quinta-feira, 1 de março de 2018 By: Fred

{clube-do-e-livro} Anjo de Quatro Patas - Walcyr Carrasco.txt

Walcyr Carrasco

Anjo de quatro patas

A verdadeira amizade
entre um homem e seu cachorro



Este � o Uno, o cachorro que mudou a vida de Walcyr Carrasco. Os
acontecimentos aqui relatados s�o verdadeiros e tamb�m s�o fic��o.
O autor filtrou a realidade atrav�s de sua emo��o e maneira de ver o
mundo criando uma hist�ria que une fic��o e vida real. Mas o que
importa � que Uno existiu e os anos de conviv�ncia entre eles
constru�ram uma rela��o de companheirismo e amizade
absolutamente aut�ntica.

Minha liga��o com Uno estava al�m de qualquer explica��o, como costuma
ser a de algu�m com seu cachorro. Durante mil�nios os c�es vivem ao lado
dos humanos. Tornaram-se parentes pr�ximos, com relacionamentos
carregados de afeto e comunica��o. (...)
Sua presen�a impediu que o deserto tomasse conta de mim, que me tornasse
um ser est�ril. Seus uivos, suas lambidas, suas corridas, ca�adas, ternuras,
tudo que desfrutamos juntos me manteve vivo.

Watcyr Carrasco � autor de livros, pe�as teatrais, roteiros e novelas
de televis�o. Foi jornalista durante boa parte de sua vida. � cronista

#
da revista Veja S�o Paulo h� cerca de quinze anos. Entre seus livros
destacam-se A senhora das velas, Pequenos delitos, para adultos, Em
busca de um sonho (autobiogr�fico), A palavra n�o dita e Vida de droga,
para jovens. J� recebeu tr�s vezes a men��o de Altamente
Recomend�vel da Funda��o Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o
pr�mio Shell de Teatro por �xtase e o pr�mio Contigo pela autoria
da novela Alma G�mea. Apaixonado por bichos, vive atualmente
com �sis, a vira-lata Morgana, o shitzu Kau�, e dois gatos, Merlin e
Shiva. N�o consegue ver um cachorro na rua sem querer levar para
casa e, se pudesse, convenceria todo mundo a ter um. Em maio de
2008 foi eleito membro da Academia Paulista de Letras.


DEDICAT�RIA

A todos voc�s que, como eu,
amam os c�es.

#
MEUS LATIDOS

Quando o pessoal da Editora Gente me convidou para escrever um
livro, prop�s uma s�rie de contos sobre animais. Topei. Garanti que
escreveria contos sobre c�es e outros bichos de estima��o. Mas n�o
consegui. Sentava no computador e lembrava do meu cachorro
husky siberiano, Uno. Dos bons momentos. Da vida a seu lado. Era
como se ele latisse no meu cora��o: -Conta nossa hist�ria, conta!
Decidi falar sobre a amizade e o companheirismo que ele me
ofereceu. Sobre como � bom ter um cachorro. Uma vez escrevi um
livro infantil do qual Uno foi personagem: Mordidas que podem ser
beijos (Moderna, 2001). Mas nele suas aventuras foram pura
imagina��o. Agora � bem diferente. Se algu�m perguntar se os
acontecimentos deste livro s�o verdadeiros, responderei que sim.
Mas que tamb�m s�o fic��o.
O autor filtra a realidade atrav�s de sua emo��o e maneira de ver o
mundo. Escolhe os fatos a serem narrados, a maneira como s�o
encadeados, o tempo e o espa�o em que ocorrem. Nem mesmo em
uma biografia algu�m � exatamente como foi. Posso ler v�rias
biografias sobre um mesmo personagem e em todas me
surpreenderei com aspectos novos.
Mudei nomes, caracter�sticas e identidades de algumas pessoas para
preservar a privacidade delas e tamb�m a minha. Em outros casos,
mantive nomes e acontecimentos.
O que importa saber � que Uno existiu, e que minha emo��o �
absolutamente verdadeira. Foi meu husky. Meu cachorro.

Fico feliz por termos convivido tantos anos.

#
1

Meu irm�o Cl�udio resolveu ficar milion�rio criando cachorros. Ele
e minha cunhada Bia fizeram as contas:
-Come�amos com um casal. Na primeira ninhada a cadela ter� uns
dez filhotes. Vendemos oito e ficamos com mais um casal. Na outra
teremos vinte c�ezinhos. Adotamos mais dois e...
Pelas contas, estariam ricos dali a dois natais. Negociar com c�es
parecia melhor que jogar na loteria!
-Vamos fazer fortuna com os peludinhos! -entusiasmou-se meu
irm�o.
Optaram por um par de huskies siberianos. Huskies estavam na
moda, ap�s um filhote aparecer com destaque em uma novela de
televis�o. S�o lind�ssimos. Se n�o conviveu com algum
pessoalmente, voc� j� deve t�-los visto em algum filme de esquim�s.
Matilhas de huskies puxam tren�s na neve. Podem ter p�lo cinza,
negro, branco ou cor de mel. Olhos azuis ou castanho-claros. S�o
muito parecidos com lobos. N�o latem, uivam! Possuem um charme
indescrit�vel. Qualquer pessoa se apaixona por um husky � primeira
vista.
Inicialmente, os dois futuros milion�rios n�o possu�am amor
especial pela ra�a. Parecia um bom investimento. Huskies eram
vendidos a peso de ouro. Esse fen�meno ocorre com freq��ncia no
circuito dos canis e pet shops. Ra�as viram moda, tal como um novo
comprimento das saias ou a cor da esta��o. Quando eu era menino,

o m�ximo era ostentar um pequin�s bem peludinho. Em certa �poca
se tornou chique raspar os p�los dos poodles, deixando um topete na
cabe�a, um no rabo e um cintur�o no corpo. At� hoje s�o conhecidos
#
como cachorros de madame. D�lmatas transformaram-se em
coqueluche. Depois foi a vez dos huskies. Os filhotes eram
disputad�ssimos. Havia filas para adquiri-los.
Cl�udio quase saiu no tapa para conseguir uma f�mea e um macho
de bom pedigree, ainda filhotes. Foi vitorioso. Adquiriu o m�ximo
em aristocracia canina. O pai de Luna, a f�mea, veio do Canad� e foi
capa de uma revista canina. O macho, Thor, tamb�m ostentava um
impressionante pedigree. Casal mais chique n�o poderia haver. Os
filhotinhos eram ador�veis, mas exigiam cuidados. Bia, minha
cunhada, passou semanas preparando mamadeiras e ajeitando
cobertores. Se ventava ou chovia de noite, ela e meu irm�o sa�am da
cama e enfrentavam as intemp�ries para abrigar melhor os
pequenos huskies. Os c�es sempre foram saud�veis, mas os humanos
viviam espirrando. Finalmente minha cunhada, pintora, desfez o
ateli� que havia em um quartinho dos fundos da casa em que vive
no interior de S�o Paulo e montou uma su�te para huskies.
-Quando vender os filhotes, construo um ateli� com parede de
vidro no quintal -planejou ela, pupilas transformadas em cifr�es.
Ocorreu o inevit�vel. Diante de um filhotinho, ondas de amor
brotam at� do cora��o mais endurecido. Meu irm�o e minha
cunhada j� s�o bem sens�veis. N�o conseguiram nem tentaram
resistir. Apaixonaram-se perdidamente pelos c�es. Viviam com os
dois no colo. Ainda n�o tinham filhos. Cantavam para os huskies,
beijavam na testa, co�avam a barriga e comentavam, felizes como
papais:
-Viu s� o que a Luna fez? Pegou um osso e escondeu no quintal!
-Ai, que gracinha, o Thor nas duas patas para pedir comida. Ah,
que guloso! Malandrinho! Malandrinho!
Registraram o canil com um derivado de seu sobrenome: Karras.
Quando ia visit�-los, passava a tarde ouvindo coment�rios
entusiasmados:
-Eu falo e parece que ela me entende!
-Cachorro � muito melhor que gente.

#
Meses depois, Luna n�o havia engravidado. Gastaram uma grana
no veterin�rio em exames. O resultado:
-A cadela est� bem, mas o macho � est�ril.
Pode haver investimento pior do que come�ar um canil com um
cachorro est�ril? Pode sim, como vieram a demonstrar os fatos:
negociar cachorro � neg�cio de cachorro.
Os dois n�o se conformavam.
-A gente tinha que escolher justo um filhote est�ril?


Thor abanava o rabo. Imediatamente era perdoado.
-N�o � sua culpa, querido, mas voc� nos deu um baita preju�zo! explicava
Bia.
-Uauuuauuuuuuuuuu -uivava Thor.
E os sonhos de riqueza r�pida? N�o desistiram.
-S� vai demorar um pouco mais para dar lucro -concluiu Cl�udio.
Foram at� outro canil e explicaram a situa��o. Pegaram emprestado
um macho para uma gravidez em cons�rcio: a ninhada seria
dividida meio a meio.
-Este � seu marido, Luna! -apresentou minha cunhada.
-Luna vai casar, Luna vai casar! -cantarolou meu irm�o.
O noivo se aproximou. A noiva ergueu o rabo e arreganhou os
dentes. O feliz consorte farejou seu traseiro.
Digamos que foi amor � primeira vista.
Semanas depois, Luna estava gr�vida.
Mais contas com o veterin�rio e rem�dios morderam a poupan�a
dos futuros milion�rios. Os planos continuaram a todo vapor:
-Se ela tiver dez filhotes, damos cinco para o canil que emprestou o
macho e ficamos com cinco.
-Vendemos todos. Quero pintar a casa e trocar a pia -lembrou
minha cunhada.
-Melhor ficarmos com uma cadela e vendermos nove. Depois,
emprestamos outros dois machos e se cada uma tiver dez...
Mais contas! Os sonhos de riqueza continuaram de vento em popa,
mas era preciso investir. Os c�es continuavam dando despesas. E


#
haveria muitas mais pela frente. Seria preciso dinheiro para as
vacinas, ra��o e veterin�rio dos filhotes at� que fossem vendidos.
Meu irm�o aumentou o n�mero de aulas que dava na universidade.
Minha cunhada diminuiu os dias da faxineira e aumentou suas
horas de trabalho dom�stico.
Em uma noite fria, Luna foi para um canto, quieta. Estranha.
-Os filhotes devem nascer hoje -avisou o veterin�rio ao atender a
liga��o preocupada.
Os olhos de ambos brilharam de ternura misturada com ambi��o.
(S�o assim os sentimentos humanos, um tanto contradit�rios.)
-Se tivermos sorte, nascem uns doze -comentou Cl�udio,
esperan�oso.
-J� ouvi falar de at� quinze -concordou Bia, olhos faiscando.
Passaram a noite em claro. A cada cinco minutos minha cunhada ia
verificar.
-N�o nasceram ainda.
Deitava. Dali a pouco, sa�a da cama. Observava Luna. Ado�ava a
voz:
-Tudo bem, querida? Vai virar mam�e cachorra?
Ao amanhecer, iniciaram-se os sinais de parto. Emocionados, meu
irm�o e minha cunhada ficaram esperando o nascimento dos
filhotinhos. Seus sentimentos oscilavam entre o amor desmedido
pelos c�es e as perspectivas financeiras. Nasceu o primeiro filhote,
cor de mel.
-Ai, que coisa mais linda! -exclamou Bia.
-J�, j� vem mais um. -anunciou meu irm�o.


Ficaram olhando. Um minuto. Cinco. Dez. Vinte. Seus pesco�os
do�am com a expectativa. Bia encostou-se em um lado da parede,
ele no outro.
-Que demora!
Luna acomodou-se amorosamente com a cria. Mais meia hora.


#
Indiferente a suas preocupa��es, Luna descansava com o
cachorrinho, um macho. As ang�stias do parto pareciam deixadas
para tr�s.
Meu irm�o e minha cunhada se olharam, surpresos.
-S� um?
-Ih... s� um!
Mais tarde, o veterin�rio explicou:
-� rar�ssimo, mas pode acontecer ninhada de um s�. Nunca um
projeto de riqueza desabou t�o depressa!
Meu irm�o abriu uma cerveja e declarou:
-Acabou essa hist�ria de criar cachorros pra vender. Vamos ficar
com o filhote.
Como n�o era poss�vel dividir o c�ozinho ao meio para entregar ao
outro canil, ainda tiveram de desembolsar algum dinheiro por ele!
-O nome dele ser� Uno, porque foi �nico -declarou minha
cunhada, com o cachorrinho no colo.
-Tamb�m podia ser Preju�zo -rosnou meu irm�o. Era s� conversa.
Ambos j� estavam irremediavelmente
apaixonados pelo pequeno husky.
H� males que v�m para o bem. Como disse antes, negociar
cachorros pode ser um empreendimento de alto risco. N�o basta
querer dinheiro, � preciso ter muito amor porque as ciladas s�o
in�meras. Os fatos provaram que o preju�zo poderia ter sido muito
maior. Bia e Cl�udio tinham uma amiga que conseguiu concretizar
planos exatamente iguais aos que eles possu�am no in�cio da
empreitada. Comprou dois casais, investiu em novos procriadores,
encheu-se de filhotes e chegou a ganhar uma grana, que usou para
ampliar os neg�cios. Tarde demais, descobriu que criar c�es n�o � o
mesmo que possuir uma mina de diamantes. Muitos compradores
de huskies se decepcionaram. Eu, que amo a ra�a, posso contar com
imparcialidade.
Apesar de grandes, da apar�ncia de lobo e do uivo assustador,
huskies n�o servem como c�es de guarda. S�o d�ceis. Adoram

#
crian�as. E n�o se consegue adestr�-los. Alguns treinadores
cometem o erro de dizer que s�o burros. Coisa nenhuma. Possuem
uma intelig�ncia peculiar, uma personalidade forte. Francamente,
n�o est�o nem a� para ficar guardando os pertences dos humanos.
No fundo, n�o nos pertencem. Eles, sim, s�o nossos leg�timos
donos!
Fogem e n�o sabem voltar para casa. Vieram das plan�cies geladas,
onde n�o existiam fronteiras ou propriedades individuais. S�o
oriundos da vastid�o da neve. Sabem ir, ir, ir. Dificilmente
conseguem voltar. Embora, como contarei mais tarde, Uno fosse
uma exce��o, pois sabia voltar pra casa. Portanto fogem e n�o
voltam! Muitos propriet�rios de huskies se surpreenderam ao
descobrir que eles s�o capazes de escalar muros como gatos (sim,
s�o) e desaparecer para sempre, provavelmente adotados por uma
nova fam�lia. �s vezes uivam longamente. E s�o teimosos!

A ra�a saiu de moda. O golden retriever tornou-se a nova coqueluche.
Em todos os canis, os huskies deixaram de atrair compradores.
De repente a futura milion�ria, amiga de meu irm�o, se viu com 300
filhotinhos encalhados! Sem comprador � vista! Gastou todas as
economias vacinando e alimentando os trezentinhos. Com a
poupan�a arrasada, implorava pela caridade alheia.
-Pode contribuir com um pacote de ra��o? -pedia aos amigos.
Pior. A maior parte dos filhotes costuma ser vendida at� completar
tr�s meses. Depois disso o cachorro j� est� grande. A pessoa prefere
um filhotinho para se acostumar na casa desde pequeno. A pobre
ex-quase-milion�ria levava caixas de c�es a todas as feiras de
animais. Ficou com calos nos dedos fazendo lacinhos para enfeitar o
cocoruto das f�meas. Teve c�ibras na boca de tanto sorrir para eventuais
clientes. Cansou os bra�os de tanto botar filhotes no colo de
criancinhas e murmurar:
-Olha s�, ele gostou de voc�.
Fez liquida��o no canil, oferecendo os huskies a pre�o de custo. S� se
livrou de alguns. Ficou com 293 encalhados. Quem ama os c�es n�o

#
� capaz de solu��es radicais. Gastou tudo o que tinha para aliment�los,
tentava mant�-los, mas alguns come�aram a se reproduzir e...
Segundo a �ltima not�cia, os c�es continuavam crescendo fortes e
saud�veis, devorando toneladas de ra��o. J� a grana...
Meu irm�o e minha cunhada livraram-se desse destino. Ficaram
com os tr�s: Luna, Thor e Uno. Seria uma fam�lia feliz, se n�o fosse a
eterna competi��o entre machos, que costumam se estranhar. No
come�o, Uno e Thor rosnavam um para o outro. Logo passaram a se
atacar. Minha cunhada os separava com gritos e �gua fria. Uma
loucura.
Chegou a minha vez de entrar na hist�ria.
Passei por uma fase dif�cil e dolorosa. Perdi uma pessoa querida
ap�s uma doen�a devastadora. Eu a acompanhei durante todo o
desenrolar. Fui seu enfermeiro, seu amigo e seu amor. A experi�ncia
ainda n�o parecia terminada. Eu continuava abrindo sua parte do
arm�rio, pegava suas roupas e botava no nariz, tentando sentir seu
cheiro, captar seus �ltimos sinais sobre a Terra. Olhava suas
gavetas, seus pap�is, as lembran�as, bilhetes, postais que guardava.
Se sa�a para um cinema, um papo com amigos, compras, o que
fosse, me dava uma vontade enorme de voltar para o apartamento,
como se ela ainda estivesse l�, me esperando. Ao entrar, voltava �
realidade e dava um n� na garganta. Ia at� suas coisas para
novamente pegar, cheirar, ver e chorar, chorar e chorar...
-Nunca mais vou amar de novo! -dizia para mim mesmo, com
plena convic��o.
Era uma perda t�o sofrida que n�o queria correr o risco de amar
mais uma vez e novamente perder.
Eu me sentia no buraco. E n�o pretendia sair dele.
Muita gente me aconselhava a dar a volta por cima, a esquecer.
Tinha horror de ouvir esses conselhos. Nada � pior do que perder
algu�m e ouvir:
-N�o se desespere.

#
S� se eu n�o tivesse amado para n�o sofrer. Somente um amigo,

Andr�, me deu raz�o.
-Se voc� tem que chorar, chore. Se quer se esconder, se esconda.
Respeite seu momento.
Tinha que desocupar o apartamento repleto de recorda��es, onde
cada m�vel, cada parede me lembrava de uma passagem triste.
Al�m do mais, era alugado. H� anos constru�a uma casa em um
condom�nio distante, de ch�caras, em uma cidade pr�xima. Estava
prestes a ser terminada. Sempre havia sonhado com a casa pr�pria,
mas a constru��o se arrastava havia anos. Tive pouca grana a maior
parte da minha vida. Os financiamentos impunham juros e
corre��es monet�rias. Eram dif�ceis de obter. A maior parte dos
im�veis, inacess�vel para meu bolso. Minha companheira fazia
trabalhos eventuais na �rea de moda, mas nunca recebeu sal�rio
fixo. Era um tanto descabe�ada. Quando recebia, comprava roupas
novas, presentes para mim, comidas extravagantes. Eu segurava a
estrutura: aluguel, comida, empregada, luz, �gua, impostos. A casa
era fruto de um longo projeto. Economizei muito, durante anos.
Com dificuldade comprei um terreno em um bairro distante. O pa�s
passava por sucessivos planos econ�micos, um diferente do outro.
Em um desses, meu terreno valorizou-se muito, porque em raz�o da
baixa renda da poupan�a, todo mundo estava tirando dinheiro do
banco e aplicando em im�veis. Era minha oportunidade. Resolvi
vend�-lo. Fui at� o dono da imobili�ria:
-Quero vender o terreno para comprar um pequeno apartamento.
-N�o prefere uma casa?
Meus olhos brilharam. Resumindo: havia uma casa em constru��o
muito, mas muito mais distante ainda que o terreno, em um
condom�nio quase rural. A obra estava parada havia dois anos, mas
j� tinha as paredes e a laje. Maravilha das maravilhas, o terreno do
fundo dava para uma reserva florestal onde corria um riacho com
uma pequena cascata. O dono da imobili�ria fez uma transa��o na
qual entrou como parte principal o tal terreno, minha pequena

#
poupan�a e at� meu carro, com uns seis anos de uso. Sa� da
imobili�ria a p� para pegar �nibus na estrada, mas propriet�rio de
uma casa. Ou quase.
Casa? Eu nunca constru�ra coisa nenhuma. Imaginava que seria f�cil
termin�-la. Que fantasia! Nos dois anos seguintes, fui comprando o
material pouco a pouco e concluindo a obra por partes. Comecei
pelo telhado. Um amigo indicou um especialista, que foi at� l� e
perguntou:
-Como ser� o telhado?
-Assim -respondi desenhando no ar com os dedos. Ele fez
exatamente como mostrei e o telhado est� l� at�
hoje. Talvez por milagre. Quando consegui, botei as janelas. Depois

o piso, de tijolo. O terreno era enorme, com mais de 2 mil metros. S�
tive dinheiro para plantar grama na metade. A outra continuou
cheia de mato. Durante todo esse tempo fomos construindo a casa.
Com a doen�a, tudo parou. Trabalhei em dobro e guardei dinheiro
para emerg�ncias. Meu maior terror era ser obrigado a intern�-la
em um hospital p�blico, onde eu n�o pudesse estar a seu lado e
segurar sua m�o quando partisse. N�o t�nhamos plano de sa�de,
pois na �poca n�o era algo t�o comum quanto hoje. Juntava cada
centavo para, quando chegasse a hora, pagar um hospital, mesmo
simples, e acompanh�-la em seus �ltimos momentos. M�rbido?
Quem amou e perdeu sabe do que estou falando. Minha
necessidade de estar a seu lado e transmitir minha ternura era at�
f�sica. Mas ela faleceu em casa. O dinheiro ficou no banco.
A melhor homenagem seria terminar a casa e mudar. A pedido de
sua m�e, seu corpo fora cremado. As cinzas, espalhadas no pr�prio
jardim do cremat�rio. N�o havia t�mulo para visitar, um lugar para
honrar sua mem�ria. No jardim da casa em constru��o, por�m,
havia uma lembran�a viva de seu amor. Vou explicar. Durante toda
minha inf�ncia, os natais foram tristes. Minha m�e era dona de uma
lojinha e passava a v�spera de Natal trabalhando. No dia seguinte,
exausta, fazia um almo�o comum e botava algumas frutas secas na
#
mesa. Hoje entendo que fazia o melhor poss�vel. Devia estar exausta
ap�s dias de trabalho intenso. Quando menino era dif�cil ver meus
amigos correndo para a ceia, para festas familiares, com parentes
vestidos de Papai Noel ou comemorando de alguma outra maneira,
enquanto eu ficava sozinho na porta do pequeno com�rcio de
mam�e, admirando as luzes acesas em outras casas e os ru�dos de
festa. Sentia uma enorme necessidade de ter um Natal como o dos
outros. Essa alegria, s� tive como adulto. Est�vamos sem dinheiro.
Mesmo assim, ela resolveu que n�o pod�amos passar sem uma
�rvore de Natal. Quase na v�spera, saiu � luta. Encontrou um vendedor
com alguns pinheirinhos sobrando. Pechinchou. Voltou com
um pinheiro torto, que decoramos com algumas bolas vermelhas.
Foi a primeira �rvore de Natal de minha vida adulta, e eu nunca
esquecerei seu carinho ao me oferecer a �rvore. Depois do Dia de
Reis, plantei o pinheiro em frente � casa em constru��o. Foi
crescendo, ainda torto. Nossa �rvore de Natal, que estaria sempre
naquele lugar para me lembrar daquele gesto de carinho.
Gastei o dinheiro guardado para a doen�a deixando a casa em
condi��es habit�veis. Estava exausto e precisava me mudar. A casa
era a melhor op��o: novo lugar, novos ares. Durante a doen�a,
havia atingido o limite das minhas for�as. Aprendi a dar rem�dios,
ouvir instru��es m�dicas, fazer curativos, passar horas do lado
segurando sua m�o, simplesmente para ela saber que eu estava l�.
Nunca fui um tipo atl�tico. Mas a carregava no colo para ir ao banheiro
e esperava a seu lado, enquanto fazia suas necessidades.
Arrumava sua roupa e a levava de volta. Percebia seu corpo se
tornar cada vez mais leve, consumido pelo c�ncer. Como meus
sentimentos eram contradit�rios! Dias e noites eu torcia pelo fim,
porque era horr�vel contemplar seu sofrimento, mas ao mesmo
tempo tinha esperan�as de que ela n�o partisse nunca. Quando ela
se foi, n�o consegui entender por que pedi a Deus que a levasse,
pois me sentia rasgado por dentro, alucinado de dor. Como pude
desejar o que n�o queria?

#
Eu a amava, amava tanto que nunca mais queria amar ningu�m.
Minha vida afetiva acabara. Estava fechado para o mundo e para o
amor.
Mudar para longe parecia a solu��o ideal. Queria ficar solit�rio, no
meu canto. N�o tinha for�as e muito menos vontade para
reconstruir a vida afetiva, me apaixonar novamente, ir adiante.
Sorria, triste, e pensava: "Parem o mundo que eu quero descer!".
Nem todo mundo achava bom que eu fosse para t�o longe. Minha
m�e foi visitar a casa e chorou.


-Mas voc� vai morar neste fim de mundo? Vai ser assaltado!
Assumi uma atitude corajosa.
-Assaltado posso ser em qualquer lugar.
-E o mato atr�s da casa? Os ladr�es podem se esconder atr�s das
�rvores.
-Mam�e, n�o estamos num filme de faroeste com os apaches
escondidos para atacar. A mata at� me protege. Nenhum ladr�o vai
atravessar o rio, o mato e pular a cerca, pegar a televis�o, pular de
volta e atravessar o rio de novo com a televis�o na cabe�a, vai?
Reuni meus m�veis e mudei. A casa ficou bem vazia, mas n�o
importava. Com o tempo compraria mais mob�lia, se tudo corresse
bem. A fam�lia morria de preocupa��o.
-Voc� devia sair, se divertir! -aconselhou meu pai. Me divertir de
que jeito, se minha garganta do�a como
se apertada por um torniquete de ferro?
Em conversas privadas, meus irm�os, cunhadas e pais resolveram
fazer alguma coisa. Meu irm�o Cl�udio prop�s:
-Quem sabe se ele arrumasse um cachorro?
Todos concordaram. Desde menino, eu gostava de c�es. Ele se
prontificou a resolver o problema e me telefonou:
-Voc� precisa de um cachorro!
Concordei. O terreno era grande. Queria um c�o. Pensava em um
pastor alem�o bem bravo para latir e atacar ladr�es a dentadas.
Seria mais seguro na casa.


#
-Tenho um para voc�! -trinou Cl�udio do outro lado da linha.


-� grande, pode me proteger? -perguntei.
O sil�ncio do outro lado poderia ter me alertado. Meu irm�o
disfar�ou:
-� bem forte, tem presen�a.
-Ah, bom.
-Nunca esteve na situa��o de precisar defender algu�m. Mas acho
que se algu�m for agressivo, ele defende.
Eu acho! Vivo dizendo para quem me cerca jamais dizer "eu acho".
Quem acha n�o sabe. N�o prestei aten��o no detalhe do "eu acho".
Aceitei.
-Ah, que bom, eu estava mesmo pensando...
-�timo! Ele tem dois anos e...
-N�o � grande? N�o vai me atacar?
-Ele � muito d�cil, n�o se preocupe. Voc� vai gostar dele, tenho
certeza. Seu nome � Uno!
Combinamos que o c�o, j� grande, seria entregue no fim de semana
seguinte, pois Cl�udio mora em uma cidade pr�xima. No s�bado,
fiz um almo�o para tr�s e esperei. No in�cio da tarde, meu irm�o
ligou para avisar que ia se atrasar. Em tom de voz misterioso,
explicou que seria melhor ir � noite.
-Por qu�? � s� uma hora de estrada!
-Por causa da pol�cia.
Estranhei. O que tinha a pol�cia a ver com um cachorro?
Chegaram quase de madrugada. Na �poca, Cl�udio possu�a um
utilit�rio com ca�amba. No escuro -no condom�nio n�o havia
ilumina��o de rua -, vi a silhueta da minha cunhada agachada com
um cachorro de porte m�dio na ca�amba. Com uma das m�os
agarrava a coleira. Com a outra, segurava-se para n�o voar para
fora.
-Desculpe o atraso, tive que vir a cinq�enta por hora no m�ximo. A
Bia veio na ca�amba.
-Por qu�? -perguntei ingenuamente.


#
-Ah, � que pusemos o Uno acorrentado na parte de cima, mas ele
se revoltou. A Bia teve que viajar na ca�amba, o que � proibido.
-Mas na viagem eu fiquei ajoelhada com a cabe�a entre as pernas
do cachorro e a pol�cia rodovi�ria n�o me viu! -confessou ela,
vitoriosa.
Estranhei. "Que maneira esquisita de transportar um simples c�o",
pensei inocentemente. Ela pegou o cachorro, que parecia muito
assustado. Com a ajuda de meu irm�o, desceu, sem soltar o
cachorro da corrente.
E, pela primeira vez, eu e Uno nos olhamos.
Seu p�lo era cor de mel. Tinha um olho azul e outro castanho. Quis
me aproximar para acarici�-lo, mas ele puxou a corrente e saiu
correndo com minha cunhada atr�s.
-Pare, Uno, pare!
-Eu pensava em dar um nome mais significativo, tipo Merlin expliquei.
-Pode tentar -respondeu meu irm�o enquanto desembarcava meio
pacote de ra��o, um pote para comida e �gua e uma manta rasgada.
-Mas o nome completo � Uno of Karras. � um nome aristocr�tico.
Karras � o nome do canil que eu fundei, registrei e que j� estou
fechando.
Minha cunhada entrou no jardim e conseguiu prender a corrente
num pilar da varanda.


-O husky odeia ficar preso, enlouquece com a coleira -ela explicou -,
mas � preciso para ele se acostumar aqui.
Fomos comer. Ouvi os primeiros uivos. Altos, cortantes.
-Vai acordar toda a vizinhan�a! -assustei-me.
-� imposs�vel cal�-lo quando uiva -explicou meu irm�o.
Comemos espaguete ouvindo o barulho. Na casa do vizinho, um
pouco distante, algu�m acendeu as luzes. Um vulto saiu pela janela
para descobrir o motivo do esc�ndalo. Senti um olhar enfurecido na
nossa dire��o. Abaixei um pouco para que ele n�o me visse atrav�s
do vitr� da cozinha.


#
Felizmente os uivos cessaram.
-Viu s�? Foi s� um pouquinho -sorriu meu irm�o.
-Ele deve estar estranhando a casa -concordei -Vou at� l� um
pouco, fazer presen�a para ele se acostumar comigo.
Uno mordera a coleira e fugira. Era esse o motivo do fim dos uivos.
-Ah, n�o se preocupem -sorri. -Deve estar no quintal.
-Talvez sim, talvez n�o. Ele � bem capaz de ter escalado a cerca.
Pode ter fugido para a mata -suspirou minha cunhada.


Demos uma batida r�pida no quintal.
-� melhor esperar at� de manh� -propus. -L� na reserva florestal
tem cobra.
-Temos que achar o Uno sen�o ele se enfia na mata e n�o volta
mais! -argumentou Bia.

Achei duas lanternas. Os tr�s sa�mos pelo port�ozinho do fundo.
-Uno, Uno! -gritei mata adentro.
-Ai, socorro! -gritou minha cunhada ao trope�ar em uma pedra.
Caiu sentada dentro do riacho. Eu e meu irm�o conseguimos i��-la
com dificuldade. Com o p� torcido e toda suja de barro, Bia
arrastou-se para casa.
Eu e Cl�udio andamos pela mata durante umas duas horas,
chamando pelo cachorro. Nem sinal. Eu me sentia muito mal,
sozinho. Ia perder um cachorro que mal havia chegado? O que o
destino tinha contra mim?
Com m�os e rostos arranhados por espinhos, teias de aranha presas
nas roupas, t�nis imundos de lama e folhas secas nos cabelos,
finalmente desistimos da busca:
-Ele sumiu. O jeito � voltar -concluiu Cl�udio. Fomos capengando
at� a casa. S� queria um chuveiro
quente e me atirar na cama.
Bia nos esperava sentada na varanda, cochilando, de banho tomado,
com Uno deitado a seus p�s. Era a pr�pria imagem da paz familiar.
-Onde ele estava? -rugiu meu irm�o.


#
-Quando voltei, apareceu e me seguiu. Ficamos aqui esperando.
Por que demoraram tanto?
-Ainda pergunta? Por que n�o foi avisar que ele tinha voltado?
-Torci o p�, esqueceu?
Enquanto o casal discutia, Uno os observava com ar de
desaprova��o. Como se n�o tivesse nada a ver com o assunto.


-O importante � que ele apareceu. Eu preciso � de banho e cama! disse
eu.
Os dois concordaram, exaustos.
-Mas que baile esse cachorro nos deu! -exclamei. Minha cunhada
me encarou, sorriu e disse com a mais
absoluta sinceridade:
-Bem-vindo ao mundo dos huskiesl
S� ent�o tive um lampejo do que me esperava. Por pouco n�o
amarrei minha cunhada e o cachorro de volta na ca�amba. Mas era
tarde. Eu olhei mais uma vez para o c�o, e ele me encarou com os
olhos cintilando de ternura. Que sedutor! Sentei-me no ch�o e o
abracei longamente, sentindo seus p�los macios, seu cheiro, e uma
imensa vontade de t�-lo perto de mim.



2

Uno passou dias estranho. J� tinha 2 anos e estranhou a aus�ncia de
meu irm�o e minha cunhada. �s vezes, de noite, uivava solit�rio
para a Lua. Eu ia abra��-lo, mas ele fugia. Nossos breves contatos

#
ocorriam quando eu punha ra��o na sua vasilha. Ficava me
observando de longe. Assim que eu me afastava, aproximava-se
para comer. Sempre com um olhar selvagem que aos poucos
descobri ser pura ang�stia. Lembro-me de certo fim de semana em
que um amigo foi me visitar. Sa�mos para almo�ar fora, mas esqueci
uma janela aberta. Ao voltar Uno estava dentro de casa e havia
destru�do v�rios travesseiros e espalhado a espuma pela casa toda.
Meu primeiro impulso foi castig�-lo. Depois pensei em minha
pr�pria dor. N�o acordava de noite com dor de garganta, de tanto
pensar no meu amor perdido? N�o sentia dor f�sica de tanta falta de
algu�m que n�o voltaria mais?
O mesmo devia acontecer com Uno. Tamb�m sentia falta de amor.
Perdera os abra�os de Bia, que o alimentara desde filhote. Adeus �s
brincadeiras de meu irm�o! N�o convivia mais com outros dois
c�es. Passava a maior parte do dia sozinho em casa, quando eu sa�a
para trabalhar. Na �poca, trabalhava como redator de uma revista.
Minhas finan�as n�o eram suficientes para pagar uma empregada
di�ria. Tinha uma faxineira duas vezes por semana. Eu mesmo
cuidava de Uno. Ao sair, deixava sua comida. Ao voltar, enchia
novamente seu pote de ra��o. Meu cachorro passava os dias
solit�rio, numa casa estranha, distante do carinho a que estava
acostumado. Compreendi seu sofrimento. Assim, apesar dos
travesseiros destro�ados, n�o briguei. Preferi me aproximar. Ele me
olhou estranhamente, com medo talvez. Para que n�o fugisse, eu o
abracei em um gesto r�pido. Coloquei sua cabe�a em meu colo.
Conversei:
-Agora somos s� n�s dois, Uno. Meu cachorro!
N�o iria brigar por causa de uns travesseiros. Era mais importante
que nos torn�ssemos amigos. Ele ficou algum tempo com a cabe�a
debru�ada na minha perna, sentindo meu cheiro. Em seguida
recuou. Pela primeira vez, deitou-se pertinho de mim. Desde aquele
dia, passou a ficar por perto sempre que eu estava em casa.

