas, como não as conhecia, e se atrevia desavergonhadamente
a ensiná-las, de nenhum modo conhecia a piedade. Pois certamente é vaidade
alardear conhecimentos humanos, mesmo verdadeiros, e é piedade confessar-te a
ti. Manés, afastando-se dessa regra, falou tanto sobre essas coisas que foi
convencido de sua ignorância pelos que as conhecem bem. Donde se viu-se
claramente o crédito que merecia em matérias mais obscuras. Ele não queria ser
pouco estimado; empenhou-se em convencer aos demais que tinha em si,
pessoalmente, e na plenitude de seu poder, o Espírito Santo, que consola e
enriquece teus fiéis. Surpreendido em erro ao falar do céu, das estrelas, e do curso
do sol e da lua, embora tais coisas não pertençam à religião, claramente deixou
ver ser sacrílego seu atrevimento ao ensinar coisas que ignorava e também falsas,
e isso com tão insano orgulho a ponto de atribuí-las à pretensa divindade de sua
pessoa.

Quando pois ouço que este ou aquele irmão em Cristo ignora esses problemas, e
confunde uma coisa com outra, suporto com paciência seu modo de opinar. Nada
vejo que possa ser-lhe prejudicial enquanto não fizer idéia indigna de ti, Senhor,
criador do universo, mesmo que ignore até o lugar e a natureza das coisas

materiais. O mal seria acreditar que esses problemas pertencem à essência da
piedade, e tenazmente atrever-se a afirmar o que ignora. Mas ainda essa fraqueza
é suportada nos primórdios da fé pela mãe caridade, até que o homem novo cresça
e se transforme em varão perfeito, e não possa ser abalado por qualquer vento de
doutrina.

Quanto a Manés, que se atreveu a se fazer de doutor, de mestre, de guia e cabeça
daqueles a quem convertera, de tal forma que os que o seguiam acreditassem
seguir não um homem qualquer, mas teu Espírito Santo, quem não julgaria que
tão rematada loucura, uma vez demonstrada sua falácia, deveria ser detestada e
afastada para bem longe?

Contudo, eu ainda não estava certo se o que havia lido em outros livros, sobre as
mudanças dos dias e das noites, uns mais longos, outros mais curtos, e sobre o
suceder-se dos dias e das noites, e dos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos
semelhantes, poderiam ser explicados conforme sua doutrina. Caso isso fosse
possível, eu ainda ficaria em dúvida quanto ao modo por que se realizariam esses
fenômenos; eu anteporia a autoridade de Manés à minha fé, pois o tinha então em
conta de santo.

CAPÍTULO VI - A eloqüência de Fausto

Durante os quase nove anos em que meu espírito errante deu ouvidos aos
maniqueus, esperei ansiosamente a vinda de Fausto. Os demais adeptos, com os
quais me encontrava casualmente, embaraçados com as objeções que eu lhes fazia,
remetiam-me a ele que, à sua chegada, com uma simples entrevista resolveria
facilmente todas aquelas dificuldades, e ainda outras maiores que me ocorressem,
de maneira claríssima.

Logo que chegou, pude notar que se tratava de um homem simpático, de fala
cativante, e que expunha os temas comuns dos maniqueus, mas com muito mais
agrado que eles. Mas, que interessava à minha sede este elegante copeiro de
copos preciosos? Eu já tinha os ouvidos fartos daquelas teorias, e nem me
pareciam melhores por serem expostas em melhor estilo, nem mais verdadeiras
pela elegância de suas formas; nem eu considerava Fausto mais sábio por ter o
rosto de mais graça e sua linguagem mais finura. Aqueles que mo haviam
recomendado não eram bons juizes: tinham Fausto como homem sábio e prudente
somente porque lhes agradava sua facúndia.

Diferentes de outra espécie de homens que conheci, que tinham como suspeita a
verdade, e não se lhe renderiam se lhes fosse apresentada com linguagem
elegante e verbosa.

Mas eu, meu Deus, nessa época já tinha aprendido de ti, por caminhos ocultos e
admiráveis – e creio que eras tu que me ensinavas, porque era verdade, e
ninguém pode ser mestre da verdade senão tu, seja qual for a instância e modo
dela brilhar – já havia aprendido de ti que não se deve ter por verdadeiro um
pensamento porque expresso eloquentemente nem falso porque é dito com
rudeza; e que, pelo contrário, um pensamento não é verdadeiro por ser enunciado
com simplicidade, nem falso porque sua expressão é elegante; a sabedoria e a
ignorância são como alimentos, proveitosos ou nocivos, e as palavras, elegantes
ou rudes, como pratos preciosos ou toscos, nos quais se podem servir a ambos.

A ânsia com a qual por tanto tempo esperara por Fausto, deleitava-se enfim com o
ardor e a vivacidade de suas disputas, com os termos apropriados e a facilidade
com que lhe vinham à boca para adornar seu pensamento. Deleitava-me,
certamente, e eu o louvava e exaltava com os outros, e muito mais ainda do que
eles.

Contudo, na reunião dos ouvintes, me aborrecia não poder apresentar-lhe minhas
dúvidas, e dividir com ele os cuidados de meus problemas, conferindo com ele
minhas dificuldades em forma de perguntas e respostas. Quando, enfim, o pude
fazer, acompanhado de meus amigos, comecei a falar-lhe em ocasião e lugar
oportunos para tais discussões, apresentando-lhe algumas objeções das que mais
me preocupavam. Vi então que se tratava de homem completamente ignorante
das artes liberais, com exceção da gramática, que conhecia de modo superficial.

Contudo como havia lido alguns discursos de Cícero, e pouquíssimos livros de
Sêneca, alguns poemas e livros da seita, escritos em bom latim e com arte, e como
se exercitava todos os dias em falar, adquirira grande facilidade de expressão, que
ele tornava mais agradável e sedutora com o bom emprego de seu talento e certa
graça natural.

Não é assim como estou contando, meu Senhor e meu Deus, juiz de minha
consciência?

Diante de ti estão meu coração e minha memória, e que já então guiavas no
segredo oculto de tua providência, pondo diante de meus olhos meu erros

vergonhosos, para que os visse e odiasse.

CAPÍTULO VII - Desilusão

Por isso, logo que reconheci sua ignorância naquelas ciências em que o julgava
grande conhecedor, comecei a desesperar de que me pudesse esclarecer e resolver
as dificuldades que me preocupavam. É bem verdade que ele podia ignorar tais
coisas e possuir a verdadeira piedade, contanto que não fosse maniqueísta. Seus
livros estão cheios de fábulas intermináveis acerca do céu e dos astros, do sol e da
lua, que eu já não esperava, mas que pudesse explicar tão argutamente como eu o
desejava, comparando-as com os cálculos matemáticos que eu lera em outras
partes, para ver se deveria preferir o que diziam os livros de Manés, ou se, pelo
menos, estes apresentavam demonstrações de igual valor.

Mas, quando apresentei minhas dificuldades à sua consideração e crítica, com
grande modéstia, não se atreveu a tomar sobre si tal encargo, pois certamente
sabia que ignorava o assunto e não se envergonhava de confessá-lo. Não pertencia
à classe de charlatães que me vi obrigado muitas vezes a suportar, que
pretendiam ensinar-me tais coisas, mas não me diziam nada. Este, pelo menos,
tinha coração, senão dirigido a ti, pelo menos não era incauto consigo mesmo. Não
ignorava totalmente sua ignorância, razão pela qual não quis meter-se
temerariamente em questões de onde não pudesse sair, ou de mui difícil retirada.
Por isso mesmo cresceu aos meus olhos, por ser a modéstia de uma alma que se
conhece muito mais bela que o saber que eu desejava; e em todas as questões
mais difíceis e sutis o encontrei sempre com igual ânimo.

Esfriado pois meu entusiasmo pelos livros de Manés, e muito mais desconfiado dos
outros doutores maniqueus, depois que este, tão renomado, se me havia mostrado
tão ignorante em muitas das questões que me inquietavam, continuei a tratar
com ele, mas por causa de sua paixão pelas letras, que eu ensinava então aos
jovens de Cartago. Lia com ele os livros que desejava conhecer por ter ouvido falar
deles, ou os que eu considerava apropriados à sua inteligência.

Quanto ao mais, todo o empenho que eu havia posto em progredir na seita
desapareceu por completo tão logo conheci este homem, mas não a ponto de me
separar definitivamente dela.

De fato, não achando na ocasião caminho melhor que aquele por onde cegamente
me lançara, resolvi continuar provisoriamente na mesma, até que tivesse a

fortuna de encontrar algo melhor e preferível. Foi assim que aquele Fausto, que
havia sido para muitos laço de morte, começava involuntária e inconscientemente
a desfazer o laço que me enredara. É que tuas mãos, meu Deus, no segredo de tua
providência, não abandonavam minha alma; e minha mãe, dia e noite, não deixava
de te oferecer em sacrifício por mim o sangue de seu coração, na forma de suas
lágrimas.

E tu, Senhor, agiste comigo de modo admirável, pois isso foi obra tua, meu Deus.
Porque o Senhor é quem dirige os passos do homem e quem inspira seu caminho. E
quem poderá dar-nos a salvação, senão tua mão, que restaura o que fez?

CAPÍTULO VIII - Viagem a Roma

Também foi obra tua o fato de me convencerem a ir a Roma, para ali lecionar o
que ensinava em Cartago. Mas não deixarei de confessar-te o motivo que me
moveu, porque também nisso tudo se reconhece a profundidade de teu desígnio, e
merece ser meditada e exaltada tua misericórdia sempre presente. O motivo que
me levou a Roma não foram maiores lucros e maior dignidade, como me
prometiam os amigos que tal me aconselhavam – se bem que essas razões ainda
fossem importantes para mim nesse tempo – mas o principal e quase único motivo
de minha determinação era saber que os jovens de Roma eram mais sossegados
nas classes, em virtude da rigorosa disciplina a que estavam sujeitos. Não lhes era
lícito entrar desordenada e impudentemente nas aulas dos professores dos quais
não eram alunos, nem sequer eram admitidos sem licença; bem o contrário do que
acontecia em Cartago, onde a liberdade dos estudantes é tão vergonhosa e
destemperada que invadem cínica e furiosamente as aulas, perturbando a ordem
estabelecida pelos mestres em seu próprio interesse. Além disso, com incrível
insolência cometem uma quantidade de grosserias, que deveriam ser castigadas
pelas leis, se a tradição não os protegesse. Tal costume aliás, apenas manifesta a
infelicidade no caso desses jovens, que já praticam como lícito o que jamais será
permitido por tua lei eterna. Julgam agir impunemente, quando a própria
cegueira é seu maior castigo, padecendo eles males incomparavelmente maiores
do que os que causam aos outros.

Com isso vi-me obrigado, quando professor, a suportar nos outros costumes que
não quis adotar como meus quando estudante; e por isso desejava ir para uma
cidade na qual, segundo me asseguravam, não aconteciam tais coisas. E tu,
Senhor, minha esperança e meu quinhão na terra dos vivos, a fim de que eu
mudasse de residência para a saúde de minha alma, me punhas espinhos em
Cartago, para arrancar-me dali, e deleites em Roma para atrair-me para lá.

Atraías-me por meio de homens que amavam uma vida morta, dos quais uns
agiam aqui como loucos, e outros me aliciavam alhures com bens ilusórios. E, para
corrigir meus passos, usavas ocultamente da sua e da minha perversidade. Porque
os que perturbavam minha paz estavam cegos por uma raiva vergonhosa, e os que
me convidavam para mudar sabiam a terra; e eu, que detestava em Cartago uma
verdadeira miséria, buscava em Roma uma falsa felicidade.

Mas o verdadeiro motivo de eu sair de Cartago e ir para Roma só tu, ó Deus, o
sabias, sem manifestá-lo a mim nem à minha mãe, que chorou amargamente
minha partida, seguindo-me até o mar. Mas tive de enganá-la, porque me
agarrava com força, instando-me a desistir de meu propósito ou a levá-la comigo.
Fingi pois que tinha que me despedir de um amigo que eu não queria abandonar,
até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim enganei a minha mãe, e a
uma tal mãe! Fugi, e tu também me perdoaste este pecado misericordiosamente,
salvando-me a mim, cheio de execráveis imundícies, das águas do mar para que
chegasse ás águas de tua graça. Purificado com elas, secariam os rios dos olhos de
minha mãe, com que todos os dias regava a terra diante de ti, por minha causa.

Contudo, como se recusasse a voltar sem mim, apenas pude persuadi-la a
permanecer aquela noite em uma capela próxima a nosso navio, consagrada à
memória de São Cipriano. Mas naquela mesma noite parti às escondidas,
deixando-a orar e a chorar. E que te pedia ela, meu Deus, com tantas lágrimas,
senão que me impedisses de navegar? Mas tu, de visão infinitamente mais ampla,
entendendo o intuito de seu desejo, não atendeste ao que ela então te pedia,
para fazer em mim aquilo que sempre te pedia.

Soprou o vento, enfunou nossas velas, e logo desvaneceu de nosso olhar a praia,
onde de manhã cedo minha mãe, louca de dor, enchia de queixas e de prantos teus
ouvidos insensíveis.

Deixaste-me correr atrás de minhas paixões para dar fim ás minhas
concupiscências, castigando com o justo flagelo da dor a saudade demasiado carnal
de minha mãe. Ela, como todas as mães, e ainda mais que a maioria delas,
desejava manter-me junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que lhe
preparavas com minha ausência. Não o sabia, e por isso chorava e se lamentava,
denunciando com esses lamentos a herança que recebera de Eva, buscando em
lágrimas ao que com gemidos havia dado à luz.

Por fim, depois de ter-me chamado de mentiroso e de mau filho, pôs-se de novo a

rezar por mim e voltou para sua vida habitual, enquanto eu me dirigia a Roma.

CAPÍTULO IX - Enfermo

Em Roma fui colhido pelo flagelo de uma doença corporal, que esteve a ponto de
me mandar para a sepultura, carregado de todos os pecados cometidos contra ti,
contra mim e contra o próximo; pecados numerosos e pecados, que se somavam à
cadeia do pecado original, pelo qual todos morremos em Adão. Ainda não me
tinhas perdoado nenhum deles em Cristo, nem ele havia apagado com sua cruz as
inimizades que contraíra contigo com meus pecados. E como poderia ele desfazê-
los por uma cruz de onde eu não via pender mais que um fantasma? Porque tão
falsa me parecia a morte de sua carne como verdadeira a morte de minha alma, e
tão verdadeira a morte de sua carne como falsa a vida de minha alma, que disto
se não persuadia.

Entretanto, agravando-se as febres, eu estava a ponto de partir e de perecer.
Para onde iria eu, se então tivesse que morrer, senão para o fogo e tormentos
merecidos por minhas ações, de acordo com a justa ordem por ti estabelecida?
Minha mãe tudo ignorava, mas, ausente, orava por mim, e tu, presente em todas
as partes onde ela estava, lhe dava ouvidos; exercias tua misericórdia para comigo
onde eu estava, restituindo-me a saúde do corpo, ainda que meu coração sacrílego
continuasse doente. Nem mesmo estando em tão grande perigo desejei teu
batismo. Quando menino eu era melhor, porque então o solicitei à piedade de
minha mãe, como já recordei e confessei. Mas, para minha vergonha, eu havia
crescido e, em minha loucura, zombava dos remédios de tua medicina, que não me
deixou morrer duplamente em tal estado.

Se o coração de minha mãe fosse transpassado por essa ferida, nunca haveria de
sarar.

Minha eloqüência não é suficiente para descrever o grande amor que me
dedicava, e a que ponto seus cuidados para me gerar em espírito eram piores que
os que suportava quando me concebeu pela carne.

Por isso, não vejo como poderia sarar se minha morte em tal estado tivesse ferido
as entranhas de seu amor. E onde estariam tantas orações, continuamente
repetidas? Estariam em ti, somente em ti. Seria possível que tu, Deus de
misericórdia, desprezasses o coração contrito e humilhado de uma viúva casta e
sóbria, que frequentemente dava esmolas e servia obsequiosa a teus santos? Que

em nenhum dia deixava de levar sua oferenda a teu altar? Que ia duas vezes por
dia – de manhã e à tarde – à tua igreja, sem faltar jamais, e não para entreter-se
em vãs conversas e cochichos de velhas, mas para te ouvir as palavras e para que
a ouvisses em suas orações? Poderias desprezar as lágrimas de uma mãe que não
te pedia nem ouro, nem prata, nem bem algum terreno e frágil, mas a salvação da
alma de seu filho? Poderias, ó Deus, a quem ela devia tudo o que era, poderias
desprezá-la e negar-lhe teu auxílio? De nenhum modo, Senhor; pelo contrário, tu a
assistias, e a escutavas, mas pelo caminho determinado por tua providência.

Como poderias enganá-la naquelas visões e respostas, de algumas das quais já
falamos, e de outras que passo em silêncio, que ela guardava em seu coração fiel,
e que te apresentava em suas orações contínuas como compromissos assinados por
tua mão, e que irias cumprir.

Porque, por tua misericórdia infinita, gostas de te fazer devedor daqueles a quem
perdoas todas as dívidas.

CAPÍTULO X - Agostinho e os erros dos maniqueus

Restabeleceste-me, pois, daquela doença, e então salvaste o filho de tua serva
quanto ao corpo a fim de poder, salvá-lo melhor e mais firmemente. Em Roma
juntei-me ainda com os que se diziam "santos", falsos e enganadores. E não só
convivia com os ouvintes, entre os quais se contava o dono da casa em que eu
adoecera e convalescera – mas também com os que se chamam "eleitos".

Ainda então me parecia que não éramos nós que pecávamos, mas não sei que
estranha natureza que pecava em nós; por isso minha soberba se deleitava em me
ter como isento de culpa, e portanto de todo desobrigado a confessar meu pecado,
quando agia mal, para que pudesses curar minha alma que te ofendia. Antes,
gostava de me desculpar, acusando a não sei que ser estranho que estava em
mim, mas que não era eu. Na verdade, eu era tudo aquilo, embora minha
impiedade me tivesse dividido contra mim mesmo. E o mais incurável de meu
pecado era justamente o não me considerar pecador, preferindo, minha execrável
iniqüidade, que fosses vencido em mim, para minha perdição, ó Deus onipotente, a
que vencesses minha alma para minha salvação. Ainda não tinhas posto guarda
diante da minha boca, nem porta de proteção ao redor de meus lábios, a fim de
que meu coração não se inclinasse para as más palavras, nem buscasse desculpas
para seus pecados, como os homens prevaricadores. Eis a razão pela qual eu ainda
mantinha relações de amizade com os eleitos dos maniqueus. Mas, desesperado de
poder progredir para a verdade dentro daquela falsa doutrina, contentava-me a

segui-la até encontrar algo melhor, professando-a já com mais liberdade e
frouxidão.

Nesse tempo, veio-me à mente a idéia de que os filósofos chamados acadêmicos
haviam sido mais prudentes que os outros, por sustentarem que se deve duvidar
de tudo, e que nenhuma verdade pode ser compreendida pelo homem. Julguei
então que era esse o seu pensamento, como geralmente se crê, não tendo ainda
compreendido suas verdadeiras intenções.

Quanto a meu hospede, não me furtei de admoestar sua excessiva credulidade com
que aceitava as fábulas de que estavam cheios os livros dos maniqueus. Todavia,
tinha mais amizade com tais homens do que com os estranhos à sua heresia. É
verdade que já não a defendia com a antiga animosidade; mas sua familiaridade –
em Roma havia muitos deles ocultos – tornava-me bastante negligente para
procurar outra coisa. Desesperava eu principalmente de poder achar a verdade
em tua Igreja, ó Senhor dos céus e da terra, Criador de todas as coisas visíveis e
invisíveis, verdade da qual eles me afastavam. Parecia-me mui torpe acreditar que
tinhas figura de carne humana, e que estavas limitado pelos contornos de um
corpo como o nosso. E quando queria pensar em meu Deus, não o sabia imaginar
senão com massa corpórea – pois não me parecia que pudesse existir algo
diferente – esta era a causa principal e quase única de meu erro inevitável.

Daqui se gerou também minha crença de que o mal tivesse substância, também
corpórea, massa negra e disforme, ora espessa – a que chamavam terra – ora
tênue e sutil, como o ar, a qual julgava ser um espírito maligno que investia sobre
a terra. E visto que minha piedade, por pouca que fosse me obrigava a pensar que
um Deus bom não podia criar nenhuma natureza má, eu imaginava duas
substâncias antagônicas, ambas infinitas, a do mal um pouco menor, a do bem um
pouco maior; e deste princípio pestilencial originavam-se as demais blasfêmias.
Com efeito, quando meu espírito se esforçava por voltar à fé católica, era
rechaçado porque minha idéia de fé católica não era correta. E me parecia ser
mais piedoso, ó Deus, a quem louvam em mim tuas misericórdias, julgar-te infinito
por todas as partes, com exceção de um aspecto, a substância do mal, onde era
forçoso reconhecer teus limites, do que julgar-te limitado por todas as partes pelas
formas do corpo humano.

Também tinha como melhor admitir que não havias criado nenhum mal – o qual
aparecia à minha ignorância não só como substância, mas como substância
corpórea, por eu não poder conceber o espírito senão como corpo sutil difundido
pelos espaços – do que crer que a natureza do mal, tal como a imaginava,

procedesse de ti.

Também supunha que nosso Salvador, teu Filho Unigênito, houvesse surgido, para
nos salvar, dessa substância luzidíssima de teu corpo. A seu respeito, nada
aceitava senão o que me sugeria minha louca imaginação. E por isso julgava que
tal natureza não podia nascer da Virgem Maria sem se ajuntar com a carne, mas
não via como poderia juntar-se à carne sem se corromper; por isso tinha medo de
acreditar em sua encarnação, para não me ver obrigado a julgá-lo corrompido pela
carne.

Sem dúvida agora teus fiéis irão sorrir, branda e amorosamente, se lerem estas
minhas confissões; mas eu, realmente, era assim.

CAPÍTULO XI - Desculpas dos maniqueus

Além de tudo, eu já não estava convencido que se pudessem defender os pontos
que os maniqueus criticavam em tuas Escrituras. Todavia, desejava por vezes
discutir com sinceridade cada um desses pontos com algum varão, grande
conhecedor de seus livros, para lhe indagar a opinião. Quando ainda em Cartago,
já me despertara o interesse o discurso de um tal Elpídio, que falava e discutia
publicamente contra os maniqueus, alegando citações da Sagrada Escritura que
não me era fácil refutar.

Por sua vez, as respostas dos maniqueus me pareciam fracas; e mesmo assim não
as expunham em público, mas somente entre nós, e muito em segredo, alegando
que as Escrituras do Novo Testamento haviam sido falsificadas por não sei quem,
com o intuito de mesclar a lei dos judeus com a fé cristã; por isso eles próprios não
podiam mostrar nenhum exemplar sem ser apócrifo.

Mas o que principalmente me mantinha cativo, e como que sufocado, eram as tais

"substâncias", que pareciam oprimir-me, e debaixo de cujo peso, arquejante, me
era impossível respirar a atmosfera pura e simples de tua verdade.

CAPÍTULO XII - Os estudantes de Roma

Com toda diligência comecei a pôr em prática a tarefa que me levara a Roma,
ensinar a arte retórica, e comecei por reunir alguns estudantes em casa, para me

tornar conhecido deles, e, por seu intermédio, dos demais.

Mas logo vim a saber, com surpresa, que os estudantes de Roma praticavam
outras artimanhas, que eu não havia experimentado na África. Se bem era
verdade, como me haviam assegurado, que em Roma não ocorriam as mesmas
violências dos jovens corrompidos de Cartago, também me afirmavam que aqui os
estudantes, aos grupelhos, deixavam de repente de assistir às aulas, passando
para outro professor, com o fim de não pagar o devido salário, faltando assim aos
compromissos e desprezando a justiça por amor ao dinheiro.

Também a estes odiava meu coração, porém, não com rancor perfeito, porque na
realidade, mas os aborrecia pelo prejuízo que me podiam causar do que pela
simples injustiça de seu comportamento. Sem dúvida são infames os que assim
agem, e se maculam longe de ti, amando passatempos efêmero e a recompensa de
lodo, que imundece as mãos ao ser colhida, agarrando-se a um mundo fugaz, e
desprezando a ti, que permaneces eternamente, a ti que chamas e perdoas à alma
humana adúltera quando se volta para ti. Ainda agora aborrece-me gente tão
depravada e sem modos, embora agora deseje que se corrijam, para que prefiram
ao dinheiro a ciência que aprendem, e à essa ciência prefiram a ti, Deus, verdade e
abundância de verdadeiro bem e paz castíssima. Mas naquele tempo – confesso –
preferia que não fossem maus para meu interesse do que bons por teu amor.

CAPÍTULO XIII - Viagem a Milão, Santo Ambrósio

Por isso, quando da cidade de Milão escreveram ao prefeito de Roma pedindo para
lá um professor de retórica, com viagem paga pelo Estado, eu mesmo solicitei esse
emprego por intermédio dos mesmos amigos, ébrios com as vaidades dos
maniqueus, dos quais ia-me separar.

Tanto eles como eu, porém, o ignorávamos. Símaco, então prefeito da cidade,
propôs-me o tema de um discurso, e sendo eu aprovado, mandou-me para Milão.

Chegado a Milão, visitei o bispo Ambrosio, famoso na terra por suas qualidades,
piedoso servo teu, cuja eloqüência distribuía zelosamente entre teu povo a flor de
teu trigo, a alegria do azeite e a sóbria embriaguez de teu vinho. A ele era eu
conduzido por ti sem o saber, a fim de que ele me conduzisse a ti conscientemente.

Esse homem de Deus recebeu-me paternalmente, e se interessou muito por minha
viagem, como bispo. Comecei a amá-lo; a princípio, não como mestre da verdade,

que eu desesperava de achar em tua Igreja, mas pela sua amabilidade para
comigo. Ouvia-o atentamente quando pregava ao povo, não com espírito
adequado, mas como se quisesse sondar sua eloqüência, para ver se correspondia
à sua fama, ou se era maior ou menor que a que se dizia; ficava suspenso das suas
palavras, mas indiferente ao conteúdo, coisa que eu até desprezava. Deleitava-me
com a suavidade dos sermões, os quais, embora mais eruditos que os de Fausto,
eram contudo, menos alegres e envolventes no estilo. Quanto à substância de tais
sermões não havia comparação, pois Fausto se perdia por entre as fábulas dos
maniqueus, e Ambrosio ensinava claramente a mais sã doutrina da salvação. Mas
a salvação anda longe dos pecadores, tal como eu era então. Todavia,
insensivelmente e sem o saber, ia-me aproximando dela.

CAPÍTULO XIV - Catecúmeno

Não cuidava eu de aprender o que dizia, interessado apenas em como o dizia – era
este gosto frívolo o único que ainda permanecia em mim, perdidas já as
esperanças de que se abrisse para o homem o caminho para ti. Todavia,
infiltravam-se em meu espírito, juntamente com as palavras que me agradavam,
as coisas que desprezava. Já não me era possível discernir umas das outras, e
assim, ao abrir meu coração à sua eloqüência, nele entrava ao mesmo tempo e aos
poucos, a verdade.

Parece-me, de bom início, que seus ensinamentos podiam ser defendidos e que as
afirmações de fé católica – que eu julgava impotente contra os ataques dos
maniqueus – não eram absolutamente temerárias, principalmente depois de me
serem explicados uma, duas ou mais vezes, as passagens obscuras do Velho
Testamento que, interpretadas no sentido literal, me davam a morte. Assim,
interpretados no sentido espiritual muitos dos textos daqueles livros, comecei a
repreender aquele meu desespero, que me levava a crer na impossibilidade de
resistir aos que aborreciam e zombavam da lei e dos profetas.

Contudo, não me julgava na obrigação de segui o caminho dos católicos, só porque
também esta fé podia ter defensores doutos, capazes de refutar objeções com
eloqüência e lógica. Nem por isso me parecia que devia condenar a fé que antes
abraçara, pois as armas de defesa eram iguais. Assim, de um lado a fé católica não
me parecia vencida, contudo ainda não me parecia vencedora.

Apliquei então todas as forças de meu espírito para ver se podia de algum modo,
com argumentos decisivos, convencer de falsidade os maniqueus. A verdade é que
se eu então tivesse podido conceber uma substância espiritual, imediatamente

todas as invenções daqueles se esvaeceriam e seriam arrancadas de minha alma.
Mas não podia.

Contudo, refletindo e comparando sempre mais o que os filósofos haviam teorizado
acerca do mundo material e de toda a natureza sensível, cada vez mais me
capacitava de que eram muito mais prováveis as doutrinas destes que as dos
maniqueus. Por isso, duvidando de tudo e flutuando por entre as doutrinas, à
maneira dos acadêmicos, como os julga a opinião geral, resolvi abandonar os
maniqueus, julgando que enquanto tivesse em dúvida não devia permanecer em
uma seita à qual eu já antepunha alguns filósofos. Recusava-me, contudo,
terminantemente, a confiar-lhes a cura das enfermidades de minha alma, por ser-
lhes desconhecido o nome salutar de Cristo.

Por isso tudo, resolvi tornar-me catecúmeno na Igreja Católica, que me havia sido
recomendada por meus pais, até que alguma claridade certa viesse dirigir meus
passos.

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO I - Esperanças

Ó minha esperança desde a minha juventude! Onde estavas, ou a que lugar te
havias retirado? Acaso não foste tu quem me criou, diferenciando-me dos animais,
fazendo-me mais sábio que as aves do céu? Mas eu caminhava por trevas e
resvaladouros, e te buscava fora de mim, e não encontrava o Deus de meu
coração; caí nas profundezas do mar. Eu perdera a confiança e desesperava de
encontrar a verdade.

Minha mãe já viera a meu encontro, forte em sua piedade, seguindo-me por mar e
por terra, confiando em ti em todos os perigos. Até na travessia do mar proceloso
ela encorajava os marinheiros – os que costumam animar os navegadores
inexperientes quando se perturbam – garantia-lhes que chegariam a salvo ao fim
da viagem, porque assim lho tínheis prometido em visão.

Encontrou-me em grave perigo, já sem esperança de buscar a verdade. Contudo,
quando lhe disse que já não era maniqueísta, sem ser ainda católico, não pulou de
alegria, como quem ouve algo inesperado, pois já estava segura sobre aquele
ponto de minha miséria, que a fazia chorar por mim como por um morto que
haveria de ressuscitar. Oferecia-me continuamente a ti em pensamento, como
sobre um esquife, para que dissesses ao filho da viúva: Jovem, eu te digo: levanta-
te, e seu filho revivesse, e voltasse a falar, e o entregasses à sua mãe.

Nem se abalou seu coração com alegria exagerada ao ouvir quanto já se havia
cumprido daquilo que com tantas lágrimas te suplicava todos os dias. Viu-me,
senão na posse da verdade, já afastado do erro. E como estava certa de que me
concederias o que faltava – pois lhe havias prometido a graça total – respondeu-
me, com muita calma e com o coração cheio de confiança, que esperava em Cristo
que, antes de sair desta vida, me havia de ver católico fiel.

Foi o que me disse. Mas diante de ti, ó fonte das misericórdias, redobrava as
súplicas e lágrimas, para que apressasses teu auxílio e aclarasses minhas trevas. Ia
com maior solicitude à igreja para ficar suspensa dos lábios de Ambrosio, como da
fonte de água viva que jorra para a vida eterna. Minha mãe amava este varão
como a um anjo de Deus, pois sabia que fora ele quem me fizera mergulhar
naquela dúvida, pela qual antevia, segura, que eu haveria de passar da
enfermidade pela saúde, depois de um perigo mais grave, que os médicos chamam

de crítico.

CAPÍTULO II - Obediência de Mônica

Assim, um dia, como costumava na África, levou papas, pão e vinho puro à
sepultura dos mártires, mas o porteiro não quis permitir suas ofertas. Quando
soube que essa proibição vinha do bispo, resignou-se tão piedosamente e
obedientemente, que eu mesmo me admirei de quão facilmente passasse a
condenar o hábito, e não a criticar a proibição de Ambrósio.

É que seu espírito não era dominado pela embriaguez, nem o amor do vinho a
incitava ao ódio da verdade, como acontece a muitos homens e mulheres, que ao
ouvir o cântico da sobriedade, sentem a mesma repulsa que os ébrios diante de
um copo d'água. Mas ela, ao trazer as cestas com as oferendas usuais para serem
provadas e repartidas, não bebia mais que um pequeno copo de vinho, temperado
segundo seu paladar bastante sóbrio e condizente com sua dignidade. E se eram
muitos os sepulcros que devia honrar desse modo, levava sempre o mesmo copo,
usando-o para todos, de modo que o vinho não só estava muito aguado, mas até
quente.

Dividia-o em pequenos tragos com as pessoas presente, porque buscava a piedade,
e não o prazer.

Tão logo porém soube que o ilustre pregador e mestre a verdade proibira tal
costume – mesmo para os que o praticavam sobriamente, para não dar aos ébrios
azo de se embriagarem, e porque essa espécie de parentales (festas pagãs que se
celebravam de 13 a 21 de fevereiro consagradas especialmente aos deuses lares)
era muito semelhante à superstição dos pagãos – ela se absteve de muito boa
vontade. No lugar da cesta cheia de frutos da terra, aprendeu a levar ao túmulo
dos mártires um coração cheio de puros desejos, dando o que podia aos pobres.

Celebrava assim a comunhão com o corpo do Senhor, cuja paixão serviu de modelo
aos mártires em seu sacrifício e coroação.

Mas, parece-me, meu Senhor e meu Deus – e assim o crê meu coração em tua
presença – que minha mãe não teria abdicado tão facilmente desse costume – que
todavia era necessário cortar – se outro a quem não amasse tanto como a
Ambrosio o tivesse proibido. De fato, ela o estimava muito por ter-me salvado, e
ele a tinha em grande estima pela religiosidade e solicitude com que freqüentava

a igreja, na prática das boas obras. Por isso, muitas vezes quando me encontrava
com ele, irrompia em louvores à minha mãe, e me felicitava por ser seu filho.
Ignorava o filho que ela tinha em mim, filho que duvidava de tudo, e julgava
impossível achar o caminho da vida.

CAPÍTULO III - Primeiras conquistas

Na oração, eu ainda não implorava o teu socorro, mas meu espírito achava-se
ocupado em investigar e inquieto por discutir. Considerava ao próprio Ambrósio
como homem feliz aos olhos do mundo, vendo-o tão honrado pelas mais altas
autoridades. Somente seu celibato me parecia difícil. Mas eu não podia aquilatar,
por nunca as ter experimentado, as esperanças que o animavam, nem a luta que
tinha de travar contra as tentações de sua alta posição; nem conhecia os consolos
na adversidade, nem os saborosos deleites do interior do seu coração quando
ruminava teu alimento. Ele, por sua vez, desconhecia minha inquietação e o
abismo em que estava para cair, porque não lhe podia perguntar, como desejava,
o que queria. Uma multidão de homens de negócios, a quem ele acudia nas
dificuldades, impediam-me de o ouvir ou de lhe falar.

No bem pouco tempo que lhe deixavam livre, dedicava-se a reparar as forças do
corpo com o alimento necessário, ou as do espírito, com a leitura. Quando lia, seus
olhos percorriam as páginas e seu espírito penetrava-lhes o sentido, mas sua voz e
sua língua repousavam.

Muitas vezes, estando eu presente – pois ninguém estava proibido de entrar, nem
era costume anunciar quem se apresentava – vi-o ler em silêncio, e nunca de outra
maneira. E ali ficava eu por muito tempo calado – pois, quem se atreveria
molestar um homem tão atento? – e por fim me afastava. Conjeturava eu que nos
curtos momentos que encontrava para repousar o espírito, livre do tumulto dos
negócios alheios, não queria que o ocupassem com outra coisa. Lia em silêncio (era
comum naqueles tempos ler em voz alta, tanto pela dificuldade dos textos como
pela escassez dos livros, muitas vezes lidos em comum), talvez para evitar que
algum ouvinte, suspenso e atento à leitura, encontrando alguma passagem
obscura, pedisse explicações, ou o obrigasse a dissertar sobre questões difíceis.
Gastaria o tempo em tais coisas, e impedido de ler todos os livros que desejava,
embora fosse mais provável que lesse em silêncio para poupar a voz, que
facilmente lhe enrouquecia.

Em todo caso, qualquer que fosse sua intenção, só poderia ser boa em um homem
como ele.

O certo é que não se apresentava nenhum ensejo para interrogar a teu santo-
oráculo que habitava em seu coração sobre o que desejava, exceto quando lhe
ouvia uma breve resposta, e minhas inquietudes pediam muito tempo e vagar
para consultá-lo, o que nunca encontrava. Ouvia-o, é certo, explicar perfeitamente
ao povo a palavra da verdade todos os domingos, persuadindo-me sempre mais de
que podiam ser desatados todos os nós das calúnias sagazes que aqueles que me
enganavam teciam contra os livros sagrados.

Logo verifiquei que vossos filhos espirituais, a quem regeneraste no sei da santo
mãe, a Igreja, não interpretavam aquelas palavras: "Fizeste o homem à sua
imagem" – de modo a acreditar que estavas encerrado na forma do corpo humano.
E embora eu então não soubesse, nem sequer suspeitasse de longe o que fosse
substância espiritual – alegrei-me com isso, envergonhando-me por ter ladrado
durante tantos anos, não contra a fé católica, mas contra invenções de minha
inteligência carnal. Tinha sido ímpio e temerário por criticar uma doutrina que eu
deveria ter antes procurado conhecer. Mas tu – que estás ao mesmo tempo tão
alto e tão perto de nós, tão escondido e tão presente, tu que não tens membros
maiores nem menores, que estás inteiro em toda parte sem estar todo em
nenhum lugar, certamente não tens nossa forma corpórea. Contudo, fizeste o
homem à tua imagem, e eis que ele, da cabeça aos pés, é limitado pelo espaço.

CAPÍTULO IV - O espírito da letra

Não compreendendo como poderia se espelhar esta tua imagem ao homem, eu
deveria bater à porta, perguntando-te de que modo deveria entender essa crença,
em lugar de me opor insolentemente, como se ela fosse o que eu imaginava. E
assim, tanto mais fortemente me roia o coração o desejo de ter alguma certeza,
quanto mais me envergonhava de ter sido o joguete dos que me haviam
prometido a certeza, e por ter defendido com pueril empenho e animosidade
tantas coisas duvidosas como sendo verdadeiras.

Depois vi a razão por que eram falsas. Mas já estava então certo de que elas eram
duvidosas, embora as tivesse julgado irrefutáveis por algum tempo, quando, com
minhas cegas discussões, combatia tua Igreja Católica. Embora então não a
reconhecesse como mestra da verdade, pelo menos sabia que não ensinava aquilo
de que eu a acusava.

Daí minha confusão, e a conversão que se operava em meu pensamento, ó meu
Deus, vendo que tua Igreja única, corpo de teu Filho único, na qual, ainda menino
me ensinaram o nome de Cisto, não gostava de bagatelas infantis. Regozijava-me

que em sua doutrina sadia nada havia que te representasse, a ti, Criador de todas
as coisas, circunscrito numa forma e num espaço que, embora amplo, seria contudo
limitado.

Também me alegrava de que as Antigas Escrituras da lei e os profetas já não me
fossem propostas na interpretação anterior, em que me pareciam absurdas,
quando eu acusava teus santos de pensamentos que nunca haviam tido. Alegrava-
me ouvir a Ambrósio dizer muitas vezes em seus sermões ao povo, recomendando
com muito zelo a verdade: a letra mata e o espírito vivifica. E, levantando o véu
místico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra,
pareciam ensinar um erro. Nada dizia que me chocasse, embora eu ainda ignorasse
se ele dizia a verdade.

Abstinha-se meu coração de aderir a qualquer doutrina, temendo cair em um
precipício; mas esta suspensão matava-me muito mais, porque queria estar tão
certo das coisas que não via como o estava de que sete e três são dez. Eu não
estava tão louco para pensar que a inteligência alcançaria tal evidência. Mas,
assim como entendia isso, queria entender igualmente as outras verdades, quer
fossem materiais, que não tinha presentes a meus sentidos, quer espirituais, nas
quais não sabia pensar senão de modo material.

É verdade que poderia sarar pela crença, e assim, purificado pela fé o olhar de
meu espírito, pudesse dirigir-se de algum modo à tua verdade, sempre imutável e
indefectível. Mas, como sói acontecer a quem caiu nas mãos de um médico ruim, e
que depois receia as mãos de um bom, assim me sucedia quanto à saúde de minha
alma que, não podendo sarar senão pela fé, recusava-se a sarar por temor de crer,
novamente, em falsidades. Minha alma resistia às tuas mãos, ó meu Deus, que
preparaste o remédio da fé, e o derramaste sobre as enfermidades da terra,
dando-lhe tanta autoridade e eficácia.

CAPÍTULO V - Os mistérios da Bíblia

Desde esse tempo, recaía minha preferência na doutrina católica, porque ajuizava
que nela houvesse mais modéstia, e não mentira, ao impor a crença no que não
era demonstrado – quer porque, mesmo havendo provas, estas não fossem
acessíveis a todos, quer porque não existissem. Diferente do que ocorria entre os
maniqueus, que desprezavam a fé, e prometiam, com temerária arrogância, a
ciência, para depois nos obrigarem a acreditar em uma infinidade de fábulas
completamente absurdas, impossíveis de demonstrar.

Depois, com suavidade e misericórdia, começaste, Senhor, a cuidar e à preparar
aos poucos o meu coração, e foi aceitando tudo o que eu acreditava sem o ter
visto, e a cuja realização não presenciara. Tantos fatos da história dos povos,
tantas notícias sobre lugares e cidades que não vira, tudo o que aceitava
acreditando em amigos, em médicos e em outras pessoas que, se não as
acreditássemos, não poderíamos dar um passo na vida. E, sobretudo, que fé
inabalável eu tinha em ser filho de meus pais, coisa que não poderia saber sem
prestar fé no que ouvia. Então me convenceste de que os dignos de censura não
são os que acreditam em teus livros, cuja autoridade estabeleceste entre quase
todos os povos, mas o que não crêem neles. E eu não devia dar ouvidos ao que
talvez me dissessem: "Como sabes que esses livros foram dados aos homens pelo
Espírito de Deus, único e verdadeiro?" Ora, era precisamente isto o que eu devia
crer, porque nenhuma objeção caluniosa ou agressiva, das que eu havia lido nos
escritos contraditórios dos filósofos, nunca conseguiram arrancar-me a certeza de
tua existência, embora ignorasse o que eras, e a certeza de que o governo das
coisas humanas está em tuas mãos.

Eu acreditava nisso, ora mais fortemente, ora mais frouxamente; mas em tua
existência e que cuidava do gênero humano, sempre acreditei, embora ignorasse a
natureza, ou qual o caminho que nos conduz ou reconduz a ti. Por isso, persuadido
de nossa impotência para achar a verdade só por meio da razão, e que para isso
nos é necessária a autoridade das Sagradas Escrituras, comecei a crer que nunca
terias conferido tão soberana autoridade a essas Escrituras em todo o mundo, se
não quiséssemos que crêssemos e te buscássemos por elas.

Sobre os mistérios em que costumava tropeçar, e que ouvira explicar muitas vezes
de modo aceitável, eu os atribuía à sua profundidade, parecendo-me a autoridade
das Escrituras tanto mais venerável e digna da fé sacrossanta, quando de leitura
fácil para todos. E ela reserva porém, a uma percepção mais aguda a majestade de
seu mistério. Pela clareza da linguagem e sua simplicidade do estilo, ela se abre a
todos e, no entanto, estimula a reflexão dos que não são levianos de coração.
Recebe a todos em seu vasto seio, mas não deixa ir a ti, por caminhos estreitos,
senão um pequeno número; muito mais, porém, do que seriam se ela não tivesse
essa elevada autoridade, e não atraísse as turbas do regaço de sua santa
humildade.

Pensava eu nessas coisas, e me assistias; suspirava, e me ouvias, vacilava, e me
governavas; seguia pela via larga do mundo, e não me abandonavas.

CAPÍTULO VI - Alegria de bêbado

Eu aspirava às honras, às riquezas e ao matrimonio, e tu te rias de mim. E nesses
desejos sofria grandes amarguras; e tu me eras tanto mais propício quanto menos
consentias que me fosse doçura o que não eras tu. Vê, Senhor, meu coração, tu
que quiseste que recordasse estes fatos e os confessasse. Esta alma, a quem
livraste do visco tenaz da morte, une-se agora a ti.

Como era infeliz! E tu fustigavas o mais dolorido da ferida, para que deixasse tudo,
e se convertesse a ti, que estás acima de tudo. Sem ti nada existiria. Ferias minha
alma para que voltasse para ti, e fosse curada.

Que miserável era eu então! E como agiste para que eu sentisse minha desgraça?
Era o dia em que me preparava para declamar os louvores do imperador; neles ia
mentir muito e, mentindo granjearia a aprovação dos que sabiam das mentiras.
Preocupado, meu coração se consumia com a febre de pensamentos impuros
quando, ao passar por uma rua de Milão, vi um mendigo já bêbado, creio eu, mas
bem humorado e divertido. Suspirei então, e falei aos amigos que me
acompanhavam sobre as muitas dores que nos provocavam nossas loucuras. Com
todos os esforços, quais eram os que então me afligiam, apenas arrastava a carga
de minha infelicidade cada vez mais pesada, aguilhoado por meus apetites, para
conseguir somente uma alegria tranqüila, na qual já nos havia precedido aquele
mendigo; alegria que nunca talvez alcançássemos. O que ele havia conseguido com
umas poucas moedas de esmola, era exatamente o que eu aspirava com tão
árduos caminhos e rodeios: a alegria de uma felicidade temporal.

A alegria do mendigo não era certamente verdadeira, mas a que eu buscava com
minhas ambições era ainda mais falsa. Ele, pelo menos, estava alegre, e eu,
angustiado; ele seguro, e eu inquieto. Se alguém me perguntasse se preferia estar
alegre ou triste eu responderia: alegre; mas se me perguntassem novamente se
queria ser como aquele mendigo ou ser como eu era, sem dúvida escolheria a mim
mesmo, embora cheio de cuidados e de temores. Mas isto eu faria por maldade ou
com razão? Eu não devia preferir-me ao mendigo por ser mais culto, pois a ciência
para mim não era fonte de felicidade, mas apenas um meio de agradar aos
homens, e não instruí- los. Por isso, Senhor, quebravas meus ossos com a vara de
tua disciplina.

Longe de minha alma os que dizem: "Importa levar em conta a causa da alegria; o
mendigo se alegrava com a embriaguez, e tu com a glória". Que glória, Senhor?
Com a que não está em ti. Porque como aquela não era verdadeira alegria, assim
aquela glória não era a verdadeira, antes perturbava mais ainda meu coração. O
ébrio, naquela mesma noite, curaria sua embriaguez, enquanto eu já dormia com a

minha, e me levantara com ela, e tornaria a dormir e a levantar com ela, e tu
sabes quantos dias!

Importa, é certo, conhecer os motivos da alegria de cada um, eu o sei, e a alegria
da esperança fiel dista infinitamente daquela vaidade. Mas então, havia entre nós
outra diferença, pois certamente ele era o mais feliz, não só porque transbordava
de alegria, enquanto eu me consumia de cuidados, mas também porque ele
comprara o vinho desejando a felicidade dos benfeitores, enquanto eu procurava
com mentiras uma vã ostentação.

Muitas coisas disse então sobre isso a meus amigos, e muitas vezes eu costumava
examinar minha vida, e achava-me infeliz. Isso me afligia e redobrava minha dor;
se me sorria alguma ventura, não acudia para apanhá-la, porque escapava-me das
mãos antes mesmo que a pudesse alcançar.

CAPÍTULO VII - Alípio

Os que convivíamos em boa amizade lamentávamos estas coisas, mas de modo
especial e muito intimamente eu falava com Alípio e Nebrídio. Alípio, como eu, era
do município de Tagaste, nascido de uma das melhores famílias da cidade. Era mais
jovem do que eu, pois havia sido meu discípulo quando comecei a ensinar em nossa
cidade, de depois em Cartago. Ele me queria muito, por eu lhe parecer bom e
douto, e eu o apreciava por sua grande inclinação à virtude, que já se manifestava
em tenra idade.

Contudo, o abismo dos costumes cartagineses, onde ferve o gosto dos espetáculos
frívolos, engolfara-o na loucura dos jogos circenses. Alípio revolvia-se
miseravelmente nesse abismo na época em que eu ensinava retórica na escola
pública, mas ele não me tinha como mestre por causa de uma desavença que
surgira entre mim e seu pai. Eu sabia que Alípio amava morbidamente o circo, e
isso muito me angustiava, por me parecer que se iam se perder, se já não
estivessem, magníficas esperanças. Mas não achava meios de alertá-lo e
repreendê-lo, nem pela amizade, nem pelo magistério, pois julgava que tinha
sobre mim a mesma opinião que seu pai. Mas não era assim. Pondo de parte a
vontade paterna sobre isso, começou a me cumprimentar, comparecia à minha
aula, ouvia-me um pouco, e logo se retirava.

Eu já me esquecera de alertá-lo para não desperdiçar seu talento tão precioso com
aquele cego e apaixonado gosto por jogos fúteis. Mas tu, Senhor, que governas o

que criaste, não te esqueceste de que Alípio deveria ser ministro de teus
sacramentos entre teus filhos; e para que fosse atribuída claramente a ti a sua
emenda, a realizaste por meu intermédio, mas sem que eu o soubesse.

Um dia, estando sentado ao lugar de costume, diante de meus discípulos, veio
Alípio, saudou-me, sentou-se, atento ao assunto de que eu tratava. Por acaso
trazia eu nas mãos uma lição; para melhor expô-la, e tornar mais clara e agradável
sua explicação, pareceu-me oportuno fazer uma comparação com os jogos
circenses, com mordaz sarcasmo aos escravos dessa loucura. Mas tu sabes, Senhor,
que então não pensei em curar Alípio dessa peste. Todavia tomou para si minhas
palavras, acreditando que eu só dissera por sua causa. Qualquer outro tomaria
isso com desgosto; mas ele, jovem virtuoso, tomou-o como causa para censurar a si
próprio, e para me estimar ainda mais.

Já havias dito outrora, e escrito em teus livros: "Corrige o sábio, e ele te amará".
Eu não o repreenderia, mas tu, servindo-te de todos, quer eles o saibam ou quer
não, de acordo com a justa ordem que conheces, fizeste de meu coração e de
minha língua carvões abrasadores, para cauterizar e curar aquela alma tão
promissora, mas pervertida.

Senhor, cale teus louvores quem não percebe tuas misericórdias, que eu te
confesso do mais íntimo de meu ser. Depois de ouvidas minhas palavras, Alípio
saiu daquele fosso profundo, onde gostosamente se enterrara, cegando-se com o
torpe prazer, e sacudiu sua alma com corajosa temperança, afastando de si todas
as imundícies dos jogos circenses, para onde nunca mais voltou.

Depois venceu a resistência paterna para me escolher como mestre, e seu pai
cedeu e consentiu. Voltando a ser meu discípulo, foi envolvido comigo na
superstição dos maniqueus, apreciando neles aquela ostentação de continência,
que ele julgava legítima e sincera. Na verdade, porém, era um desvario sedutor,
um laço onde caíam almas preciosas, ainda incapazes de avaliar a sublimidade da
virtude e, por isso mesmo, vítimas fáceis da aparência que mascara uma virtude
hipócrita e fingida.

CAPÍTULO VIII - A atração do anfiteatro

Não querendo por nada deixar a carreira mundana, tão decantada por seus pais,
partira antes de mim para Roma, a fim de estudar Direito; lá se deixou arrebatar
de modo incrível, e com incrível avidez, pelos espetáculos de gladiadores.

A princípio, detestava e aborrecia espetáculos semelhantes. Certa vez,
encontrando-se com alguns amigos e condiscípulos que voltavam de um jantar,
apesar de resistir, foi arrastado por eles com amigável violência para o anfiteatro,
onde naquele dia se celebravam jogos funestos e cruéis.

Dizia-lhes Alípio: "Mesmo que arrasteis para lá meu corpo, e o retenhais ali,
podereis por acaso obrigar minha alma e meus olhos a contemplar tais
espetáculos? Estarei ali como ausente, e assim triunfarei deles e de vós". Mas
eles, não fazendo caso de tais palavras, levaram-no, talvez para verificar se
poderia ou não cumprir a palavra.

Quando chegaram, ocuparam os lugares que puderam, pois todo o anfiteatro já
fervia nas paixões mais selvagens. Alípio, fechando a porta dos olhos, proibiu que
sua alma se envolvesse em tal crueldade. E oxalá também tivesse tapado os
ouvidos! Porque, em um lance da luta, foi tão grande o clamor da multidão que,
vencido pela curiosidade, e julgando-se preparado para desprezar e vencer a cena,
fosse o que fosse, abriu os olhos. Foi logo ferido na alma mais profundamente do
que a ferida física do gladiador a quem desejou contemplar e caiu. Sua queda foi
mais miserável que a do gladiador, causa de tantos gritos. Estes, entrando-lhe
pelos ouvidos, abriram-lhe os olhos, para ferir e abater sua alma, mais temerária
do que forte, e tanto mais fraca por apoiar-se em si mesma, em lugar de se apoiar
em ti. Logo que viu sangue, bebeu junto a crueldade, e não se afastou do
espetáculo; pelo contrário, prestou mais atenção. Assim, sem o saber, absorvia o
furor popular e se deleitava naquela luta criminosa, inebriado de sangrento
prazer.

Já não era o mesmo que ali viera, era agora mais um da turba à qual se misturara,
digno companheiro daqueles que para ali o arrastaram.

Que mais direi? Contemplou o espetáculo, gritou, apaixonou-se, e foi contaminado
de louco ardor, que o estimulava a voltar, não só com os que o haviam levado,
mas à sua frente, e arrastando a outros. Mas tu te dignaste, Senhor, livrá-lo deste
estado com mão forte e misericordiosa, ensinando-o a não confiar em si, mas em ti,
embora isto acontecesse muito tempo depois.

CAPÍTULO IX - Alípio, ladrão a contragosto

Contudo, essa aventura gravara-se em sua memória como remédio para o futuro.
O mesmo ocorreu com outro fato, quando ainda era estudante em Cartago, e

seguia meus cursos.

Era meio-dia. Alípio estava repassando uma declamação, segundo o costume dos
estudantes, quando foi preso como ladrão pelos guardas do foro. Sem dúvida o
permitiste, meu Deus, apenas para que esse jovem, tão grande no futuro,
começasse já a aprender que, ao julgar outrem, ninguém deve condenar ninguém
levianamente, e com temerária credulidade.

Alípio, pois, passeava diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete,
quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levando escondido um
machado, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dos
banqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo.

Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavam embaixo alvoroçaram-se, e
chamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o
vozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora,
Alípio, que não o vira entrar, viu-o sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém,
para saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e se pôs, admirado, a
examiná-lo. Bem nessa hora chegaram os guardas dos banqueiros, e o
surpreendem sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes, alarmados, haviam
acudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se, diante dos inquilinos do foro por ter
apanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça.

Mas a lição devia ficar por aqui, Senhor, porque imediatamente saíste em socorro
de sua inocência, da qual eras única testemunha. Quando o conduziam à prisão ou
ao suplício, veio-lhes ao encontro um arquiteto, encarregado superior da direção
dos edifícios públicos. Os guardas alegraram-se com esse encontro, pois sempre
que faltava alguma coisa no foro o magistrado suspeitava deles. Agora ele saberia
quem era o verdadeiro ladrão. Mas este senhor tinha visto várias vezes Alípio na
casa de um senador, a quem visitava com freqüência. Reconheceu-o, tomou-o pela
mão, separou-o da turba, e perguntou-lhe a causa de tamanha desgraça.

Informado do que se passara, o arquiteto mandou à turba alvoroçada e enfurecida
contra Alípio que o seguisse. Quando chegaram à casa do jovem autor do roubo,
achava-se à porta um menino escravo, novo demais para recear comprometer seu
amo, e que poderia revelar tudo, porque o seguira até o foro. Alípio, ao
reconhecê-lo, apontou-o ao arquiteto; este, mostrando-lhe o machado, lhe disse:
"Sabe de quem é este machado?" Ao que o menino respondeu sem demora:

"Nosso". Depois de interrogado, confessou o resto.

Deste modo, o processo foi transferido para aquela casa, para confusão da turba,
que já imaginara tripudiar de Alípio. O futuro dispensador de tua palavra, e juiz de
tantas causas de tua Igreja, saiu dessa aventura com mais experiência e sabedoria.

CAPÍTULO X - Os três amigos

Encontrei Alípio em Roma, onde se uniu a mim com vínculo de amizade tão
estreito, que foi comigo para Milão, tanto para evitar nosso afastamento como
para exercer o Direito, embora mais para agradar aos pais do que por vontade
própria. Já por três vezes fora assessor, sempre com admirável lisura, e ficando ele
mais admirado ainda de que juizes preferissem o dinheiro à inocência.

Ficou provada a integridade do seu caráter, não só contra os atrativos da cobiça,
mas também contra o aguilhão do medo. Em Roma, era assessor do tesoureiro das
finanças da Itália.

Havia nesse tempo um senador poderosíssimo, a quem estavam sujeitos muitos
clientes, uns por benefícios, outros por terror. Segundo o costume dos poderosos,
este senador tentou fazer não sei que coisa era proibida pelas leis, e Alípio se lhe
opôs. À tentativa de corrompê-lo, Alípio reconheceu com o riso. Zombou das
ameaças que aquele lhe dirigiu, causando admiração geral pela rara qualidade de
sua alma, que não desejava a amizade e nem temia a inimizade de homem tão
poderoso, conhecido por seus inúmeros meios de prestar favores ou de prejudicar.
Até o próprio juiz, de que Alípio era assessor, embora se opusesse também, não o
fazia abertamente, responsabilizando a Alípio que, dizia ele, não lhe permitia fazer
o que desejava, porque, se acedesse – e era verdade – demitir-se-ia
imediatamente.

Alípio quase se deixara seduzir pelo amor às letras, mandando copiar códigos
segundo a tarifa paga aos trabalhos para o Estado; porém, consultando a justiça,
inclinou-se pelo melhor, preferindo a integridade, que lhe proibia esta ação, ao
poder que lha permitia.

Isso é fato pequeno, mas o que é fiel no pouco também o é no muito, e de modo
nenhum podem ser vãs aquelas palavras saídas da boca de tua Verdade. Se não
fordes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se nas
alheias não fordes fiéis, quem vos dará o que é vosso?

Assim era então este amigo, tão intimamente unido a mim, e que comigo buscava
o tipo de vida que deveríamos seguir.

Também Nebrídio deixou sua pátria, vizinha de Cartago, e a própria Cartago, onde
gozava de boa fama. Abandonou as magníficas propriedades do pai, a casa e até a
própria mãe, que não o quis seguir; veio para Milão apenas para viver comigo, na
busca apaixonada da verdade e da sabedoria.

Assim como eu, ele suspirava, partilhando minha perplexidade, mostrando-se
investigador ardoroso da vida feliz e indagador acérrimo das questões mais
difíceis.

Eram três bocas famintas que comunicavam mutuamente a própria fome,
esperando que lhes desses comida no tempo oportuno. Na amargura, que graças à
tua misericórdia sempre seguia nossas ações mundanas, se desejávamos entender
a causa dos sofrimentos, encontrávamos trevas. Afastávamos gemendo e dizendo:
Até quando durará este sofrimento? E isto repetíamos com freqüência, mas não
abandonávamos nosso modo de vida, porque não víamos nenhuma certeza a que
nos pudéssemos abraçar, se o abandonássemos.

CAPÍTULO XI - Entre Deus e o mundo

Era com admiração que me recordava diligentemente do longo tempo decorrido
desde meus dezenove anos, quando comecei a arder no desejo da sabedoria,
propondo-me, quando a achasse, abandonar todas as vãs esperanças e enganosas
loucuras das paixões.

Chegado porém aos trinta anos, ainda continuava preso ao mesmo lodaçal, ávido
de gozar dos bens presentes, que me fugiam e me dissipavam. Entretanto, dizia:
"Amanhã hei de encontrá- la; a verdade aparecerá clara, e a abraçarei. Fausto
virá, e dará todas as explicações. Ó grandes varões da Academia: é verdade que
não podemos compreender nenhuma coisa com certeza para a conduto de nossa
vida?

"Mas não! Procuremos com mais diligencia, sem desesperarmos. Já não me
parecem absurdas nas Escrituras as coisas que antes me pareciam tais: posso
compreendê-las de modo diferente, mais razoável. Fixarei, pois, os pés naquele
degrau em que me colocaram meus pais quando criança, até que encontres a
verdade em sua evidência.

"Mas onde e quando buscá-la? Ambrósio não tem tempo livre para me ouvir, e a
mim falta tempo para ler. E além do mais, onde encontrar os livros? E onde ou
quando poderei comprá-los?

A quem hei de pedi-los?

"Repartamos o tempo, reservemos algumas horas para a salvação da alma. Nasceu
uma grande esperança: a fé católica não ensina o que eu pensava, e eu a criticava
levianamente. Seus doutores têm como crime limitar Deus à figura humana; e eu
ainda hesito em bater para que nos sejam reveladas as outras verdades! As horas
da manhã eu dedico aos alunos; mas que faço das outras? Por que não as consagro
a essa busca?

"Mas quando então, visitar os amigos poderosos, de cujos favores necessito?
Quando preparar as lições que os alunos me pagam? Quando reparar as forças do
espírito, descansando em algo aprazível?

"Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à
busca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta. Se esta me
surpreender de repente, em que estado sairei do mundo? E onde aprenderei o que
deixei de aprender aqui? Não serei antes castigado por essa negligência? Mas, e
se a própria morte cortar e for o fim a todo cuidado e sentimento? Também seria
conveniente investigar este ponto. Mas afastemos tais pensamentos! Não é por
acaso nem é em vão que se difunde por todo o mundo a fé cristã, com grande
prestígio. Deus jamais teria criado tantas e tais coisas por nós, se com a morte do
corpo terminasse também a vida da alma. Porque hesitar, pois, em abandonar as
esperanças do mundo para me consagrar à busca de Deus e da bem aventurança?

Mas espere um pouco! Os bens mundanos também têm seus deleites, que não são
pequenos. Não devo deixá-los sem pensar; seria feio ter de voltar a eles. Eis-me
prestes a conseguir um cargo de honra. Que mais posso desejar? Tenho uma
multidão de amigos poderosos. Sem me apressar muito poderia obter, no mínimo,
uma presidência. Poderia então casar-me com uma mulher de alguma fortuna,
para que meus gastos não fossem muito pesados.

Aqui estariam os limites de meus desejos. Muitos homens grandes e dignos de
imitação, apesar de casados, dedicaram-se ao estudo da sabedoria.

Enquanto assim pensava, e os ventos cambiantes impeliam meu coração de um

lado para outro, o tempo passava, e eu retardava minha conversão ao Senhor.
Adiava de dia para dia o viver em ti, morrendo todavia todos os dias em mim
mesmo. Amando a vida feliz, temia busca-la em sua morada; procurava-a fugindo
dela! Pensava que seria mui desgraçado se me visse privado das carícias da
mulher. Não pensava ainda no remédio de tua misericórdia, que cura esta
enfermidade, porque nunca o havia experimentado. Julgava que a continência
fosse obra de nossa própria força, que eu pensava não ter. Eu era bastante néscio
para ignorar que ninguém, como está escrito, é casto sem que tu lhes dê a força.
Essa força certamente ma darias se eu ferisse teus ouvidos com os gemidos de
minha alma, e com fé firme lançasse em ti meus cuidados.

CAPÍTULO XII - Casar ou não?

Opunha-se Alípio a que me casasse, repetindo-me que, se o fizesse, não
poderíamos dedicar-nos juntos, com segura tranqüilidade, ao amor da sabedoria,
como há muito desejávamos.

Alípio, nessa matéria, era castíssimo de causar admiração, porque, ao entrar na
juventude, experimentara o prazer carnal, mas não se prendera a ele. Antes,
arrependeu-se muito, e o desprezou, vivendo depois em perfeita continência.

Eu argumentava com os exemplos dos que, embora casados, haviam-se dedicado
ao estudo da sabedoria, servindo a Deus, e guardando fidelidade e amor aos
amigos. Contudo, eu estava longe dessa grandeza de alma. Prisioneiro da
morbidade da carne, arrastava com prazer mortal minha cadeia, temendo que ela
se rompesse e, rejeitando as palavras que bem me aconselhavam, como o ferido
repele a mão que lhe desfaz as ataduras.

Além do mais, a serpente falava por minha boca a Alípio, e pela língua lhe tecia
doces laços em seu caminho, para que seus pés honestos e livres se enredassem.

Ele admirava-se de que eu, a quem tanto estimava, estivesse tão preso ao visco
do prazer a ponto de afirmar, sempre que tratávamos desse assunto, que me era
impossível levar vida casta. Para esgrimir contra sua admiração, dizia-lhe que
havia grande diferença entre sua rápida e furtiva experiência do prazer, de que
mal se lembrava e que, por isso, podia desprezar facilmente, e as delícias de uma
ligação verdadeira, à qual, se juntasse o honesto nome de matrimonio, já não
causaria admiração se eu não pudesse desprezar aquela vida. Com isso, Alípio
também começou a desejar o matrimonio, não certamente vencido pelo apetite do

prazer, mas pela curiosidade. Desejava saber, dizia ele, o que era aquele bem sem
o qual minha vida – que ele tanto apreciava – não me parecia vida, mas tormento.
De fato, livre dessa prisão, sua alma pasmava de tal servidão, e do espanto
passava ao desejo de experimentá-la. Depois talvez caísse naquela mesma
servidão que o espantava, pois queria fazer um pacto com a morte, e o que ama o
perigo, nele cairá.

Certamente que nem ele, nem eu tínhamos grande interesse no que há de bonito
e honesto no matrimonio, como a direção da família e a educação dos filhos. Mas o
que me mantinha preso e com fortes tormentos era o hábito de saciar minha
insaciável concupiscência; e a ele, era a admiração que o arrastava para o mesmo
cativeiro. Assim éramos, Senhor, até que tu, ó Altíssimo, que não desamparas
nosso lodo, compassivo, por caminhos maravilhosos e ocultos, viestes em socorro
destes infelizes.

CAPÍTULO XIII - O pedido de casamento

Instavam solicitamente comigo para que me casasse. Já havia feito o pedido, já
havia recebido uma promessa, ajudado sobretudo por minha mãe, que nutria a
esperança que eu, uma vez casado, seria regenerado nas águas salutares do
batismo. Minha mãe alegrava-se por me ver cada dia mais apto para recebê-lo,
vendo que na minha fé se realizavam seus votos e tuas promessas.

Contudo, nada revelaste à minha mãe que, a meu pedido e por seu desejo, te
suplicava com forte clamor de coração, todos os dias que lhe desse alguma visão
sobre meu futuro matrimonio. Via, sim, algumas coisas vãs e fantásticas, que o
espírito humano engendra quando preocupado. Ela me relatava, sem a confiança
que costumava dar às visões que lhe enviavas, mas com desprezo. Dizia que
distinguia, por um vago discernimento que não podia explicar com palavras, a
diferença que havia entre tuas revelações e os sonhos de sua alma.

Contudo, insistia no matrimonio, e pediu-se a mão de uma jovem, à que ainda
faltavam dois anos para ser núbil (em todo o Império Romano era a idade de 12
anos), mas, como ela agradava, era preciso esperar.

CAPÍTULO XIV - Um projeto desfeito

Éramos muitos os amigos, que aborrecíamos as mazelas da agitação da vida
humana. Em nossas conversas, havíamos debatido e quase resolvido nos retirar da

multidão para viver sossegadamente. Nosso projeto organizava a vida de tal sorte
que tudo o que tivéssemos seria comunitário, formando de todos os patrimônios
um patrimônio único. Graças à nossa amizade sincera não haveria mais a fortuna
deste ou daquele, mas uma só fortuna comum.

Seriamos cerca de dez homens os que desejávamos formar essa sociedade. Alguns
de nós, muito ricos, como Romaniano, meu conterrâneo, cujos sérios cuidados de
negócios o tinham trazido à corte imperial. Era muito amigo meu desde menino, e
um dos que mais instavam nesse projeto, tendo sua opinião um grande peso pois
sua riqueza era bem superior que a dos outros.

Fora combinado que todos os anos, dois de nós, como magistrados, administrariam
todo o necessário, ficando os outros em paz. Mas quando se começou a discutir se
as mulheres consentiriam nesse acordo – alguns dentre nós eram casados, e outros
pensavam em casar – todo o plano, tão bem construído, se desvaneceu entre
nossas mãos, fez-se em pedaços e teve de ser abandonado.

Novamente aos suspiros e gemidos, voltamos a caminhar pelos largos e batidos
caminhos do século, porque em nosso coração havia mil pensamentos, mas teu
conselho permanece eternamente. Na tua sabedoria te rias de nossos projetos, e
preparavas o cumprimento dos teus, a fim de dar-nos alimento no tempo
oportuno, abrindo tuas mãos e enchendo-nos de bênçãos.

CAPÍTULO XV - A separação da amante

Entretanto, multiplicavam-se meus pecados. Quando arrancaram do meu lado, por
ser impedimento ao meu matrimonio, aquela com quem partilhava o leito, meu
coração, ao qual ela estava unida, ficou ferido e sangrando. Ela, por sua vez,
voltando para a África, fez-te voto, Senhor, de jamais conhecer outro homem,
deixando comigo o filho natural que dela tivera.

Mas eu, desgraçado, fui incapaz de imitar aquela mulher. Estava impaciente pelo
prazo de dois anos que deveria transcorrer até receber por esposa aquela que
pedira em casamento – e porque eu não era amante do matrimonio, mas escravo
da sensualidade – procurei pois outra mulher, não como esposa, mas para
alimentar e manter íntegra ou agravada a doença da minha alma, sob a tutela do
meu hábito, até que contraísse matrimonio. Mas nem por isso sarava a chaga
causada pela separação da primeira mulher; mas, depois de ardor e sofrimento
agudíssimos, começava a se corromper doendo tanto mais desesperadamente

quanto mais fria se tornava.

CAPÍTULO XVI - A aproximação de Deus

Louvor e glória a ti, ó fonte das misericórdias! Eu me tornava cada vez mais
miserável, e tu te aproximavas cada vez mais de mim. Já estava junto de mim tua
destra, para me arrancar do lodo dos meus vícios, e em purificar, e eu não o sabia.
Mas nada havia que me fizesse sair do profundo abismo dos prazeres carnais, a
não ser o medo da morte e de teu juízo futuro, que jamais saiu do meu peito,
através das várias doutrinas que segui.

Discutia com meus amigos Alípio e Nebrídio, sobre o bem e o mal finais; facilmente
meu juízo teria dado a palma a Epicuro, se eu não acreditasse na imortalidade da
alma e do julgamento de nossos atos, coisas em que Epicuro nunca acreditou. E eu
perguntava: "Se fossemos imortais, e vivêssemos em perpétuo gozo sensorial, sem
temor algum de perde-lo, não seriamos felizes? Que mais poderíamos desejar?"
Ignorava eu que isto era fruto duma grande miséria. Não podia, tão imerso no
vício e cego como estava, imaginar a luz da virtude e uma beleza invisível aos
olhos da carne, e somente visível das profundezas da alma. Na minha miséria, não
indagava de que fonte provinha esse grande gosto em conversar com os amigos,
por maior que fosse a abundância dos prazeres carnais, segundo a idéia que eu
tinha então? Eu amava a meus amigos desinteressadamente, e também sentia
que eles me amavam com o mesmo desinteresse.

Ó caminhos tortuosos! Ai da alma temerária que, afastando-se de ti, esperava
achar algo melhor! Dá voltas e mais voltas, para todos os lados, mas tudo lhe é
duro, porque só tu és seu descanso. Mas eis que estás presente, e nos livras de
nossos miseráveis erros, e nos pões em teu caminho, e nos consolas dizendo:
"Correi, que eu vos levarei e conduzirei ao termo, e aí serei vosso sustento!

LIVRO SÉTIMO

CAPÍTULO I - A idéia de Deus

Já havia morrido minha adolescência má e nefanda; entrava na juventude, e
quanto mais crescia em idade, mais vergonhosa se tornava minha vaidade, a
ponto de não poder imaginar uma substância além da que se pode perceber com
os olhos.

Desde que comecei receber as lições da sabedoria, não mais te imaginava, meu
Deus, sob a forma de um corpo humano – sempre fugi dessa idéia, e me alegrava
encontrar essa doutrina na fé de nossa mãe espiritual, a Igreja Católica; - mas não
me ocorria outro modo de te imaginar.

E sendo eu homem – e que homem – esforçava-me para imaginar a ti, o sumo, o
único e verdadeiro Deus. Com toda minha alma eu te julgava incorruptível,
inviolável e imutável. Mesmo não sabendo de onde nem como me vinha esta
certeza, eu via com clareza e tinha como certo que o incorruptível é melhor do que
o corruptível. Sem hesitar, colocava o que não pode ser vencido acima do que o
pode ser, e o que não sofre mudança parecia-me melhor do que é suscetível a
mudanças.

Meu coração clamava violentamente contra todos os meus fantasmas. Esforçava-
me por afugentar, com um só golpe, o redemoinho de imagens imundas que
voluteavam ao meu redor.

Mas, apenas disperso, em um piscar de olhos, tornava a se formar os atropelos
sobre minha vista, obscurecendo-a. Apesar de não te atribuir uma figura humana,
contudo, necessitava te conceber como algo corporal, situado no espaço, quer
imanente ao mundo, quer difundido por fora do mundo, através do infinito; tal era
o ser incorruptível, inviolável e imutável que eu colocava acima do que é
corruptível, sujeito à deterioração e ás mudanças. O que não ocupava espaço me
parecia um nada absoluto, perfeito, e não um simples vazio, como quando se tira
um corpo de um lugar, permanecendo o lugar vazio de todo o corpo, terrestre,
úmido, aéreo ou celeste, mas, enfim, um lugar vazio, como que um nada espaçoso.

Assim, pois, com o coração pesado, sem consciência clara de mim mesmo,
considerava como um perfeito nada tudo o que não tivesse extensão por
determinado espaço, ou não se difundisse ou pudesse assumir um desses estados.

As formas percorridas por meus olhos eram os moldes das imagens pelas quais
andava meu espírito; não via que a mesma faculdade com que formava essas
imagens não era da mesma natureza que elas, não obstante não pudesse formá-las
se ela não fosse por sua vez algo grande.

