quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020 By: Fred

{clube-do-e-livro} Lançamento: A Volta do Gato Preto - Érico Veríssimo- Formatos : Pdf, epub txt

A VOLTA

DO GATO PRETO



ERICO VER��SSIMO

A VOLTA

DO GATO PRETO

16�� Edi����o





Copyright �� 1987 by Herdeiros de Erico Ver��ssimo

Ilustra����o de capa: Carlos A. Petrucci (detalhe)

Direitos de edi����o em l��ngua portuguesa, para o Brasil,

adquiridos por

EDITORA GLOBO S.A.

Rua D o m i n g o s S��rgio dos Anjos, 277

CEP 05136-170 - Fax: (011) 836-7098, S��o Paulo, SP.

Brasil

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edi����o pode ser uti-

lizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mec��nico ou

eletr��nico, fotoc��pia, grava����o etc. - n e m apropriada ou estocada em

sistema de banco de dados, sem a expressa autoriza����o da editora.

Impress��o e acabamento:

RR Donnelly & Sons Compay

CIP-Brasil - Cataloga����o na-fonte - C��mara Brasileira do Livro, SP

Verissimo, Erico, 1905-1975.

A volta do gato preto / Erico Verissimo - 16. ed. - S��o Paulo :

Globo, 1996.

ISBN 85-250-0335-2

1. Caracter��sticas nacionais americanas 2. Estados Unidos -

Descri����o e viagens 3. Estados Unidos - Usos e costumes I T��tulo.

CDD-917.3





-155.8973


87-1421 -390.0973

��ndices para cat��logo sistem��tico:

1. Estados Unidos : Caracter��sticas nacionais : Psicologia 155-8973

2. Estados Unidos : Descri����o e viagens 917.3

3. Estados Unidos : Usos e costumes 390.0973

PREF��CIO

No p��s-escrito ao bilhete que dirigi aos leitores, e que apareceu

na edi����o original de Gato Preto em Campo de Neve, eu lhes infor-mava que este t��tulo n��o tinha nenhum sentido simb��lico: ele me

fora realmente sugerido por um gato negro que, da janela dum trem

em movimento, no Colorado, eu vira atravessar um campo coberto

de neve... Era, portanto, uma sugest��o puramente pict��rica.

Os leitores, por��m, n��o aceitaram a explica����o, pois pareceram

achar que o gato preto era o pr��prio autor, isto ��, um sujeito de tez

morena a caminhar por entre gente clara e paisagens hibernais. Essa

id��ia se generalizou de tal forma, que ao procurar um t��tulo para este

segundo livro de impress��es sobre os Estados Unidos, ocorreu-me

logo o seguinte, que adotei sem dar maiores esclarecimentos: A Volta

do Gato Preto.

Aqui v��o as minhas impress��es de dois s��lidos anos passados

na Calif��rnia, para onde fui em setembro de 1943 com o fim de dar

um curso de confer��ncias sobre literatura brasileira na Universidade

da Calif��rnia, em Berkeley, a convite ainda do Department of State.

Nada mais poderei dizer sobre esta obra que, pela sua natureza,

est�� habilitada a falar por si mesma.

ERICO VER��SSIMO,

1961

SUM��RIO

PREF��CIO VII

1 - OS ARGONAUTAS 9

2 - DIARIO DE SAN FRANCISCO 123

3 - INTERLUDIO 257

4 - DIARIO DE HOLLYWOOD 293

5 - DUAS CARTAS DA ERA AT��MICA 513

1 - O S A R G O N A U T A S





"OS ��RF��OS DA TEMPESTADE"

EDONHO desastre. Perdido na procela, o avi��o pre-

cipitou-se no mar, a pouca dist��ncia da costa de

Fl��rida. Era noite fechada quando as lanchas do ser-

vi��o de salvamento da marinha norte-americana che-

garam ao local do sinistro. E ali sob a chuva, na negra

noite, come��aram a pescar os cad��veres de passageiros

e tripulantes. O primeiro a aparecer foi o da Princesa

Hindu, que sorria com uma estrela-do-mar aninhada

entre os seios. O gordo Homem de Neg��cios boiava

abandonado, como um fofo boneco de borracha, e em

sua boca aberta mexia-se um caranguejo. Vieram ou-

tros. O Mo��o de Bordo com uma medusa na testa..

A Americana Loura com os cabelos soltos e os olhos

vidrados... O Comandante todo condecorado de an��-

monas .. . Tinham os bra��os enredados em algas, e a

morte lhes pintara nos rostos as cores mais doidas. Por

fim ficaram faltando apenas os corpos dos brasileiros.

Holofotes aflitos varejavam as ��guas. Longe cintilavam

as luzes de Miami. A chuva ca��a, o mar gemia, o vento

dizia ��� nunca mais, nunca mais, nunca mais. . . E assim

uivando foi-se continente a dentro, rumo do outro ocea-

no e das luminosas terras da Calif��rnia, para onde havia

poucas horas fugira tamb��m o pensamento e o desejo

de muitos dos passageiros daquele tr��gico avi��o. Nun-

ca mais...

Vi quando pescaram meu pr��prio cad��ver. Meu

rosto estava esverdinhado �� luz dos holofotes. Como

um estranho peixe fui i��ado para bordo e atirado para

o fundo da lancha, como uma coisa sem dono nem

serventia. No fundo da minha mem��ria antepassados

fatalistas murmuraram: "Morreu? Acabou-se".

12

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Imagina����o �� coisa do diabo. De mil modos j�� fan-

tasiei o desastre. J�� li em cem jornais e de cem ma-

neiras diferentes a not��cia do sinistro.

Faz quatro dias que entramos neste gafanhoto de

alum��nio que pulou do Rio para Recife, de Recife para

Bel��m, de Bel��m para Tort of Spain, e que agora se

aproxima de Miami.

S��o seis da tarde de 7 de setembro de 1943. Voa-

mos sobre o mar a uns mil metros de altura, e j�� avis-

tamos terra. �� o fim da viagem, mas para n��s bem

pode ser tamb��m o fim de tudo, pois uma tremenda

tempestade est�� prestes a desencadear-se. Visto atrav��s

da janelinha do avi��o, o mundo �� um quadro l��gubre

pintado em tons de s��pia, negro e medo. Nuvens desco-

munais, pesadas e escuras, cobrem o c��u. H�� no ar

carregado de eletricidade algo de sulfuroso e mau, de

pressago e opressivo. Rel��mpagos clareiam o horizonte,

refletindo-se no mar, onde j�� se avistam as ilhas de

Coral da costa de Fl��rida.

Volto a cabe��a e passo em revista a fam��lia. No ros-

to de minha mulher e de meus filhos vejo refletido o

verde da tempestade, da n��usea e do pavor. S��o tr��s

caras l��vidas e ansiosas. Sorrio para elas, mas obtenho

como resposta apenas olhares de interroga����o e d��-

vida.

O Homem de Neg��cios cochila a meu lado, com a

cabe��a quase a tocar-me o ombro. No fundo do avi��o

a Princesa Hindu sorri enigmaticamente. Embarcou na

Guiana Holandesa, �� dum moreno bronzeado, tem uma

face de ��dolo oriental e est�� toda vestida de branco, com

um vaporoso v��u a escorrer-lhe pelos ombros. Talvez

n��o seja nobre nem tenha nascido na ��ndia, mas est��

claro que n��o vou perder esta rara oportunidade de

meter uma princesa hindu na minha hist��ria.

Os outros passageiros preparam-se para descer. A

Americana Loura trata de apaziguar o seu baby rosado,

que choraminga e esperneia. O calor aumentou; em v��o

busco al��vio aproximando o rosto dos renovadores de ar.



A VOLTA DO GATO PRETO

13

A trovoada estala. Parece um sinal para que as

nuvens se rasguem e abram para a cena do Ju��zo Final.

Chegou a hora ��� penso ��� chegou a negra nora. Sem-

pre achei que estes saltos sobre o oceano, de ilha em

ilha, eram um desafio ao Destino. N��o se pode fazer

uma coisa dessas impunemente... Os rel��mpagos se

sucedem. O baby chora, assustado. O Homem de Ne-

g��cios desperta, e seus olhos piscam quase em p��nico.

A trovoada continua. E aqui vamos, encerrados nesta

c��psula prateada que avan��a imp��vida na dire����o da

tormenta. O ronco dos motores parece uma amplia-

����o descomunal do pulsar destes vinte cora����es inter-

nacionais.

Lembro-me de um dramalh��o que li ou vi quando

adolescente ��� "As ��rf��s da Tempestade". Sim, n��s so-

mos os ��rf��os da tempestade. Estamos �� merc�� dos ven-

tos e da sorte, desligados da terra e das outras cria-

turas. ..

Que id��ias estar��o passando pela mente dos outros

membros da fam��lia? Olho furtivamente para Lu��s,

que aperta o nariz contra o vidro da janela. Decerto

imagina que vai bombardear T��quio no seu "Liberator".

Dentro em pouco os "Zeros" japoneses estar��o enxa-

meando como vespas assanhadas ao redor do bombar-

deiro, e Lu��s os ir�� derribando, um por um, com rajadas

de metralhadora. Grande proeza! Soltar�� uma bomba

em cima do pal��cio do Imperador, e depois voltar�� ��

sua base, para uma orgia de coca-cola.

Clara, de olhos parados e brilhantes, naturalmente

imagina-se chegando a Miami, ao som duma banda de

m��sica. O Prefeito, de fraque e chap��u alto, recebe-a

com um discurso; ela fica toda ofegante e aflita, por-

que n��o sabe uma palavra de ingl��s. Mas Margaret

O'Brien, que lhe trouxe uma bra��ada de flores, per-

gunta-lhe milagrosamente, em claro portugu��s, se a

viagem foi boa e se os meninos

gostam de

ice-cream...

14

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Quanto a minha mulher, n��o �� dif��cil imaginar o

que est�� pensando. P��lida, de olhos cerrados, Mariana

decerto faz a si mesma perguntas que ficam sem res-

posta. Chegaremos vivos e inteiros? Que ser�� de n��s

nessa terra estranha onde n��o existem criadas? Onde

iremos morar? Quem ser��o os nossos amigos? Como

irei me arranjar nos mercados e nas lojas se de ingl��s

n��o sei mais que duas palavras ��� yes e no?

Agora voamos j�� por sobre terras dos Estados

Unidos. L�� em baixo, branca e rasa, Miami parece um

cemit��rio.

O letreiro �� nossa frente se ilumina: Afivelem os

cintos. Proibido fumar. Obedecemos. O avi��o co-

me��a a perder altura. Sinto essa manobra nos ouvidos

e no peito...

DIALOGO ENTRE ANJOS

Leio a not��cia num jornal. Miami (Associated

Press) Hoje ao anoitecer, bem no momento em que

aterrissava no aeroporto desta cidade, capotou um

avi��o da... N��o quero ver o resto...

Algu��m no Brasil murmura: "Sete de Setembro...

Belo dia para morrer!" L�� est�� Dom Pedro em cima

do seu cavalo, erguendo no ar o chap��u de dois bicos

e gritando ��� "Independ��ncia ou Morte!". E no alto

dum estrado a professora dona Eufr��sia Boj��o, de bu��o

cerrado, ��culos de grossas lentes, seios virginais e fana-

dos, disserta com a voz m��scula e seca sobre a Grande

Data.

Por onde andar�� agora a alma de dona Eufr��sia,

que morreu durante um g��lido inverno ga��cho, sem

nunca ter sequer mordiscado o fruto do amor? Talvez

ela esteja �� minha espera em algum lugar para al��m

daquela nuvem negra. �� bem poss��vel que dentro de

A V O L T A DO GATO P R E T O 15

alguns minutos eu a encontre toda de camisol��o branco

e asas imaculadas, com uma lira nas m��os que na vida

terrena manejaram com tanta efici��ncia o ponteiro e

a palmat��ria.

Fecho os olhos e imagino o encontro.

��� Bom-dia, dona Eufr��sia.

��� Bom-dia, menino. Sente-se. J�� aprendeu a

fazer conta de dividir?

��� N��o, senhora.

Estamos ambos sentados numa nuvem cor-de-rosa.

H�� um s i l �� n c i o . . . de quantos segundos? Imposs��vel

dizer, pois na eternidade o tempo n��o existe.

��� Tenho lido os seus livros ��� diz dona Eufr��sia,

ajeitando a sua aur��ola.

Fico gelado e mudo. De repente, numa f��ria nada

ang��lica, ela rompe:

��� Voc�� n��o tem mesmo nenhum respeito pela

gram��tica?

Baixo a cabe��a. Dona Eufr��sia pigarreia, e o som

estridulo de seu pigarro corta o ar como um p��ssaro,

rumo das grandes montanhas do Al��m.

��� Bom ��� continua ela. ��� Vamos afinar os instru-

mentos. D�� um d��.

Dou um d��. E depois ��� afinados e em perfeita

harmonia ��� ficamos tocando um dueto de lira, repou-

sado como as coisas eternas, belo como a nunca ouvida

m��sica das esferas.

Abro os olhos e espio para fora. Vejo o mundo

subir como uma enorme baleia que se erguesse do

oceano, para apanhar o avi��o numa rabanada. Tenho

a impress��o de que as casas de Miami v��o resvalar

para o mar.

A terra avan��a e cresce para n��s. . . H�� um mo-

mento de expectativa, surdez e tens��o nervosa. Final-

mente sentimos o impacto das rodas do aparelho no

ch��o, num primeiro choque ��spero. Depois o avi��o

16

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

come��a a rolar, trepidante, na pista cimentada. Nossos

nervos se relaxam.

Dona Eufr��sia ��� murmuro nos meus pensamentos

��� nosso encontro fica transferido indefinidamente.

Guarde a lira. Recolha as asas. Quem falou em morrer?

N��s queremos �� viver. Todos n��s. O Homem Gordo,

a Princesa, o Mo��o de Bordo ��� todos. E principal-

mente esta fam��lia brasileira. Olhe s�� o apetite de vida

que h�� nos olhos dessa trindade...

O comandante deixa o avi��o. Os passageiros co-

me��am a desembarcar. Chega a nossa vez. Sa��mos

do ventre do gafanhoto para entrar nas entranhas dum

forno.

Este �� um grande momento. Tontos, suarentos,

meio bisonhos, mas felizes, pisamos o ch��o de Fl��rida.

E de m��os dadas seguimos em sil��ncio os outros

passageiros.

SALA DE ESPERA

Entramos numa sala do aeroporto, imediatamente

uma enfermeira aproxima-se de n��s e, sem dizer pala-

vras mete-nos term��metros na boca. Ficamos a nos

entreolhar, entre divertidos e surpresos, com estes ri-

d��culos cigarrilhos de vidro apertados nos l��bios. Pou-

co depois a nurse volta, arranca-nos em sil��ncio os

term��metros, examina-os, d�� a entender que tudo est��

em ordem, e manda-nos passar para uma sala mobiliada

com poltronas de couro escuro, e onde um grande ven-

tilador zumbe, geme e gira, num esfor��o in��til para

refrescar o ambiente.

Sentamo-nos, e como h�� um milh��o de coisas a

dizer, permanecemos calados. Os outros passageiros

tamb��m aqui est��o, e um a um v��o sendo chamados

para o exame dos passaportes e da bagagem. Eis uma

cerim��nia detest��vel. Venho dum pa��s em que apren-

A VOLTA DO GATO PRETO

17

demos a temer ou aborrecer tudo quanto diga respeito

�� burocracia. Lei para n��s chega a ser uma palavra

tem��vel. Nos meus tempos de menino, sempre que ��

noite, nas sombrias ruas de minha cidade natal, eu

encontrava um guarda da pol��cia municipal, estreme-

cia de horror, porque esses homens de m�� catadura, de

uniforme zuarte e espadag��es �� cinta, eram o s��mbolo

do capanguismo pol��tico, tinham uma tradi����o de

viol��ncia e arbitrariedade. Cresci com esse medo na

alma, e com a subterr��nea id��ia de que o funcionalis-

mo p��blico �� uma organiza����o destinada especialmente

a dificultar as coisas e de que no fim de contas o Go-

verno n��o passa mesmo dum instrumento de opress��o.

Tenho ainda nos ouvidos o ronco dos motores. O

calor me aniquila. A camisa empapada de suor cola-

se-me ao corpo. N��o vejo nenhuma janela aberta, e

isso aumenta o meu mal-estar.

O sil��ncio continua contra o macio pano de fundo

tecido pela zoada do ventilador. Escarrapachado

numa poltrona, observo meus filhos.

Lu��s tem sete anos e grandes olhos castanhos to-

cados ��s vezes de muita ternura humana, e quase sem-

pre dum vago ar de aus��ncia. Sei que neste momento

ele n��o est�� em Miami, Fl��rida, mas em algum outro

lugar remoto, imposs��vel e provavelmente inexistente.

Sorrio vendo sua franja rebelde que se recusa a aderir

ao resto da cabeleira, eri��ando-se como um penacho

agressivo e caricatural. Lobo solit��rio, Lu��s gosta de

brincar sozinho, e de vez em quando afunda em pro-

longados sil��ncios, e anda perdido n��o sei por que mis-

teriosos mundos de faz de conta. Quando interpelado,

contrariado ou perturbado em seus devaneios, sabe de-

fender-se com uma obstina����o verdadeiramente muar,

usando n��o raro uma dial��tica quase adulta. Recon-

centrado e pouco amigo de exibi����es, pode dar �� pri-

meira vista a impress��o de frieza e desligamento. No

entanto, no aeroporto do Rio, na hora em que dissemos

18

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

adeus aos amigos para entrar no avi��o, vi que seus

olhos se enevoaram de l��grimas, numa t��o intensa ex-

press��o de tristeza e saudade antecipada, que eu, o res-

pons��vel pela viagem, cheguei a ter uma sensa����o de

culpa e remorso... Lu��s fez todo o percurso em sil��ncio.

Quando desc��amos do avi��o, nos diversos pontos de

escala, tomava coca-cola, comia roscas e fazia algumas

perguntas. Em Paramaribo, olhando para aquelas gen-

tes louras que falavam uma l��ngua t��o esquisita, per-

guntou-me de repente:

��� Papai, que estar�� fazendo o Dr. Borges de

Medeiros?

Mariana desatou a rir. Fiquei s��rio, pois julguei

compreender o sentido da pergunta. Foi a maneira

que o menino encontrou para dar voz �� sua sensa����o

de estranheza por estar naquele mundo t��o diferente

do brasileiro.

Clara ergue-se, caminha at�� a janela e espia para

fora, atrav��s da vidra��a. Est�� naturalmente ardendo

por ver os Estados Unidos. Se Lu��s �� um peixe solit��-

rio de ��guas fundas, Clara �� um p��ssaro inconseq��en-

te de asas inquietas. Onde quer que esteja est�� sempre

psicologicamente num palco. Para ela tudo �� teatro.

Morena da cor do amendoim torrado, nariz arrebitado,

olhos pretos e lustrosos, atravessa ela essa hora mara-

vilhosa em que essas criaturinhas descobrem o pr��prio

corpo, apaixonam-se por si mesmas, e vivem conver-

sando com "a outra, a do fundo do espelho"... Com

a boina vermelha atirada para a nuca, num desleixo

que, longe de ser casual, �� pelo contr��rio estudado

(Oh! A audaciosa menina brasileira em suas aventuras

por terras estrangeiras!) ��� Clara fica longo tempo junto

da janela. Aposto como j�� desligou a aten����o do que

vai l�� fora, e est�� apenas a olhar a pr��pria imagem

refletida na vidra��a...

A VOLTA DO GATO PRETO 19

FUNCION��RIOS E ELEFANTES

Finalmente somos chamados. Como um r��u apro-

ximo-me dum balc��o por tr��s do qual se acham sen-

tados tr��s homens de uniforme caqui. Mostro os

passaportes. Tudo parece em ordem. O interrogat��rio

principia.

��� Qual o objetivo de sua viagem?

Sinto que minha l��ngua �� de chumbo, quando

come��o a responder em ingl��s.

��� Fui convidado pelo vosso Department of State

para lecionar literatura brasileira na Universidade da

Calif��rnia, em Berkeley.

Digo estas palavras constrangido, porque sei com

a mais absoluta certeza que tenho cara de tudo, menos

de professor. No passaporte meu retrato parece o de

um scroc internacional, ou de um desses tipos sem

p��tria que fazem o tr��fico de brancas.

O homem que me interroga �� jovem e tem uma

fisionomia amiga.

��� O senhor traz alguma prova desse convite?

��� Prova?

��� Sim. .. Um documento qualquer, uma carta...

Apalpo os bolsos do casaco num gesto puramente

formal, porque sei que n��o tenho comigo nenhuma

prova. Tudo foi resolvido atrav��s de telegramas tro-

cados entre Washington e o consulado americano de

Porto Alegre.

��� Sinto muito. N��o tenho nada.

O mo��o sorri, segreda qualquer coisa ao ouvido

do companheiro que est�� �� sua esquerda, e depois me

diz:

��� �� pena. Se o senhor tivesse essa prova poupa-

ria dezesseis d��lares.

��� N��o compreendo...

20 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Os convidados do governo est��o isentos de qual-

quer imposto.

��� A h . . .

Passo o len��o pelo rosto suado. Com o rabo dos

olhos vejo a meu lado os outros membros da fam��lia,

cristalizados no seu atarantamento, acompanhando sem

compreender este di��logo entre o chefe da tribo e a

Lei ��� lei com um imenso L mai��sculo, lei dum pa��s

de fala e costumes abstrusos.

Como o americano �� em geral um homem que

sempre est�� disposto a ouvir uma anedota, arrisco:

��� Por falar em prova, conhece a hist��ria do ele-

fante?

Os tr��s funcion��rios de repente ficam atentos.

��� Do elefante? N��o. Como ��? ��� perguntou um

deles.

Conto:

��� Pois uma vez, no pa��s dos bichos, o rei baixou

um decreto mandando cortar a orelha a todos os ele-

fantes. Um macaco ouviu a not��cia e tratou de fugir.

Saiu a correr desabaladamente e no caminho encontrou

um burro que lhe perguntou: "Aonde vai com tanta

pressa, amigo?" "Vou fugir" ��� respondeu o macaco,

ofegante. 'O rei mandou cortar as orelhas de todos

os elefantes." O burro ficou espantado. "Mas voc��

n��o �� elefante!" E o macaco, muito s��rio, replicou:

"Isso sei eu. Mas antes que eu possa provar que n��o

sou elefante eles me cortam as orelhas." E dizendo

isto, abalou.

Os funcion��rios desatam a rir. E um deles diz:

��� Sinto muito, my friend, mas tenho de lhe cor-

tar as orelhas. Dezesseis d��lares, faca o favor.

Pago e passo com a fam��lia para a se����o onde

nossas bagagens v��o ser revistadas.

A V O L T A DO C A T O P R E T O

21

O "GETULINHO"

Ver nossas malas abertas ��� com toda essa s��rie

de roupas e objetos ��ntimos ��� diante de olhos estra-

nhos, produz em mim um mal-estar quase t��o intenso

como o que eu sentiria se fosse obrigado a passear de

pijama pela avenida ao meio-dia ou se tivesse de assis-

tir �� leitura em p��blico duma carta confidencial em

que eu discutisse, sem estilo nem gram��tica, rid��culos

segredos de fam��lia.

Mas o fiscal n��o �� exigente. Suando e sorrindo,

com piadas e piscadelas de olhos, apalpa superficial-

mente as roupas.

��� Traz alguma bomba escondida? ��� pergunta. ���

N��o? Est�� bem. Pedras preciosas? Okay. Pode fechar.

No atrapalhado e constrangido af�� de abrir e fe-

char malas (por que ser�� que a gente sempre apanha

a chave errada?) sinto ainda mais calor e fico quase

a me derreter. Finalmente fecho a derradeira mala.

Somos ent��o encaminhados a um outro funcion��rio,

que me pergunta se trazemos dinheiro brasileiro. Es-

vazio diante dele o conte��do de minha carteira: um

livro de cheques e duas notas de vinte d��lares. Por

fim, quando tudo parece terminado, pinga da carteira

na mesa, com um som leve e breve, uma moedinha de

tost��o, um "'Getulinho". O funcion��rio apanha a moe-

da, curioso, e rola-a na ponta dos dedos. Sorri, e no seu

sorriso julgo ver a nostalgia de viagens nunca feitas,

de pa��ses ex��ticos com palmeiras e nativos, serenatas

e guitarras, morenas c��lidas e punhais.

��� Quem �� este? ��� pergunta ele.

��� �� o nosso Presidente.

��� V a r g a s ? . . .

��� Isso mesmo.

��� Muito interessante...

��� Muito.

22

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Tem mais dinheiro?

��� N��o. Nada mais.

��� Okay. Podem passar.

Finalmente estamos livres. Ansiamos pelo ar da

noite. Por um gelado. Por um o��sis. Fa��o um sinal

para o resto da tribo. Apanhamos as nossas malas e

encaminhamo-nos para a porta. Mas n��o! Ainda n��o

soou a hora da liberta����o. Dois homens sorridentes

nos barram o caminho. Um deles ��� sujeito baixo, ca-

be��udo e sangu��neo, metido em roupas esportivas ��� me

estende a m��o, cordialmente, pronunciando seu nome,

enquanto o outro se conserva a dist��ncia, acariciando

uma m��quina fotogr��fica. S��o representantes duma

ag��ncia telegr��fica e querem uma r��pida entrevista.

Que est�� fazendo o Brasil para o esfor��o de guerra?

Que venho fazer nos Estados Unidos? Os brasileiros

gostam dos americanos? Respondo como posso. Sinto

que meu ingl��s me sai viscoso, sonolento e grosso.

��� Agora, uma fotografia, please!

A fam��lia prepara-se.

��� Mais juntos! ��� diz o fot��grafo, ajustando a c��-

mara.

Obedecemos. Minha mulher murmura:

��� Estamos horr��veis.

��� Fica firme ��� respondo. ��� Deus �� grande.

Clara cutuca o irm��o.

��� Tira essa boina.

Lu��s retruca:

��� N��o empurra. N��o tiro. A boina �� minha.

��� Bobo.

��� Boba ��s tu!

Intervenho:

��� Vamos acabar com essa baderna.

O fot��grafo pede:

��� A smile.

Traduzo:

��� Um sorriso, minha gente.

A V O L T A DO GATO P R E T O

23

��� Sorri ��� diz Clara ao irm��o.

��� N��o sorrio.

Mariana toca o ombro de Clara:

��� Sorria, minha filha.

A menina sorri. Todos sorrimos.

��� Agora, firmes!

Clic. A l��mpada emite um clar��o. Est�� tudo

pronto.

O homem cabe��udo vem de novo, aperta-nos a m��o

e deseja-nos uma feliz estada na Am��rica.

Um atencioso major do ex��rcito norte-americano nos

diz que um auto nos espera fora e recomenda-nos o

Hotel Urmev, no centro de Miami.

Somos os ��ltimos a sair do aeroporto.

VIAGEM ATRAV��S DUM FORNO

Entramos na cidade de Miami num autom��vel

dirigido por um sargento do ex��rcito, um homem ma-

gro, baixo, de bigodinho preto, e que na vida civil era

guarda-livros em Filad��lfia.

Desapareceram das ruas os coloridos letreiros

ne��nio e as luzes dos combustores est��o amortecidas. ��

o dim-out; �� a guerra. A ilumina����o das vitrinas ��

amarelenta e t��bia. Pelas cal��adas as pessoas passam

como sombras silenciosas.

Nosso carro estaca �� porta do hotel. Descemos,

apertamos a m��o do simp��tico sargentinho, que j�� p��s

todas as nossas malas sobre a cal��ada, e subimos na

dire����o do hall. P��lidos, cansados, de ar um pouco

acanhado, creio que oferecemos um aspecto de derrota.

Pod��amos bem ser uns desses muitos milhares de euro-

peus que, fugindo da invas��o nazi, buscam ref��gio nos

Estados Unidos. Digo isso a minha mulher e ela, muito

desanimada, pergunta:

��� Tu e u r o p e u . . . com essa cara?

24

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Nunca viste um grego? ��� replico, vagamente

ofendido.

O sagu��o do hotel tem um aspecto agrad��vel.

Predomina nele o bege claro e o laranja, numa com-

bina����o alegre. L��mpadas veladas, sof��s e poltronas

assentam-se solidamente sobre um ch��o macio, forrado

de tapetes. Velhos e velhas l��em revistas ou jornais, num

sil��ncio de clube ingl��s. Junto do elevador uma negri-

nha uniformizada cabeceia de sono.

O calor continua aqui dentro. Suados e l��vidos,

sob esta luz fluorescente, estamos agora diante do bal-

c��o da ger��ncia, por tr��s do qual sorri para n��s, aco-

lhedoramente, uma mulher ainda mo��a, �� qual a gor-

dura d�� um ar matronal. �� morena, est�� vestida de

branco e nos seus cabelos castanhos e crespos canta

uma rosa vermelha.

��� Italiani? ��� pergunta ela.

��� N��o, senhora.

��� Mexicanos?

��� Brasileiros.

��� Oh! Buenas noches, amigos.

��� Buenas noches. Queremos quartos.

A mulher faz-me assinar um cart��o e depois, com

clara pron��ncia, l�� meu nome. Tem uma voz pastosa

e doce como marshmellow. Vem dela um morno per-

fume de violeta.

��� Bay! Quarto 345.

O hoij apanha a chave e nossas malas, e n��s o

seguimos em fila indiana. Somos como zombies. Que

perverso sortil��gio tomou conta de n��s? Meus pensa-

mentos correm ou, melhor, arrastam-se todos na mesma

dire����o. Gelo, p��lo, chuva, gelo, banho, sorvete, p��lo,

chuva, banho. Entramos no elevador. A ascensorista

preta e cabelizada nos lan��a um olhar morti��o e sem

curiosidade.

O corredor sombrio do terceiro andar me d�� uma

ang��stia de pris��o.



A VOLTA DO GATO PRETO

Entramos no quarto. Pe��o ao boy que traga be-

bidas geladas e cubos de gelo.

Ao verem a cama, Clara e Lu��s atiram-se sobre

ela e ali se deixam ficar, enquanto lentamente v��o

tirando as roupas com gestos morosos, como figuras

vistas em c��mara lenta. O ar parece um lago de ��leo

quente onde nossos corpos b��iam molemente.

Quando me meto debaixo do chuveiro, a ��gua

que me cai no corpo n��o traz nenhum refrig��rio. ��

morna, grossa, e eu a sinto como o contato desagra-

d��vel de cem dedos de azeite. E mal come��o a me

enxugar com a toalha felpuda, j�� o suor me escorre de

novo pelo corpo todo.

Chegam as bebidas. O refrig��rio que elas nos

d��o �� apenas moment��neo. Nossa sede parece in-

saci��vel. Come��amos a chupar cubos de gelo.

Meia hora depois estamos todos deitados, em estado

de agonia.

��� Que terra! E isto no outono!

Quem foi que falou? Talvez tenha sido eu mes-

mo. N��o sei. N��o interessa. Procuro imaginar que

estou num mato de sombras verdes, mergulhando num

arroio fresco e claro, que corre por entre pedras e

avencas. Ou ent��o que chove, chove muito, uma

chuva fria e torrencial, e eu saio a correr pelas ruas,

com o rosto erguido para o c��u, a boca aberta...

Miami est�� com febre e delira. N��o ficarei sur-

preendido se o hotel dum momento para outro come-

��ar a tremer com sez��es. Boto a ��ltima pedra de ge-

lo sobre o peito, e sinto-a derreter-se; a ��gua me es-

corre pelos flancos e pinga no len��ol, que parece uma

chapa quente, como se debaixo da cama houvesse

um braseiro vivo.

Da rua sobe at�� n��s de quando em quando

o som agudo duma buzina, ou ent��o uma que outra voz

humana. Curioso. Eu tinha esquecido os Estados

Unidos. N��o sinto essa alegria que nos vem da id��ia

26

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de que estamos no estrangeiro, de que vamos come-

��ar uma vida nova... S�� sinto o calor e uma ang��s-

tia de emparedado.

Sil��ncio. De repente uma voz:

��� Pai...

A palavra atravessa a custo o ar espesso e me che-

ga, derretida, aos ouvidos. Quero responder, mas a

l��ngua me pesa toneladas. H�� uma pausa, e depois:

��� Pail

Fa��o um esfor��o e gemo:

��� Hum?

��� E se tu fosses l�� em baixo buscar um sorve-

te?...

Sinistra sugest��o.

��� Fecha os olhos e dorme, Lu��s ��� resmungo.

Agora �� a voz da menina:

��� Telefona...

Mariana interv��m:

��� Fica quietinha. �� tarde.

De novo o sil��ncio. Um sil��ncio de forno. For-

no... O estonteamento do sono me sugere id��ias

doidas... Forno. Estamos sendo assados em fogo

lento... Para que monstruoso banquete? O suor

me escorre pelo rosto, pelo peito, empapa o traves-

seiro, o len��ol... Assado, servido com rodelas de li-

m��o. .. Imagino um descomunal cozinheiro de aven-

tal e gorro branco, perguntando ao fregu��s: "Bem

passado ou mal passado?" Leio o menu escrito em

fogo: Brasileiro assado �� moda da casa. ��gua! ��gua

por amor de Deus. Chuva... A r . . . P��lo... Ge-

l o . . . Chuva... ��gua... Um avi��o voando contra

um c��u de brasa. O avi��o treme de febre. A cabe��a

lateja de dor. Os motores roncam e trepidam dentro

do meu c��rebro.

Finalmente caio num sono pesado, assombrado

por sonhos confusos, um sono que d��i como uma so-

va, um sono que n��o traz al��vio, porque atrav��s dele

continuo a sentir a canseira, a sede e o calor. ..



A VOLTA DO GATO PRETO

27

RUAS DE MIAMI

No dia seguinte o c��u amanhece despejado de

nuvens. Brilha um sol amarelo e a sombra dos edif��-

cios no asfalto da rua tem uma leve tonalidade vio-

leta. (Diz minha mulher que esse toque de violeta

est�� mais na minha imagina����o que nas sombras. Vai

mais longe: assegura-me que quando descrevo paisa-

gens tenho a obsess��o dos tons arroxeados.) N��o so-

pra a menor vira����o, e na atmosfera morna sinto uma

promessa amea��adora de morma��o.

Mo��dos e meio estonteados dum sono sem repou-

so, descemos ��s nove, tomamos um breakfast frugal e

sa��mos a andar sem rumo certo.

Miami �� uma cidade alegre, plana, limpa, sim��-

trica e colorida. N��o tem ladeiras nem ruas tortas,

nem casas antigas ou monumentos hist��ricos. De t��o

nova e clara, parece at�� cheirar a tinta fresca. �� um

burgo de turistas, parque de divers��es de milion��rios,

os quais t��m suas belas vilas de inverno ao longo des-

tas l��nguidas praias brancas que a n��voa e o frio nun-

ca visitam. Na sua Ba��a Biscainha branquejam iates

e veleiros.

H�� quatrocentos e trinta anos, Ponce de Leon

desembarcou nas costas do que �� hoje o estado de Fl��-

rida, tomando posse da terra em nome do rei de Es-

panha. Segundo as lendas correntes, havia nela n��o

s�� ricas minas de ouro como tamb��m fontes m��gicas

cuja ��gua daria a quem a bebesse a juventude eterna.

�� procura dessas maravilhas meteu-se Ponce de

Leon terra adentro, e ap��s muitas andan��as infrut��fe-

ras, acabou desistindo da busca e voltou �� Espanha.

Continuou, por��m, de tal modo dominado pelo feiti-

��o de Fl��rida, que alguns anos depois voltou para

perseguir, mas sempre inutilmente, a mesma miragem.

N��o encontrou a fonte da juventude, mas a frechada

28

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

que recebeu num dos muitos combates que com seus

homens teve de travar contra os ��ndios, abriu-lhe no

corpo uma fonte de sangue por onde a vida se lhe

esvaiu.

A data em que o malogrado Dom Juan Ponce de

Leon assentou p�� nesta terra de promiss��o parecia

conter em si uma profecia e uma predestina����o. Era

o dia da P��scoa de Flores, raz��o pela qual esta regi��o

recebeu o nome de Fl��rida. E hoje este estado do

extremo sul dos Estados Unidos �� uma esp��cie de

permanente "p��scoa das flores", com suas fantasias

aqu��ticas, seus jogos florais, seus concursos de beleza

em que raparigas representantes de todos os estados

da Uni��o desfilam �� sombra de palmeiras, sob um r��-

tilo c��u azul, numa exibi����o de caras, bustos, coxas,

pernas.. De certo modo se confirmam as lendas

dos tempos de Ponce de Leon. Fugindo aos g��lidos

invernos do Norte, velhotes e velhotas ricos v��m bus-

car neste sol e ao conv��vio dessas criaturas mo��as um

pouco de calor e juventude.

Se eu tivesse de eleger um s��mbolo vivo para Mia-

mi eu escolheria por exemplo aquela rapariga que a��

vem atravessando a rua com passadas firmes. Tem

uma gard��nia enfiada nos cabelos escuros e soltos. Sua

pele �� de marfim claro, os olhos azuis, os zigomas um

pouco salientes, a boca rasgada. Em seu olhar ���

agora que ela est�� a dois passos de mim ��� n��o vejo

profundidade nem mist��rio, apenas uma certa ino-

c��ncia juvenil. Est�� metida num vestido estampado

de flores vermelhas, azuis e amarelas. Ela �� o ver��o,

a praia, o vento, o sol. Ela �� um feriado, um veleiro,

uma onda. Ela �� Miami.

Algu��m me puxa pela aba do casaco. Volto a

cabe��a e vejo minha filha.

��� Que ,�� isso, pai? ��� repreende ela. ��� Chega de

olhar pra mo��a...

Pietomamos caminho.

A V O L T A DO GATO P R E T O

29

��� Que impress��o tens de Miami? ��� pergunta-me

Mariana.

��� Parece uma cidade de brinquedo, feita de pa-

pel��o, gesso pintado e papel estanhol. . .

Vitrinas exp��em vestidos de ver��o e de praia, ar-

tigos de esportes, grandes bolas de gomos coloridos,

p��ra-s��is, b��ias, barcas, colch��es flutuantes, ��culos

escuros, flores artificiais. Manequins esbeltos, cujas

caras lembram vagamente as de certas estrelas de ci-

nema, exibem vestidos de tecido leve em padr��es fan-

tasticamente berrantes.

Os homens em sua maioria andam sem casaco.

Noto que suas gravatas procuram fugir a extravag��n-

cia de cores e padr��es dos vestidos das mulheres. H��

por toda a parte ��� nas cal��adas, caf��s, bares, lojas,

��nibus ��� uma grande quantidade de soldados e ma-

rinheiros. E o curioso �� que as criaturas humanas aqui

de certo modo tamb��m parecem de brinquedo.

Tudo nesta cidade cheira a turismo. As curi�� shops

��� casas de curiosidades e lembran��as ��� abundam. V��-

se nelas o mais estonteante bricabraque: bandeiras e

estandartes com d��sticos; cart��es-postais com vistas da

cidade, da praia e da se����o residencial de Miami;

j��ias mexicanas e ��ndias, an��is, braceletes e colares ba-

ratos; b��bel��s chineses, amuletos africanos, havaianos e

polin��sios; cestos de flores e frutos artificiais em mi-

niatura. Tudo isso numa riqueza de tintas e num bri-

lho de verniz.

Nossa caravana p��ra junto duma dessas pequenas

casas que vendem refrescos e sucos de frutas. Est�� ela

toda decorada com motivos havaianos. Vejo pelas

prateleiras e montras uma profus��o de caquis, pa-

paias, cocos, mangas e ananases. Um escultor mode-

lou a canivete uma cara diab��lica numa casca de coco

e pintou-a de cores vivas, e o dem��nio agora arrega-

nha os dentes para n��s. Num poleiro de alum��nio uma

cacatua branca ginga inquieta. A casa �� atendida por

30

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

uma ��nica pessoa, uma mulher magra, de pele um

pouco terrosa, que nos sorri acolhedoramente. Con-

fraternizamos logo. A criatura se enternece ao sa-

ber que estamos t��o longe da p��tria.

��� Por que �� que a menina est�� t��o p��lida?

��� Enjoou muito na viagem ��� explico.

��� Coitadinha! Olhe c��. Tenho um rem��dio mui-

to bom pra ela.

Mariana quer saber:

��� Que �� que ela est�� dizendo?

Fa��o a tradu����o, enquanto a nossa nova amiga d��

a Clara um copo c��nico de papel com um l��quido de

cor alaranjada.

��� Tome isto. �� suco de papaia.

Traduzo:

��� Papaia �� mam��o.

Com alguma relut��ncia a menina leva o copo ��

boca, toma um, dois, tr��s goles de suco de papaia...

De repente atira o copo no ch��o, leva a m��o no est��-

mago, d�� uma viravolta e sai, atarantada, na dire����o

da cal��ada. Senta-se no meio-fio, inclina a cabe��a

para o ch��o, leva a m��o �� testa, e seria uma nota rea-

lista in��til descrever o que se seguiu.

A dona da tenda corre em socorro da cliente. Al-

guns transeuntes param, olham, perguntam, d��o palpi-

tes, e depois seguem o seu caminho. Finalmente a or-

dem se restabelece. E quando de novo a nossa cara-

vana se apresta para partir, tiro do bolso uma moeda

de um quarto de d��lar com a inten����o de pagar a des-

pesa. A americana ergue a m��o, num protesto. N��o

quer receber nenhum dinheiro. Ora, j�� se viu? Se o

rem��dio s�� piorou a situa����o do doente...

��� N��o senhor!

Tenho uma id��ia. Tiro da carteira o "Getulinho"

e digo:

��� Olhe, guarde esta lembran��a. �� uma moeda

brasileira. Esta ef��gie �� a do nosso Presidente.



A VOLTA DO GATO PRETO 31

Encantada, a mulher apanha a moedinha e excla-

ma:

��� How cute!

Cute �� um adjetivo muito usado neste pa��s, e po-

de ser traduzido por engra��adinho, bonitinho, interes-

sante.

��� Muito obrigado e adeus! ��� despe��o-me.

A mulher se inclina sobre o balc��o e grita:

��� Vou guardar esta moedinha na minha caixa

registradora, como um talism��. Fique certo de que

ela n��o sair�� mais daqui, nunca mais.

��� Quanto a isso n��o tenho a menor d��vida... ���

digo. E abalamos.

BOOM!

Os Estados Unidos s��o a terra das carreiras fan-

t��sticas, tanto para as pessoas como para os lugares.

No caso das pessoas a palavra m��gica �� sucesso. No

caso das cidades ou estados, boom. O boom (pronun-

cia-se bum) �� o crescimento r��pido, um s��bito bafejo

de prosperidade. Uma boom town �� uma cidade cujo

ritmo de progresso se acelera, cujas propriedades se va-

lorizam e cuja popula����o aumenta ��� tudo isso duma

maneira espetacular. Os mais famosos booms da his-

t��ria norte-americana foram causados pelo descobri-

mento de minas de ouro ou jazidas de petr��leo.

Fl��rida teve tamb��m o seu boom. N��o foi origi-

nado por nenhuma riqueza de seu subsolo, mas sim pe-

lo seu clima e principalmente pela habilidade e aud��-

cia dum grupo de propriet��rios de im��veis que resol-

veram chamar a aten����o do resto do pa��s para as suas

terras chatas e pantanosas, conseguindo valoriz��-las co-

mo se elas contivessem minas de ouro e po��os de pe-

tr��leo. Tinha-se o exemplo da Calif��rnia que pro-

gredia ��� serenada a f��ria da corrida do ouro e de pe-

32

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

tr��leo ��� progredia e enriquecia, explorando o turismo,

gra��as �� insist��ncia com que sua C��mara de Com��rcio

apregoava aos quatro ventos, em frases bem feitas e car-

tazes bem pintados, as belezas de suas montanhas,

de seus verdes vales cheios de laranjas e limoeiros, e

principalmente a amenidade de seu clima de sol eter-

no. Perguntaram os homens de Fl��rida: Que �� que

a Calif��rnia tem que n��s n��o temos? Dos banhados

pareceu-lhes vir a voz dos sapos que bradavam em

resposta: Nada. Voando e zumbindo os mosquitos

repetiam: Nada. Nada! murmurava o vento. E as

ondas, estirando-se nas praias claras, gemiam: Nada.

Resolveram ent��o esses propriet��rios de terras co-

me��ar uma campanha com o fim de atrair turistas e

milion��rios para Fl��rida. Essa foi a origem de um dos

mais espetaculares rushs da hist��ria americana em

torno do neg��cio de im��veis. A mais exagerada, bom-

b��stica e pirot��cnica das literaturas come��ou a cir-

cular pelo pa��s, exaltando a terra por onde quatro s��-

culos antes Ponce de Leon andara como um doido em

busca das fontes da juventude, ignorando todo tem-

po, pobre cego, que a verdadeira fonte de mocidade

eterna, era o sol de Fl��rida, o vento de Fl��rida, o ch��o

de Fl��rida... ��� o melhor vento, ch��o e sol do mun-

do! A troco de que haviam de os americanos ficar en-

colhidos e tr��mulos de frio no meio das neves n��rdi-

cas, sob um c��u de cinza, quando a poucos quil��me-

tros para o Sul estava Fl��rida, a "Riviera americana"?

Espertalh��es compraram por baixo pre��o grandes

tratos de terra e dividiram-nos em lotes. S�� em Miami

havia em 1925 ��� o ano ��ureo do boom ��� 2 000 escri-

t��rios imobili��rios e cerca de 25000 agentes anda-

vam dum lado para outro, suados, sem casaco, o cha-

p��u atirado para a nuca, mostrando plantas a poss��veis

compradores, aos quais se concediam facilidades e se

faziam fabulosas promessas. Esses vendedores de ter-

renos fechavam neg��cios sentados no meio-fio das

A V O L T A DO GATO P R E T O

33

cal��adas, nos bancos de pra��a, nos v��os de porta, no

meio da rua. Em torno deles juntavam-se grupos de

curiosos. Disputavam-se os lotes mais bem situados.

Havia discuss��es, discursos, promessas douradas. N��o

raro o transito era interrompido e a pol��cia tinha de

intervir. Os pre��os dos terrenos subiam fantastica-

mente. Conta-se que uma senhora que em 1896 havia

comprado um peda��o de terra por 25 d��lares vendia-o

agora por 150 milh��es. Por toda a parte em Miami

constru��am-se casas. Eram hot��is, cassinos, teatros,

edif��cios de apartamentos. A cidade crescia para os

lados e para o alto. A publicidade continuava, deli-

rante. Apelava-se para o sentimento rom��ntico dos

americanos, para os quais a palavra tr��pico tem ma-

gia. Enamorados do ex��tico, uma simples palmeira

contra um c��u azul iluminado �� para eles um s��mbolo

de pitoresco e aventura. Agora ��� afirmavam os came-

l��s ��� n��o era mais preciso ir a Cuba, ao M��xico ou

ao Brasil em busca do feiti��o tropical, pois bastava

descer um pouco para o Sul para encontrar Miami, ���

"A Cidade Maravilha", "A Loura e Branca Deusa das

Cidades", "O Parque de Divers��es do Mundo", "A Me-

tr��pole Invenc��vel." P��ntanos eram transformados em

jardins encantados ��� um dos quais recebeu em batis-

mo o nome de "Hollywood �� Beira-Mar". E a fantasia

rastacuera dos maiorais da cidade fez construir junto

da ba��a uma Veneza miniatural. Para se ter uma id��ia

de como era conduzida essa publicidade, �� preciso ler

pelo menos alguns trechos duma proclama����o conjun-

ta lan��ada pelos prefeitos de Miami e de outros con-

dados circunvizinhos, os quais se consideravam mem-

bros da mais Ricamente Aben��oada das Comunida-

des do mais Generosamente Dotado dos Estados do

mais Altamente Empreendedor dos Povos do Universo .

(Devo esclarecer que as mai��sculas s��o dos senhores

prefeitos e n��o minhas. . . ) Ao anunciar ao resto da

Am��rica e do mundo a sua "Fiesta dos Tr��picos Ame-

34

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

ricanos", afirmavam que essa seria uma ocasi��o em

que "o Amor e a Boa Camaradagem, a Alegria, e os

Esportes Saud��veis v��o prevalecer atrav��s de Nossos

Dom��nios". Acrescentavam que "nossos Largos, Bu-

levares, nossas Belas Pra��as e Sal��es de Dan��a, nos-

sos P��tios, Clubes e Hospedarias ser��o a cena em que

a Badiosa Terpsicore e seus Esfuziantes Devotos h��o

de acompanhar com Passo Gracioso o Ritmo das Dan-

��as". Como se tudo isso n��o bastasse, asseguravam

ainda os ardorosos prefeitos que "atrav��s de nossas

Ruas e Avenidas se mover�� uma Parada de Sublime

Beleza a Pintar em Encantos Florais as B��n����os que

nos Concederam o Amigo Sol, a Graciosa Chuva, e o

Sedativo Vento dos Tr��picos". E, nesse tom grandi-

loq��ente, nessa prodigalidade de adjetivos e mai��s-

culas, seguia-se o bestial��gico.

Tudo isso, como se v��, �� uma express��o de novo-

riquismo, de mau gosto, mas �� tamb��m uma inocente,

juvenil afirma����o dum povo otimista, faminto de su-

cesso, prazer e a����o. E o que causa tamb��m estra-

nheza �� o contraste entre a vulgaridade dessa litera-

tura suburbana e o bom gosto que inspirou a constru-

����o das resid��ncias, parques e jardins de Miami. Co-

ral Gables, que o bairrismo local considera "o mais

belo sub��rbio da Am��rica", �� uma cidade dentro dum

parque, com o seu centro comercial, hot��is, bancos,

cassinos, clubes, escolas, jardins p��blicos, ��� e uma ci-

dade como n��o haver�� muitas no mundo inteiro.

As constru����es foram t��o numerosas durante esse

ano da "corrida" que se calcula seu custo em cerca de

4 0 0 milh��es de d��lares. O Estado de Fl��rida despen-

deu 8 milh��es com estradas de rodagem e 50 milh��es

em melhoramentos ferrovi��rios. �� medida que os dias

passavam Miami enchia-se de arrivistas. Primeiro

eram homens de neg��cios, hoteleiros, jogadores pro-

fissionais, capit��es de ind��stria, arquitetos, urbanistas,

��� gente que vinha em busca de oportunidades de en-

A VOLTA DO GATO PRETO

35

riquecer ou simplesmente dum emprego. Depois che-

garam turistas de todas as partes do pa��s. Vieram n��o

s�� gentes ricas, mas tamb��m representantes de v��rias

camadas da- sociedade. Por esse tempo o autom��vel

come��ava a mudar a vida americana. Ford punha as

suas "latas" ao alcance da bolsa de pequenos agricul-

tores, empregados do com��rcio e at�� dos oper��rios. As

estradas se faziam melhores e mais numerosas, e as

que levavam a Miami estavam sempre congestiona-

das de carros. Os hot��is da cidade regurgitavam. Ha-

via gente dormindo em barracas, dentro de autom��-

veis, nos bancos de pra��a, nos corredores dos grandes

edif��cios...

Nesse frenesi, nessa atmosfera de feira, ��� passou-

se o ano de 1925, entrou o de 1926 e a f��ria imobili��-

ria come��ou a decrescer. Surgiam as primeiras difi-

culdades e o otimismo j�� dava sinais de esmorecimen-

to. �� que a aflu��ncia de turistas n��o fora t��o grande

como se esperava. Os que contavam revender seus

terrenos rapidamente com grandes lucros convenciam-

se de que isso n��o seria poss��vel, e come��avam a des-

confiar de que haviam sido ludibriados. J�� n��o pa-

gavam suas presta����es com regularidade, e ao cabo de

alguns meses descontinuavam de todo o pagamento,

tratando de esquecer o mau neg��cio, que a carga dos

impostos tornava ainda pior. Durante a primavera de

1926 come��ou o descalabro. Houve um princ��pio de

p��nico que nenhuma literatura conseguia neutralizar.

J�� de nada servia proclamar que Fl��rida era o para��-

so terrestre, que seus grapefruits eram mais sumaren-

tos que os de Texas, e suas laranjas mais doces que as

da Calif��rnia. O pre��o dos terrenos ca��a sempre...

E como se todos esses contratempos n��o bastassem,

na manh�� de 18 de setembro de 1926 um pavoroso fu-

rac��o varreu Miami, arrancando ��rvores, destelhando

e fazendo emborcar casas, e levando por diante pes-

soas, animais e coisas. A ventania ergueu as ��guas da

36

OBRAS DE ERICO VERISSIMO

ba��a com tamanha f��ria, que jogou uma escuna de cin-

co mastros para cima do cais, empurrando-a at�� as

ruas centrais da cidade. Atirou barcos pelas praias e

avenidas, arrastou para longe autom��veis, projetan-

do-os dentro de casas e vitrinas. Parecia um fim de mun-

do. E quando a ira do c��u serenou, a Cruz Vermelha,

chamada a atender as v��timas da cat��strofe, verificou

que havia 400 mortos, 6 400 feridos, e que o n��mero

dos que tinham ficado sem casa era de 40 000. Mais

tarde os t��cnicos calcularam que os preju��zos subiam

a 165 milh��es de d��lares. Sem luz, sem ��gua, sem

meios de transporte, Miami estava parcialmente arra-

sada. Por toda a parte reinava a devasta����o e a tris-

teza. E por sobre os escombros brilhava um sol de

ouro ��� um sol irrespons��vel e indiferente.

Miami era agora uma cidade em bancarrota. Seus

t��tulos ca��ram tanto, que quando alguns deles se ven-

ceram a cidade teve de pedir morat��ria. O ��ltimo re-

curso do estado era a safra de frutas c��tricas, mas essa

mesma no ano do furac��o foi danificada por insetos

nocivos. Parecia a morte de Miami. Mas no fim de

contas l�� estava o clima, o c��u, o vento, o cen��rio tro-

pical. A propaganda recome��ou e em pouco tempo o

otimismo de novo contagiava a cidade inteira. As ca-

sas foram reconstru��das, os jardins e ruas reparados.

Vieram novos turistas. E outros furac��es. 1929 trouxe

a grande depress��o econ��mica. Mas os milion��rios

continuavam a chegar. O n��mero de turistas e resi-

dentes de inverno no estado de Fl��rida subia a

2 250 000 anualmente. Depois da guerra essa cifra

elevou-se a 3 000 000.

E aqui temos diante de nossos olhos uma Miami

matinal e jovem, que n��o mostra no corpo nenhuma

cicatriz de suas batalhas com os ventos.



A VOLTA DO GATO PRETO

37

ESTA VIAGEM �� NECESS��RIA?

Almo��amos numa cafeteria e agora estamos a nos

entreolhar, meio decepcionados, por cima de restos

de peixe e salada. O colorido das ruas como que se

reflete nos alimentos. O fil�� de salm��o �� cor-de-rosa e

veio acompanhado duma gel��ia de hortel�� cor de es-

meralda. A salada ostentava o vermelh��o dos tomates,

o p��lido verde da alface e do aipo, e estava al��m dis-

so toda lambuzada dum molho rosado, duma consis-

t��ncia de pomada. As crian��as recusaram-se a comer,

e ficaram chupando milk shakes de chocolate em ca-

nudinhos de palha. Volto a ter a mesma impress��o de

h�� dois anos, quando visitei este pa��s pela primeira vez.

A comida dos drugstores e cafeterias �� sadia, colori-

da, mas sem gosto. A primeira coisa que o fregu��s faz

ao receber o seu prato �� apanhar com uma das m��os

o saleiro e com a outra o vidro de pimenta-do-reino, e

salpicar a comida com o conte��do deles. �� um gesto

quase autom��tico que todos repetem nas cafeterias,

drugstores e restaurantes populares de norte a sul e

de leste a oeste. Parece que a comida aqui �� prepara-

da para dois fins principais: um de car��ter cient��fico

e o outro de natureza pict��rica. O que para esta gen-

te parece importar, depois das vitaminas e calorias, ��

o aspecto exterior dos alimentos. E se eu quisesse cair

numa explica����o caricatural diria que isso �� influ��ncia

das magn��ficas litogravuras que vemos em revistas e

nas quais ��� para anunciar farinhas, presuntos, molhos

ou vinhos ��� aparecem pratos t��o artisticamente colo-

ridos que valem por espl��ndidas naturezas-mortas.

Outra coisa que chama a aten����o do estrangeiro

nesta terra �� o tamanho das frutas e dos legumes. Afir-

mam os estat��sticos que a ra��a tamb��m est�� crescendo

de maneira muito sens��vel. E eu desde j�� me confesso

38

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

embasbacado diante do vi��o e do tamanho das mulhe-

res e das cenouras.

Aos poucos vamos percebendo os efeitos da guer-

ra na vida americana. O servi��o nos caf��s, restauran-

tes e lojas �� mais demorado e menos eficiente que nos

tempos de paz. H�� uma escassez de manteiga, pre-

sunto, queijo e carne. O racionamento �� feito por meio

dum sistema de pontos. Todos os membros de cada

fam��lia, inclusive as crian��as ��� t��m direito a um li-

vrete que leva seu nome, e que cont��m uma grande

quantidade de estampas. As vermelhas servem para

comprar carne e derivados, queijo e manteiga; as

azuis, para sucos de frutas, doces e outros alimentos

em conserva. H�� estampas especiais para a����car e pa-

ra sapatos. A fim de evitar que as comadres usem to-

dos os pontos ao mesmo tempo, trazendo um desequi-

l��brio na distribui����o dos g��neros racionados, as es-

tampas s��o marcadas com as letras do alfabeto, e o es-

crit��rio da administra����o de pre��os ��� conhecido e te-

mido pelas iniciais O. P. A. ��� determina a ��poca em

que as estampas de tal ou tal letra entram em vigor.

Afora essas restri����es, que outros sinais de guerra

se fazem vis��veis a olho nu? Vemos pelas ruas uma

quantidade enorme de soldados e marinheiros, e pe-

las paredes e muros belos e sugestivos cartazes con-

vidando o povo a comprar b��nus de guerra. H�� me-

nos autom��veis particulares trafegando por causa do

racionamento de gasolina, e das casas comerciais desa-

pareceram v��rios artigos como meias nylon, torradei-

ras el��tricas, ferros de engomar, brinquedos mec��ni-

cos, r��dios, refrigeradores, canetas-autom��ticas finas,

fon��grafos, e uma s��rie de engenhocas de metal desti-

nadas ao uso dom��stico.

Os cigarros come��am tamb��m a escassear e ��� oh!

golpe terr��vel para os americanos! ��� a goma de mas-

car desapareceu quase por completo do mercado. Pa-

A VOLTA DO GATO- PRETO 39

ra muita gente aqui a falta de chewing gum parece ser

mais funesta que a de qualquer outro artigo.

O u��sque e outras bebidas andam raras e caras,

de sorte que come��a a repetir-se o drama da ��poca da

proibi����o em que milh��es de pessoas se envenenavam

lentamente com bebidas alco��licas da pior esp��cie.

Com a guerra, velhos aposentados voltaram �� ati-

vidade substituindo os homens e mulheres jovens que

est��o no ex��rcito, na marinha ou que mourejam nas

f��bricas de avi��es e nos estaleiros. Eles trabalham em

elevadores, escrit��rios, lojas, caf��s, bancas de jornais,

etc.

Miami tinha em 1920 cerca de 30 000 habitantes.

Com o boom de 1925 a popula����o subiu a 75 000.

O recenseamento de 1940 acusava 170 000, mas agora

que as ind��strias de guerra atra��ram para c�� trabalha-

dores de outras regi��es, a popula����o deve ter ultra-

passado a casa dos 300 000, e h�� mesmo quem afirme

que n��o est�� longe do meio milh��o. Essa aflu��ncia

de gente criou um problema que est�� atormentando

centenas de outras cidades: a escassez de habita����es.

Os hot��is est��o atopetados, e n��o permitem que os

h��spedes ocupem seus quartos por mais de cinco dias.

N��o h�� casas para alugar. Muita gente resolveu o pro-

blema de moradia vivendo em reboques de autom��-

vel ou barracas, nos arredores da cidade.

Os transportes tamb��m oferecem problemas. N��o

�� f��cil conseguir lugar nos ��nibus e bondes. E quanto

��s viagens por estradas de ferro, as dificuldades n��o

s��o menores. As companhias ferrovi��rias declaram que,

estando tamb��m mobilizadas para o esfor��o de guerra,

o transporte de tropas, armas e muni����es vem em pri-

meiro lugar. Suplicam aos civis que evitem as viagens

de recreio, e que s�� utilizem os trens em caso de ex-

trema necessidade. H�� uma frase que se l�� em carta-

zes e tabuletas, nas ruas, nas esta����es de estrada de

ferro, nas agencias de turismo; uma frase que j�� se



40

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

tornou c��lebre e que tem dado motivo a anedotas.

Trata-se duma pergunta dirigida ao civil: Is this trip

neccssary.

Paro com minha tribo diante dum desses carta-

zes em que a vejo escrita e traduzo:

��� Esta viagem �� necess��ria?

Quatro caras perplexas contemplam o cartaz em

que Tio Sam, numa tricromia, lhes faz a embara��osa

pergunta.

Pensamos nos milhares de quil��metros percorri-

dos de avi��o e nos mais de tr��s mil que ainda nos se-

param da Calif��rnia. Trocamos olhares de d��vida,

encolhemos os ombros e n��o chegamos a concluir se

nossa viagem �� ou n��o necess��ria...

O PINTOR FRUSTRADO

Estamos ainda a andar pelas ruas, procurando

sempre o lado da sombra. �� medida que o dia avan-

��a, o sol se torna mais quente e o ouro de sua luz em-

palidece.

As cal��adas fervilham de gente. Passam mulhe-

res como p��ssaros de plumagem ex��tica. Muitas est��o

sem chap��u e trazem flores nos cabelos. Entre elas

vejo velhas: velhas enchapeladas, pintadas, faceiras,

que caminham depressa, fumam e andam dum lado

para outro, entrando ou saindo de cinemas, bares e

lojas, sobra��ando pacotes, tagarelas, alegres, serelepes.

Os vendedores de jornais parecem excitados.

Aproximo-me duma banca e leio cabe��alhos: A IT��-

LIA CAPITULOU.

Giovinezza, giovinezza! Agora os sons marciais do

hino fascista me v��m �� mente. Ponho-me a assobiar

automaticamente a melodia.

A VOLTA DO GATO PRETO

41

��� P��ra de assobiar isso ��� diz Mariana ��� sen��o

acabas na cadeia.

��� Aha! ��� fa��o eu. ��� Bem se v�� que ��s brasileira.

Vens dum pa��s em que tudo �� pretexto para meter um

homem na cadeia. A terra do "n��o pode". Tudo proi-

bido. Dip. Deip. Dasp. Censura. Hora do Brasil. Po-

l��cia Especial. Fernando Noronha.

�� curioso. Todas essas palavras agora parecem

ter perdido o seu sentido. S��o lembran��as apagadas

dum mundo remoto n��o s�� no espa��o como tamb��m

no tempo.

Vejo um cartaz em que um soldado americano fe-

rido estende a m��o para o p��blico e diz: "Eu dei meu

sangue pela liberdade. E tu, que deste?"

Sinto uma p��lida sensa����o de vergonha. Meus

magros d��lares n��o me permitem comprar b��nus de

guerra. Por outro lado j�� passei da idade militar...

��� Estou fazendo boa vizinhan��a... ��� respondo

mentalmente.

Julgo ouvir a voz da figura do cartaz:

��� Podias trabalhar num estaleiro.

��� Vou ensinar literatura brasileira numa univer-

sidade da Calif��rnia.

��� Literatura bra... Qu��?

Meu embara��o cresce. Sei o que o soldado vai

perguntar. Que import��ncia pode ter a literatura bra-

sileira nesta hora em que os povos est��o empenhados

numa luta de morte?

��� Perd��o ��� justifico-me. ��� A culpa �� de Mr.

Cordell Hull.

Algu��m me aperta o bra��o. �� Lu��s.

��� Falando sozinho, pai?

Detendo-nos aqui e ali para olhar uma vitrina, ler

os dizeres dum cartaz ou contemplar uma beldade-

que passa, chegamos ao ponto central da Main Street.



42

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

O pintor frustrado que mora dentro de mim sente c��-

cegas nos dedos: ��� Ah! Um pincel, uma tela, uma

palheta, tintas ��� sim, talento tamb��m! ��� para fixar es-

ta cena de rua... Casas quadradas, lisas, algumas de

linhas aerodin��micas, com lampejos de metal cromado

nas fachadas, outras de tijolo nu ou madeira revesti-

da de celotex... Marinheiros de branco, soldados de

caqui, mulheres com vestidos claros ou de tons vivos.

Vitrinas chamejando cores. A luz, as sombras. E o

movimento, que tamb��m tem uma cor, imposs��vel de

reproduzir. E os t��xis vermelhos, amarelos e verdes,

chispando �� luz do sol, num contraste com o negro do

pavimento.

No ar, um cheiro de asfalto, e de fuma��a de ga-

solina e ��leo cru. E quando uma rapariga passa jun-

ta-se a essa mistura um perfume de gard��nia ou flor

de ma����.

��� Ah! Uma tela, tintas, um pincel...

Lu��s de novo interv��m.

��� Pai! Outra vez falando sozinho?

ENCONTRO

Caminhamos at�� a beira da ba��a. Uns dez ou

doze PTboats esses pequenos botes lan��a-torpedos

que t��o saliente papel tiveram no princ��pio da guer-

ra contra o Jap��o, acham-se ancorados a poucos pas-

sos de onde estamos. Pintados dum cinzento-azulado

de a��o, balou��am-se de leve na ��gua cor de jade. Lu��s

fica exaltado, pois pela primeira vez v�� ao natural, e

de perto, um barco de guerra j�� t��o seu conhecido

atrav��s de revistas ilustradas.

Num parque vizinho do cais, marinheiros metidos

em uniformes de zuarte fazem exerc��cios. E suas ca-

ras rosadas est��o reluzentes de suor. Uma brisa mor-



A VOLTA DO GATO PRETO

43

na bole de leve nas folhas das ��rvores. No alto dum

mastro tremula a bandeira dos Estados Unidos. Um-

dois-tr��s-quatro! ��� A voz ��spera e cadenciada do sar-

gento-instrutor chega a nossos ouvidos. ��� Direita, vol-

ver! ��� Meia-volta, volverl L�� se v��o os pobres rapa-

zes sob o morma��o, suando naturalmente e odiando o

sargento.

J�� agora sentimos necessidade de fazer alguma

coisa, de ir a algum lugar determinado. Voltamos pa-

ra o centro, quando atravessamos o parque uma brisa

nos traz uma m��sica vagamente familiar. Paramos.

Entreolhamo-nos. Ficamos atentos, tentando acompa-

nhar o desenho da melodia... Agora n��o h�� mais d��-

vida. �� o "Tico-Tico no Fub��". Assumimos o ar de

quem encontrou inesperadamente um compatriota.

Vontade de abrir os bra��os para estreit��-lo contra o

peito. Sentamo-nos num banco. Isso �� um bafo de Bra-

sil. Donde vem a m��sica? Daquele bar? Ou do alto-

falante da galeria de divers��es? Nos olhos de Lu��s

h�� uma n��voa de saudade. Os de Clara brilham e, sem

poder conter-se por mais tempo, ela se ergue e sai a

dan��ar pela cal��ada.

A melodia se esvai no ar. Retomamos o nosso ca-

minho seguidos de nossas sombras, quatro companhei-

ros fi��is e silenciosos.

UM NOVO ��DOLO

�� noite, depois dum descanso de duas horas no

hotel, voltamos �� rua. Os bares est��o cheios. Marinhei-

ros e soldados passam pelas cal��adas de bra��os dados

com raparigas em sua maioria tamb��m uniformizadas.

Formam-se longas bichas nas bilheterias dos teatros e

cinemas, e nessas filas, homens> mulheres e crian��as co-

mem pipocas, conversam, mascam goma ��� contentan-

do-se com o pobre suced��neo que h�� no mercado ���

44

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

e esperam. Por cima dos altos edif��cios, contra um c��u

violeta, passeiam os feixes luminosos dos holofotes,

buscando identificar os avi��es que por ventura pas-

sem sobre a cidade. Os juke-boxes, esses grandes gra-

mofones autom��ticos que tocam um disco por cinco

centavos, berram foxes, rumbas, valsas e blues. A

grande sensa����o em mat��ria vocal �� Frank Sinatra,

que se ergue h�� j�� alguns meses como um rival de

Bing Crosby. Sinatra �� um jovem p��lido, magro, de

ar doentio, que segundo informa seu agente de publi-

cidade gosta de spaghetti frio e de gravata-borboleta.

Retratos do novo ��dolo aparecem por toda a parte. Tem

o her��i um ar faminto de crian��a abandonada. Deve

ter sido isso ��� acho ��� que atraiu o instinto maternal

das mulheres americanas. Sua legi��o de f��s cresce, e ��

extraordin��rio que em ��poca de guerra ��� safra de he-

r��is m��sculos, a maioria deles atl��ticos, espada��dos e

agressivos ��� um t��o pobre exemplar humano possa

empolgar as multid��es. Aqui est�� um ponto a discutir

com mais calma. Mas n��o agora. Agora quero olhar

esta noite quente e perfumada, este ambiente de

festa...

Entramos num cinema e s�� depois duma espera de

meia hora no hall �� que conseguimos lugares. O filme

�� uma xaropada tremenda, uma hist��ria em torno do

amor materno. E como aqui minha mulher e meus

filhos n��o podem gozar dos benef��cios dos letreiros

superpostos em portugu��s, sou chamado freq��ente-

mente a fazer tradu����es ao ouvido de Mariana, que

passa minhas palavras a Clara e esta a Lu��s que, como

de costume, n��o presta a menor aten����o ao que a irm��

lhe diz. Quando o filme termina vem um ato varia-

do em que a principal atra����o �� uma orquestra de re-

nome nacional. Desfilam acrobatas, prestidigitadores,

crooners e malabaristas. E quando o mestre-de-ceri-

m��nias come��a a contar anedotas, o teatro inteiro

parece vibrar com as risadas e os aplausos do p��blico.



A VOLTA DO GATO PRETO

45

Perto de mim um velhote se retorce todo num riso

convulsivo. E a todas essas minha fam��lia permanece

indiferente: tr��s rostos de express��o fechada e s��ria.

Por fim uma senhora que est�� ao lado de Lu��s n��o se

cont��m e pergunta:

��� Mas voc�� n��o est�� achando mesmo nenhuma

gra��a, meu filho?

Sem dizer palavra o menino fica a olhar para a

desconhecida com um ar de tamanha abstra����o que ela

decerto imagina que est�� tratando com um imbecil.

OS HER��IS SEM ��DIO

Sa��mos ��s dez horas para o calor pesado da noite.

Continua a pantomima nas ruas. �� admir��vel a manei-

ra como esta gente encara a guerra. N��o faz drama.

Luta, trabalha, mas nos intervalos entre as horas de

combate e trabalho, trata de evitar que a lembran��a

da guerra lhes roa os nervos. Ningu��m usa luto. N��o

h�� choro nem o b��blico ranger de dentes. No peito de

muitos soldados e marinheiros vemos as cores simb��-

licas das condecora����es recebidas. Esses rapazes de

pouco mais de vinte anos ��� e alguns deles t��m ape-

nas dezessete e dezoito ��� j�� entraram em a����o na

��frica e nas ilhas do Pac��fico. Voltam do inferno com

a mesma express��o juvenil. Sem baz��fia, sem atitudes

teatrais e ��� �� incr��vel! ��� sem ��dio. E, quando de

volta �� p��tria, em gozo de licen��a, o que querem ��

rever a fam��lia, comer uma torta de ma���� "como s��

mam��e sabe fazer", sair com a sua pequena favorita e

com ela dan��ar, beber e entregar-se ao necking. (Pa-

lavra importante da g��ria americana, derivada do verbo

to neck que, traduzido ao p�� da letra, seria pescocear,

mas que significa trocar beijos e abra��os apertados.)

E n��o deixa de ser comovente ver esses marinheiros e

soldados que h�� pouco manejaram canh��es e metra-

46

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Ihadoras de verdade contra inimigos de carne, osso e

��dio, entrarem nessas galerias de divers��es e ficarem

a lidar com metralhadoras e canh��es de brinquedo, fa-

zendo alvo em avi��es e cruzadores pintados num

quadro de vidro. E como se divertem! Como riem

e cantam e comem pipoca e amendoim! E como ma-

mam com gozo no gargalo das garrafinhas de coca-

cola!

Aqui estamos dentro duma penny-arcade. O ba-

rulho �� infernal. Funcionam febrilmente m��quinas de

experimentar os m��sculos, o base-ball de mesa, o pr��-

av�� do cinemat��grafo, o quinetosc��pio, no qual a gente

espia por um buraco fotografias animadas de coristas

seminuas ��� mas coristas de 1912, matronas de busto

desenvolvido e cadeiras largas. �� inacredit��vel que

estas m��quinas e estas fotografias ainda existam. E

mais curioso ainda que tenham "fregueses" nesta era

aerodin��mica que vive, pensa, se move e fala sob o

signo de Hollywood.

��� Tamb��m quero espiar, pai! ��� pede Lu��s.

��� N��o ��� respondo. ��� Impr��prio para menores.

E continuamos a andar por meio desta emaranhada

floresta de ��rvores vivas e barulhentas.

Vemos jogos de toda a natureza, inclusive uma

vers��o americana e estilizada do nosso jaburu. Role-

tas das mais variadas esp��cies. E galerias de tiro em que

her��is condecorados atiram com arma de sal��o em pa-

tinhos de lata que l�� no fundo nadam em fila indiana

num lago imagin��rio.

Mariana est�� admirada por n��o descobrir nestas

caras nenhum vest��gio da guerra.

��� Como se explica isto? ��� pergunta. ��� Parece

que estamos em tempo de paz. Esta gente brinca, can-

ta, dan��a, vai ao cinema, ri, bebe... como se nada

estivesse acontecendo...

��� Est��s acostumada �� nossa maneira sul-ameri-

cana de encarar a vida ��� respondo. ��� Somos povos



A VOLTA DO GATO PRETO

47

dram��ticos. Cultivamos com carinho m��rbido as nos-

sas dores e desgra��as. Temos um prazer pervertido

em escarafunchar nas nossas pr��prias feridas.

Lembro-me das gentes simples de minha terra

para as quais morte e doen��a s��o os assuntos predile-

tos. Ah! as senhoras tristes que gostam de contar suas

dores e opera����es... Para elas um cancerzinho �� um

prato raro! De doen��as passam para espiritismo e

ficam-se a ciciar hist��rias de almas do outro mundo.

De repente em meio da conversa fazem-se sil��ncios

fundos. Estala uma viga no telhado. Uma das velhas

suspira. Na alma de cada uma delas est�� plantado um

cemit��rio.

��� Como explicas a diferen��a? ��� pergunta Mariana.

CICLOS

Meto um n��quel no orif��cio duma metralhadora

e entrego-a a Lu��s. E enquanto ele fica a derribar

avi��es nazis e Clara gasta o seu ��ltimo n��quel com-

prando um cone de sorvete, ponho-me a pensar na

pergunta de Mariana.

��� Portugal. .. Talvez.

��� Queres dizer ent��o que �� uma pura quest��o de

ra��a?

��� Sei l��. Ra��a, diferen��a de n��vel de vida, de

educa����o e principalmente de sa��de.

Olhando para estes latag��es e para estas belas

raparigas e crian��as fico a pensar no que poderia ser

a nossa gente brasileira no dia em que passasse a co-

mer direito, a ter assist��ncia m��dica e mais escolas; no

dia, enfim, em que a mortalidade infantil fosse redu-

zida ao m��nimo poss��vel, e em que houvesse melhor

distribui����o de oportunidade para todos...

Acodem �� minha mem��ria aspectos do Recife, ao

longo da estrada que leva do aeroporto ao centro da

48

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

cidade. Enquanto nosso autom��vel rodava, eu via

passar com a rapidez dum filme maluco e tr��gico, mo-

cambos, crian��as seminuas, esquel��ticas e barrigudas,

mulheres de face terrosa ��� pele em cima dos ossos ���

olhos fundos, express��o est��pida. E como uma esp��-

cie de tecido conjuntivo desse organismo em decom-

posi����o que s��o os mocambos ��� o barro. Lembro-me

dos tempos em que alguns escritores corajosos do Bra-

sil come��aram a voltar seus olhos para esses aspectos

sociais e a retrat��-los com olho realista em seus ro-

mances. A s��rie parece ter come��ado com a Bagaceira,

de Jos�� Am��rico de Almeida. Veio depois Amando

Fontes com os seus Corumbas. E Graciliano Ramos,

esse cl��ssico moderno, com suas hist��rias sombrias.

Dois grandes romancistas iniciaram a voga dos ciclos.

Jos�� Lins do Rego escreveu sobre o da cana-de-a����car

e Jorge Amado, o rapsodo da Bahia, celebrou o ciclo

do cacau. Por esse tempo, com humor tr��gico, algu��m

se referiu a um ciclo negro e b��rbaro que estava pedin-

do um romancista: o do sururu, que �� o s��mbolo da

mis��ria dos moradores dos mocambos. Para saciar a

fome eles desencavam do barro o sururu, comem-no e

depois, como n��o disp��em de instala����es sanit��rias,

defecam no ch��o, onde suas fezes v��o alimentar os outros

sururus que por sua vez s��o por eles comidos, com-

pletando-se assim o s��rdido ciclo. Ao passar por aquela

zona de mis��ria n��o pude deixar de sentir uma sensa-

����o de culpa. Que estava fazendo eu como escritor

e como homem para melhorar a sorte daquela pobre

gente? Que podia fazer? Como? Com quem? E de

novo, aqui nesta galeria, repito a mim mesmo essas

perguntas.

Penso tamb��m nos outros pontos do Brasil onde

nosso avi��o pousou ��� Natal, Fortaleza, Macei��, Be-

l��m . . . Recordo a minha sensa����o ao olhar do alto

as muitas cidades, aldeias, vilas e regi��es por onde

passamos, e de minha comovida impress��o daquele



A VOLTA DO GATO PRETO

49

Brasil t��o grande, t��o belo, t��o l��rico e t��o mal cuida-

do. Rumino a ternura que senti ao verificar que no

fim de contas aqueles rapazes e mo��as que passeiam,

pela tardinha, �� sombra das mangueiras da avenida

principal de Bel��m do Par�� n��o s��o diferentes dos jo-

vens que nas tardes de retreta caminham sob os cina-

momos das pra��as das pequenas cidades ga��chas. T��m

os mesmos olhos vivos, inteligentes e um pouco me-

lanc��licos. E ��� grande milagre! ��� falam a mesma

l��ngua, apenas com pequenas variantes de entona����o;

o mesmo idioma gostoso, flex��vel, rico de g��ria, o mes-

mo portugu��s, apesar das dist��ncias, da falta de col��-

gios e de meios de transportes e comunica����o. O

mesmo denominador comum ��� a heran��a portuguesa,

��� se traduz em todo o Brasil no estilo das casas, das

igrejas, das pra��as, das comidas; no costume de fica-

rem as mulheres debru��adas no peitoril das janelas

"olhando o movimento" no h��bito de vestirem as melho-

res roupas aos domingos; nas festas, nos sonhos, nas

can����es...

RUMO AO PACIFICO

Mr. Walters, o representante do Department of

State em Miami, �� um homem moreno, magro e af��-

vel. �� ele quem resolve o problema das passagens

para a Calif��rnia. Com um simples telefonema con-

segue-nos num trem da Southern Pacific um confort��-

vel camarote e entrega-me a requisi����o do governo

americano com a qual devo retirar minha passagem.

Quanto ao transporte da fam��lia, o tesouro dos Estados

Unidos nada tem a ver com ele; �� assunto exclusivo do

meu tesouro particular, que acontece estar neste mo-

mento sensivelmente dilapidado. O escrit��rio de Mr.

Walters ��� amplo, cheio de ventiladores, poltronas e

mapas ��� �� teatro duma cena decisiva. Temos diante

50

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

dos olhos o or��amento da companhia ferrovi��ria. Meus

olhos n��o se desprendem da cifra, fascinados.

Batendo distraidamente com o l��pis na mesa, nosso

prestimoso amigo vai dizendo:

��� Pois ��. Um ��timo camarote, com ar refrigerado,

pequeno quarto de banho, conforto absoluto...

A pouca dist��ncia de n��s a fam��lia se entret��m

vendo figuras de revistas.

��� Claro ��� continua Mr. Walters ��� nessa cifra n��o

est�� inclu��da a comida. Cinco pessoas... vamos ver...

uma m��dia de dez d��lares por dia... em quatro dias...

quarenta d��lares s�� para as refei����es. Ah! Tem de

contar um dia de estada em Nova Orleans, onde o

senhor ter�� de mudar de trem... Vamos dizer... a��

uns vinte d��lares mais. Acrescente gorjetas, despesas

inesperadas... digamos um total de setenta d��lares.

Okay?

Engulo em seco. Porque contando todo o dinhei-

ro que tenho comigo, incluindo os cheques, depois de

compradas as passagens para a fam��lia sobrar��o apenas

quarenta d��lares.

��� Okay? ��� repete Mr. Walters.

Sorrio amarelo.

��� Com licen��a...

Afasto-me e vou levar o problema �� fam��lia Expo-

nho o dilema. Ou vamos bem instalados comendo

pouco; ou comemos bem mas com acomoda����es menos

confort��veis e mais baratas. Como vivemos numa de-

mocracia, procedemos a uma vota����o. Resultado:

Iremos at�� a Calif��rnia instalados como milion��rios,

mas comendo como imigrantes.

Ao anoitecer entramos no trem. Nosso comparti-

mento �� todo estofado de veludo pardo. N��o se v�� o

menor gr��o de poeira e a atmosfera aqui dentro �� uma

fresca primavera, em contraste com o c��lido ver��o l��

de fora.

A VOLTA DO GATO PRETO

51

Fizemos uma boa provis��o de sandu��ches e frutas,

e aqui estamos preparados para a travessia. O trem

come��a a mover-se vagarosamente. Olho o rel��gio.

Sa��mos atrasados quinze minutos. Nestes tempos de

guerra o hor��rio das composi����es n��o pode ser obser-

vado a rigor.

Estes trens s��o confort��veis, de marcha veloz e

macia. �� proibido abrir as janelas, de sorte que assim

�� poss��vel conservar os vag��es limpos. O ar condicio-

nado garante uma temperatura agrad��vel, uma atmos-

fera pura. Os porters que atendem estes Pullman s��o

pretos, em geral de meia-idade, vestidos de cal��as

azuis de flanela e casacos de linho branco. S��o limpos,

atenciosos e calmos. D��o uma impress��o de solidez,

e seguran��a. T��m em geral a voz grave e falam um

ingl��s arrastado e musical muito mais rico de inflex��es

que o ingl��s nasalado e monoc��rdio caracter��stico de

certas regi��es deste pa��s.

�� noite. Atrav��s da janela vemos as luzes de

Miami, a silhueta de seus arranha-c��us, trechos de mar,

vultos de barcos, luzes de lanternas e estrelas.

S�� depois que o trem entra no campo �� que perce-

bemos a presen��a da lua. Est�� claro que seria rid��-

culo se nesta altura da vida eu ficasse aqui a buscar

novas imagens liter��rias para descrever a lua. Ao cabo

de tantas andan��as no mundo dos livros e no mundo

real a gente acaba convencendo-se de que no fim de

contas lua �� lua mesmo. Mas a verdade �� que, com

ci��ncia ou sem ci��ncia, com realismo ou sem ele, com

experi��ncia da vida ou sem ela ��� a lua sempre comove.

Bole com o romantic��o que mora dentro de n��s, le-

va-nos a recordar coisas.

Uma noite h�� vinte anos, numa pequena cidade

brasileira, passeava sozinho um mo��o que sonhava com

viagens. Parou a uma esquina, olhou para o c��u e

pensou: "Esta mesma lua ilumina as noites de S��o

Francisco, de Paris, de Barcelona e de Xangai. Esta



52

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

mesma lua conheceu Cle��patra, S��crates, Cristo, Na-

pole��o . . . " Passou algu��m pela cal��ada e apanhou-o

falando sozinho. Desconcertado, o mo��o tratou de

disfar��ar: "Linda noite!" ��� exclamou. E o outro, com

o cigarro de palha entre os dentes, respondeu: "Linda

mesmo. Pra ca��ar tatu". E a lua daqueles tempos ��

a mesma lua que agora clareia o c��u de Fl��rida. A

lua dos namorados e dos agricultores. Dos astr��nomos

e dos fantasmas. Dos vira-latas noturnos e dos bo��-

mios. A lua de J��lio Verne e do Bar��o de Munchau-

sen. A lua dos almanaques e dos...

Lu��s interrompe meus pensamentos.

��� Pai, queres um sandu��che?

Quero.

PANTOMIMA

Chegamos pela manh�� a Jacksonville, ainda no

Estado de Fl��rida. Guardamos nossas malas no check-

room da esta����o ��� pois temos de mudar de trem den-

tro de duas horas ��� e sa��mos com passo e alma de

turistas em busca dum caf�� com doughnuts. Ningu��m

poder�� descrever os Estados Unidos sem mencionar as

doughnuts, essas deliciosas roscas fritas ��� elemento

importante na vida deste pa��s como o applepie ou torta

de ma����, a coca-cola, o peru assado do Thanksgiving

Day, a goma de mascar e o base-ball.

Encontramos um caf�� nas proximidades da esta-

����o e l�� nos aboletamos ao redor duma mesa. Estamos

cansados de sandu��ches e laranjas. Pedimos caf��, ros-

cas e ovos mexidos. S��o oito da manh��. Uma luz cor

de u��sque com soda inunda as ruas. Comemos voraz-

mente e, quando chega a hora de pagar, procuro em

v��o minha carteira. Come��a ent��o essa pantomima

desordenada em que a gente apalpa inutilmente todos

os bolsos. Os olhos de Mariana est��o arregalados.

A VOLTA DO GATO PRETO

53

��� Perdeste a carteira... ��� balbucia ela.

��� Parece... ��� murmuro.

��� E agora? ��� pergunta Lu��s.

��� E agora? ��� repete Clara num eco.

Depois de infind��veis segundos de busca minucio-

sa, met��dica, concluo que perdi mesmo a carteira.

Deve estar no trem, penso. Mas... por onde andar��

o trem?

��� Olhem. Fiquem firmes aqui que eu vou ver se

encontro a carteira. N��o se afobem, haja o que houver.

Atravesso a rua, entro na esta����o, vou at�� a plata-

forma onde havia pouco se encontrava nosso trem. A

plataforma est�� deserta. Adeus! Olho para os lados

e vejo aproximar-se um carregador mulato, de quepe

vermelho.

��� Onde est�� o trem que veio de Miami? ��� per-

gunto.

Ele tira o quepe, co��a a cabe��a, olha para os

lados, aponta para um determinado setor da esta����o

e resmunga com sua voz pregui��osa palavras que n��o

consigo entender.

��� A h . . . ��� fa��o eu, fingindo que compreendi. ���

Obrigado.

Passam-se os minutos. De repente avisto um trem

que faz manobras. Reconhe��o o nosso vag��o pelo n��-

mero. Salto da plataforma e saio a correr atravessando

os trilhos, e entro no trem, que felizmente parou.

Avisto o nosso porter. Conto-lhe o que aconteceu.

Responde que n��o viu carteira nenhuma. Embarafus-

to pelo corredor, entro no compartimento que ocupa-

mos a noite passada e come��o uma busca apressada,

aflita e sem nenhum resultado. J�� agora estou suando,

com a impress��o de que mil formigas de fogo me

percorrem o corpo. Entro, j�� sem esperan��a, no lava-

t��rio do camarote e l�� encontro a carteira sobre a

prateleira de vidro, por cima da pia. Apanho-a s��-

frego, e abro-a. Est�� vazia, completamente vazia.



54

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Volto macamb��zio e lerdo para a esta����o; atravesso a

rua com uma impress��o de desastre e, ao chegar ao

caf��, sob o olhar ansioso da fam��lia, despejo a m�� not��-

cia. H�� um hiato dram��tico. Sento-me.

��� E agora?

�� a pergunta que leio nesses tr��s pares de olhos.

J�� devoramos as roscas, os ovos mexidos. J�� se-

camos as ch��caras de caf�� e os copos de leite. Agora...

pagar. Meto a m��o no bolso num gesto puramente

mec��nico. E meus dedos pescam milagrosamente de

dentro dele um pequeno ma��o de notas verdes. De

repente raia a luz: na v��spera eu havia tirado o dinheiro

da carteira e posto naquele bolso. H�� um coletivo

suspiro de al��vio.

PORTA DOS FUNDOS

Sa��mos a andar �� toa; mas pouco, quase nada ve-

mos de Jacksonville, que �� a terceira cidade de Fl��rida

e um dos portos mais importantes do sudeste dos Es-

tados Unidos.

As cidades norte-americanas parecem n��o fugir a

uma regra universal ��� t��o conhecida no Brasil ��� e

segundo a qual "os lados da esta����o" s��o sempre o dis-

trito mais pobre e sujo da ��rea urbana. Estamos em

pleno bairro negro. As ruas s��o em geral arborizadas

e pavimentadas de tijoletas vermelhas. As cal��adas

acham-se um tanto esburacadas e o aspecto das casas ��

em geral de pobreza. Velhos bangal��s de madeira ali-

nham-se de ambos os lados da rua, separados por jar-

dins mal cuidados e sem flores. Seguem geralmente os

mesmos estilos e t��m todos o seu porch ou alpendre, e

uma ��gua-furtada. Em alguns desses alpendres, negras

e mulatas balou��am-se pregui��osamente em cadeiras de

balan��o, espantando com ventarolas ou jornais dobrados

as moscas que lhe voejam em torno dos rostos escuros

A V O L T A DO GATO P R E T O

55

e lustrosos. Pretinhos brincam ruidosamente pelas

cal��adas e tabuleiros de relva. Aqui e ali negros

adultos, com jeito de calaceiros (��! Camilo Castelo

Branco, por onde andas?) lagarteiam ao sol. A cena

lembra certas pinturas de Thomas Benton sobre a vida

do Sul. Deve ter chovido por aqui recentemente, pois

a terra est�� um pouco ��mida e v��em-se muitas po��as

d��gua na rua e nos jardins. De quando em quando

passa, num ru��do de ferragens, um Ford de bigode

pilotado por um preto em mangas de camisa, com o

chap��u de feltro de abas reviradas e um charuto preso

nos bei��os. Numa dessas casas um velho gramofone

rouqueja um blue. Uma mulata gorda chega �� sua janela

e grita para fora, esgani��adamente: "Wilbuuuuuur!".

Wilbur, um mulatinho de olhos enormes que parece

ter sido pintado por Portinari, est�� trepado numa das

��rvores que orlam a cal��ada. "Yes, mammy?" ��� res-

ponde ele com sua voz de melado. A mulata desata a

falar um ingl��s inintelig��vel.

Um avi��o cruza o c��u. Nossas sombras conti-

nuam a nos acompanhar como anjos da guarda. Um

cachorro fu��a numa lata de lixo.

Naturalmente meus filhos me crivam de pergun-

tas. Como �� que os negros aqui falam ingl��s? Por

que o ch��o n��o �� de pedra-ferro ou de cimento? Quantos

habitantes tem esta cidade?

Mariana p��ra, olha em torno e volta para mim um

rosto decepcionado:

��� Quer dizer ent��o que os Estados Unidos s �� o . . .

isto?

��� Espera at�� chegarmos �� Calif��rnia, ��� explico-

lhe. ��� N��o te esque��as de que est��s entrando na casa

do Tio Sam pela porta dos f u n d o s . . .

Damos meia-volta e nos encaminhamos para a es-

ta����o, depois de fazer uma nova provis��o de sandu��-

ches e biscoitos, a cuja vista sentimos uma angustiante

secura na garganta.



56

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Temos ainda trinta e cinco d��lares. E esperan��a,

muita esperan��a.

AH! OS BURGOS SEM HIST��RIA...

De novo no trem em movimento. Encontramos

agora as primeiras eleva����es de terra de Fl��rida, cujo

sul �� plano e cheio de p��ntanos. O solo, que nos ar-

redores de Miami era claro e arenoso, agora toma um

tom avermelhado de argila. A vegeta����o se faz mais

rica �� medida que nos aproximamos de Alabama.

Passamos por vastos laranjais e por pequenas ci-

dades das quais vislumbramos perspectivas de ruas que

nos d��o a impress��o de Miami em miniatura.

Por estas paragens ��� penso, olhando atrav��s da

janela do trem ��� andou decerto Ponce de Leon e seus

conquistadores. Por aqui vagueava tamb��m em 1564,

em busca dum ref��gio seguro, um grupo de hugue-

notes franceses, os quais acabaram massacrados pelos

espanh��is de Pedro Menendez de Aviles. Nos tempos

da Guerra Civil esta regi��o foi cen��rio de muitas ba-

talhas. E os lugares onde confederados e unionistas

se atracaram em lutas ferozes (por que ser�� que as bri-

gas de fam��lia s��o sempre as mais selvagens?) hoje

est��o cortadas pelas fitas de cimento das estradas, por

onde rolam os gigantescos ��nibus prateados da Grey-

hond Lines, e os jeeps cor de oliva do ex��rcito americano.

O trem est�� cheio de soldados que em sua maioria

viajam sem leito. Muitos deles dormem, a cabe��a re-

costada no respaldo de veludo dos bancos. Outros jo-

gam cartas. Muitos l��em. Noto nessas caras sempre o

mesmo ar de jovialidade e despreocupa����o. A guerra

�� para eles um nasty business, um neg��cio sujo que ��

preciso acabar duma vez; mas quando n��o est��o lutando

o melhor que t��m a fazer �� n��o pensar nela...



A VOLTA DO GATO PRETO

57

Jantamos sandu��ches e bebemos ��gua gelada. Che-

garemos fatalmente �� Calif��rnia com a falta dum grande

n��mero de vitaminas. Pendurado na beira do leito su-

perior, Lu��s agora �� Tarzan, o rei das selvas, ao passo

que Clara, com um toque de sophistication, folheia uma

revista ilustrada.

As rodas do trem cantam a sua can����o ritmada.

As horas passam. Outra noite chega. A lua torna a

aparecer. Que doido par de estrelas �� aquele ��� uma

verde, outra encarnada ��� a mover-se pelo c��u? Um

avi��o.

Sem sono, fico �� janela. Acho um encanto todo

especial nessas pequenas cidades adormecidas pelas

quais o trem passa vagarosamente �� noite. H�� uma

melanc��lica beleza nos combustores que iluminam ruas

desertas. E nos jardins dilu��dos na sombra. Ponho-me

a pensar nas criaturas que moram nesses lugarejos per-

didos. Na vida que levam, sem hist��ria nem aventura.

No ramerr��o de cada dia. Nos domingos de missa. No

cineminha semanal. No caixeiro do drugstore que

apoja soda das torneiras prateadas e sonha com Nova

York. Nesses burgos que os mapas n��o mencionam,

sempre h�� algu��m que est�� lendo uma novela de amor

num volume antigo. H�� tamb��m um idiota e um c��o

sem dono. E velhos que jogam p��quer em tomo

duma mesa redonda, num fundo de caf��. Ah! As ci-

dadezinhas adormecidas por onde o trem passa api-

tando . . . Ah! os lugarejos sem hist��ria onde as mo-

cinhas ficam sonhando depois que o trem passa...

OS CANIBAIS

Verifico que meus filhos ainda est��o psicologica-

mente no Brasil, recusando-se a tomar conhecimento

dos Estados Unidos. Seus pontos de refer��ncias ���

pessoas, coisas, lugares, fatos, ��� s��o todos brasileiros.

58

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Chamam a coca-cola de guaran�� e d��o o nome geral de

Gibi a toda essa vasta s��rie de revistas americanas que

trazem hist��rias em quadrinhos. Fechados neste com-

partimento, eles brincam, conversam, vivem enfim

como se ainda estivessem em casa. Essas duas criatu-

rinhas nos isolam, fecham-se no seu mundo. Mas h��

momentos em que elas mesmas se separam. Lu��s en-

tra no seu avi��o e sai a ca��ar "Zeros". Clara, improvi-

sando uma boneca com um casaco e um travesseiro, fica

muito quieta, sentada no seu banco, conversando com

a filha imagin��ria. Neste momento, por exemplo, h��

aqui dentro quatro mundos separados. ..

�� hora das refei����es processa-se uma fus��o de

mundos, gra��as a um interesse comum: o de comer.

Mal, por��m, come��amos a mastigar, de novo cada um

se entrega a seus pr��prios pensamentos, lembran��as e

sonhos. No entanto fisicamente a tribo se mant��m

mais unida que nunca. Minha gente vive numa per-

manente sensa����o de temor que lhe vem do fato de n��o

saber ingl��s. As crian��as n��o se querem afastar de mim,

nem um minuto, no imenso horror de que algu��m lhes di-

rija a palavra nessa l��ngua barbaramente complicada. ..

Deixamos para tr��s o estado de Fl��rida e come-

��amos agora a atravessar a estreita faixa meridional

de Alabama. Este nome tem m��sica e magia. Dizem

alguns que Alabama, na linguagem dos peles-vermelhas,

quer dizer ��� "aqui descansamos". Outros, entretanto,

afirmam que �� apenas uma corrutela! de Alibami,

nome duma tribo. Rico em carv��o e min��rio de ferro,

Alabama �� o centro da ind��stria do a��o no sul dos

Estados Unidos. O algod��o tamb��m constitui uma das

principais fontes de riqueza desse estado cujas terras

est��o em muitos trechos sujeitas a freq��entes inun-

da����es.

Fa��o perguntas sobre Alabama ao nosso porter.

�� um gozo ouvir um negro pronunciar o nome dessa

regi��o. Ele abre bem a boca, e com os bei��os moles

A VOLTA DO GATO PRETO

59

canta: �� -la-baaaaama ��� prolongando musicalmente o

terceiro a.

O porter me informa que a flor simb��lica deste

estado �� o goldenrod, uma flor amarela e mi��da, cor

de ouro, que desabrocha no outono, na extremidade de

longas hastes. Sim, os estados norte-americanos tem

cada um a sua flor simb��lica. A de Fl��rida �� a flor

de laranjeira. A de Mississipi e Louisiana, a magn��lia.

��� E a da Calif��rnia? ��� pergunta Clara.

Traduzo a pergunta. O negro faz uma pausa, re-

vira os olhos, atira o quepe para a nuca, co��a vaga-

rosamente a cabe��a e murmura:

��� Deixe ver. .. A flor da Calif��rnia. .. a a a . . .

e . . .

De repente seu rosto se ilumina, os dentes apa-

recem.

��� Yes, sir. A papoula dourada.

Digo-lhe muito obrigado, ele faz meia volta, d��

alguns passos e depois torna a voltar-se, com alguma

relut��ncia.

��� O senhor me d e s c u l p e . . . N��o �� da minha

conta. Pergunto porque talvez o senhor n��o conhe��a

bem as regras do t r e m . . . Isso tem acontecido com

estrangeiros. Ainda o outro dia um vaqueiro de T e -

xas. . . ��� Desata a rir, interrompendo a hist��ria, e

quando o acesso de riso cessa, ele prossegue:

��� M a s . . . a sua fam��lia n��o come nunca?

Nesta altura da viagem naturalmente j�� percebeu

que ainda n��o fomos nenhuma vez ao carro restau-

rante.

��� Ah! ��� fa��o eu. ��� N��o v�� que somos do B r a s i l . . .

��� Yes...

O rem��dio aqui �� recorrer �� pilh��ria, concluo.

��� N��o acredito que voc��s tenham na cozinha do

trem o nosso prato predileto.

��� Algo de muito especial?

��� Muito.



60

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Ser��o. . . vegetarianos?

��� N��o. A�� �� que est�� o problema. Somos antro-

p��fagos.

��� Hein?

��� Canibais. Comemos carne humana.

O rosto do negr��o conserva-se grave por um ins-

tante. Mas aos poucos a boca se lhe vai abrindo, num

arreganhar de dentes muito brancos e regulares. E,

rebatendo pilh��ria com pilh��ria, fingindo seriedade, ele

sacode a cabe��a com ar de quem est�� penalizado e diz:

��� Sinto muito, patr��o. Mas comer carne humana

�� contra a Constitui����o dos Estados Unidos.

F a z meia volta e se vai, sempre sacudindo a ca-

be��a, rindo o seu riso de garganta, sonoro e fundo.

F i c o a pensar que, se em vez de ter conversado

com esse preto empregado de carro Pullman eu tivesse

tido o mesmo di��logo com algum rep��rter americano

provavelmente no seu pr��ximo artigo ler��amos que "os

brasileiros s��o um povo ex��tico que ainda se entrega

ao estranho h��bito da antropofagia".

O NEGRO DO BANJO

Depois de Alabama atravessamos um pequeno

trecho do Estado de Mississipi, antes de entrar em

Louisiana. Estamos no que se chama o Deep

South ��� o extremo sul. Dizem que em nenhum outro

estado �� t��o grande como neste o preconceito de cor.

Da janela do trem em movimento olho essas terras

baixas e alagadi��as, cobertas duma vegeta����o pujante

dum verde escuro e lustroso. Passamos por vastas

planta����es de algod��o e cana-de-a����car. O trem ��

uma primavera sobre rodas. Mas de meu ponto de

observa����o m��vel eu vejo o calor ��� um calor ��mido,

pegajoso de morma��o tropical. De vez em quando

vislumbro, por entre ��rvores, o p��rtico e as colunas

A VOLTA DO GATO PRETO

61

brancas duma casa senhorial, duma plantation house.

Negros e negras chegam at�� a beira da linha f��rrea e

fazem sinais para o trem.

Com o nariz apertado contra o vidro da janela,

Lu��s olha tamb��m. Mas n��o creio que ele esteja em

Mississipi. Talvez ande por uma rua de Porto Alegre.

Ou pelas selvas da ��frica. Ou ��� quem sabe? ��� pelas

montanhas da Lua.

As chuvas nesta parte do pa��s s��o muito freq��entes.

O clima, segundo os prospectos da C��mara de Com��r-

cio de Mississipi �� mild, ameno, mas a realidade ��

equatorialmente quente. Esta �� talvez uma das re-

gi��es dos Estados Unidos onde h�� mais pobreza, n��o

apenas entre os negros, mas tamb��m entre o grupo co-

nhecido como white trashy ou seja a "esc��ria branca".

Sinto em tudo aqui um bafejo da ��frica. Nas

comidas, nas cantigas, nas supersti����es e at�� no jeito

de falar dos brancos.

Agora o trem come��a a perlongar planta����es de

milho ��� o que d�� a estas paragens um certo ar de

Brasil. Depois continuam a passar pelo quadro da

janela, p��ntanos, cabanas, planta����es, bosques, estra-

das, arroios ��� e, enquanto olho esse r��pido desfile,

um negro toca banjo e canta em minha mente.

I came from Alabama

Wid my banjo on my knee...

�� Suisanna! Quando ser�� que a gente se vai li-

bertar dos filmes e das pe��as que viu, dos livros que

leu, das hist��rias que escutou? Quando nos ser��

poss��vel olhar o mundo com olhos sem mem��ria, puros

e naturais? Nesta altura da vida s��o j�� inevit��veis

certas associa����es de id��ias e imagens. Para quem vi-

veu desde a adolesc��ncia sob o signo de Hollywood, do

jazz, e de toda essa literatura que surgiu depois da

Primeira Guerra Mundial, ��� Alabama, Mississipi ou

62

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Louisiana s��o nomes que trazem �� mente negros a

cantar um spiritual numa planta����o de algod��o...

Eddie Cantor vestido como os menestr��is do velho

Sul, a cara pintada de preto, um banjo sobre os joe-

lhos, a gemer ��� �� Susanna, don't you cry for me! J��

meu pai teria outra rea����o ouvindo o nome Susana.

Pensaria na "Casta Susana", no Moulin-Rouge, em

coristas a dan��ar o can-can, em Paris ��� uma Paris

civilizada e frasc��ria, onde velhos gag��s bebem cham-

panha na banheira onde h�� pouco a jovem vedeta to-

mou seu banho. Nenhum viajante que se preze pode

contemplar os fjords da Noruega sem evocar Ibsen, a

Dama do Mar ou Romersholm. O mecanismo dessas associa����es �� t��o infal��vel que um livro de viagens

corre o risco de a todo momento trope��ar ��� e n��o raro

cair ��� em monumentais lugares-comuns. Fa��o o pos-

s��vel para afugentar da mente o negro do banjo. Vai-

te! Esconjuro-te! Quero olhar a paisagem sem in-

flu��ncias. Nada de romance. Nada de literatura. Aqui

estamos cruzando o sul do estado de Mississipi, que

n��o tem o encanto das novelas, nem das falsifica����es

de Hollywood. Aqui h�� calor, mosquitos, banhados,

preconceito e mis��ria.

Na minha mente o negro do banjo d�� um salto e

pergunta:

��� And so what? Na tua terra tamb��m h�� ealor,

mosquitos, banhados, preconceitos e mis��ria.

��� Mariana est�� decepcionada ��� digo. ��� Imagi-

nava que tudo neste pa��s fosse tocado de glamour. Tudo

aerodin��mico, limpo, rico...

��� Quem �� o culpado de ela pensar assim?

��� N��s escritores e pintores, que em geral n��o

vemos as coisas como elas s��o, mas sim como desej��-

vamos que fossem.

��� E por qu��?

��� Talvez medo da realidade. Escapismo. Como-

dismo. Ou defeito de vis��o.

A VOLTA DO GATO PRETO

63

O negro do banjo atira os bra��os para o ar.

��� Mas n��o h�� por onde escapar. Mais tarde ou

mais cedo o problema nos esmaga.

��� Toca o teu banjo.

O negro sacode a cabe��a:

��� Esse conselho �� escapista.

��� Ent��o chora.

��� Escapismo tamb��m.

��� Que fazer, ent��o?

O negro encolhe os ombros:

��� Voc��s os brancos que se entendam. N��s est��-

vamos quietos na ��frica. Trouxeram-nos de l�� para

c�� a for��a. Fizeram-nos trabalhar abaixo de chicota-

das. E a todas essas continuavam a usar palavras gran-

des, como justi��a, fraternidade, humanidade, sentimentos

crist��os.

��� Cala a boca. Vai-te!

��� N��o calo. N��o vou. Agora tens que ouvir.

Milhares de pretos americanos est��o neste momento

lutando na Europa no ex��rcito de Uncle Sam. Dizem

que esta �� a guerra do direito contra a for��a, da tole-

r��ncia contra a intoler��ncia, do bom-senso contra o

racismo. Eu s�� queria saber se depois da vit��ria eles

v��o dar liberdade �� India e tratar melhor a China ���

isso para mencionar apenas dois dentre cem proble-

mas . . .

Ponho-me a assobiar para n��o ouvir a voz min��s-

cula dentro de meu c��rebro. Mas �� in��til.

��� Que podemos n��s os negros esperar do futu-

ro? ��� Come��a a brandir o banjo como um tacape. ���

Ser�� que estes orgulhosos senhores de planta����es de

agora em diante passar��o a considerar-nos seres hu-

manos com direitos iguais aos seus?

Fa��o um gesto de d��vida.

��� O problema �� de voc��s... ��� digo.

��� Perd��o! ��� replica o menestrel. ��� O problema

�� de natureza humana e de interesse geral. O mundo

�� um s��, como afirma o branco Wendell Wilkie.



64 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Sons do mundo real quebram o meu devaneio.

Olho em torno e vejo que o resto da fam��lia est�� rindo

de mim.

��� O velho falando sozinho! ��� exclama Clara.

E a m��e acrescenta:

��� E em ingl��s.

��� Claro ��� retruco ��� o negro do banjo n��o fala-

va portugu��s.

Os tr��s miram-me com express��o de estranheza.

Torno a olhar para fora. Longe, �� orla dum bos-

que, uma negra de avental vermelho corre atr��s du-

ma galinha branca. Um gar��on mulato passa pelo cor-

redor do trem batendo num gongo e gritando: "Ulti-

ma chamada para o almo��o!"

LARANJAS E PROFECIAS

Parece que os primeiros conquistadores brancos

a pisar o solo do que hoje �� o estado de Louisiana fo-

ram os espanh��is. Chegaram, viram e inexplicavel-

mente n��o trataram de tomar conta da terra em nome

de seu rei. Um s��culo e pouco mais tarde um tal

M. la Salle desceu o Mississipi, chegou a essa mes-

ma regi��o e imediatamente decidiu inclu��-la nos dom��-

nios de Sua Majestade Louis XIV, em cuja honra o

territ��rio rec��m-anexado recebeu o nome que ainda

hoje conserva. Perceberam os franceses as possibilida-

des comerciais da regi��o e trataram de coloniz��-la. A

terra, entretanto, parecia indom��vel. Periodicamente o

velho Mississipi transbordava, alagando os campos

em derredor. Havia ainda os mosquitos, os tremedais,

as feras e at�� a fome. E mais a febre amarela que vi-

nha das ��ndias Ocidentais. E a pelagra, o amarel��o e

a mal��ria. Os franceses, por��m, bateram p�� e ficaram.

Fundaram em 1718, a pouco mais de cem milhas da

A VOLTA DO GATO PRETO

65

foz do Mississipi, um aldeamento a que deram o no-

me de Nova Orleans. Mais tarde a Fran��a cedeu aos

espanh��is as regi��es que ficavam a leste do Missis-

sipi, e Nova Orleans, apesar dos protestos de seus

turbulentos habitantes, foi inclu��da na transa����o. J��

por essa ��poca era uma verdadeira cosm��pole tropi-

cal ��� centro de traficantes de escravos e flibusteiros,

mercadores e bandidos, jogadores profissionais, espa-

dachins e prostitutas. O a����car, o algod��o, as peles, a

madeira, o arroz e o melado faziam a riqueza da ci-

dade. Havia nela uma profus��o de bord��is, casas de

jogo, teatros, cabar��s, e postos de com��rcio. Mas em

contraste com tudo isso l�� estava tamb��m um conven-

to de ursulinas onde estudavam as filhas das fam��-

lias daquela curiosa "aristocracia" em forma����o. Nova

Orleans era uma cidade sem rei nem roque. Em Loui-

siana, verdadeiro cadinho de ra��as, misturavam-se

franceses, espanh��is, ingleses, pretos e ��ndios. A l��n-

gua que l�� se falava era um franc��s que j�� muito pou-

co tinha a ver com a l��ngua de Montesquieu. Cors��-

rios faziam visitas peri��dicas �� cidade. Freq��entes ve-

zes a honra de um cavalheiro era lavada a sangue em

duelos, �� sombra dos carvalhos frondosos dos arredo-

res de Nova Orleans, �� melhor maneira latina. E um

visitante da puritana Nova Inglaterra que por um in-

feliz acaso chegasse ��quela cidade de pecado, ficaria

escandalizado e at��nito ao se ver dentro daquele tu-

multuoso mundo de desordem, cobi��a, viol��ncia, ma-

cumba, supersti����o, pestil��ncia e crime.

Em princ��pios do s��culo XIX Napole��o Bonapar-

te negociou com a Espanha um tratado secreto segun-

do o qual voltava �� Fran��a o territ��rio de Louisiana,

o qual tr��s anos depois ele vendia por 15 milh��es de

d��lares ao governo dos Estados Unidos.

�� nesse territ��rio que nosso trem agora entra.

Chupando laranjas e comendo sandu��ches, olhamos de

66

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

nossa janela a rom��ntica Louisiana dos piratas e es-

padachins.

A regi��o que atravessamos est�� cheia de bayous,

que s��o esp��cies de canais de comunica����o entre rios.

Nos tempos anteriores �� Guerra Civil havia em Loui-

siana grandes latif��ndios, imensas planta����es que ago-

ra est��o subdivididas em pequenas propriedades, cujo

n��mero sobe provavelmente a mais de 170 mil. O go-

verno tratou tamb��m de diminuir o imposto sobre

propriedades rurais e ��� segundo a minha cultura de

almanaque ��� entre 1929 e 1937 o decr��scimo foi de

mais ou menos 34%.

Louisiana �� a maior produtora de cana-de-a����car,

melado, morangos e arroz. �� famosa tamb��m pelos

seus p��ssegos, p��ras e pelos pecans ��� que s��o nozes

comest��veis, de delicioso sabor. Nas regi��es alagadi-

��as de sudoeste ficam as grandes planta����es de arroz.

E todos esses produtos se escoam pelo porto de Nova

Orleans.

Li recentemente um artigo do romancista Louis

Bromfield, que tem uma grande fazenda experimen-

tal em Pleasant Valley, no Estado do Ohio, e no qual

ele afirma que por fevereiro do ano que vem o pa��s

estar�� passando fome. �� uma asser����o n��o s�� dram��-

tica ��� parece-me ��� como tamb��m exagerada. Brom-

field critica o minist��rio da agricultura, e como um

Jeremias republicano anuncia dias negros para a p��-

tria.

O trem passa agora �� beira de limoeiros e laran-

jais, entrando depois numa zona em que se balou��am

ao vento vastas planta����es de milho. A impress��o que

se tem neste verde sul �� de abund��ncia no que diz

respeito aos produtos da terra.

Irm��o Bromfield, acho que est��s enganado! Teu

antagonismo ao New Deal, teu ��dio aos democratas

turvam-te os olhos e a mente.



A VOLTA DO GATO PRETO

67

Come��o a descascar uma das laranjas que com-

prei na ��ltima esta����o. S�� agora percebo que foi esse

o pior neg��cio que fiz desde que pisei terras dos Es-

tados Unidos. Por quatro laranjas p��lidas e raqu��ti-

cas paguei sessenta centavos, ou seja o equivalente a

doze cruzeiros.

Com ar meio desconsolado, concluo, chupando

uma delas:

��� E as do Brasil s��o muito mais gostosas!

ESPELUNCA

Chegamos a Nova Orleans ��s nove horas duma

clara manh��, saltamos para a plataforma da esta����o,

respiramos com gosto este ar dourado e fresco, mete-

mos nossas malas e nossos corpos num t��xi amarelo,

e pedimos ao condutor que nos leve ao Hotel Palm,

cuja di��ria ��� segundo nos informou o guia de turis-

mo que folheamos no trem ��� est�� perfeitamente ao

alcance de nosso tesouro.

Dez minutos depois o carro estaca em Charles

Street diante duma casa de tr��s andares, de fachada

estreita e triste, enegrecida pela patina. O nome do

estabelecimento est�� pintado numa velha tabuleta por

cima da marquise enferrujada. Descemos e contem-

plamos o pr��dio.

��� �� horroroso... ��� diz Mariana.

��� Sinistrinho ��� concordo eu. ��� �� melhor pro-

curar outro...

Mas �� tarde. Um mulato p��lido e retaco deseja-

nos boas-vindas em nome do hotel, apanha a nossa

bagagem e nos pede que o sigamos. �� a fatalidade.

Obedecemos.

��� Olha s�� o "uniforme" dele... ��� observa mi-

nha mulher.

68

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Cal��as de riscado, chinelos sem meias, camisa ras-

gada e encardida ��� o "porteiro" d�� bem uma id��ia do

que nos espera l�� dentro.

��� Hey! ��� grita uma voz. ��� E eu?

Volto-me. �� o chofer. Eu o havia esquecido.

��� Sessenta centavos ��� diz ele.

A atrapalha����o me torna subitamente generoso.

Dou-lhe um d��lar.

Fa��o meia-volta e sigo o cortejo, escada acima.

O balc��o da gerencia fica no patamar e d�� uma im-

press��o de hotel do far-west. Numa saleta sombria

com mob��lia de vime, uma velha faz tric��, com os

��culos na ponta do nariz, sentada numa cadeira de

balan��o. S�� falta um gato para completar o quadro.

Mas n��o: l�� est�� ele, deitado, sonolento, ronronante,

de p��lo fulvo. �� demais. Vejo tamb��m uma cuspidei-

ra oblonga de lat��o, dessas que t��m chumbo na base

e s��o como esses bonecos que nunca tombam por mais

pancada que levem.

Quando nos ouve chegar, a velha ergue os olhos,

ajusta os ��culos e nos contempla com uma curiosidade

meio vaga: depois baixa a cabe��a e continua o seu

tric��. O gato nem se moveu: manteve os olhos semi-

cerrados, na sua modorra ol��mpica e asm��tica.

Por tr��s do balc��o da gerencia surge, n��o sei de

onde ��� talvez duma velha hist��ria de E �� a de Quei-

r��s ��� um homem baixo, calvo, seboso e soturno, que

me apresenta em sil��ncio uma caneta com a qual de-

vo assinar meu nome num cart��o. Naturalmente a

ponta da pena est�� quebrada e minha assinatura sai

irregular, borrada e ileg��vel.

��� Quantos dias v��o ficar? ��� indaga o homem.

��� Embarcamos amanha pela manh�� ��� respondo.

E l e fita em mim os olhos de gelo cinzento.

��� Quatro d��lares.

A VOLTA DO GATO PRETO

69

Meto a m��o no bolso. Onde est�� o dinheiro? Re-

come��a a pantomima: apalpo o peito, �� direita, �� es-

querda ��� ao mesmo tempo que sinto postos em mim

os olhares entre apreensivos e repreensivos do resto da

fam��lia. Finalmente encontro o ma��o de notas. Pago

e aqui de novo vamos seguindo o mulato atrav��s dum

sombrio corredor que cheira a mofo, velhice e triste-

za. Tenho a impress��o de que estas coisas n��o est��o

acontecendo agora, e sim h�� trinta anos passados. Tu-

do isto parece falso. A mob��lia de vime, o gato, a ve-

lha, a cuspideira, o gerente, o mulato, o hotel. Ma-

riana caminha em sil��ncio a meu lado. Sinto que es-

t�� desnorteada. Este n��o �� os Estados Unidos de seus

sonhos, o pa��s que os magazines ilustrados sempre lhe

pintaram, moderno, limpo, belo, monumental ��� uma

terra de conforto e facilidades em que basta apertar

num bot��o para. ..

��� Cuidadol ��� grito.

Puxo-a pelo bra��o antes que ela se precipite es-

cada abaixo. �� que na penumbra do corredor n��o

enxergamos bem o caminho.

Dobramos �� direita, depois �� esquerda. Final-

mente chegamos ao quarto. Entramos. O ar est�� sa-

turado de sarro de charuto. A cama desfeita. Por to-

da a parte vemos vest��gios do h��spede que acaba de

sair. O papel da parede �� cor de malva, com magn��-

lias brancas que o tempo amareleceu. Os m��veis, pe-

sados, sugerindo uma vers��o pobre do quarto de

Scarlett 0'Hara. O mulato larga as malas no ch��o,

apanha a moeda que lhe jogo, faz algumas perguntas

convencionais e se retira. N��o ouso olhar para Maria-

na, que por sua vez n��o tem coragem de sentar-se

nestas velhas cadeiras de estofo cor de vinho com lar-

gas n��doas de sebo. Clara e Lu��s andam dum lado

para outro, reconhecendo o terreno.



70 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

No espelho oval que tenho �� minha frente posso

ver a express��o de desapontamento de meu pr��prio

rosto.

��� N��o penses que todos os hot��is de Nova Or-

leans s��o como e s t e . . . ��� digo com algum esfor��o.

Mariana continua calada. Prossigo:

��� H�� o St. C h a r l e s . . . O R o o s e v e l t . . . grandes

h o t �� i s . . .

Minha mulher completa a senten��a:

��� Onde tu paras quando viajas s o z i n h o . . .

No fundo do espelho um homem infeliz e descon-

certado me contempla.

A CIDADE MORENA

Se podemos comparar cidades com pessoas, direi

que Nova Orleans �� uma mulher morena em cujas

veias corre sangue franc��s e espanhol ��� uma dama

dengosa, de fartos seios e olhos c��lidos, que passa as

tardes debru��ada num balc��o de ferro rendilhado.

Mora numa casa recendente a doces perfumes tropi-

cais e atravancada de m��veis antigos: c��modas trazi-

das de Fran��a, camas pesadas com doss��is e mosqui-

teiros, um rel��gio dourado dentro duma redoma de

vidro, quadros ovais com retratos de remotas bisav��s

pintados por artistas an��nimos e sobre pequenas me-

sas que lembram ora a Espanha, ora a Fran��a de Lu��s

X V , uma cole����o de bibel��s e bugigangas. Na sua

cozinha h�� uma chaudi��re �� trois ou seja uma caldei-

ra de ferro sobre um trip��, e na qual se fazem os mo-

lhos mais esquisitos e picantes. A cozinheira da casa

�� uma mammy, preta velha que sabe secretas recei-

tas culin��rias que aprendeu de antiga dama que veio

de Fran��a, ou que lhe foram transmitidas por uma

bisav�� africana. Na casa dessa mulher morena h�� um

A VOLTA DO GATO PRETO

71

p��tio espanhol onde cresce um p�� de magn��lia, e onde

uma buganv��lia cor de p��rpura sobe pela coluna que

sustenta a galeria de ferro batido.

Aos domingos a morena vai �� missa na Catedral

de Saint Louis. N��o usa slacks nem masca goma, co-

bre o rosto com um v��u e chupa balas de pecan, que

s��o a guloseima mais famosa do lugar. E quando ela

passa por essas ruas que t��m nomes franceses ��� Gra-

vier, Fontainebleau, Bienville, St. Louis, Rampart ���

vai deixando uma esteira de perfume: jasmim ou

magn��lia.

E a nossa morena ��� (os outros americanos lhe

chamam creole, crioula, nome que aqui se d�� aos des-

cendentes de franceses e espanh��is) vive como que

insulada, separada do resto do pa��s. Est�� claro que

ela vai ao cinema, j�� provou coca-cola e torta de ma-

����. Mas a tudo isso prefere romanticamente o teatro,

a ��pera, os pratos regionais e os doces das pretas ve-

lhas. Apesar de cat��lica, tem um secreto medo do

vodoo, da macumba. Porque lhe contam hist��rias de

despachos, de pretas que preparam filtros m��gicos. E

assim sob um c��u de tr��pico, �� margem oriental do

Mississipi, Nova Orleans vive metade no presente, me-

tade no passado. Tem um grande aeroporto mas mui-

tos terreiros de macumba. M��dicos que prescrevem

penicilina, e curandeiros e benzedeiras pretas que acre-

ditam no poder m��gico de ervas e feiti��os.

N��o tenho d��vidas: esta �� a mais pitoresca das

cidades norte-americanas. E �� preciso n��o esquecer

que ela j�� tinha um s��culo de idade quando foi in-

corporada ao territ��rio dos Estados Unidos.

Quem tiver o amor dos contrastes deve visitar a

puritana e aristocr��tica Boston ��� pudica, tradiciona-

lista, e formal ��� e depois descer para esta condescen-

dente metr��pole do Mississipi, onde existem at�� pen-

s��es de prostitutas �� melhor maneira latina.

72

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Um quarto da popula����o total da cidade �� for-

mado de gente de cor, e os brancos de origem estran-

geira representam mais ou menos um quarto da po-

pula����o branca. No s��culo passado as ra��as aqui se

dividiam por sub��rbios. Os creoles viviam no Vieux

Carr�� ��� ou Quarteir��o Latino ��� no lugar onde come-

��ou a cidade. Havia a zona dos americanos, a dos ir-

landeses e a dos negros. Estes ��ltimos continuaram

segregados atrav��s do tempo, mas houve entre as outras

ra��as um intenso cruzamento atrav��s do casamento

(e fora dele tamb��m) de sorte que hoje a divis��o n��o

�� t��o r��gida. Encontramos muitos creoles no Vieux Carr��,

mas l�� tamb��m moram negros e italianos.

Muitas s��o as religi��es nesta Cidade do Crescen-

te. Os negros em geral pertencem �� Igreja Batista,

embora nos tempos dos conquistadores espanh��is e

franceses houvesse um "C��digo Negro" segundo o

qual os escravos tinham de ser obrigatoriamente ba-

tizados e instru��dos dentro da Igreja Cat��lica. Apesar

de tudo, os pretos preferiam ao Deus ��nico os seus es-

curos deuses africanos, e por mais pomposo e atra-

ente que lhes parecesse o ritual cat��lico, eles continua-

vam a achar mais encanto nos sombrios ritos de sua

p��tria de origem. E quando se reuniam na Pra��a do

Congo ��� hoje Pra��a Beauregard ��� era para cantar,

dan��ar, pular e cair no candombl��.

Contam-se hist��rias mirabolantes da famosa fei-

ticeira Marie Laveau, "A Rainha da Macumba", que

com seus poderes sobrenaturais imobilizou os guardas

da pol��cia que haviam sido mandados para prend��-

la. Hoje em dia os crentes v��o ao cemit��rio, atiram

moedas sobre a sepultura de Marie e fazem promes-

sas. Isso me lembra ��� e a analogia me diverte ��� a

lenda de Maria Degolada, a negrinha milagreira de

Porto Alegre. As circunst��ncias misteriosas de seu

assass��nio �� beira duma ravina, num dos sub��rbios da

A VOLTA DO GATO PRETO

73

cidade criaram uma lenda; e o lugar em que seu san-

gue caiu ficou sendo ponto de romaria. Ergueu-se ali

uma capela r��stica e min��scula, onde os pedintes v��m

orar, acender velas e fazer promessas.

Conta-se que entre 1921 e 1922 apareceu em No-

va Orl��ans, irm��o Isa��as um profeta branco que se-

gundo se dizia, obrava milagres. Por um preconceito

de cor recusou-se ele a curar a preta Catherine Seals,

que fora v��tima dum ataque de paralisia. Tomada de

paix��o, Catherine p��s-se a orar dia e noite, com um

fervor hist��rico, e a frase que mais repetia em suas

ora����es era esta: "O Senhor cura gente de todas as

cores".

Uma noite um esp��rito desceu sobre ela e lhe su-

geriu fizesse uma reuni��o de pecadores, assim que

suas ora����es fossem atendidas; ela obedeceu, logo que

ficou restabelecida. Come��ou ent��o a sua s��rie de

curas milagrosas por meio n��o s�� da imposi����o de

m��os, como tamb��m do processo nada b��blico de fa-

zer cada paciente ingerir uma boa quantidade de ��leo

de r��cino, seguida duma menor de sumo de lim��o "pa-

ra tirar o gosto". Foi essa a origem de mais um culto

negro. "A Igreja do Sangue Inocente", cujos fi��is se

reuniam na Manjedoura. A pr��pria Catherine mode-

lou as est��tuas e fez as pinturas que ornam o templo

onde h�� pequenas mesas, ao redor das quais no ver��o

os crentes tomam "limonada benta" e no inverno "ca-

f�� bento". As imagens de barro sa��das das m��os da

sacerdotisa negra s��o uma mistura de mau catolicis-

mo e macumba. A igreja conta com um coro que en-

toa hinos e litanias. Quinhentas l��mpadas de ��leo

ardem pelos cantos, e todo o fiel que deseja fazer uma

promessa derrama ��gua na l��mpada votiva; e se a

��gua fica preta isso �� um sinal de que o pedido vai ser

satisfeito...

74

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

ANJOS

Gra��as �� sua tradi����o espanhola e francesa, No-

va Orleans �� uma cidade americana onde a gente v��

anjos, isto ��, imagens de anjos e id��ias em torno de

anjos. O protestantismo me parece uma religi��o sem

anjos. Vejo aqui anjos em pinturas murais e pain��is

de igrejas. Anjos de terracota, barro, lou��a, metal, vi-

dro e mat��rias pl��sticas nas vitrinas de lojas, princi-

palmente nos antiqu��rios. Anjos h�� nos t��mulos dos

cemit��rios locais, t��o diferentes, com suas est��tuas e

jazigos pomposos, da simplicidade dos cemit��rios de

outras cidades, onde os t��mulos s��o lajes de pedra cin-

zenta com um nome e duas datas, plantadas no ver-

de bem cuidado de tabuleiros de relva, �� sombra de

��rvores. E nestas casas antigas de Nova Orleans pu-

lulam anjos: em relevo na escarpa das lareiras; em ci-

ma de consolos de m��rmore; bordados em almofadas

ou pintados em quadros.

��� E que anjo ali vem... ��� digo eu a minha mu-

lher, fazendo com a cabe��a um sinal na dire����o da

mulher que se aproxima de n��s. �� uma crioula mo-

rena, de andar ondulante. Vem lenta a caminhar por

esta cal��ada de Royai Street, e n��o seria de estranhar

que viesse descendo uma ladeira em S��o. Salvador da

Bahia. Tem um ar que os americanos chamam sultry

��� adjetivo este que em geral se aplica �� atmosfera

quando ela est�� carregada de calor e umidade. Seus

cabelos s��o dum castanho-escuro, sua pele tem o cre-

me rosado da manga madura, e seus olhos um azul

met��lico e lustroso. Depois que ela passa, paro e me

volto. Diferente das outras americanas que pisam fir-

me e andam depressa, esta creole ginga, dan��a, num

ritmado mexer de quadris, com um certo jeito que ��

ao mesmo tempo faceirice e pregui��a. Deve chamar-

se Josephine Saucier ou Marie La Rochambeau.



A VOLTA DO GATO PRETO

75

��� Vamos, velho!

Meus filhos tomam-me das m��os e me arrastam.

Estamos a caminhar sem rumo. �� uma manh�� mor-

na e calma. Parece que o melado e o a����car que se

produz nas redondezas de Nova Orleans satura o ar,

tornando-o adocicado. O desinfetante que se usa nas

casas tamb��m tem um perfume doce. E quando a

gente passa por essas lojas que vendem "doces feitos

em casa", vem l�� de dentro uma onda quente que

cheira a chocolate, baunilha e lim��o.

B U R L E Q U E A N D O . . .

Paramos a uma esquina da Canal Street, que se-

para a cidade velha da nova. �� uma art��ria comer-

cial larga e alegre, que tem um movimento caleidos-

c��pico e fervilhante de feira estival. Nossos olhos se

perdem nesta longa perspectiva que foge para o ho-

rizonte azul. Passam bondes e ��nibus com nomes pi-

torescos: Napoleon, Pontchartrain, Lake Andubon

P a r k . . .