#
Nem tudo foi exatamente como eu pensava. Logo descobri que Uno
era uma nulidade como c�o de guarda. Pior ainda: a revela��o
ocorreu justamente quando apareceu um le�o nas imedia��es da
minha casa.
Exatamente, um le�o! � a mais absoluta verdade. Segundo soube, na
regi�o havia um criador ilegal de le�es. N�o � t�o incomum quanto
parece. Quando rep�rter, cheguei a entrevistar pessoas que criavam
animais selvagens como bichos de estima��o. Nunca vou esquecer
de um casal que tinha um le�o. Foi um filhote lindinho. Cresceu
cheio de amor pelos donos. Parecia um gatinho, ou melhor, um
gat�o. At� que, certa noite, a fam�lia (o casal e o le�o) assistia �
televis�o na sala. L� pelas 11 horas o casal decidiu dormir. O marido
levantou do sof� e foi desligar a televis�o. Imediatamente o le�o
rugiu.
Amea�ador, fitou marido e mulher. A televis�o continuou ligada,
com os dois refugiados no sof�. E o le�o assistindo.
Acabou a programa��o. Na tela s� chuvisco. O marido tentou
desligar novamente. O le�o rugiu de novo, ainda mais forte.
O casal continuou sentado. O le�o assistindo. A noite passou com os
tr�s diante do chuvisco da TV. S� foram resgatados quando ele n�o
apareceu para trabalhar e ningu�m atendeu ao telefone na casa.
Preocupados, os amigos chamaram a pol�cia. O le�o foi capturado e
entregue a um zool�gico. Tiveram sorte: foram salvos antes do
hor�rio do almo�o!
A mulher de um amigo, quando crian�a, criou uma on�a. Morava
numa casa de esquina e passava os dias brincando com a bichana no
jardim. Eram �ntimas, ela e a on�a. O veterin�rio aconselhou:
-S� n�o durma junto. A on�a pode sonhar que est� ca�ando.
A menina n�o obedecia. De noite, abria a porta e colocava a on�a em
sua cama. Nunca aconteceu nada de mau. A garota cresceu, casou e
levou a on�a junto. At� o dia em que a felina morreu porque, para
nossa grande tristeza, certos bichos vivem menos que a gente.

#
N�o fiquei surpreso ao saber da exist�ncia de um criador de le�es,
ainda mais numa regi�o campestre. Pelo que soube, vivia a alguns
quil�metros de mim. Tinha v�rios le�es, em jaulas, e gastava
fortunas em carne para aliment�-los. Era ilegal, claro. Mas morava
longe e nenhuma autoridade sabia dos le�es. At� que um deles
fugiu.
E para onde foi?
Refugiou-se na reserva florestal atr�s da minha casa. Um morador
de um condom�nio pr�ximo deu de cara com o le�o durante sua
corrida matinal em torno de um lago. Dispararam os dois. Ele aos
gritos para um lado e o le�o rugindo para o outro. Os jornais
noticiavam as andan�as do bich�o. Todos os dias eu lia uma not�cia
semelhante � do dia anterior: "Ainda n�o foi encontrado o le�o
desaparecido nas imedia��es da Granja Viana".
� noite, quando eu chegava do trabalho, na portaria do
condom�nio, o rapaz da guarita avisava:
-Cuidado com o le�o!
Como tomar cuidado com um le�o? Minha casa n�o tinha port�o
autom�tico. Para botar o carro na garagem, eu precisava descer,
abrir o cadeado, o port�o de ferro e entrar. Descer novamente,
fechar, e abrir a porta da cozinha. Para me proteger, s� havia um
alambrado bem fajuto em torno do quintal. Cumprir todas essas
tarefas cotidianas com um le�o � solta atr�s da cerca de casa foi uma
sensa��o e tanto! E por semanas inteiras! Haja adrenalina!
E quem disse que dentro de casa eu estaria seguro? Bastava uma
patada para o le�o abrir uma das portas-balc�o! Todas as noites eu
entrava em casa, trancava as portas, verificava as janelas e pensava:
-Se pelo menos eu emagrecesse, n�o seria t�o apetitoso!
No dia seguinte, procurava avidamente novas not�cias no jornal.
Mais uma vez me certificava de que o tal le�o ainda n�o havia sido
encontrado, mas que fora visto de novo pertinho de casa!

#
Na primeira noite tive a ilus�o de que Uno me salvaria. Imaginei
meu bravo husky atirando-se sobre o le�o. Quase chorei ao imagin�lo
dando a vida por mim. Chamei:
-Uno, Uno... vem c�.
Veio com o rabo entre as pernas. Mesmo assim, eu o encarei
esperan�oso.
-Se o le�o aparecer, voc� me salva?
Uivou timidamente. Ap�s anos lendo livros e vendo filmes sobre
c�es her�icos, eu imaginava que todos eles possu�ssem uma voca��o
inata para oferecer a vida pelos donos. Meu husky parecia bem
longe de ter esse talento.
Enquanto tentava encaixar a chave na porta da cozinha, ouvi um
ru�do suspeito no gramado. Podia ser o le�o! Tentei fazer com que
Uno refletisse sobre seu dever como c�o de guarda.
-Uno, seja um cachorro corajoso e fiel. Se for o le�o, me salve.
Enfiou o rabo ainda mais profundamente entre as pernas. Nervoso,
eu n�o conseguia abrir a porta. Deixei a chave cair. Tive que
procurar no escuro. Achei. Tentei abrir de novo. Uma coruja voou
sobre o telhado e quase morri do cora��o ao ouvir o pio. Finalmente
consegui. Entrei na cozinha. No umbral, Uno me encarava com a luz
da l�mpada cintilando nas pupilas.
-Uno, seja um bom cachorro e verifique se o le�o est� a�.
Mais ru�dos no quintal. Podia ser um rato ou um le�o; eu estava
apavorado. Precisava fechar a casa. Uno continuava im�vel. Refleti:
"Se for um le�o, vai palitar os dentes com meu cachorro".
Escancarei a porta.
-Venha, in�til!
Ergueu o rabo e entrou na cozinha. Bati a porta e passei a chave.
Respirei fundo. Uno me encarou com jeito de "estou faminto". A
vasilha de ra��o havia ficado fora. Peguei um prato fundo, botei
arroz, feij�o e carne. Devorou tudo alegremente. Olhei pelo vitr�.
Um vulto corria pelo mato, mas n�o parecia um le�o. Era bem


#
menor. Uno eri�ou os p�los, olhou ferozmente para a porta e
rosnou.
-Ah, safado, agora que voc� est� aqui dentro d� uma de valente?
Fiz um sandu�che e comi. Ele ainda tentou filar um bocado. Para
ficar em paz, ofereci-lhe um peda�o de p�o -meu cachorro adorava
p�o. Reclamei:
-Voc� n�o vale a ra��o que come! Continuou mastigando, sem me
dar import�ncia.
Fui para o quarto. Ele me acompanhou. Fiquei lendo na cama, com
Uno deitado no ch�o. "Estou bem-arrumado se depender desse c�o
de guarda", pensei .
A ca�ada ao le�o durou mais alguns dias. Nunca soube exatamente
como terminou, pois a not�cia sumiu dos jornais. Alguns seguran�as
do condom�nio garantiram que foi capturado. Outros, que se
embrenhou na mata. N�o devorou ningu�m, pelo que soube. N�s,
os moradores, fomos nos acalmando. Descobri tamb�m que a mata
produzia seus pr�prios sons: p�ssaros noturnos, coaxar de r�s, o
vento nos ramos das �rvores. Se pulasse da cama com o cora��o na
boca a cada ru�do, n�o dormiria mais. Acostumei-me a sentar na
varanda todas as noites e a passar algum tempo admirando a Lua e
as estrelas. Em S�o Paulo, eu n�o tinha essa rela��o profunda com o
c�u. Mal levantava a cabe�a para olhar as estrelas. Descobri que �
uma coisa m�gica. Passei a contemplar a noite horas inteiras, a
perder a no��o do tempo. Reencontrei um h�bito de minha inf�ncia,
quando morava no interior e conversava com as estrelas. �s vezes
conversava com elas como se fossem minhas amigas. Ou deixava o
dia passar pela minha cabe�a, os pensamentos flutuarem, sem me
fixar em nenhum, at� sentir uma grande paz. Era minha medita��o.
Quando tive certeza de que nenhum le�o saltaria na varanda para
me devorar, sentei numa poltrona de palha e voltei a conversar com
as estrelas. Embora tivesse optado por isso, eu me sentia muito
solit�rio. Morava longe dos meus amigos, em uma casa isolada, com
a mata ao fundo. Ao mudar, pensava que minhas cicatrizes se

#
fechariam, que a dor deixaria de vir em ondas. Como em um passe
de m�gica. N�o foi o que aconteceu. Descobri que um amigo mais
velho tinha raz�o. Quando falei em mudar, ele me avisou:
-N�o importa para onde for, vai carregar voc� mesmo.
A frase parece �bvia. No entanto possui uma grande sabedoria.
Pensei em mudar de ambiente, de local, em ficar longe do agito, das
pessoas que haviam me acompanhado durante aqueles meses t�o
dif�ceis, porque ao v�-las eu revivia meu sofrimento. Mas levei a dor
dentro de mim. Meu sentimento n�o era como um pacote que se
pode esquecer em algum lugar para continuar o caminho mais leve.
A ferida ainda estava aberta. Sangrava.
Diante das estrelas, lembrei de cada etapa da doen�a. A descoberta
do c�ncer j� instalado. A primeira consulta com um m�dico amigo,
que pediu os primeiros exames e certamente desconfiou do pior,
pois nos aconselhou um especialista. A ida a um m�dico
importante, cujos honor�rios eu paguei com dificuldade. Tive sorte.
Foi um m�dico generoso que chegou a arrumar amostras gr�tis para
nos ajudar com os rem�dios mais caros.
O aluguel levava parte de meus ganhos. Abandonei a constru��o da
casa. Mesmo que estivesse pronta, n�o teria mudado para t�o longe.
Era preciso viver em um local de f�cil acesso, onde o aux�lio
pudesse ser r�pido, mesmo porque em algumas fases o tratamento
provocava enj�o e dores.
A situa��o era grave. S� eu podia trabalhar, e ganhava menos do
que precis�vamos. Pegava trabalhos extras para fazer em casa:
pequenas tradu��es e artigos, sempre apavorado com a
possibilidade de faltar dinheiro para algum tratamento essencial.
Amigos maravilhosos ajudaram, conseguindo transfus�es em
hospitais p�blicos e rem�dios doados por familiares de pessoas
falecidas da mesma doen�a. Na frente dela eu sorria, contava como
tinha sido meu dia, fazia fofoca. Sozinho, todos os dias eu rezava:
"Deus, por favor, n�o a deixe sofrer".

#
Falei com o especialista. Expus minha situa��o: n�o havia dinheiro
para uma longa interna��o em um hospital particular, como eu
desejava. As filas para os hospitais p�blicos eram intermin�veis.
Mas e se fosse preciso? Falei tamb�m sobre meus sentimentos:
-Mesmo que fosse f�cil coloc�-la em um hospital gratuito, n�o
quero abandon�-la em uma enfermaria durante semanas, talvez
meses. Quero permanecer junto dela.
-Eu vou ser franco, s� ser�o poss�veis tratamentos paliativos respondeu
o m�dico. -J� vi casos assim. S� aconselho interna��o se
a dor for insuport�vel e for preciso sed�-la no hospital.
-Eu quero que ela fique em casa, perto das coisas de que gosta,
ouvindo minha voz, recebendo amigos.
Talvez minha atitude pare�a estranha, porque a maioria das pessoas
quer internar seus doentes, como se a estada no hospital fosse a
garantia de um tratamento mais eficiente e desse uma esperan�a
extra. Mas eu lera os livros de uma psiquiatra norte-americana,
Elizabeth Kubler Ross, conhecida por seu trabalho com pacientes
terminais. Depois de conviver com in�meros doentes, a doutora Elizabeth
escreveu livros para preparar o paciente para a passagem.
Neles, ensina a fam�lia e os amigos a tornar esse momento o mais
lindo poss�vel, dizendo que a morte � a �ltima grande experi�ncia
de vida. Segundo ela, o doente deve ficar em casa, talvez at� com a
cama no meio da sala, cercado de afeto, flores, ouvindo as vozes das
pessoas, sentindo o cheiro da comida, vendo quem entra e quem sai.
O especialista concordou.

-O melhor ser� ela ficar com voc� enquanto for poss�vel.
Para isso, seria preciso gastar mais. Meu dinheiro n�o dava sequer
para pagar uma enfermeira, mas t�nhamos uma empregada
dedicada, que se tornou uma irm�. Cuidava de tudo durante o dia,
e eu � noite. O computador ficava no quarto ao lado, transformado
em escrit�rio, onde eu trabalhava. Ficava atento ao som da voz de
minha companheira, e me levantava v�rias vezes para falar com ela,
servir �gua, dar os rem�dios, pegar na m�o. Dormia em um sof� ao

#
lado da cama, atento ao menor ru�do, a qualquer suspiro, e talvez
por isso at� hoje tenho um sono estranho, porque durmo
profundamente mesmo em um terremoto, mas desperto ao menor
murm�rio.
Contei tudo isso para as estrelas, repisando fatos e sentimentos.
Chorei. Seu rosto p�lido, magro, a cabe�a com raros tufos de
cabelos, tudo isso ia e vinha em minha mente. A dor explodiu.
Solucei e mais uma vez minha garganta parecia estar sendo
espremida por um colar de ferro que se apertava cada vez mais.
Olhei para as estrelas. Perguntei:
-Por que tudo isso aconteceu comigo, justamente comigo? � t�o
dif�cil amar, amar t�o profundamente! � horr�vel estar aqui, sem
ningu�m!
Meu cachorro saltou para a poltrona a meu lado. Ergueu-se. Apoiou
as duas patas dianteiras em meu ombro e lambeu minha orelha
direita. Continuei chorando, por�m meu cora��o bateu comovido.
Ele mordeu delicadamente o l�bulo da minha orelha. At� me
assustei. Tinha dentes grandes, e eu j� comprovara a for�a de suas
mand�bulas ao v�-lo quebrar um osso a dentadas. Surpreendi-me ao
descobrir que mordia delicadamente, com carinho. Ficou algum
tempo lambendo e dando pequenas mordidas na minha orelha.
Minha tristeza foi substitu�da por um sentimento de al�vio. Abracei-

o. Afundei a cabe�a nos seus p�los.
-Meu amigo! -murmurei.
Descobri que n�o estava mais sozinho.
#
3

H� um grande engano na rela��o entre n�s, humanos, e os c�es.
Gostamos de acreditar que somos donos do animal, e que ele nos
obedece de rabo abanando por reconhecer nossa superioridade.
Tudo n�o passa de um estratagema do cachorro para obter uma
vida confort�vel. A ra�a superior � a canina. Provo. O homem
trabalha para o c�o. Enquanto eu me enervava no tr�nsito indo para

o meu emprego na revista, Uno descansava na grama. Se eu passava
o dia em longas reuni�es, ou terminando algum texto em cima do
prazo, trabalhando como um louco, meu cachorro corria atr�s dos
passarinhos. Ao voltar para casa, acabado, no in�cio da noite, n�o
tinha sequer tempo para um banho. Uno uivava, e eu era obrigado a
servir a ra��o. Ainda sentia prazer em v�-lo comer! Quem mandava,
afinal, em nossa rela��o? O cachorro, � claro!
No m�ximo, para fingir que tinha alguma serventia, rosnava para
algu�m que passava na rua, num arremedo de c�o de guarda
profissional. De vez em quando me presenteava com algum rato do
mato morto. Huskies s�o bons de ca�a, e se algum rato aparecia no
jardim, n�o se salvava. Generoso, Uno colocava o rato na minha
porta, como recompensa pelo meu bom comportamento.
-Outro rato, Uno! J� disse pra parar de trazer ratos!
Dava fim ao cad�ver, morrendo de nojo. O husky encarava-me
pacientemente, talvez refletindo sobre a ingratid�o humana, pois eu
nem sabia agradecer um presente.
#
Existem, de fato, bravos cachorros que guardam shoppings e
empresas, ou auxiliam a pol�cia em aeroportos. S� algumas ra�as se
resignam a trabalhar. A maioria dos c�es contenta-se em ser
alimentada, aquecida, escovada e acariciada. Seu maior trunfo � o
olhar. Quem resiste � express�o cheia de amor de um cachorro?
Muitas vezes, a rela��o de posse � total, e ai do humano
desobediente! Uma amiga, moradora do mesmo condom�nio que
eu, acreditava ingenuamente ser dona de uma f�mea de pastor
alem�o. Todos os dias ambas repetiam a mesma rotina. A humana
chegava de tarde. A cachorra a esperava no port�o e delicadamente
pegava suas m�os com os dentes. Depois a conduzia atrav�s do
jardim at� a porta de entrada, quando de rabo abanando a canina
soltava a humana. Certo dia, a mo�a voltou cheia de sacolas de
compras. Quando a cachorra foi pegar sua m�o, esquivou-se.
-Hoje n�o.
A cadela rosnou, atacou. Aos gritos, a humana foi socorrida pelo
marido.
O casal amava a agressora. N�o conseguiam entender o motivo de
tanta f�ria ap�s anos de conviv�ncia. N�o tinham coragem de
descart�-la. Mas... e se tivesse se tornado perigosa? Acabaram, os
tr�s, em um psic�logo de animais, que foi taxativo:
-� muito simples. A cachorra acha que � sua dona. Todos os dias a
pega no port�o do jardim e a leva com a boca at� a porta. Ela se
revoltou porque voc� n�o obedeceu!
Ficaram os tr�s se olhando sem palavras e sem latidos, marido,
mulher e cadela.
Foi preciso um longo treinamento at� demonstrarem � canina que
n�o ela era realmente a dona dos humanos. A peluda sofreu um
ataque de depress�o com a perda de autoridade. O casal se
preocupou. Finalmente a humana aceitou ser conduzida, todos os
dias. Submeteu-se, enfim, � autoridade indiscut�vel da verdadeira
l�der familiar: a cachorra!

#
H� na televis�o por assinatura, em um canal internacional, um
reality show com uma treinadora de c�es. Sua especialidade � mudar

o comportamento do cachorro, que freq�entemente dita as regras
da vida dom�stica. Meu amigo Vicente assistiu, faz algum tempo, �
hist�ria de um pequin�s que dominava a casa. Dormia na cama do
casal com a mulher. Quando o marido ia deitar, atacava-o aos
latidos e mordidas. O homem refugiou-se no quarto das crian�as.
As visitas tamb�m n�o eram bem-vindas. Amigos eram expulsos
pelo feroz pequin�s. Propriet�rio total do territ�rio, o peludinho
obrigava a dona a passar o dia todo acariciando-o no quarto,
enquanto o marido e as crian�as viviam pisando em ovos para n�o
irritar o c�ozinho. A treinadora diagnosticou:
-Ele � o dono de voc�s.
Sem pancadas, sem viol�ncia, tratou de mudar o comportamento da
pequena fera. Quando ele se comportava mal, virava as costas e
dizia:
-Muito feio.
E n�o lhe dava import�ncia. �vido por conquistar seu afeto, o
pequin�s passou a fazer suas vontades. A treinadora adestrou
tamb�m os moradores humanos. Ensinou-os a resistir ao
autoritarismo canino. A n�o oferecer tanto amor em troca de maus-
tratos. Em dez dias, o pequin�s mudou completamente. Passou a
dormir em um cestinho. O marido voltou � cama e � vida conjugal.
As crian�as perderam o medo. Os amigos voltaram a visit�-los. A
fam�lia recuperou a harmonia.
S� contei essas hist�rias para explicar como Uno tomou posse da
casa. Era um cachorro gentil, e ainda me lembro de seu olhar com
emo��o. Mas meus hor�rios passaram a ser rigidamente controlados
por meu cachorro.
De manh�, eu acordava um pouco mais cedo para supri-lo de �gua
e ra��o. Se dava tempo, escovava seu p�lo. As despedidas eram
longas.
-Tenha um bom dia, Uno. Qualquer coisa, me telefone.

#
Eu o abra�ava v�rias vezes. Quando sa�a, me acompanhava com o
olhar atrav�s do port�o.
Mesmo morando longe, eu voltava para casa no hor�rio. Se havia
alguma festa, sa�a de novo. Era preciso cuidar da refei��o noturna
de meu cachorro e, sobretudo, saber se estava bem. Ficava sem jeito
por qualquer atraso.

-Uno, querido, tive um imprevisto. � culpa da minha chefe.
Corria a botar a ra��o, que ele comia com express�o de m�goa.
Na maior parte das noites, via televis�o. Ele se deitava ao meu lado
no sof�. Passava a m�o na sua cabe�a, brincava com seu focinho.
Puxava seu rabo. Ele rosnava e fingia me morder. Mas sempre de
brincadeira. Fic�vamos brincando durante muito tempo.
S� se abatia em dia de trovoadas. Tinha horror. Botava o rabo entre
as pernas e se escondia em um canto. Eu ia at� l� abra��-lo,
confortava.
-Eu estou aqui, Uno. Aqui. Eu tomo conta de voc�.
Ele botava a cabe�a no meu colo e eu o acariciava.
H� algo incr�vel a respeito da perda. Seja por falecimento, seja o fim
de um amor. Achava que o sofrimento n�o ia passar nunca. �s
vezes as l�grimas vinham aos meus olhos. Abra�ava meu cachorro,
sentia que ele era meu alicerce, meu �nico ponto de apoio nesse
mundo. Mas a dor se aplaca. Durante muito tempo lutei comigo
mesmo como se deixar de sofrer fosse uma trai��o. Aos poucos,
deixei de ficar com a voz embargada cada vez que falava seu nome.
Ou de sentir o peito esmagado quando lembrava do calor de sua
m�o. E de minhas palavras em seu leito de morte.
-Eu te amarei para sempre -prometi pouco antes da passagem.
Eu estava fechado para qualquer rela��o. A presen�a de Uno me
acalmava, e descobri que ainda podia sentir ternura. Contudo os
sentimentos n�o morrem, e a lembranca continuava viva dentro de
mim, uma cicatriz aberta e dolorosa. Quando pensava em minha
vida, via uma sucess�o de perdas. Amigos do peito afastaram-se
porque a vida nos conduziu a caminhos diferentes. Na inf�ncia tive

#
uma grande amiga, e toda a fam�lia acreditava que um dia nos
casar�amos. Mudei de cidade e nunca mais a vi. Mais tarde vivi meu
primeiro amor, e ainda me lembro dela com emo��o. Uma vez ou
outra, durante a vida, tive not�cias a seu respeito, e sempre penso no
que poderia ter sido minha vida se tiv�ssemos nos casado. Os bons
amores ficam guardados. Sabe como �? Imagino um sal�o com uma
estante de cristal repleta de vasos, um mais lindo que o outro, uns
pequenos, outros enormes, cada qual uma j�ia �nica. �s vezes me
detenho diante de um deles, aprecio, observo, e digo para mim
mesmo: "Que lindo! � t�o bom de olhar!"
Cada sentimento que vivi, cada relacionamento rompido ou
terminado � como se fosse um vaso guardado na estante. No meu
cora��o, acendo uma luz sobre o vaso e contemplo sua beleza.
Penso:
-Como foi bom! Onde estar� agora? Como ter� sido sua vida?
E desejo do mais fundo de mim mesmo que os anos tenham sido
legais para aquela pessoa, com experi�ncias positivas, ben�ficas.
Cada vaso merece seu destaque, e tem seu lugar no meu cora��o.
Quando uma amizade termina, um amor chega ao fim ou um amor
se vai, deixa tristeza e m�goa. Mas, com o tempo, fica a impress�o
da pessoa legal que passou por minha vida, a beleza da rela��o. Um
vaso, uma j�ia �nica, um amor.


Fico horrorizado quando encontro pessoas que, ap�s um casamento
ou uma grande paix�o, entram em batalha. Torturam-se. Atingem
extremos de mesquinharia. Maridos que se recusam a dar pens�o
aos filhos. Mulheres que exigem mais do que o ex pode oferecer.
Pessoas que d�o um espet�culo de ego�smo. Eu me pergunto:
-O que foi feito daquele amor? Como duas pessoas que foram t�o
apaixonadas, t�o �ntimas, s�o capazes agora de fazer tanto mal uma
� outra?
Na estante do meu cora��o, o vaso ficaria rachado, ou em cacos.
Por que eu falei tudo isso?


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N�o me sentia pronto para me apaixonar. Mas tamb�m n�o
suportava continuar sozinho. Vivendo t�o solit�rio, o mais dif�cil
era ouvir os vizinhos. Os sons de um jantar, o ru�do de uma risada,
uma voz de crian�a. Se estava pr�ximo de alguma casa, o tinir dos
talheres. Pode haver algo mais dom�stico do que o tinir de garfos e
facas? Fam�lia. Tinha amigos, sem d�vida. Mas cada um levava sua
vida, com seus relacionamentos, seus amores. Muitos estariam
dispostos a vir se eu pedisse socorro. Entretanto n�o se pede socorro
todos os dias. A solid�o � como uma doen�a cr�nica. Atormenta.
D�i. S� n�o vem a crise aguda, aquela que faz gritar por ajuda. Era
terr�vel a sensa��o de ir a um restaurante, sentar sozinho em uma
mesa. Olhava em torno, via casais e grupos de amigos rindo,
conversando. Eu me sentia exclu�do. Lia uma reportagem sobre um
novo local, vinha a vontade de conhecer o card�pio. Depois me
imaginava entrando, sozinho, sendo recebido pelo maitre sem jeito,
olhar de d�vida:

-Quantos s�o?
-Um s�.
Ele me levava, invariavelmente, a uma mesa de fundo. Em muitas
ocasi�es, era obrigado a chamar o gar�om v�rias vezes, pois passava
por mim como se eu fosse invis�vel. Preferia atender duplas que
chegavam depois de mim. No cinema, sentava-me sozinho em uma
sala cheia e ouvia as pessoas rirem, comerem pipoca, enquanto eu,
isolado, esperava o in�cio. No final, os outros iam para uma pizza,
uma cerveja, sei l�. Eu caminhava at� o carro, dirigia at� minha casa.
No m�ximo, parava no caminho para um hamb�rguer r�pido, em
um fast-food, onde estar sozinho n�o era visto como um estigma.
O sinal de alerta foi dado no meu anivers�rio, quando descobri que
estava a um passo de nem sei o qu�. Acordei, recebi os parab�ns por
telefone de meus irm�os e minha m�e, que vivia em outra cidade.
Minha fam�lia nunca foi particularmente unida, e nunca tivemos o
h�bito de realizar muitas comemora��es. Al�m disso, cada um de
n�s vivia em uma cidade diferente. No trabalho, onde eu estava

#
havia poucos meses, ainda n�o havia formado la�os. Ou talvez n�o
fosse um sujeito t�o simp�tico como gostaria, porque s� fiz
amizades ef�meras. Mesmo no anivers�rio recebi somente
cumprimentos corteses, de praxe. Para evitar festas constantes que
perturbavam o desempenho profissional, a empresa decidira que as
comemora��es deveriam se limitar a uma por m�s, para
homenagear todos os aniversariantes de uma vez s�.
Assim, naquele anivers�rio, terminei o expediente, �ias n�o queria
voltar para casa. Resolvi me dar um presente, j� que n�o ganhara
nenhum. Fui a um shopping. Comprei um livro que queria fazia
tempo e uma camisa p�lo. Devorei um bife grelhado com fritas, at�
um pouco gorduroso. E resolvi comemorar com um doce -uma extravag�ncia,
pois queria perder a barriga. Tenho predile��o por
pudim, porque minha av� paterna, grande cozinheira, fazia um
delicioso, receita antiga, tradicional. Era muito afetiva, minha av�.
Mesmo n�o sendo a mesma receita, todo pudim tem apar�ncia
semelhante aos dela, e me sinto imediatamente atra�do. Tamb�m
sou doido por bombas de creme. Parado diante da vitrine, hesitei.
Qual comeria? Em seguida, resolvi: "Hoje � meu anivers�rio. Vou
querer os dois".
Fui at� a caixa e pedi a ficha. Uma senhora simp�tica imprimiu o
t�quete, sorrindo:
-J� vi que gosta de doces.
-Est�o com um jeito delicioso, e perdi a vergonha de ser guloso.
-A gente tem que aproveitar! -ela concluiu, com mais um sorriso.
E me entregou o troco.
J� com o t�quete na m�o, dei alguns passos em dire��o � vitrine.
Virei-me. Voltei e senti uma enorme vontade de contar:
-Sabe, hoje � meu anivers�rio.
A mulher me olhou surpresa. Ficou constrangida. Abaixou o rosto e
comentou:
-Ah, �?

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Rapidamente, voltou a contar o dinheiro do caixa. Afastei-me, sem
jeito. Peguei os doces e fui com�-los sozinho em um banco da pra�a
de alimenta��o, mas sem sentir seu sabor. Havia um vazio no meu
est�mago que alimento nenhum poderia suprir. Eu me sentia
envergonhado. Quase implorara por uma palavra de conforto. Por
um sorriso e um parab�ns. N�o esperava mais nada, a n�o ser um
contato gentil. Minha necessidade humana foi demais para a
mulher acostumada a palavras r�pidas, eventuais, sem exig�ncia de
emo��o. Ela se assustara.
Voltei para casa. Meu cachorro estava no port�o, � espera. N�o
tinha nenhuma id�ia do significado de um anivers�rio, no entanto
podia sentir minha necessidade de afeto -os c�es s�o mestres em
desvendar a emo��o do dono. Sentei-me na sala, e ele veio at� mim,
encostou a cabe�a em meu colo mais intensamente do que fazia
todos os dias. Eu o ergui, abracei e disse, como diria a partir de
ent�o, muitas vezes:
-Ah, meu cachorro. Somos s� n�s dois!
Nos dias seguintes, cheguei � conclus�o de que n�o podia continuar
vivendo com t�o pouco contato humano. Thomas Morton foi um
monge trapista -ordem religiosa na qual os membros n�o podem
falar entre si, pois fazem o voto do sil�ncio -que escreveu v�rios
livros sobre sua experi�ncia. O mais famoso tem o sugestivo t�tulo
de Nenhum homem � uma ilha. De fato eu n�o era uma ilha, e talvez
n�o suportasse os abismos de tristeza a que a solid�o poderia me
levar. Qual seria o pr�ximo passo, depois de implorar por uma
palavra amiga da mulher da doceria? Abra�ar o seguran�a do
condom�nio e chorar no seu ombro? Fazer confid�ncias para o
carteiro?

Resolvi me esfor�ar na outra dire��o. Conhecer gente. Roberta, uma
antiga companheira de trabalho, morava com o marido e os filhos
em um condom�nio pr�ximo. Telefonei no fim de semana seguinte
para dizer que morava por perto e gostaria de visit�-la. Ela me
convidou para um churrasco. Passei uma tarde rindo, falando dos

#
antigos tempos de trabalho, da vida profissional -ela estava em
uma fase de reavalia��o, ap�s deixar um emprego de muitos anos.
Tamb�m gosto de cozinhar, e de repente v�rias pessoas se
convidaram para comer em casa no s�bado seguinte.
-N�o vou dar conta sozinho -respondi.
-Eu ajudo -ofereceu-se uma voz feminina.
Era Tati, uma amiga da minha amiga. J� ouvira falar dela, mas s�
fui apresentado naquela tarde. Sabia que fora casada e tivera um
filho no final da adolesc�ncia. Para minha surpresa, morava no meu
condom�nio. Tinha 30 e tantos anos, estava um pouco fora de peso,
com o rosto redondo e simp�tico, e parecia cheia de energia.
-A Tati cozinha muito bem -disse Roberta.
Em alguns minutos, combinamos tudo. Tati me ajudaria com a
comida. No s�bado, chegaria antes dos outros. Trocamos endere�o e
telefone.
-Vou levar uma sobremesa -completou ela.
Quase suspirei de al�vio. O s�bado seguinte estava garantido.
N�o era s� isso. Bem, um homem reconhece sinais. A mulher
tamb�m. Ningu�m precisa ser expl�cito, porque nos pequenos
detalhes tudo � sinalizado. No almo�o, Tati foi acompanhada
apenas pelo filho, Guel. Portanto estava sem ningu�m. O r�pido
oferecimento de ajuda parecia tamb�m um sinal de "podemos nos
conhecer". Era uma situa��o comum. Homem sozinho,
aproximando-se da maturidade, conhece mulher na mesma
situa��o, e se aproximam.
Tati n�o era bonita, mas muito simp�tica. Gestos �geis, sua voz �s
vezes se tornava aguda. Ao conhec�-la, fiz um esfor�o enorme para
n�o comparar seu jeito com as maneiras delicadas, o tom de voz
suave, os olhos profundos de quem eu perdi. Precisava tocar a vida
para a frente. Nem todo relacionamento tem que desembocar em
casamento. Pode ser um companheirismo, um envolvimento. � bom
ter algu�m para sair, para estar junto, para curtir os bons momentos.
Tati dera o sinal verde.

#
Fiz a barba para esper�-la no s�bado seguinte. Botei bermuda e
camisa p�lo, mas me preocupei em combinar as cores e assumir
uma apar�ncia mais apresent�vel. Curioso, Uno observou meus
preparativos:
-Vou receber uma amiga, Uno, e acho que vai ser muito bom.
Sua express�o era de d�vida. Expliquei.
-Voc� � um bom companheiro, Uno, mas preciso de algum
relacionamento humano. Aposto que voc� tamb�m vai gostar dela.
Ele ergueu o rabo e retirou-se com dignidade para o jardim. Deitou-
se embaixo de uma �rvore, decidido a n�o participar de coisa
alguma.
Tati chegou pouco depois. Da porta senti seu perfume. Trazia uma
torta de ma��.
-Fiz pra gente.


-Entra, entra.
De longe, ela e meu cachorro se observaram algum tempo.
-Tati, este � o Uno. Uno, esta � a Tati.
-Adoro c�es. Tenho cinco! -ela ciciou cheia de ternura.
-Viu s�, Uno, ela gosta de cachorro!
-Vem c�, vem, vem! Pst, pst, pst!
Tati foi at� ele. Agachou-se bem perto, sorrindo.
-Ah, que coisa mais linda.
Uno ergueu-se e virou de costas. Ergueu o rabo e colocou o traseiro
no nariz de Tati. Em seguida, afastou-se. O sorriso dela desabou.
-Ih, ele � arisco. Amenizei:
-S� no come�o. Depois pega amizade. � um cachorro muito afetivo.
Tati observou duvidosa o focinho de Uno, que aparecia no meio da
folhagem onde se escondera. Ela decidiu n�o radicalizar, j�
percebendo a import�ncia de Uno na minha vida:
-Adoro c�es! -frisou mais uma vez.
-Vamos fazer a salada? -perguntei.
Enquanto fomos para a cozinha, tive a inesperada sensa��o de que
meus namoros dependiam da aprova��o de meu cachorro!


