terça-feira, 20 de julho de 2021 By: Fred

{clube-do-e-livro} Uma mulher não chora - RITA FERRO

RITA FERRO


Uma Mulher
N�o Chora


Janeiro de 1998

SEMPRE-LENDO O MELHOR GRUPO DE TROCA DE LIVROS DA INTERNET


Nunca se ama como nas hist�rias: nus e para sempre.
Amar � lutar constantemente contra milhares de for�as
escondidas que v�m de n�s ou do mundo.
Contra outros homens. Contra outras mulheres.


Jean Anouilh

Esta � uma obra de fic��o.
Qualquer semelhan�a entre personagens
e figuras da vida real � pura coincid�ncia.



I


Sa� de casa nessa noite com a sensa��o dram�tica que nada de extraordin�rio me iria acontecer.
Pode parecer f�til, mas nenhuma outra coisa me � t�o dif�cil de suportar.
Tinha-me falado a Mafalda para me desafiar para uma borla no Tivoli. N�o era teatro, desta vez, mas uma orquestra de c�mara tocando n�o sei o qu� de Beethoven.
Nessa �poca, fugia dos cl�ssicos sempre que podia.
Obrigavam-me a ceder a uma coisa mais forte do que eu e era poss�vel que n�o tivesse nascido com humildade para isso.
Talvez o g�nio me fizesse sentir inferior, n�o fa�o ideia.
A verdade � que experimentava sempre a mesma relut�ncia em abdicar de mim mesma para me entregar a todos aqueles sons portentosos que me comoviam como a
uma crian�a e me imobilizavam como um colete de for�as.
S� os concertos a meio da tarde me aliciavam. Dissolviam-me a ansiedade aos primeiros acordes e, �s vezes, faziam-me dormir profundamente.
Fui ter a casa da Mafalda com meia hora de atraso; a Pilar j� chegara.
Era um junho quente e ambas tinham cal�ado meias de vidro, como mandam as noites de gala.
Vendo-me chegar com uma saia de sarja e uma camisola de linha verde-claro, desataram aos gritos, furiosas, dizendo que aquela minha figura as tornava pat�ticas.
Tive de concordar, ainda que o contr�rio fosse mais verdade - aquilo no Tivoli era uma estreia.
Desculpei-me com um dia absolutamente masculino que come�ara �s seis da manh� e que, pelos vistos, ainda n�o tinha terminado.
Estava assim vestida desde que me levantara e nem me ocorrera mudar de roupa.
Impressionada com o meu desmazelo, pedi � Mafalda:
- Empresta-me um vestido, depressa, mas nada de espampanante! N�o quero nem encarnados nem verdes, que ainda me ponho para ali a chorar...
Interessaram-se vagamente:
- O que � que tens? - estranhou a Pilar.
- Que tal este azul? - prop�s a Mafalda, abrindo o arm�rio e puxando de um cabide.
Ainda nos rimos porque foi o cabo dos trabalhos encontrar um vestido que me servisse. Logo por azar, a Mafalda tinha o corpo exactamente contr�rio ao meu:
ancas largas e peito pequeno.
Escolhi um vestido de linho caf�-com-leite com casaqueta igual, de bandas brancas, n�o por ser o mais bonito, mas por ser o �nico que me cabia em tr�s metros
de roupeiro.
- O fecho est� estragado, mas com o casaco disfar�a contemporizei, endireitando as costas ao espelho e disfar�ando o cansa�o. - O que dizem voc�s, minhas
paspalhos?
- O pior de tudo s�o os sapatos... - disse a Pilar, chumbando-os sem complac�ncias. - Esses sapatos n�o v�m a prop�sito...
Tinha raz�o.
Os sapatos eram de salto alto e de r�fia azul, imposs�veis de combinar com aquele bege.
- Est�pidas - gritei, nervosa. - De que � que est�o � espera para chamar um t�xi?
- J� cham�mos - sossegou-me a Mafalda a remexer numa arca. E logo a seguir, magn�nima: - Experimenta estes...
Eram lindos, italianos, forrados e fr�geis os sapatos que ela me convidava a provar. N�o havia muitas mulheres capazes de emprestar sapatos.
- Servem-te? - perguntou.
- Espera... - pedi, enfiando a custo o p� direito.
- Ent�o?
- Ent�o, nada. N�o me cabem.
- Leva os teus, ningu�m repara! - simplificou a Pilar. E j� da janela da sala: - O t�xi chegou, despachem-se!
T�nhamos oito minutos para descer dois andares a p�, chegar ao teatro, pagar a corrida e entrar na sala, mas nenhuma delas me censurou pelo atraso.
Era o que faltava: todas as mulheres do mundo fazem o mesmo.
Antes de entrar no t�xi a Mafalda escorregou na cal�ada e, para n�o se estatelar no ch�o, colocou mal um dos p�s e partiu um salto.
O motorista estava impaciente porque um coro de buzinas furiosas zurrava atr�s de si.
Com a pressa, a Pilar fez uma malha na meia com a garra do anel, ao pousar a carteira no ch�o, e eu, assim que entrei no carro, verifiquei que naquele pequeno
trajecto tinha perdido um brinco de ouro.
Passei o resto da viagem a enfiar as m�os nos estofos, cheia de
nojo, para ver se o encontrava, e por isso nem tempo tive de perguntar o que ia ouvir.
Quando cheg�mos, estava com medo de que algu�m reparasse, por debaixo do bolero da Mafalda, no fecho-�clair desapertado.
Contra tudo isto, Beethoven?
Adormecemos as tr�s, n�o por o concerto ser mau, mas por ser bom demais; acord�mos com as luzes a trespassarem-nos as p�lpebras e uma profunda estranheza.
A Mafalda at� tinha pregas � volta dos olhos, como quem acorda numa cama verdadeira.
R�mo-nos.
R�amos tamb�m daquela pressa de viver, que nem o cansa�o vergava.
Est�vamos ali, as tr�s, juntas, e talvez nos lembr�ssemos do que isso valia.
- E agora? Vamos j� para casa?
- Vamos jantar!
- Onde?
Pedimos bifes.
- A partir da meia-noite j� ningu�m faz dieta! - disse eu, proibindo os escr�pulos.
- Nem pode. Nesta cidade, as batatas fritas s�o obrigat�rias!
Era indiferente o que se dizia. Havia coisas mais importantes que se trocavam ao mesmo tempo.

* * *

A Mafalda conhecia os jornalistas da mesa ao lado e eu reconheci apenas um deles.
- Aquele n�o � o ... ?
- �. N�o digas o nome. Cala-te. N�o fales alto...
- Achas que ele � ... ?
- De certeza. N�o se v� logo pelo gestos?
� assim a conversa das mulheres: r�pida, cifrada, inclemente.
- E o outro?
- Espera....
- N�o � aquele que escrevia cr�nicas de cozinha no...?
Citaram-se tr�s jornais.
Nenhuma de n�s conseguia lembrar nem o nome da coluna, nem o do jornal, nem o do autor, e muito menos h� quanto tempo fizera ele cr�nica gastron�mica.
Este tipo de pormenores n�o � importante para as mulheres. Podia ter sido h� dois anos ou h� dez. O homem fizera sucesso
s� isso. Tudo de que precis�vamos para o passar a pente fino.
A Pilar disse que ele n�o sabia escrever; a Mafalda, que lhe faltavam maneiras; e eu, como se n�o bastasse, acrescentei que a gravata era obscena.
Nada que, realmente, lhe retirasse interesse.
- Est� a olhar imenso para ti... - disse � Mafalda.
- N�o olhes - rogou ela. - N�o d�s confian�a...
Rindo, concord�vamos que apesar da gravata de um e dos trejeitos do outro, estar�amos receptivas a uma abordagem qualquer.

* * *

Foi o cronista quem primeiro se levantou para nos cumprimentar. Disse qualquer coisa que nenhuma ouviu muito bem. Estava ali. Nas nossas m�os. E a excita��o
era essa.
Perguntou se podia sentar-se. Depois, sem sair da nossa mesa, apresentou-nos o amigo que tinha ficado na dele. O amigo juntou-se a n�s e, com ele, um terceiro
cavaleiro que chegara mais tarde e me chamou a aten��o por ser escuro, distra�do e absolutamente desconhecido.
Fixei-me nesse.
Sempre que deparava com um estranho � minha frente apetecia-me imediatamente dizer-lhe: "Obrigada! Obrigada por seres uma cara nova e eu nunca te ter visto!
Nem calculas como te estou agradecida! Nem sonhas como � bom saber que voc�s n�o acabam, que quando se pensa que acabam h� sempre mais! "
Falou-se de jornais, de revistas, de artigos de opini�o.
Dissemos coisas que outras pessoas j� tinham dito. Mesmo assim, os cavalheiros pareciam agradados.
- Tenho de me ir embora - disse a Pilar levantando-se. - � a terceira noite que me deito tarde. E quem paga s�o os meus alunos!
Talvez estivesse sentida por nenhum deles se lhe dirigir directamente. Perdia em rela��o a n�s e nenhuma mulher aguenta.
- � professora? - interessou-se um.
- Sim, de jornalismo... - respondeu ela, recuperando o sorriso. E voltando a sentar-se: - Mas n�o me gabo...
Mais meia hora a falar de Educa��o, de pol�tica, de ninharias.
A Mafalda e eu disfar��mos bem que n�o perceb�amos nada do assunto. T�o bem que eles ficaram balbuciantes ao p� de n�s, impressionados.
Por muito que se evolua, os homens continuam a espantar-se com mulheres espertas.
Era, ali�s, uma das nossas perf�dias mais t�picas: fingirmos que sab�amos mais do que sab�amos, e demonstrar-lhes que os conhecimentos deles de pouco
valiam ao p� da nossa intui��o.
N�o era sempre verdade, mas com alguma experi�ncia at� parecia.
Come�aram as anedotas.
Primeiro de alentejanos, depois de irlandeses, a seguir de belgas, e teriam come�ado as de africanos se eu n�o me tivesse insurgido:
- Cuidado! N�o � a mesma coisa...
Concordaram e eu ganhei pontos pelo meu car�cter um verdadeiro brinde com que n�o contava.

* * *

Era est�pido. Os estranhos n�o eram melhores do que os outros. Nem piores. Mas enquanto durava a d�vida valia a pena acreditar.
- Ol�!
- Ol�, boa noite...
- Costuma vir aqui?
- Quase nunca. j� reparou que a sala n�o tem uma �nica janela?
Que bom que era!
Poder come�ar do zero a qualquer momento, fazer t�bua rasa de todas as imperfei��es, e tentar uma vers�o mais depurada junto de algu�m que n�o andava, porque
n�o podia, atr�s de mim de espelho em punho.
- Como � que se chama?
- Vasco.
- Vasco?
- Sim, Vasco. E voc�?
- Eu chamo-me Ana. Mas n�o sou Ana Maria, nem Ana Cristina, nem Ana Teresa. Sou s� Ana...
Era curiosa aquela minha capacidade de me reinventar atrav�s
dos outros, de estrear uma personalidade nova aos olhos de algu�m que acreditava apenas no que via e no que ouvia at� lhe provarem o contr�rio.
- Ela est� na defensiva, percebe? Desde pequena que detesta o nome que tem!
Fora a Mafalda que falara, mas poderia ter sido a Pilar. Ao lado de um homem novo, qualquer uma se transfigura.
- � verdade - concordei sem afinar. - Ana � um nome curto demais e sem qualquer mist�rio...
Mas o Vasco dizia, cavalheiro:
- Eu gosto do seu nome, sinceramente. Tenho uma av� chamada Ana que sabe fazer arroz-doce como ningu�m...
N�s e a culin�ria: um estigma de que nunca nos livrar�amos.
- N�o calcula a ternura que me faz ver-me associada � sua av�... - brinquei. - N�o se importa de, a partir de agora, passar a chamar-me av� Ana? Tem outro
peso espec�fico...!
E enquanto o Vasco sorria, prestando-se com mansid�o �quele jogo, a Mafalda reincidia:
- E a verdade � que j� podias ser av�!
Os conhecidos, esses sim, imobilizavam-me.
Inibiam-me de arriscar outras ideias, de recrutar outras facetas, de me libertar de uma vez por todas do estigma empedernido das minhas caracter�sticas.
Bastava-me olhar as minhas amigas para me aperceber do risco que havia nas velhas rela��es: qualquer tentativa que implicasse novidade de atitude era acolhida
com desconfian�a, tomada por pose ou exibi��o e invariavelmente punida.
Havia pessimistas que sustentavam que o contacto com os outros era pura perda de tempo, mas eu nunca achara. Para suportar os velhos amigos, precisava ciclicamente
de renovar o meu card�pio de rela��es para me oxigenar em pessoas novas.
- Fuma?
- N�o fumo.
- Nunca fumou?
- Sim, durante dez anos.
- E tem saudades?
A verdade � que a pessoa nova podia n�o me aceitar t�o incondicionalmente, mas revitalizava-me por isso mesmo; n�o me conhecia e esperava tudo de mim, n�o
me exigia coer�ncia porque n�o podia conferi-la, n�o se surpreendia porque nunca fora desapontada, trazia-me not�cias de outros mundos e de outros moldes de vida
e, mesmo que me desiludisse, acrescentava-me sempre qualquer coisa.

* * *

Olhava para ele e a minha expectativa aumentava.
Tinha cabe�a, tronco e membros como os outros, mas qualquer coisa me dizia que lutava para sobreviver � massifica��o dos corpos e das palavras e resistia.
Talvez estivesse ali para se fingir parecido.
A normalidade � importante, sobretudo quando se pretende conservar secreta uma qualquer dissid�ncia.
� mais segura.
Mas tamb�m era poss�vel que estivesse ali para aprender a ser igual.
N�o sabia, nem poderia comprov�-lo.
Naquele momento, sabia apenas que ele n�o se ria como os outros nem dizia tantas coisas.
- Se tenho saudades de fumar?
- Sim?
- �s vezes. Depois de um bom jantar.
N�o era bonito nem feio, mas trazia os dentes em bom estado e as cal�as engomadas. Da�, eu s� podia depreender que n�o se tratava de um delinquente ou de um
artista.
Era pouco.
Isolei-me da conversa para o observar, e as minhas amigas
acharam que eu n�o estava t�o divertida como parecia ao principio; mas eu precisava do tempo que levaria a desmenti-las.
Disse-lhes apenas:
- Estou s� calada.
Sem querer, come�ava a ajustar o meu comportamento ao de algu�m que, sem fazer nada por isso, se impunha aos meus olhos e exaltava a minha curiosidade. � mais
bonita - Voc� - segredou-me ele de repente. - � mais bonita do que as suas amigas...
N�o sou - neguei, corando. E chegando a boca ao seu
ouvido: - Mas voc� s� vai descobrir quando eu deixar...
Podia n�o ser uma atrac��o vulgar.
De vez em quando acreditava que o ser humano era capaz de
encerrar e transmitir coisas mais fecundas do que o sexo, e que a pele, quanto muito, podia servir de ponte para o descobrir.
Quando o olhar � deficiente, o tacto pode ajudar alguma coisa.
� amigo deles? - perguntei, com a voz diferente.
Talvez - respondeu ele. - Hoje em dia exige-se t�o pouco de uma amizade...
Podia ser esta frase, ou outra mais breve ainda, mas eu
fascinava-me sempre ao verificar que dez palavras escolhidas podiam significar muito mais do que dez palavras quaisquer - a resposta do homem lan�ava-me uma escada.
Dei comigo a hesitar.
Devia acender um cigarro para reprimir a tenta��o de subir o primeiro degrau, mas n�o resisti e levantei o copo que tinha nas m�os.
- Gosta disto?
- N�o bebo.
As palavras eram as mesmas de tantos outros, mas eu apostava que, dessa vez, os motivos poderiam ser mais interessantes; mas n�o sabia se era esperan�a ou intui��o,
nunca se sabe nada.
Ignorava se ele era abst�mio, se cumpria uma desintoxica��o, ou se, pelo contr�rio, tinha fibra suficiente para se sentir desfasado num s�tio e aguentar, sem
�lcool, esse desajuste.
Sem querer, dei comigo a observ�-lo com os olhos muito abertos.
- Por que me olha assim? - perguntou, admirado.
- N�o sei - balbuciei, apanhada em flagrante. - �s vezes olhamos para as pessoas, outras vezes isso n�o basta...
E atrapalhada:
- Nunca lhe acontece?
Mas ele n�o respondia; limitava-se a suspirar com o ar esquivo de quem acha que n�o vale a pena, e eu lastimava que a anterioridade das pessoas fosse um pa�s
t�o distante.
Por muito que me esfor�asse, nunca conseguiria desbravar aquele homem em t�o pouco tempo.
- Deixe l� - disse, para o safar. - Tenho a mania de me aventurar, mas ainda n�o sou boa nisto...
Dizia-o renunciante, derrotada mesmo, com um profundo desgosto de me sentir incapaz de comunicar com aquele ser. Mas ele fez-me uma festa na cabe�a naquele momento,
meiga e inesperada como um pr�mio de consola��o, e a conversa soltou-se de repente.
J� n�o havia embara�o, mas a chave do mist�rio deixara subitamente de ser tang�vel.
- Gosta de cinema?
- Adoro!
- J� viu o �ltimo Lynch?
- Deus me livre!
Agora fal�vamos e r�amo-nos como os outros, mas fugir�amos juntos, certamente, daquela sala improp�cia.
- Acredita em Deus?
- N�o. Acredito na minha m�e que me jurou que Ele existia!
Se tudo corresse bem, j� poderia sair com ele durante anos, viver a seu lado, ter filhos seus, mas o que ficara por dizer naquela noite n�o voltaria a ser aflorado;
deixara fugir a �nica oportunidade de auscultar aquela alma porque o esfor�o que ele faria para me agradar naquela noite continha o de me desagradar no futuro. E
isso turvava as �guas, impedia-me de as ver � transpar�ncia...
- Voc� tem umas m�os bonitas.
- Voc� tamb�m.
- Est� a brincar. As minhas, s�o de lenhador!
- Por isso mesmo. Que alguma coisa vos tenha ficado!
Agora, sim.
Poderia vir a am�-lo n�o pelas coisas que ouviria da sua boca, mas por essas outras que estivera prestes a ouvir e que, por acidente ou incapacidade, n�o lhe
conseguira arrancar.
Era importante, at� porque sabia que me poderia limitar a amar uma suspeita e a entregar corpo e alma a uma probabilidade sem confirma��o.
N�o me apetecia, mas j� n�o ia a tempo.
Ao contr�rio dos pesadelos, que parecem durar noites inteiras e que demoram instantes, h� momentos da realidade que se esboroam em segundos e nos podem iludir
para sempre.

* * *

Come�avam todos a olhar para os rel�gios quando arranjei coragem:
- Apetece-lhe ir a outro s�tio? N�o tenho sono nenhum...
Com a Vida tem de ser assim: incit�-la e esperar pela reac��o.
- Dan�ar? - perguntou ele, alarmado.
- Passear! - propus cheia de energia.
A Mafalda e a Pilar olhavam uma para a outra, cruzando c�digos, mas eu abordei-as sem tirar os olhos dele:
- Alguma de voc�s quer vir connosco?
Exclu�a os outros, que me n�o interessavam, e dava-lhes a elas uma hip�tese c�nica de me acompanharem.
Felizmente, nem uma nem outra se lembrou de me dar uma li��o. Poderia voltar-se contra elas e n�o estiveram para isso.
- N�o. N�s vamos indo...
Os outros surpreenderam-se por uma t�o r�pida debandada.
Ainda n�o tinham percebido que eu estragara tudo.
- T�m carro? Querem boleia para algum lado?
Mas elas j� nem os ouviam:
- Foi �ptimo este bocadinho!
- Continue a escrever para n�s continuarmos a engordar!
E esses dois, que se tinham levantado por cortesia quando a Mafalda e a Pilar sa�ram, olharam para n�s e desanimaram. A tal ponto que j� n�o tiveram coragem de
se voltar a sentar.
Despediram-se.
Um deles ainda amargou, levemente despeitado, referindo-se ao meu acompanhante:
- Tome cuidado com esse a�, que n�o � flor que se cheire...
E eu logo:
- E a sua? A que cheira a sua flor?
A frase n�o tinha intencionalidade alguma, mas soara mal.
Despediram-se num esgar, t�o gorados quanto elas, e eu tinha pesado tudo antes de fazer o que fiz.
Confessei-lhe logo:
- Desculpe esta maldade mas, de toda esta gente, sinceramente, apeteceu-me ficar sozinha consigo...
Paci�ncia. J� l� ia o tempo em que era capaz de prescindir de tudo s� com medo de uma avalia��o desfavor�vel.
- Ora, que importa isso! - disse ele, com um sorriso terno. - Houve uma selec��o natural....
Muitas vezes, demasiadas vezes, preocupara-me em n�o fugir �s expectativas dos outros, cobarde em contrariar os seus veredictos, desmoralizada pelo seu cepticismo,
acorrentada � sua aprova��o, como se o gozo da vida n�o fosse explor�-la permanentemente e a todo o custo e ela pr�pria n�o fosse um trabalho para se ir corrigindo.
- Voc� tamb�m pensou o mesmo? Tamb�m lhe apeteceu ficar sozinho comigo?
Ele riu-se, contagiado por tanto ardor, e eu tamb�m, espantada com a minha aud�cia. Provocara toda aquela situa��o e agora tinha um pouco de medo
do que se iria passar.
Reparando na minha express�o perdida, ele sondou: - Est�
arrependida ou com medo de mim?
- N�o, n�o - disse eu. - Mas confesso que essa pergunta me sossegou. Pelo menos, tem sensibilidade...
E sem querer pensar mais:
- � pessoa para me levar � praia a esta hora? Tem carro? Gostava tanto de ouvir o barulho do mar...
E atordoando-o:
- Est� uma noite bonita, n�o est�?
Mas estava era com medo de que ele achasse que eu era daquelas destrambelhadas que se encontram � noite, com apetites extravagantes.
E n�o era?
Mas ele n�o pensava nada disso, que mania a nossa. Sem que eu esperasse, olhou-me nos olhos para me perguntar se eu acreditava no destino.
A pergunta era t�o antiquada que cheguei a alarmar-me: o homem seria parvo?
- Sei l�. Prefiro n�o acreditar...
Quis perceber e eu expliquei-lhe: ainda que houvesse um sortil�gio divino, uma conjuga��o astral ou um qualquer poder misterioso que fixasse de modo
irrevog�vel o curso das nossas vidas, reagia sempre com a maior rebeldia a tudo aquilo que pudesse fazer de mim uma folha ao vento.
E ele riu-se, tacteando:
� ent�o por uma quest�o de orgulho que n�o acredita no
destino?
- N�o - neguei, frustrada. - � que para al�m da morte, da doen�a, ou quanto muito do escr�pulo, o que lhe posso dizer � que ainda n�o conheci nada de verdadeiramente
inevit�vel nesta vida...
- Nunca? - estranhou ele.
- Nunca - sustentei. - Chame-me simpl�ria, se quiser, mas acredito sinceramente que n�o existe for�a superior � da nossa vontade...
E ressalvando:
- Se voc� me disser que o meu destino deste dia foi t�-lo conhecido e ter gostado de si, nessa altura eu rendo-me sem resist�ncia. Mas s� depois de voc�
me provar que isso estava tra�ado na palma da minha m�o, compreende?
Ele ria-se, eu defendia-me:
- Repare: se houve um destino nisto, foi s� porque eu arregacei as mangas e colaborei!
Ele meditou durante um instante para condescender sorrindo:
- Talvez. Talvez que para o homem livre o destino j� n�o passe de uma proposta facultativa. Mas...
- Mas, o qu�? - perguntei, curiosa.
- E tudo o resto que determina a exist�ncia? Os acasos, as coincid�ncias, as circunst�ncias e os infort�nios que juntam ou separam as pessoas?
- Tudo isso - disse-lhe -, longe de expressar um sentido oculto, tem pelo contr�rio uma total coer�ncia...
E agarrando-lhe na m�o, sem dar por isso:
- N�o � destino, � vida!
Ele n�o insistiu e eu reparei que parecia cansado quando pagou a conta e se levantou, respondendo a algo de que j� me esquecera por completo:
- Tenho carro. Mas temos de encontrar uma bomba aberta, porque eu n�o imaginava que ia partir de viagem...
Perguntei por instinto:
- N�o � casado, pois n�o?
- Sou - disse ele. E notando o meu ar petrificado. Assustei-a?
- N�o, n�o... - fiz eu.
Mas naquela atrapalha��o revelei mais do que queria revelar; n�o estava desapontada por ele n�o representar uma companhia plaus�vel, mas por implicar mais
trabalho do que imaginara.
- Desiste? - desafiou ele.
- N�o sei... - disse, desalentada. - Mas tem de me incentivar um bocadinho, porque as minhas pernas j� n�o me obedecem...
Era verdade.
Tinha dito o que realmente me ia no cora��o, mas isso n�o constitu�a, em si, virtude alguma. Queria muito ir passear com ele, mas aquela hist�ria j� me
fora contada tantas vezes que j� lhe sabia o fim de cor e salteado.
Era uma anedota que eu j� conhecia.
- A minha mulher n�o est� na cama � minha espera, se � isso que a preocupa - disse ele. - Est� a divertir-se a esta hora, com um grupo de amigos, e s� volta
para casa de madrugada...
Mas n�o era a mulher que me preocupava:
- Porque n�o foi com ela?
Ele n�o respondeu e eu aprovei. Ningu�m percebe coisas t�o depressa.

* * *

J� no carro ele falou, num tom que n�o pretendia comprometer-me:
- Sabe? Voc�s hoje em dia s�o muito mais despachadas do que n�s! Quando me juntei � vossa mesa, nem me passou pela cabe�a ter hip�teses com alguma de voc�s...
- Hip�teses?
- N�o, n�o � o que est� a pensar. - disse ele, aflito. E explicando: - Hip�teses de vos despertar qualquer esp�cie de curiosidade...
- Porqu�? - provoquei eu. - N�o costuma fazer sucesso com as mulheres?
Mas ele n�o tinha acabado:
- ... N�s n�o podemos saber, percebe? Se voc�s t�m namorado, se gostam de n�s, se embirram com a nossa gravata, se n�o nos gozam nas costas. E essas vossas
alian�as s�o tudo menos er�ticas, sabia?
- Tem medo de levar tampas? - abreviei, muito pr�tica. - justamente - confessou ele. - � muito desagrad�vel levar uma tampa. Ficamos assim, desajeitados, como
se n�o perceb�ssemos nada a vosso respeito...
E rematando:
- Ningu�m gosta de fazer figura de parvo!

* * *

Estava perante um homem poss�vel, via-se logo.
- Voc� � querido, voc� n�o abusa... - disse-lhe, descendo o espelho.
- S� se voc� n�o deixar. . confessou ele, expedito.
Mas o diagn�stico acabara, j� n�o tinha medo dele.
- Deixe l� as coisas correrem, isto n�o � nenhuma urg�ncia!
- N�o �?
- N�o. Voc� � casado, n�o �?
- Sou - disse ele. - Mas tenho a mesma urg�ncia que voc� tem...
- De qu�?
- De que algu�m me ajude a sentir bem!
- � mesmo isso?
E ele confessou, infantil:
- Para j� � o que eu sinto, desculpe. Voc� desafia-me a imagina��o, n�o tenho culpa...
Gostara daquela resposta. Revelava aquela incapacidade de mentir com efic�cia, t�o pr�pria dos homens, por que qualquer de n�s era capaz de se apaixonar.
Nem era bem incapacidade; era falta de empenho e, por muito que os motivos nos rebaixassem, pareciam-me, naquele momento, mais nobres do que os nossos.
Toquei-lhe com os dedos no pesco�o, sem querer, e ele encostou imediatamente � berma. j� t�nhamos passado a ponte.
- Tem a no��o do que est� a fazer? - confirmei, prudente.
N�o me referia exactamente � berma, e ele percebeu ao que eu aludia:

32

- Tanta como voc�..,
E eu ri-me, para disfar�ar:
- A verdade � que, at� agora, voc� n�o fez nada que me levasse a arrepender de ter tomado a iniciativa...
Era quase sempre assim a conversa de uma mulher que acabava de descobrir um homem: t�ctil, jocosa, elaborada..
N�o ouvi mais nada, e, contudo, fal�mos ainda durante algum tempo. Mas ele escutava-me a tocar-me na cabe�a e na cara ao mesmo tempo e os ouvidos n�o devem
funcionar muito bem nessas alturas.
E enquanto falava, puxava-me a cabe�a para o peito e encostava a boca aos meus cabelos:
- � bom estarmos aqui, n�o �? Olha se eu n�o tenho ido jantar fora!..
- Olha se eu n�o tenho ido ao Beethoven! - falei baixinho. E alarmada por a sua m�o me estar a chegar �s costas: N�o v� por a�! Tenho o fecho encravado!
- Como vamos resolver isso? - perguntou ele.
- N�o sei - disse eu. - N�o quero saber...
E dei-lhe exactamente o beijo que me apetecia.
- Linda. Voc� � linda... - sussurrou-me ele, como se a beleza fosse o que ele sentira
- Estamos �s escuras - lembrei. - Como pode saber?

* * *

No hotel aquela cama impositiva, enorme, de uma parede � outra, constrangedora.
- Quer ir primeiro � casa de banho?
Ele, muito atento a coisas que n�o se viam nos filmes, a coisas necess�rias.
- Obrigada, demoro um minuto...
E agora? Despia-me ali e aparecia nua, assim, sem mais nem menos? Ou sa�a vestida da casa de banho e aproveitava para me despir quando ele fosse?
Eram quest�es diplom�ticas, numa primeira noite.
N�o queria despintar-me, queria era tomar banho. Depois do banho, a pele fica menos submissa...
Abri a porta da casa de banho e arrisquei:
- Apetecia-me tomar banho...
Ele j� estava nu, claro; t�o nu que me fez baixar os olhos. Tinha um pouco de barriga, mas estava-se nas tintas. S� esta atitude desculpa as fealdades. Os
complexos nada t�m de atraente, de facto.
- J� toma, venha c�... - disse ele, com uma express�o c�mica.
Acedi e, ainda vestida, apaguei algumas luzes do quarto. Depois sentei-me na cama e, chegando-me a ele de costas, pedi-lhe que tentasse desencravar o fecho.
- N�o o estrague mais - implorei, sem lhe contar que o vestido n�o era meu.
H� tantas coisas que os homens n�o sabem a nosso respeito. Nem querem. Nem precisam de saber. No entanto, n�s pretendemos saber tudo acerca deles. E
enquanto eles reconhecem o nosso mist�rio e o temem, n�s contornamos o deles como se fossem desalmados.
Desencravou o fecho com um despacho que me banzou. Pensei na mulher dele. N�o pensei mais na mulher dele. Queria fazer perguntas. j� n�o queria fazer
perguntas. Ele resolveu o assunto, estendendo-me na cama para conhecer o meu corpo.
- Eu n�o lhe dizia que voc� era bonita? Eu vejo �s escuras, sabia?
- N�o � voc�, s�o as suas m�os...
- Talvez. Mas elas acabam de descobrir que voc� perdeu um brinco!
- � verdade. Desde ontem que ando s� com um...
- Dorme com eles?
- Com o qu�, com os brincos?
- Sim?
- �s vezes - respondi. - Quando me esque�o de os tirar...
Mas aproximava-se a prova de fogo, o preservativo, e n�o podia distrair-me desta vez. Tinha de me apressar ou seria obrigada a fazer o teste novamente. Mais
cinco minutos e seria tarde demais.
- Tem medo da sida? - comecei.
- Medo da sida?
- Sim, medo da sida.
Eu tinha.
Revoltava-me que a Doen�a come�asse a revestir-se de um estatuto de imoralidade concludente, com vantagem dos sedent�rios sobre os errantes, mas sabia que me
bastava arriscar uma �nica vez na vida para estar t�o sujeita a contra�-la como um prom�scuo qualquer.
N�o queria correr riscos.
- Quer dizer - suspirou ele, esfriado. - N�o � um fantasma que me persiga constantemente ...
E percebendo finalmente a alus�o:
- Quer que eu ponha aquilo, � isso? � melhor... - disse-lhe,
penitente. E fechei os olhos.
Doravante, todas as minhas rela��es estariam condenadas ao desespero da noiva que beija o namorado na pris�o com um vidro espesso a separ�-los.
- Tem a certeza? - tentou ele, em agonia.
Era natural.
Assistia com uma certa perplexidade ao conformismo das pessoas em geral, como se aquela manga de pl�stico escorregadia e trai�oeira n�o comportasse a m�nima possibilidade
de afectar o desempenho do homem ou desfalcar o prazer dos amantes.
- Tenho - sustentei, ao v�-lo �s voltas com aquilo. E animando-o: - Sabe que isso que voc� est� a fazer n�o � t�o pouco rom�ntico como parece?
- N�o �? - duvidou ele.
- N�o - disse eu. - Devia at� ser encarado como um gesto do mais belo e nobre cavalheirismo!
Ele riu-se sem vontade:
- Assim como devolver o len�o a uma senhora? - N�o - expliquei. - Assim como estender a capa no ch�o para ela n�o molhar os pezinhos...
Ele fechou os olhos por instantes, interrompido no seu transe, e eu fiquei com a sensa��o de que, apesar de todo o meu esfor�o civilizacional, o mais certo seria
ele tomar-me por chata ou hipocondr�aca.
- Pronto, j� est�!
Nos primeiros encontros as coisas ou s�o muito fluidas, ou um pouco penosas. O que vale � que toda aquela descoberta m�tua era ainda, por enquanto, mais excitante
do que o sexo.
- Vamos ver como me porto. Se n�o desiludo esta menina...
E s� depois quis saber:
- � casada? Tem namorado?
E eu disse que gostara muito, claro, sem pensar no sexo propriamente dito. A verdade � que gostara dele. Do sexo j� n�o me lembrava muito bem.