Aqui se v��em coisas que s��o positivamente dos

Estados Unidos. Cartazes grandes em tricromia anun-

ciando p��o, cigarros, autom��veis, manteiga, leite e vi-

nho. Grandes casas de "nada al��m" que cheiram a

verniz e onde o movimento �� t��o grande e o colorido

dos objetos nas montras e prateleiras t��o intenso, que

depois de andar por dentro dessas lojas por alguns

minutos, ficamos estonteados e s�� desejamos uma coi-

sa: fugir para o ar livre. H�� ainda os stands que ven-

dem pipocas, as food-shops nas quais, atrav��s da vi-

trina, vemos a mo��a ou o mo��o de branco que frita

um punhado de carne mo��da em cima da chapa quen-

te do fog��o a g��s, para depois comprimi-la, com mui-

to picles, entre duas fatias de p��o redondo, formando

76

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

assim os famosos hamburgers. E como em mil outras

casas algu��m sempre est�� fritando roscas, anda no ar

um cheiro enjoativo de graxa vegetal, que fica nas

nossas narinas, que satura as nossas roupas e que nos

persegue sempre como uma mosca importuna ou uma

id��ia fixa. Aqui tamb��m vemos muitos soldados e ma-

rinheiros. E Wacs ��� mulheres do corpo auxiliar do

ex��rcito ��� nos seus uniformes caqui. E Waves ��� as

do corpo auxiliar da marinha ��� nos seus costumes

azuis. E Spars ��� do grupo de guardas da costa ���

nos seus fardamentos pretos e seus quepes que lem-

bram os do antigo ex��rcito russo do tempo do czar.

Tem-se a impress��o de que todos estes milhares de

pessoas que enchem as cal��adas, entram nas lojas, ci-

nemas, caf��s e restaurantes, foram tomados de furor

aquisitivo. Compra-se muito porque h�� muito dinhei-

ro. Os sal��rios s��o altos. Pretos e pretas que ganha-

vam 40 ou 50 d��lares por m��s como criados, ganham

agora tr��s vezes mais em f��bricas de avi��es ou em es-

taleiros. Passamos por uma loja onde se vendem do-

ces e vemos uma longa bicha �� espera de que as por-

tas se abram. Outras casas ��� caf��s, restaurantes, con-

feitarias ��� est��o com as portas fechadas, e nas suas

vitrinas um cartaz anuncia: "J�� vendemos toda a

nossa cota de hoje". Dizem que nunca os restauran-

tes e cinemas estiveram t��o cheios. �� dif��cil encon-

trar uma mesa vaga nas confeitarias e food-shops. E

enquanto comemos, outros sempre esperam, a pouca

dist��ncia, lan��ando-nos olhares interrogadores e an-

siosos. Afirmam os livreiros que nunca o seu neg��cio

prosperou tanto. Os editores por sua vez desesperam

quando surge um best-seller, porque h�� crise de pa-

pel e eles n��o podem atender a todos os pedidos. Al-

guns jornais falam em infla����o e fazem s��rias adver-

t��ncias ao governo. Mas a verdade �� que o OPA ���

o escrit��rio da administra����o de pre��os ��� marca ine-

A VOLTA DO GATO PRETO

77

xoravelmente um teto para o pre��o de tudo, e esse

limite �� rigorosamente observado pelo comercio.

Seguimos ao longo da Royal Street, na dire����o do

Vieux Carr��, que �� a parte tradicional e pitoresca da

cidade. Paramos a olhar as vitrinas dos antiqu��rios,

onde se exibe o mais variado bricabraque imagin��vel.

Vamos passando por velhas casas com p��tios, corredo-

res escuros e port��es coloniais. As tabuletas e os no-

mes das lojas e caf��s que aqui vemos decididamente

n��o s��o americanos. H�� uma atmosfera de romance

nestas fachadas antigas, nestas gelosias meio desman-

teladas, nestas ruas pavimentadas de pedras irregula-

res, nestas cal��adas estreitas de lajes gastas e orladas

de velhos lampi��es. As caras est��o tamb��m de acor-

do com as fachadas e tabuletas. H�� velhos barbudos

sentados �� frente de suas lojas. Vagabundos modor-

rando ao sol. E a l��ngua que falam, manes de Sha-

kespeare! Ora �� um ingl��s sulino, negroide e arrasta-

do, ora um franc��s anglicizado, com pronunciadas tin-

turas africanas. E, envolvendo tudo, sempre os chei-

ros doces de flores, guloseimas ou ess��ncias.

Naquela meia-��gua antiqu��ssima Madame Lucien-

ne declara, num pequeno cartaz pregado na porta,

que tem uma bola m��gica de cristal atrav��s da qual

ela vislumbra o futuro. Vemos numa vitrina um ca-

mafeu que pertenceu ��� afirma o antiqu��rio ��� a uma

prima da Imperatriz Josefina. Quadros originais atri-

bu��dos ao naturalista John James Audubon. Um pu-

nhal que andou na cinta do pirata Lafitte. A fivela

do cintur��o do General Andrew Jackson. Um cande-

labro da casa dum grandee of Spain. E uma infinida-

de de bugigangas an��nimas mas curiosas.

Entramos na primeira rua �� esquerda e estamos

em pleno Vieux Carr�� onde a maior atra����o s��o as

casas em "estilo crioulo", com seus balc��es com ba-

laustradas de ferro batido, em arabescos caprichosos.



78

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Tem-se a impress��o de que o Carr�� �� uma cidade-

museu. Quase tudo aqui est�� como era h�� cem anos

passados. Nos degraus gastos destas casas de t��bua,

em p��ssimo estado de conserva����o, gordas mulatas de

fartos seios conversam, tricotam ou simplesmente

olham os passantes. T��m os cabelos crespos muito

lambuzados de brilhantina e delas vem um perfume

enjoativamente doce. E aqui e ali, num monstruoso

anacronismo, letras brancas contra um fundo verme-

lho, chameja um an��ncio de coca-cola. E n��o deixa

de ser gracioso quando um t��xi amarelo desliza por

estas ruas antigas e modorrentas, como mensageiro

dum outro mundo, duma ��poca que parece estar ain-

da no futuro.

E aqui vamos n��s ��� quatro ga��chos perdidos nes-

ta cidade singular ��� falando a nossa l��ngua estranha,

uma l��ngua que deixa intrigadas as mulatas e pretas

que nos olham com curiosidade e ficam a se fazer per-

guntas.

��� Em dire����o �� direita... marche! ��� digo.

��� Aonde vamos? ��� pergunta Mariana.

Dou os ombros. N��o sei. O melhor �� andar sem

rumo.

AO TROTE DO PILUNGO

Tomamos a direita. Nossas sombras nos seguem.

Sinto-me com obriga����es de guia, porque j�� andei an-

tes por estas paragens. Conto hist��rias, mostro, expli-

co. Digo que nos primeiros tempos as casas de Nova

Orleans tiveram que ser constru��das em cima de pila-

res, como as vilas lacustres, por causa das enchentes

do Mississipi. A ��nica ��gua que naquela ��poca se

podia beber era a da chuva, que os habitantes guar-

davam em grandes cisternas. Nos tempos da Guerra

A VOLTA DO GATO PRETO

79

Civil, quando os yankees mandaram seus navios cheios

de soldados para se apoderarem de Nova Orleans, os

defensores da cidade estenderam fortes cabos atrav��s

do rio, para impedir a passagem dos navios. Os cabos

se romperam, os invasores passaram e os sulistas quei-

maram todo o algod��o, o a����car e o melado que se

encontravam no cais, para que essas mercadorias n��o

ca��ssem intatas em poder dos inimigos.

De repente verifico que estou pregando no de-

serto. Nenhum dos membros da minha fam��lia est��

me ouvindo, pois acham-se os tr��s absortos num es-

pet��culo curioso. Duas pretas conversam a uma es-

quina. Ambas equilibram na cabe��a trouxas de rou-

pa. Est��o vestidas quase como as negras da Bahia,

com roupas de cor e avental branco, e trazem na ca-

be��a um desses turbantes que aqui se chamam tig-

nons. Suas caras pardas e seus dentes alvos reluzem

ao sol. As mammies gesticulam, falando uma l��ngua

que �� uma m��sica, mas da qual n��o consigo perceber

patavina. Por tr��s delas, como, um cen��rio pintado es-

pecialmente para a cena, quatro ramos lustrosos du-

ma bananeira espiam por cima dum muro antigo de

reboco partido.

��� Mas isto n��o �� Estados Unidos! ��� exclama Ma-

riana.

Seguimos o nosso caminho. De repente Clara e

Lu��s come��am a gritar e gesticular. Olho e vejo uma

cale��a (�� carros da velha Cruz Alta, com seus boleei-

ros de bombacha e chap��u de aba larga e barbicachol

�� carros dos tempos em que era "chie" passear aos

domingos pela cidade, de tolda arreada!) O ve��culo

est�� parado junto da cal��ada, �� esquina da Rua Dau-

phin. Seu magro matungo, com um florido chap��u de

palha na cabe��a, espanta as moscas. Um preto de rou-

pa ru��a e um velho chap��u alto puxado sobre os olhos,

dormita na bol��ia. Tenho uma premoni����o do que

vai acontecer.

80

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Pai! Vamos passear de carrol ��� diz Clara.

��� Isso mesmo! ��� exclama Lu��s.

Aconteceu... Despertamos o boleeiro, que abre

os olhos e mostra a dentu��a.

��� Yes, sir!

��� Quanto custa uma corrida?

��� 50 cents o quarto de hora. Yessiih!

��� Dinheiro posto fora ��� observa Mariana. ��� Lem-

bra-te de que temos ainda quase quatro dias de via-

gem.

H�� um breve momento de hesita����o. L�� no fun-

do de minha mem��ria meu av�� tropeiro me diz:

��� Desgra��a poca �� bobage, mo��o!

��� Saltem para dentro do calhambeque! ��� grito.

E dentro de poucos segundos estamos todos abo-

letados na cale��a.

Digo ao preto que nos leve "por a��". As crian��as

est��o excitadas. O pilungo trota, seus cascos tocam

uma musiquinha clara nas pedras do cal��amento. Re-

tomo as fun����es de guia. Naquela casa ��� digo ��� mo-

rou o pirata Lafitte. Aquele casar��o maci��o �� o mer-

cado franc��s, onde se bebe o melhor caf�� da cidade,

e onde os farristas tresnoitados v��m tomar o seu

bre��kfast pela madrugada, enquanto o sol, que tam-

b��m passou a noite em claro, iluminando a outra me-

tade da terra, surge l�� para as bandas do delta... Sa-

bem o que est�� vendendo aquele sujeito que ali vem

empurrando uma carrocinha? �� snow ball, ou bola de

neve, gelo picado com ess��ncias doces: morango, aba-

caxi, baunilha, amora...

Passamos por perto do rio, onde se acham anco-

rados muitos navios, e por cujas ��guas, dum pardo

rosado, passa providencialmente um desses navios mo-

vidos a roda, que nos tempos antigos eram tamb��m

teatro ��� os show boats. De p�� no carro, Clara e Lu��s.



A VOLTA DO GATO PRETO 81

o contemplam fascinados. E sua exalta����o cresce,

quando o navio come��a a tocar com seus apitos mu-

sicais uma valsinha antiga.

Quando se aproxima o fim da corrida, pe��o ao

boleeiro que nos deixe na frente da Catedral de St.

Louis. Atiro-lhe uma moeda de cinq��enta centavos.

E apeamos.

NA CATEDRAL

Aqui est�� a famosa catedral com as suas tr��s tor-

res pontiagudas e a sua mistura de g��tico modifica-

do e romano. Entramos. �� uma igreja espa��osa, cla-

ra, limpa e sem cheiros. Mariana se ajoelha e ora, en-

quanto os filhos, num sil��ncio meio espantado, olham

em torno e cochicham.

Um padre vem caminhando atrav��s do corredor

central entre os dois grupos de bancos, e seus passos

ecoam no recinto. Dois homens trabalham na insta-

la����o dum microfone ao lado esquerdo do altar-mor.

O padre posta-se junto da porta da igreja e grita:

��� Vamos experimentar o mike.

Um dos homens aproxima-se do microfone e diz:

��� Um-dois-tr��s-quatro-cinco-seis-sete-oito.

O padre ergue a m��o, formando um c��rculo com

a ponta do indicador a tocar a ponta do polegar. Isso

em m��mica americana quer dizer que est�� tudo okay.

Mariana ergue-se e vem sentar-se a meu lado.

Ficamos conversando aos cochichos. Chamo-lhe a aten-

����o para as diferen��as que h�� entre o catolicismo nor-

te-americano e o catolicismo sul-americano. H�� menos

cheiros nestas igrejas cat��licas dos Estados Unidos, nas

quais at�� a fisionomia dos santos �� mais desanuviada

e otimista. Uma cat��lica americana que visitou o Bra-

sil, um dia me chamou a aten����o para o "car��ter ag��-



82

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

nico" das igrejas brasileiras, onde tudo lembra morte,

pecado e castigo.

Nos Estados Unidos os padres cat��licos n��o usam

batina na rua. Com seus trajos negros, seus colarinhos

duros e altos abotoados atr��s, seu peitilho negro ���

eles se parecem com os pastores episcopais. S��o mais

esportivos e tolerantes que os sacerdotes brasileiros.

Unem-se com protestantes e judeus para formar comi-

t�� e promover campanhas em prol dos ideais crist��os.

Jogam golfe, t��nis e at�� futebol; fumam, tomam o seu

u��sque e ��� por que n��o? ��� jogam o seu bridge.

O FANTASMA DO MUSEU

Visitamos a seguir o museu do Cabildo, que fica

ao lado da Catedral, e damos um mergulho no passa-

do. Vamos aos tempos coloniais por entre uniformes

de generais, espadas, lan��as, carabinas, pistolas, me-

dalhas, apetrechos de piratas e bandeiras desbota-

das . . .

A casa �� velha e a esta hora da manh�� est�� de-

serta de visitantes. Andamos sozinhos por estas salas

cujo cheiro nos lembra o dos velhos ba��s em que as

murchas vov��s guardam rel��quias da mocidade. Nos-

sas sombras ficaram l�� fora, a esperar-nos junto da

porta.

Debru��amo-nos sobre montras de vidro onde se

enfileiram pergaminhos amarelentos, pap��is antigos,

B��blias, leques, tabaqueiras, pepas de pato que assi-

naram documentos memor��veis, e objetos do uso par-

ticular de figuras hist��ricas. Passamos depois por um

longo corredor, sob o t��nel invis��vel formado pelos

olhares que nos deitam de quadros a ��leo pendurados

nas paredes, ��� generais, estadistas, governadores e fi-

dalgos. Entramos a seguir num sal��o que lembra os

A VOLTA DO GATO PRETO

83

museus de cera. Aqui est��o expostos os vestidos usa-

dos pelas damas de Nova Orleans desde a funda����o

da cidade. Logo ao entrar temos a impress��o de que

os manequins s��o pessoas humanas. Parece que al-

gu��m acaba de pedir sil��ncio, porque uma destas da-

mas vai recitar... Caminhamos na ponta dos p��s. Ve-

jo no rosto de meus filhos uma express��o de medrosa

expectativa. Vestidos com uma abund��ncia de sedas

e rend��es, os manequins sorriem para n��s o seu cada-

v��rico sorriso de cera. Parecem conversar uns com os

outros numa linguagem para n��s inaud��vel. Que dir��o?

Talvez zombem de n��s, pobres vivos. N��o ousamos

dizer palavra. Paramos aqui e ali. A imobilidade des-

tas figuras, dentro de suas redomas, �� impressionante.

Mas de quando em quando eu me volto, brusco, com

a impress��o de que um desses manequins se moveu,

fez um gesto ou sussurrou uma palavra. E o que mais

concorre para esta atmosfera de mist��rio �� a penumbra

em que o sal��o se acha mergulhado.

De repente Clara solta um grito. (A mocinha

perdida no museu de cera. Segundo ato. Cena pri-

meira). Olho. .. Um dos manequins realmente se mo-

v e . . . N��o est�� vestido de seda como os outros, mas

pobremente, como uma simples criada. Tem uma ca-

ra macilenta, enrugada, e de express��o perversa. Mo-

ve-se em sil��ncio e nem sequer olha para n��s. Parece

uma feiticeira, uma g��rgula, um monstrengo. Paramos,

fascinados. Levo alguns segundos para compreender.

Trata-se de uma das mulheres encarregadas da limpe-

za do museu. Est�� esfregando com um pano o vidro

de uma das redomas. Essa verifica����o, entretanto, n��o

me tranq��iliza, pois a qualidade fantasmal da criatu-

ra permanece. Tenho a sensa����o que vem dela um

bafio de morte. Passamos de largo, olhando furtiva-

mente para a l��vida criatura que, parecendo n��o ter



84

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

dado ainda pela nossa presen��a, continua nos seus mo-

vimentos regulares de aut��mato. Ningu��m me tira da

cabe��a a id��ia de que essa mulher est�� morta, e de

que se ela se move �� apenas por obra do vodoo.

Descemos as escadas em sil��ncio e de novo sa��-

mos para a rua.

P��TIO

Estamos famintos e procuramos um restaurante.

Paramos diante do Antoine's, que passa por ser dos

melhores do pa��s. Tem quase cem anos e j�� foi visita-

do pelas personalidades mais famosas do mundo mo-

derno, as quais lhe elogiaram o servi��o e a cozinha.

Penso nas suas famosas huitres en coquille �� la

Rockefeller , no seu pompano papillote um peixe cozido apresentado ao fregu��s dentro dum saquinho de

papel. E fico l��rico ao relembrar o gosto de seu poulet

chanteclair que �� frango em molho de vinho.

Mas um r��pido estudo das finan��as da tribo me

leva �� conclus��o de que o Antoine's est�� fora do al-

cance de nossa bolsa.

Acabamos entrando no "P��tio das Duas Irm��s",

cujo nome nos titila a fantasia. Entramos por um velho

port��o enferrujado e seguimos por um corredor cal��ado

de lajes irregulares na dire����o do p��tio. Vemos nas

paredes velhos pend��es dos tempos coloniais, inclusive

um estandarte desbotado, sujo e pu��do no qual amare-

lece a flor-de-lis de Fran��a. H�� uma velha lareira

centen��ria com um caldeir��o tisnado onde provavel-

mente muito cors��rio cozinhou sua sopa, e muita

mammy fez seu bouillabaisse. Duas carabinas dos

tempos coloniais ��� decerto das que os soldados da

imp��vida Nova Orleans usaram em 1812 contra os in-

gleses ��� cruzam-se na parede, por cima da lareira.

A VOLTA DO GATO PRETO

85

No p��tio, mesas cobertas com toalhas de xadrez

vermelho e branco espalham-se em graciosa desordem

�� sombra de figueiras e salgueiros. Todas elas t��m no

centro um casti��al com um toco de vela. Homens e

mulheres com aspecto de turistas mastigam o seu al-

mo��o. Por entre as mesas, gar��ons mulatos passam

carregando coloridas saladas. Os muros que cercam

o p��tio ostentam na face de reboco v��rias feridas

que nunca s��o curadas, pois elas acentuam a nota de

antiguidade do estabelecimento. P��ssaros cujo nome

ignoro, est��o empoleirados nos galhos das figueiras, e

de quando em quando voejam por sobre nossas cabe-

��as, mudando de pouso.

Creio que Nova Orleans �� uma das poucas cidades

dos Estados Unidos que sabem comer e que t��m uma

tradi����o culin��ria. Pouco se fala aqui em vitaminas e

calorias; o que importa �� o gosto, o tempero. Escre-

veu Mark Twain que o "pompano" preparado em

Nova Orleans �� "delicioso como as menos criminosas

formas de pecado". Entre os quitutes famosos da

terra encontra-se o gombo aux herbes que no franc��s

dos pretos se transformou em gombo zh��bes. O gom-

bo �� uma planta que uma pessoa culta descreveria co-

mo hibiscus esculentus, mas que eu prefiro chamar

simplesmente de quiabo. Segundo a lenda esse famo-

so gombo zh��bes deve ser preparado numa Quinta-

Feira Santa, pois que isso "traz sorte". Nesse prato

entra espinafre, mostarda, beterraba, alface, folhas de

aipo, cebolinhas, nabos, salsa, tomilho, piment��o e

uma s��rie de outras pimentas. Quem me explica tudo

isso com luxo de detalhes �� o gar��on que nos vem

atender. Esclarece que �� preciso primeiro lavar as ver-

duras, depois cozinh��-las em ��gua abundante. Ah!

Enquanto as verduras fervem, �� bom ir fritando a

carne, picando as cebolas e a salsa...

��� Nesse gombo zh��bes ��� concluo ��� h�� de tudo

menos quiabo, n��o?

86

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

O gar��on sorri e um canino de ouro rebrilha.

��� S��o dessas coisas, meu chefe.

Enquanto ele disserta sobre as outras especiali-

dades da casa, com aten����o vaga examino o menu e

me perco em meio de pratos com nomes franceses, in-

gleses, espanh��is e africanos. Olho do gar��on para o

menu, do nome dos pratos para o pre��o dos mesmos,

do pre��o para os rostos ansiosos que tenho na minha

frente.

Hollandaises sauce supr��me... Grillades... Calas

tout chaud... Double glac��. Inclino-me sobre a mesa.

Estudamos em conjunto o card��pio, com ar de conspi-

radores. O mulato espera com sorridente paci��ncia.

Por fim chegamos a um acordo. Empertigo o busto,

atiro o menu sobre a mesa e digo:

��� Spaghetti para quatro!

E quando o gar��on se vai para dar nossa ordem

�� cozinha, ficamos mordiscando aipos com sal e olhan-

do o p��tio. Novos fregueses chegam. Um soldado e

um Wac sentam-se a uma mesa, de m��os dadas, enle-

vados um no outro. Deve ser um desses id��lios casuais

que a guerra proporciona e que ela pr��pria depois se

encarrega de romper. A sombra das ��rvores desenha

no ch��o um rendilhado que lembra o dos balc��es das

casas do Vieux Carr��. Por cima de n��s o c��u �� dum

azul puro e liso.

Chegam os pratos de spaghetti. E por alguns ins-

tantes, faz-se entre n��s um sil��ncio grave. Alguns

p��ssaros est��o pousados nos galhos da figueira por cima

de minha cabe��a ��� o que me deixa levemente inquieto.

De outras mesas chegam at�� n��s, trazidos pela brisa,

ricos cheiros de pratos esquisitos. De repente sinto

uma leve batida no ombro direito. Nem quero olhar.

Presumo o que seja. Clara arregala os olhos, estende

o bra��o por cima da mesa e aponta:

��� Pai, uma coisa branca a�� no teu ombro...



A VOLTA DO GATO PRETO

87

��� Eu sei... ��� digo, com resigna����o evang��lica.

Ergo os olhos.

Como s��o belos, r��tilos e gloriosos esses p��ssaros

contra o azul!

ADEUS!

Adeus, Nova Orleans! Adeus cidade rococ��, barro-

ca, mourisca, coloniall Adeus cidade imprevista! Have-

mos de voltar um dia com mais tempo e mais dinheiro!

De novo nos achamos instalados no trem, num

bom camarote, com atmosfera primaveril, ��gua gelada,

bancos estofados, um ma��o de revistas, uma provis��o

de sandu��ches e frutas e dispostos a enfrentar a longa

travessia. Teremos de ficar dois dias e duas noites

neste trem antes de chegarmos a Los Angeles onde

passaremos uma noite, tomando na manh�� seguinte o

trem mais colorido deste pa��s para vencer dentro dele

as 480 milhas que separam aquela cidade de Berlceley

��� o fim desta imensa, intermin��vel linha que come-

��ou em Porto Alegre h�� duas semanas.

E quando entramos em Texas mertrulho na lei-

tura do substancioso livro de H. L. Mencken, The

American Language.

De vez em quando ergo os olhos do livro para

olhar a paisagem. Este sul de Texas com seus campos

ondulados, suas fazendas e aramados, seus moinhos de

vento e a��udes, lembra muito o Rio Grande do Sul.

E assim com a aten����o dividida entre o livro e os

campos avan��o por estas p��ginas de composi����o cerra-

da, numa maravilhosa viagem atrav��s da l��ngua ame-

ricana. E sob o sortil��gio da prosa escorreita de

Mencken, atiro o livro para o lado, tomo da caneta-tin-

teiro e de papel e vou rabiscando para meu pr��prio uso

algumas reflex��es sobre o ingl��s que se fala deste lado

do Atl��ntico.



88

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

TEXAS

Texas �� um verdadeiro imp��rio. Talvez eu j�� me

esteja deixando contagiar pelo entusiasmo desmedido

que os texanos t��m pela sua terra, mas creio que pou-

cos territ��rios do mundo ser��o mais ricos e pr��speros

que este. Trata-se duma riqueza e duma prosperi-

dade vis��veis a olho nu. Basta olhar pela janela deste

trem em movimento e atentar nos vastos trigais que

se estendem a perder de vista; nas torres de a��o que

se erguem ativas sobre po��os de petr��leo; nessas largas

estradas de concreto que se cruzam e entrecruzam em

todas as dire����es; e nos rebanhos de gado que enchem

estes campos. Nos descampados onde h�� menos de

um s��culo cow-boys broncos la��avam potros selvagens,

erguem-se hoje cidades modernas como Dallas, Hous-

ton, San Antonio e Forth Worth.

Tenho a impress��o de que faz um s��culo (outro

exagero texano) que estamos viajando atrav��s de Texas.

Um avi��o que atravessasse o estado, saindo de Port

Arthur, na extremidade oriental, e pousando em El

Paso, que fica na ponta oposta, teria percorrido uma

dist��ncia maior do que a rota a��rea que separa Nova

York de Chicago. Qualquer texano afirmar�� que os

grapefruits daqui s��o os mais doces do mundo, o algo-

d��o, o melhor do continente; as mulheres, as mais

belas do universo; os homens, os mais corajosos do

planeta. E contar�� que os regimentos formados de

boys nascidos nestas paragens e chamados os Texas

Rangers s��o os mais bravos e audaciosos soldados das

Na����es Unidas. E como algu��m um dia expressasse

suas d��vidas quanto �� vit��ria dos pa��ses democr��ticos

sobre o Eixo, um texano decidiu tranq��iliz��-lo: "N��o

se preocupe. Texas �� aliado dos Estados Unidos".

Existe nesta parte do pa��s grande n��mero de cam-

pos de treinamento de aviadores. E de quando em



A VOLTA DO GATO PRETO

89

quando, contra este c��u de outono, c��lido e desbotado,

lampeja um avi��o. Pelas estradas passam jeeps e ca-

minh��es cor de oliva do ex��rcito, ou ��� prata e azul, ���

esses enormes ��nibus de passageiros de Greyhound

Lines, com um galgo em plena corrida pintado nos

costados. Passamos ��s vezes por longu��ssimos trens de

carga que conduzem tanques anf��bios, canh��es e "at��

avi��es desmontados. E n��o raro, �� beira da estrada

real, ergue-se um enorme cartaz em que aparecem

Waves, Wacs e Spars de bra��os dados. Mas o que

elas dizem ao observador n��o tem car��ter de reclame

comercia], �� um conselho patri��tico: Compre b��nus

de guerra! Todos os an��ncios agora s��o feitos com

esse esp��rito. Na maioria dos casos esses cartazes ���

belas tricromias onde o desenho tem uma perfei����o fo-

togr��fica ��� s��o financiados por empresas industriais,

cujo nome aparece discretamente a um canto, em letras

menores.

�� medida que nos aproximamos do estado de

Novo M��xico, o terreno toma mais o aspecto de deserto.

No oeste de Texas chove menos e h�� menos ��rvores.

Quando sa��mos de Louisiana os verdes eram mais vi-

vos, os matos freq��entes, as cidades maiores e mais

pr��ximas umas das outras. Come��am agora a aparecer

montanhas, pois esta parte do territ��rio texano �� mais

acidentada que a do leste.

Lu��s fica excitado ao ver os primeiros cow-boys

em carne e osso. Eles passam pela estrada a cavalo ou

ent��o, com seu andar gingante, suas pernas um pouco

arqueadas, passeiam indolentes pela plataforma das

pequenas esta����es onde nosso trem p��ra por alguns se-

gundos ou por onde passa em marcha lenta.

FRONTEIRA

Em El Paso, que fica na linha divis��ria entre os

Estados Unidos e o M��xico, saltamos para espichar as

90

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

pernas. �� primeira vista a cidade nos parece mais

mexicana que norte-americana. O n��mero de pessoas

morenas aqui �� maior que o de gente de pele clara.

As cabe��as louras e os olhos azuis escasseiam. E em

algumas caras que andam nesta sala de espera da esta����o,

notam-se zigomas salientes, olhos obl��quos ��� vest��gios

de sangue ��ndio.

Um homem aproxima-se de mim, mostra o dis-

tintivo de metal que traz escondido debaixo da lapela

do casaco, declara que �� do servi��o de imigra����o e

pede meus documentos de identidade. Isto tinha de

acontecer. O homem desconfia que eu seja mexicano

e quer saber se estou legalmente deste outro lado da

fronteira. Mostro-lhe meu passaporte, que ele exa-

mina e depois me devolve, sorrindo. "Okay bud"! ���

diz. D��-me uma palmadinha no ombro e se vai.

Minha fam��lia desapareceu. Descubro que orga-

nizou um assalto ao restaurante. L�� est��o os tr��s jun-

to do balc��o, numa orgia de saladas de tomates e al-

face, de frutas e salsichas. Re��no-me a eles e

confraternizo.

Atrav��s da janela vemos uma pracinha de El Paso,

que lembra todas as pracinhas de todas as nossas ci-

dades do interior, com seu coreto para a banda de

m��sica, os seus bancos pintados de verde, os seus can-

teiros, as ��rvores e os seus vagabundos.

El Paso fica �� margem do Rio Grande, tem um

porto e produz cobre. �� tamb��m um cow town, centro

do com��rcio de gado. A empregada do restaurante

me assegura que esta cidade produz os mais gostosos

frutos do mundo. Quando sabe que somos do Brasil

e vamos para a Calif��rnia, pergunta, intrigada:

��� Vieram de t��o longe... para morar na Cali-

f��rnia ?

��� Sim. E que tem isso?

A VOLTA DO GATO PRETO

91

Ela sorri significativamente e por algum tempo fica

sem dizer nada, numa pausa cheia de inten����es ocul-

tas. Eu espero, mastigando uma ma����. A empregada

passa o pano em cima do balc��o laqueado de vermelho.

��� Well, well, well. Ent��o v��o para a Calif��rnia!

A terra do sol eterno, dos laranjais floridos e n��o sei

mais de qu��. Ha-ha!

��� Mas que �� que h�� com a Calif��rnia?

��� Quer saber mesmo ?

��� Claro.

��� A Calif��rnia �� phony.

Traduzo o di��logo para minha gente. Phony ��

uma palavra da g��ria que quer dizer: artificial, fal-

sificado.

��� Movie stuff ��� esclarece a empregada. "Coisa

de cinema". E explica que Texas �� a melhor parte dos

Estados Unidos. Clima, conforto, riqueza, cidades...

Ah! e as gentes, principalmente as gentes. O texano

�� franco, hospitaleiro, amigo. Com ele tudo �� ali "na

batata".

N��o consegue terminar a sua enumera����o. Por-

que a hora de o trem partir se aproxima. Arrebato das

m��os da mulher a nota de despesa e arrasto a fam��lia

na dire����o da porta. Junto da caixa, repete-se a infal��vel

cena da procura do dinheiro. A caixa, uma senhora

gorda de cabelos brancos que ouviu nosso di��logo,

sorri e diz:

��� Ent��o, v��o para a Calif��rnia, n��o?

��� �� verdade.

��� Grande terra!

Enquanto arrecado os n��queis do troco, digo:

��� Finalmente encontro uma texana que faz justi��a

�� Calif��rnia...

A caixa inclina-se sobre a mesa, pisca o olho e me

segreda:



92

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� N��o conte a ningu��m. N��o sou de Texas. Nas-

ci em San Francisco. Sejam felizes!

Voltamos para nosso compartimento, onde j�� prin-

cipiamos a nos sentir como em nossa pr��pria casa.

Este cub��culo j�� tem o nosso jeito, j�� absorveu os nossos

h��bitos. J�� imprimimos nossa marca neste ambiente

que espelha prodigiosamente nossa desordem. Tudo

aqui dentro se encontra numa deliciosa anarquia. De

quando em quando o porter negro vem pacientemente

limpar o ch��o e os bancos pintalgados de farelo de

p��o, casca de fruta e peda��os de papel.

O trem arranca. Vamos entrar dentro em pouco

no estado do Novo M��xico.

O DESERTO

Come��amos a penetrar no deserto. Montanhas de

pedras, rosadas �� luz da manh��, erguem-se contra um

c��u p��lido e quente. O ch��o �� dum amarelo-arenoso

e a vegeta����o escassa, dum verde que ��s vezes se de-

grada em pardo ou cinza. Aparecem os primeiros

cactos, alguns dos quais t��m mais de dois metros de

altura e parecem pessoas im��veis, com os bra��os er-

guidos. Outros semelham verdes torpedos plantados

na terra. Para al��m das montanhas nuas e averme-

lhadas, estendem-se cordilheiras dum azul-arroxeado.

Clara deixa o compartimento e vai postar-se jun-

to da janela do corredor. Diminui aos poucos a velo-

cidade do trem. De repente a menina solta uma

exclama����o.

��� Venham ver depressa!

Mariana e Lu��s erguem-se e v��o. Deixo-me ficar

junto da outra janela e uma pregui��a boa me cola ao

banco. Que ter�� visto Clara? Um avi��o? Um jeep?

A VOLTA DO GATO PRETO

93

Um regimento? Se fosse um drag��o talvez eu me er-

guesse daqui. Por menos que isso n��o me movo.

��� Vem, pai! ��� chama Clara.

O trem p��ra.

��� Que ��? ��� pergunto, de olhos semicerrados.

��� Uma ��ndia!

��� A h . . . ��� fa��o eu. Mas n��o me movo.

��� Uma ��ndia de verdade! ��� afirma Lu��s.

E como continuo sentado, meus filhos me v��m

buscar a for��a. Tenho de segui-los. Vou at�� a janela

e olho. �� sombra duma casa de adobe acha-se uma

��ndia gorda, sentada no ch��o, de pernas e bra��os cru-

zados, numa atitude de quem dormita. Est�� vestida

de grosseiro pano pardo, mas tem sobre os ombros um

xale tricolor. A seu lado no solo v��em-se cobertores

de algod��o em padr��es de rico colorido, estatuetas de

barro, chap��u de palha de tipo mexicano, cestos e es-

teiras. Meus filhos querem descer-para ver de perto

a maravilha, mas o porter nos informa que seria impru-

d��ncia deixar o vag��o, pois a parada �� apenas de um

minuto.

Quando o trem retoma a marcha, voltamos ao nos-

so compartimento. Percebo que Lu��s est�� intrigado.

Sentado em sil��ncio, olhar fito num ponto insitu��vel

no espa��o, as sobrancelhas erguidas, ele pensa.

��� Isto ainda �� Estados Unidos? ��� pergunta, ao

cabo de alguns minutos.

��� Claro! ��� responde a irm��.

��� Mas como �� que a gente v�� ��ndios... n��o v��

arranha-c��us?

��� Estamos no Novo M��xico.

��� Isto pertence ao M��xico ?

��� Burro! ��� exclama Clara. ��� Aos Estados Unidos.

Come��am ambos a crivar Mariana de perguntas.

94

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� De onde vieram os ��ndios? S��o amigos ou inimigos

dos americanos? Por que esta parte dos Estados Uni-

dos �� um deserto?

��� Perguntem ao pai de voc��s ��� sugere Mariana,

fazendo um sinal na minha dire����o.

Lu��s me lan��a um olhar obl��quo e diz:

��� Ele n��o sabe.

Abro um olho, como ��nica resposta. N��o sei a

causa de meu desprest��gio intelectual junto dessas cria-

turinhas. L��em as hist��rias que escrevo, as absurdas

aventuras de bichos e gentes, e depois, como ��nico

coment��rio, dizem sorrindo:

��� Esse pai �� uma bola!

Quando t��m de fazer perguntas, de pedir infor-

ma����es, recorrem �� m��e.

��� Isso �� o resultado dos teus sil��ncios ��� j�� me

disse Mariana mais de uma vez.

��� Est�� bem ��� murmuro. ��� Que �� que voc��s que-

rem saber?

Lu��s atira a primeira pergunta:

��� Quem �� que morava aqui antes dos americanos?

��� Os ��ndios.

Clara:

��� ��ndios... como os do Brasil?

��� N��o. Como aquela ��ndia que voc��s viram h��

pouco. Os "��ndios pueblos". S��o peles-vermelhas que

se distinguem das outras tribos errantes por viverem

em "pueblos", palavra espanhola que significa povoados.

Lu��s e Clara trocam um r��pido olhar. Interesse?

Incredulidade? Finjo que n��o percebo nada e prepa-

ro-me para prosseguir quando o menino me interrompe:

��� E antes dos ��ndios?

Sinto que a situa����o piora. Ajeito-me no banco

e come��o:

��� H�� muitos, muitos anos... talvez mais de mil...

Clara solta um assobio de admira����o.

A VOLTA DO GATO PRETO

95

��� . . . morava nesta regi��o que hoje se chama Novo

M��xico, uma tribo de ��ndios. Viviam da agricultura

e eram trabalhadores e pacatos...

��� Como �� que tu sabes?

Reprimo um suspiro de impaci��ncia e digo:

��� Ora, meu filho, essas coisas a gente l �� . . .

��� Ou inventa... ��� interv��m Mariana.

��� Continua, pai ��� pede Clara. ��� Estou gostando.

��� Bom. Um belo dia ferozes guerreiros duma

tribo agressiva desceram l�� do lado das grandes mon-

tanhas, isto ��, do Norte, e se precipitaram contra esse

povo pac��fico... Que �� que voc��s pensam que os

agricultores fizeram?

��� Defenderam-se, ��� opina Lu��s.

Sacudo a cabe��a negativamente.

��� Azularam. Fugiram para as montanhas.

Pausa dram��tica.

��� E depois?

��� Ficaram morando nas montanhas.

��� Como?

��� Constru��ram as cidades mais fant��sticas deste

pa��s. Imaginem voc��s enormes casas cavadas na rocha

viva, na encosta dos penhascos.

��� Pai, n��o uses palavras dif��ceis! ��� protesta Lu��s.

��� Encosta dos penhascos? Quer dizer no lado

dos rochedos. Cavavam na pedra, aproveitavam as

cavernas, as plataformas e ��s vezes completavam essas

habita����es erguendo paredes de adobe. De longe essas

constru����es pareciam castelos, com suas torres redondas

e quadradas. L�� viveram por muitos anos esses ��ndios

pac��ficos, numa sociedade em que n��o havia ricos nem

pobres.

Lu��s:

��� Como �� que a gente pode descobrir todas essas

coisas?

96

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Na maioria dos casos ��� explico ��� pelos de-

senhos e inscri����es que esses povos antigos deixaram

nas paredes de suas casas ou cavernas. Tudo indica

que os habitantes dos penhascos n��o tinham alfabeto.

Pelo menos nas suas cidades de pedra n��o se desco-

briu nenhuma inscri����o. Mas nas rel��quias que eles

deixaram ��� peda��os de roupas, farrapos de pano, ob-

jetos de uso dom��stico, caveiras e esqueletos ��� os

cientistas leram a hist��ria dessa gente.

Olho atrav��s da janela. Os cactos parecem ace-

nar para n��s. A luz do sol reverbera nas montanhas

de pedra.

��� Os cientistas chegaram �� conclus��o de que a

vida dessas fam��lias era muito bem organizada. Ha-

via entre elas perfeita igualdade. Os homens sa��am para

ca��ar, plantar ou a fazer a colheita. As mulheres man-

davam dentro de casa.

��� Por onde se conclui ��� observa Mariana ��� que

a vida nos penhascos n��o era muito diferente da vida

nas cidades modernas...

��� Pois �� ��� continuo, ignorando a interrup����o. ���

E em muitos respeitos reinava entre os habitantes dos

penhascos uma esp��cie de comunismo. Havia cozi-

nhas coletivas em p��tios abertos ou em cima dos telha-

dos. Os instrumentos de trabalho pertenciam a todos.

N��o havia exploradores nem explorados. A mob��lia das

casas era resumida. E sup��e-se que essa curiosa gente

guardava suas roupas e utens��lios em nichos cavados

nas paredes.

��� Os precursores dos arm��rios embutidos... ���

diz Mariana.

��� Os bebes tinham os seus ber��os feitos de cor-

ticeira. E numa dessas ru��nas descobriu-se at�� um

chocalho feito de uma casca de noz.

��� N��o vais me dizer ��� interrompe minha mulher ���

que as mulheres dessa na����o se pintavam...

A VOLTA DO GATO PRETO

97

��� A�� �� que te enganas. Pois pintavam-se. Usa-

vam um rouge muito vivo feito de p�� de tijolo.

Tr��s pares de olhos incr��dulos se fixam em meu

rosto. Desvio o olhar para fora. Predominam na pai-

sagem os tons de ouro velho e o pardo - amarelado.

Passamos agora por uma floresta miniatural de yuccas,

com as suas folhas verdes em forma de espada. Ao

longe, pesadas, silenciosas, antigas, as montanhas su-

blinham irregularmente o horizonte.

��� E depois? ��� pergunta Clara.

��� Parece que os habitantes dessas cidades de

pedra costumavam queimar os seus mortos ��� prossigo

��� pois a quantidade de esqueletos encontrados pelos

arque��logos foi muito pequena.

��� Como foi que esses ��ndios se acabaram? ��� in-

daga Luiz.

��� N��o se sabe ao certo que fim tiveram. Que

n��o morreram de peste �� f��cil de ver, pois se isso ti-

vesse acontecido teriam ficado milhares de esqueletos

insepultos. Como foi, ent��o, que desapareceram?

Mist��rio.

��� E depois? ��� insiste Clara.

��� Depois vieram os ��ndios pueblos. E mais tarde

os espanh��is. Houve um tempo em que o Novo M��-

xico foi prov��ncia de Espanha. Santa F��, que �� ainda

hoje sua capital, foi fundada em mil seiscentos e. ..

mil seiscentos e n��o me lembro quanto. Depois o Novo

M��xico foi cedido aos Estados Unidos. Muito mais tar-

de, em 1916, houve conflitos na fronteira entre os me-

xicanos e norte-americanos, e o general Pancho Villa...

��� Wallace Beery ��� exclama Lu��s.

��� Isso mesmo ��� confirmo eu, baixando a cabe��a

ante a autoridade de Hollywood, que amea��a suplan-

tar a da pr��pria Hist��ria. ��� Pois o caudilho Villa

invadiu o Novo M��xico e, segundo a vers��o norte-ame-

98

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

ricana do fato, atacou uma cidade e massacrou civis

e soldados. O governo dos Estados Unidos mandou

contra o M��xico uma miss��o punitiva comandada por

Pershing. E por muito tempo as rela����es entre os dois

pa��ses ficaram abaladas.

Clara torna a perguntar:

��� E agora?

Dou de ombros.

��� Agora o Novo M��xico �� isto... ��� Fa��o um sinal

na dire����o da janela.

E explico que o estado �� riqu��ssimo em minerais.

Que seu clima �� seco e quente, muito procurado pelos

tuberculosos. E que existem aqui v��rios monumentos

religiosos ��� igrejas e miss��es ��� erguidos por padres

espanh��is, alguns h�� mais de duzentos anos. Sim, e

ia j�� me esquecendo de mencionar as grutas de Carls-

bad...

Como Clara e Lu��s querem saber do que se trata,

tenho de contar que, h�� uns quarenta e poucos anos,

dois cow-boys certo dia viram enormes bando de mor-

cegos levantar-se da terra. Esporeados pela curiosi-

dade, caminharam at�� o ponto em que a negra nuvem

se havia erguido e encontraram a�� uma cavidade. De-

cidiram, ent��o ver "aonde ia terminar aquele buraco",

meteram-se terra a dentro e acabaram descobrindo uma

imensa caverna, a qual vinte anos depois foi "industria-

lizada" com o fim de atrair curiosos.

Como vejo interesse no audit��rio, prossigo.

��� Imaginem voc��s uma sala imensa e abobadada,

debaixo da terra, duma altura de quase cem metros

e com uma c��pula maior que a da catedral de S��o

Pedro em Roma... Mais que isso. H�� ainda galerias

e subgalerias. Enormes cachos de estalactites pendem

do teto da caverna, formando os desenhos mais com-

plicados, nas cores mais incr��veis. E se a gente bate

A VOLTA DO GATO PRETO

99

com um ferro nessas estalactites, um som musical de

sino enche a caverna, ecoa pelas galerias...

H�� um sil��ncio breve.

��� Quando foi que estiveste l��, pai?

��� Nunca. Mas podem acreditar no que estou

contando. N��o �� inven����o.

Neste momento penso uma vez mais na minha

quase indiferen��a diante da paisagem. At�� hoje n��o

me interessei por nenhuma das belezas naturais dos

Estados Unidos. Passei de largo pelo Yellowstone Park,

pelo Grand Canyon, pelos lagos Arrowhead e Tahoe,

pelas cataratas do Ni��gara... Ca��ador de almas, pre-

firo as cidades. Sinto um contentamento que n��o se

descreve quando caminho pelas ruas duma grande

metr��pole. O ru��do feito de vozes humanas e das

vozes de todos os ve��culos, de todas as m��quinas, ��

quase m��sica para meus ouvidos. Aspiro com del��cia

o cheiro de asfalto e gasolina queimada, como se

fosse um esquisito perfume. Sou capaz de ficar horas

e horas sentado �� mesa dum caf��, olhando as pessoas

que est��o a meu redor e as que entram ou saem. Ah!

Uma grande cidade ao anoitecer... Gente apressada,

��nibus e bondes apinhados, a massa do tr��fego a se

mover lenta, regulada pelas luzes vermelhas e verdes.. .

As cores do poente na boca ocidental das ruas... Os

grandes edif��cios a subir para um c��u que empalide-

ce. . . E as caras! As m��scaras humanas que vislumbra-

mos de repente �� janela dum bonde, na penumbra dum

t��xi, ou no v��o duma porta. .. O rosto que vemos

rapidamente no meio da multid��o e n��o esquecemos

mais... Os bra��os abertos dos policiais, os letreiros lu-

minosos, as vitrinas, os cheiros que se escapam de

dentro dos caf��s, o ru��do de passos, os farrapos de

m��sica que andam no ar, os nomes nas marquises dos

teatros, e, para al��m do pico dos arranha-c��us, as

estrelas t��midas e eternas...



100 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Quando caminho pelas ruas duma grande .cidade

todo o meu desejo �� deixar-me levar, sem plano nem

b��ssola, como que erguido na crista da onda humana

que coleia nas cal��adas. H�� momentos em que tenho

o desejo de multiplicar-me para poder estar no mes-

mo minuto em muitos lugares, vendo tudo, ouvindo

tudo, e tentanto sentir e compreender tudo, conver-

sando com os b��bedos e os vagabundos, com os var-

redores de ruas e os leiteiros, com os vendedores de

jornais e as mulheres perdidas...

Haver�� parque, lago, canyon ou caverna que en-

cerre tanta beleza viva como uma cidade ao anoitecer?

O SIL��NCIO

O entardecer deste dia me encontra ainda junto

da janela, mastigando melancolicamente um sandu��-

che e pensando em D. H. Lawrence que um dia veio

para Taos, no Novo M��xico, em busca dum clima fa-

vor��vel para seus pobres pulm��es doentes. Imagino-o

a caminhar por estes desertos, com um chap��u mexi-

cano na cabe��a. Vejo-o a pintar as dan��as rituais dos

��ndios, a discutir com Frieda, a criticar os absurdos da

civiliza����o moderna, com todos os seus preju��zos, ta-

bus e hipocrisias. Ou��o-o bradar no deserto todos os

nomes feios que seu povo recalcou durante tantos s��-

culos. Acompanho os passos desse profeta macilento

e barbudo, ��spero e esguio como um cacto. Chego a

ver-lhe a sombra no ch��o arenoso e ressequido...

Se em mim o adulto evoca Lawrence, o menino

recorda Tom Mix no seu cavalo branco, perseguindo

os peles-vermelhas pelas plan��cies do Novo M��xico

num filme silencioso, ao som duma valsa antiga bati-

da por um homem triste no piano desafinado dum ci-

nema provinciano. E as lembran��as do menino en-



A VOLTA DO GATO PRETO

101

tram em luta com as do homem; e chega o momento

em que ambas se misturam, se fundem. O resultado ��

monstruoso. Tom Mix escreve "O Amante de Lady

Chatterley" e D. H. Lawrence salva Ruth Roland das

garras dos ��ndios.

Mas o que h�� l�� fora mesmo �� o sil��ncio. O enor-

me sil��ncio do deserto. Um sil��ncio de eternidade. E

o nosso trem trespassa essa quietude com o seu apito

prolongado, que deve ecoar l�� do outro lado das mon-

tanhas, que bem pode ser tamb��m o outro lado do

mist��rio ��� o pa��s ignorado para onde foram os habi-

tantes dos penhascos, D. H. Lawrence, Tom Mix, seu

cavalo branco e minha inf��ncia...

MARATONA

Um novo dia ��� e Arizona! L�� fora sempre o de-

serto, as montanhas, a terra amarelada, os pueblos;

aqui dentro, sandu��ches de queijo e bolachas com

manteiga de amendoim... De quando em quando

arriscamos uma excurs��o ao carro-restaurante, e temos

de esperar durante dez, quinze ou vinte minutos na

bicha. Essas bichas s��o um exemplo vivo da demo-

cracia norte-americana. Se o soldado chega antes do

cabo, o cabo antes do sargento e o sargento antes do

capit��o, n��o h�� nenhuma lei capaz de alterar essa or-

dem. O oficial esperar�� a sua vez com a maior natu-

ralidade, pois sabe que todos os cidad��os t��m direitos

iguais perante a constitui����o dos Estados Unidos e n��o

ser�� pelo fato de serem soldados que eles deixar��o de

ser cidad��os...

Duma feita, olhando o rosto rubicundo mas se-

reno dum coronel que espera, lendo um jornal, en-

quanto o soldado que estava �� sua frente, na fila, se

aboleta, satisfeito, num lugar que acaba de ficar va-

go, digo a Mariana:

102

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Ah! Se pud��ssemos incutir no homem comum

brasileiro a consci��ncia de sua import��ncia como indi-

v��duo. .. Mas qual! �� preciso primeiro elevar-lhe o

n��vel de vida, melhorar-lhe a sa��de, a educa����o...

tudo! Mas quando? Quando?

As rodas do trem parecem repetir ritmadamente:

quando... quan-do. .. quan-do... quan-do...

De ordin��rio ficamos no camarote resignados ��

nossa condi����o de imigrantes. E quando os v��veres se

esgotam, trato de renov��-los nas esta����es onde acon-

tece o trem parar. Como essas paradas geralmente s��o

curtas, tenho de recorrer ��s vezes a desesperadas ma-

ratonas. Corro ao drugstore mais pr��ximo a comprar

sandu��ches, biscoitos e frutas.

Aqui vou agora em mangas de camisa, sem gra-

vata, escabelado, suarento, numa das minhas sensacio-

nais corridas. Atravesso a plataforma da esta����o sob

o sol esbranqui��ado de Arizona, e precipito-me na di-

re����o dum boteco. Ora, a pequena cidade americana

n��o difere muito em h��bitos da pequena cidade de

qualquer outro pa��s do mundo. Nela ningu��m tem

pressa, ningu��m se afoba. Onde est�� o dono desta jo-

��a? Bato no balc��o. Ningu��m responde. O tempo

urge.

Entram soldados num bando barulhento. S��o ra-

pag��es louros e espada��dos, de rostos rosados e lus-

trosos. Um deles encaminha-se para mim, bate-me

jovialmente no ombro e diz:

��� Depressa, amigo. Quatro cervejas!

Ofegante e humilhado, retruco:

��� Eu tamb��m estou no trem, mo��o!

��� Oh! oh!

Encaminha-se para o balc��o. O empregado do

boteco finalmente aparece com cara sonolenta. Aten-

de primeiro os soldados. E quando estes se retiram



A VOLTA DO GATO PRETO

103

com suas garrafas de cerveja, fico a escolher ataran-

tadamente as poucas coisas comest��veis que a loja

exibe.

Chego ao meu carro um segundo antes de o trem

partir. Depois de toda esta maratona aflitiva, que

trago eu? Um bife? Um prato raro? N��o. Apenas

uns magros pacotes de biscoitos. Espera-me a ingra-

tid��o da tribo. Quando chego, meus filhos me olham,

s��fregos. N��o v��em que estou cansado, pingando

de suor e infeliz. Olham para as minhas m��os, fazem

uma careta, e exclamam ao mesmo tempo:

��� Outra vez manteiga de amendoim?

Atira-me sobre o banco; lan��o-me de ponta ca-

be��a num lago de sil��ncio. N��o vejo nada do que se

passa a meu redor. Olho para fora e desejo ser por

um instante aquele ��ndio que fuma pl��cidamente seu

cachimbo de barro �� sombra duma casa de adobe.

��� Queres um biscoito, papai?

��� N��o. Quero uma dose de ars��nico.

OS ARGONAUTAS

O deserto de Arizona nos parece intermin��vel

Passamos ��s vezes por cidades modernas como Tucson

e Phoenix. Vemos, num relance, perspectivas de ruas

limpas, com grandes edif��cios, letreiros luminosos,

tr��fego animado e muita gente nas cal��adas. Depois

v��m os sub��rbios, com suas casinhas claras e verdes

jardins, mantidos �� custa de irriga����o artificial. Den-

tro em pouco entramos de novo no deserto.

E quando chegamos �� fronteira da Calif��rnia,

penso nos milhares de homens que para c�� vieram em

1849, tomados da febre do ouro. Com sua inclina����o

para o eufemismo, os americanos deram a esses aven-

tureiros o pomposo nome de "Argonautas".

Sim, n��s tamb��m somos argonautas. Mas em bus-

104

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

ca de que vimos? De ouro n��o ��. De aventuras, en-

t��o? Duma mudan��a de vida? De novos horizontes?

Creio que a gente viaja muitas vezes por culpa

duma gravura que viu na inf��ncia, num velho livro.

A ilha de Bali... Cena de rua em Hanoi... Cere-

jeiras floridas em Washington... Voltamos a p��gina,

devaneamos um pouco, depois aparentemente esquece-

mos a figura. Mas acontece que a lembran��a do cli-

ch�� se transforma num desejo, e esse desejo fica co-

mo que adormecido durante anos e um dia, em a sor-

te ajudando, ele nos leva a viajar. Vamos ver a ilha

m��gica, as cerejeiras �� beira do Potomac, a capital da

Indochina ��� para chegar �� conclus��o de que todos

esses lugares e coisas n��o possuem na realidade me-

tade da gra��a e da sugestiva poesia j�� n��o digo da ve-

lha gravura, mas do mundo que elas criaram em nos-

so esp��rito. Verificamos tamb��m, quando em viagem

pelo estrangeiro, que nossa casa, nossa quer��ncia ���

que nos pareciam antes foscos, prosaicos e repetitivos

��� ganham com a dist��ncia um lustro, um encanto t��o

grande como o da gravura da inf��ncia. Voltamos li-

ricamente para a casa, julgando saciada nossa fome

de horizontes. Mas um dia o velho livro nos cai de

novo sob os olhos. L�� est�� a rua de Hanoi, a ilha ver-

de, e as cerejeiras em flor. Ficamos outra vez a de-

vanear, nost��lgicos, e nosso desejo de viajar �� t��o

grande que acaba nos jogando dentro dum trem ou

dum avi��o, nem que seja para uma viagem intermu-

nicipal.

Besta, n��o �� mesmo?

UMA NOITE EM HOLLYWOOD

Pernoitamos em Los Angeles, onde s�� por mila-

gre conseguimos acomoda����es num hotel de Holly-

A VOLTA DO GATO PRETO

105

wood. O gerente nos destina ao quarto n.�� 650, e um

be��-boy nos acompanha at�� o sexto andar. Mete a

chave na porta, abre-a e eu vejo l�� dentro do quarto

um soldado seminu dar um pulo da cama, gritando:

��� Quem �� l��?

A fam��lia recua. O boy desculpa-se:

��� N��mero errado. "Sorry, bud".

Torna a fechar a porta, e, sacudindo a cabe��a

lentamente, explica que um engano nestes tempos de

guerra e amontoamento �� uma coisa muito natural.

Ficamos finalmente instalados no 610, onde h��

quatro engra��adas camas com rodas. Custa-nos con-

ciliar o sono, pois toda a vida noturna de Hollywood

como que nos entra pelas janelas escancaradas. As

conversas l�� de fora, na Vine Street, sobem no ar cla-

ro e fresco com tal nitidez, que ��s vezes tenho a im-

press��o de que h�� estranhos dentro do quarto, falan-

do alto. O vento nos traz os ru��dos do bulevar. Pre-

g��es de vendedores de jornais, sons agudos de buzi-

nas, e principalmente vozes humanas ��� vozes alegres,

com pouco ou muito u��sque, vozes de pares que en-

chem as cal��adas em suas andan��as de bar para bar,

de cabar�� para cabar��.

A fam��lia n��o se resigna a passar assim t��o ra-

pidamente por Hollywood, da qual vimos apenas as

ruas centrais num r��pido passeio noturno. Prometo-

lhes que voltaremos para ficar aqui por muitos meses,

depois de terminado meu curso em Berkeley.

Na manh�� seguinte entramos num trem colorido

e confort��vel, de marcha veloz mas doce. Os cheiros

de flit, estofo, couro e lin��leo d��o ao carro em que

nos instalamos uma atmosfera de casa nova e limpa.

Em Los Angeles o c��nsul do Brasil me entregou

um cheque de meus editores de Nova York, de sorte

que com esse papelucho verde na carteira sinto-me



106

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

encorajado a gastar os ��ltimos d��lares num grande al-

mo��o. As toalhas do carro-restaurante t��m uma bran-

cura imaculada. Os gar��ons s��o atenciosos mulatos de

ar patriarcal.

Estamos atravessando o Vale de San Joaquim. Co-

linas com veludosos tons de mate, manchadas de bos-

quetes dum verde escuro, quase negro, desdobram-se

maciamente sob um sol de ouro temperado por uma

n��voa leitosa, transparente como um v��u. O vale es-

t�� tapetado de flores cujos nomes, como bom brasi-

leiro, ignoro. Aos poucos v��o aparecendo laranjais,

limoeiros, bosques de eucaliptos, vinhas imensas; e

avenidas de palmeiras reais que se espicham em pers-

pectivas longu��ssimas contra a encosta azulada das

montanhas; e pastagens dum verde novo e lustroso,

granjas brancas em estilo de miss��o espanhola, mon-

tes de feno, moinhos de vento, pomares...

Mariana declara que esta �� exatamente a Calif��r-

nia com que ela sonhava. E eu, com um tolo orgu-

lho, verifico que esta �� precisamente a Calif��rnia que

eu lhe prometia.

O FIM DA LINHA

Quando chegamos a Berkeley �� noite fechada.

Creio que somos os primeiros e os ��ltimos a descer do

trem. A plataforma, mergulhada na sombra, parece

deserta. C�� estamos n��s cercados de nossas malas e

de nossas d��vidas, enquanto o trem come��a a se mo-

vimentar outra vez, rumo de Oakland. O ar est�� frio,

com um leve toque de umidade.

Sombras movem-se na sombra. Dois vultos avan-

��am na nossa dire����o. Um homem retaco, de ��culos,

aproxima-se de mim, sorridente, e arrisca:

��� O senhor �� o doutor, professor. ..?

A VOLTA DO GATO PRETO 107

Diz o meu nome. Est�� claro que n��o sou doutor

nem professor, mas o nome que ele acaba de pronun-

ciar �� sem a menor d��vida o meu.

��� Sim, e o senhor?

��� Sou Yacob Malkiel, do Departamento de Es-

panhol e Portugu��s da Universidade. O Dr. Morley,

diretor do Departamento, manda-lhe as boas-vindas.

Tudo isto �� dito num tom portugu��s de Portugal,

muito claro e muito cantado. Outro vulto se aproxi-

ma.

��� Este �� Don Madrid ��� apresenta Malkiel ��� aluno

da Universidade.

Don Madrid ��� cujas fei����es tamb��m n��o posso

discernir com clareza ��� fala um portugu��s sofr��vel.

Um terceiro vulto avan��a. Reconhe��o com alegria o

meu amigo Sab��ia Lima, c��nsul do Brasil em San

Francisco. No seu tranc��o calmo, ele se aproxima de

n��s, e com sua inalter��vel fleuma, me aperta a m��o e

depois cumprimenta os outros membros da fam��lia.

Surge ent��o um desses probleminhas tolos mas

inevit��veis. Ir no carro de Mr. Madrid ou no do c��n-

sul? Para o hotel onde a Universidade nos reservou

c��modos ou para o hotel que Sab��ia Lima nos reco-

menda?

O c��nsul me chama �� parte:

��� O Departamento de Espanhol reservou c��mo-

dos para voc��s no Chattanooga. �� um hotel triste de

gente velha.

Fico indeciso.

��� Mas voc�� compreende, ��� digo ��� n��o quero

criar um caso assim de chegada. Com voc�� tenho in-

timidade, ao passo que com o Departamento...

E o Departamento passa por ser uma entidade res-

peit��vel, uma pessoa de cerim��nia, importante e grave:

108

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Sab��ia Lima encolhe os ombros.

��� Bom, filho, quem vai morar no hotel s��o vo-

c��s, portanto...

Enquanto minha fam��lia entra no Packard do c��n-

sul, eu me meto no Ford de bigode de meus novos

amigos. Madrid explica:

��� Esta lata velha estava fora de combate, mas

com a guerra e a falta de autom��veis ela voltou ao

servi��o.

��� Mas est�� magn��fica! ��� asseguro-lhe.

Estamos os tr��s no banco da frente. Vou ensan-

duichado entre o Prof. Malkiel e Don. O primeiro me

pergunta:

��� Vossa Excel��ncia fez boa viagem ?

Vossa Excel��ncia! �� indescrit��vel o que sinto ao

ouvir essa express��o formalista. �� como se eu esti-

vesse no palco do S��o Caetano tomando parte numa

pe��a representada por atores portugueses.

��� O h . . . ��tima, muito obrigado.

Depois duma pausa, o Prof. Malkiel diz:

��� H�� v��rios alunos muito interessados no seu

curso...

��� Palavra que n��o entendo! ��� exclamo, num s��-

bito acesso de franqueza.

��� Que �� que o ilustre colega n��o entende?

Fa��o um sinal na dire����o da rua sombria.

��� Este pa��s est�� em guerra. H�� din-out nestas

cidades, pois uma esquadrilha japonesa pode duma

hora para outra soltar bombas em cima dos estaleiros

e dos navios que est��o na ba��a. Milh��es de soldados

acham-se lutando, em v��rias frentes, na mais cruenta

das guerras. . . Os civis trabalham nas ind��strias de

guerra. Velhos aposentados v��m ocupar na vida civil

o lugar dos mo��os que o ex��rcito chamou. O calham-

beque de nosso amigo Don foi tamb��m chamado ao

A VOLTA DO GATO PRETO

109

servi��o ativo. O mundo est�� convulsionado. E ainda

h�� gente que pensa em assistir a um curso de litera-

tura brasileira.

Don solta uma risada. Mas Malkiel limita-se a

sorrir.

��� Vossa Excel��ncia �� muito modesto ��� murmura

ele.

O auto desliza ao longo de ruas sombrias. H��

em tudo aqui um ar de coisa antiga. Este Ford, esta

cidade acad��mica e morta, a pros��dia portuguesa do

Prof. Malkiel ��� tudo isto me d�� uma sensa����o esqui-

sita que n��o consigo definir. Em todo o caso posso

desde j�� afirmar que n��o era esta a Berkeley que eu

esperava.

Poucos minutos depois estamos todos no sagu��o

do Chattanooga Hotel, vagamente viol��ceos sob uma

luz fluorescente.

Neste "lobby" superaquecido vejo uma cole����o de

velhos e velhas que conversam em voz baixa, l��em

jornais ou ent��o se movimentam dum lado para outro.

(Esta �� a terra dos velhos inquietos.)

Despedimo-nos de nossos amigos e, depois de

passar pela gerencia, subimos ao nosso apartamento ���

duas pe��as razoavelmente amplas, com um quarto de

banho. A mob��lia �� antiga. Os tapetes que cobrem o

ch��o, escuros. O aspecto geral �� de discreta tristeza:

o tipo de quarto para um professor aposentado, vi��vo

ou solteir��o, passar nele os ��ltimos anos de sua vida.

Aqui estamos a nos entreolhar em sil��ncio. Mais

um dia e mais um hotel em nossas vidasl Abrimos ma-

las, examinamos gavetas, guarda-roupas, c��modas; ex-

perimentamos torneiras; olhamos de perto os qua-

dros. ..

Dentro de vinte e quatro horas estaremos habi-

tuados a este ambiente como se tiv��ssemos passado

aqui toda a nossa vida.

110

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Abro a janela que d�� para os fundos do hotel.

Esfumadas pela n��voa, brilham indecisas as luzes de

San Francisco, l�� do outro lado da ba��a. Os telhados

de Berkeley est��o ��midos de sombra. Fico por um

instante a escutar os ru��dos da noite que o nevoeiro

parece amortecer.

Depois sento numa poltrona e procuro descrever

para mim mesmo o que sinto. Que ser��? Fecho os

olhos, penso, recordo, indago. Aspiro o cheiro deste

quarto por onde passaram tantas vidas, tantas hist��-

rias. Concluo finalmente que isto tudo j�� aconteceu

h�� muitos anos. N��o estamos em 1943, n��o. Viajamos

para diante no espa��o mas recuamos no tempo e vie-

mos parar nesta cidade, neste hotel, neste ponto do

passado. Murmuro nomes de pessoas e coisas de ho-

je. Franklin Delano Roosevelt... bazooka Hitler...

ciclotr��nio. . . penicilina. In��til. S��o palavras que n��o

significam nada, pois designam pessoas que ainda n��o

nasceram, coisas que ainda n��o se inventaram ou des-

cobriram.

Levanto-me e pergunto:

��� Voc��s querem descer e caminhar um pouco

pela cidade?

A resposta �� negativa. Est��o todos cansados e

pretendem ir para a cama cedo. Des��o e saio. Estou

na Shattuck Avenue, a via comercial de Berkeley. Pe-

lo centro dela passa iluminado o trem el��trico que vai

para San Francisco, atrav��s da grande ponte. Das

"food-shops" sai o cheiro de picles e frituras ��� o mesmo cheiro que havia em Miami, o mesmo cheiro que

me perseguiu h�� mais de dois anos atrav��s de Was-

hington, Nova York, Saint Louis, Baltimore, Den-

ver. . .

Um nevoeiro baixo encobre o topo dos morros.

Que luzes estranhas ser��o aquelas? S��o os feixes dos

holofotes que fiscalizam as estradas do c��u. Num

A VOLTA DO GATO PRETO

111

drugstore a voz de Frank Sinatra, escorrendo de den-

tro dum juke-box pede �� sua bem-amada que n��o lhe

atire buqu��s, pois os outros v��o pensar que eles es-

t��o apaixonados. Mais adiante Bing Crosby e as An-

drew Sisters cantam em coro que vai haver o diabo

quando os ianques entrarem em Berlim. Dois homens

saem do caf�� e eu ou��o a voz de um deles: It's a long

way to Berlin, brother. Sim, irm��o, Berlim est�� longe.

Quando sair�� a invas��o? Essa �� a pergunta que leio

no cabe��alho dum jornal, a uma esquina, sob um com-

bustor de luz amortecida. Berlim est�� muito longe. E

a paz, mais longe ainda. Neste mesmo jornal, nesta

mesma primeira p��gina, algu��m j�� fala na terceira

guerra. �� uma id��ia horr��vel. Chega a dar calafrios.

Deve ser por isso que sinto um arrepio nesta noite de

Berkeley.

Lembro-me de que a Universidade fica para a

banda das colinas. Encaminho-me para l��. Depois

duns tr��s minutos de marcha, avisto o pared��o do

est��dio e o maci��o das ��rvores do campus. O ar chei-

ra a eucalipto molhado. H�� um mist��rio nessas som-

bras do parque adormecido, atrav��s do qual dentro

de um m��s andarei caminhando na minha rotina se-

manal de aulas.

Fico olhando as ��rvores em sil��ncio. Ou��o ru��-

dos de ramos que se quebram, de folhas secas pisa-

das. �� singular esta sensa����o de solid��o e quase de

medo que sinto agora como se eu estivesse perdido

numa floresta. Perdido na floresta... Lembro-me da

hist��ria de Jo��ozinho e Ritinha perdidos na mata, por

culpa dos pais. Penso nos jovens americanos que nes-

te mesmo instante est��o morrendo e matando nas v��-

rias frentes de batalha. S��o tamb��m crian��as perdi-

das na floresta, por culpa das gera����es que as prece-

deram. Os mais velhos n��o souberam preservar a paz.

Embora afirmassem que detestavam a guerra, fizeram



112

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

e disseram coisas que acabaram conduzindo-os �� guer-

ra. De nada serviu o sacrif��cio dos outros soldados

americanos que em 1917 foram "regar com o seu san-

gue as papoulas de Flandres". O sacrif��cio se repete.

Haver�� salva����o para Jo��ozinho e Ritinha?

Vejo sombras min��sculas. S��o coelhos ou esqui-

los ��� vultos ariscos que se silhuetam de repente na

penumbra e num segundo se dissolvem nas sombras

mais fundas.

Fa��o meia-volta e me encaminho para o hotel.

POEMA PARA O CHATTANOOGA HOTEL

Se eu fosse poeta, escreveria um poema para o

Chattanooga Hotel. Vou enumerar, sem metro nem

rima, os elementos desse poema.

As velhinhas verdes que passam encurvadas, en-

feitadinhas e risonhas, pelos corredores superaquecidos

que t��m um cheiro quente e limpo de roupa rec��m-

passada a ferro...

Os velhinhos empertigados, os professores de ca-

vanhaque e pincenez, que l��em livros incr��veis senta-

dos nas poltronas do bobby. Uma certa velha, vestida de

acordo com a moda de 1912, e que sempre est�� es-

crevendo cartas ��quela escrivaninha ali perto do ele-

vador. ..

A nossa vizinha, dama inglesa idosa e vi��va, que

j�� nos levou ao seu quarto, e nos mostrou o retrato do

falecido ��� um juiz togado de vastos bigodes ��� e que

tem o di��rio de sua vida e suas viagens em doze vo-

lumes encadernadinhos, enfileirados na prateleira...

(Oh! se eu pudesse ler esse di��rio!)

O perfume daquela senhora triste, de cabelos

completamente brancos ��� um perfume seco, remoto,



A VOLTA DO GATO PRETO

113

morto, que evoca bailes com valsas, quadrilhas, oficiais

com dragonas, leques, mantilhas, e essa mesma lua

que ainda hoje ilumina as colinas de Berkeley...

E o homem triste do elevador, que caminha

apoiado em muletas. E o velho magro, calvo, sarden-

to e de olhos compridos, que fica de plant��o �� noite.

Os ru��dos do drugstore, no andar t��rreo ��� suco

de laranja! dois milk-shakes! roscas a dois! bolo de

baunilha! ice-cream! ��� batidas de pratos, tinir de co-

lheres, e as vozes musicais das gar��onetes que so-

nham com a hora da sa��da, pois os boy friends estar��o

esperando ali na esquina, para irem com elas ao cine-

ma, ao rinque de patina����o, aos dancings...

E o bett-boy filipino de cabelos besuntados de

brilhantina... E uma cole����o de cachorrinhos de es-

tima����o ��� uns melanc��licos, de orelhas ca��das; outros

antip��ticos e agressivos; outros apenas aborrecidos...

E os casais de velhinhos que de bra��os dados saem

para o cinema...

Ah! E principalmente esses septuagen��rios e octo-

gen��rios que �� hora das refei����es me causam inveja,

porque comem com gula, sem a menor reserva, pepi-

nos, salsichas, chucrute, presunto com ovos e toucinho

frito...

Nesse poema naturalmente entrariam tamb��m qua-

tro brasileiros que andam dum lado para outro como

pe��as soltas numa velha m��quina ��� ��s vezes depri-

midos, outras vezes exaltados... Quatro brasileiros

para os quais o simples ato de escolher um almo��o ��

uma aventura.

E BOM ESTAR A Q U �� . . .

Teria valido a pena deixar o Brasil para vir mo-

rar nesta pacata cidadezinha universit��ria, sem encan-

to nem imprevistos?

114

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��s vezes chegamos a detestar o hotel, os seus

cheiros, os seus sonidos, as suas gentes... Procuramos

em v��o uma casa para alugar. Berkeley tinha pouco

mais de 80 000 habitantes antes da guerra. Agora tem

cerca de 120 000, pois milhares de pessoas que vie-

ram trabalhar nos estaleiros de Oakland, Richmond,

Alameda e San Francisco instalaram-se aqui. Os ho-

t��is est��o superlotados e todas as casas alugadas. Vi-

vemos lendo os "Aluga-se" de todos os jornais. De vez

em quando temos uma esperan��a. Um dia escalamos

uma colina, por uma estrada ��ngreme, porque o jor-

nal anunciou que a casa moderna l�� no alto daquele

morro verde est�� para alugar. Ofegantes, ansiosos,

cansados, chegamos finalmente �� vivenda encantada,

para descobrir que ela foi alugada apenas h�� duas

horas!

Descemos para o vale num sil��ncio de derrota.

Temos ainda outros problemas. As crian��as ema-

grecem. Est��o p��lidas, e sua magreza faz que seus

olhos escuros ainda pare��am maiores. N��o gostam das

comidas dos restaurantes e acham que podem viver

de sorvetes e "milk-shakes". Apavorados �� id��ia de

que algu��m lhes possa dirigir a palavra em ingl��s,

andam sempre agarrados a n��s, de sorte que quando

caminhamos pelas ruas somos como esses peixes gran-

des que carregam colados ao ventre peixinhos para-

sitas.

Como o ano letivo ainda n��o come��ou, as ruas

est��o agora um pouco despovoadas de estudantes. O

que vejo s��o marinheiros e soldados ��� jovens entre

dezessete e vinte anos ��� que fazem cursos militares

especiais na universidade.

Saio �� frente em passeios solit��rios pelas ruas de

Berkeley. �� interessante andar por um mundo de des-

conhecidos. �� quase o mesmo que n��o existir. Agora

eu sei como deve sentir-se um fantasma. Mas esse pa-



A VOLTA DO GATO PRETO

115

pel de espectro me agrada pelo que tem de novo e re-

pousante. Diverte-me, dando-me al��m de tudo uma

sensa����o de humildade e ao mesmo tempo de segu-

ran��a.

Nos dias em que a n��voa que vem do Pac��fico,

desce sobre a cidade, entrando-me tamb��m no c��re-

bro, tenho de recorrer a um rem��dio que descobri h��

pouco, e que tem a virtude de me reanimar. Entre

na campus da Universidade e vou deitar-me num de

seus tabuleiros de relva e fico a contemplar a esguia

torre que se ergue no centro do parque, e cujo carri-

lh��o de hora em hora toca melodias folcl��ricas, reli-

giosas ou c��vicas. Olho as ��rvores tranq��ilas, as nu-

vens e os esquilos; as cores amareladas que o outono

come��a a pintar nas folhas; os grandes edif��cios que

dentro de uma semana estar��o vibrando ao som das

vozes e dos passos de milhares de estudantes. .. Pen-

so nas gentes que vou conhecer, nas coisas que vou

fazer e concluo que no fim de contas �� bom estar

aqui, neste lugar e nesta hora.

Volto para o hotel, de m��os nos bolsos, assobi-

ando furiosamente.

O C��NSUL ILUMINADO

Sab��ia Lima me comunica que "el muy distingui-

do se��or don Roberto de Bermejo y Bermejo, c��nsul

de la Republica de Metagalpa" (vamos fazer de con-

ta que existe na Am��rica Central um pa��s com este

nome) vai deixar sua casa de Fulton Street, n.�� 3650,

pois acaba de ser transferido para Nova York. Se

nos apressarmos talvez consigamos que ele me tres-

passe seu contrato de aluguel. Atravessamos a ponte

no Packard do excelente Sab��ia Lima, e quarenta mi-

nutos depois paramos em San Francisco, diante duma

116

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

casa quadrada, de tijolos nus, com um ar pesado e

maci��o de fortaleza.

Apertamos o bot��o da campainha da porta e S.

Ex��. o c��nsul de Metagalpa vem pessoalmente nos re-

ceber.

��� Mi querido amigo ��� exclama ele, abra��ando o

c��nsul do Brasil. ��� Pero que agradable sorpresa...

Apresenta����es, apertos de m��o, curvaturas, ama-

bilidades. Vejo uma escadaria s��lida, de madeira la-

vrada, que leva ao andar superior. Meus p��s afundam

num tapete azul e fofo. Avisto num relance minha ca-

ra no fundo dum espelho de moldura dourada. Pas-

samos para o vasto living-room, onde h�� uma lareira

acesa, poltronas orelhudas estofadas de veludo cor

de vinho, um pesado sof��, um piano de cauda e mui-

tos candelabros e lustres dourados. As paredes est��o

forradas de damasco cor de ouro velho. Os rodap��s

de madeira t��m quase um metro de altura. Esta n��o

�� positivamente a casa que eu escolheria de livre von-

tade para morar. Mas acho-a confort��vel, s��lida, e

quase acolhedora. Depois ��� concluo ��� ela �� diferen-

te. Tem aquele jeito, aquela atmosfera que a gente

espera encontrar em terras estrangeiras.

Mas por que estou a perder tempo com descri-

����es dum interior inanimado quando tenho diante de

mim um t��o espl��ndido exemplar humano?

Don Roberto �� um homem alto e corpulento,

cujo rosto ostenta as cores da sa��de e da prosperida-

de. Respira e transpira otimismo. Tem um princ��pio

de obesidade, uma voz retumbante e musical e, se-

gundo me informaram, antes de Ser c��nsul de seu pa��s

era vendedor de r��dios em San Francisco.

��� Que bebem? ��� pergunta ele. ��� Whiskey and

soda, gim... um Porto?

Aceitamos um high-ball e quando poucos minutos

mais tarde estamos todos empunhando nossos copos,

A VOLTA DO GATO PRETO

117

Sab��ia Lima conta a don Roberto de minhas preten-

s��es.

��� Deixarei esta casa dentro duma semana. Tudo

depender�� dum entendimento com Mrs. Burke. ��� E

num cochicho teatral, explica: ��� �� a "viejecita" dona

da casa. T��o gentil, t��o querida, "tan distinguida".

Digo-lhe sempre que sou seu papacito, ela me traz

flores, e minha senhora a adora. Mrs. Burke mora num

pequeno apartamento no subsolo desta casa. T��o so-

lit��ria, pobrecita!

Don Roberto passa a falar na sua carreira. Ago-

ra, sim, vai ter uma grande vida. Nova York �� um

consulado muito movimentado, e sua transfer��ncia

equivale a uma promo����o. Num assomo de entusias-

mo, faz confid��ncias:

��� Mirem, vou contar a voc��s um segredo. Mi

mam�� e mi madrina est��o trabalhando para conse-

guir que me nomeiem embaixador de Metagalpa em

Washington...

Tenho uma vis��o dessa mir��fica rep��blica em que

gordas mam��s e titias influem na pol��tica.

Don Roberto sorri, feliz, com os olhos muito bri-

lhantes. Compreendo que est�� vivendo um grande

momento de sua vida.

Espero que se fa��a a pausa respeitosa que deve

separar dois assuntos de natureza t��o diversa ��� os

neg��cios estrangeiros da rep��blica de Metagalpa e

meus miser��veis interesses particulares ��� e come��o

a fazer perguntas sobre o pre��o do aluguel, o n��mero

de pe��as que tem a casa... Olho as estufas el��tri-

cas e indago:

��� Perdoe a indiscri����o... mas quanto gasta de

luz por m��s?

Don Roberto fica pensativo por um instante, es-

tica o l��bio inferior, entorta a cabe��a e finalmente

diz:





118

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Doze d��lares...

Anima-se de s��bito, ergue o bra��o num gesto

que lembra um floreio de espadachim e explica, glo-

rioso:

��� Si, pero yo me ilumino mucho!

Ergue-se e sai a apertar em comutadores, a acen-

der l��mpadas cuja presen��a eu n��o havia notado ���

vermelhas, verdes, brancas ��� e em breve, ante o meu

silencioso horror, a sala est�� toda acesa, como uma

��rvore de natal.

��� Y que tal? ��� pergunta Don Roberto de Ber-

mejo y Bermejo, sorrindo no meio do living-room.

Refletidas no seu copo de u��sque, as l��mpadas

coloridas parecem pequenas estrelas naufragadas

num lago de ��mbar.

GOOD NEWS!

O dim-out foi hoje levantado em toda a costa

norte-americana do Pac��fico. Os capuzes opacos foram

retirados dos combustores das ruas. Tornam a brilhar

os letreiros ne��nios.

�� noite, de nossa janela, avistamos San Francisco,

l�� do outro lado da ba��a como um enorme presepe,

todo enfeitado de luzes coloridas, pisca-piscando atra-

v��s da bruma noturna.

ESPET��CULO

Hoje �� o Commencement Day, isto ��, o dia em

que a Universidade faz a entrega solene de diplomas.

A cerim��nia vai realizar-se ao ar livre no teatro gre-

go. Recebo uma entrada e instru����es. Devo estar ��s

dez menos quinze junto ao Campanile, onde haver��

A VOLTA DO GATO PRETO

119

uma concentra����o de professores, os quais seguir��o

depois em prociss��o, rumo do anfiteatro. Miro o bi-

lhete, pensativo, e decido que ser�� muito mais diver-

tido assistir ao show como espectador e se poss��vel

sem casaco.

Perto das dez encaminho-me para o Greek Thea-

ter. A manh�� veste as cores da Universidade da Ca-

lif��rnia: ouro e azul. O ar, fresco e doce, cheira a n��-

voa. Avi��es sobrevoam Berkeley. De todos os pon-

tos do campus e das colinas vizinhas, das ruas e ca-

sas pr��ximas, rapazes e raparigas caminham para o

teatro grego como formigas disciplinadas rumo do for-

migueiro. Ver essas caras jovens iluminadas por um

sol tamb��m jovem (��! astr��nomos, perdoai os pobres

poetas, que n��o sabem matem��tica!) ver esses corpos

esbeltos e el��sticos que caminham num ritmo ao mes-

mo tempo rijo e gracioso ��� equivale para mim a um

t��nico, a uma inje����o de otimismo. Absorvido pelos

meus pr��prios pensamentos, esque��o por um instante o

espet��culo a meu redor. Os latinos acusam os ameri-

canos de n��o terem alma po��tica. Uns chegam ao exa-

gero de afirmar que os Estados Unidos s��o um pa��s

sem poesia. Mas por acaso esta Universidade com

estes rapazes e raparigas em flor n��o ser�� um grande

poema vivo? E esses parques p��blicos? Esses jardins?

Essa alegria diante da vida? Esse amor ��s cores e ��

forma, ao ritmo e �� m��sica? Tudo isso n��o ser��, por

ventura, poesia aplicada?

O teatro grego fica dentro dum bosque de euca-

liptos e, segundo me informa o estudante de ��culos

com o qual acabo de fazer camaradagem, foi constru��-

do de acordo com o plano do teatro de Epidaurus da

Gr��cia, e pode acomodar 8 500 pessoas sentadas.

Descubro um lugar ideal �� sombra de ��rvores,

num declive coberto de relva que se ergue depois dos

��ltimos degraus da arquibancada, bem no alto do an-

120

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

fiteatro. Os estudantes come��am a encher os degraus

de pedra cinzenta. Por tr��s do palco ergue-se uma

muralha, ao longo da qual cai enorme bandeira dos

Estados Unidos. Na frente desse pared��o estende-se

uma fileira de colunas d��ricas. Ao longo do semic��r-

culo do est��dio, ao alto, bandeiras coloridas tremulam

ao vento. Os carrilh��es do Campanile batem as dez

horas e depois come��am a tocar um hino religioso. De

t��o vibrante e clara, a m��sica dos sinos parece au-

mentar a luminosidade do ar. Numa sensa����o de bem-

estar que promete transformar-se em exalta����o, tiro o

casaco e sento-me na relva. O meu novo amigo apre-

senta-me uma colega que acaba de chegar. Helio!

��� diz ela, como se fosse uma velha conhecida. Sem-

ta-se tamb��m junto de n��s, abre a bolsa, tira dela

um par de agulhas de galalite e um novelo de l��

amarela, e come��a a tricotar.

Estudantes em uniforme da marinha entram por

um lado do teatro, ao mesmo tempo que outros cole-

gas metidos no fardamento do ex��rcito entram pelo

lado oposto. Dentro de alguns minutos acham-se to-

dos acomodados l�� em baixo: uma mancha azul-ma-

rinho e uma mancha caqui.

As arquibancadas est��o repletas de estudantes em

trajos civis. A banda da universidade come��a a tocar

uma marcha processional. O som de seus instrumen-

tos met��licos como que se esfarelam no ar em part��-

culas faiscantes.

��� A prociss��o! ��� grita algu��m perto de n��s.

Olhamos. Assoma ao port��o, do lado esquerdo do

palco, a bandeira norte-americana, conduzida por um

cadete ladeado por dois soldados. Seguem-se outras

bandeiras e estandartes. Vem depois o Presidente da

Universidade, seguido de centenas de professores, em

fila dupla. Est��o todos de borla e capelo. �� um cor-

tejo negro e grave, em contraste com o azul do c��u,

A VOLTA DO GATO PRETO

121

o ouro do sol e a popula����o inquieta e jovem das

arquibancadas.

Em passo lento e ritmado a prociss��o desfila pela

frente do palco, e em breve todos os professores se

instalam nas cadeiras, na frente das imponentes colunas.

A banda toca o hino nacional norte-americano, que a

multid��o canta, de p��. A seguir um capel��o da ma-

rinha pede a b��n����o divina para esta cerim��nia.

N��o me interessa contar o que disseram os ora-

dores; nem descrever o ato da entrega dos diplomas

e dos t��tulos honor��ficos. Minha aten����o fica todo o

tempo voltada para este maravilhoso quadro.

Olhado aqui do alto, o grupo de marinheiros l��

em baixo semelha uma lagoa dum azul profundo, e

seus gorros brancos parecem marrecos boiando �� tona

d��gua, em forma����o militar.

Passeio o olhar pelas arquibancadas onde os

su��teres coloridos das alunas inquietas lembram um ca-

bdosc��pio em cont��nua muta����o de desenhos. E as

caras! Vejo criaturas entre dezesseis e vinte e tr��s

anos, com as fisionomias mais variadas. H�� aqui des-

cendentes de ingleses, escandinavos, alem��es, espa-

nh��is, judeus, mexicanos, filipinos, chineses... Os

cabelos t��m todos os tons imagin��veis ��� louros, ruivos,

castanhos, pretos, cor de palha. Quanto rosto sarden-

to! Que belas dentaduras! E como esses jovens fazem

barulho, como gritam e cantam e se agitam!

O vento nos traz o perfume dos eucaliptos. Ago-

ra uma borboleta amarela deixou o bosque em torno,

e voa sobre o anfiteatro. Muito mais alto, num v��o

ruidoso, passam avi��es de guerra. A banda do col��-

gio come��a a tocar uma polca do Shostakovisch. ��

uma pe��a cheia de disson��ncias. Alguns estudantes

riem, pois n��o podem seguir a melodia. Num dado

momento a turba entra num solo caricatural. As risa-

das aumentam e de repente, ante um floreio do grave

122

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

instrumento, rompe uma gargalhada geral, que agita

as arquibancadas, que sobe no ar, dominando o ronco

dos avi��es, a m��sica, tudo...

Ocorre-me ent��o que este espet��culo �� bem sim-

b��lico desta na����o. Esta mistura de Shostakovisch e

Gr��cia antiga, de filhos de imigrantes e de togas aca-

d��micas; de avi��es de guerra e borboletas; de colunas

d��ricas e goma de mascar ��� todas essas coisas s��o os

Estados Unidos, "na����o de na����es", express��o de aven-

tura, mocidade e for��a construtora.

Acho que estou vivendo um grande momento.

Sinto-me enriquecido e feliz por ter vindo.

2 - D I �� R I O D E S A N F R A N C I S C O

(De 24 de outubro de 1943 a 28 de junho de 1944)





O SOLAR DE METAGALPA

de outubro. Grande dia! Vamos nos libertar

das velhas esverdinhadas e dos cheiros do Chatta-

nooga Hotel. Vamos abandonar a peregrina����o atrav��s

dos caf��s e restaurantes, e a nossa dieta de peixe e legu-

mes. Depois de longas negocia����es com o agente de

Mrs. Burke, consigo convenc��-lo de que meus filhos

s��o verdadeiros anjos, e que saber��o respeitar as pol-

tronas de veludo, os espelhos, os tapetes e os m��veis

da casa de Fulton Street. Mr. Costelo, um homem cin-

q��ent��o e calmo, me informa em tom confidencial:

"Mrs. Burke �� um odd character. Com isto quer dizer

que. nossa senhoria �� uma pessoa esquisita, estranha,

exc��ntrica. "Vive sozinha ��� acrescenta ��� e a solid��o

lhe ataca os nervos. S�� desejo que o senhor e sua fam��-

lia se d��em bem com ela." Asseguro-lhe mais uma vez

que somos "gente direita". Assino um contrato pelo

prazo de um ano e pago adiantadamente a import��n-

cia correspondente ao aluguel do primeiro e do ��lti-

mo m��s.

Atravessamos a ba��a, sempre no autom��vel do pro-

videncial Sab��ia Lima, e com armas e bagagens nos

instalamos na casa que ainda guarda vest��gios da

imensa personalidade do c��nsul de Metagalpa.

Minha mulher est�� vagamente assustada. O casa-

r��o tem quinze pe��as: um vasto living-room, tr��s quar-

tos de dormir, duas salas de refei����es ��� uma para o

breakfast e a outra para o almo��o e o jantar; tr��s

quartos de banho ��� isso sem contar o subsolo, e os

halls da escada que s��o dum tamanho exagerado. Sinto



126

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

um vago remorso por ocupar com t��o pequena fam��lia

esta casa t��o grande, num tempo em que tantos lutam

com tanta dificuldade para encontrar acomoda����es.

Esta profus��o de tapetes, gavetas, espelhos, cub��-

culos, l��mpadas, candelabros e lustres nos desnorteia

um pouco. Sa��mos os quatro a explorar a mans��o de

Mrs. Burke, s��mbolo do novo-riquismo que se ergueu

neste pa��s na crista da onda de prosperidade surgida

ap��s a Primeira Guerra Mundial. Levamos verdadei-

ros sustos ao descobrir vultos de estranhos no fundo

de pe��as sombrias, mas acabamos verificando que s��o

as nossas pr��prias imagens refletidas em espelhos ines-

perados. Dentro de poucos minutos, por��m, Clara e

Lu��s j�� t��m intimidade com a casa, correm dum lado

para outro, fazem descobertas que os deixam excita-

dos ��� revistas antigas, livros de gravuras. E sua ale-

gria cresce quando encontram numa prateleira, dobra-

da com patri��tico carinho, a bandeira de Metagalpa.

Organizam uma parada ruidosa, e saem a marchar por

toda a casa enrolados no pavilh��o tricolor.

A. BOMBA

25 de outubro. Mrs. Burke nos visita, trazendo

uma bra��ada de flores. �� uma senhora sessentona e

gorda, de cabelos completamente brancos, mas de ros-

to liso e rosado. Conta-nos que �� vi��va e que nos tem-

pos do falecido viajou por todo o mundo. Leva-me at�� o

living-room e mostra-me uma cole����o de bugigangas

��� bonecos, bibel��s, livros miniaturais, j��ias ��� recor-

da����es de todos os pa��ses por onde passou. Confessa-

nos que anda muito nervosa, pois seu neto de dezenove

anos �� "paratrooper" e est�� na Inglaterra, preparando-

se para tomar parte na invas��o do continente. D��-nos

as boas-vindas e as flores, faz algumas recomenda����es



A VOLTA DO GATO PRETO

127

e volta para o seu apartamento. Quando ela sai, Ma-

riana pergunta:

��� Qual �� a tua impress��o?

��� Nem boa nem m��. Mas seria melhor que ela

morasse noutro lugar.

Sabendo que essa senhora solit��ria e nervosa mora

l�� em baixo, vamos viver com a impress��o de que temos

no subsolo uma bomba que pode explodir a qualquer

momento.

��� E se explodir... que podemos perder? ��� per-

gunta minha mulher filosoficamente.

��� Sabes duma coisa? ��� digo. ��� A minha impres-

s��o �� de que ela gostou bastante de ti e do Lu��s, menos

um pouco de Clara, e nada de mim.

Mariana me olha em sil��ncio por alguns segundos

e depois conclui:

��� �� poss��vel. Deve ser racista e desconfiou da

cor de tua pele.

O REL��GIO

Ainda a 25 de outubro. Oito da noite. Decidimos

ver o que �� que h�� no por��o da casa, na parte que nos

toca por contrato. Organizamos uma caravana e pre-

paramo-nos para a excurs��o. Clara e Lu��s est��o me-

tidos nos seus pijamas de pel��cia. "N��o fa��am barulho"

��� recomendo. N��o conv��m dar �� nossa senhoria mo-

tivos de queixa desde o primeiro dia.

Descemos a estreita escada que leva ao subsolo

e penetramos numa sala onde impera um grande bilhar

snooker. Ao verem as bolas coloridas, as crian��as

precipitam-se sobre elas, falando alto, e come��am a

atir��-las umas contra as outras, procurando tamb��m

met��-las nos bojos que se abrem nos quatro ��ngulos

da mesa. "Sil��ncio!' ��� digo eu, quase berrando.

128

OBRAS D E E R I C O V E R �� S S I M O

As paredes desta sala est��o cobertas dum papel

num tom de folhas secas, com figuras em duas cores re-

presentando nobres ingleses que saem nos seus re-

dingotes escarlates para a ca��a �� raposa. Penso nos

tempos do falecido, quando este room ��� mais novo e

mais alegre ��� vibrava ao som de risadas, das claras

batidas das bolas de bilhar e do tinir dos copos cheios

de u��sque escoc��s. Chego a "ver" Mr. Burke que imagino

alto, vermelho e de olhos muito azuis ��� a fazer caram-

bolas. E Mrs. Burke, mo��a e delgada, com uma ban-

deja de sandu��ches nas m��os, obsequiando os con-

vidados.

Sentimo-nos como intrusos nesta casa. Esta id��ia

nos leva a andar na ponta dos p��s e a falar em co-

chichos . . .

Vejo em cima de velho fon��grafo af��nico um belo

rel��gio e imediatamente concluo que ele ficar�� muito

bem em cima da lareira do living-room. O rel��gio

parou na meia-noite dum dia remoto, e aqui est�� como

uma coisa in��til e morta. Seja como for, tem um valor

decorativo e por isso decidimos lev��-lo para cima.

Clara toma-o nos bra��os com todo o cuidado. Apaga-

mos as luzes e tratamos de voltar.

Sst! ��� fa��o eu. Tenho a impress��o de que estamos

cometendo um roubo. Todo o cuidado �� pouco. ��

preciso que Mrs. Burke n��o nos ou��a... Quando

estamos no meio da escada, o sil��ncio �� de repente

varado por nervosas badaladas de sino. De-l��in-de-

l��in-de-l��in! O velho rel��gio acordou! Acordou e

falou depois d e . . . quantos anos? Clara estremece,

seus olhos se abrem desmesuradamente. Por alguns

instantes o rel��gio badala como um doido. Depois

torna a calar-se. Voltamos para cima na ponta dos

p��s...



A VOLTA DO GATO PRETO

129

TRINTA S E G U N D O S . . .

Dez da noite. Estou s�� no living-room, olhando para os anjos barrigudos esculpidos em alto-relevo no

frontisp��cio da lareira. Um grande sil��ncio pesa sobre

esta casa. Vejo atrav��s da janela as luzes da avenida

Park-Pres��dio. Passeio os olhos em torno. Um fantas-

ma toca um noturno no piano de cauda ali no canto...

Vozes falam na minha mem��ria. De repente tenho a

impress��o de que mais algu��m est�� comigo nesta sala.

A alma do falecido Mr. Burke? Ergo os olhos. Ah!

�� um busto de m��rmore que, de cima dum arm��rio

envidra��ado me contempla com seus olhos vazios: ��

uma rapariga de perfil cl��ssico, com um chap��u ��

moda do s��culo dezoito. Acho-o detest��vel, dum mau

gosto clamoroso. �� preciso tomar uma provid��ncia

com rela����o a essa monstruosidade. Remover o busto

para o por��o? Escond��-lo numa gaveta? Descubro

solu����o mais simples. Aproximo-me da cara de m��r-

more e com uma caneta-tinteiro pinto nela um bigode.

�� o meu sinal de protesto ��� a maneira mais discreta

que encontro para dizer que n��o levo a s��rio essa

poltrona. O sil��ncio continua. Tento convencer-me

de que moro aqui. Sim senhor ��� reflito ��� estamos

em San Francisco, cidade pela qual sempre tive grande

fascina����o. Nesse fasc��nio haver�� um toque de mor-

bidez, porque o nome San Francisco evoca em mim

coisas sinistras. No fim de contas ��� concluo ��� ela

n��o passa duma cidade burguesa, duma cid...

Diabo, que �� isso? Tenho a impress��o de que dan-

��am e batem p��s no andar superior. Imposs��vel. Deve

ser na casa vizinha. Mas n��o: algu��m ��� talvez um

gigante, talvez um s��bito furac��o ��� est�� sacudindo a

casa... Algu��m? Minhas m��os agarram com for��a

as guardas da poltrona. Com o busto retesado, es-



130

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

pero... A casa toda agora treme, o lustre que pende

do teto, no centro da sala, oscila dum lado para outro.

Um tremor de terra! Sim, sem a menor d��vida.

Que fazer? Sair para a rua? Correr para cima?

Esperar? Que sei eu! Im��vel, olho e escuto... O tre-

mor continua. Quanto tempo durar��? Um minuto,

dois, dez? A casa ag��entar��? Ou vai desmantelar-se?

O lustre dan��a. O ch��o como que ondula. Vigas es-

talam, copos tinem, vidra��as tremem.

De repente o tremor cessa. A cara branca de m��r-

more continua a fitar em mim os olhos vazios. Os

anjos da lareira permanecem imperturb��veis. Ergo-me

e corro para cima.

Mariana acha-se no meio do quarto, com uma in-

descrit��vel express��o no rosto, mistura de susto e de

curiosidade.

��� Que foi isto? ��� pergunta.

��� Um terremoto, minha gente. Leg��timo!

Clara e Lu��s: prorrompem em exclama����es, pu-

lando da cama.- Descemos os quatro, alvorotados, e

vamos abrir o r��dio. Porque estamos ansiosos por ou-

vir a descri����o do "nosso" tremor de terra. Dentro de

poucos minutos a voz grave e melodiosa do speaker

d�� a not��cia. A dura����o do tremor foi de tr��s minutos,

segundo o sism��grafo da Universidade. Acredita-se

que este tremor tenha sido o mais forte e prolongado,

depois do grande terremoto de 1906. Ao ouvir estas

palavras n��s nos entreolhamos com certo orgulho.

Porque, para usar uma express��o de meu filho, desta

vez; "n��s tomamos parte na coisa".

ECOS

26 de outubro. Lemos nos jornais da manh�� no-

t��cias do tremor de terra da noite passada. Em Oakland



A VOLTA DO GATO PRETO

131

um violinista famoso executava uma ��ria, num con-

certo, quando o teatro come��ou a tremer. Houve um

princ��pio de p��nico, e muitos espectadores ergueram-se

para fugir. O artista n��o perdeu a calma. Interrompeu

a ��ria e come��ou a tocar de, maneira vibrante o hino

americano. O p��blico acalmou-se como por encanto

e ficou de p��, im��vel, escutando em atitude respeitosa.

Num teatro de San Francisco, John Carradine e

sua companhia representava o Hamlet de Shakes-

peare. Recitava Carradine o famoso solil��quio ���

To be or not to be ��� quando o tremor principiou.

Registrou-se um princ��pio de tumulto, mas o ator ape-

nas ergueu um pouco a voz, e tudo continuou como se

nada tivesse acontecido.

Observa����o dum romancista: Cenas como esta

��ltima, quando inclu��das num romance, parecem in-

veross��meis, rebuscadas e artificiais.

AS VELHAS N��O MORREM NA CAMA

30 de outubro. �� gostoso come��ar de novo: explo-

rar os arredores, descobrir onde fica a mercearia mais

pr��xima, o cinema, o correio, o mercado. Est�� claro

que n��o temos nem nunca esperamos ter criados. De

dois em dois dias vamos "chopear", palavra que aca-

bamos de criar para uso interno, aportuguesando o

verbo to shop, que significa ir ��s lojas fazer compras.

Afreguesamo-nos numa pequena mercearia cujo cai-

xeiro se chama Schmidt, nasceu na Alemanha, e fala

ingl��s com forte sotaque, num desperd��cio de erres

rolados. No segundo dia toma intimidade comigo.

Quando me v�� cantarola: "Ver��ssimo... pian��ssimo...

general��ssimo". �� um homem de meia-idade, sempre

barbeado e limpo, e que apesar de trabalhar neste

mercadinho de San Francisco tem cara de confeiteiro

de Berlim,

132

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Sinto um certo prazer em tomar conhecimento duma

s��rie de aspectos da vida dom��stica e burguesa e fa��o isso

com um interesse que �� em parte profissional e em parte

humano. Dentro de pouco estou conversando com estas

senhoras que v��m ao market com cestos no bra��o. Ficam

todas alvoro��adas (tr��pico . . . rumba . . . cinema. .. via-

gens) quando lhes digo que sou do Brasil. Discutimos a

falta de criadas, o pre��o dos g��neros, e ��� ah! o grande, o

supremo assunto destes dias! ��� o problema do caderno de

racionamento. Os ricos pontos vermelhos! S��o mais precio-

sos que j��ias ou perfumes. Valem at�� mais que money uma

vez que n��o podemos compr��-los com dinheiro.

Estes markets cheiram a frutas e a verniz. O arroz vem

limpinho, lavado, dentro duma caixa de papel��o. Os ovos,

cuidadosamente acondicionados em caixas oblongas, pa-

recem bolas de pingue-pongue de t��o lisos, limpos e bran-

cos. A cebola j�� vem picada dentro de latinhas. O alho ��

vendido num pequeno frasco, em forma de sal. Os molhos

para saladas vendem-se prontos em vidros de tamanho

v��rio. O p��o vem envolto em papel encerado e cortado em

fatias; seus r��tulos falam em vitaminas que praticamente

cobrem todo o alfabeto. Existem sopas enlatadas de toda a

esp��cie. Verduras frescas e congeladas s��o metidas em

caixas de papel��o e guardadas num refrigerador. Bichas

imensas formam-se junto dos balc��es dos a��ougues. No

Brasil o barbeiro tem fama de conversador e de contador de

novidades. Neste pa��s quem conversa sem parar, quem

sabe de todos os mexericos do distrito s��o os carniceiros.

Homens de bom aspecto, metidos em aventais brancos e

gorros tamb��m alvos, parecem cirurgi��es. S��o am��veis,,

sorridentes, bem-educados e chamam as velhas de "Minha

jovem freguesa. ..", contam hist��rias, comentam a quali-

dade da carne, falam no tempo e parece que nunca perdem

o bom humor.

A VOLTA DO GATO PRETO

133

Estou agora junto do balc��o da nossa mercearia,

e Schmidt l�� vem vindo com a sua cantiga habitual:

"Pian��ssimo... fort��ssimo... brav��ssimo." Quase sem

sentir deixo escapar: "Chat��ssimo". Ele quer saber o

que significa esta palavra, mas eu desconverso. Perto

de mim uma senhora extremamente idosa tamb��m faz

compras. Tem um rosto muito enrugado e p��lido, e

suas m��os tremem. De repente eu vejo que sua ca-

be��a pende para um lado, sua palidez se acentua, seus

joelhos se dobram e ela tomba. Corro a socorr��-la,

ajudado por outras pessoas. Dentro de alguns minutos

conseguimos reanim��-la. Ergo-a nos bra��os e conduzo-

a para dentro do t��xi que acabamos de chamar. Uma

desconhecida oferece-se para acompanh��-la. "Pobre

senhora!" ��� diz algu��m. Schmidt sacode a cabe��a,

penalizado, pesa dez laranjas... controla, pisca o

olho para uma freguesa e n��o se fala mais no assunto.

Uma frase me fica a dan��ar na mente: Neste

pa��s as velhas nunca morrem na cama. Os Estados

Unidos me d��o uma impress��o de mocidade, pois em

nenhuma outra parte jamais vi maior quantidade de

adolescentes e mo��os. Mas por outro lado em nenhum

outro pa��s encontrei tantas pessoas de idade avan��ada

a tomar parte na vida ativa de suas comunidades. Esses

velhos e velhas dirigem autom��veis, v��o a teatros, ci-

nemas, festas, confer��ncias; fazem parte de clubes,

metem-se em comit�� de toda a sorte. As vov��s ves-

tem-se como mo��as e muitas delas come��am a fazer

coisas ��� por exemplo: estudar espanhol, arte oriental

ou pintura ��� aos setenta anos, como se contassem viver

cem. S��o em geral sorridentes e otimistas. Dificil-

mente ficam em casa e recusam-se a ser tratadas como

inv��lidas.

Prossigo nas minhas compras. J�� tenho amigos

em outras mercearias. Em toda a parte encontro a

mesma cordialidade natural e sem-cerim��nia, as mes-



134

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

mas preocupa����es dom��sticas. Sei que quase todas

estas senhoras t��m filhos, maridos e irm��os lutando na

Europa ou no Pac��fico. Muitas delas j�� receberam o

temido telegrama do Departamento da Guerra anun-

ciando-lhes a morte do seu boy. Mas aqui est��o de

queixo erguido, continuando a viver como em tempo

de paz. Ningu��m fala na guerra. Ningu��m se lamen-

ta. Devo confessar que acho uma tremenda dignidade

nesse sil��ncio.

OS PIRATAS

31 de outubro. Soa a campainha. Vou abrir a

porta. Tenho diante de mim duas crian��as vestidas

como piratas: um menino e uma menina, de seus

cinco e sete anos, respectivamente.

��� Hello! ��� dizem eles, com ar bisonho.

��� Hello! ��� respondo, meio intrigado. ��� Querem

entrar?

Sem pronunciar palavra eles entram, de m��os

dadas. Levo-os para o living-room e convido-os a se

sentarem. Os piratas aceitam o convite e ficam sen-

tados na ponta do sof��. Faz-se um sil��ncio dif��cil. A

custo contenho o riso, olhando para essas duas caras

redondas e s��rias, onde negrejam bigodes, su����as e

olheiras pintadas a carv��o.

��� Ent��o? ��� pergunto.

Nenhuma resposta. Miro a pistola e os punhais

dos flibusteiros e pergunto a mim mesmo: "Que diabo

ser�� isso?" De repente compreendo tudo. Hoje �� dia

de Ilalloween. Antigamente dava-se a 31 de outubro

o nome de All Hallow Eeve, ou seja a v��spera do Dia

de Todos os Santos ��� data que os romanos e os ingle-

A VOLTA DO GATO PRETO

135

ses da antiguidade comemoravam supersticiosamente,

segundo as legendas druidas. Diziam eles que nessa

noite de fantasmagoria gatos pretos e feiticeiros, fan-

tasmas e duendes voltavam �� terra para assombrar os

mortais. Hoje em dia o Halloween �� uma esp��cie de

carnaval, ocasi��o em que os garotos se fantasiam e tra-

��am de pregar sustos uns nos outros.

��� Como �� teu nome, menina? ��� pergunto.

��� Sharon.

O nome b��blico confirma minha suspeita. A pe-

quena pertence mesmo ��� como seus tra��os fision��-

micos me haviam sugerido ��� �� ra��a de Israel.

��� E o teu, boy?

��� Peter.

Ocorre-me uma id��ia. Pe��o aos visitantes que

subam ao andar superior para brincar com meus filhos.

Eles obedecem. Sem dizerem palavra, saem de m��os

dadas na dire����o da escada. Fico esperando o resulta-

do do encontro. Poucos minutos depois ou��o passos

apressados nos degraus, e Clara e Lu��s irrompem,

assustados, na sala, protestando:

��� Pai! Pai! Eles n��o falam brasileiro! N��s n��o

falamos ingl��s! Como vai ser?

Ofegantes, de olhos saltados, meus filhos me pe-

dem uma solu����o, enquanto vejo surgir por tr��s deles

os vultos tenebrosos dos dois piratas.

Nestas noites de Halloween alguns cinemas pas-

sam filmes de fantasmas e assombra����es; e as esta����es

de r��dio transmitem um programa de "m��sicas sinis-

tras". (Que crian��as grandes!)

Assim hoje escutamos a "Sinfonia Fant��stica" de

Berlioz, "Noite na Montanha Calva", de Mussorgsky e

a indefect��vel "Dan��a Macabra" de Saint-S��ens.



136

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

O VENDEDOR

l.�� de novembro. Berkeley est�� para San Francis-

co assim como Niter��i para o Rio. Tenho hoje a pri-

meira aula na Universidade. ��s nove da manh�� ��

frente de minha casa entro num bonde lento e meio

guenzo que em meia hora me deixa na esta����o termi-

nal de San Francisco ��� Oakland Bay Bridge ��� onde

tomo um dos trens el��tricos que atravessam a ba��a.

Terei de fazer este percurso de ida e volta pelo menos

tr��s vezes por semana. Isso, por��m, n��o me d�� o me-

nor cuidado, pois a travessia �� sempre uma novidade.

Para come��ar, o el��trico percorre a ponte, numa ex-

tens��o de 12 quil��metros, passando atrav��s dum t��nel

pela ilha de Yerba Buena, e continuando depois at��

a outra margem. H�� ainda o espet��culo da ba��a, com

suas ��guas que mudam de cor de acordo com as cor-

rentes ou com o aspecto do c��u; e suas montanhas,

cujo perfil o nevoeiro n��o raro altera.

Hoje, por exemplo, divido minha aten����o entre a

paisagem l�� fora e a paisagem humana aqui dentro

do trem. Um homem gordo e ruivo puxa conversa

comigo e, vendo que carrego uma pasta de couro,

pergunta:

��� �� vendedor?

��� Sim.. . uma esp��cie de vendedor...

��� Que �� que vende?

��� Bom, vou tentar vender a um grupo de estu-

dantes artigo muito esquisito...

��� Pode-se saber o que ��?

��� Literatura brasileira.

O homem me olha de soslaio, intrigado. Mas

quando lhe explico do que se trata, rompe a rir.



A VOLTA DO GATO PRETO

137

A PRIMEIRA AULA

S��o dez e vinte da manh�� quando entro no campus.

Confesso que estou comovido, pois me ocorre que

por aqui deve ter passado h�� muitos anos um estudan-

te rebelde, de su��ter azul de embarcadi��o, cabeleira

bronzeada e revolta e ar meio adoidado. Chamava-se

Jack London e sonhava com viagens e aventuras.

Estas ��rvores devem lembrar-se dele. �� bem

poss��vel que seu canivete tenha deixado marcas nestes

troncos enegrecidos. ..

Sala n.�� 306 do Wheeler Hall. Onze da manh��.

Encontro aqui uns vinte e poucos estudantes, em sua

maioria mo��as ��� um interessante mostru��rio de tipos

humanos, bem representativo da mistura de ra��as que

�� o povo dos Estados Unidos. �� uma sala pequena,

de paredes de cor bege, mesa e cadeiras envernizadas

de amarelo claro, ch��o de lin��leo cor de tijolo ��� tudo

~uito agrad��vel e discreto.

Falo assim aos estudantes: Interpreto o interes-

se de voc��s pela literatura brasileira como sendo resul-

tado dum desejo de conhecer o Brasil e seu povo. N��o

me parece que a literatura brasileira seja coisa de

import��ncia universal, mas estou certo de que a melhor

maneira de compreender uma na����o �� ler a obra de seus

escritores. Hoje, mais que nunca, n��s os americanos

do norte, do centro e do sul, precisamos de conhecer-

mos melhor. Fora da esfera econ��mica, pouco tem sido

feito nesse sentido. O Brasil que voc��s conhecem ��

mm Brasil falsificado, feito em Hollywood, que em geral

nos apresenta ou como um pa��s de opereta, em que

homenzinhos que vestem fraque, usam cavanhaque e

gesticulam como doidos, beijam na rua e em plena

face outros hom��nculos igualmente grotescos; ou ent��o

com os recursos do tecnicolor nos mostram como uma

138 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

terra de mirabolantes maravilhas. N��o somos nem ri-

d��culos nem sublimes. Na minha terra, como aqui, h��

de tudo.

Neste meu curso ��� que ser�� a nega����o do acade-

micismo, do formalismo e de qualquer outro ismo ���

procurarei mostrar a voc��s o estofo de que n��s brasi-

leiros somos feitos. Est�� claro que n��o fomos chama-

dos a escolher os nossos pr��prios antepassados, nem

o clima ou o aspecto f��sico do meio em que vivemos.

Somos... o que somos.

Por outro lado voc��s norte-americanos n��o s��o

obrigados a amar os povos estrangeiros. Aprendamos

a usar com menos leviandade a palavra amor, pois que

n��o poucos dos males que afligem a humanidade hoje

s��o o resultado do escapismo, do falso otimismo, e do

nosso v��cio de olhar o mundo apenas com ��culos cor-de-

rosa. Mas a verdade �� que n��s, os habitantes da terra,

estamos todos no mesmo barco numa travessia incerta

e tempestuosa, e o menos que podemos fazer �� tratar

de compreender nossos companheiros de viagem. Com-

preender �� ser tolerante; a toler��ncia �� a base da ami-

zade e da paz; e paz e amizade s��o as nossas maiores

preocupa����es nos dias dram��ticos que estamos vivendo.

Tudo isto parece um pouco solene, mas devo dizer

que pronuncio estas palavras em tom de palestra e

sentado na mesa, com as pernas balan��ando no ar.

Prossigo: Pretendo contar a voc��s o que geral-

mente os livros de textos omitem. Esses comp��ndios na

maioria dos casos se mant��m na atmosfera dos sal��es,

das academias e das mentiras c��vicas e convencionais.

Quero trazer voc��s para as ruas brasileiras, contando-

Ihes da vida, dos sonhos, das dificuldades, dos defei-

tos e qualidades do John Doe Brasileiro, o Jo��o Ningu��m,

o homem comum, o que cria o folclore, o cancioneiro

popular, o que comp��e as m��sicas que toda a gente

toca, canta ou assobia, mas cujos autores ignora; o que,



A VOLTA DO GATO PRETO

139

em ��ltima an��lise, modifica e enriquece a l��ngua, para

esc��ndalo, espanto ou encanto dos fil��sofos. �� desse

Brasil que eu lhes vou falar. E sem esquecer nossos

escritores que ficaram no terreno das id��ias ou dos

problemas universais, tratarei principalmente daqueles

que em seus livros ��� poesia, romance, conto, ensaio,

teatro ��� procuraram descrever, interpretar e compreen-

der as gentes, paisagens e problemas de sua terra .

Atrav��s da janela avisto as colinas de Berkeley.

No topo duma delas vejo um edif��cio circular encimado

por uma c��pula vermelha. �� l�� que est�� o ciclotr��nio,

o esmagador de ��tomos. A ningu��m �� permitido apro-

ximar-se daquela torre, onde cientistas se ocupam com

o aperfei��oamento duma "arma secreta". Se fosse no

Brasil, o homem da rua diria com um risinho ir��nico:

"Arma secreta? Conversa pra boi dormir..." Mas os

boys e girls da universidade acreditam piamente em que de l�� daquela casa h�� de um dia vir uma arma t��o

eficiente e mort��fera que poder�� mudar o curso da

guerra. E a melhor maneira que encontram para co-

laborar nesse trabalho �� guardar sil��ncio a respeito

dele.

��s onze horas ou��o os sinos do Campanile tocan-

do uma melodia familiar. Termina a aula. Tenho a

impress��o de que ganhei vinte e dois amigos novos.

RA��AS...

8 de novembro. O nosso c��u amanhece cheio de

dirig��veis da marinha, os "blimps". Vejo-os flutuando

no ar, como bojudos peixes de prata no aqu��rio dum

milion��rio megaloman��aco. L�� v��o eles navegando

na dire����o do mar. E aqui em baixo vou eu de m��os

dadas com meus dois filhos, seguindo o mesmo rumo.

Num certo momento, por��m, os "blimps" continuam a

140

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

voar para o Pac��fico, e eu paro �� Rua 18, junto duma

escola p��blica onde vou matricular Clara e Lu��s.

A Argonne School, que recebeu o seu nome em

mem��ria dos soldados americanos que tombaram em

Argonne, na outra Guerra Mundial, �� um edif��cio de

tijolo nu, dum ��nico andar. N��o tem nenhum glamour,

mas inspira confian��a pelo seu ar de austeridade.

A principal da escola �� uma senhora simp��tica,

que nos acolhe com uma aten����o comovedora.

��� Deixe suas crian��as aqui e n��o se preocupe.

Dentro de pouco tempo estar��o falando ingl��s t��o bem

quanto eu.

D��-me alguns formul��rios para preencher e uns

question��rios a responder. Despe��o-me de meus filhos,

que est��o p��lidos, de m��os frias, mas que n��o dizem

palavra. Imagino a aventura que ser�� para eles fica-

rem aqui perdidos neste mundo em que ningu��m fala

o portugu��s. Acresce ainda que nunca freq��entaram

escola, nem mesmo no Brasil onde Clara teve apenas

uma professora particular. Quanto a Lu��s, ele realiza

agora o prod��gio de ser analfabeto em duas l��nguas: in-

gl��s e portugu��s.

A caminho de casa vou pensando no meu primeiro

dia de col��gio, de sorte que a lembran��a de Dona Eu-

fr��sia Roj��o me acompanha pela Cabrillo Street como

um anjo da guarda. Os blimps desaparecem, e agora

no c��u que aos poucos se tolda, nuvens brincam de

dirig��vel.

Mal chego �� casa, come��o a ler os formul��rios.

Mariana fica impressionada com uma das perguntas:

Em caso de alarme, por ocasi��o dum ataque a��reo ini-

migo, quer que mandemos seus filhos para a casa ou

que os levemos para o abrigo da escola? Mas a per-

gunta que mais me surpreende est�� no formul��rio de

matr��culas, onde tenho de escrever meu nome, profiss��o

e ra��a. Pergunta-se-me se sou branco, preto, mexicano



A VOLTA DO GATO PRETO

141

ou japon��s. Fico mordendo a ponta da caneta, indeciso.

Como responder? Depois de s��rias cogita����es resolvo

deixar em branco o espa��o reservado para a resposta,

e escrevo um bilhete �� diretora da escola. Assim:

Dear Principal: O formul��rio da Argonne School criou

para mim uma d��vida que nunca me havia preocupa-

do no Brasil. Estou agora diante dum espelho a per-

guntar a ele e a mim mesmo se sou branco, preto,

mexicano ou japon��s. Se me declaro branco, o espe-

lho ��� que espero seja fiel como o da hist��ria de Bran-

ca de Neve ��� por certo replicar��: "Se te consideras

branco, �� pretensiosa criatura, como se poder�� ent��o

classificar uma loura como Lana Turner?" Realmente

n��o posso afirmar que perten��a �� mesma ra��a de Miss

Turner. Que n��o sou negro isso sei eu, pois n��o cons-

ta dos anais de minha fam��lia que tenhamos sangue

africano. N��o sou mexicano porque n��o nasci no M��-

xico, nem japon��s porque n��o nasci no Jap��o. Sem-

pre desconfiei que tivesse sangue ��ndio, mas num mel-

ting pot como �� o Brasil (e, diga-se de passagem, tam-

b��m os Estados Unidos) a gente nunca sabe ao certo

que esp��cie de sangue traz nas veias. Assim depois

de muitas e s��rias cogita����es resolvi fazer uma afir-

ma����o que pode n��o ser esclarecedora, mas que ser��

absolutamente honesta: "Sou um ser humano." Isto

n��o �� bastante, minha, prezada diretora?

O PARQUE

11 de novembro. Neste dia, h�� vinte e cinco anos,

foi assinado na Europa o armist��cio que p��s fim ��

Primeira Guerra Mundial que havia sido travada ��� di-

zia-se ent��o ��� para acabar definitivamente com to-

das as guerras, e para salvar o mundo para a Demo-

cracia.

142

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Vou passear sozinho no parque, que fica do ou-

tro lado da rua, �� frente de nossa casa. O Golden

Gate Park, com as suas nove quadras de largura e seus

sete quil��metros de comprimento, �� dos maiores e

mais belos parques deste pa��s, e possui n��o somente

tudo quanto a gente espera encontrar num parque co-

mo tamb��m dezenas de coisas que nem imaginamos

possam fazer parte dum logradouro p��blico dessa na-

tureza. Dentro dele est�� situado o Museu de Young,

de arte antiga e moderna, um edif��cio em estilo Re-

nascimento espanhol do s��culo XVI, feito de pedra

cor de gemada com vinho. A uns trezentos metros ��

sua frente erguem-se os pavilh��es dedicados �� hist��-

ria natural, incluindo magn��fico aqu��rio. N��o longe

deste fica um audit��rio, onde aos domingos �� tarde

uma banda de m��sica uniformizada d�� retretas.

Espalhados por este parque encontramos lagos

pequenos e grandes; lagos com cisnes e lagos sem cis-

nes; lagos para pescaria, e lagos onde �� proibido pes-

car; lagos para amadores de yachting, e lagos onde

os namorados podem passear de bote...

Ao p�� duma doce colina vemos o arboretum, que

�� um jardim cientificamente organizado de maneira

sistem��tica, e dedicado apenas a ��rvores e arbustos;

e mais um jardim bot��nico, onde se cultivam, em es-

tufas ou fora delas, flores dos sete climas da terra. A

direita do museu fica um jardim japon��s, o qual, de-

pois do ataque nip��o a Pearl Harbour, passou a cha-

mar-se "jardim chin��s".

O parque conta tamb��m com pra��as de esporte,

courts de t��nis, diamantes de base-ball, e rinques de

patina����o. E a todo o momento estamos topando com

monumentos erguidos em honra das personalidades

mais variadas: escritores de fama mundial, sacerdotes,

estadistas, guerreiros e at�� jogadores de futebol.



A VOLTA DO GATO PRETO

143

Ao contr��rio do que acontece em muitos parques

que conhe��o, o Golden Gate tem ��rvores, e com que

abund��ncia! E flores, com que riqueza!

�� gostoso andar de manh�� por estas estradas, ao

longo de canteiros prateados de rocio, aspirando o

perfume dos pinheiros e dos eucaliptos. De vez em

quando fa��o uma pausa para dar de comer a um es-

quilo ou para ler a inscri����o dum monumento. Ali

naquela pedra cinzenta est��o gravados os nomes dos

filhos de San Francisco que tombaram nos campos da

Europa, em 1917 e 1918.

Mais al��m, do alto duma rocha parda, Cervantes

��� uma grande cabe��a de bronze ��� contempla Dom

Quixote e Sancho Pan��a, que est��o abra��ados e de joe-

lhos diante dela, em atitude de rever��ncia.

No alto dum mastro esmaltado de branco tremu-

la uma bandeira dos Estados Unidos. Crian��as brin-

cam, gritam, correm sobre estes tabuleiros de relva.

Soldados e civis passeiam dum lado para outro.

"O PESCADOR SOLIT��RIO"

Sento-me num banco e come��o a rabiscar notas

para um romance que talvez nunca chegue a escre-

ver. Algu��m se aproxima de mim. Ergo os olhos e

vejo um chin��s que traz algo na m��o. Vendedor am-

bulante ��� penso. E torno a olhar para o papel. Ou��o

uma voz:

��� Good morning!

Torno a al��ar o olhar.

��� Bom-dia.

��� Quer me fazer um favor? ��� pergunta o chi-

n��s.

Levanto-me.

��� Pois n��o. Que ��?

144

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Ele me d�� uma m��quina fotogr��fica e diz:

��� Quero que tire o meu retrato. Basta enqua-

drar minha figura a��... est�� compreendendo? De-

pois �� s�� puxar nesta coisinha .. assim. Okay?

��� Okay.

O homem se afasta alguns passos e recomenda:

��� Quero que apare��a no fundo a torre do mu-

seu . . .

Fa��o com a cabe��a um sinal de aquiesc��ncia. Fe-

cho um olho e vejo o chin��s enquadrado no visor. ��

um homem de idade indefin��vel; tanto pode ter vin-

te e oito como trinta e oito ou quarenta anos. L�� es-

t�� ele sorrindo. Um tipo simp��tico. Quem diabo se-

r�� ele? Dono dum caf�� em Chinatown? Turista? Que

me importa?

��� Pronto? ��� pergunto.

��� Pronto.

Clique! E as imagens do chin��s, da torre do mu-

seu, daquele pl��tano, e daquela crian��a est��o agora

presas dentro da "kodak" min��scula.

��� Muito obrigado! ��� diz o desconhecido, sor-

rindo e caminhando para mim.

Devolvo-lhe a c��mara. Ele me aperta a m��o e

se apresenta:

��� Chang-Shu-Chi.

O nome n��o me �� estranho. Espere um minu-

to. . . Onde ser�� que li ou ouvi esse nome? O homem

faz meia volta e se vai na dire����o do museu. Mu-

seu . . . quadros... pintura. J�� sei!

��� Mister! ��� grito.

O chin��s se volta. Aproximo-me dele.

��� Por acaso ser��... o famoso pintor?

��� Famoso, n��o... ��� sorri ele. ��� Mas sou pin-

tor, sim. Tenho uma pequena exposi����o ali no mu-

seu. Quer ir er?

��� Claro!

A VOLTA DO GATO PRETO

145

Seguimos juntos, passamos pela fonte ��� em que

um menino ��ndio de bronze toca flauta para dois

le��es feitos do mesmo material, e que o escutam fas-

cinados ��� e entramos no museu.

Estou agora diante dos trabalhos de Chang-Shu-

Chi. O pintor desapareceu. Por onde andar��?

Mr. Chang �� um aquarelista, e sua arte tem uma

s��bria beleza, um toque t��o delicado que lembra o

leve e reticente encanto dos "hai-kais". N��o usa nun-

ca tintas cruas, nem colorido berrante, e cada qua-

dro seu tem um valor poem��tico.

Ali est�� um que n��o passa duma- mancha. "O

bambu e o l��tus branco." A gente" tem a impress��o

de que as linhas e as cores n��o passam de sombras.

O pincel parece mal ter tocado a superf��cie do papel.

O quadro "Beb�� felizes" mostra um bando de patos

negros e brancos nadando sob cerejeiras em flor. Os

t��tulos das pinturas s��o po��ticos: "O bambu e o p��s-

saro". "A carpa e o l��rio aqu��tico". "A rosa e a bor-

boleta". "L��tus de outubro'.

Gosto daquele gato vago ah no p�� dum vaso de

vidro com flores. Em "Primavera no rio", peixes com

reflexos de ouro nadam na ��gua transparente ��� tudo

em desmaiados tons de s��pia, verde e ouro. Em o

"Pescador Solit��rio" o observador sente a branca so-

lid��o do rio com as suas brancas ribanceiras a pique;

l�� em baixo, como um pontinho negro, o pescador so-

lit��rio navega na sua sampana, e a ��nica nota colori-

da do quadro s��o as flores que o pintor tirou como

borrifos dum amarelo alaranjado sobre os galhos sem

folhas duma ��rvore.

Encontro cores mais quentes no quadro "Her��is",

dois galos de rinha de crista cor de lacre a se defron-

tarem, antes de come��ar o combate.

Chang-Shu-Chi �� uma esp��cie de embaixador cul-

tural de Chiang-Kai-Shek nos Estados Unidos. Antes



146

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

da invas��o japonesa vivia em Nanquim com a mulher

e quatro filhos e lecionava pintura na Universidade.

Mais tarde quando a capital foi mudada para Chunking,

a universidade tamb��m o foi, e Chang-Shu-Chi seguiu

com ela. Veio para este pa��s em 1941, e faz agora

quase quatro anos que n��o tem not��cias da fam��lia,

que ficou em territ��rio ocupado pelos japoneses.

Chang reaparece e me convida para ir ver uma

demonstra����o de sua arte. Senta-se a uma mesa, so-

bre a qual se v�� um papel branco, tubos de aquare-

la, e pinc��is. O papel �� mantido horizontalmente so-

bre a mesa, e o artista empunha o pincel como n��s

segurar��amos um punhal com prop��sitos agressivos. E

o que este homenzinho faz �� simplesmente inacredi-

t��vel. Pinta as asas dum p��ssaro em tr��s cores mas

com uma ��nica pincelada. �� que a ponta do pincel

tem uma tinta, o interior do pincel outra e a terceira

cor �� obtida com uma mistura das duas primeiras. O

observador presencia um pequeno milagre: o pincel,

que come��a pintando com azul, sem erguer-se do pa-

pel continua pintando com amarelo e acaba com

verde.

Num momento Chang tem o quadro pronto.

Um americano que est�� a meu lado, olha para

mim e pergunta:

��� Quanto tempo uma pessoa precisa estudar pa-

ra ficar com essa destreza?

Respondo:

��� Dois mil anos, meu amigo.

CONTAR! CONTAR] CONTAR!

24 de novembro. Meu amigo o escritor Raimun-

do Magalh��es me escreve de Nova York contando

que a pol��cia em S��o Paulo abriu fogo contra os es-

A VOLTA DO GATO PRETO

147

tudantes que desfilavam pelas ruas num silencioso

protesto contra o chamado Estado Novo. Procuro an-

siosamente nos jornais e revistas norte-americanas a

not��cia desse fato, que, segundo parece, deve ter ocor-

rido em princ��pios de outubro passado. N��o encon-

tro nada. H�� como que um absoluto "black-out" com

rela����o a not��cias sobre o Brasil. A censura brasilei-

ra �� um prod��gio de hermetismo. Fico a pensar em

que �� mais f��cil ludibriar a Gestapo e descobrir o que

vai pela chancelaria de Hitler em Berlim do que fi-

car sabendo o que se passa nas ruas de S��o Paulo

ou Rio.

Casualmente estive a discorrer em aula esta ma-

nh�� sobre a "bondade essencial" do brasileiro, o nosso

horror �� viol��ncia, e a nossa am��vel t��tica que con-

siste em usar a mal��cia em vez de a maldade. Contei

a meus alunos que proclamamos a Aboli����o e a Re-

p��blica sem nenhum derramamento de sangue. Mos-

trei como tudo isso indica que temos, se n��o uma ci-

viliza����o, pelo menos uma cultura, uma serena sabedoria da vida.

E mesmo agora, diante dessa sombria not��cia,

n��o vejo nenhum motivo para mudar de opini��o so-

bre meus compatriotas. Porque tenho a certeza de

que apenas um grupo reduzido de homens de men-

talidade fascista �� respons��vel por esse crime. N��o

compreendo ��� ou, antes, compreendo mas n��o justi-

fico ��� a raz��o por que esta mesma imprensa norte-

americana que ataca t��o ferozmente a Argentina pe-

las suas tend��ncias nazistas, deixe passar em branco,

sem a menor men����o, uma t��o b��rbara express��o de

nazismo como foi o atentado contra os estudantes

paulistas.