#
4

Durante todo o almo�o, Uno permaneceu arredio, enquanto eu e
meus convidados r�amos na varanda. Tati ainda tentou aproximar-
se de novo, mas ele afastou-se orgulhosamente de rabo em p�.
-Sabia que os huskies foram uma das �ltimas ra�as domesticadas?
Ainda s�o muito pr�ximos dos lobos. -comentou Alu�sio, marido
de Roberta.
-O Uno tem um jeito selvagem. Uiva e n�o late. -concordei.
Falamos sobre c�es, j� que todos t�nhamos algum. Roberta havia
ganho um filhote de s�o-bernardo. Estava apaixonada por ele, mas

o marido n�o.
-Quando crescer n�o vai caber no quintal -resmungava.
-A gente d� um jeito.
-Voc� n�o estava falando em mudar pra um apartamento?
Minha macarronada foi aplaudida. A sobremesa de Tati, mais
ainda.
-Minha irm� sempre cozinhou muito bem! -afirmou Roberta.
Mais tarde, Tati deu mais uma dica:
-Agora voc� precisa retribuir a visita -murmurou docemente.
Respondi � altura:
-Basta voc� me convidar para jantar.
-Quarta-feira?
Na noite marcada, ap�s comer a ra��o, Uno preparou-se para
assistir � televis�o.
-Hoje tenho um compromisso! -expliquei.


#
Ele me encarou como se eu tivesse dito algo inacredit�vel. Suspirei.
Sentei-me na varanda e botei sua cabe�a nos joelhos. Cocei-lhe as
orelhas.
-Uno, voc� precisa entender que humanos e cachorros s�o muito
diferentes. Para voc� que � c�o, tudo � mais simples. Se quer
carinho, voc� deita de patas para cima. D� leves ganidos pedindo
aten��o e algu�m vem co�ar sua barriga. Eu gostaria de ser assim.
De ter coragem de me aproximar de qualquer pessoa, at� numa
festa, e me oferecer de patas para cima. Mas n�o posso. N�s somos
complicados. � preciso conhecer algu�m, fazer charme, perguntar o
signo, de qual filme gostou, que prato prefere... E a� quem sabe ela
me deixe ficar de patas para o ar. Voc� tem que compreender, Uno...
Eu sinto... sinto uma enorme necessidade de carinho, para n�o falar
de outras coisas.
Ele me ouviu atentamente, por�m continuou com o mesmo olhar de
d�vida. N�o tiro sua raz�o. �s vezes eu tamb�m tenho dificuldade
de entender o comportamento humano, principalmente no que se
refere � vida amorosa.
Botei uma camisa branca, um jeans novo. Traje muito estudado, mas
cuidadosamente casual, planejado cent�metro por cent�metro para
causar boa impress�o. Ao passar perfume, observei meu rosto no
espelho, sem express�o, sem alegria. Como se eu fosse ao m�dico e
n�o a um encontro amoroso. "A vida tem que continuar", decidi.
Com os t�nis na m�o, caminhei at� a sala. Sentei. Meu maior desejo
era telefonar dando uma desculpa, ficar em casa. Mas n�o podia.
"Tenho que lutar contra mim mesmo! Reunir for�as!"
Ouvi os passos leves de Uno, que entrara na casa. Agarrei-o pelas
orelhas.
-S� vou jantar, ter uma noite agrad�vel. Posso? No seu olhar se
acentuava a reprova��o.
-Bem, goste ou n�o, Uno, eu vou. Voc� j� teve sua ra��o, eu ainda
n�o comi a minha. � s� isso que vou fazer, receber minha ra��o. E
talvez abanar o rabo. Alguma coisa contra?

#
Suspirei:
-� uma estrat�gia para sair do po�o, meu cachorro. Conhecer
algu�m, sair, cortar bolo no anivers�rio, botar bola em �rvore de
Natal e abrir presente no Dia dos Namorados. O.k., voc� tem sido
um grande amigo, e t�-lo aqui tem sido muito bom. Mas eu preciso
de companhia humana. Ter algu�m para dividir uma pizza.
� fato. Cachorro entende tudo o que a gente fala. N�o simplesmente
as palavras, mas os sentimentos e as emo��es. Sua express�o me
dizia: "Uauuuuhhhaaa... voc� � mesmo um humano complicado. Ela
� como um osso que voc� quer morder".
-O.k., Uno, pense voc� o que quiser. Eu vou. Voc� n�o � meu
pai, n�o � minha m�e, n�o � meu irm�o. � um cachorro e pouco
sabe dos humanos.
"V�, v�! Mas depois n�o venha ganindo procurar consolo."
Ergui-me. Abri a porta. Uno saiu para o jardim atra�do pelo grito de
uma coruja. Peguei uma garrafa de vinho e caminhei at� a casa de
Tati. Todas as vantagens desse novo relacionamento gritavam
dentro de mim.
-Ela mora perto, o que j� facilita as coisas. � separada,
independente. N�o vou ter que assumir compromisso, pelo menos
de cara. E cozinha bem.
Eu sou um sujeito facilmente seduzido pelo est�mago.
Era uma casa pequena e confort�vel, com um jardim cheio de flores.
Procurei a campainha. Imediatamente, iniciou-se uma sinfonia de
latidos estridentes. Acompanhada por gritos de Tati.
-Parem! Parem!
Os latidos s� aumentaram. Senti uma onda de perfume. Era Tati,
que veio abrir o port�o, seguida por cinco bolas de p�lo que
saltitavam em torno, ainda latindo.
-Entre, entre! Eles n�o mordem.
Um c�ozinho atirou-se na barra da minha cal�a. Seus dentinhos n�o
rasgaram o jeans, mas todos ficaram ainda mais nervosos..


#
-Desculpe, este aqui tem mania de morder as visitas, mas � exce��o.


Pare, Xico, pare!
Agarrou o selvagem no colo. Os outros corriam em torno de mim,
latindo sem parar.
-Entre, entre, eles latem assim s� no come�o. Depois se acostumam.
Na sala, duas velas quadradas estavam acesas sobre a mesa de
jantar. Sof�s estampados com flores, cortinas idem, almofadas...
-E o Guel, seu filho? -perguntei cautelosamente.
-Foi estudar na casa de um amigo.
Outro bom sinal de que o terreno estava livre. Da cozinha emanava
um cheiro delicioso.
-Vou servir lasanha, gosta?
-Adoro... Ah, o vinho! Entreguei a
garrafa.
-Bote em cima da mesa, vou prender o Xico. Fiquei sozinho na sala,
cercado pelos outros quatro que
agora me observavam silenciosamente. Dei um passo cauteloso em
dire��o � mesa. No mesmo instante, hist�ricos, os peludinhos
saltaram latindo em torno.
-Sil�ncio! -ordenei.
Latiram ainda mais. Dei dois passos e botei a garrafa na superf�cie
de madeira. Os quatro enlouqueceram. Se eu fugisse levando as
cadeiras n�o latiriam tanto. Tati voltou, aos gritos.
-Parem! Quietos! Parem!
Voltei para o sof�. Os c�ezinhos latiram mais um pouco, depois se
acalmaram.
-Como se chamam?


-O que est� preso � o Xico, voc� j� sabe. Estes s�o o Xax�, o Man�, a
Ol�via e a Estrela, porque tem essa man-chinha branca no alto da
testa.
-F�meas?
-Castradas. Os machos tamb�m.


#
Explicou a hist�ria. Tinha uma �nica cachorrinha, a Ol�via. Quando
ela cruzou, nasceram cinco.
-Ia vend�-los, pretendia ficar com s� mais um. Tinha acabado de
construir a casa e planejei botar arm�rios na cozinha. Quando vi as
coisinhas lindas, peludinhas, n�o tive coragem de me desfazer.
Fiquei com todos, menos uma cachorrinha que dei para minha
prima.
Lembrei-me de meu irm�o e minha cunhada. Mais uma que n�o
resistira ao poder de sedu��o canino!
-Ainda bem que voc� castrou. Sen�o j� seriam uns trinta.
Rimos. Ela um tanto nervosamente.
-�... e o pacote de ra��o anda caro. Estou desempregada, sabia?
-N�o, a gente n�o falou sobre isso.
-Nem vale a pena, j� faz mais de um ano! Abro o vinho?
Acomodei-me no sof�. Um a um, os peludinhos deitaram-se em
torno de mim, Xax� com a cabe�a sobre meu colo.
-Viu s�? J� s�o seus amigos! -disse ela voltando com duas ta�as
cheias.
Peguei a minha, brindamos.
-Sa�de -ela disse.
-A n�s! -respondi.


Trocamos olhares simp�ticos.
-Ent�o, voc� tamb�m adora c�es.
-J� nasci cachorreira. Prefiro os pequeninhos. Observei-a com
desconfian�a. Seria capaz de n�o gostar
do meu Uno?
-Eu adoro o meu husky.
-Ah, sim, huskies s�o lindos. Mas muito desobedientes. S� fazem o
que t�m vontade.
Quase comentei sobre as pequenas feras que ela criava. Eram algum
exemplo de obedi�ncia? Achei melhor perguntar:
-Eu n�o conhe�o bem as ra�as. Qual � a deles?
-Schnauzer. T�o peludinhos!


#
Tremi. Se nosso relacionamento se estreitasse, eu teria que adotar os
peludinhos? Abdicar de Uno? Serviu salada, depois veio a lasanha.
-S� vou beber um pouquinho, comigo sobe depressa!
-Mas voc� falou que est� desempregada... Conte mais. Deu um
r�pido curr�culo. Fora diretora de uma grande
f�brica de rel�gios de parede. Vendiam para supermercados, lojas
de departamentos. Ganhava participa��o nas vendas.
-Fiz a casa com essa grana.
-E seu ex-marido n�o ajuda?
-Qual deles, o primeiro ou o segundo?
-O pai do seu filho.
-Ah, o primeiro! N�o d� um centavo, nem pra ajudar nos estudos.
-Voc� n�o brigou?
-Ele tamb�m anda matando cachorro a grito. Que express�o
engra�ada, n�o? Matar cachorro a grito...


Sua saga era parecida com a de muitos executivos. A f�brica fora
vendida para um grupo internacional. Na passagem, Tati n�o fora
absorvida.
-Nem liguei quando sa�. Achei que seria muito f�cil arrumar outro
emprego porque minha experi�ncia na �rea � muito boa. Coisa
nenhuma. Cansei de distribuir curr�culos. Esgotei todos os amigos,
parentes e conhecidos que poderiam me apresentar algu�m. O
problema � que j� tenho 40 anos.
-N�o parece -menti.
-Hoje em dia o mercado est� cheio de jovens executivos com muito
g�s. Depois de um ano fora, n�o estou mais otimista. Fica cada vez
mais dif�cil arrumar coloca��o.
Conversamos sobre as dificuldades do mercado. Ela sofria muito
com a situa��o, pois a irm� ajudava nas despesas. Sempre fora
independente. Mesmo durante o segundo casamento, com o dono
de uma empresa, muito rico, continuara a trabalhar.
-Que pretende fazer?


#
-Comecei a fabricar velas decorativas. Terminamos a lasanha. Ela
recolheu os pratos e botou
sorvete em duas ta�as.
-Estas aqui, voc� que fez? S�o lindas -elogiei para me fazer de
simp�tico.
-Gostou? Tenho muitas.
Levou-me at� uma esp�cie de ateli� repleto de velas coloridas e
aromatizadas, realmente bonitas. Pegou uma das maiores e botou
na minha frente.
-Esta aqui tem tudo a ver com sua casa. Escolheu outra.


-Esta tamb�m.
Foi uma situa��o dif�cil, pois eu n�o sabia o que dizer. Era presente?
Devia agradecer com um "obrigado"? Ou ela estava me oferecendo
as velas para comprar? Perguntava o pre�o? Ou seria deselegante?
Fiquei constrangido.
-� mesmo. S�o lindas. Tamb�m gosto desta aqui. Mostrei uma
redonda. Tati reuniu as tr�s diante de
mim. Sorriu, � espera das minhas pr�ximas palavras. Ainda hesitei.
-Voc�... ahn... s� vende para empresas... lojas?
-Ah, n�o. O pessoal daqui do condom�nio tamb�m compra muito.
-Eu acho... bem... fico com as tr�s, s�o mesmo muito bonitas.
Ela sorriu docemente. Embrulhou-as.
-Tamb�m adoro estas velas, s�o as mais lindas que fiz. Vou buscar
uma sacola para voc� levar.
Com um fio de esperan�a de que fossem presente, perguntei.
-Quanto �? Assumiu ar pensativo.
-Deixe eu calcular!
Oh, c�us! Para saber o valor de tr�s velas, apenas tr�s, era preciso
uma calculadora? Anotou a soma em um pa-pelzinho e me
entregou. Perdi o ar. Custavam o mesmo que um casaco que eu
pretendia comprar! Mas era tarde para voltar atr�s.
-Voc� acha que � muito?
-N�o, n�o, s�o t�o lindas. Legal. E assim me deixei ser tosquiado.


#
-Um caf�? -perguntou ela enquanto eu preenchia o cheque.
Sentamos no sof� com x�caras nas m�os, os c�ezinhos acomodados
em torno.
-O Xax� gostou de voc�. Ele n�o � assim com todo mundo. Prova
que � uma boa pessoa.
"E n�o sou um anjo, depois de pagar tanta grana por velas que nem
queria?", pensei. Apenas sorri:
-� que eu gosto muito de cachorro e os seus perceberam. Talvez
tenham sentido o cheiro do meu.
Passei a m�o nos p�los de Xax�. � t�o bom acariciar um cachorro!
Ele acomodou-se melhor no meu colo. Uma lufada de vento trouxe


o aroma das damas-da-noite.
-Adoro essa flor -comentei.
-Eu tamb�m.
-Voc� pensa em montar uma f�brica de velas?
-N�o sei se vale a pena. A margem de lucro � pequena, porque a
parafina � muito cara.
"Ah, �? Nesse caso, quanto deveria custar uma vela? O pre�o de um
terno Armani?"
-Comprando parafina em quantidade n�o barateia?
-A concorr�ncia � grande. Tem gente com pre�o muito baixo no
mercado porque compra de cemit�rio.
Eu pensara j� ter ouvido de tudo nessa vida. Mas essa n�o! A m�fia
da parafina?
-De cemit�rio?
-�, existem gangues que roubam a cera derretida das velas dos
t�mulos, derretem e revendem a um pre�o muito baixo.
Olhei meu pacote com as velas, preocupado.

-Mas voc�...
-N�o, sempre comprei parafina em representante comercial.
-Ah, bom.
-Agora arrumei um fornecedor independente. Tem um pre�o muito
bom.


#
-Estas velas s�o de cera de cemit�rio?
-Essas n�o. Imagine. Fique tranq�ilo. Nem sei se o meu fornecedor
est� nesse esquema de parafina raspada de t�mulo. � melhor nem
fazer perguntas!
Oh, c�us! "Nunca vou acender essas velas. Imagino a energia que
elas t�m!"
-Um licor?
-S� o fundinho do copo.
Acomodei-me ainda mais enquanto ela me servia uma bebida
horrivelmente adocicada. Nossas m�os se tocaram.
-Que dedos pequenos voc� tem! -comentei.
Nada melhor que um elogio para iniciar um contato f�sico. Peguei
sua m�o. Ela sorriu, meio sem jeito. Mesmo depois de v�rios
casamentos, envolvimentos, namoros e rolos de todas as formas,
pessoas de 40 anos conseguem ficar t�o constrangidas quanto
adolescentes.
-A sua tamb�m � pequena -ela comentou.
-Tenho m�o e p� pequenos. Olha. � pouco maior que a sua.
Medimos. Fechei a minha sobre a dela.
-S� p� e m�o -alertei. Ela riu maliciosamente.
-Voc� fica bonita quando ri assim.


Seu sorriso abriu-se ainda mais. Um homem sabe quando uma
mulher quer beijar. Curvei-me, um tanto lentamente. Ela manteve o
sorriso fixo, os olhos � espera. Senti um frio na perna. Um frio?
Um dos c�ezinhos fizera xixi na minha cal�a.
Gritei surpreso.
-Ih, olha!
-Xax�, vai ficar de castigo -ela gritou. O peludinho
fugiu para o jardim.
-Ele sempre faz isso, vivo lavando a capa desse sof�. Desculpe.
Olhei meu jeans pingando. Tentei lembrar se tinha outra cal�a limpa
para ir trabalhar no dia seguinte. Agora que minha situa��o


#
melhorara, era urgente achar uma empregada que viesse em casa
todos os dias. Disfarcei:
-Ah, n�o � nada. S� vou passar um pano molhado. Mas eu estava, �
claro, cheio de nojo.
-Tire a cal�a, eu lavo onde molhou.
-Mas...
-Se eu tivesse roupa emprestava pra voc� voltar pra casa. Mas aqui
somos s� eu e meu filho, que � bem menor que voc�. Do seu
tamanho, s� saia. Quer?
-N�o, mas... tirar a roupa?
-J� cansei de ver homem de cueca.
Torci que minhas meias estivessem limpas. Tirei t�nis e jeans. Fiquei
de sunga na frente dela, constrangid�ssimo. Ela fingiu naturalidade.
-J� volto.
Foi para a �rea de servi�o. Fiquei na sala, de p�, observando com
precau��o os tr�s peludos restantes. Com um jeans eu me sentia
seguro. Seria muito pior se algum se dependurasse com os dentes
em minha cueca. Ouvi a torneira aberta. Tati limpava o jeans. Em
seguida, um ru�do na porta. Guel, filho de Tati, parou estarrecido na
sala:
-Que neg�cio � esse? Fui para
tr�s da mesa.
-Ah, � que...
Imposs�vel que me ouvisse. Os c�ezinhos quicavam em torno dele,
expressando sua alegria com latidos estridentes. Durante algum
tempo tentamos conversar aos berros, mas n�o nos ouv�amos. Tati
voltou com a cal�a na m�o.
-M�e, pode me explicar que hist�ria � essa? -gritou Guel, mais
estridente que os c�ezinhos.
Tati gritou de volta.
-Voc� n�o ia ficar na casa do seu amigo?
-E voc� ia cair na farra, m�e?


#
Mais latidos. Gritos. Latidos. Era enlouquecedor. Arranquei as
cal�as das m�os de Tati.
-Ainda est� molhada! -gritou.
-Tudo bem! -bradei.
Vesti-me apressadamente. Um cachorrinho mastigava a ponta de
um dos meus t�nis novos. Quando tentei puxar, ele cravou os
dentes ainda mais profundamente.
-N�o force! Ser� que voc� n�o sabe lidar com um c�ozinho? -gritou
Guel.
-Ele vai acabar com meu t�nis! -gritei de volta. Guel acariciou sua
cabe�a. Ergueu dente por dente.
-Viu s�? � s� tratar com jeito que ele obedece! -latiu, ao me
entregar o cal�ado.


Observei a marca dos dentinhos pontiagudos na ponta. Sairiam?
Senti o tecido molhado na perna.
-Lavei bem o xixi -disse Tati. Guel, surpreso:
-Voc� mijou na cal�a?
-N�o, o cachorrinho.
-Ah, bom. Vou comer alguma coisa. A s�s com Tati,
tentei ser gentil.
-Vou indo. A lasanha estava o m�ximo. Foi uma noite �tima.
-Desculpe pela mijada.
-Que � isso? Quem tem cachorro sabe que �s vezes... Guel voltou da
cozinha com um prato cheio de lasanha
fria.
-Se ele fez isso � porque ficou nervoso. Deve ter sido alguma coisa
que voc� fez.
-Eu?
-Filhote, vai comer lasanha fria? Deixa que eu esquento!
-N�o, tudo bem, j� � tarde -respondeu Guel com raiva.
Mais um segundo e me botava pra fora. Disfarcei mais um pouco.
De tanto sorrir j� sentia c�imbra na boca.
-Bem, eu... �... eu vou... -J�?


#
Quanta falsidade! Ficar naquele clima?
-Acordo cedo, vou trabalhar. E... ah... Se voc� souber de alguma
empregada... S� estou com faxineira.
-Claro... Vou com voc� at� o port�o.


Caminhamos em sil�ncio.
-Adorei sua casa -comentei.
-Ent�o precisa voltar.
-Claro. Eu ligo.
-Vou esperar.
Quando fui beijar seu rosto, ela virou de leve e toquei seus l�bios.
Sa�. Na esquina, virei o rosto e ela ainda estava no port�o.
-Foi bom, apesar de ter sido obrigado a comprar as velas -conclu�
para mim mesmo.
Em casa, respirei fundo. O ar da noite era maravilhoso. Quem mora
longe do centro sabe do que estou falando. A casa toda exalava paz.
Para minha surpresa, durante todo o encontro, eu n�o pensara no
meu amor perdido. Senti-me at� culpado, mas em seguida refleti:
"Esteja onde estiver, ela quer me ver feliz, seguindo minha vida!".
Olhei o c�u, vi uma estrela.
-Talvez seja voc�, cuidando de mim a� de cima!
O sil�ncio era espantoso. A solid�o total. Nem os pequenos ru�dos...
Percebi que faltava algu�m.
-Uno, Uno!
Dentro de casa n�o estava, pois deixara a porta trancada. Procurei
no jardim. Acendi as luzes. Procurei. Tudo vazio. Os port�es da
frente e do fundo continuavam fechados.
Mas meu cachorro n�o estava mais l�. Uno havia
desaparecido.


#
5

Abri o port�o do fundo, que dava para a reserva florestal. Chamei:
-Uno, Uno!
Nem sinal. Logo al�m havia um p�ntano. Mato cerrado. Rio e
cachoeira. No negrume da noite seria imposs�vel encontr�-lo. Refiz


o caminho at� a casa de Tati. Luzes acesas. Bati. Ela saiu de roup�o,
e percebi que estava muito mais gordinha do que parecia quando
bem-arrumada. Muito menos charmosa do que meia hora antes.
-Esqueceu alguma coisa?
-O Uno sumiu. Achei que podia ter me seguido at� aqui, n�o sei,
entrado no seu jardim.
-Meus c�ezinhos teriam dado o alarme. Mas venha. Palmilhamos
seu jardim, de maneira impessoal, quase
como estranhos. O encontro n�o programado nos distanciava. Uno
n�o estava l�. Confessei, angustiado:
-Tenho medo de que ele desapare�a para sempre. Huskies n�o
sabem voltar para casa.
Tati sorriu docemente.
-Se ele sumir eu arrumo um cachorrinho bem peludo pra voc�!
Quase respondi: "E quem disse que eu quero?". Mas tentei ser
simp�tico:
-� que sou doido pelo Uno. Bem, vou indo.
-At�.
Trocamos um r�pido beijo no rosto, sem o toque sedutor do
primeiro.
-Vou falar com o pessoal da seguran�a do condom�nio.


#
Fugas de c�es n�o eram incomuns. Eu e o seguran�a sa�mos no
carrinho de patrulha. Percorremos todas as ruas. Nenhuma pista.
-Deve ter se embrenhado na mata -refletiu o rapaz.
-� o que me preocupa -respondi tristonho.
Voltei para casa quase de madrugada. Sentei-me na varanda,
arrasado. Encarei a noite.
Amo os c�es desde menino. Sou cachorreiro, como dizem. Joli era
um vira-latinha branco. Minha fam�lia vivia no interior, em um
sobradinho comprado com dificuldade. Alug�vamos a parte de
baixo para um bar, uma lavanderia e uma livraria evang�lica tocada
por duas mission�rias, uma inglesa e outra sueca. Joli dormia no
meu quarto, era meu querido companheiro. Eu o amava. Mam�e o
soltava todos os dias para passear na rua. Depois voltava sozinho
para casa. Isso era comum na cidade onde eu morava. Joli era
conhecido no quarteir�o, nunca atacava ningu�m. Mas um dia
voltou da rua muito estranho. Quieto. Amuado. Na manh� seguinte
n�o estava no meu quarto. Fomos encontr�-lo no quintal, entre
po�as de v�mito. Fraco. Gania e soltava um l�quido esverdeado pela
boca. Mam�e concluiu: -� veneno.
Havia gente que dava "bolinha" a cachorros. Ou seja, veneno
envolto em carne mo�da. Algumas faziam isso simplesmente porque
se irritavam com os latidos. Ou temiam mordidas. Foi terr�vel
assistir � agonia de Joli. Faltei na escola. Fiquei ao seu lado. Mam�e
levava �gua, que ele bebia com avidez. Ainda no finzinho da vida,
Joli lambeu sua m�o, como se dissesse.
-Eu gosto de voc�!
E morreu. Foi colocado em um saco de estopa, e a �ltima lembran�a
que tenho � de seu pequeno corpo delineado pelo tecido grosseiro,
antes de ser levado embora.
Dali em diante mam�e resistiu a v�rias das minhas tentativas de
adotar um novo cachorro. Cheguei a trazer uma vira-latinha
castanha e magricela, chamada Patativa. Foi rapidamente doada a
uma amiga da fam�lia. Finalmente aceitamos ficar com uma

#
cadelinha j� crescida: Julieta, de remota origem pequinesa. Nossa
empregada da �poca, dona Irene, se irritava muito com o nome.
-Cachorro n�o pode ter nome de gente! -dizia.
-Gente � que n�o pode ter nome de cachorro! -eu respondia.
Metido a intelectual, eu batizara a cachorra com o nome da hero�na
de Shakespeare. Julieta era alegre. Certa vez foi capturada pela
carrocinha. Quando cheguei em casa, mam�e havia desistido de
procur�-la.
-Agora n�o adianta mais -disse.


-S�o tr�s dias de car�ncia -insisti.
Eu n�o podia faltar na aula, e tinha trabalho em grupo no dia
seguinte. N�o podia faltar. Mam�e resgatou Julieta, que voltou de
rabo abanando. Mais tarde, comentou:
-Nem sei como pude pensar em n�o ir. O que me deu?
A cadelinha me acompanhou por v�rios anos. �ramos muito
ligados. Logo no in�cio de minha vida adulta, fui viver nos Estados
Unidos. Passei dois anos fora. Quando voltei, Julieta me recebeu na
porta, com latidos de felicidade. S� de ouvi-la me senti em casa.
Mas tr�s ou quatro dias depois, ao chegar de noite, ap�s um dia
procurando emprego, mam�e me recebeu na porta arrasada.
-A Julieta foi atropelada. Saiu de casa como todos os dias para
passear. Um carro vinha a toda na curva, ela foi pega em cheio.
O pequeno corpo j� fora levado. Eu me senti despeda�ado.
-Ela sentia saudade de voc� -disse mam�e. -�s vezes, quando voc�
estava fora, ficava parada diante da porta esperando voc� chegar.
Dias antes da sua volta, ficou agitada, alegre, como se soubesse que
voc� estava vindo. D� a impress�o de que aguardou voc� voltar
para morrer.
Mais uma vez, prometi nunca mais ter cachorro. Cumpri a
promessa por um bom tempo. Quando fui viver sozinho, tive
Brigite, uma f�mea de pastor alem�o capa preta, de origem
duvidosa. Nunca cresceu o suficiente, talvez por falta de comida
quando filhote. Quando chegou era t�o pequena que parecia um


#
rato. A casa onde eu vivia na �poca tinha um quarto de empregada
vazio. Antes de sair, forrava o ch�o com jornais, botava �gua e
ra��o, e a deixava trancada enquanto trabalhava. Ao voltar, limpava
tudo -quanta sujeira! -e passava algum tempo com ela no colo,
conversando. Tamb�m cozinhava para minha cachorrinha. O
veterin�rio havia exigido uma dieta especial, com arroz e cenoura.
At� crescer um pouco, seu �nico contato com o mundo fui eu.
Talvez por isso me adorasse. Se eu estava dentro de casa, ficava na
porta ganindo, e eu entendia:
-Querido! Querido!
Se eu sentava, pulava no meu colo. Brava, atacava quem se
aproximasse de mim. �s vezes me irritava.
-Pare de latir, Brigite!
Uma noite estava mais doce, mais calma. Imaginei:
-Essa pequena fera est� melhorando.
No dia seguinte, amanheceu morta. Chorei sem parar. Depois, levei-
a ao veterin�rio.
-Quero descobrir a causa.
De tarde, o resultado: envenenamento.
Suspeito do vizinho, mas ele tamb�m tinha c�es. Quem mais podia
ter jogado veneno no meu quintal para matar a pequena Brigite, que
nunca mordeu ningu�m? At� hoje n�o sei. Mas n�o consigo
entender tanta crueldade.
Veio Tieta. Minha vida amorosa sempre teve muitos altos e baixos.
Na �poca, eu vivia um novo relacionamento. Um dia, uma cachorra
desgrenhada me seguiu na rua. Parei em casa, abri o port�o e ela
entrou. Descobri pelas pessoas do bairro ser uma cadela muito
popular, que morava nas ruas. Ningu�m sabia quem dera seu
nome, por�m era

Tieta em homenagem n�o ao livro de Jorge Amado, mas � novela
nele inspirada. Tieta n�o me largava, dava a impress�o de que
sempre vivera ao meu lado. Veio o Plano Collor. Para quem n�o
viveu aquele momento, eu explico. Para salvar o pa�s da

#
hiperinfla��o, o presidente Collor congelou todas as contas
banc�rias: poupan�a, investimento, conta corrente. Cada pessoa s�
podia dispor de uma determinada quantia. Foi uma loucura. Gente
que havia vendido seu im�vel ficou subitamente sem nada. Empres�rios
n�o tinham como honrar a folha de pagamento. Eu estava
desempregado, e contava com minha poupan�a. Meu
relacionamento tamb�m come�ou a fazer �gua. Sozinho eu n�o
poderia manter a casa. Passei o contrato para uma conhecida e
mudei para um apartamento pequeno e mais barato. Na ocasi�o,
refleti: "A Tieta est� acostumada � liberdade das ruas. N�o vai
suportar um lugar t�o menor". Eu estava errado, � claro. Os c�es
n�o suportam ficar sem amor, o resto � detalhe. Deixei Tieta com a
nova inquilina. Sempre me arrependi. Minha situa��o financeira
melhorou em alguns meses. Eu teria conseguido mant�-la. Ainda
lembro do dia em que acordei morrendo de vontade de v�-la.
Peguei o carro e bati na porta de minha antiga casa. A inquilina me
recebeu, surpresa.
-Parece at� que voc� adivinhou! A Tieta est� tendo filhotinhos!
Fui at� o quartinho dos fundos onde ela passava pelo parto, o
terceiro filhotinho nascendo. Todos com apar�ncia de dobermanns, o
que j� era suficiente para identificar o pai. O vizinho tinha um

dobermann.

-Tieta virou mam�e! -exclamei.
-N�o se aproxime, ela pode morder! -disse a inquilina.
Estendi a m�o e Tieta me lambeu. Nunca esqueci, pois ela superou o
impulso at�vico de proteger a cria por causa do amor que sentia por
mim.
Meu arrependimento cresceu nos meses seguintes. Encontrei
antigos vizinhos, que comentavam:
-A nova dona n�o se importa com a cachorra. Deixa solta. A Tieta
vive suja, abandonada.
Assim que minha situa��o se estabilizou, voltei a namorar, a rela��o
consolidou-se rapidamente e logo divid�amos o mesmo teto.


#
-Quero trazer minha cachorra de volta -disse eu. Fomos at� minha
antiga casa.
-Espero que voc� n�o se importe, mas eu queria ficar com a Tieta de
novo -expliquei.
-A Tieta morreu.
-Por que voc� n�o me ligou?
-Achei que n�o tinha import�ncia.
Desde ent�o prometi nunca abandonar novamente um cachorro.
Agora, na varanda, sofria pelo sumi�o de Uno.
H� algum tempo fui a Israel com um grupo escolhido pelo governo
para conhecer o pa�s. Para jornalistas e escritores, esse tipo de
convite � mais comum do que se pensa. Caminh�vamos � beira da
praia, em Tel Aviv, quando apareceu um cachorro robusto, de corpo
quadrado e p�lo curto. Fiz sinal com os dedos.
-Vem, vem.


Aproximou-se. Essa � a vantagem dos c�es. Eu n�o precisava falar
hebraico para nos entendermos. Acariciei sua cabe�a, seu corpo,
rindo e brincando, com o rosto a um cent�metro de seu focinho.
Ouvi uns gritos, mas n�o dei import�ncia. Dois homens nervosos
pegaram o cachorro. Pareciam bravos. N�o entendi muito bem a
rea��o. A guia explicou, apavorada.
-� um tipo de pitbull violento. Fugiu da coleira. Estavam gritando
de medo de que ele o atacasse. Poderia at� mat�-lo.
Tenho certeza de que a vontade de atacar nem passou pela cabe�a
do c�o. De longe, ele reconheceu um amigo.
C�es s�o capazes de sentimentos surpreendentes at� mesmo para os
cientistas. J� li sobre experi�ncias a respeito de seu comportamento.
Alguns costumam correr para a porta quando o dono est�
chegando, mesmo antes de qualquer sinal ou ru�do. Muitos
come�am a esperar no instante em que o dono sai do escrit�rio. O
curioso � que, em algumas experi�ncias, mudou-se o hor�rio de
sa�da do dono. Mesmo assim o c�o foi para a porta exatamente no


#
instante em que o dono deixava o trabalho, como se a informa��o
fosse fornecida telep�ticamente.
Um amigo meu era o rei da balada. Em certa �poca foi moda ir
dan�ar �s 6 horas da manh�, em lugares que ficavam abertos at� o
meio-dia, nos finais de semana, para quem n�o queria acabar a
noite. Ele chegava ao extremo de ir dormir �s 2 horas da manh� e
acordar �s 4 horas para retornar ao barulho. Um dia, adotou um
c�ozinho vira-lata. Apaixonou-se. E adotou novos c�es, todos
encontrados na rua. Outro dia me ligou. Queria saber se eu conhecia
algu�m disposto a adotar um cachorro.
-Ele foi atropelado, mas eu o levei ao veterin�rio. N�o anda direito,
mas est� bem. Precisa encontrar um dono.
-J� encontrou -respondi. -Voc�.
-Eu n�o! J� tenho seis, n�o consigo cuidar de sete.
-Botar na rua de volta voc� n�o vai.
Dito e feito. Est� com o cachorrinho at� hoje. Faz alguns trabalhos
extras para pagar por ra��o e veterin�rio. Confessou:
-N�o saio mais � noite. Na balada, tudo � sempre igual. A mesma
m�sica, as mesmas pessoas... E eu preciso cuidar dos cachorros!
Minha amiga Vera, casada com F�lvio, � uma ativista. Salva todos
os c�es que encontra na rua. Leva a um veterin�rio, vacina, castra,
cuida. E depois trata de encontrar um dono. Dia desses catou dois
vira-latinhas de p�lo curto. Nada mais plebeu. Uma amiga
milion�ria ligou.
-Soube que voc� lida com cachorros. Estou querendo um.
-S� arrumo vira-latas. Tenho dois filhotes.
-Ah, mas eu queria com pedigree, pensei que...
-Voc� precisa conhecer os bonitinhos!
Duas carinhas de malandro. Irresist�veis. Foram adotados
imediatamente. Hoje v�o semanalmente tomar banho numa cl�nica
de est�tica para c�es a bordo de um carro com motorista particular,
sentados no banco de tr�s. Elegant�ssimos.