* * *

Seguia a meio de um cruzamento quando uma ambul�ncia apitou atr�s de mim.
- Atr�s?
N�o sabia se era atr�s, se � frente, se ao lado. S� sei que parecia silvar dentro de mim.
- � minha senhora, afaste-se! N�o v� que � uma urg�ncia?
Lembro-me agora. Levava no carro a minha sobrinha Leonor e perguntei-lhe, assarapantada:
- � Leonor, v� l� se consegues perceber donde vem a ambul�ncia...
A mi�da rodou a cabe�a at� poder, mas tamb�m n�o percebeu. E eu, transida por tanta press�o, ia afrouxando o acelerador e piorando as coisas.
Estava atr�s de mim, afinal.
Quando me dei conta de que aquela hesita��o provocara uma densa fila de tr�nsito, virei dali em sentido contr�rio direita � esquina de um passeio; e, apesar de
estar em contram�o, s� me deu para travar e desligar o carro.
Os condutores que passavam eram obrigados a curvar drasticamente para n�o bater no meu carro, atravessando assim, no meio da rua.
Os insultos e as buzinadelas n�o me afectaram.
A Leonor era muito parecida comigo. No meio da confus�o toda que eu criara e do perigo a que a sujeitava tamb�m, dizia-me:
- A tia perdeu um brinco. Ou s� usa um de prop�sito?
E eu, sem responder, sabia que aquele rio na minha cabe�a nada tinha que ver com o homem que conhecera na v�spera e me deixara em casa ainda h� bem pouco tempo.
Era cansa�o, um cansa�o absoluto, e h� muito que eu vivia acima das minhas possibilidades.
- � a minha cabe�a que n�o est� bem. N�o � normal, na minha idade...
E preocupada:
- Tenho de ir ao m�dico...
E a Leonor, achando que eu me referia � assimetria de brincos, julgava-me a delirar:
- N�o exagere, tia, a mim tamb�m j� me aconteceu!
Que querida, a Leonor.
Tinha-a levado � esta��o para ir ter com o namorado. Pedira-me dinheiro emprestado para o bilhete e eu dera-lho sem sacrif�cio nem m�rito. Um sucesso como se
lhe tivesse oferecido uma viagem ao Brasil:
- A tia tem a no��o de que acaba de me fazer a pessoa mais feliz do mundo?
- Sabes? - disse-lhe eu, contagiada. - Eu ontem conheci uma pessoa...
Deu um grito como se acabasse de ser assaltada e lhe encostassem uma pistola � nuca:
- N�o acredito! - E rogando, agarrada � mim: - Conte, tia, conte-me tudo!
- Tudo, n�o posso - disse-lhe. - Ainda n�o cheguei ao tudo...
- Ainda n�o? - perguntou, desconfiada.
- Ainda n�o aconteceu nada de extraordin�rio - disse eu.
E suspirando, desanimada:
- E, no entanto, todo o extraordin�rio j� aconteceu!
- A cama? - transgrediu ela.
- N�o - ri-me eu. - A expectativa!
- J� sabe tudo a respeito dele? - desconfiou a mi�da, l�pida a seguir-me, mas apesar de tudo mais nova.
- J� - E estranhando-me: - j� estou cansada dele e s� sei que se chama Vasco...
- Vasco?
- Sim, Vasco - E insegura, eu que j� perdera toda a dist�ncia para julgar aquele homem: - � um nome est�pido?
- N�o, n�o � - sossegou-me a mi�da.
Voltava a ligar o carro, mas s� porque avistara um pol�cia. Podia estar ali a tarde toda com os homens aos palavr�es � minha volta que n�o me faria diferen�a.
Nem � minha sobrinha. Se fosse minha filha, n�o seria mais parecida.

* * *

A Mafalda telefonara no dia seguinte, a sondar o que se passara:
- Ontem. Acabou em romance?
- N�o exactamente - respondi.
- Era simp�tico?
- Por acaso at� era...
Desligou quase a seguir, despeitada com a minha reserva.
O Vasco falara depois, estranh�ssimo como todos os homens. N�o me pedira o n�mero de telefone, procurara na lista:
- Est� l�?
- Estou, quem fala?
- Sou eu.
T�pica dos homens, esta convic��o absoluta na sua exclusividade.
- Viva, bom dia!
- Gostou da noite de ontem?
T�o directo que, instintivamente, levei a m�o � carteira para procurar um cigarro.
A n�s, mulheres, �-nos sempre dif�cil a naturalidade. De tal forma que chegamos a acreditar que nesta primeira fase, d�bil, uma frase mal colocada pode deitar
tudo a perder.
- Noite? Que noite? - brinquei. - N�o me lembro de noite nenhuma...
Ele riu-se e perguntou:
- Ent�o, foi tudo sonho?
- Tudo n�o - ri-me. E desafiando-o: - Adivinhe o que n�o foi sonho...
- O fecho encravado?
- N�o, o brinco! Encontrei o brinco!
E logo ele, aproveitando:
- Ent�o, temos que festejar! Quer jantar esta noite?
Era sempre poss�vel encontrar uma monotonia, mesmo em coisas daquelas.
- Se n�o se importar de jantar tarde, s� saio com os meus filhos encaminhados...
- Por mim est� �ptimo - disse ele. E sem transi��o: Vou busc�-la?
Enquanto lhe rezava a morada pensei na mulher dele. Quis perguntar-lhe se ele sabia o que estava a fazer, mas era uma quest�o para colocar a mim mesma.
- Dez horas � tarde? - propus.
- Um bocado - achou ele. E logo a seguir, tornando-me c�mplice da sua conspira��o conjugal: - N�o faz mal. O pior que me pode acontecer � jantar duas vezes...
Fingi que n�o percebi porque n�o queria jogar aquele jogo. Que chato. Ele desconhecia os meus �bices e eu fazia ten��o de o poupar a todos.
Castiguei-o desligando bruscamente, o que o deve ter desconcertado.
Mal poisei o auscultador, tocou a Leonor:
- Ent�o? O seu namorado falou-lhe?
- N�o tenho namorado - respondi.
E era verdade: o substantivo n�o se aplicava.

* * *

Na manh� seguinte o Vasco voltou a falar-me, a querer agarrar-se ao pouco que houvera entre n�s. Se n�o fosse ele, tinha a certeza, as coisas n�o teriam sequ�ncia.
- Foi bom, n�o foi?
- O qu�? - perguntei para chatear.
- N�s. Ontem. L�.
- N�o lhe digo. S� lhe digo quando me perguntar onde achei eu o brinco...
- Na sua carteira?
- Como adivinhou?
- Est� sempre l� tudo. As carteiras das mulheres s�o labirintos escarninhos, pelo menos � o que tenho ouvido...
- Gostei - disse, respondendo quando eu queria e n�o quando ele queria. - Gostei imenso, foi bom.
- E eu queria voltar a ver-te - disse ele, estreando aquele tu que nos excita. - Hoje tamb�m...
Engoli em seco para desprender a voz:
- Eu tamb�m gostava, mas...
Ele seguia-me, ansioso:
- Mas ... ?
- Mas numa tasca qualquer porque n�o me apetece trocar de roupa. Quero ir como estou...
E testando-o, como se o dia seguinte dependesse da sua resposta:
- Importas-te?
Mas os homens s�o mansos, enquanto n�o lhes chega a indiferen�a ou a vontade de nos punirem. Desde que n�o nos achem feias ou velhas, tudo o resto � indiferente:
- Importo-me s� se n�o vieres. N�o quero saber dessas coisas...
Era verdade, via-se que era verdade, e eu comecei a gostar dele a�, precisamente, a partir daquela resposta.
Como se explicava isto a algu�m? Que me apaixonara por ele gra�as a uma resposta que traduzia algum desprendimento?
E ainda por cima era relativo esse desprendimento que eu lhe atribu�a. Naquele momento havia prioridades, isso sim. E, para o Vasco, ter o meu corpo despido
era, por enquanto, mais importante do que ter o meu corpo bem ou mal vestido.
- Ent�o, est� bem. Vou contigo...
- Que bom - disse ele. - � bom estarmos juntos!
- � bom - concordei.
Era verdade, mas n�o interessava muito. Tamb�m era bom ir ao cinema, ou comprar um vestido, ou ler um livro, ou estar com as minhas amigas. Antes do amor, as
prioridades baralham-se.
- At� logo, mi�da - disse ele, embalado.
- At� logo - devolvi eu, despindo a frase de qualquer vibra��o.
Espantoso.
Toda a dissimula��o que n�s faz�amos n�o podia ser sen�o sobreviv�ncia.
Muitas vezes, aquele nosso discurso obscuro e absurdo, composto de avan�os e retrocessos, paradoxal e enlouquecedor para qualquer homem e com poder suficiente
para o enfeiti�ar e exasperar, mais n�o � do que uma manobra feminina inconsciente com dois sentidos ocultos: preserva��o e desforra.

* * *

Estava a ver televis�o quando desaguou na minha alma uma tristeza completa, calamitosa.
Via o filme Pandora, com a Bisset e o Michael York, uma grava��o da Cabo que eu trouxera do �ltimo jantar da Iga e onde tudo me parecera inven��o: as pessoas,
os aventais, os relvados, os penicos.
Era tudo falso, para variar, e toda aquela beleza me entristecera como quando se descobre um dos pais a mentir.
Via-se um filme de tr�s horas e meia, ou lia-se um livro de seiscentas p�ginas, e agarrava-se, quanto muito, uma ideia.
Apenas uma ideia.
O filme era sobre uma casa que n�o merecia as pessoas e s� essa eu fixaria.
Falou-me a Pilar, e ainda duas ou tr�s vozes ins�pidas para a minha filha adolescente.
E at� nisso eu cumpria, caramba!
Como se a minha voz, ao telefone, desamparada de gestos e express�es, precisasse de ser enfatizada para demonstrar alguma idoneidade aos amigos da minha filha.
- Fala mais tarde. Correu-te bem o teste? Quando � que apareces? j� tiraste os pontos do joelho? Os teus pais tiraram-te a moto?
Era isso. Eu era m�e de todas aquelas crian�as, a Iga tinha raz�o. As crian�as eram de todas, pertenciam a todas, eram todas nossos filhos, sa�das dos nossos
�teros. Ningu�m tinha autoridade para dizer meu, a n�o ser que as amasse como eu.
Mas a minha tristeza grande, completa.
Sugestionada pelo filme, olhei para a minha casa e tive saudades de tudo, no caso de perder tudo. As coisas estavam ali e eu senti, de repente, medo de as perder.
Pensei nos santos e em todo o seu despojo. Pensei que Cristo nunca falava no amor pelas coisas, como se n�o existisse
E existia.
Era um amor como outro qualquer. Era o que de mais constante t�nhamos, que diabo, as minhas coisas, as minhas testemunhas, as minhas fases!
Para quem n�o tinha grande mem�ria do passado - ou o enterrava como eu - as coisas adquiriam uma import�ncia crucial.
Vieram-me l�grimas aos olhos.
Eu era infeliz? N�o, n�o era infeliz, era assim. Como toda a gente, ali�s: menos infeliz do que supunha.
H� anos que me agarrava �s adversidades para justificar a rela��o penosa que tinha com a vida, mas, olhando para tr�s, com ou sem problemas, fora sempre assim.
E a minha m�e? Dava-me ternura, ou era eu, afinal, que lha dava a ela?
N�o interessava. Agora, eu tamb�m sabia que tudo podia ser mais priorit�rio do que os filhos. Os filhos s� eram prioridade na medida em que amea�avam as nossas
prioridades. E as minhas, no fundo de tanto mimo e aten��o para com eles, afinal, nunca eram eles.
Via-se isso, claramente, nos div�rcios. Um para cada lado e deixava-se de ir � missa, de comer � mesa, de hidratar a pele, de lhes falar nos p�ssaros e de Deus.
O arqu�tipo era demasiado forte.
Os filhos eram a fam�lia, infelizmente, n�o valiam por eles e para valerem era preciso muito esfor�o.
J� sabia como era.
A prioridade era algu�m que dormisse connosco, entrasse na nossa casa de banho, nos amasse e nos deixasse voar para onde quis�ssemos.
Talvez injusta, mas essa.
Tinha l�grimas nos olhos e a certeza absoluta de que me poderia desatar a rir com verdadeira vontade no pr�ximo telefonema que me fizessem.
Era assim a minha infelicidade: sempre preparada para a felicidade. E s� aparecia nos intervalos.

* * *

- Sim? - novo telefonema, outra vez do Vasco. - Vasco? N�o me digas que queres estar comigo outra vez, isto come�a a arrastar-se...
Eu tamb�m n�o gostava daquilo.
Viver simultaneamente a amar, a defender a pele, a vingar as m�es e a ajustar contas era uma coisa cansativa. Mas era assim que eles nos obrigavam a viver: a
despertar neles, constantemente, a necessidade de nos conservarem.
E o Vasco tacteava, corajoso:
- Mas, como � que foi com os outros? Tamb�m eram assim? Descart�veis?
- Depende - disse eu.
Incr�vel: centenas de livros lidos, de viagens, de discuss�es, de demanda pessoal, c�smica e universal para, nestas alturas, s� valeram as patacoadas e
tudo o resto ser sup�rfluo?
Quer dizer: eu estava-me nas tintas para a reac��o dele. Era uma esp�cie de opera��o-suicida, de um bluff em que poderia ganhar ou perder tudo e p�-lo a fugir
a sete p�s. Um afecto de uma mulher logo nos primeiros dias � algo de aterrador para qualquer homem.
Ver�amos como reagiria este.
Apetecia-me dizer-lhe gosto de ti porque era quase verdade, mas n�o lhe disse porque me comprometeria a dizer mentiras a partir desse instante. Al�m disso,
estava com uma dor de cabe�a desde manh� que tornava tudo relativo.
Eu n�o o amava, mas estava-lhe agradecida. Estava cheia de ternura, sim. No fundo, era isso: eu amava-o, amava-o com todas as minhas for�as, que eram
nenhumas.
� assim, muitas vezes, a cabe�a das mulheres: todas as contradi��es poss�veis no mesmo sentimento.
Desde pequena que os paradoxos da vida me atormentavam. N�o sabia se aquilo era geral e se se passava com toda a gente, mas eu tomava-o como um karma pessoal
persecut�rio.
Desconhecia at� se era um v�cio meu, se da pr�pria vida que estava minada deles e se podia subverter em todas as situa��es.
Ser e n�o ser. Amar e n�o amar. Poder e n�o poder. Existir sempre raz�o numa realidade e no seu contr�rio.
Mudei de ideias.
Resolvi experimentar o Vasco, n�o tinha nada a perder. Sentia-me masculina e feminina ao mesmo tempo - uma deusa sem precedentes na mitologia:
- Sabes? Eu gosto de ti!
Ele calava-se, eu insistia:
- A s�rio! Conheci-te h� dois dias e j� gosto de ti ...
E preservando-me:
- Quer dizer, n�o � amor-amor, mas � tamb�m amor, percebes? Ouve: n�s demos beijos, adormecemos agarrados um ao outro, que diabo! Se isto n�o �
amor, ent�o o que �? Achas poss�vel dar-se beijos a algu�m de quem n�o se goste?
E a isto, a que tantos chamam perversidade, dever-se-ia em rigor chamar prud�ncia; n�o significa que n�o amemos os homens, mas antes que o que mais desejar�amos
no Mundo era poder, tal como eles, entregarmo-nos sem arriscar a vida.
As palavras eram importantes para mim e ele j� o tinha percebido. A sua voz estava portanto lenta, assustada. Mas l� conseguiu dizer:
- Eu... eu n�o sei muito bem. Talvez seja cedo de mais para garantir, mas eu acho que tamb�m gosto de ti...
Nenhuma mulher aguentaria aquilo. Falava assim, com uma sinceridade escrupulosa que me comovia, e ganhava-me a olhos vistos.
- Ouve - disse-lhe, nas tintas para o recato. - Sabes onde moro, n�o sabes? Est�s a trabalhar, n�o est�s? Ent�o sai da� neste momento, desse escrit�rio
repetitivo, e vem ter comigo agora. A s�rio, queria tanto que viesses aqui. E agora mesmo, pode ser? Logo pode ser diferente, n�o prometo nada. Vem j�, tem de
ser j�...
Falava depressa, para o aturdir a ele e n�o me ouvir a mim mesma:
- Vens, n�o vens?
- Eu vou - resolveu ele.
Estava louco, ele tamb�m estava louco. Deixar o escrit�rio assim sem mais nem menos era arriscado. De um momento para o outro poderia voltar-se contra mim.
- Queres mesmo, querido, queres? - confirmei, vacilando.
Mas depois perdi-me naquilo. N�o me aguentava em jogos por muito tempo.
- Ou ser� que est�s com medo? Eu gostei de ti, caramba! Isso n�o � t�o esquisito assim, pois n�o? Eu gostei de ti, tens um corpo quente, uma pele de mi�do,
colaste bem a mim, quando abri os olhos fazias-me festas nos cabelos, pagaste o hotel sem que eu me apercebesse, mandaste-me descer s� depois de te certificares
de que n�o havia ningu�m na recep��o, �s sens�vel e eu apetece-me amar-te! Neste momento � a mesma coisa, entendes?
Ele respirou fundo, n�o aguentando o meu f�lego, a minha vibra��o e o meu discurso torrencial, � espera de uma brecha para perguntar:
- Moras no terceiro esquerdo?
E ainda acrescentou qualquer coisa ao desligar. Pareceu-me "Seja o que Deus quiser", mas n�o tive a certeza.
* * *

Deitei-me no sof�, a ferver de febre.
Queria-o dentro de mim outra vez, pela primeira vez.
Era uma hist�ria nova, tudo recome�ava ali, naquele instante, e ao novo n�o se resiste.
N�o era casada, nem tinha ningu�m determinante no momento, mas mesmo que tivesse talvez n�o pudesse resistir �quilo.
E distorcia tudo, para me absolver.
C�us, a fidelidade!
O que podia ter de asfixiante, e de let�rgico, e de redutor, de
tantas outras cargas negativas a grilheta da fidelidade para o resto da vida...
"Devia ser proibida, condenada como um genoc�dio", delirava
eu.
E a transgress�o podia ser uma coisa higi�nica, convencia-me. Qualquer dia os ecologistas teriam de o reconhecer. Os cardiologistas diriam que fazia bem
ao colesterol e � hipertens�o arterial, e os oncologistas tamb�m acabariam por dizer que a paix�o, qualquer paix�o, criava defesas contra as c�lulas cancer�genas.
E, mais tarde ou mais cedo, acabariam por reconhecer que o pr�prio Evangelho, levado � letra, diminu�a a esperan�a de vida das pessoas.
A religi�o n�o poderia comportar esse contra-senso t�o grande por muito mais tempo e o pr�prio Papa haveria de vergar com o axioma.
Afinal n�o, que estupidez: que sentido faria uma transgress�o consentido?
Mas, n�o s� a transgress�o: a mentira era tamb�m importante. Ser sincero a todo o pre�o era uma coisa desumana...

* * *

Tocaram � porta.
Eu sabia que era ele, n�o o conhecia bem ainda, mas sabia que era ele. O toque, o mesmo toque da campainha do primeiro dia. O mesmo toque dentro de mim.
Era ele, s� podia ser ele...
Era ele.
Vinha arquejante de subir as escadas a correr, com uma afli��o tal que me agarrou a cabe�a.
Depois, tirou-me a camisa, puxou-me o soutien para cima sem calma para o desapertar, rebentou-me o fecho das cal�as ao tentar desc�-las, balbuciou "Onde � o teu
quarto? Estamos sozinhos?" e ia-se despindo ao mesmo tempo.
Deitava-me no ch�o enquanto eu lhe dizia "� ali", mas n�o esperava, arrancava a gravata, arrancava os bot�es da camisa e das cal�as, e eu ria-me "Vais sair daqui
esfarrapado, sempre quero ver como vais tu sair daqui", tudo muito depressa, sem tempo para nos envergonharmos um do outro, melhor, muito melhor do que no hotel,
e, de repente, o telefone a tocar ali ao lado e eu est�pida, t�o est�pida a atend�-lo:
- Sim? Como? Do col�gio? Aconteceu alguma coisa ao meu filho? Caiu? J� o trataram?
E o Vasco a perceber que n�o era nada de grave e a beijar-me o corpo inteiro, a percorr�-lo com os dedos, j� a cheirar a suor, a descer por mim abaixo, "P�ra!",
gritava eu, "P�ra!", e a mulher sem perceber, "N�o era consigo, minha senhora, a minha outra filha est� a passar por aqui neste momento com um tabuleiro nas m�os
e vai entornar os copos todos, meu Deus, p�ra!".
- Vou busc�-lo agora mesmo, obrigada. Mas ele est� mesmo bem, ou est�-me a esconder alguma coisa?
E o Vasco a continuar, e eu a odi�-lo, e a mulher a estranhar, e eu a gritar-lhe:
- DIGA AO AFONSO QUE EU VOU BUSC�-LO AGORA
MESMO!
Fic�mos como mortos, esgotados, fuzilados sobre o tapete.
N�o conseguia levantar-me. Levantei-me. Ele ficou no ch�o, fez-me uma festa na perna e disse-me "Estamos feitos, isto vai ser um sarilho, tu �s linda,
linda ... ", como se no sexo estivesse a verdadeira beleza, e eu fui-me arranjar, aflita, a pensar no mi�do.
Tirei as meias, estavam rotas, tirei as cuecas que me pendiam de um p� e arrastavam pelo ch�o, estavam h�midas, corri a cortina, entrei para o duche, fechei
os olhos, deixei a �gua correr, ele quis entrar por ali dentro ainda meio vestido e eu disse-lhe "�s tonto, �s maluco de todo? Como vais sair daqui nessa figura?
N�o v�s que tenho de ir buscar o mi�do ao col�gio?", e ele disse-me "N�o interessa, n�o interessa, isto para n�s � muito mais raro do que voc�s podem imaginar ...
", e quis voltar a ter-me ali, debaixo da �gua que corria...
Mas a vida � feita de hist�rias, as pessoas precisam de hist�rias para se sentirem vivas, e eu j� poderia viver daquela por algum tempo, uns meses talvez...
E ele a dizer-me "�s linda, julguei que gostava dela e afinal n�o, �s lixada, acabas de me estragar a vida e eu estou-te t�o agradecido, mas t�o agradecido
... ", e eu, furiosa pela alus�o, a empurr�-lo do duche e da minha vida:
- Tenho de me ir embora, n�o percebes? Agora, chega! O meu filho � mais importante do que tu, desculpa l�...

* * *

Fui buscar o Afonso ao col�gio sem ter bra�os nem pernas, a garganta estrangulada, o suor a escorrer, uma batida t�o forte no cora��o que receei que ele
a ouvisse.
- Ol�, meu querido, que susto, anh? Como � que foi? Foi a jogar � bola?
E ria, apesar de tudo ria sem parar.
As m�os tremiam-me ainda, todo o gozo estava ainda ali, intacto, a comprometer-me.
Ele olhava-me espantado, muito espantado, "De que � que a m�e se est� a rir, pode-me dizer?"
E amuado, nos seus nove anos cheios de raz�o:
- Acha gra�a a eu estar assim? Com esta ferida?
Arrega�ou as cal�as at� o joelho, mostrou-me o golpe que eu ainda n�o vira, era grande e fundo, inofensivo, e eu ria, ria num esgar desenquadrado que magoava
a crian�a e me desvirtuava aos seus olhos pensando que era duro, muito duro viver com pessoas t�o pequenas que n�o nos podiam perdoar.

* * *

Filhos.
O jantar da Iga tinha sido quase todo a falar deles.
Havia um Jos� Maria, junto com uma Lu�sa h� menos de seis meses, a transferir a paternidade de um filho perdido num div�rcio para os filhos da sua nova mulher.
As coisas que ele dissera.
O que eu me rira com o sistema que inventara para que as crian�as n�o chamassem a m�e mais de seis vezes por dia, distribuindo cart�es a cada uma, e do estratagema
da mais nova que os poupava � tarde para depois, uma vez deitada, chamar a m�e seis vezes seguidas durante o filme da noite.
Fora depois destes pequenos prosaicos que a conversa resvalara para assuntos inc�modos, como a desordem dos mi�dos, espelho da nossa, ou o gosto pelo feio, pelos
brinquedos-monstros-armados em vez dos pin�quios, grilos e sininhos da nossa inf�ncia, ou pelos v�deoclips com cantores vestidos de templ�rios, com cruzes ao pesco�o
e dentes escorb�ticos, em vez da Julie Andrews a cantar "Just a spoon full of sugar helps the medicine go down ... "
Aquilo era s�rio, e era grave, quase t�o grave como um poente que um dia me apanhara desprevenida e me deixara de rastos.
- Por que � que eles agora gostar�o do feio? - perguntava eu, como se o belo tivesse que ser s� a harmonia e logo por sorte a minha.
- Porque � o feio que eles testemunham em n�s, n�o percebes? Nas nossas discuss�es com maridos e ex-maridos, no nosso exemplo a contrastar com os nossos serm�es,
na nossa batota toda, no que os us�mos para retalia��o, a troc�-los por fagueiros e camilhas, a negociar as idas ao pai com verbas para livros, rem�dios e cal�ado...
N�o t�nhamos, de facto, o direito de lhes roubar a inf�ncia s� porque and�vamos nervosos e perdidos.
N�o t�nhamos? E alternativa, t�nhamos?
E o Z� Maria, e a Lu�sa, e eu, e a Iga, todos de olhar perdido a duvidarmos da nossa responsabilidade, sem querermos confessar a nossa impot�ncia para lhes ensinar
o belo, a nossa impossibilidade, melhor dizendo, para lhes transmitir qualquer esp�cie de espiritualidade ou de maravilhoso ou de fant�stico ou de esperan�a ou de
verdade.
- Mas tu, por exemplo, �s �ptima m�e... - dizia-me a Iga.
�ptima m�e? - estranhava eu. - �ptima m�e, ou m�e
simplesmente?
E tinha d�vidas, claro.
�s vezes, sentia-me desconfortada com as considera��es demasiado po�ticas que se teciam a respeito das m�es em geral, como se uma m�e n�o fosse uma
transgressora como outra qualquer, e, sobretudo, como se esse estatuto tantas vezes involunt�rio bastasse para nos absolver de todas as faltas e quase santificar.
Definitivamente, uma m�e n�o � a desesperada da enfermaria seis que expulsa aos berros uma massa ensanguentada - essa ainda n�o � m�e, mas candidato
-, nem t�o pouco a indigitada que vigia o sono, d� o peito a beber, muda as fraldas do rec�m-nascido incontinente: qualquer ama � capaz de fazer isso, por afecto
ou por dinheiro.
Uma m�e �, quanto muito, para al�m da sua condi��o de hospedeira acidental, programada, imposta, resignada, relutante ou babada de um futuro ser
pensante, algu�m com coragem suficiente para investir a fundo perdido em desconhecidos.
Desconhecidos, sim: o que s�o os filhos sen�o desconhecidos, que podem um dia vir a negar-nos, bater-nos, esquecer-nos, roubar-nos, ou ainda, na melhor
das hip�teses, amortalhar-nos em vida juntamente com outras m�mias?
E vivia com aquela d�vida.
Seria que, como m�e, eu tentava corresponder a esse modelo de generosidade e desinteresse por verdadeiro amor, ou apenas para tentar merecer o tal estatuto
inimput�vel que se concedia indiscriminadamente a todas as m�es do Mundo?
N�o agiria eu, na maior parte das vezes, por sujei��o a comportamentos morais institu�dos e leg�timo pavor da desclassifica��o social?
Sim: o que seria dos filhos, sem a censura do Mundo?
N�o, n�o era isso: no fundo, no que eu n�o acreditava era que houvesse, que alguma vez pudesse existir uma prova material que distinguisse a boa m�e da geratriz
briosa, t�cnica ou galin�cea, ou seja algo que nos conseguisse demonstrar, preto no branco, se uma m�e, quando triunfa, o consegue por amor, por orgulho ou por bamb�rrio.
- M�e. M�e! � m�e, n�o me ouve?
A verdade � que fossem as m�es as mais generosas, abnegadas e altru�stas personagens desta vida ou as mais d�spotas, perversas e castrantes criaturas do Universo,
o Mundo conceder-lhes-ia sempre um benef�cio de d�vida ao abrigo do qual elas poderiam cometer os crimes mais hediondos.
- Ou�o, meu querido, ou�o-te sempre...
Mas, n�o importava.
Desde que fossemos sabendo que o exerc�cio da maternidade come�ava s� depois daqueles nove meses de enjoo e l�grima f�cil e n�o se restringia ao acto de dar �
luz naquela "hora pequenina", mas at� � morte de um filho, era poss�vel que, um dia, aprend�ssemos a controlar melhor o nosso instinto de lobas para podermos merecer,
ent�o, talvez, todas essas qualidades hiperb�licas que os mi�dos nos dedicam em verso ou em prosa em cart�es com la�os e cora��es comprados em cima da hora nos centros
comerciais, e que, por vezes, s� servem para embara�ar as mais honestas.
- Ent�o, fomos n�s? - perguntava o Z� Maria, aflito, como se tivesse pensado nisso pela primeira vez e j� n�o fosse a tempo de reparar a distrac��o. - Ser� mesmo
por nossa causa que eles est�o assim?
- A culpa � do s�culo - garantia a Iga. - Neste s�culo passou-se tanta coisa que n�o nos foi poss�vel digerir. Para nos adaptarmos, tivemos de os lesar a eles...
E eu a concordar, angustiada:
- E tudo isto que agora lhes reprovamos e tentamos inverter sem sucesso, esta droga da televis�o, dos CD, dos jogos electr�nicos e dos computadores, tudo isso
fomos n�s que invent�mos para que os mi�dos nos deixassem dormir pelo menos ao s�bado!
E de repente o meu filho ali, a fazer beicinho:
- A m�e n�o ligou nada � minha ferida...
E eu a lembrar-me do Vasco a encostar � berma e da empregada da secretaria a falar ao mesmo tempo, e da minha sobrinha a perguntar, de certeza, no dia seguinte,
"E agora? j� me pode contar do seu namorado?"
E eu a encostar outra vez num s�tio est�pido, com os carros a apitarem novamente atr�s de mim, zangados, pensando que havia poucos desastres, que afinal havia
muito poucos desastres e em como seria poss�vel que as pessoas n�o endoidecessem todas ao volante ou chocassem de frente umas com as outras, e na nossa inconsci�ncia
em conduzir no meio de tanta gente desesperada ou distra�da, no meio de tanta gente em suspens�o como eu naquele momento que poderia matar o primeiro cego que encontrasse
por causa de meia d�zia de viagens num tapete de kilim.
- Meu querido. A tua ferida � uma coisa important�ssima. A m�e est�-se a rir porque n�o � grave e sabe que �s corajoso! Vamos lanchar para eu te poder dar
todos os bolos da pastelaria. Quantos queres? Dez? Doze? A m�e esqueceu-se de trazer a carteira, mas vai roub�-los para ti, queres? Vai ser uma aventura! Tu
ficas a vigiar se h� algum empregado a olhar, e a m�e rouba, num instante, seis bolas de Berlim para ti e seis palmiers-recheados para a mana!
E sedutora:
- Queres, meu querido?
E o meu filho a ceder, enfim, no fundo agradecido por eu n�o me parecer como as m�es dos seus amigos que se levantavam �s cinco da manh� para lhes refogar as
marmitas e lhes perguntavam � tarde "lanchastes, filho?"
Dessas. Que bordam toalhas enquanto os maridos se cosem com outras, com a casa num brinco e todo o corpo, incluindo o pouco que eles beijam na cama, a
cheirar a lix�via, e o Vasco a desaparecer do horizonte como que por encanto, sem consist�ncia ainda para entrar na minha vida, sem contextura para rivalizar com
o meu filho, e eu a convencer-me, e eu a estranhar, quem � o Vasco, n�o conhe�o nenhum Vasco, n�o existe Vasco nenhum, afinal.

* * *

- Tia! Agora j� me pode contar do seu namorado?
- Conta-me tu do teu: ouvi dizer que est� doente...
- Tem uns caro�os no pesco�o e ningu�m sabe o que �.
Mandaram-no repetir as an�lises. Tia ... ? Est�-me a ouvir, tia?
Eu estar, estava. Mas n�o tinha cora��o para aquilo e fingi que o telefone se desligara.
Quando a mi�da voltou a falar e n�o atendi, deixou-me o seguinte recado no gravador:

"Tia. Percebi perfeitamente que desligou e que por esta altura j� deve estar com remorsos. Mas compreendo-a t�o bem que n�o me zango consigo. Adoro-a!"