26 de novembro. Os russos capturaram Gomei.

Os aliados tomaram Satteburg, na Nova Guin��. Bri-

lha o sol no c��u de Berkeley. Esquilos brincam nas

148

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��rvores. Os carrilh��es do Campanile tocam uma mar-

cha triunfal. Mas aqui vou eu de alma escura a ca-

minho de mais uma aula. N��o posso esquecer o que

se passou em S��o Paulo. Por mais duma vez falei ��que-

les estudantes... Lembro-me de muitos dos rostos,

que de meu estrado de conferencista eu divisava.

Quantos desses mo��os a esta hora estar��o feridos?

Qual deles ter�� sido morto? Num monstruoso para-

doxo muitos desses mesmos estudantes talvez sejam

chamados a integrar a For��a Expedicion��ria Brasi-

leira que vai para a It��lia combater o nazismo, a in-

toler��ncia, e a viol��ncia, em nome da liberdade, da

igualdade e da fraternidade. Palavras! palavrasl pala-

vras! Est�� tudo errado. Tudo errado! Chuto um sei-

xo com for��a e ou��o-o cair com um glu musical no;

arroio que margeia a estrada. Estudantes passam. Ou-

tros est��o sentados nos degraus destes imponentes

edif��cios do campus, estudando seus pontos. Vejo ou-

tros tantos deitados na relva, tomando sol. Que acon-

teceria se a pol��cia americana chegasse a fazer fogo

contra estudantes? Este pa��s viria abaixo ante o cla-

mor de tantos protestos. E n��o seria de admirar que

o respons��vel pela agress��o acabasse na cadeira el��-

trica ou ent��o pelo menos fosse passar o resto da sua

vida na penitenci��ria de Alcatraz, aquela casa cinzen-

ta que se ergue numa ilha em meio da ba��a.

Que posso fazer? Paro e repito a pergunta. Os

esquilos n��o respondem: eles n��o sabem de nada. Os

estudantes que me sorriem e que gritam Hello! ao

passar tamb��m ignoram tudo. O pa��s em que vivem

n��o �� perfeito, mas aqui h�� coisas que s��o sagradas,

como sejam a liberdade e a vida do indiv��duo. Este

�� um mundo sem caudilhos e com um m��nimo de

pol��cia.

Que fazer? ��� torno a perguntar. Os carrilh��es

do campan��rio continuam a tocar a "Marcha das For-



A VOLTA DO GATO PRETO

149

��as A��reas". Acabo contagiado pela m��sica, e meus

passos, sem que eu d�� por isso, come��am a seguir a

cad��ncia militar. Sim, j�� sei qual �� a minha obriga-

����o. �� contar, contar a meus alunos, ao p��blico das

minhas confer��ncias, aos amigos, a toda a gente;

contar o que se passa no Brasil, sinceramente, da

mesma maneira franca com que freq��entes vezes cri-

tico as coisas deste pa��s que me desagradam.

Sim, contar, falar sem hipocrisia nem falso oti-

mismo. Fazer sil��ncio nesta hora �� servir a causa do

fascismo.

Esta simples id��ia me devolve a alegria, me d��

uma for��a nova.

AVENTURAS DO JABOT��

5 de dezembro. Na aula de hoje falo do folclore

brasileiro, onde o observador pode descobrir o fio

dessa complicada meada que �� o car��ter de nosso po-

vo. Qual �� o her��i de nossas f��bulas? O homem for-

te, o guerreiro, o conquistador? N��ol ��, antes, um ani-

malzinho min��sculo, pacato, lento e paciente: o ja-

boti, s��mbolo da esperteza e da mal��cia.

Outro s��mbolo nacional �� Pedro Malazarte, cujas,

hist��rias escabrosas fizeram a del��cia de muitas gera-

����es de brasileiros, embora esse "her��i sem nenhum

car��ter" como diria o grande M��rio de Andrade, te-

nha sido recentemente desbancado por esses ��dolos

estrangeiros de idade da m��quina que nos v��m nos in��-

meros suplementos com hist��rias de quadrinhos fabri-

cadas nos Estados Unidos.

Os brasileiros ��� explico ��� preferem a ast��cia ��.

for��a bruta como arma pol��tica e social. Seus cam-

pe��es s��o os que usam mais o c��rebro e a sol��rcia do

que os punhos e a viol��ncia. Tomo dum giz e ilustro



150

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

com caricaturas no quadro-negro algumas f��bulas em

que o jaboti aparece em suas lutas com a on��a e os

outros animais da floresta. Das proezas do jaboti

passo para as proezas do presidente Vargas ��� her��i

de mil anedotas que nosso povo repete, deliciado.

Concluo que a popularidade de que Vargas goza no

Brasil encontra a sua explica����o no nosso fabul��rio

ind��gena. Ocorre-me tamb��m que o Departamento de

Imprensa e Propaganda cometeu tremendo erro psi-

col��gico ao impedir que jornais, revistas e pe��as de

teatro continuassem a reproduzir anedotas e piadas

a respeito de Get��lio Vargas. �� que faltou ao chefe

desse Departamento o esp��rito de Malazarte na hora

em que resolveu transformar o jaboti que o povo ama-

va e admirava na on��a que deve ser respeitada e te-

mida, e conseq��entemente odiada. ..

O TEMPO, MINHA AMIGA...

22 de dezembro. O excelente Dr. Fernandes, m��-

dico portugu��s residente em Oakland e grande admi-

rador do Brasil, oferece em sua casa uma festa a seus

amigos brasileiros. Aqui vamos num autom��vel, Ma-

riana, as crian��as e eu, rumo daquela cidade. Creio

que n��o h�� nada de extraordin��rio neste fato se n��o

se encontrasse tamb��m neste mesmo carro, bem aqui

a meu lado, algu��m que foi o meu grande e l��rico

amor quando eu tinha dezesseis anos; algu��m cujo

retrato, arrancado duma revista, eu mantinha prega-

do na parede, junto de minha cama: Norma Tal-

madge. As gera����es de hoje que admiram as Betty

Grables, as Bette Davis, as Greer Garsons ficar��o in-

diferentes �� men����o deste nome. Mas os veteranos,

os de minha classe, h��o de me compreender.

Olhando de soslaio para Miss Talmadge, custa-

me acreditar que esta seja a mesma criatura dos meus

A VOLTA DO GATO PRETO

151

sonhos de adolescente. N��o h�� Max Factor que su-

plante o tempo, esse cruel maquilador. Magra, mur-

cha, grisalha, Miss Talmadge n��o �� nem sombra da-

quela imagem que nos era remetida para o Brasil

numa fita muda de celuloide ou em clich��s de revis-

tas e jornais. Para n��s ela n��o era uma pessoa como

as outras, sujeita a sardas, disturbios na ves��cula bi-

liar, engrossamento do sangue ou cachumba. Era prin-

cipalmente a hero��na de muitas historias em que dois

ou mais homens ��� um o mocinho, o sem bigode, e o

outro o vil��o, o de bigode ��� disputavam seu amor.

Ela era a encarna����o do romance, da poesia, da bon-

dade e da beleza.

Informaram-me que Miss Talmadge abandonou a

carreira art��stica com um saldo respeit��vel em caixa,

o que n��o aconteceu com a maioria das estrelas que

brilharam nos tempos do cinema mudo. �� propriet��-

ria de diversas casas de apartamentos e vive alterna-

damente em Hollywood e San Francisco.

Vestida de preto, elegant��ssima, Norma procura

por todos os meios combater a idade. N��o se rende.

Vista de alguma dist��ncia parece vinte anos mais jo-

vem. Contou-me algu��m que o boy friend de Miss

Talmadge est�� na guerra. �� por isso que ela aqui

vai, com seu ar abstrato, a falar com voz fatigada dos

horrores da guerra. "Quando ir�� terminar isso?" ���

pergunta ela retoricamente. N��o me parece que esteja

pensando nos outros soldados, mas apenas no seu

"boy". E est�� certo. Digo-lhe coisas banais, que natu-

ralmente n��o a interessam. E evito olhar para ela,

para manter a ilus��o. Faz de conta que Norma Tal-

madge �� ainda a hero��na dos filmes. Faz de conta

que e u . . .

N��o. �� in��til. Depois devo fazer aqui uma con-

fiss��o. N��o tenho saudade da inf��ncia. N��o escrevi

nem creio que jamais chegue a escrever mem��rias da



152

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

meninice. Acho mil vezes mais interessante esta rea-

lidade presente, o dia de hoje, o minuto que esta-

mos vivendo...

V��SPERA DE NATAL

24 de dezembro. Clara e Lu��s nos d��o uma sur-

presa. Ao chegarem da escola aproximam-se de n��s,

muito s��rios, e come��am a cantar em ingl��s uma can-

����o de Natal popular��ssima neste pa��s:

Jingle bells! Jingle bells!

Jingle all the way.

Oh what fun it is to ride

In a one horse open sleigh!

A noite acendemos o pinheirinho. Fora a chuva

cai mansamente. Os speakers das esta����es de r��dio

de Nova York anunciam "a white Christmas", um na-

tal branco, isto ��, com neve.

Comemos passas, nozes, avel��s e falamos no Bra-

sil e nos amigos que l�� deixamos. Mrs. Burke apare-

ce com presentes para as crian��as. A chuva bate nas

vidra��as. O vento agita as ��rvores do parque.

O clima de San Francisco �� dos mais absurdos

de quantos tenho not��cia. As chuvas de inverno co-

me��am em dezembro e v��o at�� fins de mar��o. A pri-

mavera que se segue �� ainda fria e nevoenta. E quan-

do o ver��o chega, continua a neblina, ao passo que

o frio aumenta. Mark Twain afirmou que de todos

os invernos que conhecia o mais rigoroso era o ver��o

de San Francisco... O outono aqui oferece avara-

mente alguns dias luminosos e frescos, principalmente

em outubro e durante a primeira parte de novembro.

O vento sopra durante quase todo o ano, com peque-

nos intervalos de calmaria. A C��mara de Com��rcio



A VOLTA DO GATO PRETO

153

local assegura que este clima, sem extremo de calor

nem de frio, �� "invigorating". Eu ��� que gosto do sol

��� acho-o deprimente. E quando me queixo do vento,

da chuva e da bruma, Mariana toma do livro que es-

crevi sobre este pa��s em 1941 e l�� em voz alta o tre-

cho em que canto l��ricos louvores ao clima de San

Francisco da Calif��rnia...

HAPPY NEW YEAR!

31 de dezembro. Meia-noite. Os sinos repicam.

As f��bricas apitam. Os autom��veis buzinam. Estamos

reunidos numa pequena sala, ao p�� duma lareira bran-

ca aquecida a eletricidade. Pelo r��dio ouvimos os

gritos e as can����es na Times Square em Nova York.

Afirma-se que este ser�� o ano da invas��o da Europa,

talvez o ��ltimo ano da guerra. L�� no por��o, no seu

apartamento solit��rio, Mrs. Burke decerto pensa no

neto p��ra-quedista. Que se estar�� passando nessas ca-

sas em cujas vidra��as se v��em bandeiras com estre-

las azuis ��� cada estrela representando um membro

da fam��lia que est�� alistado nas for��as armadas? E

naquelas em que h�� estrelas douradas, simbolizando o

n��mero de membros da fam��lia mortos em a����o?

Penso nos Sullivans, aquele casal de Iowa que

perdeu duma s�� vez os cinco filhos marinheiros que

estavam a bordo dum cruzador americano que voou

pelos ares em ��guas do Pac��fico. A coisa toda �� du-

ma brutalidade que fica muito al��m de qualquer co-

ment��rio. Temo que a morte de todos esses soldados

e marinheiros ��� russos, ingleses, americanos, gregos,

poloneses, franceses, etc. ��� n��o traga para o mundo

um benef��cio �� altura de seus grandes sacrif��cios. Pa-

ra usar duma imagem t��o ao gosto desta gente, di-

rei que se est�� pondo em risco um vasto e precioso



154

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

capital em vidas humanas para se conseguir, ao ca-

bo da sangrenta transa����o, um magro, triste lucro em

benef��cios sociais.

Enquanto Mariana l�� ao p�� do r��dio e as crian-

��as brincam, meto papel na m��quina e escrevo uma

carta ao meu amigo Vasco que est�� no Brasil e tanto

se preocupa com os problemas do mundo.

DESABAFO...

1.�� de janeiro de 1944.

... e o que me deixa apreensivo, meu caro Vasco, �� verificar

que estes comentaristas pol��ticos raramente ou nunca mencio-

nam em seus artigos as causas profundas desta guerra. Porque

a coisa n��o pode ser simplificada a ponto de afirmarmos que a

responsabilidade do conflito cabe unicamente a Hitler, �� sua ca-

marilha de gangsters e mais �� "vontade de poder" do povo ale-

m��o. N��o devemos esquecer que a Inglaterra encorajou ou pelo

menos tolerou simpaticamente o rearmamento da Alemanha, pela

simples raz��o de que, temendo a expans��o da R��ssia sovi��tica

e desejando o seu aniquilamento, ela esperava que os nazistas

atacassem os comunistas numa guerra de que ambos os conten-

dores sa��ssem de tal modo esgotados, que no fim da hist��ria a

Gr��-Bretanha seria a ��nica vencedora num conflito em que n��o

disparara um tiro, nem sacrificara um ��nico soldado.

N��o se pode afirmar, Vasco, que esta seja uma guerra de

ideologias. Veja bem. Uma alian��a da R��ssia com a Alemanha

seria, pelo menos no momento, um fen��meno compreens��vel, n��o

porque eu ache que comunismo seja sin��nimo de fascismo, mas

sim porque ambos esses pa��ses onde impera o capitalismo de

Estado, t��m um inimigo comum: as pot��ncias dirigidas pelo

capital privado. O natural seria que, unidas, a R��ssia e a Ale-

manha tratassem de derrotar a Inglaterra, os Estados Unidos e

a Fran��a, deixando o ajuste de contas definitivo para ser feito

entre ambas, para ver qual das duas ficaria com a parte do

le��o. Mesmo essa guerra final dificilmente poderia ser classi-

ficada como "ideol��gica". Porque seria ainda uma guerra eco-

n��mica, uma luta pela amplia����o de zonas de influ��ncia, de

dom��nios de mercado. N��o creio que o fator econ��mico seja

todo-poderoso como for��a hist��rica. Os homens e os povos s��o

movidos tamb��m pelo orgulho, pela inveja, pelo fanatismo po-

A VOLTA DO GATO PRETO

155

l��tico ou religioso, pelo desejo de vingan��a, pela adora����o da

for��a, pela sede de gl��ria ou de dom��nio... Mas neste ano de

1944 s�� um ing��nuo, um d��bil mental ou um fan��tico do es-

piritual poderia negar a grande import��ncia do econ��mico na

vida dos indiv��duos e das na����es.

Claro, no dia em que os homens estiverem todos bem ali-

mentados e bem vestidos, gozando de boa sa��de e morando em

casas confort��veis ��� nesse dia ainda haver�� problemas, conflito��,

dramas, e as criaturas humanas estar��o ansiando por saber o

que haver�� para al��m desta vida, perguntando se Deus existe,

e desejando que a chama do esp��rito n��o se apague na morte.

Acontece que como o problema da fome, do conforto e do bem-

estar s��o problemas temporais, eles ter��o de ser for��osamente

resolvidos no plano temporal. �� um absurdo, uma trai����o at��

(e aqui eu me refiro particularmente ao Brasil) prometer o c��u

com anjos, arcanjos, ambrosia e del��cias as subcriaturas que ve-

getam no lodo e na mis��ria, j�� n��o digo como porcos, porque ao

menos estes t��m quem os alimente �� farta na preocupa����o de

engord��-los para o matadouro, mas como os mais abjetos ani-

mais da escala zool��gica pois que, possuindo consci��ncia, vivem

como minhocas. Matemos primeiro a fome de nossos marginais;

curemos-lhes as feridas; demos-lhes enfim uma vida mais sau-

d��vel, mais feliz e mais digna. Depois disso tudo, podemos en-

t��o falar-lhes em Deus.

Mas o que me levou a te escrever foi a lembran��a de que

a presente guerra est�� matando a flor da juventude da terra.

Costuma-se dizer e escrever por aqui que o presente conflito �� a

luta do bem contra o mal. �� uma figura de ret��rica que ter��,

n��o nego, o seu valor demag��gico. N��o mentir�� quem afirmar

que os americanos est��o defendendo o seu ideal de vida, pois a

vit��ria do nazismo significaria a destrui����o irremedi��vel de seus

sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade. Significaria que

o seu padr��o de vida teria de baixar formidavelmente, e que

o seu individualismo esportivo e otimista acabaria esmagado pelo

tac��o dos agentes da Gestapo. Essa �� uma verdade indiscut��vel,

lias �� uma verdade horizontal. A verdade vertical tem ra��zes

econ��micas. Os soldados de Tio Sam que foram lutar na Europa

em 1917 tamb��m estavam convencidos de que iam destruir a

barb��rie e salvar a democracia. Seus filhos agora est��o lutando

no mesmo terreno, contra o mesmo inimigo, e os escribas tentam

faz��-los repetir as mesmas frases e os mesmos gritos de guerra ���

desta vez, parece, sem grande resultado. Porque embora esses

soldados de hoje lutem com coragem e sem ��dio, eles se atiram

aos combates sem alegria. Esta �� uma guerra sem can����es. O

seu hero��smo �� um hero��smo amargo e sombrio, sem ret��rica



156

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

nem romantiza����es. As gera����es que est��o agora nas trinchei-

ras sabem que a guerra �� uma coisa s��rdida, cruel, destruidora

e absurda. Livra-os da deser����o e da covardia, da in��pcia ou

da indecis��o o seu esp��rito esportivo, o seu senso de compa-

nheirismo, e a consci��ncia de que no fim de contas eles est��o

defendendo sua terra e seu povo, o "American way of life" e

uma s��rie de coisas que lhes s��o caras. Impele-os tamb��m o

desejo de acabar com a guerra o mais depressa poss��vel, a fim

de que possam voltar para o "home" e para a paz.

Afirma-se que a guerra est�� na natureza do homem, e que

sempre haver�� guerras. N��o sei at�� que ponto se poder�� manter

a paz, se �� que o mundo algum dia conheceu a paz verdadeira.

O que sei �� que, enquanto a sociedade capitalista competitiva e

faminta de lucros pensar em termos de vantagens e expans��o

de neg��cios e n��o de bem-estar social; enquanto n��o houver um

entendimento internacional como o proposto por Emery Reeves

em seu admir��vel livro "A anatomia da Paz"; enquanto houver

nacionalismos exacerbados ou exacerb��veis que possam ser usa-

dos como meio de alargar imp��rios econ��micos ��� sempre haver��

guerras. Talvez eu esteja a repetir platitudes. Mas ha platitudes

que devem ser repetidas. E num princ��pio de ano como este,

Vasco, a gente sente vontade de desabafar. Perde esta conver-

sa toda, que provavelmente ter�� tido um tom dogm��tico. Mas

�� que olhando para meu filho que desenha cenas de guerra ali

junto da lareira, cheguei a uma conclus��o amarga, que pode ser

resumida numa frase: "No estado atual de coisas, a ��nica cer-

teza que um pai pode ter quanto ao futuro, �� a de que est��

criando seu filho para morrer na pr��xima guerra..."

O M��DICO E O MONSTRO

5 de janeiro, 1944. Des��o ao centro da cidade,

entro numa dessas monumentais casas de neg��cio que

aqui se chamam department stores, e compro umas

cal��as amarelas de corduroy, que �� um tecido de algo-

d��o com estrias aveludadas. Naturalmente Mariana se

escandaliza e as crian��as se riem da minha extravag��n-

cia. Na verdade, as cal��as s��o dum mau gosto cla-

moroso. Explico a minha mulher que vestir estas

cal��as equivaler�� para mim a uma mudan��a de per-

sonalidade. Vivemos demasiadamente de acordo com

A VOLTA DO GATO PRETO

157

a id��ia que os outros fazem de n��s. Meus filhos, por

exemplo, acham que sou um alegre companheiro. Pa-

ra a maioria das outras pessoas sou um homem seco,

sisudo, calado, incapaz duma palavra ou dum gesto

espont��neo. Como escritor sou considerado em certos

c��rculos apenas como um fabricante de hist��rias ado-

cicadas para mocinhas sentimentais. Noutros setores,

apare��o como um indecente autor de livros imorais, dum

realismo repugnante. Os cat��licos me classificam de

herege. Os fascistas afirmam que sou vermelho. Os

vermelhos murmuram sorrindo que sou apenas cor-de-

rosa. Pois bem. Agora decidi ser amarelo. �� uma mudan-

��a salutar que no fim de contas, me custar�� apenas

o pre��o das cal��as, isto ��, tr��s d��lares. Estes "panta-

lones amarillos", como diria o c��nsul de Metagalpa,

passar��o a ser o meu protesto contra todas essas pri-

s��es criadas pelas conven����es sociais e pela opini��o

dos que me cercam.

Compro tamb��m um jaquet��o grosso de l�� azul,

desses usados pelos lenhadores do Canad��. Combina

detestavelmente com as cal��as amarelas, de sorte que,

quando os visto, me sinto feliz. N��o tenho nenhuma

responsabilidade com o passado. Nunca escrevi livros.

Nunca fiz confer��ncias. Nunca dei li����es. Nem mes-

mo cheguei a ter um nome.

Des��o �� zona do cais e entro nessas espeluncas

que William Saroyan t��o bem reproduziu na sua pe-

��a "The Time of Your Life". Dentro delas vejo ho-

mens de todos os mares da terra, caras e tipos da mais

inesperada esp��cie. Acho excitante andar por estes

caf��s e casas de pasto de embarcadi��os, sem plano

nem prop��sitos certos, a conversar com criaturas que

n��o contam sua hist��ria nem perguntam pela nossa,

pois para muitas delas passado �� palavra que n��o tem

sentido. Paro na cal��ada do Cais dos Pescadores, on-

de caranguejos agitam ag��nicamente seus tent��culos



158

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

dentro de enormes caldeir��es de ��gua fervente; fico

olhando os mastros dos navios, o movimento dos

guindastes, o v��o das gaivotas... Depois volto pa-

ra casa, como duma longa e misteriosa viagem.

��s segundas, quartas e sextas, vestido como um

bom burgu��s, sou o senhor professor que vai �� Uni-

versidade dissertar perante seus alunos sobre Greg��-

rio de Matos, Santa Rita Dur��o e Frei Santa Maria

Itaparica, figuras que para mim t��m tanta realidade

como o Bicho Tutu e o Lobisomem, isto ��, seres que

assombraram a nossa inf��ncia mas a respeito de cuja

exist��ncia sempre tivemos nossas d��vidas.

Trecho duma carta a Vasco Bruno . . . Queres um

conselho de amigo? Quando te sentires cansado, abor-

recido de toda a rotina da vida, compra umas cal��as

amarelas.

HELLO, LOUIE!

12 de janeiro. Lu��s, que agora passou a ser Louie-

��� pois �� assim que os colegas lhe chamam ��� tem um

amigo, David, guri grandalh��o de cara simp��tica que

mora na vizinhan��a e que de vez em quando apare-

ce para brincar. �� um gozo ver como ambos se en-

tendem sem que um possa falar a l��ngua do outro.

N��o necessitam de muitas palavras. David entra e

diz Hello! Louie limita-se a sorrir. Mete na cabe��a

uma imita����o desses capacetes de a��o dos soldados

americanos, empunha a metralhadora de pau e den-

tro em pouco est�� ao lado de David ��� que tamb��m

veio armado at�� os dentes ��� entrincheirados os dois

atr��s duma poltrona, e fazendo fogo contra soldados

japoneses imagin��rios. Ficam assim por algum tempo,

falando a dura l��ngua das metralhadoras ��� ra-ta-ta-ta-

ta-ta-taaa... Depois, aborrecem-se do brinquedo, jo-

A VOLTA DO GATO PRETO

159

gam longe o capacete e as armas, e deitados no ch��o,

com os cotovelos apoiados em cima dum jornal aber-

to, os rostos repousando nas m��os espalmadas, ficam

olhando a p��gina c��mica. De quando em quando Da-

vid cutuca Louie e mostra-lhe uma determinada coi-

sa. Louie solta uma risada, a que o amigo se une. No

momento seguinte tornam a botar na cabe��a os capa-

cetes e a empunhar as armas, pois o inimigo trai��oei-

ro atacou-os de surpresa. Mas de novo enfaram-se da

guerra e voltam a folhear revistas ilustradas. Durante

todo o tempo n��o dizem palavra. Por fim vem o mo-

mento em que David decide ir embora. Diz: Good-

bye, Louie! Meu filho responde: "At�� logo, David!"

E separam-se.

Um dia ��� reflito com amargura ��� esses dois me-

ninos ser��o homens e capazes de empunhar metralha-

doras de verdade. Em caso de guerra talvez estejam

na mesma trincheira, lutando contra um inimigo co-

mum. Mas n��o �� imposs��vel que os dois amigos se en-

contrem em campos opostos, como advers��rios, pois

a experi��ncia nos tem mostrado que as coisas mais

absurdas e cru��is podem acontecer. Que estou eu fa-

zendo para que nenhuma dessas duas hip��teses se

possa realizar? As coisas que pensamos, dizemos e fa-

zemos agora podem redundar, no futuro, num Inferno

ou num para��so para nossos filhos. Parece fora de d��-

vida que esta guerra cont��m j�� a semente da pr��xi-

ma. Os jornais de Hearst empenham-se, por meio de

alguns de seus comentaristas, em intrigar o povo ame-

ricano com o russo. Representam uma corrente rea-

cion��ria e imperialista conhecida pelo nome de "Ame-

rica First". Atacam Roosevelt, e todos os l��deres e es-

critores liberais deste pa��s. J�� come��aram sua cam-

panha contra o Presidente, no sentido de impedir que

ele seja reeleito. Ora, uma campanha pol��tica n��o ��

s�� natural como perfeitamente desej��vel dentro du-





160

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

ma verdadeira democracia. Mas acontece que esses

isolacionistas que acusaram Roosevelt de ter arrastado

deliberadamente o pa��s �� guerra, agora o acusam pa-

radoxalmente de n��o ter preparado a na����o para essa

mesma guerra, e por n��o ter compreendido que ela

viria...

PROBLEMA?

15 de janeiro. Fa��o uma confer��ncia para um

grupo de estudantes interessados em problemas ra-

ciais. �� num jantar na Associa����o Crist�� de Mo��os,

perto dos port��es da Universidade. Sento-me entre

um preto e uma chinesinha. Pedem-me para falar no

problema racial do Brasil. Levanto-me e come��o:

"Para principiar, n��o h�� nenhum problema".

O VELHO MACHADO

23 de janeiro. L�� fora, a chuva. Aqui dentro da

sala 306, vinte e cinco estudantes e eu. O assunto do

dia, Machado de Assis. Conto a hist��ria do mulati-

nho Joaquim Maria, filho duma lavadeira, e que aca-

bou sendo uma das maiores figuras da literatura de

l��ngua portuguesa. Para os norte-americanos em geral

essa hist��ria tem dois lados. Um escuro e outro lu-

minoso. O lado escuro �� fornecido pela cor do her��i.

O outro, pela sua carreira, pois este povo adora as

hist��rias de Cinderela, as que narram as perip��cias

dum homem ou mulher que caminha from rags to ri-

ches, isto �� da mis��ria para a riqueza, ou ent��o do

anonimato para a celebridade. Felizmente meus alu-

nos s��o em maioria, ou talvez na sua totalidade, con-

tr��rios �� discrimina����o racial. Esta Universidade acei-

A VOLTA DO GATO PRETO

161

ta alunos de todas as cores, credos e ra��as. H�� aqui

chineses, japoneses, filipinos, hindus, sul-americanos,

italianos, havaianos, arm��nios...

Falo na vida de Machado de Assis e acabo eu

mesmo comovido com a hist��ria. �� sempre assim. N��s

latino-americanos somos o que se chama por aqui sen-

timental fools; nossas emo����es est��o sempre �� flor da

pele. N��o espero que meus estudantes participem da

minha como����o. Minhas palavras s��o simples e a bio-

grafia que tra��o de Machado de Assis �� bastante re-

sumida. Acontece, por��m, que eu vejo para al��m das

minhas pr��prias palavras. Imagino Machado de Assis

em sua casa do Cosme Velho, vi��vo, velho, doente e

s��, sentado numa cadeira, esperando a morte com um

xale sobre os ombros. Pessoas v��m saber de sua sa��-

de, ficam na sala de espera, cochicham. E o velho

Machado diz a um amigo: "Escuta.. . n��o reconheces

esses cochichos? �� como num vel��rio." Pouco antes

de morrer, ele, o escritor que tanto castigara a vida

e os homens, confessa: "A vida �� boa." Dizendo isto

ele se identifica com o Judeu Errante da sua f��bula

"Viver", que n��o odiava tanto a vida sen��o porque a

amava muito.

Os alunos escutam com interesse. Eu quisera s��

poder ler seus pensamentos, observar suas rea����es ��n-

timas a esta hist��ria. �� estranho que neste dia, nesta

hora, neste lugar e para esses jovens eu esteja a fa-

lar em Machado de Assis, enquanto avi��es da patru-

lha do Pac��fico passam roncando l�� no alto, e naque-

le edif��cio circular em cima da colina s��bios lidam com

a energia at��mica. Acho singular esta mistura de ci-

clotr��nio, guerra, Calif��rnia e literatura brasileira. E

tudo ficar�� ainda mais esquisito se eu tentar penetrar

no passado desses estudantes, em sua maioria filhos

de imigrantes ou ent��o eles pr��prios nascidos em outras

terras.

162

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

L�� est�� Lu��s Mongui�� moreno, rosto cheio, bi-

gode escuro, ��culos de lentes grossas; nasceu na Ca-

talunha e lutou em 1937 contra os mercen��rios de

Franco; imigrou para este pa��s no ano seguinte e le-

cionou espanhol nesta Universidade. Se o tipo da

pessoa pode indicar sua origem e profiss��o, eu diria

que ele �� um paulista de Taubat�� que faz corretagem

de caf�� em Santos. O outro a seu lado �� Fernando

Alegria, um simp��tico e inteligente chileno que leciona

espanhol neste Departamento; um jovem de voz man-

sa que acaba de tirar um premio no concurso liter��-

rio institu��do para escritores sul-americanos por edito-

res de Nova York.

Aquela mo��a de rosto de boneca, olhos dum azul-

esverdeado e express��o vivaz, �� Patr��cia Mc Ewen,

descendente de irlandeses e escoceses. A outra, de

grandes e belos olhos escuros, �� Helen Leopold, fi-

lha de m��e salvadorenha e pai alem��o. Ana Golden-

baum �� de origem sem��tica e ali est�� com o seu ar

encolhido de passarito. A esbelta loura platinada com

o rosto pintalgado de sardas �� Maryfrances Stilles. A

robusta rapariga que acha a l��ngua portuguesa terri-

velmente dif��cil chama-se Virg��nia Bohr. E aquela ri-

sonha senhora de cabelos brancos �� Maria Antonieta

Cincotta, que alia um temperamento italiano a uma

educa����o americana; interessa-se por problemas sociais

e suas id��ias s��o nitidamente socialistas.

Marion Rita de Paar deve ter sangue holand��s.

L��dia Braccini descende diretamente de italianos. Loui-

se Dias, Loraine Borba, Mercedes Silva e Edna Leal

s��o filhas de portugueses radicados na Calif��rnia.

Sheila Malloy tem av��s na Irlanda.

E aquele sujeito moreno de ar melanc��lico e voz

de obo�� ��� don Rem��dios Mirando Sarazate ��� �� na-

tural do M��xico.



A VOLTA DO GATO PRETO

163

GARDEN PARTY

30 de Janeiro. Vou com a fam��lia a uma festa nu-

ma casa de campo dos arredores de Oakland. Trata-

se dum desses parties em que se nota uma abund��n-

cia de velhotas ricas, sandu��ches de peru, saladas de

aipo e bebidas sem ��lcool. O Sr. e a Sra. Lyons, os

donos da casa, s��o admir��veis de cordialidade, e que-

rem que todos fiquem �� vontade. Mr. Lyon, um ho-

mem de neg��cios, um rotariano e um humorista to-

ma-me do bra��o e pergunta:

��� Sabe quais foram os dois livros que mais in-

flu��ncia tiveram na minha vida?

Imagino que tenha sido a B��blia e a "Cabana do

Pai Thomas", mas, farejando anedota, respondo que

n��o sei. O anfitri��o, muito s��rio, esclarece:

��� O livro de receitas culin��rias de minha m��e e

o livro de cheques de meu pai.

Solta uma risada, faz meia-volta e se vai.

No jardim desta bela resid��ncia acham-se umas

doze mesas. Sobre as mesas, os pratos de comida. Ao

redor das mesas, os convidados: c��nsules de quase

todos os pa��ses da Am��rica Central e do Sul, damas

e cavalheiros interessados em pan-americanismo. Fa-

zem-se apresenta����es apressadas, e a gente n��o guarda

os nomes que nos dizem: ��s vezes nem chega a ouvi-

los. Mas estamos todos muito alegres e loquazes.

O vento frio sacode as flores naturais do jardim,

as artificiais dos chap��us das damas, e os ralos cabelos

que cobrem o cr��nio da maioria destes c��nsules qua-

rent��es e cinq��ent��es. As colinas em torno s��o dum

verde-oliva opaco e triste.

Mrs. Mayo, dama russa casada com um rica��o de

Oakland, atrai-me para um canto do jardim. �� um

tipo de valqu��ria, de amplos seios, senhora duma voz



164

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

grave e dram��tica. Gosta de ler e escrever, preocupa-

se com problemas internacionais, sonha com a frater-

nidade universal, e considera-se uma esp��cie de m��e

de todos esses sul-americanos que andam extraviados

pela Calif��rnia. Contaram-lhe que escrevo livros e

que sou um liberal. Espalmando a m��o cheia de an��is

de brilhantes sobre o peito, ela me diz com ��nfase

teatral:

��� Qualquer dia destes, se��or, virei sentar-me a

seus p��s para beber o vinho da sabedoria.

Fico constrangido, olho para a ponta dos sapatos,

n��o encontro nada a dizer. Mas um moleque que

mora dentro de mim exclama, numa voz que felizmen-

te s�� eu posso ouvir:

��� Sinto muito, madame, mas presentemente minha

cantina est�� fechada para reparos.

O HOLAND��S VOLANTE

6 de fevereiro. Temos hoje a alegria de receber a

visita de Vianna Moog e sua senhora. O autor de

"Her��is da Decad��ncia" acha-se neste pa��s h�� quase

seis meses, numa viagem de estudos. Boa mistura de

holand��s e brasileiro, �� ele um belo tipo de homem, cor-

pulento, de olhos azuis, fisionomia aberta ��� uma dessas

criaturas que sabem rir com naturalidade e n��o per-

mitem nunca que complica����es intelectuais lhe tirem

o simples prazer de viver. Como escritor tem um es-

tilo enxuto e claro; e sua ironia �� seca e cintilante..

Acha ele que o que h�� nos Estados Unidos �� uma

civiliza����o passada a limpo. Nestas casas fr��geis de

madeira, constru��das ��s pressas, sem nenhuma preo-

cupa����o de solidez, descobre a tend��ncia dos ameri-

canos de viverem apenas o momento presente, sem



A VOLTA DO GATO PRETO

165

compromissos com o passado e muito menos com o

futuro.

S��o nove da noite e n��s dois caminhamos a con-

versar por uma rua deserta, nas proximidades do par-

que. Por sobre nossas Cabe��as paira um nevoeiro

denso, cor de pelo de rat��o. Recordamos nossas an-

dan��as pelas ruas de Porto Alegre e achamos engra��a-

do que estejamos aqui �� beira do Pac��fico, nesta cidade

de aspecto n��rdico t��o diferente da id��ia que o resto

do mundo faz da Calif��rnia.

��� O mal de voc��s ensa��stas ��� digo-lhe, parando

a uma esquina, ��� �� que quando visitam um pa��s v��m

simplesmente em busca de premissas que sirvam para

a conclus��o que tiraram antes de desembarcar...

��� Seu romancista de m�� morte! ��� exclama Vianna

Moog, soltando uma risada.

�� um homem sem recalques, um dos poucos es-

critores brasileiros com quem a gente pode ser abso-

lutamente claro e franco.

ATRIBULA����ES DUM MARIDO

15 de fevereiro. No Brasil ficamos com uma sen-

sa����o de inferioridade quando somos vistos na rua

carregando pacotes. E quanto maior for o pacote,

tanto mais forte ser�� nosso sentimento de humilha����o.

Pois c�� vou eu em plena Fulton Street, gemendo ao

peso duma bra��ada de sacos de papel pardo cheios

de comest��veis, e de cujas bordas emergem pontas de

cenouras, folhas de salsa, hemisf��rios de laranja ou

cocurutos de cebolas. Vou ao armaz��m de dois em

dois dias. E uma vez por semana des��o a Funston

Street sobra��ando uma trouxa de roupa, rumo da la-

vanderia. Ora, essas coisas aqui s��o consideradas na-

turais. Ningu��m olha, ningu��m repara. Primeiro



166

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

porque elas n��o t��m realmente nenhum sentido "moral";

segundo porque nestes tempos de guerra as lojas me-

nores acabaram com o servi��o de entrega a domic��lio.

�� muito comum nas casas particulares, depois do

jantar, trazer os convidados para a cozinha, a fim de

que ajudem a dona da casa a lavar e enxugar os

pratos. E do marido americano ��� seja ele m��sculo ou

maricas, gordo ou magro, grave ou fr��volo ��� espera-se

que ajude a mulher nesses trabalhos dom��sticos.

Sou dum estado brasileiro em que as atribui����es

de marido e mulher s��o marcadas com rigorosa niti-

dez. H�� coisas que um homem l�� nunca poder�� fazer,

sob a pena de ficar desmoralizado. Vivemos de acor-

do com um c��digo antigo que tem ra��zes nos tempos

feudais. Acrescente-se ainda a influ��ncia espanhola e

a do homhre macho do tango argentino, o tipo de voz

grossa e faca na cava do colete, e que nunca debe

llorar...

Se l�� do outro mundo meu av�� tropeiro ��� para

o qual a ��nica atividade digna dum homem de ver-

dade era a lida dura do campo ��� se l�� do outro mundo

esse av�� ga��cho me visse agora na cozinha de Mrs.

Burke, de avental cor-de-rosa, enxugando pratos, ha-

via de sacudir a cabe��a penalizado murmurando:

��� Pra que havia de dar o pobre do meu neto!

O PROFESSOR

20 de fevereiro. O "Faculty Glade" da Univer-

sidade �� uma bela clareira aberta em meio dum bos-

quete de carvalhos, orlado pelo Strawberry Creek, ou

seja o Arroio do Morango, e cortada por uma estradi-

nha de are��o que vai do edif��cio da Uni��o dos Estu-

dantes at�� o Faculty Club, que �� o clube dos professores,

onde ��s vezes almo��o. Sobre a veludosa relva desta

A VOLTA DO GATO FRETO

167

clareira o famoso metteur-en-sc��ne Max Reinhardt fez

representar em 1935 o Sonho duma Noite de Ver��o, de

Shakespeare.

O Faculty Club �� um edif��cio de madeira constru��-

do num estilo que lembra certas casas de campo inglesas.

�� dum pardo-avermelhado e tem a fachada toda co-

berta de hera. O seu interior, duma simplicidade

r��stica, parece o dum pavilh��o de ca��a. O menu aqui

�� geralmente simples, as mesas n��o t��m toalhas e s��o

atendidas por mocinhas, estudantes da Universidade que,

para fazer esse servi��o, recebem 50 centavos por hora

ganhando assim algum dinheiro para ajudar o custeio

de seus estudos. Gosto do contraste entre essas jo-

vens rosadas e os professores cinzentos. Sim, o cinzen-

to parece ser a cor oficial dos professores. T��m eles

uma certa predile����o pelas roupas cor de cinza, e suas

id��ias pol��ticas s��o geralmente cinzentas, com raras ex-

ce����es, como ser�� o caso deste grande liberal que te-

nho agora �� minha mesa, ��� meu amigo o professor S.

G. Morley. No fim da casa dos sessenta, �� ele um homem

magro, alto, um pouco encurvado, de rosto mi��do cor

de marfim velho. O cabelo grisalho, mas ainda abun-

dante, cai-lhe ��s vezes sobre a testa �� maneira de

franja, dando-lhe um descuidoso, agrad��vel aspecto de

mocidade. O cavanhaque curto confere-lhe um ar

europeu. Morley �� um verdadeiro scholar, um huma-

nista de boa tempera. Ama a Europa e principalmente

a Espanha, cuja l��ngua, hist��ria e povo conhece a fundo.

L�� intensamente todos os g��neros liter��rios e interes-

sa-se por tudo. J�� tive ocasi��o de ver as admir��veis

tradu����es que ele faz para o ingl��s dos versos de Ro-

s��lia de Castro e dos sonetos de Antero de Quental.

Vive em Berkeley e em sua casa tem um piano de

cauda ao qual ��s vezes se senta para tocar Mozart ou

Beethoven. Nutre uma afei����o particular pelas pontes

cobertas da Calif��rnia, a respeito das quais j�� escre-



168 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

veu uma monografia, e seu hobby �� tirar fotografias

coloridas.

Olhando agora para ele tenho a impress��o de que

o conhe��o n��o h�� dois meses, mas h�� muit��ssimos anos.

MOMENTO

24 de fevereiro. Desde 12 de janeiro tenho feito

todas as quartas-feiras �� noite num dos sal��es da Uni-

versidade uma s��rie de confer��ncias p��blicas sobre

literatura brasileira. Apesar da chuva, do frio e do

vento a assist��ncia tem sido animadora.

Hoje vou realizar a ��ltima palestra. S��o cinco e

meia da tarde e estou na casa do Dr. Morley batendo

na m��quina as minhas notas e um pouco perdido numa

floresta de nomes de livros e autores. A confer��ncia

desta noite ter�� de cobrir o per��odo entre 1930 e 1943.

Quando tratei de escritores de s��culos passados, tive

a meu lado, como conselheiro, um cr��tico seguro e im-

parcial: o tempo. Mas agora que vou falar nos contem-

por��neos, j�� n��o posso contar com esse colaborador.

Que nomes mencionar? Que nomes omitir? Como

evitar os muitos al��ap��es de que nossa mem��ria est��

cheia ��� al��ap��es armados por nossas idiossincrasias?

Quantos desses escritores brasileiros que hoje fazem

sucesso ser��o lembrados no futuro como figuras real-

mente representativas?

De cotovelos fincados na mesa, dedos metidos

entre os cabelos, olho fascinado para um bojudo vaso

de cristal de cujas bordas se escapam ramos floridos

de pessegueiro. O vaso se acha em cima do piano de

cauda, e o sol da tardinha incendeia-o de reflexos de

ouro e prata. Uma abelha voa ao redor das flores;

minha aten����o voa com ela, escapa-se pela janela, sai

pela ruazinha quieta... Uma crian��a solta um grito.



A VOLTA DO GATO PRETO

169

A abelha bate na vidra��a. Torno a olhar para a m��-

quina ou, melhor, para meus pr��prios pensamentos,

onde se amontoam nomes, faces, frases, t��tulos de li-

vros, vultos humanos...

O tempo passa. Em breve vir�� a noite e eu preci-

so terminar estas notas. Mas aquele vaso florido e

faiscante me fascina...

O Dr. Morley entra na sala silenciosamente como

uma sombra. Posta-se atr��s de mim com sua m��quina

fotogr��fica e, sem dizer palavra, fotografa em cores,

por cima da minha cabe��a, o vaso com todos os re-

flexos do sol. Fico contente por saber que este momen-

to de beleza foi aprisionado. Quanto a mim sei que

n��o o esquecerei mais. A casa dum amigo ao entar-

decer, um vaso florido, o v��o duma abelha, o grito

duma crian��a... E minha perplexidade.

VOC�� SABE COM QUEM ESTA FALANDO?

3 de mar��o. No Faculty Club. Meio-dia. A mo��a

que me serve ��� e que �� uma estudante de filosofia ���

traz-me o caf�� e um sorriso, e depois se vai. Pe��o ao

cavalheiro que est�� do outro lado da mesa que me

passe o a��ucareiro. Ele passa, sorrindo, e ent��o en-

tabulamos conversa����o.

��� De onde �� o senhor?

��� Do Brasil.

��� Do Brasil? Pois saiba que sou um f�� do Alei-

jadinho.

Conta-me que compra tudo quanto encontra refe-

rente a Ant��nio Francisco Lisboa, a sua vida e sua

obra. Espera um dia tirar f��rias especialmente para

vir visitar as igrejas e monumentos em Minas Gerais.

Meu interlocutor �� um homem alto, corpulento,

de olhos azuis e rosto sangu��neo. Quando ele termina



170

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de almo��ar e se vai, o Dr. Morley me declara que

acabo de conhecer o famoso Dr. Herbert Evans, o

descobridor da vitamina E, e dos horm��nios da gl��n-

dula pituit��ria estimulante do sexo e do crescimento.

Informa-me tamb��m que aquele homem de ��culos que

ali est�� tomando o seu sorvete de baunilha, �� o pro-

fessor E. O. Lawrence, do Departamento de F��sica.

Trata-se simplesmente do s��bio que tornou realidade o

sonho dos alquimistas, conseguindo a transmuta����o

dos elementos por meio do bombardeador de ��tomos,

de sua inven����o. O ciclotr��nio deu-lhe o Pr��mio Nobel

de F��sica em 1939. Lawrence conseguiu tamb��m pro-

duzir sinteticamente elementos radioativos que podem

eventualmente substituir o radium.

Aquele homem baixo e moreno que fuma sosse-

gadamente o seu cachimbo junto da lareira, �� o prof.

Babcock, uma das maiores autoridades mundiais em

gen��tica.

Esses homens todos s��o duma simplicidade exem-

plar. Com pouco mais de quarenta anos, com essa

sua cara sem mist��rio, suas roupas incaracter��sticas,

Lawrence bem podia ser tomado por um modesto

m��dico da aldeia, por um caixeiro-viajante ou ��� por

que n��o? ��� pelo ec��nomo deste clube.

Fico a pensar em certos homens presun��osos de

minha terra, os quais s�� porque t��m fortuna, posi����o

ou algum parente importante julgam que s��o o sal

da terra e vivem a perguntar:

��� Voc�� sabe com quem est�� falando?

O ENCONTRO DAS PARALELAS

6 de mar��o. Sou hoje apresentado a Maur��cio

Wellisch, vice-c��nsul do Brasil em San Francisco. Con-

versamos por algum tempo, e verifico que nossas opi-

A VOLTA DO GATO PRETO

171

ni��es sobre pol��tica, arte, literatura e sobre a vida em

geral divergem muito. �� como se ele estivesse dum

lado da ba��a de San Francisco e eu do outro, tentando

uma comunica����o imposs��vel por meio de sinais. Tenho

a impress��o de que nunca poderemos ser bons amigos.

No entanto, gosto deste vivo, ir��nico e inteligente

brasileiro. (Acho muito dif��cil n��o gostar das pessoas.)

Estou resolvido a come��ar a constru����o duma ponte

aqui de meu lado. Se ele fizer o mesmo l�� da outra

margem, �� poss��vel que um dia nos encontremos no

centro da ba��a na ilha de Yerba Buena. Vamos esperar.

8 de mar��o. A ponte ficou pronta mais depressa

do que eu esperava. Maur��cio e eu discordamos um do

eutro em muitos pontos, principalmente no que se

refere �� aprecia����o desta terra e desta gente. Wellisch

�� um desses intelectuais que viram Paris "nos bons

tempos" ��� e essa vis��o encantada ainda o persegue,

impedindo-o de adaptar-se a outras terras, a outros

tipos de vida. Tudo que h�� por aqui ��� afirma ��� se

toma desinteressante e sem import��ncia comparado com

Paris. Mas apesar das diverg��ncias ��� ou talvez por

causa delas ��� fazemo-nos amigos e dum modo muito

natural. �� um prazer conversar com os Wellisch. A

Sra. Wellisch, uma belga morena de olhos azuis,

fala portugu��s com flu��ncia e com um delicioso sotaque.

Esta noite no carro desses novos amigos atraves-

samos a ponte de Golden Gate e vamos ver os estaleiros

de Kayser no seu trabalho noturno. Do alto duma

colina olhamos para os cascos dos navios oue l�� em

baixo �� beira d��gua parecem silhuetas de grandes

paquidermes.

O espet��culo �� fant��stico. Saltam fa��scas cor de

fogo e rel��mpagos, dum azul l��vido, sobem para o

c��u, enquanto oper��rios ��� vultos negros de cujas m��os

jorra fogo ��� trabalham no costado dos navios. O ru��-

do trepidante das brocas el��tricas chega at�� n��s. Guin-

dastes movem chapas enormes. Tinem e rangem metais.



172

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

A ��gua se estria de coriscos e de quando em quando

vozes humanas se destacam, gritando ordens. Dia e

noite essa gente trabalha, em turmas que se revezam.

Chegam �� perfei����o de aprontar um navio em tr��s ou

quatro dias.

Olho os meus companheiros aqui no autom��vel.

Nos seus rostos reflete-se a luz dos rel��mpagos criados

pelos empregados de Kayser. E por cima de nossas

cabe��as, dos navios, dos oper��rios, dos guindastes, das

montanhas, das cidades e da ba��a palpitam as estre-

las ��� as mesmas estrelas que brilharam h�� mais de

tr��s s��culos sobre as caravelas de Sir Francis Drake.

RAPTADOS!

9 de mar��o. Anivers��rio de Clara. Suas amigas e

colegas aparecem com presentes e gritos, devastam a

mesa de doces, enxugam as garrafas de coca-cola,

p��em o r��dio a berrar, organizam um baile e me obri-

gam a entrar tamb��m no boogie-woogie. Num dado

momento a campainha da porta soa, e o grupo todo

corre a ver quem �� a convidada que vai entrar. Da

sala onde me deixei ficar estendido no sof��, exausto

do esfor��o, ou��o um oh de decep����o, seguido de ex-

clama����es impacientes: "N��o pode entrar! �� uma

festa s�� de meninas! D�� o fora! Scram!" A porta se

fecha com estrondo. Levanto-me, caminho at�� a ja-

nela e vejo Peter-Cal��a-Frouxa, a olhar desconsolado

para a porta que acabam de fechar-lhe na cara sar-

denta. Bato na vidra��a, chamo a aten����o do garoto,

e por meio de sinais lhe digo que procure a entrada

dos fundos. Vou abrir-lhe a porta da cozinha, fa��o-o

entrar clandestinamente, tiro do refrigerador algumas

garrafas de coca-cola, e ambos nos pomos a beber num

A VOLTA DO GATO PRETO

173

grave sil��ncio de conspiradores, enquanto a algazarra

continua no living-room.

Por volta das cinco horas a festa se transfere da

casa para a rua, e as crian��as v��o brincar nos canteiros

da avenida. Ao cabo de alguns minutos aparecem

duas garotas que me dizem, alvorotadas:

��� Mister, Clara e Louie desapareceram!

��� Desapareceram... como? ��� pergunto.

��� Sumiram-se... evaporaram-se...

Seguido por Peter, des��o �� rua para investigar.

Onde estar��o esses dois diabos?

��� Foram para aquele lado... ��� diz uma das

meninas.

��� Vi um homem num autom��vel conversando com

eles... ��� informa outra.

��� Um homem? ��� pergunto. ��� Como era ele? De

que cor era o carro? ��� D��o-me informa����es confusas.

Um autom��vel verde... N��o! Era azul. .. ou preto.

O homem estava vestido de escuro, com a aba do cha-

p��u puxada sobre os olhos. Era moreno, parecia es-

trangeiro. .. Muito misterioso ��� acrescentam.

Saio acompanhado de Peter ��� Dom Quixote e

Sancho Pan��a ��� �� procura de Clara e Louie. As me-

ninas nos seguem como um bando de gralhas assanhadas.

��� Foram raptados! ��� grita uma delas.

��� Acho que foi o homem de preto! ��� exclama

outra.

Volto-me e vejo caras ansiosas, mascarazinhas

duma trag��dia grega em vers��o infantil. M��scaras que

n��o exprimem apenas susto, mas tamb��m uma esp��-

cie de prazer ��� a vol��pia de estar tomando parte numa

hist��ria real, de mocinho e bandido. A verdade �� que

estou come��ando a me inquietar. Clara! ��� grito ���

Louie!! E Peter repete esses nomes, como um eco

galhofeiro. E assim percorremos uma quadra inteira.

Sou como o Pied Piper da lenda, tocando a sua flauta

174

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

m��gica e conduzindo para fora do burgo um regimento

de ratos. Clara! Louie! Entramos na Cabrillo Street, de-

pois na Balboa. As garotas est��o cada vez mais excitadas.

Recorda����es me visitam a mente. O palha��o montado

num burro, percorrendo as ruas duma cidadezinha bra-

sileira, e gritando: "O palha��o que ��?" E atr��s deles, os

p��s descal��os levantando a poeira vermelha do ch��o, os

moleques respondem: "Ladr��o de mui��!" O palha��o de

macac��o metade azul, metade encarnado. Eu de cal��as

amarelas. "Hoje tem marmelada?" E o coro: "Tem sim

senhor!" Grito o nome de meus filhos. O bando de

gralhas os repete, num un��ssono esgani��ado. E

agora n��o sei se j�� estou mesmo alarmado ou apenas

irritado diante desta situa����o rid��cula. Ou��o uma das

meninas dizer:

��� Gee! �� sensacional, bem como nos filmes de

gangster!...

E outra:

��� You bet! Parece uma hist��ria de Dick Tracy.

E assim, sem descobrir os desaparecidos, volta-

mos �� Fulton Street. Entro em casa sem saber que fazer

e vou direito ao living-room, para l�� encontrar, muito

serenos, sentados no sof�� e lendo o jornal da tarde,

Clara e Louie.

��� Onde �� que voc��s andaram? ��� pergunto.

Quatro olhos tranq��ilos fitam-se em mim.

��� U��, pai... N��s n��o sa��mos daqui. Estamos

vendo a p��gina c��mica do jornal.

Atr��s de mim o bando come��a uma algazarra feita

de surpresa, alegria e ��� talvez ��� decep����o. Volto-me

para as meninas e vocifero.

��� Voc��s n��o t��m mais nada que fazer?

Amaldi��oo os suplementos infantis dos jornais e

os filmes de crime e mist��rio que enchem de carami-

nholas as cabe��as dessas crian��as. Mas a maldi����o

n��o tem vida longa. Porque no momento se-



A VOLTA DO GATO PKETO

175

guinte estamos todos n��s, inclusive o homem de cal��as

amarelas, ajoelhados no ch��o, diante dos jornais aber-

tos, a ver e comentar em voz alta as proezas do Super-

Homem...

OS CISNES

14 de mar��o. Depois duma semana de chuva

quase incessante, o c��u hoje amanhece limpo e azul.

Tenho a impress��o de que estamos criando bolor, que

o m��ldio nos brota na ponta dos dedos, no rosto, na

alma. �� preciso tirar esta fam��lia para rua, a fim de

que todos tomem sol, sol, muito sol.

Sa��mos, manh�� cedinho, para o parque. Vem do

mar um vento frio e cortante ��� uma esp��cie de vers��o

americana do minuano. A relva dos canteiros est��

grisalha de geada. Nossos p��s esmagam no ch��o bo-

lotas de eucaliptos, que desprendem um cheiro acre

e agrad��vel.

Clara e Mariana trazem len��os amarrados na ca-

be��a. Lu��s est�� de cal��as compridas, casaco de couro

e tem na cabe��a um quepe militar, o que lhe d�� um

jeito de guerrilheiro russo.

Dizemos bom-dia para a est��tua do Padre Juni-

pero Serra, o fundador das famosas miss��es da Cali-

f��rnia, atiramos um al��! casual para o le��o de pedra

que monta guarda a uma das alas do Museu Young, e

paramos um instante para uma prosa com Cervantes,

Dom Quixote e Sancho Pan��a.

Atravessamos o jardim chin��s, passando pelo mo-

numental port��o de madeira que lembra a entrada dum

templo chin��s.

Caminhamos por entre cam��lias e maples por estes

estreitos sendeiros pavimentados de lajes, e orlados por

gradis r��sticos feitos de taquara de bambu. Paramos



176

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

diante da imagem dum Buda que est�� placidamente

postado �� sombra de esbelto pagode pintado de ama-

relo, vermelho e preto. Olhamos nossas caras no es-

pelho duma sucess��o de pequenos lagos onde b��iam

l��tus brancos e l��rios aqu��ticos, e em cujas ��guas trans-

parentes, de fundo limoso, nadam peixes vermelhos.

Clara e Lu��s fazem quest��o de atravessar a ponte semi-

circular, cujo reflexo na ��gua completa a circunfer��n-

cia perfeita.

Deixando o jardim chin��s vamos passear �� beira

dum lago, que fica numa esp��cie de plat��, no interior

do parque. Ficamos olhando um patinho morto que

b��ia lentamente �� flor da ��gua., com um mont��culo de

geada acumulado sobre o peito. (Em algum lugar da

Europa ��� penso ��� a esta mesma hora deve haver um

jovem soldado americano, russo ou ingl��s, morto, esten-

dido no ch��o, com um punhado de neve sobre o peito.)

E mais adiante, sob uma ponte r��stica de pedra,

dois cisnes ��� um branco e outro preto ��� nadam sere:

namente, bem como num fecho de soneto parnasiano.

FINIS

18 de mar��o. Contaram-me hoje uma hist��ria im-

pressionante. Acaba de suicidar-se um professor de

qu��mica dum destes col��gios dos arredores de San

Francisco. Era um judeu austr��aco que se refugiara

com a esposa nos Estados Unidos, depois que Hitler

anexou sua p��tria ao Reich. Apesar do carinho com

que fora aqui recebido o pobre homem n��o se sentia

feliz. Achava dif��cil recome��ar a vida depois dos ses-

senta, num mundo de l��ngua e h��bitos diferentes dos

daquele onde nascera e sempre vivera. Sua mulher,

atacada a princ��pio da mania de persegui����o, acabou

caindo num t��o profundo estado de melancolia que



A VOLTA DO GATO PRETO

177

teve de ser internada num sanat��rio. Sem coragem

para continuar a viver, o velho professor ��� ao cabo

n��o sei de que tremendas lutas ��� decidiu suicidar-se.

Era um homem calado, am��vel e de ar t��mido. As suas

alunas o adoravam. Antes de ingerir veneno escreveu

uma carta ao Presidente do col��gio, agradecendo-lhe

por todas as suas gentilezas, e pedindo-lhe desculpas

pelo que ia fazer. Rogo-lhe encarecidamente que n��o

conte ��s minhas alunas que me suicidei. Diga que foi

um acidente . E ao bedel que provavelmente ia encon-

trar-lhe o cad��ver na manh�� seguinte quando viesse

limpar o escrit��rio, deixou uma c��dula de dez d��lares

e este bilhete: Perdoe-me pelo choque que lhe causei.

Como compensa����o deixo-lhe esta pequena lembran��a.

Adeus, meu amigo.

Quando o dia amanheceu e o bedel entrou, o

professor de qu��mica parecia dormir tranq��ilamente,

debru��ado sobre sua escrivaninha. E a express��o de seu

rosto n��o era de ��dio ou pavor. Era ainda uma ex-

press��o de timidez, como se aquele homem simples e

discreto estivesse a pedir desculpa �� sociedade pelo que

acabava de fazer, por achar talvez que um suic��-

dio era coisa demasiadamente melodram��tica, exces-

sivamente espalhafatosa para quem como ele atraves-

sara a vida sem acotovelar ningu��m, sem fazer ru��do,

com um sagrado horror de chamar a aten����o do mundo

sobre sua pessoa.

CROMO

23 de mar��o. A primavera chegou. Cessaram as

chuvas. Em San Francisco continua o nevoeiro, mas em

Berkeley h�� sol, e sob as macieiras e ameixeiras flo-

ridas que orlem as cal��adas destas ruazinhas de ordi-

n��rio calmas, caminham velhos professores e passam



178

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

cantando em claros bandos, raparigas que nunca ou-

viram e por certo nunca ouvir��o falar em Ant��nio

Nobre.

O BRASILEIRO DOS MOSQUITOS

27 de mar��o. "H�� aqui na Universidade um bra-

sileiro entendido em mosquitos" ��� disse-me algu��m

h�� dias. Perguntei o nome desse homem fabuloso

que, segundo as informa����es, vive fechado numa sala

a dissecar mosquitos e a descobrir coisas novas a res-

peito deles. �� Ot��vio Mangabeira Filho, que venho

a conhecer hoje em seu laborat��rio, a cuja porta bato.

Aparece-me em mangas de camisa um homem ainda

jovem, moreno, de ��culos, com uma cara p��cara, que

�� a mais absoluta nega����o de todas as coisas que me

contaram dele.

��� Vim aqui ��� digo-lhe ��� na esperan��a de que

voc�� ainda se interesse um pouco por seres humanos.

E l e me aperta a m��o e eu sinto que j�� somos ami-

gos. Passamos a nos entender desde o primeiro mo-

mento e para isso n��o precisamos de muitas palavras.

Almo��amos juntos numa dessas graciosas food-

shops freq��entadas por estudantes, e depois sa��mos

a visitar livrarias de segunda-m��o e antiqu��rios. Mas

n��o prestamos aten����o a livros nem a objetos antigos,

porque passamos todo o tempo a falar na pol��tica

brasileira.

De volta a seu laborat��rio ele me fez olhar um

mosquito ao microsc��pio. Que riqueza de cores e

desenhos h�� na asa dum mosquito! Voc�� j�� olhou a

asa duma mosca? E dum gafanhoto?

De insetos passamos a conversar sobre o Brasil, e

ambos manifestamos o desejo de ver nosso pa��s de

volta ao regime democr��tico.



A V O L T A DO GATO P R E T O

179

��� Existe uma Fran��a Livre ��� digo ��� uma Pol��-

nia Livre. Por que n��o fundamos aqui o Brasil Livre?

Manga tira a l��mina do microsc��pio com infinito

e amoroso cuidado, e depois responde:

��� N��o adianta. O Departamento de Estado n��o

reconheceria nosso governo...

E em seguida, esquecendo-se de mim, entrega-se

aos seus mosquitos.

OS TR��S DEM��NIOS

1�� de abril. Germ��n Arciniegas, natural da Co-

l��mbia, mas cidad��o do mundo, �� um dos raros hispa-

no-americanos que conhe��o dotado de verdadeiro

sense of humour. N��o trouxe para este pa��s nenhum

complexo de inferioridade, nem adotou nenhuma da-

quelas atitudes extremas t��o perigosas, como seja a de

"achicarse" e embasbacar-se diante das coisas que aqui

v��em, passando a achar que tudo quanto temos "l��

em baixo" �� mesquinho, pobre e in��til; ou ent��o a de

andar num triste quixotismo investindo contra moi-

nhos de vento, ver por todos os cantos inimigos da

'latinidad", e proclamando que a "civiliza����o ianque"

�� puramente mec��nica e que s�� n��s, os latinos, �� que

conhecemos e amamos a vida do esp��rito.

Arciniegas, que j�� foi ministro da Educa����o em seu

pa��s, �� um admir��vel escritor. Seu espanhol �� escorrei-

to, gracioso, l��mpido, sem nenhum excesso de adjeti-

va����o. Seus livros sobre hist��ria, sociologia e litera-

tura s��o uma del��cia, e v��rios deles j�� foram traduzi-

dos para o ingl��s.

Hoje Don German ��� que �� um homem ainda jo-

vem de estatura mediana, testa larga, rosto comprido

e que, pelo aspecto, tanto podia ser espanhol, como

180

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

franc��s, argentino ou brasileiro ��� me declara que es-

t�� escrevendo uma hist��ria do mar das Cara��bas, mas que

o livro est�� progredindo muito lentamente. Conta-me

de sua pregui��a, de sua relut��ncia em escrever. E

como Mongui��, el Catalan, se re��ne a n��s para um

r��pido lanche num restaurante de estudantes, o tema

de conversa����o �� simplesmente a bo��mia sul-americana,

sinal de nossa am��vel sabedoria da vida.

��� O que faz falta a este pa��s ��� digo ��� �� um

pouco mais de pausas ociosas.

��� Exatamente ��� concorda Mongui��. ��� Olhe s��

essa gente como come ��s pressas.

��� E como �� poss��vel n��o comer ��s pressas? ��� per-

gunta Don German. ��� Veja o olhar ansioso, fam��lico

daqueles rapazes e raparigas que ah est��o de p�� es-

perando que uma das mesas fique vaga!

��� Outra coisa estranha ��� prossigo ��� �� que n��o

vemos nas ruas das cidades americanas gente que ande

simplesmente passeando. Eles v��o a algum lugar deter-

minado, porque t��m um encontro a uma certa hora, ou

ent��o ��� andam fazendo compras.

��� Nunca se v��em grupos parados ��s esquinas,

proseando ��� diz Mongui��.

Falamos num gostoso costume das gentes das ci-

dades sul-americanas: passear ao redor das pra��as

principalmente nos dias de retreta. Na vida de caf��,

onde pessoas que nunca t��m pressa ficam em torno duma

mesa discutindo pol��tica, mulheres, futebol ou a imor-

talidade da alma.

��� Esse ��� digo ��� �� um tra��o ib��rico que me pa-

rece digno de ser conservado. No fim de contas a arte

da conversa����o... �� uma das belas-artes.

E para provar que n��o somos apenas um grupo

de te��ricos, sa��mos do restaurante e vamos nos deitar

num tabuleiro de relva, �� sombra de pinheiros. De

onde estamos se avista, por cima dos altos eucaliptos

A VOLTA DO GATO PRETO

181

e carvalhos, a ponta da torre do Campanile. Para

muitos destes estudantes a import��ncia do Campanile

est�� em que ele �� das torres mais altas dos Estados

Unidos; oferece ainda a particularidade de ter sido

feita de granito da Calif��rnia. Acrescentar��o outros

que ele tem cem metros de altura e que seu carrilh��o

�� formado de doze sinos fundidos na Inglaterra. Para

n��s o Campanile �� apenas uma torre cujos sinos de

hora em hora tocam uma musiquinha agrad��vel. E

essa musiquinha agora marca a dura����o desta nossa

conversa mole e pregui��osa. Porque �� bom ficar aqui

deitado, mordiscando talos de grama, olhando o c��u

ou as estradas povoadas de estudantes, e conversando

sobre tudo e sobre nada.

Passa pela cal��ada que perlonga esse tabuleiro

de relva um professor do departamento de geografia.

Ao ver-nos, det��m-se por um minuto e pergunta:

��� Que conspira����o �� essa?

��� Ol��, hombre! ��� exclama Arciniegas. ��� Venha

tomar parte nesta discuss��o.

��� Sobre que �� que discutem? ��� indaga o pro-

fessor.

��� Sobre nada ��� respondo. ��� E ainda n��o chega-

mos a um acordo.

��� Vem ou n��o vem? ��� pergunta Mongui��.

O homem olha o rel��gio.

��� N��o posso. Estou com pressa. Tenho de tomar

um trem. Good-bye!

Vai-se. Ficamos com o sol e a nossa pregui��a.

Arciniegas conta que o Almanaque de Bristol, a grande

leitura de sua inf��ncia, em Bogot��, �� o principal res-

pons��vel pela sua voca����o liter��ria. Fica entusiasma-

do quando lhe afirmo que o mesmo se passou comigo.

Cito ainda o Almanaque Ayer, o da Cabe��a de Le��o.

De almanaques passamos a falar em caudilhos; de cau-

dilhos saltamos para comidas; de comidas para a ener-

182

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

gia at��mica. (Que estar��o fazendo os f��sicos l�� no

alto da colina, metidos naquele edif��cio circular?)

Os carrilh��es tocam uma melodia do velho Sul.

Que horas ser��o? N��o poderei nem ao menos por uma

vez esquecer o rel��gio? Vejo delinear-se-me na mente

uma figura; o velho An��lio, capataz de est��ncia. Tem

na cabe��a um chap��u de abas largas ��� para ele som-

brero ��� e veste largas bombachas.

Devo abrir aqui um par��ntese para uma expli-

ca����o. Como �� sabido, todos n��s temos os nossos de-

m��nios particulares. S��o criaturas que moram em algum

recanto de nosso c��rebro, ou, melhor, misteriosos

peixes que vivem escondidos no fundo do lago da

mem��ria e que, de quando em quando, independen-

temente de nossa vontade, aparecem �� tona e dizem

uma coisa, fazem um gesto, soltam uma exclama����o.

Dum certo modo eles dirigem nossa vida. S��o os

nossos censores.

Tr��s dem��nios me atormentam ��s vezes os pensa-

mentos. Dona Eufr��sia Roj��o, Jesualdo e o velho

An��lio. Sempre que fa��o, digo ou escrevo alguma coisa

que �� luz da boa educa����o pode ser considerada im-

pr��pria; sempre que tomo alguma liberdade com a

l��ngua portuguesa ou com qualquer outra l��ngua ���

dona Eufr��sia, minha professora bota a cabe��a para fora

do lago, franze o sobrolho, ergue o dedo e diz: "Ai-

ai-ai!" E eu fico frio. Jesualdo era um padeiro italia-

no da minha inf��ncia, um homem de dentes mi��dos e

estragados. Dizia-se carbon��rio, fumava cachimbo e

n��o tinha ilus��es sobre a natureza humana. Se lhe

apresentavam os dados dum problema, fosse ele in-

dividual, social, pol��tico, financeiro ou psicol��gico ���

sacudia a cabe��a e dizia: N��o tem jeito, que, na sua

meia l��ngua era: ��� No t�� j��to. Esse pessimismo uma

vez que outra perturba minha vis��o do mundo. Sem-

pre que tento olhar a vida e os homens com esperan��a,



A VOLTA DO GATO PRETO

183

Jesualdo me aparece em pensamentos, solta uma ba-

forada de fuma��a e diz: No t�� j��to.

Quanto a An��lio, era um fan��tico do dever e do

trabalho. Para ele um homem "direito", uma pessoa

de bem, devia pular da cama ��s cinco horas da manh��

e trabalhar honestamente at�� o p��r do sol. "Eta, ��ndio

ruim!" ��� era a frase que ele atirava, como uma pedra,

na cabe��a dos pregui��osos.

Pois �� An��lio que agora me aflora �� tona do lago

da mem��ria, gritando:

��� Eta, ��ndio ruim! ��� N��o lhe dou aten����o. Es-

tou gostando desta pregui��a mole. Sei que tenho de

estudar o romantismo para a li����o de depois de ama-

nh��. Preciso ir at�� a Biblioteca para fazer um trabalho

que aqui se designa com uma palavra muito impor-

tante: research. Mas vou ficando...

��� V�� trabalhar, vagabundo ��� vocifera An��lio. ���

Ganhando �� toa o dinheiro do governo!

Picado de remorso, levanto-me.

��� Bom. Vou andando ��� digo. Tenho de fazer

um estudo sobre o romantismo.

Jesualdo me aparece, faz uma careta e diz:

��� Romantismo? No t�� j��to.

E parece que n��o tem mesmo.

JACK O ESTRIPADOR

3 de abril. O sol aparece por uns instantes, rom-

pendo as nuvens pardacentas que cobrem o c��u de

San Francisco. Como n��o preciso ir hoje a Berkeley,

meto-me no parque.

Naturalmente vou fantasiado de Mr. Hyde, isto

��, de jaquet��o de lenhador e cal��as amarelas. Crian��as

brincam no declive da relva perto duma das alas do

184

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

museu. Distraidamente levo a m��o �� cabe��a duma

delas. �� uma meninazinha magra, com os cabelos

cheios de papelotes. Ao sentir o contato de meus

dedos a criaturinha ergue os olhos para mim, solta

um grito e deita a correr na dire����o dos amigos. L��

do alto do declive ela aponta para baixo e grita:

��� Ele quis me pegar! Deve ser um desses gangs-

ters, um raptor de crian��as!

Creio que estou vermelho, tenho as faces e as

orelhas ardendo. Estugo o passo e embarafusto pelo

t��nel, procurando a sombra como um morcego. Ago-

ra me ocorre que n��o me barbeei esta manh��. Vendo

uma cara sombria e morena, a criaturinha, trabalhada

por centenas de suplementos dominicais com hist��rias

sobre raptores de crian��as, e por centenas de filmes de

gangsters ��� julgou ver em mim um desses bandidos

cujos retratos ��s vezes aparecem na cr��nica policial dos

jornais.

Ainda ou��o o grito esgani��ado e vejo o dedo

acusador. Sinto-me culpado e cruel. Aqui vou numa

verdadeira retirada, com a impress��o de que todas as

crian��as dos Estados Unidos est��o em meu encal��o.

Sou Jack o Estripador. A sombra da forca me perse-

gue. O remorso me espica��a os flancos.

Saio no outro lado do t��nel. A luz do sol me ofus-

ca. Caminho apressado para a casa, atiro longe o

jaquet��o e vou direito ao quarto de banho para fazer a

barba.

De tr��s da porta surge um vulto... Ou��o um

tiro. Volto-me, num sobressalto. De capacete de a��o

na cabe��a, Lu��s aponta para mim a metralhadora de

pau.

��� Ora, v�� assustar a sua v��! ��� grito, antipedag��-

gicamente.



A VOLTA DO GATO PRETO

185

IGUARIA

4 de abril. "Muitos bons dias!" A voz macia e

aflautada do Prof. Yacob Malkiel soa no corredor de

Wheeler Hall. "Bom-dia", respondo no singular. E fi-

camos frente a frente, a sorrir um para o outro. Aqui

est�� diante de mim um dos mais not��veis ling��istas

que tenho encontrado em toda a minha vida. Nasci-

do na R��ssia, criado na Alemanha, doutorou-se com

distin����o em filologia, na Universidade de Berlim. Fa-

la russo, italiano, alem��o, ingl��s, franc��s, espanhol e

portugu��s. Conhece latim, grego e hebraico. No en-

tanto quem v�� este mo��o de rosto carnudo, com um

jeito de mocho e gestos de seminarista, n��o d�� um

centavo por e l e . . .

��� Quero oferecer-lhe um exemplar do meu ��l-

timo op��sculo ��� diz Malkiel, entregando-me um fo-

lheto. �� a separata dum estudo publicado numa re-

vista filol��gica, sobre a origem da palavra portugue-

sa iguaria: setenta p��ginas de tipo mi��do.

��� Oh! Muit��ssimo obrigado.

E quando Yacob Malkiel me deixa e sai no seu

passinho macio na dire����o do escrit��rio, fico a folhear

o livreto. Escritor de fic����o, homem do mundo do

faz de conta, estreme��o diante de tanta erudi����o, de

tanta paci��ncia, de tanta pesquisa. E n��o posso dei-

xar de admirar esse incr��vel professor que ��� junta-

mente com Ronald Hilton, da Universidade de Stan-

ford e com esse not��vel Marion Zeitlin ��� �� dos que

mais t��m contribu��do na Calif��rnia para a difus��o e

conhecimento da l��ngua portuguesa, essa "flor do La-

cio, inculta e bela" e ��� permita-se acrescentar ��� tre-

mendamente complicada...



186

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

DOIS MUNDOS

S de abril. Uma de minhas alunas, Miss Wolf, ��

uma refugiada europ��ia que em tempos idos foi bai-

larina e professora de dan��a em Viena. �� uma mu-

lherinha de meia-idade, apagada e triste. Assiste ��s

minhas aulas de literatura, e revela um interesse es-

pecial pelo folclore brasileiro.

Vou hoje tomar ch�� no seu apartamento de sol-

teirona solit��ria. Miss Wolf me diz de sua esperan��a

de poder um dia ir morar no Rio ou em S��o Paulo.

Para ela a vida em Berkeley n��o �� das mais f��ceis. J��

deu um curso de confer��ncias sobre dan��a na Uni-

versidade, mas presentemente n��o tem aqui nenhuma

fun����o docente. Ganha a vida fazendo trabalhos de

pesquisas para professores ou revisando provas de li-

vros para autores que vivem em Berkeley. Conta-me

que est�� organizando uma antologia po��tica sobre a

amizade, e na qual espera incluir autores de todas as

terras e de todos os tempos. Confessa-me, entretan-

to, que os editores a quem j�� escreveu contando de

seu empreendimento n��o se mostraram interessados na

edi����o do livro.

Enquanto bebericamos ch�� e mordiscamos biscoi-

tos, penso no drama de Miss Wolf, que n��o consegue

adaptar-se �� vida americana. Suas ra��zes sentimen-

tais ainda se acham metidas em solo europeu. Qual!

Pior ainda. Foram brutalmente arrancadas de l�� e n��o

puderam ainda afundar neste ch��o da Calif��rnia: es-

t��o no ar, meio ressequidas e quase mortas. Nada sa-

be dos poucos parentes que lhe restam. Talvez te-

nham morrido sob os bombardeios, ou estejam defi-

nhando num campo de concentra����o. Compreendo

que envelhecer deve ser doloroso especialmente para

uma mulher como Miss Wolf para quem a beleza, a

A VOLTA DO GATO PRETO

187

harmonia do corpo e a gra��a dos movimentos pare-

cem ter sido a sua maior fonte de alegria e esperan-

��a. Ela me mostra fotografias da mocidade. Vejo-a

envolta num manto grego, dan��ando ao vento �� som-

bra das ru��nas dum templo.

Num dado momento sinto que Miss Wolf est�� ��

beira duma confid��ncia. N��o sei por que as pessoas

acabam sempre por me fazer confid��ncias...

��� Vou lhe mostrar uma coisa... ��� diz ela, er-

guendo-se. ��� Mas sob o mais absoluto sigilo...

��� Pode contar com a minha discri����o ��� asse-

guro-lhe.

Miss Wolf abre a gaveta duma c��moda e tira de-

la uma pasta. Imagino que dali v�� sair um di��rio ��n-

timo, ou ent��o, cartas de amor, escritas talvez por

algum arquiduque austr��aco. Mas n��o. O que vejo ��

uma s��rie de desenhos em papel ��spero. E enquanto

os estende no ch��o, vai dizendo:

��� Eu s�� mostro estes trabalhos para aqueles que

julgo capazes de compreend��-los, e de compreender

tamb��m o motivo por que eu os fiz.

Sua voz sem cor perde-se no ar. Ela mal cont��m

um suspiro. Olho os desenhos. S��o c��rculos, tri��ngu-

los, retas que formam complicados ornamentos cujo

sentido n��o logro penetrar. N��o me dizem nada. Dei-

xam-me indiferente. Confesso isso francamente a

minha amiga, e ela murmura:

��� A�� est��. N��o querem dizer nada mesmo. Isso

�� arte abstrata.

Sacudo a cabe��a silenciosamente. Percebo que

todas as paix��es, lembran��as e sonhos recalcados de

Miss Wolf tomaram a forma desses desenhos. Para

n��s, homens, a dan��a e o ritmo est��o intimamente li-

gados �� forma humana. Ora, dificilmente podemos con-

templar um belo corpo de mulher sem ao menos al-

guma paix��o, e ��-nos por isso dif��cil dissociar da dan-

188

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��a, do movimento do corpo a id��ia de sexo. Est�� tu-

do ligado, amalgamado duma maneira insepar��vel, e

no que diz respeito �� dan��a, me parece tolo falar so-

bre arte pura, etc... Na sua timidez de solteirona,

Miss Wolf deve temer tudo quanto possa lembrar o

corpo humano e suas paix��es. �� por isso que busca

uma v��lvula de escape nesses desenhos angulosos, as-

sexuados do abstrato. (Ou ser�� que sou apenas o

que os americanos do norte chamam de lousy latin ���

latino s��rdido?)

Das janelas do apartamento de Miss Wolf tem-se

uma vis��o panor��mica da Universidade. Vejo l�� em

baixo, no est��dio, um grupo de rapazes de cal����es cur-

tos e torso nu a jogar voley-ball. Seus corpos reluzem

ao sol e o vento traz at�� n��s as suas vozes estridulas.

Aqueles mo��os ��� reflito ��� decerto n��o pensam em ar-

te abstrata. Para falar a verdade n��o devem pensar

em arte nenhuma. N��o buscam suced��neos para a

vida, pela simples raz��o de que t��m o artigo genu��no.

Olho para Miss Wolf aqui a meu lado, e, num

berrante contraste, vejo-a murcha, a buscar nestes

desenhos o que aqueles belos animais encontraram no

contato com as coisas concretas. Depois do jogo, uma

ducha fria. Depois da ducha, as suas roupas frouxas,

despretensiosas e esportivas. A seguir, o encontro com

as namoradas, e uma excurs��o doida atrav��s de caf��s,

dancings rinques de patina����o ��� tudo isso numa tro-

ca de beijos e abra��os.

Penso na minha curiosa posi����o entre esses dois

mundos. N��o perten��o a nenhum deles ��� concluo.

Mas devo confessar que se meu corpo est�� aqui nes-

te apartamento, minha aten����o est�� l�� fora, seguindo

os movimentos daquela pelota de couro ao sol.

De resto n��o ter�� este contraste uma natureza

simb��lica? Os desenhos abstratos de Miss Wolf re-

presentam uma civiliza����o "sofisticada" em artigo de



A VOLTA DO GATO PRETO

189

morte; e os rapazes seminus l�� em baixo corporificam

a civiliza����o instrumentalista e sadia do novo mun-

d o . . .

Literatura! Pura literatura. A vida n��o cabe as-

sim em conceitos e imagens. Al��m do mais, o mundo

ideal parece-me, seria aquele em que a cultura e a

experi��ncia da velha Europa pudessem ser revitali-

zadas, rejuvenescidas ao calor desta contente e tumul-

tuosa terra americana.

A "NONA" E O MARINHEIRO

10 de abril. Tenho dois bilhetes para a ��pera,

onde a orquestra sinf��nica de San Francisco e o Coro

Municipal v��o executar a "Nona Sinfonia" de Bee-

thoven, sob a reg��ncia de Pierre Monteux. Como Ma-

riana infelizmente n��o p��de vir, aqui estou agora na

frente do teatro a procurar algu��m a quem dar a ou-

tra entrada. Vejo um marinheiro de quase dois me-

tros de altura, com cara de boxador, encostado a

uma coluna.

��� Quer entrar? ��� pergunto-lhe, sem muita espe-

ran��a de ouvir um sim.

Ele me olha, meio intrigado.

��� Por que pergunta?

��� Tenho uma entrada aqui..

��� Quanto ��?

��� N��o custa nada. Dou-lhe de presente.

Ele me faz ent��o a pergunta que quase todos os

americanos fazem em circunst��ncias como esta:

��� Est�� certo de que n��o vai precisar desse bi-

lhete?

��� Absolutamente.

��� Thanks! ��� diz ele sorrindo.



190

OBRAS DE E R I C O V E R �� S S I M O

Quinze minutos depois estamos lado a lado, no

balc��o da ��pera.

�� um belo interior de paredes cor de marfim quei-

mado. No centro do teto pende enorme lustre na

forma duma flor estilizada. As cadeiras s��o estofadas

de veludo cor de vinho. O teatro est�� completamen-

te cheio. Os membros da orquestra e do coro j�� to-

maram seus lugares. Entra, sob aplausos, Pierre Mon-

teux, e n��o posso deixar de lan��ar m��o duma ima-

gem zool��gica para o descrever: parece-se com uma

capivara com bigodes de foca.

E n��o h�� imagem, nem zool��gica nem de esp��-

cie nenhuma, que possa descrever minha emo����o

quando rompe o coro da sinfonia ��� trazendo consi-

go, a refor��ar as sensa����es deste momento, a lembran-

��a de todas as outras emo����es que senti nas muitas

vezes do passado em que ouvi a Nona.

No intervalo converso com o marinheiro e fa��o

uma s��rie de coment��rios liter��rios, desses brilharetes

que em geral usamos para esconder a nossa ignor��n-

cia em mat��ria de m��sica. E este marmanjo de cara

amassada e est��pida me arrasa com uma longa, minu-

ciosa disserta����o t��cnica e erudita sobre harmonia e

contraponto...

OS ANT��PODAS

12 de abril. Travo hoje conhecimento com um

dos professores do Departamento de L��nguas Orien-

tais da Universidade. �� natural da Cor��ia e tem um

nome de tal modo complicado, que nem tentarei re-

produzi-lo aqui. Tomamos o mesmo trem de volta pa-

ra San Francisco. Conversamos sobre a guerra e so-

bre a paz que h�� de vir. Ele me pergunta do Brasil;

eu lhe pergunto da Cor��ia. Quando o trem deixa Ber-

A VOLTA DO GATO PRETO

191

Keley, principiamos a palestra um tanto bisonhos e

cerimoniosos. Mas chegamos ao outro lado da ba��a

em t��o boa e natural camaradagem, que decidimos

jantar juntos numa cafeteria para prolongar o di��logo.

Empunhando nossas bandejas corremos o balc��o, sele-

cionando o menu. Verificamos que, sem a menor com-

bina����o, escolhemos os mesmos pratos. Agora estamos

sentados �� mesma mesa, um na frente do outro. O

meu amigo coreano �� um jovem retaco, dum amarelo

p��lido e seco, os olhos obl��quos e humildes. Usa ��culos

de grossas lentes e sua voz �� aguda e pobre de modu-

la����es. Acho interessante que estes dois ant��podas se

tenham encontrado por acaso e agora estejam masti-

gando em sil��ncio um sum��rio jantar numa cafeteria

de San Francisco da Calif��rnia.

O coreano me diz de sua esperan��a de voltar ��

p��tria, e de v��-la um dia livre do dom��nio japon��s.

Falo-lhe do Brasil e do meu desejo de v��-lo com um

governo democr��tico. Trocamos id��ias sobre homens

e coisas. �� interessante: nossas opini��es n��o diferem

muito; nossos sonhos seguem na mesma dire����o.

Despedimo-nos com um prolongado aperto de

m��o.

��� Se um dia aparecer pelo Brasil ��� digo-lhe ���

n��o se esque��a de me procurar.

Dou-lhe um cart��o com meu nome e endere��o.

Ele me d�� o seu cart��o em que seu nome vem escri-

to em caracteres orientais, com o correspondente em

pros��dia inglesa logo abaixo.

��� E se o senhor algum dia for �� Cor��ia...

��� Quem sabe? O mundo est�� ficando muito pe-

queno.

Separamo-nos. O coreano some-se no meio da

multid��o de Market Street.

Wendell Wilkie, voc�� tem raz��o. O mundo �� um

s��.



192

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

LANTERNAS NA FLORESTA

14 de abril. A Universidade da Calif��rnia comemo-

ra hoje o dia pan-americano. Alunos e professores

reunem-se no gymnasium ��s dez da manh�� para ouvir

os dois oradores oficiais. Um deles �� German Arci-

niegas; o outro, eu. Toca-me falar em primeiro lu-

gar. Dr. Deutsch, vice-presidente da Universidade,

diz algumas palavras de apresenta����o, eu me aproxi-

mo do microfone e olho em torno. Nunca em toda a

minha vida falei para um p��blico t��o grande. Neste

vasto sal��o acham-se sentadas nada menos de cinco

mil pessoas. Avisto caras conhecidas. L�� est�� o Prof.

Herbert Evans. Mais al��m o Prof. Lawrence, o alqui-

mista. De sua cadeira Morley sorri para mim encora-

jadoramente. Vejo tamb��m generais do ex��rcito, almi-

rantes . .. Aqui e ali vislumbro uma barbicha ilustre.

E nas arquibancadas ��� toda uma multid��o de su��teres

coloridas e faces jovens.

Come��o o discurso falando na hist��ria de Jo��o-

zinho e Ritinha perdidos na floresta, e comparo as

gera����es modernas com os dois her��is do conto. Falo

nos tempos medievais em que, entre as classes po-

bres, prevalecia a antiga id��ia de que a felicidade era

imposs��vel neste "vale de l��grimas". Os bar��es feu-

dais procuravam fomentar essa id��ia, porque ela ser-

via admiravelmente seus prop��sitos. Ser feliz e sen-

tir prazer ��� diziam eles, secundando os padres ��� era

um pecado, uma pedra de trope��o no caminho do

c��u. No c��u �� que estava o verdadeiro pr��mio...

Assim adormentados por esse ��pio os servos resigna-

vam-se a uma vida de pobreza e duros trabalhos, ao

passo que os bar��es viviam �� tripa forra.

Falo nas mudan��as que com o passar dos s��culos

se operaram nesse conceito de felicidade. O progres-

A VOLTA DO GATO PRETO

193

so t��cnico e cient��fico dos ��ltimos cinq��enta anos

contribu��ram para a felicidade e o bem-estar material

dos povos. A ci��ncia, servida pela ind��stria, nos deu

coisas que aumentaram o prazer de viver e aliviaram

o fardo que as doen��as impunham. In��meras desco-

bertas e inven����es de v��rios modos contribu��ram para

tornar a vida mais higi��nica, mais bela, mais f��cil e,

conseq��entemente, mais agrad��vel.

Fa��o uma pausa e, destacando bem as palavras,

ponho uma ��nfase toda especial no que vem a se-

guir:

H��, por��m, um importante problema social que

est�� longe duma solu����o justa. Como fazer que a

maioria do povo goze dos benef��cios desse progresso?

Porque at�� agora os ��nicos que desfrutam dele s��o

os que podem pagar. E o mesmo acontece com a

educa����o!

Menciono o problema do lucro, que me parece

um dos pontos nevr��lgicos da quest��o. Em pa��ses

onde popula����es inteiras vivem ou, antes, vegetam

num estado de subnutri����o, g��neros de primeira ne-

cessidade s��o queimados ou jogados ao mar. Os

t��cnicos explicam friamente: �� uma quest��o de pre-

��os. Concluo: Um mundo que coloca o lucro acima

das vidas humanas �� um mundo perdido, corrupto e

hediondo .

Passo a falar nos "idealistas" que se recusam a

examinar a crise dos tempos modernos �� luz da eco-

nomia. Por qu��? V��em a tremenda luta pelo petr��-

leo, pelo trigo, pelo carv��o, pelo algod��o, pelos mer-

cados e por maiores lucros e continuam a proceder co-

mo se os homens fossem anjos. Na����es inteiras t��m

sido conduzidas como casas comerciais com um olho

nos lucros. Mais uma vez confundiram-se os meios

com os fins. Esqueceram que o Estado deve servir

o povo e n��o o povo o Estado. N��o compreenderam

194

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

que os interesses do homem comum, isto ��, da maio-

ria, devem ser colocados acima das corpora����es pri-

vadas, dos cart��is e dos trustes.

Esta guerra ��� prossigo, fazendo o poss��vel para

n��o assumir ares prof��ticos ��� �� at�� certo ponto uma

guerra ideol��gica, mas �� principalmente uma guerra

econ��mica. E se quisermos descobrir um rem��dio

eficaz para esse horr��vel flagelo peri��dico, n��o deve-

mos ignorar a sua verdadeira natureza. H�� um fato

que ilustra de maneira dram��tica o que estou dizendo.

Os avi��es japoneses que bombardearam Pearl Harbour

empregaram, ao que se diz, gasolina americana, e as

bombas que lan��aram eram provavelmente feitas de

ferro velho tamb��m americano.

Olho o rel��gio. Tenho apenas mais dez minutos

para salvar o mundo ��� digo para mim mesmo. Falo

na coopera����o interamericana e na aproxima����o que-

se operou entre as na����es do continente, e motivada

pela guerra. E termino assim:

Um soci��logo vosso compatriota comparou a hu-

manidade com um grupo de homens com lanternas

acesas a buscar um caminho atrav��s de escura e in-

comensur��vel floresta. Sim, a imagem �� quase perfei-

ta. Digo quase porque lhe fa��o uma obje����o. N��o

devemos esquecer que muitos dos componentes desse

grupo se recusam a cooperar, por pessimismo, ego��s-

mo, pregui��a ou simples estupidez. E h�� tamb��m os

malvados, os que preferem riscar f��sforos e deitar fo-

go �� floresta.

O que importa, meus amigos, �� manter acesas

nossas lanternas e continuarmos �� procura do caminho

para a liberdade e para uma vida melhor. A jornada

�� longa, e terr��vel �� a noite. Mas agora estamos des-

cobrindo o verdadeiro sentido da fraternidade. Avan-

��amos de m��os dadas. E sabemos que, aconte��a o

que acontecer, n��o estaremos s��s .



A VOLTA DO GATO PRETO

195

N��o sei como v��o receber minhas palavras. Ter-

mino o discurso e meto meio nervosamente os pap��is

no bolso. H�� um hiato de mais ou menos dois segun-

dos. Depois rompem os aplausos, ��� aplausos espon-

t��neos, fortes, prolongados, que s��o uma resposta ��

minha d��vida.

Passo o len��o pelo rosto, que est�� alagado de suor,

e volto para a minha cadeira. Ao passar por Arcinie-

gas, n��o resisto a tenta����o de piscar-lhe o olho...

CREPUSCULAR

15 de abril. Quem �� aquele homem que ali vai

com a gola do casaco erguida, e o chap��u de feltro

negro desabado sobre os olhos? �� um professor do

Departamento de Espanhol da Universidade, um ho-

mem crepuscular, de olhos escuros, barba sempre azu-

lando, rosto emaciado, olhos fundos e ar soturno. ��

calado, retra��do e franquista. Para falar a verdade, ��

o ��nico partid��rio da Falange num Departamento em

que todos os professores adoram a Espanha e detes-

tam Francisco Franco.

L�� vai essa personagem medieval atravessando a

rua, rumo do port��o que d�� para Telegraph Street.

Nada tem a ver com o sol, com estas raparigas e ra-

pazes que por aqui andam. Ele n��o caminha atrav��s

da vida e das criaturas: ele se esgueira. Seu primeiro

nome �� Erasmo. O segundo, n��o posso dizer. �� um

nome anat��mico, desses que a gente n��o pode pro-

nunciar diante de senhoras. Se nosso her��i tivesse de

ir morar no Brasil, na certa seria obrigado a mudar

de sobrenome.

Nunca ouvi a voz desse sombrio professor nem

espero ouvi-la nunca. Se ele j�� me evitava antes, ago-

ra depois do meu discurso de ontem, foge de mim co-



196

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

mo o diabo da cruz. Acontece, por��m, que neste ca-

so a cruz �� ele e o diabo sou eu.

UM RATO �� UM BICHO

16 de abril. Sou tamb��m orador oficial do Mills

College, nas suas comemora����es do dia pan-america-

no. A cerim��nia se realiza num belo teatro dentro do

campus. �� o Mills um dos col��gios femininos mais im-

portantes desta costa do Pac��fico. Aqui se educam

mo��as ricas, que, al��m de fazer o curso de letras, ar-

tes e filosofia, aprendem equita����o, nata����o e dan��a.

Diante de mim tenho um microfone. Pouco abai-

xo do microfone, as bandeiras das vinte e uma na����es

americanas dispostas em forma de leque. Para al��m

delas, seiscentas faces numa quase penumbra, e um

mar agitado de cabe��as. Atr��s de mim, no palco, Mr.

Lynn White, diretor do Mills, e que acaba de fazer

minha apresenta����o; e mais alguns membros da Junta

Administrativa do col��gio, senhores simp��ticos de

meia-idade, bem barbeados, bem vestidos ��� todos

eles pessoas de alta posi����o no mundo das finan��as

de San Francisco e Oakland. Acho que este �� o am-

biente menos adequado para um discurso no qual

lan��o a maior culpa dos desacertos do mundo e das

guerras para cima das largas costas do capitalismo.

Que fazer? Meus dem��nios particulares come��am a

manifestar-se. Dona Eufr��sia me diz que n��o devo

repetir o discurso que fiz ontem na Universidade,

porque ser�� uma indelicadeza. N��o terei eu por aca-

so o senso da oportunidade? Indiferente e a encolher

os ombros, Jesualdo murmura: No t�� j��to. Mas quem

me d�� ��nimo neste instante �� An��lio, o velho ga��-

cho. Quebra a aba do sombrero e grita: "Um homem

�� um homem; um rato �� um bichol"

A VOLTA DO GATO PRETO

197

Est�� decidido. Para essas seiscentas meninas

bem tratadas, que esperam decerto ouvir um discurso

cor-de-rosa em que se diga que as vinte e uma na-

����es americanas s��o hermanitas, sisters, irm��zinhas

que vivem num para��so, dan��ando valsas e atirando

flores umas nas outras; para essas seiscentas mocinhas

admir��veis come��o a falar na floresta escura, na mi-

s��ria em que vive a maior parte da popula����o da ter-

ra, nos absurdos do mundo capitalista e do horror

de Pearl Harbour, para o qual algumas firmas norte-

americanas cooperam, porque no fim de contas, dear

friends, neg��cio �� neg��cio, amigos �� p a r t e . . .

Quando termino, os aplausos s��o prolongados e

entusiastas. Os americanos s��o muito espont��neos no

que diz respeito ao aplauso. V��m para o teatro, pa-

ra o cinema, para a sala de confer��ncias decididos a

gostar. Imaginemos um sal��o cheio de gente. De re-

pente algu��m come��a a bater palmas. Em menos de

um segundo todos ali dentro estar��o aplaudindo sem

saber por qu��. Essa disposi����o para o aplauso �� um

dos tra��os mais simp��ticos deste povo, pois �� um si-

nal de boa vontade, de aus��ncia de mal��cia, e de de-

sejo de estimular.

Mr. Kendrick, o presidente da Junta Administra-

tiva, caminha para mim. �� um homem alto, de rosto

comprido e anguloso. Sei que �� um milion��rio. N��o

posso esperar que concorde com o que acabo de di-

zer. Vejo-o, por��m, estender a m��o para mim. Aper-

to-a fortemente, enquanto ele diz:

��� Como capitalista, discordo de muitas de suas

id��ias, mas felicito-o pela maneira clara e corajosa

com que exp��s sua maneira de ver o problema.

E depois, com ar casual:

��� Tem condu����o para San Francisco?

��� N��o ��� respondo.



198 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Venha ent��o no nosso carro. Minha senhora

e eu teremos muito prazer em lev��-lo.

T��VOLA REDONDA

20 de abril. Dificilmente se passa uma semana

em que eu n��o seja convidado a falar duas ou tr��s

vezes fora da Universidade. Assim, tenho feito con-

fer��ncias para grupos de senhoras interessadas em

problemas sociais, para clubes de damas amigas do

pan-americanismo, para homens de neg��cios preocupa-

dos com o rumo do com��rcio deste pa��s com a Am��-

rica Latina depois da guerra, e para associa����es de

estudantes. Gosto principalmente do conv��vio destes

��ltimos. Tenho discutido os assuntos mais imprevis-

tos. Na minha ��nsia de explicar o Brasil e os brasilei-

ros para essa gente (e de certo modo para mim mes-

mo) procuro fugir o mais poss��vel �� literatura oficial,

t��o falsamente otimista e simplificadora. N��o escon-

do os aspectos da vida brasileira que me parecem

maus, a fim de que tenha cr��dito suficiente para uti-

liz��-lo mais tarde, quando tiver de mostrar o que me

parece elogi��vel na nossa terra. Esses audit��rios ame-

ricanos querem saber tudo: como somos, o que come-

mos, o que amamos, o que odiamos, o que fazemos,

como vivemos. ��s vezes surgem perguntas tolas,

mas estas s��o paradoxalmente as que mais se pres-

tam para uma resposta viva e oportuna.

Tenho hoje uma experi��ncia nova. Tomo parte

numa dessas round tables, ou t��volas redondas, isto

��: discuss��es entre quatro, cinco ou mais pessoas ���

escritores, professores, profissionais, industrialistas ���

em torno de problemas de interesse geral. H�� um

"moderador" que apresenta ao p��blico os componen-

tes da mesa, que exp��e o ponto a discutir, e que,

A V O L T A DO GATO P R E T O

199

quando a discuss��o est�� acesa, trata de evitar que os

contendores se afastem demasiadamente do assunto.

A round table de hoje vai ser irradiada. Uma das re-

gras do jogo �� que nenhum pode ler o que vai dizer,

pois o desenvolvimento da discuss��o �� imprevisto. O

tema a debater �� "Boa vizinhan��a", e aqui no estu-

dio estamos reunidos ao redor do microfone ��� uma

senhora nicaraguana, um venezuelano, um arquiteto

americano, o Dr. Eloesser, famoso cirurgi��o e filan-

tropo, e outras personalidades. Quando chega a mi-

nha vez, a pergunta que me toca ��:

��� Os brasileiros gostam dos americanos?

Resposta:

��� �� muito dif��cil responder com um sim ou com

um n��o. Nossa tend��ncia, no Brasil, �� de gostar das

pessoas. Mas para n��o cair em nenhum otimismo

convencional preciso dizer que h�� no meu pa��s v��-

rias fontes de propaganda antiamericana.

��� E quais s��o elas.. . pode dizer?

��� Em primeiro lugar, temos os integralistas, ou

seja, os fascistas brasileiros, que gostariam de ver seu

pa��s do lado do Eixo. Depois, temos os pr��prios ale-

m��es que residem no Brasil. . . Refiro-me apenas aos

nazistas...

��� Muito bem. Continue.

��� H�� ainda alguns membros influentes da Igreja

Cat��lica que baseiam seus sentimentos antiamerica-

nos na id��ia de que os Estados Unidos s��o um pa��s

protestante, que manda mission��rios para o Brasil, e

cuja influ��ncia lhes parece indesej��vel. Esses mem-

bros . . .

O moderador ergue a m��o:

��� Espere um momento. O senhor n��o deve dis-

cutir religi��o...

200 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Quem �� que est�� discutindo religi��o? Estou

apenas dizendo...

O homem me interrompe de novo:

��� Se o senhor conhecesse as leis dos Estados

Unidos nem mencionaria esses fatos...

��� Perd��o. O senhor me fez uma pergunta e eu

estou tratando de responder honestamente, e o que

ia dizer n��o envolvia nenhuma cr��tica ao catolicismo

brasileiro ou americano...

��� Bom. Vou passar adiante...

��� Pois passe adiante, j�� que n��o quer ouvir a

verdade...

O moderador est�� vermelho. De meu lugar posso

ver o controlador do som, l�� do outro lado do vidro,

como um peixe de aqu��rio. E o peixe sorri, divertin-

do-se com a discuss��o.

Mas estou perturbado. Nunca esperei que me

cortassem desse modo a palavra. Eu ia fazer pelo r��-

dio um apelo aos cat��licos dos Estados Unidos, pe-

dir-lhes que tratassem de explicar aos cat��licos brasi-

leiros que a Igreja �� forte e influente neste pa��s, e

que a liberdade de culto que aqui existe, e a toler��n-

cia religiosa que aqui se exerce devia servir de mo-

delo para os pa��ses da Am��rica do Sul.

O moderador de novo se prepara para me fazer

uma pergunta:

��� Agora, meu amigo brasileiro, quer me di-

zer... ?

Interrompo-o:

��� Eu n��o quero dizer nada. N��o acredito que

o senhor esteja interessado numa resposta sincera.

Quando sa��mos do est��dio Mr. W. me procura,

toma-me cordialmente do bra��o e diz:

��� Sabe que s�� por aquelas palavras suas a esta-

����o de r��dio podia ser processada?



A VOLTA DO GATO PRETO

201

��� N��o compreendo.. .

��� Pois ��. Neste pa��s as seitas religiosas s��o su-

persens��veis e reagem imediatamente ante qualquer

palavra que possa parecer um ataque, por leve que

seja, �� liberdade de culto garantida pela Constitui����o.

��� Quer dizer ��� replico ��� que por causa da li-

berdade de culto a liberdade de palavra �� atingida.

��� Que quer? Num livro o senhor poder�� escre-

ver o que quiser contra qualquer religi��o, e arcar

com as conseq����ncias. Mas n��o num programa de

r��dio ou num jornal. O assunto �� tabu.

��� Nesse caso. . . pe��o desculpas por ter estra-

gado o seu programa.

Ele me bate nas costas, esportivamente.

��� Esque��a-se disso.

E me aperta a m��o.

A ISCA

23 de abril. Minha magra contribui����o para o

esfor��o de guerra consiste em fazer palestras pelo r��-

dio, nos programas transmitidos para a Europa sob

o patroc��nio de Office of War Information, e ocasio,-i

nalmente falar em hospitais de marinheiros e soldados

convalescentes.

Cabe-me hoje fazer uma confer��ncia para qui-

nhentos soldados num grande hotel de Oakland que

foi transformado em hospital. O audit��rio �� dos mais

dif��ceis. Vejo aqui gente que pelo aspecto parece de

poucas letras. Ora, sei como falar a clubes femininos,

a grupos de estudantes, e a rotarianos. Mas esta �� a

primeira vez que falo a soldados. Vejo entre eles

alguns pretos e muitos descendentes de mexicanos. O

ar geral �� de indiferen��a. L�� na terceira fila est�� um

j�� de olhos fechados, na atitude de quem vai dormir.

O oficial encarregado do programa me comunica que

202

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

o microfone levar�� minhas palavras diretamente aos

doentes que ainda est��o de cama nos duzentos quar-

tos espalhados pelos andares superiores. O problema

me parece dif��cil. Como interessar essa gente no Bra-

sil? Como podem esses homens que viram o horror

da guerra, que sofreram no esp��rito e na carne toda a

sorte de viol��ncia e de prova����es interessar-se por

not��cias dum pa��s t��o remoto? Saber��o vagamente

que o Brasil �� uma terra tropical onde nasceu Car-

men Miranda e de onde vem o caf��. Nada mais. O

que eles querem �� recuperar a sa��de, ver a guerra

terminada e poder continuar a viver normalmente

suas vidas. A estes pensamentos e diante dessas ca-

ras ��� em sua maioria p��lidas, emagrecidas e doloro-

sas ��� quase me confesso vencido. Tenho, por��m, uma

id��ia. No fundo, esses homens devem ser um pouco

crian��as. Murmuro ao ouvido dum oficial:

��� Arranje-me um quadro-negro e giz de muitas

cores.

��� Okay. Em seguida!

Agora tenho aqui um quadro-negro, v��rios peda-

��os de giz, e um plano. E antes de come��ar a dizer

"Meus amigos. . .", ou "Soldados..." ��� ponho-me a

desenhar as caravelas portuguesas onde marinheiros

escrutam ansiosamente o horizonte, em busca de si-

nais de terra. O interesse do audit��rio come��a a ser

despertado. Algu��m solta uma risada quando me v��

rabiscar a cara barbuda de Pedro ��lvares Cabral. Ou-

tras risadas brotam. Por fim �� uma gargalhada ge-

ral. Noto uma transforma����o nas fisionomias. Leio

nelas interesse, curiosidade. Decerto esperavam e te-

miam um discurso solene, liter��rio, erudito. Mas ve-

rificam que nada disso vai acontecer. E entregam-se

de tal maneira, que engolem a p��lula a��ucarada que

lhes meto garganta abaixo. Com caricaturas na pedra

e com anedotas explico-lhes como o Brasil foi des��o-



A VOLTA DO GATO PRETO

203

berto e, em linhas gerais, conto-lhes tudo que acon-

teceu para virmos a ser o que somos hoje. O re-

sultado �� ��timo.

Despe��o-me deles, feliz n��o s�� porque lhes pro-

porcionei alguns momentos de distra����o, como tam-

b��m porque como conferencista descobri uma nova

t��cnica que devo aperfei��oar e usar daqui por diante,

seja para que audit��rio for...

O HOMEM DE PRETO

26 de abril. Quem �� esse velho pobremente ves-

tido de preto, de longas barbas brancas e melenas

crescidas que parecem de algod��o sujo e ressequido?

Quem �� esse velho que caminha com a cabe��a t��o

baixa que ela chega a formar um angulo reto com o

resto do corpo? Parece uma figura pintada por Pi-

casso ��� digo para mim mesmo, quando o vejo passar

como uma sombra silenciosa por estes corredores do

quarto andar do Wheeler Hall.

Hoje encontro a misteriosa criatura sentada nas

bordas dum canteiro, no Campanile Way, com os co-

tovelos apoiados nos joelhos, as m��os espalmadas a

cobrir o rosto. Queda-se nessa posi����o por longo, lon-

go tempo. Escondido atr��s dum arbusto, tico a obser-

v��-lo, intrigado. Porque esse homem que n��o fala com

ningu��m e cuja voz, creio, ningu��m jamais ouviu, ��

um verdadeiro contraste com os jovens cheios de vi-

da que entram e saem destes edif��cios, ou que andam

por estes sendeiros da Universidade.

O velho tem uma pele terrosa e emurchecida.

Suas m��os s��o longas, ossudas e dessangradas. Sua

roupa, que j�� foi preta, tornou-se ru��a com o tempo e

o uso; e como esteja agora suja de terra ��� a impres-



204

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

s��o que tenho �� a de que estou diante dum cad��ver

rec��m-desenterrado.

Quem ��? ��� pergunto a professores e alunos. Eles

encolhem os ombros. Ningu��m sabe ao certo. O ze-

lador do edif��cio me diz que se trata ��� parece ��� dum

velho professor de matem��tica que agora faz as vezes

de explicador para um grupo de alunos. Mas �� a mi-

nha aluna Patsy Mc Ewen quem me oferece a vers��o

mais fascinante da hist��ria do homem de preto. Con-

ta-se que h�� quarenta anos nosso her��i foi contem-

plado com uma heran��a da parte dum tio que aca-

bara de morrer, deixando expresso em testamento o

desejo de que o sobrinho cursasse uma universidade.

Para evitar d��vidas, disp��s que a fortuna lhe fosse en-

tregue n��o duma vez s��, mas em pagamentos mensais,

sob a condi����o, por��m, de que o "rapaz" nunca aban-

donasse o curso, pois no caso de isso acontecer as

mensalidades cessariam automaticamente de lhe ser

entregues. Desse modo, para n��o deixar de receber

a mesada, o nosso homem continuou a freq��entar a

universidade. O tempo passou, passaram-se as gera-

����es, subiu o custo da vida mas a import��ncia dos pa-

gamentos mensais n��o aumentou. Tudo se tornou di-

f��cil para esse homem solit��rio, que at�� hoje ��� eter-

no estudante ��� vagueia como uma alma penada pe-

los corredores da universidade.

Essa hist��ria pode n��o ser ver��dica, mas �� inte-

ressante. Temendo que algu��m a desminta, decido a

n��o perguntar mais nada sobre o homem de preto...

LIBERDADE

27 de abril. Na Market Street. Parado junto da

porta monumental do magazine The Emporium olho

as pessoas que passam. De repente, no meio desta



A VOLTA DO GATO PRETO

205

espessa e c��lida onda humana que enche confusamen-

te as cal��adas, vejo um grupo que me lembra os ran-

chos carnavalescos do Brasil. S��o meninas de high-

school que pagam seu tributo �� tradi����o colegial, des-

filando em trajes grotescos, e com as caras pintadas,

pela rua mais movimentada de San Francisco. Fazem

uma grande algazarra, cantam can����es humor��sticas

e dan��am. As veteranas imp��em ��s calouras v��rias

penit��ncias. Agora, aqui, a poucos passos de onde es-

tou, uma menina est�� de joelhos sobre a cal��ada, com

as m��os amarradas ��s costas, e com a boca quase a

tocar as lajes sopra numa casca de amendoim, pro-

curando desse modo empurr��-la at�� uma determinada

raia. Ao redor dela amontoa-se uma multid��o de curio-

sos. As outras estudantes incitam-na com gritos. Um

marinheiro que, pelo jeito, acaba de chegar da guerra

em gozo de licen��a, bate-me no bra��o e diz:

��� �� pra isso que estamos lutando. Pra que todos

tenham Uberdade de religi��o, de palavra, e liberdade

tamb��m para serem doidos como melhor entenderem.

Diz isto e se vai, abrindo caminho com os coto-

velos atrav��s da multid��o.

ACORDO

29 de abril. A um estudante que me pede uma f��r-

mula para promover um mais harmonioso entendimento

entre brasileiros e norte-americanos, digo: "Muito

simples. Voc��s nos ensinam a f azer todas essas coisas

que tornam a vida mais confort��vel e f��cil e n��s, em

troca, ensinaremos voc��s a goz��-las..."

O pior de tudo �� que o rapaz toma a minha f��r-

mula ao p�� da letra e quer discutir pormenores.

206

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

A NOVA AMIGA

2 de maio. H�� pelo menos quatro grandes roman-

cistas mulheres na literatura norte-americana. S��o elas

Edith Wharton, que conhecia como ningu��m a t��c-

nica do romance, e cujo Etham Frome �� um cl��ssico

moderno; Willa Cather, que reagiu contra o realismo

de Theodore Dreiser e cujo ideal era "o romance des-

mobiliado", isto ��, desatravancado de detalhes in��teis

e reduzido ao essencial; Pearl Buck, que em suas his-

t��rias retratou a vida e a alma da China, e que agora

come��a a escrever sobre a vida norte-americana; e fi-

nalmente Eilen Glasgow, cujo romance In This Our

Life acabo de ler. �� inexplic��vel que, apesar de eu ter

passado estes ��ltimos quinze anos ��s voltas com escri-

tores de l��ngua inglesa, s�� agora tenha "descoberto"

essa romancista de setenta anos... Quando fechei o

livro foi com a impress��o de que havia encontrado um

novo amigo. N��o creio que ningu��m tenha usado a

l��ngua inglesa com mais gra��a, limpidez e precis��o

que Miss Glasgow. Escrevendo sobre o seu estado

natal de Virg��nia, teve ela a coragem de ver o Sul sem

esse romanticismo e pitoresco que leva o leitor a ver

naquela vida apenas as mans��es de estilo georgiano,

com brancas colunas, e em cujo alpendre fazendeiros

cavalheirescos tomam refrescos trazidos por velhas

pretas, enquanto ao longe negros cantam cantigas so-

bre o Mississipi, e as magn��lias despedem um perfume

doce e morno, sacudidas pela brisa do entardecer. N��o,

Eilen Glasgow olhou o Sul com olhos l��mpidos; viu a

intoler��ncia, os germes de dissolu����o da aristocracia

da terra, a incompreens��o entre a gera����o antiga e a

moderna, e a inutilidade de viver chorando uma causa

perdida.

A VOLTA DO GATO PRETO

207

Neste seu In This Our Life sinto um ambiente

ibseniano ��� exatamente o tipo de clima que os cr��ticos

estrangeiros dizem faltar �� literatura dos Estados Uni-

dos, em geral t��o rosadamente otimista, t��o preocupa-

da com as hist��rias de sucesso, e n��o raro enamorada-

mente voltada para as possibilidades de Hollywood.

Encontro neste romance alguns trechos preciosos

para o observador da vida norte-americana. Um deles

�� o que descreve os pensamentos de Asa, uma das

personagens centrais da hist��ria, quando ele contem-

pla um jovem mulato que est�� tentando fazer uma

carreira: Mas �� singular como conhecemos pouco a

ra��a negra. Nossos criados sabem tudo a nosso respei-

to, ao passo que nada sabemos deles. Est��o ligados a

nossas vidas cotidianas; acham-se presentes em todas

as nossas crises ��ntimas; conhecem ou suspeitam de

nossos motivos secretos. No entanto somos completa-

mente estranhos �� maneira como eles vivem, ao que

na verdade pensam ou sentem com rela����o a n��s e a

qualquer outra coisa. E quanto menos pretos s��o,

mais inescrut��veis se tornam at�� que, quando chegam

quase a cruzar a linha divis��ria, como este menino

Parry, parecem at�� falar outra l��ngua e pertencer a outra

esp��cie que n��o a nossa.

Asa chega pela madrugada �� casa da filha, cujo

marido acaba de suicidar-se. Est�� cansado da viagem,

e enquanto sobe as escadas vai dizendo para si mesmo

que espera l�� em cima encontrar a oportunidade de

ao menos tomar um banho e fazer a barba. Toda a

trag��dia �� dolorosa ��� pensa ele ��� mas a trag��dia em

que a gente n��o se pode barbear �� sard��nica.

Aqui est�� um pensamento revelador. A trag��dia

americana �� geralmente uma trag��dia de barba feita.

A latina em geral �� uma trag��dia em que a v��tima ou

o criminoso n��o est�� barbeado. Entra aqui uma raz��o

econ��mica de n��vel de vida; e tamb��m essa esp��cie



208 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de supersti����o que, al��m do puro prazer da limpeza,

leva os norte-americanos a crer que um homem barbea-

do pode encarar o mundo com mais otimismo e possi-

bilidades de ��xito.

Mais tarde Asa discute a trag��dia com a enfer-

meira. E lhe pergunta:

��� Profissionalmente falando, n��o lhe ocorreu algu-

ma vez que o amor �� o dem��nio?

Quantos puritanos assombram a alma de Asa neste

instante?

E a nurse:

��� Falando n��o profissionalmente, j�� me ocorreu,

sim.

Depois a enfermeira pergunta a Asa, que pertence

�� velha gera����o:

��� As pessoas sempre foram levianas como s��o

hoje? Ou ser�� ent��o que agora n��o existe mais privado?

ALERGIA

5 de maio. Estarei ficando al��rgico a livros? Sem-

pre que entro na biblioteca da universidade e caminho

por estas galerias de a��o, percorrendo as estantes de

livros, come��o a sentir um mal-estar que ora me pare-

ce febre, ora canseira. Tento em v��o descobrir a causa

disso. Saio para o ar livre, vagueio sob os eucaliptos,

respiro o ar embalsamado, e em poucos minutos o

ma��-estar se vai. Fa��o ent��o nova tentativa. Torno ��

biblioteca, convencido de que tudo foi apenas "uma

impress��o". Mas aos poucos me volta ao corpo o for-

migueiro, a lassid��o de membros, a afli����o, o desejo de

ar livre.

Hoje a coisa se repete. No hall da biblioteca en-

contro Arciniegas a consultar fichas. Tomo-lhe o bra��o:

��� Queres ouvir um segredo?



A VOLTA DO GATO PRETO

209

��� Que ��?

��� Acabo de descobrir que sou al��rgico a livros.

Meu amigo ajeita os ��culos e responde, s��rio:

��� N��o �� de admirar. Onde se viu um escritor

gostar de livros?

Des��o as escadas de m��rmore branco na dire����o

da porta. Bustos de gente importante que escreveu

livros ou que os amou dardejam na minha dire����o

olhares de censura. N��o leio os d��sticos ilustres gra-

vados nas paredes, exaltando o papel do livro na civi-

liza����o. Sou um r��probo. Um traidor. Um monstro.

Devo consultar um m��dico? Ou ir apresentar-me ao

Presidente e dizer: Non sum dignus?

De novo o ar livre. O perfume do parque. O

vento fresco do mar. O azul do c��u. um verso abo-

min��vel me vem �� mente: "Porque a verdadeira b��-

blia, ��! Natureza, ��s tu."

Finalmente depois de muito andar por estas ave-

nidas, pisando folhas secas e assustando coelhinhos

distra��dos, descubro uma explica����o para o fen��meno.

�� que o interior da biblioteca est�� de tal modo super-

aquecido que seu efeito �� exatamente o de um dia

abafado de calor.

Reconciliado com a cultura, volto para as gale-

rias de a��o...

IDADE DIF��CIL

7 de maio. Estamos todos ao redor da mesa do

breakfast. Lu��s olha para mim e diz:

��� Pai, eu acho que tu ficavas muito bem fardado

de tenente da marinha.

��� De onde te veio essa id��ia?

Ele d�� de ombros.

��� N��o sei. S�� pensei isso...

210 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Clara explica:

��� Ah! Eu sei. Quase todos os meninos na escola

tem pais ou irm��os no ex��rcito ou na marinha, e o

Louie anda envergonhado porque ��s civil...

Isso me faz lembrar que ainda n��o me apresentei

�� junta de alistamento do distrito. Fa��o-o hoje mesmo

e recebo o meu cart��o militar. Sou classificado como

4-A, isto �� ��� casado, com filhos e maior de 36 anos.

�� hora do almo��o mostro o cart��o a Lu��s e explico-

lhe tudo.

��� Ent��o n��o foste aceito?

��� N��o �� bem isso, meu filho. N��o serei chamado

agora. S�� os 1-A �� que v��o para o ex��rcito.

O menino nada diz. Limita-se a olhar para o car-

t��o em sil��ncio.

��� Pai.

��� Que ��?

��� Estiveste na outra guerra?

��� N��o.

��� Por qu��?

��� Era muito crian��a.

��� E agora n��o entras nesta... porque est��s muito

velho?

��� Bom, muito, muito velho n��o... quer dizer. ..

�� dif��cil explicar...

Mariana sorri. E eu me lembro duns versinhos que

li h�� dias numa revista. Diziam que n��o h�� idade ideal

para guerra; em nenhum tempo da nossa exist��ncia

achamos que podemos deixar a vida segura e ir en-

frentar a bomba, a bala e a baioneta. A ��ltima quadra

era assim:

Como �� poss��vel uma escolha justa,

Se a gente sempre vem a ser

Ou muito velho para a luta

Ou muito mo��o para morrer?



A VOLTA DO GATO PRETO

211

O ATLETA E A GRAM��TICA

12 de maio. No meu escrit��rio. Dez da manh��.

Rabisco notas para a aula de hoje sobre a "Semana da

Arte Moderna" no Brasil. Batem �� porta: Come in!

Primeiro entram os ombros ��� uns ombros largos

de fullback; depois, uma cabeleira cor de sol a coroar

uma cara juvenil e rosada.

��� Bom-dia!

O rapag��o olha em torno, indeciso. Diz que est��

�� procura do Prof. Schevill. Informo-lhe que meu amigo

n��o apareceu esta manh��.

��� Em que lhe posso ser ��til? ��� indago.

��� Well, o senhor sabe espanhol?...

��� Um pouquinho. Que �� que h��?

��� Tive uma dificuldade com este exerc��cio... ���

diz o estudante, ainda com ar t��mido, mostrando-me

um livro aberto.

��� Fa��a o favor de sentar-se.

Ele se senta e me confessa a sua incapacidade de

compreender a diferen��a entre muy e mucho.

��� �� muito simples. ��� Muy �� adv��rbio. Mucho ��

adjetivo.

Os olhos cinzentos do mo��o fitam os meus, com

uma express��o vazia. Seus l��bios se abrem, deixando

aparecer uma dentadura regular, forte e nacarada.

��� Adjetivo. . . adv��rbio... ��� repete ele, co��ando

a cabe��a.

��� Naturalmente voc�� sabe o que �� adv��rbio e o

que �� adjetivo. .

��� Bom. . .

��� N��o sabe? Nem mesmo em ingl��s?

��� N��o tenho muita certeza. O senhor me des-

culpe. A gente esquece essas coisas. �� o diabo.

212

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Fico olhando para este torso musculoso, apertado

num su��ter grosso de l�� verde-musgo. O rapaz deve

ser um astro do futebol. Deve ser popular com as me-

ninas e possuir uma sa��de de touro, mas n��o sabe o

que �� adv��rbio. .. Perco-me em divaga����es, enquan-

to meu jovem interlocutor resmunga desculpas. Acabo

concluindo que n��o h�� nenhum mal em que esse es-

pl��ndido esp��cime humano n��o conhe��a gram��tica.

Miro-o com simpatia, e com grande paci��ncia tento

explicar-lhe o que �� adjetivo, adv��rbio, preposi����o,

conjuga����o... Muito humilde e cheio de gratid��o,

ele escuta, sempre sorrindo. Por fim se ergue e aperta

minha m��o na sua manopla de atleta.

��� Gee, sir. It's mighty nice of you. Thanks a lot!

Oferece-me um peda��o de goma de mascar. �� a

��nica maneira que tem de pagar os meus servi��os.

Est�� claro que aceito. Partimos uma barra de chewing

gum como se part��ssemos a frecha da paz.

��� Hoje em dia isto vale mais que ouro ��� diz ele.

��� Meu irm��o que est�� no ex��rcito, me mandou um

pacote do campo de treinamento.

Faz meia-volta e se vai.

Ou��o seus passos ��geis na escada. Meu amigo

Schevill chega alguns minutos depois e eu lhe conto

o que acaba de acontecer.

��� Muitos desses rapazes ��� diz ele ��� v��m para

a Universidade apenas porque �� bonito ser um c����lege

boy. Pensam que se s��o bons jogadores de futebol tudo

est�� bem.

No fim de contas ��� penso ��� eu podia dizer que

n��o tenho aquela radiosa mocidade nem aqueles ombros,

nem aqueles olhos, nem aquela face ��� mas em com-

pensa����o posso distinguir a olho nu um adv��rbio dum

adjetivo. Encarapitado em cima duma pilha formada

pelos volumes que tenho lido na minha vida, eu po-

deria baixar os olhos para esse menino com superio-



A VOLTA DO GATO PRETO

213

ridade, toler��ncia e complac��ncia... Mas que pobre,

p��lido consolo isso ��! ��� reflito, mascando melancoli-

camente o meu peda��o de goma.

VISITAS

13 de maio. Mas tipos como esse louro amigo n��o

constituem regra geral. De quando em vez aparece no

meu escrit��rio uma girl de ��culos que vem discutir

Freud; ou um marinheiro que disserta sobre eletr��-

nios; ou estudantes que se interessam por trabalhos de

assist��ncia social. Pedem opini��es, indagam, sugerem,

tomam notas e depois se v��o. Tudo isso �� feito com

uma admir��vel aus��ncia de esnobismo, com um ar

pr��tico e com uma esp��cie de candura.

Um estudante negro pede licen��a para me visitar.

Tenho-o esta noite aqui no living-room de minha casa

de Fulton Street. Esse rapaz de vinte anos, de pele

dum preto-azulado e enxuto, grandes olhos l��quidos e

nariz surpreendentemente fino fala um ingl��s positi-

vamente diferente da l��ngua dos negros americanos.

��� �� que fui educado na Jamaica ��� explica ele.

Visitam-nos tamb��m hoje o c��nsul do Brasil e sua

senhora, e o estudante colored parece deliciado por se

encontrar sentado no mesmo sof�� que a Sra. Sab��ia

Lima que nasceu em Viena, tem a pele alva e os ca-

belos cor de ouro.

Conversamos sobre o problema racial nos Esta-

dos Unidos e sobre a posi����o do negro no Brasil. E

pulando de assunto para assunto, o estudante conta

que comp��e m��sica. Pedimos-lhe que toque alguma de

suas composi����es. Ele se levanta sem se fazer rogar,

e caminha para o piano de Mrs. Burke. Senta-se, es-

palma as m��os sobre o teclado e tira dois acordes. E

depois come��a a tocar um noturno de sua autoria.





214

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Quando olho atrav��s da porta que d�� para o hall,

vejo Clara e Lu��s que, metidos nos seus pijamas, des-

ceram do quarto e est��o sentados num dos degraus da

escada, escutando a melodia com ar absorto e s��rio.

Sigo com os olhos os dedos do preto que se movi-

mentam sobre o teclado como tent��culos dum escuro

polvo, e penso em que hoje, por uma significativa

coincid��ncia, �� treze de maio...

O TEMPO

15 de maio. O tempo passa levado pelo vento ou

enrolado na bruma ��� ��s vezes l��pido, outras vezes

lerdo. O tempo cheira a maresia, a n��voa, a eucalipto

e umidade... A chuva o amolece e tolhe, d��-lhe um

jeito triste. Mas sob o sol o tempo �� ��gil, fluido e

alegre.

Nas ruas de San Francisco o tempo trepida, tem

todas as cores e sons, cheira a gasolina, molhos, fri-

turas e humanidade. Dentro dos bares o tempo �� um

gentleman sem mem��ria que recende a u��sque e se

deixa embalar pela melodia dum blue. Do outro lado

da ba��a, na Universidade, o tempo tem vinte anos e

passa cantando. Mas nas ��guas do mar o tempo ��

tr��gico e nervoso como a guerra; e toma um ritmo de

eternidade para acalentar os afogados.

Ah! O tempo sobre as montanhas, vales, campos,

cidades e almas... Quem sabe mesmo como �� o tempo?

��s vezes ele �� apenas uma invis��vel aranha a

tecer insidiosamente dentro de n��s a teia do h��bito.. .

SHAKESPEARE! SHAKESPEARE!

18 de maio. Milagrosamente Clara e Lu��s j�� es-

t��o falando ingl��s. Nos primeiros meses vinham para



A VOLTA DO GATO PRETO

215

casa repetindo palavras ou frases, como papagaios.

Agora aqui est��o �� mesa do caf��, falando fluentemen-

te, n��o direi a l��ngua de Shakespeare, mas pelo menos

a de Jimmy Durante, pois est�� claro que os compa-

nheiros de col��gio lhes ensinaram palavras e ditos da

rica e pitoresca g��ria americana.

Como meus filhos est��o num animado di��logo em

ingl��s, resolvo entrar tamb��m na conversa, e tenho

dentro em breve o desprazer de verificar que eles j��

zombam de minha pron��ncia. Num dado momento Lu��s

chega a corrigir a minha sintaxe! N��o posso deixar de

sorrir, lembrando-me de que esse menino n��o tinha

ainda nascido e eu j�� andava ��s voltas com Bernard

Shaw, Aldous Huxley e Edgar Poe.. . no original.

"A CASA DO PAI TEM MUITAS MORADAS'

25 de maio. No Brasil nossa casa sempre vivia

cheia de crian��as; era o ponto de reuni��o dos garotos

da vizinhan��a. Parece incr��vel que o mesmo aconte��a

aqui neste casar��o de Fulton Street. Os colegas de

meus filhos em geral aparecem depois das aulas da

tarde e por a�� ficam a brincar. A bandeira de Meta-

galpa anda de m��o em m��o. Ora serve para vestir

solenemente uma dessas Bettys, Sallys ou Marys; ora

se transforma em bola que salta no ar dum lado para

outro, pondo em perigo lustres, estatuetas e vasos,

para depois voltar a ser bandeira e cobrir o "cad��ver"

de David, Lu��s, ou Peter ��� her��is tombados na guerra

contra o Jap��o. De vez em quando um desses garotos

ou garotas monta no corrim��o da escada e vem desli-

zando velozmente l�� de cima para cair de costas,

com estrondo, no fofo tapete do hall. ��s vezes os

pequenos dem��nios decidem fazer bailes, cantar e

bater p��s ��� casos em que o barulho �� ensurdecedor.

216

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Fico a olhar a cena, entre atordoado e divertido, e n��o

posso deixar de achar extraordin��rio estarem meus

filhos aqui com essas crian��as, falando a l��ngua delas,

vestidos como elas e portando-se como se nunca tives-

sem vivido em outro ambiente.

O telefone tilinta. Sento-me calmamente ao p��

dele e levo o fone ao ouvido. A voz de Mrs. Burke.. .