#
Certa noite, Vera conseguiu parar uma viatura e convenceu os
policiais a resgatarem uma cadela que sofria maus-tratos em uma
favela. Encontrou-a amarrada por uma corda, magra e machucada.
Brigou com o dono da casa. Salvou a cadela e j� lhe arrumou um
novo dono.
-Sou minha pr�pria ONG! N�o quero burocracia, verbas, coisa
nenhuma. S� ajudar os cachorros!
H� alguns meses encontrei seu marido em uma viagem de avi�o.
F�lvio contou a aventura mais recente.
-T�nhamos tr�s c�es em casa, agora s�o quatro.
O �ltimo fora adotado quando uma vizinha se mudara para o
exterior.
-O cachorro foi entregue para a irm� da mo�a, mas ela n�o cuidava
bem. Quando Vera soube, ficou uma fera. Fomos at� a casa dela e
exigimos levar o cachorro.
Um ano depois, a verdadeira dona voltou e quis resgat�-lo.
-Agora j� � nosso, somos doidos por ele! -respondeu F�lvio Vamos
fazer o seguinte: eu compro o cachorro!
Pagou o pre�o de dois.
-Sabe, �s vezes eu acho que vou para o c�u! -suspirou.
Quem ama os c�es sabe do que estou falando. � um sentimento
profundo. Adoro agarrar suas patinhas. Abra��-los. Encostar a
orelha em seu focinho. Eu poderia contar mil hist�rias, mas todas
terminariam falando do amor que se tem por um c�o.
O desaparecimento de Uno me angustiava. Eu me sentia culpado.
Ele estava acostumado com minha rotina de chegada, e � noite
aconchegante ao lado da televis�o. A quebra de rotina o abalara.
Talvez tivesse tentado ir atr�s de mim. Quem sabe?


Naquela noite, cochilava e acordava sem parar. Despertei v�rias
vezes, sobressaltado, pensando ter ouvido uivos. De manh� bem
cedo, esquadrinhei o quintal com a esperan�a de v�-lo. J� haviam
me dito: huskies n�o sabem voltar para casa. "Nunca mais vou v�lo",
pensei.


#
Mas Uno era uma exce��o. Ouvi um uivo no port�o de tr�s. Corri.
Ele me esperava com o p�lo arrepiado e �mido, e uma estranha
express�o de culpa. Entrou mancando e arranhado em v�rios locais
do corpo.
-Voc� brigou, Uno?
Ergui os olhos. No alto do alambrado, preso no arame farpado,
havia um tufo de p�los. N�o vi de noite. Com a agilidade de um
gato, Uno tinha escalado a cerca. Talvez para me seguir. Emocionei-
me:
-Uno, que coragem! Voc� quis me acompanhar! Quanta ilus�o!
Notei algumas penas brancas grudadas
em seus p�los.
-Que estranho! Onde voc� arrumou essas penas? A express�o de
culpa aumentou. Suspirei.
-Que esquisito.
Mal me ag�entava em p�, mas precisava trabalhar. Ainda levei meu
cachorro at� a varanda, e tirei a sujeira grudada em seus p�los.
Notei mais penas brancas, pr�ximas ao pesco�o, presas no p�lo
�mido, e espinhos. A cada espinho arrancado, ele tentava fugir. Um
husky � forte. Precisei de toda minha for�a para segur�-lo.
-Quieto, Uno, quieto!
Com uma tesourinha, cortei os p�los mais embolados. Servi ra��o e
�gua.
-Eu tenho que ir, mas prometa n�o fugir de novo.


Observei-o novamente. Sua express�o era muito suspeita. De quem
tinha feito alguma coisa errada. E como!
Quando eu j� me aproximava do port�o, o s�ndico do condom�nio
desembarcou de um carro.
-Preciso falar com voc�.
-Aconteceu alguma coisa?
-Seu cachorro comeu um dos patos do lago.
Caiu a ficha. Compreendi o mist�rio das penas brancas. O
condom�nio tinha um lago com gansos e patos, com �rvores floridas


#
e um lindo gramado em torno. Perto de casa e tamb�m pr�ximo �
cerca que separa o condom�nio da reserva florestal. Uno havia
escalado meu alambrado, ido ao lago e, segundo testemunhas,
abocanhado um pato. Atravessou a cerca de arame farpado e
escondeu-se na floresta para desfrutar da refei��o.
-Uno, seu safado! Voc� comeu o pato?
Ele sentou-se em um canto da varanda, onde assumiu ar filos�fico,
como se nada fosse com ele.
-Foi ele, sim, todo mundo conhece seu cachorro.
-Olhe, eu pe�o desculpas. Prometo que n�o vai acontecer
novamente.
-Tomara que n�o. Sabe que � proibido deixar cachorro solto no
condom�nio?
-Ele fugiu. Vou botar mais arame farpado, duvido que atravesse
essa cerca outra vez.
-�timo.
-Bem, eu preciso ir trabalhar. Mas fique seguro de que...
-Tudo bem. Tome.


O homem me estendeu um papel.
-Que � isso?
-A multa.
-Que multa?
-Pelo pato! � regra. O dono do guloso paga o pato! Olhei o pre�o.
-Por esse valor podia ter levado meu cachorro a um rod�zio de
churrasco.
-Tem que pagar, est� na conven��o do condom�nio. Pode pagar
com o boleto do m�s.
O s�ndico se despediu. Olhei para Uno, e desta vez a fera era eu.
-Veja s� o preju�zo que voc� me deu. N�o � um c�o de guarda. N�o
paga pela ra��o que come e ainda faz um banquete com o pato? �
assim que voc� trata seu dono?
Meu cachorro continuou admirando a paisagem, com o ar mais
inocente do mundo. Realmente, o assunto n�o era com ele.


#
6

Aconviv�ncia tornou-se dif�cil, principalmente pelo h�bito que Uno
desenvolveu, a partir de ent�o, de se banquetear com os patos do
condom�nio. Duas ou tr�s vezes por semana eu ouvia uma gritaria.
J� sabia do que se tratava. Sa�a e recebia os seguran�as indignados:
-Seu cachorro fugiu com outro pato na boca.
-Imposs�vel. O Uno est� aqui, tenho certeza. Deve ter sido outro
cachorro. Quer ver?... Uno! Uno! Uno? Ih... ih, acho que ele fugiu,
sim!
Sempre o mesmo roteiro. Ca�ava o pato, escondia-se na mata,
enchia a pan�a e voltava pelo port�o dos fundos com ar de
inoc�ncia. Argumentei. Pedi que tivesse ju�zo. Clamei por uma
mudan�a de atitude.
-Uno, os patos s�o muito caros. Al�m disso, ossos de aves podem se
quebrar, furar seu est�mago. Pense na sua sa�de.
Nem se deu ao trabalho de uivar em resposta. Insisti:


-Leve minha quest�o financeira em considera��o! Patos custam
caro. Principalmente estes daqui, porque o condom�nio enfia a faca!
Se eu pedir um pato laqueado no restaurante chin�s, ser� mais
barato. As multas v�o me levar � fal�ncia, Uno!
Ele ia se deitar um pouco mais adiante. Cruzava as patas. Uma
sobre a outra, como um lorde. Eu ficava com as contas.
Huskies s�o ca�adores. Vi muitas vezes Uno no gramado � espreita
de um p�ssaro. Deitava-se de barriga no ch�o enquanto a pobre
v�tima ciscava. Arrastava-se at� ela. Quando pr�ximo, assustava o


#
p�ssaro com o movimento. O incauto voava. Esse era o truque. Uno
saltava sobre a ave em pleno ar, como se tivesse calculado o v�o.
Tamb�m tentei ter um gato. A faxineira trouxe um filhotinho
branco. Uma gracinha.
-Vamos fazer um se acostumar com o outro -prop�s ela.
Concordei. Colocamos Uno e o gatinho frente a frente, na esperan�a
de que surgisse um r�pido e amig�vel relacionamento. Zapt! Ele
saltou e abocanhou o filhotinho pela barriga. Bem esperto, o husky.
O gatinho tentava atingi-lo com as unhas, mas era imposs�vel. Uno
correu. Eu voei atr�s de um lado, a empregada de outro com a
vassoura e dois pedreiros que estavam consertando o telhado
tamb�m. Tentou fugir de todas as maneiras, mas conseguimos
cerc�-lo. Ficou parado, com ar selvagem e o gatinho preso na boca.
-Cuidado, cuidado que ele pode morder!


Tomei coragem. Aproximei-me. Resgatei o gatinho de sua boca.
Sem d�vida, ele me amava: abri seus dentes e n�o me atacou!
Felizmente o gatinho estava vivo e a faxineira o levou de volta.
Traumatizado, mas sem ferimentos.
Agora, o problema dos patos era mais grave. O lago com os patos
era o maior orgulho do condom�nio.
-Prenda Uno com uma corrente -aconselhou Tati.
-Se eu a prendesse com uma corrente, voc� gostaria? Ela murchou.
Nas �ltimas semanas, hav�amos nos
aproximado bastante. Imaginei sua figura gordinha presa em uma
corrente.
-Se voc� n�o der um jeito, ele vai devorar todos os patos. Vai haver
uma revolta no condom�nio!
Voltei a uma velha id�ia:
-E se eu contratar uma empregada que passe o dia de olho nele?
-Tenho algu�m para indicar.
Minha situa��o financeira andava melhor. Entrevistei a mo�a:
-Voc� gosta de cachorro?
-Lavo, passo e cozinho bem. Trivial simples.


#
-�timo. Mas preciso de uma bab� de cachorro.
-Vivo com c�es desde menina.
Foi contratada, com a condi��o de passar o dia de olho no
devorador de patos.
-Quando ele for escalar a cerca, ligue a mangueira e lhe d� um
banho. Assuste. Mas n�o o deixe fugir.
Logo se tornou comum ver a mo�a correndo pelo quintal de
esguicho na m�o.
-N�o, Uno, n�o! Volte!


Era uma hero�na. Nas semanas seguintes meu cachorro s� pegou
dois patos. E apenas nos hor�rios em que eu tinha a
responsabilidade de vigiar. Em compensa��o, pegou horror da
empregada. Bastava olh�-la para se lembrar de jatos de �gua fria.
Pude respirar aliviado: as brigas com o condom�nio acabaram.
O epis�dio dos patos estava praticamente superado quando Uno
criou uma situa��o ainda pior, por envolver a moral e os bons
costumes.
A vizinha da frente tinha uma cachorrinha de porte m�dio, p�los
dourados, muito simp�tica. Com os filhos j� crescidos, a dona
transferira todo seu amor materno para a vira-lata, que ela jurava
ter pedigree.
-N�o � que ela tenha ra�a, ra�a... mas tamb�m vira-lata n�o �! argumentava.
Botava lacinho na cabe�a da cachorrinha. Sininho no pesco�o.
Escovava os p�los. Seu maior orgulho era poder afirmar:
-Ela � virgem!
Boa parte dos donos n�o se preocupa com a vida sexual canina. A
n�o ser para cruzamentos, obten��o de filhotinhos etc. Nesse caso,
acontecia o contr�rio. A vizinha afirmava, orgulhosa:
-Ela � uma dama! N�o facilita para esses cachorros brutos.
-Sei -eu respondia.
Que se pode dizer diante da loucura alheia? Ela s� faltava botar a
cadelinha num convento.


#
Assim que o epis�dio dos patos se encerrou, percebi que a rotina de
Uno mudara novamente. Agora passava o dia olhando a rua,
aspirando o ar. Se eu abria o port�o, se esgueirava para sair. Que
corpo flex�vel! Para impedi-lo, �s vezes eu atirava a valise no ch�o e

o agarrava pelas patas traseiras. Ele se revoltava. Virava e prendia
minha m�o com os dentes. N�o me mordeu, nunca. Mas demonstrava
sua f�ria. Inocentemente, eu pensei que queria ir atr�s dos
gansos.
Dias depois, descobri a verdade ao ouvir uns berros na casa da
frente. Minha empregada chamou desesperada.
-Corre, o Uno t� l� na casa da frente! Sa� �s pressas.
O marido tentava expuls�-lo com o rodinho. A mulher segurava a
cachorrinha no colo, protegendo-a. Uno fugia do homem, mas
voltava em seguida, disposto a namorar a virgem.
-Seu cachorro entrou na nossa cozinha!
-Por pouco n�o pegou a Sonata!
Sonata era o nome da cadelinha. A vizinha quisera ser pianista
quando jovem.
-Uno, que hist�ria � essa?
Ele me encarou, como se perguntasse: "Acha que tem direito a uma
vida sexual s� porque � humano e eu n�o, porque sou cachorro?".
Agarrei-o.
-Voc� vem pra casa! Agora!
Ele soltou todo peso do corpo no solo.
-J� disse, Uno, vamos para casa.
Tentei arrast�-lo pela grama. Ele se agarrava no solo com as patas.
Que paix�o!
-� melhor levar a cachorra pra dentro -aconselhei.

-Eu levo, mas n�o adianta. C�es sentem o cheiro do cio de longe.

Antes de entrar, a vizinha avisou:
-D� um jeito de manter esse selvagem no seu quintal. Se ele entrar
em casa outra vez, n�o respondo por mim.
Uno resistia. Argumentei.

#
-Ouviu o que ela disse? Venha comigo, � para o seu pr�prio bem.
Quem disse que ele me obedecia? Finalmente, eu o ergui � for�a.
-Agora voc� vem! -rugi.
Dei dois passos e ele come�ou a se contorcer. � incr�vel como um
cachorro pode ser forte. Usei todas as minhas for�as para prend�-lo.
Berrava.
-Fique quieto! Quieto!
Mal consegui atravessar a rua. Atirei-o no quintal.
-Agora voc� vai ficar aqui! Aqui!
Uno correu para o port�o. Tranquei com o cadeado. Tati veio jantar
comigo. Chegou com um peda�o de carne assada.
-� s� esquentar. E fa�o uma salada.
-�timo -respondi.
Foi para a cozinha. Continuei na varanda.
-Voc� n�o vem?
-N�o posso sair, estou tomando conta do Uno.
-Como assim?


-Se eu virar as costas, ele escala o alambrado, pula o muro da
vizinha e d� um trato na cachorrinha dela.
-Ah, mas se ela est� no cio isso � normal. Cachorro � assim mesmo,
fica louco quando sente o cheiro.


-Ele parece mais interessado que todos os outros cachorros do
bairro. J� invadiu a cozinha da vizinha. E o pior: a cachorrinha �
virgem.
-O qu�?
-A dona faz quest�o que continue intocada. Tati surpreendeu-se:
-A vizinha resolveu proteger a virgindade de uma cachorra?
-Isso mesmo. O nome da cadelinha � Sonata, imagine.
-Sonata?
-Tem medo de que o meu cachorro pegue a cadelinha e transforme
a Sonata numa sinfonia completa.
-Ih! E voc� vai ficar na varanda at� acabar o cio?
-Tem alguma id�ia melhor?


#
-E aquele quartinho de tranqueira nos fundos? Arrastamos Uno at�

o quartinho. Revoltado, fugiu
umas duas ou tr�s vezes. Tivemos que persegui-lo pelo quintal.
Arrastei-me na grama. Tati tentou seduzi-lo com um peda�o de
carne. O safado aproximou-se. Abocanhou o petisco e fugiu de
novo! Finalmente, exaustos, conseguimos tranc�-lo.
-Melhor que fique preso at� o fim do cio. Dura s� de dez a quinze
dias.
-�... acho que vai dar certo. Vou tomar um banho e j� volto.
Tomei uma ducha bem quente. Fiz a barba. Passei perfume. Os
sinais estavam l�, todos bem claros: visitinha noturna, comidinha...
Seres humanos n�o entram no cio. Contudo em alguns dias o
entusiasmo � maior. Essa era a noite!
Ela acendeu duas velas, das duzentas ou mais que me fizera
comprar nos �ltimos tempos.
-Achei essas velas.
Apesar da lembran�a do desfalque, sorri.
-Ficam lindas. Na mesa, um vaso com uma flor rec�m-colhida do
jardim.
-O cheiro da comida est� �timo -eu disse.
-Ah, pensei em voc� aqui sozinho e achei que seria gostoso... Posso
servir seu prato?
Botou carne e salada. Nossas m�os se tocaram algumas vezes.
-Posso colocar uma m�sica? O que voc� prefere?
-Escolha voc�.
Decidi por uma rom�ntica. Comemos. Sorrimos.
-Vou pegar a sobremesa.
-Sobremesa?
Voltou com uma musse de maracuj�. � uma receita deliciosa, mas
simples.
-Hoje voc� caprichou.
-Que � isso? Deixe eu pegar os pratos.
-Fique sentada. Eu pego.


#
Levantamos juntos. Estendi o bra�o e a trouxe at� mim. Ela sorriu
com boca de quem quer mais. Beijei. Foi longo. Depois nos beijamos
novamente. Nossos rostos se afastaram alguns cent�metros.
-Vou lavar os pratos -ela disse.
-Deixe, eu levo pra cozinha e amanh� a empregada lava.
-Mas vai ficar essa sujeira...


-Fique tranq�ila. S� me ajude a guardar a travessa.
Rapidamente botou a travessa na geladeira. Eu a beijei
de novo.
-Preciso ir.
-Agora?
-J� t� tarde.
-� algum problema com seu filho?
-N�o; imagine que justamente hoje ele foi dormir na casa de
uma amiga. At� j� deixei ra��o para meus cachorrinhos, mas � que...
Adoro uma desculpa esfarrapada. Enquanto fingia n�o poder ficar,
dava todos os motivos para permanecer. Peguei a deixa.
-Voc� vai ficar aqui.
-E amanh� cedo?
-Est� sem emprego. Pode ficar � vontade.
-� que....
Ela sorriu. Nos beijamos. Eu a puxei para o quarto. Outro beijo.
Ca�mos na cama, as car�cias mais r�pidas.
-Eu gosto de voc� -disse.
-Tamb�m gosto de voc�.
Nesse instante ouvi um uivo. De fato j� ouvira uns gemidos antes,
mas disfar�ara, pensando: "J�, j� ele p�ra". Mas agora era um uivo
alto, prolongado. Parei o beijo.
-Que foi?
-O Uno.
-Est� uivando assim porque ventou mais forte e ele sentiu o cheiro
da cachorrinha. -explicou Tati.
-E o que eu fa�o?


#
-Reze pra parar de ventar.
Beijamo-nos outra vez, mas j� sem tanta tranq�ilidade. Os uivos se
tornaram mais fortes.
-Ele vai acordar o condom�nio todo.
-Quem sabe ele se cansa -insisti, esperan�osamente. Ela se afastou
um pouco. Ouvi um uivo ainda mais
agudo, desesperado.
O vento aumentava. Dava para ouvir seu som nos galhos das
�rvores.
-Quanto mais o vento soprar nessa dire��o, mais alucinado ele vai
ficar.
-Tinha que ventar logo hoje? -reclamei.
Mais uivos. Para variar, o vizinho acendeu as luzes.
-Daqui a pouco v�o chamar a seguran�a -ela insistiu, j� sentada na
cama.
-Fique a�. Vou dar um jeito. J� volto.
Botei uma camiseta, chinelo e sa�. O vento congelava minhas
orelhas. Entrei no quartinho. Uno foi para um canto e me encarou
com express�o culpada.
-Vamos conversar, eu e voc� -expliquei. -Somos bons amigos, n�o
somos?
Sil�ncio. Bom sinal.
-O caso, Uno, � que � uma ocasi�o especial. Voc� sabe, eu e a Tati
estamos nos conhecendo. Ela trouxe um jantar -minha ra��o, voc�
entende -e vai dormir aqui. Voc� sabe como s�o essas coisas. N�s,
c�es e humanos, temos alguma coisa em comum. Como a atra��o
entre os sexos.


Mais uma lufada de vento. Uno aspirou o ar. Ergueu o focinho e
uivou mais uma vez.
-Pare! Vamos conversar de homem para homem. Ou de cachorro


para cachorro, como preferir. Uno, o caso � que estou
acompanhado.


#
Seus olhos me fitaram atentamente.
-Vamos encarar os fatos. H� a quest�o do consentimento. No seu
caso n�o houve esse tipo de coisa. Voc� invadiu a casa. E a
cachorrinha tem uma dona que quer preservar sua pureza. Bem,
pureza � um conceito humano, mas acho que voc� me entendeu.
Ent�o, vamos fazer assim, Uno. Voc� � um cachorro com pedigree.
Seu av� foi capa de revista. Muitas huskies charmosas de olhos azuis
se sentiriam felizes em ter filhotinhos com voc�. Se for paciente, eu
tratarei disso qualquer hora dessas. Agora trate de ficar calmo.
Deitadinho.
Humildemente, Uno acomodou-se melhor.
-Obrigado, meu cachorro!
Fiz um carinho no alto de sua cabe�a e sa�. Assim que fechei a porta,
ouvi um uivo ainda mais longo. O vento ficou mais intenso. Abri a
porta. Uno voltou correndo para o canto. Disparei:
-Tudo que conversamos n�o valeu? Ele ganiu.
-Seja um bom cachorro e fique quietinho.
Dei dois passos para a porta. Uivou. Virei. Silenciou. Tentei sair.
Mais dois uivos.
-Uno, voc� n�o me d� paz! Tr�s longos
uivos seguidos.
Instantes depois, voltei ao quarto com Uno no colo. Tati me
esperava j� embaixo das cobertas.
-Mas o que esse cachorro veio fazer aqui?


Botei Uno na cama.
-O �nico jeito � traz�-lo pra dentro. Comigo, ele fica quieto.
-E eu?
-N�o se preocupe. Ele n�o morde. S� solta muito p�lo, mas amanh�
cedo voc� toma um banho.
-Acha que vou ficar beijando voc� na frente do cachorro?
-�... Eu tamb�m vou ficar constrangido.


#
Uno acomodou-se, com o corpo enrolado e a cabe�a entre as patas.
Aparentemente, o meu quarto ficava fora da dire��o do vento. Ou a
nossa presen�a inibia os uivos.
Sorri, tentando ser caloroso.
-� uma situa��o especial, Tati, voc� entende?
-N�o, n�o sei se entendo. Era nossa noite especial, eu vim aqui,
pintou um clima... Faz tempo que a gente anda se conhecendo e de
repente come�ou a rolar... E agora voc� bota esse cachorro na cama?
-Voc� tamb�m dorme com seus c�ezinhos. E s�o cinco!
-Mas n�o dormiria se voc� estivesse l�. Mesmo porque eles t�m
ci�me de mim. Iam morder o seu... Ah, deixa pra l�!
-Ai, meu Deus! Seria um risco. Bem, o importante � que voc�
entende.
-Vou pra casa.
-N�o, fique aqui!
-Amanh� a gente conversa. Vestiu-se rapidamente.
Levantei-me.
-Vou acompanh�-la.


-N�o precisa.
Seguiram-se tr�s batidas furiosas: a porta da sala, o port�o, a porta
do carro.
-Voc� n�o tem vergonha, Uno, de me botar nessa situa��o?
In�til! Formando uma curva com seu corpo, j� ressonava. Bem no
meio da cama, ainda me dificultou a entrada embaixo dos
cobertores.
Pior: acordei cedinho com os ru�dos que fazia raspando a porta, j�
toda riscada por suas unhas. A brisa, na dire��o do meu quarto,
trouxera novamente o cheiro do cio. S� havia uma solu��o: levei-o
para um hotelzinho.
-Preciso deix�-lo aqui at� passar o cio da vizinha, digo, da cachorra
da vizinha, quer dizer, a vizinha n�o � uma cachorra, ela tem uma
e...


#
-J� entendi -comentou o veterin�rio. -Casos como o seu s�o
comuns. Quando o cio come�ou?
-Ontem, acho.
-Melhor esperar nove dias. O pre�o da di�ria �... Meu or�amento
dava para sete, no m�ximo. Abracei-o
e me despedi.
-� s� por um tempo, querido, porque a situa��o est� dram�tica.
Ele me respondeu com uma express�o magoada. De qualquer
maneira, Uno n�o estaria em casa por alguns dias.
-Agora � minha vez! -resolvi.
Na sa�da do trabalho comprei um buqu� de flores e uma torta. Bati
na casa de Tati. Em meio � barulheira dos c�ezinhos, Guel abriu a
porta. Fitou as flores, irritado.


-N�o sabia que tinha combinado um encontro com minha m�e.
-N�o marquei. Preciso falar com ela. Sentei no sof�. Depois de uns
quinze minutos, usados
certamente para se arrumar, Tati entrou. O filho trancou-se no
quarto.
-Flores?
Notei o meio sorriso. Botou o ramalhete em um vaso, sentou-se.
Ofereci a torta.
-Ih, hoje n�o fiz jantar. Estou de regime e...
-Fica tranq�ila, se quiser a gente come um peda�o de torta e
conversa.
Meio sem jeito, serviu dois pratos.
-Adoro chocolate -ela disse.
Era a deixa para come�ar a conversa.
-Sinto muito por ontem. Mas � que... Acho que voc� entende.
-Claro que sim. Seu cachorro.
-Pois �. Meu cachorro. Sorri esperan�osamente.
-Mas voc� tamb�m tem c�es. � apaixonada por eles.
-Os meus cachorrinhos eu controlo. Boto no canil. Eles latem,
irritam, mas n�o acordam todo o condom�nio.


#
-Huskies uivam.
-Os meus n�o escalam alambrados. Ou atravessam arame farpado.
-Sim, realmente o Uno � diferente. Especial.
-Voc� j� contou quantos encontros deixamos de ter porque voc�
tinha que ficar com ele?


-Foram s� duas vezes. Ele ficou doente e eu... Bem, quando eu era
crian�a tive um cachorrinho que morreu envenenado, depois tive
uma capa preta... Enfim, n�o quis deixar o Uno sozinho. Fiquei
preocupado.
-Tudo bem. Eu tamb�m n�o deixaria os meus. Mas o seu cachorro
� uma for�a da natureza. � pior que um furac�o.
-Tamb�m n�o exagere.
-Ontem eu fiz jantar, me arrumei, achei que a gente estava se
entendendo e de repente estava com um husky siberiano no meio da
cama!
-Ele j� est� hospedado em um hotel.
-O fato � que eu nunca vivi um tri�ngulo amoroso com um
cachorro.
-Voc� est� exagerando.
-Estou?
-Vai ter ci�me de um husky?
-N�o � bem ci�me. Ontem fui trocada por um cachorro.
-Foi uma crise.
-Ser� sempre assim. Voc� � doido por esse cachorro. Olhe aqui, eu
sei muito bem que voc� perdeu a pessoa que amava, que mudou
para c� num momento dif�cil e que o cachorro � seu melhor amigo.
Entendo. Mas e eu? Onde fico?
-Voc� est� sendo irracional, Tati. Irracional.
-Voc� � que � irracional.
-Parece que o �nico racional � o cachorro.
-Agora voc� est� perdendo a raz�o.


Os dois pratinhos com torta j� abandonados. Ela decidiu falar:


#
-Sou franca. Voc� � um cara legal. Temos uma idade parecida,
gostamos de morar aqui, longe da cidade, a nossa conversa rola,
quando a gente come�a n�o p�ra mais, enfim... Nem temos idade
pra disfar�ar que estamos come�ando alguma coisa. Mas voc� vai
ter que decidir.
-O qu�?
-Se prefere a mim ou o cachorro. Sem hesitar,
respondi:
-Fico com o cachorro.
Fugi antes que ela me atirasse a torta na cara.



7

O que tem que ser, ser�, diz a sabedoria popular, que mais uma
vez se mostrou correta. Na data marcada, retirei Uno do hotelzinho.
Veio no carro calmamente, at� nos aproximarmos de casa. Nesse
momento, se agitou. Pulou na janela. Ganiu. Mexia o pesco�o como
se quisesse me mostrar alguma coisa.
-Saudade de casa, Uno? -perguntei ingenuamente. Dirigi bem
devagar, enquanto tentava segur�-lo com
uma das m�os.
-Quieto, Uno, quieto!

#
S� ent�o refleti que talvez n�o fosse exatamente saudade!
Algu�m segura um husky enlouquecido de paix�o pelo cheiro do
cio?
Sim, eu havia sido otimista demais com as datas. O tempo no
hotelzinho n�o fora suficiente! Arrastei Uno para o quintal. J� era
noite. Resolvi, apesar do rombo que provocaria no meu or�amento:


-Amanh� ele vai voltar pro hotelzinho.
Fora um longo dia de trabalho. Estava cansado.
-Esta noite fico de olho!
Botei a ra��o. Esquentei o jantar, que a empregada deixava em
panelas sobre o fog�o. Ao me sentar para comer, ouvi um grito
injuriado na vizinha, seguido por latidos e uivos.
-Saia daqui, peste, saia!
-Ih! Sujou! -exclamei.
Corri para fora e constatei o drama. A vizinha uivava sentada no
jardim da frente, com a cachorrinha Sonata no colo. O marido
atirava jatos de �gua da mangueira sobre Uno, que resistia no
jardim.
-Que aconteceu?
-Ainda pergunta? -gemeu a vizinha -Esse seu cachorro
monstruoso atacou a minha queridinha. Foi s� um minuto, um
�nico minuto, quando deixei a Sonata na cozinha e fui tomar um
banho. Ouvi um barulho esquisito, mas n�o me preocupei. Pensei
que esse safado ainda estivesse no hotelzinho.
-Tirei hoje, pensei que o cio tinha acabado. Nem sei como ele pulou


o alambrado, s� ficou sozinho enquanto eu esquentava o jantar.
-Esse seu cachorro parece um gato! -disse o marido. -Eu vi
quando ele fugiu da outra vez. Sobe pelo arame como se estivesse
andando no ch�o! � o que deve ter feito. Escapou e entrou na nossa
cozinha, onde estava a pobre Sonata e...
-Quando eu entrei na cozinha, ela, ele, eles... Ah!
-Ih... Ser� que...


#
-Foi. -concordou o marido -Eles estavam fazendo o d�-r�-mi!
-Eu devia chamar a pol�cia -choramingou a mulher.
-N�o � caso de pol�cia! N�o se prende um cachorro por sedu��o argumentei.
-Mesmo porque, ao que tudo indica, houve
consentimento da outra parte. Agora a sua Sonata deve estar
gr�vida.
-Ser�?
-Dizem que basta uma vez. O jeito � a gente se conformar. De certa
maneira, viramos parentes.
Sa�, arrastando meu cachorro, que, � claro, n�o pretendia deixar o
quintal por nada deste mundo.
-Voc� tem que tomar ju�zo, Uno!
Dali a pouco tempo a cadela j� ostentava a barriguinha.
-Vou ser vov� -anunciou a dona.
Meses depois, nasceram tr�s filhotes, bem peludinhos.
-Voc� � papai, Uno! Papai!
Ele uivou, feliz, como se tivesse acompanhado a companheira na
maternidade.
Quase fiquei com um. Machos, por�m, costumam brigar entre si. �
uma quest�o territorial. Al�m disso, a vizinha tinha outros planos:
-Estou louca por eles. At� j� t�m nomes: Beethoven, Mozart e
Vivaldi.
-Quem sabe na pr�xima ninhada venha alguma f�mea e voc� possa
homenagear as personagens de �pera: Carmem, Tosca... -comentei.


-N�o haver� pr�xima ninhada -garantiu a mulher. -Minha Sonata
n�o vai cair nas patas de nenhum outro c�o.
Observei a cadela dando de mamar aos tr�s filhotinhos de uma s�
vez, encantada com a maternidade. "Tem dona que � cega!", pensei.
A vida estava melhor. Fui promovido a diretor de reda��o de uma
das revistas da editora. Sal�rio bom. Nunca mais encontrei Tati.
Evitei visitar sua irm�. Sa�a com meus amigos jornalistas. Oferecia
churrascos nos fins de semana. Iniciei uma terapia.


#
-O tempo passa e eu ainda sinto falta da pessoa que perdi,
continuo preso nas mesmas emo��es, a tudo que aconteceu!
-Cada pessoa tem seu tempo -explicou Vicente, o terapeuta. Algumas
s�o r�pidas, outras demoram muito para se desligar de
uma experi�ncia. N�o h� certo ou errado.
-Minha �nica rela��o afetiva est�vel � com meu cachorro!
-Dizem que quem n�o consegue gostar de um animal ser� incapaz
de amar outra pessoa. N�o seja severo com voc� mesmo, viva seu
pr�prio ritmo.
Meditava sobre meus sentimentos. Como se esquecer fosse trair.
Apesar da dor, da saudade, eu tentava manter a lembran�a a mais
viva poss�vel. E a cicatriz continuava aberta. Desde crian�a, ouvia
dizer que o amor � �nico. Que deve ser doado a uma s� pessoa.
Perder algu�m era o mesmo que encerrar a vida afetiva. Com o
tempo, por�m, comecei a pensar que talvez fosse diferente. A gente
ama a fam�lia, os amigos... e pode amar outra pessoa, mais uma vez,
e outra e outra! O cora��o n�o � um loteamento dividido em
terrenos onde cada um toma posse do seu peda�o. E que depois fica
lotado, com terrenos grandes e pequenos, dependendo do amor que
se dedica a cada um. N�o. O cora��o � um mundo. � enorme, e
capaz de abrigar muitos amores. Cada pessoa que chega tem o seu
lugar, porque a capacidade de amar � infinita. S� que, naquele
momento, as portas do meu cora��o estavam fechadas, e eu n�o
tinha a chave para abri-las.
Precisava de tempo. Do meu tempo. Teria que ter paci�ncia. Esperar
que as portas se abrissem e eu pudesse receber um novo
sentimento.
Enquanto isso, tinha meu trabalho, meus amigos e meu cachorro.
Assim, n�o procurei Ta ti por um bom tempo. Acabamos nos
encontrando num supermercado meses depois. Ela me viu de longe
e acenou:
-Oi!
-E a�, tudo bem?

#
Ao seu lado, um senhor alto, de cabelos grisalhos e jeito s�rio.
-Este � o Jean -apresentou. Estendi a m�o. Ele sorriu secamente.
-A gente vai dar um churrasco s�bado -ela disse. -Se quiser
aparecer...
As pupilas do homem faiscaram.
-J� tenho um compromisso -disfarcei, -Bem, eu vou indo.
-A gente tamb�m j� vai. At�!