V� l�, a minha sobrinha desculpava-me.
Ainda bem, porque havia alturas em que nem os problemas dos mais chegados conseguiam seduzir a minha generosidade.
Solucei at� os meus filhos me perguntarem se eu me tinha zangado com o Nuno.
- Nuno? Que Nuno? - perguntei, esquecida.
E foi s� nessa altura que me lembrei que tinha um namorado relativamente est�vel que deveria chegar nessa noite para jantar.
Fui despintar-me rapidamente, e, quando o telefone tocou, no fim do meu dia, apanhou-me desfeita.
Era o Nuno, claro, a querer combinar as coisas, mas eu n�o era capaz de falar mais nem de trair ningu�m.
Antes n�o lhe mentira porque nem sequer me lembrara dele, mas a partir dali, sim, estaria a faz�-lo.
E falei tudo muito explicadamente porque j� era tarde, conhecia o temperamento dos homens desde o princ�pio dos tempos e, sobretudo n�o tinha f�lego para nenhuma
r�plica.
Era preciso que o discurso fosse suficiente e inapel�vel:
- Ouve: tenho uma coisa para te dizer. Conheci uma pessoa que me impressionou. N�o sei o que �, nem me interessa, mas h� qualquer coisa. Aguenta-te. Voc�s
v�o para a tropa para qu�? � que entre isto e andar a mentir-te achei prefer�vel dizer-te. E n�o me perguntes se eu ainda gosto de ti e essas perguntas tipo sim-ou-n�o,
porque as mulheres n�o funcionam assim. Digo-te j� que n�o sei, e nem sei se vou saber t�o cedo. Gosto de ti porque foste meu, e gosto de ti porque poder�s voltar
a s�-lo um dia, se quiseres ou achares que vale a pena. Agora n�o gosto tanto, porque como penso noutra pessoa n�o tenho consci�ncia de mais nada.
N�o o deixava falar de prop�sito, e fugia para a frente, apavorada.
O drama era dele, mas o cansa�o era meu e naquela altura valiam o mesmo.
- Isto dura h� tr�s dias. N�o comeces j� a perguntar-te se j� se passava h� mais tempo, nas tuas costas. Aconteceu h� tr�s dias, compreendes? N�o estavas c�,
estavas fora. Desculpa-me, se puderes...
O drama era dele?
Talvez que esta nova ci�ncia da Matem�tica Difusa, que ensaia novas valora��es para as coisas at� agora n�o mensur�veis, como o amor ou a dor, me possa um dia
esclarecer sobre o que � que custa mais: deixar ou ser deixado.
Ser deixado custa mais no momento, mas deixar custa o resto da vida e talvez seja isso o envelhecimento.
Na verdade, se a idade das pessoas se medisse pelo n�mero de abandonos �s casas, �s coisas, �s pessoas e aos sonhos eu talvez j� pudesse ser centen�ria.
O telefone voltou a tocar, enquanto eu desafiava o espelho para ver se me seria poss�vel rasgar um sorriso alegre enquanto estava com a alma num frangalho.
E era poss�vel, santo Deus!
Eu podia rir-me, fazer brilhar os olhos, afectar tranquilidade em toda a minha express�o, enquanto recolhia ao quarto, nessa noite, a desejar que Deus, ou o meu
c�rebro, ou ambos, n�o me retivessem l�cida depois dos sessenta.
Mas n�o era o Nuno, era o Vasco, e a enxaqueca latejava.
- � chato falar a esta hora?
- � - aproveitei, baixando o tom. - Mandei o Afonso para a cama e agora n�o d� muito jeito...
Claro que as crian�as dormiam as duas a sono solto e que o Vasco n�o poderia suspeitar que aquela f�mea de h� poucas horas era a velha senhora que, antes de morrer
uma vez mais, ainda arranjaria coragem para preparar novo penso para colar no joelho do "neto" sem o acordar.

* * *

Est�vamos todos em casa da Mafalda, no campo, e eu babava-me de gozo a olhar para as minhas amigas.
A Mafalda com toda aquela leveza imoral, velha e nova, antiga e moderna, eterna, a assumir a sua casta como nunca vira a ningu�m desde a Revolu��o, de vison
por cima da camisa de noite, redentora.
E a Pilar, exprimindo-se naquele discurso articulado que era t�o bonito como um quadro ou uma paisagem, um quadro imensamente belo, destes cheios de pormenores
subtis para se admirarem, mas que levam tempo a encontrar-se, sustentando a uma Iga queixosa:
- Essa entrega toda que tu fazes aos homens ainda n�o � amor! Amor � outra coisa muito diferente! Isso significa apenas que queres muito ser amada, isso n�o
� amor!
E apaixonada, como se estivesse zangada, quase hist�rica E com
as m�os a tremer:
- Ali�s, quando uma mulher encontra o homem da sua vida ela j� ama h� que tempos! E ama mais e com mais ardor por que o seu d�fice � antigo! E � capaz
de amar qualquer coisa - uma casa, um vestido, um homem - porque precisa de, melhor ou pior, ir debelando o seu cr�dito!
E comovida:
- Sabes quem me ensinou a amar? Saber�s por acaso quem me ensinou a amar? N�o foi o Manuel nem o Jo�o, foi o meu filho Henrique que tem seis anos e anda na
primeira classe!
E prosseguindo, exaltada:
- Al�m disso um homem n�o se escolhe por ser inteligente, menina, e tu n�o podes profanar as hierarquias!
- Hierarquias? - perguntava a Iga, perdida. - N�o sei de que � est�s a falar...
E a Mafalda a ouvir do corredor e a abrir a porta, sol�cita, para lhe recitar a cartilha:
- Primeiros os santos, depois os her�is...
Mas a Pilar obstinada, a levar aquilo a s�rio:
- Voc�s n�o podem esperar tudo do amor, cara�as!
O amor n�o d� o que a pessoa n�o tem!
E incr�dula:
- Ser� que nunca vais perceber isso?
E ela ainda, pujante, solar e apaixonada a desistir, estafada:
- Sabes o que te digo? Sabes o que te digo? Eu, agora, de h� uns tempos a esta parte, s� discuto quando n�o tenho raz�o!
E a Mafalda a rend�-la para chocar a Iga, de prop�sito:
- E fica a saber que raramente escolhemos, menina! Na maior parte das vezes, o amor n�o � mais do que fogo nem os homens mais do que lenha: mata, ou capim, arde
tudo o que estiver ao lado!
E a Iga a esconder a cara, derrotada, traduzindo toda a sua incapacidade de se justificar, e a Pilar a agarr�-la mesmo assim e a suster-lhe os solu�os para lhe
dizer:
- Adoro-te, Iga, adoro-te, ainda bem que choras. Caramba: h�
quanto tempo n�o choravas tu?
E o Eduardo e a Isabel, �nico casal presente, defronte da lareira a olhar o fogo como se vissem televis�o, embrutecidos, fartos da vibra��o do mulherio,
e o mesmo Eduardo a levantar os olhos ao c�u para prevenir a mulher:
- Sabes? Este desassossego todo est�-me a cansar e eu vou-me deitar...
E a Isabel, a leste, exclu�da daquelas cenas apenas por ser casada e ter todas as vantagens e todas as perdas decorrentes, a levantar-se para atear o fogo
da lareira para que ela n�o se extinguisse antes de admitir a impress�o que as mulheres divorciadas, exibindo todo aquele luxo de disponibilidade para o novo e o
imprevisto, lhe causavam, e a repisar, azeda:
- Largam os maridos porque pensam que vai ser melhor, n�o �? Agora n�o se queixem, bolas! Foram voc�s que quiseram, n�o foram?
E a Mafalda a cair sobre ela, demolidora:
- Ouve, menina: o casamento n�o � ir � igreja trocarmo-nos por eles e sair de l� contentes!
E depois a Iga no quarto, e a Pilar no mesmo, com duas camisas de noite t�o brancas como as colchas da cama, a lembrarem as g�meas da Enid Blyton no Col�gio de
Santa Clara, absolutamente virgens com aquela idade, absolutamente iguais apesar de uma ser morena e a outra n�o, irresist�veis para qualquer homem naquele momento
mas sem a presen�a de um �nico, esbanjando para ningu�m toda a sua feminilidade:
- A mim n�o me interessa, Pilar! N�o me interessa o Mundo, nem a cultura, nem a carreira, nem as paix�es, nem nada, percebes? O que me interessa � voltar atr�s,
todos os dias dar um pequeno passo para voltar atr�s, com uma cautela infinita para n�o me enganar nem trope�ar, todos os dias dar um pequeno passo atr�s at� regressar
� barriga da minha m�e que foi o �nico s�tio - o �nico s�tio, entendes? - o �nico s�tio onde fui feliz!
E a Pilar a sorrir com a mesma idade aparente, mas infinitamente mais velha e cheia de pregas na alma, a perceb�-la e a proteg�-la ao mesmo tempo:
- Nada disso � bem como tu dizes. Mas eu percebo que tu est�s nervosa e esgotada e a compreens�o das coisas n�o interessa muito nestas alturas. O que tu querias
era chorar e �s vezes isso s� se consegue � custa de muita asneira, n�o �?
E a Iga grata � Pilar, t�o grata por ela n�o se lembrar de rever as palavras e os significados como as mestras de prov�ncia, e fazer aquilo que s� alguns sabem
fazer, que � ler os livros ao contr�rio e procurar a verdade por detr�s das coisas de grande efeito que se escrevem e se dizem, e desmontar a forma como a mentira
se alojou no exerc�cio di�rio da fala e da vida, por vezes oposto a tudo o que realmente se sente.
- Obrigada, desculpa, olha: se calhar, aproveitei isto para chorar a morte do meu pai, admira-te!
E insistindo, depois de um pequeno solu�o que lhe devolvia a inf�ncia:
- Mas apetecia-me provar � Isabel que sou mais feliz do que ela que tem um homem ao lado, percebes? Eu choro, eu sofro, eu luto e arrependo-me de tudo em todos
os dias da minha vida, e ela n�o faz nada disso, mas apesar de tudo eu posso estar mais pacificada do que ela, e viva, e inteira, e completa, e ela tem de perceber
isso e parar de ter pena de n�s para n�o ter pena de si pr�pria porque isso nos magoa, entendes?
E ainda a Pilar, enternecido, a apoi�-la:
- � muito mais pela l�stima que inspiramos do que pelo nosso suposto desamparo que nos sentimos t�o tristes, n�o �?
E a Mafalda ali de novo, a interromper, desdenhosa:
- Os homens s�o pa�ses e a Isabel nunca saiu do bairro onde vive! N�o pode saber isto porque n�o v� mais nada, mas a verdade � que um pouco mais de mundo s�
lhe faria bem...
E reflectindo, absorta:
- Mas n�o h� d�vida de que ela tamb�m tem a sua raz�o...
- Qual? - duvidava a Pilar,
- A partir de certa altura a gente perde o direito de chorar...
E olhando a Iga, com dureza:
- Porque � que deixaste o teu marido?
- Mafalda, est�s doida?
- Porque � que o deixaste?
- Tu sabes...
- N�o, n�o sei. Ele batia-te?
- N�o, Mafalda, n�o batia...
- Tinha outras?
- N�o, n�o tinha outras, Mafalda.
- Ent�o bebia, era isso?
- Mafalda: queres parar com isso?
- Responde!
- Nem sequer bebia �lcool!
- O que � que ele te fazia, ent�o?
- Fazia, como?
- Em que � que ele te chateava, porra?!
- Sei l�. Deixava o ch�o da casa de banho encharcado, por exemplo...
- E depois?
- E depois eu n�o gostava, achava aquilo humilhante!
- E o que � que lhe dizias, exactamente, nessas alturas?
- � Mafalda, n�o me tortures!
- O que � que lhe dizias? Faz um esfor�o para te lembrares, que � importante!
- Dizia: Jo�o, voltaste a alagar o ch�o!
- E o que � que ele te respondia?
- Respondia: custava-te muito apanhar a �gua?
- A� tens!
- A� tens, o qu�?
- Tudo! - gritava a Mafalda, enervada. E insistindo: D� outro exemplo!
- Outro exemplo, como?
- Outro exemplo do teu desencontro com ele!
- N�o sei. A nossa comunica��o era estranh�ssima...
- Estranh�ssima, como?
- Eu dizia-lhe: � Jo�o, eu j� te pedi tantas vezes que n�o atirasses a roupa suja para o ch�o..!
- E ele, o que � que te respondia?
- Respondia: E tu? N�o chegaste ontem atrasada a casa?
- Voil�!
- Voil�, o qu�?
- Na maior parte das vezes n�o � o amor que falha...
- � o qu�, ent�o?
- � o sistema nervoso!
E a Pilar gorada, a salvar aquilo:
- Mas tu tamb�m tens que perceber, mas tu tamb�m tens que perceber...
E a Iga alarmada:
- O qu�, agora?
- Que a paix�o � emo��o e que o amor � sentimento, e que, ao princ�pio, toda a gente faz a mesma confus�o!
- Ent�o... - digeria ela, insegura. - Ent�o o que � que interessa classificar as coisas se no fim se mistura tudo e ningu�m d� pela diferen�a?
E a Isabel a ouvir tudo isto antes de recolher ao quarto, silenciosa, e a fechar a porta imediatamente para que n�o ouv�ssemos os roncos do marido porque a met�fora
era �bvia demais e a humilhava.
Uma Isabel a formular mentalmente, para nos dar jeito:
- Ganharam. Voc�s sofrem mais, mas tamb�m se divertem e se calhar crescem mais depressa. Eu confesso que trocaria de boa-vontade a minha comodidade pelo vosso
sofrimento e pela vossa possibilidade de ainda poder esperar tudo da vida, se n�o fosse o medo de lutar sozinha...
E eu, eu a varrer a lareira e a arrumar os tarolos, a olhar para os cinzeiros que transbordavam e a verificar que, na vida, mesmo entre amigos se fuma o dobro,
e a pensar, uma vez mais a pensar que a solid�o-mesmo, sem homens e sem ningu�m, ainda ia sendo a melhor forma de nos aguentarmos sem fumar e sem morrer.
E foi assim, debru�ado sobre as achas que a Isabel n�o conseguira atear e com a cabe�a j� em brasa, a varrer as �ltimas cascas de castanhas, que eu descobri -
sim, que eu descobri, porque felizmente na vida de quem anda a marrar contra a parede desde que nasceu se descobrem todos os dias coisas novas -, que eu descobri
que precisava dos homens, sim, mas para continuar a viver sozinha.
E a Mafalda a sair da casa de banho para se aliar a mim naquele momento impartilh�vel, a tentar devassar a minha impossibilidade de falar sobre o que se passara,
com a Pilar e a Iga ainda a chorarem no quarto abra�ados uma � outra, porque j� se ouviam tamb�m os solu�os da Pilar, e a Isabel a tentar dormir apesar dos roncos
do Eduardo, e ela, Mafalda, ainda de vison, a chegar-se a mim para me subornar:
- Reparaste no estado de abatimento total em que a Isabel recolheu ao quarto? At� agora, a nossa infelicidade servia-lhe para se contentar com a sua vida, mas
a partir de hoje isso j� n�o lhe vai ser poss�vel, viste?
E eu a rir, para n�o chorar:
- Somos ent�o tr�s mulheres felizes?
- N�o somos - disse ela. - Mas somos mais do que ela e isto tamb�m foi importante para n�s porque acab�mos de o descobrir!
E assumindo toda a sua incoer�ncia de uma forma her�ica:
- E eu c� nem sou como voc�s: eu persigo a paix�o!
E eu em agonia de repente, com uma esganada urg�ncia de lhe perguntar:
- Mas a gente gosta de homens, caramba, n�o gosta?
- Claro que gosta - respondeu ela para me sossegar. S� que gostamos mais de n�s e n�o nos podemos amar a n�s, compreendes?
E eu sempre a querer mergulhar mais fundo, mais fundo, mesmo sem oxig�nio:
- Porque � que ent�o n�o nos podemos amar a n�s?
E a Mafalda a dar-se tempo para pensar, acendendo um cigarro.
Era enternecedora aquela nossa necessidade de nos exprimirmos com correc��o, escolhendo sempre, ao contr�rio da Isabel e da Iga que se perdiam invariavelmente
nos nossos xeques-ao-rei, o substantivo pr�prio, o adjectivo exacto, briosas nas palavras como se fossem a superioridade vis�vel da nossa emancipa��o, e pudessem,
de certa forma, atenuar as barbaridades que troc�vamos:
- N�o nos podemos amar umas �s outras porque nos percebemos demasiado bem.
E como se descobrisse a p�lvora:
- N�s n�o gostamos deles por eles, percebes? Gostamos deles pelo mist�rio que encerram, pelo trabalho inacabado que comportam, pela sua incapacidade de
nos perceberem, pelo repto intelectual que nos garantem at� ao resto da vida!
E rindo-se, maliciosa:
- Uma mulher n�o nos d� isso e tu sabes muito bem!
E eu a desatar a chorar porque era verdade e a verdade, assim descoberta, mesmo que fosse ef�mera, provis�ria ou falaciosa, comovia-me sempre:
- � Mafalda! Nem calculas o peso que me tiras de cima!
- Claro - ria-se ela. - Ou julgavas que a gente n�o ia para a cama umas com as outras s� porque n�o �ramos fufas?
E eu a rir-me, a gaja era lixada, as mulheres eram tramadas e eu nunca na vida poderia am�-las porque elas percebiam as nossas coisas antes mesmo do que
n�s e s� os homens � que tinham, de facto, humildade para se deixarem esventrar.
E a Iga de novo ali, ouvindo tudo, escandalizada:
- � ent�o por isso que voc�s gostam dos homens?
E eu aflita por ela, ressalvando logo:
- N�o fa�as caso, Iga. A gente sabe l� o que � o amor! E a Mafalda lembrando-lhe, escusadamente:
- Duma coisa podes estar certa, menina: todo o amor � interesseiro!
- E o amor a Deus? - perguntava a Iga, incr�dula. O amor a Deus tamb�m � interesseiro?
E a Mafalda logo, antes de mim, precipitando-se:
- Promete-nos a vida eterna, caramba, queres mais interesseiro do que isso?

* * *

Ao deitar-me, quando os seis telem�veis retemperavam cordas nos recarregadores espalhados pelas tomadas da casa inteira, tive, como todos temos, aquele pensamento
sem nenhum valor est�tico ou intelectual, daqueles que servem apenas para nos interromper o transe e despojar-nos das ansiedades do dia:
- Quando chegar a casa vou lavar a despensa, que j� precisa. O Afonso entornou cacau nas prateleiras e aquilo est� que n�o se pode...
E adormeci com a almofada dobrada em duas, porque embora soubesse que dormir t�o alta assim me fazia mal �s costas ainda sentia a factura dos quarenta t�o
longe como dos meus dezoito anos.
E s� muito depois, a meio da noite, ao acordar com uma sede enorme por causa da porcaria do radiador que deixara ligado por distrac��o na temperatura m�xima
e me levantei para ir beber �gua � cozinha, � que ouvi, enfim, as l�grimas que a Isabel s� assim, sem testemunhas, pudera enfim chorar.
E foi ent�o que lhe bati � porta do quarto muito delicadamente para lhe perguntar:
- Isabel? Queres vir � sala fumar um cigarro?
Isto j� �s cinco da manh�, com aquela preocupa��o t�o pouco viril de saber como passam as nossas v�timas, aflita por ela, ouvindo os solu�os do outro lado a calarem-se
por dignidade, e tudo aquilo a lembrar-me que o sofrimento � solit�rio e silencioso e que as testemunhas s� o podem prolongar.
Quem fumou o cigarro fui eu, sozinha, de olhos perdidos nas brasas sobreviventes, a pensar que a vida era extenuante e a perguntar-me admirada porque � que os
outros tamb�m n�o se matavam como eu naquele dia e em todos, ponderando, ao mesmo tempo, na sa�de que poderia haver naquele �ltimo cigarro fumado na maior lucidez.

* * *

Na manh� seguinte, tudo parecia resolvido,
A Mafalda, a Pilar e a Iga acordaram radiosas porque a infelicidade era uma mentira t�o duradoura como a felicidade, o Eduardo e a Isabel pareciam mais pr�ximos
um do outro, tamb�m porque n�s quer�amos que eles parecessem e a Isabel tamb�m devia querer que o pens�ssemos, e eu disfar�ava como elas, cismando naquela fatalidade
que a mim me parecia generalizada e que consistia em precisarmos de nos destruirmos todas as noites para acordarmos inteiros na manh� seguinte.
E cada uma de n�s, isoladamente, vestiu a sua pele outra vez:
- Como � que era, Pilar, aquela frase do Malraux?
E a Pilar, t�o especial, a aplicar para mim o seu franc�s:
Un homme n'est pas ce qu'il coche. Un homme est ce qu'il
fait, car, au fond de nos �mes, nous sommes tous un peu les m�mes.
E toda a gente a lembrar-se do que se passara naquela noite e do que se tinha percebido ao todo, apesar da visita ao desfiladeiro e � barragem, apesar do
requeij�o em bola e das trouxas de ovos, apesar da criada que nos fazia as camas nunca nos dizer bom-dia, apesar do esparguete de tomate e da �ltima canja bebida
em conjunto, apenas esta frase, invocada por mim e proferida pela Pilar em bom franc�s, apenas esta frase ficaria de todo aquele fim-de-semana em que t�nhamos gasto
cerca de quarenta contos por pessoa sem contar com as portagens e que, mesmo assim, custara uma pechincha.

* * *

H� alturas, e estas coisas ningu�m confessa a ningu�m, em que se vai para a cama com um homem a seguir a uma combina��o for�ada e que depois de nos sondarmos
superficialmente chegamos � conclus�o de que n�o sentimos absolutamente nada e que � o vazio que precede esses momentos.
Num esfor�o de civiliza��o e moral, porque a moral nunca foi espont�nea, interrogamo-nos como � que aquilo � poss�vel, como � que aquilo � poss�vel connosco e
porque nos sujeitamos n�s �quilo, pensando que talvez fosse melhor termos ficado em casa a ver televis�o porque a emo��o seria igual sen�o maior no caso da programa��o
nos reservar uma surpresa, e damos connosco a averiguar a raz�o por que fomos ainda assim, mesmo depois de confirmarmos toda aquela gratuitidade humilhante.
J� uma vez me acontecera.
Na dificuldade log�stica de nos encontrarmos em qualquer das casas, um amigo e eu, querendo ambos encontrarmo-nos para nos deitarmos juntos, and�mos semanas e
semanas a protelar o encontro sem consci�ncia nenhuma, pedindo as chaves de apartamentos de amigos e combinando sucessivos locais para as deixarmos - uma vez num
caf�, outra num restaurante, outra ainda no lado esquerdo do andar em perspectiva -, e diversos chaveiros foram, ao longo de semanas, depostos em lugares estrat�gicos
e retirados dias depois, sem que nenhum dos dois, por uma raz�o ou por outra, os levant�ssemos jamais, desmarcando o encontro a todos os pretextos at� ao dia em
que eu arranjei coragem para parar com aquilo:
- V�-se que, no fundo, nenhum de n�s quer muito estar com o outro. Ou seja: quer e n�o quer, mas n�o quer mais do que quer e por isso vamos suspender isto, concordas?
E como esse aben�oara a minha decis�o:
- Ana, � Ana! Pode at� ser um dia qualquer! Basta que um de n�s queira muito e que esse desejo seja t�o sentido que contagie o outro...
Eu ri-me, e ele riu-se tamb�m, e ambos nos sentimos aliviados por n�o precisarmos de provar que n�o se tratava de desamor ou desinteresse, porque na realidade
n�o era isso que sucedia, mas a impossibilidade, pressentida por ambos, de estarmos juntos sem a intimidade necess�ria.
Ir para a cama sem se querer muito, sabe-se cedo, tem aquele sabor de se comer sem se ter fome que nos faz sentir alarves.
A gente despe-se com eles a olhar para n�s sempre a leste do que nos vai na alma, o que representa uma solid�o terr�vel, tira a camisa, tira a saia, tira as meias
e os sapatos, a matutar at� ao �ltimo minuto o que nos levou ali apesar do amor que nos liga a todas as pessoas do Mundo e a eles tamb�m, at� ao momento preciso
em que paramos de pensar e que um animal qualquer nos encarna para viver, ele sim, com todo o direito que os animais que nos habitam t�m de viver e de brincar, a
legitimar assim tudo o que se viver� nesse intervalo.
E, ent�o, torna-se emocionante descobrir como � que eles, com os seus bra�os fortes e cabelos moles e timbres diferentes, quase s� por isso e por terem condi��es
anat�micas para nos invadirem, nos v�o a pouco e pouco amolecendo at� � entrega total para logo a seguir nos devolverem a vacuidade.
Foi nesse esp�rito preciso que fui ter com o Nuno nessa noite, como se lhe devesse uma despedida, com ele desconfiado a pensar que aquele encontro seria absolutamente
decisivo para si j� que o estaria a p�r � prova por compara��o.
E quando, enfim, me rendi aos seus beijos, descobri que tanto se me dava que fosse ele ou o Vasco desde que qualquer deles me fizesse esquecer o outro.
� assim que a gente pensa, muitas vezes, apesar das nossas juras de amor eterno, por raz�es que passam por outros lugares distantes que nem sempre podemos descortinar
e que s� raramente t�m que ver com o que realmente se passa entre duas almas.
Isto, ao mesmo tempo em que o Nuno me dava repetidos beijos no cabelo e eu lhe dizia, convicta, ser�s sempre o homem da minha vida.
Mas o Nuno tinha esse defeito terr�vel que certos homens t�m de n�o perceberem que na cama, s� na cama a gente tem direito a dizer exactamente o que nos vai na
cabe�a, e a ser tudo, e que isso � muito importante porque nos ajuda, fora dela, a sermos pessoas verdadeiramente saud�veis e fi�is.
Mas ele n�o percebia, coitado, e digo coitado por saber que isso o vedava a alguma beleza, e tive ent�o que lhe dar muito mais festas do que o costume, e fingir
que estaria a provoc�-lo para aumentar o seu desejo, e ele acabou por convencer-se em aderir �quilo fechando os olhos e agarrando-me como quem se agarra a si pr�prio
para n�o se atirar duma ponte abaixo.
A cena fora s�rdida, violenta, desonesta, e eu pensava que o mais estranho de tudo era que nunca o Nuno atingira antes um fervor t�o grande, sen�o enquanto estava
a sentir-se tra�do como naquela altura, o que me demonstrava � sociedade que, n�o fosse a infrac��o, haveria com certeza homens e mulheres que morreriam sem grande
conhecimento de si pr�prios o que � data me parecia imperdo�vel.
Comigo foi diferente porque enquanto ele comprovou naquela noite que me amava s� a mim, eu descobri que n�o o amava a ele nem ao Vasco, o que me obrigou a estrear,
por circunst�ncias que tinham contribu�do para aquilo e me transcendiam, mais uma semana de desconfort�vel indignidade pessoal.
O Vasco era novo, com tudo o que prometiam as novas possibilidades, e o Nuno era velho, e conhecido, como a casa onde me podia estender sem sapatos ou
usar um Soutien esbambeado na m�quina sem que nada disso fosse notado ou punido, o que tamb�m me era agrad�vel, sen�o imprescind�vel.
Uma voz qualquer dizia-me que teria de escolher, mas como a minha indiferen�a aumentava a necessidade de ambos por mim, eu dispunha-me a ficar assim at� que o
tempo ou qualquer sinal facultado pela vida me demonstrasse claramente se eles prefeririam a priva��o de minha pessoa � escolha de um s� ou ao abandono dos dois.
N�o pensava em mim, e o que resultou foi que me voltei a vestir com o mesmo vazio em que me despira, deixando o Nuno na ressaca daquele prazer que eu lhe dera
e que nada tivera que ver com empenhamento, nem com amor, nem mesmo com desejo, porque nem sempre o que se sente � claro ou se pode desmontar facilmente.
Estava fria quando passado pouco tempo me meti no carro, e s� n�o me senti perdida no tr�nsito nem com vontade de rir como quando fora buscar o Afonso ao col�gio,
porque toda aquela intensidade n�o resultara de uma descoberta, mas do luto de uma confirma��o.
Quando voltei para casa, me estendi no sof� e liguei a televis�o, o vazio instalava-se para, logo a seguir, me restituir uma paz interior maravilhosa por estar
de novo ali e saborear aquele repouso luxuoso que sentimos quando, apesar de amadas, sabemos que nenhum homem impor� a sua presen�a continuada nas nossas casas,
nas nossas vidas ou junto dos nossos filhos.
Foi nessa altura que me levantei para, completamente alvoro�ada pela liberdade que experimentava naquele momento, ainda sem riscos, informar o meu filho que nos
meados do s�culo XVI Portugal s� tinha milh�o e meio de habitantes, e depois, com muito mais entusiasmo, mas isso j� deveria ser observado � luz de outras filosofias,
entregar-me de alma e cora��o � tarefa de arear as pratas que mobilizava todas as minhas redentoras e primitivas qualidades de castel�.
O Vasco ainda me falou para me convidar para jantar no dia seguinte, e eu aceitei apenas por me parecer esse o passo l�gico de uma equa��o que algu�m haveria
de resolver por mim, dizendo-lhe que tamb�m gostava dele inteiramente convencido de que havia de gostar um dia, apostada naquele investimento a m�dio prazo que se
faz no in�cio de qualquer rela��o.
Deixei as pratas mais brilhantes do que a minha alma e desafiei o meu filho para um gelado na Baixa, que me apetecia mais a mim do que a ele, a pensar que as
coisas que lhes d�vamos, de ternura ou de cuidados, eram ternuras ou cuidados de que n�s precis�vamos, como o casaco de malha que os mand�vamos vestir quando n�s,
e n�o eles, come��vamos a sentir frio.

* * *

Os ci�mes tinham, para mim, dois problemas grav�ssimos: al�m de entrarem em conflito com certas qualidades que me tinham ensinado a admirar - como o respeito
pela liberdade alheia e pela autodetermina��o moral do outro -, eram imposs�veis de controlar nos quadros de inseguran�a ou de depend�ncia afectiva que, por si s�,
desencadeavam.
Era ver os mais s�lidos e l�cidos indiv�duos chegarem ao homic�dio, a negarem pai e m�e, a desconhecerem os filhos ou a desfazerem vidas laboriosamente constru�das
movidos por impulsos incontrol�veis.
A solu��o poderia passar por uma estrat�gia que combatesse o ci�me com o ci�me, se a intelig�ncia alguma vez conseguisse subalternizar os vexames e se esses
jogos n�o acabassem sempre por nos degradar.
Invejava as pessoas que os n�o sentiam, mas n�o as admirava: eram quase sempre conduzidos a circunst�ncias caricatas de irresponsabilidade ou neglig�ncia,
suscept�veis de precipitar, por sua vez, amea�as concretas.
N�o era o caso do Nuno, para quem o ci�me era uma via sem regresso, capaz de destruir a sua vida e de desmembr�-la com muito mais efic�cia do que uma trag�dia
efectiva.
A exist�ncia de um Vasco na minha vida provocava-lhe um abalo t�o forte no ego, no amor-pr�prio, nas convic��es e nos projectos, que de um momento para o
outro se tornou irreconhec�vel como ser racional dotado de bom-senso e guiado por leis morais.
No caso dele, decorria mais da agonia da suspeita do que do golpe da confirma��o.
Bastava-lhe projectar no Vasco uma qualquer qualidade carism�tica suscept�vel de me arrebatar, para me permitir assistir, a toda a hora, ao degradante espect�culo
do seu respeito por mim a transformar-se em desprezo, a ternura em acidez, a paix�o em �dio, sem que isso comprometesse ou desfalcasse, pouco que fosse, o verdadeiro
sentimento que o ligava a mim.
Foi talvez por tudo isto que, nessa noite, o Nuno apareceu em minha casa j� com as crian�as deitadas, e s� me lembro distintamente da tareia que me deu porque,
receando estigmatizar os meus filhos, n�o gritei nem pedi ajuda.
O Afonso ainda acordou para pedir que pus�ssemos a televis�o mais baixo - o estardalha�o que faz�amos devia ser id�ntico ao de qualquer s�rie americana -,
e fic�mos os dois a brincar � est�tuas enquanto o mi�do n�o se retirou, o Nuno com um p� no ar, atrasando o pontap�, e eu a escudar-me entre os cotovelos para que
n�o me atingisse na cara, coisa que j� acontecera momentos antes e que manchara de sangue as almofadas de seda bordadas com p�ssaros e flores que eram a melhor recorda��o
que eu guardava da minha av� enquanto as cosia e me contava, sorrindo, hist�rias de princesas felizes.
- Ah! - dizia o meu filho, espantado. - O Nuno est� c�?
No dia seguinte tinha um farrapo sentado � minha frente no caf� do bairro a implorar-me perd�o sem eu ouvir o que dizia.
Curiosamente pacificada e bem dormida, aproveitava o sil�ncio que me assistia para especular sobre se seria poss�vel existir uma alegria escondida no cora��o
das v�timas. Uma esp�cie de ascendente adquirido. Um poder saboroso sobre o escr�pulo de um carrasco...
Enquanto ele falava e plissava a cara em esgares de s�plica, "Eu adoro-te, fiz aquilo porque te adoro", eu esfor�ava-me por compreender, essencialmente,
o que as minhas pisaduras dificilmente poderiam sublimar.