��� Que barulho �� esse? Sua casa foi invadida por

um bando de doidos? Por favor, Mr. Ber��s...

Nemir. .. sei l�� como �� o seu nome! Por favor, mande

esses v��ndalos embora. Que v��o brincar em suas casas.

Que v��o...

Quero dizer alguma coisa mas a nossa senhoria

n��o cessa de falar. �� uma torrente. N��o tenho outro

rem��dio sen��o assobiar baixinho. �� a melhor coisa do

mundo, quando estamos na presen��a dum interlocutor

enfurecido. Assobiar. Em casos excepcionais reco-

menda-se o ad��gio da Sinfonia n.�� 7 de Beethoven. E

quando o assunto n��o tem muita import��ncia, at�� a

"Serenata de Schubert" serve.

��� Est�� certo, Mrs. Burke.

Ponho o fone no lugar. Levanto-me e vou acabar

com o baile, naturalmente sob protestos dos convivas.

Ao cabo de alguns minutos de discuss��es, projetos

para o dia seguinte, risadas, as crian��as se v��o. Uma,

duas, tr��s, cinco, sete... Saem numa algazarra. L��

vai o Peter-Cal��a-Frouxa... A Sharon Sardenta...

O David-Mangol��o... A Mary Espevitada... a Nel-

ly-Porky...

E o solar de Metagalpa volta �� calma, e do alto

do velho arm��rio a estatueta de m��rmore, que ainda

ostenta o bigode de tinta que lhe pintei, olha com seus

olhos vazios a sala vazia.



A VOLTA DO GATO PRETO

217

DEUS DE SUBSOLO

26 de maio. No Brasil �� costume dizer-se a crian-

��as travessas: "N��o fa��a isso, que Papai do C��u cas-

tiga". E os pequenos ficam com a id��ia de que Papai

do C��u �� um senhor de barbas compridas que mora

l�� em cima e vive debru��ado numa janela, a ver tudo

quanto se passa aqui em baixo, com aquele seu olho

triangular e fiscalizador.

No seu admir��vel "Vento Sul", Norman Douglas

p��e uma de suas personagens a falar na diferen��a entre

o Deus dos crist��os e os deuses dos gregos antigos. O

primeiro �� um "Deus de andar superior", que nunca

vemos de perto e com o qual nos comunicamos preca-

riamente atrav��s de gestos, e a dist��ncia, ao passo que

os outros s��o deuses am��veis de "andar t��rreo", que

se misturam com os mortais.

Estas notas me foram sugeridas por um telefone-

ma de Mrs. Burke, que l�� de baixo torna a reclamar

contra o barulho que aqui em cima fazem meus filhos

e seus amigos. Passamos os dias a pensar em Mrs.

Burke tentando fazer o poss��vel para n��o cair-lhe no

desagrado. Seguimos os seus mandamentos, procura-

mos viver de acordo com seus preceitos e como recom-

pensa desejamos que n��o nos expulse desta casa e nos

deixe em paz. Ocorre-me agora que essa corada

velhota solit��ria passou a ser para n��s uma esp��cie de

"deus de subsolo".

Mas ��s vezes sinto um prazer m��rbido em subir

a escada aos pulos, fazendo barulho. A esse gozo po-

der��amos chamar, de acordo com a t��cnica do roman-

ce-folhetim, "vol��pia do pecado".



218 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

O MIST��RIO DA CHARNECA

28 de maio. O que me agrada nesta vida univer-

sit��ria �� a diversidade de gente que encontro e a

variedade de assuntos que sou convidado a discutir.

Almo��o com o Prof. Pepper, do departamento de filo-

sof��a, e toda a conversa gira em torno de "uma teo-

ria de valores", que vai ser o assunto do pr��ximo livro

desse humanista, cuja cabe��a lembra a de Spengler,

numa vers��o menos germ��nica e mais simp��tica.

Quando vou para a sala de leitura do Faculty

Club um outro professor me faz sentar a seu lado para

que eu lhe d�� minha opini��o sobre a origem das pra��as.

Das pra��as? Sim, das pra��as t��o t��picas das cidades

portuguesas, espanholas e sul-americanas.

Um outro professor quer saber se ainda se culti-

va a orat��ria no Brasil e fica surpreendido quando lhe

digo que nossas universidades n��o oferecem cursos de

public speaking.

Uma jovem que conheci ontem, queria saber como

se escreve um romance. Assegurei-lhe que ela se es-

tava dirigindo �� pessoa menos indicada para lhe dar

informa����es seguras a esse respeito.

��� Mas o senhor n��o �� romancista?

��� �� exatamente por isso.

Mas de todos os interlocutores que tenho tido,

talvez o mais dif��cil de seguir seja Miss Merivale, se-

cret��ria dum destes departamentos de l��nguas da Uni-

versidade. Almo��amos juntos ��s vezes no Black Sheep,

a "Ovelha Negra", um agrad��vel restaurante de Ber-

keley em cujas paredes se v��em ��timas reprodu����es de

C��zanne, Gauguin e Van Gogh. A comida tamb��m ��

post-impressionista. Mas tudo l�� �� limpo, e as mo��as

que servem as mesas s��o estudantes.

A VOLTA DO GATO PRETO

219

Miss Merivale leu o meu romance "Caminhos

Cruzados" na tradu����o inglesa, e n��o gostou. Quanto

a mim, gosto da franqueza com que ela me confessa

isso.

��� Suas personagens s��o tipos, mais que pessoas.

Tome dona Dod��. �� imposs��vel que essa senhora n��o

tenha tra��os que n��o sejam caricaturais.. . enfim, qua-

lidades humanas apreci��veis...

��� De acordo.. .

��� .. . imposs��vel que n��o tenha uma part��cula de

bondade. O senhor pintou as suas figuras de tal for-

ma que elas t��m apenas duas dimens��es...

��� Perfeitamente. Mas a minha inten����o foi sa-

t��rica. Reconhe��o que "Caminhos Cruzados" �� um

livro c��nico e frio. Fi-lo assim de prop��sito.

Miss Merivale acha que um romance n��o deve

apenas fotografar a vida, mas ilumin��-la. Conta-me de

vagos planos que tem de fazer fic����o. O que lhe in-

teressa s��o as experi��ncias interiores. O resto pouco

importa.

Fala-me de Proust, Joyce e Virg��nia Woolf. Pro-

cura provar-me que tenho capacidade para escrever

o romance que se lhe afigura ideal.

Minha amiga �� uma criatura complicada. De vez

em quando mergulha em sil��ncios misteriosos. Ou en-

t��o desconfia que n��o lhe estou seguindo as palavras.

Conta-me coisas extraordin��rias, que lhe aconteceram

certa noite, nas charnecas da Esc��cia, na regi��o onde

nasceram seus antepassados. Dizia-se existir por ali

um monstro, um animal fant��stico ��� mastim ou lobo ���

cujos olhos eram como carb��nculos...

N��o sei se meu olhar me traiu, ou se sorri sem

querer. A verdade �� que Miss Merivale faz uma pausa

e pergunta:

��� O senhor n��o est�� acreditando, n��o �� mesmo?

��� Prossiga, por favor.

220

OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO

Ela baixa os olhos para o prato onde o seu san-

du��che de peru jaz intato. E sem me olhar continua:

��� Uma noite resolvi ir l�� sozinha.. . O senhor

n��o pode fazer uma id��ia do que �� uma charneca da

Esc��cia, especialmente numa noite sem lua. A gente

tem a impress��o de que a terra antes do aparecimento

da vida devia ser assim...

A gar��onete se inclina sobre nossa mesa para

apanhar o pote de mel. De seus cabelos vem um per-

fume doce.

Miss Merivale continua:

��� O silencio era aterrador. Fiquei im��vel, espe-

rando. De repente vi uma sombra caminhar na minha

dire����o. Era um animal.. .

Cala-se. Fita em mim os olhos azuis.

��� O senhor n��o est�� acreditando. ..

��� Por favor, n��o interrompa.

��� Pois bem. Esperei. O animal parou. Seus

olhos fuzilavam na sombra. Ficamos ah... minutos,

horas? quanto tempo?... a olhar um para o outro.. .

Eu estava hipnotizada. E depois de novo me senti

sozinha em meio da charneca...

Miss Merivale me olha com express��o dura, quase

agressiva.

��� O que �� que o senhor acha? Foi uma ilus��o?

Ou qu��?...

Encolho os ombros.

��� Se essa cena fosse duma novela minha, creio

que a deixaria sem explica����o... Teria melhor efeito.

��� Efeito! O senhor est�� pensando em efeito. Eu

lhe estou contando uma experi��ncia pessoal que n��o

pode ser descrita em termos de realidade, de coisas

concretas... cotidianas...

��� Eu sei, �� o mist��rio...

��� A�� est��. Quero escrever um romance cheio de

experi��ncias como essa. Menos c��pia da vida, menos

relat��rio. ..

A VOLTA DO GATO PRETO

221

Ficamos por alguns instantes em sil��ncio.

��� Uma outra vez fui passear no campo ��� prosse-

gue Miss Merivale ��� . . . isto foi aqui mesmo, do outro

lado das colinas de Berkeley. Eu estava sozinha, e

era uma manh�� muito luminosa, de c��u azul. Vi um

p��ssaro pousado nos ramos duma ��rvore. Fui tomada

duma alegria t��o grande, diante daquele momento de

beleza, que sem querer comecei a cantar... N��o posso

explicar como foi, mas tenho a impress��o que a voz

saiu sem que eu fizesse o menor esfor��o. E o p��ssaro

cantou comigo. Senti que naquele momento eu e o

p��ssaro nos entend��amos. N��s cant��vamos para a

manh��, num desejo de horizontes, de v��o.. . ��ramos

como uma ��nica criatura... Mas o senhor n��o est��

compreendendo.

��� Qu�� quer? No fim de contas n��o passo dum

nasty realist.

��� N��o �� verdade. O que h�� no senhor �� um temor

de mexer em coisas profundas.

��� E por que pensa isso?

��� Vejo nos seus olhos.

��� Com tanta clareza assim?

Ela sacode a cabe��a afirmativamente.

��� Seus olhos v��em uma coisa e suas m��os escre-

vem outra. Se em seus olhos h�� uma t��o funda com-

preens��o da vida... por que escreve s��tira? O senhor

precisa vencer esse medo...

��� Medo?

��� Espero que o seu pr��ximo livro seja diferente...

Sei que vai ser.

E eu, que durante todo esse tempo estive a comer

as minhas alm��ndegas com batatas cozidas, sinto-me

de repente grosseiro, materialista.

Descanso o garfo nas bordas do prato e olho fi-

xamente para Miss Merivale. Eu s�� quisera saber o

segredo dessa alma. Por um instante ficamos a nos



222

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

entreolhar, como na cena da charneca escocesa ��� ela

a bela e eu a fera.

Miss Merivale afasta o prato e, sem tirar os olhos

de mim, conclui:

��� Tome nota disto. Daqui h�� muitos anos o senhor

vai se lembrar de mim...

Sacudo a cabe��a lentamente.

TORMENTA"

29 de maio. George Stewart �� um homem alto, de

rosto anguloso e cabe��a quase triangular. Encontrei-o

nesta mesma Universidade h�� dois anos e meio, quando

por aqui passei no meu marche-marche de turista que

tem dia e hora certos para chegar e sair dos lugares.

Almo��amos juntos e ele me contou, com a sua voz mo-

n��tona e nasal, que estava escrevendo um romance.

��� Sobre qu��? ��� perguntei.

��� Sobre uma tormenta.

��� Uma tormenta?...

��� A personagem principal �� uma tormenta. Narro

sua biografia desde o momento em que ela se forma na

��sia e vou mencionando todas as coisas que aconte-

cem pelos lugares por onde ela passa atrav��s do Pac��-

fico e dos Estados Unidos...

��� Mas isso �� duma dificuldade tremenda!

O rosto de meu interlocutor continuava inexpressi-

vo como sua voz.

��� O homem do observat��rio meteorol��gico que

acompanha o progresso da tormenta, d��-lhe o nome

de Maria. Maria vai vivendo e fazendo estragos, in-

fluindo na vida de v��rias comunidades...

J�� nessa hora eu n��o ouvia mais o que Stewart

dizia, porque estava pensando na maneira como eu ha-

via de escrever esse romance. Assim a voz monoc��rdia

A VOLTA DO GATO PRETO

223

de meu amigo soava-me aos ouvidos como essas vozes

de caixeiros-viajantes que a gente ouve no vag��o en-

quanto o trem marcha e n��s nos deixamos levar de

olhos semicerrados, num estado de modorra.

��� O livro vai chamar-se Storm.

��� Bom t��tulo.

Olhei para George Stewart, para seus ��culos pro-

fessorais, para os seus l��bios estreitos e duvidei que

aquele homem seco conseguisse dar interesse noveles-

co �� hist��ria de Maria, a tormenta.

Voltei para o Brasil e alguns meses depois revis-

tas e jornais americanos me levaram a noticia do sucesso

do romance The Storm, que entrou para a lista dos

best-sellers, e cujos direitos cinematogr��ficos foram

comprados por um est��dio em Hollywood. Consegui um

exemplar do livro, li-o e fiquei surpreendido por ver o

interesse "humano" que Stewart deu �� hist��ria de sua

tormenta.

Neste instante tenho-o de novo diante de mim do

outro lado da mesa, no Faculty Club. Conta-me que

est�� terminando um livro em torno da hist��ria dos no-

mes de lugares dos Estados Unidos.

��� No princ��pio, ��� diz ele ��� essa vasta extens��o

de terra que vai do Pac��fico ao Atl��ntico jazia sem

nomes...

Acho a frase fascinante, e George me conta que

esse �� o per��odo inicial do livro. Os Estados Unidos

s��o o pa��s dos nomes inesperados. Existem aqui lu-

gares que se chamam Paris, Roma, Tr��ia, Brasil, Ho-

landa, Moscou, etc, e Arkansas, Nantucket, Chi-

ckasha... De onde vieram? Como se formaram?

��� E quando terminar este trabalho ��� prossegue

Stewart ��� pretendo escrever a biografia duma certa

regi��o deste pa��s, come��ando do princ��pio...

��� Que princ��pio?



224

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Dos tempos pr��-hist��ricos. H�� milh��es de anos

passados...

Positivamente, este meu amigo tem a vol��pia dos

assuntos dif��ceis.

E eu estou come��ando a aprender que n��o se deve

avaliar a capacidade de imagina����o duma pessoa pela

espessura dos l��bios, a cor dos olhos ou o tom da

voz...

CONFRONTO

30 de maio. Para caracterizar uma das muitas di-

feren��as entre o brasileiro e o norte-americano, in-

vento a cena seguinte, que conto hoje aos meus alunos:

Estou sentado �� minha mesa, escrevendo a m��-

quina, e tenho diante de mim um brasileiro e um norte-

americano. Ambos sabem que sou escritor. O bra-

sileiro aproxima-se de mim, por tr��s, procura ler o que

estou escrevendo, e pergunta com voz carregada de

mal��cia:

��� Que "cava����o" �� essa?

O americano se limita a indagar de longe, com

ar inexpressivo:

��� Quantas palavras o senhor escreve por minuto?

Essas perguntas definem duas psicologias dife-

rentes. Malicioso, esperto, o brasileiro sempre est��

farejando a "cava����o", o neg��cio ilegal, o "golpe".

Conhecedor dos homens e da vida, ele "n��o acredita

em hist��rias da carochinha".

O americano, por��m, �� o fascinado da efici��ncia,

da produ����o e do m��todo. Tem a paix��o da estat��s-

tica, e sua pergunta traduz o desejo das minhas rela-

����es com o meu tool, o meu instrumento de trabalho.

E este povo em geral acredita em hist��rias de caro-

chinha, porque neste pa��s elas de fato acontecem.



A VOLTA DO GATO PRETO

225

N��o se poder�� por acaso dizer que enquanto o

americano se preocupa com a t��cnica o brasileiro d��

mais import��ncia �� t��tica? Ou ser�� que o uso do ins-

trumento n��o deixa de ser uma t��tica e o golpe uma

t��cnica?

Bom, �� melhor parar. Porque lidando com pala-

vras a gente acaba quase sempre como o cachorro

Pluto de Walt Disney naquela cena em que colou as

patas num papel ca��a-moscas...

O VOV�� RANZINZA

2 de junho. Gaetano Salvemini, historiador e soci��-

logo vivia tranq��ilamente sua vida na It��lia como um

pacato professor quando Mussolini tomou o poder.

Preso como antifascista, deixou a It��lia em 1925 e foi

para Londres, de onde come��ou a bombardear II Duce

e o fascismo com artigos violentos. Encontro-o agora

aqui na Universidade a dar um curso de confer��ncias

sobre a hist��ria da It��lia. Homem de estatura me��,

cheio de corpo, a calva reluzente, barbas abundantes

dum branco amarelado, conserva aos setenta anos uma

vitalidade espantosa. Polemista apaixonado, escreve

agora artigos pol��ticos para a imprensa norte-america-

na. Como II Duce caiu e a It��lia foi invadida pelos

aliados, ele atira seus petardos contra o Departamento

de Estado, criticando-lhe a pol��tica com rela����o ��s

zonas italianas ocupadas.

Faz pouco, aqui no Faculty Club, vi-o trovejar

contra bispos, arcebispos, cardeais e papas que, a seu

ver, transigiram com o fascismo.

��� Eu n��o ataco a Igreja Cat��lica ��� explicava ele

com sua voz musical ��� mas sim o seu alto clero. Como

poderia eu atacar os trezentos milh��es de pessoas que

formam a Igreja Cat��lica no mundo? Estou certo de



226

OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO

que nem toda a ra��a germ��nica est�� alucinada por

Hitler, e sei tamb��m que nem todo o Estado fascista

italiano sofre de ��lceras quando Mussolini passa mal

do duodeno.

Agitava a cabe��a em movimentos vivos. Tirava os

��culos e limpava-lhes as lentes com um len��o.

��� A troco de que afirmar que quando um bispo

espirra, toda a Igreja espirra com ele? O que eu afir-

mei no meu artigo ��� prosseguiu ele, erguendo o dedo

no ar ��� foi que certos sacerdotes altamente colocados,

bispos e cardeais n��o s�� favoreceram o fascismo como

tamb��m fizeram elogios extravagantes e sacr��legos a

Mussolini.

Seus olhos brilhavam como carv��es vivos. E seus

l��bios grossos e vermelhos, contrastavam com a bar-

ba e com os dentes, que s��o dum branco amarelado.

Gaetano Salvemini ali est�� na sua poltrona ao p��

da lareira. J�� papou o seu almo��o, o qual, como bom

italiano acostumado a pratos ricos e temperados com

arte, ele deve ter achado detest��vel. E agora, enquan-

to espera a hora das aulas, cochila com a cabe��a ati-

rada para tr��s, a boca aberta, um jornal abandonado

sobre os joelhos. Os cabe��alhos desse jornal d��o uma

id��ia dum mundo convulsionado de viol��ncia, desen-

tendimentos e ang��stias. E Salvemini o antifascista,

Salvemini o indom��vel, Salvemini o orador est�� agora

aprisionado nas redes do sono. Com suas barbas

brancas, a sua calva reluzente parece um tranq��ilo

vov�� a dormir ao p�� do fogo, a sonhar talvez com as

travessuras dos netos. ..

BOA-TARDE, DOUTOR1

4 de junho. Tr��s da tarde. Estou de borla e ca-

pelo, formando numa fila de doutores e professores,

A VOLTA DO GATO PRETO

227

no campus do Mills College. Hoje �� dia da cola����o de grau, as alunas rec��m-formadas v��o receber seus

diplomas e o board of trustees decidiu conferir-me

um t��tulo honor��rio de doutor em literatura. Parados

�� sombra de pl��tanos que o vento da tarde agita, fa-

zendo a poeira verde de suas folhas cair sobre nossas

togas acad��micas ��� aguardamos a hora de nos enca-

minharmos para o teatro grego, onde se realizar�� a

solenidade. Arciniegas aqui est�� na minha frente,

muito compenetrado. Vai tamb��m ganhar um t��tulo

honoris causa, "por causa do Hon��rio", ��� segundo a

sua tradu����o.

A prociss��o p��e-se em movimento. Nossos p��s

produzem um ru��do rascante, ao pisar o are��o da es-

trada. Vamos em grave sil��ncio. E em grave sil��ncio

entramos no palco do teatro grego, que fica atr��s do

teatro de m��sica de c��mara. Somos precedidos por

vinte alunas de longos vestidos azuis, com grandes ca-

be����es brancos, que entram em passo de marcha nup-

cial, cantando um hino religioso.

As arquibancadas do anfiteatro est��o cheias. ��

um conjunto colorido ��� vestidos vivos, flores, gravatas,

j��ias, faces, m��os, bolsas, luvas. Tamb��m metidas em

vestes acad��micas, as quarenta mo��as que v��o receber

seus diplomas acham-se sentadas em nossa frente.

O orador oficial faz um belo discurso. O presi-

dente entrega os diplomas. Chega finalmente a minha

vez. O Prof. Smith, do departamento de Ingl��s do

college, acompanha-me at�� o lugar em que se encon-

tra o Presidente White, que �� um homem ainda jovem,

de complei����o atl��tica, cara aberta de guriz��o ameri-

cano, e especialista em hist��ria da Idade M��dia. O

Prof. Smith faz minha apresenta����o, enumera os meus

t��tulos ��� coisa que, segundo uma express��o americana

"cabe dentro duma casca de noz" ��� e o presidente de-

clara ent��o que, usando dum direito que lhe concede



228

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

a junta administrativa do Mills College me confere o

t��tulo de doutor em literatura, por ter eu em meus ro-

mances servido a causa da justi��a social e com meu

trabalho de professor, conferencista e autor promovi-

do uma aproxima����o entre as Am��ricas do Norte e do

Sul. Neste momento uma professora, que se acha ��s

minhas costas, pendura-me ao pesco��o o hood, um

capuz simb��lico com as cores do col��gio. (A todas

essas vejo com o rabo dos olhos Clara e Lu��s que l��

nos ��ltimos degraus do anfiteatro, se torcem de riso e

me fazem sinais fren��ticos.) O Presidente White me

aperta a m��o e me entrega um pergaminho, enquanto

um fot��grafo bate uma chapa.

O ato est�� consumado. Boa-tarde, doutor!

O NEGRINHO DO PASTOREIO

6 de junho. Visito uma escola t��cnica de Oakland.

Mais de dois mil estudantes de ambos os sexos aqui

aprendem gratuitamente diversos of��cios. Almo��o com

o diretor do estabelecimento e com algumas professo-

ras do Departamento de Economia Dom��stica. Foram

as pr��prias alunas que arrumaram a mesa e fizeram a

comida, que est�� deliciosa. S��o elas pr��prias que nos

servem ��� e com que gra��a! Aqui elas aprendem a

tomar conta de uma casa, por assim dizer "tecnicamen-

te". E nesse aprendizado entra tamb��m a arte de

decorar um interior, de dispor flores nos vasos, de com-

binar cores. ..

Percorro outros departamentos, onde rapazes in-

clinados sobre pranchas de desenhos trabalham em

blue-prints, plantas de casa, etc. Em outras salas vejo

estudantes de avental de couro a lidar com fornos

fazendo mob��lias finas, de estilo. Num sal��o pavimen-

tado de tijolos, alguns meninos com as m��os e as caras

A VOLTA DO GATO PRETO

229

manchadas de ��leo, trabalham ativamente com um

motor Diesel, ao passo que outros se divertem apren-

dendo os segredos dum motor de avi��o.

��� Eles saem desta escola ��� explica-me o diretor

��� capacitados a encontrar imediatamente um emprego

de sal��rio bastante razo��vel.

O que noto aqui �� um ar de boa camaradagem e

contentamento. O ambiente revela a mais absoluta au-

s��ncia de convencionalismo. A maneira como os estu-

dantes andam vestidos �� a mais c��mica e simp��tica

que se possa imaginar. Ningu��m nem sequer sonha

com usar gravata. Vejo cal��as de corduroy em diver-

sas cores e muitas cal��as de zuarte dessas usadas pelos

cow-boys. Dir-se-ia que estes meninos cujas idades

v��o de quinze a dezoito anos, est��o mais num parque

de divers��o que numa escola.

��s duas horas os dois mil estudantes desta es-

cola se encontram num vasto auditorium para me ouvi-

rem. Conto-lhes hist��rias do Brasil. Quando termino

a palestra, crivam-me de perguntas. Querem princi-

palmente saber como vivem os estudantes brasileiros,

o que comem, o que fazem e quais s��os os seus diverti-

mentos prediletos. Em dado momento levanta-se no

meio da plat��ia um estudante de seus quinze anos. ��

um preto retinto de grandes olhos brilhantes, bei��ola

vermelha como a sua camiseta bordada de ursos pretos.

Faz-se um sil��ncio de expectativa. Com uma voz

desmanchada como sua boca, mas com ar grave, o ne-

grinho diz:

��� Fale-nos, senhor, da delinq����ncia juvenil no seu

pa��s.

Delinq����ncia juvenil! A solenidade com que ele

pronuncia essas palavras, a sua voz de taquara rachada,

a dentu��a branca que rebrilha, e seus grandes olhos

espantados ��� s��o um verdadeiro espet��culo. Toda

a assembl��ia desata a rir. Muito s��rio, de p�� e imper-



230

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

turb��vel, o estudante negro espera. Sinto por ele neste

momento uma grande ternura. Ele n��o �� apenas um

s��mbolo de sua ra��a ��� um "colored" que est�� tentando

subir de categoria social, fazer uma carreira; ele re-

presenta tamb��m todos os meus companheiros de in-

f��ncia negros. Na gargalhada dos estudantes sinto n��o

hostilidade ou inten����o sat��rica, mas uma grande sim-

patia por esse colega de cor.

Respondo como posso �� pergunta embara��osa. E

depois digo:

��� Em homenagem ao estudante que fez essa per-

gunta . . . Como �� o seu nome?

��� George Washington.

��� Muito bem. Em homenagem a George Washing-

ton vou contar uma lenda da minha terra.

George Washington senta-se com dignidade. Faz-

se um grande sil��ncio no recinto. Tomo dum giz e

risco na pedra uma paisagem de coxilhas.

��� Era uma vez, no interior do estado do Rio

Grande do Sul, um fazendeiro muito mau que tinha

em sua fazenda um escravo negro. ..

E conto para estes dois mil estudantes a hist��ria

do Negrinho do Pastoreio.

QUADRO

8 de junho. Seis da tarde. Sentado sozinho nos

degraus do alpendre do Faculty Club, olho um trecho

de jardim: uma ac��cia copada toda pintalgada de flo-

res amarelas no centro dum tabuleiro de relva, contra

um fundo de arbustos e sombras; por cima, um c��u

manso de elegia.

Um p��ssaro de plumagem azul risca o quadro num

r��pido v��o diagonal e fere como um dardo a fronde da



A VOLTA DO GATO PRETO

231

ac��cia. Os carrilh��es do Campanile come��am a tocar

uma lenta melodia, e as notas l��quidas dos sinos se

espraiam no ar, que �� como um lago dormente. Um

coelho sai da zona de sombra negra, sob os arbustos,

caminha at�� a zona de sombra verde, sob a ��rvore, e

ali fica im��vel, de orelhas em p��y como que escutando...

OS CEGOS

10 de junho. Sou convidado para dizer algumas

palavras no almo��o semanal dum destes inumer��veis

clubes cujos membros em geral s��o gente das "classes

conservadoras". �� no sal��o de banquete dum grande

hotel de San Francisco, e os convidados de honra hoje

s��o dois soldados que voltaram cegos do teatro de

guerra do Pac��fico. L�� est��o eles no centro da mesa,

por tr��s dum vaso de d��lias vermelhas. Um deles tem

uma atadura de gase a cobrir-lhe os olhos; o outro est��

de ��culos escuros. S��o ambos extremamente jovens:

n��o devem ter muito mais de vinte anos.

O sal��o vibra ao ru��do de vozes alegres, tinir de

talheres, bater de copos e ch��caras. Uma orquestra

cubana come��a a tocar nimbas e seus sons met��licos,

vibrantes, dominam todos os outros sons. Os soldados

cegos sorriem.

O mestre-de-cerim��nias ergue-se, quando a m��-

sica cessa.

��� Como nossos convidados de honra dois her��is

de guerra do Pac��fico, n��o podem ver o que se passa

neste sal��o, quero ter o privil��gio de descrever-lhes o

ambiente. O sal��o �� vasto e a luz entra pelas altas

janelas, fazendo brilhar os pomposos lustres de cristal

que pendem do teto...

Os cegos continuam a sorrir.



232

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Sobre um estrado encontra-se uma orquestra

cubana, cujos componentes trajam um bolero cor de

fogo...

Segue-se uma descri����o dos boleros. Depois o

mestre - de - cerim��nias menciona os outros convidados

ilustres. E os soldados cegos sorriem, sorriem sempre.

Quando a outra guerra terminou ��� penso ��� esses

mo��os n��o eram nascidos. E daqui a vinte anos quem

estar�� ali talvez seja Lu��s, o meu filho ou David, o seu

amigo, ou Peter... Tento comer, mas a comida se me

tranca na garganta. Um tremendo mal-estar toma

conta de mim. Vontade de gritar, de vociferar. Ou

ent��o de dominar-me e fazer um discurso sarc��stico.

O senhor que est�� a meu lado ��� homem de meia-

idade, grisalho e corado ��� volta-se para mim e pergun-

ta, com ar casual:

��� Acha que haver�� boas oportunidades para ne-

g��cios na Am��rica do Sul, quando terminar esta guerra?

Os soldados cegos sorriem por tr��s das d��lias ver-

melhas. E agora me ocorre que todos estamos cegos.

Nascemos cegos e vivemos ��s cegas, num mundo sem

mem��ria.

NOITE EM CHINATOWN

17 de junho. �� s��bado e, aproveitando a primeira

oportunidade que temos de sair �� noite, Mariana e eu

decidimos visitar a International Settlement, situado no

Quarteir��o Latino de San Francisco.

�� uma noite ��mida e fria. Estamos em Pacific

Street bem no lugar em que, em fins do s��culo pas-

sado, ficava a zona conhecida pelo nome de Barbary

Coast, que fervilhava de bord��is, casas de jogo e ca-

bar��s, onde homens rudes que haviam descoberto ouro

A VOLTA DO GATO PRETO

233

vinham divertir-se, aumentar ou diminuir suas fortu-

nas, e ��s vezes matar ou morrer.

O que hoje por aqui se v�� est�� longe de ter o

perigoso encanto da Terrific Street dos velhos tempos.

Vemos uma sucess��o de pequenos cabar��s e bares onde

soldados e marinheiros bebem ou dan��am com suas

companheiras, enquanto algu��m bate desanimadamente

num velho piano ou uma mulher muito pintada e mui-

to loura canta e quase lambe o microfone que lhe am-

plifica assustadoramente a voz. Em muitos bares apenas

se bebe numa penumbra vermelha ou verde. Outros,

numa tentativa de criar o ex��tico, est��o decorados

como se fossem cabanas havaianas e os criados que

servem as mesas s��o realmente naturais do Hava��. Num

desses night-clubs uma chuva artificial cai por tr��s de

grandes vidra��as, com rel��mpagos e trov��es imitando

os temporais dos mares do Sul. No Gay Nineties a

decora����o e o show, bem como os gar��ons, as l��mpa-

das, os lustres e as can����es lembram 1890.

Em todas essas casas entramos, olhamos e delas

sa��mos ap��s alguns instantes. As cal��adas est��o cheias

de pares alegres. De vez em quando vemos soldados

da Pol��cia Militar que por estas ruas andam a manter

a ordem e a recolher os que passed out, ou seja aqueles

que a bebedeira fez perder os sentidos.

Na Grant Street, a principal art��ria de Chinatown,

muitas das casas parecem pagodes chineses. E o res-

plendor dos letreiros ne��nio d�� a esta rua um ar de

noite de S��o Jo��o, com fogos de artif��cio.

Sa��mos �� procura dum restaurante, pois s��o dez

horas e ainda n��o ceamos. A "Forbidden City", ou

"Cidade Proibida", est�� completamente cheia. Na sala

de espera homens e mulheres aguardam vagas, numa

fila paciente. O Sky Room regurgita de soldados e ma-

234

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

rinheiros. T��xis amarelos passam pelas ruas cheios de

bandos barulhentos. Pelas cal��adas pululam os pares

festivos.

Depois de muito andar, de entrar e de sair de uma

infinidade de bares e cabar��s, de antros e freges; de-

pois de ter passado por corredores indescrit��veis, becos

��midos e sombrios, encontramos uma mesa na "Cova

do Drag��o", pequeno cabar�� situado num segundo

andar. A sala �� apertada, e o ar est�� t��o grosso de fu-

ma��a, que a gente tem a impress��o de que o pode

cortar em talhadas, com uma faca. Como acontece

em quase todas as casas desta natureza, a atmosfera ��

crepuscular. Luzes veladas e azuis d��o um tom fan-

t��stico ��s faces das pessoas. Toca-nos pequena mesa

circular perto da estreit��ssima pista onde, daqui a pou-

co, girls chinesas vir��o dan��ar. Um homem louro e

triste, de dinner-jachet, bate desinteressadamente num

piano, enquanto um chin��s, de aspecto mais triste

ainda, sopra num saxofone. Gar��onetes chinesas, os-

tentando costumes de sua terra, passam como sombras

��geis por entre as mesas, carregando pratos de aspec-

to e cheiro ex��tico. A esta hora quase todos aqui est��o

embriagados. O ar fica cada vez mais viciado e es-

pesso, cheirando a uma mistura de fumo e de u��s-

que, temperada pelo morno odor dos pratos chineses.

O homem do piano canta o Hong-Kong Blues, uma

can����o triste, de ritmo oriental em que um sujeito diz

que quando morrer quer ser enterrado em San Fran-

cisco. Oh! A tristeza sem rem��dio do saxofonista,

uma tristeza amarela, seca e milenar de coolie. Perto

de nossa mesa um fuzileiro naval com o peito todo

cheio das fitas simb��licas das condecora����es, bebe em

companhia dum marinheiro. Est��o ambos de tal modo

b��bedos, que j�� nem falam. Limitam-se a olhar estu-

pidamente para seus copos. S��o ambos muito mo��os

e muito louros. O fuzileiro �� o que se acha em pior

A VOLTA DO GATO PRETO

235

estado. Seus olhos est��o mortos, como que velados por

uma pel��cula fosca; a boca contorcida e fl��cida; a

express��o do rosto �� de sonolenta estupidez. Mariana

lan��a-lhe um olhar obl��quo e murmura:

��� Vamos para outra mesa. Acho que alguma

coisa desagrad��vel vai acontecer...

��� Qual! Fiquemos aqui mesmo.

Num dado momento o fuzileiro come��a a regur-

gitar, como uma garrafa que transborda. O vomito

lhe jorra da boca, lhe escorre pela t��nica, pelas conde-

cora����es, cai na mesa, no copo, no ch��o.

Mariana ergue-se revoltada, e foge para o fundo

da sala. Sigo-a e acabamos encontrando uma mesa

num canto remoto. Sentamo-nos. Uma chinesinha

vem saber o que desejamos comer. Pedimos u��sque

e soda, e escolhemos um prato no menu cheio de nomes

esquisitos.

A algazarra aumenta. Marinheiros andam dum

lado para outro com um copo na m��o, cantando e

trocando abra��os com toda a gente. Desconhecidos

confraternizam, trocam amabilidades, com essa ternu-

ra que �� um subproduto do ��lcool.

O ar azeda. O homem do piano geme o blue: quer

por for��a ser enterrado em San Francisco. A confra-

terniza����o �� geral. Um soldado vem at�� nossa mesa

e nos abra��a. Obriga-me a beber no seu copo, declara

que �� muito meu amigo. Olhamos" em torno e, aflitos,

n��o vemos nenhuma abertura para o ar livre.

Trazem-nos a comida. Omelete de camar��o ��

moda chinesa. Mariana, ainda impressionada pela

cena do fuzileiro, olha para o seu prato com repugn��n-

cia... N��o sei por que, sinto-me feliz. Feliz e um

pouco inquieto. Alguma coisa parece que vai acon-

tecer. Come��o a comer distraidamente. O mestre de

cerim��nias, um chin��s ossudo e p��lido, anuncia o show.

236

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Uma chinesa min��scula vem dan��ar na pista, com-

pletamente nua. Os marinheiros aplaudem e gritam.

Um deles ergue-se cambaleando, e quer tomar da cin-

tura da dan��arina, mas um companheiro puxa-o pelo

bra��o para faz��-lo sentar, e ele rola para o ch��o, sob

gargalhadas. De onde estamos n��o podemos ver sen��o

a cabe��a da dan��arina. Desinteresso-me do show.

��� Em que �� que est��s pensando? ��� pergunta

Mariana.

��� Espera l��. Acho que est�� me nascendo uma

id��ia...

��� Uma id��ia? D��i muito?

��� D��i um pouco.

��� Que ��?

��� Talvez um romance.

��� Sobre... isto?

��� Talvez. O diabo �� que estas coisas em litera-

tura tendem a soar falso. ��� Fa��o uma pausa e olho em

torno. ��� Mas isto existe! ��� afirmo, batendo com o pu-

nho fechado na mesa.

��� O u��sque est�� te subindo �� cabe��a.

��� U��sque? A�� est��. U��sque. Ele nunca tinha

bebido antes...

��� Ele quem?

��� A minha personagem.

��� Voc�� ainda n��o me apresentou a ela. Homem

ou mulher ?

��� Homem. Quarenta e cinco anos no m��ximo.

Paulista... ou carioca, n��o sei. Pode chamar-se...

Orlando. Orlando �� um bom nome, n��o ��?

��� N��o tenho nada contra nenhum Orlando.

��� Imagina s�� um professor de Hist��ria, um su-

jeito que se tem na conta de equilibrado, senhor duma

rica experi��ncia... pelo menos �� o que ele pensa.

A VOLTA DO GATO PRETO 237

Educa����o a s��culo dezenove. N��o. Leituras e id��ias

a s��culo dezenove, mas educa����o portuguesa com tin-

turas medievais. Muita conven����o, muito preconceito,

muita hipocrisia...

��� Bom, mas como �� que esse camarada veio parar

aqui em Chinatown, na "Cova do Drag��o"?

Fico pensando...

��� Acho que veio representar o Brasil num con-

gresso de Hist��ria em Los Angeles.

��� Por que em Los Angeles? �� melhor trazer logo o

homem para c��.

��� Ah! A�� �� que est�� a coisa... O congresso ter-

mina, o nosso her��i tem passagem num avi��o para

Miami. Mas resolve vir primeiro a San Francisco por

uma raz��o muito boa. �� que sempre teve uma fas-

cina����o por esta cidade...

��� A Cidade do Pecado?

��� Coisas desse g��nero. Quando menino viu numa

revista fotografias da cidade ap��s o terremoto e o in-

c��ndio, e ficou impressionado. Assim, ele vem...

��� Para ser enterrado aqui, n��o �� mesmo? Influ��n-

cia do blue que o pianista estava cantando.

��� Influ��ncia de coisa nenhuma. Orlando n��o

morre em San Francisco.

��� Encontra uma mulher?

��� Claro. �� sempre bom fazer o her��i encontrar

uma mulher.

��� Esse Orlando �� . . . casado?

��� Casad��ssimo.

��� S��rio?

��� Bom... Guarda as apar��ncias, como a maioria

dos homens. Mas �� um po��o de desejos recalcados...

��� Autobiografia?

��� Assim n��o vale!

��� Bom. Continua.

238

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� O homem embarca pra c��. No trem noturno.

��� Por que n��o no "Luz do Dia?"

��� Espera. A hist��ria come��a quando Orlando

acorda com a impress��o de que vai ser enterrado vivo.

Ergue as m��os para atirar longe a tampa do ata��de. ..

luta com a falta de ar... E l�� est�� o pobre homem

sentado na cama, suando, aflito, e s�� depois de alguns

segundos �� que ele percebe que est�� no leito superior

dum trem. . .

��� Em que ano se passa isso?

��� No ano passado. Orlando salta do leito e na-

quele carro superaquecido sai em busca duma janela,,

de ar livre, pois sente que n��o poder�� dormir. ..

��� E est�� claro que n��o encontra ar livre, porque

nos trens americanos n��o h�� janelas abertas.

��� Isso mesmo. Resolve vestir-se e ir para o carro

comum...

��� E l�� encontra uma estranha mulher...

��� N��o. Encontra um homem, um desses portu-

gueses da Calif��rnia.

��� Por que "portugu��s?"

��� N��o sei. A coisa aconteceu assim. Orlando v��

nos olhos do homem qualquer coisa de familiar...

��� A voz do sangue...

���... come��am a conversar. O homenzinho

fica contente por encontrar um brasileiro. Conversa

vai, conversa vem, o desconhecido se abre. �� pobre,

mora num desses lugarejos do vale de San Joaquim e

sua filha de dezesseis anos deixou a casa, para ir ten-

tar a vida em San Francisco.

��� Ah!...

��� Ah! coisa nenhuma. Espera. Passaram-se dois

anos sem que a menina desse sinal de vida. Um dia

o homenzinho v�� num jornal de San Francisco o retra-

to da filha com uma crian��a no colo. A legenda ao p��

A VOLTA DO GATO PRETO

239

do clich�� deixa-o estarrecido... Por ela o portugu��s

fica sabendo que a filha se casara com um rapaz de

dezessete anos, o qual, desesperado pela falta de em-

prego, acabara cometendo um crime, deixando a es-

posa e um filho pequeno ao abandono...

��� N��o acha isso melodram��tico?

��� Acho. Mas aconteceu que eu vi esse clich�� e

essa hist��ria no "San Francisco Chronicle". �� ver��dica.

��� A vida tamb��m escreve romances-folhetim.

��� O pobre homem vai em busca da filha e do neto,

e est�� um pouco assustado, pois n��o conhece ningu��m

em San Francisco...

Fa��o uma pausa para partir a omelete de camar��o.

Agora quem dan��a na estreita pista �� uma havaiana.

Os marinheiros gritam.

��� Um novo dia amanhece. O trem chega. Or-

lando perde de vista o luso-americano. O ��nico co-

nhecido que nosso her��i tem em San Francisco �� um

m��dico brasileiro que estuda na Stanford University.

��� Quantos dias teu homem vai passar em San

Francisco?

��� Um ou dois. Quero fazer um romance de a����o

r��pida. Pouca gente. No primeiro plano, apenas

Orlando...

��� E tu.

��� Naturalmente.

Um estrondo. Volto a cabe��a. Um marinheiro

caiu por cima duma mesa, que emborca num tinir de

copos quebrados. A algazarra aumenta. O homem

louro bate no piano. O chin��s triste mama no seu ins-

trumento. Parece que o nevoeiro l�� fora entrou para

dentro da "Cova do Drag��o".

��� J�� tenho um t��tulo para a hist��ria ��� digo.

��� Qual ��?

240

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Nevoeiro. Puro e simples. O nevoeiro �� tam-

b��m personagem da novela. H�� uma esp��cie de nevoei-

ro na cabe��a de Orlando.

��� Mas vamos �� hist��ria.

��� Lembras-te da cena que te contei... soldados

cegos homenageados num almo��o? Pois bem. Orlando

�� um dos convidados desse almo��o. E olhando para

aqueles dois rapazes cujas vidas est��o cortadas, ele

fica comovido, e com um sentimento de remorso. De

certo modo ele �� culpado daquilo. A guerra ��, em

suma, um resultado dos erros dos homens de sua ge-

ra����o. E aqueles mo��os est��o pagando pelos erros

dos pais...

��� E esse m��dico amigo de Orlando, que tipo ��?

��� Cinq��ent��o, bom camarada, bom vivedor, ho-

mem sem ilus��es... meio c��nico mas extremamente

simp��tico.

��� Disseste h�� pouco que havia nevoeiro na ca--

be��a de Orlando...

��� Sim. Desde o momento em que chega, ele

sente um vago mal-estar, uma esp��cie de premoni����o

de desastre. Uma sensa����o de medo acompanha-o por

todos os lugares aonde vai... O nevoeiro que paira

sobre a cidade parece-lhe uma amea��a. Continua, de

certo modo, aquela sensa����o de sufocamento come��ada

no trem. De repente Orlando se lembra dum sonho...

Mariana sorri...

��� Tuas personagens sonham muito.

��� Um sonho que ele teve quando mo��o. Sonhou

que tinha morrido e que quatro homens esguios, de

sobrecasaca preta e chap��u alto, como o de Abra��o

Lincoln, carregavam seu caix��o. E que ele tinha sido

enterrado em San Francisco da Calif��rnia.

��� Outra vez o "Hong-Kong Blues".

��� N��o interessa. A verdade �� que Orlando passa

todo o tempo esperando que algo de mau lhe aconte��a.

A VOLTA DO GATO PRETO

241

��� Ainda n��o sei como foi que ele veio parar na

"Cova do Drag��o". No fim de contas teu her��i �� um

homem s��rio, um professor...

��� Vou explicar. Depois de muitas andan��as...

o almo��o no clube... digamos que se chama "Clube

dos Alegres Ursos..." o amigo convida-o para ir ��

noite ao teatro onde John Carradine representa Hamlet.

��� E nessa noite h�� um tremor de terra.

��� Precisamente. E Orlando fica ainda mais aba-

lado. Volta para o hotel cansado, decidido a ir dormir.

Mas quando vai atravessar o hall na dire����o do ele-

vador, um homenzinho se aproxima dele. �� o portugu��s-

americano do trem.

��� Que sujeito cacete!

��� N��o sejas cruel. �� um pobre diabo. Mas Or-

lando fica contrariado. "Que querer�� este homem"? ���

pergunta a si mesmo. O outro lhe conta que descobriu

a casa da filha e l�� encontrou o neto aos cuidados

duma vizinha. A filha, essa tinha sa��do com um mari-

nheiro. "Mas que �� que o senhor quer que eu fa��a?"

pergunta Orlando. O outro responde: "Quero que me

ajude a ir procurar minha filha. Dizem que ela cos-

tuma ir com os amigos a esses cabar��s do International

Settlement".

��� Mas por que o homenzinho n��o esperou que a

menina voltasse?

��� Porque segundo informou a vizinha, a pequena

��s vezes ficava dois ou tr��s dias sem aparecer em casa.

��� E o portugu��s n��o podia esperar dois ou tr��s

dias?

��� N��o. O dinheiro estava curto.

��� Mas por que havia ele de ir procurar logo o

teu her��i?

��� Bolas! Porque era a ��nica pessoa que ele co-

nhecia na cidade. E seja como for preciso que a coisa

242

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

se passe assim, pois do contr��rio n��o descubro jeito de

trazer o meu homem at�� este antro.

��� Est�� bem. Adiante.

��� A�� come��a a peregrina����o do meu her��i e de seu

companheiro atrav��s da vida noturna de San Francisco.

Eles visitar��o todos os freges e cabar��s por onde anda-

mos hoje.

��� E as rea����es de Orlando?

��� Est�� claro que fica a princ��pio escandalizado,

porque �� um professor, um homem de "costumes mori-

gerados". Mas a verdade �� que, no fundo, a coisa o

atrai. Vou explicar que o ponteiro sentimental da

vida desse homem recalcado oscilou desde a adoles-

c��ncia entre dois p��los; um representado pelo pai,

juiz austero, homem de alguns bens, amante da ordem

e do direito; e o outro, o p��lo da aventura, do instinto,

dos desejos livres. Acabou fixando-se no p��lo positivo.

��� Qual �� o positivo no caso ?

��� Bom. N��o sei. Refiro-me ao p��lo do pai.

��� Ah!...

A havaiana se vai, e agora aparece em cena um

palha��o chin��s tocando flauta.

��� Ali est�� uma boa sugest��o ��� digo, fazendo um

sinal na dire����o do clow. ��� Meu her��i, ao ver aquele

chim, lembra-se dum palha��o de sua inf��ncia. Uma

vez, quando menino viu num circo uma mo��a que

trabalhava no trap��zio volante e ficou liricamente apai-

xonado por ela. Desejou fugir com o circo. Desde

ent��o a mo��a do trap��zio ficou sendo para ele o s��m-

bolo da aventura, a nega����o do convencionalismo, do

m��todo, da ordem, da tradi����o.

��� Mas depois que cresceu... ele nunca se en-

tregou �� aventura?

��� Timidamente. E quando teve de escolher en-

tre uma aventura amorosa que podia ser o sacrif��cio

A VOLTA DO GATO PRETO

243

duma carreira s��lida, teve medo e ficou �� sombra do

pai. Formou-se, fez um casamento burgu��s, ganhou

boa posi����o.

��� E viveu feliz ?

��� Sim... superficialmente. E agora, longe do

Brasil, ele como que se livra daquele sistema de coor-

denadas, entra numa outra dimens��o. Olhada de longe,

no tempo e no espa��o, sua vida se lhe apresenta dife-

rente. E nesta noite estranha ele come��a a dar voz a

d��vidas, a fazer perguntas, a sentir estranhos desejos. . .

��� Por que n��o fazer o teu her��i visitar tamb��m o

""Finnochio's"?

��� Excelente. Ele vai. Fica chocado, repugnado

vendo aqueles homens vestidos como mulheres e pin-

tados como mulheres, falando e rebolando as ancas

como mulheres. Fica chocado mas ao mesmo tempo

n��o pode afastar os olhos daquele palco, num inven-

c��vel fasc��nio.

��� Finalmente o homenzinho encontra a filha?

��� S�� depois de visitar muitos antros. E o curioso

�� que eles come��aram a jornada sozinhos e aos poucos,

sem que percebam, bo��mios se v��o juntando ao grupo,,

que no fim �� um bando alegre. Boa oportunidade para

pintar em pinceladas r��pidas algumas "aves noturnas".

��� E finalmente acabam neste cabar��...

��� Sim. E ali naquela mesa do canto... est�� a

filha.

��� Grande cena, n��o?

��� A�� �� que te enganas. A menina diz apenas

"'Hello, pop! Senta-te e toma alguma coisa".

��� E o velho?

��� O velho senta-se. E Orlando tamb��m. Todo

o mundo confraterniza. Porque o pai da menina j��

nessa altura tem v��rios u��sques no bucho.

244

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� E Orlando ?

��� S�� mais tarde, depois de muita relut��ncia, ��

que come��a a beber.

��� Por que essa relut��ncia?

��� Um tio b��bedo na fam��lia. Um tio que seu pai

desprezava, um tio que ele aprendeu a olhar como sen-

do o s��mbolo do pecado, da bo��mia, da auto-indul-

g��ncia e do v��cio. Ora, como podes calcular, todos;

esses fantasmas acompanham Orlando. E mais o ne-

voeiro. Especialmente neste ambiente...

��� E depois?

��� Orlando v�� os soldados b��bedos. Pensa em

que o mundo dele, Orlando, est�� em processo de dis-

solu����o. Pensa tamb��m na posi����o que ocupa, nas

casas de sua propriedade, nos seus t��tulos. Lembra-se

do filho, da mulher, dos amigos. Teme o mundo que

poder�� vir, depois da guerra.

��� Como �� o teu her��i, politicamente ?

��� Reacion��rio fantasiado de liberal. Desses que

��s vezes quando escrevem se revelam liberais mas que

se portam como os mais ferrenhos conservadores. Em

1936 foi pr�� Franco, porque achava que Franco era

um baluarte da civiliza����o crist�� contra o bolchevismo.

��� Em 1938 bateu palmas para Chamberlain.

��� Exatamente, porque Chamberlain e seu guarda-

chuva simbolizavam a paz. Orlando �� um tremendo es-

capista. Viveu sempre de acordo com a t��cnica da

avestruz: enterrando a cabe��a na terra para n��o ver

o perigo. E agora, neste cabar�� sem aqueles "censores"

que o coibiam no Brasil, ele se deixa levar pelo instinto

e porta-se com naturalidade. Olha para esses jovens

soldados que amanh�� talvez estejam mortos, com a

cabe��a decepada, ou os intestinos �� mostra...

��� Uuu! N��o v��s que estamos comendo!..

��� Perd��o, Em��lia. .. que amanh�� estejam mortos

A VOLTA DO GATO PRETO

245

num lugar qualquer do Pac��fico ao passo que e l e . . .

ele que faz? Nada. Apenas deseja a manuten����o do

seu mundo, deseja conservar suas casas, seus t��tulos, e

sua posi����o. Mas n��o luta.. Enterra a cabe��a no ch��o.

E reconhece, embora n��o o confesse, que esse mundo

de mentiras, hipocrisias e injusti��as n��o merece ser

defendido.

��� Ele pensa isto antes ou depois de tomar u��sque?

��� Durante. E sob o efeito do ��lcool, o verdadeiro

Orlando acaba por subir �� tona. Confraterniza com os

marinheiros, e pela primeira vez em sua vida faz ges-

tos espont��neos. Canta, abra��a desconhecidos, sente-

se feliz. E conclui, no nevoeiro da embriaguez, que

talvez esse sentimento de ternura e aceita����o humana

��� uma esp��cie de misticismo, n��o vertical rumo do c��u,

mas horizontal, rumo dos outros homens ��� possa sal-

var o mundo.

��� E o homenzinho e a filha?

��� Essa gente n��o me interessa mais. Vamos ver

o que faz Orlando. Num dado momento ele se ergue

e come��a a dizer em voz alta nomes feios. Nomes que

ele recalcou desde menino, que desejou dizer aos pro-

fessores, ao pai, a medalh��es. Berra os nomes sonora-

mente. As palavras lhe voltam contra o rosto, feitas

cinzas. N��o significam nada: s��o meras conven����es

como tantas outras que levam os homens a matar e a

odiar.

��� Mas como �� mesmo esse Orlando na sua vida...

digamos normal, no Brasil?

��� Um desses tipos que a gente considera bom

sujeito. N��o matam, n��o roubam, n��o ferem... Cheios

de virtudes negativas. Mas como professor de hist��ria

ensinava aos alunos uma Hist��ria convencional, que

ele sabia errada.

��� E por que ensinava se sabia que estava errada?



246

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Porque essa �� a historia que conv��m ��s classes

dominantes. E porque, se contasse a outra, a secreta,

perderia seu lugar. Ao proceder assim Orlando sente-

se traidor. Na juventude teve grandes ideais cava-

lheirescos, sonhou ser uma esp��cie de Cirano de Ber-

gerac, e achou que sempre estaria disposto a sacrificar

tudo para salvar o seu penacho simb��lico. Meteu-se

em campanhas pol��ticas, desejou salvar o pa��s... fa-

lou em liberdade, igualdade e humanidade... Mas

quando subiu...

��� Esqueceu os sonhos.

��� E terminou, como tantos outros de sua gera����o,

acomodado num cart��rio. Guardou o penacho no guar-

da-roupa, com naftalina. E tratou de garantir a sua

estabilidade, uma c��moda aposentadoria para a velhice

sob a prote����o da lei.

��� Mas todas essas coisas... Orlando s�� compre-

ende agora?

��� N��o. H�� muito que essas id��ias lhe tumultua-

vam na cabe��a, mais ou menos informes. Mas s��

agora �� que acham express��o clara, porque ele est�� num

outro mundo, chocado pelos aspectos da guerra, e por

outro lado os "censores" ��� parentes, amigos, interesses

de classe, ��� n��o podem exercer aqui uma influ��ncia

direta.

Fa��o uma pausa e depois:

��� Gar��on! ��� digo. ��� A notai

CL��MAX

Pago. Levantamo-nos. Descemos a estreita es-

cada que leva �� Grant Avenue. �� bom respirar de novo

ar livre. O nevoeiro est�� mais baixo. As ruas, menos

movimentadas. Damos algumas passadas em sil��ncio.

A VOLTA DO GATO PRETO

247

��� Tu abandonaste teu her��i na "Cova do Drag��o"

��� diz Mariana.

��� Ah! Eu vinha justamente pensando nele. Nessa

mesma noite Orlando conhece uma mulher. Uma dessas

muitas criaturas cujas vidas a guerra cortou. Perdeu o

marido e n��o teve, como a maioria das americanas, a

coragem de manter a cabe��a erguida. Entregou-se.

Vive por a�� a beber...

��� Bonita?

��� Creio que sim. Atraente. E o nosso Orlando

no fim de contas �� um homem cheio de desejos recal-

cados. Imagina s�� as centenas de mulheres que em

todos esses anos ele desejou possuir mas n��o p��de, por-

que queria guardar as apar��ncias, porque temia um

esc��ndalo. . . ou ent��o porque elas n��o o quiseram.

��� Como se encontram?

��� N��o sei exatamente. Mas encontram-se. Ela

n��o se interessa especialmente por ele. Acha vaga-

mente engra��ado aquele homem moreno com sotaque

estrangeiro. No fim de contas os homens n��o a atra-

em nem a assustam. O que ela quer mesmo �� morrer.

Acha que n��o vale a pena arrastar essa vida.

��� E como termina a noite?

��� Orlando sai com a mulher, e v��o para o aparta-

mento dela. Est��s vendo aquele edif��cio ah? Pois

bem. �� l�� que mora a desconhecida. Terceiro andar,

apartamento 315. H�� na vidra��a uma bandeirinha

com uma estrela dourada.

��� Orlando est�� embriagado?

��� N��o. Apenas "alegre". N��o te preocupes. Uma

ch��cara de caf�� resolveu tudo.

��� E depois?

��� Naturalmente ele ama a mulher violentamente.

Para Orlando a criatura que se entrega a ele n��o �� mais

uma desconhecida. �� a Bem-Amada, uma esp��cie de

248

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

s��mula de todas as mulheres que ele desejou. Uma

soma das namoradas da adolesc��ncia, das amantes

sonhadas. Mais ainda, ela �� a menina do trap��zio vo-

lante, a Aventura!

Paro, entusiasmado com o "achado". Duma ca-

sa pr��xima chega-nos o som duma orquestra. Um ar

frio nos bafeja o rosto. B��bedos passam por n��s e

nos dizem coisas que n��o entendemos.

��� E a mulher?

��� A mulher naturalmente n��o sabia de nada.

Apenas se deixou amar. Passivamente, desinteressa'

damente. Sabia que aquele homem iria embora no

outro dia, desapareceria de sua vida. E por falar em

desaparecer da vida...

��� Qu��?

��� Nada. Imagina isto. A f��ria passou. Orlando

agora est�� deitado, o corpo lasso e abandonado, mas

o esp��rito inquieto. Atrav��s da vidra��a v�� o nevoei-

ro, sempre o nevoeiro. Pensa no Brasil, naquele mun-

do t��o distante.... Ter�� ele coragem de voltar �� ve-

lha vida? De -ser o mesmo de antes? N��o ter�� agora

os olhos abertos? A vida que sempre viveu foi uma

vida ego��sta, demasiadamente cautelosa e est��ril. On-

de ficaram os seus sonhos? Ele sente uma verdadeira

ternura humana por essa desconhecida silenciosa que

respira de leve a seu lado...

��� A mulher a todas essas n��o diz nada?

��� Nada.

��� N��o se queixa? N��o conta sua hist��ria?

��� N��o. O seu sil��ncio �� impressionante.

Continuamos a andar. Longe gemem as sereias

dos carros do Corpo de Bombeiros.

��� Finalmente a mulher se ergue e vai para o

quarto de banho. Orlando fica com seus pensamentos,

suas d��vidas, suas perguntas e j�� com uma leve sen-

A VOLTA DO GATO PRETO 249

sa����o de constrangimento. O tempo passa. O ne-

voeiro l�� fora se adensa. O sil��ncio do quarto �� um

sil��ncio frio de jazigo perp��tuo. A mulher n��o volta.

Que aconteceu? Orlando levanta-se e vai at�� o quar-

to de banho.

��� E encontra a mulher estendida no ch��o...

��� Isso mesmo.

��� Suic��dio?

��� Sim. Seconal. O vidro est�� preso nos dedos

crispados...

��� Folhetim...

��� Qual nada! Vida. No duro.

��� Bom. Continua.

��� Imediatamente aquela mulher que para Orlan-

do era o s��mbolo de tantas coisas, passou a ser ape-

nas . . . um inimigo... o perigo...

��� E que faz o teu her��i?

��� S�� pensa em sair: sair dali sem ser visto. Es-

t�� apavorado �� id��ia de que seu nome possa apare-

cer num jornal, ��s voltas com a pol��cia, envolvido na-

quele suic��dio. Imagina a repercuss��o do caso no

Brasil... o esc��ndalo, a sua vida estragada... Co-

me��a a vestir-se, ��s pressas, atabalhoadamente, ner-

vosamente, com os olhos na porta, temendo v��-la abrir-

se de repente...

��� De s��bito o telefone tilinta.

��� O detalhe �� de bom efeito. Mas muito falso.

Cinema...

Descemos na dire����o de Sutter-Street. Num ter-

ceiro andar, as coristas do cabar�� de Mr. Wong can-

tam. No fim da perspectiva duma rua avistamos fos-

camente em meio da n��voa o colar de luzes amarelas

que perlongam a ponte que leva a Oakland.

��� Tu compreender��s que vou tirar todos os efei-

tos poss��veis daqueles momentos passados por Or-

250

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

Iando no apartamento, depois de descobrir a mulher

ca��da no ch��o. Abre a porta, vai sair, mas ouve o ru��do

do elevador que sobe, e recua. Olha apavorado para

o telefone, com medo de ouvi-lo tilintar. Por fim des-

ce as escadas, com o pavor na alma. .. Finalmente

ganha a rua. P��e-se a caminhar na dire����o do

hotel...

��� E de repente descobre que deixou o rel��gio

de pulso em cima da mesinha-de-cabeceira da sui-

cida.

��� ��timo. Descobre e fica gelado. Mas metendo

a m��o no bolso, mais tarde, encontra ali o rel��gio.

Chega ao hotel. Sobe para o quarto mas n��o conse-

gue dormir. Clareia o dia. Clareia n��o �� bem o

termo. ..

��� Porque o nevoeiro continua.

��� Exatamente. Orlando n��o pregou olho duran-

te toda a noite. E s�� agora lhe ocorre uma id��ia hor-

r��vel. E se a mulher n��o estava morta? No seu ata-

rantamento esqueceu-se de verificar isso. Podia t��-la

socorrido, chamado a Assist��ncia... No entanto, por

covardia, por pura covardia tratara apenas de safar-se,

para que seu nome, seu honrado nome n��o fosse en-

volvido naquilo.. .

��� E o amigo m��dico?

��� O amigo telefona pela manh��, promete vir

mais tarde. Orlando examina, s��frego, os jornais da

manh��, procurando a not��cia do suic��dio. Estar�� ape-

nas ansioso para saber se a criatura de fato morreu?

Ou apenas quer verificar se a pol��cia descobriu ves-

t��gios de sua visita?

��� Est�� ficando sensacional.

��� E ali fechado naquele quarto do hotel, Orlan-

do pensa na sua vida, nas muitas vezes em que fa-

lhou como ser humano, em que, velado pelo ego��smo

ou pelo medo, ele prejudicou outros, ou negou-se a

A VOLTA DO GATO PRETO

251

auxiliar os que recorreram a ele. O tempo passa. O

nevoeiro continua.

��� V��m os jornais da tarde.

��� No primeiro que examina, Orlando n��o encon-

tra "nada. Finalmente descobre no "Call Bulletin"

uma pequena not��cia que lhe conta que Nancy Ro-

gers, residente em Calif��rnia Street n.�� 1543, no apar-

tamento 315 foi encontrada em estado de coma por

sua companheira fulana de tal que partilha o quarto

com ela, trabalhando �� noite e dormindo durante o

dia. Gra��as �� interven����o da amiga, que a levou para

um hospital, Miss Rogers est�� fora de perigo.

��� Ufa! Que al��vio.

��� Al��vio para ti, para mim e para Orlando.

��� No fim de contas esse pobre homem consegue

dormir?

��� N��o. Vai voltar no trem da noite. O amigo

m��dico aparece. "Que cara �� essa, homem?" diz ele,

achando Orlando p��lido e abatido. Finalmente o nosso

her��i se v�� de novo no trem a caminho de Los Ange-

les. Volta-lhe a sensa����o de ang��stia, de pris��o...

��� L�� est�� num dos carros o portugu��s...

��� Isso! Mas n��o est�� s��. Tem no colo o neto.

��� E a m��e da crian��a?

��� Ficou em San Francisco. O pobre portugu��s

est�� abatido, triste, desmoralizado.

��� Naturalmente entabula-se um di��logo.

��� Sim, mas um di��logo chocho.

��� E como termina a hist��ria?

��� Ah no trem. Orlando pensa em tudo quanto

se passou em San Francisco. Seja como for ��� con-

clui egoisticamente ��� est�� vivo. E que tremendo ape-

tite de viver ele sente agora! Daria tudo, tudo para

voltar a ter vinte e cinco anos... para recome��ar...

Olha para a crian��a que dormita nos bra��os do av��

252

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

e pergunta a si mesmo qual ser�� o destino da gera-

����o que a criaturinha representa, entregue assim aos

erros, �� imprevid��ncia e aos v��cios das gera����es re-

presentadas por aquele homem. E embalado por esses

pensamentos, Orlando deixa cair a cabe��a contra o

respaldo do banco e dorme. Acorda dentro em pou-

co, sobressaltado, com uma sensa����o de ang��stia, de

pris��o. De novo sonhou que tinha sido enterrado vi-

vo. Precisava de ar livre, de muito ar. E assim, ainda

estonteado, sai pelo trem �� procura duma janela, duma

janela, duma janela...

��� Esse �� o fim?

��� ��.

��� E quando vai come��ar a escrever a hist��ria?

��� Nunca.

��� Por qu��?

��� Escuta. Primeiro, porque a hist��ria ter�� um

tom falso, pela simples raz��o de se passar em San

Francisco da Calif��rnia...

��� Talvez sim, talvez n��o...

��� Segundo: o leitor ficar�� com uma impress��o

errada desta cidade, deste pa��s. Imaginar�� que toda

a gente vive bebendo e tomando seconal. Voc�� bem

sabe como esta gente est�� se portando com rela����o

�� guerra. Os rapazes que encontramos hoje na "Cova

do Drag��o" s��o soldados que voltaram da guerra em

gozo de licen��a; querem divertir-se, querem esque-

cer . . . e bebem.

��� E nem todos os soldados que voltam da guer-

ra se embriagam.

��� Claro. E mulheres vencidas como a minha

pobre hero��na s��o raras.

Tomo o bra��o de Mariana, e mostro-lhe um gran-

de ��nibus parado a uma esquina.

��� Olha. Aquele ��nibus est�� esperando os tra-

balhadores que v��o para o turno da madrugada num



A VOLTA DO CATO PRETO

253

desses estaleiros de Richmond. Olha s�� quantas mu-

lheres est��o l�� dentro, metidas em cal��as de homem,

com capacetes de alum��nio na cabe��a. Ali est��o bran-

cas, mulatas, pretas, mo��as, velhas... E h��, tamb��m,

homens de todas as classes, de todas as cores...

Pausa.

��� E depois ��� prossigo ��� um romancista n��o po-

de nunca escrever uma hist��ria interessante em torno

de gente normal e feliz.

��� Mas haver�� no mundo muita gente normal e

feliz?

��� Essa �� uma pergunta dif��cil. ..

Continuamos a andar.

��� Ent��o.. . n��o sai hist��ria?

Sacudo a cabe��a negativamente e acrescento:

��� Acontece tamb��m que Hollywood deitou tudo

a perder. Invadiu o mundo com suas conven����es

e f��rmulas. N��o h�� mais espontaneidade. Tudo soa

falso, porque tudo lembra o cinema. E a coisa �� de

tal maneira besta que um leitor me confessou um dia

que quando l��. um romance de amor, imagina sem-

pre uma m��sica de fundo, como nos filmes.

��� No entanto tua hist��ria �� veross��mil...

��� Queres dizer que ela podia ter acontecido.

Sim. Mas nem tudo que acontece �� veross��mil.

��� De sorte que. .. nada feito?

��� Nada feito.

Ditas estas palavras, encerramos o assunto e tra-

tamos de chamar um t��xi.

CARA DE PAU

20 de junho. A ��ltima aula. Fa��o uma r��pida

recapitula����o de toda a mat��ria dada durante o se-

mestre. Depois fico a conversar com os meus estu-

254

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

dantes, a maioria dos quais talvez eu nunca mais torne

a encontrar.

Sou muito sens��vel ��s rela����es humanas, e habi-

tuei-me a ver pelo menos tr��s vezes por semana estes

jovens que aqui tenho diante de mim. Com muitos

deles andei a caminhar pelo campus ou almocei nes-

ses caf��s bo��mios dos arredores da Universidade.

Muitas dessas mo��as foram a meu escrit��rio e me le-

varam seus "casos", alguns dos quais o romancista es-

cutou com del��cia e o homem com embara��o...

N��o acredito possa afirmar honestamente que

meus alunos conhe��am literatura brasileira. Em com-

pensa����o, estou certo de que despertei neles n��o s��

o interesse e a curiosidade pelo Brasil, como tamb��m

uma certa simpatia pelo nosso povo, nossos sonhos,

pelo nosso jeito.

Pergunto-lhes agora que pretendem fazer no se-

gundo semestre de 1944. Alguns permanecer��o na

Universidade para terminar o curso. Outros tencio-

nam procurar um emprego. Patsy vai para Nova York

tentar uma carreira no r��dio. Helen quer visitar o

Brasil. Marion Bita vai para o M��xico, Mongui�� foi

chamado para o ex��rcito. Maryfrances vai casar. Ma-

ria Antonieta destina-se a uma universidade em

Minnesota.

Dou-lhes o ponto de exame. Quero que me es-

crevam um ensaio sobre o povo brasileiro, atrav��s do

que puderam depreender de minhas confer��ncias e dos

livros lidos em aula.

Finalmente ou��o as badaladas dos carrilh��es do

Campanile, anunciando que a hora terminou.

Good-bye! Estou comovido, mas aposto que meu

rosto n��o revela esse sentimento.

Algu��m j�� disse que, na sua impassibilidade, ele

lembra ��s vezes essas caras talhadas em madeira nos

postes tot��micos dos ��ndios do Alasca...



A VOLTA DO GATO PRETO

255

MINUTO PARA LEMBRAR

Ainda a 20 de junho, ��s tr��s horas de minha

��ltima tarde na Universidade da Calif��rnia. Da janela

de meu escrit��rio vejo um campo de relva parelha e

verde, onde oito universit��rias, postadas numa longa

fila, empunham arcos e lan��am setas contra grandes

alvos com grossos c��rculos conc��ntricos azuis, verme-

lhos e brancos. Ao se cravarem nos discos, as setas

produzem um ru��do cavo e breve. Nas quadras de

t��nis vultos brancos movimentam-se dum lado para

outro, e a batida da bola no cordame das raquetas

tem um tom claro, el��stico e alegre. Na piscina do

gin��sio feminino banhistas espadanam na ��gua, e seus

gritos trespassam o ar como frechas atiradas contra o

azul. Longe os arranha-c��us de Oakland parecem

flutuar na bruma dourada. No Music Building algu��m

com arco incerto arranha enjoativamente as cordas

dum violino. L�� em baixo ao p�� da fonte de m��rmore

um par de namorados conversa de m��os dadas. A

luz da tarde �� doce e madura nas colinas de Ber-

keley.

Mais um momento para lembrar.

3 -

I

N

T

E

R

L

U

D

I

O

(De 30 de junho a 6 de agosto de 1944)



MAPA DO PARA��SO

IMAGINE-SE um parque, ao norte de Oakland,

num calmo vale, ao p�� de colinas que a m��o morena

do est��o ordinariamente pinta de s��pia, e as chuvas

de inverno fazem reverdecer. . . Um parque cortado

de estradas de cimento debruadas de altos eucalip-

tos, ciprestes, carvalhos, pl��tanos e lampi��es anti-

gos. . . Dentro desse parque, edif��cios brancos erguem-

se em meio de vastos tabuleiros de r e l v a . . . O teatro

para m��sica de c��mara, num estilo de igreja do Re-

nascimento espanhol, tem a seu lado um lago circular

sobre o qual salgueiros se debru��am, como que a brin-

car de poema simbolista. Tamb��m branco, mas sem

estilo, o "auditorium" fica perto duma ponte de pe-

dra, sob a qual um airoio desliza, calado e sereno,

por entre pedras e arbustos, rumo das c o l i n a s . . . A

galeria de arte, cuja fachada �� uma longa sucess��o de

arcadas brancas, est�� guardada pelos dois C��es de

Fu, talhados em m��rmore branco, �� maneira da di-

nastia Ming. Num bangal�� simpl��ssimo encontramos

uma livraria, a casa de ch�� ��� "A Lanterna de Ouro"

��� e uma ag��ncia postal. H�� ainda v��rios grandes

halls, com seus jardins, fontes e lagos artificiais... E

casinhas em estilo de miss��o espanhola, dentro de pai-

sagens com cactos e magn��lias. . . No edif��cio da

biblioteca, cujas persianas verdes se abrem para um

largo de forma oval, todo tapetado de relva, reina

sempre um sil��ncio erudito.

Mas h�� em geral gritos alegres e claros nas qua-

tro quadras de t��nis, no gymnasium e na piscina.

260

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

E durante nove meses de cada ano letivo, esse

para��so ��� que se chama Mills College ��� fica povoa-

do de belas raparigas que a�� fazem cursos de belas-

artes, l��nguas, literatura, e ciencias sociais, naturais e

matem��ticas.

De 30 de junho at�� o fim da primeira semana de

agosto o colegio se abre para a "Summer Session" ou

seja "Sess��o de Estio", em que oferece tanto a mu-

lheres como a homens ��� estudantes e professores de

outras universidades ��� cursos especiais intensivos de

ingles, espanhol, franc��s, portugu��s, chin��s, artes pl��s-

ticas, bem como confer��ncias sobre literatura, hist��ria,

arte e costumes da China, da Fran��a, e dos pa��ses

latinos-americanos. E para que esse estudo siga o es-

p��rito pr��tico e instrumentalista do ensino americano,

o Mills proporciona tamb��m aos estudantes a opor-

tunidade dum conv��vio com professores naturais des-

ses pa��ses, em casas separadas que s��o como hot��is,

nos quais os grupos vivem, discutem problemas, assis-

tem a palestras e realizam festas t��picas, dispondo tam-

b��m duma biblioteca especializada e dum pequeno

museu.

Durante o ver��o, funcionam aqui as chamadas

"Casa Pan-Americana", a "Maison Fran��aise", "o En-

glish Language Institute", e o "Chung Kuo Yuan" ou

"Casa Chinesa".

A "Summer Session" n��o tem finalidades comer-

ciais, e s�� pode ser mantida gra��as �� subven����o que o

escrit��rio do "Coordenador de Assuntos Interamerica-

nos" d�� ao Mills College especialmente para esse fim.

O que mais agrada neste "college" �� a gra��a des-

pretensiosa de seus edif��cios e jardins, nos quais se

nota uma aus��ncia absoluta de novo-riquismo. Todos

estes halls t��m um ar de "casas vivas", um calor de

intimidade. Decorados com discreto gosto, com suas

poltronas fofas, as suas lareiras r��sticas, as suas l��m-





A VOLTA DO GATO PRETO

261

padas veladas e seus tapetes ��� ele realiza o milagre

de fazer que quatro brasileiros extraviados possam

neles sentir-se "em casa", desde o primeiro dia.

Nesse para��so entro com minha tribo numa do-

ce tarde de junho, perfumada de eucaliptos.

CHUNG KUO YUAN

O Chung Kuo Yuan ou Casa Chinesa fica na

parte ocidental do campus. �� uma mans��o quieta e

triste como um mosteiro, onde alunas americanas, es-

cassas em n��mero, caminham miudinho e falam bai-

xinho, como que influenciadas pelo ambiente chim.

Mr. Chan ensina chin��s elementar para princi-

piantes, e a l��ngua mandarim para estudantes mais

adiantados; ao passo que Mr. Mach, que fisicamente

n��o difere muito de Mr. Chan, faz confer��ncias sobre

a cultura chinesa e sobre as rela����es entre a China e

os Estados Unidos. Herr Otto Maenchen, que n��o

se parece com Mr. Mach nem com Mr. Chan, inter-

preta para seus alunos as formas de arte e t��cnica chi-

nesas, desde seus princ��pios at�� nossos dias.

E no lago artificial do jardim nadam peixinhos

dourados.

OS MONGES E OS MEXICANOS

No "Orchard-Meadow Hall" estudantes aperfei-

��oam seus conhecimentos da l��ngua inglesa, e uma es-

pecialista em pros��dia tudo faz ��� inclusive meter o

cabo duma colher na boca do paciente para lhe as-

sentar a l��ngua na posi����o conveniente ��� a fim de

conseguir determinados sons. O Coordenador de As-

suntos Interamericanos proporcionou a um grupo de

262

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

professores e professoras mexicanos a oportunidade de

freq��entar este curso de ver��o aprofundando seus es-

tudos de ingl��s, especialmente no que diz respeito ��

pros��dia. Assim, o campus est�� cheio de faces e vo-

zes mexicanas. As vozes em geral s��o musicais e a

l��ngua que falam, agrad��vel. As faces, nem todas s��o

musicais e muito menos agrad��veis. Os homens apre-

sentam um aspecto fa��anhudo e agressivo, e vivem nu-

ma atitude de franca hostilidade com rela����o ao am-

biente. Sei que os mexicanos t��m velhas diferen��as

com os Estados Unidos; n��o discutirei a raz��o dessa

desconfian��a que lhes torna o olhar torvo e as pala-

vras ��speras. Acontece, por��m, que todos os repre-

sentantes de outros pa��ses ��� e especialmente os "do-

nos da casa" ��� procuram trat��-los com a mais cari-

nhosa aten����o, o que n��o impede que os "maestros"

mexicanos se ericem como porcos-espinhos, dando a

entender que ��� "n��s estamos aqui porque queremos,

e n��o acreditamos que estes gringos tenham alguma

coisa a nos ensinar..."

Mariana, que freq��enta um curso de fon��tica, me

conta da atitude agressiva e sarc��stica de alguns des-

ses "maestros" em aula. Um deles ��� um indiota de

nariz quebrado, ex-jogador de box ��� acende seu ca-

chimbo e fica com os p��s em cima da mesa, numa

atitude provocadora. Alguns sorriem sorrisos miste-

riosos, dizem coisinhas. Conduzem-se, enfim, como

"ni��os malos".

A tudo isso os professores Smith e Rotunda ficam

indiferentes, portando-se com uma paci��ncia benedi-

tina.

Dom��nico Rotunda, americano descendente de

italianos, �� um homem robusto, de ar pachorrento, bi-

gode negro ��� desses tipos que sempre andam com a

lapela do casaco polvilhada de cinza de cigarro. Fa-

la devagar e quase sempre em voz baixa. �� um apai-



A VOLTA DO GATO PRETO

263

xonado dos estudos ling����sticos, e ��s vezes convida-

me para ir conversar sobre Pirandello �� sombra das

��rvores do p��tio. Alto, louro, vermelho e sardento,

Willard Smith, lente de ingl��s do Mills, �� um enamo-

rado da filologia.

Freq��entes vezes esses dois homens s��o vistos a

caminhar lado a lado por estas alamedas. Rotunda e

Smith s��o amigos insepar��veis, irm��os na gram��tica

e oficiais do mesmo of��cio. Voluntariamente votaram-

se �� tarefa de ensinar ingl��s aos oper��rios mexicanos ���

em sua maioria analfabetos ��� que foram contratados

para trabalhar nas ferrovias da Calif��rnia. Tr��s ve-

zes por semana v��o esses dois monges misturar-se

com os "paisanos", tentando meter-lhes nas cabe��as

no����es de ingl��s que tornem mais f��cil e proveitosa

para eles a estada neste pa��s.

E aqui no Mills, todas as manh��s, dia ap��s dia,

eles suportam com paci��ncia as palavras e atitudes

agressivas dos maestros, pagando de certo modo pelos

pecados imperialistas do falecido Coronel Theodore

Roosevelt.

ILE DE FRANCE

Insulada no alto dum outeiro, ergue-se orgulhosa

a Maison Fran��aise, no meio dum bosquete de euca-

liptos e carvalhos. Cada ver��o ela hospeda escritores

e professores ilustres de Fran��a. Em 1941 aqui es-

teve Andr�� Maurois, e em suas "Mem��rias", que ele

come��ou a escrever �� sombra destas ��rvores, encon-

tro o seguinte trecho: P��tio �� espanhola onde mur-

mura uma fonte em meio de ciprestes. L��amos e co-

ment��vamos grandes livros; o quarteto de Budapest

executava Beethoven �� noite; Darius Milhaud ensina-

va m��sica; Fernande L��ger ensinava pintura; Mode-

264

O B R A S D E ERICO V E R �� S S I M O

leme Milhaud ensinava a fon��tica; Ren�� Belle, a poe-

sia ��� todos com ardor e talento. Essa "Maison Fran-

��aise" �� uma tradi����o no Mills College, e, dos lados de

Middlebury, um dos centros de estudos franceses da

Am��rica .

Este ano venho encontrar aqui quase toda essa

gente. Darius Milhaud, um dos grandes composito-

res modernos de Fran��a, leciona m��sica neste col��-

gio durante o ano letivo regular. �� um homem gor-

do, dum moreno p��lido, e de express��o imensamente

triste. E a bondade desse artista, que o reumatismo

agora confina a uma cadeira de rodas, revela-se na

maneira terna com que ele olha as pessoas e as coi-

sas. Sua esposa Madeleine, professora de dic����o e

arte dram��tica, �� uma criatura mi��da, de porte alti-

vo, cabelos claros e ar de quem sempre est�� no pal-

co, no terceiro ato duma trag��dia.

M. Bell��, alto, moreno, com o cabelo cortado ��

escovinha, �� um homem gentil, de "maneiras conti-

nentais" ��� como se diz neste pa��s ��� isto ��, um gen-

tleman cheio de curvaturas e de express��es como ���

"Enchant��". . . Mais non, mon cher monsiew... Pas

du tout, ch��re madame.

Solene como uma preceptora, mas t��mida como

uma estudante provinciana no seu primeiro dia de

internato, Mlle. C��cile Reau, diretora da Maison, pa-

rece ter um medo p��nico aos homens. Fala baixo,

n��o encara o interlocutor e, depois dum relutante e r��-

pido aperto de m��o, vai recuando aos poucos, como

uma ave acuada por um mastim, como que no temor

de que sua virgindade cinq��entona possa ser compro-

metida pela simples presen��a duma pessoa do sexo

oposto.

Aos s��bados e domingos estudantes e professores

organizam uma soir��e liter��ria e musical. E no jar-

dim espanhol l��em, sob as estrelas, pe��as de Racine

e Moli��re.



A VOLTA DO GATO PRETO

265

Seguindo um h��bito americano, neste campus

estudantes e professores come��am a confraternizar des-

de o primeiro dia. �� hello! para c�� e hello! para l��.

Ningu��m espera apresenta����es formais. Mais non! Os

habitantes de Maison s��o diferentes. Caminham de-

vagar e com mais dignidade. N��o atiram hellos! es-

portivos para os passantes. Limitam-se a sorrir, incli-

nar a cabe��a e murmurar: How do you do? ou Com-

ment ��a va? Essa maneira de ser formalista contagia

at�� certo ponto os pr��prios estudantes americanos que

vivem na "casa do alto da colina". Parecem pensar

que, pertencendo ao mundo de Voltaire e Montaigne,

de Gide e Debussy, n��o devem misturar-se c�� em bai-

xo com estes b��rbaros adoradores do jitter-bug e le-

dores de suplementos dominicais. Eles l�� em cima s��o

a Cultura, a Sabedoria dos S��culos. �� por isso que

passam como sombras ilustres, com um sorriso condes-

cendente e meio ir��nico por entre esta colorida, des:-

recalcada e jovem popula����o da plan��cie.

JARDIM FECHADO

Este ano a "estrela" de Maison n��o �� Andr�� Mau-

rois e sim Julien Green, romancista nascido em Paris,

filho de pais norte-americanos, educado na Fran��a.

Escreve em franc��s, pensa em franc��s, sente como um

franc��s. ��, em suma, um escritor franc��s, e seus li-

vros, em que predomina um tom noturno, encontram-

se entre os melhores romances psicol��gicos destes

��ltimos vinte anos.

Julien Green �� um homem de estatura me��, cons-

tru����o s��lida, tez dum moreno claro, cabelos e olhos

escuros e um nariz gaul��s, longo e fino. �� retra��do

e t��mido, dessa timidez que �� primeira vista pode pa-

recer emp��fia.

266

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

S�� depois duma apresenta����o formal, durante a

qual ele tirou da cabe��a o Panam�� creme, �� que pas-

sou a me cumprimentar, mas sempre cerimoniosa-

mente.

Assisto a uma de suas confer��ncias sobre a arte

da fic����o. Afirma ele que o essencial para um roman-

cista �� acreditar na hist��ria que est�� contando. O fic-

cionista ��, em ��ltima an��lise, um alucinado que acre-

dita nas cousas que ele pr��prio inventa. Acha Green

que sem sinceridade n��o �� poss��vel escrever-se uma

boa hist��ria. Algu��m lhe perguntou se um autor de-

ve aplicar a seus romances os ensinamentos da psica-

n��lise. Sua resposta foi negativa. Conta tamb��m que

o famoso professor Steker escreveu que sua "Adrien-

ne Mesurat" era o romance psicanal��tico dum escritor

que n��o conhecia psican��lise.

"Com isto estou de perfeito acordo ��� prossegue

Julien Green ��� porque na verdade n��o conhe��o psi-

can��lise."

Escreveu certo cr��tico que Adrienne Mesurat era

um auto-retrato de Green, ao que este, irritado, re-

trucou que no fim de contas ele era um pouco todas,

as personagens de seus livros.

Por que escreve o senhor romances t��o sombrios?

��� perguntam-lhe ��s vezes. Green responde que Ti-

ciano achava o negro a mais bela de todas as cores.

Como pintor de caracteres, Green confessa-se inca-

paz de tirar bons efeitos com cores claras.

Falando no car��ter das personagens de fic����o,

afirma que n��o �� poss��vel criar um tipo absolutamen-

te bom e ao mesmo tempo veross��mil. Referindo-se

�� pequena Neil, de Dickens, classifica-a como um tipo

affreux.

Conta tamb��m que, conversando um dia com

Jacques Maritain em Nova York, algu��m perguntou

a este ��ltimo se seria poss��vel p��ra um homem verda-

deiramente voltado para a vida do esp��rito escrever



A VOLTA DO GATO PRETO

267

vim bom romance. Maritain respondeu pela afirmati-

va, mas Green replicou com uma pergunta: Conhece

algum santo que tenha escrito romance?

E aqui desta ��ltima fila de bancos, onde me en-

contro instalado, a ouvir interessante confer��ncia de

Green, penso em que na verdade o romancista tem

mais de dem��nio que de anjo.

Green tem uma voz branda e atenorada. Rara-

mente nestas confer��ncias se permite fazer uma ob-

serva����o humor��stica. Vim para c�� esperando uma

s��rie de revela����es autobiogr��ficas. Entretanto Green

mostra-se reticente, relutante em contar seus segredos

de homem e de escritor. Aflora apenas os assuntos

e um exemplo dessa tend��ncia para a evasiva �� a

men����o da frase de Ticiano sobre a cor preta para

justificar o tom sombrio de seus livros.

O seu "Adrienne Mesurar" ��� romance cujo titulo

�� o nome da hero��na da hist��ria ��� foi traduzido para

o ingl��s como "Jardim Fechado".

Creio que o pr��prio Julien Green �� um jardim

fechado, um jardim de sombras e de mist��rio, povoa-

do de almas penadas, e onde s�� de raro em raro pe-

netra um raio de sol. Mas um grande e profundo-

universo, esse jardim crepuscularl

CASA PAN-AMERICANA

De todas as casas, esta �� talvez a mais amiga, a

mais sem-cerim��nia, a mais alegre, e, por tudo isso,

a mais freq��entada por elementos de outros halls, os-

quais de vez em quando aparecem ��� principalmente

�� noite ��� em busca duma atmosfera mais familiar e

festiva.

Ocupo com minha gente um bom apartamento, e

minhas obriga����es como professor consistem em duas-

268

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

horas maci��as de aula por dia ��� portugu��s para al-

guns estudantes adiantados, hist��ria e literatura do

Brasil para um grupo mais numeroso ��� e uma que ou-

tra confer��ncia extracurricular sobre assuntos que s��o

determinados ao sabor da fantasia do audit��rio.

Lu��s e Clara fazem amigos e h��bitos, e andam

felizes, duma felicidade ruidosa e alvorotada. O me-

nino vai todas as manh��s �� mesma hora ler livros na

biblioteca da Casa. Faz isso com uma t��o s��ria e com-

penetrada regularidade, que Miss Garden, a loura

bibliotec��ria, me disse h�� pouco:

��� Enquanto o Louie n��o aparece, eu n��o consi-

dero o meu dia oficialmente come��ado.

Rudolph Schevill e sua senhora s��o os diretores

da Casa Pan-Americana. Mrs. Schevill, uma simp��tica

morena de olhos vivos e negros, nasceu no M��xico

mas foi educada nos Estados Unidos. Rudolph e eu

continuamos aqui a boa camaradagem come��ada na

Universidade. Cada vez estimo e admiro mais este

homem de setenta e dois anos que em muitos respei-

tos �� muito mais jovem que eu. ��s vezes, quando me

encontra no hall, entrincheira-se atr��s duma poltrona

e, muito s��rio, come��a a fazer fogo contra mim com

uma metralhadora imagin��ria; e eu n��o tenho outro

rem��dio sen��o defender-me, alvejando-o com um re-

v��lver invis��vel ��� tudo isso para espanto das pessoas

que acontece passarem no momento, e que n��o sa-

bem do que se trata. Pela tardinha sa��mos juntos por

essas avenidas, e Rudolph me conta de suas viagens

por terras da Europa, e das muitas gentes que viu e

das muitas cidades que visitou.

Entre os outros professores da Casa Pan-Ameri-

cana destaca-se Enrique Rodriguez Fabregat, um uru-

guaio admir��vel, autor de v��rios livros, ex-ministro

da educa����o de seu pa��s, orador e polemista de reno-

me. Adora o Brasil, onde viveu muitos anos como

A VOLTA DO GATO PRETO

269

exilado pol��tico. Visitou a floresta Amaz��nica, a res-

peito da qual est�� escrevendo um livro com apaixo-

nado ��mpeto. Outra de suas afei����es arraigadas �� a

que tem pela figura de Abra��o Lincoln, em cuja bio-

grafia trabalha h�� dois anos com lento e amoroso

cuidado. Esse uruguaio que viajou por toda a Am��-

rica do Sul, deixando nos lugares por onde passou

partes de sua bagagem e muitos, muitos amigos ���

esse homem inquieto e imprevisto percorreu, comovi-

do o estado de Illinois, seguindo a rota hist��rica do

grande Presidente.

Rodriguez Fabregat �� um tipo de estatura me-

diana, calva lustrosa, rosto comprido de express��o p��-

cara. O que mais impressiona nele �� a voz, redonda,

profunda e veludosa, que ele sabe modular magistral-

mente. Pelas manh��s aparece-nos na sala de refei����es,

metido numa esp��cie de d��lm�� de veludo marrom,

que lembra a de Stalin, e sua voz ecoa na sala como

que amplificada por um alto-falante. Paciente, tole-

rante e amiga, a Sra. Fabregat, que segundo suas pr��-

prias palavras �� brasileira e uruguaia, "mitad por mi-

tad", parece-me uma admir��vel combina����o de espo-

sa e secret��ria.

�� um gosto ver no meio das girls deste col��gio,

Rodriguez Fabregat de bonezinho na cabe��a, empu-

nhando uma cuia e chupando por uma bomba de pra-

ta o seu chimarr��o ga��cho. As pequenas o cercam e

lhe fazem perguntas, encantadas. Muito grave, com

voz misteriosa e cava, ele lhes conta hist��rias inven-

tadas no momento, coisas fant��sticas sobre a Am��ri-

ca do Sul, a jungle, as montanhas e os ��ndios. A ex-

press��o de seu rosto �� s��ria. O seu ar, dram��tico. E

de vez em quando ele faz pausas para dar um chup��o

na bomba.

Um dia uma velhota de San Francisco, dessas

que l��em um pouco de espanhol e se interessam pela



270

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

hist��ria das rep��blicas do Pac��fico, leu que certos

manuscritos "fueran devorados por las llamas". Tra-

duzindo a palavra llama por lhama em vez de por

chamas, ela ficou t��o excitada, que n��o resistiu �� tenta-

����o de comentar t��o interessante particularidade com

Rodriguez Fabregat.

��� Mas que ex��tico, se��orl Eu n��o sabia que as

lhamas do Peru comiam papel.

Fabregat baixou um pouco a cabe��a, mirou a in-

terlocutora por cima dos ��culos e depois, lentamente,

com uma gravidade doutoral, disse:

��� Comem, madame, pois n��o. .. Comem...

A RONDA DAS ESTA����ES

O clima �� de tal maneira delicioso nesta parte

de Bay Area, que num mesmo dia a gente v�� e sente

passar, numa esp��cie de par��frase, a ronda das es-

ta����es. Quando saio pela manh��, ��s oito, para ir bus-

car a correspond��ncia ao correio, �� inverno; o c��u es-

t�� coberto de cerra����o, o ar �� frio. ��s dez, quando me

dirijo para o pavilh��o das aulas, vem chegando a pri-

mavera; o sol doura o nevoeiro, que come��a a esgar-

��ar-se e erguer-se, e as primeiras nesgas de azul apa-

recem para al��m das fran��as dos eucaliptos. Do meio-

dia ��s cinco da tarde estamos em pleno ver��o, brilha

um sol de ouro, o ar �� quente e seco, o c��u em ge-

ral limpo, e a piscina se enche de banhistas. Depois

das cinco come��a o outono, a luz se faz mais madu-

ra, entra a soprar um vento fresco, e os banhistas,

meio arrepiados, deixam a ��gua. Com a noite vem

o inverno, e as mesmas raparigas que ainda h�� pouco

nadavam na ��gua azul da piscina enfiam seus su��teres

e saem em grupos por essas estradas, v��o para os di-

versos halls onde h�� concertos, confer��ncias, reu-

ni��es . . .



A VOLTA DO GATO PRETO

271

E num c��u onde a bruma �� como um v��u muito

t��nue, brilham estrelinhas de gelo.

O POETA

Alto, corpulento, monumental, com seu bigode

aparado, olhos de ��ndio, Carlos Carrera-Andrade me

d�� a impress��o de ter fugido dum quadro mural pin-

tado por Diego de Rivera para o hall de alguma re-

parti����o p��blica em Quito. C��nsul do Equador em

San Francisco, �� ele um dos mais interessantes poetas

modernos da Am��rica espanhola. Viajou pela Europa

e pelo Oriente, casou-se com uma francesinha loura

de olhos cor de violeta, e agora aqui est�� no cam-

pus do Mills a fazer confer��ncias sobre a poesia l��-

rica latino-americana. Temos feito longos passeios pe-

lo parque, a conversar sobre homens e livros, viagens

e id��ias. Carrera-Andrade me pede que lhe fale em

portugu��s, pois diz amar essa l��ngua que "suena tan

exquisitamente bella", e que tanto se parece com a

espanhola.

Ao cabo de dois dias come��amos a divergir em

quase todos os assuntos que atacamos. Com sua voz

macia e apertada, e a sua pros��dia quitenha, o poeta

de vez em quando p��ra e diz:

��� Pero es una cosa tremeenda!

Prolonga o segundo e de tremenda, cerrando os

dentes e apertando os l��bios. E o que ele acha tre-

mendo �� que eu goste deste pa��s e desta gente, e que

discorde de sua afirma����o de que n��o h�� vida espi-

ritual nos Estados Unidos. Carrera-Andrade vive tam-

b��m perseguido pela vis��o duma Paris feliz, bo��mia

e liter��ria, que conheceu nos "bons tempos", e acha

que a civiliza����o americana �� grosseira e vulgar. Sua

m�� vontade para com este povo se revela nas meno-

272

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

res coisas. Vive em permanente estado de desconfi-

an��a com rela����o a tudo e a todos.

Um dia, ao cabo de uma disserta����o que lhe fiz

relativamente �� minha atitude diante do mundo, con-

cluiu :

��� Mas voc�� n��o �� um escritor latino.

��� Por qu��?

��� �� um homem frio, met��dico, insens��vel.

��� Insens��vel? Frio? Essa �� boa...

��� Eu o tenho observado todos estes dias, tenho

acompanhado as suas rea����es ��s coisas que lhe di-

zem, ��s pessoas que o cercam.

Sorrio e acho que n��o vale a pena explicar a es-

te inteligente e inquieto equatoriano que se ele arra-

nhar esta casquinha de apar��ncia ilus��ria que me re-

veste, h�� de encontrar um sentimental��o.

Fala-me de seu amor pelo povo e de seus pen-

dores socialistas. Mas escandaliza-se quando ponho

em d��vida esse amor pelas massas, achando-o dema-

siadamente te��rico e vago. Faz um gesto de impaci-

��ncia quando levanto a hip��tese de que esse amor

n��o passe de pura atitude liter��ria.

��� Pero es una cosa tremenda! Usted no ama el

pueblo?

Sacudo a cabe��a negativamente.

��� Amo um reduzido n��mero de pessoas e coisas.

Gosto dos meus amigos e do g��nero humano duma

maneira geral. Interesso-me por todas as pessoas.

Desejo ser-lhes ��til na medida do poss��vel. Mas esse

amor de que voc�� fala, t��o grande, t��o sublime, t��o

c��lido. . . eu simplesmente n��o posso compreender.

Olhe aqui. Vamos sentar neste banco. Veja bem...

Procuremos definir a palavra amor e depois a palavra

povo.

Carrera-Andrade d�� uma palmada na coxa.

��� Mas assim n��o se pode discutir...



A VOLTA DO GATO P R E T O

273

Pela estrada passam raparigas num bando alegre.

Acompanho-as com o olhar. Como pisam firme! Co-

mo reluzem de ouro suas cabeleiras! Volto-me para o

meu interlocutor:

��� �� natural, meu amigo, que neste campus a

gente veja aumentada a sua capacidade de amar...

��� Pero usted es malicioso, amigo...

Carrera sorri e desconversa. Fica olhando para

o Mills Hall, que se ergue, �� nossa frente, branco e

imponente. Depois torna a falar dos Estados Unidos

e dos absurdos desta terra.

��� Que se pode dizer dum pa��s onde nem cria-

dos existem!

��� Mas, meu caro poeta, ��� observo ��� voc�� n��o

me disse que era socialista?

��� Pues si, amigo. . . Pero eso es diferente. Si-

empre habr�� se��ores y esclavos.

��� Fresco socialismo!

De longe chegam-nos as vozes das raparigas. Um

repuxo de ��gua irisada atira diamantes sobre as co-

rolas dos hibiscos.

O MAJOR E O NIRVANA

De vez em quando saio deste para��so e vou a

Oakland, Berkeley ou San Francisco fazer confer��n-

cias ou tomar parte em t��volas-redondas. Hoje par-

ticipo do programa de r��dio de Miss Margo, que en-

trevista "celebridades" em torno duma mesa de al-

mo��o. �� em San Francisco, no roof do Hotel Mark

Hopkins, uma sala quadrada com paredes de vidro,

e de onde se avista toda San Francisco, a ba��a, as ou-

tras cidades para al��m desta, e um bom trecho do

oceano Pac��fico. Este bar ��� conhecido na cr��nica

mundana da cidade como o Top of the Mark ��� ��

um ponto de rendez-vous social. Uma fauna variada

274

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

e ruidosa re��ne-se aqui depois das cinco, para o ape-

ritivo. Um empregado da casa, junto do elevador,

interpela os cavalheiros, perguntando-lhes se as mu-

lheres que trazem consigo j�� passaram dos vinte e um

anos. Se acontece dirigirem a pergunta a uma da-

ma que j�� entrou na casa dos trinta, ela sorri, encan-

tada, e diz simplesmente: Oh, thank you!

Estamos ao redor duma mesa redonda, papando

o nosso almo��o. Aqui est��o Dicke Tyler e Joan She-

pard, duas crian��as prod��gios que aparecem com

grande sucesso na pe��a antinazista Tomorrow the

World que se representa num dos teatros de San

Francisco. A terceira celebridade �� o Major Meraj ud

Din, do 10.�� Regimento Panjab do ex��rcito hindu. ��

um homem baixo, refor��ado, de pele bronzeada e ca-

belos ralos. Enverga um uniforme caqui com gola e

ombreiras vermelhas. Traz no peito muitas condeco-

ra����es, pois �� um dos her��is da campanha da Birm��-

nia. Quanto a mim, creio que estou aqui n��o em ca-

r��ter de celebridade, mas de raridade, pois n��o �� to-

dos os dias que esta gente v�� um romancista do Bra-

sil. (Gee, how interesting!)

Miss Margo, magra e loura, come��a as entrevis-

tas. O microfone est�� no centro da mesa. Os peque-

nos narram suas experi��ncias teatrais, dizem da im-

press��o que tiveram no primeiro dia em que se vi-

ram no palco diante do p��blico. O major hindu con-

ta com muita discri����o suas experi��ncias na Birm��-

nia, ��s voltas n��o s�� com os inimigos japoneses mas

tamb��m com as febres, os mosquitos, os jacar��s, as co-

bras e a mata.

Que posso eu contar? N��o creio que os ouvintes

deste programa estejam interessados na minha bio-

grafia. Por isso lhes falo no Brasil, nas qualidades do

nosso povo, e no que seremos no dia em que as clas-

ses desprotegidas tiverem assist��ncia m��dica e esco-

lar, melhores oportunidades de progresso material

A VOLTA DO GATO PRETO

275

e espiritual; em suma: no dia em que ��� para usar

duma frase de Sidney Hook ��� os nossos marginais

passarem do plano animal para o plano humano. A

seguir falo mais uma vez no que uma melhor distri-

bui����o dos benef��cios proporcionados pelo progresso

cient��fico poder�� trazer para as massas. Durante essa

disserta����o, mais de uma vez emprego a palavra feli-

cidade. Terminada a palestra o major hindu me cha-

ma �� parte e diz:

��� Eu gostaria de conversar mais longamente com

o senhor...

��� Por que n��o nos encontramos em algum lugar

esta tarde?

Ele sacode a cabe��a.

��� Imposs��vel. Sigo dentro duma hora para Nova

York e de l�� para Londres.

��� �� pena...

��� Mas deixe que lhe diga uma coisa. O senhor

est�� enganado...

��� Claro. H�� um mundo de coisas em que devo

estar enganado. Mas a que �� que o senhor se refere?

��� Refiro-me �� sua id��ia de felicidade. Para n��s

na ��ndia, felicidade n��o �� comer bem, vestir bem e ter

essas coisas que o progresso mec��nico pode dar...

Contemplo-o em sil��ncio e ele continua:

��� Para n��s felicidade �� a comunh��o com o Ab-

soluto. �� o Nirvana. Essa �� a profunda, a verdadei-

ra felicidade.

��� Bom. Eu me referia a felicidade social e n��o

�� metaf��sica.

��� Para n��s hindus a metaf��sica �� a mais impor-

tante.

��� Pois ��. Enquanto os senhores vivem em con-

templa����o, em comunh��o com o Absoluto, os ingle-

ses, que n��o acreditam em absolutos, v��o mantendo

o povo hindu em escravid��o, encorajando nele essa



276

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

id��ia de que a felicidade n��o consiste em ter melho-

res casas, melhor alimenta����o, melhor sal��rio e . . .

liberdade.

O major sorri, olhando para a ponta do seu ci-

garro. Sorri porque compreende que a felicidade que

eu busco pode durar quando muito o tempo duma

vida, ao passo que a sua felicidade durar�� por toda

a eternidade...

QUARTETO

Os membros do quarteto de cordas -de Budapest

��� talvez o melhor conjunto de seu g��nero do mundo ���

passam o ver��o na "Maison Fran��aise". Eu os vejo ��s

vezes pela tarde na piscina, em trajos de banho, ou en-

t��o em outras horas, metidos em frouxas roupas espor-

tivas, a passear por estas alamedas. Nas noites de

quarta-feira eles v��o de dinner-jacket para o palco do

teatro de m��sica de c��mara esfregar seus arcos nas

cordas de seus instrumentos, mantendo em estado de

verdadeiro, sortil��gio um audit��rio dumas seiscentas

pessoas ��� residentes do campus ou estranhos vindos de

Oakland, Berkeley e San Francisco.

Os aplausos s��o fren��ticos. E Roisman, Orten-

berg, Kroyt e Schneider curvam-se, imperturb��veis,

agradecem e se v��o. Como as palmas continuam, tor-

nam a voltar... duas, tr��s, quatro vezes. E sempre

serenos.

Depois do concerto, v��o comer batatas fritas e

beber cerveja num restaurante de beira de estrada ���

o P al's ��� que fica a dois passos do port��o do campus.

�� uma casinha de madeira, pequena e fumarenta, que

cheira a frituras. Um homem de avental branco atira

chuma��os de carne mo��da para cima da chapa quente

dum fog��o. E com uma atividade espantosa serve a

um fregu��s, batatas fritas, d�� a outro um cachorro-quen-



A VOLTA DO GATO PRETO

277

te e a um terceiro uma cerveja e um sandu��che. Por

cima do fog��o, acha-se um cart��o com estes dizeres.

Sil��ncio! O g��nio trabalha . E nos fundos dessa gos-

tosa espelunca, numa saleta estreita de paredes r��s-

ticas forradas de papel��o pardo, onde cada fregu��s

deixa uma marca ��� assinatura, verso, desenho ou

frase ��� os membros do quarteto de Budapest, pedin-

do f��rias a Beethoven, Mozart e Brahms, cantarolam

e batem com os p��s, acompanhando o ritmo dos boogie-

woogies que saem duma juke-box barulhenta.

A ALCACHOFRA

Acha Carrera-Andrade que Julien Green habita

uma torre de marfim, alheio aos conflitos e inquieta-

����es sociais do momento.

��� E se promov��ssemos um encontro... por exem-

plo, um almo��o com Green, para submet��-lo a uma

sabatina? ��� pergunta-me ele.

��� �� uma boa id��ia, ��� respondo.

Seaver Gilcreast, professor da Universidade de Buf-

falo, excelente ling��ista e um mestre consumado na ar-

te de fazer amigos ��� leva o convite a Julien Green,

que vem sentar-se �� nossa mesa, sem suspeitar da ci-

lada que lhe arrumaram.

Muito empertigado e meio constrangido, ele olha

fixamente para a alcachofra solit��ria que est�� no seu

prato, como uma verde granada de m��o.

Falamos do racionamento, de Gide, do tempo e

da guerra. Finalmente Carrera-Andrade aproveita

uma deixa e entra no assunto:

��� Mr. Green, n��o encontramos nos seus romances

nenhuma inquieta����o relativa aos fen��menos sociais de

nosso tempo. N��o h�� neles nem mesmo men����o desses

problemas...

278

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Green fita no interlocutor seus olhos sombrios. O

poeta continua:

��� Talvez tenha sido para evitar essa dificuldade

que o senhor situou a a����o de "Adrienne Mesurat"

antes das duas Guerras...

Todos n��s esperamos a resposta com interesse.

Uma express��o quase de agonia passa pela fisionomia

de Julien Green. Ele olha para os lados, como a pedir

socorro. Finalmente tartamudeia:

��� Problemas sociais? Como poderei escrever a

respeito deles... se n��o os conhe��o? S�� posso escre-

ver minha experi��ncia humana... Essas quest��es so-

ciais est��o fora da minha experi��ncia... N��o �� que eu

n��o me interesse... Acontece que me sinto verdadei-

ramente perdido nesse mundo.

Carrera vai insistir. Isso me parece crueldade.

Crueldade de toureiro que, depois de farpear um tou-

ro, de v��-lo sangrando, exausto, quer ainda ir at�� o

golpe final de espada.

Penso que um escritor da import��ncia de Green

merece n��o apenas admira����o, mas tamb��m respeito.

��, sem a menor d��vida, um romancista s��rio. N��o fa-

lar�� a nossa l��ngua, o que n��o quer absolutamente

dizer que seja mudo. N��o pertence ao nosso mundo,

o que n��o quer dizer que deva ser votado ao inferno.

Por outro lado parece-me que seus livros ser��o lem-

brados muitos anos depois que a obra de alguns dos

escritores modernos de propaganda tenha sido com-

pletamente esquecida.

Carrera-Andrade continua a tirar suas farpas.

Acho melhor desviar a conversa do assunto. V��-se

claramente que Julien Green est�� infeliz. Pergunto a

Smith de sua atividade entre os trabalhadores mexi-

canos. E o professor de ingl��s toma a palavra. Green,

por��m, parece n��o escutar o que ele diz. Continua

a olhar perdidamente para a sua alcachofra.



A VOLTA DO GATO PRETO

279

GEO

Entre os homens que admiro e estimo neste cam-

pus, encontra-se George Hedley. Baixinho, franzino,

encurvado, ��gil e ativo como um esquilo; de rosto ro-

sado, marcado de rugas, mas nem por isso envelhecido;

um cigarro sempre preso aos l��bios ��� ele anda em passo

acelerado por estes sendeiros, entra na "Lanterna de

Ouro", toma um ch�� ou um caf��, toma a sair, distri-

buindo para a esquerda e para a direita al��s cordiais,

atravessa canteiros, vara halls, det��m-se- aqui e ali para

falar com um e outro, e finalmente se enfurna no edi-

f��cio da administra����o, onde fica a lidar com os proble-

mas da "Summer Session", da qual �� diretor. No dia

em que fez, no auditor��um, a apresenta����o oficial do

corpo docente do curso de ver��o para um audit��rio

composto de alunos e visitantes, mencionou de cor ���

sem o menor erro ou hesita����o, com partes dum hu-

mor irresist��vel pela discri����o e pelo ar casual ��� o no-

me, os t��tulos e as atribui����es de uns quarenta profes-

sores de pelo menos oito nacionalidades diferentes.

George Hedley �� um humanista e um liberal. No

curso regular do Mills, leciona teologia. E nesta tem-

porada de ver��o aos domingos faz serm��es na capela

do campus.

Tem um autom��vel pardo, de modelo antigo que

"lhe fica muito bem". �� um carro sem glamour mas extremamente simp��tico, que parece ter absorvido a ma-

neira de ser do dono. Um dia George me convida para

entrar no seu autom��vel. Abro a porta, salto para

dentro da engenhoca e no momento seguinte me vejo

atrapalhado, sem saber onde sentar, perdido no meio

de medonha confus��o feita de jornais e revistas velhos,

garrafas vazias de ��gua de soda, sapatos, tacos de

golfe, e discos de gramofone.. .



280 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Ontem assisti a um espet��culo que para mim foi

dum grande pitoresco. Ia George Hedley passando

pelas quadras de t��nis quando um dos jogadores gri-

tou l�� de baixo:

��� Helio, Geo!

��� Helio there! ��� respondeu o meu amigo.

��� Vamos jogar uma partidinha?

Geo olhou o rel��gio.

��� Tenho quinze minutos. Okay.

Desceu correndo para a quadra, descal��ou os sa-

patos de passeio, enfiou sapatos de t��nis ��� sa��dos n��o

sei de onde e n��o sei por que artes m��gicas ��� tirou o

casaco e, com as cal��as do seu insepar��vel terno azul

arrega��adas at�� meia canela, come��ou a jogar. Corria

dum lado para outro, sempre de cigarro na boca, e,

cada vez mais vermelho e mais agitado, dava tremen-

dos golpes na bola. Passados quinze minutos, desen-

rolou as cal��as, trocou os sapatos, enfiou o casaco e

l�� se foi, sempre apressado, a continuar sua atividade.

Estou agora a seu lado, junto duma mesa, debai-

xo dum p��ra-sol, no p��tio da "Lanterna de Ouro". Geo

conta-me que um dia escreveu uma pe��a de teatro em

torno do conflito moral dum pastor protestante que

lutava indeciso entre suas inclina����es liberais e a es-

pessa burrice duma par��quia hip��crita e reacion��ria.

Em dado momento Geo ergue-se e, como se fosse

um desses vendedores clandestinos de alguma droga

proibida pela lei, ele me passa discretamente um pe-

queno livro de capa de percalina parda. Feito isso d��

meia volta e se vai. Olho o volume. �� uma colet��nea

de poemas. O t��tulo: In Brief. O autor: George

Hedley.

OS SIL��NCIOS DO GENERAL BARROWS

Torno a deixar hoje por algumas horas o campus

do Mills para ir tomar parte num "f��rum", na Univer-

A V O L T A DO GATO P R E T O

281

sidade da Calif��rnia. Professores vindos de San Fran-

cisco e los Angeles v��o discutir a origem das dita-

duras na Am��rica do Sul. Tenho a meu lado, silencio-

so e imponente, o Gen. David Prescott Barrows, oficial

reformado do ex��rcito americano, doutor em ci��ncias

pol��ticas ��� um homem alto, corpulento, de porte mar-

cial, cabelos e bigodes brancos, e rosto dum vermelho

arroxeado. Metido num grosso trajo de tweed cinzento,

parece um desses gentlemen ingleses que v��o periodica-

mente ca��ar tigres na ��ndia. Tem um vozeir��o retum-

bante e grave, mas fica em profundo sil��ncio enquanto

os outros colegas, que se encontram em cima do es-

trado, na frente dum audit��rio atento, exp��e seus

pontos de vista.

O Prof. Macdonald dirige a discuss��o como mo-

derador. Chega-se preliminarmente �� conclus��o de que

o fator ra��a nada tem a ver com o caso. V��o passar

adiante quando pe��o a palavra.

��� Est�� claro ��� digo ��� que falar em superioridade

de ra��as �� entrar em terreno incerto e perigoso. Mas

parece-me que n��o podemos deixar de levar em conta

as diferen��as raciais.

��� Que diferen��as? ��� pergunta um louro profes-

sor de Los Angeles.

��� Diferen��as de temperamentos, de inclina����es...

��� respondo.

��� Exemplifique ��� pede o moderador.

��� Tomemos os alem��es... ��� prossigo. ��� Amam o

m��todo, a organiza����o, as paradas, as demonstra����es

coletivas de for��a, e t��m uma tend��ncia perigosa para

seguir fanaticamente o primeiro messias que lhes acene

com qualquer cruzada tendente a demonstrar a supe-

rioridade do Vaterland sobre o resto do mundo... J��

os norte-americanos s��o diferentes. Amam com menos

paix��o o m��todo e a organiza����o, sabem pensar cole-

tivamente, compreendem a necessidade da coopera����o,

282

OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO

mas recusam-se a seguir cegamente os demagogos, e

me parece que s��o incapazes de fanatismo.

Ao meu lado o Gen. Barrows funga, e ao ritmo de

sua respira����o forte, os p��los de seu nariz vibram como

finas antenas.

��� Tomemos os chamados latino-americanos... ���

continuo. ��� S��o povos rebeldes, dif��ceis de governar.

Na minha terra cada homem �� um partido pol��tico.

Coopera����o para n��s �� palavra quase sem sentido.

Somos improvisadores imaginosos mas desorganizados.

Creio que as diferen��as raciais n��o podem deixar de

ser levadas em conta...

O general sacode a cabe��a, aprovando silenciosa-

mente o meu ponto de vista.

Quando chega a minha vez de opinar sobre as

causas das ditaduras na Am��rica do Sul, digo mais ou

menos o seguinte:

��� Os sul-americanos, principalmente os povos his-

p��nicos, s��o uns enamorados do hero��smo, coisa que

acontece em grau menor com os brasileiros. Para nossos

vizinhos o her��i �� o caudilho, o general, o bandoleiro.

Honra e coragem s��o as palavras que eles usam com

mais freq����ncia. Ora, os her��is norte-americanos s��o

homens de a����o social ou cient��fica, homens que n��o

vestiam farda e que andavam geralmente a p��. Os

her��is hispano-americanos s��o homens de a����o militar

e pol��tica, no que esta ��ltima palavra tem de mais es-

treito. Usam fardas e quase sempre est��o em cima dum

cavalo. Em suma: s��o her��is eq��estres.

(Confesso que vim para este f��rum sem ter es-

tudado o assunto da discuss��o; para n��o desmentir o

que disse h�� pouco dos brasileiros, estou tamb��m im-

provisando. .. )

��� Outra coisa... ��� continuo, depois de breve

pausa. ��� N��o devemos esquecer que n��s na Am��rica

do Sul fomos colonizados por dois pa��ses essencial-

mente feudais: Portugal e Espanha. De certo modo o

A VOLTA DO GATO PRETO

283

regime feudalista existe ainda em maior ou menor

grau atrav��s das rep��blicas centro e sul-americanas.

O senhor do engenho, o homem da casa-grande �� um

chefe de cl�� e um l��der pol��tico que eventualmente se

transforma em general. O pe��o em tempo de paz �� o

eleitor e em tempo de guerra o soldado. Nossas dita-

duras s��o uma conseq����ncia dessa organiza����o feudal,

combinada com o problema das dist��ncias, da falta de

meios de transporte e comunica����o, mais o analfabe-

tismo e a falta de sa��de das massas, ��� tudo isso agra-

vado pela indiferen��a ou mesmo pela cumplicidade de

boa parte das classes intelectuais. Entre n��s os bons,

os justos, os honestos, os l��cidos em geral s��o fracos

ou c��pticos ou ambas as coisas juntas. H�� um corajo-

so grupo de rebeldes que formam a popula����o cr��-

nica das pris��es; em suma: sua voz �� abafada pela

pol��cia. Infelizmente �� grande, por outro lado, a legi��o

dos aproveitadores, que tudo fazem por prestigiar,

amparar e prolongar um regime pol��tico que lhes pro-

porciona vantagens, lucros, favores e posi����es. Temos

ainda as massas ap��ticas, subalimentadas, doentes e

ignorantes. Tudo isso forma uma engrenagem mons-

truosamente s��lida que vem funcionando durante s��-

culos. Um entrela��amento de interesses mant��m em

constante funcionamento esse hediondo e cruel Robot

que se alimenta de vidas humanas, sem o menor sen-

so de justi��a social. A mola real desse Robot me parece

o lucro e a sua t��tica a explora����o do homem. Por que

as massas sacrificadas n��o destroem o monstro? Porque

for��as poderosas o protegem, uma vez que seu desman-

telamento seria a ru��na de uma s��rie de organiza����es,

as (juais por seu turno alimentam outras organiza����es,

cuja destrui����o implicaria no preju��zo de uma centena

de outros interesses nacionais e estrangeiros.

O Gen. Barrows continua silencioso.

��� Ora, somos povos semicoloniais ��� continuo, ���

devedores cr��nicos, e aparentemente em estado de in-

284

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

solv��ncia, de pa��ses como a Inglaterra e os Estados

Unidos. A nossa liberdade por isso tem sido muito

relativa durante toda a nossa Hist��ria. Tomemos o caso

atual do Brasil, onde prevalece o patriarcalismo de

tipo portugu��s... Dissolvendo a assembl��ia em 1937,

instituindo a censura postal e a de imprensa, passando

a governar por decretos sem dividir a responsabilida-

de de governo com nenhum grupo de representantes

do povo, Get��lio Vargas destruiu os ditadores muni-

cipais e estaduais e promoveu a unidade nacional reu-

nindo por assim dizer todos os baronatos num s�� pa��s

do qual se fez ele o ��nico ditador. E esse caudilho de

cidade, inteligente e malicioso, compreendeu que os

tempos mudaram, que a era do homem comum se apro-

xima, e que o her��i tende a descer de seu cavalo para

ser o chefe de consci��ncia social que caminha na di-

re����o das massas e trata de conquist��-las n��o mais com

discursos bomb��sticos, mas com atos de alcance pr��-

tico. Deu, assim, ao Brasil leis de trabalho avan��adas.

Do conflito criado por ele pr��prio entre o desconten-

tamento das classes conservadoras a que timidamente

aparou as asas, e o vago contentamento das classes tra-

balhadoras, que favoreceu sem contudo chegar a me-

lhorar-lhes efetivamente a vida ��� desse conflito o Di-

tador tira habilmente o seu equil��brio. Diferente da

generalidade dos ditadores a cavalo, que adoram o

��mpeto das, cargas de lan��a, que se entregam a del��-

rios epil��pticos de alegria ou pesar, Vargas ��� que n��o

�� cruel nem truculento ��� porta-se urbanamente, com

um am��vel maquiavelismo temperado de humor. E

�� preciso a gente fazer um grande esfor��o para resis-

tir ao fasc��nio dessa personalidade serena e sorriden-

t e . . . Porque por tr��s desse sorriso aliciante o que h��

�� ainda corrup����o pol��tica, irresponsabilidade e opress��o.

O moderador me interrompe:

��� Parece-me que o senhor est�� particularizando

demasiadamente o assunto.

A V O L T A DO GATO PRETO

285

��� Sorry.

��� E a sua vis��o do seu pr��prio pa��s �� muito pes-

simista ��� diz outro.

��� Chamberlain foi um otimista em 1938... ���

retruco. ��� Mas.. . voltando ao assunto de ditadores, n��o

posso deixar de mencionar "o perigo vermelho" que

tem sido o grande pretexto para os golpes de for��a na

Am��rica do Sul.

��� At�� onde esse perigo existe? ��� indaga Mr. Mac-

donald.

��� Est�� claro que h�� comunistas na Am��rica do

Sul como os h�� neste pa��s. E parece-me que o n��me-

ro deles cresceu recentemente no Brasil n��o tanto pelos

m��ritos das teorias de Marx e Lenine como em virtu-

de do sucesso dos ex��rcitos russos nesta guerra, e da

absoluta cegueira e estupidez da alta burguesia que se

entrega a uma orgia de lucros extraordin��rios e que

continua a achar que o problema social �� um caso de

pol��cia.

O Gen. Barrows toma a sacudir a cabe��a, sempre

em sil��ncio.

��� Em suma, acha que essa "doen��a ditatorial" ��

incur��vel na Am��rica do Sul?

��� Absolutamente! O que estou mostrando �� a

tremenda complica����o do problema. O mundo se faz

cada vez menor. H�� quest��es que s�� poder��o ser re-

solvidas no plano internacional. N��o esque��am que

muitas vezes os destinos duma republiqueta centro ou

sul-americana �� at�� certo ponto resolvido dentro duma

sala dum edif��cio de Wall Street, por um grupo de ho-

mens para os quais Guatemala; El Salvador ou Bol��-

via s��o apenas nomes sem nenhum sentido humano.

Esses homens de neg��cios s��o em sua maioria ��timos

cidad��os que doam milh��es a universidades, bibliote-

cas e hospitais; que dizem hello democraticamente ao

menino do elevador; que amam a mulher, os filhos e

os amigos. Mas esses admir��veis cidad��os se acham

286

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de tal modo deformados pela profiss��o, que s�� racio-

cinam em termos de lucros. Seriam incapazes de puxar

o gatilho dum rev��lver para matar um rato, no entanto

deflagram guerras e revolu����es a dist��ncia pela sim-

ples raz��o de que os dados que o papel lhes apresenta

s��o apenas s��mbolos matem��ticos ou estat��sticos, e di-

zem respeito a lucros...

��� O senhor n��o estar�� fantasiando? ��� pergunta

algu��m.

Retruco:

��� Nesta altura dos acontecimentos, depois do bom-

bardeio de Rotterdam, dos massacres dos campos de

concentra����o, n��o teremos o direito de perguntar se

por acaso tudo isso que se est�� passando no mundo, n��o

ser�� apenas a fantasia dum c��rebro doentio, ou ��� como

diria Wilde ��� o pesadelo dum louco?

A discuss��o se prolonga. Noto que todos estes

homens s��o cultos e bem informados quanto a teorias

sociol��gicas, mas quase completamente ignorantes dos

dados da realidade sul-americana. E o f��rum termina

sem que tenhamos chegado a um acordo quanto ��s

causas das ditaduras na Am��rica do Sul.

Fico por algum tempo a palestrar com o Gen.

Barrows, que finalmente quebra seu sil��ncio. Fala-me

da Universidade da Calif��rnia, de cujo Departamento

de Ci��ncias Pol��ticas j�� foi diretor, e, para frisar a na-

tureza cosmopolita do campus de Berkeley, conta-me

a seguinte hist��ria:

��� Em 1917, como o senhor sabe, o nosso governo

mandou uma for��a expedicion��ria �� Sib��ria. Eu era

assistente do chefe de estado-maior, e o Gen. Seme-

noff, comandante dos Russos Brancos, me nomeou

aide-de-camp dum cossaco cujo aspecto jamais es-

quecerei. Era um homem de dois metros de altura,

de ombros largos e bela cabe��a coroada por uma juba

leonina. Tinha o peito cheio de medalhas e suas ves-

tes revelavam um esplendor asi��tico.

A VOLTA DO GATO PRETO

287

O Gen. Barrows faz uma pausa para acender

seu cachimbo.

��� Eu estava um pouco perturbado ��� continua

o general ��� imaginando o trabalho que ia ter para me

entender com aquele cossaco, quando o vejo dirigir-se

a mim num ingl��s de primeira ordem, claro e correto.

E sabe o que ele me disse?

Sacudo a cabe��a negativamente. O general solta

uma baforada de fumo e conclui:

��� Disse exatamente estas palavras: "O senhor

n��o me conhece, general, mas eu o vi muitas vezes no

campus de Berkeley. Estudei durante dois anos no

vosso Col��gio de Mills".

H�� uma pausa breve, ao cabo da qual o general

me diz:

��� Estive h�� alguns anos no seu pa��s. O Rio ��

uma cidade portentosa...

Por tr��s da fuma��a, seus olhos cinzentos t��m um

brilho l��quido.

��� Que fim levou aquele romancista que tanta

f��ria estava causando nos tempos em que visitei o Rio?

��� Que romancista?

��� N��o me posso lembrar do nome... S�� sei que

era um realista. Tive a honra de receber um exemplar

autografado de seu primeiro romance.

��� Como se chamava o livro?

��� Espere l��... chamava-se... ah! "O Mulato".

��� O senhor se refere a Alu��zio de Azevedo...

��� Exatamente. That's it!

��� Mas isso foi no s��culo passado, general...

�� com ar sonhador que ele murmura:

��� Pois ��. Foi no s��culo passado...





288

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

HOMENS E N��MEROS

Trecho duma carta a Vasco Bruno:

.. .talvez Goering n��o tivesse nervo para matar a frio, com

suas pr��prias m��os, meia d��zia de judeus. Mas sentado atr��s

de spa escrivaninha era-lhe f��cil assinar uma ordem condenando

�� morte 120 000 filhos de Israel. Porque esses milhares de seres

humanos estavam representados no papel por uma cifra, eram

o que se poderia chamar "uma tecnicalidade". (Os estrategis-

tas falam ��s vezes em "material humano" quando se referem aos

soldados). Quando as pessoas s��o transformadas em s��mbolos

aritm��ticos ou alg��bricos, elas perdem perigosamente n��o s�� a

sua individualidade, como tamb��m a sua condi����o humana. ��

relativamente f��cil a destrui����o de s��mbolos, porque na sua ex-

press��o gr��fica eles n��o t��m carne nem sangue nem nervos.

Essa �� uma das muitas raz��es por que n��s os "liberais ro-

m��nticos" ��� se assim nos quiserem chamar ��� devemos combater

com todas as nossas for��as qualquer regime, seja qual for o

seu nome, que tenda a roubar a pessoa humana de sua indivi-

dualidade, reduzindo-a a uma express��o num��rica e conside-

rando-a como combust��vel para as insaci��veis caldeiras da m��-

quina do Estado...

"CINCO SEMANAS EM BAL��O"

Li num pref��cio de Julien Green que os homens

s��o palavras duma frase cujo sentido s�� Deus conhece.

Olhando as gentes que povoam o campus do Mills, per-

gunto a mim mesmo qual ser�� o sentido desta t��o es-

tranha e variada combina����o de palavras... Ser��

apenas uma legenda ociosa escrita na superf��cie dum

lago? Uma frase f��til atirada ao vento? N��o creio.

Esta sociedade heterog��nea em que se misturam chi-

neses, franceses, brasileiros, guatemaltecos, salvado-

renhos, mexicanos, alem��es, judeus, filipinos, peruanos,

chilenos, pode bem ser o s��mbolo do mundo do futuro,

um mundo de fronteiras apagadas, sem barreiras al-

fandeg��rias, sem passaportes e sem nacionalismos agres-

A VOLTA DO GATO P R E T O

289

sivos ��� um mundo de cordialidade e compreens��o.

Sonho? Que outra coisa se pode fazer sen��o sonhar,

neste doce clima, neste am��vel conv��vio?

Os dias aqui deslizam dourados e fluidos.

De onde estou agora, posso ver, atrav��s da janela,

um grupo de crian��as �� sombra de altos eucaliptos, ao

p�� do arroio. S��o os alunos do curso de artes pl��sti-

cas; Clara e Louie est��o entre eles. Com as pranchas

de desenhos sobre os joelhos e um peda��o de carv��o

entre os dedos eles procuram copiar a paisagem, os

troncos das ��rvores, a ponte de pedra, o fio d �� g u a . . .

�� hora das refei����es professores e alunos sentam-

se em grupos de oito em torno de mesas redondas.

Fala-se em geral espanhol, mas h�� momentos em que

palavras inglesas, francesas, espanholas, italianas e

portuguesas se entrecruzam e chocam no ar.

A primeira impress��o que este campus d�� �� a de

um maravilhoso hotel de veraneio. Mas se atentarmos

mais nos movimentos, atos e palavras dos h��spedes

veremos como trabalham, como dividem bem o tempo

entre o estudo e a conversa����o, a piscina, as confe-

r��ncias, as aulas e as divers��es. Para escrever seus

papers sobre hist��ria ou literatura latino-americana, es-

sas raparigas passam horas na biblioteca a consultar

livros e revistas, com uma f��ria erudita de que eu n��o

as julgava capaz.

Miss Marta Allen ��� que ama a l��ngua e as gen-

tes do Brasil ��� leciona portugu��s a principiantes, cuja

grande dificuldade �� a pron��ncia das palavras termi-

nadas em ��o. Ontem, no hall da Casa, Aurora Quiros, uma bela mexicana educada neste pa��s, leu admiravelmente, em ingl��s e espanhol, versos de poetas das

tr��s Am��ricas. Magda Arce, com o seu jeito calmo e a

sua discreta veia humor��stica, contou-nos hist��rias do

Chile.

Norma Addleston, que tem a voca����o do teatro,

representou um di��logo da pe��a "Vidas Particulares",

290

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de Noel Coward, fazendo ao mesmo tempo os pap��is

do her��i e da hero��na, e tudo isso num delicioso ingl��s

de Oxford.