-Claro. At�!
Em casa, olhei-me no espelho. Comparei. Seria parecido com aquele
senhor de cabelos brancos? N�o, tinha poucos fios grisalhos. E o ar
definitivamente mais bem-humorado. N�o me senti exatamente
trocado. Mas era estranho encontrar Tati com aquele homem,
namorando. "A vida segue", refleti.
Talvez nunca mais a tivesse visto se n�o fosse por Uno. Sempre tive


o h�bito de escrever at� de madrugada, principalmente nos fins de
semana. Escolhi a carreira de jornalista por necessidade de
sobreviv�ncia, mas ainda sonhava com meu livro. Recentemente
havia sido convidado a escrever cr�nicas para uma revista de
grande circula��o nacional. Foi uma oportunidade maravilhosa
porque, semana sim, semana n�o, tinha que pensar em novos temas,
trabalhar o texto. E me tornei mais disciplinado. De noite, botava o
pijama e sentava para escrever de frente para a varanda. Certo
s�bado, estava no meio de um texto quando ouvi um uivo
desesperado e, em seguida, uma s�rie de ganidos cheios de
sofrimento.
-Uno? -levantei-me.
Ele aproximou-se da porta-balc�o mancando, parou na minha frente
e ergueu o focinho ganindo por ajuda. Na sombra da varanda
estava quase irreconhec�vel; seus contornos indefinidos pareciam os
de um monstro. Olhei melhor. Que horror! Focinho, cabe�a, p�los,
tudo estava coberto por um emaranhado de espinhos. Tantos que,
no escuro, o faziam parecer um personagem de filme de terror.
Durante um instante n�o entendi o que acontecera.
#
Em seguida pude perceber do que se tratava. J� ouvira falar de
outros casos na vizinhan�a.
-Voc� atacou um ouri�o!
Aproximei-me delicadamente. Coloquei a m�o em um espinho para
tirar. Ele deu um grito quase humano e afastou o focinho. Percebi
que estava bem preso. Peguei um solto em seu p�lo para verificar.
Era impressionante.
O espinho de um ouri�o � uma esp�cie de agulha de osso grossa e
r�gida, muito mais forte do que jamais imaginei. O pior: possui
pequenas ranhuras que facilitam sua entrada, mas que rasgam a
pele quando o espinho � puxado, provocando mais feridas. A for�a
do ouri�o para expeli-los tamb�m me impressionou: alguns
atravessavam o focinho, at� o interior da boca. A cada instante
penetravam ainda mais. Espalhavam-se por todo o corpo. O rosto
concentrava o maior n�mero, quase imposs�vel contar quantos ao
todo. Era �bvio o que sucedera. Um ouri�o entrara no quintal vindo
da reserva ao lado do condom�nio. Atacado pelo husky, defendera-
se soltando todos os espinhos de uma s� vez, numa verdadeira
explos�o.
Meu husky sofria desesperadamente.
Eu conhecia um veterin�rio em um bairro pr�ximo. O consult�rio
era em sua casa. Rezei para encontr�-lo, apesar de serem 11 horas
da noite.
-Posso atender, mas tem que traz�-lo at� aqui, onde tenho tudo que
� necess�rio.
Peguei a coleira. Aproximei-me. Uno esquivou-se, gemendo.
Estendi a m�o. Uivou alto. Seria dif�cil colocar a coleira em um c�o
cheio de espinhos. Imposs�vel dirigir o carro at� o veterin�rio com
um cachorro agitado, se contorcendo e gemendo. E se pulasse sobre
a dire��o? S� havia uma op��o: liguei para Tati.
-Preciso de ajuda.
Por mais irritada que ainda estivesse comigo e Uno, ela amava os
c�es. N�o hesitou.

#
-Vou agora mesmo. Conseguimos coloc�-lo no banco de tr�s de
meu carro.
Sentei-me a seu lado. Ela dirigiu enquanto eu tentava acalm�-lo
docemente. Mantinha a voz em tom sereno para que n�o ficasse
mais assustado.
-Fique tranq�ilo, amig�o, j� vai passar.
Tentei imaginar o que passava por sua cabe�a. Certamente ele n�o
entendia aquela saraivada de espinhos. Vivia uma experi�ncia
traum�tica, terr�vel. Ao mesmo tempo era incr�vel como confiava
em mim. Ao sentir dor, viera me procurar, implorando por ajuda.
Mesmo agora no carro, ganindo baixinho, seus olhos gritavam que
eu era sua �nica esperan�a.
-Ah, meu cachorro, fique tranq�ilo, j� estamos chegando.
Paramos em frente � cl�nica. O veterin�rio me ajudou a carreg�-lo
at� o consult�rio.
-Segurem enquanto amarro as patas.
Coloquei a m�o sobre o alto da sua cabe�a -o �nico local livre de
espinhos.
-Calma, Uno, calma.
Arrasado, ele gania baixinho. O veterin�rio aplicou a anestesia.


-Se n�o dormir, a dor da retirada dos espinhos ser� insuport�vel.
Aos poucos sua respira��o se tornou mais leve. O veterin�rio pegou
um alicate.
-Vai demorar um pouco. Se quiser esperar l� fora, ler uma revista...
Era imposs�vel. Queria permanecer por perto. Coloquei a m�o sobre
a coxa de Uno. Parecia t�o fr�gil sedado! Ao meu lado, Tati
observava. De alicate na m�o, o veterin�rio puxou o primeiro
espinho. Depois o segundo, o terceiro... Alguns haviam penetrado
bem fundo. Muitos tinham atravessado o p�lo espesso do dorso e se
cravado na pele. A boca era o local mais atingido (provavelmente
Uno tentou morder o ouri�o). Foi exaustivo. Durante duas horas e
meia o veterin�rio arrancou os espinhos e estancou o sangue. Tati
permaneceu ao meu lado.


#
-� melhor ele passar um dia internado em observa��o.
Concordei. Deixei meu cachorro adormecido, com o cora��o
apertado.
Levei Tati para casa. Era madrugada.
-Um caf�? -convidou.
-Ah, eu... n�o quero incomodar.
-N�o tenho hora para acordar. Esqueceu que estou desempregada?
Entrei.
-S� n�o podemos falar alto porque meu filho est� dormindo. Tem
aula amanh�.
Se era para evitar barulho, foi in�til. Os c�ezinhos, presos, fizeram
um escarc�u quando entramos. Depois de alguns gritos de sil�ncio,
nos refugiamos na cozinha. Ela ligou a cafeteira el�trica, serviu duas
x�caras.
-Obrigado. Nem sei o que faria sem voc�, Tati.
-N�o foi por voc�, foi por seu cachorro.
-Eu sei. Voc� andou bem irritada comigo.
-Fiquei brava com voc�, sim, que botou o husky no meio da cama,
justo quando... Deixe pra l�. Eu adoro cachorro. Acha que teria
cinco se n�o gostasse?
Sorriu, prosseguindo:
-Voc� � um bom sujeito. Quem gosta de cachorro tem uma coisa
especial. Mas voc� � um pouco doido, nunca vi ningu�m t�o
apegado a um amigo peludo. Depois de conhecer voc�, entendi
aquelas hist�rias de velhos norte-americanos que deixam a heran�a
pra um bicho de estima��o.
-Perdi muita coisa na vida, Tati. Sempre fui um sujeito meio
sozinho, mas de uns tempos pra c� estou mais.
Resumi minha hist�ria em r�pidas palavras. Tive uma m�e ausente.
Hoje entendo melhor sua dist�ncia: trabalhava fora em uma �poca
em que as m�es eram donas de casa. Do ponto de vista de um
menino, n�o era f�cil passar o dia sozinho enquanto os outros
tinham as m�es � disposi��o para fazer bolos, brigadeiros, refrescos.


#
Quando eu j� era quase adolescente, nasceu meu irm�o. Perdi o
posto de ca�ula. O afeto de minha m�e concentrou-se no beb�, que
passou a merecer toda sua aten��o. Quando terminou a licen�a-
maternidade, deixava meu irm�ozinho na creche de manh� para
peg�-lo no fim da tarde e passar a noite enchendo-o de carinhos.
Tudo na casa girava em torno do beb�. At� meu av� me dizia, em
tom de brincadeira:

-Perdeu o trono!
Sa� da casa dos meus pais logo no in�cio da vida adulta. Queria
morar sozinho, mas no fundo sentia uma falta imensa da vida
familiar. Nunca fomos muito bons com datas l� em casa. Lembro-
me que quando eu vivia nos Estados Unidos, onde fui tentar a vida,
mam�e enviou uma carta dizendo ter sentido saudade no meu
anivers�rio, e que at� pensou em fazer um bolo. Mas no primeiro
anivers�rio depois de minha volta ela se esqueceu do dia! N�o fez
bolo nenhum para minha triste surpresa. Esse � s� um exemplo das
in�meras pequenas decep��es de minha vida familiar.
Minha grande experi�ncia amorosa terminara de forma tr�gica. Eu
n�o sabia como reestruturar minha vida afetiva. Come�ar de novo,
enfim. Ao mesmo tempo, a solid�o era dolorosa.
-Tenho m�e, irm�os, mas s� nos vemos raramente, em datas
marcadas. N�o � como a maioria das fam�lias, que se freq�enta o
tempo todo. E foi assim que fiquei s� eu com meu cachorro conclu�.
Amanhecia. Tati estendeu a m�o sobre a minha. Eu a olhei. Foi a
primeira vez que nos beijamos de verdade.
Mais tarde eu soube que seu namoro com o homem grisalho durou
s� algumas semanas. Ela queria investir em nossa rela��o.
J� que n�o podia lutar com meu husky, Tati uniu-se a ele. Passava
boa parte do tempo comigo, pois sua casa era territ�rio
compartilhado com o filho Guel. �s vezes trazia os c�ezinhos.
Refeito do trauma do ouri�o, Uno rosnava para os machos. Tati

#
impedia confrontos. Seus schnauzers tamb�m brigavam entre si, a
ponto de irem fazer curativos no veterin�rio com freq��ncia.
Sobre o namorado grisalho, s� falamos uma vez.
-Voc� estava em desespero de causa -comentei.
-Ele n�o � t�o ruim assim. Mas tentou me dar o golpe nas j�ias.
-Ahn?
Simplificando: Tati ainda tinha algumas j�ias que havia ganho do
segundo marido, o rico. J� tentara vend�-las, no entanto pagavam
pouqu�ssimo. J�ias s�o assim: caras para comprar, mas n�o valem
quase nada na hora de se desfazer delas. Desistiu.
-Ele estava desempregado e me pediu as j�ias para pagar uma
d�vida. Brigou porque eu recusei.
-O qu�? Voc� est� na pior e ainda arruma um endividado?
-�... Quanto mais eu rezo, mais assombra��o aparece!
Sua situa��o era dif�cil: n�o encontrava emprego de jeito nenhum.
Eu me acostumara com os relat�rios cotidianos.
-Fui entrevistada por uma coreana. Fiquei 45 minutos falando
sobre minha experi�ncia profissional e s� depois ela disse: n�o
entendo bem portugu�s!
-Era uma f�brica de m�veis de alto padr�o, mas soube que o dono
� trambiqueiro.
-Tenho exatamente o perfil que eles querem, mas � pra morar em
Manaus. N�o posso por causa do meu filho.
Pegou roupas para vender:
-Assim eu tiro algum.


Visitava as amigas, com a mala na m�o. Perguntei do projeto da
f�brica de velas.
-Deu errado. No in�cio todo mundo comprou. Mas s� vendi mesmo
para os amigos. Depois que estavam abastecidos, fiquei sem
freguesia.
Sua ansiedade era vis�vel. Minha vida melhorava. Contudo n�o o
suficiente para resolver a dos dois.
-Penso em vender a casa, comprar uma mais barata.


#
-E depois, vai fazer o qu�, Tati?
-Quem sabe com a diferen�a monto um neg�cio? Suspirou:
-Sabe, o mundo avan�a, mas continua sendo dif�cil ser mulher.
Profissionalmente, eu digo. Com a minha experi�ncia, um homem j�
teria encontrado emprego.
-Talvez n�o. Outro dia peguei um t�xi e o motorista era um exexecutivo.
-�... Pode ser.
-O problema � que profissional tornou-se produto descart�vel no
pa�s. Depois de certa idade fica dif�cil arrumar emprego.
Pensava em mim. Boa parte dos jornalistas de minha gera��o j�
estavam fora do mercado. Arrumavam empregos mixurucas para
poderem sobreviver.
-Tamb�m sinto medo -comentei -Se eu perder esse emprego, n�o
sei o que vai rolar.
-Voc� escreve cr�nicas, fez pe�as de teatro...
Abracei-a. Sabia que dificilmente Tati encontraria emprego, no
entanto n�o queria mago�-la ainda mais dando uma opini�o
negativa. � horr�vel tirar a esperan�a de uma pessoa.


-Vai dar tudo certo, Tati. Durante alguns meses batalhou com as
roupas. Ia a
confec��es. Levava malas �s amigas. Lembrava, melanc�lica:
-Quando eu era diretora de empresa entrava numa loja e escolhia
um vestido de cada cor!
Quando fez anivers�rio, ofereceu-me a primeira fatia do bolo. As
amigas aplaudiram.
-Vai sair casamento! -comentou Cristiana. Sorrimos. Seu filho me
encarou:
-Se ele entrar por uma porta, eu saio pela outra. Levei um susto.
Houve um sil�ncio constrangedor. Mais
tarde conversamos:
-O Guel n�o gosta de mim?
-Tem ci�me. Ainda � muito ligado ao pai.


#
Eu n�o me sentia pronto para assumir um compromisso. Tati estava
em uma situa��o de urg�ncia. Sua vida precisava de defini��es.
Alguns dias depois entrou na conversa:
-Eu acho que duas pessoas maduras podem viver juntas por
carinho, amizade. N�o precisa ser uma grande paix�o.
-Concordo -respondi -, mas � preciso bater a hora certa.
-Meu despertador j� tocou h� muito tempo.
Mudei de assunto. Tati continuava decidida a definir a vida. Fosse
com emprego ou casamento. Voltou ao tema in�meras vezes. Eu
enrolava. Exatamente: enrolava. Tinha come�ado um namoro. S�.
Tudo andava depressa demais. Nossas conversas se tornaram mais
r�spidas.


-N�o posso ser tratada como uma adolescente.
-Voc� est� ansiosa; vamos ver o que acontece.
-Eu j� sei o que acontece: voc� fica no seu mundinho, e n�o tem
espa�o pra mim.
-A gente se v� quase todo dia, passa o fim de semana junto.
-Eu quero dividir a vida.
Quando sozinho, eu me questionava, em longas conversas com meu
melhor amigo:
-Eu n�o quero dividir a vida, Uno. Ela � legal, � �tima, mas ainda
falta alguma coisa. S� que ela me pressiona. Est� ficando dif�cil.
Ele me encarava seriamente, ouvindo cada palavra.
-Vida de cachorro � a minha! -lamentei-me. Dias depois, Tati me
telefonou animada.
-Arrumei emprego.
Respirei aliviado. Talvez assim n�o ficasse t�o ansiosa. Puro
engano.
Cheguei a sua casa com um ramo de flores.
-Vamos jantar fora para comemorar -prop�s. Notei seu sorriso
esquisito, como se tivesse alguma
coisa para dizer. Sou jornalista, percebo quando algu�m est�
escondendo uma informa��o. Como diria Uno, s�o ossos do of�cio.


#
-� bom o cargo? -eu perguntei.
-No restaurante conto tudo!
Pegou o casaco. Seu filho sorria feliz. Era estranho. Alguma coisa
estava para ser dita. Mas o qu�? Sentamos. Veio o couvert. O
card�pio.
-Voc� n�o vai me falar sobre o emprego?


-Ah, sim, vou ser diretora administrativa de uma empresa. N�o �
bem minha �rea, mas tudo bem. O sal�rio � bom.
-Puxa, pegou a vaga apesar de n�o ter curr�culo?
-� no interior do estado. Primeiro golpe. Encarei.
-Mas voc� n�o queria mudar daqui por causa do garoto.
-S�o s� algumas horas de viagem. D� pra gente se ver sempre.
Todos os fins de semana ele vai ou eu venho. J� falei com minha
irm�, ele fica na casa dela.
Imaginei: "Vai ser chato a gente ficar longe", pensei. Mas sorri,
otimista:
-Assim que voc� montar sua casa, tamb�m posso ir at� l�. Se estiver
escrevendo um livro, levo meu laptop...
Notei sua express�o. Um sapo prestes a saltar de sua boca.
-Pois �. Eu ainda n�o disse, mas a f�brica � do meu ex-marido. Do
segundo, o rico.
-Ahn?
-Eu estava num mato sem cachorro, j� n�o sabia mais o que fazer.
Estou vivendo no limite do cheque especial todo m�s. Pendurada no
cart�o de cr�dito. Pe�o ajuda a minha irm�, mas me sinto mal por
isso.
-E as roupas, n�o est�o dando?
-Tenho que vender em duas, tr�s, quatro vezes, sen�o ningu�m
compra. �s vezes o cheque volta. No �ltimo m�s pendurei at� o
veterin�rio. Os cachorrinhos gastam uma grana em ra��o, banho e
tosa. Veja a decad�ncia, economizar at� no banho dos peludinhos!


-Por que voc� n�o...


#
Calei-me. Ela n�o havia me contado porque eu n�o me tornara um
companheiro de verdade. Era apenas um namorado.
-Voc� � �timo, a gente ficou um bom tempo junto, mas eu tenho
que tocar minha vida. Vou mudar.
-Vai voltar com seu ex?
-A gente nunca falou sobre isso. � s� um emprego. Mas eu acho
que ele... Ah, sei l�... S� que fica meio chato voc� aparecer.
-Ent�o voc� vai, e eu fico. � isso. A comida secou
na minha boca.
-Acho que sim.
O gar�om se aproximou:
-Aceitam sobremesa?
-O caf� e a conta, por favor.
Ajudei-a a embalar os m�veis. A organizar a mudan�a. A botar os
cinco cachorrinhos revoltad�ssimos em caixas de papel�o, nos
bancos do carro. Minhas m�os, repletas de arranh�es e
mordidinhas. Na despedida, Tati me deu um beijinho r�pido na
boca. Coisa de amiga.
-A gente se v�.
-Claro, a gente se v�.
Voltei para casa com um sentimento de vazio. Uno veio correndo ao
port�o, de rabo erguido para dar as boas-vindas. Sentei-me na
escada que levava � varanda. Ele se aproximou. Puxei-o para meu
colo. Fiz carinho algum tempo.
-Somos s� n�s dois outra vez, Uno. Ficamos algum
tempo sozinhos.


Dois passarinhos voaram na dire��o da varanda e pousaram em um
vaso de samambaia. Estranhei. Fui olhar.
Haviam constru�do um ninho dentro do vaso! Dois filhotinhos de
boca aberta esperavam a comida dos pais. Foi uma das cenas mais
incr�veis que j� vi. Corri para fotografar.


#
-Viu s�, Uno? Que lindos! Notei um olhar apetitoso. Pensei que um
dia os passarinhos iam aprender a voar. Algum poderia cair no
ch�o.
-Eu n�o estou gostando do seu jeito, safado!
Meu cachorro comia tudo. Absolutamente tudo o que visse pela
frente. Ra��o. Patos. N�o tentara devorar um ouri�o? Passei as
semanas seguintes fiscalizando o crescimento dos passarinhos. Eu
me sentiria muito mal se algum deles fosse devorado por um husky.
Algumas semanas depois, vi os filhotinhos voando para fora do
ninho. E me senti mais feliz. Sorri para ele.
-A vida � assim, Uno. Tudo vai e vem. Eu vou sentir falta dela. Mas
espero que tudo d� certo em sua nova vida.
Sentei, pensando:
-Tamb�m estou tendo uma vida. N�o � como eu planejei, mas h�
muita coisa legal. � uma vida. Minha vida. E eu ainda n�o estou
pronto. Queria ser diferente, mas em mim os sentimentos s�o
profundos, e as feridas n�o cicatrizam t�o depressa. Eu ainda n�o
sou capaz de amar novamente.
Contemplando a mim mesmo, senti uma imensa paz.

#
8

Acordei de madrugada sentindo uma dor pavorosa que irradiava
violentamente a partir do est�mago. Levantei-me com dificuldade.
Deitado ao lado da cama, Uno ergueu a cabe�a um pouco sonolento.
-Est� doendo, Uno. Muito.
Molhei uma toalha com �gua quente, coloquei na regi�o. In�til. Tive
certeza.
-S� pode ser s�rio.
Apalpei meu est�mago. Pressionei com os dedos. Durinho. Mais um
motivo para preocupa��o. N�o sou m�dico, por�m, ao longo da
vida, um jornalista re�ne todo tipo de informa��o. Em inflama��es
agudas, o abdome endurece. Respirando fundo, vesti-me
lentamente. Peguei os documentos e a carteirinha do plano de
assist�ncia m�dica. Lembrei que tinha direito a um hospital no
bairro do Mo-rumbi. Mas eu morava em um condom�nio rural, nas
fronteiras da cidade. Seria preciso pegar a estrada. Arrastei-me at� a
cozinha. Ao enfiar a chave na fechadura, tive no��o da minha
loucura.
-Como vou dirigir pela estrada com tanta dor, a perna repuxando?
Uno e eu nos entreolhamos.
-Preciso de ajuda humana.
Liguei para a portaria do condom�nio. Expliquei a situa��o.
-Tenho que ir a um pronto-socorro.
O guarda da noite me pediu que esperasse um minuto. O s�ndico
ligou em seguida.


#
-Vou para a�. Em que hospital � o seu conv�nio? Respondi. Fez
mais um pedido, que se mostrou providencial.
-Deixe o port�o e a porta abertos.
N�o entendi o motivo, mas obedeci. Botei Uno na sala e abri a porta
da cozinha, perto da garagem. Ele uivava. Com o controle remoto,
ergui o port�o (era um dos pequenos confortos instalados ap�s o
epis�dio do le�o). Sentei-me. A dor quase me enlouquecia. De
repente tudo escureceu.
Acordei em uma maca de hospital, sendo levado por um corredor.
O s�ndico acompanhava um m�dico, ambos ao meu lado.
-Que aconteceu, doutor?
-Voc� tem algum parente que possamos acionar? Dei o telefone de
minha prima, que morava na cidade.
-O que �?
-Apendicite.
Fui levado �s pressas para o centro cir�rgico. O anestesista me
aplicou uma inje��o:


-Fique tranq�ilo. Vai adormecer, mas est� tudo bem. Antes de
perder a consci�ncia novamente, lembrei-me
de que �s vezes tinha pontadas do lado direito da barriga. "N�o
deve ser s�rio", pensava. Agora se transformara em caso de
urg�ncia. Ap�ndice supurado pode provocar infec��o generalizada.
Morte. Respirei fundo. E mergulhei profundamente.
Acordei em um centro p�s-operat�rio com duas enfermeiras
tentando me animar, alegremente.
-Tudo bem? Como est� se sentindo?
Tinha vontade de dormir, mas n�o deixavam. Puxavam conversa,
exigiam respostas.
-Agora voc� precisa ficar acordado. Depois poder� dormir.
Instalaram-me em um apartamento. Meu conv�nio, fornecido pela
empresa, dava direito a acompanhante. Sentia dor, desconforto.
Minha prima j� estava a postos.
-Voc� trouxe alguma coisa?


#
Eu vestia apenas um avental hospitalar.
-Tudo aconteceu de repente -respondi, j� fechando os olhos.
Na manh� seguinte, ela havia trazido pijamas, escova de dentes,
perfume.
-Fui at� sua casa. Est� tudo bem.
-E o Uno?
-A empregada vai cuidar. N�o se preocupe. Agora tem que se
recuperar. Voc� teve sorte.
Segundo me contou, o ap�ndice estava prestes a estourar. Se n�o
fosse a ajuda do s�ndico, nem sei. Fora esperto ao me pedir para
deixar a casa aberta. Ao me visitar, explicou:
-Sei que voc� mora sozinho. Se desmaiasse, com a casa trancada,
como acudir?
A frase ficou martelando na minha cabe�a. Eu vivia em um
condom�nio de terrenos grandes. Quase rural. Qualquer problema
pequeno podia se tornar gigantesco. Que fazer?
Fiquei internado alguns dias. Minha prima foi me buscar. Desci do
carro cautelosamente. Ainda tinha curativos, sentia dificuldade de
andar. Sentei-me no sof�. Uno me observou ressabiado, com os
p�los eri�ados. Olhar estranho. Aproximou-se. Pulou no sof�. Subiu
nas minhas pernas e enrolou-se inteiro no meu colo, querendo ficar
bem pertinho. Solid�rio. Afetuoso. Como se soubesse tudo que
passei.
-Uno, Uno, est� tudo bem, amig�o!
Minha recupera��o foi r�pida. Dez dias depois, voltei a trabalhar. J�
n�o me sentia seguro em morar t�o sozinho com meu cachorro e
n�o mais que uma empregada durante o dia. Minha prima me
aconselhou:
-Agora voc� tem que cair em si. Imagine todas as coisas que podem
acontecer!
Um colega de trabalho insistiu:
-E se voc� cair e quebrar uma perna? Se n�o conseguir chegar at� o
telefone? Quem vai ajudar?


#
Tinham raz�o. Mas gostava da casa, da vida no campo. Nela superei
a pior fase da minha vida. J� estava l� havia anos, agora, e n�o
sentia vontade de sair. Adiei qualquer decis�o.

Dizem que Deus escreve direito por linhas tortas. Muitas vezes,
acho que Ele me protege especialmente. Tenho motivos para
acreditar. N�o sou muito de ir � igreja, contudo tenho uma
profunda f� na divindade, e v�rios fatos da minha vida refor�am
esse sentimento. Certo domingo quebrei minha rotina. Nos fins de
semana, normalmente eu ficava em casa. No s�bado, �s vezes
recebia amigos e colegas de trabalho ou ia a churrascos por perto.
No domingo descansava, j� me preparando para o batente da
semana. Daquela vez, abri uma exce��o. Resolvi assistir a um grupo
de teatro tcheco: o Teatro Negro de Praga. Comprei dois ingressos
com anteced�ncia, imaginando quem levar. Como sempre acontece
nessas ocasi�es, todas as perspectivas sexuais deram errado, mesmo
porque, nesse sentido, minha agenda andava p�ssima. Acabei
chamando um jornalista que trabalhava comigo, rec�m-separado. O
espet�culo come�ava no fim da tarde. Fomos almo�ar e ficamos
conversando sobre as dificuldades de um processo de div�rcio at�
pouco antes do hor�rio. Mal entrei no teatro, o pessoal da seguran�a
do condom�nio me ligou:
-Sua casa foi assaltada.
Adeus, teatro! Disparei at� l�. O pessoal da portaria estava surpreso.
Ningu�m sabia como o assalto podia ter acontecido. Examinamos a
casa: a porta dos fundos arrombada.
-Vi que tinha alguma coisa errada porque o port�o estava aberto explicou
o seguran�a.
Provavelmente para sair os ladr�es haviam usado o controle que
ficava na cozinha. O s�ndico fez uma suposi��o:

-Talvez tenha sido um drogado, filho de algum morador.
Reparei que no ch�o estava jogado um galho de �rvore

#
grande. E Uno? Identifiquei-o atr�s de uma moita, visivelmente
assustado. Peguei o galho.
-Devem ter usado isso aqui para afastar meu cachorro. Embora ele
n�o seja bravo.
-Pode ser -concordou o s�ndico. -� um cachorro grande, tem
porte. Mete medo.
Doeu imaginar algu�m espancando meu husky.
Haviam levado pouca coisa: roupas, o computador e, incrivelmente,
algumas ta�as. Haviam aberto o arm�rio � procura de dinheiro e
atirado minha papelada no ch�o. Tudo revirado. A casa estava um
caos. Na verdade eu n�o tinha nada de valor e, portanto, pouco
havia desaparecido.
-Tamb�m pode ter sido algum ladr�o comum, que j� estava de olho
e entrou pelos fundos.
Como saber?
-Se ao menos voc� falasse, Uno!
Depois de examinar tudo comigo, o s�ndico concluiu:
-� algu�m que conhece a casa, sem d�vida. Veja como n�o quebrou
quase nada. Foi diretamente aonde achou que havia dinheiro.
Assustado, tomei consci�ncia de um problema maior. Era �bvio: o
assalto fora planejado por algu�m que conhecia minha rotina dos
domingos. Pretendiam me encontrar em casa. "Ainda bem que
resolvi ir ao teatro, sen�o me pegavam aqui."
Sei que � errado, mas nem fiz boletim de ocorr�ncia. Deveria ter
feito, sim. Por�m nem sempre a pr�tica corresponde � teoria. Uma
vez fiquei duas horas na delegacia para concluir o B.O. de um carro
batido. Dessa vez, contudo, n�o tinha esperan�a de que
descobrissem os culpados. Ou devolvessem meu computador. Em
meio a tantos crimes violentos, um caso t�o pequeno s� seria
resolvido por sorte. "Minha queixa vai ficar no fundo de uma gaveta",
imaginei.
Mais tarde, sozinho, refleti. E se eu estivesse em casa?

#
Assaltantes cometem enganos. Fazem suposi��es. Muitas vezes
pensam que algu�m tem mais dinheiro do que realmente possui.
Era o meu caso. Tinha um bom emprego em uma editora. A casa.
Gra�as a meu trabalho, conquistara alguma visibilidade. Algumas
das minhas pe�as foram encenadas. Publiquei um livro. Todas essas
atividades s�o glamorosas. Mas um executivo do mercado
financeiro ganha infinitamente mais do que um jornalista. N�o h�
compara��o. No entanto, para quem est� de fora parece o contr�rio.
O jornalista sai muito, vai a festas badaladas, assina seu nome nas
revistas. O escritor tem seu nome nos cartazes, nos programas de
teatro, nas capas dos livros. O especialista em finan�as � um
desconhecido. A conta banc�ria de cada um � completamente
diferente, mas como os ladr�es saberiam disso? Senti medo pela
primeira vez desde que havia mudado para a casa.
Durante semanas, s� deitava depois de trancar tudo. Comprei
cadeado para as janelas. Reclamava:
-Uno, voc� poderia ao menos guardar a casa para pagar a ra��o que
come.


In�til. Meu cachorro abanava o rabo para qualquer um que
oferecesse um p�ozinho (era louco por p�ezinhos)! Que desastre
como c�o de guarda!
Passei a ter medo de voltar para casa. Acordava com qualquer
ru�do, assustado.
Assim, foram dois medos que me fizeram tomar a decis�o:
-Est� na hora de mudar.
Gastava pouco, guardava boa parte do meu sal�rio. Afinal, mal sa�a.
Meus programas de lazer eram simples: cinema, teatro, pizza,
churrasco na casa de conhecidos. Meu �nico dependente, Uno,
contentava-se com dois potes di�rios de ra��o e idas espor�dicas ao
veterin�rio. Vestia-me com simplicidade, sempre com camisa e
jeans. T�nis, a maior parte do tempo. Possu�a agora uma boa
poupan�a, suficiente para dar entrada em um novo im�vel. Seria
ideal vender a casa, mas gostava tanto dela!


#
-Quem sabe, quando eu ficar velho, volto. At� l�, alugo.
Fui ao banco e me candidatei a um financiamento. Durante alguns
fins de semana, sa� com corretores em busca de um novo endere�o.
-V� para um apartamento, que � mais tranq�ilo! -aconselhou minha
m�e ao telefone.
-Preciso de um lugar para o cachorro! -insisti.
Procuramos no bairro mais pr�ximo da editora. Encontrei um
sobrado geminado de um s� lado, em uma vila com um port�o
colocado pelos pr�prios moradores e uma guarita com um guarda.
J� daria alguma seguran�a. Como eram poucos moradores, os
guardas conheciam cada um de perto, o que facilitava ainda mais a
fiscaliza��o. Tr�s quartos, sala, e um pequeno quintal.
-Vai ter que se acostumar com um lugar menor, Uno.
Quando o caminh�o de mudan�a partiu, lamentei deixar minha
casa, mas n�o mudei de id�ia. Hospedei meu cachorro em um hotel
canino at� ajeitar as coisas. Dois dias depois, embora a nova casa
continuasse na mais perfeita bagun�a, fui busc�-lo.
Soltei-o na sala.
-Este � o nosso novo lar, Uno. Sei que � bem menor que o outro.
Prometo passear com voc� sempre que der.
Ele farejou os m�veis, percorreu rapidamente a sala. Em seguida
ergueu a perna e mijou no sof�, na poltrona e no p� da mesinha de
jantar.
-Uno, Uno, o que voc� est� fazendo? -gritou minha m�e, que
estava comigo por alguns dias para me ajudar.
-Marcando territ�rio -respondi. -� para dizer que isso aqui � dele.
-Mas n�o � dele, � seu! � voc� que est� pagando o financiamento argumentou
mam�e.
-Tente explicar.
-Oh, esses cachorros modernos! Voc� tem que ter mais autoridade!
-D� um tempo, vou botar a ra��o. O Uno fica nervoso se demoro
com a comida.


#
Uma nova fase da vida come�ou. Todos os dias eu passeava com ele
assim que chegava. Punha a coleira, que Uno odiava e tentava
retirar com mordidas, depois sa�a pelas ruas do bairro. � fascinante
andar com um c�o. Ele parava o tempo todo, atra�do pelos cheiros,
barulhos. Puxava a coleira e eu o levava at� uma pracinha, onde
farejava o mato, e me levava por caminhos seus, fazendo curvas,
com idas e vindas, talvez refazendo os passos de algum outro
animal. Urinava em v�rios locais para marcar territ�rio. Erguia as
orelhas � aproxima��o de outros c�es ou diante de ru�dos
diferentes.
O encontro com seus iguais era sempre problem�tico. Por sorte, as
pessoas tinham o h�bito de passear com os c�es na coleira. Ao
avistar outro macho, Uno erguia as orelhas, eri�ava os p�los.
Rosnava. O outro fazia o mesmo. N�s, os humanos, pux�vamos as
guias.
-Pare, venha c�!
-Quieto, quieto!
S� consegu�amos afast�-los a custo.
Minha vida pessoal melhorou. Eu estava mais perto de tudo. Podia
sair do trabalho, passar em casa, tomar um banho e sair para o
cinema, teatro, fosse o que fosse. Fiz novas amizades. Assim que
mam�e voltou para sua casa, um tanto � revelia, tamb�m passei a
ter garrafas de vinho abertas nos s�bados � noite, em encontros bem
agrad�veis.
-Um brinde.
-A qu�? A n�s?
-Ao futuro, que a Deus pertence. Tintim!
Ouvia um uivo.
-Que foi?
-Meu cachorro. Est� l� fora. � acostumado a dormir dentro de casa.
Mas hoje � exce��o... Voc� vai ficar, n�o �?


Sorriso. Uivo! Dava uma desculpa e ia falar com o es-traga-prazeres.