* * *

Pensava que sofr�amos na pele a disfun��o entre as nossas vidas sobrecarregadas e a fragilidade de m�sculos que nem das agress�es nos defendiam, e que a
do�ura, essa do�ura que durante tantos s�culos fora o nosso maior trunfo para seduzir, converter ou desarmar os homens, seria praticamente imposs�vel de recuperar
em padr�es de vida t�o masculinos.
De facto, era alarmante imaginar em que � que se poderia transformar a mulher se continuasse, por muito mais tempo, a ser obrigada a sair de casa para procurar
p�o e lenha, numa luta varonil que j� fora formalizada pelo uso das cal�as e que n�o se sabia se n�o terminaria, a m�dio prazo, com a perda dos nossos pr�prios caracteres
sexuais, convertendo-os um dia em criaturas musculadas com p�los nos bra�o, timbres graves e bigodes.
Mas havia ainda outro risco impl�cito em toda esta viragem: o do homem, mais lento na adapta��o �s mudan�as por raz�es filos�ficas ou simplesmente orgulhosas,
n�o assimilar a dignidade que se esconde por detr�s da nossa persist�ncia e exigir o regresso da mulher fatal ou da formiguinha, remetendo-nos para um terceiro,
quarto ou quinto g�nero maldito sem direito a ele.
E disse alto ao Nuno, sem me aperceber:
- Para conquistar a nossa integridade, temos ent�o de renunciar ao vosso amor?
A verdade � que j� avan��ramos alguma coisa.
A mulher j� demonstrara que podia produzir o mesmo, se estivesse disposta a abdicar de certas prerrogativas, e o homem j� se ia safando em casa sem ela,
se n�o tivesse que mexer em lix�via.
Pelo que conhecia das mulheres, sabia que a maior parte nem se importaria de renunciar � frente profissional para se encarregar de tarefas fundamentais para
o bem-estar da fam�lia e para o equil�brio do Mundo, desde que o homem chegasse a casa e lhe beijasse os olhos.
Ent�o, sim, talvez pud�ssemos admitir que fiz�ramos falta aos nossos filhos e que o seu sacrif�cio nos destro�ara.
E n�o s�: voltar do trabalho com mais disposi��o para encher de malmequeres a jarra da entrada ou passajar meias sem azedume.
Mas era se o fiz�ssemos de livre vontade e n�o com rev�lveres encostados � fonte.
- Desculpas-me? Desculpas-me o que eu te fiz?
Era um raio de uma subtileza que lhes custava a assimilar, produzira milhares de v�timas de palmo e meio e lavrara rugas prematuras em muitas mulheres da minha
gera��o, mas que valeria a pena.
- Ouve l�: tu n�o me est�s a ouvir! Queres que me humilhe, � isso? Que me ajoelhe aos teus p�s?
N�o eram j� muitas as que lutavam, porque a necessidade de justi�a para algumas mulheres n�o era ainda mais importante do que o corpo dos homens, a protec��o
dos homens, a companhia dos homens.
E era v�-las, tantas vezes, a recuar a meio dos seus percursos de autonomia, como se, sem eles, n�o tivessem for�as para lutar mais.
- Gostas de mim, Ana? � a terceira vez que te pergunto!
A mulher sempre falara do amor, mas eu perguntava-me se todas estas mudan�as n�o nos mobilizariam, neste fim de s�culo, a fazer o balan�o de toda essa indigest�o
e a express�-lo de uma forma nova.
Dantes fal�vamos dos homens, dos nossos sonhos e priva��es; agora, tem�amos esse pacto que t�nhamos feito em nome da nossa integridade ignorando se lhe poder�amos
sobreviver.
Como se, s� agora, descobr�ssemos que a liberta��o n�o era ainda a Liberdade, e como se Ela, uma vez conquistada, fosse absolutamente ingl�ria sem a protec��o
dos homens.
- Est� bem, eu perdoo-te - disse, para o calar. - N�o se fala mais nisso!
- Perdoas-me mesmo, minha querida? - perguntava o Nuno, de olhos molhados, como se uma simples afirmativa lhe resgatasse a ordem interior.
- Perdoo-te, sim, j� disse - sustentei, de �culos escuros por aten��o ao bairro, mesmo sabendo que aquele falso perd�o o tornaria insuport�vel aos meus
olhos.
Seria isso que eu queria?
* * *

N�o, n�o era isso que eu queria, e fora s� a meio de reler o livro que tinha em m�os que o descobrira.
Era um volume pequeno publicado h� mais de vinte anos, cuja autora come�ava logo por arriscar a pele na primeira p�gina dedicando-o "Aos poucos homens que n�o
se deixam amestrar, �s poucas mulheres que n�o se vendem, e aos felizes que n�o t�m valor de mercado, porque s�o demasiado velhos, ou feios, ou doentes".
Nele, a escritora contava a hist�ria ao contr�rio.
Para refor�ar a sua ideia de que "O amor para a mulher significa pretexto para explora��o comercial, e para o homem um �libi impregnado de emo��o para a sua escravatura",
a autora tinha a coragem de contrariar os ventos da contesta��o feminina para chapar no livro alguns comportamentos que at� os mais cegos defensores da mulher n�o
podiam deixar de reconhecer: que muitas de n�s utilizavam os filhos como ref�ns, o mundo profissional como coutada de ca�a, o sexo como recompensa e a F� como �libi.
Mas o que mais a indignava, como ser humano envergonhado do seu g�nero, era o talento que certas mulheres tinham para reduzir o homem a uma m�quina de trabalho
de primeira categoria, manipulando-o sem compaix�o at� ao enfarte.
Dizia ela: "� repugnante ver como os homens, esses sonhadores maravilhosos, traem no seu dia-a-dia tudo aquilo para que nasceram. Como eles renunciam a todas
as suas enormes capacidades e ajustam voluntariamente o seu corpo e o seu esp�rito �s necessidades primitivas das mulheres".
Isto, para n�o falar de certo engenho p�rfido de que muitas se servem para rentabilizar a seu favor os escr�pulos masculinos, e ainda de certa energia perniciosa
que a autora se esquecera de mencionar e com que n�s altern�vamos a nossa suposta do�ura: a viol�ncia.
No homem aparentemente mais f�sica, mais prim�ria, mais impulsiva, mais desesperada e mais arrependida, em n�s mais verbal, urdida, erosiva, castrante e triunfal.
Como eu a deitar-me com o Nuno, nessa mesma noite, inerte como uma morta e imune a todos os beijos.

* * *
Por vezes, a paix�o por um homem n�o traduz mais do que a necessidade imperiosa de se esquecer outro.
O meu entusiasmo pelo Vasco aumentava na raz�o inversa do meu apego ao Nuno, como num elementar sistema de vasos comunicantes.
Fal�vamos constantemente e a toda a hora para os telefones de um e doutro, l�amos os hor�scopos de cada um, deix�vamos recados quentes e inflamados nos gravadores,
jaz�amos na cama sem possibilidades de dormir pensando no outro ao mesmo tempo, confer�amos todos estes sortil�gios no dia seguinte, e tudo isto, talvez, s� porque
a Mafalda um dia me dissera com a sua liberdade contagiosa:
- Nunca, apesar de todas as morais, alguma vez me furtei a conhecer um homem que eu queria ou me intrigava! Nem mesmo quando me dizem que pertence a outra,
porque nesse momento ele me pertence a mim e seria a mim que ele enganava!
Era incr�vel o efeito que as palavras tinham em mim, a forma com que a oralidade dos outros, expressa com convic��o, me conseguia infectar, mas daquela vez
n�o arranjava pal�ativos para me justificar.
O que eu fazia era crime, sim, e que n�o me viessem com o argumento de que os casamentos nunca eram estragados por ningu�m de fora.
Os casamentos poderiam n�o ser, talvez, mas os homens e as mulheres podiam, sim, ser lesados, uma vez que quando os de fora os desafiavam nem sempre se dispunham
a ficar com eles para o resto da vida.
Arriscava-se muita coisa, s� por um calor no peito.
O Vasco adorava-me com convic��o e folclore e todos os dias me trazia presentes bons ou rid�culos: ou comprava no avi�o um perfume em duplicado - um para mim,
outro para a mulher -, ou me oferecia uma caixa de m�sica com uma bailarina em tou-tou esvoa�ante, ou trufas que eu detestava, ou ainda um livro sem subst�ncia nenhuma,
escolhido pelo t�tulo e apenas para se declarar atrav�s dele.
Quando voltava para casa, era certo e sabido que n�o chegava a retir�-los do papel, e que os guardava numa c�moda, assim mesmo.
No fundo, sentia que aquilo n�o ia durar muito e que dificilmente ele poderia vir a conferir se eu usava ou guardava os seus presentes.
Mas espantava-me: como � que se podia gostar de uma pessoa, e, ao mesmo tempo, desconsider�-la a este ponto?
Talvez fosse simples: ao enganarem as outras era como se nos enganassem tamb�m.
�s vezes sa�a daquilo e, nas mesas dos restaurantes que j� me come�avam a fartar, eu olhava o Vasco como se o visse pela primeira vez, pensando que era inteiramente
imposs�vel amar-se um homem desconhecendo-lhe os precedentes.
A inf�ncia faz falta para conhecer muita coisa, sem termos de compara��o n�o � poss�vel avaliar-se os resultados de um percurso, e, no caso dos homens, nunca
se pode apreciar devidamente o amor que nos t�m ignorando por completo o que dedicam �s outras.
Numa noite dessas, instado por mim, ]e ca�ra na arara de me levar fotografias da fam�lia, e eu senti-me subitamente derrotada por aquele peso todo, vergada pela
pose da madame ainda a seduzir o marido e agarrada a ele com medo de que fugisse, e, sobretudo, desencorajada pelo sorriso das crian�as mais o do c�o,
Mais tarde, ao lembrar os retratos, tentava convencer-me de que nada daquilo era verdade, que os sorrisos se abrem muito mais para as c�maras do
que para os maridos de h� vinte anos, que aquele deveria ter sido o �nico dia em que o c�o entrara na sala, que os meninos tinham todo o ar de lhe dar pontap�s e
n�o s� disso, de fazerem concursos de escarretas � janela em direc��o a velhinhas, e a m�e de ficar hist�rica e a espumar da boca sempre que o Pastor entrasse na
sala com as patas enlameados do jardim.
E depois fazia tro�a das cortinas, e dos napperons nos bra�os dos sof�s, e das flores falsas por toda a casa, como se o mau gosto em que ele era
capaz de viver j� me permitisse dispens�-lo, e acabava por me convencer de que eles n�o estavam bem de m�o dada e que aquela sombra indefinida, no canto da fotografia,
tanto poderia ser a m�o dele sobre a dela como o bico da almofada cor-de-p�ssego, e depois agoniava-me comigo mesma e proib�a-o, terminantemente, de alguma vez na
vida me voltar a sujeitar a uma humilha��o daquelas, apesar de ter ficado mais de dez minutos a inspeccionar cada c�pia como se fossem cartas de Tarot, reveladoras
de todo o meu futuro.
Mas era assim, gra�as a estas cenas criadais, que eu descobria que os meus ci�mes eram muito piores do que os do Nuno, afinal, j� que n�o se tratava
de cobi�ar nada de meu, mas de outra, nem de sentir o meu territ�rio invadido, mas de ser eu a invadir o dela, nem do terror da perda do objecto amado, porque ainda
n�o era poss�vel am�-lo tanto como a mulher, e tudo isso mostrava-me o perverso e repulsivo da situa��o em que embarcara.
Mas o mais exasperante de tudo era quando ele se referia � mulher dizendo a minha mulher
- N�o voltes a dizer "a minha mulher" porque isso � saloio, percebes? Ou dizes "uma das minhas mulheres", porque tens duas pelo menos, ou ent�o referes-te
a ela como "a Gi", "a Guidinha", ou "a Margarida", que � rid�culo, mas sempre � melhor, entendes?
E ele despistado, arrependido do lapso que n�o era bem lapso, da mentira que podia ser verdade e da verdade que podia ser injusta, e eu a concluir, infeliz,
que nada daquilo era amor e que mais valia que acabasse tudo ali.
Mas depois olhava para ele e via-o t�o ador�vel e t�o sincero e percebia que aquela situa��o tinha o cond�o de convocar o pior de mim.
- N�o se fala mais nisso, desculpa. Hoje, acordei com mau feitio...
E ele a beijar-me as m�os, e os n�s dos dedos, e cada unha de sua vez, silencioso, e a pedir a conta ao criado num gesto t�o pequenino, e a levantar-se, est�ico,
e a envolver-me as costas para que eu me levantasse sem frio e sem esfor�o, e eu a am�-lo por lhe dever isso, com a certeza absoluta de que ele n�o era capaz de
ser t�o venenoso como eu em nenhuma circunst�ncia, e eu a am�-lo, imagine-se, por compara��o comigo mesma.
E desta vez a Pilar, ali ausente ao p� de n�s:
- Tenho raz�o ou n�o? Devemos estar todos muito doentes porque de outra forma n�o ser�amos capazes de querer tanto o que nos faz sofrer!
Ou ent�o a contrapor, sombria:
- Mas suponho que o homem deve ser o �nico animal ir. racional do planeta, j� que � o �nico dotado da faculdade de fazer mal a si pr�prio...
A Pilar.
Como seria bom emprestar-lhe o Vasco por uns tempos, deix�-la dormir com ele durante um m�s sem risco de o perder ou de a perder a ela, para depois conferirmos
juntas o que haveria ali, naquele homem, na forma como nos olhava, nos beijava e nos despia.
A Pilar n�o servia: compreendia os homens bem de mais.
Dizia-se "Fulano espancou-a", "Fugiu com a secret�rias ou "Viajou com a outra para Fran�a, que era onde costumava levar a mulher", e a Pilar disparava, tremendo:
- Burras! Voc�s s�o burras! Est�-se mesmo a ver que ele � uma pessoa que sofre, que n�o tem a certeza de ser amado e que vive atormentado por isso!
A Pilar n�o servia.
- O Vasco, sinto-me t�o cansada. Chateei-te a cabe�a, n�o chateei?
E o Vasco, esgotado, a esconder a cara entre as m�os e a disfar�ar o cansa�o:
- Chateia! Chateia � vontade se isso te faz bem. Eu n�o me importo...
Mas eu ainda a querer que ele fosse pior do que eu, prementemente, para que daquela situa��o sa�sse eu v�tima, sem consciencializar nada na altura, mas j�
em vias de me arrepender:
- Se achas que eu te chateio...
E ele pela primeira vez impaciente, certamente a comparar-me com a mulher e a pensar "Para que saio eu duma para me meter noutra", e eu irritada
com ele por essa ideia que cruzava unicamente o meu esp�rito, e a vingar-me dela como se fosse dele fechando a porta do carro com a for�a com que gostaria de lhe
bater e largando para o acirrar:
- Que merda de chauffage � esta que s� come�a a aquecer meia hora depois de se ligar?
E ele, j� nervoso:
- Vou levar-te a casa, j� percebi! � isso que queres, n�o �?
E a minha voz a perguntar, mesmo sem raz�o:
- Est� na hora de voltar para a tua, n�o �, meu cobardolas?
E ele a explodir finalmente, abrindo um precedente que
me alarmava e me extasiava ao mesmo tempo, num tom de voz farto e desabrido:
- Precisamente! Transgrediria todos os hor�rios para estar contigo, mas assim, sinceramente, n�o vale a pena!
E a ligar o carro:
- Para qu�?
E eu a dar comigo a pensar que talvez n�o tivesse querido irrit�-lo mas, simplesmente, obrig�-lo a revelar algo que precisava de reconhecer em todos os
homens do Mundo: uma autoridade que lhes vinha unicamente do timbre, mas que, mesmo assim, era capaz de nos conter os excessos.
E agradavelmente assustada pela forma como o vi a acelerar pela cidade na pressa de me deixar, dei-lhe, � despedida, um beijo que o surpreendeu s�
a ele, j� que, meia hora depois, estendida na cama a olhar para a imagem de Cristo que diariamente testemunhava a minha desordem e Se ria dos meus prop�sitos de
emenda, Lhe perguntava, sincera:
- Isto ainda n�o � amor, pois n�o? Mas se a gente n�o tem, a gente tem de inventar, n�o �?
Era tamb�m nesta linguagem grosseira que eu falava com os meus bot�es, mas isso ningu�m saberia. Cristo n�o era delator e, em p�blico, eu esfor�ava-me por falar
com correc��o.

* * *

- Cabra - dizia o Nuno, descobrindo que eu improvisava desculpas para n�o sair com ele. - Ainda andas com o mesmo gajo, n�o andas?
Afinal, n�o eram s� as opini�es proferidas com veem�ncia que me impressionavam, como as da Mafalda ou as da Pilar; tamb�m os mimos com que eles nos brindavam por
vezes provocavam na minha alma verdadeiras ventanias.
Em alturas assim, n�o era a primeira vez, regressava � inf�ncia para me esconder numa �rvore privativa e chorar de medo.
�s vezes, nem eram bem as palavras que feriam, mas o tom em que eram despedidas:
- Puta, n�o passas duma puta!
- Est�s enganado. Eu nunca pe�o dinheiro...
Quando nos gritam, a express�o que nos fazem ou o tom que nos desferem pode ter muito mais import�ncia do que o valor fac�al das coisas que se dizem e causar
mais dor e mais ressentimento do que uma bofetada em pleno rosto.
Sabia-o por mim, que poucas vezes me lembrava do que os outros me diziam e constantemente ilustrava as minhas queixas com explica��es pormenorizadas sobre a forma
desagrad�vel ou antip�tica com que os outros se me dirigiam, n�o fosse esse, essencialmente, o �nus da ofensa.
Todavia, recorrendo �s mulheres-bruxas, as que arrepanham o cabelo e espumam da boca gritando improp�rios aos maridos poderiam n�o ser t�o violentas como a atitude
deles que simulam n�o as escutar e continuam a ler o jornal, imperturb�veis.
Ou do pai que pune os filhos aplicando-lhe os mais severos castigos sem levantar a voz ou perder a compostura.
Ou das m�es que, depois de baterem nas crian�as desalmadamente, lhes come�am a falar com s�bita do�ura porque chegou algu�m de fora.
Ou at� do Nuno que, no fundo, me queria dizer "Eu, a amar-te assim, desta forma desesperada, e tu completamente nas tintas para o meu sofrimento! " e que, por
orgulho ou preconceito, se limitava a insultar-me.
Daquela vez, nem fora bem o palavr�o que me ferira, mas a dor que, apesar de tanto escr�pulo, fora capaz de lhe causar.
E, cobardemente, desliguei o telefone escudada no �libi da ofensa que o calibre do vern�culo comportava.
Limpei as l�grimas e fui arrumar a gaveta dos talheres, para, logo a seguir, depilar as sobrancelhas a pensar que a mulher do Vasco era parecida com a menina
que mas arranjava no cabeleireiro.

* * *

E depois, no meio da nossa p�ssima administra��o das rela��es, h� sempre um ou dois cavalheiros que nos rondam sem nenhuma raz�o muito evidente.
Quando uma mulher n�o � extraordinariamente bela fica com d�vidas, n�o sabe mesmo para qu�, e quando � extraordinariamente bela fica com mais ainda, porque
o sabe bem de mais.
Enfim: sei que fui apresentada a este cavaleiro andante no fim-de-semana no campo, num almo�o em casa de amigos, e que, por in�rcia, o fui deixando arrastar
na minha vida.
N�o h� explica��o para isto.
Quando os homens descobrem que, tal como eles, tamb�m somos capazes de manter estas gavetas secretas, ficam muito desconcertados; n�o compreendem se nos deixamos
erotizar por esses zorros ocasionais, se ser� por armazenagem ou por simples cabritice que os conservamos.
No meu caso n�o era por nenhuma dessas raz�es, mas por algo mais indigente ainda: comoviam-me sempre os afectos dos outros, sobretudo os que me eram dedicados.
Este homem, em particular, n�o me arrebatava.
Era bonito, talvez, mas tratava-me por "a menina" e chamava-se V�tor ao mesmo tempo.
Impingiu-se para subir, depois de me levar � porta, e cravou-me um whisky.
Eu n�o gostava de os receber em casa n�o s� por causa da solid�o das vizinhas, mas sobretudo porque tinha as crian�as a dormir a essas horas e, se fosse pequena,
tamb�m n�o gostaria de acordar a meio da noite para fazer chichi e dar de caras com um desconhecido esparralhado na sala a falar com a minha m�e numa voz estranha.
Comecei por lhe dizer que era tri-divorciada, o que era mentira, que a minha vida era um caos, o que n�o era t�o verdade assim, e que os meus amigos me chamavam
"a vi�va-negra" por causa da minha raiva contra os homens, o que era absolutamente inventado.
Era um quadro falseado, sim, mas absolutamente moral dada a minha incapacidade de formular recusas expl�citas, e eu carregava nas tintas para ver se o desmotivava.
Mas aquilo em lugar de o assustar - todos os homens se apavoram com mulheres enredadas em teias de problemas parecia descompromet�-lo:
- Ent�o, temos mesmo que celebrar, n�o temos? � a mesma gera��o que se encontra e eu tenho tamb�m uma vida complicad�ssima que gostava de lhe contar!
Valha-me Deus.
O homem era, calcule-se, bot�nico, e eu confesso que a �ltima coisa de que me apetecia falar �s duas e meia da manh�, hora a que chegara de fora, era da vida
maravilhosa das plantas.
N�o consegui evit�-lo.
Torturou-me duas horas seguidas com uma conversa absolutamente esquizofr�nica sobre tub�rculos e colmos, e era o meu polimento, o mesmo polimento que tantas situa��es
amb�guas j� me criara no passado, que me retinha ali, a falar com aquele emplastro.
- Voc� n�o est� a ouvir nada do que eu lhe estou a dizer...
Pudera.
Ele acabara de me explicar que os p�ssaros comem o fruto e engolem a semente sem contudo a digerirem, devolvendo-a beneficiada pelos sucos digestivos, e insistia,
dramatizando:
- Com um pouco de sorte, a semente agarra-se ao torr�o onde foi depositada, ou �quele para onde o vento a arrastou, e a nova planta, gra�as ao seu amigo p�ssaro,
pode enfim deitar ra�zes e conquistar o seu lugar ao sol longe da sombra nefasta dos ramos maternos!
Que deleite.
E como esse, ainda por cima, tinha daqueles olhos que se grudam �s pessoas e n�o nos deixam sequer desviar os nossos para os pousar nos quadros, o esfor�o que
eu fazia para conservar os meus no mesmo plano causava-me um sono invenc�vel.
Ouvia-o portanto num estado de modorra hemipl�gica, ou seja, com metade do corpo a dormir e a outra metade acordada apenas o suficiente para lhe poder ir dizendo
"que giro" ou "ah, sim?", mas ele era t�o desatento que n�o se apercebia do meu sono nem da minha fadiga, ou pior, fingia que n�o se apercebia porque o whisky era
velho e a solid�o ego�sta.
- � t�o bom falar com quem nos compreende!... - suspirava ele, grat�ssimo.
Era o tipo de situa��o absolutamente imposs�vel de se passar com uma mulher: sempre que sentimos que ma�amos ou pesamos, detectamo-lo antes do homem.
- Pois � - dizia eu, no limite. - Mas olhe que dormir � quase t�o importante como isso e j� � t�o tarde...
- O que interessam as horas? - chocava-se ele, recostando-se no sof�. - O que interessam as horas se este tempo que aqui passamos juntos nos faz recuperar
muito daquele que perdemos?
Falava evidentemente por ele porque, quanto a mim, come�ava a amaldi�oar aquela silhueta desfocada pelo sono, embora toda a minha express�o aparentasse
o contr�rio e se esfor�asse por transmitir uma imagem cort�s e atenciosa.
- Quer outro whisky?
Sentia-me devassada mas, sempre que ele se calava, via-me na obriga��o de lhe mostrar que acompanhava a conversa e tornava-me pat�tica, absolutamente pat�tica
e com uma n�usea que subia por mim acima e me chegava aos olhos:
- Ainda me lembro de que, no fruto, a semente � dividida em tegumento e am�ndoa, n�o �?
Mas rapidamente estragava tudo, traindo o meu desinteresse:
- Tem gra�a como eu ainda me lembro destas merdas! Quando era pequena fazia tanto esfor�o para n�o as decorar, e, mesmo assim, colaram-se a mim...
E j� cruel:
- Isto e os Caminhos de Ferro de Benguela que, neste momento, devem estar todos intransit�veis!
Partiu-se dos frutos para a pol�tica e desta para os div�rcios de um e doutro, e eu apercebia-me de que, ao mesmo tempo, ele aproveitava para tirar informa��es
a meu respeito com sucessivos "H� quanto tempo vive nesta casa" ou "Esta casa � sua ou do seu marido" e a minha crispa��o aumentava enquanto a minha educa��o me
tolhia os movimentos e a pr�pria fala.
Respondia por s�nteses brev�ssimas e quase enigm�ticas na esperan�a de que ele atingisse que n�o estava disposta a partilhar com ele absolutamente nada da
minha vida privada,
mas ele era t�o desconcertante que assinou a sua senten�a de morte desta forma sexy:
- E s� por curiosidade: quanto � que ganha por m�s?
Fiquei interdita a olhar para ele pensando que nenhuma mulher do mundo seria capaz de uma cavalidade daquelas, e, de t�o furiosa, a �nica coisa que me ocorreu
foi fechar os olhos para o fazer crer que a sua conversa me adormecera profundamente.
Mas quem acabou por ser enrolada fui eu, que passei desse pequeno truque ing�nuo a um adormecimento efectivo, para acordar tr�s horas depois e deparar com ele
a remexer nos meus CD como se estivesse em casa, e a fumar um charuto cujo cheiro nauseabundo n�o escaparia, no dia seguinte, ao faro vigilante dos meus filhos.
Faltava meia hora para acordarem quando o expulsei dali com uma delicadeza j� firme, um ressentimento a trepar por mim acima e todos os ossos do meu corpo a protestarem
contra a infeliz ideia de me ter deixado dormir sentada por cima das pernas, de sapatos cal�ados e com as costas desamparadas de almofadas.
No dia seguinte acordei com uma dor nas costas escarninha e a voz do pr�prio ao telefone, e, � tarde, n�o me consegui livrar de um convite seu para almo�ar, apesar
de toda a criatividade investido na alega��o de compromissos, come�ando por dizer que segunda n�o, e ter�a tamb�m n�o, e quarta que ent�o me era completamente imposs�vel,
mas ele descobriu-me uma brecha que n�o me foi poss�vel declinar porque, por qualquer mecanismo incompreens�vel, perdera entretanto a coragem:
- Sexta? Sexta talvez. Onde?
- Onde a menina quiser.
E foi s� quando ele se fez aparecer � hora combinada, com o ar de quem abre uma excep��o e de que n�o faz parte dos seus h�bitos atravessar a cidade para se encontrar
com algu�m que s� lhe dispensa duas horas miser�veis, que eu lhe declarei guerra por cima de uma feijoada de lebre e debaixo de um contentamento posti�o, aproveitando
uma altura em que ele, dissertando sobre a sua personalidade, mencionara o alter-ego:
- Est�-se a referir � consci�ncia cr�tica, n�o est�? - interrompi.
Ele pestanejou e reagiu com orgulho: - Precisamente.
- Ent�o, era super-ego que voc� queria dizer...
- N�o era.
- Ai isso � que era, desculpe...
- N�o era.
- Est� bem, pronto, n�o era...
Mas ele queria ganhar, precisava de ganhar, e com toda a raz�o, talvez:
- Desculpe: voc� n�o sabe ao que eu me referia...
- N�o sei porqu�, claro que sei, ouvi-o perfeitamente! Ri-me, subindo o tom. E alarmando a tasca inteira: - O que voc� queria dizer era super-ego e eu tenho
absoluta certeza do que lhe estou a dizer! N�o percebo nem de plantas, nem de frutos, nem de troncos, nem de sarmentos ou espiques, mas percebo alguma coisa, note-se,
apenas alguma coisa de psicologia e sei do que estou a falar!
- Sabe?
- Sei.
- Tem a certeza?
- Tenho!
- Como � que pode ter a certeza?
Aquilo era um calv�rio, um verdadeiro calv�rio:
- Porque ainda n�o me esqueci do Freud, infelizmente!
A defesa era confrangedora:
- Espere l�: mas o super-ego n�o pode ser tamb�m aquela esp�cie de duplo onde nos revemos?
Mas eu j� n�o disfar�ava, fervia:
- N�o. Isso � o alter-ego!!!
Finalmente, ele percebeu que o que estava em causa n�o era propriamente a defini��o do termo utilizado, mas a da sua imagem aos meus olhos:
- O que eu n�o percebo � o que significa essa agressividade toda contra mim...
E j� sem hip�teses nenhumas:
- Fiz-lhe algum mal?
No fim daquele almo�o intermin�vel, em que ele tentara desesperadamente resgatar a sua imagem entre o fl� e o descafe�nado, provando-me que era erudito em muitas
outras mat�rias, levantei-me da mesa com uma vontade imensa de tomar banho para ver se me desenvencilhava n�o de fragmentos dele no meu corpo, como costumam ansiar
as violadas, mas dessa menoridade que me perseguia desde sempre para me fazer cair em situa��es que apenas acentuavam a minha solid�o.
- Ent�o, at� sempre! Foi muito agrad�vel...
- Mas, n�o quer repetir o almo�o um destes dias? - perguntou ele, gorado. - Comportei-me de uma maneira que a esfriou, foi?
Como � que eu lhe podia responder honestamente sem o incapacitar para a vida?
- N�o, n�o, pelo contr�rio: este almocinho foi at� muito simp�tico! Mas n�o tive tempo de lhe dizer que tenho um namorado, sabe? E um namorado ciumento
que n�o percebe nem quer perceber estas coisas paralelas que de vez em quando sucedem a todos n�s, compreende?
- Compreendo - disse ele. - Eu tamb�m tenho uma namorada.
Olhei-o interdita, pensando: um homem parvo e ainda por cima partilhado?
Ficou parado a ver-me entrar no carro, cheia de pressa, e s� em casa consegui reconstituir a sua �ltima frase:
- Espere! Trazia aqui um livro para lhe oferecer ...

* * *

Eu renascia nos bra�os do Vasco, pensando que o sexo era mais uma prova insofism�vel do g�nio de Deus, essa coisa de se poder viv�-lo com a mesma expectativa
de sucesso ou insucesso, sem privil�gios de instru��o, intelig�ncia, pl�stica, ber�o ou saldo banc�rio.
Mas precisava de n�o o desbaratar porque o sexo era, de facto, uma d�diva.
Uma d�diva na for�a que tinha para derrubar fronteiras e classes, na autonomia de que gozava para dispensar instrutores, na virtualidade que continha para se
parecer com o amor. - Foi a �nica pervers�o de Deus - garantia a Mafalda. - A �nica: esconder o amor dentro do sexo.
E fora.
Fazem-se exactamente os mesmos gestos, d�o-se exactamente os mesmos beijos a uma pessoa que amemos ou que apenas nos atraia.
� talvez esse mist�rio que o torna t�o inexoravelmente indeclin�vel: o facto de ser igual e diferente para toda a gente, limitado e infinito, sagrado e sacr�lego,
h�mido e doce, suado e bestial, l�cido e insano, extenuante e sempre insuficiente.
� redentor constatar, embora no dia seguinte nos repugne admitir, que fomos capazes de beijar, abra�ar e apertar com devo��o pessoas que nos s�o estranhas, pessoas
que n�o s�o nossas.
E mesmo a mais ardente das entregas, e mesmo a mais crua das palavras, por muito viciosa ou s�rdida que pare�a, tem sempre a sua candura pr�pria, uma raiz infantil,
uma qualquer raz�o que a ser vital nunca pode valer nem mais nem menos do que a raz�o em si.
E, em �ltima an�lise, estaremos sempre credores dos seus poderes terap�uticas, energ�ticos, profil�cticos, alqu�micos.
Tamb�m porque o sexo gera gente de carne e osso, primeiro pequena e depois grande, ou primeiro grande e depois pequena que � outro dos seus mist�rios, mas n�o
o maior: o maior s�o as puls�es, a inspira��o renovada pelo bater do cora��o, a fus�o da alma com o esp�rito e com a intelig�ncia artesanal das festas que se fazem,
o pudor e a liberta��o, os dois ou tr�s esconderijos do corpo que nos permitem encontrar o belo no grotesco, a m�goa na viol�ncia, a ternura na pressa, e adorar
tudo isso da mesma forma cerimoniosa e aos poucos e poucos voraz.
Na cama, tudo o que se quer � gente de carne e osso ao nosso lado, abandonada, desarmada, feliz, esquecida das suas dores e acima de tudo nossa.
Dure o que durar, nossa.
Verdadeira ou falsa, ignorante ou s�bia, mas igualmente capaz e sempre nossa em qualquer dos casos.
E � s� na cama, talvez, que a beleza pode ser irrelevante, a imperfei��o bela, a verve desnecess�ria, a cultura v�, o poder rid�culo.
Na cama, tudo o que se quer � ter ao lado uma pessoa que nos queira.
� poss�vel que no dia, que no momento seguinte todo o mal reapare�a, todo o nosso ego�smo e crueldade e esc�rnio e oportunismo regressem intactos, mas o dia ou
o momento seguinte � t�o longe naquela altura que n�o importa, nada importa, nem mesmo, como nos demonstra o Mundo de antes e de depois da Doen�a, nem mesmo a morte
importa.
E nem o amor consegue cegar tanto!
O sexo � o abandono, a rendi��o, as pazes com o Mundo e com n�s mesmos, a companhia, o perd�o e a desforra sem prop�sito de vingan�a, o paradoxo da posse descarada
ou da prepot�ncia m�xima que nem sempre faz v�timas e �s vezes at� consola.
� t�o grande, e � t�o m�gico, e � t�o prof�cuo, que atrav�s dele aprendemos a amar, a estimar, a ler, a conhecer, a compreender e a perdoar a imperfei��o do Mundo,
a fragilidade das pessoas e sobretudo a nossa, e s� por isso vale o que vale: vale-nos.
E � t�o recente, o sexo.
S� h� pouco saiu dos livros para as salas, dos filmes para as conversas, dos homens para as mulheres, das casas para as ruas, da cama dos outros para a nossa.
� at� compreens�vel que poucos se interessem em decifrar-lhe os enigmas, aprender-lhe os truques, seguir as instru��es dos manuais, ou fazer batota com a ajuda
de afrodis�acos ou arsenais porque o que est� em causa somos n�s, � isso que o sexo tem de m�gico e criador, a nossa capacidade de dar vida a uma massa inerte, a
nossa intrepidez para nos desenrascarmos sozinhos numa barca�a no mar alto, de nos atirarmos de p�ra-quedas pela primeira vez, em cada corpo que passa, em cada cora��o
convalescente, apavorado.
Devia ser morto quem lhe chamara rela��o ou intercourse, devia ser aben�oado quem lhe chamara aventura. N�o se deveria cair no lugar-comum de lhe chamar descoberta
se o lugar-comum n�o fosse, sempre, um achado de evid�ncia inquestion�vel.
� descoberta, sim, porque o sexo � uma estante a convidar-nos a ler, a compreender o ser humano em toda a sua mis�ria e grandeza, em toda a sua sufici�ncia e
depend�ncia, sem contudo se querer nunca violar o mist�rio, sem contudo se querer nunca desvend�-lo completamente, porque � na sua, por assim dizer, opacidade, que
se esconde o segredo do seu perp�tuo aliciante.
E as puls�es s�o simples, afinal: v�m de tudo o que n�o pud�mos, de tudo a que n�o cheg�mos, de tudo o que n�o devemos, de tudo o que nos falta ou a que nos afei�o�mos,
de tudo o que n�o nos deram ou deram a mais ou de nada de especial.
Porque isso varia de pessoa para pessoa e de n�s em n�s, porque, fundamentalmente, � no sexo que est�, que esteve sempre, a �nica escola n�o cabotina da liberdade,
a �nica catequese n�o beata da generosidade, a �nica faculdade n�o te�rica da psicologia, e � atrav�s dele, dele e da t�o reprimida e mais do que nunca perigosa
infidelidade, que todos n�s, queiramos ou n�o, acabamos por nos beijar uns aos outros.
E as chamadas zonas er�genas, que tamb�m se podem chamar teclas ou cordas para fingir que a coisa � mais art�stica do que �, que talvez nos inquietem por de vez
em quando nos recordarem a nossa condi��o de brinquedos - d�s corda ao ursinho e ele bate palmas -, isoladas e estimuladas maquinalmente como quem faz respira��o
boca-a-boca, ou seja, como quem beija para recuperar um afogado, s�o para os desfavorecidos que partem para a cama de manual de instru��es debaixo do bra�o.
Tamb�m o s�o para n�s, claro, j� que todos lhes somos vulner�veis, mas sem uma intelig�ncia a pressenti-las, uma sensibilidade a indic�-las, uma intui��o a descobri-las,
valem, quando muito, o choque el�ctrico provocado por umas m�os molhadas em contacto com um fio descarnado, uma coisa com a mera dimens�o de coisa de que n�o fica
lembran�a nem saudade.
O que me interessa na carne � o esp�rito, mentia a Mansfield.
Na cama a pessoa nunca � s� carne, a pessoa nunca � s� esp�rito.
Nela, cada pessoa gosta de uma coisa diferente, precisa de uma coisa diferente, quer t�mida e desesperadamente uma coisa diferente, de si ou do outro, e quer
sobretudo dissolver todos os pudores para poder descobrir o outro e revelar-se a si mesma.
Quando � falado, comungado, chorado ou rido, pode-se viver do sexo dias, semanas, meses ou anos s� com a simples evoca��o.
E quando se experimenta aquela esp�cie de gratid�o que vem a seguir e que torna duas pessoas eternas na mem�ria de ambas, conv�m at� n�o vandalizar, n�o profanar,
n�o sobrepor com outras pessoas, n�o dar outros beijos logo.
Porque � de certeza aquele o quadro mais belo, o soneto mais perfeito, a �ria mais sublime, o livro mais grato.
Embora seja ainda mais do que um quadro, porque se pode tocar a pele das figuras da tela, mais do que uma �ria, porque se encostarmos a cabe�a com cuidado podemos
escutar distintamente o cora��o dos m�sicos, e at� mais do que um livro porque, n�o tendo letras nem enredo nem estampas, � nele que est�o todas, ou quase todas,
as respostas da vida.
Mas o Vasco pedia-me, delicado, que avaliasse o seu desempenho :
- Foi bom?
E eu respondia s� assim, porque a vida era outra coisa:
- Foi.