E também a ti, vida de minha vida, imaginava-te como um Ser imenso, penetrando
por todas as partes, através dos espaços infinitos, toda a massa do mundo,
alastrando-se sem limites na imensidão, de sorte que a terra, o céu e todas as
coisas te continham, e tudo isso tinha em ti seu limite, sem que te limitasses em
parte alguma. E assim como a massa do ar – deste ar que está sobre a terra – não
impede a passagem da luz do sol, não o impede de a atravessar, de a penetrar
sem romper ou cortar, antes enchendo-a totalmente, assim eu pensava que não
somente a substância do céu, do ar e do mar, mas também a da terra se deixava
atravessar e penetrar por ti em todas as suas partes, grandes e pequenas, que
receberiam tua presença, que, com secreta inspiração, governa interior e
exteriormente tudo o que criaste.

Assim conjeturava eu, por não poder imaginar-te de outra forma; mas minha
conjectura era falsa. Porque, se assim fosse, uma porção maior da terra conteria
parte maior de ti; e uma porção menor da terra conteria parte menor. E de tal
modo estariam as coisas impregnadas de ti, que o corpo de um elefante conteria
tanto mais de teu ser que o corpo do passarinho, pois aquele é maior do que este,
e ocupa mais espaço. Assim, fragmentado entre as partes do universo, estarias
presente nas grandes partes do universo por grandes partes de ti, e nas pequenas
por pequenas, o que não acontece. Mas ainda não tinhas iluminado minhas trevas.

CAPÍTULO II - Objeção contra o maniqueísmo

Bastava-me, Senhor, para calar aqueles enganados enganadores e muitos
charlatães – pois o que se ouvia de sua boca não era a tua palavra – bastava-me,
certamente, o argumento que há muito tempo, estando ainda em Cartago,
costumava propor-lhes Nebrídio, impressionando a todos os que então o ouvimos.

"Que poderia fazer contra ti – dizia aquela não sei que raça de trevas, que os
maniqueus costumam opor-te como massa hostil – se não quisesses lutar contra
ela?"

Se respondessem que te podia ser nociva em algo, então serias violável e
corruptível. Se dissessem que não te podia prejudicar nada, não haveria razão

para luta. Luta essa em que uma parte de ti mesmo, um de teus membros, produto
de tua própria substância, se misturava às forças adversas, a naturezas não
criadas por ti. Assim se corromperia, degradando-se a ponto de mudar sua
felicidade em miséria e de necessitar de auxílio para se libertar e purificar. E essa
parte de ti seria a alma que teu Verbo devia salvar da escravidão, ele que é livre
de impurezas, ele que é imaculado da corrupção, ele que é intacto sem ser
corruptível, sendo feito de uma só e mesma substância.

E assim, se declaram incorruptível tudo o que és, isto é, a substância que te forma,
todas essas proposições são erros execráveis; e se eles te consideram corruptível,
essa mesma afirmação também é falsa, e abominável logo à primeira vista.

Bastava-me, pois, este argumento contra aqueles que eu queria expulsar de vez de
meu peito angustiado. De fato, sentindo e dizendo tais coisas de ti, não tinham
outra saída senão um horrível sacrilégio de coração e de língua.

CAPÍTULO III - Deus e o mal

Mas eu, mesmo quando afirmava e cria firmemente que és incorruptível,
inalterável, absolutamente imutável, Senhor meu, Deus verdadeiro que não só
criaste nossas almas e nossos corpos, e não somente nossas almas e corpos, mas
todas as criaturas e todas as coisas. Todavia, faltava-me ainda uma explicação, a
solução do problema da causa do mal. Qualquer que ela fosse, estava certo de que
deveria buscá-la onde não me visse obrigado, por sua causa, a julgar mutável a um
Deus imutável, porque isso seria transformar-me no mal que procurava.

Por isso, buscava-a com segurança, certo de que era falsidade o que diziam os
maniqueus; deles fugia com toda a alma, porque via suas indagações sobre a
origem do mal cheias de malícia, preferindo crer que tua substância era passível
de sofrer o mal do que a deles ser susceptível de o cometer.

Esforçava-me por compreender a tese que ouvira professar, de que o livre-arbítrio
da vontade é a causa de praticarmos o mal, e de teu reto juízo é a causa do mal
que padecemos.

Mas era incapaz de entendê-lo com clareza. E esforçando-me por afastar desse
abismo os olhos do meu espírito, nele me precipitava de novo, e tentando
reiteradamente fugir dele, sempre voltava a recair.

O fato de eu ter a consciência de possuir uma vontade, como tinha consciência de
minha vida, era o que me erguia para a tua luz. Assim, quando queria ou não
queria alguma coisa, estava certíssimo de que era eu, e não outro, o que queria ou
não queria, e então me convencia de que ali estava a causa do meu pecado.
Quanto ao que fazia contra a vontade, notava que isso mais era padecer do mal do
que praticá-lo; julgava que isso não era culpa, mas castigo, que me instava a
confessar justamente ferido por ti, considerando tua justiça.

Mas de novo refletia: "Quem me criou? Não foi o bom Deus, que não só é bom,
mas a própria bondade? De onde, então, me vem essa vontade de querer o mal e
de não querer o bem?

Seria talvez para que eu sofra as penas merecidas? Quem depositou em mim, e
semeou minha alma esta semente de amargura, sendo eu totalmente obra de meu
dulcíssimo Deus? Se foi o demônio que me criou, de onde procede ele? E se este,
de anjo bom se fez demônio, por decisão de sua vontade perversa, de onde lhe
veio essa vontade má que o transformou em diabo, tendo ele sido criado anjo por
um Criador boníssimo?"

Tais pensamentos de novo me deprimiam e sufocavam, mas não me arrastavam
até aquele abismo de erro, onde ninguém te confessa, e onde se antepõe a tese
que tu és sujeito ao mal a considerar o homem capaz de o cometer.

CAPÍTULO IV - A substância de Deus

Empenhava-me então por descobrir as outras verdades, como havia descoberto
que o incorruptível é melhor que o corruptível, e por isso confessava que tu,
qualquer que fosse tua natureza, devias ser incorruptível. Porque ninguém pôde
nem poderá jamais conceber algo melhor do que tu, que és o sumo bem por
excelência. Por isso, sendo certíssimo e inegável que o incorruptível é superior ao
corruptível, o que eu já fazia, meu pensamento já poderia conceber algo melhor do
que o meu Deus, se não fosses incorruptível.

Portanto, logo que vi que o incorruptível deve ser preferido ao corruptível,
imediatamente deveria buscar-te no incorruptível, para depois indagar a causa do
mal, isto é, a origem da corrupção, que de nenhum modo pode afetar tua
substância. É certo que, nem por vontade, nem por necessidade, nem por qualquer
acontecimento imprevisto, pode a corrupção afetar nosso Deus, porque ele é Deus,
e não pode querer senão o que é bom, e ele próprio é o sumo bem; e estar sujeito

à corrupção não é nenhum bem.

Tampouco poder ser obrigado, contra a tua vontade, seja ao que for, porque tua
vontade não é maior do que teu poder. Seria maior caso pudesses ser maior do
que és, pois a vontade e o poder de Deus são o mesmo Deus. E que pode haver de
imprevisto para ti, se conheces todas as coisas, e se todas elas existem porque as
conheces?

Mas, por que tantas palavras para demonstrar que a substância de Deus não é
corruptível, já que se o fosse não seria Deus?

CAPÍTULO V - A origem do mal

Eu buscava a origem do mal, mas de modo errôneo, e não via o erro que havia em
meu modo de buscá-la. Desfilava diante dos olhos de minha alma toda a criação,
tanto o que podemos ver – como a terra, o mar, o ar, as estrelas, as árvores e os
animais – como o que não podemos ver – como o firmamento, e todos os anjos e
seres espirituais. Estes, porém, como se também fossem corpóreos, colocados em
minha imaginação em seus respectivos lugares. Fiz de tua criação uma espécie de
massa imensa, diferenciada em diversos gêneros de corpos; uns, corpos
verdadeiros, e espíritos, que eu imaginava como corpos.

E eu a imaginava não tão imensa quanto ela era realmente – o que seria
impossível – mas quanto me agradava, embora limitada por todos os lados. E a ti,
Senhor, como a um ser que a rodeava e penetrava por todas as partes, infinito em
todas as direções, como se fosses um mar incomensurável, que tivesse dentro de si
uma esponja tão grande quanto possível, limitada, e toda embebida, em todas as
suas partes, desse imenso mar.

Assim é que eu concebia a tua criação finita, cheia de ti, infinito, e dizia: "Eis aqui
Deus, e eis aqui as coisas que Deus criou; Deus é bom, imenso e infinitamente mais
excelente que suas criaturas; e, como é bom, fez boas todas as coisas; e vede como
as abraça e penetra! Onde está pois o mal? De onde e por onde conseguiu
penetrar no mundo? Qual é a sua raiz e sua semente?

E se tememos em vão, o próprio temor já é certamente um mal que atormenta e
espicaça sem motivo nosso coração; e tanto mais grave quanto é certo que não há
razão para temer. Portanto, ou o mal que tememos existe, ou o próprio temor é o
mal. De onde, pois, procede o mal se Deus, que é bom, fez boas todas as coisas?

Bem superior a todos os bens, o Bem supremo, criou sem dúvida bens menores do
que ele. De onde pois vem o mal? Acaso a matéria de que se serviu para a criação
era corrompida e, ao dar-lhe forma e organização, deixou nela algo que não
converteu em bem?

E por que isto? Acaso, sendo onipotente, não podia mudá-la, transformá-la toda,
para que não restasse nela semente do mal? Enfim, por que se utilizou dessa
matéria para criar? Por que sua onipotência não a aniquilou totalmente? Poderia
ela existir contra sua vontade? E, se é eterna, por que deixou-a existir por tanto
tempo no infinito do passado, resolvendo tão tarde servir-se dela para fazer
alguma coisa? Ou, já que quis fazer de súbito alguma coisa, sendo onipotente, não
poderia suprimir a matéria, ficando ele só, bem total verdadeiro, sumo e infinito?
E, se não era conveniente que, sendo bom, não criasse nem produzisse bem algum,
por que não destruiu e aniquilou essa matéria má, criando outra que fosse boa e
com a qual plasmar toda a criação?

Porque ele não seria onipotente se não pudesse criar algum bem sem a ajuda
dessa matéria que não havia criado."

Tais eram os pensamentos de meu pobre coração, oprimido pelos pungentes
temores da morte, e sem ter encontrado a verdade. Contudo, arraigava sempre
mais em meu coração a fé de teu Cristo, nosso Senhor e Salvador, professada pela
Igreja Católica; fé ainda incerta, certamente, em muitos pontos, e como que
flutuando fora das normas da doutrina. Minha alma porém não a abandonava, e
cada dia mais se abraçava a ela.

CAPÍTULO VI - O absurdo dos horóscopos

Também já havia rechaçado as enganosas predições e ímpios delírios dos
astrólogos.

Ainda por isso, meu Deus, quero confessar-te tuas misericórdias desde o mais
íntimo de minha alma! Foste tu, e só tu – pois, quem pode afastar-nos da morte do
erro, senão a Vida que desconhece a morte, a Sabedoria que ilumina as pobres
inteligências sem precisar de outra luz, e que governa o mundo até as folhas que
tremulam nas árvores? Foste tu que medicaste a obstinação com que me opunha
ao sábio velho Vindiciano e ao magnânimo jovem Nebrídio, que diziam – o
primeiro, com veemência, o segundo com alguma hesitação, mas frequentemente
– não existir a tal arte de predizer as coisas futuras, e que as conjecturas dos

homens muitas vezes têm concurso do acaso e que, de tanto repetir, acertavam
em predizer algumas coisas, sem que os mesmos que as diziam o soubessem.

Foste tu que me fizeste encontrar um amigo mui afeiçoado a consultar os
astrólogos, não entendido nessa ciência, mas que consultava por curiosidade.
Conhecia ele uma história, que ouvira do pai, segundo dizia. Ignorava ele até que
ponto essa história era valiosa para destruir a autoridade daquela arte.

Esse homem, chamado Firmino, educado nas artes liberais e instruído na
eloqüência, veio-me consultar, como amigo íntimo, sobre alguns assuntos nos quais
alimentava esperanças mundanas, para ver qual seria meu vaticínio conforme suas
constelações, como eles dizem. Eu, que já começara a me inclinar à opinião de
Nebrídio, embora não me negasse a fazer-lhe o horóscopo e expor-lhe as suas
conclusões, acrescentei, contudo, que estava quase persuadido de que tudo aquilo
era ridícula quimera.

Então, ele me contou que seu pai tinha grande interesse na leitura de tais livros, e
que tivera um amigo igualmente apaixonado. Conversando sobre a matéria,
empolgaram-se cada vez mais no estudo daquelas tolices, e chegaram ao ponto de
observar os momentos do nascimento até dos animais domésticos, notando a
posição das estrelas a fim de coligir dados experimentais daquela pseudo-arte.

Firmino me relatava ter ouvido o pai contar que, estando sua mãe para o dar à
luz, também estava grávida uma serva daquele amigo de seu pai, coisa que não
poderia passar despercebida a seu senhor, que cuidava com extrema diligência e
precisão de conhecer até o parto das cadelas.

E sucedeu que, contando com o maior esmero os dias, horas e suas menores
parcelas, da esposa e da escrava, ambas as mulheres deram à luz no mesmo
momento, o que os obrigou a fazer, até em seus menores detalhes os mesmos
horóscopos para os nascidos, um para o filho e outro para o pequeno servo.

Tendo começado o trabalho de parto, informaram um ao outro o que se passava
em suas casas, e enviaram mensageiros um ao outro, a fim de anunciar com igual
rapidez o nascimento das crianças; e conseguiram-no fazer facilmente, como se o
fato se passasse em suas próprias casas. E Firmino contava que os mensageiros
que haviam sido enviados vieram a se encontrar à mesma distância de suas
respectivas casas, de modo que não se podia notar a menor diferença na posição
das estrelas, assim como nas demais frações de tempo. No entanto Firmino, como

filho de grande família, corria pelos mais brilhantes caminhos do mundo, crescia
em riquezas e era coberto de honras, ao passo que o escravo, sujeito ainda ao jugo
da escravidão, tinha que servir a seus senhores, segundo ele próprio contava, pois
o conhecia.

Ouvindo essa história, na qual acreditei pelo crédito que merecia seu narrador –
toda minha resistência se quebrou. Esforcei-me em seguida para afastar Firmino
daquela vã curiosidade, dizendo-lhe que, pelo seu horóscopo e para ser
verdadeiro, deveria certamente considerar a seus pais como os primeiros entre
seus concidadãos; o renome da sua família, a mais nobre da cidade; seu nascimento
ilustre, sua educação esmerada e seus conhecimentos nas artes liberais. E, pelo
contrário, se aquele servo me consultasse sobre o tal horóscopo – que era o
mesmo de Firmino – se também tivesse de lhe dizer a verdade – deveria ver nos
mesmo signos sua família paupérrima, sua condição servil e tantas outras coisas,
tão diferentes e opostas às primeiras.

Portanto, para dizer a verdade, vendo os mesmos sinais celestes deveria tirar
conclusões divergentes, porque fazer prognósticos semelhantes seria mentir.

De onde concluí, com toda certeza, que as predições verdadeiras não podem
atribuir a uma arte, mas ao acaso, e que as falsas não se devem à ignorância dessa
arte, mas à mentira do acaso.

Após esta abertura e nela baseado, ruminava dentro de mim tais coisas, para que
nenhum daqueles loucos que buscam nisso o lucro, e a quem eu então desejava
refutar e ridicularizar, não me objetasse que Firmino ou o pai podia ter contado
mentiras. Voltei pois minha atenção ao caso dos gêmeos, muitos dos quais saem
do seio materno com tão breve intervalo de tempo, que por mais que o
pretendam importante, não pode ser apreciado pela observação humana, nem
pode ser considerado nos signos que o astrólogo lançará mão para fazer uma
previsão certa. Mas os vaticínios não serão verdadeiros pois, vendo os mesmos
signos, deveria predizer a mesma sorte para Esaú e Jacó, sendo que os sucessos da
vida de ambos foram muito diversos.

O astrólogo, portanto, deveria prognosticar coisas falsas, ou, no caso de falar
coisas verdadeiras, estas forçosamente deveriam ser diferentes, a despeito da
identidade das observações. Logo, se seus prognósticos fossem verdadeiros, não o
seriam por efeito da arte, mas do acaso. Porque tu, Senhor, governador justíssimo
do Universo, por inspiração secreta, desconhecida dos consulentes e astrólogos,

fazes que cada um ouça a resposta que lhe convém, de acordo com os méritos das
almas, do fundo do abismo de teu justo juízo. E que o homem não se atreva a
dizer: Que é isto? Por que isto? Não o diga, não o diga, porque é um simples
homem.

CAPÍTULO VII - Ainda a origem do mal

Deste modo, ó meu auxílio, já me havias libertado daqueles grilhões. Contudo eu
buscava ainda a origem do mal, e não encontrava solução. Mas não permitias que
as vagas de meu pensamento me apartassem da fé. Fé na tua existência, na tua
substância imutável, na tua providência para os homens, e na tua justiça que os
julgará. Já acreditava que traçaste o caminho da salvação dos homens, rumo à
vida que sobrevém depois da morte, em Cristo, teu Filho e Senhor nosso, e nas
Sagradas Escrituras, recomendadas pela autoridade de tua Igreja Católica.

Salvas e fortemente arraigadas estas verdades em meu espírito, buscava eu
ansiosamente a origem do mal. E que tormentos, como que de parto, eram
aqueles de meu coração! Que gemidos, meu Deus! E ali estavam teus ouvidos
atentos, e eu não o sabia. Quando, em silêncio, me esforçava em pacientes buscas,
altos clamores se elevavam até tua misericórdia: eram as silenciosas angústias de
minha alma.

Tu só sabes o que eu padecia, mas homem algum o sabia. De fato, quão pouco era
o que minha palavra transmitia aos meus amigos mais íntimos! Chegava,
porventura, a eles o tumulto de minha alma, que nem o tempo, nem as palavras
bastavam para declarar? Contudo, chegavam a teus ouvidos as queixas que em
meu coração rugiam, e meu desejo estava diante de ti, mas a luz de meus olhos
não estava contigo, porque ela estava dentro, e eu olhava para fora. Ela não
ocupava espaço algum, e eu só pensava nas coisas que ocupam lugar, e não achava
nelas lugar de descanso, nem me acolhiam de modo que pudesse dizer: "Basta,
Aqui estou bem!" – Nem me permitiam que eu fosse para onde me sentisse
satisfeito. Eu era superior a estas coisas, mas sempre inferior a ti. Serias minha
verdadeira alegria se eu te fosse submisso, pois sujeitasse a mim tudo o que
criaste inferior a mim. Tal seria o justo equilíbrio e a região central de minha
salvação: permanecer como imagem tua, e servindo-te, ser o senhor de meu corpo.
Mas, como me levantei soberbamente contra ti, investindo contra meu Senhor
coberto com o escudo de minha dura cerviz, até mesmo as criaturas inferiores se
fizeram superiores a mim, e me oprimiam, e não me davam um momento de alívio
e de descanso.

Quando as olhava, elas me vinham ao encontro atabalhoadamente de todos os
lados; mas quando nelas me concentrava, tais imagens corporais me barravam
para que me retirasse, como se me dissessem: "Para onde vais, indigno e impuro?"
E estas recobravam forças com a minha chaga, porque humilhaste o soberbo como
a um homem ferido. Minha presunção me separava de ti, e meu rosto de tão
inchado, fechava meus olhos.

CAPÍTULO VIII - A piedade de Deus

Mas tu, Senhor, permaneces eternamente, e não te iras eternamente contra nós,
porque te compadeceste da terra e do pó, e foi de teu agrado corrigir minhas
deformidades. Tu me aguilhoavas com estímulos interiores para que estivesse
impaciente, até que por uma visão interior, te tornasses para mim uma certeza. O
inchaço de meu orgulho baixava graças à mão secreta de tua medicina; a vista de
minha alma, perturbada e obscurecida, ia sarando dia a dia graças ao colírio das
dores salutares.

CAPÍTULO IX - Agostinho e o neoplatonismo

Primeiramente, querendo tu mostrar-me como resistes aos soberbos e dás tua
graça aos humildes, e com quanta misericórdia ensinaste aos homens o caminho da
humildade, por se ter feito carne teu Verbo, e ter habitado entre os homens, me
fizeste chegar às mãos por meio de um homem inchado de monstruoso orgulho,
alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim.

Neles eu li – não com estas palavras, mas substancialmente o mesmo e expresso
com muitos e diversos argumentos – que "no princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus. Este estava desde o princípio em Deus.
Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito do que foi feito. O que
foi feito é vida nele, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, mas
as trevas não a compreenderam. Diziam também que a alma do homem, embora
dê testemunho da luz, não é a luz, mas o Verbo, Deus, é a verdadeira luz, que
ilumina a todo homem que vem a este mundo. E que neste mundo estava, e que o
mundo é criatura sua, e que o mundo não o conheceu.

E que ele veio para sua morada, e que os seus não o receberam, e que a quantos o
receberam deu o poder de se fazerem filhos de Deus, desde que acreditem em seu
nome, isto não o li nesses livros.

Também neles li que o Verbo, Deus, não nasceu da carne nem do sangue, nem da
vontade do varão, mas de Deus. Mas que o Verbo se fez carne, e habitou entre
nós, isso não o li naqueles livros.

Igualmente achei nesses livros, dito de diversos e múltiplos modos, que o Filho,
consubstancial ao Pai, não considerou usurpação ser igual a Deus, porque o é por
natureza. Não dizem porém que se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de
escravo, que se fez semelhante aos homens, sendo julgado homem por seu
exterior; e que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz,
pelo que Deus o ressuscitou entre os mortos, e lhe deu um nome acima de todo
nome, para que ao nome de Jesus se dobrem todos os joelhos no céu, na terra e no
inferno, e toda língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai.

Neles se diz também que antes e sobre todos os tempos, teu Filho único
permanece imutável, eterno consigo, e que de sua plenitude recebem as almas
para sua bem-aventurança e que, para serem sábias, são renovadas participando
da sabedoria que permanece em si mesma.

Mas não se encontra escrito ali que morreu, no tempo marcado, pelos ímpios, e
que não perdoaste a teu Filho único, mas que o entregaste por todos nós. Porque
escondeste estas coisas aos sábios e as revelastes aos humildes, a fim de que os
atribulados e sobrecarregados viessem a ele, para que os reconfortasse, porque
ele é manso e humilde de coração. Dirige os pequenos na justiça e ensina aos
mansos seu caminho, vendo nossa humildade e nosso trabalho, e perdoando todos
os nossos pecados.

Mas aqueles que, erguendo-se sobre uma doutrina, digamos, mais sublime, não
ouvem ao que lhes diz: Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e
encontrareis descanso para vossas almas. E ainda que conheçam a Deus, não o
glorificam como Deus, nem lhe dão graças, mas se desvanecem em seus
pensamentos, e seu coração insensato se obscurece; e dizendo que são sábios, se
tornam estultos.

E por isso lia também nesses livros que a glória de tua natureza incorruptível
havia sido transformada em ídolos e simulacros de todo tipo, à semelhança da
imagem do homem corruptível, das aves, dos quadrúpedes e serpentes. Isto é,
naquele alimento do Egito pelo qual Esaú perdeu sua primogenitura. Israel, teu
povo primogênito, voltando o coração para o Egito, honrou em teu lugar a cabeça
de um quadrúpede, curvando tua imagem, isto é, a própria alma, diante da

imagem de um bezerro comendo feno.

É o que encontrei nesses livros, mas delas não me alimentei, porque agradou-te,
Senhor, tirar de Jacó o opróbrio de sua inferioridade, para que o maior servisse ao
menor, chamando os gentios para tua herança.

Também eu vinha dentre os gentios para ti, e interessei-me pelo ouro que, por tua
vontade, teu povo trouxera do Egito, pois era teu onde quer que estivesse. E
disseste aos atenienses, por boca de teu Apóstolo, que em ti vivemos, nos
movemos e temos nosso ser, como alguns deles o disseram, e é deles que vinham
os livros que me ocupavam. Mas não me fixei nos ídolos dos egípcios, aos quais
sacrificavam, com teu ouro, os que mudaram a verdade de Deus em mentira,
adorando e servindo ante à criatura do que ao Criador.

CAPÍTULO X - A descoberta de Deus

Estimulado por estas leituras a voltar a mim mesmo, entrei, guiado por ti, no
profundo de meu coração, e o pude fazer porque te fizeste minha ajuda. Entrei, e
vi com os olhos da alma, acima desses mesmos olhos, acima de minha inteligência,
a luz imutável; não esta vulgar e visível a todos os olhos de carne, nem outra do
mesmo gênero, embora maior. Era muito mais clara e enchendo com sua força
todo o espaço. Não, não era esta luz, mas uma luz diferente de todas estas.

Ela não estava sobre meu espírito como o azeite sobre a água, como o céu sobre a
terra, mas estava acima de mim porque me criou; eu lhe era inferior por ter sido
criado por ela. Quem conhece a verdade conhece a luz, e quem a conhece, conhece
a eternidade. O amor a conhece!

Ó eterna verdade, amor verdadeiro, amada eternidade! Tu és meu Deus. Por ti
suspiro dia e noite. Quando te conheci pela primeira vez, ergueste-me para me
fazer ver que havia algo para ser visto, mas que eu ainda era incapaz de ver. E
deslumbraste a fraqueza de minha vista com o fulgor do teu brilho, e eu estremeci
de amor e temor. Pareceu-me estar longe de ti numa região desconhecida, como
se ouvira tua voz do alto: "Sou o pão dos fortes; cresce, e comer-me-ás. Não me
transformarás em ti, como fazes com o alimento da tua carne, mas tu serás
mudado em mim".

E conheci então que "castigaste o homem por causa de sua iniqüidade", e "que
secaste minha alma como uma teia de aranha", e eu disse: Porventura não existe a

verdade, por não ser difusa pelos espaços finitos e infinitos? E tu me gritaste de
longe: Na verdade, Eu sou o que sou.

E eu ouvi como se ouve no coração, sem deixar motivo para dúvidas; antes, mais
facilmente duvidaria de minha vida que da existência da verdade, que se
manifesta à inteligência pelas coisas da criação.

CAPÍTULO XI - Deus e as criaturas

E contemplei as outras coisas que estão abaixo de ti, e vi que nem existem
absolutamente, e nem absolutamente deixam de existir. Certamente existem,
porque procedem de ti; mas não existem, pois, não são o que tu és,, porque só
existe verdadeiramente o que permanece imutável.

Com isso, para mim é bom apegar-me a Deus, porque, se não permanecer nele,
tampouco poderei permanecer em mim. Ele, porém, permanecendo em si, renova
todas as coisas, e tu és o meu Senhor, porque não necessitas de meus bens.

CAPÍTULO XII - O mal e o bem da criação

Também pode entender que são boas as coisas que se corrompem. Se fossem
sumamente boas, não poderiam se corromper, como tampouco o poderiam se não
fossem boas de algum modo. Com efeito, se fossem sumamente boas, seriam
incorruptíveis; e se não tivessem nenhuma bondade, nada haveria nelas que se
pudesse corromper. Porque a corrupção é um mal, e não poderia ser nociva se não
diminuísse o bem real. Logo, ou a corrupção é inofensiva, o que é impossível, ou, o
que é certo, tudo o que se corrompe é privado de algum bem. E assim, se algo for
privado de todo o bem, deixará totalmente de existir. E se algo subsistisse sem já
poder ser corrompido, seria ainda melhor, porque permaneceria incorruptível. E
haverá maior absurdo do que afirmar que uma coisa se torna melhor pela perda
de todo o bem? Logo, ser privado de todo o bem é o nada absoluto. De onde se
segue que, enquanto as coisas existem, elas são boas.

Portanto, tudo o que existe é bom; e o mal, cuja origem eu procurava, não é uma
substância, porque se o fosse seria um bem. De fato, ou ele seria substância
incorruptível, e portanto um grande bem; ou seria uma substância corruptível, que
se não se poderia corromper se não fosse boa.

Vi pois, e foi para mim evidente, que tu eras o autor de todos os bens, e que não

há em absoluto substância alguma que não tenha sido criada por ti. E como não as
fizeste todas iguais, toas as coisas existem, porque cada uma por si é boa, e todas
juntas muito boas, porque nosso Deus fez todas as coisas muito boas.

CAPÍTULO XIII - Os louvores da criação

E para ti, Senhor, não existe absolutamente o mal; e nem para universalidade da
tua criação; porque nada existe fora dela, capaz de romper ou de corromper a
ordem que tu lhe impuseste. Todavia, em algumas de suas partes, determinados
elementos não se harmonizam com outros, e estes são considerados maus. Mas,
como esses mesmos elementos combinam com outros, são da mesma forma bons, e
bons em si mesmos. E mesmo esses elementos que não concordam entre si se
harmonizam com a parte inferior das criaturas que chamamos terra, com seu céu
cheio de nuvens e de ventos, como lhe é conveniente.

Longe de mim dizer: Oxalá não existissem estas coisas! – Embora, considerando-as
separadamente, eu as desejasse melhores, somente o fato de existirem deveria
bastar para eu te louvar porque o proclamam os dragões da terra e todos os
abismos; o fogo, o granizo, a neve, o vento da tempestade, que executam tuas
ordens; os montes e todas as colinas; as árvores frutíferas e todos os cedros; as
feras e todos os gados; os répteis e todas as aves; os reis da terra e todos os
povos; os príncipes e todos os juízes da terra, os jovens e as virgens, os anciões e
as crianças; todos louvam teu nome.

Mas como também do alto dos céus é louvado, que seja louvado o nosso Deus, lá
no alto por todos os teus anjos, todas as potestades, o sol e a lua, todas as
estrelas e a luz, os céus dos céus, e a águas que estão sobre os céus glorificam teu
nome, eu já não desejava nada melhor, porque, considerando o todo, os elementos
superiores me pareciam sem dúvida melhores que os inferiores; mas um
julgamento mais sadio me fazia considerar o todo melhor que os elementos
superiores tomados à parte.

CAPÍTULO XIV - Recapitulação

Não têm juízo sadio, nos que se desagradam com alguma parte de tua criação,
como acontecia comigo, quando me desagradavam tantas de tuas obras. Mas,
como minha alma não se atrevia a desgostar do meu Deus, não queria considerar
como obra tua o que lhe desagradava.

Por isso fora atrás da teoria das duas substâncias, na qual não achava descanso, e
repetia coisas alheias. Desembaraçando-me desses erros, imaginara para si um
Deus que se difundia pelos espaços infinitos e, julgando que eras tu, colocou-o em
seu coração, e de novo se tornou o templo de seu ídolo, coisa abominável a teus
olhos.

Mas, depois que afagaste minha cabeça, sem que eu o percebesse, e fechaste meus
olhos para não vissem a vaidade, desprendi-me um pouco de mim mesmo, e minha
loucura adormeceu profundamente; quando despertei em teus braços, vi que eras
infinito não daquele modo, e esta visão não procedia da carne.

CAPÍTULO XV - Deus e a criação

Contemplei depois as outras coisas, e vi que deviam a ti sua existência, e que
todas estão contidas em ti, não como em um lugar material, mas de modo
diferente: conservas todas elas em tua verdade, sustentadas na tua mão; todas as
coisas são verdadeiras enquanto existem, e só é falso o que julgamos existir, mas
não existe.

Também vi que cada coisa adapta-se não só a seus lugares, mas também a seus
tempos, e que tu, que és o único eterno, não começaste a agir depois de infinitos
espaços de tempos, porque todos os espaços de tempo – passados ou futuros – não
teriam passado nem viriam se tu não agistes e não fosses permanente.

CAPÍTULO XVI - Onde está o mal

Entendi por experiência que não é de admirar que o pão seja enjoativo ao paladar
enfermo, mesmo tão agradável para o paladar sadio, e que olhos enfermos
considerem odiosa a luz, que para os límpidos é tão cara. Se tua justiça desagrada
aos maus, muito mais desagradam a víbora e o caruncho, que criaste bons e
adaptados à parte inferior da tua criação, com a qual também os maus se
assemelham, tanto mais quanto mais diferem de ti, assim como os justos se
assemelham às partes superiores do mundo na medida em que se assemelham a ti.

Indaguei o que era a iniqüidade, e não achei substância, mas a perversão de uma
vontade que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus – e se inclina para
as coisas baixas, e que derrama suas entranhas, e se intumesce exteriormente.

CAPÍTULO XVII - Caminho para Deus

Admirava-me de já te amar, e não a um fantasma em teu lugar, mas não era
estável no gozo de meu Deus. Era arrebatado a ti por tua beleza, e logo afastado
de ti pelo meu peso, que me precipitava sobre a terra a gemer. Meu peso eram os
hábitos carnais. Mas tua lembrança me acompanhava. Nem absolutamente
duvidava da existência de um ser a quem eu devia me unir, embora não estivesse
apto para esta união, porque o corpo, que se corrompe, sobrecarrega a alma, e a
morada terrena oprime o espírito carregado de cuidados. Estava certíssimo de que
tuas belezas invisíveis se descobrem à inteligência desde a criação do universo,
por meio de tuas obras; bem como teu poder eterno e tua divindade.

Buscava saber de onde me vinha minha faculdade de apreciar a beleza dos corpos
– quer celestes, quer terrenos – e o que me permitia julgar rápida e cabalmente
das coisas mutáveis quando dizia: "Isto deve ser assim, aquilo não deve ser assim".
Procurando a origem de minha faculdade de julgar quando assim julgava, achei a
eternidade imutável e verdadeira, acima de meu espírito mutável.

E, gradualmente, fui subindo dos corpos para a alma, que sente por meio do corpo;
e dela à sua força interior, à qual os sentidos comunicam as coisas exteriores, que
é o limite alcançado pelos animais. Daqui passei para o poder do raciocínio, ao
qual cabe julgar as percepções dos sentidos corporais; por sua vez, julgando-se
sujeito a mudanças, levantou-se até a sua própria inteligência, e afastou o
pensamento de suas cogitações habituais. Livrou-se da multidão de fantasmas
contraditórios, para descobrir que luz a inundava quando, sem nenhuma dúvida,
afirmava que o imutável deve ser preferido ao mutável; e também de onde lhe
vinha o conhecimento do próprio imutável, porque, se não tivesse dele alguma
noção, nunca o preferiria ao mutável com tanta certeza. E, finalmente, chegou
àquele que é um único lampejo.

Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência por
meio de tuas obras. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza se
recobrou, e voltei a meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrança
amorosa e, por assim dizer, o desejo do perfume do alimento saboroso que eu
ainda não podia comer.

CAPÍTULO XVIII - A senda da humildade

Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não a
encontrei enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o
homem Cristo Jesus, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os
séculos, que chama e diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ele une o alimento

à carne (alimento que eu não tinha forças para tomar), porque o Verbo se fez
carne, para que tua Sabedoria, pela qual criaste todas as coisas, fosse o leite de
nossa infância.

Não tendo humildade, eu não possuía Jesus, o Deus da humildade, e não atinava o
que nos poderia ensinar sua fraqueza. Porque teu Verbo, verdade eterna,
dominando as criaturas mais sublimes da tua criação, levanta a si as que se lhe
sujeitam e, nas partes inferiores, construiu para si, com o nosso lodo, uma humilde
morada. Assim faz para humilhar e arrancar de si mesmos aqueles que deseja
sujeitar e atrair, curando-lhes a soberba e alimentando-lhes o amor, para que,
confiando em si, não se afastem para mais longe. Pelo contrário, que se humilhem,
vendo a seus pés a humildade de um Deus que também se vestiu de nossa túnica
de carne, e cansados, se prostrem diante dela para que, ao se levantar, os exalte.

CAPÍTULO XIX - A doutrina do verbo

Mas eu então julgava de outro modo. Considerava meu Senhor Jesus Cristo
apenas um homem de extraordinária sabedoria, a quem ninguém poderia igualar.
Sobretudo seu miraculoso nascimento de uma virgem, que nos ensina a desprezar
os bens temporais para adquirir a imortalidade. Parecia-me ter merecido, por
decreto da Providência divina, uma soberana autoridade para ensinar os homens.

Mas nem suspeitava o mistério que se encerra nestas palavras: o Verbo se fez
carne.

Somente conhecia, pelas coisas que dele nos deixaram escritas, que comeu, bebeu,
dormiu, passeou, que se alegrou, se entristeceu e pregou, e que essa carne não se
juntou a teu Verbo senão com alma e inteligência humanas. Tudo isso sabe quem
conhece a imutabilidade de teu Verbo, que eu já conhecia quanto me era possível,
sem que disso nada duvidasse. Com efeito, mover os membros do corpo à vontade,
ou não movê-los, estar dominado por algum afeto ou não o estar, traduzir por
palavras sábios pensamentos e depois calar, são caracteres próprios da
mutabilidade da alma e da inteligência. Se esses testemunhos das Escrituras
fossem falsos, tudo o mais correria o risco de ser mentira, e o gênero humano não
teria mais nesses livros a fé, condição de salvação. Mas como são verdadeiras as
coisas nela escritas, eu reconhecia em Cristo um homem completo, não somente o
corpo de um homem, ou um corpo sem uma alma inteligente, mas um homem real,
que eu julgava superior a todos os outros não por ser a personificação da verdade,
mas em razão da singular excelência de sua natureza humana, e de uma mais
perfeita participação na sabedoria.

Alípio porém pensava que os católicos, crendo em um Deus revestido de carne,
entendiam quem eu em Cristo, além de Deus e da carne, não havia alma humana;
e não julgava que lhe atribuíssem inteligência humana. E como estava bem
persuadido de que os atos atribuídos tradicionalmente a Cristo não podiam ser
senão obras de um criatura cheia de vida e de inteligência, Alípio se aproximava
com certa relutância da fé cristã. Mas depois, ao saber que este erro era próprios
dos hereges apolinaristas, aderiu alegremente à fé católica.

De minha parte, confesso que só aprendi mais tarde a diferença de interpretação
das palavras "o Verbo se fez carne", entre a verdade católica e o erro do Fotino
(bispo de Sírmio, afirmava que o Verbo não havia sido Filho de Deus até encarnar-
se nas entranhas da Virgem Maria, negando toda união substancial entre a
natureza humana e o Verbo divino). A reprovação dos hereges põe às claras o
pensamento da tua Igreja e o que esta considera como doutrina sã.

Convém pois que haja heresias, para que os fortes se distingam entre os fracos.

CAPÍTULO XX - Do platonismo às Escrituras

Depois de ter lido aqueles livros dos platônicos, induzido por eles a buscar a
verdade incorpórea, começaram a se tornarem patentes, por meio de tuas obras,
tuas perfeições visíveis.

Repelido para longe de ti, compreendi em que consistia essa verdade, que as
trevas de minha alma me impediam de contemplar. Estava certo de tua existência
e de que és infinito, sem contudo te estenderes por espaços finitos ou infinitos; e
de que és verdadeiramente aquele que é sempre idêntico a si mesmo, sem te
mudares em outro, nem sofrer alteração alguma, quer parcialmente ou com algum
movimento, quer de qualquer outro modo; e de que tudo o mais vem de ti, pela
única e irrefutável razão de que existe. Tinha certeza de todas estas verdades,
mas me achava ainda demasiado fraco para gozar de ti. Tagarelava muito, como
se fora competente nisso, mas se não procurasse o caminho da verdade em Cristo,
nosso Salvador, não seria perito, mas perituro. Já começava a querer parecer
sábio, cheio de meu castigo, e não chorava, mas orgulhava-me com a ciência. Onde
estava aquela caridade erigida sobre o alicerce da humildade, que é Cristo Jesus?
Ou talvez me a ensinariam aqueles livros? Creio que quiseste que com eles me
encontrasse antes de meditar nas tuas Escrituras, para que fixassem em minha
memória os afetos que nela experimentei. Depois, quando encontrasse em teus
livros a paz do coração, sarada com tuas mãos as feridas de minha alma, pudesse
discernir e perceber a diferença entre presunção e humildade, entre os que vêem

para onde se deve ir, e não vêem por onde se vai, nem o caminho que conduz à
pátria bem-aventurada, não só para contemplá-la, mas também para habitá-la.

Porém, se me tivesse instruído em tuas sagradas letras, e em sua intimidade
tivesse experimentado na doçura, para depois conhecer os livros dos platônicos,
talvez eles me arrancassem dos sólidos fundamentos da piedade; ou, se eu tivesse
persistido nos sentimentos salutares nelas hauridos, talvez julgasse que só por
esses livros se poderia chegar ao mesmo proveito espiritual.

CAPÍTULO XXI - A verdade das escrituras

Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por teu
Espírito, sobretudo ao do apóstolo Paulo. E desnaveceram em mim aquelas
dificuldades nas quais julguei descobrir contradições entre ele e seu texto, em
desacordo com os testemunhos da Lei e dos Profetas. Compreendi a unidade
daqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com tremor.

Comecei a lê-los e compreendi que tudo de verdadeiro que lera nos tratados dos
neoplatônicos se encontrava ali, mas com o aval da tua graça, para que aquele
que vê não se glorie como se não houvesse recebido não só o que vê, mas também
a faculdade de ver. Com efeito, que tem ele que não tenha recebido? E tu, que és
imutável, não só o alertas para que te veja, mas também para que seja curado,
para te possuir. Aquele que está muito longe de te ver, tome, contudo, o caminho
para chegar a ti, para te ver e te possuir.

Porque, embora o homem se deleite com a lei de Deus, segundo o homem interior,
que fará dessa outra lei que luta em seus membros contra a lei de seu espírito, e
que o prende sob a lei do pecado, impressa em seus membros? Porque tu és justo,
Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniqüidades; procedemos como ímpios, e
tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça que fomos entregues ao pecador
antigo, ao príncipe da morte, porque ele persuadiu nossa vontade a se conformar
à sua, que não quis persistir com tua verdade.

Que fará esse homem infeliz? Quem o livrará deste corpo de morte, senão tua
graça, por Jesus Cristo, nosso Senhor, a quem tu geraste co-eterno e criaste no
princípio de teus caminhos, ele, em quem o príncipe deste mundo não achou nada
que merecesse a morte, e a quem, contudo, matou? Com o que foi anulada a
sentença que havia contra nós?

Nada disso dizem os livros platônicos. Nem têm naquelas páginas esse sentimento
de piedade, as lágrimas da confissão, esse teu sacrifício, a alma abatida, esse
coração contrito e humilhado, nem a salvação de teu povo, nem a cidade
prometida, nem o penhor do Espírito Santo, nem o cálice de nossa redenção.

Nos livros platônicos ninguém canta: "Minha alma não estará sujeita a Deus?
Porque dele procede minha salvação, pois é meu Deus e meu amparo, do qual não
mais me apartarei.

Ninguém ali ouvi o convite: Vinde a mim os que sofreis. Desdenham teus
ensinamentos, porque és manso e humilde de coração. Porque escondeste estas
coisas dos sábios e doutos, e as revelaste aos pequeninos.

Uma coisa é ver de um monte agreste a pátria da paz, e não encontrar o caminho
que conduz a ela, e fatigar-se debalde por lugares inacessíveis, entre ataques e
emboscadas dos desertores fugitivos, com seu chefe, o leão e o dragão, e outra
coisa é conhecer o caminho que conduz até lá, defendido pelos cuidados do
imperador celeste, e onde não roubam os desertores da milícia do céu, pois eles o
evitam como um suplício.

Esses pensamentos penetravam-me as entranhas de modo maravilhoso, quando eu
lia o menor de teus apóstolos. Considerava tuas obras e enchia-me de assombro.

LIVRO OITAVO

CAPÍTULO I - Hesitações

Faze, meu Deus, que eu recorde de ti em ação de graças, e proclame tuas
misericórdias para comigo. Que meus ossos se penetrem do teu amor, e digam:
Senhor quem semelhante a ti?

Rompeste com grilhões, e te oferecerei um sacrifício de louvor. Contarei como os
rompeste, e todos os que te adoram exclamarão quando me ouvirem: "Bendito
seja o Senhor no céu e na terra! Grande e admirável é seu nome!

Tuas palavras, Senhor, tinham-me gravado profundamente em meu coração, e me
via cercado apenas por ti de todos os lados. Tinha certeza de tua vida eterna,
embora apenas a visse em enigma e como em espelho. Já fora dissolvida toda
dúvida quanto à tua substância incorruptível, ao saber que toda substância
procedia dela. E o que desejava não era tanto estar mais certo de ti, mas mais
firme em ti.

Quanto à minha vida temporal, estava eu ainda vacilante, e era necessário que
meu coração se purificasse do velho fermento. O caminho certo, que é o próprio
Salvador, me encantava, mas titubeava ainda em caminhar por seus estreitos
desfiladeiros.

Então me inspiraste a idéia – que me pareceu excelente – de me dirigir a
Simpliciano, que eu tinha como um de teus bons servidores, em quem brilhava tua
graça. Sobre ele ouvira também que desde sua juventude te consagrava
devotamente sua vida, e como já encanecia, achei que em tão longa vida,
dedicada ao estudo de teus caminhos, teria acumulado grande experiência e
instrução; e de fato assim era. Por isso queria confiar-lhe minhas inquietações,
para que me apontasse o modo de vida mais idôneo de alguém, com minhas
disposições interiores, seguir teu caminho.

Vi tua Igreja cheia de fiéis que, por um caminho ou por outro, progrediam.

Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para mim fardo
pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e
riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões
haviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa,

que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o
Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os
homens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado.

Mas eu, ainda muito fraco, escolhia a condição mais fácil; por isso, vivia hesitando
em tudo o mais, e me desgastava com preocupações enervantes, pois a vida
conjugal, a que me julgava destinado e obrigado, ter-me-ia obrigado a novas
incumbências, que eu não queria suportar.

Ouvira da boca da própria Verdade que há eunucos que mutilavam a si próprios
por amor ao reino dos céus, embora acrescentando que o compreenda quem o
puder compreender. São vãos, por certo, todos os homens nos quais não reside a
ciência de Deus, e que nas coisas visíveis não puderam achar aquele que é. Mas eu
já me livrara dessa vaidade, já a havia ultrapassado, e pelo testemunho de tua
criação, te encontrara a ti, nosso Criador, e a teu Verbo, Deus em ti, e contigo um
só Deus, por quem criaste todas as coisas.

Há ainda outra espécie de ímpios; os que, conhecendo a Deus, não o glorificam
como Deus, nem lhe renderam graças. Eu também tinha caído nesse pecado; mas
tua destra me amparou e libertou, colocando-me em lugar onde me pudesse curar;
e disseste ao homem: Eis que a piedade é a sabedoria. E ainda: Não queiras
parecer sábio, porque os que se dizem sábios tornaram-se insensatos.

Já havia encontrado, finalmente, a pérola preciosa, que devia comprar vendendo
tudo o que possuía. Mas ainda hesitava.

CAPÍTULO II - Visita a Simpliciano. Conversão de Vitorino

Fui ter pois com Simpliciano, pai espiritual do então bispo Ambrósio, que o amava
verdadeiramente como pai. Contei-lhe os labirintos do meu erro. E quando lhe
disse que havia lido alguns livros dos platônicos, traduzidos para o latim por
Vitorino, outrora retórico em Roma – e do qual ouvira dizer que morrera cristão –
ele me felicitou por não ter caído nas obras de outros filósofos, falazes e
enganosas, segundo os elementos deste mundo, mas apenas estes, que insinuam
por mil modos a Deus e a seu Verbo.

Depois, para me exortar à humildade de Cristo, escondida aos sábios e revelada
aos humildes, evocou a lembrança do próprio Vitorino, que conhecera
intimamente, quando estava em Roma. Não guardarei silêncio sobre o que me

contou dele, porque me dará azo de proclamar os grandes louvores de tua graça a
seu respeito. Esse erudito ancião, profundo conhecedor de todas as ciências
liberais, leitor e crítico de tantos livros de filosofia, fora mestres de muitos nobres
senadores. O prestígio de seu magistério lhe valera uma estátua no foro romano,
que ele aceitara (coisa que os cidadãos desse mundo têm em grande conta). Até
aquela idade avançada, havia adorado os ídolos, participando de cultos sacrílegos,
de que participava quase toda a nobreza romana da época que inspirava ao povo
sua devoção por Osíris, por "toda sorte de monstros divinizados, pelo labrador
Anúbis", monstros que outrora "pegaram em armas contra Netuno, Vênus e
Minerva", e a quem, vencidos, a própria Roma dirigia súplicas, esse velho Vitorino,
que durante tantos anos havia defendido esses deuses com sua terrível
eloqüência, não se envergonhou de se tornar servo de teu Cristo e criança de tuas
águas, dobrando o pescoço ao jugo da humildade, e dobrando sua fronte ante o
opróbrio da cruz.

Senhor, Senhor, que inclinaste os céus e o desceste, que tocaste os montes e estes
fumegaram, de que modo te insinuaste naquele coração?

Segundo contou-me Simpliciano, Vitorino lia as Escrituras e investigava e
esquadrinhava com grande curiosidade toda a literatura cristã, e confiava a
Simpliciano, não em público, mas muito em segredo e familiarmente: "Sabes que já
sou cristão?" Ao que respondia aquele: "Não hei de acreditar, nem te contarei
entre os cristãos enquanto não te vir na Igreja de Cristo". Mas ele ria e dizia:
"Serão pois as paredes que fazem os cristãos?" E isto, de que já era cristão, o dizia
muitas vezes, contestando-lhe Simpliciano outras tantas vezes com a mesma
resposta, opondo-lhe sempre Vitorino o gracejo das paredes.

Vitorino receava desgostar a seus amigos, os soberbos adoradores dos demônios,
julgando que estes, de alto de sua babilônica dignidade, como cedros do Líbano,
ainda não abatidos pelo Senhor, fariam cair sobre ele suas pesadas inimizades.

Mas depois que hauriu forças nas leituras e orações, temeu ser renegado por
Cristo diante de seus anjos, se tivesse medo de o confessar diante dos homens.
Sentiu-se réu de um grande crime por se envergonhar dos mistérios de humildade
de teu Verbo, não se envergonhando do culto sacrílego de demônios soberbos, que
ele próprio aceitara como soberbo imitador; envergonhou-se da vaidade, e
enrubesceu diante da verdade. De repente, disse a Simpliciano, segundo este
mesmo contava: "Vamos à Igreja; quero me tornar cristão". Simpliciano, não
cabendo em si de alegria, foi com ele. Recebidos os primeiros sacramentos da
religião, não muito depois, deu seu nome para receber o batismo que renegara,

causando admiração em Roma e alegria na Igreja. Viram-no os soberbos, e se
iraram; rangiam os dentes e se consumiam de raiva.

Mas teu servo havia posto no Senhor Deus sua esperança, e não tinha mais olhos
para as vaidades e as enganosas loucuras.

Enfim, chegou a hora da profissão de fé. Em Roma, os que se preparam para
receber tua graça, pronunciam de um lugar elevado, diante dos fiei, formulas
consagradas aprendidas de cor.

Os presbíteros, dizia-me Simpliciano, propuseram a Vitorino que recitasse a
profissão de fé em segredo, como era costume fazer com os que poderiam se
perturbar pela timidez. Mas ele preferiu confessar sua salvação na presença da
plebe santa, uma vez que nenhuma salvação havia na retórica que ensinara
publicamente. Quanto menos, pois, devia temer diante de tua mansa grei
pronunciar tua palavra, ele que não havia temido as turbas insanas em seus
discursos!

Assim, logo que subiu à tribuna para dar testemunho da sua fé, em uníssono,
conforme o iam conhecendo, todos repetiram seu nome como num aplauso – e
quem ali não o conhecia? – e um grito reprimido, saiu da boca de todos os que se
alegravam: "Vitorino! Vitorino!" Ao verem-no, se puseram a gritar de júbilo, mas
logo emudeceram pelo desejo de ouvi-lo. Vitorino pronunciou sua profissão de
verdadeira fé com grande firmeza, e todos queriam raptá-lo para dentro de seus
corações. E realmente o fizeram: seu amor e alegria eram as mãos que o
arrebatavam.

CAPÍTULO III - A alegria das coisas perdidas

Bom Deus, que se passa no homem para que se alegre mais com a salvação de uma
alma desesperada, quando salva de grande perigo, do que se ela sempre tivesse
tido esperança, ou se o perigo tivesse sido menor? Também tu, Pai misericordioso,
sentes mais alegria por um pecador arrependido do que por noventa e nove justos
que não têm necessidade de penitência. Grande é o nosso prazer ao falar da
alegria do pastor trazendo de volta sobre os ombros a ovelha desgarrada, e da
mulher que repõe em teus tesouros, para satisfação geral dos vizinhos, a dracma
perdida. E nos arranca lágrimas a alegria das festas de tua casa quando lemos que
teu filho menor estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.

Tu te alegras em nós e em teus anjos, santificados pelo santo amor; pois és sempre
o mesmo, e conheces do mesmo modo e sempre as coisas que nem sempre existem,
nem da mesma maneira.

Mas, que se passa na alma, para que se alegre mais com as coisas que estima,
encontradas ou reavidas, do que se sempre as tivesse possuído? Na verdade, tudo
o atesta, e há inúmeros testemunhos que afirmam: "É assim mesmo!"

O general celebra o triunfo da vitória, e não teria vencido sem combate; e quanto
mais foi árdua a batalha, tanto maior é o gozo no triunfo.

A tempestade cai sobre os navegantes com ameaça de naufrágio. Todos
empalidecem diante da morte iminente. O céu e o mar se acalmam, é grande sua
alegria, e nasce do muito que temeram.

Adoece uma pessoa amiga: seu pulso revela um desfecho fatal. Todos os que
desejam sua cura sofrem com ela, por simpatia. Havendo melhora, embora ainda
não recuperado o vigor de outrora, já reina tal alegria como não existia antes,
quando andava sadia e forte.

Até os prazeres da vida humana, não só compensam os homens de desgraças
casuais e involuntárias, mas também de moléstias premeditadas e desejadas. Não
há prazer algum em beber ou comer sem que haja antes o estímulo da sede ou da
fome. Os ébrios costumam comer antes alguma coisa salgada, que lhes cause sede
ardente e que transformará em prazer quando acalmada com a bebida. O costume
quer que as esposas não sejam entregues imediatamente aos maridos: o marido
desprezaria a noiva se não tivesse que esperar e suspirar por ela.

Assim ocorre tanto na alegria torpe e vil, como na alegria lícita e permitida, na
mais sincera e honesta amizade, como na aventura daquele que estava morto e
tornou a viver, que se havia perdido e foi encontrado; em todos os casos uma
alegria maior é precedida de uma dor também maior.

Por que isto, Senhor, meu Deus, quando tu mesmo és tua própria alegria eterna, e
as criaturas à tua volta em ti se alegram? Por que esta parte do universo sofre as
alternâncias de progressos e quedas, de uniões e separações? Será este o modo de
ser que lhe concedeste quando, do mais alto dos céus até às profundezas da terra,
desde o princípio dos tempos até o fim dos séculos, desde o anjo até o pequenino
verme, e desde o primeiro movimento até o último, dispuseste todos os gêneros

de bens e todas as tuas obras justas, cada uma em seu lugar e tempo?

Ai de mim! Quão alto és nas alturas e quão profundo nos abismos! Jamais te
afastas de nós e, contudo, quanta dificuldade para voltar a ti!

CAPÍTULO IV - A conversão dos grandes

Vamos pois, Senhor, mãos à obra! Desperta-nos, chama-nos, inflama-nos, arrebata-
nos; derrama tuas doçuras, encanta-nos: amemos, corramos!

Não é verdade que muitos voltam a ti, saindo de um abismo de cegueira mais
profundo que o de Vitorino, e se aproximam de ti, e são iluminados pela tua luz,
junto da qual recebem o poder de se fazerem teus filhos?

Mas se estes são menos conhecidos pelo mundo dos homens, mesmo os que os
conhecem se alegram menos; mas quando a alegria é partilhada por muitos, ainda
é maior em cada um, porque se aquece e inflama de uns para os outros.

Ademais, os que são conhecidos de muitos, arrastam à salvação muitos outros, e
caminham adiante seguidos dos que os imitam. Por isso, grande é a alegria dos
que os precederam, por que não se regozijam só consigo.

Mas, longe de mim pensar que no teu tabernáculo são mais aceitos os ricos que os
pobres, e os nobres mais do que os plebeus, porque escolheste os fracos segundo o
mundo para confundir os fortes; o que é vil e desprezível segundo o mundo, a que
não é nada, para aniquilar o que é.

Contudo, o menor de teus apóstolos, por cuja boca pronunciaste essas palavras,
quando suas armas abateram o orgulhoso procônsul Paulo, sujeitando-o ao leve
jugo de teu Cristo e fizeram dele um súdito do grande Rei, quis, parar comemorar
tão grande triunfo, mudar seu nome de Saulo pelo de Paulo. De fato, o adversário
é mais completamente vencido naquilo em que tinha maior domínio e por meio do
que retém maior número de sequazes. Ora, o inimigo domina com mais força os
soberbos pela nobreza de seu nome e, graças a estes, número maior pelo prestígio
de sua autoridade.

Assim, na medida em que o coração de Vitorino era tido como fortaleza
inexpugnável antes ocupada pelo demônio, e sua língua como dardo poderoso e

agudo, que tantas vezes havia dado a morte às almas, tanto mais copiosamente
deviam exultar teus filhos, ao verem que nosso Rei agrilhoara o forte, e que seus
vasos roubados, eram agora purificados e destinados à tua honra, convertendo-se
em instrumentos úteis ao Senhor para toda obra boa.

CAPÍTULO V - As duas vontades

Mal teu servo Simpliciano me contou a conversão de Vitorino, ardi no desejo de
imitá-lo; aliás, era esta a finalidade da narração de Simpliciano. Depois
acrescentou que nos tempos do imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos
ensinar literatura e oratória, e Vitorino, dócil à lei, preferiu abandonar a escola de
palradores a abandonar teu Verbo, que torna eloqüentes as línguas dos meninos.
Não só me pareceu corajoso como afortunado, por ter encontrado ocasião de se
consagrar por ti. Por isso eu suspirava, acorrentado não com os ferros de uma
vontade estranha, mas por minha férrea vontade.

O inimigo dominava meu querer, e dele forjava uma corrente com a qual me
mantinha cativo. Da vontade perversa nasce a paixão, e desta satisfeita procede o
hábito, e do hábito não contrariado provém a necessidade, e com estes anéis
enlaçados entre si – por isso lhes chamei corrente – me mantinha preso em dura
servidão. A nova vontade, que despontava em mim, de te servir sem interesse, de
me alegrar em ti, ó meu Deus, única alegria verdadeira, ainda não era capaz de
vencer a vontade antiga e inveterada. Deste modo minhas duas vontades, a velha
e a nova, a carnal e a espiritual, lutavam entre si e, nessa luta, dilaceravam-me a
alma.

Entendi, por experiência própria, o que havia lido: a carne tem desejos contra o
espírito, e o espírito contra a carne. Eu vivia ao mesmo tempo a ambos, embora
mais o que aprovava em mim do que o que em mim desaprovava. Com efeito,
nesta última parte de mim eu era passivo e constrangido, mais do que ativo e
livre.

E,contudo, o hábito que se impunha contra mim vinha de mim mesmo, pois fora
voluntariamente que eu chegara onde não queria. E quem poderia protestar
legitimamente, se um castigo justo segue o pecador?

Eu já não tinha aquela desculpa, com a qual persuadia-me de que, se ainda não
desprezava o mundo para te servir, era porque não tinha visão clara da verdade,
uma vez que agora já a conhecia de modo indiscutível. Mas, ainda apegado à

terra, recusava-me a combater em tuas fileiras, e temia ver-me livre dos meus
laços, quando devia temer estar por eles atado.

Assim, sentia-me docemente oprimido pelo peso do mundo, como em um sonho, e
os pensamentos com que meditava em ti eram semelhantes aos esforços dos que
desejam despertar, mas, vencidos pela sonolência, voltam dormir. Não há ninguém
que queira dormir sempre, e segundo dita o bom senso, é melhor estar desperto
que dormir. Contudo, às vezes retarda-se o despertar, quando o torpor torna os
membros pesados, e, mesmo a contragosto, continua-se a dormir mesmo depois de
chegada a hora de despertar. Assim eu estava certo que era melhor entregar-me
a teu amor que ceder à minha paixão. O primeiro me agradava, me dominava; o
segundo me encantava, me prendia.

Já não tinha o que responder quando me dizias: "Desperta, ó tu que dormes,
levanta-te de entre os mortos, e Cristo te há de iluminar". E quando por todos os
meios me mostrava a verdade do que dizias, e de que eu estava convencido, não
tinha absolutamente nada para responder, senão umas palavras preguiçosas e
sonolentas: Um momento... Depois... Um pouquinho mais...

Mas este pouquinho não tinha fim, e este momento se ia prolongando.

Em vão me deleitava em tua lei, segundo o homem interior, porque em meus
membros outra lei combatia a lei de meu espírito, mantendo-me cativo sob a lei
do pecado que estavas em meus membros. Com efeito, a lei do pecado é a
violência do hábito, pelo qual a alma é arrastada e presa, mesmo contra sua
vontade, merecidamente porém, pois se deixa arrastar por vontade própria. Pobre
de mim! Quem poderia libertar-me deste corpo de morte senão tua graça, por
Cristo, nosso Senhor?

CAPÍTULO VI - A narração de Ponticiano

Agora contarei de que modo me arrancaste do vínculo do desejo carnal, que me
prendia fortemente, e da servidão dos negócios do mundo, e confessarei teu nome,
ó Senhor, meu auxílio e minha redenção. Levava minha vida habitual com angústia
crescente; todos os dias suspirava por ti, freqüentava tua igreja, quando me
deixavam livre os negócios, cujo peso me fazia sofrer.

Comigo estava Alípio, desonerado do cargo de jurisconsulto, depois de ter sido
assessor pela terceira vez. Ele aguardava a quem vender de novo seus conselhos,

como eu vendia arte da eloqüência, se é que pelo ensino a podemos transmitir.

Nebrídio, por sua vez, acendendo às nossas solicitações amigas, auxiliava na escola
a nossa amigo íntimo, Verecundo; este, gramático e cidadão milanês, desejava
enormemente, e nos instava em nome da amizade, que um de nós lhe prestasse
uma fiel colaboração, pois dela muito necessitava.

Não foi, pois, o interesse que moveu a Nebrídio – que poderia auferir bem mais
vantagens se ensinasse as letras – mas, como grande amigo que era, não quis
recusar nosso pedido em obsequio à amizade. Agia, porém, com muita prudência,
evitando fazer-se conhecido dos poderosos deste mundo, para evitar as
inquietações do espírito que ele queria manter o mais possível livre e desocupado
para investigar, ler ou ouvir algo sobre a sabedoria.

Certo dia em que Nebrídio estava ausente, não sei por que motivo, Alípio e eu
recebemos a visita de um tal Ponticiano, nosso compatriota da África, que servia
em alto cargo do palácio.

Não sei mais o que queria de nós.

Sentamo-nos para conversar, e, por acaso, deu com os olhos em um livro que
estava sobre a mesa de jogo, à nossa frente. Pegou-o, abriu-o, viu que eram as
epístolas de Paulo e ficou surpreso, pois pensava que se tratasse de algum dos
livros cujo estudo me preocupava.

Então sorriu para mim e, cumprimentando-me, manifestou-me sua admiração por
ter encontrado aquele livro, e só aquele, ao alcance dos meus olhos. Ponticiano
era um cristão fiel, e muitas vezes prostrava-se diante de ti, nosso Deus, na igreja,
em freqüentes e prolongadas orações.

E quando lhe declarei que aquele livro ocupava o melhor de minha atenção,
tomando a palavra, começou a falar-nos de Antão, monge do Egito, cujo nome era
celebrado entre teus fiéis, mas que nós desconhecíamos até aquela hora.
Informado disto, continuou a falar, revelando esse grande homem à nossa
ignorância, que ele muito admirou.

Ouvíamos, estupefatos, tuas autenticas maravilhas, realizadas na verdadeira fé,
na Igreja Católica, tão recentes e quase contemporâneas. Todos nos admirávamos;

nós, por serem coisas tão grandes; e ele, por ser-nos tão desconhecidas.

Depois, passou a falar das multidões que vivem em mosteiros, e de seus costumes,
que trazem teu doce perfume, e da fecunda solidão do ermo, coisas todas que
desconhecíamos.

Até em Milão havia, fora dos muros, um mosteiro cheio de bons irmãos sob a
direção de Ambrósio, que também desconhecíamos.

Ponticiano prosseguia, e falava sempre mais, e nós o ouvíamos atentos e calados.
E assim veio a nos contar que um dia, não sei quando, estando em Tréveris, saiu
em companhia de três companheiros, enquanto o imperador se concentrava nos
jogos circenses da tarde, para dar um passeio pelos jardins que rodeavam os
muros da cidade. Distraidamente passeando dois a dois, um com Ponticiano, e os
outros dois juntos, separaram-se e tomaram caminhos diferentes.

Caminhando a esmo, estes últimos deram com uma cabana, habitada por alguns
servos teus, pobres de espírito, a quem pertence o reino dos céus. Lá encontraram
um exemplar manuscrito da Vida de Santo Antão. Um deles começou a lê-lo, e,
admirado e arrebatado cogitou, enquanto lia, em abraçar aquele gênero de vida,
abandonando o serviço do mundo, para servir unicamente a ti.

Estes dois eram os chamados agentes de negócios do imperador. De repente,
tomado de amor santo e casto pudor, irado consigo mesmo, olha para o
companheiro, e lhe diz: "Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos
estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor? Podemos
aspirar mais no palácio do que ser amigos do imperador? E mesmo nisto, quanta
incerteza, quantos perigos! E quantos perigos teremos de passar para chegar a um
perigo ainda maior? E quando chegaremos a isso? Mas, se eu quiser ser amigo de
Deus, posso sê-lo agora mesmo". Disse essas palavras, e exaltado pela gestação da
nova vida voltou os olhos para o livro; ao ler, transformava-se interiormente, o
que só tu sabias, e seu espírito se despia do mundo, como logo se evidenciou.

Enquanto lia, o coração se lhe tornou um mar tempestuoso, sentiu um
estremecimento e, intuindo o melhor caminho a tomar, resolveu abraçá-lo,
dizendo ao amigo:

"Já rompi com nossos sonhos: decidi dedicar-me ao serviço de Deus, e isso quero
começar aqui e agora. Se não me queres imitar, ao menos não me contraries".

O amigo respondeu que desejava ficar com ele, e ser companheiro de tão nobre
mercê e de tão grande combate. Ambos já te pertenciam, e começavam a
construir, com capital suficiente, uma torre de salvação, a tudo renunciando para
te seguir.

Então Ponticiano e seu companheiro, que passeavam em outro local do jardim,
procurando-os, deram também com a mesma cabana, e os avisaram para que
voltassem, pois já entardecia. Mas eles, relataram-lhes sua determinação e
propósito, e o modo como nascera e se fixara neles tal desejo, pediram-lhes que, se
não quisessem juntar-se a eles, que não os molestassem. Mas estes, sem se
converterem, lamentaram a si mesmos, no dizer de Ponticiano, e felicitando-os
piedosamente, recomendaram-se às suas orações; depois, arrastando o coração
pela terra, voltaram ao palácio, enquanto que os convertidos, fixando seu coração
no céu, ficaram na cabana.

Ambos eram noivos; mas, quando suas noivas ouviram o sucedido, também te
consagraram sua virgindade.

CAPÍTULO VII - A reação de Agostinho

Eis o que Ponticiano nos relatou. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias
refletir, tirando-me da posição de costas, em que me colocara para não me ver a
mim mesmo. Tu me colocavas diante de meu próprio rosto para que visse como
estava indigno, disforme, sórdido, manchado e ulceroso.

Eu me via, e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir de mim mesmo.
Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração,
e de novo me punhas diante de mim, e me empurravas diante de meus olhos, para
que eu descobrisse minha iniqüidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas a
dissimulava, fingia não ver, esquecia.

E quanto mais ardentemente amava aqueles jovens, cuja salutar decisão ouvia
relatar, por se terem entregue completamente a ti para que os curasses, tanto
mais acerbamente me odiava ao me comparar com eles. Com efeito, já tinham
decorrido muitos anos – talvez uns doze – desde que, ao dezenove anos, lendo o
Hortênsio de Cícero, sentira-me atraído para o estudo da sabedoria. Ia adiando a
hora de abandonar a felicidade meramente terrena, quando não somente a sua
descoberta, mas a sua própria busca, deveria ser preferida aos maiores tesouros
do mundo e aos maiores prazeres corporais, que a um aceno, afluíam a meu redor.

Mas eu, jovem miserável, sim, miserável desde o despertar da juventude, já te
havia pedido a castidade, dizendo: "Dá-me castidade e continência, mas não
agora" – pois temia que me atendesse muito depressa, e que me curasses logo da
doença de minha concupiscência, que eu mais queria saciar do que extinguir. E
caminhei pelas sendas ruins de uma superstição sacrílega, não porque estivesse
certo dela, mas porque a preferia às demais doutrinas, que eu não estudava
piedosamente, mas que hostilmente combatia.

Acreditava que o motivo por que adiava dia a dia o desprezo das promessas
seculares, para seguir apenas a ti, era o não ter descoberto uma claridade capaz
de dirigir meus passos.

Veio, então, o dia em que me vi nu, a ouvir as repreensões de minha consciência:
"Onde está a tua palavra? Não dizias que tua indecisão para lançar longe o fardo
de tua vaidade se devia à incerteza? Agora tens a certeza, e não obstante, ainda
te oprime esse fardo; outros, no entanto, que não se consumiram tanto em
procurá-la, nem meditaram dez anos ou mais sobre tais problemas, vêem nascer
asas em seus ombros mais livres".

Assim me roia interiormente, devorado por enorme e terrível vergonha, enquanto
Ponticiano contava aquilo tudo. Finda a conversa, e resolvida a questão a que
viera, Ponticiano voltou para sua casa, e eu para dentro de mim. Que coisas não
disse contra mim? Com que açoite de palavras não flagelei minha alma, para
obrigá-la a me seguir em meus esforços para te alcançar! Ela resistia, recusava-se,
sem se desculpar. Todos os argumentos já estavam esgotados e refutados. Nada
lhe restava, senão uma angústia muda: tinha medo, como da morte, de ser tolhida
à corrente do vício, onde se corrompia mortalmente.

CAPÍTULO VIII - Luta espiritual

Então, em meio àquela luta interior que eu travava violentamente contra mim
mesmo no recesso do meu coração, perturbado no rosto e no espírito, volto-me
para Alípio exclamando:

"Que tanto nos aflige? O que significa isto que ouviste? Levantam-se os ignorantes
e arrebatam o céu, e nós, com todo nosso saber insensato, nos revolvemos na
carne e no sangue! Acaso temos vergonha de segui-los porque se nos adiantaram,
e não temos vergonha de não os seguir?"

Foi mais ou menos o que eu lhe disse, e dele me afastei sob forte emoção. Alípio
me olhava atônito em silêncio. Eu não falava como de costume, e muito mais que
as palavras, minha fronte, minhas fazes, meus olhos, minha cor e o tom de minha
voz denunciavam meu estado de espírito.

Nossa casa tinha um pequeno jardim, que usávamos, assim como o restante da
casa, que nosso hóspede não habitava. Para ali me levara a tormenta de meu
coração, onde ninguém pudesse interferir no ardente combate que eu travava
comigo mesmo, até que se resolvesse o assunto conforme tu sabias e eu ignorava.
Mas eu delirava para reencontrar a razão, e morria para reviver; conhecia meu
mal, mas desconhecia o bem que depois haveria de sobrevir.

Retirei-me, pois, para o jardim, e Alípio seguiu-me passo a passo; mas, apesar de
sua presença, eu não estava menos só. E como haveria ele de me deixar naquele
estado? Sentamo-nos o mais longe possível da casa. Eu tremia pela violenta
indignação, me enraivecia por não poder seguir teu agrado e aliança, ó meu Deus,
aliança pela qual clamavam todos os meus ossos, que te elevavam louvores até o
céu. E para ir a ti não há necessidade de navios nem de carros, nem mesmo de dar
aqueles poucos passos que separavam a casa do jardim onde estávamos.

Não somente ir, mas chegar junto de ti, nada mais é do que querer ir, mas com
querer enérgico e pleno, e não com vontade tíbia, que se dispersa em todos os
sentidos, e se agita incerta, dividida, ora levantando-se, ora voltando a cair.

Enfim, naquela angustiante hesitação, fazia mil gestos, como soem fazer os homens
que querem e não podem, ou porque não têm membros, ou porque os têm atados
em cadeias, debilitados pela fraqueza ou paralisados de qualquer outro modo. Se
puxei os cabelos, se feri a fronte, se apertei os joelhos entre os dedos
entrelaçados, eu o fiz porque quis. Poderia porém querer fazê-lo e não o fazer, se a
flexibilidade de meus membros não me obedecesse. Portanto, fiz muitas coisas, nas
quais o querer não era o mesmo que o poder.

Contudo, eu não fazia aquilo que desejava acima de tudo o mais, e que eu poderia
fazer desde que o quisesse, porque se o tivesse efetivamente querido, bastava que
o quisesse sinceramente; nisto o poder é o mesmo que o querer, e querer já seria
agir.

Contudo não o fazia, e meu corpo obedecia mais facilmente ao mais leve comando
de minha alma, movendo os membros segundo sua vontade, do que a própria alma

obedecer a si mesma para realizar seu grande desejo com a vontade.

CAPÍTULO XI - A desobediência da vontade

Mas, de onde vinha este prodígio? Qual sua causa? Brilhe a tua misericórdia, e
perguntarei – se é que me podem responder – aos sombrios castigos infligidos aos
homens, e às tenebrosas misérias dos filhos de Adão. De onde vem este prodígio?
E qual sua causa?

A alma dá ordens ao corpo, e este obedece imediatamente; a alma dá ordens a si
mesma, e resiste. Ordena a alma à mão que se mova, e é tal sua presteza, que mal
se pode distinguir a ordem da execução; não obstante, a alma é espírito e a mão é
corpo. A alma dá a si mesma a ordem de querer, uma não se distingue da outra, e
contudo, ela não obedece. De onde este prodígio? E qual sua causa?

Manda a alma que queira – e não mandaria se não quisesse – e, não obstante, não
faz o que manda. Logo, não quer totalmente, e por isso não manda de modo total.
A alma manda na proporção do querer, e enquanto não quiser, suas ordens não
são executadas, porque é a vontade que dá a ordem de ser a uma vontade que
nada mais é que ela própria. Logo, não manda plenamente, e esta é a razão por
que não faz o que manda. Porque, se estivesse em sua plenitude, não mandaria
que fosse, porque já seria.

Não há, portanto, prodígio algum em querer em parte e em parte não querer; é
uma enfermidade da alma. Esta, sustentada pela verdade, não se ergue de todo,
pois está oprimida pelo peso do hábito. Há, portanto, duas vontades, ambas
incompletas, e o que uma possui falta à outra.