#
-Queira ou n�o, Uno, eu tenho certos direitos! Sil�ncio. Olhar de
cr�tica.
-Pode ser que voc� n�o concorde, mas tenho. N�s, humanos, somos
diferentes de voc�s, c�es. Com voc�s � vapt-vupt. Como voc� e
aquela sua namorada de p�los dourados. Bastou um encontro e j� se
acertaram. N�s, humanos, n�o. Temos que tomar um vinho, botar a
sala na penumbra. Eu sei que parece besteira. Cada esp�cie tem seu
ritual. Para voc�, basta botar o focinho no traseiro. Mas se eu botar
meu focinho no traseiro de algu�m, levo uns tapas. No m�nimo.
Tamb�m n�o ser� muito agrad�vel; n�s, humanos, n�o temos o
h�bito de cheirar traseiros. Veja tamb�m a quest�o das lambidas.
Para voc� � simples, Uno, basta esticar a l�ngua e lamber. Eu n�o
posso, mesmo que deseje ardentemente, lamber algu�m atr�s da
orelha. Tenho que bater papo, criar intimidade. Falar de novelas,
cinema, livros, culin�ria. Perguntar o signo, embora n�o conhe�a
quase nada de astrologia. Elogiar. Marcar um encontro. Sair para
jantar ou no m�nimo tomar um drinque. Convencer a vir para casa
com alguma desculpa esfarrapada na qual ela n�o acredita -e que
eu sei que ela n�o acredita. Todo um ritual, Uno. Um ritual. E �s
vezes s� consigo dar uma lambidinha atr�s da orelha e olha l�!
Portanto, pare de uivar e compreenda minha situa��o. Vida de
cachorro � f�cil. A dos humanos � uma complica��o!
Entrava. �s vezes ele silenciava. Outras, uivava ainda mais.


Com o tempo, aprendi a disfar�ar.
-Que cachorro � esse que est� uivando?
-� do vizinho. Um husky.
-Tem gente que n�o sabe cuidar de animal.
-Nem fale, � um desastre! A vida melhorou. �s vezes eu me
pegava sorrindo sem
motivo. "Fiz bem em mudar", conclu�.
Para compensar, sempre que podia passava no a�ougue e trazia um
osso.


#
-Agora n�o tem pato pra voc� ca�ar. Mas olhe s�! Ele saltava para
pegar. Depois, refugiava-se em um
canto roendo. Enquanto o osso durasse, n�o me dava aten��o.
Muitas noites, por�m, continu�vamos na velha rotina. Eu via
televis�o, ele se deitava no sof�. Adormecia. � muito interessante
ver um cachorro dormir. Uno se mexia, dava pequenos ganidos.
Tenho certeza de que sonhava. Talvez se lembrasse da ca�ada aos
patos. Ou tivesse um pesadelo com o ouri�o. Quem sabe? Como
ser� o sonho de um cachorro? Mas, tenho certeza, eu estava presente
em todos eles, porque ficava aconchegado perto de mim. E se
eu me levantava, bastava dar um �nico passo para meu husky
despertar, me seguir com os olhos, �s vezes sem sair do quentinho,
pois adorava o conforto, mas atento aos meus gestos. Quando eu
sentava de novo e punha a m�o em seus p�los, fechava os olhos,
adormecia e voltava a sonhar.
Nessa �poca, aconteceu o inesperado. Meu cachorro arrumou um
emprego! E passou a pagar pela ra��o que comia.


9

Aminha carreira como escritor se consolidava. Publiquei livros
infanto-juvenis e tive mais pe�as de teatro encenadas. Ensaiei meus

#
primeiros passos na televis�o. Tomei uma grande decis�o: larguei o
emprego, apesar de meu cargo de dire��o. Queria mais tempo para
escrever. Pode parecer surpreendente, mas um artista precisa de
pregui�a. Dificilmente consigo criar ap�s um dia repleto de
atividades. Preciso parar, dar um tempo lendo, pensando na vida. �
como se eu "limpasse" a cabe�a para surgirem novas id�ias.
Trabalhei anos como jornalista e escrevia nas horas vagas. No
entanto � medida que meus livros foram publicados, e que novas
oportunidades surgiram, percebi que precisa investir em meu
tempo. Um dia, de madrugada, terminando a revista semanal que
eu dirigia, parei um instante e disse para mim mesmo:
-O que estou fazendo aqui? Se eu dedicar todo esse esfor�o para
mim mesmo, vou chegar onde realmente desejo!

Pedi demiss�o no dia seguinte. Cumpri o aviso pr�vio e um m�s
depois estava livre. Tinha uma pequena poupan�a, suficiente para
viver algum tempo. Minhas despesas b�sicas eram pequenas. Em
jornalismo, ao contr�rio de outras profiss�es, � poss�vel sobreviver
de trabalhos eventuais -o freelance. Uma reportagem aqui, outra ali.
Meus direitos autorais j� rendiam alguma coisa. As cr�nicas que eu
assinava para a grande revista me ajudavam bastante. Um amigo
telefonou:
-Estou lan�ando uma revista dedicada a c�es. Topa escrever uma
cr�nica mensal?
-E se meu cachorro escrever? -propus.
O editor adorou a id�ia. Combinamos o valor do pagamento. Corri
para fora.
-Uno, voc� virou escritor!
Na semana seguinte um fot�grafo, La�lson, apareceu na minha casa
para fazer a foto -colunas costumam ter a imagem de quem assina.
Foi uma loucura. Meu cachorro sempre mostrou uma extraordin�ria
percep��o para fugir de situa��es complicadas. Assim, quando
chamei -"Venha, Uno, venha!" -ele disparou na outra dire��o.

#
Foi uma correria para captur�-lo. Todos o perseguimos: eu, o
fot�grafo, o rapaz da guarita e a faxineira que havia contratado
depois da mudan�a, pois o novo endere�o era distante para a
empregada anterior. Corr�amos para um lado, ele para o outro.
Todos se assustavam quando rosnava, menos eu. Eu sabia que s�
queria dizer:
-Vejam como sou feroz, eu sou bravo, bravo! Morder, n�o mordia.
Agarrei-o e o ergui no colo. Ele se
contorceu, eu o segurei.


-Pare, Uno, pare!
E o levei at� meu computador. Queria uma foto de Uno digitando.
A inform�tica n�o estava em seus planos. Rebelou-se. Quis fugir. Eu
segurava suas pernas. O seguran�a tentava brincar. O fot�grafo
cucava sem parar enquanto ele saltava sobre o teclado. Quis que
pusesse �culos, mas eles voaram para longe v�rias vezes. Eu
gritava. Uno rosnava, resmungava, uivava.
No final, conseguimos v�rias fotos, uma melhor que a outra!
Faltava o texto. De noite, encarei Uno e perguntei.
-Como voc� pensa? Quantas hist�rias tem a� nos miolos?
De repente, eu me senti dentro de sua cabe�a, vendo o mundo com
seu olhar. Para come�o de conversa, quem era dono de quem?
-Eu � que sou seu dono, � claro! Voc� � meu humano! -disse Uno,
seguro de si.
Juro, eu sabia tudo que ele pensava. � incr�vel como os c�es t�m a
capacidade de adivinhar o que estamos pensando. Na hora,
descobri que tamb�m sou capaz de compartilhar os pensamentos de
um cachorro.
Uno escreveu algumas cr�nicas para a revista canina.
Se no decorrer de algumas delas as informa��es forem repetitivas
em rela��o ao que j� escrevi, me perdoem. Este � o texto original de
Uno, meu c�o escritor!


P�ozinho e caviar1

#
Permita que eu me apresente: meu nome � Uno. De �nico. Nasci no Canil
Karras, fui o �nico de minha ninhada. O casal de humanos havia gasto um
dinheir�o para comprar meus pais, huskies siberianos de gloriosa
linhagem. Esperavam lucrar com o nascimento de uns cinco ou seis
c�ezinhos. � o normal -s� os humanos costumam ter somente um filhote
por ninhada. Coitados! Nenhuma f�mea humana pode imaginar a alegria
de amamentar meia d�zia ao mesmo tempo! Quando viram que eu era um
s�, quase morderam minha m�e. Tentaram me vender durante meses.
Encalhei. Acabei sendo entregue a um barrigudo metido a escritor.
Dura � a vida de um cachorro. Humanos s�o bichos muito complicados.
Acreditam que s�o nossos donos! Donos somos n�s, cachorros! Eu me dou
bem com o homem que me pertence. � preciso saber despertar a
generosidade de um humano. Meu truque � fazer um profundo olhar de
sofrimento. Funciona at� para ganhar p�ezinhos, que adoro. Aprendi com
minha m�e, ainda filhote.
-Quando um humano rosnar furioso, n�o responda -aconselhou. Umede�a
o focinho e olhe para ele como se voc� fosse o cachorro mais infeliz
deste mundo.
Sempre tinha dado certo. At� a hist�ria do caviar. Um dia, meu humano
entrou na cozinha com a l�ngua de fora, como se fosse um cachorro das
ruas! Pegou um potinho preto da geladeira. Abriu. Senti um delicioso
cheiro de peixe!


-Caviar -ele murmurou.
Dei apenas um ganido e me mantive de rabo em p�, � espera. O ego�sta nem
me olhou. Cobriu duas fatias de p�o preto com todo o conte�do do potinho.
Nesse instante, tocou o telefone. Foi para a sala atender. Que
oportunidade!
Um cachorro sabe ser cauteloso em momentos decisivos. Aproximei-me,
pata por pata. Fiquei em p� e cravei os dentes nas duas fatias. Ergui o
focinho e sai da cozinha, deixando o prato intacto. Corri para fora. Dali a


1.publicado na extinta revista focinhos, em outubro de 1999.

#
pouco, ouvi quando ele procurava.
-Onde foi que eu pus?
Abaixei as orelhas, aliviado. O prato estava t�o limpo que talvez ele...
-Uno!
Voou para o quintal. Devorei a primeira fatia. Fugi com a outra, enquanto
ele me perseguia com a vassoura. Para qu�? Pensava que eu ia devolver?
Aproximou-se enquanto eu engolia a segunda. Ergui a cabe�a e lancei meu
olhar de sofrimento husky siberiano na L
-N�o finja! Ningu�m � infeliz por comer caviar, safado! -rosnou meu
humano.
Saltei. A vassoura ainda atingiu uns pelinhos do meu rabo. Fugi para um
canto. De longe, gani. Quis ser generoso. Ofereci meu saco de ra��o.
-Pegue quanto quiser! -uivei.
Ele nem quis saber da ra��o. Bateu a porta. Fiquei pensando no tal caviar.
Para um cachorro da neve como eu, o sabor vai muito bem. Talvez
pudessem criar uma ra��o � base dessas ovi-nhas pretas. P�ozinho e caviar
seriam, de fato, a dieta ideal para um cachorro de classe como eu. Uma
coisa aprendi com essa hist�ria: quando o assunto � comida, nem o olhar de
sofrimento funciona. Os humanos s�o, de fato, muito gulosos.

O primeiro texto fez muito sucesso. A revista recebeu cartas
entusiasmadas. Fiquei t�o contente que deixei pra l� a hist�ria do
caviar, rigorosamente verdadeira. Eu comprara o potinho em um
momento de extrema extravag�ncia. Era uma recompensa por
minhas escolhas, por meu esfor�o em me profissionalizar como
escritor. E o safado comera todo o caviar disposto generosamente
nas duas fatias. Todo! Mas, agora que Uno estava iniciando uma
vida profissional, ele merecia um voto de confian�a. Quando recebi

o primeiro pagamento, comprei tudo em ra��o, biscoitos sabor
carne e uns ossinhos de couro para mascar. Uma esp�cie de chiclete
para c�es. Nas mand�bulas de meu husky cada um durava no
m�ximo meia hora.
-Finalmente, Uno, voc� est� pagando a ra��o que come!
#
Ele saltou e pegou um ossinho. Refugiou-se em um canto enquanto
eu ainda o elogiava.
-Tem talento! Pode ter uma carreira, Uno! Terminou o ossinho e
pediu um biscoito, declarando:
-Se estou pagando, tenho direito de ser guloso! O segundo texto fez
mais sucesso ainda:


C�o de guarda2

Os humanos sempre querem receber alguma coisa em troca do que
oferecem. N�o s�o como eu, um cachorro que ama sem interesse. 0
barrigudinho resolveu que eu devia guardar a casa. As visitas chegavam,
ele avisava:
-N�o se aproxime muito. Ele pode morder.
Fiz o que sei fazer. Ou seja, nada. Ele resolveu me treinar. Agarrava uma
varinha, agitava, ficava pulando na minha frente e gritava:
-Pega, Uno! Pega!
Certamente, ele n�o precisava de um c�o para espantar invasores. Bastava
ficar pulando com a varinha. Ningu�m teria coragem de entrar na casa de
um doido. �s vezes eu uivava para content�-lo. Ele reclamava:
-Voc� n�o sabe latir?
Que ignor�ncia! Um husky siberiano n�o late. Apenas emite uivos, em
v�rios tons. Uivos de lua cheia, uivos de carinho e uivos de fome, o que �
mais comum. Foi o que meu humano, o barrigudinho, acabou descobrindo:
-Voc� � uma decep��o. Pensei que seria de alguma utilidade.
Interesseiro! Come�ou a contar para todo mundo que queria um c�o de
guarda. � uma estrat�gia dos humanos. Ficam falando que querem alguma
coisa at� que algu�m se decide e d� de presente. Os humanos inventaram o
dinheiro, mas passam o tempo todo tentando n�o gastar um centavo. Se
n�o era para usar, para que inventar? O barrigudinho acabou ganhando
uma [cadela] policial capa preta, de ar feroz. Chama-se Violante e tem sido
uma agrad�vel companheira. Pobre Violante! Apesar dos dent�es, � gentil

2. publicado na extinta revista Focinhos , em novembro de 1999.
#
como se fosse um husky/ Adora lamber as patas de todos os humanos que
v�m em casa! O barrigudinho ficou furioso. Certo dia, avisou:
-Voc� tem que latir e defender a casa. Pague a ra��o que come!
Minha amiga foi enviada para uma escola de c�es. Passou meses
aprendendo a rolar, a fingir de morta -n�o sei por que os humanos adoram
ver cachorros se fingindo de mortos! E, claro, a latir diante de estranhos.
Voltou feliz. Apesar de suas loucuras, n�s dois queremos agradar o
barrigudinho. Um cachorro deve tratar bem o humano que lhe pertence!
Passou a latir o dia todo, ao menor sinal de um humano. O barrigudinho
sa�a no quintal, satisfeito. Elogiava. A tonta abanava o rabo. Eu refletia:
-Vai dar rolo!
Inevit�vel. A vizinha � uma velha brava. Ontem bateu na porta do meu
humano, aos gritos:
-Essa cachorra est� me enlouquecendo! Cada vez que saio no quintal, ela
late! Vou ficar louca, louca!
O barrigudinho e a velha uivaram mais que dois huskies, latiram mais que
dois rottweillers. Ele p�s Violante de castigo. Sim, ela! Foi mandada �
escola para aprender a latir. Agora, est� proibida. Ela late, ele grita:
-Fica quieta!
A tonta n�o entende bem a linguagem dos humanos. E late mais forte. 0
barrigudinho bota a coitada de castigo no fundo do quintal. Agora h�
pouco, Violante ganiu, angustiada. Expliquei:


-Latir ou n�o latir, eis a quest�o!
Ela est� tentando entender o que houve. Ainda acredita que os humanos
s�o animais inteligentes, que se comportam com l�gica. Quanta
ingenuidade!


O que Uno contou � verdade, mas al�m da experi�ncia pessoal,
usou tamb�m a imagina��o. Violante foi minha f�mea de pastor
alem�o capa preta. Durante algum tempo tive esperan�as de v�-la
guardando a casa. Apesar de pertencer � linhagem de bravos c�es,
tinha o olhar cheio de mel. Assustava-se com qualquer grito. Botava

#
o rabo entre as pernas com a maior facilidade. Passou tr�s meses
numa escolinha de um policial militar para aprender as diversas
habilidades de um cachorro seguran�a. Quando chegou, s� sabia...
-Morta, Violante, morta!
Ela deitava com as patinhas para o ar, fingindo. Uma gra�a.
Uma amiga comentou:
-Quando o ladr�o chegar, ela vai se fingir de morta!
-Oh, c�us!
Mas Violante j� partira havia muito tempo. Uno conhecia suas
hist�rias muito bem, mas n�o foi gentil em usar a mim e a Violante
como personagens. Era realmente um escritor: misturava fatos,
realidade e fic��o, mudava datas, personagens. Mantive o texto
como saiu. Um autor tem direito � liberdade de express�o, mesmo
que seja um cachorro fofoqueiro.
De patas para o ar3

0 barrigudinho anda muito triste. Brigou com uma f�mea humana que
andava vindo aqui em casa. Uma f�mea muito brava, pois �s vezes latia e
uivava contra o barrigudinho. Acho que deve ter sido treinada para
guardar alguma casa. Certa noite, rosnou mais do que das outras vezes e
partiu. 0 barrigudinho se lamenta desde ent�o. �s vezes senta aqui fora e
passa a m�o no meu p�lo. Deito de barriga para cima. � delicioso sentir as
patas de um humano acariciando minha barriga. Ou co�ando meu p�lo.
Meu humano me acaricia e diz:
-S� voc� gosta de mim, Uno.
Coitado! Hoje peguei a coleira, uivei e abanei o rabo, convidando o
barrigudinho para passear. Ele entendeu. Deixei que pegasse a ponta da
corrente, porque estava muito deprimido. Sa�mos. O barrigudinho pensa
que est� escolhendo um caminho. Mas eu o puxo para onde quero e ele me
segue. Fui para uma pra�a onde, v�rias vezes, tinha visto uma humana
solit�ria, comendo um sandu�che na hora do almo�o. Ela estava l�.

3. Publicado na extinta revista Focinhos, em dezembro de 1999.
#
Bem ajeitada, essa humana. Magra, alta. P�los pretos na cabe�a. A boca
muito vermelha. Os dentes n�o eram t�o fortes como os de uma boa
cachorra, mas os humanos n�o fazem quest�o de bons caninos. Deitei aos
p�s dela. Ela sorriu.
-Que bonito! N�o morde?
Pergunta tonta. Se eu mordesse, j� teria arrancado seus dedos.
-N�o. � muito manso.
Estiquei as patas. Ela acariciou meu p�lo. Sou lindo mesmo. Reconhe�o.
Huskies s�o maravilhosos, os outros c�es que me perdoem. Dali a pouco
ela e o barrigudinho estavam conversando. Falavam de livros, de filmes e de
mim. Eu fiquei l�, estirado. Quem sabe aquela f�mea poderia morar l� em
casa e dar alegria ao barrigudinho? O tempo passou. Eu percebi que o
barrigudinho queria entrar no assunto, mas n�o sabia como. Uivei
gentilmente. Ele respirou fundo e tomou coragem. Aproximou-se e tentou
encostar o focinho nela. Tamb�m aproximou a boca. Os humanos t�m a
mania de encostarem a boca, embora n�o costumem se lamber em p�blico.
Quando sentiu a boca do barrigudinho perto da dela, a f�mea soltou um
uivo. Levantou-se imediatamente. Uma dobermann seria mais gentil.
Rosnou e saiu correndo. O barrigudinho ficou arrasado. Estaria com o rabo
entre as pernas, se tivesse um. Mas n�o tem, coitado. Voltamos para casa
em sil�ncio. O pior � que eu sei que ela bem que gostaria de deitar de patas
pro ar e receber carinhos. Sempre t�o solit�ria, aquela f�mea! Eu n�o
entendo. Humanos vivem falando de amor. Mas, quando t�m a chance, s�
sabem rosnar entre si.
A vida dos humanos poderia ser bem melhor. Bastava serem como n�s,
cachorros. Saber deitar de barriga para cima e patas erguidas quando
quisessem um pouco de carinho. Seria mais simples, e haveria mais amor.

Realmente, meu cachorro n�o tinha o direito de expor minha vida
�ntima como fez. � obvio que um c�o e um humano compartilham
as mais variadas experi�ncias. Eu mesmo observava Uno cheirar os
traseiros de cadelas na rua, em �bvias tentativas de sedu��o, mas
nunca comentei, por ser discreto. J� que ele tocou no assunto, conto

#
o resto. Muita coisa estava acontecendo comigo. Depois de viver
sozinho tanto tempo -j� haviam se passado alguns anos desde
minha perda -um sujeito fica chato. Andava cheio de manias,
h�bitos de solit�rio. Fazia quest�o de ler na cama antes de dormir.
De ficar sozinho, sem ver ningu�m, e agora que n�o tinha trabalho
fixo, mais ainda. Fugia de compromissos. E me sentia incapaz de
uma rela��o est�vel. Um namoro terminou em uivos, segundo a
descri��o malvada de Uno. Nem sabia mais como conquistar
algu�m. Em algumas situa��es, fui t�o devagar que perdi a chance.
Em outras, t�o r�pido que botei tudo a perder. A sedu��o pede um
ritual, pequenos gestos, olhares, e um ritmo que depende dos dois.
Eu estava destreinado! E, no fundo, n�o tinha sentimento para
oferecer.
Como conversei com Uno certa vez: seria mesmo t�o bom se
pudesse deitar de barriga para cima, erguer as patas e dizer:
-Deleite-se!
N�o sei se haveria mais amor, mas a vida seria muito mais
divertida.
Uma coisa � certa: c�es s�o mais francos. Se querem amor, pedem.
N�o t�m vergonha de ganir por um carinho. De se oferecer.
Por que n�o consigo me abrir, me oferecer? Ou aceitar gestos de
amor que para outras pessoas s�o t�o simples? Observava meu
cachorro e dizia:
-Tenho muito que aprender com voc�! Quem sabe um dia descubro
o jeito de esticar minhas patas e pedir carinho!
Os humanos s�o traidores4
Acabo de ter uma decep��o t�o grande com os humanos que minha vontade
canina � sair pelas ruas e correr, at� que esteja longe desses seres ingratos.
Descobri tudo que eles pensam sobre n�s, cachorros. � chocante. Certa
noite o barrigudinho trouxe um casal para passar algum tempo comendo
na sala. Os humanos t�m esse estranho h�bito de dividir a ra��o. Embora

#
n�o comam ra��o, mas comida de sabores diferentes. Parece que nunca se
satisfazem com um sabor, pois vivem procurando novos. Coitados! S�o
eternamente insatisfeitos. O barrigudinho e seus amigos comiam carne com
molho usando garfos. N�o sei como n�o espetam aqueles dentes met�licos
na boca! Eu teria lambido os pratos, e seria bem mais gostoso! De repente o
casal come�ou a rosnar entre si. Em breve, latiam. A certa altura, ele latiu
mais alto.
-Sua cachorra!
Estranhei. Por que latir t�o alto, para fazer um elogio? Humanos e c�es n�o
s�o bons amigos? Certas cachorras n�o d�o a vida para proteger a
propriedade dos humanos? A f�mea humana, furiosa, atirou o prato nele.
-Cachorra, n�o! Cachorro � voc�!
O barrigudinho gritava, tentando apartar.
-N�o xinguem! Acalmem-se!
Fiquei com o rabo entre as pernas. Ent�o cachorro n�o era elogio. Gani,
magoado. O barrigudinho me olhou, bravo.
-Fica quieto, Uno. Estamos conversando!
Conversa? Nem uma matilha latiria daquele jeito! Desde
aquela noite, passei a observar. Quando os humanos querem arrasar
com algu�m, chamam de cachorro. Cadela, ent�o, nem se fala. Soube
de um humano que tentou matar outro que chamou sua mulher de cadela.
N�o existem cadelas lindas? Quantas humanas n�o andam para cima e
para baixo com suas poodles peludinhas? Um rapaz que trabalha com o
barrigudinho falou:
-Minha sogra � o c�o.
Ouvindo a conversa entendi que nada poderia ser pior do que aquela sogra.
Que ingratid�o, falar dessa maneira! Quantos humanos n�o vivem com
dois ou tr�s bons cachorros por perto para cuidarem dele e oferecer o amor
que n�o conseguem de outros humanos? Outro dia ouvi a vizinha
xingando o namorado da filha:
-Ele n�o passa de um vira-lata!

4. Publicado na extinta revista Focinhos, em janeiro de 2000.
#
0 que os vira-latas t�m de mau? Podem n�o possuir um belo pedigree
como o meu, com ancestrais campe�es. E da�? Qual � o humano que tem

pedigree?

Mas o golpe final aconteceu faz pouco tempo. 0 barrigudinho estava
falando de uma jovem f�mea com um amigo. A certa altura, comentou:
-� uma gata.
Que horror! Descobri que gata � elogio. Gato tamb�m. Se um macho
humano � chamado de gato, ergue o focinho para o ar, feliz da vida. Ah, que
vontade de partir e nunca mais ver um humano pela frente! Eles dependem
de n�s. Vivem � espera de nossos olhares ternos! Contam com nossos
dentes afiados para sua prote��o. Por que n�o chamam os gatos para
guardar suas casas? Ingratos! N�o h� d�vida. 0 cora��o de um humano �
t�o duro quanto um osso ro�do!

Cartas e e-mails entusiasmados desembarcavam na reda��o da
revista. A carreira de Uno andava mais depressa que a minha. At�
que, certo dia, o editor da revista, Felix, me ligou animado.
-Sabe quem vai trabalhar com a gente? A Lu!
-Ahn?
-Ser� a redatora-chefe.
Eu tivera uma grande decep��o com essa mo�a. Quando dirigi a
outra revista, eu a chamei para trabalhar comigo, e ela come�ou com
todo o g�s. Era eficiente. Nosso relacionamento ia bem. N�o entendi
por que, poucos meses depois, ela pediu demiss�o. Lamentei sua
sa�da. Segundo explicou, uma oportunidade melhor lhe fora
oferecida, mais perto de sua casa, e com mais tempo para se dedicar
� fam�lia.
Algum tempo depois, ouvi fofocas: ela pedira demiss�o porque n�o
me suportava. Surpreendi-me. De despedida, dera-me um livro
muito especial de presente, de um autor uruguaio que n�o se
encontra normalmente nas livrarias, retirado de sua pr�pria estante.
Depois de tanta gentileza, falava mal de mim?
Um m�s depois de minha sa�da, ela voltou � revista. Esse gesto
consolidou a fofoca de que s� sa�ra por n�o me suportar. Magoei


#
me. Mas como n�o t�nhamos uma rela��o de amizade pr�xima,
resolvi esquecer. Tive uma sensa��o desagrad�vel quando ela
entrou na revista canina.
Sou um tanto desorganizado, e o dia de entrega do texto de Uno
variava de acordo com o fechamento da revista. Ap�s duas semanas
da chegada de Lu, recebi um recado da secret�ria dizendo que eu
devia entregar o texto no dia seguinte. At� ent�o eu era avisado com
uma semana de anteced�ncia. Um dia era pouco para conversar
com meu cachorro, entender tudo que ele queria dizer, esperar que
criasse uma nova coluna.
Ericei meus p�los, digo, os cabelos. As boas maneiras exigem que
algu�m, quando assume um posto em uma revista, telefone para
seus colaboradores para dizer que est� chegando. Se Lu tivesse
agido dessa maneira, eu teria me comportado de maneira gentil,
desejado boa sorte no novo emprego e tudo mais. Eu j� passava dos
40 anos. A maturidade traz sabedoria. Ou pelo menos eu fugia de
situa��es desagrad�veis. Mas tamb�m n�o me senti bem. Minha
intui��o dizia: "Ela est� agindo assim de prop�sito, para demonstrar
que n�o gosta de mim e que quer o m�nimo contato poss�vel".
Agi como se n�o tivesse recebido o recado. N�o enviei o texto. No
dia seguinte, nova mensagem, tamb�m da secret�ria, em tom mais
duro, r�spido.
-O seu prazo acabou. Vai entregar o texto ou n�o vai? O valor de
cada texto n�o era nenhuma fortuna. S� o
suficiente para comprar a ra��o. Um trabalho semelhante seria mais
bem pago em qualquer outro ve�culo de comunica��o. Os donos da
revista eram meus amigos, e eu fizera um pre�o camarada porque
ainda estavam investindo. Penso, por�m, que a camaradagem deve
ser uma via de m�o dupla. Telefonei para o diretor que me
convidara e expliquei:
-A Lu n�o gosta de mim. N�o vamos conseguir trabalhar juntos. Eu
n�o costumo ser cobrado desse jeito e o Uno s� n�o enviou o texto
porque ficou de mau humor.

#
-H� algum engano, vou falar com ela!
Sa�. Quando voltei para casa havia uma liga��o da pr�pria Lu. Um
horrendo pedido de desculpas.
-Estou telefonando para resolver a situa��o sem mordidas. S� com
lambidas.
"N�o podia ser pior", pensei.
Eu n�o queria as tais lambidas. Nossa rela��o deixara de ser
profissional, j� estava impregnada de mal-entendidos, o que gerava
um certo mal-estar. N�o valia a pena ir adiante. O teatro me
ensinara que � preciso prestar aten��o aos detalhes. Se logo no
come�o dos ensaios uma atriz atrasa, vem com desculpa, reclama
que o cafezinho est� frio e de outras coisas, melhor troc�-la, e bem
depressa. Cafezinho frio? Parece um motivo absurdo. Quem faz teatro
sabe: mais tarde, quando a pe�a estiver em cartaz, as
reclama��es v�o crescer, atingir um n�vel extraordin�rio. Algumas
pe�as de sucesso podem at� emperrar carreiras, pois o elenco entra
em p� de guerra nos bastidores. Assim, dou aten��o aos detalhes. Se
vou trabalhar com algu�m e a rela��o se inicia com problemas, �
melhor parar antes de chegar � loucura. At� porque reconhe�o meus
defeitos. Tenho um temperamento explosivo -ainda bem que s� de
vez em quando. Fujo de situa��es nas quais a tens�o possa fazer o
pior de mim vir � tona. Avisei que n�o haveria mais texto. Naquela
noite, dei a not�cia:
-Uno, voc� est� desempregado.
Ele deitou ao meu lado e prendeu minha m�o com as duas patas.
Quando c�es "pegam" algu�m com as patas est�o querendo dizer:


-Voc� � meu! Meu! Eu gosto de voc�! Assim, respondi:
-Voc� tamb�m me pertence, Uno! N�o se preocupe, onde h� ra��o
para um, h� para dois!


#
10

Pouco tempo depois, iniciei realmente minha carreira na televis�o.
Foi um per�odo muito criativo, em que me dediquei a fazer aquilo
de que mais gostava: escrever. O trabalho de roteirista � exaustivo,
exige muito. S�o horas e horas no computador, mais telefonemas,
reuni�es. Minha vida pessoal, que j� n�o andava na melhor das
fases, foi por �gua abaixo. Deixei de ver amigos. A vida � estranha.
�s vezes gosto de uma pessoa, passo o tempo todo perto dela,
tenho muitas afinidades. Subitamente os hor�rios n�o combinam
mais, a gente se v� menos, se afasta, cada um vai para uma dire��o.
Descobri tamb�m que, para um escritor, � mais dif�cil conhecer
pessoas.
Quando tinha um emprego ao qual comparecia todos os dias, as
rela��es ocorriam automaticamente. Havia uma vida social que
girava em torno do trabalho, feita de almo�os, encontros no final do
expediente, festas nas casas dos companheiros de reda��o. Uma
grande rede de amigos que se forma em torno de um emprego,
embora freq�entemente essas pessoas se afastem quando algu�m
muda de trabalho. Ao me retirar para viver como escritor, perdi o
cotidiano dos relacionamentos. Claro, tinha conhecidos e amigos,
alguns de muito tempo, mas havia anos andava afastado. Era
preciso ligar, marcar, estabelecer compromissos. Na televis�o,
conhece-se muita gente. Quem convive entre si s�o os atores e os
diretores, que v�o todos os dias ao est�dio, gravam juntos e, no
final da tarde ou � noite, saem para beber alguma coisa. O autor,

#
n�o. Fica sozinho em casa. Se eu tinha um trabalho urgente, fugia de
compromissos com os amigos. Pior: desmarcava encontros, jantares
e passeios na �ltima hora. Quando tinha tempo livre, todos j�
estavam de agenda cheia. A maior parte dos autores vive com algu�m,
e as rela��es costumam ser duradouras. Talvez porque
depois que um sujeito se torna roteirista de televis�o, n�o tem mais
tempo para namorar, quanto mais casar!
N�o digo que minha vida fosse inteiramente solit�ria. Encontros
legais aconteceram. No entanto eu investia toda minha energia na
carreira, talvez porque meu cora��o ainda continuasse fechado para
relacionamentos mais profundos.
Trabalhar em casa possibilita uma vida relaxada. Eu passava o dia
com cal�as leves de gin�stica, camiseta, andava descal�o e coberto
de p�los. Sim, esta � uma caracter�stica dos huskies siberianos.
Perdem p�los duas vezes por ano: de janeiro a julho e de julho a
janeiro!
Eu me admirava com a sa�de de Uno. Segundo meus c�lculos, j�
era um cachorro pr�ximo da velhice, pois para os c�es o tempo
passa mais depressa que para os humanos. Bem tratado, vivo,
animado, parecia muito longe de qualquer enfermidade. Nossa
rela��o era muito pr�xima, um sabia o que o outro estava pensando.
Se eu estava triste, ele ficava quieto, afetivo, deitava-se ao meu lado.
Convers�vamos.
-Ah, Uno, as coisas n�o s�o f�ceis! Ele me observava compreensivo.
-Sei que voc� n�o est� legal, mas fique bem; estou aqui! comentava
com o olhar.
Se eu estava legal, ele tamb�m se alegrava, erguia o rabo, corria e
me chamava para brincar. No jardim, disparava para um lado e
para o outro. Eu o perseguia. No final, o agarrava, acariciava seus
p�los, fazia cafun� no alto da cabe�a. Ele lambia minhas orelhas,
mordia as pontas, como nos primeiros tempos.
Contudo, certo dia, notei que seu corpo estava arqueado, numa
postura exagerada, que n�o era comum. Tentava evacuar. Estranhei.

#
Mas n�o levei em conta. Nos dias seguintes, percebi que a
dificuldade continuava. Durante algum tempo ainda o levava ao
veterin�rio pr�ximo � minha antiga casa, o mesmo que retirou os
espinhos do ouri�o. Desta vez procurei um mais pr�ximo. Ele o
amarrou. Fiquei ao lado, observando seus olhos tristes, a express�o
subjugada.
-Pobre Uno! -exclamei.
O veterin�rio o examinou cuidadosamente. Diagnosticou:
-Ele est� com uma verruga pr�xima ao �nus. Vamos ter que tirar.
-� s�rio?
-N�o, � s� tirar, n�o se preocupe.


Passou um dia em recupera��o. Voltou para casa animado.
Comentei com minha amiga Vera:
-Ele ficou �timo!
-Tomara que a verruga n�o volte -disse ela.
-Como assim?
-�s vezes surge outra.
-� perigoso?
-Depende.
Eis uma palavra de que n�o gosto: depende. Obviamente havia um
risco. Nos dias seguintes, conversando com alguns amigos
cachorreiros, descobri que em alguns casos as verrugas voltam a
nascer internamente, alojadas no intestino. Problemas no intestino
s�o complicados: � um local onde as inflama��es s�o freq�entes por
causa da dificuldade de assepsia. Mas nas semanas seguintes Uno
parecia t�o animado quanto antes, correndo com a mesma alegria, e
meu otimismo voltou.
-Voc� saiu dessa, amig�o!
Por�m o sintoma voltou: ele se arqueava novamente. Retornamos ao
veterin�rio.
-Como se pode resolver?
-Eu vou cauterizar as verrugas.
-A anestesia n�o � perigosa?