* * *

As pessoas bem podem lamentar que os seus actos n�o correspondam a movimentos interiores transcendentais, mas � a ordens menores que quase sempre obedecemos.
Deixara entrar o bot�nico em minha casa, naquela noite intermin�vel, apenas para fugir ao imperativo moral e s� moral de escolher entre o Nuno e o Vasco
- um, imposs�vel por n�o ter futuro, outro, inexistente por n�o ter passado.
O mais certo seria n�o gostar nem dum nem doutro e servir-me do bot�nico para iludir esse vazio.
Mas se, por um lado, me era penosa a ideia de n�o amar ningu�m, por outro sentia al�vio.
No dia seguinte, era at� poss�vel que nada daquilo me beliscasse: j� n�o havia Nuno, j� n�o havia Vasco, j� n�o havia
hormonas nem fantasias porque, na realidade, s� a vida me arrebatava.
Era a esse desafio, o da Vida, a esse jogo de gl�ria apaixonante que eu estava grata realmente.
As pequenas vit�rias impartilh�veis, os sortil�gios que s� a mim me diziam, as coisas que n�o tinham significado na altura e que o adquiriam mais tarde,
a renova��o sistem�tica que os outros me facultavam, o tempo a revelar-me a pouco e pouco, tudo isso era capaz de despertar em mim vibra��es mais intensas do que
o sexo ou do que os homens.
Mas, apesar disso, dava comigo a ligar o n�mero do bot�nico, envergonhada com as mis�rias da minha alma e confessando-o logo:
- Ol�, sou eu. Falei-lhe nem sei bem porqu�...
Sabia, achava que sabia. No fundo, o que eu queria era dizer-lhe: "Eu sei que n�o podes, coitado, que n�o tens possibilidades; mas faz uma pirueta qualquer e
ajuda-me, por favor!
Mas faz uma pirueta qualquer e ajuda-me, por favor! Ajuda-me a sair desta, porque n�o tenho mais ningu�m ... "
Mas s� de ouvir a sua voz a reconhecer a minha, pressurosa, arrependia-me. Afinal, o �nico interesse dele era ter outra mulher.
- Ol�, Ana! Sinceramente, julguei que j� nem se lembrava de mim...
Era verdade, e nem ele nem eu sab�amos quanto.
- N�o era para nada, a s�rio. A situa��o com o meu namorado mant�m-se. Mas como, no outro dia, a seguir ao almo�o, o ouvi dizer que tinha um presente para mim...
N�o estava zangado.
Os homens ou estavam em n�s ou estavam fora e este ainda estava comigo:
- Tinha um livro para si, tinha, e sabe o que era? - perguntou, criando mist�rio.
- O qu�? - interessei-me a medo.
Respondeu apote�tico, como se me satisfizesse um velho sonho:
- Um livro antigo sobre a�ucenas!
- Ah! - fiz eu, at�nita. - Que giro...
E logo ele, entusiasmado:
- Sabia que o ramo de a�ucenas mant�m o seu significado nas cerim�nias nupciais?
N�o, n�o sabia, n�o me interessava, e desejava ardentemente que todo aquele vestibular n�o servisse para, no fim, me brindar com uma alus�o descabida.
- Sim, talvez. Tinha uma vaga ideia...
- Mas n�o fazia ideia de que eu ia pedi-la em casamento nesse dia, pois n�o, Ana?
Fiquei de boca aberta de telefone na m�o, primeiro af�nica e depois indignada:
- Mas, estar� louco por acaso? Voc� nem me conhece
- A� � que a menina se engana - disse. - Conhe�o-a muito melhor do que julga...
Nada me irritava mais do que aquela frase calista.
- N�o conhece nada! - protestei, furiosa. - Se as pessoas fossem capazes de me conhecer assim, t�o depressa, quase que n�o valeria a pena viver! N�o me pode
conhecer e muito menos gostar de mim!
E provando-lhe:
- Eu nem sequer fui simp�tica consigo!
- Est� bem - admitiu ele. - Mas eu gosto de si independentemente do que voc� � ou faz...
Outra mentira, outra impossibilidade absoluta!
- Ent�o � indiferente ser eu ou outra qualquer, percebe?
Tudo aquilo me parecia t�o imbecil que nem sequer chegava a comover-me.
- Oi�a, V�tor: n�o estamos outra vez muito sinf�nicos, para variar. A �ltima coisa que eu faria agora era casar-me. E, al�m disso, se quer que lhe confesse
e se conseguir n�o se ofender, a verdade � que n�o gosto de ningu�m. Nem de si, nem mesmo dos meus namorados...
- Namorados?
Estava no seu direito de estranhar o plural.
- Sim, namorados! N�o lhe contei para n�o o escandalizar, mas neste momento ando �s voltas com duas pessoas ao mesmo tempo...
E abreviando:
- Duma talvez goste, mas atrapalha-me na mesma...
- Nesse caso - interrompeu, orgulhoso -, retiro-me j� e n�o se fala mais nisso...
- Exactamente! - aproveitei. - N�o se fala mais nisso e, quando se deixar de romantismos, telefone-me para irmos ao cinema!
E sem o querer perder, apesar de tudo:
- Quer?

* * *
Acontecera numa tarde vulgar�ssima em que fora ao centro comercial com o meu filho disposta a comprar-lhe umas sapatilhas de basquete, mal vestida e desmazelada,
num daqueles dias em que as mulheres se convencem, talvez por estarem com os filhos, que n�o v�o encontrar ningu�m que conhe�am ou repare nelas.
Estava pois a olhar para a montra da loja concentrada na escolha, com o mi�do a apontar-me as sapatilhas mais caras do escaparate e eu a convenc�-lo de que,
a crescer como estava, n�o era absolutamente imprescind�vel que fossem eternas, quando distingui, pelo vidro da montra, a silhueta do Vasco a deslizar atr�s de mim.
Virei-me imediatamente para acreditar nos meus olhos: estava com a mulher, de bra�o dado!
Passeavam os dois muito calmos, vendo as montras como pe�as de museu, rindo e trocando gra�as, numa atmosfera t�o amiga que me gelou o sangue.
Mas o Afonso queria que eu entrasse na loja naquele instante, puxando-me pelo bra�o, impaciente.
E tinha raz�o: a selec��o j� fora feita da montra e s� faltava provar.
- Venha, m�e, j� sabemos quais s�o! Venha...
- Espera - pedi-lhe, sem pulsa��o. E j� a tremer das pernas: - Espera, que eu estou a ver uma pessoa que j� n�o vejo h� muito tempo...
O Afonso preparava-se para ser malcriado quando lhe apertei o bra�o, severa:
- N�o fa�as fitas, os sapatos n�o fogem! N�o sa�as daqui, que a m�e j� vem...
Corri ent�o direita a eles como um fuso, sem escutar nem os protestos do meu filho nem as premissas da minha alma, e foi s� no fim do corredor que
os alcancei.
J� arfava, ao abord�-los:
- Sabem dizer-me onde fica a loja dos discos?
Queria ver a reac��o dele e a surpresa da patroa, mas nunca por nunca me passara pela cabe�a que ela pudesse ser melhor ao natural.
Foi o Vasco quem primeiro reagiu, ao mesmo tempo l�vido e corajoso:
- Ol�, Ana...
A mulher rodou imediatamente a cabe�a na minha direc��o, para perceber o que se passava, e passou os olhos por mim, desinteressada.
- A�, era voc�? - perguntei ao Vasco, teatral. - Desculpe, n�o reparei. S� os vi de costas...
E justificando-me:
- J� ando aqui h� meia hora �s voltas e n�o consigo dar com o raio da loja! S�o as terceiras pessoas a quem pergunto!
E estendendo-lhe a m�o:
- Est� bom?
A mulher agora j� intu�a qualquer coisa, mas n�o podia provar nada. O Vasco precipitou-se a apresentar-ma da forma que eu lhe ensinara:
- � a Gi...
- E eu sou a Ana - devolvi, cravando os olhos no seu tailleur controverso. E para evitar dar-lhe um beijo: - Isto est� t�o cheio, n�o est�?
Mas algo com que n�o contava ocorreu: o Afonso, farto de esperar por mim, vinha ao meu encontro para me tirar a febre:
- � m�e! E os sapatos? j� se esqueceu?
A deixa comprometia-me, tive de disfar�ar:
- Olha. Fala a estes senhores, que s�o amigos da m�e ...
O Afonso disse ol� e ela sorriu, polida, subitamente enternecida com a presen�a dele:
- Que idade tens?
- Nove.
- J� andas na escola?
Era est�pida, devia ser muito est�pida aquela mulher.
- Bom - abreviei eu, no limite de tudo ficar percept�vel.
- Sabem ent�o dizer-me onde fica a loja?
- Aqui - respondeu o Vasco, vingando-se. - Precisamente aqui...
E, de olhos acesos, apontava-me a loja ali ao lado.
- Obrigada - disse eu, com um sorriso ict�rico. - Despisto-me sempre que ando nestes corredores...
E apressando as despedidas: - Adeus, at� qualquer dia!
Mas, para meu azar, o meu filho voltava a reincidir na presen�a dela:
- Loja? Que loja? A m�e andava a procura de uma loja e deixou-me ali sozinho? N�o disse que tinha visto um amigo?
- Cala-te - rosnei, j� depois de lhes ter virado as costas. N�o podes compreender tudo o que se passa � tua volta!
E furibunda:
- Vamos l� comprar os teus sapatos!
De regresso a casa, intoxicada pelo cheiro pestilento de uns sapatos podres trocados ali mesmo e atirados para a trasc�ra do carro, s� pensava na
s�ntese que o Vasco faria para me justificar aos olhos da mulher.
De todas, intu� esta:
- � advogada. Trabalhou l� no escrit�rio durante uns tempos. � meio desmiolada...
E a madame a pontificar, implac�vel:
- � trapalhona e arranja-se mal.
Esmagada pela impossibilidade do Vasco, cheguei a casa e chorei durante algum tempo, trancada no quarto.
O Afonso estranhava o meu nervosismo desde a cena da sapataria. Muito delicadamente, o que n�o era seu h�bito, bateu � porta e perguntou baixinho:
- O que � que a m�e tem?
- Nada - solu�ava eu, dram�tica. - A m�e n�o tem nada, a m�e n�o tem nada de nada!
Mas o mi�do percebia, t�o pequeno, o alcance do trocadilho:
- A m�e tem-me a mim...
Mas eu, est�pida, em vez de me mostrar contente, redobrava o pranto e abafava os solu�os na almofada:
- � meu querido, tu tens uma m�e maluca! Tens a certeza de que n�o queres outra?
- N�o quero! - recusava o mi�do, chocado. - N�o quero outra, quero esta!
E impondo as suas condi��es:
- Quero esta, mas sem estar a chorar!
- Ent�o � imposs�vel - gritei. - Todos n�s nascemos a chorar!
Mas depois suspendi os solu�os, lembrando-me de que n�o tinha o direito de impressionar a crian�a. As mulheres precisam destas cenas como de p�o para
a boca, mas os filhos n�o, os filhos sofrem com elas.
Abri a porta com um ar reabilitado para a vida, peguei nele ao colo com uma guinada nas costas e anunciei-lhe, com uma nova for�a:
- Amanh�, vou dar-te dinheiro para comeres no bar! Est�s farto da cantina, n�o est�s?
E ele riu-se ent�o, desconfiado, como se reconhecesse aquela m�sica:
- Est� outra vez a comprar-me um sorriso?
- Estou - admiti com desplante. - Para que � que serve o dinheiro, sen�o para comprar sorrisos?
- Mas n�o � justo - protestou o mi�do -, eu a si n�o lhe posso comprar nenhum sorriso! A m�e, esta semana, esqueceu-se de me dar a semanada...
E, sem querer, o meu filho lembrava-me: tamb�m os sorrisos que me faziam eram pagos por mim.

* * *

O Vasco procurara-me logo, abismado com o meu topete:
- Que bicho te mordeu? Quiseste conhecer a Gi, foi?
- Sim - respondi, crispada s� de ouvir aquele nome talvez...
Irritou-o o meu ar ausente:
- Mas, se queres conhec�-la, n�o h� problema nenhum: convido-te para jantar um dia destes...
- Ai, sim? - gritei. - E quando � que podia ser?
Resolveu baixar a voz, alarmado pela minha:
Est�s a gritar, Ana. N�o podemos falar civilizadamente?
- Civilizadamente? - formulei, incr�dula. E berrando-lhe, irracional: - Mois�s foi civilizado quando partiu as t�buas da lei? Cristo foi civilizado templo?
Preparava-se para responder como eu merecia, mas n�o lhe dei tempo:
- Quando? - perguntei. - Quando � que podia ser?
Ele olhou-me prudente, eu aproveitei:
- O que lhe disseste a meu respeito?
- O que querias tu que eu lhe dissesse? Apanhaste-me assim, completamente desprevenido...
- Mas o que � que lhe disseste? - insisti.
- Que eras advogada e tinhas trabalhado em tempos l� no
escrit�rio...
- Tenho cara de advogada? - perguntei, ferida, sem saber porqu�, no mais fundo da minha alma. - N�o podias ter inventado nada mais prestigiante?
- Ana - lembrou ele, baixinho. - Eu tamb�m sou advogado...
Ri-me por reflexo, n�o por estar divertida:
- Que coment�rios � que ela fez?
- Nenhuns - respondeu, puxando pela mem�ria. Perguntou-me de facto quem tu eras, disse-me que n�o se lembrava de nenhuma Ana, e depois...
- E depois o qu�? - ameacei.
Mas aqui foi ele que se riu:
- Disse-me que n�o devias ser uma m�e por a� al�m...
- Uma m�e por a� al�m, foi isso que ela disse? - perguntei, chispando �dio. - A tua mulher � um bocado est�pida, n�o �, Vasco?
E ele safou-se assim:
- Qual delas?
Acontecia-me sempre quando ele chegava para mim, n�o sabia perder:
- Sabes porque � que voc�s, homens, n�o t�m nunca tanto interesse como poderiam ter?
- Porqu�? - perguntou ele, armando-se de coragem para a estocada final. - Diz l� porqu�...
- Porque nos aturam.
E demon�aca:
- Um verdadeiro homem n�o nos atura!

* * *

O Vasco passou a buscar-me para jantar nessa mesma noite, sem rancores.
- Como te arranjas em casa para nunca me faltares? perguntei-lhe, arrependida. - Est�s a ter problemas por causa de mim?
Percebi que sim, pela express�o que fez, mas via-se que n�o queria confessar-mo.
As mulheres eram resistentes, mas os homens eram est�icos, caramba!
Deus, quanto o amava.
Quanto o amava pela sua coragem, pela sua sinceridade, pelo esfor�o que fazia para me conservar apesar do cardo em que me tornara ultimamente - ou talvez s� por
ser homem, quem sabe, e estar ali ao p� de mim...
- Sabes - aproveitou ele -, as mulheres sabem sempre tudo. A Gi deve estar a coleccionar as contas todas para mas fazer pagar ao mesmo tempo...
E procurando-me os olhos, receoso:
- �-te familiar, este tipo de cobran�a?
Claro que sim, em certas coisas �ramos todas iguais; mas
nem morta o confessaria.
- Queres desistir? Ainda est�s a tempo... - desafiei
cobardemente.
Ele declinou a minha "generosidade" de uma forma que
me assustou:
- Eu sei que estou sempre a tempo, n�o precisas de mo
lembrar...
- Ouve, Vasco - disse eu. - Aqui h� tempos, levei uma
sova de um homem...
Vieram-me l�grimas aos olhos, mas n�o sabia se era fita. N�o, n�o era fita: de vez em quando precis�vamos de chorar para que acreditassem em n�s.
- Lembras-te quando te disse que andava com conjuntivite?
O Vasco levantou-se imediatamente, nervoso: - Tens outro homem?
N�o era a minha dor que ele sentia, era a dele. Talvez por isso tive que mentir s� um bocadinho. Exactamente do que ele precisava e nem mais um palavra.
- Tinha. Agora j� n�o tenho. Acabou contigo. Foi por causa de ti...
- Quem � esse gajo? - perguntou ele, transfigurado, esticando os punhos e o pesco�o ao mesmo tempo.
- O meu antigo namorado. Uma coisa arrastada, sem transcend�ncia nenhuma...
- Vou-lhe � cara - disse. - Desfa�o-lhe as trombas em dois tempos, tu n�o me conheces..
E pronto. j� n�o era preciso que o fizesse. j� me tinha provado que o faria. j� me sentia vingada.
- O que ganhas em estar comigo? - perguntei-lhe, quando se preparava para me deixar em casa.
- Aprendo que a infidelidade � imposs�vel, com mulheres como tu ao lado...
A resposta era uma faca de dois gumes, mas n�o me desagradou inteiramente.
- Isso � muito curto. Isso j� tu sabias. Isso tamb�m � verdade com qualquer outro tipo de mulher!
- N�o � - negou perempt�rio. - Eu j� tive outro tipo de mulheres a insinuarem-se...
- Quem? - saltei.
- Gajas - respondeu ele. - Gajas que n�o nos levam a ser verdadeiramente infi�is. Gajas que n�o substituem ningu�m...
Desgostava-me que se referissem assim �s mulheres e reagi por todas elas:
- Por serem feias? Por serem ordin�rias?
Ele suspirou antes de responder:
- N�o, Ana. Por n�o nos fazem sofrer o suficiente. Para se ser infiel, se a nossa mulher n�o sabe, a outra tem de nos fazer sofrer o suficiente...
Fic�mos assim, naquele dia, sem mexer mais dentro de n�s. Despedi-me com um beijo que lhe pedia perd�o por todos os excessos. E tamb�m por n�o me limitar a
ser gaja.
- Amo-te - disse ele.
Mas aquilo soou-me a "Gosto de ti, apesar de tudo" e eu confirmava que amar um homem sem retalia��o n�o era poss�vel, at� porque eles precisavam dela para expiar
as suas culpas.

* * *

� sempre de manh�, depois de acordar e antes de abrir os olhos, que tomo consci�ncia das minhas fragilidades.
Era nessas alturas, em que fa�o um balan�o impiedoso de mim pr�pria, que deveria tomar as grandes resolu��es da minha vida; mas estou sempre ensonada demais
para evoluir e depois de lavar os dentes j� n�o h� nada a fazer: cal�o com os sapatos a personalidade da v�spera e moldo-me sem resist�ncia �quela plasticina parecida
comigo.
Mas sei a que me sabem esses momentos.
� um ang�stia localizada na garganta, de medo do futuro e de completa desprotec��o, e isso talvez se deva � falta objectiva que um homem me faz dentro de casa.
N�o para fazer voz grossa aos outros homens, nem para me dar dinheiro ao fim do m�s; para me proteger fisicamente dessa amea�a que sentem todas as mulheres do
mundo a viverem sozinhas com os seus filhos, e que passa, talvez, pela consci�ncia de uma inferioridade muscular, o medo latente de assaltantes, de guerras, de falta
de sa�de e de cat�strofes.
A mesma afli��o que deveria sentir a mulher do cow-boy, a viver com os dez filhos no rancho da pradaria, ao v�-lo partir para ca�ar e ficando � merc� da vingan�a
dos �ndios, da libido dos forasteiros ou da fome dos lobos.
Era um fantasma que eu afugentava constantemente como se, da� at� ser velha, tivesse tempo de sobra para encontrar um companheiro.
No entanto, ainda n�o me sentia capaz de trocar a paix�o pela paz do amor, e queria estar dispon�vel para a vida, fosse ela boa ou m�, para a surpresa da vida,
para a imensid�o da vida, como se a uni�o a um mesmo homem me ceifasse todas as possibilidades de lhe pertencer.
N�o � a liberdade que � criativa, � a luta - dissera-me um dia uma senhora de setenta anos, casada h� cinquenta anos com o mesmo marido e alegre como um cuco.
Em que � que fic�vamos? O casamento tamb�m podia ser criativo? Sim, talvez, mas tinha ent�o de ser muito infeliz para converter essa dor em cria��o. E os casamentos
nunca nos faziam sentir verdadeiramente infelizes, apenas outras.
Contudo, se por um lado devia alguma coisa do que era ao ego�smo dos homens, por outro as for�as come�avam a faltar-me.
Andava simultaneamente pregui�osa da ideia do Vasco e do futuro arriscado que ele representava, e efectivamente dependente.
Era uma clivagem que me desfazia em mil peda�os e me do�a como um espinho sempre que sa�a de junto dele e a magia se quebrava, tornando-o um estranho na
minha vida e na minha mem�ria.

* * *

- A m�e n�o tem nada para eu arranjar? - perguntava-me o meu filho, num arroubo s�bito pela marcenaria.

Tinha de ser uma coisa velha, que ele pudesse consertar e espatifar ao mesmo tempo.
- Toma a chaves da arrecada��o. Vai l� buscar uma cadeira que l� est�, que era da av�. � a mais estragado de todas. V� se lhe consegues colar a perna. Era �ptimo
se lhe conseguisses colar a perna...
- E empresta-me a sua caixa de ferramentas?
Aquilo ia dar-me um trabalh�o. Quase sempre, as brincadeiras das crian�as implicam trabalho acrescido para os pais.
As delas e as nossas, pensava eu, a arranjar coragem para me separar do livro que tinha nas m�os e lhe possibilitar um entretenimento estimulante.
- Toma. Tem cuidado para n�o martelares nenhum dedo...
A divers�o dele empatou-me o domingo todo.
Primeiro, exigiu-me que o acompanhasse � cave para trazer n�o uma, mas todas as cadeiras que l� tinha.
Eu j� previa o logro da empreitada, mas era obrigada a fingir que acreditava no seu expediente.
Educar um filho passava por tudo isto.
Segundo, deixou-me a sala de pantanas, com fagulhas enterradas na alcatifa, os sof�s sujos de serradora, duas cadeiras mais estragados do que estavam, uma desist�ncia
s�bita agora j� chega, agora quero ir lanchar -, e ainda um golpe na m�o com o serrote ferrugento que me obrigou sucessivamente a trocar de roupa, a levantar dinheiro
da m�quina, a p�r gasolina e a procurar uma farm�cia de servi�o.
Danada pela devassa que representava algu�m arrancar-me � minha solid�o e � minha tristeza - merda, estava eu t�o bem aqui a sofrer -, uma profunda como��o por
aquele dez reis de gente que era simultaneamente a minha testemunha e o meu her�i.
- D� c� um beijo. Sais ao teu pai com essa mania de arranjar as coisas em casa...
Aquele mi�do, qualquer crian�a merece toda a generosidade do Mundo; at� porque quando lhes damos alguma coisa, estamos a dar � crian�a que j� fomos e que morreu
cedo demais.
Todo o amor era interesseiro, a Mafalda tinha raz�o, e eu come�ava a fartar-me dessa desmontagem permanente que fazia de todos os meus gestos, como se constantemente
duvidasse da minha virtude.
Quando finalmente o vi na cama pronto para dormir e ele me pediu para lhe contar uma hist�ria, desanimei:
- Agora j� chega, querido. Estive todo o dia ao teu servi�o, n�o achas que j� chega?
O Afonso n�o achava.
- Conte-me s� uma. Pequenina...
O telefone tocava ao mesmo tempo e era o Vasco, de certeza.
- Tenho de atender o telefone...
Passou-me os bra�os por detr�s da cabe�a e apertou-me contra si, para me reter:
- S� uma, est� bem? Pequenina...
Era completamente imposs�vel resistir �quilo. N�o tinha disponibilidade mental para ele, mas resistir �quilo parecia-me criminoso.
- N�o. Agora vais dormir. Sonha com coisas boas. Sabes que os sonhos se podem escolher?
Era mentira; mas obrig�-lo a inventariar ideias gratas antes de dormir parecia-me, naquela pressa de me ver sozinha, compensador.
Mas, antes de fechar a porta, reparei que o meu filho tinha a m�o ligada estendida na minha direc��o e um sorriso alusivo.
Fechei os olhos: o Afonso queria um beijo na m�o ferida, como se os meus beijos tivessem propriedades cicatrizantes.
E tinham.
Lembrava-me daquela situa��o em pequena, com a minha m�e, e em adulta, com os meus homens. Era uma necessidade que permanecia, muito depois das m�es morrerem.
Aproximei-me dele, como se carregasse uma mochila de pedras.
A irm� j� dormia, e aquele cotomi�o continuava ali, a exigir-me inteira.
Bolas, os meus filhos.
Como continuar a lutar sem os esquecer, a trabalhar sem os negligenciar, a conservar a do�ura desentupindo ralos e mudando pneus, a educ�-los sem transportar para
eles toda a minha revolta, por um lado, e toda a minha necessidade de protec��o,
por outro?
Ningu�m poderia imaginar o esfor�o que eu fazia para lhe dar um beijo naquele momento.
O telefone deixara de tocar, e eu nunca poderia contar a ningu�m que o beijara nessa noite cheia de raiva e ressentimento, amando-o como o amava.
- Boa noite, meu querido.
- Boa noite - disse ele. E informando-me: - N�o vou adormecer j�. Se entretanto lhe apetecer contar-me uma hist�ria, conte-me aquela das tr�s laranjinhas
de ouro, lembra-se? - Lembro-me, filho, lembro-me - despachei, sem a menor inten��o de lhe fazer a vontade.
- N�o feche a porta! - pediu ainda. - Gosto de adormecer a ouvir os barulhos da casa!
- Est� bem, filho, a m�e n�o fecha. Dorme, que a m�e n�o fecha...
Mas j� na sala e de livro em punho, voluptuosa daquele luxo, vi tudo recome�ar como se o dem�nio me tentasse:
- M�e! � m�e! Esqueci-me de lavar os dentes! E tamb�m me esqueci de lhe pedir dinheiro para pagar a excurs�o ao Aqu�rio! E a m�e passou-me as minhas cal�as
verdes?
Para os dentes estava-me nas tintas; para as cal�as tamb�m; para o Aqu�rio era diferente e fui obrigada a levantar-me outra vez para procurar a carteira, que nunca
estava onde pensava.
- Pronto! - explodi. - Agora j� chega! N�o inventes mais pretextos, n�o?
E fechando a porta do quarto j� furiosa, indiferente aos seus protestos t�o ternos, ainda o ouvi dizer:
- � que custa-me tanto separar-me da m�e todas as noites...

* * *

E se agora, pensava eu, por algum passo de magia, tivesse tempo para fazer tudo aquilo que n�o fazia por falta dele?
Realizar as milhares de coisas aparentemente proveitosas que empreenderia se tivesse outra disponibilidade?
Tempo para tratar do corpo, fazer gin�stica ou diagn�stico precoce? Tempo para contar hist�rias aos filhos, passear com eles, ouvir os seus dramas? Tempo para
ler, fazer paci�ncias, escrever cartas? Tempo para passear sem destino, viajar sem pressas, conversar com estranhos? Tempo para ouvir os p�ssaros, escutar o mar,
fruir o sil�ncio? Tempo para a gratid�o, para a inven��o, para a pregui�a?
Seria que tudo isso me restituiria a ordem interior? Me faria mais feliz, mais completa, mais humana? Ou seria que todo esse tempo serviria apenas para confirmar
o meu ego�smo, confrontar-me com a minha pequen�s, reencontrar as minhas incapacidades?
N�o seria o tempo, ou a falta dele, o �libi onde gostava de me perder para nunca me encontrar?
Para que queria eu o tempo? Por que o perseguiria eu? Achar-me-ia mais forte, independente e criativa do que os outros para o enfrentar e desfrutar?
N�o me chegava todo o tempo que havia, o mesmo de toda a gente?
E, se tivesse mais, seria que n�o me faria falta a falta de tempo?
Ou seria que todas essas coisas que eu faria com o tempo n�o eram verdadeiramente essenciais? Ou pelo menos n�o t�o essenciais como aquelas que fazia sem ele?
Mas, se toda essa disponibilidade me trouxesse verdadeira felicidade eu n�o a teria j� alcan�ado? Ou come�aria a ser normal conceber o paradoxo de que a felicidade
me poderia tornar deslocado, perdida, infeliz?
De outra forma, porque raz�o insistia em privilegiar as coisas que me n�o traziam alegria em preju�zo daquelas que me poderiam trazer paz?
Por exemplo: por que � que eu ainda alimentava o que me causava dor?
Sim, at� eu j� compreendera que a hora era breve, o instante �nico, a oportunidade irrepet�vel; mas seria poss�vel que a felicidade fosse uma no��o demasiado abstracta
para mim? Demasiado suspeita? Demasiado indemonstr�vel?
Seria poss�vel que houvesse em mim um qualquer crivo misterioso que, observada a inst�ncia e medida a possibilidade, ditasse � minha intui��o que, apesar de bela,
essa possibilidade me n�o convinha?
Ou seria o conceito de Deus que me tolhia as for�as e desanimava?
Seria poss�vel que eu tivesse dificuldade em ver-me t�o perfeita que me desse vontade de rir essa vers�o misericordiosa e s�bia de mim mesma?
Mas, porque � que o espectro da perfei��o me aterrorizava tanto? Porque seria que, deliberadamente, eu atrasava o passo?
O que haveria de medonho no cumprimento de mim pr�pria? De sinistro na virtude? De mon�tono na sabedoria? De perverso na gra�a?
Porque � que eu n�o conseguia? Porque � que eu n�o conseguia nunca?
Seria por culpa da falta de tempo, ou, pelo contr�rio, seria a essa inesgot�vel desculpa que eu deveria agradecer a possibilidade n�o poder ser mais do
que eu pr�pria?
- M�ezinha..?
- N�o posso acreditar: no fim disto tudo ainda n�o adormeceste?
- Era s� para perguntar uma coisa...
- Diz depressa ou vou-me irritar...
- A m�e amanh� conta-me a hist�ria das tr�s laranjinhas de ouro?
- Vai-te deitar, Afonso...
- Mas diga-me: conta-me?
- Vai para a cama e n�o me chateies!
- Mas conta, m�e?
- Conto, talvez, que chatice! Se tiver tempo!

* * *

A Mafalda telefonara-me um dia, indignada com o meu afastamento.
- Definitivamente, n�o gosto desse homem!
- Porqu�?
- Porque te impede de estar connosco. E ressentida: Eu lembro-me dele! Tinha todo o ar de parvalh�o!...
Enterneciam-me as duas: ela e a Pilar.
- N�o � parvalh�o nenhum. Eu � que n�o tenho tempo para tudo: os filhos, a casa, o trabalho. Como � que eu ainda ia desencantar tempo para voc�s?
- N�o sei nem me interessa - protestava ela. - Os amigos t�m direitos! N�o podem ser chutados sempre que um novo homem aparece!
N�o havia hostilidade; apenas contentamento, inveja s� e muita curiosidade romanesca.
- Arranja um jantar para o conhecermos melhor! Nunca mais o vimos desde aquela noite, no bar. A Pilar est� sempre a falar disso. Acho indecente...
- Nunca! - gritei em p�nico. - S� se fosse doida!
- N�o sejas parva, menina! Tens medo da concorr�ncia?
Que ideia ing�nua. At� me lisonjeava toda aquela libido em suspens�o. Estavam t�o ou mais excitadas do que eu...
- Seja. Esta noite em minha casa, � pegar ou largar. Trazes um doce, e pedes � Pilar que me traga whisky que o meu j� acabou. A In�s faz o lombo. Ela
� �ptima a fazer lombo! E sopa j� tenho, sirvo a que tenho em casa. � de nabi�as, e os homens gostam dessas coisas com cheirinho a porteira...
- E tu, o que � que fazes, minha calona?
- Eu sofro, achas pouco? Eu vou passar o resto da tarde a sofrer! - E defendendo-me: - � que � uma estreia, percebes? A In�s n�o o conhece...
- J� sabe que � casado?
Que inc�moda a realidade.
- N�o, nem precisa de saber. Isto n�o vai durar muito, tenho a certeza. Al�m disso, n�o s�o exemplos que me apete�a dar � minha filha, n�o achas?
- N�o te abespinhes, at� logo! Vou dizer � Pilar!
- Olha - preveni eu. -, vou estar jeans...
- Problema teu - amea�ou ela.
Divertia-me aquela cumplicidade de um homem partilhado por mais mulheres, at� aos limites do poss�vel.
Viviam-no atrav�s de mim, discutiam-no como se fosse delas, punham-se do lado dele e confundiam todo aquele sexo impl�cito com amizade.
As mulheres percebiam isso e n�o se importavam.
Era um jogo perigoso, que nem todas sabiam jogar. Muitas descontrolavam-se a meio, por fome ou solid�o, e passavam os limites. E eu, nessas alturas, depois
da explos�o do ci�me, voltava a dar-me com elas.
Coitadas das mulheres; n�o passavam de um velho inimigo inofensivo.