CAPÍTULO X - Contra os maniqueus

Desapareçam de tua presença, ó meu Deus, como os vãos faladores e sedutores do
espírito, aqueles que, ao observarem a dupla deliberação da vontade, concluem
que temos duas almas de naturezas opostas, uma boa, outra má.

Eles é que são de fato maus, que seguem tais más doutrinas; somente serão bons
quando aceitarem a verdade, concordando com os que a possuem. E assim o
Apóstolo poderá dizer deles: Outrora fostes trevas, mas agora sois luz no Senhor.
Mas esses, querendo ser luz não no Senhor, mas em si mesmos, julgam que a
natureza da alma á a mesma que a de Deus; vão-se tornando trevas ainda mais

densas, pois em sua terrível arrogância se afastam ainda mais de ti, luz
verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo. Atentai para o que
dizeis, e enchei-vos de vergonha. Aproximai-vos dele, e sereis iluminados, e vossos
rostos não serão cobertos de confusão.

Quando eu deliberava dedicar-me ao serviço do Senhor meu Deus, como de há
muito me tinha proposto, eu era o que eu queria, e lera o que eu não queria. Mas,
nem queria plenamente, nem deixar de querer por completo. Por isso lutava
comigo mesmo, e me dilacerava a mim mesmo. Essa destruição, embora
involuntária, não mostrava, contudo, a presença em mim de uma alma estranha,
mas apenas o castigo de minha alma. E por isso já não era eu quem mo infligia,
mas o pecado que habitava em mim, como castigo de pecado cometido livremente,
por ser eu filho de Adão.

Com efeito, se fossem tantas as naturezas contrárias quantas são as vontades que
em nós se contradizem, não deveríamos admitir apenas duas naturezas, mas
muitas. Se alguém, com efeito, hesita entre uma reunião dos maniqueístas ou ao
teatro, logo eles exclamam: "Eis aí as duas naturezas, uma boa, que o atrai para
cá, e outra má, que o arrasta pra lá. E de onde mais viria essa hesitação de
vontades opostas?"

De minha parte eu digo que ambas são más, tanto a que leva a eles como a que
arrasta ao teatro; mas eles só julgam boa a que leva até eles.

Mas, suponhamos que um dos nossos queira decidir, e conflitando as duas
vontades, titubeie entre ir ao teatro ou à nossa igreja; não ficarão indecisos os
maniqueístas na resposta que hão de dar? Porque, ou hão de confessar o que não
querem, que é boa a vontade que o leva à nossa igreja, como vão a ela os que
foram iniciados em seus mistérios e lhe permanecem fiéis, ou terão de reconhecer
que num mesmo homem lutam duas naturezas más e duas almas más. E então
terão de contradizer o que afirmam, que uma natureza é boa e outra má. Ou
então terão de aceitar a verdade e, neste caso, não negarão que, quando alguém
escolhe, é uma mesma alma a que hesita entre duas vontades opostas.

Portanto, quando virem duas vontades que se contrapõem ao mesmo homem, não
falem mais de luta entre duas almas contrárias, uma boa e outra má, originadas
em duas substâncias antagônicas. Porque tu, ó Deus verdadeiro, os confundes,
como no caso em que ambas as vontades são más; por exemplo, quando alguém
hesita, entre matar a outrem com um punhal ou veneno; entre assaltar esta ou

aquela propriedade alheia, quando não pode assaltar a ambas; entre esbanjar na
compra do prazer da luxúria, ou guardar dinheiro por avareza; entre ir ao circo ou
ao teatro, quando ambos sejam concomitantes; e ainda acrescento uma terceira
incerteza: entre roubar ou não a casa do próximo, em havendo a oportunidade, ou
ainda, acrescento uma quarta hipótese: entre cometer ou não adultério, se tem
possibilidade para isso. Suponhamos que todas essas circunstâncias ocorram
simultaneamente; como todas são igualmente desejadas, e irrealizáveis ao mesmo
tempo, a alma será dilacerada por um conflito entre quatro vontades, ou mais
ainda, tão numerosos são os objetos de desejo! Contudo, os maniqueus não
afirmam que existe tão grande número de substâncias diferentes.

O mesmo acontece com as vontades boas. Se eu lhes pergunto se é bom deleitar-
se com a leitura do Apóstolo, com a leitura de algum salmo espiritual, ou com o
comentar do Evangelho, eles responderão a cada questão: "É bom" – Ora, se as
três atividades têm a mesma atração simultaneamente, não teríamos vontades
opostas a dividir o coração do homem, enquanto escolhe qual delas abraçar de
preferência?

Todas essas vontades são boas, e lutam entre si, até que se tome uma decisão,
que unifique a vontade, antes dividida. Assim também, quando a eternidade
agrada à nossa parte superior e o bem temporal nos prende fortemente cá
embaixo: é a mesma alma que, sem uma vontade plena, quer um e outro desses
bens. Por isso, dilacera-a uma grande dor; a verdade nos faz preferir a eternidade,
mas o hábito não quer abandonar os bens temporais.

CAPÍTULO XI - Últimas resistências

Assim sofria e me atormentava, com acusações mais acerbas que de costume,
rolando-me e debatendo-me dentro de minha cadeias, para ver se as quebrava por
completo. Elas mal me prendiam,mas ainda me prendiam. E tu, Senhor, me
espicaçavas no fundo de minha alma, e com severa misericórdia redobravas os
açoites do temor e da vergonha, para que eu não afrouxasse de novo, e para que
quebrasse minha tênue e leve cadeia, antes que ela se revigorasse para me
prender mais firmemente.

E dizia comigo mesmo: "Vamos! Mãos à obra, sem demoras!" E quase passava da
palavra à ação. Estava a ponto de agir, mas não agia. Eu já não recaía nas antigas
paixões, mas delas estava bem próximo, e tomava ainda alento de seu ar. Quase a
alcançava, faltava pouco, cada vez menos, e já quase chegava ao termo e a
segurava; mas não a alcançava, nem a tocava; hesitava entre morrer para a

morte e viver para a vida. O mal arraigado dominava-me mais do que o bem, cujo
hábito eu não possuía; na medida que ia se aproximando o momento em que me
transformaria em outro homem, maior era o horror que me incutia, sem contudo
me fazer voltar para trás ou mudar de caminho. Simplesmente mantinha-me
indeciso.

Mantinham-me preso umas tantas bagatelas, umas vaidades de vaidades, antigas
amigas minhas, que me puxavam por minhas vestes carnais, murmurando: "Então,
nos abandonas? De agora em diante nunca mais estaremos contigo? Desde este
momento nunca mais te será lícito isto ou aquilo?"

E que coisas, meu Deus, que torpezas me sugeriam com o que chamei de isto ou
aquilo!

Por tua misericórdia, afasta-as da alma de teu servo! Oh! Que imundícies me
sugeriam, que indecências! Já se reduzira a menos da metade o número de vezes
que eu lhes dava ouvidos; não era mais um assalto aberto, frontal, mas segredado
por cima dos ombros, e como que puxando-me furtivamente, se me afastava, para
que me voltasse para trás.

Contudo, faziam com que eu, vacilante, tardasse em me separar delas para correr
para onde me chamavam, enquanto o hábito violento me dizia: "Julgas que
poderás viver sem elas?"

Mas isto já dizia com voz muito débil. Para onde voltava o rosto, e por onde temia
passar, mostrava-se para mim a casta dignidade da continência, serena e alegre,
sem desordens, acariciando-me honestamente para que me aproximasse sem
medo. Estendia para mim, para me acolher e abraçar, suas mãos piedosas, cheias
de uma multidão de bons exemplos.

Junto dela, uma turba de meninos e meninas, uma juventude numerosa, e homens
de toda idade, viúvas veneráveis e virgens idosas. Em todas essas almas, não era
estéril, mas fecunda a mãe de filhos nascidos nas alegrias do esposo, que eras tu,
Senhor!

E a continência zombava de mim com ironia animadora, como se dissesse: "Então,
não serás capaz de fazer o mesmo que eles? Ou será que estes e estas
encontraram forças em si mesmos, e não no Senhor, seu Deus? Foi o Senhor Deus,
quem me entregou a eles. Por que te apóias em ti, se és vacilante? Lança-te nele,

não temas, que ele não se apartará de ti, e tu não cairás. Lança-te com confiança,
que ele te receberá e te curará."

E enchia-me de vergonha por ainda ouvir o murmúrio daquelas bagatelas e,
vacilante, continuava indeciso.

Mas de novo a voz da castidade parecia me dizer: Não dês ouvidos às tentações
imundas da tua carne impura que te prende à terra, a fim de que seja mortificada.
Ela te fala de deleites, contrários porém, à lei do Senhor teu Deus.

Essa luta se desenrolava no fundo do meu espírito, de mim contra mim mesmo.
Alípio, sem sair de perto de mim, aguardava em silêncio o desfecho de minha
insólita agitação.

CAPÍTULO XII - A conversão

Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e expôs
toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme tormenta,
trazendo copiosa torrente de lágrimas. E para dar-lhe toda vazão com seus
gemidos, afastei-me de Alípio; a solidão parecia-me mais adequada e me afastei o
mais longe possível, para que sua presença não me fosse embaraçosa. Tal era o
estado em que encontrava, e Alípio percebeu-o, pois lhe disse alguma coisa com
um timbre de voz embargado de lágrimas que me denunciou.

Alípio, atônito, continuou no lugar em que estávamos sentados; mas eu, não sei
como, me retirei para a sombra de uma figueira, e dei vazão às lágrimas; e dois
rios brotaram de meus olhos, sacrifício agradável a teu coração. E embora não com
estes termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu,
Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te de
minhas iniqüidades passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava:
"Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que
não pôr fim agora às minhas torpezas?"

Assim falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis
que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, que
cantava e repetia muitas vezes: "Toma e lê, toma e lê".

E logo, mudando de semblante, comecei a buscar, com toda a atenção em minhas
lembranças se porventura esta cantiga fazia parte de um jogo que as crianças

costumassem cantarolar; mas não me lembrava de tê-la ouvido antes. Reprimindo
o ímpeto das lágrimas, levantei-me. Uma só interpretação me ocorreu: a vontade
divina mandava-me abrir o livro e ler o primeiro capitulo que encontrasse.

Tinha ouvido dizer que Antão, assistindo por acaso a uma leitura do Evangelho,
tomara para si esta advertência: "Vai, vende tudo o que tens, dá-lo aos pobres, e
terás um tesouro no céu; depois vem e segue-me" – e que esse oráculo decidira
imediatamente sua conversão.

Depressa voltei para o lugar onde Alípio estava sentado, e onde eu deixara o livro
do Apóstolo ao me levantar. Peguei-o, abri-o, e li em silêncio o primeiro capítulo
que me caiu sob os olhos: "Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos
prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas; mas
revesti-vos de nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da
carne".

Não quis ler mais, nem era necessário. Quando cheguei ao fim da frase, uma
espécie de luz de certeza se insinuou em meu coração, dissipando todas as trevas
de dúvida.

Então, marcando com o dedo, ou não sei com que, fechei o livro, e com o rosto já
tranqüilo, revelei a Alípio o que se passara. Ele, por sua vez, me revelou o que
acontecera com ele, e que eu ignorava. Pediu para ver o que eu tinha lido;
mostrei-lhe, ele prosseguiu a leitura. Eu ignorava o texto seguinte, que era este:
Recebei ao fraco na fé, palavras que aplicou a si mesmo, e mo revelou. Fortificado
por essa advertência, firmou-se nessa resolução e santo propósito, bem de acordo
com seus costumes, nos quais já há muito tempo tomara grande vantagem sobre
mim.

Fomos depois à procura de minha mãe, que ao saber do sucedido, ficou radiante.

Contamo-lhe como o caso se passara; ela exultou, triunfante e bendizendo a ti, que
és poderoso para dar-nos mais do que pedimos ou entendemos, porque via que lhe
havias concedido, a meu respeito, muito mais do que constantemente te pedia
com tristes gemidos e lágrimas.

De tal forma me converteste a ti, que já não procurava esposa, nem abrigava
esperança alguma deste mundo, mas estava já naquela "regra de fé" em que há
tantos anos me havias mostrado à minha mãe. E assim converteste seu pranto em

alegria, muito mais fecunda do que havia desejado, e muito mais preciosa e pura
do que a que podia esperar dos netos nascidos de minha carne.

LIVRO NONO

CAPÍTULO I - Colóquio

Ó Senhor, sou teu servo e filho de tua serva. Rompeste minhas cadeias: eu te
sacrificarei uma vítima de louvor. Louvem-te meu coração e minha língua, e que
todos os meus ossos te digam: Senhor, quem semelhante a ti? Que eles te digam
essas palavras e que me respondas e digas à minha alma: Eu sou tua salvação.

Quem sou eu, e como era? Que males não tive em minhas obras, ou, se não em
minhas obras, em minhas palavras, ou, se não em minhas palavras, em minha
vontade! Mas tu, Senhor, bom e misericordioso, puseste os olhos na profundeza de
minha morte, e purificaste com tua destra o abismo de corrupção de minha alma.
Tratava-se agora apenas de não querer o que eu queria, e de querer o que tu
querias.

Mas, onde esteve meu livre arbítrio durante tantos anos? De que profundo e
misterioso abismo foi ele chamado num instante, para que eu inclinasse a cerviz a
teu jugo suave e o ombro a teu leve fardo, ó Cristo Jesus, meu auxílio e redenção?

Quão suave foi para mim a privação de doçuras fúteis! Temia então perdê-las,
como agora sentia prazer em deixa-las! Porque tu se afastavas de mim, e entravas
em seu lugar, mais doce que qualquer prazer, mas não para a carne e o sangue;
mais claro que toda luz, mais oculto que qualquer segredo; mais sublime que todas
as honras, mas não para os que exaltam a si mesmos.

Minha alma já estava livre dos devoradores cuidados da ambição, do ganho, e do
prurido dos apetites carnais; e falava muito comigo, ó Deus e Senhor meu, minha
luz, minha riqueza, minha salvação!

CAPÍTULO II - Adeus ao magistério

Pareceu-me de bom alvitre, em tua presença, não abandonar de modo ostensivo o
ministério da minha língua, mas retirá-lo suavemente do mercado da loquacidade,
para que dali por diante os jovens, que não se preocupam com tua lei ou paz, mas
com as enganosas loucuras e contendas forenses, não comprassem de minha boca
armas para seu furor. Felizmente faltavam pouquíssimos dias para as férias das
vindimas (é provável que as férias de outono dos estudantes coincidissem com as
férias dos tribunais, que se iniciavam em 22 de agosto, e terminavam em 15 de

outubro). Decidi suportá-los até lá. Então me retiraria como de costume, e,
resgatado por ti, não tornaria mais a vender meu ofícios.

Esta minha determinação, te era conhecida; dos homens, só a conheciam os de
minha intimidade. E, mesmo assim, tínhamos combinado de nada deixar transpirar.
Contudo, quando subíamos do vale de lágrimas, cantando o cântico gradual (série
de salmos cantados pelos peregrinos que sobem os degraus do templo de
Jerusalém) nos tinhas dado setas agudas e carvões destruidores contra a língua
pérfida que contradiz, sob o pretexto de aconselhar e, como quem se alimenta,
consome o que ama.

Tinhas alvejado nosso coração com as setas do teu amor, e levávamos tuas
palavras cravadas em nossas entranhas; os exemplos de teus servos, que das
trevas trouxeram para a luz, e da morte para a vida, ardiam no fundo de nosso
espírito em uma espécie de fogueira, que inflamava e consumia nosso torpor, para
que não mais nos inclinássemos para as baixezas.

Estávamos inflamados de tal ardor, que o vento da contradição das línguas dolosas
não nos apagaria, antes fazia-nos arder mais e mais.

Contudo, por causa de teu nome, que santificaste em toda terra, nossa decisão e
propósito teriam também quem os louvasse. Pareceria de certo modo jactância
não aguardar as férias tão próximas; abandonar antes dessa data uma profissão
pública, e exposta a todos, seria atrair sobre minha conduta todas as atenções,
provocando comentários. Diriam que eu me adiantara às férias iminentes por
querer parecer grande personagem. E de que me valeria que pensassem ou
discutissem sobre minhas intenções, blasfemando sobre o meu bem?

Além disso, nesse mesmo verão, devido ao excessivo trabalho didático, meus
pulmões começaram a se ressentir; respirava com dificuldade, e as dores no peito
e minha voz, que não saía clara ou prolongada, revelavam uma lesão. A princípio
me senti angustiado, vendo-me quase obrigado a abandonar o fardo do magistério
ou, para me curar e convalescer, teria certamente de o interromper. Mas, quando
nasceu em mim e se firmou a vontade plena de repousar e de ver que és o Senhor,
então, tu o sabes meu Deus, que cheguei a me alegrar de encontrar esta desculpa
verdadeira para moderar o sentimento das famílias, que por causa de seus filhos
nunca me permitiram ser livre.

Cheio dessa consolação, esperava que escoasse aquele tempo – talvez uns vinte

dias.

Mas minguara minha coragem, porque já me abandonara a cobiça de ganho, que
me ajudava a carregar este pesado encargo; e teria sucumbido se a paciência não
tomasse o lugar da ambição.

Talvez alguns de teus servos, meus irmãos, dirá que pequei nisso porque, estando
com o coração já cheio de desejos de te servir, consenti ficar mais uma hora
sentado na cátedra da mentira. Não discutirei. Mas tu, Senhor
misericordiosíssimo, acaso não me perdoaste e resgataste também este pecado,
junto com todos os demais horrendos e mortais na água santa do batismo?

CAPÍTULO III - Dois amigos

Angustiava-se Verecundo por este nosso bem, porque se via afastado de nossa
companhia pelos vínculos matrimoniais que o aprisionavam fortemente. Não era
ainda cristão, como sua mulher, mas justamente nela encontrava o maior
obstáculo que o impedia de entrar pelo caminho que havíamos começado a trilhar;
não queria ser cristão, dizia ele, senão do modo que justamente lhe era proibido.

Contudo, com sua grande bondade, pôs à nossa disposição sua propriedade no
campo pelo tempo que nos aprouvesse. Tu, Senhor, haverás de recompensá-lo no
dia da retribuição dos justos, pois já concedeste a graça. Porque, estando nós
ausentes e já em Roma, atacado de uma enfermidade corporal, Verecundo saiu
desta vida depois de se fazer cristão e crente. Assim te compadeceste não apenas
dele, mas também de nós, para que quando pensássemos na grande generosidade
que teve conosco este amigo, não nos afligíssemos de dor intolerável por não
poder contá-lo entre os de tua grei.

Graças te sejam dadas, ó Deus nosso! Somos teus: tuas exortações e consolos o
indicam.

Fiel cumpridor de tuas promessas, concedes a Verecundo a amenidade de teu
paraíso sempre florido, por nos ter oferecido sua propriedade de Cassicíaco, na
qual descansamos em ti das angústias do século; lhe perdoaste os pecados sobre a
terra, na tua montanha, a montanha da abundância.

Verecundo, como disse, angustiava-se, mas Nebrídio partilhava a nossa alegria,
porque, embora não sendo ainda cristão e houvesse caído no erro tão pernicioso

de julgar que a carne verdadeira do teu Filho fosse mera aparência, já começava a
se desvencilhar e, sem ter ainda recebido os sacramentos da tua Igreja, buscava
ardentemente a verdade.

Não muito depois de nossa conversão e regeneração por teu batismo, fez-se por
fim católico fiel. Servia-te na África junto aos seus, em castidade e continência
perfeitas; toda sua família, sob sua influência, se fizera cristã. Libertaste-o então
dos laços da carne, vivendo agora no seio de Abraão, seja qual for o significado
dessa expressão. Ali vive meu Nebrídio, meu doce amigo que, de liberto, se tornou
teu filho adotivo. Ali vive – pois, que outro lugar conviria a uma alma assim? Ali
vive, nesse lugar sobre o qual indagava muitas coisas a mim, pobre homem
ignorante. Já não aproxima seu ouvido da boca, mas aproxima sua boca espiritual
de tua fonte, e bebe avidamente de tua sabedoria, numa felicidade sem fim. Mas
não creio que se embriague a ponto de esquecer de mim, enquanto tu, Senhor,
que és sua bebida, te lembras de nós.

Essa era a nossa situação. Consolávamos o Verecundo que, sem que a amizade
fenecesse, andava desgostoso com nossa conversão; nós o exortávamos a se
manter fiel à sua condição conjugal. Quanto a Nebrídio, esperávamos que nos
seguisse, pois, facilmente poderia fazê-lo, e já estava a ponto de se decidir. Enfim,
aqueles dias passaram, e me pareceram tantos e tão longos, tal era meu desejo de
liberdade e descanso, para cantar do fundo do meu ser: A ti meu coração: Procurei
teu rosto; teu rosto, Senhor, hei de buscar.

CAPÍTULO IV - A doçura dos salmos

Por fim, chegou o dia da libertação da profissão de retórico, da qual já me
libertara em pensamento. Assim aconteceu. Livraste minha língua da tarefa de
que há havias livrado meu coração. Eu te bendizia contente, e parti com todos os
meus, para a quinta de Verecundo. O que lá realizei nas letras, já a teu serviço,
mas ainda com a respiração ofegante, como durante uma pausa da luta, e ainda
respirando da soberba da erudição, é atestado pelos livros nos quais anotava
meus debates com meus amigos ou comigo mesmo em tua presença (refere-se aos
seguintes livros: Contra Acadêmicos, De beata vita, De ordine e dos Solilóquios).
Do que tratei com Nebrídio, então ausente, claramente o indicam minhas cartas.

Mas quando encontrei tempo suficiente para dar testemunho de todos os grandes
benefícios que me concedeste nessa época da vida, uma vez que tenho pressa de
chegar a outros assuntos mais importantes? Volta-me – e me é doce confessá-lo,
Senhor – a lembrança dos estímulos internos com que me domaste; o modo como

me aplanaste a alma derrubando as colinas e montanhas de meus pensamentos;
como endireitaste meus caminhos tortuosos e suavizasse minhas asperezas; como
também submeteste Alípio – o irmão de meu coração – ao nome de teu Filho
único, Jesus Cristo, Senhor e Salvador nosso, nome que ele mal suportava em
minhas obras, porque preferia o cheiro dos soberbos cedros das escolas, já
abatidos pelo Senhor, ao odor das salutares ervas de tua Igreja, antídoto contra o
veneno das serpentes.

Que invocações elevei a ti, meu Deus, lendo os Salmos de Davi, cânticos de fé,
hinos de piedade, que expulsavam de mim todo sentimento de orgulho? Eu era
ainda inexperiente de teu verdadeiro amor, e dividia minhas horas de lazer com
Alípio, catecúmeno como eu. Minha mãe estava conosco. Ao aspecto da mulher ela
aliava fé varonil, a calma da velhice, a ternura de mãe e a piedade de cristã. Que
exclamações elevei a ti naqueles salmos, e como me inflamava com eles em teu
amor! Incendiava-me em desejos de recitá-los, se fosse possível, ao mundo inteiro,
para rebater a soberba do gênero humano! Com efeito, em todo o mundo se
cantam. Não há ninguém que se subtraia a teu calor.

Com que veemente e dolorosa indagação me levantava contra os maniqueístas! E
de novo me compadecia deles por ignorarem esses sacramentos, esses remédios,
investindo loucamente contra o antídoto que poderia curá-los! Gostaria que
estivessem perto de mim, sem que eu o soubesse, e que vissem meu rosto e
ouvissem minhas exclamações quando lia o Salmo 4 naquelas minhas férias, e
percebessem os efeitos salutares que me produzia este salmo: Quando te invoquei,
tu me escutaste, ó Deus de minha justiça! Dilataste minha alma na tribulação.

Compadece-te, Senhor, de mim, e ouve minha prece. Se me ouvissem – sem eu o
saber, para que não pensassem que eram por causa deles as palavras que eu
entremeava às do salmo, porque realmente nem eu diria tais coisas, nem as diria
daquele modo, se soubesse da sua presença; e, mesmo que as palavras fossem as
mesmas, ele não as entenderiam como eu as dizia a mim mesmo, diante de ti, na
íntima efusão dos afetos de minha alma.

Estremeci de medo, ao mesmo tempo me abrasei de alegre esperança em tua
misericórdia, ó Pai! E todos estes sentimentos saíam pelos meus olhos e pela voz
quando, dirigindo-se para nós, teu Espírito de bondade nos dizia: Filhos dos
homens, até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e buscais a
mentira?

Também eu tinha amado a vaidade e buscado a mentira. Mas tu, Senhor, já havias
glorificado teu eleito, ressuscitando-o de entre os mortos e colocando-o à tua
direita, de onde haveria de nos enviar, segundo a promessa, o Paráclito, o Espírito
da Verdade. O Senhor estava glorificado, ressuscitando de entre os mortos, e
subindo aos céus. Antes o Espírito ainda não tinha sido dado, porque Jesus ainda
não tinha sido glorificado.

Clama o profeta: Até quando sereis duros de coração? Por que amais a vaidade e
buscais a mentira? Sabeis que o Senhor já glorificou a seu santo. Clama: Até
quando? Clama: Sabei! – E eu sem o saber durante tanto tempo, amando a
vaidade e buscando a mentira!

Por isso tremi quando o ouvi, porque me lembrei de ter sido igual àqueles a quem
tais palavras eram dirigidas. Os fantasmas que eu havia tomado pela verdade
nada mais eram do que vaidade e mentira.

Ah! As queixas fortes e profundas que me inspiravam a dor da recordação! Oxalá
as tivessem ouvido os que ainda amam a vaidade e buscam a mentira! Talvez
também se perturbassem e vomitassem seu erro. E tu os terias ouvidos quando
clamassem por ti, porque morreu por nós de verdadeira morte corporal aquele
que intercede por nós diante de ti.

Eu lia: Irai-vos, e não queirais pecar. Como me perturbavam tais palavras, meu
Deus! Já havia aprendido a me irar contra mim mesmo pelos meus crimes
passados, para não pecar mais; e de uma cólera justa, porque não era uma
natureza estranha, da raça das trevas, a que em mim pecava, como dizem os que
não se indignam contra si, e acumulam contra si a ira para o dia da ira e da
revelação de teu justo juízo?

Meus bens já não eram exteriores, e eu já não os buscava à luz deste sol, com
olhos carnais. Os que querem gozar externamente, facilmente se dissipam e
derramam pelas coisas visíveis e temporais, lambendo com pensamento faminto
apenas as aparências. Oh! Se eles se esgotassem com a privação, e perguntassem:
Quem nos mostrará o bem? E que ouvissem nossa resposta: Está gravada dentro
de nós a luz de teu rosto, Senhor! – Porque não somos nós a luz que ilumina a todo
homem, mas somos iluminados por ti, para que sejamos luz em ti, nós que outrora
fomos trevas.

Oh! Se eles vissem essa luz interior e eterna que eu havia visto! E como a havia

saboreado, irritava-me por não poder mostrá-la. Se, pelo seus olhares dirigidos
para fora, visse seu coração afastado de ti, me dissessem: "Quem nos mostrará o
bem? Pois ali, onde me irritara contra mim mesmo, ali, no recôndito de meu
coração onde, arrependido, eu havia sacrificado e imolado em mim o velho
homem; onde, pondo em ti minha esperança, começara a meditar a renovação de
mim mesmo, ali fizeste com que eu sentisse tua doçura, dando alegria a meu
coração. E exclamava ao ler, fora de mim, essas palavras cuja verdade ecoava em
mim; e não queria desdobrar-me pelos bens terrenos, devorando o tempo e sendo
por ele devorado, porque possuía na eterna simplicidade outro trigo, outro vinho
e outro azeite.

E subia, no versículo seguinte, um profundo clamor de meu coração: Oh! Em paz!
Oh! Em seu próprio Ser! Mas, que disse? Dormirei e descansarei! Com efeito,
quem nos há de resistir quando se cumprir a palavra que está escrita: A morte foi
devorada pela vitória?

Tu és esse mesmo Ser, e não mudas, e em ti está o repouso que faz esquecer todos
os sofrimentos. Porque ninguém pode ser comparado a ti e nem vale pensar em
adquirir outras coisas que não sejam o que tu és; mas tu, Senhor, singularmente
me firmaste na esperança.

Eu lia isto, e me inflamava. Não sabia que fazer com aqueles surdos, de quem eu
fora a peste, um cão raivoso e cego que ladrava contra a Bíblia, dulcificada por seu
mel celestial e iluminada por tua luz. E me consumia de dor por causa dos inimigos
de tuas Escrituras.

Quando poderei recordar tudo o que aconteceu naqueles dias de descanso? Mas
não esqueci, nem quero silenciar, a aspereza de um açoite que usaste em mim, e a
admirável presteza de tua misericórdia.

Atormentavas-me então com uma dor de dentes, que se agravara a tal ponto de
me impedir até de falar. Ocorreu-me ao pensamento pedir a todos os amigos, que
rogassem por mim, ó Deus da salvação! Escrevi meu pedido numa tabuleta
encerada, e lha dei para que o lessem.

Apenas dobramos os joelhos com suplicante afeto, logo a dor desapareceu. E que
dor! E como desapareceu! Enchi-me de espanto, eu o confesso, meu Deus e Senhor.
Nunca, desde minha infância, havia experimentado coisa semelhante.

No fundo de meu coração penetrou o sinal da tua vontade e, alegre na fé, louvei
teu nome. contudo, esta fé não me deixava viver tranqüilo quanto a meus pecados
passados, que ainda não me haviam sido perdoados por teu batismo.

CAPÍTULO V - O conselho de Ambrósio

Terminadas as férias, informei aos milaneses que providenciassem para seus
estudantes outro vendedor de palavras, visto que determinara consagrar-me a
teu serviço; e mesmo porque não podia mais exercer aquela profissão pela
dificuldade de respirar e pelas dores que sentia no peito.

Também comuniquei por escrito a teu bispo e santo bispo Ambrosio, os meus
antigos erros, minha intenção atual, para que me indicasse o que deveria ler de
preferência em tuas Escrituras, a fim de me preparar e dispor melhor para receber
tão grande graça.

Ele me indicou o profeta Isaías, creio que porque anuncia mais claramente que os
demais o Evangelho e vocação dos gentios. Contudo, nada tendo compreendido na
primeira leitura, e julgando que toda a obra era assim, decidi voltar a ela quando
estivesse mais familiarizado com a palavra do Senhor.

CAPÍTULO VI - Batismo de Agostinho. Seu filho Adeodato

Chegado o tempo em que convinha nos inscrever para receber o batismo,
deixamos o campo, e voltamos para Milão.

Alípio também quis renascer em ti comigo, já revestido de humildade tão
conforme a teus sacramentos. Era tão enérgico domador do seu corpo, que
caminhava com os pés descalços, com insólita coragem, sobre o chão gelado da
Itália.

Juntamos também a nós o jovem Adeodato, filho carnal de meu pecado; a quem
dotaste de grandes qualidades. Tinha cerca de quinze anos, mas por seu talento
ultrapassava já muitos homens maduros e doutos. Confesso-te que eram dons teus,
meu Senhor e meu Deus, criador de todas as coisas, tão poderoso para corrigir
nossas deformidades, pois este menino nada havia de meu, senão meu pecado. Se
o criei em tua disciplina, foste tu, e mais ninguém, quem no-lo inspirou. Sim,
confesso que eram dons teus.

Há um livro meu que se intitula O Mestre, no qual Adeodato dialoga comigo. Tu
sabes que todos os pensamentos ali manifestados são dele quando tinha dezesseis
anos. Muitas outras qualidades maravilhosas notei ainda nele, admirado por sua
inteligência. Mas quem, além de ti, poderia ser o autor dessas maravilhas? Cedo o
arrebataste desta terra; e a lembrança dele se torna mais tranqüila, nada mais
tendo a temer por sua infância, por sua adolescência ou por toda sua vida adulta.
Associamo-lo a nós como irmão na graça, para educá-lo em tua lei. Fomos
batizados, e os remorsos de nossa vida passada se afastaram de nós.

Naqueles dias eu não me fartava de considerar a grandeza de teus desígnios para
a salvação do gênero humano, pela inefável doçura que sentia. Quanto chorei ao
ouvir, profundamente comovido, teus hinos e cânticos que ressoavam suavemente
em tua Igreja!

Penetravam aquelas vozes em meus ouvidos, e destilavam a verdade em meu
coração. Acendia-se em mim um afeto piedoso, corriam-me lágrimas dos olhos, e o
pranto me consolava.

CAPÍTULO VII - O canto dos fiéis - Os corpos de São Gervásio e de São
Protásio

Não havia muito tempo que a igreja de Milão começara a adotar essa prática
consoladora e edificante do canto, com grande regozijo dos fiéis, que uniam em um
só coro as vozes e o coração. Havia um ano, ou pouco mais, que Justina, mãe do
imperador Valentiniano, ainda menor, seduzida pelos arianos, perseguia, por
causa de sua heresia, teu servo Ambrósio. O povo fiel passava as noites na igreja,
disposto a morrer com seu bispo.

Nesse meio estava minha mãe, tua serva, uma das primeiras no zelo dessas
inquietações e vigílias, não vivendo senão de orações. Nós, apensar de ainda frios,
sem o calor de teu Espírito, nos sentíamos comovidos pela perturbação e
consternação da cidade.

Foi então que se fixou o costume de cantar hinos e salmos, como se faz no Oriente,
para que os fiéis não se consumissem no tédio e na tristeza. Desde esse dia esse
costume manteve-se, e no resto do mundo, quase todas as tuas comunidades de
fiéis passaram a adotá-lo.

Foi também nessa época que revelaste em sonho ao bispo Ambrósio o lugar em

que jaziam ocultos os corpos dos mártires Gervásio e Protásio, que durante muito
tempo, conservastes intactos no tesouro de teus segredos, a fim de revelá-los no
momento oportuno para refrear o furor de uma mulher, embora imperatriz.

Com efeito, depois de descobertos e desenterrados, ao serem transladados com as
honras convenientes para a basílica ambrosiana, alguns possessos, atormentados
pelos espíritos imundos, foram curados, conforme confissão dos próprios demônios.
Também um cidadão, cego havia muitos anos, e muito conhecido na cidade,
perguntou a razão daquele alvoroço e alegria populares; informado, pediu a seu
guia que o levasse até ás relíquias. Lá chegando, obteve permissão para tocar com
um lenço o ataúde de teus santos, cuja morte havia sido preciosa a teus olhos.
Feito isto, aplicou o lenço aos olhos, que imediatamente se abriram.

A noticia do milagre logo se propagou, e imediatamente se ouviram teus louvores
com fervor, e o coração de tua inimiga, sem se converter à tua fé, reprimiu
contudo o furor da perseguição.

Graças te dou, meu Deus! De onde e para onde guiaste minha memória, para que
também te confessasse estes acontecimentos que, embora grandes, eu já havia
esquecido e omitido?

Todavia, quando assim exalava o odor de teus perfumes, eu ainda não corria atrás
de ti.

Eis que redobrava minhas lágrimas ao ouvir teus cânticos. Outrora eu suspirava
por ti, e enfim respirava o pouco ar de uma choça de feno (alusão ao profeta
Isaias,40,6)

CAPÍTULO VIII - Mônica

Tu, que fazes morar na mesma casa os que têm coração unânime, trouxeste pra
junto de nós Evódio, jovem de nosso município que, militando como agente de
negócios do imperador, se convertera e recebera o batismo antes de nós,
abandonara a milícia do século, alistando-se na tua.

Estávamos juntos, e juntos pensávamos viver nosso santo propósito. Buscávamos
um lugar onde nos pudéssemos instalar mais comodamente para te servir e juntos
rumávamos para a África quando, chegando a Óstia, na foz do Tibre, faleceu minha
mãe.

Muitas coisas passo em silêncio, porque tenho pressa. Recebe minhas confissões e
ações de graças, meu Deus, pelas inúmeras bondades que não menciono aqui. Mas
não quero calar o que brota de minha alma a respeito desta tua serva, que me
gerou na carne para a luz temporal, e no coração para a luz eterna. Não referirei
suas qualidades, nem a si mesma se havia educado.

Foste tu quem a educaste, nem seu pai, nem sua mãe sabiam o que viriam a ser
aquela a quem geraram. A disciplina de teu Cristo, a doutrina de teu Filho único
educaram-na em teu temor em uma família fiel, digno membro de tua Igreja.

Nem ela mesma enaltecia o zelo da mãe em educá-la, quanto o de uma velha
serva, que carregara seu pai quando menino, como hoje as meninas maiores
costumam carregar as crianças, às costas.

Estas recordações, sua idade avançada e hábitos exemplares lhe asseguravam
naquela casa cristã o respeito de seus amos. Ela própria cuidava solicitamente das
meninas que lhe haviam sido confiadas, ora repreendendo-as quando fosse o caso,
com santa e enérgica severidade, ora instruindo-as com discreta prudência. Afora
do horário em que tomavam uma sóbria refeição à mesa de seus pais, ainda que
tivessem muita sede, nem água permitia que elas bebessem, precavendo com isso
um mau costume. E acrescentava este sábio aviso: "Agora bebeis água, porque
não tendes como beber vinho; mas quando estiverdes casadas, donas da despensa
e da adega, deixareis a água, mas continuará o hábito de beber".

E unindo assim o conselho à autoridade, refreava os apetites daquela tenra idade,
e acostumava aquelas jovens à temperança, para que não tivesse desejo do que
não lhes convinha.

No entanto – como tua serva me contou a mim, seu filho – insinuou-se nela certo
gosto pelo vinho. Julgando-a menina sóbria, seus pais a escolheram, como era
costume, para tirar o vinho do tonel. Mergulhava a caneca pela parte superior do
recipiente e, antes de passar o vinho para a garrafa, sorvia com a ponta dos lábios
um pouquinho; era-lhe impossível beber mais, porque o vinho lhe repugnava. Não
fazia isto movida pela inclinação à embriaguez, mas pela exuberância juvenil, que
se manifestava em movimentos, em brincadeiras, e que na meninice costumam ser
reprimidos pela autoridade severa dos mais velhos. Mas, acrescentando todos os
dias uns goles àqueles goles – pois quem descuida das coisas pequenas pouco a
pouco cai nas maiores – acostumou-se a esvaziar avidamente copos quase cheios
de vinho puro.

Onde estava então a prudente anciã, e sua severa proibição? Mas que remédio
curaria um mal oculto se tua medicina, Senhor, não velasse sobre nós? Na
ausência do pai, da mãe e das amas, estavas lá tu que nos criaste, que nos chamas,
e que por meio dos que nos educam fazes o bem para a salvação das almas. Que
fizeste então, meu Deus? Como a socorreste? Como a curaste? Fizeste sair de
outra pessoa, segundo tuas secretas providências, um sarcasmo duro e pungente
como ferro medicinal, para curar de um só golpe aquela gangrena.

A criada que costumava acompanhá-la à adega, discutindo com sua jovem senhora,
como às vezes acontece, estando as duas a sós, lançou-lhe em rosto sua
intemperança, chamando-a insultuosamente de bêbada. Ferida por esse sarcasmo,
a jovem reconheceu a fealdade daquele hábito, reprovou-o, e no mesmo instante o
abandonou.

Assim como muitas vezes as lisonjas dos amigos nos pervertem, assim os insultos
dos inimigos nos corrigem. Mas não é o bem que nos fazem por seu intermédio que
retribuis, mas a intenção com que o fazem. Aquela criada zangada pretendia
ofender sua jovem senhora, e não corrigi-la; e se o fez às escondidas foi só por
força da circunstância do lugar e tempo, ou para que não viesse a sofrer por
denunciar tão tarde o costume de sua senhora.

Mas, tu, Senhor, governador do céu e da terra, que desvias para teus desígnios as
águas da torrente e regulas o curso turbulento dos séculos, curaste a loucura de
uma alma com a insânia de outra. Por isso ninguém, ao considerar o caso, atribua
a seu poder pessoal o mérito de ter corrigido com suas palavras a alguém cuja
emenda deseja conseguir.

CAPÍTULO IX - Esposa e mãe exemplar

Educada assim na modéstia e na temperança, mais sujeita a seus pais pela tua
mão que por seus pais a ti, logo que chegou à idade núbil, foi dada em matrimônio
a um homem, a quem serviu como a senhor. Procurou conquistá-lo para ti,
falando0lhe de ti com suas virtudes, com as quais tu a tornavas bela e
reverentemente amável e admirável ante seus olhos. Suportou suas infidelidades
conjugais com tanta paciência, que jamais teve com ele a menor briga por isso,
pois esperava que tua misericórdia viria sobre ele, e que lhe trouxesse, com a fé, a
castidade.

Seu marido, se de um lado era sumamente afetuoso, por outro era extremamente

colérico, mas ela tinha o cuidado de não contrariá-lo nem com ações, nem com
palavras, se o visse irado.

Logo que o via calmo e sossegado, oportunamente, mostrava-lhe o que havia feito,
se por acaso se tivesse irritado desmedidamente.

Muitas senhoras, embora tendo maridos mais calmos, traziam no rosto as marcas
das pancadas que as desfiguravam. Conversando entre amigas, lamentavam a
conduta dos maridos.

Minha mãe reprovava-lhes a língua e, como por gracejo, lembrava-lhes que, desde
a leitura do contrato matrimonial, deviam considerá-lo como documento que as
tornava servas, e portanto proibia-lhes de serem altivas com seus senhores. Essas
senhoras, que conheciam o mau gênio de seu marido, admiravam-se de que jamais
ninguém tivesse ouvido ou percebido qualquer indício que Patrício maltratasse a
mulher, nem sequer que algum dia tivessem brigado por questões domésticas. E
como lhe pedissem confidencialmente a razão disso, minha mãe expunha-lhes seu
agir habitual, como acima mencionei. Algumas, após experimentar, punham-no em
prática e davam-lhe graças; as que não a imitavam continuavam a sofrer
humilhações e violências.

Sua sogra, a princípio irritara-se contra ela por causa dos mexericos de criadas
malévolas.

Mas conseguiu conquistá-la com respeito, contínua tolerância e mansidão, que ela
mesma, espontaneamente, denunciou ao filho as línguas intrigantes das criadas,
que perturbavam a paz doméstica entre ela e a nora, e pediu que as castigasse.
Ele, em obediência à mãe, para manter a disciplina familiar e a harmonia entre os
seus, mandou açoitar as acusadas, segundo a vontade da acusante; e esta
prometeu-lhes ainda que esse era o prêmio que devia esperar quem, querendo
agradá-la, lhe dissesse mal da nora. E ninguém mais se atreveu a fazê-lo, e
viveram as duas em doce e memorável harmonia.

A esta tua boa serva, em cujo seio me criaste, ó meu deus, minha misericórdia,
dotaste de outra grande virtude: a de intervir como pacificadora, sempre que
podia, nas discórdias e querelas. Daquilo que ouvia de queixas amargas, vomitadas
com animosidade ressentida, quando na presença de uma amiga os ódios mal
digeridos se desafogam em amargas confidencias a respeito de uma amiga
ausente, ela nada referia uma à outra, senão o que poderia servir para a

reconciliação.

Este dom me pareceria de pouca monta se uma triste experiência não me
houvesse mostrado grande número de pessoas – por não sei que horrível contagio
de pecados, espalhados por toda parte – que não só revelam as palavras pesadas
de inimigos irados, mas que ainda acrescentam coisas que não foram ditas. Quem
fosse realmente humano, deveria ter em pouca conta ou não excitar nem fomentar
as inimizades dos homens, e melhor ainda procurar extingui-las com boas palavras.

Assim era minha mãe, ensinada por ti, mestre interior, na escola de seu coração.

Por fim, conquistou para ti o seu marido, já no fim da vida, não tendo que
lamentar no cristão o que havia tolerado no infiel.

Ela era verdadeiramente a serva de teus servos, e todos os que a conheciam te
louvavam, honravam, te amavam em sua pessoa, porque percebiam tua presença
em seu coração, confirmada pelos frutos de uma vida santa.

Havia sido mulher de um só homem, cumprira sua dívida de gratidão com os pais,
governara sua casa piedosamente e dava testemunho com suas boas obras.
Educara os filhos, dando-os à luz tantas vezes quantas os via apartarem-se de ti.

E de nós, que nos chamamos teus servos por liberalidade tua, nós que vivemos em
comum na graça de teu batismo, antes de adormecer em tua paz, ela cuidou de
nós como se todos fôssemos seus filhos, e de tal modo nos serviu como se fosse
filha de cada um de nós.

CAPÍTULO X - O êxtase de Óstia

Estando já próximo o dia em que teria de partir desta vida – que tu, Senhor,
conhecias, e nós ignorávamos – sucedeu, creio, por disposição de teus ocultos
desígnios – que nos encontrássemos sós, eu e ela, apoiados em uma janela que
dava para o jardim interior da casa em que morávamos. Era em Óstia, sobre a foz
do Tibre, onde, longe da multidão, depois do cansaço de uma longa viagem,
recobrávamos forças para a travessia do mar.

Ali, sozinhos, conversávamos com grande doçura, esquecendo o passado, ocupados
apenas no futuro, indagávamos juntos, na presença da Verdade, que és tu, qual

seria a vida eterna dos santos, que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram,
nem o coração do homem pode conceber. Abríamos ansiosos os lábios de nosso
coração ao jorro celeste de tua fonte – da fonte da vida que está em ti – para que,
banhados por ela, pudéssemos de algum modo meditar sobre coisa tão
transcendente.

Nossa conversa chegou à conclusão que nenhum prazer dos sentidos carnais, por
maior que seja, e por mais brilhante e maior que seja a luz material que o cerca,
não parece digno de ser comparado à felicidade daquela vida em ti. Elevando
nosso sentimento para mais alto, mais ardentemente em direção ao próprio Ser,
percorremos uma a uma todas as coisas corporais, até o próprio céu, de onde o sol,
a luz e as estrelas iluminam a terra.

E subimos ainda mais em espírito, meditando, celebrando e admirando tuas obras,
e chegamos até o íntimo de nossas almas. E fomos além delas, para alcançar a
região da abundância inesgotável, onde apascentas eternamente a Israel com o
alimento da verdade, lá onde a vida é a própria Sabedoria, por quem foram
criadas todas as coisas, as que já existem e as vindouras, sem que ela própria se
crie a si mesma, pois existe agora como antes existiu e como sempre existirá.
Antes, nela não há nem passado, nem futuro: ela apenas é, porque é eterna; mas
ter sido ou haver de ser não é próprio do ser eterno.

E enquanto assim falávamos dessa Sabedoria e por ela suspirávamos, chegamos a
tocá-la momentaneamente com supremo ímpeto de nosso coração; e, suspirando,
deixando ali atadas as primícias de nosso espírito, e voltamos ao ruído vazio de
nossos lábios, onde nasce e morre a palavra humana, em nada semelhante a teu
Verbo, Senhor nosso, que subsiste em si sem envelhecer, renovando todas as
coisas!

E dizíamos: Suponhamos que se calasse o tumulto da carne, as imagens da terra,
da água, do ar e até dos céus; e que a própria alma se calasse, e se elevasse sobre
si mesma não pensando mais em si; se calassem os sonhos e revelações
imaginarias e, por fim, se calasse por completo toda língua, todo sinal, e tudo o
que é fugaz – uma vez que todas as coisas dizem a quem sabe ouvi-las: Não fizemos
a nós mesmas; fez-nos o que permanece eternamente – se, dito isto, todas se
calassem, atentas a seu Criador; e se só ele falasse, não por suas obras, mas por si
mesmo, de modo que ouvíssemos sua palavra, não por uma língua material, nem
pela voz de um anjo, nem pelo ruído do trovão, nem por parábolas enigmáticas,
mas o ouvíssemos a ele mesmo, a quem amamos nas suas criaturas, mas sem o
intermédio delas, como agora acabamos de experimentar, atingindo em um

relance a eterna Sabedoria, que permanece imutável sobre toda realidade, e
supondo que essa visão se prolongasse, que todas as outras visões cessassem, e
unicamente esta arrebatasse a alma de seu contemplador, e a absorvesse e
abismasse em íntimas delícias, de modo que a vida eterna seja semelhante a este
momento de intuição que nos fez suspirar, não seria isto a realização do entrar em
gozo de teu Senhor? Mas quando se dará isto? Por acaso quando todos
ressuscitarmos? Mas então não seremos todos transformados?

Tais coisas dizíamos, embora não deste modo, nem com estas palavras. Mas tu
sabes, Senhor, que naquele dia, à medida que falávamos dessas coisas, quanto nos
parecia vil este mundo, com todos os seus deleites – disse-me minha mãe: "Filho,
quanto a mim, já nada me atrai nesta vida. Não sei o que faço ainda aqui, nem por
que ainda estou aqui, se já se desvaneceram pra mim todas as esperanças do
mundo. Uma só coisa me fazia desejar viver um pouco mais, e era ver-te católico
antes de morrer. Deus me concedeu esta graça superabundantemente, pois te
vejo desprezar a felicidade terrena para servi-lo. Que faço, pois, aqui?"

CAPÍTULO XI - A morte de Mônica

Não me lembro bem o que respondi a tais palavras. Mas cerca de cinco dias mais
tarde, ou pouco mais, caiu de cama, com febre. Durante a doença, teve um dia um
desmaio, ficando por pouco tempo sem sentidos e sem reconhecer os presentes.
Acudimos de imediato, e logo voltou a si. Vendo-nos a seu lado, a mim e a meu
irmão (chamava-se Navígio, e era o mais velho dos irmãos), perguntou-nos, como
quem procura algo: "Onde estava eu?" – Depois, vendo-nos atônitos de tristeza,
nos disse: "Sepultareis aqui a vossa mãe" – Eu me calava, retendo as lágrimas,
mas meu irmão disse umas palavras em que desejava vê-la morrer na pátria e não
em terras distantes. Ao ouvi-lo, minha mãe repreendeu-o com o olhar, e aflita por
ter pensado em tais coisas; depois, olhando para mim, disse: "Vê o que ele diz" – E
depois para ambos: "Sepultem este corpo em qualquer lugar, e não se preocupem
mais com ele. Peço apenas que se lembrem de mim diante do altar do Senhor,
onde quer que estejam". E tendo-nos exposto seu pensamento com as palavras que
pôde, calou-se; sua moléstia agravou-se e suas dores aumentaram.

Mas eu, ó Deus invisível, meditando nos dons que infundes no coração de teus
fiéis, e nas admiráveis colheitas que deles brotam, alegrava-me e te dava graças.
Lembrava-me do grande cuidado que sempre demonstrara acerca de sua
sepultura, adquirida e preparada junto ao corpo do marido. Tendo vivido com ele
na maior concórdia, assim também queria – visão própria da alma humana incapaz
das coisas divinas – ter a felicidade de que os homens recordassem que, depois de

sua viagem para além-mar, lhe fora concedida a graça de a mesma terra cobrir o
pó de ambos os cônjuges.

Quando esta vaidade havia deixado de existir em seu coração, pela plenitude de
tua bondade, eu não o sabia, mas alegrava-me com admiração ao ouvi-la falar
assim. No entanto, naquela conversa à janela quando me disse: "Que faço eu
aqui?" – já estava patente que não mais desejava morrer na pátria.

Soube também depois que em Óstia, estando eu ausente, falou certo dia com
alguns amigos meus, com maternal confiança, sobre o desprezo desta vida e o
benefício da morte. Eles, maravilhados da coragem dessa mulher – dádiva tua –
perguntaram-lhe se não temia deixar o corpo tão longe da pátria. "Nada está
longe para Deus – disse ela – nem preciso temer que ele ignore, no fim dos
tempos, o lugar onde me ressuscitará".

Por fim, nove dias após cair enferma, aos cinqüenta e seis anos de idade e aos
trinta e três da minha, aquela alma santa e piedosa libertou-se do corpo.

CAPÍTULO XII - As lágrimas negadas

Fechei-lhe os olhos, e uma tristeza imensa invadiu-me o coração, e já me ia
desfazer em lágrimas; ao mesmo tempo, meus olhos, obedecendo ao enérgico
poder de minha vontade, fechavam sua fonte até secá-la. Como foi angustiosa essa
luta! E foi quando ela deu o último suspiro, que o meu filho Adeodato rebentou em
soluços; mas, instado por todos nós, se calou.

Deste modo sua voz juvenil, voz do coração, calou em mim essa espécie de emoção
pueril que me provocava o pranto. De fato, não julgávamos correto celebrar
aquele funeral com lágrimas e choro, pois tais demonstrações deploram
geralmente o triste destino dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de
minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto
estávamos certos pelo testemunho de seus costumes, por sua fé sincera e outras
razões inequívocas.

Que era então o que tanto me pungia, senão a ferida recente causada pelo
rompimento repentino de nosso dulcíssimo e querido convívio?

Era para mim grande consolação o testemunho que dera de mim, quando nesta
última enfermidade, respondendo com ternura às minhas atenções, chamava-me

de bom filho, e recordava com grande afeto o nunca ter ouvido de minha boca uma
só palavra dura ou injuriosa contra ela. Entretanto, o que era, meu Deus e meu
Criador, a solicitude que eu lhe tributava, em comparação com o devotamento
servil que por mim suportava? Por me ver privado de tão grande consolo, sentia a
alma ferida e minha vida, que era uma só com sua, estava despedaçada.

Reprimido o pranto do Adeodato, Evódio tomou o saltério e começou a cantar um
salmo, ao que todos respondíamos "Misericórdia e justiça te cantarei Senhor".
Conhecia a notícia de sua morte, acorreram muitos irmãos e mulheres piedosas e,
enquanto os encarregados dos funerais faziam seu ofício conforme o hábito, retirei-
me para um lugar conveniente, junto com os amigos que julgavam oportuno não
me deixar só. Falava sobre assuntos próprios das circunstâncias, e com o lenitivo
da verdade mitigava meu sofrimento, só conhecido por ti. Eles o ignoravam e me
ouviam atentamente, julgando que não sofria nenhuma dor.

Mas eu, pertinho de teus ouvidos, onde ninguém me podia escutar, censurava a
minha sensibilidade e fraqueza e reprimia a onda de tristeza que me invadia; esta
cedia por uns instantes, e novamente me arrastava com seu ímpeto, embora não
chegasse a derramar lágrimas ou alterar a face. Somente eu sabia quão oprimido
estava meu coração! E como me desgostava profundamente que as vicissitudes
humanas tivessem tanto poder sobre mim, que são inelutáveis pela ordem natural
e a sorte de nossa condição; minha própria dor causava-me outra dor, e me afligia
com dupla tristeza.

Quando o corpo foi levado à sepultura, fui e voltei sem derramar uma lagrima.
Nem mesmo nas orações que te fizemos, quando oferecemos o sacrifício de nossa
redenção por intenção da morta, cujo cadáver jazia junto ao sepulcro antes de ser
inumado, como ali é costume, nem mesmo nessas orações, chorei. Mas durante
todo o dia andei oprimido por grande tristeza interior; pedia-te como podia, com a
mente perturbada, que aliviasses minha dor. Mas não me atendias, sem dúvida
para que fixasse, bem na memória, ao menos por esta única experiência, como são
poderosos os laços do costume, mesmo em uma alma que já não se alimentava de
palavras enganadoras.

Lembrei então a ir aos banhos, por ter ouvido dizer que a palavra banho ( bálneo,
em latim) vinha dos gregos, que o chamaram balanéion (tirar fora a ania), porque
o banho aliviava as tristezas da alma. Mas eu o confesso à tua misericórdia – ó Pai
dos órfãos: depois do banho fiquei como estava antes, porque meu coração não
expulsou o amargor de sua tristeza.

Depois adormeci. Ao despertar, minha dor estava mitigada; só, em meu leito,
lembrei-me dos versos cheios de verdade de teu Ambrósio. Porque, na verdade

Tu és Deus, criador de quanto existe,

De todo o mundo supremo governante,

Que o dia vestes com tua luz brilhante,

E de sonhos gratos a noite triste

A fim de que os membros cansados

O descanso ao trabalho prepare

E as mentes cansadas, repare

E os peitos de pena oprimidos

Depois, pouco a pouco voltava aos sentimentos de antes sobre tua serva.
Recordava de sua piedade para contigo, de sua solicitude e paciência comigo, da
qual subitamente me via privado. E senti consolação em chorar diante de ti, por
causa dela e por ela, e por minha causa e por mim. E deixei que as lágrimas
reprimidas corressem à vontade, estendendo-as como um leito reparador sob meu
coração. Teus ouvidos eram os que ali me escutavam, e não os de nenhum homem,
que pudesse interpretar com soberba meu pranto.

E agora, Senhor, to confesso nestas linhas: leia-o quem quiser, interprete-o como
quiser. E se alguém julgar que pequei nessas lágrimas, que derramei sobre minha
mãe por alguns instantes, por minha mãe então morta a meus olhos, ela que me
havia chorado tantos anos para que eu vivesse aos teus olhos, não se ria. Antes, é
grande sua caridade, chore por meus pecados diante de ti, Pai de todos os irmãos
de teu Cristo!

CAPÍTULO XIII - Preces pela mãe morta

Agora, com a ferida do meu coração já sanada, na qual se podia censurar um afeto

muito carnal, derramo diante de ti, meu Deus, por tua serva, outra espécie de
lágrimas, bem diferentes, aquelas que brotam do espírito comovido à vista dos
perigos que corre toda alma que morre em Adão. É verdade que minha mãe,
vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal
modo, que teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes. Contudo, não me
atrevo a dizer que desde que a regeneraste no batismo não saiu de sua boca
nenhuma palavra contrária à tua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse:
"Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da geena". Ai da vida dos
homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia! Mas
porque não examinas nossos pecados com rigor, confiadamente esperamos tomar
lugar a teu lado. Quem enumera diante de ti seus próprios méritos, que mais
expõe senão teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens!

Se quem se glorifica se glorificasse no Senhor!

Por isso, Deus de meu coração, minha vida e minha gloria, esquecendo por um
momento as boas ações de minha mãe, pelas quais te dou graças com alegria,
peço-te agora perdão por seus pecados. Ouve-me pelos méritos daquele que é o
médico de nossas feridas, que foi suspenso do madeiro da cruz e que, sentado
agora à tua direita, intercede por nós junto a ti. Eu sei que ela sempre agiu com
misericórdia, e que perdoou de coração todas as faltas contra ela cometidas;
perdoa-lhe também suas dívidas, se algumas contraiu em tantos anos que se
seguiram ao batismo. Perdoa-lhe, Senhor, perdoa-lhe, te suplico, e não entres em
juízo com ela.

Triunfe a misericórdia sobre a justiça pois as tuas são palavras de verdade, e
prometeste misericórdia aos misericordiosos. Se alguém o foi, deve-o à tua graça,
tu que tens compaixão de quem te apraz, e usas de misericórdia com quem queres
ser misericordioso.

Creio que já fizeste o que te suplico, mas desejo, Senhor, que acolhas os desejos de
minha boca. Estando iminente o dia de sua morte, ela não desejou sepultar o
corpo com grande pompa, ou que fosse embalsamado com preciosos aromas, nem
desejou um rico monumento, nem se preocupou em tê-lo na pátria. Nada disto nos
pediu, mas desejou apenas que nos lembrássemos dela ante do teu altar, onde
servira todos os dias de sua vida, sabendo que nele se oferece a vítima santa, com
cujo sangue se destrói o libelo de nossa condenação, e pelo qual vencemos o
inimigo que conta nossas faltas e procura com que nos acusar, nada achando
naquele que é nossa vitória.

Quem poderá devolver-lhe seu sangue inocente? Quem poderá restituir-lhe o
preço pago por nosso resgate, para nos arrancar ao inimigo? A este mistério de
nossa redenção ligou tua serva sua alma com o vínculo da fé. Que ninguém a
afaste de tua proteção. Que entre ela e ti não se interponha, nem pela força, nem
pelo engano, o leão ou o dragão. Ela não responderá que nada deve, para não ser
convencida e arrebatada pelo astuto acusador, responderá que suas dívidas lhe
foram perdoadas por aquele a quem ninguém pode restituir o que por nós pagou
sem nada dever.

Que ela repouse em paz com seu marido, antes e depois do qual não teve outro; a
quem serviu, com uma paciência cujo fruto te oferecia, para o ganhar também
para ti. Mas inspira, meu Senhor e meu Deus, inspira a teus servos, meus irmãos,
a teus filhos, meus senhores, a quem sirvo de coração, com a palavra e com a
pena, para que, ao lerem estas páginas, diante do teu altar lembrem de Mônica,
tua serva, e de Patrício, outrora seu esposo, pelos quais me introduziste
misteriosamente nesta vida. Que lembrem com piedoso afeto daqueles que foram
meus pais nesta vida transitória, e meus irmãos em ti, ó Pai, na Igreja Católica,
nossa mãe, e meus concidadãos na eterna Jerusalém, pela qual suspira teu povo
em sua peregrinação desde a saída até o regresso. Assim, graças às minhas
confissões, o último desejo de Mônica será mais amplamente satisfeito com muitas
orações do que só pelas minhas.

LIVRO DÉCIMO

CAPÍTULO I - Finalidade do livro

Ó Deus, faz que eu te conheça, meu conhecedor, que eu te conheça como de ti sou
conhecido. Virtude de minha alma, penetra-a, assemelha-a a ti, para que a tenhas
e possuas sem mancha nem ruga.

Esta é a esperança com que falo, e nesta esperança me alegro, quando gozo de sã
alegria. Tudo o mais desta vida, tanto menos se há de chorar quanto mais o
choramos, e tanto mais teríamos que chorar quanto menos o choramos.

Mas tu amaste a verdade, porque quem a pratica alcança a luz. Eu desejo praticá-
la em meu coração, diante de ti, por esta minha confissão, e diante de muitas
testemunhas por meus escritos.

CAPÍTULO II - O que é confessar a Deus

E, para ti, Senhor, que conheces o abismo da consciência humana, que poderia
haver de oculto em mim, ainda que não to quisesse confessar?

Poderia apenas esconder-te de mim, e nunca me esconder de ti. Agora que meus
gemidos dão testemunho do desagrado que sinto por mim, tu me iluminas e me
agradas, e és amado e desejado a ponto de eu me envergonhar de mim. Renuncio
a mim para te escolher, e não quero agradar a ti ou a mim senão por teu amor.

Portanto, assim como sou, Senhor, tu me conheces. Já te disse com que escopo me
vou confessando a ti. Faço esta confissão não com palavras e vozes do corpo, mas
com as palavras da alma e o brado da inteligência, que teus ouvidos conhecem.
Quando sou mau, confessar-me ai é o mesmo que desprezar a mim próprio; quando
sou bom, é apenas nada atribuir a mim mesmo.

Porque tu, Senhor, abençoas o justo, mas antes tornas justo ao pecador.

Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a
boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro
já tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses
dito.

CAPÍTULO III - Por que se confessar aos homens?

Que tenho eu que ver com os homens, para que me ouçam as confissões, como se
eles pudessem curar as minhas enfermidades? São curiosos para conhecer a vida
alheia, mas indolentes para corrigir a própria! Por que desejam ouvir de mim
quem sou, quando não se importam em saber de ti o que são? E como podem
saber, ao me ouvirem falar de mim mesmo, se lhes digo a verdade, uma vez que
homem algum sabe o que se passa no outro, senão o espírito do homem, que nele,
habita? Mas, se ouvissem a ti falar deles, não poderiam dizer: "O

Senhor mente". E o que é ouvir-te falar de si, senão conhecerem-se a si mesmos? E
quem, conhecendo a si mesmo, pode dizer "é falso", sem mentir?

A caridade crê em tudo – pelo menos entre corações que ela unifica em si por seus
laços – por isso também eu, Senhor, me confesso a ti para que me ouçam os
homens. A eles não posso provar que falo a verdade; mas crêem-me aqueles cujos
ouvidos a caridade abre para mim.

Mas tu, Médico da minha alma, faze-me ver claramente a utilidade de meu
propósito. As confissões de meus pecados passados – que já perdoaste e
esqueceste, para me fazer feliz em ti, transformando minha alma com tua fé e teu
sacramento – levam o coração dos que as lêem e ouvem a não dormir no
desespero dizendo: "Não posso". Mas despertem para o amor pela tua
misericórdia e para a doçura de tua graça, que fortalece o fraco e este se dá conta
de sua debilidade.

Os bons, por sua vez, se agradam em ouvir os pecados passados daqueles que já
não sofrem. Agrada-lhes, não por serem pecados, mas porque o foram, e agora já
não o são.

Mas, Senhor meu – a quem todos os dias se confessa minha consciência, agora
mais confiante com a esperança na tua misericórdia que na sua inocência – que
proveito haverá em confessar aos homens, na tua presença, neste livro, não o que
fui, mas o que sou agora? Sobre a confissão do passado, e dos seus eventuais
proveitos, já falei acima.

Há muitos porém, quer me conheçam, quer não, que desejam saber quem sou
agora, neste momento em que escrevo as Confissões. Já ouviram de mim ou de
outros alguma coisa a meu respeito, mas seu ouvido não ouve meu coração, onde

eu sou o que sou. Querem, certamente, saber por confissão minha o que sou no
íntimo, lá onde não podem penetrar com a vista, com o ouvido, ou com a mente.
Estão dispostos a acreditar em mim. Mas poderão igualmente estar certos de me
conhecer? A caridade, que os torna bons, lhes diz que eu não minto quando
confesso tais coisas de mim. É ela que os faz acreditarem em mim.

CAPÍTULO IV - O fruto das confissões

Mas, com que propósito desejam ouvir-me? Desejarão talvez congratular-me
comigo, ouvindo quanto me aproximei de ti por tua graça, e orar por mim, ao
ouvir quanto me retardou o peso de minhas culpas? A estes mostrarei quem sou;
já não é pequeno fruto, Senhor meu Deus, que muitos te dêem graças por mim, e
que muitos te roguem por mim. Possa o coração de meus irmãos amar em mim o
que ensinas a amar, e, deplorar em mim o que ensinas a aborrecer! Mas que
brotem tais sentimentos em uma alma irmã, e não em almas estranhas, ou nesses
filhos espúrios, cuja boca fala vaidade, e cuja direita é a direita da iniqüidade, que
o faça uma alma fraterna que se alegra por mim quando me aprova, e quando me
reprova se aflige por mim, porque quer me aprove, quer não, me ama.

É a esses que me revelarei. Que eles respirem diante de minhas boas ações, e
suspirem à vista de meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; as
más são meus pecados. As obras boas são tuas obras e teus dons; as más são meus
pecados, objeto de teus juízos.

Respirem pelo bem e suspirem pelo mal, e que subam à tua presença hinos e
lágrimas desses corações fraternos, que são os teus turíbulos.

E tu, Senhor, que te alegras com a fragrância de teu santo templo, tem piedade de
mim, segundo tua grande misericórdia por causa de teu nome, e tu, que jamais
abandonas uma obra começada, aperfeiçoa em mim o que há de incompleto.

Este poderá ser fruto de minhas confissões, não do que fui, mas do que sou. Farei
minha confissão não apenas a ti, com íntima alegria mesclada de temor, e com
secreta tristeza mesclada de esperança, mas também para os homens, que
compartilham minha alegria e de minha mortalidade, meus concidadãos e
peregrinos como eu, quer os que me precederam, como os que me seguem ou me
acompanham no caminho da vida. Estes são teus servos, meus irmãos, que tu
quiseste fossem filhos teus e meus senhores, e a quem me mandaste servir se
quisesse viver contigo e de ti.

Mas este preceito teria sido de pouco valor para mim, se teu Verbo o tivesse
proferido apenas com palavras, e não tivesse mostrado o caminho com a obra. Eis
que eu o imito pela ação e pela palavras, e o faço à sombra de tuas asas, o perigo
seria grande demais, se minha alma aí não se abrigasse, e se minha fraqueza não
te fosse conhecida.

Sou como uma criança, mas meu Pai vive sempre, e é meu tutor idôneo; ele é a um
tempo o que me gerou e o que me protege. Tu és todo o meu bem, tu, onipotente,
que estás comigo mesmo antes de eu estar contigo.

Revelarei pois, a estes, a quem me mandas servir, não como fui, mas como já sou
agora, e como ainda não sou. Mas não quero julgar-me a mim mesmo. Assim é que
peço para ser ouvido.

CAPÍTULO V - A ignorância do homem

És tu, Senhor, quem me julga, porque ninguém conhece o que se passa no homem,
a não ser o seu espírito que nele está, todavia há no homem coisas que até o
espírito que nele habita ignora. Mas tu, Senhor, que o criaste, conheces todas as
coisas. E eu, embora diante de ti me despreze e me considere como terra e cinza,
sei algo de ti que ignoro de mim mesmo. É certo que agora vemos por espelho, em
enigmas, e não face a face. Por isso, enquanto peregrino longe de ti, estou mais
presente a mim do que a ti. Sei que em nada podes ser prejudicado, mas ignoro a
que tentações posso resistir e a quais não posso. Todavia há esperança, pois és
fiel, e não permites que sejamos tentados além de nossas forças; com a tentação,
dás também meios para suportar, para que possamos resistir.

Confessarei, portanto, o que sei de mim, e também o que de mim ignoro, porque o
que sei de mim só o sei porque me iluminas, e o que de mim ignoro continuarei
ignorando até que minhas trevas se transformem em meio-dia, em tua presença.

CAPÍTULO VI - Quem é Deus?

O que sei, Senhor, sem sombra de dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com
tua palavra, e te amei. O céu, a terra e tudo quanto neles existe, de todas as
partes me dizem que te ame; nem cessam de repeti-lo a todos os homens, para
que não tenham desculpas. Terás compaixão mais profunda de quem já te
compadeceste; e usarás de misericórdia com quem já foste misericordioso. De
outro modo, o céu e a terra cantariam teus louvores a surdos.

Mas, que amo eu, quando te amo? Não amo a beleza do corpo, nem o esplendor
fugaz, nem a claridade da luz, tão cara a estes meus olhos, nem as doces melodias
das mais diversas canções, nem a fragrância de flores, de ungüentos e de aromas,
nem o maná, nem o mel, nem os membros tão afeitos aos amplexos da carne. Nada
disto amo quando amo o meu Deus. E, contudo, amo uma luz, uma voz, um
perfume, um alimento, um abraço de meu homem interior, onde brilha para minha
alma uma luz sem limites, onde ressoam melodias que o tempo não arrebata, onde
exalam perfumes que o vento não dissipa, onde se provam iguarias que o apetite
não diminui, onde se sentem abraços que a saciedade não desfaz. Eis o que amo
quando amo o meu Deus!

Então, o que é Deus? Perguntei à terra, e ela me disse: "Eu não sou Deus". E tudo
o que nela existe me respondeu o mesmo. Perguntei ao mar, aos abismos e aos
répteis viventes, e eles me responderam: "Não somos teu Deus; busca-o acima de
nós". Perguntei aos ventos que sopram; e todo o ar, com seus habitantes, me
disse: "Anaxímenes está enganado eu não sou Deus". Perguntei ao céu, ao sol, à
luz e às estrelas. "Tampouco somos o Deus a quem procuras" – me responderam.

Disse então à todas as coisas que meu corpo percebe: "Dizei-me algo de meu Deus,
já que não sois Deus; dizei-me alguma coisa dele" – e todas exclamaram em coro:
"Ele nos criou" – Minha pergunta era meu olhar, e sua resposta a sua beleza.

Dirigi-me, então, a mim mesmo, e perguntei: "E tu, quem és?" – e respondi: "Um
homem".

Para me servirem, tenho um corpo e uma alma: aquele exterior, esta interior. Por
qual deles deverei perguntar pelo meu Deus, a quem já havia procurado com o
corpo desde a terra até o céu, até onde pude enviar os raios de meu olhar como
mensageiros? Melhor, sem dúvida, é a parte interior de mim mesmo. É a ela que
dirigem suas respostas todos os mensageiros de meu corpo, como a um presidente
ou juiz, respostas do céu, da terra, e de tudo o que existe, e que proclamam: "Não
somos Deus" – e ainda – "Ele nos criou". O homem interior conhece essas coisas
por meio do homem exterior; mas o homem interior, que é a alma, também
conhece essas coisas por meio dos sentidos do corpo.

Interroguei a imensidão do universo acerca de meu Deus, e ele me respondeu:
"Não sou eu, mas foi ele quem me criou".

Mas essa beleza não se manifesta a quantos têm sentidos perfeitos? E por que não

fala a todos a mesma linguagem?

Os animais, pequenos ou grandes, a vêem; mas não podem interrogá-la, porque
não receberam a razão que, como juiz, interprete as mensagens dos sentidos. Os
homens, porém, podem interrogá-la, para que as perfeições invisíveis de Deus se
manifestem pelas suas obras.

Mas o amor às coisas criadas os escraviza, e assim os torna incapazes de julga-las.
Ora, elas só respondem aos que podem julgar-lhes as respostas. Elas não mudam
sua linguagem, isto é, sua beleza, quando um só as vê, e outro as interroga; elas
não lhes aparecem diferentes mas, para uns ficam mudas, enquanto falam a
outros. Ou melhor: eles falam a todos, mas apenas se entendem os que comparam
sua expressão exterior com a verdade interior. De fato a verdade me diz: "Teu
Deus não é nem o céu, nem a terra, nem corpo algum. A natureza das coisas o diz
para quem sabe ver; a matéria é menor em seus elementos que em seu todo. Por
isso, minha alma, digo-te que és superior ao corpo, pois vivificas sua matéria,
dando-lhe vida, como nenhum corpo pode dar a outro corpo. Mas teu Deus é
também para ti a vida de tua vida.

CAPÍTULO VII - Deus e os sentidos

Que amo, então, quando amo a meu Deus? Quem é aquele que está acima da
minha alma? É por minha alma; portanto, que subirei até ele. Hei de sobrepujar a
força que me ata ao corpo, e que enche meu organismo de vida, pois não encontro
nela o meu Deus. Se assim fosse, o cavalo e a mula, que não têm inteligência,
também o encontrariam, porque essa mesma força vivifica seus corpos.

E existe outra força, que não só vivifica, mas que também torna sensível minha
carne que o Senhor me deu, ordenando ao olho que não ouça, e ao ouvido que não
veja, mas àquele que sirva para ver, e a este para ouvir; e que determinou a cada
um dos outros sentidos o respectivo lugar e ofício. É deles que se serve minha
alma para exercer suas diversas funções, permanecendo, contudo, uma só.

Vencerei também essa força, que também a possuem o cavalo e a mula, pois
também eles sentem por meio do corpo.

CAPÍTULO VIII - O milagre da memória

Vencerei então esta força de minha natureza, subindo por degraus até meu

Criador.

Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão os
tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá
também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer
diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e
tudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido no
esquecimento.

Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se
apresentam de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se
devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em
turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: "Não
seremos nós que procuras?" Eu as afasto com a mão do espírito da frente da
memória, até que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista.