#
-Sempre h� um risco, mas...
Olhei para meu cachorro deitado na maca. Meu cora��o murchou,
apreensivo. Fiz um carinho e o deixei para nova interven��o.
Voltei alguns dias depois e, desta vez, garantiu o veterin�rio, o
problema j� estava acabado. Entretanto, por causa da idade, Uno
tinha que tomar um rem�dio para o cora��o.
-Mas o que ele tem?
-N�o se preocupe, � s� para regular.
Passei a administrar as p�lulas duas vezes por dia. Ele fugia quando
me via chegar. Eu o chamava furioso. Abria sua boca e enfiava o
rem�dio l� dentro. E segurava seu focinho para obrig�-lo a engolir.
"Se pelo menos ele ficar bem, n�o importa o trabalh�o que me d�!"
Mas as verrugas voltaram. Novamente, o veterin�rio as cauterizou.
-� normal com a idade -explicou Vera. -Tamb�m n�o � t�o s�rio
assim. Seu cachorro est� muito bonito, vai viver muito tempo.
Olhei para Uno, que estava deitado no jardim, calmamente. Senti
uma dor no peito. Minha rela��o mais est�vel nos �ltimos anos era
com meu cachorro.
N�o tenho vergonha nenhuma de confessar uma coisa dessas. C�es
e seres humanos parecem se comunicar telep�ticamente. A
fidelidade de um c�o costuma ser maior que a de uma pessoa,
mesmo quando o animal � submetido a situa��es extremas. Soube
do caso de um mendigo cujo cachorro, sarnento, maltratado, ficava
a seu lado, protegendo-o enquanto dormia na rua. Li uma
reportagem na internet sobre uma pesquisa da funda��o Pine Street,
da Calif�rnia, nos Estados Unidos, segundo a qual c�es conseguem
detectar c�ncer em organismos humanos mesmo quando n�o h�
vest�gios da doen�a. A funda��o realizou um teste com 55 pessoas
com c�ncer no pulm�o e 31 com c�ncer de mama. Os acertos
caninos foram entre 88% e 97%. Sobreviventes de um terremoto na
China declararam que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se
as pessoas tivessem prestado aten��o aos cachorros. Os c�es
ladraram selvagemente durante horas antes do abalo s�smico. Eu

#
mesmo j� tive essa experi�ncia. H� muitos anos, quando vivi nos
Estados Unidos, passei uma temporada no M�xico. Houve um
grande terremoto seguido pela explos�o de um vulc�o. Lembro-me
da noite seguinte � trag�dia em que boa parte da cidade foi
derrubada. N�o se ouvia um latido sequer nas ruas, como se os c�es
estivessem de luto, fazendo sil�ncio por n�s. C�es s�o especiais.
Minha liga��o com Uno estava al�m de qualquer explica��o, como
costuma ser a de algu�m com seu cachorro. Durante mil�nios os
c�es vivem ao lado dos humanos. Tornaram-se parentes pr�ximos,
com relacionamentos carregados de afeto e comunica��o.
Mas eu tamb�m era capaz de olhar para ele e saber e estava tudo
bem. E desta vez minha intui��o dizia: n�o estava. Quando Uno
piorou novamente, senti um n� no est�mago. Fiquei com ele muito
tempo, conversando em voz baixa, falando de nossa vida.
Lembrando os momentos engra�ados, como os de revolta, quando
eu ainda lhe dava banho em casa. Dos patos. Das coisas boas que
t�nhamos enfrentado.
-Meu Uno! Meu Uno! Voltei ao veterin�rio.
-N�o adianta cauterizar as feridas porque elas v�o voltar. E o pior �
que o reto formou uma bolsa, logo no final, que dificulta a
evacua��o -concluiu o veterin�rio. -O melhor � operar.


Seria simples, segundo explicou. Cortaria o final do reto, justamente
a regi�o afetada. Coisa pouca.
-Assim ele fica livre do problema. Ficou mais tempo internado.
-Aqui n�s podemos controlar a alimenta��o e a higiene do local.
Era verdade. Foram alguns dias de ang�stia. Fui visit�-lo v�rias
vezes. Dentro de um cercadinho, parecia bem. Quando me via,
corria agitado, pedindo:
-Quero voltar pra casa!
S� me despedia com dificuldade. Mas a recupera��o foi boa. Dali a
pouco tempo ele voltou.
-Seja bem-vindo de volta, Uno!


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N�o demorou muito, surgiu uma incontin�ncia. Uno, um c�o
sempre t�o educado, um gentleman, agora sujava todos os cantos. O
veterin�rio explicou:
-Devido � idade, com essa opera��o alguns c�es perdem a
flexibilidade do �nus.
Tive que contratar a faxineira mais um dia por semana para limpar

o jardim, onde agora o deixava boa parte do tempo. Percebi, por�m,
que Uno sofria visivelmente. Procurei um novo veterin�rio.
-O meu colega agiu corretamente -explicou ele. -Mas, agora, Uno
precisa fazer limpezas internas com alguma regularidade.
Um novo item foi acrescentado a nossa agenda. Semanalmente eu o
levava para a limpeza intestinal, que parecia muito desconfort�vel.
Voltava um dia depois.
-Tudo bem?
Ele mal me cumprimentava.
-� assim que voc� trata um senhor de idade? De modo t�o indigno?
-declarava Uno, revoltado, erguendo o focinho.
Com o tempo, a necessidade de limpeza ficou mais freq�ente. Por
sorte, eu j� ganhava bem. Tinha um contrato fixo como roteirista de
uma grande rede de televis�o. N�o precisava pechinchar com o
veterin�rio. Mas seria bom insistir no tratamento?
-Tome cuidado com tantas limpezas -aconselhou Vera, que sempre
entendeu muito de cachorro. -No seu lugar, parava com elas.
� o tipo de decis�o dif�cil, porque nunca se sabe. Resolvi buscar
uma segunda opini�o. Mais uma vez, troquei de cl�nica.
-Surgiu uma nova bolsa -explicou o veterin�rio. -Tamb�m creio
que as verrugas voltaram.
-O que me aconselha?
Uma receita de laxantes foi o primeiro passo. Seria preciso observ�lo
nos dias seguintes. Perguntei, atormentado:
-Doutor, ele sente dor?
-Alguma. Mas n�o insuport�vel. � mais um desconforto.


#
O comportamento de Uno mudara bastante. Andava arredio,
melanc�lico. Quando se aproximava, punha a cabe�a embaixo da
minha m�o e pedia carinho atr�s das orelhas, dizendo:
-Ajude-me!
Uma coisa eu sabia: n�o queria que ele sofresse. Querer que um ser
amado permane�a perto da gente � um ato de ego�smo. N�s
humanos temos leis e travamos discuss�es infinitas no campo da
�tica e da religi�o. Contudo, penso que o amor deve falar mais alto
nessas situa��es. Quando se trata de seres humanos com interesses,
dinheiro, heran�as envolvidas, nem sempre � o cora��o que
responde. J� com os animais, h� a isen��o, a certeza de que a escolha
� feita tendo por base o afeto. Disse interiormente: "N�o vou deixar
voc� sofrer terrivelmente, Uno. Confie em mim!".
Nesse tipo de situa��o, existe uma linha t�nue, e � perigoso se
precipitar. Meu irm�o vivera uma experi�ncia diferente com a
pr�pria m�e de Uno, Luna. A cachorra ficara bastante mal, doente,
durante semanas. J� pensavam quanto tempo mais lhe restava. Por
coincid�ncia, naquela semana minha cunhada ganhou uma
filhotinha de outra ra�a. Ao ver a cadelinha, a doente animou-se.
Assumiu todos os cuidados maternais. Curou-se. Reviveu. Ganhou
novo �nimo e agilidade, e nos dois anos seguintes se comportou
como uma jovem mam�e animada e feliz, cheia de afeto para a
filhinha adotiva. S� depois, j� com mais de 15 anos, voltou a
adoecer, desta vez definitivamente.
N�o poderia acontecer o mesmo com Uno? Uma recupera��o
m�gica? A doen�a talvez n�o fosse t�o grave. Eu botava a m�o no
seu focinho e me sentia aliviado: nunca estava quente, febril. Mudei

o tipo de ra��o, segundo pediu o veterin�rio, para uma dieta mais
pastosa. Dava os rem�dios nas horas certas. Se precisava viajar a
trabalho, a faxineira vinha mais vezes por semana para tratar dele.
Semanalmente ia tomar banho no veterin�rio, que sempre o
examinava, otimista.
-Parece estar muito bem.
#
Em um intervalo mais curto que das outras vezes, Uno voltou a
piorar. Sua condi��o tornou-se mais acentuada. Antes t�o animado,
passava os dias deitado, em geral na sala, perto da televis�o, que eu
deixava ligada. N�o sei se entendia nossas tramas humanas, filmes,
novelas, beijos e trai��es. Mas certamente gostava do som, da
m�sica, do barulho que lhe fazia companhia quando eu estava fora.
Deitava perto de mim sempre que podia. Naqueles dias calmos,
cultivei a esperan�a de que Uno tivesse uma velhice calma,
tranq�ila, perto de mim.
Certa noite, fui jantar com um amigo rec�m-operado do cora��o. Na
conversa, ele me contou tudo que o m�dico lhe dissera, suas
esperan�as. Atrav�s de suas palavras, entendi a verdade. O m�dico,
da forma mais atenuada, dera m�s not�cias. Sua sa�de n�o estava
bem. Era tomar decis�es, preparar-se. Ele n�o entendera assim. Mas
eu pude discernir a verdade atr�s do v�u das palavras. No carro,
voltando para casa, outra verdade foi se evidenciando. Tudo que o
veterin�rio dissera era semelhante ao discurso do m�dico. Falara em
cautela, em problemas, em observar. Eu � que me enganava.
Comecei a chorar no carro. Ao chegar em casa, corri at� Uno. Estava
deitado no acolchoado, perto da televis�o. Quando me viu, quis se
levantar. S� ent�o percebi como suas pernas estavam fracas. A
dificuldade para se movimentar. Uno envelhecera muito nos
�ltimos meses, no entanto eu n�o quisera enxergar. Agachei-me.
Abracei-o. Chorei.
Ainda tinha que escrever uma cr�nica para a revista. Fui at� o
computador e deixei meu cora��o falar.

#
11

Sou o tipo de sujeito que sempre escreve com a corda no pesco�o.
Quer me ver trabalhar? Pois me d� um prazo. Enrolo at� o �ltimo
momento. Depois corro para o computador e boto tudo na telinha.
Nunca atrasei uma cr�nica, um roteiro, nunca! Mas estou sempre
apavorado com a entrega. Uma das minhas vantagens � que escrevo
depressa. �s vezes, por�m, d� branco. N�o vem id�ia nenhuma. Foi

o que ocorreu naquela noite. Eu tinha uma cr�nica para enviar. Era
o �ltimo dia. A revista devia ser mandada para a gr�fica. A minha
cabe�a parecia um pastel. Mergulhado em ang�stia, s� pensava no
meu cachorro doente. Sentei no computador e olhei a tela vazia.
Nada na minha cabe�a. Queria escrever uma cr�nica divertida,
bem-humorada. Imposs�vel. Respirei fundo e comecei a digitar,
movido apenas pela intui��o. Vou reproduzir a cr�nica. Pe�o
desculpas por repetir algumas informa��es, mas este texto foi o
embri�o deste livro.
Meu cachorro5

Meu cachorro est� doente. � um husky e tem 14 anos. Dizem os
conhecedores da ra�a que 12 � o tempo normal de vida. Mas sempre tive
esperan�as de que fosse muito al�m. Sua m�e viveu at� os 17. Seu nome �
Uno. N�o � muito comum, mas tem um motivo. Meu irm�o e minha
cunhada, h� muitos anos, resolveram montar um canil em Campinas. S� de

5. Originalmente publicado na revista Veja S�o Paulo. Edi��o 1982, de 15/11/2006.
#
huskies. Compraram macho e f�mea de uma linhagem gloriosa. 0 av�,
importado do Canad�, foi at� capa de revista especializada. Registraram o
canil. Alimentaram o casal, deram vacinas e prepararam-se para fazer
fortuna. Logo uma ninhada estava a caminho. Meu irm�o fez as contas. Na
�poca o husky era muito valorizado. Com um certo n�mero de c�ezinhos,
teria um bom lucro!
-Ser�o dez, onze? -sonhava minha cunhada Bia.
Nasceu um. Sim, um somente! Ganhou o nome de Uno, e me foi dado de
presente. A grana ficou na imagina��o.
cheio! Um terror, o meu cachorro! Bravamente, capturou um ouri�o.
Dezenas de espinhos penetraram seu p�lo. Entraram em sua boca. Eu
nunca vira um espinho de ouri�o. � duro, pontudo! Impressionante. Fiquei
a seu lado enquanto o veterin�rio arrancava um por um.


Mudei para a cidade. Meu cachorro envelheceu, e passa longas horas
deitado a meu lado vendo televis�o. Deve achar um absurdo tantos tiros,
beijos, l�grimas e juras de amor. Gosta de, simplesmente, ficar do meu lado.
Ao olh�-lo eu tenho uma sensa��o de conforto. �s vezes se levanta, bota a
cabe�a nas minhas pernas e co�o suas orelhas. Sua boca se estica. Tenho a
impress�o que � um sorriso.


H� algum tempo come�ou a ficar doente. Ainda parece saud�vel. Seu p�lo
castanho brilha. Mas surge uma coisa aqui, outra ali. Toma rem�dio para o
cora��o. Laxantes. �s vezes uiva baixinho -huskies n�o latem.
� a terceira vez que o envio ao veterin�rio em duas semanas. Agora, nem
conseguia ficar em p�, de t�o fr�gil. Sinto ang�stia s� de pensar em sua
imensa solid�o, longe do tapete onde costuma dormir, sendo picado, mal
comendo e, principalmente, sem algu�m que lhe acaricie o p�lo. A doen�a
deve ser um mist�rio para ele mesmo.
O amor de um c�o � incondicional. Vejo mendigos na rua acompanhados de
cachorros esqu�lidos que n�o os abandonam e at� os protegem nas noites
escuras. Vejo crian�as a quem o c�o ajuda a conhecer o afeto. Eu sei que
meu c�o est� partindo. Se n�o for agora, ser� daqui a semanas ou meses,


#
pois uma coisa vira outra, e outra. Ou ele n�o conseguir� resistir, ou
chegar� a um ponto em que terei que dar um n� no cora��o e abreviar seu
sofrimento. Eu tenho que resistir e fazer o melhor. Co�ar sua barriga e falar
palavras docemente. E, se puder, quando chegar a hora, coloc�-lo em meu
colo e dizer o quanto o amo.
Quando sentei diante do computador, queria escrever linhas engra�adas,
repletas de bom humor. Foi imposs�vel. Meu sentimento falou mais alto.
Quem j� amou um c�o entende minha dor.


At� fiquei envergonhado, quando enviei a cr�nica, por ser muito
pessoal. Como j� disse, costumo escrever humor. Tenho dificuldade
para expressar minhas emo��es. Um homem � educado para n�o
chorar. � coisa do passado, mas certos ensinamentos ficaram
entranhados dentro de mim. Meus pais nunca foram de abra�ar, de
beijar. Aprendi a ser contido. De repente, revelei minha dor em
p�blico. Fiquei constrangido, por pouco n�o pedi que me deixassem
trocar a cr�nica.
Tive uma grande surpresa. Centenas de cartas, e-mails, telefonemas
despencaram na reda��o da revista. Eram pessoas se solidarizando
comigo, falando de seus pr�prios bichos de estima��o, cachorros e
at� gatos muito amados. Mesmo algumas que n�o possu�am
animais escreveram para dizer que entendiam meu sentimento.
Foram ondas emocionantes de afeto. At� hoje, ao reler cartas e emails,
as l�grimas escorrem dos meus olhos.
Gostaria de publicar todos, mas precisei selecionar. Mantive frases,
pensamentos, por�m evitei nomes, para n�o expor os remetentes.
S�o lindos depoimentos, vindos de pessoas que sabem expressar a
emo��o.

"... sou um homem de 66 anos de uma vida dura, de muitas lutas, muitas
vit�rias e tamb�m derrotas. Uma coisa que sempre foi dif�cil na minha vida
quase imposs�vel foi chorar, seja por alegria, seja por tristeza. Mas hoje, ao
ler a sua cr�nica a respeito do seu Uno, eu chorei l�grimas de verdade, pois

#
eu lembrei do meu Barry, um cocker maravilhoso, meu maior amigo, que
morreu com 14 anos ap�s longa enfermidade. Tudo que voc� falou do Uno,
eu repito do Barry. Obrigado por me fazer chorar. "6

"Entendo sua dor. Faz pouco tempo que perdemos nosso cachorrinho, o
Tico. Foi um dia terr�vel. Achei que todos n�s enlouquecer�amos aqui em
casa. � dif�cil de descrever, mas foi uma dor muito grande. N�s o
am�vamos muito. Tanto que quebramos o ch�o para que ele fosse enterrado
aqui mesmo, perto de n�s e em sua casa."

"... Sou vegetariana e apaixonada por animais. J� passei pelo momento pelo
qual voc� est� passando por mais de uma vez. N�o deu para segurar as
l�grimas, senti seu cora��o gritar de sentimentos nas linhas de seu texto,
coisa rara hoje em dia, em que a compaix�o parece ter desaparecido."

"... Traga-o para o seu lado e fique com ele o tempo que puder, pois tenho
certeza de que, por mais que precise de tratamentos m�dicos, o que puder
fazer em sua casa ser� o melhor. O animal precisa de seu dono, acho que �
s� isso que o faz estar seguro e feliz, por mais doente que esteja."

"... Eu n�o sabia que eu a queria t�o bem. Hoje a casa est� vazia. Por ela ser
t�o amorosa, seu afeto preenchia a casa. Estou mo�da. Quebrada por dentro.
Em cacos. Quando chegamos na veterin�ria para a mandarmos para o sono
eterno, creio que ela sabia o que iria acontecer. A impress�o que tive � que
ela n�o queria 'partir'. Quando a m�dica foi aplicar o anest�sico, ela gritou
na aplica��o. Eu n�o estava na sala. Fui covarde. Minha irm� esteve ao
lado dela o tempo inteiro. Eu me escondi no banheiro logo ao lado, mas eu
ouvi o grito. Nesse momento eu fui para a sala onde [ela] estava, e quando
foi se desligando, olhei para ela e tinha uma l�grima escorrida de seu olho

6. Este e os outros e-mails e cartas foram enviados aos meus cuidados � reda��o da revista
Veja S�o Paulo.
#
esquerdo. Esta cena est� marcada em minha mem�ria. Triste cena."
"Sabe, tenho uma labradora de 9 anos, resgatada da rua h� dois. E me
apeguei de tal forma a ela que n�o me vejo sem a sua presen�a perto de
mim, pedindo carinho, encostando a cabe�a na minha perna e chegando a
ressonar quando dorme... E depois que li... fiquei pensando... e corri para
dar um abra�o nela, e lhe beijar o focinho. Todas as noites quando esfria eu
a cubro com o cobertor... Eu a amo muito!"

"... cheguei a chorar lembrando da minha Rebeca t�o velhinha, mas que
esteve firme e forte nos nossos momentos de dor e tristeza quando perdemos
meu pai... Diga ao seu Uno que o ama, esteja ao seu lado e seja grato por
ter sido aben�oado com a presen�a de um anjo em forma de cachorro em sua
casa! "

"H� quatro e dois anos tive que dar o tal n� no cora��o, e trocar o
sofrimento deles pelo meu. H� tr�s meses, meu �ltimo bichinho, uma
tartaruga que estava na fam�lia havia 73 anos, e comigo h� 45, tamb�m se
foi. Ela n�o ag�entou a saudade dos cachorros, foi brincar no c�u com eles e
meu pai. Minha casa ficou t�o grande! N�o tenho conforto pra te oferecer.
Mas tenho dois ombros."

"Temos uma dachshund de 14 anos. O nome dela � Polly. Ela � linda.
Preta com a fu�a e as patinhas marrons. E tem uma manchinha branca no
pesco�o. Quando era filhote eu e meu irm�o brinc�vamos muito com ela.
Ela corria por toda a casa com uma energia inesgot�vel. Adorava brincar
com uma bolinha de t�nis. A faz�amos de jo�o-bobo. O meu irm�o at� a
colocava dentro do capacete dele. Ela ficava muito brava. A ganhei de meus
pais quando tinha 10 anos. Hoje tenho 25. Posso dizer que crescemos
juntas. Agora ela est� doente. At� a cor do p�lo n�o � a mesma. Tem um
problema grave no cora��o que afeta seu pulm�o. Ela sofre muito. N�o a
castramos quando teve filhotes, ficamos com d�. Hoje, ela j� tirou tr�s
tumores nas mamas. E n�o podemos castr�-la mais, pois seu cora��o n�o

#
suportaria uma cirurgia t�o invasiva. O que posso dizer � que aproveito
todos os dias com ela como se fosse o �ltimo. Apesar de passar o dia inteiro
fora trabalhando, quando volto, sempre a pego no colo e fico co�ando a sua
cabecinha. O veterin�rio diz que � um milagre que esteja viva at� hoje com
os problemas que tem, mas acho que o amor que ela tem por n�s,
principalmente pela minha m�e, a mant�m viva."

"Ela foi abandonada filhotinha na rodovi�ria de minha cidade, onde
trabalho. Estava magrela e vermelhinha de sarna que cobria quase 100% de
sua pelagem. Fui cuidando dela com outras pessoas at� que assumi
totalmente a cachorra. Levo-a � veterin�ria sempre que precisa. Ela fica na
minha sala -na rodovi�ria

-durante a semana, tem cama, cobertor, travesseiro, roupinhas, vasilha
para �gua e ra��o, tudo muito limpinho. Nos finais de semana fica na
minha casa. Meu marido gosta de atletismo e ela corre com ele, j�
participou de umas quinze maratonas de 10 km, virou at� atleta, a
cachorra!"

"� quase meia-noite e acabei de aplicar uma inje��o de antibi�tico na
minha cadela (uma akita,), que est� com uma infec��o urin�ria cr�nica h�
quase um ano! Al�m de um problema de coluna que a deixa quase sem
movimentos nas patas posteriores. Fiz at� uma sacolinha para ajud�-la a se
levantar e andar. Esqueci-me de falar que ela est� com 13 anos e 3 meses, e
se voc� n�o conhece a ra�a, � bom saber que ela � pr�xima do husky,
tamb�m vem de lugar frio, com muita neve. Durante uma fase fiquei muito
encucada comigo mesma, pensando se eu n�o a for�ava a permanecer
comigo mais tempo. Choro muito tamb�m porque agora ela vive de fraldas e
fica olhando para mim confiante. Enfim, estou na mesma situa��o,
esperando, curtindo cada dia que ela fica comigo, um passo que ela
consegue dar, uma comidinha a mais que ela resolve aceitar!"

"H� duas semanas o cachorro da fam�lia morreu, sem dor e
silenciosamente, um husky como o seu. Chamava-se Iago. Tenho sua foto

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no �lbum de fam�lia. Era mimado como uma crian�a, dormia em um sof�
exclusivamente seu, todas as tardes comia seu p�ozinho, devidamente
reservado na padaria pr�xima de casa, desfilava pela casa ostentando sua
beleza e nos olhando com ternos olhos azuis. Era conhecido da vizinhan�a.
Todos que passavam pelo port�o brincavam com ele, embora de longe, pois
era de poucos amigos e havia mordido alguns cachorros distra�dos, perseguido
uma ou outra pomba e at� mesmo um ou outro vizinho. � certo que
todos os c�es t�m personalidade, e ele com certeza tinha a sua. Ele se foi,
depois de onze anos deixou saudade e uma casa vazia..."

"Seis meses atr�s, falava palavras carinhosas misturadas com um choro
silencioso ao ouvido do meu labrador Rex, de 10 anos, enquanto a
veterin�ria aplicava-lhe uma inje��o letal (indolor). Dias antes, algu�m me
disse que ele estaria sempre vivo no meu cora��o. Ajudou muito."

"... n�o s� me solidarizo com sua dor como tamb�m entendo muito bem o
que est� passando. J� passei por isso. A diferen�a � que foi com um gato.
Tudo bem, sei que geralmente quem gosta de c�es n�o gosta de gatos e viceversa.
Mas n�o � meu caso, gosto -e muito! -dos dois. Tamb�m tenho um
c�o. Mas, independentemente de qualquer prefer�ncia, a dor da perda � a
mesma. E � dif�cil de explicar para quem n�o tem ou teve um querido
animal de estima��o. Certa vez um conhecido me desafiou, criticando meu
amor aos (meus) animais dizendo: "Oras, � apenas um gato! O que voc�
ganha com isso?". Irritada, respondi de pronto: "Se voc� n�o entende nada
sobre amor incondicional, n�o sou eu que vou perder meu tempo
explicando ". Ele baixou os olhos e nunca mais fez nenhuma provoca��o a
respeito. Tratava-se de um sujeito engravatado, ainda jovem, mas aspirante
a grande executivo, para quem s� a l�gica dos n�meros e do dinheiro fazia
algum sentido na vida. Deve ter calado fundo nele. Ainda bem! Mas
voltando ao gato, ele realmente era muito especial. Tamb�m foi o primeiro
filhote da minha gata, que ainda est� conosco, e o �nico da gesta��o. Por
isso, seu nome era J�nior. Nasceu, literalmente, na minha m�o. E era eu

#
quem o amamentava e limpava, pois como era a primeira cria, ela n�o se
sentiu muito maternal. Em outra leva, provou ser uma m�ezona. Mas,
daquela vez, a m�e fui eu. Ele faleceu ainda jovem, com uns 9 anos, v�tima
de complica��es renais. Fizemos tudo ao nosso alcance para salv�-lo: at�
uma cirurgia com sonda na bexiga eu e a veterin�ria dele inventamos! Mas
acho que em um determinado momento ele simplesmente desistiu de lutar e
se foi. O que doeu mais � que, como moro em um apartamento pequeno em
S�o Paulo, optamos por evitar separ�-los (ao todo eram quatro gatos) e os
deixamos todos juntos com minha m�e, que mora em uma casa no interior
de Minas. Eu tive a chance de v�-lo, j� recuperado da cirurgia. Estava
abatido e enfraquecido, mas bem. Dormiu comigo todos os dias em que
estive l�, fiz quest�o! Dormia com sua cabe�a repousando na palma da
minha m�o... Mas poucos dias depois de eu ter voltado para S�o Paulo, por
compromissos profissionais, ele faleceu. Dormindo, segundo meu pai.
Quero acreditar que ele resistiu para que eu tivesse a chance de me
despedir. A dor foi enorme! Como se tivesse perdido um membro da
fam�lia. E como explicar tanta dor por um animal quando h� tanta gente
sofrendo por outros seres humanos? A gente se sente meio tolo, mas isso
n�o diminui a dor da perda, n�o �?"

"Tenho uma cadelinha (La Luna � seu nome) e sou apaixonada por ela. N�s
que temos essas "pessoinhas" em casa sabemos como s�o companheiros,
fi�is, amigos, verdadeiros... "

"Embora goste de bichos e os admire, nunca tive um animal de estima��o
realmente meu! Na verdade, via de regra, com os bichos de algumas casas
em que eu morei, nunca me dei muito bem...

sempre tive uma rela��o distanciada. No entanto, n�o pude deixar de me
emocionar. Pode ter certeza de que aquele rictus no focinho do Uno � um
sorriso sim, e que ele o ama tanto como voc� a ele!"

#
"Sei que nessas horas n�o adianta falarmos nada, s� quem tem um c�o
entende. "

"Parab�ns porque voc� tem um animal de estima��o. Entendo que o
contato di�rio entre um bicho e o ser humano torna o homem mais emotivo,
mais ligado ao meio ambiente, mais ligado a Deus. Que Deus o aben�oe
neste momento. A natureza � assim: nasce, cresce e vai".

"O nosso Erick, um poodle de 17 anos, estava fraquinho, esqu�lido, mas
n�o perdia o apetite, comia mais que os outros. Andava meio cambaleante,
brigava pelo seu espa�o com o pequenino Jimmy e com o grand�o Ozzy (j�
deu para perceber que meu filho e minha mulher s�o f�s de rock). Subia na
mesa para roubar restos de comida, comia a sua ra��o e, se n�o vigi�ssemos,
a de seus 'irm�os'. Come�amos a ir aos veterin�rios e alguns exames
apontavam um pequeno problema card�aco, mas nada de outro mal maior.
Fomos levando at� que um pouco antes do Natal, l� pelas 3 horas da
madrugada, come�ou a respirar mal, um pouco de v�mito, gemeu, e eu e
meu filho o levamos para um veterin�rio de plant�o. N�o havia mais nada
que fazer, ele 'foi embora ' no colo do meu filho, n�o parece que morreu,
parece que 'fugiu '. "

"Tenho 9 anos e tamb�m tenho uma cachorrinha e o nome dela � Mel. Se o
seu cachorro morrer ele vai morrer com Jesus e ser� bem cuidado, porque
ele estar� no c�u."

"Se existe algo que observo nas ruas s�o os c�es dos mendigos. C�us! Como
aqueles bichos s�o fi�is e orgulhosos de seus donos! Voc� acredita que todas
as tardes, aqui no meu bairro, chega uma gente estranha numas carro�as
catando lixo das lixeiras das ruas? Outro dia vi um homem com uma
carro�a enorme com pneus de carros e toda cercada com varais suspensos.
O que me surpreendeu foram os tr�s cachorros esqu�lidos, mas imponentes,
orgulhosos, com aquele jeito de cachorros de madame quando v�o desfilar.
Nem se mexiam diante das buzinas dos carros e apesar de estarem sobre

#
pilhas de papel�o e garrafas que n�o davam sustenta��o para se
equilibrarem. O amor de um c�o � algo indescrit�vel. Burra, n�o acredito
em reencarna��o. Ser� poss�vel n�s humanos voltarmos um dia a esta vida
no p�lo de um cachorro, porque de fato eles t�m sentimentos melhores que
os humanos? Sabe, eu levo uma vida de cachorro, e sei bem o que o Uno
deve estar passando. Mande not�cias, t�?"

"... Tenho 24 anos e perdi meu melhor amigo, meu gato Viterbo. O nome �
engra�ado e estranho. �s vezes o chamava de Vituxo, Vitinho ou de V�tor.
A hist�ria dele � muito engra�ada, pois a m�e estava mudando os gatinhos
de lugar e os punha na boca para transport�-los. O Viterbo ela deixou cair,
e [ele] ficou para tr�s. Minha irm� ficou com d� e pegou o gatinho. N�o
tinha nem um m�s e estava com os olhos fechados. Cuidamos, compramos
mamadeira! Foi uma festa! Vivemos muitas coisas juntos: ele sempre
estava ali comigo quando passei no vestibular, quando fiquei
desempregada, quando brigava com meu namorado. Sempre ele estava ali
para me consolar! Eu o perdi h� quatro dias. Ontem completei 24 anos e
at� parece que ele estava l� quando soprei as velinhas! � doloroso pensar
que na segunda-feira ele n�o vai estar na hora que eu chegar do trabalho �
noite, me esperando na porta e se esfregando nas minhas pernas!"

"H� dois anos meu cachorro (sem ra�a definida... rs) foi atropelado em
frente a minha casa e fraturou a coluna. Sua veterin�ria, desacreditada, nos
disse que seria necess�rio sacrific�-lo, pois ele jamais voltaria a andar e
seria melhor para todos n�o prolongar o sofrimento do pobrezinho. Mas
Deus � t�o grande que no dia seguinte ela nos disse que talvez com uma
cirurgia ele tivesse uma chance. Fomos a um consult�rio gratuito da
universidade, que se recusou a operar. Mas uma veterin�ria de l�
improvisou uma tala com chapas antigas e esparadrapo pra colocar em sua
coluninha. Foi um m�s sem dormir para poder cuidar do c�ozinho Nero,
que contava com apenas 1 aninho. Qual n�o foi nossa surpresa quando,
ainda com a tala, ele se arrastou de madrugada at� a cozinha e, poucas

#
semanas depois, assim que ela foi retirada, ele voltou a andar
normalmente... Claro que ele tem a coluninha torta, mas � normal como
qualquer cachorrinho. Outro dia o levamos � praia e ele correu loucamente,
na mais pura felicidade. Na �poca, n�s chor�vamos e pens�vamos se o que
est�vamos fazendo era certo com ele, se sacrific�-lo n�o seria melhor para
ele, o pobrezinho estava sofrendo demais... Mas n�s resolvemos dar a ele
uma chance e deixar que a natureza fizesse seu trabalho. Ele se recuperou
totalmente!"

"O meu Tiko est� bastante velhinho (16 anos), e nesta �ltima semana tem
estado bem 'caidinho'. Tamb�m morro de medo de olhar para o colch�o dele
e ver um lugar vazio."

"Convivo desde crian�a com um querido irm�o peludo, que acabou de
completar 13 anos. Ele tem um olhar que me decifra, sabe quando estou
bem, preocupada, triste; � um amigo incondicional. Desde que sa� da casa
dos pais para estudar est� comigo. Aquela presen�a, mesmo silenciosa,
aquece e conforta, e seu olhar eloq�ente � um bom conselheiro. Ele me fez
perceber que muitas vezes � isso que basta, � isso que n�s procuramos, esse
'estar com' simples, sincero, sem barulho, sem exageros. Em regra, as
pessoas falam demais, t�m receita para tudo, respostas prontas e previs�veis.
Minha m�e faleceu h� dois meses e meio, e o senhor pode imaginar:
quer seja no trabalho, ou no pr�dio onde moro, em nome das conven��es
sociais, venho escutando as mesmas solu��es e receitas, que n�o estou
sequer pedindo ou procurando. Outro dia, ap�s uma noite em claro,
sentindo a dor da saudade, cheguei ao trabalho com olheiras e uma colega
perguntou: O que aconteceu? Expliquei que n�o consegui dormir etc. Ela
olhou-me com o cenho franzido e respondeu: 'Mas voc� ainda n�o
superou?' Estava t�o cansada que nem respondi. Apenas um colega de
trabalho falou uma coisa que fez algum sentido: '� um mist�rio, o mais
previs�vel e o mais complicado de entender e de conviver. Realmente n�o sei

o que dizer; se precisar estou por aqui'. "
#
"O meu cachorro chama-se Tutty, e est� conosco h� aproximadamente
dezesseis anos. Chegou para minha filha Mariana em seu d�cimo
anivers�rio, na hora do bolo, bem no assoprar das velinhas. Foi trazido pelo
tio e padrinho, meu cunhado, que observava atentamente a rea��o do irm�o
e a minha, pois �ramos totalmente contra um cachorro morando em
apartamento. Mariana tinha perdido o av� querido um pouco antes e meu
marido e eu acabamos 'engolindo' o poodle preto que aos poucos foi nos
conquistando. Tr�s crian�as, um marido, um cachorro, uma escola para
cuidar... era tudo o que eu n�o queria. Mas hoje eu me sinto feliz, sou a
m�e da casa e o cachorro � uma grande companhia!"