Para uma plat��ia de cinq��enta crian��as eu me pres-

tei um dia destes a ir para tr��s dum palco de fantoches

a fim de "ser" a voz de oito dos personagens da famosa

farsa de "Punch and Judy". Creio que, pela primeira

vez na hist��ria do teatro de marionetes, Polichinelo,

Arlequim, o Prefeito, o Fantasma, o Carrasco e o Dou-

tor falaram ingl��s com sotaque brasileiro.

��s quartas-feiras �� noite vamos ouvir o quarteto

de Budapest, no teatro para m��sica de c��mara. S��o

momentos de pura magia, em que a gente fica como

que suspensa no a r . . .

O programa da semana est�� sempre cheio de con-

fer��ncias, sess��es de cinema educativo, festas t��picas

nas diversas casas, e representa����o ou leitura de pe��as

de teatro.

Certas noites o espl��ndido Ted Nichols, um jovem

estudante de Oakland, vem para o hall com a sua vi-

trola, as sua sinfonias de Shostakovisch, o seu Brahms

e o seu Beethoven.

�� tarde vou para junto da piscina, onde fico se-

guindo os movimentos das raparigas que saltam da

prancha e mergulham na ��gua azul.

Ontem Mariana aproximou-se de mim exatamente

no momento em que eu estava absorto na contempla����o

duma adolescente que se preparava para o mergulho.

��� Pra que o livro? ��� perguntou ela.

��� De vez em quando leio uma p a l a v r a . . . ��� ex-

pliquei.

- Mas com o livro de ponta cabe��a?

��� Claro. Por que n��o? Neste col��gio acontecem

milagres. Duvidas?

��� N��o. Mas n��o te esque��as da hist��ria do Dr.

F a u s t o . . .



A VOLTA DO GATO PRETO

291

As tardes s��o douradas, as noites azuis, o vento ��

fresco e o conv��vio destas gentes, doce e amigo. Mui-

tas vezes dou minha aula no jardim do nosso ha ll, ou

sob os p��ra-s��is da casa de ch��.

Aos s��bados h�� "fiesta" na Casa. "Muchachos"

de diversos pa��ses latino-americanos aparecem para dan-

��ar com as girls num sal��o do subsolo, onde ao som de

nimbas ficam a rebolar festivamente as n��degas com

um vago ar de gigol��s. E uma noite, vendo Mr. Fook

Tim Chan a dar pulinhos ao ritmo duma conga, acre-

ditei mais que nunca na fraternidade universal.

o o o

E assim se escoam cinco semanas, e chega o dia

de dizer adeus ao Mills College e aos nossos novos

amigos.

EM BUSCA DE SOL

Fernanda: ��� Terminei minha tarefa no Mills e, de volta

a San Francisco, encontro de novo o mau tempo. Estou can-

sado de nevoeiros e, de c��us de cinza. Vou com o meu bando

para o sul da Calif��rnia, em busca de sol. Espero alugar uma

casinha nos arredores de Hollywood, cidade fr��vola mas de

clima ador��vel. Tentarei realizar ali um grande, antigo, auda-

cioso profeto: passar uma larga temporada sem obriga����es de-

finidas de trabalho, livre tanto quanto poss��vel da tirania

do rel��gio. Num desafio aos meus dem��nios particulares es-

pero passar os dias conhecendo gente e lugares. Est�� claro

que continuarei trabalhando para o "Ojfice of War Information".

fazendo "broadcastings" para a Europa e falando de quando em

quando para soldados e marinheiros, pois isso �� o m��nimo que

um cidad��o 4-A como eu pode fazer como contribui����o ao es-

for��o de guerra. Quanto ao resto, n��o quero outros compromis-

sos sen��o o de viver, olhar, escutar, indagar, conversar, observar,

numa tentativa de compreender este povo, esta terra e esta hora,

dando ao mesmo tempo um balan��o mental na minha pr��pria

vida. Quando permanecemos por muito tempo num s�� lugar,

vendo as mesmas pessoas, fazendo as mesmas coisas, acabamos

292

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

ficando prisioneiros de h��bitos, supersti����es e preju��zos que nos

entontecem, turvam os olhos e deformam a nossa vis��o do mundo

e de n��s mesmos. Faz um ano e meio que n��o escrevo uma linha

sequer de fic����o. Creio que passarei tr��s anos nessa abstin��ncia

liter��ria. N��o h�� nada melhor para um autor que fazer de quando

em quando uma longa pausa, entregando-se a uma esp��cie de

"cura pelo sil��ncio". Ora, s�� poderemos fazer isso de maneira

efetiva se viajarmos. C�� estou eu a v��rios milhares de quil��me-

tros dos lugares onde sempre vivi e n��o quero perder esta opor-

tunidade, que bem pode ser a ��ltima...

Confesso-lhe que me sinto um pouco como uma persona-

gem que tivesse sa��do do romance a que pertence, e no qual

tem uma fisionomia psicol��gica definida, e obriga����es determi-

nadas ��� para entrar clandestinamente numa outra hist��ria cujo

autor e cujos leitores de mim nada esperam pela simples raz��o

de eu n��o estar no elenco...

Meus dem��nios interiores lan��am protestos. Dona Eufr��sia

me diz que vou cometer um erro, pois o trabalho nobilita e a

ociosidade �� a m��e de todos os v��cios. O tropeiro An��lio me

fulmina com uma frase: Eta ��ndio vadio! Mas Jesualdo sacode

os ombros c��pticos e me assegura que, fa��a eu o que fizer, a

coisa simplesmente "n��o tem jeito"...

4 - D I �� R I O D E H O L L Y W O O D

(De 10 de agosto de 1944 a 28 de junho de 1945)



O TREM, O TEMPO E O CHIM

10 de agosto. Estou de novo dentro do "Luz do

Dia", a caminho de Los Angeles. Deixei minha fam��lia

em San Francisco e vou �� procura duma casa para

alugar nos arredores de Hollywood.

Meu companheiro de banco �� um chin��s de cara

triste, que est�� fardado de fuzileiro do ex��rcito norte-

americano. Quando embarquei na esta����o de San

Francisco, ele me saudou com um hello desanimado e

d��bil. Depois fechou-se num mutismo providencial

para mim, pois ao cabo dessas cinco agrad��veis sema-

nas no Mills, atrav��s das quais andei dum lado para

outro a fazer confer��ncias, a dar aulas e a tomar parte

em t��volas-redondas, estou precisando de sil��ncio, de

muito sil��ncio.

O trem rola maciamente. H�� sol l�� fora sobre os

campos amarelecidos. A meu lado o chin��s dormita.

Temos dez horas de viagem pela frente, mas para o

meu companheiro, que deve ter herdado o esp��rito fi-

los��fico e a paci��ncia de seus ancestrais, o tempo no

fim de contas n��o existe, e s�� esses tolos ocidentais ��

que est��o sempre a fazer coisas para encher as horas.

Come��o a ler uma novela policial, mas em breve

meu esp��rito foge do livro, volta para San Francisco,

para Oakland, para o Brasil. Revejo mentalmente faces,

ou��o vozes, melodias...

As horas passam. O chin��s continua em sil��ncio.

Ao meio-dia vamos at�� o carro-restaurante, almo��a-

mos �� mesma mesa e n��o trocamos uma ��nica pala-

vra. Voltamos para nossos lugares e sentamo-nos pa-

ra enfrentar a longa tarde. A janela a nosso lado ��



296 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

como uma tela de cinema onde passa um filme natu-

ral, em tecnicolor: O vale de San Joaquim. ��s cinco

horas o chin��s suspira. Volto a cabe��a e digo:

��� Que viagem comprida, hein?

��� Muito.

Dou-lhe a minha novela.

��� Por que n��o l�� um pouco?

Ele apanha o livro, folheia-o, com indiferen��a, e

depois mo devolve.

��� N��o gosta de ler hist��rias policiais? ��� pergunto.

��� N��o tenho paci��ncia ��� responde o chin��s.

E de novo mergulha no sil��ncio.

ONDE O AR SABE A MEL

Chego numa tardinha calma, clara e quente, e

hospedo-me no Hotel Plaza, em Hollywood.

Quem foge das n��voas da Bay Area e desce pa-

ra esta c��lida regi��o, n��o pode deixar de ficar conta-

giado pela alegria de feriado que nada na atmosfera

luminosa. Porque o ar do sul da Calif��rnia sabe a

mel. A luz aqui �� em geral t��o intensa, que ��s vezes

chega a ser esbranqui��ada. Dizem que nesta parte do

estado h�� um m��nimo de 355 dias de sol por ano. As

tormentas s��o praticamente inexistentes, de sorte que

os californianos do sul nunca ouviram o ronco do tro-

v��o nem ouviram o fuzilar dos rel��mpagos. No inver-

no as chuvas caem mansas e discretas. A temperatura

baixa sensivelmente em dezembro, janeiro e fevereiro,

mas n��o a ponto de exigir-nos o uso do sobretudo ou

roupas demasiadamente grossas. E durante os restantes

nove meses do ano reina o ver��o ��� um ver��o seco

que est�� longe de ser abafado e suarento como o do

Rio, o de Washington, Nova York ou Miami. E as

A VOLTA DO GATO PRETO

297

noites, durante a primavera, o ver��o e o outono, s��o

sempre frescas e, de dezembro a mar��o, quase frias.

Entre Los Angeles e San Francisco existe velha

rivalidade. Se ped��ssemos a um san-franciscano uma

defini����o de Los Angeles, ele provavelmente diria: ��

uma reuni��o de vilarejos com pretens��es a grande ci-

dade. Fica a 482 milhas ferrovi��rias ao sul de nossa

Metr��pole. Ind��strias principais: petr��leo, frutas c��tri-

cas e loucos. Comparada com San Francisco, onde

h�� cultura e tradi����o, Los Angeles �� um circo de cava-

linhos em que palha��os desvairados vivem a fazer pi-

ruetas e a exibir roupas espalhafatosas para chamar

sobre eles a aten����o ao resto do mundo. A tempera-

tura que gozamos aqui. onde nunca faz calor, �� revi-

gorante, mas Los Angeles tem um clima de deserto.

Se por ventura o rio Colorado secasse, aquele conglo-

merado de aldeias ficaria mais morto que o Saara .

Fundada por espanh��is em 1781, Los Angeles

chamava-se a princ��pio Nuestra Se��ora de Los Ange-

les. Sessenta e seis anos depois passou definitivamen-

te para o dominio dos Estados Unidos, e desde ent��o

o seu crescimento tem sido fant��stico. Primeiro hou-

ve o "boom" causado pela descoberta do ouro; de-

pois, a corrida do petr��leo; e mais recentemente, a

do cinema. O n��cleo inicial ��� aldeia de indios, me-

xicanos, espanh��is e mission��rios ��� foi se expandindo

de tal forma que, procurando o caminho do mar, ab-

sorveu Wilmington e S��o Pedro; espraiando-se para

leste, alcan��ou Hollywood e transformou-o num su-

burbio; avan��ou depois na dire����o das montanhas e

cercou Beverly Hills, cidade residencial e, descendo

na dire����o do oeste, abra��ou Santa M��nica. O auto-

m��vel facilitava esses espichados avan��os, de sorte

que dentro em pouco Pasadena, Burbank e Glendale

ficaram tamb��m ligados a Los Angeles que ��� segun-

do afirmam orgulhosamente os "angelinos" ��� �� a mais

vasta ��rea urbana do mundo inteiro. Diyem que se

298

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

pode viajar quase cem quil��metros sem sair de dentro

desta cidade descomunal. A megalomania local tem da-

do origem a muitas anedotas. Referindo-se recente-

mente na sua coluna di��ria de jornal a soldados ame-

ricanos que passeavam em Paris, Gracie Allen escre-

veu que esses "boys" estavam ainda praticamente den-

tro dos limites da cidade de Los Angeles.

Com seus largos e longos bulevares, os seus ses-

senta parques, Los Angeles �� a cidade mais sem ce-

rim��nia que conhe��o. Aqui ningu��m sente a ang��s-

tia da falta de espa��o, do abafamento, da claustrofo-

bia. Tudo �� amplo, arejado, luminoso e abundante. A

vegeta����o destes jardins e parques �� em parte um pro-

duto da m��o do homem com a colabora����o do rio Co-

lorado, cuja ��gua �� trazida para c�� em aquedutos. Re-

puxos e fontes fa��scam ao sol na relva dos jardins par-

ticulares ou nos parques p��blicos. Por todos os lados

se nota a presen��a refrescante da ��gua. Homens de

torso nu trabalham nos seus jardins cortando a relva

ou regando as flores, os arbustos e a terra. O resulta-

do de tudo isso �� que os angelinos transformaram um

deserto adusto num verde e r��tilo o��sis.

Raul Bopp, c��nsul do Brasil em Los Angeles, e

em cujo autom��vel tenho corrido estes bulevares e ruas,

na ansiosa busca duma casa, n��o se cansa de dizer:

��� Veja s�� o que a ��gua faz! ��gua, meu caro,

��gua! Tudo isto �� um milagre da ��gua.

E com seu jeito agitado e pitoresco fala apaixo-

nadamente dos problemas do Brasil e nos benef��cios

que a ��gua abundante poderia trazer para certas re-

gi��es de nosso pa��s. Esse extraordin��rio Raul Bopp,

poeta e andarilho, �� uma verdadeira figura de lenda.

Um dia saiu a cavalo da sua pequena Tupanciret�� pa-

ra uma grande conquista de horizontes. Foi parar no

Amazonas onde, segundo suas pr��prias palavras, fez

a volta do mundo. Escreveu depois disso um dos mais

not��veis poemas folcl��ricos da nossa literatura ��� Co-



A VOLTA DO GATO PRETO

299

bra Norato. No ano seguinte estava na China, mon-

tado num jumento, visitando templos milenares. E

assim, sem plano nem b��ssola, viajou por quase todo

o mundo. Segundo a express��o feliz de Vargas Neto,

Bopp sofre de "dom-juanismo geogr��fico". Homens de

fala pitoresca, a agita����o ��s vezes nem lhe permite ter-

minar as frases. E andando em sua companhia por

estas ruas, conven��o-me de que de certo modo Raul

Bopp ��� desordenado, inquieto, generoso ��� se parece

maravilhosamente com a cidade de Los Angeles. De-

ve ser por isso que de todos os c��nsules que aqui vi-

vem, �� ele o mais querido e admirado.

Com uma ��rea capaz de abrigar oito milh��es de

almas, Los Angeles tem normalmente 1 600 000, e nes-

tes tempos de guerra viu sua popula����o crescer de

tal forma que se calcula tenha passado de 2 000 000.

Quanto �� alma de Bopp, creio que vive assombrada

por incont��veis milh��es de fantasmas e lembran��as ���

pessoas e paisagens e coisas dos lugares por onde an-

dou e dos sonhos que sonhou.

RUAS, GENTES E H��BITOS

20 de agosto. A crise de habita����es em Los An-

geles �� assustadora. O clerk do hotel me comunica

que se me permite ficar aqui apenas cinco dias, pois

devo ceder meu quarto a outros... E esses outros n��o

cessam de chegar. Aos s��bados surgem soldados aos

magotes em busca de acomoda����es para o weekend.

V��m das cidades ou acampamentos dos arredores de

Los Angeles, trazem uma maleta de pano caqui e uma

imensa vontade de se divertirem. Hollywood para eles

�� o para��so da vida noturna, das aventuras f��ceis, e

muitos desses soldados nasceram em vilarejos do in-

terior e sempre desejaram visitar a Meca do cinema.

Ali naquela esquina ficam os est��dios da NBC e da

300 - OBRAS DE RICO VER��SSIMO

CBS, para cujos espet��culos eles t��m prioridade na

distribui����o de bilhetes. A duas quadras deste hotel

est�� situada a "Cantina de Hollywood", onde podem

ver em carne e osso estrelas como Bette Davis, Betty

Grable ou Greer Garson; e onde Ronald Colman ou

Ida Lupino vir��o em pessoa servir suas mesas...

O Hotel Plaza fica perto duma encruzilhada de

ruas ��� o ponto onde o Hollywood Boulevard cruza a

Vine Street ��� a que a C��mara de Com��rcio local con-

vencionou chamar "a esquina mais famosa do mundo".

E nestas duas quadras que medeiam entre essa

esquina e o Sunset Boulevard encontram-se lugares

c��lebres como o restaurante "Brown Derby" ��� a cuja

porta estacionam os ca��adores de aut��grafos, na espe-

ran��a duma gorda ca��ada ��� e uma s��rie de pequenos

cabar��s e bares. �� por aqui que vive essa gente de

r��dio ��� atores, t��cnicos, speakers, m��sicos, diretores

de orquestra, escritores. �� preciso distinguir a gente

de r��dio e de cinema do resto dos mortais. Para prin-

cipiar, esses exemplares da fauna hollywoodiana ves-

tem-se de maneira particular. Falam alto, sempre com

o sentido no p��blico, e empregam uma g��ria toda es-

pecial. Quando saem �� rua, as estrelas usam ��culos

escuros para n��o serem reconhecidas pelos f��s ou pe-

los curiosos. As outras mulheres usam tamb��m ��culos

escuros para que os basbaques pensem que elas s��o

estrelas.

Nestas duas quadras pulula uma humanidade nar-

cisista e espetaculosa, que busca a notoriedade atra-

v��s da excentricidade.

Vivem de mitos numa atmosfera de mitos, de

sorte que acabam mit��manos. Show e success s��o aqui palavras m��gicas.

Alguns atores n��o se limitam a representar no

palco, ante o microfone ou na fonte duma c��mara ci-

nematogr��fica. ��s vezes representam tamb��m na rua,

nos caf��s, nos restaurantes. Almocei ontem no Brown

A VOLTA DO GATO PRETO

301

Derby com um grupo de amigos perto da mesa a que

se achava Eddie Cantor, e para a qual em dado mo-

mento o gar��on trouxe um telefone: "Um chamado

para voc��, Eddie". O que se seguiu foi uma perfeita

cena de com��dia. Quando Cantor percebeu que o

est��vamos observando, come��ou a representar: "Al��!

N��o ou��o. . ." Olhava para dentro do fone, fazia ca-

retas, limpava o ouvido com o indicador. Com isso

chamou a aten����o da maioria das pessoas que se en-

contravam nas vizinhan��as: e seu furor histri��nico

aumentava na raz��o direta do crescimento do p��-

blico . . .

O negro que me engraxou as botinas h�� pouco

tamb��m representou para mim. A menina que esta

manh�� me serviu grapefruit, torradas e caf�� no res-

taurante do hotel estava com o rosto maquilado de

modo a torn��-la parecida com Katherine Hepburn. O

gerente do hotel usa bigode �� maneira de Warner

Baxter.

E essas mo��as que andam pelas ruas preocupam-

se de tal modo com os penteados e a pintura do ros-

to, e seguem de tal forma um tipo padronizado de

"beleza", que ��s vezes chegamos a ter a impress��o de

que todas est��o usando m��scaras feitas de acordo com

o mesmo molde.

O bulevar ��� centro da vida comercial de Hol-

lywood ��� �� um espet��culo policr��mico. O pavimento

da rua �� cor de chumbo, quase negro, em contraste

com as casas claras, os cartazes de colorido vivo, o

amarelo-gemada dos t��xis e o vermelho dos bondes.

Todo o movimento das ruas se concentra numas cin-

co ou seis quadras, onde ficam as filiais dos maiores

magazines de Los Angeles, os cinemas, e um grande

n��mero de casas de modas, de curiosidades e brica-

braque e mais caf��s, bares, livrarias, etc. . . E se o

visitante espera encontrar aqui bom senso urban��s-

tico ou estilo nas casas, ficar�� decepcionado ao ver

302

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

que os edif��cios ou semelham caix��es cheios de janelas

ou ent��o constituem extravag��ncias arquitet��nicas co-

mo o "Teatro Eg��pcio", o "Teatro Chin��s" e essa s��-

rie, de casinhas brancas de madeira que imitam cha-

l��s b��varos, mans��es Tudor, castelos medievais, ou

miss��es espanholas... Porque as resid��ncias gracio-

sas e confort��veis de que tanto se orgulham os cali-

fornianos, ficam em Beverly Hills.

O movimento de pedestres �� grande e vivo no

bulevar. Predomina nas roupas uma absoluta aus��n-

cia de formalismo e a paix��o da cor. O turista aqui

se distingue em geral dos residentes por usar grava-

tas e chap��u. As mulheres que vivem nesta parte de

Los Angeles costumam sair �� rua de stocks e blusa le-

ve de seda ou j��rsei; mas mesmo quando seus trajos

s��o sum��rios e esportivos, elas nunca descuram a pin-

tura do rosto e o penteado, de sorte que se o corpo

est�� vestido para a rua, a cabe��a est�� como que pre-

parada para um baile.

Ao cabo de algumas andan��as ociosas por este

bulevar, o observador acaba convencendo-se de que

o mal de Hollywood �� que ela sofre demasiadamente

a influ��ncia de Hollywood. N��o �� paradoxo. Olhan-

do esta cidade e seus habitantes, penso num cachorro

que andasse �� roda tentando morder a ponta do pr��-

prio rabo. �� um c��rculo vicioso. Turistas v��m para

c�� a fim de ver as celebridades do cinema, e por sua

vez adoram a id��ia de serem tamb��m tomados por

estrelas ou astros, de sorte que se portam de modo

a encorajar nos outros essa ilus��o. Assim, s��o atores

e ao mesmo tempo espectadores duma pe��a tola que

eles acham altamente excitante. Para essas pessoas,

Hollywood �� um lugar de prazer e imprevistos, uma

cidade que vive numa perp��tua atmosfera de feira e

de feriado. E por isso tudo a metr��pole do cinema ��

uma das comunidades mais coloridas dos Estados Uni-

dos. Em parte alguma encontrei como aqui t��o gran-

A VOLTA DO GATO PRETO

303

de e variada exibi����o de cores nas roupas, nas faces,

na linguagem, nos h��bitos e na moral.

Sem d��vida alguma, Hollywood tem um encanto

especial. Mas ��s vezes pergunto a mim mesmo se o

glamour de suas ruas, gentes, casas e coisas n��o ser��

apenas uma lenda fabricada e mantida pelos cronistas

de jornais e revistas cinematogr��ficos, e pelos depar-

tamentos de publicidade dos est��dios.. . Porque o

pr��prio esp��rito de Hollywood torna dif��cil para o

forasteiro discernir o falso do genu��no. Seus filmes pa-

dronizaram gestos, frases, modas e at�� sentimentos, e

essa padroniza����o estendeu-se alarmantemente pelo

mundo inteiro, chegando a penetrar at�� em certos se-

tores de pa��ses como a China e a ��ndia, os quais, pe-

la sua idade, sabedoria e peculiaridades pareciam im-

perme��veis a influ��ncias de tal natureza.

Como exemplo dessa padroniza����o citarei um

gag que os filmes exploram com freq����ncia: O her��i

conversa pelo telefone com a hero��na: de repente a

liga����o �� cortada e o homem exclama impaciente:

Hello! hello!; por fim, desanimado, trata de repor o

fone no lugar, mas antes olha para dentro dele com

uma express��o de perplexidade.

Ora, isso �� um gesto artificial, que nunca ningu��m

fez mas que muitos j�� est��o come��ando a fazer (prin-

cipalmente quando se sentem observados) por influ-

��ncia do cinema. Outro gag deplor��vel ��� mas de efei-

to sempre c��mico ��� �� o da rea����o retardada. Uma

pessoa n��o entende no primeiro momento o que lhe

dizem ou n��o presta a devida aten����o a uma coisa

que v��, e ap��s um ou dois segundos, quando a com-

preens��o lhe vem, ela sacode a cabe��a, rapidamente,

com uma express��o de imbecil espanto no rosto.

Todas essas coisas, enfim, constituem a superf��-

cie de Hollywood. Se quebrarmos esse revestimento

de verniz, encontraremos aqui todos os eternos ele-

mentos da com��dia humana: hist��rias de fracassos, vi-

304

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

t��rias, paix��es, mesquinharias, trai����es, invejas, gestos

de nobreza, de coragem ou de desespero... ��s vezes

a deforma����o profissional leva essa gente de cinema a

proceder cinematogr��ficamente nos dramas ou com��-

dias da vida real. Por outro lado estou convencido de

que o prest��gio er��tico desta cidade �� mantido e en-

corajado principalmente pela popula����o flutuante, pe-

los turistas, pelos aventureiros por todos aqueles, ���

em suma ��� que v��m para c�� apenas em busca do

prazer f��cil e despreocupado. Porque os que traba-

lham e produzem em Hollywood precisam repousar e

habitualmente n��o ficam at�� a madrugada nos bares

e cabar��s. Al��m disso a cidade para eles h�� muito dei-

xou de ser "novidade". Depois de 1920 ��� quando o

cinema come��ou a ganhar import��ncia mundial ��� as-

tros e estrelas entregavam-se a verdadeiras orgias, vi-

viam escandalosamente e muitos cultivavam v��cios que

n��o procuravam esconder, na cren��a de que eles pu-

dessem acrescentar um ex��tico prest��gio a seus nomes.

Duns quinze anos para c��, tudo mudou. A "col��nia"

cinematogr��fica �� em geral muito respeit��vel e o tra-

balho exige de atores e atrizes que durmam cedo e

bem ��� para que no dia seguinte �� hora da filmagem

os vest��gios da noite mal passada n��o lhes apare��am

no rosto e na voz ��� e que se portem com moralida-

de, para que nenhum esc��ndalo lhes diminua aos

olhos do p��blico a estatura de her��is ou de ��dolos. H��

estrelas e astros que v��o �� missa todos os domingos.

E a estat��stica prova que a percentagem de div��rcios

em Hollywood n��o �� t��o alta como em geral se ima-

gina.

Seria coisa errad��ssima e injusta julgar os Estados

Unidos por Hollywood. Porque, ��� com um pouco de

fantasia ainda hollywoodesca, ��� podemos dizer que

a capital do cinema n��o �� apenas uma cidade diferen-

te das outras: �� um pa��s, ou melhor, um mundo ��

parte.



A VOLTA DO GATO PRETO

305

ROOSEVELT OU DEWEY?

25 de agosto. A propaganda eleitoral est�� acesa.

Quem ser�� o futuro Presidente dos Estados Unidos ���

Dewey ou Roosevelt?

Hearst atirou todo o peso de seus dezenove jor-

nais contra o candidato democr��tico. Dewey desfecha

tremendos ataques contra a atual administra����o. Clai-

re B. Luce, escritora e congressista, esposa de Henry

Luce, propriet��rio das revistas Time e Life ��� fez recentemente um discurso em que lan��ou toda a culpa

desta guerra sobre os ombros de F.D.R. Por que ��

que nossos boys est��o morrendo na Europa e nas ilhas

do Pac��fico? Por culpa de Roosevelt. Por que �� que

os g��neros aliment��cios e tantos outros artigos est��o

racionados? Por culpa do Presidente. Por que foi que

os japoneses bombardearam Pearl Harbour? Por culpa

do ''homem da Casa Branca"!

Tenho visto e ouvido Dewey na tela dos cinemas,

em newsreels. Ele me d�� a impress��o dum desses me-

ninos ricos que v��o �� escola bem vestidinhos e pen-

teadinhos, que sabem a li����o na ponta da l��ngua, e

que de vez em quando trazem uma ma���� para a pro-

fessora. .. Nota-se que seus discursos s��o previamente

estudados diante do espelho. A modula����o de sua

voz �� desagrad��vel e pretensiosa. Por tudo isso Dewey

est�� longe de ter a simpatia e a espontaneidade de

Roosevelt.

Em Los Angeles um ��nico jornal ��� o "Daily

News" ��� �� favor��vel ao candidato democr��tico. As

pessoas com quem tenho conversado ��� homens de ne-

g��cios, industrialistas, banqueiros ��� s��o em sua maio-

ria violentamente anti-Roosevelt. A campanha que a

alta finan��a move pela imprensa contra o atual go-

verno n��o visa apenas o candidato: alveja tamb��m o

homem.



306

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

O que acho admir��vel �� que em meio duma guer-

ra de vida e morte como esta em que os Estados Uni-

dos se acham empenhados, as elei����es v��o processar-

se como em tempos normais, e a propaganda se de-

senvolva sem a menor censura. Tenho lido e ouvido

ataques ao Presidente, �� esposa do Presidente, aos

filhos do Presidente e at�� ao cachorro de estima����o

do Presidente.

Ontem �� noite vi um newsreel em que Dewey,

com sua voz teatral, seu colarinho duro, seu dedinho

dogm��tico, investiu contra o New Deal. Numa deter-

minada passagem de seu discurso ��� preparando o es-

p��rito do audit��rio para uma tirada demag��gica ���

ele fez esta pergunta: "Em ��ltima an��lise, quem ��

que deve governar este pa��s?"

Do meio do p��blico, na vasta plat��ia, ergueu-se

sonora entre gaiata e irritada, uma voz masculina:

��� Wall Street! N��o �� isso que voc�� quer, seu

bobalh��o?

O DRAMA DE DON MANOLO

10 de setembro. Um dos boys do elevador do

Hotel Plaza tem mais de cinq��enta anos e �� um tipo

espigado, de postura digna, rosto murcho e raras fal-

ripas grisalhas a cobrir-lhe o cr��nio lustroso. Quando

entro no elevador esta manh�� o homem me sorri aco-

lhedoramente e, enquanto vamos descendo, cantarola

coplas espanholas.

��� �� sul-americano? ��� pergunto.

��� N��o, senhor. Sou espanhol.

��� A h . . .

��� Nunca ouviu falar em Manolo Alba, o famoso

tenor de Espanha?

��� Manolo Alba? ��� repito. ��� O nome n��o me ��

estranho...

A V O L T A DO GATO P R E T O

307

O elevador chega ao andar terreo. Os passagei-

ros saem. O boy se perfila todo e recita:

��� Eu sou Manolo Alba, primeiro tenor de zar-

zuelas. Cantei no "Teatro Dona Amelia", de Lisboa,

no "Solis" de Montevid��u, no "Municipal" do Rio de

Janeiro, e em todos os teatros de Espanha. .. Um

cronista madrilenho escreveu que eu era o "melhor

jeune premier do teatro opereta".

Manolo sorri e no seu rosto vejo uma inef��vel ex-

press��o de devaneio.

��� "Bela presen��a", escreveu o cronista, "bom

jogo de cena, voz educada e firme, de timbre agra-

d��vel. .

Outros passageiros entram, ao passo que me deixo

ficar no fundo do elevador, imaginando Manolo Alba

metido na casaca do conde Danilo e cantando a "Vi��va

Alegre".

��� Mas que �� que voc�� est�� fazendo aqui, hom-

bre? ��� pergunto.

Manolo faz um gesto dram��tico.

��� La fatalidad, se��or...

Um sujeito grandalh��o que masca um toco de

charuto, berra:

��� Esta jo��a sobe ou n��o sobe?

��� Perd��o, cavalheiro ��� desculpa-se Manolo, res-

peitoso mas digno.

Movimenta a alavanca e l�� nos vamos de novo

para arriba. E em duas viagens de ida e volta Ma-

nolo Alba me conta sua vida, suas gl��rias e viagens,

desde o primeiro sucesso teatral at�� o dia em que veio

para Hollywood, h�� quinze anos, para tentar a car-

reira no cinema. Com o advento dos talkies conse-

guiu bons pap��is em filmes falados em espanhol. De-

pois andou pelo M��xico com uma companhia de "vau-

deville" formada por canastr��es hispano-americanos

encalhados em Hollywood. A sorte levou-o a hospe-

dar-se mais tarde num hotel de pequena cidade do

308

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

interior dos Estados Unidos, onde uma vi��va de meia-

idade, seduzida por seus encantos, pediu-o em casa-

mento. Manolo deu-lhe o sim, casou-se e voltou a

Hollywood para de novo bater ��s portas dos est��dios.

Os tempos tinham mudado. O "Screen Actors' Guild",

ou seja a "Sociedade dos Atores de Cinema" com o

prop��sito de acabar com o desemprego entre os ex-

tras, reduzira estes a um n��mero razo��vel, a fim de

que pudessem sempre encontrar trabalho.

��� E agora aqui estou ��� conclui Mano��o, baixan-

do os olhos para o seu uniforme. ��� N��o consegui na-

da.. . a n��o ser esta libr�� de lacaio. . .

Fico em sil��ncio, sem saber que dizer. Finalmen-

te pergunto:

��� Mas n��o consegue trabalho nos est��dios?

��� N��o posso.

��� Por qu��?

��� Porque n��o sou s��cio do "Actors' Guild".

��� Por que n��o entra?

��� Imposs��vel. O n��mero de extras est�� limitado.

Faz cinco anos que venho tentando entrar. Cinco

anos! E tudo em v��o!

Conta que a mulher �� inv��lida, vive em casa sem-

pre estendida na cama, com um c��ncer no est��mago.

��� A velhinha gostaria tanto de me ver de novo

na minha antiga profiss��o. . . ��� diz ele com voz do-

lorosa e tocada de ternura.

��� Mas voc�� n��o tem nenhum amigo influente

que o possa ajudar?

Manolo faz um gesto de desamparo.

��� Quem �� que vai se lembrar de mim nesta ci-

dade ego��sta em que uns espezinham os outros sem

piedade, para agarrar as melhores oportunidades?

Dou-lhe uma pancadinha no ombro.

��� N��o h�� de ser nada, Manolo. Um dia tudo se

arranja...



A VOLTA DO GATO PRETO

309

Saio para Vine Street acompanhado pelo eco des-

sas palavras f��teis. Um dia tudo se arranja. Como?

Manolo est�� liquidado. Fala mal o ingl��s, deve ter

perdido a voz. N��o tem amigos. N��o tem padrinhos.

N��o conseguir�� jamais sair da gaiola do elevador. Da-

li s�� para o cemit��rio... S�� para o cemit��rio... Es-

tas palavras me perseguem, como que marcam a ca-

d��ncia de meus passos. S�� para o cemit��rio... Adeus,

sonhos de gl��ria! "Do��a Francisquita..." "Los Gavi-

lanes". .. Noites de triunfo no Rio, em Santiago, Bue-

nos Aires, Barcelona. .. Adeus, don Manolo! Sim,

um dia, a morte arranjar�� tudo... Mas... se eu re-

solvesse o problema de Manolo? Tolices! Como em-

pregar em Hollywood a t��cnica brasileira do pistol��o?

Entro no "Ch��nese Theatre". As lajes de sua en-

trada mostram a impress��o de m��os, p��s, pernas e

narizes ilustres. Aqui tamb��m est�� o aut��grafo e a

marca do tac��o de Carmen Miranda. E o aut��grafo

de artistas que j�� morreram ou ent��o andam por a��

pobres e esquecidos.

N��o consigo prestar aten����o ao filme. Penso na

"viejecita" que vive com a aten����o dividida entre a

carreira de Manolo e a perversa flor que lhe desabro-

chou no est��mago. Do elevador para o caix��o. Do

Hotel Plaza para o cemit��rio.

Saio antes de o filme terminar. A noite est�� fria,

e contra um c��u violeta fa��sca um an��ncio de Coca-

Cola.

O CONDE DE LUXEMBURGO

12 de setembro. Des��o ��s nove da manh�� para

tomar meu breakfast. Manolo Alba mete-me no bolso

um chuma��o de papel.

��� Quando tiver tempo leia isto, senhor.

��� Est�� bem, Manolo.





310

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Enquanto tomo o meu caf�� vou examinando estes

recortes de jornal amarelados e velhos. S��o cr��nicas

a respeito do tenor Manolo Alba, e todas elogiosas.

Encontro entre elas um programa impresso em papel

cor-de-rosa, com estes dizeres:

Grandiosa Cia. de Opereta y Zarzuela de Ambos G��neros

RENACIMIENTO

DebutI Debut!

Del celebrado y aplaudido tenor

M A N O L O A L B A

PROGRAMA

1 ��� Sinfonia por la orquestra.

2 ��� La inspirada y popular opereta dei glorioso Maes-

tro Franz Lehar

EL CONDE DE LUXEMBURGO

Num outro recorte: uma caricatura em preto e

branco de Manolo Alba, metido numa casaca, de cha-

p��u alto. A legenda diz: O ��rbitro da Eleg��ncia.

Tenho amanh�� um jantar na casa do ator Walter

Abel. Lembro-me vagamente de ter lido n��o sei onde

que Abel faz parte da diretoria de Actors Guild...

E se eu tentasse convenc��-lo a ajudar o meu pobre

tenor?

��s tr��s da tarde batem �� porta de meu quarto. ��

Alba, que terminou o seu turno e deseja conversar co-

migo. Convido-o a entrar e sentar-se. Ele entra, fe-

cha a porta e fica parado no centro do quarto, olhando

fixamente para mim.

��� Se��or brasile��o... Mi amigo...

Sua voz �� dram��tica e a express��o de seu rosto

dolorosa. Faz avan��ar na minha dire����o ambas as

m��os, uma apertando a outra, num gesto de s��plica.

De repente sua m��scara se altera. O que vejo nela ��

um esgar de revolta.

A VOLTA DO GATO PRETO

311

��� Cristo! No fim de contas eu sou um ator. Que

s��o esses extras todos? Estivadores que n��o conhe-

cem a arte de representar. Burros! Cretinos! Brutos!

Sentado numa poltrona, olho e escuto. A cena ��

dum grotesco constrangedor. Porque brotam l��grimas

nos olhos de Manolo, ao mesmo tempo que sua boca

se abre num sorriso de dentes mi��dos e escuros.

��� Imagine s�� isto... Eu entro para o Guild,

consigo logo uma pontinha numa pel��cula... O dire-

tor est�� me observando... V�� logo: "Aquele sujeito

sabe representar. .. sabe envergar uma casaca... tem

boa presen��a... Como �� mesmo o nome dele?" O

assistente do diretor consulta a lista e diz: "Manolo

Alba!..." E estou feito!

Manolo deixa cair os bra��os. De novo a triste-

za e o desalento lhe acentuam as rugas do rosto, en-

velhecendo-o ainda mais.

��� Mas como �� que vou conseguir trabalho se

n��o sou do Guild? Como �� que vou entrar para o

Guild se n��o tenho quem me ajude? Todo meu de-

sejo agora est�� concentrado nisso: terminar meus dias

honradamente, como artista...

Devo dar-lhe esperan��as? N��o ser�� pior, mil ve-

zes pior fazer-lhe promessas v��s? Perco-me em con-

jeturas e quando volto a prestar aten����o em Manolo

ele est�� dan��ando e cantarolando, com as m��os ora

na cintura, ora no ar, num estralar de dedos imitati-

vo de castanholas. Suas magras pernas se movimen-

tam ao ritmo da m��sica.

��� Posso bailar, cantar e representar... ��� diz

ele, meio ofegante.

��� Sente-se, Manolo. Descanse um pouco.

��� Gracias, se��or. Agora preciso ir. A viejecita

est�� me esperando.

Apanha os recortes e mete-os melancolicamente

no bolso. De repente deixa-se cair sobre a poltrona,



312

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

esconde o rosto nas m��os e desata a chorar como uma

crian��a. Os solu��os lhe sacodem os ombros ossudos.

N��o sei que fazer nem dizer. O melhor �� deix��-

lo chorar em paz. Vou at�� a janela. Fora o dia �� um

clar��o cegante. L�� em baixo as capotas dos autom��-

veis chispam, reverberando a luz do sol. Os montes

que se erguem para as bandas do norte, cobertos du-

ma vegeta����o escura, est��o envoltos numa bruma li-

l��s. H�� no ar uma indiferen��a pregui��osa e narcoti-

zante.

Finalmente Manolo Alba levanta-se, enxugando as

l��grimas e diz:

��� Perdoe-me, amigo.

��� Est�� bem, Manolo. Um dia tudo se arranja.

Outra vez me escapou a frase idiota! Traduzir��

ela verdadeira esperan��a ou ser�� apenas uma expres-

s��o convencional, de sentido puramente ret��rico?

Manolo est�� com a m��o na ma��aneta da porta.

��� Olhe ��� conto-lhe ��� vou jantar amanh�� com

um big shot do "Actors1 Guild". Talvez eu possa fazer

alguma coisa por voc��...

O rosto-do tenor se ilumina de repente, remo��a,

ganha brilho.

��� Se��or... ��� balbucia ele. Mas cala-se, engas-

gado.

CAIM E ABEL

13 de abril. Os Walter Abel moram numa bela

vivenda de estilo californiano, situada nesse gracioso

labirinto de Brentwood, um bairro residencial de ruas

curvas que se cruzam e entrecruzam no prop��sito ���

parece ��� de desorientar os intrusos. Por alguns mi-

nutos meu t��xi anda perdido sem encontrar a casa

que procuramos. Finalmente chegamos ao nosso des-

A VOLTA DO CATO PRETO

313

tino, ajudados por um providencial jardineiro de bar-

bas brancas, vaqueano do lugar.

Walter Abel �� um simp��tico sujeito a quem nun-

ca deram a categoria de astro pela simples raz��o de

que n��o tem dois metros de altura nem a cara que

os f��s esperam do mocinho dos filmes. �� no entanto

um ator consciencioso, que conhece a sua arte e que,

al��m do mais, tem uma razo��vel erudi����o. Mais in-

teressante ainda que ele �� sua esposa, dona duma voz

impressionante, grave e seca. Conversamos sobre li-

vros e ela fica escandalizada ao saber que admiro o

urbano J. P. Marquand. Seus favoritos s��o decidida-

mente John Steinbeck e Ernest Hemingway.

A cozinheira preta dos Abel nos serve perdizes

com arroz selvagem e salada verde. �� mesa conver-

samos sobre vinhos ��� um dos muitos assuntos a res-

peito do qual minha ignor��ncia �� completa, e sobre

livros. Vamos tomar caf�� no "living-room", onde co-

mento filmes e atores, pois quero levar a conversa pa-

ra o caso de meu amigo Manolo. Walter Abel me

conta que o ��ltimo filme em que apareceu foi "Ame-

rican Romance". Com um copo de u��sque na m��o,

ele parodia o "ator desesperado de Hollywood".

��� N��o tenho trabalhado nestes ��ltimos seis me-

ses. . . ��� diz ele. ��� Ando irasc��vel, nervoso... R��o as

unhas. Quebro vasos. Maltrato os criados. Bato na

minha mulher...

��� Espero que n��o bata nos visitantes... ��� ob-

servo.

��� Quem sabe?

A conversa salta de cinema para bebidas. Fabri-

ca-se u��sque no Brasil? Qual �� a bebida favorita dos

brasileiros?

Aproveito um sil��ncio para falar nos extras ���

nessa legi��o de pobres criaturas que vivem sonhando

com a gl��ria. A senhora Abel procura levar-nos para

outro terreno. Quanto tempo lecionei na Universidade

314 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

de Berkeley? Oito meses ��� respondo apressadamente,

e volto ao assunto que me interessa.

��� L�� no meu hotel conheci no elevador...

O tilintar duma campainha me interrompe. Wal-

ter Abel pede licen��a e vai at�� o hall e l�� fica a con-

versar longamente ao telefone. E quando volta para

o living, informa:

��� �� o Brian Donlevy... conhece?

��� De cinema...

��� �� dono de minas de cobre. Sabia?

��� N��o. Essa �� novidade.

��� Est�� muito preocupado porque n��o tem ne-

nhum contrato para este ano...

��� Para o cobre?

��� Para filmes.

Tento voltar ao meu assunto:

��� Imagine s�� o drama desses pobres extras...

Walter me apresenta a caixa de cigarros.

��� Obrigado. N��o fumo.

Mrs. Abel acende um Camel e diz:

��� A primeira vez que vi Donlevy em carne e

osso fiquei decepcionada. A gente se acostuma a ver

nele um her��i... um sujeito forte, decidido, seguro

de si mesmo. Na realidade �� um homem triste, preo-

cupado com a calv��cie e com o desenvolvimento do

pr��prio abd��men...

Bi a sua risada curta e seca.

��� Mais u��sque? ��� pergunta-me o marido.

��� Aceito. ��� E, mudando de tom: ��� Pois... co-

mo eu ia dizendo, l�� no meu hotel conheci um tenor

espanhol...

Conto-lhes toda a hist��ria de Manolo Alba e de-

pois, com o ar mais casual que posso fingir no mo-

mento, acrescento:

��� Por falar nisso... voce n��o �� membro da di-

retoria do "Actors' Guild"?



A VOLTA DO GATO PRETO

315

Walter Abel olha para o seu copo de u��sque e

diz:

��� Sim, sou vice-presidente.

��� Que �� que podia fazer em favor desse pobre

homem? Ele cr�� que toda sua felicidade depende de

sua entrada para o Guild. Acha voc�� que com sua

influ��ncia... ele poderia.. . quero dizer... pelo me-

nos facilitar... pobre homem!... talvez... que me

diz?

Fico esperando. Abel faz avan��ar o l��bio inferior,

num trejeito que reflete seu cepticismo.

��� �� in��til ��� diz. ��� Sinto muito. Mas nem tente.

Outros j�� tentaram isso sem resultado. Centenas, mi-

lhares . . . O Guild �� inflex��vel...

��� Mas �� uma crueldade!...

Abel encolhe os ombros.

��� �� uma lei tola, mas �� uma lei.

��� Ent��o n��o h�� nada mesmo a fazer?

Abel hesita. Finalmente diz com alguma relu-

t��ncia:

��� Mande seu amigo fazer nova proposta... Mas

n��o lhe fa��o nenhuma promessa positiva. E �� quase

certo que a solu����o ser�� desfavor��vel.

Leva aos l��bios o copo de u��sque. Penso em Ma-

nolo, na velhinha e na sua flor...

A BOA ESTRELA

20 de setembro. O novo requerimento de Mano-

lo Alba foi indeferido. No Guild disseram-lhe que de-

sistisse duma vez por todas de suas pretens��es. En-

contro-o hoje abatido.

��� N��o perca a esperan��a ��� digo-lhe.

��� Enfim ��� responde ele ��� faz cinco anos que

ando nesta luta. J�� devia estar habituado...

316

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Tomo a bater-lhe no ombro, mas desta vez n��o

lhe afirmo que tudo se arranjar��. Estou, entretanto,

decidido a n��o desistir. Deve haver algum meio de

empurrar Manolo Alba para dentro do Guild.

Passo a manh�� na busca duma casa. Finalmente

�� tarde recebo um telefonema do consulado. ��lvaro

Diniz anuncia que me conseguiu uma bela vivenda

em Durango Avenue, nas vizinhan��as de Beverly

Hills. Vou v��-la em sua companhia.

��lvaro Diniz �� um pernambucano que veio para

esta cidade h�� vinte anos e aqui exerceu com sucesso

extraordin��rio a profiss��o de vendedor de autom��veis,

a qual abandonou h�� quatro anos para vir trabalhar

no consulado do Brasil como funcion��rio contratado,

�� um homem cordial, que conhece toda a gente, que

sabe tudo; a pessoa, enfim, a quem os brasileiros levam

seus problemas quando est��o em Los Angeles. Com

sua voz grave, o seu jeito de falar com a cabe��a ati-

rada para tr��s ��� Diniz �� duma franqueza que a mui-

tos choca, mas que acho admir��vel.

A casa de Durango Avenue pertence a um tenen-

te do ex��rcito que acaba de ser transferido para Wyo-

ming. �� branca, de telhado cor de ard��sia, com um

torre��o ao centro, e um jeito elizabethano.

Fica numa rua calma, sombreada de ��rvores, e a

pouca dist��ncia do Pico Boulevard, centro comercial

da zona.

O tenente e a esposa mostram-se am��veis e f��-

ceis. Cedem-me a casa por um ano, n��o exigem con-

trato nem nos d��o invent��rio dos m��veis e utens��lios.

Tudo se ajusta com simplicidade e rapidez. Mi-

nha boa estrela continua a brilhar ��� concluo.

Dou a not��cia a Manolo, que fica melanc��lico.

��� Agora o senhor deixa o hotel e me esquece. . .

��� Qual, Manolo!

��� Esquece, sim. Esta cidade �� infernal. Aqui n��o

h�� amigos; h�� competidores.



A VOLTA DO GATO PRETO

317

��� N��o seja t��o derrotista.

��� Se fosse j�� teria metido uma bala no cr��nio

��� exclama o tenor, teatralmente. ��� E n��o seria o pri-

meiro nem o ��ltimo.

DURANGO AVENUE, 1625

30 de setembro. Minha tribo chegou ontem de

San Francisco. Ficaram todos encantados com a casa

e a rua. Temos uma boa escola p��blica, mercados,

lojas, cinemas e bancos a curta dist��ncia.

Mariana come��a a fazer arranjos na nova mora-

da. Muda a posi����o dos m��veis e trata logo de es-

conder um navio a vela que se encontra no living-

room, sobre um consolo. ("No creo en brujerias, pero

que las hay. . . las hay") Descubro uma m��scara ver-

melha, de terracota no fundo da garagem ��� a cara de

um fauno ��� trago-a para o living-room e penduro-a

por cima da lareira. Removo da sala de jantar para

o fundo da garagem uma horrenda tela pintada por

um amador (amigo da fam��lia do tenente), e substi-

tuo-a pela reprodu����o dum quadro de Van Gogh

(meu amigo).

Conheci esta manh�� um de meus vizinhos. Est��-

vamos ambos metidos em cal��as velhas, e de torso

nu, cortando relva em nossos jardins. Olhamo-nos,

sorrimos um para o outro e:

��� Al��! ��� disse ele.

��� Al��!

��� Lindo dia.

��� Muito lindo. O outono a�� est��. ..

��� �� o novo inquilino?

��� Yes.

��� Espanhol?

318

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Brasileiro.

��� A h . . .

Digo-lhe o meu nome.

��� O meu �� Ericksen, Christian Ericksen.

Apertamo-nos as m��os por cima da cerca de f��cus.

Isso feito, fazemos a volta de nossos jardins, em-

purrando o cortador de relva. H�� mel e leite no ar.

Folhas secas desprendem-se das ��rvores, tombam so-

bre as cal��adas. Longe azulam as montanhas da Sierra

Madre.

Meu vizinho e eu tornamos a nos encontrar junto

da cerca viva.

��� Trabalha no com��rcio? ��� pergunto.

��� N��o. No est��dio da Fox.

��� Ator?

��� Eletricista.

��� A h . . .

Tornamos a nos separar. Sinto nas costas, nos

bra��os, no rosto a car��cia morna do sol. O cheiro ver-

de e ��mido da relva cortada sobe-me ��s narinas.

Clara e Lu��s v��m correndo comunicar-me uma

descoberta sensacional. No fundo de nossa casa mo-

ra um ator caracter��stico de cinema ��� um sujeito alto,

vermelho, de rosto comprido, que em geral faz pap��is

de gar��on ou de chofer imbecil.

Passa pela rua um autom��vel esmaltado de bran-

co tocando musiquinhas de realejo. Meus filhos j��

sabem que se trata do "carro do sorvete", e precipi-

tam-se na dire����o dele.

�� incr��vel, mas come��o j�� a ter a impress��o de

que moro nesta casa h�� muitos meses. Fico a pensar

em se essa capacidade de adapta����o ��� que toda a

minha fam��lia tamb��m parece possuir ��� �� uma coisa

boa ou m��. E chego a conclus��o de que ela ape-



A VOLTA DO GATO PRETO

319

EP��LOGO

20 de outubro. Nestas ��ltimas semanas tenho

feito novas tentativas para fazer o pobre Alba entrar

para o "Actors' Guild". Cheguei a interessar no assun-

to o meu excelente amigo Geoffrey Shurlock, do Hays

Office. Tudo in��til.

Esta manh�� Manolo me telefona:

��� No Guild me disseram que s�� h�� uma coisa

capaz de me dar o cart��o de s �� c i o . . .

��� Que ��?

��� Uma carta assinada por um producer impor-

tante, dizendo claramente que me vai contratar para

o seu pr��ximo f i l m e . . .

��� B o m . . . isso �� o diabo. ..

��� Cristo! Eu sei que isso �� imposs��vel. Quem ��

que vai me dar essa carta?

��� Imposs��vel talvez n��o seja. ..

Um hiato na conversa����o. Sinto que a respira����o

de Alba foi subitamente cortada.

��� N��o �� imposs��vel?... "Di��s mio!" Acha que

me pode c o n s e g u i r ? . . .

��� Calma, Manolo. Pode-se t e n t a r . . .

��� "Bendita la madre que te puso nel mundo!"

Reponho o fone no lugar e fico pensando. Onde

diabo vou eu encontrar nesta cidade de gente ocupa-

da e preocupada um producer capaz de assinar tal

carta? De repente me ocorre um nome. Walter Wan-

g e r . . . Sim, a�� est�� o homem. �� um liberal, um su-

jeito inteligente e compreensivo. Al��m do mais, tenho

com Wanger um pequeno cr��dito, pois a seu convite

tomei parte em dois programas por ele organizados

para entreter soldados convalescentes.

Olho o rel��gio. Dez da manh��. Telefono para o

est��dio da Universal. A secret��ria do producer me

p��e em comunica����o com o chefe. O di��logo �� r��pi-

320

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

do. Comunico a Walter Wanger que tenho um assun-

to importante a tratar com ele. "Venha hoje almo��ar

comigo aqui no est��dio".

Depois de rodar em dois ��nibus e num bonde,

chego, ao cabo de uma hora maci��a de viagem, ��

"Universal City". Almo��o com Wanger no restaurante

do est��dio. Charles Laughton, de cal��as e camisa pre-

tas, come, com cara aborrecida; um sandu��che. A pa-

pada fl��cida cai-lhe cor-de-rosa sobre o peito, e a ca-

beleira muito longa d��-lhe a apar��ncia duma velha

gorda. Perto dele, esbelt��ssima, os olhos muito claros,

Ella Raines mordisca uma alface. Franchot Tone tam-

b��m aqui est��. E Yvonne de Carlo, que Wanger me

apresenta. �� a estrela de Salom��, Where She Danced,

cuja filmagem est�� sendo terminada. Passam por en-

tre as mesas mulheres e homens vestidos �� moda de

1810. E agora, l�� vem entrando, de cabelos tingidos

de ouro e de slacks azuis, Deanna Durbin. Quando

voltamos ao escrit��rio de Wanger e ele me con-

vida a sentar, acho que chegou a hora de en-

trar no assunto. O marido de Joan Bennett me ofere-

ce um cigarro. Infelizmente n��o fumo. Mais uma vez

me conven��o de que fazer a personagem fumar �� um

excelente recurso para o ficcionista, um jeito natural

de criar pausas na narrativa. "O mancebo tirou uma

baforada de fumo e ficou olhando a espiral azulada que

subia no ar". .(Ah! os folhetins que l��amos aos dezoito

anos... O "Abade Constantino'... "Elzira a Morta

Virgem"... "Jo��o de Calais"...)

Wanger j�� acendeu o seu cachimbo e agora espera.

Tem uma cara larga, morena e tranquila, os cabelos

muito grisalhos, as sobrancelhas espessas. Sua voz ��

fosca e branda.

��� What is up, my friend?

��� Pois... o que me traz aqui �� o desejo de aju-

dar uma pessoa. Devo dizer-lhe, antes de mais nada,

que meu interesse nessa criatura �� puramente senti-

mental . . .





A V O L T A DO G A T O P R E T O

321

Wanger sorri.

��� Loura ou morena?

��� �� um homem, Walter. . .

��� A h . . .

Conto-lhe a hist��ria de Alba da maneira mais dra-

m��tica poss��vel.

��� Mas que quer voc�� que eu fa��a?

��� Quero que assine essa carta m��gica.

��� �� muito f��cil. Dite-a �� minha secret��ria.. .

No momento seguinte estou na outra sala, ditando

�� simp��tica secret��ria de Wanger ��� que tamb��m j��

est�� comovidamente interessada no caso ��� a carta que

vai ter a virtude de abrir para Manolo as portas do

para��so, libertando-o da gaiola do elevador. Segundo

minhas palavras, nessa carta Mr. Wanger declara ao

presidente do Guild que conhece Manolo Alba, sabe

que �� um bom ator, e est�� decidido a contrat��-lo para

o seu pr��ximo filme. Resta agora saber se Wanger

concordar�� em assinar uma declara����o t��o positiva,

uma vez que nesta terra os producers e executives dos

est��dios vivem em cont��nuo sobressalto, temendo chan-

tagens, processos por quebra de contrato e coisas desse

g �� n e r o . . .

Mordendo o cachimbo e sorrindo quase imper-

ceptivelmente, Walter Wanger l�� a carta e assina-a

sem a menor hesita����o.

��� S�� isso? ��� pergunta, entregando-me o papel.

��� Voc�� acaba de fazer a felicidade dum homem.

De um? Qual! De dois. Eu tamb��m estou feliz. Deus

lhe pague!

Tr��s horas da tarde. No sagu��o do Plaza. O ele-

vador desce, a sua porta se abre, os passageiros saem.

Diviso Manolo Alba no seu d��lm�� azul com bot��es

prateados. A princ��pio n��o me enxerga. Fa��o-lhe um

322 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

s i n a l . . . Novos h��spedes come��am a entrar no ele-

vador. Ergo a carta no a r . . . Alba me avista, tem

um sobressalto e corre para mim, de m��os p o s t a s . . .

��� Se��or...

Mudo e ofegante, fica olhando para o envelope.

��� Que �� isso? ��� pergunta.

Est�� p��lido. Seus l��bios tremem.

��� Uma carta dirigida ao Guild e assinada por

Walter W a n g e r . . . dizendo que voc�� �� um c o l o s s o . . .

��� No!

��� Sim. E declarando que vai contratar voc�� para

o pr��ximo f i l m e . . .

��� No! No es possible! No! Di��s mio!

Atabalhoadamente abre o envelope, come��a a ler

a carta, segurando-a com m��os tr��mulas. L��grimas

lhe escorrem pelas faces.

��� Bendita la madre... ��� balbucia.

A voz se lhe tranca na garganta. Num salto Ma-

nolo Alba me enla��a o pesco��o com ambos os bra��os

e me aplica um sonoro beijo na face. No elevador

os h��spedes nos miram, indiferentes, pois em Hollywood

tudo pode acontecer. Manolo volta cantarolando e pu-

lando para sua gaiola. Agora est�� livre! Amanh��

ser�� membro do Guild, depois ter�� trabalho nos

est��dios... A "viejecita" ganhar�� novo alento.

Libertad! Oh, do��a Francisquita-a-a! Libertad!

Antes de fechar a porta do elevador ergue o dedo

para o alto e exclama:

��� Abajo de Di��s. . . usted! Solamente usted ��� e

me atira um beijo.

Fa��o meia-volta e me vou. Penso em que h�� al-

guns dias um brasileiro que visitou Hollywood e pas-

sou aqui quatro dias gabou-se de ter sido beijado por

Ver��nica Lake. Vejam s�� como s��o as c o i s a s . . . Ao

cabo de dois meses nesta cidade de lindas mulheres

s�� fui beijado por um homem. E por um tenor!



A VOLTA DO GATO PRETO

323

BRINCANDO DE SOLDADO

Carta a Vasco Bruno:

Voc�� me pergunta como �� que a juventude americana, edu-

cada para a vida ��� e para uma vida de conforto, f��cil, agrad��vel

e emoliente ��� pode enfrentar com tanta coragem e efici��ncia

gera����es fanaticamente educadas para o sacrif��cio e para a mor-

te, como as japonesas e as alem��s.

Quero primeiro deixar bem claro que, nestas cartas dirigidas

a voc�� e Fernanda e nas quais procuro dar-lhes minha opini��o

sobre gentes e costumes dos Estados Unidos, tentando ��s vezes

tra��ar paralelos entre brasileiros e americanos, ��� tempero sem-

pre minhas observa����es "com um gr��o de sal, pois seria tolo

fazer afirma����es categ��ricas, principalmente nesse terreno...

Creio que o sucesso das armas deste pa��s na presente guerra

se deve aos seguintes fatores:

1.�� ��� Os americanos amam as m��quinas em geral, sen-

tem prazer e s��o h��beis no trato delas.

2.�� ��� A escola prim��ria, o gin��sio e a universidade en-

sinaram-lhes que o modo de vida americano �� o

melhor e o mais belo do mundo, e que portanto deve

ser defendido e mantido; mais ainda, prepararam-nos

para o "team work", o trabalho de conjunto, dentro

dum sentido de coopera����o e boa camaradagem.

3.�� ��� O n��vel de sa��de e prepara����o f��sica deste povo ��

muito alto ��� e isso e um resultado de sua prosperi-

dade econ��mica, de seu desenvolvimento t��cnico e

ainda da aten����o que a escola prim��ria, o gin��sio e a

universidade dispensam �� educa����o f��sica.

4." ��� O poderoso e eficiente parque industrial do pa��s foi

posto a trabalhar para a guerra; e tem fornecido ��ti-

mas armas mec��nicas a soldados capazes de manej��-

las com habilidade e efici��ncia.

Dentro de cada americano agita-se um pequeno Thomas

Edison ou um Henry Ford em estado potencial. N��o esque��a,

meu caro Vasco, que os her��is da Hist��ria desta na����o foram

homens que fizeram coisas. Benjamim Franklin �� um admir��vel

s��mbolo nacional, pois ele foi tudo quanto o americano comum

admira e deseja ser:

324

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Um homem que se fez pelo pr��prio esfor��o;

um curioso, no que diz respeito a m��quinas;

um fil��sofo pr��tico;

um humorista;

um filantropo;

e um turista...

Algumas cenas do filme Winged Victory forneceram-me a

chave do segredo do sucesso das armas americanas nesta guerra.

Uma delas foi a em que jovens aviadores se acham postados dian-

te do avi��o que acaba de ser-lhes entregue: um bombardeiro

Liberator. Comentam eles a m��quina com tal paix��o e encan-

tamento, que a gente tem a impress��o de que se trata dum

grupo de meninos diante do brinquedo novo ou ent��o de adultos

fascinados por uma mulher bonita. "Olhem s�� as curvas... Que

seios! Que ventre liso! Como bate com ritmo regular seu grande

cora����o! Como deve ser macia sua marcha, ��geis seus membros,

mornas suas entranhas!"

Esse amor dos jovens aviadores pelo seu instrumento de

trabalho, que �� ao mesmo tempo o seu ve��culo e a sua arma,

lembra-me a paix��o do ga��cho pelo cavalo. Entre as muitas

hist��rias pitorescas que se contam em fam��lia a respeito de meu

av�� tropeiro, encontro uma que me parece particularmente reve-

ladora do car��ter do homem da campo. Um dia sa��ram ele e

um compadre ��� amigo do peito ��� a percorrer a cavalo uma in-

vernada. De repente a cavalgadura do compadre desembestou,

tomou o freio nos dentes e frechou em t��o doida velocidade coxi-

��ha abaixo, que acabou rolando par terra e atirando longe o ca-

valeiro. Meu av�� precipitou o cavalo a todo o galope na dire-

����o do infeliz compadre e ao chegar junto dele, apesar de v��-lo

estendido no ch��o, empoeirado, esfolado e quase sem sentidos,

perguntau-lhe apenas isto: "Machucou-se o cavalo?"

Hitler cometeu um grande erro ao desafiar para uma guerra

mecanizada uma na����o de mec��nicos. �� dif��cil encontrar um

americano que n��o saiba dirigir autom��vel ou que n��o goste

de lidar com motores.

Tenho a impress��o de que estas gentes s��o g adget minded,

isto ��, t��m a mania das engenhocas, dos aparelhos mec��nicos.

No seu desejo de conforto e simplifica����o, aceitam todas as in-

ven����es que possam tornar-lhes a vida mais f��cil e agrad��vel.

S��o um povo de engenheiros (engineer em ingl��s quer dizer

tamb��m maquinista) e um povo engenhoso.

Essa afei����o ��s coisas mec��nicas como que as leva ��s vezes

a fugir dos problemas que n��o possam ser resolvidos pela t��cnica.

�� dif��cil encontrar aqui grupos a discutir Deus e a imortalidade

A VOLTA DO GATO PRETO

325

da alma ��� temas t��o do agrado das gentes latinas. E n��o ��, pois

de admirar que se d�� o nome de instrumentalismo a certa forma

de pragmatismo t��o do agrado de pensadores e educadores ame-

ricanos.

Segundo os instrumentalistas ��� que se op��em a qualquer

forma de absolutismo ��� a realidade n��o �� nada de fixo ou de

completo, e sim algo suscet��vel de mudan��a e desenvolvimento.

Para eles as id��ias s��o. instrumentos de a����o e sua utilidade ��

que lhes determina o grau de verdade. Vemos assim que aqui

at�� as id��ias s��o ��s vezes transformadas em gadgets, engenhocas

aparelhos... John Dewey �� um dos sumos sacerdotes do instru-

mentalismo, e sua filosofia aplicada ao ensino nos Estados Unidos

levou este pa��s a abandonar os m��todos autorit��rios em favor da

experimenta����o e da pr��tica.

Nas universidades americanas (e nisso elas se parecem com

as inglesas), o esp��rito esportivo e o de boa camaradagem s��o

levados em alta conta, e o jogo limpo deve ser observado por

todos os estudantes, n��o s�� no campo de esportes, no tratamento

do advers��rio e dos companheiros, como tamb��m nas aulas, onde

colar �� considerado um ato indesculp��vel e desonroso.

Numa outra cena de Winged Victory observei uma coisa

que j�� me havia chamado aten����o na vida real. �� que os ameri-

canos lutam sem ��dio e nunca declararam dramaticamente que

querem morrer pela p��tria. No entanto suas miss��es de combate

s��o cumpridas com o mais completo sucesso; e a efici��ncia do

ex��rcito e da armada americanos nesta altura da guerra j�� ��

coisa que n��o pode ser objeto de d��vida.

Penso que ainda a universidade �� em grande parte respon-

s��vel por esses tra��os do car��ter americano. Quando esses jo-

vens soldados saem numa miss��o qualquer, eles procedem sem-

pre com esp��rito de team. O que est�� em jogo �� a bandeira do

seu clube, a sua honra de esportistas, o seu orgulho masculino.

N��o precisam excitar-se com hinos e discursos bomb��sticos. Bas-

ta-lhes a id��ia de que v��o tomar parte numa competi����o, num

match. (Nisso eles se parecem muito com seus primos ingleses,

cujo comportamento na Primeira Guerra Mundial Andr�� Maurois

estudou com tanta finura e penetra����o em seu livro "Os Sil��ncios

do Cel. Bamble"). Estes "boys" sabem que vencer�� o team que

aliar ao ��mpeto uma verdadeira disciplina, e a capacidade de se-

guir um plano, blueprint ��� eis uma palavra importante para eles.

��, antes de mais nada, necess��rio obedecer ao capit��o do

team. Mas acontece que ��� diferente dos alem��es que v��em nos

chefes homens superiores a que obedecem cegamente e diante

dos quais se portam com fanatismo ou obje����o ��� o americano v��

no sargento, no capit��o, no coronel, no general um homem como

326

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

ele: o companheiro. N��o pertencemos todos a um pa��s de liber-

dade e igualdade? N��o descendemos todos de imigrantes? Mais

que isso: o soldado sabe que se jogar bem, poder�� galgar

posi����es e um dia botar tr��s estrelas em suas ombreiras.

Foi, pois, a escola prim��ria, o gin��sio, o col��gio e a uni-

versidade que ensinaram esses soldados a fazer jogo de conjunto, e jogo limpo.

O mesmo esp��rito se observa na frente interna. Cada tra-

balhador ��� perten��a ele a uma f��brica de muni����es, de jeeps,

de tanques, de canh��es ou de avi��es ��� recebe uma incumb��ncia

e procura cumpri-la com regularidade e "de acordo com as re-

gras do jogo". Se se trata de bater pregos durante sete horas

di��rias ele bate pregos desde a hora em que entra na f��brica

ou na oficina at�� a hora em que sai, e o fato de essa tarefa

ser ridiculamente mon��tona e ingl��ria n��o o preocupa. Porque

esse oper��rio tem em mente esta convic����o: "Bater pregos ��

necess��rio �� produ����o; �� parte dum trabalho complicado que s��

poder�� ser completado com a colabora����o de centenas de tra-

balhadores an��nimos, alguns dos quais fazem coisas aparente-

mente tolas e sem import��ncia como bater pregos todo o santo

dia". Ora, n��s latinos (usemos por conveni��ncia esta palavra t��o

imprecisa) em mat��ria de jogo somos antes de tudo tremendos

dubladores. Dificilmente passamos a bola ao companheiro; des-

prezamos o fogo de conjunto e estamos sempre prontos a dizer:

"Eu n��o sou homem pra fazer um trabalho desses." O indivi-

dualismo americano �� de natureza cooperativa. O nosso �� um

individualismo um pouco orgulhoso e exclusivista. Lembro-me

de que quando instalaram sinaleiras de tr��fego num movimen-

tad��ssimo cruzamento de ruas em Porto Alegre, alguns ga��chos

consideraram-se cerceados na sua liberdade pessoal s�� porque

n��o podiam atravessar a rua quando bem lhes desse na veneta!

Reconhe��o, entretanto, que quando se trata de improvisar, n��s

brasileiros talvez sejamos mais vivos e imaginosos que os ameri-

canos. Mas n��o ter�� sido o v��cio da improvisa����o um dos nossos

maiores males?

A preocupa����o americana com o show e o conforto, levava-

os a conduzir esta guerra como uma esp��cie de espet��culo e a

procurar diminuir-lhe o mais poss��vel as agruras. O equipa-

mento do soldado americano �� de primeira ordem. Belos, bem

concebidos, bem pintados e bem impressos s��o os cartazes que

fazem propaganda dos b��nus de guerra ou transmitem instru-

����es ao povo com rela����o �� espionagem e ��s provid��ncias em ca-

sos de bombardeio. Muitas das batalhas travadas pelo ex��rcito

americano na Europa e no Pac��fico t��m sido filmadas ��� e

algumas at�� em tecnicolor! ��� e esses filmes s��o usados n��o s��



A VOLTA DO GATO PRETO

327

no preparo de novos combatentes como tamb��m exibidos em

todos os cinemas do pa��s. Nos intervalos entre combates, n��s

acampamentos, nos hospitais organizam-se shows em que atores

e atrizes da Broadway e de Hollywood cantam, dan��am e repre-

sentam para divertir os soldados. Goma de mascar, cigarros da

melhor qualidade, sorvete e at�� peru no Dia de Gra��as ��� s��o

levados aos doughboys nas frentes mais long��nquas.

Um observador apressado concluiria, ap��s um exame super-

ficial da vida americana, que este povo tem tend��ncias militaris-

tas. Puro engano. A afei����o desta gente aos uniformes e ��s pa-

radas, a curiosidade com que eles olham, comentam e manejam

m��quinas e instrumentos de guerra s��o sentimentos e interesses

que nada t��m de belicosos. Tudo isso n��o passa duma atra����o

juvenil por essas engenhocas e uniformes em si mesmos ��� pelo

que eles possam oferecer como espet��culo, curiosidade ou obra

ao engenho humano. �� algo completamente desligado da

id��ia ou da inten����o de agredir, ferir, matar, destruir.

UM DIA DECISIVO.

7 de novembro. Realizaram-se hoje as elei����es

presidenciais. Tudo correu na maior ordem, e os sol-

dados americanos nas diversas frentes do Pac��fico, da

Europa e da ��frica votaram, est��o votando e ainda

votar��o nos pr��ximos dias, nos intervalos entre os

combates.

Esta noite Clara e Lu��s ��� que t��m um entusiasmo

espont��neo e quase delirante por Franklin Roosevelt ���

deixam de ouvir seus habituais e queridos programas

de radioteatro para acompanhar os resultados parciais

das elei����es. E quando verificam que seu candidato

vai na dianteira, come��am a dar pulos e vivas.

V��o para a cama excitados e s�� a muito custo con-

seguem dormir.

Fico a s��s no living-room, olhando para os giras-

s��is de Van Gogh e pensando naquele homem envelhe-

cido e cansado que a esta hora deve estar ao p�� do fogo

na Casa Branca, refletindo, lembrando, esperando, con-

fiando, sonhando...



328

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

Ter�� for��as para ir at�� o fim? E que acontecer�� se

ele morrer?

A m��scara vermelha do fauno sorri ali na parede

o seu sorriso sard��nico. Na casa vizinha um rel��gio

bate as doze badaladas da meia-noite. Penso no Car-

rilh��o do Campanile e de repente a sala se povoa dos

espectros de meus amigos da Universidade. E ent��o

vejo o meu pr��prio fantasma a caminhar na bruma

pelas ruas de San Francisco. ..

O ESPET��CULO CONTINUA

8 de novembro. J�� se sabe que a vit��ria de Roose-

velt est�� garantida, embora n��o se tenha ainda o re-

sultado total da vota����o entre os soldados. Dewey

passou um telegrama ao advers��rio reconhecendo sua

derrota eleitoral e dando sua solidariedade ao presi-

dente.

Esta elei����o foi um grande exemplo objetivo de

democracia. Um latino que tivesse observado de perto

o desenvolvimento da campanha de propaganda jul-

garia que este pa��s estava ��s portas duma nova guerra

civil. No entanto a vota����o se processou dentro da

maior ordem e dec��ncia. Hoje ningu��m mais fala nela.

Ningu��m parece guardar ressentimentos e os que vo-

taram em Dewey est��o de acordo em que chorar uma

causa perdida �� o mais tolo e in��til desperd��cio de

tempo e energia que se possa imaginar.

Apesar dos jornais de Hearst, de Wall Street e

de todas as for��as de rea����o, Roosevelt foi eleito. Os

votos dos sindicatos oper��rios desta vez pesaram na

balan��a em seu favor. O homem do povo, o homem

do campo, das f��bricas, das ruas n��o precisaram que os

grandes jornais viessem dizer-lhes qual entre os dois

candidatos era o melhor...



A V O L T A DO G A T O P R E T O

329

RETRATO DE JEAN

15 de novembro. Passo a tarde a conversar com

Jean Renoir, diretor de filmes em Fran��a, e agora pre-

so a Hollywood por causa da guerra e dum contrato

com a Twentieth Century-Fox. �� um homem de meia-

idade, pesado e corpulento, de pele rosada e olhos mui-

to azuis. Verifico que de seu famoso pai, o pintor

Auguste Renoir, s�� possui em casa um original, pe-

quena mancha a ��leo.

Conta-me que est�� dirigindo a vers��o cinemato-

gr��fica do livro Hold Autumn in your Hand, e que vai

amanh�� para Santa M��nica com sua equipe de fot��-

grafos especialmente para filmar nuvens.

��� Nuvens?

��� Sim. Preciso de nuvens fant��sticas para o fundo

duma cena.

Acrescenta que a hist��ria do filme �� em torno de

agricultores pobres do Texas, na sua luta contra a in-

temp��rie.

Jean Renoir, que �� casado com uma brasileira,

refere-se com simpatia ao Brasil. �� um homem de jeito

t��mido que evita falar de si mesmo. N��o sei por que,

desde que o vi fiquei vagamente a pensar num edif��-

cio de fachada escurecida pela p��tina, com uma

vasto escadaria na frente... Aos poucos outros por-

menores me v��m �� mente: nessa escadaria h�� dois le��es

de pedra... �� um dia de forte nevada. O lago con-

gelado. .. Chicago! O "Art Institute"! Sentado numa

poltrona, Jean Renoir tira do bolso um len��o. Agora

sei por que pensei no "Art Institute". �� porque h��

quase quatro anos encontrei em sua pinacoteca o retra-

to que Auguste Renoir pintou de seu filho Jean quando

menino. Sim, parece que ainda vejo o quadro. .. Com

seus tr��s ou quatro anos, metido numa camisola ver-

melha, os cabelos muito louros e longos, como de me-

nina, o pequeno Jean, de cabe��a baixa, olha para um



330

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

len��o que tem nas m��os pequeninas e rosadas. Lem-

bro-me perfeitamente da express��o de seu rosto; um

ar de choro, um jeito bisonho e recolhido. E agora

aqui na frente do original ainda descubro neste homem

de cinq��enta anos tra��os de menino; a mesma bolsa

desmanchada, a mesma express��o reconcentrada, os

mesmos olhos t��midos, dum azul vago e distante...

O PATRIOTA

22 de novembro. Meu admir��vel amigo Carl

Dentzel ��� um americano t��o exuberante, t��o emotivo e

t��o barulhento que at�� parece latino, me telefona pela

manh��.

��� Qual �� a sua opini��o sobre Villa-Lobos? ��� per-

gunta.

��� Villa-Lobos? Acho que �� um dos cinco maio-

res compositores da atualidade.

��� Quais s��o os outros quatro?

��� Ora, Carlos! Uma pergunta dessas ��s oito da

manh��!

��� Okay, okay! Pois Villa-Lobos chega hoje. Vem

visitar a cidade a convite do maestro Warner Jansen,

e sob o patroc��nio do Southern California Council.

(Dentzel �� o secret��rio do Council em Los An-

geles. )

��� Espl��ndido. Eu j�� havia lido nos j o r n a i s . . .

��� My friend, vou lhe pedir um f a v o r . . .

��� Diga l��.

��� Eu queria que voc�� fosse o int��rprete do maes-

tro durante a sua estada a q u i . . .

��� Voc�� sabe que o maestro �� um homem dif��cil,

explosivo, irritadi��o?

��� Sei, mas seja patriota, fa��a um sacrif��cio.

H�� uma pausa em que o hino nacional brasileiro

me soa na cabe��a, tocado por long��nquas bandas de

m��sica militares.



A VOLTA DO GATO PRETO

331

��� Est�� bem, Carlos. Pela P��tria, por voc��, pela

minha admira����o pela m��sica de V i l l a - L o b o s . . . fa-

rei o que me pede.

��� Wonderful! Agora, escute. O homem chega

hoje �� tardinha, e hoje mesmo �� noite o Occidental

College lhe conferir�� em sess��o solene um t��tulo ho-

noris causa. Vai ser uma festa muito bonita. Eu passo

por sua casa ��s 6 para levar voc�� em meu carro. Est��

bem?

��� Est��, Carlos.

Segue-se a s��rie de perguntas que Dentzel sempre

faz. Como est�� a senhora? E Clara? E Lu��s? That's

wonderful! E voc�� como vai? Splendid! Tem tido not��cia do Brasil? Fine! Fine!

Ponho o fone no lugar e fico refletindo. Minha

admira����o pela m��sica de Villa-Lobos data de h��

uns bons vinte e tr��s anos. Creio que nasceu quando

da minha cidade natal, adolescente, eu acompanhava

a Semana de Arte Moderna de S��o P a u l o . . . Vinte

anos mais tarde fui apresentado a Villa-Lobos, que

me pareceu um homem distra��do, desligante e ego-

c��ntrico.

BACHIANAS

S��o oito da noite e acho-me em companhia dum

grupo de professores togados, na frente do auditorium

do Occidental College. A situa����o �� angustiosa. At��

h�� poucos minutos o avi��o que traz Villa-Lobos e sua

companheira n��o havia ainda chegado. O teatro do

col��gio est�� completamente cheio de gente. At�� as es-

trelas sobre nossas cabe��as parecem ter um brilho in-

quieto. Carl Dentzel, o maestro Jansen e o represen-

tante do Prefeito de Los Angeles encontram-se no ae-

roporto. Para encher o tempo converso sobre "O Pa-

ra��so Perdido" com um professor de literatura inglesa

332

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

que por for��a me quer convencer das belezas do poema

de Milton, que considero um dos mais cacetes dos gran-

des livros da humanidade.

A noite est�� agrad��vel, perfumada e fresca. E n��o

deixa de ser curioso a gente ficar olhando homens ves-

tidos de togas pretas a conversar aos grupos num jar-

dim de ciprestes, sob o c��u noturno.

De repente ouvimos o som de muitas sereias,

como um gemido long��nquo que se vai fazendo cada

vez mais forte. Dentro de cinco minutos os holofotes

de seis motocicletas da pol��cia dardejam seus feixes

de luz por entre as ��rvores do parque. As sereias ces-

sam. Cessa tamb��m o ru��do explosivo dos motores das

motocicletas. E uma vasta limusine preta estaca a

pouca dist��ncia de onde estamos. Os homens togados

se agitam e acabam formando uma fila ��� na ordem em

que devem entrar no teatro. De dentro da limusine

saltam algumas pessoas. Avisto Carlos, que arrasta um

homem pelo bra��o. Reconhe��o nesse homem Villa-

Lobos. Seus cabelos voam, soprados pela brisa desta

noite acad��mica, seus olhos brilham e seu ar �� de ata-

rantamento. Atr��s dele, muito loura, sua senhora

caminha.

Carl puxa o maestro para o meu lado e apresenta:

��� Maestro, este �� o Ver��ssimo.

Villa-Lobos olha para mim com ar espantado,

aperta-me a m��o e diz, abstrato:

��� L u i s ? ��� E com ar mais ��ntimo: ��� Como vais,

Lu��s?

�� in��til explicar que n��o me chamo Luis. De

resto, que �� que h�� num nome? ��� como dizia Shakes-

peare.

Enquanto pergunto ao maestro (que n��o me es-

cuta) se fez boa viagem, algu��m veste nele um capelo

negro e mete-lhe na cabe��a a borla. Pedem me que

lhe indique o lugar que ele tem de ocupar na bicha.

Sigo-o como uma sombra. Estou feliz. Isto equivale

A V O L T A DO GATO P R E T O

333

a um novo par de cal��as amarelas. Agora eu me cha-

mo Lu��s e sou o Int��rprete.

A prociss��o p��e-se em movimento e entra no tea-

tro ao som duma marcha triunfal. Rompem os aplau-

sos. Subimos para o palco e nos instalamos em nossos

lugares. Uma orquestra toca o hino americano e de-

pois o brasileiro. Um coro, composto de dez alunas

do Occidental College, canta uma can����o de Villa-

Lobos. Depois o London String Quartet executa um

dos quartetos do maestro.

A cerim��nia da entrega do t��tulo �� tocante. Um

dos professores faz o elogio da obra do compositor

brasileiro, e este recebe o t��tulo das m��os de Mr. Byrd,

presidente do "Occidental". Desta vez os aplausos s��o

mais ruidosos ainda que antes.

Voltamos para nossas cadeiras. Werner Jansen,

cuja orquestra Villa-Lobos dirigir�� dentro de poucos

dias, caminha para o microfone e l�� um caloroso elo-

gio da obra do homenageado.

Villa-Lobos me cochicha ao ouvido:

��� Luis, pergunta ao Presidente se eu tenho de

falar.

Aproximo os l��bios do ouvido de Mr. Byrd e tra-

duzo-lhe a pergunta ��� pedindo �� Provid��ncia que a

resposta seja negativa. Mas o presidente sorri e diz:

��� Se ele quiser, pode falar. �� uma boa id��ia.

Trago a resposta para o maestro, que decide:

��� Pois diga que vou falar.

Fico frio. Inclino-me para Mr. Byrd e informo:

"O maestro vai falar". Quando Warner Jansen termi-

na a sua apologia, o presidente ergue-se e anuncia que

Villa-Lobos vai fazer um discurso.

��� Vamos embora, Lu��s. Voc�� vai traduzir.

Erguemo-nos e aproximamo-nos do microfone.

Quando os aplausos cessam, Villa-Lobos pigarreia;

imito-o, num eco. E o maestro principia contando de

sua viagem pelos c��us da Am��rica, de sua c h e g a d a . . .

334

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Vou traduzindo como posso. Depois duma pausa, mu-

dando de tom, o orador diz:

��� Sou um filho da Natureza...

Traduzo:

��� O Sr. Villa-Lobos declara que �� um filho

da Natureza.

��� Aprendi a can����o da liberdade com um p��ssa-

ro da selva brasileira...

Ponho essa frase em ingl��s e, mudando de tom,

volto a cabe��a para o maestro e lhe pergunto com ar

familiar, mas ainda em ingl��s.

��� Que p��ssaro �� esse, hein?

Na plat��ia explodem risinhos. Villa-Lobos co-

chicha ao meu ouvido. "De que �� que eles est��o

rindo?" Como ��nica resposta encolho os ombros de

leve, na certeza de que o microfone n��o poder�� am-

plificai' meu gesto.

��� Sim ��� continua o orador ��� foi na selva brasi-

leira que aprendi a can����o da liberdade!

Traduzo:

��� O Sr. Villa-Lobos diz que aprendeu a can-

����o da liberdade na selva brasileira... E eu acredito,

porque liberdade no Brasil hoje era dia... s�� mesmo

na selva...

O adendo se me escapou quase sem eu sentir.

Lembro-me de que neste mesmo palco, nesta mesma

sala, falei h�� poucas semanas para uns oitocentos es-

tudantes, aos quais contei da verdadeira situa����o pol��-

tica do Brasil.

O discurso prossegue sem novidade at�� o fim.

Depois de encerrada a cerim��nia o homenageado

�� levado para uma sala, onde fot��grafos de todos os

jornais de Los Angeles batem chapas. Nessa hora fujo,

vou para o jardim a assobiar confusamente um trecho

do quarteto que ouvi esta noite.

Villa-Lobos e sua senhora s��o conduzidos para

outro pavilh��o do col��gio, para uma sala onde ser��o



A VOLTA DO GATO PRETO

335

servidos frios e bebidas, e onde o maestro receber��

seus admiradores. S��o estes, gente de Los Angeles

e adjac��ncias. Vejo entre eles alguns atores e atrizes

de cinema, c��nsules, escritores, compositores, m��sicos,

jornalistas. A um canto do sal��o, cansado, aborrecido,

o maestro assina aut��grafos, responde a perguntas que

lhe fazem em franc��s e espanhol, e olha com seu ar

abstrato para a cara dos f��s, com o jeito de quem deseja

que tudo isto acabe o mais depressa poss��vel...

CHOROS

23 de novembro. Dez da manh��. Estamos no palco

do Philarmonic Auditorium. Na minha frente, sobre um

estrado, o maestro, sem casaco, de su��ter cor de cinza

e cal��as e polainas da mesma cor. Atr��s de mim, a

orquestra sinf��nica de Werner Jansen. Para al��m do

maestro, a vasta plat��ia, boiando na penumbra, com

suas poltronas vazias, o seu teto dourado, as suas co-

lunas, galerias e cortinas...

O ensaio come��a. Sinfonia n.�� 1 de Villa-Lobos:

"Ascens��o". Tudo vai muito bem. Eu me deixo em-

balar por uma longa frase de violino, dessas que produ-

zem mesmo em n��s um desejo de ascens��o. Estou pe-

netrando a estratosfera e continuo a subir com tal ��m-

peto, que espero em breve descobrir os mist��rios do

c��u. Mas de repente tombo com a velocidade do raio e

de novo me vejo no palco do auditorium. Villa-Lobos

bate freneticamente com a batuta na estante e grita

para mim:

��� Diga pra esses animais que eles t��m de dar essa

nota juntos!

Transmito aos instrumentos de corda a ordem do

maestro. O trecho �� repetido e Villa-Lobos, satisfeito,

exclama sorrindo:

��� ��a va! ��a va!

336

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

A sinfonia prossegue e de novo estou pairando no

ar. Mas novas interrup����es v��m. Num dado momento

o maestro larga a batuta, senta-se no estrado, fita os

olhos no ch��o e fica murmurando:

��� Isto n��o �� orquestra nem aqui nem em Cas-

cadura. S��o uns barbeiros. Estou arrependido de ter

vindo.

Mas ao cabo de alguns instantes torna a erguer-se,

e o ensaio recome��a. Terminada a sinfonia h�� um in-

tervalo de descanso. �� meio-dia e Carl Dentzel ���

sempre muito vermelho e agitado ��� aparece com mon-

t��es de sandu��ches e garrafas de coca-cola. O maes-

tro n��o tem fome. Eu tenho. O maestro n��o come.

Eu como.

Um novo drama se esbo��a. Para os seus "Choros

n.�� 6" Villa-Lobos mandou fazer nos est��dios da Uni-

versal uns tambores quadrados, que devem ficar na

ponta de hastes de madeira, �� maneira de estandartes.

Aproxima-se a hora do ensaio dos "Choros" e os ins-

trumentos n��o chegam. O maestro olha o rel��gio, im-

paciente, e come��a a resmungar coisas, e a andar

dum lado para outro, com um ar de alma perdida. Fi-

nalmente chegam os tambores. Villa-Lobos toma duma

maceta e fere com ela um dos instrumentos.

��� N��o foi isto que eu pedi! ��� vocifera. Bate de

novo, uma, duas, tr��s vezes. ��� Escutem s��... N��o foi

isto! Preciso dum som retumbante, vibrante. Isto est��

malfeito. N��o fizeram o que pedi!

Carl Dentzel, carinhoso, tenta consol��-lo numa

mistura de espanhol, franc��s e ingl��s. Mas o maestro

parece n��o querer deixar-se confortar em l��ngua nenhu-

ma. Senta-se de novo na plataforma e segura a cabe��a

com as m��os. Entra Werner Jansen e vem abra����-lo

e dizer-lhe palavras amigas.

��� Tenha paci��ncia. Isso se arranja. N��o h�� de

ser nada...



A V O L T A DO GATO P R E T O

337

Outra celebridade entra em cena. �� Alfred Fran-

kenstein, do "San Francisco Chronicle", considerado

um dos cr��ticos musicais de maior autoridade nesta

costa do Pac��fico. Quer conversar com Villa-Lobos

para escrever sobre ele um ensaio para seu jornal. Pede-

me que sirva de int��rprete nesse coloquio. Conseguimos

arrastar o maestro para o restaurante do Biltmore Hotel,

que fica do outro lado da rua.

O maestro detesta a cozinha americana. Depois

de muito estudar o menu, decide-se pela broiled chicken.

J�� descobriu que meu nome n��o �� Lu��s ��� o que muito

me entristeceu ��� e responde sem muito interesse ��s

perguntas do cr��ticov

Confesso que come��o a gostar desse homem fran-

co, que diz o que pensa e sente, e que parece n��o dar

a menor import��ncia ao que possam pensar ou dizer

dele.

"SALUDOS, AMIGOS!"

26 de novembro. Finalmente, o concerto! Os

jornais t��m andado cheios de Villa-Lobos. O audito-

rium est�� completamente lotado. E quando me vejo

instalado junto de Mariana na plat��ia, olho para a or-

questra de Werner Jansen com um certo sentimento

de orgulho, como se eu pudesse dizer ��� "Foi eu quem

ensaiou aquela charanga".

O Concerto ��� Sinfonia, os Choros e o Rudepoema

��� �� um sucesso absoluto. Os aplausos s��o prolongados

e entusi��sticos. E quando o espet��culo termina, o ca-

marim do maestro se enche de admiradores e admira-

doras, jornalistas e cr��ticos de m��sica. No meio desses

grupos vejo Igor Strawinski, o grande compositor

russo que recentemente declarou que o melhor meio

de um artista livrar-se de Hollywood �� vir morar em

Hollywood. Ele cumprimenta Villa-Lobos, que co-



338

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

nheceu em Paris h�� alguns anos, e com o qual mant��m

correspond��ncia.

�� noite no Women's Club oferecem um jantar ao

maestro, que, com sua senhora, fica sentado �� mesa

principal, junto do representante do Prefeito, de Raul

Bopp, e do vice-c��nsul do Brasil ��� Ot��vio Dias Car-

neiro, um homem inteligente e culto que realiza o pro-

d��gio de ler fil��sofos alem��es neste ambiente ensolarado

da Calif��rnia.

O representante do Mayor aproxima-se do micro-

fone e come��a a explicar a Villa-Lobos, atrav��s da

minha tradu����o, quem s��o as pessoas que aqui se acham

a homenage��-lo. Fulano de Tal, famoso pianista.

Beltrano, not��vel escritor. Sicrano, consagrado com-

positor . . .

Fumando o seu charuto, Villa-Lobos escuta com

indiferen��a. Est�� de t��o bom humor que quando lhe

traduzo um t��tulo ��� magnata do petr��leo, presidente

de banco, autor disto ou daquilo ��� ele murmura em por-

tugu��s: "E eu com isso?" 'N��o interessa!" Finalmente

anuncio a presen��a de Jack Cutting, representante de

Walt Disney, e acrescento:

��� O est��dio que recentemente produziu "Saludos,

Amigos!"

Com um risinho de garganta Villa-Lobos comenta

com pachorra:

��� Que por sinal �� uma boa droga!

MOMENTO MUSICAL

28 de novembro: Temos hoje o almo��o que a as-

socia����o dos compositores do cinema oferece a Villa-

Lobos, no Beverly Hills Hotel. Aqui est��o Jerome Kern,

autor de melodias que correm mundo, Nat Finston,

Joe Green e v��rios outros autores que o filme e o disco

popularizaram. Tenho a meu lado um senhor idoso, de



A V O L T A DO GATO P R E T O

339

��culos, de fisionomia pl��cida e simp��tica. Fico sur-

preendido por saber que se trata dum compositor cujo

nome li in��meros vezes nos programas de concertos

vocais no Brasil: Castelnuovo Tedesco.

Minha surpresa vem do fato de que eu o julgava

morto h�� muito tempo. �� um velhinho de ar triste.

Conta-me que comp��e acompanhamentos musicais para

um est��dio, e que detesta o esp��rito de Hollywood.

��� Mas que �� que se vai fazer? Veja como est��

a I t �� l i a . . . a Europa toda. Tenho uma casinha em

Beverly Hills onde vivo em paz com minha f a m �� l i a . . .

O almo��o decorre sem gra��a nem cordialidade.

Villa-Lobos est�� caceteado. Percebe-se que os outros

desejam livrar-se o quanto antes da homenagem. Dizem

reconhecer g��nio no compositor brasileiro, mas eu s��

queria saber quantos desses autores de foxes, valsas e

boogie-woogies compreendem e aceitam o enfant terri-

ble da m��sica.

Pergunto ao ouvido de Walter Wanger, que est��

�� minha esquerda:

��� Voc�� tamb��m comp��e m��sica?

Ele sorri e responde:

��� N��o. E voc��?

��� Tamb��m n��o, mas se este almo��o continuar

assim, vou acabar compondo uma marcha f��nebre.

Em breve tenho de exercer de novo minhas fun-

����es de int��rprete. Nat Finston j�� leu ��� a toda veloci-

dade e muito mal ��� o seu discurso em nome do Guild.

Villa-Lobos, com o charuto a fumegar-lhe entre os

dedos, levanta-se. Levanto-me tamb��m. E ficamos a

discursar a quatro m��os. . .

RUDEPOEMA

3O de novembro. Tenho andado por jantares e

festas como a sombra de Villa-Lobos. Nunca vi ho-

340

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

mem t��o franco e t��o rude. Cheguei �� conclus��o de que

como um menino, como um verdadeiro child of nature,

ele simplesmente diz o que pensa e sente. N��o con-

cordo ��� agora que o conhe��o melhor ��� que ele seja,

como muitos querem, simplesmente um cabotino. E l e

sabe o valor que tem, e fugindo �� falsa mod��stia,

proclama-o aos quatro ventos. N��o recalca nenhum

desejo, nenhum impulso natural. Seja como for, isso ��

um ato de coragem.

Outro tra��o simp��tico da psicologia de Villa-Lobos

�� que ele adora os filmes de cow-boys, os palha��os de

circo e as "com��dias de pastel��o". A "Motion Pictures

Society for the Am��ricas" ofereceu ao casal Villa-Lobos

um jantar no Earl-Carroll's, o mais pomposo cabar��

de Hollywood, e o maestro assistiu impass��vel e abor-

recido ao espet��culo, at�� o momento em que apareceu

o clow da noite ��� Pinkv Lee, um sujeito fisicamente

parecid��ssimo com Proc��pio Ferreira. Durante todo

o ato n��o olhei para o palco, mas sim para Villa-Lobos.

�� que esse m��sico t��o requintado e intelectual parecia

uma crian��a sentada nas arquibancadas dum circo, co-

mendo amendoim e rindo ��s gargalhadas das piruetas

do palha��o. E se alguma d��vida eu tivesse sobre a

personalidade de Villa-Lobos como criatura humana

ela teria desaparecido naquele momento.

S��o quatro da tarde e estou com Mariana e um

nequeno grupo de brasileiros numa vasta mans��o de

Bel Air, bairro residencial que fica para al��m de B e -

verly Hills e onde vivem os mais ricos artistas, produ-

cers e diretores de cinema. �� uma maravilhosa cidade

no meio dum bosque. As sombras aqui s��o verdes e

frias, e o ar est�� cheio de perfumes agrestes. O sil��n-

cio �� t��o grande que chega a lembrar o sil��ncio lugar-

comum da floresta virgem embora seia um absurdo

associar a Hollvwood a id��ia de virgindade.

A casa onde nos encontramos �� a de Mr. Sthal,

diretor e producer. Est��o aqui reunidos hoje os s��cios

dum clube de amigos da m��sica, e vejo entre os pre-

A VOLTA DO GATO PRETO

341

sentes o compositor George Antheil, e mais uma in-

teressant��ssima cole����o de belas mulheres muito bem

vestidas, entre as quais se acha uma starlet da Metro.

Convidaram-me para fazer uma confer��ncia sobre o

Brasil, coisa que me �� n��o s�� f��cil como tamb��m agra

d��vel, e que eu fa��o em tom de palestra, sentado numa

poltrona, ao p�� dum piano de cauda, numa sala com

pesadas cortinas de veludo verde-musgo, m��veis Chip-

pendale e estatuetas antigas. Mas o que me impressio-

na realmente s��o essas estatuetas grandes que se movem,

que respiram, donas desses olhos azuis, castanhos,

verdes, cor de malva que neste momento est��o vol-

tados para o conferencista. (V�� para o diabo, An��lio!

Retire-se, dona Eufr��sia!)

Conto maravilhas do Brasil, e sinto que dentro de

cada uma das pessoas que aqui se encontram mora

um turista.

Mas no fim de contas esta festa foi organizada

especialmente para Villa-Lobos, que ainda n��o chegou.

Olho para o rel��gio de ouro �� Lu��s XV que est�� dentro

duma redoma de vidro sobre a lareira. Parado! Ergo

o pulso esquerdo �� altura dos olhos. Cinco e meia.

E o maestro n��o aparece. ..

Ofere��o-me para uma sabatina. Chovem per-

guntas. Em sua maioria s��o tolas: perguntas de gen-

te feliz. O tempo passa. Finalmente noto uma co-

mo����o �� entrada da mans��o dos Sthal "�� e l e . . . " ���

murmura-se. �� ele". E Villa-Lobos irrompe na sala,

sob aplausos. Caminha para mim, aperta-me a m��o e

pergunta, j�� meio irritado.

��� Que neg��cio �� este?

��� Fique firme. E fa��a o favor de sentar-se

aqui...

Ele senta-se na minha poltrona e eu me empoleiro

na guarda da mesma. E quando se faz sil��ncio ���

quando todas essas mulheres bem tratadas e perfu-

madas, cujos custosos casac��es de pele repousam no

342

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

guarda-roupa da entrada, tomam posi����o, umas no

fundo de fofas poltronas, outras sentadas no ch��o ���

uma loura balzaquiana, com sua voz de clarineta,

come��a a falar, dirigindo-se a mim:

��� Fa��a o favor, meu amigo, diga ao maestro que

este clube tem recebido em seus sal��es celebridades

como Toscanini, Stravinsky, Stokowsky, Rachmaninoff

e outros.

Fa��o a tradu����o para Villa-Lobos, que resmunga,

azedo:

��� N��o interessa... n��o interessa. . .

��� Que foi que ele disse? ��� indaga a loura.

��� A h ! . . . ele disse: espl��ndido... espl��ndido...

A balzaquiana sorri e continua:

��� Diga tamb��m ao Sr. Villa-Lobos que o fato de

ele n��o falar ingl��s n��o tem a menor import��ncia.

N��s o admiramos tanto, que s�� de ficar aqui a olhar

para ele sentimo-nos felizes. . .

Transmito estas palavras ao maestro, que exclama:

��� Diga a ela que n��o sou papagaio nem palha��o

de circo!

Volto-me para o audit��rio e traduzo:

��� O maestro declara que se sente felic��ssimo por

estar aqui h o j e . . .

H�� um murm��rio de contentamento no sal��o. Se-

gue-se uma sabatina, que me d�� um grande trabalho.

As respostas de Villa-Lobos s��o ��speras, contundentes

e quase sempre paradoxais.

Por fim o maestro decide tocar uma composi����o

sua. Deixa a cadeira e caminha para o piano. Senta-

se, tira um acorde, faz uma careta e volta-se para mim:

��� Diga pra dona da casa que o piano dela est��

desafinado. Um verdadeiro realejo!

Depois que o maestro termina de tocar somos

levados para outra sala, onde sobre longa mesa vejo

uma profus��o de pratos com os mais variados tipos de



A VOLTA DO GATO PRETO

343

sandu��ches, empadas e canap��s. As conversas enchem

o ar perfumado e morno. Formam-se os grupos. F a -

zem-se apresenta����es. Combinam-se encontros, jan-

tares: trocam-se amabilidades e n��meros de telefone.

Quando procuro o maestro e sua senhora, infor-

mam-me que eles j�� se retiraram.

RELIGI��ES

Fernanda: Voc�� me pede que lhe fale das religi��es dos

Estados Unidos, e eu acho melhor fazer isso num di��logo em

que procurarei dividir-me em dois. No fim de contas todos

n��s precisamos do nosso Dr. Watson, e quando isso n��o seja

para outra coisa mais s��ria, ser�� pelo menos para que esse

tolo imagin��rio fa��a perguntas acacianas a fim de provocar

nossas disserta����es sublimes ou eruditas. Suponhamos que meu

interlocutor se chame Tobias, e vamos ao di��logo:

Tobias ��� Voc�� afirmou o outro dia que os americanos, ena-

morados das m��quinas, fogem dos problemas que n��o podem

ser resolvidos por meio de aparelhos mec��nicos. Muito bem.

Como explica, ent��o, a exist��ncia de tantas seitas religiosas nes-

te pa��s? Melhor ainda: a que atribui a preocupa����o religiosa

dos americanos?

Eu ��� Parece-me que o problema da alma e o problema

de Deus perderam neste pa��s a sua qualidade metaf��sica para

se transformarem de certo modo em problemas quase t��o pr��-

ticos e objetivos como o da irriga����o do sul da Calif��rnia e do

combate �� pelagra. No fundo, religi��o para esta gente �� um

tipo de gadget, de engenhoca. Uma esp��cie de "m��quina de

ir para o c��u."

T. ��� Mas isso �� caricatura!

E. ��� De acordo. Mas caricatura n��o exclui parecen��a. Ela

tem sempre sua dose de verdade. De resto, esta terra ama a cari-

catura. N��o sou um ensa��sta nem um soci��logo e muito menos

um homem de ci��ncia. �� ainda com os instrumentos de fic����o

que estou procurando examinar esse problema da realidade.

T. ��� A��as eu gostaria que voc�� me explicasse seu ponto

de vista, embora n��o me sinta nem um pouco inclinado a con-

cordar com ele.

E. ��� Olhe. As criaturas humanas em geral sentem-se em

maior ou menor grau inclinados para o mist��rio, a cabala, o

344

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

ocultismo. N��o direi que os americanos fujam �� regra. O que

eles gastam anualmente consultando "swamis", videntes, car-

tomantes, �� simplesmente fabuloso, segundo informam as es-

tat��sticas. Isso revela uma inclina����o juvenil: mistura de curio-

sidade quanto ao futuro, simplicidade de esp��rito e gosto pelo

mist��rio. Mas por outro lado os americanos s��o extrovertidos,

objetivos, arejados e pr��ticos de sorte que querem ver o pro-

blema da "outra vida" posto sobre bases deste mundo. Enfim,

seu esp��rito �� por assim dizer, a nega����o do misticismo. Estas

criaturas podem gritar, pular, ficar num entusiasmo delirante

diante duma luta de box, numa partida de futebol ou num

concerto sinf��nico, mas s��o em geral incapazes dum senti-

mento de verdadeiro ��xtase religioso. Voc�� n��o conhece nenhum

santo americano, conhece?

T. ��� N��o. Mas como explica voc�� a exist��ncia dessa seita de

fan��ticos que pegam cobras venenosas, p��em-nas na cabe��a, en-

rolam-nas no pesco��o?

E. ��� Trata-se duma psicose local, duma minoria no meio

destes 130 milh��es de almas.

T. ��� E como explica a atitude desses milhares de america-

nos que fazem parte da seita chamada "O Evangelho dos Quatro

Costados" e acreditam em Aim��e Mac Pherson, a sacerdotisa que

declama dramaticamente os serm��es, aparecendo como uma mis-

tura de Bertha Singerman, Santa Maria Egipc��aca e Greta Garbo?

E. ��� Isso �� ainda o resultado do esp��rito juvenil do ameri-

cano, de sua curiosidade e inclina����o para o ex��tico e para o es-

petacular. �� ainda a confirma����o de minha tese de que para

muitos habitantes deste pa��s, mesmo que eles n��o saibam disso,

religi��o �� uma esp��cie de "m��quina de ir para o c��u".

T. ��� Voc�� ainda n��o explicou sua absurda teoria.

E. ��� O problema do tempo �� muito s��rio num pa��s que des-

cobriu tantas formas de divertimentos, tantas atividades, e que

n��o encontra tempo suficiente para gozar desses divertimentos

e exercer essas atividades. �� preciso inventar coisas que simpli-

fiquem a vida e portanto espichem o tempo. Essas coisas s��o

m��quinas e f��rmulas. Tome como exemplo a m��quina de la-

var roupa. Voc�� compra uma dessas engenhocas, pega o livro

que traz as instru����es para o seu manejo, coloca a roupa suja

no lugar indicado, aperta no bot��o, tudo de acordo com as

recomenda����es do livrete, e a m��quina come��a a funcionar.

Voc�� pode ir tratar doutra coisa, na certeza de que no momento

devido a roupa sair�� l�� do outro lado, alva, limpa, imaculada,

numa economia de tempo, esfor��o e preocupa����o.

T. ��� Mas que �� que isso tem a ver com as religi��es?

A VOLTA DO GATO PRETO

345

E. ��� Com o devido respeito que as religi��es e os religiosos

merecem, direi que para o esp��rito pr��tico dos americanos reli-

gi��o �� em ��ltima an��lise uma m��quina de lavar almas. Com-

plicada, n��o h�� d��vida; s��ria, sim senhor, mas m��quina. No caso

dos protestantes a B��blia �� o livro que cont��m as instru����es sobre

como usar a m��quina que leva ao c��u. Ora, o sucesso de certas

religi��es novas como a de Aim��e Mac Pherson ��� que n��o sei se

ser�� uma iluminada, uma chantagista ou ainda uma estranha

combina����o de ambas as coisas ��� nada mais �� que a atra����o da

m��quina nova. Babbitt tem hoje um Chevrolet de 1940 mas est��

ansioso por comprar o modelo de 1941 que traz simplifica����es

pr��ticas... Amanh�� Babbitt comprar��, em vez de um auto-

m��vel, um avi��o ou um helic��ptero. Esta gente americana ��

doida por novidades, principalmente as mec��nicas.

T. ��� De sorte que voc�� acha que religi��es como a do "Four

Square Gospel" e outras seitas modernas oferecem simplifica-

����es. ..

E. ��� Exatamente. �� a m��quina de manejo mais simples.

A novidade.

T. ��� E voc�� tamb��m n��o estar�� simplificando demais o

problema?

E. ��� Claro que estou, homem! E esta n��o �� a terra da

simplifica����o?

T. ��� ��! E n��o acha que tanta simplifica����o acabou criando

uma complica����o dos diabos?

E. ��� Acho. E por falar em diabo voc�� n��o observou que,

como um vest��gio do puritanismo, palavras como diabo, dana����o, inferno s��o aqui consideradas blasf��mia e por isso pessoas verda-

deiramente religiosas n��o as pronunciam nunca? E a coisa pas-

sou do terreno religioso para o do bom-tom. Um cavalheiro ou

dama de "boas maneiras" n��o usa essas palavras na conversa����o.

T. ��� E a todas essas... onde coloca voc�� a f��?

E. ��� Est�� claro que este �� um pa��s de homens n��o s�� de

f�� em Deus como de boa-f��. Esta afirma����o n��o destr��i minha

teoria caricatural. E h�� uma coisa que me parece certa...

T. - Diga l��...

E. ��� Os americanos n��o t��m tend��ncias m��sticas e preferem

trazer os problemas religiosos para este mundo.

T. ��� E como explica isso?

E. ��� A fonte de tudo est�� no protestantismo, que �� uma re-

ligi��o de car��ter pr��tico. Dum modo geral os pastores protes-

tantes tratam mais de servir que de doutrinar. Para eles, a pr��-

dica �� mais importante que os sacramentos. Empenham-se

em campanhas tendentes a reformar os pecadores, a combater

a delinq����ncia juvenil, o crime, a prostitui����o, enfim: todas as

346

OBRAS DE E R I C O VER��SSIMO

formas de pecado. As Associa����es Crist��s de Mo��os ��� que s��o

em ��ltima an��lise esp��cies de c��us terrestres e inocentemente

mundanos onde os mo��os encontram oportunidade para se educa-

rem, gozarem de boa companhia e se entregarem a divertimentos

sadios ��� s��o uma cria����o protestante, como o �� tamb��m o Ex��r-

cito da Salva����o, que teve sua origem na Inglaterra.

T. ��� Os Estados Unidos, portanto, s��o um pais protes-

tante. . .

E. ��� Poderemos afirmar isso? N��o resta d��vida que id��ias

protestantes t��m dirigido este pa��s. Mas a Igreja Cat��lica ��

muito importante aqui. Todas as denomina����es protestantes

reunidas perfazem um total de cerca de 33 milh��es de crentes

ao passo que s�� a Igreja Cat��lica tem quase 23 milh��es de

membros, e nos ��ltimos tempos tem crescido muito, ganhando

segundo suas pr��prias estat��sticas, cerca de 500 novos adeptos

por m��s. Talvez se possa afirmar que a atmosfera americana

�� protestante, no sentido de que mesmo as pessoas que n��o

pertencem a nenhuma congrega����o evang��lica e nunca v��o ��

igreja procedem de acordo com o esp��rito protestante...

T. ��� E que vem a ser esse esp��rito?

E. ��� �� o do homem que l�� a B��blia e trata de seguir-lhe

os mandamentos. O do homem que na vida procura portar-se

como o Bom Samaritano, evitar a blasf��mia e fazer boas obras.

T. ��� Voc�� afirmou que a Igreja Cat��lica �� importante nos

Estados Unidos. Refere-se �� import��ncia apenas num��rica?

E. ��� N��o. Trata-se de import��ncia que j�� se traduz em

influ��ncia social e pol��tica. Afirma-se que Roosevelt n��o pres-

tou apoio decidido aos republicanos espanh��is na sua luta con-

tra Franco para n��o desgostar os cat��licos americanos. Obser-

ve que Hollywood est�� filmando hist��rias cujos her��is s��o sa-

cerdotes cat��licos. Os protestantes j�� come��aram a ficar en-

ciumados. Ora, �� sabido que os diretores dos est��dios s��o em

sua maioria judeus, protestantes ou homens sem religi��o, e

mesmo assim t��m procurado cortejar o p��blico cat��lico. Est��

claro que nenhuma empresa comercial perderia tempo nem

arriscaria dinheiro para agradar um grupo que n��o tivesse in-

flu��ncia social ou express��o pelo menos num��rica...

T. ��� At�� que ponto foi o catolicismo influenciado pela

maneira de ser americana?

E. ��� O catolicismo nos Estados Unidos sofreu mudamente

a influ��ncia (na superf��cie, �� claro) do modo de vida americano.

Seus sacerdotes n��o usam batina na rua e suas igrejas s��o menos

dram��ticas e sombrias que as igrejas dos pa��ses latinos. Como

o catolicismo neste pa��s �� uma minoria, e como em tempos pas-

sados chegou a sofrer com a intoler��ncia protestante, a tend��n-

A VOLTA DO GATO PRETO

347

cia dos cat��licos aqui �� para a toler��ncia e para a colabora����o

com o protestantismo e o juda��smo. Nestes tempos de guerra

tenho visto comit��s inter-religiosos formados de sacerdotes ca-

t��licos, pastores protestantes e rabinos judeus...

T. ��� H�� realmente liberdade de culto nos Estados Unidos?

E. ��� A mais completa.

T. ��� Como s��o em geral os padres cat��licos neste pa��s?

E. ��� Americanos... isto ��, homens joviais que fazem espor-

te, amam a vida ao ar livre, sabem rir, bebem o seu u��sque, gos-

tam de ouvir e contar anedotas... E por falar nisso ou��a a se-

guinte hist��ria: Quando passei pela cidade de San Antonio, em

Texas, numa excurs��o de confer��ncias, tive a oportunidade de

jantar uma noite com seis padres cat��licos no campus dum col��-

gio de religiosas. Pois bem. A mesa era farta, o vinho de pri-

meira ordem e a companhia amabil��ssima. Falamos de tudo,

menos religi��o. E ao fim do jantar um monsenhor, velho de voz

rouca, convidou-nos para subir a seu quarto, onde continuamos

a boa prosa. Comodamente sentados em fofas poltronas, os seis

padres come��aram a fumar com vis��vel del��cia. De todo o grupo

eu era o ��nico que n��o fumava. Num dado momento algu��m

falou em Harry Truman, que naquele dia prestava juramento ao

tomar posse do cargo de Presidente. Acendendo com toda a

pachorra seu cachimbo, o mais jovem dos padres observou:

��� Disseram-me que o novo Presidente n��o bebe nem fu-

ma. ..

Houve um curto sil��ncio ao cabo do qual, sem tirar o charuto

da boca, o espl��ndido monsenhor resmungou:

��� Aposto como Truman �� um desses malditos puritanos!

T. ��� Que s��o os negros em mat��ria de religi��o?

E. ��� Batistas, em sua maioria. Mas alguns entregam-se

�� macumba e muitos s��o adeptos do Pai Divino, um negro que

mora em Nova York, anda de Rolls Royce, e mant��m os "c��us",

casas onde d�� de comer a seus fi��is, que se chamam "anjos".

T. ��� Onde fica a maior concentra����o de protestantes deste

pa��s?

E. ��� Nos estados do Sul.

T. ��� E h�� aqui estados de tradi����o nitidamente cat��lica?

E. ��� Sim. Maryland, Calif��rnia, Novo M��xico e Louisiana.

T. ��� De sorte que, resumindo, o esp��rito protestante predo-

mina na vida americana...

E. ��� Parece-me que sim. Para usar novamente da t��cnica

de caricatura, direi que protestantismo �� catolicismo desidratado.

E a Igreja de Roma simplificada e trazida para a terra

ou, antes, para o n��vel de Babbitt, o homem pr��tico que deseja

ver as coisas claras e os resultados imediatos. Em suma: o bom

348

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Babbitt quer colher dividendos concretos e materiais de seus

"neg��cios" espirituais.

T. ��� E as outras religi��es?

E. ��� S��o in��meras. H�� os m��rmons, cujo n��mero n��o vai

muito alem de 600 000. A eles se deve o desdobramento e

a coloniza����o do estado de Utah e a funda����o dessa interessante

Salt Lake City. A poligamia foi abolida entre os m��rmons, que

s��o gente piedosa, muito honesta e de costumes severos. H��

ainda os adeptos da "Ci��ncia Crist��", que �� uma igreja baseada

nos ensinamentos de Mary Baker Eddy. Afirmava esta que

Deus �� Pessoa no sentido infinito e n��o no sentido humano

limitado. Os membros dessa igreja acreditam em Deus, em

Jesus Cristo e no Esp��rito Santo. N��o recorrem nunca a m��-

dicos, pois para eles s�� Cristo tem o poder de curar. Boston ��

a Roma dessa igreja, que conta com milhares de membros, e

cujo jornal "The Christian Science Monitor" �� considerado um

dos di��rios mais s��rios e autorizados dos Estados Unidos.

T. ��� E que me diz dos outros milh��es de americanos n��o

filiados a nenhuma igreja?

E. ��� Em geral como j�� lhe disse antes, eles procedem

mais ou menos crist��mente, porque os ensinamentos b��blicos

como que andam no ar. E porque os her��is da Hist��ria ameri-

cana eram homens que liam e seguiam a B��blia, e lendo a vida

desses vultos os leitores naturalmente absorvem um pouco de

seu esp��rito e de sua f��. Mas n��o me parece que o problema

espiritual dos Estados Unidos deva ser estudado �� luz dessa

divis��o do pa��s em dois campos: o cat��lico e o protestante.

Seria mais sensato dividi-lo assim: mundo crist��o e mundo semi-

pag��o. Nas grandes metr��poles como Nova York e Chicago

tende a formar-se uma esp��cie de filosofia da vida c��nica e

amoral, cujos objetivos s��o imediatos e puramente materiais.

N��s vimos como o protestantismo e o catolicismo, ambos sadia-

mente crist��os, nunca entram propriamente em conflito com o

conforto e a felicidade terrenas, n��o se op��em ao autom��vel,

ao avi��o, ao refrigerador, ao r��dio, ��s vitaminas, e ��s m��quinas

em geral, embora continuem prevenindo seus fi��is contra a

preocupa����o de amontoar tesouros terrenais. Mas o esp��rito

pag��o tende a adorar o Progresso quase como um fim e n��o

como um meio. E na sua ��nsia de sucesso, de lucro e de prazer

ele p��e em perigo muitos dos ideais americanos nitidamente

crist��os. �� por isso que protestantes, cat��licos e judeus n��o

raro se unem em suas cruzadas contra o v��cio, a cobi��a e o

ate��smo.



A VOLTA DO GATO PRETO

349

T. ��� Para terminar, voc�� acredita mesmo que os america-

nos considerem a religi��o como uma "m��quina de ir para o

c��u?"

E. - N��o.

E aqui, Fernanda, terminou o nosso di��logo. Vamos guar-

dar Tobias, pois sinto que esse belo mo��o ainda me mi servir

para outros di��logos.

GARY COOPER E CAM��ES

12 de dezembro. Le Roy Johnston, agente de pu-

blicidade da Internacional Films, me pede que escre-

va algumas palavras em portugu��s para Gary Cooper

pronunciar diante da c��mara, num trailer destinado

a anunciar no Brasil o seu filme "Casanova Brown".

Convida-me tamb��m a ir ao est��dio, a fim de ensinar

Mr. Cooper a ler o seu "discurso".

Estou agora num dos sound stages da Internacio-

nal. Chove torrencialmente e Gary Cooper ainda n��o

chegou. Tudo aqui dentro lembra uma caixa de tea-

tro: cen��rios, cortinas, refletores, bastidores, cabos...

Finalmente entra o astro. Tira as galochas e a

capa de borracha. Est�� metido numa roupa de "tweed

cor de cinza, impecavelmente cortada e tem na cabe-

��a um vasto chap��u branco de cow-boy...

Gary Cooper �� um homem calad��o de ar t��mido,

e que parece nunca saber onde botar as m��os e co-

mo acomodar as longas pernas. No fundo n��o passa

dum vaqueiro. Adora a vida do campo, e ��s vezes sai

a ca��ar em companhia do escritor Ernest Hemingway

ou de Clark Gable. O segredo de seu sucesso e da

sua perman��ncia em cartaz est�� num misterioso' tra-

��o de simpatia de seu rosto, na sua voz ou no seu

jeito, pois n��o me posso convencer de que deva me-

recer o t��tulo de grande ator quem como Gary Cooper

tem apenas duas ou tr��s express��es fision��micas,

que usa de acordo com a cena.



350

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Enquanto, no camarim, o maquilador lhe passa

no rosto uma camada de pintura cor de tijolo, leio em

voz alta o discurso em portugu��s.

��� Que l��ngua! ��� exclama Gary Cooper. ��� O es-

panhol n��o me parece t��o dif��cil...

Repito a leitura, pronunciando lentamente as pa-

lavras, enquanto ele as figura num peda��o de papel,

da melhor maneira poss��vel. Depois disso escrevo to-

das as palavras num quadro-negro, seguindo a grafia

figurada de Gary Cooper, e finalmente, ao cabo de

v��rios ensaios, tudo fica pronto para a filmagem.

Gary Cooper sai de tr��s duma cortina vermelha

e caminha at�� o primeiro plano. Sorri para o p��bli-

co e come��a a falar... Na terceira linha, por��m, mu-

da de tom, faz um gesto de impaci��ncia e diz:

��� Nuts! Cortem... Errei tudo.

Mas continua a sorrir, sempre com calma, como

se no fundo se estivesse divertindo com a coisa.

Novo ensaio. E a filmagem recome��a. Enquanto

o filme rola, Gary Cooper l�� disfar��adamente o que

est�� escrito na pedra. Tudo vai muito bem at�� a

quarta linha, quando:

��� Christ! ��� exclama ele. ��� Que l��ngua complica-

da!

E assim as horas passam. E enquanto l�� fora a

chuva cai incessantemente, fico eu acocorado debaixo

da c��mara, olhando para esse sujeito grandalh��o, de-

sajeitado mas simp��tico, que luta com as palavras da

bela l��ngua em que Cam��es escreveu "os Lus��adas",

mas que para esse cow-boy de Montana n��o passa dum

hell of a language uma l��ngua dos diabos.

"QUEM TE DEU TAMANHO BICO?"

15 de janeiro, 1945. A diretora da Biblioteca P��-

blica de Visalia me escreve, convidando-me a ir a

essa cidade realizar uma confer��ncia. A signat��ria da

A VOLTA DO GATO PRETO

351

carta esclarece que estava presente �� conven����o das

bibliotecas da Calif��rnia no dia em que falei sobre

"Books in Brasil", e deseja que eu repita essa palestra

na sua cidade. Mas. .. onde fica Visalia, que eles

aqui pronunciam "Vaiss��ilha?" Informam-me que ��

a sede do condado de Tulare e est�� a meio caminho

entre Los Angeles e San Francisco.

O dia ainda n��o clareou e aqui vou de mala na

m��o, rumo do Pico Boulevard, onde apanho um ��ni-

bus azul, do qual me transfiro, dez minutos depois,

para um bonde amarelo que, ao cabo de quarenta mi-

nutos, me deixa na esquina da Broadway com a Rua

9, onde entro num outro bonde que me leva em quin-

ze minutos �� esta����o. Meu lugar no "San Joaquin

Daylight" est�� reservado faz j�� alguns dias. Portan-

to n��o levo pressa nem d��vidas.

Chego a Tulare ao meio-dia. Avisaram-me que

algu��m aqui me espera para me conduzir a Visalia

em seu carro. Esse algu��m acontece ser uma senhora

idosa e morena, esposa do juiz de direito da cidade.

A meio caminho o auto engui��a, bem na frente duma

casa de madeira, cujo alpendre est�� encimado por

uma tabuleta com este nome ��� Tony Pimentel. L�� de

dentro sai um homem grande, gordo e grisalho, de

bochechas coradas e com um toco de cigarro colado

aos l��bios muito vermelhos. Est�� de avental branco

e sua pan��a oscila ao ritmo lerdo de seus passos.

��� Hello, Mr. Pimentel! ��� diz a minha compa-

nheira.

��� Como vai o Sr. Juiz? ��� pergunta o homem

gordo.

Por causa da palavra Juiz fico a repetir mental-

mente os absurdos versos dum jogo infantil:

Bico-bico surubico

Quem te deu tamanho bico?

Foi a velha chocarreira

352

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Que andou pela ribeira

A procura de ovos de perdiz

Pro filho do senhor Ju-iz

Mr. Pimentel, que lembra esses estalajadeiros dos

romances de capa e espada, vem muito obsequioso

oferecer seus servi��os. A senhora do juiz pergunta:

��� Posso usar seu telefone? Vou pedir a meu

marido que mande um carro para nos rebocar at�� Vi-

salia.

E enquanto a simp��tica senhora entra no arma-

z��m, fico a conversar com meu estalajadeiro.

��� Voc�� �� portugu��s? ��� pergunto.

��� Yes.

��� N��o fala mais sua l��ngua?

��� Not much.

��� Pois eu sou brasileiro.

��� Fine.

Pimentel debru��a-se �� janela do autom��vel. Seus

olhinhos negros brilham. Seus dentes escuros, mi��dos

e parelhos, apertam o toco de cigarro. De repente,

com um riso p��caro a alargar-lhe as bochechas cora-

das, ele pergunta em portugu��s:

��� Que fazes aqui, rapaz?

E como que excitado pelo simples fato de ter fa-

lado portugu��s, come��a a rir convulsivamente. Conta-

me a seguir que veio de Portugal ainda crian��a e que

este condado de Tulare est�� cheio de portugueses

propriet��rios de tambos, granjas e f��bricas de queijo.

��� Eu ia ser padre ��� explica Pimentel. ��� Cheguei

a cursar um semin��rio.

��� E por que n��o se ordenou?

Pimentel pisca o olho e confessa:

��� �� que eu gostava demais das boas coisas da

v i d a . . .

Com a volta da esposa do juiz, a conversa passa

a ser feita em ingl��s e com um pouco mais de digni-

dade.

A VOLTA DO GATO PRETO

353

Vinte minutos depois entramos a reboque na ci-

dade de Visalia, cuja popula����o n��o vai al��m de quin-

ze mil almas, e que, para n��o fugir �� regra, tem a s��a

Rua Principal, onde ficam os cinemas, hot��is, drug-

stores, bombas de gasolina e filiais de bancos.

Hospedo-me num hotel tranq��ilo, igual a cem

outros onde j�� estive. O condado de Tulare passa por

ser um dos distritos agr��colas mais ricos do mundo.

Seus queijos e conservas s��o renomados, e o algod��o,

as nozes, as uvas e o vinho acham-se entre os princi-

pais produtos desta privilegiada regi��o do vale de San

Joaquim.

�� tardinha saio a andar pelas ruas, a olhar faces

e vitrinas. No fundo dum caf�� alguns velhotes, com

chap��us de cow-boy na cabe��a, fumam e jogam p��-

quer ao redor duma mesa coberta de pano verde, e

por cima da qual pende uma l��mpada el��trica com

um quebra-luz c��nico. Rapazes jogam bilhar num sa-

l��o. Sentados junto dos Dalc��es dos restaurantes e

caf��s, homens e mulheres comem. Mocinhas passeiam

pelas cal��adas... E uma fresca paz, uma doce paz

parece descer das grandes montanhas e do p��lido c��u

onde come��am a apontar as primeiras estrelas. (O

diabo �� que eu tenho a impress��o de que tudo j�� acon-

teceu antes...)

Entro num cinema para ver uma fita de "Far-

West". O p��blico faz um barulho infernal, torce, gri-

ta, ri, aplaude, d�� vaias. O menino que est�� sentado

junto de mim agita-se de tal modo que a todo o ins-

tante est�� a dar-me violentas cotoveladas. Resolvo

ent��o participar do entusiasmo geral, entro no coro

dos bravos e dos fiaus, e passo a me interessar pela

sorte do mocinho e da mocinha, e a odiar com todas

as minhas entranhas o bandido. Isso, entretanto, n��o

me �� f��cil. Porque tanto o her��i como o vil��o e mui-

tos dos cow-boys s��o gente que estou acostumado a

encontrar em Hollywood na rua, nos mercados, e nas

vizinhan��as de minha casa. ..





354

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Depois do cinema ��� o quarto do hotel, o sono,

e um estranho sonho.

O SONHO

�� madrugada e sei que estou em minha cidade

natal, �� esquina da quadra em que fica a casa onde

nasci e sempre vivi. A escurid��o em redor �� absolu-

ta. De repente sinto a presen��a de mais algu��m. ��

meu pai, que j�� morreu, e que aqui est�� junto de mim,

parado, silencioso ��� um vulto escuro envolto numa

capa como a que G. K. Chesterton usava. De onde

estou n��o lhe posso ver o rosto. Sei que ele est�� mor-

to, mas aceito sua presen��a sem estranheza nem te-

mor. Aos poucos percebo que ele tem erguido na

m��o direita um guarda-chuva aberto, que parece um

cogumelo preto. Ou��o sua voz no sil��ncio: "Tua m��e

est�� te esperando, meu filho". A voz e a escurid��o

s��o como que feitas do mesmo elemento. Des��o na

dire����o de casa com o cora����o a bater descompassa-

do, numa sensa����o de culpa, porque sei que �� ma-

drugada e h�� muito eu j�� devia ter chegado. Sinto-

me como um filho pr��digo e temo pelo que possa acon-

tecer. �� preciso apressar o p a s s o . . . E se a porta es-

tiver fechada? N��o. Lembro-me que em minha casa

as portas nunca eram fechadas a c h a v e . . .

Depois fica tudo confuso e eu passo a me preo-

cupar com um ��nibus que vai sair para Los Angeles

��� ou para o Brasil? ��� e que n��o devo p e r d e r . . .

OS MICROSC��PIOS

16 de janeiro. Visito esta manh�� a Biblioteca Mu-

nicipal, onde Miss Dorothy Woods me conta que dis-

p��e duma verba de sessenta mil d��lares anuais para

A VOLTA DO GATO PRETO

355

empregar na compra de livros para as escolas e bi-

bliotecas dos distritos de Tulare.

Ao meio-dia um grupo de senhoras de mais de

cinq��enta anos ��� todas alegres e muito enfeitadas ���

querendo proporcionar-me um almo��o "com cor lo-

cal", levam-me a comer no restaurante mexicano " E l

P��tio", e quase me matam com enchiladas, tamales e

chile con carne.

��s quatro estou numa sala da "Visalia J��nior

High School" diante dum audit��rio de criaturas sim-

patic��ssimas, para as quais falo no Brasil, nos brasi-

leiros e nos livros que escrevemos e lemos.

Depois da confer��ncia, oferecem-me um ch�� du-

rante o qual, como uma bola, ando de m��o em m��o,

atirado de grupo para grupo, respondendo as pergun-

tas e sorrindo. . . ("Como �� dif��cil ser um gentleman!"

��� meu filho me disse um dia.)

O ��nibus para Los Angeles parte ��s seis. ��s cin-

co e meia ainda visito o edif��cio da escola, que �� de

linhas muito modernas. Na sala de leitura da biblio-

teca, cujas paredes est��o pintadas em v��rios tons de

bege, Miss Woods me pergunta:

��� Quantas grada����es de bege o senhor calcula

que haja na pintura desta sala?

Olho a parede com ar de conhecedor e arrisco:

��� Umas d o z e . . .

Ela sorri e me corrige:

��� Cinq��enta.

Passamos agora para outros departamentos. Visi-

to o laborat��rio de f��sica, o de qu��mica, e no de bio-

logia Miss Woods com a maior naturalidade deste

mundo, respondendo a uma pergunta ociosa que lhe

fa��o ��� "quantos microsc��pios tem o col��gio?" ��� abre

vasto arm��rio em que vejo, nov��ssimos em folha, v��-

rios desses aparelhos, e diz:

��� Sessenta e quatro.

��� S�� para este col��gio?



356

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Sim. Que �� que h�� de extraordin��rio no fato

de um col��gio ter 64 microsc��pios?

Penso nas escolas e universidades brasileiras e,

muito desanimado, respondo.

��� Realmente. N��o h�� nada de extraordin��rio

nisso. �� . . . Nada.