Há imagens que acodem à mente facilmente e em seqüência ordenada à medida
que são chamadas, as primeiras cedendo lugar às seguintes, e desaparecem, para
se apresentarem novamente quando eu o quiser. É o que sucede quando conto
alguma coisa de memória.

Ali se conservam também, distintas em espécies, as sensações que aí penetraram
cada qual por sua porta: a luz, as cores, as formas dos corpos, pelos olhos; toda
espécie de sons, pelos ouvidos; todos os odores, pelas narinas; todos os sabores,
pela boca; enfim, pelo tato de todo o corpo, o duro e o brando, o quente e o frio, o
suave e o áspero, o pesado e o leve, quer extrínseco, como intrínseco ao corpo. A
memória armazena tudo isso em seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis
sinuosidades, para lembra-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade. Todas essas
imagens entram na memória por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas.

Todavia, não são as coisas em si que entram na memória, mas as imagens das
coisas sensíveis, que ali ficam à disposição do pensamento que as evoca. Mas quem
poderá explicar como se formaram tais imagens, apesar de se conhecer o sentido
pelo qual foram captadas e escondidas em seu íntimo? Pois, mesmo quando estou
em silêncio e no escuro, imagino, se quiser, as cores, e sei distinguir o branco do
preto, e todas as outras entre si; e isto sem que os sons, mesmo os lembrados,
perturbem minhas imagens visuais, e permanecem como que a parte.

Se decido chama-los, eles se apresentam imediatamente. Mesmo quando minha

língua descansa e minha garganta se cala, canto quanto quero, sem que as
imagens das cores, também presentes, se interponham ou perturbem enquanto
me sirvo do tesouro que me entrou pelos ouvidos.

Do mesmo modo as demais impressões, introduzidas e armazenadas em mim por
meio dos outros sentidos, posso recordar a meu talante; distingo o aroma dos
lírios do das violetas, sem cheirar nenhuma flor; e sem provar nem tocar em nada,
mas apenas com a lembrança, posso preferir o mel ao arrobe e o macio ao áspero.

Tudo isto realizo interiormente, no imenso palácio da memória. Ali eu tenho às
minhas ordens o céu, a terra, o mar, com tudo o que neles pude perceber, com
exceção do que já me esqueci. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de
minhas ações, de seu tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao
praticá-las. Ali encontro a mim mesmo, recordo de mim e de minhas ações, de seu
tempo e lugar, e dos sentimentos que me dominavam ao praticá-las. Ali estão
todas as lembranças do que aprendi, quer pelo testemunho alheio, quer pela
experiência.

Deste mesmo manancial provém as analogias entre fatos de minhas experiências
pessoais, ou em que acreditei baseado nas experiências previas; ligo umas e outras
ao passado, e medito no futuro, nas ações, nos acontecimentos, nas esperanças, e
tudo como se estivesse presente.

"Farei isto ou aquilo" – digo para mim, nesse vasto universo de minha alma,
repleto de imagens de tantas e tão grandes coisas. E disso tiro esta ou aquela
conclusão. "Oh! Se acontecesse isto ou aquilo!" "Queira Deus não aconteça isto ou
aquilo!" isto digo em meu íntimo, e nisso visualizando as imagens das realidades
que exprimo, saídas do mesmo tesouro da memória; sem elas, nada poderia dizer.

Grande é realmente o poder da memória, prodigiosamente grande, meu Deus! É
um santuário amplo e infinito. Quem o pôde sondar até suas profundezas? É um
poder próprio de meu espírito, que pertence à minha natureza; mas eu não sou
capaz de compreender inteiramente o que sou. Será o espírito demasiado estreito
para se conter a si mesmo? Onde, então, está o que ele não pode conter de si?
Estaria fora dele, e não nele? Como então não o contém?

Esta idéia me provoca grande admiração, e me enche de espanto. Viajam os
homens para admirar as alturas dos montes, as grandes ondas do mar, as largas
correntes dos rios, a imensidão do oceano, a órbita dos astros, e se esquecem de si

mesmos! Nem se admiram que eu fale dessas coisas sem vê-las com os olhos;
contudo, eu não as poderia mencionar se esses montes, se essas ondas, esses rios,
esses astros, que eu vi, se esse oceano, no qual acredito pelo testemunho alheio,
eu não os visse na memória em toda sua dimensão, como se estivessem diante de
mim. Mas quando eu os vi com meus olhos, eu não os absorvi; não são as coisas
que se encontram dentro de mim, mas apenas suas imagens. E sei por qual sentido
do corpo recebi a impressão de cada uma delas.

CAPÍTULO IX - A memória intelectual

E não se limita a isto a imensa capacidade de minha memória. Ali estão, como em
um lugar recôndito, que alias, não é um lugar, todas as noções aprendidas das
artes liberais, pelo menos as que ainda não esqueci. Mas, neste caso, não são as
imagens delas que trago em mim, mas as próprias realidades em si. As noções de
literatura, a dialética, as diferentes espécies de questões, tudo o que sei a
respeito desses problemas estão em minha memória, mas não estão ali como a
imagem solta de uma coisa, cuja realidade se deixou fora. Nesse caso seria como
um som que se ouve e passa, como a voz que deixa no ouvido um rastro, que
permite que a lembremos, como se ainda soasse embora já não soe; ou como o
perfume que, ao passar e desvanecer-se no ar, atinge o olfato e grava sua imagem
na memória, imagem que a lembrança reproduz; ou como o alimento, que perde o
sabor no estômago, mas o conserva na memória; ou como um corpo que se sente
pelo tato e que, ausente, é imaginado pela memória. Todas essas realidades não
nos penetram a memória, mas tão somente são captadas as suas imagens com
maravilhosa rapidez, e dispostas, digamos, em compartimentos admiráveis, de
onde são extraídas pelo milagre da lembrança.

CAPÍTULO X - Memória dos sentidos

Ouço dizer que há três gêneros de questões a saber: se uma coisa existe, qual a
sua natureza e qual sua qualidade – retenho a imagem dos sons de que se
compõem estas palavras, e sei que estes atravessaram o ar como ruído, e já não
existem. Mas as realidades significadas por tais palavras, eu jamais atingi com
nenhum sentido do corpo, nem as vi em nenhuma parte fora de meu espírito; o
que gravei na minha memória não são suas imagens, mas as próprias realidades.
Que me digam, se o puderem, por onde entraram em mim! percorro em vão todas
as portas do meu corpo, e não descubro por onde poderiam ter entrado. Com
efeito: os olhos dizem:

"Se são coloridas, fomos nós que as transmitimos." – Os ouvidos dizem: "Se eram

sonoras, foram por nós comunicadas". – As narinas dizem: "Se tinham cheiro,
passaram por aqui". – E o gosto diz: "Se não têm sabor, nada me perguntem". – O
tato declara: "Se não são corpóreas, eu não as toquei, e portanto não poderia
revelá-las"

De onde, então, e por onde entraram em minha memória? Ignoro-o. Aprendi-as
não dando crédito ao testemunho alheio, mas as reconheci em mim e aprovei-as
como verdadeiras; confiei-as a meu espírito como em depósito, de onde poderei
tirá-las quando quiser. Estavam pois ali, antes mesmo que eu as aprendesse, mas
não na memória. E onde estavam então? E porque, ao serem mencionadas, eu as
reconheci e disse: "É assim mesmo, é verdade" – senão porque já estavam em
minha memória? Mas tão escondidas e sepultadas em tão secretos recessos, que
se alguém não as arrancasse dali com suas perguntas, talvez eu nem pudesse
concebê-las.

CAPÍTULO XI - Idéias inatas

Por isso descobrimos que adquirir tais noções – cujas imagens não atingimos por
meio dos sentidos mas que percebemos em nós, sem o auxílio de imagens, tais
como são em si mesmas, nada mais é do que coligir com o pensamento os
elementos esparsos na memória e, pela reflexão, obrigá-los a estarem sempre
disponíveis à memória, onde antes se ocultavam em desordem e abandono, de
modo que se apresentem sem dificuldade ao chamado do nosso espírito. E quantas
noções deste tipo não encerra minha memória, já descobertas e, como disse,
postas como que à mão; eis o que chamamos de "aprender" e "saber". Se porém
deixo de as recordar por uns tempos, de tal modo submergem e se dispersam em
seus profundos esconderijos, que é preciso reuni-las uma segunda vez, como se
fossem novas ( cogente) – pois não têm outra habitação – e juntá-las de novo para
que possam ser objeto do saber; isto é: preciso tirá-las de sua condição de
dispersão e juntá-las novamente. Daí a palavra cogitare, porque cogo e cogito são
como ago e agito, e facio, facito. Contudo, a inteligência reivindicou essa palavra (
cogito) para si, de modo que essa operação de coligir, de reunir no espírito, e não
em outra parte, é propriamente o que se chama pensar ( cogitare).

CAPÍTULO XII - A memória e as matemáticas

A memória guarda também as relações e inumeráveis leis dos números e
dimensões, sendo que nenhuma dessas idéias foi impressa em nós pelos sentidos
do corpo, porque não têm cor, nem som, nem têm cheiro, nem gosto, nem são
tangíveis. Ouço, quando elas se fala, os sons das palavras que as exprimem; mas

uma coisa são os sons, e outra bem diferente são as idéias que elas significam. As
palavras soam de modo diferente em grego e em latim; mas as idéias nem são
gregas, nem latinas, nem de nenhuma outra língua.

Vi linhas traçadas por artistas, finas como um fio de aranha. Mas as linhas
materiais não são a imagem das que vi com meus olhos carnais. Para reconhecê-las
não há necessidade alguma de se pensar em um corpo qualquer, pois, é no espírito
que as reconhecemos.

Também conheci os números mediante os sentidos do corpo: mas a idéia de
número é bem diferente: não são imagens dos primeiros, possuindo por isso
mesmo um ser muito mais real.

Ria-se de mim quem não compreender o que disse; eu terei compaixão de seu riso.

CAPÍTULO XIII - A memória da memória

Tudo isso eu guardo em minha memória, assim como o modo pelo qual o aprendi.

Também guardo na memória as muitas argumentações infundadas que ouvi contra
essas verdades. Essas objeções sem dúvida são falsas, mas não é falso recordá-las.
E lembro de ter sabido distinguir entre essas verdades e os erros que se lhe
opunham. Vejo agora que uma coisa é essa distinção, que faço hoje, e outra o
recordar ter feito muitas vezes tal distinção, ao considerá-las. Lembro-me,
portanto, de ter muitas vezes compreendido isso, e confio à memória o ato atual
de distingui-las e compreendê-las, para me lembrar, mais tarde, de que hoje as
compreendi. Lembro-me então de que me lembrei; e se mais tarde lembrar de que
agora pude recordar essas coisas, será ainda por força da memória.

CAPÍTULO XIV - A lembrança dos sentimentos

Essa mesma memória conserva também os afetos da alma, não do modo como os
sente a alma quando da vivencia, mas de modo muito diverso, segundo o exige a
força da memória.

Lembro-me de ter estado alegre, ainda que não o esteja agora; recordo minha
tristeza passada, sem estar triste; lembro-me de ter sentido medo, sem senti-lo de
novo; lembro-me de antigo desejo, sem que o mesmo sinta agora. Outras vezes,

pelo contrário, lembro-me com alegria a tristeza passada, e com tristeza uma
alegria passada. Isto nada tem para admirar quando se trata de emoções
corporais, porque uma coisa é a alma e outra o corpo; e assim não é maravilha que
me lembre com alegria de um sofrimento físico já passado.

Porém, aqui o espírito é a própria memória. Quando confiamos uma tarefa a
alguém, dizemos: "Não o guardei no espírito", "fugiu-me do espírito". É, portanto,
a memória que chamamos de espírito. Sendo assim, por que ao evocar com alegria
uma tristeza passada, meu espírito sente alegria e minha memória, tristeza? Se
meu espírito se alegra com a alegria que tem em si, por que a memória não se
entristece com a tristeza, que também tem em si? Seria a memória estranha ao
espírito? Quem ousará afirmá-lo? Sem dúvida a memória é como o estômago da
alma, e a alegria e a tristeza são como alimentos, doce ou amargo; quando tais
emoções são confiadas à memória, depois de passarem, digamos, por esse
estômago, podem ali serem guardadas, mas já perderam o sabor. Seria ridículo
comparar emoções e alimento como semelhantes. Contudo, elas não são
totalmente diferentes.

É ainda da memória que tiro a distinção entre as quatro emoções da alma: o
desejo, a alegria, o medo e a tristeza. Assim, todo raciocínio que eu teça, dividindo
cada uma delas nas espécies de seus gêneros, definindo-as, é na memória que
encontro o que tenho a dizer, e de lá tiro tudo o que digo. Contudo, ao recordar
essas emoções, não me perturbo com nenhuma delas.

E antes mesmo que eu as recordasse para discuti-las, elas ali estavam, e por isso
puderam ser tiradas da memória mediante a lembrança. Talvez a lembrança tire
da memória essas emoções como o ato de ruminar tira do estômago os alimentos.
Mas então, por que aquele que rumina sobre tais paixões não sente na boca do
pensamento a doçura da alegria ou a amargura da tristeza? Estará justamente
nisto a diferença entre tais fatos? De fato, quem gostaria de falar dessas emoções
se, todas as vezes que falássemos do medo ou da tristeza, nos víssemos tristes ou
temerosos?

Contudo, certamente não poderíamos falar deles se não encontrássemos na
memória não só os sons dessas palavras, segundo a imagem gravada em nós pelos
sentidos, mas ainda as noções que elas exprimem. Essas noções, nós não a
recebemos por nenhuma porta da carne, mas a própria alma, sentindo-as pela
experiência das próprias emoções, confiou-as à memória; ou então a própria
memória as reteve, sem que ninguém lhas confiasse.

CAPÍTULO XV - A memória das coisas ausentes

Mas quem poderá explicar se a recordação se faz por meio de imagens ou não?

Por exemplo: se digo pedra, ou digo sol, sem que tais objetos estejam presentes a
meus sentidos, certamente tenho suas imagens na memória, à minha disposição.

Evoco uma dor do corpo, que está ausente de mim, já que nada me dói. Contudo,
se a imagem da dor não estivesse em minha memória, não saberia o que dizia, e
ao raciocinar não a distinguiria do prazer.

Falo de saúde do corpo, estando são; neste caso, está em mim o próprio objeto. No
entanto, se sua imagem não estivesse em minha memória, de modo algum
lembraria o significado dessa palavra. Os doentes, ouvindo falar de saúde, não
saberiam do que se trata, não fosse o poder da memória a conservar a imagem da
ausência da realidade.

Falo dos números com que calculamos, e eles se apresentam na memória, não suas
imagens, mas os próprios números.

Evoco a imagem do sol, e esta se apresenta à minha memória; e não evoco a
imagem de uma imagem, mas a própria imagem, disponível à recordação.

Falo em memória, e reconheço o que falo, mas de onde o sei, senão da própria
memória?

Estará ela presente a si própria por sua imagem, e não por si mesma?

CAPÍTULO XVI - A memória do esquecimento

E quando falo do esquecimento, e reconheço de que falo, como poderia eu
reconhecê-lo se dele não lembrasse? Não falo do som da palavra, mas da realidade
que ela exprime. Se eu a tivesse esquecido, não seria capaz de reconhecer o
significado de tal som. Por isso, quando me lembro da memória é por ela mesmo
que se apresenta a mim; mas quando me lembro do esquecimento, este e a
memória estão presentes simultaneamente: a memória, com que me recordo, e o
esquecimento, de que me recordo.

Mas, que é o esquecimento, senão falta de memória? E como pode ele estar
presente na minha lembrança. Se sua lembrança significa não lembrar? Mas se nos
lembramos, o guardamos na memória, e se nos é impossível reconhecer o que
significa a palavra esquecimento, quando a ouvimos, a não ser que dele nos
lembremos, logo a memória é a que retém o esquecimento. Ele está na memória,
pois do contrário, nós o esqueceríamos; mas, ele presente, nós nos esquecemos.
Segue-se que ele não está presente à memória por si mesmo, quando nos
lembramos dele, mas por sua imagem. Do contrário, o esquecimento não faria com
que nos lembrássemos, mas com que nos esquecêssemos. Mas, enfim, quem poderá
descobrir, quem poderá compreender o modo como isto se realiza?

Mas, Senhor, esgota-me esta busca e é, portanto, sobre mim mesmo que me
canso; tornei-me para mim mesmo uma terra de dificuldades e árduos labores. Por
que não exploro agora as regiões do firmamento, nem meço as distâncias dos
astros, nem busco as leis do equilíbrio da terra. Sou eu que me lembro, eu, o meu
espírito. Não é de admirar que esteja longe de mim tudo o que não sou eu.
Todavia, que há mais perto de mim do que eu mesmo? No entanto, é-me
impossível compreender a natureza de minha memória, sem a qual eu nem
poderia pronunciar meu próprio nome.

Que direi então, desde que tenho a certeza que lembro do esquecimento? Diria
talvez que não está em minha memória o que recordo? Ou talvez direi que o
esquecimento está em minha memória, para que não o esqueça? Ambas hipóteses
são grandes absurdos. Vejamos uma terceira hipótese: poderei eu afirmar que
minha memória retém a imagem do esquecimento, e não o esquecimento em si,
quando dele me lembro? Com que fundamento, pois, poderei dizê-lo, se para que
se grave na memória a imagem de um objeto, é necessário que este esteja
presente antes, de onde emana a imagem a ser gravada? É assim que lembro de
Cartago, e assim de todos os outros lugares por que passei; assim me lembro do
rosto dos homens que vi e das coisas que meus sentidos me deram a conhecer;
assim me lembro ainda da dor física, coisas cujas imagens a memória fixou quando
estavam presentes, para que eu as pudesse contemplar e repassar em espírito,
quando eu as evocasse na sua ausência.

Se, pois, é a imagem do esquecimento que está na memória, e não ele mesmo, é
evidente que nalgum momento esteve presente para que sua imagem fosse fixada.
Mas, se estava presente, como podia gravar na memória sua imagem, se o
esquecimento apaga com sua presença tudo o que lá está impresso? Contudo, seja
qual for o mecanismo desse fenômeno, e por mais incompreensível e inexplicável
que seja, estou certo de que me lembro do esquecimento, que apaga da memória,

todas as nossas lembranças.

CAPÍTULO XVII - Deus e a memória

Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua
complexidade infinita e profunda. E isto é o espírito, e isto sou eu mesmo. Que sou,
pois meu Deus? Qual a minha natureza? Vida vária e multiforme, de amplidão
imensa. Eis-me em minha memória, em seus campos, antros, inumeráveis
cavernas, tudo isso infinitamente cheio de toda espécie de coisas, também
inumeráveis. Umas gravadas em imagens, como os corpos; outras, estão sob a
forma de não sei que noções e sinais, como os afetos da alma, que a memória
conserva quando a alma já não os sente, embora tudo o que está na memória
esteja também no espírito. Percorro em todas as direções este mundo interior,
vou de um lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-
lhe os limites, tão grande é a vida que reside no homem mortal!

Que hei de fazer, pois, meu Deus, minha verdadeira vida? Ultrapassarei também
esta faculdade que se chama memória? Ultrapassá-la-ei para chegar a ti, doce luz?
Que dizes?

Subindo em espírito a ti, que estás acima de mim, ultrapassarei também esta
minha força, que se chama memória, pois quero atingir-te onde és acessível, e
unir-me a ti por onde possa fazê-lo.

Também os animais e as aves têm memória, porque de outro modo não voltariam
a seus ninhos e tocas, nem fariam outras coisas habituais, e nem mesmo poderiam
adquiri hábitos sem a memória. Passarei, pois, além da memória para chegar
àquele que me separou dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu.
Passarei além da memória, mas onde te hei de achar, ó Deus verdadeiramente
bom, suavidade segura? Onde te hei de encontrar? Se te encontro sem minha
memória, estou esquecido de ti, e se não me lembro de ti, como te poderei
encontrar?

CAPÍTULO XVIII - A memória das coisas perdidas

Uma mulher perdeu uma dracma, e a procurou com sua lanterna. Mas se não se
lembrasse dela, não a haveria de encontrar; de fato, se dela não lembrasse, como
poderia saber, ao acha-la, que era aquela?

Lembro-me de ter procurado e achado muitas coisas perdidas, sei disso porque,
estando eu à procura, me diziam: "Por acaso é esta?" "Por acaso é aquela?" – e eu
sempre respondia que não, até encontrar o que procurava. Se não tivesse fixado a
lembrança do objeto, fosse o que fosse, ainda que me fosse mostrado, não o
encontraria, pois não o poderia reconhecer. E sempre que perdemos e achamos
alguma coisa acontece o mesmo.

Se alguma coisa desaparece de nossa vista, e não da memória – como sucede com
um corpo visível – conservamos interiormente sua imagem e o procuramos até
que apareça a nossos olhos. Quando for encontrado, será reconhecido de acordo
com essa imagem interior. Não podemos dizer que encontramos um objeto perdido
se não o reconhecemos; nem o podemos reconhecer se dele não lembramos. Tinha
pois desaparecido da nossa vista, mas era conservado pela memória.

CAPÍTULO XIX - A memória das lembranças

E quando a própria memória perde uma lembrança, como acontece quando nos
esquecemos de algo e procuramos recordá-la, o que se passa? Onde, afinal, a
procuramos senão na própria memória? E se esta, por acaso, nos oferece uma
coisa por outra, a repelimos até que apareça o que buscamos. E assim que aparece
dizemos: "É isto". E assim não diríamos se não a reconhecêssemos, e não a
reconheceríamos se dela não houvesse registro. É certo, portanto, que já a
havíamos esquecido. Ou será que ela não se apagara totalmente de nossa
memória, por meio da parte que nos ficou impressa procuramos a outra? A
memória, nesse caso, teria ciência de não poder, como de ordinário, fornecer a
lembrança em seu conjunto e, mutilada, reclamaria e parte faltante. É o que
sucede quando vemos uma pessoa conhecida, ou nela pensamos sem poder
recordar seu nome. Se outro nome nos apresenta ao espírito, não o associamos à
tal pessoa; por isso o afastamos, até que se apresenta um que concorde com nossa
representação habitual da pessoa.

Mas donde nos vem este nome, senão da memória? Mesmo quando nos é sugerido
por outrem, é pela memória que reconhecemos; não o aceitamos como um
conhecimento novo, mas recordando-o, confirmamos ser esse o nome que nos
disseram. Se fosse totalmente apagado da alma, nem mesmo avisados o
reconheceríamos.

Não podemos pois, afirmar que nos esquecemos completamente daquilo de que
nos lembramos ter esquecido. De nenhum modo poderíamos resgatar uma
lembrança perdida se seu esquecimento fosse total.

CAPÍTULO XX - A memória da felicidade

E como hei de te buscar, Senhor? Quando te procuro, meu Deus, estou à procura
da felicidade. Procurar-te-ei para que minha alma viva, porque meu corpo vive de
minha alma, e minha alma vive de ti. Como então devo buscar a felicidade?
Porque não a possuirei até que possa dizer "basta". Como, pois, procurá-la? Talvez
pela lembrança, como se a tivesse esquecido, guardando contudo a lembrança do
esquecimento? Ou pelo desejo de conhecer algo desconhecido ou por nunca tê-lo
vivido, ou por tê-lo esquecido a ponto de nem ter consciência do seu
esquecimento?

Mas não será justamente a felicidade que todos querem, sem exceção? E onde a
conheceram para a desejarem tanto? Onde a viram para assim a amarem? O que
é certo é que está em nós a sua imagem. Mas não sei como isto se dá. E há
diversos modos de ser feliz: quer possuindo realmente a felicidade, quer possuindo
apenas sua esperança. Este último modo é inferior ao dos que são realmente
felizes, embora estejam melhor que os não felizes nem na realidade, nem na
esperança. Mesmo estes, todavia, não desejariam tanto a felicidade se esta lhes
fosse completamente estranha, e é certo que a desejam. Não sei como a
conheceram, e portanto ignoro a noção que dela têm. O que me preocupa é saber
se essa noção reside na memória, pois, se é lá que reside, é sinal de já fomos
felizes alguma vez. Por ora não busco saber se todos fomos felizes individualmente,
ou se o fomos naquele que pecou primeiro, e no qual todos morremos, e de quem
nascemos na infelicidade. O que procuro saber é se a felicidade reside na memória,
porque certamente não a amaríamos se não a conhecêssemos. Mal ouvimos esta
palavra, e todos confessamos que desejamos a mesma coisa; e não é o som da
palavra que nos deleita. Quando um grego a ouve pronunciar em latim, não se
alegra, porque ignora seu sentido. Mas nós nos alegramos ao ouvi-la, como ele se
a ouvisse em sua língua. A felicidade, com efeito, não é grega nem latina; mas
gregos e latinos, assim como todos que falam outras línguas, desejam alcançá-la.

Logo, a felicidade é conhecida de todos; e se fosse possível perguntar-lhes a uma
voz:"

Quereis ser felizes?" – todos, sem hesitar, responderiam que sim. E isso não
aconteceria se a memória não tivesse em si a realidade, expressa por essa
palavra.

CAPÍTULO XXI - A memória do que nunca tivemos

Podemos comparar essa lembrança à que conserva de Cartago, quem a viu? Não, a
felicidade não se vê com os olhos, pois não é corporal. Seria pois comparável à
lembrança dos números? Também não, pois quem conhece os números não deseja
adquiri-los. Pelo contrário, a idéia da felicidade nos inclina a amá-la e a querer
possuí-la, para sermos felizes.

Lembramos dela, talvez, como lembramos da eloqüência? Também não, embora ao
ouvir essa palavra, muitos que não são eloqüentes a associam à realidade que ela
exprime, e desejariam obtê-la, o que indica que já têm idéia de eloqüência. Foi
porém pelos sentidos do corpo que ouviram a eloqüência alheia, deleitando-se com
ela, e desejando também ser eloqüentes. E certamente não lhes daria prazer se já
não tivessem uma idéia da eloqüência, e nem a desejariam se esta não os tivesse
deleitado. Mas a felicidade não a percebemos nos outros por nenhum sentido
corporal.

Essa lembrança, será porventura comparável à da alegria? Talvez, pois quando
estou triste me lembro da alegria passada, e quando infeliz, lembro-me da
felicidade. Ora, esta alegria, eu jamais a vi, ou ouvi, ou senti, ou saboreei, ou
toquei; apenas a experimentei em minha alma quando me alegrei. E esta idéia se
fixou em minha memória para que eu pudesse recordá-la, às vezes com desgosto,
outras com saudades, conforme as circunstâncias que a geraram.

De fato me senti invadido de alegria causada por ações torpes, cuja lembrança
agora aborreço e abomino; outras vezes alegrei-me por ações boas e honestas, das
quais me lembro com saudade; mas já pertencem ao passado, e evoco com tristeza
minha antiga alegria.

Mas onde e quando, então, experimentei a felicidade para lembrar-me dela, para
amá-la e deseja-la? Não sou eu apenas, ou alguns que a desejam; mas todos, sem
exceção queremos ser felizes. Sem uma noção precisa da felicidade, nossa vontade
não teria essa firmeza.

Que significa isto? Se perguntarmos a dois homens se querem alistar-se no
exército, talvez um responda que sim o outro que não. Mas, perguntemos se
desejam ser felizes, e ambos responderão que sim, sem nenhuma hesitação. E
desejando um engajar-se, e o outro não, têm ambos a mesma finalidade: ser
felizes. Um gosta disto, outro daquilo, mas ambos concordam em ser felizes, como
seria unânime a resposta afirmativa a quem lhes perguntasse se querem estar
alegres. Essa alegria é o que eles chamam de felicidade. E ainda que um siga por

um caminho e outro por outro, a finalidade de todos é um só: a alegria. Como a
alegria é um sentimento do qual todos temos experiência, a encontramos em
nossa memória, e a reconhecemos ao ouvir pronunciar a palavra felicidade.

CAPÍTULO XXII - A verdadeira felicidade

Longe de mim, longe do coração de teu servo, Senhor, que a ti se confessa, a idéia
de encontrar a felicidade não importa em que alegria! A felicidade é uma alegria
que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que te servem por puro amor: tu és
essa alegria! Alegrar-se de ti, em ti e por ti: isso é felicidade. E não há outra. Os
que imaginam outra felicidade, apegam-se a uma alegria que não é a verdadeira.
Contudo, sempre há uma imagem da alegria da qual sua vontade não se afasta.

CAPÍTULO XXIII - Felicidade e verdade

Poderemos então concluir que nem todos desejam ser felizes, pois há aqueles que
não querem buscar em ti sua alegria, tu que és a única felicidade? Ou talvez todos
a queiram, mas, como a carne combate contra o espírito, e o espírito contra a
carne, e com isso se contentam.

Porque não querem com força bastante aquilo que não podem, para obtê-lo.

Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdade ou no erro; ninguém
hesita em declarar que preferem a verdade, como em dizer que querem ser felizes.
É que a felicidade é a alegria que provém da verdade. E essa alegria é a que nasce
de ti, que és a própria Verdade, ó meu Deus, minha luz, saúde de meu rosto!
Todos querem essa vida, a única feliz, essa alegria que se origina na verdade.

Encontrei muitos que gostam de enganar, mas ninguém que quisesse ser
enganado.

Onde, então, conheceram a felicidade, senão onde conheceram a verdade? Visto
que não querem ser enganados, também amam a verdade, e desde que amam a
felicidade, que nada mais é que a alegria proveniente da verdade, certamente
também amam a verdade; e não a amariam se não retivessem dela, na sua
memória, alguma noção. Por que, então, não se alegram com ela? Por que não são
felizes? Porque se empolgam demais com outras coisas, que os tornam mais
infelizes do que a verdade, de que se recordam fracamente, e que os faria felizes.

Há ainda um pouco de luz entre os homens: caminhem, caminhem, para que as
trevas não os surpreendam.

Mas por que a verdade gera o ódio? Por que os homens olham como inimigo
aquele que a prega em teu nome, uma vez que amam a felicidade, que mais não é
que a alegria nascida da verdade? Talvez por amarem a verdade de tal modo que
tudo de diferente que amam, querem que seja verdade; e, não admitindo ser
enganados, também não querem ser convencidos de seu erro. Desse modo,
detestam a verdade por amarem aquilo que tomam pela verdade. Amam-na
quando ela brilha, mas odeiam-na quando os repreende; e, como não querem ser
enganados, mas enganar, eles a amam quando ela se manifesta, mas a odeiam
quando ela os denuncia.

Porém ela os castiga; não querem ser descobertos pela verdade, mas esta os
denuncia, sem que por isso se manifeste a eles.

É assim o coração do homem! Cego e lerdo, torpe e indecente: quer permanecer
oculto, mas não quer que nada lhe seja ocultado. Em castigo, sucede-lhe o
contrário: não consegue esconder-se da verdade, enquanto esta lhe continua
oculta. Contudo, apesar de tão infeliz, prefere encontrar alegrias na verdade que
no erro. Será, portanto, feliz quando, livre de perturbações, se alegrar somente na
Verdade, origem de tudo o que é verdadeiro.

CAPÍTULO XXIV - Deus e a memória

Eis como esquadrinhei minha memória em tua procura, Senhor: não me foi possível
encontrar-te fora dela. Nada encontrei de ti que não fosse lembrança, e nunca me
esqueci de ti desde que te conheci. Onde encontrei a verdade, aí encontrei a meu
Deus, que é a própria verdade; e desde que aprendi a conhecer a verdade, nunca
mais a esqueci. Por isso, desde que te conheço, permaneces em minha memória. É
lá que te encontro quando me lembro de ti e quando sou feliz em ti. Estas são as
santas delicias que me deste em tua misericórdia, olhando para minha pobreza.

CAPÍTULO XXV - Recapitulação

Onde habitas em minha memória, Senhor, em que lugar dela estás? Que
esconderijo construíste aí? Que santuário aí edificaste para ti? Deste-me a honra
de morar em minha memória; mas em que parte dela resides? É o que quero
agora descobrir.

Quando me recordei de ti, ultrapassei aquela região da memória que também os
animais possuem, pois não te encontrei entre as imagens dos objetos corpóreos. E
cheguei àquela parte onde depositei os afetos de minha alma, mas também aí não
te encontrei. Cheguei à morada que meu próprio espírito possui na memória –
porque também o espírito lembra de si mesmo – mas nem ali estavas. Isso porque
não és imagem corpórea, nem afeto de ser vivo, como a alegria, a tristeza, o
desejo, o temor, a lembrança, o esquecimento e outros semelhantes, e nem és
meu próprio espírito, porque és o Senhor e Deus do espírito, e tudo isso é
mutável, enquanto permaneces imutável e subsistes acima de todas as coisas, e te
dignaste habitar em minha memória desde que te conheço.

Mas, por que perguntar em que lugar da memória habitas, como se a memória
tivesse compartimentos? Certo é que habitas nela desde que te conheço, e é nela
que te encontro, quando penso em ti.

CAPÍTULO XXVI - Onde encontrar Deus?

Onde, então, te encontrei, para te conhecer? Não estavas ainda em minha
memória antes de eu te conhecer. Onde, então, te encontrei, para te conhecer,
senão em ti mesmo, acima de mim? No entanto, aí não existe espaço. Quer nos
afastemos de ti, quer nos aproximemos, aí não existe espaço algum. Ó Verdade,
por toda parte assistes aos que te consultam, e respondes ao mesmo tempo a
todas essas diversas consultas. Tuas respostas são claras, mas nem para todos.

Os homens te consultam sobre o que querem, mas nem sempre ouvem as
respostas que querem.

Teu servo fiel é o que não pensa em ouvir de ti a resposta que quer, mas em
querer a resposta que lhe dás.

CAPÍTULO XXVII - Solilóquio de amor

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas
dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das
formas que criaste. Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de
ti aquilo que nem existiria se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por
mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha
cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora
tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de tua paz me inflama.

CAPÍTULO XXVIII - A vida do homem

Quando me unir a ti com todo meu ser, não sentirei mais dor ou fadiga; minha
vida, cheia de ti, será então a verdadeira vida. Alivias aqueles que enches de ti;
mas, como ainda não estou cheio de ti, sou um peso para mim mesmo. Minhas
alegrias, que deveriam ser choradas, lutam com minhas tristezas que deveriam
alegrar-me, e ignoro de que lado está a vitória.

Ai de mim, Senhor, tem piedade de mim! As tristezas do meu mal lutam com
minhas santas alegrias, e eu não sei de que lado está a vitória. Ai de mim! Senhor,
tem piedade de mim!

Eis minhas feridas: eu não as escondo. Tu és o médico, eu o enfermo; és
misericordioso, e eu, miserável. Não é contínua tentação a vida do homem sobre a
terra? Quem quer aborrecimentos e dificuldades? Mandas que os suportemos, e
não que os amemos. Ninguém ama o que tolera, ainda que goste de o tolerar; e
mesmo que alguém se alegre em tolerar, preferiria nada ter que suportar. Na
adversidade, desejo a prosperidade, e na prosperidade temo a adversidade. Entre
estes dois extremos, qual será o termo médio onde a vida humana não seja
tentação?

Ai das prosperidades do século, onde se receia a adversidade e a alegria é
corrompida! Ai das adversidades do século, uma, duas, três vezes ai! Pelo desejo
da prosperidade, por ser dura a adversidade, e pelo temor que vença a nossa
paciência! A vida do homem sobre a terra não é pois uma contínua tentação?

CAPÍTULO XXIX - Esperança em Deus

Só na grandeza da Tua misericórdia coloco toda minha esperança. Dai-me o que
me ordenas e ordena-me o que quiserdes. Mandas que sejamos castos. "Sabendo,
diz um sábio, que ninguém pode ser casto se Deus não lhe der este dom, já é
sabedoria saber de quem procede este dom". A continência reúne os elementos de
nossa pessoa, reconduz-nos à unidade que perdemos dispersando-nos por tantas
criaturas. Pouco te ama quem te ama juntamente com alguma criatura, e não a
ama por tua causa.

Ó amor, que sempre ardes e jamais te extingues! Ó caridade, meu Deus, inflama-
me!

Ordena-me a continência? Dá-me o que mandas, e ordena o que quiseres!

CAPÍTULO XXX - Sonho e voluptuosidade

Ordenas que me abstenha da concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos
e da ambição do século. Proibiste as uniões luxuriosas, e embora tenhas permitido
o casamento, ensinaste que há um estado bem melhor. E, pela tua graça, optei por
esse estado, antes mesmo de me tornar dispensador de teu sacramento.

Mas em minha memória, de que falei longamente, vivem ainda as imagens dessas
voluptuosidades que meus costumes de outrora ali gravaram. Sem forças diante
de mim quando estou acordado, durante o sono, elas não somente suscitam em
mim o prazer, mas o consentimento do prazer e a ilusão da ação. Tais ilusões têm
tal poder sobre minha alma e sobre meu corpo, apesar de tão falsas, que seus
fantasmas impelem a meu sono o que a realidade não me pode induzir quando em
vigília. Acaso então, Senhor meu Deus, será que eu não sou eu nessas horas? E
como vai tão grande diferença dentro de mim mesmo, do momento em que passo
da vigília para o sono e vice versa! Onde pois está a razão, que durante a vigília
resiste a tais sugestões, e que não se abala mesmo diante da realidade? Acaso se
fecha juntamente com os olhos? Ou adormece com os sentidos do corpo?

E por que, muitas vezes, mesmo no sono, resistimos, lembrados de nosso
propósito, e nele permanecemos castos, negando o consentimento a tais
seduções? Todavia, a diferença é tanta que, no caso de não resistir durante o
sono, ao acordar voltamos a encontrar a paz de consciência; e a própria diferença
entre os dois estados indica que não fomos nós que fizemos aquilo, e lamentamos o
que se fez em nós.

Senhor onipotente, não poderia tua mão curar todas as enfermidades de minha
alma, abolindo também, com maior abundância de graça, os movimentos lascivos
de meu sono? cada vez mais multiplica, Senhor, o número de tuas bondades para
comigo, para que minha alma, livre do visco da concupiscência, siga até chegar a
ti. Para que não seja rebelde, nem mesmo durante o sono; para que, pelo estímulo
de imagens bestiais, não só não cometa essas torpezas degradantes até a lascívia
carnal, mas que nem mesmo consinta nisso.

Não é muito para ti, ó Todo-Poderoso, que podes fazer mais do que pedimos e
compreendemos, fazer com que, quer minha idade presente, quer na minha vida
futura, eu me deleite nessas tentações – mesmo que sejam tão pequenas, que o

primeiro esforço as venceria, quando adormeço com pensamentos castos.

Agora digo exultando ao meu Senhor em que estado me encontro neste gênero de
pecado, com tremor pelos dons que já me concedeste, e gemendo pelas minhas
imperfeições.

Espero que aperfeiçoes em mim tuas misericórdias, até que atinja a plenitude da
paz de que gozarão em ti meu espírito e meu corpo, quando a morte for absorvida
pela vitória.

CAPÍTULO XXXI - A intemperança

O dia me traz novo pecado, e oxalá fosse o único! Comendo e bebendo,
restauramos as diuturnas perdas de nosso corpo, até o dia em que destruirás o
alimento e o estômago, matando minha necessidade com uma maravilhosa
saciedade, e revestindo este corpo corruptível de eterna incorruptibilidade.

Mas por ora esta necessidade me é grata, e luto contra essa delícia, para que não
me domine; é uma guerra cotidiana que sustento com jejum, reduzindo meu corpo
à escravidão. Mas minhas dores são eliminadas pelo prazer, porque a fome e a
sede são sofrimentos: queimam e matam como a febre se os alimentos não lhe
põem remédio. Mas como esse remédio está sempre à nossa disposição, graças à
liberdade de teus dons que põe à disposição de nossa fraqueza a terra, a água e o
céu, nossas misérias recebem por nós o nome de delícias.

Tu me ensinaste a considerar os alimentos como remédios. Mas quando passo
dessa penosa necessidade à paz da saciedade, nessa passagem a concupiscência
arma para mim sua cilada. Esta passagem é prazerosa, e não há outra para se
chegar onde a necessidade nos obriga. A razão do beber e do comer é a
conservação da saúde; mas um prazer insidioso acompanha como lacaio essas
funções, e sempre tenta tomar a dianteira, de modo que faço pelo prazer o que
digo fazer por minha saúde.

Ora, a medida do prazer não é a mesma da saúde; o que é bastante para a saúde
não o é para o prazer, e muitas vezes é difícil discernir se é o cuidado com o corpo
que pede reforço de alimento, ou se é a gula que nos engana e quer ser servida.
Essa incerteza alegra nossa pobre alma, feliz por ter encontrado um álibi e uma
desculpa na impossibilidade de determinar o que basta para o cuidado com a
saúde, e sob o pretexto da sua conservação esconde a busca do prazer. Esforço-me

para resistir a essas tentações diárias, e invoco tua mão para me socorrer. A ti
confesso minha incerteza, porque sobre este ponto meu juízo ainda não é firme.

Ouço a voz de meu Deus que ordena: "Não se façam pesados vossos corações com a
intemperança e embriaguez". A embriaguez está longe de mim; que tua
misericórdia não a deixe se aproximar. Mas a intemperança, ao contrário, chega às
vezes a arrastar teu servo. Tua misericórdia há de afastá-la de mim, porque
ninguém pode ser temperante senão por tua graça.

Muitas coisas nos concedes quando te invocamos, e todo o bem que recebemos,
mesmo antes de o pedir, é a ti que sempre o devemos. E o ato mesmo de
reconhecermos que esses dons são teus, é ainda graça tua. Nunca estive
embriagado, mas conheci muitos, dados a esse vicio, que se tornaram sóbrios por
tua graça. Assim, é graças a ti que alguns não são o que nunca foram; e também é
graças a ti que outros não são mais o que foram; e é graças a ti, enfim, que estes e
aqueles sabem a quem devem essa graça.

Ouvi ainda de ti outra palavra: "Não corras atrás de tuas concupiscências, e
reprime teus apetites" – Tua graça ainda me fez ouvir outra palavra, de que tanto
gostei: "Se comemos, não teremos abundância; e se não comemos, não sofreremos
privação". – Ou seja: nem isto me fará rico, nem aquilo pobre. – E ouvi ainda esta
outra: "Aprendi a me contentar com o que tenho: sei viver na abundância e
suportar a penúria. Tudo posso naquele que me fortalece". – Eis como fala o bom
soldado da milícia celeste: nada parecido ao pó que somos. Mas, Senhor, lembra-se
que somos pó, e que de pó fizeste o homem; que este havia se perdido, e que foi
reencontrado.

Por si mesmo, formado do mesmo pó que nós, nada podia aquele cujas palavras
inspiradas tanto amei: "Tudo posso naquele que me fortalece" – Concede-me
forças, para que eu possa. Dá-me o que mandas, e manda o que quiseres. Paulo
confessa que tudo recebeu de ti, e, quando se gloria, é no Senhor que ele se gloria.

Ouvi também outro que te pedia esta graça: "Afasta de mim a intemperança". –
De onde se conclui claramente, ó Deus santo, que dás a força de cumprir o que
mandas.

"Tu me ensinaste, Pai bondoso, que tudo é puro para os puros, mas que é mau
para o homem comer com escândalo, que tudo o que fizeste é bom, e que nada
deve ser rejeitado do que se recebe com ação de graças; que os alimentos não nos

recomendam a Deus, que ninguém nos deve julgar pela comida ou pela bebida;
que o que come não deve julgar o que não come". – Por essas lições, graças e
louvores te dou, meu Deus, meu Mestre, que bateste à porta de meus ouvidos e
iluminaste meu coração. Livra-me de toda tentação. Não receio a impureza dos
alimentos, mas a impureza do prazer.

Sei que Noé teve permissão de comer toda espécie de carne que pudesse servir de
alimento, e que Elias comeu carne para reparar as forças; sei que João Batista,
asceta admirável, não se manchou com os animais – os gafanhotos – de que se
alimentava. Todavia eu sei que Esaú deixou-se enganar pelo desejo de um prato
de lentilhas; que Davi se repreendeu a si mesmo por ter desejado água; que nosso
Rei foi submetido à tentação, não de carne, mas de pão. Por isso o povo foi
justamente repreendido no deserto, não por ter desejado comer carne, mas
porque o desejo o fez murmurar contra o Senhor.

Exposto a estas limitações, luto diuturnamente contra a concupiscência do comer e
do beber, pois não é coisa que possa cortar de uma vez por todas, apenas com o
propósito de nunca mais recair, como fiz com a luxúria. É uma rédea imposta a meu
paladar, ora para afrouxá-la, ora para retesá-la. E quem é, Senhor, que não se
deixa arrastar às vezes além dos limites do necessário? Se existe alguém assim, é
de fato grande, e deve engrandecer teu nome. Eu porém não sou desse número,
porque sou pecador. Contudo, também, eu engrandeço teu nome, e Aquele que
venceu o mundo intercede junto a ti por meus pecados. Conta-me entre os
membros enfermos de seu corpo, porque teus olhos viram minhas imperfeições e
porque todos serão inscritos em teu livro.

CAPÍTULO XXXII - Os prazeres do olfato

Quanto à sedução dos perfumes, não me preocupo demais. Quando ausentes, não
os procuro; quando presentes, não os recuso, mas estou sempre disposto a deles
me abster. Pelo menos assim me parece, embora talvez me engane. Trevas
deploráveis me envolvem, que me escondem minhas faculdades reais; por isso,
quando meu espírito indaga à respeito de suas forças, bem sabe que não pode
confiar em si mesmo, por seu íntimo permanecer muitas vezes insondável, até que
a experiência lho manifeste. Ninguém pois se deve ter seguro nesta vida, que é
tentação perpétua. Pois. Como podemos nos tornar melhores, não aconteça de nos
tornar piores. Nossa única esperança, nossa única confiança, nossa firme promessa
é tua misericórdia.

CAPÍTULO XXXIII - Os prazeres do ouvido

Os prazeres do ouvido me prendem e me subjugam com mais força, mas tu me
desligaste, me libertaste.

Agradam-me ainda, eu o confesso, os cânticos que tuas palavras vivificam, quando
executados por voz suave e artística; todavia eles não me prendem, e dele posso
me desvencilhar quando quero. Para assentarem no meu íntimo, em companhia
com os pensamentos que lhe dão vida, buscam em meu coração um lugar de
dignidade, mas eu me esforço ou me ofereço para ceder-lhes só o lugar
conveniente.

Às vezes parece-me tributar-lhe mais atenção do que devia: sinto que tuas
palavras santas, acompanhadas do canto, me inflamam de piedade mais devota e
mais ardente do que se fossem cantadas de outro modo. Sinto que as emoções da
alma encontram na voz e no canto, conforme suas peculiaridades, seu modo de
expressão próprio, um misterioso estímulo de afinidade.

Mas o prazer dos sentidos, que não deveria seduzir o espírito, muitas vezes me
engana.

Os sentidos não se limitam a seguir, humildemente, a razão; o mesmo tendo sido
admitidos graças à ela, buscam precedê-la e conduzi-la. É nisso que peco sem o
sentir, embora depois o perceba.

Outras vezes, porém, querendo exageradamente evitar este engano, peco por
excessiva severidade; chego ao ponto de querer afastar de meus ouvidos, e da
própria Igreja, a melodia dos suaves cânticos que habitualmente acompanham os
salmos de Davi. Nessas ocasiões parece-me que o mais seguro seria adotar o
costume de Atanásio, bispo de Alexandria. Segundo me relataram, ele os mandava
recitar com tão fraca inflexão de voz, que era mais uma declamação do que um
canto.

Contudo, quando lembro das lágrimas que derramei ao ouvir os cantos de tua
Igreja, nos primórdios de minha conversão, e que ainda agora me comovem, não
tanto com o canto, mas com as letras cantadas, voz clara e modulações
apropriadas, reconheço novamente a grande utilidade desse costume.

Assim, oscilo entre o perigo do prazer e a constatação dos efeitos salutares do
canto. Por isso, sem emitir juízo definitivo, inclino-me a aprovar o costume de
cantar na igreja, para que, pelo prazer do ouvido, a alma ainda muito fraca, se

eleve aos sentimentos de piedade. E quando me comovem mais os cantos do que
as palavras cantadas, confesso meu pecado e mereço penitencia, e então preferiria
não ouvir cantar.

Eis em que estado me encontro! Chorai comigo, e chorai por mim, vós que
alimentais no coração a virtude, fonte de boas obras. Porque vós, a quem isso não
afeta, sois insensíveis a tudo isso. E tu, Senhor meu Deus, escuta, olha e vê; tem
piedade de mim, cura-me. Eis que me tornei um problema para mim mesmo, sob
teu olhar, e aí está precisamente meu mal.

CAPÍTULO XXXIV - O prazer dos olhos

Resta ainda falar do prazer destes olhos carnais. Oxalá que os ouvidos fraternos e
piedosos de teu templo ouvissem a minha confissão! Encerrando assim as
tentações da concupiscência que ainda me perseguem, apesar de meus gemidos e
dos desejos de ser revestido de meu tabernáculo, que é o céu.

Meus olhos apreciam as formas belas e variadas, as cores brilhantes e amenas.
Oxalá elas não me acorrentassem a alma! Oxalá ela só fosse presa pelo Deus que
criou coisas tão boas: ele é meu bem, e não elas. Todos os dias, estando acordado,
elas me importunam sem o descanso das vozes que se calam, e às vezes de tudo o
que existe, quando silencia. A própria rainha das cores, a luz que inunda tudo o
que vemos, e onde quer que eu esteja durante o dia, acaricia-me de mil modos,
mesmo quando estou ocupado em outra coisa e não lhe dou atenção.

E ela se insinua tão fortemente que, se de repente me for tirada, a desejo, a
procuro e, se sua ausência se prolonga, a alma se entristece.

Ó luz que Tobias contemplava quando, cego, mostrava ao filho o caminho da vida,
caminhando à sua frente com os passos da caridade, sem jamais se perder! Luz que
via Isaac, quando seus olhos carnais, oprimidos e velados pela velhice, mereceram
não abençoar os filhos reconhecendo-os, mas reconhecê-los ao abençoá-los! Luz que
via Jacó, também cego pela idade provecta, irradiou os fulgores de seu coração
iluminado sobre as gerações do povo futuro, representadas em seus filhos! E a
seus netos, os filhos de José, impôs as mãos misticamente cruzadas, não na ordem
em que queria dispô-los o pai, que via com os olhos corporais, mas de acordo com
seu próprio discernimento interior! Eis a verdadeira luz; ela é uma, e todos os que
a vêem e amam formam um único ser.

Quanto à luz corporal, de que falava, com sua doçura sedutora e perigosa, é um
dos prazeres da vida para os cegos amantes do mundo. Mas os que nela sabem
encontrar motivos para te louvar, Deus, criador de todas as coisas, convertem-na
em hino em teu louvor, sem se deixarem dominar por ela no sono. É assim que
desejo ser. Resisto às seduções dos olhos, para que meus pés, que começam a
trilhar teus caminhos, não fiquem enredados. Elevo a ti olhos invisíveis, para que
libertes meus pés de seus laços. Tu não cessa de livrá-los, porque sempre estão a
se prender. Tu não cessas de me livrar, e eu me deixo cair a cada passo nas insídias
espalhadas por toda parte, porque não dormirás, nem cochilarás, tu que guardas a
Israel.

Quantos encantos os homens acrescentaram às seduções dos olhos, com a
variedade de suas artes, com sua indústria de vestidos, de calçados, de vasos, de
objetos de toda espécie, com pinturas e esculturas diversas que de longe
ultrapassam os limites do necessário e moderado e da expressão piedosa.
Exteriormente perseguem as produções de suas artes, e em seu interior
abandonam Àquele que os criou, deturpando em si o que ele fez.

Quanto a mim, meu Deus e minha glória, encontro nisto razão para cantar-te um
hino, e oferecer um sacrifício de louvor àquele que sacrificou por mim. As belezas
que da alma do artista passam para suas mãos, provêm desta beleza, que é
superior às nossas almas e pela qual minha alma suspira dia e noite.

Entretanto, os que geram e os amantes das belezas exteriores, tiram da beleza
soberana apenas o critério para julgá-las, mas não uma regra para usá-las bem.
Contudo, a norma ali está, mas eles não a vêem. Se a vissem, não se afastariam , e
guardariam sua força para ti, e não a dissipariam em fatigantes delícias.

Mesmo eu, que exponho e compreendo essas verdades, deixo-me enredar nessas
belezas; mas tu me livras de seu laço, tu me libertas, porque tua misericórdia está
diante de meus olhos. Miseravelmente eu caio, e tu me levantas
misericordiosamente, às vezes sem que eu o perceba, quando minha queda foi
suave, e outras infligindo-me uma pena, por ter ficado preso ao chão.

CAPÍTULO XXXV - A curiosidade

Às anteriores acrescente-se outra tentação, que oferece maiores perigos. Além da
concupiscência da carne, que consiste no deleite voluptuoso de todos os sentidos, e
cuja servidão dana os que ela afasta de ti, insinua-se na alma um outro desejo, que

se exerce pelos mesmos sentidos corporais, mas tende menos a uma satisfação
carnal do que a tudo conhecer por meio da carne.

É a vã curiosidade, que se disfarça sob o nome de conhecimento e de ciência. Como
nasce do apetite de tudo conhecer, e como entre os sentidos os olhos são os mais
aptos para o conhecimento, a Sagrada Escritura chamou-a de concupiscência dos
olhos.

De fato, ver é função própria dos olhos; mas muitas vezes nós usamos essa
expressão mesmo quando se trata de outros sentidos, aplicados ao conhecimento.
Nós não dizemos: "Ouve como isto brilha" – nem: "Sente como isso resplandece" –
nem: "Apalpa como isto cintila". – Para exprimir tudo isso dizemos "ver ou olhar".
E até não nos limitamos a dizer: "Olha que luz!", pois apenas os olhos nos podem
dar esta sensação – mas, dizemos ainda: "Olha que som! Olha que cheiro! Olha que
gosto! Olha como é duro!" Por isso toda experiência que é obra dos sentidos é
chamada, como disse, concupiscência dos olhos. Essa função da visão, que pertence
aos olhos, é usurpada metaforicamente pelos outros sentidos, quando buscam
conhecer alguma coisa.

Daqui podemos distinguir claramente o papel da volúpia e o da curiosidade na
ação dos sentidos. O prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso,
agradável ao todo; a curiosidade por sua vez deseja o contrário, não para se expor
ao sofrimento, mas pela paixão de conhecer por meio da experiência. Que prazer
pode ter na visão de um cadáver dilacerado, que causa horror? E todavia onde há
um cadáver, para lá corre toda a gente para se entristecer e empalidecer. E
temem depois revê-lo em sonhos, como se alguém os tivesse obrigado a
contemplá-lo, ou como se a fama de alguma beleza os tivesse atraído. O mesmo
acontece com os outros sentidos, o que seria enfadonho enumerar.

É esse quê de mórbido de curiosidade que faz com que se exibam monstruosidades
nos espetáculos. É ela que nos induz a perscrutar os segredos da natureza exterior,
cujo conhecimento de nada serve, mas que os homens buscam conhecer apenas
pelo prazer de conhecer. É ela também que inspira o homem a pesquisar, com fim
semelhante, a ciência perversa, que é a arte da magia.

E é ela, enfim, que, até na religião, nos induz a tentar a Deus, pedindo-lhe sinais e
prodígios, não para a salvação da alma, mas apenas pela ânsia de vê-los.

Nessa imensa floresta, cheia de insídias e perigos, cortei e lancei para fora de meu

coração muitos males, graças à força que me concedeste para tanto, Deus de
minha salvação.

Contudo, no turbilhão diário de tantas e tão variadas tentações que atormentam
minha vida, quando ousarei dizer que nenhuma delas atrai mais minha atenção e
não cativa minha vã curiosidade? Certamente que o teatro já não me atrai, nem
me importo mais em conhecer o curso dos astros; jamais, para obter uma resposta,
consultei as sombras, pois detesto todos os ritos sacrílegos.

Mas quantos artifícios inventa o inimigo para me tentar a que te peça algum
milagre, a ti, Senhor, meu Deus, a quem devo servir humilde e simplesmente! Eu
te suplico, por nosso Rei, por nossa pátria, a pura e casta Jerusalém, que o perigo
de consentir nessas coisas, que até agora esteve longe de mim, se afaste cada vez
mais! Mas quando te peço a salvação de uma alma, a finalidade de meu intento é
bem diferente: ouve-me pois, e concede-me a graça de seguir de bom grado tua
vontade.

Mas incontáveis são as pequenas e desprezíveis bagatelas que tentam cada dia
nossa curiosidade! E quem poderá contar nossas quedas? Quantas vezes ouvimos
contar banalidades!

Toleramo-las, de início, para não magoar os fracos, e depois, aos poucos, ouvimo-
las com atenção sempre crescente!

Não vou mais ao circo, para ver um cão correr atrás de uma lebre; mas, passando
casualmente pelo campo e vendo algo assim, eis-me interessado pela caçada,
talvez até distraindo-me de algum pensamento profundo. E, se não chega a me
fazer mudar o caminho do meu cavalo, desvio o curso do meu coração. Se após tal
demonstração de minha fraqueza tu não me alertares para que abandone esse
espetáculo, elevando-me a ti por meio de alguma reflexão, ou desprezando tudo e
passando adiante, ficaria ali, absorvido como um bobo.

E que dizer quando, sentado em minha casa, observando uma lagartixa à caça de
moscas, ou uma aranha que as enreda em sua teia? Acaso, por serem animais
pequenos, a curiosidade que despertam em mim não é a mesma? É verdade que
depois passo a te louvar; Criador admirável, ordenador do universo, mas não foi
esse o pensamento que primeiro me moveu. Uma coisa é levantar-se depressa, e
outra é não cair.

Dessas quedas está repleta minha vida, e minha única esperança está em tua
infinita misericórdia. Nosso coração é o receptáculo de tais misérias, e traz em si
grande quantidade de vaidades, que muitas vezes até interrompem e perturbam
nossas orações; e enquanto em tua presença levantamos a voz de nossa alma até
teus ouvidos, tais pensamentos fúteis, vindos não sei de onde, vêm perturbar um
ato tão importante.

CAPÍTULO XXXVI - O orgulho

Terei também essa miséria como desprezível? Haverá algo que possa restituir-me
a esperança, a não ser tua conhecida misericórdia, que começou a me
transformar? Sabes o quanto já me transformaste; curaste-me primeiro da paixão
da vingança, para perdoar-me também todos meus pecados, curar minhas
fraquezas, resgatar minha vida da corrupção, conservar-me na piedade e
misericórdia, e saciar dos teus bens meu desejo. Derrubaste meu orgulho pelo
temor, dobrando minha cerviz a teu jugo. Agora eu trago o teu jugo, e o sinto
suave, como prometeste e cumpriste. Na verdade, teu jugo já era suave, mas eu
não o sabia quando receava tomá-lo sobre mim.

Mas, Senhor, tu és o único que sabe mandar sem orgulho, porque és o único
Senhor verdadeiro, que não tem senhor! Diga-me, terá cessado em mim, se isso
pode acontecer nesta vida, esta terceira espécie de tentação, que consiste em
querer ser temido e amado pelos homens, com o único fim de obter uma alegria
que não é alegria? Que vida miserável, que arrogância indigna! Aí está o principal
motivo porque não te amamos e tememos piamente. Por isso resistes aos
soberbos, enquanto dás tua graça aos humildes. Trovejas contra as ambições do
mundo, e faz abalar as montanhas até suas raízes.

Ora, como é necessário, para se adequar à sociedade, fazer-se amar e temer pelos
homens, o inimigo de nossa verdadeira felicidade nos alicia, e por toda parte
semeia seus laços gritando: "Bravo! Muito bem!" – para que, ávidos, recolhamos
as lisonjas e nos deixemos incautamente enredar. Seu intento é que deixemos de
encontrar nossa alegria na verdade, para buscá-la na mentira dos homens;
estimula em nós o prazer em nos fazer temer e amar, não pelo teu amor, mas em
teu lugar. Com isso nos tornamos semelhantes a ele, não unidos na caridade, mas
partilhando de suas penas. Ele quis fixar sua morada no aquilão (vento gelado do
norte), para que nós, nas trevas e no frio, servíssemos o perverso e sinuoso
imitador de teu poder.

Nós, Senhor, somos teu pequeno rebanho: sê nosso dono. Estende tuas asas, para

nosso refúgio. Sê nossa glória; que nos amem por tua causa, e que tua palavra seja
observada por nós.

Quem busca o louvor dos homens, quando tu o reprovas, não será por estes
defendido quando o julgares, nem poderá subtrair á tua condenação. Mas quando
não se louva um pecados pelos desejos de sua alma, nem se abençoa quem pratica
iniqüidades, mas te louva um homem pelos dons que lhe concedeste, se ele se
compraz mais no louvor do que no dom que lhe atrai os louvores, tu o reprovas, a
despeito dos louvores que recebe dos homens. E quem o louva é melhor do que é
louvado, porque um se agradou com o dom de Deus, e o outro alegrou-se com o
dom do homem.

CAPÍTULO XXXVII - A tentação do orgulho

Todos os dias somos acometidos por estas tentações, Senhor, somos tentados sem
trégua. Os louvores dos homens são a fornalha onde todos os dias somos postos à
prova.

Também nisso mandas que sejamos continentes. Concede-nos o que mandas, e
manda o que quiseres.

A esse respeito, conheces os lamentos que meu coração te dirige, e os rios de
lágrimas que brotam de meus olhos. É-me difícil distinguir o quanto estou
purificado dessa peste; tenho muito medo de minhas faltas ocultas, que teus olhos
conhecem, e os meus ignoram. Nos outros gêneros de tentação, tenho recursos
para me examinar, mas quanto a este, quase nenhum.

Posso avaliar o quanto dominei a minha alma a respeito dos prazeres da carne e
das vãs curiosidades, quando me vejo privado de tais coisas por minha vontade ou
por necessidade.

Então me indago se é pena maior ou menor o ver-me privado desses dons.

Quanto à riqueza, ambicionada apenas para satisfazer a uma, duas ou todas as
três paixões, no caso em que a alma não perceba se as despreza quando as possui,
depende só dela renunciar a elas para provar seu desapego. Todavia, para nos
privar dos louvores e provar nosso poder sobre eles, será talvez necessário levar
uma vida má, infame, horrível, a ponto de ninguém nos conhecer sem nos
detestar? Pode-se dizer ou conceber maior insanidade?

Se o louvor deve habitualmente acompanhar uma vida boa e de boas obras, não
será por isso que deveremos abandonar a vida exemplar. Contudo, para distinguir
se a privação de um bem me é indiferente ou penosa, é preciso que me prive desse
bem.

Então, Senhor, que devo confessar-te quanto a tais tentações? Que tenho em
grande apreço o louvor? Mas agrada-me mais a verdade. Pois, se tivesse que
escolher entre duas situações: ser louvado pela minha loucura ou por meus erros
ou ser escarnecido por todos pela minha firme certeza da verdade, bem sei o que
escolheria. Contudo, não gostaria que a aprovação alheia aumentasse para mim a
alegria que sinto pelo pouco bem que faço. Mas tenho de te confessar que não só o
louvor a aumenta, mas também que o vitupério a diminui.

Quando me sinto perturbado por essa miséria, uma desculpa surge em mim. Só tu
sabes, Senhor, se ela é válida, porque a mim me deixa perplexo. De fato, não nos
ordenaste apenas a continência, que nos ensina a afastar certas coisas de nós, mas
também a justiça, que direciona nosso amor. Não quiseste que amássemos
somente a ti, mas também o nosso próximo. Ora, às vezes me parece que é o
aproveitamento e as esperanças de que o próximo dá mostra que me encantam,
quando me regozijo com um elogio inteligente; e que, pelo contrário, é sua
maldade que me entristece quando o ouço censurar o que ignora ou o que é bom.

Às vezes também me entristeço com os elogios que me fazem, quando louvam em
mim qualidades que me desagradam, ou quando dão muita importância a
qualidade medíocres e secundárias.

Mas, repito-o, como saber se o desagrado não provém de minha repugnância pelo
louvor que destoa do meu juízo a respeito de mim mesmo – não que seu interesse
me preocupe – mas pelo maior agrado que sinto quando o bem que amo em mim é
amado pelos outros? De algum modo, não me considero louvado quando o elogio
contradiz a opinião que tenho de mim mesmo, quer o encômio seja para o que me
desagrada, quer exagerando o valor do que pouco me agrada.

Serei, pois, sobre isso tudo um enigma para mim mesmo?

Mas é em ti, ó Verdade, que percebo que devo me alegrar com os louvores que
me dirigem, não em meu interesse, mas no interesse do próximo. Não sei se é este
o meu caso, pois neste assunto me conheces melhor do que eu mesmo. Suplico-te,
meu Deus, que me dês a conhecer a mim mesmo, para que eu possa confessar a

meus irmãos, dispostos a orar por mim, as chagas que achar em mim. Faze que me
examine com mais diligencia. Se for de fato o bem do próximo que me alegra
quando me louvam, porque sou menos sensível ao vitupério injustamente feito a
outro, do que se fosse a mim? Porque o aguilhão da injúria me faz sofrer mais do
que injúria igualmente injusta feita a uma outra pessoa diante de mim? Acaso
também ignoro isto?

Deveria então concluir que me iludo, e que meu coração e minha língua burlam
diante de ti a verdade?

Afasta de mim, Senhor, esta loucura, para que minhas palavras não sejam para
mim óleo de pecador para ungir minha cabeça.

CAPÍTULO XXXVIII - A vanglória

Sou pobre e necessitado, e só melhoro quando, com gemidos íntimos e com
desagrado de mim mesmo, busco tua misericórdia, até que minha indigência seja
reparada e sanada com a paz que o olho soberbo ignora! Todavia, as palavras de
nossa boca, ou nossos atos conhecidos dos homens, encerram uma tentação muito
perigosa, filha do amor dos louvores que, para nos iludir com certa excelência,
recolhe e mendiga os aplausos alheios. A vanglória me tenta até quando a critico
em mim, e é por isso mesmo que eu a desaprovo. Muitas vezes, por excesso de
vaidade, há quem se glorie até mesmo do desprezo da vanglória; mas de fato não
é mais do desprezo da vanglória que se orgulha, porque ninguém a despreza
quando se gloria de a desprezar.

CAPÍTULO XXXIX - O amor-próprio

Há ainda entre nós, profundamente assentada, outra tentação do mesmo gênero,
que torna vãos aqueles que se comprazem de si mesmos, ainda que não agradem
aos outros, ou até lhes desagradem, ou sequer procuram lhes agradar. E quanto
mais enfatuados estejam consigo mesmos, mais desagradam a ti, não só ao se
gloriarem dos males como se fossem bens, mas sobretudo quando se gloriam de
teus bens como se fossem deles; ou quando, reconhecendo-os em si, eles os
atribuem a seus merecimentos; ou ainda quando, atribuindo-os à tua graça, eles
não os gozam amigavelmente com os demais, gestando ciúmes e inveja.

Em todos estes perigos e provas, tu vês o temor de meu coração, e sinto que são
mas as feridas que curas em mim do que as que inflijo a mim mesmo.

CAPÍTULO XL - À procura de Deus

Quando deixaste de me acompanhar, ó Verdade, para me ensinar o que eu devia
evitar ou procurar, sempre te consultei, a ti submetendo, dentro da minha
limitação, meus medíocres pontos de vista? Percorri com os sentidos, como pude, o
mundo exterior. Observei a vida de meu corpo e os meus próprios sentidos. Depois
adentrei nas profundezas da memória em seus múltiplos domínios, tão
maravilhosamente repletos de inúmeras riquezas; observei tudo isso, estupefato.
Sem teu auxílio nada poderia distinguir, mas reconheci que nada disto eras tu.
Nem era eu o descobridor de todas essas coisas; me esforcei para distingui-las e
avaliá-las em seu devido valor, recebendo-a através dos sentidos e interrogando-
as. Senti outras coisas unidas a mim, e as examinei, assim como aos sentidos que
mas traziam; revolvi as vastas reservas da memória, analisando certas
lembranças, guardando umas e trazendo outras à luz. Porque tu és a luz
permanente que eu consultava sobre a existência, o valor e a qualidade de todas
as coisas, e eu ouvia teus ensinamentos e tuas ordens. Costumo fazê-lo muitas
vezes, pois essa é a minha alegria, e sempre que meus trabalhos me permitem
algum descanso, refugio-me nesse prazer.

Em nenhuma dessas coisas que percorro consultando-te, não encontro lugar seguro
para minha alma senão em ti; só em ti se reúnem meus pensamentos esparsos,
sem que nada meu se aparte de ti. Às vezes, me fazes conhecer uma
extraordinária plenitude de vida interior, de inefável doçura que, se chegasse à
contemplação, não seria certamente compatível com esta vida. Mas torno a cair
nesta baixeza, cujo peso me acabrunha; volto a ser dominado pelos meus hábitos,
que me tem cativo e, apesar de minhas lágrimas, não me libertam. Tão pesado é o
fardo do hábito! Não quero estar onde posso e não posso estar onde quero:
miséria em ambos os casos!

CAPÍTULO XLI - Deus e a mentira

Examinei minhas fraquezas de pecador nas três formas de concupiscência, e
invoquei tua destra para me salvar. Apesar de ter coração ferido, vi teu
esplendor, e forçado a recuar, disse:

"Quem pode chegar lá? Fui lançado para longe de teus olhos". – Tu és a verdade
que preside a todas as coisas. E eu, minha avareza, não queria perder-te, mas
queria possuir ao mesmo tempo a ti e à mentira, como os que não querem mentir
a ponto de perderem a noção de verdade. Assim te perdi, porque não admites,
nem nenhum coração, conviver com a mentira.

CAPÍTULO XLII - Os neoplatônicos e o caminho para Deus

Poderia eu encontrar alguém que me reconciliasse contigo? Deveria eu recorrer
aos anjos? E com que orações, com que ritos? Ouvi dizer que muitos dos que se
esforçam para voltar a ti, e que não conseguiam por si mesmos, tentaram este
caminho e caíram na curiosidade de visões estranhas, recebendo por isso o justo
castigo das ilusões.

Soberbos, procuravam-te com o coração inchado de sua ciência arrogante, e sem
humildade. E atraíram para si, pela semelhança de sentimentos, os demônios do
ar, que se fizeram cúmplices e aliados de sua soberba, e se tornaram iludidos de
seus poderes mágicos.

Procuravam um mediador para purifica-los, mas não o encontraram, senão ao
demônio transfigurado em anjo de luz, que justamente por não possuir corpo de
carne, seduziu-lhes fortemente a carne orgulhosa. Eram eles mortais e pecadores,
e tu, Senhor, com quem eles procuravam com soberba reconciliar-se, és imortal e
sem pecado.

Era necessário que o mediador entre Deus e o homem tivesse alguma semelhança
tanto com Deus como com os homens; pois se assemelhasse apenas aos homens,
estaria muito longe de Deus; e se assemelhando só a Deus, estaria muito longe
dos homens; em ambos os casos não poderia ser mediador.

E aquele falso mediador que é o demônio, a quem teus ocultos juízos permitem
que iluda a soberba, tem de comum com os homens apenas uma coisa, isto é, o
pecado. Finge contudo, ter algum traço em comum com Deus, e como não está
revestido de carne mortal, pretende ser imortal. Mas, como a morte é o salário do
pecado, ele tem isso em comum com os homens: como eles, ele é condenado à
morte.

CAPÍTULO XLIII - Cristo, o único mediador

O verdadeiro mediador que tua insondável misericórdia enviou e revelou aos
homens, para que aprendessem a humildade pelo seu exemplo, é esse mediador
entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo. Apareceu como intermediário
entre os pecadores mortais e o Justo imortal, mortal como os homens e justo como
Deus. E, como a vida e a paz são a recompensa da justiça, pela justiça que o une a
Deus ele suprimiu a morte entre os ímpios justificados, e quis compartilhá-la com

eles. Foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela
fé em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela fé em sua paixão passada. De
fato, só é mediador enquanto homem; enquanto Verbo não é intermediário, por
ser igual a Deus: Deus em Deus e, ao mesmo tempo, Deus único.

Como nos amaste, Pai bondoso! Não poupando teu Filho único, o entregaste por
nós pecadores! Oh! Como nos amaste! Foi por amor a nós que teu Filho, que não
considerava rapina o ser igual a ti, submeteu-se até a morte de cruz. Ele era o
único livre entre os mortos, tendo o poder de dar sua vida e de novamente
retomá-la. Por nós se fez diante de ti vencedor e vítima; por nós, diante de ti, se
fez sacerdote e sacrifício, e sacerdote porque ele era o sacrifício; de escravos, fez
de nós teus filhos; nascidos de ti, se fez nosso escravo. Com razão ponho nele a
firme esperança que curarás todas as minhas enfermidades por intermédio dele,
que está sentado à tua direita e intercede por nós junto de ti. De outro modo
desesperaria, pois são muitos e grandes meus males; porém mais poderoso é o
poder do teu remédio. Poderíamos pensar que teu Verbo estava muito longe para
se unir ao homem, e desesperar de nós, se ele não se tivesse feito carne,
habitando entre nós.

Atemorizado por meus pecados e pelo peso de minhas misérias, meditei o projeto
de fugir para o ermo; mas tu te opuseste e me fortaleceste dizendo: Cristo morreu
por todos, para que os viventes já não vivam para si, mas por aquele que morreu
por eles.

Eis, Senhor, que lanço em ti os cuidados da minha vida, e contemplarei as
maravilhas da tua lei. Conheces minha ignorância e minha fraqueza: ensina-me,
cura-me. Teu Filho único, em que estão escondidos todos os tesouros da sabedoria
e da ciência, me remiu com sangue. Não me caluniem os soberbos, porque eu
conheço bem o preço de minha redenção. Como o corpo e bebo o sangue da vítima
redentora, distribuo-a aos outros; pobre, desejo saciar-me dela em companhia
daqueles que a comem e são saciados. E louvarão ao Senhor os que o buscam!

LIVRO DÉCIMO- PRIMEIRO

CAPÍTULO I - Finalidade das confissões

Porventura, Senhor, tu que és eterno, ignoras o que te digo, ou não vês no tempo
o que se passa no tempo? Por que motivo, então, narrar-te essas coisas todas?
Certamente não é para que as conheças; é para despertar em mim e nos que me
lêem nosso amor por ti; para que todos exclamemos: Grande é o Senhor, e
infinitamente digno de louvores! Já disse e torno a dizer: É pelo desejo de teu
amor que narro isso.

Também nós oramos e, não obstante, a Verdade nos diz: O Pai sabe do que haveis
mister, antes mesmo de lho pedires. – Por isso manifestamos nosso amor por ti,
confessando-te nossas misérias e tuas misericórdias para conosco, para que
termines a nossa libertação que começaste, e para que deixemos de ser infelizes
em nós para sermos felizes em ti. Pois nos chamaste para que fôssemos pobres de
espírito, mansos, penitentes, famintos e sedentos de justiça, misericordiosos, puros
de coração e pacíficos.