* * *

O Vasco chegou. Sem timidez nem aparato, chegou simplesmente.
A minha filha olhou-o com curiosidade; j� percebera tudo e, contudo, eu nada lhe contara.
O Afonso, esse, mediu-o com a desconfian�a de quem se mant�m fiel ao pai. Mas n�o era s� isso: era tamb�m o pequeno homem a acordar precocemente, a perfilar-se
na defesa da m�e.
Ainda bem que era assim. Que algu�m velasse por mim, ainda que tivesse metro e meio.
Apesar de tudo, muito educado, ele:
- Quer beber alguma coisa? A m�e j� me ensinou a servir whisky...
- N�o bebo �lcool, filho - agradeceu-lhe o Vasco, sorrindo. - A tua m�e j� te ensinou a fazer limonada?
O mi�do n�o quis dar parte fraca e os seus olhos procuraram os meus:
- Posso usar o espremedor el�ctrico?
Fiz-lhe que sim com a cabe�a e ele, brioso, disparou a trote em direc��o � cozinha.
Instalado no �nico sof� de orelhas da sala, o Vasco pousou os olhos na minha filha e espantou-se:
- Nunca julguei que fosses t�o grande..!
- Tenho dezoito - disse ela.
E corando:
- Acabei de os fazer...
- Tem exactamente a idade da tua filha - lembrei eu, talvez depressa.
Mas ele estava inocente. Isento, continuava a olhar para a mi�da sem cautelas.
- Como � que te chamas?
- In�s.
- Nunca te lembres de arranjar um namorado Pedro, n�o?
Queria rir tamb�m, mas n�o consegui - voava-me um corvo na cabe�a.
- A Pilar e a Mafalda j� devem estar a chegar - desviei, olhando o rel�gio. E virando-me para ele, insinuante: - Interessa-te uma breve recapitula��o pr�via?
- For�a - disse ele, principiando a sentir-se confort�vel. - J� n�o me lembro bem das tuas amigas...
A In�s antecipou-se:
- A Mafalda � divertida, perversa e feminina e tem um grande sentido de humor. A Pilar � mais neur�tica, mas � t�o inteligente que compensa...
- �s vezes, grita a discutir com a minha m�e! - completou o Afonso, estendendo ao Vasco um copo cheio demais.
- Tens alguma coisa a acrescentar a este quadro? - perguntou-me o Vasco, depois de sorver o excesso.
- N�o, n�o, est� perfeito - condescendi eu. - Eu pr�pria n�o as saberia descrever t�o bem!
Os mi�dos olhavam para mim e para o Vasco alternadamente, sondando o grau de intimidade; e, por detr�s das suas avalia��es desamparadas, eu reparava que n�o s�
se dispunham a renunciar � ideia de um mitol�gico regresso do pai, como a colocar o seu territ�rio � disposi��o da minha felicidade.
S� quem ainda n�o sabe nada da vida pode ser t�o generoso.
A campainha tocou, os mi�dos foram abrir, e o Vasco segredou-me, divertido:
- � a primeira vez que estou a ver a tua casa. N�o tinhas na sala um violino?
E esfregando a testa, esquecido: - Ou era uma harpa?
- Est�s � maluco! - ri-me eu.
E levantei-me para abrir a porta �quelas duas que, disparatadas, se apresentavam espampanantes.
- Voc�s perderam a cabe�a! - disse-lhes, comprometida por todo aquele exagero.
E lembrando-lhes, baixando o tom:
- Isto n�o � um pedido de casamento!
A Mafalda ainda me segredou "pudera" antes de entrar na sala e rasgar o seu mais poderoso sorriso para o Vasco:
- At� que enfim! j� nem nos lembr�vamos das suas fei��es!
Jantou-se bem e sem pressas, com os mi�dos sempre a rir das nossas diatribes, mas o Vasco tratava a In�s com uma delicadeza excessiva, como se fosse feita de lou�a
e se pudesse quebrar a qualquer momento.
- Quer mais framboesas, In�s?
- Quantos caf�s? - interrompia eu.
- Podes.
Mas, sem querer, sentia uma necessidade compulsiva de a remeter para a sua idade:
- Desde quando � que bebes caf�?
A seguir ao jantar jogou-se a um jogo de perguntas e respostas, em voga na �poca. Sempre que n�o eram quest�es miudinhas como a longevidade da sanguessuga ou
a igreja onde o Churchill fora baptizado, o Vasco mostrava-se � vontade em todos os temas.
Isso teve o cond�o de galvanizar as minhas amigas que come�aram a torcer por ele imediatamente, lan�ando gritinhos de j�bilo sempre que o viam acertar. A meio
do jogo, impressionada por tanta mem�ria, a pr�pria In�s se deixou contagiar.
E eu reincidia, inconsciente:
- N�o tens de te levantar cedo amanh�?
Mas o jogo continuava sem ela e j� s� o Afonso sofria por mim, dirigindo-me as perguntas com um pungente ar esperan�oso:
- A m�e sabe esta, eu sei que a m�e sabe esta!
Mas eu nunca fora boa nem em data nem em nomenclatura. N�o me ralava com isso, porque sempre me interessara mais perceber as coisas do que debit�-las, mas tinha
pena de desapontar o meu filho daquela maneira.
- Em que ano a China invadiu o Nepal?
- N�o fa�o a m�nima ideia, meu querido. Nem nunca soube, se queres que te diga...
O mulherio estalava a rir e o Afonso ficava calado, a arrumar os cart�es na caixa.
- E o Vasco, sabe? - perguntava ele, j� sem esperan�as de uma negativa. E com uma express�o nost�lgica de partir o cora��o: - O meu pai acertava logo nesta!..
- Deixa c� ver... - dizia o Vasco, ponderando se, dada a sensibilidade do mi�do, n�o deveria renunciar ao brilharete.
Mas a Pilar e a Mafalda n�o o deixavam ser nobre:
- Responda, Vasco, responda! Aqui, a nossa Ana, precisa de uma li��o de humildade!
E o Vasco rendia-se ent�o, sem qualquer fanfarronice:
- Foi em 1792. N�o me perguntem porqu�, mas sei que foi exactamente no ano em que a Fran�a declarou guerra � �ustria e � Pr�ssia...
Respondia sem qualquer pros�pia, mas o Afonso segredava-me:
- Este seu amigo � um bocado convencido, n�o �?
N�o era, mas a verdade � que acabava de ganhar a todos com vantagem e o mi�do arrumava o jogo, silencioso.
- Amanh� tenho futebol - disse-me, despedindo-se. Posso levar uma coca-cola do frigor�fico?
Levantei-me para lhe preparar um lanchinho e deit�-lo imediatamente. j� eram horas.
- Hoje, a m�e n�o me conta nenhuma hist�ria, pois n�o? Tem c� o seu amigo...
Estava a medir for�as com o Vasco e eu pensei, cansada, que talvez daquela ele merecesse ganhar:
- N�o faz mal, conto-te uma r�pida...
- A das tr�s laranjinhas?
Abusava, porque aquela era grande e n�o pequena, mas mesmo assim condescendi.
E s� quando voltei � sala e os ouvi � - gargalhada me dei conta da extens�o do meu cansa�o. As emo��es do dia tinham-me feito beber demais e o vinho entorpecia-me.
Resultado: minutos depois adormecia no sof�.
S� no dia seguinte, portanto, pude saber como terminara aquela noite; parece que a Mafalda e a Pilar me arrastaram para a cama e me tiraram os sapatos, ajudadas
pelo Vasco, e que, depois, ainda foram os tr�s cear a qualquer s�tio.
N�o me interessei em saber onde porque a hist�ria me irritara, mas duma coisa me lembrava: depois de sa�rem, ao acordar semi-vestida na cama, dirigi-me ao quarto
da minha filha j� de camisa de noite e adormeci agarrada a ela para a proteger dos meus dem�nios.

* * *

A situa��o n�o era nova: est�vamos os dois juntos, outra vez, no mesmo hotel.
No entanto, j� n�o havia o j�bilo do encontro, nem o ardor da descoberta, nem o �xtase da expectativa, nem a esperan�a de um milagre: o amor perdera a ingenuidade.
J� sab�amos o que cust�vamos um ao outro e isso come�ava a assombrar os sentimentos.
Ele olhava para o rel�gio, eu demorava-me.
- Vamos indo que j� � tarde?
- Vamos... - dizia eu, distra�da.
Mas ele parecia preocupado: teriam faltado beijos �quele domingo?
- Queres? Queres outra vez?
N�o, n�o queria. Ele era generoso na cama e n�o me devia nada.
- Deixa, tamb�m tenho de ir para casa...
No carro, o meu sil�ncio a pesar-lhe:
- Temos de variar de hotel. Este, j� deu o que tinha a dar...
N�o era bem isso o que ele queria dizer, fora um acto falhado; �ramos n�s que j� t�nhamos dado tudo um ao outro.
- O Vasco - perguntei, assustada. - Isto, entre n�s, est� a acabar?
O seu espanto foi sincero.
- Por que dizes isso?
- N�o sei, as coisas est�o a ficar diferentes...
- Diferentes, talvez. Mas n�o piores, pois n�o?
- N�o tenho a certeza. �s vezes sinto que o melhor j� se foi...
- Mentira - protestou ele. - N�o podemos � viver sempre nas nuvens! O que acontece � que chegou a altura de mostrarmos o que valemos! Sem facilidades, sem agentes
intermedi�rios!
E apertando-me a m�o, entusi�stico:
- A hist�ria vai come�ar aqui, Ana!
Iria?
- Isso que est�s a dizer � perigos�ssimo - disse-lhe, angustiada. - Sem nuvens, ficamos demasiado n�tidos...
Ele continuava a guiar, atento � estrada e a mim:
- N�o achas que o melhor de tudo � podermos ver as nossas expectativas confirmadas?
E tocando-me no joelho, devagarinho:
- N�o achas?
Quais expectativas, perguntei-me eu. Mas a ele foi:
- Gostas de mim?
Era uma pergunta ociosa e ele podia ter-se rido na minha cara. N�o o fez. Encostou o carro, puxou-me de encontro a si e deu-me um beijo como se fosse o primeiro.
E no fim riu-se, t�o doce:
- Vou levar-te outra vez ao hotel. Isto, hoje, n�o ficou bem acabado...
- N�o vamos nada - recusei, agreste. - Ainda hoje n�o vi os mi�dos!
- Ent�o - disse ele, distra�do. - Ent�o, pronto, vamos para casa...
Para casa? Que casa? N�o t�nhamos casa nenhuma e aquilo tinha que ser deslindado. Insuport�vel, pedi-lhe que encostasse o carro outra vez.
- Diz, minha querida...
N�o havia um �nico sinal na sua express�o que indicasse cansa�o ou impaci�ncia, mas eu abusava da sorte:
- Nunca fal�mos de n�s. Costumas imaginarmos no futuro? Num futuro juntos?
Vi-o anoitecer de repente. Eram coisas que n�o se permitia pensar e eu magoava-o, sem querer.
- Deixa, n�o digas nada - pedi-lhe, sabendo que nem sempre se podia ser honesto.
E quando cheguei a casa encontrei, em cima do meu travesseiro, uma caixa de chocolates com o seguinte bilhete:

Com toda a dossura que a mofe merece.

Olhei para o calend�rio digital para experimentar qualquer coisa de parecido com a morte cerebral: era o Dia da M�e e eu esquecera-me!
Dormira fora na noite anterior e limitara-me a deixar-lhes um recado no gravador:

A In�s estragou-me as minhas botas novas, mas depois falamos. H� panados de queijo e fiambre no frigor�fico. Se quiserem, fa�am ovos. O Afonso que me grave
a novela.
Beij�nhos, adoro-vos!

Senti uma paulada no cora��o e chorei copiosamente, agarrada ao bilhete. Tinha um erro de ortografia, n�o de amor.
Quis acord�-los para lhes pedir desculpa, mas dormiam os dois a sono solto. Naquele momento faria qualquer coisa para os ver rir; qualquer coisa que me removesse
da alma aquela crude de culpa.
Fui ao quarto dum e doutro e detive-me a olhar para eles, sem contar o tempo.
C�us, como os adorava.
O Afonso agarrado a um urso, j� sem idade para aquilo, e a In�s com uma beatitude que desmentia o caos do quarto.
Como lastimava aquele desencontro permanente. Como esperava, com todas as for�as do meu ser, que eles percebessem uma verdade t�o simples que at� a mim me custava
a assimilar: que o amor nem sempre podia ser demonstrado.
Deixei uma carta para os dois, colada ao espelho da casa de banho. Sa�am os dois muito cedo, de manh�, e tinham sempre o cuidado de n�o me acordarem....

Segundo uma cren�a antiga, num pa�s muito distante (agora n�o me lembro do nome), as M�es podem escolher o seu pr�prio dia para festejarem. E eu escolhi
HOJE! Encontramo-nos �s cinco, aqui em casa. O meu presente para o Afonso � uma hist�ria por dia durante um m�s. e o meu presente para a In�s � uma secret�ria
nova.

N�o, n�o servia.
Apesar de adorar as minhas hist�rias, o Afonso repararia na despropor��o dos presentes. Al�m da m�e, havia de querer uma coisa. E a In�s o contr�rio: al�m de
uma coisa, haveria tamb�m de querer m�e. Rasguei aquele e escrevi outro:

Meus queridos, adorados filhos! Os calend�rios de todo o Mundo enganaram-se e voc�s tamb�m: o dia da m�e � HOJE! Encontramo-nos �s cinco aqui em casa. Preparem-se
para muitas surpresas!

N�o era melhor do que o primeiro, mas n�o era isso que interessava; o que interessava era saber at� quando se disporiam eles a colaborar.
Estava outra vez a comprar sorrisos, mas n�o tinha outro rem�dio. Impotente para me redimir pelo meu crime, naquele momento eu s� queria que as coisas n�o fossem
irrepar�veis.
E quando o telefone tocou, nessa mesma noite, achei que o m�nimo que podia fazer pelos meus filhos era renunciar ao �ltimo beijo do Vasco.
Nem me quero lembrar do que senti quando ele me telefonou duma cabine a participar que tinha sa�do de casa e que estava disposto a viver comigo.
Senti-me igual �queles homens que, ao serem notificados de que v�o ser pais, n�o conseguem sequer afectar contentamento.
E reparei que lhe fiz a primeira pergunta como se tivesse acontecido uma cat�strofe:
- Como � que foi?
- A Gi desmantelou tudo e quis armar-se em forte, percebes? Descobriu os nossos jantares e os nossos hot�is atrav�s do Visa e deu-me uma semana para sair
de casa.
- E tu?
- Eu sa� naquele momento, n�o me perguntes porqu�.
E depois de um pequeno sil�ncio:
- Nunca te falo disto, mas para mim j� estava a ser muito dif�cil conciliar as coisas em casa. Ultimamente, ela andava muito azeda e rebarbativa...
- E com toda a raz�o, coitada!
Passava imediatamente para o lado dela, mas n�o me espantava: como n�o estar do lado dela se o lado dela seria agora o meu?
- Claro, n�o digo que n�o - continuou ele, vendido.
S� que n�o tive vegetais suficientes para o p� de vento que ela quis armar em frente das Crian�as. Exactamente por ela ter raz�o, n�o me senti com autoridade
moral para discutir com ela, compreendes? Fui cobarde, e aproveitei aquilo para precipitar as coisas. No fundo, estou-lhe agradecido...
- E agora? - perguntei.
- Agora, n�o sei. Pressinto que n�o ter�s as portas abertas para me receber, por isso vou dormir para um hotel e depois logo se v�.
E esgotado:
- Pelo menos, j� podemos pensar em futuro!
Pelo menos.
- E os teus filhos?
- Os meus filhos s�o os meus filhos, o que queres dizer com isso?
Meu Deus. A �nica coisa que me preocupava naquele momento era recordar-lhe todos os entraves.
- Precisas de mim ao p� de ti? - perguntei-lhe.
- N�o posso, tenho de trabalhar. N�o te disse, mas com isto tudo tenho faltado muito ao escrit�rio. Preciso de l� ir pelo menos umas horas. Reza para
que eu mantenha a calma e n�o deite tudo a perder. Ela tem raz�o e pode explorar isso at�...
E mortificado:
- Percebes o meu medo? O medo que eu tenho de me ir abaixo?
- Percebo, querido, percebo. Vai trabalhar, ent�o...
- Ent�o adeus, meu amor. Preciso de ti mais do que nunca, acreditas?
Acreditava, claro que acreditava. Acreditava tanto que me senti na obriga��o de lhe dizer:
- Olha, Vasco: fiquei a saber que gostas mesmo de mim.
N�o se troca uma vida como a tua, assim, de �nimo leve...
No entanto, mais uma vez, ele j� me tinha provado que o faria. Precisaria de o fazer mesmo?
- Pois n�o, meu amor - disse ele. E ansioso: - Mas, diz-me: achas que fiz bem?
O qu�? Largar uma mulher ao fim de vinte anos de vida em comum?
Teria de vender a alma ao diabo para lhe responder: - Fizeste o que sentiste, n�o te martirizes agora. j� est�, j� est�!
- Obrigado, querida, obrigado... - dizia ele, elevando a minha mera exist�ncia � qualidade de apoio. - Agora, tudo � poss�vel connosco se n�o me deixares
ir abaixo...
Eu j� era m�e de dois filhos e nem para isso servia.
- N�o, est� descansado. N�o te vou deixar ir abaixo... - Sinto-me perdido e preciso de ti. Vai l� ter comigo e janta comigo, sim?
- Claro que vou - prometi, fixando o n�mero do quarto.
- �s cinco?
- �s cinco.
- N�o te demores.
- N�o me demoro.
- Gostas de mim?
- Claro, querido, que pergunta!
Mas, desnorteada como estava, nem me lembrei de que era aquele o Dia da M�e que eu escolhera para festejar.


II

Quando uma mulher parte uma unha a lavar roupa ou a estend�-la dramatiza a ponto de pensar que alguma coisa falhou na sua vida.
O choque demora segundos, mas chega-se a chorar dele. � o tipo de coisas de que os homens nem suspeitam: quando quebramos uma unha j� grande e bem tratada,
somos obrigadas a sacrificar todas as outras limando-as pelo mesmo n�vel e esperar cerca de tr�s semanas para que voltem a crescer.
Pode parecer disparatado, mas algumas sentem-no como uma esp�cie de mutila��o.
Desgostosa a olhar para o indicador, lembrava-me de que nunca passara mais de uma semana sem partir as unhas, apesar de tomar gelatina durante tr�s meses
por ano para as fortalecer, e que isso se devia certamente ao mesmo excesso de generosidade de que morriam os comandos, durante os treinos.
Das unhas, sem vir a prop�sito, lembrei-me da minha av�, a mesma av� que era sublime a bordar almofadas de seda, antecipando-me, lapidar, algumas etapas
da vida:
- Aos vinte anos a mulher quer ser bonita, aos trinta, inteligente, aos quarenta, independente, e, aos cinquenta, equilibrada.
E de eu pr�pria a perguntar-lhe, pensando na sua idade: - E aos noventa?
- Aos noventa - riu-se ela -, aos noventa, tudo o que se quer � que os intestinos funcionem!
S� agora percebia o que ela me tentava dizer; recentemente, estreava um novo cap�tulo da minha vida em que vigiava os meus h�bitos com a maior apreens�o.
A pregui�a de atender o telefone, a alegria perdida na descoberta dos outros, a resist�ncia que tinha a sair de casa, um nervosismo parecido a fumar e a
comer, o mesmo vazio defronte de um televisor ou de um amigo, o suspiro fundo que largava no banho todas as manh�s, o automatismo com que trabalhava em casa ou no
escrit�rio.
Chegara a uma fase da vida em que n�o me conseguia nem explicar, nem deduzir, nem demonstrar.
Era uma esquizofrenia esquisita, que talvez n�o decorresse de nenhuma raz�o determinada, mas de uma s�rie de acontecimentos acumulados cuja digest�o nunca
me permitira fazer.
Sim, era isso: numa s�ntese prosaica, era uma paragem de digest�o.
Como se o meu corpo e o meu cora��o se recusassem a prolongar uma farsa, e o meu c�rebro, subitamente consciente da import�ncia do tempo, se negasse a viver
sem ele.
N�o me referia ao tempo cronol�gico, mas � disponibilidade mental para todas aquelas coisas decisivas para a sanidade mental de uma pessoa como o t�dio,
o sono, a futilidade ou as fun��es biol�gicas.
Andava desfasada em rela��o � vida, e, por vezes, ouvia a minha voz como se fosse a de outra pessoa e estranhava-lhe as inflex�es.
Isto causava-me um desajuste esquisito na minha rela��o com os outros e com a fam�lia, como se uma parte de mim reagisse �s ordens da vida como um soldado,
comportando-se como esperavam que me comportasse, e a outra observasse aqueles gestos sem coragem para os combater.
No entanto, percebia que essa faceta cumpridora era importante para n�o levantar suspeitas a ningu�m e garantir a minha privacidade sobre o que me sucedia
interiormente.
Teria perdido a capacidade de me misturar com os outros?
Era poss�vel.
Os livros passaram-me a ma�ar de um dia para o outro, porque comecei a achar que eram escritos por homens t�o b�sicos que ainda precisavam do apre�o dos
outros para subsistirem; neles, o motor criador n�o advinha de uma puls�o m�gica, mas mendiga de est�mulo.
Ali�s, sempre achara os escritores mentirosos e incapazes de beleza; ou melhor: capazes de transmitir beleza, mas incapazes de a integrar.
Subitamente deixei de ler, e reparava que as pr�prias discuss�es entre amigos, que dantes me mobilizavam, deixavam a pouco e pouco de me reptar.
E at� o espect�culo de uma intelig�ncia em exerc�cio, numa sala ou numa tribuna, que fora dos programas mais hipn�ticos que me podiam proporcionar, j� n�o
tinha em mim o mesmo impacto.
Ao mesmo tempo, roda a minha aten��o se fixava no que ainda me conseguia produzir alguma espontaneidade: uma ou outra vibra��o prim�ria com os meus filhos,
a dor f�sica, a priva��o do conforto, o escr�pulo de pontualidade como obedi�ncia a uma ordem interior j� autom�tica, tudo coisas antigas que reagiam por mim.
De resto, entrara num per�odo de raras flutua��es emocionais.
As notas dos mi�dos, os desastres a�reos, os dramas das minhas amigas, a fome no Mundo, tudo isso tinha o mesmo valor para mim: nenhum.
Poderia consultar um psiquiatra, se o que eu estivesse a viver n�o fosse o resultado prov�vel de anos e anos de uma qualquer an�lise que, sem mestres nem
instrutores, levara a vida a fazer a mim mesma.
Foi nessa �poca que descobri que o mais dif�cil da vida era esconder dos outros a nossa insanidade mental.
- Est�s boa? O que � que tens feito? - perguntavam-me, por vezes,
Esta pergunta, a que sempre respondera uma trivialidade qualquer do tipo "Bem, gra�as a Deus" ou "Nada de especial, vai-se andando", impossibilitava-me agora
de servir um clich�.
Nunca antes pensara nisso, mas, vendo melhor, "O que � que tens feito?" era uma pergunta sinistra.
Ningu�m tinha nada a ver com o que faz�amos e a �nica repres�lia poss�vel a uma tal indiscri��o era servir um n�mero razo�vel de mentiras para convencer
o interessado a deixar-nos em paz e a arrepender-se de nos ter perguntado.
Falava-se na sa�de, nos estudos das crian�as, nas obras da casa ou na frente profissional, mas, para al�m de ser imposs�vel sintetizar o que realmente interessava,
ningu�m era capaz de revelar a verdade porque a verdade era penosa:
- N�o tenho feito nada. Mexo-me muito, fa�o mil coisas por dia, chego sempre a casa extenuada, mas, por dentro, que � onde as coisas podem de facto avan�ar,
mantenho-me de um imobilismo preocupante.
Ou, mais honestamente:
- A verdade � que desde a �ltima vez que me viste n�o fiz absolutamente nada. Continuo ref�m da minha pregui�a e prisioneira das minhas fraquezas, e se
n�o consigo dissolver um s� dos meus v�cios n�o � por causa da minha situa��o profissional, nem dos problemas familiares, mas por absoluta incapacidade de vencer
a resist�ncia.
Ou ainda:
- O que � que tens feito?
- Morrido.
Era este o balan�o que eu queria � viva for�a evitar quando antes me lan�ava em relatos intermin�veis para contornar a perguntinha funesta.
Nunca se iludia ningu�m, porque todo o inquiridor era espelho da nossa pr�pria estagna��o, mas o embara�o que essa pergunta me passara a causar era sintom�tico
de que existiria dentro de mim um qualquer sentimento de repugn�ncia por todos os anos, todas as semanas, todos os dias e a todas horas assistir � fal�ncia dos meus
ideais de mudan�a ou de aprendizagem.
E mesmo para o inquiridor apressado que mo perguntava na rua com uma festa na cabe�a, o meu olhar, perdido ou assustado, era mais eloquente do que todas
as palavras.
A Pilar, que era das pessoas mais escrupulosamente honestas que conhecera na vida e que nunca se pretendia mostrar nem mais alegre ou estimulada, nem mais
activa ou solicitada do que em qualquer outra fase da vida, respondia invariavelmente "o costume" a quem quer que lho perguntasse.
O tempo passava. Eu n�o.
De vez em quando ainda dava comigo a ligar distraidamente um ou outro n�mero da minha agenda, mas quando as vozes se prontificavam a devorar-me do outro
lado desligava rapidamente, apavorada de cair nas suas redes.
As vozes eram aracn�deas e as palavras, essas, teias pegajosas.
Ao mesmo tempo, aparentemente liberta da amea�a rom�ntica, os homens eram insol�veis em mim, como o �leo na �gua.
A mistura com os outros tornara-se-me portanto impratic�vel, e isso talvez n�o decorresse de um desgosto, mas de uma qualquer impossibilidade que nem sequer
era suficientemente tr�gica para impressionar o Mundo.
De certa maneira, padecia do mesmo mal dos suicidas: al�m da dificuldade de existir, a falta de um sofrimento vis�vel que comovesse as pessoas.
Estava incapacitada para o tipo de vida que levara anteriormente e recusava-me a experimentar qualquer outra f�rmula que implicasse novidade.
O novo assustava-me agora, como um animal desconhecido.
Era uma reaprendizagem completa, imposs�vel de explicar a terceiros sem correr o risco de parecer extravagante.
Foi com este esp�rito que aprendi a bordar, para hilaridade das poucas pessoas que tinham sobrado do meu passado em tantos anos de investimento afectivo.
Bordava constantemente, como num exerc�cio de paci�ncia que simultaneamente debelava a minha inquietude e me prometia respostas.
Bordava mal, os meus avessos eram vergonhosos, mas a pouco e pouco fui evoluindo e sendo capaz de coser almofadas n�o t�o bonitas como as da minha av�, mas
quase.
Ao mesmo tempo deixara crescer as unhas e passara, pela primeira vez, a lavar a lou�a de luvas; aplicava creme nas m�os todas as noites como se o seu estado
traduzisse uma ordem interior recuperada.
Tornei-me obsessiva nisto, e, como tinha a pele seca, passei tamb�m a tomar banho de luvas para que a �gua excessivamente quente me n�o ressequisse as m�os
ou mas enrugasse.
As m�os e os meus trabalhos de costura passaram pois a adquirir uma import�ncia de ritual, como para resgatar um qualquer arqu�tipo perdido, imprescind�vel
ao meu equil�brio.
Todavia, n�o eram s� os gestos que eu fazia que eram importantes, eram tamb�m as palavras.
Agora poupava-as como a moedas de oiro e fazia ainda mais luxo no meu vocabul�rio e na minha gram�tica como se a qualquer momento pudesse tornar-me muda.
O mundo, naquele lapso de tempo, tornara-se uma selva.
Via as pessoas a correrem na rua, congestionadas, e espantava-me como nunca se olhavam nos olhos.
A pouco e pouco os outros foram-me desgostando, e instaurei uma esp�cie de est�tica pr�pria ajustada � minha nova sensibilidade: em minha casa n�o se gritava
e n�o se corria, nem que se jantasse � meia-noite.
Os mi�dos sentiam-se mais tranquilos, porque pela primeira vez na vida eu ouvia o que me perguntavam e pensava antes de lhes responder.
A televis�o s� era ligada aos mais nobres pretextos e o telefone tocava sem que ningu�m corresse a atend�-lo.
� noite, j� com as crian�as deitadas, dava comigo a identificar sons e rumores esquecidos em tantos anos de prioridades erradas: o estalar da madeira, a
�gua a correr nos canos, o voo dos insectos, o caruncho a roer-me a c�moda, o bater do cora��o.
Ainda sentia alguma nostalgia do �xtase das grandes vibra��es, mas como aprendera entretanto a observar cada gesto e o tempo era muito maior do que eu pensava,
degustava, pela primeira vez, o sabor da eternidade.
Ao mesmo tempo, preocupava-me saber o que poderia significar aquela mudan�a t�o dr�stica.
Falei com a minha irm�, que me perguntou se seria a menopausa, e tamb�m com a Mafalda, que opinou sem uma d�vida:
- Est�s cansada por tudo o que te aconteceu na vida, � natural...
Rapidamente, apercebi-me de que aquele meu estado era tomado por mais uma fase de cuja const�ncia todos duvidavam.
Mas a transforma��o era evidente: os est�mulos que me produziam sensa��es no passado perdiam gradualmente efic�cia.
Progressivamente demitia-me das fun��es sociais, como se tivesse perdido essa voca��o, e se deixava uma parte de mim a desempenhar essa tarefa era exclusivamente
para n�o dar nas vistas.
Um dia, fui ao cinema sozinha e encontrei no intervalo a Mafalda e Pilar.
Estive a conversar com elas, respondi ao que me perguntaram com penosa coer�ncia, mas fixava os olhos no enorme espelho veneziana pregado � minha frente
e n�o conseguia arred�-los - quem era aquela?

* * *

A etapa mais dr�stica da crise que acabei de descrever passou-me em vinte e oito dias, depois de ter quebrado uma unha a enfiar dois sacos de supermercado
na mala do autom�vel.
Fora mais uma fase, afinal, e a Mafalda tinha raz�o.
Parecera-me longa e definitiva, mas durara apenas um ciclo menstrual.
Culminara com a chegada do per�odo e terminara com o �ltimo tampax, depois daquele banho santificado em que as mulheres se regeneram ao verificar que j�
n�o sangram.
A ideia de um Vasco inteiro na minha vida apavorara-me e fora dela que fugira meses atr�s, � mesma hora em que combinara encontrar-me com ele no hotel e
com os meus filhos em casa para festejar o Dia da M�e.
As crian�as tinham sido um impedimento real, mas n�o suficiente para eu nunca mais lhe ter atendido um telefonema.
Nem dele, nem do Nuno, nem mesmo do Bot�nico que, nessa altura, insistia em me mostrar a sua estufa e me deixava bilhetes envolvidos em folhas secas, na
caixa do correio.
Soubera que o Vasco regressara a casa e � sua mulher leg�tima - e digo leg�tima sem nenhuma carga jur�dica, mas moral- , uma semana depois de me recusar
a falar com ele.
Respirei fundo.
A verdade � que o Vasco nunca existira porque o tempo era importante e n�s n�o o tiv�ramos.
Ainda me escreveu, numa carta que era muito mais uma expia��o das suas incapacidades do que uma recrimina��o magoada; no final, dizia-me qualquer coisa sobre
a eternidade, mas nada daquilo teve resson�ncia em mim.
O Nuno tamb�m me procurara, ligando-me com insist�ncia, mas como eu estranhava a sua voz ao telefone desligava sem articular.
E quando, meses depois, me disseram que ele casara, senti algum al�vio por confirmar que tudo se tinha consertado sem necessidade do meu sacrif�cio.
Nem me queria lembrar desses tempos.
Entretinha a exist�ncia com o conhecido p�nico de me encontrar frente a frente comigo, que � das prova��es mais onerosas por que uma pessoa pode passar se
n�o consegue passar da humilha��o � humildade.
Por tudo isso retirara-me da vida, como um pin�quio que, depois de a experimentar, regressa a casa para dizer a um gepeto espantado que prefere voltar a
ser boneco.
O pr�prio bot�nico me escrevera mais tarde a participar que ia casar, em seis linhas que desconsideravam a noiva e eu tomaria por v�ndalas em qualquer outra
fase da minha vida:

"Como a menina n�o me quis... "

A avaliar pela pressa daqueles tr�s, fora por um triz que eu me safara.
A uni�o a outras pessoas sempre me aterrara e chegava a altura de o admitir.
Mesmo o sim imponderado e rom�ntico que se pronunciava no cart�rio ou na igreja, era formulado na mais completa ignor�ncia do que representava estar ao lado da
mesma pessoa para o resto da vida, numa idade em que a nossa solidez nunca fora testada e em que o nosso temperamento estava longe de se definir.
Sempre intu�ra que o casamento n�o era apenas uma coincid�ncia sentimental enternecedora, mas uma proposi��o que precisava de ser demonstrada diariamente, e que
qualquer estado de enamoramento era suscept�vel de toldar a realidade.
Chegava-se ao Altar, � Conservat�ria, ou directamente a um sexto andar da avenida sem experi�ncia que nos permitisse prever o grau de resist�ncia face � corros�o
conjugal.
N�o havia solu��o para isto, o que transformava qualquer projecto convicto num acto irrespons�vel ou numa t�mbola da sorte.
N�o conhecia muitos casamentos de sucesso mas, quando algum resultava em cheio, gostava de imaginar a dose de bom senso, intui��o e disciplina que fora necess�ria
para o sustentar.
Em idade adulta, ou em segundas tentativas, os riscos agravavam-se: as pessoas partiam escaldadas para rela��es de continuidade, cheias de reservas, e a adapta��o
ao outro era ainda mais renitente.
A d�diva arrefecia, a toler�ncia cal�ava as tamanquinhas, os defeitos perdiam a vergonha e os feitios moldavam-se a ferros.
Mas a grande asfixia da rela��o a dois, para os teimosos do sonho, era, mais do que a rotina, a predestina��o.
O mist�rio da vida sumia-se, o futuro tornava-se conjectur�vel, o acaso e a aventura n�o esperavam que as crian�as adormecessem, os prazeres eram agendados, o
sexo era atamancado nas brechas da fadiga, os sonhos passavam a deslizar numa cinta fabril e as casas podiam transformar-se de um momento para o outro em c�rceres
espirituais sem salva��o.
E era muitas vezes ut�pico, sobretudo quando havia filhos a obstruir este prop�sito, imprimir a t�nica de liberdade, improviso e renova��o necess�ria � interac��o
estimulante que a teoria aconselhava.
Por outro lado, quando um casal conseguia sobreviver a um casamento de cinquenta anos sem perder o melhor da vida e de si pr�prio teria dado ao Mundo a maior
prova de maturidade acabada.
E, para quem via na exist�ncia um est�gio de aprimoramento pessoal, o casamento podia at� constituir um repto intelectual irresist�vel para c�rebros exigentes.
O problema � que nem toda a gente tinha esse escr�pulo intelectual nas liga��es, como se s� as provas de amor cor-de-rosa fossem importantes, e a primeira coisa
que se fazia a seguir a juntar os trapos era achinelar defronte da televis�o ou das salsichas e pendurar a sensibilidade no cabide.
- E a estabilidade? - perguntava-me a Mafalda, hesitante. - N�o conta?
- A estabilidade? - ria-me eu. - A estabilidade de que toda a gente fala n�o depende de um homem, burra! Depende do dinheiro!
- E a outra?
- A outra n�o conhe�o!
O romantismo era muito culpado disto, mas cada vez mais me convencia de que o que falhava nas rela��es n�o era o sentimento; era a pr�pria Vida que acabava por
se arrumar na despensa juntamente com sabrinas e canas de pesca.
E eu era t�o fraca, t�o est�pida, ou t�o c�ptica na altura que nem o amor, nem a F�, nem a fam�lia me livravam da tenta��o de gozar, mesmo pagando, o imprevisto
da vida.