No ��nibus, a caminho de Los Angeles, penso

ainda nos microsc��pios, ponto de partida duma s��rie

de reflex��es melanc��licas.

O HER��I E O VIL��O

26 de janeiro. Almo��o com Lou Edelman no Sa-

l��o Verde do est��dio da Warner Bros., em Burbank.

Edelman �� o que se chama no jarg��o de Hollywood

um producer, isto ��, o homem respons��vel perante o

est��dio por um certo n��mero de filmes, dos quais ele

�� o coordenador: o que escolhe a hist��ria, o elenco,

o diretor, e o que sabe quanto deve gastar e como

distribuir as verbas.

Lou Edelman, que visitou o Rio recentemente,

gosta do Brasil e espera poder um dia produzir um

filme capaz de mostrar aos americanos a verdadeira

vida brasileira, sem exageros nem fantasias.

Conta-me que est�� terminando uma pel��cula ba-

seada no livro de Vicky Baum, "Hotel Berlim".

��� Golpe errado... ��� digo-lhe.

��� Por qu��?

��� Primeiro, porque a hist��ria �� falsa e med��ocre.

Segundo porque tudo indica que a Alemanha em bre-

ve se render��, e assim o filme perder�� a atualidade.

Edelman sacode a cabe��a.

��� Acho que voc�� est�� enganado. Vou lhe mos-

trar as altera����es que fizemos na hist��ria.

Leva-me depois do almo��o ao seu escrit��rio, faz-

me sentar numa poltrona, acomoda-se na sua cadeira,

A VOLTA DO GATO PRETO

357

atr��s da escrivaninha para cima da qual atira os p��s,

apanha o script de "Hotel Berlim" e diz:

��� Vou ler uma das cenas que acrescentamos ��

hist��ria. Preste bem aten����o neste di��logo. �� um

quarto de hotel, e um velho professor de universida-

de, que foi obrigado a colaborar com o nazismo, afo-

ga sua humilha����o na bebida. De repente entra na

sala um membro do underground que est�� refugiado

no hotel. Ora, acontece que esse jovem foi em tem-

pos passados um dos alunos prediletos do professor...

Durante uns dez minutos Lou Edelman fica a ler

o di��logo.

��� Ent��o? ��� pergunta, ao terminar.

��� Acho ainda que a hist��ria �� fraca e falsa. E

que vai ser mau neg��cio.

��� E eu s�� fa��o votos para que voc�� n��o tenha

raz��o... ��� E mudando de tom. ��� Vamos visitar al-

guns sound stages?

Entramos no set de "San Antonio", pel��cula em

tecnicolor, em que aparecem Errol Flynn e Alex Smith.

Os filmes coloridos s��o muito mais caros que os

em preto e branco, e todas as cores ��� a dos trajos

dos artistas e comparsas, a dos m��veis e tape��arias,

cortinas, objetos ��� s��o antes cuidadosamente estuda-

das e determinadas por t��cnico que por assim dizer

"desenha a produ����o". Filmes dessa natureza exi-

gem uma ilumina����o mais forte e um makc-up espe-

cial.

A cena que v��o filmar agora se passa em San An-

tonio, vilarejo de cow-boys, em fins do s��culo passa-

do. Vejo o interior duma estalagem de estilo mexica-

no com sua lareira r��stica, suas mesas e cadeiras de

pau tosco, e sua cer��mica ind��gena. �� frente dessa

estalagem h�� um trecho de rua, casas de t��bua com

alpendres, vendo-se no primeiro plano a fachada du-

ma taberna. Sento-me com Edelman a uma das me-

sas da estalagem e fico olhando... Por aqui andam

extras vestidos como p��ons e tropeiros mexicanos, com

358

OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO

seus chap��us de copa c��nica e largas abas, jalecos es-

curos, cal��as muito justas, pistolas na cintura, caras

tostadas e lustrosas, onde a barba azula. H�� tamb��m

mulheres morenas, com vestidos de cores vistosas,

len��os no pesco��o, e todas enfeitadas de braceletes,

colares e an��is. E cow-boys americanos, com duas

pistolas na cintura e as cartucheiras recheadas de ba-

las. No meio desse mundo de faz de conta, os em-

pregados do est��dio movimentam-se dum lado para

outro, a ajustar fios e refletores, a tomar medidas com

uma trena, a verificar com um fot��metro a intensi-

dade da luz, e a dar ordens aos gritos. Alta e esbel-

ta, chega Alex Smith ��� que est�� vestida �� moda da

��poca, com saia rodada, anquinha, cintura de vespa,

golilha, e um chapeuzinho de palha sobre o qual re-

pousa uma ave empalhada de plumagem azul. Tem

ela (a atriz e n��o a ave) um belo rosto no qual se no-

ta, entretanto, uma express��o n��o sei bem se de cruel-

dade ou se de frieza. Aqui est�� tamb��m o velho Sza-

kall, metido num fraque pardo. E uma pitoresca ve-

lhota gorda, com ar de cantora de caf��-concerto apo-

sentada, fumando com gosto um cigarro e soltando

grandes risadas ��s hist��rias que Monte Blue lhe con-

ta. Este ��ltimo acha-se vestido �� maneira deste ano

de 1945 e nada tem que ver com o filme. O antigo

gal�� do cinema mudo faz agora pontinhas em filmes

para a Warner e freq��entemente vem assistir ��s fil-

magens e conversar com os amigos. Mora no meu

bairro e eu o encontro freq��entemente no ��nibus.

Errol Flynn sai de seu camarim seguido do ho-

mem encarregado do make-up. Ao v��-lo t��o bem cui-

dado, t��o belo, vem-me uma compreens��o aguda do

que o cinema tem de falso. Como seria poss��vel exis-

tir no impetuoso Texas do s��culo passado ��� numa re-

gi��o de viol��ncia, aventuras e asperezas ��� um tipo

t��o bem cuidado? Ali est�� o her��i, o "mocinho", o

bravo cow-boy, de rosto barbeado e rosado, com re-

flexos de bronze nos cabelos ondulados. Para ele n��o

A VOLTA DO GATO PRETO

359

existe sol nem poeira. Sua barba nunca cresce, assim

como a carga de balas de suas pistolas nunca se es-

gota. Como ��nica concess��o ao realismo, Errol Flynn

deixou crescer um pouquinho as pontas do bigode ���

mas n��o tanto que isso lhe pudesse prejudicar a apa-

r��ncia mundana.

Agora a gorda senhora das risadas hom��ricas es-

t�� no nosso grupo. Algu��m lhe pergunta se ela seria

capaz de se apaixonar por Errol Flynn.

��� Qual! Aquilo ali? Esses meninos n��o me inte-

ressam . . .

E depois, baixando a voz, cicia:

��� Prefiro um tipo como Walter Pidgeon. .. ma-

dur��o. . . isso �� que �� homem!

E solta ao mesmo tempo uma baforada de fumo

e uma risada. Szakall est�� a dizer piadas para um

p��on mexicano, que ri t��o convulsivamente que sua

papada treme como gelatina, enquanto ele segura o

ventre que o riso tamb��m sacode.

O diretor acha-se sentado numa cadeira de lona,

em cujo respaldo est�� pintado seu nome. O assisten-

te do diretor ��� que �� em ��ltima an��lise uma esp��cie

de mo��o de recados, aquele que vai dizer aos extras

onde eles devem ficar e como devem portar-se, ��� an-

da agora dum lado para outro distribuindo as ��ltimas

instru����es. Um mexicano cochila na bol��ia duma di-

lig��ncia, cujos cavalos foram escolhidos de acordo com

as exig��ncias do tecnicolor. Outro p��on est�� senta-

do no alpendre da casa de jogo. Na frente dessa, pa-

rado no meio da rua, um cow-boy alto, de cara com-

prida e express��o antip��tica espera...

��� Quem �� aquele sujeito? ��� pergunto a Edel-

man.

��� �� o heavy da hist��ria.

Heavy traduzido ao p�� da letra �� pesado, mas no presente caso quer dizer vil��o.

360

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Soa uma campainha. O diretor pede sil��ncio, o

que n��o consegue imediatamente. A gorda matrona

ainda ri. Sil��ncio! ��� berra o assistente. Um oper��-

rio aparece diante da c��mara com um pequeno qua-

dro-negro, no qual est��o escritos a giz o nome do fil-

me, e o n��mero da cena. "A����o"! ��� grita o diretor.

Algu��m perto de mim d�� um tiro de rev��lver. Estre-

me��o. O homem no meio da rua tamb��m estremece.

(O estremecimento dele esta no script; o meu, n��o).

Errol Flynn avan��a e fica de costas para a c��mara,

empunhando duas pistolas. O vil��o n��o reage.

��� Que foi que aconteceu com tuas armas? ���

pergunta o her��i.

O outro faz meia-volta e se dirige, cambaleante,

para a casa de jogo, mas antes de chegar ao alpendre

tomba por terra, num baque surdo. Os cow-boys que

estavam no "saloon" precipitam-se para fora e esta-

cam junto do corpo.

Nesse ponto termina a cena.

��� Por que t��o pouca luz? ��� pergunto a Edel-

man, que me informa:

��� Porque a cena se passa �� noite.

Dentro de alguns minutos tudo fica pronto para

que a mesma cena seja de novo filmada. �� costume

tomar a mesma seq����ncia tr��s, quatro e n��o raro at��

cinco vezes, para que mais tarde os t��cnicos esco-

lham dentre todas a que ficou melhor.

O homem do make-up com a sua caixinha de cos-

m��ticos aproxima-se de Errol Flynn e esfrega-lhe no

rosto uma esponja com uma pintura cor-de-rosa. De-

pois, tomando dum pente, passa-o pelos cabelos do

valente cow-boy.

Como eu esteja olhando a cena com interesse, o

maquilador volta a cabe��a para meu lado, pisca o olho

e me diz, sorrindo:

��� Preciso conserv��-lo bem bonitinho...



A VOLTA DO GATO PRETO

361

CONFRONTOS

Fernanda: Esse admir��vel e paciente Tobias parece ter

tomado gosto pelas discuss��es, pois aqui est�� novamente a me

convidar para uma conversa em torno de confrontos entre norte

e sul-americanos. Sente-se, fique quieta e escute.

T. ��� Costuma-se dizer que os sul-americanos s��o mais

vivos que os norte-americanos. Por qu��?

E. ��� Talvez porque em geral falamos mais alto e gesti-

culamos mais; porque gostamos ou desgostamos das coisas e

pessoas com mais ardor; porque nos apaixonamos com maior

facilidade...

T. ��� O simples fato de predominar entre nossos homens

o tipo moreno, de cabelos e olhos escuros e barba cerrada, faz

que eles existam duma maneira mais contundente, e que sua

presen��a se fa��a sentir, digamos, com mais for��a.

E. ��� Se tomarmos um norte-americano de pele clara,

l��bios estreitos, cabelos louros e olhos azuis e o colocarmos ao

lado dum sul-americano moreno, de l��bios grossos e vermelhos

e cujos olhos s��o como dois carv��es vivos ��� teremos a impress��o

de que o primeiro �� um desenho apenas delineado, e o segundo

um retrato completo em que o desenhista carregou nas tintas,

principalmente no preto. O mesmo se passa tamb��m com rela-

����o aos sentimentos.

T. ��� Parece tamb��m certo que somos mais epid��rmicos e

saltamos do ��dio para o amor com muita rapidez.

E. ��� E a atitude do sul-americano na sociedade �� de des-

confian��a e cr��tica, com uma leve tintura de ironia e n��o raro

de sarcasmo. �� a posi����o do homem que espera ser sempre

enganado pelo competidor (isto ��, pelo pr��ximo) e que por-

tanto tem de estar sempre "com um p�� atr��s"... O nosso

homem tem um olho agudo para descobrir o rid��culo, e teme ao

mesmo tempo ser posto em rid��culo pelos outros; mas �� com

um prazer enorme que ele ridiculariza os que o cercam...

T. ��� Tomemos um exemplo do dia a dia. Numa festa de

americanos do norte quase todos os convivas acabam cantando

alegre e naturalmente. Numa festa de sul-americanos em geral

s�� canta aquele ou aquela que tem boa voz e que pode, por-

tanto, fazer bonita figura. E se por acaso o cantor ou cantora

desafina, come��am os risinhos, e os coment��rios �� socapa. Tudo

�� motivo para s��tira, para o exerc��cio de nossa mal��cia.

E. ��� O que n��o deixa de ter a sua gra��a...

T. ��� Os norte-americanos cantam pelo puro e simples

362

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

prazer de cantar, pouco lhes importando que os cantores sejam

ou n��o espl��ndidos. Eles sabem que os cantores realmente

bons podem tornar-se profissionais e ganhar bons sal��rios no

teatro, no r��dio ou no cinema. O que eles querem �� ter good time, divertir-se. Tudo �� pretexto para isso. Um anivers��rio,

um cocktail party, uma reuni��o improvisada...

E. ��� E n��s esperamos pelos tr��s dias de carnaval para dar

vas��o ao nosso desejo ��� recalcado durante todo o ano ��� de

pular, gritar, brincar, cantar e vestir fantasias.

T. ��� Olhando a sociedade norte-americana os latinos sor-

riem com adulta condescend��ncia e exclamam: "Que crian��as

grandes! S��o uns palha��os..."

E. ��� Ao passo que os americanos do norte acham que n��s

somos excessivamente apaixonados emotional, e demasiadamente

preocupados com o sexo, al��m de muito selfconscious, isto ��,

muito preocupados conosco mesmo, com nossas roupas, gestos,

palavras, e com a impress��o que os outros possam estar tendo

de n��s.

T. ��� Voc�� tem exaltado as facilidades da vida dos Esta-

dos Unidos. Pode dizer-me qual ��, na sua opini��o, a raz��o

principal por que tudo aqui parece rodar r��pida e macia-

mente sobre os trilhos da normalidade e da efici��ncia?

E. ��� �� o fator confian��a rec��proca. Todas as criaturas

aqui s��o consideradas honestas at�� o momento em que algu��m

prove o contr��rio. Ora, nos nossos pa��ses temos de andar cons-

tantemente provando, com documentos selados, que somos

honestos e n��o estamos tentando enganar ningu��m. A con-

fian��a aqui facilita tudo. O servi��o postal, o comercial e ban-

c��rio, as rela����es sociais...

T. ��� Ainda ontem comprei num "stand" cinco revistas,

que eu mesmo tirei das prateleiras, pondo-as debaixo do bra��o.

Quando fui pag��-las a mo��a da caixa perguntou: "Qual �� o

total?" Respondi: "Um d��lar e cinq��enta." Ela registrou a

venda, apanhou o dinheiro e me sorriu, sem tentar sequer veri-

ficar se eu tinha feito a minha soma direito.

E. ��� H�� nesse pa��s um ditado popular segundo o qual "a

honestidade �� a melhor pol��tica." O norte-americano, criatura

de fundo religioso, porta-se de acordo com os dez mandamen-

tos. N��s em geral gostamos de fazer pra��a de nossa honesti-

dade. Em certos casos, temos o que se poderia chamar "a

vol��pia da honra". (Uso desta express��o tirando o chap��u para

Luigi Pirandello). Os americanos do norte, entretanto, encaram

o problema da honestidade duma maneira mais fria e mais pr��-

tica. N��o pedem pr��mio nem louvores por serem honestos.

Porque sabem que fazer jogo limpo nas transa����es comerciais

A VOLTA DO GATO PRETO

363

e sociais facilita a vida. Chegaram tamb��m �� conclus��o de que

um dos truques mais eficientes �� o de falar a verdade.

T. ��� Isso me faz lembrar a facilidade, a naturalidade com

que os norte-americanos dizem e recebem um n��o.

E. ��� Coisa important��ssima! Nossa gente brasileira, por

exemplo, n��o est�� preparada para aceitar respostas negativas.

Somos criaturas am��veis e gostamos de parecer aos outros sim-

p��ticos, e isso nos impede de dizer n��o aos convites e pedidos

que nos fazem.

T. ��� Porque quem diz n��o �� nosso inimigo ��� refletem os

sul-americanos. Assim, fazemos as voltas mais incr��veis para

n��o usar a nega����o. Ficamos no "talvez", no "apare��a depois",

no "vou estudar o caso", no "volte na segunda-feira"...

E. ��� E n��o raro usamos o eufemismo dos eufemismos,

dizendo sim quando na realidade queremos dizer n��o.

T. ��� No desejo de ser agrad��vel ou de resolver depressa

uma situa����o embara��osa fazemos promessas que sabemos n��o

vamos cumprir. Tudo isso dificulta formidavelmente a vida.

E. ��� Mas tem l�� a sua gra��a, meu caro Tobias. Pode n��o

ser uma coisa pr��tica, l��gica ou direita, mas �� divertido. Afinal

de contas, se as pessoas chegassem �� perfei����o, que seria dos

romancistas? Onde iriam eles encontrar condimento para as

suas hist��rias?

T. ��� Outro tra��o que admiro no norte-americano �� a cora-

gem de dizer "N��o sei" quando na verdade n��o sabe.

E. ��� N��s brasileiros dificilmente usamos essa express��o.

Temos o horror de parecer incultos.

T. ��� Preferimos "tapear". Gra��as a nossos dons de im-

provisa����o e a nossa capacidade de versar com certo brilho

sobre assuntos que na realidade n��o conhecemos, conseguimos

quase sempre dar a impress��o de que sabemos...

E. ��� N��o �� de admirar que Pedro Malazarte, o grande

empulhador, seja um s��mbolo ib��rico. Mas convenhamos que

esse esp��rito nos torna mais pitorescos e interessantes que os

norte-americanos. Apesar de toda a minha admira����o e sim-

patia por esta gente continuo a achar que um c��rculo de conver-

sa����o em que haja latinos ��� em que se fala mal da vida alheia,

em que se discute religi��o, espiritismo, futebol, cinema, livros,

mulheres, m��sica e pintura ��� �� mais vivo, mais teatral, mais

animado e pitoresco que os c��rculos americanos em que gente

controlada (a que o u��sque pode eventualmente dar um certo

brilho e gra��a) fala de cachorros, cavalos, autom��veis e hot��is.

E aqui, meu caro Tobias, quero outra vez fazer uma ressalva.

Todas essas afirma����es que tenho feito a voc�� v��o temperadas

com um gr��o de sal. �� danadamente perigoso generalizar.

364

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� E saltando dum assunto para outro, j�� observou voc��

a import��ncia do judeu na vida americana?

E. ��� Existem duas minorias raciais important��ssimas nos

Estados Unidos. Os judeus e os negros. Este pa��s muito deve

ao judeu e ao negro no que diz respeito �� m��sica e aos shows

dum modo geral. Digo-lhe mais. O famoso "sense of humour"

americano n��o ser�� mais anglo-sax��nico que judaico.

T. - Como?

E. ��� Veja bem. Quais s��o as fontes de humorismo aqui?

As charges dos magazines e jornais, os filmes, o teatro de

"vaudeville", e o r��dio. Os gag writers, os escritores que inven-

tam essas piadas, cenas c��micas e anedotas para o cinema, o

r��dio e o teatro s��o em sua maioria judeus. Muitos dos mais

famosos caricaturistas deste pa��s s��o de origem sem��tica. A

esp��cie de humorismo criada pelos irm��os Marx n��o s�� encon-

trou aqui um p��blico entusiasta como tamb��m fez escola. O

povo absorve esse esp��rito e depois, saturado dele, passa a adot��-

lo como seu e da�� por diante as anedotas que inventa, as panto-

mimas em que toma parte s��o influenciadas por esse tipo de

humor.

T. ��� N��o acredito que voc�� encontre muitas pessoas que

concordem com esse seu ponto de vista.

E. ��� Tanto melhor para o ponto de vista e para mim.

Outra coisa: Voc�� deve ter observado que as can����es que este povo

mais canta e ama foram compostas por judeus como Irving

Berlin, George Gershwin, Dave Rose e tantos outros. Judeu

�� Oscar Lewant, pianista e humorista. Judeus s��o Charlie Cha-

pim e Walt Disney. Por outro lado...

T. ��� H�� grandes pianistas e violinistas judeus.

E. ��� Sim, Horowitz, Jascha Heiftz, Yehudi Menuhin. E

volte os olhos para o teatro. Uma enorme percentagem de

atores judeus voc�� encontrar�� na Broadway. Em Hollywood

se passa o mesmo. E voltando �� m��sica, veja esta coisa interes-

sante: Duas ra��as sofredoras e perseguidas encontraram-se neste

novo mundo americano e aqui criaram uma m��sica que n��o

ser�� sublime, mas que �� muit��ssimo interessante.

T. ��� E que talvez um dia se torne importante.

E. ��� E quando judeus e negros se juntam, o resultado c ��s

vezes um maravilhoso espet��culo como "Carmen Jones" vers��o

negra da ��pera Carmen. Oscar Hammerstein II (judeu) escre-

veu um libreto especial para essa pe��a, aproveitando com leves

modifica����es a partitura de Bizet. A mulata Carmen Jones

trabalha numa f��brica de p��ra-quedas. Don Jos�� ��� que no caso

�� apenas Joe ��� �� um sargento do ex��rcito e Escamillo, um cam-

pe��o de box. A pe��a tem um sabor negro. Negros s��o os



A VOLTA DO GATO PRETO

365

artistas, negras as dan��as e as vozes. A montagem de Carmen

Jones, (feita tamb��m por judeus) �� um primor de colorido e

gra��a.

T. ��� Para terminar esta conversa, eu lhe perguntarei qual

foi na sua opini��o o trecho da B��blia que consciente ou incons-

cientemente mais influ��ncia tem exercido sobre o esp��rito dos

norte-americanos?

E. ��� A par��bola do bom samaritano. O americano �� o

homem preocupado com a caridade, com as boas obras. Est��

sempre disposto a ajudar o vizinho. Sociedades de assist��ncia

social existem aos milhares neste pa��s. Seu raio de a����o passa

��s vezes as fronteiras e atinge as mais remotas regi��es do globo.

O Rotary n��o deixa de ser uma express��o de bom samaritanismo.

As Associa����es Crist��s de Mo��os e o Exercito de Salva����o, em-

bora n��o sejam institui����es de origem norte-americana, s��o

muito populares aqui e elas tamb��m s��o animadas pelo esp��rito

do bom samaritano.

T. ��� E que me diz do escoteiro?

E. ��� No boy scout combinam-se o bom samaritano, Robin-

son Crusoe e o pioneiro.

T. ��� O escoteiro �� enfim, o audaz menino que sabe ori-

entar-se no meio da floresta, fazer fogo esfregando pauzinhos

cil��ndricos uns nos outros, finalmente, �� o boy de bom car��ter

que gosta de ajudar os outros e que anda pelo mundo a semeai

boas a����es.

E. ��� O pr��prio Babbit ��� o her��i de Sinclair Lewis ��� tem

tinturas de bom samaritanismo. Bons samaritanos foram Wash-

ington e Lincoln. At�� o pr��prio Buffallo Bill foi um bom

samaritano truculento que n��o se limitava a deitar vinho e

azeite nas feridas do homem que ia para Jeric��, e a lev��-lo na

sua cavalgadura para uma estalagem; ele sa��a em persegui����o

dos malfeitores e liquidava-os a bala, um a um... E pra fina-

lizar, veja que espl��ndido samaritano �� esse Franklin Delano

Roosevelt.

T. ��� Um samaritano que vive ��s turras com os vendilh��es

do templo.

E. ��� Sil��ncio, Tobias!

ENTRE ROMA E HOLLYWOOD

28 de janeiro. Mora na minha rua e chama-se

Ros��rio Guadalupe Cabeza de Vaca Morales. Nasceu

no M��xico, viajou por todo o mundo em companhia

366

OBRAS D E E R I C O VER��SSIMO

do marido, um diplomata de carreira, e agora ��� vi��-

va e j�� avan��ada na casa dos cinq��enta ��� vive nos

arredores de Hollywood e ganha a vida nos est��dios

fazendo pontas em filmes. �� uma criatura ador��vel.

Muito gorda e morena, de fartos seios contra os quais

ela bate ritmadamente o leque nos dias quentes, du-

plo queixo, bu��o cerrado a coroar uma boca carnuda

de querubim, olhos negros e gra��dos, cabelos leve-

mente estriados de prata, dona Ros��rio nos lembra

esses retratos de grandes damas de linhagem espanho-

la, que se erguem nos vest��bulos das casas senhoriais

do M��xico, por cima de velhas arcas de ferro batido.

Tem um temperamento apaixonado, uma voz levemen-

te rouca, e seus bra��os gorduchos e inquietos pare-

cem sempre querer estreitar o mundo em amoroso

abra��o.

Na Warner Brothers precisam duma senhora me-

xicana para fazer papel de m��e da mocinha, num filme

de "Far-West"? O est��dio telefona para o Central

Casting Office, faz a encomenda e o funcion��rio dessa

reparti����o aperta em v��rios bot��es correspondentes

aos caracter��sticos ��� mexicana, gorda, meia-idade, ���

e como resultado de tudo isso, do maravilhoso arqui-

vo autom��tico salta uma ficha com o nome de Mrs.

Ros��rio Guadalupe Cabeza de Vaca Morales, seguido

de seu endere��o e do n��mero de seu telefone. O fun-

cion��rio disca esse n��mero, e numa casinha branca

de estilo californiano, a dez quil��metros do Casting

Office, uma m��o gorda e pequena, onde cintila um

brilhante, toma o receptor:

��� Al��!

��� Dona Ros��rio?

��� Yes.

��� Aqui �� o Joe.

��� Que Joe ?

��� Do Casting Office.

A VOLTA DO GATO PRETO

367

��� Oh! Como vais, Joe? Como v��o os meninos?

Ent��o, comprou sempre aquele carro? E a Sally j��

sarou da coqueluche? Splendid!

��� Dona Ros��rio, a Warner precisa duma m��e me-

xicana.

��� Que tipo de fita ?

��� "Far-West".

��� Parte grande?

��� Pequena.

��� Okay, Joe.

��� Apresente-se amanh�� ��s nove no est��dio, ves-

tida de camponesa. Essa m��e mexicana �� cozinheira

num hotelzinho em Tia Juana.

A m��o gorda agora segura um l��pis e toma notas.

��� Est�� bem, Joe.

��� Good-bye, meu bem.

Em Hollywood a linguagem �� doce e carinhosa.

Minha querida, meu bem, meu amor, querid��ssimo ���

s��o express��es t��o correntes como as moedinhas de

cinco centavos.

E assim l�� vai dona Ros��rio no seu carro, j�� com

a cara preparada, isto ��, coberta por uma camada de

pintura cor de tijolo. E se acontece haver no caminho

qualquer interrup����o no tr��fego, dona Ros��rio desce

do carro, fantasiada de m��e mexicana, e come��a a

gesticular e dar ordens aos condutores de autom��veis

at�� descongestionar a rua.

Nossas rela����es s��o as melhores poss��veis e um

destes dias estava eu a uma esquina esperando o ��ni-

bus que me levaria ao centro de Los Angeles quando

dona Ros��rio passou no seu carro, parou e me ofere-

ceu uma "carona". Aceitei e come��amos logo a con-

versar sobre a inf��ncia do cinema sonoro, e minha

amiga lamentou que houvesse passado o bom tempo

das operetas. "O senhor se lembra daquelas lindas

valsas?" Come��ou a cantarolar, enquanto o carro des-

368

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

lizava com um chiado agrad��vel sobre o cimento da

rua, e dum lado e de outro passavam casas, terrenos

baldios, arranha-c��us, jardins e cartazes. A alegria de

dona Ros��rio era t��o contagiosa que acabei aderindo

��s valsas, e foi cantando em dueto "Noites Vien��nses"

que entramos na Broadway.

Uma destas noites estava eu com minha fam��lia

no cinema do bairro quando, de repente, numa cena

que representava uma fiesta mexicana, ouvimos, vin-

da do fundo, uma voz familiar. Por fim a dona dessa

voz avan��ou correndo para o primeiro plano. Dona

Ros��rio! ��� exclamamos todos n��s ao mesmo tempo.

Sim, l�� estava na tela a imagem de nossa amiga ��� ro-

li��a, "rebosante" de alegria, gesticulando, gritando no

meio da algazarra geral. Viva M��xico!

Mas h�� ainda uma outra face muito interessante

do car��ter de dona Ros��rio. Apesar de todo o seu

exterior expansivo e ruidoso, da sua condi����o de ex-

tra de Hollywood, sua conduta moral �� irrepreens��-

vel. Dona Ros��rio �� uma dama respeit��vel e piedosa.

Cat��lica, confessa-se e toma a comunh��o regularmen-

te e vai todos os domingos �� missa. Em sua casa, on-

de vive com uma sobrinha, tem sempre as portas

abertas para os amigos. Sua mesa �� farta e dona Ro-

s��rio sempre tem comensais.

Contou-me ela que est�� agora com um papel mui-

to bom num filme da Metro-Goldwyn-Mayer. Vejo-a

hoje passar no seu Cadillac preto, rumo dos est��dios,

em Culver City; quando seu carro defronta nossa ca-

sa, ela acena para n��s e atira-nos beijos.

E assim se passam os dias de dona Ros��rio Gua-

dalupe Cabeza de Vaca Morales, nessas andan��as en-

tre a igreja e o est��dio, acendendo com igual devo����o

uma vela a Roma e outra a Hollywood.



A VOLTA DO GATO PRETO

369

A VIAGEM

7 de fevereiro. Claremont, que fica a uns cin-

q��enta quil��metros de Los Angeles, vive apenas em

fun����o de seus dois famosos col��gios, o Scripps e o

Pomona. O primeiro, s�� para mo��as, �� um estabele-

cimento de ensino caro, para gente rica; o segundo,

que �� misto, est�� mais ao alcance dos estudantes que

v��m de fam��lias da classe m��dia baixa. Ambos esses

col��gios t��m uma administra����o comum, e dessa ad-

ministra����o recebi um convite para passar tr��s dias

no campus do Pomona e do Scripps como "professor

visitante".

Assim, hoje ��s sete da manh�� fa��o a combina����o

do ��nibus azul com o bonde amarelo e finalmente com

um ��nibus vermelho e, ao cabo de duas horas e meia

de viagem por entre laranjais, e sempre a avistar gran-

des montanhas de pico nevado, passando por uma su-

cess��o de belos vilarejos, granjas e cidadezinhas, che-

go �� esta����o de Claremont, onde um homem me es-

pera.

Imaginem um sujeito j�� entrado na casa dos cin-

q��enta, alto, de pernas finas mas de tronco avanta-

jado, cabe��a grande, rosto redondo, nariz largo, l��-

bios delgados e uma express��o um pouco sard��nica

no rosto de tez muito clara... Ponham-lhe uns ��culos

de lentes redondas, finquem-lhe na boca um cachim-

bo de sabugo de milho, vistam-lhe uma roupa meio

amarfanhada, enterrem-lhe na cabe��a um chap��u mar-

rom que de t��o amassado j�� perdeu a forma... Fa-

��am tudo isso e ter��o uma id��ia da pessoa que me

espera, e que se chama Hubert Herring, jornalista,

escritor, e professor do Pomona College. Especializa-

do em hist��ria latino-americana, visitou ele v��rias ve-

370

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

zes a Am��rica do Sul e a respeito do Brasil, da Argen-

tina e do Chile escreveu um livro intitulado Good

Neghbors. �� um realista e um humorista �� maneira

��cida de Swift. Mas �� principalmente um homem sin-

cero. Odeia o escapismo, a hipocrisia e essa falsa boa

vizinhan��a baseada em mentiras, ilus��es douradas e

contemporiza����es. Acha que nossos problemas t��m de

ser estudados com olho realista e atacados de frente.

��� Boa viagem? ��� pergunta, ao me apertar a m��o.

��� ��tima.

E a caminho do dormit��rio do Pomona, onde me

vou hospedar, ele me d�� conta do programa. Querem

que eu fale sobre Hist��ria do Brasil, sobre as dife-

ren��as de costumes e psicologia entre os brasileiros

e os norte-americanos, e sobre literatura brasileira.

Al��m disso serei levado a v��rias classes, em ambos

os col��gios, e convidado a dirigir a palavra aos estu-

dantes.

��� E se depois de tudo isso voc�� estiver ainda vi-

vo ��� conclui Herring ��� . . . pode voltar para casa.

��� Perfeitamente.

Falo para as alunas do Scripps, num pequeno

mas confort��vel auditorium. Para ilustrar a palestra

rabisco caricaturas a giz num quadro-negro. Ao meio

dia almo��o com professoras e alunas. O menu �� du-

ma sobriedade impressionante s�� explic��vel pelo fato

de estarmos num col��gio de mo��as preocupadas com

fazer dieta. Servem-nos uma modesta por����o de sa-

lada de alface e feij��o branco... Durante as refei����es

as meninas cantam. .. Um sol alegre entra pelas vi-

dra��as, respingando de ouro estas cabe��as jovens. A

meu lado est�� uma francesinha de cabelos ruivos e

rosto sardento, olhos castanhos e express��o meiga.

Conta-me que com a invas��o de sua p��tria teve de

fugir com a fam��lia para os Estados Unidos.

A VOLTA DO GATO PRETO

371

��� As meninas fazem tro��a de meu sotaque... ���

queixa-se ela, sorrindo, meio vexada, e olhando para

as companheiras.

��� N��o perca nunca esse sotaque ��� pe��o-lhe. ���

�� uma marca de personalidade. Lembre-se de que

Thomas Mann ainda n��o perdeu o seu.

��� Nem Charles Boyer... ��� acrescenta a ameri-

canazinha loura que nos escuta.

Quando servem a sobremesa ��� sorvete de bau-

nilha ��� a De�� do col��gio me pede que fale ��s suas

alunas sobre as mo��as brasileiras. E c�� estou eu mais

uma vez a pairar, a pairar, massacrando impunemente

a l��ngua de Mark Twain, enquanto a francesinha me

sorri como uma aliada, pois verifica que, como ela, te-

nho um sotaque t��o espesso que ��s vezes chego a dar

peso de chumbo a palavras leves como p��ssaros de

papel...

o o o

Quatro da tarde, na "Casa Espanhola" do Pomo-

na College. �� aqui que o professor Herring vem dis-

cutir com seus alunos problemas interamericanos. O

tema de hoje �� o caso da Argentina. Os alunos v��o

comentar e criticar a pol��tica do Departamento de

Estado com rela����o ��quele pa��s.

�� uma sala mobiliada bem como uma resid��ncia

particular: sof��, poltronas, tapetes, cortinas, l��mpadas

veladas, quadros nas paredes. Os alunos, em sua maio-

ria mo��as, sentam-se �� vontade, como numa visita sem-

cerim��nia. Umas fazem tric��. Outras apenas descan-

sam sobre o colo as m��os entrela��adas, e escutam. H��

em tudo um ar de intimidade, de natural camarada-

gem que predisp��e a gente a ficar neste ambiente aco-

lhedor, conversando, perguntando, ouvindo, respon-

dendo . . .



372

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Sou mais uma vez sabatinado sobre assuntos sul-

americanos. Que penso dos argentinos? E de Mr.

Hull? E da atitude dos Estados Unidos com rela����o

aos seus vizinhos do sul? O interrogat��rio dura uma

hora maci��a.

* * *

Saio a caminhar �� noite por Claremont. Fico lon-

go tempo parado a uma esquina, contemplando as

montanhas cujos picos nevados o luar clareia. N��o se

v�� viva alma nestas ruazinhas. Nos bangal��s dos pro-

fessores as janelas est��o iluminadas. De repente um

trem apita. Outros trens apitam em minha mem��ria.

Onde est��o os trens de antanho? ��� indaga o poeta. Ha-

via um que apitava sempre ��s dez da noite, quando

eu j�� estava na cama e o sono me atirava areia nos

olhos. Vinha-me ent��o uma vontade dorminhoca de

viajar. E agora este apito de trem na Calif��rnia des-

perta outra vez em mim o apetite de horizontes no-

vos. Viajar. .. Mas que tolice! Pois n��o estou agora

viajando? N������o! ��� responde tremulamente o apito.

�� extraordin��rio ��� reflito. A verdadeira Viagem nun-

ca est�� no tempo presente, mas sim no passado, no

futuro ou ent��o naquele quarto e misterioso tempo

que n��o sei se chamo de desejo, sonho ou imagina����o.

O melhor mesmo �� voltar para o quarto e ir para

a cama. Adeus, lua, ��rvores, casas, montanhas! Adeus,

que eu vou viajar. Porque o sono, amigos, �� uma via-

gem atrav��s dos quatro tempos.

UM CACHIMBO E VARIOS PROBLEMAS

Oito da manh��. Um sol de ��mbar tinge a neve

dos cimos. Piso geada na estradinha que leva do hall

onde estou hospedado ao edif��cio onde fica o refeit��rio.

A VOLTA DO GATO PRETO

373

Tomo o meu breakfast num vasto sal��o abobadado, que

lembra o interior duma catedral. Vejo l�� na parede do

fundo um quadro mural pintado por Clemente Orozco:

enorme Prometeu a erguer os bra��os para o c��u. Seu

corpo d�� a impress��o de estar todo esfolado, e suas

carnes, dum vermelho arroxeado, parecem j�� em pro-

cesso de decomposi����o. �� um painel admir��vel, mas

sua figura principal tem uma qualidade t��o cadav��rica,

que me parece a coisa menos apropriada que se possa

imaginar para um refeit��rio.

��s nove estou numa aula riscando na pedra a ca-

ricatura de Dom Pedro I, pois tenho de comprimir nos

cinq��enta minutos que se seguem a hist��ria pol��tica e

social do Brasil, desde Os dias do amante de dona Do-

mit��lia at�� a era getuliana. Os estudantes querem saber

se no Brasil todos os professores costumam transformar

as li����es em hist��rias ilustradas.

Quando termino a aula, Hubert Herring vem me

apertar a m��o e dizer-me ao ouvido:

��� Irm��o, voc�� ainda n��o percebeu que ensinar ��

a sua verdadeira voca����o?

Retruco:

��� Quer saber duma coisa? O que sou mesmo ��

um viajante nato. Levei quase quarenta anos para

descobrir isso...

�� tarde estou diante de uns seiscentos rapazes e

raparigas, professoras e professores, com a dif��cil in-

cumb��ncia de falar-lhes nas diferen��as de temperamen-

to, inclina����es e gostos entre brasileiros e norte-ame-

ricanos.

��� Para principiar ��� digo ��� suponhamos que eu

tenha aqui �� minha direita um brasileiro, e �� esquerda

um americano. Digo-lhes: Se a vida �� uma pe��a de

teatro... que esp��cie de pe��a ser��? O americano dir��

logo: "�� uma com��dia musicada". ��� Mas o brasileiro

sacudir�� a cabe��a, murmurando: "N��o. A vida �� um

drama".

374

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Passo a falar na maneira como encaramos a vida,

a morte e o amor. Menciono nossos tabus sociais, re-

ligiosos, econ��micos e hist��ricos. E nessa conversa

levo mais de uma hora.

�� noite janto com Hubert e sua esposa, uma se-

nhora franzina, de cabelos e olhos claros, que esta tarde

vi pelas ruas de Claremont pedalando bravamente a sua

bicicleta e comprando a galinha, as cenouras e os to-

mates que agora aqui temos sobre a mesa, deliciosa-

mente preparados.

Vamos tomar caf�� no living-room, sentados perto

da lareira acesa.

��� Visitei o Brasil h�� uns quatro anos... ��� diz o

dono da casa.

Faz uma pausa para meter fumo no cachimbo.

Espero em sil��ncio.

��� Os brasileiros ��� diz ele com sua voz musical ���

benza-os Deus!... s��o o povo mais exuberante, mais

am��vel e menos pr��tico de todos os filhos da Ib��ria.

��� Filhos de quem?

��� Da Ib��ria...

��� A h . . .

Herring risca um f��sforo, aproxima a chama do

bofo do cachimbo e fica a dar-lhe fortes chup��es, en-

quanto bebo o caf�� que sua missus acaba de trazer.

��� Quem visita Copacabana e v�� arranha-c��us,

cassinos cheios de gente bem vestida, bem manicurada,

perfumada de ess��ncias caras fabricadas em Paris

quem vai num domingo ao Jockey Club e olha aquelas

mulheres bonitas que exibem vestidos e chap��us ele-

gant��ssimos, tem a impress��o de que o Brasil �� um pa��s

rico e feliz...

Atira o f��sforo, na lareira, onde a lenha crepita.

��� Mas, meu irm��o, que mis��ria naqueles morros

que ficam a dois passos do Jockey Club e dos cabar��s

de Copacabana! Visitei essas favelas com um amigo

norte-americano, um belo dia de sol e de mar verde.

A VOLTA DO GATO PRETO

375

Jesus Cristo! Aquelas casinholas feitas de peda��os de

madeira e de lata velha, de ch��o de terra batida...

aquelas crian��as com farrapos imundos a cobrir-lhes os

ventres inchados. . . Tudo isso �� de causar arrepios

no homem mais insens��vel. Meu amigo inocentemente

apanhou alguns instant��neos. . . -Um policial muito

delicado nos convidou a ir �� delegacia, onde outro

funcion��rio da pol��cia, com a mesma delicadeza, nos

tirou o rolo de filme... ��� Mudando de tom ele per-

gunta: ��� Que �� que voc�� acha?

��� �� uma velha atitude reacion��ria, muito comum

no Brasil. O que eles fizeram com seu amigo t��m

feito tamb��m com livros e artigos que fotografam ou

comentam a situa����o de mis��ria em que vive a maior

parte da nossa popula����o. Censurando os artigos e

os livros eles pensam criar a impress��o de que os pro-

blemas est��o resolvidos. Odeiam os escritores obje-

tivos e sinceros porque estes revelam aos leitores as-

pectos desagrad��veis de nossa vida, que aos "pais da

p��tria" conv��m sejam escondidos e ignorados. Tratam

por isso de desviar o assunto para o lado da moral.

Acusando os autores de indecentes, erguem-se como

her��is duma cruzada em prol da moralidade e dos

bons costumes. E enquanto isso os ��nicos problemas

realmente s��rios que h�� no Brasil, isto ��, o da mis��ria,

do analfabetismo e o da falta de sa��de das massas,

continuam sem solu����o...

��� O trabalhador brasileiro, segundo pude ob-

servar, mora em casas miser��veis, sem ��gua corrente,

sem nenhum conforto, e muitas vezes fam��lias enormes

se aglomeram em duas pe��as estreitas. Comem pouco

e mal e n��o t��m assist��ncia m��dica...

��� A mortalidade infantil �� pavorosa... ��� acres-

cento.

��� Quem �� o culpado disso? Os trabalhadores?

Claro que n��o. Os patr��es? O governo? Talvez. Mas

n��o creio que a resposta seja t��o simples assim.

376 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Ent��o..

��� Essa pobreza tem origem em defeitos vindos

dos tempos coloniais. Portugal e Espanha sofreram do

mesmo mal que o Brasil.

Observo:

��� Com rela����o ��s suas col��nias em certos res-

peitos Portugal foi mais indulgente que a Espanha.

��� E menos eficiente... ��� retruca Herring. ��� Exi-

gia impostos exagerados, impunha-lhes restri����es tre-

mendas . . . Portugal conservava o monop��lio do sal,

do pau-brasil e da pesca da baleia. Nunca encorajou

os brasileiros no uso pleno da terra e muito menos na

expans��o da ind��stria.

Herring levanta-se e, tomando dum ati��ador de

ferro, acocora-se junto da lareira e come��a a mexer

nos toros ardentes.

��� Outra das causas dessa mis��ria ��� prossegue

ele ��� foram os tr��s s��culos de escravatura negra. Os

brancos eram os donos da terra e os pretos trabalha-

vam nela.

��� Esses senhores de planta����es nos transmitiram

o horror ou melhor, o desprezo ao trabalho manual.

At�� hoje quando nos referimos a algum servi��o que

tem de ser feito com as m��os, dizemos "isso �� coisa

pra negro".

Herring ergue-se e volta para a sua poltrona.

��� Falei no Brasil com v��rios empregadores que

me contaram de sua absoluta impossibilidade de levar

para o campo esses mo��os que se formam em agrono-

mia e veterin��ria. Parece que eles acham desmora-

lizantes as ocupa����es rurais.

��� At�� hoje muitas fam��lias pensam que seus filhos

s�� podem ser pol��ticos, m��dicos, advogados, sacer-

dotes . . .

��� E literatos... ��� acrescenta Herring.

��� Nossa l��ngua �� um convite �� aventura liter��-

ria ��� digo. ��� Literatura no Brasil �� uma coisa bonita,

A VOLTA DO GATO PRETO

377

mas nunca ��til. O t��tulo de literato �� uma esp��cie de

flor no peito, e por isso nossa literatura por tantos

s��culos nada teve a ver com a nossa vida, nosso povo,

nossos problemas. Ainda a heran��a dos tempos coloniais!

A Sra. Herring entra e vem com o seu tric�� aco-

modar-se silenciosamente num canto do sof��.

��� Outra das causas da pobreza do Brasil ��� pros-

segue Herring ��� �� a sua exagerada depend��ncia de

um ��nico produto. O caf�� recebeu todos estes anos

um cuidado tal, que as outras fontes de riqueza eco-

n��mica do pa��s foram negligenciadas.

��� Essa hist��ria pode ser contada paralelamente

com a hist��ria do a����car, do ouro, do cacau, do algo-

d��o, da borracha e do caf��.

��� Voc��s perderam o mercado do a����car no s��-

culo XVIII para as ��ndias Ocidentais.

��� O do ouro n��o durou mais de dois s��culos...

��� Perderam o da borracha para o arquip��lago

Malaio. E s�� depois de 1930 �� que se convenceram de

que o caf�� se tornava um produto cada vez menos se-

guro e por isso se voltaram para o algod��o.

H�� um breve sil��ncio, em que penso na popula����o

das favelas e dos mocambos; no vaqueiro e no pe��o

de est��ncia; nos retirantes da seca e nos habitantes

dos corti��os. Vem-me �� mente a imagem duma gra-

ciosa brasileira que encontrei em San Francisco e que

pulou da sua cadeira, indignada, quando lhe falei no

pauperismo brasileiro. "N��o senhor! No Brasil n��o

h�� mis��ria. O senhor est�� esquecido..." Esquecido...

E preciso fazer um tremendo esfor��o para que o sol da

Calif��rnia, as ameixeiras floridas do vale de San Bernar-

dino e os jardins de Beverly Hills n��o me fa��am es-

quecer que h�� mis��ria no Brasil... Por alguns instantes

meu esp��rito foge pela janela da casa do professor

Herring e se vai por cima das montanhas na dire����o

do sul... E quando minha aten����o volta a esta quieta

e morna sala, o dono da casa est�� falando outra vez.



378

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��� . . . vossa distribui����o de terras defeituosa, uma

sociedade ainda semifeudal, uma demasiada depen-

d��ncia de venda de mat��rias-primas baratas...

���.. . as tremendas diferen��as de c��mbio ��� digo

��� e mais o pre��o alt��ssimo de vossos autom��veis, re-

frigeradores, r��dios e outros artigos...

Herring aponta para mim com a haste do ca-

chimbo, acusadoramente:

��� . . . e a gan��ncia de vossos comerciantes... n��o

se esque��a disso.

Falo-lhe da industrializa����o do Brasil que tudo

indica parece estar em boa marcha.

Herring faz uma careta de d��vida.

��� At�� onde a industrializa����o poder�� melhorar a

vida de vossos trabalhadores? Acha que o homem

comum brasileiro viver�� melhor na f��brica que na la-

voura, na granja, no campo? Acha que um crescente

consumo de artigos manufaturados vai aumentar o con-

forto e a seguran��a da vida de seu povo?

��� Mas n��o foi isso que aconteceu neste pa��s? ���

pergunto.

��� O que temo �� que essa industrializa����o, longe

de aumentar as rendas da na����o, sirva apenas para

encher a bolsa -dos exploradores, dessa minoria esperta

que tem dinheiro.

��� Tudo isso prova uma coisa: o absurdo mons-

truoso do sistema econ��mico dentro do qual n��s vi-

vemos e os marginais vegetam...

Herring encolhe os ombros. E de olhos cerrados

fica chupando o seu cachimbo.

O NEGRO DA VOZ DE VELUDO

9 de fevereiro. Tivemos hoje um grande dia. ��

tarde Mariana e eu assistimos a um concerto do pia-

nista brasileiro Bernardo Segall no "Philarmonic Au-

A VOLTA DO GATO PRETO

379

ditorium"; e �� noite fomos ver Paul Robeson no "Othelo",

de Shakespeare, no Biltmore Theatre. Creio que nun-

ca me emocionei tanto num espet��culo, nem presenciei

uma mais perfeita representa����o t e a t r a l . . .

Foi um grande momento aquele em que Robeson,

o espl��ndido negro, entrou em cena com suas roupa-

gens vistosas. Da primeira fila onde est��vamos, pod��a-

mos ver-lhe bem o rosto. Achamo-lo um pouco enve-

lhecido: alguns cabelos brancos riscavam-lhe de prata

a carapinha. Seu rosto �� de cor acobreada, lustrosa e

lisa, sem o menor make-up. Sua voz ��� que uma es-

critora inglesa descreveu como sendo de veludo negro

��� sua voz grave, redonda, musical, enchia o teatro. E

era esquisito ouvi-lo dizer com m��scula ternura ��� Sweet

Desd��mona!

Nascido em Princeton, foi Paul Robeson um es-

tudante aplicado e ao mesmo tempo um atleta de re-

nome, chegando a ser campe��o de futebol. Freq��entou

a Faculdade de Direito da Universidade de Columbia

e entrou para o teatro por acaso, pois uma certa Miss

Dora Cole, que dirigia no Harlem um espet��culo de

amadores, convenceu-o a aceitar pequeno papel.

"Eu estava estudando direito ��� conta Robeson ���

e andava muito ansioso com rela����o a meu futuro,

pois queria fazer alguma coisa em favor de minha

ra��a. Acontece tamb��m que fui educado segundo a

id��ia de que o teatro �� um lugar de v��cio e maldade.

Um dia um sujeito chamado Jasper Deter veio me pro-

curar, leu para mim a pe��a 'Imperador Jones' de

O'Neill e declarou que desejava oferecer-me o papel

principal. Fiquei t��o indignado com a hist��ria, que

quase expulsei Deter da minha casa. Foram precisos

v��rios anos para eu me convencer de que tudo aquilo

tinha sido tolice. Finalmente concordei em fazer o

'Imperador Jones' e depois a pe��a 'Tabu', de sorte

que com o tempo me fui habituando �� id��ia de ser ator

e mais tarde, cantor."

380

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Poucos negros t��m feito tanto por sua ra��a como

Paul Robeson. Conven��o-me agudamente disso esta

noite, ao ver e ouvir centenas de espectadores que o

aplaudem delirantemente, que o obrigam a voltar ��

cena, muitas, muitas vezes.

Vendo esse homem preto abra��ando a lour��ssima

Desd��mona, fico a imaginar a rea����o de muitos dos

americanos brancos que aqui est��o e para os quais

um negro �� um ser �� parte na escala zool��gica, natu-

ralmente mais alto que o macaco, n��o t��o belo como

o cavalo, e positivamente muito abaixo do homem...

Por mais empolgado que eu estivesse por Paul

Robeson n��o deixei de observar que muitas cenas em

que ele aparecia foram roubadas por Jos�� Ferrer, um

porto-riquenho de extraordin��rio talento histri��nico, que

faz o papel de Iago, um dos melhores lagos ��� afirma

a cr��tica, ��� que o teatro jamais teve.

E a gente aceita todas as conven����es do teatro

Shakespeariano para acreditar na hist��ria do Mouro

de Veneza, e seguir, tenso, sentado na beira da poltro-

na, o desenvolvimento do drama.

E agora ��� meia-noite passada ��� estou na frente

de minha casa a caminhar insone na cal��ada, para

cima e para baixo. A voz de Iago (Put money inthy

purse!) e a voz de Othello (A soldiers a man; a lifes

but a span) ainda me soam na mem��ria. N��o sei que

estranhos ecos essas duas figuras despertaram em mim.

Elas me trazem �� mente pensamentos v��rios. Reminis-

c��ncia de velhas leituras. Considera����es sobre o pro-

blema racial neste pa��s.

Mas em breve esque��o Shakespeare, Othello, Iago

e as quest��es de ra��a para tentar descobrir por que as

noites suburbanas de Los Angeles s��o menos silencio-

sas e evocativas que as dos sub��rbios brasileiros. E

concluo que �� porque as nossas noites t��m a acentuar-

lhes a poesia e a quietude, o canto dos galos. A�� est��!

O sil��ncio desta rua �� leve e azul; �� um sil��ncio que



A VOLTA DO GATO PRETO

381

a bruma amortece ainda mais. Mas esta calma notur-

na n��o me diz nada, ao passo que nas madrugadas

brasileiras o canto dos galos nos terreiros me fazia

pensar em cemit��rios sob o luar, trazia-me vozes do pas-

sado, acordava fantasmas, e parecia ecoar longe nos

corredores insond��veis da noite.

O MINISTRO

21 de fevereiro. Sou convidado a fazer um dis-

curso por ocasi��o do jantar que o "Southern Calif��rnia

Council for Inter-American Affairs" oferece hoje, num

clube de Los Angeles, ao ministro da Guerra da Re-

p��blica de Metagalpa, o qual, com oficiais de seu Es-

tado-Maior, percorre os Estados Unidos em visita de

cortesia.

Fico sentado entre Mr. Rosencrantz, presidente do

Council, e um capit��o metagalpense. No lugar de

honra, sua excel��ncia o general Urbina luta com a sa-

lada, faz prod��gios de equil��brio para evitar que o

molho amarelo lhe salpique a t��nica. �� ele tudo o que

a gente espera dum homem de sua nacionalidade e

profiss��o: gordo, de meia-idade, bonach��o e cheio de

alamares dourados. Aqui est��o nesta mesma mesa uns

cinco outros oficiais do ex��rcito de Metagalpa, com

seus la��os h��ngaros e as suas condecora����es. Premido

pela falta de assunto, pergunto ao capit��o que tenho

�� minha esquerda:

��� Qual �� o efetivo do ex��rcito de Metagalpa?

O homem permanece num curto sil��ncio reflexivo

e depois diz:

��� Uns quinhentos homens.

Repito intempestivo:

��� Quinhentos?! ��� Mas em seguida, dominando a

surpresa, baixo a voz e digo com calma: ��� A h . . . qui-

nhentos . . .



382

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Mr. Rosencrantz levanta-se para fazer as apresen-

ta����es.

��� Considero um privilegio rar��ssimo para este

Council ter como convidado de honra uma personali-

dade t��o ilustre como a do Gen. Urbina, Ministro da

Guerra de Metagalpa, essa rep��blica amiga centro-a-

mericana.

Respirando forte como um touro, as p��lpebras ca��-

das, o ar sonolento, o general escuta...

��� Devo dizer ��� continua o Sr. Rosencrantz ���

que o nosso convidado, que �� primo irm��o do Presi-

ente de Metagalpa, exerce tamb��m fun����es de vice-

presidente da rep��blica.

Mr. Rosencrantz, evidentemente um humorista,

inclina a cabe��a na dire����o do general, e acrescenta,

gaiato:

��� De sorte que tudo l�� fica em fam��lia, n��o ��

mesmo nosso amigo?

H�� uma pausa dif��cil. Risinhos constrangidos bro-

tam de v��rios pontos da sala. Mr. Rosencrantz percebe

a gafe que cometeu e come��a a ficar vermelho: suas

orelhas parecem de lacre. Enquanto isso "el general"

brinca pachorrento com uma bolinha de miolo de p��o,

talvez com a mesma indiferen��a com que jogar�� com

os destinos de Metagalpa...

GLAMORIZANDO A VIDA

Minha querida Fernanda: Quem observa a vasta, variada

e tumultuosa superf��cie da vida norte-americana conclui que

estas gentes procuram, por assim dizer, passar uma camada de

verniz na vida. Essa tend��ncia tem muito a ver com a palavra

glamour e com o verbo dela derivado, to glamourize. Segundo

"The Oxford English Dictionary" glamour quer dizer. ��� "Magia,

encantamento, sortil��gio; beleza m��gica ou fict��cia que se atri-

bui a uma pessoa ou objeto; encanto ilus��rio e fascinante".

Hollywood deu prest��gio universal �� palavra glamour. Gla-

mour, quando atribu��do a uma mulher, n��o significa pr��pria-

A VOLTA DO GATO PRETO

383

mente beleza, por��m algo mais profundo (ou superficial?) uma

irradia����o, um lustro, um fasc��nio que at�� certas mulheres que

n��o podemos considerar belas possuem. H�� beleza sem gla-

mour explicam os entendidos.

Dum modo geral os filmes de Hollywood glamorizam a

vida no sentido de lhe emprestarem um colorido e um encanto

que nem sempre ela tem. Esse v��cio de Hollywood �� uma con-

seq����ncia do esp��rito americano t��o inclinado para os contos

de Cinderela, de sucesso, e t��o disposto sempre a fugir de tudo

quanto �� m��rbido e triste. Uma prova disso �� que os escritores

mais cruamente realistas s��o os que encontram menos p��blico

neste pa��s. Ora, glamorizando a vida e as pessoas, Hollywood

contribui para que se agrave essa tend��ncia glamorizante ���

digamos assim ��� do car��ter nacional. S��o, pois, os est��dios,

fant��sticas f��bricas de glamour cujos produtos ��� curiosa forma

de entorpecente ��� encontram mercado entusiasta em todo o

mundo.

Examine os livros e revistas que se publicam neste pa��s.

S��o bem impressos, bem ilustrados, em suma, cheios de glamour.

Suas ilustra����es falam-nos dum mundo admir��vel, aerodin��mico,

vitaminizado, mecanizado e colorido. N��o conhe��o um ��nico

magazine americano que publique hist��rias realistas, em que

a mis��ria e as paix��es das criaturas apare��am nuas.

As pr��prias frutas e legumes s��o aqui glamorizados n��o s��

pelos agricultores que, por meio de drogas especiais, procuram

produzi-los maiores e mais belos, como tamb��m pelos revende-

dores que os apresentam em inv��lucros de celofane ou em caixas

de papel��o com r��tulos brilhantes e vistosos.

Neste pa��s at�� os cemit��rios t��m glamour. N��o exagerou

Aldous Huxley ao descrever um cemit��rio califoriano cujo nome

rom��ntico aparece �� sua entrada em letras luminosas de g��s ne��-

nio. (Explicar��o os americanos do Leste, n��o sem alguma verdade,

que tais extravag��ncias s�� acontecem na Calif��rnia...) Co-

nhe��o um cemit��rio que faz an��ncios em programas de teatro

e em magazines de luxo, apregoando as del��cias de seu "Jardim

das Lembran��as" (a palavra cemit��rio �� tabu) onde podere-

mos repousar �� sombra de carvalhos, pinheiros e faias, ao som

de regatos murmurantes e, a certa hora do dia, sob o sortil��gio

da m��sica de Bach ou H��ndel tocada num ��rg��o invis��vel...

A ind��stria do glamour, no que diz respeito ��s mulheres, ��

explorada neste pa��s atrav��s da venda de cosm��ticos, de per-

fumes, e duma s��rie de pequenas coisas relacionadas com a

maquilagem. Helen Rubistein, Max Factor, Elisabeth Arden

s��o alguns dos sumo-sacerdotes desse colorido rito de vaidade

e ilus��o.

384

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

A mania do glamour chega em certos casos a contagiar

at�� as religi��es. Diga-se de passagem que a igreja cat��lica ���

com o seu s��lido glamour latino e milenar ��� �� mais imperme��-

vel que as seitas protestantes a esse tipo de "glamour americano.

Muitas igrejas e capelas evang��licas glamorizam suas fachadas

e jardins, e alguns de seus pregadores ��� pelo menos aqui na

Calif��rnia ��� escolhem t��tulos glamorosos para seus serm��es,

chegando ao ponto de fazerem estampar, na p��gina religiosa da

edi����o de s��bado dos jornais, an��ncios dos servi��os dominicais

de suas igrejas ��� mas an��ncios ilustrados com seus retratos,

como se eles pr��prios fossem glamour boys.

O glamour por sua vez tem uma certa rela����o com as palavras

sexo, show, personalidade, sucesso. Em mat��ria de fasc��nio

sexual, o glamour �� uma isca poderosa. Muitas glamour girls

saem do gin��sio ou da universidade e v��o para a Broadway ou

para Hollywood. O glamour lhes abre muitas vezes a porta do

casamento ou a do sucesso na vicia comercial ou art��stica. Afir-

ma-se que as pessoas que t��m glamour quase sempre t��m per-

sonalidade, coisa t��o apreciada num pa��s em que h�� ��� for��a

�� confessar ��� uma certa tend��ncia para a padroniza����o.

Os americanos chegaram �� perfei����o de glamorizar at��

a morte. Quando uma criatura morre �� ela entregue a um t��c-

nico que se encarrega do vel��rio, do funeral e do resto. Esse

t��cnico poderia chamar-se simplesmente undertaker, ou seja

armador. Mas n��o! Oh n��o! Eles se d��o o glamoroso t��tulo

de mortician, e o corpo inerme que lhe confiam deixa de ser

um defunto para ser um paciente. O mortician embalsama-o,

lava-o, veste-o, pinta-o; se se trata dum homem, escanhoa-

Ihe o rosto. Se �� mulher, poder�� em certos casos chegar ao

requinte de fazer no cad��ver uma ondula����o permanente. En-

fim, o mortician tudo faz para que na sua ��ltima morada ���

o esquife ��� o paciente mantenha uma postura n��o s�� digna

como tamb��m at�� certo ponto agrad��vel aos olhos dos vivos.

Ningu��m guarda defunto em casa, Fernanda. O morto �� en-

tregue aos mortuaries, empresas mortu��rias que se encarregam

de tudo, desde o preparo do corpo at�� o enterro com acompa-

nhamento de "t��cnicos" passando pelo vel��rio, que �� uma ce-

rim��nia que se parece mais com um cocktail party que com

qualquer outra coisa. Esses mortu��rios s��o casas de aspecto

risonho e gentil, algumas em estilo Tudor, outras �� fei����o das

mans��es espanholas, e n��o poucas imitando templos gregos ou

mans��es georgianas. T��m nomes rom��nticos como "Jardim do

Sil��ncio", "Morada das Recorda����es", "Mans��o do Bom Sama-

ritano", "Casa do Consolo"... Seus jardins s��o verdes e �� noite

fa��scam em suas fachadas letreiros de luz ne��nio. Dentro des-





A VOLTA DO GATO PRETO

385

ses mortuaries h�� espelhos, tapetes fofos, vasos com flores, qua-

dros de arte e uma atmosfera glamoiosa que procura tirar ��

morte toda a sua qualidade macabra. Minha amiga, morre-se

muito confortavelmente neste pa��s!

N��o ser�� a glamoriza����o da vida uma forma de escapis-

mo, um desejo de fugir de tudo quanto a realidade nos oferece

de feio e desagrad��vel? Sim, �� poss��vel, mas talvez essa ten-

d��ncia possa ser interpretada tamb��m como uma inclina����o

art��stica se n��o para a beleza profunda e rara, pelo menos para

o bonito de superf��cie, para o que �� agrad��vel aos sentidos.

Porque apesar dessa voca����o para o escapismo que man-

teve os Estados Unidos por tantos anos isolados, os americanos

quando necess��rio sabem enfrentar a realidade. E n��o preci-

sarei invocar exemplos da hist��ria passada. Basta lembrar a

maneira como agora eles se est��o portanto na presente guerra.

Uma guerra ��� confessemos ��� que procuram por todos os meios

glamorizar... uma vez que n��o lhes �� poss��vel ignor��-la.

OF GANGSTERS AND TOMATOES

17 de fevereiro. Um dos gangsters mais odiosos

do cinema �� Sheldon Leonard, sujeito alto, moreno e

corpulento, de ondulados cabelos negros, e uma ex-

press��o de sarcasmo e maldade constantemente a cris-

par-lhe os l��bios. Pois encontrei esse tem��vel fac��nora

hoje pela manh�� no mercado do nosso bairro, a fazer

compras com um cesto no bra��o. Apanhei-o em fla-

grante no ato de escolher legumes. . . E com a mesma

m��o assassina afeita ao punhal e �� metralhadora, ele

apalpava delicadamente berinjelas, cenouras, aipos e

t o m a t e s . . .

O SIL��NCIO �� DE OURO

5 de mar��o. Minha mulher me considera um su-

jeito muito mal-educado e vive criticando meu com-

portamento social. Assegura-me ela que costumo

dormir de olhos abertos na sala, diante das visitas. Diz

386

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

que n��o presto nunca aten����o ao que me perguntam,

e que em geral me fecho num sil��ncio n��o de ouro,

mas de pedra.

Lembro-me duma cena pat��tica no refeit��rio do

Mills College, na noite em que �� mesa do jantar me

fizeram sentar ao lado duma visitante ilustre, com o

fim de entret��-la. Era uma senhora ainda mo��a, a que

o pince-nez e um coque antiquado envelheciam cari-

caturalmente. Disseram-me que se tratava de pessoa

muito culta e profundamente interessada na Am��rica

Latina. Por mais que me esfor��asse eu n��o encontrava

assunto. J�� havia esgotado todas as perguntas formais

��� "De que estado �� ? " "Vive h�� muito na Calif��rnia?"

"�� a primeira vez que visita o campus?" ��� e n��o queria,

por uma quest��o de dignidade, falar no clima de San

Francisco. Houve um momento em que andei voando

por um vago mundo de abstra����es, mistura de sonho,

sono e distra����o... De repente senti um golpe na ca-

nela. Era Mariana, que usava a contundente linguagem

do bico do sapato para me chamar �� realidade. Tive

um sobressalto. Olhei para os lados, atarantado, en-

quanto minha mulher explicava:

��� Essa senhora acaba de te fazer uma pergunta...

��� Oh! I am so sorry.. . Que foi que a senhora

perguntou?

Com uma voz de cinza fria a cair de l��bios des-

corados e estreitos, ela repetiu:

��� Que provid��ncias foram tomadas para restaurar

a biblioteca p��blica de Lima, Peru, destru��da pelo

fogo?

Por um instante fiquei como que cristalizado de

espanto. Depois, lentamente, respondi:

��� Sinto muito, minha senhora. N��o tenho a menor

id��ia.

E desse ponto em diante mais fundo e espesso foi

meu sil��ncio.

A VOLTA DO GATO PRETO

387

Hoje somos convidados para uma festa na casa de

Gerald Smith, que mora em North Hollywood. Refiro-

me ao admir��vel Gerald Smith, que representa o "Coor-

denador dos Assuntos Interamericanos" em Los Angeles

e n��o ao odioso Gerald J. Smith, imperialista, isolacio-

nista e reacion��rio.

Gerry convidou umas duas dezenas de amigos

para assistirem �� exibi����o de filmes sonoros de 16 mi-

l��metros que mostram trechos do Rio, de S��o Paulo e

de Belo Horizonte.

A reuni��o est�� muito agrad��vel. Mariana me se-

greda que espera com ansiedade a hora das bebidas,

pois descobriu que s�� depois do primeiro copo de

u��sque �� que ganha coragem e desembara��o para falar

ingl��s.

��� Estou com a l��ngua amarrada ��� diz ela. ��� E

por falar em l��ngua j�� reparaste como aqui ningu��m

fuma?

��� Fica firme ��� digo-lhe. ��� N��o te esque��as de

que todos s��o m��rmons. Os m��rmons n��o bebem

��lcool nem fumam.

��� Mas eu vou arriscar...

Inclina-se para uma senhora e pergunta-lhe:

��� Ser�� que posso fumar?

A dama sorri delicadamente e hesita:

��� B o m . . . a senhora compreende. .. n��s n��o apro-

vamos . . . mas se a senhora quiser, quem s a b e . . . na

outra s a l a . . .

E sorri um sorriso que �� em si mesmo um aca-

nhado pedido de desculpas.

��� Ah! N��o, absolutamente.

Chegam as bebidas e os sandu��ches. Enormes

copos com um l��quido esbranqui��ado. Limonada. . .

Mariana me olha significativamente.

Depois da exibi����o dos filmes, Gerald Smith me

pede que fa��a uma palestra sobre o Brasil. Recost��-

me numa porta e come��o a conversar... N��o sei se



388

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

foi a limonada que me soltou a l �� n g u a . . . S�� sei que

vou falando, sem atentar no tempo que passa. Maria-

na me lan��a olhares de surpresa. Conto como foi des-

coberto o Brasil, que tipos entraram na forma����o da nos-

sa ra��a; descrevo em tra��os gerais a geografia brasileira,

e procuro contar das diferen��as que hoje h�� ��� no f��-

sico e na psicologia ��� entre os diversos estados do

Brasil. E assim nessa digress��o gasto uma hora inteira.

De volta para casa no autom��vel, digo a Mariana:

��� Bem, hoje n��o podes dizer que n��o f a l e i . . .

Com a cabe��a atirada para tr��s no respaldo do

banco, ela murmura:

��� Hoje falaste demais.

SEGREDOS DA MATERNIDADE

22 de mar��o. Vou almo��ar com Robert Nathan

no est��dio da Metro-Goldwyn-Mayer. O autor de "O

Retrato de Jennie" ocupa um gabinete no edif��cio cen-

tral do est��dio. Reina tamanho sil��ncio nestes corre-

dores limpos e reluzentes, que este departamento da

Metro �� conhecido pelo nome de "maternidade". Creio

que o nome �� apropriado, pois quando os manuscritos

saem destas salas prontos para serem entregues ao ho-

mem que lhes dirigir�� a filmagem, eles podem ser com-

parados a crian��as que acabam de vir ao mundo de-

pois de longo, laborioso processo de gesta����o; e sua

entrada neste vale de l��grimas muitas vezes se pro-

cessa gra��as a interven����es cir��rgicas. Porque o que

se faz nesses scripts ��� cortes, emendas, adi����es ��� equi-

vale a verdadeiras opera����es. Outro pormenor impor-

tante: dificilmente se poder�� determinar o pai das

"crian��as" que nascem nesta "maternidade", cujo pre-

sidente �� Mr. Louis B. Mayer.

Tomemos por exemplo um caso concreto. Imagi-

nemos que um romance intitulado "Borborigmos do

A VOLTA DO GATO PRETO

389

Cora����o" (tudo �� poss��vel neste pa��s em mat��ria de

t��tulos. . .) conseguiu grande sucesso de livraria. H��

uma corrida para a compra de seus direitos cinemato-

gr��ficos, mas a Metro ganha a concorr��ncia e aboca-

nha o romance.

Isso feito, o est��dio entrega o livro a um grupo

de peritos na arte de transformar uma hist��ria liter��-

ria numa hist��ria cinematogr��fica. Os peritos terminam

o trabalho e submetem-no �� leitura dos chefes. Os che-

fes acham que falta ��� digamos ��� um "toque de Robert

Nathan", isto ��, uma coisa que pode ser reduzida ��

seguinte f��rmula: sophistication + p o e s i a + leve melan-

colia+mist��rio. O script �� enviado a meu amigo Nathan,

que lhe p��e a sua marca, introduzindo di��logos e cenas

novos, e alterando os antigos. Assim em sua nova forma,

como o "Nathan's touch" volta o manuscrito para o che-

fe da produ����o, que o l��, franze o nariz e diz que est��

faltando ainda qualquer c o i s a . . . Que ser��? Masca

o charuto, atira os p��s para cima da mesa, brinca com

um l��pis e de repente uma palmada na coxa. Achei!

O que falta �� um toque m��sculo, um pouco de vio-

l��ncia �� James Cain. Ora, James Cain �� um escritor

de novelas patol��gicas, cujos her��is em geral s��o gente

rude com inclina����es para o homic��dio, para a fraude

e para a viol��ncia. Assim o manuscrito �� remetido ao

escrit��rio de Mr. Cain, que funga, tosse, franze as so-

brancelhas h��spidas e introduz nele umas cenas vio-

lentas, uns di��logos brutais, esmagando assim com seus

coturnos de ferro as lindas flores que Robert Nathan

com gosto art��stico e sentimento po��tico semeara pela

hist��ria. E de novo l�� vai o script, cheio de novas

emendas, para as m��os do producer que acaba achan-

do que ainda falta na coisa toda um toque de humor.

Mas quem �� que poder�� dar esse toque? Ora q u e m . . .

Ludwig Bemelmans, o famoso humorista sat��rico! Mas

Mr. Bemelmans est�� em Nova York! N��o faz mal.

Consigam-me uma liga����o telef��nica com ele. Okay.

Dez minutos depois Mr. Bemelmans, que est�� no seu

390

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

apartamento em Nova York, metido num banho morno,

comunica-se por telefone com Mr. Producer, que est��

no seu escrit��rio, no est��dio da Metro., em Hollywood.

��� Helio, Ludwig!

��� Helio there! Como v��o as coisas?

��� Aqui em Los Angeles faz calor como sempre.

��� Pois aqui em Nova York est�� caindo neve.

��� Veja s�� como �� a natureza!

��� Hey! Voc�� me chamou s�� para conversar sobre

o tempo?

��� Oh! N��o. Escute, Ludwig. Tenho um script

aqui e queria que voc�� desse uma m��o nele. . .

��� Estou muito ocupado, meu velho.

��� Mas �� uma coisinha de nada. Quero meia d��-

zia de boas piadas.

��� Honest? S�� meia d��zia?

��� Palavra de honra.

��� Mande-me ent��o o script.

��� Satj, Ludwig. Temos pressa.. . queremos co-

me��ar a filmagem Togo.

��� Okay. Em quatro dias tudo ficar�� pronto.

��� Splendial! . . .Escuta, Ludwig, qual �� o teu

pre��o?

��� Vinte mil.

��� Phew! Vinte?

��� Vinte. Nem um cent menos.

��� Est�� bem. Bye-bye!

E assim no pr��ximo avi��o o manuscrito voa para

Nova York, a fim de que Mr. Ludwig Bemelmans in-

clua nele um par de piadas. E ao cabo de alguns meses

de trabalho, e ao pre��o de v��rias centenas de milhares

de d��lares, o manuscrito fica finalmente pronto para

ser filmado. E na sua forma definitiva qualquer se-

melhan��a que possa ter com o original de "Borborigmos

do Cora����o" ter�� sido mera coincid��ncia. . .

Contaram-me que faz mais de um ano que os es-

critores da Metro est��o trabalhando na vers��o cinema-

A VOLTA DO GATO PRETO

391

togr��fica do livro de Marjorie Rawlings, "The Year-

ling". E afirma-se que at�� esta data a companhia j��

gastou perto de 700 000 d��lares s�� com esse trabalho

de adapta����o.

e o o

Almo��o no commissary da Metro, que �� um vas-

to restaurante decorado em bege e azul. Sento-me

entre Robert Nathan e Leslie Charteris, escritor de no-

velas policiais e criador do "Santo", figura rom��ntica

de aventureiro. �� um homem grande, de cara larga de

guriz��o. Na nossa frente James Cain luta com uma

perna de galinha. �� um tipo moreno, de ��culos, cabe-

leira grisalha e revolta, nariz largo, boca apertada e

amarga, sobrancelhas muito cerradas; tem exatamente

a express��o que o leitor espera encontrar no rosto do

autor de "Pacto de Sangue". Suas personagens, que

falam g��ria, est��o sempre inventando estratagemas in-

fernais para acabar com a vida de algu��m, a fim de

ficar com alguma coisa ��� a mulher da v��tima ou a im-

port��ncia de seu seguro de vida.

Olho em torno e vejo faces familiares. L�� est��

Walter Pidgeon. Mais al��m. Gene Kelly e Marsha

Hunt. De quem �� aquele rosto miudinho t��o conhecido?

�� de Margaret O'Brien, que est�� ao lado de Edward

Robinson, horrendo na sua caracteriza����o para Our

Vines Haves Tender Grapes ��� um bigod��o escuro a

cair-lhe pelos cantos da boca. Lana Turner passa por

n��s, e seus cabelos muito claros reluzem.

Depois do almo��o saio com Robert Nathan a visi-

tar os sound stages. Apresenta-me ele a Judy Garland e

Robert Walker que est��o filmando uma cena de The

Clock em cujo script Nathan imprimiu sua marca. Co-

nhe��o tamb��m o diretor Vincent Minnelli que nos inter-

valos dos ensaios abra��a e beija Judy com quem, dizem,

vai casar. �� um homem magro, de cabelos escuros e de

ar serelepe. Conto-lhe que vi as ilustra����es que ele

392

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

desenhou para uma edi����o especial das "Mem��rias de

Casanova". Minnelli faz um gesto de horror, pois con-

sidera esses desenhos um pecado da juventude; acha-os

n��o s�� amaneirados como tamb��m uma p��ssima imi-

ta����o de Aubrey Beardsley.

Fico para assistir �� filmagem. Quem imagina que

a feitura duma pel��cula tem muito encanto e pitoresco,

engana-se. �� um trabalho lento, cacete, sonolento, re-

petido. Levam ��s vezes uma tarde inteira para filmar

uma cena cuja exibi����o na tela n��o gastar�� mais de

cinco minutos.

Vejo por aqui uma quantidade enorme de tra-

balhadores. Cada um tem sua fun����o. Dois encarre-

gam-se da c��mara, outros dois puxam o carro em que

a c��mara est�� montada e muitos outros tomam conta

dos refletores, do microfone, do controle do som, etc. . .

Imagino que haver�� milhares de pessoas que gos-

tariam de estar agora no meu lugar, que dariam tudo

para entrar aqui e aproximar-se de Judy Garland ou

Robert Walker. No entanto anseio por sair deste barra-

c��o. Faz calor e j�� estou cansado de ver a mesma

cena repetir-se tantas vezes: Judy e Robert andam ��

procura dum juiz para cas��-los. A arrumadeira do es-

crit��rio lhes informa que o juiz acaba de sair. Os dois

jovens voltam correndo e encontram o homenzinho

junto do elevador. H�� um di��logo r��pido, impaciente,

ao cabo do qual o juiz decide voltar para casar os dois

jovens.

Robert (o Nathan, n��o o Walker) e eu n��o espe-

ramos pelo casamento.

Sa��mos para o ar livre e voltamos rumo da mater-

nidade. No caminho pergunto a Nathan se est��

escrevendo algum livro.

��� Que �� que se pode escrever nesta hora do mun-

do? E depois ��� acrescenta ele, com a sua voz calma

��� como �� poss��vel escrever alguma coisa s��ria na Cali-

f��rnia, com este sol, com este a r . . .

A VOLTA DO GATO PRETO

393

Passa por n��s Jos�� Iturbi, fumando cachimbo e

com a cara maquilada. Vai decerto tocar o concerto

de Crieg ou um boogie-woogie de Duke Ellington.

Ginger Rogers cruza a rua no seu autom��vel. E um

cow-boy solit��rio fuma sentado num caix��o vazio ��

sombra dum caminh��o.

��� O que eu fa��o agora ��� continua Robert ��� ��

escrever argumentos para cinema. N��o tem a menor

import��ncia. Eles pagam bem e no fim de contas meu

nome mal aparece nessas c o i s a s . . .

(Nathan ganha dois mil d��lares por semana.)

Quando voltamos a seu escrit��rio, sento-me �� sua

mesa e ele se estende no sof��, acendendo um charuto.

Confesso que tenho uma grande simpatia por esse ho-

mem tranq��ilo, que escreve com ternura e compreen-

s��o sobre menininhas antigas, pintores bo��mios e artis-

tas not��vagos. Descendente de judeus, tem ele um

perfil fino, uma tez p��lida, cabelos e olhos escuros.

Atirando para o ar a fuma��a do charuto ele

pergunta:

��� Voc�� se preocupa com o futuro de seus livros?

Quero dizer.. . deseja que eles sejam lidos muitos anos

depois de sua morte?

Encolho os ombros:

��� Sei que n��o ser��o. Mas confesso que isso n��o

me d�� o menor cuidado.

��� Pois a mim me d�� ��� diz Nathan, depois duma

curta pausa. ��� Muitos cr��ticos negam minha obra. Mas

h�� uma coisa que me traz grande conforto e me faz es

perar que meus livros n��o morram t��o cedo. �� que a

gente mo��a parece gostar muito d e l e s . . .

Essa confid��ncia c��ndida me sensibiliza. Ela n��o

revela o touch ir��nico de Nathan. Mas feita sem ne-

nhum alarde nem falsa mod��stia, dentro dum est��dio

de Hollywood, e por um homem que realizou uma

obra s��ria que ele pr��prio parece amar profundamente

��� tem um sentido extraordin��ria

394

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Estamos ainda a falar na sobreviv��ncia de livros

quando James Cain irrompe na sala e vem pedir infor-

ma����es a Nathan sobre a men����o dos direitos para

televis��o nas cl��usulas de novos contratos em torno

de livros. Quando Cain se retira, fico a sorrir.

��� Por que �� que est�� sorrindo? ��� pergunta Nathan.

��� Porque dificilmente se poder��o encontrar numa

mesma sala dois tipos t��o diferentes. O poeta que es-

creveu "O Retrato de Jennie" e o "ogre" que engendrou

o crime de "O Destino Bate �� Porta".

Nathan soergue-se no sof��.

��� �� curioso, n��o �� mesmo? E sabe que na rea-

lidade Cain gosta de ca��a grossa, adora ver sangue?

Depois dum sil��ncio acrescenta:

��� E o mais estranho �� que de n��s dois o reacio-

n��rio �� ele. Votou em Dewey porque abomina

Roosevelt.

H�� uma pausa em que mais fundo se faz o sil��ncio

da maternidade. Penso no processo de gesta����o de

tantos scripts que a esta hora est��o tomando forma,

como monstruosos fetos que antes de surgir para a luz

andassem de ventre em ventre, para depois, sem pai

certo, sem outro nome de fam��lia que o da M. G. M.,

sa��rem pelo mundo a divertir milh��es de criaturas, atra-

v��s duma vida que por mais gloriosa que seja n��o dei-

xar�� nunca de ser ef��mera.

Todo esse processo n��o ser�� por acaso mais um

desses muitos horrores da idade da m��quina?

O PRESTIGIO DO AMANH��

25 de mar��o. Os jornais e revistas americanos tra-

duzem bem a mania que uma parte da popula����o deste

pa��s tem de correr �� frente do tempo. As revistas de

agosto por exemplo s��o postas �� venda em princ��pios



A VOLTA DO GATO PRETO

395

de julho. E h�� jornais que se gabam de dar hoje as

not��cias de amanh��. E o mais melanc��lico ou, melhor,

o mais tolo �� que com tal preocupa����o essas publi-

ca����es s�� conseguem andar atrasadas...

Vejo hoje num magazine esta charge: �� no cor-

redor duma maternidade, e uma enfermeira sai de um

dos quartos com um rec��m-nascido nos bra��os. Uma

segunda nurse aproxima-se dela e pergunta, surpresa:

��� Mas esse beb�� n��o estava sendo esperado para

o m��s que vem?

��� Estava, sim ��� responde a primeira, ��� Mas acon-

tece que ele �� filho dum diretor de revista. . .

Positivamente, o que salva este povo �� a capaci

dade que ele tem de zombar de si mesmo.

O PROBLEMA NEGRO

Fernanda: Tobias, que se tem especializado ultimamente em

assuntos dif��ceis, esta manh�� me tomou do bra��o e lan��ou em

rosto esta pergunta: "Que me diz da discrimina����o racial neste

pa��s?' Est��vamos sentados num banco de Pershing Square, to-

mando sol e olhando pregui��osamente os vagabundos, os p��s-

saros e as crian��as.

��� Custa-me acreditar ��� respondi ��� que um pa��s onde im-

pera o bom samaritanismo; que uma na����o de crist��os empenha-

dos em jazer boas obras; que um povo, enfim, t��o pronto a falar

em democracia e igualdade mantenha os negros segregados, por-

tando-se com rela����o a eles dum modo t��o desumano.

T. ��� Qual a raiz desse sentimento antinegro?

E. ��� Para principiar havia essa coisa absurda, errada e

cruel que era a escravatura. E a necessidade de bra��os para

as lavouras do Sul. Depois, esse sentimento aristocr��tico que

�� um dos caracter��sticos da ra��a anglo-sax��nica. O pioneiro

anglo-sax��o dificilmente ou nunca se misturava com os ��ndios.

Ora, esses descendentes de ingleses que eram e s��o os brancos

do Sul achavam e acham o negro ainda mais repulsivo que o

ind��gena. A repulsa assumiu propor����es tamanhas, que de certo

modo o escravo acabou sendo olhado mais como um animal do

que como uma criatura humana. Algumas pessoas de fundo re-

ligioso tratavam de conciliar a B��blia com suas idiossincrasias ra-

396

O B R A S D E ER1CO V E R �� S S I M O

cistas, dizendo que Deus fez todos os homens iguais, n��o h�� d��-

vida, mas ficou claro que as Escrituras n��o classificam os negros

dentro do g��nero humano.

T. ��� S�� esse sentimento anglo-sax��o explica a posi����o dos

negros hoje?

E. ��� Claro que n��o! Em cima desse erro, isto ��, do traba-

lho escravo, ergueu-se toda uma estrutura econ��mica cuja segu-

ran��a e integridade ficariam em perigo caso os negros obtivessem

sua liberdade. Essa depend��ncia duma ra��a que eles considera-

vam inferior, criava um ressentimento que se traduzia em muitos

casos em maus tratos.

T. ��� Teve ou tem esse sentimento antinegro alguma causa

sexual?

E. ��� Sim, at�� certo ponto. Apesar de todos os preconceitos

raciais, alguns homens brancos tinham curiosidade sexual com

rela����o as mulheres negras. Muitas vezes (e n��o raro tinham de

se embriagar para isso) coabitavam com elas. Os resultados des-

ses casos eram quase sempre: a) a produ����o dum mulato, que

ainda continuaria a ser "um negro"; b) esc��ndalo entre os bran-

cos e uma atitude de repulsa para com o branco renegado que

dormira com a negra; c) ��dio pela negra, principalmente da parte

das mulheres brancas. Aconteceram freq��entemente hist��rias

como a que o nosso Jorge de Lima conta no seu admir��vel poe-

ma "Essa Nega Ful��". E quando um negro assaltava e violava

uma branca, ele era perseguido e linchado.

T. ��� Ainda h�� linchamentos hoje em dia?

E. ��� Apenas nos estados mais atrasados. Os linchamentos

eram mais freq��entes na ��poca que se seguiu ao fim da Guerra

Civil. E observe esta coisa curiosa. O destino do negro sem-

pre esteve ligado intimamente �� economia do Sul. Ficou pro-

vado que, quando o pre��o do algod��o baixava, o n��mero de lin-

chamentos aumentava.

T. ��� A velha teoria do bode expiat��rio...

E. ��� Hoje em dia os linchamentos diminu��ram sensivel-

mente a ponto de se tornarem rar��ssimos, e isso se deve em gran-

de parte �� atitude, com rela����o a eles, do resto do pa��s, a qual

deixou de ser tolerante ou desligante para ser de franca censura.

T. ��� Que outros fatores causaram ou exacerbaram a discri-

mina����o racial?

E. ��� A competi����o. O trabalhador negro, antes da abo-

li����o, era um concorrente ��� involunt��rio, �� verdade ��� do tra-

balhador branco, pois trabalhava mais e de gra��a. Depois da

aboli����o entrou na competi����o livre.

T. - Livre?

A VOLTA DO GATO PRETO

397

E. ��� Na verdade n��o se pode usar o termo livre, uma vez

que os empregadores sempre deram prefer��ncia ao trabalhador

branco.

T. ��� Por alguma raz��o t��cnica?

E. ��� N��o. Ainda por um preconceito racial.

T. ��� Em que consiste a discrimina����o racial no Sul?

E. ��� O negro ��, no dizer do sulista, "mantido no seu lugar".

Nos cinemas, nos ��nibus, bondes e trens, eles t��m lugares se-

parados. At�� mesmo nas igrejas essa separa����o existe. Nas

esta����es de estrada de ferro dos estados do Sul vemos uma sala

de espera para brancos e outra para negros. Quando levado a

j��ri, o negro sempre tem menos chances de absolvi����o, pois seu

caso raramente �� examinado com simpatia ou toler��ncia, como

poderia acontecer se se tratasse dum branco. Mais ainda: se-

gundo uma conven����o do Sul n��o se deve dar a um negro o tra-

tamento de Mr. (mister).

T. ��� Os negros t��m direito ao voto nesses estados sulinos?

E. ��� Teoricamente sim. Mas na pr��tica existem muitos tru-

ques legais, semilegais, ou ilegais para evitar que o negro vote.

T. ��� Que oportunidades tem o negro para se educar?

E. ��� Muitas. H�� escolas prim��rias e secund��rias gratuitas

para os pretos e situadas nos distritos onde eles vivem. H�� tam-

b��m universidades s�� para gente de cor.

T. ��� E que chances encontra neste pa��s o negro educado?

E. ��� Um negro que se forma em direito, engenharia ou me-

dicina pode fazer carreira entre os de sua ra��a. Mas a educa����o

torna-os ainda mais infelizes, pois o negro esclarecido sente

ainda mais agudamente o isolamento social em que vive.

T. ��� Mas essa discrimina����o existe legalmente em todo o

pa��s?

S. ��� N��o. H�� muitos estados em que tal segrega����o n��o

�� legal. Em geral a situa����o dos negros nos Estados do Norte

e na Calif��rnia �� melhor que no resto do pa��s. Nessas regi��es

eles podem votar sem precisar pagar poll tax e podem freq��en-

tar universidades de brancos. (�� o caso da Universidade da Cali-

f��rnia, onde vi muitos negros, alguns dos quais assistiram a

algumas de minhas confer��ncias.)

T. ��� Fazem-se campanhas em prol dum melhor tratamento

para os negros?

E. ��� Muitas! �� preciso fazer justi��a a uma boa parte da

popula����o americana que n��o aprova o tratamento que se d��

aos seus compatriotas de pele escura. H�� in��meros escritores,

educadores e jornalistas liberais que conduzem atrav��s do livro,

do jornal, do r��dio, da tribuna e da c��tedra uma s��ria campanha

contra a discrimina����o racial. Mas dum modo geral o assunto

398

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

negro �� tabu nos Estados Unidos. Agatha Christie escreveu um

romance policial que se publicou na Inglaterra sob o t��tulo de "O

Caso dos Dez Negrinhos". Pois bem. Na sua edi����o norte-ameri-

cana esse t��tulo teve de ser mudado para "O Caso dos Dez In-

diozinhos", pois a experi��ncia aconselha os comerciantes a evitar

a palavra negro sempre que seja poss��vel.

T. ��� Mas �� incr��vel1

E. ��� Ainda mais. Hollywood produziu recentemente uma

com��dia em que o ator negro Rochester faz papel relevante.

Essa pel��cula n��o foi passada no estado de Mississipi porque ���

alegaram alguns "mississipenses" ��� nela se d�� a um preto um

papel social demasiadamente importante, o que n��o s�� �� absurdo

como tamb��m pode tornar-se mau exemplo...

T. ��� Em suma, o negro n��o �� considerado propriamente

um ser humano...

E. ��� Alguns americanos levam sua repulsa pelos pretos

ao ponto de n��o os considerarem seus semelhantes. Li a carta

que um americano escreveu a uma ag��ncia brasileira de Nova

York perguntando at�� que ponto Gilberto Freyre, em seu livro

"Brasil", escrito em ingl��s e contendo uma interpreta����o de nosso

pa��s, falava a verdade ao afirmar que no Brasil os pretos t��m

direitos iguais aos dos brancos. Dizia o feroz missivista: "Esse

Sr. Freyre comete grave erro se est�� procurando provar-nos

que essa miscigena����o �� o caminho certo. Acho que a univer-

sidade americana que convidou um professor com t��o perigo-

sas id��ias para dar um curso de confer��ncias a seus jovens alu-

nos devia ser repreendida." Mais adiante continuava: "Eu e

minha senhora pretend��amos em breve visitar o Brasil. Mas

se o Sr. Freyre falou a verdade, n��s n��o poderemos nos sen-

tir bem num pa��s em que tais absurdos acontecem". Quando

terminei a leitura dessa carta murmurei: "O Brasil n��o precisa

de gente dessa esp��cie."

T. ��� Mas como �� que os protestantes (Eles s��o maioria no

Sul, n��o s��o?) encaram o problema? Melhor, como justificam

a discrimina����o?

E. ��� N��o conhe��o o pensamento oficial do protestantismo.

Mas um metodista um dia me disse que a B��blia ensinou aos

americanos que Deus pro��be a fornica����o, um de cujos aspectos

sacr��legos �� a mistura de branco com negro. ��� Em suma ���

concluiu ele ��� segundo as Escrituras a separa����o entre brancos

e pretos corresponde a uma vontade expressa do Alt��ssimo.

T. ��� Mas h�� realmente na B��blia alguma passagem que con-

dene claramente essa uni��o?

E. ��� Que eu saiba, n��o. Mas devo confessar que o protes-

tante que me deu essas raz��es n��o era nem um pastor nem mes-

A V O L T A DO G A T O P R E T O

399

mo um homem culto. Se eu lhe recolhi e aqui registro o pen-

samento foi porque me parece que ele traduz o modo de sentir

e pensar dum vasto grupo.

T. ��� H�� outro problema que me intriga. �� a origem, fun-

����o e sobreviv��ncia da sociedade secreta Ku-Klux-Klan.

E. ��� Quando terminou a Guerra Civil os brancos sulistas

viram com um sentimento de revolta e agonia que os negros

adquiriam direitos de cidad��os e que num certo estado ��� Carolina

do Sul ��� chegavam a ser maioria na Casa dos Representantes.

Por outro lado, exploradores sem escr��pulos vindos do Norte

usavam o negro com o fim de afrontar ou prejudicar os brancos

do Sul. Como conseq����ncia de tudo isso, os ex-confederados,

feridos no seu orgulho, na stia economia e na sua tradi����o, resol-

veram tomar medidas de repres��lia contra os pretos. Levando

em conta o esp��rito supersticioso do negro, t��o pronto a acreditar

em assombra����es e almas do outro mundo, fundaram os brancos

sociedades secretas como os "Caras P��lidas", a "Fraternidade

Branca", os "Cavaleiros da Cam��lia Branca". (Veja a insist��ncia

com que a cor branca �� usada no t��tulo e nos s��mbolos dessas

sociedades.) De todas essas associa����es, por��m, a que mais

poder reunia e a que maior raio de a����o teve foi o chamado

"Imp��rio Invis��vel da Ku-Klux-Klan"...

T. ��� �� singular como essas coisas possam acontecer nos

Estados Unidos!

E. ��� �� por isso que eu sorrio quando alguns observadores

latinos, do alto de sua sufici��ncia, pensam que podem definir este

povo como sendo apenas "uma na����o de crian��as grandes". Agora,

�� poss��vel que, no fundo, esses membros adultos da terr��vel K. K.

K. n��o tenham passado de eternos adolescentes fascinados pelos

romances de capa e espada. Nota-se entre os americanos o gosto

pelas sociedades e clubes combinado com o amor ao mist��rio. A

Ma��onaria �� uma grande institui����o neste pa��s. A Ku-Klux-Klan,

pois, n��o s�� teve uma finalidade pol��tica e social (de acordo com

os interesses dos brancos do Sul) como tamb��m correspondeu ao

estado de esp��rito duma coletividade.

T. ��� Mas qual era a sua finalidade?

E. ��� A principio simplesmente a de assustar os negros.

Aconteceu, por��m, que os pretos estavam cada vez mais "sabidos"

e ao cabo de algum tempo j�� n��o se impressionavam com aqueles

homens metidos em togas brancas e com as cabe��as cobertas

por misteriosos capuzes. Come��aram ent��o os Klan men passar

de outros recursos: flagelavam os negros e, em muitos casos,

encorajados pelo anonimato, pelo segredo, cometiam crimes que

nada mais eram que a explos��o de diferen��as pessoais e de de-

sejos de vingan��a longamente recalcados. A Ku-Klux-Klan es-

400 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

tendeu o seu imp��rio por todos os estados e passou a ter um

sentido terr��vel, chegando a preocupar a opini��o p��blica.

T. ��� Mas a K. K. K. s�� hostilizava os negros?

E. ��� N��o. Era uma organiza����o de car��ter, digamos p��ra-

fascista. Combatia negros, cat��licos e estrangeiros indesej��-

veis. O caso da K. K. K. foi levado ao Congresso. Queixas

chegavam de diversos pontos do pa��s. Dizia-se que a Ku-Klux-

Klan era antiamericana, cruel, absurda e punha em perigo os

ideais democr��ticos da na����o. Finalmente o congresso apro-

vou uma lei suprimindo a Klan.

T. ��� E a sociedade foi extinta?

E. ��� Sim, mas reviveu anos mais tarde, por ocasi��o da

crise que se seguiu �� Primeira Grande Guerra. Nessa segunda

fase, ela n��o tinha car��ter apenas sulista, mas seus caracter��s-

ticos continuavam a ser fascistas. A Klan hostilizava judeus,

comunistas e cat��licos. Diz Brogan em seu admir��vel livro

"The American Character" que Indiana h�� vinte anos atr��s

era governada pela Ku-Klux-Klan a qual estava empenhada em

salvar a Am��rica para o Herrenvolk, isto ��, para os protestantes

brancos e gentios, que na sua opini��o eram os ��nicos cidad��os

americanos de verdade...

T. ��� Mas que esperan��as h�� de que o problema do negro

seja resolvido?

E. ��� A minha opini��o sincera �� a de que ele n��o se re-

solver�� nem dentro de cem anos...

T. - Por qu��?

E. ��� O n��mero de negros nos Estados Unidos em 1930

correspondia a 9,7% da popula����o total. (Apenas dois ter��os

desses 12 milh��es de pretos viviam no Sul.) Pois bem. Os

casos de miscigena����o n��o s��o muito numerosos, embora existam

de maneira vis��vel. Algumas dessas americanas escuras, de

fei����es regulares (veja-se o caso da bela atriz Lena Home) e

que no Brasil seriam "morenas", aqui s��o consideradas "negras".

E mesmo para elas a discrimina����o continua. Assim, n��o h��

nenhuma esperan��a de que com o tempo o sangue negro desa-

pare��a na grande corrente desse misturado sangue americano.

Por outro lado a discrimina����o cria nos negros um sentimento de

revolta que os torna na maioria dos casos insolentes e at�� agres-

sivos nos distritos em que s��o maioria. Da�� os conflitos, quase

sempre originados por motivos econ��micos ou sexuais.

T. ��� S��o de ontem os riots de Illinois.

E. ��� A�� est��. Em estados como Illinois e Massachusetts,

o primeiro no Middle West e o ��ltimo na Nova Inglaterra, a

discrimina����o racial n��o existe legalmente. Mas os conflitos

entre pretos e brancos ocorrem de tempos em tempos. S��o repre-

A V O L T A DO G A T O P R E T O

401

s��lias, desabafos, diferen��as, irrita����es... E o mais tr��gico,

meu amigo, �� que mesmo as pessoas que teoricamente tomam a

defeza do negro na imprensa ou na tribuna, na pr��tica n��o

se mostram l�� muito dispostos ao conv��vio com seus irm��os

pretos.

T. ��� E que rumo podem essas rela����es entre brancos e

negros tomar depois da guerra?

E. ��� Creio que elas piorar��o, porque durante a guerra a

ind��stria lan��ou m��o indiscriminadamente de todos os tra-

balhadores que se lhe apresentaram, tendo contratado mediante

altos sal��rios milhares de pretos. Quando a paz vier e essas f��-

bricas come��arem a dispensar oper��rios, �� certo que dispensar��o

os pretos, preferindo conservar os brancos.

T. ��� E isso naturalmente causar�� irrita����o entre os negros.

E. ��� H�� ainda outro aspecto absurdo da quest��o racial nos

Estados Unidos. �� que em certos setores negros cresce o sen-

timento anti-semita.

T. ��� A�� est�� uma coisa inexplic��vel. Era natural que essas

ditas minorias fossem aliadas. Qual a raz��o desse sentimento?

E. ��� Econ��mica. Veja bem. Na sua quase totalidade, os

propriet��rios de casas no Harlem, o bairro aos negros em Nova

York, s��o judeus. Trata-se de casas caras e sem conforto e toda

a irrita����o e descontentamento dos negros com rela����o aos se-

nhorios judeus se traduz em atitudes e sentimentos de anti-semi-

tismo.

T. ��� Creio que no terreno racial o Brasil �� um pa��s feliz.

O negro entre n��s goza de outra situa����o.

E. ��� Mas n��o nos iludamos com as apar��ncias, meu caro.

Mesmo entre n��s a~ posi����o do negro �� economicamente a pior

poss��vel e socialmente n��o �� l�� muito melhor. �� uma grande

coisa ��� reconhe��o ��� n��o existir no nosso pa��s uma discrimina-

����o organizada, reconhecida, oficial ou semi-oficial como �� o ca-

so em muitos estados desta na����o norte-americana. Mas o negro

no Brasil n��o tem oportunidade de se educar, n��o porque seja

negro, mas porque pertence em geral �� classe dos marginais.

Por outro lado, muitas vezes ouvi brasileiros brancos dizerem:

"Esse negro n��o conhece o seu lugar..." ou ent��o "Isso �� coisa

de negro . Devemos reconhecer que se aqui nos Estados Unidos

impera a discrimina����o racial, em compensa����o n��o existe discri-

mina����o de classe, como entre n��s. Todas as profiss��es neste

pa��s s��o consideradas dignas, ao passo que no Brasil julgamos as

pessoas pela profiss��o que exercem ou pela maneira como se

vestem. Quantas vezes amigos nossos exclamam com desprezo.

"Mas ele �� um simples gar��on!" ou ent��o "�� um humilde

oper��rior



402

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� �� verdade. Tenho notado que qualquer profiss��o legal

aqui �� considerada digna, sem que se procure criar uma hierar-

quia de trabalho.

E. ��� Um estudante ganha a vida lacando pratos ou traba-

Ihando como gar��on em caf��s ou restaurantes. Meninos de fam��-

lias remediadas ��� filhos de m��dicos, advogados, engenheiros, ne-

gociantes ��� nas horas de folga ganham dinheiro distribuindo jor-

nais entre os assinantes do seu bairro. Encontrei um dia como

elevator boy um professor de m��sica, o qual, embora desejasse

voltar �� antiga profiss��o, n��o se sentia constrangido naquele ele-

vador porque o fato de ele exercer aquelas fun����es n��o levava

as outras pessoas a trat��-lo com desprezo ou superioridade.

T. ��� E para encerrar nossa conversa, que me diz do esc��n-

dalo recente havido em torno do livro "Fruta Estranha"?

E. ��� Eis um caso interessante. Uma escritora corajosa, uma

metodista, escreveu um romance em torno dos amores "il��citos"

entre um branco e uma mulata. O livro foi banido em Boston

por mencionar claramente uma palavra tabu de quatro letras.

Esse livro nos prova: a) que o problema racial continua vivo

no Sul, e que seus dados n��o mudaram, com o passar do tempo;

b) que existem pessoas esclarecidas como Lilian Smith, autora do

livro, e corajosas ao ponto de tratar desse problema duma manei-

ra clara e contundente ��� o que nos leva a esperar que se possam

erguer no Sul, dentro do pr��prio reduto racista, vozes em favor

do negro americano; c) que o puritanismo bostoniano continua

tamb��m aceso, intolerante como nos tempos dos Fundadores,

e que talvez a sua rea����o tenha sido menos contra a "palavra

feia" do que contra o sentido "pornogr��fico" do livro, isto ��, a

miscigena����o olhada com toler��ncia se n��o com simpatia.

T. ��� E de tudo quanto ficou dito se conclui que...

E. ��� Artigo primeiro: O racismo �� um sentimento inexpli-

c��vel neste povo t��o democr��tico, t��o cheio de sentimentos equa-

lit��rios. Artigo segundo: O problema negro �� de solu����o difi-

c��lima. E artigo terceiro: Nem eu nem voc��, meu caro Tobias,

poderemos resolv��-lo...

E neste ponto nos separamos com pensamentos sombrios.

O SAL DA TERRA

29 de mar��o. Elizabeth Chevalier, autora de "The

Driving Woman", um best-seller do ano passado, con-

vida-nos para um jantar. �� uma criatura encantado-



A VOLTA DO GATO PRETO

403

ramente simples, casada com um dos mais famosos ad-

vogados dos Estados Unidos.

Moram os Chevalier em Pasadena, numa espl��n-

dida casa, com uma piscina em meio de vasto jardim.

Fala-nos ela do novo romance que est�� escrevendo,

mas recusa-se ��� com uma insist��ncia que me intriga

��� a revelar-lhe o t��tulo e o assunto.

Quando estamos tomando caf�� no living-room Mrs.

Chevalier nos conta uma anedota que me parece uma

admir��vel ilustra����o para o egocentrismo da maioria

dos escritores.

��� Uma vez ��� come��a ela, fitando em mim seus

calmos olhos cinzentos ��� um romancista encontrou num

desses coquet��is de Nova York um velho amigo que

havia muito perdera de vista. Levou-o para um canto

e come��ou a contar-lhe o que estivera a fazer todos

aqueles anos. Depois de uma hora de narrativa na

primeira pessoa do singular, o escritor fez pausa, mu-

dou de tom e disse: "Bom. T�� falei demais sobre

minha pessoa. Agora vamos falar da tua: Que foi

que achaste de meu ��ltimo romance?"

MR. CHOPIN

2 de abril. Levo duas estudantes brasileiras ��� que

est��o de passagem por Hollywood ��� a visitar os es-

t��dios da Columbia Pictures, que s��o os mais sem ce-

rim��nia dentre todos. Neles as formalidades est��o re-

duzidas ao m��nimo. Basta que eu apare��a no escrit��-

rio de seu diretor de publicidade estrangeira, Mr.

Levy, ��� um simp��tico judeu levantino, que fala um bom

espanhol e que j�� est�� come��ando a falar portugu��s ���

para que ele me abra imediatamente as portas dos

"sets" .

A Columbia Pictures fica bem no centro de Holly-

wood. �� uma companhia muito menor que a Metro,

404

O B R A S DE E R I C O V E R �� S S I M O

a Twenty Century Fox e a Warner Bros, mas de quan-

do em quando produz excelentes com��dias, e agora

acaba de lan��ar um filme que est�� fazendo furor,

"A Song to Remember", baseado na vida de Chopin,

que no presente caso �� Cornel Wilde.

As minhas compatriotas ficam alvorotadas quando

lhes digo que v��o conhecer Mr. Chopin em pessoa.

Entramos num destes barrac��es que s��o os "sets", ca-

minhamos por entre uma quantidade desnorteadora de

montes de sarrafos, escadas, cabos, cen��rios, m��veis,

para chegar finalmente ao lugar onde se est�� filmando

uma cena da hist��ria intitulada "O Bandido da Flo-

resta de Sherwood", que s��o as aventuras do filho de

Robin Hood ��� o her��i encarnado no cinema h�� alguns

anos por Errol Flynn.

A pel��cula �� em tecnicolor. A cena representa c

interior duma cabana de mobili��rio escasso e r��stico.

Num canto, h�� uma lareira acesa, por sobre a qual se

v��em penduradas uma perna de porco defumada e al-

gumas espigas de milho. Al��m dos empregados do

est��dio, operadores, t��cnicos, assistentes, etc. v��em-se

por aqui alguns membros do bando de Robin Hood

com suas cal��as de meia, muito justas nas pernas e nas

coxas, chapeuzinhos de feltro com uma peninha do

lado, punhais �� cinta, aljava a tiracolo, e um arco na

m��o. Sentado numa cadeira est�� o gordo frade Edgar

Buchnan, de espadag��o �� cinta.

Consigo que minhas companheiras sejam apresen-

tadas a Cornei Wilde, que tem uma cara de "bom

mo��o" e que diante de n��s se porta bem como cente-

nas desses boys de boa sa��de que tenho encontrado nas

universidades americanas. Tem uma cara simp��tica e

limpa, e uns olhos serenos que sugerem uma alma sem

complica����es. Est�� apoiado no seu grande arco, e a

roupa de meia cinzenta lhe modela as pernas mus-

culosas.

A VOLTA DO GATO PRETO

405

��� Ent��o o senhor �� o filho de Errol Flynn... ���

digo-lhe numa absoluta falta de assunto.

Ele sorri e, fazendo uma alus��o ��s aventuras amo-

rosas de seu colega na vida real, responde:

��� Pois ��. Sou um dos muitos de seus bastar-

dinhos.

E depois, mudando de tom:

��� Bom, mas isto que acabo de dizer n��o �� para

publicar... est�� entendido?

As duas brasileiras conversam com o filho de

Robin Hood, fazem-lhe perguntas e pedem-lhe um

aut��grafo.

��� Cornel! Hey, Cornel! ��� chama algu��m.

O her��i se despede de n��s e caminha para a ca-

bana, onde a hero��na da hist��ria o espera, muito loura,

toda vestida de verde, os olhos brilhantes e um rosto

duma beleza de tricromia. �� Annita Louise.

Mr. Levy me apresenta ao producer do filme e ao

autor da hist��ria. Eis uma dupla inesquec��vel. Ambos

s��o baixinhos e agitados, muito esquisitos nas suas rou-

pas �� la Hollywood, dum verde t��o intenso que at��

parece escolhido especialmente para o filme em tec-

nicolor. Um deles, o producer, �� um homenzinho ma-

gro, de cabelos tingidos, bigodinho muito fino, tamb��m

pintado. Temos um di��logo r��pido e vazio. A dupla

tem de voltar para seu lugar, pois a filmagem vai

come��ar.

��� Sil��ncio! Vamos ensaiar.

Mas os empregados continuam a falar, a bater

pregos, a arrastar cabos.

��� Sil��ncio, eu j�� pedi! ��� vocifera o diretor.

Finalmente faz-se sil��ncio. O ensaio come��a. ��

um di��logo entre o filho de Robin Hood e a donzela

nobre do castelo. No fim ela tenta esbofete��-lo mas n��o

consegue, pois o rapaz lhe segura o pulso e, rindo cini-

camente, beija-a na boca. O ensaio se repete. Por fim,

quando o diretor acha que tudo est�� bem, decide fo-



406

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

tografar a cena. Os refletores se acendem. Um dos

empregados derrama gasolina sobre os toros da larei-

ra e atira sobre elas um f��sforo. A chama sobe, ama-

rela e l��pida. A filmagem vai come��ar. Sil��ncio!

Ouve-se uma campainha.

A meu lado as brasileirinhas vibram. Creio que

este �� um grande dia em suas vidas.

O DIABO

3 de abril. Com as mesmas brasileiras e Mariana

visito hoje o estudio da RKO, onde assistimos �� filma-

gem de uma cena que representa um palco de show

boat um desses navios-teatros que no s��culo passado

costumavam percorrer o Mississipi, parando nas ci-

dades ribeirinhas para dar espet��culos com menestr��is,

atores dram��ticos e dramalh��es entre os quais estava o

infal��vel ��� "A Cabana do Pai Tomaz".

Como esta cena est�� sendo tomada de longe, e a

c��mara se acha a uns cinco metros de altura, podemos

ficar sentados na plat��ia do "teatro" uma vez que s��

o palco ficar�� em foco.

Sobre este vemos nuvens de algod��o, por tr��s das

quais se acham tr��s anjos de vestes e asas imaculada-

mente brancas, e aur��olas ao redor das louras cabe��as.

S��o anjos do sexo feminino, desses que depois da filma-

gem saem em baratinhas de tolda arreada, de cabelos

ao vento, e seguem na dire����o de Beverly Hills. H��

tamb��m anjos menores, meninas entre cinco e oito

anos, e o ensaiador est�� tendo grande trabalho para

ensinar-lhes o que devem fazer. S��o Pedro, um velho

alto e corpulento, de longas barbas e longa cabeleira

branca, acha-se parado a um lado do palco, com um

b��culo na m��o. E atr��s duma nuvem, Satan��s com suas

roupas vermelhas, seu cavanhaque pontudo, seus chi-

A V O L T A DO G A T O P R E T O

407

fres e seu rabo, l�� pacatamente um exemplar do "Daily

N e w s " , enquanto espera a hora de entrar e m cena.

Na plat��ia se encontram as m��es das crian��as que

v��o tomar parte na cena. Cochicham, riem, comentam

as filhas, acham que elas est��o muito engra��adinhas.

A cena consiste nisto: Um pobre negro velho, de

macac��o zuarte e chap��u de palha, chega ao c��u per-

seguido por Satan��s. Cai ao ch��o e esconde o rosto

nas m��os, num gesto de horror, enquanto o Pr��ncipe

das Trevas procura espet��-lo no seu tridente. Nesse

momento entra em cena S��o Pedro, que estende o bra-

��o na dire����o da direita e grita:

��� Para tr��s, Belzebu! Deixa em paz a alma deste

pobre homem!

Belzebu ergue a capa �� altura dos olhos, faz meia

volta e se vai, desmoralizado. Nesse momento os an-

jos rompem a cantar uma can����o religiosa dos negros

do Sul ��� Sioing Low, Sweet Chariot.

Mariana cochicha ao meu ouvido.

��� Onde est�� o microfone?

��� N��o est��... ��� respondo.

��� Ent��o como ��?

��� Esse canto e todas aquelas palavras pronunciadas

por S��o Pedro j�� foram gravadas antes. Presta aten����o.

A cantiga est�� saindo daquele alto-falante ali... e n��o

da boca dos anjos. Eles reproduzem a can����o para que

o anjo cantor possa mover os l��bios de acordo com as

palavras. Mais tarde o som �� impresso no filme numa

fita ao lado das imagens e a gente tem a ilus��o de que

essa girl cantou no momento em que a filmagem foi

feita.

��� Mas por que fazem isso?

��� Por v��rias raz��es. Primeiro, uma pessoa que

est�� preocupada com a voz, n��o pode ao mesmo tempo

representar bem. Depois, o esfor��o para emitir as no-

tas agudas obriga o rosto a contor����es que n��o ficam

408

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

bem quando fotografadas, principalmente em primeiro

plano. Acontece, tamb��m, que h�� dias em que os ar-

tistas est��o com a voz melhor que em outros, e rara-

mente esses dias de voz boa coincidem com os de

filmagem. Mas h�� raz��es de ordem t��cnica. Se o som

fosse registrado ao mesmo tempo que a fotografia,

como acontece no caso dos di��logos, a m��quina teria

de ficar s�� numa posi����o.

��� Por qu��?

��� Olhe. Suponhamos que Betty Hutton est�� can-

tando num night-club. N��s a vemos em primeiro pla-

no. Depois de longe. Ora, para mudar de posi����o, para

tomar um angulo novo, �� necess��rio mover a m��quina

e portanto interromper, cortar o canto e a m��sica. Se

n��o fosse essa id��ia de gravar o canto antes ��� o que

se chama play back ��� ter��amos a melodia toda cortada,

toda cheia de "solavancos", de diferen��as de tom e in-

tensidade.

Enquanto explico estas coisas os anjinhos dan��am no

palco. Toda a cena pretende ser uma esp��cie de s��tira

a esses espet��culos de show boat, ��� e portanto tem um

tom vis��vel de caricatura.

No intervalo entre o ensaio e a filmagem aproxi-

mo-me do diabo para reconhecer com surpresa, por

tr��s da pintura, da barba posti��a, a fisionomia de

Adolph Menjou ��� com o qual ficamos conversando

longamente. �� dos poucos homens bem informados

sobre o Brasil que tenho encontrado aqui. Repete-nos

um pequeno discurso em portugu��s. E, rindo, exclama

em ingl��s:

��� N��o se impressionem. Estou falando como um

papagaio. Decorei estas palavras para pronunci��-las

no r��dio, durante uma festa pan-americana em Nova

York.

Assina um aut��grafo para as estudantes brasileiras,

aperta-nos as m��os, apanha o seu tridente e l�� se vai

no seu tranc��o pesado rumo do c��u e dos anjos, e do



A V O L T A D O G A T O P R E T O

409

que se me afigura melancolicamente o fim de sua car-

reira no cinema.

MEM��RIAS DE MARCO POLO

17 de maio. Acabo de chegar dum vasto giro de

confer��ncias atrav��s dos estados de Texas, Oklahoma,

Kansas, Missouri e Indiana. Foi uma excurs��o muito

curiosa e estimulante, embora n��o oferecesse nada de

realmente sensacional ou imprevisto. Do ponto de

vista paisag��stico, foi uma viagem pobre. E quem j��

viu Nova York e Chicago n��o pode esperar novidade

das outras cidades americanas no que diz respeito a

cosmopolitismo, vida urbana de ritmo agitado, museus,

teatros, bibliotecas, galerias de arte... Em mat��ria de

clima, para meu gosto, nada existe no continente que se

possa comparar com este claro e morno sul da Cali-

f��rnia. Assim, o que trago mesmo dessa excurs��o que

durou pouco mais de um m��s, �� uma impress��o de nor-

malidade, progresso e seguran��a.

Depois de visitar doze cidades de Texas, atra-

vessei Oklahoma e fui at�� o Middle West, que �� o cora-

����o ou, melhor, a espinha dorsal dos Estados Unidos

��� uma regi��o cujos h��bitos e habitantes t��m dado a

Sinclair Lewis assunto para romances sat��ricos como

"Babbitt" e "Main Street".

A excurs��o toda se fez num ritmo t��o acelerado, que

n��o me foi poss��vel manter em dia o di��rio. E agora,

de volta a Hollywood, rabiscando estas notas no meu

jardim, sob um sol que a bruma amorna, penso nos lu-

gares por onde passei, vejo mentalmente um desfile

de faces ��� eu nunca esque��o as m��scaras humanas! ���

faces em grandes e pequenos teatros universit��rios,

faces nas ruas, em trens, em ��nibus... Sim, e tamb��m

410

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

faces misteriosas em sonhos... Minha mem��ria, como

uma caverna dos ventos, est�� agora cheia de sons, vozes,

melodias, sussurros, ecos... Revejo perspectivas de

ruas vertiginosas; e casas, montanhas, plan��cies ��� prin-

cipalmente plan��cies rasas, pardacentas, tristes, tudo

num cont��nuo movimento.. . Vejo-me entrando em ou

saindo de autom��veis, trens, avi��es... Apertando a m��o

de desconhecidos que horas depois (Adeus! Volte de

novo!) j�� me parecem velhos amigos. .. Subindo em

palcos e estrados, para d�� alto deles medir com o

olhar um agitado mar de cabe��as inquietas e jovens ���

mais faces, e que belas faces!. .. Entrando em sal��es

para tomar ch�� ou coquet��is e andar de grupo em gru-

po, respondendo a perguntas s��rias, tolas ou f��teis.. .

Repetindo frases como "Acreditem que o Brasil �� um

pa��s admir��vel..." ou "Mas �� preciso compreender os

brasileiros..." Vejo-me tamb��m sentado tranq��ilamen-

te junto de mesas, �� hora da ceia, contemplando faces

amigas �� luz de velas, ouvindo conversas familiares.

(O encanto da prov��ncia, a vida calma, os eternos as-

suntos ��� o tempo, os filhos, as flores do jardim, os

bichos dom��sticos, a torta de ma����s...) E de novo o

trem, as plan��cies, as florestas, as bombas de gasolina,

as esta����es, as cidades. Oh! Os companheiros de via-

gem. "O senhor �� do Brasil? Que interessante! �� a

primeira vez que vejo um brasileiro em carne e osso."

O carro-restaurante, a bicha, fil�� de truta, caf�� com lei-

te, sorvete de baunilha. Abrir malas, fechar malas.

Como ser�� San Antonio? Como ser�� Wiehita? E To-

peka? E Tulsa? Novos hot��is, novas faces, novos

adeuses...

E assim nesse ritmo visitei mais de vinte cidades,

percorri mais de cinco mil quil��metros como um cai-

xeiro-viajante que procurasse impingir ��s gentes de

todos esses lugares a id��ia de que o Brasil �� um

grande pa��s e os brasileiros um povo admir��vel..'.

Mas em v��o procuro em minhas notas um inci-

dente realmente sensacional. Ou um tipo excepcional-



A V O L T A DO G A T O P R E T O

411

mente pitoresco. Com letra quase ileg��vel encontro

em meu caderno de notas os seguintes rabiscos apres-

sados:

Texas

H�� aqui um ditado que d�� bem uma id��ia do orgulho que

os texanos t��m de sua terra: Nunca perguntes a um americano

se ele �� de Texas; porque se ele ��, dir�� logo; se n��o ��.., n��o

conv��m deixar o pobre homem atrapalhado .

Durante minhas visitas a diversas cidades deste estado, tenho

ouvido as seguintes declara����es orgulhosas: "Texas n��o s�� �� o

maior estado da Uni��o como tamb��m j�� foi um pa��s independente.

Viveu sob cinco bandeiras diferentes: a espanhola, a francesa,

a da Rep��blica de Texas, a confederada e finalmente a dos Esta-

dos Unidos. Sem Texas a Uni��o n��o poderia continuar a guerra.

Porque ela depende de n��s no que diz respeito a comidas, com-

bust��vel e tecidos. * Para transportar por estrada de ferro toda a

nossa produ����o de petr��leo de 1944 ��� dois milh��es de barris ���

seria necess��rio um comboio de nove l��guas de comprimento.

* Nosso estado �� o maior produtor de algod��o do mundo.

* Desde Pearl Harbour mais de 40 milh��es de soldados foram

transportados nos nossos trens. * Aqui se encontram os mais

ricos po��os de petr��leo, as mais importantes f��bricas de borracha

sint��tica, os maiores rebanhos de gado vacum e lan��gero."

Que pros��pia, a dos texanos! Mas que impress��o de segu-

ran��a, for��a e confian��a em si mesmas suas gentes e cidades

nos d��o!

Oklahoma

Uma esp��cie de fundo de quintal de Texas. Plan��cies ondu-

ladas que lembram ��s vezes as coxilhas do Rio Grande do Sul.

Terra vermelha. O nome Oklahoma na l��ngua dos ��ndios

Choctaw significa "gente vermelha". Esta regi��o ocupa o quarto

lugar na produ����o de minerais. Oklahoma tira mais petr��leo de

seu solo que qualquer outro estado, �� exce����o de Texas e Cali-

f��rnia. Mas seu "team" de basquetebol ��� informa-me o senhor

ruivo que est�� aqui a meu lado, no trem ��� �� o melhor do pa��s.

O Middls. West

A paisagem de boa parte desta regi��o nada tem de interes-

sante. Pelo contr��rio: a monotonia de suas plan��cies cansa.

412

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Suas cidades, sob o ponto de vista arquitet��nico e urban��stico,

nada oferecem de not��vel. Pode-se at�� dizer que uma �� a repe-

ti����o da outra.

Os habitantes do Middle West s��o hospitaleiros, francos, con-

servadores em mat��ria de pol��tica, e revelam todas as boas quali-

dades e todas as desconfian��as do homem do campo. Represen-

tam melhor que qualquer outro tipo de americano o esp��rito do

pioneiro, e fisicamente se parecem mais com os escandinavos e

com os alem��es do que com os ingleses.

Nas suas cidades principais j�� se nota grande atividade in-

dustrial, mas menos "sophistication" que em certos grandes cen-

tros urbanos do Leste. Parece ter raz��o o escritor ingl��s Graham

Hutton ao afirmar que no Middle West existe o "culto da me-

diania".

�� preciso levar em conta a import��ncia da casa na vida

desta regi��o. Em Nova York o homem que anda de apartamen-

to em apartamento, de hotel em hotel, n��o chega nunca, na

sua mobilidade, a possuir esse ponto de refer��ncia ao mesmo

tempo material e sentimental que �� a for��a e o sentido de per-

man��ncia da prov��ncia: a casa. Casa �� mulher. Representa

como que o ventre materno, o abrigo. A vida nas comunidades

novas dos tempos da conquista do Oeste estava baseada na fa-

m��lia. E ainda hoje nos Midlands a fam��lia tem grande impor-

t��ncia. Como suas cidades sejam em geral pequenas, �� poss��-

vel aos membros de suas fam��lias encontrarem-se muitas vezes

durante o dia; em suma, eles vivem mais unidos. H�� ainda a

influ��ncia do campo, dos contatos com a terra. Por isso tudo ���

apesar de sua falta de gra��a, de brilho, de glamor ��� os estados do Middle West significam equil��brio, ch��o firme e ra��zes fundas.

O Esp��rito de Middletown

Um dia, por volta de 1925, Robert e Helen Lynd, dois so-

ci��logos americanos, escolheram uma cidadezinha representa-

tiva do Middle West e l�� se aboletaram com o fim de obser-

var-lhe os habitantes, a vida e os costumes. O resultado disso

foi um livro admir��vel, que se tomou uma esp��cie de cl��ssico

moderno. Chama-se "Middletown" e �� um estudo da cultura

contempor��nea dos Estados Unidos. Essa Middletown �� na rea-

lidade Muncie, (Indiana) cidade que acabo de visitar. Dez

anos depois de terminado esse trabalho, voltaram os Lynd a

"Middletown", e o resultado da nova estada e do novo per��odo

de observa����o foi o livro intitulado "Middletown in Transition".

um estudo de conflitos culturais. Tenho comigo aqui no trem

A V O L T A D O G A T O P R E T O

413

um exemplar dessa obra. Leio num de seus cap��tulos que o

habitante de Muncie dum modo geral acredita:

Em ser honesto.

Em ser bondoso.

Em ser leal.

Em ser amigo, "bom vizinho" e "bom sujeito".

Em conseguir sucesso.

Em ser um homem mediano. "Praticamente todos com-

preendemos que somos homens comuns, e temos uma tend��ncia

para desgostar e desconfiar daqueles que consideramos fora do

comum."

Em que ter car��ter �� mais importante do que "ter miolos".

Em ser simples, despretensioso e nunca "assumir ares" ou

ser um esnobe.

Em dar apre��o ��s coisas comuns, "reais" e "saud��veis".

Em ter senso comum.

Em ser s��o e firme.

Em ser um bom companheiro e saber transformar os adver-

s��rios em amigos.

Em ser corajoso e bem humorado diante de situa����es

dif��ceis.

Em, no caso de d��vida, ser como os outros.

Em, diante de problemas, ater-se a pr��ticas que deram

resultados no passado.

No que diz respeito a id��ias pol��ticas e sociais, o habi-

tante de Muncie (e nisso ele representa admiravelmente o es-

p��rito do Middle West) acha que "progresso �� igual a cres-

cimento", e portanto toda a coisa que cresce necessariamente

progride. Assim, para ele s��o mais importantes as mudan��as

quantitativas que as qualitativas. Pensa tamb��m que devemos

seguir "o processo natural e ordeiro de progresso", e desse modo

a evolu����o tem que ser lenta, e as revolu����es, com suas brus-

cas mudan��as, lhe s��o indesej��veis. O "middlewestern" acredita

tamb��m em que os "radicais" (e sob esta ep��grafe ele classifica

vermelhos, comunistas, socialistas e ateus) desejam o aniquila-

mento da civiliza����o americana. Os que seguem a linha m��dia

��� conclui ��� s��o os mais s��bios, pois a boa vontade acabar�� re-

solvendo todos os problemas.

Middletown cr�� no poder da efici��ncia, da honestidade e

da habilidade; acha que as pessoas devem ser pr��ticas e efici-

entes, e que "Deus ajuda aquele que se ajuda a si mesmo".

("Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga"

��� dizemos nos no Brasil.) Quanto aos estrangeiros, h�� em

Middletown uma tend��ncia para consider��-los em sua maioria

"inferiores". Outra das cren��as do' middlewestern �� a de que

414

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

os negros s��o positivamente inferiores e de que os judeus in-

dividualmente podem ser O. K., mas como ra��a seu conv��vio

n��o �� l�� muito recomend��vel...

Entre as observa����es mais reveladoras que os Lynd fize-

ram em Muncie, encontro as seguintes id��ias e cren��as locais:

"Sexo �� uma coisa que "deram" ao homem para prop��-

sitos de procria����o e n��o de gozo pessoal. * As rela����es se-

xuais antes ou fora do casamento s��o imorais. * As mulheres

s��o melhores e mais puras que os homens. * Ser propriet��rio

da casa onde moramos �� coisa boa para a fam��lia e tamb��m

auxilia a gente a ser bom cidad��o. * As escolas devem ensinar

os fatos da experi��ncia passada sobre os quais as pessoas s��s

e inteligentes est��o de acordo. * Uma educa����o universit��ria

�� uma boa coisa, mas o homem que a possui nem por isso ��

superior ao que nunca freq��entou universidade; e como o primei-

ro deles tende a ser menos pr��tico, deve aprender tamb��m as

"coisas da vida" para contrabalan��ar sua carga de teorias".

O homem do Middle West, repito, n��o �� brilhante nem pi-

toresco, mas �� dotado de apreci��veis qualidades morais e lem os

p��s solidamente plantados na terra.

Aquele dia de Abril...

De todas as minhas recorda����es dessa excurs��o, as mais

vivas s��o as daquele dia sombrio em Commerce, pequena lo-

calidade de Texas em cujo Teachers' College eu tinha ido falar.

Ao entrar no campus vi, na frente do edif��cio principal, a bandeira brasileira ondulando ao lado da americana. E durante

a sabatina que se seguiu �� minha palestra no audit��rio do co-

l��gio, um rapazote de seus doze anos levantou-se e perguntou:

"O senhor pode me explicar o significado das cores da ban-

deira brasileira?" Nesse instante dona Eufr��sia Roj��o me sur-

giu na mem��ria e, de cima de seu estrado de professora, me

soprou a resposta.

�� tarde uma dama de Commerce me ofereceu uma recep-

����o em sua casa, mans��o t��pica do Sul, com sua escada em

espiral, seus m��veis antigos e retratos avoengos. Era eu o

��nico homem no meio dumas trinta mulheres, algumas das

quais notavelmente belas. Pediram-me que lhes contasse coi-

sas do Brasil e depois me fizeram toda a sorte de perguntas.

Enquanto convers��vamos uma mocinha de olhos azuis e cabelos

castanhos tocava em surdina, num piano de cauda, melodias do

Velho Sul.

Da casa vizinha chegavam at�� n��s os sons dum r��dio.

De repente houve uma interrup����o na m��sica que se irradia-

A VOLTA DO GATO PRETO

415

va e uma voz grave de homem se ouviu... n��o pude entender

o que dizia o speaker, mas tive um estranho pressentimento.

Terminou a guerra ��� pensei ��� o u . . . morreu Franklin Roosevelt.

Poucos minutos depois deixei aquele ambiente morno e sa�� com

Miss Adelle Clark para a tarde fria e gris. A primeira coisa que

vimos foi, na cal��ada oposta, uma menininha duns sete anos,

toda vestida de branco, e que naquele momento apeava de sua

bicicleta. Ao ver-nos, gritou atrav��s da rua: "O r��dio disse que

nosso Presidente morreu". Sua vozinha fina se esfarelou no ar.