Muitas coisas te narrei, conforme o pude e conforme o desejo de minha alma,
porque o exigiste primeiro, para que te confessasse, Senhor, meu Deus, porque és
bom, e porque tua misericórdia é eterna.

CAPÍTULO II - A inteligência das Escrituras

Quando poderei eu descrever, com o poder de minha pena, todas as exortações,
todos os terrores, as consolações, as inspirações de que lançaste mão para me
levar a pregar tua palavra e dispensar ao povo teu sacramento?

Mesmo que eu fosse capaz de enumerar na ordem tais coisas, as gotas de meu
tempo me são preciosas. De há muito que anseio ardentemente meditar sobre tua
lei, e te confessar nela minha ciência e minha ignorância, os albores de tuas luzes
na minha alma e o que ainda resta em mim de trevas, até que minha fraqueza seja
absorvida por tua força. Não quero gastar em outros cuidados as horas de
liberdade que me restam além dos cuidados indispensáveis do corpo, do trabalho
intelectual, dos serviços que devemos aos homens, e dos que prestamos sem lhe
dever.

Senhor meu Deus, ouve minha prece; que tua misericórdia atenda ao meu desejo,

pois não arde só por mim, mas também para servir ao amor fraternal, e bem vês
em meu coração que é assim.

Permitas que te sacrifique meu pensamento e minha língua, mas concede-me o que
te devo oferecer, porque sou pobre e indigente, enquanto és rico para todos os
que te invocam e, sem cuidados contigo, cuidas de nossa existência. Livra-me,
Senhor, de toda temeridade e de toda mentira que meus lábios e meu coração
possam proferir. Que tuas Escrituras sejam minhas castas delicias, que não me
engane nelas, nem com elas engane a ninguém. Senhor, ouve-me, e tem
compaixão, Senhor meu Deus, luz dos cegos e vigor dos fracos, mas também luz dos
que vêem e força dos fortes; presta atenção à minha alma e ouve-a clamar do
fundo do abismo. E se teus ouvidos estão ausentes do abismo, para onde iremos,
por quem clamaremos?

Teu é o dia e tua é a noite; a um aceno do teu querer, os minutos voam. Concede-
me o tempo para meditar nos mistérios de tua lei, e não a feche para os que lhe
batem à porta; não foi em vão que quiseste fossem escritas tantas páginas de
obscuros segredos. Porventura, estes bosques não terão seus cervos, que ali se
abrigam, se alimentam, que aí passeiam, descansam e ruminam? Ó Senhor,
aperfeiçoa-me e revela-me o sentido desses mistérios. Tua palavra é minha
alegria, tua voz está acima de todos os prazeres. Concede-me o que amo, porque
ando enamorado, e amar é um dom que me concedeste. Não abandone teus dons,
nem deixe de regar tua erva sedenta. Te exaltarei por tudo o que descobrir em
teus livros; que eu ouça a voz de teus louvores. Faz que eu me inebrie de ti, e que
eu contemple as maravilhas de tua lei, desde o começo dos tempos, quando fizeste
o céu, a terra, até que partilharemos do reino do perpétuo de tua cidade santa.

Senhor, tem piedade de mim, ouve meu desejo. Julgo que não desejo nada da
terra, nem ouro, nem prata, nem pedras preciosas, nem belas roupas. Nem
honrarias, nem prazeres carnais, nem de coisas necessárias ao corpo de nossa
peregrinação desta vida. Tudo, alias, nos é dado por acréscimo quando procuramos
teu reino e tua justiça.

Vê, meu Deus, de onde nasce meu desejo. Os ímpios contaram-me suas alegrias,
mas esses prazeres não são como os proporcionados por tua lei. É ela que inspira
meu desejo. Olha, ó Pai, olha, e vê, e aprova. Queira tua misericórdia que eu
encontre graça diante de ti, e que os arcanos secretos de tuas palavras se abram a
meu espírito que bate às suas portas!

Isso eu te suplico por nosso Senhor, Jesus Cristo, teu filho, aquele que está sentado
à tua direita, o Filho do homem, a quem estabeleceste como mediador entre nós e
ti. Por ele nos procuraste quanto não te procurávamos, e nos procuraste para que
te buscássemos! Em nome de teu Verbo, por quem criaste todas as coisas, e a mim
entre outras; de teu Filho unigênito, por quem chamaste à adoção o povo dos
crentes, no qual também estou.

Eu te conjuro por aquele que está sentado à tua direita, e que intercede por nós,
no qual estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento que
procuro em teus livros.

Moisés escreveu a respeito: "Isto diz ele, isto diz a Verdade".

CAPÍTULO III - O que disse Moisés

Concede-me, Senhor, que eu ouça e compreenda como no princípio criaste o céu e
a terra. Moisés assim o escreveu. Escreveu e partiu deste mundo, para onde lhe
falaste, para junto de ti, e já não está presente para nós. Se estivesse aqui, detê-
lo-ia, e dele indagaria, em teu nome, o sentido de tais palavras, e absorveria com
atenção as palavras que brotassem de sua boca. Se me falasse em hebraico, em
vão sua voz bateria em meus ouvidos, e nenhuma idéia chegaria à minha mente;
mas se me falasse em latim, eu compreenderia suas palavras.

Mas, como saberia eu se ele dizia a verdade? E, posto que o soubesse, sabê-lo-ia
por seu intermédio? Não, mas seria dentro de mim, no íntimo recesso do
pensamento que a Verdade, que nem é hebraica, nem grega, nem latina, nem
bárbara, sem auxílio de lábios ou de língua, sem ruído de sílabas, me diria: "Ele
fala a verdade". – e eu, imediatamente, com a certeza da fé, diria àquele teu
servo: "Tu dizes a verdade!".

Mas, como não posso consultar a Moisés, é a ti, ó Verdade, cuja plenitude ele
possuía quando enunciou tais palavras, é a ti, meu Deus, que dirijo minha súplica,
perdoa meus pecados.

Concedeste que um tem servo dissesse essas coisas: faze agora com que eu as
compreenda.

CAPÍTULO IV - O céu e a terra

Existem pois o céu e a terra, e clamam que foram criados, mediante de suas
transformações e mudanças. Mas o que não foi criado em sua forma definitiva, e
todavia existe, nada pode conter que antes já não existisse em sua forma
potencial, e nisso consiste a mudança e a variação. Proclamam também, os seres,
que não foram criados por si mesmos: "Existimos porque fomos criados. Não
existíamos antes, de modo que pudéssemos criar a nós mesmos." – E essa voz é a
voz da própria evidência. És tu, Senhor, quem os criaste. E porque és belo, eles são
belos; porque és bom, eles são bons; porque existes, eles existem. Mas tuas obras
não são belas, não são boas, não existem de modo perfeito como tu, seu Criador.
Comparados contigo, os seres nem são bons, nem belos, nem existem. Isso
sabemos, e por isso te rendemos graças; mas nosso saber, comparado com tua
ciência, é ignorância.

CAPÍTULO V - A palavra e a criação

De que modo criaste o céu e a terra, e de que instrumento te serviste para levar a
cabo tão grandiosa obra? Pois não procedeste como artesão, que forma um corpo
de outro, conforme a concepção de seu espírito, que tem o poder de exteriorizar a
forma que vê em si mesmo com o olhar do espírito. De onde lhe vem esse poder do
espírito, senão de ti, que o criaste? E essa forma, ele a impõe a uma matéria que
preexistia, apta para ser transformada, como a terra, a pedra, a madeira, o outro
e tantas outras substâncias.

Mas de onde proviriam essas coisas se não as tivesse criado? Criaste o corpo do
artista, a alma que governa seus membros, a matéria que ele plasma, a inspiração
que concebe e vê interiormente o que executará exteriormente. Deste-lhe os
órgãos dos sentidos, intérpretes pelos quais materializa as intenções de sua alma;
informam o espírito do que fizeram, para que este consulte a verdade, o juiz
interior, para saber se a obra é boa. Tudo isso te louva como criador de todas as
coisas.

Mas como os fizeste? Como criaste, meu Deus, o céu e a terra? Por certo não
criaste o céu e a terra no céu e na terra. Nem tampouco os criaste no ar, nem sob
as águas que pertencem ao céu e à terra. Não criaste o universo no universo,
porque não havia espaço onde pudesse existir. Não tinhas à mão a matéria com
que modelar o céu e a terra. E de onde viria essa matéria que não tinhas ainda
feito para dela fazer alguma coisa? Que criatura pode existir que não exija tua
existência? Contudo, falaste e o mundo foi feito. Tua palavra o criou.

CAPÍTULO VI - Como falou Deus?

Mas, como falaste? Porventura do mesmo modo como aquela voz que, saindo da
nuvem, disse: Este é meu Filho bem-amado? – Essa voz fez-se ouvir, e passou; teve
começo e fim; suas sílabas ressoaram, depois passaram, em sucessão ordenada até
a última, que vem depois de todas as outras – e depois foi o silêncio. Por onde se
vê claramente que essa voz foi gerada por órgão temporal de uma criatura a
serviço de tua vontade eterna. E essas palavras, pronunciadas no tempo, foram
comunicadas pelo ouvido material à inteligência, cujo ouvido interior está atento
à tua palavra eterna. E a razão comparou essas palavras, proferidas no tempo,
com o silêncio de teu Verbo eterno, e disse: "È diferente, muito diferente. Tais
palavras estão bem abaixo de mim, nem sequer existem, pois fogem e passam; mas
o Verbo de Deus permanece sobre mim eternamente".

Se foi portanto com estas palavras sonoras e passageiras que ordenaste: Que se
façam o céu e a terra! – se foi assim que os criaste, conclui-se que já havia, antes
do céu e da terra, uma criatura temporal, cujos movimentos puderam fazer vibrar
essa voz no tempo. Ora, não havia corpo algum antes do céu e da terra; ou se
algum existia, tu certamente já o tinhas criado não por meio de uma voz
passageira, justamente para que pudesse soar essa voz passageira para dizer:

"Façam-se o céu e a terra!" E fosse o que fosse o ser de onde saísse tal voz, não
teria existido se não o tivesses criado. Mas para criar esse corpo, necessário à
emissão destas palavras, de que palavra e serviste?

CAPÍTULO VII - A palavra coeterna

É assim que nos convidas a compreender o Verbo, que é Deus junto de ti, que
também és Deus, Verbo pronunciado eternamente e pelo qual tudo é pronunciado
eternamente. O que é dito, não é uma seqüência de palavras, ou uma palavra que
é seguida por outra, como que a concluir uma frase; mas tudo é dito simultânea e
eternamente. Do contrário, já haveria tempo e mudança, e não a verdadeira
eternidade nem a verdadeira imortalidade.

Isto eu o sei, meu Deus, e por isso te dou graças. Eu o sei, e eu to confesso, Senhor;
e também o sabe todo aquele que não é ingrato à infalível verdade. Sabemos,
Senhor, sabemos que não ser mais depois de ter existido, ou passar a ser quando
ainda não se existia é o morrer e o nascer. Mas em teu Verbo, por ser
verdadeiramente imortal e eterno, nada desaparece nem tem sucessão. Com o teu
Verbo que é coeterno, enuncias eternamente e a um só tempo tudo o que dizes. E
o que se realiza é o que dizes que se faça. Não é de outro modo, senão pelo Verbo,
que crias. Todavia os seres criados por tua palavra não chegam à existência

simultaneamente, desde toda a eternidade.

CAPÍTULO VIII - A verdadeira luz

Imploro-te, Senhor meu Deus, qual o porquê disso tudo? De certo modo eu o
compreendo, mas não sei como exprimi-lo. Poderei dizer que tudo o que tem
começo e fim, começa e acaba quando a razão eterna, que não tem começo nem
fim, sabe que deve começar ou acabar? Essa inteligência é teu Verbo, que é o
princípio, porque também nos fala. Assim falou-nos no Evangelho com voz humana,
e a palavra ecoou exteriormente nos ouvidos dos homens, para que cressem nele,
e o buscassem em seu íntimo, e o encontrassem na eterna Verdade, onde um bom
e único mestre instrui todos os seus discípulos.

Aí, Senhor, ouço tua voz a me dizer que só nos fala verdadeiramente quem nos
ensina, e quem não nos instrui, mesmo que fale, não nos diz nada. Mas quem nos
ensina, senão a Verdade imutável? As lições da criatura mutável têm o único
valor de nos conduzir à Verdade, que é imutável. Nela verdadeiramente
aprendemos quando, de pé, a ouvimos, alegrando-nos por cauda da voz do Esposo,
que nos reconduz àquele de quem viemos. Por isso, ele é o princípio, pois se ele
não permanecesse, não teríamos para onde voltar de nossos erros. Quando
voltamos de um erro, temos plena consciência dessa volta; e é para que tomemos
consciência de nossos erros que ele nos instrui, porque ele é o princípio, e sua
palavra é para nós.

CAPÍTULO IX - A voz do Verbo

É nesse princípio, ó Deus, que criaste o céu e a terra; em teu Verbo, em teu Filho,
em tua virtude, em tua sabedoria, em tua verdade, falando e agindo de modo
admirável. Quem o poderá compreender ou explicar? Que luz é essa que por vezes
me ilumina, e que fere meu coração sem o lesar? Atemorizo-me e inflamo-me:
tremo porque, de certo modo, sou tão diferente dela; e inflamo-me, porque
também sou semelhante a ela. A Sabedoria é a mesma sabedoria que brilha em
mim de quando em quando: ela rasga as nuvens de minha alma, que novamente
me encobrem quando dela me afasto, pelas trevas e pelo peso de minhas
memórias. Na indigência, meu vigor enfraqueceu de tal modo, que nem posso mais
suportar o meu bem, até que tu, Senhor que te mostraste compassivo com todas
minhas iniqüidades, cures também todas as minhas fraquezas. Redimirás minha
vida da corrupção; hás de me coroar na piedade e na misericórdia, e saciarás com
teus bens meus desejos, porque minha juventude será renovada com a da águia.

Pela esperança formos salvos, e aguardamos com paciência o cumprimento de tuas
promessas.

Ouça, pois, Tua voz em seu interior, quem puder, e eu quero clamar, cheio de fé
em teu oráculo: "Como são magníficas as tuas obras, Senhor, que tudo criaste em
tua Sabedoria! Ela é o princípio e nesse princípio criaste o céu e a terra".

CAPÍTULO X - Que fazia Deus antes da criação

Com certeza ainda estão cheios do erro do velho homem os que nos dizem: "Que
fazia Deus antes de criar o céu e a terra?" – Se estava ocioso, se nada fazia,
porque não continuou a se abster sempre de qualquer ação? Se em Deus apareceu
um movimento novo, uma vontade nova de dar o ser ao que ainda não tinha
criado, como falar de uma verdadeira eternidade se nela nasce uma vontade que
não existia antes? Mas a vontade de Deus não é uma criatura, ela é anterior a
toda criatura; nenhuma criação seria possível se a vontade do Criador não a
precedesse. A vontade, portanto, pertence à própria substância de Deus. Logo, se
na substância de Deus nasce algo que antes não existia, não se pode mais com
verdade chamá-la eterna. E se, desde toda eternidade, Deus quis a existência da
criatura, por que a criatura também não é eterna?

CAPÍTULO XI - Tempo e eternidade

Os que assim falam não te compreendem ainda, ó Sabedoria de Deus, luz das
inteligências; não compreendem ainda como é criado o que é criado por ti e em ti.
Esforçam-se por saborear as coisas eternas, mas seu espírito voa ainda sobre as
realidades passadas e futuras. Quem poderá deter esse pensamento, quem o fixará
por um momento, para que tenha um rápido vislumbre do esplendor da
eternidade imutável, e a compare com os tempos impermanentes, para perceber
que qualquer comparação é impossível? Então veria que a sucessão dos tempos
não é feita senão de uma seqüência infindável de instantes, que não podem ser
simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é
presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o
passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o
passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente.
Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a
eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o
passado? Acaso poderá realizar isso minha mão? Ou esta minha língua, com a
palavra, poderia realizar tal obra?

CAPÍTULO XII - Deus antes da criação

Eis minha resposta à questão: "Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra?" –
não responderei jocosamente como alguém para contornar a dificuldade do
problema: "Preparava o inferno para os que perscrutam esses mistérios
profundos". – Uma coisa é compreender e outra é brincar. Não, essa não será
minha resposta. Prefiro dizer: "Não sei" – pois de fato não sei, que ridicularizar
quem faz pergunta tão profunda, ou louvar quem responde com sofismas.

Mas eu digo que tu, meu Deus, és o Criador de toda criatura; e, se por céu e terra
se entende toda criatura, não temo afirmar: "Antes que Deus criasse o céu e a
terra, nada fazia. De fato, se tivesse feito alguma coisa, o que poderia ser senão
uma criatura? Oxalá eu soubesse tudo o que desejo saber, como sei que nenhuma
criatura foi criada antes da criação.

CAPÍTULO XIII - O tempo antes da criação

Se algum espírito leviano, vagando por tempos imaginários anteriores à criação,
se admirar que o Deus Todo-Poderoso, tu, que criaste e conservas todas as coisas,
ó autor do céu e da terra, tenha-te mantido inativo até o dia da criação, por
séculos sem conta, que esse desperte e tome consciência do erra que gera sua
admiração. Como, pois, poderiam transcorrer os séculos se tu, criador, ainda não
os tinha criado? E poderia o tempo fluir se não existisse? E como poderiam os
séculos passar, se jamais houvessem existido? Portanto, como és o criador de
todos os tempos – se é que houve algum tempo antes da criação do céu e da terra
– como se pode afirmar que ficaste ocioso? Pois também criaste esse mesmo
tempo, e este não poderia passar antes que o criasses.

Se porém, antes do céu e da terra não havia tempo algum, porque perguntam o
que fazias então? Não poderia haver então se não existia o tempo.

Não é no tempo que és anterior ao tempo: de outro modo não precederias a todos
os tempos. Precedes porém a todo o passado na altura de tua eternidade sempre
presente; dominas todo o futuro porque está por vir e que, quando chegar, já será
passado. Contudo, tu és sempre o mesmo, e teus anos não passam jamais. Teus
anos não vão nem vêm; mas os nossos vão e vêm, para que todos possam existir.
Teus anos existem simultaneamente, pois não fluem; não passam, não são expulsos
pelos que vêm, porque não passam. Os nossos, ao contrário, só existirão todos
quando não mais existirem. Teus anos são como um só dia, e teu dia não é uma

repetição cotidiana, é um perpétuo hoje, porque teu hoje não cede o lugar ao
amanhã e nem sucede ao ontem. Teu hoje é a eternidade. Por isso geraste um
filho coeterno, a quem disseste: "Hoje te gerei" – Todos os tempos são obra tua, e
tu existes antes de todos os tempos; é pois inconcebível que tenha existido tempo
quando o tempo ainda não existia.

CAPÍTULO XIV - Que é o tempo?

Não houve, pois, tempo algum em que nada fizesses, pois fizeste o próprio tempo.
E nenhum tempo pode ser coeterno contigo, pois és imutável; se, o tempo também
o fosse, não seria tempo. Que é pois o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira
breve e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bastante
clareza para exprimir a idéia com palavras? E no entanto, haverá noção mais
familiar e mais conhecida usada em nossas conversações?

Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo
acontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se
ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.
Contudo, afirmo com certeza e sei que, se nada passasse, não haveria tempo
passado; que se não houvesse os acontecimentos, não haveria tempo futuro; e que
se nada existisse agora, não haveria tempo presente. Como então podem existir
esses dois tempos, o passado e o futuro, se o passado já não existe e se o futuro
ainda não chegou? Quanto ao presente, se continuasse sempre presente e não
passasse ao pretérito, não seria tempo, mas eternidade. Portanto, se o presente,
para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua
razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite
afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir.

CAPÍTULO XV - Tempo longo, tempo breve

No entanto, dizemos que o tempo é longo ou breve, o que só podemos dizer do
passado e do futuro. Chamamos longo, digamos, os cem anos passados, e longo
também os cem anos posteriores ao presente; um passado curto para nós, seriam
os dez dias anteriores a hoje, e breve futuro, os dez dias seguintes. Mas como
pode ser longo ou curto o que não existe? O passado não existe mais e o futuro
não existe ainda. Por isso não deveríamos dizer "o passado é longo" – mas o
passado "foi longo" – e o futuro "será longo".

Senhor, que és a minha luz, tua verdade não escarnecerá também nisso o homem?

Esse tempo passado, foi longo quando já havia passado ou quando ainda estava
presente? Porque ele só podia ser longo enquanto existia alguma coisa que
pudesse ser longa. Mas uma vez passado, não existia mais: donde se conclui que
não podia ser longo, porque já deixara de existir. Não digamos, portanto: "O
tempo passado foi longo" – pois não encontraremos nada que pudesse ter sido
longo; uma vez passado não existe mais. Mas digamos: "O tempo presente foi
longo" – porque só era longo enquanto presente. Ainda não havia passado, ainda
não havia deixado de existir, e por isso era susceptível de ser longo. Mas logo que
passou, deixou de ser longo, porque cessou de existir.

Mas vejamos, ó alma humana, se o tempo presente pode ser longo, porque foi-te
dada a prerrogativa de perceber e medir os momentos. Que me respondes? Por
acaso cem anos presentes são um tempo longo? Consideremos antes se cem anos
podem ser presentes. Se for o primeiro ano que corre, está presente; mas os
outros noventa e nove ainda são futuros, e portanto ainda não existem. Se
estamos no segundo ano, já temos um ano passado, o segundo presente e todos os
outros no futuro. Desse período de cem anos, seja qual for o ano que supomos
presente, todos os que o precederam serão passados, e todos os que estão por vir,
futuros. Portanto, os cem anos não podem estar simultaneamente presentes.

Vejamos agora se, pelo menos, o ano em curso é presente. Se estamos no primeiro
mês, os outros são futuros. Como acima, se estamos no segundo, o primeiro será
passado, e os demais, futuros. Assim o ano que corre não está todo presente; e
como não está todo presente, não é portanto verdade dizer-se que o ano esteja
presente. Um ano compõe-se de doze meses, e seja qual for o mês considerado,
será o único em curso. Mas o mês em curso não é presente, mas somente o dia.
Vale o que dissemos antes: se estamos no primeiro dia, todos os outros são
futuros; se estamos no último, todos os outros são passados; se estamos entre um
desses dois dias, esse dia está entre os dias passados e os futuros.

Eis, portanto, esse tempo presente, o único que julgávamos poder chamar de
longo, reduzido ao espaço de um só dia. Mas, examinemos esse único dia, porque
nem mesmo ele é todo presente. Compõe-se de dia e noite, num total de vinte e
quatro horas; relativamente à primeira hora, todas as outras são futuras; em
relação à última hora, todas as outras são passadas; cada hora intermediaria tem
atrás de si horas passadas e diante de si horas futuras.

Mas também essa única hora é composta de fugitivos instantes; tudo o que dela
correu é passado, e tudo o que ainda lhe resta é futuro.

Se pudermos conceber um lapso de tempo que não possa ser subdividido em
frações, por menores que sejam, só essa fração poderá ser chamada de presente,
mas sua passagem do futuro para o passado seria tão rápida, que não teria
nenhuma duração. Se a tivesse, dividir-se-ia em passado e futuro, mas o presente
não em duração alguma.

Qual seria pois, o tempo que podemos chamar de longo? Seria acaso o futuro? mas
nós não dizemos que o futuro é longo, porque ainda não existe, e por isso não pode
ser longo.

Dizemos: "Será longo". E quando se dará? Se atualmente ele ainda está no porvir,
não pode ser longo: não existindo ainda, não pode ser longo. Mas somente poderá
ser longo na hora em que emergir do futuro, que ainda não existe, em que
começar a ser e a se tornar presente, de modo que possa ser longo. Nesse caso o
presente nos clama, pelo que acima dissemos, que ele não pode ser longo.

CAPÍTULO XVI - A medida do presente

E, contudo, Senhor, percebemos os intervalos de tempos, os comparamos entre si,
e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Medimos também o
quanto uma duração é maior ou menor que outra, e respondemos que esta é o
dobro ou o triplo de outra; que aquela é simples, ou que ambas são iguais. Mas é o
tempo que passa que medimos quando o percebemos passar. Quanto ao passado,
que não existe mais, e o futuro que não existe ainda, quem poderá medi-los, a
menos que ouse afirmar que o nada pode ser medido? Assim, quando o tempo
passa, pode ser percebido e medido. Porém quando já decorreu, ninguém o pode
mentir ou sentir, porque já não existe.

CAPÍTULO XVII - O passado e o presente

Pai, apenas pergunto, não estou afirmando; meu Deus, ajuda-me, dirige-me. Quem
ousaria afirmar que não existe três tempos, como aprendemos na infância e como
ensinamos às crianças, o passado, o presente e o futuro? será que só o presente
existe, porque os demais, o passado e o futuro, não existem? Ou será que eles
também existem, e então o presente provém de algum lugar oculto, quando de
futuro se torna presente, e também se retira para outro esconderijo, quando de
presente se torna passado? E os que predisseram o futuro, onde o viram, se ele
ainda não existe? É impossível ver-se o que não existe. E os que narram o passado
diriam mentiras se não vissem os acontecimentos com o espírito. Ora, se esse

passado não tivesse existência alguma, seria absolutamente impossível vê-lo. Por
conseguinte, o futuro e o passado também existem.

CAPÍTULO XVIII - As previsões

Permite-me, Senhor, que eu leve adiante minhas investigações, tu que és minha
esperança; faze que minha tentativa não seja perturbada. Se o futuro e o passado
existem, quero saber onde estão. Se ainda não posso compreender, sei todavia
que, onde quer que estejam, não existem nem como futuro, nem como passado,
mas apenas como presente. Se também ali estiver enquanto futuro, então ainda
não existirá; se o passado aí estiver como passado, já não estará lá.

Portanto, no lugar e no modo que estiverem, só podem existir como presentes.
Quando relatamos acontecimentos verídicos do passado, o que vêm à nossa
memória não são os fatos em si, que já deixaram de existir, mas as palavras que
exprimem as imagens dos fatos, que, através de nossos sentidos, gravaram em
nosso espírito suas pegadas. Minha infância, por exemplo, que não existe mais,
pertence a um passado que também desapareceu; mas quando eu a evoco e passo
a relatá-la, vejo suas imagens no presente, imagens que ainda estão na minha
memória. E a predição do futuro, meu Deus, seguiria um processo análogo? Os
fatos que ainda não existem, serão representados antecipadamente em nosso
espírito como imagens já existentes? Eu o ignoro. O que sei é que habitualmente
premeditamos nossas ações futuras, e que essa premeditação pertence ao
presente, enquanto esta começará a existir, pois então não será mais futura, mas
presente.

Seja qual for a natureza desse misterioso pressentimento do futuro, o certo é que
apenas se pode ver aquilo que existe. Ora, o que já existe não é futuro, mas
presente. Quando se diz que se vê o futuro, o que se vê não são os fatos futuros
em si, que ainda não existem porque são futuros, mas suas causas ou talvez sinais
prognósticos, causas e sinais que já existem. Estes não são pois futuros, mas
presentes para os que as vêem, e é graças aos vaticínios que o futuro é concebido
pelo espírito e profetizado. Esses conceitos já existem, e os que predizem o futuro
vêem-nos presentes em si mesmos.

Gostaria de apelar para um exemplo tomado entre os muitos possíveis. Vejo a
aurora, e prognostico o nascimento do sol. O que vejo é presente, o que anuncio é
futuro. Não o sol, que já existe, mas seu surgimento, que ainda não ocorreu.
Contudo, se eu não tivesse uma imagem mental desse surgimento, como agora
quando falo dele, ser-me-ia impossível a previsão. Mas essa aurora que vejo não é

o nascimento do sol, embora o preceda; nem o é tampouco a imagem que trago
em meu espírito. As duas coisas estão presentes, eu as vejo, e assim posso
predizer o que vai acontecer. O futuro, portanto, ainda não existe; se ainda não
existe, não existe no agora; e se não existe não pode ser visto de modo algum, mas
pode ser prognosticado pelos sinais presentes, que já existem e podem ser vistos.

CAPÍTULO XIX - Oração

Mas tu, que és soberano sobre tuas criaturas, de que modo ensinas às almas os
fator porvir, como revelas aos teus profetas? De que modo ensinas o futuro, tu,
para quem o futuro não existe? Ou antes, como ensinas os sinais presentes dos
fatos futuros? Pois, o que ainda não existe não pode ser ensinado. O teu modo
misterioso de agir está muito acima de minha inteligência, sobrepuja minhas
forças. Por mim mesmo eu não o poderia alcançar, mas podê-lo-ei por ti, quando
me concederes, ó doce Luz dos olhos de minha alma!

CAPÍTULO XX - Conclusão

O que agora parece claro e evidente para mim é que nem o futuro, nem o passado
existem, e é impróprio dizer que há três tempos: passado, presente e futuro.
Talvez fosse mais correto dizer: há três tempos: o presente do passado, o presente
do presente e o presente do futuro. E essas três espécies de tempos existem em
nossa mente, e não as vejo em outra parte. O presente do passado é a memória; o
presente do presente é a percepção direta; o presente do futuro é a esperança.

Se me é lícito falar assim, vejo e confesso que há três tempos. Diga-se também que
são três os tempos: presente, passado e futuro, como abusivamente afirma o
costume. Não me importo, nem me oponho, nem critico o modo de falar, desde que
fique bem entendido o que se diz, e que não se acredite que o futuro já existe e
que o passado ainda existe. Uma linguagem que expresse com termos exatos é
incomum: com muita freqüência falamos com impropriedade, mas entende-se o que
queremos dizer.

CAPÍTULO XXI - A medida do tempo

Disse há pouco que medimos o tempo que passa; de modo que podemos afirmar
que um lapso de tempo é o dobro de outro, ou igual, e apontar entre os intervalos
de tempo outras relações, mediante esse processo comparativo. Portanto, como
eu dizia, medimos o tempo no momento em que passa. E se me perguntarem:

Como o sabes? – eu responderia: Sei porque o medimos, e porque é impossível
medir o que não existe; ora, o passado e o futuro não existem.

Quanto ao presente, como podemos medi-lo, se não tem duração? Portanto, só
podemos medi-lo enquanto passa; e quando passou, não o medimos mais, porque
não há mais nada a mentir.

Mas de onde se origina, por onde passa, para onde vai o tempo quando o
medimos? De onde vem senão do futuro? Por onde passa, senão pelo presente?
Para onde vai senão para o passado? Nasce pois do que ainda não existe,
atravessa o que não tem duração, e corre para o que não existe mais. No entanto,
o que é que medimos, senão o tempo relacionado ao espaço?

Quando dizemos de um tempo que é simples, duplo, ou triplo, ou igual, ou quando
formulamos qualquer outra relação dessa espécie, nada mais fazemos do que
medir espaços de tempo. Em que espaço medimos então o tempo no momento em
que passa? No futuro, talvez, donde procede? Mas o que ainda não existe não
pode ser medido. Será no presente, por onde ele passa? Mas, como medir o que
não tem extensão? Será no passado, para onde caminha? Mas o que não existe
mais escapa à qualquer medida.

CAPÍTULO XXII - O enigma

Minha alma se inflama no desejo de deslindar este enigma tão complicado!
Senhor, meu Deus, meu bom Pai, eu to suplico por Cristo; não queiras tolher a meu
desejo a solução de tais problemas, tão familiares mas tão obscuros; permite que
eu os penetre, e faze com que a luz de tua misericórdia os ilumine, Senhor! A
quem poderia eu consultar sobre isso? A quem confessaria minha ignorância com
mais proveito do que a ti, que não se despraz com o forte zelo que me inflama por
tuas Escrituras? Concede-me o que amo, pois este amor é um dom teu. Dá-me, ó
Pai, esta graça, tu que sabes presentear com boas dádivas a teus filhos. Concede-
me essa luz, porque determinei conhecê-las, e meu esforço será rude até que me
reveles esses mistérios. Eu to suplico, por Cristo, em nome do Santo dos Santos,
que ninguém perturbe minha investigação.

Acreditei, e por isso falo. Minha esperança, a esperança pela qual vivo, é
contemplar as delícias do Senhor. Eis que tornaste velhos os meus dias, e eles
passam, não sei como.

Nós só falamos de tempo, e de tempo, e de tempos e de tempos. Quanto tempo
esse homem falou? Quanto tempo demorou para fazê-lo? Há quanto tempo não
vejo isto! A duração desta sílaba é o dobro daquela, que é breve. Assim nos
expressamos e assim ouvimos, e todos nos compreendem, e nós compreendemos.
São palavras claras e de uso corrente, mas encerram mistérios, e compreendê-las
requer melhor análise.

CAPÍTULO XXIII - O tempo e o movimento

Ouvi um homem instruído dizer que o tempo é nada mais do que o movimento do
sol, da lua e dos astros. Não concordo. Por que não seria então o tempo o
movimento de todos os corpos? Se os astros passassem, e a roda de um oleiro
continuasse a rodar, deixaria acaso de existir tempo para medir suas voltas? Como
poderíamos dizer que elas se davam a intervalos iguais, ou ora mais rápida, ora
mais lentamente, e que umas demoravam mais e outras menos? E, dizendo isto,
não estaríamos falando do tempo? Não haveria mais em nossas palavras sílabas
longas e breves, porque umas ressoam por mais tempo e outras por menos
tempo?

E tu, Deus, concede aos homens que percebam, que reconheçam neste modesto
exemplo, o que as coisas grandes e pequenas têm em comum. Há astros e
luminares celestes que nos servem de sinais e marcam as estações, os dias e os
anos. Isso é verdade; todavia, como eu jamais diria que a volta realizada por
aquela roda de madeira representa o dia, nem o sábio cuja opinião transcrevo
poderia afirmar que a volta da roda não representa o tempo.

O meu desejo é conhecer a natureza e a essência do tempo, com que medimos os
movimentos dos corpos, e nos autoriza a dizer, por exemplo, que um movimento
dura duas vezes mais que outro. O que chamamos de dia não é apenas o tempo
todo o percurso de oriente a oriente, e que nos faz dizer: "Passaram-se tantos
dias" – entendendo por isso também as noites, que não são enumeradas
separadamente. Portanto, já que o dia se completa pelo movimento do sol e o
círculo que ele cumpre a partir do oriente, pergunto eu se o dia é o próprio
movimento ou se é o tempo que dura esses movimentos, ou ambas as coisas.

Na primeira hipótese, teríamos um dia mesmo se o sol fizesse seu percurso no
intervalo de uma hora. Na hipótese da duração, não haveria dia se o sol fizesse
seu percurso no breve espaço de uma hora; e o sol deveria cumprir vinte e quatro
vezes seu percurso para formar um dia.

Diremos então que o movimento do sol, e a duração desse movimento, é que
fazem o dia? Mas então não se poderia chamar de dia se o sol efetuasse seu
percurso no lapso de uma hora, mais do que se, parando o sol seu percurso,
passasse o mesmo tempo que é necessário habitualmente ao sol para completar
sua revolução de uma manhã a outra.

Portanto, não mais buscarei conhecer em que consiste o dia, mas em que consiste
o tempo, que usamos para medir o percurso do sol. Usando tal medida, diríamos
que o sol gastara em seu giro a metade do tempo habitual , se o tivesse
completado em um lapso de doze horas. E, comparando essas duas durações,
diríamos que uma é o dobro da outra, mesmo que o sol demorasse umas vezes o
tempo simples, outras o tempo duplo para ir de oriente para oriente.

Ninguém, portanto, me diga que o tempo é o movimento dos corpos celestes.
Quando a oração de um homem fez parar o sol para concluir vitoriosamente a
batalha, o sol estava imóvel, mas o tempo caminhava; e a batalha terminou no
espaço de tempo que lhe era necessário.

Veja, pois, que o tempo é uma espécie de extensão. Mas eu o vejo, ou apenas
tenho a impressão de vê-lo? Só tu mo demonstrarás, ó Luz, ó Verdade!

CAPÍTULO XXIV - O tempo, medida do movimento

Queres que eu aprove a quem diz que o tempo é o movimento de um corpo? Não,
não aprovo. Sei que não há corpo que não se mova no tempo: tu mesmo o afirmas.
Mas não acredito que o movimento de um corpo seja o tempo; isso nunca ouvi, e
nem tu o dizes. Quando um corpo se move, sirvo-me do tempo para medir a
duração de seu movimento do começo ao fim. Se não vejo o começo, e percebo seu
movimento sem ver seu fim, só posso medi-lo do momento em que observo o corpo
mover-se até o momento em que já não o vejo. Se o vejo por muito tempo, apenas
posso afirmar que a duração de seu movimento é longa, mas não posso dizer
quanto é longa, porque só determinamos o valor de uma duração comparando-a.
Dizemos, por exemplo:

"isso durou tanto quanto aquilo, ou essa duração é o dobro daquela", semelhantes.
Se podemos notar o ponto do espaço onde se inicia um movimento, e o ponto de
chegada, ou suas partes, se ele se movesse em círculo, poderíamos dizer quanto
tempo levou para ir de um ponto a outro o movimento do corpo ou dessas partes.

Assim, o movimento de um corpo é diferente da medida de sua duração; que não
vê, pois, a qual dessas coisas se deve chamar de tempo? Se um corpo se move de
forma irregular, e outras vezes se detém, ora, é o tempo que nos permite medir,
não apenas seu movimento, mas também seu repouso, e afirmar: "Ficou em
repouso por tanto tempo quanto em movimento – ou qualquer outro intervalo
que tenhamos calculado ou estimado aproximadamente". O tempo não é pois a
mesma coisa que o movimento.

CAPÍTULO XXV - Prece

Confesso-te, Senhor, que ainda não sei o que é tempo. E torno a confessar, Senhor,
eu o sei, que digo estas coisas no tempo, e que de há muito estou falando do
tempo, e que esse muito também não seria o que é senão pela duração do tempo.
Mas como posso saber isto, se desconheço o que é o tempo? Talvez eu ignore a
arte de exprimir o que sei. Ai de mim, que não sei nem mesmo o que ignoro! Eis-
me diante de ti, meu Deus, tu vês que não minto e que falo de coração. Acenderás
minha candeia, Senhor meu Deus, e iluminarás minhas trevas.

CAPÍTULO XXVI - O tempo, distensão da alma

Acaso minha alma não foi sincera confessando-te que posso medir o tempo? De
fato, meu Deus, eu o meço, e não sei o que meço. Meço o movimento dos corpos
com o auxílio do tempo, e não poderei medir o tempo do mesmo modo? E poderia
eu medir o movimento de um corpo, sua duração, o tempo que gasta para ir de um
lugar a outro, sem medir o tempo em que se move?

Mas o tempo em si, com que o poderei medir? É com um tempo mais curto que
medimos um mais longo, como medimos uma viga com o côvado? Do mesmo modo
medimos a duração de uma sílaba longa com a duração de uma sílaba breve,
dizendo que uma é o dobro da outra. Do mesmo modo medimos a extensão de um
poema pelo número de versos, a extensão dos versos pelo número de pés, a
extensão dos pés pelo número de sílabas, a duração das sílabas longas pela
duração das breves. Não é pelas páginas dos livros que fazemos esse cálculo, o que
seria medir o espaço e não o tempo. Conforme as palavras passam e as
pronunciamos, dizemos: "Eis um poema longo, porque se compõe de tantos versos;
esses versos são longos, porque são formados de tantos pés; esses pés são longos,
porque se estendem por tantas sílabas; esta sílaba é longa, porque é o dobro de
uma breve".

Todavia, não conseguimos uma medida exata do tempo; pode acontecer que um
verso mais curto, se pronunciado mais lentamente, se estenda por mais tempo que
um verso mais longo, recitado depressa. O mesmo acontece com um poema, um
pé, uma sílaba.

Por esse motivo é que o tempo me pareceu não ser nada mais que uma extensão.
Mas extensão de que? Não saberia dize-lo ao certo; seria de admirar que não fosse
extensão da própria alma. Portanto, dize-me , meu Deus, que é o que meço quando
digo um tanto vagamente:

"Este tempo é mais longo do que aquele" – ou mais exatamente: "Este tempo é o
dobro daquele?

– Meço o tempo, eu o sei; mas não o futuro, que ainda não existe, nem o presente,
porque não tem duração, nem o passado, porque não existe mais. Que meço eu
então? Acaso o tempo que passa, e não o tempo passado, como disse acima?

CAPÍTULO XXVII - A medida do passado

Insiste, ó minha alma, e presta grande atenção: Deus é nosso apoio. Ele é que nos
criou, e não nós. Olha para lá, par o lado onde desponta a aurora da verdade.

Eis, por exemplo, que uma voz corpórea começa a ressoar, e soa, e continua
vibrando e deixar de soar; faz-se silencio, a voz calou-se, passou e deixa de existir.
Antes de soar, era futura, e não podia ser medida, pois ainda não existia; e agora
também não o pode, porque já não existe mais. Só poderíamos medi-la quando
ressoava, porque então havia o que medir. Mas mesmo então não era estável,
porque vinha e passava. E não seria isso que a tornava mensurável?

Porque enquanto passava, estendia-se por um espaço de tempo que a tornava
capaz de ser medida, porque o presente não tem duração alguma.

Admitamos que foi possível medi-la; eis, suponhamos agora, uma outra voz que
começa a se fazer ouvir; ela vibra de modo contínuo, sem nenhuma interrupção.
Meçamo-la enquanto vibra, porque no momento em que deixar de vibrar será
passada, e já não poderá ser medida. Meçamo-la, então, e avaliemos sua duração.
Mas ela vibra ainda, e só pode ser medida depois do início do fenômeno, quando
começa a vibrar, até seu fim, quando deixa de vibrar. Porque é precisamente o
intervalo que separa um começo de um fim que nós medimos. Por isso, uma voz,

que ainda não terminou de ressoar, escapa à medida: é impossível dizer se ela
será longa ou breve, se é igual a outra, simples ou dupla, ou qual a relação que
tem com essa outra. Mas quando terminar de soar, deixará de existir. Como,
então, poderemos medi-la?

De fato, medimos o tempo; mas não o tempo que ainda não existe, nem o que já
não existe, nem o que não tem duração alguma, nem o que está passando. Não é,
portanto, nem o futuro, nem o passado, nem o presente, nem o que não tem
limites que medimos: e, contudo, medimos o tempo.

Deus creator omnium (Deus, criador de tudo quanto existe): este verso é formado
de oito sílabas, alternativamente breves e longas. As quatro breves, a primeira, a
terceira, a quinta e a sétima – são simples em relação às quatro longas: a
segunda, a quarta, a sexta e a oitava. Cada sílaba longa tem uma duração duas
vezes maior que a breve. Eu pronuncio e percebo que é assim pelo testemunho
claro de meus sentidos. E por esta testemunho que é fidedigno, meço uma longa
por uma breve, e noto que ela a contém duas vezes.

Mas como uma sílaba só se faz ouvir depois da outra, se a breve vem primeiro, e a
longa a seguir, como poderei reter a breve, como aplicá-la à longa, para compará-
las e ver que esta contém aquela duas vezes, uma vez que a longa só começa a
soar quando a breve deixou de se ouvir? E a própria sílaba longa, não me é
possível medi-la enquanto está soando, porque eu só poderia medi-la quando se
calasse. Mas ela, ao terminar, passou. Que é pois que eu meço? Onde está a
breve, que seria minha medida? Onde está a longa, que meço? Apenas vibraram,
foram-se, passaram, e não existem mais. Não obstante, eu as meço e respondo com
a segurança que me pode dar um sentido bem educado, que evidentemente uma é
de duração simples e a outra dupla. Mas só poderei fazê-lo depois que ambas
passaram e terminaram.

Logo, eu não meço as sílabas, que não existem mais, mas algo que permanece
gravado em minha memória.

É em ti, meu espírito, que meço o tempo. Não me objetes nada, pois é assim. Não
te perturbes com as ondas desordenadas de tuas emoções. É em ti, digo, que meço
o tempo. A impressão que em ti gravam as coisas em sua passagem, perduram
ainda depois que os fatos passam. O que eu meço é esta impressão presente, e não
as vibrações que a produziram e se foram. É ela que meço quando meço o tempo.
Portanto, ou essa impressão é o tempo, ou eu não meço o tempo.

Mas quando medimos silêncios, e dizemos que o silêncio teve a mesma duração
que certa palavra, não estamos dirigindo nossa atenção para a medida dessa
palavra, como se ainda pudéssemos ouvi-la, para podermos avaliar no espaço de
tempo, o intervalo do silêncio? Com efeito, por vezes, sem abrir a boca ou dizer
palavra, fazemos mentalmente poemas, versos, discursos; avaliamos a extensão do
seu movimento, sua duração, uns em relação aos outros, exatamente como se
usássemos a voz.

Se alguém quisesse pronunciar um som prolongado, e regular antecipadamente,
em pensamento, sua duração, estima em silêncio a medida dessa duração e,
confiando à memória, começa a emitir o som, que vibra até atingir o limite fixado.
Ou melhor: esse som vibrou e vibrará, porque a parte que passou soou; a que
ainda resta, soará e chegará a seu fim. A atenção presente vai lançando o futuro
para o passado, e o passado cresce com a diminuição do futuro, até que, esgotado
o futuro, não haja mais que passado.

CAPÍTULO XXVIII - A medida do futuro

Mas o futuro, que ainda não existe, como pode diminuir ou consumir-se? E o
passado, que já não existe, como pode aumentar, a não se por existirem no
espírito, autor dessas três transformações: a espera, a atenção e a lembrança? O
objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança.

De fato, quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Todavia, a espera do
futuro já está no espírito. E quem poderá negar que o passado não mais existe?
Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito. Enfim, haverá alguém
que negue que o presente carece de duração, porque é um instante que passa? No
entanto, perdura a atenção, diante da qual o seu objeto presente continuamente
se retira. O futuro, portanto, não é longo, porque não existe. Um futuro longo
seria apenas uma longa espera do futuro. Nem pode ser longo o passado, que
também não existe. Um passado longo é uma longa lembrança do passado.

Digamos que eu queira cantar uma canção que conheço: antes de iniciar, minha
expectativa se estende pela melodia como um todo. Quando começo, tudo o que
vira passado é armazenada na memória. A atividade de meu espírito se divide em
memória, onde guardo o que já disse, e em expectativa em relação ao que vou
dizer. Contudo, a atenção está presente, e por seu intermédio o futuro se torna
passado. Quanto mais se aproxima o fim da canção, tanto menos se torna a
expectativa e tanto maior a memória, até que aquela se esgota e a ação cumprida
passa inteiramente para a memória.

E o que acontece com a canção tomada em seu conjunto, também ocorre com cada
uma de suas partes, com cada sílaba; e também acontece com uma ação mais
longa, da qual essa melodia talvez faça parte. O mesmo acontece com toda a vida
do homem, da qual seus atos são partes. Sucede, enfim, com toda a história dos
filhos do homem, da qual cada existência é apenas uma parte.

CAPÍTULO XXIX - A eternidade de Deus

Mas porque tua misericórdia é superior a todas as vidas, e eis que minha vida não
é mais que distensão, e tua destra me acolheu em meu Senhor, o Filho do homem,
mediador entre ti, que és uno, e nós, que somos muitos e vivemos divididos por
diversas paixões. Assim. Por ele me unirei àquele, que por ele se uniu a nós, e
liberto dos antigos dias, recolherei meu ser seguindo tua Unidade. Esquecido do
passado, sem me preocupar com as coisas futuras e transitórias, atento apenas
àquilo que é eterno, não com dispersão mas com todas as minhas forças buscarei a
palma da vocação celeste, onde ouvirei a voz de teu louvor, e onde contemplarei
tua alegria, que não conhece futuro nem passado.

Agora, porém, meus anos transcorrem em lamentos, e tu, meu consolo, ó Senhor,
meu Pai, tu és eterno. Mas eu me dispersei no tempo, cuja ordem ignoro;
tumultuosas vicissitudes despedaçam meus pensamentos, entranhas de minha
alma, até o dia em que, purificado pelo fogo de teu amor, me una a ti.

CAPÍTULO XXX - Deus e o tempo

E repousarei imutável em ti, em tua verdade, na minha forma. Não mais tolerarei
as perguntas das pessoas que, pela enfermidade que é a pena de seu pecado, tem
mais sede de saber do que lhes permite sua capacidade, que dizem: "Que fazia
Deus antes de criar o céu e a terra?" – ou ainda: "Como lhe veio a idéia de criar
algo, se antes nunca fizera nada" – Concede-lhes, Senhor, que reflitam no que
dizem, que compreendam que não se pode falar nunca onde não há tempo. Quando
se diz que alguém nunca fez nada, que se quer dizer senão que esse tal nada fez
em tempo algum? Que eles compreendam que não pode existir tempo na ausência
da criação, e deixem de semelhantes falácias.

Que também atentem para o que têm diante de si, para compreender que tu,
antes de todos os tempos, és o Criador eterno de todos os tempos, e que nenhum
tempo te é coeterno, nem criatura alguma, embora algumas estejam acima dos
tempos (Agostinho se refere aqui, aos anjos e demônios).

CAPÍTULO XXXI - Conclusão

Senhor, meu Deus, que abismos profundos os de teus segredos, e quão longe deles
me levaram as conseqüências de meus pecados! Cura meus olhos, para que eu me
alegre com tua luz!

Se houvesse de fato um espírito de ciência e de presciência tão grandes para
conhecer o passado e o futuro, como conheço qualquer canto popular, esse espírito
nos encheria de extraordinária admiração e espanto. Nada, com efeito, lhe seria
oculto no passado e nos séculos vindouros, exatamente como, ao entoar essa
melodia, sei tudo o que cantei desde o começo, e tudo o que falta cantar até o fim.
Mas longe de mim a idéia de identificar um tal conhecimento àquele que tens de
todas as coisas futuras e passadas, ó Criador do Universo, Criador dos espíritos e
dos corpos. Tua ciência é incomparavelmente mais admirável e mais misteriosa.

Porque aquele que canta ou escuta uma melodia conhecida, dividido entre a
expectativa das notas por vir e a lembrança das notas passadas, passa por
impressões diferentes. Mas contigo não se dá nada semelhante, tu que és
imutável e eterno, Criador verdadeiramente eterno dos espíritos. Como no
princípio, conheceste o céu e a terra, sem que teu espírito mudasse seu saber,
assim criaste o céu e a terra, sem que tua ação passasse por etapas distintas. Que
aquele que compreende isto te louve, assim como o que não compreende. Oh!
Como és sublime! E os de coração humildes são tua morada! Levantas os que
caíram, e os que graças a ti continuam eretos, não caem nunca.

LIVRO DÉCIMO-SEGUNDO

CAPÍTULO I - Prece

Inquieto está meu coração, Senhor, quando, na miséria de minha vida é atingido
pelas palavras de tua Escritura Sagrada. Por isso, geralmente, a abundância de
palavras é testemunho da pobreza da inteligência humana. A busca usa mais
palavras que a descoberta; é maior o pedir que o obter; a mão que bate cansa-se
mais do que a mão que recebe. Mas nós temos tua promessa: quem a destruirá?
Se Deus está conosco, quem será contra nós? Pedi, e recebereis; procurai e
encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á. Porque todo o que pede recebe, todo o que
procura encontra, e a todo o que bate se lhe abrirá.

São promessas tuas. E quem temerá ser enganado, quando a promessa vem da
Verdade?

CAPÍTULO II - O céu do céu

Que a humildade de minha língua confesse à tua grandeza que criaste o céu e a
terra; este céu que vejo, esta terra que piso, e de onde tiraste a terra que trago
em mim. Sim, criaste tudo isto.

Mas, Senhor, onde está o céu de que nos falou a voz do salmista: "O céu do céu
pertence ao Senhor, mas ele deu a terra aos filhos dos homens?" – Onde está esse
céu que não vemos, e diante do qual tudo o que vemos é apenas terra?

De fato, todo este mundo material, cuja base é a terra, embora não seja
inteiramente belo em toda parte, recebeu até em seus últimos elementos, uma
aparência atraente. Mas, comparado com esse céu do céu, o céu de nossa terra
também não passa de terra. Por isso, não é absurdo chamar de terra esses dois
grandes corpos visíveis, se os compararmos a esse céu misterioso que pertence ao
Senhor, e não aos filhos dos homens.

CAPÍTULO III - As trevas sobre o abismo

Mas esta terra era invisível e informe, era um profundo abismo acima do qual não
pairava nenhuma luz, pois não tinha nenhuma forma. Por isso inspiraste estas
palavras: "As trevas cobriam o abismo". – Mas que são trevas, senão ausência da
luz? De fato, se então existisse, onde estaria a luz senão sobre a terra, para

iluminá-la? Mas como a luz ainda não existia, o que era a presença das trevas,
senão a ausência da luz? As trevas reinavam sobre o abismo porque a luz não
existia, do mesmo modo que onde não há ruído reina o silêncio. E que significa
reinar o silêncio, senão falta de som?

Não ensinaste, Senhor, à alma que a ti se confessa? Não me ensinaste, Senhor,
que antes de receber de ti forma e figura esta matéria informe, não existia nada,
nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Não era um nada absoluto, mas
massa informe, sem figura alguma.

CAPÍTULO IV - A matéria informe

Que nome darei a esta matéria, como sugerir sua idéia às inteligências mais
curtas, senão usando um termo de uso corrente? O que se pode encontrar no
mundo que seja mais parecido com essa ausência total de forma, que a terra e o
abismo? Colocados no mais baixo grau da criação, eles não têm a beleza dos corpos
que no alto brilham de luz fulgurante.

Por que, então, não aceitar que essa matéria informe, que criaste sem beleza para
com ela moldar um mundo cheio de beleza, fosse comodamente designada aos
homens pelos termos de terra invisível e informe?

CAPÍTULO V - Sua natureza

Assim, quando o pensamento indaga o que nossos sentidos podem colher a
respeito dessa matéria, responde a si mesmo: "Não é nem forma inteligível, como
a vida, como a justiça, porque é a matéria corpórea, nem uma forma sensível,
porque nada há que se possa ver ou perceber no que é invisível e sem forma". –
Quando o pensamento humano fala desse modo, procura conhecê-la ignorando-a,
ou ignorá-la conhecendo-a?

CAPÍTULO VI - Em que consiste

Senhor, se pela boca e pela pena devo confessar-te o que me ensinaste sobre essa
matéria, eu direi que outrora ouvi falar, sem nada compreender, a respeito desse
nome por pessoas que também não entendiam. Tentei imaginá-la sob as formas
mais diversas, e não o consegui. Meu espírito revolvia confusamente formas feias
e horríveis, mas enfim sempre formas.

Chamava de informe essa matéria, não porque a imaginasse sem forma, mas por
tê-las tão estranhas e bizarras que, se a visse, afastaria meus sentidos e
confundiria minha fraqueza de homem.

Por isso, o que eu concebia era informe, não por ausência de qualquer forma, mas
por comparação com formas mais belas. A reta razão me persuadia; se eu quisesse
conceber algo absolutamente informe, a suprimir nele todo resquício de forma,
mas eu não conseguia; parecia-me bem mais fácil negar a existência do que estava
privado de toda forma, do que conceber um ser a meio termo entre a forma e o
nada, e que não fosse nem forma, nem nada, um ser informe, um quase nada.

Então, minha inteligência deixou de inquirir minha imaginação, cheia de imagens
de formas corpóreas, que ela variava e mudada a seu talante. Fixei a atenção nos
próprios corpos, analisei mais profundamente essa mutabilidade pela qual eles
cessam de ser o que eram e começam a ser o que não eram. Suspeitei que essa
transição de uma forma para outra se fazia por meio de algo informe, e não do
nada absoluto.

Mas meu interesse era saber, e não apenas supor; e se minha voz e minha pena te
confessassem em detalhes as soluções deste problema que me inspiraste, qual de
meus leitores teria paciência para me entender? Contudo, meu coração não
deixará de te honrar com cânticos de louvor por essas inspirações, por aquilo que
não têm palavras capazes de exprimir.

É a própria mutabilidade das coisas que é susceptível de assumir todas as formas
em que se transfiguram as coisas mutáveis. E o que é essa mutabilidade? É
espírito? Será talvez corpo?

Seria uma espécie de espírito ou de corpo? Se pudéssemos dizer: um nada que é
algo, ou o que é e não é, eu a chamaria assim. No entanto, era necessário que ela
existisse de alguma maneira, para tomar essas formas visíveis e complexas.

CAPÍTULO VII - A criação do nada

Mas de onde essa matéria tirava seu ser, senão de ti, por quem existe toda e
qualquer coisa? Quanto mais difere de ti uma coisa, mais longe de ti está – e não
se trata de distância espacial.

Portanto, és tu, Senhor que não mudas ao sabor das circunstâncias, mas que és

sempre o mesmo, o mesmo e o mesmo, santo e santo e santo, Senhor, Deus Todo-
Poderoso, és tu, Senhor, que no princípio, que vem de ti, em tua Sabedoria,
nascida de tua substância, fizeste algo do nada. Criaste o céu e a terra, e isso não
com tua substância, pois nesse caso, tua criação seria igual a teu Filho unigênito e,
por isso, iguais a ti mesmo. E não seria justo que o que não é da tua substância,
fosse igual a ti.

Mas fora de ti nada existia com que pudesses fazer o céu e a terra, ó Trindade una,
Unidade trina. Por isso criaste do nada o céu e a terra; duas realidades, uma
imensa e outra pequena. Porque és Todo-Poderoso e bom, e só podes criar coisas
boas: o grande céu e a pequena terra.

Fora de ti nada havia, e desse nada fizeste o céu e a terra, tuas duas obras: uma
próxima de ti, a outra próxima do nada. Uma que tem acima de si apenas a ti
mesmo, e outra que nada tem inferior a ela.

CAPÍTULO VIII - A terra invisível

Mas o céu do céu pertence a ti, Senhor; a terra, que deste aos filhos dos homens
para que a vissem e tocassem, não era tal como agora e vemos e tocamos. Era
invisível e informe: um abismo sobre o qual não havia luz. As trevas se estendiam
sobre o abismo – isto é: mais profundas que o abismo. Esse abismo das águas,
agora visíveis, tem até em suas profundezas uma luminosidade, perceptível aos
peixes e aos animais que se arrastam no fundo. Mas tudo isso era quase o nada,
sendo ainda completamente informe; porém já era um ser apto a receber uma
forma.

Senhor, criaste o mundo de uma matéria sem forma; do nada fizeste este quase
nada de onde tiraste as grandes coisas que admiramos, nós, os filhos dos homens.
Porque este céu corpóreo é de fato admirável, este firmamento que separa uma
água de outra, que criaste no segundo dia, depois da luz, dizendo: "Faça-se – e
assim se fez". Chamaste a este firmamento de céu: o céu desta terra e deste mar
que criaste no terceiro dia, dando forma visível à matéria informe, criado por ti
antes de todos os dias.

Já havias criado outro céu antes de haver dia; mas era o céu do céu, porque no
princípio criaste o céu e a terra. Quanto a esta mesma terra, nada mais era que
matéria informe, sendo invisível, caótica e as trevas reinando sobre o abismo. É
desta terra invisível, caótica, desta massa informe, deste quase nada, que

formaste todas as coisas de que é formado e não formado este mundo mutável,
domínio da transformação, que torna possíveis a percepção e a medida do tempo.
Porque o tempo é feito da mudança das coisas, de variações e transformações das
formas, cuja matéria é esta terra invisível, de que falei acima.

CAPÍTULO IX - A criação do tempo

Por isso, o Espírito que instruiu teu servo, quando relata que no princípio criaste o
céu e a terra, cala-se sobre o tempo, guarda silêncio sobre os dias. De fato, o céu
do céu, que fizeste no começo, é de alguma maneira uma criatura racional que,
mesmo sem ser coeterna contigo, ó Trindade, participava todavia de tua
eternidade. A doçura de te contemplar beatamente a mantém imóvel e unida a ti
sem movimento, e desde sua criação escapa às vicissitudes fugazes do tempo.

Porém, esta massa informe, esta terra invisível, este caos, tu não o enumeraste
entre os dias; de fato, onde não há forma nem ordem, nada vem, nada passa e,
portanto não pode haver nem dias, nem sucessão de espaços temporais.

CAPÍTULO X - Invocação à verdade

Ó Verdade, luz de meu coração, faze com que se calem as minhas trevas. Deixei-me
cair nelas e fiquei às escuras; mas, mesmo do fundo desse abismo, eu te amei
ardentemente. Andei, errante, mas lembrei de ti. Ouvi tua voz atrás de mim, que
me exortava a que voltasse; mas dificilmente podia escutá-la, por causa do
tumulto de minha alma. E agora, eis que, ardente e anelante, volto à tua fonte.
Que ninguém mo impeça; beberei de sua água, e assim viverei. Que não seja eu
minha própria vida! Vivi mal por minha culpa, e fui a causa de minha morte. Em ti
eu revivo! Fala-me, ensina-me. Creio em teus livros, e tuas palavras encerram
profundos mistérios.

CAPÍTULO XI - As criaturas e o criador

Já me disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que és eterno, e
que só tu possuis a imortalidade, porque não mudas nem de forma, nem de
movimento; tua vontade não varia conforme o tempo, pois a vontade mutável não
é imortal. Esta verdade me é clara em tua presença. Peço-te que ela se torne para
mim cada vez mais clara, e sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que todas as

naturezas, todas as substâncias que não são o que és, mas que existem, tu as
criaste; que só o nada não provém de ti, assim como o movimento de uma vontade
que se afasta de ti, Ser supremo. Enfim, que nenhum pecado te causa dano, nem
perturba a ordem de teu império, superior ou inferior. Essa verdade é clara para
mim em tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que
sob tuas asas eu me mantenha atento a esta evidência.

Também disseste, Senhor, com voz forte ao ouvido de minha alma, que essa
criatura, que tem em ti seu único deleite, não te é coeterna; que goza de ti em
união casta e duradoura, sem nunca trair em parte alguma sua natureza mutável;
que, se conserva sempre em tua presença e unida a ti com todo seu amor, não tem
de esperar futuro, nem que recordar passado, imutável pois com o tempo e o vir a
ser. Feliz criatura, se existe, por participar de tua felicidade, feliz de ser
perenemente habitada e iluminada por ti! Nada encontro que melhor se possa
chamar de céu de céu que pertence ao Senhor, que a esta habitação de tua
divindade, que contempla tuas delícias sem que nada a afaste para outras partes.
Puro espírito, intimamente ligado por um elo de paz com esses santos, espíritos,
cidadãos de tua cidade, situada no céu e acima do nosso céu.

Diante disso, possa a alma, cuja peregrinação afastou de ti, compreender se já tem
sede de ti, se seu pranto se tornou seu pão, quando todos os dias lhe dizem: Onde
está teu Deus? – se ela deseja apenas habitar em tua morada todos os dias de sua
vida. E que é sua vida, senão tu?

Que são teus dias, senão tua eternidade, como teus anos que não passam, porque
és sempre o mesmo? Por isso, digo, faça compreender à alma, se possível, como
tua eternidade transcende todos os temos. Tua morada, que nunca se afastou de
ti, embora não te tendo coeterna, graças à sua incessante e ininterrupta união
contigo, não padece de vicissitudes do tempo. Essa verdade é clara para mim em
tua presença. Peço-te que se torne para mim cada vez mais clara, e que sob tuas
asas eu me mantenha atento a esta evidência.

Vejo, de fato, não sei que matéria informe nas transformações das coisas últimas e
ínfimas. Mas quem dirá, a não ser o insensato, cujo espírito vagueia entre
quimeras, à mercê de seus fantasmas, quem, salvo este, ousaria afirmar que, se
toda forma fosse destruída, abolida, restando apenas a matéria informe, graças à
qual as coisas se transformam e passam de uma forma para outra, ela poderia
produzir as vicissitudes do tempo? Não, tal hipótese é absolutamente impossível,
pois sem variedade de movimentos não há tempo; e não há variedade onde não
há forma.

CAPÍTULO XII - A criação e a eternidade

Bem consideradas estas coisas, por graça tua, meu Deus, e como me incitasse a
bater, e como me abres quando bato, encontro duas criações tuas não afetadas
pelo tempo, embora nenhuma delas te seja coeterna. Uma, que criaste tão
perfeita que jamais deixa de te contemplar, que não sofre nenhuma mudança,
embora de natureza mutável, e goza de tua eternidade e de tua imutabilidade.
Outra, informe, a ponto de lhe ser impossível passar de uma forma para outra,
quer no movimento, quer no repouso, e, portanto, incapaz de estar sujeito ao
tempo. Mas tu não a deixaste informe pois, antes de qualquer dia, fizeste no
principio o céu e a terra, as duas obras de que falava.

Mas a terra era invisível e informe, e as trevas reinavam sobre o abismo. Por
essas palavras, a Escritura sugere a idéia de algo informe, para ensinar aos poucos
aos espíritos que não podem conceber que a falta absoluta de forma não se
confunde com o nada. É dessa massa informe que deveria ser criado um segundo
céu, uma terra visível, ordenada, a água cristalina, e enfim tudo o que foi feito na
criação, de acordo com a tradição das Escrituras, em dias sucessivos.

E essa obra é tal que, devido à mudanças regulares de seus movimentos e formas,
está sujeita às vicissitudes do tempo.

CAPÍTULO XIII - O céu e a terra em Gênesis

"No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as
trevas se estendiam sobre o abismo." Ouço estas palavras, meu Deus, e não
encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que
se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece
simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por
inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como
disse, simultaneamente, sem a seqüência temporal. Concluo também que se trata
da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto,
ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo.

Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamente
informe, o céu, isto é: o céu do céu, e a terra, isto é: terra invisível e informe, é
bem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: "No princípio
criou Deus o céu e a terra". E acrescenta imediatamente de que terra se trata. E,
indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de céu, dá

a entender também de que céu falara antes, sem precisar o dia.

CAPÍTULO XIV - A profundidade das Escrituras

Admirável profundidade das tuas palavras! Sua aparência nos acaricia, como se
acariciam as crianças! Sim, admirável profundidade, meu Deus, admirável
profundidade! O meditá-las causa um arrepio sagrado, tremor de respeito,
estremecimento de amor. Odeio com veemência seus inimigos. Oh! Se pudesses
fazê-los morrer sob teu gládio de dois gumes, para que não tivessem mais
inimigos! Desejaria que eles morressem para si mesmos, e que vivessem só para
ti.

Mas há outros que não censuram mas, pelo contrário, exaltam o livro de Gênesis,
e que dizem: "Não é isto que quis dizer por essas palavras o Espírito de Deus, que
as inspirou a teu servo Moisés. Não, o que ele quis dizer não é o que dizes, mas o
que nós dizemos" – Eis, ó Deus de todos nós, o que eu lhes respondo: sê nosso
árbitro.

CAPÍTULO XV - O que dizem seus inimigos

Ousareis apontar como falso o que, com voz clara, a Verdade disse ao ouvido de
minha alma sobre a verdadeira eternidade do Criador: ou seja, que sua substância
não varia no tempo, e que sua vontade se confunde com sua substância? E que por
isso ele não quer ora isto, ora aquilo, mas quer o que sempre quis,
simultaneamente e para sempre. Sua vontade não se exerce repetidas vezes, não
se propõe ora esta, ora aquela finalidade, não quer o que antes não queria, nem
deixa de querer o que antes queria, uma vez que tal vontade seria mutável, e o
que é mutável não é eterno; ora, nosso Deus é eterno.

Tereis por falazes as palavras da Verdade faladas ao ouvido de minha alma: que a
espera das coisas futuras se torna contemplação, quando presentes, e que depois
se transforma em memória, quando passadas? Que todo pensamento que varia
assim é mutável, e que nada do que é mutável é eterno? Ora, nosso Deus é
eterno. E, reunindo e condensando estas verdades, deduzo que meu Deus, o Deus
eterno, não criou o mundo por um novo ato de volição, e que sua ciência não
admite nada que seja transitório.

Que respondeis, então, meus contraditores? Será isso falso? – Não, dizem eles. –
Mas então? Será que erro afirmar que toda criatura que tem forma, que toda

matéria susceptível de tê- la recebe seu ser somente daquele que é Bondade
soberana, porque ele é Ente supremo? – Também não o negamos. – Então, que
negais? Negais talvez que haja uma criatura sublime, unida por um casto amor ao
Deus verdadeiro e eterno, sem lhe ser coeterna, que dele não se separa nem se
desvia para as várias vicissitudes do tempo, mas, pelo contrário, repousa apenas
em sua contemplação? Com efeito, te ama tanto quanto pedes, ó Deus, e mostras
a ela tua face e a sacias, e ela jamais se afasta de ti, nem rumo a sim mesma. Ela é
a morada de Deus, não terrena, e nem formada de substância do céu material,
habitáculo espiritual que participa de tua eternidade, imaculada por toda a
eternidade. Tu a fundaste pelos séculos dos séculos; estabeleceste uma ordem, que
não passará jamais. Contudo, essa lei não é coeterna, porque teve princípio, foi
criada.

Não encontramos o tempo antes dessa criação, porque a sabedoria foi a primeira
de todas as tuas criações. E é claro que não me refiro à Sabedoria da qual és Pai, ó
nosso Deus, e que te é perfeitamente igual e coeterna, por quem todas as coisas
foram criadas, e que é o princípio em que criaste o céu e a terra; refiro-me à
sabedoria criada, dessa essência intelectual que, pela contemplação da luz,
também é luz; a esta, embora criada, também chamamos de sabedoria. E assim
como a luz que ilumina difere da luz refletida, a sabedoria criada difere da
sabedoria incriada; e a justiça justificante difere da justiça nascida da justificação.
Nós fomos também chamados de tua justiça. Porque um de teus servos disse: "Para
que, em Cristo, nos tornemos a justiça de Deus". – Há portanto, uma sabedoria
criada antes de todas as coisas, e ela foi criada como espírito racional e
inteligente, que habita tua cidade santa, nossa mãe, que está no alto, livre e
eterna nos céus – e em que céus, senão aos céus dos céus, que te louvam, esse céu
que pertence ao Senhor? – Se não encontramos o tempo antes dessa sabedoria, é
porque ela precede à criação do tempo, tendo sido criada primeiro, mas antes dela
há a eternidade de seu Criador, de quem recebeu sua origem, e não do tempo,
pois este ainda não existia, mas pela sua condição de criatura criada.

Ela procede pois, de ti, nosso Deus, embora seja de essência absolutamente
diversa da tua. Não encontramos nenhum tempo, não apenas antes dela, mas nela
própria, porque ela é capaz de contemplar sempre tua face sem jamais se apartar
de ti, sendo incólume às mudanças e às variações. Contudo, há nela certa
mutabilidade que poderia torná-la tenebrosa e gélida, não fosse o grande amor
que a une a ti e que brilha como meridiana luz e calor.

Ó morada luminosa e pura! Amei tua beleza e o lugar onde mora a glória de meu
Senhor, teu criador e possuidor. Por ti eu suspiro durante meu exílio! Peço àquele

que te criou que me possua também em ti, pois também me criou. Errei como
ovelha desgarrada, mas espero ser reconduzido a ti nos ombros de meu pastor,
teu arquiteto.

Que me respondeis a isto, meus contraditores, vós que, também considerais
Moisés um servo piedoso de Deus, e seus livros como oráculos do Espírito Santo?
Não será esta a casa de Deus que, sem lhe ser coeterna, é contudo, á sua maneira,
eterna nos céus? Em vão buscais aí as vicissitudes do tempo, pois não as
encontrareis, uma vez que ela transcende toda extensão, toda volubilidade do
tempo, e sua felicidade é estar intimamente unida a Deus para sempre.

– Assim é – dizem eles.

Mas então, qual das verdades que meu coração proclamou diante de Deus, quando
escutava em meu íntimo a voz que canta sal glória, podeis apontar como falsa? O
que disse sobre matéria informe, na qual não podia haver ordem por carecer de
forma? Mas onde não havia ordem não podia haver vicissitude de tempo; mas
esse quase nada, enquanto não era o nada absoluto, provinha certamente daquele
de onde nasce tudo o que, de algum modo, existe.

– Tampouco negamos isto – dizem eles.

CAPÍTULO XVI - Outros adversários das Escrituras

Quero discutir diante de ti apenas com os que reconhecem por verdadeiras as
afirmações que tua verdade revelou à minha inteligência. Os que o negam, que
ladrem quanto quiserem, até ficar roucos. Tentarei persuadi-los a que se acalmem,
e dêem acesso em seus corações à tua palavra. Se não o quiserem e me repelirem,
peço-te, meu Deus, que não te cales, não te afastes de mim. Fala com verdade em
meu coração, porque só tu podes falar assim. E eu os deixarei fora, soprando o pó e
levantando terra contra os próprios olhos. Retirar-me-ei em mim mesmo,
levantando a ti cânticos de amor, soluçando altos gemidos durante meu exílio,
lembrando-me de Jerusalém, voltando para ela meu coração – Jerusalém, minha
pátria e minha mãe – e para ti, que reinas sobre ela, seu pai, sua luz, seu tutor,
seu esposo, suas castas e grandes delícias, sua firme alegria, enfim, todos seus
bens inefáveis, porque és o único, soberano e verdadeiro Bem. Não me apartarei
de ti até que reúnas todas as partes dispersas e deformadas do meu ser na paz
dessa mãe muito amada, onde estão as primícias de meu espírito, e de onde me
vêm todas as certezas, e nela me reformes e confirmes por toda a eternidade, ó

meu Deus, minha misericórdia.

Àqueles que, sem negar essas verdades, respeitando tua Escritura Sagrada, obra
do piedoso Moisés, e reconhecendo nela, conosco, a mais alta autoridade a seguir,
e contudo nos opõem alguma objeções, dirijo estas palavras: "Tu, que és nosso
Deus, serás árbitro entre minhas confissões e suas objeções".

CAPÍTULO XVII - Opiniões diversas sobre o céu e a terra

Eles dizem: "Sem dúvida, isso é verdade, mas não era isso que Moisés queria
exprimir quando, inspirado pelo Espírito Santo, escreveu: "No princípio criou Deus
e céu e a terra" – Pela palavra céu, ele não quis significar essa criatura espiritual
ou intelectual, que contempla eternamente a face de Deus; e pela palavra terra,
uma matéria informe. – Que quis dizer então? – O que nós afirmamos – respondem
– isso é o que Moisés quis dizer, e o que expressou naquelas palavras. – E que é
que afirmais? – Pelas palavras céu e terra quis significar, em primeiro lugar,
globalmente e de forma concisa, todo o mundo visível, para em seguida
pormenorizar, enumerando os dias, ponto por ponto, esse conjunto que aprouve
ao Espírito Santo designar com uma expressão global. O povo rude e carnal ao
qual falava era constituído de homens tais que julgou conveniente dar-lhes a
conhecer apenas as obras visíveis de Deus".