"Era um corre-corre danado. Sair cedo, comprar o p�o e passear com o
cachorro antes de acordar e arrumar as crian�as para um dia de escola...
trabalho... e assim foi. Um dia, bem cedinho, na pressa, no hall de elevador
de servi�o, virei-me para colocar a chave na porta e ele entrou novamente
no elevador. Como eu carregava um pacote de p�es, a coleira flex�vel de
'el�stico' estava presa em meu pulso. Quando finalmente abri a porta de
casa, senti meu pulso sendo puxado. Algu�m apertara o bot�o do elevador e
com ele ia o meu cachorro dentro. Imagine a afli��o, o el�stico esticando,
esticando e o fio ia estendido... parte no meu hall, preso agora no v�o do
elevador, e a outra parte na coleira no pesco�o do cachorro. Achei que o
tinha enforcado. Entrei em casa aos prantos, acordei aos gritos o meu
marido, que com raz�o disse que um dia eu o mataria do cora��o e fomos
at� o elevador. Abri a porta e nada de cachorro. J� imaginei o c�ozinho
prensado, enforcado. Minutos depois o elevador retornou como uma
senhora que dizia que havia um c�o em seu hall e n�o havia meios de
entrar no elevador. Fomos ent�o carinhosamente convencer o nosso
mascote a voltar. No pesco�o dele havia uma marca, mas ainda bem que o
el�stico havia estourado. Depois desse epis�dio meu c�ozinho acabou indo
para a casa de campo em Atibaia, onde o visit�vamos �s vezes, e eu voltava
com os olhos marejados pela separa��o. Depois de cinco anos a casa de
Atibaia foi alugada e o inquilino tinha um enorme pastor alem�o. Uma
tarde vejo meu marido trazendo de volta um 'pano de ch�o' cor de terra em

#
vez de preto. Era o meu cachorro de volta para o apartamento. Foi uma
nova adapta��o, mas ele estava mais calmo. Durante muitos anos acordava
�s 5h30 da manh� para dar o primeiro passeio com ele e �amos n�s
alegremente pela rua, antes de come�ar o dia. Aos finais de semana �amos
todos para Guaec�, uma praia gostosa onde no gramado ele sempre adorava
dar galopes. Sempre me esperava com aquela alegria. Agora est� bem
velhinho. Sempre o levo ao veterin�rio, que me d� rem�dios e mais
rem�dios. Tem aquela tosse de 'cachorro' e hoje dorme no corredor, na
porta do meu quarto. Cada vez que me v� se agita, me faz a festa que
consegue e logo em seguida sofre uma nova crise de tosse. N�o caminha
com tanta energia, mas adora passear, agora mais vagarosamente. Hoje seu
passeio mudou para as 6 da manh�... (Seu passo � mais vagaroso, lento.)
Sempre o agasalho, porque faz frio nesse hor�rio, t�o cedo. Acho que � uma
rela��o de cumplicidade e muito amor essa que desenvolvemos com os c�es.
� dif�cil se 'preparar' para uma separa��o que a qualquer hora vai
acontecer. � um exerc�cio para outras separa��es que temos de enfrentar em
outras situa��es de vida, com os nossos idosos queridos."

"Adotei um c�o h� sete meses. Ele era menino de rua, ou melhor, cachorro
de rua. �s vezes eu penso que ele � gente! Chama-se B�ris, mas deveria se
chamar Dino. Quando a gente chega em casa ele simplesmente derruba
tudo! Pula, morde e fica FELIZ! Realmente o amor de um cachorro pelo seu
dono � incondicional!"

"O J�nior tinha um tumor no rim, que em tr�s dias triplicou, chegando a
ficar do tamanho de uma manga. N�o havia cura e a dor era terr�vel.
Minha irm�, que � veterin�ria, disse que a melhor coisa a se fazer era a
eutan�sia. S� que ela queria esperar meu cunhado, tamb�m veterin�rio,
chegar, pois n�o tinha coragem de aplicar a inje��o. N�o sei de onde tirei
essa for�a, mas pedi que acabasse logo com o sofrimento do J�nior. Pois ele
n�o conseguia se sentar de tanta dor e estava de p� desde o dia anterior. Foi
horr�vel, mas fizemos o que com certeza foi a melhor solu��o. O que quero

#
dizer com isso � que se a eutan�sia for necess�ria um dia, ag�ente firme ao
lado do seu amigo, por mais dolorido que seja para voc�. Ag�ente, pois at�
hoje me lembro da cara do meu cachorro extremamente confiante de que
tomei a decis�o com todo o meu amor. Para sempre ele ser� amado e jamais

o esquecerei. J�nior era meu filho. N�o podia deix�-lo s� na hora mais
dif�cil de sua vida. Tomamos a melhor decis�o e temos certeza de que vamos
nos encontrar um dia."
"Fa�o terapia com duas psic�logas, e uma delas � especializada no assunto
'luto'. ... viver uma perda � uma coisa muito dif�cil, e hoje eu enfrento a
minha terceira. Minha fam�lia � muito pequena, sou filha �nica, n�o sou
casada, n�o tenho filhos, e nesses meus 48 anos eu sempre vivi com os meus
pais. A minha linda, amada m�e faleceu faz seis anos, e o meu pai querido
faleceu faz um ano e meio, e tem sido muito dif�cil, doloroso suportar. H�
cinco meses eu perdi o Marvin Astor, meu amado cachorro. Ele era uma
mistura de vira-lata com fox terrier, j� nasceu com cara de velho, desde
filhote sempre teve uma barba branca. Foi muito especial na minha vida, foi
especial para minha m�e, para o meu pai; enfim, ele esteve presente em
todos os meus momentos felizes e nos momentos mais tristes. Quando a
minha m�e e o meu pai faleceram, ele ficou comigo o tempo todo, me
fazendo companhia e me dando carinho. Sobramos s� eu e o Marvin, e em
maio ele tamb�m morreu. Tinha um monte de problemas, osteoartrite, que �
degenerativa, problema de ouvido, rins, labirintite e o mais complicado: um
grave problema no cora��o. Sei que foram muitas idas ao veterin�rio,
muitos rem�dios, muitos exames, algumas interna��es... enfim, tentei tudo
para tornar menos doloroso para ele, mas o bichinho tinha tanta sede de
viver que lutava bravamente todos os dias. Ele n�o queria ir, acredito que
n�o queria me deixar aqui sozinha. Bom, vou resumir, porque do contr�rio
eu teria muitas, muitas hist�rias dele para contar. No �ltimo dia de vida,
um s�bado, fiquei ao lado dele, acariciando sua cabe�a, agradecendo pelo
seu amor, pelos momentos felizes que ele me deu, ficamos assim das 18h30
�s 3 horas da manh�, que foi o seu hor�rio de �bito. Sinto muita saudade,
mas sei que ele est� num cantinho especial, que Deus reserva para todos os

#
bichinhos. Eu o sepultei aqui no quintal, pois tenho um jardim lindo e
grande, e ele est� no meio das flores."

"Minha sobrinha tem um c�ozinho de estima��o. Outro dia sofreu um
acidente de carro de pequenas propor��es f�sicas, mas com grande perda
material, j� que seu carro deu perda total. Na hora do acidente ela estava
com seu c�ozinho de estima��o no colo e com o impacto da batida ele voou
pela janela e ficou preso pela guia pendurado na porta. Ela ficou t�o
desorientada na hora que desceu do carro gritando para o motorista
causador do acidente: Cad� meu filho? O que voc� fez com ele? Onde ele
est�? Voc� � um louco! Se meu filho morrer eu te mato! O motorista e as
pessoas que ali estavam come�aram a procurar o filho acidentado, mas para
a surpresa de todos era um c�o que se encontrava pendurado na porta,
quase morto. Minha sobrinha pegou o coitadinho no colo, beijava-o,
abra�ava-o. Olhava para o motorista e xingava, xingava muito. Nem deu
import�ncia ao estrago do carro, s� se preocupava em beijar o c�o e
perguntar se ele estava sentindo alguma coisa. O c�ozinho foi medicado e
est� bem. Mas quando a gente ama um cachorro � assim mesmo: � um
amigo, um filho peludo!"

"J� criei um malamute e dois huskies. Eu vivi exatamente as mesmas
enrascadas que voc� descreve de maneira t�o brilhante. Corri quil�metros
atr�s deles, chorei, implorei para que algu�m l� na frente parasse o bicho
que corria feito um louco, desvairado. Fiquei sem dormir porque um deles
fugiu e n�o voltou. J� paguei, na conta de um hotel, um pato. Sim, um pato
do laguinho do hotel. [J�] acordei � noite com o barulho surdo de um pobre
gatinho acuado embaixo do carro. Tive de pagar tamb�m um galinha morta
do vizinho de uma casa onde pass�vamos f�rias em Uba-tuba. O mais
tr�gico � que eles escolhem para matar justo as galinhas e os patos mais
queridos da fam�lia! [Certa vez] salvei uma galinha ex�tica da boca do meu
husky. Ele soltou a bichinha e ela ficou cambaleando. Mas hoje o meu
�ltimo husky, o Kau�, � igualzinho ao seu Uno. Um velhinho. Ele nasceu

#
em maio de 1992 e est� com 14 anos e 7 meses. Surdo, cego de uma vista,
cheio de manias, coisa de velho mesmo, faz xixi pela casa toda. � o membro
mais querido de nossa fam�lia. Ele est� bem. Come bem, corre, brinca um
pouco. Mas, como o Uno, passa muito tempo dormindo. Ele � o primeiro a
acordar, cedinho. E vem me chamar para passear. O dia que ele n�o faz
isso, voc� n�o imagina como meu cora��o fica apertado at� chegar �
caminha dele e ver o porqu� de ele n�o ter acordado. S� quem � louco por
cachorro entende e partilha nossos sentimentos."

"Por mais que vivamos, por mais que soframos, jamais vamos nos esquecer,
muito pelo contr�rio: estaremos sempre lembrando com ternura do
acontecimento que vou narrar. No Carnaval ficamos incumbidos de cuidar
da cachorrinha Lassie, cuja dona iria viajar para uma cidade no interior do
estado. Pegamos o animal no bairro do Br�s, em S�o Paulo, e o
conduzimos, a noite, de carro, � casa onde ele iria ficar hospedado, no bairro
de Vila Rica, para onde [ele] nunca tinha ido at� ent�o. Na tarde de ter�a-
feira, um temporal muito forte inundou nossa casa e, preocupados em
estancar tanta �gua, nos descuidamos de Lassie, que fugiu. Desespero
total! Como falar para a dona que sua querida cadelinha havia
desaparecido? Ent�o, come�amos a procurar. Vasculhamos, em v�o, todas
as imedia��es. Quando a dona, na sexta-feira, regressou, chorou
desconsolada, mas acreditava que poderia encontr�-la. E continuamos as
buscas. Eu, particularmente, a procurava apenas para mostrar
solidariedade, pois, no fundo, n�o acreditava que ela estivesse mais viva.
Nove dias se passaram e, na manh� do dia primeiro de mar�o, veio a
incr�vel not�cia: Lassie estava na porta do sal�o de beleza de propriedade de
sua dona, na rua do Hip�dromo, no Br�s, de onde ela saiu, repito, de carro,
na noite de s�bado de Carnaval. A emo��o foi tanta que a dona da
cachorrinha a apertava e a beijava ao mesmo tempo em que chorava
copiosamente. Lassie nunca havia sa�do do Br�s. Considerando que da casa
de onde ela fugiu at� a rua do Hip�dromo s�o exatos 13 quil�metros, por
um itiner�rio racional, l� vai a pergunta que n�o quer calar: como ela
conseguiu? E outra: como ela sobreviveu nove noites e oito dias, sob sol,
chuva e sabe-se l� o que mais? Mais uma: Lassie teve que atravessar v�rias

#
avenidas, das quais tr�s s�o super movimentadas e perigos�ssimas. Quem a
ajudou a atravessar? Com certeza n�o foi algu�m humano, porquanto
Lassie � vira-lata, feia e velha (mais de 15 anos, com certeza). Ningu�m
olha para um c�ozinho com tantos defeitos. Mas, apesar desses defeitos, ela
deu a todos n�s, que vivenciamos o fato, uma importante e inesquec�vel
li��o de coragem, determina��o, perseveran�a e amor. Ela ainda est�
assustada, magrinha, as unhas desgastadas por mais de 13 quil�metros de
asfalto. S� tem uma coisa: Lassie agora � mais especial para todos n�s, pois
l� no fundo do nosso cora��o n�s sabemos quem foi que a ajudou em sua
trajet�ria: foi Deus! Somente Deus com sua irrefut�vel bondade p�de
conduzir as patinhas de uma cachorrinha vira-lata, feia e velha, de volta
para os bra�os de sua dona, que a ama tanto!"

"Amo os cachorros deforma incondicional. S�o meus melhores amigos. Sou
protetora e cuido de alguns deles nas ruas e tamb�m tenho oito em casa.
Agora mesmo acabei de vir da rua com um saco de ra��o e o gal�o de �gua
que j� anda comigo no carro. S�o seres maravilhosos e puros que n�o nos
deixam em nenhum momento. �s vezes, quando fico triste e choro, vou
para o quintal e eles lambem minhas l�grimas, deitam e rolam no ch�o e
minha tristeza se vai... N�o conseguirei jamais viver sem um c�o por perto.
Acho que em vidas passadas j� fui de quatro patas!"

"Diz a lenda que, quando os animais de estima��o morrem, atravessam a
Rainbow's Bridge (Ponte do Arco-�ris) e chegam a um lugar maravilhoso
onde brincam eternamente. L� os animais correm livres e felizes e at� os
c�es idosos e doentes, como seu querido Uno e a minha Zizi, recuperam a
sa�de e a energia. No meio da brincadeira, um dos animais p�ra, cheira o ar
e corre, para cruzar de volta a Rainbow's Bridge. Mas o que foi fazer este
animal? Este animal, sempre t�o fiel, foi receber seu dono, que tamb�m
cruzou a ponte. Finalmente o dono e seu fiel companheiro voltam a ficar
juntos, desta vez para sempre."

#
"O c�o � um verdadeiro anjo que tem um curto tempo de conviv�ncia
conosco, talvez apenas o suficiente para nos ensinar algumas coisas, se
quisermos mesmo aprender."


12

Maranh�o, o diretor da revista, telefonou: -Os leitores querem
conhecer o Uno. Veio o fot�grafo. Botei um len�ol no sof�, chamei
meu husky. Abracei-o. Que diferen�a de anos atr�s, quando era
deliciosamente indisciplinado! Ficou calmo, ao meu lado, durante
os cliques. � a nossa �ltima imagem. Foi publicada na semana
seguinte, e tamb�m apareceu no site da editora. Havia uma grande
torcida pelo meu cachorro, como mostraram as cartas e os e-mails.
-Ficou famoso, Uno, famoso! -eu brincava.
Segundo o veterin�rio, o intestino tinha tumores internos. Uno
sofria dores terr�veis para evacuar. Apesar do problema do cora��o,

o melhor seria oper�-lo. Eu hesitei.
-Mas e a idade?
-A condi��o f�sica dele � muito boa, de um cachorro muito mais
jovem.
Eu sabia dos riscos. Tamb�m tinha consci�ncia de que ele n�o
poderia continuar vivendo assim. Perguntei detalhes.
#
-Retiramos um peda�o do intestino e costuramos as duas partes. O
ideal � uma interna��o prolongada, para ele s� voltar para casa
totalmente recuperado.
Aceitei. Pedi alguns dias. Na noite anterior, trabalhei at� tarde,
como costumo fazer. Era mais de meia-noite quando desci. Uno
dormia em um tapete pr�ximo � escada. Seu corpo estava
quentinho. Sentei-me no ch�o, ao seu lado, coloquei sua cabe�a em
meu colo. Ele me ouviu atentamente, com express�o s�ria, enquanto
falei com l�grimas nos olhos:
-Uno, querido, amanh� voc� vai fazer uma opera��o, e as
perspectivas s�o boas. Mas n�o sabemos o que pode acontecer. Se
voc� partir, quero que saiba que eu nunca vou esquecer voc�. Voc�
foi um bom cachorro. Um amigo. Muitas vezes, Uno, voc� me
entendeu, compartilhou sentimentos e torceu por mim. Nas horas
de tristeza, voc� estava perto, e eu me sinto feliz por ter voc� por
aqui. Agora a situa��o � complicada e pode ser que voc� v� embora.
Eu espero que n�o seja uma despedida, que voc� volte bem, um
cachorro forte, feliz, de rabo erguido, cheio de amor pra me dar.
Mas se n�o for assim, Uno, se partir, vou sentir muita falta de voc�.
Muita mesmo. Eu n�o sei como certos mist�rios funcionam. H�
quem diga que a alma come�a na pedra, vira planta, vira bicho, vira
gente e um dia um ser divino. Outros acreditam que alma humana
j� surgiu humana. Mas �s vezes eu olho pra voc� e acho que est�
pronto para nascer como gente, que j� tem uma personalidade, e
que vai ser um cara legal. Quem sabe isso aconte�a e a gente se
conhe�a l� no futuro, em outra vida, se eu tamb�m tiver essa
oportunidade. Ou quem sabe

#
exista um lugar para onde eu v� tamb�m um dia, onde n�s dois
vamos correr, brincar, e onde haja um lago cheio de patos deliciosos
pra voc� ca�ar! Eu n�o sei, Uno, eu n�o sei. Mas quero que saiba que
tivemos uma boa vida. Ah, uma vida boa, e eu fico t�o emocionado
em pensar que voc� vai embora que d�i, d�i tanto, que eu s� sei
ficar abra�ado e dizer: Meu cachorro, ah, meu cachorro! Meu
querido c�o!
No dia seguinte, foi levado pelo veterin�rio. Passou a noite em
jejum. Foi operado de manh�. Recebi o telefonema:
-Tudo correu muito bem. Ele ainda est� anestesiado, mas resistiu.
-Quando posso ir a�?
Ouvi um sil�ncio. Cheio de dedos, o veterin�rio explicou:
-Eu acho melhor esperar um pouco. Ele precisa de repouso. Se voc�
aparecer, vai pular, fazer agrado, e � perigoso arrebentar os pontos.
Eu me conformei. Tudo para o bem de Uno! Recebia informa��es
todos os dias. Uno acordou. Estava andando. Reagia muito bem.
-Parece um menino! Logo ter� alta.
Mesmo assim, eu me sentia apreensivo. S� ficaria feliz quando ele
voltasse e eu pudesse ficar ao seu lado vendo televis�o. Nada seria
como antes, � claro. J� estava velho. Mas quem sabe eu o teria por
mais uns dois, tr�s anos?
-N�o pode acontecer agora!
Um domingo acordei mais tarde. Havia um recado urgente no meu
telefone.


-Ligue depressa para a cl�nica.
A veterin�ria de plant�o informou:
-O Uno n�o est� passando bem.
-Mas o que houve? At� ontem estava �timo!
-Os pontos da opera��o arrebentaram. Ele come�ou a uivar de dor,
de madrugada. Est� sendo medicado, mas est� com infec��o
generalizada.


#
Minha garganta se apertou. Mesmo em hospitais de primeira linha �
dific�limo resolver uma septicemia em seres humanos. Que dir� em
um cachorro, em um veterin�rio com muito menos recursos!
Perguntei:
-Ele est� sofrendo?
-A dor � muito grande.
Havia chegado o momento. Teria de tomar a decis�o. Por�m n�o se
resolve uma coisa dessas pelo telefone.
-Vou pra a� agora mesmo.
Ainda estava de pijama. Botei uma roupa, t�nis, sa� com o carro.
Acabei me perdendo um pouco no caminho, de puro nervosismo.
Uma senhora me indicou a rua certa. Estacionei. Toquei a
campainha. O seguran�a abriu.
-A doutora j� vem.
Uma garota loira, bonita, de roupa branca, veio de dentro.
-Entre, por favor. Sinto muito, as not�cias n�o s�o boas.
-Eu sei, eu sei... Onde ele est�?
Ela me indicou o centro cir�rgico. Apressei-me, a jovem logo atr�s.
Entrei.
Uno estava morto, deitado na maca.
Seus olhos abertos, mas apagados, sem brilho!


Costumam dizer que a vida � uma chama, e eu concordo. O brilho
da vida cintila atrav�s das pupilas. A vida � uma sensa��o, uma luz,
um g�s que nos anima. Ar imantado. Mas a falta de vida produz
uma outra sensa��o, arrepiante. A morte traz um vazio. � o que eu
sentia agora naquele lugar. Havia apenas um vazio. Uno me
deixara.
-Meu cachorro! Meu cachorro!
Eu me atirei em l�grimas sobre seu corpo ainda quente. Faleceu
minutos antes de eu chegar, salvando-me de tomar a decis�o
dolorosa de sed�-lo. Beijei v�rias vezes sua cabe�a, suas orelhas,
sem vergonha de chorar, de transbordar, meus �culos molhados,
ba�os, minha dor sozinha.


#
-Ah, eu te amo, eu te amo.
Quando me ergui n�o conseguia enxergar direito. A veterin�ria
trouxe um copo de �gua.
-Eu pensei que ele ainda estava vivo!
-Mas eu disse que sentia muito...
-Achei que era por causa da condi��o f�sica... mas que ele estaria
aqui, que poderia v�-lo mais uma vez.
Sentei-me, e fiquei olhando o corpo longamente. Murmurei:
-Adeus, querido. Adeus!
Muitas pessoas que me escreveram jogaram as cinzas de seu
animalzinho por perto ou enterraram o corpo no jardim. Mas eu
acredito que existe uma alma, e que quando ela parte resta s� o
inv�lucro. Um corpo � apenas o traje de uma ess�ncia de luz. Pedi
que o incinerassem. A mo�a concordou.
-A gente toma conta de tudo.


Mais uma vez eu o abracei. Fitei seus olhos sem vida. Mais uma vez
me despedi. No entanto a alma n�o estava mais l�. Alma de
cachorro? Para mim todo ser vivo possui uma centelha divina. O
meu cachorro partira, mas eu n�o queria aceitar, como se ficar ali,
ao lado dele, fosse suficiente para traz�-lo de volta.
Ent�o percebi que era preciso virar as costas e caminhar at� a sa�da,
que n�o poderia prolongar aquele momento eternamente. Fui at� a
porta e ergui os ombros, empinei o queixo, sorri para a mo�a e
agradeci.
-Obrigado. Fico grato por tudo que fez por meu cachorro.
-Infelizmente n�o consegui...
-S� quero saber se ele sofreu muito.
-N�o, sofrer n�o sofreu, eu dei rem�dio para controlar a dor. Ele
viveu at� pouco antes de voc� chegar, mas n�o resistiu.
-Sabe o motivo?
-Provavelmente a idade. Os pontos arrebentaram porque j� era
velhinho, j� n�o tinha a mesma resist�ncia. Se quiser uma autopsia
para ter certeza...


#
-N�o, n�o � preciso. Eu acredito que voc�s fizeram o m�ximo. Diga
ao diretor que depois eu acerto tudo.
Olhei para o corpo de novo. Sorri de leve entre as l�grimas. Era
imposs�vel partir ainda. Voltei. Pus a m�o sobre seu focinho,
lembrando de todos os nossos momentos bons, e disse, agora
realmente pela �ltima vez.
-Obrigado por ter estado comigo e me feito companhia. Por ter sido
meu amig�o. Voc� foi um bom, um excelente cachorro. N�o houve
melhor neste mundo. Adeus, Uno; adeus, meu cachorro!
Sem hesitar, porque de outra maneira n�o poderia mais ir embora,
dei um leve sinal de adeus para a veterin�ria e parti.
Nem sei como consegui dirigir para casa. Entrei, e tudo estava
tremendamente solit�rio. Atirei-me sobre minha cama e chorei,
chorei sem parar como estou chorando agora ao escrever estas
linhas, porque a dor nunca acaba, s� fica amortecida e toda vez que
penso no meu cachorro sinto uma imensa saudade.



13

Decidi nunca mais ter cachorro. "N�o quero mais amar e perder",
comentava comigo mesmo. V�rias pessoas, incluindo leitores da

#
revista, ofereceram filhotinhos. N�o pretendia pensar nessa
possibilidade. Dediquei-me � vida profissional. Novos desafios
surgiam. Minha carreira como roteirista s� melhorava. Gosto muito
de ler. Lembrava-me de personagens de romances que vivem
sozinhos, em locais ermos, contentes com sua vida interior. Eu n�o
queria mais ter sentimentos.
-A solid�o � uma forma de felicidade! -murmurava diante do
espelho para me convencer.
Joguei fora o acolchoado onde ele dormia. N�o tive coragem de me
desfazer do pote de ra��o. �s vezes ainda o via no quintal. Depois a
faxineira o guardou em algum lugar. Quando ligava a televis�o e
via um filme com lobos, meu cora��o saltava, pois os huskies s�o
incrivelmente semelhantes a eles. Se cruzava com algum deles na
rua, tamb�m sentia uma incr�vel emo��o.

Os meses se passaram.
No final do ano, fui para uma praia no Rio de Janeiro com dois
amigos, Saulo e Robson. Ficamos em uma casa em um condom�nio
sem muros, com �rvores frondosas. � meia-noite fizemos tudo de
acordo com o ritual. Vestidos de branco, fomos para a praia,
abrimos champanhe e pulamos sete ondinhas. Na volta, comemos
uma ceia com lentilhas, pernil, uvas e rom�. Depois, os tr�s ficamos
na varanda, eles em redes e eu deitado em um sof�. Fal�vamos
sobre a vida em geral. Os dois fazem teatro, eu escrevo pe�as, livros,
novelas de televis�o. Havia muito que conversar. De repente
ouvimos um ru�do. Seria algu�m?
Um enorme cachorro preto entrou na varanda. Vinha da rua. Sujo
de areia, aspecto feroz. Aproximou-se de Robson, que se d� muito
bem com c�es.
-Oi, cachorro! -ele disse.
O c�o nos observou, s�rio. Se nos atacasse, seria bem perigoso. Mas
eu n�o sentia medo. Ao contr�rio. Tive uma intui��o. Chamei:
-Vem c�, Exu.

#
O cachorro veio at� mim, curvou a cabe�a e recebeu meus carinhos.
Afaguei suas orelhas. Seu pesco�o estava sujo, mas que importava?
Eu o abracei.
Robson foi para dentro, voltou com um peda�o de pernil.
-Toma!
O cachorro pegou o pernil na boca e depositou na minha frente.
Saulo levou um susto:
-Parece que esse cachorro � seu!
Eu chamava Exu, e ele vinha. Deitava do meu lado.


Permaneci na varanda o m�ximo que pude, porque n�o queria me
separar. N�o havia nem corda para prend�-lo, nem port�o para
fechar. Finalmente, fui dormir. Acordei decidido:
-Eu quero o Exu! Vou levar para mim!
Fui at� a portaria do condom�nio. Falei com o caseiro.
-Eu vi um cachorro como o senhor est� falando -respondeu ele. Dormiu
aqui, na frente do condom�nio, e s� foi embora hoje de
manh�.
Ent�o tinha me esperado!
Devia ser um cachorro de praia, abandonado. Sa� � sua procura.
-Voc� est� completamente maluco -disse Robson. -O cachorro �
muito grande para sua casa.
-Mas eu quero!
-Ele est� acostumado a viver livre, aqui na praia, voc� vai levar?
Vai prender?
-Mas aqui ele vai morrer cedo, ningu�m vai cuidar quando ficar
doente.
-Vai morrer feliz. Quem voc� acha que �, que onipot�ncia � essa
para achar que pode decidir o que � a felicidade de algu�m, mesmo
de um cachorro?
Fui at� o caseiro e propus:
-Dou uma bela recompensa se voc� achar o c�o.
-Pode deixar comigo.
Convenci Robson e Saulo a sa�rem procurando.


#
-Eu o vi de longe, com uma matilha -explicou Robson mais tarde -,
e fiquei sabendo, � de um pescador.
-Vou dar dinheiro para o pescador e levar.
-N�o vai, n�o.


-Vou.
Sa� de dia, de noite, bati a praia toda v�rias vezes. Perguntava.
Ningu�m sabia identificar o c�o.
-L� perto da igreja tem um bando de cachorros de rua. Vivem
num terreno.
Fui at� o local, n�o encontrei nenhum. Continuei � procura pelos
dias seguintes. N�o o vi mais.
H� quem diga que o nome Exu � mau sinal. Uma amiga a quem
contei o fato comentou:
-Ainda bem que ele n�o ficou por l�! Imagine, ter um Exu dentro de
casa.
N�o conhe�o profundamente as religi�es afro-brasileiras, mas pelo
que sei o Exu n�o pode ser identificado com o diabo. Pelo contr�rio.
O Exu atua como um mensageiro. � quem leva os pedidos, energias,
vibra��es. Como um carteiro, n�o analisa se o conte�do de uma
mensagem � bom ou ruim. Uma carta pode trazer not�cias
excelentes ou m�s. Exu est� muito mais pr�ximo do deus Merc�rio
dos gregos -aquele com asinhas nos p�s -, um mensageiro divino.
Merc�rio � o patrono de jornalistas, escritores, de todos que
trabalham com comunica��o. Quando n�o o encontrei mais, senti
uma dorzinha, porque tinha sido meu, nem que fosse por algumas
horas. Mas entendi.
-Foi um sinal, em uma noite de r�veillon, para dizer que o ano ser�
bom, que devo ter esperan�as!
Quando me despedi, ainda deixei mais um recado com o caseiro:
-Se encontrar aquele cachorro, avise. Eu pago bem.


Ainda liguei v�rias vezes. Sempre a mesma resposta.
-Nunca mais apareceu.


#
Conclu�: "� para eu nunca mais ter cachorro". De novo, resolvi ficar
mergulhado na solid�o. Um dia estava no Rio de Janeiro a trabalho
quando meu celular tocou. Atendi. Era Robson.
-Olhe, estou aqui na praia. Voc� ainda quer aquele cachorro, o Exu?
-Quero! Voc� achou?
-Ainda n�o sei. Depois explico. Telefonou um
dia depois.
-Voc� volta quando?
-Amanh�! Por qu�? Achou o Exu?
-N�o, n�o, mas estou vendo.
Eu tinha quase certeza de que j� encontrara o c�o. Disse o hor�rio
do avi�o. Quando cheguei, a faxineira avisou:
-Seu amigo veio aqui, quer falar com o senhor.
-Cad� o cachorro?
-� melhor falar com o Robson.
Corri para o quintal, onde colocara algumas cadeiras e uma
mesinha. Robson sorriu.
-Achou o Exu? -perguntei.
Ele foi at� o banheirinho de fora e voltou com uma cachorrinha
preta, p�lo curto, filhote ainda, de pernas longas, corpo magricela e
olhos extremamente doces. Uma vira-lata simp�tica que me
derreteu.
-� uma prima do Exu.


Eu e a filhotinha ficamos nos olhando um longo tempo. Ela botou a
linguinha pra fora e lambeu o bei�o, tentando sorrir. Estendi meus
bra�os e a pus no colo.
Ent�o fui tomado por uma onda de sentimentos. Abracei a
cadelinha. Chorei, chorei sem parar durante um longo tempo,
deixando sair toda minha emo��o represada.
-� �sis. Seu nome vai ser �sis.
-Vai botar nome de gente? E se encontrar alguma �sis surpreendeu-
se ele.


#
-Ser� uma honra para ela ter um nome de cachorra. Robson me
contou a hist�ria. Estava hospedado na
mesma casa do r�veillon. Fora para a praia com sua m�e. De
tardezinha, a cachorra os seguira at� o condom�nio. N�o tiveram
d�vidas. Colocaram a filhotinha na varanda, presa por uma
cordinha. No dia seguinte, havia sumido.
-Eu acho que foi o caseiro que soltou, porque eu disse que seria
para voc�. E ele ainda pensa que pode ganhar a recompensa pelo
outro.
Mas, de tarde, quando foram ao mercado, a cachorrinha aparecera
novamente. Robson a levara para a casa, dera banho. E tirara a
coleirinha de barbante que ela possu�a.
-Ent�o tinha dono?
-Parece que vivia numa casa com v�rios cachorros. Mas estava
cheia de carrapatos, doente. Eu a levei � veterin�ria da regi�o, que
ficou emocionada. Ela disse: "Mais um cachorro salvo!".
Segundo Robson, a cadelinha teria pouco tempo de vida, pois era
muito magra e maltratada. Um dia se esconderia em um canto, bem
triste, e n�o acordaria mais.


-Mas eu soube que � prima do Exu. Ou parece! Concluiu:
-Ficou na casa de minha tia esses dias. Se voc� n�o quiser, minha
tia quer. Est� doida por ela. Mas eu lembrei de voc�, do seu
cachorro, e resolvi traz�-la.
-� claro que eu quero. � minha agora e nem que voc� queira tira
daqui!
Eu e �sis trocamos um longo e enternecido olhar. Ela pulou para o
meu colo. Acariciei seu pesco�o. Ela esticou os l�bios, sorrindo do
jeito que sabem fazer os cachorros.
Passamos o resto da noite trocando carinhos e lambidas.
Ela deitou na minha cama. De manh�, me acordou com o focinho
gelado na orelha para sair. Mais tarde comprei coleira, ra��o, um
novo potinho para as refei��es.
E descobri que meu cora��o n�o estava mais devastado.


#
Jamais esquecerei meu cachorro, meu husky, meu Uno. Mas aqui
dentro tem lugar para minha �sis, e os sentimentos n�o se
confundem, perdas e amores fazem parte de uma mesma vida.
Alguma coisa mudara dentro de mim. Comecei a olhar as pessoas
de maneira completamente nova. Recuperei a vontade de conhec�las,
de me ligar, de criar la�os. A imagem do homem solit�rio, do
eremita, desapareceu, e no seu lugar surgiu um sol radiante. Eu
queria aquecer e ser aquecido.
Meu longo luto terminara. Fora um aprendizado longo e dif�cil, mas
meu sentimento deixara de ser um campo est�ril onde vida
nenhuma brotaria. Pelo contr�rio. Meu cachorro cultivara meu
cora��o ao longo daqueles anos, e agora eu era capaz de gostar
daquela cachorrinha simplesmente porque estava pronto. Queria
correr riscos. S� chora quem realmente amou, e sem amor a vida �
apenas uma passagem desolada.
Meu cachorro, meu Uno, me acompanhou durante o tempo mais
dif�cil da minha vida. Sua presen�a impediu que o deserto tomasse
conta de mim, que me tornasse um ser est�ril. Seus uivos, suas
lambidas, suas corridas, ca�adas, ternuras, tudo que desfrutamos
juntos me manteve vivo.
E agora, nesta casa outra vez animada por latidos, eu sinto a vida
respirar. Um vento suave se aproxima, com risadas, m�sica,
palavras de afeto de quem n�o conhe�o ainda. Mas j� estou de
bra�os abertos. Eu sei que uma coisa boa vai acontecer,
simplesmente porque estou pronto.
A vida se renova, os sentimentos desabrocham.
Meu cachorro me ensinou a amar.
Estou pronto para me apaixonar novamente.

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