Mas despertou dentro de mim ecos tremendos. Tive a impres-

s��o que de repente me faltava amparo. E por mais tolo que isso

agora pare��a, tive uma s��bita impress��o de orfandade... Miss

Clark empalideceu, ficou por um instante como que paralisada.

"Meu Deus, n��o �� poss��vel..." ��� balbuciou ela. Come��amos a

andar em sil��ncio, lentamente. A not��cia j�� se havia espalhado

pela vila. Vi mulheres e homens com os olhos cheio de l��grimas.

E �� noite daquele mesmo dia, sentado num banco, na plataforma

da esta����o quase deserta, esperando o trem que me levaria de

volta a Dallas, fiquei a conversar com um professor e com um

maquinista. Come��aram ambos a recordar discursos do grande

Presidente, do qual falavam com respeito e ternura. Um deles

recitou um trecho da primeira ora����o de Roosevelt ao tomar

posse de seu cargo em 1933: . . .a ��nica coisa de que devemos

ter medo �� do pr��prio medo ��� do terror sem nome e sem ra-

z��o que paralisa os esfor��os necess��rios para transformar a re-

tirada num ataque . Um guarda-freios juntou-se ao nosso grupo.

E em voz baixa, como rapsodos que celebrassem os feitos duma

figura lend��ria, cada qual contou uma hist��ria sobre F. D. R.

��� Que ir�� fazer o Harry? ��� perguntou um deles.

Referia-se a Traman. �� um velhote que at�� ent��o estivera

calado, mascando seu toco de charuto, aproximou-se de n��s e

disse:

��� N��o se aflijam, boys. O Harry vai dar conta do recado.

O professor observou com sua voz cansada:

��� Os tempos s��o duros, amigo. Ser�� que Mr. Truman

est�� �� altura do cargo?

O velhote fez uma pausa para acender o charuto.

��� Que duvida! ��� exclamou por fim. ��� Harry �� de In-

dependence, Missouri. �� um homem do Middle West. Tem

o bom senso do vendedor de cavalos. Stalin que tome cuidado

com ele.

Um trem apitou longe. As estreias tinham um brilho mor-

ti��o.

Em Dallas li os jornais do dia. Todos traziam comoventes

biografias de Roosevelt. Mas de mistura com os necrol��gicos ha-



416

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

via neles uma nota de esperan��a, um ar de quem quer dar a

entender que morreu um grande l��der mas seu grande povo

continua de p��. A Vit��ria est�� a vista. Todos apoiam Harry

Truman e confiam nele para a arrancada final.

E como eu estivesse sentindo a morte do Presidente como a

dum velho amigo, telefonei para minha gente numa esp��cie de

busca de consolo. Tive a sorte de conseguir uma liga����o com

Hollywood em menos de dez minutos. Mariana me contou que

ao saber da sombria not��cia, toda a fam��lia desatara o pranto.

E quando voltei para casa encontrei no di��rio de minha fi-

lha ��� escrito num ingl��s estranh��ssimo ��� as seguintes palavras:

12 de abril. ��� Roosevelt morreu. Meu Deus, faz que tudo

isso seja um sonho. Eu e o Lu��s gostamos tanto dele!

SEXO

Meu caro Vasco: Tobias quer hoje discutir comigo os aspec-

tos do amor nos Estados Unidos, e eu j�� o adverti dos perigos

deste tema, que nos pode levar a um terreno escabroso. Fiz

isso pensando apenas na inoc��ncia de meu prestimoso amigo, por-

que eu ��� ai de mim! ��� perdi a minha no dia em que comecei

a escrever "Caminhos Cruzados."

T. ��� Acha o tema complicado?

E. ��� Complicad��ssimo, exatamente por causa da aparente

simplicidade da alma americana.

T. ��� De que amor falaremos?

E. ��� Naturalmente deixaremos de lado o amor maternal,

o filial, o fraternal. E o amor de certas damas pelos seus c��es e

gatos... Em suma: falemos em sexo.

T. ��� E eu desde j�� confesso minha perplexidade diante dos

aspectos contradit��rios que este pa��s oferece no que diz respeito

ao sexo. �� que ora os americanos me parecem puritanos, ora

verdadeiros man��acos do sexo.

E. ��� O que lhe vou dizer n��o li em nenhum livro. �� re-

sultado de observa����o pessoal. Tenho conversado sobre o as-

sunto com muitos homens e mulheres, principalmente com mu-

lheres. Tenho rodado pelas estradas deste pa��s, visitando-lhe

praticamente quase todas as regi��es...

T. ��� E de todo esse conv��vio e essas andan��as voc�� con-

cluiu que...

E. ��� H�� nos Estados Unidos quatro atitudes principais com

rela����o ao sexo:

1.a ��� A atitude puritana: Sexo �� uma coisa indecente que

deve ser escondida o mais poss��vel.

A VOLTA DO GATO PRETO

417

2.�� ��� A atitude cient��fica: Sexo �� uma coisa natural; pode

e deve ser explicada sem falso pudor.

3.a ��� A atitude comercial: Sexo �� um chamariz poderoso

e como tal deve ser explorado.

4.a ��� A atitude esportiva: Sexo �� uma coisa boa; n��o h��

raz��o para que a gente n��o goze dela.

T. ��� Tudo isso me soa bem, mas n��o posso deixar de lhe

pedir que desenvolva melhor sua teoria.

E. ��� Boston �� o reduto da atitude puritana. Nessa cidade

s��o banidos os livros de fic����o que tratam os problemas sexuais

com crueza ou que usam palavras que o c��digo de dec��ncia lo-

cal considera impr��prias. Mas essa atitude �� em geral a de gran-

de parte das comunidades religiosas, tanto protestantes como ca-

t��licas. Ela originou a famosa "Liga da Dec��ncia" que obrigou

os est��dios de Hollywood a criarem um "bureau" pr��prio de

censura com a finalidade de "limpar" os filmes. Pode-se dizer

que �� uma atitude que encontra suas origens na B��blia, cujo ve-

lho testamento ��, paradoxalmente, um dos livros mais cruamente

livres que o mundo conhece.

T. ��� Oh! J�� est�� voc�� de novo com caricaturas.

E. ��� A atitude cient��fica �� assumida por grande n��mero

de professores, psicanalistas, m��dicos, escritores e pensadores

liberais. Advogam eles uma ampla educa����o sexual tenden-

te a tirar ao ato f��sico do amor todo o mist��rio e portanto

muito de sua natureza pecaminosa.

T. ��� Quais os resultados dessa educa����o sexual?

E. ��� Ela evita deforma����es, quando bem dirigida, e ajuda

a criar uma atmosfera de maior sinceridade ou pelo menos de

menor hipocrisia nas rela����es entre os sexos. Por outro lado,

por��m, pode levar as pessoas a tratar o sexo como muitos aqui

tratam os alimentos, isto ��, preocupando-se muito com as vita-

minas, as calorias, a boa qualidade dos g��neros, mas pouco com

o gosto, com o simples prazer de comer. Comem ��s pressas,

sem cuidado nem requinte. Ora, no caso dos alimentos trata-

se de coisas sem vida, sem sensibilidade. Mas no caso do amor

essa atitude desligada e semicient��fica de uma das partes pode

deixar a outra parte ressentida, humilhada e insatisfeita.

T. ��� Essa atitude comercial me intriga. Onde se mani-

festa ela?

E. ��� No teatro, no cinema, nos night clubs, nos jornais, na

literatura e na publicidade.

T. - Como?

E. ��� Certas pe��as de teatro e shows de cabar�� exploram

o nudismo e a anedota ou o di��logo picante. Controlados pela

censura os filmes evitam as piadas pornogr��ficas mas por outro

418

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

lado em muitos casos procuram explorar o sexo numa exibi����o

de pernas e corpos femininos. Os jornais publicam reportagens

detalhadas em torno de div��rcios, infidelidades conjugais e

crimes sexuais.

T. ��� Lembro-me dum caso recente de investiga����o de

paternidade que envolveu Charlie Chaplin.

E. ��� Esse processo ocupou p��ginas inteiras nos di��rios,

relegando para um lugar menos importante as pr��prias not��cias

da guerra. Joan Berry, que afirmava ser Carlitos o pai de seu

filho, narrou no j��ri suas intimidades com o famoso "clown".

E confesso que at�� hoje n��o cheguei a perceber aonde queriam

os advogados chegar quando perguntavam se em tal e tal oca-

si��o Chaplin se havia despido completamente. Lembro-me de

que um dia o "Cali Bulletin" de San Francisco trazia no alio

da primeira p��gina um cabe��alho em letras negras e grossas,

de cinco cent��metros de altura: "JOAN DECLARA QUE

CARLITOS TIROU TODA A ROUPA".

T. ��� Mas voc�� n��o afirmou em outra ocasi��o que os ame-

ricanos detestam as coisas m��rbidas?

E. ��� Eu me referia principalmente aos assuntos ��� doen��a,

morte e deprava����o sexual. Quanto ao resto eles n��o fogem ��

regra geral. T��m uma grande curiosidade, n��o s�� com rela����o

ao sexo como tamb��m a tudo quanto diga respeito a "perso-

nalities", especialmente quando se trata de celebridades do

mundo do cinema, do teatro, da pol��tica e das artes. E de

resto, meu caro, voc�� n��o conhece aquele fasc��nio que exerce

sobre n��s o que achamos horrendo? Nunca se viu poderosa-

mente atra��do por coisas que voc�� diz e pensa detestar?

T. ��� Como �� que a publicidade explora o sexo?

E. ��� Usando o nudismo como isca para seus cartazes e

an��ncios. Empregando frases cheias duma vol��pia clara ou

subentendida. No seu livro "Gera����o de V��boras", estudando

com feroz crueza os problemas e "mitos" dos Estados Unidos,

Philip Wylie assim se refere �� qualidade sexual dos an��ncios:

"... in��meros anunciantes estampam a cabe��a e os ombros ou

todo o torso nu de "soubrettes" org��acas, por baixo da declara����o

de que um determinado produto as tornou mais beij��veis, atra-

entes, cas��veis, populares nas festas, e mais convid��veis para

passeios ao luar; ou ent��o que outros produtos as tornaram

"okay" em mat��ria de higiene feminina, h��lito, suor das axi-

las. .. etc..." Segundo esse mesmo escritor o assunto sexo ��

olhado pelos americanos como algo que pertence mais ao dom��-

nio das convic����es pessoais do que ao da lei natural (e portanto

da ci��ncia). Ataca Wylie seus compatriotas que insistem em

proclamar que a na����o �� sexualmente "virtuosa", recusando-se

A VOLTA DO GATO PRETO

419

a encarar o problema do sexo com franqueza e objetividade.

Estudando ainda a "castidade" americana o mesmo autor es-

creve: "Cerca de setenta e cinco por cento dos mo��os ame-

ricanos solteiros t��m rela����es sexuais com mo��as. Entre as

mulheres adultas, jovens e solteiras, o n��mero de virgens ir��

no m��ximo a cinq��enta por cento." N��o sei at�� onde ser��o

exatos esses algarismos e n��o sei at�� onde podemos aceitar as con-

clus��es de Philip Wylie nos seus violentos ataques ��s institui-

����es americanas. N��o representar�� ele por acaso uma outra

atitude extremada, em oposi����o �� daqueles que proclamam a

castidade da na����o?

T. ��� Poderemos dizer que Hollywood �� um centro repre-

sentativo dessa atitude comercial com rela����o ao sexo?

E. ��� Penso que sim. Hollywood n��o s�� �� uma f��brica de

sonhos, de fantasia, como tamb��m um laborat��rio que fornece

ao mundo estimulantes afrodis��acos.

T. ��� E a atitude esportiva?

E. ��� Para principiar n��o sei se "esportivo" ser�� adjetivo

exato. Mas v��! Essa �� a atitude de boa parte da mocidade e

de muitos homens e mulheres adultos sem preocupa����es reli-

giosas s��rias. Mesmo os que adotam essa atitude diante do

sexo podem ainda ser influenciados em maior ou menor grau

por id��ias puritanas e por preconceitos de outra natureza,

mesmo que n��o tenham consci��ncia clara disso. Eles em geral

exercem a atividade sexual como sadios animais e em geral n��o

a supervalorizam. E �� curioso observar como o autom��vel veio

influir na vida amorosa do pa��s, facilitando as aventuras er��-

ticas dos americanos.

T. - Como?

E. ��� O autom��vel �� por assim dizer a cama port��til, a

alcova sobre rodas. Em seu romance "This Side of Paradise"

Scott Fitzgerald, que pertencia �� chamada "gera����o perdida"

que emergira das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, conta

a agitada hist��ria da mocidade americana dos novecentos e

vinte. E os puritanos, horrorizados, verificavam que seus pri-

meiros filhos ou netos, enfim, que a mocidade do pa��s estava

longe de ser uma legi��o de anjos, de "good boys and girls" que

liam "Alice na Terra das Maravilhas" ou os romances de Louisa

May Alcott; eram, isso sim, jovens dem��nios que bebiam, que

se entregavam a aventuras sexuais e que pareciam n��o levar a

s��rio a tradi����o, os bons costumes e os preceitos da B��blia.

T. ��� E a que conclus��o chegou voc�� ap��s o conv��vio de

dois anos com a mocidade universit��ria?

E. ��� Numa palavra: eles s��o okay. Existe entre eles algu-

ma liberdade sexual mas essas mo��as e rapazes t��m uma po-

420

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

derosa inclina����o para a dec��ncia e para a limpeza. �� natu-

ral que entre eles haja tipos do mais variado estofo moral...

Mas se procurarmos ver a diferen��a entre pr��s e contras encon-

traremos consider��vel saldo a favor da juventude americana

��� um saldo de bons costumes e boas qualidades. Para isso muito

tem contribu��do a sa��de de que gozam e o tipo de educa����o

que se lhes d��.

T. ��� Mas acha que o sexo �� um problema neste pa��s?

E. ��� Onde n��o ser��?

T. ��� Mais s��rio do que entre n��s?

E. ��� N��o creio. Temos de lutar com o nosso temperamento

e com os resultados duma educa����o defeituosa.

T. ��� Os brasile��os que chegam a este pa��s admiram-se de

ver que as mulheres americanas n��o "namoram".

E. ��� A palavra "namorar" aqui n��o tem o menor sentido.

Quando duas pessoas se gostam, elas imediatamente se falam.

Depois de trocarem as primeiras palavras, combinam um encon-

tro, um date. O date �� uma institui����o importante. Para uma

jovem, ter muitos dates �� um sinal de prest��gio. Esse date

consiste em sair, em geral �� noite, com o boy para jantar e ir

depois ao cinema, ao teatro, ao parque ou ao rinque de patina����o.

T. ��� E at�� que ponto esse date tem um sentido er��tico?

E. ��� O fato de um rapaz e uma mo��a sa��rem juntos n��o

significa que tenham em mente uma liga����o sexual. (Embora

algumas vezes esse pensamento possa estar no fundo do esp��rito

de um dos dois, ou de ambos.) Nem significar�� que j�� est��o

ambos apaixonados um pelo outro.

T. ��� Qual �� ent��o o sentido do date?

E. ��� O date significa que o rapaz acha que a pequena ��

interessante e a pequena acha que ele �� um bom camarada.

Significa, em suma, que ambos querem divertir-se na compa-

nhia duma pessoa do sexo oposto.

T. ��� E durante esse date trocam beijos?

E. ��� Talvez n��o no primeiro. Mas se continuarem a sair

juntos, o rapaz acabar�� pedindo o good night kiss, isto ��, o beijo

de despedida, junto da porta.

T. ��� E a mo��a concede?

E. ��� Essa pergunta eu fiz a uma pequena que costuma

ter muitos dates. Respondeu ela: "Se �� um rapaz simp��tico e

bem-educado, concedo". Indaguei: "Mesmo que n��o esteja

apaixonada por ele?' Ela arregalou os olhos e disse: "Mas ��

preciso a gente estar apaixonada por um rapaz para deixar que

ele nos beije?"

T. ��� Observei que o beijo aqui tem um sentido um tanto

diferente do que lhe damos na Am��rica do Sul.

A VOLTA DO GATO PRETO

421

E. ��� O beijo no Brasil �� uma esp��cie de senha para entrar

no quarto de dormir. Mas neste pa��s seu significado n��o �� t��o

tremendo. Vi mulheres beijando homens que n��o s��o seus

maridos nem noivos nem amantes, mas simplesmente amigos.

Est�� claro que nem todas s��o assim pr��digas com seus beijos...

T. ��� E por todas essas coisas os latinos cometem aqui

gafes colossais.

E. ��� Sei de casos de estudantes brasileiros que vieram

para c�� e interpretaram mal alguns gestos de camaradagem das

mo��as americanas. Porque elas os abra��assem com naturalidade

ou lhes tomassem da m��o, eles julgaram que tinham feito uma

conquista e aventuravam-se a um convite para o amor. O re-

sultado era triste. As meninas respondiam: "Voc��s vivem com

a cabe��a cheia de pensamentos sujos". E depois disso os iso-

lavam. .. N��o faz muito uma americana que veio do Rio se

declarou horrorizada ante a maneira como os homens brasileiros

olhavam para ela. E concluiu: "Eles como que nos despem

com os olhos".

T. ��� Acha voc�� que o americano tem um temperamento

mais frio que o nosso?

E. ��� Mas, afinal de contas, que �� um americano? H�� os

descendentes de irlandeses, de italianos, de espanh��is, de fran-

ceses, de escandinavos. Conhe��o-os moderados, frios, apaixo-

nados. .. enfim, de toda a esp��cie. N��o creio que apreciem

menos que os latinos o ato sexual. O que acontece �� que, como

resultado dum tipo de educa����o diferente do nosso e de sua

vida num meio tamb��m diferente daquele em que vivemos e

fomos criados, eles t��m outros interesses.

T. ��� Que quer dizer voc�� com interesses?

E. ��� O homem americano preocupa-se muito com os ne-

g��cios, com o esporte e com urna infinidade de "hobbies" ou

passatempos. Tudo isso ajuda-o a desviar o pensamento do

sexo.

T. ��� H�� tamb��m a bebida.

E. ��� Precisamente. Bebe-se muito neste pa��s. Parece-me

que em 1942 o consumo de bebidas alco��licas nos Estados

Unidos correspondeu a uma m��dia de 60 d��lares por cabe��a.

Multiplique isso por 130 milh��es e ter�� uma soma fabulosa.

Sim, a bebida tamb��m �� um derivativo poderoso.

T. ��� De sorte que os latinos, na sua opini��o, pensam de-

masiadamente em sexo.

E. ��� Quanto a isso parece haver pouca d��vida. E, usando

outra vez de tra��os caricaturais, direi que os americanos sentem

prazer durante o ato sexual; ao passo que os latinos gozam

antes, durante e depois do ato...

422

OBRAS DE E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� E esse seu coment��rio por acaso n��o ser�� tamb��m...

latino?

E. ��� Claro que ��. Mas vamos a outro exemplo. Pergunte

a um latino que �� que se pode jazer com uma mulher, e dentre

dez homens nove dar��o uma e a mesma resposta, que n��o pre-

ciso dizer qual seja. Mas se voc�� perguntar a um americano

que �� que se pode jazer com uma mulher, ele responder��: Ter

um date, passear, ir ao cinema ou ao teatro, fazer um piqueni-

que, jogar gin rummy, beber, dan��ar, ir ao futebol, jogar t��nis,

conversar... Eventualmente ele mencionar�� a outra utilidade

da mulher que tanto preocupa o latino.

T. ��� E voc�� acha que isso tudo se deve �� educa����o e ao

fundo religioso do povo americano e mais aos muitos outros

interesses e divertimentos que lhe ocupam as horas e os pen-

samentos?

E. ��� Sim. E h�� ainda outra coisa. Um fator poderoso que

nenhum observador dos Estados Unidos poder�� deixar de levar

em conta. �� a atitude das mulheres, que t��m papel importan-

t��ssimo na vida deste pa��s.

T. ��� A mulher tem estado presente na hist��ria dos Esta-

dos Unidos desde a chegada do "Mayflower" at�� nossos dias.

E. ��� A mulher do pioneiro era uma companheira dedicada

que o ajudava a enfrentar a intemp��rie, os ��ndios, os animais

ferozes e toda a sorte de perigos. Era uma mulher que lia a

B��blia, que tinha a sua f�� e que sabia fazer coisas. Enquanto

os homens iam para o mato ou sa��am em suas ca��adas e guerras,

ela ficava sozinha em casa com os filhos e muitas vezes tinha

de usar a carabina para se defender contra perigos eventuais.

O n��mero de mulheres que morriam de parto era consider��vel.

Os observadores modernos acham que os Estados Unidos s��o

um pa��s de vi��vas. Mas a Am��rica dos tempos coloniais era

um pa��s de vi��vos. Disso se depreende que hoje em dia �� maior

o n��mero de homens que morrem de doen��as do cora����o, dc

acidentes de tr��fego ou de ��lceras g��stricas, do que no passado

o de pioneiros de picadas de cobra, frechadas de ��ndio ou febres.

T. ��� Abraham Lincoln muito deveu �� sua madrasta, que

lhe incutiu o desejo de ser algu��m, e lhe deu uma vis��o do

mundo e dos seus deveres de cidad��o.

E. ��� E foram as mulheres que sempre prestaram apoio

aos mission��rios que vinham ��s col��nias pregar contra a bebida

e o v��cio. Elas se erguiam contra as injusti��as que os homens

brancos por acaso pretendessem fazer aos ��ndios. De certo

modo foram um elemento de ordem, de honestidade e de espe-

ran��a naquela sociedade primitiva.

A VOLTA DO GATO PRETO

423

T. ��� Mas desde quando come��aram elas a ter real influ-

��ncia na vida social, pol��tica e art��stica do pa��s?

E. ��� Creio que por volta de 1900, quando foi adotado nos

Estados Unidos o controle da natalidade, coisa que livrou as

mulheres de grande parte de sua carga, dando-lhes mais tempo

para estudar e tomar parte ativa na vida de suas comunidades.

T. ��� Pelo que tenho observado, sua import��ncia hoje ��

enorme.

E. ��� Isto, meu caro, �� em ��ltima an��lise um matriarcado.

Foram as mulheres que conseguiram a promulga����o da Lei

Seca, bem como a da lei que pro��be a prostitui����o organizada.

E como as mulheres t��m em geral uma tend��ncia muito maior

que a nossa para a dec��ncia, �� natural que sua atitude tenha

influ��do dum modo geral na conduta sexual dos homens.

T. ��� Acha sinceramente que as mulheres s��o felizes neste

pa��s onde parecem governar?

E. ��� N��o creio que sejam profundamente felizes. Talvez

procurem convencer-se disso narcotizando-se com todas as for-

mas de atividade social. Elas s��o jornalistas, escritoras, edu-

cadoras; tomam parte na vida comercial; realizam confer��ncias,

entregam-se a trabalhos de assist��ncia social, fazem-se m��dicas,

advogadas, engenheiras, enfermeiras, trabalham em escrit��rios,

em f��bricas... enfim, s��o competidoras dos homens em quase

todos os terrenos.

T. ��� E agora durante a guerra est��o prestando servi��os

admir��veis nos corpos auxiliares do ex��rcito, da marinha e da

avia����o.

E. ��� Sim, a guerra hoje em dia n��o �� mais um assunto

exclusivamente masculino. Mas... voltemos ao tema da feli-

cidade t��o. intimamente ligado �� quest��o sexual. Segundo

muitos psic��logos, a mulher americana �� uma frustrada. Ali-

menta-se das ra����es do romance que o cinema, os livros e os

magazines lhes oferecem atrav��s de hist��rias e novelas. Depois

que casam nem sempre encontram no casamento as promessas

douradas da fic����o e da poesia. Muitas delas passam toda a

vida de casadas prejudicadas pelos tabus sexuais impostos por

uma educa����o puritana. Algumas buscam no casamento uma

realiza����o sexual e raramente encontram um homem compre-

ensivo ou suficientemente inteligente (refiro-me principalmente

�� intelig��ncia dos instintos) para satisfaz��-las.

T. ��� Os homens se preocupam demasiadamente com os

neg��cios, com as carreiras...

E. ��� E sua atitude diante do sexo ou �� a semicient��fica

ou a puritana ou a esportiva, ou uma combina����o das tr��s. Por

outro lado as mulheres americanas t��m uru instinto maternal

424

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

muito desenvolvido. Tratam os maridos um pouco como a

filhos. Chamam-lhes o meu boy, o meu baby.

T. ��� At�� onde o marido �� culpado dessa atitude?

E. ��� Diz David L. Cohn em seu livro "Love in America"

que essa atitude maternal �� um resultado do fato de muitos

homens americanos serem: a) emocionalmente adolescentes;

b) n��o quererem dar muito tempo nem esfor��o no sentido de

construir uma vida sexual s��lida e sensata dentro do casamento:

c) olharem a mulher como uma lady, uma dama, no mesmo

sentido que sua m��e o �� ��� e isso, naturalmente, impede-os de

tratar a mulher como a uma amante. N��o �� pois de admirar

que o Dia das M��es seja uma inven����o norte-americana.

T. ��� N��o ser�� tamb��m que a vida moderna separa demais

o marido da mulher?

E. ��� Precisamente. �� o problema das muitas atividades,

dos mundos separados. H�� uma coisa curiosa. De certo modo

os americanos, principalmente os homens de neg��cios, olham as

atividades art��sticas e liter��rias como sendo coisas quase t��o

femininas como fazer tric�� e bordar. �� por isso que o mundo

liter��rio americano �� um mundo em que a mulher tem papel

preponderante.

T. ��� Essa rela����o entre homens e mulheres nos Estados

Unidos �� um assunto fascinante.

E. ��� E complicado, dif��cil e inesgot��vel. Porque h�� gente

de toda a esp��cie. Generalizar �� perigoso. Mas segundo o

mesmo Mr. Cohn, o homem americano geralmente n��o gosta

da mulher americana.

T. ��� E a rec��proca n��o ser�� verdadeira?

E. ��� Sei l��! O que sei �� que os americanos passam por

ser os melhores maridos e os piores amantes do mundo. As

mulheres americanas sentem uma certa atra����o pelos latinos.

�� uma atra����o temperada de medo. �� o fasc��nio da dama pelo

gigol��. Elas acham os latinos rom��nticos, atenciosos, exci-

t i n g . . . O homem americano tem para com suas mulheres uma

atitude ou filial ou desportiva. Os latinos assumem diante

delas uma atitude galante. Os primeiros simbolizam uma vida

segura, normal; os ��ltimos, o romance, o prazer e ��� oh c��us!

��� uma vida insegura e, no fim, desgra��ada.

T. ��� Voc�� n��o pode passar sem uma deforma����o..,

E. ��� Eu ou a vida? Mas voltando ao assunto das rela����es

entre homens e mulheres, muitos soci��logos conclu��ram que os

homens americanos n��o se interessam muito pelo mundo de

suas mulheres, por suas id��ias e atividades, mesmo que sc

sintam sexualmente atra��dos por elas. Tenho visto muitos stag parties nos Estados Unidos, isto ��, festas s�� de homens. S��o

A VOLTA D O GATO P R E T O

425

amigos que se re��nem para conversar, beber, falar em ca��adas,

bichos, autom��veis, neg��cios, viagens e ocasionalmente (s�� oca-

sionalmente) em mulheres, mas nas mulheres dos outros e n��o

nas suas. Diz Cohn que o americano n��o gosta das suas

mulheres porque foram dominados por elas durante toda a

inf��ncia e a adolesc��ncia. Depois da tirania da m��e, veio a

da professora. E desde a escola prim��ria at�� a universidade a

mulher come��a a ser a competidora...

T. ��� Em que sentido?

E. ��� Primeiro nos estudos, depois nos jogos, nos concursos,

nas festas. Mais tarde s��o concorrentes... nos empregos.

T. ��� E a guerra deu a milhares de mulheres que antes n��o

trabalhavam a oportunidade de ganhar altos sal��rios.

E. ��� E de habitu��-las a terem o seu dinheiro, a sua inde-

pend��ncia, as suas economias. Sim, elas n��o querer��o largar as

posi����es a que foram convidadas para substituir os homens que

o ex��rcito chamou.

T. ��� O que �� que h�� de verdade sobre a prostitui����o neste

pa��s?

E. ��� �� proibida por lei. Isso, entretanto, n��o impede que

haja "street walkers" isto ��, mulheres que andam pelas ruas

ca��ando homens discretamente, procurando n��o dar na vista

da pol��cia. Mas dum modo geral creio que nesse terreno os

Estados Unidos est��o em melhor situa����o que a grande maioria

dos outros pa��ses. Tive a oportunidade de verificar que o n��vel

moral de muitas das cidades do Middle West, do Oeste e da

Nova Inglaterra �� bastante alto, muito mais do que a gente

imagina quando v�� os filmes de Hollywood ou l�� certos livros

e magazines.

T. ��� Como explica voc�� a freq����ncia com que se verifi-

cam esses casos de rape, de estupro, de que os jornais andam

cheios.

E. ��� Para esse assunto tamb��m tenho buscado uma expli-

ca����o. Devemos antes de mais nada ter em mente que em

��poca de guerra aumentam a) a tens��o psicol��gica; b) os

crimes, principalmente os de natureza sexual; c) o consumo

de bebidas alco��licas. Tudo isso �� o resultado dessa psicose

horr��vel que tomou conta do mundo e que nasce da incerteza

quanto ao dia de amanh��, de todo esse espet��culo de viol��ncia

que presenciamos ou a respeito do qual lemos ou ouvimos falar.

A delinq����ncia juvenil tem aumentado. Nas casas em que o

pai est�� na guerra e a m��e trabalhando numa f��brica, e as

criadas positivamente n��o existem ��� os filhos ficam entregues

a si mesmos, a suas curiosidades, e �� sua fantasia morbidamente

despertada por certos filmes e pela leitura de livros e revistas

426

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

que reproduzem hist��rias de crime ou lubricidade. Com rela����o

aos "rapes", acontece tamb��m que a aus��ncia de prostitui����o

leva cs homens solteiros a uma esp��cie de castidade for��ada.

"Um dia todos os seus desejos recalcados sobem �� tona, rompem

todas as represas e precipitam-se... E l�� est�� a besta, cega

de desejo, disposta a tudo. E quando esse desejo, essa explo-

s��o se combina com alguma tend��ncia criminosa adormecida,

ent��o o quadro est�� completo. H�� um ditado segundo o qual a

ocasi��o faz o ladr��o. Mas o nosso Machado de Assis explicou que

a ocasi��o faz �� o furto, porque o ladr��o, esse j�� nasceu feito...

Em suma �� compreens��vel que entre 130 milh��es de seres huma-

nos haja gente anormal em boa quantidade. O essencial para o

observador �� n��o tomar como regra o que �� apenas exce����o.

T. ��� De sorte que at�� Machado de Assis entrou na nossa

conversa.

E. ��� Conversa que j�� vai longa. Mas n��o quero terminar

este di��logo sem chamar a sua aten����o para um aspecto muito

curioso da quest��o sexual, e das diferen��as de atitude entre

brasileiros e americanos. Eu preveni voc�� que o assunto era

perigoso...

T. ��� Fale com toda a franqueza. No fim de contas nin-

gu��m nos est�� escutando...

E. ��� H�� entre boa parte dos homens brasileiros uma certa

preocupa����o f��lica que se revela na m��mica e no anedot��rio.

Ora, segundo me tem sido dado observar, exatamente o contr��rio

se passa com os americanos, que evitam qualquer refer��ncia de

palavra ou gesto a essa parte da anatomia humana que uma

conven����o milenar declarou tabu. E ��� note bem ��� nos quartos

de banho tanto p��blicos como particulares deste pa��s, n��o

existem bid��s...

T. ��� Como se explica isso?

E. ��� �� talvez ainda a influ��ncia puritana, que procura es-

conder tudo quanto possa lembrar ou sugerir sexo.

T. ��� Que conclus��o, afinal, tiramos de tudo quanto ficou

dito?

E. ��� Nenhuma. A gente se limita a observar, registrar e

arriscar observa����es que corresponder��o quando muito a ver-

dades de superf��cie... Que atitude predominar�� na Am��rica?

A puritana de Boston? A pag��-er��tica-esportiva de Hollywood

e Nova York? Parece fora de d��vida que a atitude comercial

e pag�� diante do sexo se espalhou gra��as ao progresso mec��-

nico. N��o direi novidade se afirmar que nas comunidades

rurais e mesmo nas grandes cidades dos estados agr��colas a

moral �� mais alta que nas zonas de progresso industrial.

T. ��� De sorte que...



A V O L T A DO G A T O P R E T O

427

E. ��� Agora s�� nos resta encerrar este escabroso di��logo,

pedindo perd��o a Deus e aos americanos por todas as nossas

heresias...

ACONTECEU EM LOS ANGELES...

18 de maio. O "Celebrity Club" h�� dias me diri-giu uma carta convidando-me para dizer algumas pa-

lavras DO seu jantar anual, que se realiza no "Golden

Room" do Hotel Ambassador, em Los Angeles.

�� hora marcada chego ao hotel, esperando encon-

trar na sala, como de costume, umas cinq��enta ou

sessenta senhoras, e tenho a surpresa de ver aqui nada

menos de novecentas e tantas pessoas de ambos os se-

xos sentadas junto de longas mesas, num vasto sal��o

decorado em ouro e verde-jade. Sinto a vis��o bara-

lhada ante uma profus��o de vasos com flores vistosas,

bandeiras, chap��us com enfeites multicores, vestidos e

j��ias. Anda no ar morno uma mistura de cheiro de

comida, de caf�� com leite e perfumes diversos.

Uma jovem, que j�� encontrei n��o me lembro onde,

me conduz pela m��o at�� o lugar que me est�� reser-

vado. Fico agradavelmente ensanduichado entre duas

louras. Tonto, levo algum tempo para perceber que

tenho �� minha direita Ris�� Stevens, cantora do Me-

tropolitan, que apareceu com Ring Crosby em "O

Rom Pastor". �� muito simp��tica e atenciosa, mas in-

felizmente tem de retirar-se dentro de quinze minutos,

de sorte que fico entregue aos cuidados da outra

loura, que acontece ser a vi��va do ator Hobbart

Rosworth.

Esses jantares anuais do "Celebrity Club" s��o um

espet��culo singular, uma mistura de sublime e de ri-

d��culo. Um dos homenageados do dia �� Mr. L. Rehymer,

velho e querido empres��rio ao qual muitos astros e es-

trelas de cinema devem suas carreiras. O programa ��

o mais ecl��tico poss��vel.

428

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Come��am os discursos. Os oradores s��o artistas,

escritores, homens de neg��cios, atores de cinema e tear

tro e pastores protestantes. Wiiliam Farnum, com a

sua juba grisalha, a sua face risonha e vermelha, vem

fazer um comovido elogio do homenageado. Depois

�� Will Durant, que por algum tempo fala sobre m��-

todos de interpreta����o hist��rica. Os discursos se su-

cedem. O tempo passa. O calor aumenta. Olho o

rel��gio: duas horas. O programa continua. Os ru��dos

se fazem cada vez mais animados. Mulheres levan-

tam-se de seus lugares e v��o dizer segredinhos aos

ouvidos das amigas, em outros pontos das mesas.

Bacharelandos dum col��gio v��m para este sal��o re-

ceber seus diplomas, com discursos, togas e tudo...

A seguir o mestre-de-cerim��nias apresenta um menino

prod��gio, que toca uma ��ria no violino. Os aplausos

s��o generosos e deles, participa a mestra do pequeno

g��nio, que �� tamb��m chamada �� cena. Depois uma

menina, tamb��m prod��gio, toca no piano uma Sona-

ta de Mozart, enquanto os pais, que est��o �� minha

frente, ficam todo o tempo de olhos grudados no ros-

to dum empres��rio e dum diretor de cinema, pro-

curando escrutar-lhes as rea����es. A presidenta do "Ce-

lebrity Club" pede a Fred Bartholomew que se levan-

te para receber aplausos. Estralam palmas. P��lido,

esguio, com ar de nobre ingl��s, Fred Bartholomew

se ergue e faz uma inclina����o de cabe��a. Depois vem

outro orador. Santo Deus! S��o quase cinco da tar-

de e a minha vez n��o chega. As pernas me doem. O

calor me abafa. J�� esgotei todos os assuntos imagi-

n��veis nos meus di��logos com a vi��va. N��o sei mais

que vou dizer.

Agora o orador �� um senhor idoso que ao pro-

nunciar os ss solta assobios agudos que o microfone

amplifica e atira pelo ar quente do sal��o, como api-

tos. Os minutos passam e o velho assobiador n��o che-

ga ao fim.



A V O L T A DO G A T O P R E T O 429

A vi��va me mostra instant��neos, de seu falecido

marido. Bosworth, com a cabeleira de algod��o solta

ao vento, acaricia o pesco��o dum cavalo de ra��a. Mi-

ro a fotografia. Que �� que vou dizer? Muito boni-

to? Admir��vel? Ela continua a me mostrar instan-

t��neos. Hobbart Bosworth na frente de sua casa no

vale de San Fernando, pintando uma paisagem.

��� Ah!. .. Seu marido pintava?

Pergunta absurda. Claro que pintava.

��� Oh! Ele adorava a pintura.

O mestre-de-cerim��nias aproxima-se do microfone

e conta uma anedota. E depois, anunciando que vai

falar um representante do Brasil, estropia-me o nome.

Levanto-me, derrotado, e caminho para o microfo-

ne, enquanto a vi��va me deseja boa sorte.

W. C. FIELDS

19 de maio. Entro numa barbearia do subsolo

do Hotel Roosevelt, sento-me numa cadeira e quando

j�� estou quase cochilando, embalado pelo sonido da

tesoura do barbeiro, que �� um homem notavelmente

calado ��� abro despertamente os olhos ao ver entrar

uma figura familiar. �� W. C. Fields, o famoso c��-

mico exc��ntrico. Vem de chinelos, arrastando os p��s,

apoiado numa bengala, o vultuoso tronco metido num

casaco de l�� parda. Parece muito velho e muito do-

ente. Seu nariz, de ordin��rio vermelho e caricatural-

mente abatatado, est�� hoje ainda mais inchado, dum

rubro quase negro, semelhando enorme morango ma-

chucado.

��� Que foi isso, Mr. Fields? ��� pergunta um dos

barbeiros.

Com sua voz ��spera como uma lixa, ele responde:

��� Foi a maldi����o do licor!



430

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Conta que tomou ontem tamanha bebedeira, que

caiu com o nariz contra as bordas do copo, ferindo-o.

Aproxima-se do espelho e fica a mirar-se por algum

tempo.

��� Ele j�� era feio por natureza. . . ��� diz, olhando

para o ap��ndice nasal ��� e o acidente n��o o melhorou

nada.

Ao sentar-se na cadeira solta um gemido. De-

pois entrega o rosto ao barbeiro e cerra os olhos.

Lembro-me duma anedota que h�� pouco me con-

taram e cujo her��i �� W. C. Fields. Um dia apresen-

tou-se-lhe um jovem dizendo ser seu filho.

��� Filho? ��� repetiu o c��mico, com ar de d��vida.

��� N��o me lembro. . .

O rapaz insistiu e ele encolheu os ombros. E co-

mo estivessem ambos num bar, resolveu comemorar

��� embora ainda desconfiado ��� o retorno do filho pr��-

digo.

��� Um u��sque duplo, gar��on! ��� gritou ele para o

barman. ��� E tu que bebes, my boy?

O rapaz respondeu timidamente:

��� Coca-cola.

��� Coca-cola! ��� vociferou W. C. Fields. ��� Logo

vi que eras um impostor!

�� SOMBRA DO TALMUD

20 de maio. Baixinho, ativo, inquieto ��� bigode

aparado, cabelos escuros, "pince-nez" doutoral ��� Er-

nest R. Trattner, humanista, escritor e rabino, �� das

figuras mais interessantes que tenho encontrado por

aqui. Os judeus ortodoxos n��o v��em com bons olhos

esse rabino liberal e modernista, em cuja sinagoga se

entra sem chap��u, e cujos livros e serm��es t��m sem-

pre um tom de irrever��ncia.

A VOLTA DO GATO PRETO

431

Em sua "Autobiografia de Deus", Trattner nos

apresenta o Criador a contar na primeira pessoa Sua

vida, a narrar o G��nesis segundo Sua pr��pria vers��o,

a explicar Seu m��todo evolucionista, contando tam-

b��m, com agudo senso de humor, tudo quanto os ho-

mens escreveram, pensaram e disseram a Seu respeito,

bem como as coisas certas e erradas que fizeram em

Seu nome. E por fim ��� tema predileto de Trattner

��� Deus satiriza a intoler��ncia e revela Seus prop��si-

tos com rela����o �� humanidade e �� ordem universal.

Todos os anos a congrega����o da sinagoga de

Trattner oferece como pr��mio uma ta��a de ouro ao

ministro das outras seitas que mais se tiver destacado

no terreno da toler��ncia e da coopera����o inter-reli-

giosa. Este ano a ta��a coube a um pastor da Igreja

de Cristo, e vai ser entregue numa cerim��nia espe-

cial no "Emanuel Temple, no Wilshire Boulevard,

sendo eu um dos oradores da noite.

Esta �� a raz��o pela qual aqui estou nesta pla-

taforma, num belo e claro templo, na frente duma con-

grega����o composta em sua maioria de judeus ricos de

Beverly Hills. Tenho a meu lado o Cantor, metido

na sua toga negra. �� nossa frente, o Talmud. No

fundo da plataforma, coberta por uma cortina, a Ar-

ca que cont��m os rolos do Pentateuco. Na outra ex-

tremidade da plataforma acham-se o rabino Trattner

e o pastor que vai receber a ta��a.

A cerim��nia se inicia. O ritual deste templo est��

muito simplificado, pois para Trattner os serm��es s��o

a parte mais importante dele, depois das ora����es. Estas

s��o lidas em coro pela congrega����o e, de quando em

quando, o Cantor enche o recinto com o seu belo ba-

r��tono em cantigas duma beleza lamurienta e dolo-

rosa. Dos sete bra��os dum grande casti��al judeu bri-

lham l��mpadas el��tricas que imitam velas.

O rabino levanta-se para fazer o elogio do pas-

tor da Igreja de Cristo e entregar-lhe depois a ta��a

de ouro, com uma inscri����o expressiva. Enquanto ele

432

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

fala, meu pensamento foge... �� curioso que eu esteja

agora aqui numa sinagoga judaica, �� sombra do Tal-

mud. Ontem andei pelos est��dios da Metro. H�� dois

dias estive com Joan Crawford numa sala da NBC,

num programa de r��dio destinado aos soldados ame-

ricanos que est��o na Europa. Amanh�� vou falar para

um grupo de homens de neg��cios, num clube de Be-

verly Hills; �� incr��vel que tantas coisas diferentes

possam acontecer numa semana...

Dentro de alguns minutos estarei ali naquele p��l-

pito para fazer um discurso. Terei de dizer coisas

s��rias num tom s��rio, pois isto aqui �� um templo re-

ligioso e n��o um clube. N��o vai ser f��cil. Detesto

o tom solene. Sinto-me constrangido quando n��o pos-

so dizer o que penso e do jeito que me �� mais natural.

Em todo o caso, seja o que Jeov�� quiser...

Calma! Aproxima-se a hora. Trattner faz mi-

nha biografia em tra��os r��pidos. Olho fascinado pa-

ra o p��ssaro vermelho que est�� pregado ao chap��u

duma dama, na segunda fila. .. Chegou minha vez.

Levanto-me, grave; em quatro passadas estou no p��l-

pito. Ladies and gentlemen. Sou um brasileiro. Mas

que vem a ser um brasileiro? Ora, um brasileiro ��

em geral um sujeito baixo e moreno com um sotaque

horroroso..." L�� se me escapou uma tolice. Agora ��

tarde demais ��� reflito, numa fra����o de segundo. Mas

ou��o a meu lado uma risada sonora. Volto a cabe��a

e vejo que o rabino ri. A congrega����o ri com ele.

Prossigo. Digo-lhe o que �� o Brasil sob o ponto de

vista humano, geogr��fico e hist��rico. A l��ngua que

falamos? O portugu��s. E a prop��sito de l��nguas te-

nho c�� as minhas teorias. Se quisermos escrever uma

carta de amor, o italiano �� a l��ngua indicada: doce

como sacarina, flex��vel e cariciosa. O franc��s tamb��m

serve e �� pela sua precis��o, ductilidade e riqueza a

l��ngua mais indicada para o ensaio liter��rio. E se

quisermos escrever a um cavalheiro uma carta conci-



A VOLTA DO GATO PRETO

433

sa, en��rgica mas ao mesmo tempo cort��s, reclamando

o pagamento duma d��vida? Para isso o ideal �� a l��n-

gua inglesa. Agora, se pretendemos contar uma men-

tira ��� pescar��a ou ca��ada fant��stica ��� a l��ngua mais

indicada �� o espanhol. Mas se desejarmos falar duas

ou dez horas, e escrever duzentas ou mil p��ginas sem

dizer nada, nada. . . ��� bom, nesse caso n��o h�� l��n-

gua melhor que a portuguesa. . .

E aqui junto dos rolos do Pentateuco, fico a con-

tar nesse Templo de Emanuel cenas da vida brasi-

leira. E intoxicado pela excelente e generosa recep-

tividade do audit��rio, vou ao ponto de ��� para dar

exemplos de humorismo brasileiro ��� contar at�� algu-

mas anedotas cariocas irreverentes.

Quando a senhora da segunda fila ri, o p��ssaro

vermelho tremula no ar. E quando termino a pales-

tra fico surpreendido ao ver e ouvir que a congre-

ga����o aplaude, como se estivesse num teatro.

A FRONTEIRA

Meu caro Vasco: Reproduzo aqui mais um de meus di��lo-

gos com Tobias, que hoje me recebeu com estas palavras:

��� Temos conversado sobre este povo e esta civiliza����o,

mas permanecemos sempre no terreno das generalidades tate-

antes, de car��ter mais liter��rio que propriamente sociol��gico.

Eu gostaria de saber como foi que os europeus que colonizaram

os Estados Unidos tiveram aqui seus costumes, mentalidade e,

digamos, "t��tica de vida", transformados ou modificados a ponto

de dar origem ao que hoje chamamos de "car��ter e modo de

vida americanos".

Boa parte do di��logo que passo a transcrever, desenvolveu-

se �� sombra do admir��vel ensaio de Frederick Jackson Turner:

The Significance of the Frontier in American History.

��� At�� certo ponto ��� comecei eu ��� a hist��ria dos Estados

Unidos �� a hist��ria da conquista do Oeste. No estudo da ex-

pans��o das fronteiras ocidentais encontramos a explica����o do

car��ter e da civiliza����o americanos.

434

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� Frontier... Eis uma palavra que encontramos aqui

a cada passo, e que parece gozar dum prest��gio m��gico...

Afinal de contas, que vem a ser a frontier?

E. ��� Frontier �� o nome que se d�� �� por����o dum pa��s que

fica entre uma regi��o povoada e uma regi��o despovoada. ��,

em suma, a linha onde termina a civiliza����o e come��a o deserto.

T. ��� Mas a coloniza����o americana n��o principiou com

Jamestown, em Virg��nia, e com Plymouth, em Massachusetts?

N��o foi ela exclusivamente anglo-sax��nica na origem, na l��ngua,

nos h��bitos? N��o �� no litoral do Atl��ntico que ainda hoje se

encontra a parte mais civilizada dos Estados Unidos? Como se

pode dar tanta import��ncia �� frontier na forma����o do car��ter

deste povo?

E. ��� No princ��pio a fronteira era a costa do Atl��ntico.

(Usemos neste di��logo, um pouco arbitrariamente, a palavra

fronteira para traduzir frontier.) E a fronteira atl��ntica era

ainda um prolongamento da Europa. Aconteceu, por��m, que

�� medida que os pioneiros avan��avam para o Oeste, essa fron-

teira se tornava cada vez mais americana.

T. ��� Como? Por qu��?

E. ��� Quanto mais se afastavam do Atl��ntico, tanto mais

os pioneiros iam perdendo contato com a Europa. Dependiam

cada vez menos n��o s�� da Inglaterra como at�� dos colonos in-

gleses do litoral americano, ao mesmo passo que iam sendo

obrigados a mudar a sua t��tica de vida e seus h��bitos, n��o s��

para fazer face a todos os obst��culos que o meio desconhecido

e ��spero lhes deparava, como tamb��m para aproveitar as faci-

lidades que a natureza lhes proporcionasse nessa penetra����o

do interior.

T. ��� A que ra��a pertenciam os imigrantes que conquista-

ram o Oeste?

E. ��� Os pioneiros eram gente de v��rias regi��es da Europa.

Mas creio poder-se afirmar que predominavam entre eles os

escoceses, irlandeses e os alem��es ao Palatinado.

T. ��� Foi, ent��o, a fronteira um fator decisivo da ameri-

caniza����o?

E. ��� Sem a menor d��vida. Os pioneiros entravam no de-

serto vestidos �� maneira europ��ia e munidos de instrumentos

de trabalho, armas e h��bitos europeus. Ora, nos rios desse

mundo novo eles n��o encontravam as do��uras e as facilidades

do Reno, do Dan��bio ou dos rios da Esc��cia e da Irlanda. N��o

podendo contar com os tipos de embarca����o europeus, tiveram

de usar a piroga dos ��ndios feita de troncos de ��rvores. O

chal�� b��varo e a casa de pedra irlandesa tomaram na Am��rica

a forma da cabana de troncos, cercada duma pali��ada �� maneira

A V O L T A DO G A T O P R E T O

435

ind��gena. Aos poucos o pioneiro teve de mudar a indument��-

ria, de aprender a t��tica de guerra dos abor��genes e de seguir

a experi��ncia destes no que dizia respeito �� agricultura. Era

necess��rio adaptar-se para sobreviver. O contato com a natu-

reza selvagem e n��o s�� a hostilidade de certas tribos como

tamb��m a amizade de outras produziram no colonizador euro-

peu rea����es que acabaram criando uma nova maneira de ser,

pensar e sentir que se n��o chegava a ser id��ntica �� dos ��ndios,

pelo menos j�� n��o era mais europ��ia, e come��ava a ser ame-

ricana.

T. ��� Ainda n��o vejo em que essa atitude de imigrantes

europeus diante da natureza do Novo Mundo possa ser consi-

derada mais importante ou mais representativa desse povo que

a dos primeiros colonos ingleses que se estabeleceram nas treze

col��nias formadoras do n��cleo inicial da Uni��o, e que foram

cm ��ltima an��lise as promotoras das Guerras de Independ��ncia.

E. ��� O que quero dizer �� que essa marcha para o Oeste

e a cr��nica dos feitos dos pioneiros e seus descendentes, mais

os resultados econ��micos, sociais e psicol��gicos dessa expans��o

das fronteiras constituem a parte "americana" da hist��ria dos

Estados Unidos. Aconteceu tamb��m que os colonos do litoral

puderam conservar melhor seus h��bitos europeus e manter um

contato mais continuado e ��ntimo com a Inglaterra.

T. ��� Acha que todos os americanos concordar��o com seu

ponto de vista?

E. ��� Claro que n��o. H�� pouco um amigo meu nascido

em Boston veio �� Calif��rnia, em viagem de recreio, e quando

lhe perguntei que achava deste clima e deste sol, respondeu:

"Suport��veis, meu caro. Mas devo confessar-lhe que estou

ansioso por voltar aos Estados Unidos".

T. ��� Que queria dizer com isso?

E. ��� Referia-se evidentemente �� Nova Inglaterra.

T. ��� Mas, voltemos �� fronteira...

E. ��� Tome o americano moderno, seja ele de Indiana, Te-

xas, Colorado, Calif��rnia ou Pennsylvania... Examine-lhe os

sonhos, os planos, os gostos, a filosofia da vida, e voc�� encon-

trar�� nele muito do esp��rito do pioneiro.

T. ��� Sejamos precisos. Em que consiste esse famoso "es-

p��rito da fronteira."

E. ��� Ningu��m o definiu melhor que Turner, dizendo que o

americano deve �� fronteira "essa rudeza e for��a que se com-

binam com agudeza e curiosidade; esse esp��rito inventivo, pr��-

tico, r��pido no encontrar expedientes; esse magistral dom��nio

das coisas materiais, falho no que diz respeito ao art��stico,

mas poderoso no realizar objetivos grandiosos; esta energia

436

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

inquieta e nervosa; esse individualismo dominante que se exer-

ce para o bem e para o mal; e acima de tudo essa jovialidade

e exuber��ncia que v��m com a liberdade..."

T. ��� Compreende-se que a fronteira tenha produzido o in-

dividualismo, pois para arrojar-se a essas entradas rumo do

Oeste desconhecido, o colono precisava possuir em grau elevado

o esp��rito de aventura, a par duma grande f�� em si mesmo e

no futuro. Em suma, tinha de ser um otimismo corajoso.

E. ��� Esse individualismo gerou nele sentimentos de inde-

pend��ncia e democracia. O desbravador do Oeste odiava toda a

esp��cie de controle, fosse ele pr��ximo ou remoto, e era com ver-

dadeira m�� vontade e antipatia que os colonos recebiam o co-

letor de impostos.

T. ��� Como se processou a conquista da fronteira?

E. ��� �� natural que os pioneiros, no princ��pio, tivessem se-

guido o curso das art��rias geol��gicas. Subiram os rios que desa-

guam no Atl��ntico e foram at�� as proximidades do fall line, isto

��, na beira dos plat��s onde se achavam as quedas d��gua. O

fall line, pois, marca o limite da fronteira do s��culo XVII.

T. ��� Todos esses pioneiros eram colonos? Ou havia entre

eles tamb��m mercadores?

E. ��� Com o risco de ferir a sua natureza idealista, meu caro

Tobias, eu lhe direi que na Am��rica, como em muitas outras

partes do mundo, o mercador foi o abridor de caminhos da civi-

liza����o. Os mercadores de peles e os ca��adores embrenhavam-se

nas terras desconhecidas, entravam em contato com os ��ndios e

estabeleciam entrepostos em aldeamentos ind��genas, situados

em pontos privilegiados: vales f��rteis, vizinhan��as de fontes sa-

linas ou ent��o �� margem de rios naveg��veis.

T. ��� Alguns desses aldeamentos naturalmente com o correr

do tempo transformaram-se em grandes cidades...

E. ��� Exatamente. Foi o que aconteceu com Pittsburgh,

Chicago, St. Louis, Albany, Kansas City, etc...

T. ��� N��o esque��a que deixamos a fronteira imobilizada

na "fall line"...

E. ��� A fronteira do s��culo XVIII transp��s os montes Alle-

ghany.

T. ��� Custa-me crer que em princ��pios do s��culo XIX o Mis-

sissipi ainda n��o tivesse sido ultrapassado.

E. ��� Mas essa �� a verdade. Nos primeiros 25 anos do s��culo

XIX a linha da fronteira era o rio Mississipi. Em meados desse

mesmo s��culo ela avan��ou at�� o Missouri.

T. ��� E, a todas essas, que faziam os ��ndios?

E. ��� Uns colaboravam com os conquistadores. Outros lhes

eram hostis ou indiferentes. Dum modo geral iam sendo cercados

A VOLTA DO GATO PRETO

437

pelos aldeamentos dos brancos ou empurrados cada vez mais

para o Oeste. Em meados do s��culo passado as fronteiras orien-

tais de Nebraska e Kansas marcavam os limites do Territ��rio

��ndio.

T. ��� Qual foi a ��ltima fronteira?

E. ��� Os Montes Rochosos, atingidos em fins do s��culo pas~

sado.

T. ��� Como se explica que os Estados Unidos depois de pro-

clamada a sua independ��ncia n��o se tenham fragmentado numa

cole����o de estados independentes? N��o seria l��gico que isso

acontecesse devido �� falta de comunica����es e transportes f��ceis

e r��pidos?

E. ��� A resposta �� sua pergunta ainda se encontra na vida

da fronteira. Era costume dos colonos dos diversos aldeamentos

reunirem-se em congressos peri��dicos. (Como v��, data desse

tempo remoto a mania americana das conven����es...) Nesses

congressos eles tratavam de planos comuns de defesa contra os

ataques armados dos ��ndios. Mais que isso: faziam um inter-

c��mbio de experi��ncias. Os representantes de cada comunidade

contavam aos outros como resolviam ou procuravam resolver seus

problemas administrativos, religiosos, econ��micos ou dom��sticos.

Era uma troca util��ssima de informa����es. Tudo isso concorria

para que as diversas col��nias come��assem a pensar e a agir por

assim dizer nacionalmente. Habituados �� guerra em virtude dos

freq��entes ataques de tribos hostis, n��o lhes foi dif��cil em tempo

oportuno voltar contra os ingleses as armas adestradas na luta

com os abor��genes.

T. ��� Li n��o me lembro onde que muitos dos pioneiros ���

dinamarqueses, suecos, alem��es, irlandeses ��� quando marcha-

vam para o Oeste levavam consigo uma B��blia, sementes de ma-

���� e uma espingarda.

E. ��� Isso naturalmente �� uma estiliza����o dos petrechos do

pioneiro. Mas tem a sua verdade e vale tamb��m como um s��m-

bolo. Veja bem. A B��blia significava que esses colonos tinham

uma f�� e, mal ou bem, um c��digo de moral ou pelo menos uma

preocupa����o com problemas morais. A semente de ma���� sim-

bolizava suas rela����es com a terra, o desejo de plantar, de cons-

truir uma casa, em suma: de deitar ra��zes no ch��o conquistado.

A espingarda queria dizer simplesmente que eles estavam dis-

postos a se defender; numa palavra ��� sobreviver.

T. ��� Quando foi que os treze estados originais do litoral, on-

de come��ou a coloniza����o, receberam a ades��o das outras regi��es?

E. ��� Em 1821 Vermont, Maine, Mississipi, Alabama, Illi-

nois, Indiana, Kentucky, Louisiana, Missouri, Ohio entraram para

a Uni��o. Em 1845 Texas, Novo M��xico e Calif��rnia tamb��m

438

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

vieram para o aprisco, tudo isso �� custa de guerras e escaramu��as

na fronteira com o M��xico.

T. ��� �� incr��vel que a Uni��o tal como �� hoje tenha menos de

um s��culo.

E. ��� Vieram mais tarde os outros Estados do Far West; e

os do Noroeste, os do Meio Oeste e os do Sudoeste.

T. ��� N��o falamos dos problemas das comunica����es entre

essa fronteira m��vel e os estados do litoral...

E. ��� A navega����o a vapor auxiliou poderosamente o avan��o

da fronteira, mas em breve fizeram-se necess��rios caminhos ter-

restres. Ficamos hoje maravilhados diante do sistema de comu-

nica����es dos Estados Unidos. Mas �� bom n��o esquecer que, h��

pouco mais de cem anos, na maior parte do territ��rio da Uni��o

o que havia eram as trilhas feitas pelas patas dos b��falos, cujas

pegadas eram seguidas pelos ��ndios, pelos mercadores de peles,

pelos ca��adores, pelos pioneiros. Mais tarde essas trilhas foram

alargadas e por elas passavam as dilig��ncias e os "covered wa-

gons" ou sejam as carro��as cobertas dos colonos. A partir de

1848 sobre esses caminhos se estenderam os trilhos da estrada

de ferro.

T. ��� Ainda n��o falamos nos negros que eram trazidos da

��frica para trabalhar nas planta����es de algod��o do Sul...

E. ��� Sim, a escravid��o florescia nas fazendas sulinas. L�� por

fins do s��culo XVIII ela parecia declinar, pois os fazendeiros es-

tavam chegando �� conclus��o de que plantar algod��o "n��o era

neg��cio" por causa do custo da produ����o. Foi quando em

1793 Eli Whitney inventou o cotton-gin o descaro��ador de algo-

d��o, que deu tremendo impulso �� ind��stria algodoeira.

T. ��� Pode-se ent��o dizer que a ind��stria americana come-

��ou com o cotton-gin?

E. ��� Sim. E n��o esque��amos que depois de 1800 fizeram-

se sentir nos Estados Unidos as conseq����ncias da Revolu����o In-

dustrial. Os americanos come��avam a revelar n��o s�� o gosto

pelas m��quinas, como tamb��m uma grande habilidade mec��nica,

a par dum talento inventivo e pr��tico.

T. ��� Ergue-se ent��o a ind��stria do Norte...

E. ��� Para compreender os Estados Unidos em seus aspec-

tos presentes, �� preciso examinar o per��odo de sua hist��ria que

vai de 1830 a 1850. Por essa ��poca grandes mudan��as come-

��avam a operar-se na vida americana devido �� expans��o para

o Oeste e ao surgimento duma ind��stria ao Norte.

T. ��� N��o tinha essa ind��stria come��ado depois da guerra

de 1812?

E. ��� Sim, mas s�� depois de 1828 �� que principiou a ter real

import��ncia. Naqueles tempos, como hoje, o neg��cio de im��veis

era a maneira mais r��pida de fazer fortuna. Assim o real estate

A VOLTA DO GATO PRETO

439

business florescia principalmente nos estados do Norte, criando

milion��rios da noite para o dia. Aos poucos, por��m, os capita-

listas come��aram a voltar-se para a ind��stria manufatureira, e

muitas f��bricas surgiram, ao mesmo passo que se fundavam

bancos e mais casas de neg��cios.

T. ��� Tiveram essas f��bricas o problema de bra��os?

E. ��� Sim, e muito s��rio. Foi ainda na imigra����o que en-

contraram solu����o para o problema. Entre 1830 e 1850 entraram

nos Estados Unidos, principalmente pelos portos do Norte, perto

de dois milh��es e meio de imigrantes. S�� a fome na Irlanda

atirou com milhares de irlandeses nas costas americanas...

T. ��� E quem hoje os v�� a comer com tanta voracidade os

seus famosos cozidos tem a impress��o de que eles ainda n��o

mataram a fome...

E. ��� A Am��rica continuava a ser para o imigrante a terra

da promiss��o, o pa��s novo sem barreiras sociais, onde qualquer

criatura humana podia transformar-se rapidamente num milion��-

rio e fazer carreira no mundo pol��tico.

T. ��� At�� que ponto a Am��rica correspondia na realidade ao

sonho do imigrante?

E. ��� Muitos desses europeus que vieram trabalhar nas f��-

bricas americanas nem sempre conseguiam sal��rios altos e boas

condi����es de vida. Os patr��es, por sua vez tamb��m descenden-

tes de imigrantes, estavam preocupados principalmente com ga-

nhar muito dinheiro e no espa��o de tempo mais curto poss��vel,

de sorte que pouca ou nenhuma aten����o davam ao prolet��rio.

Este em geral permanecia numa situa����o que, comparada com a

que seus colegas gozam hoje, era de verdadeira mis��ria. Mas

mesmo assim se sentiam felizes por ter vindo, pois as agruras que

a nova terra lhes oferecia eram muito menores que as de seus

pa��ses de origem. E, fosse como fosse, havia a esperan��a de me-

lhorar de condi����o, pois sabiam que outros imigrantes tinham

conseguido sucesso e fortuna.

T. ��� Pode-se, ent��o, dizer que a Am��rica come��ava a com-

preender que seu futuro estava na ind��stria.

E. ��� Exatamente. E de 1830 em diante uma onda de otimis-

mo come��ou a varrer o pa��s, impelida principalmente pelas not��-

cias das carreiras fabulosas de financistas, industrialistas e "pro-

moters". A popula����o do pa��s crescia. As oportunidades pare-

ciam ilimitadas. O dinheiro jorrava. Repito: n��o havia barrei-

ras sociais. Ningu��m perguntava ao imigrante de onde vinha e

quem eram seus pais. A Am��rica estava aberta para quem qui-

sesse tornar-se americano. Essa era principalmente a atitude do

Norte e muito particularmente a dos estados centrais. Essa era

tamb��m a atitude desse fabuloso Oeste.

440

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� Deve datar dessa ��poca uma s��rie de supersti����es e

manias que passariam a colorir o pensamento e o sentimento

americanos da�� por diante.

E. ��� Sim. As preocupa����es do momento eram:

n��o entregar-se nunca ao pessimismo;

ganhar dinheiro;

esquecer o passado: olhar s�� para a frente;

fazer coisas grandes;

conseguir sucesso;

aproveitar todas as oportunidades.

T. ��� Devem ter nascido nessa ��poca certos slogans ameri-

canos como "Este �� um pa��s livre". "Somos pela iniciativa priva-

da". The sky is the limit ou seja "O c��u �� o limite" ��� o que valia

dizer: n��o conhecemos limites...

E. ��� Sim, para a maioria dessa gente a capacidade de

ganhar dinheiro, de fazer bons neg��cios passou a ser em si mes-

ma uma virtude. E respeitad��ssima.

T. ��� Estava, pois, o ambiente saturado de ambi����es mate-

rialistas.

E. ��� Mas n��o devemos esquecer que surgiram aqui e ali re-

formadores e idealistas, e em assunto de legisla����o social a Am��-

rica avan��ava mais que a pr��pria Europa. Eliminou a pris��o dos

devedores, reformou as cadeias, abolindo o castigo corporal, e

chegou a dar alguns direitos �� mulher. Seu proletariado come-

��ava tamb��m a organizar-se.

T. ��� Desde quando principiaram a diferen��ar-se essas re-

gi��es dos Estados Unidos que ainda hoje apresentam caracter��s-

ticas peculiares?

E. ��� J�� por 1850 se distinguiam quatro zonas diferentes da

Uni��o: o Norte, o Sul, o Middle West e o Far-West.

T. ��� E quais eram seus caracter��sticos?

E. ��� Ao estudar a regi��o geralmente chamada Norte, ou

melhor East (Leste) �� necess��rio separar os estados que forma-

vam e formam a parte denominada Nova Inglaterra (Massachu-

setts, Nova-Hampshire, Maine, Vermont, Rhode Island e Connec-

ticut) e os Estados Centrais, que s��o Nova York, Nova Jersey,

Delaware e Pennsylvania. A Nova Inglaterra representava prin-

cipalmente a tradi����o puritana de ledores da B��blia, descenden-

tes dos peregrinos do "Mayflower", deposit��rios da cultura e da

tradi����o dos Fundadores ��� gentes de costumes decentes, severos

mas com uma tend��ncia para o esnobismo e para a intoler��ncia.

Quem dava, por assim dizer, a nota t��nica ao chamado Norte

eram os Estados Centrais, zona menos inglesa mas por outro lado

mais representativa desta na����o comp��sita. Era uma regi��o cos-

mopolita, industrial, onde vivia uma sociedade variada e violenta-

A VOLTA DO GATO PRETO

441

mente competitiva, com pouca ou nenhuma preocupa����o com o

passado, e toda sua paix��o, seu ��mpeto, sua capacidade de tra-

balho, inven����o e adapta����o projetados para o futuro.

T. ��� Pode-se, ent��o, dizer que nesses estados predomina-

va o desejo de prosperidade material...

E. ��� Creio que sim. Tratava-se tamb��m duma zona que

estava em constante contato com a Europa, atrav��s do porto

de Nova York. Representava, na sua variedade de seitas reli-

giosas, um certo esp��rito de toler��ncia, a par duma aus��ncia de

tend��ncias regionalistas.

T. ��� E que esp��cie de gente predominava no Sul?

E. ��� No Sul havia o ingl��s modificado por um clima quente,

e por um tipo de vida semifeudal. O Sul era, pois, baronial,

racista, escravocrata, agr��cola e mantenedor duma tradi����o de

fidalguias e ��� digamos assim ��� epicurismo rural.

T. ��� Que representava o Middle West?

E. ��� Essa regi��o ��� formada pelos estados de Missouri,

Ohio, Minnesota, Iowa, Indiana, Illinois, Michigan e Wiscon-

sin ��� era a que melhor parecia representar a democracia de

agricultores sonhada por Jefferson. Zona povoada por descen-

dentes de imigrantes irlandeses, escoceses, alem��es e escandi-

navos, nela imperavam os tra��os de car��ter produzidos pela

fronteira.

T. - E o Far West?

E. ��� Essa se����o oferecia um aspecto completamente dife-

rente do das outras. Em meados do s��culo passado ela recebera

um tipo de imigrante que n��o se preocupava com abrir picadas,

plantar ro��as e estabelecer-se em comunidades permanentes. Os

forty-niners, isto ��, os aventureiros que para l�� correram a par-

tir de 1849, andavam apenas em busca de ouro e vinham de to-

das as partes do mundo. Saltando por cima da fronteira, que

ainda n��o havia atingido os Montes Rochosos ��� atravessando

penosamente o continente, dobrando o cabo Horn ou cruzando

o istmo de Panam��, chegaram numa onda turbulenta que trazia

em seu bojo um mundo de viol��ncia, crimes e v��cios.

T. ��� O panorama dos Estados Unidos, pois, n��o podia ser

mais variado:..

E. ��� E v�� a gente fazer afirma����es categ��ricas sobre um

pa��s t��o complexo, t��o colorido, t��o rico de aspectos naturais

e humanos!

T. ��� De tudo quanto ficou dito se conclui, ent��o, que a

Am��rica come��ava a tornar-se uma pot��ncia mundial impor-

tante.

442

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

E. ��� E quiseram ou n��o os Quacres, os Puritanos, os M��r-

mons, o que dava import��ncia a esse pa��s novo era a sua ind��s-

tria. A m��quina ganhava dia a dia um prest��gio maior...

T. ��� E por essa ��poca um gigante havia surgido no cen��-

rio americano: Abraham Lincoln.

E. ��� Outra vez a fronteira.

T. - Como?

E. ��� Lincoln era um homem do Oeste e filho dum pioneiro.

Nascera simbolicamente numa dessas cabanas de troncos, t��o

t��picas da fronteira. Era um lenhador, um homem simples que

lia e citava a B��blia, que sabia fazer coisas com suas grandes m��os

musculosas. Tinha um sereno senso de humor e era um idealista

pr��tico. Em suma: um americano. Em 1858, como candidato

republicano ao Senado, fez um discurso em que afirmou: "'Uma

casa dividida contra si mesma n��o pode subsistir". (Outra vez a

B��blia, meu caro Tobias!) "Acredito que este governo n��o pode

durar permanentemente metade escravo e metade livre. N��o es-

pero que a Uni��o seja dissolvida, n��o espero que a casa caia,

mas espero, isso sim, que a divis��o cesse. Ela ter�� de se tomai

inteiramente uma coisa ou inteiramente outra".

T. ��� O pa��s marchava para a guerra civil.

E. ��� Os republicanos em 1860 apresentaram Lincoln como

seu candidato �� Presid��ncia. O Sul declarou que repudiaria

qualquer candidato republicano. Lincoln, por��m, foi eleito c

no mesmo ano de sua elei����o a Carolina do Sul separou-se da

Uni��o. Outros estados a seguiram. De resto, essa id��ia de se-

cess��o f�� vinha de longa data, e devia-se ao car��ter regiona-

lista dos estados sulinos. Um homem de Virg��nia, por exemplo,

considerava-se primeiro um virginiano, depois um americano.

T. ��� Costuma-se apresentar a rivalidade entre escravocra-

tas e abolicionistas como sendo a causa principal da Guerra Civil.

E. ��� Isso �� elementar, meu caro Watson. �� uma raz��o

de superf��cie. Entre o modo de vida do Norte e do Sul havia

uma grande incompatibilidade. O aristocrata sulino, indolente

e amigo dos lentos prazeres da vida patriarcal, n��o estimava nem

compreendia o comerciante ianque, t��o agitado e preocupado

com neg��cios, bancos, empresas e lucros. Por sua vez esses ho-

mens de neg��cio do East n��o simpatizavam nem se preocupavam

com entender os senhores das planta����es. Havia ainda esse

eterno antagonismo entre cidade e campo, f��brica e lavoura,

trabalho assalariado e trabalho escravo. E, bem como acon-

tece na pol��tica internacional de nossos dias, Norte e Sul se em-

penhavam em alargar as suas zonas de influ��ncia.

A VOLTA DO GATO P R E T O

443

Os novos estados do Oeste que se aprontavam para se incor-

porar �� Uni��o seriam estados livres ou escravagistas? Iriam au-

mentar no Congresso as for��as do Sul ou as do Norte? Todos

esses ��dios, incompreens��es, diferen��as, paix��es pol��ticas e prin-

cipalmente rivalidades econ��micas ��� todos esses agitados rios de-

saguavam violentos num lago: o problema da escravatura.

T. ��� E nesse lago quase naufragou a Uni��o.

E. ��� E eu quero chamar aten����o para um fato curioso: a in-

flu��ncia do Oeste nesta guerra. Se a expans��o n��o se tivesse feito

ou, melhor, se os estados que ficavam para al��m dos Alleghany

n��o houvessem sido adquiridos pela Uni��o, a secess��o talvez se

consumasse. Mas a fronteira pesava n��o s�� na consci��ncia da

na����o como tamb��m nos seus cofres. �� bom n��o esquecer que

o ouro de Texas, estado que fora anexado �� Uni��o em 1845,

dera grande impulso �� constru����o e �� expans��o das estradas de

ferro.

T. ��� De que lado ficaram os estados do Oeste?

E. ��� A princ��pio uma fatalidade geogr��fica os levara a

contragosto para o lado dos sulistas...

T. ��� Explique isso melhor.

E. ��� O Mississipi �� um rio de curso providencial, de a����o

unificadora. Ora, o Oeste precisava duma sa��da para o Golfo c

n��o desejava que a parte do sul do vale do Mississipi ficasse

em m��os inimigas, de sorte que no princ��pio da Guerra Civil

foi, por essa circunst��ncia, compelido a entrar na Confedera����o

embora n��o simpatizasse com a causa sulina. Mas as estradas

de ferro, ent��o em pleno funcionamento, mantiveram as comuni-

ca����es entre Leste e Oeste, permitindo aos estados desta ��ltima

regi��o recusar alian��a com o Sul.

T. ��� E se o Oeste tivesse entrado para a Confedera����o que

aconteceria?

E. ��� Tudo indica que a ruptura da Uni��o seria fatal.

T. ��� E' dif��cil de compreender que, saindo dessa luta tre-

menda e debilitante, os Estados Unidos se vissem numa encruzi-

lhada dif��cil...

E. ��� Para onde iria a Am��rica? Que caminho seguiria? J��

se falava no Sonho Americano. Mas... que era esse sonho?

At�� ent��o ��� escreve Stephen Vincent Ben��t em seu "Am��rica"

��� esse sonho tinha sido muitas coisas. "A combativa independ��n-

cia da fronteira; a rep��blica livre e plutarquiana dos Fundado-

res; a rep��blica rural, sonhada por J��fferson; a democracia da

fronteira de Andrew Jackson; a democracia de Lincoln... Era

tamb��m a id��ia de honra e dever altru��sticos de que fora exem-

plo Lee, o chefe sulista, s��mbolo dessa alegre e pr��diga aristo-



444

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

cracia dos bem-nascidos, que desejavam uma rep��blica regida

pelo c��digo de cavalheirismo que vigorava no sistema de plan-

ta����es do Sul... Ou seria o Sonho Americano o ideal Puritano

da Nova Inglaterra, a vida simples e os pensamentos superiores

de Concord, e os dez mil sonhos que luziam e se extinguiam

nas Novas Sions (Sempre a B��blia! ��� e este par��ntese �� meu e n��o

de Ben��t) e nas experi��ncias comunais de toda a sorte que l��

se fizeram? Porque todos os meios de vida tinham sido expe-

rimentados em v��rias partes da Uni��o. E agora a na����o emer-

gia duma guerra cruenta em que perdera mais de 600 000 de

seus filhos. A era industrial havia come��ado. A unidade na-

cional fora preservada gra��as a Lincoln. Mas Lincoln estava

morto... Que ia agora acontecer?'

Foi neste ponto que Tobias come��ou a bocejar. Era noite

alta e n��s ainda caminh��vamos sob as ��rvores de Durango Ave-

nue, sob um luar p��lido e perfumado de jasmins. Foi ent��o que

tive pena dele, de mim e da hist��ria americana. E decidi que

f��ssemos todos dormir.

DE LINCOLN A ROOSEVELT

Meu caro Vasco: Era uma tarde cor de ch�� e eu caminhava

em calma sob as palmeiras reais duma dessas silenciosas ruas de

Beverly Hills quando Tobias me apareceu inesperadamente, exi-

gindo que continu��ssemos o di��logo sobre a hist��ria americana.

Assim, retornamos peripat��ticamente nossa conversa����o.

E. ��� Onde deixamos os Estados Unidos?

T. ��� Numa encruzilhada dif��cil. O princ��pio do per��odo de

reconstru����o que se seguiu �� Guerra Civil.

E. ��� Ah! O Sul estava falido, amargurado, ro��do de ��dios.

Os negros, que a vit��ria dos ianques transformara duma hora

para outra de escravos em cidad��os, ou se embriagavam de liber-

dade ou se deixavam ficar na in��rcia da estupidifica����o. Fosse

como fosse, a s��bita mudan��a, trazendo-lhes o grande bem da

liberdade e duma igualdade que no fim de contas era apenas te��-

rica, trouxera-lhes tamb��m graves problemas. Alguns nortistas

sem escr��pulos usavam os negros livres com a finalidade de

despojar e afrontar os brancos do Sul, o que aumentou a animosi-

dade destes para com os ex-escravos. Em suma: da "linha de

Dixie" para baixo o panorama era de desola����o, de descalabro

econ��mico e social...

T. ��� E enquanto isso o Norte florescia, projetava-se para

a frente..,

A V O L T A DO G A T O P R E T O

445

E. ��� A Guerra fora como um sopro a avivar o fogo das

caldeiras de suas f��bricas. O Oeste participou tamb��m da pros-

peridade do Norte.

T. ��� Nada disso, por��m, impediu que ap��s a guerra hou-

vesse uma crise econ��mica.

E. ��� Mas em breve a prosperidade voltou... Tudo quanto

as f��bricas nortistas produziam encontrava mercado imediato e

largo.

T. ��� E qual era a atitude das pot��ncias europ��ias diante

da vit��ria do Norte?

E. ��� De desconfian��a e ci��me. A Fran��a e �� Inglaterra,

onde imperava uma esp��cie de aristocracia, era desagrad��vel ver

o erguimento duma na����o jovem e de futuro em que qualquer

plebeu, qualquer imigrante, qualquer pobre diabo encontrava

oportunidade de fazer uma carreira e tornar-se um l��der na es-

fera comercial, pol��tica ou social. Acontecia tamb��m que, por

motivos econ��micos, tanto a Inglaterra como a Fran��a haviam

desejado a vit��ria do Sul agr��cola sobre o Norte industrial. Era

uma raz��o de competidor.

T. ��� L�� est�� voc�� outra vez com os seus fatores econ��micos]

E. ��� Em meados do s��culo XIX uma personagem poderosa

entra em cena.

T. ��� Rockefeller? Astor? Vanderbilt?

E, ��� N��o. O petr��leo. Descoberto em 1859 no estado de

Pennsylvania, quatro anos depois produzia uma renda enorme.

Come��ou a "corrida" do petr��leo, determinando o nascimento de

novas cidades ou acelerando o progresso de outras j�� existentes.

T. ��� A corrente da imigra����o continuava?

E. ��� Sim. Vinham novos imigrantes para as f��bricas ou

para as lavouras do vale do Mississipi, cuja prosperidade per-

mitiu que o 0"ste fosse dos melhores fregueses do Norte.

T. ��� Os "rushes" continuavam rumo das jazidas de ouro e

petr��leo.

E. ��� Descobriram-se ricas minas de ouro em Nevada. As

de Colorado continuavam a produzir com abund��ncia...

T. ��� Cidades cresciam. Desertos povoavam-se. As estra-

das de ferro encompridavam seus trilhos, atravessavam os des-

campados. . .

E. ��� Em 1869 os trilhos que vinham do Leste se encon-

traram no estado de Utah com os que vinham do Oeste. E as

paralelas de a��o ligaram os dois oceanos.

T. ��� A iniciativa privada produziu os seus frutos.

E. ��� Sim, e creio que nesse ��ltimo dec��nio do s��culo XIX,

quando se consolidaram as fortunas que deram origem ��s cor-

pora����es e trastes que hoje dominam o campo das finan��as e da

446

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

ind��stria nos Estados Unidos, com ramifica����es por quase todo

o mundo; nesse fim de s��culo agitado que pode ser considerado

a Idade de Ferro do capitalismo ��� come��ou o decl��nio da ini-

ciativa privada, da livre concorr��ncia.

T. - !!!

E. ��� Da�� por diante esses senhores de trustes e de mo-

nop��lios procuraram dar �� pol��tica dos Estados Unidos a forma

mais conveniente aos seus interesses. Homens detentores de

nomes como Rockefeller, Astor, Vanderbilt, Carnegie, Gugge-

nheim, Morgan, Mellon e outros eram como deuses que de seu

Olimpo de Wall Street dirigiam, cada qual no seu setor, os

destinos econ��micos de boa parte do globo.

T. ��� Fantasia!

E. ��� N��o. Apenas fant��stico. Estes ainda l�� est��o. S��o

descendentes desses milion��rios que no fim do s��culo passado

fizeram suas fortunas com petr��leo, ouro, companhias de estrada

de ferro e navega����o, ind��stria pesada, etc. E uma vez que

esses trustes e cart��is controlam o mundo da economia e das

finan��as, parece-me que "competi����o livre", o free enterprise,

�� uma express��o de sentido duvidoso...

Em 1898, depois da sua vit��ria sobre a Espanha na guerra

de Cuba, os Estados Unidos ganharam estatura de pot��ncia

mundial.

T. ��� Mas j�� n��o haviam conquistado essa posi����o logo

ap��s a Guerra Civil?

E. ��� Economicamente, sim. Mas agora o pa��s ganhava

import��ncia pol��tica.

T. ��� E qual foi o resultado dessa ascens��o?

E. ��� A abertura de uma nova era. O Bureau do Censo

declarara em 1890 que a Fronteira havia terminado. Numa su-

cess��o de crises, p��nicos financeiros, alternados com per��odos

mais longos da prosperidade, os Estados Unidos viam aumentar

sua riqueza industrial e agr��cola, sua popula����o e as oportu-

nidades de grandes neg��cios. Agora a sua medida era o

milh��o.

T. ��� Onde estava o sonho dos puritanos? O ideal dos

quakers? A simplicidade austera dos pioneiros?

E. ��� Imperava no pa��s o culto do dinheiro, a negociata,

a fraude, a aud��cia. Tudo era grande se n��o grandioso. E

como conseq����ncia dessa prosperidade industrial, come��ou a

nascer uma tend��ncia imperialista na ind��stria, com naturais

conseq����ncias pol��ticas.

T. ��� E outros pa��ses passaram para a ��rbita de influ��ncia

dos Estados Unidos...

A VOLTA DO GATO PRETO

447

E. ��� Sim. A Comunidade das Filipinas, Puerto Rico, o

Hava��...

T. ��� Como eram ent��o as rela����es entre capital e trabalho?

E. ��� Com a expans��o da ind��stria criara-se uma classe

prolet��ria cujo choque com os patr��es, que o desejo de lucro

cegava a ponto de lev��-los a ignorar as necessidades e problemas

dos empregados, era inevit��vel. Em 1877 houve na linha Bal-

timore-Ohio a primeira greve ferrovi��ria, que foi abafada pelo

ex��rcito.

T. ��� Que contraste com a nossa ��poca em que mesmo

nestes tempos de guerra os oper��rios fazem greve!

E. ��� �� que naqueles tempos os sindicatos n��o estavam

organizados nacionalmente, n��o tinham a for��a nem os recursos

financeiros com que contam hoje. Mas j�� em 1903 o ent��o

Presidente Theodore Roosevelt resolveu por meio de arbitragem

uma grande greve de trabalhadores das minas de carv��o de

antracite, em Pennsylvania.

T. ��� N��o foi Roosevelt um presidente que combateu os

trustes e os monop��lios?

E. ��� Exatamente. Era conhecido como o "trust buster"

ou seja o "rompe trustes". Gra��as a ele neste pa��s vigora uma

lei muito severa relativa �� pureza dos alimentos e das drogas

farmac��uticas.

T. ��� E assim chegamos ao s��culo XX e ao Wibhire Bou-

levard ��� (E neste ponto Tobias fez um sinal na dire����o da

grande art��ria que corta Los Angeles de leste a oeste. Auto-

m��veis passavam maciamente).

E. ��� E no princ��pio deste s��culo temos o come��o da "era

do autom��vel', que trouxe conseq����ncias extraordin��rias para

a vida americana, alterando-lhe o ritmo, o conceito comum de

dist��ncia e portanto de tempo.

T. ��� Mas todas essas influ��ncias se fizeram sentir desde

o princ��pio do s��culo XX?

E. ��� N��o. Come��aram a se fazer vis��veis e sens��veis prin-

cipalmente na d��cada que se seguiu ao Armist��cio de 1918.

T. ��� Procedamos com m��todo, meu caro Sherlock Holmes,

pois Tobias, o seu pobre Watson, s�� pode compreender a ordem

direta.

E. ��� Como vimos, durante a era da Reconstru����o o pa��s

se industrializou, e os ��ltimos vinte anos do s��culo passado

podem ser chamados a "Era dos Trustes", uma esp��cie de

grandiosa, monumental c��pula que por assim dizer coroou o

monumento da iniciativa privada, do individualismo. E nas

duas d��cadas seguintes ao ano de 1897, em que come��ou a

recupera����o duma grande crise, vemos surgir a idade do plane-

448

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

jamento cient��fico no campo da produ����o industrial e da pro-

du����o em massa.

T. ��� E que figura lhe parece simbolizar melhor essa

��poca?

E. ��� Eu ia dizer Frederick W. Taylor, o pai da racionali-

za����o da organiza����o comercial, da "tayloriza����o". Mas o

grande s��mbolo do tempo �� Henry Ford.

T. ��� N��o me diga que esse homem �� tamb��m um produto

da fronteira.

E. ��� Mas ��! Henry Ford nasceu em Detroit ��� Michigan ���

no Middle West. N��o passava dum mec��nico pr��tico que so-

nhava com a constru����o de autom��veis. Em 1892 fabricou o

seu primeiro modelo, e no princ��pio sua atividade no neg��cio

de autom��veis foi comercialmente desastrosa. Mas alguns anos

depois, com a Ford Motor Co., o obscuro mec��nico de Detroit

transformou-se num her��i nacional, atrav��s duma carreira espe-

tacular.

T. ��� Que grande novidade introduziu ele no motor do

autom��vel que a Europa j�� produzia e vendia?

E. ��� No motor propriamente, nenhuma. A sua novidade

consistia na produ����o em massa, que determinou o baratea-

mento dos carros, permitindo assim que eles fossem adquiridos

por pessoas de posses modestas e mais tarde at�� pelos ope-

r��rios.

T. ��� E essa popularidade do autom��vel trouxe, ent��o, ver-

dadeira revolu����o nos costumes...

E. ��� O pa��s, que tinha gasolina em abund��ncia, possu��a

agora uma boa quantidade de autom��veis. As estradas se mul-

tiplicavam e isso era mais um elemento de uni��o nacional, mais

um meio de poupar tempo. As cidades puderam alargar sua

��rea, porque o autom��vel resolvia o problema do transporte.

A freq����ncia nas escolas rurais aumentou gra��as aos ��nibus

que transportavam alunos.

T. ��� E qual era a atitude de Ford com rela����o aos seus

oper��rios?

E. ��� Deu-lhes um sal��rio melhor que o ordin��rio, um m��-

nimo de 5 d��lares por dia, oito horas de trabalho, e interesse nos

lucros. Mas por outro lado, individualista ferrenho, n��o queria

saber de neg��cios com os sindicatos.

T. ��� Qual foi o efeito da racionaliza����o da produ����o na

vida americana?

E. ��� Assim como o nascimento dos trustes determinou o

decl��nio da iniciativa privada ou, melhor, da liberdade econ��-

nica (embora aparentemente ela ainda existe) a racionaliza����o

da produ����o de certo modo alterou o individualismo do s��culo

A VOLTA DO GATO PRETO

449

XIX. Seu resultado concreto foi a produ����o em massa, que

poder�� oferecer suas desvantagens (se quisermos levar o as-

sunto para o terreno da contribui����o de talento criativo indivi-

dual, a necessidade do "diferente", do "pessoal) mas que por

outro lado, atrav��s do barateamento dos artigos manufaturados,

permitiu que um maior n��mero de pessoas gozasse dos bene-

f��cios do progresso industrial. Por exemplo: uma lata de sopa,

gra��as �� produ����o em s��rie, custa apenas 10 centavos.

T. ��� A "Princesa dos D��lares", opereta vienense que apa-

receu em princ��pios deste s��culo, �� de certo modo uma cari-

catura do milion��rio americano que procurava casar suas filhas

com nobres europeus arruinados.

E. ��� Veja o magn��fico s��mbolo que h�� nessa hist��ria tola,

feita apenas com o prop��sito de divertir, sem a menor respon-

sabilidade para com a verossimilhan��a. Em virtude de

sucessivas revolu����es a nobreza europ��ia decaiu pol��tica e

financeiramente, ao passo que, ao cabo de uma s��rie de outras

revolu����es da mais variada natureza, os imigrantes plebeus dum

punhado de pa��ses europeus, por sua vez v��timas seculares dum

estado de coisas injusto mantido por essa mesma nobreza, num

vest��gio dos tempos medievais ��� prosperavam na Am��rica,

merc�� do progresso industrial, e agora essa "plebe" se encon-

trava nos grandes sal��es em p�� de igualdade com os descen-

dentes empobrecidos daquelas velhas aristocracias.

T. ��� E n��o �� curioso que ainda hoje persista no intelec-

tual europeu uma atitude de ressentimento, desprezo e ironia

para com o "novo rico" americano?

E. ��� Muito! Mas acontece que esse desejo de nobreza,

essa preocupa����o com o t��tulo n��o existe em geral no homem

americano. Haver�� casos espor��dicos...

T. ��� Voltemos a essas duas d��cadas de paz que precede-

ram a Primeira Guerra Mundial.

E. ��� Foi um per��odo de grande desenvolvimento material

nos Estados Unidos. Era natural que um pa��s que come��ava

a bastar-se a si mesmo, que tinha um mercado interno riqu��s-

simo, coisas a fazer, conquistas a consolidar ��� era natural que

esse pa��s se tornasse isolacionista. Havia ainda outro fator a

conduzi-lo a essa atitude. Era a sua grande incapacidade de

compreender as sutilezas da pol��tica europ��ia, e a id��ia de que

aqueles estrangeiros se preocupavam com detalhes e abstra-

����es que, para homens pr��ticos e objetivos como os americanos,

n��o tinham a menor import��ncia.

T. ��� Mas a atitude do pa��s era de indiferen��a para com

a Europa?

450

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

E. ��� Claro que n��o. Em muitos setores procurava-se

copiar a Europa. Milion��rios iam �� Fran��a, �� Inglaterra, ��

Espanha, �� It��lia e l�� compravam quadros famosos ou ent��o

de l�� traziam mosteiros ou castelos hist��ricos para reconstru��-los,

pedra por pedra, ��s margens do Hudson ou do Potomac. Mi-

lion��rios como Carnegie, Rockefeller, Guggenheim, Morgan e

outros doavam milh��es para que com eles se erguessem univer-

sidades, museus, bibliotecas, funda����es de benemer��ncia so-

cial. .. Era preciso que o pa��s tivesse muitas daquelas coisas

que a velha Europa possu��a e que representavam cultura, pro-

gresso intelectual, bom gosto...

T. ��� A imigra����o havia cessado!

E. ��� Pelo contr��rio. O per��odo que vai de 1905 a 1915

�� o em que mais intensa se torna a imigra����o. At�� ent��o pre-

dominavam no pa��s os imigrantes de origem germ��nica, irlan-

desa e escandinava. Agora chegam gente do sudeste da Eu-

ropa, principalmente da R��ssia, do imp��rio Austro-H��ngaro

e do sul da It��lia.

T. ��� Eram esses imigrantes de t��o boa qualidade quanto

os primeiros?

E. ��� Positivamente n��o. De resto, a qualidade da imigra-

����o come��ou a piorar depois que as f��bricas do Leste come��a-

ram a precisar urgentemente de bra��os. Veja s�� isto: entre os

imigrantes que chegaram antes de 1890 a percentagem de anal-

fabetos era de 3%. Entre os que vieram depois daquela data,

ela subiu a 35%.

T. ��� Quais foram os reflexos das doutrinas marxistas nos

Estados Unidos?

E. ��� Durante a ��ltima d��cada do s��culo passado houve

alguns movimentos socialistas nos Estados Unidos, cuja popu-

la����o prolet��ria crescia, oferecendo problemas que se compli-

cavam de ano para ano. Acrescia ainda que deste lado do

Atl��ntico o problema era agravado pela situa����o das popula-

����es negras e pelo "white trash", ou seja o branco pobre do

Sul. Um tal Eugene Debs, de Indiana...

T. ��� Sempre o teu Oeste...

E. ��� . . . chegou a organizar um partido socialista. Estava

ele convencido de que o trabalho tinha como inimigos uma

alian��a reacion��ria composta de patr��es e pol��ticos ajudados

pela imprensa. Como candidato a Presidente em 1900 chegou

a obter quase 55 000 votos. Apesar de os socialistas n��o terem

conseguido posi����es politicas, sua influ��ncia se fez sentir de

algum modo atrav��s do desejo que todos manifestavam de jus-

ti��a social. Pol��ticos fizeram demagogia em torno da id��ia

socialista, a qual teve tamb��m seus ap��stolos sinceros. O pr��-

A VOLTA DO GATO PRETO

451

prio Woodrow Wilson revelou pendores esquerdistas, mode-

rados pela sua educa����o protestante. Era um socialismo vago

e te��rico de professor de universidade.

T. ��� N��o havia nesse homem qualquer coisa de prof��tico,

de religioso?

E. ��� Sim, e vinha talvez de sua origem calvinista. Esse

professor idealista, que tinha f�� na cultura, na democracia e

na justi��a, chegou a acreditar num chamado divino para aquele

alto posto. Ovelha inocente no meio dos lobos da politicagem,

da ind��stria e da finan��a, pediu ao Congresso a redu����o das

tarifas a fim de desembara��ar o com��rcio mundial. Pediu

tamb��m um sistema banc��rio est��vel e leis de trabalho que

oferecessem prote����o ao oper��rio. Ao tomar posse do cargo de

Presidente dos Estados Unidos, declarou em seu discurso inau-

gural que "Este n��o �� um dia de triunfo. .. Aqui se coligam

n��o as for��as dum partido, mas as for��as da humanidade..."

E enquanto ele pronunciava estas palavras com a veem��ncia e

a sinceridade de mission��rio protestante, os cabe��as dos trustes

e os politiqueiros decerto sorriam...

T. ��� Depois veio a Grande Guerra.

E. ��� E a Am��rica do Norte ainda continuou mergulhada

na sua modorra isolacionista, acreditando no sonho da neutra-

lidade.

T. ��� E quando finalmente foi arrastada �� guerra...

E. ��� P��s todo o peso da sua ind��stria, de sua capacidade

de organiza����o na balan��a da guerra, fazendo-a pender para

o lado dos Aliados.

T. ��� E quando veio o Armist��cio...

E. ��� Wilson, o idealista, apresentou os seus catorze prin-

c��pios. Era ainda o homem que acreditava na justi��a e nos

ideais humanos. Mas o Congresso o abandono", a Am��rica

retirou-se da Liga das Na����es, e de novo se encaramujou em

seu isolacionismo.

T. ��� E depois da guerra?

E. ��� Tempos de inquieta����o, de tumultos; os problemas

de desmobiliza����o, do desemprego... Novos caminhos se

abriam. A R��ssia se achava nas m��os dos comunistas e os capi-

talistas americanos estavam tomados de p��nico, enxergando

"vermelhos" por todos os lados.

T. ��� E economicamente, qual era a situa����o do pa��s?

E. ��� De prosperidade... Uma prosperidade sem igual.

T. ��� A par da palavra frontier, outra que freq��entemente

se menciona aqui �� twenties. Que significa ela?

452

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

E. ��� Os twenties, ou seja os vinte, s��o os anos que v��o

de 1920 a 1929. Foi uma ��poca agitad��ssima da vida americana

e sua influ��ncia se fez sentir no resto do mundo.

T. ��� De que modo?

E. ��� Escute. Ao terminar a primeira Guerra Mundial a

Europa estava depauperada e presa da desordem, ao passo que

os Estados Unidos se encontravam praticamente intatos. Ti-

nham enormes recursos tanto em homens como em material.

Ford era o ap��stolo do evangelho dos sal��rios altos, dos pre��os

baixos e da produ����o em massa. A exporta����o americana

cresceu. O poder aquisitivo na na����o aumentou. O sistema

de vendas a presta����es entrava na sua fase ��urea, tornando

maior o n��mero de compradores. Na Bolsa faziam-se jogos

fabulosos. Os "novecentos e vinte" se caracterizaram por um

individualismo delirante, pela destrui����o de muitos tabus

sociais e morais, por uma maior independ��ncia das mulheres

e pela Lei Seca, que por sua vez gerou o gangster e uma

onda de crimes.

T. ��� At�� que ponto essas coisas todas influ��ram na vida

das outras na����es?

E. ��� Ora, com suas mercadorias, com suas m��quinas, ins-

trumentos, engenhocas e novidades, a Am��rica exportava tam-

b��m h��bitos, modas... O cinema atingiu sua maioridade (n��o

confundir maioridade com maturidade) durante os "novecen-

tos e vinte", isto ��, deixou de ser uma experi��ncia para se tornar

uma grande ind��stria. Os filmes de Hollywood, as revistas

ilustradas e mais tarde o r��dio, que come��ava tamb��m a indus-

trializar-se, levavam atrav��s do mundo o novo "American way",

o novo "jeito americano".

T. ��� Para ser preciso, em que consistia ele?

E. ��� No com��rcio era o esp��rito de Ford e dos outros

l��deres da ind��stria. Na m��sica, o jazz barulhento, dissonante,

negr��ide, que traduzia melhor que qualquer outro tipo de m��-

sica a mentalidade do homem que vinha da trincheira, des-

crente de tudo, e o esp��rito daquela gente que se entregava a

aventuras na bolsa, �� bebida e a uma esp��cie de amor livre. Na

literatura, era a fic����o do tipo de F. Scott Fitzgerald, que re-

velava ao mundo uma mocidade c��ptica, audaciosa, desorien-

tada e ��vida de prazer e velocidade; ansiosa, enfim, por gozar

o momento que passa. Era a literatura dum Hemingway e dum

Dos Passos, que tinham voltado da guerra e que, como tantos

outros, intelectuais ou n��o, constitu��am o que a escritora Ger-

trude B. Stein chamou de "a gera����o perdida", "the lost gene-

ration".

Quanto aos costumes, era o h��bito da bebida e das dan��as

ex��ticas e tamb��m negr��ides, que acompanhavam o ritmo con-

A VOLTA DO GATO PRETO

453

vulsivo do jazz. Em tudo isso se notava o desejo de romper

com um passado que de repente todos descobriam n��o era mais

que uma conven����o, uma falsifica����o, um tolo tabu. A gera����o

dos "novecentos e vinte" procurou, por assim dizer, destruir,

abolir ou esquecer o templo grego, o padr��o da beleza cl��ssica,

a moral convencional, o metro, a rima, a melodia, a harmonia

e os dez mandamentos.

T. ��� E at�� que ponto esses costumes e modas foram

aceitos?

E. ��� Sua aceita����o foi quase universal. Formaram-se, ��

claro, ilhas de rea����o contra essa nova moral, ou aus��ncia de

moral. Mas mesmo esses redutos puritanos, religiosos ou tra-

dicionalistas foram lentamente penetrados e contaminados.

Preste bem aten����o numa coisa. A aceita����o duma moda, seja

ela liter��ria, art��stica ou, digamos, social, depende muito da ati-

tude das mulheres, principalmente num pa��s como os Estados

Unidos.

T. ��� E que tem isso a ver com os twent��es?

E. ��� �� que os twenties marcam uma nova era na hist��ria

do feminismo americano e, de certo modo, na hist��ria do femi-

nismo na maioria dos outros pa��ses.

T. ��� Estou esperando a explica����o...

E. ��� Os twenties representaram principalmente uma re-

volta da gera����o nova contra o passado. Ora, quando falo em

gera����o nova refiro-me tanto a homens como a mulheres. As

mulheres americanas obtiveram o direito de voto em 1920.

Como conseq����ncia da guerra e da nova mentalidade reinante,

as fam��lias come��aram a abandonar certas tradi����es patriarcais

e a deixar sitas casas de muitas pe��as em favor do pequeno

apartamento, onde havia o mesmo conforto e menos trabalho.

T. ��� J�� se fazia aguda a crise de criados.

E. ��� Os criados estavam exigindo ordenados cada vez

mais altos.

T. ��� Naturalmente as inven����es mec��nicas ajudavam as

donas de casa na simplifica����o do trabalho dom��stico.

E. ��� Havia j�� as m��quinas el��tricas de lavar roupa que a

presta����o punha ao alcance das fam��lias de posses reduzidas.

E os produtos em conserva ��� sopas, carnes, verduras, frutas,

leite ��� facilitavam a prepara����o das refei����es.

T. ��� Por que essa ��nsia de simplifica����o?

E. ��� Era o desejo de ganhar tempo para empreg��-lo em

outras atividades. A vida se fazia complexa. Havia novas

atra����es. O r��dio, o cinema, o teatro, os esportes, a p��gina

c��mica dos jornais. Mais ainda: as mulheres come��avam a tra-

balhar em escrit��rios, a meter-se na pol��tica, a fazer trabalhos

454

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

de assist��ncia social, etc. Elas diziam: "Queremos viver a

nossa vida". Com essa frase procuravam livrar-se da influ��n-

cia paterna e em certos casos tratavam at�� de libertar-se eco-

nomicamente dos maridos.

T. ��� E que reflexo teve essa atitude na vida americana?

E. ��� �� que a influ��ncia da mulher, que j�� se fazia sentir

na casa, na educa����o dos filhos, passou a sentir-se tamb��m

atrav��s de artigos de jornais e revistas, de campanhas pol��ticas

e sociais, enfim, em todos os setores. Data tamb��m dessa ��poca

a moda dos cabelos cortados e o h��bito de as mulheres fumarem,

usarem saias mais curtas, e pintarem-se com menos discri����o.

Ora, o cinema, refletindo e muitas vezes exagerando esses as-

pectos da vida americana, causava em muitos casos esc��ndalo

no resto do mundo, mas de certo modo preparava o esp��rito

das multid��es para a aceita����o lenta desses h��bitos. Por outro

lado, a Europa, que sofrera mais agudamente com a guerra que

os Estados Unidos, tamb��m se entregava a uma f��ria de pra-

zeres materiais e uma destrui����o de ��dolos... Entrementes a

ind��stria e o com��rcio encorajavam esses h��bitos, criavam ne-

cessidades artificiais para aumentar suas vendas. Constru��am-se

novas estradas de rodagem e em breve todo o pa��s estava

ligado por faixas de cimento. Milh��es de pessoas adquiriram

autom��veis. Aumentou o n��mero de div��rcios e a criminali-

dade. A era do transporte a��reo come��ava. Havia cidades

em que os gangsters imperavam, influindo pelo suborno ou pela

amea��a at�� nos chefes, pol��ticos e nas autoridades, policiais

Enfim, os "novecentos e vinte" s��o uma ��poca de grande signi-

fica����o na hist��ria deste pa��s. Ela representa um feroz recru-

descimento do individualismo, e foi, evidentemente, uma era

de crise, de febre.

T. ��� Que culminou com a crise de 1929.

E. ��� E essa crise foi o resultado duma s��rie de fatores

entre os quais estavam as cargas de impostos decorrentes do

custo fabuloso da Guerra, e mais a baixa constante dos pre��os

dos produtos agr��colas ��� o que diminuiu o poder aquisitivo

dos agricultores ��� e as doidas especula����es da bolsa entre 1927

e 1929, os quais arrastaram no seu fracasso o dinheiro de milh��es

de americanos.

T. ��� Depois da crise vieram os anos de depress��o eco-

n��mica.

E. ��� Um quadro desolador. As ruas cheias de homens

de barba crescida a pedir 10 centavos para tomar caf��. As

bread lines, as filas de desempregados que iam receber do

governo a sua ra����o alimentar. Os bancos fechados. Os trens

vazios. Muita gente obrigada a vender os seus carros. Lojas

A VOLTA DO GATO PRETO

455

falidas. Os pobres ficaram na mis��ria. Os que estavam bem,

tiveram de baixar seu nivel de vida. A delinq����ncia juvenil

aumentou.

T. ��� Alguns filmes da ��poca focaram o drama dos jovens

que fugiam de casa e viajavam clandestinamente nos trens de

carga, chegando em muitos casos a criar problemas de po-

l��cia. ..

E. ��� Mas os Estados Unidos s��o um pa��s que sempre teve

a fortuna de ver erguer-se um Homem, um L��der, em todos os

seus per��odos de crise. Tiveram Jefferson e Washington du-

rante as lutas pela sua independ��ncia. Contaram mais tarde

com Lincoln, isso se n��o quisermos mencionar vultos da tem-

pera de Hamilton, Jockson, Daniel Webster e tantos outros.

E agora surgia um novo gigante, num dos per��odos mais negros

de sua historia.

T. ��� Franklin D. Roosevelt.

E. ��� No dia 4 de mar��o de 1933, milh��es de americanos

estavam junto de seus r��dios acesos, esperando a hora em que

o novo Presidente ia dirigir-lhes a palavra pela primeira vez,

depois da sua inaugurat��on. Dentro de poucos minutos aquela

voz musical, de tonalidade t��o calidamente humana, aquela

voz que atrav��s de tantas outras crises n��o s�� eles como milh��es

de criaturas de outras ra��as haviam de esperar no futuro ��� aquela

voz se fez ouvir... Ela acusava os "vendilh��es do templo",

encarecia a necessidade da estabiliza����o da moeda, e duma

pol��tica de boa vizinhan��a no que dizia respeito aos neg��cios

estrangeiros. Mas era preciso agir, agir imediatamente. E agir

dentro da Constitui����o.

Ele n��o hesitaria at�� em pedir poderes t��o largos como os

que se concederiam ao Presidente se o pa��s fosse invadido por

um inimigo estrangeiro. E o dono dessa voz mais uma vez

afirmava sua confian��a na Democracia. E um dos mais not��veis

trechos desse discurso foi o em que Roosevelt declarou: "Esta

grande na����o sobreviver��... ela reviver�� e prosperar��. As-

sim, antes de mais nada deixem-me protestar minha firme

cren��a em que a ��nica coisa de que devemos ter medo �� do

pr��prio medo". E os primeiros 100 dias da administra����o de

Roosevelt tornaram-se famosos pela s��rie de medidas dr��sticas

que o Presidente tomou no sentido de fazer face �� crise.

T. ��� Quais foram essas medidas? Em que consiste o fa-

moso New Deal?

E. ��� Para principiar, Roosevelt cercou-se dum grupo de

auxiliares competentes ��� economistas, financistas, t��cnicos em

diversos assuntos, professores de universidade, engenheiros,

organizadores, etc.

456

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� O chamado "brain trust", o "truste do c��rebro"...

E. ��� Exatamente. Tratou de salvar as estradas de ferro,

de fazer reabrir os bancos, incitando os depositantes a redepo-

sitarem neles o seu dinheiro.

T. ��� Oferecendo garantias em nome do governo?

E. ��� N��o. Nenhuma garantia foi oferecida, mas a pala-

vra do Presidente restabeleceu a confian��a do p��blico. Os

bancos foram reabertos, os redep��sitos feitos. Outra medida de

alcance mais psicol��gico que econ��mico foi a que alterou a

Lei Seca, permitindo a venda de cerveja e vinho com um li-

mitado teor de ��lcool. Mais tarde a proibi����o de vendas

alco��licas foi completamente revogada.

T. ��� E com rela����o ao dinheiro...

E. ��� Os Estados Unidos abandonaram temporariamente o

padr��o ouro. A exporta����o deste metal n��o podia mais ser

feita a n��o ser com o consentimento expresso do Tesouro.

Como resultado disso, dentro de poucos anos uma quantidade

de ouro na import��ncia de 14 bilh��es de d��lares foi guardada

na caixa forte subterr��nea do forte Knox. Roosevelt instituiu

desde o princ��pio de sua administra����o os fire side chats isto

��, as prosas ao p�� do fogo, palestras em que, atrav��s do r��dio,

ele se dirigia ao povo, animando-o, dando-lhe conta de seus atos.

T. ��� Qual foi a sua atitude com rela����o �� ind��stria?

E. ��� Roosevelt chamou os industrialistas e lhes declarou

que os sal��rios deviam ser elevados e que o governo exigia

tamb��m o estabelecimento dum sal��rio m��nimo, e dum limite

m��ximo de horas de trabalho por semana nas f��bricas, nas

quais ficou terminantemente proibido o emprego de menores.

A esses homens de neg��cio o Presidente explicou: "Se voc��s

pagarem sal��rios mais altos, o povo ter�� mais dinheiro e por-

tanto comprar�� mais. N��o se preocupem com reduzir os pre��os.

Re��nam-se voc��s os industrialistas e cheguem a um acordo

quanto aos pre��os e as horas de trabalho. E tomem nota disso:

Se as f��bricas funcionarem menos horas por semana, haver��

no pa��s mais oportunidades de emprego."

T. ��� E que fez ele com rela����o aos oper��rios?

E. ��� Encorajou os sindicatos e fez passar uma lei de apo-

sentadorias e pens��es. No terreno da legisla����o social os Es-

tados Unidos, cujos trabalhadores ganhavam sal��rios mais altos

que o dos oper��rios europeus ��� estavam ainda atrasados. Agora

o Presidente tratava de libert��-los do medo do futuro, do desem-

prego e da mis��ria.

T. ��� E quanto aos agricultores?

E. ��� O Presidente fez uma proposta que os deixou per-

plexos. Mandou que produzissem menos. E disse-lhes: "N��s

A VOLTA DO GATO PRETO

457

compraremos n��o as vossas colheitas, mas sim o que n��o for

colhido..." Por outro lado permitiu que os agricultores ele-

vassem o pre��o de seus produtos.

T. ��� Qual foi a rea����o dos homens de neg��cio a essas

medidas?

E. ��� Est�� claro que em muitos setores Roosevelt foi cri-

ticado, principalmente porque para fazer face ��s enormes

despesas com todas as novas ag��ncias criadas pelo New Dea]

teve de aumentar o imposto da renda. Algu��m tinha de pagai

e era natural que pagassem os que tivessem demais. O imposto

sobre a renda �� progressivo, e h�� um ponto em que o contri-

buinte tem de dar ao Tesouro quase noventa por cento de seus

rendimentos.

T. ��� Li muitas vezes acusa����es da imprensa direitista dos

Estados Unidos ao New D e a l . . .

E. ��� Atrav��s de seus jornais Hearst sempre criticou acer-

bamente Roosevelt e o seu brain trust. Para esse magnata da

imprensa, N. R. A., National Recovenj Act, ou seja, traduzido

ao p�� da letra, "A����o de Recupera����o Nacional" foi por ele

ironicamente batizado de "No Recovery Allowed", isto ��:

"Nenhuma Recupera����o Admitida". Muitos chamaram Roose-

velt de comunista e compararam o New Deal com o Plano Q��in-

q��enal sovi��tico.

T. ��� E que fez o governo com rela����o �� juventude aban-

donada, aos mo��os que ao deixarem o gin��sio se viam sem

emprego?

E. ��� Criou o "Civilian Conservation Corps" (o C. C. C.)

organiza����o encarregada de tomar conta desses rapazes e man-

t��-los em acampamentos onde levaram uma vida sadia ao ar

livre, trabalhando em obras de reflorestamento, na limpeza dos

bosques, combatendo a eros��o do solo, etc. Ao mesmo tempo

que realizavam obra nacionalmente ��til, esses boys eram afas-

tados dos grandes centros onde a necessidade e a ociosidade os

poderiam levar ao v��cio, ao crime ou ao desespero.

T. ��� E que provid��ncias foram tomadas quanto aos outros

milh��es de desempregados em idade adulta?

E. ��� Numa de suas conversas ao p�� do fogo (e veja, meu

caro Tobias, o sabor "lincolniano", tipicamente americano dessa

palestra sem cerim��nia junto da lareira, reminiscente, sob

tantos aspectos, da lareira do pioneiro, na sua cabana de tron-

cos, nas longas noites de inverno...) ��� mas, como eu ia di-

zendo, numa de suas conversas ao p�� do fogo Roosevelt declarou:

"Ningu��m morrer�� de fome". E tratou de criar um fundo de

assist��ncia aos desempregados. Milh��es deles viveram durante

muitos anos a receber esse relief.

458

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� Mas" todos os "chomeurs" passaram a receber dinheiro

do Estado?

E. ��� N��o. Foi institu��do o "Works Progress Act", cuja

finalidade era dar trabalho aos profissionais desempregados.

Assim m��sicos foram tocar em orquestras c��vicas; pintores

foram contratados para pintar murais em edif��cios p��blicos

municipais, estaduais e federais; escritores passaram a trabalhar

na organiza����o de monografias sobre diversos estados, cidades,

rios do pa��s, enriquecendo assim a bibliografia Americana.

T. ��� A que outros problemas o New Deal fez frente?

T. ��� H�� neste pa��s zonas em que chove pouco. E o Dry

belt a faixa seca, certas partes de Kansas, Nebraska, Colorado

e principalmente Oklahoma. O solo seca, transformando-se em

poeira. O vento sopra e origina pavorosas tempestades de areia

que assolam vastas regi��es, inutilizando as terras para a agri-

cultura, soterrando ranchos, granjas, escurecendo o sol e provo-

cando, como em certas partes do Nordeste brasileiro, migra����es

em massa.

T. ��� E at�� que ponto esse paralelo �� v��lido?

E. ��� Meu caro, at�� a mis��ria aqui �� mais confort��vel que

no Brasil. Esses retirantes americanos mudavam-se para outras

terras em autom��veis. Eram verdadeiros calhambeques... mas

andavam.

T. ��� E para onde iam esses retirantes?

E. ��� Claro que iam para o Oeste, homem! A marcJia

para o West est�� no sangue desta gente.

T. ��� De sorte que o New Deal marca uma interven����o

do governo na economia americana...

E. ��� Sem a menor d��vida. A inten����o do governo foi a

de acabar com uma competi����o que at�� ent��o tinha sido ��til

��� pois s�� a iniciativa privada podia promover o povoamento,

a industrializa����o e a riqueza econ��mica da Am��rica, ��� mas

uma competi����o que agora estava tomando um car��ter suicida.

A inten����o do New Deal foi principalmente a de dar um plano

a essa economia desordenada que engendrava absurdos como

o dessa crise em ��poca de superprodu����o, e o do desemprego

e quase desespero num tempo que tudo indicava podia ser de

fartura e felicidade social.

T. ��� E qual foi o resultado do New Deal?

E. ��� Isso �� hist��ria recent��ssima. Apesar de todos os seus

erros ou exageros, o New Deal conseguiu tirar a na����o do caos

e rep��-la no caminho da prosperidade. O resto, meu caro, voc��

sabe. �� de ontem. O fascismo, o nazismo, Hitler, Munich e

finalmente a Guerra.

T. - E o futuro?

A V O L T A DO G A T O P R E T O

459

E. ��� Sou fraco em profecias. Para lhe falar a verdade,

nem sei se no pr��ximo ver��o estarei aqui em Los Angeles, cm

Berkeley, Nova York ou se j�� a caminho do Brasil...

T. ��� Quais s��o as oportunidades do comunismo na Am��-

rica?

E. ��� N��o creio que este pa��s se possa tornar comunista,

nem mesmo que o partido comunista americano possa crescer

a ponto de se tornar uma amea��a ao regime cigente.

T. - Por qu��?

E. ��� Por causa ainda da fronteira. E por causa tamb��m

duma s��rie de outros fatores hist��ricos e psicol��gicos.

T. ��� Explique melhor seu pensamento.

E. ��� Creio que ainda o Oeste �� o respons��vel pelas pou-

cas chances do comunismo aqui. O Oeste �� principalmente a

zona do pequeno propriet��rio rural, do homem dotado de

horse sense (senso de cavalo) que vem a ser um senso comum

rude e pr��tico. Ele recebe mal qualquer id��ia de reforma

social. N��o acredita em "contos de fadas" e a conquista

da fronteira transformou-o num individualista, num democrata

convicto. Ele acredita nas coisas que seu trabalho, dirigido por

seu senso pr��tico, pode conseguir dentro do modo de vida ame-

ricano. "Se este tipo de democracia era bom para homens

como Lincoln e Jefferson ��� raciocinam eles ��� por que diabo

n��o h�� de ser bom tamb��m para mim e para minha gente?"

Acontece que neste pa��s n��o existe ainda consci��ncia de classe.

(Est�� claro que no caso dos negros e dos judeus se trata de

consci��ncia de ra��a.) O que h��, como bem observou J. V.

C��lverton, s��o n��veis econ��micos. O oper��rio �� o homem, que

sonha com uma carreira como a de Henry Ford, e tem por

isso o esp��rito competitivo e deseja a manuten����o duma so-

ciedade competitiva. Sinto tamb��m aqui o desejo generalizado

de manter o "sonho americano". Acha o americano que, seja

como for, no fim tudo dar�� certo, porque Deus vela pelo des-

tino da Am��rica.

T. ��� E durante a depress��o de 1929 a 1933 houve aqui

novas manifesta����es comunistas?

E. ��� Sim, e dessa vez com fortes reflexos na literatura.

No seu manifesto liter��rio comunista de 1930, Michael Gold,

autor de "Judeus sem Dinheiro", tomando como bode expia-

t��rio Thorton Wilder, atacou os literatos que vivem fechados

na torre de marfim, alheios aos problemas sociais de seu

pa��s e do mundo. Um escritor ingl��s, estudando recentemente

esses pruridos comunistas, classificou-os de "depression measles",

"sarampo da depress��o".



460

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

T. ��� Que acontecer�� se depois desta guerra o desemprego

atingir propor����es alarmantes e o conflito entre capital e traba-

lho se agravar?

E. ��� Na minha opini��o o mais que poder�� acontecer, e isso

ser�� muito importante, �� a cria����o de um terceiro partido, que

talvez seja o do "Labor". Os sindicatos americanos est��o filiados

a duas grandes organiza����es que s��o a A. F. L. (American Fede-

ration of Labor) e a C. I. O. (Congress of Industrial Organiza-

tion). H�� cerca de dezesseis milh��es de oper��rios sindicalizados,

unidos em todas as campanhas relativas a seus interesses como

oper��rios. At�� agora essas federa����es n��o t��m tido car��ter p��-

blico. Mas nestas ��ltimas elei����es a C. I. O. votou a favor de

Roosevelt, e isso foi fator importante para a terceira reelei����o

do Presidente. No dia em que ,esses sindicatos come��arem a

pensar politicamente ou melhor, com o esp��rito de classe, �� pos-

s��vel que surja o falado (e temido) terceiro partido.

T. ��� Que talvez ainda tenha o "jeito americano"...

E. ��� Tudo indica que sim. S�� uma grande, profunda con-

vuls��o social �� que poder�� mudar o pensamento pol��tico dos

americanos, transformando-os de conservadores em radicais. Es-

sa �� a minha impress��o sincera.

Nesse ponto Tobias e eu tomamos um ��nibus e voltamos

serenamente para Durango Avenue.

CORDA EM CASA DE ENFORCADO

27 de maio. Lou Edelman me telefona, convi-

dando-me para almo��ar no est��dio em sua companhia.

E acrescenta:

��� Mas olhe... N��o estou mais na Warner, e sim

na Paramount.

��� Est�� certo.

Compreendo tudo. "Hotel Berlim" ��� lan��ado re-

centemente ��� foi o que aqui se chama um "flop".

Devo, portanto, ter o cuidado de n��o pronunciar ho-

je o nome desse filme nem o de Vicky Baum diante

de meu amigo.

Encontro Lou Edelman em seu novo escrit��rio,

��s voltas com v��rios manuscritos de hist��rias.

A VOLTA DO GATO PRETO

461

��� N��o sei que �� que vou fazer primeiro aqui na

Paramount. . . ��� diz-me ele. . . ��� Tem alguma id��ia?

Sacudo a cabe��a.

��� N��o tenho a menor id��ia.

No Brasil sempre imaginei que estava cheio de

hist��rias, para Hollywood. O cinema me interessava

tremendamente como instrumento de express��o. Mal,

por��m, cheguei aqui n��o sei por que perverso sor-

til��gio fiquei tomado duma esp��cie de desinteresse por

tudo quanto diz respeito a filmes. Stravinsky tem ra-

z��o. A melhor maneira de a gente se livrar de Hol-

lywood �� mesmo vir morar em Hollywood.

��� Que me diz duma hist��ria sobre o Rio de Ja-

neiro? ��� sugere Edelman.

Encolho os ombros.

��� Talvez me ocorra alguma coisa.. .

��� As aventuras dum americano que vai viver no

Rio . . . uma hist��ria para mostrar que os brasileiros no fim

de contas s��o seres humanos n��o muito diferentes dos

americanos.

��� O plano �� bom em princ��pio. Mas acabaremos

sempre caindo nas mesmas f��rmulas, nas mesmas con-

ven����es. E se voc�� sair fora dele o filme ser�� um fra-

casso . . .

Cala-te, boca! Eu n��o devia ter mencionado esta

��ltima p a l a v r a . . .

��� Escute ��� diz Edelman, com o seu jeito ali-

ciante. ��� O Brasil �� uma grande terra. Palavra, eu

acredito no Brasil. E sabe duma coisa? Tenho uma

grande esperan��a nesses soldados que est��o lutando

na It��lia. Quando eles voltarem h��o de trazer para

casa uma mentalidade nova, capaz de influir nos des-

tinos do p a �� s . . . Que �� que acha?

��� Acho uma bela id��ia. Mas n��o creio que isso

aconte��a.

��� Por qu��?

462

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��� A guerra terminar�� em breve. O n��mero dos

expedicion��rios �� muito pequeno comparado com a

popula����o total do Brasil. Nossos problemas s��o mui-

to grandes, nossos v��cios muito arraigados.

��� Ent��o n��o tem nenhuma esperan��a?

��� Tenho muitas.

��� Em qu��. Em quem?

��� No povo... Vamos precisar mais. Tenho es-

peran��a em certas qualidades das gentes brasileiras:

na sua bondade essencial, no seu horror �� viol��ncia,

enfim, nessa misteriosa for��a que tem mantido unido

aquele pa��s t��o vasto, t��o despovoado, t��o pobre de

meios de comunica����o e transporte. Nessa for��a in-

descrit��vel que... bom, se �� indescrit��vel o melhor

mesmo �� n��o tentar descrev��-la...

Lou Edelman me leva para o restaurante do es-

t��dio. No caminho me diz:

��� Pois eu gostaria de dar a conhecer seu povo ao resto

do mundo atrav��s dum bom filme . ..

E quando estamos j�� �� mesa, exponho-lhe uma id��ia

que acaba de me ocorrer.

��� Imaginemos que uma revista de Nova York mande

ao Rio um jornalista que voltou da frente do Pac��fico .. .

Encomenda-lhe uma s��rie de artigos de interesse humano

sobre a vida brasileira . ..

��� Para principiar est�� ��timo...

��� O homem chega, espanta-se diante dos auto-

m��veis movidos a gasog��nio... Anda dum lado para

outro sem encontrar hotel. Vai olhar os banhistas na

praia de Copacabana. Uma peteca anda no ar...

de repente cai perto dele... o rapaz d��-lhe uma pal-

mada e no momento seguinte, sem saber como, est��

jogando peteca com uma mo��a.

��� Estab��lece-se ent��o um di��logo.

��� E como resultado desse di��logo o her��i vai

hospedar-se na pens��o da m��e da jovem. Agora, nos

dias que se seguem, fazendo rela����es com uma peque-

A VOLTA DO GATO PRETO

463

na gr��-fina, ele anda pelos cassinos para, ao cabo de

algum tempo, verificar decepcionado que n��o h�� mui-

ta diferen��a entre o Rio e Nova York ou San Fran-

cisco. Gente que bebe coquet��is e coca-cola, que

dan��a blues ou boogie-woogies... etc.

Passa por perto de nossa mesa Dorothy Lamour,

num vestido estampado viv��ssimo.

��� �� a primeira vez que a vejo sem sarong... ���

digo.

��� Mas voltemos �� hist��ria.

��� Bom. Finalmente a menina da pens��o deci-

de mostrar ao americano o verdadeiro Rio, o dos su-

b��rbios, e tamb��m a fauna da pens��o. O major re-

formado, a solteirona que suspira por um namorado,

o mo��o que toca violino, a pequena que veio do in-

terior para tentar uma carreira no r��dio, as comadres,

os compadres, o estudante bo��mio... Sobem juntos

as favelas, falam com gente da rua...

Vislumbro, por entre cabe��as inquietas, a calva de

Cecil B. de Mille. N��o muito longe de onde esta-

mos, Ray Milland come um sandu��che e bebe um co-

po de leite.

��� O que pretendo com essa hist��ria �� dar aos

americanos uma id��ia da vida brasileira ou, antes, do

Rio. Uma oportunidade para mostrar atrav��s de al-

gumas cenas o humor carioca, a sua bo��mia e des-

preocupada filosofia da vida.

Lou fica pensativo por alguns instantes e depois

diz:

��� A hist��ria �� quase boa. Mas �� preciso mais

enredo... e um cl��max.

Fa��o um gesto de d��vida.

��� Acabaremos ent��o caindo na f��rmula de Hol-

lywood.

��� Mas compreenda que para o p��blico ameri-

cano, que �� em ��ltima an��lise o p��b��co que paga, ��

464

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

muito dif��cil fazer engolir a p��lula quando ela n��o

est�� bem a��ucarada.

��� Mas nesse caso o humor carioca e a galeria de

tipos seriam o a����car.

��� Isso n��o �� suficiente.

Alan Ladd vem sentar-se junto de nossa mesa

com a esposa, Sue Carol, que foi estrela dos tempos

do cinema mudo. Lou me apresenta ao casal. Alan

Ladd, p��lido, duma palidez esverdeada e doentia, ��

muito mais baixo do que parece no cinema. Visto

assim ao natural est�� longe de parecer aquele sujeito

sempre pronto a usar a pistola e os punhos.

Sue Carol senta-se �� nossa mesa e fica a discutir

com Edelman problemas do marido. Ou��o apenas

trechos da conversa����o:

��� .. .porque voc�� compreende, aquele papel n��o

�� para Alan. .. porque a carreira dele...

Depois do almo��o saio a visitar alguns sets. Num

deles Ray Milland, Olivia de Havilland e Sonny Tufts

est��o a bordo do ferry-boat que faz o percurso de Ber-

keley a Oakland. Ray e Olivia conversam junto da

amurada, contra o fundo formado por uma tela na

qual se projeta um filme tirado realmente na ba��a de

San Francisco, dum ferry-boat em movimento. Fo-

tografados contra esse fundo, Olivia e Ray d��o a im-

press��o de estarem mesmo atravessando a ba��a. Por

duas vezes Miss de Havilland inutiliza v��rios metros

de celul��ide porque troca algumas palavras do seu

di��logo. Nos intervalos entre os ensaios, enquanto o

make-up man lhe passa no rosto um algod��o com pin-

tura, Sonny Tufts faz uma pantomima c��mica que pro-

voca risos no camera-man e nos eletricistas que se

acham nas proximidades.

De novo ao ar livre, Lou Edelman pergunta:

��� E a nossa hist��ria?

��� Nada feito.



A V O L T A DO G A T O P R E T O

465

��� Por qu��?

��� N��o encontro mais enredo.

��� Voc�� me disse que era ga��cho. Mas acho que

v^oc�� �� carioca: bo��mio e desligante.

��� E sabe por qu��?

��� N��o.

��� Porque este sol, este ar, estas montanhas, este

ritmo de vida ��� tudo aqui lembra o R i o . . .

E, lado a lado, voltamos em sil��ncio para o es-

crit��rio.

PERSHING SQUARE

31 de maio. �� uma pra��a no cora����o de Los

Angeles. Parece-se com as pra��as brasileiras: �� qua-

drangular, tem canteiros de relva, ��rvores e bem no

meio um grande chafariz no centro do qual, a dois me-

tros de altura do solo, erguem-se quatro anjos verdes a

sustentar nos ombros nus um prato de onde a ��gua

escorre para uma bacia de concreto, na base do mo-

numento.

Mas a nota curiosa desta pra��a �� ainda de na-

tureza humana. S��o as pessoas que a freq��entam, em

geral veteranos da outra guerra, empregados aposen-

tados, mulheres que vivem nos edif��cios circunvizinhos,

e turistas ociosos como eu.

Ando por aqui a olhar as pessoas, a ouvir as dis-

cuss��es. A pra��a tem os seus tipos populares, entre os

quais o mais conhecido �� um preto alto, com tipo de

argelino, a cabe��a metida num barrete negro. Tem um

nariz sem��tico, sua pele �� cor de cobre, e sua barba,

negra e longa, est�� estriada de prata. Anda vestido

de caqui e usa alpercatas pardas. Ao redor dele jun-

tam-se muitos homens para ouvi-lo. O preto tem uma

voz macia e aguda, fala com desembara��o e de vez em



466

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

quando solta uma risada que lhe deixa aparecer o in-

terior da boca desdentada e cor-de-rosa. O que mais

se discute aqui �� pol��tica e religi��o ��� principalmente

pol��tica internacional. H�� cavalheiros muito bem ves-

tidos e homens que pelo sotaque e pelas roupas s��o

imigrantes que n��o fizeram carreira. N��o raro um desses

tipos trepa num banco e come��a a fazer um discurso,

sendo muito aparteado. As discuss��es se acirram e o

c��rculo de curiosos se aperta em torno dos dois con-

tendores. E os latinos, acostumados ��s paix��es, aos ��m-

petos dos de sua ra��a, param, esperando que eles se

atraquem em luta corporal, que se dilacerem mutua-

mente a facadas. Mas nada disso acontece. A todas

essas, alto-falantes amplificam brutalmente a m��sica de

discos. H�� nesta pra��a stands que vendem b��nus de

guerra, escrit��rios de informa����es para soldados e ma-

rinheiros. Crian��as correm dum lado para outro. Va-

gabundos dormem estendidos na relva. Mulheres fa-

zem tric�� sentadas nos bancos. Velhos l��em jornais ou

lagarteiam ao sol.

Gosto de aparecer por aqui de quando em quando,

depois do meio-dia. Gentes de todas as ra��as re��nem-se

na Pershing Square. O som de muitas l��nguas ergue-

se no ar luminoso, enquanto pombas cinzentas es-

voa��am ao redor da fonte dos anjos verdes...