Quanto a esta terra invisível e informe, a este abismo de trevas, com que, durante
seis dias, foram sucessivamente criadas e ordenadas todas as coisas visíveis que
são conhecidas de todos, eles concordam comigo em que se pode entender com
isso, sem erro, essa matéria informe de que falei.

Algum outro dirá, talvez, que a realidade invisível e visível não foi chamada
impropriamente de céu e terra, e portanto, que o universo criado por Deus na
sabedoria, isto é, no princípio, está compreendido sob esses dois termos. Porém as
coisas não foram feitas da substância de Deus, mas do nada, e não se confundem
com Deus, e nelas existe o princípio da mutabilidade, quer permaneçam como
morada eterna de Deus, quer mudando-se como a alma e o corpo do homem.

Por isso a matéria comum a todas as coisas invisíveis e visíveis, matéria ainda
informe, mas susceptível de forma, e de onde se fariam o céu e a terra – em outras
palavras, a criação invisível e visível – mas uma e outra tendo recebido forma, foi
designada por essas expressões de terra invisível e informe, e de trevas reinando
sobre o abismo. Com a seguinte distinção: por terra invisível e informe deve-se

entender a matéria corpórea antes de ser qualificada pela forma; e por trevas
reinando sobre o abismo, a matéria espiritual antes da restrição de sua, digamos,
imoderada fluidez, e antes de ser iluminada pela sabedoria.

Poderia alguém afirmar, se quisesse: Esses termos céu e terra não significam
realidades perfeitas e acabadas, lá onde lemos: No princípio Deus criou o céu e a
terra – mas um esboço ainda informe, uma matéria passível de receber forma e
servir para a criação; nela já existiam, como que um embrião, sem distinção de
formas e de qualidades, essas criaturas, uma espiritual, e outra material que,
ordenadas como estão agora, são chamadas de céu e terra.

CAPÍTULO XVIII - Outras interpretações

Ouço e considero todas essas teorias, mas não quero discutir por questões de
palavras, o que não serve para nada, senão para a confusão dos ouvintes. Pelo
contrário, a lei é boa para a edificação se dela se faz uso legítimo, porque sua
finalidade é a caridade que nasce de um coração puro, de uma boa consciência e de
uma fé não fingida. Nosso Mestre sabe quais dos dois preceitos em que resumiu
toda a lei e os profetas. A mim, que observo com zelo tais preceitos, ó meu Deus,
luz de meus olhos na escuridão, que me importa que possa que possa encontrar
sentidos diferentes para essas palavras, se todos são verdadeiros? Que me
interessa, digo eu, que outros compreendam o texto de Moisés de modo diferente
do meu? Nós todos que o lemos procuramos indagar e compreender o pensamento
do autor. E como o julgamos verídico, não ousamos admitir que ele pusesse dizer o
que sabemos ou o que consideramos falso.

Assim, nos esforços que fazemos para compreender, na Escritura Sagrada, a idéia
que o escritor quis transmitir, onde está o mal se o leitor interpreta o sentido que
tu, Luz de todas as inteligências sinceras, lhe fazes parecer verdadeiro, embora
talvez não tenha sido este o pensamento do autor? E considerando que ele,
pensando de outra maneira, só pensou verdades?

CAPÍTULO XIX - A verdade

A verdade, Senhor é que criaste o céu e a terra. A verdade é que o princípio é tua
Sabedoria, em que criaste todas as coisas. É também verdade que este mundo
visível se compõe de duas grandes partes, o céu e a terra, síntese de todas as
realidades criadas. É ainda verdade que tudo o que é mutável sugere a nosso
pensamento a idéia de algo informe, susceptível de tomar forma, de mudar e de se

transformar.

A verdade é que um ser tão intimamente unido a uma forma mutável que, embora
sujeito em si a mudanças, nunca se transforma, não está sujeito ao tempo. A
verdade é que a massa sem forma, que é quase o nada, não pode conhecer as
vicissitudes do tempo. A verdade é que a matéria que constitui uma coisa, se
assim podemos falar, toma o nome dessa coisa, e portanto, podemos chamar de
céu e de terra a essa massa informe com a qual foram feitos o céu e a terra.

A verdade é que, de tudo o que recebeu forma, nada se aproxima mais do informe
que a terra e o abismo. A verdade é que não apenas tudo o que foi criado e
formado, mas ainda tudo o que possa ser criado se origina de ti, tu que és o autor
de tudo que existe. A verdade é que tudo o que é formado a partir do informe,
primeiro é informe, e depois recebe forma.

CAPÍTULO XX - O princípio e suas interpretações

Todas essas verdades, das quais não duvidam os que de ti receberam a graça de
ver com os olhos da alma, e que crêem firmemente que teu servo Moisés falou em
espírito de verdade, há quem dê esta interpretação: "No princípio Deus criou o céu
e a terra" – isto é, Deus criou, em seu Verbo, que lhe é coeterno, o mundo racional
e sensível, ou espiritual e corporal. Outro diz: "No princípio Deus criou o céu e a
terra" – isto é, Deus criou em seu Verbo, que lhe é coeterno, toda a massa do
mundo corpóreo, com tudo o que contém de realidades, manifestamente
conhecidas.

Um terceiro diz: "No princípio Deus criou o céu e a terra" – isto é, Deus criou em
seu Verbo, que lhe é coeterno, a matéria informe das criaturas espirituais e
corporais. Outro afirma: "No princípio Deus criou o céu e a terra" – isto é, Deus
criou a matéria informe das criaturas corporais, onde estavam ainda confundidos o
céu e a terra, que agora distinguimos na massa do universo, com suas formas bem
distintas e determinadas.

Um último diz: "No princípio Deus criou o céu e a terra" – isto é, desde que
começou a agir, Deus criou a matéria informe, onde estavam contidos
confusamente em potencial o céu e a terra, que depois receberam forma própria, e
que agora nos aparecem com tudo o que neles existe.

CAPÍTULO XXI - A terra invisível

O mesmo ocorre em relação à interpretação das palavras que se seguem. Entre
essas, todas verdadeiras, cada um escolhe uma. Este diz: "A terra era invisível e
caótica, e as trevas se estendiam sobre o abismo" – isto é, essa massa corpórea,
que Deus fez, era a matéria ainda sem forma, sem ordem, sem luz, das coisas
corpóreas.

Outro diz: "A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o
abismo" – isto é, esse conjunto que chamamos de terra e céu era a matéria ainda
informe e tenebrosa, da qual seriam tirados o céu e a terra corpóreos, com tudo o
que nossos sentidos físicos neles percebem.

Outro diz: "A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o
abismo" – isto e´, esse conjunto que chamamos de céu e de terra era a matéria
ainda informe e tenebrosa, donde seriam feitos o céu inteligível, noutros termos, o
céu do céu, e a terra, isto é, toda natureza corpórea, nela incluindo o céu material,
ou seja, a matéria de toda criatura visível e invisível.

Outro diz: "A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o
abismo" – isto é, não quis a Escritura chamar à massa informe de céu e de terra,
porque ela já existia; é dessa massa que ela chamou de terra invisível, caótica,
abismo de trevas, é dela, que Deus criou o céu e a terra, isto é, a criatura
espiritual e a corporal.

E outro ainda: "A terra era invisível e caótica, e as trevas se estendiam sobre o
abismo" – isto é, já existia uma matéria informe, da qual a Escritura diz que Deus
criou o céu e a terra, toda a massa corporal do mundo, dividido em duas grandes
partes, uma superior, outra inferior, com todas as criaturas nelas existentes e que
nos são familiares.

CAPÍTULO XXII - Objeções

Mas a essas últimas opiniões alguém poderia opor a seguinte objeção: "Se não
quereis dar o nome de céu e terra à matéria informe, havia então alguma coisa
não criada por Deus, e de que ele se serviria para criar o céu e a terra. De fato, a
Escritura, não diz que Deus criou essa matéria, a menos que consideremos que seja
ela o que chama céu e terra quando diz: "No princípio Deus criou o céu e a terra" –
No que se segue: "A terra era invisível e informe" – ainda que a Escritura quisesse
designar assim a matéria informe, nós apenas poderíamos entender com isso a
matéria criada por Deus, conforme está escrito: "Criou o céu e a terra" – Aos que

sustentam as duas últimas opiniões que acabamos de expor, ou de uma das duas,
respondem assim: "Não negamos que esta matéria informe seja obra de Deus, de
quem procede tudo o que é bom. De fato afirmamos ser um bem superior o que é
criado e plenamente formado, mas também dizemos que aquilo que é passível de
ser criado e receber forma, embora seja um bem inferior, é ainda um bem.

A Escritura não menciona a criação por Deus dessa matéria informe, mas deixa
também de falar de muitas outras coisas, como, por exemplo, da criação dos
querubins, dos serafins, dos tronos, das dominações, dos principados, das
potestades, todas criaturas que o Apóstolo menciona claramente, e que Deus
evidentemente criou. Se as palavras: "Deus criou o céu e a terra" – compreendem
todas as coisas, que diremos das águas sobre as quais pairava o Espírito de Deus?

Se pretendemos que sejam parte do que designa a palavra terra, como conceber
por isso uma matéria informe, quando vemos as águas tão belas? E, por outro
lado, por que está escrito que dessa matéria informe foi criado o firmamento,
chamado de céu, quando não se faz menção da criação das águas? Pois as águas
que vemos correr com harmoniosa beleza e não são nem informes, nem invisíveis!
E se elas receberam sua beleza quando Deus disse: "Que se reúnam as águas que
estão sob o firmamento! – e se nessa reunião receberam sua formação, que dizer
das águas que estão acima do firmamento? Informes, elas não teriam merecido
lugar tão honroso, nem é referido com que palavras foram formadas.

Assim, se o Gênesis é omisso quanto à criação de certas coisas, criação essa que
está acima de dúvidas para uma fé sadia e uma inteligência segura, e se nenhuma
doutrina racional ousa sustentar que essas águas são coeternas a Deus, pelo fato
de as vermos mencionadas no Gênesis sem a menção do momento de sua criação ,
por que haveríamos de aceitar, à luz da verdade, que essa matéria informe, que a
Escritura chama de terra invisível e desordenada e de abismo tenebroso, foi feita
por Deus do nada e por isso não é coeterna a Deus, embora a narração da
Escritura tenha deixado de referir o momento em que foi criada?

CAPÍTULO XXIII - A opinião de Agostinho

Ouço e medito essas opiniões na medida de meu fraco entendimento, que confesso
a Deus, embora ele bem o conheça. Vejo que se podem originar duas espécies de
opiniões sobre um testemunho de interprete fidedigno. Uma é reativa à
veracidade das coisas, e outra à intenção daquele que as enuncia. Procurar
conhecer a verdade sobre a criação é uma coisa; procurar saber o que Moisés,
grande servo de tua lei, quis o que o leitor ou ouvinte entendessem de suas

palavras, é outra.

Quanto à primeira opinião, longe de mim todos que têm como verdades os seus
erros!

Quanto à segunda, longe de mim todos os que julgam falsidade o que Moisés disse.
Possa eu unir-me em ti, alegrar-me em ti, Senhor, com aqueles que se alimentam
de tua verdade na imensidão da caridade. Aproximemo-nos juntos das palavras de
teu Livro, procurando tua vontade nas intenções de teu servo, a cuja pena as
revelaste.

CAPÍTULO XXIV - Qual a verdade?

Quem de nós, entre tantos significados possíveis que ocorrem aos estudiosos
quanto as varias interpretações de tuas palavras, poderá atinar com tais
intenções e declarar com segurança: "Eis o pensamento de Moisés, este é o
sentido que quis dar á sua narração". – Quem poderá declará-lo, com a mesma
segurança que ele, que essa narração é verdadeira, qualquer que tenha sido o
pensamento de Moisés?

Eis que eu, meu Deus, teu servo, te consagrei nesta obra o sacrifício de minhas
confissões; peço à tua misericórdia que me permita a realização desse desejo, e
declaro com toda segurança que criaste todas as coisas, as invisíveis e as visíveis,
pelo teu verbo imutável.

Mas poderei dizer com a mesma certeza que Moisés teve essa intenção, e não
outra, quando escreveu: "No princípio, criou Deus o céu e a terra"? – Embora
esteja persuadido de que isto está claro na tua verdade, não vejo com igual
certeza o que Moisés pretendia ao escrever tais palavras. Por essa expressão: "no
princípio" pode ter significado: "no começo da criação". Por céu e terra, pode ter
querido dar-nos a entender, a natureza espiritual e corporal, não já formada e
perfeita, mas uma e outra, só esboçada e sem forma. Vejo que ambos os sentidos
são igualmente plausíveis. Mas não posso atinar em qual dos dois pensava Moisés
quando escrevia essas palavras. Fosse porém qual fosse sua intenção ao exprimir
essas palavras, eu não poderia duvidar de que tão grande homem tenha
entrevisto a verdade e a tenha formulado adequadamente.

CAPÍTULO XXV - Os diversos partidos

Que ninguém me moleste portanto, dizendo: "O pensamento de Moisés não é o
que tu dizes, mas o que eu digo". – Se apenas me dissessem: "Como sabes que
Moisés de fato entendia essas palavras no sentido que lhe atribuis?" – Eu não me
agastaria, e responderia talvez o que respondi acima, ou até mais explicitamente,
se meu contraditor fosse insistente.

Quando porém, me dizem: "O pensamento de Moisés não é o que dizes, é o que eu
afirmo" – sem contudo provar a veracidade de uma ou outra interpretação, então,
ó vida dos pobres, ó meu Deus, em cujo seio não há contradição, inunda de paz o
meu coração, para que eu tenha paciência para suportar essas pessoas. Pois não
emitem tais opiniões inspirados por Deus, ou porque tenham lido o pensamento de
teu servo, mas porque são orgulhosos. Ignoram o pensamento de Moisés, mas só
apreciam o deles, e não por que seja verdadeiro, mas por ser o deles. Assim não
fosse, apreciariam igualmente a opinião alheia, quando verdadeira, assim como eu
aprecio o que eles dizem de verdadeiro, não porque vem deles, mas porque é
verdade, e que, por isso mesmo, é tanto deles como minha, pois pertence em
comum a todos os amantes da verdade.

Quanto à pretensão de que o pensamento de Moisés não está no que digo, mas no
que eles dizem, isso eu não aceito. Ainda que assim fosse, sua temeridade não é da
ciência, mas a da audácia; seria produzida não por uma intuição correta, mas pelo
orgulho.

Senhor, teu julgamento é terrível. Porque tua verdade nem é um bem meu, nem o
bem deste ou daquele: a verdade é o bem de todos nós; e tu nos conclamas
abertamente a que participemos dela, com a advertência severa de não a
possuirmos como bem privativo, para não sermos privados dela. De fato, quem
reivindica apenas para si o que ofereces para gozo de todos, e quer para si o que é
de todos, é rejeitado desse bem comum para o que é seu, isto é, da verdade para
a mentira: o que fala mentira fala do que é seu.

Ouvem, pois, juiz excelente, ó Deus, que és a própria Verdade: ouve o que
respondo a esse contraditor.

É diante de ti que falo, e na presença de meus irmãos que usam legitimamente da
lei, cujo fim á caridade. Escuta e vê o que lhes digo, se é de teu agrado. Eis as
palavras fraternas e de paz que lhe dirijo: "Quando ambos vemos que tuas
palavras são verdadeiras, ou as minhas palavras são verdadeiras, pergunto: onde
o vemos? Certamente não é em ti que eu a vejo, nem tampouco é em mim que tu

a vês. Ambos a vemos na verdade imutável, que está acima de nossas
inteligências".

Uma vez que não discordamos sobre essa luz do Senhor, nosso Deus, por que
discutir sobre o pensamento de nosso próximo? Nós não o podemos ver como
vemos a verdade imutável.

Se o próprio Moisés nos aparecesse e nos explicasse seu pensamento – nem assim
veríamos esse pensamento, mas apenas acreditaríamos nele. Cuidemos pois, de
não nos levantarmos orgulhosamente um contra o outro a respeito das Escrituras.
Amemos ao Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, de toda nossa alma, de
todo nosso espírito, e ao próximo como a nós mesmos. É segundo esses dois
preceitos da caridade que Moisés pensou aquilo que escreveu em seus livros. Não
acreditarmos nisso seria considerar o Senhor mentiroso, atribuindo a seu servo
sentimentos distintos daqueles que ele próprio lhe ensinou. Diante de tantos
pensamentos igualmente verdadeiros que podem ser deduzidos dessas palavras,
vê que estultice é afirmar temerariamente que Moisés teve este pensamento e
não aquele, ofendendo com nossas disputas perniciosas a caridade, por amor da
qual ele escreveu as palavras que procuramos interpretar!

CAPÍTULO XXVI - Agostinho no lugar de Moisés

Todavia, meu Deus, que me elevas em minha pequenez, que descansas minha
fadiga, que ouves minhas confissões e perdoas meus pecados, tu me ordenas que
eu ame a meu próximo como a mim mesmo; não posso crer que Moisés, teu servo
tão fiel, tenha sido aquinhoado com menos dons do que eu teria desejado e
apetecido se tivesse nascido em seu tempo, e me tivesses confiado a tarefa de te
servir com meu coração e minha língua, e disseminar essas Escrituras. Estas, tanto
tempo depois, deviam ser úteis a todos os homens e, pelo mundo afora, triunfar
com o prestígio de sua autoridade sobre as afirmações das doutrinas falsas e
orgulhosas.

Quereria, se estivesse no lugar de Moisés – pois todos procedemos da mesma
massa, e que é o homem se não te lembras dele? – e me tivesses confiado a
missão de escrever o Gênesis, quereria receber de ti tal eloqüência, tal qualidade
de estilo, que mesmo os espíritos incapazes de compreender como foi que Deus
criou, não pudessem rejeitar minhas palavras como superiores às suas forças; que
os que já o pudessem, descobrissem, nas poucas palavras de teu servo, todas as
verdades que sua reflexão já lhes tivesse proporcionado; e que se alguém, à luz de
tua verdade, nelas percebesse outro significado, também ele o pudesse encontrar

nessas mesmas palavras.

CAPÍTULO XXVII - Os diversos sentidos da Escritura

Assim como uma fonte, em seu pequeno leito, torna-se depois mais abundante e,
pelos diversos regatos que alimenta, banha espaços muito mais amplos que
qualquer um deles, que deslizam através de muitas regiões, assim também a
narração do ministro de tua palavra, que deveria alimentar a tantos interpretes,
faz brotar de seu estilo sóbrio e conciso torrentes de límpida verdade, de onde
cada um tira para si a verdade que pode, para depois desenvolvê-la em longas
sinuosidades de palavras.

Alguns, lendo ou escutando aquelas palavras, imaginam a Deus como homem ou
como massa material dotada de imenso poder que, por decisão nova e repentina,
criara fora de si mesma e como que à distância, o céu e a terra, esses dois grandes
corpos, um superior, outro inferior, onde estão contidas todas as coisas. E ao
ouvirem dizer:"Deus disse: faça-se isto! E isto foi feito! – imaginam que se trata de
palavras comuns, que começam e terminam, que soam no tempo e passam. Julgam
que, logo após pronunciadas, começa existir o que ordenaram que existisse. Todas
as suas demais concepções ressentem-se do mesmo hábito de pensar de modo
carnal.

Nisto são como crianças, pois enquanto essa linguagem humilde sustentar sua
fraqueza como o seio de uma mãe, o que se fortifica salutarmente é a fé, que lhes
faz ter como certo que Deus criou todas as realidades, cuja admirável variedade
impressiona a seus sentidos.

Mas, se alguém, desprezando a aparente simplicidade de tuas palavras, em sua
orgulhosa fraqueza, se lançar para fora do ninho que o nutriu, então cairá
miseravelmente, Senhor Deus, tem piedade dele! Que os transeuntes não pisem
este passarinho implume; manda teu anjo para que o reponha no ninho, para que
viva até que aprenda a voar!

CAPÍTULO XXVIII - Divergências

Para outros essas palavras não são um ninho, mas um vergel (jardim)
ensombreado onde descobrem frutos ocultos que procuram e colhem, voando e
cantando alegremente.

Quando lêem ou ouvem as palavras de Moisés, vêem que tua estável e eterna
permanência, ó Deus, domina todos os tempos passados e futuros, e por isso não
existe criatura corpórea que não seja obra tua. Vêem que tua vontade,
confundindo-se com teu ser, criou todas as coisas sem sofrer modificação, sem que
nasça nela uma decisão nova, que não existisse antes; que criaste o mundo, não
tirando de tua substância uma imagem tua, forma substancial de toda realidade,
mas tirando do nada uma matéria informe, diferente de ti mesmo; e esta poderia
ser formada à tua imagem pela volta à tua Unidade, segundo a medida
previamente estabelecida e concedida a cada ser, de acordo com sua espécie.
Vêem assim que todas as obras da criação são excelentes, ou porque permanecem
próximas a ti, ou porque, afastadas de ti no tempo e no espaço, fazem ou sofrem as
admiráveis variedades do mundo. Reconhecem essas coisas, e por isso se alegram
na luz de tua verdade, à medida que o podem com suas forças terrenas.

Outros, refletindo o sentido destas palavras: "No princípio criou Deus..." – vê no
princípio a Sabedoria, porque também ela nos fala.

Outro, ao considerar as mesmas palavras, entende por princípio o começo da
criação, e a expressão: "Deus criou no princípio" significa para ele: "Deus
primeiramente fez". E entre os mesmos que por princípio entendem que Deus criou
em sua Sabedoria o céu e a terra, um acredita que céu e terra designam a matéria
da qual o céu e a terra foram criados; outro pensa que a expressão se aplica a
naturezas já formadas e distintas; outro sustenta que a palavra céu significa
natureza formada e espiritual, a terra, a natureza informe e material.

Aqueles porém que entendem por céu e terra a matéria ainda informe, com a qual
viriam a ser formados o céu e a terra, não têm unanimidade: um concebe essa
matéria como origem comum das criaturas sensíveis e espirituais, outro apenas
como fonte de massa sensível e corpórea, contendo em seu vasto seio todas as
realidades visíveis, oferecidas a nossos sentidos.

Tampouco são unânimes os que crêem que nesse texto céu e terra se referem às
criaturas já formadas e dispostas; um acredita que se trata do mundo invisível e
visível; outro, apenas do mundo visível, onde se contempla o céu luminoso e a
terra tenebrosa, com tudo o que eles contêm.

CAPÍTULO XXIX - Dificuldades

Mas quem interpreta a palavra: "No princípio criou..." como se ela quisesse dizer:

"Primeiramente Deus criou..." – apenas pode entender, por céu e terra, se quiser
se manter coerente à verdade, a matéria do céu e da terra, isto é, da criação
universal, tanto espiritual como material.

Pois, se quiser referir-se com isso a um universo já inteiramente formado, seríamos
levados a indagar-lhe: "Se Deus criou isso antes, o que criou depois?" – Depois de
ter criado tudo, não encontrará mais nada para criar e, gostando ou não, ouvirá a
pergunta: "Como é possível que Deus tenha criado isso primeiro, se nada criou
depois?"

Se ele quer significar que Deus criou primeiro a matéria informe, e depois lhe deu
forma, já não é uma tese absurda, desde que seja capaz de discernir a prioridade
na eternidade, no tempo, na escolha, na origem. Na eternidade: Deus antecede
todas as coisas; no tempo: a flor precede o fruto; na escolha: o fruto vale mais do
que a flor; na origem: o som precede o canto.

Dessas quatro prioridades, a primeira e a última dificilmente se compreendem,
enquanto é bem fácil entender as outras duas. É de fato raro e dificultoso conceber
a tua eternidade criando, mas conservando-se imutável, as coisas mutáveis e, por
isso, antecedendo-as. E precisa ter uma inteligência penetrante para
compreender, sem grande esforço, como o som antecede o canto, uma vez que o
canto é o som organizado; e uma coisa pode muito bem existir sem forma, mas o
que não existe não pode receber forma. Assim, a matéria é anterior ao que dela se
forma. E não porque seja sua causa eficiente, pois também é objeto da criação;
nem tampouco porque lhe seja anterior no tempo. De fato, não emitimos em um
primeiro instante, sons desarticulados e informes, para depois os ligarmos e
formar uma melodia e um canto, como se faz com a madeira e a prata ao
fabricarmos uma arca ou um vaso.

Com efeito, essas matérias precedem no tempo os objetos que delas são feitos.
Mas com o canto não é assim. Quando se canta ouve-se o som do canto: não há em
primeiro lugar sons desorganizados, que depois assumem a forma de canto. Logo
que ele soa, o som se desvanece, e não deixa de si nada que se possa coordenar
com arte. Por conseguinte, o canto é formado de sons: o som é sua matéria e, para
se transformar em canto, recebe uma forma. A prioridade não se fundamenta em
um poder criador, porque o som não é o artífice do canto, mas é apenas posto pelo
corpo à disposição da alma do cantor, para que dele faça um canto. Nem se trata
de prioridade temporal: o som é produzido ao mesmo tempo que o canto.
Tampouco se trata de prioridade de escolha: o som não é superior ao canto, pois o
canto nada mais é que som, mas um som bonito. Trata-se apenas de uma

prioridade de origem, pois o canto não recebe forma para se tornar som, mas o
som para se tornar canto.

Compreende-se por esse exemplo, que a matéria das coisas foi criada antes, e
chamada de céu e terra, porque dela foram formados o céu e a terá. Não foi criada
antes em sentido cronológico, porque o tempo só tem início com a forma das
coisas; ora, a matéria era informe, e se tornou perceptível juntamente com o
tempo. Todavia, nada se pode mencionar dessa matéria a não ser alguma
prioridade temporal, embora ocupe a última posição na escala de valores, pois o
que tem forma é evidentemente superior ao que é informe. Ou que foi precedida
pela eternidade do Criador, que a fez para que fossem feitas do nada todas as
coisas.

CAPÍTULO XXX - Espírito de caridade

Nessa diversidade de opiniões verdadeiras, que da própria verdade brote a
concórdia! Que nosso Deus tenha compaixão de nós, para que usemos
legitimamente da lei segundo o preceito que tem por fim a caridade pura.

Por isso, se me perguntarem qual dessas opiniões foi a de teu servo Moisés, eu
não seria coerente com minhas confissões se não te confessasse que o ignoro.

Sei, contudo, que essas opiniões são verdadeiras, a não mera interpretações
materialistas, sobre as quais já disse tudo o que pensava. São como meninos
esperançosos aqueles que não temem as palavras do teu Livro, tão profundas em
sua humildade, tão eloqüentes em sua concisão. Mas nós todos que, eu o declaro,
distinguimos e dizemos a verdade sobre tais palavras, amemo-nos uns aos outros;
e amemos igualmente a ti, nosso Deus, fonte da Verdade, pois temos sede, não de
fantasias, mas da própria Verdade. Honremos a teu servo, que nos legou tua
Escritura, cheio de teu espírito, e estejamos certos que, ao escrever as palavras
que lhe revelaste, ele teve em mira as revelações mais salientes da verdade e
seus frutos proveitosos.

CAPÍTULO XXXI - O Gênesis e seu autor

Assim, quando alguém me diz: "O pensamento de Moisés é o meu" – e outro diz:
"Não, ele pensou como eu" – parece-me mais consoante ao espírito religioso dizer:
"Por que não admitir ambos os pontos de vista, se ambos são verdadeiros?" – E se
alguém descobrir um terceiro, um quarto sentido, e outros mais, desde que sejam

verdadeiros, por que não acreditar que Moisés viu todos eles, ele por cujo
intermédio o Deus único adaptou as Escrituras à inteligência da multidão, que
deveria descobrir-lhe significados diversos e verdadeiros?

Por mim, digo-o sem hesitar e do fundo do coração: se, investido da mais alta
autoridade, tivesse algo a escrever, preferiria fazê-lo de modo que minhas
palavras proclamassem tudo o que cada um pudesse conceber de verdadeiro sobre
isso, em vez de propor um significado único e claro que excluísse todos os demais,
cuja falsidade não me pudesse ofender. E também não quero, meu Deus, ser tão
temerário ao ponto de acreditar que esse grande homem não mereceu de ti essa
graça.

Moisés, redigindo esses textos, pensou, concebeu todas as verdades que já fomos
capazes de encontrar, e também as que não o pudemos, mas que podem ser
descobertas.

CAPÍTULO XXXII - Oração

Enfim, Senhor, tu que és Deus, e não carne e sangue, se um homem não pôde ver
tudo por completo, poderia teu Espírito bom, que me deve conduzir à terra da
retidão, desconhecer algo do que tencionavas revelar por essas palavras a seus
leitores vindouros, apesar de teu mensageiro não entender senão um dos
numerosos sentidos verdadeiros? Se assim é, o sentido que ele pensou era o mais
elevado de todos. Mas revela a nós, Senhor, esse sentido ou algum outro que for
de teu agrado e real; e quer nos mostres o mesmo sentido que ao homem de Deus,
quer seja outro, inspirado pelas mesmas palavras, alimenta nosso espírito, guarda-
nos da ilusão do erro.

Eis, Senhor meu Deus! Quantas páginas escrevi sobre tão poucas palavras! Deste
modo, minhas forças e o meu tempo serão suficientes para examinar todos os teus
livros? Permite-me, pois, abreviar minhas confissões e adotar uma única
interpretação, que me farás escolher como verdadeira, certa e boa, entre as
muitas outras que me poderão ocorrer. Que minha confissão seja fiel o bastante
para que eu tenha exatidão ao exprimir o pensamento de teu servo, pois para tal
me esforçarei; e, se não o conseguir, que eu pelo menos diga o que tua Verdade
me quis dizer por suas palavras, como ela disse a Moisés o que lhe aprouve.

LIVRO DÉCIMO-TERCEIRO

CAPÍTULO I - Invocação

Eu te invoco, ó meu Deus, minha misericórdia, que me criaste, e que não olvidaste
aquele que te esqueceu. Chamo-te à minha alma, que preparas para te receber
fazendo-te desejar por ela.

Não abandones ao que te invoca. Antes mesmo que eu te invocasse, já o tinhas
prevenido.

Muitas vezes me instaste, falando de mil modos diversos para que te ouvisse de
longe, para que me convertesse e invocasse por ti que me chamavas.

Senhor, apagaste todos os meus delitos para não ter de punir o que fizeram
minhas iníquas mãos, e te antecipaste a meus atos meritórios para me
recompensar do que fizeram tuas mãos, que me criaram; de fato, existias antes de
mim, e eu não era digno de receber de ti o ser.

Contudo, eis que existo, graças à tua bondade que precedeu tudo o que sou e do
que me fizeste. Não tinhas necessidade de mim, eu não sou um bem que te possa
ser útil, meu Senhor e meu Deus. Se estou a teu serviço, não é porque a ação te
cansa ou porque teu poder, privado de meus serviços, diminua; nem porque meu
culto seja para ti o que é a cultura para a terra, que sem ela ficaria estéril. Eu
devo te honrar para ser feliz em ti, a quem devo meu ser, capaz de felicidade.

CAPÍTULO II - A criação e a bondade de Deus

É pela plenitude de tua bondade que as criaturas subsistem, para que um bem,
para ti de todo inútil, ou de nenhum modo igualável a ti, embora saído de ti,
continuasse a existir, pois tu o criaste. Com efeito, que poderiam merecer de ti o
céu e a terra, que criaste no princípio? E digam, as naturezas espirituais e
corpórea, que méritos tinham a teus olhos, que as criaste em tua Sabedoria? Que
méritos, para receber de ti o ser, que mostram inacabado e informe, quando
tendem à desordem e se afastam de tua semelhança? O que é de natureza
espiritual, mesmo informe, é ainda superior a um corpo que recebeu forma; um
corpo sem forma é superior ao puro nada; ora, todas essas coisas continuariam
informes em teu Verbo, se essa mesma palavra não as recolhesse à tua Unidade,
comunicando-lhes a forma e a excelência graças apenas a ti, soberano Bem. Mas

que merecimentos antecipados apresentaram a teus olhos, para existir mesmo
informes essas criaturas que, sem que as criasses nem teriam existido?

E o que a matéria corporal merecera de ti para existir, mesmo invisível e caótica?
Nem mesmo essa existência teria, se não as tivesses criado. Não existindo ainda,
não podia ter merecimento algum para existir. E a criatura espiritual, ainda no
estado embrionário, que títulos teria, mesmo para ser essa coisa vagante e
tenebrosa, semelhante ao abismo, diferente de ti, se por teu Verbo não fosse
conduzida ao mesmo Verbo que a criou e se, iluminada por ele, também não se
transformasse em luz, não igual, mas análoga à tua imagem? Para um corpo, não é
a mesma coisa existir e ser belo, pois de outro modo não poderia viver e viver
sabiamente não são a mesma coisa, porque, se fosse, todo espírito seria imutável
em sua sabedoria.

Mas seu bem reside em se manter unido a ti, para não perder, afastando-se, a luz
que adquiriu com a tua proximidade, tornando a cair em uma vida semelhante a
um abismo de trevas.

E também nós, que por nossa alma somos criaturas espirituais, nós nos afastamos
de ti, nossa luz, nós fomos outrora trevas nesta vida e ainda padecemos por entre
os restos de nossas trevas, até que nos tornamos tua justiça em teu Filho único,
como as montanhas de Deus. Pois fomos objetos de teus juízos, que são profundos
como abismos.

CAPÍTULO III - A luz

Sobre as palavras que proferiste no começo da criação: "Faça-se a luz, e a luz foi
feita" – eu entendo que se adaptam com propriedade à criatura espiritual, que já
era uma espécie de via apta a receber tua luz. Mas assim como ela não tinha
merecido de ti ser essa espécie de vida apta a receber a luz, do mesmo modo, uma
vez criada, ela como as demais formas não mereceu de ti essa iluminação. Porque
sua informidade não te agradaria se não tivesse tornado luz, e isso não se
contentando com existir, mas contemplando a luz que a iluminava, unindo-se
intimamente a ela. Assim, ela devia a existência e o viver feliz apenas à tua graça;
voltada, por uma escolha feliz, para o que não pode mudar nem para melhor, nem
para pior. Voltou-se para ti, que és o único que existes, e só o teu ser é simples,
pois o viver e a felicidade são para ti a mesma coisa, porque és tua própria
felicidade.

CAPÍTULO IV - A bondade criadora

CAPÍTULO IV - A bondade criadora

Que faltaria, pois, a esse bem, que és tu mesmo, se nenhuma dessas criaturas
existisse, ou se tivesse permanecido informes? Tu as criaste, não por ter
necessidade delas, nem para aumentar tua felicidade, mas levado pela plenitude
de tua bondade, comunicando-lhes uma forma.

Na tua perfeição, desagrada-te sua imperfeição; tu as aperfeiçoas para que elas te
agradem, e não, com isso, aperfeiçoar a ti mesmo.

Com efeito, teu Espírito bom pairava sobre as águas, e não era por elas levado
como se nelas descansasse. Se diz que teu Espírito nelas repousava; mas era ele
que as fazia em si.

Incorruptível, imutável, bastando-se a si mesma, tua vontade era suspensa acima
da vida que tinhas criado, para a qual viver não é o mesmo que viver feliz, porque
ela vive, mesmo quando flutua sobre as trevas. Esta vida carece ainda voltar-se
para seu Criador, para viver cada vez mais próxima à fonte da vida, para ver a luz
na Luz divina, e nela haurir perfeição, brilho e felicidade.

CAPÍTULO V - A trindade

Mas eis que me aparece o enigma da Trindade que és, meu Deus. Porque tu, Pai,
criaste o céu e a terra no princípio de nossa Sabedoria, que é tua Sabedoria,
nascida de ti, igual e coeterna, a ti, isto é, em teu Filho.

Já falei longamente do céu do céu, da terra invisível e informe e do abismo das
trevas, onde a natureza espiritual errante e fluida permaneceria tal se não se
voltasse para Aquele de quem toda vida procede, para que, por meio de sua luz,
se tornasse viva e bela, o céu do céu, criado mais tarde entre a água superior e a
água inferior.

Pelo vocábulo "Deus" eu já entendia o Pai, que criou essas coisas; na palavra
"princípio" eu entendia o Filho, em quem ele as criou. E, como eu acreditava na
Trindade de meu Deus, eu a procurava em tuas santas palavras. E vi em tuas
Escrituras que teu Espírito pairava sobre as águas. Eis tua Trindade, meu Deus,
Pai, Filho, Espírito Santo, Criador de toda criatura!

CAPÍTULO VI - O espírito sobre as águas

CAPÍTULO VI - O espírito sobre as águas

Mas, ó luz da verdade, aproximo de ti meu coração para que ele não me ensine
falsidades; dissipa-lhe as trevas e dize-me, eu to suplico por nossa mãe, a caridade,
dize-me, por que só depois de ter nomeado o céu, a terra invisível e informe e as
trevas sobre o abismo, por que só então é que as Escrituras falam de teu Espírito?
Será porque convinha apresentá-lo assim pairando sobre alguma coisa? E seria
isso possível se não mencionasse primeiro sobre o que pairava? De fato, não era
sobre o Pai nem sobre o Filho que ele pairava, e seria impróprio falar assim se não
pairasse sobre alguma coisa.

Era pois, necessário, mencionar primeiro o elemento sobre o qual ele pairava, já
que convinha falar dele apenas dizendo que pairava. Mas por que não convinha
apresentá-lo senão dizendo que pairava?

CAPÍTULO VII - As águas sem substância

Agora, quem o puder com a inteligência, siga a teu Apostolo, quando ele diz que
tua caridade se difundiu em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado,
quando nos instrui sobre as coisas espirituais e nos indica o caminho excelso da
caridade, e dobra o joelho diante de ti por nossa causa, para que conheçamos a
ciência altíssima da caridade de Cristo. E é porque era super eminente desde o
princípio que pairava sobre as águas.

A quem e como falarei do peso da concupiscência, que nos arrasta para um abismo
profundo, e da caridade que nos eleva, com a ajuda de teu Espírito, que pairava
sobre as águas?

A quem falar, como falar? Nós submergimos e emergimos, mas não em abismos
materiais. A metáfora é a um tempo correta e muito inexata. São nossas paixões,
nossos amores, a impureza de nosso espírito que nos arrasta para baixo sob o peso
das preocupações. E é tua santidade que nos eleva pelo amor de tua paz, para que
levantemos nossos corações para junto de ti, onde teu Espírito paira sobre as
águas, e alcancemos o sublime repouso, quando nossa alma tiver atravessado
essas águas que são sem substância.

CAPÍTULO VIII - À luz que ilumina as trevas

O anjo caiu, a alma do homem caiu, revelando assim as profundas trevas em que

teria caído o abismo que continha todas as criaturas espirituais, se não tivesses
dito desde o começo:

"Faça-se a luz!" – se a luz não se tivesse feito, se todas as inteligências de tua
cidade celeste não se tivessem unido na obediência a ti, se não tivessem
repousado em teu Espírito que paira, imutável, sobre os seres transitórios. De
outro modo, até o céu do céu não seria mais que abismo de trevas, enquanto que
agora é luz no Senhor.

Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de
tua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua
criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde
encontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu,
Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas trevas
serão como o sol do meio-dia.

Dá-te a mim, meu Deus, entrega-te a mim. Eu te amo. Se meu amor é pouco, faze
que eu te ame com mais força. Não posso medir, não posso saber o que falta a meu
amor para que seja suficiente para que minha vida corra para teus braços, e dali
não saia antes de se esconder no segredo do teu rosto.

Se isto reconheço: tudo me corre mal onde tu não estás, não somente à minha
volta, mas até em mim mesmo; e toda a abundância que não é meu Deus, para
não passa de indigência.

CAPÍTULO IX - O amor de Deus

Mas o Pai e o Filho, não pairavam também sobre as águas? Se os imaginamos
como um corpo pairando no espaço, isso não se pode aplicar nem mesmo ao
Espírito Santo. Se porém entendermos por isso a excelência imutável da divindade
acima de tudo o que é transitório, então o Pai, o Filho e o Espírito Santo pairavam
igualmente sobre as águas. E por que só se menciona o Espírito Santo? Por que se
menciona apenas a seu respeito um lugar onde estava, ele que, no entanto, não
ocupa espaço? Também apenas dele se disse que era um dom de Deus, e é em teu
dom que repousamos; é nele que gozamos de ti. Nosso repouso é nosso lugar. É
para lá que o amor nos arrebata, e teu Espírito levanta nossa humildade para
longe das portas da morte. A paz, para nós, reside na tua boa vontade. Os corpos
tendem, por seu peso, para o lugar que lhes é próprio; mas um peso não tende só
para baixo; tende para o lugar que lhe é próprio. O fogo sobe, a pedra cai. Cada

um é movido por seu peso, e tende para seu justo lugar. O óleo, lançado à água,
flutua; a água, lançada ao óleo, afunda. Ambos são impelidos por seu peso a
procurarem o lugar que lhes é próprio. As coisas que não estão em seu lugar se
agitam; mas quando o encontram, repousam.

Meu peso é meu amor; para onde quer que eu vá, é ele quem me leva. Teu dom
nos inflama e nos eleva; ardemos e partimos. Subimos os degraus do coração e
cantamos o cântico gradual. É o teu fogo, o teu fogo benfazejo que nos consome e
nos eleva, enquanto subimos para a paz de Jerusalém celeste. Regozijei-me ao
ouvir essas palavras: "Vamos para a casa do Senhor!" – Ali nos há de instalar tua
boa vontade, e não desejaremos nada mais do que permanecer ali eternamente.

CAPÍTULO X - Os dons de Deus

Feliz a criatura que não conheceu outro estado! Seria porém diferente do que é
se, apenas criada, teu Espírito, que paira sobre todas as coisas mutáveis, não a
tivesse erguido com este apelo: "Faça- te a luz" – e a luz se fez. Em nós, o tempo
em que éramos trevas distingue-se do tempo em que nos tornamos luz. Mas dessa
criatura só se diz o que teria sido se não fosse iluminada. A Escritura fala dela
como se tivesse sido flutuante e tenebrosa, para nos realçar a causa que a
transformou, isto é, que a conduziu para a luz inextinguível, para que também
fosse luz. Quem o puder, compreenda, quem não o puder, que te peça a graça de o
compreender. Por que importunam, como seu fosse a luz que ilumina a todo
homem que vem a este mundo?

CAPÍTULO XI - O homem e a trindade

Quem é capaz de compreender a Trindade onipotente? E quem não fala dela,
ainda que a não compreenda? Rara é a pessoa que, falando dela, sabe o que diz.
Discute-se, disputa-se, mas ninguém sem paz interior contempla esta visão.

Quisera que os homens refletissem sobre três coisas que têm dentro de si mesmos.
Elas diferem muito da Trindade, e eu só as proponho para que as usem como
exercício e experiência do pensamento, e com isso compreender como estão longe
deste mistério. Eis as três coisas: ser, conhecer, querer. Porque existo, conheço,
quero e vejo. Eu sou aquele que conhece e quer. Sei que existo e que quero, e
quero existir e saber. Repare, quem puder, como nessas três coisas a vida é
indivisível, a unidade da vida, a unidade da inteligência, a unidade da essência;
veja a impossibilidade de distinguir elementos inseparáveis e, contudo, distintos.

O homem está diante de si mesmo; que ele se examine, veja e me responda.
Contudo, por ter encontrado e reconhecido esta analogia, não julgue por isso ter
compreendido a essência do Ser imutável, que transcende tais movimentos da
alma, que existe imutavelmente, conhece imutavelmente e quer imutavelmente.
Mas é por causa de tais atributos que em deus há a Trindade, ou esses três
atributos pertencem a cada pessoa divina, cada uma sendo assim uma e trina? Ou
ambas as coisas são admiravelmente reais: a Trindade, misteriosamente simples e
múltipla, sendo para si mesma seu próprio fim infinito, pelo qual existe, se conhece
e se basta imutavelmente na magnitude superabundante de sua unidade? Quem
conceberá facilmente este mistério? Quem poderia explicá-lo? Quem,
temerariamente, ousaria enunciá-lo de algum modo?

CAPÍTULO XII - A criação e a Igreja

Ó minha fé, vai adiante em tua confissão. Dize a teu Senhor: "Santo, santo, santo!
É o Senhor, meu Deus! – Em teu nome fomos batizados, Pai. Filho e Espírito Santo;
em teu nome batizamos, Pai, Filho e Espírito Santo. Também entre nós Deus criou,
pelo seu Cristo, um céu e uma terra, isto é, os espirituais e os carnais de sua
Igreja. E nossa terra, antes de receber a forma da doutrina, era invisível e
informe, e estávamos imersos nas trevas da ignorância, porque castigaste o
homem por causa de sua iniqüidade, e teus justos juízos são como abismos
profundos.

Mas porque teu Espírito pairava sobre as águas, tua misericórdia não abandonou
nossa miséria, e disseste: "Faça-se a luz". Fazei penitencia, porque está próximo o
reino de Deus. Fazei penitencia, faça-se a luz! E porque tínhamos a alma
conturbada, nos lembramos de ti, Senhor, às margens do Jordão, sobre essa
montanha grande como tu, que te tornaste pequeno por nós.

Nossas trevas te desagradaram, nós nos voltamos para ti, e a luz se fez. E eis que
outrora fomos trevas e que agora somos luz no Senhor.

CAPÍTULO XIII - Nós e a luz

Contudo, somos luz apenas pela fé, e não por uma visão clara. É na esperança que
fomos salvos, e a esperança que vê não é mais esperança. O abismo clama pelo
abismo, mas é já pela voz de tuas cataratas. Não pude falar-vos como a homens
espirituais, mas como a carnais. Quem assim fala, não julga ainda ter atingido sua
meta e, esquecendo-se do que ficou para trás, avança para o que está vivo, como o

cervo tem sede de água das fontes, e diz: "Quando chegarei?" – Ele deseja o
abrigo de sua morada, que está no céu e chama o abismo inferior dizendo: "Não
vos conformeis com este mundo, mas reformai-vos renovando vosso espírito, e não
queirais ser crianças na mente, mas sede pequeninos quanto à malícia, para que
sejais perfeitos no espírito..."

E ainda: "Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou?" – Mas não é mais sua voz que
fala assim, e sim a tua voz, porque mandaste teu Espírito do alto do céu por
intermédio de Jesus, que subiu ao céu e abriu as cataratas de seus dons, para que
a torrente de alegria alegrasse tua cidade. É por essa cidade que suspira o amigo
do esposo, ele que já possui as primícias do Espírito, mas que ainda geme, porque
está à espera da adoção e do resgate do seu corpo. É por ela que suspira, porque
ele é membro da Esposa de Cristo; por ela se abrasa em zelo, porque é o amigo do
esposo. Zela por ela, não por si mesmo, pois é pela voz de tuas cataratas, e não
com sua própria voz, que ele chama pelo outro abismo, objeto de seu zelo e de
seus temores. Assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, ele receia que
as inteligências débeis se corrompam e se afastem da pureza que está em teu
Esposo, teu Filho único. Quão resplandecente será essa luz, quando o virmos tal
como ele é, e quando tiverem passado essas lágrimas que se tornaram o pão de
meus dias e de minhas noites, enquanto a cada dia me perguntam: Onde está o
teu Deus?

CAPÍTULO XIV - Esperança

Também eu pergunto: "Onde estás, meu Deus? Onde estás?" – Respiro um pouco
de ti quando minha alma se expande dentro de mim mesmo em gritos de exaltação
e de louvor, verdadeiro canto de festa. – Mas ela ainda está triste, porque torna a
cair e a ser abismo, ou melhor, porque sente que ainda é abismo.

Minha fé, que acendeste à noite para conduzir meus passos, lhe diz: "Por que está
triste, ó minha alma, e por que me perturbas? Espera no Senhor. Seu Verbo é uma
lâmpada para teus passos. Espera, persevera, até que a noite passe, a noite, mãe
dos iníquos, até que passe a ira do Senhor, ira da qual outrora fomos filhos quando
éramos trevas". – Dessas trevas ainda arrastamos os restos neste corpo morto
pelo pecado, até que alvoreça o dia e se dissipem as sombras. Espera no Senhor.
Desde a manhã estarei diante deles, e o contemplarei, e o louvarei eternamente.
Desde a manhã estarei diante dele e verei a salvação de minha face, meu Deus,
que vivificará nossos corpos mortais pelo seu Espírito que habita em nós,
misericordiosamente levado por sobre as águas tenebrosas de nossas almas.

Por isso, em nossa peregrinação, recebemos dele o penhor de já sermos luz; ele já
nos salvou pela esperança e, de filhos da noite e das trevas que éramos, ele fez
filhos da luz e do dia.

Na incerteza da ciência humana, só tu és capaz de distinguir entre uns e outros,
porque põe nossos corações à prova e chamas à luz dia e às trevas noite. Quem,
senão tu, sabe nos distinguir? E que temos nós que não o tenhamos recebido de
ti? Nós, feitos vasos de honra, fomos feitos da mesma argila que serviu para fazer
os vasos de ignomínia.

CAPÍTULO XV - Símbolos

E quem, senão tu, nosso Deus, estendeu sobre nós um firmamento de autoridade,
da tua divina Escritura? O céu se dobrará como um livro, e agora ele se estende
sobre nós como um pergaminho. Mais sublime é a autoridade de que goza tua
divina Escritura depois que morreram aqueles que cujo intermédio no-las
comunicaste. E sabes, Senhor, sabes como cobriste de peles os homens, quando o
pecado os tornou mortais. Por isso estendeste como um pergaminho o firmamento
de teu Livro, e tuas palavras em tudo concordes, que dispuseste sobre nós pelo
ministério de homens mortais. Por sua morte, a autoridade de tuas palavras, por
eles divulgadas, desdobra sua força sobre tudo o que existe em baixo; ela não se
erguia tão alto enquanto eles viviam. É que ainda não tinhas desenrolado o céu
como um pergaminho, nem tinhas ainda difundido a glória de sua morte por toda
parte.

Senhor, faze que contemplemos os céus, obra de tuas mãos! Dissipa de nossos
olhares as nuvens com que os tens velado. Neles está teu testemunho, dando
sabedoria aos humildes. Meu Deus completa teu louvor pela boca dos meninos que
ainda mamam! Não conhecemos outros livros que assim destruam a soberba, e
que abatam tão bem o inimigo que resiste a toda reconciliação contigo, e defende
seus pecados. Não, Senhor, não conheci outras palavras tão puras, que tantos me
persuadissem à confissão, e sujeitassem minha mente a teu jugo, convidando-me a
te servir tão desinteressadamente. Oxalá eu as compreenda, bondoso Pai!

Concede esta graça à minha submissão, pois as firmaste para os corações
submissos.

Há outras águas, creio eu, sobre esse firmamento: águas imortais e isentas da
corrupção terrena. Que elas louvem teu nome! Que os povos celestes de teus

anjos te bendigam, pois não têm necessidade de olhar esse firmamento, nem de
ler para aprenderem a conhecer tua palavra!

Eles sempre vêem tua face, e ali lêem, sem as sílabas transitórias, o objeto da tua
vontade eterna.

Lêem, escolhem, amam. Lêem perpetuamente, e o que eles lêem jamais fenece;
escolhendo e amando, lêem tua imutável vontade. Teu códice jamais de fecha,
jamais se enrola, porque tu mesmo és eternamente esse livro; tu os estabeleceste
acima deste firmamento, levantado por ti acima da fraqueza dos povos da terra,
para que estes, olhando-o, reconheçam tua misericórdia, que te anuncia no tempo,
tu criador do tempo. Tua misericórdia está no céu, e tua verdade se eleva até às
nuvens. As nuvens passam, mas o céu permanece. Os que pregam tua palavra
passam para uma outra vida, mas tua Escritura se estende sobre os povos até o
fim dos séculos.

O céu e a terra passarão, mas tuas palavras não passarão. O pergaminho será
enrolado, e a erva sobre o qual se estendia passará com seu esplendor, mas a tua
palavra permanecerá eternamente. Agora ela nos aparece no enigma das nuvens
e através do espelho dos céus, e não como é na realidade, porque ainda não se
manifestou o que havemos de ser, apesar de amados pelo teu filho. Ele nos olhou
através da teia da sua carne e nos acariciou, e nos inflamou de amor, e corremos
atrás de sua fragrância. Mas quando ele aparecer seremos semelhantes a ele,
porque o veremos tal como ele é. Vê-lo tal qual é será nossa felicidade, mas nós
ainda não o podemos contemplar.

CAPÍTULO XVI - Deus, fonte de luz

Assim como só tu existes plenamente, só tu possuis o conhecimento absoluto:
imutável, com efeito, és em teu ser, imutável em teu saber, imutável na tua
vontade. Tua essência sabe e quer imutavelmente, tua ciência é e quer
imutavelmente, tua vontade é e sabe imutavelmente.

Não é justo a teus olhos que a luz imutável seja conhecida pelo ser mutável, que
ela ilumina, como ela se conhece a si própria. Por isso, minha alma é para ti como
terra sem água, porque assim como não pode iluminar a si mesma, não se pode
saciar por seus próprios meios. Porque em ti está a fonte da vida, e graças à tua
luz é que veremos a luz.

CAPÍTULO XVII - As águas amargas

CAPÍTULO XVII - As águas amargas

Quem reuniu em um só mar as águas amargas? Seu objetivo é o mesmo: uma
felicidade temporal, terrena, alvo de todas as suas ações a despeito da grande
diversidade de cuidados que as agitam. Quem, senão tu, Senhor, poderia dizer a
essas águas que se reunissem em um só lugar, e à terra enxuta que aparecesse,
sedenta de ti? O mar é teu, pois tu o fizeste, e tuas mãos formaram a terra
enxuta. Não é a amargura das vontades mas a reunião das águas que chamamos
de mar. Também refreias as paixões más das almas e fixas os limites até onde
permites que avancem as águas, para que suas ondas se quebrem sobre si
mesmas; e assim, crias o mar, submetido a teu poder universal.

As almas sedentas de ti, que aparecem a teu olhos separadas do mar com outra
finalidade, tu as regas com um orvalho vivo, misterioso e doce, para que a terra
produza seu fruto.

E a terra o produz; ao teu comando, ó Senhor que és seu Deus, nossa alma
germina obras de misericórdia, de acordo com sua condição: ela ama o próximo e
vai em auxílio de suas necessidades materiais. Carrega em si a semente da
compaixão, por uma semelhança de natureza, porque é o sentimento de nossa
fraqueza que nos leva a compadecer as misérias dos que são necessitados, a
socorre-los, como desejaríamos que nos socorressem se tivéssemos as mesmas
necessidades. E não se trata só de dar apoio fácil, como ervas nascidas de
sementes, mas de proteção enérgica, vigorosa como a árvore que carrega frutos,
símbolos das obras que arrebatam à mão do poderoso a vítima da injustiça, dando-
lhe um abrigo à sombra protetora de um julgamento justo.

CAPÍTULO XVIII - Meditação

Senhor, assim como crias e concedes alegria e força, assim te peço que nasça da
terra a vontade, e que a justiça lance os olhos sobre nós do alto dos céus, e que no
firmamento brilhem os astros! Dividamos nosso pão com quem tem fome,
acolhamos em nossa casa o pobre sem teto, vistamos quem está nu, e não
desprezemos nossos semelhantes! Quando tais frutos nascem de nossa terra, olha,
Senhor, e diz: Isso é bom; faze que tua luz brilho no momento oportuno. Por esta
humilde messe de boas obras, faze que nos possamos elevar a uma contemplação
deliciosa do Verbo da Vida, e que brilhemos no mundo como astros, fixados no
firmamento de tua Escritura.

E aí, de fato, que nos ensinas a distinguir entre as realidades inteligíveis e as
sensíveis, entre as almas espirituais e as almas que se entregam aos sentidos,
como entre o dia e a noite.

Deste modo já não és mais o único, no segredo de teu discernimento, como eras
antes da criação do firmamento, a distinguir entre a luz e as trevas. Também tuas
criaturas espirituais, dispostas e ordenadas nesse mesmo firmamento, depois que
tua graça se manifestou através do mundo, brilham sobre a terra, separam o dia
da noite e marcam as diferenças dos tempos. De fato, as coisas antigas passaram,
e eis que se fizeram novas, nossa salvação está mais próxima do que quando
começamos a crer, a noite avançou e se aproximou o dia, coroas o ano com tua
benção, envias teus operários à tua messe, semeada pelo trabalho de outros
operários, enviando-os também para outra sementeira, cuja messe será colhida no
fim dos séculos.

Assim ouves as preces do justo e abençoas seus anos. Mas continuas eternamente
o mesmo, e em teus anos, que não terão fim, preparas um celeiro para os anos que
passam.

Por desígnio eterno, lanças sobre a terra os bens do céu no tempo oportuno; a um,
teu Espírito dá a palavra de sabedoria, luminar maior para os que encontram seu
deleite na luz de uma verdade clara como o raiar do dia; a outro dás, pelo mesmo
Espírito, a palavra de ciência, luminar menor; a outro a fé; a outro o poder de
curar; a outro o dom dos milagres; a outro a graça da profecia; a este o
discernimento dos espíritos, àquele o dom das línguas. E todos esses dons são
como estrelas, são obra de um só e mesmo Espírito, que reparte a cada um os seus
dons como lhe agrada, e que faz aparecer tais astros para o bem comum.

Mas a palavra de ciência em que estão encerradas todos os mistérios, que variam
com o tempo, como varia a lua, e os outros dons que mencionei ao compará-los
com as estrelas, diferem a tal ponto desse brilho de sabedoria de que goza o raiar
do dia, que não passam de crepúsculo.

Contudo, teus dons são necessários àqueles homens, a quem teu prudente servidor
não pôde dirigir como a espirituais, mas como a carnais, ele que pregou a
Sabedoria entre os perfeitos.

Quanto ao homem carnal, semelhante a um menino em Cristo, que só se alimenta
de leite, que não se julgue abandonado em sua noite, que saiba contentar-se com

a luz da lua e das estrelas, até que possa tomar alimento sólido e olhar para o sol.
Eis o que nos ensinas em tua sabedoria, nosso Deus, em teu livro, que é teu
firmamento, para que distingamos todas as coisas em contemplação admirável,
embora ainda estejamos sob a lei dos sinais, dos tempos, dos dias e dos anos.

CAPÍTULO XIX - Ainda a terra seca

Mas antes, lavai-vos, purificai-vos, arrancai a iniqüidade de vossos corações e de
meus olhos, para que apareça a terra seca. Aprendei a fazer o bem, sede justos
para com o órfão e defendei a viúva, para que a terra produza a erva tenra e
árvores cheias de frutos. Vinde e dialoguemos, diz o Senhor, e assim no
firmamento do céu se ascenderão luminares que brilharão por sobre a terra.

Aquele rico perguntava ao bom Mestre o que deveria fazer para ganhar a vida
eterna. E o bom Mestre, que é bom porque é Deus, e não um homem como o rico o
considerava, lhe declarou: "O que deseja conseguir a vida deve observar os
mandamentos, afastar de si a amargura da malícia e da iniqüidade, não matar,
não cometer adultério, não roubar, não prestar falso testemunho, a fim de que se
mostre a terra seca, geradora do respeito do pai e da mãe e do amor do próximo.

– Tudo isto já fiz – diz o rico. – De onde vêm pois tantos espinhos, se a terra é
fértil? – Vai, arranca os espessos emaranhados da avareza, vende teus bens,
enriquece-te dando tudo aos pobres, e possuirás um tesouro no céu; segue o
Senhor se queres ser perfeito, junta-te aos que ele instrui nas palavras de
sabedoria, ele que sabe o que se deve dar ao dia e à noite. Também tu o saberás,
e eles se tornarão para ti luminares no firmamento do céu. Mas isso não se
realizará se ali não estiver teu coração, e teu coração, não estará onde não
estiver teu tesouro – Assim falou teu bom Mestre. Mas a terra estéril entristeceu,
e os espinhos sufocaram a Palavra divina.

Mas vós, geração escolhida, fracos aos olhos do mundo, que tudo deixaste para
seguir o Senhor, caminhais após ele, confundi os fortes; segui-lo com vossos pés
resplandecentes, e brilhai no firmamento para que os céus cantem suas glórias,
distinguindo a luz dos perfeitos, que ainda não são semelhantes aos anjos, e as
trevas dos pequenos, que ainda não perderam a esperança. Brilhai sobre toda a
terra! Que o dia resplandecente de sol transmita ao dia seguinte a palavra de
Sabedoria, e que a noite, iluminada pela lua, transmita à noite a palavra de
Ciência. A lua e as estrelas brilham na noite, mas a noite não as obscurece, porque
são elas que iluminam a noite, de acordo com a sua capacidade.

Como se Deus tivesse dito: Façam-se luminares no firmamento, e logo se fez ouvir
um ruído vindo do céu, semelhante ao de um vento violento, e foram vistas
línguas de fogo, que se dividiram e se colocaram sobre cada um deles. E
apareceram luminares no céu, que possuíam a palavra de vida. Correi por toda
parte, chamas sagradas, fogos admiráveis. Vós sois a luz do mundo, e não estais
debaixo do alqueire. Aquele a quem vos unistes foi exaltado e ele vos exaltou.
Correi e dai-vos a conhecer a todas as nações.

CAPÍTULO XX - Os répteis e as aves

Que o mar também conceba e dê à luz tuas obras; que as águas produzam répteis
dotados de almas vivas. De fato, separando o precioso do vil, vos tornastes a boca
de Deus, pela qual ele diz: "Produzam as águas..." não a alma viva, filha da terra,
mas répteis dotados de almas vivas, e pássaros que voam sobre a terra. Assim
como esses répteis, teus sacramentos, ó meu Deus, deslizaram, graças às obras de
teus santos, por entre as ondas das tentações do século para regenerarem os
povos com teu nome, em teu batismo.

Então se operaram grandes maravilhas, semelhantes a enormes cetáceos, e as
palavras de teus mensageiros percorreram a terra, sob o firmamento de teu Livro,
que com tua autoridade deveria proteger seu vôo para onde quer que fossem. Não
há língua nem palavras em que não se ouçam suas vozes; seu som espalhou-se por
toda a terra, e suas palavras até os confins do mundo, porque tu, Senhor,
abençoando-os, os multiplicaste.

Estaria eu mentindo? Ou confundindo a questão, não distinguindo as claras noções
das coisas do firmamento das obras corpóreas que se realizam no mar agitado e
sob o firmamento?

Por certo que não. Há coisas cuja idéia é completa, acabada, que não se
multiplicam no curso das gerações, tais como as luzes da sabedoria e da ciência.
Mas esses seres são o objeto de operações materiais múltiplas e variadas e,
crescendo umas de outras, se multiplicam sob tua benção, meu Deus. É assim que
refreias a impertinência de nossos sentidos, dando a uma verdade única o meio de
se exprimir de varias maneiras, por movimentos do corpo. Eis que produziram tuas
águas, pela onipotência de teu Verbo. Tudo isto se originou das necessidades de
povos afastados de tua verdade eterna, por meio do teu Evangelho. De fato foram
essas águas que fizeram brotar essas coisas, e sua amargura estagnante foi causa
de que teu Verbo as criasse.

Todas tuas obras são belas, mas és indizivelmente mais belo tu, que criaste tudo o
que existe. Se Adão não se tivesse separado de ti, em sua queda, de seu seio não
teria saído o oceano amargo do gênero humano, com sua profunda curiosidade,
seu orgulho cheio de tempestades, suas ondas instáveis. E os dispensadores de
tuas palavras não teriam a necessidade de representar, no meio de tantas águas,
por meio de sinais físicos e sensíveis, teus atos e palavras místicas. Foi nesse
sentido que entendi esses répteis e essas aves. Mas até os homens iniciados
nesses sinais e deles imbuídos, não avançariam no conhecimento desses mistérios,
aos quais estão sujeitos, se sua alma não se elevasse á vida do espírito, e, após a
palavra inicial, não aspirasse à perfeição.

CAPÍTULO XXI - A alma viva

E assim não foi a profundeza do mar, mas a terra livre do amargor das águas que,
impelida pelo teu Verbo gerou não mais os répteis dotados de almas vivas e os
pássaros, mas a alma viva.

E esta não mais tem necessidade de batismo (necessário para os gentios), como
tinha necessidade enquanto as cobriam. Pois não se entra de outro modo no reino
dos céus, desde que assim o determinaste. Para ter fé, ela já não exige grandes
maravilhas. Ela crê sem ter visto sinais e prodígios, porque é terra fiel, já distinta
das águas do mar que a incredulidade torna amargas: e as línguas são um
sinal,não para os fiéis, mas para os infiéis.

A terra que estendeste acima das águas não tem necessidade dessa espécie de
aves que as águas produziram por ordem de teu Verbo. Envia-lhe, pois, teu Verbo,
por meio de teus mensageiros. Nós falamos de suas obras, mas quem age por seu
intermédio, para que produzam uma alma viva, és tu. A terra a germina porque é
a causa dos fenômenos que ocorrem na superfície, assim como o mar foi causa da
produção dos répteis dotados de almas vivas, e das aves sob o firmamento do céu.
A terra já não necessita destas criaturas, embora ela se alimente de peixes
pescados nas profundezas do mar, nessa mesa que preparaste na presença dos
crentes; porque eles foram pescados nas profundezas do mar para alimentar a
terra árida.

Também as aves, ainda que nascidas no mar, multiplicam-se sobre a terra. As
primeiras gerações evangélicas foram motivadas pela incredulidade dos homens,
mas também fiéis nela encontram diariamente copiosas exortações e bênçãos.
Todavia, a alma viva, extrai da terra sua origem, porque somente aos fiéis é
meritório abster-se de amar este mundo, para que sua alma viva por ti, essa alma

que estava morta quando vivia em delícias mortíferas. Ó Senhor, só tu fazes as
delicias de um coração puro.

Que teus ministros trabalhem na terra, não como nas águas da incredulidade,
quando pregavam e falavam utilizando-se de milagres, de sinais misteriosos, de
termos místicos, para capturar atenção da ignorância, mãe da admiração, pelo
medo desses sinais secretos. Por esta porta, de fato, os filhos de Adão têm acesso
à fé, esquecidos de ti enquanto se escondem de tua fade e se tornam abismos. Que
teus ministros trabalhem como em terra seca, separada das fauces do abismo; e
que sejam modelo para os fiéis, vivendo sob teus olhares e incitando-os à imitação.
E assim ouve não só para ouvir, mas também para praticar. "Procurai a Deus, e
vossa alma viverá, e a terra dará nascimento a uma alma viva. Não vos
conformeis com este mundo em que vivemos, abstendo-vos dele. A alma vive
evitando as coisas cujo desejo causa-lhe a morte.

Abstende-vos das violências selvagens da soberba, das ociosas voluptuosidades da
luxúria, da falsidade que engana em nome da ciência, para que os animais ferozes
sejam domesticados, os brutos domados e para que as serpentes sejam
inofensivas: todos representam alegoricamente os movimentos da alma humana.
O fastio do orgulho, as delícias da luxúria, o veneno da curiosidade, são
movimentos da alma morta, mas não morta a ponto de carecer de todo
movimento; é afastando-se da fonte da vida que ela morre, o mundo a arrebata ao
passar, e a este se amolda.

Mas tua palavra, meu Deus, é a fonte da vida eterna, e não passa. Ela mesma nos
proíbe que nos afastemos de ti por essas palavras: "Não vos conformeis com o
mundo em que vivemos, para que a terra, fertilizada pela fonte da vida, produza
uma alma viva, uma alma que busque em tua palavra, transmitida por teus
evangelistas, se fortificar, imitando os imitadores de teu Cristo". – Eis o sentido da
expressão "segundo sua espécie", porque o homem imita a quem ama. "Sede como
eu" – diz o Apostolo, - porque sou como vós. – Assim haverá na alma viva apenas
feras sem maldade, agindo com doçura. Pois nos deste este mandamento: "Fazei
vossas obras com mansidão, e sereis amados por todos" – Também os animais
domésticos serão bons: se comerem, não sofrerão fastio e, se não comerem, não
terão fome. As serpentes, tornando-se boas, serão incapazes de causar danos, mas
continuarão astutas e cautelosas; não investigarão a natureza temporal, senão na
medida necessária para compreender e contemplar a eternidade através das
coisas criadas. Esses animais, as paixões, obedecem à razão, quando refreados em
seus caminhos mortais, vivem e se tornam bons.

CAPÍTULO XXII - Sentido místico da criação do homem

CAPÍTULO XXII - Sentido místico da criação do homem

Assim, Senhor, nosso Deus e nosso Criador, quando nossos afetos mundanos, que
nos causam a morte porque nos faziam viver mal, se afastarem do amor do mundo,
quando nossa alma, vivendo bem, se tornar alma viva, e quando se cumprir a
palavra que proferiste pela boca de teu Apostolo: "Não vos conformeis com o
mundo em que vivemos" – então seguir-se-á aquilo que acrescentaste
imediatamente ao dizer: "Mas reformai-vos na novidade de vossa mente". – E já
não será "segundo vossa espécie" – como se fosse imitar nossos predecessores ou
viver seguindo os exemplos de alguém melhor que nós. Não disseste: "Que o
homem seja feito de acordo com sua espécie" – mas "façamos o homem à nossa
imagem e semelhança" – para que pudéssemos reconhecer tua vontade. Para
tanto, o divulgador de teu pensamento, que gerou filhos pelo Evangelho, não
querendo que continuassem como crianças os que alimentara com leite e
agasalhara em teu seio como uma ama, dizia: "Reformai-vos renovando vosso
coração, para discernir a vontade de Deus, que é bom, agradável e perfeito". –
Também não dizes: "Faça-se o homem" – mas "à nossa imagem e semelhança".
Aquele que é renovado no espírito, que compreende e conhece tua verdade, não
mais carece que um outro lhe ensine a imitar sua espécie. Graças às tuas lições,
ele reconhece por si qual é tua vontade, o que é bom, agradável e perfeito. Tu lhe
ensinas, pois agora é capaz deste ensinamento, a ver a Trindade da Unidade e a
Unidade da Trindade. Eis por que, depois de falar no plural: "Façamos o homem" se
diz no singular: "E Deus criou o homem". Depois deste plural: "À nossa imagem" –
este singular: "À imagem de Deus". Assim o homem "se renova pelo conhecimento
de Deus, à imagem de seu criador" – e "tornando-se espiritual, julga todas as
coisas", que certamente hão de ser julgadas, "mas ele não é julgado por ninguém".

CAPÍTULO XXIII - O julgamento do homem espiritual

Ele julga tudo, significa que tem autoridade sobre os peixes do mar, sobre os
pássaros do céu, sobre os animais domésticos e selvagens, sobre toda a terra e
sobre todos os répteis que nela se arrastam. Exerce esse poder pela inteligência,
pela qual percebe as coisas que são do Espírito de Deus. Mas, elevado a tão
grande honra, o homem não entendeu sua dignidade, igualou-se aos jumentos
insensatos, tornando-se semelhante a eles.

Por isso, na tua Igreja, Senhor, pela graça que lhe concedeste – pois somos obra
tua, e criados para obras boas, tanto os que governam como os que obedecem
segundo o Espírito tem o dom de julgar. Porque assim fizeste a criatura humana
homem e mulher, em tua graça espiritual, onde não há distinção conforme o sexo,

nem judeu nem grego, nem escravo nem homem livre. Os espirituais, portanto,
tanto os que presidem como os que obedecem, julgam espiritualmente. Eles não
julgam conhecimentos espirituais que brilham no firmamento, pois não lhes cabe
fazer juízos sobre tão sublime autoridade. Nem julgam tua Escritura, mesmo em
suas passagens obscuras: nós lhe submetemos nossa inteligência, e temos certeza
de que até aquilo que está oculto à nossa compreensão é justo e verdadeiro. O
homem, pois, embora já espiritual e renovado pelo conhecimento, conforme a
imagem de seu criador, deve ser cumpridor da lei, e não seu juiz. Nem pode ajuizar
sobre o que distingue espirituais e carnais. Somente teus olhos, meu Senhor, os
distinguem, mesmo que nenhuma obra sua os tenha revelado a nós, para que os
reconheçamos por seus frutos. Mas tu, Senhor, já os conheces e os classificaste, e
os chamaste no segredo de teu pensamento, antes de ter criado o firmamento.

Tampouco julga, o homem espiritual, os povos inquietos deste mundo. De fato, por
que julgaria ele os que estão fora, ignorando quem alcançará a doçura da tua
graça, e quem permanecerá na eterna amargura da impiedade?

Por isso, o homem que criaste à tua imagem, não recebeu poder sobre os astros do
céu, nem sobre o mesmo céu misterioso, nem sobre o dia e a noite que chamaste á
existência antes da criação do céu, nem sobre a massa das águas, que é o mar.
Mas recebeu poder sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre todos os
animais, sobre toda a terra, e sobre tudo o que se arrasta pela superfície do solo.

Ele julga e aprova o que acha bom, e reprova o que acha mau, quer na celebração
dos sacramentos, com que são iniciados os que na tua misericórdia tira das águas
profundas, quer no banquete em que se serve o peixe tirado das profundezas para
alimento da terra fiel; quer nas palavras e expressões sujeitas à autoridade de teu
Livro que, semelhantes aos pássaros, voam sob o firmamento: interpretações,
exposições, discussões, bênçãos e invocações que brotam sonoras da boca, para
que o povo responda: Amém! É necessário que essas palavras sejam enunciadas
fisicamente, por causa do abismo do mundo e da cegueira da carne que,
impossibilitada de ver o pensamento, tem necessidade de sons que firam os
ouvidos. Assim, sem dúvida é sobre a terra que as aves se multiplicam, embora
tenham suas origens na água.

O homem espiritual julga também aprovando o que acha correto e reprovando o
que é vicioso nas obras e nos costumes dos fiéis. Julga das suas esmolas,
comparáveis aos frutos da terra; ele julga a alma viva pelas paixões domadas pela
castidade, os jejuns, e pelos pensamentos piedosos, na medida em que essas coisas
se manifestam aos sentidos do corpo. Em resumo, é juiz de tudo o que pode se

corrigir.

CAPÍTULO XXIV - Crescei e multiplicai-vos

Mas que é isto? Que mistério é este? Abençoas os homens, Senhor, para que eles
cresçam, se multipliquem, e encham a terra. Não queres nisto dar-nos a entender
alguma coisa?

Por que não abençoaste também a luz, que chamaste dia, nem a terra, nem o
mar? Eu diria, meu Deus, que nos criaste à tua imagem, diria que quiseste
conceder especialmente ao homem esta benção, se não houvesses abençoado
igualmente os peixes e os cetáceos, para que cresçam, se multipliquem, encham as
águas do mar, e os pássaros para que se multipliquem sobre a terra.

Afirmaria ainda que essa benção foi reservada às espécies vivas que se
reproduzem por meio de geração, caso a encontrasse também nas árvores, nas
plantas, nos animais da terra. Mas não foi dito nem às plantas, nem às árvore ,
nem aos répteis: "Crescei e multiplicai-vos" – embora todas essas criaturas se
multipliquem pela procriação, como os peixes, os pássaros e os homens,
conservando assim sua espécie.