* * *

Fora portanto ap�s a vertigem de um perigo que eu retomara a vida com outra coloca��o.
As grandes travessias eram importantes, porque o que se perdia pelo caminho aliviava a bagagem.
Os homens que me tinham tentado estrangular no passado j� n�o existiam.
O Nuno e o Vasco, em especial, tinham-se extinguido de vez, e eu olhava em redor da vida como uma leoparda esganada.
Nessa altura tudo me parecia comest�vel, at� o olhar de alguns homens que n�o servia sen�o para despertar em mim uma feminilidade que jamais lhes dedicaria.
Estava empenhada em voltar a viver, com tudo o que implicasse de risco e sofrimento, porque acabava de descobrir que a aus�ncia da dor nada tinha que ver
com a alegria.
No entanto, se perdera ilus�es e ganhara lucidez, as coisas eram agora mais dif�ceis de entender.
O amor j� n�o era rom�ntico nem eterno, mas t�o f�sico como a sede ou a fome; e a necessidade de o dedicar a um homem, essa, independente do homem e mesmo
anterior a ele.
Das emo��es, infelizmente, ainda n�o podia prescindir.
Os meus filhos adaptavam-se, conformados, a mais uma metamorfose, e eu reparava que, nem eles, ao crescer, eram capazes de mudar tanto.
A In�s ainda me disse "A m�e est� mais alegre outra vez", mas a voz com que o dizia n�o estava ainda segura.
A alegria era uma coisa de inf�ncia, e a inf�ncia um estado de esp�rito que se ia merecendo ao longo da vida.
- E o Vasco? Que � feito dele? - perguntara-me ela, num desses dias.
- N�o tenho tempo para namorados - respondi-lhe, ligeira.
E achava que, no fundo, eles gostavam de o ouvir; a recupera��o da minha exclusividade compensava-os de me saberem, ainda, desencontrada com a vida. E como
eu suspeitava de que nem a realiza��o de alguns sonhos me completaria alguma vez, dava-me toda a eles, sem medo de estar a perder nada de importante.
O meu problema era antigo, como o de toda a gente, e nada que chegasse agora poderia resolv�-lo.
Agora, era pelas perplexidades estampadas na express�o dos meus filhos, ainda espont�neas, que eu aferia os meus estados de alma.
A In�s, em particular, era o meu bar�metro afectivo:
- Se a m�e estivesse mesmo apaixonada, tinha tempo... - dizia-me ela, que j� experimentara uma forma de amor mais equivocada, mas mais segura do que a minha.
- Se quer que lhe diga, eu nunca vi a m�e apaixonada...
N�o era verdade.
O que acontecia era que eu sempre procurara preserv�-los das minhas exalta��es.
Mas percebia o que ela queria dizer: o ideal de viver com um homem dissolvia-se a pouco e pouco.
E como o medo de me anular me fizera absolutamente irredut�vel � natureza dos homens, restringia as minhas rela��es com eles � sua mais pobre express�o - transformava
todos os meus casos em pimpinelas baratas de quimeras e desenganos, excluindo-lhes, inconscientemente, toda a constru��o e cria��o necess�rias para que pudessem
vingar.
Como se materializar os sentimentos fosse um crime, e a coabita��o uma esp�cie de m�ldio que os matasse.
Por alguma raz�o fora implac�vel a enterrar os meus homens a minha vida contra a deles.
No entanto, a esperan�a do imposs�vel continuava viva, apesar de tudo.
Estive mais de dois anos sem fazer amor, n�o porque n�o me apetecesse idealmente, mas porque o meu corpo se recusava.
Estava convencido de que n�o se tratava de uma frigidez f�sica, mas de uma incapacidade de sujeitar a minha alma a mais ensaios de laborat�rio.
Os homens que tivera queriam o meu corpo para me descobrir a mim, ou queriam-me a mim para se descobrirem a si mesmos, e embora tudo isso me tivesse empolgado
no passado a desmontagem permanente dos seus est�mulos tinha acabado por me ceifar os meus.
E, passado um ano do epis�dio com o Vasco, era como se estivesse virgem outra vez.

* * *

Suspeitar�o os escritores que uma das val�ncias da sua Arte � esta de nos conduzirem a assuntos que nada t�m que ver com a sua prosa? Saber�o eles que,
entre todos os servi�os que nos prestam, esse � talvez dos melhores? Que ao ma�arem-nos tantas vezes com a sua intelig�ncia retocada nos d�o asas para fugir?
Foi assim, ao desistir de um livro que me enfadava, que um desconhecido apareceu nas minhas noites.
Chegava ali sem fazer ru�do, beijava-me o cabelo, segredava-me ao ouvido, tapava-me com os cobertores, e, quando voltava a sair, deixava-me a dormir.
Era uma fic��o que me enchia toda, mas que estabelecia uma bitola absolutamente imposs�vel de ser ultrapassada por um homem de carne e osso.
Para mim, era esse o Homem Perfeito, e eu ria-me da aud�cia dos candidatos que me apareciam durante o dia como do guarda-livros feio, mediano e pobre que
se atreve a pedir a m�o da princesa.
Eu tinha melhor, muito melhor, e a simples compara��o tornava-os a todos rid�culos.
Com o tempo esta inven��o foi ganhando corpo, e j� n�o me sentia a mentir quando declinava as propostas das minhas amigas dizendo-lhes que n�o queria sair
porque tinha companhia.
Divertia-me a sua irritar�o por n�o conhecerem o segredo de tanta independ�ncia, e alegrava-me por saber que aquela minha constru��o era bem melhor do que os
cavalheiros com quem elas dan�avam ou me cediam.
�s vezes chegava a sair com elas, s� para o confirmar:
- Por amor de Deus, meninas! Este vosso amigo nem sabe que a terra � redonda!
Sem querer tornava-me de uma selectividade incorrupt�vel, e come�ava a perceber que um homem n�o era para nos proteger, um homem era para nos encantar.
E quando me perguntavam, por vezes, se eu n�o gostaria de me apaixonar ou de encontrar um homem que me fizesse feliz, qualquer resposta que eu servisse, negativa
ou afirmativa, era inteiramente verdadeira.

* * *

Estar sozinha como eu estava, por uma quest�o de exig�ncia, era uma extravag�ncia em que ningu�m acreditava; para as pessoas, mesmo as mais inteligentes,
uma mulher sozinha � uma mulher que ningu�m quer.
Talvez por isso, evitava acima de tudo dar-me com casais tinha a sensa��o de que me lastimavam como se fosse aleijada.
Dispunha-me a sair de vez em quando, sim, mas pelas mesmas raz�es de toda a gente: para vigiar o comportamento dos outros e saber como resistiam � vida.
Era interessante assistir a um grupo de pessoas que n�o se conheciam serem atiradas para uma mesma sala por raz�es sociais, a pretexto de uns anos ou de
um jantar, e surpreend�-las a pouco e pouco a vencerem a resist�ncia do desconhecido ou a pregui�a do diferente, a tomarem contacto umas com as outras por obriga��o,
a vencerem os complexos ou a polirem as atitudes, a declinarem a participa��o nas conversas por falta de est�mulo, ou a afirmarem-se social ou intelectualmente pelo
humor, a cultura, a profiss�o, o rel�gio.
Era divertido observar quem se destacava imediatamente e quem se salientava s� no fim da noite, assistir � disputa de dois "actores" pelo mesmo papel e o
mesmo p�blico, topar as investidos abortadas dos t�midos para contarem uma anedota, patinar com as tiradas certeiras dos reservados que desvaloriz�vamos pelo aspecto
e nos davam li��es, aturar os palermas que se exibiam, as coquettes que investiam, os tr�gicos que se lamentavam ou os espirituosos que nos impediam de sair da nossa
concha para experimentar a gl�ria.
Era cansativo, mas tamb�m gratificante, aquele desafio de conquistar uma audi�ncia que nada sabia a nosso respeito e se dispunha a aderir por sede de novidade,
medir a extens�o exacta das nossas inibi��es, apurar o que as potenciava ou eliminava, reconfirmar que a cultura dos outros nos coibia, que a sua inferioridade nos
descontra�a ou que o seu interesse por n�s nos dava brilho e incentivava.
Da� que as rela��es sociais fossem t�o irremediavelmente desgastantes.
Com um inv�lucro de facilidade e descontrac��o, eram todavia respons�veis por inc�modos e embara�os por vezes asfixiantes.
Ter � frente algu�m com quem n�o se consegue sintonizar ou cuja conversa nada nos inspira, algu�m que fala sem parar ou de um sil�ncio impenetr�vel, algu�m
junto de quem as nossas chala�as morrem � nascen�a ou as melhores hist�rias perdem o interesse, algu�m junto de quem nos sentimos invis�veis ou de que n�o nos �
poss�vel livrarmo-nos por cortesia, pode deixar-nos mais arrombados do que um m�s de trabalho.
A sensa��o que me dava era que, para atinar com certas pessoas t�o radicalmente diferentes de mim e t�o preocupadas com outras coisas, seria necess�rio regressar
� inf�ncia e mudar de pais e irm�os.
- Como � que se chama?
- Ana.
- Ana Maria?
- N�o, n�o. S� Ana...
- Tem gra�a. Tem cara de Ana Maria...

* * *

Quer�amos ser mais do que aquilo mas, afinal, �ramos s� a nossa actualidade:
- O que � um homem sexy? - desafiava a Mafalda.
- Um homem sexy? - espantava-me eu.
E a Pilar arriscava, cuidadosa:
- Eu diria que o homem sexy n�o � aquele que provoca em n�s uma atrac��o ac�fala, superficial e ef�mera, mas uma expectativa de virilidade e confian�a capaz de
nos prender para o resto da vida!
- Ou perder - tentava a Mafalda.
- Sim - anu�a eu, pensativa. - Deus ou o dem�nio, mas sempre qualquer coisa de cont�nuo...
- Isso � literatura! - desvalorizava a Mafalda. E materializando: - Que n�o seja bonito nem feio, mas que tenha olhos! N�o olhos azuis ou verdes, como j� se
usaram e se tornou enjoativo, mas fundos e perdidos, se poss�vel...
- Amarelos ou cinzentos?
- Talvez mais mediterr�nicos?
- Sim, e que chorem. Que saibam chorar!
E outra vez ela, apelando ao abismo:
- Tamb�m � fundamental que se lhe adivinhem d�vidas, dilemas, algum conflito em existir...
- E as pestanas?
- As pestanas tornam-no bonitinho e por isso as dispensamos. Mas, se tiver olheiras....
- Melhor ainda!
- Pode significar que pensa ou que sofre e qualquer das coisas engrandece!
- E o corpo?
- O corpo pode ser alto ou baixo, ou gordo ou magro...
- ... desde que pare�a nosso! - conclu�a ela.
O que n�o se perdoa � que n�o esteja limpo a qualquer hora do dia... - achava eu.
- ... e perfeitamente inodoro! - achava a Pilar.
Sim. �gua de col�nia, talvez, mas s� a seguir ao banho!
Exactamente. S� mesmo durante aqueles escassos minutos em que o cabelo ainda est� molhado e o corpo, mal enxuto, humedece as costas da camisa...
- E a boca?
- A boca, sim, tem que existir!
- E os dentes?
- Os dentes devem constar bem tratados, como manda o s�culo!
- Para sorrirem bem?
- Sim, j� n�o h� desculpa para dentes acinzentados ou omissos, e nisso n�o cedemos...
E eu ajudava:
- Podemos contemporizar, por grandeza ou solid�o, mas desgostamo-nos muito com sorrisos velhos, n�o desgostamos?
- Pode-se falar da roupa?
- Pode-se, mas muito pouco. j� ningu�m liga b�ia a etiquetas!
- Liga a cortes, vai dar ao mesmo!
- N�o interessa. O que gostar�amos era de poder ver os nossos homens t�o bem vestidos, t�o bem vestidos que fosse poss�vel n�o se reparar nas suas roupas!
- E com os rel�gios, sapatos, carteiras e carros � a mesm�ssima coisa...
- Tens raz�o: deviam ser invis�veis!
- Como tudo o mais que � caro neles, ali�s...
- O qu�?
- A intelig�ncia, o car�cter, a sensibilidade...
- Concordo! Tudo isso devia ser insinuado e n�o escarrado como as tais etiquetas que se dispensam nas roupas...
- Mas a coragem f�sica � sexy, n�o �, meninas? - convoquei eu.
E a Pilar aderia, novamente:
- Sim. Mas s� se n�o for maior do que a coragem moral!
- Essa � mais rara...
- E mais equ�voca!
- Exige mais tempo para tirar a limpo!
- E � nessa ambiguidade que muitos cobardes se escondem... - lembrava a Pilar, pensativa.
E eu desviava:
- Outra coisa: eu acho os homens avarentos t�o feios... - Monstros! N�s somos capazes de depositar tudo o que temos num cora��o generoso!
E a Pilar logo, vigilante:
- Fala por ti, algumas abusam! Tentei outro t�pico:
- As intelig�ncias. Nem todas s�o atraentes, pois n�o?
- N�o. Nem todas elas estimulam...
- Algumas at� adormecem!
- � dif�cil...
- Acabamos por ser mais exigentes do que eles, se calhar...
- N�o � verdade. Eles exigem a beleza!
- Mas casam com mulheres feias, n�o casam?
- E a Mafalda:
- Mas deixam-nas. Mais tarde ou mais cedo deixam-nas! - E, se n�o as deixam, enganam-nas. � a mesm�ssima coisa!
- J� viste alguma mulher feia e burra abandonada pelo marido?
- Feia, sim...
- Burra, n�o!
- Sim, para qu�?
Mas a Pilar j� estava noutro lugar:
- Mas n�s tamb�m nunca estamos satisfeitas...
- �, nada nos serve...
- Os mundanos agoniam-nos, os faladores adormecem-nos...
- Mesmo assim: condescendemos mais do que eles!
- N�o podemos escolher tanto como eles, queres tu dizer!
- E a timidez? Atrai, n�o atrai? - instiguei eu.
- Pudera! Em nenhum outro terreno nos sentimos t�o soberanas!
- E a inseguran�a que eles jogam na sedu��o?
- Achas que � jogo? - duvidei. - E a fragilidade?
- A fragilidade?
- A fragilidade pode ser t�o doce que desculpe a falta de uma carreira...
- E o sexo pode ser fraco ou abundante desde que gostemos deles!
E a desgarrada prosseguia, facciosa:
- Vendo bem, n�s perdoamos muita coisa...
- Muita coisa?
- A obsess�o do desporto, os jornais nos sof�s...
- O ressonar, a barba no lavat�rio...
- O surro na banheira...
- A hipocondria!
- As camisas sem fibra!
- As meias rotas no calcanhar!
- As gravatas com n�doas!
- A relut�ncia de perguntar o caminho quando se perdem na estrada...
- A profunda resist�ncia � especula��o psicol�gica!
- A ataxia das m�os a levantar uma mesa...
- Nunca mais sa�amos daqui..!
- S� n�o lhe perdoamos uma coisa...
- A injusti�a, a sensaboria, o desamor?
- S� a� est�o tr�s...
- Afinal, n�o lhes perdoamos uma data de coisas...
- N�o lhe perdoamos a mentira...
- N�o lhe perdoamos as amantes...
- Quando as amantes n�o somos n�s!
- N�o lhes perdoamos as tareias...
- As tareias n�o contam. Nenhuma de n�s tem raz�o de queixa, caramba!
Rindo, esquecidas, concord�vamos as tr�s.
E a Pilar conclu�a, ensimesmada:
- Mas, no fundo, s� h� uma coisa que n�o lhe perdoamos...
- O qu�? - interess�mo-nos as duas, suspensas na conclus�o.
- Que nos obrigem a desempenhar um papel que � deles!
- Qual?
Mas a Pilar, confusa, tamb�m n�o sabia explicar.

* * *

Havia quem continuasse a rondar-me, mas eu h� muito que deixara de sonhar com almas convenientes. Queria era que me fascinassem, como as estrelas do c�u
fazem �s pessoas, ou o talento dos homens.
N�o suportava aqueles perfis que n�o mostravam nem defeitos radicais pronunciados nem grandes qualidades vis�veis.
Os que me apareciam eram quase sempre exemplares sem grandes ideias ou opini�es, nem muito est�pidos nem muito inteligentes, com poucas exig�ncias ou caprichos
de vontade, cumpridores de todos os c�digos e cobardes na transgress�o, facilmente influenci�veis e geralmente cordatos.
E chocava-me comigo mesma.
O que haveria de errado, enfadonho ou deficit�rio nessas pessoas que viviam sem prejudicar ningu�m e morriam sem deixar saudades?
Mim�ticas de tudo o que as rodeava e plagi�rias da personalidade dos outros? Sem espinha para se afirmarem e renunciantes a uma vontade pr�pria?
Perguntava-me muitas vezes se deixariam de cumprir a sua verdadeira ess�ncia por cobardia, vacuidade ou genu�na bondade.
E o defeito seria delas, por carecerem de imagina��o, improviso ou grandeza e levarem uma vida semelhante a uma dieta sem sal, ou antes meu, que, sem querer,
principiava a aderir a um mundo onde a proclama��o do ego se confundia com o g�nio e a exibi��o das fraquezas e dos instintos deixava gradualmente de ser grosseira
para passar a interessante?
Havia ainda uma outra hip�tese que, tal como a anterior, se arriscava a ser injusta: a de suspeitar da virtude rotineira e da simplicidade est�vel como de
coisas improv�veis, e de conseguir ver melhor numa �ndole genu�na, mesmo quando incomodava ou escandalizava, os elementos positivos que a integram.
Talvez por isso continuava a esperar que algu�m especial encarnasse o meu sonho; mas como ao mesmo tempo n�o acreditava em sonhos, tinha o resto da vida
para ganhar ju�zo.
A intelig�ncia era sobretudo necess�ria para amar, e isso, �s vezes, podia ser t�o ou mais estimulante do que pintar um quadro ou escrever uma partitura.

* * *

A Mafalda acordara-me numa madrugada qualquer, a meio de um processo de paix�o que a tomava toda, numa toada torrencial contagiante:
- N�o te descrevo o que isto �! Ele chega a minha casa, ocupa dois mil�metros da minha mesa de cabeceira com as chaves e com o isqueiro, pousa o estojo de barbear
em vinte cent�metros de c�moda, e depois enche a casa toda com a sua voz, as suas l�grimas, as suas declara��es e eu sinto que vou morrer se o perder, percebes,
Ana?
Eu percebia, ela continuava:
- E eu vou para a casa de banho v�-lo, Ana. V�-lo sentado no trono, Ana. V�-lo a lavar os dentes, v�-lo a olhar-se ao espelho, percebes, e sinto-me de repente
uma desgra�ada, n�o te sei explicar, mas d�i tanto, tanto, Ana, a possibilidade de o poder perder um dia...
T�o desmesurada, a Mafalda:
- Quando se vai embora e me diz o �ltimo adeus , quando depois disso me fala do carro seis ou sete vezes seguidas para te dizer "adoro-te, meu amor", "adoro-te,
meu amor", quando ainda me faz o �ltimo telefonema-surpresa directamente para a cama e me acorda para desligar a seguir, eu sinto que morro, Ana, eu sinto que morro
porque naquele dia eu n�o vou v�-lo mais e porque durante a noite ele pode morrer!
E aflita, s� de imaginar:
- J� viste o que era se ele morresse?
Eu via, e estremecia ao mesmo tempo, pensando que tudo aquilo era verdade porque ela sentia, que podia ser mentira um dia, mas que naquela altura era verdade
e tinha for�a, mas ao mesmo tempo do�a-me porque parecia que ela me roubava o "meu homem", aquele homem que eu inventara para ver morrer naquele momento e daquela
maneira, aquele homem que era afinal o de todas as outras enquanto durava, e eu tentava alert�-la, e eu tentava alert�-la por uma quest�o de sobreviv�ncia dela e
tamb�m minha, procurando entrever, por detr�s daquela febre, se ele teria estofo para aguentar o que viria a seguir:
- Mas tu tens esperan�as? Tens esperan�a nisso?
- O menina, tu n�o est�s a perceber! - chocava-se ela. - Eu encontrei um homem! Um homem, percebes? Pela primeira vez na minha vida encontrei um homem,
um homem que faz chichi na casa de banho como se fosse um cavalo e que depois, de noite, se enrosca em mim como um gato e chora s� da possibilidade de me perder!
- Chora mesmo? - perguntava eu, maravilhada. Eu que sempre achara as l�grimas de um homem a manifesta��o suprema da virilidade: - Chora mesmo? Com l�grimas
verdadeiras?
- Com l�grimas verdadeiras, dizes tu? - perguntava ela, incr�dula. E castigando-me: - Com l�grimas verdadeiras, sim, menina! Com l�grimas verdadeiras de �gua
e cloreto de s�dio a correrem pela cara abaixo, de quatro em quatro! Com l�grimas grossas a encharcarem-lhe a camisa! Com l�grimas pesadas a ensoparem-me o travesseiro,
percebes?
E n�o contente:
- Um homem, percebes? Um verdadeiro homem que me beija as m�os e os p�s com devo��o, um homem que me ouve a fazer-me festas no cabelo, um homem que...
Tudo aquilo me fazia lembrar algu�m.
- � casado? - perguntou a minha voz.
- �, mas n�o interessa - respondeu a boca dela. - N�o me interessa, porque isto que eu vivi j� ningu�m me tira!
E jurando-me:
- Eu adoro-o, Ana, adoro-o, e fico aqui numa mol�stia a olhar para o telefone, uma coisa que me transcende, que me rouba as for�as, o telefone passou a ser
tudo, percebes? Os meus inimigos passaram a ser quem o ocupa aqui em casa, quem me pede para fazer telefonemas, quem se senta no sof� onde eu costumo ouvi-lo, quem
se deita na cama onde ele permanece ausente...
E j� insana:
- A minha cama � dele, o meu corpo � dele, a minha vida � dele, e, se me perguntassem se eu preferia viver sem ele ou morrer daqui a oito dias acompanhada
por ele, sabes o que eu respondia, Ana?
- O qu�, Mafalda?
- Que preferia morrer daqui a oito dias!
Eram sempre desconformes estes di�logos, uma mulher seca de um lado, a azedar com a sua �ltima experi�ncia, e a outra a exultar como se aben�oada por Deus
e diligenciada pelo Cup�do em pessoa.
- Mas, tens confian�a nele?
S� percebi que ela n�o queria ouvir isto tarde de mais, quando se calou por momentos para me atirar, enraivecido:
- V�-se mesmo que nunca te apaixonaste e que nem mesmo reconheces a sensa��o!
Subiu uma f�ria por mim acima:
- Nunca me apaixonei? Nunca me apaixonei?
- N�o! - berrou ela. - Nunca te apaixonaste porque se te tivesses apaixonado uma s� vez que fosse limitavas-te a ouvir-me e nem te atrevias, ouve, nem te passava
pela cabe�a vulnerabilizares-me com as tuas quest�es previdentes nesta altura do campeonato!
Desligou-me o telefone na cara e eu fiquei com ela a arder, paralisada, a indagar dentro de mim se alguma vez me apaixonara.

* * *

At� ent�o, o cora��o fora uma coisa central dentro de mim, mas m�dica. Uma fun��o trivial exercida algures nas minhas entranhas, mas discreta. Um org�o
vital para a circula��o do sangue, mas tamb�m um m�sculo repugnante e de forma c�nica que pulsava em mim e nos animais.
Inclusivamente, um mi�do que boiava nas canjas e se digeria com as cabidelas.
Uma emin�ncia parda em que era obrigada a reparar a certa altura porque me passava a doer de um momento para o outro, lancinantemente, a ganhar exist�ncia
hist�rica, a crescer, a arder, a cair-nos aos p�s.
Porque o apanhava na garganta a enforcar-me a voz, porque o segurava no peito, para evitar que fugisse, porque falava com ele nas m�os, para que acreditassem
em mim.
A partir da�, tornava-se uma florzinha de estufa que flectia e murchava � menor aragem, qualquer coisa que n�o se podia ignorar porque a sentia a toda a
hora, que se impunha acima de tudo como uma ferida aberta ou um sexto sentido.
E n�o s� ele, tamb�m o telefone.
Aquilo que me parecia imprescind�vel apenas para dar recados, encomendar bilhas de g�s, ouvir a voz dos amigos, as intrigas dos colegas ou as recomenda��es
da fam�lia, passara a fen�meno de sujei��o.
Era por isso que o telefone e o cora��o se tornavam c�mplices t�o rapidamente: se um tocava o outro vibrava, se um se calava o outro sangrava.
Mas, n�o era tudo.
Havia ainda outro elemento essencial nesse processo destruidor ou vital: a cama, a minha cama, a cama da Mafalda e a cama de toda a gente que passava a ser
usada n�o para dormir, mas para desfalecer.
Eram as suspeitas que o telefone lan�ava, mais os sobressaltos que o cora��o despedia que me obrigavam a usar a cama n�o como uma pe�a de mobili�rio que me retemperava
as for�as todas as noites, mas como uma enxerga onde me debatia com a morte numa luta corpo-a-corpo e que s� lentamente me convalescia.
O cora��o, o telefone e a cama: tr�s personagens centrais desta trag�dia grega chamada paix�o e que tanto arrastava montanhas como me sugava o sangue.
- A m�e gostou do pai? Quando casou com ele estava apaixonada?
(Meu Deus: o que � uma coisa tinha a ver com a outra?)
Mas existia ainda um quarto elemento que a Mafalda se esquecera de mencionar: a voz.
A voz desejada e ao mesmo tempo d�spota do outro.
O timbre, a entoa��o, os requebros, as pausas e as inflex�es da voz do outro tamb�m passavam a comandar-nos a vida como generais no activo.
Se era quente e carinhosa precisava da cama para exultar sem testemunhas; se era agreste ou apressada, precisava dela para sofrer em condi��es.

Durante a paix�o, o sofrimento era doen�a desejada, necess�ria, priorit�ria, que exigia um cen�rio pr�prio para alastrar � vontade: pouca luz, conforto f�sico,
isolamento.
Sem estes requisitos, a dor da paix�o era elevada ao supl�cio.
Sofrer, duvidar, esperar, definhar, solu�ar, agonizar e morrer pelo menos uma vez por dia, tudo isso fazia parte de uma boa paix�o.
Al�m disso, a paix�o era o �nico estado de esp�rito que me fazia verdadeiramente desvalorizar a morte e esquecer tudo o resto porque o Mundo passava a ser
uma s� coisa: a estalagem onde o outro habitava, a ponte que me levava a ele, a estrada
Era mentira, mas estava provado: que a paix�o era um abismo em que as pessoas se lan�avam de livre vontade, convencidas de que a supress�o do outro era uma
agonia pior do que a priva��o da vida.
E era verdade, sim, que o cora��o batia mais e n�o menos durante a paix�o; e que nos fazia sentir t�o vivos e t�o humanos
e t�o f�rteis e t�o fortes e t�o corajosos e t�o animais e t�o divinos que nem pela felicidade a trocar�amos.
Percebia a Mafalda, claro que percebia.
E se insistira em lhe perguntar "irrelev�ncias" sobre o seu novo namorado, era por uma �nica raz�o: porque me lembrava distintamente das dores e das alegrias
da paix�o, mas j� n�o me conseguia lembrar muito bem de quem mas provocara.
- Estava, sim, minha querida. Estava completamente apaixonada quando casei com o teu pai!

* * *

O namorado da minha sobrinha Leonor morreu numa sexta-feira-treze, para consolo de todos os supersticiosos que souberam.
A mi�da era espalhafatosa no seu sofrimento e gritou durante todo o enterro - a verdade � que mesmo para quem n�o conhecia o rapaz foi igualmente dif�cil
aguent�-lo sem l�grimas.
Para mim, n�o, que espantei os meus pr�prios filhos: - A m�e, n�o chorou nada...
Eu pr�pria me questionei.
Seria que a dor era inibida de se espraiar quando a vida me mobilizava noutras frentes? Que o tempo me fizera incubar anticorpos para o sofrimento? Que
essa apatia era a minha forma muito pr�pria de acusar os deuses e de declarar a minha inoc�ncia? Que existia um cr�dito do sofrimento at� determinado montante, o
qual, uma vez ultrapassado, me insensibilizara
E a dor? Poderia ser adiada como um encontro indesej�vel ou uma chatice vulgar?
Ou seria que esse confronto com a perda ou o desgosto de algu�m era uma amea�a t�o previsivelmente nociva para a minha ordem interior que era for�ada a embalar
a dor e a protelar essa cat�strofe de ordem f�sica, ps�quica e moral pura e simplesmente congelando o cora��o?
N�o sabia, nunca se sabe nada, mas desconfiava que a vida me levara a desenvolver um qualquer mecanismo de defesa que ou me tinha desumanizado para sempre,
ou me permitiria aguentar novos e repetidos golpes por muitos e longos anos.
Duma coisa estava certa: mesmo quando parecia indolor, sofrimento era como o cancro. Alastrava sem se dar por isso e espalhava met�stases por toda a alma.

* * *

Tive a prova disso quando, dias depois, me desfiz em l�grimas s� por encontrar, esquecidas numa caixa, as minhas almofadas bordadas.
Nessa altura, sim, pude chorar o namorado da Leonor, o desgosto dela, a minha insensibilidade t�o estranha, no funeral.
Fora aquilo, como poderia ter sido outra coisa: as l�grimas adiadas rebentam sempre a pretextos indirectos.
Uma palavra desagrad�vel, um choque com o carro da frente ou um filme com patos e criancinhas teriam produzido, provavelmente, o mesmo efeito.
Ao lado das almofadas estava tamb�m a caixa das fotografias que, por qualquer raz�o, nunca juntara ao �lbum.
Levei-a para a sala, e, estendida no ch�o, entreguei-me morbidamente � tarefa de reviver, uma a uma, as grandes pulsa��es da minha vida.
E cheguei quase a senti-las.
Um rapaz de cal��es, com uma fisga na m�o, a roubar-me um beijo na quinta da minha inf�ncia. Um estrangeiro apaixonado que se revelara epil�ptico durante um
concerto de Mahler. O meu marido a rachar lenha, em tronco nu, num fim-de-semana na serra. O Nuno e o Vasco em minha casa, em Natais diferentes, � frente da mesma
�rvore. Um amigo do meu pai, de colete abotoado, num recorte de jornal. Um hippie abra�ado a uma viola berrando "Vou amar-te at� morrer" que, no dia seguinte,
perderia de vista para sempre.
Qualquer deles, com um pouco mais de tempo, um pouco mais de jeito, um pouco mais de f� poderia estar deitado a meu lado, naquele momento, a rir-se dos outros.
E eu pensava que chorava, era certo, mas n�o ainda como o fazia a Leonor.