SALADA TROPICAL

3 de junho. Uma jovem brasileira, Evelyn Ashlin,

passou um ano na Universidade de Washington, em

Seattle, onde lecionou portugu��s e fez confer��ncias so-

bre sua terra e seu povo. Trocando Seattle por Holly-

wood, foi convidada para trabalhar no Departamento

Brasileiro dos Est��dios de Walt Disney. Certo dia, um

desses ca��adores de talentos da Paramount viu-a, achou

A VOLTA DO GATO PRETO

467

que ela era uma esp��cie de vers��o nova de Mima Loy,

com a vantagem de ser mais mo��a e sob muitos as-

pectos mais bela que a estrela, ofereceu-lhe um con-

trato longo e segundo o qual Evelyn come��aria ga-

nhando 500 d��lares semanais, com perspectivas de

aumento na medida em que seu nome fosse ganhando

notoriedade. Evelyn recusou a oferta, e quando lhe

perguntei por que jogara fora uma oportunidade com

a qual milhares de mo��as atrav��s do mundo viviam

sonhando, ela respondeu:

��� Quest��o de princ��pios...

Isso encerrou a quest��o.

Mas aconteceu que no pr��prio est��dio da Para-

mount, Evelyn encontrou Klaus Landsberg, um jovem

alem��o naturalizado norte-americano, e t��cnico em te-

levis��o. Conheceram-se, gostaram um do outro e den-

tro de poucos meses estavam casados.

Hoje, no Lucey's, restaurante que fica em frente

ao est��dio da Paramount, tenho aqui do outro lado da

mesa esse simp��tico casal. Klaus deseja que eu man-

tenha com Evelyn um di��logo em ingl��s sobre o Brasil,

no pr��ximo show de televis��o da Paramount, cuja es-

ta����o funciona em car��ter experimental.

��� Que �� que voc�� sabe de televis��o? ��� pergun-

ta-me ele, enquanto um pitoresco "ma��tre" espanhol pre-

para a nosso lado a "salada tropical", especialidade

da casa.

��� Muito pouco.

Com sua voz grave, Klaus ��� que �� um apaixonado

de sua profiss��o ��� explica:

��� A televis��o �� a arte ou ci��ncia, como quiser, de

transmitir imagens por meio de ondas de r��dio.

��� At�� a�� morreu o Neves ��� digo-lhe eu.

��� Como?

��� Nada. �� um modismo brasileiro dif��cil de tra-

duzir. Adiantei

468

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��� Ora, �� necess��rio primeiro traduzir essas ima-

gens em impulsos el��tricos para que elas possam ser

reunidas opticamente nos aparelhos receptores de modo

a formar uma imagem ou imagens completas.

Vejo numa mesa pr��xima Dianna Lynn acompa-

nhada de sua m��e. Este restaurante �� muito freq��en-

tado por artistas e funcion��rios da Paramount. L�� est��

junto do balc��o, tomando um coquetel, Arturo de

Cordova, que espalha em torno olhares l��nguidos.

��� O fen��meno da televis��o ��� continua Klaus ���

depende da capacidade do olho humano de lembrar-se

duma imagem durante cerca de 1/25 de segundo,

compreende?

��� 1/25 de segundo? Teoricamente. . compre-

endo.

��� Pois bem. Isso se deve ao fator da persist��ncia

da vis��o, e fornece ao espelho transmissor uma quan-

tidade igual de tempo para focar a coisa, a pessoa, ou

cena que se quer transmitir.

��� E por qu�� ��� pergunto ��� a televis��o n��o est��

ainda divulgada e posta ao alcance do p��blico, como

o r��dio?

Klaus se anima:

��� Por causa de algumas dificuldades t��cnicas. As

ondas Hertzianas circundam a terra e fornecem um

ve��culo espl��ndido para o som, no caso do r��dio. Mas

na televis��o empregam-se ondas ultracurtas, que via-

jam em linha reta na dire����o do horizonte, e que n��o

acompanham a curva da terra, da qual tendem a afastar-

se. Assim �� preciso estabelecer de dist��ncia em dis-

t��ncia esta����es retransmissoras.

��� E haver�� o lado econ��mico tamb��m ��� disco. ���

Imagine a revolu����o que a televis��o vai causar. No dia

em que os aparelhos receptores ficarem ao alcance de

um maior n��mero de pessoas, ningu��m querer�� sair de

casa para ir ao cinema e ao teatro, uma vez que poder��

ter pe��as e filmes a domic��lio.



A VOLTA DO G A T O P R E T O

469

��� Exatamente. Mas como a televis��o for��osa-

mente vir�� mais tarde ou mais cedo, j�� se formaram

companhias que est��o funcionando em car��ter, expe-

rimental.

��� E Klaus ��� diz Evelyn ��� est�� tratando de pa-

tentear um invento seu para transmitir imagens em

cores!

Bettv Hutton entra ruidosamente no restaurante,

de slacks cor de mostarda, e, aproximando-se de Arturo

de Cordova, beija-o na boca.

O "ma��tre" espanhol come��a a praguejar em sua

l��ngua. Diz nomes horr��veis para um dos gar��ons. Na

mesa vizinha �� nossa Gay Russell sorri para ele, sem

compreender.

O CANASTR��O

5 de junho. Num lavat��rio dos est��dios da Para-

mount, ��s sete e meia da noite. Com o aparelho de

Gillette que trouxe no bolso estou me barbeando na

frente dum espelho, pois sob as luzes implac��veis em-

pregadas na televis��o, qualquer toco de barba avultar��

no meu rosto assustadoramente. E enquanto a lamina me

canta na face, penso em que, no fim de contas, tenho fei-

to de tudo um pouco nestes dois ��ltimos anos. Contudo,

nunca esperei estar neste lugar, nestas circunst��ncias,

e prestes a ter a minha imagem transformada em im-

pulso el��trico e projetada com a velocidade da luz

atrav��s do espa��o, para ser recolhida... onde? por

quem? E para qu��? Eis uma pergunta que h�� muito

deixei de fazer. Porque ela tira �� vida toda a espon-

taneidade.

O est��dio de televis��o fica num dos sets. Mariana

e os pais de Evelyn est��o na plat��ia, onde vejo v��rias

outras pessoas, para mim desconhecidas. Fazem-me

470

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

subir para uma galeria e entrar num camarim. Aqui

estou agora em companhia duma bailarina seminua, du-

ma velhota muito pintada, que amestra can��rios, dum

m��gico metido numa casaca, e dum caricaturista tcheco-

eslovaco de boina de veludo negro. Um rapaz de jeito

efeminado aproxima-se de mim. mira-me bem no rosto

e diz:

��� O senhor precisa botar uma camadinha de pin-

tura especial.

��� Mas isso �� mesmo necess��rio?

��� Oh... �� indispens��vel.

��� Est�� bem.

Toma uma latinha onde vejo um pancake cor de

tijolo, esfrega nele uma esponja ��mida e depois me

passa a esponja no rosto. A meu lado a mulher semi-

nua (agora vejo que n��o �� bailarina, mas sim contor-

cionista) est�� ensaiando o seu n��mero: deitada de

borco, ergue o busto apoiando-se no ch��o com ambas

as m��os espalmadas e depois traz os p��s at�� o pesco��o:

parece urna enorme aranha. A velha dos can��rios

mira-se, faceira, no espelho. O m��gico prepara a car-

tola de onde vai tirar o coelho, o qual tremulo e triste,

acha-se em cima da mesa do camarim.

O maquilador toma dum baton de cor parda e

come��a a me pintar com ele os l��bios.

��� Isso tamb��m?

��� Ahan.

��� Estou desmoralizado.. . ��� murmuro.

Finalmente des��o para combinar com Evelyn os

pormenores em torno de nosso di��logo, que ter�� de ser

improvisado, de acordo com as fotografias do Brasil

que teremos nas m��os durante o nosso n��mero".

O show come��a. O mestre de cerim��nias, um ator

c��mico do cinema, faz as apresenta����es. Quando chega

nossa vez, Evelyn e eu nos sentamos a uma mesa. As

duas c��maras de televis��o, que se parecem um pouco

A VOLTA DO GATO PRETO

471

com as de cinema, aproximam-se de n��s. Mandam-nos

prestar aten����o ao "olho verde" das objetivas. Sobre

nossas cabe��as pende, amea��ador e trai��oeiro, um

microfone.

Acendem-se os refletores. A luz �� duma intensi-

dade cegante. Sinto a pintura no rosto como uma fina

m��scara de barro que amea��a gretar-se. Tenho na

boca o gosto perfumado do baton. Tudo isto �� muito

tolo, mas muito novo. Ouvimos o sinal. O speaker anun-

cia o di��logo. O olho verde se acende. Nossas imagens

j�� andam correndo pelo espa��o. Evelyn me convida

para uma viagem ao Brasil. Est�� claro que aceito o

convite. Come��amos a olhar fotografias... Enquanto

falamos, essas fotografias s��o transmitidas em close-up

e n��s ficamos invis��veis. Depois as c��maras voltam a

focar-se em n��s. Acho-me alagado de suor. As luzes

me d��o a impress��o de que estou em pleno deserto,

ao meio-dia, sob o mais impiedoso e t��rrido dos s��is.

Finalmente os quinze minutos se passam. O nosso

"ato" termina. Creio que a conversa se desenrolou com

naturalidade.

Seguem-se os outros n��meros. O m��gico tira o

coelho de dentro da cartola. A velhota faz seus can��rios

sentarem-se em cadeiras min��sculas, balan��arem-se em

trap��zios... No meio da exibi����o um deles foge, voa

e vai pousar na balaustrada da galeria, fora do campo

de vis��o das c��maras. O caricaturista tra��a "portraits"

de celebridades em quadros brancos de papel.

Depois do espet��culo caminho para minha mulher,

ainda pintado e sentindo-me vagamente rid��culo.

��� Est��s incr��vel! ��� diz-me ela. ��� Com essa cara

pintada pareces um canastr��o dos tempos do cinema

mudo.

Em minha mente Dona Eufr��sia e An��lio me di-

zem tamb��m coisas horr��veis.



472 O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

MATERIALISMO E IDEALISMO

Meu caro Vasco: Mando-lhe hoje mais um de meus di��-

logos imagin��rios com Tobias. Seu assunto me foi sugerido

por alguns brasileiros que visitam este pa��s e voltam para casa

afirmando que os latinos s��o povos espiritualistas, ao passo que

os americanos s��o grosseiros materialistas. Fazemos poemas

enquanto eles fazem neg��cios. Cantamos modinhas �� lua en-

quanto eles fabricam m��quinas. Vivemos de acordo com o co-

ra����o, e eles com o livro de cheques. Amamos a arte e eles

amam o dinheiro. Cultivamos a amizade, mas os americanos,

frios calculistas, vivem com o olho no lucro.

T. ��� For que se recusa voc�� a aceitar a id��ia de que este

povo �� materialista e o nosso idealista?

E ��� Porque essa quest��o tem muitas faces. Porque as

palavras s��o perigosas. E porque, enfim, a coisa toda n��o �� t��o

simples e l��quida como parece �� primeira vista.

T. ��� 'Negar�� voc�� que se fala muito em dinheiro aqui?

Que os americanos afirmam que tempo �� dinheiro? Que car-

reira significa dinheiro? E que com dinheiro se pode comprar

conforto e sa��de? Negar�� voc�� que ganhar dinheiro �� o obje-

tivo principal desta gente?

E. ��� A chave do problema parece estar na maneira como

n��s e os americanos encaramos o dinheiro. Para eles dinheiro

�� um s��mbolo comercial. Para n��s �� um s��mbolo moral e liter��-

rio. Para os americanos dinheiro �� uma moeda ou uma nota

que serve como meio de troca ou medida de valor. Para n��s

dinheiro �� tudo isso e mais ainda um s��mbolo de paix��es gros-

seiras e materialistas, de cobi��a e imoralidade. Em suma, para

n��s o dinheiro �� antes de mais nada "o vil metal".

T. ��� E n��o haver�� nessa nossa aprecia����o do dinheiro a

defini����o duma atitude mental ou, melhor, moral?

E. ��� Sim, teoricamente, literariamente... Para come��ar,

meu caro, o dinheiro �� uma das inven����es mais pr��ticas do ho-

mem. Essa hist��ria de "vil metal' foi provavelmente criada por

gente que precisava de dinheiro para comprar coisas e que, n��o

tendo capacidade para ganh��-lo, tratou de rebaix��-lo moralmente,

glorificando por outro lado a pobreza e a bo��mia ��� transfor-

mando a necessidade em virtude.

T. ��� Mas n��o acha que aqui se fala demasiadamente em

dinheiro?

E. ��� Acho. Mas olhe a Fran��a que sempre consideramos a

p��tria da melhor literatura e da melhor arte que o mundo tem

A VOLTA DO GATO PRETO

473

produzido. Veja qual �� a atitude do homem franc��s comum com

rela����o ao dinheiro... Ele junta dinheiro, parece, por amor do

dinheiro, com o fim de t��-lo e ret��-lo, ao passo que o americano

quer dinheiro para gastar, para comprar coisas, para faz��-lo cir-

cular. E quanto mais dinheiro ganha, mais pr��digo se torna; e

essa prodigalidade gera mais prodigalidade e mais oportunidades

para fazer dinheiro.

T. ��� Mas acontece que nos Estados Unidos o dinheiro �� a

medida do sucesso.

E. ��� Em muitos casos. E a explica����o disso se encontra

na Hist��ria deste povo. Na����o de imigrantes, terra da oportuni-

dade, muitas vezes a ��nica maneira que os americanos tinham

para medir o sucesso ��� que se traduzia em poder e influ��ncia

social ��� era o dinheiro. Por outro lado, fazer coisas numa esca-

la muito maior que a europ��ia, foi desde o princ��pio a preo-

cupa����o desses imigrantes que para c�� vieram a fim de se livra-

rem da fome, da pobreza, da opress��o e ��� n��o esque��a! ��� da

ang��stia de espa��o de suas terras de origem.

T. ��� Explique melhor seu ponto de vista.

E. ��� Para a grande maioria dos imigrantes que vieram para

c��, a Europa significava pouco espa��o, pouca comida, vida mes-

quinha, escassas oportunidades de sucesso. Era natural que ao

chegarem ao Novo Mundo eles procurassem compensar todas

as passadas defici��ncias realizando coisas grandes. N��o admira,

pois, que acabassem fascinados pelo tamanho e pela quantidade,

os quais passaram a ter um valor por assim dizer moral; isto ��,

as coisas que fossem grandes ou numerosas deviam ser necessa-

riamente boas.

T. ��� Nessa id��ia est�� baseada a democracia. A verdade

�� igual �� metade mais um.

E. ��� Tobias! Tobias! N��o enveredemos por nenhum ca-

minho perigoso...

T. ��� Voltemos ent��o ao nosso assunto.

E. ��� Por outro lado, na����o jovem, os Estados Unidos n��o

podiam deixar de possuir todos os caracter��sticos da adolesc��n-

cia, um dos quais �� a fascina����o pelas coisas gigantescas, bri-

lhantes e ruidosas.

T. ��� Mas como explica voc�� a incapacidade dos americanos

de compreender, digamos, o ato gratuito? Por que atribuir a

tudo uma utilidade? Tenho observado que eles se irritam diante

da falta de esp��rito pr��tico dos povos latinos...

E. ��� Antes de mais nada �� preciso provar que os latinos

n��o t��m esp��rito pr��tico... Depois �� indispens��vel n��o esquecer

que foi a conquista do Oeste, a luta com a intemp��rie e com

os ��ndios, que moldou o car��ter americano. Veja bem. Diante

474

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

de tantos inimigos, de tantas dificuldades, o pioneiro n��o podia

perder tempo com coisas que n��o fossem pr��ticas. Ele era um

realista, um individualista, uma pessoa interessada em fazer coi-

sas: derrubar ��rvores, abrir caminhos, construir cabanas, plantar,

colher, ca��ar, defender-se dos ��ndios e das feras... Sua pr��pria

filosofia da vida tinha de ter um car��ter objetivo. Era pois na-

tural que se irritasse ante qualquer manifesta����o de natureza

acad��mica ou abstrata. Assim se explica o fato de muitos deles

considerarem as atividades liter��rias e art��sticas n��o s�� in��teis

como tamb��m indignas dum homem. Abrir uma picada ou

plantar uma ��rvore era para eles mais importante que ler ou

escrever um livro.

T. ��� Essa atitude diante da arte e da literatura ainda per-

siste?

E. ��� O homem de neg��cios moderno at�� certo ponto pare-

ce participar dela. �� por isso que neste pa��s s��o as mulheres

quem mais se interessa pelas letras e p��las artes.

T. ��� Mas a sua tentativa de justifica����o do culto do gran-

de, do numeroso por parte dos americanos s�� nos leva �� conclu-

s��o de que este pa��s �� realmente materialista.

E. ��� N��s os latinos confundimos idealismo com literatura

ou com religi��o formal. O fil��sofo George Santayana escreveu

que o americano �� "um idealista que trabalha a mat��ria".

T. ��� E qual foi o resultado da mat��ria trabalhada com idea-

lismo?

E. ��� Uma vida sadia, confort��vel e conseq��entemente bela.

Um operariado que vive melhor que a classe m��dia da maioria

dos pa��ses sul-americanos e europeus. Magn��ficas universida-

des, escolas prim��rias, gin��sios, jardins de inf��ncia, parques p��-

blicos, museus, bibliotecas... Centenas de laborat��rios da mais

variada natureza postos ao servi��o do bem-estar p��blico. Opor-

tunidades para cientistas, artistas e escritores prosseguirem, sem

preocupa����es financeiras, seus trabalhos de pesquisa, cria����o ou

interpreta����o.

T. ��� Mas voc�� n��o poder�� negar que a vida numa cidade

como Nova York ou Chicago �� uma pasmosa express��o de mate-

rialismo

E. ��� N��o negarei. Mas voc�� j�� notou como em certas cida-

des latinas tamb��m se luta pelo dinheiro, pelas posi����es, pelo

prazer? Voc�� acha que o Rio �� mais moralista que Nova York?

Ou que Buenos Aires �� mais puritana que Filad��lfia.

T. ��� Mas n��s nos preocupamos com outras coisas que n��o

o dinheiro e o lucro. Veja a literatura e as artes como flores-

cem nos pa��ses latinos.

A VOLTA DO GATO PRETO

475

E. ��� Voc�� apresentar�� como exemplo a Fran��a, a grande

Fran��a, e desfiar�� um brilhante ros��rio de nomes ilustres come-

��ando com Racine e terminando com Andr�� Malraux. Mas

acontece que a Fran��a �� um pa��s amadurecido, um pa��s anti-

go, ao passo que os Estados Unidos s��o um pa��s adolescente.

E seus defeitos, repito, s��o justamente os de um adolescente

que cresceu demais.

T. ��� Ent��o admite que os Estados Unidos t��m defeitos?

E. ��� Claro! Mas ningu��m poder�� negar que as artes flo-

rescem aqui tamb��m.

T. ��� Mas os melhores artistas que aqui vivem n��o s��o

americanos! Ou s��o estrangeiros naturalizados ou s��o filhos

de imigrantes.

E. ��� Meu caro Tobias, que ��, afinal de contas, um ame-

ricano? O homem louro do Middle West que tem nas veias

sangue escandinavo ou alem��o? O irland��s rubicundo e apaixo-

nado? O italiano de Nova York? O descendente de franceses

e espanh��is da Louisiana? Ou ainda o novaiorquino cujos an-

tepassados vieram da Holanda? N��o se esque��a que este �� um

pa��s de imigrantes, uma "na����o de na����es".

T. ��� Voc�� acha realmente importante a arte americana?

E. ��� Talvez n��o seja ainda importante comparada com a

francesa, a espanhola, a italiana e a alem��. Mas est�� a caminho

de tornar-se importante. Tem todos os elementos para isso.

Sangue novo e oportunidades na forma de universidades, museus,

bolsas de estudos, doa����es de milion��rios e ��� note bem! ��� boa

vontade e est��mulo da parte dum vasto p��blico, que sabe aplau-

dir e admirar mesmo quando n��o pode compreender.

T. ��� E a literatura?

E. ��� �� das mais vigorosas da atualidade. N��o julgue nun-

ca a literatura dos Estados Unidos por muitos dos best-sellers

que se traduzem na Am��rica do Sul, e muito menos pelas his-

t��rias de quadrinhos dos suplementos dominicais.

T. ��� N��o lhe parece que o gosto do p��blico deste pa��s vai

todo para o romance folhetim, para as hist��rias falsas de maga-

zine e cinema?

E. ��� Meu caro Tobias! Para esse g��nero vai o gosto da

maioria das criaturas humanas em todos os pa��ses do mundo.

N��o caia no erro de imaginar que o oper��rio e o campon��s

de Fran��a l��em Gide, Cocteau ou Giraudoux. O p��blico

dos romances de enredo �� imenso na Am��rica porque: a) a po-

pula����o norte-americana �� muito grande; b) porque tem o h��bito

da leitura; c) porque seu poder aquisitivo �� maior que o de

outros povos.

T. ��� Estar�� voc�� disposto a defender tamb��m essas de-

test��veis divulga����es liter��rias e musicais, essa tend��ncia de

476

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

transformar... digamos a "R��verie" de Debussy num fox, e

um trecho de Mozart num "swing"?

E. ��� At�� certo ponto estou. A nossa atitude latina com

rela����o �� literatura tem sido demasiadamente aristocr��tica. Acha-

mos que certo tipo de arte e literatura n��o deve ser posto ao

alcance do p��blico. Joyce e Proust s��o hoje como que santos

duma estranha igreja de poucos adeptos. No dia em que por um

milagre o p��blico come��ar a ler esses dois autores, essa igreja

exclusiva dos happy fevv se acabar��, porque seus fi��is demolir��o

os ��dolos e procurar��o refugiar-se noutras regi��es mais altas e

inating��veis para as massas.

T. ��� Mas que raz��o voc�� invoca em favor das divulga����es?

E. ��� Elas s��o educativas. Arrancam o p��blico da leitura

das hist��rias de Brucutu para o tipo mais alto de fic����o. Como

o desn��vel entre a literatura dum Thomas Mann e a dos suple-

mentos dominicais �� muito grande, �� necess��rio construir uma

escada com muitos degraus. As "Sele����es do Reader Digest"

representam por exemplo um degrau dessa escada. A revista

oferece seus perigos e tem seus defeitos, reconhe��o; mas os ser-

vi��os que vem prestando entre n��s s��o enormes. O mesmo se

passa com a divulga����o de m��sicas de autores s��rios.

T. ��� Voc�� viu "�� Noite Sonhamos?"

E. ��� A�� est��! Um filme artificial, errado e tolo. Mas pres-

tou bons servi��os. Falsificou Chopin o homem, mas trouxe Cho-

pin o m��sico para o n��vel do povo, atrav��s da interpreta����o dum

pianista como Jos�� Iturbi. O p��blico assobia as "polonaises" e

algumas das valsas e dos prel��dios desse compositor. �� natural

que os "m��sicos puros" fiquem ofendidos ao ouvirem o cobrador

do ��nibus cantarolando o "Estudo em Mi Bemol..."

T. ��� Voltando ao dinheiro... Noto que os americanos fa-

lam em dinheiro com naturalidade e n��o ficam como n��s "cheios

de dedos" quando conversam sobre transa����es comerciais.

E. ��� Ledores da B��blia eles compreenderam o sentido da

cena em que Jesus expulsou os vendilh��es do templo ��� n��o por-

que achasse que era il��cito fazer neg��cio, mas sim porque o tem-

plo n��o era o lugar apropriado para isso. Mais tarde, olhando

uma moeda com a ef��gie de C��sar e respondendo a uma per-

gunta capciosa, o Messias disse: "Dai a C��sar o que �� de C��sar

e a Deus o que �� de Deus". Essa frase permitiu ao ameri-

cano fazer a separa����o desses dois mundos. Assim ele faz ne-

g��cio durante a semana e aos domingos vai �� missa, ao servi��o

divino, em paz com o Criador, com os bancos e com a sua cons-

ci��ncia.

T. ��� Mas como �� poss��vel negar que haja aqui a Reocupa-

����o do sucesso, da carreira e do dinheiro?

A V O L T A DO G A T O P R E T O

477

E. ��� Mas eu n��o nego! Quero apenas mostrar que nos nos-

sos pa��ses essa preocupa����o tamb��m existe. Acontece apenas

que l�� eh toma outro aspecto, porque o ambiente �� outro, as

tradi����es s��o outras, o sentimento geral �� diferente.

T. ��� N��o acha que o alto n��vel de vida deste povo �� um

produto do dinheiro?

E. ��� Como vou negar uma coisa t��o evidente? O dinheiro

pode comprar coisas que tornam a vida mais f��cil, mais bela, mais

fecunda. Reconhe��o que h�� pessoas em todos os pa��ses do mun-

do que querem dinheiro por amor do dinheiro. Ora, n��o pode-

mos argumentar com exce����es, com anormalidades. Por outro

lado muitas vezes procuramos consolar-nos de nossas defici��n-

cias, de nossos fracassos e de nossa pobreza dizendo que n��o

temos dinheiro nem conforto simplesmente porque somos idea-

listas. �� uma reflex��o id��ntica �� do poeta franzino diante do

atleta: "Sim, ele �� forte, mas n��o �� capaz de escrever um poema

desses que comovem multid��es". Conhe��o europeus que, inve-

josos da prosperidade americana, dizem: "Os Estados Unidos s��o

um povo sem cultura nem tradi����o". E assim, invocando suas

elites art��sticas e liter��rias, essas pessoas procuram uma compen-

sa����o moral para o baixo n��vel de vida de seus oper��rios, a falta

de boas instala����es sanit��rias nas suas cidades, a aus��ncia de

boas estradas e de v��rias outras formas de progresso e conforto.

T. ��� Mas n��o acha que tem havido neste pa��s exageros no

que diz respeito �� preocupa����o com o progresso material?

E. ��� N��o nego que tem havido exageros. A vida em cida-

des como Nova York, Chicago, Filad��lfia, Detroit e algumas

outras �� assustadora. Gente atarantada, afobada, andando dum

lado para outro, apertando-se nos bondes, ��nibus e trens, me-

tendo o ombro nas multid��es, e assombradas sempre pelo fan-

tasma do tempo, do sucesso, da carreira, do dinheiro.

T. ��� Essa �� a imagem dos Estados Unidos que se conhece

no estrangeiro.

E. ��� Mas n��o encontraremos o mesmo quadro ��� apenas em

menor escala ��� em Paris, em Londres, em Buenos Aires e no

Rio de Janeiro? Tu sabes como se fazem negociatas fant��sti-

cas na nossa capital e como l�� se briga e discute em torno de

dinheiro e posi����es. N��s fazemos essas coisas e todo o tempo

estamos a gritar que somos espiritualistas e que desprezamos o

dinheiro...

T. ��� E que panorama oferecem as outras cidades america-

nas?

E. ��� Se voc�� visitasse as pequenas comunidades deste pa��s

verificaria que elas s��o compostas de gentes tranq��ilas, nada

gananciosas e de muito bom n��vel moral. Os sal��rios que ga-

478

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

nham s��o razo��veis mas nunca fabulosamente altos como sup��em

os estrangeiros que imaginam que todos aqui ganham milh��es,

como as estrelas de cinema. A vida dessas pequenas cidades ��

calma. Nos domingos as igrejas de todas as denomina����es se

enchem de fi��is. Est�� claro que tamb��m existem nesses lugares

hip��critas, mexeriqueiros, negocistas. E que os eternos ele-

mentos da com��dia humana est��o presentes tanto em Chicago,

Illinois, como em San Diego, Calif��rnia ou Newton, Kansas.

T. ��� Como se explica seja t��o grande aqui o n��mero de

pessoas que morrem de doen��as do cora����o e de ��lceras g��s-

tricas?

E. ��� Muitos americanos passam a vida correndo atr��s do

sucesso e duma carreira, multiplicando empresas e lucros, mas

multiplicando ao mesmo tempo preocupa����es e problemas. No

fim ficam prisioneiros da fant��stica engrenagem que eles mesmo

constru��ram e n��o podem mais libertar-se dela. J�� n��o se trata

de ganhar mais, pois nem tempo h�� para gastar tudo quanto

ganham. �� que aquilo que no princ��pio era um meio transfor-

mou-se tola e tragicamente num fim. Esses homens de grandes

neg��cios comem ��s pressas, dormem mal e vivem preocupados.

Acabam sofrendo do cora����o e de ��lceras g��stricas. S��o as in-

felizes personagens desse drama fabuloso que �� o progresso

americano.

T. ��� N��o acha que n��s no Brasil n��o temos esse tipo de

drama?

E. ��� Temos outro mais impressionante. O do homem que

passa a vida trabalhando como um burro sem nunca conseguir

um sal��rio decente. Sofre do cora����o, do est��mago, do f��gado

e vive em permanente estado de subalimenta����o. Sua pobreza

�� uma doen��a cr��nica. Sua desgra��a �� multiplicada atrav��s da

multiplica����o da prole. E entre n��s �� muito comum um outro

tipo de personagem. Refiro-me ao homem que passa a vida

acumulando dinheiro, mas que n��o multiplica suas empresas

e portanto n��o cria oportunidades de trabalho para outros.

S�� pensa nos juros que seu dinheiro rende, imobilizado nos

bancos. Vive mal, em casas ��midas e frias, onde a mesa ��

pobre e o conforto n��o existe. Homens como esse de certo

modo t��m entravado o progresso do pa��s. O dinheiro n��o

serve de nada nem para ele nem para os que est��o a seu redor.

T. ��� N��o foram esses americanos que sofrem do cora����o

ou de ��lceras g��stricas os construtores do progresso de sua p��tria?

E. ��� Sim, em grande parte. N��o fosse o tipo de sociedade

competitiva que existiu aqui desde o princ��pio, n��o teria sido

poss��vel aos Estados Unidos serem hoje o que s��o. Este pa��s foi

feito gra��as �� iniciativa privada.

A VOLTA DO GATO PRETO

479

T. ��� Que eles defender��o at�� o ��ltimo cartucho.

E. ��� Mas acontece, meu caro, que se no princ��pio era in-

dispens��vel que os homens trabalhassem sozinhos e sa��ssem a

conquistar o deserto, fundar cidades, criar ind��strias, chegou um

momento de tal emaranhamento de interesses, de t��o doida

competi����o, que tudo isso redundou na crise de 1929, a qual foi

debelada gra��as �� interven����o de Roosevelt com o seu New

Deal, que p��s ordem no caos e de novo trouxe a na����o para o

caminho da prosperidade.

T. ��� Acha ent��o que os Estados Unidos caminham para a

economia francamente dirigida?

E. ��� Quem sabe? Duas tend��ncias deste povo entram em

conflito. Dum lado o seu individualismo ferrenho, e do outro seu

esp��rito de coopera����o combinado com o gosto da planifica����o.

Os inimigos do New Deal s��o numerosos e fortes em todo o pa��s.

N��o sei para onde caminhar�� esta na����o. Mas me parece que

nunca mais a ind��stria e o com��rcio poder��o gozar da liberdade

que tiveram em tempos passados.

T. ��� N��o acha que estamos nos afastando da nossa estra-

da real, isto ��, do assunto "materialismo e idealismo"?

E. ��� O assunto �� rico de sugest��es. Poder��amos passar ho-

ras e horas sondando esse po��o sem nunca encontrar-lhe o fundo.

Mas antes de terminar eu queria chamar sua aten����o para alguns

aspectos da vida americana que nada t��m de material.

T. - Vamos l��...

E. ��� Veja o carinho e o respeito com que os americanos tra-

tam as mulheres e as crian��as, que neste pa��s gozam de prerroga-

tivas especiais. E o modo como cultivam as tradi����es familiares,

as festas como o Natal, o "Thanksgiving Day" e outras. O cuida-

do que dispensam ��s suas escolas e universidades, aos seus mu-

seus, bibliotecas, galerias de arte; e aos seus parques e jardins,

cuja gra��a chega ��s vezes a valer por um poema. O interesse com

que procuram os sal��es de confer��ncia, e a curiosidade que reve-

lam atrav��s de suas perguntas aos conferencistas. O amor com

que cuidam das coisas p��blicas. O respeito que t��m pela vida

humana e pelas liberdades individuais,

T. ��� E ao cabo de dois anos de estada neste pa��s, qual �� a

sua impress��o sincera deste povo?

E. ��� Olhe, tudo quanto eu lhe disse �� resultado de observa-

����o direta do homem e da vida americanos, mais do que produto

de leitura. Nestes dois ��ltimos anos tenho viajado extensamente

atrav��s dos Estados Unidos e tenho tido contato com toda a es-

p��cie de gente. Ora, quem se locomove no tempo e no espa��o,

entrando em e saindo de hot��is, trens, ��nibus, avi��es, bondes

480

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

caf��s, teatros, cinemas, lojas; quem passa por todos os setores da

vida duma na����o; quem vive o dia a dia com um povo tem ���

a menos que seja cego ou imbecil ��� todas as oportunidades de

ver esse povo em plena tarefa de viver... Apanha-o, por assim

dizer, desarmado, desprevenido, pois ele n��o est�� posando para

um cameraman, para um soci��logo ou um rep��rter. E as conclu-

s��es a que cheguei sobre os americanos s��o as mais favor��veis.

H�� neles, uma tend��ncia natural para a dec��ncia, para o jogo

limpo, para a boa camaradagem, por mais frios que pare��am na

superf��cie. Em todas essas minhas andan��as nunca topei com

ningu��m que me dificultasse o caminho; que me quisesse ludi-

briar ou lesar; que se mostrasse hostil ou mesmo dif��cil. Por

toda a parte encontrei um acolhimento amigo, e uma hospitali-

dade que muitas vezes escapa aos olhos dos latinos porque ��

falha de caracter��sticos teatrais. Este povo n��o �� nem pitoresco

nem brilhante, mas �� s��lido e eficiente, e ao cabo dum certo

tempo de conv��vio, acabamos depositando nele toda a nossa

confian��a. Conclu��mos finalmente que o americano �� um bom

companheiro, um bom cidad��o, um bom vizinho. Se voc�� acha

que todas essas coisas s��o express��o de materialismo... bom,

creio que ser�� in��til continuarmos a conversar.

T. ��� Terminemos ent��o o nosso di��logo...

E. ��� Mas n��o sem que eu lhe conte uma hist��ria real que

ilustra, de maneira simples mas eloq��ente, a diferen��a de ati-

tude entre o brasileiro e o americano com rela����o ao dinheiro.

Um dia, como eu precisasse dum n��quel para fazer funcionar

um telefone p��blico, pedi a um amigo americano que me tro-

casse uma moedinha de dez centavos. Ele me deu duas moedas

de cinco centavos e eu lhe passei o meu dime, que ele p��s no

bolso com a maior naturalidade. Dias depois, em circunst��ncias

id��nticas, pedi a um brasileiro que me desse duas moedas de

cinco centavos, mas quando lhe quis passar a moedinha de dez,

ele fez um gesto dram��tico, sacudiu as m��os, a cabe��a e todo

ele era uma veemente nega����o. Com seus gestos parecia dizer:

"N��o senhor! Ora essa! Que s��o dez centavos? Uma ninharia!

Havia de ter gra��a... N��o senhor. Deixe de besteira!" E

como eu insistisse ficamos por algum tempo a gesticular, a

soltar exclama����es, enquanto dois amigos americanos que es-

tavam junto de n��s se entreolhavam, sorrindo, sem compreender

por que est��vamos fazendo tanto barulho por coisa t��o simples.

Pois n��o se tratava duma transa����o normal: trocar uma moeda

de dez por duas de cinco? Seria dif��cil explicar-lhes que para

n��s brasileiros n��o se tratava dum problema de aritm��tica mas

sim de ��tica...





A V O L T A DO G A T O P R E T O

481

BELEZA POR CINZA

12 de junho. No cemit��rio de Hollywood, que

fica simbolicamente ao lado dos est��dios da Paramount

e da RKO, ergue-se um panteon de m��rmore branco,

onde est��o guardadas as urnas com os restos de Ru-

dolph Valentino, John Barrymore, Jean Harlow e deze-

nas de outras celebridades do cinema; cujo glamour a

morte reduziu a cinzas com a cumplicidade dum cre-

mat��rio.

E nesta fresca e silenciosa sala branca, enquanto

leio inscri����es, lembro-me dum vers��culo do profeta

Isa��as: "A ordena����o acerca dos tristes de Si��o que se

lhes d�� beleza por cinzas, ��leo por tristeza, vestido de

louvor por esp��rito angustiado..." Sim ��� reflito ���

essa me parece a grande preocupa����o dos norte-ame-

ricanos diante da morte: apagar com beleza a lem-

bran��a das cinzas, espalhar o ��leo do gozo para que

ele afogue toda a tristeza. ..

Nada, por��m, me interessa tanto neste cemit��rio

como uma laje que vejo aqui fora, onde est��o enterra-

dos os mortos sem gl��ria. Acha-se ela incrustada na

relva, com sua superf��cie bem no n��vel do ch��o:

PEGGY SHANNON

1910 - 1941

Aquela Pequena dos Cabelos Ruivos

Esperem! N��o posso passar de largo. Lembro-me

de Peggy Shannon... Vi seu retrato muitas vezes em

jornais e revistas. Tinha um rosto bonito e um corpo

bem feito. Mas �� est��pido que uma pessoa que viveu

trinta anos, que sonhou, sofreu, amou, desejou, acabe

sendo para os outros, ap��s sua morte, apenas a lem-

482

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

branca duma gravura, uma figura muda e im��vel de

duas dimens��es.

Peggy Shannon... Deve ter nascido numa cida-

dezinha do interior, de Iowa, Indiana ou Kansas. Teve

sarampo e cachumba, acreditou em Papai Noel, cantou

o Jingle Bells! foi �� escola de soquetes brancas e su��ter

azul... Aos dezesseis anos ia ao cinema e, enquanto

segurava a m��o do namorado e mascava goma na pe-

numbra da sala, soltava fundos suspiros ao ver John

Gilbert beijar na tela Ren��e Ador��e. Na cabeceira de

sua cama havia um retrato autografado de Rudolph

Valentino. Depois veio aquela doida viagem a Holly-

wood, com pouco dinheiro e muitas esperan��as. Che-

go a ver Peggy a discutir com a senhoria de sua casa.

N��o tem com que pagar o aluguel do pequeno aparta-

mento, pois ainda n��o encontrou trabalho. Acompanho-a

depois nas suas caminhadas pelo bulevar, �� noite, quan-

do ela anda �� procura de algu��m que lhe pague um

jantar no Sardi's ou no Brown Derby, ou ent��o em ��l-

timo caso um sandu��che e um copo de leite no drugs-

tore da esquina... Um dia chega finalmente a opor-

tunidade sonhada. Uma pontinha num filme... O

primeiro retrato numa revista de cinema... O caminho

do estrelato. E uma vida agitada, de festas, corridas de

autom��vel, sensa����es... Depois, quem sabe l�� o que

aconteceu?

Agora nada mais importa. A menina dos cabelos

ruivos est�� enterrada aqui a meus p��s. P��ssaros negros

voejam em torno da sepultura. Por cima daqueles

muros claros vejo os telhados dos est��dios, dentro dos

quais neste mesmo momento centenas de mo��as como

Peggy est��o vivendo o seu minutinho de gl��ria. Longe

azulam as montanhas da Sierra Madre, que parecem

dormir e sonhar com os tempos em que por aqui s��

andavam ��ndios e mission��rios, e o padre Junipero

Serra sa��a a visitar as miss��es, montado num burrico

de p��lo pardo com o seu burel de franciscano.



A V O L T A D O G A T O P R E T O

483

Peggy nasceu em 1910, quando o cometa de Haley

apareceu no c��u e toda a gente dizia que o mundo ia

acabar. Morreu no ano em que os avi��es japoneses

bombardearam Pearl Harbour. Foi uma dessas menini-

nhas que acenam para n��s quando nosso trem passa

pelas vilas perdidas na vastid��o das plan��cies de

Oklahoma, New M��xico ou Nevada... Por isso tudo,

Peggy, eu n��o podia passar de largo por tua sepultura.

E por isso tudo estou comovido. Sou uma besta.

Adeus, Peggy!

CARTA A UMA JOVEM BRASILEIRA

15 de junho. "Voc�� me pede em sua carta que lhe fale

de artistas de cinema, e eu n��o sei que dizer-lhe. Encontro-

me nesta cidade h�� uns dez meses, tomei j�� um fart��o de

est��dios e ��s vezes chego a esquecer que estou em Hollywood.

Voc�� afirma que sou um felizardo por viver t��o perto das es-

trelas. Sim, Beverly Hills �� um lugar delicioso, uma das mais

belas cidades residenciais do mundo. �� agrad��vel e repousante

andar por suas ruas quietas e limpas, orladas de ��rvores ��� pal-

meiras reais, faias, ac��cias, carvalhos, ��lamos... Alguns de seus

jardins s��o de tal maneira bem cuidados, que chegam a causar-

nos uma esp��cie de mal-estar, como o que sentimos diante de

certos homens demasiadamente bem vestidos, perfumados e

manicurados. Suas casas s��o de tal modo graciosas, que lem-

bram tricromias de revistas. V��mo-las de todos os estilos e

tamanhos. Umas parecem solares ingleses com telhados que

formam ��ngulos agudos, e paredes de pedra cinzenta ou parda,

cobertas de hera. Outras, com seus p��rticos de brancas e altas

colunas, lembram as "plantation houses" do velho Sul. E

quando passamos de autom��vel por estas avenidas, n��o raro

vislumbramos no fundo de parques e jardins, fachadas com

influ��ncias mouriscas, chinesas, maias, incaicas, a alternar com

outras em que saltam aos nossos olhos reminisc��ncias do g��tico,

do rococ��, do eg��pcio, do bizantino e n��o sei mais qu��...

Voc�� �� muito jovem e naturalmente n��o sabe quem �� ou,

antes, quem era Theda Bara. Pois era a femme fatale de vinte

cinco anos passados, a mulher vampiro de negros cabelos

484

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

lambidos, olhos enormes, muito bistrados, de cilios longos, e

labios pintados em forma de cora����o. Essa criatura que, no

tempo da adolesc��ncia do cinema americano, simbolizava a

paix��o que mata, hoje em dia ��� velha, serena e av��, ��� mora

ali naquela casa parda de torre��o g��tico, em cujo jardim brin-

cam gnomos de barro e netos. B��ris Karloff, fiel ao tipo que

representa no cinema, mandou construir uma vivenda de linhas

ag��nicas que lembra essas casas dos contos de horror, cujas

janelas nas noites de sexta-feira vomitam bandos de morcegos,

e bruxas montadas em cabos de vassoura. Mas devo dizer-lhe

que ��� afora essas excentricidades arquitet��nicas ��� as resid��n-

cias de Beverly Hills s��o em geral dum ineg��vel bom gosto.

Predomina entre elas o estilo miss��o espanhola e o californiano.

N��o resisto �� tenta����o de lhe contar a hist��ria da origem deste

��ltimo, segundo a vers��o ir��nica de meu amigo Hubert Herring.

"Um dia ��� contou-me ele ��� um turista americano foi �� cidade

do M��xico e l�� viu num de seus bairros uma casa em mau

estilo espanhol que lhe excitou a fantasia. Disse ent��o para

si mesmo: "Ah! Eis uma vivenda genuinamente mexicana!"

Tra��ou a l��pis um esbo��o dela nas costas dum envelope, voltou

para los Angeles e mandou construir em Beverly Hills uma

casa de acordo com o precioso modelo. Meses depois turistas

mexicanos viram essa casa j�� pronta e plantada em meio dum

jardim. Murmuraram: "Ah! Casa t��pica da Calif��mia!' E

levaram para sua terra um esbo��o dessa maravilha arquitet��-

nica. E assim nasceu esse estilo conhecido pelo nome de cali-

forniano".

Mas... voltemos a Beverly Hills. Tenho uma restri����o

muito s��ria a fazer �� cidade das estrelas. �� que num certo

respeito ela se parece com a Itaoca de Monteiro Lobato: ��

uma cidade morta. Nos seus jardins bem cuidados vemos p��r-

golas, flores, estatuetas, repuxos, lagos artificiais, grutas, pontes

e verdes sombras; ��s vezes um c��o de ra��a, de ar enfastiado,

atravessa lentamente seus vastos tabuleiros de relva; ou ent��o

um jardineiro solit��rio poda arbustos japoneses... Fora disso

n��o se v�� sinal de vida em Beverly Hills. As janelas e portas

de suas vivendas est��o sempre fechadas. Beverhj Hills �� um

distrito sem humanidade.

Gostaria voc�� de viver num bairro em cujas ruas e pra��as

crian��as nunca corressem, nunca jogassem bola, patinassem,

cantassem ou brincassem de ciranda? Um bairro sem c��es vira-

latas, sem vendedores ambulantes, sem preg��es e sem vaga-

bundos?

Deixemos de lado as casas, para que esta carta n��o fique

tamb��m vazia de humanidade.

A V O L T A D O G A T O P R E T O

485

Voc�� quer saber como s��o os atores e atrizes de cinema...

S��o pessoas como as outras, �� claro. Pergunta tamb��m se vistos

de perto, em carne e osso, s��o t��o bonitos (o adjetivo �� seu...)

como parecem nos filmes. Sim, creio que muitos s��o at�� mais

interessantes ao natural. Ingrid Bergman tem umas leves sardas

que lhe d��o um encanto ainda maior, e o mesmo acontece

com Joan Crawford. Na minha opini��o o make-up e uma s��rie

de outras conven����es cinematogr��ficas deixam astros e estrelas

um tanto amaneirados e estandardizados: roubam-lhes um

pouco a humanidade e a individualidade.

Em muitos casos, por��m, o homem do make-up pode

fazer prod��gios, empregando beleza ou glamour a faces que

n��o os possuem ao natural. E um diretor habilidoso consegue

��s vezes fazer que um ator ou atriz destitu��do de qualquer

talento art��stico desempenhe seu papel diante da c��mara de

maneira sen��o magistral, pelo menos satisfat��ria.

Quando se quer afirmar que um escritor �� escravo da

realidade, costuma-se dizer que ele �� fotogr��fico. Compara����o

inexata! Porque a c��mara fotogr��fica n��o �� t��o realista como

parece. Ela tamb��m tem seus caprichos e fantasias; ela tam-

b��m deforma ou transforma. Como certos pintores dotados

duma perversa tend��ncia para a caricatura, elas costumam

ampliar as imagens ��� e isso constitui o horror das estrelas

que se entregam �� mais rigorosa dieta, a fim de conservar a

esbeltez do corpo. Quando conheci Geraldine Fitzgerald no

est��dio da Warner fiquei surpreendido por v��-la t��o delgada;

de t��o fina, sua cintura me lembrou um tubo de retr��s...

Paul Henried, com quem conversei durante um intervalo entre

a filmagem de duas cenas de "Servid��o Humana" ��� em que

ele faz o papel de Philip Corey, o jovem que arrasta pela vida

um p�� torto e um complexo de inferioridade ��� Paul Henried

tem de tingir os cabelos de ouro, a fim de que na tela eles

apare��am mais escuros. A fotografia transforma as ruivas em

morenas de negros cabelos. E quando o vestido da estrela

tem de parecer preto na tela, na realidade ele �� vermelho, pois

os cameraman evitam sempre o preto ��� que absorve luz em

demasia; e o branco, que tende a reverberar perigosamente a

claridade, �� em geral substitu��do pelo azul claro. Muitas vezes

a carreira duma atriz de cinema depende do cameraman. N��o

��, pois, de admirar que muitas estrelas se habituem a depender

tanto dele, que cheguem ao ponto de confundir essa depen-

d��ncia com amor, bem como acontece com a paciente que

entrega seu caso, seus segredos, sua alma, ao psicanalista, e

acaba por ele apaixonada. Linda Darnell ��� que �� bela e ainda

est�� na casa dos vinte ��� casou-se com um cameraman que

j�� passou dos quarenta e que est�� longe de ser um glamour-boy.

486

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Outro problema do cinema, principalmente para os alores,

�� o da altura. Num pa��s de homens geralmente altos e atl��-

ticos, era natural que o her��i dos romances (quantos vest��gios,

nisso, dos tempos medievais em que s�� os homens grandes e

fortes podiam manejar o espadag��o, a lan��a e o escudo!) fosse

um latag��o de ombros largos, campe��o de futebol ou de box.

Por muitos anos o papel ao gal�� no cinema s�� era confiado a

atores que tivessem no m��nimo l,80m de altura, S�� ultima-

mente �� que tipos baixos como Jimmy Cagney, Charles Boyer,

John Garfield, Alan Ladd, George Raft e Burgess Mereaith

conseguiram destruir em parte esse tabu. Mesmo assim o gal��

baixo d�� grande trabalho ao diretor, que tem de usar de v��rios

estratagemas para evitar que o p��blico tenha oportunidade de

comparar sua altura com a da hero��na. N��o �� poss��vel dar a

Cagney o papel de her��i num filme em que Alex Smith seja

a "mocinha", pois mesmo sem sapatos de salto alto essa estrela

�� mais alta que Jimmy. Muitas vezes Charles Boyer ou John

Garfield t��m de subir num pequeno estrado para representar

cenas de amor fotografadas em close up. E nas cenas tomadas

em "long shot", isto ��, �� dist��ncia, os truques usados s��o os

mais variados. Se o her��i �� da mesma altura ou pouco mais

baixo que a hero��na ��� quando ambos descem uma escada ela

em geral vai um degrau na frente do cavalheiro.

N��o sei tamb��m se devo falar-lhe num outro problema

dos "astros": o da calv��cie. Parece uma regra, n��o s�� do tea-

tro e do cinema, como tamb��m da vida em geral, que s��

depois dos quarenta os homens atingem uma verdadeira matu-

ridade de esp��rito. Ora, a natureza, que parece n��o ter a

menor considera����o pelos sentimentos e ilus��es dos her��is e

de seus f��s, �� de tal modo perversa, que quando come��a a

dar ��s pessoas uma mais funda sabedoria da vida, por outro

lado come��a a roubar-lhes os encantos f��sicos que porventura

possuam. Assim, n��o s��o poucos os atores de meia-idade que

quando aparecem diante das c��maras t��m de usar cabeleiras

posti��as parciais ou inteiras.

Mas creia, n��o estou a escrever-lhe com o prop��sito de

matar suas ilus��es. Nada disso! H�� mulheres e homens fisi-

camente admir��veis em Hollywood. E ��s vezes at�� encontramos

aqui reunidos numa mesma criatura, atrativos f��sicos e intelec-

tuais, como �� o caso de Rosalind Russell, Greer Garson e Ingrid

Bergman. Um destes dias entrei na livraria que fica junto do

restaurante Brown Derby e quedei-me a olhar lombadas de

livros. Junto de mim uma mo��a lia com grande interesse um

volume... Como �� natural, olhei primeiro para o rosto da

mo��a. Era Ann Baxter. Depois para as p��ginas do livro:

A V O L T A DO G A T O P R E T O

487

poemas de Emily Dickinson. Edward Robinson �� dono de urna

das mais importantes pinacotecas particulares dos Estados

Unidos; tem em sua casa originais de Renoir, Gauguin, Manet

e outros mestres. Em sua maioria esses atores que est��o "no

olho do p��blico" levam uma vida morigerada, raramente v��o

a cabar��s e evitam o esc��ndalo e a extravag��ncia. Muitos,

como Loretta Young e Bing Crosby ��� ambos cat��licos ��� s��o

conhecidos pelos seus pendores religiosos. Edward Arnold,

que em geral nos filmes faz papel de banqueiro patife, juiz

venal ou g��ngster, �� na realidade um homem muito s��rio, ex-

tremamente bondoso e preocupado com obras de assist��ncia

social. Peter horre ��� que ainda ontem me contou uma anedota

engra��ad��ssimo no restaurante da Warner ��� �� muito querido

nos est��dios, onde todos o consideram um "tipo gozado".

Nem todos os stars e diretores t��m a obsess��o da publi-

cidade. Pouca gente saber��, por exemplo, que Henry Fonda,

Melvyn Douglas e Frank Capra est��o nas for��as armadas dos

Estados Unidos. E que Jimmy Stewart e Clark Gable ��� ambos

da American Air Force ��� j�� entraram em a����o portando-se

admiravelmente. E que artistas como Joe Brown, Bob Hope,

Frances Langford e dezenas de outros t��m andado pelos teatros

de guerra do Pac��fico a entreter os soldados, nos acampamentos,

correndo muitas vezes risco de vida.

��, pois, um erro pensar que toda a popula����o de Hollywood

vive tomada da "loucura do cinema". �� verdade que a nota

t��nica destas ruas, caf��s, teatros, lojas, �� a extravag��ncia, a

exibi����o, a fantasia. Mas h�� aqui gente normal (se �� que tal

coisa existe mesmo) e grande �� o n��mero daqueles que encaram

seu trabalho nos est��dios com naturalidade, como um meio de

vida, uma voca����o, ou... como uma fatalidade.

A atitude de boa parte da popula����o dos Estados Unidos

com rela����o a Hollywood �� de curiosidade e encantamento.

Mas nos c��rculos de gente religiosa ou de r��gida moral a capital

do cinema �� olhada como sendo uma express��o de pecado.

Para as pessoas cultas ou artisticamente requintadas, ela �� con-

siderada como um s��mbolo de futilidade ou de m�� arte. E

todas essas criaturas estremecem de horror ao pensarem que

os padr��es art��sticos, liter��rios e morais de seu pa��s possam

ser julgados no exterior de acordo com a vida e os filmes de

Hollywood.

Esta vasta j�� vai longa, mas acontece que n��o estou escre-

vendo apenas para voc��, mas tamb��m para muitas outras mo��as

brasileiras que participam de sua curiosidade com rela����o a

estes assuntos.

488

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Voc�� quer saber se tenho tido a oportunidade de conhecer

muitos stars pessoalmente...

Voc�� ficar�� mais feliz se eu lhe disser que tirei um retrato

ao lado de Dennis Morgan, no stage onde, fardado de aviador

do ex��rcito norte-americano ele filmava uma cena de "Deus

�� meu Co-Pil��to"? Meu prest��gio com voc�� aumentar�� se eu

lhe disser que vi Bette Davis em The Corn is Green ���

numa cena em que ela desce duma carruagem, numa vila do

Pa��s de Gales, no meio duma nuvem de poeira, que na reali-

dade n��o passava de fuma��a de incenso? Gostar�� voc�� de

saber que as casas dessa vila s�� t��m fachada e telhado, e n��s

furamos que s��o feitas mesmo de pedra at�� o momento em

que batemos nela com os n��s dos dedos, para verificar que s��o

de papier mach��? Se essas not��cias lhe s��o agrad��veis, deixe que

eu lhe conte mais alguma coisa.

Vi Joan Crawford numa cena de "Mildred Pierce", uma

hist��ria dram��tica escrita por James Cain, novelista que ama

as personagens prim��rias, os di��logos crus e as cenas de vio-

l��ncia em que haja sangue, luta e morte. Joan, tanto nessa

hist��ria como na vida real, �� uma mulher de fibra. Muitos

cronistas acham que este papel lhe dar�� o "Oscar de 1945.

L�� estava ela sentada na frente do seu advogado, com as m��os

enluvadas a esconder o rosto. Chorava convulsivamente, mas

de repente conteve-se. N��o sei que foi que lhe fizeram, porque

n��o li o romance. S�� sei que Joan ainda est�� espl��ndida, con-

serva aquele seu ar de figura de radiador de autom��vel ���

um perfil impetuoso que se projeta para a frente, corajosa-

mente. Assim tem sido a carreira dessa menina que h�� menos

de vinte anos andou pelo bulevar, desconhecida, sem um cen-

tavo na bolsa, passando fome, olhando com olhos compridos

para as comidas das vitrinas dos restaurantes...

Noutro set assisti nesse mesmo dia �� filmagem em tecni-

color de uma cena da biografia do compositor Cole Porter.

Representava a sala duma bela casa, onde estava armada uma

��rvore de Natal. Monty Wooley achava-se sentado numa pol-

trona. Alex Smith de p��, toda vestida de verde, estaca junto

da ��rvore, que cintilava de l��mpadas, vidrilhos e esferas colo-

ridas. Ajoelhado ao p�� dessa mesma ��rvore, Gartj Grant abria

o pacote que continha o seu presente...

Outro dia vi uma mulherzinha metida num pijama de praia

no sagu��o do Bevery Hills Hotel. Como ela tivesse nos bra��os

um cachorrinho preto e lustroso, fiquei olhando, curioso, para

o animalzinho, e s�� depois de alguns segundos �� que percebi

que as m��os que seguravam essa preciosidade canina eram as

de Norma Shearer. N��o se inquiete; apesar de entrada nos

A VOLTA DO GATO PRETO

489

quarenta ela ainda est�� bonita e seu rosto ��� a que um leve

estrabismo d�� um encanto particular ��� guarda at�� uma certa

frescura.

Estive tamb��m, h�� alguns meses, no set que representava

o interior dum caf��-concerto de San Francisco, nos tempos de

Barbary Coast. Presenciei, entrincheirado atr��s da c��mara,

uma briga tremenda. Esse sururu foi ensaiado muitas vezes.

Houve um detalhe que guardei bem na mem��ria. Uma das

show girls fez um sinal para dois dos freq��entadores do frege.

Estes se precipitaram ao mesmo tempo, houve uma colis��o, que

resultou em uma luta corporal e na elimina����o de um dos

contendores, de sorte que o vencedor, glorioso, avan��ou na di-

re����o da beldade. O diretor elogiou os extras que tomaram

parte na cena ��� o que muito os envaideceu. Meses depois,

vendo no cinema esse filme j�� pronto, verifiquei que tal cena,

ensaiada com tanto cuidado, e filmada tr��s vezes, havia sido

completamente eliminada da hist��ria.

Assim �� Hollywood. Decepcionante? N��o. Sensacional?

s vezes. �� curioso a gente ir para o bulevar e ficar olhando

as pessoas que passam. H�� sempre sol nas ruas, e os pedestres

��s vezes s��o pitorescos. H�� tamb��m muitos lugares aonde ir.

Bares, restaurantes, night-clubs, cinemas, teatros... E n��o deixa

de ser engra��ado a gente estar encontrando a cada passo nossos

"conhecidos" do cinema. Voc�� se lembra daquele italiano

baixo, gordo e de bigode, que ��s vezes aparece em pontinhas

nos filmes, tocando realejo, com um macaco no ombro? Pois

ele trabalha na caixa da "Casa D'Amore", restaurante que fica

a dois passos do bulevar. E voc�� encontrar�� condes, banqueiros

e generais parados na frente do Hotel Plaza, sem colarinho, de

casaco esporte, a conversar ociosamente.

O forasteiro que aqui chega, procura ir a todos os lugares

e conhecer o maior numero de gentes e coisas poss��vel. No

princ��pio tudo �� novo. Depois o visitante fica enfarado. E

que aqui h�� muita coisa excepcional junta.

Olhe. Voc�� v�� um bolo muito colorido e de aspecto ape-

titoso, um doce que est�� �� sua frente, �� sua disposi����o. Voc��

se atira a ele e come��a a com��-lo com voracidade e encanto ���

uma, duas, quatro, seis fatias... at�� que se enfarta. Assim ��

Hollywood. Um doce bonito, gostoso, mas enjoativo. E se eu

voltar a esta cidade daqui a cinco anos, estou certo de que,

sem me valer da experi��ncia de hoje, eu me atirarei de novo

ao bolo vorazmente, para chegar mais uma vez ao enfaramento.

A vida �� assim mesmo.

Ficou decepcionada? Se ficou, queira perdoar seu amigo

E."



490

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

PARALELO

Fernanda: Agora quem me faz a pergunta embara��osa ��

voc�� e n��o meu imagin��rio Tobias. "Por que raz��o chegaram

os Estados Unidos ��� cujo povoamento �� mais recente que o do

Brasil ��� ao presente est��dio de civiliza����o, ao passo que n��s

ficamos t��o para tr��s?' Creio que �� preciso "mucho mas hom-

bre" que um simples contador de hist��rias para responder sa-

tisfatoriamente a essa enorme pergunta. Mas, seja como f��r

vou tentar um r��pido paralelo.

Desde a escola prim��ria ouvimos dizer que, de todos os

pa��ses do mundo, o Brasil �� o maior e o mais bem dotado pela

natureza; que nossas possibilidades econ��micas s��o ilimitadas;

que nossos rios s��o caudalosos, nosso solo ub��rrimo, nosso sub-

solo colossalmente rico... Garantiram-nos tamb��m que nossos

bosques t��m mais vida e nossa vida no seio da p��tria mais

amores. Passamos anos e anos embalados por essa inebriante

cantiga, mas me parece que j�� estamos suficientemente crescidos

para saber a verdade. Sim, sob muitos aspectos o Brasil �� um

pa��s privilegiado. Mas essa id��ia n��o basta. �� preciso

tornar real, palp��vel e ativa uma riqueza potencial que at��

aqui s�� tem servido como assunto de literatura e orat��ria c��-

vica . . . E' preciso usar esse solo e esse subsolo em benef��cio de

nosso povo, da eleva����o de seu n��vel de vida. Bom, mas o

que principalmente interessa ao nosso paralelo �� deixar claro

que se pusermos o meio f��sico brasileiro em confronto realista

com os Estados Unidos, chegaremos �� conclus��o de que esta-

mos numa situa����o de n��tida, vis��vel inferioridade. Isso explica

em boa parte o atraso material do Brasil.

Para principiar, o territ��rio dos Estados Unidos encontra-

se em sua maior parte dentro da zona temperada do Norte,

oferecendo portanto condi����es favor��veis ao estabelecimento

de imigrantes vindos da Europa setentrional, e conseq��ente-

mente ao florescimento duma civiliza����o de tipo europeu. Ora,

a por����o maior do territ��rio brasileiro se estende dentro da

zona tropical e subtropical, sendo que estados como o Ama-

zonas, o Par��, o Maranh��o, o Bio Grande do Norte, a Para��ba

e boa parte de Pernambuco ��� tudo isso numa extens��o de mais

de 4 milh��es de quil��metros quadrados ��� se acham na zona

t��rrida. Se voc�� retrucar que clima n��o tem maior import��n-

cia, eu lhe perguntarei: Que fizeram os ingleses nas suas

col��nias tropicais da ��frica e da ��sia? Que conseguiu realizar

o engenho franc��s, holand��s e brit��nico nas Guianas?

A V O L T A DO G A T O P R E T O

491

Segundo observa Caio Prado J��nior no seu admir��vel

"Forma����o do Brasil Contempor��neo", ao passo que na zona

temperada do continente americano se fundaram col��nias de

povoamento que receberam os excessos demogr��ficos do Velho

Mundo, e reconstitu��ram neste lado do Atl��ntico uma sociedade

�� semelhan��a de seu modelo e origem europeus ��� surgiu nos

tr��picos um tipo de sociedade inteiramente original, destinado,

em ��ltima an��lise, a explorar os recursos naturais dum terri-

t��rio virgem em proveito do com��rcio da Europa. Esse "sen-

tido" da coloniza����o tropical at�� certo ponto explica o que

somos hoje em dia.

Os colonos europeus encontraram nos Estados Unidos,

entre os Alleghany e os Montes Rochosos, terras geralmente

planas e f��rteis, o que n��o aconteceu no Brasil, pa��s de topo-

grafia muito mais acidentada e portanto menos prop��cia ao tra-

balho agr��cola e �� constru����o de vias de comunica����o A maior

parte de nossa terra �� um planalto, sim, mas um planalto de

dif��cil acesso, pois se encontra a uma altura que varia entre

trezentos e mil metros acima do n��vel do mar. Ademais, trata-

se dum planalto sem plan��cies, cavado de depress��es fundas,

cortado de rios encachoeirados e serpentinas. (Os rios de curvas

serpentinas, conquanto ��timos para poesia, s��o p��ssimos como

meio de transporte.) E j�� que estamos falando em rios, �� bom

lembrar que os da regi��o semi-��rida do Nordeste s��o rios de

regime muito irregular, rios tempor��rios que, por assim dizer,

desaparecem exatamente na ��poca em que as popula����es da-

quela zona mais necessitam deles... Segundo Gilberto Freyre,

nossos rios foram "colaboradores incertos" que "s�� em parte e

nunca completamente se prestavam ��s fun����es civilizadoras de

comunica����o". Os rios do planalto de pouco serviram aos po-

voadores do interior, pois na sua corrida de obst��culos na

dire����o do mar, eles tomam a forma de cachoeiras, saltos e

corredeiras... O pr��prio S��o Francisco ��� "o rio da unidade

nacional" ��� n��o �� t��o extensamente naveg��vel como se imagina,

pois de seu curso total de tr��s mil quil��metros, apenas mil e

duzentos s��o favor��veis �� navega����o. E voltando ��s plan��cies

que tanto nos poderiam facilitar o trabalho da lavoura, com

que podemos contar? Com a bacia do rio Paraguai? Mas

apenas pequena parte dela ��� a superior ��� nos pertence. A

do Amazonas? Ah! Aqui meus aedos come��am a dan��ar,

ansiosos por enfileirar no papel uma s��rie de adjetivos faiscantes

e sonoros, descritivos da pujan��a da selva amaz��nica, da gran-

deza do rio-mar, das maravilhas e horrores dessa regi��o

que, segundo Humboldt, poderia alimentar a humanidade in-

teira. Mas cair nesse al��ap��o c��vico-liter��rio seria um descuido

492

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

de adolescente... Ningu��m negar�� que o vale do Amazonas

�� uma regi��o fabulosa. Sabemos que a plan��cie amaz��nica se

estende numa ��rea de mais de dois milh��es de quil��metros

quadrados, s�� dentro do territ��rio brasileiro. Mas de que

nos tem servido toda essa grandeza? Compare a bacia do

Amazonas com a do Mississipi e veja como os americanos

foram mais bem aquinhoados que n��s no que diz respeito ao

meio f��sico. O vale do Amazonas op��e ao colono um clima

equatorial, terrenos alagadi��os, a incerteza das "terras ca��das",

o impenetr��vel emaranhamento de suas florestas tropicais, e

mais as febres, as cheias e o problema das enormes dist��ncias.

Nessa regi��o, o homem ��� seja ele de que ra��a for ��� acabar��

fatalmente vencido pela terra. (N��o creio que estas palavras

formem apenas um chav��o liter��rio.) Quanto ao vale do Mis-

sissipi, �� dif��cil encontrar no mundo inteiro regi��o mais extensa

que apresente tantos, t��o f��ceis e variados recursos naturais.

O vale tem uma fertilidade uniforme, seu clima �� constante,

sua superf��cie plana ��� raz��es pelas quais o trabalho agr��cola

nele se processa com facilidade e a um custo relativamente

baixo. Desde o estado de Pennsylvania at�� o de Wyoming

encontram-se jazidas de carv��o betuminoso, petr��leo e g��s na-

tural. Esses len����is de petr��leo se estendem ainda para o

sul, na dire����o do Golfo do M��xico. Em Minnesota h�� ricas

jazidas de ferro. Os afluentes do Mississipi oferecem meios

de transporte barato e pr��tico, e o fato de o vale ser plano

facilitou a constru����o e a manuten����o de estradas de ferro.

Por outro lado a explora����o do ferro foi facilitada pela proxi-

midade das minas de carv��o. Ora, o ferro e o carv��o acaba-

ram fornecendo a base desse formid��vel parque industrial ame-

ricano, financiado em boa parte pelo ouro extra��do das minas

de Montana, Colorado, Texas e Calif��rnia.

Al��m de f��rtil, o solo americano foi trabalhado desde o

princ��pio por agricultores h��beis. Plantou-se milho, trigo, algo-

d��o, tabaco e v��rias esp��cies de cereais; e esses produtos se

escoavam facilmente pelos tribut��rios do Mississipi, o qual se

encarregava de lev��-los para o Golfo. N��o devemos esquecer

o impulso que a navega����o a vapor deu �� vida n��o s�� do vale

como tamb��m da zona dos Grandes Lagos. Praticamente todas

as regi��es dos Estados Unidos foram aproveitadas pela agri-

cultura e pela ind��stria pastoril. Cerca de metade da sua

superf��cie terrestre, ou seja um bilh��o de acres, est�� coberta

de fazendas, granjas e planta����es. A pluviosidade de grande

parte do pa��s �� favor��vel ao trabalho da lavoura. No Middle

West fica a zona do milho e do trigo onde se processa o

curioso ciclo que consiste em transformar o milho em banha,

A V O L T A DO G A T O P R E T O

493

via-porco o (corn-hog cycle). Na proximidade dos Grandes

Lagos est�� a zona dos latic��nios. No sul se desdobra a rica

"faixa do algod��o". Para as bandas do Oeste ficam vastas

pastagens povoadas de gado e de rebanhos de ovelhas; nessa

regi��o as planta����es se mant��m gra��as a um eficiente sistema

de irriga����o. V��m depois as regi��es das frutas c��tricas da

Calif��rnia. E como Fl��rida tenha clima semelhante ao do sul

daquele estado ocidental, e como produza os mesmos tipos de

frutas c��tricas, sempre que um parasita danifique ou destrua

as colheitas duma regi��o, h�� todas as probabilidades de que

a outra se salve. E muitas vezes, quando a seca prejudica

a colheita na regi��o no oeste do Missouri, verifica-se em com-

pensa����o uma alta de pre��os nos cereais que se produzem para

leste desse mesmo rio. A todas essas, que se passa no Brasil?

Temos dependido durante longos anos dum s�� produto, o caf��,

que est�� longe de ter a import��ncia do trigo; s�� recentemente

�� que intensificamos a produ����o de algod��o. Que vemos na

vasta superf��cie do Brasil? Desertos. Em algumas regi��es eles

s��o verdes, belos, mas a beleza e a cor n��o lhes tira a qualidade

de deserto. De nossa superf��cie total de 8 511 118 quil��metros

quadrados, cerca de 4 800 000 t��m uma densidade de deserto,

isto ��: menos de um habitante por quil��metro quadrado. Nossas

lavouras s��o pobres, primitivas e escassas.

Temos as mais ricas jazidas de ferro do mundo! ��� excla-

mar��o os patriotas, exaltados. Claro, ningu��m lhes poder�� con-

testar a afirma����o. Mas acontece que esse ferro est�� nas mon-

tanhas de Minas Gerais, a seiscentos quil��metros do mar, longe

das minas de carv��o do Paran��, de Santa Catarina e do Rio

Grande do Sul, as quais produzem um carv��o de m�� qualidade

e numa quantidade insuficiente para nossas necessidades

internas.

Por outro lado nosso solo n��o �� t��o f��rtil como imaginou

Pero Vaz Caminha e como muitos compatriotas nossos ainda

insistem em afirmar. O professor C. Sauer, ge��grafo da Uni-

versidade da Calif��rnia, me falou um dia longamente da ilus��o

em que vivem os brasileiros quanto ��s possibilidades de seu

solo para a agricultura. Nossa terra n��o �� rica em azoto e

��cido fosf��rico, como a famosa terra preta da R��ssia. Al��m

disso ela cansa depressa e n��s nada fazemos para regener��-la.

Pense, Fernanda, nos prodigiosos meios de transporte e

comunica����o dos Estados Unidos e no isolamento que, �� falta

deles, vivem nossas cidades do interior ��� sim, e tamb��m muitas

do litoral! Tentamos explicar essas diferen��as dizendo com um

encolher de ombros: "Os americanos s��o mais ricos que n��s."

Mas esta �� uma frase est��pida que n��o explica nada. �� o

494

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

mesmo que dizer: "Jo��o goza de sa��de e eu n��o, simplesmente

porque eu estou doente e Jo��o n��o est��".

Resumindo: O colono europeu encontrou nos Estados

Unidos um meio f��sico mais favor��vel ao trabalho e �� vida,

e em muitos aspectos parecido com aquele donde provinham.

O solo era f��rtil e, atravessando os Alleghany, os pioneiros

encontraram o vale do Mississipi. Quando extra��ram o ferro,

contaram com carv��o abundante e pr��ximo das jazidas daquele

min��rio. J�� em 1775 havia nas treze col��nias americanas do

litoral do Atl��ntico mais forjas e fornos de fundi����o de ferro

do que na Inglaterra e no Pa��s de Gales. Essa foi a origem

da siderurgia americana, que serviu de base para sua poderosa

ind��stria. Essas coisas todas somadas resultaram em caminhos

de ferro, locomotivas, vag��es, instrumentos para a lavoura e mais

m��quinas de toda a sorte. As companhias de estrada de ferro,

as de navega����o, as jazidas de ouro e outros metais, os neg��cios

de im��veis, deram origem a grandes fortunas, fizeram milion��-

rios que passaram a empregar sua atividade e seu dinheiro

na cria����o de novas ind��strias, as quais se multiplicavam em cen-

tenas de outros empreendimentos comerciais e industriais.

Em 1859 jorrou petr��leo do solo de Pennsylvania, criando

novas companhias, novos milion��rios, determinando a possibi-

lidade da fabrica����o e da expans��o do autom��vel e das estradas

de rodagem. Da�� por diante nada mais pode deter a marcha

do progresso americano. O resto foi uma conseq����ncia desse

"princ��pio". Com a sua tremenda prosperidade econ��mica foi

poss��vel aos Estados Unidos dar uma vida melhor e mais con-

fort��vel a seu povo, a par dum mais alto n��vel de sa��de.

Mas at�� aqui deixamos de mencionar um elemento sem o

qual todas essas possibilidades econ��micas teriam ficado para

sempre adormecidas na terra: ��� o elemento humano. Est��

claro que n��o vou levantar a quest��o da superioridade racial

e engrossar o coro daqueles que lamentam tenhamos perma-

necido como col��nia de Portugal e n��o da Holanda. Parece-

me que isso seria t��o tolo como bradar agora: "Sou contra a

Revolu����o Francesa!" Mas em que pese �� minha ternura e

simpatia pelos portugueses, tenho de confessar que n��o acre-

dito pudessem os Estados Unidos, apesar de todas as suas ri-

quezas naturais, chegar ao presente grau de desenvolvimento

se em vez de terem sido colonizados por ingleses, alem��es,

holandeses, escandinavos, tivessem sido presenteados pelo des-

tino com o tipo de colono que povoou o Brasil. Os portugueses

mandados para a nossa terra, quisessem ou n��o, tiveram de

proceder de acordo com a pol��tica econ��mica monopolista que

Portugal seguiu com rela����o ao Brasil. S��o de Limeira Tejo

A V O L T A D O G A T O P R E T O

495

as palavras seguintes: "A falta de liberdade de com��rcio du-

rante o per��odo colonial, foi, sem d��vida alguma, o mais im-

portante obst��culo ao empreendimento industrial." "Se como

as col��nias norte-americanas, houv��ssemos sido livres de co-

merciar com o exterior, ter-se-iam gerado entre n��s as circuns-

t��ncias de riqueza e progresso econ��mico determinantes do

surto fabril. Dessa maneira, n��o nos ter��amos atrasado de um

s��culo com rela����o aos Estados Unidos, os quais, depois da

independ��ncia, n��o foram for��ados, como n��s, a come��ar tudo

do princ��pio."

Sabemos que a prosperidade econ��mica dos Estados Uni-

dos se deve especialmente �� sua ind��stria. Ind��stria �� algo

que tem a ver com m��quina, com engenho, com habilidade

mec��nica. Ora, est�� provado que os ib��ricos n��o s��o parti-

cularmente h��beis no trato das m��quinas, ao passo que exata-

mente o contr��rio se passa com os anglo-sax��es e os germ��nicos.

Comparemos tamb��m as nossas penetra����es do interior com

a conquista do Oeste pelos pioneiros americanos. No que diz

respeito a coragem, aud��cia e resist��ncia f��sica, creio que os

bandeirantes absolutamente n��o s��o inferiores aos pioneiros.

Conhecemos, entre dezenas de outras, as fa��anhas dum tal

Pedro Teixeira que em 1637 deixou o Par�� e subiu com uma

expedi����o o rio Amazonas, indo at�� seu curso superior, seguindo

dali por terra rumo do Equador, e atingindo Quito. O pau-

lista Raposo Tavares numa entrada espetacular alcan��ou o Peru

e possivelmente viu as ��guas do oceano Pac��fico. N��o se trata

tamb��m de insinuar que portugueses e paulistas tenham sido

menos inteligentes ou menos sagazes que o "frontiersman".

Existe, por��m, uma s��rie de fatores que temos de levar em

conta. Nossas penetra����es foram feitas sem ordem, ao sabor do

esp��rito portugu��s um tanto rom��ntico e improvisador. Havia

nesses desbravadores um imediatismo (prear ��ndios, descobrir

pedras e metais preciosos) que se transmitiu como uma mal-

di����o a seus descendentes. Acresce ainda que os bandeirantes

encontraram na sua marcha obst��culos naturais muito mais duros

de vencer que aqueles que se opuseram ao avan��o dos pioneiros.

Os Estados Unidos foram colonizados segundo o esp��rito anglo-

sax��nico, met��dico e h��bil no que diz respeito a empresas pr��-

ticas. Portugal estava interessado principalmente em duas coi-

sas: drenar para seus cofres as riquezas de sua fant��stica col��nia

e repelir o conquistador espanhol. Os bandeirantes serviram ��

maravilha esse duplo prop��sito. Parece-me at�� que no caso bra-

sileiro o termo fronteira, para designar a linha de avan��o da civi-

liza����o, tem mais raz��o de ser que no caso dos pioneers, pois nos-

sos bandeirantes n��o s�� penetravam o sert��o na sua busca de

496

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��ndios e riquezas, como tamb��m iam repelindo os espanh��is e

alargando desse modo nossas fronteiras geogr��ficas propriamente

ditas. Outra circunst��ncia que deu �� coloniza����o americana

um car��ter diferente da nossa foi o fato de o imigrante europeu

ter trazido consigo n��o s�� para as col��nias do litoral como tam-

b��m no seu avan��o para o Oeste, mulheres ��� mulheres brancas

e em sua maioria alfabetizadas. Isso se me afigura de impor-

t��ncia capital. Assim, pois, as comunidades dos pioneiros foram

fundadas sobre a base da fam��lia, ao passo que os ban-

deirantes, �� falta de mulheres brancas, derrubavam ��ndias em

qualquer canto, ao sabor de seus desejos, de sorte que iam

assinalando sua passagem pelo interior com esses marcos vivos,

os seus descendentes mesti��os, que ficavam depois ao aban-

dono... Os n��cleos fundados pelos bandeirantes eram entre-

gues �� pr��pria sorte, permaneciam isolados �� m��ngua de meios de

transporte e comunica����o, ao passo que as col��nias americanas,

c��pia r��stica e miniatural das europ��ias, comunicavam-se umas

com as outras gra��as ��s vantagens dum terreno menos aciden-

tado e �� estrada natural oferecida por seus rios de curso es-

trat��gico.

N��o esque��amos tamb��m que as treze col��nias que se es-

tabeleceram na costa norte-americana do Atl��ntico eram com-

postas de gente que viera da Europa em virtude de lutas po-

l��ticas e religiosas, gente, portanto, que vinha voluntariamente

come��ar uma vida nova numa terra onde pudesse seguir a reli-

gi��o e o modo de vida que lhe aprouvesse. Havia entre esses

Fundadores uns cem diplomados pelas universidades de Oxford

e Cambridge. Claro, muitos dos primeiros colonos eram homens

que vinham apenas em busca de fortuna... Mas mesmo esses

estavam sujeitos a um plano determinado por uma companhia

organizada de acordo com a experi��ncia e o tino comercial dos

anglo-sax��es. A primeira coisa que os Peregrinos fizeram ao

pisar as terras do Novo Mundo foi redigir o famoso "Mayflower

Compact", uma esp��cie de constitui����o miniatural que determi-

nava a natureza da nova comunidade, bem como as respon-

sabilidades de seus membros para com ela. Esse "compact"

continha os germes da atual democracia dos Estados Unidos.

Outro fator de import��ncia capital foi ter a na����o nor-

te-americana contado, ainda no per��odo colonial, com vultos

da estatura dum Jefferson, dum Washington e dum Hamil-

ton ��� coisa que n��o se explica s�� em termos de clima, riqueza

econ��mica ou mesmo sob a vaga ep��grafe de "superioridade

racial.

Quem em 1775 visitasse Filad��lfia ou Boston encontra-

ria nessas comunidades jornais, teatros, bibliotecas, ao pas-

A V O L T A D O G A T O P R E T O

497

so que n��s s�� tivemos nossa imprensa depois que a Curte

portuguesa se transferiu para o Rio, em 1808. (Achavam os

portugueses que a Fran��a era corrupta porque tinha mui-

tos jornais...) At�� aquela ��poca nossos portos estavam fe-

chados ao com��rcio exterior; n��o se nos permitia plantar algo-

d��o, distilar ��lcool ou fabricar sab��o, pois tais produtos eram

monop��lio da Coroa. Tudo nos chegou tarde. "Esperamos

trinta anos pela locomotiva ��� escreve Pedro Calmon ��� qua-

renta pelas f��bricas de fia����o, ainda mais pela navega����o de

vapor, pela ilumina����o de g��s, por um regime banc��rio, pelas

companhias de coloniza����o, pelo maquin��rio agr��cola, pela

industria que em 1800 transformara a Inglaterra, e em 1820 a

Europa."

Poder-se-�� observar que todas essas coisas s��o express��es

de progresso material, e eu responderei que elas representam

riqueza que se pode traduzir em sa��de e conforto. Reconhe��o

que devemos aos portugueses um punhado de apreci��veis qua-

lidades humanas ��� uma alma l��rica, uma inclina����o rom��ntica,

um certo esp��rito de toler��ncia e uma falta quase completa de

preconceito de cor. Reconhe��o tamb��m que o brasileiro tem

boa ��ndole e que se levarmos em conta as circunst��ncias em

que a maior parte de nossa popula����o vive, o que temos feito

e principalmente o que somos �� algo de admir��vel. Temos uma

bondade essencial, um horror �� viol��ncia e uma esp��cie de

am��vel sabedoria da vida, e por esse conjunto de qualidades

parece-me que o negro e o ��ndio s��o tamb��m respons��veis.

Somos dotados dum sentimento de solidariedade humana, que

nos vem duma natureza sentimental; mas falta-nos o sentido da

responsabilidade social, que �� principalmente um produto da

educa����o. Se o primeiro desses sentimentos nos leva �� com-

paix��o e �� caridade diante do sofrimento do pr��ximo, por outro

lado a falta do segundo impede nos portemos na vida de modo

a evitar que nossos apetites e interesses perturbem o equil��brio

comunal; e impede tamb��m que trabalhemos no sentido de

melhorar as condi����es de vida de nossos marginais, abolindo

para sempre esse deprimente e inoperante sistema da esmola.

Nosso imediatismo ��s vezes nos leva a acreditar mais no "golpe"

que no trabalho lento, organizado e persistente. O americano

ao norte tem uma f�� inabal��vel no futuro e vive permanen-

temente com a consci��ncia de que est�� no caminho certo, a

mover-se rumo dum belo e nobre destino. N��s temos tamb��m

um "senso de destino", mas deixamo-nos levar por um fatalis-

mo que com rela����o ��s coisas imediatas pode ser pessimista,

ao passo que com respeito a um futuro vago n��o deixa de ser

otimista. Vejamos alguns de nossos ditados populares:

498

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Deus �� brasileiro.

Vamos deixar a coisa como est�� para ver como fica.

No fim tudo d�� certo.

Mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga.

Como muito bem observa Afonso Arinos de Mello Fran-

co, acreditamos na salva����o pelo acaso, e, fi��is a essa cren��a,

vivemos �� espera de milagres, da sorte grande ou de uma pe-

pineira na forma dum bom emprego p��blico.

Temos sido ��� com rar��ssimas exce����es ��� governados por

golpistas, imediatistas e "carreiristas", por homens sem esp��rito

p��blico que nunca olham para o futuro. O que os move ��

um insaci��vel apetite ou, melhor, uma insopit��vel gula: desejo

de lucro, grande e imediato, vaidade de posi����es de mando,

vontade de poder. Nosso cristianismo tem sido um cristianis-

mo de fachada, e se menciono isto �� porque ainda acredito

em que uma aplica����o honesta dos princ��pios crist��os possa

ajudar-nos a sair do caos em que nos debatemos. Nossa demo-

cracia, essa ��s vezes nem de fachada ��. N��o temos plano:

improvisamos. O trabalho que um secret��rio de Estado inicia

n��o �� continuado por seu sucessor, pois este quer ter "seu

plano", que no fim de contas n��o passa de outra improvisa����o.

Tem predominado entre n��s o paternalismo. Temos tido gover-

nos de classes, grupos e fam��lias. Nossa produ����o �� baixa: o

Brasil �� um pa��s de intermedi��rios. Como resultado disso, tudo

nos fica mais dif��cil e mais caro. (Um oper��rio qualificado vive

nos Estados Unidos com mais conforto que um funcion��rio de

banco ou um pequeno comerciante no Brasil. Ele pode ter um

bom autom��vel, um excelente refrigerador e um ��timo r��-

dio, pois todas essas coisas lhe custam tr��s, quatro ou cinco ve-

zes mais barato que para o brasileiro.) H�� no nosso pa��s um

t��o grande excesso de burocracia que muitas vezes o produ-

tor chega �� conclus��o de que os governos foram mesmo cria-

dos para opor dificuldades �� distribui����o e �� venda de seus

produtos. Gastamos mais dinlieiro com pol��cia que com ins-

tru����o, como se adi��ssemos que cadeia �� coisa mais ��til que

escola. ��s vezes procuramos resolver nossos problemas sociais

por meio da for��a, e isso me faz lembrar um m��dico doido

que amorda��asse o paciente para, impedindo-o de gemer, criar

a ilus��o de que ele deixou de sofrer.

N��o me parece que a um escritor ��� principalmente quan-

do se trata, como no meu caso, dum romancista ��� caiba a res-

ponsabilidade de oferecer solu����es, planos e rem��dios para

a salva����o nacional do dom��nio da pol��tica e da economia.



A VOLTA DO GATO PRETO

499

(O ficcionista raramente sabe o que diz quando entra nesse

terreno...) H��, por��m, uma responsabilidade muito s��ria a que

ele n��o deve fugir. �� a de ver a realidade com os olhos claros

e a de apresent��-la com verdade e franqueza em suas his-

t��rias, apontando direta ou indiretamente os males sociais e

procurando, como diz Arthur Koestler, "criar uma necessidade

de cura".

N��o creio que a resposta a uma ditadura de direita ou de

centro seja uma ditadura de esquerda, pela simples raz��o de

que n��o creio em ditaduras, nem mesmo nas que se dizem t��cni-

cas e tempor��rias. Parece-me, Fernanda, que ao procurar um

rem��dio para nossos males devemos levar em conta n��o s��

a natureza da doen��a como tamb��m a natureza do doente, pois

casos h�� em que o paciente pode morrer da cura...

FAZER E SER

Vasco, meu velho: Voc�� leu a carta que dirigi a Fernanda e

se declara deprimido e desesperan��ado, com o resultado de meu

paralelo... Mas deixe que lhe diga, com toda a sinceridade, que

na minha opini��o n��o temos motivos para alimentar nenhum

complexo de inferioridade diante dos norte-americanos e de sua

civiliza����o. Vou dizer-lhe por qu��.

Psicologicamente somos mais ricos que eles, e emocio-

nalmente talvez mais adultos. Quando os escritores brasilei-

ros dizem que os Estados Unidos oferecem campo mais vasto

e variado para a literatura de fic����o, eles naturalmente se re-

ferem ��s possibilidades de a����o, a uma maior riqueza epis��dica

resultante de maior variedade de tipos, profiss��es, interesses;

dum ritmo de vida mais agitado, do progresso mec��nico e

de todos os problemas que a civiliza����o cria para o homem

moderno nas grandes metr��poles. Referem-se, em suma, a

uma riqueza mais horizontal que vertical. (N��o �� de admi-

rar que os romances mais profundos dos Estados Unidos se-

jam os de autoria de escritores do Sul que, como Ellen Glasgow

e William Faulkner, contam hist��rias de sua regi��o, a qual no

clima, nos costumes e no car��ter de seus habitantes se parece

um pouco com o Norte brasileiro.)

Nosso sentimentalismo, nossa mal��cia; nossa capacidade de

apreender rapidamente as coisas; nossa agilidade no jogo das

imagens, se n��o das id��ias; nosso agudo senso de rid��culo; nos-

sa veia humor��stica combinada com uma certa inclina����o para

500 OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

o drama; nossa esperan��a no acaso, contrastando com um pes-

simismo de superf��cie; nossa preocupa����o te��rica com as do-

res do mundo ��� tudo isso faz do brasileiro um povo complexo,

interessante e dif��cil de explicar. Mas... que nos falta ent��o?

No terreno material, falta-nos quase tudo. A era da fronteira

j�� terminou nos Estados Unidos; mas n��s ainda temos fron-

teiras internas a conquistar. Os americanos j�� realizaram uma

preliminar important��ssima: deram �� grande maioria de sua po-

pula����o uma exist��ncia de conforto e bem-estar, a par duma

apreci��vel educa����o, ao passo que no Brasil apenas uma pe-

quena minoria �� que goza dum n��vel de vida realmente de-

cente.

Voc�� quer saber que rumo tomar��o os Estados Unidos

depois da guerra... Eis uma quest��o que est�� preocupando

este povo. Muito antes de come��ar o presente conflito mun-

dial, Herbert Agar, no seu livro Land of the Free", pergunta-

va at�� que ponto estava o americano preparado para tomar

a s��rio o ideal de ser alguma coisa em vez de viver fazendo

um barulho dos diabos. Procurando definir cultura e civili-

za����o, esse mesmo autor dizia que o americano que se muda

de sua terra natal para Nova York, na realidade n��o percorre

nessa mudan��a apenas algumas centenas ou milhares de quil��-

metros de espa��o; ele marcha tamb��m atrav��s de s��culos de

tempo. Pois quem deixa Nashville (isto ��, uma cidade repre-

sentativa da cultura do Sul) ou Indian��polis (representativa da

cultura do Middle West) e vai viver em Nova York, que sim-

boliza a civiliza����o generalizada de todo o mundo ocidental,

��� faz um movimento perigoso para a alma, pois essa troca

equivale ao arrancar de ra��zes profundas para substitu��-las

por outras novas, fracas e superficiais. Isso significa tamb��m o

abandono do lar, da quer��ncia, onde o esp��rito pode crescer em

profundidade e intensidade, para reunir-se ao que Spengler cha-

ma "a massa de inquilinos e ocupantes de camas num mar de

casas". Porque a cidade da zona rural ainda tem ra��zes nas terras

cultivadas que a cercam, de sorte que suas rela����es com o cam-

po s��o ainda org��nicas, ao passo que a vida na grande cidade

tem ra��zes na alta finan��a, "a mais abstrata e inumana das in-

ven����es do homem". Assim, esse nativo do Sul ou do Middle

West se perde num deserto de a��o e cimento armado, empobre-

cendo sua cultura regional sem chegar a enriquecer a metr��-

pole que o devora.

Entre os caracter��sticos do homem civilizado, Agar apon-

ta a tend��ncia para o pacifismo e para a cren��a de que nada

existe no mundo digno de ser defendido e preservado com

A VOLTA DO GATO P R E T O

501

nosso sacrif��cio. O homem civilizado n��o tem preconceitos

e �� incapaz de indigna����o ou surpresa; para ele os valores

morais n��o t��m a menor for��a. A ess��ncia da cultura, entre-

tanto, �� a cren��a num certo n��mero de absolutos, a capacidade

de levar a vida a s��rio e de reagir com indigna����o e vee-

m��ncia a qualquer provoca����o. Numa cultura ��� continua

ainda Herbert Agar ��� a verdade �� algo que o homem desco-

bre e depois acha que deve ser defendido a todo custo; ao

passo que numa civiliza����o a verdade �� uma coisa que o ho-

mem fabrica e diante da qual pergunta: "Valer�� a pena lutar

por essa coisa que eu mesmo inventei?"

Ao cabo de tais reflex��es conclui Agar que a esperan��a dos

Estados Unidos repousa mais na cultura representada pelo

Sul que na civiliza����o de que Nova York �� paradigma. E

agora ��� pergunto eu ��� quais s��o os absolutos que essa cultu-

ra aristocr��tica de plantadores de algod��o acha dignos de se-

rem mantidos e defendidos? O da superioridade da ra��a anglo-

sax��nica? O ideal da segrega����o dos negros? A sua organiza-

����o semifeudal? Os princ��pios da Ku-Klux-Klan? N��o negarei

que haja no Sul uma tradi����o de "gentility", de cavalheirismo

e uma vida mais am��vel e lenta que a de Nova York. Concordo

em que essa descren��a, esse cepticismo desligante apresentam

suas desvantagens, uma vez que podem redundar num com-

portamento c��nico ou niilista diante das id��ias e dos ideais. Que

seria de n��s se os habitantes de Londres tivessem assumido

uma "atitude civilizada" diante dos ataques dos avi��es nazis-

tas? Por outro lado, n��o devemos esquecer que a incapacidade

de se apegar demasiadamente a certos absolutos de ordem mo-

ral ou filos��fica �� at�� certo ponto coisa saud��vel, pois constitui

um ant��doto para o fanatismo e para a intoler��ncia.

Correndo todos os riscos que oferece a simplifica����o, eu lhe

direi, meu caro Vasco, que o problema dos Estados Unidos pode

ser resumido em dois verbos: fazer e ser. At�� hoje de certo

modo tem predominado entre os americanos a preocupa����o

de fazer e como resultado disso conquistaram as fronteiras, in-

dustrializaram o pa��s, criaram uma civiliza����o. E agora, mais

que nunca, pensadores, pregadores, escritores, professores est��o

a perguntar atrav��s de seus escritos e discursos ��� "Que somos

nos? Como conquistar as fronteiras espirituais? Que fazer

da Vit��ria que se aproxima? Que rumo dar a nossas rela����es

com os outros povos do mundo?"

E desse modo, meu amigo, encontram-se agora os ameri-

canos diante de novos problemas, novas fronteiras, e vagamente

alarmados, como sempre acontece quando os problemas que

te lhes deparam n��o podem ser resolvidos apenas com a t��cni-

502

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

ca, de acordo com um plano, ou por meio duma engenhoca.

N��o �� preciso ter vis��o prof��tica para prever que os problemas

mais s��rios que este pa��s ter�� de enfrentar depois da guerra

ser��o os do desemprego, os das greves e o recrudescimento dos

atritos raciais.

Meu conv��vio com os americanos nestes dois anos me en-

sinou muita coisa de seu car��ter e me levou principalmente

�� convic����o de que um povo com tamanha for��a de juventude,

t��o grandes reservas de boa vontade e coragem, t��o bela tradi-

����o de luta, pode por algum tempo trilhar caminho incerto e

at�� mesmo errado, mas acabar�� fatalmente encontrando a dire-

����o certa. William Allen White, diretor do "Emporia Gazette"

de Kansas, referiu-se, num discurso pronunciado em 1935, ��

irrepar��vel mudan��a que a idade da m��quina havia trazido para

a vida tradicional americana, e acrescentou: "N��o tenho suges-

t��es, mas deposito uma grande f�� no que podemos chamar o senso

comum subconsciente do Americano para resolver esse pro-

blema".

Estou convencido de que o mundo n��o tem raz��o para

temer os Estados Unidos. Este povo jamais se atirar�� a uma

guerra de conquista. N��o fosse a trai����o de Pearl Harbour,

que galvanizou a opini��o nacional, dificilmente ou nunca esta

na����o se decidiria a entrar na guerra.

Na Am��rica do Sul muitas vozes se erguem alarmadas con-

tra os perigos da influ��ncia do "esp��rito ianque". Ora, acontece

que milh��es de americanos, nos pr��prios Estados Unidos, vi-

vem tamb��m alarmados diante desse mesmo esp��rito, que tles

detestam como um s��mbolo de escravid��o �� m��quina, ao su-

cesso e ao dinheiro. �� um engano pensar que todo o povo

americano se entrega a essa febre de fazer. H�� comunidades

que se preocupam mais com ser. S��o cidades como Denver,

Indian��polis, Nova Orleans e San Francisco. E �� bem sintom��-

tico que nestas duas ��ltimas haja uma n��tida influ��ncia latina.

Em ambas se nota uma preocupa����o de andar com menos pres-

sa; ambas t��m uma tradi����o de bem viver. San Francisco ��

considerada "a cidade que mais gosta de m��sica nos Estados

Unidos". Na Nova Inglaterra encontramos a preocupa����o da

cultura, o amor aos livros, ��s id��ias, �� tradi����o. E se quiser-

mos levar mais longe nossa busca dessas ilhas de s��bia e am��-

vel filosofia da vida, descobriremos que at�� em Nova York

existe um bairro, Greenwich Village, onde se vive boemiamente,

�� melhor maneira do Quartier Latin parisiense.

Se o esp��rito duma metr��pole tentacular como Nova York

leva seus habitantes a uma adora����o do progresso mec��nico

como um fim e n��o como um meio, por outro lado nosso des-

ligamento, nossa indol��ncia e nosso descaso nos est��o levando



A V O L T A DO G A T O P R E T O

503

�� miseria. Parece-me que o sensato seria descobrir uma linha

m��dia em que se encontrasse a habilidade do fazer com a ca-

pacidade de ser.

N��o devemos imitar os Estados Unidos; n��o precisamos nos

transformar em fan��ticos da coca-cola, do jazz e dum certo

tipo de vida delirante que teve sua origem nos novecentos e

vinte (um tipo de vida, devo repetir, que nem todos os norte-

americanos levam...) Devemos aproveitar n��o s�� a amizade

como tamb��m a experi��ncia desta grande democracia e adapt��-

la sabiamente ��s nossas necessidades, temperando-a de acordo

com nossa maneira de ser. Penso que essa influ��ncia que nos

entra pelo cinema, pelo r��dio, pelos magazines �� apenas uma

influ��ncia de superf��cie. N��o ser�� por nos mandarem penici-

lina, m��quinas, t��cnicos; n��o ser�� por nos transmitirem seus

conhecimentos cient��ficos e industriais que os americanos v��o

mudar nossa maneira de ser, de sentir, de viver.

Correndo todos os riscos de fazer um frasalh��o, eu lhe

direi, para terminar esta carta, que povos como o chin��s, o

hindu, o russo e o brasileiro s��o psicologicamente inconquist��veis.

TABU

18 de junho. H. S. Latham, vice-presidente da

Macmillan Co., de Nova York, a corajosa casa editora

que publica meus romances em ingl��s, chegou ontem

a Los Angeles e me telefonou esta manh�� convidando-me

para um almo��o no restaurante do Biltmore Hotel.

H�� em torno da mesa uns doze outros convidados

��� gerentes de livrarias, cr��ticos liter��rios e funcion��rios

da Macmillan Co. Mr. Latham �� um homem alto e cor-

pulento, de maneiras af��veis e naturais. No seu rosto

rosado e carnudo, h�� um aliciante tra��o de simpatia.

A Macmillan Co. publicou h�� pouco um romance

sensacional de Kathleen Winsor, "Forever Amber". A

hist��ria, que se passa durante a Restaura����o inglesa,

�� em ��ltima an��lise a carreira er��tica duma mulher bo-

nita, atrav��s de muitos homens e leitos.



504

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Noto que Mr. Latham est�� um tanto encabulado,

pois o livro se tem prestado aos coment��rios mais ma-

liciosos, e �� uma fonte inesgot��vel de anedotas. O al-

mo��o decorre em meio da maior cordialidade. Fala-se

de livros, de autores, de livrarias e de cr��ticos. Comenta-

se a escassez de carne, o tempo, e menciona-se rapida-

mente a guerra, mas ningu��m toca no escandaloso livro.

Os nomes Kathleen Winsor e "Forever Amber" s��o

tabus.

Quando vem o caf�� Mr. Latham diz:

��� �� uma pena que o almo��o tenha terminado

t��o depressa. Mas podemos subir para meu quarto e

continuar l�� em cima nossa palestra...

Depois duma pausa, acrescenta:

��� Acho que n��o haver�� cadeiras para todos, mas

em todo caso alguns poder��o sentar-se na cama.

Neste ponto uma mulherzinha que est�� a meu

lado, e que durante todo o almo��o permaneceu calada,

diz:

��� Com efeito, Mr. Latham! Depois de Forever

Amber o senhor nem devia mencionar a palavra cama...

Os convivas desatam a rir. enquanto Mr. Latham

��� que tamb��m ri ��� vai ficando muito vermelho...

RINHA

20 de junho. O "United Nations Council" promove

hoje uma discuss��o em t��vola-redonda nos est��dios da

N. B. O, em Hollywood. Tomam parte nesse match

dois professores de universidade americanos, Sir Miles

Mander, ator de cinema e candidato ao Parlamento

ingl��s, um jovem equatoriano, filho dum ex-presiden-

te do Equador, e eu. A plat��ia do est��dio est�� repleta

de gente. A expectativa �� grande, pois v��o ser dis-

cutidos hoje problemas como o da Argentina e o das

ditaduras sul-americanas.

A VOLTA DO GATO PRETO

505

Tenho na minha frente sir Miles Mander, com o

seu rosto anguloso e descarnado, as suas fei����es aris-

tocr��ticas, e a sua eleg��ncia brit��nica ��� se �� que esta

express��o significa mesmo alguma coisa. Entre n��s

dois, um microfone. Atr��s de mim ��� o p��blico, que n��o

vejo, mas cuja presen��a sinto como uma esp��cie de

ponto ardente na nuca. (Ou estarei ficando surrealista?)

Cada um de n��s �� chamado a dizer o que pensa

da situa����o interamericana dum modo geral. Quando

chega meu turno, falo com a franqueza habitual. A

liberdade de palavra deste pa��s �� para mim um vinho

que me traz de tal forma embriagado que tenho de fazer

prod��gios de autodom��nio para n��o me exceder.

Inicia-se finalmente a discuss��o e o moderador,

um homem magro de cabe��a em formato de p��ra, de

vez em quando tem de intervir para evitar que os con-

tendores se afastem da estrada real, perdendo-se em

ramais que n��o levam a parte nenhuma. Fico a olhar

para Miles Mander e a querer saber com que �� que

ele se parece. Assim, meu esp��rito acaba fugindo do

est��dio, e se vai para todos os c��us com a onda da

N. B. C. Quando volto dessa doida excurs��o, o pro-

fessor americano que se acha na extremidade da mesa,

est�� interpelando Miles Mander:

��� �� curioso, �� surpreendente, �� inexplic��vel ��� diz

ele ��� que a todas essas a Inglaterra continue apoian-

do ou pelo menos tolerando em sil��ncio a atitude do

governo pr��-nazi da Argentina. Como �� que o senhor

explica isso, Mr. Mander?

O ingl��s tira calmamente um papel do bolso e co-

me��a a ler:

��� A Argentina, durante todos estes anos de guer-

ra tem fornecido �� Gr��-Bretanha os seguintes g��neros. . .

E com sua voz grave e bem modulada come��a a

enumerar esses g��neros e suas respectivas quantidades

com grande fleuma. E quando termina, eu lhe digo:

506

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��� E aposto como depois disso tudo o senhor con-

tinuar�� a negar a import��ncia dos fatores econ��micos

na marcha da hist��ria, n��o �� mesmo?

Ele fita em mim os olhos cinzentos e vagos, tira

os ��culos e diz, meio abstrato:

��� Pois �� . . . n��o ��?

Risadas na plat��ia.

No minuto seguinte estou numa discuss��o com o

equatoriano ��� um jovem moreno, espigado e ardente.

��� N��o �� poss��vel haver democracia na Am��rica

do Sul ��� diz ele ��� porque somos em grande maioria

analfabetos...

Solto o meu aparte:

��� O senhor deve saber disso por experi��ncia

pessoal...

Imediatamente percebo que fui indelicado. Ago-

ra n��o h�� rem��dio. O microfone �� implac��vel: minhas

palavras a esta hora j�� chegaram a Londres, �� Birm��-

nia, �� China e ao Paraguai. O equatoriano continua:

��� As nossas popula����es ind��genas s��o enormes...

��� Fale pelo Equador mas deixe o Brasil de fora ���

digo. ��� N��o temos o problema do ��ndio.

��� O Brasil n��o �� diferente ��� replica ele.

��� O senhor j�� foi ao Brasil?

��� N��o, mas n��o me parece necess��rio que uma

pessoa visite ��m pa��s para poder falar dele. H�� os

livros, os jornais...

��� E os filmes de Hollywood, n��o ��? ��� interrom-

po-o.

��� E uma prova de que estou com a raz��o �� que

os senhores agora no Brasil t��m uma ditadura.

��� Isso n��o prova nada. Na Alemanha n��o h�� ��n-

dios e h�� uma ditadura.

��� Todos os pa��ses da Am��rica do Sul s��o feitos

do mesmo estofo. N��o �� poss��vel governar na����es

de mesti��os com democracia. De resto, nunca houve

democracia de verdade nos pa��ses latino-americanos.



A V O L T A DO G A T O P R E T O

507

��� Diga-me uma coisa ��� intervenho. ��� Se voc��

tivesse um dedo gangrenado, cortaria o dedo ou a m��o?

��� O dedo, naturalmente.

��� Pois uma democracia imperfeita �� prefer��vel a

uma ditadura. S�� h�� um caminho para a democracia,

e esse caminho �� a pr��pria democracia.

��� Frases...

��� No dom��nio das frases, n��s tiramos o chap��u

para os povos de "habla" espanhola...

��� Gracias!

Quando a hora termina e o sinal vermelho de "si-

l��ncio" se apaga, a discuss��o continua, e agora o p��-

blico tamb��m toma parte nela. Os outros membros da

round-table se calam e deixam que o equatoriano e o

brasileiro fiquem na arena, como dois galos de rinha.

E eu me sinto encabulado quando percebo que estou

de p�� e ��� contra todos os meus h��bitos ��� gesticulando

furiosamente na dire����o do advers��rio, e discutindo

com ele "nuestros problemas", a respeito dos quais creio

que n��o chegaremos a um acordo nem que fiquemos

aqui pelo resto deste s��culo.

O HOMENZINHO DOS CRUCIFIXOS

26 de junho. Para melhor apreciar-se a historie-

ta que vou contar �� preciso ter em mente o car��ter pa-

g��o de Los Angeles. Antes de mais nada, aqui impera

o sol ��� que �� a nega����o do mist��rio, da intimidade e,

segundo Wilde, o inimigo do pensamento. Acontece

ainda que Los Angeles �� a cidade do cinema, dos es-

pet��culos, do sucesso, do cartaz e do nudismo. Glamour

aqui �� moeda de grande valor, e nem por isso escassa.

E quem anda por estas movimentadas ruas fica eston-

teado ante t��o forte e quente express��o de vida.

Isto posto, vamos �� hist��ria. Uma tarde, ��s tr��s

horas, entro numa loja de roupas feitas e imediata-

508

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

mente sou atendido por um homenzinho franzino, de

ar cerimonioso, que se aproxima de mim sorrindo e es-

fregando as m��os.

��� O cavalheiro que deseja?

��� Uma roupa ��� respondo. Dou-lhe o meu n��-

mero e digo-lhe das minhas prefer��ncias.

O meu homem �� um desses velhotes que �� primei-

ra vista, por serem espigados, por andarem sempre em-

pertigados t��m uma apar��ncia quase juvenil. Est��

impecavelmente vestido, como conv��m a um empre-

gado de casa de roupas. Tudo nele combina: a fatiota,

a camisa, a gravata, o len��o... Sua cara, murcha mas

de express��o agrad��vel, acha-se bem escanhoada.

Experimento o casaco duma roupa tropical. O

homem se afasta dois passos, olha-me de cima a baixo

e diz:

��� Maravilhoso! Senta-lhe como uma luva. Es-

pl��ndido!

Tem uma voz branda, acariciante, quase feminina.

Resolvo comprar a roupa. E enquanto estou preen-

chendo um cheque na import��ncia da compra, o homem-

zinho examina o meu documento de identidade, que

acontece ser meu passaporte.

��� Ah! ��� murmura ele, maciamente. ��� Brasileiro,

hein?

��� �� verdade.

Com uma car��cia na voz, o clerck pergunta:

��� H�� lindos crucifixos na sua terra, n��o?

��� Crucifixos?

��� Sim.

��� Bom... H�� crucifixos, mas n��o me consta que

tenhamos coisas muito especiais nesse g��nero...

O homenzinho p��e os olhos em branco, solta um

fundo suspiro e murmura:

��� Sou louco por crucifixos!

Passa o mata-borr��o sobre o cheque. Projeto o

olhar por entre os balc��es, prateleiras e vultos huma-

A VOLTA DO GATO PRETO

509

nos, na dire����o das portas, que enquadram o clar��o

da rua. Os ru��dos da cidade ��� sinetas de bonde, a tro-

voada do tr��fego, apitos, vozes ��� chegam at�� n��s um

pouco amortecidos.

O empregado me aperta o bra��o. Suas unhas relu-

zem, polidas e bem cuidadas. E ao meu ouvido ele

segreda:

��� Sabe qual �� a minha grande paix��o?

��� N��o tenho a menor id��ia.

��� Colecionar crucifixos...

Recua dois passos, agora com o casaco nas m��os,

e fica observando em meu rosto os efeitos de sua con-

fiss��o.

��� �� extraordin��riol ��� digo. ��� Ent��o coleciona

crucifixos?

��� �� a minha loucura. Vivo para isso. Tenho cru-

cifixos de toda a esp��cie, de todos os lugares. Quando

viajo, em f��rias, e chego a uma cidade, o senhor pensa

que vou a cabar��s, museus, cinemas, teatros? ��� Saco-

de a cabe��a vivamente, entrecerrando os olhos. ��� No,

sir! Vou visitar antiqu��rios, igrejas, conventos, �� cata

de crucifixos.

Visto o casaco, apanho o tal��o que o homenzinho

me d�� e entrego-lhe o cheque.

��� Pode mandar levar a roupa �� minha casa?

��� Claro, meu amigo. Claro.

��� Muito obrigado. E adeusl

Estendo a m��o, que o caixeiro aperta nas suas,

fortemente, c��lidamente. Seus ��culos reluzem. Por

tr��s deles seus olhos s��o doces e azuis.

��� Eu gosto do senhor ��� confessa ele. ��� Vou fa-

zer-lhe outra confiss��o.

Olha para os lados, r��pido, puxa-me para perto

duma coluna revestida de espelhos e cochicha:

��� Sabe o que aconteceu?

Sacudo negativamente a cabe��a.

510

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

��� Uma coisa maravilhosa...

A voz do homenzinho �� um sussurro.

��� Uma coisa extraordin��ria. .. Interessado nos

crucifixos, comecei a estudar a sua hist��ria, as suas ori-

gens. Passei horas e horas �� noite lendo na biblioteca

p��blica tudo quanto l�� havia sobre crucifixos. ..

Faz uma pausa e, de olhos entrecerrados, fica a

me mirar demoradamente.

��� �� c u r i o s o . . . ��� murmuro, s�� para dizer alguma

coisa.

��� Curioso? ��� D�� um pulinho. ��� Diga antes mi-

lagroso. Sim, senhor! Depois que eu sa��a da biblio-

teca, com a cabe��a cheia de hist��rias maravilhosas, de

milagres, de vidas de santos, de sacrif��cios, voltava

para casa e n��o podia dormir... Ficava pensando, pen-

sando, esperando com ansiedade a hora de voltar �� bi-

blioteca e mergulhar de novo na hist��ria dos meus

ricos crucifixos.

O movimento dentro da loja �� intenso. Homens

entram e saem de pequenas cabinas, onde trocam de

roupa. Postam-se na frente de espelhos, olham-se de

frente, de perfil, recuam, alisam o casaco, lan��ando

olhares obl��quos e indecisos para as pr��prias i m a g e n s . . .

Meu fabuloso amigo parece esquecido de tudo e de

todos.

��� Meu quarto vivia cheio de crucifixos pelas pa-

redes, em cima das c��modas, das m e s a s . . . Crucifixos

de ��bano, de carvalho, de m��rmore, de pedra, de ma-

t��ria p l �� s t i c a . . . de tudo.

Este homem n��o existe ��� penso eu. E come��o

n��o propriamente a ouvi-lo mas a "escreve lo". Porque

ele deixou de ser uma personagem da vida real para

ser uma personagem de fic����o, E minha!

��� E sabe qual foi o resultado de tudo isso? Oh!

Uma coisa divina, senhor. Passei a interessar-me pela

hist��ria da Igreja Cat��lica de tal modo, que um dia

tive a Revela����o. Converti-me ao catolicismo e aos

A V O L T A D O G A T O P R E T O

511

sessenta e tr��s anos de idade .. sim, n��o aparento ter

essa idade, mas tenho... aos sessenta e tr��s anos fui

batizado...

Sacudo a cabe��a vagarosamente.

��� Um verdadeiro milagre ��� concordo.

��� E agora sou o homem mais feliz do mundo!

Torno a me despedir do homenzinho, que me acom-

panha at�� a porta, junto da qual me faz a nova con-

fiss��o.

��� Olhe s�� aqui... - diz ele a medo. E tira do

bolso um ros��rio. ��� Entre uma e outra venda, quando

n��o aparecem fregueses, vou dizendo as minhas ora����e-

zinhas...

Precipito-me para a rua. Los Angeles, brutalmen-

te iluminada, palpita de vida Vejo estampados nes-

tas faces todos os apetites. Fome de celebridade, de

sucesso, de prazeres. Fome de vida. Vou abrindo

caminho por entre a multid��o que enche as cal��adas.

E na minha mente o estranho homenzinho dos cruci-

fixos desfia as contas do seu ros��rio, enquanto aguar-

da o pr��ximo fregu��s.

Um dia ��� penso ��� sem que ele espere nem deseje

lhe aparecer�� uma misteriosa freguesa.

��� Que deseja, lady?

��� Levar-te.

��� Para onde?

��� Para o Outro Lado.

��� Quem �� a senhora?

��� Eu sou a Morte.

��� A Morte? Mas... deve ser engano. Talvez a

pessoa que a senhora procura esteja na loja vizinha...

��� Eu nunca me engano. Vamos.

��� Espere um momento. Tenho de dizer ao pa-

tr��o que vou sair...

��� N��o �� necess��rio.

��� Posso passar em casa para apanhar meus cru-

cifixos?

512

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

��� Tamb��m n��o �� necess��rio.

E assim o homenzinho ter�� sobre a sua sepultura

um belo, um enorme e definitivo crucifixo de granito

negro, sob o qual ele dormir�� tranq��ilo, e sobre o qual

brilhar�� este sol pag��o e f��til de Los Angeles.

5 - DUAS CARTAS DA ERA AT��MICA





A BOMBA E O BOM SAMABITANO

Mills College, 6 de agosto de 1945.

ERNANDA: Escrevo-lhe outra vez do campus do Mills, no

fim de mais uma temporada de ver��o. Reencontramos aqui

a mesma paz, os mesmos amigos, as mesmas del��cias do estio

passado. O sol de ouro, a piscina, a casa de ch��, o quarteto

de cordas, as ��rvores e as raparigas em flor.

E foi nesta calma de para��so que nos chegou hoje a not��cia

de que os americanos lan��aram a primeira bomba at��mica

sobre Hiroshima. Toda a gente est�� excitada. Os jornais tra-

zem cabe��alhos sensacionais. Conta-se como certo que o Ja-

p��o se render�� incondicionalmente dentro de poucos dias. E

as opini��es sobre essa medonha bomba s��o as mais variadas.

Uns acham que �� anticrist��o, monstruoso mesmo, usar armas

dessa natureza contra popula����es civis. Outros alegam que o

aniquilamento desses muitos milhares de japoneses em Hiro-

shima foi necess��rio para encurtar a guerra e, conseq��entemente,

poupar a vida de milhares de soldados americanos. H�� ainda

os que parecem considerar apenas o aspecto t��cnico da quest��o;

para esses os Estados Unidos ganharam mais uma m��quina,

mais uma engenhoca... N��o posso deixar de pensar naquelas

manh��s de Berkeley, quando, atrav��s da janela de minha aula,

eu contemplava a casa circular do alto da colina, onde cientistas

trabalhavam numa arma secreta. Os jornais hoje revelam que

se tratava da bomba at��mica! Eu mirava com vaga curiosi-

dade a c��pula vermelha da singular estrutura de cimento, e

depois a esquecia para falar aos meus alunos em poetas como

Casemiro de Abreu e versos como o "Oh! que saudades eu tenho

da aurora da minha vida!"

O que mais me alarma, Fernanda, �� que com a liberta����o

da energia at��mica, a humanidade parece atingir a sua matu-

ridade cient��fica, sem ter ainda nesta altura de sua hist��ria

chegado a uma completa maturidade moral. Imagine um "brin-

quedo" desses nas m��os travessas e irrespons��veis duma crian��a!



516

OBRAS DE ERICO VER��SSIMO

Creio n��o estar simplesmente fazendo uma frase se afirmar

que a explos��o dessa bomba sobre Hiroshima foi como o es-

trondo dum gongo colossal, marcando a abertura duma nova

era para o mundo.

Que significar�� a era at��mica? Uma idade de progresso

econ��mico sem limites? Ou uma cadeia de guerras formida-

velmente destruidoras que acabar��o levando os povos a condi-

����es de vida t��o primitivas quanto as de certas tribos n��mades

do ano 6 000 antes de Cristo?

A nosso redor nada mudou. O vento sacode as fran��as

dos eucaliptos. O sol �� doce e amigo como na idade que passou.

Sentada no parapeito da ponte de pedra, uma senhora gorda

l�� Thoreau. Dong Kingman, o aquarelista chin��s-americano,

pinta uma. paisagem junto do arroio. Rudolph Schevill me faz

um aceno cordial l�� de sob as arcadas da Galeria de Arte, onde

Clara e Luiz modelam um elefante de barro, ajudados por um

mexicano trigueiro e um gringo louro. As raparigas saltam e

gritam na piscina e nas quadras de t��nis. Hoje �� noite o quar-

teto de Budapest interpretar�� para n��s Mozart, Schubert e

Ravel.

Que significar��o todas essas coisas? Ser��o sinais de que

tudo vai continuar como antes, apesar da bomba at��mica? Ou

de que sou um otimista irremedi��vel?

E assim, minha amiga, n��s vemos o americano, esse Bom

Samaritano, na mais absurdamente dif��cil das situa����es. Pu-

seram-lhe nas m��os uma bomba at��mica e agora, com uma

express��o de perplexidade nos olhos ing��nuos, ele olha para

todos os lados, atarantado, sem saber que fazer com ela...

CARTA AO PROF. CLARIMUNDO

Num trem, a caminho de Nova York, 15 de agosto de 1945.

Meu caro Professor: Se as ��ltimas not��cias do mundo che-

garam at�� sua torre, a esta hora voc�� j�� saber�� que a primeira

bomba at��mica destruiu quase por completo a cidade de Hiro-

shima. Ora, naturalmente voc�� encarar�� a quest��o do angulo

cient��fico, mas eu n��o posso deixar de encar��-la pelo lado hu-

mano. N��o discutirei o sentido moral desse ato dos americanos.

Por mais que me repugne a viol��ncia, aceito pragmaticamente

o recurso de que eles lan��aram m��o para acabar uma guerra que

n��o provocaram nem desejaram. E se lhe escrevo agora esta

carta �� porque me lembrei h�� pouco da conversa que manti-



A VOLTA DO GATO P R E T O

517

vemos um dia sob as ��rvores de sua Travessa das Ac��cias, a�� em

Porto Alegre. Defendeu voc�� o ponto de vista segundo o qual o

cientista deve fazer ci��ncia pela ci��ncia, completamente desligado

dos problemas sociais. Isso n��o pode ser, meu caro professor.

Pense na guerra que h�� pouco terminou. (Ou voc�� n��o sabe que

houve uma guerra?) Veja como Hitler, Mussolini e Franco

utilizaram as engenhocas mort��feras que cientistas desligados

como voc�� inventaram ou aperfei��oaram, sem nunca procurar

saber quem ia us��-las, e para que fim. Ci��ncia pela ci��ncia?

Arte pela arte? Acho que isso seria ideal, mas a experi��ncia nos

tem mostrado de maneira dolorosa que nada do que fazemos e

dizemos pode ser completamente gratuito, e que o isolacionismo

tanto das na����es como dos indiv��duos nesta altura dos aconteci-

mentos pode ter conseq����ncias desastrosas. As coisas ditas,

escritas, descobertas ou inventadas por escritores, pensadores,

oradores e cientistas t��m sido em geral mal usadas pelos aven-

tureiros pol��ticos em proveito de suas ambi����es e como instru-

mentos de agress��o, coa����o e viol��ncia. Sou contra a literatura

dirigida, mas confesso que n��o tenho tamb��m nenhuma simpatia

pela arte que se encerra numa torre de marfim e ignora o

mundo sob o pretexto de que ela �� alta demais, bela demais,

pura demais para ser entendida pelo povo.

Meu caro Clarimundo, dos homens de ci��ncia, dos homens

de letras, de todos os homens, enfim, se exige coopera����o e

responsabilidade. O mundo �� um s��. Pois que seja um mundo

justo, um mundo belo, um mundo decente.

Des��a de seu s��t��o, professor. Limpe a lente de seus

��culos. Olhe a vida. Voc�� acabar�� convencido de que as cria-

turas humanas podem ser t��o ou mais interessantes que as suas

abstra����es de solit��rio. Aproxime-se delas, procure compreen-

d��-las. E, para principiar ponha um c min��sculo na sua Ci��ncia

e um H mai��sculo em Humanidade...

ULTIMA P��GINA

12 de setembro de 1945. Tr��s da tarde. Estamos a

bordo do "Jos�� Menendez", um calhambeque argentino

no qual entramos h�� pouco, ali naquele feio e sujo cais

de Brooklyn, e do qual com a gra��a de Deus preten-

demos sair dentro de vinte e tr��s dias, no porto do Rio

de Janeiro.

518

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

O vapor se afasta lentamente da terra. As ��guas

do Hudson s��o dum verde de pessegada. No tomba-

dilho ��� onde se fala portugu��s, ingl��s e espanhol ���

reina uma clara alegria de feriado. Estamos debru��a-

dos �� amurada. Mariana, Clara e Lu��s t��m os olhos

voltados para os arranha-c��us de Nova York, que ali

est��o bem como os temos visto em centenas de fotogra-

fias convencionais. Mas hoje. sob este sol de fim de

ver��o, a cidade parece uma suave aquarela. Vista

assim contra um horizonte ing��nuo, chega a ter uma

qualidade l��rica.

Olho para minha tribo e penso num anoitecer

pressago, h�� dois anos passados. Um avi��o a preci-

pitar-se contra a tempestade. .. Tr��s m��scaras ver-

des de medo e n��usea... Entre aquele momento

sombrio e incerto e o instante presente ��� quanta coi-

sa aconteceu! Estaremos diferentes? Que estamos todos

cronologicamente mais velhos, n��o resta a menor d��-

vida. Que temos menos dinheiro do que quando che-

gamos, �� tamb��m coisa indiscut��vel. (Meto a m��o

no bolso das cal��as e amarfanho a ��ltima c��dula de

cinco d��lares. A isso est�� reduzida a fortuna dos

bravos argonautas. No Rio ��� reflito ��� terei de pe-

dir dinheiro a algum amigo para pagar o t��xi...)

Mas, boy!, n��o trocamos por coisa nenhuma os momen-

tos que vivemos neste pa��s, nem os amigos que aqui

fizemos. Mariana me assegurou h�� pouco, comovida,

que os dois anos que passou na Calif��rnia foram os

mais calmos e felizes de que tem mem��ria. Mas quem

poder�� saber o que vai na alma de meus filhos? Ha-

bituaram-se �� vida de San Francisco como se habitua-

riam mais tarde �� Hollywood, ao ambiente do Mills

College, do trem que nos trouxe para Leste, e do quar-

to do hotel de Nova York, onde passamos estes ��lti-

mos dias. Seus rostos carnudos e corados reluzem ao

sol, e tenho a absurda mas agrad��vel ilus��o de que

A V O L T A D O G A T O P R E T O

519

eles refletem o puro azul deste c��u sob o qual vamos

navegando. Clara e Lu��s j�� tomaram intimidade com

o navio, chamam-lhe "o Z��" e falam dele como duma

pessoa viva.

Olho a torre do Empire Estate Building; domi-

nando a massa de cimento, a��o e pedra de Manhattan,

ela fa��sca como a ponta duma agulha descomunal. Mas

o que tenho agora na mente, �� uma outra torre para

mim mais significativa: o Campanile da Universidade

da Calif��rnia. Lembro-me da v��spera de nossa par-

tida de Berkeley... Eu sa��ra com Rudolph Schevill

para um ��ltimo passeio atrav��s do campus. Era uma

manh�� cinzenta e ��mida, e a n��voa escondia o cimo

das colinas. Conversamos sobre a guerra e a paz, e

Rudolph, que ama a Espanha, expressou a esperan��a

de ver um dia a terra de Cervantes livre de Franco

e do falangismo. Relembramos com saudade uma cer-

ta noite, no Mills, quando ouvimos juntos o Quarteto

N.�� 8, Opus 59, de Beethoven De s��bito, parando e

tomando-me do bra��o, Rudolph me disse:

��� Eu quisera que voc��s pudessem ficar conosco

para sempre!

Seu rosto rosado, em contraste com a cabeleira

completamente branca, era a ��nica nota de cor na

manh�� fosca. Rudolph sacudiu lentamente a cabe��a

e acrescentou:

��� Mas eu compreendo que tenham de voltar.

No fim de contas o Brasil �� a p��tria de voc��s...

Continuamos a andar e, sentindo mais agudamen-

te que nunca a futilidade das palavras, eu disse:

��� Voltaremos um dia...

Rudolph ficou um momento em sil��ncio e depois,

sem me olhar, murmurou com sua voz mansa e meio

rouca:

��� Talvez. .. n��o me encontrem mais.

520

O B R A S D E E R I C O V E R �� S S I M O

Senti uma s��bita impress��o de frio, como se essas

palavras de morte tivessem sido sopradas pelo vento

cinzento do mar.

E no trem, durante todo o percurso de Berkeley

a Nova York, e mesmo atrav��s dos vinte e seis dias

que permanecemos nesta cidade tumultuosa, a cena

que com mais freq����ncia me vinha �� mente, como

uma esp��cie de s��mula de todas as nossas aventuras

sentimentais neste pa��s, foi a de Rudolph, com seus ca-

belos de tor��al branco tocados pelo vento, acom-

panhando na plataforma da esta����o a marcha de nos-

so trem, e acenando para n��s com os olhos brilhantes

de l��grimas. �� que naquele momento ele simboli-

zava tudo quanto os Estados Unidos t��m de melhor, de

mais nobre e mais humano. Ele era o Amigo. Seu

aceno tinha um sentido t��o maravilhosamente belo,

que nem ouso defini-lo.

��� o o

O "Jos�� Menendez" se afasta cada vez mais de

Nova York. Os passageiros se agitam ��� Adeus, Am��-

rica! ��� acenam para uma barca que passa cheia de

soldados. ��� Good-bye, boys! ��� apontam para a est��tua

da Liberdade, agitam len��os, cantam e gritam.

Mas n��s quatro continuamos silenciosos. Aposto

que, embora Mariana, Clara e Lu��s tenham como eu

os olhos fitos nos arranha-c��us de Manhattan, eles re-

almente est��o vendo as montanhas e os vales da Ca-

lif��rnia e, sobre esse fundo vago, as faces iluminadas

de nossos amigos.

Gaivotas esvoa��am em torno do vapor, que avan-

��a lentamente para o mar.







---------- Forwarded message ---------
De: Reginaldo Mendes <regismendes59@gmail.com>
Date: sex., 14 de fev. de 2020 às 15:54
Subject: <audioslivroslinks> Lançamento: A Volta do Gato Preto - Érico Veríssimo- Formatos : Pdf, epub txt
To: audiolivroselinksaudiolivroselinks <audiolivroselinksaudiolivroselinks@googlegroups.com>, bibliotecavirtualdodeficientevisual <bibliotecavirtualdodeficientevisual@googlegroups.com>, <grupo-de-livros-mente-aberta@googlegroups.com>, grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro <grupodelivrosepubpdfdoctxtaudiolivro@googlegroups.com>, <vidacomlivros@googlegroups.com>, amigos-da-cultura <amigos-da-cultura@googlegroups.com>, <arca_literaria@googlegroups.com>, bons_amigos <bons_amigos@googlegroups.com>, culturaonline <culturaonline@googlegroups.com>, expresso_literario <expresso_literario@googlegroups.com>, livraria-virtual <livraria-virtual@googlegroups.com>, <livros-loureiro@googlegroups.com>, oaconchegodonossolar <oaconchegodonossolar@googlegroups.com>, <solivroscomsinopses@googlegroups.com>




Olá, pessoal:
                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
                   Agradecemos ao Irmão Bezerra pela doação e ao irmão  Fernando  pela digitalização.
                    Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.


O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa   leitura !

A Volta do Gato Preto - Érico Veríssimo

Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos
Sinopse:
Este livro é continuação do livro Gato Preto em Campo de Neve.

Erico Verissimo narra com humor, faro jornalístico e olhar de romancista sua segunda viagem aos Estados Unidos, registrando suas impressões sobre o cotidiano dos americanos em plena Segunda Guerra Mundial. 


Lançamento Grupo de Livros Mente Aberta

https://groups.google.com/forum/?hl=pt-BR#!forum/grupo-de-livros-mente-aberta

Nosso grupo parceiro:

https://groups.google.com/forum/?hl=pt-br#!forum/grupo-espirita-allan-kardec



--



--



--- 

--


 

--
--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-
---
Você recebeu essa mensagem porque está inscrito no grupo "clube do e-livro" dos Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um e-mail para clube-do-e-livro+unsubscribe@googlegroups.com.
Para ver essa discussão na Web, acesse https://groups.google.com/d/msgid/clube-do-e-livro/CAB5YKhk2MxLaTmt2NqApzr8%3D3xYks5LpbPmOcGPHhOBE3v_1TQ%40mail.gmail.com.

0 comentários:

Postar um comentário

Vida de bombeiro Recipes Informatica Humor Jokes Mensagens Curiosity Saude Video Games Car Blog Animals Diario das Mensagens Eletronica Rei Jesus News Noticias da TV Artesanato Esportes Noticias Atuais Games Pets Career Religion Recreation Business Education Autos Academics Style Television Programming Motosport Humor News The Games Home Downs World News Internet Car Design Entertaimment Celebrities 1001 Games Doctor Pets Net Downs World Enter Jesus Variedade Mensagensr Android Rub Letras Dialogue cosmetics Genexus Car net Só Humor Curiosity Gifs Medical Female American Health Madeira Designer PPS Divertidas Estate Travel Estate Writing Computer Matilde Ocultos Matilde futebolcomnoticias girassol lettheworldturn topdigitalnet Bem amado enjohnny produceideas foodasticos cronicasdoimaginario downloadsdegraca compactandoletras newcuriosidades blogdoarmario arrozinhoii