Quer dizer, então, ó minha Luz, ó Verdade? Que tais palavras carecem de senso e
foram ditas em vão? De nenhum modo, ó Pai de misericórdia. Longe de mim, longe
do servidor de teu Verbo, uma tal afirmação! Apenas não compreendo o sentido
dessas palavras, e espero que os melhores que eu, ou seja, os mais inteligentes, a
entendam melhor, segundo a sabedoria que deste, meu Deus, a cada um. Que te
agrade ao menos a confissão, que faço diante de ti, de minha certeza de que não
falaste em vão aquelas palavras.

Não calarei as reflexões que me sugere a leitura dessas palavras. O que penso é
verdadeiro, e nada vejo que impeça de explicar assim os textos figurados de teus
livros. Sei que sinais corporais podem exprimir de vários modos uma idéia que o
espírito concebe em um só sentido; uma idéia expressa de um só modo. Como
exemplo, cito a simples idéia do amor de Deus e do próximo. Quantos símbolos,
quantas línguas, e em cada uma inúmeras locuções lhe dão uma expressão
concreta! É assim que crescem e se multiplicam os peixes das águas.

E note ainda nisto, meu leitor. Há uma frase que a Escritura declara de uma só
forma, e que a voz fala apenas dessa maneira: "No princípio criou Deus o céu e a

terra" – E não pode a frase ser interpretada diversamente – descartando o erro
ou o sofisma – conforme os diversos pontos de vista legítimos? É assim que
crescem e se multiplicam as gerações dos homens!

Se consideramos a natureza das coisas, não alegoricamente, mas em sentido
próprio, a sentença: "Crescei e multiplicai-vos" – se aplica a todas as criaturas que
nascem de uma semente. Se, ao contrário, a interpretamos em sentido figurado,
como penso que foi a intenção da Escritura, que não limita inutilmente essa
benção aos peixes e aos homens, encontramos então multidões de criaturas
espirituais e temporais, como no céu e na terra; de almas justas e injustas, como
na luz e nas trevas; de escritores sagrados que nos anunciaram a Lei, como no
firmamento estabelecido entre as águas; na sociedade amargurada dos povos,
como no mar; no zelo das almas piedosas, como em terra enxuta; nas obras de
misericórdia praticadas nesta vida, como nas plantas que nascem de semente e
nas árvore frutíferas; nos dons espirituais concedidos para o bem de todos, como
nos luminares do céu; nas paixões dominadas pela temperança, como na alma viva.
Em todas essas coisas encontramos multidões, fecundidade, crescimento. Mas que
esse crescimento e essa proliferação exprimam uma mesma idéia de vários modos
e que uma só expressão possa ser entendida de muitas maneiras, esse fato, apenas
o encontramos nos sinais sensíveis e nos conceitos intelectuais.

Os sinais corpóreos, originados da profundidade de nossa cegueira carnal,
correspondem, segundo penso, às gerações das águas; os conceitos intelectuais,
gerados pela fecundidade da inteligência, simbolizam,me parece, as gerações
humanas.

E é por isso, Senhor, creio que disseste tanto às águas como aos homens: "Crescei
e multiplicai-vos" – Nessa benção, penso que nos deste a faculdade, o poder de
formular de várias maneiras uma única idéia, e de compreender também de
muitas maneiras uma expressão única, mas obscura.

É assim que as águas do mar se povoam, e não se moveriam sem as várias
interpretações das palavras. É assim que a terra se povoa de gerações humanas;
sua aridez se fecunda pela sua paixão da verdade, sob o poder da razão.

CAPÍTULO XXV - Os frutos da terra

Quero ainda dizer, Senhor meu Deus, o que me inspiram as palavras que seguem
da tua Escritura. E o farei sem medo, porque direi a verdade; pois não vem de ti,

por acaso, a inspiração do que queres que eu diga? Não creio que eu possa dizer a
verdade se tu não me inspirares, pois tu és a própria verdade, e todo homem é
mentiroso. Por isto, quem mente fala do que é seu. Logo, para falar a verdade, só
falarei o que me inspiras.

Tu nos deste para alimento todas as ervas que produzem semente e que cobrem a
terra, e todas as árvore que contém em si, em germe, seus frutos. E não foi
somente a nós que deste esse alimento, mas também às aves do céu, aos animais
da terra e aos répteis, mas não aos peixes e aos grandes cetáceos. Dizíamos que
esses frutos da terra significam e representam alegoricamente as obras de
misericórdia, que a terra fecunda produz para as necessidades desta vida. Era
semelhante a uma terra assim o piedoso Onesíforo, cuja casa recebeu a graça de
tua misericórdia, porque muitas vezes assistira a teu Paulo, sem se envergonhar
por suas cadeias.

É o mesmo que fizeram os irmãos que, de Macedônia, lhe forneceram o que lhe era
necessário, produzindo também abundante fruto. E contudo, o Apóstolo se queixa
de certas árvore que não lhe tinham dado fruto devido, quando escreve: "em
minha primeira defesa ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Que isto não
lhes seja imputado!" – Tais frutos são devidos aos que nos ministram doutrina
racional, ajudando-nos a compreender os mistérios divinos. E nós lhes devemos
exemplos de todas as virtudes; e também lhes devemos os frutos como a pássaros
do céu, por causa das bênçãos que distribuem abundantemente sobre a terra, pois
sua voz se fez ouvir por toda a terra.

CAPÍTULO XXVI - O dom e o fruto

Nutrem-se com esses alimentos os que neles se alegram; não encontram neles
alegria os homens cujo deus é seu ventre. E até entre os que ofertam esses frutos,
o fruto não é o que eles dão, mas o espírito com que o oferecem. Por isso, naquele
que servia a seu Deus e não a seu ventre percebo claramente a fonte de sua
alegria; e participo fortemente de seu regozijo. Paulo recebera os presentes que
os filipenses lhes tinham mandado por intermédio de Epafrodito. Vejo bem a razão
de sua alegria. E é dela que se nutria, porque ele diz com verdade: "Alegrei-me
muito no Senhor, vendo enfim reflorescer para mim vossa estima, da qual já
andáveis desgostados".

Eles, de fato, tinham estado realmente aborrecidos e, tornados áridos, não
produziam mais o fruto das boas obras; e Paulo se alegra por eles, porque suas
simpatias tornaram a florescer, e não por o terem socorrido na sua indigência.

Porque ele diz em seguida: "Não é por causa das privações que sofro que falo
assim: aprendi a me contentar com o que tenho. Sei acomodar-me às privações, e
sei viver na abundância. Em tudo e por tudo habituei-me à saciedade e à fome, à
abundância e à penúria. Tudo posso naquele que me fortalece".

Qual então o motivo de tua alegria, ó grande Paulo? De onde vem tal júbilo, de
que te alimentas, ó homem renovado para o conhecimento de Deus, conforme a
imagem de teu Criador, alma viva que possui tal domínio de si, língua alada que
exprime os mistérios? É certamente a tais almas que se deve este alimento. O que
foi para ti esse alimento substancioso? A alegria.

Ouçamos o que segue: "Contudo, fizestes bem ao partilhar de minhas tribulações"
– Esta é a fonte da alegria, isto é o que o nutre, as boas obras, e não o conforto
que aliviou sua miséria. Ele diz:

"Na tribulação dilatastes meu coração" – pois ele aprendeu a viver na abundância
e sofrer as privações, em ti, que o confortas. – "Bem sabeis, filipenses – diz ele –
que nos primórdios de minha pregação do Evangelho, quando deixei a Macedônia,
nenhuma Igreja me assistiu com seus bens quanto ao dar e receber, com exceção
de vós, que, várias vezes me enviaste, para Tessalônica, com que suprir às minhas
necessidades". – Alegra-se agora por voltarem à prática de boas ações, felicitando-
se por terem eles reflorido como campo fértil e verdejante.

Referia-se por acaso às próprias necessidades quando dizia: "Socorrestes às minhas
necessidades"? – Será este o motivos de sua alegria? Certamente que não. E como
o sabemos?

Porque ele diz em seguida: "Eu não procuro a dádiva, mas o fruto". – Aprendi de ti,
meu Deus, a discernir a dádiva do fruto. O dom é a própria coisa dada por aquele
que acode às nossas necessidades; é o dinheiro, a comida, a bebida, a roupa, um
abrigo, e auxílio. O fruto é a vontade boa e reta do doador. O bom Mestre não se
limita a dizer: "Aquele que receber um profeta" – mas acrescenta: "Aquele que
receber um justo..." – mas acrescenta: "na qualidade de justo". – E assim, aquele
receberá a recompensa do profeta, e o outro, a do justo. Ele não diz apenas:

"Aquele que der um copo de água fresca a um de meus pequeninos" – mas
acrescenta: "na qualidade de discípulo". – E prossegue: "Na verdade vos digo: este
não ficará sem recompensa".

– Dom é receber o profeta, receber o justo, dar um copo de água fresca a um
discípulo; fruto é fazer isso em consideração de sua qualidade de profeta, de justo,
de discípulo. É com este fruto que Elias era alimentado pela viúva: ela sabia que
alimentava um homem de Deus, e é por isso que o fazia. Os alimentos, porém, que
lhe eram levados pelo corvo, não passavam de dom, e não era o Elias interior, mas
o Elias exterior que recebia esse alimento, o que poderia morrer se lhe faltasse
esse alimento.

CAPÍTULO XXVII - Peixes e cetáceos

Por isso, Senhor, direi diante de ti a verdade. Por vezes, ignorantes e infiéis que,
para serem iniciados e conquistados para a fé, precisam desses rituais de iniciação
e de milagres mirabolantes, simbolizados, a meu ver, pelos peixes e pelos
cetáceos, acolhem teus servos e os socorrem, ou os auxiliam nas necessidades da
vida presente, sem saber por que o fazem nem em vista de que devem agir. Desse
modo, nem aqueles os alimentam, nem estes são alimentados por eles, pois os
primeiros não são movidos por vontade santa e reta, e os segundos não se
alegram com os dons recebidos, não descobrindo neles fruto algum. Ora, a alma só
se alimenta com o que lhe traz alegria. É esta a razão pela qual os peixes e os
cetáceos se nutrem de alimentos que a terra só pode produzir depois de separados
e purificados de amargura das águas do mar.

CAPÍTULO XXVIII - A bondade da criação

Viste, meu Deus, que tudo o que criaste te pareceu excelente. Também nós vemos
tua criação, e ela nos parece excelente. Para cada espécie de obra criada, disseste:
"Faça-se" e quando elas se fizeram, viste que eram boas. Sete vezes está escrito –
eu as contei – que viste a excelência de tua obra; e na oitava vez contemplaste
toda a criação, e disseste que, no seu conjunto, era não apenas boa, mas muito
boa. Tomadas separadamente, tuas obras eram boas; consideradas em seu
conjunto, elas eram boas e até excelentes. O mesmo julgamento se pode fazer da
beleza dos corpos. Um corpo, formado de membros todos belos, é muito mais
bonito que cada um desses membros cuja harmoniosa organização forma o
conjunto, embora, considerados à parte, também eles tenham sua beleza própria.

CAPÍTULO XXIX - A palavra de Deus e o tempo

Procurei ver com atenção se forma sete ou oito as vezes que constataste a
bondade de tuas obras quando elas te agradaram. Mas não encontrei uma

seqüência temporal não tua visão, de onde pudesse deduzir que foi esse o número
de vezes que viste tuas criaturas. Então disse:

"Senhor, não será verdadeira tua Escritura, inspirada por ti, que és a própria
verdade? Por que então me dizes que tua visão das coisas não está sujeita ao
tempo, enquanto tua Escritura me diz que dia por dia viste a bondade de tuas
obras? E calculei quantas vezes o fizeste."

A isto me respondes, porque és meu Deus, falando com voz forte no ouvido
interior de teu servo, rompendo minha surdez, me exclamas: "Ó homem, o que
minha Escritura diz, isto digo eu.

Mas ela fala no tempo, enquanto este não atinge o meu verbo, que permanece em
mim, eterno como eu. Assim, o que vês por meu Espírito, sou eu quem o vê; o que
dizes por meu Espírito, sou eu quem o diz. Mas o que vês no tempo, eu não vejo no
tempo; e o que dizes no tempo, eu não digo no tempo."

CAPÍTULO XXX - Erro dos maniqueus

Ouvi, Senhor, meu Deus, tua voz, e recolhi em meu coração uma gota de doçura de
tua verdade. Compreendi que há uns aos quais tuas obras desagradam. Eles
sustentam que muitas delas fizeste constrangido pela necessidade, como a
estrutura dos céus, a ordem dos astros; afirmam que não as criaste por ti mesmo,
mas que elas já existiam alhures, criadas por outra fonte; que te limitaste a reuni-
las, a ordená-las, a entrelaçá-las; que com elas construíste as muralhas do mundo,
depois de vencido teus inimigos, para que essa construção os mantivesse cativos, e
não mais pudessem se revoltar contra ti; que não criaste nem organizaste outros
seres, como os corpos carnais, os animais pequenos e tudo o que se prende à terra
por meio de raízes; que foi um espírito hostil, uma outra natureza, não criada por
ti, e que se opõe a ti nas regiões inferiores do mundo, que as gerou e organizou.
Esses insensatos falam assim porque não vêem tuas obras através de teu Espírito,
nem te reconhecem neles.

CAPÍTULO XXXI - A luz do espírito divino

O oposto sucede aos que vêem tuas obras através de teu Espírito, pois és tu é
quem as vê neles. Portanto, quando vêem que elas são boas, tu também vês essa
bondade; em tudo o que lhes agrada por tua causa, tu és que nos agradas, e o que
nos agrada através de teu Espírito é em nós que te agrada. Com efeito, quem

dentre os homens sabe das coisas do homem, senão o espírito do homem que nele
habita? Do mesmo modo o que pertence a Deus ninguém o sabe, a não ser o
Espírito de Deus. "Quanto a nós, diz ainda Paulo, não recebemos e espírito deste
mundo, mas o Espírito de Deus, para que conheçamos os dons que nos vêm de
Deus".

E isto me fez perguntar: Posto que certamente ninguém sabe das coisas de Deus,
com exceção do Espírito de Deus, como então nós conhecemos os dons que nos vêm
de Deus? Eis a resposta que recebi: As coisas que sabemos por seu Espírito,
ninguém as sabe a não ser o Espírito de Deus. É pois justo que foi dito aos que
falavam, inspirados pelo Espírito de Deus: "Não sois vós os que falais" – e aos que
obtém seu saber do Espírito de Deus: "Não sois vós os que sabeis". – E com igual
razão se diz aos que vêem através do Espírito de Deus: "Não sois vós os que
vêem". Assim, em tudo o que vemos de bom pelo Espírito de Deus, não somos nós
que vemos, mas Deus.

Por isso, uma coisa é julgar mau o que é bom, como o fazem aqueles de quem falei
acima, e outra coisa é o homem ver o que é bom. Todavia, muitos amam tua
criação porque é boa, mas não tem amam nessa criação; e por isso preferem gozar
dela que de ti. Há ainda outro caso, quando alguém vê que uma coisa é boa, mas é
Deus que nele vê que essa coisa é boa, e é Deus que é amado em sua criação. Ele
só o pode ser graças ao Espírito que Deus nos deu, porque o amor de Deus foi
derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado. Por ele,
vemos que tudo o que de algum modo existe é bom, pois recebe seu ser daquele
que é, não de um modo qualquer, mas de modo absoluto.

CAPÍTULO XXXII - A criação

Graças te damos, Senhor! Vemos o céu e a terra, isto é, a parte superior e inferior
do mundo material, assim como a criação espiritual e material. E, como adorno
dessas partes que se compõe, o conjunto do Universo, e o conjunto de toda a
criação, vemos a luz que foi criada e separada pelas trevas. Vemos o firmamento
do céu, tanto o que está situado entre as águas espirituais superiores e as águas
materiais inferiores, como ainda esses espaços de ar, chamados também de céu,
onde volitam as aves do céu entre as águas que se evolam em vapores, e nas
noites serenas se condensam em orvalho, e as que correm pesadas sobre a terra.
Vemos a beleza das águas reunidas nas planícies do mar, e a terra enxuta, ora
nua, ora tomando forma visível e ordenada, mãe das plantas e das árvore. Vemos
os luminares do céu brilhando acima de nós, o sol bastar para o dia, a lua e as
estrelas consolando a noite, e todos esses astros marcando e assinalando a

cadência do tempo. Vemos o elementos úmido habitado por peixes, monstros,
animais alados, porque a densidade do ar que sustenta o vôo dos pássaros é
aumentada pela evaporação das águas. Vemos a face da terra embelezar-se de
animais terrestres, e o homem, criado à tua imagem e semelhança, senhor de
todos os animais irracionais, precisamente porque foi feito à tua imagem e se
assemelha a ti, em virtude da razão e da inteligência. E como na alma humana há
uma parte que domina pela reflexão e outra que se submete na obediência, assim
a mulher foi criada fisicamente para o homem; é fora de dúvida que ela possui um
espírito e uma inteligência racional, iguais aos do homem, mas seu sexo a coloca
sob a dependência do sexo masculino; é desse modo que o desejo, princípio da
ação, se submete à razão que concebe a arte do agir retamente. Eis o que vemos,
e que cada uma dessas coisas, tomadas por si, são boas, e que todas, em seu
conjunto, são muito boas.

CAPÍTULO XXXIII - A matéria e a forma

Que tuas obras te louvem para que te amemos! Que nós te amemos, para que
tuas obras te louvem! Elas têm seu princípio e fim no tempo, seu nascimento e
morte, seu progresso e decadência, sua beleza e sua imperfeição. Elas têm,
portanto, sucessivamente sua manhã e sua noite, umas oculta; outras,
manifestamente.

Foram feitas por ti do nada, não de tua substância, nem de nenhuma substância
estranha ou inferior a ti, mas de matéria concriada, isto é, criada por ti ao mesmo
tempo em que lhe deste forma, sem nenhum intervalo de tempo. Sem dúvida a
matéria do céu e da terra é uma coisa, e sua forma é outra; a matéria tua a fizeste
do nada, a forma, tu a tiraste da matéria informe.

Contudo, criaste uma e outra a um só tempo, de maneira que entre a matéria e a
forma não houvesse nenhum intervalo de tempo.

CAPÍTULO XXXIV - Alegoria da criação

Também meditei sobre o significado simbólico da ordem pela qual se fez tua
criação e da ordem pela qual a Escritura relata. Vimos que tuas obras,
consideradas cada uma em si, são boas, e em seu conjunto, muito boas. Em teu
Verbo, em teu Filho único, vimos o céu e a terra, a cabeça e o corpo da Igreja,
predestinadas antes de todos os tempos, quando ainda não havia nem manhã,
nem tarde. Depois começaste a executar no tempo o que predestinaste antes do

tempo, a fim de revelar teus desígnios ocultos e de dar ordem às nossas desordens
– porque pesavam sobre nós nossos pecados, e nos perdíamos longe de ti em
voragens de trevas. Teu Espírito misericordioso pairava sobre nós, para nos
socorrer no momento oportuno. Justificaste os ímpios; tu os separaste dos
pecadores e confirmaste a autoridade de teu Livro entre os superiores, que te
eram dóceis, e os inferiores, para que a eles se submetessem. Reuniste em um
corpo único, de mesmas aspirações, a sociedade dos infiéis, para que aparecesse o
zelo dos fiéis fecundo em obras de misericórdia, e distribuindo aos pobres os bens
da terra para adquirir os do céu.

Acendeste então os luzeiros no firmamento: teus santos, que possuem a palavra
de vida e brilham pela sublime autoridade dos seus dons espirituais. Depois, para
difundir a fé entre as nações idólatras, fizeste com a matéria visível dos
sacramentos os milagres bem perceptíveis, e determinaste as vozes das palavras
sagradas, conformes ao firmamento de teu Livro, pelas quais seriam abençoados
teus fiéis. Formaste depois a alma viva dos fiéis, pela disciplina das paixões bem
ordenadas e pelo vigor da continência. Por fim renovaste a alma, que não estava
sujeita senão a ti, e que não tinha mais necessidade de nenhuma autoridade
humana para imitar, à tua imagem e semelhança; submeteste, como a mulher ao
homem, a atividade racional ao poder da inteligência. Quiseste que a teus
ministros que são necessários ao progresso dos fiéis nesta vida, que esses mesmos
fiéis propiciassem o necessário para suas necessidades temporais; obras valiosas
de caridade, cujos frutos colherão no futuro. Vemos todas essas coisas, e todas são
muito boas, porque tu as contemplas em nós, tu que nos deste o Espírito, para que
por ele pudéssemos vê-las e amar-te nelas.

CAPÍTULO XXXV - Prece

Senhor Deus, tu que nos deste tudo, concede-nos a paz do repouso, a paz do
sábado, a paz do ocaso. De fato, esta formosíssima ordem de coisas muito boas,
passará quando atingir o termo de seu destino, e terá sua tarde como teve seu
amanhecer.

CAPÍTULO XXXVI - O repouso de Deus

O sétimo dia, porém, não tem crepúsculo; não entardece porque o santificaste
para que se prolongue eternamente. E o repouso de teu sétimo dia, depois de ter
criado tantas e tão boas obras, embora sem te causar fadiga, a palavra de tua
Escritura nos anuncia que também nós, depois de nossos trabalhos, que são bons
porque assim nos o concedeste, encontraremos o repouso em ti, no sábado da vida

eterna.

CAPÍTULO XXXVII - O repouso da alma

Então também repousarás em nós, como hoje opera em nós; e o repouso de que
gozaremos será teu, como as obras que fazemos são tuas. Mas tu, Senhor, sempre
estás ativo e sempre estás em repouso. Tu não vês o tempo, não ages no tempo
nem repousas no tempo; todavia, concede-nos que vejamos no tempo,fazes o
próprio tempo e o repouso além do tempo.

CAPÍTULO XXXVIII - O descanso de Deus

Vemos, portanto, as tuas criaturas porque elas existem. Mas elas existem porque
tu as vês. Olhando à nossa volta, vemos que elas existem; em nosso íntimo, vemos
que são boas. Mas tu já as viste feitas quando e onde viste que deviam ser feitas.
Agora somos inclinados a praticar o bem, depois que nosso coração concebeu essa
idéia em teu Espírito. Outrora estávamos inclinados ao mal, desertando de ti. Tu,
porém, ó Deus, único bem, nunca cessaste de nos fazer o bem. Por tua graça,
algumas de nossas obras são boas, mas não são eternas. Esperamos, depois de
realizá-las, repousar em tua grande santificação. Mas tu, que não precisas de
nenhum outro bem, estás sempre em repouso, porque és teu próprio repouso.

Que homem poderá dar ao homem a compreensão desta verdade? Que anjo a
outro anjo?

Que anjo ao homem? É a ti que devemos pedir, e em ti é que a devemos buscar, é
à tua porta que devemos bater. E somente assim receberemos, somente assim
encontraremos, somente assim se nos abrirá tua porta.

DE MAGISTRO (DO MESTRE)

CAPÍTULO I - FINALIDADE DA LINGUAGEM

AGOSTINHO

– Qual te parece ser nossa intenção quando falamos?

ADEODATO

– Pelo que me acode ao espírito agora, eu diria ou ensinar ou aprender.

AGOSTINHO

– Com uma dessas coisas eu concordo; de fato, é evidente que quando falamos
queremos ensinar; todavia, como aprender?

ADEODATO

– Mas diga-me, pensas que se pode aprender sem perguntar?

AGOSTINHO

– Mesmo neste caso, creio que só queremos ensinar. Diga-me pois, nossas
perguntas terão outro motivo que não ensinar o que queremos àquele a quem
perguntamos?

ADEODATO

– Dizes a verdade.

AGOSTINHO

– Vês, pois, que nosso propósito ao falar é apenas ensinar.

ADEODATO

– Para mim ainda não está claro; ora, se falar nada mais é que emitir palavras,
também as emitidos ao cantar; às vezes falamos sozinhos, sem um interlocutor que
possa aprender; em tais casos, não creio que pretendamos ensinar algo.

AGOSTINHO

– Creio, contudo, que há certa maneira de ensinar pela recordação, processo
certamente valioso, como teremos ocasião de ver em nossa conversação. Ora, se
opinas que ao recordarmos não aprendemos, ou que nada ensina aquele que
recorda, eu não me oponho; e desde já afirmo que é dupla a finalidade da palavra:
para ensinar ou para despertar reminiscências nos outros ou em nós mesmos; e
isto ocorre também quando cantamos, concordas?

ADEODATO

– Não, absolutamente, pois é bem raro que eu cante para lembrar-me, mas é bem
freqüente que o faça para deleitar-me.

AGOSTINHO

– Compreendo a tua idéia; mas não percebes que o que te deleita no canto é
apenas uma certa modulação do som, que, pelo fato de se poder associar ou não às
palavras, faz com que uma coisa seja o falar e outra o cantar? Na verdade,
também com a flauta e a cítara se modulam os sons, cantam também os pássaros,
e nós mesmos, às vezes, entoamos um motivo musical sem palavras, o que se pode
chamar canto, mas não fala; tens alguma objeção a isto?

ADEODATO

– Nenhuma.

AGOSTINHO

– Aceitas, pois, que a palavra só foi instituída para ensinar e recordar?

ADEODATO

– Poderia concordar, se não me levasse a opinar diversamente o fato de que, ao
orarmos, nós sem dúvida falamos, e, certamente não é lícito crer que ensinamos
ou recordamos algo a Deus.

AGOSTINHO

– Suspeito que não sabes que, se nos foi dito para orarmos em lugares fechados,
significando com isso o espaço secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser
lembrado de algo ou ensinado por nossas palavras, para atender a nossos desejos.
Quem fala, pois, manifesta exteriormente sua vontade articulando o som: mas nós
devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais profundo recesso da alma racional, a
que se chama o homem interior; quis Ele que fosse este o seu templo. Não leste no
Apóstolo: "Não sabeis que sois o templo de Deus e que o espírito de Deus habita
em vós", e que "Cristo habita no homem interior?" E não atentaste nas palavras
do Profeta: "Falai dentro dos vossos corações, e nos vossos leitos arrependei-vos;
oferecei os sacrifícios da justiça e confiai no Senhor"?

Onde crês que se possam oferecer os sacrifícios da justiça, a não ser no templo da
mente e no íntimo do coração? Onde se fizer o sacrifício, aí também se há de orar.
Por isso, não são necessárias palavras quando oramos, isto é, palavras soantes,
exceto, talvez, no caso do sacerdote que exprime em palavras seu pensamento,
mas não para que Deus ouça, e sim os homens e, envolvidos na recordação, sejam
elevados até Deus. Ou não pensas assim?

ADEODATO

– Concordo plenamente.

AGOSTINHO

– Não te preocupas pois o fato de que o Mestre supremo, ensinando a orar aos
seus discípulos, ensinou certas e determinadas palavras, parecendo não ter feito
outra coisa que ensinar as palavras a serem empregadas quando rezamos?

ADEODATO

– Isso não me preocupa absolutamente, pois não lhes ensinou palavras; e sim,
pelas palavras, aquilo que deveriam saber quanto a quem e o que haviam de pedir

na oração, como foi dito, no segredo do coração.

AGOSTINHO

– Entendeste corretamente: creio que também notaste, apesar de nem todos
concordarem que, mesmo sem emitir som algum, nós falamos quando
interiormente articulamos as palavras em nossa mente; assim, com as palavras
que emitimos, o que fazemos é apenas chamar a atenção; entretanto, a memória
das coisas, à qual as palavras estão associadas, provoca-as e faz com que venham à
mente as próprias coisas, das quais as palavras são sinais.

ADEODATO

– Compreendo e concordo contigo.

CAPÍTULO II - O HOMEM MOSTRA O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS SÓ
PELAS PALAVRAS

AGOSTINHO

– Nós concordamos, portanto, em que as palavras são sinais.

ADEODATO

–Concordamos.

AGOSTINHO

– Então, podemos chamar assim a um sinal que nada signifique?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

– Quantas palavras há neste verso: "Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui"
?

ADEODATO

– Oito.

AGOSTINHO

– Logo, oito são os sinais.

ADEODATO

– É mesmo.

AGOSTINHO

– Creio que compreendes este verso.

ADEODATO

– Parece-me que sim.

AGOSTINHO

– Dize-me o sentido de cada palavra.

ADEODATO

– Sei o que significa o "si", mas não encontro um sinônimo para expressar-lhe o
significado.

AGOSTINHO

– Sabes indicar, ao menos, em que campo está seu significado?

ADEODATO

– Parece-me que o "si" expressa dúvida: mas onde está a dúvida, senão no
espírito?

AGOSTINHO

– Por enquanto, aceito; continua.

ADEODATO

– "Nihil" que outra coisa significa senão o que não existe?

AGOSTINHO

– Talvez fales com acerto, porém a afirmação anterior me impede de concordar
contigo: que não existe sinal sem que signifique algo; ora, o nada de modo algum
pode ser alguma coisa.

Por isso, a segunda palavra deste verso não seria, pois, um sinal, uma vez que
nada significa; e então, teríamos errado ao concordar que todas as palavras são
sinais, ou que todo sinal signifique algo.

ADEODATO

– Estás me apertando demais; observa todavia que, se não tivermos nada para
expressar, seria sem dúvida tolice proferimos alguma palavra; creio que tu, ao
falar agora comigo, nada do que disseste foi inútil, mas que, com os demais sons
que saem da tua boca, ofereces-me sinais para que eu entenda algo; não
precisarias ter pronunciado essas duas sílabas ( ni-hil) se elas não significassem
algo. No entanto, se entendes que com elas necessariamente se gera um
enunciado e que elas, ao atingir nossos ouvidos, nos ensinam ou lembram algo,
logo entenderás o que eu queria dizer, mas não posso explicar.

AGOSTINHO

– Que faremos então? Poderemos afirmar que esta palavra ( nihil), mais do que a

própria coisa, que não tem existência em si, significa aquele estado da alma que se
gera quando não se vê a coisa e, no entanto, percebe-se ou se pensa ter percebido
que a coisa não existe?

ADEODATO

– É bem isso que eu procurava explicar.

AGOSTINHO

– Seja lá como for, vamos em frente, para não cairmos no maior absurdo de todos.

ADEODATO

– Qual?

AGOSTINHO

– Que "nada" nos detenha e que, no entanto, a nossa conversa fique parada.

ADEODATO

– De fato é ridículo e, mesmo não atinando como isso pode acontecer, vejo
claramente que já ocorreu.

AGOSTINHO

– Se Deus quiser, no momento oportuno compreenderemos melhor este gênero de
absurdo; agora volta àquele verso e procura mostrar, conforme teu entendimento,
o que significam as demais palavras.

ADEODATO

– A terceira, "ex", é uma preposição, que poderíamos substituir por "de".

AGOSTINHO

– Veja, não estou te pedindo que troques uma palavra conhecidíssima por outra
igualmente conhecida, de mesmo significado, suposto que signifique o mesmo;
contudo, por enquanto, admitamos que seja assim. Certamente, se o poeta, no
lugar de dizer "ex tanta urbe", e eu indagasse o que significa "de", responderias
"ex", sendo que estas duas palavras, isto é, sinais, têm – como tu crês – o mesmo
significado; eu, porém, busco esta mesma coisa, não sei se una e idêntica, que tais
sinais significam.

ADEODATO

– Parece-me que signifique a separação de algo do lugar em que estava contido e
ao qual pensa se pertencer; quer porque essa coisa já não exista, como acontece
neste verso, onde sem existir mais a cidade (de Tróia) subsistiram dela alguns
troianos, quer porque permaneça, como ocorre ao afirmarmos haver na África uns
comerciantes vindos da cidade de Roma.

AGOSTINHO

– Para admitir que é assim que se passa, não irei enumerar todas as objeções que
se poderiam apresentar a essa tua regra; mas facilmente podes perceber que
explicaste palavras com outras palavras, isto é, sinais com outros sinais, coisas
conhecidíssimas com outras também conhecidas; porém gostaria que, se te for
possível, me mostrasses as coisas em si, de que tais palavras são os sinais.

CAPÍTULO III - SE É POSSÍVEL MOSTRAR ALGUMA COISA SEM O
EMPREGO DE UM SINAL

ADEODATO

– É bem estranho que não saibas, ou melhor, que simules não saber, que não é
possível obter de mim uma resposta satisfatória ao teu desejo; pelo fato de
estarmos conversando, simplesmente não podemos responder senão com palavras.
Todavia, indagas de mim coisas que de modo nenhum pode ser consideradas
palavras; e, no entanto, também sobre essas tu me interrogas com palavras.
Começa tu a interrogar-me sem palavras, para que depois eu te possa responder à
altura.

AGOSTINHO

– Admito que tens razão; contudo, se te perguntasse o significado dessas três
sílabas:

"paries" (parede), creio que poderias apontar-me com o dedo, para que eu visse a
coisa em si, de que esta palavra de três sílabas é o sinal, demonstrando-a e
indicando-a tu mesmo, sem necessitar de palavra alguma.

ADEODATO

– Certamente que se pode fazê-lo, mas só com aqueles nomes que significam
corpos e desde que tais corpos estejam presentes.

AGOSTINHO

– Mas à cor, talvez, podemos chamar corpo, ou, antes, uma qualidade do corpo?

ADEODATO

– Uma qualidade.

AGOSTINHO

– Com que, então, também a cor se pode apontar com o dedo? Ou ainda
acrescentas aos corpos suas qualidades, de modo que elas também possam ser
demonstradas sem palavras, desde que presentes?

ADEODATO

– Eu, ao falar dos corpos, quis significar tudo o que é corpóreo, isto é, tudo o que
nos corpos se percebe.

AGOSTINHO

– Considera, porém, se mesmo nisso não terás de abrir alguma exceção.

ADEODATO

– A advertência é justa; de fato, não deveria dizer todas as coisas corpóreas, mas
todas as coisas visíveis. Admito que o som, o cheiro, o sabor, a gravidade, o calor e
muitas outras coisas que recaem sob os outros sentidos, embora não se possam
perceber sem que estejam associadas aos corpos, e portanto a estes dizem
respeito, não se podem, todavia, apontar com o dedo.

AGOSTINHO

– Diga-me, nunca viste alguém conversar com os surdos por gestos, e os próprios
surdos entrei si também por gestos, perguntam, respondem, ensinam ou indicam
tudo o que querem, ou quase tudo? Se é assim, então podemos indicar sem
palavras não as coisas visíveis, mas também os sons, os sabores e as outras coisas
semelhantes. Também os histriões, nos teatros, expõem sem palavras e
interpretam peças inteiras, na maioria das vezes através de mímica.

ADEODATO

– Nada tenho a opor-te, a não ser aquele "ex" (de), não só eu, mas nem mesmo o
melhor dos histriões poderia demonstrar-te, sem palavras, o que significa.

AGOSTINHO

– Talvez isto seja verdade, mas vamos supor que ele possa; não duvidas
certamente, como creio, que, qualquer que seja o gestual que adote para tentar
demonstrar a coisa que é significada por esta palavra, não será a coisa em si
mesma, porém em seu sinal. Por isso, ele também terá indicado, se não uma
palavra com outra palavra, pelo menos um sinal com outro sinal; assim, este
monossílabo "ex" e aquele seu gesto significarão a mesma coisa que eu pedi que
me demonstrasses sem sinais.

ADEODATO

– Mas, rogo-te, como é possível o que tu estás pedindo?

AGOSTINHO

– Do mesmo modo que o foi para a parede.

ADEODATO

– Mas também esta, pelo desenvolvimento do nosso raciocínio, não pode ser
indicada sem sinal. Pois o ato de apontar o dedo certamente não é a parede em si,
mas apenas um dos possíveis sinais, por meio de que a parede pode ser observada.
Não vejo, portanto, nada que possa ser indicado sem sinais.

AGOSTINHO

– Se, porém, te perguntasse o que é caminhar, e tu te levantasses e fizesses
aquela ação, não usarias da própria coisa para ensinar-me, em vez de usar
palavras ou outros sinais?

ADEODATO

– Admito que assim é, e tenho pejo de não ter observado coisa tão evidente, que
me traz à memória milhares de coisas, indicativas por si mesmas, e não pelos
sinais com que as mostramos, como sejam: comer, beber, estar sentado, ficar de
pé, gritar e inúmeras coisas.

AGOSTINHO

– E dize-me então: se eu desconhecesse o significado da palavra e te perguntasse,
enquanto caminhas, o que é caminhar, como mo explicaria?

ADEODATO

– Continuaria o mesmo ato de caminhar, mas um pouco mais depressa, para que a
novidade introduzida despertasse a atenção; e, todavia, não teria feito coisa
diversa do que pretendia te mostrar.

AGOSTINHO

– Não sabes pois que uma coisa é caminhar e outra é andar depressa?

Ora, caminhar não é o mesmo que andar depressa, e quem anda depressa, não
quer dizer que caminhe: ainda mais que podemos meter pressa no ler, no escrever,

e em muitíssimas outras coisas. Por isso, se após minha indagação fizesses mais
depressa o que fazia antes, eu seria induzido a crer que caminhar outra coisa não é
do que se apressar, uma vez que a novidade introduzida foi a pressa, e eu com isto
seria levado a engano.

ADEODATO

– Confesso que não é possível prescindir de sinais, se formos inquiridos no curso da
ação; pois, se nada for acrescentado à ação que estamos realizando, nosso
interlocutor poderá supor que não queremos responder-lhe, ignorando-o,
continuamos a nossa ação. Mas se alguém nos indagar de coisas que podemos
fazer, não enquanto as fazemos, podemos mostrar-lhe a própria coisa fazendo-a,
antes que com um sinal, em resposta ao que ele pergunta. A não ser que ele me
pergunte, enquanto falo, o que é falar: porque qualquer coisa que lhe disser para
explicar-lhe isso, sempre o farei falando; e falarei para ensiná-lo até que lhe fique
perfeitamente claro o que desejava saber, sem afastar-me da própria coisa que
desejava demonstrar, nem procurar sinais com que demonstrá-la.

CAPÍTULO IV - SE OS SINAIS SE MOSTRAM COM SINAIS

AGOSTINHO

– Argumentas com agudeza, e por isso considera a possibilidade de convir entre
nós que se possam mostrar sem sinais as ações que não estão em curso quando da
pergunta, mas que podemos fazer logo em seguida; ou as que fazemos desde que
as ações nada mais sejam do que os próprios sinais. Pois, quando falamos,
emitimos sinais, donde se gera a palavra "significar"

(fazer sinais – signa facere).

ADEODATO

– É possível convir.

AGOSTINHO

– Portanto, ao discutirmos sobre os sinais, se podem mostrar uns sinais por meio
de outros; mas quando falamos das coisas em si, que não são sinais, não se podem

mostrar senão fazendo-o logo após a pergunta – se for possível – ou dando algum
sinal pelo qual possam ser compreendidas.

ADEODATO

– Exatamente.

AGOSTINHO – Nessa tríplice possibilidade, vamos primeiro considerar, se quiseres,
o caso em que se mostram sinais com sinais; diga-me, as palavras sozinhas são
sinais?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

– Parece-me, portanto que, ao falarmos, usamos as palavras para significar ou as
palavras em si, ou bem outros sinais, como seria o gesto associado à fala, ou as
letras que usamos na escrita; porque o que indicamos com estes dois vocábulos
(gesto e letra) ou são sinais em si mesmos ( o próprio gesto e as próprias letras),
ou algo que não é sinal, como quando dizemos "pedra". Esta palavra, pois, é um
sinal enquanto representa algo, mas a coisa indicada não é um sinal. Este gênero
de palavras que representam coisas que não são sinais, não pertence, porém, à
parte que nos propomos discutir. De fato, nós nos propomos considerar o caso dos
sinais que são expressos por sinais, e no caso distinguimos dois aspectos: ou se
ensinam e recordam os mesmos sinais, ou outros sinais diferentes. Não te parece?

ADEODATO

– Está claro.

AGOSTINHO

– Dize-me, então: os sinais que são palavras sob qual sentido recaem?

ADEODATO

– O ouvido.

AGOSTINHO

– E o gesto?

ADEODATO

– A vista.

AGOSTINHO

– Como? Por acaso, as palavras escritas, não serão também palavras? Ou, para ser
exato, não serão entendidas como sinais de palavras, sendo a palavra o que se
profere, com certo significado, articulando a voz? Mas a voz só pode ser percebida
pelo sentido do ouvido; disso resulta que, quando se escreve uma palavra,
apresenta-se um sinal aos olhos, que suscita na mente o que será percebido com o
ouvido.

ADEODATO

– Concordo plenamente.

AGOSTINHO

– Creio que também concordarás em reconhecer que quando dizemos "nome"
queremos significar algo.

ADEODATO

– É verdade.

AGOSTINHO

– Mas o que, afinal?

ADEODATO

– Naturalmente aquilo cujo nome se profere, como Rômulo, Roma, virtude, rio e
incontáveis coisas.

AGOSTINHO

– Estes quatro nomes significam alguma coisa?

ADEODATO

– Sim, algumas coisas.

AGOSTINHO

– Achas que há diferença entre estes nomes e as coisas que eles significam?

ADEODATO

– Muitíssima.

AGOSTINHO

– Gostaria de ouvir de ti qual é esta diferença.

ADEODATO

– Em primeiro lugar, estes são sinais e aquelas não o são.

AGOSTINHO

– Concordas em que chamemos de "significáveis" as coisas que podem ser
expressas pelos sinais, e não são sinais em si mesmas, assim como chamamos de
"visíveis" as que podem ser vistas, para depois discutirmos sobre elas mais
comodamente?

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– E os quatro sinais que antes proferiste podem ser significados por qualquer outro
sinal?

ADEODATO

– Admira-me que penses eu ter esquecido aquilo que ficou assentado, isto é: que
as letras escritas são sinais de sinais, ou seja, sinais dos sons que a voz articula.

AGOSTINHO

– Que diferença há entre eles?

ADEODATO

– Aquelas (as letras escritas) são visíveis, e estes (os sons articulados pela voz),
audíveis. Terás alguma dificuldade em aceitar este adjetivo, "audíveis", uma vez
que admitimos "significáveis"?

AGOSTINHO

– Certamente que o aceito, e com agrado. Contudo, ainda pergunto se esses
quatro sinais podem ser expressos por algum outro sinal audível, como lembraste
acontecer com os visíveis.

ADEODATO

– Sim, isto também foi mencionado há pouco. Por isso respondi que o nome
significa algo, e ao significado associei esses quatro nomes; e aqueles e estes,
posto que se proferem com a voz, reconheço serem audíveis.

AGOSTINHO

– Qual é pois a diferença, entre o sinal audível e as coisas audíveis que significa
que, por sua vez, também são sinais?

ADEODATO

– Entre o nome e estas quatro coisas que associamos ao seu significado, parece-me
haver esta diferença: o nome é sinal audível dos sinais audíveis, enquanto as
coisas audíveis são também sinais audíveis, mas não de sinais audíveis, e sim de
coisas em parte também visíveis, como Rômulo, Roma, rio e em parte inteligíveis,
como virtude.

AGOSTINHO

– Aceito e concordo; mas sabes que é a palavra tudo aquilo que é proferido com a
voz e que traz em si algum significado?

ADEODATO

– Sei.

AGOSTINHO

– Logo, o nome também é palavra, pois é proferido articulando a voz e tem um
significado; e se afirmamos que um homem eloqüente utiliza palavras apropriadas,
sem dúvida queremos dizer que usa nomes. Portanto, quando, em Terêncio, o
escravo fala ao velho patrão: "Rogo que digas boas palavras", entende "nomes".

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– Gostaria que me respondesses também a isto: vimos ser a palavra sinal do nome
e o nome sinal do rio e o rio sinal de uma coisa visível, e como reconheceste a

diferença entre esta coisa e o rio, isto é, o seu sinal, e entre este sinal e o nome
que é sinal deste sinal, qual julgas que seja a diferença entre o sinal do nome que
dissemos ser a palavra e o mesmo nome de que ela é sinal?

ADEODATO

– Julgo que a diferença seja a seguinte: o que é significado com o nome é
significado também com a palavra; como, pois, nome é palavra, assim também rio
é palavra; mas nem tudo o que é significado com a palavra o é pelo nome.
Também aquele "si" (se) que principia o verso que propuseste, e aquele "ex" (de)
do qual tratamos tão longamente, arrazoando até chegarmos à presente questão,
são palavras, mas não nomes, e podemos encontrar inúmeros exemplos como
estes. Pois, como todos os nomes são palavras, mas nem todas as palavras são
nomes, julgo estar clara a diferença entre a palavra e nome, isto é, entre o sinal
daquele sinal que não significa nenhum outro sinal e o sinal daquele sinal que pode
significar outros.

AGOSTINHO

– Concedes que todo cavalo é animal, mas nem todo animal é cavalo?

ADEODATO

– Haverá como duvidar?

AGOSTINHO

– Pois bem, entre nome e palavra existe a mesma relação que há entre cavalo e
animal. A menos que discordes pelo fato de que por "verbum" , além de "palavra",
pode-se entender "verbo", isto é, aquela parte do discurso que descreve ação e se
declina, como "escrevo", "escrevi", "leio", "li", o que obviamente não são nomes.

ADEODATO

– Acabas de esclarecer o que me suscitava dúvidas.

AGOSTINHO

– Isto não deve preocupar-te. Na verdade, em geral, chamamos sinais a tudo o que
contém um significado, dentre os quais encontramos também as palavras. Ainda
chamamos sinais (insígnias) às bandeiras militares, que são sinais propriamente
ditos, o que não se poderia afirmar das palavras. Todavia, se te dissesse que todo
cavalo é animal, mas nem todo animal é cavalo, assim como toda palavra é sinal,
mas nem todo sinal é palavra, creio que não restaria dúvida alguma.

ADEODATO

– Entendo sim, e concordo plenamente, que entre "palavra" tomada em sentido
geral de

"nome" existe a mesma diferença que há entre animal e cavalo.

AGOSTINHO

– Sabes também que, quando dizemos animal, este nome trissílabo, que a voz
profere, não é a mesma coisa que com ele se significa?

ADEODATO

– Já concordamos sobre isto há pouco, a respeito de todos os sinais e de todos os
significáveis.

AGOSTINHO

– Não te parece que todos os sinais significam uma coisa distinta deles próprios,
pois ao pronunciarmos este trissílabo – animal – de modo algum significaremos
aquilo que ele mesmo é?

ADEODATO

– Não, certamente; pois quando dizemos sinal, este significa todos os outros sinais,
quaisquer que sejam, incluindo a si mesmo também, pois é uma palavra, e, como
vimos, todas as palavras são sinais.

AGOSTINHO

– E quando proferimos o dissílabo "verbum" (palavra), não acontece algo
semelhante?

Pois, se tudo o que proferimos com algum significado é também significado por
este dissílabo, ele também está incluído no gênero dos sinais.

ADEODATO

– Assim é.

AGOSTINHO

– E não é assim também para "nome"? Este, pois, significa os nomes de todos os
gêneros, e "nome" mesmo é de gênero neutro. Ou, se te perguntasse que parte da
oração é nome, não poderias responder-me acertadamente dizendo "nome"?

ADEODATO ]

– Poderia.

AGOSTINHO

– Portanto, há sinais que, entre as outras coisas que significam, significam também
a si mesmos.

ADEODATO

– Há.

AGOSTINHO

– Quando dizemos "coniunctio" (conjunção), julgas que este sinal quadrissílabo
possa ser um daqueles?

ADEODATO

– Certamente que não; porque as coisas que significa não são nomes, enquanto ele
é um nome.

CAPÍTULO V - SINAIS RECÍPROCOS

AGOSTINHO

– Raciocínio correto; vejamos agora se é possível encontrar sinais que se
signifiquem reciprocamente, tais que, assim como este significa aquele, também
aquele signifique este; e não me parece ser o caso entre aquele quadrissílabo
"conjunctio" e as coisas que este significa, tais como: "si" (se), "vel" (ou), "nam"
(pois), "namque" (e pois), "nisi" (se não), "ergo" (logo), "quoniam" (´porque) e outras
semelhantes, porque aquela palavra sozinha significa todas estas, mas não há
nenhuma entre estas que signifique aquele quadrissílabo.

ADEODATO

– Compreendo, e gostaria de saber quais os sinais que se significam
reciprocamente.

AGOSTINHO

– Sabes, então, que, quando dizemos "nome" e "palavra", dizemos duas palavras?

ADEODATO

– Sei, sim.

AGOSTINHO

– E não sabes que, quando dizemos "nome" e "palavra", dizemos dois nomes?

ADEODATO

– Também sei.

AGOSTINHO

– Portanto, sabes que tanto o nome pode ser significado com a palavra,quanto a
palavra com o nome.

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– E podes dizer-me, salvo a diversidade de escrita e de pronúncia, em que diferem
entre si?

ADEODATO

– Talvez possa, pois parece-me tratar-se do mesmo caso de que falei há pouco. De
fato, quando dizemos "palavra", entendemos tudo o que proferimos com algum
significado; assim, todo nome, e ainda o próprio termo "nome", é uma palavra,
mas nem toda palavra é nome, embora quando dizemos "palavra" entendemos
"nome".

AGOSTINHO

– E se alguém afirmasse e demonstrasse que, assim como cada nome é palavra,
também cada palavra é nome, poderias ainda determinar sua diferença, afora o
diverso som da sua pronúncia?

ADEODATO

– Creio que não poderia, e julgaria não haver diferença alguma.

AGOSTINHO

– Como? Se tudo o que proferimos, com algum significado, tanto são palavras
como nomes e, contudo, por certas razoes, são palavras e, por outras razões são
nomes, não haverá entre nome e palavra distinção alguma?

ADEODATO

– Não compreendo como isto possa se dar.

AGOSTINHO – Isto certamente entendes: tudo o que é "colorido" é visível e tudo o
que é visível é "colorido", apesar de estas duas palavras significarem coisas
distintas e separadas.

ADEODATO

– Entendo.

AGOSTINHO

– E porventura será difícil admitir que do mesmo modo toda palavra é nome e
todo nome é palavra, embora estes dois termos "nome" e "palavra" tenham
significado diferente?

ADEODATO

– Percebo que isto pode acontecer, mas espero que me mostres como isto
acontece.

AGOSTINHO

– Creio que reparaste que tudo o que nossa voz profere com algum significado fere
o ouvido onde é percebido, e daí é enviado à memória para ficar conhecido.

ADEODATO

– Sim, reparo.

AGOSTINHO

– Acontecem, portanto, duas coisas quando falamos algo.

ADEODATO

– Assim é.

AGOSTINHO

– Aceitarias que por uma destas qualidades fosse chamadas palavras ("verba" de
"verberare" : percutir, bater) e pela outra nomes ("nomina", de "nosco" :
conhecer)? E o primeiro termo assim se chamasse por causa do ouvido, e o
segundo, por causa do espírito?

ADEODATO

– Concordarei assim que me tiveres demonstrado que podemos, com acerto,
chamar nomes a todas as palavras.

AGOSTINHO

– Será fácil, pois creio que aprendeste e recordas que se chama "pronome" aquilo
que está em lugar do nome, ainda que denote a coisa com menor intensidade que
o nome. Parece-me que foi assim que o definiu o gramático que mencionaste:
"Pronome é uma parte da oração que, usada no lugar do nome, significa a mesma
coisa que este, porém menos plenamente".

ADEODATO

– Lembro-me e concordo.

AGOSTINHO

– Vemos portanto que, de acordo com esta definição, os pronomes se referem só
aos nomes, e só podem ser empregados no lugar destes, como quando se diz: este
homem, o mesmo rei, a mesma mulher, esse ouro, aquela prata ; os termos "este",
"mesmo", "mesma", "esse", "aquela" são pronomes, "homem", "rei", "mulher",
"ouro", "prata" são nomes que, mais plenamente que os mesmos pronomes,
significam as coisas.

ADEODATO

– Percebo e estou de acordo.

AGOSTINHO

– Enuncia-me agora algumas conjunções, as que quiseres.

ADEODATO

– "E" ( et), "também" ( que), "mas" ( at), "senão" ( atque).

AGOSTINHO

– Tudo o que disseste parece ser nome?

ADEODATO

– De maneira alguma.

AGOSTINHO

– Mas ao menos julgaste que eu falei bem dizendo: "tudo isso", "tudo o que"
disseste?

ADEODATO

– Completamente correto; e compreendo, quão admiravelmente me demonstraste
que enunciei nomes, pois se assim não fosse não se poderia dizer: "tudo isto" ( haec
omnia), como se poderia dizer com acerto "todas estas palavras" ( haec omnia
verba). Todavia, se me perguntares a que parte da oração pertence "palavra",
responderei que é um nome. Eis a razão de, a este nome, acrescentares o
pronome, para que a tua frase estivesse correta.

AGOSTINHO

– Sem dúvida estás enganado, embora demonstres certa agudeza. Para desfazer o
engano, presta mais atenção ao que vou dizer, posto que eu consiga dizê-lo como

quero, pois falar sobre palavras com palavras é tão complicado como entrelaçar os
dedos e assim tentar coçá-los, quando apenas quem os mexe pode distinguir os
dedos que têm comichão dos que ajudariam a acalmar-lhe o prurido.

ADEODATO

– Eis-me aqui todo ouvidos e atenção, pois a comparação despertou-me profundo
interesse.

AGOSTINHO

– As palavras resultam certamente de som e de letras.

ADEODATO

– Assim é, de fato.

AGOSTINHO

– Ora, lançando mão de uma autoridade que nos é caríssima, quando o Apóstolo
Paulo diz: "Não havia em Cristo o sim e o não, mas somente havia nele o sim", não
creio que seja o caso de pensar que as três letras que pronunciamos dizendo "sim"
( est) existissem em Cristo mas, antes, o que estas três letras significam.

ADEODATO

– Entendo e acompanho-te.

AGOSTINHO

– E compreendes com certeza que não há diferença entre dizer: "se chama virtude"
ou "se nomeia virtude".

ADEODATO

– É claro.

AGOSTINHO

– Assim é, pois, igualmente claro não haver diferença se alguém disser: "o que
havia nele (em Cristo) se chama "sim" ou se nomeia "sim" .

ADEODATO

– Percebo que aqui também não há diferença.

AGOSTINHO

– E já vislumbraste aonde quero chegar?

ADEODATO

– Ainda não.

AGOSTINHO

– Não percebes que nome é aquilo com que se nomeia uma coisa?

ADEODATO

– Não há para mim coisa mais clara.

AGOSTINHO

– Então notas que "est" (é – sim) é nome, se o que havia em Cristo se chama "est"
(é – sim).

ADEODATO

– Não há como negá-lo.

AGOSTINHO

– Mas se indagasse a que parte do discurso pertence "est" (é – sim), creio que não
responderias "nome", mas "verbo", embora o raciocínio tenha demonstrado que é
também nome.

ADEODATO

– É exatamente como dizes.

AGOSTINHO

– Poderás ainda duvidar que também as outras partes da oração sejam nomes,
como demonstraremos no caso do verbo "est" ?

ADEODATO

– Não duvido, pois percebo que significam algo; mas se me perguntares a respeito
das próprias coisas que elas significam, isto é, como cada uma, individualmente, se
chame ou nomeie, só poderei responder com aquelas partes da oração que não
chamamos de nomes, mas que, ao que parece, deveríamos chamar palavras?

AGOSTINHO

– Nem se preocupa que o nosso arrazoado possa ser abalado pela afirmação que se
deve atribuir ao Apóstolo autoridade de doutrina, mas não de palavras, e que,
portanto, as bases de nossa persuasão não são tão firmes como parecia? E pode
ser que Paulo, embora tenha vivido e ensinado retissimamente, não tenha falado
com igual exatidão quando disse: "o sim era nele" (em Cristo); tanto mais que ele
mesmo confessa inepto na arte de falar? Como julgas que se possa refutar tal
objeção?

ADEODATO

– Não saberia o que responder, e rogo-te que procures um dos que são tidos como
autoridades máximas na arte da palavra, para esclarecer o que desejas.

AGOSTINHO

– Parece-te, pois, que a razão por si só, sem o aval da autoridade, não bastaria
para demonstrar que todas as partes da oração tem um significado e que, por isso,
cabe-lhes uma denominação; ora, se se chamam, também se nomeiam, e, se se
nomeiam, terão de nomear-se com um nome; o que se vê facilmente comparando
diversas línguas. Pois é evidente que se perguntarmos como os gregos nomeiam o
que nós nomeamos "quis" (quem), nos responderiam tis; como nomeiam o que nós
nomeamos "bene" (bem), eles kalõs; o que nós nomeamos "scriptum" (escrito), eles
to gegrammenon; o que nós "et" (e), eles kaí; o que nós "ab" (por, de), eles, ápò o
que nós "heu" (ai), eles oi; e quanto a todas estas partes da oração que enumerei,
estaria certo quem fizesse a pergunta: seria possível isto se não fossem nomes?
Podemos demonstrar, mediante este processo, que o apóstolo Paulo falou
corretamente, sem apelar para a autoridade de outros oradores: que necessidade
há, pois, de procurarmos em outros o apoio para a nossa opinião?

– Mas se houver alguém tão tardo ou tão teimoso que não ceda e teime não ceder
sem a autoridade daqueles autores, aos quais o consenso geral atribui as regras
da arte de falar, quem se poderia encontrar na língua latina mais exímio do que
Cícero? Ora, nas suas nobilíssimas orações, apelidadas "verrinas", ele chama
"nome" ao termo "coram" (diante de), embora naquela passagem possa ser
tomado como preposição ou como advérbio. Mas, como poderia ocorrer que eu
não esteja compreendendo bem aquela passagem, que poderia ser interpretada
diversamente por outrem, vou citar um caso a que não creio se possa fazer
objeção alguma. Os mais renomados mestre de dialética afirmam que uma frase
completa é formada pelo nome e pelo verbo, quer seja afirmativa ou negativa; o
que Túlio (Cícero), em certa passagem, denomina enunciado ou proposição. Quando
o verbo está na terceira pessoa, dizem que o caso do nome deve ser o nominativo,
e está certo; e se, quando dizemos: "O homem senta, o cavalo corre", examinares o
que ficou dito, reconhecerás, segundo julgo, que ocorrem aí duas proposições.

ADEODATO

– Reconheço-o.

AGOSTINHO

– Observas que em cada proposição há um nome – na primeira, "homem", e na
segunda,

"cavalo" – e que está associado a um verbo, "senta" e "corre" respectivamente?

ADEODATO

– Percebi.

AGOSTINHO

– Ora, se eu dissesse apenas "senta" ou "corre", com toda a razão me perguntarias
quem ou o que eu responderia "homem", ou "cavalo", ou "animal", ou qualquer
outra coisa que ligasse o nome referido ao verbo para completar o enunciado, isto
é, a proposição, que poderia ser afirmativa ou negativa.

ADEODATO

– Compreendo.

AGOSTINHO

– Suponhamos agora que estamos vendo algo bem distante e não distinguimos se
se trata de um animal, de uma pedra ou de outra coisa, e que eu afirmasse:
"porque um homem, é (também) animal", não faria eu uma afirmação temerária?

ADEODATO

– Muito temerária, mas não o seria se dissesses: "Se é um homem, é um animal".

AGOSTINHO

– Dizes o certo. Portanto, na tua frase o "se" satisfaz a mim e a ti; e, ao contrário,
aos dois desagrada o "porque" da minha.

ADEODATO

– Concordo.

AGOSTINHO

– Observa agora se estas duas proposições, "se satisfaz", e "porque desagrada",
estão completas.

ADEODATO

– Completas, certamente.

AGOSTINHO

– Vamos, diga-me então quais são os verbos e quais os nomes.

ADEODATO

– Vejo que os verbos são "satisfaz" e "desagrada", e os nomes, quais outros
haveriam de ser senão "se" e porque"?

AGOSTINHO

– Logo, está suficientemente demonstrado que estas duas conjunções também são
nomes.

ADEODATO

– Sim, suficientemente.

AGOSTINHO

– E poderias por ti mesmo, seguindo esta regra, demonstrar a mesma coisa nos
confrontos das demais partes da oração?

ADEODATO

– Poderia.

CAPÍTULO VI - SINAIS QUE SIGNIFICAM A SI MESMOS

AGOSTINHO

– Vamos em frente, e diga-me se te parece que, assim como concordamos que
todas as palavras são nomes, e todos os nomes, palavras, também te parece que
todos os nomes são vocábulos e todos os vocábulos nomes.

ADEODATO

– Não encontro entre eles outra diferença senão a do som das sílabas.

AGOSTINHO

– Por enquanto, aceito, embora não faltem os que vêem entre eles diferença de
significado, o que não vem ao caso discutirmos agora. Porém, com certeza
compreendes que chegamos àqueles sinais que tem significado recíproco, sem
outra diferença que a do som, e àqueles que significam a si mesmos junto com as
demais partes da oração.

ADEODATO

– Por ora não entendo.

AGOSTINHO

– Não compreendes então que "nome" significa "vocábulo" e "vocábulo" "nome", e
que assim – além do seu som – não há outra diferença entre eles quanto ao nome
em geral; mas que, quanto a ser nome em particular, trata-se de uma das oitos
partes da oração, sem que naturalmente inclua as outras sete.

ADEODATO

– Compreendo.

AGOSTINHO – Contudo, era isso mesmo que estava dizendo quando afirmava que
vocábulo e nome significam-se reciprocamente.

ADEODATO

– Entendo, mas o que querias dizer com as palavras "significam a si mesmos junto
com as demais partes da oração"?

AGOSTINHO

– Acaso a discussão anterior não nos provou que todas as partes da oração podem
chamar-se tanto nomes como vocábulos, isto é, podem ser significadas pelos
termos de "nome" e de "vocábulo"?

ADEODATO

– Certamente.

AGOSTINHO

– Se te indagasse como chamas o nome em si mesmo, isto é, o som expresso por
estas duas sílabas, seria correto me responder "nome"?

ADEODATO

– Seria correto.

AGOSTINHO

– E significará a si mesmo, talvez, o sinal com quatro sílabas, quando proferimos

"coniunctio" (conjunção)? Não; porque este termo não pode ser incluído entre as
coisas que significa.

ADEODATO

– Compreendo perfeitamente.

AGOSTINHO

– E foi isso que antes afirmamos: que o nome significa a si mesmo tanto quanto os

outros nomes que significa; o que podes chamar também do "vocábulo".

ADEODATO

– Sim, está fácil; agora porém me ocorre que o termo "nome" pode ser tomado em
sentido geral ou particular, enquanto "vocábulo", ao contrário, não é uma das oito
partes da oração; parece-me, pois, que os dois termos são diferentes não só pelo
som, mas também por isso.

AGOSTINHO

– Acreditas que

"nomem" (nome) e "ónoma" (nome) tenham algo mais diferente que o som, que
também distingue a língua grega da latina?

ADEODATO

– Neste caso, sinceramente, nada mais encontro.

AGOSTINHO

– Chegamos, então, àqueles sinais que, além de significantes a si mesmo, com
inteira reciprocidade um significa o outro, ou seja, os seus significados
mutuamente se significam. Assim, o que este significa também aquele significa e
vice-versa, tendo por diferença entre si apenas o som; este quarto caso, nós o
encontramos agora: os três anteriores referem-se a "nome" e "palavra".

ADEODATO

– Chegamos.

CAPÍTULO VII - RESUMO DOS CAPÍTULOS ANTERIORES

AGOSTINHO

– Desejaria que fizesses um resumo do que apuramos em nossa discussão.

ADEODATO

– Farei o que puder. Antes de mais nada, lembro que por certo tempo indagamos
da razão por que se fala, e achamos que se fala para ensinar ou para recordar.
Pois, mesmo quando interrogamos, nada mais pretendemos do que fazer saber ao
interlocutor o que dele queremos ouvir. Depois vimos que, ao cantar, o som que
emitimos apenas por prazer não pertence propriamente à locução; e quando na
oração nos dirigimos a Deus, a quem não se pode ensinar ou recordar algo, o valor
das palavras está em admoestar a nós mesmos ou, mediante nós, admoestar e
instruir aos outros. A seguir, após teres demonstrado o bastante que as palavras
nada mais são do que sinais e que não pode existir sinal que não tenha significado,
propuseste-me um verso, de cujas palavras busquei explicar o significado, uma por
uma, o verso era: "Si nihil ex tanta superis placet urbe relinqui". Sua segunda
palavra (nihil), apesar de familiar a todos, não conseguimos, todavia, encontrar o
que significava, pois parecia a mim que nós não a empregamos inutilmente
durante a fala, mas para transmitir algo a nosso ouvinte; isto é, parecia-me que
esta palavra indicasse, talvez, o estado da mente quando acha que não existe a
coisa que procura ou que julga tê-la achado; e tu evitaste com uma brincadeira
aprofundar não sei como a questão, adiando para outra ocasião o esclarecimento.
Não julgues, porém, que eu esqueça dessa tua dívida comigo. Depois, quando eu
buscava explicar a terceira palavra do verso, me convidaste a indicar não outra
palavra equivalente mas, pelo contrário, a mostrar a própria coisa que a palavra
significa. Respondi, em nossa conversação, que isto não seria possível, e
consideramos aquelas coisas que podem ser apontadas aos nossos interlocutores.
Pensava eu que isso fosse possível com todas as coisas corpóreas, mas depois
achamos que o seria apenas com as visíveis. Daí passamos, não lembro como, aos
surdos e aos histriões, observando que exprimem pelo gesto sem voz, não só as
coisas visíveis, mas muitas outras e quase todas as que expressamos com palavras,
e conviemos que os gestos também são sinais. Voltamos pois a indagar se seria
possível indicar, sem empregar sinal algum, as mesmas coisas que indicamos por
sinais, sendo aquela parede, aquela cor e tudo o que é visível e que é indicado
pelo gesto, devemos convir que é sempre indicado por certo sinal. Nisso eu me
enganei e respondi que não poderíamos achar nada disso, e, todavia, ficou assente
entre nós que seria possível mostrar, sem sinais, aquilo que nós não fazemos no
momento da pergunta, mas que podemos fazer depois de interrogados; a locução,
porém, não se enquadra nisto, pois quando falamos, se alguém nos perguntar o
que é falar, demonstra-se facilmente por si mesmo: falando.

– Com isso ficou estabelecido que: ou se mostram sinais com sinais ou, com sinais,
indicam-se coisas que o não são; ou então, sem sinais podemos mostrar as coisas

que podemos fazer depois de interrogados. Desses três casos, consideramos e
discutimos com mais detalhes o primeiro. Por esta discussão, ficou esclarecido que
existem sinais que não podem, por seu turno, receber significado pelos sinais que
eles significam, como ocorre no caso do quadrissílabo "coniunctio" (conjunção); ao
passo que existem outros que o podem, como no caso de "sinal", e entendemos que
significa também "palavra", pois sinal e palavra são dois sinais e duas palavras
(sinal-palavra, palavra-sinal). Neste caso em que os sinais tem significado mútuo,
demonstramos também que uns não têm o mesmo valor, outros o têm igual, e
outros finalmente são idênticos.

Assim, quando pronunciamos o dissílabo "sinal", certamente nos referimos a todos
os sinais que podem indicar ou significar uma coisa; mas, se dizemos "palavra",
esta não se refere a todos os sinais, mas apenas aos que se pronunciam
articulando a voz. Donde ficou claro que embora "palavra" seja indicada com um
sinal, e "sinal" (signun) com "palavra" (verbum); isto é; estas duas sílabas por
aquelas e aquelas por estas – todavia, "sinal" vale mais que "palavra", porque
aquelas duas sílabas (sinal) têm sentido mais amplo que estas (palavras). Porém
"palavra" em geral e "nome" em geral, têm o mesmo valor. Pelo raciocínio, vimos
que todas as partes da oração também são nomes, sendo que a todas podemos
substituir pelo pronome e de todas podemos dizer que "nomeiam" algo, e todas
elas formam, se lhe acrescentarmos o verbo, uma proposição ou um enunciado
completo. Mas, apesar de "nome" e "palavra" terem o mesmo valor, pois tudo o
que é "palavra" é "nome", entretanto não são idênticos. Observamos, em nossa
discussão, com muita probabilidade, que a razão por que se diz "verba" (palavras)
difere da outra por que se diz

"nomina" (nomes). "Verba" diz respeito à percussão (verberatio) do ouvido, e
"nomina" ao conhecimento (commemoratio: notio, noscere) do espírito; por isso, é
correto dizer qual é o "nome" desta coisa desejando gravá-la na memória, e não
usamos, ao contrário, "palavra". Entre os sinais que não têm o mesmo valor, mas
são completamente idênticos, diferenciando-se só pelo som das letras,
encontramos "nomen" (nome) e ónoma (nome).

Quanto a esse gênero de sinais com significado recíproco, entendi que não
encontramos nenhum sinal que, além de significar os outros, não significasse
também a si mesmo.

Eis tudo o que pude recordar. Tu, que, nesta discussão, apenas falaste sabendo e
tendo a certeza, poderás avaliar se meu resumo está correto e ordenado.

CAPÍTULO VIII - NÃO SE DISCUTEM INUTILMENTE ESTAS QUESTÕES.
ASSIM, PARA RESPONDER ÀQUELE QUE INTERROGA, DEVEMOS DIRIGIR
A MENTE, DEPOIS DE PERCEBER OS SINAIS, ÀS COISAS QUE ESTES
SIGNIFICAM

AGOSTINHO

– Certamente resumiste com acerto tudo o que eu queria, e devo admitir que
estas argumentações me parecem mais claras agora do que quando, disputando
em nossas indagações, as tirávamos de não sei que esconderijos. Contudo, aonde
quero te levar por meio de tantas voltas e rodeios é difícil dizer neste momento.
Talvez julgues que foi mero divertimento, ou que nos afastamos das coisas serias
com questões menores, buscando nisso, quando muito, uma utilidade por pequena
e medíocre que seja; ora, se estas discussões tivessem que gerar algo de grande
ou importante, seria bom que o soubesses agora, ou, ao menos, ter disto um
vislumbre.

Todavia, eu gostaria que, antes de mais nada, não julgasses eu ter feito contigo
uma brincadeira inoportuna; embora às vezes usando de tom jocoso, a minha
brincadeira jamais deverá ser tida como infantil, pois eu nunca visei bens
pequenos ou medíocres. No entanto, se te dissesse que era precisamente a eterna
bem-aventurança para onde, com a ajuda de Deus, isto é, da própria verdade,
pretendia conduzir-te com passos pequenos, ajustados ao nosso pé vacilante,
recearia parecer ridículo por ter começado com um caminho tão longo, não em
consideração às próprias coisas que são significativas, mas aos sinais. Espero que
me perdoes, portanto, se quis fazer contigo uma espécie de prelúdio, não para
brincar, e sim para treinar a agilidade e a agudeza da mente, que nos facultarão
mais tarde não só suportar, mas também amar a luz e o calor daquela região da
vida bem-aventurada.

ADEODATO

– Continua por esta senda, pois eu não julgaria desprezível ou de pouco valor
qualquer coisa que digas ou faças.

AGOSTINHO

– Então, continuemos! Retomemos aquela parte da nossa discussão sobre os sinais
que não significam outros sinais, aquelas coisas que chamamos "significáveis". Em

primeiro lugar, dize-me se "homem é homem".

ADEODATO

– Agora, na verdade, não sei se estás brincando.

AGOSTINHO

– Porquê?

ADEODATO

– Porque me estás perguntando se o "homem" é diferente de "homem".

AGOSTINHO

– E julgarias também que estou a zombar de ti se te perguntasse se a primeira
sílaba deste nome é mesmo "ho" e a segunda "mem"?

ADEODATO

– Certamente.

AGOSTINHO

– Mas negarás que estas duas sílabas dêem "homem"?

ADEODATO

– E como negar?

AGOSTINHO

– Pergunto, pois, se és o mesmo que estas duas sílabas unidas.

ADEODATO

– De maneira alguma. Porém percebo agora onde queres chegar.

AGOSTINHO

– Fala, então, uma vez que não crês tratar-se de zombaria.

ADEODATO

– Julgas, talvez, que se possa concluir que não sou "homem"?

AGOSTINHO

– Mas diga-me, não pensas o mesmo, já que concordaste ser verdade tudo o que
foi dito e de onde se tira essa conclusão?

ADEODATO

– Não vou manifestar meu pensamento antes de ouvir de ti qual a intenção da
pergunta "se é homem é homem"; te referias às duas sílabas ou ao seu significado?

AGOSTINHO

– Antes, responde-me qual o sentido em que tomaste a minha pergunta: pois, se é
ambígua, devias precaver-te e não responder antes de ter certeza quanto ao
sentido de minha pergunta.

ADEODATO

– E porque me seria obstáculo esta ambigüidade, uma vez que respondi num
sentindo e no outro? Naturalmente que homem é homem, e estas duas sílabas
nada mais são do que duas sílabas, e o que elas significam nada mais é do que é
(homem).

AGOSTINHO

– Brilhante a tua resposta: mas por que tomaste nos dois sentidos apenas (o que
se diz)

"homem" e não as demais coisas de que falamos?

ADEODATO

– E de que modo poderia me persuadir de que não tomei assim das outras?

AGOSTINHO

– Se tivesses tomado apenas a minha primeira pergunta só no aspecto do som das
sílabas, não me terias respondido nada, pois até poderia parecer-te que nada
houvesse indagado; mas, como fiz repercutir no teu ouvido três palavras, uma das
quais repeti no meio, dizendo: "utrum homo homo sit" (se homem é homem), tu
tomaste a primeira e a segunda palavra não conforme os mesmos sinais, mas pelo
que elas significam, coisa evidenciada pelo simples fato de que te ocorreu de
imediato dever responder à minha pergunta com rapidez e desembaraço.

ADEODATO

– Dizes a verdade.

AGOSTINHO

– Qual motivo então te fez preferir tomar só a palavra do meio (homo) segundo o
som e o significado?

ADEODATO

– Mas agora tomo-a exclusivamente pelo seu significado. Concordo contigo não ser
possível conversar se a mente, ouvidas as palavras, não evocar logo as coisas de
que aquelas são sinais. Por isso, mostra-me como eu pude ser enganado por esse
raciocínio, que concluiu que não sou homem.

AGOSTINHO

– Será mais oportuno reapresentar-te as mesmas perguntas, para que tu possas
perceber por ti mesmo onde erraste.

ADEODATO

– Está bem.

AGOSTINHO

– Não vou perguntar-te o mesmo que antes, pois já o concedeste. Antes, observa
com mais atenção, se na palavra "homo" (homem) a sílaba "ho" é outra coisa que
não "ho" e a sílaba "mo" nada mais que "mo" .

ADEODATO

– Não vejo, na realidade, nada além disso.

AGOSTINHO

– Observa ainda se, ao juntar estas duas sílabas, pode-se fazer um homem.