* * *

Loura, bonita, bege - era mesmo bege-salm�o a cor da minhafilha.
Cabelos desgrenhados, acabou de acordar.
- Bom dia!
- Bom dia...
- Dormiste bem?
- Dormi mais ou menos.
Ensonada e �rida, esta primeira entrevista. - O que vais fazer hoje?
- Anh?
- O que vais fazer hoje?
O segundo "anh" foi para ganhar tempo.
- Fiz-te uma pergunta: responde.
- Devo estar com o pai e depois com o T�, ainda n�o sei bem...
- E mais?
- E mais, o qu�?
J� n�o est� ali. Quatro dedos pousados na cara, um deles a ro�ar a testa; no pulso direito uma fita esfarrapada, destas que d�o sorte. Sentada na cama,
os joelhos levantados dentro da camisa, a tocar no queixo, quase a rebent�-la...
- N�o fa�as isso � camisa de noite, que impress�o! E vai p�r aquilo mais baixo. O que � que est�s a ouvir?
- "Never say goodbye".
- De quem?
- Do Bon Jovi.
- Qual Bon Jovi? - pergunto-lhe, agreste.
- Aquele! Eu j� expliquei � m�e. Aquele que tem uma tatuagem no bra�o...
Desiste, encolhe os ombros, olha atrav�s da janela.
Onde pousar�o os seus olhos? Nas casas, no rio, no c�u? Preciso absolutamente de lhe perguntar, n�o posso deixar passar nem mais um segundo:
- Para onde est�s a olhar?
- Para uma �rvore - responde-me, impaciente.
E eu c�ustica, nervosa:
- Para o abeto ou para o carvalho?
Volta-se para mim, abre muito os olhos, n�o quer acreditar:
- A m�e n�o tem nada que fazer?
Desmanchamo-nos as duas, j� n�o est� zangada:
- Acho que era para o abeto...
Posso voltar a olh�-la � vontade, j� se esqueceu de mim. Mas n�o posso, afinal n�o posso de maneira nenhuma deixar que se esque�a de mim:
- Est�s a pensar em qu�?
- Que a m�e, hoje, n�o me deixa em paz...
Rimo-nos as duas. O amor e o humor bem s�ncronos, como nos melhores momentos.
- Quantas horas dormiste hoje?
- Nove.
- Nove?
Volta a olhar-me, deixa de sorrir: - O que � que a m�e tem?
- O que � que eu tenho, o qu�?
- Nada... - diz ela. E propondo: - Quer vir tomar o pequeno-almo�o comigo?
E eu de repente, sem saber porqu�, a engolir em seco: - Est� bem, se quiseres ... Fazes tu os ovos?
E desta vez ela, chegando-se a mim, ralhando baixinho: - Com franqueza, m�e: todo este trabalho para me pedir um beijo?
Para al�m do meu filho e da minha sobrinha, a In�s, a Pilar e a Mafalda eram agora as minhas �nicas parceiras e testemunhas.
Tinham sobrevivido a todas as fases da minha vida e aben�oadamente viam-me ainda como a mesma pessoa.
A minha filha era eu, num tempo muito atr�s, a lembrar-me a beleza perdida e a beleza a resgatar, se Deus me desse for�as. O respeito que tinha por ela, planet�rio,
era o respeito que ainda tinha por mim e por isso a adorava.
Tudo o que tinha de puro e verdadeiro estava nela, ainda inc�lume, como um esp�lio selado.
A sua honestidade, nunca corrompida, a sua pureza, nunca profanada, tinham sido eu e eram ainda eu, se algo me restasse.
A Pilar era o que eu pensava e a Mafalda o que eu sentia, apesar de tanta, de tanta contradi��o:
- N�o admira, menina: se tu visses o charme dele, os olhos dele, a cara dele, a beleza indescrit�vel das m�os dele...
- Quando � que mo apresentas?
- Qualquer dia.
- Qualquer dia, n�o - protestei. - Hoje, em tua casa, �s nove!
E para n�o lhe dar chances de recusar:
- Levo a salada.
Mas ouvia a respira��o dela, entrecortada. Sentia-lhe o medo do outro lado do fio:
- Espera! Talvez ainda seja cedo demais...
- Cedo demais? O que queres dizer com isso? - perguntei, como se n�o soubesse que, no in�cio de um homem, tudo o que sa�sse da eternidade de um colch�o era arriscado.
De facto, s� mais tarde, muito mais tarde era poss�vel mistur�-los com o nosso mundo,
Mas, para meu grande espanto, a Mafalda aceitava o desafio:
- Seja! Seja o que Deus quiser! Venham s� �s nove, que ainda tenho de lavar a cabe�a. Vou encomendar tudo de fora, n�o arrisco. Quero estar mais bonita do
que voc�s porque j� sei que te vais querer vingar e tenho um medo de ti que me pelo!
Ri-me, antes de desligar.
N�o sabia bem porque insistira naquilo, mas tinha a perfeita no��o de que, da mesma forma que perfilhava todas as crian�as do mundo como se fossem minhas, tamb�m
os homens das minhas amigas eram um pouco meus.
Mas, n�o s� por isso: as descri��es que a Mafalda me fazia dele eram de tal forma encantat�rias que eu morria de impaci�ncia por confirmar se todo aquele entusiasmo
teria alguma correspond�ncia com o objecto em si.
Sentia-me curiosa e excitada, e talvez por isso demorei a escolher a roupa.
Depois de rejeitar aquela ideia fixa nacional de um vestido preto - ultimamente o preto pesava-me, tremendamente -, escolhi umas cal�as de caxemira azul-alfazema
e um conjunto de malha muito fina, da mesma cor.
As p�rolas j� n�o se usavam, mas os homens ainda n�o tinham percebido e por isso n�o me importei que a Mafalda e a Pilar, mais tarde, se rissem delas.
Limitei-me a substituir um anel de ouro antigo por dois de prata, modernos, que nenhuma conhecia, para lhes desviar as aten��es.
Fora o Vasco que me dera o colar, e eu hesitava se deveria ou n�o us�-lo nessa noite ao recordar-me da imensa alegria com que mo oferecera nos anos.
O Vasco, caramba.
Como o amava nessa �poca, como era imposs�vel saber se o amava ainda ou se alguma vez o tinha amado.
Depois de alegrar as bochechas da cara, de espalhar na boca um b�ton s� com brilho e de escolher o perfume, descobri ao espelho, conformada, que me arranjava
muito mais para os homens das outras do que para os meus.
Era daquelas coisas que irrompiam do mais insond�vel feminino e de que nenhuma se censurava.
Preparei a salada com requintes especiais, e cheguei a casa da Mafalda propositadamente atrasada, com um tigela transparente nas m�os e o ar mais inexpressivo
que consegui afectar.
- S� agora? Bolas, s�o dez da noite!
Chamava-se Pedro - um nome que, para mim, influenciada pela mem�ria de uma Heidi a escabrear nas montanhas com um amiguinho pastor, tresandava a �cloga.
- Pedro? Que giro! - E virando-me para a Mafalda: Nunca mo tinhas dito...
Era mentira, mas eu apostava que a Mafalda apreciaria aquela displic�ncia fingida por raz�es que faziam parte do mais ancestral teatro feminino e que demorariam
s�culos a explicar.
- Ol�, Ana - disse ele.
E dirigindo-se � Mafalda, sem perceber que se vingava:
- Nunca me tinhas falado destas tuas amigas que, al�m de serem encantadoras, se vestem maravilhosamente...
- Como � poss�vel, Mafalda? - perguntou a Pilar, fingindo que acreditava. - Como � poss�vel que lhe tenhas omitido as duas pessoas mais importantes da tua vida?
Eram perf�dias brancas, que a amizade das mulheres comportava bem; uma esp�cie de praxe inici�tica para os novos homens apresentados.
A Mafalda estava excitada de mais para responder porque, para ela, a nossa aprova��o relativamente ao Pedro era quase mais decisiva do que a dela pr�pria ou mesmo
do que a dele a nosso respeito.
A Mafalda era uma mulher de mulheres, como eu ou como a Pilar, mas os homens pervertiam-na.
� mesa, experimentei a humilha��o de o n�o ouvir pronunciar-se sobre a salada, e de o ver dirigir todos os elogios para a sobremesa da Pilar de uma forma que
quase me engasgou:
- S� a minha av� fazia assim o arroz-doce!
A culpa era minha.
Esquecera-me de que os nossos homens jamais vibrariam com saladas ricas e criativas, misturadas com queijo branco, natas ou frutos secos, porque, em mat�ria de
verduras, nada os arrebatava a n�o ser, quando muito, a tradicional salada de alface e agri�es temperada com vinagre de vinho tinto e azeite virgem graduado.
E, espantoso: bastara-me aquela pequena desfeita para dessexualizar a sua figura aos meus olhos e passar a julg�-lo com uma exig�ncia de sogra.
E enquanto disse � Mafalda, no dia seguinte, que o Pedro me parecera "vird", "maduro" e "interessante", j� � Pilar n�o hesitei em classific�-lo de "seco", "demasiado
seguro" e "pouco feminino".
E embora ambas as vers�es lhe assentassem na perfei��o a Pilar estranhou o �ltimo ju�zo:
- Pouco feminino?
- Sim, pouco feminino - repeti. E sem certeza nenhuma: - O garanh�o atrai as mulheres, mas � o sens�vel quem as conserva!

* * *

A verdade � que toda a testemunha feminina n�o envolvida pode substituir, com menos custos e sustos, uma vidente.
N�o passara uma semana desde o jantar em sua casa para que a Mafalda, a pouco e pouco, nos come�asse a dar a entender que o Pedro n�o era a pe�a que pensava.
A Pilar e eu ainda tent�mos dissuadi-la dessa ideia com veem�ncia, n�o por acharmos que ela se enganava, mas para prolongar o m�ximo que pud�ssemos a ilus�o
que vivia.
- Um homem n�o se conhece assim! - gritava a Pilar, com genu�na indulg�ncia. - O que se passa � que ele se sente inseguro de ti, compreendes? N�o sabe nada
do teu passado, ouviu hist�rias a teu respeito, tem medo de ser deixado como toda a gente, e uma coisa sabe ele: a mulher pode n�o ser grande espingarda, mas oferece-lhe
seguran�a, percebes? Seguran�a para viver ao lado dele at� morrer e ainda trat�-lo na velhice!
E lembrando-nos:
- Aos cinquenta anos, isso pode valer muito mais do que uma mulher estimulante!
E eu ajudava, com os lugares-comuns habituais:
- � isso! Amar � uma coisa e viver � outra! As duas coisas nem sempre s�o compat�veis!
Mas j� as tr�s pressent�amos que o fim se aproximava quando a Mafalda, numa manh� de chuva, me falara a participar que estava gr�vida.
- Gr�vida? - articulei, incr�dula.
Mas, por muito que o meu tom expressasse horror, nunca conseguiria traduzir o choque que aquela not�cia me provocava. - Sim, gr�vida! Ainda posso ter fflhos,
ou j� te esqueceste?
E eu, est�pida, s� lhe conseguia perguntar: - E agora? O que vais fazer?
- Sei l� o que vou fazer! Soube s� h� vinte minutos e j� me querias a caminhar para a parteira?
Mas, no fundo, j� pressentia que o Mundo jamais se enterneceria com o seu deslize
Envergonhada, pediu-nos apenas que a deix�ssemos ter ilus�es um quarto de hora. S� por um quarto de hora, dizia ela.
Mas a lucidez produzia monstros.
- Nem penses! - gritei. - Nem sequer te afei�oes � ideia! Falo por mim e n�o por ti! Se n�o tens confian�a nele e achas que ele te vai deixar, n�o alimentes
a ideia nem por um quarto de hora, ouviste? N�o te afei�oes � ideia, n�o te afei�oes � crian�a, porque na realidade n�o est�s a fazer nem uma coisa nem outra, mas
a sonhar acordada!
E agoirenta:
- Vais estragar tudo!
- Tudo? - perguntou, raivosa. - Que esp�cie de tudo?
- Digo-te j�: vais obrig�-lo a revelar-se, a dizer-te o que deves decidir, a odi�-lo! P�ra j� com isso, hoje mesmo! Os homens deixam-se no limiar de uma
boa recorda��o e nunca depois, percebes? Nunca depois!
E suplicante, como se fosse comigo:
- N�o te maltrates, Mafalda. Por favor, n�o te maltrates ...

* * *

A Mafalda n�o estava gr�vida, afinal, e tanto a Pilar como eu perd�ramos uma boa ocasi�o de estar caladas.
Por ironia, t�nhamos sido n�s a revelarmo-nos em vez do Pedro, s� por causa de uma an�lise trocada.
O medo do rid�culo e dos vexames fora maior do que o apoio que ela nos pedira e isso fora imperdo�vel.
Agora, v�amo-la de vez em quando, mas j� n�o era a mesma coisa:
- Mafalda! Que � feito de ti e do Pedro?
- Ele � �ptimo na cama, sabias?
- Mas est�s bem, vives bem assim?
- Bem, n�o vivo. Mas n�o tenho alternativa, pois n�o?
E eu cegava:
- N�o tens alternativa? N�o tens alternativa? Claro que tens alternativa! Podes sempre deix�-lo, conhecer outra pessoa...
- N�o posso deix�-lo! As coisas n�o s�o assim t�o simples...
- Falaste-lhe do susto que tiveste?
- N�o - disse ela.
- Porqu�?
Obrigava-a a dizer-me o que eu j� sabia: - Porque um amante n�o � um amigo, Ana. Est�s satisfeita? E eu a agarrar-me �quilo, para salvar a pele: - E era
a� que estava o problema, n�o era? Mas ela n�o ca�a na ratoeira, olha quem: - N�o vejo porqu�. H� alturas em que nem os amigos s�o amigos, quanto mais os amantes!
E fora s� nessa noite, em casa, jantando com os mi�dos e aninhando-me na sua companhia, que me lembrei de que a Mafalda nunca pudera ter filhos e do que
sofria com isso.
Falei-lhe imediatamente, como se a tivesse esterilizado e quisesse reparar o meu erro:
- Mafalda! Ainda bem que te apanho, queria muito dizer-te uma coisa...
N�o havia qualquer expectativa do outro lado do fio.
- Diz l�.
- � que estive a pensar melhor, e... - E enchendo-me de coragem: - Por que � que n�o pedes um filho ao Pedro?
E antes de a deixar reagir:
- Eu sei que ele � casado. Mas, como est�s no limite m�x�mo para engravidar, e...
Mas ela n�o me deixou acabar:
- Olha, Ana, sabes o que te digo?
- Sim?
- Vai � merda!

* * *

Com a Pilar, o processo fora outro.
Era a mais misteriosa das tr�s, a mais discreta e secreta nos seus envolvimentos sentimentais.
Isto costumava enfurecer-nos, a mim e � Mafalda:
- N�o h� direito! Tu esventras-nos! Tu queres saber tudo a nosso respeito porque dizes que s� sabendo tudo podes formar os teus pr�prios ju�zos!
- E depois tu a n�s n�o nos contas nada! Nunca! N�o nos apresentas aos teus homens! N�o os descreves! A gente ouve-te falar deles como de personagens de fic��o!
N�o mencionas sequer o nome deles! Intelectualizas as confid�ncias! Falas por met�foras! Bolas, isto n�o pode ser uma amizade unilateral!
- N�o � justo, percebes? N�o � justo!
- A amizade tem direitos e tu sempre reclamaste os teus! Agora, chegou a tua vez de te abrires...
Era um interesse de rapina:
- Vemos-te aluada...
- Distra�da!
- Demasiado complacente...
- Ser� poss�vel que andes apaixonada e n�o nos digas?
Sab�amos que ela tinha os seus casos, de vez em quando, mas a exist�ncia de um filho pequeno sem av�s sempre a tinham impedido de se entregar a paix�es.
Mas, ao contr�rio do que pens�vamos, daquela vez ela dispunha-se a contar-nos o que se passava. Criando suspense, preparou-nos:
- Sentem-se, que a hist�ria � grande...
A hist�ria era grande, sim, mas banal�ssima, embora a cumplicidade do trio a tornasse avassaladora.
Conhecera-o no jornal onde trabalhava.
� casado?
N�o. Est� separado h� muitos anos e tem a mulher a viver no estrangeiro...
- Tem filhos?
Tinha. Um a viver com a m�e, que s� via duas vezes por ano.
- Sofre com isso?
- O que � que achas?
- Que idade tem o mi�do?
- Vinte e dois.
- J� n�o te chateia. Segue...
A rela��o partira de uma empatia intelectual e as conversas multiplicavam-se de dia para dia. Come�ara a gostar dele sem se aperceber, depois de o eleger o companheiro
dilecto das suas raras e programad�ssimas sa�das nocturnas.
- � giro?
- Eu acho.
- Mas � objectivamente giro?
- Cala-te, Mafalda - lembrava-lhe eu. - N�o �s tu que dizes que os homens mais bonitos do mundo s�o os nossos?
Iam juntos ao cinema, ao teatro, ao ballet e � �pera; davam passeios pela cidade e liam livros a meias, s� pelo prazer de trocarem impress�es.
- � culto?
- � mesmo o �nico defeito dele...
Rimos as tr�s, sintonizadas.
- Como � que se chama?
- J�lio.
- J�lio?
- Sim, J�lio, que mal � que tem?
- Nenhum, continua...
A Pilar temia uma segunda liga��o por causa de um antecedente extenuante que acabara em lit�gio. Mas isso resultara bem com o J�lio: quanto mais ela hesitava,
mais ele se definia.
- Voc�s, j� ... ?
- J�.
A Mafalda bateu palmas.
- E foi bom?
- Nem vos descrevo...
- Conta!
- N�o conto.
- Vais contar, sim, minha est�pida!
- N�o conto, j� disse!
- Mas ele � ... ?
- Um mestre. Um verdadeiro mestre, sosseguem...
Queria ter outro filho, casar com ela.
- Por essa ordem?
- N�o, enganei-me.
- Mas casar, mesmo casar?
- Casar, mesmo casar!
Feminina, ou provinciana, a Mafalda comovia-se:
- � Pilar: d� c� um beijo, caramba!
E a seguir eu, emocionada:
- Chegou a tua hora, mi�da!
A Pilar estava feliz, via-se que estava mesmo.
- Ele j� conhece o teu filho?
- Sim, e j� o levou ao futebol!
Restava-lhe decidir e esperava que a apoi�ssemos. Mas n�s recu�vamos, sem nos darmos conta:
- � melhor n�o te precipitares, n�o sabes nada a respeito dele...
- Antes de um ano, ningu�m conhece ningu�m!
- E tens de concordar que J�lio � um nome estranho, n�o achas?
Actu�vamos nos medos dela, mas ela n�o parecia assustada.
Confiante, reptava:
- Querem conhec�-lo?
Hesit�vamos. N�o sab�amos ainda porqu�, mas hesit�vamos.
- Conhec�-lo?
- Sim, claro! - espantava-se ela.
- Quando?
- Amanh�, � hora do almo�o, querem?
Era evidente: tanto eu como a Mafalda adi�vamos a confirma��o gloriosa. Se a Pilar viesse mesmo a cumprir-se sentimentalmente, como tudo indicava, o grupo desmembrar-se-ia
fatalmente e nada voltaria a ser como dantes.
- Amanh�, n�o me d� jeito...
- Que pena! Eu tamb�m n�o posso ir...
Mas, n�o era s� isso: aquela alegria toda, e, mais do que alegria, a possibilidade real de uma felicidade inteira e perdur�vel, magoavam a nossa condi��o.
Talvez n�o fosse inveja, porque n�o lhe desej�vamos mal, mas acabava por ser, porque lho caus�vamos.
Ela estranhava, abrindo muito os olhos:
- Esperem l�: no fim disto tudo voc�s v�o dizer-me que n�o querem conhecer o J�lio?
- Queremos, claro, mas...
- Mas voc�s iam gostar dele, juro-vos! juro-vos que iam gostar dele!
E foi aqui que a perdemos, talvez aqui:
- N�o fales antes de tempo, Pilar. A princ�pio, todos parecem fi�ve�s...
- Sim - repisava eu. - Antes de um ano, ningu�m conhece ningu�m!
Ela n�o disse nada, mas arrecadou o sorriso e alguma coisa mudou no seu olhar.
S� uma coisa nos poderia ter salvo: que o noivo viesse a decepcion�-la; mas n�o foi isso que aconteceu, pelo contr�rio: soubemos por terceiros, um ano depois,
que a Pilar tivera dois g�meos e que chamara J�lio a um deles.
Aquele baptismo era, explicitamente, uma derrota nossa.
Mais tarde ainda nos volt�mos a encontrar, as tr�s, num almo�o r�pido e combinado em cima da hora, mas s� para confirmar, uma vez mais, que nos t�nhamos perdido.

* * *
Quando a vida, por qualquer raz�o, nos rouba os interlocutores e nos afasta das testemunhas do nosso percurso, � um erro tentar substitu�-los.
Passei a dedicar-me aos filhos, como sempre fazia sempre que perdia alguma coisa, resolvendo fazer da minha casa um lugar apraz�vel para se viver.
Consegui-o em pouco tempo, porque era ansiosa a perseguir objectivos.
Ultimamente, j� n�o tinha grande interesse por pessoas novas; se dantes um desconhecido era uma vereda a explorar alegremente, agora era uma montanha cuja altitude
me desencorajava.
Ao que tudo indicava, perdera o interesse por meter o nariz na alma dos outros.
Era mais um sinal de velhice, juntamente com um reum�tico nas costas que, a pouco e pouco, foi assumindo propor��es alarmantes - quando as bilhas de g�s chegavam
para abastecer os fog�es da casa, deixava-as ficar mais de tr�s dias � entrada na esperan�a de que aparecesse um amigo da In�s para as levar para a cozinha.
At� virar um frango me custava, dobrada sobre o forno.
O meu filho era pequeno, ainda n�o tinha for�as, e eu come�ava a perd�-las.
No entanto, a vida j� me tinha dado o bastante e n�o sentia falta de nada.
A amizade, o amor, a paix�o, o sexo, a ternura, a liberdade e a paz, todos esses fundamentos estafados j� eu experimentara em doses suficientes para saber que
n�o era deles que dependia a felicidade, mas de qualquer outra coisa de que precis�vamos desconhecer at� ao fim para nos aguentarmos em prova.
Levara os primeiros dez anos de vida a ouvir o que os meus pais me diziam, dez outros a apreend�-lo, os dez seguintes a descobrir as coisas por mim pr�pria
e mais dez a errar constantemente, e chegava a altura de capitalizar as perdas e ganhos a favor de mim mesma e dos que me tinham aturado.
Recomecei a bordar, a tratar das m�os e a ler - apesar de tudo, como se acreditasse em milagres, voltara a pesquisar nas entrelinhas dos livros se algu�m
j� desvendara o mist�rio.
O meu filho pedia-me os primeiros conselhos sobre a vida e a In�s tinha um novo namorado.
- M�e - perguntava-me ela. - Quando gostamos de algu�m com muitos defeitos faz parte do amor tentar modificar essa pessoa, ou � melhor desistir se n�o sentimos
for�as para isso?
Eram quest�es da maior responsabilidade e eu verificava que, ao fim de uma vida inteira de experimenta��o e achados, continuava a ter as mesmas d�vidas do
que eles.
- M�e - puxava-me o Afonso, cansativo. - Se o Caim e o Abel eram os dois homens como � que houve descend�ncia?
E s� ent�o descobria que, afinal, os filhos valiam por eles mesmos; ultimamente, eram at� eles que me ajudavam a rever a mat�ria.

* * *

Foi mais ou menos nesta �poca, j� quase renunciante, que a Vida me voltou a desafiar.
Conhecera um homem novo na empresa onde trabalhava.
Mal reparara nele, mas o seu interesse por mim, numa altura em que j� me julgava incapaz de seduzir sem artif�cios, corrompeu-me.
Um dia, sem que eu esperasse, entrou no meu gabinete e declarou-se frontalmente.
Era igual a tantos outros, com uma vantagem importante: fazia-me rir.
� data, viviam-se momentos dif�ceis.
As pessoas andavam inseguras e mal pagas, n�o respiravam sem desatar a tossir, n�o cabiam nas camas onde dormiam e n�o viam o c�u das janelas.
Talvez por isso, iam ao cinema para ver matar os outros.
A vida na cidade tornara-se t�o alucinante que, se algu�m se distra�sse, morria atropelado debaixo de um sonho ou de uma moto.
O esfor�o que era preciso para contrariar as voca��es e as brincadeiras tornava toda a gente acabrunhada ou alc�olica.
O sentido de humor e a leveza eram preciosidades que se tinham deixado de desejar.
Como o campo.
No primeiro dia em que me levou a jantar, quando lhe fiz a proverbial pergunta sobre o seu estado civil, este novo homem respondeu:
- Sou tudo.
- Tudo? - estranhei.
- Sim - disse ele - depende de si.
E s� quando me viu franzir a testa me elucidou:
- Sou solteiro por enquanto, mas posso ser casado se voc� quiser, separado se voc� me abandonar e vi�vo se voc� morrer.
Mais tarde, quando fomos para a cama, perguntou-me:
- � virgem?
Fui apanhada desprevenida, mas safei-me a tempo:
- Sou. Mas se voc� quiser posso deixar de o ser...
E at� quando me entregava a ele, sem pensar em nada, ele era capaz de sabotar os momentos mais transcendentes s� pela alegria de me ver dobrar o riso:
- V�-se logo que nasceste para isto. Olha a tua perninha a tremer?
Chamava-se Rui, que longa s�rie j�.
- Rui era o nome do meu pai - contei-lhe.
- Era tamb�m o da minha m�e.
- Pois - fiz eu.
- A s�rio! A minha m�e chamava-se Maria Rui, por muito que te custe a crer...
Fazia-me rir. Fazia-me rir constantemente, e, mais tarde, passou tamb�m a fazer rir os meus filhos:
- Como � que te chamas?
- Afonso.
- Afonso, qu�?
- Afonso Malta.
- N�o conhe�o.
Discretamente, sem nunca se impor, foi-se tornando imprescind�vel l� em casa.
Arranjava os candeeiros, ia buscar os mi�dos �s festas, de madrugada, substitu�a as bilhas num abrir e fechar de olhos e ajudava-me nas compras do supermercado,
o que me causava um prazer t�o intenso como uma noite selvagem.
Um dia, disse-me:
- Agora acabou. Fazes-me uma lista e eu trago-te as coisas. N�o te quero ver mais cansada!
E eu desatei a chorar, num pranto que o afligiu:
- Pronto. N�o se fala mais nisso - disse ele. - Fa�o-te eu a lista a ti...
Uma noite, cheguei-me � cama da In�s, e, cheia de medo do escuro, meti-me l� dentro.
- Se calhar, vou-me casar com o Rui...
Mas ela saltou de alegria e abra�ou-se a mim a chorar.
- Quando?
- No fim de Abril.
- At� que enfim, m�e, j� n�o era sem tempo!

* * *

Afinal, o sexo � assim mesmo: quando � pouco e fraco sonhamo-lo doido, quando � muito e bom nem nos lembramos dele.
� esquecido. Esquecido como um copo de �gua que nos mata a sede ou um filme parvo que nos distrai.
Mesmo quando � �ptimo.
Estava grata ao Rui por me deixar ser tudo o que sou, de santa e de doida, sem sentir vergonha.
N�s, mulheres, avan��mos em tudo isto que se ve, mas continuamos a achar dif�cil a intimidade.
Temos vergonha do corpo, da barrriga, das rugas, de cada pequena imperfei��o como se fossem crimes.
Com ele, n�o.
Esgotei todas as fantasias que me passavam pela cabe�a, sem me arrepender nem do corpo que tenho, nem da minha mente porventura torpe.
Chuchei no dedo como quando era pequena, chamei por outros homens nos momentos altos, larguei todos os palavr�es que me ocorreram sem medo do inferno, troquei-lhe
o nome conscientemente n�o sei quantas vezes, e, de quando em quando, at� lhe trocava o sexo dirigindo-me a ele como se fosse uma mulher.
Um dia disse-lhe "�s bonita", com a voz embargada e as l�grimas a correr pela cara abaixo, e ele entendeu que era de mim que eu falava sem fazer perguntas nem
se sentir amea�ado.
Haveria mais homem do que isto, caramba?
E eu gritava.
E eu gritava, n�o, eu expulsava todos os gritos que tinha dentro de mim, que � completamente diferente.
Incr�vel.
Este tinha o cond�o de me p�r a vibrar sem precisar de fazer nada de especial. Bastava-lhe deitar-se de barriga para baixo, entre as minhas pernas, t�o perto
que eu podia sentir-lhe o vento da respira��o, e come�ar a olhar para dentro do meu corpo, interessado, como se lesse um mapa.
Era de tal maneira comovente a sensa��o que eu �s vezes n�o a suportava. Dobrava as pernas de olhos fechados, como um reflexo, e atirava-o ao ch�o com toda a
for�a.
E partia.
Voltava � inf�ncia para fazer as pazes com os meus pais, dissolver ressentimentos, desculpar os meus irm�os.
Queria-o para sempre ao p� de mim porque, at� agora, fora o �nico que, verdadeiramente, tivera a paci�ncia e o amor de me mostrar a mim mesma.
Afinal, quanta gente - homens, mulheres, crian�as e bichos - n�o tinha eu dentro de mim, encarcerada!
Gente que tinha esperado durante todos aqueles anos por uma oportunidade de sentir, uma oportunidade de viver.
E ele desencantou-as.
Exactamente como o amor, dantes, fazia �s mouras...

* * *

Uma semana depois de ter partilhado com a In�s a inten��o de me casar, o Rui disse que vinha jantar e n�o apareceu.
Tinha-lhe feito uma tarte de tomate e azeitonas, receita da minha m�e. Tinha arranjado as unhas e rematado a �ltima almofada. Tinha-lhe comprado na Baixa a
Carmina Burana para que me ensinasse a ouvir.
N�o lhe falei para casa para confirmar se viria, porque eram dez da noite e ainda n�o perdera a esperan�a de que chegasse.
Comemos na sala, com o seu lugar vago, em sil�ncio. O Afonso foi o primeiro a quebr�-lo. Quando falou, parecia gritar quando me disse baixinho:
- Vai ver, m�e: o Rui ainda aparece por a� para jogar xadrez comigo!
Vimos, os tr�s juntos, o �ltimo filme.
Deixei-os ficar na sala at� muito tarde como se abrisse uma excep��o, mas, no fundo, o que eu queria era companhia para n�o morrer sozinha.
Morri sozinha.
Durante uma semana n�o fui trabalhar; falei-lhe todos os dias para o n�mero de casa, que n�o atendia, e para o escrit�rio, onde nunca estava.
Continuava a falar com as pessoas e a responder-lhes, mas estranhava aquele zumbido na minha cabe�a.
Era como se uma mosca me tivesse entrado por um ouvido, ao engano, e endoidecesse por se ver capturada.
A express�o dele, na minha mesa de cabeceira, j� n�o me fazia rir.
Os mi�dos tamb�m j� se calavam.
Um dia, o telefone tocou a desoras e a voz de um rapaz novo informou-me:
- Naquela noite, o meu pai pediu-me que ligasse para este n�mero para lhe dizer que estava mal e que queria ver a senhora. Mas morreu logo a seguir, e depois,
sinceramente, com toda aquela confus�o...
Tinha-se esquecido de me avisar.
Na noite em que vinha ter connosco para me gabar a tarte de azeitonas, o Rui chocara de frente e batera com a cabe�a no volante. N�o colocara o cinto porque
o trajecto era pequeno.
- Pequeno? - lembro-me de pensar. - Do escrit�rio ao c�u, acham pouco?
No carro, encontraram umas flores sujas de sangue e um bilhete que dizia "Abril tem 30 dias, ou trinta e um?" Morrera de madrugada, ao lado do filho, no hospital.
As mulheres eram muito estranhas: o desgosto teria sido maior se ele me tivesse deixado. Agora, choraria s� de saudades, como a minha sobrinha.

* * *

Passou-se um tempo.
Da dor passei ao cansa�o, e, do cansa�o, a um medo enorme.
O escrit�rio pesava-me, as costas queimavam-me mais do que nunca, e, de manh�, o meu olhar embaciava mais depressa do que o espelho.
N�o o confessei a ningu�m, por me parecer uma aspira��o marialva, mas pela primeira vez na minha vida precisei de rectaguarda
De repente, como se tivessem combinado, as pessoas da minha vida seguiam a delas.
A In�s casara-se, a Leonor vivia do outro lado do rio e a Pilar desaparecera do mapa.
T�o estranho.
Era como se tivesse cegado de repente, e, de um momento para outro, tivesse que aprender a usar bengala.
Um dia, encontrei o Nuno, e, anos mais tarde, o Vasco. Ambos me fizeram a mesma pergunta:
- Est�s feliz?
Respondi uma frase qualquer, mas n�o a verdade. Os outros eram sempre algu�m a quem n�o se podia contar nada, porque, mesmo quando percebiam, nunca
percebiam tudo.
Claudiquei passados dois anos com um m�dico am�vel, muito civilizado.
Ironicamente, foi gra�as ao seu bom trato que o pai dos meus filhos voltou a frequentar a nossa casa e a jogar xadrez com o Afonso, como sempre fazia
antes de nos separarmos; foi tamb�m em nossa casa que ele conheceu a Mafalda e se apaixonou por ela. Um ano depois, o Afonso foi viver com eles.
- N�o te preocupes com a tua amiga - sossegou-me. A Mafalda adora crian�as!
Espantoso. Desejara-lhe um filho em tempos, agora entregava-lhe o meu.
Um dia, por qualquer raz�o que me escapou, dei comigo a ligar o n�mero do Bot�nico.
Enquanto o telefone chamou, receei j� n�o me lembrar do nome dele.
- Est�, quem fala?
- Sou eu - disse ele.
Reconheceu a minha voz e alegrou-se de a ouvir.
- Separei-me - contou-me. - Se a menina ainda me quiser...
Eu n�o queria nada mas, mesmo assim, combinei almo�ar com ele num restaurante qualquer.
Continuava alto e bonito, mas igual a si mesmo.
Levou-me flores nesse dia e explicou-me a que esp�cie pertenciam. Embevecido, falou-me do recorte das folhas, da penugem do caule, do seu nome em latim,
No fim do almo�o dei comigo a pensar que ele n�o era t�o est�pido como parecia e que o amor, afinal, tamb�m podia ser aquilo.
Talvez fosse culpa da modernidade.
Os amores verdadeiros j� n�o se fabricavam, e as imita��es que se faziam eram t�o perfeitas que a maior parte das pessoas n�o dava pela diferen�a.
Mas, o que eram os amores verdadeiros? Est�pida era eu, que ainda achava que os podia distinguir.

FIM.
SEMPRE-LENDO O MELHOR GRUPO DE TROCA DE LIVROS DA INTERNET


---------- Forwarded message ---------
De: ANTÓNIO VELOSO 
     RITA FERRO


Uma Mulher
Não Chora


Janeiro de 1998
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