ADEODATO

– Absolutamente te concederia isto, uma vez que concordamos, acertadamente,
que, depois de ouvir o sinal, a mente examina seu significado, e só após o exame
concede ou nega o que foi proposto. Mas aquelas duas sílabas, quando separadas,
soam sem qualquer significado, e por isso ficou assente que têm valor apenas como
som.

AGOSTINHO

– Estás pois convicto que não se deve responder às perguntas senão de acordo
com as coisas que as palavras significam?

ADEODATO

– Não vejo como haveria de concordar com isto, desde que se trate de palavras.

AGOSTINHO

– Gostaria de saber o que responderias àquele zombeteiro que, dizem, fez sair um
leão da boca do companheiro com quem discutia. Após indagar-lhe se o que
dizemos sai da nossa boca, e não lhe sendo possível nega-lo, induziu facilmente o
interlocutor a proferir o nome "leão"; feito isso, começou a andar ao redor dele e
escarnecê-lo, pois admira que aquilo que dizemos sai da nossa boca e não podendo
negar que proferira a palavra "leão", estava assumindo que, sendo embora boa
pessoa, vomitara um animal tão feroz.

ADEODATO

– Não seria difícil responder a esse brincalhão, pois eu não concordaria que tudo o
que dizemos sai da nossa boca, uma vez que proferimos apenas sinais, e o que da
nossa boca sai não é a coisa significada, mas o sinal que a significa; assunto este de
que tratamos há pouco.

AGOSTINHO

– Com isso o refutarias corretamente; mas que me responderias se te perguntasse
se homem é um nome?

ADEODATO

– Que mais haveria de ser?

AGOSTINHO

– Então, quando te vejo, vejo um nome?

ADEODATO

– Não.

AGOSTINHO

– Queres que te diga o que disso resulta?

ADEODATO

– Não te incomodes: eu mesmo, ao responder-te que um homem é nome quando
me perguntaste se homem era nome, reconheço que declarei não ser eu homem, e
fiz isto apesar de já termos estabelecido que só devemos admitir ou negar o que é
dito conforme o significado das coisas.

AGOSTINHO

– Parece-me, todavia, que não foste incidir nesta reposta sem motivo, pois a
própria lei da razão, gravada em nossas mentes, pode iludir a tua vigilância. De
fato, se te perguntasse o que é "homem", responderias talvez: "animal"; porém, se
te perguntasse que parte da oração é "homem", só poderias responder
corretamente dizendo "nome"; por aí concluímos que "homem" é nome e animal: o
primeiro (ser nome) dizemos enquanto é sinal; o segundo (ser animal) quanto à
coisa significada. Se alguém pois, me perguntasse se homem é nome, responderia
que é, uma vez que esta pergunta deixa entender que a indagação é a respeito de
"homem" só como sinal.

Se, ao contrário, me perguntar se homem é animal, anuirei mais facilmente
porque, mesmo que se omitissem os termos "nome" e "animal" indagando apenas
"o que é homem", obedecendo àquela regra do falar que já estabelecemos, a
minha mente voltar-se-ia para o significado daquelas duas sílabas e só poderia
responder "animal", e até poderia acrescentar a definição completa, isto é,
"animal racional, mortal"; não te parece?

ADEODATO

– Certamente; mas, se concordamos que é um nome, como nos subtrairmos a
conclusão desagradável de que não somos homens?

AGOSTINHO

– Demonstrando que a ela não se chegou pelo sentido da palavras, quando
concordamos com o nosso interlocutor.

E se este quisesse deduzi-la da palavra considerada como sinal, nada haveria a
temer, pois qual prejuízo haveria em confessar que não sou aquelas duas sílabas?

ADEODATO

– Nada mais verdadeiro. Mas por que então incomoda ouvir dizer: "Tu não és
homem" uma vez que, pelo que já vimos, é uma verdade incontestável?

AGOSTINHO

– Por ser difícil evitar de pensar que aquela conclusão – ao ouvirmos estas duas
sílabas – não se relacione com seu significado, pela regra de grande e natural
valor, segundo a qual a nossa atenção, ao ouvirmos os sinais, volta-se logo para as
coisas significadas.

ADEODATO

– Aceito quando dizes.

CAPÍTULO IX - SE DEVEMOS PREFERIR AS COISAS, OU O
CONHECIMENTO DELAS, AOS SINAIS

AGOSTINHO

– Queria, pois, que bem compreendesse que são mais importantes as coisas
significadas do que seus sinais. Tudo o que existe em função de outra coisa,
necessariamente tem valor menor que a coisa pela qual existe, se concordas com
isso.

ADEODATO

– Parece-me impróprio concordar com isto sem refletir. Quando, por exemplo, se
diz: "coenum" (lamaçal), parece-me que este nome seja em muito superior à coisa
que significa. De fato, o que desagrada ao ouvirmos esta palavra não é o som;
"coenum" , mudando apenas uma letra, torna-se "coelum" (céu), mas é evidente a
enorme diferença que há entre as coisas que estes dois nomes significam. Por isso
eu não teria por essa palavra toda a repulsa que tenho ao que significa, e,
portanto, eu a prefiro a isso; pois menos desagrada o seu som do que ver ou tocar

a coisa que significa.

AGOSTINHO

– Falas com sabedoria. Assim, não seria correto afirmarmos que todas as coisas
têm valor superior aos sinais que as exprimem.

ADEODATO

– Assim parece.

AGOSTINHO

– Dize-me, então, qual seria a intenção dos que deram um nome a coisa tão feia e
desagradável? Tu os aprovas ou desaprovas?

ADEODATO

– Na verdade, não me acho em condição nem de aprová-los nem de desaprová-los,
e também não sei que intenção tiveram.

AGOSTINHO

– Poderás, ao menos, dizer-me qual a tua intenção, a finalidade de pronunciares
esse nome?

ADEODATO

– Sim; ao pronunciá-lo, quero avisar ou ensinar ao meu interlocutor aquilo que
julgo necessário avisá-lo ou ensiná-lo.

AGOSTINHO

– Como? O fato de ensinar e avisar, ou de receber tal ensinamento, facilmente
expresso com este nome, não deveria talvez ser-te mais caro que a própria
palavra?

ADEODATO

– Admito que o conhecimento obtido por este sinal seja preferível ao próprio sinal,
mas não preferível à coisa em si.

AGOSTINHO

– Então, no que acima afirmamos, embora seja falso que devemos sempre preferir
as coisas aos seus sinais, é verdade que tudo o que existe em função de outra coisa
tenha valor menor que a coisa pela qual existe. O conhecimento, pois, do lamaçal,
para o qual foi instituído esse nome, há de ser considerado mais que a palavra
que, por sua vez, vimos ser preferível ao próprio lamaçal. E é bem esse o motivo
do conhecimento ser preferível ao sinal de que estamos tratando, pois este existe
devido àquele e não aquele por causa deste. Assim, aquele glutão, devoto ao
ventre, conforme relata o Apóstolo, quando disse que vivia para comer, foi
contestado por um homem sóbrio, que lhe ouviu as palavras e, não tolerando-as,
assim o redargüiu: "Bem melhor seria que comesses para viver"; e vemos que o
sóbrio falou assim seguindo essa mesma regra (regra que estabelece que tudo o
que é devido a outra coisa, como no caso de comer que é subordinado ao viver – é
inferior à coisa pela qual existe). O comilão desagradou porque avaliava tão
miseravelmente sua vida, que a tinha em menor conta que os prazeres do paladar,
afirmando viver para comer. O homem sóbrio é digno de louvor porque,
compreendendo qual das duas coisas (comer e viver) é feita para a outra, ou seja,
qual está subordinada à outra, alertou que devíamos comer para viver e não viver
para comer. Do mesmo modo, tu e todo homem sensato que aprecie as coisas pelo
seu valor e justo lado, se um charlatão afirmasse: "Ensino para falar", lhe
responderias: "Homem, não seria melhor falar para ensinar?" Ora, se tais coisas
são verdadeiras, como alias reconheces, observa quanto as palavras têm menor
importância, em comparação com aquilo por que as usamos; sendo que o próprio
uso das palavras já é mais importante do que elas próprias. As palavras, pois,
existem para que as usemos, e as usamos para ensinar. Por isso, ensinar é melhor
que falar, e assim o discurso é melhor que a palavra.

Muito melhor que as palavras é, portanto, a doutrina. Mas quero ouvir de ti se
por acaso tenhas algo a opor.

ADEODATO

– Concordo em que a doutrina seja preferível às palavras; mas talvez se possa

levantar objeção contra a regra que diz: "tudo o que existe em função de outra
coisa é inferior aquilo pelo qual existe".

AGOSTINHO

– Trataremos disto a seu tempo e com mais detalhes: por enquanto, o que
concedes já basta para que eu chegue aonde me proponho. Concordas, pois, que o
conhecimento das coisas é mais importante que os sinais que as exprimem. Por
isso, o conhecimento das coisas significadas deve ser preferido ao conhecimento
dos sinais, não te parece?

ADEODATO

– Mas eu disse, por acaso, que o conhecimento das coisas não é superior ao dos
sinais, ou melhor, que é superior aos próprios sinais? Por isto hesito em concordar
contigo neste ponto.

Se o nome "lamaçal" é melhor que seu significado, por que o conhecimento deste
nome não haveria de ser também melhor que o da coisa, embora o nome em si
seja inferior aquele conhecimento? Lidamos aqui com quatro termos: nome, coisa,
conhecimento do nome e conhecimento da coisa. Como o primeiro é superior ao
segundo, por que também o terceiro não seria superior ao quarto? E, em não lhe
sendo superior, acaso lhe estaria subordinado?

AGOSTINHO

– Noto que guardas muito bem na memória o que concedeste, e que explicaste
claramente teu pensamento. Creio porém, que compreendes como este nome
trissílabo "vitium" (vicio), quando o pronunciamos, é melhor, como som, do que seu
significado; entretanto, o simples conhecimento do nome é bem menos valioso que
o conhecimento dos vícios. Assim, ainda que consideremos aqui os quatro termos
que mencionaste: nome, coisa, conhecimento do nome, conhecimento da coisa, com
razão nós preferimos o primeiro ao segundo. Quando Pérsio escreve na sua sátira
este nome, dizendo: "Sed stuped hic vitio" (mas este se admira do vicio), não só
não torna viciado o verso, mas, pelo contrário, de algum modo dá-lhe beleza,
apesar do significado desse nome ser sempre execrável, onde quer que se
encontre. Mas observamos também que não é tampouco preferível o terceiro
termo ao quarto, e sim o quarto ao terceiro. O conhecimento deste nome (vicio) é
bem menos importante se comparado ao conhecimento dos vícios.

ADEODATO

– Acreditas pois, que tal conhecimento, apesar de nos tornar mais mesquinhos,
teria de ser preferido? O próprio Pérsio, a todas as penas que a crueldade dos
tiranos excogitou ou a cobiça impôs, antepõe apenas aquela que atormenta os
homens, quando obrigados a reconhecer os vícios que não conseguem evitar.

AGOSTINHO

– Assim, também chegarias a negar que deve ser preferido o conhecimento das
virtudes ao do seu nome, pois saber da virtude e não possuí-la é um suplicio, que
aquele poeta satírico almejou como castigo dos tiranos.

ADEODATO – Deus me livre de tal loucura: entendo que não devemos culpar os
próprios conhecimentos, entre os quais o da moral, a mais excelsa disciplina com
que se educa o espírito, mas sim, que devemos considerá-los – como creio que
também Pérsio pensava – os mais míseros dos que são atacados por tal doença,
que nem um tão grande remédio pode curar.

AGOSTINHO

– Entendimento correto; mas em que pesa o pensamento de Pérsio? Não estamos
submetidos, nisso, a tal autoridade; ainda mais que é difícil elucidar aqui qual
conhecimento deve ser preferido a outro. Por ora, estou satisfeito com o que
conseguimos; isto é, ter o conhecimento das coisas que são significadas como um
valor superior, se não ao conhecimento dos sinais, pelo menos aos sinais em si. Por
isto voltemos agora a discutir sobre o gênero das coisas que podem se mostrar por
si mesmas, como dizíamos, sem sinais, como sejam: comer, passear, sentar, fazer e
semelhantes.

ADEODATO

– Volto a meditar sobre as tuas palavras.

CAPÍTULO X - SE É POSSÍVEL ENSINAR ALGO SEM SINAIS. AS COISAS NÃO
SE APRENDEM PELAS PALAVRAS

AGOSTINHO

– Parece-te que podemos indicar, sem uso de sinais, tudo que podemos fazer, logo
após sermos interrogados, ou algo deve ser excluído?

ADEODATO

– Na verdade, tenho pensado muito neste gênero de coisas, sem todavia
encontrar nada que se possa ensinar sem sinal, executando, talvez, o próprio falar
e ensinar, mas este só se nos perguntarem o que é ensinar. Parece-me que quem
pergunta – qualquer coisa que eu faça após a indagação para que aprenda – não o
pode aprender através da própria coisa, que deseja lhe seja mostrada. Por
exemplo: se quando estou fazendo outra coisa, alguém me perguntasse que é
caminhar e eu, imediatamente, buscasse demonstrar-lhe a coisa sem usar sinais
começando a caminhar, como poderia evitar que ele entendesse que caminhar é
apenas o quando andei? Ora, se ele pensar nisso, terá sido levado a engano, pois
julgará que quem andar mais, ou menos, do quanto eu andei, não caminhou. E o
que vale quanto a esta palavra aplica-se também a todas aquelas que julguei se
possam mostrar sem sinal, menos as duas que exclui.

AGOSTINHO

– Concordo com isso, mas não te parece que falar é uma coisa e ensinar é outra?

ADEODATO

– Certamente, pois se fossem a mesma coisa não se poderia ensinar senão falando;
ora, como muitas coisas são ensinadas com outros sinais que não palavras, quem
poderia negar a diferença?

AGOSTINHO

– Ensinar e significar são a mesma coisa ou diferem em algo?

ADEODATO

– Creio que a mesma.

AGOSTINHO

– Será correto afirmar que nós usamos de sinais (que significamos) para ensinar?

ADEODATO

– Sem dúvida.

AGOSTINHO

– Se alguém afirmasse que ensinamos para usar sinais (para significar), não seria
facilmente refutado pela afirmação precedente?

ADEODATO

– Seria.

AGOSTINHO

– Se usarmos pois os sinais para ensinar, não ensinamos para usar os sinais: uma
coisa é ensinar e outra é usar os sinais (significar)

ADEODATO

– É verdade, e quando disse que eram a mesma coisa, eu não respondi
corretamente.

AGOSTINHO

– Agora, responde a isto: quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou outro
modo?

ADEODATO

– Não vejo como o poderia fazer diversamente.

AGOSTINHO

– Não é pois verdade a tua afirmação anterior, isto é, que não se pode ensinar
sem sinais a quem indague o que é ensinar, porque constatamos que nem mesmo
isto podemos fazer sem usar sinais, pois me concedeste que uma coisa é usar sinais
(significar) e outra ensinar. Se são coisas distintas e uma se mostra pela outra,
quer dizer que certamente não se mostra por si mesma, como te pareceu.
Portanto até aqui nada encontramos que se mostre por si mesmo, salvo a palavra
que, entre as outras coisas, significa também a si mesma; mas como ela também é
um sinal, parece nada haver que possa ensinar-se sem sinais.

ADEODATO

– Nada tenho a opor.

AGOSTINHO

– Concluímos então que nada pode ser ensinado sem sinais, e que o próprio
conhecimento tem de ser, para nós, mais caro que os sinais pelos quais o obtemos,
embora nem todas as coisas que eles exprimem devam ser preferidas aos seus
próprios sinais.

ADEODATO

– Parece ser assim mesmo.

AGOSTINHO

– Lembras quantas voltas demos para chegar a tão modesto resultado? Desde o
começo de nossa conversa, que dura já um bom tempo, fatigamo-nos bastante
para descobrir estas três coisas: 1) se era possível ensinar sem sinais; 2) se havia
sinais preferíveis às coisas que expressam; 3) se o conhecimento das coisas pode
ser melhor que os sinais. Mas há ainda uma quarta que gostaria de saber agora:
se as coisas que encontramos, estão para ti claras e não te deixam possibilidade de
dúvida.

ADEODATO

– Seria mesmo agradável, depois de tantos rodeios, que tivéssemos chegado à
certeza, mas esta pergunta gera em mim certa inquietação, que me impede de

assentir. Tenho a impressão que tal não me perguntarias se não tivesses alguma
objeção a apresentar: e o emaranhado do assunto não me permite ver tudo e
responder com segurança, pois, entre tantos véus, temo que se esconda algo que
os olhos da minha mente não possam divisar.

AGOSTINHO

– Agrada-me a tua dúvida, porque revela uma alma sem leviandade, e isto
garante imensamente a tranqüilidade. É de fato difícil não se perturbar quando o
que nós tínhamos como ponto de consenso fácil e pacífico é derrubado e como que
arrebatado das mãos por discussões.

Por isso, como é justo ceder depois de observar e examinar bem os motivos, assim
é perigoso conservar como coisa certa o que não é. Às vezes, quando desmorona
aquilo que tínhamos como estável e permanente, pode haver o receio que se gere
tão grande aversão ou medo da razão, que nos pareça não podermos mais
depositar nossa fé nem sequer na verdade mais evidente.

Mas, vamos adiante? Reexaminemos, agora um pouco mais rapidamente, se tens
razão de duvidar. Pergunto: se alguém, que não conheça as armadilhas que se
tendem aos pássaros com varas e visco, deparasse com um caçador com este
arnês, e que vá indo pelo caminho sem ter começado ainda a sua tarefa e, vendo o
caçador, apressasse o passo, e estranhando em seu íntimo tudo aquilo, se
perguntasse o que poderiam significar aqueles apetrechos; e o caçador, sentindo-
se observado e admirado, para fazer mostra de si, exibisse a cana e o falcão,
conseguisse atrair e apanhar um passarinho, diga-me: o caçador, sem usar de
sinais, mas usando a própria coisa, não estaria a ensinar ao seu espectador o que
esse queria saber?

ADEODATO

– Parece-me que o caso é semelhante àquele que mencionei, isto é, de quem
pergunta o que é caminhar. Neste caso também não acho que foi mostrada toda a
arte de caçar.

AGOSTINHO

– É simples desfazer-se desta impressão; eu acrescento: se aquele espectador fosse

inteligente o bastante para compreender por inteiro a arte de caçar só pelo que
viu, isto bastaria para demonstrar que alguns homens podem ser ensinados sem
sinais sobre algumas coisas, embora não sobre todas.

ADEODATO

– No caso, também posso acrescentar isto: quem pergunta o que é caminhar, se for
bem inteligente, compreenderá por inteiro o que é caminhar, bastando que se lhe
mostrem uns poucos passos.

AGOSTINHO

– Podes, eu concordo com prazer. Chegamos pois a esse resultado, ou seja, que
umas coisas podem ser ensinadas sem sinais, sendo portanto falso aquilo que há
pouco nos parecia verdadeiro, isto é, não existir nada que se possa mostrar ou
ensinar sem sinais; e acode à nossa mente não uma ou duas coisas, mas milhares
que, sem precisar de sinal algum podem mostrar-se por si mesmas. Poderemos pois
duvidar, eu te pergunto? Sem considerar os muitos espetáculos em que uns atores
representam nos teatros as coisas sem usar sinais, Deus e a natureza não
apresentam e mostram por si mesmos, ao observador, o sol e a luz, que tudo
banha e recobre, a lua e as estrelas, a terra e os mares com infinidade de criaturas
que os habitam?

Todavia, se observarmos isto com maior atenção, talvez não encontremos nada
que se possa aprender pelos seus próprios sinais. De fato, se me for apresentado
um sinal e eu não souber de que coisa é o sinal, este nada poderá me transmitir;
se, ao contrário, já souber de que é sinal, que estará me ensinando? Assim,
quando leio "Et saraballae eorum non sunt immutatae" (E as suas coifas não foram
trocadas), a palavra (coifas) não me explica a coisa que significa. Pois se uns objetos
que servem para cobrir a cabeça têm este nome de 'saraballae" (coifas), terei
porventura, depois de ouvi-lo, aprendido o que é cabeça e o que é cobertura? Ao
contrário, eu já as conhecia antes, pois delas adquiri conhecimento sem que as
ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as com os meus próprios olhos.
Quando as duas sílabas da palavra "caput" (cabeça) soaram pela primeira vez ao
meu ouvido, desconhecia seu significado como quando ouvi e li pela primeira vez
"saraballae". Porém, ouvindo repetidamente dizer "caput" (cabeça), e notando e
observando a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela
significava aquela coisa que eu bem conhecia, por tê-la visto. Mas antes de
entender seu significado, a palavra era para mim apenas um som, e aprendi que

era um sinal quando a associei àquilo de que era sinal, e aprendi-lhe o significado
pela visão direta do objeto. Vemos, pois, que é mais pelo conhecimento da coisa
que se aprende o sinal do que o contrário.

Para que compreendas isto com maior clareza, imagina que estejamos ouvindo
agora, pela primeira vez, pronunciar a palavra "caput" (cabeça). (Lembra-te que
buscamos o conhecimento não da coisa que é significada, mas do próprio sinal,
conhecimento que nós não temos enquanto ignorarmos o que sinaliza). Se, na
nossa pesquisa, nos mostrassem ou apontassem com o dedo a própria coisa, ao vê-
la teríamos conhecimento do sinal; isto é, saberíamos o que quer dizer aquele sinal
que tínhamos ouvido, mas não compreendido. No sinal há duas coisas: o som e o
significado; ora, o som não foi certamente recebido como sinal de algo, mas como
simples verberação no ouvido, enquanto o significado foi apanhado pela visão da
coisa que é significada.

Como o apontar do dedo só pode significar o objeto que o dedo está apontando, e
como o dedo não está apontado pelo sinal, mas para a parte do corpo que se
chama "caput" (cabeça), ocorre que, pelo gesto, não venho a conhecer a coisa, que
já conhecia, nem o sinal que o dedo não estava apontado. Mas não quero colocar
grande ênfase no gesto de apontar o dedo, pois o tenho mais como sinal do ato de
indicar do que das próprias coisas indicadas; veja o que ocorre quando dizemos:
"ecce" (eis), e habitualmente acompanhamos este advérbio com o gesto de
apontar como se não bastasse um só desses sinais para indicar. E procurarei ao
máximo te convencer, se o puder, disto: que nada aprendemos por meio dos sinais
chamados palavras; antes, como já disse, aprendemos o valor da palavra, ou seja,
o significado oculto no som pelo conhecimento ou da percepção da coisa
significada; mas não a própria coisa mediante o significado.

E o que disse da cabeça, poderia dizer do que serve para cobrir a cabeça e de
infindáveis outras coisas; que, embora as conhecesse, nunca, até agora, tive o
conhecimento daquelas "saraballae" (coifas). Se alguém com um gesto me
apontasse estas "saraballae" (coifas) ou as pintasse, ou me mostrasse algo de
parecido, não diria, como aliás poderia se quisesse falar um pouco mais, que não
mas ensinou, mas que não me ensinou com as palavras o que está diante de mim.
Se, ao tê-las diante de mim eu fosse avisado com as palavras: "Ecce saraballae"
(eis as coifas), aprenderia uma coisa que não sabia, não pelas palavras que foram
pronunciadas, mas pela visão direta da coisa em si, à qual associei o nome, cujo
valor gravei. Pois, quando aprendi a própria coisa, não acreditei nas palavras de
outrem, mas nos meus olhos; talvez acreditasse também nelas, mas apenas como
um alerta, ou seja, para procurar com os olhos o objeto em questão.

CAPÍTULO XI - NÃO APRENDEMOS PELAS PALAVRAS QUE REPERCUTEM
EXTERIORMENTE, MAS PELA VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE

AGOSTINHO

– Limitado o valor das palavras, e delas direi, querendo valorizá-las, que apenas
estimulam a procurar as coisas, sem porém mostrá-las para que as conheçamos. No
entanto, aquele que me apresenta alguma coisa, quer aos sentidos corporais, quer
à mente, ensina-me de fato as coisas que quero conhecer. Com as palavras não
aprendemos senão palavras; de mais a mais, o som das palavras, pois se não for
sinal tampouco é palavra, não vejo como possa ser palavra, som que ouvi
pronunciado como sendo palavra, até que lhe conheça o significado. O sentido
completo das palavras, se consegue apenas depois de conhecer as coisas; e ao
contrário, ouvindo somente as palavras, não aprendemos nem sequer estas. De
fato, não tivemos conhecimento das palavras que aprendemos senão depois de
perceber seu significado, o que acontece não ouvindo as vozes que as proferem,
mas pelo conhecimento das coisas significadas. Ao ouvirmos palavras, é
perfeitamente razoável saber ou não o que significam; se o sabemos, não foram
elas que no-lo ensinaram, apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer o
recordam, mas talvez nos estimulem a procurá-lo.

Ora, daqueles objetos que servem para cobrir a cabeça e dos quais apenas
ouvimos o nome (coifas), só podemos adquirir a noção depois de vê-los; portanto,
nem sequer o seu nome conhecemos completamente, não antes de conhecermos os
próprios objetos. Todavia, podes afirmar que de nenhum modo senão pelas
palavras, aprendemos o que se narra a respeito dos três jovens, aqueles que com
sua fé e religião venceram o rei e as chamas, quais os hinos de louvor que
cantaram a Deus; quais as honras que mereceram do próprio inimigo; responder-
te-ei que já conhecíamos todas as coisas significadas por aquelas palavras. Pois eu
já tinha na minha mente o que significa três jovens, o que é forno, o que é fogo, o
que é rei, o que quer dizer ser preservado do fogo, e por fim, as demais coisas
significadas por aquelas palavras. Mas, como aquelas "saraballae" (coifas), ficam
para mim desconhecidos os jovens Ananias, Azarias e Misael; nem os seus nomes
me ajudaram a conhecê-los. E confesso que, mais que saber, posso afirmar minha
crença que tudo o que se lê naquela narração histórica tenha ocorrido naquele
tempo assim como foi escrito; e os próprios historiadores a que emprestamos fé
não ignoravam esta diferença. Diz o profeta: "Se não credes, não entendereis"; e
certamente não diria isto se não tivesse por necessário estabelecer uma diferença
entre as duas coisas. Por isso, creio tudo o que entendo, mas nem tudo o que creio
entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo o que creio conheço. Eu

sei quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço, utilidade que se
aplica também na história dos três jovens. Como não posso saber a maioria das
coisas, sei porém que é útil acreditar nelas. Quanto às coisas que compreendemos,
não consultamos a voz de quem fala, que é exterior, mas a verdade que dentro de
nós reside, em nossa mente, estimulados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem
é consultado ensina em verdade, e este é o Cristo que habita, como foi dito, no
homem interior, isto é, a virtude única de Deus e a eterna Sabedoria, que toda
alma racional consulta, mas que se revela ao homem na medida de sua própria
boa ou má vontade. E se ocorre o erro, isto não acontece por falha da verdade
consultada, como não é por erro da luz externa que os olhos se enganam; esta luz
que consultamos a respeito das coisas visíveis, para que no-las torne claras na
proporção em que nos é permitido distingui-las.

CAPÍTULO XII - CRISTO É A VERDADE QUE ENSINA INTERIORMENTE

AGOSTINHO

– Ora, se para as cores precisamos de luz, e para as outras coisas que nosso corpo
percebe interpelamos os elementos do mundo, os objetos percebidos e os próprios
sentidos são instrumentos de que a mente se serve para conhecer as coisas
externas. Todavia, para aquelas coisas que conhecemos pela inteligência
consultamos, por meio da razão, a verdade interior; e o que diremos, para que
fique claro, senão que pelas palavras nada mais aprendemos além do som que
atinge nosso ouvido? Pois todas as coisas que percebemos, ou são apanhadas pelos
sentidos físicos ou pela mente. Chamamos às primeiras "sensíveis", e às segundas
"inteligíveis" ou, para usar a linguagem de nossos autores, às primeiras "carnais" e
às segundas "espirituais".

Quanto às primeiras, se estiverem ao nosso alcance podemos responder, como
quando estamos olhando a lua, e alguém nos pergunte o que é ou onde ela está.
Neste caso, quem pergunta, se não enxergam acredita ou não nas nossas palavras,
mas não aprende de modo algum; a menos que também veja o que lhe está sendo
afirmado e, nesse caso, não aprende pelo simples som das palavras, mas pelas
coisas mesmas e que ferem seus sentidos. As palavras, pois, têm o mesmo som
para quem vê, como para quem não vê. Se porém somos indagados, não sobre as
coisas presentes, mas sobre as que percebemos outrora, respondendo, não
fazemos referencias às mesmas, mas às suas imagens gravadas em nossa memória;
não sei como poderíamos chamar tais imagens de verdadeiras, pois percebemos
serem falsas, a não ser que acrescentemos que sua visão e percepção não são
atuais, mas pretéritas. Portanto, nós gravamos nos meandros da memória as

imagens como documentos das coisas que percebemos; contemplando-as com
honestidade na nossa mente, não mentimos quando falamos. Mas estes são
documentos válidos só para nós, pois quem nos ouve, se as percebeu ou
presenciou, não as aprende pelas minhas palavras, mas as reconhece nas imagens
que também levou consigo; todavia, se nunca as percebeu, todos concordarão que
ele mais do que aprender, crê nas palavras.

Tratando das coisas que percebemos pela mente, isto é, por meio do intelecto e da
razão, estamos ainda tratando de coisas que temos como presentes, sob a luz
interior da verdade, que ilumina o homem interior, que dela desfruta. Mas
também aqui nosso interlocutor conhece o que eu digo pela sua própria
contemplação, e não mediante minhas palavras, posto que ele também veja por si
a mesma coisa com olhos interiores e simples. Portanto, nem sequer a este, que vê
as coisas na verdade, ensino algo dizendo-lhe a verdade, uma vez que não aprende
pelas minhas palavras, mas pelas próprias coisas que Deus a ele revela em seu
interior; e ele, interrogado sobre elas, sem mais, poderia responder. Ora, haverá
absurdo maior que acreditar que minhas palavras possam ter instruído aquele
que, interrogado antes de minha preleção, poderia responder sobre o assunto? O
caso, que ocorre com freqüência, de alguém interrogado negar algo e depois,
estimulado por ulteriores perguntas, vir a concordar, depende da fraqueza da sua
visão que não pode abarcar todas as coisas pela luz interior, e a isto sendo levado,
por partes sucessivas, pelas perguntas inerentes às mesmas partes de uma
verdade única, que ele não podia intuir, de uma só vez, no seu conjunto. Se chegar
isso por meio das perguntas, não significa que as palavras lhe ensinaram alguma
coisa, mas apenas que lhe ofereceram um meio, uma capacitação para enxergar no
seu interior. Seria assim se eu te argüisse sobre o que estamos tratando agora,
isto é, se é possível ensinar algo pelas palavras, e tu, na incapacidade de abranger
com a mente a questão inteira, julgasses, no primeiro momento, absurda a
pergunta. Por isso, foi preciso apresentar a pergunta na medida da tua capacidade
de ouvir o mestre interior, e dizer-te as coisas que, quando ouves, confessas com
certeza serem verdadeiras e que afirmas conhecê-las bem; onde aprendeste?
Responderias, talvez, que fui eu quem tas ensinou? E então eu perguntaria: Como?
Se eu te afirmasse ter visto um homem voando, as minhas palavras dar-te-iam
tanta certeza como se me ouvisses dizer que os homens sábios são melhores que
os tolos? Certamente, depois de negar, responderias não acreditar na primeira ou,
mesmo que acreditasses, que ela é para ti completamente desconhecida, e no
entanto que sabes com certeza a segunda. Compreenderias pois com clareza que
nada aprendeste com minhas palavras: nem aquilo que ignoravas, nem aquilo que
já sabias otimamente; pois jurarias, ao ser interrogado parte por parte sobre as
duas coisas, que a primeira te era desconhecida e a segunda, conhecida. E então
chegarias a admitir tudo o que antes negavas ao reconhecer como claras e certas

as partes que compõem a questão; isto é, que a respeito de tudo o que falamos,
quem nos está ouvindo ou desconhece se não verdadeiras, ou sabe que são falsas,
ou sabe que são verdadeiras. No primeiro caso, ou crê, ou opina, ou duvida; no
segundo, nega; no terceiro, afirma, mas em nenhum dos três aprende. Tanto
aquele que depois de me ouvir ignora a coisa, como quem reconhece que ouviu
falsidades e como quem, interrogado, poderia repetir o que foi dito, demonstra
que nada aprendeu pelas minhas palavras.

CAPÍTULO XIII - A FORÇA DAS PALAVRAS NÃO CONSEGUE MOSTRAR
SEQUER O PENSAMENTO DE QUEM FALA

AGOSTINHO

– E também no tocante às coisas que se contemplam com a mente, aquele que não
entende, inutilmente ouve as palavras de quem as vê, a não ser porque é útil
acreditar em tais coisas enquanto se ignoram. Aquele porém que as pode ver
interiormente, é discípulo da verdade; exteriormente, é juiz de quem fala, ou
melhor, das suas palavras, pois muitas vezes sabe as coisas que foram ditas,
enquanto quem as disse não as sabe. Seria este o caso em que alguém,
acreditando nos epicuristas e julgando mortal a alma, repetisse os argumentos já
tratados pelos mais sábios sobre a sua imortalidade, na presença de quem pode
intuir as coisas espirituais. Este julgaria que aquele diz a verdade, ou antes
considerará falácia o que diz. Devemos pois, acreditar que quem não sabe pode
ensinar? E, no entanto, usa as mesmas palavras que também usaria aquele que
sabe.

Por isso tudo, nem sequer resta às palavras o papel de manifestar ao menos o
pensamento de quem fala, pois é duvidoso se este sabe ou não o que diz.
Considera também os mentirosos e enganadores, e facilmente compreenderás que,
com as palavras, eles não só não revelam, mas até ocultam o pensamento. Jamais
duvidaria que as palavras sinceras se esforcem e façam o melhor para manifestar o
espírito de quem fala, o que conseguiriam, e seria ótimo para todos se não fosse
permitido aos mentirosos falarem. Todavia, repetidamente percebemos em nós
mesmos e nos outros que as palavras não expressam o pensamento; e isto pode
acontecer de duas maneiras: ou quando as palavras que gravamos e repetimos
saem da boca de quem está pensando em algo diferente, o que acontece amiúde
quando cantamos um hino; ou quando, nos saem umas palavras em vez de outras,
contra a nossa vontade, por um lapso da própria língua; também neste caso não
são transmitidos os sinais das coisas que temos na mente. Os mentirosos, sem
dúvida, também pensam as coisas que dizem, e embora nós não saibamos se falam

a verdade, sabemos porém que eles têm em mente o que dizem; a menos que lhes
aconteça uma das coisas que mencionei; e se me objetarem que, às vezes, isto
pode ocorrer, e que, quando ocorre, isto aparece, ainda que muitas vezes possa
ficar oculto, e que eu, ao ouvir tais coisas, às vezes também possa ser enganado,
não me oporei.

E há ainda outro caso, bastante freqüente e origem de inúmeras controvérsias:
quando quem fala exprime de fato seu pensamento, mas apenas para si e para uns
poucos, e não para o interlocutor e para os demais. Por exemplo, se alguém em
nossa presença afirmasse que o homem é superado em valor por alguns animais,
não o toleraríamos e logo refutaríamos com grande veemência esta falsa e
perniciosa afirmação; e talvez por valor ele entenda a força física, e com tal
palavra enuncie mesmo o que pensava, sem mentir, sem engano, sem ocultar as
palavras gravadas na memória, agitando na mente alguma outra coisa, sem que
por um lapso da língua fale algo diverso do que corresponde ao seu pensamento;
estaria apenas chamando com um nome diverso do nosso a coisa que pensa, e nós
teríamos concordado imediatamente com ele, se houvéssemos intuído o seu
pensamento, o que não conseguiu explicar-nos com as palavras de sua afirmação.
Dizem que a definição pode sanar tal erro; assim, se nesta questão se definisse o
que é valor (virtus), tornar-se-ia claro, dizem, que a controvérsia gira só em torno
da palavra, e não da coisa. Mas, mesmo concordando com isto, quantos bons
definidores poderemos encontrar? E isso embora se tenha discutido bastante
sobre a arte de definir, o que não é oportuno tratarmos aqui, nem merece sempre
a minha aprovação.

Nem considero o caso de não ouvirmos bem umas coisas e disputarmos
longamente sobre elas como se as tivéssemos ouvido. Quando, há pouco, quis dizer
"misericórdia" com uma certa palavra púnica, afirmaste ter ouvido, daqueles que
têm familiaridade com esta língua, que aquela palavra significa "piedade". Eu
opunha-me, afirmando que tinhas esquecido de todo o que tinhas ouvido, pois me
parecia teres dito não "piedade", mas "fé", embora tivéssemos sentados bem
perto, e certamente estas duas palavras não podiam levar a um engano pela
semelhança do som.

Por um bom lapso de tempo pensei, todavia, que não soubesses aquilo que te fora
dito, e no entanto era eu que não sabia o que havias dito; ora, se eu tivesse
ouvido claramente as tuas palavras, não teria recebido a impressão, nada
absurda, que a língua púnica indicasse com o mesmo vocábulo "piedade" e
"misericórdia". Tais coisas ocorrem com freqüência mas, como disse, vamos deixá-
las de lado, para não dar a impressão que quero atribuir culpa às palavras pela

negligência de quem ouve, ou até pela surdez dos homens. O que mais aflige é o
que disse acima, isto é, o não conseguirmos conhecer o pensamento de quem fala,
embora ouvindo claramente as palavras, e palavras latinas, e sendo nós da mesma
língua.

CAPÍTULO XIV - CRISTO ENSINA INTERIORMENTE, O HOMEM AVISA
EXTERIORMENTE PELAS PALAVRAS

AGOSTINHO

– Porém agora admito que, quando as palavras tenham sido ouvidas por quem já
as conhece, a este possa parecer que quem fala tenha realmente pensado no seu
significado; mas significará talvez que também aprendeu o que agora estamos
indagando, isto é, que aquele tenha falado a verdade? E, porventura, os mestres
pretendem que se aprendam e retenham os seus conceitos pessoais e não as
disciplinas mesmas que querem ensinar quando falam? Mas quem seria tão tolo
em mandar o seu filho à escola para que aprenda o pensamento do professor? Mas
quando tiverem exposto com palavras todas as disciplinas que dizem professar,
inclusive as que concernem à virtude e à sabedoria, então os discípulos irão
considerar consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, consultando a
verdade interior conforme sua capacidade. E é então que, finalmente, aprendem;
e, quando dentro de si descobrem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam os
mestres sem perceber que elogiam homens mais doutrinados que doutos, se é que
aqueles, também sabem o que dizem. Erram, pois, os homens ao chamar de
mestres outros homens, porque na maioria dos casos entre o tempo da audição e o
tempo da cognição não se interpõe tempo algum; e, como depois da admoestação
do professor, logo aprendem em seu íntimo, julga que aprenderam pela fala do
mestre exterior, que nada mais faz do que admoestar.

Mas sobre a importância das palavras, bem considerada no seu conjunto, não é
pequena, falaremos, se Deus permitir, em outro lugar. Por ora avisei-te apenas
que não lhes atribuas importância maior do que é necessário, para que não se
creias, mas também comece a compreender quão grande é a verdade do que está
escrito nos livros sagrados que não se chame a ninguém de mestre na terra, pois o
verdadeiro e único Mestre de todos está no céu. E o que há nos céus, no-lo
ensinará Aquele que, por meio dos homens, também nos admoesta com sinais
exteriores, para que, voltados para Ele interiormente, sejamos instruídos. Amar e
conhecer a Ele constituem a bem-aventurança, que todos afirmam buscar, mas
bem poucos são os que se alegram por tê-la encontrado. E agora gostaria de ter as
tuas impressões sobre este meu arrazoado. Se tu soubesses que eram verdadeiras

as coisas expostas, dirias que as conhecias quando interrogado sobre cada uma
separadamente; observa, portanto, de quem as aprendeste; não certamente de
mim, a quem terias respondido, se te indagasse sobre elas. Se, ao contrário, sabes
que não são verdadeiras, nem eu nem Aquele tas ensinou: eu, porque nunca teria
a possibilidade de ensinar; Aquele, por tu não teres ainda a possibilidade de
aprender.

ADEODATO

– Eu, na verdade, pela admoestação das tuas palavras aprendi que servem apenas
para estimular o homem a aprender, e que já é grande resultado se por meio da
palavra transmite-se um pouco do pensamento de quem fala. Se foi dita a
verdade, isto no-lo pode ensinar somente Aquele que, por sinais externos, avisa o
que habita dentro de nós; Aquele que, pela sua graça, hei de amar com tanto mais
ardor quanto mais eu progredir no conhecimento. Mas quanto a essa tua oração,
que usaste continuamente, sou-te grato particularmente por isto: que ela previu e
desfez todas as objeções que tinha preparado para te fazer, e nada descuidaste
daquilo que me suscita dúvidas, e sobre o que não me responderia assim aquele
secreto oráculo, como tuas palavras afirmaram.

PERFIL BIOGRÁFICO - SANTO AGOSTINHO (354-430)

"Ó Senhor, cumpre em mim Tua obra e revela-me essas páginas!"

Com estas palavras, o Bispo Agostinho de Hipona, aos 43 anos de idade, abre o seu
coração. Não fora fácil o caminho de sacerdote, que, dentro do silêncio das noites
africanas, invocava o auxílio divino. Agostinho conhecera os prazeres do mundo, a
sensualidade das festas pagãs, o aplauso das multidões deslumbradas por sua
oratória. E quando, finalmente, se voltou para dentro de si, já era bispo há pelo
menos dois anos, venerado em toda a África.

Reconstruindo sua existência desde o princípio, ele visa a expurga-la de toda culpa,
para entregá-la novamente a Deus. Ao escrever as Confissões, numa exposição por
vezes ingênua de todos os seus sentimentos e conflitos até a reconquista da fé,
Agostinho dirige-se principalmente a Deus. Mas não esquece o rebanho que lhe foi
confiado: "Quem eu sou nesse exato momento é o que desejam saber muitos. Mas
para que desejam saber isso? Para congratular-se contigo, ó Senhor, ouvindo como
eu avancei por obra Tua pelo Teu caminho, e para rezar por mim, sentindo quanto
meu peso me faz retardar o passo. Se assim for, é para esses que falo".

A perdição da alma reside em algumas peras

Agostinho nasceu a 13 de novembro de 354, em Tagaste, pequena cidade da
Numídia, atual Argélia. Sua infância e adolescência transcorreram principalmente
em sua cidade natal, no ambiente limitado de um povoado perdido entre
montanhas. Mais tarde, descreveria em cores carregadas este período. "Cometia
pequenos furtos na despensa da casa ou na mesa, por gulodice ou para ter algo a
dar a meus camarada. Mesmo nos jogos, muitas vezes conseguia, levado pela
ânsia de superioridade, vitórias fraudulentas". Um furto de peras ficou-lhe
sobretudo na memória. "Fi-lo não premido pela necessidade, mas por desprezo à
justiça e excesso de maldade".

Suas observações sobre a severidade do ensino da época são bem mais
equilibradas, encerrando um protesto ainda hoje válido: "Para aprender tem mais
valor uma curiosidade livre do que a coerção baseada no medo".

"Quantas misérias e enganos experimentei naquela época, quando era rapazinho e
me propunham, para viver direito, a obediência àqueles que me instruíam, para
que nesse mundo construísse minha imagem..."

De Tagaste, Agostinho vai para Madaura, onde inicia os estudos de retórica. O
rapaz parece talhado para a oratória. Lê e decora trechos de poetas e prosadores
latinos, dentre os quais Virgílio e Terêncio. Adquire, com Varrão, noções de
caráter enciclopédico. Aprende regras elementares de música, física e matemática.
Recebe tinturas de filosofia, o suficiente para compreender certos poetas. Em
compensação, jamais dominará o grego.

Agostinho fará os estudos superiores em Madaura e Cartago. Depois de longos
anos receberá, finalmente, de acordo com os programas da época, o título de vir
eloquentissimus atque doctissimus.

Onde está a felicidade?

"Vim a Cartago, e uma multidão de torpes amores rodeou-me de todo lado. (...)
Amar e ser amado era para mim uma coisa deliciosa, tanto mais quanto podia
também possuir o corpo da pessoa amada". Na realidade, porém, Agostinho não
era o pecador que ele descreve nas suas Confissões. Segundo o testemunho de um
adversário, o bispo donatista (herético) Vicente de Cartena, o estudante
Agostinho era um jovem ponderado, dedicado aos livros.

Não que lhe faltassem oportunidades mundanas. Cartago, a maior cidade do
Ocidente latino depois de Roma, era um dos grandes centros do paganismo, que
dois séculos de doutrina cristã ainda não haviam conseguido derrubar. A procissão
anual à deusa do céu (a antiga Tanit dos fenícios) atraía multidões ávidas de
prazer, vindas de todas as partes da África. Na grande metrópole realizavam-se os
espetáculos sensuais, comedias e pantomimas que contavam as aventuras eróticas
de deuses e homens. Agostinho, um rapaz de apenas dezessete anos, deixou-se
cativar pela alegria e esplendor das cerimônias em honra dos milenares deuses
protetores do império.

Em Cartago permanece durante três anos, unindo-se a uma mulher em
concubinato – o que as leis e costumes da época consideravam perfeitamente
normal. "Tinha só a ela e era-lhe fiel, como um marido", escreve mais tarde. "Tive
de experimentar com ela, às minhas custas, a diferença entre um compromisso
conjugal criado para procriar filhos e o acordo de um coração apaixonado, do qual
a prole nasce ainda que não desejada, mesmo que depois se seja levado a amá-la".
Referia-se a seu filho Adeodato, nascido em 373.

"Naquele período tão incerto, estudava os livros de eloqüência, na qual desejava

destacar-me com um fim reprovável, por orgulho, pelo prazer da vaidade humana.
Seguindo, portanto, a ordem tradicional do ensino, chegara a um livro, de
Cícero..." Continha ele uma discussão imaginária entre Cícero e Hortênsio, outro
grande orador romano, em torno do valor da filosofia.

Cícero demonstrava que a verdadeira felicidade reside na busca da sabedoria.

Agostinho sentiu-se fascinado. Os dezenove anos de sua vida pareceram-lhe
completamente desperdiçados. A busca e a investigação tornaram-se, daquele
momento em diante, seu objetivo primordial.

De início, decidiu dedicar-se ao estudo das Escrituras, mas logo se cansou: o
admirador de Virgilio, Terêncio e Cícero ficou desiludido diante do estilo simples
da Bíblia.

O mestre da eloqüência e um bêbado trilham caminhos iguais

De volta à cidade natal, Agostinho abre uma escola particular, onde ensina
gramática e retórica. Gosta de ensinar; durante treze anos esta será sua profissão.
Seus múltiplos interesses intelectuais, entre os quais o ocultismo e a astrologia,
não o impedem de tornar-se excelente professor, capaz de despertar a curiosidade
dos alunos.

No outono de 374 deixa Tagaste, transferindo-se para Cartago. Mais uma vez
dedica-se ao ensino da retórica. "Os estudantes receberam minha ordem de
aprender, além de literatura, a refletir e a habituar seu espírito na concentração
sobre si mesmos". Os cartagineses, porém, são demasiado turbulentos. Agostinho
segue para Roma, em 383. Pouco tempo depois verificaria que os jovens romanos,
embora mais quietos e gentis, têm o hábito de abandonar as aulas na ocasião em
que devem pagar os honorários aos mestres. A luta contra os maus pagadores
dura um ano, até que um concurso lhe dá a cátedra de eloqüência em Milão.

Igrejas majestosas ao lado de templos pagãos; teatros e circos que nada ficavam a
dever aos romanos; assim era Milão, na época a capital administrativa da parte
ocidental do império, a residência do imperador. Era, sobretudo, uma cidade onde
havia a possibilidade de fazer carreira.

Agostinho consagrava as manhãs aos cursos de eloqüência, passando as tardes nas
antecâmaras dos ministérios. Esperava obter a presidência de um tribunal ou

posto de governador de uma província. Era, à primeira vista, um homem feliz:
pago pelo Estado, personagem quase oficial, respeitado como professor. No
entanto, dominava-o uma profunda inquietude quanto aos rumos da sua
existência.

Por volta dos fins de 385, o mestre de eloqüência é escolhido para recitar a
saudação anual do imperador. Agostinho sai de casa com alguns amigos, dirigindo-
se ao palácio imperial.

"Ia para mentir", escreverá ao lembrar a oração de louvor em honra de
Valentiniano II, então com catorze anos. No caminho encontra um "pobre mendigo
bêbado, que ria e fazia arruaça". A cena, embora o aborreça, revela-lhe um
aspecto da verdade que procurava. O bêbado, com um pouco de dinheiro,
alcançara a felicidade. "È claro que essa não era autentica alegria, eu sei disso.
Mas por acaso era autentica a alegria que eu procurava com as minhas ambições e
enredos tortuosos? Numa noite ele digeriria o vinho e sua bebedeira passaria; eu,
ao contrário, iria dormir e acordaria com meu tormento, hoje, amanhã, quem sabe
até quando..."

A inquietude é tema tipicamente agostiniano, um aspecto permanente de seu
desenvolvimento. O despertar de seu espírito crítico levou-o a abandonar o
cristianismo que sua família professava. Agostinho adotou o maniqueísmo de
Mani, profeta persa que pregava uma doutrina na qual se misturavam Evangelho,
ocultismo e astrologia. Segundo Mani, o bem e o mal constituíam princípios
opostos e eternos, presentes em todas as coisas. Era uma religião teoricamente
severa, mas cômoda na prática: o homem não era culpado por seus pecados, pois
já trazia o mal dentro de si. Ninguém era obrigado a aceitar a fé sem antes discuti-
la e compreendê- la. A doutrina seduziu, como ele mesmo diria: "um jovem amante
da verdade, já orgulhoso e loquaz devido às disputas mantidas na escola dos
homens doutos". O abandono do maniqueísmo viria mais tarde, ocasionado pela
insatisfação das respostas que a doutrina oferecia. Seu lugar seria
temporariamente preenchido por um profundo ceticismo.

Uma canção de criança pode mudar uma vida

Entre os dignitários procurados por Agostinho figurava Ambrósio, bispo de Milão,
um dos homens mais poderosos do império. O jovem professor buscava com ele
uma colocação oficial.

Em vez disso, encontrou respostas para algumas de suas dúvidas. "Esse homem de
Deus acolheu-me como um pai. Eu imediatamente o amei'. Passa a assistir, todos
os domingos, aos sermões de Ambrósio. Recomeça a ler os Evangelhos. Procura
discutir com o sacerdote, que, entretanto, se nega ao debate. Ambrósio sabe que,
para o antigo maniqueu, disputas filosóficas têm menos valor do que a aceitação
da crença cristã por intermédio da fé.

Por esta época volta para a África a mulher com quem vivera durante catorze
anos. A separação foi provocada pela mãe de Agostinho, Mônica, que desejava
para o filho uma união cristã, e que chegou ao ponto de lhe arranjar uma noiva.
Agostinho, em seus escritos, jamais procurou justificar a sua fraqueza e o excesso
de zelo materno. Ao contrário, falará com remorso de sua união ilegítima e da
concubina cujo nome jamais ousará dizer em suas Confissões.

As dúvidas espirituais de Agostinho eram partilhadas por dois amigos, Alípio e
Nebrídio.

Tinham, os três, abandonado a família para viver juntos uma nova experiência.
"Éramos três bocas de pobres famintos, que desabafávamos entre nós nossa
miséria e esperávamos que nos outorgassem alimento no momento justo". Ao lado
de seus companheiros, decidiram juntar seus bens e dedicar-se à filosofia. Mas
havia uma dificuldade: como suas noivas e esposas acolheriam o projeto? Alípio
aconselhava Agostinho a permanecer solteiro, para entregar-se totalmente aos
estudos e meditações. Este, porém, como disse nas Confissões, "estava bem longe
da grandeza de alma desses sábios. A mim, acariciava-me a morbidez da carne e
com mortífera suavidade arrastava a minha cadeia, temendo livrar-me dela e
rejeitando essas palavras de incitação ao bem e essa mão libertadora como quem
sente remexer uma ferida".

Em 386 chega à resposta definitiva. Enquanto Alípio e Agostinho meditam, uma
voz infantil, vinda da casa da vizinha, repetia: "Toma, lê". Era o refrão de uma
canção infantil que a criança entoava. "Refreando o ímpeto das lágrimas, levantei-
me, interpretando essa voz como uma ordem divina'. O livro está lá: São Paulo.
Toma-o, abre-o ao acaso e lê: "Não nas orgias e nas bebedeiras, não nos deslizes e
nas impudências, não nas discórdias e na inveja, mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo e não deis à carne concupiscências".

A meditação se inspira no murmúrio da água

Na pequena vila de Cassiciaco, Agostinho encontra o lugar ideal para seus estudos
e meditações. As frias manhãs de outono e inverno transcorrem durante
discussões. As noites são dedicadas ás preces. Em Cassiciaco ele escreve suas
primeiras obras: De Vita Beata, acirrada polêmica contra os descrentes; Contra
Acadêmicos; De Ordine, motivada pelo murmúrio da água que corria junto às
termas – um estudo sobre a ordem e a harmonia da natureza governada por Deus.
Ali são também escritos os Solilóquios, uma invocação quase contínua a Deus.
Terminadas as férias, Agostinho escreve a Milão, dizendo que arranjassem "outro
vendedor de palavras para os estudantes". Permanece em Cassiciaco até março de
387. Depois volta à cidade para assistir às aulas de catecismo. Na noite de vigília
da Páscoa, juntamente com Alípio e seu filho Adeodato, Agostinho recebe o
batismo das mãos de Ambrósio. Era o amanhecer de 25 de abril de 387, dia da
Ressurreição.

Agostinho resolveu retornar à África, para realizar, na terra natal, seu ideal de
vida monástica. A viagem, porém, foi retardada pela doença de sua mãe, vítima
de uma febre maligna, que a levaria à morte em poucos dias. "Com apenas 56 anos
incompletos, tendo eu 33, essa alma religiosa e devota libertou-se do corpo". O
grande sonho de Mônica se realizara: o filho entregara-se de corpo e alma ao
cristianismo.

Agostinho chega à África em 388. Cinco anos haviam passado desde que,
desgostoso com a inquietude dos estudantes cartagineses, partira para Roma.
Volta à Tagaste, onde vende a propriedade deixada pelo pai e distribui o dinheiro
entre os pobres. Conserva apenas uma pequena porção de terra, onde, ao lado dos
amigos Alípio e Ovídio, funda o primeiro mosteiro agostiniano. São poucos os
discípulos, e a regra que os une não é a das ordens monásticas orientais. Seu ideal
é a contemplação, o otium deificante. Mas ao misticismo junta-se a necessidade de
aprofundar definitivamente os problemas do espírito. Prova disso é o De Diversis
Quaestionibus, nascido das discussões no interior do mosteiro.

Nos dois anos de permanência em Tagaste, Agostinho escreve outros livros. De
Música, iniciado em Milão, De Genesi (contra os maniqueus). De Vera Religione,
considerado uma de suas primeiras obras-primas. Neste livro seu interlocutor é
Adeodato, que, com apenas dezesseis anos, revela uma maturidade e perspicácia
que assombram o pai. O rapaz consegue acompanhar Agostinho em seus difíceis
argumentos sobre o valor das palavras. Somente em raros momentos confessa
hesitações: "Até aqui minha inteligência não chega..." Então o raciocínio de
Agostinho torna-se mais simples, mais discursivo.

Adeodato morreria no ano seguinte, com apenas dezessete anos. Muitos, porém, o
substituíram, continuariam o ideal que animava os habitantes do mosteiro de
Tagaste, dividindo-se entre a ação e a vida contemplativa.

O apelo da multidão: um pastor para enfrentar os leões vorazes

No início de 391, a chamado de um funcionário imperial, Agostinho segue para
Hipona. A cidade, com cerca de 30 mil habitantes, funcionava com grande centro
comercial: no seu porto era embarcado o trigo enviado a Roma. Encostada nas
montanhas cobertas de pinheiros, a segunda metrópole africana em importância
gozava de posição privilegiada, sendo até mesmo bem protegida por fortificações.

Certo dia Agostinho assistia à missa quando o velho bispo da cidade, Valério,
começou a explicar ao povo as necessidades da diocese, acentuando a urgência de
ter um sacerdote que o ajudasse. Da multidão elevou-se, cada vez mais distinto, o
pedido: "Agostinho padre". Agostinho procurou resistir, defendendo a
tranqüilidade de sua vida monástica, mas a insistência da população triunfou: com
os olhos cheios de lágrimas, ajoelha-se frente a Valério e é ordenado sacerdote.
Tem 37 anos e sabe que pesadas tarefas o esperam; terá de lidar com
necessidades objetivas do povo, ao lado de suas preocupações espirituais. Seu
temperamento contemplativo, porém, permanecerá sempre fiel aos ideais de
Cassiciaco e Tagaste. Funda, com Alípio, um segundo mosteiro. Seus discípulos
serão, mais tarde, bispos em várias cidades da África – o catolicismo deste
continente será marcadamente agostiniano.

Em 396, atendendo ao pedido de Valério, Agostinho é sagrado bispo auxiliar.
Conserva o hábito de penitente, recusando-se a usar anel e mitra. Desde os
primeiros dias de sua sagração, teve de se defrontar com "leões vorazes", os
heréticos que estavam por toda parte. Ele mesmo, em seu livro sobre heresias,
chegaria a contar 88. A principal delas era a seita dos donatistas, que, em fins de
312, se havia separado da Igreja, alegando que os católicos mostraram-se
demasiado servis ao poder imperial por ocasião das perseguições de Diocleciano.
Na época, os donatistas lutavam violentamente, e não só com discussões. O
próprio Agostinho salvara-se por milagre de uma emboscada. Um outro bispo fora
ferido de morte diante altar.

Ainda quando simples padre, Agostinho havia percebido a gravidade do cisma que
se desencadeava sobretudo nas regiões berberes menos romanizadas, entre os
pobres do campo oprimidos pelos proprietários rurais. Na agitação donatista havia
um amplo aspecto de revolta social. Camponeses, escravos e desertores

incendiavam e saqueavam os grandes domínios.

Sessenta cristãos já haviam sido trucidados. Era tempo, como escrevia Possídio, de
que a Igreja "longamente humilhada reerguesse a cabeça". Agostinho iniciou a
luta convidando os chefes donatistas para discussões públicas. Escreve contra eles
mais de uma dúzia de livros e opúsculos, nos quais procura demonstrar que a
santidade da Igreja universal não pode ser negada ou destruída pelas culpas de
alguns de seus membros.

É preciso paciência diante de olhos em chamas

No início do século V, caracterizado por perseguições e heresias, Agostinho é um
dos personagens mais destacados. As desordens desencadeadas pelos donatistas
levam o poder oficial a intervir. Em 411 é organizada uma grande conferência em
Cartago; 279 donatistas, enfrentam 264 bispos católicos – entre os quais
Agostinho – numa discussão pública. Agostinho, "o lobo mortífero que ameaça
destruir nosso rebanho", como diziam os donatistas, domina a reunião. A 26 de
junho de 411, o cisma era suprimido legalmente.

Grande parte da doutrina agostiniana se desenvolve neste período, nascida nos
choques em que o bispo de Hipona intervém não só como representante oficial da
Igreja, mas também a título pessoal, por uma profunda necessidade de sua
inteligência. Por isso, as batalhas que trava têm um toque particular, tornam-se
verificações e pesquisas que contribuem para desenvolver suas opiniões.
Multiplicam-se encontros, discussões públicas, sínodos e concílios, mais numerosos
que os de Roma. Mas em nenhuma ocasião Agostinho – sempre orador oficial –
esquece o fato de que mais valioso que a palavra é o amor, de que os heréticos se
persuadem com exemplos de amor fraterno, não com argumentações sutis. "Os
olhos dos doentes queimam, por isso são tratados com delicadeza... Os médicos são
delicados até com os doentes mais intolerantes: suportam o insulto, dão o
remédio, não revidam as ofensas. Fique bem claro que não somos (católicos e
donatistas) adversários: há um que cura e outro que é curado".

A espada dos bárbaros é a cólera dos antigos deuses

24 de agosto de 410. Uma terrível notícia abala o mundo: Roma, a capital do
império, a cidade sagrada que desde a ocupação gaulesa de 387 a.C. nunca mais
enfrentara a desonra da invasão, fora tomada por visigodos de Alarico. Forçando
os muros aurelianos da Porta Salária, os bárbaros dedicam-se ao saque,

incendiando e causando depredações. Mensageiros apressados trazem notícias
trágicas, dizem que os cadáveres são tantos que não é possível enterrá-los. E
agora, seguido por uma longa fileira de carros com os tesouros roubados dos
templos, Alarico dirige-se para o sul, para empreender a conquista da África.

Um mito apagou-se. Durante séculos, pareceu que Roma era a predileta dos céus.

Primeiro, protegida pelos deuses que Enéias trouxera de Tróia, depois pelo Deus
que Pedro trouxera de Jerusalém. Agora não se podia mais crer nisso. A fraqueza
do império – que precisou consentir na entrada pacífica dos bárbaros em seu
território, que tivera de recrutar corpos militares inteiros entre os recém-
chegados, que vira seus recursos desperdiçados nas lutas entre pretendentes a
imperador – tornava-se patente. No Ocidente empobrecido, afastado das
importantes rotas comerciais que asseguravam a riqueza de Constantinopla, a
autoridade imperial diluiu-se, substituída pela concentração do poder em mãos dos
grandes proprietários de terras.

Somente a Igreja sobreviveria, conservando, em sua estrutura baseada na divisão
administrativa do império, os vestígios da civilização romana. Somente a Igreja
dispunha de elementos intelectualmente capazes, submetidos a uma rígida
organização, de modo a conservar a centralização que caracterizara o mundo
romano. A vontade única do imperador foi aos poucos substituída pela vontade
única do bispo de Roma.

Diante dos refugiados que fugiam à aproximação dos visigodos, diante daqueles
que diziam que na ruína de uma cidade perecera todo o império, eleva-se a voz de
Agostinho:

"Vamos, cristãos, germes celestes, peregrinos na Terra, que andais à procura da
cidade celeste nos céus, que desejais juntar-vos aos anjos, compreendei bem que
estais aqui de passagem..."

São palavras que dão a entender que nesse mundo tudo passa, e que as
civilizações são mortais como os indivíduos. Mas os pagãos – e mesmo muitos
cristãos amedrontados – parecem surdos às suas palavras. Roma caiu porque os
antigos deuses foram ultrajados. Alarico não passa da mão vingadora de Júpiter.

Para Agostinho, inicia-se outra batalha, uma das mais decisivas na história do
cristianismo.

Entre vários é preciso escolher

"A galinha come o escorpião e, digerindo-o, transforma-o em ovo. E como não falar
de Roma? Não temos lá muitos irmãos? Não está lá uma grande parte da
Jerusalém terrestre? É o que digo, quando não me calo a respeito dela, a não ser
que não seja verdade o que dizem de nosso Cristo, que Ele seria culpado pela
queda de Roma, protegida por divindades de pedra e de madeira... Deuses que
têm olhos e não vêem, orelhas e não ouvem. Eis a que guardiões foi confiada Roma
por homens doutos: a guardiões que não enxergam. Se tais deuses podiam
proteger Roma, por que razão morreram antes dela? Sei que respondem – Roma
morreu – É verdade, mas eles (os deuses) também morreram".

O trabalho em que Agostinho apresenta a defesa do cristianismo e convida seus
contemporâneos a compreender o sentido profundo da história é a sua obra-prima,
A Cidade de Deus. Já não se trata de um reino de Deus que sucede à vida terrena.
A cidade de Deus e a dos homens coexistem: a primeira, antes simbolizada por
Jerusalém, é agora a comunidade dos cristãos. A cidade dos homens tem poderes
políticos, moral e exigências próprias. As duas cidades permanecerão lado a lado
até o fim dos tempos, mas depois a divina triunfará para participar da eternidade.

Agostinho levou 13 anos para escrever os 22 livros da obra que teria enorme
influência em toda a Idade Média. Para ele, Deus legitima a própria existência do
poder, sem garantir o exercício concreto deste. A providência divina não confere a
um ato o caráter de ato moralmente cristão. Desta forma, um católico pode
afirmar que nada se faz sem Deus, do qual procedem o princípio de autoridade e a
orientação misteriosa dos fatos. E ao mesmo tempo, pode evitar que o
cristianismo seja responsabilizado por este ou aquele acontecimento particular. O
cristão pode, simultaneamente, ver a mão da providência na queda de Roma, e
lutar contra o perigo bárbaro com todo o coração e todas as suas forças. A filosofia
política de Agostinho é uma filosofia de tempos difíceis, e serviu admiravelmente
aos objetivos de seu autor, destruindo a argumentação dos polemistas pagãos.
"Roma não é eterna, porque só Deus é eterno".

O perigo imediato passara, a morte havia paralisado, em Consenza, a marcha de
Alarico.

O chefe bárbaro jazia, com seu cavalo e seus tesouros, no leito do rio Busento.
Agostinho, porém, não encontrava descanso. Novas heresias, como a dos
pelagianos, pretendiam afastar do cristianismo todo o elemento sobrenatural,

ameaçavam a comunidade dos fiéis. O bispo prossegue em sua luta, procurando
sempre antepor os argumentos do coração aos da razão. As palavras que mais
frequentemente aparecem em seus escritos são amor e caridade. Amor, para ele,
significa o conjunto de forças que leva o homem a um determinado caminho,
escolhido pela consciência. "Há amores que devem ser amados, e amores que não
devem ser amados". Para Agostinho, o conhecimento abrange o homem inteiro,
mente e coração. A alma é uma substância dotada de razão e apta para governar
o corpo. A fé serve de ponto de partida para colocar a mente na direção certa,
marca os limites do campo que a razão deverá preencher. A realização vem
quando se compreende aquilo em que se acredita.

Sua doutrina nasce nos estudos que se originaram da necessidade de responder
aos heréticos. Agostinho procura uma filosofia – que ele entende como sendo o
caminho para a felicidade – capaz de englobar o cristianismo e a salvação. Adota
algumas posições dos seguidores de Platão, como a concepção de dois níveis de
conhecimento – um através dos sentidos, e outro percebido unicamente pela
razão. E junta-lhes a figura de Cristo. Com esses elementos iniciais ergue um
edifício filosófico que muito influenciaria o pensamento ocidental e que, em alguns
aspectos, conserva ainda hoje toda a sua força polêmica.

Muitas vezes, porém, ao desenvolver uma idéia, interrompe o raciocínio para
deixar fugir um grito de amor a Deus: "Ó Senhor, amo-Te. Tu me estremeceste
meu coração com a palavra e fizeste nascer o amor por Ti. Tarde Te amei, ó Beleza
tão antiga e tão nova, tarde Te amei...

Tocaste-me, e ardo de desejo de alcançar Tua paz". Mesclavam-se nele o polemista
inimigo das heresias, o administrador dos recursos da Igreja e o místico, que
escolhera, tantos anos atrás, uma vida de recolhimento.

Uma árvore tem folhas verdes. Como serão os frutos?

"Agostinho, vida", é o grito que ressoa na Basílica da Paz de Hipona, a 26 de
setembro de 426. É um dia de grande emoção para os fiéis: o bispo Agostinho
designa o seu sucessor na pessoa do Padre Heráclio. Repete-se, depois de trinta
anos, uma cena que os habitantes da cidade não esqueceram – a escolha de
Agostinho por Valério. Como aquele que o nomeara, Agostinho é agora um velho.
Tem 72 anos. Relembra aos fiéis que uma vez exprimira o desejo de ter cinco dias
livres por semana para poder escrever e rever as obras que de todos os lugares
lhe solicitavam.

Nascem, depois de um ano de trabalho, os dois volumes de Retratações, que
comentam dezenas de obras. Sua "especialização" como escritor não o impede,
porém, de continuar a se dirigir ao povo.

Durante quarenta anos, desde que reencontrou a fé, Agostinho teve sua vida
sobrecarregada. Primeiro constrói seu mosteiro. Torna-se depois sacerdote e
bispo, encarregado até mesmo de distribuir justiça em nome do império.
Conseguiu, entretanto, permanecer fiel à sua vocação de contemplativo e arranjou
tempo para realizar uma obra literária gigantesca – 113 trabalhos, 224 cartas e
mais de quinhentos sermões. Excetuadas as Confissões, escritas entre 397 e 398,
foram precisos vinte anos para completar os 15 livros sobre a Trindade. O De
Doctrina Christiana, depois de parcialmente escrito, teve de aguardar quase trinta
anos até que Agostinho pudesse cuidar da terça parte restante.

Poucos escritores do passado são conhecidos tão detalhadamente quanto ele. Se
as Confissões revelam até mesmo os recantos de sua alma, os discursos que
pronunciou em quarenta anos mostram-no sob outros aspectos. É fácil imaginá-lo
com sua voz, que a idade tornava apagada, usando uma linguagem direta e fácil,
muito diferente das sutilezas de seus escritos. O antigo mestre de eloqüência
consegue transmitir e adaptar os conceitos mais abstratos às exigências e à
capacidade do auditório.

Falava duas vezes por semana na Igreja da Paz. Em certa ocasião, explicando São
João aos fiéis, ficou tão entusiasmado que pregou durante cinco dias consecutivos,
constantemente aplaudido. Mas o bispo não alimentava ilusões: "Vossos louvores
são folhas de árvore ; gostaria de ver os frutos". Muitas vezes lamentou a
distância entre o seu pensamento, sua fé e amor a Deus, e as palavras que
proferia. "...Entretanto, a atenção dos que me escutam prova-me que meu modo
de falar não é tão frio quanto possa parecer-me; pelo seu interesse compreendo
que tiram dele algum proveito..."

O lugar do pastor é à frente do rebanho

Na primavera de 429, a África é dominada pelo terror. Chamados por Bonifácio,
comandante do exército imperial, os vândalos atravessam o Mediterrâneo. Vêm
como amigos. No entanto, passados poucos meses, o general é obrigado a
empunhar as armas contra os soldados de Genserico. O Bispo de Hipona dirige
palavras severas a Bonifácio: "Olha a África, olha como está devastada.. Ninguém
teria pensado ou suposto que o célebre Bonifácio, aquele que de simples tribuno,
com poucos soldados, vencendo e destruindo toda resistência, conseguiu pacificar

todas estas populações, teria se sujeitados aos bárbaros, que com tamanha
audácia devastam e saqueiam tantas regiões outrora povoadas... Eu, que estou
atento às últimas causas, sei quantos males a África sofre por causa dos pecados
de seus habitantes; mas não quisera que tu estivesses entre os malvados e
iníquos; por causa dos quais Deus flagela os que escolhe com penas temporais..."

Tarde demais. Os vândalos eram piores inimigos que os visigodos de Alarico. Seu
nome tornou-se sinônimo de destruição e morte. Em poucos dias devastaram a
Mauritânia, e em seguida a Numídia. Apesar dos esforços de Bonifácio, os bárbaros
tornaram-se donos de todo o país. As legiões romanas dominavam apenas três
cidades: Cartago, Cirta e Hipona. Nesta última, mais bem fortificada, Bonifácio
prepara a derradeira defesa. Agostinho, aos 75 anos, vê que não há mais salvação
para os hiponenses. Embora, nas amargas horas de desânimo, peça a Deus que o
tire deste mundo, torna-se, como fizera vinte anos antes em relação aos
refugiados de Roma, o organizados do auxílio aos fugitivos. Torna-se a voz da
África, a testemunha mais categorizada do fim da latinidade no continente.

Data desses dias uma das últimas cartas escritas a Honorato, bispo de Thiabe,
para lembrar que ao pastor de almas não é permitido fugir ante os perigos, e que
o lugar dos bispos é à frente dos fiéis, até o fim: "...não devemos, por causa desses
males incertos, cometer a culpa certa de abandonar nosso povo. Daí, adviria a ele
grande mal, não quanto às coisas desta vida, mas da outra, que merece ser
procurada com maior diligência e solicitude... Temamos que se extingam,
abandonadas por nós, as pedras vivas, mais que a obra do incêndio que queima a
estrutura de nossos edifícios terrenos. Temamos a morte dos membros do Corpo
de Cristo, privados do alimento espiritual, mais que as torturas a que a ferocidade
dos inimigos poderia submeter os membros do nosso corpo..."

Todo conhecimento reside em Deus e na alma

Catorze longos meses resistiria Hipona ao assédio dos vândalos. A cidade estava
repleta de refugiados, a quem era preciso alimentar e vestir. Ao inimigo externo
juntavam-se a carestia, a fome e as epidemias. Agostinho só podia oferecer a toda
essa gente as suas preces. "Vós dizeis – Desgraçados de nós, o mundo morrerá.
Mas ouvi a palavra: Céu e Terra passarão, mas a palavra de Deus não passará".

Muitos começaram a julgá-lo capaz de milagres. Certo dia trouxeram-lhe uma
pessoa doente, para que ele a curasse com sua benção. Agostinho respondeu:
"Meu filho, se tivesse tais poderes, começaria por curar a mim mesmo". Sua
doença durou poucos dias. Quando percebeu que a morte se avizinhava, pediu que

o deixassem só, para que pudesse rezar. Nas paredes do quarto mandara afixar
pergaminhos nos quais fizera escrever os salmos penitenciais de Davi.

Agostinho morreu na noite de 28 para 29 de agosto de 430. "Não fez testamento",
escreveu Possídio, "porque, pobre para servir a Deus, não tinha bens a deixar...
Mas deixou à Igreja um clero numeroso e mosteiros cheios de homens e mulheres
sob voto de continência e obedientes a seus superiores".

De livro na mão e coração em chamas – assim os pintores medievais viram o bispo
de Hipona. O livro simboliza a ciência; o coração inflamado, o amor. Sabedoria e
amor foram os seus dons inseparáveis, que muito contribuíram para que o Papa
João II declarasse, em 534, que "a Igreja de Roma segue e conserva as doutrinas
de Agostinho".

Ao construir sua filosofia como uma arma de defesa da fé, Agostinho forjou uma
visão do mundo que influenciaria, por muitos séculos, todos os líderes espirituais
do ocidente. A Cidade de Deus, síntese de filosofia, teologia, estudo das relações
entre o Estado e a liberdade de consciência, marcou profundamente o pensamento
político da Idade Média. Carlos Magno, considerava-o o seu livro preferido.

Agostinho foi o autor mais citado no último Concilio do Vaticano, destinado a abrir
novos rumos para o cristianismo dos tempos atuais. O fato talvez tivesse
surpreendido aquele que, nos Solilóquios escritos ao pé da água que corria pelas
termas de Cassiciaco, declarava que sua única finalidade era conhecer Deus e sua
própria alma.






Abraços fraternos !

 Bezerra

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